O Desaparecimento de Josef Mengele
 9788551005385

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Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
Epígrafe
Sumário
Primeira parte: O paxá
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Epílogo: O fantasma
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Fontes e bibliografia
Agradecimentos
Sobre o autor

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Copyright © Éditions Grasset & Fasquelle, 2017 TÍTULO ORIGINAL

La disparition de Josef Mengele REVISÃO

Carolina Rodrigues Juliana Pitanga DESIGN DE CAPA

Estúdio Insólito REVISÃO DE E-BOOK

Vanessa Goldmacher GERAÇÃO DE E-BOOK

Joana De Conti E-ISBN

978-85-510-0538-5 Edição digital: 2019 1ª edição Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrínseca Ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 – Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br

     

     

     

     

Em memória de Ada e Giuditta Spizzichino, Grazia Di Segni e Rossanna Calò

“Você que tanto mal fez a um homem simples Morrendo de rir ao ver seu sofrimento Não pense que está a salvo Pois o poeta se lembra.” CZESLAW MILOSZ

SUMÁRIO [Avançar para o início do texto] Folha de rosto Créditos Mídias sociais Dedicatória Epígrafe Primeira parte: O paxá 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23.

24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. Segunda parte: O rato 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56.

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PRIMEIRA PARTE

O paxá “A felicidade só pode estar no que agita, e só o crime agita; a virtude... jamais leva à felicidade.” SADE

1. O North King rasga a água barrenta do rio. Encarapitados no convés, seus passageiros escrutam o horizonte desde o raiar do dia e, agora que os guindastes dos estaleiros e a linha vermelha dos armazéns do porto perfuram a bruma, alemães entoam uma canção militar, italianos se persignam, judeus rezam e, a despeito da chuva fina, casais se beijam, o transatlântico chega a Buenos Aires após três semanas de travessia. Na amurada, Helmut Gregor rumina. Esperava que uma lancha da polícia secreta viesse pegálo, evitando-lhe as chateações da alfândega. Em Gênova, onde embarcou, Gregor pediu a Kurt que lhe fizesse esse favor; apresentou-se como cientista, um geneticista de alto gabarito, e lhe ofereceu dinheiro (Gregor tem muito dinheiro), mas o “coiote” se esquivou, sorrindo: esse tipo de credencial é reservado aos peixes graúdos, aos figurões do antigo regime, raramente a um capitão da SS. Em todo caso, escreverá um telegrama para Buenos Aires, Gregor pode contar com ele. Kurt embolsou os marcos, mas a lancha nunca apareceu. Gregor então espera no gigantesco saguão da alfândega argentina junto com os outros emigrantes. Segura com firmeza duas malas, uma grande e uma pequena, e observa a Europa exilada em volta, as longas filas de anônimos elegantes ou maltrapilhos, dos quais manteve distância durante a travessia. Gregor preferiu contemplar o oceano e as estrelas ou ler poesia alemã em sua cabine; passou em revista os últimos quatro anos de sua vida, desde que abandonou às pressas a Polônia em janeiro de 1945 e se dissolveu na Wehrmacht para escapar das garras do Exército Vermelho: sua internação de algumas semanas num campo de prisioneiros americano, sua libertação por possuir documentos falsos em nome de Fritz Ullmann, seu

esconderijo numa fazenda florida da Baviera, não longe de Günzburg, sua cidade natal, onde ceifou feno e selecionou batatas durante três anos sob o nome de Fritz Hollmann, depois sua fuga na Páscoa dois meses antes, a travessia das Dolomitas por trilhas de contrabandistas na floresta, a chegada à Itália, primeiro ao Tirol do Sul, onde passou a ser Helmut Gregor, e por fim a Gênova, onde Kurt, o “coiote”, acelerou seu processo junto às autoridades italianas e à imigração argentina.

2. Na alfândega, o fugitivo estende um documento de viagem da Cruz Vermelha internacional, uma autorização de desembarque e um visto de entrada: Helmut Gregor, 1,74m, olhos castanhos-esverdeados, nascido em 6 de agosto de 1911 em Termeno, ou Tramin, em alemão, comuna do Tirol do Sul, cidadão alemão com nacionalidade italiana, católico, mecânico. Endereço em Buenos Aires: rua Arenales, 2.460, bairro Florida, a/c Gerard Malbranc. O funcionário da alfândega revista suas bagagens, as roupas meticulosamente dobradas, o retrato de uma mulher loura e delicada, livros e alguns discos de ópera, depois franze o rosto ao descobrir o conteúdo da mala pequena: seringas hipodérmicas, amostras de sangue, plaquetas de células: estranho para um mecânico. Ele chama o médico do porto. Gregor estremece. Correu riscos inauditos para conservar a maleta comprometedora, fruto precioso de anos e anos de pesquisas, sua vida inteira, a qual ele embarcou ao deixar precipitadamente seu posto polonês. Se os soviéticos o detivessem na posse da valise, o executariam sumariamente. A caminho do Ocidente, na primavera de 1945 da grande débâcle alemã, deixou-a com uma enfermeira compassiva que reencontrou na parte oriental da Alemanha, em zona soviética, uma incursão alucinada após sua libertação do campo americano e três semanas de viagem. Passou-a em seguida a Hans Sedlmeier, seu amigo de infância e homem de confiança de seu pai industrial, com quem se encontrou regularmente nos bosques ao redor da fazenda onde se escondeu durante três anos. Gregor não teria deixado a Europa sem sua maleta: Sedlmeier devolveu-a antes de sua partida para a Itália, acompanhada de um grande envelope com dinheiro em espécie, e eis que um idiota de unhas sujas está em vias de estragar tudo,

pensou Gregor, enquanto o médico do porto inspeciona as amostras e as anotações em caracteres góticos cerrados. Não compreendendo nada, interroga-o em espanhol e alemão; o mecânico lhe explica sua vocação de biólogo amador. Os dois homens se medem com o olhar, e o médico, preocupado com o almoço, faz sinal ao funcionário para deixá-lo passar. Naquele 22 de junho de 1949, Helmut Gregor alcançou o santuário argentino.

3. Em Gênova, Kurt prometeu-lhe que um médico alemão o esperaria no porto e o levaria à casa de Malbranc, mas era outra lorota do coiote. Gregor anda de um lado para o outro sob a chuva, seu contato talvez esteja preso no engarrafamento. Observa o cais, o balé dos estivadores, as famílias reunidas que vão embora sorrindo, as pilhas de couro e fardos de lã nas áreas de carregamento dos cargueiros. Nenhum médico alemão no horizonte. Gregor consulta seu relógio, o som da sirene de um navio frigorífico ecoa pela plataforma, Gregor, ansioso, hesita em dirigir-se à casa de Malbranc, porém decide esperar, é mais prudente. É, portanto, um dos últimos passageiros do North King a permanecer no cais. Dois calabreses carregados de malas lhe propõem dividirem um táxi. Gregor surpreende a si mesmo ao acompanhar os pobretões. Nesse primeiro dia em terra sulamericana não lhe apetece ficar sozinho, aliás, não tem para onde ir.

4. No hotel Palermo, divide um quarto sem pia nem vaso com seus companheiros, que zombam dele: Gregor, o tirolês do sul, não fala uma palavra de italiano. Amaldiçoa sua escolha, mas se segura, aceita algumas rodelas de salame com alho e adormece, esgotado, com sua maleta atochada entre ele e a parede, ao abrigo da cobiça dos dois homens. Na manhã seguinte, está pronto para a labuta. Na casa de Malbranc, ninguém responde a seus telefonemas: ele pula dentro de um táxi, deixa a maleta no armário da estação ferroviária antes de alcançar uma rua tranquila do bairro Florida. Gregor toca a campainha de uma espaçosa mansão estilo neocolonial. Volta uma hora mais tarde, toca novamente, depois, de um café onde se refugiou, telefona três vezes em vão. Antes de deixar Gênova, Kurt lhe passou um segundo contato em Buenos Aires: Friedrich Schlottmann, um homem de negócios alemão, dono de uma próspera empresa de têxteis. Em 1947, Schlottmann financiou a fuga de aviadores e engenheiros da força aérea alemã, via Escandinávia. “O homem é poderoso, pode ajudá-lo a arranjar um emprego e novos amigos”, disselhe Kurt. Ao chegar à sede da Sedalana, Gregor pede para ver Schlottmann, mas ele está de folga até a outra semana. Como ele insiste, uma secretária leva-o até o diretor de recursos humanos, um germano-argentino vestindo um paletó de abotoamento duplo, cujo aspecto desagrada-lhe imediatamente. Gregor candidata-se a um posto de manager, mas, em vez disso, o rapaz com gel no cabelo lhe sugere um emprego de operário “bastante honroso”: escovar a lã que chega diariamente da Patagônia, essa é a função de praxe para os camaradas que desembarcam. Gregor não acredita, quase pula na garganta do pé de chinelo. Ele, filho de boa família, titular de dois doutorados

em antropologia e medicina, limpar e esfregar tosões de carneiros com índios e metecos em meio aos eflúvios de produtos tóxicos, dez horas por dia, num subúrbio de Buenos Aires? Gregor bate a porta na cara do funcionário e jura arrancar a pele de Kurt quando retornar à Europa.

5. Sorvendo uma laranjada, Gregor elabora uma linha de ação. Arranjar um emprego, aprender cem palavras de espanhol por dia, fazer contato com Malbranc, um exagente da rede Bolívar da Abwehr, o serviço de contraespionagem nazista; encarar seu infortúnio com paciência, ficando com os dois calabreses, embora pudesse se hospedar num hotel confortável. Não compreendeu nada do dialeto dos meridionais, exceto que são veteranos fascistas da conquista da Abissínia. Soldados não o trairão, então é preferível manter-se discreto e economizar suas preciosas divisas, o futuro é incerto, Gregor nunca foi temerário. Avellaneda, La Boca, Monserrat, Congreso... com um mapa aberto, familiariza-se com a topografia de Buenos Aires e sente-se minúsculo diante do tabuleiro, uma pulga insignificante, ele, que aterrorizava um reino inteiro não fazia tanto tempo assim. Gregor pensa em outro tabuleiro, galpões, câmaras de gás, crematórios, linhas férreas, onde passou seus mais belos anos de engenheiro da raça, uma cidade interditada em meio ao odor acre de carnes e cabelos queimados, cercada por guaritas e fios de arame farpado. De motocicleta, de bicicleta e de carro, ele circulava por entre as sombras sem rosto, infatigável dândi canibal, botas, luvas, uniforme reluzentes, quepe ligeiramente inclinado. Cruzar seu olhar e dirigir-lhe a palavra era proibido; até mesmo seus colegas da Ordem Negra o temiam. Na rampa onde era feita a triagem dos judeus da Europa, eles ficavam bêbados, mas ele continuava sóbrio e assobiava alguns compassos da Tosca, sorrindo. Nunca entregar-se a um sentimento humano. A piedade é uma fraqueza: com um movimento da batuta, o todo-poderoso selava a sorte de suas vítimas, à esquerda a morte imediata, as câmaras de gás, à direita a morte lenta,

os trabalhos forçados ou seu laboratório, o maior do mundo, que ele alimentava com “material humano adequado” (anões, gigantes, deformados, gêmeos) diariamente, conforme chegavam os comboios. Injetar, medir, sangrar; cortar, assassinar, autopsiar: à sua disposição, um zoológico de crianças cobaias para que ele desvendasse os segredos da gemeidade, produzisse super-homens ou tornasse as alemãs mais fecundas, a fim de um dia povoar com camponeses soldados os territórios do Leste arrancados dos eslavos e defender a raça nórdica. Guardião da pureza da raça e alquimista do homem novo: uma formidável carreira acadêmica e o reconhecimento do Reich vitorioso o aguardavam após a guerra. Sangue para o solo, sua louca ambição, o grande desígnio de Heinrich Himmler, seu chefe supremo. Auschwitz, maio de 1943 – janeiro de 1945. Gregor é o anjo da morte, o doutor Josef Mengele.

6. Neblina, temporais, o inverno austral subjuga Buenos Aires, e Gregor repousa na cama em depressão, pegou um resfriado. Observa a trajetória de uma barata surgida de um duto de ventilação e se arrepia sob os cobertores. Desde o outono de 1944, nunca esteve tão mal. Os soviéticos tomavam conta da Europa central: ele sabia que a guerra estava perdida e não dormia mais, com os nervos em frangalhos. Sua mulher Irene o reerguera. Ao chegar a Auschwitz durante o verão, ela lhe mostrara os primeiros retratos de seu filho Rolf, nascido alguns meses antes, e passaram semanas idílicas. A despeito da magnitude de sua tarefa, a chegada de 440 mil judeus húngaros, desfrutaram de uma segunda lua de mel. As câmaras de gás funcionavam a todo vapor; Irene e Josef banhavam-se no Sola. A SS queimava homens, mulheres e crianças vivos nos fossos; Irene e Josef colhiam mirtilos para fazer geleia. As chamas irrompiam dos crematórios; Irene chupava Josef e Josef possuía Irene. Mais de 320 mil judeus húngaros foram exterminados em menos de oito semanas. Quando Josef ameaçara sucumbir no início do outono, Irene permanecera ao seu lado. Haviam se mudado para uma nova cabana, equipada com banheira e cozinha, com testemunhas de Jeová a seu serviço. Gregor contempla o retrato de Irene na mesa de cabeceira, uma foto de 1936, ano em que se conheceram em Leipzig. Ele trabalhava no hospital universitário, Irene estava de passagem, estudava história da arte em Florença. Paixão à primeira vista; a jovem tinha dezenove anos, era loura e magra, lembrava uma Vênus de Cranach, seu ideal feminino. Gregor tosse e recorda-se de Irene num vestido de verão, agarrada a seu braço no jardim inglês de Munique, de Irene em êxtase no cupê Opel, trepidando nas autoestradas do

Reich no dia de seu casamento, às vésperas da guerra. E Gregor espuma de raiva ao contemplar pela milésima vez os lábios finos de sua esposa na foto. Ela se recusou a acompanhá-lo à Argentina com seu filhinho, recusou-se a levar uma vida clandestina do outro lado do oceano. Mengele figura na lista americana de criminosos de guerra e seu nome foi citado em diversos processos. Na verdade, ela se livrou dele. Ao longo dos anos, nos bosques e albergues em torno de seu esconderijo bávaro, ele a sentia cada vez mais distante. Sedlmeier, seu pai e seus dois irmãos, Karl e Alois, disseram-lhe que Irene, trajando luto, consolava-se com outros homens. “Para acobertá-lo”, ela disse à polícia americana que ele morrera em combate. “Cadela”, geme Gregor em sua mansarda do Palermo: seus colegas, quando retornaram do front, foram recebidos como heróis por suas mulheres; a dele, depois de se apaixonar por um sapateiro de Freiburg, dispensou-o no umbral de lugar nenhum.

7. No banheiro, no corredor do andar, com uma toalha amarrada na cintura, Gregor admira sua barriga lisa e seu torso imberbe, a maciez de sua epiderme. Sempre cuidou da pele. Seus irmãos e Irene zombavam de sua vaidade de jovem deslumbrado, das horas dedicadas a se hidratar e se mirar no espelho, mas ele abençoa a vaidade que lhe salvou a vida. Ao ingressar na SS, em 1938, recusou-se a tatuar seu número de matrícula sob a axila ou no peito, como exigia o regulamento: quando os americanos o detiveram depois da guerra, tomaram-no por um simples soldado e o libertaram semanas mais tarde. Gregor aproxima-se do espelho e examina o arco de suas sobrancelhas, sua testa ligeiramente proeminente, seu nariz, sua boca cruel, de frente e de perfil, e revolve os olhos, sedutores, depois severos e inquietantes. Por muito tempo, o engenheiro da raça ariana perguntou-se qual era a origem de seu misterioso sobrenome. Mengele soa como uma espécie de bolo de Natal ou um aracnídeo peludo. E por que sua tez e seus cabelos eram tão amorenados? Em Günzburg, seus colegas de classe o apelidaram de Beppo, o cigano, e, quando se dissimula em Buenos Aires por trás de um bigode tenebroso, lembra um hidalgo, um italiano: um argentino. Gregor sorri, aspergindo-se água-de-colônia, e expõe um espaço entre seus incisivos superiores. Apesar da derrota e da clandestinidade, e Malbranc sempre ausente, ele venceu a febre e está louco por uma mulher. Para um homem de 38 anos que a vida e a guerra não pouparam, pensa, continua atraente. Gregor penteia o cabelo para trás como William Powell em O caso de Hilda Lake, enfia uma roupa e sai, o céu está claro, a brisa do rio da Prata, revigorante. Aproveita esses dias para conhecer Buenos Aires. A colossal avenida 9 de Julho e seu obelisco; Corrientes, seus

cabarés e livrarias; o arranha-céu Barolo e os cafés artnouveau da avenida de Maio; os gramados sujos do parque de Palermo; as artérias ruidosas do centro, as lojas de doces e butiques luxuosas da Calle Florida. Na véspera, assistiu à troca de guarda em passo de ganso dos granadeiros em frente à Casa Rosada, o palácio presidencial, o fervor dos curiosos à volta, seu respeito à coisa militar. O exército, instituição estabilizadora, na Argentina assim como em toda parte. Só os alemães empenham-se em destruir suas tradições com sua culpa coletiva, resmungou no metrô que o levava de volta ao cubículo de Palermo. Por todos os lados, mulheres bonitas, flores, cães vadios, plátanos e seringueiras, eflúvios de charutos e carnes grelhadas, butiques mais concorridas do que na Europa. Fotos de Alfredo Di Stéfano usando a camisa branca com faixa vermelha do River Plate e retratos de Carlos Gardel e Agustín Magaldi enfeitam as bancas de jornal, ao lado de gravuras da Virgem e capas de Sintonía, a revista dos astros e estrelas. Gregor, num bonde, imerge na massa dos pedestres e automóveis, a metrópole aberta desde a sua fundação a desertores e charlatães. Não fala com ninguém. Quando percebe judeus de barba ruiva, os filhos dos Rusos que fugiram dos pogroms czaristas do início do século, muda de calçada. Em seu mapa, marcou em vermelho o bairro de Villa Crespo e a praça Once, onde os judeus instalaram suas alfaiatarias, teme cruzar com um espectro de Auschwitz capaz de desmascará-lo. Gregor não se sente completamente deslocado. A Argentina, em pleno boom, é o país mais desenvolvido da América Latina. Com o fim da guerra, a Europa devastada compra seus produtos alimentícios. Buenos Aires está repleta de cinemas e teatros; os telhados são cinzentos, os colegiais usam uniformes austeros. E, como na Alemanha no tempo do Reich, dedica-se um culto ao líder da nação, uma dupla, um urso num uniforme de opereta e um pardal

carregado de joias. O redentor e a oprimida: Juan e Evita Perón exibem-se triunfalmente em todos os muros da capital.

8. Gregor mata o tempo decifrando esse romance nos jornais. Eles se conheceram em janeiro de 1944, numa gala beneficente para as vítimas do terremoto que arrasara San Juan alguns dias antes. A jovem atriz Eva Duarte deslumbrase com o coronel Perón, um dos homens fortes da camarilha de oficiais no poder, porta-voz dos deserdados, atleta emérito, loquaz, olhos de lince e feições de índio: ele mobilizou o país inteiro para socorrer a cidade destruída. Terminada a festa, Perón passa na rádio onde Evita faz uns bicos, e Evita, no ministério do Trabalho onde Perón esculpe seu destino. Seu ardor e sua generosidade o deixam louco: ele a recruta para sua secretaria e dali a pouco estão morando juntos. Evita entrega-se ao seu comando: “Perón, meu sol, meu céu, meu condor que, alto e distante, voa por entre os cimos próximos de Deus. Razão da minha vida.” Por sua atuação, Perón recebe mais insígnias. Ei-lo ministro da Guerra e vice-presidente. Aumenta o orçamento das forças militares, cria uma força aérea, agita nas ondas do rádio a ameaça de um ataque do vizinho brasileiro, que jamais acontecerá. Com o fim do conflito mundial, os Estados Unidos pressionam a junta militar no sentido de convocar eleições livres. Em setembro de 1945, uma grande passeata pela liberdade traz para a rua os opositores ao regime. A Argentina ruge, os oficiais se dilaceram, os mais liberais se livram dos nacionalistas, prendem Perón e o demitem de suas funções. Seus partidários se mobilizam, convocados pela CGT, operários, sindicalistas e desempregados marcham na direção de Buenos Aires e da praça de Maio e, diante dos portões do palácio presidencial, exigem sua libertação e seu retorno ao governo. Poucos meses depois, Perón se casa com Evita e vence as eleições presidenciais.

Provincianos, ambiciosos e revanchistas, Evita e Perón se assemelham. Ele é um filho das estepes desoladas do estado de Chubut, seu pai um fracassado turbulento, sua mãe, volúvel; ela, filha ilegítima de um notório bígamo da província. Evita não tinha nascido quando Perón, aos dezesseis anos, entra para os cadetes militares, em 1911. Rio Paraná, os Andes, Misiones “amazonenses”: o jovem soldado explora as vísceras da Argentina ao sabor de suas transferências e descobre peões esmagados pelo trabalho, operários dos matadouros de Buenos Aires mais maltratados que os animais a caminho da degola. As desigualdades de um país rico, principal fornecedor de matérias-primas da Inglaterra, país que dita sua lei: os ingleses controlam a rede ferroviária, os bancos exploram os tesouros dos pampas e as imensas florestas de quebrachos-vermelhos, dos quais extraem os taninos. Os grandes latifundiários açambarcaram o poder e dão festas suntuosas. Em Buenos Aires, defrontam-se o palácio e a favela, o teatro Colón e os bordéis de La Boca. A crise de 1929 devasta a Argentina. Desempregados e sem-teto proliferam, greves paralisam o país, bandos anarquistas infestam os campos. Perón morde o freio. Indiferentes ao infortúnio de seus concidadãos, os dirigentes corruptos geram a escassez, pregam a democracia enquanto fraudam as eleições. Os anos 1930: casas de ópio, escândalos financeiros, éter e cocaína, assaltos à mão armada. Em meados da década infame, Evita adolescente chega a Buenos Aires para ser atriz. A ingênua franzina é abusada por produtores sem escrúpulos. Evita explode: não esquece nada e não perdoa nunca. Sonha extirpar os traidores de suas tocas imundas, decapitar os barões do açúcar e da pecuária amasiados com os capitalistas estrangeiros que pisoteiam os humildes. Evita é mais fanática e fervorosa do que Perón. Em 1946, ei-los senhores da Argentina, apoiados pela Igreja, por militares, nacionalistas e proletários: a hora da

espada chegou.

9. Os Perón querem emancipar a Argentina e anunciam uma revolução estética e industrial, um regime plebeu. O presidente Perón esbraveja e vocifera no rádio para as massas hipnotizadas, gesticula e bravateia, promete o fim da humilhação e da dependência e uma vida fabulosa, o grande salto: ele é o salvador, o justicialismo peronista fará a Argentina entrar nos livros de história. Perón é o primeiro político a socorrer a velha sociedade agrícola colonial argentina. Secretário de Estado, mimou os trabalhadores; presidente, oxigena o funcionalismo público com o apoio da CGT, integrada no imenso aparelho estatal. Crescimento e autossuficiência, orgulho e dignidade: Perón cassa os privilégios da oligarquia, projeta sonhos de grandeza, centraliza e nacionaliza as ferrovias, a telefonia, os setores estratégicos nas mãos dos estrangeiros. Evita é o ícone da modernização radical em curso. Em vestido de gala, a madona dos pobres recebe delegações sindicais, visita hospitais e fábricas, inaugura trechos de estradas, distribui próteses dentárias e máquinas de costura, joga maços de pesos pelas janelas do trem a bordo do qual, incansável, sulca o país. Cria uma fundação de ajuda aos “descamisados”, a todos os abandonados, e propaga a boa nova peronista no estrangeiro sob os vivas das multidões. Em 1947, por ocasião de sua turnê do “arcoíris”, é recebida pelo papa e por diversos chefes de Estado. Os Perón, mediadores do povo e da vontade de Deus, ditam a nova ordem, nacionalista e autoritária. Promovem um expurgo na universidade, no sistema judiciário, na imprensa, na administração; triplicam os efetivos dos serviços secretos, homens em capas pretas e ternos marrons. Perón grita: “Alpargatas, sim; livros não!”: demitido de seu posto na biblioteca municipal de Buenos

Aires, Jorge Luis Borges é promovido a inspetor nacional de aves e coelhos. Perón pensa o mundo. O homem é um centauro movido por desejos antinômicos e hostis que galopa numa nuvem de poeira em busca do paraíso. A História é o relato das contradições humanas; capitalismo e comunismo fazem do indivíduo um inseto, o primeiro o explora, o segundo o subjuga. Só o peronismo superará o individualismo e o coletivismo. É um catecismo simples e popular, que oferece um compromisso inédito entre o corpo e a alma, o mosteiro e o supermercado. Ao seu povo Perón promete a posição vertical do pêndulo: a saída da era do centauro para a Argentina, nação cristã, nacional e socialista.

10. Centauros e descamisados, a improvável harmonia das antinomias peronistas é irrelevante para Gregor. Por ora, ele só pensa em orientar-se e salvar sua pele. Com a primavera austral de volta, ele abandona o turismo. Em meados de setembro de 1949, obtém um visto de permanência e arranja um emprego de carpinteiro no bairro de Vicente López, onde se estabelece em um novo antro com as vidraças encardidas, que divide com um engenheiro e sua filhinha. Gregor é despertado uma noite pelos gemidos da criança. Com a testa ardendo, o rosto lívido, ela tem convulsões, e o pai em pânico suplica a Gregor, com quem não trocou três palavras, que chame um médico com urgência. Gregor murmura ao ouvido do engenheiro que pode examiná-la, mas com a condição de que ele não revele seus dons a ninguém, caso contrário, que se vire, não moverá um dedo e sua filha morrerá e ai dele se o trair no futuro. Ninguém pode saber que ele é médico. Ele, que desprezava os operários e o serviço braçal durante seu estudo nas melhores universidades da Alemanha, aceita instalar assoalhos e juntar vigas, já que desde o início de sua clandestinidade foi obrigado a se habituar aos trabalhos físicos embrutecedores, às tarefas inapropriadas. Na fazenda na Baviera, Gregor tinha de limpar a estrebaria, podar as árvores, capinar a terra. Aqui, as semanas se arrastam, sua vida é tediosa, solitária, desde que está em Buenos Aires teme o passo em falso, um encontro desagradável, luta contra esse medo. Gregor está tolhido. Todos os dias, muda de itinerário para ir ao trabalho. Regularmente, cruza com germanófonos, mas não ousa abordá-los. Sonha com um pé de porco e um suco de maçã num dos restaurantes alemães que descobriu ao sabor de suas peregrinações invernais — o ABC, em pleno centro, o

Zur Eiche, na avenida Crámer, ou o Otto, no bairro de Chacarita —, mas se recusa tanto a empurrar a porta como a falar sua língua em público. Gregor tem um forte sotaque bávaro. Da mesma forma, está fora de questão comprar Der Weg, o periódico mensal pela liberdade e a ordem. Gregor se consola indo buscar a correspondência que ainda lhe é enviada ao hotel Palermo. Graças ao amigo Sedlmeier, mantém contato com Irene e sua família: via uma caixa postal, manda-lhes cartas impregnadas de melancolia, e Sedlmeier entrega-lhe as cartas e remessas de seus pais. Lá, tudo vai bem. A empresa familiar de máquinas agrícolas prospera, as vendas de carrinhos de mão e colhedeiras vão “de vento em popa”, alardeia seu pai. A Alemanha não terminou de recolher seus escombros e mal começa a se reerguer. Karl sênior espera por ele: assim que os “Amigos revanchistas pararem de chicanear”, ele reintegrará o regaço familiar e o conselho de administração. “Josef, pare de choramingar, você lutou na frente do Leste, não é mais uma criança. Seja paciente, desconfie sempre, as coisas vão se arranjar.”

11. Trancado no quarto abandonado pelo engenheiro e sua filha, Gregor escuta uma ópera de Strauss, devorando Der Weg. Na antevéspera teve uma vertigem, largou seu serrote e quase caiu de um andaime com vários andares de altura. Deve a vida à agilidade do mestre de obras. Então, cansado de mofar indefinidamente e esperar o retorno de Malbranc, o fantasma, correu ao quiosque para comprar a revista dos nostálgicos da Ordem Negra e a esgueirou sob o paletó. Poemas, uma prosa alambicada, artigos racistas e antissemitas, como se o Terceiro Reich nunca tivesse ruído. Gregor deleita-se com o kitsch teutônico dos autores amordaçados na Alemanha pelos Aliados desde o fim da guerra. Lê atentamente os classificados das últimas páginas, descobre mercearias refinadas, cervejarias, agências de viagens, escritórios de advogados e livreiros, a extensão do cosmo germano-argentino da capital, e se regozija, talvez até saia de sua caverna; sua vida em Buenos Aires vai finalmente começar. No dia seguinte, ao sair da obra, Gregor dirige-se à sede da editora Dürer, na avenida Sarmiento, 542, e conhece Eberhard Fritsch, seu diretor, editor de Der Weg. De sua mesa, Fritsch avalia o Hauptsturmführer Gregor, que lhe fornece sua folha de serviço sem revelar sua verdadeira identidade: ingresso no partido nazista em 1937, na associação dos médicos e na SS um ano mais tarde, serviço militar no Tirol, num corpo de caças alpinos, alistamento voluntário na Waffen-SS, Escritório Central do Repovoamento e da Raça na Polônia ocupada, frente do Leste após o início da operação Barbarossa com a divisão Viking, mobilização na Ucrânia, ofensiva no Cáucaso, batalha de Rostov, cerco de Bataisk, Cruz de Ferro primeira classe. Cheio de si, Gregor detalha para Fritsch como socorreu dois tanquistas em seu carro em chamas. Evoca

sua transferência para um campo de prisioneiros na Polônia, mas não menciona Auschwitz e lastima seu destino, o exílio, a pátria adorada ocupada, a imensidão de Buenos Aires e a nostalgia do uniforme. Precisa desabafar. Fritsch acende um cigarro e se compadece. Guarda uma lembrança deslumbrante do grupo da Juventude Hitlerista, do qual participou aos catorze anos por ocasião de sua única viagem à Alemanha, em 1935, e não acredita numa só palavra dos horrores que a propaganda aliada imputa ao nazismo, “mentiras sopradas pelos judeus”. Fundou a editora Dürer para ajudar soldados como Gregor. Aos literatos do sangue e da terra censurados na Europa ele abre suas colunas e oferece honorários excepcionais nesses tempos de escassez, das sopas em cubos, das conservas de carne e do chocolate em pó; aos camaradas naufragados nas margens do rio da Prata oferece um ponto de contato, redes. O jovem Fritsch assegura a Gregor que tem “bons amigos” e que ele nada tem a temer: na Argentina, terra de fugitivos tão grande quanto a Índia, o passado não existe. Ninguém lhe perguntará de onde vem e por que está ali. “Os argentinos se lixam para as pendengas europeias e continuam a detestar os judeus por terem crucificado Cristo.” Gregor escuta um Fritsch radiante contar-lhe a festa no Luna Park de Buenos Aires para celebrar o Anschluss; como a Argentina, oficialmente neutra, foi a cabeça de ponte da Alemanha nazista na América do Sul durante a guerra. Aqui, os alemães lavaram milhões e milhões de dólares e se muniram de divisas e matérias-primas. Os serviços de espionagem haviam estabelecido seu QG regional em Buenos Aires. “Foi daqui que se organizou a derrubada do governo boliviano pró-americano no fim de 1943. Perón e os coronéis, que tomaram o poder naquele ano, procuravam aliar-se ao Führer. Dispersaram violentamente o ato que celebrava a libertação de Paris e impediram a distribuição de O grande ditador, de Chaplin. Quando Berlim caiu, Perón

proibiu as rádios de transmitir a notícia: queríamos construir um bloco de nações favoráveis aos nazistas para acuar os ianques. Mas eles nos obrigaram a romper relações diplomáticas com a Alemanha e em seguida a lhe declarar guerra. Resistimos com todas as nossas forças até o fim do inverno de 1945. A Argentina foi a última nação a entrar na guerra...” O telefone toca, Fritsch se interrompe e despacha Gregor.

12. Se pudesse, desfecharia um soco na cara do veado de olhos cinza azulados. Ou lhe daria uma boa martelada nos dedos, bang, nas falanges, ou melhor, nas unhas, sim, arrancaria sem problemas as unhas das duas mãos de Fritsch, uma por uma, despedaçando-as. Gregor reproduz a cena no banheiro do covil de Vicente López, resmungando: “Como ousa, Eberhrad, argentinozinho de merda? Passou quinze dias na Alemanha e quer ministrar lições do alto de seus vinte e oito anos? Pois sim, os ‘horrores’, como você diz, os horrores existiram, a Alemanha sitiada precisava se defender, esmagar as forças da destruição por todos os meios. A guerra não é uma brincadeira de criança, e o nazismo, seu idiota, não se limita às coreografias grandiosas da Juventude Hitlerista.” Gregor esmaga o tubo de pasta de dente e depois se acalma bruscamente, senão chegará atrasado na obra; qualquer atraso o deixa doente. Gregor passa cada vez mais regularmente na revista, ponto de encontro dos nazistas em Buenos Aires. Ali, esbarra com um brutamontes, sobre quem ouviu falar em Auschwitz, um de seus fornecedores habituais: acompanhado de um gigante treinado em destrinchar carne humana, Josef Schwammberger dirigiu campos de trabalhos forçados e liquidou diversos guetos na Polônia. Ali, conhece Reinhard Kops, o especialista em complôs judeus-maçônicos na revista, veterano dos serviços secretos de Himmler nos Bálcãs, e faz amizade com aquele que Fritsch considera “seu melhor escritor, o grande artífice do sucesso crescente de Der Weg”, autor cujos artigos bem formulados Gregor já notara, Willem Sassen. Embora exagere no uísque e fume sem parar (Gregor não fuma), o holandês poliglota de terno riscado causa-lhe boa impressão. Gregor sempre procurou o convívio dos figurões e mandachuvas: tanto na universidade como em Auschwitz, nunca se misturou com a soldadesca

SS, somente com os médicos-chefes e os comandantes do campo. Não tolera a mediocridade. Os dois bigodudos se farejam. Assim como Gregor, Sassen, alistado como voluntário num grupo da SS holandesa, lutou na frente russa e embrenhou-se em território soviético até o Cáucaso, onde foi gravemente ferido. Assim como Gregor, Sassen, propagandista do Reich nas rádios belgas e colaborador de primeira linha, foi preso depois da guerra na Holanda e condenado a uma longa pena de prisão, mas escapou duas vezes, antes de alcançar a Irlanda e em seguida a Argentina, a bordo de uma escuna que zarpou de Dublin. Sassen aprecia a cultura clássica e a força das convicções de seu novo amigo, o médico: Gregor confia em sua discrição e, pela primeira vez desde que chegou a Buenos Aires, revela sua verdadeira identidade e história. Como todos os outros, as mulheres em primeiro lugar e depois Fritsch, que lhe paga um salário confortável e seu aluguel, Gregor deixa-se seduzir pela pose e a lábia de Sassen: em poucos meses, o esperto holandês aprendeu espanhol perfeitamente e se estabeleceu na Argentina. Sua caderneta de endereços impressiona Gregor. Assim que possível, Sassen lhe apresentará Rudel, de quem é ocasionalmente motorista e faz-tudo, sim, o célebre coronel Hans Ulrich Rudel, o ás dos ases da Luftwaffe, piloto mais condecorado da história alemã (2.530 missões, 532 tanques destruídos), outro refugiado na Argentina, e diversos peixes graúdos. Também poderá conhecer o presidente Perón, que “sempre dispõe de muito tempo para os alemães”.

13. Perón nunca se esqueceu dos oficiais do grande estadomaior alemão que o instruíram na arte do comando, na época em que o exército argentino usava capacetes Pickelhaube e adotava fuzis Mauser e canhões Krupp. Prestígio, autoridade, disciplina: a engenharia militar alemã fascina tanto o jovem Perón que ele escreve uma tese sobre a Batalha dos Lagos Masurianos e raramente dorme sem consultar seus estrategistas prussianos favoritos, Clausewitz, o conde Alfred von Schlieffen e Colmar von der Goltz, teórico da nação em armas, um modelo de sociedade que Perón tenta impor à Argentina agora que tomou o poder. Tudo deve ser subordinado aos objetivos da defesa nacional. A Alemanha e então a Itália o fascinam, após a chegada de Mussolini ao poder no início dos anos 1920. Como todos os lazadores de sua geração, Perón deslumbra-se com as proezas de Italo Balbo e Francesco De Pinedo, os fascistas voadores, aviadores intrépidos que rasgam o éter estrelado para ligar Roma à América do Sul. Perón escuta a voz do Duce difundida nas rádios argentinas e corre ao cinema Palace para assistir a Um homem, um povo. Mussolini impressiona-o: um governante investido pela Providência para salvar uma nação e fazer explodir o continuum da História. Descobre a Itália em 1939, fazendo um treinamento no exército fascista, depois como adido militar na embaixada da Argentina em Roma. Durante dois anos, viaja, informa-se e faz anotações: Perón está convencido de estar no centro de uma experiência histórica inédita desde a Revolução Francesa, a fundação de uma democracia popular autêntica. Mussolini conseguiu fazer convergir forças díspares para um só objetivo, o socialismo nacional. Em 10 de junho de 1940, o exército italiano entra em guerra. Da sacada da Piazza

Venezia, o Duce faz vibrar uma multidão imensa diante de Perón em uniforme de gala. Alguns meses antes, Perón fora a Berlim e à frente oriental após a invasão relâmpago da Polônia. Perón, que leu Mein Kempf em italiano e em espanhol e admirou os bronzes de Breker e Thorak, está deslumbrado com as mudanças em curso: a Alemanha ergue-se novamente, o nazismo cicatrizou suas feridas e, em nenhum outro lugar na Europa, existe máquina tão precisa e bem lubrificada. Os alemães trabalham ordenadamente a serviço de um Estado perfeitamente organizado. O vulcão Hitler hipnotiza as massas: a História vira teatro, a vontade triunfa, e, como em Tempestade no Mont Blanc e Êxtase branco, filmes de Leni Riefenstahl que Perón descobre em sua peregrinação alemã, a coragem e a morte confraternizam. A lava hitleriana destruirá tudo à sua passagem. De volta à Argentina, elabora uma visão muito particular da guerra que se espalha. Com a Itália fascista e a Alemanha nazista oferecendo uma alternativa ao comunismo e ao capitalismo, os Estados Unidos e a União Soviética aliaram-se para lutar contra o surgimento dessa terceira força, o Eixo, primeiro bloco de potências não alinhadas, segundo Perón. Derrotadas Itália e Alemanha, a Argentina irá substituí-las e Perón triunfará onde Mussolini e Hitler fracassaram: os soviéticos e americanos não demorarão a destruir-se mutuamente com suas bombas atômicas. O vencedor da Terceira Guerra Mundial talvez esteja só aguardando do outro lado do mundo, a Argentina tem uma excelente carta para jogar. Então, esperando que a Guerra Fria degenere, Perón se torna o grande catador de lixo. Vasculha as lixeiras da Europa, empreende uma gigantesca operação de reciclagem: governará a História com os detritos da História. Perón abre as portas de seu país a milhares e milhares de nazistas, fascistas e colaboradores; soldados, engenheiros, cientistas, técnicos e médicos; criminosos de guerra

convidados a dotar a Argentina de barragens, mísseis e centrais nucleares, a transformá-la numa superpotência.

14. Perón cuida pessoalmente dos trâmites dessa grande evasão. Em Buenos Aires, cria o Escritório de Informação, um serviço especial dirigido por Rudi Freude, filho de seu principal colaborador nas vitoriosas eleições presidenciais de 1946, Ludwig Freude, banqueiro nazista riquíssimo e acionista da editora Dürer; para a Espanha franquista, para a Suíça, depois para Itália, em Roma e Gênova, onde Gregor embarcou, despacha um gângster de olhos azuis, o excapitão SS Carlos Fuldner. Freude e Fuldner estabelecem os ratlines, itinerários de retirada, e coordenam as redes de evacuação, cadeias complexas de diplomatas e funcionários corruptos, espiões e homens da Igreja que concedem absolvição aos criminosos de guerra por falta de provas. Começa a luta final contra o comunismo ateu. No fim dos anos 1940, Buenos Aires tornou-se a capital do rebotalho da derrotada Ordem Negra. Ali se cruzam nazistas, ustases croatas, ultranacionalistas sérvios, fascistas italianos, húngaros da Cruz Flechada, legionários romenos da Guarda de Ferro, vichystas franceses, rexistas belgas, falangistas espanhóis, católicos fundamentalistas; assassinos, torturadores e aventureiros: um Quarto Reich fantasma. Perón adula seus facínoras. Em julho de 1949, anistia aqueles que entraram com identidade falsa e ocasionalmente os recebe na Casa Rosada. Essa noite, um grupo de elite tem uma reunião num veleiro atracado no porto. É uma noite amena de dezembro, sem lua, os ovéns retinem, a brisa rumoreja; num cais, nos calcanhares de Sassen, Gregor passa ao longo dos barcos de lazer. “Centauro”, murmuram os dois homens ao ouvido de um gorila que os revista minuciosamente, escoltado por três comparsas de tonelagem idêntica. O holandês e o alemão

sobem ao convés do Falken e penetram no castelo de proa enfumaçado onde zumbe uma algaravia de línguas da Europa central e de espanhol. Sassen aceita com prazer o copo de cerveja que uma mulher rechonchuda lhe estende, Gregor contenta-se com um pouco d’água. “Você tem sorte”, insinua-lhe Sassen. “Temos papa-fina esta noite.” Aponta um homem escondido por trás de um cavanhaque em ponta e de óculos escuros com aro de metal preto, “Ante Pavelić, o poglavnik croata” (oitocentas e cinquenta mil vítimas entre judeus e ciganos), rodeado por uma coluna de ustases; “Simon Sabinai”, ex-“prefeito” de Marselha, condenado à morte na França à revelia, “e seus companheiros do PPF”; “Vittorio Mussolini”, segundo filho do Duce, com “Carlo Scorza”, ex-secretário geral do Partido fascista; “Robert Pincemin”, que dirigiu a Milícia em Ariège; “Eduard Roschmann”, o açougueiro de Riga (trinta mil judeus letões assassinados), “de porre, como sempre”; o físico “Ronald Richter, o queridinho do presidente: prometeu-lhe ser o primeiro a alcançar a fusão nuclear. Perón colocou à sua disposição uma ilha num lago da Patagônia para que continue suas pesquisas”. Rudel ainda não chegou, mas não vai demorar. Gregor, por sua vez, não conhece ninguém, exceto Kops, Schwammberger e o gigante em bermuda de golfe com quem eles conversam em frente a uma escotilha, que surpresa, o jurista Gerhard Bohne, diretor administrativo do programa de eutanásia T4 (dois milhões de esterilizados, setenta mil inválidos mortos com gás), que ele encontrou diversas vezes em Auschwitz. Quatro homens subiram num tablado improvisado, um coronel argentino, “Fuldner e Freude Jr., nossos anjos da guarda”, e um quarentão de terno três peças e gravata borboleta, “a bicha belga”, sorri Sassen, “o sr. Pierre Daye”, que toma a palavra. Alguns meses antes, Daye participou da fundação em Buenos Aires do centro das forças nacionalistas, um grupo de rexistas, fascistas e ustases, cuja ambição é esmagar o

capitalismo americano e o bolchevismo russo, militando pela anistia “cristã” dos criminosos de guerra presos na Europa. Às vésperas da Terceira Guerra Mundial, o continente não pode privar-se de combatentes tão laureados. Daye evoca o pecado original, o assassinato de Abel por Caim e a eterna luta fratricida que contamina a sociedade humana desde a criação do mundo. “O materialismo cosmopolita abjeto, essa negação de Deus, eis o inimigo, eis a causa de todos os nossos infortúnios!”, esbraveja o católico fervoroso. “Devemos unir nossas famílias para travar o combate. Nada nem ninguém reprimirá nossa marcha triunfal quando houvermos reconciliado o nazismo com o cristianismo...” O auditório aclama e aplaude, Daye rejubila-se e, com sua voz roufenha, prossegue: “O excelente presidente Perón, a quem devemos a liberdade, fez dessa confraternização sua missão. E vamos ajudar a Argentina a tornar-se o contrapeso hemisférico dos Estados Unidos. Para começar, caros amigos. Russos e americanos em breve se entregarão a uma luta de morte. Ano passado o bloco de Berlim quase degenerou. Hoje, as tensões se multiplicam nos quatro cantos do mundo. Então, sejamos pacientes, o futuro nos pertence, voltaremos à Europa...” Sassen agarra o braço de Gregor e pede-lhe que suba ao convés, tem “dois amigos muito queridos” para lhe apresentar. “Oberst Rudel”, resmunga uma sombra corpulenta. “Malbranc”, sussurra uma voz mais gentil. Gerard Malbranc, finalmente.

15. Às vezes Gregor ainda pensa em embarcar num transatlântico com destino a Hamburgo, um cargueiro abarrotado de milho-vermelho e linho lilás que o reaproximaria de Irene. De uma birosca do porto, escreveulhe uma carta fora de seu estilo, no terceiro domingo do Advento. Nunca lhe declarou sua paixão com tanto ardor, nunca sentiu tanta saudade e repisou tantas lembranças do passado, suas mil noites de amor, o verão luxuriante em Auschwitz, os Natais aconchegados um no outro em seus retornos do front, o último nos bosques cobertos de neve, a explosão dos flocos em sua cabeleira dourada, e, mais uma vez, propôs que ela fosse a seu encontro, suplicou-lhe que transpusesse o Atlântico. Como resposta, Irene mandou-lhe um retrato de Rolf num culote de couro, desejou-lhe um bom ano de 1950, sobriamente, e o aconselhou a comprar um cachorro para mitigar sua solidão. Curiosamente, ele não demora a fazer isso, dando-se de presente um cãozinho batizado de Heinrich Lyons. Irene lhe soprou o nome na carta, o de um ancestral americano, Harry Lyons, germanizado por ele, que achado! É homônimo do fundador de Munique, Henrique, o Leão, príncipe colonizador, duque da Baviera e de Saxe, cachorro de Gregor. Da Alemanha, contudo, uma boa surpresa: a morte, no Natal, de Karl Thaddeus, seu irmão caçula nascido prematuramente — apenas dezesseis meses os separam —, Karl que, obscuramente, ele sempre odiou. Gregor se pavoneia no terraço ensolarado de uma cervejaria na Calle Florida, pensando em sua infância no casarão de janelas estreitas como seteiras. Um dia, Karl roubara seu trenzinho elétrico, e, quando sua mãe voltou, o menor choramingara e o mais velho fora castigado. A autoritária Walburga aplicaralhe uma surra e o trancara no porão. Karl sempre ganhava as maiores porções no jantar. Karl podia acompanhar sua

mãe nas lojas de doces da Marktplatz. Aquele grande imbecil: Beppo desejara mil vezes sua morte, num incêndio ou num acidente de carro, mil vezes extravasara sua inveja atirando pedras no Danúbio, que contorna Günzburg e seus bosques. Agora Karl juntara-se a Walburga no crematório. Na carta que lhe anuncia a morte do irmão, seu pai também lhe conta que os Aliados mostram-se “cada vez mais razoáveis”. Nos últimos meses, suspenderam os processos judiciais por crimes de guerra e permitiram que ex-nazistas ocupassem postos importantes no governo e na indústria da nova República Federal. “Aos poucos eles vão compreendendo quem são os verdadeiros inimigos. A Guerra Fria está abrindo seus olhos. E nós, Josef, esquecemos a guerra, nos agarramos à reconstrução e vamos em frente. Veremos como esse velho idiota do Adenauer vai conduzir a situação.” Gregor anda a esmo pela Calle Florida porque acabou de se instalar na casa de Malbranc. Voltaram a se ver após seu encontro no Falken. Malbranc pediu desculpas: viaja muito em função de seus negócios e, quando está em Buenos Aires, passa mais tempo na residência de Olivos do que na casa de Florida, sua mulher sente-se melhor lá. Gregor não teve sorte, deve ter visitado e telefonado para ele numa hora ruim. Quando Malbranc lhe sugeriu que se mudasse para sua casa, Gregor não se fez de rogado. Trocou seu triste subúrbio pela fantástica mansão, uma cama macia, um quarto luminoso embalado pela fonte do pátio, pãezinhos, ovos e uma boa austríaca que se esfalfa dia e noite na cozinha. Seu anfitrião revela-se valioso: Malbranc, antigo espião nazista que escondeu transmissores de rádio e comprou armas durante a guerra, é um pilar da nazi society de Buenos Aires. Pela sua casa passam regularmente Karl Klingenfuss, ex-diplomata de alto escalão no setor judaico do ministério das Relações Exteriores, o grande Bubi (Ludolf von Alvensleben), condenado à morte à revelia na Polônia,

ex-subtenente de Himmler e amigo de Herbert von Karajan, e Constantin von Neurath, filho de um ex-ministro das Relações Exteriores de Hitler. Fritsch e Sassen vêm jogar pôquer na companhia de um arquiteto apaixonado por música e literatura clássicas alemãs, Frederico Haase, que exibe um cravo na lapela e fica encantado com Gregor. Entre criptas e passagens secretas, Gregor encontrou seu caminho no labirinto portenho.

16. “1950, ano do Libertador”, proclama Perón. El líder posa como herdeiro de San Martín, o pai da independência argentina. Em 25 de junho, estoura a guerra da Coreia. Em 14 de julho, é a vez de Adolf Eichmann desembarcar em Buenos Aires sob o pseudônimo de Ricardo Klement. Ele deixa rapidamente a capital. Fuldner arranjou-lhe um emprego na Capri, uma empresa estatal que constrói usinas hidrelétricas na região de Tucumán.

17. De todos os seus novos companheiros, Uli Rudel é o preferido de Gregor. Morto trinta e duas vezes, a águia da frente do Leste sempre conseguiu voltar às linhas alemãs, mesmo que Stálin tenha colocado sua cabeça a prêmio — cem mil rublos, uma fortuna. Atingido por um obus antiaéreo e amputado de uma perna em fevereiro de 1945, Rudel voltou ao seu Stuka dois meses após a cirurgia e ainda abateu, com as sirenes uivando, vinte e seis tanques soviéticos antes de se entregar aos Aliados em 8 de maio de 1945. Quando o aviador lhe mostrou a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro, com folhas de carvalho, gládios em ouro e brilhantes, da qual ele é o único detentor e que Hitler lhe entregou pessoalmente, Gregor o fitou com olhos de criança: Rudel pertence definitivamente à raça dos senhores. A despeito de sua prótese, joga tênis e acabou de escalar o Aconcágua, ponto culminante das Américas. É descendente dos cavaleiros teutônicos, cujas lendas Beppo embelezava diante da fogueira nas celebrações do solstício de verão aos dezesseis, dezessete anos, época em que dirigia a seção local do Grossdeutsche Jugendbund, movimento juvenil nacionalista e conservador. Rudel é um guerreiro alemão, tal como Gregor se considera e como Rudel parece considerá-lo, apesar da modéstia de sua carreira. Gregor não passa de um simples capitão SS, afinal de contas: o coronel gosta de encontrá-lo no ABC quando está de passagem por Buenos Aires. Em cada um de seus encontros, os dois nazistas conversam demoradamente. Não ingerem álcool e raciocinam por categorias aritméticas, partilhando os mesmos dissabores sentimentais — a esposa de Rudel exigiu o divórcio antes de sua partida para a Argentina; a mesma visão apocalíptica sobre a república de Weimar

“degenerada” e “amoral” de sua juventude; a mesma convicção de que a Alemanha foi apunhalada pelas costas em 1918; a mesma devoção “total” ao povo alemão, ao sangue alemão. Luta, tudo é luta: só os melhores sobrevivem, é a lei férrea da História, os fracos e indignos devem ser eliminados. Expurgada e disciplinada, a Alemanha é a maior potência do mundo. Sentado à mesa com o piloto heroico, Gregor exalta seu próprio passado de soldado biológico e não lhe esconde nada. Mengele arranca a máscara de Gregor. Médico, cuidou do corpo da raça e protegeu a comunidade guerreira. Lutou em Auschwitz contra a desintegração e os inimigos internos, os homossexuais e os anticonvencionais; contra os judeus, esses micróbios que há milênios trabalham visando à destruição da humanidade nórdica: era necessário erradicálos, por todos os meios possíveis. Agiu como homem moral. Colocando todas as suas forças a serviço da pureza e do desabrochar da força criativa do sangue ariano, cumpriu com seu dever de SS. Rudel fascina Gregor porque é muito bem-sucedido. Conselheiro de Perón, pilota o desenvolvimento do primeiro caça a jato da América do Sul, o Pulqui, ao lado de um fabricante de aeronaves genial, Kurt Tank, também evacuado da Alemanha. Ganha fortunas como intermediário junto à aeronáutica de diversos gigantes industriais alemães, Daimler-Benz, Siemens, o construtor de hidroaviões Dornier, e isso graças às licenças de importação que Perón generosamente lhe concedeu. Livre para ir e vir, Rudel viaja e navega de um ambiente a outro, da Europa à América do Sul, está no cerne de todas as intrigas, das redes de evasão dos criminosos, a Odessa, a Eclusa, a Aranha. Rudel, cofundador ao lado de von Neurath da Kameradenwerke, que envia remessas e custeia os advogados de seus amigos presos no país, é o marechal da imigração nazista.

Rudel acolhe Gregor sob suas asas e o adverte: não toque no tesouro nazista, nenhuma pergunta, a ninguém, nunca. A respeito desse famoso tesouro, boatos mirabolantes circulam em Buenos Aires. Pouco antes do fim da guerra, Martin Bormann, secretário da chancelaria de Hitler, teria despachado para a Argentina aviões e submarinos carregados de ouro, joias e obras de arte roubadas dos judeus: a operação Terra do Fogo. Rudel teria sido uma das pessoas a transportar o butim, depositado em diversas contas em nome de Eva Duarte. Após seu casamento, Perón teria se apossado do ouro dos nazistas, permitindo à esposa financiar sua fundação. Não faz muito tempo, os cadáveres de dois banqueiros suspeitos de administrar o espólio foram encontrados nas ruas de Buenos Aires. “No mais, tudo é possível na Argentina”, diz Rudel a Gregor. “Conhece meu lema? Só perde aquele que abandona a si mesmo.”

18. Gregor então se emancipa. Em concordância com seu pai e Sedlmeier, que continuam a alimentá-lo, ele vai representar a empresa familiar na Argentina, prospectar os gigantescos mercados de máquinas agrícolas do subcontinente. Rudel o incentiva e leva-o em seu avião particular ao Paraguai com a ideia de se associar: o país abriga colônias de fazendeiros alemães, e uma das mais antigas, Nueva Germania, foi fundada por Elisabeth Nietzsche, irmã do filósofo, uma antissemita fanática. O sudeste abunda em terras férteis, os carrinhos de mão, as colhedeiras, os pulverizadores de insumos Mengele seriam de grande valia. E a região é segura, Rudel possui vários amigos lá, os quais fundaram, em 1927, em Villarrica, o primeiro partido nazista fora da Alemanha. Sassen também pensa em seu amigo médico. Propõe-lhe um esquema ocasional, mais delicado, porém mais conforme aos seus talentos e altamente lucrativo: ajudar as jovens burguesas impulsivas a se livrarem discretamente de seus pecados em Buenos Aires em vez de parirem numa cidade distante e abandonarem o bebê num orfanato. Abortar é um crime severamente punido na Argentina católica, mas Gregor aceita o negócio. Recuperou sua maleta de amostras e instrumentos médicos (bisturis, lâminas, pinças) depois que passou a morar na casa de Malbranc. Prestar socorro às famílias mais respeitáveis, como recusar? Suas mãos coçam, vão finalmente reatar com o exercício da medicina, após todos aqueles anos como operário e fazendeiro. Nesse fim de 1950, reina certa euforia entre os fascistas de Buenos Aires. A Terceira Guerra Mundial está a um tiro de canhão, Perón vigia os telex com um dedo no gatilho, é a escalada na Coreia. O presidente Truman promete utilizar todo o arsenal militar americano para barrar a ofensiva

norte-coreana no Sul, o general MacArthur estende um cinturão de cobalto radioativo entre o mar Amarelo e o mar do Japão para impedir chineses e soviéticos de entrarem na zona de combates. Esperando que os sonhos peronistas de império se concretizem, Gregor e seus novos amigos levam uma vida mansa. Botinas reluzentes, cabelos laqueados, Haase e Gregor assistem às apresentações do Tristão de Wagner e da Carmen de Bizet no Colón, o teatro mais bonito do mundo segundo Clemenceau. O arquiteto e o médico melômanos ceiam no café Tortoni ou no Castelar e, entre duas garfadas de carne de primeira, conversam sobre o sublime da música alemã, que abraça todos os sentidos e se aproxima do infinito. Sassen, amante de variedades mexicanas, arrasta às vezes seu amigo junto com Fritsch aos cabarés ou ao Fantasio de Olivos, sua boate preferida, frequentada por produtores e atrizes. Um jogo de papéis: Fritsch paga, Gregor contempla sereias com cabelo de índia, Sassen bebe, dança, bolina yeguas e potrancas, enquanto sua mulher e suas filhinhas mofam em casa. Duas vezes por semana, quartas e sábados, Gregor vai visitar uma lechera, uma chupadora, num clube seleto em Corrientes, outra sugestão de Sassen. Gregor não deixa essas garotas dóceis tocarem em sua pele, só no seu pau, nada de beijos, nenhuma intimidade, ele paga, goza e vai embora. Quando faz muito calor em Buenos Aires, passam os fins de semana no pampa, na casa de Dieter Menge, um expiloto, outro amigo de Rudel, que fez fortuna reciclando ferro-velho e possui uma vasta estância repleta de eucaliptos e acácias. Um busto de Hitler alegra o jardim, uma suástica de granito enfeita o fundo da piscina. Na casa de Menge, as noites se estendem, o ar é transparente e os homens comungam o ofício das armas, as provas de fogo, as certezas. Os nazistas em mangas de camisa bebem cerveja e Schnaps, grelham costelas de carne, um leitão, arrotam e falam da pátria distante e da guerra, Gregor não

é muito loquaz, mas Sassen brilha nesse joguinho, inflamado, imita o estrépito dos obuses e os silvos dos projéteis, desperta as ondas de fogo, a lembrança dos rostos encardidos e dos uniformes em farrapos das divisões siberianas de Stálin. Todo 20 de abril, Menge e seu bando organizam uma procissão de archotes em homenagem ao aniversário do Führer. Às vezes, Rudel leva um recémchegado à terra prometida. Por exemplo, Wilfred von Oven, antigo colaborador próximo de Goebbels, ou um visitante prestigioso de passagem, como o SS cicatrizado Otto Skorzeny, que, dopado com metanfetaminas, usou um planador para tirar Mussolini de sua prisão domiciliar nos Abruzos após o desembarque aliado no sul da Itália. Convertido em traficante de armas, Skorzeny afirma ter seduzido Evita durante a etapa espanhola de sua turnê do arco-íris, “bang-bang, uma tremenda rameira, a señora Perón”, trombeteia: Fritsch ri, Sassen faz um brinde ao Reich e à Argentina, onde os nazistas levam a vida na flauta. Em meados de março de 1951, Menge convida a horda selvagem para ir à estância. Rudel, Malbranc, Fritsch, Bohne, Sassen, Haase, todos vão comemorar os quarenta anos do companheiro Gregor. Têm um presente para ele. Uma gravura mítica de Dürer: O Cavaleiro, a Morte e o Diabo.

19. Com MacArthur fora do comando no Extremo Oriente, o front se estabiliza. Perón fica furioso, a saída da idade do centauro e a Terceira Guerra Mundial são adiadas. Suas ambições grandiosas passam agora por uma reeleição triunfal. Então, endurece o regime: proíbe a difamação das autoridades, censura os principais diários, La Prensa é fechado, expropriado e transformado em órgão da CGT. Os efetivos militares dobram, a propaganda se intensifica; dissidentes são encarcerados, parlamentares refugiam-se em Montevidéu. E Perón recruta a dama da esperança para garantir uma vitória categórica: convida sua mulher para ser vice-presidente em seu próximo mandato. Uma fila interminável espera diariamente Evita no ministério do Trabalho e em frente à sua fundação, cujo orçamento decuplicou. As pessoas brigam para trocar algumas palavras com ela ou simplesmente cruzar seu olhar. Roçar sua mão é tocar em Cristo, na mais generosa das deusas: nunca Evita distribuiu tantas casas, remédios e roupas aos pobres da Argentina, nunca consentiu em tantos sacrifícios, como se os seus dias estivessem contados, não dorme mais e atua em todas as frentes, como se o regime estivesse ameaçado, manda esconder armas e estuda criar uma milícia privada de trabalhadores a seu soldo. Buenos Aires cobre-se de cartazes com sua efígie. No obelisco, na avenida 9 de Julho, pendem imensas faixas conclamando o povo a votar: “Perón — Eva Perón, a fórmula da pátria.” Em 22 de agosto de 1951, centenas de milhares de argentinos, com a insígnia peronista nas costas de seus paletós, convergem para a avenida mais larga do mundo, onde o casal deve anunciar oficialmente sua candidatura. Perdidos no oceano humano, Rudel e Gregor têm os olhos pregados na tribuna oficial e em Perón, sereno, gomalina

nos cabelos, braços cruzados. Subitamente, um imenso clamor: Evita aparece. Manda beijos a seus fiéis, que se ajoelham e choram, jogam uma miríade de confetes das sacadas em volta, enquanto, como num estádio, archotes, bandeiras, lenços e fogos de bengala saúdam a chegada da ídola. Quando o secretário geral da CGT pede que a multidão a proclame candidata à vice-presidência, Evita se aninha nos braços de el líder, balbucia, pede quatro dias para refletir. Consternação. A multidão rosna. Evita suplica: “Um dia?” A multidão não se conforma. Evita implora: “Algumas horas?” Fora de questão. Durante dezoito minutos o povo repete seu nome, ahora, ahora, agora! Evita vacila, explode em soluços e anuncia que comunicará sua decisão naquela mesma noite, pelo rádio. Rudel e Gregor vão embora, a brincadeira já durou muito. Os bombos, os grandes tambores, irritam seus ouvidos; a negrada, a ralé dos subúrbios operários de Buenos Aires que os cerca, lhes repugna: nunca um circo daquele teria sido concebível na Alemanha nos tempos do Führer. O comício assemelha-se à ditadura de opereta de Perón, ruminam os dois nazistas, e aos argentinos, “os reis do psicodrama, que obedecem às ordens sem executá-las. Quem não sabe obedecer nunca saberá comandar”. Enfim desgarrados da massa, Rudel conta a Gregor um boato ultrassecreto: Evita estaria doente, muito doente. “Se for verdade, nosso amigo está fodido.” O justicialismo peronista não cumpre suas promessas. As calçadas do centro de Buenos Aires continuam esburacadas; os trens não chegam na hora; Perón gasta copiosamente e os resultados não aparecem; na Patagônia, Richter engambelou-o, devorando centenas de milhões de pesos sem produzir um watt de eletricidade nuclear; a economia argentina emperra e fabrica bibelôs: Rudel e Gregor veem nisso a influência nefasta do cristianismo. Perón não age com a brutalidade exigida porque permanece travado por

inépcias judaico-cristãs, a compaixão e a piedade, todas as formas de sentimentalismo de que o nazismo se desvencilhou. Gregor despreza o grupelho católico-fascista que cerca el líder, homens fracos e tigres sem dentes como Daye, o fanfarrão que afirma ter tomado chá com Hitler e o xá do Irã. Seu movimento de unidade popular: blá-blá-blá. Sua Terceira Guerra Mundial: uma fantasia de criança. Agora, Daye, deprimido, escreve suas memórias, o filho de Mussolini se lança na indústria têxtil e Sabiani, ex-prefeito de Marselha, afoga sua solidão no álcool. Ao anúncio da morte do marechal Pétain, algumas semanas antes, reúnem-se todos para uma vigília fúnebre na catedral de Buenos Aires. Esses homens estão acabados. Voltaram-se para o passado, enquanto os nazistas de Buenos Aires vislumbram o futuro. A Alemanha.

20. Ambicionam reconquistar a Alemanha. Os homens do círculo Dürer não acreditam na “democracia” imposta pelos Aliados. Sua pátria adorada não mudou num passe de mágica, isso é impossível. Acompanham a atualidade e a comentam em sua revista, cuja tiragem não para de aumentar, apesar da censura e das proibições. Sabem que seus compatriotas sentem falta do Império Guilhermino e dos primeiros anos do Terceiro Reich, que não acreditam nas “atrocidades” perpetradas nos campos de concentração e que clamaram por vingança contra os vencedores após os julgamentos de Nuremberg. Estão convencidos disso, os alemães não renegaram o nazismo. Não aprovaram em plebiscito o regime e suas conquistas? Não veneraram o Führer? Gregor discorre para Fritsch, Sassen e Rudel. Relata o entusiasmo dos professores universitários e dos médicos nos anos 1930. Seu júbilo em livrar-se dos matusaléns humanistas e sua aspiração por mudanças mais radicais. A popularidade do darwinismo social e da higiene racial em todos os meios. A exploração dos prisioneiros pelos gigantes da indústria nos campos, as cobaias humanas dos laboratórios farmacêuticos, o ouro arrancado das próteses dentárias e enviado ao Reichsbank todos os meses. Todo mundo lucrou com o sistema, até ocorrerem as destruições dos últimos anos de guerra. Ninguém protestava quando os judeus ajoelhados limpavam as calçadas, e ninguém abriu a boca quando eles desapareceram num piscar de olhos. Se o planeta não tivesse se unido contra a Alemanha, o nazismo continuaria no poder. Os homens do círculo Dürer acreditam em sua ressurreição. Desprezam as realidades triviais de sua nova vida burguesa no fim do mundo e não se contentam em cuidar dos negócios e manter suas amantes. A derrota

interrompeu sua fulgurante ascensão. Portanto, aos trinta e poucos anos, Fritsch, Sassen e Rudel decidem prosseguir a luta. Precisam agir rapidamente, a pátria está em perigo, Adenauer vende a Alemanha ocidental para os Estados Unidos e a integra ao Ocidente, enquanto a Alemanha oriental é saqueada pelos soviéticos. Eles hesitam. Não é fácil avaliar as relações de força a partir da Argentina, tampouco organizar-se. Deveriam formar um governo no exílio? Fomentar uma revolução na Alemanha? Derrubar Adenauer com um golpe de Estado? Os conspiradores decidem seguir o caminho traçado por Hitler vinte anos antes: entrar no jogo político, fazer alianças, conquistar o poder pelas urnas. As próximas eleições federais acontecerão em setembro de 1953, Rudel é prontamente designado, os alemães não esqueceram suas façanhas. No verão de 1952, o piloto voa para firmar uma parceria com os militantes nazistas do Partido Socialista do Reich. A conjuntura parece propícia aos objetivos do círculo Dürer, pois em setembro um escândalo explode na Alemanha: no âmbito dos acordos de Luxemburgo, o “rabino Adenauer”, como diz Rudel, reconhece a culpa dos alemães e faz a República Federal da Alemanha pagar bilhões de dólares em reparações a Israel e indenizações aos judeus. Um mês mais tarde, o chanceler consegue interditar o Partido Socialista do Reich: Rudel regressa a Buenos Aires e consulta seus parceiros. Não demora a voltar para a Alemanha, onde o Partido Imperial, uma formação nacional-conservadora, investe-o candidato. Porém, desconectado do milagre econômico, o círculo Dürer erra o alvo. À nostalgia nazista os alemães preferem as férias na Itália. O mesmo oportunismo que os incitou a servir o Reich impele-os a abraçar a democracia: os alemães mostram-se complacentes e, nas eleições de 1953, o Partido Imperial é varrido.

21. Quando Gregor descobre os insucessos de seu querido Rudel, está mordiscando um biscoito, deitado no sofá de couro marrom do apartamento espaçoso para onde se mudou alguns meses antes, no segundo andar da rua Tacuari, 431, em pleno centro de Buenos Aires. Aos amigos do círculo Dürer prodigalizou conselhos, mas limitou-se a acompanhar suas maquinações a distância. No fundo, nunca foi muito político e, desde criança, independentemente do que alegue — seu amor à Alemanha ou sua fidelidade ao nazismo — nunca pensou senão em si próprio, nunca amou senão a si mesmo. Para o astucioso Gregor, naquele fim de 1953, tudo corre bem, cada vez melhor, inclusive. O que importa se a Argentina ainda chora a morte de Evita, por câncer de colo uterino, e soçobra na miséria, o que importa se Adenauer neutralizou a iniciativa de seus companheiros de exílio, o essencial está garantido. Ele ganhou a estima de seus pares e seus pequenos negócios prosperam: Gregor diverte-se e enriquece. Dirige uma carpintaria e uma fábrica de móveis financiadas pelo inesgotável maná familiar, pratica abortos clandestinos e enaltece a robustez lendária das máquinas agrícolas Mengele para os fazendeiros das províncias de Chaco e Santa Fé. O clã investe na América Latina, e logo desembarcam em Buenos Aires seu irmão Alois e a mulher, o fiel Sedlmeier, pouco depois Karl sênior, o patriarca envelhecido e formidável, nazista quando necessário — em maio de 1933 —, hoje vice-prefeito independente de Günzburg. A vinda de Karl sênior incomoda Gregor. Seu pai sempre o criticou por se casar com aquela “prostituta da Irene” e por não ter ingressado na empresa florescente que ele construiu do zero, registrando mais de seiscentos funcionários na época em que visita seu primogênito.

Na casa de Gregor, Karl sênior detém-se na gravura de Dürer e faz carinho em Heinrich Lyons, “um animal bem amestrado”, e é só. Nenhum calor, nenhuma efusão. Fiel a si mesmo, o velhaco dedica toda a sua energia aos negócios, seja em Buenos Aires, seja em Günzburg. Gregor serve-lhe de intérprete quando ele encontra executivos argentinos, sem explicitar que é seu filho, e o apresenta a alguns de seus amigos bem colocados. Sente orgulho ao lhe apresentar Klingenfuss, ex-diplomata do setor judaico das Relações Exteriores, agora um figurão da câmara de comércio germano-argentina, e von Neurath, que acaba de assumir a direção da filial argentina da Siemens. Uma parceria é firmada com a Orbis, uma promissora empresa de fornos e fogões a gás dirigida por um nazista de Dresden, Roberto Mertig. O sucesso e o patriotismo de Mertig, cujos funcionários são todos alemães, seduzem o patriarca Mengele. Quando se despedem, pai e filho prometem reverse em breve, quem sabe na Europa? O Paraguai é outro terreno de caça dos Mengele. Como ordenou seu pai, Gregor passa cada vez mais tempo lá, na companhia de Rudel, que curou seus dissabores eleitorais escalando o vulcão Llullaillaco, e os Haase: a esposa paraguaia do melômano é filha do ministro das Finanças do general Stroessner, à frente do país desde o golpe de Estado em maio de 1954. Acompanhado de Heinrich Lyons e de seu catálogo de equipamentos agrícolas, ele percorre os campos luxuriantes da ilha cercada de terras, as florestas de palmeiras, os planaltos descampados do grande Chaco, as plantações de mate e algodão; visita os criadores de gado, as comunidades menonitas e os descendentes dos pioneiros fanáticos da Nueva Germania. Já entabulou valiosas relações em todo o país. Haase apresenta-lhe Werner Jung, ex-dirigente da Juventude Hitlerista paraguaia, e, graças a Rudel, faz amizade com Alejandro Von Eckstein, barão báltico no exílio, capitão do exército de Stroessner e irmão

de armas do ditador. Juntos, nos anos 1930, derrotaram os bolivianos após uma guerra do deserto absurda, pois, a despeito das alegações do grande estado-maior, não havia uma gota de petróleo no Chaco. Gregor rumina sobre o fato de que o Paraguai constituiria um bom refúgio se a Argentina degringolasse. Um atentado quase custou a vida de Perón em abril de 1953, a conjuntura se degrada, a inflação explode, os metalúrgicos entram em greve, os salários despencam. Como um menino no comando de um avião, el líder aperta os botões da economia argentina ao sabor de seus humores caprichosos. Desde a morte de Evita, cujo corpo mandou embalsamar, Perón está desorientado. Em sua residência de Olivos, empanturra-se de ravióli e recebe regularmente três adolescentes, a quem ensina a andar de lambreta. Nelly, sua nova companheira, tem treze anos; quando ela se comporta, ele a autoriza a usar as joias de Evita. A imprensa atribui-lhe um caso com Gina Lollobrigida, enquanto a Igreja se escandaliza com as orgias presidenciais. Todo mundo o chama de el Pocho, o gordo. Gregor constatou pessoalmente: Perón tem feias bolsas de gordura sob os olhos. Ao longo da curta audiência que lhes concedeu quando Sassen e Rudel cumpriram sua promessa, o presidente, distraído, brincava com seus cãezinhos enquanto os três nazistas o contemplavam, admirados. Com Gregor, trocou apenas poucas palavras. Seu avô foi médico e ele também teria gostado de cursar medicina, mas, para grande sorte dos argentinos, a mão de Deus guiara-o para a escola militar. Perón despachou-os com um amplo movimento dos braços, pois já anunciavam seu novo favorito, o irmão Tommy, um curandeiro americano.

22. Sempre elegante e bem-humorado, Gregor goza de boa reputação no seio da comunidade alemã de Buenos Aires. Considerado uma sumidade intelectual, entremeia suas frases com citações de Fichte e Goethe. As mulheres elogiam sua cortesia quase cerimoniosa e sua notável cultura germânica. Na comunidade, há apenas um homem imune a seus encantos. Sassen apresentou-o a ele num dia em que Gregor almoçava no ABC, em sua cabine habitual, sob o brasão da Baviera. Quando saudou aquele tipo ressequido e malvestido, soube imediatamente que não poderiam se entender. A mão de Ricardo Klement era úmida, seu olhar, oblíquo, protegido por óculos grandes e tortos. Nesse dia, Sassen não pôde abster-se de revelar aos dois homens suas verdadeiras identidades. Adolf Eichmann, apresento-lhe Josef Mengele; Josef Mengele, este é Adolf Eichmann. Para o segundo, o nome do primeiro não diz nada. Capitães, médicos SS, o grande idealizador do Holocausto cruzou com centenas de milhares. Mengele é um simples operário, um mosquito aos olhos de Eichmann, que o faz sentir isso claramente durante o primeiro encontro, sem deixar de lembrar-lhe seu fulgurante percurso até o topo dos arcanos do Terceiro Reich, o peso esmagador de suas responsabilidades, seu poderio: “Todo mundo sabia quem eu era! Os judeus mais ricos me beijavam os pés para terem a vida salva.” Antes de alcançar a Argentina, Eichmann também se escondeu numa fazenda, no norte da Alemanha. Lá, trabalhou como guarda-florestal e criou galinhas. Em seguida, em Tucumán, dirigiu uma equipe de topógrafos e geômetras da Capri, empresa estatal criada por Perón a fim de reciclar seus nazistas e, eventualmente, construir usinas hidroelétricas. Em 1953, a Capri abriu falência; Eichmann,

sua mulher e os três filhos instalaram-se em Buenos Aires, à rua Chacabuco, no bairro de Olivos. Gregor faz de tudo para evitar os Klement, mas, depois que se mudou para o mesmo bairro no início de 1954, uma bela casa mourisca com jardim à rua Sarmiento, 1875, encontra-os com frequência, sobretudo os meninos, sempre vestidos em trajes gaúchos, como num dia de Carnaval. Eichmann é uma atração de picadeiro, convidado para as reuniões a bordo do Falken e para os programas campestres na casa de Menge, a nazi society parece enfeitiçada por sua aura maléfica. Quando Sassen fala com ele, parece dirigir-se a Himmler, a Goering e a Heydrich reunidos, dos quais Eichmann gaba-se de ter sido íntimo. Aonde quer que vá nos círculos nazistas, Eichmann se embebeda, toca violino, faz seu teatro. Apresenta-se como grande inquisidor e como czar dos judeus. Foi amigo do grão-múfti de Jerusalém. Dispunha de um carro oficial e um chofer para aterrorizar a Europa a seu bel-prazer. Os ministros corriam atrás dele e lhe abriam passagem. Desfrutou das mais belas mulheres de Budapeste. A seus admiradores, no fim da noite, acontece-lhe dedicar fotos: “Adolf Eichmann, SSObersturmbannführer reformado.” A busca de Eichmann por notoriedade exaspera Gregor, tão prudente desde sua chegada: só revelou sua verdadeira identidade e a natureza de sua atuação em Auschwitz a raros amigos íntimos. Aos demais, dá uma versão bastante evasiva de seu percurso: médico militar alemão que veio para o Novo Mundo mudar de vida. Quanto mais se encontram, mais Gregor despreza o ex-comerciante inculto, um filho de contador que nunca terminou o ensino médio e nunca passou pela prova do front. Eichmann é um pobrediabo, um grande fracassado — até mesmo a lavanderia que abriu em Olivos já fechou — e é um ressentido que inveja sua bela casa, sua vida de solteiro e seu novo carro, um soberbo cupê alemão Borgward Isabella.

Eichmann pensa diferente. Gregor ou Mengele, pouco importa, é um filhinho de papai cagão, um marrom insignificante.

23. Gregor retira o retrato da moldura e queima-o numa janela, logo resta apenas um montinho de cinzas. Uma ventania espalha-as no ar morno de Buenos Aires. Irene exige o divórcio a fim de se casar com o sapateiro de Freiburg. Gregor liga para Haase e Rudel, precisa que um bom advogado argentino entre em contato com seu advogado em Günzburg. Dinheiro não é problema, mas ele quer multiplicar os intermediários, os biombos, e não facilitará as coisas para a ex-mulher. O divórcio é pronunciado em Düsseldorf, em 25 de março de 1954. “Excelente notícia”, escreve-lhe secamente Karl sênior, “finalmente nos livramos dessa puta. Pare de ruminar uma reconquista, na sua idade isso é indecente.” O divórcio satisfaz o patriarca Mengele, que tem um plano diabólico na cabeça. Um golpe de três vertentes: sua querida empresa, Josef e outra megera que o inferniza, Martha, viúva de Karl filho e herdeira das cotas da empresa de seu finado marido. De uns tempos para cá, Martha está apaixonada: Karl sênior receia que ela se case com o estrangeiro, que forçosamente entraria no conselho de administração. Sugere a Josef que se case com a cunhada para manter a sociedade nas mãos do clã Mengele e, depois do casamento, doe todas as suas cotas a Martha: se um mandado de pressão fosse finalmente decretado contra ele, a empresa não ficaria paralisada. Independentemente do que acontecesse, Josef ditaria a Martha suas decisões no conselho de administração. Estirado numa cadeira dobrável, no jardim da casa mourisca, Gregor abençoa a astúcia de seu pai e regozija-se pensando em pegar a viúva do irmão execrado, no desespero e na raiva de Irene quando souber que ele também vai se casar de novo, e com Martha ainda por cima, Martha, que ela nunca suportou.

Karl sênior sugere que Josef se encontre com a cunhada nos Alpes suíços. “Você viajará com um passaporte argentino sob um nome falso. Conhece muita gente em Buenos Aires para lhe arranjar um sem dificuldade. Convencerei Martha e cuido de todo o resto, passagens, hotel, baldeações. Darei um jeito para que Rolf vá com ela. É hora de você conhecer o seu filho.”

24. Na primavera de 1955, Gregor toma as medidas administrativas. A despeito de suas relações e de seus maços de dólares, a luta será longa, a burocracia peronista é um labirinto e, como Gregor possui apenas um visto de permanência, deve reunir um dossiê consistente (recomendações, garantias, atestados de bom comportamento, certificados de conformidade) antes de ser autorizado a solicitar um passaporte de não cidadão. Irá esperar quase um ano: nesse ínterim, a Argentina degenerou na violência e na contrarrevolução. Em 16 de junho de 1955, os “gorilas”, militares antiperonistas, bombardeiam o palácio presidencial e a praça de Maio. Perón escapa do putsch, mas seus dias à frente da Argentina estão contados. A Igreja, refúgio de todos os opositores, quer sua pele: ele suprimiu as subvenções às escolas religiosas, legalizou o divórcio e a prostituição, incentivou a proliferação das seitas sob a influência do irmão Tommy. “Perón, sim! Padres, não!”: manifestações pró e contra se sucedem, Perón, o anticristo, manda prender padres, a Igreja o excomunga, capelas são saqueadas, o inverno austral da anarquia começou. Para cada peronista morto, el Pocho jura mandar assassinar cinco de seus inimigos. Em setembro, quando Gregor consegue finalmente referendar seu “bom comportamento”, correm rumores de um golpe de Estado, levantes inflamam Córdoba e o porto de Bahía Blanca. No dia 16, a Marinha interdita Buenos Aires e ameaça bombardear as refinarias. “Deus é justo!” é a senha dos putschistas. Com a Argentina à beira da guerra civil, Perón renuncia. Queima seus dossiês mais comprometedores e, para não terminar enforcado num poste como seu mentor Mussolini, embarca a bordo de uma canhoneira paraguaia a caminho de Assunção. Uma junta militar comandada por um general

alcoólatra toma o poder. Algumas semanas mais tarde, o general é deposto por um general, o implacável Aramburu, que promete expurgar a Argentina de todo vestígio de peronismo. Postado diante do seu rádio-armário, Gregor escuta a voz marcial de Aramburu martelando: “Será passível de uma pena de seis meses a três anos de prisão toda pessoa que exibir em lugar visível imagens ou esculturas dele, o tirano fugitivo, e de sua finada cônjuge, ou pronunciar em público palavras ou expressões como ‘Perón’, ‘peronismo’, ‘terceira via’ e enaltecer os méritos da ditadura derrubada...” Em nome da revolução libertadora, os líderes sindicais são presos, milhares de funcionários públicos, exonerados. Todos os lugares (cidades, bairros, províncias, ruas, estações ferroviárias, praças, piscinas, hipódromos, estádios, boates) com nome de Perón são desbatizados; as pequenas Evitas mudarão de nome. A fundação é fechada, seus lençóis são queimados, seus utensílios, derretidos, as estátuas, abatidas, as lambretas e o paramentos, exibidos para mostrar o vício e a ganância do casal deposto. A múmia de Evita desaparece. Borges é nomeado diretor da Biblioteca Nacional e professor na faculdade de Letras de Buenos Aires. Perón consegue refúgio no Panamá, um exílio dourado, cabarés, cigarros, uísques, garotas bonitas, e se apaixona por uma dançarina, María Estela Martínez, em breve sua terceira esposa, que ele rebatiza de Isabel. Com seu protetor afastado, os nazistas se preocupam. Aramburu prometeu eliminar quem se beneficiava do antigo regime. Diversas empresas de capital alemão são obrigadas a fechar. A polícia revista a residência de Rudel, em Córdoba, e o coloca em prisão domiciliar. Bohne e outros criminosos de guerra deixam a Argentina, Daye registra em seu diário que “as dores do exílio são ácidas”, Gregor pensa em fugir para o Paraguai, mas reconsidera: manteve-se afastado da política e nunca pertenceu ao primeiro círculo de Perón, afinal não passa de um honesto empresário.

Suspende os atendimentos em sua clínica ilegal de aborto e espera o fim da tempestade. Aramburu também admiraria as tradições militares prussianas, poderia se entender com os nazistas. Gregor acaba obtendo um passaporte com validade de três meses. Em 22 de março, embarca num DC-7 da Pan Am e aterrissa em Genebra após uma breve escala em Nova York.

25. Sedlmeier espera-o no aeroporto e o conduz a Engelberg, ao hotel Engel, o melhor quatro estrelas da estação de esqui. É aguardado na recepção por dois meninos de doze anos e uma morena atraente: Martha, seu filho Karl-Heinz e seu próprio filho, Rolf.

26. No banheiro, Martha cantarola em frente ao espelho conforme a água corre na banheira. Com as mãos na nuca, Gregor, descalço, ouve os respingos, a mulher alegre, enquanto repousa na cama do quarto contíguo, onde crepita um fogo de lareira. Contempla a neve e sorri de satisfação. Sua temporada na Suíça é idílica, o ar puro das montanhas o revigora. Martha apresentou-o às crianças como o tio Fritz da América. A Rolf, ainda pequeno, contaram que seu pai Josef morrera em combate, pouco depois de seu nascimento, na Rússia. Rolf e Karl-Heinz são meninos pontuais, solícitos e agradecidos, que se comportam à mesa e só falam quando Mengele-Gregor-Fritz os autoriza. Admiram-no: é um emérito esquiador desde o seu serviço militar nos caças alpinos, e eles adoram suas histórias. No jantar, no passeio, à noite, insistem para que ele conte alguma, Karl-Heinz quer relatos de combates com tanques, de valentia e companheirismo nas estepes áridas da Rússia; Rolf quer a epopeia andina de San Martín, as aventuras dos gaúchos e índios dos Pampas, “às margens do rio da Prata, o rio barrento que, qual uma serpente, coleia até as baleias azuis do oceano”. Tio Fritz fala da conquista do deserto argentino, do “triunfo da civilização sobre a barbárie selvagem, como nós, alemães, fizemos nos territórios do Leste durante a guerra. Nunca se esqueçam, crianças, os alemães eram mais talentosos do que os gregos e mais fortes do que os romanos.” Gregor observa seu filho sempre que pode. Rolf tem as mãos e o nariz da mãe, seus olhos mortiços de melancolia, sua beleza tímida e sua candura, demonstra menos segurança do que Karl-Heinz, que é bem mais alto do que ele e esquia melhor. Karl-Heinz é um homenzinho, Rolf ainda uma criança. Bombeiro, cosmonauta, engenheiro, não faz

ideia do que fará mais tarde e muda de opinião diariamente. Na sua idade, Gregor era mais determinado. Reaviva o fogo arrefecido e viaja mais no tempo, pensando no menino que foi. Não largava o microscópio que o pai lhe dera em seu aniversário de dez anos, convencido de que um dia Josef Mengele seria tão famoso quanto seus ídolos de antigamente, o médico Robert Koch, imperador da bacteriologia, e August Kekulé, descobridor da tetravalência do carbono e da fórmula estrutural do benzeno. Muito cedo, compreendera que o médico e o pesquisador seriam os padres e astros do século XX. Lembrava-se de Serguei Voronoff, que virara sensação ao enxertar testículos de jovens chimpanzés em pacientes idosos ricos em sua clínica da Côte d’Azur, façanha que a imprensa explorou muito nos anos 1920. Voronoff era um charlatão, mas a Alemanha sem dúvida era o perfeito paraíso da medicina moderna, da ciência; a biologia, a zoologia e a aspirina, o microscópio e os laboratórios eram invenções alemãs. Não ficaria mofando em Günzburg sob a dominação paterna, já decidira isso aos quinze anos. Mas de Karl sênior herdara a tenacidade, a malícia e a ambição, e da mãe Walburga, a frieza e o coração seco, o coração atrofiado. Gregor se revê estudante, em Munique, em Viena, em Frankfurt, época inebriante, os anos 1930, momento da grande virada. Enquanto seus colegas brigavam por atenção, bebiam e bancavam os valentões na SA, ele trabalhava duro e seu labor fora recompensado, as mais altas sumidades o haviam notado: Eugen Fischer, ilustre eugenista que assistira ao genocídio dos pastores hererós e namaquas na Namíbia, no começo do século, e o professor Mollinson, especialista em hereditariedade e higiene racial, seu orientador de tese (“pesquisa morfológica racial sobre a seção do maxilar inferior de quatro grupos raciais”, defendida summa cum laude). Mollinson recomendara-o ao mais célebre geneticista alemão, o barão Otmar von Verschuer, grande especialista em gêmeos, de quem se

tornara, com apenas 26 anos, assistente de pesquisas e logo o favorito no Instituto do Terceiro Reich para Biologia e Pureza Racial, na universidade de Frankfurt. Quando von Verschuer tomara a frente do Instituto Kaiser Wilhelm de Berlim para antropologia, ensino da hereditariedade humana e genética, enviara Mengele a Auschwitz, “o maior laboratório da História, uma honra insigne para um jovem pesquisador brilhante e diligente. Lá talvez o senhor descubra os segredos dos nascimentos múltiplos”. O barão financiava suas pesquisas, e Mengele remetia-lhe regularmente amostras (medula, olhos, sangue, órgãos), esqueletos e os resultados de seus experimentos. Não ficara ocioso em seus vinte e um meses no campo. Com o rigor que se impunha, saneara a rampa, desparasitara centenas de galpões e erradicara várias epidemias de tifo, e seu zelo ainda fora recompensado: uma Cruz de Ferro com espadas além de apreciações elogiosas de seus superiores. Rolf precisaria ser orientado, ruminou Gregor na grande suíte com sacada do hotel quatro estrelas, jamais endurecerá ao lado de sua mãe e do sapateiro de Freiburg. Mulheres não gostam de maricas, preferem os homens viris e determinados como ele, está convencido disso. Martha percebeu imediatamente que ele era feito de uma casca mais dura do que seu finado irmão. Na primeira noite, no jantar, enquanto os meninos debruçavam-se sobre seus pratos, tio Fritz despiu-a com o olhar. Demorou-se em seus cabelos pretos presos num coque, seus lábios vermelhos, sua boca equina e, quando ela se levantou para ir ao banheiro, deteve-se longamente em suas nádegas avantajadas, uma lenda de Günzburg, o andar ondulante de Martha Mengele, nascida Weil, uma coincidência infeliz. Ela não tem a distinção de Irene nem seu aspecto etéreo, mas, no hotel Engel, Gregor jurou a si mesmo não pensar mais em sua ex-mulher, não comparar nunca mais. Martha tem personalidade e convicções, Rolf e Karl-Heinz lhe obedecem, é uma nazista efusiva. Uma mãe afetuosa e, sem ser

nenhuma beldade, uma mulher sensual de trinta e cinco anos. Acima de tudo, é viúva de Karl filho: quando Gregor tirou seu sutiã festonado, na segunda noite, experimentou a maravilhosa sensação de desferir o golpe de misericórdia no irmão, enterrá-lo uma segunda vez. “Se pelo menos ele me visse possuir sua mulher”, ri sozinho, pulando da cama. Despe-se e entra no banheiro. Martha espera-o na banheira.

27. A Mercedes de Sedlmeier ronrona em frente ao hotel. Martha e os meninos voltarão de trem. Gregor seguirá de carro com seu amigo. Não vai a Günzburg desde novembro de 1944. À medida que eles transpõem desfiladeiros nevados, Gregor se contrai, o almoço às margens do lago de Constança não traz melhoras, seu pulso se acelera e, quando cai a noite, ele reconhece a curva do Danúbio na entrada da cidade, o castelo renascentista, a igreja barroca. Pede a Sedlmeier que se cale, não se sente bem. Ei-lo novamente no casarão cinza de sua infância. Afora a pintura na entrada e as urnas de sua mãe e seu irmão, depositadas no aparador de uma ladeira, nada mudou. Gregor reencontra as madeiras escuras, o console Biedermeier, a vitrola da sala de jantar, onde ele janta com Sedlmeier, o irmão e o pai, que despediu a governanta e a cozinheira conforme ele exigiu. Gregor agradece-lhes. O hotel era sublime, os meninos esbanjam saúde, Martha é formidável, o plano funcionou, irá desposá-la com prazer, mas logo volta a ficar melancólico, não deveria ter ido a Günzburg. O que fará ali? Dado como desaparecido desde o fim da guerra, Josef Mengele não pode desfilar pela Augsburger Strasse! Por que não aproveita e faz um passeio na frente da fábrica? Todo mundo irá reconhecê-lo, as pessoas falam e a cidade não é grande, seria um risco fora de propósito. Karl sênior tenta tranquilizá-lo. Günzburg lhe pertence, a empresa é um pequeno império e, de longe, a maior fonte de empregados na cidade, ninguém ousaria denunciar o filho do patrão, a quem, aliás? Ele não é sequer procurado na Alemanha, nenhum mandado de prisão foi expedido: “Basta, Josef, chega de desconfiança, afinal você está na sua casa! As pessoas guardam boas recordações suas e

sempre me falam dos seus estudos brilhantes. O sr. Globke não se questiona tanto quando entra diariamente na chancelaria em seu gabinete de secretário de Estado. Todo mundo sabe que ele avaliou as leis de Nuremberg e impôs aos judeus os nomes Israel e Sara. E daí? Ninguém liga para isso, muito menos Adenauer, assim como ninguém quer saber onde você estava durante a guerra! Você cumpriu seu dever, ponto final.” Alois tenta acalmar Karl sênior, alquebrado nos últimos meses. E confirma a Josef que seu pai nunca foi tão poderoso e amado por seus empregados; será inclusive cidadão honorário em breve. “Sem a gente, Günzburg desmorona. Nós financiamos a construção dos novos alojamentos sociais, de um hospital e de uma piscina. O pai planeja distribuir salsichas a todas as crianças para comemorar seus sessenta e cinco anos.” Gregor não prega o olho. Aqueles dez dias de esportes de inverno o amoleceram, ele está relaxando suas defesas, atirando-se na boca do lobo, pressente isso. Mesmo sem sair de casa durante a semana, o pior pode acontecer a qualquer momento. Seu nome decerto figura numa lista de criminosos de guerra, impossível confiar em quem quer que seja, sua família não entende. Amanhã, está decidido, visitará um colega da divisão Viking, em Munique, um farmacêutico em cuja casa se escondeu um mês antes de partir para a fazenda, após ter recuperado suas anotações e suas amostras em zona soviética, no início de sua clandestinidade. É preferível o anonimato de uma cidade grande. Irá de carro, Sedlmeier alugará um Opel comum em nome de Gregor. De toda forma, se tudo correr bem, depois passará uns dias em Günzburg: a Argentina, o Paraguai, talvez em breve o Chile, ele precisa falar de negócios com o clã. Gregor pragueja ao volante escutando as informações. A Bundeswehr participará das manobras da Otan; um padre se alegra com a criação de um círculo de amizade judaicocristã em Frankfurt; a missão comercial israelense de

Colônia recebe um novo diretor. E aquele maldito jazz: Gregor procura uma estação que toque música clássica. Inclina-se na direção do rádio, manipula os botões por um ou dois segundos e tromba no automóvel que anda feito um cágado à sua frente. À motorista, Gregor, conciliador, propõe dinheiro, o parachoques só arranhou, por que registrar um boletim de ocorrência, está chovendo, não vamos perder tempo. A dama, envolta num casaco de pele, recusa, lei é lei, “estamos na Alemanha, um país civilizado”. O BMW prateado de seu marido acabou de sair da oficina. Gregor insiste, acrescenta trinta marcos ao pacote. Ela pega um maço de documentos em seu porta-luvas; ele, agressivo, ameaça ir embora, ela, chamar a polícia, curiosos se aproximam, um homem de sobretudo anota a placa do Opel e, de repente, aparece uma patrulha. Surpreso com seus documentos argentinos e seu forte sotaque bávaro, o oficial alemão pede a Gregor para não sair de Munique enquanto não verificar sua identidade. Quando os policiais finalmente vão embora, Gregor corre até a primeira cabine telefônica. Tremendo, disca o número de seu pai. Duas horas mais tarde, uma imponente delegação se dirige ao comissariado central de Munique. Karl sênior, seu advogado, o chefe de polícia de Günzburg e Sedlmeier, com uma maleta preta na mão, encontram o oficial. Saem para tomar uma cerveja, conversam, barganham, ocorrência arquivada. No dia seguinte, Gregor voa em direção à América do Sul.

28. Sua vida está na Argentina, onde Martha e Karl-Heinz irão encontrá-lo. Aos quarenta e cinco anos, Gregor sonha com uma vida calma, um novo lar, uma casa espaçosa para recebê-los. Encontra uma mansão californiana na Virrey Vertiz, 970, uma rua discreta e arborizada na parte mais residencial de Olivos, a dois passos do rio. Há bares na praia, uma marina, Martha e Karl-Heinz não se sentirão deslocados; o recanto é soberbo e lembra o bairro do lago Alster, em Hamburgo, e do lago Wannsee, em Berlim. Apesar de sua fortuna, Gregor precisará pedir dinheiro emprestado para comprar a casa e executar a nova missão de que seu pai o encarregou: investir numa empresa farmacêutica, a Fadro Farm. Mertig, o dono da Orbis, seu parceiro sul-americano, aconselhou-o a seguir esse caminho; alguns de seus amigos já se lançaram na indústria de remédios e na pesquisa de tratamentos especializados contra a tuberculose. Mas os bancos não emprestarão um peso a um apátrida cujo passaporte vence em breve. Se quer se enraizar e casar de novo, Gregor precisa recuperar sua identidade: voltar a ser Mengele. Gregor consulta seu círculo de íntimos, como sempre. Na Argentina, não corre qualquer risco. Os americanos têm uma única prioridade: lutar contra os soviéticos, e os alemães não querem mais ouvir falar em nazismo. A guerra terminou. Schwammberger, que exterminou diversos guetos na Polônia, recuperou um passaporte, o consulado da RFA não criou nenhuma dificuldade. E o novo embaixador é um sujeito formidável, afirma Sassen. Werner Junker era nazista e um colaborador próximo de Ribbentrop no ministério das Relações Exteriores. Estava em missão nos Bálcãs e alegrase ao reencontrar seu companheiro Pavelić, o ex-ditador croata, em Buenos Aires.

Gregor se apresenta na embaixada, onde fornece todas as informações que lutou para dissimular desde o fim da guerra, a fim de provar que é efetivamente Josef Mengele. O encarregado dos assuntos consulares nem reage quando Gregor declara ter vivido sob falsa identidade desde sua chegada à Argentina. Ele envia o dossiê a Bonn, onde ninguém consulta as listas dos criminosos de guerra procurados. Em Munique, Gregor talvez tenha entrado em pânico à toa: a RFA condena o nazismo, mas reintegra seus quadros e seus asseclas, indeniza os judeus, mas permite que seus assassinos toquem suas vidas na América do Sul e no Oriente Médio. Reconhecimento do direito ao “erro político”, anistia para as “vítimas da desnazificação”, coesão nacional, amnésia geral... Adeus, Gregor: em setembro de 1956, o consulado da Alemanha ocidental de Buenos Aires concede uma certidão de registro civil e uma certidão de nascimento a Josef Mengele. Agora ele precisa regularizar sua situação junto às autoridades argentinas. Apresenta-se à justiça e fornece suas impressões digitais à polícia. Nenhum magistrado se abala com sua fraude, não há processo nem punição, inúmeros alemães recobram a memória nos últimos tempos. Bienvenido, señor Mengele: em novembro, obtém um novo visto de permanência, número 3.940.484, e, de volta ao consulado, recebe um passaporte alemão em seu nome, Josef Mengele, nascido em 16 de março de 1911 em Günzburg, residente à rua Sarmiento, 1.875, em Buenos Aires, 1,74m, olhos castanhos-esverdeados, empresário e fabricante de móveis e brinquedos de madeira. No retrato que forneceu, um bigode barra-lhe o rosto azeitonado. Martha e Karl-Heinz chegam a Buenos Aires. Mengele obtém o empréstimo e compra a esplêndida e cobiçada mansão. Ao lado da antiga residência privada de Perón, possui um jardim e uma piscina. Martha faz registro no catálogo telefônico e Mengele apresenta Karl-Heinz como seu filho.

O paxá forma um círculo e se aburguesa. A vida lhe sorri.

29. Em novembro de 1956, Fritz Bauer, o procurador-geral de Hesse, emite um mandado de prisão para Adolf Eichmann, “onde quer que ele se encontre”. Judeu, socialdemocrata e homossexual, Bauer foi internado num campo de concentração e exonerado da função pública pela Gestapo antes de fugir para a Escandinávia. Desde que regressou à Alemanha, no fim dos anos 1940, Bauer quer obrigar seus compatriotas a enfrentarem o passado.

30. O mundo aos poucos descobre o extermínio dos judeus da Europa. Cada vez mais livros, artigos e documentários são dedicados aos campos de concentração e extermínio nazistas. Em 1956, apesar das pressões do governo alemão ocidental, que, em nome da reconciliação franco-alemã, exige e obtém sua retirada da seleção oficial do Festival de Cannes, Noite e neblina, de Alain Resnais, assombra as consciências. O diário de Anne Frank é cada vez mais popular. Fala-se em crimes contra a humanidade, solução final, seis milhões de judeus assassinados. O círculo Dürer nega esse número. Orgulha-se da iniciativa do extermínio, mas calcula em apenas 365 mil o número de vítimas judias; desmente os assassinatos em massa, os caminhões e as câmaras de gás; os seis milhões são uma mera falsificação da História, a enésima manobra do sionismo mundial para culpar e derrubar a Alemanha, após ter-lhe declarado guerra e infligido destruições terríveis, sete milhões de mortos, arrasado suas mais belas cidades, tomado suas terras ancestrais no Leste. Para Sassen e Fritsch, só um homem é capaz de restaurar a verdade. Adolf Eichmann. Ele supervisionou todas as etapas da guerra contra os judeus. Desde a morte de Hitler, Himmler e Heydrich, ele é o perito definitivo, a última testemunha-chave. Conhece os atores, os números; poderá desmentir. Os judeus arrastaram a Alemanha para a lama, Eichmann lavará sua honra. Armaram a maior mentira da História para se apoderarem da Palestina, mas serão desmoralizados publicamente, suas máscaras e as de seus comparsas cairão: o círculo Dürer vai destruir suas maquinações e trabalhar para a reabilitação da Alemanha, a redenção do nazismo e do Führer. Fritsch e Sassen sugerem a Eichmann que discorra sobre “a pseudo solução final”. Transformariam suas palavras num

livro, as edições Dürer adorariam publicá-lo. A ideia encanta Eichmann. Depois do fechamento de sua lavanderia, ele trabalhou numa empresa de produtos sanitários e, na falta de algo melhor, agora cria coelhos angorás e galinhas sob o sol inclemente dos pampas. Seus dias são longos e monótonos, ele alimenta os bichos, limpa suas gaiolas, recolhe seus excrementos e remói o passado, sua glória de outrora, sua família que ficara em Buenos Aires, seu quarto filho Ricardo Francisco, que acabou de nascer, um milagre, sua mulher tem quarenta e seis anos e ele daqui a pouco fará cinquenta. Ganha a vida muito modestamente. Então, um livro sobre sua grande obra... Fim do anonimato e das galinhas, não se pode recusar tamanha dádiva. Voltará a ser um astro e se defenderá, ele, que devora jornais e a literatura histórica, sabe que seu nome é regularmente citado de maneira equivocada, ofende-se, seus filhos precisam conhecer a verdade. Os alemães o apoiarão e sua tribo poderá retornar à Europa de cabeça erguida. Até lá, graças às vendas do livro, Eichmann, Fritsch e Sassen ganharão muito dinheiro.

31. As sessões de gravação começam em abril de 1957 na suntuosa residência do jornalista holandês. Todos os domingos, homens e mulheres reúnem-se em torno do grande idealizador do Holocausto, lisonjeado com tamanha atenção e extasiado com os charutos e uísques turfados do dono da casa. Eichmann acaricia seu anel de honra da SS enquanto responde às perguntas de Sassen e Fritsch, às vezes assessorados por convidados com competências mais especializadas, o grande Bubi von Alvensleben, exsubtenente de Himmler, e Dieter Menge, piloto condecorado e fanático, proprietário da grande estância onde os nazistas gostam de se encontrar. Apesar da insistência de Sassen, Mengele recusa-se a participar das sessões. Não tem a mínima vontade de escutar as fanfarronadas do idiota ressentido e adverte seu amigo: Eichmann acabará lhe criando problemas, seu nome circula na imprensa, a justiça alemã está atrás dele, cedo ou tarde, se ele não fechar a bocarra, ela saberá que o procurado se esconde sob o pseudônimo de Klement. Mengele não quer publicidade. E tem coisa melhor a fazer. Enriquecer e trepar com Martha. Passou uma semana de férias no Chile. Com Rudel a bordo de seu pequeno avião particular, pousaram em Santiago, onde os esperava um velho amigo do piloto, o “assassino de Milão” Walter Rauff (97 mil homicídios), inventor do caminhão de gás, protótipo das câmaras nos campos de extermínio do Leste. Os três homens exploraram os vulcões do deserto de Atacama, nadaram nus nas lagunas turquesa e acamparam sob céus límpidos e estrelados. De volta à Argentina, levando Heinrich Lyons com eles, Mengele, Martha e Karl-Heinz vão passar um fim de semana em Mar del Plata, à beira-mar, e em Tigre, cidade com canais salpicados de ilhas arborizadas e floridas, no delta do

rio Paraná e do rio da Prata. Hospedam-se no Tigre Hotel, onde dormiram o príncipe de Gales e o tenor Caruso. Após a chegada de Martha à Argentina, Mengele redescobre a seu lado o esplendor de Buenos Aires, admirando a fonte alemã na avenida Libertador, a Torre dos Ingleses em frente à estação de Retiro, ou o lustre art déco do prédio Kavanagh, na praça San Martín. O casal frequenta teatros e concertos, janta com os Haase e os Mertig, leva Karl-Heinz ao hipódromo de San Isidro. Junto aos elegantes e arrivistas, faz suas compras na sofisticada loja Gath & Chaves. A vida é amena naquele ano de 1957. Mengele desfruta dos encantos de uma rotina inédita, a supervisão dos deveres de Karl-Heinz, as coxas e as receitas culinárias de Martha, o polimento dos cromos de seu brinquedinho, o cupê Borgward Isabella, as incursões no bordel com aquele demônio do Sassen, porém mais raramente do que antes. O futuro se anuncia promissor, o pior ficou para trás, Mengele sente-se em segurança. Vendeu sua oficina de carpinteiro para entrar no capital da Fadro Farm. Volta a mergulhar com deleite nas revistas médicas e científicas, trabalha em seus velhos apontamentos, complementa-os. Não desistiu de um posto de professor universitário, tampouco do aperfeiçoamento genético da espécie humana e da glória. Durante esse tempo, Sassen e Fritsch prosseguem suas conversas com Eichmann. Durante seis meses, “com o espírito infatigável do alemão eterno”, ele monologa orgulhosamente, às vezes emocionado até as lágrimas com suas próprias histórias, seu sucesso — “seis milhões de judeus assassinados” —, seus remorsos — não cumpriu sua missão, “o aniquilamento completo do inimigo”. A Sassen, a Fritsch, ao círculo “Dürer”, que não queriam acreditar na “propaganda inimiga”, Eichmann confirma a dimensão do extermínio, detalha os assassinatos coletivos, as câmaras de gás, os fornos crematórios, os trabalhos forçados, as

marchas da morte, a fome: a guerra total decretada pelo Führer. Sassen e Fritsch, esses cordeiros, acreditavam que o nazismo era puro. Não esperavam por aquelas precisões de Eichmann. Ou então alimentavam a esperança de que Hitler tivesse sido traído, e Eichmann, manipulado por potências estrangeiras. Seis milhões, o número deixa-os abalados. Assim que terminam as gravações, eles se distanciam do criminoso contra a humanidade. Revelaram suas cartas no jogo; perderam. Sassen guarda zelosamente as fitas, mas as edições Dürer desistem de publicar o livro. Agentes secretos iugoslavos atiraram em Pavelić, que teve de fugir para o Uruguai. Adenauer venceu novamente as eleições no outono de 1957. Um Escritório Central de Investigação de Crimes do Nazismo é criado no ano seguinte em Ludwigsburg. O nazismo não tem mais futuro na Alemanha: a página está definitivamente virada. A revista Der Weg desaparece, Fritsch liquida sua editora e se instala na Áustria no começo de 1958. Proibido de publicar, vira porteiro noturno de um grande hotel de Salzburgo. Sem salário fixo desde a partida de Fritsch, Sassen dedicase à sua carreira jornalística sob diferentes pseudônimos e pensa em voltar à Europa: também gostaria de aproveitar o milagre econômico no continente. Amargurado e frustrado, Eichmann não desistiu de se pronunciar. Considera apresentar-se perante um tribunal alemão, convencido de que sua honra e reputação se veriam lavadas ao fim de um julgamento sensacionalista do qual ele seria a estrela. Seus filhos e conhecidos o dissuadem disso. Ele agora tem um emprego subalterno na Orbis, a empresa de Mertig, após a falência de sua criação de galinhas e coelhos. Mengele não se surpreende com o fracasso geral. Pois desdenha aqueles nazistas de fachada: Eichmann o falastrão, Sassen o pornógrafo sensível e Fritsch o

pretensioso! Ele sabe, ele viu, ele cometeu, sem remorso nem arrependimento. Mengele afasta-se de Sassen, foge de Eichmann e aconselha que todos os nazistas de Buenos Aires o imitem: “Eichmann é perigoso.” Outros projetos empolgantes o esperam.

32. Em 25 de junho de 1958, Josef Mengele se casa com Martha Mengele em Nueva Helvecia, no Uruguai. Núpcias inexpressivas e confidenciais, Karl-Heinz, Rudel e Sedlmeier são os únicos presentes, junto com os Mertig, os Haase e os amigos vindos do Paraguai, Jung, o ex-dirigente da Juventude Hitlerista reconvertido aos negócios, e von Eckstein, o barão báltico. Sassen não foi convidado. Karl sênior, doente, resignou-se a permanecer em Günzburg. Alois preferiu desfrutar de seu camarote no festival de Bayreuth. Um motorista inconsequente atropelou Heinrich Lyons duas semanas antes da cerimônia. Feitos os brindes e traçado o almoço (truta defumada e salada de salsichão, goulash de corça, strudel de abrunho; riesling do Mosela, 1947), os Mengele deixam seu filho com os Haase e fazem as malas: a estrada é longa até Bariloche. Martha se aconchega em Josef, ao volante do Borgward Isabella. A carroceria assobia, o cupê rasga o vento, ao pampa verde-espinafre sucedem a estepe pedregosa, céus imensos enxameados de andorinhas lilases e águias negras, quilômetros e quilômetros de pistas espinhosas atravessam o país infinito, depois a estrada sobe, surgem montanhas com tripla dentição, mandíbulas de tubarões, eclodem os Andes hirsutos, o Tirol argentino, e os Mengele contornam um lago celestial, lavado de neve, quando finalmente deparam com Bariloche e seu hotel de luxo. Tudo é maravilhoso no Llao Llao. Um buquê de flores e chocolates esperam os jovens recém-casados em seu quarto, imenso e sobriamente mobiliado, como convém. O terraço oferece uma vista panorâmica dos lagos Nahuel Huapi e Moreno, que abraçam a península e a colina onde está empoleirado o hotel, um conjunto de belos prédios com telhados pontiagudos, como uma aldeia alemã medieval, protegida das torpezas e agitações do mundo. Na primeira

noite, o cordeiro da Patagônia assado no espeto é suculento. Martha está feliz. Ao amanhecer, quando a cerração se desfaz, ela se arrepia diante de tanta beleza, a paisagem monumental, as montanhas violáceas, os raios de luz que trespassam as florestas de faias antárticas e carvalhosvermelhos nevados. Josef, que tem o sono agitado, ainda dorme embrulhado nos cobertores. Sua lua de mel o desconcerta. Jamais imaginou que fosse tolerar a presença de outra mulher. Martha é meiga e paciente, receptiva às suas considerações sobre a queda de Roma, aos longos monólogos que entretêm suas excursões a pé, quando ele lhe conta a vida tumultuosa de Wagner e de Albrecht von Haller, pai da biologia alemã, primeiro a explorar as vísceras dos animais. Curiosamente, também nunca sentiu tanto desejo por alguém quanto por aquela mulher de dentes grandes e dedos roliços. Martha é uma fonte da juventude, a amante dona de casa o conduz por caminhos transversais desconhecidos. Quando retornarem a Buenos Aires, irá presenteá-la com uma segunda casa numa estação balneária, à beira-mar. No pós-guerra, Bariloche acolheu um forte contingente de nazistas, muitos austríacos, encantados por usarem esquis novamente, e um pintor flamengo, ex-chefe da propaganda hitlerista na Bélgica ocupada. Alemães também vieram. Kops, antigo espião de Himmler, que Gregor conheceu na redação de Der Weg, abriu um hotel na área, o Campana, e a melhor mercearia-charcutaria da cidade, a delikatessen Wien, pertence a um capitão SS, Erich Priebke, envolvido no massacre de 335 civis nas Fossas Ardeatinas em Roma. Rudel, visita contumaz e membro do clube andino da cidade, deu suas coordenadas para Mengele. Uma noite, todos se reúnem ao redor de um fondue. Rauff atravessou a fronteira chilena para cumprimentar os recémcasados. Os nazistas falam dos bons e velhos tempos pela enésima vez e lembram-se de Richter, o cientista atômico que engambelou Péron e devorou seus milhões nos reatores

falsos de seu laboratório secreto na ilha de Huemul, pertinho dali, ao largo de Bariloche. As piadas se multiplicam, os copos tilintam, Kops anuncia que um gigantesco complô judaico-maçônico está sendo tramado na Casa Branca e no Kremlin. Mengele boceja e enlaça Martha. Prefere o sexo palpitante de sua esposa àquela companhia viril que exala aguardente de segunda. No dia seguinte, Martha e Josef sobem e caminham através de clareiras e grandes árvores. Seus passos rangem na neve que cai em flocos grossos, e eles param para almoçar num promontório, de onde vislumbram o vale abaixo. Mengele está à beira do precipício quando um sol tímido perfura a massa de algodão, desvelando os picos das geleiras, os lagos azuis, a natureza encantadora. Tomado de vertigem, qual o viajante a contemplar um mar de nuvens pintado por Caspar David Friedrich, ele abre os braços, cai na risada. Seu peito se dilata, seu sangue fervilha, sente-o pulsar nas têmporas. Martha o interpela, mas ele não ouve. Absorto em suas meditações, tão feliz, tão orgulhoso naquele mundo de ruínas e vermes desertado por Deus, ele tem a liberdade, o dinheiro, o sucesso, ninguém o prendeu e jamais o prenderá.

33. Ao retornarem, uma pilha de correspondência aguarda os Mengele. Em meio a contas e folhetos de propaganda, uma carta de seu pai e uma intimação da polícia: Mengele deveria ter se apresentado no comissariado de Olivos três dias antes. Está ao telefone com seu advogado quando um vizinho bate à porta com insistência, o semblante atormentado. A polícia veio ontem e anteontem. E a polícia volta. Sem que Mengele tenha desfeito suas bagagens, dois robustos sargentos lhe passam as algemas e o embarcam em seu camburão, todas as sirenes ligadas. Um oficial esfrega-lhe na cara os jornais da véspera. “Os carniceiros de Buenos Aires”, “Os médicos da morte”, são as manchetes de dois diários conservadores; “O assassino usa sapatos brancos” estampa a primeira página da revista Détective. Poucos dias atrás, a filha de um grande industrial morreu em consequência de um aborto, um escândalo, ainda não completara quinze anos. Preso e pressionado, o médico denunciou vários colegas à polícia, que desmontou uma rede. O número de detenções é histórico, e a Argentina em polvorosa vibra com as cabeças cortadas. “Ele nos delatou o nome de um certo Gregor, o senhor, Josef Mengele”, rosna o oficial. “O senhor está metido numa grande enrascada: prática ilegal da medicina, abortos clandestinos, atentado à ordem moral de uma nação que teve a generosidade de o acolher.” Acompanhado de seu advogado, Mengele morde o bigode, nega tudo, depois volta atrás, “isso foi há muito tempo, para fazer um favor, duas ou três cirurgias que se desenrolaram perfeitamente... Condeno firmemente meus desvios e não tenho intenção de retomar a prática. Então, sr. oficial, por que não nos ajuda a abafar esse caso escabroso?” O oficial coça os olhos, Mengele é preso. O super-homem está agoniado. O cheiro de urina empesteia a cela, o

colchão está infestado de pulgas, a gororoba que seus carcereiros lhe oferecem de manhã, ao meio-dia e à noite é repugnante. No terceiro dia, o oficial o convoca: “Quanto?” Mengele dobra, depois triplica sua oferta inicial, algumas centenas de dólares, o que basta para viver confortavelmente em Buenos Aires durante vários meses. Na mira da justiça, à mercê de um tira corrupto que guardou aquele processo em seus arquivos pessoais, Mengele volta para casa abalado, esgotado, no fim das forças. Martha está ainda mais nervosa quando se atira em seus braços. Trêmula, entrega-lhe um telegrama de Sedlmeier recebido na véspera: “No início de agosto, um jornalista prestou queixa contra você em Ulm.” Ernst Schnabel publicou um best-seller poucos meses antes, No rastro de Anne Frank. Pesquisou sobre as circunstâncias de sua morte em Bergen-Belsen e lamentou que inúmeros SS tivessem evaporado sem deixar rastros. “Ninguém sabe, por exemplo, o paradeiro do doutor Mengele, o médico das seleções em Auschwitz, se está morto ou se vive em algum lugar.” Diversos diários regionais publicaram excertos do livro, entre eles o Ulmer Nachrichten. Ulm dista apenas trinta e seis quilômetros de Günzburg. No início do verão de 1958, o jornal recebeu uma carta anônima: “O velho Mengele contou à sua exgovernanta que seu filho, médico na SS, mora na América do Sul... A viúva de um de seus outros filhos partiu para lá a fim de juntar-se a ele.” O diretor da redação encaminhou a carta a Schnabel, que a repassou ao procurador de Ulm. No ano anterior, ele conseguira condenar à prisão nove membros do Einsatzgruppe A que haviam praticado sevícias na Lituânia. Registrada a queixa, o magistrado pediu informações à polícia de Günzburg, que correu para prevenir o clã Mengele.

34. Mengele rechaça Martha com violência e arremessa na parede os pratos dispostos na mesa para o jantar. Com os olhos vermelhos, fora de órbita, uiva feito um louco, um lobo raivoso, como em Auschwitz quando descobria gêmeos na rampa, Martha não o reconhece mais, desiste de se aproximar, ele atira talheres, copos, um castiçal, tudo que aparece à sua frente, depois sobe até o quarto, enfia algumas coisas numa bolsa esportiva, maços de cédulas, seu passaporte, precipita-se para o carro e arranca a toda sem olhar para ela. Seria capaz de arrancar os próprios cabelos, foi tão ingênuo, tão presunçoso. Que grande idiota, que estúpido, zomba de Eichmann, escondido sob um pseudônimo, enquanto ele figura no catálogo telefônico com seu nome verdadeiro! Até uma criança conseguiria desentocá-lo! Mengele por pouco não esmaga vários peões na estrada que percorre na velocidade de um foguete, rumo ao norte, ao Paraguai, pôr-se à sombra no Paraguai, quer acalmar-se, com um pouco de sorte, a poeira vai acabar baixando, os abortos, a queixa do jornalista, sua família é poderosa, tudo se compra, basta dizer o preço, e por enquanto ele não é objeto de nenhum mandado de prisão. Mengele se estabelece em Assunção. Von Eckstein e Jung o recepcionam; Sedlmeier e Alois viajam para encontrá-lo. Karl sênior se cansou, agora é o benjamim da fratria que comanda a multinacional. Os três homens conversam longamente e procuram se aconselhar com Rudel. Confidente de Stroessner e intermediário privilegiado do exército paraguaio, a quem vende armas, o piloto tranquiliza o fugitivo: o Paraguai de Stroessner é a Argentina sob Perón, ele não tem nada a temer e deveria até comprar terras, o país decerto é corrupto e caótico, mas é estável, ninguém irá importuná-lo. Lívido, Mengele range os dentes: “Agora não!” Reconstruiu sua vida em Buenos

Aries, sua casa é esplêndida, seu laboratório farmacêutico deu certo. Alois e Sedlmeier aconselham-no a não se precipitar, milhares de queixas são registradas todo ano, a maioria não resulta em nenhum processo, e, enquanto ele estiver no Paraguai, terá uma nova missão: vender um pulverizador de insumos que é sucesso absoluto na Europa. Mengele reencontra os camponeses, as estradas cheias de calombos, o calor febril do Chaco. Mas não está mais à vontade. Uma preocupação indistinta o atormenta, um funesto pressentimento, sua vida ameaça degringolar novamente, e, enquanto dirige, pensa no quadro da Pinacoteca de Munique que o aterrorizava quando criança, Jonas na boca da baleia, o profeta devorado pelo monstro marinho. Seus companheiros julgam-no mudado, prematuramente envelhecido. Ao intelectual enérgico que admiravam sucedeu um homem taciturno e irascível. Uma tarde, xingou o filho de Jung, que lhe recitava suas lições de biologia. Nas noitadas que seus amigos promovem ao redor de suas piscinas, ele belisca alguns canapés, isolado, fugidio, atormentado. Quando von Eckstein tenta falar com ele, Mengele limita-se a um sorriso nervoso. Só encontra a paz junto a Haase, Martha e Karl-Heinz, que vêm visitá-lo regularmente ao longo dos últimos meses de 1958. Seu sobrinho revela-se um filho gentil, atencioso e inteligente, que merece a reprodução da gravura de Dürer que Mengele ganhara em seu aniversário de quarenta anos. Em família, comemoram o Natal e o ano novo na casa dos Jung. Os nazistas brindam, 1959 será uma safra formidável, Mengele cruza os dedos. Com o visto vencido, decide voltar a Buenos Aires.

35. Ele ainda não sabe, mas outro perdigueiro o fareja. Um comunista austríaco e veterano da guerra da Espanha, exdeportado de Dachau e Auschwitz, onde foi secretário pessoal de Eduard Wirths, médico-chefe do campo. Ele, Hermann Langbein, nunca se esqueceu do doutor Mengele nem acreditou em sua morte. Encontrou uma pista ao descobrir por acaso o anúncio legal de seu divórcio, em 1954. Dois anos antes, foi um dos fundadores do Comitê Internacional de Auschwitz, criado com o objetivo de indenizar os sobreviventes do campo e ajudá-los a processar seus torturadores coletando informações e testemunhos. Com paciência e discrição, Langbein investiga e acumula provas contra Mengele. Está convencido de que ele vive em Buenos Aires, percebeu a mediação do advogado argentino durante o procedimento de divórcio. Langbein transmite seu dossiê ao ministro federal da Justiça, que se declara incompetente: o caso Mengele deve ser conduzido pelo ministério público de um Land. Os magistrados refugam, exceto em Freiburg, último domicílio conhecido de Mengele, que ajudou Irene a se instalar na região no fim da guerra. Lá, em 25 de fevereiro de 1959, o procurador expede um mandado de prisão por assassinatos premeditados e tentativas de assassinato. Langbein insiste, Mengele mora em Buenos Aires, o ministério das Relações Exteriores deve pedir sua extradição ao governo argentino. Sedlmeier telegrafa a Mengele a notícia, revelada por um de seus informantes na polícia. Dessa vez, está fora de questão tergiversar, precisa vender a casa e as cotas da Fadro Farm, fechar suas contas no banco, refugiar-se no Paraguai. Nada indica que o novo governo liberal argentino, eleito democraticamente, será tão clemente com os nazistas quanto seus antecessores peronista e militar. Buenos Aires poderia muito bem concordar com o pedido de

Bonn: Mengele está enlouquecido, à beira de um ataque de nervos, quando empilha numa caixa de papelão suas revistas científicas e, sem maiores explicações, diz adeus aos seus colegas do laboratório farmacêutico. De Martha e Karl-Heinz, que permanecem na Argentina, mas devem se mudar, exige discrição total. Beija-os e marca encontro com eles em Assunção, “em breve”. Mais uma vez, Rudel vai a seu socorro. Irá ajudá-lo a obter cidadania paraguaia: nenhum tratado de extradição liga Bonn a Assunção, o presidente Stroessner nunca entregará um de seus concidadãos a uma potência estrangeira. A soberania do Paraguai é sagrada. Aterrado ante a ideia de morar numa cidade grande, Mengele suplica ao amigo que lhe encontre um covil no interior, numa colônia alemã. Sempre conciliador, Rudel encaminha-o a Alban Krug, um nazista de carteirinha com ombros de lutador que possui uma fazenda em Nueva Bavaria, a poucos quilômetros da fronteira argentina.

36. A vida transcorre lentamente em Hohenau. O vilarejo se espalha ao redor da praça da igreja, onde perambulam os índios guaranis espertos e supersticiosos. Nas ruas avermelhadas do centro, vacas e porcos patinham, enxames de insetos rodopiam em volta de cordões de linguiças e peles de serpente, crianças louras manobram carroças até o rio Paraná. Nos arredores, com os cabelos encharcados de suor, os colonos europeus labutam nas plantações de trigo e melancia, sob um sol escaldante. O som dos beija-flores cadencia o cotidiano monótono do vilarejo, que se distrai com a festa da cerveja a cada outono e com o banquete suábio da primavera, quando os camponeses enchem a cara, se empanturram e dançam intermináveis rondas e farândolas, como num quadro de Bruegel, o Velho, quatro séculos antes, diante de um perplexo Mengele. Leal, voraz e inculto, Alban Krug evoca-lhe Heinrich Lyons. Seu protetor dirige frouxamente uma cooperativa de fazendas, mas aos balanços contábeis prefere a cerveja produzida por um de seus associados, os pratos suculentos de sua mulher, a caça e a pesca, seu filho Oskar e suas filhas ao seu lado. Krug não entende nada dos métodos de administração moderna que seu hóspede tenta lhe inculcar. Viajando constantemente, Mengele prossegue suas atividades de relações públicas, deambula incansavelmente de lavoura em lavoura por todo o Paraguai, tendo como companheiros apenas seus catálogos de máquinas agrícolas e seu mau humor. Mengele xinga, pragueja, esbraveja por ter perdido seu casulo argentino, lamenta-se por sua sorte, debate consigo mesmo, ser capturado ou viver indefinidamente escondido na casa daquele idiota do Krug. Aos suores frios sucede às vezes um otimismo prudente. Se obtiver a cidadania paraguaia, poderá reconstruir sua vida,

comprar terras, instalar-se nelas com Karl-Heinz e Martha, mesmo sendo difícil convencê-la. Sua esposa é uma de suas preocupações mais dolorosas: em vez de apoiá-lo, não tolera o calor, os apagões, o pó vermelho que se entranha em tudo, “madame não acha Hohenau e o campo paraguaio de seu agrado”. Deveria tê-la esbofeteado quando se desfez em lágrimas após ser picada por uma aranha, na primeira noite, quando chegaram. Ela não quer uma vida de fugitiva, mudar-se o tempo todo, dormir em hotel, ele a habituou a outro padrão de vida do qual ela sente muita falta, seus conhecidos em Buenos Aires não param de pedir notícias e ela não sabe o que responder, assim como na escola os meninos interrogam Karl-Heinz, bastante abalado após a partida de Mengele. E se eles se estabelecerem na selva, onde o adolescente irá estudar? Um Mengele não estuda num lugar qualquer. Martha está convencida de que Josef exagera. Deveria voltar para Buenos Aires, lá seriam felizes como nos primeiros dias, ele não corre risco algum. No fundo, pensa, Karl filho era mais corajoso. Mengele consente em encontrá-la em Assunção, onde procura fazer boa figura quando eles jantam com os Jung e von Eckstein. Sua vida está na mão dos amigos, os dois homens patrocinam seu pedido de naturalização e von Eckstein o apresentou a um dos melhores advogados do país, mas a iniciativa é ilegal: em princípio, ele precisa residir cinco anos no Paraguai antes de solicitar a cidadania.

37. Começa uma corrida contra o relógio. O pedido de extradição de Mengele foi transmitido por Bonn a Buenos Aires, outro está a caminho de Assunção, corre o boato de que teria se refugiado no Paraguai. Na Argentina, os trâmites se arrastam, os obstáculos jurídicos e administrativos proliferam, Junker, o embaixador da Alemanha, vacila, tergiversa, o pedido transita via ministério das Relações Exteriores, pelo presidente do Senado, procurador-geral, juiz da Corte Federal, polícia, tribunais. No fundo, os governos argentino e alemão ocidental estão satisfeitos com o imenso imbróglio. No Paraguai, o ministério do Interior e a polícia são informados de um iminente pedido de extradição, a Interpol lhes solicitou uma cópia do dossiê de naturalização do requerente, mas Rudel intervém junto ao ministro. Seu amigo, o brilhante doutor José Mengele, é perseguido na Alemanha por suas convicções políticas, é inofensivo, será valioso para o Paraguai, cumpre então naturalizá-lo com urgência: em 1959, assunto resolvido, o Supremo Tribunal paraguaio concede a Mengele a cidadania, um visto de residência, um certificado de bom comportamento e uma carteira de identidade. Mesmo assim, Mengele chega arrasado à casa dos Jung, que dão uma festinha para comemorar a ótima notícia. Com os olhos marejados, gagueja: seu pai acaba de morrer. A Alemanha perde um patriota, e ele, seu aliado mais indefectível, seu escudo, aquele pai terrível e intransigente que nunca o abandonou a despeito de tudo. A milhares de quilômetros de Günzburg, onde um imponente retrato do defunto foi afixado na fachada da prefeitura, Mengele desabafa à beira da piscina decorada com guirlandas, na noite empoeirada de Assunção. A von Eckstein, a Karl-Heinz, aos Jung, aos Haase, a Rudel ele conta a subida ao cume do

Hirschberg ao lado de seu pai, no verão de 1919. Naquela ocasião estavam apenas os dois, fizeram um piquenique, uma borboleta pousara na manga de sua camisa, e, lá de cima, os lagos da Baviera cintilavam como rolos de filmes prateados. Quando ele era criança, seu pai, de quem morria de medo, dizia uma reza em latim antes de dormir, aprendida com os monges trapistas depois que ele quase se afogara num reservatório de águas pluviais aos seis anos: procul recedant somnia, et noctium phantasmata — que os sonhos e as quimeras da noite permaneçam longe de nós. Inconsolável, Mengele balbucia e soluça feito uma criança. Irá às exéquias, custe o que custar, pegará o primeiro avião para a Europa. Rudel dissuade-o, é um suicídio, a polícia vai prendê-lo no cemitério, precisa desistir da ideia. No túmulo, no dia do enterro, a funerária deposita uma coroa de flores acompanhada de um bilhete anônimo: “De longe, eu te saúdo.”

38. Em Buenos Aires, Eichmann, que agora trabalha como mecânico na Mercedes, foi detectado. Lothar Hermann, um judeu alemão cego refugiado na Argentina, está certo de ter encontrado seu rastro. Sua filha conviveu muito tempo com Nick Eichmann, que gabava as proezas do pai durante a guerra e lamentava que a Alemanha não tivesse aniquilado todos os judeus. Em 1957, Hermann escreve ao procurador de Hesse, Fritz Bauer. Em vez de se unir aos serviços secretos e à embaixada alemã em Buenos Aires, infestados de antigos nazistas, Bauer prefere transmitir a informação discretamente ao Mossad. Os serviços secretos israelenses realizam buscas na Argentina, mas elas não são conclusivas, de modo que o Mossad interrompe suas investigações: Hermann pede uma soma exorbitante; o domicílio do homem suspeito de ser o grande exterminador dos judeus da Europa é um barraco num subúrbio de Buenos Aires. Impensável. Mas Bauer quer acreditar nas alegações de Hermann. Rastreia uma segunda fonte que corrobora sua história: Ricardo Klement é, de fato, Adolf Eichmann. Dessa vez, o Mossad intervirá, a decisão de capturar o SS é tomada em dezembro de 1959. Isser Harel, o chefão do Mossad, planeja secretamente um segundo rapto: em seu quadro de caça, sonha inscrever o nome de Mengele. O pedido de extradição da Alemanha Ocidental vazou na imprensa, e o Congresso Judaico Mundial incentiva os sobreviventes de Auschwitz a denunciarem seus crimes junto a Langbein. Harel só dispõe de informações esparsas e datadas: Mengele passou a se chamar Gregor, dirige uma fábrica de móveis no centro de Buenos Aires. Seu plano é simples: após a prisão de Eichmann, marcada para 11 de maio de 1960, os homens terão nove dias para colocar as mãos no médico nazista e embarcá-lo no avião que levará Eichmann para Israel.

Desde que se tornou cidadão paraguaio e recebeu parte de sua herança, Mengele se dedica a ignorar ideias pessimistas. Pratica esqui aquático, descobre as tribos guayakis com o excêntrico von Eckstein e fantasia um novo futuro com certa serenidade. O clima com Martha melhora, ele recuperou sua liberdade de movimentos. No começo de 1960, quando as equipes do Mossad preparam o rapto de Eichmann em Buenos Aires, ele passa vários dias na pousada onde ela se instalou com Karl-Heinz, no bairro de Vicente López. Algumas semanas mais tarde, em abril, eles se encontram no hotel Tirol, um estabelecimento luxuoso na cidade paraguaia de Encarnación. O incansável Sedlmeier junta-se a eles. Discutem finanças, métodos de contato e perspectivas de crescimento da sua filial no Paraguai. Mengele mostra a seu parceiro as fotos de uma bela propriedade que deseja comprar na região do Alto Paraná. Retorna à casa dos Krug mais calmo, quase alegre, Martha tendo finalmente aceitado a ideia de acompanhá-lo em seu exílio. No começo de maio, a operação Átila entra em sua fase ativa com a chegada dos destacamentos do Mossad a Buenos Aires. Harel incluiu na bagagem o dossiê codificado de Mengele. No dia 11, dando sequência ao plano, Eichmann é raptado. Em seu esconderijo, os agentes israelenses já o pressionam: conhece Mengele? Onde ele se esconde? Qual é sua aparência hoje? Quais são seus hábitos em Buenos Aires? Com quem ele tem contato? “Eichmann, onde está Mengele?” O nazista permanece impassível. Apesar de suas diferenças, do desprezo que sente por ele, recusa-se a trair o companheiro: “Minha honra se chama lealdade.” Os israelenses perseveram, prometem, ameaçam, insistem e, finalmente, Eichmann revela o endereço da pousada em Vicente López. O tempo urge, os israelenses agem com prudência enquanto os nazistas de Buenos Aires ficam em estado de alerta. Assim que foi constatado o desaparecimento de

Eichmann, seus filhos correram à casa de Sassen a fim de coordenar as buscas. É um golpe dos judeus, eles não têm qualquer dúvida, e planejam explodir a embaixada de Israel ou raptar o embaixador em represália; esquadrinham a cidade com a ajuda de fascistas das milícias Tacuara e com as Juventudes Peronistas; Sassen é encarregado de vigiar o aeroporto. Harel envia dois agentes até a pousada, um casarão isolado e protegido por uma cerca no fim de uma rua estreita, difícil de vigiar sem risco de detecção. A dona da pousada não conhece o sr. Gregor nem Mengele. Um carteiro é mais loquaz: uma família Mengele de fato morou ali, mas desapareceu há algumas semanas, sem deixar endereço para onde encaminhar a correspondência. Na fábrica de móveis, ninguém nunca ouviu falar num alemão chamado Gregor. Os dias passam, o médico refugiado no Paraguai continua sumido, porém Harel não desiste. Mengele “arde como fogo em seus ossos”, o chefão do Mossad cogita inclusive atacar a pousada, certo de que ele continua entocado. Seus homens o dissuadem da ideia, colocaria em risco toda a operação. Em 20 de maio de 1960, um avião da El Al parte de Buenos Aires com destino a Tel Aviv, levando a bordo Adolf Eichmann em uniforme de piloto, sedado. Harel jura a seus homens que em breve terão posse de Mengele. Formarão uma nova unidade especial encarregada de perseguir os nazistas, e o médico de Auschwitz será seu primeiro alvo.

39. Alguns dias depois, quando Ben-Gurion anuncia a captura de Eichmann ao Knesset, os criminosos de guerra refugiados na América do Sul se preocupam. Quem será o próximo da lista? Quem será raptado, espancado, abatido friamente em sua cama ou num estacionamento por um grupo de vingadores surgido inopinadamente? Quem será conduzido à força a Israel, exposto à vindita dos judeus e da opinião pública mundial numa jaula de vidro degradante, como um monstro de circo, como Eichmann no seu julgamento em Jerusalém, no ano seguinte? Os nazistas no exílio não conhecerão mais a paz. Se querem salvar a própria pele, devem se isolar, renunciar aos gozos terrenos, condenar-se a uma vida clandestina de fugitivos, numa corrida sem refúgios nem descanso. Dessa vez, a caça aos nazistas está aberta. Jornalistas do mundo inteiro vão investigar em Buenos Aires. O rapto de Eichmann inaugura uma nova era; é uma humilhação para a Argentina e uma catástrofe para a Alemanha Ocidental. A primeira deve provar que não é um santuário de nazistas: em 20 de junho, um mandado de prisão é expedido contra Mengele, que resultará no ano seguinte na captura de... Lothar Hermann, acusado de ser o médico de Auschwitz; já a segunda deve mostrar que está disposta a julgar seus criminosos e enfrentar seu passado. Começa a grande mudança, os círculos nazistas de Buenos Aires se desintegram. Sassen, que seus companheiros suspeitam de ter traído Eichmann, vende a preço de ouro suas gravações à Life e a mídias alemãs e holandesas, antes de fugir para o Uruguai, onde se apresenta como um “nazista reformado”. “Esse idiota pretensioso do Eichie e sua maldita húbris!” Mengele explode de raiva ao saber do rapto de Eichmann pelo rádio, na cozinha dos Krug. Desanca os judeus

malditos, os argentinos incompetentes, os alemães subornados, a Terra inteira, e, quando Krug diz que ele não tem nada a temer, já que obedeceu a ordens e cuidou das pessoas nos campos, ele tem vontade de desfechar-lhe uma bala entre os olhos, nele e em toda a família, desmazelada à mesa do jantar. Sim, mataria efetivamente um depois do outro, as meninas para terminar, de joelhos esses idiotas, os Krug pagariam pelos judeus, argentinos, alemães, pelo filho da puta do Eichmann, este, quem dera pudesse torturá-lo em sua cela israelense, depois fugiria para a selva, desapareceria para todo o sempre. Mas Mengele começa a tremer, suas mãos, braços e pernas trepidam e ameaçam traí-lo, a sra. Krug o faz sentar e beber um copo d’água com açúcar. Quando se recobra, só lhe resta encarar a realidade odiosa: o poço no qual a captura de Eichmann o mergulha e no qual ele tem certeza de que irá se afogar. Eichmann vai adorar entregá-lo aos israelenses. Outros falarão, ele deixou vestígios por toda parte, seus papéis estão no seu nome, e tem sua mulher, seu filho, nada mais fácil do que seguir seus rastros até aquela fazenda descampada que só Krug, uma velha pistola Walther e alguns forcados defendem, uma piada face aos matadores aguerridos do Mossad. Então Mengele não para de se mexer; não se sente seguro em lugar nenhum. De dia, de noite, mastiga seu bigode e anda em círculos feito uma vespa capturada num copo e ameaçada de asfixia. Quando dorme, por volta das três, quatro da manhã, após ter ingerido comprimidos de soníferos, o mais ínfimo barulho, o assoalho que estala, um inseto insignificante, desperta-o em sobressalto. Tem medo de ser reconhecido, agora que o governo alemão ocidental colocou sua cabeça a prêmio por vinte mil marcos e ele (finalmente) tornou-se uma celebridade mundial. A imprensa descreve as atrocidades que ele cometeu e divulga seu retrato. Rolf agora sabe que seu pai não morreu na Rússia, que é o anjo da morte de Auschwitz. Mengele tenta se justificar para os amigos de Assunção, minimizar

seu papel, mesmo assim as pessoas se afastam, Jung se distancia e regressará à Alemanha, só von Eckstein acredita em sua palavra. Ele tem medo, sofre, se lamenta: Haase, o amigo fiel que lhe enviava regularmente coletâneas de poesia e lhe escrevia para não perder a coragem, para resistir, aguentar o tranco, Haase acaba de morrer ao cair de uma escada em Buenos Aires. Em setembro de 1960, Mengele conclui que deve zarpar o mais rápido possível, fugir, abandonar tudo, reinventar-se aos quarenta e nove anos, caso contrário os israelenses irão capturá-lo. A unidade especial do Mossad vigia os passos de sua mulher e seu filho e se aproxima perigosamente da fazenda dos Krug. Rudel arranja-lhe uma pistola Mauser e uma nova carteira de identidade brasileira em nome de Peter Hochbichler. Mengele é obrigado a se separar de Martha e de Karl-Heinz, que voltam para a Europa sem se despedirem. Na pressa, ele queima suas anotações, seu passaporte alemão e destrói suas amostras de Auschwitz. Ao raiar de uma clara manhã de outubro, Krug e Rudel o levam de jipe até a fronteira brasileira. Quando o grandalhão grita para ele que sua guerra não terminou, Mengele não se vira, embrenhando-se nos recessos esmeraldinos da selva. Ei-lo entregue à maldição de Caim, o primeiro assassino da humanidade: errante e fugitivo na terra, aquele que o encontrar o matará.

SEGUNDA PARTE

O rato “O castigo corresponde ao erro: ser privado de todo prazer de viver, ser levado ao mais alto grau de asco pela vida.” KIERKEGAARD

40. No museu Tinguely, na Basileia, uma sala mergulhada na penumbra. Atmosfera de carnificina, câmara de tortura abandonada. Um monstro-altar com crânio de hipopótamo está cercado por esculturas-máquinas compostas de carcaças de reses, madeira e vigas carbonizadas, metais retorcidos pelo fogo, materiais recuperados por Jean Tinguely nos escombros de uma fazenda atingida por um raio, nas cercanias da aldeia suíça onde ficava sua oficina. Entre os restos calcinados, uma enorme trituradora de milho Mengele. As esculturas-máquinas começam a se mexer sob um sol escuro. Rodas, polias, correntes, parafusos rilham, rangem, numa estação de triagem dissonante. Os maxilares de aço se abrem, escancaram, caveiras de homens e animais desfilam e caem sobre uma rampa com correias mecânicas, ao passo que suas sombras rodopiam nas paredes na forma de seringas imensas, cutelos de carrascos, martelos, foices, forcas. Uma valsa estridente, enquanto no resto do museu crepitam o jazz e os reflexos verdes e azul-claros do Reno através de sacadas envidraçadas. Mergulhado nas ferragens, o visitante é engolido pelas esculturas-máquinas. Elas ameaçam chicoteá-lo e torturá-lo, precipitar-se sobre ele para escoltá-lo até a rampa. Assombrado pela morte e pelos campos nazistas, Tinguely compôs sua Mengele — dança macabra. No outono e no verão de 1944, um médico legista húngaro foi obrigado a executar essa dança macabra de Auschwitz. Miklós Nyiszli pertencia aos Sonderkommandos, os mortos vivos condenados a recolher os cabelos e arrancar o ouro das vítimas do gás antes de atirá-las no fosso. O judeu Nyiszli foi o bisturi de Mengele. Sob suas ordens, serrou calotas cranianas, abriu tórax, trespassou

pericárdios e, após escapar milagrosamente do inferno, registrou o inimaginável num livro, Médico em Auschwitz, publicado na Hungria logo após a guerra, e então na França em 1961. “Mengele é incansável no exercício de suas funções. Passa horas a fio mergulhado no trabalho ou em pé, a postos por metade do dia na rampa dos judeus, onde cotidianamente chegam quatro ou cinco trens trazendo deportados da Hungria... Seu braço projeta-se invariavelmente na mesma direção: para a esquerda. Trens inteiros são despachados para as câmaras de gás e as fogueiras... Ele acha que mandar centenas de milhares de judeus para a câmara de gás é um dever patriótico.” No galpão de experimentos do campo cigano, “são efetuados, em anões e gêmeos, todos os exames médicos que o corpo humano é capaz de suportar. Extrações de sangue, punções lombares, trocas de sangue entre gêmeos, incontáveis e cansativos exames, deprimentes, in vivo”. Para o estudo comparativo dos órgãos, “os gêmeos devem morrer ao mesmo tempo. Assim eles morrem num dos galpões de Auschwitz, na ala B, pelas mãos do doutor Mengele.” Ele injeta-lhes doses de clorofórmio no coração. Os órgãos extirpados, com o carimbo “material de guerra urgente”, são encaminhados ao Instituto Kaiser Wilhelm de Berlim, dirigido pelo professor von Verschuer. “Mengele é considerado um dos grandes representantes da ciência médica alemã... E o trabalho que ele realiza na sala de dissecação serve ao progresso da medicina alemã.” Quando uma epidemia de sarampo eclode nos galpões ocupados por judias húngaras, “Mengele ordena que elas sejam levadas de caminhão diretamente para o crematório”. Nyiszli se mostra assombrado pela aura macabra de seu torturador: “Bem-humorado, seu semblante alegre mascara sua crueldade. Encontrar tanto cinismo surpreende, mesmo no campo... Doutor Mengele é um nome mágico..., a pessoa

que todo mundo mais teme no campo. Basta ouvir sua voz e todos tremem.” Nyiszli descreve seu zelo maníaco na sala de dissecação do crematório até o outono de 1944, quando a Alemanha já perdeu a guerra: “O doutor Mengele chega por volta das 17h, como sempre... Passa horas ao meu lado entre os microscópios, os estudos e os tubos de ensaio, ou então em pé horas a fio junto à mesa de dissecação com um jaleco manchado de sangue, as mãos ensanguentadas, examinando e procurando feito um louco... Poucos dias atrás, eu estava sentado com ele na sala de trabalho, junto à mesa. Folheávamos dossiês já estabelecidos sobre os gêmeos, quando, na capa azul-clara de uma pasta, ele percebe uma tênue mancha de gordura. O doutor Mengele me dirige um olhar reprobatório e me repreende rispidamente: ‘Como pode ser tão displicente com esses dossiês que recolhi com tanto amor!’” O cotidiano de Nyiszli é insano: “A luz flamejante das fogueiras e a fumaça turbilhonante das chaminés dos quatro crematórios chegam até aqui. A atmosfera está carregada do cheiro da carne e dos cabelos queimando. As paredes reverberam gritos de morte e o crepitar de balas disparadas à queima-roupa. É ali que o doutor Mengele vem relaxar após cada seleção e cada fogo de artifício. É ali que passa seu tempo livre e, nesse ambiente de horrores, com uma loucura fria, me faz abrir os cadáveres de centenas de inocentes despachados para a morte. As bactérias são cultivadas num esterilizador elétrico e alimentadas com carne humana fresca. O doutor Mengele fica horas diante dos microscópios buscando as causas do fenômeno da gemeidade, que ninguém resolverá.”

41. Um dia, descem de um comboio um pai corcunda e seu filho manco, dois judeus do gueto de Lodz. Quando os percebe, Mengele ordena imediatamente que saiam da rampa e os encaminha para o crematório número um a fim de serem examinados por Nyiszli. O médico húngaro tira suas medidas e lhes oferece carne moída com macarrão, “a última ceia”, escreve. Membros da SS os levam, despem e matam a sangue-frio por ordem de Mengele. Os cadáveres são encaminhados a Nyiszli, que, “completamente nauseado”, delega sua dissecação a colegas. “No fim da tarde, após ter despachado pelo menos dez mil homens para a morte, chega o doutor Mengele. Escuta com muito interesse o relatório em que faço observações realizadas tanto in vivo quanto na autópsia das duas vítimas enfermas. ‘Esses corpos não devem ser incinerados’, diz ele, ‘devem ser preparados, e seus esqueletos, expedidos para Berlim, rumo ao Museu Antropológico. Que sistemas o senhor conhece para a lavagem perfeita de esqueletos?’, ele me pergunta.” Nyiszli sugere mergulhar os cadáveres em cloreto de cálcio, que consome as partes moles dos corpos ao fim de duas semanas, ou cozinhá-los em água fervente até que a carne se solte dos ossos. Em seguida, os cadáveres serão mergulhados num banho de essência que dissolve as últimas matérias gordurosas e deixa o esqueleto branco, seco e inodoro. Mengele ordena que ele utilize o processo mais rápido, o cozimento. Fogueiras são preparadas. Barricas de ferro são colocadas sobre o fogo e, dentro dos caldeirões, eles cozinham os cadáveres do corcunda e do manco, pai e filho, aqueles judeus modestos de Lodz. “Ao fim de cinco horas”, escreve Nyiszli, “me dei conta de que as partes moles se separam facilmente dos ossos.

Mandei então apagarem o fogo, mas as barricas deveriam permanecer no lugar até que esfriassem.” Nesse dia, o crematório não funciona. Detentos pedreiros estão reparando suas chaminés. Um dos assistentes de Nyiszli vem procurá-lo, em pânico: “‘Doutor, os poloneses estão comendo as carnes das barricas.’ Corro até lá. Quatro prisioneiros estrangeiros, trajando o uniforme listrado, estão em torno das barricas, atônitos... Famintos como estavam, procuravam alguma comida no pátio e foi assim que se aproximaram por acaso das barricas, por alguns instantes sem vigilância. Julgavam ser a carne para o Sonderkommando que estava cozinhando... Os poloneses congelaram de pavor ao se darem conta da carne que tinham ingerido.” Por fim, os esqueletos são estendidos na mesa de trabalho do laboratório. “O doutor Mengele está muito satisfeito: trouxe vários colegas oficiais superiores para lhes mostrar os esqueletos. Todos dão-se ares de importância e pronunciam termos científicos grandiloquentes... Depois embalam os esqueletos em grandes sacos de papel grosso, e é assim que são expedidos a Berlim com o carimbo: ‘Remessa urgente, Defesa Nacional’.” Mengele é o príncipe das trevas europeias. O médico orgulhoso dissecou, torturou e queimou crianças. O filho de boa família mandou, assobiando, quatrocentos mil homens para a câmara de gás. Por muito tempo, julgou safar-se impunemente, ele, “o homúnculo de lama e fogo” que se tomara por um semideus, que pisoteara as leis e os mandamentos e infligira sem compaixão tantos sofrimentos e tanta tristeza nos homens, seus irmãos. Europa, vale de lágrimas. Europa, necrópole de uma civilização aniquilada por Mengele e os seguidores da Ordem Negra da caveira, ponta envenenada de uma flecha desferida em 1914.

Mengele, o funcionário modelo das usinas da morte, o assassino de Atenas, Roma e Jerusalém, pensava ter escapado do castigo. Mas ei-lo entregue à própria sorte, escravo da própria existência, esgotado, moderno Caim vagando pelo Brasil. Começa agora a descida aos infernos de Mengele. Ele vai chegar ao fundo do poço e se perder na noite.

42. No banheiro do primeiro andar, com uma toalha amarrada na cintura, Mengele se aproxima do espelho, resmungando. As olheiras estão mais inchadas, sua tonalidade azulada contrasta com a palidez do rosto, o torso emagrecido, os peitorais flácidos. Como envelheceu nos últimos meses! Aperta os lábios e mordisca o bigode, uma vassoura grisalha de feirante, horrível, ele pensa, tão pouco germânico, tão pouco acadêmico, quando toma sopa, lambe-o feito um velho bichano. Não é do seu gosto, mas, como camufla parcialmente o espaço entre seus incisivos superiores, o bigode lhe dá segurança, embora praticamente mais nada o tranquilize desde que chegou ao Brasil há um ano, e, naquela manhã de 7 de outubro de 1961, está ainda mais preocupado do que o normal, um grande nó tortura seu estômago. Mecanicamente, massageia as têmporas de baixo para cima diante do espelho, como se as fricções fossem dissipar suas dores e achatar sua testa proeminente, aquela maldita testa que o exaspera e que terminará por denunciá-lo junto com o buraco entre os dentes, Irene já o alertara quinze anos atrás. Mengele fecha os olhos, e ele, que não crê em nada, repete em voz baixa o mantra de Rudel, só perde aquele que abandona a si mesmo, cerrando os punhos. Agora precisa se apressar, fazer a barba e escovar os dentes, vestir uma calça de brim, sapatos, uma camisa cáqui que ele abotoa até o pescoço, sem gravata, já faz muito calor, e encaixar na cabeça o chapéu de abas largas que ele nunca tira. Mengele pega duas malas e desce a escada, ao pé da qual um homem sorridente o aguarda, que carrega suas bagagens e as arruma no porta-malas de um modesto Ford Anglia. São pouco menos de oito da manhã quando eles deixam a cidade de Itapecerica.

O homem solícito usa óculos escuros e se chama Wolfgang Gerhard. É o representante da Kameradenwerk de Rudel na região de São Paulo, e o piloto entrou em contato com ele assim que decidiu evacuar Mengele para o Brasil. Em Günzburg, a família a princípio fica cética: Gerhard, que se esfalfa desde que deixou a Áustria em 1949, não tentaria lhe extorquir somas mirabolantes? É possível confiar naquele indivíduo que canta num coral e tem propensão a beber, seus informantes sendo taxativos nesse ponto? Rudel os tranquiliza. Gerhard não exigirá um pfennig, proteger um criminoso de guerra do status de Mengele é uma honra, uma consagração que não tem preço para um nazista fanático como ele. O nome de seu filho é Adolf. Ele sonha amarrar o cadáver de Simon Wiesenthal no seu carro e arrastá-lo pela rua como latas de conservas num dia de casamento. No Natal, o pinheiro dos Gerhard tem uma suástica no topo. Enquanto o motorista serpenteia em direção ao norte, Mengele observa suas mãos peludas manobrando o volante e suas pernas compridas demais para a cabine do Ford. Gerhard o faz pensar num adolescente encarapitado num carrossel para crianças, todo prosa de chocar os colegas que duvidavam de sua audácia. Gerhard assobia, é um grande dia para ele, que tinha apenas vinte anos no fim da guerra e imprime obscuros folhetos de propaganda junto com um pasquim antissemita. Uma missão digna do soldado de elite que poderia ter sido caso as forças do mal não houvessem se coligado contra o nazismo: levar o agora célebre doutor Mengele ao santuário que ele descobriu, ele, o pequeno Gerhard, ex-soldado raso, uma fazenda isolada nas cercanias de Nova Europa, a trezentos quilômetros de São Paulo. Os proprietários são um casal de húngaros, Geza e Gitta Stammer. Abandonaram seu país depois da guerra em consequência da invasão soviética; Gerhard conheceuos poucos anos antes numa reunião de expatriados da

Europa Central. São pessoas simples e politicamente confiáveis, não lhe farão perguntas constrangedoras. À medida que a paisagem vai ficando mais árida, a angústia de Mengele aumenta. Pela enésima vez, Gerhard precisa lhe detalhar o plano que tramou com o apoio de Rudel e de Günzburg. O austríaco adquiriu o hábito de tranquilizar o fugitivo; quando Mengele desembarcou no Brasil, empregou-o em seu ateliê de confecção, consolou-o e incentivou-o como a um filho. Para Gerhard, devotar-se a Mengele é salvar Berlim das chamas, um dever que é em si mesmo sua recompensa, aliás, há um ano seus negócios, sua mulher e seus dois filhos foram relegados a segundo plano. Aos Stammer, Gerhard apresentou Mengele como um especialista suíço em pecuária que não quer viver sozinho aos cinquenta anos. O excêntrico Peter Hochbichler está saindo de um período difícil, declara Gerhard, problemas de saúde, também procura companhia, trabalho, e, além disso, acaba de herdar uma bela soma que gostaria de investir na compra de terras. Hochbichler poderia administrar a fazenda: topógrafo, Geza costuma ausentar-se por longos períodos. Os Stammer não nadam em ouro e aceitam a oferta de Gerhard. Não irão remunerar Hochbichler, mas ele receberá comida, alojamento, proteção. Após quilômetros de asfalto, pegam estradinhas vicinais e, finalmente, um caminho de terra que serpenteia através do cerrado até uma velha fazenda. Estação final: cães saltam latindo quando o veículo passa, e um casal de quarentões aparece com os dois filhos no umbral da casa de madeira, a família Stammer, impaciente para conhecer o misterioso hóspede Peter Hochbichler.

43. Protegido por uma guarda pretoriana formada por indígenas, um certo Mengele é localizado numa cidadezinha do Mato Grosso, mas consegue escapar da emboscada armada pela polícia brasileira em 1961. Alguns meses mais tarde, é preso num lugarejo de Minas Gerais. Um equívoco infeliz, o homem capturado é um Waffen-SS de férias. Mengele é novamente detectado em fevereiro de 1962, numa cidade na fronteira do Paraguai. Seu hotel é tomado de assalto pelas tropas de elite brasileiras, mas ele deixou o quarto justamente naquela manhã. A imprensa argentina revela que ele assassinou um agente do Mossad em Bariloche; armado e extremamente perigoso, dispõe de um exército privado a seu soldo que o acompanha em todos os deslocamentos: desde que sua cabeça foi posta a prêmio e seus crimes foram divulgados, Mengele é objeto de histórias fantásticas e logo passa a ser uma criatura mítica, “o médico satânico, a criatura do diabo, não comparável a um homem a despeito de sua aparência humana”, escreve o dramaturgo Rolf Hochhuth em O vigário, de 1963. O Mossad não se deixa iludir pelos rumores extravagantes. A unidade especial estabeleceu seu QG em Paris; é comandada por um dos responsáveis pelo rapto de Eichmann, Zvi Aharoni, um judeu alemão que jurou arrastar seu ex-compatriota para um tribunal israelense. Ela detém informações precisas e identificou dois dos contatos de Mengele na América do Sul, Krug e Rudel, porém o rastreamento é complexo, o círculo da família em Günzburg mostra-se impenetrável, a família Krug, desconfiada: uma das filhas resiste à ofensiva de charme do playboy da unidade especial. Aharoni infiltra uma penca de agentes no Paraguai, convencido de que Mengele ainda está lá, os israelenses souberam de sua naturalização. Manda seguir Rudel por toda a América do Sul, assim como Martha, cuja

correspondência ele intercepta e tenta infiltrar as instituições da comunidade alemã de Assunção. O Mossad estende suas garras sem sucesso. Mengele continua alguns passos à frente. Até a primavera de 1962. No Uruguai, Aharoni desentoca um animal de grande porte, a descoberta bombástica com que sonha todo mestre espião. Sassen abre o bico: seu velho amigo Mengele conspurcou a honra da SS e, acima de tudo, Sassen precisa de dinheiro para bancar seu padrão de vida faustoso e suas inúmeras amantes. O Mossad recompensa-o regiamente. O aventureiro holandês perdeu Mengele de vista, mas descobre rapidamente a fuga para o Brasil e a identidade de seu novo protetor, Wolfgang Gerhard, seu único contato com o mundo exterior. Uma manhã, o Ford Anglia do austríaco atravessa o cerrado rumo a uma fazenda isolada. Acompanhado de dois agentes, ambos judeus brasileiros, Aharoni parte para um piquenique nas cercanias da fazenda. Dali a pouco, três homens vão ao seu encontro. Um deles, de estatura mediana e tipo europeu, usa um bigode e um chapéu afundado na cabeça. Calado, mantémse retraído, enquanto seus dois robustos companheiros interpelam os três caminhantes em português. Aharoni deixa seus homens falarem enquanto observa o homem de chapéu, que se furta ao olhar. É ele, colocaria sua mão no fogo, e, Deus, como gostaria de pular em sua garganta e estrangulá-la com todas as forças, mas conserva o sanguefrio, é melhor que outra equipe o fotografe para identificá-lo com certeza. Precisa ser dentro de poucas semanas, o pior seria chamar a atenção do suspeito. Os três homens voltam à fazenda; Aharoni, ao seu QG parisiense, para planejar uma operação ainda mais complexa do que o rapto de Eichmann.

44. Em seu escritório, na volta à França, uma surpresa o aguarda. O chefe do Mossad, Isser Harel, emagrecido, espantosamente nervoso, ordena-lhe que interrompa a caçada a Mengele para dedicar-se à de um menino de oito anos. A polícia suspeita que seu avô materno, um ultraortodoxo, raptou-o; o pequeno Yossele fora-lhe confiado pelos pais, judeus laicos em grandes dificuldades financeiras; quando foram buscá-lo, o avô lhes explicou que Yossele devia ser criado segundo as prescrições da Torá e se recusou a lhes devolver o filho; em sua segunda visita, o menino tinha sumido. Quando o avô foi encarcerado por se negar a cooperar com a polícia, os religiosos exaltados desceram à rua e atiraram pedras: o Estado judeu está prendendo um ancião, um santo homem, “Ben-Gurion é nazista”. Israel está à beira da guerra civil, ortodoxos e leigos se invectivam e lustram suas armas, o governo vacila, Ben-Gurion corre o risco de perder sua maioria no Parlamento e as próximas eleições. Para aplacar a tensão, cumpre urgentemente encontrar Yossele e, como a criança está provavelmente no estrangeiro, o Mossad precisa intervir, lançar os quarenta melhores farejadores em seu encalço, o primeiro-ministro assim exige. É a operação Tigre, e Aharoni naturalmente é recrutado. O oficial fica insatisfeito, mas obedece. Talvez a dois dedos de encurralar Mengele, ele e sua equipe precisarão usar barbas postiças para se infiltrar entre as seitas mais extravagantes do judaísmo em toda a Europa, nos Estados Unidos e na América do Sul. Os caçadores de nazistas chantageiam rabinos nos bordéis de Pigalle, usando fotos como prova. Finalmente uma pista se desenha: Yossele foi raptado por uma aristocrata francesa convertida ao judaísmo, uma heroína da Resistência, Madeleine Frei, que se encantou pelos Guardiães dos Muros de Jerusalém, a

seita do avô. Uma história rocambolesca: Frei tingiu de louro o cabelo do menino e o disfarçou de menina para deixar o território israelense. Por fim, Yossele é encontrado numa família ultraortodoxa do Brooklyn e levado de volta à Israel. A operação Tigre durou oito meses e custou um milhão de dólares ao Mossad. Nesse intervalo, Mengele se mudou.

45. Um ano antes, sua aclimatação tinha sido difícil. Mengele chegara no início da estação seca em Nova Europa, e nunca fizera tanto calor na região quanto naquele final de 1961: nenhuma gota de chuva antes do Natal, as noites eram caniculares, mais irrespiráveis do que na casa de Krug em Hohenau. O trabalho era extenuante, os solos, áridos, e os Strammer viviam em sua pequena lavoura como na Idade Média, sem telefone nem eletricidade. A fazendeira, Gitta, vigiou atentamente os primeiros passos de Peter Hochbichler no cafezal. Trabalhava desde o raiar do dia e deixava a lavoura mais tarde do que os outros operários agrícolas; sério no trabalho, mimava as vacas, as galinhas, a égua e os três leitões do estábulo-estufa que fedia a bosta, assobiando árias de Mozart e Puccini. Ao fim de um mês, os Stammer, ou melhor, Gitta, uma vez que Geza só voltava para casa determinados fins de semana, resolveram conservar o camponês pé de boi e estranhamente narcísico: todas as manhãs, antes de dirigirse aos pastos, Hochbichler aspergia-se com água-de-colônia e se mirava langorosamente no espelho da entrada. Usava sempre um chapéu, que abaixava sobre o rosto assim que um operário se aproximava, e, a despeito do calor escaldante, botas de cano longo e um camisão abotoado até o pescoço, uma espécie de impermeável de lona branca que o assemelhava a um contramestre portuário encarregado de encher silos de grãos. Suas mãos eram estranhas, palmas e falanges calejadas de um trabalhador manual, unhas impecáveis de um grande burguês de Budapeste. Lavava-as trinta vezes por dia e esfregava energicamente seus antebraços com sabão preto, tal como um cirurgião se desinfeta após uma operação. Hochbichler era uma avis rara: comia e falava delicadamente, mas sabia fazer boudin. Alguns dias antes

do Natal, arrebentou a cabeça de um leitão com um machado e o degolou com um facão impressionante, que ele afiara na véspera. Recolheu o sangue que jorrava aos borbotões, bateu-o e misturou-o com os braços até os cotovelos numa bacia para impedi-lo de coagular, depois, como um alucinado, vasculhou o interior do animal e, respingando sangue, retirou os pulmões, os rins, o fígado e a gordura dos intestinos, com que os Stammer, os operários e suas famílias se regalaram na noite natalina. Certa manhã, quando ele estava na lavoura, Gitta entrou em seu quarto, o qual, coisa incomum, ele havia se esquecido de trancar, e fuçou suas coisas. Além das roupas de grife dobradas com cuidado, descobriu um guarda-chuva inglês, centenas de dólares em notas graúdas, periódicos e revistas científicos em espanhol e alemão, um caderno grosso com cadeado, papéis sigilosos que ela não ousou decifrar, discos de ópera, livros cujos autores não lhe eram familiares, Heidegger, Carl Schmitt, Novalis, Heinrich von Treitschke. Assim, não foi uma grande surpresa para ela quando descobriu, por acaso, a verdadeira identidade de Hochbichler. No sábado 27 de janeiro de 1962, Geza trouxera para casa um importante jornal de São Paulo, que, para comemorar o décimo sétimo aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz, estampava na primeira página o retrato de um jovem médico triunfante, alcunhado o anjo da morte, um tal de Josef Mengele, ainda foragido. O retrato chamou a atenção de Gitta, que notou o olhar penetrante do médico, suas sobrancelhas mefistofélicas, a brecha entre seus incisivos superiores, sua testa ligeiramente protuberante. Pediu que o filho mais velho, Roberto, fosse chamar Hochbichler, a quem mostrou a foto. Trêmulo, mais lívido do que um defunto, ele saiu da sala sem pronunciar uma palavra. Na mesma noite, após uma refeição na qual mal tocou, o fazendeiro suíço confessou aos Stammer que, “desafortunadamente”, era Mengele, porém não cometera

os crimes de que o acusava a “imprensa controlada pelos judeus”.

46. Fosse verdade ou mentira, os Stammer estavam se lixando tanto para os crimes de Mengele como para Auschwitz. Geza estudara na Alemanha durante a guerra; nem ele nem a futura mulher haviam se preocupado com a deportação dos judeus da Hungria, com os massacres perpetrados no fim de 1944 pelos membros da Cruz Flechada, que fuzilaram os pastores do Danúbio e atiraram no rio congelante, ainda vivos, judeus, ciganos e oponentes ao regime de Szálasi, do qual eram ardorosos defensores. Eles também tinham sofrido, seus pais, originários da Transilvânia, perderam suas terras após a derrota de 1918, uma irmã de Gitta fora estuprada e assassinada por soldados do Exército Vermelho quando eles entraram na Hungria. E desde então sua pátria-mãe estava ocupada pelos soviéticos, que os obrigaram a emigrar e a mofar naquele buraco. As acusações feitas contra o médico alemão por um jornal brasileiro deixavam-nos indiferentes. Mas eles queriam paz. Não dormiram à noite: o fazendeiro suíço era um dos criminosos mais procurados do mundo, sua cabeça fora posta a prêmio pelo governo da Alemanha Federal. Geza, em pânico, andava em círculos no seu quarto, o jornal na mão como uma tocha incandescente. O autor da matéria revelava de fonte segura que Israel preparava o rapto de Mengele na América do Sul, uma operação comando executada pela unidade de vingadores que já havia capturado Eichmann na Argentina. O Mossad não demoraria a tomar de assalto a fazenda e a assassinar seus filhos, tinham que se livrar de seu hóspede o mais rápido possível. Geza decidiu antecipar sua partida para São Paulo e fazer contato com Gerhard o quanto antes. O austríaco tentou tranquilizar o húngaro, ninguém sabia onde Mengele se entocava, os jornais veiculavam meros

boatos, os Stammer não corriam riscos. Deveriam antes orgulhar-se de hospedar uma sumidade científica do Terceiro Reich e realizar uma missão tão preciosa para a causa, que, no fim, acabaria em triunfo; para camponeses magiares anônimos (uns merdas, pensava Gerhard), era uma sorte inesperada. Stammer deu de ombros e alteou a voz, não estava nem aí para a causa, Hochbichler-Mengele precisava dar o fora imediatamente. Gerhard prometeu que cuidaria disso, mas antes precisava falar com a família do interessado em Günzburg, “um pouco de paciência, caro amigo”, e deu-lhe um aviso, roçando a mão em sua pistola de bolso, bico calado, até lá não faça nenhum gesto ambíguo, os nazistas poderosos no Brasil o fariam pagar muito caro se fizesse uma denúncia: “Geza, pense no futuro dos seus filhos.”

47. Algumas semanas mais tarde, o Ford Anglia de Gerhard emergiu de uma nuvem de poeira em frente à fazenda dos Stammer. O austríaco abriu a porta para um homem atarracado, amarrotado por uma longa viagem transatlântica e quilômetros de estrada. “Senhor Hans”, o emissário do diabo, carregava na mão esquerda uma maleta de couro preta atada a seu punho por uma corrente prateada. Dela retirou um envelope lacrado. Ele também pensava no futuro dos meninos Stammer, Roberto e Miklos, cujas cabecinhas louras acariciou: dois mil dólares para ganhar tempo e exprimir gratidão a seus pais, pois nem Gerhard, nem Rudel tinham conseguido encontrar um novo lar para seu amigo Hochbichler. Os Stammer então precisavam ter paciência. Gerhard retornaria o mais rápido possível para livrá-los de seu incômodo hóspede. Antes de partir, Sedlmeier deu uma breve caminhada com Mengele. Rosto carcomido, barba malfeita, o amigo, normalmente tão arrumado, estava irreconhecível em sua roupa de espantalho. Depois que os Stammer descobriram sua identidade, ele começou a se corroer de angústia e também ficara traumatizado com as notícias sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, que ele acompanhava intermitentemente, quando aparecia um jornal. Implorou a Sedlmeier que o tirasse daquele vespeiro. Sentia-se no fim das forças, exaurido por aquela fuga sem fim, de esconderijo em esconderijo, aquela vida de recluso, de bicho acuado, entre onças e formigueiros. E aquele cerrado, e aquele calor maldito. Não conseguia mais ler três páginas seguidas: em breve, estaria completamente louco. Sedlmeier ajudou-o a se levantar e lhe estendeu um lenço após espanar seu terno de gabardine: os Mengele não o abandonariam, o dinheiro era capaz de mover montanhas. Martha, que acabara de se instalar com Karl-Heinz em

Merano, no Tirol do Sul, era muito corajosa, uma fiel esposa alemã, recusara todas as solicitações dos jornalistas, podia confiar nela. “E Irene?” Mengele não resistiu à pergunta. Em plena forma, despreocupada como nunca, admitiu Sedlmeier. Em Freiburg, Rolf também passava bem, mas, sob a influência da mãe, esnobava seus primos e toda a família. Pretendia cursar Direito. Sedlmeier mergulhou então os olhos nos olhos avermelhados de Mengele: eles precisavam parar de se escrever, era perigoso demais, desconhecidos rondavam a fábrica e o solar da família em Günzburg, Martha sentia-se vigiada em Merano. No mês anterior, dois eletricistas bateram à sua porta sem que ela os tivesse chamado. Gerhard seria seu único interlocutor. As semanas seguintes foram tempestuosas na fazenda Nova Europa. Aguaceiros quentes encharcavam o cerrado, os meninos Stammer evitavam o tio Peter, Geza ficava louco de preocupação só de pensar em deixar a família à mercê do nazista fanático e de um ataque do Mossad, enquanto sulcava o sertão longe dos seus por um salário de miséria. Gitta vigiava os gestos mais ínfimos de Hochbichler. Mudo e ranzinza na mesa, desviava o olhar assim que ela tentava encará-lo. Mal terminado o jantar, ele se trancava em seu quarto, onde Gitta o escutava resmungando e andando de um lado para o outro. Nos milharais, Hochbichler ladrava ordens aos operários e explodia de raiva quando não as respeitavam ou compreendiam mal seus gestos e seu arremedo de português. Ao menos, observava Gitta, aqueles três preguiçosos (dois negros, uma mestiça) tinham medo dele e trabalhavam duro, quando geralmente não moviam uma palha, tão débil era a autoridade de Geza. O criminoso de guerra se impunha. Transcorreu mais um mês sem que Gerhard se manifestasse. Geza estava cada vez mais nervoso. Terminou por comunicar a Gitta que levaria Hochbichler para São Paulo na semana seguinte, por bem ou por mal. O circo já tinha durado além da conta. Gerhard ou outro fanático o

resgataria, não era problema dele, e, se os nazistas os incomodassem, ele vazaria toda a história para um jornalista da região que conhecia. Sua mulher opôs-se ao plano. O médico estava provavelmente armado, e o austríaco era capaz dos golpes mais baixos para protegê-lo. Ela tinha uma ideia melhor: os magnatas bávaros precisavam deles; não podiam lhes recusar nada. Hochbichler, ela se negava a chamá-lo de Mengele, era um filão extraordinário. Em vez de soltá-lo na natureza, era preferível fazer os lances subirem, pedindo a Gerhard uma nova soma exorbitante. Ou então a família do fugitivo poderia comprar para eles uma grande fazenda numa região mais agradável. Em seguida, dariam um jeito de se livrar do médico, Hochbichler não ficaria dez anos morando com eles. Os Stammer discutiram à luz trêmula das velas. Geza disse à mulher que ela perdera a cabeça, Gitta retorquiu que era tudo culpa dele, se tivesse uma situação melhor, não precisariam acobertar um alemão lunático para prover suas necessidades. Ele lhe prometera mundos e fundos antes de desposá-la. Por quanto tempo ainda sobreviveriam naquela ratoeira? Ele pensava no futuro dos filhos? Necessitavam de mais dinheiro para sua educação. E, se porventura a polícia prendesse Hochbichler, que risco eles corriam? Poderiam declarar que não conheciam sua verdadeira identidade e que Gerhard os enganara. O dia já raiava quando Geza cedeu aos argumentos da mulher. Em São Paulo, transmitiu suas novas exigências ao austríaco, que dessa vez respondeu rápido: os Mengele aceitavam lhes dar uma nova fazenda, ou melhor, metade do capital, cabendo a eles arranjar a outra com a venda das terras da Nova Europa. O acordo foi firmado. Algumas semanas depois, os Stammer e Hochbichler se mudaram para um sítio isolado, com quarenta e cinco hectares. Cinco meses antes de o Mossad encontrar o pequeno Yossele.

48. Tão logo se instala em Serra Negra, em 1o de junho de 1962, Mengele recebe a notícia do enforcamento de Eichmann no pátio da prisão de Ramla. Fica transtornado. Assim que ouve a notícia no transistor de Roberto, corre até o seu quarto para registrar seu desespero e seus temores, aquele medo que não o larga nunca, paralisando-o e tolhendo-o desde que deixou seu casulo de Buenos Aires. Eichmann executado pelos judeus! Suas cinzas espalhadas no Mediterrâneo para que sua mulher e seus filhos não pudessem reverenciá-lo em seu túmulo! Mengele treme, sua frio, enchendo páginas e páginas de cadernos espiral com uma letra cerrada, em que se refere a si mesmo na terceira pessoa e se autodenomina Andreas. Nunca teria imaginado dedicar mais de três linhas ao austríaco execrado e frustrado, porém, numa homenagem a Eichmann, que não o denunciou, se autocompadece, prepara sua defesa e só pensa em si mesmo, como sempre. Eichmann, o bode expiatório e o pária, rabisca Mengele. Os alemães o traíram e o abandonaram à fúria vingadora dos judeus; um dia eles se arrependerão de ter sacrificado homens honrados que lutaram até seu último suspiro pela pátria e pelo Führer. Uma vergonha para os alemães, um monte de maricas e covardes, nação de mercadores medíocres corrompidos por governantes de pacotilha, vendidos a quem paga mais, aos mercadores do templo: abandonaram Eichmann! Deram-lhe um tiro nas costas, quando ele só cumprira seu dever e quando nos limitáramos a obedecer às ordens, em nome da Alemanha, pela Alemanha, pela grandeza de nossa pátria querida. A Alemanha ingrata agora nos prega no pelourinho e se deixa manobrar pelos piores inimigos. Que país neste mundo castiga seus mais zelosos servidores e seus melhores patriotas? A Alemanha de Adenauer é um ogro

que devora seus filhos. Nós todos teremos a mesma sorte, um depois do outro, pobres de nós... Mengele nunca se sentiu tão sozinho quanto nessa noite de tempestade. Enquanto descarrega sua bile mordendo o bigode, raios riscam as trevas e o céu ronca, como se um canhoneio soviético bombardeasse a colina onde se encontra o sítio de Santa Luzia. Inferno e danação, resmunga, Deus, como ele desceu baixo, como degringolou nesses últimos três anos, desapareceu, insignificante, mantido vivo só por dois tênues fios, aquela família de húngaros, que cedo ou tarde o trairá, e o intrusivo Gerhard, perdedor radical, nazistoide do Brasil. Esses finos cordões ameaçam romper-se a qualquer momento. Terrível! De madrugada, suando em bicas, Mengele desaba em sua cama.

49. Iluminada por uma luz baça, uma encruzilhada cercada por altos prédios, sem portas nem janelas e encimados por chaminés que sobem até os céus, exala o cheiro de carne grelhada. Mengele está no centro; rejuvenesceu vinte anos e veste seu uniforme SS com a imagem de uma caveira. Suas botas lustradas patinham no sangue, a praça deserta regurgita de sangue e é sobrevoada por grandes urubus. Mengele vira de um lado para o outro, desamparado, incapaz de se orientar, distingue oito caminhos, mas qual escolher? Da direita vem um barulho surdo, como uma cachoeira, um rufar de tambores cada vez mais alto, tonitruante, latidos, cachorros, sim, uma matilha de cães se aproxima da encruzilhada. Mengele volta-se para a esquerda. Corre ao longo de um beco, respingando-se de sangue, mas os animais se aproximam, sem vê-los ele os ouve, acelera com todas as forças e desvia para a esquerda, para a direita, para a esquerda novamente, ofegante. De repente, os latidos cessam, e o cheiro de carne carbonizada se atenua. Mengele ouve apenas as palpitações descontroladas de seu coração. E um silvo lancinante quando alcança a encruzilhada seguinte. Uma naja ergue-se à sua direita e obstrui o caminho que conduz a um busto de Hitler. Ele vira à esquerda, a contragosto, avança por um longo corredor coberto com mil reproduções da Virgem iluminadas por castiçais dourados de sete velas. Sente frio, sede e fome, tem sangue até os tornozelos, no corredor, filetes de sangue também escoam das paredes. Ainda assim, recupera a esperança: percebe uma luz fortíssima no fim do túnel, vozes e risos familiares de mulheres e crianças, finalmente vai sair do labirinto. Que azar, desemboca na encruzilhada inicial: está girando em círculos. De fato, pessoas festejam e ouvem música no terraço de um prédio da praça. O primeiro que ele percebe

alerta os outros, e eis que eles se debruçam no parapeito, apontam para ele, zombam, vaiam, atiram caroços de azeitonas, tomates, flechas e até mesmo um caldeirão de cal viva, como se estivessem na Idade Média. Mengele ergue os punhos, mas nenhuma palavra sai de sua boca. Ele julga distinguir Sassen, Rudel e Fritsch, que brindam no terraço com Medeia, a maga vingadora, e com o terrível Saturno, apoiado em sua foice, quando os urubus investem sobre ele. Mengele se joga no chão, rasteja até a viela mais próxima, todo sujo de sangue. O céu escurece e ele volta a disparar, esbaforido, em linha reta, uma, duas horas, uma eternidade, até dar de novo com a maldita encruzilhada. Agora anoiteceu, uma lua crescente ilumina a praça, que retornou à calmaria. O sangue desapareceu, como que aspirado pela terra ocre. Vitrines surgiram no andar térreo dos prédios de tijolos. Cada uma encerra um televisor em preto e branco. Mengele se aproxima e constata, no reflexo de uma vitrine, que recuperou suas feições envelhecidas e seu chapéu de abas largas, seu bigode, sua imensa capa branca. Na tela, vê Martha de tailleur no convés de um navio, acenando-lhe com a mão. Na segunda vitrine, a televisão mostra Rolf adolescente lendo um livro e passando a mão no cabelo. Não ergue os olhos para fitar o pai. Em outra, Mengele vê Irene fazendo amor com o sapateiro de Freiburg. Bate com todas as suas forças no vidro, mas ele é inquebrável, então foge uivando de dor até a próxima tela, que mostra um enterro, o de Karl sênior: ele decifra o nome do pai numa coroa de flores, reconhece no cortejo seu irmão Alois, acompanhado da mulher Ruth e o filho Dieter. Sedlmeier, consternado e trajando luto, de braço dados com sua esposa, e os vereadores de Günzburg. O ângelus ressoa. Mengele acorda, ardendo em febre.

50. Seu estado piora nos dias seguintes. Mengele fica de cama, delira, se alimenta mal. Gitta se preocupa: e se o criminoso de guerra morresse em sua casa? Evidentemente, Geza não está ali para ajudá-la. Quando se prepara para chamar um médico, o doente reúne forças e a intima a desistir da ideia. No sexto dia, a febre recua. Gitta o visita regularmente, areja seu quarto, leva sopa e grandes xícaras de chá, aplica-lhe compressas frias na testa. Ela agora o chama de Peter. Uma tarde chuvosa, quando seus filhos estão na escola e os peões na lavoura, ela esgueira uma mão impaciente sob os cobertores, acaricia e puxa o membro encolhido do doente. Mengele se contorce, geme, quando a fazendeira húngara, com a saia arregaçada, começa a cavalgá-lo. Gitta prende novamente os cabelos e se retira em silêncio. Lá se vão quinze anos que ela definha nos trópicos. Sempre sozinha, cuidando dos filhos, repreendendo os empregados, arando solos estéreis; sempre fazendo canteiros de flores, administrando as finanças, cozinhando, costurando, limpando, enquanto Geza está sabe Deus onde, só aparecendo em casa a cada três semanas, bolsos vazios, um buquê na mão para ser anistiado dos recorrentes fracassos. Ele lhe roubou a juventude. Gitta sonhava com a vida reluzente de uma bailarina estrela da Ópera de Budapeste ou Viena. Está convencida de que perdeu a chance. Em Debrecen, sua cidade natal, o diretor da companhia de dança onde ela exercia seus talentos acabara com sua carreira promovendo aos palcos da capital sua principal adversária, uma bailarina menos talentosa do que ela. Um canalha judeu, ela repete aos filhos, que Deus castigara ao despachá-lo junto com a família para um dos campos de concentração que pulularam na Europa Oriental poucos anos depois. Nunca mais foram vistos. Mas, para

Gitta, já estava tudo acabado, a guerra, o exílio, o casamento e as gravidezes passaram por ali. O tempo consumara sua obra destrutiva. Aos 42 anos, suas pernas ainda estão firmes, seus seios rijos, suas nádegas intrepidamente empinadas. O calor, a umidade, a promiscuidade: o Brasil surpreendeu aquele corpo vigoroso. Alguns dias depois da partida de Geza, Gitta já está carente. Uma vez, uma única vez antes da chegada de Hochbichler, entregara-se a um boia-fria, um mulato alto, noite da qual a europeia envergonhada levou meses para se recuperar. Peter a atrai. Suas têmporas grisalhas, seu bigode e aquela maneira de alisar o cabelo para trás, como os pilotos de corrida argentinos que via em revistas ilustradas. Seus olhos em movimento constante. Gitta aprecia sua autoridade, ela lhe será indispensável agora que sete boiasfrias acabam de ser contratados para cultivar os solos vermelhos riquíssimos da nova fazenda. E ela acha excitante proteger um personagem de romance de espionagem. Enfim, um pouco de adrenalina... Bem feito para Geza, pensou, não fora por falta de aviso. Na fazenda Nova Europa, algumas semanas antes da mudança, Peter a impressionou ao operar uma vaca com hérnia ventral. Ele abriu o animal, deformado por uma enorme bolsa que pendia até o chão, corrigiu a hérnia e costurou a pele com destreza, grande arte, a vaca ficou apenas com uma ligeira cicatriz e está em plena forma. Graças a seus talentos, ela alegra-se por poupar as despesas com um veterinário, sempre pesadas. Outro dia, Peter a fez rir. Ele descobriu um formigueiro. Em vez de atear-lhe fogo, prendeu um peso numa corda e amarrou-a num galho de eucalipto. Horas a fio, como um aluno de engenharia, calculou, desenhou, aprimorou o plano da polia para esmagar o formigueiro. Nunca Gitta o vira tão atarefado e tão entusiasmado quanto depois de sua destruição, muito mais do que após o sexo. Transcorridas

algumas horas, as formigas brancas instalaram seu ninho num local um pouco mais distante. Peter nunca será um amante inesquecível; não tem nem o vigor nem a imaginação de Geza. Porém tem o mérito de estar à sua disposição nas monótonas tardes viscosas. Não pode lhe recusar nada, mas não teria interesse em fazê-lo. E como Gitta esperava, os dólares chovem graças a ele, basta queixar-se junto a Gerhard para ganhar um extra. Ela se presenteou com dois vestidos numa loja em Serra Negra e comprou bolsas de couro para os meninos. Uma nova cama foi encomendada. E a eletricidade, uma bênção.

51. Surpreendido com o ataque de Gitta, Mengele, novamente de pé, avalia a situação. Ela não faz seu tipo. O cabelo louro oxigenado é tão vulgar quanto seus modos e os olhos mortiços; o rosto oleoso conservou a acne juvenil. A boca é intimidante e os dentes estão provavelmente estragados, a julgar pelo hálito nauseabundo quando ela punha-se a tagarelar na cama. Ela fala alemão melhor que o imbecil do marido; seu sotaque húngaro é às vezes insuportável. Mas Gitta é seu seguro de vida. Caso a mantenha sob seu controle, poderá continuar escondido nos Stammer. Portanto, está disposto a realizar todos os esforços, ainda mais porque o sítio de Santa Luzia não o desagrada. A fazenda fica embutida na vegetação, o clima é mais moderado do que na Nova Europa, as paisagens são suaves, e ele está fascinado pelas borboletas de asas azuis, anis, laranja ou pretas com pontinhos brancos, do tamanho de uma mão adulta. A selva suplantou o cerrado amarelado. Os morros e as matas dissimulam fontes cristalinas: Serra Negra é uma cidade termal desde sua fundação por pioneiros italianos. Encarapitada num morro como uma fortaleza medieval, a fazenda domina a planície. Atormentado desde o enforcamento de Eichmann, ali Mengele sente-se relativamente seguro, mais do que em todos os seus esconderijos desde que deixou a Argentina. Atrás da fazenda e do cafezal, um afloramento rochoso, uma divisória selvagem de rochedos e árvores gigantes impenetráveis protegem a entrada. Mengele nunca sai da fazenda e não recebe ninguém, exceto Gerhard, que lhe traz jornais, livros e supositórios laxantes, às vezes discos de música clássica. Antes que os Stammer recebam suas raras visitas, vizinhos, ricos alemães, colonos italianos, ele os sufoca com perguntas: quem são eles, de onde vêm, há quanto tempo os

conhecem? Mesmo que o tranquilizem, não aparece. No sábado, some logo após cumprimentar os colegas de Roberto e de Midlos que vêm jogar à tarde. Para eles, é o tio Pedro, o velho suíço excêntrico que não se pode fotografar nem mencionar fora dali. Ele pede aos Stammer para contratarem um guarda, sua família pagará. Vive cercado de cães, uma matilha de uns quinze vira-latas que amestrou e que o escoltam quando ele se embrenha na mata. O chefe do bando, Cigano, não se afasta dele um centímetro. Mas a obra-prima de seu aparato de segurança é uma guarita com seis metros de altura, que instruiu um funcionário da fazenda a construir sob o pretexto de observar os pássaros. Ameaçada pelos cupins, a madeira é substituída por uma estrutura de pedra, uma impressionante torre de vigia contígua à fazenda, de onde Mengele, com roupas de apicultor e binóculos Zeiss em volta do pescoço, monitora diariamente, horas a fio, a estrada vicinal que serpenteia pelos morros e a estradinha de terra que sobe até a fazenda. Nenhum movimento lhe escapa. Quando o céu está limpo, seu olhar alcança um perímetro de quilômetros, até a vila de Lindônia. Como uma coruja, ele sobe ao seu campanário no crepúsculo enxameado de mosquitos e vasculha as trevas; à espreita, melancólico ou cabeceando de sono, deixa óperas de Wagner e cantatas de Bach rodando incansavelmente na vitrola Teppaz que ganhou de Gerhard em São Paulo. Quando, por fim, desce para se deitar, seus cães montam guarda.

52. Passam dias, semanas, meses, a vida confinada de Mengele no Brasil estagna em seu calabouço, aberto para o infinito e longe dos homens, uma vida congelada em meio a um zumbido incessante, em meio às estações secas ou superúmidas, aos vendavais, aos calores asfixiantes, às chuvas lânguidas, cercada por centopeias e cobras, escorpiões e vermes parasitas, eucaliptos e jaqueiras com raízes entrelaçadas, monstruosas patas de dinossauros. Mengele volta e meia está doente. Infectado por uma bactéria ou talvez sofrendo de paludismo, dores de cabeça e cãibras o achacam, seguidas de náuseas e diarreias, calafrios intensos e febres altas. Dorme mal e pouco, minado pelos pesadelos, por visões que não consegue mais recalcar, as labaredas de um forno crematório, bebês agonizantes cujos olhos são espetados na parede de seu laboratório como borboletas. Eichmann em sua jaula em Jerusalém, um rabino com longos peiots ruivos arrebentando-lhe os ossos e atirando-o na gordura humana fervilhante. Ele ouve vozes, gemidos, choros, as sirenes dos Stukas arremetendo sobre o sítio de Santa Luzia. Às vezes lhe acontece de esquecer o beco sem saída em que se encontra e o medo que lhe rói diariamente as entranhas. Seus cães obedecem aos seus gestos e olhares e o lambem afetuosamente. Relaxa consertando coisas, trabalha a madeira, com a qual fabrica pequenos objetos, e se interessa pelas flores e a botânica das regiões tropicais, como Napoleão confinado em Santa Helena. Escreve, também, poemas grandiloquentes e o começo de um relato épico, uma descrição exaustiva de sua infância e de seus anos de formação, que destina a Karl-Heinz e a Rolf, no caso de um dia sair de sua clausura. Todo o resto é difícil e laborioso. Gitta o espiona, arranha sua porta, assedia-o regularmente. Ele não pode recusar

nada à Bovary dos trópicos, à noite, enquanto os meninos dormem, ou à tarde, assim que os empregados viram as costas, um pequeno regalo atrás de uma mangueira. O trabalho na lavoura e no cafezal o exaspera, vacas e leitões o esgotam, decididamente não é feito para a utopia agrária da SS, o contato com a terra, a vida saudável, o ar livre. Mengele então desconta nos lavradores, que tiraniza assim como um senhor russo humilhava seus servos. Proíbe-lhes de fumar e beber, mesmo aos domingos: um trabalhador bêbado é despedido sumariamente. Se desprezava os argentinos, abomina os brasileiros, mestiços de índios, africanos e europeus, povo anticristo para um teórico fanático da raça, e lamenta a abolição da escravatura. Registra regularmente suas observações num diário. A mestiçagem é uma maldição, a causa da decadência de toda cultura. Seus estigmas explicam o bom humor constante dos operários, “macaquinhos”, anota Mengele, sua despreocupação, seu senso de improviso e sua alegre anarquia, características que tanto o irritam. “Na medida em que os brasileiros são bastardos raciais, a heterogeneidade de suas substâncias se traduz numa esquizofrenia de espírito. Eles são privados de consciência pura e de vontade clara; criaturas variadas e contraditórias coexistem e lutam dentro deles. Formam um povo instável, perturbado e perigoso, como os judeus, ao passo que os espíritos saudáveis e decisivos são oriundos de uma biologia fiel à sua identidade racial.” Ao discreto Hochbichler sucedeu Mengele, o déspota, que se mete em qualquer assunto. De Roberto e Miklos exige mais assiduidade na escola, notas melhores e disciplina, como se fossem seus próprios filhos. Julga seu alemão execrável e raramente perde a oportunidade de lhes apontar isso. Deveriam aprender solfejo em vez de vadiar com os delinquentes do vilarejo, caçando morcegos com atiradeira. Proíbe-os de mascar chiclete na sua presença, aconselha-os a desconfiar das meninas, a socializar só com

filhos de europeus e se opôs à festa surpresa que Roberto sonhava para os seus quinze anos. No dia em que os flagrou escutando um 45 rotações dos Beatles em sua Teppaz, no alto da guarita, perdeu a cabeça. Os meninos Stammer nunca tinham recebido uma reprimenda tão forte; Gitta interveio. Ele também trava uma guerra contra ela, especialmente contra ela: Mengele sente um prazer maligno em espezinhá-la. Ela dorme demais e deveria cuidar melhor da alimentação, escovar os dentes com mais cuidado, não fumar tanto. Critica-a por estar gorda como uma camponesa e por coçar a bunda na frente dos operários. Sua culinária deixa a desejar, sal e páprica em excesso, Gitta poderia empenhar-se, dosar seus molhos e purês com mais sutileza e fazer melhor a faxina. Mengele, maníaco, tem uma aversão patológica à poeira. Ai daquele que perturbe seu modo de vida imutável e organizado, pegue uma de suas canetas, tesouras ou livros, desloque uma cadeira ou um tapete: ele fica furioso e vocifera e geme, como se o desaparecimento de um objeto abalasse a frágil estrutura de sua existência e ilustrasse o nada de sua imensa solidão.

53. Finalmente, em meados de 1963, Mengele recebe notícias de sua família. O mensageiro Gerhard retoma a função de intermediário: Sedlmeier comunica-lhe que os intrusos abandonaram Günzburg e que Martha deixou de ser seguida em Merano. A caçada a Mengele parece novamente interrompida. Após o sucesso laborioso da operação Tigre, o Mossad volta a se concentrar no Oriente Médio. Seu chefe, Harel, continua sob pressão, pois dessa vez a ameaça é gravíssima: Israel corre risco de morte depois que o Egito testou, em junho de 1962, um míssil balístico capaz de atingir qualquer ponto de seu território. Durante uma parada militar triunfal pelas ruas do Cairo, Nasser exibiu seus novos foguetes com alcance de seiscentos quilômetros. Cientistas nazistas, veteranos do programa V2 de Hitler, assessoram os técnicos egípcios. Novecentos foguetes estão em construção num local ultrassecreto, a Factory 333; talvez estejam equipados com rejeitos radioativos ou ogivas nucleares, advertem os relatórios mais alarmistas. De tanto dilapidar seus parcos recursos na caçada aos nazistas na América do Sul e nas buscas pelo pequeno Yossele, proezas que fizeram de Harel uma celebridade mundial, o Mossad está fracassando em sua verdadeira missão, a segurança de Israel. Seu diretor é pressionado. Seus detratores criticam-no por transformar a agência em escritório de relações públicas. Para desmenti-los, Harel lança a operação Dâmocles: a eliminação física dos cientistas alemães envolvidos no programa egípcio de mísseis. Alguns recebem cartas com explosivos, outros são raptados ou simplesmente assassinados. Agentes israelenses ameaçam a filha do responsável pelo sistema de orientação dos foguetes e são presos na Suíça, acusados de

assassinato e tentativa de assassinato. Quando o escândalo estoura, coloca em risco as relações com a Alemanha Ocidental, cruciais para os interesses econômicos e militares do Estado hebraico. Forçado a se demitir, Harel é substituído pelo general Meir Amit. A caçada aos nazistas não é sua prioridade, o Mossad deve dedicar-se à coleta de informações e à luta contra seus inimigos árabes. Israel precisa de aliados, e o rapto de Eichmann foi mal recebido pela comunidade internacional. Os Estados não brincam com sua soberania. A decisiva conflagração de 1967 começa a se armar. A captura de Mengele é relegada a segundo plano.

54. No início de 1964, Mengele recebe uma notícia terrível. À medida que lê a carta de Martha, sente como se uma adaga trespassasse suas vértebras e penetrasse até o coração: todos os seus diplomas universitários foram anulados. Por ter violado o juramento de Hipócrates e cometido inúmeros assassinatos em Auschwitz, as universidades de Frankfurt e Munique retiram-lhe seus títulos de doutor em medicina e em antropologia. Tantos esforços e sacrifícios reduzidos a pó por obscuros burocratas... Mengele está aniquilado. Ele, o ambicioso cirurgião do povo tantas vezes condecorado, a grande esperança da pesquisa genética, despojado de seus tesouros mais caros, de seu maior orgulho, tendo seus experimentos invalidados como um vulgar charlatão! Mengele queima a carta de sua mulher, deixa a lavoura e vai remoer seu infortúnio na mata, acompanhado por seus cães. Maldita e injusta Alemanha, ele apenas cumpriu seu dever de soldado da biopolítica nazista. Uma geração antes, os alemães consideravam o darwinismo e o eugenismo como as bases de uma sociedade moderna e funcional. Todo mundo queria fazer biologia, pois levava às carreiras mais prestigiosas e remuneradoras. Sim, resmunga Mengele ao bastardo Cigano, a sociedade alemã raciocinava exclusivamente em termos biológicos. A raça, o sangue: as leis fundamentais da vida regiam o direito, a guerra, o sexo, as relações internacionais e a ciência suprema, a medicina. Na universidade, a sua turma toda admirava a Grécia antiga porque lá o indivíduo efêmero curvava-se às exigências da comunidade e do Estado. Para sua geração, os inferiores, improdutivos e parasitas eram indignos de viver. Hitler os guiava. Mengele não foi o único a segui-lo, todos os alemães deixaram-se enfeitiçar pelo Führer, pela missão inebriante e colossal que ele lhes confiara, curar o povo, depurar a raça,

construir uma ordem social em conformidade com a natureza, estender o espaço vital, aperfeiçoar a espécie humana. Estivera à altura, sabia disso. Podiam mesmo criticá-lo? Retirar-lhe tão facilmente seus valiosos títulos universitários? Tivera a coragem de eliminar a doença eliminando os doentes, o sistema estimulava tais ações, suas leis o autorizavam, o assassinato era uma iniciativa de Estado. Louco de raiva, Mengele desfere um pontapé num cupinzeiro na frente de seus cachorros, que latem e babam. Em Auschwitz, os cartéis alemães encheram os bolsos explorando até a última gota a mão de obra servil. Auschwitz, uma empresa lucrativa: antes de sua chegada ao campo, os deportados já produziam borracha sintética para a IG Farben e armas para a Krupp. A fábrica de feltro Alex Zink comprava da Kommandantur sacos de cabelos de mulheres, e com eles faziam roupas isolantes para tripulações de submarinos ou dutos para ferrovias. Os laboratórios Schering remuneravam um de seus pares para que ele realizasse experimentos com a fertilização in vitro, e a Bayer testava novos medicamentos contra o tifo em detentos do campo. Vinte anos mais tarde, resmunga Mengele, os dirigentes dessas empresas viraram a casaca. Fumam charuto cercados de sua família, bebericando bons vinhos em suas mansões de Munique ou Frankfurt, enquanto ele chafurda em bosta de vaca! Traidores! Cínicos! Excrementos! Trabalhando lado a lado em Auschwitz, indústrias, bancos e organismos governamentais obtiveram lucros exorbitantes; ele, que não ganhou um pfennig, é que paga a conta sozinho.

55. Mengele está amargo nesse dia. Lastima sua sorte, como sempre, sem remorso ou arrependimento, e despeja seu fel em cima dos quadrúpedes e baobás da floresta virgem, que murmura e canta sem escutá-lo. Ao chegar a uma clareira, senta-se num tronco, a cabeça entre as mãos, e pensa em seus colegas de Auschwitz, vinte médicos SS lotados no campo. Horst Schumann esterilizava homens e mulheres, expondo-os a raios X antes de castrar os primeiros e submeter as segundas a uma ovariectomia. Carl Clauberg implantava fetos de animais no ventre de suas cobaias humanas e as esterilizava injetando substâncias à base de formol em seu sistema genital. O farmacêutico Victor Capesius roubava as próteses dentárias ainda ensanguentadas dos deportados assassinados para vendêlas fora do campo. Friedrich Entress inoculava tifo nos detentos e os eliminava com injeções intracardíacas de fenol. August Hirt injetava hormônios nos homossexuais e cometia assassinatos para estabelecer uma tipologia do esqueleto judaico. Fora todos os outros que praticavam sevícias nos campos (trezentos e cinquenta professores universitários, biólogos, médicos) e tinham participado do programa T4 de eutanásia. O que aconteceu com eles? Alguns se suicidaram ou foram condenados depois da guerra num dos julgamentos de Nuremberg, mas a maioria conseguira escapar, juntando-se novamente às suas famílias e à sociedade civil, depois retomando sua carreira, Mengele sabia disso e ficava doente de raiva. De volta ao sítio, ele sobe na sua guarita. Chora ao pensar que seus mentores, Eugen Fischer e o barão Otmar von Verschuer, fugiram habilmente das consequências. Fischer, o velho medalhão, teórico da higiene racial e inspirador de Hitler, após ter participado do extermínio dos hererós e dos namaquas na Namíbia, desfruta de uma tranquila

aposentadoria em Freiburg im Breisgau ao lado de Martin Heidegger, seu melhor amigo. Membro honorário das sociedades alemãs de antropologia e anatomia, Fischer inclusive publicou com sucesso suas memórias, Encontro com os mortos. Seu pai lhe enviara um exemplar antes de morrer. Von Verschuer, ex-presidente do Instituto Kaiser Wilhelm de Berlim, a quem Mengele enviava de Auschwitz amostras de sangue, olhos heterocromáticos e esqueletos de crianças, von Verschuer, grande admirador do Führer, “o primeiro homem de Estado a levar em conta a hereditariedade biológica e a higiene da raça”, exultava ele, von Verschuer foi nomeado professor de genética humana na universidade de Münster, da qual mais tarde tornou-se decano, e dirige o maior centro de pesquisas genéticas da Alemanha Ocidental. Mengele lembra que, numa de suas primeiras folgas do front russo, eles foram juntos ao cinema ver O eterno judeu. Na sala lotada, vaiavam junto com os demais espectadores cada aparição do judeu diabólico, mastigando, como seus vizinhos, bombons incrustados com suásticas de açúcar e sabor de framboesa. Os dois médicos compartilhavam o mesmo entusiasmo pelo nazismo. Mengele lhe escreveu diversas vezes da Argentina, mas o barão, que destruiu sua correspondência e arquivos comprometedores no fim da guerra, nunca lhe respondeu. Nem ele, nem Fischer foram levados à justiça. Filhos da puta, filhos da puta, geme Mengele, com os punhos cerrados em sua torre. Fischer morreu em sua cama aos 93 anos, em 1967, von Verschuer, num acidente de carro dois anos depois.

56. Será que ele desconfia das traições e mentiras de sua mulher? De sua ligação tumultuosa com o nazista amargo? Geza Stammer abomina Mengele. Despreocupado, bon vivant e preguiçoso, o húngaro gosta de beber, cantar e fumar, gozar da existência que o doutor Hochbichler, assim ele o chama para irritá-lo, envenena quando volta à fazenda: Mengele o despreza e não disfarça. Se dependesse apenas de Geza, a família Stammer mofaria para sempre nos confins do cerrado. Graças ao dinheiro de Mengele, conseguiram se mudar, comprar máquinas agrícolas que potencializam seus rendimentos, e Gitta adquiriu vestidos, roupas de cama e louça com os quais nunca teria sonhado. Além de a possuir, Mengele julga-se em condições de dar conselhos ao incompetente Geza. Ele deveria exigir um aumento de seu patrão, que o explora desavergonhadamente; ele e a mulher deveriam ser mais severos com os filhos, cuja educação deixa a desejar, Roberto, por exemplo, exibe um indecente cabelo de cuia e deveria ir com mais frequência ao barbeiro. Aquele lar é uma bagunça porque o chefe de família não tem nenhuma autoridade. Quando Geza fuma ou toma uma cachaça de ameixa, Mengele passa-lhe um sermão, citando a guerra dos nazistas contra o câncer, suas campanhas preventivas contra o tabaco e os aditivos químicos, a proibição de fumar em lugares públicos, os primeiros vagões de não fumantes nos trens do Reich. À mesa, proíbe os Stammer de falarem húngaro, certo de que conspiram e zombam dele. Exige pão integral, que facilita sua digestão, e se queixa das especialidades magiares pelas quais Geza e os meninos são loucos, a sopa de peixe com tomate e pimentão, as costeletas de vitela recheadas com fígado de ganso. Embora Liszt conte com sua misericórdia, Mengele despreza os húngaros, “povo menor”, dotado de uma “subcultura”.

Geza encarnava os defeitos de seu país, os quais Mengele gosta de enumerar quando o topógrafo corno passa o fim de semana em família. Raros são os almoços dominicais em que o médico bávaro degenerado poupa os Stammer de longas exposições históricas sobre a falência da Hungria, inferior em todos os pontos à Alemanha “honesta e laboriosa”, da qual ela foi uma aliada ambígua durante a guerra, a Hungria amputada de dois terços de seu território e ocupada pelos soviéticos, “uma justa punição quando uma nação de ciganos produz apenas salame e páprica”. Imprensado nas cordas, Geza esquiva-se de Mengele. Humilhado na frente da mulher e dos filhos, nunca o desafia frontalmente, o alemão autoritário é extremamente grosseiro, mas ele adora provocá-lo com humor e dissimulação, zombando de suas teorias da raça e da superioridade teutônica — “a Alemanha também está ocupada, caro doutor Hochbichler” —, ridicularizando o Führer, a quem chama de “vegetariano impotente” e a quem não imita mal, com um funil na cabeça, punhos cerrados, ríctus guerreiro no canto da boca espumante, para a alegria dos filhos e de Gitta. Geza vence todos os assaltos diante de Mengele, que continua a venerar Hitler, “homem do século e gigante da História na linhagem de Alexandre Magno e Napoleão”, Mengele, que fecha o cenho e bate a porta da sala de jantar, praguejando, e vai se refugiar em sua guarita. Incentivado pelos filhos e empregados, que se queixam regularmente dele, Geza desenvolveu certo talento para atormentá-lo. Um domingo, tenta fotografá-lo com sua nova Nikon; no seguinte, conta-lhe que avistou um grupo suspeito de turistas israelenses no vilarejo; num outro, que o seu enorme bigode o deixa parecido com Groucho Marx. Nunca deixa de lhe mostrar os jornais que relatam seus crimes, a prisão de um nazista, um julgamento de criminosos de guerra na Alemanha Ocidental ou, ainda, uma façanha de Simon Wiesenthal. Gitta costuma amortecer o choque entre os dois homens, e assim as coisas se

acalmam. Caso contrário, Gerhard, chamado às pressas, devolve a paz à casa com uma caixa de bombons e um maço de dólares, enquanto Geza pega novamente a estrada e Mengele reassume sua funesta ascendência sobre a fazenda. Contudo, naquela segunda-feira de Páscoa de 1964, algumas semanas depois que Mengele se viu privado de seus títulos universitários, os dois homens chegam às vias de fato. No rádio, ouve-se uma reportagem sobre o julgamento de Auschwitz, que se realiza em Frankfurt ao longo dos últimos meses. O nome de Mengele é citado com frequência, sobreviventes testemunham seus crimes e sua crueldade. Geza bravateia: “O senhor também, doutor Hochbichler, deveria ter coragem de enfrentar a justiça! O senhor, que atribui um valor tão positivo à morte, não tem nada a temer! Apenas cumpriu o seu dever, não se recrimina por nada, não é mesmo? Então aja como um soldado e vá explicar a seus compatriotas que o senhor lutou em Auschwitz contra sua degenerescência e pela saúde de sua raça...” Entre as incontáveis regras que Mengele impôs aos Stammer, há uma com a qual ele não transige: a proibição formal de falar sobre Auschwitz. Pronunciar o nome do campo é igualmente proibido. Então, naquele dia, Mengele pula no pescoço de Geza disposto a matá-lo, aperta com todas as forças o pescoço do húngaro, que uiva e se debate. Gitta e os meninos precipitam-se para separá-los. Miklos puxa o cabelo do nazista. Gitta lhe dá um pontapé nas canelas e Roberto acorre do jardim com um ancinho na mão, ameaçador. Por fim, Mengele recua. Geza, escarlate e vacilante, grita que aquilo já é demais, que daquela vez é o fim, raus, Hochbichler, rua, “fora daqui, suma imediatamente, senão eu chamo a polícia”. Com um sorriso cruel no canto dos lábios, Mengele fita os Stammer com insolência. Sente a língua queimando, vontade de dizer a Geza que sua mulher é uma piranha e a

seus filhos que sua mãe é uma puta degenerada, mas muda de ideia, mordendo o bigode. Se escapou às garras do Exército vermelho durante a guerra, bem como dos americanos e do Mossad até aquele momento, não ia arriscar a pele por causa de algumas trepadas. Eles são quatro, sem contar os lavradores que o odeiam e não deixariam de colaborar. Calmamente, Mengele cruza os braços no peito: está em casa, metade da fazenda é dele, se ele for embora, eles vão também. Gerhard é convocado com urgência a fim de pronunciar os termos de um divórcio “amigável”. Até mesmo Gitta concorda, estão em jogo sua saúde mental e a sobrevivência de sua família, Peter foi longe demais. Com a anuência de Sedlmeier e a ajuda de Rudel, Gerhard busca um plano B. Fala com os Stammer de um canal árabe, de uma eventual transferência para o Egito, a Síria, o Marrocos talvez, mas nada acontece, as diligências são complexas, ninguém quer o incômodo Hochbichler, cuja reputação nos círculos nazistas atravessou os oceanos. Sua família precisa dar uma boa cartada para que os Stammer aceitem acolher a sua ovelha sarnenta por mais tempo. Uma prisão mancharia a lendária reputação de confiabilidade e robustez da empresa Mengele, que prossegue sua vertiginosa expansão na Alemanha e no mundo inteiro. Oferecem a Geza um carro novo. O húngaro contemporiza, refuga, obtém um sedã com chofer e um belo maço de dinheiro, “indispensável à manutenção”, esclarece a Gerhard. O ignóbil ménage à trois pode continuar.

57. Em fevereiro de 1965, o cadáver de Herbert Cukurs é encontrado num baú, em Montevidéu. Cognominado “o carrasco de Riga” e o “Eichmann letão”, o aviador Cukurs confinava os judeus nas sinagogas antes de lhes atear fogo e queimá-los vivos. Foi abatido por um destacamento de vingadores do Mossad, “aqueles que nunca esquecerão”. Seus executores espetaram no cadáver seu veredito datilografado: considerando a gravidade dos crimes de que Herbert Cukurs é acusado, sobretudo sua responsabilidade pessoal no assassinato de trinta mil homens, mulheres e crianças, e considerando a estarrecedora crueldade que demonstrou Herbert Cukurs na execução de seus crimes, condenamos o mencionado Cukurs à morte. Ao tomar ciência da morte de seu comparsa, Mengele redobra ainda mais a vigilância. Cerca-se de mais cães, compra binóculos mais potentes, observa o horizonte mais detidamente de sua torre de vigia. Uma noite, encarapitado, percebe um facho luminoso. Faróis piscam e se aproximam, o coração de Mengele dispara, um veículo vem subindo, seus cães rosnam, ele engatilha a pistola e, tremendo, aponta para as trevas, quer descer da guarita, mas suas pernas lhe desobedecem no momento em que o carro para em frente ao portão. Ouve as porteiras baterem, vozes de homens jovens murmurarem, percebe sombras se esgueirando, cães latindo, saltando, quando subitamente ressoa um grito: “Sou eu! Sou eu!”, berra Roberto, que havia saído com os amigos. Mengele reforça igualmente a segurança de sua correspondência com a Alemanha, utilizando apenas iniciais, uma brincadeira de criança, o P é ele, R, Rolf, Situ Un, Serra Negra... Suas cartas lacradas são endereçadas a uma caixa postal na Suíça ou, mais raramente, a um amigo da família que reside em Ausgburg, então Sedlmeier as

recolhe e despacha; a correspondência que lhe é destinada chega ao Brasil numa caixa postal em nome de Gerhard. Mengele, cujos garranchos são facilmente identificáveis, logo recorrerá à máquina de escrever. Em meados de 1964, pouco antes da execução de Cukurs, ele escapou por pouco de gravíssimos problemas: o sistema de comunicação com Günzburg quase foi descoberto. Em Frankfurt, o procurador Bauer expediu um mandado de busca na casa de Sedlmeier, persuadido de que ele é o intermediário de Mengele com sua tribo. Mas a polícia não encontra nenhuma carta, nenhum vestígio nem prova comprometedora em seu domicílio: mais uma vez Sedlmeier foi avisado in extremis de um ataque iminente, graças a um telefonema de seu contato na polícia. Expedidos os mandados de prisão, as autoridades judiciárias da Alemanha Ocidental caçam Mengele sem grande convicção. Precisaram de mais de um ano para transmitir suas impressões digitais às embaixadas sulamericanas. Quando Mengele ainda era representante comercial no Paraguai, cruzara, numa colônia alemã, com uma datilógrafa da embaixada que esfolara o pé e a quem ele prestara os primeiros socorros. Ela sabe seu nome, mas não seu passado. De volta a Assunção, a moça espantou-se com o fato de que não havia registro do médico no consulado e apontou a falha para os diplomatas. Uma tímida sindicância foi aberta, a qual levou o encarregado de negócios até Krug, que inventou mentiras prontamente aceitas. Bonn não direciona recursos especiais para a caçada a Mengele, tampouco despacha agentes ou destacamentos secretos in loco. No entanto, seus serviços secretos, infestados de ex-nazistas, não teriam qualquer dificuldade para interpelar Rudel, Sassen, Krug ou von Eckstein, que nunca esconderam sua fidelidade ao Terceiro Reich. A RFA é burocrática e se limita a colocar a prêmio a cabeça do criminoso contra a humanidade; concentra suas buscas no

Paraguai, depois que seus serviços diplomáticos obtiveram cópia dos documentos atestando que Mengele ganhou a cidadania. Os alemães ocidentais estão convencidos de que Mengele vive em Assunção ou na região do Alto Paraná. Em 1962, pedem sua extradição. O general Stroessner, que foi informado por Rudel de sua partida para o Brasil, recusa-se a colaborar. Sente um prazer doentio em embaralhar as pistas: Mengele deixou o país, mas, se for preso em seu território, Stroessner se recusará a extraditá-lo, o Paraguai defende seus cidadãos. No ano seguinte, o chanceler Adenauer promete dez milhões de dólares de auxílio ao desenvolvimento se o Paraguai entregar o médico. O ditador finge que não ouviu. Bonn conclui que as mais altas instâncias paraguaias protegem o fugitivo. Em 1964, enquanto o mundo tem os olhos voltados para Frankfurt, onde se desenrola o julgamento de Auschwitz, a Alemanha Ocidental age de forma mais incisiva. O ministério das Relações Exteriores anuncia publicamente que Mengele é cidadão paraguaio, que reside na região das três fronteiras e vai com frequência ao Brasil. O embaixador da RFA em Assunção pede a Stroessner que lhe retire a cidadania, alegando que ele mentiu para obtê-la. O presidente repete que Mengele partiu há muito tempo e que a ingerência alemã ocidental é inadmissível: se sua excelência insistir nas buscas, será considerada persona non grata, uma potência estrangeira não pode atentar contra a soberania do Paraguai. Alguns meses mais tarde, concomitantemente à ação na casa de Sedlmeier, Fritz Bauer convoca a mídia: uma recompensa de cinquenta mil marcos é oferecida a quem entregar Mengele; livre para ir e vir, ele vive no Paraguai com sua identidade verdadeira, tem muito dinheiro lá e amigos no alto escalão que o protegem. O ministro do Interior paraguaio contesta as palavras do procurador, na realidade, Mengele está no Brasil ou no Peru. Ninguém mais acredita nas refutações do governo Stroessner, quando, no

ano seguinte, um ex-oficial SS é preso no Paraguai, onde jura ter cruzado várias vezes com o doutor Mengele. Os alemães ocidentais dão com os burros n’água. Em 1965, nomeiam um novo embaixador em Assunção, que tem como objetivo melhorar as relações entre os dois Estados: os alemães e descendentes de alemães são numerosos no Paraguai, e o país é uma peça importante no dispositivo ocidental que visa neutralizar os movimentos de guerrilhas marxistas teleguiadas por Moscou e Havana na América do Sul. As pressões da RFA concernentes a Mengele são suspensas. Os israelenses não caçam mais Mengele, a ameaça sírioegípcia se delineia, a sobrevivência de Israel está em jogo. O Mossad não transmitiu suas informações brasileiras aos serviços secretos alemães, é compreensível, mas por que não fez contato direto com Bauer, que lhe entregara Eichmann? É um mistério.

58. Com os Estados tolhidos pelas contingências da realpolitik, entram em cena jornalistas e caçadores de nazistas, atraídos pelos louros da glória, pelo furo jornalístico de uma vida e pelo dinheiro. Eles também esquadrinham o Paraguai e constroem a lenda de um supervilão tão intangível quanto Goldfinger, uma figura pop do mal, invencível, riquíssima e astuciosa, que dribla seus perseguidores e se safa das situações mais perigosas sem um arranhão. Nesse momento, em meados dos anos 1960, James Bond triunfa nas telas e Doutor Mengele vira uma marca, cuja evocação congela o sangue e faz disparar as tiragens de livros e revistas: o arquétipo do nazista frio e sádico, um monstro. Eis Mengele de camiseta, aparecendo por alguns segundos num documentário tcheco. Segundo o brasileiro que o filmou, o homem diz chamar-se doutor Engwald, vive na fronteira do Paraguai e da Argentina e navega a bordo do Viking no rio Paraguai. Uma jornalista argentina revela que ele se esconde numa fazenda próxima à cidade paraguaia de Altos, nos braços de uma mulher sublime: Mengele é um conquistador irresistível. Em plena forma, apesar da idade, adora dançar e participar de eventos sociais. Um ex-SS declara saber que ele recorreu à cirurgia plástica, como seu amigo Martin Bormann (morto em Berlim em 1945), com quem janta regularmente nos melhores restaurantes de Assunção e La Paz. Um balseiro confessa que Mengele, taciturno e mal-educado, usa barba e atravessa frequentemente o Paraná. Um ex-guarda-costas de Bormann declara ao Sunday Times que ele se juntou às fileiras do exército paraguaio como comandante numa unidade do norte do país, onde exerce a função de médico. Em maio de 1966, a polícia brasileira divulga a captura de Mengele; feita a verificação, tratava-se de um turista alemão. Dois anos

mais tarde, um ex-policial jura tê-lo abatido a bordo de uma embarcação que descia o Paraná. Atingido no peito e no pescoço, o anjo da morte caiu na água e se afogou. O mito do assassino volátil se deve muito a Simon Wiesenthal. Ex-deportado cuja família galega foi dizimada durante o Holocausto, ele começou a reunir informações sobre os criminosos nazistas no dia seguinte à guerra, em Linz, depois em Viena, onde fundou um modesto centro de documentação. Wiesenthal tornou-se um astro internacional após a publicação de sua autobiografia, Eu persegui Eichmann, na qual atribui a si mesmo um papel decisivo na captura do oficial SS, quando sua participação foi no máximo secundária; o trabalho de Bauer permanece confidencial e os homens do Mossad foram submetidos ao mais rigoroso sigilo. Aos olhos do grande público, especialmente o americano, esse homem esperto e sedutor, que veste paletós de tweed e fala inglês e alemão com sotaque iídiche, encarna a figura do justiceiro solitário regularmente ameaçado de morte em seu escritório vienense, em cujas paredes está afixado um intimidante mapa dos campos de concentração e extermínio nazistas. Ele é o último moicano do mundo desaparecido de judeus da Europa Central e Oriental. Embora tenha ajudado a localizar numerosos nazistas e contribuído para o prolongamento e depois para o fim da prescrição dos crimes de guerra na Alemanha, Wiesenthal é, acima de tudo, um genial contador de histórias que aprendeu desde cedo a cativar a mídia. Agora que Eichmann foi julgado e executado, aplica grande parte de sua inesgotável energia na caçada a Mengele. Sem saber onde ele se esconde a despeito de sua rede de informantes, Wiesenthal mantém a opinião pública mundial em alerta, alinhavando histórias improváveis para que ninguém esqueça as perfídias do médico de luvas brancas de Auschwitz, e para que o culpado não se sinta seguro em lugar nenhum.

Em julho de 1967, Wiesenthal publica Os assassinos entre nós. A Mengele dedica um capítulo intitulado “O homem que colecionava olhos azuis”. Aproveita a lenda do assassinato de uma agente do Mossad em Bariloche e a enfeita com cores dramáticas: a espiã loura e atraente, como não podia deixar de ser, foi esterilizada em Auschwitz por Mengele, que a reconheceu em Bariloche e, ao dançar com ela, detectou sua tatuagem no antebraço. Em seguida, empurrou-a num precipício quando ela fazia uma trilha na montanha. Mengele é um jet-setter com dons de ubiquidade, cujo rastro Wiesenthal encontra no Peru, no Chile, no Brasil e até nos acampamentos mais entrincheirados do exército paraguaio. Cercado por guarda-costas, frequenta os melhores restaurantes de Assunção e dirige um potente Mercedes preto. Depois que Nasser o proibiu de entrar no Egito, ele embarcou com Martha num iate que os deixou na ilha grega de Cítnos. Ao receber o alerta, Wiesenthal despacha um jornalista para encurralar os fugitivos. O gerente do hotel da Pedra cicládica declara que um alemão e sua esposa deixaram seu estabelecimento na véspera e embarcaram num veleiro rumo a uma destinação desconhecida. “Mengele venceu outra rodada”, escreve Wiesenthal. Vence a seguinte também, quando escapa de um destacamento de sobreviventes de Auschwitz, o “comitê dos doze”, que fora raptá-lo no hotel Tirol na cidade paraguaia de Encarnación, numa “noite escura e quente” de março de 1964. Mengele, o homem do sexto sentido, o mágico: “É uma hora da manhã quando os homens sobem as escadas voando e arrombam a porta do quarto 26 no segundo andar. Está vazio”, e sua cama ainda quente. Avisado por telefone da chegada iminente dos vingadores, Mengele fugiu de pijama para a mata dez minutos antes. A seus leitores Wiesenthal reserva uma última revelação: o paradeiro exato do criminoso naquele ano de 1967: “Mengele vive... na zona militar entre Puerto San Vicente,

na grande estrada Assunção-São Paulo, e a fortaleza Carlos Antonio López, situada na fronteira, às margens do rio Paraná. Ali, mora num pequeno casebre branco, numa zona da selva urbanizada pelos imigrantes alemães. Apenas duas estradas levam a essa casa isolada, duas estradas patrulhadas por soldados e policiais paraguaios, que receberam ordens de parar todos os carros e atirar em qualquer um que transgredisse as ordens. E no caso de a polícia cometer um engano, quatro guarda-costas, armados até os dentes e atulhados de rádios e walkie-talkies, protegem Mengele. Ele os paga do próprio bolso.”

59. Uma noite de setembro de 1967, enquanto especulam sobre sua onipotência maléfica, Mengele se martiriza em sua cama no antro de Serra Negra, de onde não saiu desde que chegou, cinco anos atrás. Mais uma vez a angústia o sufoca. Não deveria ter lido aquele velho Spiegel que Gerhard encontrou num posto de gasolina. A entrevista de Albert Speer, recém-saído da prisão após vinte anos detido na penitenciária de Berlim-Spandau, deixa-o indignado. Mengele quase arranca os cabelos ao descobrir a contrição do arquiteto de Hitler, um “criminoso” a seus olhos. Não sabia nada sobre o extermínio dos judeus, ele, o favorito do Führer, ex-ministro do Armamento e da Produção de Guerra do Reich, ele, que recorreu à mão de obra dos campos de concentração? Furioso, Mengele atira longe a revista após ver Speer com cara de coitadinho, posando em frente à sua imensa mansão de Heidelberg. Sem conseguir dormir, levanta-se e dirige-se à sua guarita. Mergulhado na escuridão, escuta o Concerto para violino de Schumann a despeito do zumbido suave, daquele ruído de fundo dos trópicos que crepita dia e noite. O vento esgueira-se nas folhagens, e, em meio ao cheiro enjoativo das jacas podres, Mengele rumina a morte precoce de Schumann, vítima de alucinações acústicas, o suicídio de Bernhard Förster num quarto de hotel após o fracasso da Nueva Germania, que ele fundou com sua mulher Elisabeth Nietzsche, o tempo que escoa naquela paisagem de estações imutáveis, exacerbando sua saudade e o devastando: sente falta das brumas outonais, das primeiras neves de novembro, bem como das pradarias cheias de flores abertas na primavera e dos lagos prateados de sua juventude soterrada. Mengele sabe ser impossível escapar de uma prisão a céu aberto. Pensa se não deveria pôr fim aos seus dias em vez de infligir-se a vacuidade e a tortura

do exílio, uma corrida sem fim que ele está fadado a perder, de tanto que seus aliados o traem e seus inimigos proliferam. Em fevereiro daquele ano, Franz Stangl, ex-comandante dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, foi preso em sua casa em São Paulo pelas autoridades brasileiras, que logo o extraditaram para a RFA. Quando a notícia de sua captura veio a público, Gerhard, indignado, correu até Serra Negra e comunicou a Mengele que pretendia se oferecer como testemunha de defesa do oficial SS, seu compatriota, “um homem exemplar, o melhor dos comandantes de campos na Polônia”, disse Gerhard, referindo-se ao responsável pela morte de um milhão de pessoas. Mengele conseguiu convencê-lo a ficar quieto e também a refrear suas atividades neonazistas na região de São Paulo, ele poderia chamar a atenção da polícia e levá-la até ele. Aos tormentos causados pela prisão de Stangl, acrescenta-se, em junho, a decepção pela guerra dos Seis Dias, que Mengele acompanhou diariamente no televisor que Geza deu aos filhos algumas semanas antes. Nasser é um mitômano, não vale mais do que Perón. Seus exércitos e os de seus aliados árabes foram esmagados pelos judeuzinhos, que se apoderaram de Jerusalém, do Golã, do Sinai, de toda a Palestina: Mengele não consegue acreditar. Tiritando de frio e de impotência em sua humilde guarita, ele observa a lua vermelha camuflada pelas nuvens escuras e prenhes de chuva. Nessa noite de setembro de 1967, Mengele pressente que perdeu. Não compreende mais nada num mundo que lhe escapa e ao qual ele não pertence mais, um mundo que o excretou, a ele, o “cocheiro do diabo”. Ao longo de todo o inverno austral, viu pela televisão jovens alemães contestando a ordem ancestral, a disciplina, a hierarquia, a autoridade, desafiando os pais, cabeludos insanos dançando no Verão do Amor em São Francisco e viajando para Katmandu, brancos defendendo os negros nos Estados Unidos. Os artistas contemporâneos

alemães dão-lhe náusea, as primeiras comunidades surgidas em Colônia, Munique e Berlim Ocidental, Beuys e suas esculturas sociais feitas em carvão, cascalho e aço inoxidável, o movimento Zero, Richter, Kieffer, os acionistas vienenses, Brus, Muehl, Nitsch, que laceram a própria pele e salpicam sangue em suas telas, e os músicos psicodélicos cujos sintetizadores contestatários, flautas e percussões catárticas enterram o lirismo wagneriano. Suas melopeias cósmicas exploram o âmago da alma alemã e uivam seu desespero pisoteando o passado. Atormentados pela guerra, artistas plásticos, pintores e músicos fogem da Alemanha do eufemismo, de sua hipocrisia e suas mentiras, da história desprezível de seus pais predadores, da Alemanha e seu furor iconoclasta, câmara de tortura, lodaçal dos pecados humanos, da Alemanha que associam ao painel da direita do Jardim das Delícias de Bosch, ao inferno e ao diabo, a origem da grande peste que acabou de devastar a Europa, suas fábricas da morte, Auschwitz, Treblinka: Mengele.

60. As noites em frente à televisão viram um ritual na casa dos Stammer. Mengele, de bermuda, rumina as notícias, encolhido debaixo de um cobertor, Cigano dormitando em seu colo. Obriga Gitta e os meninos a assistirem ao noticiário, a escutá-lo enaltecer a ditadura “viril” dos militares brasileiros e a intervenção “decisiva” dos soviéticos em Praga, regozijar-se com o impasse americano no Vietnã, deplorar o declínio do Ocidente, “gangrenado pelo materialismo e o individualismo, por todas as imundícies importadas dos Estados Unidos após o fim da guerra”, zombar das revoltas estudantis de 1968, de “todos os jovens cretinos apátridas que confundem liberdade e anarquia”. A atualidade alemã o exaspera, a grande coalizão dirigida pelo “nazista Kiesinger e o desertor Brandt”, a “frouxidão e a incúria dos dirigentes”, e os meninos Stammer riem furtivamente quando o tio Peter expele suas injúrias, “traidores, ratos, separatistas, mentirosos e babacas”, que entremeiam as aparições na tevê de um ministro ou de um nazista convertido à democracia, ou quando ele pula do sofá e anda de um lado para o outro em grandes passadas, vociferando seu ódio pelo Antigo Testamento e pelo cristianismo, “responsável pela decadência” de sua distante pátria. Sedlmeier, contudo, transmite-lhe uma informação encorajadora: seu adversário mais perigoso, o procurador Bauer, morreu em circunstâncias misteriosas em 1o de julho de 1968. Sua relação com Geza continua horrível. Os dois homens estão sempre procurando briga. O húngaro reconquistou as boas graças da mulher, desde que ela passou a suspeitar que ele tinha uma amante em São Paulo. Mengele vinga-se transando ostensivamente com as empregadas da fazenda; Gitta geme nos braços de Geza e acaricia sua nuca na presença de Peter: Gerhard precisa intervir a todo momento

para acalmar os ânimos. Mas a crise de outubro de 1968 deixa-o transtornado. Os Stammer querem vender o sítio de Serra Negra, abandonar a agricultura e se mudar. Promovido, Geza deseja morar perto de seu local de trabalho, ao passo que o doutor Hochbichler não pretende largar seu fortim. Em pânico, os Mengele fazem contato com Rudel, seu representante no Paraguai desde a partida tumultuosa do pária da família. Algumas semanas mais tarde, o ex-piloto transmite a Gerhard uma notícia promissora: Klaus Barbie está disposto a acolher Mengele. Após relatar aos serviços especiais americanos as atividades dos comunistas no exército e na zona de ocupação franceses na Alemanha, o “açougueiro de Lyon” prospera na Bolívia. Duas vezes condenado à morte à revelia pelo tribunal militar de Lyon, diz chamar-se Klaus Altman em La Paz, onde dirigiu um negócio de exploração de madeira e tráfico de drogas e armas, em conluio com Rudel. Com o apoio da CIA e dos serviços alemães, o exgestapista ensina técnicas brutais de interrogatório aos oficiais bolivianos desde que os militares tomaram o poder em 1964. O infantil Gerhard acha a opção boliviana sedutora. Boné xadrez enfiado na cabeça, imagina-se atravessando selvas e fronteiras na companhia do querido doutor e encontrando Barbie, cuja folha de serviço era impressionante. Mengele não quer nem ouvir a proposta. Só a ideia de entrar no carrinho do austríaco o congela de pavor, mudar de país, então, pela enésima vez, à beira dos 60 anos, está fora de questão. Não conhece Barbie, mas uma coisa é certa, não poderá manobrá-lo como manobra os Stammer. Ele domina o espaço, os homens e os animais em Serra Negra. Não correrá nenhum risco, além do mais Rudel não é digno de fé e o decepcionou, não o visita desde que ele veio para o Brasil, nem sequer lhe deu parabéns no último aniversário. Dos Mengele, só as generosas comissões que recebe com a venda de qualquer carrinho de mão no Paraguai o

interessam: só perde aquele que abandona a si mesmo, seu lema de sempre, nesse ponto, pelo menos, não o traiu. Rudel, seus paletós de caxemira e seu plano boliviano podem ir para o diabo. Transmitida a informação, Barbie sente-se ofendido, Rudel, revoltado. “Mengele é o rei dos chatos”, ele disse a Gerhard. “Que se vire sozinho no futuro, não quero mais ouvir falar dele.” Mengele recusa-se a deixar o local, mas não pretende morar sozinho; os Stammer precisam de sua parte da venda de Serra Negra para adquirir a propriedade de seus sonhos, uma imponente construção numa colina arborizada. Ela dispõe de quatro quartos numa área de mais de oito mil metros quadrados nos arredores de Caieiras, a uns trinta quilômetros de São Paulo. Mengele tem de se resignar a acompanhá-los, os Stammer, a levá-lo. Mudam-se no início de 1969.

61. Dessa vez ele não tem uma guarita, mas um cercado: Mengele empreende imediatamente obras de fortificação. Finca estacas, passa barbante de uma a outra, cava buracos onde instala postes com dois metros de altura, a terra resiste, ele se esfalfa com uma picareta e uma pá, sob o olhar zombeteiro de Geza, que o observa enquanto sacrifica a coluna, escava semanas a fio, recomeça a operação, esquadro em punho, porque os pilares estão tortos no terreno em declive, despeja nos orifícios entulho, cimento, água e terra ao redor dos postes, prega as vigas de apoio, fixa por fim as tábuas verticais, uma, duas, três camadas de madeira imputrescível, que ele enverniza e pinta de branco. Por trás da sólida paliçada, uma tela de arbustos e limoeiros completa seu dispositivo. Desocupado, Mengele adapta-se com dificuldade ao seu novo habitat. Foi obrigado a se separar de vários de seus vira-latas e só passeia de madrugada e no crepúsculo, nessa zona mais densamente povoada que o campo nas redondezas de Serra Negra. Conserta coisas, remenda portas e assoalhos, constrói estantes para seus livros e evita a companhia dos Stammer. Geza se ausenta no máximo dois ou três dias por semana, e Mengele se reapropriaria com prazer de Gitta, mas ela não quer mais saber dele, sua índole insuportável terminou por lhe desagradar. É comum Mengele jantar sozinho na cozinha ou em frente à tevê. Escreve páginas e páginas de seu diário, compõe poemas lacrimejantes e prossegue sua exploração da fauna e da flora. Mengele espiona as aranhas armadeiras, os besouros e cultiva uma paixão especial pelas Blattodea, que os Stammer chamam de baratas, como todo mundo. Impossível encurralá-las só com as mãos — os insetos podem mudar de direção vinte e cinco vezes por segundo, ele lê —, assim as atrai depositando um pedaço de açúcar,

um naco de carne no chão do banheiro, a fim de observar o sangue branco que se esvai de seus tórax feridos e de prender em cadernos escolares seus grandes olhos compostos, suas baratinhas decoradas com cores vivas e motivos psicodélicos. Arrancada, uma pata volta a crescer. Elas têm seis, sustentadas por dezoito articulações; suas compridas antenas e a penugem que cobre seus flancos lhes permitem detectar o menor movimento de ar de um predador. Mengele inveja esses graciosos insetos que não conhecem nem as tábuas da Lei, nem o código penal e, dizem, poderiam resistir até a uma bomba atômica. Descobre com satisfação que a barata germânica é a espécie mais nociva: portadora de micróbios, provoca alergias no homem. Aplicado numa ferida, um purê de baratas aplacaria a dor. Na próxima vez que Gitta se cortar preparando uma salada, ele lhe aplicará um bálsamo de baratas no dedo dolorido. Ou então no tornozelo de Roberto, esse cabeça-dura que se machuca regularmente jogando futebol. A ideia o diverte, merda de vida. Merda de vida, ladainha do cotidiano. Bate-bocas com Geza e Gitta a respeito do papel de parede da entrada, dos cardápios, das contas de luz, da escolha dos estudos dos meninos, que em breve terminam o ensino médio; angústias, insônias: o que fazem os israelenses e o que trama Wiesenthal? Este alardeia que ele se esconde no Paraguai, Mengele leu em recortes de jornal. Mas não seria um truque para que ele baixasse a guarda? A mídia afirmava que Eichmann se entocava no Kuwait enquanto o Mossad planejava seu rapto na Argentina. Quem eram os dois brucutus com quem ele cruzou outro dia na floresta? E quanto a Rudel e Barbie, irão traí-lo? Mengele manda cartas cada vez mais aflitas para Günzburg: Alois precisava enviar mais dinheiro para os Stammer. Mengele fez as contas, a recompensa de cinquenta mil marcos excede o valor de sua parcela na nova casa. Se Geza o expulsar, terá um lucro ainda maior! Mengele queixa-se a Gitta da falta de

generosidade de sua família. O bombeiro Sedlmeier é obrigado a intervir ao longo de 1969. Passa por Caieiras para molhar a mão dos Stammer e tranquilizar Mengele.

62. Agora que ele está mais perto de São Paulo, Gerhard visita-o com mais frequência. Uma tarde, aparece na companhia de um homem magro de uns 50 anos e forte sotaque austríaco. Cabelo curto, têmporas escanhoadas, Wolfram Bossert usa uma gravata escura sobre uma camisa imaculada e sapatos pretos. Aos Stammer oferece doces, e àquele que Gerhard lhe apresenta como Hochbichler, uma mão e um sorriso simpáticos. Está encantado de travar conhecimento com o agricultor suíço cujos méritos seu compatriota tanto enalteceu. Os dois austríacos conheceram-se no clube alemão de São Paulo alguns anos antes. Ex-major da Wehrmacht, Bossert também veio em busca do eldorado no Brasil após a derrota do Reich. Responsável pela manutenção numa fábrica de papel, seu êxito não é espetacular, mas ele se saiu melhor do que seu compatriota. Grande amante de música clássica, a ponto de ter o apelido de Musikus, Bossert tem pretensões intelectuais e artísticas que gosta de compartilhar com seu círculo. Poderia distrair Mengele de seu cotidiano maçante. Gerhard tanto insistiu que o criminoso de guerra consente em encontrar Bossert, com a condição de que não lhe revele sua identidade. Enquanto tomam chá, Mengele observa e testa o desconhecido. Suas origens e sua folha de serviço são pífias, embora compensadas por certa cultura e, ao que tudo indica, por convicções irreprocháveis: racista, antissemita e reacionário, Bossert recita seu breviário do ódio sem desafinar. É um nazista fanático, um soldado perdido de Hitler, “o alemão por excelência, o mais ilustre de todos os tempos”, afirma com satisfação. Sempre acompanhado de Gerhard, volta várias vezes a Caieiras nas semanas seguintes, intrigado com o suíço taciturno de chapéu sertanejo. Pela sua língua, pelo sotaque bávaro que

dissimula mal e por suas reflexões pontuais sobre história e biologia, ele pressente que Hochbichler não é qualquer um. A companhia de Musikus não é desagradável, mas Mengele continua com um pé atrás: ele poderia ser um agente da reserva israelense, um ator talentoso, um alcaguete corrupto. Gerhard não acredita em nada disso. Conhece sua “encantadora” mulher Liselotte, que “tem uma bela bunda, cá entre nós, doutor”, seus dois filhos pequenos, Sabine e Andreas. Mengele não tem nada a temer e deveria inclusive revelar sua identidade a Bossert. Gerhard já consultou Sedlmeier sobre isso, que deu seu consentimento após encontrar brevemente o técnico durante sua última passagem pelo Brasil. É a contragosto que Mengele se desmascara; Bossert deve jurar perante Gerhard e pela vida de seus filhos que não revelará o segredo a ninguém.

63. Pela primeira vez desde que chegou ao Brasil, Mengele decide passear fora de casa. Quarta-feira à noite, nervoso, penteia o cabelo para trás, veste-se com apuro, esconde seu revólver num bolso de seu impermeável e vai jantar na casa dos Bossert. Nas primeiras vezes, Gerhard teve que acompanhá-lo, Mengele temia uma emboscada. Depois, Musikus passou a buscá-lo em Caieiras pontualmente às dezenove horas e, quando o trânsito está bom, em 25 minutos eles estão num casarão anônimo na periferia de São Paulo, o enclave germânico de Bossert: retratos solenes de família, bibelôs alpinos e vasos de porcelana de Gmunden cercam a esposa e as crianças bem-educadas, que recebem calorosamente o tio Peter. Objeto de todas as atenções, Mengele descobriu um oásis; durante algumas horas, esquece sua vida miserável, os Stammer e o medo. Ensina Sabine e Andreas a jogar Banco Imobiliário, repete sem constrangimento os pratos de sopa, de bolinhos de fígado, depois lombo de porco assado, que Musikus destrincha com um pouco de nervosismo. Conviver com o homem que colecionava olhos azuis, o nazista vivo mais famoso do planeta, é uma grande honra para o casal Bossert. Assim que termina a refeição, Liselotte vai para a cozinha lavar a louça e os dois homens trancam-se na sala para escutar música clássica. Conversam intensamente. Ou melhor, Bossert beberica um Schnaps e dá baforadas em seu cachimbo de porcelana enquanto a visita lastima sua sorte e descarrega sua bile: a raça nórdica, os judeus répteis, a excelência biológica, o povo alemão altivo e heroico... Mengele discorre ao infinito acerca de suas concepções ultrapassadas, suas ideias fixas e sua visão predadora e inquieta do mundo centrada na degenerescência da Alemanha e da Áustria, governadas pelo “desertor Brandt e o judeu Kreisky”. “A esterilização

forçada e a eliminação dos improdutivos são indispensáveis para reduzir a demografia dos seres mais primitivos e preservar o puro e inocente movimento da natureza após milênios de alienação judaico-cristã”: o major austríaco aprova, pensa em anotar as declarações do engenheiro da raça, que ele lisonjeia servilmente, nunca tivera a oportunidade de privar com um cientista daquela envergadura. Mengele encontrou o discípulo que procurava desde a morte de Haase em Buenos Aires, dez anos atrás — Krug e agora Gerhard não passam de desprezíveis ajudantes de campo. Mörike, Novalis, Spengler... Musikus segue fielmente seus conselhos de leitura. Musikus escuta os discos que ele lhe recomenda e se lança no estudo do helenismo e da botânica. Deixa-se contagiar inclusive por seu fascínio pelas baratas: Musikus admira cegamente o velho nazista. Mengele goza da influência que exerce sobre aquele homem dócil e zeloso, tão diferente dos Stammer, que ridicularizam suas manias e o despojam de sua fortuna. Bárbaros: ele desanca a família húngara todas as quartasfeiras à noite. Inútil interrompê-lo ou contradizê-lo, Bossert passa por essa cruel experiência quando timidamente lhe sugere, para seu próprio bem, levar em conta os anseios dos Stammer. Mengele corta a conversa com uma expressão alucinada nos olhos. Musikus acompanha-o de volta à sua casa pouco antes da meia-noite. Está chocado com a brusca mudança de fisionomia de seu convidado quando se preparam para partir. O arrogante falastrão se empareda no silêncio, enfia o chapéu de abas largas na cabeça e levanta a gola do casaco com as mãos trêmulas, as feições crispadas. A visão de um policial o faz suar em bicas e, dentro do carro, ele dissimula o rosto entre as mãos e inclina a cabeça para a frente, amarrando os cadarços do sapato quando um veículo para ao seu lado num sinal vermelho. Assim que deixa a casa dos Bossert, Mengele adota novamente seus hábitos de bicho acuado.

Em contrapartida, aceita passar um fim de semana com seus amigos no mato e deixa Musikus fotografá-lo pela primeira vez desde o fim dos anos 1950. Bossert tenta convencê-lo de que ele está irreconhecível e o incentiva a deixar seu isolamento, caso contrário terá um triste fim. “É como um suicídio”, diz à sua mulher certa noite, após tê-lo reconduzido ao seu cupinzeiro. E sua testa proeminente? E o espaço entre os incisivos? Bossert insiste, ele não arrisca nada se não chamar a atenção. Tem início uma lenta reeducação. Escoltado por Gerhard e Musikus, Mengele permite-se breves excursões, longe dos Stammer, sem chapéu nem impermeável quando a temperatura sobe. O proscrito esgueira-se incógnito na metrópole, as crianças Bossert acompanham-no até o ônibus, o supermercado, o cinema. Ele sua e morre de medo de ser reconhecido por um sobrevivente de Auschwitz ou por um fisionomista importuno, mas cerra os dentes, sente-se (um pouco) mais seguro e às vezes se pega sonhando com uma vida menos mutilada em sua velhice. Pela enésima vez, sua família cede a um capricho seu, ajudando-o a comprar um conjugado em São Paulo, do qual ele receberá os aluguéis. Mas negócios são negócios: a escritura é registrada em nome de Miklos Stammer.

64. No dia seguinte ao seu sexagésimo aniversário, sente dores no estômago, fisgadas horríveis, talvez a torta de queijo de Liselotte lhe tenha descido mal devido ao calor, ou talvez seja por causa do estresse: com tremor na voz, Gerhard lhe comunicou na festinha que vai deixar o Brasil dentro em breve e para sempre. Não prospera financeiramente, pode ser que sua mulher e seu filho estejam com graves problemas de saúde, precisam passar por uma bateria de exames, coletas de sangue, radiografias, punções de medula, o que é preferível fazer na Áustria, onde serão mais bem acompanhados. “E eu, e eu?”, pergunta Mengele. Bossert será sua nova babá, servirá de interface entre Günzburg e os Stammer, lhe transmitirá sua correspondência e fará suas compras. Gerhard lhe deixa de presente sua carteira de identidade à guisa de adeus. Só precisa substituir o retrato pelo próprio, uma brincadeira de criança, Musikus o ajudará a laminar o documento, ele será valioso para suas necessidades administrativas, aquele em nome de Hochbichler é uma falsificação tão grosseira que terminará por prejudicá-lo. As dores no estômago voltam meses depois, agudas, terríveis. Mengele sofre de cólicas. Aplica um saco de gelo no estômago, esfrega argila verde diluída na água quente, jejua um dia inteiro, mas nada adianta, nem as infusões com espinheiro nem os medicamentos e antibióticos que Bossert compra para ele. A doença piora, às diarreias sucedem gases, vômitos, uma forte prisão de ventre, seu intestino fica bloqueado e seu organismo se enfraquece, gânglios crescem no seu pescoço, a febre aparece. Uma manhã, quando Mengele apalpa a barriga ao despertar e descobre um calombo na altura do estômago, pensa imediatamente num tumor, ou então os Stammer o envenenaram, ficarão com a casa, o conjugado, seus

cadernos, que venderão por uma fortuna a um editor. Se contorce de dor, mas proíbe que um médico venha auscultá-lo em Caieiras: “É perigoso demais”, murmura para Bossert, que acorrera à sua cabeceira. Geza também se opõe, teme as eventuais complicações que uma visita ocasionaria e não acredita na doença, seu coinquilino, aquela velha raposa hipocondríaca, acabará se recuperando como sempre. Contudo, dessa vez é grave. Mengele não consegue comer nos dias seguintes, hidrata-se com dificuldade, e um gosto de merda atroz lhe intoxica a boca. Ainda lúcido, percebe que lhe pendem do nariz vômitos fecaloides, uma peritonite, vai morrer. Precisa urgentemente consultar um especialista. Bossert leva-o a um hospital de São Paulo. O moribundo geme enquanto o médico apalpa sua barriga, observa seu rosto marmóreo, o bigode branco e as rugas da testa, verifica sua ficha, gerada de acordo com os papéis que Bossert forneceu na entrada. As radiografias não tardarão a dar um veredito. O médico está perplexo. Em vinte anos de carreira, declara, nunca auscultou um paciente branco cujo corpo e organismo estivessem tão estropiados aos 46, 47 anos: o sr. Gerhard não deve ter tido uma vida fácil. Musikus subitamente se dá conta de que o ano de nascimento registrado na verdadeira falsa carteira de identidade de Mengele é 1925, não 1911. Ele alega um erro da administração hospitalar e diz que mandará corrigir, o doutor tem razão, o doente tem dez anos a mais, boa, doutor. Entra oportunamente uma enfermeira, as radiografias das vísceras na mão: “Vai dar certo, Wolfgang, vai dar certo”, diz Bossert a seu lívido guru. Uma esfera escura do tamanho de uma bola de bilhar obstrui efetivamente seus intestinos. Câncer? Não, na realidade, uma oclusão intestinal. Engoliu um corpo estranho? Não, não come nada há dias, as primeiras dores remontam ao ano passado. O quê, então? Mistério, mas é imprescindível uma cirurgia, imediatamente.

O médico retira do estômago de Mengele um tufo impressionante de pelos. De tanto mascar seu bigode, eles se amalgamaram até vedar seu intestino. No fim das contas, conseguiu escapar por um fio. “Wolfgang Gerhard” paga suas despesas hospitalares em espécie e evapora na natureza.

65. Mengele sai abalado. Sua ferida cicatriza, mas suas forças declinam, seu corpo desgastado emite sinais inquietantes. Trinca uma vértebra ao levantar um simples cepo de árvore, e as enxaquecas que o atacam às vezes são tão intensas que o deixam acamado por vários dias, imerso na escuridão. Sua próstata incha, sua vista falha e seus dentes o torturam. No fim de 1972, com um pedaço de barbante e uma faca, arranca um molar cariado que ameaçava infeccionar sua gengiva inferior. A dor era insuportável, um ferreiro martelava a polpa, o esmalte, seus nervos arrebentavam. Mengele evita marcar uma consulta, ainda traumatizado pelo comentário do médico do hospital sobre sua data de nascimento, um presente envenenado de Gerhard, aquela carteira de identidade. Sabe que está pagando pelo estresse, a solidão e as noites insones dos últimos dez anos, os trabalhos físicos sob um sol inclemente, as humilhações e as brigas, as separações, o calor, a melancolia e a umidade, seu coração seco, seu coração atrofiado. Ressurgem ideias mórbidas e angústias existenciais, a sombra da morte. A indiferença dos Stammer ante sua aflição o desespera. Conta apenas com Musikus, seu último aliado. Mas Bossert não é Gerhard. Ele não pega seu Volkswagen por causa de uma dorzinha: não é tão devotado e fanático quanto seu compatriota. Embora admire a obstinação do fugitivo, mantém-no à distância e, por ele, não pretende sacrificar nem sua carreira nem sua família. Mengele é um manipulador egocêntrico, Bossert ficou chocado com seu cinismo ante Gerhard, cujo destino lhe reservou uma série de calamidades: exames médicos na Áustria revelaram que sua mulher sofria de um câncer de estômago e seu filho Adolf, de um câncer nos ossos. Os tratamentos custavam uma fortuna. Gerhard voltou-se para seu antigo protegido,

de quem nunca exigiu um centavo por seus leais serviços durante dez anos. Mas Mengele refugou, convencido de que Gerhard o extorquia, inflacionando o montante das despesas médicas: deveria aceitar o inelutável, a morte da mulher no curto prazo, em vez de dilapidar o dinheiro dos outros! Sem a insistência de Bossert, Mengele não teria pedido ao irmão que ajudasse Gerhard, e pior, reflete Bossert, não teria tomado a atitude se não temesse que, no desespero, seu ex-factótum vendesse alguns de seus segredos a um jornalista ou à polícia. Fiel a si mesmo, Mengele em seguida escreveu a Gerhard que estava surpreso com a mesquinharia de sua família. O velho nazista exaspera quem o cerca. Nesse início dos anos 1970, ele enfada sua última célula de fiéis, de tanto se lamentar sobre sua sorte e se imiscuir na intimidade de seus parentes, prodigalizando-lhes conselhos, mendigando sua atenção constante (e dinheiro e cartas) feito uma criança. Martha raramente lhe escreve. Alois não tolera que ele critique sua gestão da empresa e a educação do filho Dieter, que Josef sequer conhece; não tolera que ele se sinta no direito de lhe passar uma lista negra de famílias a serem evitadas em Günzburg, caso Dieter queira se casar. Alois lhe pede também que pare de enviar a seu sobrinho Karl-Heinz longas missivas em que repisa suas frustrações, elogia o Führer e o eugenismo, vilipendia a RFA, embora o país sempre o tenha tratado com indulgência. A ordem do mundo mudou: após a morte de seu pai em 1974, Dieter recusa-se a responder às solicitações do tio da América. Até o fiel Sedlmeier se cansa de suas idas e vindas esfalfantes ao Brasil, das queixas e da obstinação de Mengele, de suas sempiternas brigas com os Stammer e de sua falta de gratidão. Nenhum nazista na clandestinidade se beneficiou de um apoio tão massivo! Mengele virou um fardo, mas o clã de Günzburg não pode abandoná-lo: se ele fosse preso, a revelação dos laços indefectíveis da família com o anjo da morte seria dramática para os negócios da multinacional,

que fatura milhões de marcos de receita e conta com mais de dois mil funcionários. Em 1971, Sedlmeier ainda mentiu a um juiz de instrução, ainda que testemunhasse sob juramento: Mengele não mantém nenhuma relação com sua família; ele nunca trabalhou para a empresa; mora provavelmente no Paraguai — Sedlmeier lê os jornais como todo mundo; cruzou com ele pela última vez no aeroporto de Buenos Aires, há mais de dez anos.

66. Rolf Mengele é um rapaz atormentado. Todas as vezes que se apresenta, é recebido com um silêncio constrangido, olhares embaraçados. Mengele, igual a...? Sim, Mengele. O filho de Satã. Maldito patronímico, sua cruz e sua espada, jamais esquecerá sua dor e consternação e no dia em que, lendo os jornais pouco após o rapto de Eichmann, descobriu que o tio brincalhão que lhe contava histórias de gaúchos e índios no hotel Engel era seu pai, o médico torturador de Auschwitz. Funesta família: criado pela mãe, agora advogado em Freiburg, Rolf foge do clã de Günzburg. Despreza o silêncio dos Mengele sobre os crimes de seu pai e o desdém por suas vítimas. Julga odiosas sua solidariedade tribal, sua ganância, sua covardia. Rolf reivindica-se de esquerda, em luta contra o capitalismo e o fascismo, os Mercedes, a hipocrisia e a consciência limpa da burguesia alemã ocidental. Rolf é um filho contestador do pós-guerra, apelidado de “o comunista” pelos primos Dieter e Karl-Heinz. Um rebelde, mas um rebelde frágil, emaranhado em contradições, torturado por aquele pai estorvante e peçonhento. Na Pinacoteca de Munique, diante dos corpos nus entrelaçados de A queda dos condenados, de Rubens, não pode se abster de pensar nele, na rampa de triagem, grande orquestrador do balé macabro, demônio de uniforme imaculado que precipita os homens nas trevas. Se pelo menos tivesse morrido na Rússia, como a lenda familiar indicou tantas vezes... Se pelo menos ele, Rolf, tivesse a coragem de mandá-lo às favas, de comunicar-lhe seu casamento com uma judia polonesa ou uma zairense em vez de uma alemã de boa família, sua instalação num kibutz, como um de seus bons amigos, ou se encontrasse forças para denunciá-lo à justiça. Mas Rolf é incapaz disso. Seria um parricídio, outros tormentos, um drama

suplementar. Seu pai é Josef Mengele. Ele é filho de Josef Mengele. Rolf precisa saber por que, como, as seleções, as experimentações, Auschwitz. Será que o velho não sente nenhum arrependimento, nenhum remorso? É a besta cruel que os jornais descrevem? É tão mau e degenerado assim? Poderia ajudá-lo a salvar sua alma? E ele, Rolf, é uma criatura desprezível por culpa do pai? No começo dos anos 1970, pai e filho intensificam sua correspondência epistolar. Por muito tempo, Mengele negligenciou Rolf porque ele permanecera nas saias de Irene. Preferia Karl-Heinz, aquele filho espiritual que ele soubera modelar adolescente, quando moravam na Argentina. Mas depois que resvalou na morte, Mengele decidiu retomar o contato com o filho biológico, com quem convivera apenas por dez dias na Suíça, quinze anos atrás. Dele, espera a compaixão que os outros lhe recusam e não lhe poupa nenhum de seus aborrecimentos cotidianos nem seus problemas de saúde, as sinusites, os discos dorsais destruídos — “um provável começo de artrose na coluna vertebral” —, esperando compadecer Rolf, que ele sabe ser mais frágil do que o resto da tribo Mengele. Culpar, estimular o orgulho, maquinar. Propositalmente, o pai gaba para o filho as qualidades do primo, Karl-Heinz, “alemão notável”, trabalhador, modesto e afetuoso, que lhe envia regularmente dinheiro escondido de Alois e de Dieter, dizendo que Rolf seria sensato se o imitasse. Quer amestrar o noviço, seu filho catequizado “pela mídia judaizada, vendida ao poder do dinheiro”, escreve-lhe. Mengele critica seu modo de vida, o físico de sua mulher, nem sequer finge espantar-se com seus dissabores sentimentais — Rolf se divorcia apenas um ano após seu casamento. Quando o rapaz desiste de terminar sua tese, ele manifesta desprezo pela falta de ambição: “Todo mundo é advogado hoje em dia, se quer que eu sinta orgulho de você, termine seu doutorado em Direito.” Depois Mengele amacia e mendiga um pouco de afeição, retratos, cartões-postais da Floresta

Negra e de Munique, está tão infeliz e solitário “na selva, abandonado no fim do mundo”. Rolf se debate, cede, recusa, questiona: mas e Auschwitz, papai? Mengele declara-se inocente dos crimes de que é acusado. Lutou em defesa de “valores tradicionais incontestáveis” e nunca matou ninguém. Ao contrário, decidindo quem estava apto a trabalhar, salvou vidas. Não sente qualquer tipo de culpa. Rolf está desinformado, precisa aprender a passar uma borracha em certos episódios dolorosos: remoer o passado eternamente é doentio. A Alemanha estava em perigo de morte. Além disso, um pai e um filho devem se amar, sejam quais forem as circunstâncias. Pede-lhe para vir visitá-lo no Brasil, “com o coração aberto, sem preconceitos”. Rolf pondera. No fundo, sabe que só encontrará a paz depois de se confrontar com seu genitor, o médico que ria em Auschwitz e assobiava árias de ópera na rampa de triagem. Face a face, de homem para homem, Mengele contra Mengele. Começam a planejar sua viagem quando uma nova crise explode com os Stammer.

67. Mengele levantou a mão para Gitta. Uma discussão absurda degenerou, o último quadradinho de uma barra de chocolate, um pote de geleia quebrado, um toque nas nádegas da ex-dançarina, o litígio é obscuro, mas Gitta berrou e Mengele lhe deu um tapa. Geza imobilizou o nazista desvairado e telefonou imediatamente para Bossert. Mengele foi obrigado a acampar por alguns dias na casa dos amigos, o tempo de Sedlmeier atravessar o Atlântico. Dessa vez, os Stammer são inflexíveis: até mesmo os cinco mil dólares que Sedlmeier agita em seu focinho os deixam indiferentes, após treze anos de vida em comum, o divórcio é consumado, adeus Peter, adeus Hochbichler, graças a Deus. O que fazer com Mengele? Musikus não tem as conexões de Gerhard; Rudel se escafedeu. Sua única alternativa se dissolve. Um parente que dera seu assentimento acabou voltando atrás, não prega mais o olho à noite, certo de que desconhecidos misteriosos o seguem depois que Mengele lhe contou seu plano. Liselotte não gosta que Mengele mire suas pernas e seu traseiro tão logo o marido lhe dá as costas: Bossert lhe jurou que ele não viria semear a discórdia em sua casa. O tempo urge, os Stammer já venderam Caieiras e se mudaram para uma suntuosa mansão de mil metros quadrados em São Paulo; Mengele e Cigano têm dois meses para evacuar o local, caso contrário estarão na rua no fim de janeiro de 1975. Sem escapatória, o sexagenário arrisca o impensável: morar sozinho pela primeira vez desde que deixou Buenos Aires. Geza decide fazê-lo pagar caro por seu caso com Gitta. Inflige-lhe uma última humilhação, o aluguel do imóvel que comprou com sua parte da venda de Caieras, uma casinha de alvenaria em Eldorado, um bairro pobre de São Paulo: Mengele não irá à justiça.

A derrocada. Uma sensação vertiginosa quando Bossert o deposita em seu novo domicílio como uma garrafa e vai embora sem dizer uma palavra, com um sorriso sem-graça nos lábios. A porta se fecha. Cigano late e Mengele vacila de sofrimento, examinando a arapuca com atmosfera úmida de porão que o conduzirá ao abismo. Intui que a próxima etapa de seu declínio será o cemitério ou a prisão. Eldorado! O galpão da rua Alvarenga é lúgubre, há paredes esverdeadas, um banheiro descascado e minúsculo, um fogareiro de butano, vazamentos no teto. Eldorado! Última escala do eugenista de boa família na ilha caótica e mestiça, as entranhas do Brasil preparam-se para devorá-lo. Nos primeiros meses, almeja reformar e tornar seguro seu antro, mas a solidão devora sua energia. Começa a ladrilhar o banheiro e a reformar a cozinha sem terminar a tarefa. Deitado nu no chão de cimento, a pistola ao alcance da mão, fixa as pás do ventilador durante horas e não finaliza a grade que começou a instalar nas janelas. Ele, tão madrugador desde a infância, demora a sair da cama. Às vezes volta a se deitar com um nó na garganta. De que adianta isso tudo, pergunta a Cigano, e quantas bordoadas ainda? Tudo que ele empreende se esvai como num passe de mágica. A água filtrada graças ao aparelho que ele montou no teto tem sempre gosto de ferro; por mais que areje o quarto, os resíduos de mofo não se dissipam, e as baratas que proliferam já não o interessam mais. Quando o dia morre, a tristeza toma conta dele, Irene, Martha, um gesto de conforto, às vezes sente falta até dos Stammer, com quem só cruza para acertar as contas, bom dia, o aluguel do barraco menos o aluguel do conjugado que lhe pertence, até logo e obrigado, Gitta espera no carro enquanto Geza pega o dinheiro. Só Bossert lhe traz um pouco de calma. Vem jantar todas as noites de quarta-feira, escutar Bach e o chororô de Mengele, suas queixas imutáveis, Alemanha, Hitler, família, saúde. Sua pressão sanguínea está altíssima. Sofre de reumatismos e insônias,

teme uma operação da próstata; sua coluna tortura-o, suas vértebras se encontram tão deterioradas que ele anda com dificuldade. “Rolf é frouxo, Sedlmeier, egoísta, Rudel, um renegado materialista, e Dieter, um filho da puta como era seu pai, aquele cachorro do Alois”: ele não lhe envia dinheiro suficiente, por sorte Karl-Heinz complementa sua parca pensão, mas não adianta, o fim do mês é sempre difícil, hesitou antes de comprar um gravador. E Mengele fala de sua nova obsessão, o barrio escuso no qual a Providência o lançou, “um antro de negros e mulatos depravados, de bandidos e viciados”, onde “o lixo se acumula e os ratos proliferam”. “Outra noite, uns cretinos tocaram à minha porta no meio da noite e não consegui mais dormir.” “Um pesadelo”, repete toda semana o filho de Günzburg a Musikus: um tráfego infernal, cortes de eletricidade, foguetórios, sujeira, casebres de pau a pique, insegurança, caos. As bebedeiras do fim de semana e os delírios coletivos nas noites de futebol e macumba... “Que decadência... Não acredito que caí tão baixo.” Para os vizinhos, Mengele é Pedro, um velho rabugento e excêntrico. Não sai mais do bairro depois que um casal o encarou no metrô — ou melhor, depois que viu um homem murmurando ao ouvido de uma mulher e imaginou que ele o olhava fixamente. Mengele soçobra mais ainda na paranoia, sua testa saliente o deixa obcecado, o espaço entre os incisivos o exaspera, sempre que se aventura cabisbaixo até a mercearia, com o vira-lata Cigano em seus calcanhares, morre de medo de ser desmascarado, interpelado, capturado, espancado, os jornais que compra diariamente continuam a falar dele, não largam de seu pé, e ele fica pasmo, não acredita, vê as fábulas que o descrevem onipotente na selva paraguaia, em Pedro Juan Caballero, ou riquíssimo no Peru, vê aquele maldito Wiesenthal, que diz tê-lo perdido por um fio de cabelo na Espanha, vê as dezenas de milhares de dólares oferecidos por sua captura, sem falar naquele filme hollywoodiano que está em

produção, Maratona da morte, em que Lawrence Olivier interpreta o Anjo Branco, um dentista nazista “livremente inspirado no terrível doutor Mengele, o anjo da morte de Auschwitz, ainda foragido”, lê ele, que não passa de um destroço, incapaz de se recordar das feições das mulheres que o amaram, reduzido a mofar dentro de casa e sobressaltar-se com o miado de um gato, ele, que agoniza em silêncio e gostaria de uivar na cara do mundo que está doente e sozinho como um cão, mortalmente sozinho, nos escombros da favela. Fogem dele. Todos o evitam, até mesmo o pequeno Luís, de dezesseis anos, um jardineiro do bairro. Gostavam de cuidar de suas flores juntos, conversar sobre botânica tomando sorvete sob as curupitãs da praça municipal, atrás do barraco. Pedro achava que Luís gostava dele: abriu-lhe a porta de sua toca, ofereceu balas e chocolates e o iniciou na música clássica. Comprou um televisor para lhe agradar. Mas o adolescente teve medo quando o velho bigodudo pôs-se a valsar sozinho e o convidou para dormir ali: poderiam assistir à novela e construir uma cabana no jardim no dia seguinte. Luís nunca mais voltou.

68. No outono de 1975, Bossert alerta Sedlmeier: o Brasil vai mudar o formato de suas carteiras de identidade. Gerhard deve ir a São Paulo, só ele pode tirar uma carteira em conformidade com a nova legislação, Mengele não pode se apresentar no departamento. Sedlmeier precisa convencer o austríaco a fazer um último favor ao seu velho amigo. A missão é delicada, Gerhard está muito ressentido com os Mengele, que chiaram para pagar os tratamentos de sua mulher e de seu filho e ainda se recusaram a financiar a loja de material fotográfico que ele pretendia abrir na Áustria. Ele pedia trinta mil marcos, mas só obteve mil após ásperas negociações. Nesse ínterim, sua esposa faleceu e o jovem Adolf não se curou. Gerhard, portanto, precisa de dinheiro, mas também de consideração. Sedlmeier compreendeu que molhar sua mão não bastaria, então passa a pegá-lo de Mercedes e levá-lo a Braunau am Inn para almoçar no melhor restaurante da cidade, onde tudo começou. Hitler nasceu numa casa da Salzburger Vorstadt, que eles visitam após uma farta refeição e esplêndidos charutos. Com o fanático comovido até as lágrimas, Sedlmeier aproveita para lhe expor seu plano: em memória do Führer, ele vai retornar ao Brasil, renovar sua carteira de identidade e salvar o capitão SS Mengele. Gerhard chega a São Paulo no começo de 1976. Trocar os documentos é uma mera formalidade, assim como fraudá-los, mas eles parecem ainda menos verossímeis do que antes, pois as rugas tomaram conta de Mengele nos últimos tempos. Magro e com a barba por fazer, Gerhard sente pena dele. O austríaco ajuda-o a pintar sua sala e a prender uma cabeça de javali empalhada em seu quarto, porém seu filho doente requer sua presença na Europa. Gerhard pede a Bossert que dedique mais tempo a

seu amigo ou que lhe apresente uma família que venha distraí-lo de vez em quando. Musikus pensa num engenheiro têxtil argentino de origem alemã, Ernesto Glawe, que ele testa junto a Gerhard. “Um bom homem, dará para o gasto”, concordam os dois cúmplices, por cujas cabeças não passa revelar a verdadeira identidade de Pedro Gerhard, exmédico militar da frente russa e parente afastado de Gerhard, Wolfgang. Antes de partir, ele apresenta Glawe ao velho e cumpre discretamente a última missão que Sedlmeier lhe confiou, sobre a qual Bossert mantém-se informado: para um tio doente, reservar um lugar ao lado do túmulo de sua mãe no cemitério da cidade de Embu. Gerhard nunca mais veria Mengele: teve um infarto em frente ao seu carro em 1978, aos 53 anos.

69. É na companhia dos Glawe que Mengele passa o domingo 16 de maio de 1976. Pela primeira vez, vai compartilhar um asado, o grande churrasco argentino; normalmente, Ernesto e seu filho Norberto o visitam com pacotes de biscoitos e pratos prontos numa cesta — Bossert lhes avisou que Mengele sofre de falta de apetite e não sabe cozinhar. Apesar do toldo do quintal, Mengele sufoca nesse domingo de fogo e pede a Norberto que o leve de volta antes do café, desculpa-se, mas uma de suas horríveis enxaquecas espreita-o, quer voltar o mais rápido possível, “obrigado, rapaz”. Ao chegar diante de sua porta, não consegue abrila, é estranho, não tem força para rodar a chave na fechadura, seu braço direito entorpecido não responde mais às ordens de seu cérebro, que dói de maneira atroz, parece que uma comporta se abriu e inunda sua cabeça, dutos explodem e o impedem de pedir socorro, de articular palavras e até mesmo de enxergar claramente, enquanto vai mancando até o carro de Norberto, horrorizado: o velho vomita na porta do carro; seu lábio inferior pende do lado direito. Hospitalizado durante quinze dias, Mengele recupera-se lentamente de um acidente vascular cerebral. Os Bossert e os Glawe se revezam à sua cabeceira, e, quando ele sair da clínica, Norberto se instalará em sua casa: por enquanto, embora os médicos digam que ele teve muita sorte, não devendo ficar com muitas sequelas do AVC, tio Pedro não está em condições de morar sozinho. O convívio do jovem sul-americano e do nazista extenuado não demora a azedar. Norberto não tem nem a paciência nem a competência de uma enfermeira para administrar a voraz ansiedade de Pedro. Este enlouquece quando sua memória lhe prega peças, atira longe a chave de fenda ou o livro que sua mão direita trêmula não

consegue mais segurar, reclama do cozimento do espaguete. No dia seguinte a uma noite em que o velho sonhou e uivou em alemão, Norberto decide abandoná-lo. Os Glawe não querem vê-lo novamente. “Contrata-se faxineira, boa cozinheira, paciente e dedicada, para um parente idoso. Referências. Se não for diligente, não serve...” Ao classificado de Bossert responde uma mulher angulosa de uns 30 anos. Elsa Gulpian de Oliveira começa a trabalhar para Dom Pedro no fim de 1976.

70. Pontual e sorridente, Elsa areja, limpa e espana o casebre de ponta a ponta. O velho lhe dá pena, sempre sozinho, resmungando, roendo as unhas nervosamente ou recitando poesias alemãs a fim de exercitar a memória. “Dom Pedro, o senhor não deveria se maltratar assim”: ela o incentiva a acompanhá-la nas compras e a caminhar, e Mengele cede, pegando o braço da pequena empregada enérgica, que, além do mais, não é má cozinheira. Ele a leva para jantar, convida-a para o cinema: à exceção de Bossert, é só quem ele tem em sua vida. No dia da morte de Cigano, ela o abraçou bondosamente, instintivamente, como ninguém fizera desde Martha. A presença de Elsa o tranquiliza, ele recobra um pouco de vivacidade e espera poder cumprir a promessa que fez a si mesmo alguns anos atrás: fazer com que o filho venha ao Brasil. Às novas tergiversações de Rolf Mengele replica com cartas patéticas, em que ameaças e lamentações se confundem. Está tão sozinho e sente-se tão mal-amado que cometerá suicídio se Rolf não vier. Sua saúde periclita, quase morreu em duas ocasiões; os israelenses vão assassiná-lo: “Rolf, preciso de você, temos que nos ver o mais rápido possível.” Por fim, o jovem advogado atormentado se decide. Seu pai prepara sua viagem como um general planeja a batalha decisiva. Nada será deixado ao acaso, Rolf deverá seguir todas as suas diretrizes para chegar até ele, multiplicar as pistas falsas, reservar vários quartos de hotel, aprender a se dissolver na multidão e a se camuflar, “óculos escuros e chapéu são indispensáveis”, esclarece, a saber se está sendo seguido e a driblar os perseguidores. “Rolf, espero que esteja em forma, caso contrário pratique esportes a fim de se preparar para a expedição.” Se quiser, Bossert lhe dará uma arma quando chegar a São Paulo. E, o principal,

ele precisa de um passaporte falso. Mengele filho não pode viajar com seu nome verdadeiro para a América do Sul. Inúmeras precauções inúteis: ninguém mais procura seriamente Mengele àquela altura dos anos 1970. Os alemães ocidentais ainda o julgam no Paraguai. Os israelenses não dispõem de informações recentes e não pretendem mais raptá-lo. Depois da guerra dos Seis Dias, todas as vozes são importantes no Conselho de Segurança da ONU, as dos países da América Latina tão influentes quanto as outras, assim não querem pressioná-los por causa de um velho nazista talvez já morto, muito menos violar sua soberania. Sedlmeier supervisiona os preparativos. Ai de Rolf se ousar fazer objeções. Mengele continua reclamando, inunda-o com cartas. Rolf quer viajar com um amigo em quem confia plenamente, mas Mengele não o conhece, terá de vir sozinho, “você não conhece nenhum dos meus amigos, papai” etc. Dezenas de cartas atravessam o Atlântico, o tempo passa, Rolf se apaixona por alguém na Alemanha e adia sua partida, um ansioso Mengele culpa Sedlmeier, que arranca os cabelos. Finalmente, a passagem de avião é reservada: Rolf voará em 10 de outubro de 1977. Convém trazer “belos presentes” para os Bossert, Mengele insiste, convencido de que a avareza da família é a razão de seu divórcio com os Stammer, peças sobressalentes para seu barbeador elétrico, pepinos marinados de Spreewald e paninhos de renda para Elsa, a quem ele anuncia a chegada iminente de seu sobrinho. Antes da viagem, Karl-Heinz e Rolf se encontram no jardim da casa de Sedlmeier, e KarlHeinz passa ao primo alguns milhares de dólares para ele entregar a Mengele, o marido de sua mãe, seu querido “tio Fritz”. Rolf e seu colega chegam sem problemas ao Rio de Janeiro. Na alfândega, Rolf apresenta o passaporte que roubou de um amigo, enquanto seu cúmplice leva o passaporte válido para qualquer eventualidade, mas o

funcionário sorri para ele: bem-vindo ao Brasil, rapaz. Após uma noite no Rio, Rolf voa sozinho para São Paulo. Como combinado, um primeiro táxi deixa-o no ponto A, um segundo no B, um terceiro na casa de Bossert. Sem trocar uma palavra, os dois homens tomam imediatamente a direção de Eldorado. Ei-los na Alvarenga. A rua cheira a carne carbonizada, fios pendem dos postes elétricos, cães fuçam as latas de lixo. Rolf observa os barracos, homens em trajes sumários, mulheres negras carnudas em camisas sem manga. Seu coração dispara. O carro sacoleja e estaciona em frente ao 5.555. Um velho bigodudo de camiseta postase na soleira, as mãos no quadril. Seu pai, Josef Mengele.

71. A primeira coisa que o choca é o cheiro de mofo do casebre e a voz trêmula de seu pai. Antigamente viril e imperiosa, ela o impressionara, quando criança, durante suas férias na montanha. Mas Rolf não se deixa comover nem pelas lágrimas que o velho derramou ao recebê-lo nem por sua mão disforme e seu olhar de animal acuado. Sedlmeier alertou-o: “Josef é um canastrão.” Rolf o faz sentar e vai direto ao ponto. Após tantos anos, cartas de aproximação e noites insones, seu pai deve-lhe finalmente a verdade. Por que foi para Auschwitz? O que fez lá? É culpado dos crimes de que é acusado? Pela primeira vez, Mengele é confrontado com seus crimes inauditos. Tosse enquanto observa o filho, retrato escarrado da mãe, e o acha mais bonito do que em fotos, não fossem seus cabelos compridos de ator americano, que ele deveria cortar durante sua estadia no Brasil, e suas horrendas calças boca de sino. Quer apenas água? Mengele comprou cerveja e vinho em sua homenagem. E se comessem alguma coisa? “Fale, papai, depois veremos.” Dessas velharias?, suspira Mengele. Sim, dessas velharias. A humanidade é uma morfologia que tem tanta finalidade e plano de desenvolvimento quanto a orquídea ou a borboleta. Povos e línguas crescem e envelhecem, como carvalhos, pinheiros e flores, jovens e anciãos. Todas as culturas conhecem possibilidades de expressão novas que germinam, amadurecem, murcham e desaparecem sem volta, diz o pai, que se preparou para a inquisição do filho. Após a Primeira Guerra Mundial, o Ocidente alcançara um ponto crítico e a Alemanha, um estágio inexorável de sua civilização, gangrenada pela modernidade técnica e capitalista, pelas massas, pelo individualismo e o cosmopolitismo. Duas opções se ofereciam: morrer ou agir.

“Nós, os alemães, raça superior, precisávamos agir. Precisávamos inocular um novo ímpeto a fim de defender a comunidade natural e assegurar a eternidade da raça nórdica”, diz Mengele. Hitler projetava cem milhões de alemães, 250 no médio prazo e um bilhão em 2200. “Um bilhão, Rolf! Ele era nosso César, e nós, seus engenheiros, encarregados de garantir que ele dispusesse sempre de um número crescente de famílias saudáveis e racialmente satisfatórias...” Rolf tamborila os dedos na mesa. Conhece as teorias de Spengler sobre o declínio do Ocidente e não se aventurou até o Brasil para ouvir o pai vomitar o jargão do catecismo nazista: “Pai, o que você fez em Auschwitz?” Mengele esboça um gesto de irritação, raramente o interrompem. “Meu dever”, ele diz, fitando-o nos olhos, “meu dever de soldado alemão da ciência: proteger a comunidade orgânica biológica, depurar o sangue, livrá-lo dos corpos estranhos.” Tinha de classificar, selecionar e eliminar os inaptos que chegavam aos milhares diariamente no campo. “Tentei designar o maior número de trabalhadores a fim de poupar o máximo de vidas. Os gêmeos com os quais fiz a ciência avançar também me devem a vida”, continua ousadamente. Rolf olha atravessado para ele. Mengele tenta explicar seu princípio de seleção: num hospital militar, nem todos os feridos são operáveis. Alguns devem morrer, é a guerra, assim são regidas as leis da vida, só os mais fortes subsistem. Na chegada dos comboios, havia muito mais mortos-vivos. O que fazer com eles? Auschwitz não era um asilo, mas um campo de trabalho, diz Mengele: preferível poupar-lhes infinitos sofrimentos, eliminando-os sumariamente. “Creiame, não era uma rotina fácil. Compreende?” Não, Rolf não compreende, de jeito nenhum, mas não contradiz o pai. Se o deixar falar, talvez Mengele acabe fazendo uma confissão, demonstrando algum arrependimento. “Obedeci às ordens porque amava a Alemanha e porque era essa a política de

seu Führer. De nosso Führer: legal e moralmente, eu tinha de cumprir minha missão. Eu não tinha escolha. Não inventei Auschwitz nem as câmaras de gás e os fornos crematórios. Era só uma engrenagem entre muitas outras. Se alguns excessos foram cometidos, não sou responsável por eles, eu...” Rolf levanta-se e dá as costas para seu pai, não o escuta mais. Massageia as têmporas enquanto vê pela janela guris jogando bola.

72. “E os judeus, então, o que lhe fizeram os judeus?”, ele pergunta, após sentar-se novamente à sua frente. Mengele volta a falar de biologia, bacilos, micróbios e larvas a erradicar. Aponta um grande mosquito que corre por uma parede. “Vamos esmagá-lo porque ele ameaça nosso meio ambiente e pode nos transmitir doenças se nos picar. Com os judeus, é a mesma coisa.” Rolf fecha os olhos. Gostaria de fugir dali, mas ordena ao pai que não se mexa, ainda não terminaram, o inseto pode esperar. “Nunca sentiu compaixão pelas crianças, mulheres e velhos que mandava para a câmara de gás? Não sente nenhum remorso?” Mengele dirige um olhar cruel para o filho, que realmente não entende nada. “A piedade não é uma categoria válida, uma vez que os judeus não pertencem ao gênero humano”, ele diz. “Eles nos declararam guerra, há milênios querem a destruição da humanidade nórdica. Cumpria eliminá-los. Mais tarde, os meninos se tornariam homens e as meninas, mães ávidas pela revanche. Não à toa, os sobreviventes envenenam a Alemanha de hoje e Israel ameaça a paz mundial. Saiba ainda, Rolf, que a consciência é uma instância doente, inventada por criaturas mórbidas para entravar a ação e paralisar o executor”, diz Mengele. Não se entregou à justiça porque os juízes não passam de justiceiros e vingadores. Anoiteceu no Eldorado. Os Mengele jantam em silêncio. O filho observa o pai, aquele estranho, furar a gema do ovo e nela mergulhar seu pão com vontade. Resíduos de fios de espinafre mancham seu bigode. “Você matou, pai? Torturou e lançou recém-nascidos no fogo?”, pergunta subitamente Rolf. Mengele se apruma, fulmina-o com o olhar. Jura jamais ter feito mal a ninguém, apenas seu dever de soldado e cientista. Quando um piloto larga suas bombas sobre uma cidade em território inimigo, a coletividade não o incrimina,

ao contrário, ele é tratado como herói. Então por que cismam com ele? Aliás, os alemães nunca protestaram, tampouco o papa. É tão injusto quanto infame!, diz Mengele. Como cirurgião do povo, ele trabalhou pela projeção da raça ariana no futuro e pelo bem-estar da comunidade. O indivíduo não era tão importante. O velho, escarlate, levanta-se bruscamente e grita: “Você, meu filho único, acredita em todas as canalhices que escrevem sobre mim! Você não passa de um pequenoburguês, influenciado pelo idiota do seu padrasto, pelos seus estudos de Direito e pela mídia, como toda a sua geração medíocre. Essa história não está ao seu alcance, então deixe em paz seus ancestrais e os trate com respeito. Não fiz nada de mal, Rolf, está me ouvindo?” Fim. Após dois dias e duas noites de discussões sem trégua, Rolf desiste. Seu pai é inflexível, incurável e mau, um criminoso de guerra, um criminoso contra a humanidade, impenitente. Sim, acabou, rumina Rolf, e a sequência de sua viagem não tem mais importância, os passeios, as fotos com os Bossert e o piquenique na praia de Bertioga são subterfúgios. Parte antes do previsto. No aeroporto, seu pai insinua que espera revê-lo. Rolf afasta-se em direção à área de embarque.

73. Mengele considerou a vinda do filho uma vitória, sua placidez dos últimos dias uma compensação após o começo tempestuoso. Rolf devolveu-lhe um pouco de tônus, contudo, quatro, cinco, seis dias após sua partida, ainda não confirmara que tinha chegado bem. Teria sido preso no Rio? Na sua chegada à Alemanha? Mengele, em todo caso, tentara dissuadi-lo de apresentar seu passaporte verdadeiro quando entrasse na Europa. Escreve-lhe cartas em pânico, devora os jornais, escuta e assiste com angústia aos noticiários, o filho do anjo da morte talvez tenha sido capturado ao retornar do Brasil. Mengele rói as unhas, atormenta-se durante um mês, até que Sedlmeier escreve para tranquilizá-lo. A visita de Rolf, então, não serviu para nada. Patifezinho. Mengele está transtornado; mais uma vez mergulha no vazio e na melancolia. Bossert sugere que ele se mude para um bairro mais agradável, mas ele não quer sair de Eldorado, onde ninguém jamais irá procurar o criminoso mais temível do universo. Aliás, ele não tem nem força, nem vontade de se readaptar a um novo ambiente. Além disso, em Eldorado há Elsa. Elsa, que o mima e afaga diariamente, Elsa, que Mengele inicia na música clássica, no latim e no grego, Elsa, a quem ele oferece xales, uma pulseira de ouro e outros presentes generosos, graças ao dinheiro de Karl-Heinz e à venda do conjugado em São Paulo. Sofre quando sua faxineira vai embora no fim do dia, logo após aplicar batom nos lábios, na ponta dos pés em frente ao espelho do banheiro, para sair com outros homens. Quando Elsa prepara o café da manhã, julga rever Irene de costas, as duas mulheres se parecem, com seus quadris magros, seus cabelos ondulados levemente ruivos e presos num coque. Elsa sente afeição por Dom Pedro, que lhe evoca seu pai, falecido quando ela tinha quinze anos,

ele é bondoso com ela, distinto, tão diferente dos broncos beberrões que a paqueram no bairro. Dom Pedro vai com ela ao casamento de sua irmã. Recusa-se a posar para os retratos de família, mas dança com prazer com a moça, colado em seu corpo sinuoso a ponto de inalar seu hálito, misto de limão e cachaça. O velho a deseja: pouco antes da meia-noite, Mengele alega um mal-estar, uma dor súbita nas costas e fisgadas numa perna, a fim de que ela o acompanhe até sua casa. Elsa massageia o corpo ressequido de Dom Pedro. Sua coxa dói. Quando ingenuamente leva sua mão constrangida ao local, Mengele dirige-a para o seu sexo. Elsa reclama, “por princípio”, pensa ele, apertando seu punho, Elsa obedece, sempre ansiosa para satisfazer Dom Pedro, e começa a passar a mão em seu pau, a afagá-lo com delicadeza, a agitá-lo mais energicamente, mas ele não cresce, ao contrário, encolhe feito um caracol, Mengele insiste, “devagar”, “mais rápido”, mas não chega à ereção. Um desastre. A faxineira lhe acaricia os cabelos e o embala como se a um filho que ela não tem: sim, ela aceita dormir na cama de Dom Pedro essa noite. Na manhã seguinte, ele convida Elsa para instalar-se em sua casa. Ela recusa — “Isso não é direito, Dom Pedro, que dirão os vizinhos, minha mãe? Somos uma família pobre, mas respeitável.” Ou com uma condição, que ele se case com ela.

74. “Não, impossível, impossível”, balbucia Mengele desamparado, desmanchando-se em lágrimas. Gostaria, ah, adoraria que aquela mulher meiga e atenciosa se tornasse sua esposa e compartilhasse seus últimos anos, mas não pode lhe dizer que morre de medo de apresentar os verdadeiros falsos documentos de Gerhard ao oficial do registro civil de Eldorado. Elsa em prantos também se persigna, três vezes, antes de esconder seu rosto entre as mãos. Se ele não tem nada a acrescentar nem é capaz de lhe dar uma explicação, ela vai embora, não é uma puta. Dom Pedro é um bom homem, mas terá de contratar uma nova empregada. O velho nazista não permitirá que sua última aliada fuja. Vai procurar sua mãe, jura que aumentará o salário de Elsa e lhe oferecerá a melhor das vidas, ajoelha-se com as mãos à frente de seu peito ofegante: suplica-lhe que convença a filha a voltar a trabalhar em sua casa. “Então case com ela.” Malditas convenções! Catolicismo porco! Mengele está desesperado. Cerca-as, zanza em frente ao seu barraco, manda flores, soluça, implora, geme. Dom Pedro é decididamente um velho estranho. A mãe diz à filha que ele perdeu a cabeça e a aconselha a tomar distância. Em outubro de 1978, Elsa comunica a Mengele que vai se casar e que ele precisa deixá-la em paz. Ele desmorona, intima-a a desistir, nenhum homem cuidará dela tão bem como ele, mas ela não quer ouvir. “Então morrerei em breve.” A partida de Elsa é o golpe de misericórdia. A saúde precária de Mengele se deteriora rapidamente, mesmo com a chegada de uma nova empregada, Inez, que se muda para um quartinho no fundo do quintal. Urticária, herpes e distúrbios hepáticos, seu corpo desiste de funcionar. Perdeu o apetite e emagrece rapidamente, sua vida é destituída de sentido, sua solidão, uma tortura,

perdeu suas batalhas, escreve a Sedlmeier, e, já que todo mundo o abandona, dessa vez está propenso ao suicídio. Suas noites são atrozes, devoradas por angústias que oprimem sua caixa torácica, dores lancinantes, como se fosse sufocar. De joelhos e olhos fechados, pronuncia, antes de se deitar, a oração em latim que seu pai lhe recitava em criança para acalmá-lo: procul recedant somnia, et noctium phantasmata, que os sonhos e as quimeras da noite permaneçam longe de nós. Mas nada é capaz de reanimar seu espírito e amenizar seus achaques. Mengele não dorme mais. Como uma criança, pede a Inez que deixe a luz da sala acesa e vai lhe dar boa noite em seu barraco, se pelo menos ela aceitasse dormir com ele, enfim, ele conseguiria descansar algumas horas. Às vezes ouve vozes e perambula à noite pela casa, como um sonâmbulo em busca de seus fantasmas. A demência ronda. De dia, esbarra nos móveis e resmunga sozinho, Rolf, Irene, papai. Não tem sequer forças para celebrar a noite de Natal na casa dos Bossert. Na manhã do dia 25, quando Musikus leva restos de carne e uma parte do bolo para ele, encontra Mengele lívido, desmaiado numa poça de urina e excrementos. Na mesa de cabeceira, uma caixa de supositórios, aparas de unhas, um cartão natalino. Sedlmeier deseja-lhe um feliz ano de 1979 e lhe comunica que é avô há alguns meses. Rolf não lhe enviou a participação de nascimento do filho. Em janeiro, a canícula castiga o estado de São Paulo. Bossert convida Mengele a sair da toca e se refrescar à beira-mar em Bertioga, na sua casa de praia: as crianças ficarão contentes de reencontrar o tio. Em 7 de fevereiro de 1979, bem cedinho, Mengele embarca num ônibus com destino ao porto de Santos. Musikus pega-o na rodoviária, prostrado e com um humor execrável, tão cansado que não almoça e, assim que chega, tranca-se em seu quarto para fazer a sesta. Mengele sonha. Pela primeira vez em muito tempo, Mengele sonha.

75. Uma floresta perdida na bruma, plantações escuras, pranto e suspiros, diversas línguas, palavras de baixo calão. Multidões de crianças, mulheres e homens nus, atacados por moscas e vespas, são escoltados por diabos negros. Dentre os prisioneiros, Eichmann, Rudel, Gitta e Geza Stammer, von Verschuer, o geneticista sem escrúpulos, e todo o clã de Günzburg, a sagrada família reunida, pai, mãe, irmãos, esposas, filhos e sobrinhos, cada qual puxando uma rocha de granito enquanto trocam xingamentos. Uma imensa fornalha é preparada. Bodes e macacos puxam carrinhos carregados de lenha, uma orquestra afina seus instrumentos. Encarapitada num estrado, com os braços erguidos para as estrelas e nuvens que anunciam a neve, uma feiticeira desgrenhada incita o cortejo. É véspera de Carnaval, e a deusa Germânia será torturada. “Mengele!”, uivam duas vozes alquebradas, “Mengele!” Ele se vira: dois homens em andrajos apontam-lhe uma arma. Reconhece imediatamente o pai e o filho que ele mandou dissecar e ferver em Auschwitz, o corcunda e o manco, aqueles modestos judeus de Lodz. Avançam e apontam sua pistola para a têmpora do velho médico de jaleco imaculado. Mengele estremece, ajoelha-se, suplica. O corcunda cai na gargalhada e o manco assobia uma ária da Tosca.

76. Ele acorda esgotado, suando em bicas, com palpitações no coração, e treme da cabeça aos pés, pressentindo ter chegado ao fim de sua macabra viagem em 7 de fevereiro de 1979. Apesar das dores nas costas, consegue se levantar, coloca um calção de banho, veste-se e sai, sem beber nem comer. Chega à praia, que fica num plano inferior à casa. Bossert chama-o com um aceno. Quer deitar sob o guarda-sol? Um copo de limonada, um bolinho de bacalhau? Em vez disso, Mengele lhe propõe caminhar ao longo da praia. Cabeça e torso nus, ele avança zonzo na luz ofuscante, sem prestar atenção às banalidades que Bossert profere. Arfante, sua cabeça roda; precisa sentar-se numa pedra. Silêncio. Ao longe, gritos de crianças, um voo de pássaro, a ressaca e a maresia do alto-mar, ardente, que ergue labaredas de areia dourada. E de repente Mengele põe-se a falar confusamente de escombros, de seus pais e de Günzburg, fitando o horizonte. Seu sonho seria voltar e terminar lá seus dias, diz a Bossert. O calor e a sede o flagelam. Está morrendo, é a realidade. Movido por uma força obscura, entra na água turquesa, cabisbaixo, e deixa-se boiar, não sente mais seu corpo dolorido nem seus órgãos degenerados, carregado pela corrente que o drena para o alto-mar e as profundezas, quando bruscamente sua nuca magra se enrijece, seus maxilares trincam, seus membros e sua vida congelam. Mengele estertora, gaivotas batem asas e planam, grasnam de alegria, Mengele está se afogando. Ainda respira enquanto Bossert luta contra as ondas para levá-lo à praia, mas é seu cadáver que sai do mar. “Tio Pedro está morto!”, exclamam Liselotte e as crianças. Tio Pedro morreu na imensidão do oceano sob o sol do Brasil, de maneira furtiva, sem enfrentar a justiça dos

homens nem suas vítimas pelos crimes inomináveis que cometeu. No dia seguinte, sob sua falsa identidade, Mengele é enterrado em Embu. Bossert, hospitalizado, não comparece ao enterro. Apenas Liselotte, o diretor e um empregado do cemitério assistem ao sepultamento de “Wolfgang Gerhard”.

EPÍLOGO

O fantasma

77. Neva em Auschwitz nesse 27 de janeiro de 1985. Dentre os sobreviventes reunidos para comemorar o quadragésimo aniversário da libertação do campo, há um grupo de quinquagenários e sexagenários corcundas, gêmeos, anões e mutilados. Remanescentes do zoológico humano de Mengele exigem justiça perante as câmeras do mundo inteiro e exortam os governos a capturarem seu torturador. “Sabemos que ele está vivo. Ele tem que pagar.” Da Polônia, a maioria voa para Israel. Em 4 de fevereiro, no memorial do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, começa o simulacro de julgamento do criminoso contra a humanidade. O tribunal é presidido pelo antigo procuradorgeral do caso Eichmann. Por três noites seguidas, as cobaias de Mengele testemunham seu martírio. Uma ex-guarda da ala de gêmeos ciganos conta suas recordações. Após injetar o esperma de um gêmeo nas vísceras de uma gêmea na esperança de que a jovem desse à luz um par de bebês, Mengele, constatando que ela só carregava uma criança, arrancou-lhe o bebê do útero e o atirou no fogo. Perplexa, uma mulher relatou que foi obrigada a assassinar sua filhinha de uma semana. Mengele ordenou que enfaixassem seu peito a fim de desmamar a criança: ele queria saber quanto tempo vivia um bebê não alimentado. A mãe ouviu seu bebê berrar ininterruptamente e acabou lhe injetando a morfina fornecida por um médico judeu. Mulheres contam que SS arrebentaram crânios de bebês vivos com as coronhas de seus fuzis e descrevem a parede no gabinete de Mengele, repleta de olhos espetados como borboletas. Os depoimentos são divulgados no mundo inteiro e a repercussão é imensa: antes mesmo do fim do julgamento, o ministro da Justiça americano exige o reexame completo do processo e a prisão do criminoso, pressionado pelo

centro Simon Wiesenthal de Los Angeles, que tornou público um memorando sigiloso da contraespionagem indicando que os americanos detinham Mengele em 1947. A informação é errônea, mas causa grande sensação: os americanos deixaram o anjo da morte fugir? Usaram seus serviços como os de tantos outros nazistas após a guerra? O Escritório de Investigações Especiais, criado pela administração Carter para caçar os criminosos nazistas nos Estados Unidos, abre uma sindicância. À sua disposição, a CIA, a Agência de Segurança Nacional, o departamento de Estado e a Defesa, os recursos ilimitados da superpotência americana. Dois dias mais tarde, em 8 de fevereiro, os israelenses anunciam a retomada das buscas e oferecem um milhão de dólares a quem entregar Mengele. As recompensas por sua captura alcançam montantes prodigiosos: o centro Simon Wiesenthal e o Washington Times acrescentam um milhão de dólares cada um, a RFA um milhão de marcos... Quarenta anos depois do fim da guerra, a cabeça de Mengele vale três milhões e quatrocentos mil dólares. Americanos, israelenses e alemães ocidentais comprometem-se a coordenar seus esforços e compartilhar informações. Jornalistas e aventureiros invadem Günzburg e a América do Sul; a mídia folhetiniza a maior caçada ao homem do fim do século XX. Uma caça ao fantasma, mas, àquela altura, ninguém sabia disso. A onda Holocausto acaba de estourar no Ocidente. No fim dos anos 1970, a série, cujos protagonistas são Meryl Streep e James Woods, sensibilizou dezenas de milhões de lares para a destruição dos judeus da Europa. O choque é imenso, a comoção se mostra considerável, o termo entra na linguagem cotidiana, os sobreviventes dos campos finalmente dão seus testemunhos. Na Alemanha, a geração dos idealizadores e executores do nazismo se aposentou, e um doloroso trabalho de memória oficial tem início. Nos Estados Unidos, o Holocausto torna-se um ponto de

referência moral. O Congresso aprova a construção de um museu em Washington; outros vinte e dois serão criados em todo o país. Claude Lanzmann está em vias de terminar Shoah. Dessa vez, cumpre agarrar o monstro e levar à justiça “o símbolo da crueldade nazista”, declarou o presidente do tribunal de Yad Vashem, promotor-geral no julgamento de Eichmann. Em anos recentes, as informações mais insólitas continuaram a circular, o mito só fez crescer, “Herr Doktor” permanece fora de alcance. Embora o Paraguai tenha finalmente revogado sua cidadania no verão de 1979, muitos pensam que ele continua morando lá, protegido pelos seguidores do presidente Stroessner. Em maio de 1985, Beate Klarsfeld protesta sob as janelas do palácio presidencial de Assunção. Simon Wiesenthal afirma que ele navega entre o Chile, a Bolívia e o Paraguai; Israel diz que ele se esconde no Uruguai. O New York Post descobriu-o no condado de Westchester, ao lado de uma yeshivá ortodoxa, não longe de Nova York. Sob o pseudônimo de Henrique Wollman, seria um dos barões do tráfico de drogas entre a América do Sul e os Estados Unidos e quase foi preso em Miami. Impulsionado pelo sucesso do filme Os meninos do Brasil, no qual Gregory Peck interpreta o Josef Mengele da lenda — chefe de uma conspiração neonazista, ele clonou 94 pequenos Adolf Hitler a fim de estabelecer um Quarto Reich —, um rumor aponta-o como o médico por trás da proliferação de gêmeos louros em Cândido Godói, um município no sul do Brasil.

78. Em Günzburg, os primos Karl-Heinz e Dieter estão preocupados. A tempestade midiática e judiciária ameaça a empresa, jornalistas acampam em frente à fábrica e às suas casas, as recompensas prometidas podem desatar as línguas de seus gananciosos cúmplices sul-americanos. Seu pacto de silêncio resiste há seis anos. Após a morte do pai, Rolf retornou ao Brasil para resgatar seus pertences, sua correspondência e seus cadernos. Remunerou generosamente os Bossert por seus leais serviços e lhes ofereceu metade da casinhola de Eldorado. Doou a outra aos Stammer, que a venderam imediatamente aos Bossert. As duas famílias juraram jamais revelar o segredo da morte do tio Pedro. O clã de Günzburg formou um bloco e tampouco abriu o bico, o anúncio geraria perguntas incômodas, a revelação do apoio indefectível ao fugitivo, uma publicidade terrível para a multinacional. Os Mengele saborearam os esforços inúteis dos sobreviventes, dos governos e dos caçadores de nazistas para capturar o fugitivo. Rolf, fiel às suas contradições, calou-se por consideração aos aliados de seu pai. Embora detestasse os primos, torceu, como eles, para que o cadáver nunca fosse descoberto e o tempo sorvesse Mengele. As testemunhas comprometedoras morrem uma depois da outra, Gerhard há mais tempo, Rudel e Krug em 1982. Contudo, naquele fim de inverno de 1982, os Mengele mudam de tática. A pressão é forte demais, reportagens incriminam a empresa, suspeita de alimentar a conta do criminoso foragido na Suíça. Em março, Dieter concede uma entrevista a uma grande rede de televisão americana. Desmente qualquer contato com seu tio desde sua fuga da Argentina, minimiza seus crimes e supõe que esteja morto — “os homens morrem jovens na família” —, Mengele teria setenta e quatro anos. Não se enganem, ele não dispõe de

nenhuma outra informação. Seu depoimento só faz alimentar as especulações, claro que Mengele está vivo, o sobrinho mente agora que todos os serviços secretos e polícias estão em seu encalço, as buscas precisam se intensificar. Rolf está furioso com Dieter, que não o avisou sobre sua declaração televisionada. No fim de março, os três primos se encontram em Günzburg. Dieter propõe desenterrar a ossada no cemitério de Embu, trazê-la para a Alemanha e colocá-la na porta do procurador encarregado da caçada junto com um bilhete anônimo: “Eis os restos mortais de Josef Mengele.” Rolf se recusa. Preconiza silêncio absoluto. Com um pouco de sorte, o esqueleto jamais será encontrado. Mas a sorte não veio. No outono de 1984, o fiel Sedlmeier permitiu-se algumas confidências durante um jantar na Floresta Negra, onde o recém-aposentado e a mulher estavam descansando. Uma noite agradável, altamente alcoólica, e o emissário do diabo deu com a língua nos dentes: contou a um amigo que nunca parou de enviar dinheiro a Mengele. O amigo relatou à polícia, que agora dispõe de um mandado: em 10 de maio de 1985, em Frankfurt, o procurador alemão informa a seus parceiros americanos e israelenses que fará uma busca na casa de Sedlmeier. Dessa vez, a polícia de Günzburg será ignorada, não poderá alertar o investigado. No fim do mês, os policiais ocupam a luxuosa mansão de Sedlmeier. No guarda-roupas de sua mulher, apreendem uma caderneta de endereços e números de telefone cifrados, cópias de cartas de Mengele, dos Bossert e dos Stammer. Uma das cartas de Bossert comunica o falecimento do tio. Sedlmeier se recusa a colaborar e é detido em seu domicílio, enquanto a polícia decifra o caderno. O documento leva ao Brasil; alertada, a polícia de São Paulo vigia durante quatro dias, vinte e quatro horas por dia, as idas e vindas dos Bossert e dos Stammer.

Nenhum rastro de Mengele. Então, invade a casa dos Bossert ao amanhecer do dia 5 de junho. Detritos, bibelôs e fotos recentes do velho bigodudo são encontrados numa cômoda e confirmam os laços da família com Mengele. Rapidamente, os Bossert contam o que sabem: Mengele está morto e enterrado no cemitério de Embu, num jazigo em nome de Wolfgang Gerhard. No dia seguinte, Gitta Stammer faz jogo duro: sim, reconhece o homem na foto, é Peter Hochbichler, o suíço que administrou suas fazendas durante muito tempo, foi Gerhard que o apresentou. Não conhece Josef Mengele. Geza não é interrogado, está num cruzeiro pela Ásia. No mesmo dia, na outra ponta do mundo, a notícia extraordinária vaza na imprensa: em cinco colunas de primeira página, o jornal Die Welt anuncia que o cadáver de Mengele foi encontrado no Brasil. No dia 6, um mar de câmeras, fotógrafos e microfones cerca os policiais e os Bossert, que foram exumar os restos mortais de Gerhard no cemitério de Embu. A terra é escavada, o caixão içado, sua tampa arrebentada, o esqueleto enfim desvelado. O diretor do laboratório do Instituto Médico Legal de São Paulo agita o crânio como se fora o fóssil de um réptil mítico procurado há séculos, o verdadeiro rosto do monstro, cor de lama, coberto de vermes, uma frivolidade, o triunfo da morte. Os melhores médicos-legistas acorrem ao Brasil para identificar a carcaça. Os israelenses e os Klarsfeld estão céticos. Por que a família ficou calada durante seis anos? Por que complicar a vida a esse ponto? E por que agora? É certamente uma nova cortina de fumaça para que Mengele possa gozar tranquilamente seus últimos anos. Wiesenthal tampouco acredita, é a sétima vez que o criminoso morre, falecido uma vez na frente russa, duas no Paraguai, uma no Brasil, outra na Bolívia e até mesmo em Portugal, onde teria se suicidado recentemente. Nesse ínterim, os peritos determinam o grupo sanguíneo do esqueleto, recolhem amostras de um fio de cabelo, pelos

do bigode, uma impressão digital, medem os ossos e o espaço entre os incisivos superiores, examinam as vértebras, os fêmures, um afundamento na face e a proeminência da testa, superpõem fotos de Mengele jovem e velho, consultam seu dossiê SS, no qual há registros de uma fratura na bacia em consequência de um acidente de motocicleta em Auschwitz. Rolf decide romper o silêncio. A princípio cogita vender à revista Stern cartas, cadernos e fotos de seu pai que ele tirou durante sua viagem ao Brasil, depois cede-os gratuitamente à Bunte, uma revista ilustrada de grande tiragem. Os lucros serão destinados a associações de sobreviventes dos campos de concentração. Na capa da edição de 18 de junho, os alemães ocidentais descobrem um Mengele cheio de rugas, vestindo uma camisa com colarinho de ponta e um chapéu de palha. Um encarte especial indica que sua família sabia onde ele se escondia e o amparou financeiramente até o fim. Rolf confirma, num breve comunicado, que seu pai morreu no Brasil em 1979 e oferece sua mais profunda solidariedade às vítimas e seus parentes. Não revelou a morte por consideração às pessoas que ajudaram seu pai. Não diz uma palavra sobre os horrores; Dieter, Karl-Heinz e Sedlmeier emparedam-se no silêncio. Em 21 de junho a polícia convoca a imprensa ao seu QG de São Paulo. Com uma certeza científica racional, os médicos legistas identificaram positivamente o esqueleto descoberto em Embu como sendo de Josef Mengele.

79. Em 1992, testes de DNA confirmaram o parecer dos peritos. Nesse mesmo ano, a Alemanha, Israel e os Estados Unidos arquivaram definitivamente o caso Mengele. Seus restos mortais foram armazenados numa gaveta do Instituto Médico Legal de São Paulo. A família não reclamou os despojos. Mengele será privado de sepultura. Dieter, Karl-Heinz e Sedlmeier nunca foram levados à justiça, tampouco Rolf. Na Alemanha, o delito de auxílio a criminoso procurado prescreve ao termo de cinco anos. A empresa Mengele Agrartechnik balançou após as revelações de junho de 1985. Possuía menos de 650 funcionários em 1991, metade do número registrado seis anos antes. Foi vendida nesse ano. A marca desapareceu definitivamente em 2011. Dieter e Karl-Heinz Mengele criaram, em 2009, uma fundação destinada a ajudar os necessitados de Günzburg e a devolver um pouco de dignidade a um patronímico “associado a coisas negativas nesses últimos anos”, declarou Dieter ao Augsburger Allgemeine. Os cadernos e diários de exílio de Josef Mengele foram vendidos em 2011, num leilão nos Estados Unidos, por 245 mil dólares. Vendedor e comprador permaneceram anônimos. Rolf Mengele mora em Munique, onde trabalha como advogado. Trocou o sobrenome pelo da mulher. Numa entrevista a um jornal israelense em 2008, pediu ao povo judeu que não o odiasse pelos crimes perpetrados por seu pai.

80. Os ossos de Mengele foram legados à medicina brasileira em março de 2016.

81. Restos mortais entregues às manipulações de médicos residentes da Universidade de São Paulo: assim termina a fuga de Josef Mengele, mais de setenta anos após o fim da guerra que destrói um continente cosmopolita e erudito, a Europa. Mengele, ou a história de um homem sem escrúpulos com a alma aferrolhada, que deparou com uma ideologia venenosa e mortífera numa sociedade convulsionada pela irrupção da modernidade. Ela facilmente seduz o jovem médico ambicioso, abusa de seus talentos medíocres, a vaidade, a inveja, o dinheiro, até incitá-lo a cometer crimes abjetos e a defendê-los. A cada duas ou três gerações, quando a memória se estiola e as últimas testemunhas dos massacres anteriores morrem, a razão se retrai e homens voltam a propagar o mal. Que os sonhos e as quimeras da noite permaneçam longe de nós. Desconfiança, o homem é uma criatura maleável, devemos desconfiar dos homens.

FONTES E BIBLIOGRAFIA Este livro conta a história de Mengele na América do Sul. É provável que algumas zonas cinzentas jamais sejam esclarecidas. Só a forma romanesca me permitia chegar o mais perto possível da trajetória macabra do médico nazista. Para preparar este livro, fui a Günzburg, à Argentina e ao Brasil, onde descobri especialmente a fazenda de Santa Luzia, nas cercanias da Serra Negra. Dos inúmeros livros estudados, alguns foram essenciais à preparação deste volume. O de Miklós Nyiszli, Médico em Auschwitz (Otto Pierre, 1980), para começar. Citarei os trabalhos de Ulrich Völklein, Josef Mengele, der Arzt von Auschwitz (Steidl, 2003), de Gerald Astor, O último nazista (Planeta, 1987), e de Sven Keller, Günzburg und der Fall Josef Mengele (Oldenbourg, 2003). Mengele: A história completa do anjo da morte de Auschwitz, de Gerald L. Posner e John Ware (Cultrix, 2019), é uma fonte de informações inigualável e até hoje a melhor biografia de Mengele, na minha opinião. Nos anos 1980, Posner e Ware tiveram acesso aos diários íntimos do médico em fuga. No que se refere à Argentina de Perón e sua política de acolhida aos criminosos de guerra nazistas, A verdadeira Odessa: O contrabando de nazistas para a Argentina de Perón, de Uki Goñi, (Record, 2004) e Eichmann Before Jerusalem, de Bettina Stangneth (The Bodley Head, 2014), são livros incontornáveis. La loi du sang (Gallimard, 2014), de Johann Chapoutot, foi-me de grande valia para apreender a visão de mundo nazista. ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. São Paulo: Editora 34, 2010.

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AGRADECIMENTOS A Juliette Joste, Christophe Bataille e Olivier Nora, Marion Naccache, Juan Alberto Schulz, Uki Goñi, Sébastien Le Fol, Lars Kraume, Léa Salamé, Sylvie e Gilles Guez, Danièle Hirsch. A Annabelle Hirsch. Annabelle.

SOBRE O AUTOR

© JF Paga | Grasset

OLIVIER GUEZ é jornalista, ensaísta e escritor francês. Autor de L’impossible retour (Flammarion), uma história dos judeus na Alemanha a partir de 1945, Éloge de l’esquive (Grasset) e Les Révolutions de Jacques Koskas (Belfond). Recebeu em 2016 o prêmio alemão de melhor roteiro pelo filme Fritz Bauer, um herói alemão. O desaparecimento de Josef Mengele ganhou o Prix Renaudot em 2017.

Table of Contents Folha de rosto Créditos Mídias sociais Dedicatória Epígrafe Sumário Primeira parte: O paxá 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25.

26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. Segunda parte: O rato 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60.

61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70. 71. 72. 73. 74. 75. 76. Epílogo: O fantasma 77. 78. 79. 80. 81. Fontes e bibliografia Agradecimentos Sobre o autor Leia também