Jacques Lecoq sempre é lembrado e reverenciado por ex-alunos, atores, diretores e autores teatrais e até por arquitetos.
1,288 116 21MB
Portuguese Pages 239 [121] Year 2010
Pelo mu ndo inteiro, antigos alunos de [acques Lecoq - atores, diretores de teatro , cen ógrafos, autores teatrais e até arquitetos - semp re fazem referência a seus ensinamentos. Mas quem foi Iacqu es Lecoq ? Qual foi seu percurso? Quais são os objetivos e os mé to dos d o seu en sinamento? O corpo p oét ico, fruto de numero sas entrevistas concedidas a Jean-Gabriel Ca rasso e Jean Claude Lallias, responde a essas questõe s. Da mimodinâmica à geodramática, d a m áscara neutra aos grandes territórios dramáticos (drama, commedia dell'arte, bufão, tragédia, clown), Iacq ues Lecoq nos apresen ta sua Escola In ternacional de Teatro, pe rmitindo que acom panhem os, passo a pa sso, seu trabalho pedagógico. Esta publicação do Senac São Paulo e do Sesc São Paulo visa difundir, entre est udantes, profissionais e adm iradores do teatro, os m étodos e resultad os de uma das mais revolucionárias e eficientes ped agogias contemporâneas elabor adas para a com p reensão da arte cênica, assim corno para o exercício das várias at ivida des que ela compreende, corno atuação, direção, cenografia e outras .
I \
o CORPO POÉTICO Uma pedagogia da criação teatral
Trad uzido de Le corps poétique: z.m enseignement de la cr éation th éâtrale Iacques Lecoq com a co lab oração de Jean -Gabriel Carasso e de Iean-C laude Lall ias © Actes Sud, 1997.
Pro ibida a reprodução se m au to rização expressa. To do s os d ireitos des ta ed ição reserv ad os às: Edito ra Sena c Silo Pau lo Rua Ru i Barbosa, 37 7 - I" an da r - Bel a Vista - CEP 013 26-010 Ca ixa Postal 1120 - C EP 01032-9 70 - São Pau lo - SP Tel. (l I) 2187-4 450 - Fax {Ll ) 2 187- 4486 E-mai!: ed ítorarçsp.senuc.br Horne pa ge: http ://www.edito ra sen acsp .co m .br
SESC São Paulo Edições SESC SP Av. Álvaro Ramos, 991 - Belen zinho CEP 033 31-000 - São Paulo - SP Tel.: (l I) 260 7-8000 Ecmal l: [email protected] rg.br Home page: http://www.sesc sp.or g.br
o CORPO POÉTICO Uma pedagogia da criação teatral
© Ediç ão bra sile ira: Ed ito ra Sena c São Pau lo e Edi ções SESC SP, 2010
JACQUES LECOQ
Com a colaboração de Jean-Gabriel Carasso e de [ean -Cluude Lallias Dados Internacionais de Catalo ga çã o na P ublicação (CI P) (Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil)
Lecoq , Iacq ues O co rpo poético : uma ped ago gia da cr iação teatr al I Iacq ues Lecoq ; co m a co labo ração d e Jean -Gab riel Carasso e de JeanClaude Lall ias ; tr adução de Marcelo Go m es. - São Paulo : Ed ito ra Sen ac São Pau lo: Ed içõ es SESC SP, 2010 .
TRAD U Ç Ã O
MARCELO G OMES T ítulo o rigina l: Le co rps po éti qu e: un ense ign em ent de la créat io n th éàtrale Bibliografia. ISBN 978 -85 -7359 -931-2 (E di to ra Sen ac São Pa ulo) ISBN 978 - 85-7995- 000- 1 ( Ed ições SESC SP) 1. Represen tação teatral - Estudo e ensi no 2. Teatro - Estud o e ensino 1.Ca ra sso , Jean-Gabriel. 11.Lallias, Iean-Claude, 111. Título.
10-00 745
C D D -792. 07 Índice para catálogo sistemático: 1. Ar te te a tral : Estudo e e ns ino 79 2.0 7
e d icães
SESC@[?
SERVi ÇO NAC IONAL DE APRENDIZAGEM COMERCIAL - SENAC SP ADM INISTRAÇÃ O R EGI O NA L D O SENAC N O ES TAD O DE SÃ O PA ULO
Presidente do Conselho Regional: Abram Szajman Diretor do Departament o Regional: Luiz Fra nci sc o d e A. Salgad o Superintende nte Universitá rio e de Desenvol vim ento: Luiz Carlos Dourado EDIT O RA S ENAC
SÃo
Conselho Editorial:
PAULO
Luiz Fra nc isco de A. Salgado Luiz Carlos Dourado Da rcio Sayad M aia Lucila Mara Sbrana Sciotti M arc us Vin ici us Bari li Alves
Editor: Ma rcus V inicius Barili Alves
Coorden ação de Prosp ecção e Produ ção Edit orial: Isabel M . M . Alexand re Supe rv isão de Prod uçâo Editoria l: Pedro Barros Edição de Texto : Luiz Guasco Preparação de Texto: Cristina Marques Revisão de Text o: Daniel Viana, Edna Viana , Iussara Rodr igues Go m es. Rinaldo Mile si Projeto Gráfico, Capa e Editoração Eletrônica: Anton io Carl os De Angelis Foto da Capa : Patrick Leco q Imp ressão e Acabamento: Crom o se te Gráfica e Edito ra Ltd a, Gerência Come rcial: Mar cus Vinicius Barili Alves Supe rv isão de Vendas : Rubens Gonçalves Folha Coo rden ação Adm inistrativa: Carlos Al berto Al ves
Sumário Not a d a edição brasileir a, 9 "Q u an d o um ch ora o o u t ro ri ", 11 Ricardo Napoleão Um ponto fixo em movi mento, 19 Jean -Gabriel Carasso e [ean -Claude Lallias
I. A ed ições
SE~
SERV iÇ O SOCIA L DO COMlÕRC IO - SESC SP ADM INISTRAÇÃO R EG IO NAL D O SESC N O ES TADO DE SÃ o PAUL O
Presidente do Cons elho Regional: Abram Szajman D iretor Regiona l: Dan ilo Santos de Miranda Super inten dentes Comunicação Social: Ivan Giannini Técnico-Social : Io el Naimayer Padula Administração: Luiz De oclécio M assaro Gal in a A ssessoria Técnica e de Planeja me nto: Sérgi o Jo sé Battistelli EDIÇÕES SESC SP Gerente : Ma rcos Lepiscopo Gerente Adj unto: Évelim Lúcia Mo raes Coo rdenação Edit orial: Clívia Ramir o Produçã o Ed itorial: Iulíana Gard im Colaborado ra desta edição: Marta Co labone
VIAGEM P ESSOAL, 25
Do esporte ao teatro, 27 A aventura italiana, 30 Rever Paris!, 33 Uma escola em movimento, 35 Encontrar seu lugar, 38 A viagem d a Escola, 41 Por um jovem teatro de criação, 43 A busca das permanências, 50
11. O
MUNDO E SEUS MOVIMENTOS , 55
Uma página em b ran co , 57 1. IMPROVISAÇÃO,
59 5
o silêncio an tes da palavra, 5 9 Reinterpretação e interpretação, 59 Rumo às estruturas da interpretação, 65 A máscara neutra, 68 A neutralidade, 68 A viagem elemental, 75 Identificar-se com a natureza, 77 Transpor, 79 A abordagem pelas artes, 81 O fundo poético comum, 81 As cores do arco-íris, 83 O corpo das palavras, 86 A música como parceira, 89 Máscaras e contramáscaras, 91 Os níveis de jogo / interpretação, 91 Entrar na forma, 96 Os personagens, 101 Estados, paixões, sentimentos, 101 Lugares e meios, 104 Restrições de estilo, 106 2 . T ÉCNICA DOS MOVIMENTOS, 109
Preparação corporal e vocal, 109 Dar sentido ao movimento, 109 Acrobacia dramática, 114 Nos limites do corpo, 114 Análise dos movimentos, 116 Partir dos movimentos naturais da vida, 117 Fazer surgir as atitudes, 123 Buscar a economia das ações físicas, 126 Analisar as dinâmicas da natureza, 130 Estudar os animais, 138 As leis do movimento, com M maiúsculo, 140
6
3.
O TEATRO DOS ALUN OS, 143 Os autocursos e as enquetes, 143
IH. O s
CAMINHOS DA CR IAÇÃO, 149
Geod r amática, 151 As LINGUAGENS DO GESTO , 15 7 Da p antomim a aos quadro s mímicos, 15 7
1.
2. OS GRA ND ES T ERRITÓ R IOS DRAMÁTICOS,
163
O melodrama, 163 Os gran des sen tim entos, 163 A commedia dell'arte, 168 Comédia hum ana, 168 Roteiros e táticas de interpretação, 173 Os b ufões, 17 8 O mistério, o grote sco, o f antástico, 17 8 O outro corp o, 186 A tragédia, 19 1 O coro e o herói, 19 1 O equilíbrio do praticável, 199 A necessidade dos textos, 2 05 O s cl owns, 213 B uscar o próprio clown, 213 Os bu rlesco, os absu rdos, as variedades côm icas, 2 2 2
3. O
LABO R ATÓ R IO D E ESTUDO DO M O V IMEN TO
IV. ABERTURAS,
(LEM ), 227
23 1
Créditos fotográficos, 239
7
Nota da edição brasileira Iacqu es Leco q chego u ao universo do teatro oriundo do es p o rte. Preocupado com a preparaçã o d o corpo d o at or para a expressão, criou, a p artir de pesquisas e d e p rop ostas de exe rcícios por ele elaborados, um dos mais fecundos método s d e compreensão d a arte teatral e da formação d os profissio n a is que a exercem. As vivências que esse método p roporciona, assim co m o os cam in h os que Lecoq trilhou para estabelecê-lo são rel atadas em O corpo poético: uma pedagogia da criação teatra l, livr o que resultou de uma série de entrevistas co ncedidas a JeanGabriel Carasso e Iean-Claude Lallias. O Senac São Paulo e o Sesc Sã o Paulo se unem nesta p u blicação não só por reconhecerem seu valor art ísti co e pedagógico, mas também por julgarem seu conteúdo um rico depoimento sobre a traj etória de um dos mais sensíveis e revo lucionários homens de teatro do século xx.
9
"Quando um chora ooutro ri" Ricardo Napoleão'
A frase que intitula este prefácio é um presente que recebi de meu professor, Iacques Lecoq, após dois anos de convivência contínua com ele na Escola Internacional de Teatro Iacques Lecoq, localizada na rua do Faubourg Saint-Denis, em Paris. Essa frase deveria orientar minha commande, apresentação final de curso, em que eu faria o que quisesse, como quisesse, num espaço de tempo definido - evidentemente me apropriando de uma das linhas estudadas na Escola: máscaras, bufão, comedia dell' arte, melodrama, tragédia ou clown. Receber sua própria frase correspondia a um momento de liberdade, coerente com a proposta pedagógica da Esco-
Ricardo Napoleão é ator e diretor de teatro. Formou-se em 1994 na École Internationale de Théâtre Iacques Lecoq e, desde então, dirige e atua em espetáculos no Brasil e exterior, além de ministrar palestras sob re a criatividade aliada à consciência corporal.
11
la: ampla, b em estrut urad a e, ao m esmo tempo , livre e ra-
mente uma p re sença concret a que possa se expandir no esp aço.
dicalment e p rovocadora. A cada aluno era atribuída uma,
Onde o ato r se m ov iment e para cr iar u m a p oesia p ró p ri a, in-
escolhida p o r Lecoq. Ela servia como uma provocação para a
tensa e p u lsante . A p o ssib ilidad e de co mpletar um espaço vazio
p rimeira criação pessoal, que seria apresentada publicamente,
com a força transformadora que é o trabalh o de Peter Broo k
como resultado de u m percurso .
está n a pedagogia desen volvid a p o r [acques Leco q. Trata-se
A com mande era o fim da linha, mas o início de um outro
d a expansão co rpórea, d e d ar vo z ao co rpo calado . Trata-se d e
caminho: o público entraria na sala onde fazíamos experi-
uma compreensão m aio r d a p oética apr isionada em n o ssos
m entos, a q ual para n ós funcionara, até ali, como um ver-
corpos, d e um novo corpo poéti co - recriado, sem pre.
d adeiro ringue d e boxe - pois, segundo Lecoq, a noção de
Terminado o cur so, ao me despedir de Mon sieur Lecoq
espaço, d e ri tmo e de urgência tem muito a ver com o boxe; o
n o escrit ó ri o que el e m ant in h a na Escola, ent reguei-l he um
público te m urgência, e n ó s, par a caminharmo s co m ele, não
cristal q u e gu ardav a comigo havia muito tempo. Trazido das
d eve m os ign orar es sa necessid ade.
terras onde n asci, d as Minas Gerais... Era um sí mbolo q u e eu
Minha apresentação final deu -se em 1994. Lecoq havia
entrezava em azradecirnen to. Não consig o descrever a ernoI:> I:>
fornecido, co m o recurs o para desenvolver esse trabalho , uma
ção que senti ao p resen tear-lh e aq u ela pedra b r uta - mais
p alhet a co m cores variadas: desde as técnicas corporais até
uma pedr a brut a d o Br asil. Era u m cristal q u e trazia co migo
suas análises minuciosas de movimento, passando pelo apro-
desde meu primeiro t rabalh o n a Europa. Ele o olhou e, sim-
fundamento da base de seu ensino: a máscara neutra. Havia
p les, descreveu o que via: " Um cristal atravessa o outro".
~
explorado ao máximo nossa capacidade de reinterpretar tudo
Pouco depo is da conclusão d o curs o, criei, co m François
o que se m ovimenta a partir de um olhar aprimorado, fosse o
e Pascale, filhos de [acq u es Lecoq, um grupo de pesquisas -
d o bufão, do palhaço ou o da tragédia grega. As técnicas esta-
o Réseau International de Théâtre Antena - , cujos trabalhos
vam a nosso dispor, gravadas principalmente no corpo, pron-
culmin aram com a m ontagem da p eça ZAP ZAP ZAP, p ara
tas para eclodir. Cabia a nós escolher como e quando usá-las.
quatro clowns de países distintos. Para iss o, contamos com
Monsieur Lecoq ficava na plateia, junto do público. Ele nos
o apoio de Violette Lecoq, irmã mais velha de Iacques Lecoq,
entregava o palco. Sabia da importância da autonomia.
que n os ofereceu um palco, construído improvisadamente na
Muitas vezes seu amigo Peter Brook vinha assistir a essas
granja onde residia - em Palluau sur Indre, na região central
criações. Iacques Lecoq e Peter Brook trocavam im p ressõ es so rações, que retratavam o momento presente, fazendo refletir a
da Franca , - ' que , durante seis meses, funcionaria como nossa sede. Ao pé da lareira, ao final de cada ensaio, ouvíamos tante
vida lá fora. A afinidade entre Brook e Lecoq está intimamente
Violette nos contar episódios muito especiais de sua vida, fre -
relacionada à busca por um teatro vivo, onde o corpo seja real-
quentemente ligados à h istória de seu irmão [acques, Diante
bre o que acabavam de ver, acompanhando a evolução de ge-
12
13
do fogo, escu tei narrações incríveis sobre a vida dessa mulher, que ch ego u a ser confinada em campo de concentração p o r ter participado da Resistência francesa. Nessa ép oca, tive o p razer d e ser co nv id ad o p o r Fay Leco q para vir ao Brasil, durante a realização do Fest ival Internacional de Teatro da cidade d e São Paulo, em 1995.
que ain d a estavam no p r im eiro ano da Escola. Havia atores de toda a parte... D esp edi d a. Ap ós a cerimô n ia, Françoi s Lecoq m e convidou p ara ir à Montagny, onde, ao lad o da casa de campo q ue m u ito fre quentamos, Iac ques Lec o q seria enterrado.
Era a p rimeira vez que as máscaras neutras viajavam sem
Naquela ca sa, repleta de m áscaras, h avia uma alegr ia n o ar. .. e uma t risteza que a tudo perpassava. Ali, fiq uei longo
o professor Lecoq, que, devido a seus compromissos, não po-
temp o em co m p anhia de Vi olette Lec oq, de q u em sentia mui-
deria estar no Brasil, naquela que seria sua primeira vez . Pedagogicamente, a máscara neutra tem uma im p o rtância crucial.
ta saudade. Não n os reencontrávamos de sde ZA P ZAP ZA P. Não n os víamos desde as últimas gargalh adas d iante do fogo.
Essa máscara, quando adequadamente utilizada, pode definir o
Pa ra ela não devia ser fácil se despedir do irmão mais moço. Elegante, Vi olette tinha olhos t r istes. Mas era só.
trabalho de um ator; pode libertá-lo de amarras muito comuns no exercício da profissão. Ela possibilita um rec onhecim ento
Um b r in d e foi feito entre os amigos, os palhaços, os at ores,
da realidade corpórea de cad a pessoa. Por meio da an álise de
os filhos , e a esp os a, Fay Lecoq.
movimento, o ator passa a compreender com o co rpo, e não somente co m o intelecto. Essa sabedoria, Iacques Lecoq desen-
Quando o caixão ia ser baixado, um vento repenti n o, ritmado, derrub ou uma corbeille b ranca, que se deito u na cova
vol veu d e maneira ab so luta, e sua sen sibilid ade apontava as
ab er ta n o chão . Então, do meio d o grupo, n aquela tarde quase
direções de q u e necessitávamos. Para mim, alu no recém-fo r-
cinza do interio r da França, alguém de repente atravessou o
mado, vo ltar a meu país e col ab orar n a realização d a prim eira
silêncio: era um at or, que se lembrou de jogar um n ariz ver-
ofi cina da p edagogia Lecoq aq ui ministrada era um p resente.
melho na terra, como uma semente, para que brotasse.
Estava em Londres, a tr ab alh o, no ano de 199 9, q u ando François Leco q avisou -me de que Lec o q h avi a fale cido. "Fico u invisível': pen sei.
tem p o passou e, numa das o casiões em que regressei a Paris, fui rever meu querido amigo François Lecoq. En co n -
Atravessei o Canal da Mancha n o Eurostar e, chegando a Paris pela manhã, ainda pude ver o corp o ser conduzid o para
víamos passado p ar a o segundo ano. Tudo estava ali , in tacto.
dentro da igreja, seu s alunos em silê ncio. ''A conquista d o silên cio, um te m a im p o rtante d o percurso': imaginei.
sente, estava em silêncio.
M as aquele silêncio ti nha u m a d ensid ade especial. N o b al cã o daquela igrej a, via a em oção n os olhos d e alguns alunos
o
trei-o no mesmo escritório onde subíamos para saber se haAquele mesmo escritório, onde receb i minha frase de preN u m armário repleto de pedras, reco n h eci em meio a elas uma de cor verde-escura, esculpida p ela natureza, co m o uma máscara... "Um a máscara engraçada", pensei. Um pouco triste
14
15
se a olhássemos de um cer to ângulo ... Era o p resente que eu havia dado a meu professor alguns anos antes.
No Brasil, p ude agradecer a Ariane Mnouchkine, anos m ais tarde, pelo fato de ela ter me falad o acerca d a Escol a d e
Observando -a bem, via-se com clareza a simplicidade do
Lecoq. Fo i dur ante um est ág io na Cartoucherie, em Paris, que ela discorreu, certa vez, sobre seu mestre. Encantado co m o
cristal que sutilmente a atravessava, em um m ovimento que, como um gesto, podia m ostrar o infinito. "Quando um chora o outro ri", lembrei.
extraordinário t rabalho do T h éâtre d u Soleil, re sol vi p erm a-
E, ao novamente recordar essa frase enquanto escrevo este
necer em Paris e estudar com Iacques Lecoq. Lec oq n os ensina a ver as coi sas de o u t ro ângulo, d á fo r-
prefácio, relembro também que, após nossa apresentação final,
ça ao m ovi m ento de n os sas p alavras, inspir a n ossos gesto s,
Lecoq dissera a mim e a meus colegas que só entenderíamos o que havia se passado ali após cinco anos. Na época, entretanto,
faz -nos ver além d o óbvi o. Quan d o faz a relaçã o entre corp o e espaço, re alidade e ficç ão, o im pulso de criar e o de repet ir, mergulhamo s nos n íveis de jogo prop o stos n o s exercí cios e
eu não queria aguardar n ada. Por que haveria de esperar cinco anos para compreender uma experiência tão viva?
entramos em contato com u m m undo a se r descoberto . Pas-
Hoje, porém, entendo o que aquele comentário calava, a
samos a não temer nosso im agin ário e, ao conviver co m cul-
fim de que viéssemos a descobri r, cada qual a seu tempo, seu
turas distint as, com alun os d o mundo todo, ampliamo s n o ssa
verdadeiro significado: somos absolutamente livres da técnica que Lecoq nos transmitiu. Ela parece se diluir, como a másca-
visão estética. Lecoq n os aproxima d o s verdadeiros sátiros, abre-n os a
ra neutra de Amleto Sartori. Muitos de nós, diretores, autores ou atores, gostamos de
cena. Traduz a comédia e a tragédia d a vida cotidiana, nos
cumprir o ofício, entalhar a madeira, esculpir o espaço, misturar as tintas. Muitos de nós, fotógrafos, cineastas, palhaços
sermos livres. E o mestre tinha razão: descobrir a poesia do corpo requer
ou pais de belas crianças, seguimos pelo mundo à nossa ma-
trabalho, dedicação, vontade e d isp onibilidade, sempre.
neira, com nossas criações distintas, livres. Porém, sabemos que não há movimento sem ponto fixo, e que cada um impri-
dá a tinta e os pincéis. Dá-nos autonomia e caminhos par a
No mais, estar pronto é tudo .
me o seu ritmo à própria obra. Além de conhecer essa liberdade, aprendi com Lecoq que um artesão deve sempre estar atento e pronto para aprender. E de fato aprendo muito com meus alunos. Aprendo sempre, quando entro em cena. Gosto da dúvida. Procuro deixar o ritmo me levar.
16
17
Um ponto fixo em movimento Jean -Gabriel Carasso' / [ean -Claude Lallias"
No campo da pedagogia teatral, Iacques Lecoq é um mestre, no sentido próprio do termo. Pedagogo embasado no mundo e em seus movimentos, no que há de universal no teatro, ele constitui um "ponto fixo" a partir do qual numerosos alunos puderam aprumar-se, descobrir-se, "educar-se", há mais de cinquenta anos, tendo suas diferenças culturais respeitadas, assim como sua história, seu imaginário, suas possibilidades e seus talentos. De Philippe Avron a Ariane Mnouchkine, de Luc Bondy a Steven Berkoff, de Yasmina Reza a Michel Azama e Alain Gautré, de William Kentridge a Geoffrey Rush ou a Christo-
Jean -Gabriel Carasso, antigo aluno d e Iacq ues Lecoq, dirige, em Paris, a Associação Nac ional de Pesquisa e de Ação Teatral (ANRAT ). Iean-Claude Lallias é professor de Letras no Instituto Universitário de Formação de Docentes da Academia de Créteil.
19
phe Marthaler, do Footsbarn Travelling Theatre ao Théâtre de la Iacquerie, d os Mummenschantz ao Nada Théâtre ou ao
to lhe apont a. So m en te u m grupo de alu n os totalmente implicado nessa aventura est á em co n dições de "compreender",
Théâtre de la Complicité... - a exaustiva lista, difícil de ser totalmente relacionada, seria surpreendente -, a diversidade das
parcial ou totalmente, o que se deve fazer, p ois o te atro e se u trabalho de corpo sã o coisas ligadas a uma experiência vivid a,
formas e as aventuras teatrais apoiadas em seu ensinamento
de transmissão oral e de lo ngo p razo, indispensáveis numa
testemunham a dimensão criativa de sua pedagogia, longe dos modelos e d as técnicas esclerosadas.
iniciação. Fixar, p o r escrito, u m p ensamento pedagógico fun dado na práti ca d ireta d o o lh ar e da t roca é arriscar a reduzi r seu sentido, fazendo co m que perca sua d in âm ica. Porém...
Iacques Lecoq ocupa, n o entanto, um lugar p aradoxal. Atores, autores , diretores, cenógrafos, e também arquitetos,
É a uma viagem paciente, n o coraçã o da Escola, que essas
ed ucado res, psicólogos, esc ritores, e mesmo religiosos... sã o
p áginas co nvidam o leito r. M ês a mês, ao lo ngo d e numerosas
inúmeros os que se referem a seu trabalh o, sejam eles diretamente egressos da escola, sejam, indiretamente, alun os de
entrevistas, este livro ganho u fo r m a, essencializou-se em tor-
seus alunos. Outros, ainda, aí se inspiram, sem mesmo saber de onde provêm suas propostas. Formador conhecido n o mundo todo, ele é relativamente pouco ou mal conhecido
elaborada ao lo ngo d as exp er iências . Iacques Lecoq n os conduz, passo a passo, com seu vocabulário im agético e p reci so , aos confins d e sua própria b u sca: a d as fo n te s comp ar ti lh adas
em seu próprio país. Quem conhece sua pedagogia? Quem
por todas as criaçõ es. Com p aciência e generosidad e, ele ex -
n o dos princípio s que es trutu r am uma p edagogia d o teat r o
conhece as raízes de seu ensinamento? Suas evoluções? Seus
plica, aponta o s eventuais obstácu lo s ao longo d o caminh o, os
princípios? Suas dúvidas e suas pesquisas? Quem conhece a trajetória desse homem e as reflexões que ele traz para a pe-
desvios, os impasses... Ele fica à espreita, fascinado p or certo s enigmas da relação entre o h omem e o cosmos, dos quais nas-
dagogia teatral? Quem sabe, de verdade, o que é feito há mais
ce o jogo teatral.
de cinquenta anos, cada dia da semana, quando, às dezenas, os alunos se esforçam para descobrir as leis do movimento,
A todo instante surgem, atrás d o gos to quase cie n tífico pela observação da vid a e d e seus m ovimentos, o olhar d o
do espaço, da interpretação, da forma? Tal desconhecimento
poeta, o júbilo d e uma descoberta, o p razer de formula r uma
provavelmente seja devido à dificuldade de transmitir, em palavras, a experiência viva de uma pedagogia teatral. Apenas o
lei que torne tudo mais claro e m ai s simples. Quantas vezes, no entanto, n ós o surpreendemos p o ntuando uma afi rmação
corpo comprometido com esse trabalho pode verdadeiramente sentir a justeza de um movimento, a precisão de um gesto, a
ou uma tomada de partido com um sorriso; e, depois, com
evidência de um espaço. Apenas o ator que está no jogo pode perceber o desvio, a hesitação, o erro que o pedagogo aten 20
um silêncio que apenas um "não?" interrogativo fazi a vibrar? Como se toda essa certeza devesse, sem cessar, permanecer numa zona de instabilidade, de um m ovimento d o pensa21
m ento!
o p o n to fixo também está
em m ovimento ! A viage m
aqui empreendida, despudorada e não desprovida de humor, leva-nos aos mais altos planos do teatro e a h orizontes sempre mais amplos : a uma sabedoria do corpo poético. Que estas páginas sejam como aluviões férteis para um teatro a ser continuamente semeado.
À minha mulher, Fay Lecoq
22
L
li
,!
I. AVIAGEM PESSOAL
Do esporte ao teatro Cheguei ao teatro p o r m eio d o esp o rte. D esde o s 17 an os, n u m a academia de ginástica, nas rotações en avan t, n as barras parale las e na barra fixa, descobri a geometria d o m ovimento. Quando se faz uma allemande ou um saut de fl anc, o mov imento d o corpo n o espaço é de ordem puramente abstrata. Descobri, aí, sensações extraordinárias que estendia para a vida cotid iana. No metrô, refazia os m ov im ento s dentro de mim mesm o, se n tia justo s, então, todos os t em p os, muito mais d o que na realidade. Eu treinava no estádio Roland Garros e, quando ia fazer o salto em altura, saltava "como se", com a sensação de saltar d ois metros. Adorava co rrer, mas era especialmente sensível à p oesia do esporte - q uando o sol aumenta ou diminui a sombra d os atletas no estádio, quando o ritmo da corrida se instala. Viv i lacques Lecoq.
intensamente essa poesia do esporte. Em 1941, eu era aluno na escola de educação física de Ba gatelle quando encontrei Iean-Marie Conty. Primeiro col oca27
do na Politécnica, jogador internacional de basquete, aviador, co m Sai n t-Éxu péry, nas rotas da Aéropostale, ele er a, en tão, o responsável pela educação físi ca n a França. Amigo de Antonin Artaud e d e Iean -Lo u is Barrault, in teressava- se pelas relações entre esp o rte e teatro. Graças a ele , d escob ri o teatro, n a ép oca d a
t res. A chegada de u m t rem de prisioneiros havia sido reconstituída: nas muralhas, diante de milhares de pessoas reunidas no gramado, cantávamos, dançávamos e fazíamos mímica de can ções d e Charles Trenet. Por ocasião de uma apresentação
O cupação, p or meio d as d em onstrações feit as p o r Iean -Louis Ba rrault em suas p erformances de o ho m em-cavalo. Essa foi
em Grenoble, Jean Dasté veio ver Les compagnons e convidou
um a emoção m ar can te . Iean -M arie Conty est eve n o começo
alguns de nós para n os juntarmos aLes Comédiens de Greno-
de L'Education Par le Ieu Dramati que (EPJB), u m a escola b a-
ble, co m p an h ia que estava se co n stit u ind o. Foi o começo de
seada em métodos n ão co nvencion ais, fu n d ad a p o r Iean-Louis Barrault (com Ro ger Blin, André Clave, Marie-H élen e D asté e
minha atividade teatral profissional.
Claude M artin). Em 194 7, eu ali en sin aria expressão corpo ral.
não mais treinar atletas, mas um rei, uma rainha, personagens
Fiz minhas p r im eiras aulas de teatro n a asso ciação Tra-
de teat ro, prolongamento natural do estudo dos gestos espor-
vail et Culture (TEC). Co m Claude Mart in, alun o de Charles Dullin , faz íamos imp rovisações em mímica e co m Jean Séry, um
I I
regrinação dos escoteiros da França, em Puy-en-Velay, sob a direção de Douking; ou o retorno dos prisioneiros, em Char-
Assumi o treinamento da companhia. Er a preciso, agora,
tivo s. Não me dei conta da transição.
antigo dançar ino d a O pera co nvertido a u m a espécie de d an -
Jean Dasté me fez descobrir a interpretação com máscara e o nó japonês, duas fontes que me marcaram profundamente.
ça n atu r al, im provisávamos d ançando L'hy mne au soleil, ou La danse du f eu . Como p r aticávamos espo r tes (u m dos meus
Em L'Exode, uma "figuração com mímica e máscaras" criada por Marie-Hélêne e Jean Dasté, todos os ato res usavam u m a
companheiros, Gab r iel Cousin , p o eta e auto r dramático, era um b elo co rredor) , utilizávamos sempre como primeira lin-
máscara dita "nobre", que hoje em dia ch am am os de másca-
guagem o s gestos do espo rte: eu nadava; ele corria! Esporte, movimento e teatro já estavam, p ara mim, asso ciad os.
O que murmura o rio Sumida, em que fazíamos mímica dos movimentos d e um barco, enquanto nossas vozes evocava m
Na Lib eração, a p artir d a expenencia d o TEC, criamos,
os sons do rio. Reto m ando em p arte o trabalho de Iacques Copeau, de
entre amigos, o grupo d os "Aurochs" [Au roq u es]. Depois nos reunimos com Luiggi Ciccione - n osso professor de educação física n a escola de Bagatelle - , G abriel Cousin e Jean Séry, para
r a "neutra". Guardo também a lembrança de um n ó japonês,
quem D asté h avi a sid o aluno, nós nos apresentávamos em Grenoble e em toda a região . Descobri ali o espírito d os "Co piaux",' essa vontade de dirigir-se a u m público popular,
fo r mar "Les compagnons de la Sainr-Iean" [O s aprendizes da
I I
São João] . Durante esse exultante período de volta à liberdade, realizamos grandes m anifestações, co mo a primeira p e-
I
28
Exp erimento de Coupeau, de levar tea tro com m eios sim ples a au d iên cias in ter io ran as francesas. [N . E.]
I I
I
J
29
com um tea tro simples e direto. Copeau fo i p ara m im uma refer ência, ass im como Ch arl es Dullin, d a mesma família tea-
d ia em q u e Sartori me propôs que ele mesmo as fizesse . Fe-
tral. Nossa juventude se rec onhecia n o espírito d a escola que ele h avi a fundado em Paris.
liz iniciativa! Fo i ele o primeiro a redescobrir a fabricação de máscaras em couro para a co m m ed ia d ell' ar te, que h avia pra-
máscaras em papelão, reutiliz ando a técnica de Dasté, até o
ti cam en te desaparecido. Em Pádua, eu ia observar os peões Deixei Gre n oble n o fim de 1947, p rimeiro para ensinar na EPJD, d epois fui p ara Coblença, n a Alem an h a, onde fui
vendendo seu gad o na feira de pecuária, depois Sartori me
animador dramático d os Renco n t res fr anco -allemandes de la
de caval o defumada, no m eio daqueles a quem ele chamava
jeneusse [Enco n t ros fr anco -alemães d a juventude] . Durante seis meses, fiz min h as primeiras conferências-demonstração
de "ladrões de cavalos". Senti naqueles bairros o que poderia ser uma autêntica commedia dell'arte, em que os personagens
nas escolas n o rm ais d a Renân ia, utilizando a m áscara "no-
estão permanentemente n a u rg ência de viver. Não era uma co m media d ell'arte livresca, mas a de Ruzzan te , enraizada na
levava nas espeluncas d a periferia da cidade para co m er car n e
bre" para mostrar, tanto para p rofessores quanto p ar a alunos, o movimento e a expressã o dramáticos. G os to de imaginar
vida d o campo, próxima das origens.
que "desnazifiq u ei" um pouco a Alemanha: eu p ropunha u m
Demos, en tão, a esse autor, o lugar que lhe era m erecido,
movimento-teste, d e d esco n tração, que con sistia em levantar os braços e depois soltá- los . . . Constatei que eles faziam esse
representando La Moschetta, uma de suas peças que estava esquecida. Carlo Ludovici, o arlequim da célebre companhia
gesto de m an eir a ligeiramente d iferente d a n ossa. Eu os ensinei, então, a relaxar !
d ialetal de Cesco Baseggio, em Veneza, ensinou-me as atitudes do personagem, que ele próprio havia recebido de um ve lh o arlequim. A partir desses movimentos , criei uma ginástica
Aaventura italiana
de arlequim, q u e posteriormente p u de ensinar. Tod as essas d escob er tas fo r am da maio r importância para a co n ti n u id ad e
Em 1948, a pedido de Gia n fr an co De Bosio e Lieta Papafava, dois alunos italianos que vieram par a fazer o cu rso n a
d o meu trabalho.
escola EPJD em Paris, fu i passar t rês meses na It ália, apenas para ver.. . e acabei ficando ali por oito anos ! Tive a sorte d e, primeir am en te, trabalhar n o teat ro u n iversit ário de Pád ua, com a possibilidade de interligar en sin o e criação. Desco b ri a commedia d ell'arte. Como tivéssemos necessidade de más-
Em seguida, co nvid ad o por Giorgio Strehler e Paolo Gras-
t
I
si, ch egu ei n o Piccolo Teatr o, de Milão, para juntamente com eles cri ar a esco la d o Piccolo. A criação d e uma escola dentro d e u m te at ro provo ca, logo de in ício, uma gr ande pergun ta: como faz er para que ela n ão seja a escola d e apenas um t eat ro
ca r as, De Bos io me apresentou ao escu lto r Amleto Sarto ri,
m as a escol a d e t odos os te at ros? A esc ola d e u m teatro é sem-
que n os abriu seu atelier. Eu mesmo modelava as primeiras
p re ambígu a, o encenado r q u er formar alun o s à sua im agem
30 31
e ficar co m os melho res. N ão sou partidário de uma tal pos-
Com Parenti, fundamo s, em seguida, a Companhia Paren-
tura, pois se corre o risco de se cristalizar num estilo único.
ti-Lecoq , que tinha p or objetivo encenar autores n ovos . Am-
Felizmente, no Piccolo, não havia pequeno s papéis a serem
bição difícil: todo o dinheiro que havíamos ganh ad o co m os
distribuídos entre os alunos, pois bons atores já os representa-
satíricos teatros de re vista p erdemos m ontand o As cadeiras
vam havia mais de dez anos! Durante esse período, apresentei
e A cantora careca, d e Eugen e Io n esco (em 1951-1 952 ), e Le
Sartori a Strehler. Foi assim que ele começou a fazer máscaras
d éluge, d e Ug o Betti .
de couro para o Piccolo Teatro.
Nesse mesmo período, dirigi M im e m usic n Q 2, de Lu cia -
Quando me pediram para criar os movimentos do coro
n o Berio, cuja primeir a co re ogr afia foi min h a. Dep oi s, Anna
de Electra, de S ófocles, eu nem imaginava que, no Piccolo, fa-
Magnani me telefono u p ara cri ar certas sequ ências d o teatro
ria uma descoberta ainda maior: a tragédia grega e o coro.
de revista Qui est en sc ênei, que marcava seu retorno ao teatro,
Dei continuidade a essa pesquisa em Siracusa, criando vários
depois d e uma longa carreir a no cinema. Fo i uma experiência
outros coros: Íon, Hécuba, Os sete contra Tebas, Hércules. Na
inesquecível, a de ajudar essa grande dama do teatro a "reen -
época, os coros eram interpretados por dançarinos e dançari-
contrar seu público". Enfim , co m o ato r, participei d as filma-
nas em estilo expressionista. Para renovar os movimentos do
gens da p ri meira transmissã o de teatro de variedades p ara a
coro antigo, cuja forma estava cristalizada, precisei inventar
televisão italiana e m onte i numerosas pantomimas cômicas.
n ovos gestos. Não imaginava, na época, quanto esse trabalho
Aliás, fiz um p ouco de cinema à Warn er. Extraordinári a lem-
também influenciaria minha pedagogia.
brança, a das minhas corridas de treinamento, pela manhã, n a Cinecittà, passando de um cenário a outro.
Meu período italiano seguiu em meio a diversas aventuras. Franco Parenti, ator do Piccolo, chamou Dario Fo (que saía da escola de Belas-Artes de Milão), Giustino Durano
Rever Paris!
(um ator-cantor), Fiorenzo Carpi (o músico do Piccolo Tea -
Com duas descobertas fundamentais feitas n a It ália - de
tro) e a mim, para elaborarmos um teatro de revista político
um lado, o reencontro com a comédia italiana, de outro, a
e polêmico sobre a atualidade italiana: Le doigt dans l'oeil e,
tragédia grega e seu coro - volt ei a Paris em 195 6. Em minha
posteriormente, na temporada seguinte Les saints à lier. Essa
despedida, Arnleto Sartori o fereceu - m e todas as máscaras de
aventura renovou radicalmente o espírito do teatro de revista
couro da commedia dell'arte, o q ue me permitiu torná- las co-
italiano, não só pelo novo comprometimento que ela consti-
nhecidas na França e, depois, n o mundo todo. Rapidamente
tuía, mas também pelas formas de linguagem corporal utili-
abri a Escola, com um pequeno grupo de alunos, ao mesmo
zadas. Esses espetáculos obtiveram grande sucesso.
tempo que dava prosseguimento a um trabalho de criação.
32
33
M inha primeira experiência francesa fo i a introdução da interpretação com máscaras, em La famille Arlequin, um espetáculo de Iacques Fabbri e Claude Santelli, com uma equipe em que atuavam atores jovens pouco conhecidos: Raymond Devos, Rosy Varte, Claude Pi éplu, André Gilles, Charles Charraso Também Philippe Tiry participava da aventura. Em seguida, foi o Th éâtre National Populaire, no qual fiquei p or t rês anos, ten do sido convidado p or Jean Vilar. Ele me chamou para criar as cenas de movimento d os espetáculos. Quando firmamo s a parceria, Vilar me disse: "Faça de tudo,
sabe co isas q u e a cabeça ain d a n ão sabe! Essa p esqu isa me fascina e, ai nda h oje, desej o co mparti lhá-la.
Uma escola emmovimento A Escola foi fundada n o d ia 5 d e dezembro de 195 6, n o número 94 da rue d 'Amsterdam, em Pa ris. Depois, um mês mais tarde, transferida para os estúdios de dança n o n úmero 83 da rue du Bac, o n d e ficou p or onze anos . O curso começou com máscara neutra e com expressão co rporal, commedia
menos m ímica! ". Rapidamente ele compreendeu que, quand o eu falava de m ímica,' tratava-se de algo completamente
dell'arte, coro e tragédia grega, p antomima branca, figuração em mímica, máscaras expressivas, música e, como base téc-
distinto da "mímica" convencional que existia na época. Aliás,
nica, a acrobacia dramática e a m ímica de ação. Muito rapi-
dirigi a peça de Gabriel Cousin L'aboyeuse et l'automate, no Théâtre Quotidien, de Marselha (TQ M ). Durante esse mesmo período, Marcel Bluwal fez com que eu entrasse na tele-
damente, acrescentei um trabalho sobre improvisaçãO falada
visã o francesa para participar de programas para jovens. Fui o autor de 26 comédias mudas, uma série intitulada: La belle
equipe, realizada por Ange Casta, com os atores da Escola. A Escola se desenvolvia rapidamente e precisei fazer uma escolha. Decidi, então, dedicar-me totalmente à pedagogia, não para abrir um simples curso, mas para fundar uma escola verdadeiramente grande. Na verdade, sempre quis e gostei de ensinar, mas ensinar, sobretudo, para conhecer. É ensinando que p o sso co n tin u ar minha busca, no sentido de conhecer o movimento. É ensinando que co m p reen d o melhor como tudo se movimenta. É ensinando que descobri que o corpo
e escrita. Íamos do silêncio à palavra por meio d o que viria constituir o grande tema da Escola: A Viagem . Ao fim de três anos, em 1959, formei uma companhia com alguns alunos: Liliane de Kermadec, Hélene Chatelain, Nicole de Surmont, Philippe Avron, Claude Evrard, Isaac Alvarez, Yves Kerboul, Elie Presmann, Edouardo Manet. Com eles, realizei um espetáculo baseado em mímica, intitulado Car-
nets de voyage, que mostrava as diferentes direções da mímica, aberta ao teatro e à dança, assim como eu os concebia. Esse espetáculo comportava coro com máscaras, música concreta, figuração em mímica, pantomima branca, número cômico, melodrama coletivo e commedia dell'arte. Em 1962, apareceram pela primeira vez os clowns. Explorando o domínio do derrisório e do cômico, descobri "a
Para di stinguir a mímica, como compreendida por Lecoq, da "mímica" convencionaI, esta última é colocada entre aspas. [N . T.]
busca do seu próprio clown", que daria ao at or uma grande 35
34
liberdade para si mesmo. Essa explo ração provocou a abertura de um vasto território dramático e encontrou seu lugar, em seguida, em numerosos espetáculos. N o mesmo período, co mecei a trabalhar com as máscaras do carnaval de Bali (máscaras larvárias) , antes da maquiagem para a festa, e também investiguei a abordagem dos textos dramáticos. Tendo se ampliado, em 1968, a Escola - que funcionava num espaço muito apertado, nuns estúdios de dança - deslocou-se para uma antiga fábrica de balões, na rue de la Quintine. Nesse novo espaço, ela ganhou sua verdadeira dimensão. Os clowns desenvolveram-se em grandes grupos. Pela primeira vez, fazíamos encomendas aos alunos do primeiro ano: nós os mandávamos para fazer pesquisas em diferentes ambientes , alimentando, ass im, os espetáculos que apresentavam nas sessões noturnas. Os eventos de maio de 1968 confirmaram o ensino da Escola e o desejo dos alunos de nela trabalhar. Fomos certamente uma das raras escolas que funcionaram durante esse período. A juventude explodia, enquanto nós explodíamos os gestos e os textos, em busca de uma linguagem que lhes devolvesse o sentido. N o mesmo ano, a pedido de Na Escola, rue du Faubourg-Saint-De nis, 57, Paris.
Iacq u es Bosson, arquiteto e professor muito criativo, torneime professor da Escola Nacional de Belas-Artes (Université de Paris 6), em Paris. Comecei minhas pesquisas sobre os espaços construídos e a adaptação da pedagogia do movimento na formação de arquitetos. Essa experiência durou vinte anos e muito contribuiu para a minha pedagogia do teatro, especialmente no que d iz resp eito ao espaço do jogo. Esse trabalho levaria à criação de um departamento de cenografia no seio da Escola: o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM) . 37
I"
Encontrar seu lugar
cimento do cabaré e do teatro de revista. Os bufões fize ram com que outros territórios surgissem: o do mistério , o do
De 1972 a 1976, fomos de um lugar para outro, do
fantástico, o do grotesco. Em seguida, tudo começou a se
Thé âtre de la Ville ao Centro Americano (um vasto espa-
misturar, gerando uma grande química dramática: o melo-
ço sem aquecimento, onde dávamos aulas enrolados em
drama e o coro (o melocoro), os clowns e os grotescos, os
cobertores!), com um breve retorno à rue de la Quintine.
quadros mímicos e o drama, os bufões e o mistério, a melo-
Naquelas condições particularmente difíceis, vi abrirem-se
mímica ...
diante de mim novos territórios dramáticos, que iam am pliar o campo da minha pedagogia e conduzir a novas cria-
Nossa viagem pedagógica horizontal pelas vastidões geo-
ções: o melodrama e os bufões, os quadros mímicos, os
dramáticas desdobrou-se progressivamente numa segunda
mímicos-contadores. A pantomima das imagens substituía
viagem, verticalizando-se: trabalhando ao mesmo tempo a
a das palavras. O melodrama lutava contra seu clichê gran-
elevação dos níveis de interpretação e a exploração das pro-
diloquente e revelava grandes sentimentos escondidos. Os
fundezas poéticas. A dinâmica das palavras, das cores, das
bufões apossavam-se de todas as paródias, ao mesmo tempo
paixões e a essencialização abstrata dos fenômenos da vida
que faziam surgir uma nova dimensão sagrada. Os contado-
conduziam à busca de um denominador comum. Mas essa
res descobriam novas linguagens gestuais. Em 1976, enfim,
busca implica conservar uma distância e, se possível, o humor
descobrimos nosso verdadeiro espaço, no número 57 da rue
necessário: nunca se esquecer de que o objetivo da viagem ...
du Paubourg-Saint-Denis: a ex-Central de Boxe, um antigo
é a própria viagem! Ainda hoje, a Escola está em permanente
ginásio onde se praticava a ginástica de Amoros (pioneiro
movimento, a evolução prossegue. As lições são diferentes a
da educação física na França), construído cem anos antes,
cada dia, mas numa ordem de progressão muito precisa. Os
em 1876. Um verdadeiro símbolo! Ali, as multidões e as tri-
alunos podem nos levar a questionar certos aspectos, mas há
bunas, nascidas dos protestos de 1968, ganharam impulso e
algo que permanece, e a proposta pedagógica é muito bem
humanizaram o coro trágico - como o melodrama humani-
construída. Algumas vezes me dizem: "Uma vez construída,
zaria o herói, recolocando -o nas situações do cotidiano. A
não temos liberdade". É exatamente o contrário! Ainda que
commedia dell'arte, ligeiramente esclerosada nas suas for-
possamos dar a impressão, vistos de fora, de que fazemos
mas, sofreu uma reviravolta e retornou. Ela liberou, então,
sempre a mesma coisa, na verdade tudo muda ... mas lenta-
a "comédia humana", da qual havia nascido, mas que havia
mente! Não andamos a grandes passadas, somos mais pare-
pouco a pouco esquecido. Nos espetáculos, os clowns per-
cidos com o mar: os movimentos das ondas, na superfície,
deram seus narizes, mas os conservaram na pedagogia. O
estão mais visíveis do que os que estão por baixo, mas todos
cômico estendeu-se ao burlesco e ao absurdo, com o renas -
esses movimentos vêm do fundo. Na Escola, há sempre essa
38
39
ideia "su bm ar in a". Mesmo se, algumas vezes, p o m os a cabeça para fora, rapidamente mergulhamos de volta, entre uma e outra onda. A Escola comemoro u , em dezembro de 1996, seu aniversário de 40 anos.
A viagem da Escola A pedagogia da Escola desenvo lve-se em d o is an os , ao longo dos quais um duplo caminho é percorrido: de um lado, a pista do interpretar (da improvisação e de suas regras); de outro, a técnica dos movimentos e sua análise. Essas duas pistas sã o co m p lem en tad as pelos autocursos, em que é elaborado o teatro dos próprios alunos. No começo da aprendizagem, pesquisamos a interpretação psicológica silenciosa; depois, a partir de um estado neutro - um estado de calm a e de curiosidade -, co m eça a verdadeira viagem pedagógica na descoberta das dinâmicas da natureza. Os elementos, matérias, animais, cores, luzes, sons e palavras são reco n h ecid os no corpo mímico em ação e servem à interpretação dos personagens. São desenvolvidos diferentes níveis de in terpretação, desde a reinterpretação à máscara expressiva, d a máscara de personagem à máscara abstrata, passando 40
41
p o r fo rmas e estruturas. D ificuldades encontra das n os estilos ajudam a construir a realidade de o u t r a maneira. A parte téc -
mática das ações físicas, transf erência das dinâmicas da nat ureza p ar a as perso n ag en s e situações);
nica, baseada na análise dos m ovimentos, segue as temáticas de improvisação. Exercícios preparam o corpo humano para
»
aumento e d iminuição do gesto, d o equilíb rio à respi-
receber e expressar-se melhor (p rep ar ação co rp o r al e vocal,
»
ração; gam as e n íveis d e interpret ação ;
acrobacia dramática, análise das ações físicas) . Essa primeira parte da viagem é acompanhada abordando-se as linguagens da poesia, da pintura e d a m úsica. A segu n d a parte d a viagem co meça com um estudo so bre a linguagem d os gestos. Ela p repara uma exploração dos diferentes territórios dramático s, em sua extensão, e em sua
I
I t
»
u n iã o do gesto e da vo z; economia de m ovimentos, acidentes e desvios;
»
passagem do real ao imaginário;
»
descobert a d a interpretação e de suas re gras (as re gras n asce m d a p rópria interpretaçã o );
»
m étodos d e rest rições (de esp aço, de tem p o e de nú-
»
mero).
relação e aderência a um f undo poético comum, e co m a grandeza d o s níveis de interpretação. Essa viagem geodramática se dá em três dimensões: extensão, elevação e profundidade. Ernbasa-se em cinco territórios principais, que geram outros, conhecidos na história do teatro e reconhecidos ria v ida atual: o melodrama (os grandes sentimentos), a commed ia d ell' arte (comédia humana), os bufões (do grotesco ao mistério), a tragéd ia (o coro e o h er ói), o clown (o burlesco e o absurdo), aos quais se juntam as variedades cômicas . . . Uma técnica ap licada a esses diferentes territórios faz a carpintaria da interpretação; e o aporte de textos dramáticos enriquece a criação em cad a um d os ter ritó rios. A cada etapa, aplicam-se diferentes t ratam en tos do exercício:
42
Pesquisas, t raduzidas em espetáculos, e u m a prova técn ic a (o encadeamen to de vin te movimentos) encerram o p r im eir o ano. Encom endas aos alunos co ncluem as atividad es d o segundo ano. São realiz ados espetáculos, ligad os aos temas explo rados, ao longo d o segundo ano: sã o criações dos alunos, apresentações públicas organizadas em eventos, três vezes na temp orada. O m ovimento, trazido pelo corpo humano, é n oss o guia permanente n essa viagem q u e vai da vida ao teatro.
Por um jovem teatro de criação
»
método evolutivo, que vai d o mais simples ao mais complexo;
»
método das transferências, que passa de uma té cnica
d o ator esteja presente. O ato de criação é suscitado de modo
corporal a uma expressão dramática (justificativa dra-
permanente, sobretudo por meio da improvisação, primeiro
O objetivo da Escola é a realização de um jovem teatro de criação, que trabalhe linguagens em que a interpretação física
43
ponto de p artida p ara qualquer criaç ão. A Escola visa a u m teat ro de arte, mas a pedagogia do t eat ro é mais vasta que
si mesmo, mais do que para o público. Sempre o bservo se o ato r emana algo, se desenvolve em to rn o d e si um espaço em
o próprio teatro. N a ver dad e, sempre concebi meu trabalho com um duplo objetivo: de um lado, meu interesse está n o
q ue os espectad ores estão prese ntes. Muitos ab sorvem esse es p aço, voltam-no p ara si mesm os, d eixand o o público d e fora,
teatro; de outro, na vi da. Sempre tente i forma r pessoas que
tornando "privativa" a aç ão. Se alguns se sen tem melhor d e-
ficassem bem nos d ois lados. Talvez seja uma utopia, mas gostaria que o aluno estivesse vivo na vida e fosse um artista no
p ois da aula, trata -se de uma aq u isiç ão suplemen tar, m as meu objetivo não é "curar " as p essoas p o r meio d o tea tro . N um
p alco. Além d o mais, não se tr ata apenas d e formar atores,
processo de cri ação, o objeto cri ad o não mais pertence a seu
mas de preparar todo s os artistas de teat ro : autores, diretores, cenógrafo s e atores.
cr iador. O obj etivo é re alizar o ato d e criação: d ar um fruto q u e se desprend e da árvore!
Uma d as o riginalidades d a Escola é forn ecer uma b ase, tão ampla e p ermanente quanto p ossível, sabendo que, em segui-
Em min h a pedag ogia, se mpre privilegiei o m undo de fora,
da, cada u m far á desses elementos o seu próprio caminho. Os
não o de d entro. A busca de si mesmo, das p rópr ias sensações
alunos que seguem n osso percurso adquirem uma inteligên-
íntimas, p o uco interessa a n o sso trabalh o. O "eu" é sem p re de-
cia de interpretação e desenvolvem seu imaginário. Isso lhes permitirá inventar seu próprio teatro ou interpretar textos, se
m ais. É p reciso ver co mo os se res e as coi sas se m o vim en tam e como ele s se refletem em n ós. É preciso p rivilegi ar o horizon -
assim o desejarem, mas de uma maneira nova. A interpretação é o prolongamento de um ato criador.
tal, o vertical, o que existe de maneira intangível , fora d e si. A pessoa se revelará a ela mesma em rel ação a esses apoios n o m u n do exterior. E, se o aluno for diferente, isso será visto nes-
No centro do processo pedagógico, a improvisação é, às vezes, confundida com a expressão. Mas quem se expressa não está, necessariamente, em situação de criação. Claro, o ideal seria que criasse e se expressasse ao mesmo tem -
com o grito da ilusão". Prefiro a distância do jogo entre mim e o p ersonagem, que permite melhor interpreta r. Os at o res in -
po; esse seria o grande equilíbrio. Infelizmente, muitos se
terpretam mal os textos que lhes dizem respeito em demas ia.
expressam, "deliciam-se" com enorme prazer, e se esque-
Emitem um tipo de voz branca, pois assumem para si u m a parte do texto, sem conseguir dá-la ao público. Acred it ar o u
cem de que não podem fruir sozinhos esse gozo: o público também precisa! Muitos professores costumam confundir essas duas noções. A diferen ça entre um ato de expressão e um ato de criação consiste no seguinte: no ato de expressão, interpreta-se para 44
'j
se reflexo. Não busco nas lembranças psicológicas p rofundas uma fonte de criação, em q ue "o grito d a vida se confundiria
identificar-se não é suficiente, é preciso interpretar. Diante de uma improvisação, de um exercício, faço constatações, que não se devem confundir com opiniões. Quando 45
Primeiro ano
Segundo ano
Melodrama
Co mmedia de ll'arte
Poesia Música de
Matérias
Pintura
Ling uagem dos gestos
Clowns
cí
Encomendas
5
estilo Bufões
Tragédia
Esque ma p edagógico. 46
47
o pneu d e u m carro estoura, isso n ão é u ma o pinião, é u ma
é uma esco la do olhar. Qualquer um pode d ar um t ema d e
ve rdade! Eu constato. Opiniões só podem ser enunciadas de-
improvisação, o p r o b lema é saber o que se d irá depois! Não
p ois, a p artir de uma referência ao fato real. A co nsta tação é
se trata d e transmitir um saber automático, m as de te ntar
fei ta pelo professor, circundado de alunos. Quando co nstato
com p reen der junto, de encont r ar entre o aluno e o p rofes-
alguma co isa, há em mim uma ressonância dos aluno s n aqui-
sor u m p ont o m ais alt o , q ue faça co m q ue o profess or diga
lo q ue vo u dizer. Cabe a mim formular a constatação, mas é
a se us alunos co isas q u e n u n ca p oderia ter dito sem eles e,
impo rtante que ela sej a compartilhada por todos. Pouco inte-
n os alu n o s, suscite, p o r meio d a vontad e, da cur iosidade, u m con h ecimen to.
r ess a se, depois de uma improvisação, um profess or de teatro tem vontade de d izer: "gosto disso . . .", "adoro aquilo . . .". Cada um p ode gostar ou não d o que viu, isso é uma o u t ra co isa. A const atação é o olhar que se foca na coisa viva, t ent ando ser o m ai s objetivo possível.
Os p onto s d e v ista são, no en t anto , bem -vin dos: é p reci-
i
so q u e, em seu t rabalh o d ram áti co , os alu n os tenham ideias e opiniões, m as , se não estiverem ancorad as n o real, ess as ideias se rão inúteis. O mesmo fen ômeno existe n a pintura:
A crítica feita a um trabalho não é uma crítica d o bem
C o rot, Cézanne ou Soutine puderam p intar todo o tipo de
o u d o mal, é uma crítica do justo, do longo d emais, do curto
ár vores, t r ansfigurá -las, cap tar uma fa ceta, trabalhar uma cer-
demais, do interessante, do desinteressante. Isso pode parecer pretensioso, mas só nos interessa o que é justo: uma dimensão artística, uma emoção, um ângulo, uma relação de cores. Tudo isso existe em obras que, independentes da dimensão histórica, duram. Isso t o d o s podem senti-lo, e o público sabe
ta lu m inosidad e, mas se não existisse "a Árvore" naquilo que
que é a "Árvore de todas as árvores", a "Máscara de todas as
perfeitamente quando é justo. Se ele não sabe p or quê, nós
m áscaras': o "Equilíbrio de todos os equilíbrios". Talvez essa
devemos sab ê- lo , pois somos, além de tudo ... especialistas.
tendência pessoal constitua um obstáculo, mas é um obstá-
pintar am, nada teria acontecido! Voltamos sempre à observação d as coisas, ao mais próximo possível da natureza e da realidade humana. Acredito muito n as permanências, naquilo
culo necessário. A partir de uma referência reconhecida, que Sempre intervenho em função de uma referência ao mo-
tende à neutralidade, os alunos encontram sua própria posi-
vimento. Por que o interesse está cain d o ? Por que temos a
ção. Logicamente, essa neutralidade absoluta e universal não
impressão de que algo nunca vai terminar? São constatações
existe, é apenas uma tentação. Ê por isso que o erro é interes-
simples, a serviço de uma organização viva; aliás, toda orga-
sante. O absoluto não pode viver sem o erro. A diferença entre
nização viva provém do movimento, como uma subida, uma
o polo geográfico e o polo magnético do globo me interessa
descida, um ritmo. Podemos reencontrar essa organização em
muito. O norte n ãoest á exatamente no norte! Há um ângulo
cada uma d as improvisações. N esse sentido, a Escola também
e, felizmente, esse ângulo existe. O erro não somente é aceito,
48
49
mas é necessário para que a vida continue, exceto se for mui-
interiores, a linguagem é a mesma. D escobrir a poética das
to grave. Um erro grave é catastrófico, mas um pequeno erro
permanências, que faz nascer uma escrita, eis a minha grande
é essencial para se viver melhor. Se não houver erro, cessa o movimento. É a morte!
fascinação. Sempre defendi a ideia de uma pedagogia da mímica aber-
Abusca das permanências Ao lado da improvisação, a segunda grande pista da Escola diz respeito à análise dos movimentos. O movimento não é um percurso, é uma dinâmica, outra coisa que um simples deslocamento de um ponto a outro. O que importa é como o deslocamento é feito. O fundo dinâmico do meu ensino está constituído pelas relações de ritmos, de espaços e de forças. O importante é, a partir do corpo humano em ação, reconhe-
ta. Fazer mímica é - para o ator, para a escrita e para a interpretação - um ato fundamental, o ato primeiro da criação dramática. No centro, ponho a ação da mímica no ato, como se fosse o próprio corpo do teatro: poder interpretar sendo um outro, poder dar a ilusão de qualquer coisa. Infelizmente, a palavra tornou-se capciosa, codificada, esclerosada. Sendo assim, preciso especificar aquilo que entendo por mímica. A "mímica" congelou-se a partir do momento em que se desligou do teatro. Voltou-se para si mesma e apenas um certo virtuosismo pôde lhe dar sentido. O teatro francês acabou por
cer as leis do movimento: equilíbrio, desequilíbrio, oposição, altern ância, compensação, ação, reação. Leis que se encontram não só no corpo do ator, mas também no do público. O es-
sendo um espetáculo em si. Mas o ato da mímica é um grande
pectador sabe perfeitamente se h á equilíbrio ou desequilíbrio
ato, um ato da infância: a criança faz mímica do mundo para
numa cena. Existe um corpo coletivo que sabe se um espetáculo está vivo ou não. O fastio coletivo é um sinal do não funcionamento orgânico de um espetáculo.
reconhecê-lo e preparar-se para vivê-lo. O teatro é um jogo que dá continuidade a esse fato. O termo "mímica", hoje em
rejeitá-la completamente, para além de suas fronteiras, como
As leis do movimento organizam todas as situações tea-
dia, está tão reduzido que é preciso encontrar outros. É por isso que, algumas vezes, utilizo o termo mimismo (tão bem
trais. A escrita teatral é uma estrutura em movimento. Os te -
esclarecido por Marcel Iousse em seu Anthropologíe du geste) ,
mas podem mudar, pois pertencem ao mundo das ideias, mas as estruturas de interpretação permanecem ligad as ao movi-
q u e não se confundirá com mimetismo. O mimetismo é uma
mento e a suas leis imutáveis. Em arquitetura, ao concretar a abóbada, se se exagerar no cimento, tudo desaba. No teatro, às vezes se vai longe demais sem saber se tudo vai vir abai-
representação da forma; o mimismo é a busca da dinâmica interna do sentido. Fazer mímica é faire corps avec, incorporar-se a, para com-
xo . É preciso, então, encontrar dentro de nós essa arquitetu-
preender melhor. Aquele que manipula tijolos durante um dia inteiro, e por vários dias, chega a um momento em que não
ra. Os movimentos exteriores são análogos aos movimentos
sabe mais o que está manipulando. Tal ação se torna automá-
50
51
tica. Se lhe pedir m os para fazer a m ímica da manipulação dos
Eis a razão d e nun ca ter p o sto, no nome da Escola, a palavra
tijolos, ele encontrará a sensação desse objeto, seu peso, seu vo-
mímica isol a d a. N o começo, p us "M ím ica, educação do ator";
lum e. Em pedagogia, esse fenômeno é interessante: fazer mí-
dep o is, " M ímica e tea tro", "Mím ica, movimento, te atro", para,
mica permite redescobrir a coisa com mais frescor. O at o de
en tão , defin ir : Escola In ternacional de Teat ro.
fazer mímica é aqui um conhecimento. Não vamos confundir essa mímica pedagógica com a arte da mímica, que atinge a grandeza da transposição, especialmente no teatro n ô japonês,
temente co nvidados a o bserv ar a si m esmos e oferecer-nos
quando o at or, apenas com o vibrar d o leque, faz mímica de
seu próprio teatro. M esm o sugerindo temas, fazend o p ropo-
sua raiv a.
sições, p rovocando-o s, im pon d o -lhes d ificuldades, só pode-
A grande força da Escola sã o os alunos. Sã o perm anen -
Existe igualmente uma mímica escondida, que se encon-
m os aprofu n dar o trabalho se ele s esti ve rem interes sa d os. No
tra em todas as artes. Todo verd ad eiro artista é um m ímico. Se Picasso p ôde p intar um touro a seu modo, foi por antes
entan to, muitas vez es os al un os sã o co ntrad itórios. É preciso ,
já te r v isto tantos touros, que essencializou - primeiramente, nele mesmo - o Touro, para seu gesto poder surgir depois. Fez mímica! A mímica feita por pintores, escultores é muito boa, fa z parte d o mesmo fenômeno. Uma mímica imersa, que faz n ascer criações tão diversas, em todas as artes. Eis por que
ao mesmo tempo, o uvi-los e n ão escutá-los demais. É tam bém n ecessá r io opo r-se, brigar, p ara levá-los a um ve rdadeiro espaço p oético. Algu mas vezes, ess a d imensão é difícil de atin gir. À sua falta de imaginação, é p reciso responder com o fantástico, com a beleza, com a loucura d a beleza.
p u d e passar do ensino do teatro ao da arquitetura, inventanOs p rofessores também participam da evolução d a Escola.
do os "a rquitetos-mímicos". Eles fa zem mímica dos espaços exis tentes, para conhecê-los; e, depois, dos espaços a serem
Todos o s professores que me acompanham sã o an tigos alu-
construídos, antes mesmo de realizá-los, para que essas reali-
n os , e, assim, temos uma linguagem em comum e as mesmas
zações sejam vivas.
referências, cada qual com sua personalidade. A busca curiosa
Para mim, a mímica é parte integrante do teatro, e não
e a p rocura do conhecimento são algo comum a todos nós.
uma arte separada. A mímica de que gosto é a do iden tifi-
Entre os professores que trouxeram sua colaboração à Esco-
car-se às coisas, para dar-lhes vida, mesmo quando a palavra está presente. Os italian os conhecem isso muito bem. Passei
la, Antoine Vitez tem um lugar especial: é o único que não
a entendê-los melhor ven d o Marcello Moretti em Arlequim
passos como professor de teatro. Eu lhe havia confiado um
servidor de dois amos, ou ainda Vittorio Gassman o u Dario Fo . Fui inspirado por essa comédia típica - em mímica, mas também falada, à italiana - e, em seguida, adaptei-a p ar a o ensino.
trabalho sobre a abordagem de textos, que distinguimos de
52
foi meu aluno. Na Escola, de 1967 a 1969, deu seus primeiros
interpretação. Mais tarde, no Conservatório Nacional de Arte Dramática, ele conservou essa concepção fundamental. 53
Quarenta anos após sua abertura, a Escola permanece para mim um lugar de busca permanente. Sempre se aprofundando, dia a dia ela se torna cada vez mais interessante. A novidade não é, em si, indispensável. Ir ao fundo de alguma coisa permite descobrir que ela contém tudo. Você passa sua vida numa gota d'água e vê o mundo!
11. Omundo e seus movimentos
54
Uma página embranco Vindos de diferentes países, os alunos são admitidos, para u m trimestre de experiência, no primeir o ano. Têm, em média, entre 24 e 25 anos e já trazem uma vivência teatral. Geralmente, os estrangeiros concluíram uma escola de teatro em seus próprios países; os outros já passaram por diferentes estágios ou workshops. É preciso, então, começar eliminando as formas parasitárias, que não lhes pertencem, retirar tudo Puxar .. . empurrar.
aquilo que possa impedi-los de encontrar a vida em sua forma mais próxima daquilo que ela é. Temos de retirar um pouco daquilo que sabem, não para simplesmente eliminar o que sabem, mas para criar uma página em branco, disponíve l para receber os acontecimentos externos. Despertar neles a grande curiosidade, indispensável à qualidade da interpretação - eis o objetivo d o primeiro ano. Ao lo n go deste primeiro ano de descoberta, de conhecimento, plantamos as raízes da interpretação e da criação, 57
principalmente a p artir da improvisação e da análise d os movimentos da vida. Uma lig ação constante u ne esses dois aspectos. Trata-se de trazer para fora , por meio da improvisação, o que está dentro; a técnica objetiva d o m ovimento , p or ou t ro lado, permite-nos concluir o processo inverso, de fora para dentro . No terreno da improvisação, sucedem-se algumas grandes etapas de trabalho, desenhando o percurso pedagógico do primeiro ano. Paralelamente, é abordada a análise dos movimentos, num percurso também estruturado e progressivo. Esse trabalho é acompanhado de uma preparação corporal e vocal, de aulas de acrobacia dramática, de malabarismo e de lu tas.
o ano todo, oferecemos aos alunos a possibilidade de uma pesquisa de criação pessoal, a partir dos autocursos. Nesse trabalho sem professor, os alunos recebem, cada semana,' um tema que devem tratar à sua maneira. É seu próprio teatro. Esse espaço de liberdade é essencial, por permitir nunca mais esquecer o objetivo principal da Escola: a criação. Ao mesmo tempo, facilita t am b ém a aplicação de tudo aquilo que é trabalhado nas aulas, e revela o talento dos alunos, seu senso de interpretação e de escrita dramática.
1. Improvisação
o silêncioantes da palavra REINTERPRETAÇÃO E INTERPRETA ÇÃO
Por meio d a reinterpretação psicológica silenciosa, abordamos a improvisação. A reinterpretação é a maneira mais simples de restituir os fenômenos da vida. Sem nenhuma transposição, sem exagero, o mais fiel possível ao real, à psicologia dos indivíduos, os alunos, sem preocupar-se com o público, fazem reviver uma situação: uma sala de aula, uma feira, um
Os t r ês eixos de trabalho do primeiro ano, tratados em
hospital, o metrô . .. A interpretação vem mais ta r d e, quando
separado nas páginas que seguem, na realidade estão estrei-
o ator, consciente da dimensão teatral, dá um ritmo, uma
t am en t e lig ad o s e imbricados ao longo de todo esse período.
medida, uma duração, u m espaço, uma forma à sua impro-
Improvisação, análise dos movimentos e criação pessoal per-
visação, agora para um público. Nas transposições teatrais
manentemente se cruzam e completam-se, para pôr o aluno
mais audaciosas, a interpretação pode estar muito próxima
em contato, o mais próximo possível, com o mundo e seus
da reinterpretação ou distanciar-se dela intensamente; porém,
movimentos.
jamais deve esquecer o ponto em que está ancorada, ou seja,
58
59
n a reali dad e. Uma gr an d e p arte d a min ha pedagogia consiste em fazer os alunos descobr ir em essa lei .
p ode est abelecer- se na relaç ão co m o outro. É p re ciso fazê-los entender ess e fen ômen o essen cial: re agir é realçar a prop osta que vem do mundo de fo r a. O mundo interio r revela -se
Começamos pelo silêncio, p oi s a palavra ignora, n a maio -
p or reação às provoca çõ es q ue vêm do m u n d o ext erio r. Para
ri a das vezes, as raízes de o nde saiu, e é desejável que, desde o
jogar, inte rpretar, de nada ad ianta ir buscar em si a pró pria
princípio, os alu n os se coloquem no âmbito da ingen uidade, da inocên cia e d a cu r ios idade. Em todas as relações humanas ,
sensibilidade, su as lembranças, o m u n do da sua infância. Paradoxalmente, u m d os tem as mais antigos de impro v i-
aparecem d u as grandes zon as silenciosas: antes e depois d a
sação, que propon ho n o começo d o ano, é O qu arto de crian ça.
palavra. Antes, ain d a não fal amos, encontramo -nos num es tado de pudo r, que permite à palavra nascer d o silêncio, a ser m ais fo rte, p o r tanto, evitan d o o d isc urso, o explicativo. O trabalho sobre a natureza h umana, n essas situações silencios as, permite encont rar o s momentos em que a palavra ainda não existe. O outro silêncio é
O
do depois, quando não h á mais
nada a dizer. Este n os interes sa menos!
Vocês voltam. depois de um longo período, para rever seu quarto de quando eram pequenos. Fizeram umalonga viagem para isso... vocês param diantedaportae a abrem. Como vão abri'la?Como entrarão? Vo' cês redescobrem o quarto: nada mudou, cada objetoestá em seu lugar. Vocês encontram todas as suas coisinhas de quando eram pequenos: os brinquedos, os móveis. a cama. Essas imagens do passado voltam até vocês, até o momento em que o presente reaparece. E aí vocês deixam o quarto.
As primeiras improvisações servem para eu observar a qualidade de interpretação dos alunos: Como interpretam · coisas muito simples? Como se calam? Alguns acham que estão diante de uma restrição que lhes impediria de falar; mas
O quarto d esse tema n ã o é o d a m inh a infância , mas um quarto de criança, onde se interpreta a redescoberta. A d i-
não impeço nada, apenas lhes peço para que silenciem, par a
n âmica da lembrança importa m ais que a lembrança em si. O que acontece ao chegar a um lugar qu e se acredita estar
melhor co m p r een d er o debaixo das palavras. Desse silêncio, só há dois meios de sair: a palavra ou a
descobrindo pela primeira vez? De repente , um estalo: "Já vi isso!". Estamo s em uma imagem presente e, repentinamente,
ação. Em determinado momento, quando o silêncio está pe-
chega uma imagem d o passado. É a relação entre essas duas
sado demais, o tema se libera e a palavra assume o lugar. Po -
imagens que constitui a interpretação. Logicamente, aquele que improvisa faz uma busca na própria memória, m as essa
demos então falar, mas só se for necessário. O outro meio é o da ação: "Faço alguma coisa", No começo, os alunos querem de todas as maneiras agir, provocar situaçõ es gratuitamente . Fazendo isso, ignoram completamente os outros atores e não
lembrança também pode se r imaginária. Eu me lembro de ter dado esse tema por ocasião de um estágio na Alemanha. Uma moça havia interpretado a re des-
jogam / n ão interpretam com . Mas o jogo / a interpretação só
coberta de um anel em sua velha caixinha de joias. Instintiva61
60
me nte, ten to u colocá-lo n um dedo, m as o an el era pequeno
O te m a proposto é o da Reunião psicológica, que situo, d e
demais. Então ela o pôs em seu dedo m ínimo. Essa improvi-
propósito , num contexto "clichê"; bem b u rguês, mas que p o-
sação provocou uma enorme emoção. Mas será que ela havia
deria estar em q u alquer out ro esp aç o, até indefinido.
invent ado esse anel? Ou será que estávamos di ante de uma lembrança real? A improvisação, às vezes , mexe com coisas muito íntimas, mas elas pertencem àquele que interpreta. Nunca peço aos alu n os para encontrar em si uma lembrança verdadeira. Não quero entrar em sua in timidade n em em seus segredos. Esse tema é interpretado individualmente, diante dos outros alunos. Tratando-se de uma interpretaçã o di ante de um pú blico, não determino um tempo fixo para que se realize, mas fico atento à d uração dramática que se instala, para que isso seja interessante e justo. A improvisação é feita em m ímica: assim, renova-se a sensação em relação aos objetos, e é possível imaginar muitos objetos, sem nenhum objeto real para atrapalhar-se.
Você foi convidado para ir à casa deuma senhora muito rica. para participar de um coquetel. por volta das cinco da tarde. numa sexta'feira. Ninguém se conhece. No chão. um grande tapete persa; no teto. um lustre veneziano: na parede. um quadro renascentista. seguramente falso. Do outro lado. uma pequena coluna com um vaso chinês mui, to bonito: é um apartamento no segundo andar. chique. em Paris. no 16éme arrondissement. com uma grande sacada. estilo 1925-1930. de
frente para umaavenida. No fundo. um serviço completo com coquetéis. uísque. sucos de fruta. petiscos... Chegam cinco pessoas. na entrada, uma apósa outra;são introduzidas por um mordomo: passam por uma outra porta. por um corredor e alguém lhes diz: "É aqull". Oprimeiro a entrar nãosabeque é o primeiro: chega e não há níngu ém, Apenas ele. Um segundo chega, depois um terceiro. um quarto, um quinto... Obviamente. a anfitriã jamais virá!
o grande tema-piloto, que domina as primeiras improvisações silenciosas, é A Espera. O principal motor da interpre-
Confrontam-se. então. com uma situação silenciosa. emquenão ousam falar. semelhante à das salas deespera.
tação está nos olhares: olhar e ser olhado. Na vida, esperamos
Esse trabalho faz com que apareçam muitas derivações.
o temp o todo, em toda parte, com pessoas que não conhece-
Por um lado, aspectos "pantomímicos", quando os alunos
mos : no banco, no dentista. Essa espera nunca é abstrata; ela
substituem, por gestos, palavras que não podem dizer; ou
se nutre de diferentes contatos: age -se e reage-se. Tentamos
quando fazem caretas para expressar-se. Por outro lado, mui-
recuperar isso na improvisação e, também, observando a vida
tas vezes, eles veem . . . antes de ver! Antes de ter visto, eles
real. Pois a lembrança não é suficiente para a interpretação. A
indicam que veem: é só um simulacro. Fazem o gesto antes
cada momento, precisamos voltar à percepção do que é vivo:
mesmo de ter sido encontrada a sensação motora. Quando
olhar as pessoas andando na rua, esperar numa fila , observar seus comportamentos.
a primeira pessoa entra, ela não sabe que é a primeira. Há,
62
portanto, esse tempo, extremamente importante, da surpresa, 63
que é o próprio tempo da interpretação do at or. Ele, at or, co-
d o aspecto "cordeirinho" Obviamente , não é o que buscamos,
nhece o fim da peça, não o personagem!
ainda que isso possa significar uma provocação interessante
Nas entradas que se sucedem, surgem também os efei-
para os outros. Caso ti vessem alguma dificuldade para reagir,
tos de mimetismo da duração e da distância. Os primeiros
ao menos aí eles teriam uma chance de reação. Mas a reação
dois atores a entrar impõem um tempo que, imperativamen-
seria então coletiva: "todos contra um". Como o nascimento
te, deve ser quebrado pelo terceiro, caso se queira q ue isso
de um coro, diante d o herói acidentado!
continue vivo. É preciso que se encontre um ritmo, e não um
andamento. O andamento é geométrico, o ritmo é orgânico.
RUMO À s ESTRUTURAS DA INTERPRETAÇÃO
O andamento p ode ser definido, enquanto o ritmo é muito difícil de ser apreendido. O ritmo é a resposta a um elemento
Depois de um primeiro trabalho sobre A Espera , retoma-
vivo. Pode ser uma espera, ou uma ação. Entrar no ritmo sig -
mos o tema a partir de suas "dep u raçõ es". Par a retornar ao
n ifica entrar exatamente no grande motor da vida. O ritmo
tema, ab an d onamos a dimensão anedótica, conservando dele
está n o fundo das coisas, como um mistério. Evidentemente,
apenas o motor: apresentam-se, então, outros temas, outras
não digo isso aos alunos, senão não conseguiriam fazer mais nada. Eles têm de descobri-lo.
imagens, outras situações, outros personagens. Duas pessoas se cruzam, param pelo olhar, e cria-se uma situaçào
Frequentemente, nesse tipo de situação, as pessoas se posi-
dramática silenciosa após o cruzamento. Depois, uma terceira pessoa
cionam numa relação simétrica. Instalam-se a igual distância
passa e observa as duasprimeiras. Em seguida. uma quarta. que olha
umas das outras, alinhadas lado a lado, uma atrás da outra
astrês primeiras.. .
ou em círculo ... estamos, então, na mesma situação do fenômeno das entradas baseadas em andamento. Disposições
Pouco a pouco encontramos, por acumulação, o tema an -
que só podem ser militares ou rituais, que não são interpre-
terior, porém apenas em sua estrutura. Não há mais imagens,
táveis dramaticamente. Qualquer grupo ten d e a inscrever-se em uma geometria da batida, do andamento, que não pode
um suporte preestabelecido, mas simplesmente um motor dramático, que pode ser desmontado, analisado. Dessa es-
ser confundida com a geometria dinâmica. Cada um dos per-
trutura de base, podemos tirar e realçar diferentes subtemas,
sonagens deve estar, ao mesmo tempo, no grupo e, diferen-
que podem ser recompostos sob o tema geral: "Aquele que ... ".
temente, encontrar seu tempo pessoal, seu espaço particular.
Reduzidos a esse motor, os temas psicológicos livram-se de
A situação inversa tam b ém se apresenta: alguém entra e,
seu caráter anedótico e chegam a momentos particulares de
para parecer original custe o que custar, age como um caso clín ico, adotando u m comportamento dos mais extravagan-
interpretação, que permitem olhar com grande precisão um
tes. Estamos, então, do lado oposto ao do mimetismo e ao
acredita que . . . mas não !": aquele que acredita que o esperam,
64
detalhe que, a partir daí, to r n a-se o grande tema. ''Aquele que
65
aquele que acredita q u e o detestam, aquele que acredi ta ser o
Enquanto vocês fazem um trabalho físico. uma ação que empenha o
mais forte, aquele que acredita que sorriem para ele .
corpo em um gesto repetitivo (serrar madeira. pintar uma parede, varrer). vão ouvir seis sons. tendo, cada um. uma importãncia diferente. O
Você está sentado em umcafé. À sua frente. numa outra mesa. alguém lhe faz um sinal discreto com a mão. Você sepergunta se o conhece ou
primeiro. vocês não escutam. (Isso nãoquer dizerque nãohajareação.) Osegundo. vocês escutam, mas não lhedãonenhuma atenção especial.
não. Por educação. responde do mesmo modo. Ooutro. já mais à von-
O terceiro é importante: vocês até esperam para ver se ele se repete.
tade.então vai fazer coisasum pouco mais malucas: com gest os mais
(omo ele não se repete, vocês não vão mais prestar atenção nisso. O
amplos. vaibrincar com um objeto. sorrir. Pouco a pouco. estabelece-se
quarto é muito importantee vocês acham quesabem de onde ele vem.
uma conivência entre vocês dois. um diálogo de gestos ou de expres-
o que os deixa tranquilos. Oquinto não confirma o que vocês estavam
sões faciais. Por fim a pessoa se levanta. vem até você. sorrindo. Você.
esperando. Finalmente. o sexto e último é um avião passando sobre
por sua vez. se levanta para recebê-Ia... mas ela passa perto e vai na
suas cabeças.
direção dealguémqueestava atrás de você!
o
Essa escala , bem estruturada, serve de referência para importante, aqui, é a escala dinâmica ascendente, em
todas as escalas que, em seguida, se rão vistas em nume-
que é preciso trabalhar todas as suas nuances. Elaboran-
rosas situaçõ es teatrais. O exercício não só é par t icular-
do essa situação progressivamente, chega-se à constituição
mente útil para compreender a dinâ m ica de progressão de
de uma verdadeira estrutura que, se a desenvolvermos, nos
um m o vimento mas, também, p ara conhecer, de maneira
aproximaremos das estruturas de interpretação da commedia
técnica, os movimentos que a escala impõe. Como a ação
dell'arte. As situações são levadas ao limite: "Alguém está com
se modifica segundo a importância dos sons? Será que o
medo, recua; arlequim tem medo, esconde-se embaixo do ta-
gesto muda em função da importância que lhe é dada, a
pete, ou em si mesmo!". Sempre tentamos levar as situações
partir daquilo que se ouve? Quais relações existem entre
para além do real, inventar uma interpretação que não seja
ação e reação?
mais reconhecível na vida, para, juntos, constatar que o teatro
Em resposta a essas perguntas, constatamos que a ação
vai mais longe. Ele prolonga a vida, transpondo -a. Descoberta
deve sempre preceder a reação. Quanto maior for o tempo
essencial!
entre a ação e a reação, maior será a intensidade dramática; se o ator sustentar esse nível, maior será a interpretação te atral.
A noção de escala evidencia os diferentes momentos da
A força dramática será proporcional ao tempo de reação. O
progressão de uma situação dramática. Eu a inseri no tema
princípio da escala, que usamos com frequência, é um exce-
Seis sons, que, numa aula coletiva, realizamos em improvisa -
lente meio para descobrir essa lei e para melhorar os níveis de
ção técn ica.
interpretação.
66
67
Nesse trabalho, primeiramente indico aos alunos as diferentes articulações do tema, antes que o desenvolvam; depois, eu mesmo emito os sons num tambor. Eu me torno o diretor do tema, o que me obriga a dar um ritmo à sequência dos diferentes sons. Não posso emitir esses sons em intervalos regulares, a cada cinco segundos. Preciso encontrar um ritmo favorável para a realização da interpretação: se eu esperar tempo demais, ou se for rápido demais, perco o tema. Para essa aula co letiva, o pedagogo torna-se diretor.
o conjunto das primeiras experiências visa a atrasar o surgimento da palavra. As instruções da interpretação silenciosa levam os alunos a des cobrir esta lei fundamental do teatro: é do silêncio que nasce o verbo. Paralelamente, vão descobrir que o movimento só pode nascer da imobilidade. O resto não passa de comentário e gesticulação. "Fique quieto, jogue, e o teatro surgirá!': esse poderia ser o nosso lema. De modo paradoxal, isso faz eco com as estátuas que se encontram na entrada dos templos khmer, em que uma abre a boca , enqu an to a outra a fecha. "No começo, falamos; em seg uida, nos cala m os': elas di zem. Minha p ed agogia reivindica justamente o contrário!
A máscara neutra
A máscara neutra é um objeto particular. É um rosto, dito
neutro, em equilíbrio, que propõe a sensação física da calma. Esse objeto colocado no rosto deve servir para que se sinta o estado de neutralidade que precede a ação, u m estado de re ceptividade ao que nos cerca, sem conflito interior. Trata-se de uma máscara de referência, uma máscara de fundo, uma máscara de apoio para todas as outras máscaras. Sob todas as máscaras, sejam expressivas ou da commedia dell'arte, há uma máscara neutra que reúne todas as outras. Quando o aluno sentir esse estado neutro do início, seu corpo estará disponível, como uma página em branco, na qual poderá inscrever-se a "escrita" do drama. Uma boa máscara neutra é muito difícil de ser feita. Obviamente, isso não tem nada a ver com as máscaras brancas utilizadas nos desfiles ou nas manifestações de rua. Essas são máscaras inanimadas, exatamente o co n t r ár io da neutra. Utilizamos máscaras de couro, fabricadas por Arnleto Sartori, que descendem da máscara nobre, de Jean Dasté. A nobre era um pouco "japonizante", mas tinha, em comum com a neut ra, o fato de ser igualmente uma máscara da calma, sem uma expressão particular, em estado de equilíbrio. Uma máscara neutra, co m o todas as outras máscaras, aliás, não pode aderir ao rosto. Tem de conservar uma cer -
A
NEUTRALIDADE
O trabalho co m a máscara neutra vem depois da interpretação ps icológica silenciosa, m as, de fato, é o começo da viagem. A experiência me mostrou que com essa máscara aconteciam coisas fundamentais, o que as tornou o ponto cen tral da minha pedagogia. 68
t a d istância do rosto, pois é justamente com essa distância qu e o ator pode verdadeiramente jogar. Também é preciso que ela seja ligeiramente maior do que o rosto. A d imensão real de u m rosto, que se encontra, por exemplo, nas máscaras mortuárias, não facilita o jogo nem sua força expressiva. Essa observação é válida para todas as máscaras. 69
A máscara n eutra desenvolve, essencialmente, a presença do ato r no espaço q ue o envolve. Ela o coloca em estado de d escoberta, de aber tur a, d e d ispo n ibilidade para receb er, perm itindo que ele olhe, ouça, sin ta, toque co isas elernerrtares, n o fre scor de uma p rimeira vez. En tra -se n a máscara neutra como em um perso n age m , com a diferença d e que aqui n ão h á p ersonagem, m as um ser gen érico n eu tro. Um p ersonagem tem conflitos, uma h istória, um passado, um contexto, paixões. A m áscara neutra, ao contrário, está em estado de equilíbrio, de economia de m ovimento s. Movimenta-se na m edida just a, n a economia de gest os e d e ações. Tr ab alh a r o movimento a partir d o neutro fo rnece p ontos de apoio es senciais para a interpretação, que virá depois. Como conhece o equilíbrio, o ator expressa muito melh o r os desequilíb rios dos personagens ou dos conflitos. E p ara os q u e, n a vida, estão muito em conflito consigo mesmos , com seus próprios corpos, a máscara neutra auxilia-os a encontrar um p o nto de apoio onde a respiração é livre. Para todos, a máscara neutra torna-se um referencial. Sob uma máscara neutra, o rosto d o ator desaparece , e percebe-se o corpo mais intensamente. Geralmente se fala A m áscara neutra criada por Amleto Sartori.
com alguém olhando-o n o rosto. Com uma máscara neu t ra, o que se vê é o corpo inteiro d o ator. O olhar é a m ás cara, e o rosto, o corpo! Todos os movimentos se revel am, então, de maneira potente. Ao retirar sua máscara, se o ator a utilizou bem, seu rosto está relaxado. Eu p oderia não ter visto o que fez, mas o simples fato de observar seu rosto n o final permite que eu saiba se realmente usou ou não a m áscara. A máscara extraiu dele alguma coisa, desp oj ando- o de um artifício . Está, agora, com um belo rosto, disp onível. 71
Uma vez que ess a disp o nibilidade tenha sido adquirida, a
O tem a é desenvolvido em exercíc io coletivo, com un s sete
máscara pode ser retirada sem receio da gesticulação o u d o
o u oito faze n do, o s o u t r os assist indo, mas cada u m in terpreta
gesto explicativo. Com a máscara neutra se termina sem
seu próprio despertar. Não se trata d e uma improvisaç ão rea-
máscara!
lista: indicando que é a primeira ve z, essencializa-s e o te m a para torná-lo genérico.
A primeira lição é a descoberta do objeto. Começo m os põem no rosto, experimentam diversos gestos. Essa apro -
Essa improvisação leva sempre às mesmas co nstatações. Alguns alunos têm a tendência a m ovimentar, primeiro, as
ximação é importante, pois, às vezes, essa máscara provoca
mãos, os pés, para d escobrir seu próprio corp o - é q uan d o
reações surpreendentes no primeiro contato: alguns têm se n -
um fenômeno extraordinário se apresenta a eles: o Espaço! É
saçã o de sufocar, não a suportam n o rosto; outros, um p o uco
necessário dizer-lhes que não estam os faz endo um exe rcício
mais raros, arrancam a máscara. Sempre que, pela primeira
etnol ógico, que p ouco importa saber quantas falanges tem o homem, que de nada adianta d iscutir com seu próprio co rpo,
trando a máscara. Para poder senti-la, os alunos a tocam,
vez, passam pela máscara neutra, pergunto aos alunos o que sentiram, que digam algo, nem que seja uma palavra apenas. Alg uns não dizem nada, e tudo bem. Outros "descobrem seus corpos': ou constatam que "tudo é mais lento': Todas essas impressões, manifestadas diretamente após a primeira experiência, dispensam qualquer comentário. Elas são justas. Deixo que falem. Não se deve dizer como fazer para interpretar bem sob a máscara neutra. Um técnico poderia dizê-lo, mas um pedagogo não se permite. Dizer aos alunos seria o melhor meio para eles não conseguirem m ais usá-la. Ficariam demasiado preocupados com seu uso correto, quando, antes de tudo, devem vivenciar sensações. O primeiro tema pedagógico é o do Despertar.
72
'!
~I
I
mas que, d e maneira mais simples , estamos descobrindo o Mundo! Outros tentam entrar em contato co m alg uma outra máscara, que esteja n o mesmo ri tmo. Olham-se insistentemente, sem que nenhum dos dois possa responder. N a realidade, uma máscara neutra nunca se comun ica, frente a frente, com outra. O que uma máscara neutra poderia dizer à outra? Nada! Podem apenas encontrar-se juntas, lado a lado, diante de um acontecimento externo que lhes in teressa. Ao longo dessas primeiras abordagens, às vezes circula no grupo uma ideia: a máscara neutra teria uma dimensão mística ou filosófica. Alguns gostariam que ela não fosse nem homem nem mulher. Aí é preciso trazê-los para a observação dos corpos: homem e mulher são bem diferentes. A máscara
Em estadode repouso. deitados no chão e relaxados. peço aos alunos
neutra não é u m a máscara simbólica. A ideia de que todos os
que"despertem pela primeira vez". Uma vez desperta a máscara. o que
indivíduos se assemelham é, ao mesmo tempo, justa e total-
ela pode fazer? (amo ela pode semovimentar?
mente falsa. Universalidade não é uniformidade. Para desmis73
realistas da vida co tidiana, clichês bem melodramáticos, para
de ve r se os se us gestos e seu co rp o p er tencem a todos, se ele consegue tender ao denominado r comu m do gesto, reco nhe-
demonstrar que a neutralidade se encontra também nesses
cível p o r todos: o Adeus de todos os adeuses. Com a másca r a
temas. No cas o, p o r exemplo, o A deus ao navi o.
neutra, cada um sente o que pertence a todo mundo, e é aí que as nuances aparecem com força. Ess as nuances não vêm
ti ficar esse asp ecto, p r op o nho então temas particularmente
Um amigo muito querido embarca num navio para ir muito longe. do
dos personagens, p ois não existem, mas das diferenças d e
outro lado do mundo. e supõe-se que não será nunca mais visto. No
qualquer natureza entre as pessoas que interpretam. Os co r-
momento de sua partida. precipitamo-nos no quebra-mar. na saída do
p os sã o diferentes, mas se assemelham naquilo que os une: o adeus. Ess e fenômeno coletivo anuncia o co ro, que abo rdar e-
porto. para dar-lhe um último aceno de adeus.
Esse tema d a vida cotidiana é descrito com pessoas n o porto,
m os mais tarde.
num cenário todo enevoado, cheio de apitos das embarcações, mas que poderia também ser trabalhado numa plataforma de
A
VIAGEM E LEMENTAL
estação ferroviária, na partida de algum trem, ou em qualquer
O grande tema p iloto da máscara neut ra é a Viage m ele-
outro lugar. O esse ncial não é a carroceria do tema. Queremos é que apareça a estrutura motora do adeus. Observamos então
m ental. Nessa viagem pela natureza, andamos , co rremo s, escalamos, saltamos. Esse tema é interpretado individualmente,
como funciona o adeus em sua dinâmica. Um verdadeiro adeus
sem interferência dos outros atores, mesmo que vários alun o s
não é um "até log o': é um ato de separação.
o façam ao mesmo tempo.
Faço parte de alguém. temos o mesmo corpo. um corpo a dois. e. de
Ao nascer do dia. vocês saem do mar e descobrem. ao longe. uma flo-
repente. uma parte desse corpo escapa. Vou tentar retê-Ia... mas de-
resta. para onde vão se dirigir. Vocês cruzam a areia da praia. e depois
pois.. . nào! Já se foi. estou separado de umapartede mim. mas ainda
entram na floresta. Ali. em meio a árvores e outras plantas que. pro-
conservo algo de inefável. um tipo de tristeza do corpo. uma dor do
gressivamente. vão setornando cada vez mais densas. vocês buscam a
corpo. Enfim.assumo esse adeus!
saída. De repente. uma surpresa: vocês saem da floresta e encontram uma montanha. Vocês "absorvem" a imagem dessa montanha. depois
Essa estrutura motora não está ligada a um contexto par-
se põem a subi-Ia: os primeiros aclives. suaves. até os rochedos. che-
ticular nem a um personagem, e só a máscara neutra permite
gando até a parede vertical. que é preciso escalar grimpando. No topo
tocar a dinâmica p rofunda da situação. O adeus não é uma
da montanha. descortina-se uma vasta paisagem: um rio queatravessa
ideia, é um fenômeno que se pode observar quase que cien-
um vale. mais adiante a planície e. por fim. no fundo. o deserto. Vocês
tificamente. Trabalhar esse tema é um excelente meio de ob-
descem a montanha. atravessam a correnteza do rio. andam na planí-
servar o ator, de sentir sua presença, seu sentido de espaço,
cie. cruzam o deserto e. aofinal,o solsepõe.
74
75
..,,
A natureza aqui proposta é calma, neutra, em equilíbrio. Não é uma natureza para "escoteiros", com um prático manual de utilização, que distanciaria o homem da natureza. A natureza fala diretamente ao neutro. Quando atravesso a floresta, eu sou a floresta. No topo da montanha, tenho a impressão de que meus pés são o vale e de que sou, eu mesmo, a montanha. Uma pré-identificação começa a surgir. A Viagem elemental, tema maior, predispõe ao grande trabalho com as identificações. Trata-se também de uma viagem simbólica. Essa experiência permite levar os alunos à poética do tema: evocamos A divina comédia, de Dante, A tempestade, de Shakespeare, A resistível ascensão de Arturo Ui, de Brecht. A travessia do rio pode ser comparada à passagem da adolescência à fase adulta, com todos os movimentos da natureza refletindo-se nos sentimentos: as correntezas, os turbilhões, os saltos, as quedas, os redemoinhos, as ressurgências, de uma margem à outra. Como faço com outros movimentos, expando ao máximo as possibilidades, para que os alunos possam alimentar a Viagem com outras imagens que não só as de um simples périplo geográfico. Num segundo momento, recomeçamos a improvisação sobre o mesmo tema, mas numa dimensão extrema, sob intempéries.
o mar está furioso, e se é jogado napraia por uma onda. Omar é varrido
Antigamente, a Viagem também atravessava a cidade, antes de chegar ao deserto. Preferi retirar daí a cidade, por tratar-se de um espaço construído, ligado à arquitetura, às formas, para as quais desenvolvemos uma lin gu agem diferente da linguagem da ação natural, as mimagens. Trabalhamos a cidade, portanto, num outro momento, da manhã ao pôr do sol, passando de um estado de calma a um estado de revolução. Essas improvisações em situação-limite levam os alunos a viver situações pelas quais nunca passaram, a fazer movimentos muito difíceis que jamais realizaram em suas vidas, para que o corpo aja no limite dessas possibilidades, na urgência e no imaginário.
IDENTIFICAR-SE COM A NATUREZA
A terceira fase do trabalho com a máscara neutra é constituída pelas identificações. Logicamente, não se trata de identificar-se completamente, o que seria grave, mas de interpretar o identificar-se. Com a máscara, proponho aos alunos que se tornem, primeiro, elementos da natureza: a água, o ar, a terra e o fogo. Para identificar-se com a água, eles interpretam o mar, e também os rios, os lagos, as poças, as gotas. Procuramos nos aproximar das dinâmicas da água, sob todas as formas, das mais suaves às mais violentas.
por uma tempestade. A floresta, progressivamente, vai pegando fogo.
Estou diante do mar, eu o observo. euo respiro. Minha respiração entra
Quando se chega à montanha, há um terremoto, crateras vão se abrin-
em harmonia com o movimento das ondas e. progressivamente. a ima-
do. Depois, despenca-se natorrente, que está muito acima deseu nível
gem se inverte e eumesmo me transformo no mar...
normal. agarrando-se às árvores; e. por fim. chega-se aodeserto, onde, novamente, sopra uma tempestade deareia.
76
77
o ar é principalmente o vento, percebido a partir de todos
e destorce. O vento ameaça e ruge , ma s só assume uma forma quando encontr a a poeira: visível, ele se torna insignificante.. . I
os objetos que põe em movimento: uma folha, uma placa metálica, um pano tremulando. São os ventos contrários, as correntes de ar, tudo aquilo que sopra, que eriça, que turbilhona.
Depois dos elementos naturais, as identificações vão ser
A terra é, ao mesmo tempo, aquela que se pode modelar,
feitas a partir de diferentes matéri as: a madeira, o papel, o
amassar, e também a árvore, que para mim é o elemento mais
papelão, o metal, os líquidos. O objetivo do ator é expandir o
simbólico da terra. Ali, plantada. Para um ator, trabalhar a
campo de suas referências e sentir todas as nuances que exis-
árvore é da maior importância. Ele tem de conseguir ficar ver-
tem de uma matéria à outra e, até mesmo, dentro de uma
dadeiramente plantado no solo, com o corpo em equilíbrio. Uma atriz que precise interpretar A gaivota, de Chekhov, não
matéria. O p astoso, o oleoso, o cremoso, o viscoso . . . possuem
I
dinâmicas diferentes. Desejo que os alunos entrem n o gosto
conseguirá planar, fazer uma deriva aérea, a não ser que co -
das co isas, ex atamente como um gou rmet consegue reconhe-
nheça, antes, o que é estar enraizada.
cer as diferenças sutis entre vários sabores. A aquisição dessa
Enfim, o fogo é o fogo: o mais exigente dos elementos,
sutileza das nuances implica um trabalho de longa duração ,
porque ele só pode ser ele mesmo! Paralelamente a essas identificações com os elementos, às vezes evoco certos autores, começando por Gaston Bachelard,
I
que terá sequência com as cores, as luzes, as palavras, os ri tmos, os espaços, naquilo que chamamos de fundo poético co-
mum. A máscara neutra terá, então, desaparecido.
verdadeiro analista da imaginação da matéria, que, em O ar
e os sonhos, traz desse elemento um olhar profundo. Para os
TRANSPOR
que eventualmente se interessarem por essas reflexões, é im-
As identificações constituem um momento de trabalho, e
portante, no entanto, que essas referências só venham depois
devem reverter para a dimensão dramática. Para isso, utilizo
da experiência vivida com a máscara, e não antes.
a metodologia das transferências, que consiste em apoiar-se na dinâmica da natureza, dos gestos de ação, dos animais, das
Poderíamos dizer que o vento furioso é o símbolo da cólera pura, da cólera sem objetivo, sem pretexto. Os grandes escritores dos temporais [... ] gostam desse aspecto: o temporal sem aviso, a tragédia física sem causa [... ] Ao viver-se intimamente as imagens do furacão, aprendese o que é a vontade furiosa e desmedida. O vento, em seu excesso, é a cólera que está em toda e em nenhuma parte, que nasce e renasce dela mesma, que se contorce 78
matérias, para, daí, servir a finalidades expressivas, com o intuito de interpretar melhor a natureza humana. A meta é atingir um nível de transposição teatral, fora da interpretação realista. Gaston Bachelard, L'air et les songes (Paris: José Cor ti, 1943), pp. 256-257. [Trad u ção liv re para o português.] 79
Duas ab ord agens sã o possívei s n essa metodologia. A primeira co ns iste em h umanizar u m elemento ou um an imal, dar-lhe u m comportamen to, fazer com q ue to me a palavra, co locá-lo em re lação co m out ros . . . Fazer o fogo falar é expressar a angústia ou a raiva . Humanizar o ar é realçar a falta de pontos de apoio, o movimento perpétuo, os r itmos indecisos do vento que se movimenta para lá e para cá , sem nunca p render-se a lugar nenhum. Numa manhã. o mar acorda!
camundongo que há dentro dele, u m outro co m eç ará a q ueimar de raiva o u de amor, etc. N essas id entificações, depois de ter experim entad o o m aio r número possível d e d inâmicas naturais o u animais, o ato r (o u o auto r) está pronto para se rv ir-se dessas exper iências, às vezes d e m odo inco n sciente, p ara alimentar os perso n agens q u e deve interpretar (o u esc rever) , e assim m ostrar alguns de seus traço s profun dos. Ele ad q u ire uma série d e referên cia s, ao mesmo te mpo m uito complexas e precisas, sob re as q uais se apo iará.
No banheiro. o vento sepenteia! A árvore se veste! Alguém raivosobate à porta... é o fogo que chegou! Quatroárvores se encontram num banco. cumprimentam-se. apertam-se as mãos e conversam.
Interpretar uma árvore a ponto de fazê-la falar e agi r como um personagem humano é comprometer-se em uma transposição poética do personagem. Neste caso, é interessante constatar que o texto pronunciado não pode ser realista; ele é necessariamente transposto. Impõe-se uma escrita da árvo re; que utilize, por exemplo, palavras próximas às do teatro do absurdo. O tipo de transferência permite descobrir que, n o teatro, a própria palavra, assim como os gestos do corpo, de vem atingir um certo nível de transposição. A segunda possibilidade de transferência consiste em inverter o fenômeno . Pa rte-se do personagem h umano, que p rogressivamente, em certos momentos da interpretação, deixa transparecer os elementos o u os animais que o constituem profundamente. Vejamos, por exemplo, um homem que, procurando alguma coisa em sua carteira, fará surgir o 80
o
principal re sultad o do trab alho d e identificação são os t raçado s q u e se inscrevem no co rp o d e ca d a u m, os circuitos físicos depos itados n o corp o , nos qu ais circulam paralelamente em oções d r amáticas que, assim, enco n t ram seu ca m inho para se expressar. Ess as ex p eriência s, que vão do silêncio e d a imob ilid ad e ao m ovimento m áxi mo, passan d o p o r n u m er osas d inâmicas inter mediárias , permanecem para sempre gravadas no corpo do ator. E nele vão despertar no m omento da interpretação. Quando, às vezes vários anos depois, o ator tiver u m texto para in terp r eta r, esse texto fará ressoar o co rpo e ele vai encontrar aí uma matéria ri ca e disponível para a situação expressiva. O at or poderá, então, tomar a palavra com conhecimento de causa. Pois, na verdade, a natureza é nossa primeira linguagem . E o co rpo rememora!
Aabordagem pelas artes O
FUNDO POÉTICO COMUM
De início, nosso trabalh o não se apoia num texto, nem em qualquer tipo de teatro referencial, seja oriental, balinês ou 81
outro . Como primeira leitura, temos apenas a vida. É p reciso,
q u e são imóveis e nas quais podemos, no en ta n to, igualmente
en tã o, reconhecer essa vida por meio do corpo mímico, por
reconhecer as dinâmicas. São as cores, as p alavras, as ar q u ite-
meio da reinterpretação, a partir d a qual a imaginação im -
turas. N ão p o d emos ve r n em a for m a n em o m ovi m ento de
pele o aluno a outras dimensões e a outras regiões. A partir
uma cor, porém a emoção q u e ela nos dá pod e n o s colocar em
da reinterpretação psicológica primeira, efetuamos ascen sõ es
m ovimento, em m oção, até mesm o em em oção! Bu scam os ex-
em direção a diferentes n íveis de interpretação, especialmente
pressar essa emoção particular graças às mim agens, por meio
graças às máscaras. Elas permitem, no segundo ano, chegar
d e gestos não reperto riados n o real.
aos grandes teatros, que são a commedia dell'arte e a tragé-
O processo mimodin âmico estabelece os r it mos, os espa-
dia. Essa ascensão progressiva caracteriza o p rimeiro ano d a
ços e as força s d os o bjetos imóveis. Observando a torre Eiffel,
Escola.
cada u m p ode se ntir u m a emoção din âm ica e pôr essa emoção em movimento. Tr ata-se de uma dinâm ica ao mesmo te m p o
Paralelamente, uma segunda viagem ac ontece em profun-
de en raizamento, d e conexão vertical, d e vel ocidade reg re s-
didade. Ela n os leva ao encontro da vida essencializada naqui-
siv a, que não terá n ada a ver co m a tentativa de representa-
lo que costumo chamar de fundo poético comum. Trata-se de um a dimensão abstrata, feita de espaços, de luzes, de cores,
çã o imagética (figuração feita d e mímica ) desse monumento.
de matérias, de sons, que se encontram em cada um de nós.
significa etimol ogicamente: "pô r em movimento". De fato,
Mais d o que uma figur ação, é u ma emoção. O term o emoção
Esses elementos estão depositados em nós, a partir de nossas
to d os o s dias, sem sabê-l o, fazemos m ímica d o mundo que
diversas experiências, de nossas sensações, de tudo aquilo que
nos cerca. Quando se ama, instintivamente, faz-se mím ica, em
vimos, escutamos, tocamos, apreciamos. Tudo isso fica em
si, do outro. Na Escola, trata-se de projetar, para fora de si
nosso co rpo e constitui o fundo comum a partir do qual sur-
mesmo, esse elemento, em vez de m antê-l o dentro, e essa saí-
girão impulsos, desejos de criação. É preciso, então, em meu
da é, primeiramente, um rec onhecimento, antes de tornar-se,
processo pedagógico, atingir esse fundo poético comum, para não ficar na vida tal qual ela é, ou tal qual ela surge. Os alu-
balho d o poeta, seja ele p into r, escritor ou ato r, consiste em
nos poderão, assim, ascender novamente rumo a uma criação
deixar-se alimentar por todas essas experiências.
eventualmente, um ato de conhecimento e de criação. O t ra-
pessoal. Quando vemos o mar em movimento, um elemento ou
As
CORES DO ARCO-ÍRIS
uma matéria, a água, o óleo ... estamos diante de movimentos
Abordamos, p rimeiro, as co res e as luzes. É estranho cons-
objetivos, que podemos identificar, e que, dentro daquele que
tatar que, qualquer que seja o país, a cultura, quando se trata,
observa, trazem sensações semelhantes. Mas existem coisas
por exemplo, das cores, os mesm os movimentos aparecem.
82
83
Para além d as d ifere n ças simbólicas, em todos os lugares do mundo, o fundo p o ético é o m esmo: azu l é o Azul!
O trabalho pedagógico consiste em chamar a atenção para os excessos de movimento, sem jamais indicar o que tem d e ser feito. D evo deixar uma dúvida no ar: cabe aos alunos des-
Para um grupo com poucos alunos, menciono diferentes cores e peço
cobrir aquilo que o professor já sabe! O pedagogo, en fim , tem
para reagirem o mais rápido possível. sem pensar. expressando o mo-
d e questionar-se o tempo to d o, encontrar o fres cor e a in o-
vimento interior que lhes chega. Em seguida. tento todas as cores do
cência do olhar, a fim d e evitar que qualquer clichê se impo-
arco-íris, antes dedeixá-los escolher diferentes cores que se encontram na sala de trabalho, a partir das quais eles propõem movimentos. Os
n h a, p o r m ínimo que seja. Esse trabalho está a serviço de uma aproximação à poesia,
espectadores tentam. então, descobrir quais são as cores queeles nos
à pintura e à música. A partir da análise das co res, os alunos
apresentam.
trab alh am , em seguida, de maneira mais completa, em u m
Existe u m tempo, u m espaço, um ritmo , u m a lu z q u e sã o justas para cada co r. D esc obrimos juntos que, se um movi mento dura tempo demais, se vai longe demais, p erde sua cor. Por exemplo, os alunos sem pre fazem, para o ve rmelho, m o-
quadro, em uma pintura. Suas observações de obras de arte, especialmente nos m useus, é o ponto de partida d e uma tr ad u ção
m im odinâm ica. Ainda aqui, n ão se t rata de refazer a ilus tração do q u adro , n em de explicar como ele é percebido, in ter p retado, mas de co m p artilh ar, diretamente, o espírito d a obra.
vim en tos de explosão, mas, a partir do momento em que essa explosão ocorre, a co r d esa p arece do movimento e se torna
É ap aixonante co nstatar a diferença en t re o t rab alho n as
luz. O vermelho em sua verdad e existe apenas um pouco antes
cores isol adas e o n o s quadros. Numa obra pictórica, as co res
da explosão, n a tensão dinâmica muito forte de sse instante.
en co ntram -se deslocadas d e sua origem, criando uma dinâ mica diferente. O amarelo que se enco ntra em Van Gogh não
Quando os alunos fazem esse tipo de exercício, fico par-
se m ov imenta d o m esmo jeito que o amarelo isol ado; ele se
ticularmente atento à q ualidade dos movimentos que eles
m ovimenta como o violeta. Nas obras de Chagall, a contra-
propõem. Observo se esses m ovimentos surgem de seu s cor-
d ição é forte entre o alto e o b aixo, entre ter r a e céu. Se os
p os , ou se saíram de uma imagem paralela, espécie de ca rtão
alu n o s tentarem representar tal obra, têm de desconfiar d e
pos tal que procuram ilustrar, ou se, ainda, se trata de um mo-
uma apresentação que vá isolar cada elemento : de um lado o
vimento simbólico, representação ex te rior da cor que tentam
aspecto terreno, d e outro, as personagens flutuando n o ar. É
n os descrever. Aí , então, é preciso lim p ar o movimento, eli -
a passagem de um ao outro, a maneira de enraizar-se o u de
m in ar o supérfluo, para levar os alunos, progressivamente, ao
alçar-se, a tensão entre os d ois elementos que constituem o
fundo do co rp o, ao mais próximo possível da co r verdadeira.
essencial d a obra de Chagall e que eles têm de nos restituir.
Inominável!
Estamos aqui no cerne de um verdadeiro propósito artístico.
84
85
Esse tr ab alh o é conduzido coletivamente por u m grupo de
gua utilizada, as palavras n ão têm a m esma aderência ao cor-
alunos que, quando o con segu em , embora se movimentem
p o . Fazemos um longo trabalho a partir das diferentes línguas:
individualm en te, fazem p arte de u m corpo co m u m . Num out ro momen to, os que desejam e q ue têm o sentido d a arquite -
francês, inglês, alemão, italian o, jap o n ês, espanhol, etc . Para o verbo "pegar" (prendre) , por exemplo, os alunos franceses fa-
tura, p ode m chegar até a depurar a obra para, d ela, conservar
zem corp o com a coisa que pegam, fechando os dois braços na
ap en as a est rutu r a. Aí então é possível interpretar estruturas abstratas de diferentes p into res. Em Pollock, o p rocesso é par-
parte superior do corpo. Não se trata de pegar este ou aquele objeto, mas de pegar em geral, de pegar tudo, até a si mesmo!
ticularmente interessante, pois é p reciso observar os quadros
Para esse mesmo verbo, os alemães dizem Ich nehm e, e fazem
pondo-os no ch ão. Mergulha-se em Pollock, por meio de ca -
o gesto de aproximar, juntar! Em inglês, I take, eles arran cam !
madas su cessivas, numa estrutura lam in a d a que n os conduz
Isso mostra, evidentemente, o problema da tradução n o âmbi-
às regiões as mais p ro fu n d as e, ao fim, angustiantes, pois, no
to poético. " Pego minha mãe pelo braço" não pode ser traduzido por "junto minha m ãe pelo braço': nem por "arranco minha
fundo, n ão há ponto s de apoio!
mãe pelo braço". A melhor tradução de um poema me parece lh am os co m as palavras antes d e ch egar aos textos poéticos,
ser, então, a mimodinâmica, a verdadeira colocação d o poema em movimento, que a tradução, apenas por meio de palavr as,
bem co m o, em música, jogamos com as sonoridades antes de
praticamente não consegue atingir nunca.
entrar nas obras musicais.
ED E SUBITO SERA Ogn uno st a solo sul cor de lla terra trafitto da um raggio di sole:
ET SOUDAINEMENT LE SaIR Ch acun est seul sur le coeur de la terre transpercé par un ray on de soleil:
ed à subito sera
et soudainement le soir'
Adotamos u m processo semelhante para a poesia: traba-
o CORPO DAS PALAVRAS As palavras são abordadas pelos verbos, aq ueles que trazem a ação, e pelos su bstantivos, q ue represen tam as coisas n o m ea das. Con siderando a p alavra co m o um organismo vivo, b uscam os o corpo das palavras. Para isso , é preciso esco lh er aquelas que oferecem uma real d in âm ica corpo ral. Os ver bos prest amse a isso m ais facilm en te: pegar, levantar, queb rar, serrar. . . são
A d inâm ica desse p oem a encontra-se no interior de cad a p alavr a: sole é diferente de "soleil" (sol), raggio é mais enérgico d o q u e " rayon" (raio), etc. Cada língua escol h e, naquilo que nomeia, um elemento em particular. Costumamos tra-
ações que alimentam o próprio verbo: "Eu serro" tr az, em si, a din âmica do m ovimento. Em fran cês, "a manteiga" (le beur-
re) já está esp alh ada, enquan to, em inglês (th e bu tter), ela nos chega aglutinada, em form a de tabl ete ! De acordo com a lín86
Salvatore Quasimodo, La terre incomparable, trad . Tr ista n Sauvage & Alain Iouffroy (Paris: Pie rre Seghers, 1959). ["E DE REPENT E É NOITE I C ada u m está só n o coração I d a terra I t rasp assad o p o r um raio de sol : I e de repente é n oite." Salvatore Quasimodo, Poesias, ed . b ilíngu e, trad. Ge raldo H olanda Cavalcanti (Rio d e Jan eiro: Record, 1999), pp. 18-1 9. (N . T.) ] .
87
balhar com palavras que se referem à alimentação , pois elas
Dans une espece de sp here A saisir, à pénétrer,
já pertencem ao corpo, principalmente em francês, na tradição rabelaisiana que prefere "sopa" a "caldo': Com os alunos
A donner corps A je ne sais quels flottements
- inclusive os que não falam francês -, todas essas palavras ganham movimento. E, curiosamente, esses acabam compreendendo e falando muito bem a nossa língua, pois se apoiam na dinâmica da palavra. Existe aí um formidável campo de trabalho para o aprendizado das línguas.
Qui peu à peu deviennent des rnots, Des bouts de phrase, Un rythme s'y met Et tu acquiers un bien"
Das palavras, passamos à poesia. Leio para os alunos alguns poemas e eles escolhem um, com o qual sintam vonta-
Quando fazemos um "m ercad o dos poetas': cada aluno
de de trabalhar. Em pequenos grupos de três ou quatro, vão dar movimento ao poema. O trabalho consiste em encontrar o verdadeiro movimento coletivo, que é outra coisa do que a soma dos movimentos individuais. Proponho poemas de Hen-
traz um p oema de que gosta, apresenta-o em sua língua original e fazemos a mesma coisa: constituem-se grupos para entrar n o texto, não importa a língua em que tenha sido pro-
ri Michaux, de Antonin Artaud, de Francis Ponge, de Eugene
posto. Isso nos permitiu descobrir vários poetas estrangeiros,
Guillevic... cada um trazendo um elemento particular. Fogo,
entre eles os nórdicos, pouco conhecidos na França. Muitos
em Artaud; água, em Paul Valéry, quando ele fala do mar, e
alunos que nunca liam poesia, depois dessa experiência na es-
também em Ponge, quando ele descreve as "gotas d'água que
cola, começam a se interessar. A poesia é, para mim, o maior
escorrem nos vidros num dia de chuva" ... Ou ainda Charles
dos alimentos.
Péguy, em "la Meuse endormeuse et douce à mon enfance" . . . Es sas palavras escorregam na planície com a mesma lentidão do rio. Há aí uma aderência às emoções físicas da paisagem. Apparemment, Tu ne fais pas de gestes. Tu es assis là sans bouger, Tu regardes n'importe quo í, Mais en toi Il y a des mouvements qui tendent
A
MÚSICA COMO PARCEIRA
A abordazern dos sons e da música faz parte do mesmo I:> processo. Trabalhamos a partir de diferentes sons e, depois,
Eugene Guillevic, "Le sorti des rnots" em Art poétique (:'aris.: G.allimardl NRF, 1989 ). ["Apa ren tem en te, I Você não faz gestos. I Voce esta ali sentado, imóvel, / Você olha qualquer coisa, I Mas em você / Há movimentos que tendem I Numa espécie de esfera I A apreender, a penetrar, I A dar corpo I A não sei que flutuações I Que pouco a pouco se tornam p~~avras, I ~ed~ços de frase, I Então surge um ritmo I E você adquire um bem. (Traduçao livre para o português.) ]
88 89
com obras musicais de Bartók, Bach, Satie, Stravinski, Miles Davis . . . Tudo aquilo que não se vê na música nós visualizamos como se fosse matéria, um organismo em movimento. Entramos em seu espaço, nós a agitamos, a puxamos, lutamos com ela. Para reconhecê-la, nós a incorporamos. Peço aos alunos que reconheçam os movimentos internos da música: quando a música se reúne, ao ficar espiral, explodir, cair. .. Isso não significa absolutamente uma interpretação, que é de outro âmbito. Podemos jogar totalmente contra Bartók, ter um ponto de vis ta, uma opinião, um esclarecimento, uma interpretação pessoal diferente, dependendo da personalidade, da época, da cultura, mas, antes de jogar contra, é preciso jogar com. A Lição para Bartók é muito estruturada. Divide-se em vá rios momentos. Na escuta da obra, convém, primeiro, visualizar o que acontece no espaço. Tentamos, em seguida, tocar os sons que se deslocam; depois pesquisamos para ver se os sons nos empurram, nos puxam, ou se nós é que os empurramos ou que os puxamos. Enfim, vamos pouco a pouco entrando em aderência com eles. É só a partir dessa aderência que é possível escolher um ponto de vista, estar a favor, contra, ou
com. Quer dizer, estabelecer uma relação de jogo, pois o objetivo é sempre o de jogar com a música, como faríamos com um personagem, para evitar que ela seja apenas ilustrativa da interpretação ou preencha os vazios, como é muito comum fazer-se em teatro. Essas distin tas abordagens mimodramáticas são essenciais para o enriquecimento da interpretação do ator. Quando o
o olhar suficientemente treinado para discernir, entre diferentes gestos propostos, qual expõe o gesto explicativo, o formal, ou o poético justo. Pouco a pouco, os próprios alunos chegam a ter um olhar sutil sobre as nuances dos gestos. Na realidade, o público deveria ter esse mesmo olhar . . . então descobriria riquezas desconhecidas. Mas o comum é oferecer-lhe tamanha quantidade de banalidades, que isso se torna praticamente impossível. A formação do olhar é tão importante quanto a formação da criatividade. De nada serve oferecer um bom vinho àqueles que não podem apreciá-lo! É o que chamo de cultura: poder realmente apreciar as coisas.
Máscaras e contramáscaras Os
NÍVEIS DE JOGO / INTERPRETAÇÃO
A máscara neutra é uma máscara única, é a Máscara de to das as máscaras. Depois de tê -la experimentado, abordamos toda espécie de máscaras outras, as mais diversas possíveis, que reunimos sob o termo genérico de "máscaras expressivas". Se máscara neutra existe apenas uma, há uma infinidade de máscaras expressivas. Quer fabricadas pelos próprios alunos, quer já existentes, essas máscaras trazem consigo um nível de interpretação, ou melhor, elas o impõem. Interpretar com uma máscara expressiva é alcançar uma dimensão essencial do jogo teatral, envolver o corpo in teiro, sentir a intensidade de uma emoção e de uma expressão que, mais uma vez, vai servir como referência para o ator.
ator lev anta um braço, o público tem de re ceber um ritmo,
A máscara expressiva faz surgir as grandes linhas de um
um som, uma luz, uma cor. A dificuldade pedagógica é a de ter
personagem. Ela estrutura e simplifica a interpretação, pois
90
91
incumbe ao corpo atitudes essenciais. Ela depura sua interpretação, filtra as complexidades do olhar psicológico, impõe
atitudes piloto ao conjunto do corpo. Ainda que seja muito sutil, a interpretação com a máscara expressiva sempre se apoia numa estrutura de base, inexistente na interpretação sem máscara. Eis por que esse trabalho é indispensável à formação do ator. Qualquer que seja sua forma, todo teatro aproveitará muito da experiência do ator que tiver interpretado com a máscara. Nisto, o ensino não funciona diretamente, mas "por tabela': como acontece com certos treinamentos esportivos. Para te rmos um bom arremessador de peso, é preciso fazer com que ele corra; para formarmos um bom judoca, é preciso
ator. Meu o bjetivo é que ch eg uem a criar uma máscara que realmente se mexa. As confecções iniciais apontam vários erros, interessantes para o aprendizado. Frequentemente, no momento da criação das primeiras máscaras, os alunos põem o rosto no gesso ou então fazem uma máscara exatamente com as dimensões de seu próprio rosto. Mas já dissemos que a interpretação com máscara necessita de uma distância, indispensável, entre a máscara e o rosto do ator. É preciso, para isso, que a máscara seja maior (ou menor) do que o rosto. Uma máscara expressiva feita na dimensão exata do rosto do ator ou, pior, que lhe co le no rosto é impraticável. É uma máscara morta!
fazer co m que ele pratique musculação. Tal recurso também se faz necessário no campo do teatro. Toda a Escola é indireta,
De nada adianta contemplar durante horas, sabe-se lá com
nunca nos dirigimos em linha reta aonde queremos que os alunos cheguem. Se alguém me diz: "Gostaria de ser c1own",
É preciso dar-lhe uns trancos. Tentamos, muito rapidamente,
eu o aconselho a fazer máscara neutra, fazer coro. Se ele for c1own, isso ficará claro!
que concentração mística, uma máscara, antes de interpretá-la. colocá-la em diversas situações: "ela está contente': "está tris te': "está enciumada", "ela é esportiva". Provocando a máscara em várias direções, buscamos descobrir se ela responde ou não.
A noção de máscara expressiva abrange a das máscaras larvárias, das máscaras-tipo, enfim das máscaras utilitárias, que,
Só começamos verdadeiramente a conhecer a máscara quando ela resiste ao tranco! Logicamente, uma mesma máscara não
a priori, não são feitas para o teatro. Ao fazermos um "mercado de máscaras", cad a aluno rea-
responde a todas as provocações, e só algumas situações podem revelá-la. O "mercado das máscaras" permite livrar-se do
liza uma máscara que test am os juntos. Nessa primeira fase,
supérfluo no campo de trabalho. Depois disso, trago as más-
peço aos alunos para não colocar as próprias máscaras. É preferível experimentar, antes, as dos outros, manterem-se dis-
caras expressivas, que representam tip os, personagens muito particulares. Os alunos tentam chegar o mais próximo possível desses personagens, entrar na máscara, sem nunca fazer caretas por debaixo, sem imitá-la, exteriormente, sem se olhar num espelho. Entrar numa máscara é sentir o que a faz nascer, encontrar o fundo da máscara, buscar aquilo em que, no
tanciados de sua realização, para ver, de fora, sua máscara em movimento. Algumas máscaras são, às vezes, muito bonitas, mas isso não basta. Uma boa máscara de teatro tem de poder mudar de expressão seguindo os movimentos do corpo do 92
93
,
,
íntimo, ela ressoa. Depois disso será possível interpretá-la, vindo de dentro. À diferença das meias-máscaras da commedia dell'arte. as máscaras expressivas são máscaras inteiras, com as quais o ator não fala. Elas representam tipos frequentemente inspirados na vida cotidiana. Arnleto Sartori inspirava-se nos rostos das pessoas da rua e dos professores da Universidade de Pádua. Inspirava-se também, como quer uma certa tradição, em personagens da vida política. Essas máscaras podem ser um pouco ofensivas, mas não são caricaturas. O que importa é que possam manifestar, a partir do momento em que as interpretamos, uma complexidade de sentimentos. Uma máscara que só represente a expressão congelada do momento, a de um sorriso permanente, por exemplo, não pode ficar muito tempo em cena; só pode fazer uma passagem. Uma boa máscara expressiva tem de poder mudar, ficar triste, alegre, feliz, sem nunca ficar definitivamente congelada na expressão de um instante. Esta é uma das maiores dificuldades para a sua confecção. A máscara expressiva pode ser abordada em dois apoios. Ao se considerar, por exemplo, a máscara chamada do "jesuíta", da qual uma parte do rosto, desigual, é mais forte do que a outra, ela pode ser interpretada, de um lado, sentindo-se "jesuíta", buscando a psicologia do personagem, o que leva a determinado comportamento, a movimentos corporais particulares de onde surge uma certa forma. Do outro lado, podemos nos deixar levar pela própria forma, tal como proposta pela estrutura da máscara. Esta se torna, então, como um veí culo, arrastando todo o corpo no espaço, em movimentos específicos, que dão vida ao personagem. Nosso "jesuíta" nunca ataca de frente: ele, p r im eiro, segue as lin h as oblíquas e as cur94
o mercado das máscaras.
vas propostas pela máscara; em seguida, cede a sentimentos e emoções que acompanham esses movimentos. O personagem nasce, assim, da forma.
ENTRAR NA FORMA
Essa maneira de entrar na forma, encontramo-la mais particularmente nas máscaras larvárias. Descobertas nos anos 1960, no carnaval de Basileia, na Suíça, são grandes máscaras simples que ainda não chegaram a definir-se num verdadeiro rosto humano. Elas têm, apenas, ou um nariz grande, ou uma forma de bola, ou parecem uma ferramenta de impacto ou de corte. Nós as trabalhamos em duas direções. A primeira é em direção a personagens e situações, caricaturados, um pouco à maneira de certos desenhos humorísticos. As máscaras vestem-se com figurinos verdadeiros, chapéus . . . como na vida comum, e exploramos diversas situações realistas, que transpomos para o nível das máscaras. Na outra direção, buscamos a animalidade ou a dimensão
fantástica da máscara. São seres vindos de fora. que foram capturados. cujas reações vamos
I'
testar. Personagens realistas. em aventais brancos. sem máscaras. vão conduzir os testes: fazem asmáscaras andar. cutucam-nas com um bastão. assustam-nas... e observam suas reações.
Essa pesquisa leva à descoberta de uma população indefinida, desconhecida, bizarra. Essa exploração do corpo inacabado, necessariamente diferente, provoca o imaginário. [acques Lecoq com a máscara de "jesuí ta':
Expandimos nossas explorações para as máscaras utilitárias: máscaras de hóquei no gelo, de soldadores, de 96
esq uiado res, etc. Todas essas são máscaras de proteção: para proteger-se d o frio, do fog o, da luz, do vento. Também são máscaras de disfarce, que favo recem uma atmosfera de es pionage m , d e armações clandestinas, a face oculta das coisas. É preciso, no entanto, prestar atenção, pois, mesmo que nu-
merosos objetos possam servir para a confecção de máscaras, nem todas podem ser utilizadas como tal. Uma panela na cabeça, um escorredor de macarrão não passam de "máscaras quebra-galho". Nesse campo de exploração das máscaras, o n d e numerosas abordagens são possíveis, busco sempre a verd a deir a máscara de teatro, aq u ela que traz uma humanidade, impõe uma transposição e possibilita um certo nível de
in terpretação. Ap ós ter conduzido essa primeira expenencia da interpretação com máscara, proponho que se faça exatamente o in verso do que, aparentemente, a máscara sugere. Por exemplo: uma máscara que ofereça ev identemente a expressão d e um " im b ecil" será, primeiro, interpretada como tal. O personagem será de preferência id io ta, tímido, atrapalhado. Em seguida, consideramos o personagem como um sábio, genial, seguro de si, surpreendentemente inteligente. O ator interpreta, então, o que chamamos de contramáscara, fazendo aparecer um segundo personagem por trás d a mesma máscara, trazendo uma profundidade bem mais interessante. Descobrimos, assim, que as pessoas não têm, necessariamente, o rosto daquilo que são e que há um traço marcante para cada personagem. Uma terceira etapa pode ser atingida com certas máscaras: interpretar, num mesmo personagem, a máscara e a contramáscara ao mesmo tempo. 98
!
Má scaras larvári as.
1~
D iferente d a m áscara neu t r a, a m áscara expressiva d á, a partir dos mesmos temas, acesso ao que chamo de derivações
precisos. A d im ensão sim b ólica é u m a dimensão importante
dos personagens. Quando, utilizando uma máscara neutra,
re alizar gestos simbólic os codifica d os sem alimentá-l os da-
um homem e uma mulher se encontram, sua relação é essencial, direta. Não segue nenhum traçado oblíquo ou alterado.
quilo que co mpõe a vida. Algumas das grandes máscaras
O homem e a mulher se veern, avançam um para o outro, em linha reta, nenhum obstáculo vem perturbar-lhes a relação. Co m a m áscara expressiva, o mesmo tema p ode transformarse em:
do teatro, mas vem depois d o n osso trabalho: n ão se p odem
orien tais são as de Bali, embo r a lá sejam interpretadas de m an eir a pantomímica. N ós as interpretamos diferentemente, como certas máscaras africanas que às vezes utilizamos, mas sem buscar-lhes a dimensão simbólica original. Na verdade, as maiores máscaras sã o as do n ô japonês: um movimento
o homem e a mulher se encontram... nocorreio! Ele vem buscar selos.
muito leve da cabeça para b aixo é o suficiente para cerrar as
e elaosvende.
p álp eb r as e mudar, d e fo r a para dentro, o olh ar!
É a mesma situação, os sentimentos são idênticos, mas os
personagens não podem seguir uma linha reta. Surgem, então, todas as derivações dramáticas: eles se veem .. . e vão; an d am de lado; um se aproxima, o outro recusa, etc. Esse tema
Ospersonagens ESTAD OS , PAIXÕES, SENTIMENTOS
poderia, obviamente, ser interpretado sem máscaras. Mas isso
Todo o trabalho cumprido n o primeiro ano tende a u m
não permitiria expandir a interpretação, destacá-la, eliminar
o bjetivo maior: culminar na interpretação do perso nagem.
os detalhes em benefício do grande circuito das atitudes. Não
Como acolheram um elemento, uma cor, um inseto, os alu-
é o tema que importa, mas o modo de interpretar e o nível
nos deverão estar aptos a acolher um personagem, ainda que
de transposição atingido. Com a máscara, os gestos aumen-
esse processo seja mais difícil. Quando abordamos os perso-
tam ou diminuem. O olhar, que tanta importância tem n o jogo ps icológico, é substituído pela cabeça e pelas mãos, q ue,
nagens, meu maior temor é o do voltar-se para o personagem,
a partir de então, adquirem uma importância muito grande.
verdadeira interpretação. Se o personagem e a pessoa forem
quer dizer, quando os alunos falam de si mesmos, sem uma
É por isso que o emprego de objetos reais enriquece muito a
apenas um, a interpretação não existe. Se essa osmose funcio -
interpretação das máscaras expressivas.
na nos d oses d o cinema psicológico, a interpretação teatral deve transportar a imagem até o espectador. Há uma grande
É necessário observar que as máscaras, tais como as vis-
diferença entre atores que expressam sua própria vida e os
lumbro, nada têm a ver com certas máscaras simbólicas da dança-teatro do Oriente, que tem gestos codificados, muito
que realmente interpretam. Para isso, a máscara terá tido uma grande importância. Os alunos terão aprendido a interpre-
100 101
tar outra co isa que n ão eles mesmos, n ão deixando de im-
todas as nuances: "ele é orgulh o so, m as altivo"; "ele é colérico,
plica r-se intensamente n isso. N ão interpretam a si m esm os,
mas gentil". Progressivamente, os ato res trazem suas próprias
in terpretam consigo mesmos! Eis aí to d a a am b igu id ad e do trabalho do ator.
nuances, sua própria co m p lexid ade, e assim seu personagem constrói-se sobre p ontos de apoio sólidos e uma est rutura clara.
Para evitar o fenômeno da osmose e para servir de apoio a
Os alunos chegam na aula com seu personagem, ca racte-
este mais além que d esejamos, servimo-n o s m u ito d e an im ais.
rizados. Alguns já saem de casa nos personagens, a tal pon-
Cada personagem pode ser id en tifica do, em parte, co m u m
to que algumas vezes não os reconhecemos, de tanto que se
ou vá rios animais. Se um perso n agem está baseado na pre-
transformaram fisicamente. Nós os recebemos , então, como a
sunção do peru, será preciso assegurar-se de q u e o p er u esteja
alunos novos: eles acompanham a aula de movimento ou de
efetivamente presente na interp retação do ator. Não h á uma identificação total entre ator e personagem, m as u m a relação
acrobacia, mas em seus personagens. É ao mesmo tempo en-
sempre triangular, n est e caso, o peru, o ator e o p erso n agem!
gr açad o e muito cansativo; é por isso que, então, d ecid im o s, entre nós, por meio de u m sinal, quando parar de interpretar, para relaxar antes de recomeçar. Po is, quer queira quer não,
Começo pedindo a cada alu n o q ue prop o n h a um primeiro personagem, livremente inspirado em alguma observação fei-
o personagem ten de sempre a colar na pessoa. Vale lembrar
ta na rua o u entre as p essoas d e seu convívi o. Basta"divertir-s e
q u e os alu n os imp ro visam seu próprio texto, e que não têm a
tentando se r u m a outra pessoa. Bu scamos, primeiro, defin ir
distância n ece ssária q u e u m texto escr ito por um autor ofere-
o caráter desse personagem. O caráter não são as paixões d o personagem, nem os estados d e esp írito que o animam, n em
ce. É por isso que insisto para que apresentem um verdadeiro person agem d e teat ro , q u er dizer, um personagem saído da
mesmo as si tuações nas quais se encontra: sã o as lin has de
vida, não um perso n agem da vida! A diferença é delicada mas
f orça q ue o defin em. Elas t êm d e p oder ser expressas em t r ês palavr as. Tal person agem será: "orgulh oso, generoso e colérico". Faz endo isso, simplificamos ao m áximo a definição q ue
ess en cial. p ergun tam os so bre sua identidade: nome, idade, estado civil,
estab elece uma estrutu ra de base que p ermite ao ator inter -
sua o rigem, seu trab alh o . . . e eles devem po der resp o n der. De-
p retar. Com três bastões, p odemos construir um primeiro es-
p o is dis so, n ós o s col ocamo s em situação, para que seu caráter
p aço: a cab ana já é uma casa! D oi s elementos não b astariam, p ois o equilí brio seria in stável. Para a arquitetura, seja a d o
se revele. Po is, p or certo, n ão existe personagem sem situação. Apen as a situação lh e p erm ite revela r-se . "Faça-nos viver! ': pe-
p erso nagem o u a da casa, o tripé é indispensável. Quando os
dem os Seis p ersonagens à procura de um au tor, d e Piran de llo.
três elementos tiverem sido defin idos , p odemos então buscar
"Se so u avaren to, p eça-me dinheiro! ': poderia dizer Harpagão!
Q u an do eles se apresentam, um por um, diante dos outros,
102 10 3
f
LUGARES E MEIOS
Para observar como eles se comportam, agrupo os alunos/ personagens em grandes "famílias" (os d os escritórios, os das fábricas, os das universidades . .. ). D o ponto d e vis ta dramático, sempre surge uma distância interessante entre o que dizem os personagens ao responder às perguntas e o que realmente fazem , numa dada situação. Ninguém nunca faz exatamente o que diz. Colocamos o personagem em situações da vida em família , de seu meio de trabalh o, de férias ou quando precisa recepcionar alguém. N ós o d isp o m os, primeiro, em seu próprio meio, antes de lhe propor situações que o tirem do contexto, ou situações acidentais que o revelem de o ut ro modo, a si próprio e aos espectadores.
A pane do elevador ou O descarrilamento d o trem estabelecem, na urgência, uma relação entre pessoas que jamais teriam se encontrado. A reunião dos condôminos também é muito rica de humanidade. Num prédio. acabam de chegar novos moradores. Decidem convidar seus vizinhos para conhecê-los. Chegam progressivamente os de cima. os de baixo, os que moram ao lado.. . Durante a conversa, alguns descobrem quetrabalhamna mesma área que outros. mas não no mesmo local... Acaba-se por descobrir que alguns sêc empregados e outros diretores damesma empresa. Constrangimento!
Vi, algumas vezes, alunos sustentarem personagens que não o s deixavam mais. Par a lu tar co n tra esse perigo, nunca ficamos muito tempo com u m mesmo p ers o n agem. Passamos rapidamente de um a outro, um p ouco co m o aqueles grandes at o res de cinema que podem fal ar besteir as n o s bastidores, depois entram imediatamente em seu perso nagem p ar a uma tomada e, em seguida, voltam à sua conve rsa. Depo is que trabalharam u m prim eiro p ersonage m , p eço aos aluno s q ue escolham u m seg undo , o mais d istante possível do p rimeiro. De m odo ger al, eles apresen tam alt ernativamente um personagem em flexão e o utro em extens ã o : um personagem de tipo p opular, desco ntraído, mais livre; e um mais tímido, vest id o de m aneira clássica, com atitudes mais formais. Essas variações to rnam-se ainda mais interessantes quando surgem sem que nenhuma instrução lhes seja imposta. Esse segundo personagem é trabalhado de m aneir a diferente. Nós o questionamos fisicamente. Pergunto quais são "os que gostam de ser vistos", "os que não são vistos", "os que acham que são vistos", "os que foram vistos mas que não são mais", "os que sabem aonde vão (os p rogramados)", "os que não sabem aonde vão", etc. Depos d iss o, posso ser ainda mais preciso: "os que vão ao fu tebol", "os que vã o dançar sá bado à noite': "os que vão ao museu", "os que vão ao sex-shop".
Nesse tipo de situação, os personagens revelam-se: alguns, tímid os, são capazes de uma autoridade terrível, assumem o comando sempre de modo surpreendente. Tal abordagem evidencia o personagem escondido em cada personagem, este outro - oposto - , que um conflito ou u m a situação excepcional faz surgir. Descoberta importante para o ator. 104
Observamos os personagens em diferentes situações, ou, melhor ainda, observamos suas reações quando saem dessas situações. Tentamos determinar os lugares, ou os meios, mais favoráveis para que os personagens se revelem. Tais situações de interpretação levam a uma análise técnica, etapa necessária para a construção do personagem. 105
Colocamos em evidência a relação q u e ele estab elece co m o
menta de vozes, de imagens, a multiplicação dos biombos . . .
espaço : há aq u eles que são "puxados p ara tr ás': os q u e são "empurrados para a frente': etc.
O hotel da livre troca é um tema muito est im u lan te: temos aí as portas que b atem , os armários onde as pessoas se escondem, co n fu sõ es de todo tipo. Tocamos, ao mesmo tempo, na
Uma terceira et apa me leva a pedir-lhes que escolham dois
virtuosidade e no prazer da interpretação (do jogo), que, para
outros p ers onagens, muito diferente s e complem en tares u m
mim, são dimensões importantes do ator. Sendo a ideia pedagógica, tanto n esse exercício como nos anteriores, sempre a
do outro, q u e u m mesm o ato r ter á, ag o ra, d e fazer co m que vivam juntos. Trata -se d e uma cen a de perseguição, de espera, de procura, em volta de um b io m b o.
de obrigar o aluno a interpretar um personagem, ou vários, o mais distante possível de si mesmo. Termino a abordagem dos personagens pedindo a um
No palco encontra-se um biombo com dois painéis. desenhando. na
grupo de atores, organizado em "companhia", para que faça
frente, um espaço aberto; e, atrás. um escondido. Chega um primeiro
uma cen a com cenário, figurino, objetos, e numerosos perso-
personagem. que procura por um outro. chama-o. nào o encontra. vai
nagens. Como eles tendem a se espalhar pelo espaço, coloco
checar atrás... Muito rapidamente. com a ajuda de um elemento do figurino ou com umacessório. o ator muda de personagem e reaparece.
uma restrição: só podem utilizar um espaço muito reduzido, de dois metros por um. Nesse tablado pequeno, limitado, eles
interpretando o outro, perseguido pelo primeiro.
têm d e to rn ar vivos os maiores espaços possíveis.
Os alun o s devem d esen vo lver esse tema por to do s os m eio s
Perdidas numa imensa floresta, duas pessoas estão se procurando;
im agináveis. Trata-se de interpretar a ilusão e a multiplicida-
uma não sabe onde a outra está, mas depois acabam se encontrando.
d e d os p ersonagen s, a mudança de figurino, d e aces sórios,
Elas podem. fisicamente, estar a cinquenta centímetros uma da outra.
d e voz; d e apresentar os perso n agens d e costas, de fre nte . . .
mas. teatralmente. a várias centenas de metros; chamar-se desde um
O ideal seria fazer com que o público visse, em determin ad o m omen to, os d ois juntos!
vale até as alturas de uma colina, mas estando, realmente, uma de costas paraa outra.
Ess e tema é feito a dois, depois a três, quatro ou cinco ato -
Restrições de estilo
res, sendo o lim ite de sete, em dois m etros quadrados. Esse exercíc io se in sere na t r adição d o cabaret, que facilita a inven-
Essas improvisações sã o exploradas em a ula coletiva e, d epois, os alun os trabalham com as mesmas propostas em a u -
ção de fo rm as teat r ais, im p o n d o restrições muito gr an des de esp a ço. Eu me lemb ro d e u m western co m pleto, co m cavalo s,
tocursos. Organizo "companhias" de cinco atores e peço que
perseguições, b ri gas, saloon . .. feito com m aest ria no min ús -
interpretem dez pers onag ens. Aí tudo é p ossível : desdobra -
cu lo tablad o d o La Ro se Rouge, célebre cab ar é p arisiense d o
106
107
p ó s-guerra! Mas, sobretudo , term inamos o trabalho com os personagens lembrando que o teatro deve ser sempre um jogo. É preciso divertir-se, e a Escola é uma escola feliz. Não devemos interrogar-nos com angústia qual a maneira mais, ou menos, correta de entrar em cena: basta entrar com p razer!
2. Técnica dos movimentos A técnica dos movimentos constitui o segu ndo eixo d a min ha pedagogia. Aqui vou expô -l a de m aneira in d ependen te, mesmo que, na prát ic a, ela sempre es teja extremamente ligada à interpretação. Ao longo de todo o percu rs o dos alunos, ela 1
I
I
acompanha a improvisação e sua criação pessoal. Ela vem como preparação, como um apoio ou um prolongamento dos diferentes co m p o n en tes do aprendizado. A técnica dos movi-
mentos reúne três aspectos d istintos: de um lado, a preparação corporal e vocal; de outro, a acrobacia dram ática; e, p o r fim, a análise dos movimentos, que, no segundo ano, se transforma em técnicas aplicadas aos diferentes territó ri os dramáticos.
Preparação corporal e vocal DAR S E N TI D O AO MOVIM E NTO
o
es t u d o da anatomia do corpo humano ser v iu -m e para
d esenvolver uma preparação corporal analítica, co m vistas à 108
109
exp ressão, pondo em jogo separadamente cad a p arte do co rp o: os pés, as pern as, o quadril, o peito, os o m b ros, o pescoço, a cabeça, os braços, as mãos, para disso apreender seu te or dramát ico. Constatei q ue, quando m ovimento, p o r exemplo, a cabeça, em direções puramente geométricas, para o lad o,
de de exercícios geralmente utilizad os n a maioria dos aquecimentos corporais, mas dando-lh es u m sentid o. Em extensào. com os braços levantados. uma queda do tronco leva a uma flexão do corpo: depois, revertendo o movimento. a um retorno à posição inicial.
para a frente, para t rás ... "ouço, olho, sinto medo! ". No teatro, realizar um movimento nunca é um ato mecânico, mas um
Realizar esse movimento, segu indo uma progressão preci-
gesto j ustificado. E p ode ser ou por uma indicação, ou por
sa , é exemplar daqu ilo que fazemos co m o conju n to da ginás-
uma açã o o u , ainda, por um acontecimento interno. Levanto
tica dramática. Começamos por realizá -lo de u ma man eira mecânica, simples, p ara d escobr ir m os seu p ercurso. Tentamos, em seguida, ampliar o movimento p ara ir até seus li mites, re alizando -o n o m aio r esp aç o p ossíve l. Num terceiro tempo, concentramo-nos particularmente em dois momen tos impo rtantes d o movim ento, para d aí d escobrir a dinâmica dramá tic a: de um lado, o m o m ento d o início, em exten são, p ouco antes de o t ron co se r levado pela queda; d e outro la do, aquilo que marca o fim do movimento, o re torno d o tronco e dos braços à posição vertical, quando o corpo se encontra novam en te em extensão e quando o m ovimento v ai morrer,
um braço par a indicar um esp aço ou um lugar, para pegar um objeto n u ma esta nte o u, até , p orque sinto em mim alguma coisa que m e faz levantá-l o. A indicação, a ação, o estado são três maneiras de justificar um m ovimento. Cor respondem às três grandes o rientações teatrais: a indicação está próxima da pantomima, a aç ão está do lado d a commedia dell'arte, e o estado n os leva ao drama. Qualquer que seja o gesto que o at o r realiza, tal gesto se insere numa relação com o espaço que o cerca e faz nascer nele um estado emotivo particular. Uma vez ainda, o espaço do fora se reflete n o espaço d o dentro. O mundo "imita-se " em mim, e me nomeia!
imperceptivelmente, na imobilidade. Esses dois momentos, que seg uem e p recedem a at itude de
poral nem a impor formas teatrais preexistentes. Ela deve aju-
extensão, t razem um estado dramático forte. A suspensão que precede a partida insere-se n a d inâmica do r isco, d a queda, e
dar cada um a atingir a plenitude do m ovim en to justo, sem
traz um sentimento de angústia, que surge de maneira muito
qu e o corp o esteja "em demasia", sem que ele parasite aquilo que de ve transportar. Ela se apoia, então, primeiramente,
evidente. Inversamente, a suspensão do retorno insere-se na dinâmica da aterrissagem, do retorno à calma, da abo rdagem
numa ginástica dramática, na qual cada gesto, atitude ou mo -
progressiva em direção à imobilidade e à serenidade.
A preparação corporal não visa a alcançar um modelo cor-
vimento é justificado. Emprego exercícios elementares, como b alan çar os b raços, flexões anteriores ou flexões laterais do
Em segu id a col o cam o s em jogo a respiração. O movimen -
tronco, divisão do peso nas pernas, enfim, uma boa q u an t id a -
to é realizado na expiração completa, no ir e vir, co m a in s-
110
III
piração intervi n d o apenas n a atitu d e imóvel da extensão, em apneia alta. A partir desse controle da respiração, começo a
m edir as co ns equên cias, p ed em aos ato res para q u e atinj am limites extremos d o movimento. É, na verd ade, sua p róp r ia
sugerir imagens paralelas, que fazem entrar o movimento em sua dimensão dramática. O aluno imagina-se, então, sempre
an gústia d o limite q u e eles impõem a seus al unos, às vezes com uma dimensão perversa, at é mesmo sádica. Confundem
com o mesmo movimento, diante do mar, harmonizando-se
o prazer da interpretação com a angústia d o exercício ! O que
com o ritmo das ondas. Isso pode fazer pensar numa bolinha lançada no ar que cai, com essa fascinação do começo e do
pode se r aceitável n a aventura d e um ar tista é inadmissível d o ponto de vista pedagógico.
fim d o movimento : qual é este instante de imobilidade enMinha concepção da p reparação co rporal contradiz, em
tre o subir e o descer? A bolinha fica suspensa no ar? De que modo? N um m ovimento desse tipo, no instante preciso da
p arte, n u m eroso s métodos de m ovimento p ropo st os aos
suspen são, o teatro aparece. Antes, não passa de esporte! To-
atores . Na maioria d as vezes, trata-se de gin ást ica, d irei, "de
d os aqu eles que viram Nijinski dançar contam q ue ele ficava suspenso no ar. Mas como?
co nsolação", cujo p rincipal objetivo é fazer b em àquele q ue a pratica. Os diversos métodos de relaxamento ou de bem-estar que in vadem os cursos de formação teatral podem, eventu-
A ginástica dramática é acompanhada de uma dimensão vocal, pois seria absurdo querer separar voz e corpo. Cada gesto
almente, servir para acalmar algumas angústias ou para restabelecer um certo equilíbrio interior da pessoa, mas nunca
p ossui uma sonoridade, uma voz, e tento fazer com que os alunos a descubram. A emissão de uma voz no espaço é da mesma
dizem respeito à relação com a interpretação. No entanto, o único real equilíbrio interior, para um ator, é a interpretação!
natureza que a realização de um gesto: como lanço um disco
Recuso o aspecto consolador, que incita o professor a ser,
num estádio, lanço minha voz no espaço, tento atingir um objetivo, dirijo-me a alguém a uma certa distância. Tanto nas on-
de todas as maneiras, querido de seus alunos. Esse processo
das do mar, como nos saltos de uma bola ou em qualquer outro movimento, gesto, respiração e voz são realizados juntos. No
é demagógico. Peguem um intelectual ingênuo, faça-o fazer qualquer coisa no chão, respirando, ao som de uma música doce e ele ficará feliz . Na maioria dos casos, isso é complacên-
movimento, podem ser lançados um som, uma palavra, uma frase, uma sequência poética ou um texto dramático.
cia. Marchamos, lado a lado, sob a bandeira da complacência!
A abordagem analítica dos movimentos do corpo huma-
Uma ginástica estritamente esportiva também é insuficien-
no pede, da parte do pedagogo, um conhecimento objetivo
te para o ator. Conheci atores extremamente duros na sala de
da anatomia. Quantos erros, geralmente extremamente perigosos para os atores, foram ou ainda são cometidos p o r pro-
ginástica que, no entanto, se movimentavam maravilhosamente no palco, e outros muito flexíveis no treino mas incapazes de
fessores que nada conhecem do corpo humano! Alguns, sem
fazer surgir u m a ilusão. Uns tinham talento de ator, outros não!
112
113
Outra inutilidade está na aprendizagem precoce dos ges-
sai em parafuso do corpo da mãe; antes de se arrastar ou de
tos formais que pertencem a estilos ou a códigos oriundos de
caminhar, seus primeiros contatos com o chão se dão a partir
teatros consagrados, como os do Oriente, por exemplo, ou da
de um movimento de cabeça que a impulsiona em cambalho-
dança clássica. Esses gestos formais, assim nascidos de uma
ta lateral. Meu objetivo consiste em fazer o ator reencontrar
prática insuficiente, criam, no corpo do ator, circuitos físicos
essa liberdade de movimento, predominante na criança antes
que, em seguida, são muito difíceis de serem justificados, especialmente pelos jovens atores. Conservam, na maioria dos
que a vida social lh e imponha outros comportamentos, mais convenientes.
casos, apenas uma forma estetizante. A rigor, a esgrima, atai
A acrobacia dramática começa por piruetas e cambalho-
chi, a equitação . . . podem ser técnicas de apoio ou de mu -
tas, cuja dificuldade aumenta, progressivamente, para trans-
dança de hábitos corporais, mas nunca podem substituir uma
formar-se em saltos pela janela, depois em saltos mortais,
real educação do corpo do ator que vive o mundo da ilusão.
tentanto liberar o ator, o quanto possível, da gravidade. Tra-
Enfim, os exercícios de dinâmica de grupo - tomar-se
balhamos, ao mesmo tempo, a flexibilidade, a força, o equilí-
pelas mãos antes de entrar em cena - são simpáticos para o
brio (nas mãos, na cabeça, nos ombros ... ), a leveza (todos os
grupo. Não para a trupe! Vários diretores, sempre muito in-
saltos), sem nunca esquecer, ainda aqui, a justificativa dramá-
teligentes, mas sem nenhum conhecimento real das práticas corporais, eles mesmos, às vezes, com pouca relação com o
tica do movimento. Uma cambalhota pode ser acidental - eu topo com um obstáculo, caio e saio rolando - , como pode
próprio corpo, ficam presos a esse tipo de exercício. São mais
ser um elemento de transposição da interpretação: "Arlequim
atraídos pelo "significado" do movimento do que pela própria
põe-se a rir, chegando a dar uma cambalhota"! Por meio do
ação. Ouço dizer q u e, na Austrália, o ator teria um "guru": que
jogo acrobático, o ator atinge um limite de expressão dramá-
nos Estados Unidos ele seria acompanhado por um "psi" Na
tica. É por isso que trabalhamos a acrobacia dramática du-
Itália, ele entra em cena e interpreta! Compartilho desta última concepção.
rante dois anos inteiros, adaptando -a no segundo ano para
Acrobacia dramática Nos
LIMITES DO CORPO
os territórios dramáticos que são explorados. Existe, tam b ém , uma acrobacia "bufonesca" particularmente interessante, fei ta de quedas no chão, às vezes violentas, pirâmides catastróficas que desmoronam, sendo possíveis graças aos figurinos bem almofadados de certos bufões.
Os movimentos acrobáticos são aparentemente gratuitos.
O malabarismo é complementar à abordagem acrobática.
Eles não "servem" para nada, a não ser para interpretar. São
Começa com uma bolinha, depois duas, três, quatro, cinco
os primeiros movimentos naturais da infância. Uma criança
ou mais .. . mas, principalmente, ele continua com objetos
114 115
da vida cotidiana, pratos, copos, e se integra, para terminar numa sequência de interpretação dramatizada (o restauran-
mímica de ação. N a época, eu p raticava o método natural de
te, a loja. . .). Em seguida, surgem as lutas: dar e receber uma bofetada, um pontapé, puxões de cabelos, torcer o nariz, co-
levanta r, carregar, ataca r, defender-se, nadar. Essas ações gravam circuit os físicos n o corpo sensível, e neles se inserem as
meçar uma briga coletiva, dando o máximo de ilusão à bal-
emoções. Sentimentos, humores e paixões se expressam por
búrdia, sem que ela jamais aconteça, realmente. Quem recebe a bofetada, ou cujos cabelos são puxados por alguém, conduz
meio de gestos, de atitudes e de movimentos análogos aos das
o jogo e provoca a ilusão. Confirma-se aqui uma lei essencial
o corpo "puxa", como "e mpurra", a fim de poder, se for o caso,
do teatro, já observada: a reação cria a ação!
expressar todas as maneiras particulares, de um personagem,
Georges Hébert: puxar, empurrar, escalar, andar, correr, saltar,
ações físicas . É importante para os jovens at ores saber como
de "puxar" ou de "empurrar". Analisar uma ação física não é Acrescentam-se, finalmente, os objetos: uma cadeira que voa, uma mesa para rolar por cima, etc. São também traba-
emitir uma opinião, é ap reender u m conhecimento, base in dispensável para a interpretação.
lhadas as defesas, ou seja, acompanhar e dar segurança ao movimento acrobático para evitar a queda do ator. Num salto mortal, uma mão posta na parte baixa das costas pode ajudar a realizar o movimento sem risco. Essa defesa é, por sua vez, dramatizada: "Eu me abaixo para apanhar um objeto, o outro personagem rola sobre as minhas costas, eu me levanto para ver o que aconteceu e, ao levantar-me, ajudo-o a realizar seu salto!". O domínio técnico de todos esses movimentos acro -
P A R TI R D OS MOVI MENTOS NATU RAIS D A V I DA
Começo pela an álise d os m ovim en tos d o corpo humano, a partir de três movimentos naturais que se conhecem da vida: ondulação, ondulação invertida e eclosão. Descobri a ondulação, como princípio de todos os grandes esforços, no estádio. Foi em Grenoble, no palco do teatro, que
báticos, quedas e saltos, malabarismos e lutas, tem apenas um
descobri a eclosão. Foi na rue du Bac, quando a Escola come-
objetivo verdadeiro: dar ao ator uma maior liberdade de interpretação.
çou, que criei a ondulação invertida, descobrindo aí o sentido dos conflitos e dos personagens. Haviam sido encontrados os três princípios do corpo humano que comandam a movimen-
Análise dos movimentos A análise dos movimentos do corpo humano e da natureza, das ações físicas no que têm de econômico, está na base
tação, assim como as três vias da minha pedagogia. Para além do movimento físico em si, a ondulação, a eclosão e a ondulação invertida são, com efeito, três vias análogas da interpretação com máscara. A eclosão corresponde à más-
do trab alh o co rp o r al da Escola. O que pratiquei, na realida-
cara neutra; a ondulação, à máscara expressiva, em sua pri-
de da minha vida esportiva, transmiti naturalmente, numa
meira imagem; a ondulação invertida remete à contramáscara.
116
117
Esses m ovi m ento s resumem em si tr ês p osições d ramáticas: estar com , ser a favor, ser con tra. A ondulação é o primeiro m ovimento do corpo human o, o de todas as locomoções. Na água, o peixe ondula para
p ;;t.·1···:t·······
.p=
avançar. No chão, a serpente também ondula. Uma criança
~
.
engatinhando também ondula; e o homem em pé continua a ondular. Se observarmos, com uma câmera, as pessoas saírem d o metrô, constataremos, pela análise de seus movimentos,
Locom oção ondulatória.
que sobem e descem: seguem uma linha ondulatória. Toda ondulação parte d e um p o nto de apoio para chegar a um ponto de aplicação. A ondulação apoia-se n o so lo e, p rogressivamente, transmite o esforço a todas as partes do corpo, até o ponto de aplicação. Essa transmissão pode ser observada ao
1 Ondulação.
soprarmos na água e a onda deslocar-se quase que indefinidamente. Essa ondulação se encontra n o quadril do homem que anda. O quadril leva o restante do corpo a uma dupla ondulação natural: uma, lateral, como nos tubarões; outra, vertical, como nos golfinhos. A ondulação é o motor de todos os esforços físicos do corpo humano: "empurrar / puxar" e "empurrar-se / puxar-se".
Eclosão.
A ondulação invertida é o mesmo movimento que o precedente, realizado ao contrário. Em vez de partir do apoio dos pés no chão, parto da cabeça, que começa o movimento apoiando-se num ponto, que me provoca, do espaço de fora . A imagem do pássaro ajuda a realizar esse movimento: Um pássaro está à minha frente. eu o vejo ao longe. Ele se eleva na vertical. acima da minha cabeça. meu olhar oacompanha. Elevai descer. 119
eudesapareço. Ele desceu. eu o vejo no chão. Depois ele sai voando no
em "cruz alta", em pé, pernas e b raços ab ertos, esticados, mais
horizonte.
alto d o que a h o rizontal. A eclosão consiste em , sem ruptura,
Em tal movimento a partir da cabeça, o corpo inteiro põe-se à disposição do evento. Entramos numa relação que não é apenas de ação, mas de indicação dramática. Se a ondulação é uma ação voluntária, atuando de um ponto a outro, para me deslocar ou deslocar, a ondulação invertida sempre serve a uma reação dramática. Qualquer drama, na verdade, inverte as técnicas da ação. A ondulação e a ondulação invertida têm em comum quatro grandes atitudes de passagem: o corpo para a frente, o corpo n o zên ite, o corpo para trás e o corpo compacto. Peço aos alunos que adotem sucessivamente essas atitudes; depois, dentro desses percursos físicos, que sintam as diferentes pas-
passar de uma atit u d e à outra, cada segmento do corpo agind o no mesmo tempo. Os braços e as pernas chegam simultaneamente em posição estendida, sem que nenhuma parte do corpo preceda outra. A dificuldade é encontrar precisamente esse equilíbrio e essa dinâmica sem obstáculo. Muitas vezes, o alto d o co rpo chega antes do b raço, simplesmente porque as pessoas pensam mais nessa parte do corpo. A eclosão é uma sensação global a ser descoberta, que pode ser realizada em dois se ntidos: em expansão ou em co ncen t ração. Após ter trabalhado cada um dos movimentos de base, p roponho os tratamentos d o exercício . Chamo tratamento um conj un to de variações destinado a explorar diferentes possibilidades do movimento. A partir do gesto simples ana-
sagens das idades da vida: a infância, a idade adulta, a ma-
lisado, provoco experimentalmente, como em genética, di-
turidade, a velhice. A posição do corpo para a frente, com a
ferentes manipulações, a fim de ajudar os alunos a expandir
lombar arqueada, a cabeça levad a adiante, n os sugere um estado de in fân cia, à imagem do Arlequim. A atitude do corpo
seu campo expressivo. Os grandes princípios dos tratamentos técnicos são: aumento e diminuição, equilíbrio e respiração, de -
vertical remete à máscara neutra, à maturidade do homem
sequilíbrio e progressão. São aplicados a todos os movimentos
em sua idade adulta. O outono da vida, período de d igestão,
analíticos de base e depois a todas as ações físicas, para serem,
faz-nos passar para tr ás do eixo vertical, recolhidos. É a id ad e
enfim, adaptados à própria interpretação e aos sentimentos.
do recolhimento! En fim , na velhice nos d ob r am os para reencontrar o feto.
Sempre começamos por aumentar o movimento ao máximo, para aí buscarmos o limite de espaço, até o equilíbrio.
Em equilíbrio com os dois movimentos precedentes, a
Aumentar a ondulação ao máximo é chegar a posições de
eclosão desenvolve-s e a partir do centro. N o começo, trata-se
equilíbrio no espaço, para a frente e para trás. Depois disso,
de uma atitude compacta no solo, com o co rp o ocupando o
adotamos o processo inverso, para diminuir o mesmo mo -
menor espaço possível, para chegar no fim do movimento
vimento, até o ponto de não poder mais percebê-lo de fora.
120
121
!W
I
i
Tocamos, então, o limite oposto, ou seja, a respiração, numa
que conhecemos! Essa concepção é muito diferente da abor-
imobilidade aparente.
dagem que se observa em certas formações de atores, em que
Equilíbrio e respiração são limites extremos de qualquer movimento, e podem ser adaptados à interpretação do ator. Improvisando, geralmente partimos de uma situação simples
se começa por pedir-lhes que interpretem "pequeno", para
para aumentá-la ao máximo, aumentar os sentimentos até o
coisas,
depois aumentar progressivamente a interpretação. De nada adianta! Eis por que eles se tornam externos, "fabricam" as
limite extremo, antes de reduzi-la. Partindo do sorriso, tentamos morrer de rir, antes de atingir um riso intermediário.
FAZER SURGIR AS ATITUDES
O ator que praticou esse exercício, que experimentou o limite superior do riso, estará disponível para reagir muito sutilmente em qualquer drama psicológico, de maneira viva. A dimensão completa do riso estará presente em sua interpretação. Nesse processo, passamos do expressionismo ao impressionismo, do corpo que interpreta aos olhos que interpretam: o corpo deposita seus movimentos nos olhos.
É preciso, quando abordamos a máscara neutra, fazer com
que, do corpo, surja uma série de atitudes que assegurem a estruturação do movimento, para além do gesto natural. Chamo atitude um tempo forte, apreendido no interior de um movimento, na imobilidade. É um momento de pausa, que pode ser posto no começo, no fim ou num momento impor-
Exploramos, enfim, a situação para além dos limites: em-
tante de mudança. Quando levamos um movimento até seu
purrar um movimento para além do equilíbrio é provocar o
limite, descobrimos uma atitude. Conduzo esse trabalho a partir de "nove atitudes", numa
desequilíbrio, entrar na queda; e, para evitar essa queda, in ventamos a locomoção. Avançamos! Essa regra é válida tanto para o movimento físico quanto para o dos sentimentos.
série repertoriada que peço aos alunos para realizar de modo
No trabalho do ator, importa começar interpretando, pri-
que vem contrariar o movimento natural. Em favor de uma
meiro, muito grande, para sentir as linhas de força, os gran-
abordagem artificial, indispensável a qualquer transposição
des traços simples do personagem. Em seguida, vai chegar o
artística (à máscara neutra, à commedia dell'arte ... ), inter-
momento de matizar, em uma interpretação mais íntima. A
pretamos contra a natureza para melhor falar dela. Uma vez
interpretação psicológica deve ser uma resultante da inter-
realizado o encadeamento da série e dominadas as atitudes,
pretação aumentada no espaço. Sempre fico impressionado com o fato de que alguns dos grandes atores, capazes de uma
intervêm novamente os tratamentos: aumentar / diminuir,
interpretação íntima muito potente, começaram por outras dimensões: Jean Gabin fez music-hall antes de tornar-se o ator 122
encadeado. Esse exercício dá ao quadril, ao tronco e à cabeça um rigor
equilíbrio / respiração, depois vêm as justificativas dramáticas, que deixamos para os alunos descobrir (observo, viro para trás, etc.). Intervêm igualmente todas as variações possíveis, 123
especialm en te as da res p ir ação. Se aplicarmos ao movim ento uma co ntrarrespiração, sua ju stificativa será diferen te . O exemplo d 'O Adeus é, sem dúvida, o mais significativo: Estou de pé. levanto um braço na vertical para dizeradeusaalguém. I.
o sarnu rai
Z. A me sa
Se realizarmos esse m ovimento inspirando, enquanto levantamos o braço, e depois, na volta, expirando, vamos nos encontrar num sentimento positivo de adeus. Se fizermos o contrário, levantar o braço na expiração e voltá-lo n a inspiração, o estado dramático será, então, negativo: não quero d izer adeus, mas sou obrigado a fazê -lo! Outra p ossibilidade: inspi-
3. O gr ande arlequim n" 1
4 . A abertura à frente
5. A sa íd a d e q u ad r il
6. A saída de quadril, em espelh o
7. O rola m ento com abertura à fren te
8. O grande arl equ im n" Z
r ar, fazer o m ovimento em apneia alta e expirar só depois d o gesto, atingimos aí a saudação fascista. Enfim, o inverso ainda é possível: expirar, faze r o movi mento em apneia baixa, inspirar. Tenho, sem dúvida, u m a baioneta nas costas que me obriga a fazê-lo. Todas essas n uan ces de respiração são aplicadas nas nove atitudes, mudando profundamente as justificativas dramáticas produzidas. As n ove ati t u d es e suas justificativas dramáticas são interessantes, por serem portadoras de várias contradições. "O grande arlequim", em movimento de recuo do quadril, pode sugerir tanto uma sensação de reverência, quanto um gesto de medo ou de dor de barriga. Nunca há apenas uma justificativa: muitas vezes também é possível o contrário daquilo que aparenta. Todas as grandes atitudes são portadoras de múltiplas possibilidades e, nisto, são eminentemente teatrais e pedagogicamente ricas. Cabe aos alunos aventurar-se, descobrir
jO\ 9. A m esa
I. O samur ai
todas as possibilidades, especialmente nas passagens de uma atitude à outra. Cabe a eles descobrir a importância, para o 124
As nove atitudes.
ator, de conservar a estruturação dessas atitudes, inclusive a da versão reduzida, a mais íntima. A n oção de a titude está presente em todos os grandes atores, qualquer que seja o estilo ou a natureza d o teatro que interpretam, pois, na verdade, o público quer ler atitudes. No
I
teatro, a não ser que se trate de uma reivindicação temporária, para lutar contra uma codificação fixa e esclerosada de certas
Escala r.
atitudes, o gesto vago é indesejável. Foi a grande experiência do Living Theatre no fim dos anos 1960, ao explodir, por meio do grito, a codificação. Mas, depois dessa revolta necessária, foi preciso reconstruir. O que desejo para meus alunos é a descoberta: partir do gesto natural mais simples para chegar ao teatro o mais elaborado possível. Pois, quanto mais construído é o teatro, maior ele é.
t\f1J~~ .
Leva nt a r / carregar.
BUSCAR A ECONOMIA DAS AÇÕES FÍSICAS
A mímica da ação é nossa base para analisar as ações físicas do homem. Consiste em reproduzir uma ação física o mais próximo possível do que ela é, sem transposição, fazen-
r
Tocar o sino.
do mímica do objeto, do obstáculo, da resistência. Para isso, utilizo os gestos dos grandes ofícios (o barqueiro, o lavrador, o escavador, o lenhador), ou ainda das grandes modalidades esportivas (barra fixa, halterofilismo). A mímica da ação também trata da manipulação de objetos: abrir uma mala, fechar
uma porta, tomar uma xícara de chá. Sem nunca passar pela psicologia, buscamos a ação física que mais se aproxime da máxima economia, para que ela sirva de referência. Como antes, esses movimentos são, 116
Passar a barre ira.
primeiro, analisados de u m p o nto de vista técnico, antes de
A m ím ica de aç ão nos faz descobrir que tudo o que o h o -
serem expandidos ao máximo e, depois, reduzidos, para daí
mem faz em sua v id a p o d e ser resumid o em d uas ações es-
descobrir o conteúdo dramático, a fim de escapar das formas esclerosadas da "mímica".
senciais: "em p u rrar e puxar". Não fazemos n ada senão isso! As variaç õ es p ossíveis sã o "ser empu rrado e ser p uxado", "empurrar- se e puxar-se" e encont r am seu lugar em m últiplas
Para evitar a tendência à simples técnica ou ao virtuosism o gratuito, não nos detemos n a análise de m ovimentos iso -
direções: em frente, para os lado s, p ara trás, n a d ia gonal . . . Chamei isso de a rosácea das f orças.
lados, mas inserimos os gestos em sequências d ramatizadas,
Trata-se d e um espaço direcional adaptável a tod o s os mo -
com um co meço e um fim. A sequência da "parede", consti-
vimentos d o h omem, sejam eles físicos ou psicol ógicos, u m
tuída d e 57 atitudes muito p rec isas, permite um encadeamen -
simples m ovimento d o b raço ou uma paixão d evo r ad ora,
to em um m ovimento global.
um gesto d a cabeça o u u m d esejo profu n do, tudo nos leva ao "em p u r rar / puxar".
Você está sendo perseguido numa cidade. e esconde-se embaixo deuma marquise numa rua sem saída. A pessoa que o persegue passa na sua
Arlequim se recusa a ir à gueria. Todo mundo á sua voltatenta conven-
frente e não o vê. Sua única saída é um muro. do outro lado da rua. que
cê-Ia a ir. Ele começa recusando categoricamente. obstinado.
você deve pular. Você selança em direção a ele. escala-o e salta do outro
a pouco. vai se deixando convencer. para. enfim. aceitar. Todos ficam
lado. Infelizmente. seuperseguidor o viuej á está ali. à sua espera!
contentes. mas ele muda de opinião. dizendo quenãovai mais.. . para
e. pouco
depois, finalmente. detidir que vai sozinho para o ttont: na primeira
Essa sequência é analisada atitude por atitude, que os alu-
linha, pronto para matar tudo aquilo que SI! mexer. Tenta-se. então.
nos trabalham, uma após a outra. Só quando as conhecerem
fazê-lo compreender que isso pode ser perigoso, que talvez fosse me-
bem é que poderão deixá-las de lado, para se comprometer
lhor ficar na retaguarda. Mas de nada adianta. É ele queagora assume
com a busca da interpretação e descobrir o ritmo da sequên-
suadecisão comtoda a força. e cada umtentaconvencê-lo docontrário.
cia. Trata-se aqui de uma disciplina do corpo a serviço da interpretação. De uma restrição a serviço da liberdade. A mesma sequência é, em seguida, proposta em autocurso, num balé coletivo que suprime o sentido das ações e qualquer
A estrutura motora desse tema (m ud an ça b rusca de situação) pode resumir-se, essencialmente, no "empurrar / puxar", com variação dos níveis e, depois, inversão das forç as:
dimensão d ramática, para conservar apenas os movimentos,
Empurro alguém para que avance... ele resiste
com uma música. Várias regras podem ser dadas: um movi -
Assumo uma posição inversa
mento pode ser repetido várias vezes, individual ou coletivamente, junto ou em alternância.
Puxo mais forte... ele me puxa no sentido contrário
128
I!
o puxo pela mão.. . ele resiste
Puxo aindamais forte... ele cede 129
Ele vem comigo... e me ultrapassa Ele me leva com ele.. . resisto Solto... ele escapa
Três direções principais estão contidas na rosácea das
f orças: as verticais, as horizontais e as diagonais. A ação do remador (sentado ou de pé ), assim como a do serrador, é h orizontal. É o ir e vir entre empurrar e puxar. Tocar o sino , escalar, levantar, carregar, arremessar um disco são ações verticais. Enfim, os movimentos diagonais são os do lenhador, ou do barqueiro, que faz sua b alsa avançar com uma longa vara. Esses t rês movimentos relacionam-se a três diferentes mundos dramáticos. O "empurrar/puxar" de frente corresponde ao "vo cê e eu': Há o diálogo com um outro, que se encontra n a co mmedia dell'arte ou n o clown. O movimento vertical insere o h omem entre céu e terra, entre o zênite e o nadir, num acontecimento trágico. A tragédia é sempre vertical: os deuses estão n o Olimpo. Os bufões também, mas no outro sentido: são deuses subterrâneos. Quanto à diagonal, ela é sentimental, lírica, ela escapa sem que se saiba onde vai cair. Estamos, aí, diante d os grandes sentimentos do melodrama. Todos os territórios do teatro podem ser, de modo muito p reciso, situados no espaço; e os movimentos físicos que estudamos, dos mais simples aos mais co m p lexos, inserem-se nessas dimensões dramáticas. Amo, puxo! Odeio, empurro!
ANALISAR AS DINÂMICAS DA NATUREZA
À análise dos movimentos do corpo humano su ced e a aná-
lise d os movimentos da natureza: os elementos, as matérias e 130
Rosá cea das fo rças.
os animais, conduzida paralelamente às id entificações. O s m ovimentos suscitados pela improvisação são retomados de ma-
o h omem, empurra-o, puxa-o. Mas, inv ersam en te, o hom em
neira técnica, tentando ressaltar as diferentes partes do corpo
Por fim, trabalhamos a terra com o uma massa a ser m odelada, que p odemos comprimir, ap lain ar, estirar. Aqui, a
pode agir sobre o ar, fazê-lo m ove r-se, com um leque.
aí engajadas.
sensação parte d as mãos e da m anipulaçã o, para estender-se abordados em suas diferentes manifestações. Para a água, va -
ao corpo todo. Se é fácil sentir se n sações a partir das mãos , também é impo rtante empenhar o resto d o corpo, o quadril,
mos descobrir o tanque, o lago, o rio, o mar. Observamos ,
o plexo, n u m a co n fron tação com u m a terra argilosa imaginá-
por exemplo, os movimentos de um corpo n o m ar: é alçado
ria. D a terra, que eu manipulo, torno -me, p aulatinamente, a
pela água, repuxado pela correnteza, numa luta lateral para
argila manipulada.
Os quatro elementos (a água, o fogo, o ar e a terra ) sã o
penetrá-lo. A água é uma resistência m óvel contra a qual é preciso lutar para reconhecê-la. É só a partir d o quadril que
A principal característica das matérias é serem passiva s
essa sensação global pode ser transmitida ao conjunto do cor-
e manifestarem-se por suas reações. Só se p odem analisar
p o. Insistimos no comprometimento do quadril, para evi tar
seus movimentos quando elas são agredidas. É preciso atirar,
os gestos dos braços e das mãos que tenderiam a significar o mar sem jamais senti-lo. O fogo nasce do interior. Sua fonte brota da respiração e do diafragma. No fogo, dois movimentos se distinguem: de
I t
amassar, rasgar, q uebrar uma matéria para poder observar sua reação. Portanto, nesse processo, p resta-se atenção para não confundir a matéria com o objeto que ela constitui. Quando se joga uma bola de madeira n o chão, não é a madeira que
um lado, a combustão; de outro, a chama. Começamos pela
rola, é a b ola. Se a b ola for de chumbo, ela rolará diferen-
combustão, no nível do diafragma, para descobrir progres-
temente, m as sempre rolará. Mas é a madeira ou o próprio chumbo que interessa. Para abordar tecnicamente sua análise,
sivamente os ritmos do fogo e, rapidamente, constatar que a justificativa dramática se encontra na raiva. As chamas só chegam em um segundo momento e, depois disso, podemos trabalhar outras imagens interessantes, por exemplo, a água
reuni diferentes tipos de matérias. Primeiro, as que, ao agir-se sobre elas, p odem ser com-
Descobre-se o ar pelo voo. Correndo pela sala de ensaio,
primidas: o chumbo atirado ao chão, a terra que se esmaga, um fio de arame que entortamos. Tantas matérias que, uma
com os braços estendidos em forma de planador, sentimos a
vez agredidas, não se modificam mais. A analogia dramática
possibilidade de nos apoiarmos no ar, que não é vazio, mas um elemento de sustentação. Todo o corpo é solicitado. Em sua di -
poderia ser: "O que foi dito, está dito!" As matérias elásticas, ao contrário, uma vez esticadas, têm
mensão extrema, o ar, tornando -se "grandes ventos ': age sobre
uma espécie de nostalgia da forma inicial, ainda que não vol-
fervendo.
132
133
tem to talm en te a ser o que eram. Há numerosas variantes: as
teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a im p erceptíveis ondulaçõ es e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitam ente vertical, grosseiramente entran çad o, até o solo, onde se rom pe e espirra em agulh etas brilhantes.
gomas, as b orrachas, algumas fib r as. Q u anto mais puxamos, m ais elas se cansam e m en o s voltarão à forma inicial. Dramaticamente, é muito in ter essa n te essa d inâmica d a nostalgia e d a fadiga. Em seguid a, vêm as m arcas , as man chas, as d o b r adu r as, as rugas que o b se rvamo s nos p a p éis que amassamos, q ue tamb ém tentam voltar à su a forma anterior, m as co m muito mais dificuldade que as m atéria s el á sticas. Surge, entã o , a d imensão p u r am en te trágica, difer ente, dependendo da natureza e d a qualidade do papel utilizado. A tragéd ia do p ap el jornal não é a mesma d o papel de seda; o drama d o p apel p ar a em bru lhar carne é diferente d aquele do p apel de car t as r eci cl a d o . As cicatrizes são n u m erosas, na n o st alg ia d o p a r a íso p er d id o ! Enfim chegam as quebras, as fiss uras, os v id ros trin cados, os v idros rachados, as ex p losões. Aq ui, t alvez m ais do q ue em outro lu gar, estão em jogo n o ssa s q u ebras, n o ssa s diver sas fissu ras. A chu va, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito di versos. No centro, é uma fina cortin a (ou rede) descontínua, uma queda implacável m as relativamente lenta de gotas provavelmente ba stante leves, um a precipitaçã o sempiterna sem vigor, um a fração inten sa do meteoro puro . A pouca distância da s paredes da direit a e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui pa recem d o tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, ad iante quase de uma bola de gude. Sobre o reb ord o, so bre o parapeito da ja nela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior dos mesmos obstá culos ela se suspende em ba las convexas. Seguindo toda a sup er fície de um p equeno
f
I
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cad a um a corresponde um ruído particular. O to do vive com intensidade, com o um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação. O repiq ue no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesrno tempo em um con certo sem mono tonia, não sem de licadeza. Q uando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo contin u am a funcionar, cada vez mais lenta mente, de pois toda a m aquinaria para. En tão, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilh ante aparelh o evapora: ch oveu.1 Par a al ém d a agr ess ão físi ca, as matérias têm ca p acidade de se r t r ansformad a s pelo fr io e p elo calor. As fusões , as evap ora ções, as solidifi ca çõ es são r ica s em analogias d r am áticas, q u e se enco n tram, al iás, n a linguagem corrent e: " eu m e d erre to p o r você", "esse h o m em é um bloco d e gelo", "a im a gem está congelada", "el es q u eb r ar a m a promessa", "sua agressividade Fr an cis Ponge, "P lu ie", em Le pa rti des choses (Paris: Galimard, 194 8). ["C h uva", Textos, trad. Júlio Castarlon Guimarães, em www. usp.b r/ revistausp/Ol/08 -francis.pdf. (N. T.) ]
134 13 5
- -- I
me esmagou » . . . Captamos essas expressões ao pé d a letra, no corpo das palavras.
ro, am ass á-lo co m o um papel. U m ator apropria -se do outro, am assa-o e joga-o n o ch ão, depois o segun d o p rossegu e sozi-
Graças ao cozimento, a cozinha tam bém oferece grandes possibilidades de análise e de representação. Ao quebrar um
nho a reação do "p apel" que se desdobra. Esse tipo de exercício implica uma certa p recisão d a p arte d os at ores, tanto d aquele
ovo e jogá-lo na frigideira, qual ch ega primeiro, a clara ou a
que age quanto do que reage, para assegu r ar uma verdadeira
gema? Cada um dos al unos vai fritar, por exemplo, u m ovo, para con statar, antes de representar, que a gema chega depois
continuidade da resistência, do começo ao fim d o movimen to. Uma experiência semelhante é feita com u ma bexiga: um
da clara, mais rápida. Depois disso, observam-se na frigideira os diferen tes estágios da fritura: o tremor gelatinoso da clara
do sopro, depois solt a-o brutalmente no ar o u, ao co n trário ,
a vibração dos primeiros calo res, a sol idificação progressiva:
fura-o para que estou re . Ainda aí, a re p resentação é feita a
as bordas que começam a dourar, até a fritura total. Seguimos an alit icamente a Paixão do ovo, desde a postura até o omelete!
dois , numa relacão de escuta e d e reação preparatória para ,
A análise técnica das matérias passa, enfim, da manipulação da matéria à interpretação da matéria em si. Quando tratamos dos óleos, os alunos começam sendo a embalagem do óleo, no interior d a qual, graças aos movimentos do qua-
aluno " infla" o outro, progressivamen te e var ian do os r it mos
qualquer interpretação d o at o r. Ao término d essas exper iências, os alu n o s terão sentido todas as nuances p ossíveis ent re as m atérias e o interio r d e cada uma delas, as qualidades d os óleos, das fumaças, d os pa-
dril, eles podem sentir a dinâmica do óleo contido, antes de
péis, dos metais, das madeiras, etc. A dinâmica das matér ias torna-se uma linguagem que lhes servirá ao longo de seus tra-
vertê-lo ao ch ão e de tornar-se, naquele momento, o próprio óleo . Observamos, então, a q ueda do óleo que sai da lata l
balhos artísticos. Poderão dizer-se: "Você é ól eo demais; você não é chumbo o suficiente; sej a diamante! ". Essa linguagem
garrafa, com força e precipitação, e depois quando se espalha
analógica é, ao mesmo tempo, rica e precisa, e está além de
p elo solo, n ão term in an d o n unca. Tu d o é uma questão de rit-
qualquer abordagem psicológica. Se alguém entrasse na sala no momento em que estamos representando as matérias, sem
mo e de fluidez, difícil d e atingir quando cotovelos e joelhos, ren tes ao solo, vêm nos lembrar q u e tem o s um esq u eleto. Tecnicamente, é importante reter o movimento, não se espalhar muito rap id am en te, para poder ir o mais longe possível, n o tempo e no espaço.
saber do que se trata, sem dúvida pensaria que estamos num exercício trágico. Um papel amassado, um tablete de caldo de galinha que se dissolve num líquido, todos são movimentos de ext r em a densidade trágica. A tragédia da matéria provém de seu caráter passivo. Ela é vítima!
O corpo do outro pode ser utilizado igu alm en te como se fosse uma matéria: torcer um corp o como uma b arra de fer 136
137
ESTUDAR OS ANIMAIS
o trabalho com o s animais permitiu-me definir, progressivamente, uma gin ástica animalesca. A flexibilidade vertebral
A análise dos movimentos dos animais vai conduzir-nos
é buscada por analogia nos movimentos d o gato; o trabalho
mais diretamente ao corpo do homem, a serviço da criação do
das omoplatas vem do tigre; o alongamento da coluna ver-
personagem. Em geral, os animais se parecem com a gente, com
tebral vem do suricato, ereto no deserto em pleno estado de
seus corpos, suas patas, sua cabeça. É mais fácil, então, tratar
vigia. Nessa ginástica, não se trata de representar suas capa-
deles do que dos elementos ou das matérias. A busca do corpo
cidades excepcionais, mas de reencontrar os movimentos
animal começa pelos pontos de apoio: como se sustentam no
elementares e orgânicos dos animais. Para trabalhar os m o-
solo? Como são constituídos seus apoios? Em que diferem dos
vimentos do pescoço e da cabeça, a referência ao cachorro é
nossos? Descobrimos os pés que "tamancam", que ficam muito
particularmente apropriada.
pouco tempo em contato com o solo (como as mulheres de salto alto ); os pés chatos dos plantígrados; os pés espalmados
Um homem brinca com seu cão. comuma bolinha.
dos patos que se "desenrolam" (como no andar de Carlitos);
Tal proposição, interpretada por dois alunos, desenvolve
as patas das moscas que, "ventosam" e colam no chão ... Por
um trabalho com a vivacidade de resposta, que se concentra
isso, convido os alunos a imaginar que o piso da sala de ensaio
principalmente na cabeça e em seu conjunto. Com efeito, um
está queimando, como uma praia sob o sol do meio-dia, o que
cão não move os olhos, ele move a cabeça, o que nos con-
os obriga a encontrar a dinâmica particular dessa caminhada.
duz diretamente ao jogo da máscara. Os alunos já estão no
Passamos aí, diretamente, da análise à representação.
movimento da representação com máscara, mas ainda não o
Buscamos, depois, as atitudes dos animais. Quais são as
sabem.
atitudes possíveis de um cão? De quatro, fazendo graça, deitado, em guarda .. . Cada um apresenta algumas posturas, per-
As locomoções fazem parte das pesquisas mais marcantes
mitindo ao grupo que, a partir daí, determine umas quinze.
da abordagem animal. Tratamos aí principalmente do qua-
Alguns animais oferecem ritmos lentos excepcionais, entre
drúpede (o andar de quatro) e também dos répteis (a ondu-
eles, o camaleão. Ele se desloca sem que sua cabeça nunca re -
lacão de base), do voo dos pássaros, do nado dos peixes. Uma
ceba o mínimo choque vindo das patas. Situação ideal para
vez mais: a terra, o ar, o mar! Andamos de quatro, galopamos,
espionagem! Também a passagem da descontração ao alerta
trotamos, saltitamos ... tantos movimentos particularmente
é um elemento particular da dinâmica animal. O cão passa imediatamente da defesa ao ataque, do sono à vigilância. São
difíceis de realizar para os humanos. No começo, alguns alunos recusam o chão, evitam levar o
muitas as dinâmicas analisadas que vêm a enriquecer forte-
peso do co r p o sobre os braços, andando apenas com a ponta
mente a representação dos personagens.
dos dedos. Agindo assim, tentam conservar uma segurança 139
138
nas p ern as, mas n ão fazem nada além de um simulacro do an d ar de q u atro. Só qu an d o aceit am realmen t e co n fr o n tar-se com o ch ão e d ele se servir é que p o d em progredir. Aqui é esse ncial a observação real d o s animais. Vejo muito ra p idamente os que tê m gatos e os que não têm, o s q ue observam os inse tos e os q u e os imaginam . O s prim eiros interpretam, os outros "sign ificam". É p reciso mandá -lo s ao zo o lógico para que vejam, analisem, ain d a que às ve zes isso sej a d ifíci l: o andar da girafa ou o do urso são de grande co m p lexid ad e e deixam d ú vid as.
levantando-se o braço oposto . . .). Essas noções podem p a recer abstratas, no entanto num palco elas são muito concretas, e importantes na minha pedagogia. Servem particularmente na direção da cena: saber posicionar-se em relação a um ponto fixo, numa dada situação. Se todos se movimentarem ao mesmo tempo no palco, o movimento desaparece, devido à falta de ponto fixo. Tudo se torna incompreensível e ilegível. É importante que o próprio ator possa situar-se em relação ao outro, numa relação clara de escuta e de resposta. Paradoxalmente, esse trabalho sobre o movimento, que parece aplicar-se na interpretação e na direção, deveria servir sobretudo à escrita. Sejam quais forem os temas abordados, as ideias expressas, as fábulas ou as formas utilizadas, é in d is-
As
LEIS DO MOVIMENTO, COM
M
MAIÚSCULO
A an álise dos movimentos evidencia, en fim, algumas leis
genéricas que vou resumir d o se gu inte m odo : 1. não h á aç ão sem reação;
pensável que uma escrita teatral seja estruturada do ponto de vista dinâmico. É preciso, também, um começo e um fim, pois todo movimento que não termina nunca começou. Saber terminar é essencial.
2. o movimento é contínuo, ele avança sem parar; 3. o m ovi mento se mpre p rovém de um desequ ilíb r io, em busca do equilíbrio; 4. o próprio equilíbrio está em m ovimento; 5. não há movimento sem ponto fixo; 6. o m ovimento eviden cia o ponto fixo ; 7. o ponto fixo também está em movimento. Esses princípios p odem ser complementados pelas resultantes do jogo permanente entre equilíbrio e desequilíbri o de forças, que são as oposi ções (para ficar d e pé, o homem opõe-se à gravidade .. . ), as alternâncias (o dia se alterna co m a noite, como o riso com o choro ... ), e as compensações (levar uma mala com o braço esquerdo obriga a compensação, 14 1 140
3. o teatro dos alunos Os autocursos e as enquetes Chamamos autocursos às seções de uma hora e meia por d ia , em que os alunos trabalham em pequenos grupos, sem a ajuda dos professores, numa realização a partir de um tema que proponho e que eles apresentam no fim de semana para toda a escola reunida. É o teatro deles. Os autocursos estão ligados à temática de improvisação abordada n os cu rsos. Quando trabalhamos a interpretação psicológica silenciosa, os auto cursos tratam desse aspecto do trabalho; e o mesmo acontece quando abordamos a máscara neutra, as máscaras expressivas, etc. O primeiro tema proposto é de grande simplicidade. Pe ço -lhes que se dividam em grupos de cinco ou sete e interpre -
I
tem o seguinte tema:
1
Um local. umacontecimento! 14 3
I
1
Diante de tal simplicidade, às vezes se sentem perdidos. "O que é pra fazer?", me perguntam. E eu lá sei?! "Quanto tempo?" O tempo de algo interessante! A única instrução que vale é a d e faz er silêncio e que ac o n teça alg o. Como n o teatro!
"
Um segundo tema significati vo engloba, n a mesma interpretação, o todo da classe. Representar a vida na praça de um vilarejo na França, ou de uma tlde dezinha. desde manhã, ao despertar. até a noite alta.
Os alunos devem sentir, e fazer-n os sentir, a p rogressão rítmica d a vida ao longo de um dia completo, realizando todas as ações reais que podem existir: a limpeza, os encontros, as compras, as refeições, a missa, a feira . .. Essa experiência coletiva, no âmbito da reinterpretação, é particularmente in teressante pois reúne, em menos de vinte minutos (mais que isso é sempre longo demais), o conjunto das d inâmicas profundas de um dia de vida. Constatamos, então, evidenciados, os grandes tempos fortes da vida coletiva: o momento em que a França para, ao comer, a retomada progressiva do trabalho, o crepúsculo, a vida noturna, as so lidões da noite ... O trabalho é realizado em quinze dias, com um primeiro esboço depois da primeira semana. Um terceiro tem a, o do Êxodo, muito sensível no p erí odo do pós-guerra, atualmente encontra um novo eco. Proponho esse tema paralelamente ao trabalho da in terp r ta ção com máscara. Os alunos o constroem e repetem-no sem máscara, depois o apresentam com máscara. Todas as fo r m as d e êxodo aparecem: as migrações do campo para as cidades, as 144
Co mentários sob re as ap resentações.
co n flito s possíveis aparecem. Diferentemente d o "estágio", em
m ultidões q ue fogem da guerra e d os b ombard eio s . .. Eles p rojetam, assim, suas preocupações atuais e inserem-nas
que tod o s se ab r açam e choram ao seu término , com a es perança de se reverem um dia, a Escola é um local de lutas, de
num imaginário que lhes diz respeito. Meu comentário trata sempre ap en as d a estrutura da interpretação e do m ovimen-
tensões e d e crises que se expressam e, às vezes, estimulam a criativ id ade. Alguns alu n o s algu mas vezes me procuram e se queixam: "Eles não q u erem trabalhar co m igo !". En tão só tenho uma re sposta p ara dar: " Trab alh e com eles!". Pondo -se a
to dramático da improvisação. Tudo deve estar legível p ara o público. Daí a pesquisa de uma escrita e de uma linguagem.
serviço dos outros, eles descobrem uma dimensão importan-
No fim do ano, os a utocurs os transformam-se em enquetes.
te d o trab alho teatral. Por meio d essas tensões e crises, viven-
Os alunos escolhem um local o u um meio que não conhecem, na vida cotidiana, para observá- lo e nele integrar-se durante
ciam a experiência de uma companhia. A terceira etapa é mais calm a. Depois d e um certo tempo, os aluno s se co nhecem, es-
quatro semanas. Não se trata de uma enquete no sentido jor-
colhem-se e as te nsões se acalmam. Eu lhes sugiro, n o entanto,
nalístico do te rmo, que se satisfaria com uma simples observação e com algumas conversas com as pessoas, mas de uma
que não trabalhem sempre com os mesmos companheiros, para que se d eixem p rovo car por outras personalidades.
verd ad eir a integração num meio de vida, a fim de sentir, de dentro, o que acontece. Alguns alunos ficaram várias semanas no hospital do Hôtel-Dieu, em Paris, alimentaram os doentes
En fim, os autocursos fazem surgir, relativamente rápido, as fu nções d e u n s e de outros: o direto r, o autor, o ator . . .
e ajudaram os médicos. Outros se in tegrar am à vida de um quartel de bombeiros . . . A partir dessa vivência, constroem
todos surgem co m fo rça. Aquele q u e quer absolutamente o pod er n ão é necessariamente o que o obtém; uma cert a p er-
u m espetáculo curto, utilizando as formas teatrais que lhes
so n alidad e di screta p o d e revelar-se m uito presente e ser eleita, de fat o, p o r seus ca m ar adas. Nesse trabalho autônomo,
pareçam mais bem adaptadas para transmitir o que sentiram. Os resultados desses trabalhos são apresentados por ocasiã o
man ifestam -se todos esses m ovi m entos in tern os na vi da de um grupo . É u m a boa coisa que futuros at o res os d escub r am
das noites abertas ao público.
ao longo da Escola.
Diferentemente da improvisação, que se baseia principalmente na interpretação, os autocursos enfatizam a direção, a escrita de uma cena, e também o indispensável trabalho coletivo do teatro. No começo do primeiro ano, os alunos não se conhecem, são muito gentis, muito bem-educados uns com os outros. Ao longo do tempo, quando o comprometimento se torna mais vivo, as relações se transformam e todos os 146
I
14 7
111. Os caminhos da criação
I
Geodramática Ao fim d o primeiro a no, cerc a d e u m terço d o s alunos é selecionado para continuar o segundo ano. Ess a seleção p o d e ser difícil, às vezes dolorosa e nunca estamos livres d e um erro. N o entanto , tentamos ser o m ais justos p ossíve l, considerar o ator sem ferir a pessoa, e n ossa escolha não prej u lga o que os alunos poderão fazer em outro lugar, ou mais tarde. O p rincipal cr itério de seleção d iz respeito à capacidade de interpretação do ator. Iss o não significa que, n o fu t uro, todos vão escolher ser atores. Alguns seguem o u t ros caminhos, para a escrita ou para a direção, mas os territórios dramáticos abordados no segundo ano só podem ser realmente explorados por meio da interpretação, tratada em se u mais alto n ível. É p reciso, então, que os alunos deem prova de grandes qualidades nesse âmbito. Um verdadeiro conheciEspetáculo dos alunos.
mento do teatro passa inevitavelmente pela forte experiência da interpretação. 15 1
Ao longo do p rim eiro ano, te remos pla ntado as ra ízes, adubado o terren o, revolvido a terra. Teremos cumprido três
n o d o herói. O mist ério n os q uestion a so b re t udo aquilo que
viagens: de uma parte, a observação e a redescoberta da vida tal qual ela é, p or meio da reinterpretaç ão, graças à disponibi-
permanece in co mpreen sível , d o nascimento à m o rte, o antes e o de p oi s, o d iabo provocado r d os de uses e d o imaginário.
lidade da máscara neutra; teremos, de outra parte, elevado os
Enfim, o clow n te m a liberdad e de fazer rir, mostrando -se
níveis de in ter p ret ação, de jogo, com as máscaras expressivas; e, de ainda o u t r a, enfim, teremos explorado as profundezas
como é, em sua so lidão. Mas um perigo maior nos espia: as referências culturais
da poesia, das palavras, das cores, dos sons. O primeiro ano
que acomp anham esses territórios dram áticos. Cada um traz
constituiu um trabalho extremamente preciso, que vai ficar co m o refe rência: uma árvore, q ualquer que seja, será "a Árvo-
o seu im agin ário d o p assado, suas imagens, su as lei tu r as, e
re ". E vai ser p reciso continuar a observá-la sem parar.
m elodram a, a co mmedia d ell' arte ou a tragéd ia eram, mas
O segundo ano é muito diferente. Não se trata de uma seq uência lógica do primeiro, mas de um salto qualitativo para
quem p ode dizer com o realmente se encenav am as t ragé-
uma outra dimensão, para a exploração geodramática de vas-
referência p ode substituir a ve rdadeira cri ação, reinventada
to s territóri os, co m apenas um objetivo: a criação dramática. Primeiramente, abordamos as linguagens do corpo e as do
a cada dia na Escola. Para além dos estilos o u d os gêneros, buscamos descobrir os motores da interpretaçã o, em obra em
gesto. Em seguida, entramos nos grandes sentimentos do melodrama; depois, na comédia humana da commedia dell'arte.
cada território, para que inspirem a criação. Essa, sempre,
h ierarquia s. A t ragédia evo ca o gr ande can to do p ovo, o desti-
também seus clichês. Todo m undo pretende saber o que o
dias na Grécia? Ou, na It ália, a comédia italia n a? N en h uma
deve continuar sendo de nosso tempo.
O segundo trimestre é dedicado aos bufões, depois à tragédia e ao coro, e, por fim , ao mistério e sua loucura. O clown e as
Meu processo visa a favorecer a emergência de um teatro
variedades cômicas (burlescos, excêntricos, absurdos ... ) ocu-
em que o ator está em ação, um teatro do movimento, mas,
pam o terceiro trimestre. O ano começa chorando, passa pelo coletivo do coro e termina na solidão, no riso!
sobretudo, um teatro do imaginário. Ao longo d o segundo ano, não se trata mais apenas de ver e de (re)conhecer a realidade, mas de imaginá-la e dar-lhe forma. Abordamos esses
Um tal percurso explora as diferentes facetas da natureza humana: o melodrama nos leva aos grandes sentimentos,
territórios como se o teatro fosse para ser reinventado. A ênfase é dada à visão poética, para desenvolver o imagi-
ao espírito de justiça. Na commedia dell'arte, descobrimos a
nário criativo d os alunos. A dificuldade é não perder o essen-
comédia humana, as pequenas intrigas, a trapaça, a fome, o desejo, a urgência de viver. Os bufões caricaturam o mundo tal como ele é, enfatizam a dimensão grotesca do poder, das 152
cial, e saber as dinâmicas da natureza e das relações humanas que constituem os motores da interpretação, pois o público as reconhece. Essas dinâmicas são referências comuns, indispen153
sáveis tanto p a r a ato r q uanto p ara espectado r. Estão em ação
m eia-máscara, os objetos, o co ro ? Como funcionam as lin-
em todas as formas de teatro, inclusive nos mais abstratos. O real também está na abstração! Devemos permanentemente
gu ag ens, e co m o m isturá-las ? Enfim, a terceir a pergu nta trata d os tex tos. Quais textos
observar essas lei s dinâmicas d o teatro. É por isso que o se -
dram ático s podem vir a enriquecer a exp lo r ação d e cada ter-
gundo ano é p rincipalmente voltado para a escrita, no se nti-
ritó ri o ? O segund o ano é constru ído co m base nessa s t rês q u es -
d o de estrutura da in terp retação. Um ator só pode realmente interpretar quando a estrutura motora da in terpretação lh e permite fazê -lo .
tões, subentend idas p o r uma solic itação simples ao s alu n os: "Contem -nos u ma h istó ria! ".
Não ab ordamos o teatro em sua dimensão simbólica, tal qual se man ifesta em certos gr an d es teatros orientais. O teatro simbólico é um teatro acabado, co m o seria um cristal. Quando uma matéria está saturada, cr istaliza- se n u m a geometria estrita, imutável. Essa permanência caracteriza o nô jap o n ês o u o kathakali. Eles atingiram fo rmas completas, perfeitas, as mais apropriadas a seu grau de ex igência. Se os atores desses teatros devem, é claro, entrar n essas formas e alimentá-las, eles não têm de inventá-las. Eu prefiro t r ab alh ar com teatros cujas formas estão por v ir. Três séries de questões orientam nossa exploração geo -
dramática. A p rimeira diz resp eito às apostas no jogo da interpretação. O que, da natureza humana, é representado no melodrama, na co m m edia d ell 'arte, na tr agéd ia . . .? Quais elementos do comportamento h u m an o e qual co rpo se encontram, aí , postos em movimento? Quais são os motores dramáticos d esses territórios? A segunda pergunta refere-se às ling uagens. Quais sã o as linguagens mais apropriadas para exp ressar essas apostas? A 154
155
1. As linguagensdo gesto Da pantomima aos quadros mímicos Antes de abordar a exploração dos territórios dramáticos, começamos o segundo ano por um trabalho com as linguagens do gesto, com a expressão do corpo em diferentes direções. Essa abordagem destina-se a enriquecer todas as ex plorações que, em seguida, serão propostas aos alunos e vã o lhes oferecer uma base comum de linguagens. Na pantomima - té cnica-limite - os gestos substituem as palavras. Nela, onde no discurso utilizaríamos uma palavra, é preciso utilizar um gesto para lhe dar significado. Essa linguagem tem origem no teatro das feiras, em que era preciso fazer-se co m p reen d er num ambiente muito barulhento, mas sobretudo devido à interdição de falar, imposta à sociedade dos atores italianos, para não entrar em concorrência com a Comédie- Française. A pantomima nasceu de uma restrição, 157
co m o a exi sten te nas prisões, onde os detentos se co m u n icam p o r meio de gesto s; ou, ainda, como se faz n a Bolsa d e Valo re s
seu corpo, u m ator representa a porta, que o utro ator vai abrir
n os di as atuais. Essa té cnica, em parte t radi cio n al- pen samos em Deburau - é u m "beco sem saída" d o teatro, n a m edid a
ou um ator desenha virtualmente um a casa no espaço: o teto,
em que dela só se pode sair pelo virtuosismo. É preciso sa-
bl ico e para um personagem poder entrar ou sai r dela. Ainda
ber desenhar objeto s e imagens n o espaço, encont rar atitudes
q u e limitada, essa linguagem facilita uma abordagem técni -
simbólicas (algumas d elas existente s n o teatro oriental) ...
ca da art iculação dos gestos, q ue, na seq u ên cia, vai se revelar
Cham ei pa ntomima branca - te rmo emprestado das pan-
e fec har (o corpo de um torna-se, então, o cen ár io do outro) ; as paredes, as janelas, a porta, para ela tomar forma para o pú-
particularmente útil.
tomimas de época, em q ue se repres entava u m Pierrô - à p an tomima que se limita a fazer gestos p ara t raduzir palavras.
Os quadros mímicos, lin gu agem muito próxima do cin e-
Essa té cn ica u tiliza p r incipalmente gestos de mãos, levados por at itudes d o co rpo. Impõe, inevitavelm ente, uma sintaxe
ma, em sua sequência, restituem, pelo gesto, a dinâmica co nt ida n o interior das imagens. Não se trat a aq u i de representar,
difere nte daquela da linguagem falada. "Você é b o n ita, venha
sozin h o, palavras ou objetos, mas d e exp res sar co let ivamen te
comigo, vamos n adar" passar á a ser: "Você e eu . .. vo cê boni-
imagens. Imaginemos u m p ersonagem q u e desce a su b te r r â-
ta ... ir juntos . . . nadar .. . ali". Na construção d a frase, estamos
neos escu ros u tilizan d o apen as uma vel a. Os atores poderão
n u m a ló gica diversa, q u e obriga a um esclareciment o, uma
re presentar a cham a, a fu m aça, as sombras nas p are d es, os
economia e u m a precisão daquilo que se q uer dizer.
d egraus d a escada . . . Todas as im ag ens p oderão se r sugeridas
Frequentemente, os alunos tendem a refazer gestos da vida
pelos atores em movim ento, num jogo silencioso . Um d os
cotidiana, que parasitam a linguagem da pantomima. Mas esta so licita gestos-limites, que vão além d o cotidiano, inse-
primeiros exercícios consiste em encadear imagens, corno as que fizem o s, u m dia, d o m onte Saint-Michel, p o r exemplo .
rindo-se num tempo diferente do da linguagem falada. Outra armadilha está na careta, utilizada para substituir cada pala-
Os alunos começavam a dar forma ao monte. visto de longe. primeira
vra. É p reciso t r ab alh arm o s para retornar ao rosto -máscara,
pelas mãos.depois pelo corpo. sozinhos ouj untos. Em seguida. eles nos
que pode mudar de expressão ao longo da frase, segundo os
faziam entrar progressivamente na imagem. O espaço se ampliava SGb
sentimentos que são expressos, mas não a cada palavra.
nossos olhos. avançávamos pela estreita faixa ligando o continente à ilha. deixando o marbater de um lado e deoutro. Entrávamos no átrio da
A figuração mímica, segunda linguagem estudada, desta ve z consiste em rep resentar pelo corpo, não mais palavras,
cidade fortificada. caminhávamos na rua estreita. Assim que estávamos
mas objetos, arquiteturas, elementos decorativos de cena. São
gens. norestaurante.chegávamos aoprato. uma omelete.paraacabarmos
oferecidas duas possibilidades p rincipais: por exemplo, com
sendo devoradosj untamente com ela.
158
diantedo restaurante LaMerePoulard.entrávamos.por meiodesuas ima-
159
Um tal travell ing, em co n tinuidade, impõe a utilização de um repertório particularmente variado de gestos. Notemos que certas imagens virtuais realizadas hoje em dia por um computador utilizam o mesmo mecanismo. Nos autocursos, peço a um grupo de alunos que reconsti tua um filme inteiro, sem palavras, unicamente com gestos. Os quadros mímicos podem fazer referência a todas as técnicas do cinema: primeiros planos, p lanos gerais, flash -back. . . enfim, tudo o que constitui a linguagem moderna das imagens, com seus ritmos, seus flashes meteóricos, suas elipses, trans postas aqui numa dimensão teatral. Aprofundando essa pesquisa, viemos aí explorar os gestos escondidos, as emoções, os estados profundos dos personagens, que expressamos pelas mímicas. São, de algum modo, "doses" sobre o estado dramático interno do personagem. Sem nunca representar os sentimentos, nem explicá-los, o ator propõe gestos instantâneos que, numa outra lógica, expressam o estado do personagem num dado momento (tipo de aparte corporal numa fase da representação ).
160
meteóricos fazem o público ver um "eco" do medo que o personagem
sente e que. evidentemente. os outros protagonistas nãoveem. O s contadores-mímicos aplicam essas diferentes lingu a gens às narrativas falad as. A propo sta consiste em contar uma h istória , alter nando (às vezes associando) essas diferen tes linguagen s com uma narrativa. Ist o p ode ser feito indiv id u almente (o mesmo ator é, ao mesmo temp o , n arrador e mímico ) ou em grupo, quando u m co ntad or é ass ociado a vários mímicos. Exploramos ess a relação em todas as suas dimensões, d a m ais íntima (o contad o r-mímico d e mesa, que representa com as mãos) até à utiliz ação d o maior espaço (os contado res -mímicos de tablado, acompanh ados de músicos, de um coro, d e u m herói ... ) . Esse t rabalho se insere na gran de tradição d o s co n tadores, que exist e em n umero sos p aíses , na China ou n a Africa, onde a n arrativa é ac o mpanhada de sugestão de imagens. Em todas essas propostas, o s alun os descobrem diferentes formas de linguagens mímicas: a linguagem de situação (estou sentado lendo um livro, alguém arranha a porta, eu me
Alguém tem de ir ao seu superior hierárquico para pedir-lhe alguma
viro. Arranha mais ainda, sinto medo. A porta se abre . .. um
coisa. Chegando diante da porta. vê-se invadido por uma sensação de
gato entra! ); a linguagem de ação (ca rrego um saco de batatas,
inquietação. "O que vou lhedizer?" Neste momento preciso. gestos vêm
levo-o nas costas. Eu o ponho no carro, entro no carro, dou
darimagem a esse sentimento. Não gestos explicativos. descritivos do
a partida e vou embora); a linguagem de sugestão (olho Paris
estado. mas movimentos mais abstratos que permitem exteriorizar
a partir da colina de Montmartre, e sugiro tudo o que vejo: a
elementos naturalmente escondidos no comportamento cotidiano. Ele
leveza d o ar, os tetos d o s prédios, a to rre Eiffel. Faço co m que
bate na porta. entra. sente medo. Aqui o ator ainda não representa o
as imagens existam fora de mim, de modo impressionista); a
medo tremendo ou balbuciando; esse medo que o habita é posto em
mímica profunda (encontrar gestos para dizer o q ue não tem
gesto. por eie mesmo ou por um ou vários outros atores. Esses gestos
imagem, de um espaço in t er io r ). Ao longo do ano todo, es161
sas linguagens servirão para os " teatr os curtos " desenvolvid os na Escola. Alguns vão co nservar esses tipos de linguagem em suas experiências teatrais futuras. No plano pedagógico, tal trabalho no começo do ano faz com que o grupo todo entre no jogo de modo progressivo e técnico. É uma espécie de aquecimento, antes de mergulhar nos territórios dramáticos. O importante é não ficar na d imensão técnica das linguagens, mas de sustentá-la, sem cessar, com estados dramáticos. De nada serve saber interpretar um sol, se a dinâmica solar estiver ausente d o gesto! De nada serve sugerir a lua, se a p alidez não aparecer no ritmo d o m o -
2. Os grandes territórios dramáticos
vimento!
o melodrama OS G R ANDE S SE NTI MENTOS
Na Esco la , o melodrama nasceu p or volta de 197 4, em resposta a uma questão que na época me preocupava muito: " Por que, quando alguém diz uma coisa em que acredita, alguns aceitam o que é dito, enquanto outros caçoam?". Diante dessa questão, decidi explorar as duas vias possíveis. De um lado, "crer em tudo", no amor, na família, na honra. Pedi aos atores que debatessem para impor essa convicção ao público, o que fez aparecer o melodrama. Por outro lado, eles "caçoaram de tudo", de Deus, da Guerra do Vietnã, da aids, e isso fez com que nascessem os bufões. No melodrama, todos os grandes sentimentos estão em jogo: o bem e o mal; a moral com a inocência, o sacrifício, a 162
163
traição .. . O objetivo é chegar a uma in terp retaçã o suficientemente forte p ara que, a partir da exp ressão desses grandes
cionante. Quem vai abrir a porta? Como se dará o recon h ecimento do soldado e de sua mulher? Como encontrar o tempo
sentimentos, os espectadores sejam levados às lágrim as. Re-
justo da descoberta, da surpresa? Os alunos têm uma situa-
almente buscamos fazer ch o rar. Mas tal dim en são só p o d e ser atingida se os personagens acreditarem efetivamen te em
ção para ser construída e u m timing muito específico para ser controlado. Por outro lado, eu me in teresso pelo jogo
t udo, com muita fo r ça, até o sacrifício . É o b em co n t ra o mal, a coragem diante da covard ia, a moral co n t ra a corrupção.
dos atores. Eu lh es peço que acreditem fortemente naquilo que in terp retam , para que o público também possa acreditar
Com o tem p o, cada vez mais, os alu nos aderiram a esse ter-
I
ri tório melodramático e a seus temas de moral e de justiça.
4
nisso. Não se trata, nunca, de enfatizar o aspecto dramático, para cair no clich ê melodramático, mas sim de pôr em cena uma situação de todos os tempos, que encontramos, aliás, no
O melodrama traz à baila o arrependimento, o remorso, o rancor, a vergonha, a vingança. H á sempre u m a referên-
I
teatro de Ruzzante, ou no de Brecht.
cia ao tempo, e é por isso que, no território melodramático,
Para aprofundar essa pesquisa, o tema é dividido em subte mas. Batem na porta, há uma reação! O soldado entra, sua
impõem-se dois gr an d es temas principais: O Retorno e A Partida. Começamos por trabalhar O retorn o do soldado, tema
mulher o reconhece! Cada sequência é analisada de modo preciso, com os alunos se alternando nas diferentes fases da
muito antigo do teat ro p o p ular.
interp retação.
Após vários anos na guerra. umsoldado reencontra sua casa isolada na planície. numa noite de inverno emqueneva muito... Ele batena porta. Alguém abre. Perto da lareira. ele encontra sua mulher. dois filhos... e um novo marido. Ela o havia dado como morto. mas o reconhece. Ele também. mas nada dizem. Ele pede abrigo para aquela noite.Éacolhido. reconfortado. aquecido... Por ocasião de cenas em que o soldado estará sozinho com diferentes personagens. descobriremos. ao longo da improvisação. que uma das crianças é sua. a outra não... Finalmente. como a mulher parece feliz. o soldado parte.
Nesse trab alho, dois elemen tos ch amam a aten ção d o pedago go . Por um lado, a sutileza do jogo tá ti co, que permite dirigir o foc o à surpresa, ao ritmo, às rea ções. Tu d o aqu i é represen tado n o olhar, nos silên cios, de m odo muito ern o 164
A p artida para a América, que proponho em seguida, corresponde ao gran d e tem a do exílio. Um siciliano deixa sua ilha, levando uma velha mala amarrada com b arbantes. D ep oi s dos adeuses dilacerantes, no p o rto d e Palerma, ele par te para a América p ar a faze r fortuna. (Há nos Estados Unidos cidades que se ch am am Fo rtuna, Eureka, gr itos qu e ess es exilados deram quando ali cheg ar am !) Enco n t ram os esse te m a em sit uaçõ es m ais atuais, p or exemplo: a d o t rab alhad or africano que deixa seu vi larejo p ara vir à Fr an ça gan h ar o p ão qu e vai alimen tar sua fam ília, d eixan d o -a atrás de si p ar a isso. N esse tema "rnu ltip istas ", deixo q ue os alun o s escol ham as sit u aç õ es q ue desejam explorar. Eles podem t anto t rat ar d a parti da em si, da chegad a nu m local novo, das dificuldades encontrada s, 165
quanto da familia que ficou no pais de origem, da carta que chega. Podem passar de um tema a outro, em contraponto ou
-[ 1
em paralelo, como bem entenderem. Com os temas do melodrama, tocamos a tragédia do povo, dos homens diante de suas dificuldades para sobreviver, muito diferente do que será a grande tragédia, na qual vão confrontar-se com os deuses! Uma das principais dificuldades que persegue o aluno é o medo de assumir, realmente, os grandes sentimentos diante de um público que, às vezes, pode rir disso. O trabalho do melodrama obriga o ator a impor suas convicções em público. Ele não pode duvidar daquilo que vai dizer. O que para ele é verdade também o será para o público. É muito importante que os alunos sejam treinados para assumir essa dimensão. Evidentemente, se devem pôr em cena uma paródia, porque o autor assim o pediu (Alfred Iarry, por exemplo), eles não
LIUBOV ANDREIEVNA - Dentro de dez minutos já não estaremos aqui... (Com o olhar acaricia a sala.) Adeus, meu velho e querido lar! Passará o inverno e quando chegar de novo a primavera você desaparecerá da face da terra... será demolido! Quanta coisa viram estas paredes! (Beija a filha com carinho.) Minha querida filhinha, meu tesouro! Como você resplandece ... Os olhos são como dois diamantes . .. Você está feliz, não é? Sim? ÁNIA - Oh, muito, mãezinha, muito! Pois uma nova vida começa agora! 1
1
f
I 1
Encontramos, nessa passagem, a dinâmica dos adeuses, que havíamos estudado na máscara neutra. Na cena, os personagens deixam a casa onde viveram, seja com arrependimento, seja com esperança. Para descobrir a diversidade dos pontos de vista possíveis, estudamos todas as maneiras de fazê -lo: rindo, sem voltar-se para trás, rompendo com o passado, com um grande olhar nostálgico ...
devem, de jeito nenhum, instalar-se numa interpretação que seja a paródia da paródia. É preciso evitar, enfim, as armadilhas preparadas pelos cli-
A forma de linguagem que melhor corresponde ao ter-
chês. Falar do melodrama em nenhum caso quer dizer fazer
ritório melodramático inspira-se nos quadros mimicos. Ela acentua os atalhos indispensáveis e utiliza uma linguagem
referência a um estilo de interpretação, mas, sim, descobrir e ressaltar aspectos específicos da natureza humana. O melo drama não é uma forma antiga; ele está, hoje em dia, ao nosso redor, na casa daquele que espera que o telefone toque para um novo trabalho, numa família atingida pela guerra, na casa de um homem que deixa seu país ...
l
j !
emflash, constituída de imagens meteóricas - que diminuem tem p o e espaço - que o público hoje em dia está habituado a reconhecer im ed iatam en te. Associa, então, a imagética melodramática - as crianças abandonadas nas escadarias das igrejas - e as formas modernas do cinema. Chamo isto de melomimica.
Para enriquecer esse territó rio , trazemos textos dramáticos que lh e correspondem. Pode ser uma cena de O jardim das cerejeiras, de Chekhov. 166
Anton Chekhov, "La Cerisaie", acte V, trad. Génia Cannac et Georges Perros (Paris: L'Arche, 1961). ["O jardim das cerejeiras", V Ato, em Teatro Il, trad. Gabar Aranyi (São Paulo: Veredas, 2003). (N. T.)]
167
f
f
A commedia deU'arte COMÉDIA HUMANA
A commedia dell'arte e suas máscaras foram introduzidas na minha pedagogia desde o começo da Escola. Infelizmente, ao longo do tempo, surgiram clichês, uma maneira dita "à it aliana" de representar começou a se expandir. Jovens atores fizeram estágios de commedia dell'arte aqui e acolá, e a interpretação empobreceu-se. O próprio termo começou a me inco modar. Fui levado, portanto, a virar do avesso esse fenômeno, para daí descobrir o que havia p or trás dele, ou seja, a
comédia humana. Desde então, tomando um caminho muito mais amplo , encontramos uma grande liberdade de invenção.
i! ,
.!
Nesse território, estão em jogo as grandes trapaças da nat ureza humana: fazer acreditar, iludir, aproveitar de tudo; os desejos são urgentes; os personagens, em estado de "sobrevivên cia". Na commedia dell'arte, todo mundo é ingênuo e esperto; a fome, o amor, o dinheiro animam os personagens. O tema de base é preparar uma armadilha, por qualquer motivo: para ter uma garota, dinheiro ou comida. Rapidamente, os personagens, levados por suas bobagens, encontram-se presos em suas próprias intrigas. O fenômeno, levado ao
I t
i
t
extremo, caracteriza a co m éd ia humana e evidencia o fun -
1
do trágico que traz dentro de si. Longe do clichê saltitante, Arlequim realmente tenta compreender o que está acontecen-
i
do com ele, sem conseguir. Surge, então, o limite da natureza humana: por que não somos mais inteligentes para compreender melhor? Todos os personagens têm medo de tudo: de ser apanhados, de errar, de morrer ... É esse medo profundo
I !
16 8
Pantalone, más cara utilizada p or [acqu es Lecoq.
q u e faz nascer a avareza d e Pantalon e: ele guarda tudo! Este fundo trágico é um elemento essencial, que M oliere usa em
desconfiar da mecânica e voltar, sempre, às situações em que a co m p lexa humanidade dos personagens pode aparecer.
suas peças. Inicialmente, peço aos alunos que fabriquem suas pró-
A commedia dell'arte é uma arte da infância. Passa-se
prias meias-máscaras. A primeira instrução é a de realizar a
muito rapidamente de uma situação a outra, de um estado a
meia-máscara de um personagem que gostariam de interpre-
outro. Arlequim pode ch orar a morte de Pantalone e, rap id a-
tar, sem nenhuma referência à commedia dell'arte. A partir
mente, alegrar-se co m a so p a que está pro n ta! N isto, a co m -
de máscaras muito simples, progressivamente eles adicionam
media constitui um território muito cruel, mas so b retudo um
um nariz, uma cor, um bigode . .. Descobrimos juntos o pos-
territ ó r io fabuloso para o jogo. Os tem as propostos são parti-
sível jogo dessas máscaras, suas características, as lig ações que
cularmente simples: Arlequim se coça ou A rlequim come espa -
elas podem te r umas co m as outras. É apenas num segundo dell'arte: Arlequim e Pantalone, e também Brighella, Capitão,
guete, Pantalone conta seu dinheiro. Alguém chamando alguém pode tornar-se um grande tema, com a condição, evid en temente, de que o que é chama d o não venha! Entre o ch amad o
D outor, Tartália . ..
d e um e a ch eg ada do outro, pode existir muito teatro.
m omento q ue trago as máscaras tradicionais da commedia
Da tradição, ficaram dois personagens principais: Arle-
Nem tod os os temas p od em ser trabalh ados em im p rovi-
quim, o servidor, e Pantalone, seu patrão. Pouco a pouco, o
sação . Alguns imp licam uma preparação que os alu n os reali-
Arlequim primitivo, conhecido como zanni, ingênuo e ma-
zam n o s au tocursos. O p edagogo está ate nto a dois elementos
roto, oriundo dos campos de Bérgamo, tornou-se travesso, inteligente, intrigante. Em Moliere, ele se ch am a Scapino, de-
comple men tares: d e um lado, o ro tei ro , a h ist ó ria , os p on-
pois de uma evolução, durante mais de dois séculos, do perso-
tos de p assagem obrigatórios d os atores quando improvisam juntos; d e outro, e isto é m ais importante, ele tem de insistir
traficante de riquezas vindas do Oriente Médio, é muito in-
n o m o tor d a interpretaçã o. O m o tor, não é o qu e interpretar, mas como é p reciso interpretar. Quais são as força s que estão
teligente. Ele é ro ub ad o "por amor", achando, ingenuamente,
em jogo? Quem puxa? Quem empurra? Quem se puxa, quem
que é sempre amado por belas moças. Daí a piedade que se
se empurra? Quem é puxado, quem é empurrado? Responder
pode ter por ele. Essa d im en são t rágica no cômico faz o público rir, jamais os personagens.
a essas perguntas simples é dar u ma dinâmica ao percurso. Se
Se os roteiros são a estrada a ser seguida, a q ual pouco a pou co foi detalhada com o público, e se esta estrada se afir-
mico e b uscará o relevo indispensável para a interpretação. Essa d inâmica sobe ou desce, nunca permanece horizontal e,
mou com a tradição t r ansmitida de pai para filho, é preciso
na commedia dell'arte, ela ultrapassa os comportamentos co -
nagem. Pantalone, mercador de Veneza, homem de negócios,
170
o roteiro for linear, de um ponto a outro, o motor será dinâ-
17 1
tidianos, para atin gir uma dimensão imaginária . N ão rimos,
fazem, mas co n statei que, com suas p róp r ias máscaras, eles
morre mos d e rir ! Na com media d ell ' ar te / co m édia humana, o estilo de in-
ficam mais livres para adaptar os princípios de tal interp reta-
terp retaç ão é leva d o ao m áxi m o, as situações levadas a seus
sa t r ad ição ch eg a e os p ertu r b a.
ção. Assim q u e se fala de Arlequim ou de Pantalone, a preten-
extremos. O ator atinge u m nível m u ito alt o de interpret açã o, e o p úblico p ode observar as co nsequ ên cias de um com p o rta-
ROTEIROS E TÁTICAS DE INTERPRETAÇÃO
m en to ... até a morte. Neste caso, fals a! Prioritariamente, meu olhar repousa na capacidade dos Pantalone está em casa. contando seu dinheiro. É avisado de que al-
alunos em desenvolver um se nso tático de in terp retação .
guém chegou e quer vê-lo. Ele pergunta quem é. Não se sabe! "Ele é
Como chegam a su bir ou descer uma situação? Como condu-
altor Sim! "Velho?" Sim! ~Ela anda assim?" Sim! Então elesabe quem é:
zem uma in versão de situação (o ladrão roubado . .. )? Como
seu amigo Brigante quevem lhe pedir de volta o dinheiro emprestado.
trabalham numa troca rit m ad a d a palavra? A língua italiana é
"Nào quero vê-lo" , elediz. Tarde demais. Brigante já entrou. Abraços...
mais adequada para isso do q u e a fr ancesa, mais ent reco rtad a,
"Caro amigo. que prazer..:' Representa-se a comédia da amizade.
menos fluida.
Depois disso, chegam os lazzi. Trazem uma cadeira:
~Que
linda!". dirá
Uma das dificuldades encontradas com as meias-máscaras
Brigante,já calculando quanto elacustou. "É uma cadeira muito velha".
é a ligaçã o co m a voz. No primeiro ano, os alunos p o u co fa -
responderá Pantalone...
laram e, de rep en te, surge u ma grande lib erdad e da p alav r a.
Aqui, o m otor principal d a interpretaçã o será "aprecia r/
Agora tend em a u ti lizar suas própr ias vozes, o q u e é im p o ssí-
dep reci ar". Um fará questão d e depreciar o que possui, en-
vel co m a m áscara. O trabalho co n sist e, p o rt anto, em en co n -
quanto o o u t ro tentará apreciar tudo aquilo que poderia lhe
t rar a vo z d o personagem, uma vo z pública, n a d imensão d a
pertencer. Em seguida, Brigante tentará falar da razão pela
interpretação com máscaras. Assim co m o, co m uma m áscara,
qual veio: o pagamento d a d ívida, enquanto Pantalone evitará o assunto, falará de o u tra coisa , desvi ará a co nversa. Este será
é impos sível movim en tar-s e como fazemos n a vid a co tidiana,
o grande motor do rodeio, até o momento fatídico em que
ele sej a essen cializado. Com ela, o próp rio te xto está mascara-
Brigante chega e diz: "Me dê o meu dinheiro!". E Pantalone morre de infarte! Para depois ressuscitar, é claro, assim que
do! Não há nenhuma p ossibilidade de interpre tação psicoló-
Brigante sai em busca de um médico, pois a m orte, aqui, não
os aman tes represen tam sem máscara.
co m u m a meia- m áscara, n ão se p ode dizer um texto sem que
gica. O d iálogo tende ao botte e risposte (gol p e e resposta), q u e
passa de um estratagema. Os alunos podem interpretar esse tipo de tema tanto com
Os personagen s d a comédia italiana navegam permanen-
as máscaras tradicionais quanto com as que eles mesmos
temente ent re dois p olos contraditórios. Arlequim é, ao mes-
172
173
m o temp o, ingênu o e malicioso, o Capitão é fo r t e e m edroso ,
o
o Doutor sabe t u d o e não conhece n ada, Pan talone é, ao m es m o tempo , chefe da empresa, senho r de si e totalmente louco n o amor. Lev ada ao máximo, essa dualidade é extremamente nca. N a commedia d ell'arte, morre-se d e t udo: d e inveja , de fome, de a mor, d e ciúme. Nesse se ntido, esse t erritó rio dramático prolonga o que a v id a traz. O nível da int erpretação se rá, p ortanto, levad o ao m áximo, até à acro b acia. No entant o, como é impo ssível manter-se sempre n o estado ex tremo d o sentimento - não se pode morrer ou ter fome permanentemente -, o personagem é sempre brutalmente levado de um sentimento a outro. Aquele que ri demais ac aba chorando: as sim, podemos constatar que, ent re e o riso e o choro, os gestos são os mesmos. Arlequim que ri ou que chora rola pelo chão d o mesmo jeito! Os lazzi constituem o principal espaço da interpretação da commedia dell'arte. Num liv ro de commedia dell 'arte, o momento mais interessante é aquele em que não há nada escrito, o que significa lazzi . Apenas o ator, por meio de seu jogo e de sua presença cômica, pode fazer com que exista essa parte d o t exto . A precariedade aparente do roteiro deve-se à dificuldade de pôr no papel o que se deve fazer para ser engraçado, tocante, convincen te . Falt a o ator em ação. A grande diferença entre as gags e os lazzi é que estes sempre têm uma referência
A razão .. . O de ver. .. A MULHER: Salvou-a. o H O MEM : Liberou-o. A MULH ER: Bárbaro! O H O MEM : Miserável! A M ULHER: O que você disse? o H O M E M : O que você m urmurou ? A M U LHE R : Eu disse que te odeio. o H O MEM: Eu disse que te detesto. A MULHER: Que não posso mais te ver. o H O ME M : Que nã o posso m ais te suportar. A MULHER: Você rejeita esses laços.. . o H O MEM: Você rejeita esses grilhões .. . A MULH ER: Que você considerava de ouro. O H O MEM : Que você considerava de diam ante. A M U LH ER: Eles se revelaram falsos. o H O MEM: Na verdade eram de vidro. A M U LHER: Ferro dourado! o H OMEM: Diamantes falsos! A M U LH E R : Foi por isso que os despedacei. o H OME M: Foi por isso que os quebrei. A MU LHER: Agora estou contente! o H OME M : Agora estou livre ! A M U LHER : Vai, joga fora esses laços! o HO MEM: Vai, acaba com esses grilhões! A MULH ER: Estou livre! o H OMEM: SOU independente! A MULHER: Fora da escravidão! o H O MEM: Por cim a de qualquer obstáculo! A MULHER: O nó está desfeito! o H O MEM : OS laços, destruídos! 2 A MULHER:
I
H O MEM :
humana. A gag pode ser puramente mecânica ou absurda, sair de uma lógica para propor uma outra, o lazzo sempre enfatiza um elemento da humanidade dos personagens. 174
Const ant Mi e, " Le mépris contre le m épris", em La com m ed ia dell'ar te (Paris: La Pleiade, 1927). [Tra d uç ão livre p ar a o português.]
175
convidados. Eles põem a mesa e começam indicando o lugar de cada
interpretação se dava de pai para filh o , de m odo muito es truturado. Os comediantes italianos tinham um repertório de
convidado, depois põem-se a imaginar. progressivamente. todo o menu
interpretação que utilizavam nos bons momentos. Quando
que será servido. Do pequeno prazer das entradas à maisextrema gu-
o Piccolo Teatro apresentou, em Pa ris, Arlequim servid or de
lodice. para terminar totalmente saciados... imaginarão um imenso
doi s amos, de Goldoni, Giorgio Strelher era extramemente es-
festim. do qual. logicamente, nunca participarão.
trito em su a d ir eção e intencionava respeitar tudo o que fora escrito. Um dia, quando ele estava ausente da sala, os come-
Arlequim e Eriguela estão encarregados de preparar a refeição para os
Na commedia dell'arte, principalmente realista, igu almente os objetos est ão em jogo d e modo fabular. O b astão
diantes alongaram o espetáculo em vinte minutos. O diretor encolerizou-se ao descobrir essa permissividade!
de Arlequim p od e servir-Ih~ de r ab o, pode su b stituir sua mão quando ele quiser saudar alguém .. . sem tocá -lo . A b olsa de Panta lone p o de ficar pend u r ad a ent re as pern as. O objeto,
A técnica d o corpo que aplicamos é a de todos os teatros de máscaras, em tod o o mundo. Nessa forma de teatro, para
aqui, nunca é um simples ac essório, ele permite o d ese nvol-
q ue o corpo fale ao público, afirmamos, ele tem de se r per-
vimento de um imaginário muito forte . É p o r isso que n unca
feitamente articulado. Criei, portanto, uma ginástica para o
fazemos mímica d os objetos, nós os utilizamos, re almente.
Arlequim. A dimensão acrobática está igualmente presente, justificada, co m o sempre, pelo drama. Quando Pantalone,
Da commedia dell'arte real, ficaram p o ucos te xtos, sal vo os roteiros e os botte e rispo ste. Ab ordam os, assim, p ar a-
raivoso, d á um salto m o r t al para trás, o público n ão d eve d izer: "Que belo salto mor tal!", mas "Q u e raiva!". Para chega r a
lel amente os autores que se serviram desse terreno: Moliere,
u m tal n ível de co mprometim en t o físic o e just ificar tal ges to,
Ruzzante, Gozzi, Goldoni, e também Shakespea re ou G o et he.
é p reci so uma carga emotiva extr ao rd inár ia e, ao mesm o tem-
É imp ressionante ver quantos autores, em suas obras poéticas,
po, u m perfeito savoir-fa ire técnic o d e salto mortal.
fo r am in flu en ciados pelos comediantes italianos que percorriam a Europa. Minha prefer ên cia pedagógica vai ao começo
O s ex ager os m ais co rrentes são os gritos , as gesti cu lações, a super in terpretaçã o in ú ti l. Quando os alu nos n ão são
da commedia dell'arte, com Ruzzante. Chegamos também
su ficien te m en te fo rtes par a atin gir o n ível de interpre ta çã o
ao M oliere das p ri meiras peças, o das farsas, e não o M oliere
exigido, em vão ele s tentam compensar iss o pelo grito. Por isso, dificilmente ato res muito jovens ac eitam a co mmedia
mais psicológico, de Dom [uan ou O Misa ntropo. commedia
dell'arte. Aos 20 an os , os alunos ain da não têm a vivê n cia necessária, falta -lhes especialmente a d imensão trágica, ele-
dell'arte à noção de impro visação. Mas ali nada havia de
mento constitutivo im por tante desse territó ri o. Se, apesar de
improvisado. Ainda que inventassem variações, a prática da
tudo, fazemos esse trabalho n a Escola , não é para uma u tiliz a-
Associa-se
co m
demasiada
frequência
a
177 176
ção imediata, mas para que guardem a lembrança desse n ível
de interpretação em seus corpos e mentes, para que possam servi r-se disso mais tarde. Pesquisar uma commedia dell'arte contemporânea foi , muitas vezes, o sonho de pessoas de teatro. Alguns desejariam renovar os arquétipos para inseri-l os na atualidade social ou política. Esse procedimento sempre me pareceu discutível, pois, historicamente, na commedia dell'arte, as relações so ciais são imutáveis. Há os senhores e os servid ores, m as o propósito não é mudar a sociedade. Trata-se de mostrar a natureza humana em sua comédia feita de trapaças e de comprometimentos, indispensáveis à sobrevivência dos personagens. Arlequim não faz greve: ele dá um jeito! Pantalone nunca decreta falência, ainda que o simule! A commedia dell'arte está em todos os lugares, em todos os tempos, enquanto houver patrões e servidores indispensáveis a seu jogo. Esses elementos permanentes da comédia humana me interessam, para que os alunos - que, evidentemente, são "contemporâneos" - possam inventar o teatro de seu tempo.
Os bufões
o MISTÉRIO, o GROTESCO, O FANTÁSTICO Respondendo à minha in terro gação sobre o comportamento daqueles "que não acreditam em nada e zombam de tudo': os bufões passaram, ao longo desses anos, por uma evolução m uito grande. Sua abordagem diversificou-se, dando acesso a um território muito vasto que era preciso descobrirmos. 178
Os bufões do mistério.
mente zombar do outro, imitando-o. Quando alguém anda
máscara. Diante desses corpos bufonescos, os personagens paro diad os aceitavam mais facilmente que "loucos" zombassem
na rua, basta imitar seu jeito para que apareça a zo mbar ia e a
deles; era mais inconsequente. Não havia conflito algum entre
paródia. Acontece o mesm o co m a voz, com o comportam ento . A imitação constitu iu u m primeiro n ível, relativamente
o b u fão e aquele de quem ele zombava. Retomamos aí o trad icio n al "bobo da corte", q u e, longe de estar realmente imerso
gentil, do sarcas mo bufã o. A segunda etapa fo i zo m bar não apen as d o q u e o outro
na lo u cu r a, pode expressar todas as verdades. Num corpo de b ufão, aquele q u e zo m b a pode tomar a palavra e dizer coi-
fazia, mas, sobretudo, d e su as convi cções mais p rofundas.
sas inacreditáveis, até caço ar do "incaço ável": da guerra, da
Eu p edia a alguém , p o r exemplo , q ue fizesse ao p úblico u m discurso se nsato, uma apresen tação cien tífica o u m atem áti-
fome no m undo, de Deus. Os bufões nos fizeram co n h ecer a aids, antes d e que todos tomassem consciência dessa doença.
ca, e, durante esse tem p o, um o ut ro personagem se encarre gava de fazer o público rir, imitando o orador. Fazend o
Puderam representar a procissão da "morte do amor" e, na transposição bufonesca, fazer-nos aceitar o inaceitável.
A primeira etap a foi a da paródia. Consistia em simples-
isso, observei que, quando um perso nagem em t r ajes urb a nos zombava d e o utra pesso a vestida d o mesmo modo, isso se to r n ava insuportáv el. Esse p rocedimento atingiu m u ito
Observei que aqueles que zombam assim de tudo, inclusive dos valores mais for tes, abriam espaço para o mistério
rapidamente uma forma d e maldade , difícil de ass u m ir, e
d as co isas. Eles atingiam o grande terr itó rio da tragédia. Seu
pareceu-me indispensável difere n ci ar quem zomb a: ele n ão pod ia ser idên tico àquele q ue er a mot ivo d e zombar ia. Ele
sarcasmo migrava para o trágico, um pouco como a violên cia do texto de Steven Berkoff at inge, no fim das con tas, a
tin ha de ser o u t ro. Pro cu rei, então, fabr ic ar u m outro co rpo, u m corpo d e
beleza. Esse fen ô m en o fo i para mim uma grande descoberta. En tão m e perguntei: d e onde vinham esses bufões? Eles não
bufão . .. inflado . . . gordo! Pedi aos alunos que se transformas-
podiam vir d e um espaç o re al ista, da rua, do metrô. Eles vêm,
sem , aumen tan do nádegas, barrigas . A partir d aí surgiram
então, d e o u t ro s lugares: d o mistério, d a noite, d o céu e da
formas m u ito interessantes: algumas m oças muito m ag ras,
terra! Sua função não co n sistia em zombar d e um in d ivíd u o
desconfo rtáveis com seus corpos, começaram a dar vida a enormes figuras, com peitos grandes, nádegas go rdas. Inver-
em particular, p orém, de m odo m ais ger al, de todos n ó s, da sociedade em geral. Bufões se d ive r tem, p oi s se divertem o
samente, destacamos os corpos longilíneos, compridos, de
tempo todo , imitando a vida do s homens. Fazer uma guerra, lu tar, estripar-se o s deixa felizes. No entanto, eles nunca
o ut ros alu nos. Por meio dessa t ransformação corporal, nesse co rpo reinven ta d o e artificial, de repente eles se sentiam m ais livres. Ousavam fazer coisas que jamais teriam feito com seus próprio s corpos. Nesse sentido, o corpo inteiro tornava-se
representam a guerra na cronologia lógica d e u m a h ist ó ria que se desenrola. Eles trazem u m texto p articular: aquele que mata o outro se d iverte tanto, q ue ele pede p ara fazer d e novo. 181
180
~~~·~"""""""' ~l
1
E eis que se m at am , mutuamen te, rep etidam en te, apenas pelo
Vimos bandos de pequenos bufões trazer até n ós a enorme
p razer. Para interpretar! Apareceram, então, os atalh os, as elipses específicas da
cabeça de um profeta, já sem corpo, q u e, antes d e desabar to talmente, vin ha anunciar o m isté ri o . .. N os bandos, também
interpretação dos bufões: aquele que estava ferido era ra-
descobrimos a figura d o inocente, que pode passear n o meio
pidamente t ratado, levado ao h ospital. Para que o h ospital
d os o u tros, sem nunca alterar a o rdem das co isas. Estranha
existisse, era preciso mortos. Pa ra que houvesse mortos, era
figura. Um erro necessário!
preciso que se matassem. Pa ra que se matassem, era preciso
Ao longo do tempo, os bufões fizeram surgir algumas
que fizessem uma guerra .. . Esse tipo de situação mostrava
grandes famílias: a do m istério, depoi s a do poder e, p o r fim,
o caráter absurdo da organização da vida dos homens. Os
a mais louca e manifesta, a da ciência. Essas t rês famílias nos
bufões falam essencialmente da dimensão social das re lações
levam a determinar, hoje em d ia, três territórios diferencia-
humanas, para denunciar o ab su rdo disso. Eles fal am também
d os, q uase autônomos: o mistério, o grotesco e o f antástico.
do poder, de sua hierarquia, in ve rtendo -lhes os valores. Cada bufão tem alguém acima dele e alguém abaixo. Ele admira um
o
m isté rio gira em torno da crença, q uase religio sa. O s
e é admirado por outro. Apenas aquele que estiver n o limite mais baixo dessa hierarquia não é admirado por ninguém. É
b u fões d o mistério são ad ivin hos. Eles conhecem o futu ro. Sabem quando o fim d o mundo v irá e podem anunciá-lo.
ele quem vai pixar "Abaixo as armas" nas paredes dos banhei-
Conhecem o mistério qu e vem antes d o nascimento e o que
ros, ú nico meio de expressar o ridículo. Aquele que detém
está depo is da m orte. São os p rofetas.
o poder - o príncipe, o diretor, o presidente, o rei - decide, quando quer e por simples capricho, que aqui a guerra já durou o suficiente e que agora é preciso fazê -la em outro lugar. E todos o seguem! Na verdade, os bufões funcionam na inversão dos poderes: o mais débil dirige. A partir dos bufões solitários, pesquisamos como eles podiam reunir-se, para descobrir que viviam em bandos. Um bando de bufões, idealmente, é constituído por um grupo de
Os bufões do mistério chegam à noite. em procissão, dançam ao som de percussões, aquecendo. assim, o espaço. Trazem consigo a Palavra adormecida. Os diabinhos despertam seu profeta que, como iluminado, se ergue para anunciar o fim do mundo. Os bufões fazem mimica das imagens do Apocalipse e se divertem fazendo paródia. Após ter visto o futuro, a Palavra desmorona. Ela é levada noite adentro ao som de tambores. Neste momento, grandes textos do mistérioe de sua beleza são ditospelos bufõesdo diabo.
cinco pessoas, e nele pode haver uma verdadeira conivência.
Eles falam como Ió, que interroga o céu; como Dante, em
Mais do que cinco, já é o coro que surge, mas voltaremos a fa -
A divin a comédia. Os bufões ingleses residem em Shakespe-
lar disso. Um bando de bufões é dirigido por um chefe. Todo
are. Fizemos os bufões dizerem os maiores textos dos maio -
o bando está aí para ajudá-lo a formular o que ele vai dizer.
res poetas. Quem, melhor do que um bufão, pode dizer um
182
183
texto de Antonin Artaud? Paradoxalmente, ele será mais bem co m p reen d id o nessa forma do que em todas as outras, ditas "poéticas". O maiores lo u cos são os poetas! Os grotescos estão próximos da caricatura. Eles se aproxi mam dos p ersonagens de nossa vi da cotidian a, como alguns desenhos humorísticos podem representá-los. Jam ais questionam os sentimentos ou a psico logia , m as semp re a função
Ah, dá-nos crânios de brasas Crânios queimad os pelos raios d o céu Crânios lúcidos, cr ân ios reais E t raspassad os pela tua p resen ça Faz-nos nascer nos céus de dentro Cober tos d e p reci pícios em torren tes E que uma vertigem nos atravesse Com uma unha in can d escente
social. Os desenhos de Daumier, nas séries sobre as profissões, têm essa dimensão. No repertório tea t ral, um personagem como Ubu, de Iarry, pertence a esse mundo. Hoje em dia, surgem co m fo rç a os f antásticos. Apoiam-se
Sacia-nos, tem os fome De comoções intersiderais Ah, derrama em nós lavas astrais No lugar de nosso sangue
especialmente no mundo eletrôn ico, cien tífico , mas também n a imaginação mais alucinada. Vimos p ersonagens com vá rias cab eças, h o m en s- an imais, b u fõ es co m a cab eça n a barriga. Aqui são possíveis todas as lo ucuras: elas co ns ti t u em a liberdade do ator e sua b eleza . O te rmo buf ão cobre, portan to, agora, um te rritório ex t remamen te vasto, cujos contornos n ão podemos delimitar de m odo definitivo. É p o r isso que peço aos alunos a m ais
D esamarra-nos. Divide-nos Com tuas mãos de brasas co rtantes Abre-nos essas vias ch amej an tes O nde se morre mais longe qu e a morte Faz n osso cérebro vacilar No cer n e de sua própria ciência E arranca- n os a inteligê n cia Com as garras d e um novo t ífon?
ampla exp lo ração desse terreno, a fim de que se aventurem sucessivamente nessas três grandes direções. Ass im sã o obr igados a não ficar na primeira imagem, mas comprometer-se verd ad eir am en te co m a cr iaçã o. Vamos deixar claro que um bufão não pode pertencer, ao mesmo tempo, a três registros, m as n os bandos, n o entanto, algumas m isturas sã o possíveis. O fantástico pode ladear o mistério ou, ainda, um bufão do mistério pode metamorfosear-se num grotesco, e passar do primeiro ao segundo sem que se saiba muito bem qual dos
~ton~ Artaud, "P riere" [O ração J, em Obras comp letas: Tric- Trac d u ciel, 1 (Pan s: Gallímard, 1970). [Traduç ão livre par a o p ortuguês.]
184 18 5
d ois re presenta o o u tro. Um ban d o d e bufões fan t ásti cos entra em cena . . . de repente se transforma num bando de pequenos
para que por si sós descubram os elementos que acabo d e evo car e, eventualmente, t ragam outros.
grotescos. Situação incômoda, em que o público perde a segur ança de sua lógica, para atingir uma outra dimensão!
Começo, co m o sempre, p elo co rp o. A primeira abord agem é m uito simples: peço a cad a um que desenhe um b ufão
o OUTRO CORPO
num a folha de papel. Neste momento do trab alh o, os alunos não sabem absolutamente nad a d o que far em o s, nem o que
A linguagem específica dos bufões apareceu com a pesqui-
ess e te rritório significa. Ca da um desenha seu bufão co mo
sa dos gestos e das ações que este "o u t ro corpo" podia faze r.
imagina, e, em segu ida, o rga nizo u m a leitura co m en t ada
Alguns se aproximaram do corpo humano, no espírito d o bo-
d os desenhos. Identifico r ap idam en te os qu e têm u m a visão
neco da Michelin, tipo de bola h umana desmesurada; outros se distanciaram disso co nsideravelmente. Uma de minhas
"cultural" da co isa: p equenos guizos nas pontas dos ch ap éu s cônicos, lem b r anças carnavalescas . . . Há, ainda, os q u e se en-
grandes descobertas foi constatar como a dimensão interna-
caminham para a loucura, com cabelos eriça d os ... Embora
cional da Escola aparecia com força, pelo fundo bufonesco
conservados, esses de senhos não sã o u tilizad os. Eu os d evolvo
que cada cultura traz. A América do Sul expressou seu caráter
aos alun os no fim do percurso, como um elemento d e refle-
fantástico, com seus animais voadores, seus homens-animais.
xão pessoal. Sem comentário .
Os franceses reencontraram seu fundo rabelaisiano de cozi-
Em segu id a, eles têm de criar, co rporalmente, seu b u fão. Tra -
nheiros bons vivants. Os bufões ingleses estão próximos das
zemos tecidos, enchimentos, ro up as, objetos, faixas, cordões, e
figuras de Hogarth. Os espanhóis vivem a tragédia da festa.
cada um tenta livremente inventar seu corpo d e bufão. Juntos,
Os italianos estão na dança, no canto e na música. Os nór-
procuramos os m ovimentos que os animam. O s que têm as ná-
dicos são mais misteriosos, entre o dia e a noite, na loucura
degas gordas dive rtem-se fazendo -as balançar, o utro s brincam
do crepúsculo. A Alemanha trouxe seus grandes mitos fan -
com seus longos rabos, ou se coçam com suas unhas desmesura-
tásticos. Os asiáticos fizeram renascer os dragões e os diabos.
das. Nessa fase do trabalho, in sisto para que os figurinos n unca
Esse territó r io dramático, certamente mais do que os outros,
sejam definitivos, nem muito elaborados. É im p ortante que se-
evidencia as profundas diferenças culturais dos alunos.
jam provisórios, relativamente sumários, descartáveis, e que possam evoluir na pesquisa antes de, eventualmente, cumprir seu
Do ponto de vista pedagógico, o território dos bufões é
objetivo e chegar a uma forma mais definitiva.
particularmente difícil de conduzir, principalmente por estarmos permanentemente em busca de procedimentos de
Ninguém é mais criança do que um bufão, nem mais
criação. É preciso, portanto, pôr os alunos em movimento,
bufão d o que uma criança. É por isso que, paralelamente
186
187
, ao trabalho com o co rpo de cada u m , encaminhamos, pela improvisação, uma fase preparatória à dimensão bufonesca, com o tema A Infância. Tentamos reencontrar a infância por diferentes abordagens. Um primeir o tema proposto é o da praça onde as crianças brincam, numa caixa de areia, de polícia e ladrão, de pega-p ega .. . Buscamos todos os comportamentos possíveis nessa situação: a brincadeira, a maldade, a te rnura, a briga, a p osse, o riso. Não se trata de representar exteriormente personagens infantis, n em de mergulhar na infantilidade, mas de reencontrar o estado de infância, sua solidão, suas exigências, suas pulsões, sua busca de regras, todos elementos que, na obra, vã o est ar na dimensão bufonesca. Em seguida, proponho que as crianças representem os adultos. Eles brincam de papai e mamãe, brincam de avião, mas p odem também brincar de gu erra, um pouco como faziam as crianças do Líbano, com as metralhadoras de madeir a. Depois disto, inverto a proposta, sugerindo que os adultos
brinquem como as crianças. Os guardas de fronteira: cada um de um la do de uma corda posta no chão - quem p isar na corda tem de arrumá-la, etc. Muito rapidamente, descobrimos que essa brincadeira denuncia muito fortemente o gosto da posse e do poder sobre o Outro. Em seus rituais, os bufões não invocam o céu , cospem nele! Eles chamam as forças d a terra. Estão do lado do diabo, no nadir. Saindo da terra, assumem forma humana. Inventam ritos que lhes pertencem, totalmente incompreensíveis para os profanos que somos. Cumprem estranhas procissões, cerimônias particulares, desfiles com tambores. Um bando de bufões pode começar a bater com o pé, a dançar, a cantar, a 188
proferir elucubrações, sempre de modo r itual, muit o organ iza do. Ne sse caso, os p r óprio s at ores não sabem o q ue fazem, mas o fazem! Ess es ri to s não p rovocam n enhum conflito, pois n ão exist e ri validade entre bufões. Nunca u m ent re eles ficar á com raiv a d o o utro. Estão n u m a hierarquia muito o rgan iza da e ace ita. H á os q ue batem e o s que apanham. E está tudo bem . O s que devem apanhar pedem mais, gostam disso. Ca d a um sus ten ta e aceita sua posição na sociedade dos bufões, que é, para eles , a so ciedade ideal. Logicam ente, essa so ciedade é a n os sa! Os bufõ es se mpre vêm d ian te d o p úb li co para r epresentar a so cied ad e. A partir d aí, todos os temas sã o p oss íveis: a guerra, a televi são, o Conselh o d e Min istros o u qualquer outro evento d a atualidade, fontes inesg otáveis de inspiração e de interpretaçã o. Às vezes, fantasiam -se d e personagens de nossa sociedade: p õem um quepe, uma roupa religiosa e se aventu r am a representar esses personagens. Mas o fazem à sua maneira, volt an do sempre ao bufão inicial, que sempre se diverte com o personagem que representa. Se decidem representar o sindicalismo, nunca entrarão na ps icologia de tal o u tal perso nagem conhecido, como o fariam os cômicos da televisão, mas representarão de modo provocativo. Farão uma manifestação, com eles mesmos passando, alternadamente, ora do lado do s manifestantes, ora d o lado dos policiais, apenas p or prazer. O trabalho dos bufões está ligado a um espírito de brincadeira, adaptável a diferentes situações. Tudo aqui está na maneira de fazer, n o texto propost o, n o nível da in terp reta çã o. O s aluno s escrevem seus textos numa outra lógica. Se 18 9
ab ordam uma situação, os bufões vão deformá-la, torcê-la,
Atragédia
colocá-la em jogo de modo não habitual. Num texto, apenas pelo prazer, poderão repetir dez vezes a mesma palavra, avan-
O
CORO E O HERÓ I
çar, recuar. Eles vão bufonizar a situação. Estamos n o puro
A tragédia é o maior territó rio dramático e o m aio r teatro
reino da loucura organizada! Como ocorre no segundo ano todo, esse trabalho explora
que est á para ser feito. N a Escola, n ós a ab o rdamo s a partir
um território completamente desconhecido. As referências,
que aplicamos principalmente numa perspectiv a pedagógica.
quando existem, vêm depois. Se às vezes pudemos dizer "Tal
Lo nge de uma abordagem histórica da tragédia antiga, de seus
interpretação fa z pensar em Jerônimo Bosch, nos mistérios
supostos códigos, procuramos reinventar o que pode ser uma tragédia nos dias de hoje.
da Idade M éd ia, no carnaval. .. ': essas referências nunca estiveram em mente no começo dessa aventura. O que hoje sei
de descobertas que eu havia feito sobre o co ro, em Siracusa, e
dos bufões descobri na prática do corpo em movimento, na
O território trágico permance uma grande inte rrogação acerca da relação com os deuses, com o destin o, com a trans-
improvisação, e não nos livros nem em uma tradição que nos
cendência. Algo bem diverso de uma questão de seita ou de
di taria não sei que tipo de savoir-faire. Os bufões, por nature-
rel igião! Hoje, quando se encontram maravilhados diante do cosmos, os homens de ciência estão bem mais p róximo s
za, impõem urna pedagogia da criação.
dessas questões. Estão diante de um mistério que leva o hoAo fim dessa exploração, algumas questões ficam, ainda
mem para além de si mesmo. Fundamentalmente, a mesma
hoje, sem resposta. Os bufões podem ser autossuficientes?
pesquisa está na origem do território da tragédia e de sua
Podem, sozinhos, constituir um espetáculo? Ou funcionam paralelamente à tragédia? Podem intervir na tragédia? E, inver-
aproximação com os bufões. Como os deuses nos dias de hoje desapareceram, os bufões ocuparam seus lugares e os substi-
samente, até que ponto a tragédia pode intervir no território
tuíram. Esperamos que eles queiram ir embora um dia, para
dos bufões? Para tentar responder a essas questões proponho abordar sucessivamente os bufões e d ep o is a tragédia, antes
dar lugar a uma outra coisa: a inserção do homem, ao mesmo tempo, na sociedade e no cosm os, sem conflito . . . Artistas e
de tentar todas as misturas possíveis. Tenho a lembrança, ex traordinária, de um b an d o de bufões q u e, como servidores,
cientistas estão aí para levar adiante essa missão!
traziam em seus ombros um coro trágico, punham-no diante de um público e depois desapareciam. O coro, então, entabu-
Para os alunos, a grande experiência da tragédia é a desco berta dos laços. Eles descobrem o que verdadeiramente signi-
lava um texto de tragédia grega. Visão sublime!
fica "estarem ligados", ao mesmo tempo juntos e num espaço. Falar por meio da boca do outro, na voz comum do coro, é estar totalmente e ao mesmo tempo ancorado na realidade
190
19 1
de u m personagem vivo e experimentar um a d imensão que tran scen d e o ser h umano. Todo o trab alh o d o ato r co n siste em estabelecer uma ligação entre esses d o is polos, aparentem ente contraditórios, entre os quais ele pode ficar di vidido. D oi s elementos p rincipais estruturam o território d a tragédia: o coro e o herói. Um coro entraem cena. ao som depercussões que dão ritmo aocoletivo. Ele ocupa todo o espaço. depois se postdone numa parte dopalco. fazendo isso. elelibera umnovo espaço e cria uma espécie dechamado ao herói. Mas quem pode vir a ocupar esse espaço? Qual equilíbrio se pode encontrar. hojeem dia. entreum coro e umherói?
A fim de nos prepararmos para a experiência do coro e do herói, conduzimos u m trabalho preliminar com as multidões e os oradores. A multidão é tratada por meio de improvisação. O primeiro tema proposto co n siste em representar o Hyde Park, o parque londrino onde, todo domingo, pessoas sobem num estrado e tentam ch am ar a atenção dos transeun tes e apresentar-lhes um d iscurso.
o coro trágico .
Imaginamos uma grande praça onde todo mundo passeia e pedimos a um aluno que chame a atenção dos outros. de todas as maneiras possíveis. Quando ele consegue. tem de convencer da importãncia do assunto polêmico sobre o qualele defende um ponto de vista em que acredita: favorável ou não. ao aborto. imigração. energia nuclear! A natureza do discurso importa menos do que a capacidade do ator de captar seu público.
193
Insisto para que os alunos verdadeiramente interpretem, conscientes de que defendem um ponto de vista não neces-
noite de Natal, interpretado por um ator alemão diante de uma multidão em continência, com suásticas nos braços. In-
sariamente seu. Essa distância me parece essencial: vale mais, na interpretação, ser favorável à pena de morte quando se é
terpretação um pouco difícil de suportar. Outra lembrança: "Catalunha livre!", sermão pela independência da Catalunha
pessoalmente contra, ou vice-versa! Notemos que, às vezes,
lançado a partir do terraço da Escola, com os transeuntes
essa improvisação é também um momento de verdade para o próprio ator: assim que o público se entedia, ele vai embora.
ajuntando -se para compor a multidão que escuta .. . Por meio dessas experiências, os alunos experimentaram
Num segundo momento, esse exercício é complementado
o nível emocional que reúne multidão, orador e texto. O
pela entrada de um segundo personagem, que vem se opor ao primeiro, proferindo argumentos contrários. Constituem-se,
orador anuncia o herói; e a massa, a humanidade do coro. A
então, dois grupos, cada um à escuta de um dos oradores: eles começam a fo r m ar as premissas do coro. Determino, fi-
interpretação, o mesmo salto se opera entre a interpretação psicológica e a interpretação com máscara. O coro trágico é
nalmente, um "m aest r o", um diretor improvisado, exterior à
uma multidão levada ao nível da máscara.
passagem da multidão ao coro significa um salto no nível de
interpretação, que ajuste o todo da improvisação e ponha ordem nessa grande confusão, dê a palavra alternativamente a um e outro orador, também à multidão, e assegure, assim, a
Como o coro está sempre reagindo a um evento ou a uma palavra, fazemos um trabalho preparatório, que trata do coro
organização rítimica da interpretação.
reativo. Um grupo de alunos recebe a instrução de fazer o público entender o que ele está vendo, unicamente por suas
o
texto trágico não se improvisa. Ele pede uma escrita. Para dar voz aos oradores, abandonamos, então, a improvisa-
reações a um evento: um jogo de futebol, um filme, uma tourada . ..
ção e chamamos os grandes textos da vida pública: o discurso de Angela Davis; os textos de André Malraux por ocasião da mudança das cin zas de Jean Moulin ao Panteão; ou Charles de Gaulle proferindo "Viva o Québec livre!", em Montreal; o de Martin Luther King . . . enfim, tod os os grandes discursos que carregaram multidões. O ator que vai dizer o texto re co n stit ui com os outros alunos o lo cal e o ambiente onde ele foi pronunciado. Organiza a en cen açã o n o espaço da Escola, e interpreta a situ ação . Tivemos, co m essa proposta, alguns momentos memoráveis: o discurso de Hitler aos SS, numa 194
Um grupo deespectadores, dos camarotes deum teatro depalco italiano. assiste a uma encenação. Acortina se levanta. opalco se ilumina, o espetáculo começa. Chega a grande cena deamor entre Romeu e Julieta.As reações dos espectadores são suficientes para nos fazer imaginar o que está acontecendo em cena: um olhar mais atento no levantar da cortina, uma aproximação sensivel de dois atores ao reencontro dos amantes, um leve movimento derosto...
Vários personagens e situações devem ch eg ar até nós por meio do coro reat ivo . Um procedimento d ifíc il e d eli cado, pois 195
.,...,.,...,... :
não basta apenas ver a co isa e, menos aind a, "pantorn imá -Ia",
bloco estático. Cinco, a partir daí começa a haver movimento,
mas é preciso, também, encontrar a linguagem para que o pú-
mas cad a u m se encontra in d ividu alizado. Seis, não se pode
blico perceba a dinâmica e a emoção d o que está acontecendo.
mais perder tempo, é precis o rep arti r em do is p ara fazer duas
Para que isso convença, todos os meios são válidos, especial-
veze s três. Sete é u m número interessante: um corife u p ode
mente a linguagem analógica, que chamamos de dupla ima-
surgir, acompanhado p or d oi s m eio- co ros de três. O ito é u m
gem. Nesse caso, uma imagem aparece paralelamente a uma outra: um lenço cai no palco . . . o programa de um espectador também! O que acontece n os camarotes é análogo à situação
número d uplamen te m assivo. Com nove co m eça a m u ltidão: Dez é a dezena . . . até doze, a de zen a! Em tre ze, o coro começa
no palco, com uma grande sutileza.
a n asce r. Quatorze é um n úmero "inamovível", sempre falta al-
uma co mpanhia de nove pessoas p arte em todas as d ir eções.
gu ém. Q u inze, como no rugby , é o n úmero ideal: um cori feu, O co ro é o elemento essencial que, sozinho, permite o sur-
do is meio-coros de sete, q ue designam dois subco rifeus e m o vi-
gimento de um verdadeiro espaço trágico. Um coro não é geo -
mentos maravilh osos q u e se tornam p ossíveis. Para além di sso,
métrico; ele é orgânico. Como um corpo coletivo, possui um
é a invasão, inevitavelm ente milita r. Para de scob ri r e constatar
centro de gravidade, prol ongamentos, uma respiração. É um
essas ev idências, proponho um exercício simples.
tipo de célula que pode assumir formas diferentes segundo a situação em que se encontra. Ele pode ser o mensageiro de con-
Um grupo dealunos ocupa todo oespaçodasalaandando. Ao sinal.eles
tradições, seus membros podem, às vezes, opor-se entre si, em
se reúnem a dois. três. cinco. sete. etc.
subgrupos, ou, ao contrário, unir-se para, juntos, dirigirem-se
Ju ntos, observamos como chegam a orga nizar-s e e com o ,
ao público. Não consigo imaginar uma tragédia sem coro. Mas
em seguida, esses grupos podem, ou não, se r postos em m o -
como reunir esses personagens? Como fazer viver esse corpo
vim en to. Outro tipo d e exercício: Um coro se m ovimen ta, sem
coletivo? Como fazê -lo respirar, movimentar-se como um or-
qu e se saiba quem o di rige. A regra interna, qu e o público não
ganismo vivo, evitando a coreografia estetizante ou a geometria
conhece, mas que os alunos descobrem, é que aqu ele que d i-
militar? Elemento dos mais importantes de minha pedagogia, o
rige é n ecessariamen te o que é vis to p o r todos os o u tros. Ou
coro constitui, para aqueles que dele participaram, a mais bela
ainda: Fazer o coro respirar, alarga ndo ao m áx im o as distâ nci as
e emocionante das experiências teatrais.
entre seus componentes. Para além de uma certa distância, o coro não existe, ele explode. Eis o limite da r uptura, tã o caro aos arquitetos.
O coro constitui-se de um grupo de sete ou quinze pessoas. Esses números são precisos, pois cada número traz em si uma dinâmica específica. Uma pessoa é a solidão. Duas correspon-
Na interpretação trágica o coro prevê, aconselha, toma as
dem a alguém e seu oposto . Três são uma unidade. Quatro, um
dores, está presente, mas nunca se compromete com a ação.
196
197
Lembremos que o co ro grego original não estava no mesmo
mas co m o elem en to d e referência p ara to d a a co ns ti t u ição es-
plano que os atores. Apresentava-se em outro espaço e, rea-
p acial de u m gr u p o. O co ro é a ordem d o movimento.
gindo, fazia a relação entre o público e os h eró is. Na tragédia grega, aliás, nunca vem os os embates: o coro apenas reage a histórias, fatos. A grande lei do coro trágico é a de nunca ficar do lado da ação, mas sempre no da reação. O coro é, afinal, marcado pela sabedoria. Sempre se fala do coro dos velhos, mas não são necessariamente velhos personagens arcados sobre suas bengalas, os sábios são os mensageiros simbólicos de uma sabedoria im em o rial. N o co meço, o coro não é mist o, trabal ham os separadamente o coro dos homens e o d as m u lheres. Os mais belos co ros são sempre os das mulh eres, pois elas têm um profundo sentido de coesão e de solidariedade. Elas são a garantia do essencial.
o
E Q UILÍ B RI O DO PRATI CÁVEL
O nascimento d o coro começa com um d os m ais belos exercícios inventados na Esc ola: O equilíbrio do p raticável . Trata-se de um jogo baseado n o equilíb rio e d esequi líb r io de um praticável, posto em m o vimento p elo deslocamento dos ato res. Um praticável de fo rma re tangular é d elimit ado p or bancos de 2 metros de comprimento. D ez bancos (dois p ara cada largura, três para cada co m p rimen to ) envolvem o espaço, sobre os quais vêm sentar-se o s p articipantes . O espaço de jogo deve se r obrigatoriamen te u m re tângu lo e n ão um círculo, p ois o círculo só permite um ú n ico m ovim en t o
Os movimentos dramáticos de um co ro podem ser de -
ve rdadeiro: rodar! (A arquitetura da M ais on de la Radio, d e
terminados por sentimentos ou apoiar-se nos movimentos
Paris, prova isso! ) Ou, então, surge uma atmos fera ri t u alísti-
trágicos da natureza. As matérias, especialmente, oferecem
ca , com um fogo no centro, e todos q ue o cerc am participam.
uma lin gu agem trágica que pode ser utilizada. Uma pedri-
É por isso que o teatro é difícil d e ser representado em u m a
nha de açúcar que se desmancha, um p ap el que é amassa-
arena. A pista do circo é feita para caval os e não p ar a per-
do, um papelão que se dobra, um pedaço de madeira que se
sonagens, não permitindo nenhuma din âmica. O ret ângu lo ,
rompe, um tecido que rasga . . . são alguns dos muitos movi -
inversamente, permite todos os grandes caminhos d inâmicos ,
mentos profundamente trágicos. A partir daí, é interessante
as retas, as paralelas, as diagonais, que liberam e estrut u r am
dissolver u m co ro t r ágico , amassá-lo ou r asgá -l o . Reinves -
múltiplas possib ilidades dramáticas.
timos aqui, por analogia, tod o o t r ab alh o d esenvolvid o no primeiro ano co m as id en t ificaçõ es d as mat érias.
Esse praticável retangular é imaginado em equilíbrio so bre u m eixo central. Um ator, sozinho, que toma um lugar
O grande risco é chegar a um co ro militarizado, organi-
na parte cen t r al, conserva o praticável em equilíbrio. Se ele se
zado demais, lim p o , cla ro, em que todo mundo anda ju nto,
posicionar fora dessa parte, põe o praticável em desequilíbr io,
porém sem vida. Os dir eto res, em geral, gos tam m uito d esse
fazendo co m q ue se in clin e. É preciso, então, que um segun-
trabalho, n ão apenas para p ô r um co ro em se us espetáculos,
do ator intervenha para restabelecer o equilíbrio, escolhendo
198
199
um lugar favorável em fu n ção d o primeiro. Os jogadores, n o começo, estão repartidos em torno do praticável , e considera-
Uma vez bem compreendida essa reg r a, o que dem an da u m lo ngo tempo d e exp eri mentação, p o d em os m odificar o
se que, apesar de suas diferenças, todos têm o mesmo peso e
esp aço, aumen tan do o praticável (40 centím etros suplemen-
valor. Não vamos interpretar uma historieta de um praticá-
tare s entre os b ancos). M as , sobretudo, p odemos n os ocu p ar
vel re alista em m ovimento, mas buscaremos ter a sensação
com a qualidade do jogo e trabalhar as noções d e tempo e de
de plenitude e de vazio, sensação sentida ao mesmo tempo
espaço. Entre o público e os jogado res, instala- se uma rel ação secreta, que não é feita de nenhum a relação d ire ta mas d e uma prese n ça comu m no espaç o. Sen tad os n os b an cos, os p ar tic ip antes sentem perfeit amente se o tempo e o esp aço represen tados são jus tos , eles "sabem" se est á longo ou curto demais, se os lugare s tomados são bons. O público é o depositári o d esse saber e, apenas com sua presença, ajuda os jogadores a m anter os tempos justos. Ele vê os erros daquele que q uer entrar n o p rati cável, mas não h á lugar p ar a ele . Esses erros são, aliás , n ecess ários e devem ser aceitos, para que o jogo continue, p o is as d istâncias e os tempos não são geométricos. Constatamos que os at o res tomam instintivamente lu gares que se situam numa geometria elementar, ligada a um número. Em três, eles tendem a formar um triângulo equilátero; em quatro, um quadrado; em cinco, um círculo. Essas posições, já observadas nas improvisações psicológicas silenciosas, não permitem nenhuma situação dramática representável. Elas só podem ser justificadas por um ritual que tenda ao monumental. Daí a pesquisa de uma repartição diferente dos lugares, com ritmos capazes de fazer viver situações dramáticas. Um ator pesa mais na periferia do praticável do que no centro, daí a necessidade de uma d ist r ib u ição diversificada dos lugares para equilibrá-lo. Estar progressivamente de acordo com o tempo, com o espaço e com os outros, tal é a aposta desse jogo.
por aqueles que estão n o praticável e por aqueles que ficam sentados n o s bancos. 1=)
Uma primeira regra serve debase. Oprati!ável estávazio. ~A~ levanta-52 e toma uma posição no centro (que nãoé o ponto preciso de lntersscção das diagonais. mas um pequeno território vivo. no qual ele pode deslocar-sesemprovocar inclinação). "A~ "esquenta" o espaço para que ele comece a existir; depois. quando o tempo lhe parece adequado. decide deslocar-se. causando um desequilíbrio do praticável.
~B~ .
entào.
levanta-se e toma um lugar no praticável para reequilibrá-Io. A partir deste momento. o jogo é desencadeado e é ~B ~ que vai conduzir: ele se desloca para diferentes Jugares. seguindoritmos pessoais e. a cada vez."A" deve restabelecer o equilíbrio. também mudando deposição. Quando se faz necessário. "A" decide não mais responder ao desequilíbrio de ~B ". o que provoca um novo desequilíbrio do praticável. chamando a entrada de "t", Esse terceiro jogador terna-se. então. o novo condutor dojogo. "A" e "B~ reagem a seus movimentos para manter o equilíbrio. até que decidam. por sua vez. juntos. mas sem combinação. nàomais fazê-lo.Eles provocam. então. umnovodesequilíbrio que leva à entrada de um quarto jogador. etc. Ojogo se prolonga. assim. com um número crescente de atores. que restabelecem sem parar o desequilíbrio provocado por aquele que conduz. quando os outros não respondem mais. 200
201
Fazem o s acontecer, depois, diversas ações dramáticas, em função d os lugares to m ad o s p elos ato res . A relação d e espaço entre eles decide a situação. A palavra p o d e in ter vir em certos momentos de imobilidade d o s atores. O jogo entre os ato res p ode ser direto se p ermanecerem unidos p el os ol h ares, ou
da parte de cad a um, uma gr an d e sensibilidade em rel ação aos outros. Vemos frequentemente d ois pretendentes a co r ifeu ficarem diante do herói: u m está sobrando!
realizamos a encenação de uma peça não escrita. O equ ilibrio
o equilíbrio do prati cável pede u ma concentração ex t re ma; a duração d o exe rcício n ão p ode u ltrap assar um a h ora por seção . Numerosas variantes pod em ser imaginad as, com di -
do praticável é o exercício de to das as encenações.
ferentes estilos d e jogos, poden do ir de u m realismo mais co-
indireto se seu s olhares se d ir igire m para for a. Fazendo isso,
1=1+ J... Uma segunda regra. vinda da primeira, permite o nascimento, diante doherói.de umcoro e de seu corifeu. Na primeira regra, cada ator tem o mesmo peso (l=l); na segunda. o ator que entra é equilibrado pelo peso de todos os outros (1=)+1+...). O começo doj ogo é o mesmo: "A" entra no praticável. depois faz entrar "B", que conduz. "A" decide, em seguida. fazer com queentre "C e, nestemomento, a regra muda. Uma vez encontrado seu ponto de equilíbrio, "[" espera que "A" e "8" se reúnam num ponto de equilibrio. A partir deste instante, "A" mais "8"
ti diano até u m a tr ansp os içã o com m ásc aras. Alguns desvi os , regularmente, chamam a m inha atenção: "a quele q ue guia no lugar do outro': "aquele q u e ro ub a a en trad a do outro", "aquele que falsamente acredita estar n o b om lugar': "aquele q ue não ac eita ceder o seu lugar': "aquele que n ão sente que tem p o passa': "aq u ele q u e h esita e perde o lugar ': "aqu ele q ue, ao co n trári o, entra n o p alco embora não h aja lugar p ara ele " . " Cad a um d esses desvios provoca um erro mínimo e q u eb ra o jogo. O
têmj untos o mesmo peso que "C". Cada ator que entra em sequência
palco. até o momentoem queo oitavo que entrar conduzirá umgrupo
Tive a o por tun id ade de ap licar esse trabalho do co ro em várias circunstâncias, especialmente com Jean Vilar, no Teatro
de sete. Ele será o primeiro herói. diante doprimeiro coro.
N acio nal Popular, quando ele representava o corifeu do coro
provoca o reagrupamento de todos aqueles quejá se encontram no
de A ntígona . Como eu colaborasse com a encenação, Vilar me Quando quiser, o herói deixa-se cair n o chão, dando as -
perguntou o n de devia se p osicionar e sugeri que ficasse no
sim o sinal da explosão do coro. Então, seis atores se retiram
fu ndo do palco, escondido n o coro, para surgir com força só
do espaço, para deixar um, im óvel, diante do herói: o corifeu terá sido, assim, deixado pelo coro; exclusivamente ele terá o
quando o coro fosse embora. Fiz uma coisa semelhante na Itália no teatro de revista Quem está em cena? quando toda a
direito de falar em nome de todos. Insisto no fato de que o
companhia, umas sessenta pessoas, representava na primei-
corifeu é escolhido pelos outros, quando se retiram: não é ele
ra cena uma festa popular em Roma, com seus cantos e suas danças. De repente, a sirene de alerta soava, como em Roma,
quem, destacando -se, decide sua função. Este momento preciso do exercício é particularmente difícil de realizar e solicita,
cidade aberta, de Rossellini, e a multidão ia embora, para dar
202 203
preencher o esp aço deixado p elo vazio da solidão. Havíamos en trea ber t o u m a p o r t a.
lu gar, no m eio d o palco, à grande Ana Magn ani, imóvel em sua pequ ena saia preta , cantando uma canção d o Traste vere, popular bairro de Roma. Belas lembranças!
A
N ECES SIDAD E DOS TEXTOS
Na tragédia, d iante da le i divina, do destino, os homens
A dim ensão trágica é a bor d ad a a part ir d e texto s a ntigos
não são responsáveis por seus atos, estão nas mãos dos deuses,
ou m odernos e não apenas de te xtos escrito s especificamente
que tudo conduzem. As paixões humanas, o gosto pelo poder, o ó d io , o amo r, o ciúme. . . vêm desafiar as vontades d ivinas e conduzem os heró is à morte. O povo, sempre presente, assiste a esses eventos e tece comentários. Se, no caso do coro, foi possível fazê-l o ren ascer, a questão d o herói re velou-se muito mais
para coro s, mas t ambém de outro s texto s que nos ajudam a
I
atin gi r uma dimensão excepcional de expre ssão . U ti lizo , lo gicamente, o s grandes textos gregos, Ésquilo , Eurípedes, SÓfocles, e também Racine o u , m ai s próxímo s d e n ó s, Antonin Artaud, Bo tho Strauss, M ich el Azama, Steve n Be r koff. Utili-
delicada. A partir do m omento em que não se desejava ficar
zo também o magnífico texto de uma t ragédia da n at urez a,
com os modelos antigos, que havia uma recusa ao herói mo-
escrito por Leonardo da Vinci p ara d escreve r a dinâmica do
n ument al que n os impõe uma certa imagem da tragédia, qual person ag em suficientemente forte podia opor-se, hoje em dia,
d ilúvi o , antes de pintá -l o (ver página seguinte). N osso objetivo não é o de chegar a uma encenação co m -
a um coro em movimento? Qual poderia ser o herói de nosso
pleta, mas de concentrarmo-nos na constituição do coro e n o
tempo? Essa busca em direção a uma humanidade do persona-
comprometimento d o corpo e d a voz. Entramos nesses tex -
gem levou-nos, durante vinte anos, a múltiplas pesquisas.
tos pelo corpo. Sem nunca passar por um trabalho "d e mesa': tomamos os caminhos da mimodinâmica. Como havíamos
Paradoxalmente, foi o melodrama que fez surgir o herói
feito com a música e com a pintura, ag ora são os textos que
moderno. O homem de todos os dias, que vive sozinho em
são explorados. Pedimos aos atores para buscar uma ad e-
sua casa, na vida co t id ian a mais simples, tornou-se o herói (o anti-herói!) d o coro trágico. Os alunos sentiram necessidade
rência corporal ao texto, a suas imagens, suas palavras, suas dinâmicas, a partir d o movimento. Aderência não é análise
de apoiar esse personagem co m u m , em um coro no qual se
ou interpretação do texto. A interpretação deste consiste em
misturavam igualmente alguns b ufões. O personagem não
esclarecê-lo segundo várias facetas: em função da época e
via os que o circundavam, mas ele era apoiado, aconselhado
do contexto, pode-se insistir na faceta social, psicológica ou
pelo coro que o ajudava, falava com ele, expressava suas vo-
moral. Essa escolha será de responsabilidade d o direto r. Meu
zes interiores. Com esse anti-herói melodramático, apareceu
procedimento pedagógico preserva-se de qualquer interpre -
o grande tema d a solidão, que une profundamente melodra-
t ação textual e respeita a constante das dinâmicas internas d o
ma e tragédia. O coro, de uma maneira muito humana, vinha
texto, sem tomada de posição a priori.
204
205
Oh! Que rumores assustadores escutam-se n o ar obscu ro rasgado pelo furor do trovã o e pelas fulgurâncias de seus tremores, e que devastam e passam, abatendo tud o o que está na sua frente! Oh! Quantos destes você viu tampar seus ouvidos com suas mãos para não escutar o imenso rumor que enche o ar tenebroso do furor dos ventos misturados à chuva, e aos trovões celestes e ao furor dos raios! Outros não se limitam a fechar os olhos, mas põem suas mãos sobrepostas e as apertam para não ver o cruel destino que a cólera de Deus faz à espécie humana. Oh! Que desespero, e quantos loucos se precipitam do alto dos rochedos! Veem-se os ramos de um grande ca rvalho carregados d e h omens levados ao ar pela impetuosidade do vento. Seja quantas forem, as barcas estão viradas, umas totalmente, outras em pedaços, sobre pessoas que se esforçam p or sua salvação, com atitudes e m ovimentos dolorosos, sentindo a morte ameaçadora. Outros, desesperados, se suicidam, não podendo suportar tal angústia; uns jogam-se dos rochedos, outros estrangulam-se com as próprias mãos; outros, tomando seus filhos rapidamente, jogam-nos do aterro; outros batem-se com suas armas, matando-se a si próprios; outros, caem de joelhos, suplicando a Deus. Oh! Quantas mães choram seus filhos afogados, que elas sustentam em seus joelhos, erguendo seus braços abertos em direção ao céu e com o berro de uma voz que amaldiçoa a cólera divina; outros, mãos juntas e crispadas, mordem -se com um dente cruel como se se devorassem, ou rezam suplicantes, esmagados por uma imensa e in suportável dor.'
Leonardo da Vinci , Le déluge, nova tradução segundo o Codex vaticanus, com comentário contínuo de Péladan (Paris: Delgrave, 1910). [Trad u ção livre para o português.]
206
Num p r imeir o momento, gesticulamos o te xto fa lando -o , sem p r eocupação co m a constru ção. O s gestos que surgem sã o heteróclito s. Esse trabalh o d e b ase serve para liberar o texto n o co rpo, p ara que este último não constitua um o bstáculo. Uma vez aprendido o texto , afirmamos a géstica d in âm ica, que será dada so zinha, em silê ncio. Pouco a pouco, nasce uma estrutura d o texto , a partir d a n ebulo sida de d o começo. C o rrigimos, ent ão, a qualidade d o s ges to s e, d epois, conversand o n as pequen as "cú p u las" d e cinco a sete al unos em cí rcu lo , p es q u isamos os gestos mais j ustos. U m d o s alunos, esc olhido co m o melhor m ímico pelo grupo, p õ e- se no centro e diri ge o d iscurso d o co ro, pro ferido p elo s outros, na imobilidade . D a gesticulação à imob ilidad e, o text o se r á aprendido. A segu nda p arte do trabalho é a das esc o lhas, d a distrib uição das vozes, para r essaltar o sentido d o texto, sem p reo cupaçã o significante com a interpretação. Numa t erceira parte, peço, enfim, em auto curs o , para encenar o texto escolhido a fim d e ap rese n t á -lo ao p úblico , sej a na imobilidade, seja em movimento, seja com gestos expressivos. Levan ta do chão duro esta cabeça, infortunada! Ap ruma teu pescoço! Nã o mais existem Troia nem ra in h a. A sorte muda, deves resignar-te. Hás de vogar ao fluxo das correntes, hás de vogar ao gosto do destino. É vão esforço pretender opor a frágil nave desta vida às ondas. Navega! Entrega-te ao azar dos ventos! [ .. . ] Quantas razões eu tenho - ai de mim! para chorar nessa calamidade a perda de meus filhos, meu m arido, 207
minha querida p átria ... Ai de m im! Dourado fausto antigo em que vivi, meu fim me faz saber que nada és! Convém calar? Talvez falar. .. Chorar. .. Um peso enorme oprime os meus cansados sofridos membros nesta posição, caída aqui no chão desconfortável. Dói-me a cabeça... Quanta dor nas têmporas!. .. Meus flancos doem tanto . .. Mal consigo mover-me para em nova posição continuar chorando as minhas mágoas entre queixumes e incessantes lágrimas. É a música restante aos infelizes aniquilados p or desastres tão terríveis que fazem silenciar todos os cantos."
Navega! Entrega-te ao azar dos ventos... e é todo o coro que se encontra lançado num movimento de deriva levado por esse grito, em busca de um ritmo, de um movimento, de uma entonação. O objetivo aqui não é encontrar não sei qual coreografia do coro em movimento, mas chegar, finalmente, à imobilidade do ator, que terá percebido, em seu corpo, a
dinâmica e a emoção desse percurso. Quando um ator, depois de ter feito exercícios, disser esse texto, imóvel, o espectador que fechar os olhos terá de vê -lo movimentar-se. Quando os alunos exploraram alguns textos curtos, e quando os conhecem, trabalhamos o domínio da voz. A onda vem, rompe-se e vomita aos nossos olhos, Entre vagas de espuma, um monstro furioso.
Eurípides, "Les Troyennes", texto em francês de Iacqueline Moatti (Paris: L'Arche, 1961) . ["As troianas', em Sófocles & Eurípides, Electra e As troianas, trad. Mário da Gama Ku ry (Rio de Janeiro: Civilização, 1965). (N . T.)]
208
Armam -lhe a eno r m e fronte aterradores chifres; Escamas amarelas recobrem seu corpo; Touro indomável, tumultuoso d ragão, Sua anca se curva em dobras tortuosas. Aos seus longos mugidos estremece a praia. O céu vê com h orror este m onstro selvagem."
Os monstros furiosos ... da fala de Teremane não podem ser expressos com uma voz pequena, que venha da cabeça. Ao conhecimento da fúria trágica, é indispensável o comprometimento do corpo inteiro. O ator pode ser ajudado por outros, que o puxam, o empurram, o seguram, para que ele sinta fisicamente as dinâmicas d o texto. Graças a esse tipo de exercício, adaptado a cada texto, constatamos q ue a voz se m odifica, para tornar-se uma verdadeira voz de corpo, sozinha, capaz de carregar a dimensão trágica verdadeira. O s atores guardarão um traço dessa relação física com o texto. Eles a terão incorporado, antes de vislumbrar qualquer interpretação. Conduzimos, também, um t r ab alh o com a vo z comum d o coro. O coro trágico fala com uma voz única; então é preciso que o grupo de atores p ossa atingir essa d imensão coletiva. Para falar junto, diferentes técnicas são utilizadas: enquanto um aluno enuncia um texto aprendid o por todos, outro tenta falar o mesmo texto por meio da boca d o primeiro; por acumulação, outros vêm juntar-se, até atingir uma voz comum do grupo. Cada um sente, então, a impressão de ser falado pelos outros. Essa voz comum é normalmente emocionante e muito bela. Lamento que, hoje em dia, ela não esteja suficienJean Racine, "Le récit de Th éramene" ["F ala de Terem ane" em Pedra, trad. Joaquim Brasil Fontes (São Paulo: Iluminuras, 2007) . (N . T.)]
209
temente presente nos numerosos espetáculos trágicos que, certamente por razões econômicas, se contentam com coros de três ou quatro atores. A dimensão internacional da Escola põe atores estrangeiros diante de textos franceses. É interessante observar quanto uma articulação atenta da língua valoriza a escrita. Todos se esforçam para reencontrar o valor das palavras, e esse esforço é recompensado. Várias experiências teatrais recentes, ocorridas na França com atores estrangeiros, confirmaram o interesse desse procedimento: Antoine Vitez, Peter Brook, Ariane Mnouchkine .. . Para conduzir bem esse trabalho, ainda é preciso que os textos ofereçam um corpo, fazendo com que os atores possam senti-los, deixando um pouco de lado a cabeça. Essa presença se manifesta principalmente nos verbos que permitem, ou não, o comprometimento físico. Mas não são todos os textos que se prestam a esse exercício. Os de Ionesco ou os de Pinter não levam em conta o corpo inteiro, ficam mais na cabeça. Beckett é uma exceção: tem fôlego, uma respiração. Um teatro maior sempre chama o corpo em seu todo: ao mesmo tempo o quadril, o plexo e a cabeça. No prólogo de Croisades, Michel Azama pratica o botte e risposte da commedia dell'arte, aqui a serviço da tragédia. a atalho dos diálogos, pela ação no presente, faz a situação avançar até a conclusão. Muitos alunos tornaram-se escritores depois da Escola. Não ousaria dizer que começaram a escrever graças à Escola, mas talvez tenham começado a escrever de outro modo a partir da Escola. Alguns o confirmam. De minha parte, eu me reconheço em seus textos, no sentido de que eles trazem uma diferença entre o "discurso" e a "palavra". a discurso só fica nas palavras, mas a palavra chama o corpo. a território da tragédia o demonstra com enorme força.
(A m~n!ninha e o menin inho estão num espaç o vaz io, envoltos em escundao.) A MENININHA: Tchac! (Ela arranca um braço de sua boneca .) Minha boneca perdeu um braço num bombardeio. o MENININHO: Rápido! Precisamos cauterizar a ferida pra não sangrar. A MENININHA: C ê tá louco. É uma boneca, não sangra. o MENINIr-:HO: Precisa cauterizar assim mesmo. É assim que se faz. (Ele cauteriza o ombro da boneca com um palito de fósforo.) Ela tá fedendo. O plástico queima igualzinho às pessoas quando elas são queimadas. A MENININHA: Ela é uma boneca legal. Cuidado! Ela sofr eu uma explosão de bomba. Tchac! Tchac! Uma perna e outro braço! o MENININHO: C ê tá exagerando. Você vai acabar matando ela. A MENININHA: Queima! Queima! Ah! Como fede, que maravilha! Podemos tirar tudo, enquanto a gente não tirar a cabeça ela não morre. o MENININHO: Morre, sim. A MENININHA: Não. o MENININHO: Morre, sim. Bom, então, se você n ão tá com ciúmes porque é que tá chorando? Abro o pacote? ' A MENININHA: Não quero nem saber. Vou cuidar da minha boneca senão ela vai ficar pretinha como meu primo quando perdeu um braço. o MENININHO: Olha! É um caminhão. Um caminhão-pipa. Olha! É de controle remoto! A MENININHA: Não tô nem aí. Que bobeira. É brinquedo de menino. o MENININHO : Escuta. Não fica chateada. Olha. Ponho o caminhão aqui, pertinho de mim. E te dou isso. É o controle remoto. Você aperta nesse botão e o caminhão vem até você. Tudo bem? Você não tá mais chateada? Você brinca comigo? A MENININHA: Tudo bem, vai ... me dá.
(O men_ino está a vários metros de distância da menina. Ela aperta um botão do controle remoto. O caminhão explode. O menininho faz um voo e cai no chão, inerte.) A MENI;,INHA: que é que você fez? Não é um brinquedo legal, né? O que e esse brinquedo? Você não morreu, né?
?
(Ela se aproxima do menininho.)"
Michel Azama, Croisades (Paris: Théâtrales, 1989). [Tradução livre para o português.]
210 211
Os clowns BUSCAR O PRÓPRIO CLOWN
A escola termina com riso, com os downs e as variedades cômicas: os burlescos, os absurdos, os excêntricos. Ao longo do tempo, esse território revelou-se pouco a pouco e assumiu uma importância tão grande quanto a da máscara neutra. Os dois emolduram a pedagogia da Escola. No começo, esse trabalho só durava dois ou três dias. Agora, estende-se por várias semanas, tamanho foi o interesse dos alunos, o que me levou progressivamente a aprofundar-me nesse campo. Os downs apareceram nos anos 1960, quando eu me perguntava sobre as relações entre a commedia dell'arte e os downs de circo. A principal descoberta se deu enl resposta a uma pergunta simples: o down faz rir, mas como? Solicitei um dia aos alunos para que se pusessem em círculo - lembrança da pista - e nos fizessem rir. Um após o outro, eles
I I
J A solidão do clown .
~ I
tentaram umas palhaçadas, umas cambalhotas, uns jogos de palavras fantasiosos, tudo em vão! O resultado foi catastrófico. Sentíamos algo preso na garganta, uma angústia no peito, tudo se tornava trágico. Quando se deram conta desse fracas so, pararam com a im p rovisação e foram sentar-se, desapontados, co n fu so s, perturbados. Foi então, vendo -se naquele estado de fraqueza, que to d os se puseram a rir, n ão do personagem que pretendiam apresentar, mas da própria pessoa, assim, despida. Encontramos! O down não existe fora do ator que o interpreta. Somos todos downs. Achamos que somos belos, inteligentes e fortes, mas temos nossas fraquezas, nosso derrisório, que, quando se expressa, faz rir. Ao longo das pri213
-_.~"
1 I
meiras experi ências, co nst atei que alguns alunos, cujas pernas
Você entra. consciente de sua força. você é bonito. inteligente. você
eram tão finas que nem ousavam mostrá-las, encontravam
chega como vencedor. Você faz alguma coisa. quepra você é muitoim-
no clown uma p ossibilidade de exibir sua magreza e de jo-
portante. para nos mostrar essa força e essa superioridade... mas não
gar com isso, para grande prazer dos espectadores. Podiam,
consegue! Monsieur loyal. o árbitro do jogo. pergunta então do que
enfim, existir tal como eram, com inteira liberdade, e fazer
se trata. Você está seguro de fazer isso? Você trabalhou isso durante
rir. Essa descoberta, da transformação de uma fraqueza pessoal em força teatral, foi de tanta im p o rtân cia para a defini-
como amador?
muito tempo?
ção de uma abordagem personalizada dos c1owns, para uma
Voc~
está fazl!ndo este número pela primeira vez? Fez
Em resposta a essas perguntas, o at or d eve jogar o jogo da
pesquisa "de seu próprio clown", que se tornou um princípio
ver d ade: qu anto mais for ele m esmo, pego em fla grante delito
fundamen tal.
de fr aqueza, m ais engr açad o ele será. De m o d o algu m deve
Para mim, a referência ao circo, inevitável assim que se evoca o c1own, está muito distante. Na minha infância tinha
representar um papel, mas deixar surgir, de m aneira muito psicológica, a inocência que está dentro dele e q u e se mani-
visto, no circo Medrano, em Montmartre, os Fratellini, Grock,
festa p o r ocasião d o fiasc o, d o fr aca sso de sua ap resentaçã o.
e o trio Carioli, Portos e Carletos, mas na Escola não buscávamos esse t ip o de clown. Salvo a dimensão cô m ica, não tínhamos nenhuma referência de estilo ou de forma, e mesmo
Não se podem enumerar os temas d os clo wns: a vid a in-
os alunos não conheciam esses clowns. Abordavam a pesquisa
teira é um desses temas ... p ara os clowns! Quando o ator en-
de maneira mais livre. Foi Pierre Byland, aluno da Escola an-
tra em cena com seu nariz ver m elho, seu rosto apresenta um
tes de ser professor, que nos trouxe o famoso nariz vermelho, a
estado de disponibilidade sem defesa. Ele acredita que possa
menor máscara do mundo, que ia permitir tirar do indivíduo
ser recebido com toda a simpatia do público (do mundo), e é
sua ingenuidade e sua fragilidade.
surpreendido pelo silêncio que o ac olhe, pois se co nsiderava uma pessoa importante. Sua reação humilde desencadeia no
A pesquisa do clown próprio de cada um é, primeira-
público pequenos risos. O clown, ultrassensível aos outros,
mente, a pesquisa de se u próp rio r idículo. Diferentemente da commedia dell'arte, o ator n ão te m d e entrar num persona-
simpático e uma exp ressão triste. Nesse primeiro contato, é
gem preestabelecido (Arlequim, Pantalone . .. ). Deve desco -
importante para o pedagogo observar se o ator não precede
brir nele mesmo a parte clown que o habita. Quanto menos se defender e tentar representar um personagem, mais o ator
às intenções, se ele está sempre em estado de reação e de sur-
reage a tudo o que lhe chega, e viaja, então, entre um sorriso
.1
presa sem que seu jogo seja "conduzido" (costum am os dizer
se deixará surpreender por suas próprias fraquezas, mais seu
"telefonado"), reagindo antes que tenha nascido um motivo
clown aparecerá com força.
para fazê -lo.
214
I
I
j
215
o clo wn é aquele que "faz fiasco", que fracassa em seu nú-
Alguém entraemcena e descobre o público.
mero e, a partir daí, põe o espectador em estado de superioEss e tema faz o ator en trar d iretamente na dimensão do clo wn. A grande dificuldade consiste em encontrar de cara a d imensão justa, em interpretar verd ad eir am ente sua pessoa, ser um clown - e não "fazer u m clown". Se ele entra no es petáculo de seu próprio ridículo, o ator está perdido. Não se representa um clown, é preciso ser, como q uando nossa natureza profunda vem à luz, n os primeiros medos da infância.
ridade. Por esse insucesso, ele desvela sua natureza humana profunda que nos emocion a e n os faz rir. Mas não basta fra. cassar com qualquer coisa, ainda é preciso fracassar naquilo que se sabe fazer, isto é, uma proeza. Peço a cada aluno que faça alguma coisa que somente ele, na sala, saiba fazer: um grande écart, vi rar os dedos para t rás, ass obiar de u m modo diferente. Pouco importa o virtuosismo do gesto , a proeza só existe quando o aluno é o únic o a poder realizá-la. O trabalho
D iferentemente d e outros perso nagens d o teatro, o clown tem um contato direto e imediato com o público, só pode viver com e sob o ol har dos outros. Não se representa um clown diante de um público, joga-se com ele. Um clo wn que entra
d o clown consiste, então, em re lacionar talento e "fiasco". Peça a um clown que dê um salt o m o rtal, ele não co nsegue. Dê-lhe u m chute no traseiro, e aí ele o faz sem se dar conta! Nos dois casos, ele n os faz r ir. Se ele não conseguir nunca, caímos no tr ágic o . Como sempre, o procedimento pedagógico ao abordar o clown é progressivo. Começamos por uma seção de mau gosto, a mais desenfreada possível (aquilo a que ch am am os de a "grande besteirada") . Vocês vão se fantasiar, como para uma noite de festa. Trazemos uma mala com acessórios. figurinos diversos. Cada um põe uma barba. um bigode.umchapéu e brinca numa dimensão de liberdade total.
Essa dissimulação de sua própria pessoa libera os atores de suas máscaras sociais. Eles têm a liberdade de fazer "o que quiserem", e tal lib erd ad e faz surgir comportamentos pessoais insuspeitados. Progressivamente, retiramos o figurino para chegar ao clown, com a aparição do nariz vermelho, que abordamos no tema da descoberta do público. 21 6
i
em cena entra em contato com todas as pessoas que constit uem o público, e seu jogo é influenciado pelas reações desse público. O exercício é importante para o ator em formação, que sente aí uma relação muito forte e viva com o público. Se o clown não ligasse para as reações do público, ele mergulharia no seu "fiasco" e terminaria em caso clínico. Um dia pedi a Raymond Devos que viesse dar uma aula de clown. Ele improvisou de modo magistral, a partir de um pé de cadeira sobre seu pé. A mínima reação, um gesto, um riso, uma pala vra, vinda do público era para ele a ocasião de um início de jogo. Lembrança impressionante de um grande clown!
I
Pa ralelamente, buscamos no corpo certas maneiras escondidas. Observando o caminhar natural de cada um, identificamos os elementos característicos (um braço que balança
i
mais do que outro, um pé que vira para dentro, uma barriga
I
ligeiramente para a frente, uma cabeça que pende de lado) que,
J
I J
I
217
progressivamente, exageramos para chegar a uma transposição
gusto toma a posição e o outro se aproveita para dar-lhe um chute no
pessoal. Com os alu n os, busco suas próprias maneiras de elo -
traseiro. OClown branco começa a rir. li AUgustil tenta segurar a onda.
wn, co m o Groucho Marx, Carlitos ou Iacques Tat i tinham as
rindo também..• para livrara cara.
suas, tão ca racterísticas. Par a um clown, nunca se tr ata de co m-
Passa o segundo Augusto. Oprimeiro Augusto quer aplicar-lhea mesma
p o r externamente, mas sempre a partir de algo pessoal.
brincadeira e pede-lhe que tome a posição. Osegundoconhece bem a história e não sedeixa levar. finge que não entende. Para explicar-lhe.
Ao mesmo tempo, um trabalho técnico é con d u zi d o com relação aos gestos proibidos, aqueles que o ator nunca pôde . . 1. "Ande corretamen t e.I" "F'lque expressar na sua VIda SOCIa reto !" "Pare de mexer n o cabelo!" Tantas injunções que fazem com q ue alguns gestos fiquem no fundo d o corpo da criança, sem nunca poderem ser expressos. Esse trabalho, bem psicológico, dá ao at o r uma maior liberdade de jogo. É útil q ue os alunos tenham essa experiência de lib erd ad e, que se encontrem sem defesas naquilo a que chamo o primeiro clown. As referências ao circo reapare cem quando se abordam os fenômenos do trio. Os clowns de circo são muitas vezes um trio: o Clown branco, o Augusto e o segun d o Au gusto. Qualquer situação envolvendo downs impõe u m a hierarq u ia entre eles. Isto é evidente no céleb re tr io dos Irmãos M a rx, e tam bém em todas as duplas: Arlequim e Brighella, o Gordo e o Magro . . . Um é semp re apoio do o u t ro . No teatro , a d u pla me pare ce p referível, assim como num pro ce dimento pedag ógico , para p erm itir a ca d a clow n situar-s e em rela ção a outro. Essa p es q uisa sobre a hierarq u ia é feita p rincipalmente co m o tem a d a brincadeira e do du plo fi asco.
o Clown branco faz uma brincadeira com o primeiro Augusto. Ele lhe
o primeiro faz uma demonstração. toma a posição... e leva um segundo chute. Duplo fiasco!
Iniciando esse trabalh o, achava q ue os clo wns seriam algo tem p o rár io , uma etapa da pesquisa, liga d a a determin ada época, numa pedagogia em evo lu çã o. H oje em dia, constato que os alun os querem esse trabalho, que sempre o consideram como um dos tempos fo rtes da viagem pedagógica da Escola. Sem dúvida os downs tocam uma d imensão psicológica e teatral muito profunda. Adquiriram a mesma importância que a máscara neutra, mas numa d ireção oposta. Quanto mais a máscara neutra se revela um elemento coletivo, um denominador comum que pode ser compartilhado por todos, m ais o clown re ssal ta o ind ivíduo em sua singularidade. Ele desmistifica a pretensão, de cad a um, de ser superior ao outro. Paradoxalmente, tocamos o limite co n trári o d a abordagem pedagógica levada ao lo n go do aprendizado. Durante meses, p edi ao s alun os que observassem o mundo e que o deixassem refletir-se neles. Com o clown, eu lhes p eço p ara que sejam eles mesm os, o mais profundamente possível, e que observem o efeito q u e produzem no m u n d o, a saber, no público. Fazem então , d iante do público, a exp er iên cia da lib erd ad e e da autenticidade.
pede para abaixar. pernas flexionadas. para apanhar um objeto. OAu218
219
o
clown não p recisa d e conflitos; ele está perm an en temente em conflito, especialmente consigo mesmo. Esse fen ômeno requer uma enorme atenção do pedagogo, pois se trata de uma passagem psicológica difícil para os atores, e qualquer interpretação pseudopsicanalítica deve ser evitada. É p reciso cuidar para que os alunos não entrem no jogo de seu próp rio clown, pois é o territ ó r io dr amático que mais aproxima o ator de sua p rópria pessoa. Na verdade, o clown nunca deve ser doloroso par a o at or. O p úblico não caçoa diretamente dele; sente -se superior e ri, o que é completamente diferente. Além do mais, o ator está com uma espécie de m áscara, em parte prote gido pelo n ar iz vermelho. Não é à toa que, quando esse t rabalh o chega ao fim depois de dois anos n a Escola, os alu nos já estão habituad os a comprometer-se com o jogo, a conhecer-se e a se mostrar. Não é sempre assim nos numerosos estágios de clown propostos aqui e acolá, que só oferecem uma ab ordagem superficial, e redutora, de um trabalho q ue necessita de todas as fases anteriores. De propósito, di sponho esse trabalho no fim do p er curso, pois o clown exige uma forte experiência p essoal do ator. Na tradição do circo, os clowns, em geral, são feitos pelo s velhos artistas. Os jovens ainda estão n as p roezas (cord a bamba, tr ap ézio, etc.), e, como os velhos não são mais cap azes disso, tornam-se clowns, exp ressão de uma maturidade. D e u m a sabedoria! Em autocurso, os alunos preparam u m núm ero q ue, claro, vão conseguir realizar, pois já o apresentaram co m gr ande sucesso num p aís distante ... evidentemente resultará n u m "fiasco". Procuram, p a r a isso , o figurino m ais co nveniente , a par tir 220
Var ied ades côm icas na ex-Central de Boxe.
de roupas muito gr an des ou muito pequenas, que, p o r si sós, já co n stituem um fracasso: o chapéu não cabe n a cabeça, os
tenderem. Nesse trabalho final, aparecem todas as fantasias, os imaginários, as personalidades próprias de cada u m . Essas
sapatos são gr andes demai s, a calça muito curta . .. Depois
criações partem para várias direções: o clown co m ou sem
d isso, eles exp er im en tam o "fiasco': que pode apresentar-se
nariz vermelho, o burlesco, o absurdo, os excêntricos. Ade-
de duas m aneiras. Existe o "fiasco da pretensão': quando o
mais, a dimensão internacional da Escola ressalta as diferentes
clown só faz um número ruim que ele acha genial: anuncia-se a perfo rmance d o século e ele dá uma simples cambalhota ou
motivações d o ri so, de um país a outro. Aquilo que faz rir os ingleses não vale n ecessariam en te para um italiano ou para
faz u m malabarismo fá cil, com três bolinhas. O outro "fiasco"
um japonês, mas é importante q u e os clowns, de onde quer
é o d o "acid en te", quando o clown não consegue fazer aquilo
que venham, façam o mundo inteiro rir. Alguns elementos
que deseja: uma queda em desequilíbrio de um b anquinho,
do riso são analisados de maneira técnica. A imagem dupla é
um to m b o p or co nta d e u m salto simp les ...
um exemplo disto: M . Hulot co n sert a seu carro ; ele está ench en d o a câm ara d e ar d e um pneu, q ue escapa, ro lando por
Num a o utra etapa d o trabalho, col ocamos os clowns em
uma estrada outonal. Fol h as colam n o pneu, que va i terminar
situ açõ es da vid a cotidiana. Pesquisamos famílias d e clowns,
sua co rrida n u m cemitér io. Hulot acaba, então, num enterro,
Os clowns se mudam. . . Eles passam o p ai, a m ãe, os filhos suas f érias nu m clube procuram emprego .. . Trabalhamos al-
co m u m a co ro a d e flores na m ão .. . pura associação de jdeias
gu ns temas no limite da realidade e da ficção. Por exemplo:
Os clow ns ensaiam uma peça de teatro . Não é para representar
e imagem d u pla, técnica muito u tilizad a por C harles Chaplin: Carli tos, persegu ido, p õe um abajur na cab eça e finge ser o suporte d a lâmp ad a.
a p eça "à mod a" dos clowns, mas são clowns que tentam ensai ar u m a peça e não conseguem. Aparecem tantas coisas que
As variedades côm icas são prolo n gam en tos do trabalho do
a peça, evidentemente, nunca será ensaiada; serão apenas de-
clown, m arcad o s por ca r acterísticas particulares. O burlesco
sastres e proezas inesperadas. Em todas essas situações, cada
rep o usa n a gag, fenômeno mais d ifícil de realiza r n o teatro do
clown aparece com força, em seu ridículo e, às vezes, em sua
que n o cinema, pois sempre inver te os dados da realidade, nos
dimensã o trágica.
aproximando d o desenho animado: um lenh ad o r co rta uma árvor e que, em vez de cai r . . . voa!
OS BURLESCOS, OS ABSURDOS, AS VARIEDADES CÔMICAS
Enfim, proponho aos alunos que realizem um espetáculo , a partir de todas essas experiências e que criem, de verdade, uma sequência de clown, escrita e ensaiada como bem en222
Três alpinis tas esgotados descobrem três cadei ras, aproximam-se delas com a m aior dific u ld ade e, no momen to em que vão alcançá -las... põem-nas nas costas e continuam a subida! Esse tema, representado recentemen te pelos alunos, transgride a realidade e provoca o riso. 223
o absurdo ch am a duas ló gicas que se confron tam . Pergunto meu cam in h o a alguém , que me in d ica uma rua à d irei ta . .. vou para a esquerd a! Na verdade, vo u b uscar min h a m ala, o que justi fica meu movimento, m as o outro (assim com o o p úbli co) não sabe. Como não compreen d e, a situação lhe p arece absurd a. O excêntrico faz as co isas difere n temen te d os outros. Põe o cen tro das co isas em outro lugar. Ele vai pentear os cabelos . .. com um ancinho. Um outro, excêntrico virtuose, to-
ser eles mesmos, descobrirem-se. A máscara neutra e o clown emolduram a aventura pedagógica da Escola, uma no começo, outra no fim. Os atores não vão guardar essas m áscar as e vão aventurar-se em suas próprias cr iações; mas con servam a marca e o esp írito. E terão tid o, assim, a experiência funda mental da cr iação : a solid ão !
cará piano ... com os pé s. Esse te rrit ór io p õ e em prática a acrobacia, o m alab arismo, a música, o can to. Tr ab alh amos os movimentos lig ad os ao clown: ch utes, brincadeiras co m u m ch apéu n o chão; b r incamos com as palavras, tom ando- as ao p é d a letra: se "a n oit e cai r", o clown vai p roc u rar ond e ela caiu! Muitos alunos tocam u m ins tru mento e cada ano constituím os uma orquestra no espírito do cabaré ou do teatro de revista. Gostaria que os alunos se exercitassem n o cabaré cômico, na produção de núm eros bem cu rtos, com no máximo dez minutos. Infelizm ente, não exis tem m ais lugares em que jovens atores possam apresen tar su as criações, como era o caso, no p ós -guerra, em vários cabarés p arisienses. Pede-se-lhes imediatamente que reali zem os one-man shows de uma h ora, o que é extremamente di fícil, quando estes deveriam resultar de numerosas pesquisas d as formas b reves. Todos os aluno s p assam pela experiência do clown, mas poucos con tinuarão nesse registro. Alguns têm natureza cômica: basta que entrem em cena para que o público morra de rir. Nosso trabalh o pedagógico consiste em permitir-lhes 224
225
3. o laboratório de estudodo movimento (lEM) Desde 1976, juntou-se à Escola um departamento de ce nografia experimental, criado em colaboração com o arquiteto Krikor Belekian. Os estudos duram um ano e são abertos aos alunos da Escola interessados nessa linguagem e a outros vin dos de fora: arquitetos, cenógrafos, artistas plásticos... O LEM propõe duas atividades que correspondem e interagem com a pedagogia geral da Escola: uma atividade de movimento, que põe em jogo o corpo mímico; e uma atividade de criação, para Estruturas de pa ix ões humanas.
realização de construções cenográficas. ,
-c
Todo espaço habitável traz «propostas dramáticas" e influencia o comportamento dos que ali vivem ou dos personagens que aí atuam. Nossas atitudes, nosso andar, a velocidade de nossos passos modificam-se quando mudamos de espaço. Não andamos do mesmo modo em uma igreja gótica ou em uma igreja romana. Antes de construir um local habitável, 227
para as representações da vida ou para as do teat ro, o importante é reconhecer previamente o que deverá aí viver. Eu me
A realização de projetos conclui o ano do LEM. Trata-se de colocar, em espaço cenográfico, um tema proposto, seja em
lembro de um de m eu s alunos de arquitetura que me fez visi-
relação direta com a vida (uma lembrança, uma paisagem...),
tar, na montanha, o chalé que ele ainda não havia construído.
seja a partir de uma obra musical, plástica, poética ou literária (Stravinski, Mir ó, Saint-Iohn Perse, Dom Quixote, A divina
Ele me fez viver os espaços como se estivéssemos dentro deles: ele recebia a luz vinda de uma jan ela, d ep o is p assava pelas portas, subia ao sótão, abaixava-se para não bater a cab eça no
comédia, Fausto ...). Sobre esses temas, os alunos constroem estruturas portáteis, pequenos teat ros sem atores ou qualquer
teto... Depois de alguns anos, pude ver o chalé pronto, mas eu
outra invenção pessoal, que eles ponham em movimento, sem
já o conhecia!
nenhuma preocupação com a ilustração, mas, sim, com a pesquisa das dinâmicas internas que possam mostrar no espaço.
Propomos uma sen sib iliz a ção p révia do co rpo aos esp aços a que ele pertence: primeiro, em es tado de neut r alid ade;
Tomar como tema Hamlet, de Shakespeare, não consiste
d epois, em expressão d r amática. Pr aticamos u m a reinterpre-
evidentemente em aprender a fazer o cenário do primeiro ato
tação d os esp aços const r u íd os, p ara da í recolher imp re ssões co rp o r ais e, depo is, m imagens, p ar a d aí extrair a d in âm ica (mimagem d e observação para o conhecimento d o real, mimagem p ré - cr iativa, ten do em vista realizações futu ras). Tr ata-se d e de senvolver, ainda , o "olhar do co rpo" sobre a o b -
da peça, mas em fazer com que o futuro cenógrafo descubra
servação d o re al. Ness e espaço de t r abalh o, estudamos sucessivamente o
que deve construir espaços na expectativa do drama a ser re presentado. Quando for escrever no espaço a cenografia de
Hamlet, ele será o responsável pela densidade do drama. Terá co m preen d id o e sentido que não se representa diante de um cen á r io, mas dentro de um espaço construído p ara a ação do ato r na situação.
caminh ar humano, para compreender as leis d o m ovimento e os espaço s d o corpo; em seguida, as p aixões humanas do
Q u alq u er tema dramático necessita de um lu gar adapta-
ci úme a o orgulho, tendo como referência o estado d e calma;
d o a se u b o m desenvolvimento. O corpo mímico explora os
p o r fim , as co res e suas d inâmicas, su a extensão, sua força...
te m as de u m d r am a n um esp aço nu, para daí extrair os mo -
até seu combate. Cada uma dessas explorações termina por
vimentos in ternos. Ser á p ossível , a partir de então, con st r u ir melh o r o local d e su a m an ifes tação.
u m trabalho em que pedimos aos participantes que construam - n o ateliê, por meio de objetos experimentais (estruturas e formas realizadas com materiais simples: varas de madeira,
Ass im o LEM dese nvo lve um olhar so bre os espaço s em
papelões, fitas, terra...) - as di nâmicas assim reconhecidas Es-
m ovimen to ligados ao jogo d o ato r. Ele aprende a co nstru ir o
ses objetos desenvolvem-se em figurinos, máscaras, maquetes.
invisível, dar corp o e movimento ao que aparentemente não
228 229
os tem. O percurso do LEIvI permanece sendo uma experiência prática, que nenhuma transmissão escrita saberia substituir. Ele coloca o aluno diante de si mesmo. O ensino que é dado apoia-se em algumas bases referenciais: o equilíbrio, o estado de calma, o ponto fixo, a economia das ações físicas . Não se deve ver nesses termos nada de absoluto, mas guardar-lhes uma certa flexibilidade, que dê lu gar ao "humor de fundo"! A calma é mantida por duas forças contrárias, que lutam. O equilíbrio é visto em movimento. O ponto fixo move -se em torno de si mesmo, sem se perder. A economia das ações físicas renova-se no corpo de cada um. Não há movimento sem ponto fixo. Se não o encontramos, é preciso inventá-lo!
230
IV. Aberturas
,
A pedagogia implementada na Escola ao longo desses quarenta anos conheceu, n o mundo inteiro, prolongamentos extremamente diversificados. Tanto em termos de escrita dra mática (no sentido amplo, ab rangendo tanto autores como criadores de espetáculo sem texto), quanto no que diz respeito à interpretação, à encenação ou à cenografia, antigos alunos realizaram espetáculos de seus tempos. Não citarei aqui nenhum nome em particular - seria preciso citar todos, célebres ou desconhecidos -, e deixo a cada um o trabalho de fazer referência, se assim o desejar, ao aprendizado que recebeu. No fim do segundo ano, alguns grupos constituíram-se para formar companhias, preferindo dar continuidade a uma
f I
1 I
-
criação coletiva esboçada na Escola, em vez de integrar teatros já existentes. Essa postura me pareceu particularmente significativa do jovem teatro de criação que desejo que exista. Ao longo dos anos, destacaria mais particularmente o trabalho dos Mummenschantz, que levaram muito além a pesquisa sobre as máscaras e as formas. O Footsbarn Travelling Theatre, com sede na Cornuália antes de emigrar para a Auvergne, tentou reencontrar a autenticidade dos grandes textos. O Mo233
)
ving Picture Mime Show fez o p ú b lico con h ecer os qu ad ros
Tudo o que está descrito, com uma definição pedagógica
m ímicos. O Théâtre de la Iacquerie avent uro u -s e pelo grotes-
p recisa, co m eç an do pelos grandes territórios dramáticos ta is
co social. O N ada Théât re desenvo lveu sua cri ação poética a
quais os trato, evoc a as mesclas. É só u lt rap assan d o as frontei-
partir d os ob jetos. O Théât re de la Complicité encenou uma
r as, passando d e u m t errit ó ri o a outro, superpondo -os, que
n ova lingu agem, p ara u m teat ro d os d ias de h oje. Sem esq u e-
a verdadeira criação pode nascer e que novos territórios d es -
cer o Théâtre de la [eune Lune, em Minneapolis, e tantos ou-
p o n tam . Teatros "p uros" são perigosos. O que seria um "puro"
tros que seguiram um caminho semelhante.
melo d ram a, ou uma tragédia "pura"? A p u reza é a morte! O caos é in d isp en sável à criação, mas um cao s ... organizado,
Por si só, o ensino d a Escola exportou-se a numerosos
q ue p erm ita a cada um encon trar suas próprias raízes e seus
países. Fo ram criadas escolas em Bolonha, Bruxelas, Milão,
p ró p r ios im pulsos.
Londres, Madri, Barcelona . . . D o co n servatório d e Québec à academia de Glasgow, passando pelo Japão, Chile, Austrália . . .
Ass im como se abriu para o teatro, a mímica abriu -se mais largamente para o movimento e, esp ecialm en te, para a dança.
muitos d os antigos alunos ensinam, por sua vez, segundo sua
Alguns coreógrafos voltaram a buscar no teatro dos gestos o
próp ria sensibilidade. Pa ra além d os "métodos", o que n os une é o aspecto pioneiro da pedagogia que, em contato com
q u e a d ança havia p erd id o, renovando assim, em parte, graças a esse encon tro, a d ança co ntemp o rânea . Reconheço, hoje em
jovens estudantes, prefigura teatros que virão. Uma escola de
d ia, esse esp íri to de pesquisa num tr ab alh o como o da Com-
teat ro não pode ficar na esteira dos teatros já consagrados. É
panhia Bouvier/O b adia, d ois ex- alu n os.
preciso, ao contrário, ser, em parte, visionária e, por meio da prio teatro. Foi o que fizemos, redescobrindo as máscaras, o
Gostar ia d e indica r, en fim , como a pedag og ia m imodinâm ica p oderia ser útil em muitos d omínios d a ap re ndizagem
coro, os clowns, os bufões . .. que enriqueceram numerosas
além d o tea t ro, seja em di ferentes ar te s ou em outras disci-
criações teatrais. Como a Esco la privilegia a interpretação criativa, o jogo,
plinas d o conhecimento. Aquilo q ue reali zei na forma ção de arquiteto s, n ão para q u e se tornasse m ato res, m as para que
m ais do que a interp retação convencional, como ela suscita
construíssem m elhor, respeitando os m ovimentos d o corpo
autores mais do que se apoia em textos já existentes, posso, às
humano n o esp aço, pode ser vislumb r ado do mesmo modo
vezes, pressentir o teatro que est á por vir. Preciso, para tan-
por o utras artes: a música, as artes pl ásticas - esboçam os o
to, continuar exigente em relação às permanências e atento
t rab alho n este se ntido - e também a liter atura, a dan ça, etc.
às evoluções propostas pelos jovens alunos. Estar sempre em
Essa p ostura pedagógica pode ser adaptad a a q ualquer edu-
movimento!
ca ção artística: comprometer o corpo mímico p ara o reco nhe-
invenção de novas linguagens, ajudar na renovação do pró-
cimento d o real permite a cada u m incorporar o mundo que 234
235
o circunda antes de pintá-lo , de escrevê-lo, de cantá-lo, de dançá-lo ... As formas propostas seriam, então, sem dúvida, mais sentidas e menos cerebrais. Atualmente, uma dificuldade nos persegue. Sofremos um período de teatro "cheio de truques", muito externo e estetizante, com numerosos efeitos de moda. Alguns espetáculos querem, a todo custo, criar um evento, surpreender o público. Os jovens alunos rejeitam, com razão, tal tipo de teatro. Eles
r'
I
se orientam para formas muito mais simples, porém mais fortes, enraizadas nas coisas da vida, que cada um pode compreender. Buscam a verdade na ilusão, e não na mentira! Aliás, por que eles vêm à Escola? Por que, às vezes, jovens artistas atravessam o mundo para vir fazer nossos cursos? Não podem encontrar em seus países algo que os satisfaça? Para essas perguntas, que sempre me faço, a resposta é simples: eles buscam uma verdade, uma autenticidade, uma base que dure para além dos modismos. Para tal aspiração, preciso responder com a maior honestidade, sem nenhuma demagogia. Eles precisam encontrar, diante deles, uma palavra forte, uma referência.
Tudo se move. Tudo evolui, progride. Tudo ricocheteia e reverbera. De um ponto a outro, nada de linha reta. De um porto a um porto, uma viagem. Tudo se move, também eu! A alegria e a tristeza, e também o embate. Um ponto indeciso, desfocado, confuso, se desenha, Ponto de convergências, Tentação de um ponto fixo, Numa calm a de todas as paixões, Ponto de apoio e ponto de chegada, Naquilo que não tem nem começo, nem fim . Nomeá-lo, Torná-lo vivo, Dar-lhe autoridade Para compreender melhor aquilo que se move, Para comp reender melhor o Movimento.
J.L. Belle-Ile-en-Mer, agosto de 1997.
236
CRÉ DITOS FOTOG RÁF ICOS
M ichele Laurent: p. 26, 70 Alain Chambaretaud: p. 56,95, 14 5, 192 , 22 1, 226 Patrick Lecoq: p . 36,97,99, 169 Richard Lecoq: p . 150 D. R.: p. 179,2 12 Os desenhos são de Iacques Lecoq .
239