O Caminho do Bodisatva - Bodhicharyāvatāra 978-85-89543-25-5

Apreciado como um tesouro por todas as tradições budistas, O caminho do bodisatva (Bodhicharyāvatāra) é um guia para se

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O Caminho do Bodisatva - Bodhicharyāvatāra
 978-85-89543-25-5

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Primeira Orelha

Todos aqueles que, frente a frente, insultarem-me Ou fizerem qualquer outro mal, Mesmo os que me acusarem ou me caluniarem, Possam eles alcançar a ventura da iluminação. Possa eu ser um protetor para os que vivem desamparados, Um guia para os viajantes que seguem pelas estradas; Para os que desejam cruzar para a outra margem, Possa eu ser uma balsa, um barco, uma ponte. de O caminho do bodisatva

Seg unda Orelha

Shāntideva foi um erudito do século VIII da Universidade Nālandā, um dos mais reverenciados centros de estudo na Índia antiga. De acordo com a lenda, Shāntideva foi grandemente inspirado pelo bodisatva Mañjushrī, de quem recebeu ensinamentos e grandiosos insights. Padmakara Translation Group, na França, tem uma reputação reconhecida por suas traduções de textos tibetanos e ensinamentos. Suas obras têm sido publicadas em várias línguas e são renomadas por seu estilo acurado e claro. A imagem da capa é uma representação do bodisatva Mañjushrī, que corporifica a sabedoria e o conhecimento de todos os budas.



Contracapa

"Se eu tiver qualquer compreensão sobre a compaixão e a prática do caminho do bodisatva, ela é inteiramente baseada neste livro." Sua Santidade o Dalai Lama Apreciado como um tesouro por todas as tradições budistas, O caminho do bodisatva (Bodhicharyāvatāra) é um guia para se cultivar a mente da iluminação e gerar as qualidades do amor, compaixão, generosidade e paciência. Por séculos esse texto foi estudado, praticado e comentado em um linhagem ininterrupta. Apresentado sob a forma de uma meditação pessoal em versos, ele delineia o caminho dos bodisatvas, aqueles que renunciam à paz da iluminação individual e que tomam o voto de trabalhar pela liberação de todos os seres e de alcançar o estado búdico em benefício desses seres. Esta versão em português inclui um prefácio de Sua Santidade o Dalai Lama, uma introdução completa, notas explicativas e três apêndices com comentário do mestre nyingma Kunzang Pelden.



O caminho do bodisatva BODHICHARYĀVATĀRA



Shāntideva TRADUZIDO DO T IBETANO P OR Padmakara Translation Group TRADUZIDO DO INGLÊS P OR Manoel Vidal Cândida Bastos P REFÁCIO Sua Santidade o Dalai Lama Makara, 2013

© Padmakara Translation Group © Makara, 2013 Título original em inglês The way of the Bodhisattva Tradução Manoel Vidal e Cândida Basto (Prefácios e Introdução) Revisão Comitê de Tradução Makara e Márcio Miranda Burnett Colaboração Renata Alvarenga, Fabiana Fidelis, Ana Cristina Lopes Projeto gráfico e capa Rita da Costa Aguiar Diagramação Leika Yatsunami Rita da Costa Aguiar Imagem da capa Acervo do Chagdud Gonpa Yeshe Ling - Fotografia de Raul Krebs Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

S526c Shantideva O caminho do bodisatva / Shantideva; tradução Manoel Vidal e Cândida Bastos. - Três Coroas: Makara, 2013. 300 p. Título original em inglês: The way of the Bodhisattva ISBN 978-85-89543-25-5 1. Budismo tibetano. 2. Budismo - ensinamentos. I. Título. CDU 242 CDD 294.3 Bibliotecária responsável Catherine da Silva Cunha CRB 10/1961

EDITORA MAKARA Caixa Postal 121 95660-000 Três Coroas - RS - Brasil

+55 51 356.8217 [email protected] www.makara.com.br



Prefácio O Bodhicharyāvatāra foi escrito por Shāntideva, erudito indiano renomado no Tibete como um dos mais confiáveis mestres. Uma vez que evidencia o cultivo e a expansão da boditchita, a obra pertence ao Mahāyāna. Ao mesmo tempo, a posição filosófica de Shāntideva, como exposta particularmente no nono capítulo sobre a sabedoria, segue o ponto de vista do PrāsaṅgikaMadhyamaka de Chandrakīrti. O foco principal dos ensinamentos mahayana é o cultivo de uma mente que deseje beneficiar outros seres sencientes. Com a expansão da nossa sensação de paz e de felicidade, seremos naturalmente mais capazes de contribuir para a paz e a felicidade dos outros. Transformar a mente e cultivar uma atitude positiva, altruísta e responsável é benéfico neste exato momento. Com tal mente, poderemos encarar quaisquer problemas ou dificuldades que possamos ter, com coragem, calma e bom humor. Por conseguinte, é também a verdadeira raiz da felicidade em muitas vidas por vir. Baseado na minha pequena experiência, posso, confiantemente, dizer que os ensinamentos e instruções do Darma de Buda e particularmente os ensinamentos do Mahāyāna continuam relevantes e úteis hoje. Se, sinceramente, pusermos os fundamentos desses ensinamentos em prática, não precisaremos ter nenhuma dúvida a respeito de sua eficácia. Os benefícios de desenvolver qualidades como o amor, a compaixão, a generosidade e a paciência não estão confinados apenas ao nível pessoal, eles se estendem a todos os seres sencientes, e até mesmo à manutenção da harmonia no meio ambiente. Não é como se esses ensinamentos tivessem sido úteis no passado, mas não o fossem mais nos tempos modernos. Eles permanecem pertinentes até hoje. Por esṃsa razão, encorajo as pessoas a prestarem atenção a essas práticas; não o faço apenas para que a tradição seja mantida. O Bodhicharyāvatāra tem sido amplamente aclamado e respeitado por mais de mil anos. É estudado e louvado por todas as quatro escolas do budismo tibetano. Eu mesmo recebi a transmissão e explicação desse texto importante e sagrado do falecido Kunu Lama, Tenzin Gyaltsen, que as recebeu de um discípulo do grande mestre de Dzogchen Dza Patrul Rinpoche. Esse texto mostrou-se muito útil e benéfico para minha mente. Sinto-me muito feliz que o Padmakara Translation Group tenha preparado uma nova tradução para o inglês do Bodhicharyāvatāra. Eles tentaram combinar a precisão de significado com uma linguagem elo​quente, o que só poderá servir bem ao propósito de tal texto. Congratulo-os e ofereço minhas preces para que seus esforços contribuam para a paz e felicidade de todos os seres. Tenzin Gyatso Sua Santidade o 14° Dalai Lama 17 de outubro de 1996

Prefácio à edição revisada Quando a primeira edição de O caminho do bodisatva foi publicada em 1997, foi dito que o comentário do mestre nyingma Khenpo Kunzang Pelden (1872-1943) tinha sido consultado para a elucidação de passagens difíceis. Naquela ocasião, a tradução para o inglês daquela longa e importante obra não era mais que um humilde sonho. Agora, depois de uma espera de quase dez anos e muitos projetos intervenientes, essa tarefa foi completada; e a leitura e estudo cuidadosos do texto envolvidos no processo instigou-nos a revisitar e fazer uma revisão geral da nossa versão original de O caminho do bodisatva: corrigimos erros e, quando possível, tornamos o texto um reflexo mais preciso, mais literal, do original tibetano. Esperamos ter sido capazes de retificar a quem sabe indevida liberdade de expressão da versão anterior, que levou alguns leitores a questionar sua precisão, e, ao mesmo tempo, manter e melhorar os traços do estilo que outros acharam atraentes. É raro que editoras tenham a oportunidade de corrigir trabalhos anteriores e remover — ou, ao menos, diminuir — seus defeitos mais óbvios; e somos extremamente gratos a Emily Bower e a equipe da Shambhala Publications por desejarem produzir esta nova edição. Desde 1997 apareceram muitas outras traduções do Bodhicharyāvatāra para o inglês. A primeira, publicada quando O caminho do bodi​satva estava prestes a ser impresso, foi feita por Kate Crosby e Andrew Skilton diretamente do texto remanescente em sânscrito. Logo depois, veio a tradução de Vesna e Alan Wallace, também feita do sânscrito, mas com referência ao tibetano e com as variantes tibetanas dadas nas notas de rodapé. Alguns anos mais tarde, em 2003, foi publicada uma versão por Neil Eliott, baseada nas explicações de Geshe Kelsang Gyatso. Mais recentemente, outra tradução (que foi impressa e circulou por ocasião do ensinamento sobre o Bodhicharyāvatāra por Sua Santidade o Dalai Lama em Zurique, em 2005) foi produzida por Alexander Berzin, principalmente do tibetano, mas revisada e corrigida sob a luz do sânscrito. Finalmente, ainda um outro projeto para traduzir o texto original de Shāntideva, junto com o comentário de Kunzang Pelden e acompanhado das inestimáveis explicações de Khenpo Chöga da Universidade de Shri Simha, em Kham, foi iniciado em 2002 por Andreas Kretschmar, que, num ato de grande doação e generosidade, tomou seu trabalho, ainda que incompleto, disponível livremente na internet. Todas essas traduções são de grande interesse e, embora em nossa interpretação tenhamos seguido sempre Kunzang Pelden, ao prepararmos esta edição revisada diligentemente comparamos nosso trabalho com as versões aqui mencionadas. Com gratidão reconhecemos a ajuda que nos deram. O aparecimento de traduções do Bodhicharyāvatāra feitas do sânscrito, lado a lado com outras feitas do tibetano, traz à baila com renovada ênfase o questionamento sobre o desejo de traduzir daquilo que já é uma tradução quando ainda existe um manuscrito do texto na língua original. Isso está estreitamente ligado a uma outra questão, que diz respeito aos méritos relativos do estudo (e, por conseguinte, da tradução) dentro do ambiente da erudição secular ocidental em contraste com o tradicional de uma universidade monástica tibetana e uma relação mestre-aluno. Essas duas abordagens diferem consideravelmente, tanto em método quanto em objetivo. Os budólogos nas academias ocidentais têm como objetivo, por meio da análise de textos, de evidências arqueológicas e assim por diante, alcançar uma compreensão cientificamente objetiva de uma cultura religiosa. Essa cultura é vista de fora, como um fenômeno essencialmente antropológico, e suas crenças e práticas

são descritas e classificadas dentro de uma disciplina que conscientemente se distancia da fidelidade e prática religiosa.1 Os budistas, por outro lado, estudam os textos sagrados como parte de uma disciplina espiritual, tendo a intenção, ou pelo menos a aspiração, de implementar os ensinamentos neles contidos. E, com essa finalidade, enfatizam com igual importância não apenas as origens ou autoria dos textos, mas também a tradição viva de explicações e de prática que os preservaram até os dias de hoje. Essas duas abordagens obviamente se sobrepõem, no sentido de que a precisão textual e a interpretação correta são de fundamental importância para ambas. Ainda assim, elas divergem em aspectos cruciais, e é importante reconhecer a diferença entre erudição independente e acadêmica, com seu interesse essencialmente humanístico pelos textos, e a fidelidade a uma tradição de treinamento espiritual: de um lado temos a erudição imparcial; do outro, envolvimento com compromisso. Não há dúvida que os achados dos estudos ocidentais no campo da budologia são importantes e interessantes. O breve mas valioso material introdutório à tradução de Crosby e Skilton descreve a obra pioneira de Akira Saito sobre a história do texto do Bodhicharyāvatāra, que só foi possível graças à descoberta, nas cavernas de Dun-huang no início do séc. XX, de três manuscritos de uma tradução em tibetano até então desconhecida, que difere consideravelmente da versão mais longa revisada por Ngok Loden Sherab e Sumatikīrti e que está preservada no Tengyur. De fato, a tradição registra a existência de muitas versões do Bodhicharyāvatāra, atribuindo esse fato às circunstâncias peculiares nas quais o poema foi divulgado pela primeira vez. A biografia de Shāntideva especifica que um texto de mil shlokas em dez capítulos foi produzido pelos paṇḍitas de Magadha, enquanto seus confrades da Caxemira registraram apenas setecentas shlokas em nove capítulos. Dado que o colofão do texto tibetano que possuímos agora nos dizem que Kawa Peltsek fez a primeira tradução do Bodhicharyāvatāra usando um manuscrito da Caxemira (talvez vindo da obra dos próprios paṇḍitas mencionados pela tradição), e dado que a tradução contida nos manuscritos de Dun-huang é de fato um texto de nove capítulos, a evidência, apesar de não conclusiva, tentadoramente sugere que a recensão encontrada em Dun-huang é na realidade a tradução há muito perdida de Kawa Peltsek.2 Quando esse texto for totalmente editado e publicado, uma comparação dele com a versão canônica nos permitirá apreciar o quanto da obra original de Peltsek (supondo-se que a tradução de Dun-huang seja dele) sobreviveu nas revisões posteriores. Porém, para nossa compreensão da tradução do Bodhicharyāvatāra para o tibetano e da história das várias recensões, é improvável que as descobertas em Dun-huang simplificarão o quadro. Pelo contrário, elas provavelmente revelarão um cenário mais complicado do que aquele registrado pela tradição. Aparentemente, apesar do fato inconveniente de que a extensão dos textos remanescentes do Bodhicharyāvatāra em sânscrito e tibetano não correspondem de modo algum aos números citados nos registros tradicionais, é plausível supor, apesar de tudo, que o texto em sânscrito e a tradução revisada de Loden Sherab correspondem, em termos gerais, à versão autenticada por Shāntideva quando este foi consultado pelos desacreditados estudiosos de Nālandā. Porém, de acordo com o conhecimento ocidental, isso é algo bastante incerto. Existem razões para se pensar que, comparado com o texto canônico, a recensão de Dun-huang incorpore uma versão moderna e mais coerente do Bodhicharyāvatāra que poderia, por essa razão, reivindicar ser um reflexo mais confiável da obra original de Shāntideva. Por outro lado, assim continua a argumentação, os problemas da versão canônica (seu layout assimétrico, suas repetições ocasionais, a dificuldade e obscuridade de alguns de seus argumentos etc.) são razões para se pensar que o texto

que agora temos é na realidade uma versão reestruturada da obra original, aumentada, nos séculos que se seguiram a morte de Shāntideva, pela inserção de material tomado da tradição de comentários. A luz de tal Formkritik, a erudição acadêmica sem dúvida concluirá que a história da voz desencarnada de Shāntideva, a capacidade limitada de memória mostrada pelos estudiosos da Caxemira — comparada com a performance naturalmente superior dos paṇḍitas da "terra central" de Magadha, com seus suspeitos números redondos de dez capítulos e mil shlokas — e a subsequente ratificação pelo autor não é mais do que um mito etiológico planejado para, primeiro, explicar o fato de que havia pelo menos duas versões conhecidas do texto e, segundo, justificar a autenticidade da versão mais longa preservada no cânone. Também surgiram dúvidas a respeito da história e da autenticidade da própria tradução tibetana que sobreviveu, que normalmente supõe-se corresponder ao texto em sânscrito que ainda temos. Na verdade, como V. e A. Wallace deixaram claro, a versão tibetana (isto é, a recensão final feita no século XI) diverge, consideravelmente em alguns pon​tos, de sua contrapartida em sânscrito. Deveríamos, com base nisso, concluir que os tradutores tibetanos trabalharam com uma versão em sânscrito que se perdeu, diferente da que sobrevive até hoje? Ou não seriam as diferenças entre as versões em tibetano e em sânscrito resultado das explanações orais dadas pelos paṇḍitas indianos aos tradutores tibetanos com quem trabalharam, que tornaram necessária, ao invés de uma versão estritamente literal, uma versão interpretativa do original em sânscrito? Uma vez mais, essas são questões que os estudiosos ocidentais, com seus recursos em arqueologia, paleografia e uma penetrante crítica textual, estão mais bem equipados para responder; e como já dissemos, os resultados de tais pesquisas serão de interesse principalmente para os que estudam história cultural e da religião. Em contraste, as necessidades e expectativas de praticantes budistas que abordam o Bodhicharyāvatāra como um manual de vida são de outra natureza. Os achados acadêmicos com respeito à história textual do Bodhicharyāvatāra e a questão de se o texto tibetano que temos hoje corresponde em todos os aspectos à cópia autografada por Shāntideva obviamente são de considerável interesse; entretanto, para o praticante budista, são de importância secundária. Sob um ponto de vista tradicional, a autenticidade do Bodhicharyāvatāra não depende apenas da identidade histórica de seu autor, mas também, e talvez de forma mais importante, das gerações de praticantes que, pela própria experiência e realização, atestaram a verdade e a eficácia dos ensinamentos de Shāntideva. Para os budistas, a contribuição a uma tradição feita pela linhagem de seus praticantes realizados é tão crucial quanto a de sua fonte. Acredita-se que o texto do Bodhicharyāvatāra seja acompanhado por uma transmissão oral que começa com seu autor 3 e que foi passada adiante por aproximadamente 15 séculos. É uma herança legada pelos paṇḍitas indianos aos tradutores tibetanos, e eles, por sua vez, transmitiram-na às sucessivas gerações de meditadores e estudiosos. A transmissão em sânscrito do Bodhicharyāvatāra, que ocorreu presumivelmente entre a época de Shāntideva e a de Sumatikīrti, que colaborou com Ngok Loden Sherab, foi interrompida e perdida nas calamidades que tragaram o budismo indiano no século XII. Consequentemente, a transmissão oral e a linhagem explanatória dos ensinamentos de Shāntideva existem apenas em tibetano, e por razões óbvias não podem ser ressuscitadas das relíquias em sânscrito. A diferença de significado entre uma tradução feita do sânscrito e uma feita do tibetano pode, na

verdade, não ser muito grande. Entretanto, sustentamos que, para os interessados em praticar o caminho do bodisatva, a tradução tibetana do Bodhicharyāvatāra ocupa uma posição de maior valor que uma tradução moderna, por mais erudita e precisa que seja, de um manuscrito sânscrito que, por acaso, tenha escapado da destruição das bibliotecas budistas na Índia. Os acidentes da história determinaram que a transmissão textual e os comentários do Bodhicharyāvatāra, vinda desde Shāntideva — a conexão humana, por assim dizer — esteja em tibetano, e não em sânscrito. Portanto, se houver discrepâncias entre as duas versões, isso não significa que se deva automaticamente dar preferência à versão em sânscrito. *** Dizem que, ao traduzir textos budistas, é essencial buscar pela literalidade como garantia de precisão, e que é desnecessário ficar muito preocupado com a elegância de expressão.4 Uma grande questão, que tem preocupado os tradutores e os teóricos da tradução durante gerações, é se a versão literal, diferente da interpretativa, é uma medida da fidelidade na tradução, mesmo que uma versão verdadeiramente literal entre duas línguas seja possível.5 Como princípio geral, entretanto, certamente concordaríamos que o correto é preferir a versão literal à elegante, se "elegância" significar um estilo forçado e autoconsciente, que usa o texto original como um palco para se exibir. Como Dr. Johnson observou, "Um tradutor deve ser como o autor do texto; não é seu papel excedêlo". Em outras palavras, a deselegância precisa é preferível à invenção elegante. Esse é um bom argumento; no entanto, há algo de insatisfatório em opor a precisão literal à elegância de estilo de forma tão intransigente. Pois é óbvio que o caráter e a efetividade de qualquer obra literária são profundamente afetados por considerações estilísticas. O significado completo de uma declaração, em termos de conteúdo e nuance, deriva não apenas do que é dito, mas também de como é dito; e de quando, de onde e para quem. Uma tradução perfeita, se existisse, certamente seria capaz de produzir em seus leitores um eco exato da experiência intelectual e emocional dos falantes nativos quando estes, em sua própria época e local, depararam-se com o texto na língua original. Não há dúvida de que este é um objetivo elevado e provavelmente inatingível, mas vale a pena esforçar-se para alcançá-lo. De qualquer forma, é tarefa do tradutor não produzir simplesmente cópias palavra por palavra: ferramentas usadas em sala de aula para ajudar os alunos a deslindar o significado do original. O objetivo, certamente, é produzir versões que sejam completamente viáveis por si só para aqueles que nunca estarão na posição de ler a literatura na língua original e que dependem de traduções como se estas fossem os textos originais. Em tais casos, a proximidade e fidelidade ao original são de importância vital e, justamente por isso, o efeito obscurecedor de uma "elegância" forçada e artificial deve ser evitado a qualquer custo. Ainda assim, poderíamos pensar que uma tradução elegante e eficaz é uma versão acurada, que expressa não apenas o conteúdo, mas também o estilo do original, formada por frases simples, claras e bem equilibradas, que agrade tanto aos olhos quanto aos ouvidos e que possa ser compreendida numa única leitura. Ah, esse tipo de escrita na literatura budista em inglês é comparativamente uma raridade nos dias de hoje. Muitas vezes traduções corretas são arruinadas pela ineptidão do estilo. Dizer, como alguns disseram, que a tradução de textos tibetanos não precisa ser elegante, pois os originais não o são, levanta uma questão importante.6 Padrões estéticos variam de cultura para cultura

e de língua para língua, e de modo algum está claro se nos encontramos na posição de julgar o que os falantes da língua original acham ou achavam agradável. Nós mesmos ouvimos um professor tibetano elogiar entusiasticamente a beleza da tradução de Patsap do Madhyamakāvatāra; e está registrado que Tsongkhapa foi levado às lágrimas pela beleza da Pramāṇavārttika. Isso representa um desafio considerável para o tradutor, pois certamente é insuficiente traduzir textos que, por mais difíceis que sejam, são considerados admiráveis e belos no original, em traduções que sejam tediosas e algumas vezes tão opacas e túrgidas que se tornam ilegíveis. A tradução em verso — ou melhor, em prosa rítmica — do Bodhicharyāvatāra é uma tentativa de conciliação com essa dificuldade. O resultado é um tipo de verso branco (algumas vezes muito branco) que raramente pode reivindicar o status de poesia e pode ser melhor descrito como um experimento literário. Seu propósito é fornecer um veículo que, por não ser de todo desagradável, possa contribuir positivamente para a expressão e propagação dos ensinamentos de Shāntideva. Tentamos seguir o sábio princípio do rei Alfredo (849-899), talvez o primeiro dos tradutores ingleses: "às vezes palavra por palavra, às vezes o sentido pelo sentido" ao dizer que a tradução deve ser literal quando possível, livre e interpretativa quando necessário e, sempre, precisa. Na tradução do Bodhicharyāvatāra, talvez não seja possível, ou até mesmo desejável, alcançar o equivalente à intenção declarada de Lutero em sua tradução do Velho Testamento: "fazer Moisés parecer tão alemão que ninguém jamais suspeitaria que ele era judeu". Contudo, foi nosso objetivo transmitir o significado de Shāntideva da forma mais clara que pudemos e dar-lhe uma voz que pudesse soar aos ouvidos dos falantes de inglês de forma tão agradável quanto o é para os tibetanos. Gosto, é claro, não se discute, e não se deve esperar que nosso objetivo tenha sido totalmente, ou mesmo em sua maior parte, bem sucedido. Porém, nossa expectativa é a de que, junto com as explicações de Kunzang Pelden, a tradução seja tão fiel e próxima quanto o talento escasso e o idioma inglês possa permitir, e que tudo o que for considerado "poético" não seja considerado como depreciativo da precisão da tradução. Nosso objetivo esperado foi o de lançar uma ponte para atravessar a barreira da língua, para que os leitores ingleses possam ouvir Shāntideva falar-lhes de maneira persuasiva e com sotaque familiar, permitindo que descubram, em sua própria língua, de forma fácil e acessível, a sabedoria e um modo de vida. Como os tradutores da Bíblia do rei Jaime observaram no prefácio de sua insuperável realização: É a tradução que abre a janela, para que entre a luz; que quebra a casca, para que comamos o grão; que afasta a cortina, para que vejamos o mais sagrado dos lugares; que remove a tampa do poço, para que peguemos a água.7

Introdução O caminho do bodisatva8 é um dos maiores clássicos do Mahāyāna, o budismo do Grande Veículo. Apresentado na forma de uma meditação pessoal, mas oferecido amigavelmente a quem possa estar interessado, é uma exposição do caminho dos bodisatvas: aqueles seres que, a despeito de abandonarem a futilidade e os sofrimentos do saṃsāra, renunciam a paz da salvação individual e fazem o voto de trabalhar pela liberação de todos os seres e de alcançar a iluminação suprema do estado búdico pelo bem de todos. De tal modo, a obra de Shāntideva corporifica uma definição de compaixão elevada à sua máxima potência e minuciosamente demonstra os métodos pelos quais ela pode ser alcançada. É uma demonstração impressionante de como a consideração pelos outros, em um amor que transcende completamente o desejo e a preocupação consigo mesmo, está no cerne de todo verdadeiro empenho espiritual e é o próprio coração da sabedoria iluminada. O autor de O caminho do bodisatva foi um membro da universidade monástica de Nālandā, que assim como a outra grande universidade de Vikramashīla, foi um dos mais renomados centros de aprendizagem da Índia antiga. Sabe-se pouco a respeito dele, apesar de terem surgido exuberantes lendas que chegaram até nós através dos séculos — meias luzes tentadoras que nos dão um vislumbre de uma personalidade altamente independente e incomum. Parece que Shāntideva foi seu próprio mestre, temperamentalmente impermeável às pressões sociais e eclesiásticas e capaz de seguir seus insights a despeito das expectativas convencionais e da opinião pública.9 Ele foi atraído em tenra idade para os ensinamentos sobre a sabedoria do Mahāyāna, como personificados no Bodisatva Mañjushrī, e a partir daí para a escola Madhyamaka, ou Caminho do Meio, da filosofia budista, renomada por sua profundidade e sutileza dialética. Todavia, como sua obra revela, Shāntideva não foi de modo algum um acadêmico insensível. Como Nāgārjuna, anterior a ele, possuía num grau notável a combinação incomum de uma inteligência poderosa associada a um reconhecimento pungente dos sofrimentos do mundo, e um profundo senso de ternura em relação aos outros. É impossível dar aqui uma descrição adequada do grandioso poema de Shāntideva, mas esperase que com o passar do tempo será possível tornar disponíveis traduções dos comentários feitos pelos grandes mestres do passado. A introdução a seguir tem como intento apenas ser um guia para ajudar os leitores a se orientarem, especialmente aqueles que não estão familiarizados com as ideias budistas fundamentais. É prática frequente entre os comentaristas dividir O caminho do bodisatva em três partes principais, segundo uma prece famosa, talvez originada com Nāgārjuna:10 Possa a boditchita, preciosa e sublime, Surgir onde ainda não surgiu; E, onde já surgiu, que ela nunca falhe, Mas cresça e floresça sempre mais.

De acordo com esse esquema, os primeiros três capítulos ("A excelência da boditchita", "Confissão" e "Apoderar-se da boditchita") foram idealizados para estimular o surgimento da boditchita na mente. Os três capítulos seguintes ("Cuidado", "Introspecção vigilante" e "Paciência") dão instruções de como impedir que a preciosa atitude se dissipe, enquanto o sétimo, o oitavo e o nono capítulos ("Diligência", "Concentração meditativa" e "Sabedoria") prescrevem maneiras por meio das quais a boditchita possa ser progressivamente intensificada. O décimo capítulo é uma prece de dedicação de encerramento.

O DESPERTAR DA BODITCHITA O que é boditchita? A palavra tem muitas nuances e, talvez, seja mais fácil entendê-la do que traduzi-la. Por essa razão, usamos o termo em sânscrito, na esperança de que, por meio de uma definição clara, ela possa ser incorporada e permitir o enriquecimento de nossa língua. Tchita significa "mente", "pensamento", "atitude". Bodi significa "iluminação", "despertar", e é cognata com o termo buda. Isso nos leva a "mente da iluminação", "mente desperta": a atitude da mente que se inclina para o estado búdico, o estado iluminado. É preciso apontar que boditchita não é um sinônimo de compaixão; é um termo mais amplo, onde a compaixão está incluída. De acordo com a tradição, é dito que a boditchita tem dois aspectos, ou que existe em dois níveis. Primeiro, fala-se da boditchita última, referindo-se à cognição direta da verdadeira natureza dos fenômenos. Essa é a sabedoria da vacuidade: um insight imediato e não dual que transcende a conceitualização. Segundo, há a boditchita relativa, que se refere à aspiração de alcançar o bem mais elevado, ou estado búdico, pelo bem estar de todos os seres, junto com todos os passos práticos necessários para alcançar esse objetivo. A conexão entre essas duas boditchitas — a sabedoria da vacuidade de um lado, o desejo de livrar os seres do sofrimento do outro — talvez não seja imediatamente clara. Porém, na perspectiva budista, como Shāntideva gradualmente revela, a boditchita última e a relativa são dois aspectos interdependentes da mesma coisa. A verdadeira realização da vacuidade é impossível sem a prática da compaixão perfeita, ao passo que nenhuma compaixão pode ser perfeita sem a realização da sabedoria da vacuidade. À primeira vista, esse círculo aparentemente fechado sugere a impossibilidade de se alcançar a boditchita. Entretanto, é uma declaração impressionante do ensinamento budista de que a mente em si, mesmo a mente no saṃsāra, não é, nem nunca foi, de forma última, alienada do estado da iluminação. A boditchita é de fato sua verdadeira natureza e condição. A mente não é a mesma coisa que o obscurecimento e as distrações que a assediam e normalmente a subjugam e, portanto, pode se libertar delas; é capaz de se desenvolver e melhorar e pode ser treinada. Quando usa métodos e ferramentas baseados na dualidade de sujeito e objeto, a mente tem o poder de evoluir na direção da sabedoria e de um modo de ser (de fato, sua verdadeira natureza) que transcende completamente essa dualidade. No presente, é claro, para a maioria de nós, isso é algo que ainda precisa ser visto, algo em que temos que confiar. E é com meios hábeis extraordinários e didáticos, e com proximidade e relevância que o lapso de mais de mil anos não diminuiu, que Shāntideva chama nossa atenção para as realidades da existência egocêntrica, com toda a sua dor e idiotice, e coloca à nossa frente a visão de uma alternativa totalmente nova, junto com uma instrução prática sobre como essa visão pode se tornar uma experiência verdadeira.

Apesar de toda a sua viabilidade, permanece o fato de que os primeiros movimentos da boditchita na mente são profundamente misteriosos, pois qual poderia ser sua origem? "Esse estado de mente, tão precioso e nobre, surge como um verdadeiro assombro, nunca antes visto." (1.25) Na verdade, tendo em vista a orientação habitual da mente, fixada como é na realidade do ego e dos fenômenos, enraizada na dualidade de sujeito e objeto, vagando no saṃsāra desde um tempo sem princípio, o fato de que um impulso na direção do altruísmo perfeito e no esquecimento do ego possa surgir parece nada menos que um tipo de milagre. O que mais poderia ser tão radicalmente contra o natural? Dizer que isso é possível é uma afirmação impressionante sobre o potencial da mente. Mesmo assim, a boditchita é em si tão extraordinária que seu primeiro impulso parece vir de fora. Tal como em uma noite escura com nuvens negras um relâmpago repentino resplandece e tudo é aclarado, De igual modo, raramente, pelo poder de budas, Pensamentos virtuosos surgem neste mundo, breves e passageiros. (1.5) É com esse mesmo espírito de um estímulo externo que Shāntideva começa seu poema. O primeiro capítulo consiste de uma rapsódica celebração da boditchita com o intento de preencher a mente de entusiasmo e orientá-la na direção de um objetivo novo e maravilhoso. Shāntideva encoraja a si mesmo e aos leitores, primeiro em direção a um interesse, depois a um empenho prático, no caminho do bodisatva. O método pedagógico de Shāntideva, seguido ao longo do poema e já conhecido dos ensinamentos do próprio Buda, é simples e efetivo: primeiro, o encorajamento por meio da reflexão nas vantagens e excelências do objetivo; depois, um estímulo através da meditação sobre as consequências horríveis da fraqueza e da apostasia. Sua regra geral é que o território ganho precisa ser mantido a qualquer custo e nunca capitulado. Uma vez tendo chamado a atenção e incitado o interesse, a tarefa é a da consolidação: o impulso original e o fervor precisam ser salvaguardados e nunca se deve permitir que desapareçam. A importância disso é muito óbvia. Só precisamos considerar a completa fragilidade dos estados mentais normais, diários. "Pensamentos virtuosos surgem neste mundo, breves e passageiros", e esse é um dos aspectos mais alarmantes da vida espiritual e moral; se esses insights não forem levados em conta e mantidos, invariavelmente desaparecerão. As realizações evaporam, e o entusiasmo se esvai nas areias da inadvertência e de hábitos antigos. É possível embarcar na prática do Darma com grande energia e interesse, mas, mais tarde, talvez anos depois, afastar-se de mãos vazias, sem nada para mostrar depois de despendido tanto tempo. Portanto, para Shāntideva, como para as tradições budistas em geral, na educação da mente — da nossa própria mente —, o medo e a ameaça das consequências do mal são ferramentas tão legítimas quanto às do entusiasmo e do encorajamento. É nesse espírito de treinamento mental que Shāntideva põe frente a nós os fatos não palatáveis da existência humana: sua fragilidade, sua impermanência, a certeza e as realidades horríveis da morte e a possibilidade, se não probabilidade, de sofrimento depois da morte em tormento infernal. Talvez em razão de riscos tão elevados, ele dilacera, sem misericórdia, os pretextos e otimismos superficiais com os quais encobrimos os fatos, tentando convencer a nós mesmos de que "afinal de contas, as coisas não são tão ruins assim". Os iniciantes no

Darma de Buda frequentemente se surpreendem com o fato de que em uma tradição que dá tamanha importância ao amor e à compaixão seja dada tanta atenção ao sofrimento dos estados inferiores: dos animais, dos fantasmas famintos e dos seres do inferno. As escrituras e comentários estão cheios de descrições detalhadas, e a iconografia budista pode ser horripilantemente explícita. Para os ocidentais despreparados, o choque é, muitas vezes, severo. E, sem dúvida, por meio de uma comparação precipitada demais com temas similares (compreendidos de forma correta ou errônea), como os que foram muito usados na história do pensamento religioso europeu e do Oriente Médio, as ideias budistas não raramente são rejeitadas como sendo de origem mórbida e sádica. A similaridade superficial, entretanto, mascara uma diferença radical. De acordo com o ensinamento budista, a definição moral do bem e do mal é feita exclusivamente em termos de causa e efeito. Um ato é considerado maldoso, negativo, desvirtuoso ou pecaminoso não por ser uma transgressão de um princípio decretado divinamente, disposto pelo criador do universo, mas por produzir o sofrimento nesta ou em existências futuras. A virtude, por outro lado, é o que causa felicidade e leva ao desenvolvimento espiritual. As experiências de estados infernais são os resultados inevitáveis de atitudes e ações maldosas. Quer os ocidentais modernos queiram acreditar ou não na existência de reinos infernais, é, até certo ponto, irrelevante. Qualquer mal ou ação prejudicial simplesmente causa sofrimento; e, na verdade, pouco importa se isso é concebido em termos pitorescos como do inferno de Dante, ou compartilha a visão de Jean-Paul Sartre de que "o inferno são os outros". Não obstante, é importante compreender que a ideia de uma danação eterna ou de punição pelo pecado é estranha à compreensão budista. O sofrimento é uma consequência das ações em si, não uma retribuição infringida por um poder externo. Além disso, os tormentos do inferno, apesar de poderem durar por éons, pertencem ao saṃsāra e não estão isentos da lei da impermanência. E mesmo que a noção de vingança divina seja vista como parecida, em termos mitológicos, com o conceito de consequências cármicas, talvez valha a pena sugerir que a visão impessoal proposta pelo budismo deva ter a vantagem de exorcizar o sentimento paralisante da culpa, ou revolta, que pode ser tão frequentemente resultado de uma visão teísta por demais antropomórfica. A doutrina do carma tem apenas uma mensagem: a experiência dos estados dos seres são consequências da perpetração de ações. Somos os autores do nosso destino, e, sendo os autores, somos, no final das contas, assustadoramente talvez, livres. Com relação a O caminho do bodisatva, é preciso notar duas coisas. A primeira é que Shāntideva não apenas aceita a realidade dos reinos inferiores, mas também literalmente nos força a estarmos atentos a eles. Isso tem o propósito educativo mencionado acima, mas também revela uma característica vital da atitude do bodisatva. A preocupação constante e decisiva de Shāntideva é com as dificuldades do próximo, e ele não afasta os olhos de sua dor e degradação. Ele está pronto para confrontar o sofrimento em toda sua terrível realidade, e tendo abandonado todo e qualquer pensamento sobre o próprio conforto e segurança, ele não se retrai por medo ou repulsa. Ele olha para o cerne da escuridão inabalavelmente, com intensa firmeza de propósito. Ele está preparado para acompanhar os condenados no abismo. Não está nem revoltado nem deprimido, sendo um daqueles que, com compaixão, "Irão se aventurar no inferno do Tormento Último como cisnes descem sobre um lago coberto de lótus" (8.107). A tônica é a coragem, e muitas e muitas vezes, em O caminho do bodisatva, a compaixão emerge não como um estado de mente cheio de mágoa chorosa, mas como uma preocupação em proteger vibrante de alegria e de confiança heroica.

A segunda é perceber que, na descrição do sofrimento por Shāntideva, há uma notável ausência de comentários morais ou julgamentos. Isso vem à tona claramente no décimo capítulo, onde os méritos da obra são dedicados para que o inferno se esvazie e que seus habitantes se liberem. O fogo é apagado com uma chuva de água com perfume de flores, as geleiras se derretem, os prisioneiros do inferno são libertados e confortados pela presença de grandes bodisatvas. É uma visão maravilhosa e somos enlevados por sua beleza. Mas, podemos nos perguntar, onde está a justiça? O desejo evidente de Shāntideva é simplesmente o de salvar do sofrimento, sem questionamentos. Nós, por outro lado, poderíamos protestar, com um sentimento de indignação moral e em nome do direito, que os amaldiçoados sejam mesmo condenados e que eles estão onde estão por uma boa razão. Eles são, afinal de contas, os assassinos em série, os matadores de crianças, os tiranos dos regimes do mal, os perpetradores dos massacres, os que praticam limpeza étnica e os que mantêm os campos de extermínio, os caçadores de bruxas, os interrogadores, os torturadores, os inquisidores. A força e a imparcialidade da compaixão de Shāntideva parecem ser uma subversão da ordem universal; e, em certo sentido, o é. Elas apontam para uma nova visão das coisas, essencialmente baseada não nos conceitos de certo ou errado, mas na compaixão e na sabedoria da vacuidade. Ao invés de dividir o universo agora e para sempre em compartimentos similares do bem e do mal, dos pecadores e dos justos, dos abençoados e dos amaldiçoados, o budismo foca as aflições do saṃsāra como elas o são. No saṃsāra, como já vimos, todas as experiências, de prazer e de dor, têm suas raízes em ações anteriores. A mente, condicionada pela ignorância, atração e aversão, só pode responder de forma egocêntrica à medida que as situações surgem, produzindo sua própria evolução, favorável ou não, conforme o caso. Isso se passa através de um fluxo temporário de experiências, boas ou ruins, que são fundamentalmente violadas pelo sofrimento ou pela possibilidade de sofrimento; experiências que não levam a lugar nenhum e que, portanto, são sempre e necessariamente sem sentido. Seria, entretanto, um engano ridículo acusar Shāntideva de niilismo moral, ou supor que ele está se rebelando contra a doutrina do carma. Contudo, sua compaixão incondicional chama a atenção para o fato de que a lei do carma não corresponde à teoria da justiça humana, nem provê um fundamento para sentimentos de ultraje moral ou de superioridade ética. De qualquer maneira, uma vez que a experiência é fruto da ação, a consequência é que, no saṃsāra — e isso, em determinados contextos, pode ser difícil de aceitar — não pode haver vítimas completamente inocentes. Como resposta, o budismo ensina que o objeto de compaixão é simplesmente o sofrimento em si. Seria, além de tudo, um absurdo retrair a compaixão pelos "culpados" e reservá-la apenas para os "merecedores", aqueles que, assumidamente, são moralmente inocentes: pela simples razão que, no saṃsāra, não existem, nesse sentido, objetos merecedores. Para Shāntideva, por outro lado, uma vez que o sofrimento permeia tudo, todos os seres, em todos os momentos e independentemente das circunstâncias, são objetos merecedores. Falando de forma relativa, é claro, os conceitos de certo e errado são cruciais e, para o praticante, a importância da ética pura é fundamental. Porém, agarrar-se a valores morais com um espírito de julgamento farisaico é evidência de superficialidade e de apego ao "eu" e não faz parte da atitude de um bodisatva. De qualquer forma, o voto de um bodisatva é o de liberar os seres do sofrimento, em outras palavras, liberá-los da causa do sofrimento. A tarefa de um buda ou bodisatva é, portanto, ensinar,

mostrar o caminho, primeiro revelando os valores que devem ser adotados ou abandonados (e, assim, os meios pelos quais os estados mentais benéficos e propícios são produzidos), depois ensinando a sabedoria por meio da qual o saṃsāra é completamente transcendido. Essa, certamente, é a definição de Darma; o Bodhicharyāvatāra é, em si, a mensagem de liberação de Shāntideva para o mundo. Apesar do quadro angustiante, o ensinamento de Shāntideva é pro- fundamente otimista. Se o sofrimento é fruto dos pensamentos e ações, ele pode ser evitado. Perceber que estamos numa posição em que podemos nos modificar e, assim, moldar nosso destino, leva, logicamente, à confissão, o tema do segundo capítulo de Shāntideva. Aqui é preciso entender que, apesar do arrependimento ser naturalmente necessário, isso não envolve uma orgia de culpa e autoflagelação ou sentimentos exagerados de inadequação. No budismo, a confissão deve ser entendida principalmente com um sentido de reconhecimento honesto, principalmente para nós mesmos, do comportamento passado. Quando as ações anteriores e nossa verdadeira natureza são confrontadas, quando antigos padrões e tendências de comportamento vêm à tona na consciência, aí então, e só então, eles podem ser mudados; aí então, e só então, é possível rumar em nova direção. É interessante notar que, tendo invocado os budas e os bodisatvas e declarado sua culpa, Shāntideva não pede perdão a eles. Eles são invocados como protetores e testemunhas supremas de sua autorrevelação e de sua decisão. É na presença deles que um antigo percurso chega ao fim e um novo se inicia. Dessa maneira, levado por uma onda de entusiasmo e confiança, apoiado pela gloriosa visão das realizações dos budas e dos seres grandiosos do passado, estimulado pela percepção de que o tempo é curto e o risco é alto, Shāntideva é impelido (no terceiro capítulo) na direção de um compromisso com o caminho do bodisatva — com palavras que desde então tornaram-se a fórmula padrão, na tradição tibetana, para tomar o voto de bodisatva.11

PROTEGER E MANTER A BODITCHITA Torna-se evidente, desde os primeiros versos do quarto capítulo, que a decisão original da boditchita necessita de consolidação. Shāntideva mostra o que ele acabou de fazer e começa a contar a que custo. O empreendimento ao qual se comprometeu num momento de zelo otimista é devastador. A hesitação é compreensível. Entretanto, tendo em vista as alternativas, e para fortalecer sua decisão, Shāntideva embarca numa descrição gráfica das consequências terríveis da retração. Como sempre, o objetivo é pedagógico. Shāntideva não está demagogicamente pregando esse conteúdo para aterrorizar os ouvintes. A situação como ele descreve é certamente horrível, porém ele mostra a saída e, ao fazer isso, delineia um esquema de treinamento mental que, pela sua profundidade espiritual e acuidade psicológica, raramente foi igualado e certamente nunca sobrepujado em lugar algum ou em qualquer ocasião na história das religiões do mundo. A primeira mensagem é que o objetivo é possível, por mais que possa parecer imenso, desde que assim desejemos e que façamos o esforço necessário. Podemos aprender a ser livres e nos tornarmos budas. Além disso, Shāntideva mostra que, tendo obtido uma existência humana, estamos numa encruzilhada; alcançamos um ponto crítico. De acordo com os ensinamentos budistas, a vida humana, ao mesmo tempo tão preciosa e tão frágil, é, por excelência, uma oportunidade existencial. De todas

as formas de existência, é a única em que o desenvolvimento de uma trajetória espiritual é verdadeiramente possível. Porém a ocasião é facilmente, de fato habitualmente, desperdiçada em buscas triviais. O tempo passa, e "medimos nossas vidas em colheradas de café". Ao perceber a natureza da oportunidade e ao ver que ela escorre entre nossos dedos, Shāntideva responde com uma nota quase de pânico: Pois é como se, por acaso, eu vim a ganhar Este estado tão difícil de ser encontrado, no qual eu posso me ajudar. Se agora, com tal discernimento Eu for, mais uma vez, enviado para os infernos. Estarei como que entorpecido por um feitiço, Como que reduzido à total negligência, Não sei o que embota minha inteligência. Nas garras de quem caí prisioneiro? (4.26-27) A situação é certamente perigosa, mas no que consiste o perigo? São os kleshas, emoções aflitivas: "A raiva, o desejo — estes meus inimigos" (4.28). Eles são as raízes do sofrimento, às quais cada sofrimento, seja em escala pessoal ou cósmica pode estar, ao final, relacionado. E esses kleshas, por mais terríveis que possam ser em seus efeitos, são nada mais que pensamentos: estados mentais fugazes e intangíveis. O tópico do quarto capítulo é para nos conscientizarmos desse fato, e ver, a partir daí, que nosso destino está na maneira em que somos capazes de comandar a atuação da mente. Shāntideva questiona como é que meros pensamentos podem causar tanta devastação na mente. A resposta é que simplesmente nós permitimos isso. "Eles vivem em minha mente, permitindo que me machuquem a seu bel-prazer!" (4.29). Com essas palavras, as frentes de batalha são delineadas. Os inimigos são as aflições, os pensamentos de orgulho, de raiva, de luxúria, de ciúme e tudo mais. A arena é a mente em si. Shāntideva fortifica-se contra o motim, infundindo-se de confiança, estimulando seu próprio senso de orgulho e valor. Como método, é altamente original e muito característico da abordagem pragmática de Shāntideva uma espécie de homeopatia psicológica, na qual uma atitude normalmente considerada como um obscurecimento é consciente e ativamente adotada como um antídoto para a degradação em si. O tema é desenvolvido em larga escala mais adiante no livro, mas, por enquanto, o quarto capítulo é concluído com uma nota retumbante de agressão. As emoções aflitivas são o inimigo; elas precisam ser destruídas. "Esta paixão será a minha obsessão; cheio de rancor, travarei minha guerra!" (4.43) Paradoxalmente, o conflito não precisa ser árduo. Afinal, os obscurecimentos são apenas meros pensamentos. Através de análise e meios hábeis, podem ser facilmente removidos. Uma vez dispersados pelo olho da sabedoria e expulsos da mente, por definição, deixam de existir. E, ainda assim, Shāntideva reflete, com sentimentos que devem estar no coração de cada praticante em potencial: "Mas ó, minha mente é fraca. Sou indolente!" (4.46). Entretanto, uma vez estando claro que o problema está na mente em si, ou ainda, nas emoções que nela surgem, a tarefa é simples, mas é difícil tomar-se consciente de como os pensamentos surgem e se desenvolvem. Esse é o tema do quinto capítulo, sobre a introspecção vigilante. Mais uma vez, encontramos a mesma nota de otimismo prático. Da mesma maneira que a mente é a fonte de todo sofrimento, ela também é a fonte de toda a alegria. E, mais uma vez, a boa notícia é que a mente

pode ser controlada e treinada. Se, com a corda da atenção, O elefante da mente for amarrado de todos os lados, Nossos temores se dissiparão, Todas as virtudes cairão em nossas mãos. (5.3) O problema essencial, que um momento de reflexão sobre a experiência confirmará, não é o obscurecimento ocorrer na mente, mas nove vezes em dez não estarmos conscientes de que ele está presente. Ou ainda, no momento em que ele invade a consciência no estado de vigília, em geral já tomou tal proporção e força que, no desenrolar comum das coisas, tornamo-nos impotentes para evitar suas consequências. A explosão repentina da raiva destrutiva, o impulso voluptuoso, a palavra cruel ou arrogante, que podem ter consequências que mudam a vida, devem ter tido sua origem talvez muito tempo atrás, num flash momentâneo de impaciência ou desejo, que, se tivesse sido evitado naquele momento, poderia facilmente ser neutralizado ou dissolvido. Tudo bem, mas como nos tornamos tão autocontrolados que nenhum impulso da mente, por mais insignificante que seja, passe despercebido? Ah, não há soluções mágicas. A técnica prescrita por Shāntideva é de uma vigilância constante e inflexível, uma atenção contínua sobre o que está acontecendo em seu foro íntimo. Ele diz que devemos cuidar da mente com o mesmo cuidado com que protegeríamos um braço quebrado ou ferido enquanto estivéssemos caminhando em meio a uma multidão incontrolável; e aqui, mais uma vez, os métodos educativos do medo e do encorajamento têm seu propósito. Shāntideva recomenda que, tão logo percebamos uma ânsia em fazer qualquer coisa, falar ou mesmo andar na sala, devemos ter o hábito de nos autoexaminarmos minuciosamente. O menor impulso na direção da negatividade deve ser recebido com uma total paralização do sistema: "E aí que, como um pedaço de madeira, você deve permanecer" (5.50 - 5.53). Não se deve permitir que nenhum pensamento desenvolva-se em uma ação incontestada. Tendo em vista o grau requerido de autoconsciência, não é surpreendente o fato de Shāntideva se referir aos mínimos atos do comportamento cotidiano, todas as pequenas coisas que habitualmente não percebemos, desculpando-nos com pensamentos de que eles são insignificantes demais para serem levados em conta. Nessa prática, na verdade, são precisamente os pequenos e frequentes impulsos e padrões de comportamento subliminares que necessitam de maior atenção. E, de qualquer forma, tudo o que fazemos afeta o mundo. Qualquer ação pode ser a causa, ou a causa da causa, do sofrimento de outros. Sendo assim, são significantes o modo como comemos, andamos, mudamos os móveis de lugar e até mesmo como lidamos com a higiene pessoal. Um aumento de consciência do tipo que Shāntideva advoga é responsável por despertar uma compreensão daquilo que para a maioria de nós passa, se não totalmente despercebido, pelo menos, sem nenhuma análise. Essa é a obsessão peculiar que a mente tem com seu suporte físico. Amamos nosso corpo e estamos profundamente envolvidos com ele. Estamos absortos em suas sensações ao ponto de nos identificarmos com ele como sendo nós mesmos e inventamos filosofias e teologias para justificar isso. Como Buda, Shāntideva faz questionamentos, mostrando como é estranho a mente precisar se identificar e achar desejável algo tão externo a ela mesma, tão frágil, tão decepcionante no final das contas e, em relação às partes que o constituem, tão repugnante como o corpo físico. Quanto ao seu próprio suporte corpóreo e ao dos outros seres, a mente parece se mover numa dimensão que é quase inteiramente uma fantasia; e é um paradoxo extraordinário que ela possa

experimentar um anseio tão forte por algo que, se observado mais de perto, é invariavelmente repelido. De forma alguma Shāntideva repudia o corpo, e a mentalidade do asceticismo e da repressão destrutivos são tão estranhos a ele como a qualquer outro mestre budista. O corpo tem seu propósito e valor, mas a mente precisa se libertar da preocupação obsessiva e opressora em relação a ele. Reflexões sobre o status do corpo e da importância que ele tem no contexto da experiência pessoal são amplamente explanadas no sexto capítulo, sobre a paciência. Surgindo como a conclusão da parte devotada à proteção da boditchita, a paciência é celebrada como a austeridade suprema. É um antídoto para a raiva, vista no budismo como o mais destrutivo e perigoso de todos os agentes mentais. A raiva, definida como sentimentos violentos e agressivos que inundam a mente, que naturalmente levam à hostilidade e ao conflito, é proscrita no budismo como em nenhuma outra tradição religiosa. Até mesmo a assim chamada raiva justa, com frequência desculpada por ter como objeto a injustiça e o abuso, é totalmente condenada se isso implicar na mente ser predominada por uma onda de paixão incontrolável e destrutiva. Com exceção de uma indignação puramente externa e artificial baseada em propósitos educacionais, que tenha a compaixão como motivo e seja exercida por alguém que tem controle sobre a mente, a raiva não tem lugar no método do desenvolvimento espiritual. Ela é totalmente prejudicial ao treinamento mental e arruinará e aniquilará em um instante todo o progresso e mérito alcançado. Sendo assim, começa a surgir a questão crucial de como nos comportarmos em um ambiente hostil. Passo a passo, Shāntideva foca a verdadeira origem do problema, a base da raiva e de todos os outros obscurecimentos, o ego, o "eu", a ideia de um "eu" experimentado como o centro do universo, um universo interpretado como amigo ou inimigo dependendo de como é percebido a partir do ponto de vista egocêntrico. É claro que no budismo essa é uma questão central, e é apenas sob a luz dos ensinamentos completos sobre a vacuidade que ela pode ser satisfatoriamente discutida. Por enquanto, contudo, Shāntideva permanece no nível da prática relativa. Sua preocupação é mostrar como é possível lidar com o problema dos inimigos, agressão e retaliação, no contexto da experiência do dia a dia. Seus argumentos são habilidosos, sua lógica implacável, e, no final do capítulo, somos forçados a ver, não apenas que nunca devemos permitir que uma resposta raivosa se desenvolva, mas também que as situações de conflito sofridas e resolvidas com paciência são inestimáveis, de fato indispensáveis, como ocasiões para o crescimento espiritual. A paciência, como Shāntideva descreve, implica em um grau de poder de recuperação e coragem quase inacreditáveis, a coragem de um Mahatma Ghandi ou de um Martin Luther King. Longe de ser uma condescendência débil e alquebrada, como Nietzsche nos faria acreditar, a paciência de Shāntideva é um heroísmo supremo, destemidamente aperfeiçoado até a mais elevada intensidade. Shāntideva mostra que a raiva, a reação normal à hostilidade e à adversidade, não leva a nada a não ser o aumento do sofrimento. Ela é nossa "inimiga que semeia nossa dor" (6.6). Como tal, deve ser eliminada; e de uma forma que agora podemos supor, Shāntideva faz surgir o desafio, estimulando a si mesmo com palavras animadoras. Afinal de contas, apesar de certamente não ser desejado, o sofrimento tem sua utilidade. Sem ele, seriamos como os deuses, jamais ansiaríamos pela libertação do saṃsāra. Ele abate o orgulho e gera empatia por aqueles que também sofrem. Até mesmo a virtude começa a parecer atraente!

A irritação contra o próximo que é percebido como desagradável ou ameaçador surge na mente de forma natural, e parece ser normal ressentir o agressor. Quando, por exemplo, sofremos os desconfortos físicos de doenças, sabemos muito bem que a dor é causada por desequilíbrio corporal. Podemos não gostar dela, mas seria absurdo sentir ressentimento e raiva da dor. Da mesma forma, o comportamento hostil de inimigos não surge espontaneamente, ele também é produto de causas e condições. Por que guardar rancor dos que são vítimas das emoções aflitivas? O próprio ato de identificar um agressor como uma entidade que realmente existe e que é contra o nosso "eu" que realmente existe, ao invés de simplesmente estar ciente de uma interação impessoal de forças psicofísicas, é, em si, injustificável. Aquilo que nos atinge como comportamento indisciplinado dos outros pode ser de fato difícil de aguentar, mas quando entendemos a realidade da situação, a inconveniência fica mais fácil de ser administrada. Assim, quando somos atacados, é importante lembrar que nossos agressores, agindo no impulso dos próprios obscurecimentos, estão criando as causas do próprio sofrimento. Ciente disso, Shāntideva diz: "De que serve a raiva?" (6.38). De qualquer forma, sob um ponto de vista objetivo, só pode haver dois tipos de inimigos: ou eles são intrinsecamente hostis, e, neste caso, ressentir-se do comportamento deles é tão absurdo quanto ressentir-se do fogo por este ser quente, ou são fundamentalmente bem intencionados, mas, momentaneamente, sucumbiram a uma crise de obscurecimentos. Aqui também, a animosidade é fora de propósito: é tão insensata quanto ressentir o céu quando ele está cheio de fumaça. Além disso, quando alguém me bate com uma vara, eu não fico bravo com a vara, mas sim com a pessoa que bate em mim. Por esse motivo, é ilógico eu odiar meus inimigos. Eles podem empunhar suas armas, mas eles próprios estão sob o domínio de seus obscurecimentos. Portanto, é da emoção da qual eles são vítimas que eu devo me ressentir. Levando esse argumento um passo adiante, Shāntideva mostra que, em qualquer conflito, a vítima e o agressor estão presos a uma situação de dependência mútua. No caso de um ataque físico, por exemplo, se houver dor, ela tem sua origem em duas fontes importantes que correspondem ao agente e ao objeto do ataque. O fato de haver sofrimento depende tanto do grau de apego ao corpo que a vítima tem quanto da ferida causada pelos agressores. As armas delas e meu corpo: Ambos são as causas do meu tormento! Eles brandiram suas armas e eu, meu corpo. Quem então é mais merecedor da minha fúria? (6.43) Uma vez mais, toda a experiência é condicionada pelo carma. Acontecimentos que parecem estar além do nosso controle são de fato frutos de ações anteriores, o que significa que não é correto clamar que o inimigo não é nada mais que o agressor. "Aqueles que me ferem levantam-se contra mim: meu carma os convocou" (6.47). Ainda mais, devido às consequências das ações maldosas dos inimigos, e também aos grandes resultados da paciência face à adversidade, chegamos a uma conclusão paradoxal: "Portanto, eu é quem sou o torturador deles! Portanto, eles são quem trazem benefícios a mim!" (6.49). E, com essas palavras, Shāntideva aponta como é absurda a abordagem convencional à hostilidade dos agressores. Indo um pouco além nesse argumento, Shāntideva mostra como os inimigos não são meramente

objetos de tolerância; eles devem ser apreciados como ajudantes indispensáveis no caminho do bodisatva. Inimigos fazem por nós o que nenhum amigo ou ser amado pode fazer. Quando nos despertam para a realidade de nosso apego ao "eu", os inimigos fornecem-nos oportunidade para a paciência, para purificação e para o esgotamento de carma negativo. Assim é a conclusão inevitável: Eles, tal qual as próprias bênçãos do Buda, Barram meu caminho, determinado que estou A mergulhar de cabeça no sofrimento. Como poderia eu me enraivecer com eles? (6.101)

INTENSIFICAR A BODITCHITA Shāntideva passa agora para os capítulos culminantes de sua grande obra e estabelece condutas que podem intensificar a boditchita até o nível mais elevado. Como no primeiro e no quarto capítulo, ele começa estimulando um sentido de urgência e entusiasmo. Aqui a intensa realidade da proximidade da morte e a possibilidade de um renascimento em estados infernais nos são impostas com uma força sem precedentes. Se desperdiçarmos a oportunidade incrível de liberação concedida por essa existência humana, como nos sentiremos quando os serventes do Senhor da Morte surgirem e o ruído do inferno irromper em nossos ouvidos? Além disso, por mais que possamos pensar o quanto somos felizardos e virtuosos no momento, Shāntideva nos assegura que, alojados nos recessos da mente desde um tempo sem princípio, temos resíduos cármicos mais do que suficientes para precipitar uma queda desastrosa. Como você pode ficar calmo assim, Tendo feito as ações que levam Sua carne, macia como a de um bebê, a conectar-se Com os líquidos em ebulição no inferno Extremamente Ardente? (7.12) Na verdade, nesta vida humana, não é hora de ter complacência. Entretanto, como sempre, a mensagem de Shāntideva é plena de esperança e convicção prática. Temos esta oportunidade agora, nosso destino está em nossas mãos. "Tire proveito", ele diz, "deste barco que é seu corpo humano. Liberte-se do rio caudaloso da amargura" (7.14). As qualidades necessárias são a coragem e uma recusa inabalável de desistir. Shāntideva chama a atenção para o fato de que, se quisermos nos safar com a desculpa de que o esforço está além das nossas capacidades, além de nem de longe corresponder aos fatos, isso nada mais é do que indolência e covardia. Afinal, com perseverança, até mesmo os insetos podem alcançar a liberação. Aqui, de novo, encontramos o tópico do orgulho como uma ferramenta positiva na tarefa de manter a determinação. Shāntideva desenvolve esse argumento extensamente, distinguindo a confiança benéfica da arrogância, numa espécie de jogo de palavras (que dificilmente pode ser traduzido) que resulta em uma espécie de charada bem humorada. Como anteriormente, apesar das reflexões melancólicas, o tom, de maneira geral, é irresistivelmente positivo. Os elefantes, para se protegerem do sol do meio-dia, mergulham nas águas de um lago. Da mesma maneira, os bodisatvas se jogam na grande tarefa pelos seres. O sétimo capítulo é concluído com uma nota de determinação calma e inalterável.

O bodisatva em treinamento, com uma intenção consolidada pelo cuidado, pela introspecção vigilante, pelo aperfeiçoamento da paciência e atiçado pelo desejo de trabalhar incansavelmente até que o objetivo seja alcançado, agora prossegue abraçando a verdadeira e genuína disciplina da transformação da mente. O oitavo capítulo, sobre a concentração meditativa, o clímax dos ensinamentos sobre o nível da boditchita relativa, tem duas seções principais. A primeira é uma instrução preliminar sobre como criar o ambiente apropriado para a meditação (as primeiras noventa estrofes). Depois, continua com uma extensa descrição da meditação em si. Shāntideva apresenta o tema sob o ponto de vista da renúncia monástica. Ele era um monge e é preciso lembrar que a primeira conferência pública do Bodhicharyāvatāra foi dada para a assembléia monástica em Nālandā. Ainda assim, seria um erro do praticante secular descartar os ensinamentos de Shāntideva por serem exclusivamente relevantes para os monges ordenados. Ao contrário, Shāntideva delineia princípios de validade universal que são de fato obrigatórios para todos os que desejam seguir um caminho de transformação espiritual efetiva e profunda. O capítulo começa, como seria possível esperar, com uma exigência de concentração e eliminação das divagações mentais. E a convicção é a de que, quer se queira entrar em um monastério ou se prefira permanecer na condição de leigo, a concentração não pode progredir sem uma redução rigorosa do envolvimento com questões mundanas. Naturalmente, o cumprimento das regras monásticas é peculiarmente propício para o desenvolvimento da calma mental, mas, em última instância, é a motivação interna e a disciplina pessoal que importa. Sendo assim, somos aconselhados extensamente a ter cuidado com as companhias que mantemos, reconhecendo que o simples fato de termos um estilo de vida descuidado, imerso em valores materiais e em comportamentos de amigos mundanos, não nos levará a lugar algum. O resultado será apenas a futilidade e a frustração. Shāntideva nos aconselha a nos afastarmos daqueles cujos valores são contrários ao Darma, pessoas a quem ele costumeiramente se refere como "aqueles que são pueris" (em outras palavras, com termos designados para estimular sentimentos de preocupação em vez de ressentimento). Assim, Shāntideva prescreve a solidão, uma fuga do mundo, é claro não com um sentido puritano ou de negação do mundo, mas sim com o espírito de liberdade interior. A tranquilidade mental, diz ele significativamente, é "encontrada por aqueles que, contentes, renunciam às amarras mundanas" e por aqueles que, por essa razão, "nunca se voltam para olhar para trás" ( 8.4, 8.26). E ele é poético em sua celebração de um retiro na floresta. É claro que dificuldades e obstáculos acontecem na prática e isso se resume a duas questões: desejo por companhia e desejo por propriedades. No primeiro caso, Shāntideva fala sobre a questão do sexo e o problema atribuído ao desejo físico, o que leva, naturalmente, para a questão prática de como atenuar e neutralizar a obsessão sexual. Como técnica meditativa ele recomenda para si mesmo e para sua audiência monástica uma reflexão e concentração sobre os aspectos impuros e não atrativos do corpo de uma mulher. E, não sem senso de humor, dele discorre detalhadamente sobre o absurdo das convenções sociais sobre o namoro e o casamento, não apenas com referência às óbvias realidades físicas, mas também sob o ponto de vista da impermanência e da morte. Desta forma, Shāntideva dá instruções importantes para a comunidade ordenada sobre como a virtude da castidade deveria ser cultivada e o estado de celibato preservado. Entretanto, como dissemos, uma vez que o ponto em questão é o desejo sexual como tal, o ensinamento aqui tem aplicação universal, independentemente do status social e, por essa razão, da orientação sexual. Os praticantes leigos também são obrigados a reconhecer que, na vida sexual, assim também como em outros aspectos da

existência samsárica, a mente é atraída para o que é, de fato, uma miragem. Habitualmente ela opera ignorando por completo as realidades físicas objetivas ou tornando-se a qualquer custo altamente seletiva em relação ao que notar. E, de qualquer forma, desejo é desejo, e é preciso transcendê-lo para que o progresso no caminho (inclusive no caminho tântrico) seja possível. Em relação à aquisição de propriedades, a mensagem de Shāntideva é a mesma usada sobre os apegos pessoais: as pessoas passam a vida perseguindo quimeras. Elas se destroem na busca por riqueza que, mesmo quando adquirida, é apenas para o desfrute de um breve e passageiro momento, os pedaços de capim que o boi é capaz de arrancar ao longo do caminho enquanto arduamente tenta puxar a carroça! E, não obstante, Shāntideva exclama, "com uma milionésima parte desses aborrecimentos, a própria iluminação poderia ser alcançada!" (8.83). Depois de uma vez mais enaltecer as vantagens da solidão, Shāntideva começa a considerar dois tópicos que formam o ponto alto de seu ensinamento e que são a essência do caminho do bodisatva: a meditação na igualdade do "eu" e do "outro" e a meditação em se colocar no lugar do outro.12 Aqui o assunto se torna complexo, já que depende da profunda doutrina da vacuidade. Pois rapidamente torna-se claro que, no caminho do bodisatva, a compaixão não é compreendida apenas como empatia pelo sofrimento dos seres, ou até mesmo uma determinação de fazer algo a respeito desse sofrimento em termos práticos, por mais admirável que essa tarefa possa ser. No budismo Mahāyāna, a compaixão envolve, por meio da aplicação da sabedoria, o transcender da noção do próprio ego e a compreensão de que, em uma análise final, a barreira existencial que separa o "eu" do "outro" é totalmente irreal, uma simples construção mental. Uma vez que essa barreira tenha sido cruzada e que os bodisatvas compreendam a irrealidade da distinção entre "eu" e "outro", o sofrimento dos outros torna-se para eles tão real quanto o seu próprio. Na verdade, o sofrimento do outro é o sofrimento do bodisatva, e o desejo de liberá-los, tanto temporariamente quanto definitivamente, torna-se o impulso principal do bodisatva. Essas ideias serão pouco familiares e talvez desconcertantes para muitos leitores, e o significado do texto não é sempre fácil de compreender. Por essa razão, um excerto substancial do comentário tibetano de Kunzang Pelden é oferecido no Apêndice 2, no final do livro. Aqui é suficiente enfatizar que os ensinamentos budistas sobre a compaixão são fundamentados na sabedoria da vacuidade. É daí que eles derivam seu significado e força propulsora, sua validade e ao mesmo tempo sua possibilidade prática. Aqueles que desejam rapidamente Servir de refúgio para si próprios e para os outros seres Devem trocar os termos "eu" e "outro", E assim abraçar um mistério sagrado. (8.120) Essa inversão, possivelmente até o nível em que a dualidade do "eu" e do "outro" tenha sido transcendida, é o ápice da prática do bodisatva e leva-nos à essência da sabedoria budista. É desse ponto que todos os ensinamentos de O Caminho do bodisatva extraem seu significado e onde encontram sua completude. Tudo está condensado em uma única estrofe que Shāntideva proclama com a determinação de um princípio cósmico: Toda a alegria que o mundo contém

Vem de querer felicidade para os outros. Todo o sofrimento que o mundo contém Vem de querer felicidade para si mesmo. (8.129) Aqui, como sempre, Shāntideva não nos deixa boquiabertos em espanto assombroso. Rapidamente ele estabelece métodos projetados para nos ajudar no caminho. Ao fazer isso, ele indica uma prática que, segundo Sua Santidade o Dalai Lama, é única em todo o âmbito do ensinamento budista. Dirigida para o obstáculo principal à realização da equanimidade (ou seja, o ego em si), e tomando como uma deixa a ideia da inversão, Shāntideva descreve uma meditação que consiste em nos projetarmos, por meio da destreza de uma imaginação empática, na posição de um oponente. Ao olharem para si mesmos, como se fosse através dos olhos do oponente, os meditadores devem ter como alvo o próprio ego, gerando a emoção negativa apropriada de inveja, competitividade com o rival ou orgulho, e sentindo em primeira mão o que é ser o alvo do próprio comportamento. Essa técnica, que é de grande interesse psicológico e efetividade, foi comentada extensivamente por Kunzang Pelden, e uma tradução de suas observações é encontrada no Apêndice 3. Fascinante como é, essa prática — como meio de diminuir o poder do ego e de também atenuar a barreira ilusória entre "eu" e "outro" — tornará evidente, a partir do que foi dito antes, que uma compreensão verdadeira da sabedoria da vacuidade é indispensável para que haja a experiência real de igualdade e para que a inversão ocorra. Podemos assim perceber a importância da posição metafísica de Shāntideva e apreciar a extensão de quanto ela inspira e serve com base para todo o seu ensinamento. O Bodhicharyāvatāra estaria incompleto sem uma discussão detalhada sobre a sabedoria.

O CAPÍTULO SOBRE A SABEDORIA O celebrado nono capítulo sobre a sabedoria é, certamente, assombroso por sua complexidade. Não é fácil de entender, e é compreensível que, talvez para a maioria dos leitores, será passado em branco. Entretanto, mais cedo ou mais tarde, a questão da sabedoria, e o que Shāntideva considera como tal, deve ser considerada como o ápice e também a chave para todo o caminho do bodisatva. Shāntideva começa por apontar que todo o Bodhicharyāvatāra até aqui — que todos os métodos para purificar a mente e gerar as virtudes de introspecção vigilante, paciência, coragem e assim por diante — são gerados por meio da sabedoria, a realização direta da vacuidade, boditchita última, sem a qual a verdadeira prática da compaixão é impossível. Sob o ponto de vista filosófico, Shāntideva pertenceu à escola Madhyamaka, ou Caminho do Meio, da doutrina budista. Essa tradição, fundada por Nāgārjuna no século II e tendo como adeptos uma série de mestres incomparáveis (Āryadeva, Buddhapālita, Bhāvaviveka, Chandrakīrti, Shāntarakṣhita, Atīsha e outros), floresceu na Índia ininterruptamente por mais de mil anos. Transmitida para o Tibete no século VIII, tem sido mantida até hoje como a expressão suprema da sabedoria dos ensinamentos de Buda. Não há motivo aqui para se oferecer uma visão completa do pensamento Madhyamaka, mas talvez as observações a seguir possam ajudar os leitores a terem uma ideia das diretrizes principais e do significado básico.13 Nos séculos que se seguiram à morte de Buda, foram feitas muitas tentativas para organizar e

formular seus ensinamentos. Diferentes sistemas surgiram baseados em escrituras registradas, com o objetivo de expressar o significado intencionado por Buda. Quatro, ou melhor, três grandes sínteses surgiram: a Vaibhāshika e Sautrāntika (que por motivos práticos podem ser consideradas juntas), a Madhyamaka e a Vijñānavāda (também chamada de logāchāra ou Chittamātra, a escola da Mente Apenas). Não é surpreendente o fato de ter havido uma multiplicidade de sistemas. Desde sua iluminação até sua morte, cinquenta anos depois, Buda concedeu ensinamentos para o benefício de muitas audiências diferentes. O objetivo de sua doutrina era sempre o mesmo: liberar os seres do ciclo de sofrimento. A expressão desse objetivo, entretanto. difere de acordo com a capacidade dos ouvintes. É, portanto, esperado que o corpo dos ensinamentos que permaneceram depois de sua partida deste mundo seja rico e variado, contendo elementos que às vezes são até contraditórios. O Mahāyāna lida com essa situação dizendo que Buda fez dois tipos de declarações: definitivas (sânsc. nītārtha), que correspondem ao significado verdadeiro como entendido por ele; e provisórias (sânsc. neyārtha), que correspondem a uma expressão parcial do significado, gerada para a compreensão dos ouvintes com a intenção de guiá-los ao longo do caminho à compreensão perfeita e, dessa forma, sendo de validade temporária. Paralela a essa divisão há a doutrina das duas verdades: verdade última (sânsc. paramārtha), correspondente à verdadeira natureza das coisas; e verdade relativa (sânsc. saṃṛvriti), correspondente à forma como elas aparecem. Buda habilmente graduou seus ensinamentos de acordo com a necessidade pedagógica. Por exemplo, ele falou em termos de um "eu" no contexto do carma e da responsabilidade ética, como sendo contrário ao "niilista" que não acredita na sobrevivência após a morte. Em contraste, negou a existência do ātman, como contrário ao "eternalista" (que toma o "eu" como tendo uma essência imutável). Ele também disse que não há "eu" nem "não eu". Qual é a conclusão que se tira disso? Qual era a verdadeira posição de Buda? Podemos ter como ponto de partida as próprias palavras de Shāntideva: Relativa e última, Assim as duas verdades foram enunciadas. A última está além do domínio do intelecto, Pois é dito que o intelecto é a relativa. (9.2) Isso significa que todas as declarações, todas as teorias, tudo que emerja de operações da inteligência racional, tem a natureza da realidade relativa. As teorias podem ter uma utilidade prática e podem contribuir com a experiência empírica, mas são inadequadas como expressões da verdade última, a "natureza das coisas". O último é suprarracional e não pode ser expresso em termos conceituais. Sendo assim, nas escrituras páli está registrado que Buda disse que "o Tathāgata está livre de todas as teorias".14 E, de novo, "A visão de que tudo existe, Kachchāyana, é um extremo; a de que não existe é outro. Não aceitando os dois extremos, o Tathāgata proclama a verdade do caminho do meio".15 A segunda passagem é explicitamente referida por Nāgārjuna na sua grande obra, As estrofes sobre o Caminho do Meio, com a observação que "o Senhor rejeitou ambas visões: a do "é" e a do "não é".16 Em outras palavras, ele rejeitou todas as visões. Isso significa que qualquer declaração que alegue encapsular a verdade última, qualquer formulação que indique "isso" ou "aquilo" como sendo absolutamente real, é falsa, falsa pela simples razão de que é uma formulação que emana da inteligência conceitual.

À primeira vista, isso parece ser uma forma de niilismo. Aparentemente, é a assertiva de que, de um modo geral, não podemos conhecer nada sobre a verdade; isso parece estar totalmente além do nosso alcance, e o Madhyamaka frequentemente foi mal compreendido e criticado.17 Contudo dizer que o "último não está ao alcance do intelecto" não significa que não possa ser conhecido; significa simplesmente que ele excede os poderes do pensamento comum e da expressão verbal. O conhecimento da verdade última transcende o pensamento. É suprarracional. É não conceitual e não dual, bem diferente, podemos supor, de qualquer coisa que jamais experimentamos até agora. É prajñā: insight intuitivo e imediato na "talidade", a sabedoria da vacuidade além do sujeito e objeto. Como é possível alcançar ou até mesmo se aproximar de tal tipo de conhecimento? Shāntideva responde em uma estrofe-have (o ponto principal de sua dissertação em Nālandā quando, de acordo com a história, ele e Mañjushrī começaram a se elevar no ar): Quando ambos, algo e a sua inexistência, Deixam de aparecer diante da mente. Nada mais resta para a mente fazer. Senão repousar em perfeita paz, livre de conceitos. (9.34) Essas linhas indicam a tarefa a ser cumprida: a mente tem que ser deixada como é, livre e desimpedida, simplesmente desperta, não mais capturada e enrodilhada em pensamentos e teorias e na apegada reificação de "eu" e de substância. No nível do discurso filosófico, isso envolve a demonstração da inadequação das teorias e sistemas que objetivam expressar a verdade absoluta. A posição básica do Madhyamaka é a de que a razão não é suficiente. É o reconhecimento, de fato a descoberta, de que existe uma carência radical na estrutura da razão em si, algo que a impede de alcançar o verdadeiro conhecimento do último. Numa análise final, todas as formulações racionais, mesmo que geniais, contém em si mesmas paradoxos e inconsistências, em outras palavras, a semente de sua própria refutação. A tarefa do Madhyamaka é expor esta incoerência interna. Ela procede no conhecimento de que, se pressionadas num debate para serem explicadas, todas as formulações construídas racionalmente vão acabar em contradição. Assim, Nāgārjuna não propõe uma posição própria. Em vez de um corpo de doutrinas, Madhyamaka é primordialmente um método, um sistema de crítica filosófica. É pura e simples dialética. Seu procedimento é tomar uma assertiva dogmática (a doutrina do "eu", a teoria da causa, ou a existência de um criador divino etc.) e gradativamente refutá-la, sem entrar em colisão direta apresentando uma visão contrária, mas expondo gradualmente, por meio de uma série de passos lógicos, a própria incoerência interna da teoria. A assertiva é consequentemente reduzida ao absurdo e colocada como desproporcional à sua afirmação original. No fim, as teorias, todas as teorias, incluindo as budistas, caem por terra por sua absoluta nulidade. Nenhuma construção intelectual pode resistir a tal análise; o propósito do Madhyamaka é reduzir ao silêncio total o incansável intelecto questionador, para sempre condenado a ter um ponto de vista unilateral e específico. A quietude mental intervém e a elaboração conceitual é aniquilada, tornando possível um insight que está além do constructo mental, o que prepara o solo para a experiência de shunvatā, a vacuidade em si.18 A posição do Madhyamaka, assim, parece a crítica de Kant à filosofia ocidental moderna, mas como T. R. V. Murti sugere, vai muito além de Kant ao perceber que a própria crítica pode produzir sabedoria e prover a base para um caminho espiritual.19

Em suas considerações, Shāntideva analisa a abrangência dos argumentos da Madhyamaka como foram desenvolvidos desde a época de Nāgārjuna até a de Shāntideva. Assim, o nono capítulo do Bodhicharyāvatāra apresenta uma visão geral enciclopédica, extremamente útil para a compreensão do próprio sistema. Ele devota um espaço considerável para refutar o realismo das escolas Vaibhāshika e Sautrāntika, a crença na existência de partículas indivisíveis de matéria e momentos de consciência. Esse foi o principal objeto da polêmica de Nāgārjuna. Ele também desmantela as teorias da escola antiga hindu Sāṃkhya e critica as escolas Mimāṃsā e Nyāya-Visheṣhika da filosofia indiana, às quais Āryadeva, um grande aluno de Nāgārjuna, dedicou especial atenção. O capítulo é complementado por um relato extenso sobre o Vijñānavāda (no sentido de um sistema de doutrina), que é apresentado e refutado no estilo de Chandrakīrti. Tendo vindo depois de Chandrakīrti e, aparentemente, tendo adotado sua posição em relação à escola da Mente Apenas, Shāntideva é usualmente considerado como pertencente ao ramo Prāsaṅgika da escola Madhyamaka.20 Mesmo nos capítulos iniciais do Bodhicharyāvatāra, muito antes de explicitar questões metafísicas, fica evidente que Shāntideva está constantemente preocupado com a visão da vacuidade e sua implicação em todos os aspectos do caminho do bodisatva. Os questionamentos que ele faz sobre a natureza dos obscurecimentos mentais, no fim do quarto capítulo, e a repentina discussão sobre o "eu" no sexto capítulo, para citar apenas dois exemplos, mostra que a perspectiva filosófica está sempre muito próxima de vir à tona. E a característica mais extraordinária do nono capítulo, a partir do contexto do Bodhicharyāvatāra como um todo, é mostrar que a sabedoria da vacuidade não é apenas relevante no treinamento do bodisatva, mas é na verdade indispensável. Shāntideva demonstra que, longe de ser uma questão de metafísica elevada ou uma discussão acadêmica afastada das preocupações da existência prática, Madhyamaka é fundamentalmente uma visão e uma forma de viver. É o coração e a alma supremos do ensinamento budista. Nas vinte estrofes no fim do nono capítulo, Shāntideva mostra precisamente como a falta dessa sabedoria está na raiz do saṃsāra e dos sofrimentos do mundo; ele comoventemente conclui sua mensagem com versos de grande beleza e compaixão: Quando serei capaz de aplacar e extinguir O calor terrível que arde nas fogueiras do sofrimento Com as chuvas abundantes da minha bem-aventurança Que caem torrencialmente das minhas nuvens de mérito? Tendo acumulado uma profusão de mérito, Com reverência mas sem um alvo conceitual, Quando poderei revelar a verdade da vacuidade Àqueles cuja ruína é a crença em uma existência real? (9.166-167)



O texto e a tradução De acordo com a tradição, O caminho do bodisatva foi primeiro traduzido para o tibetano no século VIII pelo mestre indiano Sarvajñādeva e pelo tradutor tibetano Kawa Peltsek, usando um manuscrito da Caxemira. Mais tarde, foi revisto durante o século XI pelo paṇḍita Dharmashrībhadra e pelo tradutor Rinchen Zangpo, baseado em um manuscrito e comentário de Magadha. Uma revisão final foi feita pelo paṇḍita Sumatikīrti e pelo tradutor Ngok Loden Sherab.21 O poema de Shāntideva é um dos poucos textos budistas indianos cujo original em sânscrito sobreviveu. Foram feitas traduções desse original para línguas europeias22 e, sendo baseadas na erudição linguística e textual moderna, são, sem dúvida, de grande valia. Entretanto, o fato de que o texto de Shāntideva tenha sido exposto, estudado e praticado no Tibete em uma tradição ininterrupta, praticamente desde o momento de sua composição até os dias de hoje, dá à versão tibetana de O caminho do bodisatva uma autoridade particular e constitui, em nossa visão, uma importante justificativa para usá-la como texto original para as traduções para línguas modernas, com o suporte dos comentários tradicionais. A obra de Shāntideva é uma das grandes raízes-mestras do budismo tibetano e foi por mais de mil anos a inspiração de gerações e gerações de praticantes, mestres realizados e pessoas comuns. Na longa linhagem de mestres que transmitiram o Bodhicharyāvatāra em todos os tempos, parece apropriado mencionar particularmente o mestre do século XIX Dza Patrul Rinpoche23, que ocupa uma posição de importância extraordinária como um mestre, cuja influência foi sentida em todas as escolas do budismo tibetano nos tempos modernos. Depois de estudar com todos os maiores mestres de sua época, Patrul Rinpoche tornou-se um ermitão itinerante, vivendo em cavernas e embaixo de árvores nas florestas. Sua conexão com os centros monásticos estabelecidos era mínima; ele não possuía nem casa nem propriedades. Meditava constantemente no amor e compaixão, o que considerava ser a base e o coração de toda prática espiritual. Tinha uma memória fora do comum e sabia de cor um número enorme de textos e escrituras. Ensinava com uma simplicidade inspiradora a partir das profundezas de sua realização, e muitas histórias são contadas sobre ele. Seu comportamento aparente era frequentemente excêntrico e pouco convencional, e sua bondade renomada era contrabalançada por uma fachada de ferocidade desconcertante. Sua prática de compaixão era tal que as pessoas o consideravam como a própria encarnação de Shāntideva. E, em uma época em que muitos ensinamentos essenciais estavam caindo em desuso e tomando-se cada vez menos familiares, Patrul Rinpoche ensinou o Bodhicharyāvatāra com tanta frequência que inspirou a maioria dos comentários escritos sobre o texto na segunda metade do século XIX e início do século XX. Graças a ele, a obra de Shāntideva tornou-se um dos textos mais estudados e praticados em todo o Tibete Oriental. Diz-se que, quando Patrul Rinpoche morreu, suas posses consistiam nas roupas que vestia, uma tigela e uma cópia do Bodhicharyāvatāra.24 Patrul Rinpoche tinha muitos discípulos, que se tornaram mestres e praticantes realizados do

caminho do bodisatva. Mipham Rinpoche, por exemplo, um dos maiores eruditos tibetanos da modernidade, junto com seus discípulos e com os discípulos de seus discípulos: Kunzang Pelden, Minyak Kunzang Donam, Shechen Gyaltsab Rinpoche, Kangyur Rinpoche Longchen Yeshe Dorje, Kunu Lama, Jamyang Khyentse Chokyi Lodro, Dilgo Khyentse Rinpoche, Sua Santidade o atual Dalai Lama, para citar apenas alguns: uma linhagem ilustre que continua até hoje, e que sob sua égide foi feita esta tradução. É nossa esperança sincera que esta nova tradução do Bodhicharyāvatāra possa ser útil para os falantes do inglês e que ajude a preservar os ensinamentos que os mestres acima citados incorporaram em suas vidas e preservaram até agora. Aqui foi feita uma tentativa de traduzir o texto em verso, emulando assim o formato original, mantendo a estrutura tradicional tibetana de estrofes de quatro linhas ou shlokas. A tradução em verso, e versos didáticos, é, na verdade, um empreendimento arriscado hoje em dia e pode invocar críticas, se não hostilidade. A intenção, à parte da imitação, foi produzir uma versão que poderia ser fácil aos ouvidos e, portanto, ser mais facilmente lembrada, imitando, mesmo de forma muito remota, a suavidade, clareza e lirismo ocasional do estilo de Shāntideva. Admitimos que esse foi um projeto ambicioso e o resultado sem dúvida mostrará muitas falhas, ficando muito aquém do objetivo desejado. Porém, terá cumprido seu propósito se contribuir para dar um direcionamento na tradução e futura versão perfeita da obra de Shāntideva, nas mãos de algum escritor que tenha um dom verdadeiro, talvez iluminado. Por enquanto, pedimos paciência ao leitor em relação aos detalhes da presente versão, impostos pela métrica. Certa licença poética no nível do vocabulário se provou necessária, no sentido de variações e paráfrases interpretativas. Assim, por exemplo, "doutrina", "ensinamentos" e termos similares são alternativas para "Darma"; "Assembléia" e "Saṅgha" são usadas como sinônimos etc. Muitas palavras em sânscrito foram mantidas, ou porque já são, de uma maneira geral, familiares ou porque parecia ser bom que elas assim se tornassem. Por outro lado, em razão de um exame crítico, é muito difícil acomodar, em um verso em inglês, nomes em sânscrito ou palavras com mais de duas sílabas, tais como Avalokiteshvara. Alternativas reconhecíveis muitas vezes precisam ser encontradas e estamos inevitavelmente dependendo da cooperação compreensiva do leitor. Esta não é uma tradução de palavra por palavra, embora em muitas ocasiões siga bem de perto o tibetano. Ao invés de ser um trabalho de erudição acadêmica, seu objetivo é transmitir o espírito da obra de Shāntideva como é apresentada na tradição budista tibetana, e como tal, é endereçada principalmente, apesar de, é claro, não exclusivamente, às pessoas que aspiram consumar esses ensinamentos na vida cotidiana. Concluindo, o leitor poderá se interessar pela seguinte episódio: em 1984, o tradutor teve o privilégio incomum de ter uma reunião particular com Sua Santidade o Dalai Lama, que estava visitando a Inglaterra naquela ocasião. O tradutor tinha consigo uma cópia do Bodhicharyāvatāra, e aproveitou a oportunidade para pedir que Sua Santidade a abençoasse. Ele o fez prontamente, colocando o texto em sua testa. Depois de um momento, ele se virou e disse: "Se eu tiver qualquer compreensão sobre a compaixão e sobre a prática do caminho do bodisatva, ela é inteiramente baseada neste texto". AGRADECIMENTOS O Caminho do Bodisatva foi traduzido por Wulstan Fletcher do Padmakara Translation Group,

com a ajuda muito apreciada de Helena Blankleder. O tradutor agradece aos leitores Steve Gethin, John Canti, Adriane e Geoffrey Gunther e Christopher Moore. Como sempre, nosso trabalho dependeu inteiramente da ajuda e orientação de nossos professores. Estamos absolutamente agradecidos a Taklung Tsetrul Pema Wangyal Rinpoche por sua inspiração e exemplo; e mais especialmente a Jigme Khyentse Rinpoche, que transmitiu o texto inteiro, que supervisionou o projeto desde o início até o final e quem, com seus ensinamentos e acuidade, apoio incansável, ajuda paciente e humor gentil, tornou essa tradução possível. O Padmakara Translation Group agradece penhoradamente o apoio generoso da Fundação Tsadra, que patrocinou a preparação da edição revisada.

O caminho do Bodisatva Bodhicharyāvatāra

1. A EXCELÊNCIA DA BODITCHITA Homenagem a todos os budas e bodisatvas. 1 Diante dos que vão em bem-aventurança,25 diante do dharmakāya que possuem,26 e diante de todos os seus herdeiros,27 Diante de todos aqueles que são dignos de respeito, reverentemente eu me curvo. De acordo com as escrituras, descreverei agora, em breves palavras, como praticar a disciplina do bodisatva. 2 Tudo o que eu tenho a dizer já foi dito antes, E faltam-me erudição e habilidade no uso das palavras. Portanto, não é minha intenção que esta obra venha a beneficiar os outros; Escrevi-a tão somente para treinar a minha mente. 3 Fique assim fortalecida a minha fé por algum tempo, Para que eu possa me familiarizar com este caminho virtuoso. Possam, porém, aqueles que se depararem com minhas palavras Também nelas encontrar proveito e experimentar fortuna igual à minha. 4 Quão difíceis de encontrar são as liberdades e dotes28 Por meio dos quais as intenções dos seres podem ser conquistadas! Se agora eu deixar de tirar proveito desta oportunidade, Como poderia consegui-la novamente? 5 Tal como em uma noite escura com nuvens negras Um relâmpago repentino esplandece e tudo é aclarado, De igual modo, raramente, pelo poder dos budas, Pensamentos virtuosos surgem neste mundo, breves e passageiros. 6 Portanto, a virtude é frágil! E sempre a força do mal é enorme e avassaladora. Com exceção da boditchita perfeita, Que outra virtude é capaz de sobrepujá-la? 7

Tendo refletido por muitas eras, Os sábios poderosos29 enxergaram seus benefícios, Que podem facilmente conduzir À felicidade suprema incomensuráveis multidões. 8 Aqueles que desejam superar os sofrimentos da existência, Que desejam aliviar a dor dos seres vivos, Que desejam experienciar miríades de alegrias Não deveriam nunca dar as costas à boditchita. 9 Caso a boditchita venha a nascer Naqueles que padecem acorrentados nas prisões do saṃsāra, Nesse instante, estes passam a ser chamados de herdeiros do Bem-aventurado, Venerados por todo o mundo, por deuses e homens. 10 Pois, tal qual a substância suprema dos alquimistas, Ela toma a forma impura da carne humana e a transforma No corpo de um buda, uma joia de valor incalculável. Assim é a boditchita: devemos segurá-la com firmeza! 11 Visto que a sabedoria infinita do único guia dos seres Examinou perfeitamente e enxergou seu valor inestimável, Aqueles que desejam abandonar os passos errantes Devem segurar bem essa preciosa boditchita. 12 Todas as demais virtudes, como a bananeira-são-tomé, Produzem seus frutos e, com isso, sua força se esvai. Somente a árvore maravilhosa da boditchita Dá fruto e cresce sem cessar. 13 Como uma pessoa que atravessa por perigos guardada por um herói, Mesmo aqueles sobre quem pesa atroz perversidade São prontamente liberados ao cultivar a boditchita. Por que então aqueles que temem os próprios pecados não recorrem a ela? 14 Como que tragados pelo fogo do final dos tempos, Os grandes pecados são inteiramente consumidos pela boditchita.

Seus benefícios, portanto, são incomensuráveis, Como o Senhor Sábio e Amoroso 30 explicou a Sudhana. 15 Diz-se, em breves palavras, que a boditchita, A mente do despertar, possui dois aspectos: Primeiro, a aspiração, a boditchita na intenção; Segundo, a boditchita na ação, o engajamento prático. 16 Semelhante a desejar partir E então pôr-se a caminho, O sábio deveria compreender respectivamente A diferença que separa as duas. 17 Da boditchita na intenção Grandes resultados surgem para os que ainda giram na roda da vida. No entanto, dela não brotam fluxos incessantes de mérito, Pois isso só advém da boditchita na ação. 18 Quando, com intenção irreversível, A mente abraça a boditchita, Disposta a liberar os seres em sua infinita profusão, Nesse instante, desse momento em diante, 19 Uma corrente enorme e ininterrupta, Um manancial potente de mérito, Surge tão vasta quanto o céu, Mesmo durante os estados de sono e desatenção. 20 Isso o Tathāgata31 Disse com exposição bem fundamentada No sutra pedido por Subahu,32 Àqueles inclinados aos caminhos inferiores. 21 Se com amável generosidade Alguém alimenta o desejo de apenas aliviar A dor de cabeça de outros seres,

Tal mérito não conhece limites. 22 O que dizer então do desejo De afastar a infindável dor De todos os seres vivos, Dotando-os de excelência infinita? 23 Poderia nosso pai ou mãe Alguma vez manifestar desejo assim tão generoso? Será que os próprios deuses, os ṛiṣhis,33 mesmo Brama,34 Abrigam benevolência igual a essa? 24 Pois, no passado, eles jamais desejaram, Ainda que em sonho. Algo assim, sequer para si mesmos. Como poderiam então desejá-lo para o benefício dos outros? 25 Esse propósito de beneficiar os seres, Um beneficio que outros não desejam nem mesmo para si próprios, Esse estado de mente, tão precioso e nobre, Surge como um verdadeiro assombro, nunca antes visto. 26 Essa brisa que dissipa a dor, Essa causa de felicidade àqueles que vagam pelo mundo,35 Essa atitude preciosa, essa joia da mente: Como se há de avaliar seu mérito? 27 Pois, se o simples pensamento de ajudar o próximo É mais valioso que venerar os budas, O que falar de feitos concretos Que trazem felicidade e benefícios a todos os seres? 28 Os seres anseiam por se liberar de seu sofrer, Mas é justamente para esse sofrimento que correm. Anseiam por felicidade, mas, em sua ignorância, Destroem-na como a um inimigo.

29 Mas aqueles que preenchem de bem-aventurança Todos os seres carentes de satisfação, Aqueles que removem toda dor e tormento Daqueles que se vergam sob seu padecer, 30 Aqueles que debelam as trevas da ignorância dos seres: Que virtude se iguala a suas? Que amigo se compara a eles? Onde encontrar mérito semelhante aos seus? 31 Se aquele que retorna um favor Merece honrarias, Como descrever os bodisatvas, Aqueles que voluntariamente fazem o bem? 32 As pessoas prezam como doadores virtuosos Aqueles que, com desprezo, amparam poucos Com uma refeição modesta e trivial: Um donativo momentâneo que provém sustento para apenas meio dia. 33 O que se há de dizer daqueles Que, por muito tempo, concedem a incontáveis multidões A alegria inigualável do estado búdico bem-aventurado, A realização de todas as suas esperanças? 34 Aqueles que, em sua mente, abrigarem o mal Contra esses senhores da generosidade — os herdeiros dos budas — Permanecerão nos infernos, disse o Sábio poderoso, Por eras iguais aos momentos de sua malquerença. 35 Por contraste, pensamentos bons e virtuosos Produzirão frutos abundantes em medida ainda maior. Mesmo em meio à adversidade, os bodisatvas Nunca produzem o mal; suas virtudes incrementam-se naturalmente. 36 Diante daqueles que deram à luz

Esta mente sagrada e preciosa, diante deles eu me curvo! Tomo refugio nesta fonte de felicidade Que conduz seus próprios inimigos à perfeita bem-aventurança.

2. CONFISSÃO 1 Aos budas, aqueles que assim passaram, E ao Darma sagrado — imaculado e supremamente raro —, E à prole de Buda, oceanos de boas qualidades, Faço uma oferenda perfeita para que eu possa adquirir esta atitude preciosa.36 2 Ofereço todas as flores e frutos, Todos os tipos de ervas medicinais, E todas as gemas preciosas que existem no mundo, Juntamente com todas as águas puras e refrescantes; 3 Todas as montanhas, ornadas com pedras preciosas, Todos os bosques perfumados e solitários; As árvores celestiais adornadas de flores, Com galhos arqueados com o peso de frutos perfeitos; 4 As fragrâncias dos reinos celestiais; Todos os incensos, árvores que realizam desejos e árvores de joias; Todas as plantações que crescem sem lavra; E todos os ornamentos suntuosos dignos de serem oferecidos; 5 Lagoas e lagos aprazíveis enfeitados de flores de lótus E embalados pelo canto doce de aves aquáticas; E tudo que não foi reivindicado e que é livre. Estendendo-se até os confins do firmamento. 6 Imaginando todas essas coisas, Faço uma oferenda perfeita ao Sábio poderoso e aos seus herdeiros. Ó recipientes sublimes, senhores compassivos, Pensem em mim com amor, aceitem estes presentes. 7 Pois, desprovido de mérito, sou paupérrimo, Não tenho nenhum outro bem. Porém vocês, protetores,

Cujas intenções sábias se voltam para o bem-estar dos outros, Em seu grande poder, aceitem estas oferendas para meu benefício. 8 Aos budas e seus filhos bodisatvas Faço do meu corpo uma oferenda por toda eternidade. Ó heróis supremos e corajosos, aceitem-me por inteiro, Já que, com devoção, serei seu escravo. 9 Pois, se me aceitarem, Não me intimidarei com o saṃsāra e agirei pelo bem de todos os seres. Transcenderei os males do meu passado E, daí em diante, a eles darei as costas. 10 Em salas de banho permeadas de doces fragrâncias, Com chão de cristal liso, radiante e claro, Ornadas por graciosas colunas cravejadas de joias E dosséis de pérolas cintilantes, 11 Banharei os venturosos budas e seus herdeiros Com muitos jarros preciosos, Transbordantes de água perfumada e deleitante, Ao som de cantos e música. 12 Com tecidos de qualidade incomparável, Com toalhas aromatizadas e imaculadas, secarei seus corpos E lhes oferecerei trajes esplêndidos e perfumados De ricas cores e extraordinária confecção. 13 Com diferentes vestes, delicadas e sedosas, E uma profusão de belos ornamentos, Adornarei Samantabhadra,37 Mañjughoṣha, Lokeshvara e seus pares. 14 E, com requintados aromas Que permeiam milhares e milhares de universos, Ungirei os corpos dos sábios poderosos Brilhantemente reluzentes como ouro puro polido.

15 Depositarei diante dos sábios poderosos objetos perfeitos da minha veneração, Flores como o lótus e a mandāravā, A utpala e outras ainda perfumadas, Dispostas e entrelaçadas em graciosas guirlandas. 16 Oferecerei nuvens de olíbano, Cuja fragrância inebria a mente, E um vasto sortimento de alimentos e bebidas, Todas iguarias dignas dos deuses. 17 Oferecerei lamparinas preciosas Dispostas em fileiras sobre flores de lótus de ouro, Um tapete de flores Sobre o chão acetinado espargido de perfume. 18 Àqueles cuja natureza é a própria compaixão Oferecerei palácios imensos, onde reverberam hinos melodiosos, Decorados com grinaldas de pérolas e gemas, Tesouros cintilantes que adornam a imensidão do espaço. 19 Para-sóis preciosos ornados com cabos de ouro e Bainhas de franjas nacaradas, Eretos, de belas proporções e agradáveis ao olhar. Novamente, tudo isso ofereço a todos os budas. 20 Possam nuvens de outras oferendas, Acompanhadas de música doce aos ouvidos, Surgirem e permanecerem continuamente Para alívio do sofrimento dos seres vivos. 21 Possam chuvas de flores e todas as pedras preciosas, Cair como uma corrente incessante Sobre as Joias do Darma Sagrado,38 As imagens e todos os suportes de oferendas. 22 Do mesmo modo que Mañjughoṣha e outros

Fizeram oferendas a todos os conquistadores, Também eu farei oferendas a todos os budas E a todos os seus filhos bodisatvas. 23 Oferecerei louvores, um mar de melodias e harmonias A esses vastos oceanos de boas qualidades. Possam nuvens de elogios melodiosos A eles ascender sem cessar. 24 Diante dos budas do passado, do presente e do futuro, Diante do Darma e da Assembleia Sublime, Com tantos corpos quantas são as partículas de pó Que cobrem o chão, eu me prostro e me curvo.39 25 Eu me curvo diante todos os altares e E todos os suportes da boditchita, Aos abades que conferem os votos, a todos os mestres doutos E a todos os sublimes praticantes do Darma. 26 Até que a essência da iluminação seja alcançada, Busco refúgio nos budas. Também tomo refúgio no Darma E em todas as hostes de bodisatvas. 27 Diante dos budas e bodisatvas perfeitos, Em todas as direções, onde quer que residam, Diante desses que são soberanos todo misericordiosos, Junto minhas mãos, rogando assim: 28 "Nesta e em todas as minhas outras vidas, Vagando pelos ciclos de existência sem começo, Cegamente causei o mal E incitei outros a agir do mesmo modo. 29 "Enganado e dominado por minha ignorância, Encontrei prazer nesses pecados,40 E, enxergando agora minha culpa,

Ó protetores grandiosos, eu a confesso genuinamente! 30 "Tudo o que pratiquei contra as Três Joias, Contra meus pais, mestres e os demais, Pela força dos meus obscurecimentos, Em meu corpo, fala e mente, 31 "Todo mal que eu, pecador, cometi, Todas as ações perniciosas que me acompanham, Todas as coisas terríveis que tramei Declaro abertamente a vocês, guias do mundo. 32 "Antes que meu mal seja purificado, Talvez a morte chegue para mim. Como posso então me livrar do mal que cometi? Rogo a vocês, concedam-me rapidamente sua proteção!" 33 Não podemos confiar no cruel Senhor da Morte, E, quer nossas tarefas estejam cumpridas ou por cumprir, ele não nos esperará. Quer estejamos bem de saúde ou enfermos, Nenhum de nós pode confiar nesta vida breve e passageira. 34 E teremos que partir, abandonando tudo. Eu, no entanto, desprovido de compreensão, Por causa de amigos e inimigos, Provoquei e causei tantos malefícios. 35 Mas todos os meus inimigos deixarão de existir, E todos os meus amigos deixarão de existir, E eu também deixarei de existir, E, de igual modo, tudo o mais deixará de existir. 36 Todas as coisas na minha posse e uso São como a visão fugaz de um sonho. Elas desvanecem e passam para os domínios da memória E, desvanecendo-se, não serão mais vistas.

37 Mesmo na breve duração desta minha vida atual, Muitos amigos e inimigos já se foram, Mas o mal que pratiquei por causa deles Permanece, insuportável, diante de mim. 38 Nunca me passou pela mente Que também sou algo efêmero e passageiro E assim, por ódio, desejo e ignorância, Cometi tantos pecados. 39 Sem nunca estancar, dia e noite, Minha vida se esvai, E nada que passou pode ser recuperado. Para alguém como eu, que outro destino há senão a morte? 40 Lá estarei eu, prostrado sobre o leito, Tendo à volta família e amigos. Mas somente eu irei experimentar O fio da vida se cortar. 41 E, quando os mensageiros do Rei da Morte41 me agarrarem, De que valerão meus amigos e parentes? Pois, nesse momento, minha única defesa é a virtude acumulada nesta vida. Mas foi justamente dela que eu me afastei. 42 Ó protetores! Sendo eu tão descuidado, Mal poderia adivinhar terror igual a esse. E, só por causa desta existência breve e transitória, Cometi tanto mal. 43 No dia em que é levado para o cadafalso Onde será desmembrado, O homem se transforma, transfigurado pelo medo: Sua boca fica seca, seus olhos saltam das órbitas. 44 Não preciso dizer qual será minha aflição

Quando, tomado de pavor, For agarrado por formas horripilantes, Os assustadores mensageiros do Senhor da Morte. 45 Quem poderá seguramente me proteger Desse medo, desse horrível pavor? Então vasculharei as quatro direções, Buscando ajuda, com os olhos inundados de pânico. 46 Porém, não encontrarei proteção nas quatro direções. E afundarei em uma angústia desesperadora. Para mim refúgio não haverá; Em tal momento, o que farei? 47 Portanto, de hoje em diante, tomo refúgio Nos budas, guardiões dos seres, Que trabalham para proteger todos os errantes, Esses seres potentes que afugentam todo o medo. 48 No Darma que eles consumaram, Que espanta todos os temores do saṃsāra, E na multidão de bodisatvas, De igual modo e com perfeição, tomo refúgio. 49 Crispando de terror, fora de mim de tanta aflição, A Samantabhadra eu me entrego, E a Mañjughoṣha, melodioso e gentil, Eu mesmo oferecerei meu corpo. 50 A você cuja misericórdia nunca falha, Meu senhor Avalokita, Lanço um grito em meio a minha aflição: "Proteja-me agora, malfeitor que sou!" 51 Do fundo do meu coração clamo agora Ao nobre Ākāshagarbha e a Kṣhitigarbha.42 A todos os protetores, grandiosos e compassivos,

Eu imploro, buscando refúgio. 52 Para Vajrapaṇi eu corro, Pois, ao vê-lo, Todos os vingativos, como as hostes de Yama, Fogem aterrorizados para as quatro direções. 53 No passado, transgredi suas palavras, Mas vendo esses pavores à minha volta, A vocês venho pedir ajuda, rezando: "Rapidamente dissipem o meu medo!" 54 Pois, se alarmado por uma enfermidade comum Devo seguir as palavras do médico, O que dizer de quando sou constantemente abatido Por doenças como a lascívia e por uma centena de outras faltas? 55 E, se apenas uma delas Consegue jogar por terra todos os habitantes do mundo, E, se nenhum outro remédio existe, Nenhuma outra cura que possa ser encontrada, 56 A ideia de não dar ouvidos Às palavras do médico onisciente, Capaz de debelar todos os males, É ignóbil e desprezível estupidez. 57 Se, à beira de um precipício, ainda que pequeno, Preciso discernir meus passos com especial cuidado, O que dizer de uma fenda enorme Que mergulha por incontáveis léguas? 58 "Hoje, ao menos, não morrerei." Como é imprudente embalar-se por palavras assim! Minha dissolução e a hora da minha morte Incontestavelmente se abaterão sobre mim.

59 Quem pode me dar destemor, Que escapatória há para mim? É certo que morrerei, Como consigo ficar assim descontraído e despreocupado? 60 Das experiências do passado O que sobrou para mim? O que resta agora? Apegando-me àquilo que já não está mais aqui, Desobedeci aos preceitos do meu mestre. 61 E, quando esta vida tiver ficado para trás E, com ela, meus parentes e amigos, Terei que seguir caminhos estranhos completamente só. Por que dar tanta importância a amigos e inimigos?43 62 Portanto, como posso me assegurar de que Irei me desvencilhar do mal, a única causa do sofrimento? Essa deveria ser minha única preocupação, Meu único pensamento, noite e dia. 63 Portanto, todo o mal que cometi, Devido à estupidez ignorante, Atos nocivos por natureza44 E transgressões de votos, 64 Temendo todo sofrimento que está por vir, Junto as mãos e prostro-me sem cessar, E confessarei tudo Na presença dos meus protetores. 65 Rogo a vocês, guias e guardiões do mundo, Que me acolham como sou, um pecador. E todos esses atos, danosos que são, Prometo nunca mais cometer.

3. APODERAR-SE DA BODITCHITA 1 Com alegria, celebro a virtude que livra todos os seres Das dores dos estados de privação;45 Regozijo-me com os estados felizes desfrutados por aqueles que ainda padecem.46 2 Deleito-me com o acúmulo de virtude — A causa para atingir o estado iluminado — E celebro a libertação dos ciclos de sofrimento Conquistada pelos seres vivos. 3 E na natureza búdica dos protetores eu me deleito, Assim como nos estágios de realização 47 dos herdeiros dos budas. 4 A atitude iluminada, oceano de imenso benefício, Que busca levar todos os seres ao estado da bem-aventurança, E todos os atos que se voltam ao benefício dos seres: Eis aí meu contentamento e toda minha alegria. 5 Então junto as mãos e rogo Aos budas que habitam em todas as direções: Acendam agora a luz do Darma Para aqueles que tateiam, aturdidos, na escuridão da dor. 6 Junto minhas mãos, implorando aos seres iluminados Que desejam passar ao nirvana: Não nos deixem a vagar cegamente, Mas permaneçam entre nós por incontáveis eras! 7 E, por meio destes atos ora praticados,48 Por meio de todas as virtudes que conquistei, Possam as dores de todos os seres vivos Ser totalmente dissipadas e extintas.

8 Para todos aqueles que padecem no mundo, Até que todas as suas doenças tenham sido curadas, Possa eu me tornar para eles O médico, o enfermeiro e o próprio remédio. 9 Fazendo jorrar uma torrente de comida e bebida, Possa eu debelar os males da fome e da sede; E, nos éons marcados pela escassez e carestia,49 Possa eu aparecer como bebida e alimento. 10 Para os seres sencientes, pobres e desprovidos, Possa eu me tornar um tesouro inesgotável E dispor à sua frente, logo ao seu alcance, Uma fonte abundante de tudo que possam precisar. 11 Meu corpo, juntamente com todos os seus bens, E todo o mérito que adquiri e que irei adquirir, Ofereço-o todo, sem pensar nas consequências, Para propiciar o bem-estar de todos os seres. 12 O nirvana é alcançado dando-se tudo, O nirvana, o objeto do meu empenho; E todas as coisas devem ser renunciadas em um instante, Portanto é melhor que sejam todas dadas aos outros. 13 Este meu corpo entrego Ao capricho de todos os seres vivos. E deixem que eles o matem, o desprezem e o surrem, Usando-o da forma que desejarem. 14 E, ainda que o tratem como um joguete Ou façam dele alvo de todo o ridículo, Meu corpo foi a eles entregue: Por que deveria eu dar tanta importância a ele? 15 Assim, deixem que os seres façam comigo

Tudo o que não lhes cause dano. E, sempre que porventura pensarem em mim, Possa isso nunca deixar de lhes trazer benefícios. 16 E, se tiverem em relação a mim Um pensamento de raiva ou de devoção, Possa esse estado sempre servir de causa Para a realização de seu bem e de seus desejos. 17 Todos aqueles que, frente a frente, insultarem-me Ou fizerem qualquer outro mal, Mesmo os que me acusarem ou me caluniarem, Possam eles alcançar a ventura da iluminação. 18 Possa eu ser um protetor para os que vivem desamparados, Um guia para os viajantes que seguem pelas estradas; Para os que desejam cruzar para a outra margem, Possa eu ser uma balsa, um barco, uma ponte. 19 Possa eu ser uma ilha para aqueles que anseiam por terra firme, Uma lamparina para aqueles que desejam luz, Para aqueles que precisam de descanso, um leito; Para todos os que necessitam de serviço possa eu ser seu servo. 20 Possa eu ser a joia que realiza os desejos, o vaso da fortuna, Um mantra poderoso e a suprema cura. Possa eu ser a árvore dos milagres, E, para todos os seres, a vaca da abundância. 21 Tal como a terra e o espaço, E todos os outros elementos poderosos, Para incontáveis multidões de seres vivos, Possa eu sempre servir de esteio e ser uma fonte de sustento. 22 Assim, para todos os seres dotados de vida, Até os confins do firmamento, Possa eu constantemente prover o seu sustento

Até que passem para além de todo sofrimento. 23 Assim como todos os budas do passado Manifestaram a mente do despertar E, passo a passo, cultivaram e treinaram Nos preceitos dos bodisatvas, 24 Do mesmo modo, em benefício dos seres, Eu gerarei a mente do despertar, E, passo a passo, cultivarei E treinarei nesses preceitos. 25 Aqueles que com inteligência perspicaz Mantêm a mente desperta com alegria lúcida e radiante, Para que agora incrementem o que conquistaram. Deveriam elevar seu ânimo com louvores assim: 26 "Hoje minha vida frutificou. Esta condição humana está agora justificada. Hoje nasci na estirpe de Buda E me tomei filho e herdeiro dos budas. 27 "De todos os modos, adotarei Uma conduta que seja condigna desse grau E nada farei que possa comprometer ou Denegrir esta linhagem nobre e impoluta. 28 "Pois sou como um cego que encontrou Uma pedra preciosa em um monte de terra; Exatamente assim, como se por algum estranho acaso, A boditchita nasceu em mim. 29 "Ela é o supremo elixir da imortalidade Que aniquila o Senhor da Morte — o algoz de todos os seres —, Uma mina de tesouros rica e inesgotável Que cura a pobreza dos andarilhos sem destino.

30 "É o remédio supremo Que debela por inteiro todas as enfermidades; É a árvore do descanso Para os que perambulam exaustos pelos caminhos da existência. 31 "É a ponte universal que resgata Todos os seres errantes dos estados desafortunados; A lua crescente da mente iluminada Que alivia as penas das aflições mentais. 32 "É um sol potente que dissipa inteiramente A ignorância nebulosa dos seres errantes; A manteiga cremosa — rica e completa — Feita com leite bem batido do ensinamento sagrado. 33 "Seres viventes! Viajantes pelos caminhos da vida, Vocês que querem provar a satisfação da felicidade, Eis aqui, à sua frente, a suprema bem-aventurança. Eis aqui, ó viajantes sem parada, a sua satisfação! 34 "Assim, hoje, sob a vista de todos os protetores. Convoco todos os seres, chamando-os para o estado búdico E, até que esta condição seja alcançada, para todas as alegrias do mundo! Possam os deuses e semideuses, e todos os demais, com isso se regozijar!"



4. CUIDADO 1 Os filhos do Conquistador, Tendo assim abraçado firmemente a boditchita, Nunca devem se afastar dela E devem sempre se esforçar para não transgredir as disciplinas. 2 Diante de tudo que seja iniciado sem a devida consideração, E de tudo que não seja concebido com adequação, Ainda que uma promessa ou um compromisso tenha sido feito, É legítimo hesitar: devo agir ou não? 3 No entanto, todos os budas e seus herdeiros Refletiram sobre isso, em sua imensa sabedoria; Eu próprio ponderei e refleti sobre essas questões; Então por que deveria agora procrastinar? 4 Pois, se eu me empenhar com promessas, Mas deixar de pôr em prática minhas palavras, Todos os seres serão traídos. Que destino estará a mim reservado? 5 Se está dito nos ensinamentos Que renascerá entre os fantasmas famintos Alguém que tenha a intenção de dar, Mesmo uma pequena coisa, e depois venha a recuar, 6 Como posso eu esperar um destino feliz, Se, do fundo do meu coração, conclamo Os seres errantes para a suprema bem-aventurança, Mas depois falto com minha palavra e os engano? 7 Para aqueles que perdem a boditchita, E guiam, entretanto, os outros à liberação,

A lei do carma é inconcebível, Compreendida apenas pelo Onisciente.50 8 Dentre todas, esta é a falta mais grave Que o bodisatva pode cometer. Se vier a acontecer, O bem de todos os seres será jogado por terra. 9 E aquele que, por um único instante, Interromper o mérito de um bodisatva Vagará por um tempo sem fim pelos estados de sofrimento, Porque o bem-estar de todos os seres é reduzido. 10 Uma pessoa que destrói a felicidade de um único ser Provoca com isso a própria ruína. O que se há a dizer sobre diminuir A alegria dos seres, infinitos como o próprio espaço? 11 E alguém que circula pelo saṃsāra, Mesclando alternadamente fortes faltas Com o poder da boditchita, Tardará em alcançar os níveis dos bodisatvas. 12 De acordo com a promessa que fiz, Agirei atenciosamente. De hoje em diante, se deixar de me esforçar, Cairei de estados inferiores para outros ainda mais inferiores. 13 Empenhando-se em benefício de todos os seres vivos, Incontáveis budas já vieram e passaram; No entanto, em razão de meus pecados, Nunca consegui me colocar ao alcance do poder de cura de suas obras.51 14 E esta será sempre a minha sina, Se continuar a me comportar desse modo; E terei que experimentar o sofrimento de dores e servidão. Ferimentos e mutilações nos reinos inferiores.

15 Raro é o aparecimento de budas neste mundo, A fé autêntica, a obtenção da forma humana e A disposição para cultivar o bem. Quando surgirão em mim novamente? 16 Hoje, de fato, estou saudável e bem, Tenho o suficiente para comer e não corro perigo. Porém, esta vida é fugaz e incerta. Este corpo foi-me emprestado por pouco tempo. 17 No entanto, minha conduta é tal Que não ganharei novamente uma vida humana! E, ao perder a preciosa forma humana que agora tenho, O mal será numeroso; a virtude, nenhuma.52 18 A oportunidade para a prática de ações positivas é aqui, agora; Porém, se eu deixar de praticar a virtude, Qual será a minha sina, o que farei Quando estiver desnorteado pelo sofrimento dos reinos inferiores? 19 Lá, sem jamais praticar qualquer virtude, Acumulando pecados o tempo todo, Por cem milhões de eras, Sequer ouvirei sobre os destinos de felicidade.53 20 Essa é a razão de o Senhor Buda ter afirmado Que, assim como é difícil uma tartaruga enfiar, por acaso, O pescoço em uma canga que boia, à deriva, na imensidão do oceano, Este nascimento humano é difícil de ser encontrado! 21 Se o mal praticado em um só instante Pode me levar ao inferno do Tormento Último por um éon, Os males acumulados no saṃsāra desde o tempo sem princípio: É desnecessário dizer que me manterão afastado dos estados de bem-aventurança! 22 E a mera experiência desse sofrimento

Não acarreta liberação dele. Pois, no próprio padecer desses estados, Mais negatividade ocorrerá, e então em abundância. 23 Assim, agora que encontrei este momento de trégua, Se deixar de me treinar no caminho da virtude, Que loucura maior poderia existir? Que traição maior poderia eu cometer contra mim mesmo? 24 E, ainda que tudo isso eu possa compreender, Se vier depois a desperdiçar meu tempo com insensata indolência, Na hora da minha morte, Bem negra será a minha mágoa. 25 E, quando meu corpo arder por longo tempo No insuportável fogo dos infernos, Minha mente, é certo, ficará atormentada, Queimando nas chamas do remorso infinito. 26 Pois é como se, por acaso, eu vim a ganhar Este estado tão difícil de ser encontrado, no qual eu posso me ajudar. Se agora, com tal discernimento, Eu for, mais uma vez, enviado para os infernos, 27 Estarei como que entorpecido por um feitiço, Como que reduzido à total negligência. Não sei o que embota minha inteligência. Nas garras de quem caí prisioneiro? 28 A raiva, o desejo — estes meus inimigos — Não têm mãos nem pés. São desprovidos de raciocínio E não contam com coragem nem esperteza; Como é possível então que tenham me reduzido a tamanha escravidão? 29 Eles vivem em minha mente, Permitindo que me machuquem a seu bel-prazer! Sou eu quem tudo tolero sem ressentimento:

Ah, esta minha abjeta paciência, tão inapropriada! 30 Se todos os deuses, juntamente com os semideuses, Se levantassem contra mim como meus inimigos, Seriam incapazes de me lançar Nas chamas do inferno do Tormento Último. 31 No entanto, o poderoso demônio das minhas aflições Atira-me em um instante Onde até o próprio rei dentre os montes54 Seria queimado, suas cinzas, consumidas por completo. 32 Ó minhas inimigas, emoções aflitivas. Companheiras sem princípio nem fim! Nenhum outro inimigo, na verdade, Conseguiu viver tanto tempo! 33 Todos os outros inimigos que eu vier a pacificar e servir Irão me conceder favores, prestar-me toda ajuda; Porém, se eu servir essas perversas emoções aflitivas, Elas apenas irão me causar dano, arrastar-me para um poço de desgraças. 34 Portanto, se esses antigos e incessantes inimigos meus — A fonte de minha dor crescente — Conseguirem encontrar abrigo dentro do meu coração, Como poderei eu viver alegre e destemidamente na roda da vida? 35 E, se os carcereiros das prisões do saṃsāra, Os algozes e torturadores dos reinos dos infernos, Ocultam-se dentro de mim, em meio à teia dos desejos, Que alegria poderá ser destinada à minha pessoa? 36 Não abandonarei o combate até que, diante dos meus olhos, Esses meus inimigos sejam todos destruídos. Pois, se encolerizados ante a menor desfeita, Incapazes de dormir até que as contas sejam acertadas,

37 Adversários orgulhosos porém desgraçados, todos destinados a sofrer na hora da morte, Demarcam a linha de batalha e se empenham para vencer, E, fazendo pouco de dores de flechas e lanças, Defendem sua posição, recusando-se a retroceder, 38 Desnecessário dizer que não esmorecerei, Sejam quais forem as adversidades da peleja. De hoje em diante, vou me esforçar para esmagar Esses inimigos, cuja natureza é a de me fazer sofrer. 39 Os ferimentos causados pelo inimigo em guerras fúteis São exibidos pelo soldado como prêmios. Então, nesta empreitada nobre por algo tão grandioso, Por que me deixar desanimar diante de machucados e de dores? 40 Se pescadores, açougueiros, camponeses e outros que tais, Apenas para prover o seu sustento, Suportam todas as agruras do frio e do calor, Por que não posso também tolerá-los pela felicidade de todos os seres? 41 Quando me comprometi a livrar de suas aflições Os seres que habitam em todas as regiões, Estendendo-se até os confins do firmamento, Eu próprio me encontrava sujeito a tais aflições. 42 Portanto, falar assim, sem reconhecer a minha própria capacidade, Não seria, de fato, uma insensatez? Maior razão então para jamais retroceder, Jamais abandonar a luta contra as emoções aflitivas.55 43 Esta paixão será a minha obsessão; Cheio de rancor, travarei minha guerra! Esse tipo de emoção aflitiva destruirá emoções aflitivas E, por isso, não deve ser desprezada. 44 Antes perecer no fogo.

Antes ter a cabeça decepada do corpo, Do que vir a servir ou reverenciar Minhas inimigas mortais, as emoções negativas. 45 Inimigos comuns, quando expulsos de seu país. Batem em retirada e se assentam em outras terras, Para juntar forças e retomar em melhores condições. Nossas aflições inimigas, porém, não dispõem de estratagemas assim. 46 Emoções aflitivas, dispersadas pela visão da sabedoria! Para onde poderão vocês correr, quando expulsas da minha mente? De onde poderiam retornar para me ferir? Mas ó, minha mente é fraca. Sou indolente! 47 No entanto, as emoções aflitivas não estão nos objetos, Nem nos sentidos, nem no espaço entre objetos e sentidos. E, se não estão em outra parte, onde têm sua morada, De onde poderiam causar uma devastação no mundo? Elas são simples miragens, portanto, encoraje-se! Afugente todo o medo e empenhe-se em conhecer a natureza delas. Por que sofrer desnecessariamente as dores dos infernos? 48 Assim é que devo refletir e trabalhar, De modo que eu possa aplicar os preceitos aqui expostos. Qual enfermo, carente de remédio, Ignorou as palavras do médico e recuperou a saúde?



5. INTROSPECÇÃO VIGILANTE 1 Aqueles que desejam manter os treinamentos Devem manter guarda sobre a mente, com perfeito domínio próprio. Sem essa vigilância da mente. Os treinamentos não podem ser preservados. 2 Vagando de um lado para outro, segundo sua vontade, o elefante da mente Nos arrastará para as dores do inferno do Tormento Último. Nenhum animal neste mundo, por mais selvagem e enlouquecido que fosse, Poderia nos ocasionar tamanha calamidade. 3 Se, com a corda da atenção, O elefante da mente for amarrado de todos os lados, Nossos temores se dissiparão, Todas as virtudes cairão em nossas mãos. 4 Tigres, leões, elefantes e ursos, Serpentes e todos os inimigos hostis, Aqueles que policiam os prisioneiros nos infernos, Todos os fantasmas, demônios canibais e espíritos malignos, 5 Simplesmente atando esta mente apenas, Todos eles ficarão igualmente atados. Simplesmente subjugando esta mente apenas, Todos eles ficarão igualmente subjugados. 6 Pois toda ansiedade e medo, E todos os sofrimentos em quantidade ilimitada, Têm sua origem e nascedouro na própria mente, Assim disse Aquele que declarou a verdade. 7 Os açoites dos infernos para torturar os seres vivos — Quem os inventou para tal propósito?

Quem forjou esse chão de ferro escaldante; De onde brotaram todas essas mulheres-vampiros?56 8 Todos são tão somente o produto da negatividade da mente, Assim disse o Sábio poderoso. Portanto, em todos os três mundos57 Não há maior perdição do que a própria mente. 9 Se a generosidade transcendente consiste em Dissipar a miséria dos seres, De que modo os budas do passado praticaram a perfeição da generosidade, Já que os pobres estão sempre à nossa volta? 10 Doação transcendente, segundo os ensinamentos, É a intenção de dar a todos os seres Tudo o que se tem, juntamente com os frutos de tal doação: Sendo assim, ela é um estado mental. 11 Onde poderiam os peixes e os demais seres Ser colocados para serem protegidos da morte? A determinação de se abster de executar qualquer ação prejudicial É tida como a disciplina transcendente. 12 Seres prejudiciais estão em todos os lugares, como o espaço. Eliminar todos é impossível. Porém, basta que esta mente raivosa seja derrubada, E é como se todos os inimigos tivessem sido subjugados. 13 Recobrir toda a Terra com pedaços de couro — Onde poderia tanta pele assim ser encontrada? Mas só com as solas de couro dos meus sapatos É como se eu tivesse recoberto a Terra inteira! 14 Do mesmo modo, não posso limitar O curso externo dos acontecimentos. Porém, se eu apenas limitar a minha mente, O que restará para ser limitado?

15 Uma intenção clara pode dar frutos E nos levar a um renascimento em um reino como o de Brama. Os atos do corpo e da fala têm menor potência: Não conseguem gerar resultado semelhante. 16 Recitações e austeridades, Ainda que se mostrem prolongadas, São inúteis, se praticadas com a mente distraída, Assim declarou o Conhecedor da Realidade. 17 Todos aqueles que não conseguirem entender O segredo da mente, o que há de mais grandioso, Embora aspirem à felicidade e ao fim de suas penas. Seguirão errando em vão, inutilmente. 18 Sendo assim, tomarei Esta minha mente e a guardarei bem. De que me servem tantas disciplinas, Se não posso guardar e disciplinar a minha mente? 19 Em meio a uma multidão revolta e ruidosa, Tenho cuidado e atenção para proteger minhas feridas; De igual modo, quando em má companhia, Esta ferida, a minha mente, manterei sob constante proteção. 20 Pois, se cuidadosamente protejo minhas feridas Porque temo a dor de ferimentos leves, Por que não vigiar as feridas da minha mente, Por medo de ser esmagado debaixo das montanhas dos infernos?58 21 Se eu agir e viver desse modo, Então, mesmo no meio de pessoas más Ou ao lado de mulheres formosas, tudo estará bem. A constância com que mantenho meus votos não declinará. 22 Meus bens, minha honra, tudo isso pode ir

Inclusive meu corpo e meu sustento. E até mesmo outras virtudes podem diminuir, Mas jamais deixarei minha mente degenerar. 23 Diante de todos aqueles que têm a intenção de proteger a mente, Junto minhas mãos em súplica: Mantenham sua atenção e introspecção; Guardem ambas, ainda que isso possa lhes custar a vida. 24 Aqueles incapacitados por saúde precária Ficam desamparados, impedidos de agir. A mente, quando do mesmo modo é confinada pela ignorância, Fica impotente e não consegue funcionar. 25 Aqueles que não têm introspecção, Embora possam ouvir os ensinamentos, contemplá-los e meditar sobre eles, Como água vazando de um jarro trincado, Não reterão o aprendizado na memória. 26 Muitos têm diligência alegre E também são instruídos e dotados de fé; Porém, porque trazem o defeito da falta de introspecção, Não escaparão da nódoa do pecado e da ruína. 27 A falta de introspecção é como um ladrão Que entra sorrateiro quando a atenção arrefece. Todo o mérito que amealhamos É roubado, e decaímos para os reinos inferiores. 28 As emoções negativas são um bando de ladrões, Esperando pela oportunidade de nos causar mal. Elas roubam nossas virtudes, quando surge a ocasião, E destroem a vida dos estados afortunados. 29 Portanto, nunca dê licença para que a atenção Se afaste da porta da vigilância. E, se ela se desgarrar, deverá ser chamada de volta

Por meio da recordação do sofrimento nos mundos inferiores. 30 Naqueles que são dotados de boa fortuna e devoção, A atenção é facilmente cultivada, Através do temor e dos conselhos dos preceptores E da constante permanência na companhia do mestre. 31 "Tanto os budas quanto os bodisatvas Possuem visão desimpedida e tudo enxergam: Tudo se descortina diante de seus olhos E, igualmente, estou sempre em sua presença." 32 Quem tem pensamentos assim Ganha devoção e um senso de temor e pudor. A lembrança de Buda Acorre com frequência à mente. 33 Quando a atenção é postada como sentinela. Em guarda na soleira da mente, A introspecção também se faz presente, Retornando se esquecida ou quando se dispersa. 34 Se, de início, ao examinar minha mente, Nela encontrar alguma falta, Permanecerei imóvel como um pedaço de madeira, Num estado de domínio próprio e calmo. 35 Nunca deixarei que meu olhar Passeie distraidamente de um lado para outro; Antes, com a mente concentrada, Andarei sempre com os olhos abaixados. 36 Mas, para que eu repouse a vista, Por vezes alçarei os olhos e olharei à minha volta. E, se encontrar alguma pessoa no meu campo de visão, Eu a cumprimentarei com uma palavra amistosa.

37 No entanto, a fim de espreitar os perigos do caminho, Examinarei as quatro direções, uma a uma. E, quando parar para descansar, virarei a cabeça E olharei para trás, para o caminho percorrido. 38 Assim, esquadrinharei o terreno, na frente e atrás, Para ver se devo ir ou voltar. E, dessa forma, em todas as situações, Vou me inteirar das minhas necessidades e então agir conformemente. 39 "Meu corpo deve permanecer assim." Ao me decidir por uma ação, Tendo determinado a conduta do meu corpo. Periodicamente verificarei Como meu corpo está posicionado. 40 Esta minha mente, um elefante desgovernado, Uma vez amarrada a um poste firme — a reflexão sobre os Ensinamentos —, Deve ser vigiada de perto com todo meu esforço Para que nunca escape. 41 Aqueles que se empenham em aperfeiçoar a concentração Não devem se deixar distrair, nem mesmo por um instante. Devem sempre examinar a mente, perguntando: "Com que minha mente está ocupada?" 42 Quando isso for impossível, Em situações perigosas ou em festejos, agirei da forma mais adequada. Pois é ensinado que, nos momentos de generosidade, As regras da disciplina podem ser abrandadas.59 43 Quando algo foi planejado e iniciado, A atenção não deve vaguear para outras coisas. Com os pensamentos fixos na meta escolhida, Ela, e apenas ela, deve ser perseguida. 44 Ao se comportar desse modo, todas as tarefas serão bem executadas,

E nada será conseguido fazendo o contrário. Se assim agirmos, o declínio secundário — A falta de introspecção — não crescerá. 45 E, se você perceber que está engajado Em várias conversas inúteis E em frequentes aparições interessantes, Livre-se de todo prazer e gosto por elas. 46 Se você se pegar cavoucando a terra, Arrancando capim ou traçando desenhos ao léu no solo, Lembrando-se dos preceitos do Bem-aventurado, Com um sentimento de temor, contenha-se imediatamente. 47 Quando você sentir vontade de se mover Ou mesmo de se expressar pela fala, Examine primeiramente como está a sua mente, Pois os imperturbáveis agem com compostura. 48 Quando surgir na mente um impulso Ou sentimento de desejo ou de ódio, Não aja! Fique quieto, não fale! E certifique-se de que você ficará como um pedaço de madeira. 49 Quando a mente estiver agitada ou repleta de deboche, Ou cheia de orgulho e arrogância; Ou quando você desejar expor os defeitos ocultos dos outros, Trazer à tona velhas rixas ou agir dissimuladamente; 50 E quando você quiser cavar um elogio Ou criticar e denegrir o nome de alguém, Ou usar palavras ásperas para comprar uma briga: É aí que, como um pedaço de madeira, você deve permanecer. 51 E quando você ansiar por riqueza, atenção, fama, Um círculo de atendentes que o sirvam; E quando você estiver procurando por honrarias, reconhecimento:

É aí que, como um pedaço de madeira, você deve permanecer. 52 E quando você estiver inclinado a ignorar as necessidades dos outros E quiser o melhor para si; E quando surgir o desejo de falar: É aí que, como um pedaço de madeira, você deve permanecer. 53 Impaciência, indolência, fraqueza de ânimo, E também arrogância e fala imprudente E parcialidade: quando estas surgirem, É aí que, como um pedaço de madeira, você deve permanecer. 54 Examine-se, assim, sob todos os ângulos. Note os pensamentos negativos e todos os esforços fúteis. É assim que os heróis no caminho do bodisatva, Usando os remédios apropriados, dominam com firmeza tais faltas. 55 Com fé perfeita e inabalável, Com persistência, respeito e cortesia, Com escrúpulo e respeito, Trabalhe com serenidade pela felicidade dos outros. 56 Não nos deixemos abater pelas vontades contraditórias Que brotam das discussões de pessoas infantis. Seus pensamentos são gerados pelos conflitos e pelas emoções. Devemos compreendê-las e tratá-las com amor. 57 Ao agirmos de maneira irrepreensível, Para ajudar a nós mesmos ou em benefício dos outros, Tenhamos sempre presente o pensamento De que somos desprovidos de "eu", como uma aparição. 58 Esta liberdade suprema que é a vida humana, Esperada há tanto tempo, agora foi finalmente alcançada! Refletindo sempre assim, mantenha a mente Tão firme como o Sumeru, o rei dos montes.

59 Ó mente, se você não será prejudicada Quando os abutres, ávidos por carne, Estiverem puxando este corpo de todos os lados, Por que então ficar tão ensandecida com ele agora? 60 Por que, ó mente, você protege este corpo, Como se fosse você própria? Você e ele são entidades separadas; Que utilidade ele poderia ter para você? 61 Por que, ó mente tola, Você não se apropria de uma forma entalhada em madeira? Por que você se presta a vigiar Uma máquina imunda de fazer imundice? 62 Em primeiro lugar, com a imaginação, Retire o invólucro da pele E, com a lâmina da sabedoria, remova A carne da armação de ossos. 63 E, quando tiver dividido todos os ossos E vasculhado até o tutano que contêm, Você deveria se perguntar: "Onde está a essência?" 64 Se, persistindo na busca, Você não encontrar nenhuma essência, Por que proteger com tanto desejo O corpo que você agora possui? 65 A imundice dele você não pode comer, ó mente; Tampouco seu sangue você pode beber; Suas vísceras são, igualmente, impróprias para sugar. O que você fará deste corpo então? 66 Mas ainda, ele pode, de fato, ser mantido

Para servir de alimento a abutres e raposas. O valor desta forma humana Reside apenas na maneira como é usada. 67 Seja lá o que você venha a fazer para proteger e manter seu corpo, O que fará você quando O cruel Senhor da Morte Agarrá-lo e atirá-lo aos cães e aves? 68 Escravos que se mostrem inaptos para o trabalho Não são agraciados com roupas e mantimentos. Por que você sustenta com tanto sofrimento Este corpo que, embora nutrido, irá abandoná-lo? 69 Portanto, pague a este corpo a remuneração que lhe cabe, E assegure de fazê-lo trabalhar em seu benefício. Não esbanje tudo, porém, Com algo que não lhe trará benefício perfeito. 70 Considere seu corpo um veículo, Um simples barco para ir daqui para acolá. Transforme-o em algo que realiza todos os desejos De beneficiar os seres. 71 Seja mestre de si mesmo E tenha um semblante sempre sorridente. Livre-se de toda expressão zangada e carrancuda, E seja um amigo verdadeiro e honesto de toda a gente. 72 Com inconsideração, Não arraste ruidosamente cadeiras e móveis de um lado para outro, Tampouco abra portas com violência. Apraza-se com a prática da humildade. 73 Garças, gatos e assaltantes Movimentam-se em silêncio e com cuidado; É assim que conseguem o seu intento.

Essa é a prática constante dos que são sábios. 74 Quando advertências úteis vierem sem que tenham sido solicitadas Daqueles que são hábeis em aconselhar seus semelhantes, Receba-as com gratidão humilde, E sempre se empenhe em aprender com todas as pessoas. 75 Elogie todos cuja fala é digna E diga: "Suas palavras são excelentes". E, quando perceber a boa conduta de uma outra pessoa, Encoraje-a com calorosa aprovação. 76 Exalte as qualidades de outros discretamente; Quando estes forem louvados por outros, louve-os também; Porém, quando as qualidades que exaltarem forem as suas, Aprecie a habilidade que têm de reconhecer a virtude. 77 A meta de toda ação é a felicidade, Embora, mesmo em meio a grande riqueza, raramente ela seja encontrada. Portanto, faça das qualidades dos outros o seu deleite. Deixe que elas alegrem o seu coração. 78 Ao agir assim, você nada terá a perder nesta vida; Em vidas futuras, grande felicidade lhe estará reservada. Más ações não trazem alegria, só insatisfação, E, no futuro, terrível tormento. 79 Fale com coerência, de maneira adequada, com clareza e de forma agradável. Deixe de lado a ânsia e a aversão, E com moderação, fale suavemente. 80 Ao avistar as outras pessoas, pense Que será por intermédio delas Que você chegará ao estado búdico. Dessa forma, veja-as com um coração aberto e amoroso.

81 Sempre movido pela mais elevada aspiração, Empenhando-se para pôr em prática os antídotos,60 Você colherá virtudes nos campos da excelência E nos campos dos benefícios e das dores.61 82 Agindo assim, com fé e compreensão, Você sempre empreenderá boas obras. E, em todos os atos que você praticar, Não dependa de ninguém. 83 As seis perfeições,62 a generosidade e as demais, Progridem em sequência, crescendo em importância. A maior nunca deve ser suplantada pela menor, E é o bem dos outros que constitui a meta suprema. 84 Portanto, entenda isso bem E sempre trabalhe para o benefício dos seres. O Compassivo, em sua visão sem limites, Permite, para esse fim, até aquilo que é vedado.63 85 Coma apenas o necessário; Compartilhe com aqueles que abraçaram a disciplina, Com os indefesos que decaíram para estados desafortunados. Dê tudo, menos as três vestes monásticas. 86 O corpo, usado para a prática do ensinamento sagrado, Não deve ser machucado em atividades triviais. Agindo dessa maneira, as aspirações de todos os seres Serão rápida e integralmente alcançadas. 87 Não devem sacrificar o corpo Aqueles cujos pensamentos compassivos ainda não são puros. Mas que sejam sacrificados quando, por meio dessa ação, Um grande benefício for acumulado no presente e em vidas futuras. 88 Não ensine o Darma àqueles que não têm respeito:

Àqueles que, como os enfermos, envolvem a cabeça com panos, Àqueles que carregam armas, cajados e para-sóis, E àqueles que conservam a cabeça coberta. 89 Não ensine o vasto e o profundo 64 àqueles que estão nos caminhos inferiores, Nem a mulheres desacompanhadas. Ensine, com igual respeito, todos os Darmas, superiores ou inferiores.65 90 Aqueles que são talhados para os ensinamentos vastos e profundos Não devem ser introduzidos a caminhos inferiores. No entanto, você não deve negligenciar as regras de conduta, Nem se desencaminhar com conversas sobre sutras e mantras66 91 Quando cuspir e jogar fora Seu palito de dentes, você deve cobri-los.67 E é errado sujar com urina ou outras imundices Águas e locais públicos. 92 Ao comer, não engula a comida ruidosamente, Nem encha a boca em demasia, nem coma com a boca aberta. Tampouco se sente com as pernas esticadas Ou esfregue as mãos de modo rude. 93 Não viaje, sente-se ou fique sozinho Com mulheres de outra casa.68 Você deve evitar tudo o que já viu — ou que lhe foi dito — Que possa ser a causa de um escândalo. 94 Sem apontar o dedo de modo rude, Mas mostrando com um gesto respeitoso Com toda a mão direita esticada: Esse é o modo de indicar o caminho. 95 Não agite os braços com gestos grosseiros. Com sons suaves e estalidos dos dedos,69 Expresse-se com sinais discretos:

Pois agir de outro modo constitui demasiada indelicadeza. 96 Deite-se para dormir na postura e direção De quando o Buda passou para o nirvana. E, primeiramente, com vigilância, Decida que você irá se levantar com presteza. 97 As ações do bodisatva São irrestritas, dizem os ensinamentos. E, até que o sucesso seja alcançado, Abrace as práticas que purificam a mente. 98 Recitando três vezes de dia e três vezes de noite, O Sutra em três partes,70 Apoiando-se nos budas e bodisatvas, Purifique o restante de suas transgressões. 99 E, portanto, em todas as ocasiões e em todos os lugares, Para o seu próprio bem e para o bem dos outros, Ponha em prática, com diligência, Os ensinamentos prescritos para a situação. 100 Não há, de fato, nenhum campo de conhecimento Que os filhos dos budas não devem aprender. Para quem se instrui assim, Nenhuma ação é desprovida de mérito. 101 Então, direta ou indiretamente, Não faça nada que não seja para o benefício dos outros seres. E, visando unicamente o bem-estar deles, dedique Cada um dos seus atos à conquista da iluminação. 102 Nunca, nem que isto lhe custe a vida ou um membro, Abandone seu amigo virtuoso, seu mestre, Instruído na doutrina do Mahāyāna, Exímio na disciplina do bodisatva.

103 Aprenda a servir o guru, Tal como está descrito na vida de Shrī Sambhava.71 Esse e os demais ensinamentos de Buda Você deve entender lendo os sutras. 104 Todos os ensinamentos são, de fato, encontrados nestes sutras. Portanto, leia-os e estude-os. O Sutra da essência do céu72 É o primeiro texto a ser estudado. 105 Tudo que deve ser praticado constantemente Está clara e extensivamente explanado em O Compêndio de todas as disciplinas.73 Portanto, esse é um texto a ser lido repetidas vezes. 106 De tempo em tempo, por ser breve, Consulte O compêndio dos sutras.74 E estude com diligência As duas obras compostas pelo venerável Nāgārjuna. 107 Tudo o que não seja vedado nessas obras Não deixe de empreender e de pôr em prática. E aquilo que nelas encontrar, cumpra com perfeição, Protegendo, dessa forma, a mente dos seres. 108 Examinar, vez após vez, O estado e as ações do seu corpo e da sua mente, Por si só, define A manutenção da introspecção vigilante. 109 Mas tudo isso deve ser implementado verdadeiramente, Pois o que se ganha com a repetição de palavras ocas? Qual enfermo jamais se curou Com a mera leitura dos tratados de medicina?

6. PACIÊNCIA 1 Boas obras reunidas ao longo de mil eras, Tais como atos de generosidade Ou oferendas aos bem-aventurados: Um único lampejo de raiva as destrói. 2 Não há mal algum que se iguale à raiva, Nem austeridade que se compare à paciência. Imbua-se, portanto, de paciência: De vários modos, insistentemente. 3 Aqueles que vivem atormentados pela dor da raiva Jamais conhecerão paz de espírito. Alheios serão de todo prazer: Não dormirão nem se sentirão seguros. 4 Mesmo aqueles que dependem de seus senhores Para obter honrarias e bens Se revoltarão e matarão Um senhor repleto de fúria e ódio. 5 Ele faz sofrer amigos e parentes E não é servido por aqueles que sua generosidade outrora atraiu, Não há homem raivoso Que viva em paz. 6 Todos esses males são causados pela cólera, Essa inimiga que semeia a nossa dor. Mas aqueles que pegam e esmagam a sua raiva Encontram alegria nesta vida e em vidas futuras. 7 Receber o que eu não quero E tudo o que obstrui o meu desejo:

No descontentamento a minha raiva encontra combustível; Daí a raiva brota, oprimindo-me. 8 Portanto, destruirei por completo O sustento desta minha inimiga; Minha adversária, cuja única intenção é Causar-me dano e sofrimento. 9 Aconteça o que acontecer, nunca prejudicarei O ânimo e a alegria da minha mente. O abatimento nunca traz o que eu quero; Minha virtude fica por ele distorcida e corrompida. 10 Se há remédio para o problema, Que motivo há para o desânimo? Mas, se não há remédio algum, De que adianta você ficar taciturno? 11 Dor, humilhação, insultos ou repreensão: Não queremos essas coisas Nem para nós mesmos, nem para aqueles que amamos. Para aqueles de quem não gostamos, é bem o contrário! 12 A causa da felicidade é rara, E muitas são as sementes do sofrimento! Mas, se eu não experimentar a dor, nunca ansiarei pela liberdade; Portanto, ó minha mente, seja firme! 13 O povo Karna e outros devotos da Deusa,75 Suportam austeridades sem sentido, Como queimaduras e lacerações. Por que fico tão acovardado no caminho da liberdade? 14 Não há nada que não se tome mais leve Com o hábito e a familiaridade. Aprendendo a tolerar pequenos contratempos, Vou me treinar para suportar grandes adversidades.

15 Por que não vejo dessa forma irritações corriqueiras como Mordidas e picadas de cobras e mosquitos, Sensações de fome e sede E dolorosas erupções na minha pele? 16 Calor e frio, vento e chuva, Doença, prisão e surras: Não vou me afligir com essas coisas. Isso apenas agravaria minhas dificuldades. 17 Há aqueles cuja valentia redobra Diante da visão do próprio sangue, Ao passo que outros perdem toda força e desmaiam Ao ver o sangue de uma outra pessoa! 18 Isso resulta de como a mente se posiciona: Na firmeza ou na covardia. Portanto, farei pouco de todo ferimento, E as adversidades vou desconsiderar! 19 Quando as desventuras caem sobre os sábios, A mente deles permanece serena e imperturbável. Pois, na luta contra as emoções negativas, Muitas são as adversidades, como em toda batalha. 20 Desdenhar de toda dor E vencer inimigos como o ódio São os feitos de um herói conquistador. O resto é matar o que já está morto! 21 O sofrimento também tem o seu valor. Por meio da dor e da tristeza, o orgulho é expulso, E a piedade é sentida por aqueles que perambulam pelo saṃsāra; O mal é evitado; o bem apraz. 22 Não me zango com minha bílis e os demais humores:

Fonte fértil de dor e sofrimento! Então por que hei de me irritar com meus semelhantes, Vítimas que são, também, das mesmas circunstâncias?76 23 Pois, embora não sejam buscados nem desejados, Esses males nos afligem ainda assim. Do mesmo modo, embora não sejam queridas nem procuradas, As negatividades aparecem insistentemente. 24 Sem nunca pensar "Agora vou me enraivecer", As pessoas são tomadas pelo impulso da raiva. A irritação aparece do mesmo modo, Embora nunca planeje ser experimentada! 25 Toda gama de más ações, Toda variedade de danos, São causados pela força das circunstâncias. Nenhum é independente, nenhum é autônomo. 26 As condições, uma vez reunidas, Não têm a intenção de então provocar determinado resultado. E aquilo que foi produzido não pensa Ter sido causado por essas condições. 27 Aquilo que é denominado a substância primordial e Aquilo que foi rotulado de "eu" Não nascem propositadamente E não pensam: "É assim que vou aparecer". 28 Aquilo que não é nascido não existe; Então o que poderia querer nascer? E, estando permanentemente atraído por seu objeto, Nunca poderia deixar de o estar.77 29 De fato! Esse "eu", se permanente, Certamente é inerte, como o próprio espaço. E, caso se deparasse com outros fatores,

Como poderiam eles afetá-lo, já que é imutável? 30 Se, quando condições atuam sobre ele, ele permanece inalterado, como antes, Que influência essas condições tiveram? É dito que elas são agentes do "eu", Mas que conexão poderia haver entre eles?78 31 Todas as coisas, então, dependem de outras coisas; E estas também dependem; elas não são independentes. Sabendo isso, deixamos de nos aborrecer com objetos Que se assemelham a aparições mágicas. 32 "A resistência", você poderia dizer, "é descabida, Pois quem se oporia a quê?" A corrente do sofrimento é rompida pela paciência; Não há nada de descabido na nossa asserção! 33 Dessa forma, ao ver o comportamento inadequado De amigos ou inimigos, Fique sereno e recorde-se De que tudo surge a partir de condições. 34 Se as coisas acontecessem para os seres De acordo com as suas vontades, Nenhum sofrimento jamais viria a ter com eles, Pois não há ninguém que deseje qualquer tipo de dor. 35 No entanto, sem cuidado nem atenção, Eles se ferem em espinheiros E, ávidos na perseguição de esposas e bens materiais, Privam-se de alimento. 36 Alguns se enforcam ou pulam de um precipício, Tomam veneno ou consomem alimentos malsãos, Ou, devido à má conduta, Provocam a própria destruição.

37 Pois, quando as aflições mentais se apoderam deles, Eles se matam, destruindo quem lhes é tão caro. Como então deixariam de machucar O corpo de outros seres? 38 Embora raramente sintamos compaixão Por aqueles que, devido às aflições mentais, Chegam a causar sua própria desgraça, De que serve a raiva? 39 Se há aqueles que, como crianças desgovernadas, São, por natureza, propensos a ferir os outros, Não há por que nos enraivecermos; Seria como nos ressentirmos do fogo por ser quente. 40 E, se suas falhas são passageiras e contingentes, Se os seres vivos são, por natureza, plácidos, É igualmente descabido abrigar ressentimento contra eles: Como o seria nos zangarmos com o céu por estar repleto de fumaça! 41 Embora, na verdade, sejam as varas que me ferem, Minha raiva volta-se contra aqueles que as empunham e me golpeiam. Mas essas pessoas, por sua vez, são impelidas pelo ódio; Portanto, é com o ódio delas que devo me indispor. 42 Da mesma forma, no passado, Fui eu quem causei mal aos seres. Portanto, é justo que o sofrimento Venha a mim, o torturador. 43 As armas deles e meu corpo: Ambos são causas do meu tormento! Eles brandiram suas armas e eu, meu corpo. Quem então é mais merecedor da minha fúria? 44 Este corpo: uma ferida purulenta em forma de corpo humano;

Ao menor toque, não suporta a dor! Sou eu quem me agarro a ele com cego apego; Com quem devo me irritar, quando acontece a dor? 45 Nós, que somos como crianças, Esquivamo-nos da dor, mas adoramos as suas causas. Machucamos a nós mesmos por meio de nossas faltas! Por que deveriam os outros ser o objeto da nossa fúria? 46 Com quem, na realidade, devo me enraivecer? Esta dor é toda ela criação minha: Assim como o são os guardas dos infernos E as florestas de árvores cujas folhas são navalhas!79 47 Aqueles que me ferem levantam-se contra mim: Meu carma os convocou. Mas se, por meio disso, são lançados nos infernos, Não sou eu a causa da ruína deles? 48 Por causa deles e através da minha paciência, Minhas muitas faltas são lavadas e purificadas. Mas são eles que, graças a mim, Terão que suportar as prolongadas agonias dos infernos. 49 Portanto, eu é quem sou o torturador deles! Portanto, eles são quem trazem benefícios a mim! Assim, com que obstinação, mente daninha, Você se enraivecerá com seus inimigos? 50 Pois, se a minha mente souber ser paciente, Evitarei os tormentos dos infernos. Mas, embora eu possa vir a me salvar, O que será de meus inimigos? Que destino estará a eles reservado? 51 Se eu pagar o mal deles com o mal, Certamente com isso não serão salvos; Minha conduta, por sua vez, será arruinada;

A austeridade da paciência, reduzida a nada. 52 A mente é desprovida de corpo; Ninguém pode destruí-la. Devido ao apego da mente ao corpo, Este corpo é oprimido pela dor. 53 Menosprezo e palavras hostis, E comentários que não me agrada ouvir: Essas coisas não ferem o meu corpo. Que motivo tem você, ó mente, para seu ressentimento? 54 A animosidade que os outros demonstram para comigo, Já que — tanto nesta como em vidas futuras — Não pode, de fato, me devorar, Por que eu deveria ter tanta aversão a ela? 55 Talvez eu me afaste dela, porque me Impede de conseguir o que eu quero. Mas todos os meus bens deixarei para trás, Ao passo que minhas faltas me farão constante companhia. 56 Muito melhor eu morrer hoje Do que viver uma vida longa e danosa. Por maior que seja a duração dos meus dias, A dor da morte será a mesma. 57 Um homem sonha que vive cem anos de felicidade, Mas depois acorda. Outro sonha com um só instante de felicidade, Mas depois, igualmente, acorda. 58 E, quando eles acordam, a felicidade de ambos Termina para nunca mais voltar. Do mesmo modo, quando chega a hora da morte, A nossa vida se acaba, quer tenha sido breve ou longa.

59 Embora sejamos ricos, tendo acumulado muitos bens materiais E desfrutado da riqueza por muitos anos, Como um homem saqueado e despojado por ladrões, Partimos nus, com as mãos vazias. 60 Talvez possamos alegar que, graças à riqueza, vivemos E, vivendo, acumulamos mérito e dissipamos o mal. Porém, se formos agressivos por uma questão de ganho, Não serão nossos ganhos maléficos e todo o mérito perdido? 61 E se a razão de nosso viver É assim desperdiçada e destruída, De que serve ter uma vida assim, Cuja única consequência é o mal? 62 Se, quando os outros nos caluniam, Afirmamos que nossa raiva se deve ao fato de eles prejudicarem os outros, Por que então não nos incomodamos com a calúnia deles, Quando é dirigida a uma outra pessoa? 63 Se toleramos essa malquerença, Ponderando que ela se deve a outros fatores, Por que nos impacientamos quando eles nos caluniam? As emoções aflitivas, afinal de contas, são as causadoras disso tudo. 64 Mesmo aqueles que vilipendiam e põem entraves À Doutrina Sagrada, imagens e estupas Não constituem objeto justo da nossa raiva. Os próprios budas não são tocados por esses atos. 65 E, mesmo que nossos mestres, parentes e amigos Sejam agora agredidos por eles, Tudo resulta dos fatores já explanados. Devemos entender isso e refrear nossa cólera. 66 Os seres são feridos, igualmente,

Por coisas inanimadas e por seres vivos; Então por que abrigar raiva apenas contra estes últimos? É melhor simplesmente tolerarmos os danos. 67 Alguns causam o mal por ignorância, Outros respondem com raiva, por serem ignorantes. Qual deles é isento de culpa em sua conduta? A quem cabe o erro? 68 Devo, antes, perguntar: "Que ato praticaram no passado Que faz com que agora sofram nas mãos dos outros?" Já que tudo depende do carma, Por que devo ter raiva de tais coisas? 69 Isso eu enxergo e, portanto, aconteça o que acontecer, Vou me ater ao caminho virtuoso, Procurando encorajar no coração de todos Uma atitude de amor recíproco. 70 Pois, quando um prédio está se incendiando E as chamas saltam de uma morada para outra, A conduta sábia é apanhar e jogar fora A palha e tudo o mais que alastra o fogo. 71 Temerosos de que nosso mérito venha a ser todo consumido, Devemos imediatamente atirar longe Os apegos da mente: Estopim das chamas incandescentes do ódio. 72 Não é afortunado aquele que, embora condenado à morte, É libertado, após ter a mão cortada como resgate de sua vida? Não sou eu afortunado se agora, para escapar do inferno, Sofro apenas os infortúnios dos seres humanos? 73 E mesmo estas, as dores que sinto no presente, Estão além do que minhas forças podem aguentar; Por que não me livro da raiva,

Causa de suplício futuro nos reinos infernais? 74 Na tentativa de conquistar tudo que desejo, Mil vezes fui lançado Em meio às torturas dos infernos. Sem nada conseguir, nem para mim nem para os outros. 75 As agruras do presente nada são em comparação àquelas outras, Das quais, no entanto, grandes benefícios podem advir. Como deixar de me regozijar Com as atribulações que debelam as dores dos seres andarilhos? 76 Quando outros se deleitam Em louvar aqueles que são dotados de talento, Por que, ó mente, você não encontra Alegria em louvá-los também? 77 O prazer que daí advém Dá causa a uma felicidade imaculada. Ele nos é recomendado por todos aqueles que são sagrados E é o meio perfeito de conquistarmos os outros. 78 "Mas são eles que ficarão com a felicidade", você diz. Se essa então é uma alegria da qual você se ressentiria, Desista de pagar salários e retribuir favores: Você é que sairá perdendo, nesta vida e na próxima! 79 Quando elogios a respeito de suas qualidades são derramados, Você faz questão de que os outros venham a se regozijar com elas. Porém, quando as qualidades dos outros são enaltecidas, Você não tende a se alegrar. 80 Você, que quer a felicidade de todos os seres, Formulou o desejo de se iluminar para benefício deles. Então por que os outros o aborrecem Quando encontram um pouco de prazer para si mesmos?

81 Se você clama desejar que os seres se iluminem E sejam venerados pelos três mundos, Por que, mas por que, você se atormenta Quando favores banais lhes são dispensados? 82 Quando seus dependentes, que contam com você, A quem você tem obrigação de prover, Encontram meios próprios de sustento, Você não vai com isso se alegrar? Você vai uma vez mais se zangar? 83 Se nem sequer isso você deseja para os seres, Como é que você pode querer que tenham o estado búdico? E como é que alguém pode ter boditchita E se enfurecer quando o outro prospera? 84 Se uma outra pessoa recebe um presente Ou se esse presente permanece na casa do benfeitor., Em nenhum dos casos ele será seu; Então, se ele é dado ou retido, o que é que lhe importa? 85 Por que você joga fora todo o seu mérito, a fé dos outros E todas as suas qualidades excelentes? Diga-me, por que você não se desgosta de si mesmo Por não cultivar as causas da riqueza? 86 Você não se arrepende De todo o mal que praticou E, além disso, deseja se equiparar Aos que acumularam mérito! 87 Se a infelicidade cai sobre seu inimigo, Por que isso deveria ser causa do seu regozijo? O mero querer da sua mente Não é, de fato, capaz de provocar dano a ele. 88 E, se seus desejos hostis viessem a causar mal aos outros,

Como poderia isso ser causa da sua felicidade? "Ora, aí eu ficaria satisfeito!": é isso o que você pensa? Existe algo mais ruinoso do que isso? 89 Pego pelo terrível e afiado anzol Jogado pelo pescador, minhas próprias negatividades, Serei lançado nos caldeirões do abismo E certamente fervido pelos guardas dos infernos! 90 Veneração, elogio e fama Não servem para aumentar o mérito nem prolongar a vida; Não proporcionam saúde, força, Nem bem-estar para o corpo. 91 Se eu souber discernir o que é bom para mim, Vou me perguntar que benefícios essas coisas podem me trazer. Pois, se é diversão o que eu desejo, É melhor eu me entregar ao álcool e às cartas!80 92 Por conta de reputação, Perdemos a vida e esbanjamos riquezas. De que servem as palavras e a quem elas contentarão, Quando estivermos mortos e sepultados? 93 As crianças não conseguem deixar de chorar, Quando seus castelos de areia vêm abaixo. Nossa mente é igual a elas, Quando elogios e reputação começam a nos faltar. 94 Sons fugazes, desprovidos de intelecto, Não podem nunca, eles próprios, intentar me elogiar. "Mas é a alegria que evoco nos outros", digo, "É ela a causa de meu deleite." 95 O que me importa se os outros se comprazam Com alguma outra pessoa ou comigo mesmo? O prazer deles é deles somente.

Não desfruto de nenhuma parcela desse prazer. 96 Se fico feliz com a alegria daqueles que se comprazem, Então todas as pessoas deveriam ser uma fonte de alegria para mim. Por que não me alegro com o prazer que os outros sentem Devido ao benefício que criaram a terceiros? 97 A satisfação que sinto Ao pensar "Estou sendo elogiado" É inaceitável ao senso comum, Não passa de uma palhaçada de uma criança tola. 98 Elogios e cumprimentos me perturbam, Minando minha repulsa ao saṃsāra. Passo a cobiçar as qualidades dos outros, E assim toda excelência se degenera. 99 Portanto, aqueles que ficam do meu lado Para arruinar o meu bom nome e me colocar no meu devido lugar Estão aí, seguramente, para me proteger contra A ruína e a queda nos estados de tormento. 100 Pois sou uma pessoa que luta pela liberdade. Não posso me deixar prender por riqueza e honrarias. Como poderia ter raiva daqueles Que trabalham para me soltar de minha prisão? 101 Eles, tal qual as próprias bênçãos do Buda, Barram meu caminho, determinado que estou A mergulhar de cabeça no sofrimento. Como poderia eu me enraivecer com eles? 102 Não deveríamos nos deixar irritar, dizendo: "Eles são obstáculos às minhas boas ações". Pois não é a paciência a suprema austeridade, E não deveria eu praticá-la?

103 Se eu deixar de praticar a paciência, Tolhido pelas minhas próprias limitações, Eu mesmo crio obstáculos A acumulação de mérito, que se apresenta tão à mão. 104 Se uma coisa não surge quando uma outra está ausente, E vem a surgir quando esse fator está presente, Esse fator é, de fato, a causa. Como se pode dizer que a causa é um obstáculo? 105 Os pedintes que aparecem no momento oportuno Não constituem obstáculo à generosidade. Não podemos dizer que aqueles que conferem os votos Sejam obstáculos à ordenação! 106 Os pedintes neste mundo são muitos; Assaltantes, comparativamente poucos. Se eu não fizer o mal aos outros, Outros não me prejudicarão. 107 Assim, como um tesouro encontrado em minha própria casa, Que conquistei sem fadiga, Meus inimigos ajudam o meu trabalho de bodisatva E, portanto, deveriam ser para mim uma alegria. 108 Já que minha paciência brotou Graças a eles, A eles devo oferecer os primeiros frutos, Pois foram eles a causa da minha paciência. 109 Entretanto, se eu disser que não cabe a meu inimigo nenhum elogio, Visto que ele não teve intenção alguma de estimular minha paciência, Por que eu reverencio o Darma sagrado, Causa, sem dúvida, da minha realização? 110 "Esses inimigos conspiraram contra mim", protesto eu,

"E, portanto, não devem receber nenhuma honra". Porém, se eles tivessem trabalhado para me ajudar, qual um médico, Como poderia eu dar à luz a paciência? 111 Graças àqueles cuja mente é repleta de maldade, Eu forjo a minha paciência. Eles são assim a causa da paciência, Dignos de veneração, como o Darma. 112 Assim o Sábio poderoso disse do campo de seres sencientes Como do campo dos conquistadores. Muitos que levaram a felicidade aos seres Passaram além, tendo alcançado a perfeição. 113 Assim, o estado búdico depende Dos seres sencientes e dos budas, igualmente. Que tipo de prática é essa então, Que reverencia apenas os budas, mas os seres sencientes não? 114 Eles se assemelham pelos frutos que produzem, E não pelas qualidades mentais. Nos seres comuns há também tal excelência E, portanto, seres comuns e budas são iguais! 115 Oferendas feitas àqueles com uma mente amorosa Revelam a eminência dos seres vivos.81 O mérito que advêm da fé em Buda Revela, por seu turno, a eminência de Buda. 116 Embora nenhum deles seja igual Aos budas, que são oceanos de perfeição, Por terem uma participação na obtenção da iluminação, Os seres são semelhantes aos budas. 117 No entanto, se de tal reunião de excelência suprema Uma diminuta parte aparecesse em alguns seres, A oferenda dos três mundos a eles

Seria irrisória. 118 Já que uma parcela do surgimento do supremo estado iluminado Cabe aos seres comuns, A virtude de apenas essa semelhança Faz com que seja apropriado reverenciá-los. 119 Visto que os budas são meus amigos leais e infalíveis, Incomensuráveis são os benefícios que trazem a mim. De que outro modo poderia eu retribuir a bondade deles, Senão levando felicidade aos seres? 120 Ao ajudar os seres, retribuímos àqueles Que se sacrificam por nós e mergulham no inferno do Tormento Último. Portanto, ainda que os seres causem grande mal a mim, Vou me empenhar para lhes trazer apenas benefícios. 121 Pois, se aqueles que são meus senhores, Às vezes, não consideram nem o próprio corpo em proveito dos seres. Por que devo eu, um tolo, me comportar com tanta presunção? Por que não fazer de mim um servo dos outros seres? 122 Os budas se deleitam com a alegria dos seres; Eles padecem, lamentam, quando os seres sofrem. Ao levar alegria aos seres, então eu também contento os budas; Ao feri-los, firo os budas também. 123 Do mesmo modo que não há prazer sensorial Que deleite a mente daquele que está com o corpo em chamas, Não há como contentar os grandes budas compassivos Enquanto nós próprios formos a causa do sofrimento dos outros. 124 O mal que fiz aos seres Entristece todos os budas, em sua imensa compaixão. Portanto, todas essas maldades confesso hoje, Rogando a eles que sejam tolerantes com minhas ofensas.

125 E, para que eu possa deleitar o coração dos budas, De agora em diante, serei senhor de mim mesmo e serei servo do mundo. E não revidarei, ainda que multidões pisem na minha cabeça ou me matem. Que os guardiões do mundo com isso agora se rejubilem! 126 Os grandes senhores compassivos consideram como a si mesmos82 Todos os seres: disso não há dúvida. Aqueles que vejo como seres são budas eles mesmos. Como não os tratar com respeito? 127 Exatamente isso contentará o coração dos budas E assegurará o meu bem-estar, de modo perfeito. Isso espantará as dores do mundo E, portanto, será meu trabalho constante. 128 Imagine que o mandatário de um rei Venha a ferir uma multidão de pessoas. Aqueles que enxergam longe e com clareza Não responderão com violência, ainda que o possam fazer. 129 Pois os mandatários, afinal de contas, não estão sós; Estão respaldados no poder real. Por essa razão, não devo desdenhar Os seres fracos que me atormentam. 130 Seus aliados são os guardiões dos infernos E também os budas compassivos. Portanto, agradarei todos os seres vivos, Da mesma forma que os súditos apaziguam um rei enfurecido. 131 Entretanto, o padecer a ser experimentado nos infernos Por quem causou sofrimento aos seres vivos: Poderia esse padecer um dia ser desencadeado sobre mim Por meio da cólera de tal rei? 132 E, mesmo que esse rei estivesse satisfeito,

Não poderia me dar a iluminação, Pois esta somente é alcançada Levando-se felicidade aos seres vivos. 133 O que dizer então do futuro estado búdico, Forjado pelo ato de se levar felicidade aos seres sencientes, Como posso eu deixar de enxergar que glória, fama e prazer, Mesmo nesta vida, virão igualmente ter comigo? 134 Pois a paciência no saṃsāra é a origem de beleza, saúde e boa reputação. Seu fruto é uma longevidade considerável. Os prazeres imensos de um monarca universal.



7. DILIGÊNCIA 1 Dessa forma, com paciência, vou me empenhar com diligência; Pois com tal diligência atinge-se a iluminação. Assim como não há movimento sem vento, Não há mérito sem diligência. 2 Diligência significa deleitamento com virtude.83 Seu contrário pode ser definido como preguiça: Uma inclinação para comportamentos não salutares, Derrotismo e autodepreciação. 3 Gosto por prazeres indolentes, Anseio por repouso e sono, Ausência de preocupação com as dores do saṃsāra: Eis as fontes da preguiça. 4 Pego na armadilha das emoções aflitivas, Enredado e preso na teia do nascimento, Mais uma vez você se desviou e foi parar na goela da Morte. O que é isso? Você ainda não entendeu? 5 Você não vê como, um a um, A Morte vem buscar todos os seus semelhantes? E, mesmo assim, você se põe a dormir tão pesadamente, Como um búfalo ao lado do açougueiro que o abate. 6 Todas as rotas de fuga estão bloqueadas; O Senhor da Morte agora tem você na mira. Como você pode encontrar prazer na comida? Como você pode se deleitar com o repouso e o sono?84 7 A morte, tão ligeira, cairá sobre você; Reúna mérito até que esse momento chegue!

Pois, mesmo se você se desvencilhar de sua indolência, O que fará quando não houver mais tempo? 8 "Isto ainda não fiz; aquilo estou apenas começando. E aquilo lá estou só na metade…" Então ocorre a chegada súbita do Senhor da Morte, E o pensamento: "Ai de mim!... Estou perdido!" 9 Você fitará o rosto de seus amigos, já desesperançados, Banhado de lágrimas e com os olhos vermelhos e inchados. (Essa será a intensidade da angústia deles), E então você verá os mensageiros do Senhor da Morte. 10 A lembrança das suas faltas passadas o torturará; Os gritos e ruídos dos infernos atordoarão os seus ouvidos. Aterrorizado, você vai se sujar; O que fará você então em tal delírio? 11 Se, como um peixe se debatendo fora d’água, Você fica tão amedrontado agora, enquanto ainda está vivo, O que dizer da dor insuportável Experimentada nos infernos criados pelas más ações do passado? 12 Como você pode ficar calmo assim, Tendo feito as ações que levam Sua carne, macia como a de um bebê, a conectar-se Com os líquidos em ebulição no inferno Extremamente Ardente? 13 Tão petulante e sensível, você espera resultados sem se empenhar; Muitas são as dificuldades que lhe aguardam. Embora esteja nas garras da Morte, você se comporta como se fosse um deus.85 Pobre de você, o sofrimento lhe derrubará. 14 Tire proveito deste barco que é o seu corpo humano; Liberte-se do rio caudaloso da amargura! Esta embarcação será difícil de ser encontrada posteriormente. O tempo do qual você dispõe agora, tolo, não é para dormir!

15 Você dá as costas à Doutrina Sagrada, A alegria suprema e fonte infinita de bem-aventurança. Que prazer pode você tirar de meras diversões Que causarão sofrimento? 16 Não se deixe abater; antes, reúna todas as suas forças. Imbua-se de coragem e confiança, seja senhor de si mesmo! Pratique a igualdade entre "eu" e "outro"; Pratique a troca entre "eu" e "outro".86 17 "Ah, mas como eu poderia me iluminar?" Não se permita a desculpa do desânimo! Buda, que proclamou a verdade, Disse e asseverou 18 Que, se gerarem a força da perseverança, Até as abelhas e moscas E mosquitos e larvas encontrarão A iluminação, tão difícil de ser encontrada! 19 Se eu, membro da raça humana por nascimento e estirpe, Sou capaz de discernir entre o bem e o mal E não abandono o treinamento do bodisatva, Por que deixaria de alcançar o estado búdico? 20 "Alarma-me e apavora-me a ideia de ter de sacrificar Minha vida, meus braços e minhas pernas": se são essas as suas palavras, Seu pânico é equivocado. Confuso, Você deixa de ver o que é difícil e o que é fácil. 21 Por um sem-número de eras — incomensuráveis, incalculáveis — , Seu corpo foi esquartejado, empalado, Queimado, dilacerado por mais vezes que se possa contar! No entanto, nada disso o levou até o estado búdico. 22 As agruras experimentadas no caminho do estado búdico

Têm duração limitada; São semelhantes à dor de uma incisão Feita para curar o mal de uma moléstia oculta. 23 Os médicos e outras pessoas versadas nas artes da cura Fazem uso de remédios amargos para tratar enfermidades. Da mesma forma, para erradicar um sofrimento imenso, Devemos suportar o que são, na realidade, apenas pequenas dores. 24 No entanto, o Curador Supremo não utiliza, Diferentemente daqueles outros, remédios comuns. Com métodos de extrema suavidade, Ele alivia e remove sofrimentos intensos e ilimitados. 25 Nosso guia nos instrui para começar Dando legumes e outras coisas pequenas, Para que, depois, passo a passo, tendo adquirido o hábito, Possamos ser capazes de doar nossa própria carne. 26 Pois, quando de fato experienciamos A igualdade entre o próprio corpo e o alimento oferecido, Que dificuldade pode haver Em dar renunciando a própria carne? 27 As transgressões foram abandonadas, assim não há mais dor. Quando há sabedoria, não há mais sofrimento. Pois o que se passa é que a mente e o corpo, ambos, São prejudicados pelas visões falsas e pelos maus atos. 28 O mérito é a verdadeira causa do bem-estar do corpo, Ao passo que a felicidade da mente é propiciada pelo entendimento. O que pode entristecer aqueles que têm compaixão, Que se deixam ficar no saṃsāra para benefício dos seres? 29 Pois, pela força da boditchita, Os pecados do passado são totalmente consumidos, E mérito, vasto como o oceano, é recolhido;

Por conseguinte, diz-se que os bodisatvas são superiores aos shrāvakas.87 30 Montado no corcel da boditchita, Que afugenta toda prostração e melancolia, Quem, lucidamente, poderia jamais se desacorçoar Levado por tal montaria de alegria a alegria? 31 As forças que asseguram o bem-estar dos seres São a aspiração, a constância, a renúncia e a alegria. A aspiração cresce pelo receio do sofrimento E pela contemplação dos benefícios a serem alcançados. 32 Portanto, deixando de lado tudo o que a ela seja contrário, Irei me empenhar para fazer crescer a minha diligência: Por meio da aspiração, autoconfiança, renúncia e alegria, Pela força da aplicação determinada e do empenho em autocontrole. 33 Portanto, a imensidão dos meus males e dos outros, Eu, sozinho, devo cancelar, Ainda que um único desses males Possa levar incontáveis eras para se exaurir. 34 E se não encontrar em mim Qualquer sinal de que as falhas estejam começando a ser purificadas. Por que o coração não explode em meu peito, Sendo eu destinado ao sofrimento sem fim? 35 Boas qualidades, para o meu benefício e de outros, Embora numerosas, tenho agora que conseguir, Ainda que, para cada uma delas, Eu tenha de me esforçar por incontáveis eras. 36 Nunca ganhei familiaridade Nem sequer com uma parcela dessas grandes qualidades. Quão estranho desperdiçar com afazeres triviais Esta vida que o acaso trouxe a mim!

37 Nunca fiz oferendas aos budas; Festividades jamais foram propiciadas por meus donativos; Nenhuma obra realizei para os Ensinamentos; Os anseios dos pobres deixei de atender. 38 Aos amedrontados não ofereci destemor, E aos exaustos não proporcionei descanso. As dores do parto de minha mãe e o desconforto de seu ventre: Eis as minhas únicas realizações! 39 Meu fracasso em aspirar pelo Darma Agora e no passado Trouxe-me para meu atual estado de desamparo. Quem rejeitaria tal aspiração? 40 A aspiração, como afirmou o Sábio, É a raiz de todas as virtudes. A aspiração, por sua vez, tem por raiz A meditação constante nos frutos das ações. 41 As dores do corpo, as angústias da mente E toda variedade de medos, Sermos privados do que queremos: Essa é a colheita de atos negativos. 42 Se meus atos forem bons, com intenção sincera, Então não importa qual direção meus passos tomem, O mérito acumulado irá me honrar Com resultados benéficos. 43 Porém, se na busca da felicidade, minhas ações estiverem erradas, Então não importa qual direção meus passos tomem, Os punhais do sofrimento irão me cravar: A paga e recompensa de uma vida danosa. 44 Pela força da virtude, emergirei no fresco seio de um lótus perfumado,

Meu esplendor será nutrido pelas doces palavras do Conquistador. Em forma suprema, surgirei do lótus desabrochado sob a luz do Sábio E, herdeiro bem-aventurado de Buda, permanecerei na presença dos vitoriosos.88 45 Ou então, como pagamento de meus pecados, serei golpeado e esfolado pelos servidores do Senhor da Morte, Que despejarão sobre meu corpo bronze derretido no fogo assustador. E, trespassada por espadas e facas escaldantes, minha carne, talhada em cem pedaços, Tombará sobre o chão de ferro incandescente. 46 Por isso, vou aspirar e atentar à virtude E dela me imbuir, com grande devoção. E, segundo o método descrito no Vajradhvaja,89 Vou me treinar para ter autoconfiança. 47 Que eu, primeiramente, avalie meus recursos E então comece ou deixe de começar. Pois é melhor não começar, Do que começar e depois recuar. 48 Se agir assim, o padrão reaparecerá Nas vidas seguintes, e as más ações e o sofrimento crescerão. E outros atos serão deixados inacabados Ou então darão minguados frutos. 49 Ação, as aflições e minha capacidade: Três coisas às quais a autoconfiança deve ser direcionada.90 "Farei isto, eu mesmo, sozinho!" Essas palavras definem a autoconfiança na ação. 50 Dominadas pelas aflições da mente, As pessoas do mundo são impotentes para assegurar sua felicidade. Em comparação aos seres que vagueiam, eu tenho essa capacidade! Essa será, portanto, minha tarefa. 51 Quando outros se entregam a comportamentos inferiores, Que postura devo ter?

De qualquer forma, não serei arrogante. Minha melhor atitude é abandonar esse tipo de presunção. 52 Quando encontram uma serpente moribunda, Até os corvos se comportam como águias altaneiras. Portanto, se eu for fraco e pusilânime, Até mesmo pequenas faltas conseguirão me atingir e me ferir.91 53 Se deprimido, porém, desisto de tentar, Como me livrarei desta minha condição desprezível? Mas, se mantenho minha posição com galhardia, Mesmo as maiores falhas dificilmente me atacarão. 54 Portanto, com o coração determinado, Vou vencer minhas debilidades. Mas, se minhas deficiências vierem a prevalecer, Meu desejo de suplantar os três mundos será, sem dúvida, risível. 55 "Sairei vitorioso sobre todas as coisas; Nada irá se sobrelevar e me abater!" Os filhos do Leão, o Conquistador, Devem constantemente permanecer em tal autoconfiança.92 56 Aqueles a quem a arrogância destrói Ficam assim conspurcados; a eles falta autoconfiança. Aqueles dotados da verdadeira confiança conseguirão escapar do inimigo, Enquanto outros caem sob o poder de um orgulho perverso. 57 Quando a arrogância infla a mente, Ela a arrasta para baixo, aos estados de infortúnio, Ou então arruina a felicidade, caso o nascimento humano tenha sido conquistado. Assim, nasce-se escravo, dependente dos outros para se alimentar, 58 Ou apalermado, feio, sem força, Motivo de chacota de todos. Esses "ascetas", inflados pela presunção! Se esses são os que você chama de orgulhosos, diga-me então quem são os desgraçados?

59 Aqueles que sustentam o orgulho para vencer o orgulho, o inimigo, São os verdadeiros soberbos, os vitoriosos e corajosos. Aqueles que barram o avanço do orgulho perverso Levam à perfeição o fruto da vitória para os seres. 60 Quando eu me vir acossado pelas negatividades, Lutarei contra elas de mil e uma maneiras. Não me renderei às hostes das aflições mentais; Serei como um leão em meio a um bando de raposas. 61 Independentemente do tamanho do perigo, As pessoas, por reflexo, protegem seus olhos. Do mesmo modo, não importa quais sejam as adversidades, Não vou me deixar cair nas malhas das negatividades. 62 Melhor para mim que eu seja queimado vivo, Que eu seja degolado ou assassinado! Em momento algum vou me curvar Diante dessas minhas inimigas, as emoções negativas.93 62 (a) Assim, em todos os momentos e lugares, Não me desviarei do caminho benéfico. 63 Como aqueles que encontram grande prazer em seus jogos, Os bodisatvas, em todas as suas ações, Sentem enorme alegria e entusiasmo, Um prazer que nunca perde o viço nem passa. 64 As pessoas trabalham com afinco para conseguir satisfação, Ainda que o sucesso esteja bem longe de garantido; Mas como podem ficar felizes se não realizarem Os feitos que lhes são a fonte de alegrias? 65 E, já que o prazer nunca é o suficiente para elas — Mel sobre o fio da navalha — Como podem ter suficiente mérito,

Cujos frutos são a felicidade e a paz? 66 O elefante, atormentado pelo sol do meio-dia, Joga-se nas águas do lago; De igual forma, preciso mergulhar nesta obra, Para que eu possa levá-la à sua conclusão. 67 Se, comprometido pela fraqueza ou fadiga, Eu colocar o trabalho de lado, é melhor recomeçá-lo. E deixarei minhas tarefas quando concluídas, Ávido pelo próximo trabalho que virá. 68 Do mesmo modo que um guerreiro experiente Posiciona-se diante da espada dos inimigos na linha de batalha, Desviarei das armas da negatividade E suplantarei o adversário com desenvoltura e habilidade! 69 Se, no calor da batalha, o soldado deixa cair a espada, Receoso, rapidamente a apanha. Assim, igualmente, se a arma da atenção for perdida, Por temor aos infernos, irei recuperá-la velozmente. 70 Tal como o veneno se alastra pelo corpo Transportado pela corrente do sangue, Um pensamento nocivo que encontra uma oportunidade Dissemina-se pela mente e a permeia. 71 Serei como um homem amedrontado que carrega entre as mãos um jarro cheio de óleo até a borda, Como se estivesse sob a ameaça da espada de um guarda que me diz: "Derrame uma só gota e morrerá!" É desse modo que os praticantes devem se conduzir. 72 Assim como um homem saltaria apavorado Se encontrasse uma serpente enrolada no seu colo, Se o sono e a letargia me assaltarem, Imediatamente irei espantá-los.

73 A cada vez que falhar, Vou me repreender e me corrigir, Pensando longamente que, seja por que meios for, Esses deslizes não voltarão a acontecer. 74 O tempo todo e em qualquer situação, Como posso fazer da atenção um hábito constante? Pensando assim, desejarei Encontrar os mestres e realizar as tarefas que me forem confiadas. 75 Por todos os meios então, antes de iniciar algum trabalho, Para que eu possa ter forças à altura da tarefa, Refletirei sobre essas palavras que falam da atenção E me colocarei em pé, lépido, para fazer o que precisa ser feito. 76 Como os fios de linho balançam de um lado para outro, Impelidos pelo sopro do vento, De igual modo, tudo aquilo que eu fizer será alcançado, Controlado pelos movimentos de um coração onde mora a alegria.



8. CONCENTRAÇÃO MEDITATIVA 1 Após cultivar a diligência como descrito, Direcionarei minha mente para a concentração. Pois aqueles cuja mente é frouxa e dispersa Ficam presos nas garras das emoções aflitivas. 2 Na solitude, a mente e o corpo Não são perturbados pelas distrações. Portanto, deixe esta vida mundana E abandone toda divagação mental. 3 Por causa de entes queridos e do desejo por ganhos, Não nos afastamos das coisas mundanas. Essas são as primeiras coisas a serem renunciadas. Assim os prudentes devem se comportar. 4 A visão penetrante, aliada ao calmo permanecer, Erradica por completo os estados aflitivos. Sabendo disso, procure primeiro o calmo permanecer, Encontrado por aqueles que, contentes, renunciam às amarras mundanas. 5 Os seres — breves, efêmeros — Que se aferram àquilo que também é passageiro Não terão nem um vislumbre daqueles que amam Por milhares e milhares de vidas futuras. 6 Sem vê-los, a mente deles não conhecerá a alegria E, portanto, não repousarão na equanimidade. Mas, ainda que os vejam, não ficam satisfeitos: E, como antes, a dor do ansiar permanece. 7 Se eu desejo e anseio por outros seres, Um véu recobre a verdade perfeita.

A desilusão salutar 94 se dissipa E, ao final, aparece a ferroada da dor. 8 Meus pensamentos voltam-se todos para eles, E assim minha vida vai sendo desperdiçada. Meus parentes e amigos todos mudam e passam: Por conta deles o Darma imutável é banido. 9 Pois, se eu agir como os seres infantis, Por certo decairei para os destinos infernais. Então por que continuo na companhia de seres pueris, Que me levam por caminhos tão distanciados da virtude? 10 Em um momento, amigos; No momento seguinte, inimigos rancorosos. Até mesmo coisas agradáveis despertam sua insatisfação: Pessoas comuns, quão difícil contentá-las! 11 Uma palavra benfazeja e eles se ressentem, Enquanto me desviam do bem. E, se ao que dizem não dou ouvidos, A raiva que eles sentem faz com que caiam nos estados inferiores. 12 Invejosos dos que lhes são superiores, eles competem com os seus pares; Orgulhosos em relação àqueles em condição inferior, pavoneiam-se quando elogiados. Diga uma palavra descabida, e ardem de raiva: O que de bom jamais resultou dessa gente pueril? 13 Ande na companhia deles e o que acontece? Autoenaltecimento e desprezo pelos outros, Conversas sobre as "coisas boas" do saṃsāra: Toda sorte de vícios seguramente aparece. 14 Só a ruína é resultado De ligações como essas, entre eu e os outros. Pois eles não trarão benefício algum a mim, E eu, por minha vez, nada de bom posso proporcionar a eles.

15 Portanto, fuja da companhia das pessoas infantis. Ao se encontrar com elas, Saúde-as com um sorriso de amável cortesia, Porém sem incitar relacionamentos íntimos. 16 Como as abelhas, que tiram o mel das flores, Pegue apenas aquilo que é útil à prática do Darma. Trate-as como estranhos recém conhecidos, Sem encorajar familiaridade. 17 "Ah, sou rico, cercado de atenções; Muitas pessoas gostam de mim!" Alimente esse tipo de complacência e, mais tarde, Após a morte, seus medos se porão a campo! 18 Ó mente tola e atormentada, você quer, Deseja e precisa de tantas coisas; Essas coisas todas depois crescem e se transformam Em sofrimento, mil vezes maior. 19 Já que é assim, os sábios não têm apegos, Pois deles brotam o medo e a ansiedade. E firme isto em sua compreensão: Tudo o que se possa querer, por sua própria natureza, desaparecerá. 20 Pois as pessoas podem ter acumulado imensa fortuna, Gozar de boa reputação, doce fama. Mas quem pode dizer aonde foram agora, Com todas as suas malas cheias de ouro e glória? 21 Por que devo me alegrar quando as pessoas me elogiam? Haverá outros que me menosprezarão e criticarão. E por que ficar abatido quando sou censurado, Já que haverá outros que me terão em boa conta? 22 Tantas e tantas são as inclinações e preferências dos seres

Que nem mesmo Buda poderia satisfazê-las todas. O que dizer então de um desgraçado como eu! Abandonarei as preocupações com as coisas mundanas. 23 As pessoas menosprezam os pobres que não têm posses; Também criticam os ricos que as têm. Que prazer pode vir da companhia De pessoas assim, tão difíceis de agradar? 24 Seres pueris não se aprazem com a bondade, A menos que suas vontades sejam satisfeitas. Uma pessoa infantil, portanto, não é um amigo verdadeiro. Assim disseram os tathāgatas. 25 Em florestas, abrigo de cervos e pássaros, Entre árvores onde não reina nenhuma discórdia, É lá que encontrarei companhia aprazível! Quando poderei partir e lá estabelecer meu lar? 26 Quando partirei para fazer minha morada Em uma gruta, em um templo deserto ou sob a copa de uma árvore, Levando no peito um coração livre, sem amarras, Que nunca se volta para olhar para trás? 27 Quando poderei morar em um lugar assim, Um lugar não reclamado, sem dono, Que seja amplo e não confinado, um lugar Onde eu possa permanecer em liberdade, sem apegos? 28 Quando poderei ficar livre de medo, Sem necessidade de me esconder de quem quer que seja, Com apenas uma tigela para pedir esmolas e poucos pertences, Vestindo trajes que ninguém cobiça? 29 E, indo a cemitérios, Quando irei comparar meu corpo Com os ossos ressecados que lá se encontram.

Ambos tão iguais, tão prestes a se reduzir a nada? 30 Esta minha forma, esta minha própria carne, Logo exalará um odor tão pestilento Que nem mesmo os chacais se aproximarão: Pois isso é, por certo, tudo o que a espera. 31 Este corpo, agora ileso e inteiro, e Esta carne e ossos que a vida entreteceu Irão se separar, se desintegrar, E quanto mais um amigo se afastará de outro? 32 Sozinhos nascemos, sozinhos chegamos ao mundo, E, quando morremos, também partimos sós. Ninguém compartilha nosso destino; ninguém, nosso sofrimento. Para que preciso de "amigos" que me estorvam? 33 Como viajantes pela estrada, Que param e se hospedam durante a jornada, Os seres nos caminhos da existência Apoderam-se da hospedaria do nascimento. 34 Até que chegue a hora Em que quatro homens irão me carregar Em meio ao luto da gente do mundo, Até lá, vou me retirar em uma floresta. 35 Lá, sem nenhum laço e nenhum antagonismo, Ficarei só, em recolhimento. Considerado desde o princípio como já morto, Quando morrer, não serei motivo de dor para ninguém. 36 Assim não haverá ninguém ao meu lado, Derramando lágrimas e me estorvando com lamentos. E lá não haverá ninguém para desviar a minha atenção Da lembrança de Buda e da prática.

37 Portanto, nessas florestas aprazíveis e luminosas, Com a alegria turvada por poucas aflições, Onde todo o divagar da mente cessará, Permanecerei em bem-aventurada solidão. 38 Abandonando todas as demais aspirações, Concentrando-me em uma única intenção, Vou me empenhar para serenar minha mente E, aquietando-a, subjugá-la. 39 Neste e em mundos que estão por vir, O desejo é o progenitor de toda a dor. Aqui, neste mundo, grilhões, ferimentos e morte; No próximo, os infernos e outros tormentos. 40 Você envia seus mensageiros, tanto rapazes quanto moças,95 Com muitos presentes, a fim de conquistar o prêmio, Não poupando, na busca, nenhum pecado, Nenhum ato que manche a sua reputação. 41 Tampouco atos temerários que o exponham ao risco, Ou à perda e ruína de seus bens. E tudo por conta do prazer e êxtase perfeitos, Daquele beijo inebriante e inefável 42 De quem, na verdade, não passa de um amontoado de ossos, Desprovido de "eu", sem autonomia! É esse o único objeto do desejo e da volúpia? Melhor ir além de toda dor e sofrimento! 43 Quanto trabalho você se deu só para levantar o rosto dela, O rosto que, com modéstia, baixou os olhos. Aquele rosto que, visto ou não, Sempre se manteve escondido sob um véu. 44 Aquele rosto pelo qual você tanto suspirou…

Ei-lo aqui, desnudo, exposto. Os abutres o descobriram para você ver. Mas o que é isso? Você se põe a correr assim tão depressa? 45 Aquilo que você guardava com tanto ciúme E protegia dos olhos dos outros homens, Como, ser avarento, você não o defende, Agora que serve de comida às aves do cemitério? 46 Veja essa massa de carne humana Que agora é engolida por animais carniceiros, Você enfeita com flores, sândalo e joias A comida de outros seres? 47 Veja de novo, este amontoado de ossos: Inerte, morto. Ora, do que você tem tanto pavor? Por que não sentia medo dele quando caminhava, Como se fosse um cadáver ressuscitado, impelido por uma influência estranha? 48 Outrora você o amava, quando estava vestido e coberto. Bem, agora está nu. Por que você não o quer? Ah, você diz, sua volúpia se esvaiu. Mas por que você o abraçava, todo coberto e enfeitado? 49 Da comida, fonte única, vêm igualmente A imundice do corpo e o néctar da boca. Então por que você se delicia com a saliva E se enoja com o excremento? 50 Sem ver encantos em almofadas, Feitas de algodão macio, Você alega que a forma humana não exala nenhum odor fétido; Ensandecido pela luxúria, você não reconhece que ela é uma imundice! 51 Criatura lasciva, entorpecida pelo desejo, Já que você não pode copular com algodão, Você se enfeza e nele vê defeitos,

Embora seja macio e agradável ao tato! 52 E, se você não tem nenhuma apreciação pela imundice, Como pode aninhar em seu colo Um saco de ossos amarrado por tendões e Coberto por um reboco de carne? 53 Na verdade, você próprio está cheio de imundice E chafurda nela o tempo todo. O que você deseja é só imundice E, por isso, vive a querer outros sacos cheios dela! 54 "Mas é a pele e a carne que eu adoro Tocar e olhar." Por que então você não tem desejos pela carne só, Inanimada, em seu estado natural? 55 A mente que talvez você deseja Escapa ao seu toque e à sua visão. O que quer que você segure ou veja não é a mente; Então por que copular com algo que não o é? 56 Deixar de entender a natureza impura Da carne de uma outra pessoa talvez não seja tão estranho. Mas não enxergar a natureza imunda Do próprio corpo é, sem dúvida, muito estranho! 57 Por que a mente, voltada para a sujeira, Desdenha o novo e fresco botão de lótus Que se abriu aos raios de um sol sem nuvens E encontra prazer em um saco de imundice? 58 E, já que você não tem inclinação alguma para tocar Um lugar ou objeto emporcalhado de excremento, Por que você tem vontade de tocar o corpo De onde esse excremento saiu?

59 E, se você não tem desejo por aquilo que é sujo, Por que você agora abraça e beija Algo que vem de um lugar impuro, Gerado, também, por uma semente impura?96 60 Você não tem amor Pelos vermes malcheirosos minúsculos que vivem na imundice, Entretanto você se arde de desejo por uma forma humana, Surgida da imundice e dela repleta! 61 De sua própria sujeira Você não tem nojo; Atraído e sedento por imundice, Você anseia por outros sacos de imundice também. 62 Substâncias aprazíveis, como cânfora, Arroz e ervas frescas, Se colocados na boca e cuspidos fora, A própria terra fica por elas enxovalhada! 63 Se você ainda duvida de tal imundice, Embora seja evidente aos olhos de todos, Vá até os cemitérios e observe os Corpos fétidos lá abandonados. 64 Quando a pele deles é arrancada, Causa-lhe enorme horror e repulsa. Agora que você compreende isso, Como pode ainda ter prazer com tal coisa? 65 A fragrância que agora perfuma a pele É sândalo e nada mais. Entretanto, como é que o aroma de uma coisa Faz com que você passe a desejar uma outra? 66 Não é melhor deixar de desejar

Aquilo que, por natureza, exala mau cheiro? A gente do mundo anseia pelo que é inútil: Com que finalidade ungem a pele com perfumes? 67 Pois, se este aroma é, na realidade, sândalo, Como pode ser a fragrância do corpo? E como é que a fragrância de uma coisa O leva a ansiar por uma outra? 68 Com os cabelos escorridos, as unhas compridas, por cortar, Com os dentes sujos e recendendo o mau cheiro de suas gosmas, O corpo — nu, tal como ele é, sem cuidados — É uma cena de um pesadelo! 69 Por que nos esmerarmos em limpar e polir O que não passa de uma arma que irá nos ferir? Os cuidados que as pessoas desperdiçam consigo mesmas, por ignorância, Convulsionam o mundo com sua insensatez. 70 Você viu as pilhas de ossos humanos Nos cemitérios e sentiu repulsa? Então por que tanto prazer com suas cidades de mortos, Frequentadas e habitadas por esqueletos ambulantes? 71 E, além disso, a posse da imundice de outrem Não se adquire gratuitamente. Tudo tem o seu preço: esgotamento nesta vida, E, na próxima, os sofrimentos nos infernos! 72 Acumular riquezas os rapazes não conseguem, E do que podem desfrutar quando são maduros? A vida é gasta na aquisição de riqueza, Mas então estão velhos: velhos demais para satisfazer sua volúpia! 73 Alguns deploráveis devido a seus fortes desejos, Exauridos pela labuta do dia, Voltam para casa com o corpo alquebrado pelo cansaço

Para dormir o sono de um cadáver! 74 Alguns, obrigados a viajar para longe, Precisam vivenciar a separação de suas esposas, De filhos que amam e anseiam por ver. Ficam sem encontrá-los por anos a fio. 75 Alguns, ambicionando progredir, Sem saber como o fazer, vendem-se. A felicidade escapa de suas mãos e, em vão, Passam a viver e trabalhar sob o jugo de seus donos. 76 Outros vendem-se, perdendo a liberdade, Viram escravos de outras pessoas. E, desvalidos, suas mulheres dão à luz no ermo, Tendo por abrigo apenas árvores. 77 Alguns tolos, iludidos pela ânsia de ganhar a vida, Decidem fazer fortuna na guerra, Ainda que temerosos por sua vida. E, ao buscar o ganho, é a servidão que conseguem. 78 Alguns, como fruto de sua ambição, Têm o corpo retalhado, empalado em estacas pontiagudas. Alguns são feridos, vazados por lanças, Ao passo que outros são exterminados na fogueira. 79 O aborrecimento de guardar o que possuímos, a dor de tudo perder! Veja as infindáveis mazelas provocadas por posses! Para aqueles que se desviam por amor à riqueza Não há chance de liberdade das amarguras da existência. 80 Presa de suas muitas vontades, Eles experimentam muitos dissabores, tudo por muito pouco: São como os bois que puxam as carroças E comem punhados de capim à beira da estrada!

81 E por algo tão insignificante, Algo que não é raro, que qualquer animal pode achar, Atormentados por seu carma, eles destroem Esta vida humana preciosa, tão difícil de encontrar. 82 Tudo o que desejamos certamente irá perecer, E, devido a tais desejos, somos abatidos por tormentos infernais. Por tão pouco Sofremos constantes e exaustivos aborrecimentos. 83 Porém, com uma milionésima parte desses aborrecimentos, A própria iluminação poderia ser alcançada! Os que têm desejos são muito mais atormentados do que aqueles que se engajam no caminho, Ainda assim, não atingem o estado búdico! 84 Reflita sobre os sofrimentos dos infernos e de outros estados desgraçados. Armas, venenos, fogo, Abismos profundos e inimigos hostis: Nada disso se equipara aos nossos desejos! 85 Portanto, rechaçando a lascívia e as vontades, Regozijemo-nos agora com a solitude, Em lugares onde não há contenda e conflito: A paz e a quietude da floresta. 86 Os afortunados, cuja intenção é voltada para o bem dos outros, Vagam por lugares aprazíveis feitos de pedra maciça, Por matas acariciadas por terna brisa, Refrescados pelo aroma do sândalo ao luar. 87 Em grutas sob as árvores, em casas abandonadas, Possamos permanecer tanto tempo quanto quisermos. Abandonando as aflições de vigiar nossas posses, Vivamos em liberdade, sem o peso das preocupações. 88 Possuir liberdade assim, não maculada pelo desejo,

Com todos os laços e amarras desatados: Uma vida de tal contentamento e felicidade Até mesmo Indra teria dificuldade em encontrar. 89 Refletindo desse modo Sobre a excelência da solitude, Pacifique por completo todos os pensamentos discursivos E cultive a mente de boditchita. 90 Empenhe-se, primeiramente, em meditar Sobre a igualdade entre você e os outros.97 Na alegria e na tristeza, todos são semelhantes. Dessa maneira, seja o guardião de todos, assim como de você mesmo. 91 A mão e os demais membros são diversos e distintos, Mas todos formam um só todo: um corpo a ser mantido e protegido. De igual modo, os diferentes seres, em suas alegrias e tristezas, São, como eu, todos iguais em querer a felicidade. 92 Minha dor não aflige Nem causa desconforto ao corpo de outrem. Ainda assim, esta dor é difícil de eu suportar, Porque aferro-me a ela como sendo minha. 93 E a dor dos outros Eu não sinto; no entanto, Porque eu os tomo como eu,98 O sofrimento deles é meu e igualmente difícil de suportar. 94 Portanto, vou dissipar a dor dos outros seres, Pois ela é simplesmente dor, exatamente como a minha. E vou auxiliar e beneficiar os outros, Pois são seres vivos, como meu corpo. 95 Dado que eu e os outros seres Somos iguais em querermos a felicidade, Que diferença nos distingue,

Para fazer com que eu me empenhe em obter unicamente a minha felicidade? 96 Dado que eu e os outros seres Somos iguais em querermos fugir do sofrimento, Que diferença nos distingue, Para que eu me salve, mas não salve o meu próximo? 97 Visto que as dores dos outros seres não me machucam, Que motivo tenho para me proteger delas? Mas por que me guardar da "minha" dor futura, Que não machuca este meu "eu" presente? 98 Pensar que "eu terei que suportá-la" Nada mais é, na verdade, do que uma concepção equivocada, Pois quem morre é uma pessoa E quem nasce é outra. 99 "Cabe à própria pessoa que sofre", você dirá, "Proteger-se dos ferimentos que possam acontecer!" A dor sentida em meu pé não é a dor da minha mão; Então por que um deveria proteger o outro? 100 "De fato, isso é inadmissível", você dirá. "Acontece simplesmente pela força do apego ao ‘eu’." Mas aquilo que é inadmissível para os outros e para mim Deve ser descartado por completo! 101 O que rotulamos de continuum e agregados São irreais como uma guirlanda e como um exército. Assim, não há ninguém para experienciar o sofrimento, Pois quem existe para ser o "proprietário"? 102 O sofrimento não tem dono, Não há, portanto, como fazer distinções. Já que dor é dor, irei dissipá-la. Para que criar limites?

103 "Por que dissipar o sofrimento de todos?" Esse não é um argumento. Se o "meu" sofrimento for removido, o dos "outros" também deveria o ser. Se o sofrimento deles não for removido, o meu também não deveria o ser. 104 Você diz: "Compaixão nos faz sofrer tanto, Então por que devemos nos empenhar em gerá-la?" No entanto, ao considerar o sofrimento dos seres, Como você pode achar maior a dor da sua compaixão? 105 E, se por meio dessa única dor, Uma profusão de penas pode ser curada, Uma dor assim todos os seres amorosos Esforçam-se por encorajar em si e nos outros. 106 Portanto, Supuṣhpachandra,99 Embora ciente do mal que o rei lhe causaria, Nada fez para escapar de seu suplício, Para que as dores de tantos pudessem ser findadas. 107 Aqueles cuja mente se treinou desse modo, Cuja felicidade é serenar a dor dos outros, Irão se aventurar no inferno do Tormento Último Como cisnes descem sobre um lago coberto de lótus. 108 A alegria que brotará — imensa como o mar — Quando todos os seres forem liberados Não será suficiente? Isso não trará satisfação? O desejo pela minha própria liberação, o que vale isso para mim? 109 O trabalho de trazer benefícios aos outros seres Não gerará em mim nem orgulho nem autoenaltecimento. A felicidade dos outros, em si, é a minha satisfação. Não espero outra recompensa. 110 Portanto, tal como eu me defendo

De quaisquer acontecimentos desagradáveis, por menores que sejam, Do mesmo modo, em relação aos outros, Devo também ter uma mente protetora e compassiva. 111 Embora a gota de esperma e sangue100 pertencesse a outros, Devido a um forte hábito, Tive, em relação a ela, um sentimento de "eu", Embora, por si só, ela seja desprovida de entidade, 112 Por que então não identificar O corpo de outrem, chamando-o de "eu"? E, vice-versa, que dificuldade há em pensar Neste meu corpo como sendo de outrem? 113 Enxergando agora os defeitos que advêm do "eu" E a imensidão de qualidades que estão no "outro", Porei de lado todo o amor ao eu E adquirirei o hábito de adotar os outros seres. 114 As mãos e demais membros São vistos como partes de um corpo. Por que não considerarmos os outros do mesmo modo, Membros e partes integrantes de um todo vivo? 115 Assim como em conexão com esta forma, desprovida de "eu", Minha noção de "eu" surgiu pela força de um hábito arraigado, Por que o pensamento de "eu", pela força do hábito, Não surge em relação ao outro? 116 Assim, quando trabalho para benefício dos outros, Não haverá uma noção de autocongratulação orgulhosa. Pois é igual a quando dou de comer a mim mesmo: Não espero ser por isso recompensado. 117 Portanto, tal como eu me defendo De quaisquer acontecimentos desagradáveis, por menores que sejam, Da mesma forma, em benefício dos outros seres,

Devo me acostumar a ter uma mente protetora e compassiva. 118 Esse é o porquê de o Senhor Avalokita, Por grande compaixão, ter abençoado seu nome Para livrar de todo o medo As pessoas que se encontram no meio de multidões.101 119 Assim deveríamos ser intrépidos diante de dificuldades, Pois, pela influência do uso e do hábito, As pessoas chegam mesmo a chorar por alguém Cujo mero nome enchia de pavor o seu coração. 120 Aqueles que desejam rapidamente Servir de refúgio para si próprios e para os outros seres Devem trocar os termos "eu" e "outro", E assim abraçar um mistério sagrado. 121 Por causa do apego ao corpo, Até mesmo pequenas coisas nos assustam. Este corpo então, esta fonte de tanto terror: Quem não o detestaria como o pior dos inimigos? 122 Desejando aliviar os males do corpo, A fome da boca, a secura da garganta, Ficamos em tocaia à beira da estrada E roubamos a vida de peixes, pássaros e cervos. 123 Por ganho e posição, Há pessoas que chegam a matar os próprios pais Ou roubar oferendas feitas às Três Joias. Em consequência, arderão no inferno do Tormento Último. 124 Que homem sensato Desejaria mimar e proteger seu corpo? Quem não perceberia esse corpo como um inimigo? E, sendo um inimigo, como não o desprezar?

125 "Se eu der isto, o que sobrará para mim?" Pensar em si é o caminho que leva aos espíritos maléficos. "Se eu ficar com isto, o que sobrará para eu dar?" Cuidar dos outros é o caminho que leva ao paraíso.102 126 Se para servir a mim mesmo prejudico o meu próximo, Irei, mais tarde, sofrer nos reinos dos infernos. Mas, se para benefício dos outros prejudico a mim mesmo, Toda excelência será minha herança. 127 Querer o melhor para mim Resulta em falta de inteligência, inferioridade e reinos inferiores. Ao inverter essa atitude, voltando-a para os outros, Honrarias e os reinos aventurados decorrerão. 128 Se eu subjugar os outros e forçá-los a me servir, Virei a conhecer o estado de servidão. Porém, se eu trabalhar para o bem dos outros, Domínio e liderança serão o meu legado. 129 Toda a alegria que o mundo contém Vem de querer felicidade para os outros. Todo o sofrimento que o mundo contém Vem de querer felicidade para si mesmo. 130 Há necessidade de longas explicações? Os seres infantis cuidam de si mesmos, Ao passo que os budas trabalham pelo bem dos outros. Veja a diferença que os separa! 131 Se eu não trocar minha felicidade Pelo sofrimento dos outros, A iluminação nunca será alcançada E, mesmo no saṃsāra, a felicidade fugirá de mim. 132 Sem computar as vidas futuras,

Mesmo as necessidades desta vida não são preenchidas: Os criados não fazem seu trabalho, E os amos não pagam os salários que foram ganhos. 133 Atirando longe a profusão de alegrias Que poderiam ser ganhas nesta e em vidas futuras, Por causar o mal aos outros seres, Eu causo a mim mesmo, por ignorância, intolerável dor. 134 Todo o mal que abunda neste mundo, Todo o medo e sofrimento que existem, Foram causados pelo apego ao "eu"! O que vou fazer com esse grande demônio? 135 Se esse "eu" não for abandonado por completo, O sofrimento também não poderá ser evitado. Pois, se não ficarem longe do fogo, As pessoas inevitavelmente serão queimadas. 136 A fim de me livrar do mal E livrar os outros de suas penas, Irei me doar aos outros, Amando-os como amo a mim mesmo agora. 137 "Pois agora estou sob o ditame dos outros": Disso, ó minha mente, você pode ter certeza. E doravante você não mais terá pensamento Que não almeje o bem de todos os seres. 138 Minha visão e demais sentidos agora são propriedade dos outros: Usá-los para mim mesmo seria ilícito. Sendo assim, quanto mais seria vedado utilizar Minhas faculdades contra seus donos? 139 Assim, os seres sencientes passarão a ser minha principal preocupação. E tudo aquilo que eu vejo em meu corpo Será tomado e oferecido

Ao uso e serviço de todos os outros seres. 140 Considere os outros — seus inferiores, superiores, iguais — como sendo você mesmo;103 Identifique-se com o "outro". E, sem outro pensamento, Imerja-se na inveja, no orgulho e na rivalidade. 141 Ele é o centro das atenções; eu não sou nada, E, diferentemente dele, sou pobre, sem posses. Todos o enaltecem e a mim desprezam; Para ele tudo corre bem; para mim só há amargura! 142 Tudo o que tenho é trabalho pesado e enfadonho, Enquanto ele lá fica, refestelado em meio ao conforto. Ele goza de renome, é respeitado neste mundo, Enquanto sou um subalterno, um solene desconhecido. 143 O quê? Um desconhecido sem distinção? Isso não é verdade! Eu tenho algumas boas qualidades. Ele não é o melhor; ele é inferior a alguns; Em comparação a alguns outros, eu me sobressaio! 144 Minha disciplina, minha compreensão declinaram, Mas sou impotente, governado pelas minhas emoções aflitivas. Tanto quanto ele seja capaz, ele deve me curar, Serei submisso, mesmo às suas punições. 145 O fato é que ele não faz nada do gênero! Com que direito ele me menospreza? De que me servem suas qualidades, Qualidades das quais ele é tão possuidor? 146 Indiferente à desgraça dos seres vivos, Que caminham na goela dos reinos desafortunados, Ele exibe suas virtudes para os outros, Até mesmo se coloca entre os sábios!

147 Possa eu me sobressair e sobrepujar ele, Ele visto como meu par e semelhante! Em competições, certamente conseguirei Minha fama e fortuna, renome e glória. 148 Por todos os meios anunciarei Meus dotes para todo o mundo, Assegurando que as qualidades dele Permaneçam desconhecidas, por todos ignoradas. 149 Vou ocultar os meus defeitos, dissimular, Pois eu, não ele, serei objeto de devoção; Eu, não ele, adquirirei posses e fama; Eu serei o centro das atenções. 150 Vou me regalar Com a vergonha e rebaixamento dele. Vou fazer dele um ser desprezível, Alvo do escárnio e zombaria de todos. 151 As pessoas dizem que esse pobre coitado Está tentando competir comigo! Mas como pode ele se equiparar a mim, Em termos de cultura, beleza, riqueza e berço? 152 Só de ouvi-los falar da minha excelência, Minha reputação nos lábios de todos, Fico arrepiado de alegria. Que delícia, que prazer! 153 Ainda que ele tenha alguma coisa, Sou a pessoa para quem ele está trabalhando! Ele pode ficar com o suficiente apenas para sobreviver, Mas, fazendo uso de minha força, vou tirar-lhe o resto. 154 Vou dissipar a felicidade dele;

Vou feri-lo e prejudicá-lo sempre. Foi ele que, no saṃsāra, Centenas e centenas de vezes, me causou dano. 155 Ó mente, quantas incontáveis eras Você passou desejando atingir os seus objetivos. E que enorme exaustão isso trouxe, Enquanto sua recompensa foi apenas padecimento! 156 Portanto, agora definitivamente dedique-se Por completo em trabalhar para o bem dos outros. Buda não mentiu em suas palavras: Você verá os benefícios de agir assim. 157 Se, de fato, você tivesse, em tempos passados, Abraçado essa tarefa e a levado a cabo, Não lhe estaria ainda faltando A perfeita bem-aventurança do estado búdico. 158 Assim como você identifica Uma gota de sangue e esperma de outrem E se prende a ela como se fosse você mesmo, Considere agora os seres sencientes, os outros, como sendo você. 159 Em benefício dos outros, espreite agora Todas as coisas que o seu corpo parece possuir. Roube-as, tome-as todas, E use-as em proveito dos outros. 160 Sou feliz, os outros, tristes; Sou superior e poderoso, os outros, inferiores; Recebo ajuda, ao passo que os outros são abandonados: Por que não sinto inveja de mim mesmo? 161 Felicidade e preenchimento ofereço. A dor dos outros abraçarei. Examinando-me repetidas vezes,

Tomarei consciência de todas as minhas faltas. 162 Quando os outros cometerem alguma falta, vou pegar A culpa e jogá-la sobre mim. E todos os meus pecados, ainda que mínimos, Vou confessá-los e divulgá-los a muitas pessoas. 163 A fama dos outros aumentarei, Para que possa suplantar a minha própria. Entre eles serei um ser que serve, Meu trabalho humilde será para beneficiá-los. 164 Este ego é, por natureza, repleto de imperfeições; Seus talentos acidentais não devo exaltar. As eventuais qualidades que tiver ocultarei, Para que permaneçam desconhecidas de todos. 165 Em suma, possa todo mal que meu ego praticar Em proveito próprio e em detrimento dos outros Cair sobre meu ego, Em prejuízo próprio e para benefício dos outros. 166 Não o deixe pavonear-se de um lado para o outro, Tão arrogante, tão soberbo. Antes, como uma noiva recém-casada, Que ele seja reservado, recatado, acanhado e tímido. 167 "Faça assim!" "Seja deste jeito!" "Jamais faça tal coisa!" E dessa forma que ele será controlado, E, se ele passar dos limites, Pegue então o chicote! 168 Portanto, ó mente, se você continuar a se recusar, Apesar dos demorados conselhos que lhe foram dados, Já que todo mal tem em você sua raiz, Você, sem dúvida, estará pronta para ser punida!

169 A época em que você podia me fazer mal Ficou para trás, não está mais aqui. Agora eu a vejo! Para onde você fugirá? Vou desbancar você e toda sua insolência arrogante. 170 Permita que todo o pensamento de se empenhar por si mesma Seja totalmente rejeitado, abandonado. Agora que você foi vendida para os outros, Pare de resmungar e ponha-se a servir!" 171 Se, por desatenção, Eu deixar de entregá-la aos outros, Por certo será você que me entregará Aos guardiões do inferno. 172 Pois foi assim que tantas vezes Você me traiu e que por tanto tempo eu sofri! Agora minha lembrança está cheia de rancor; Vou esmagar suas tramas egoístas! 173 Assim, se quero satisfação, Não devo nunca buscar contentar a mim mesmo. Da mesma forma, se quero me proteger, Vou sempre proteger os outros. 174 Na mesma medida em que esta forma humana É mimada e poupada de ferimentos, Do mesmo modo, na mesma extensão, Ela se torna frágil e rabugenta. 175 Àqueles que caem nesse estado Mesmo a Terra e tudo o que ela contém São incapazes de satisfazê-los. Pois quem pode lhes fazer todas as vontades? 176 Seu irremediável querer lhes traz sofrimento,

E maquinações nocivas invadem a mente. Ao passo que aqueles que têm o coração livre e desimpedido Jamais verão o fim de sua boa fortuna. 177 Portanto, não darei espaço algum, oportunidade alguma, Para que as vontades do meu corpo aumentem. E, quanto a posses, as melhores coisas São aquelas que não atraem nem cativam. 178 Pó e cinza são a condição final do corpo, Deste corpo que, inerte, é movido por outras forças. Esta forma assustadora e impura: Por que eu a tomo por meu "eu"? 179 Vivo ou morto, que diferença faz? De que me serve esta máquina? Que diferença a separa de um punhado de terra? Por que não me livro do orgulho? 180 Ao cobrir de atenções este corpo, Tantas mágoas eu insensatamente criei para mim. Qual o uso de todo o meu querer, de todo o meu odiar, Por aquilo que, na realidade, é como um pedaço de madeira? 181 Quer eu o proteja e mime, Quer ele seja comido por aves carniceiras, Este corpo não sente prazer algum, aversão alguma. Por que então eu o estimo tanto? 182 Ressentimento quando insultado Ou prazer quando apreciado: O corpo não sente nenhum dos dois. Então por que me desgastar assim? 183 Se eu disser que o faço por ele ser adorado por outras pessoas, Pessoas que, por essa razão, considero como amigas, Já que todas elas apreciam o corpo que têm,

Por que eu não gosto do corpo delas também?104 184 Portanto, livre de todo apego, Doarei este corpo para o benefício de todos os seres. Assim, embora atormentado por tantos defeitos, Vou adotá-lo como uma ferramenta necessária. 185 Basta de todos esses meus modos infantis. Seguirei o exemplo dos sábios, Recordando-me de seus conselhos sobre o cuidado, Afastando-me de toda sonolência e entorpecimento mental. 186 Como os herdeiros dos budas, em sua compaixão, Tolerarei tudo o que deve ser tolerado. Pois, se eu não trabalhar noite e dia, Quando findará todo o meu penar?105 187 Para abolir os véus do obscurecimento, Desviarei minha mente do caminho errado; E, sobre este objeto perfeito, Constantemente a repousarei em estado de equilíbrio e meditação.

9. SABEDORIA 1 Todos esses ramos da Doutrina O Poderoso Senhor expôs em prol da sabedoria.106 Portanto, aqueles que desejam pôr fim ao sofrimento Precisam cultivar essa sabedoria. 2 Relativa e última, Assim as duas verdades foram enunciadas. A última está além do domínio do intelecto, Pois é dito que o intelecto é a relativa.107 3 Frente a isso, são observados dois tipos de pessoas no mundo: As com insight ióguicos e as pessoas comuns; Nesse âmbito, as visões das pessoas comuns São minadas pelos iogues que estão no mundo.108 4 (E, nas categorias de meditadores, Os inferiores em grau de compreensão são refutados pelos superiores.) Por meio de exemplos que tanto iogues quanto pessoas mundanas aceitam E em nome do resultado, a análise é deixada de lado. 5 Quando a gente comum percebe os fenômenos, Ela os vê como reais, não como ilusórios. Eis aí o alvo de debate, O ponto em que a gente comum e os iogues divergem. 6 Formas e outras coisas que todos nós percebemos Existem por consenso geral, mas não por uma lógica válida. Elas são falsas como, por exemplo, coisas impuras Que são, na visão comum, consideradas puras. 7 Para poder instruir as pessoas do mundo, Buda falou de "coisas", mas essas, em verdade,

Carecem até mesmo de momentaneidade. Se você afirma que é errado declarar o momentâneo como relativo, 8 Saiba que não há falta alguma, pois a momentaneidade É relativa para os iogues, mas é última para a gente do mundo. Não fosse assim, a visão comum Poderia invalidar o insight ióguico sobre impureza do corpo. 9 "Por intermédio de um buda, que é uma mera ilusão, como surge o mérito?" Como se Buda existisse de verdade. "Mas", você pergunta, "se os seres são como uma ilusão, Como, ao morrer, podem vir a renascer?" 10 Enquanto as condições estiverem reunidas, Ilusões, igualmente, persistem e se manifestam. Ora, simplesmente por durarem mais tempo, Devem os seres sencientes ser considerados mais reais? 11 Se alguém matar ou ferir a ilusão mágica de um homem, Não há mente e, portanto, não há negatividade. Mas os seres são dotados de mente que, de fato, é como uma miragem; Negatividade e mérito, por conseguinte, surgirão. 12 Encantamentos não têm poder algum, Portanto a mente, que é como uma miragem, não ocorre por meio de encantamentos. As ilusões, contudo, brotam de uma diversidade de causas; Dessa forma, são diversas as ilusões. 13 Uma causa única para todas as coisas Jamais existiu! Você agora perguntará: "Se, em termos últimos, os seres estão no nirvana, Mas relativamente estão no ciclo do saṃsāra, 14 Até mesmo o estado búdico reverte ao estado samsárico. Por que, então", indaga você, "perseguir o caminho do bodisatva?" Enquanto a corrente das causas não for cortada, Não há fim até mesmo para as manifestações ilusórias.

15 Entretanto, quando a corrente das causas é interrompida, Mesmo os fenômenos relativos não aparecerão. "Se aquilo que é equivocado não existe, O que é", pergunta você, "que vê a ilusão?" 16 Mas se, para você, essas mesmas ilusões são desprovidas de ser, O que, de fato, há para ser percebido? "Mas os objetos têm um outro modo de ser", você diz, "Esse modo, em si, nada é senão a mente." 17 Porém, se a miragem é a própria mente, O que então é percebido por o quê? O próprio Guardião do Mundo disse Que a mente não pode ser vista pela mente. 18 Do mesmo modo, disse ele, O fio da espada não pode cortar a espada. "Mas", diz você, "é como a chama Que ilumina a si mesma perfeitamente." 19 A chama, na verdade, não pode nunca iluminar a si mesma. E por quê? Porque a escuridão nunca a obscurece! "O azul de um objeto azul por natureza", você afirmará, "Não depende, diferentemente de um cristal, de nada mais." 20 "Do mesmo modo, algumas percepções Vêm de outras coisas, ao passo que outras não." Porém algo que é azul por natureza nunca impôs, por si só, Sua cor azul a seu aspecto não azul. 21 A expressão "a lamparina ilumina a si mesma" A mente pode conhecer e formular. Mas o que existe capaz de conhecer e dizer Que a "mente se autoilumina"? 22 A mente, com efeito, nunca é vista por nada

E, portanto, se ela pode ou não conhecer a si mesma, Tal qual a beleza da filha de uma mulher estéril, É algo que não há porquê ser discutido. 23 "Mas", você pergunta, "se a mente não conhece a si mesma, Como é que ela se lembra do que conheceu?" Nós dizemos que, como no caso do veneno do rato d’água, A memória acontece a partir de ligações com coisas experienciadas. 24 "Em alguns casos", você dirá, "a mente Consegue enxergar a mente dos outros; então como não a si mesma?" No entanto, por causa da aplicação de uma pomada mágica, O olho consegue enxergar o tesouro, mas o próprio unguento ele não vê. 25 Nosso propósito não é refutar As experiências do ver, do ouvir ou do conhecer. Nossa meta, aqui, é solapar a causa do sofrimento: O pensamento de que esses fenômenos são dotados de existência real. 26 "As ilusões não são coisas diversas da mente", diz você, Embora você não considere que sejam a mesma coisa. Como elas poderiam não ser diferentes se a mente é real? E como pode a mente ser real, se você nega uma diferença? 27 Mesmo sendo irreal, uma miragem pode ser vista E aquilo que vê é exatamente a mesma coisa. "Mas o saṃsāra deve se basear em algo real", diz você, "Caso contrário, o saṃsāra seria como um espaço vazio." 28 Mas como poderia o irreal ser efetivo em termos de causas, Mesmo que repouse sobre algo real? Essa sua mente encontra-se isolada e só, Só e desacompanhada, em solidão. 29 Se a mente de fato é livre de objetos, Todos os seres devem ser budas, iluminados que consumaram o caminho. Portanto, que propósito há

Nas palavras que dizem que há "Apenas Mente"? 30 "Ainda que saibamos que tudo é como uma ilusão, Como", você pergunta, "isso irá debelar as paixões aflitivas? Um mágico pode, de fato, desejar Uma mulher ilusória que ele próprio criou." 31 A razão está no fato de que ele não se livrou Do hábito de desejar os objetos da percepção; E, quando enxerga coisas assim, Sua propensão à vacuidade é bastante fraca. 32 Quando se treina para desenvolver a propensão à vacuidade, O hábito de perceber coisas reais será abandonado. Quando se treina no pensamento "Não há nada", A própria visão também será abandonada. 33 "Nada existe": quando isso é afirmado, Nada há para ser examinado. Pois como pode um "nada", que não é provado de forma alguma, Descansar diante da mente como algo presente? 34 Quando ambos, algo e a sua inexistência, Deixam de aparecer diante da mente, Nada mais resta para a mente fazer, Senão repousar em perfeita paz, livre de conceitos. 35 Tal como a joia que realiza desejos e a árvore dos milagres Preenchem e satisfazem todas as esperanças e desejos, Do mesmo modo, pela força de suas orações por aqueles aptos a ser treinados, Surgem as aparências físicas dos conquistadores. 36 O altar do garuḍa, com poderes de cura, Mesmo quando seu construtor há muito estava morto, Continuou por muitas eras futuras A curar e aliviar os efeitos do veneno e demais flagelos.

37 Do mesmo modo, tendo conquistado o "altar da vitória" De acordo com suas ações em prol do estado búdico, Embora os bodisatvas passem para além do sofrimento, Eles ainda podem satisfazer todas as intenções. 38 "Mas como", você indaga, "podem dar frutos Oferendas feitas a seres livres de todo pensamento discursivo?" Diz-se que, quer os budas vivam quer passem além, As oferendas a eles feitas proporcionam igual mérito. 39 Quer você assevere o último ou o relativo, O mérito, dizem as escrituras, surge Da mesma forma que haverá resultados Quando os budas são considerados verdadeiramente reais. 40 "Somos liberados", diz você, "ao ver as [Quatro] Verdades: De que nos serve essa visão da vacuidade?" Porém, como as próprias escrituras proclamam, Sem esse caminho, não há iluminação. 41 Você afirma que o Mahāyāna carece de certeza. Mas como você valida sua própria tradição? "Pelo fato de ela ser aceita por ambas as partes", você dirá. Porém, no princípio, a vocês mesmos faltavam provas! 42 As razões que levam você a confiar em sua tradição Podem igualmente ser aplicadas ao Mahāyāna. Ademais, se o consenso de duas partes demonstra a verdade, Os Vedas e os demais são também verdadeiros. 43 "O Mahāyāna é falho", você diz, "porque ele é contestado." Mas os textos budistas são questionados por extremistas, Ao mesmo tempo que os budistas também competem entre si. Portanto, sua tradição você deve agora abandonar. 44 O verdadeiro monge constitui a raiz do Darma,

Mas ser monge é algo bastante difícil. E é difícil para uma mente enredada em pensamentos Passar adiante dos grilhões do sofrimento. 45 Você afirma que a liberação se dá no momento Em que as emoções aflitivas são abandonadas por completo. Entretanto, seres que se libertaram das emoções aflitivas Continuam a manifestar a influência do carma. 46 "Somente por um curto tempo", diz você, "Pois, seguramente, As causas do renascimento, seus desejos, não existem mais." Nós concordamos que eles não têm desejos provenientes das emoções aflitivas. Mas por que não teriam desejo imaculado, como a ignorância deles? 47 Os desejos são produzidos em decorrência das sensações, E sensações certamente eles as têm. Os conceitos ainda remanescem na mente, E é a esses conceitos que eles se apegam. 48 A mente que não compreendeu a vacuidade Pode ser estancada, mas ela se manifestará novamente, Assim como se dá após a absorção sem percepção. Portanto, é preciso treinar na vacuidade. 49 Se tudo o que está compreendido nos sutras Você tem como a fala perfeita de Buda, Por que então não aceitar a maior parte do Mahāyāna, Que está em perfeita harmonia com os seus sutras?109 50 Se, em razão de um único elemento destoante, O todo é havido por eivado de erro, Por que um único sutra condizente com os seus textos Não valida o resto como sendo o ensinamento de Buda? 51 O próprio Mahākāshyapa110 e outros mais Não conseguiram sondar as profundezas de tal ensinamento. Quem, portanto, dirá que eles devem ser rejeitados

Simplesmente porque não são apreendidos por você? 52 Permanecer no saṃsāra e nele habitar, Porém, livre de todo desejo e de todo medo, Para alcançar o benefício daqueles que sofrem por ignorância: Eis o fruto da vacuidade. 53 Portanto, é incorreto Objetar a visão da vacuidade. Assim, abandonando toda dúvida, Meditemos sobre a vacuidade! 54 A cura para as paixões aflitivas e para os véus sobre a cognição É a vacuidade. Como poderiam deixar de meditar sobre ela Aqueles que desejam rapidamente alcançar a onisciência? 55 Que tudo o que seja fonte de sofrimento Seja objeto do nosso receio. A vacuidade, porém, irá aliviar todo o nosso pesar; Como poderia ela nos infundir temor? 56 Se algo como o "eu" de fato existisse, Admite-se então que fosse atormentado por pavores. Porém, visto que o "eu" não existe em absoluto, O que resta para o medo aterrorizar? 57 Os dentes, o cabelo e as unhas não são o "eu", E o "eu" não é nem os ossos nem o sangue; O muco do nariz e o catarro não são o "eu", Tampouco o "eu" é feito de linfa ou de pus. 58 O "eu" não é a gordura nem o suor do corpo; Os pulmões e o fígado também não o constituem. Os órgãos internos não são o "eu", Assim como os excrementos e a urina também não o são.

59 A pele e a carne não são o "eu", Tampouco o são o calor do corpo e a respiração. As cavidades da estrutura corporal não formam o "eu", E o "eu" não é encontrado entre as seis consciências. 60 Se a consciência auditiva é permanente, Segue-se que ela ouve o tempo todo. Se não há objeto, o que ela percebe? Por que razão você a chama de consciência? 61 Se algo que é inconsciente conhece, Segue-se que um pedaço de pau também tem conhecimento. Portanto, em não havendo algo a ser conhecido, Fica claro que a consciência não aparece. 62 Se a mesma consciência detecta uma forma, Por que, nesse momento, ela não ouve? Talvez você diga que o som não esteja mais lá. Então também não há mais a consciência auditiva. 63 Como pode algo que tem a natureza de um percebedor de som Transformar-se em um percebedor de formas? "Um único homem", você diz, "pode ser tanto pai quanto filho." Mas esses são meros nomes; a natureza dele não é assim. 64 Da mesma forma, "dor" , "neutralidade" e "prazer" Não são nem pai nem filho, E nós, por certo, jamais observamos Uma consciência da forma que percebesse o som. 65 "Mas, como um ator", você diz, "ela assume diferentes papéis e vê." Se for assim, essa consciência não é algo constante. E se o último modo de operação é ainda o primeiro, Isso é de fato "identidade" sem precedente. 66 "Mas suas diferentes modalidades", você afirma, "são bastante irreais."

Sendo assim, a essência dela cabe a você agora descrever. Você diz que se trata de um simples conhecer. Segue-se que todos os seres seriam uma só coisa. 67 Aquilo que tem mente e aquilo que não tem mente São, portanto, idênticos, pois ambos têm em comum o existir. Se os diferentes tipos de mente são todos irreais, Qual base comum pode existir para eles? 68 Algo desprovido de mente, nós mantemos, não pode ser o "eu", Pois a ausência de mente significa matéria, como um vaso. "Porém", diz você, "o ‘eu’ passa a ter consciência, quando unido à mente. Ora, isso refuta a natureza de inconsciência do "eu". 69 Se o "eu", ademais, é imutável, Que mudança a associação com a mente poderia nele produzir? E sobre a qualidade de "eu" poderíamos igualmente afirmar Ter o espaço vazio, inerte e desprovido de mente. 70 "Se o ‘eu’ não existe" você diz, "Não há um elo que conecte ações com resultados. Se, quando um ato é praticado, o agente deixa de existir, Quem haverá para colher o fruto do carma?" 71 A base do ato e a base do fruto não são a mesma, Em ambos, um "eu" carece de uma esfera em que agir. Isso é válido tanto para você como para nós. Que sentido faz ficarmos debatendo? 72 "Uma causa que coexiste com seu resultado" É algo bastante impossível de se ver. E somente no contexto de uma única corrente mental É que se pode dizer que aquele que age mais tarde colherá o fruto. 73 Os pensamentos que já se foram e aqueles que estão por vir não são o "eu"; Eles deixaram de existir ou ainda não passaram a existir. Seria, então, o pensamento que nasce agora o "eu"?

Nesse caso, ele se desfaria quando esse pensamento desaparecesse. 74 Por exemplo, podemos pegar uma bananeira: Fazer uma incisão em suas fibras, sem nada encontrar. De igual modo, a investigação analítica Não encontrará nenhum "eu" subjacente. 75 "Se os seres", você dirá, "são desprovidos de existência, Quem será o objeto da compaixão?" Comprometemo-nos para bem Daqueles que a ignorância imputa como existentes. 76 "Visto que os seres deixam de existir", você pergunta, "quem conquista o fruto?" É verdade! A aspiração é formulada em meio à ignorância. Porém, para que as dores possam ser totalmente vencidas, A meta que a ignorância concebe não deve ser enjeitada. 77 A fonte do sofrimento é o orgulho que diz "eu", Alimentado e incrementado pela falsa crença na noção de "pessoa". Para isso, talvez você diga não haver conserto, Mas a meditação sobre a não existência do "eu" constitui o caminho supremo. 78 O que chamamos de corpo não são os pés nem a canela; O corpo também não são as coxas nem os quadris. Ele não é a barriga, tampouco as costas; E pelo peito e braços o corpo não é formado. 79 O corpo não são as costelas nem as mãos, Nem as axilas, os ombros, os intestinos, nem as demais vísceras; Ele não é a cabeça nem a garganta. Então o que é o "corpo" em meio a tudo isso? 80 Se o "corpo" se espalhar, E coincidir com os seus membros, Suas partes estão, sem dúvida, presentes nas partes, Mas onde "corpo", em si, reside?

81 Se "corpo", único e inteiro, Está presente na mão e demais membros, Tantas partes quantas houver, a mão e todas as demais, Você encontrará uma quantidade igual de "corpos". 82 Se "corpo" não está dentro nem fora de suas partes, Como pode então residir em seus membros? E, visto que não é outro que não as suas partes, Como se pode dizer que ele existe? 83 Assim, não há nenhum "corpo". Devido à ilusão, É em relação à mão e a outras partes que é concebida a noção de "corpo", Igual a quando uma pilha de pedra é confundida com um homem Por causa da sua forma específica. 84 Enquanto as condições estiverem reunidas, O corpo parecerá ser um homem. Enquanto todas as partes estiverem igualmente presentes, Lá aparecerá um corpo. 85 Do mesmo modo, como é um conjunto de dedos, A mão em si não existe como tal. E o mesmo vale para os dedos, feitos de juntas, Sendo as juntas, também, compostas por muitas partes. 86 Essas partes, por sua vez, se subdividem em partículas, E as partículas se dividem segundo as direções. Esses fragmentos também não possuem partes sem partes; são como o espaço. Portanto, até mesmo as partículas não têm existência. 87 Todas as formas, portanto, são como um sonho, E quem a elas se apegaria, depois de assim investigar? O corpo, dessa maneira, é desprovido de existência; Portanto, o que é masculino e o que é feminino? 88 Se o sofrimento em si é verdadeiramente real,

Então por que a alegria não é inteiramente eliminada por ele? Se o prazer é real, então por que um sabor aprazível Não conforta e entretém um homem em agonia? 89 Se a sensação deixa de ser vivenciada Por ser suplantada por algo mais forte, Como pode "sensação" ser corretamente atribuída Àquilo que carece do caráter de ser sentido? 90 Talvez você diga que somente uma dor sutil permanece. Já que sua forma mais grosseira foi sobrepujada; Ou então é sentida como um "simples prazer". Porém aquilo que é sutil ainda permanece como si próprio. 91 Se, em razão da presença de seu oposto, O desconforto não se manifesta, Não seria alegar que é uma "sensação" Nada mais do que uma imputação mental? 92 Sendo assim, o antídoto É a meditação e a análise. A absorção que cresce nos campos da investigação É o alimento e o sustento dos iogues. 93 Se entre a faculdade sensorial e um objeto há espaço, como podem os dois termos manter contato? Se não há espaço, eles formam uma unidade E, portanto, o que é que pode manter contato com o quê? 94 Não pode haver a penetração de uma partícula por uma partícula, Pois são iguais, desprovidas de volume. Mas, se elas não se penetram, não se fundem; E, se não se fundem, não há encontro. 95 Como poderia alguém aceitar A afirmação de que algo sem partes pode manter contato? E cabe a você me mostrar, se é que já viu,

Contato ocorrendo entre duas coisas sem partes. 96 A consciência é imaterial E, assim sendo, não há de se falar em contato com ela. Uma combinação também é desprovida de realidade, Como foi por nós demonstrado. 97 Portanto, se não há encontro ou contato algum, De onde surgem as sensações? Que propósito há então em todos os nossos esforços; O que, de fato, atormenta o quê? 98 Dado não haver um sujeito das sensações, E dado que as sensações também são desprovidas de qualquer existência, Como o desejo não é detido Quando isso é claramente compreendido? 99 O que vemos e tudo que tocamos São material de sonhos e miragens. Se a sensação coincide com a consciência., Segue-se que a sensação não é vista. 100 Se um surge primeiro, e o outro, depois, O que ocorre é memória, não experiência direta. A sensação não percebe a si mesma, E, da mesma forma, tampouco é percebida por outra coisa. 101 O agente da sensação não tem existência real; Assim, as sensações, do mesmo modo, não existem. Que mal, portanto, pode ser causado A esse agregado desprovido de identidade? 102 A mente não reside dentro dos sentidos, Nem se localiza nas coisas externas, como a forma; Entre os dois, a mente não subsiste: Nem dentro, nem fora, nem em outra parte a mente pode ser encontrada.

103 Essa mente não está dentro do corpo, tampouco em qualquer outro lugar, Não se funde com o corpo, nem está dele separado: Algo assim não existe, nem mesmo minimamente. Os seres, por sua natureza, estão além do sofrimento. 104 Se a consciência precede o objeto conhecido, Em referência a que surge ela? Se a consciência surge simultaneamente com o seu objeto, Novamente, em referência a que surge ela? 105 Se a consciência vem depois de seu objeto, Uma vez mais, ela surge a partir de quê? Por isso, a origem de todos os fenômenos Está além do alcance do entendimento. 106 "Se é assim", diz você, "o relativo não existe, O que então será feito das duas verdades? Se o relativo deriva da mente dos seres, Como eles poderiam ir além de seus sofrimentos?" 107 Isso é apenas pensamento dos outros; Não é o que eu quero dizer com "relativo". Se pensamentos aparecem depois disso, o relativo ainda está lá; Se não, o relativo verdadeiramente cessou 108 A mente que analisa e o que é analisado São interligados, dependentes um do outro. É com base no consenso convencional Que todo exame é expresso. 109 "Porém, quando o processo de análise É, por sua vez, tomado como objeto do nosso exame, Essa investigação, também, pode ser analisada E, assim, chegamos a uma regressão infinita." 110 Quando os fenômenos são verdadeiramente analisados,

Não resta nenhuma base para análise. Quando o objeto é removido, o sujeito também cessa. A isso se chama nirvana. 111 Aqueles que dizem que "ambos são verdadeiros" Estão em má situação para sustentar sua posição. Se a consciência revela a verdade das coisas, Em que se baseia a existência da consciência? 112 Se os objetos do conhecimento demonstram que a consciência existe, O que, por sua vez, mostra que eles existem? Se ambos subsistem em razão de sua dependência recíproca, Ambos perdem, dessa maneira, sua existência verdadeira. 113 Se, sem um filho, um homem não pode ser pai. De onde então surgirá esse filho? Não há pai não havendo filho. Do mesmo modo, a mente e o objeto não têm existência verdadeira. 114 "A planta surge da semente", diz você, "E através disso a semente é deduzida. O mesmo acontece com a consciência que surge do objeto: Como pode ela deixar de demonstrar a existência do objeto?" 115 Uma consciência que é diversa da própria planta Deduz a existência da semente. Porém o que poderá demonstrar que existe a consciência Pela qual o objeto em si é estabelecido? 116 Na percepção cotidiana Há uma causa para tudo. Os diferentes componentes da flor de lótus Surgem de uma variedade de causas. 117 "Mas o que dá origem", pergunta você, "a tal diversidade de causas?" Uma variedade de causas ainda anterior, afirmamos. "E como", pergunta você, "as causas dão seus frutos?"

Pela força, respondemos nós, de causas precedentes. 118 Se Īshvara é considerado a causa dos seres, Cabe a você então definir para nós a natureza dele. Se com isso você simplesmente quer dizer "os elementos", Que necessidade há em nos esfalfarmos com polêmicas em torno de nomes? 119 Todavia, a terra e os demais elementos são múltiplos, Impermanentes, inertes, sem divindade. Pisoteados, são impuros, E, assim, não podem ser um deus onipotente. 120 A deidade não pode ser o espaço, inerte e improdutivo. Ele não pode ser o "eu", pois esse já refutamos. Ele é inconcebível, dizem. Então também o será sua criação. Há algum sentido, portanto, nesse tipo de proposição? 121 O que deseja ele criar? Ele fez o "eu" e todos os elementos? Mas não são o "eu" e os elementos e ele mesmo eternos? E a consciência, sabemos, nasce de seu objeto. 122 O prazer e a dor surgiram, desde sempre, do carma. Diga-nos então o que essa divindade produziu? E se não há um início na causa, Como pode haver inícios em seus frutos? 123 Por que as criaturas não são criadas constantemente, Já que Īshvara não depende de nada, exceto dele mesmo? E, se não há nada que ele não tenha feito, Que coisa resta da qual ele poderia depender? 124 Se Īshvara depende, a causa de tudo É o encontro de condições e não Īshvara. Quando essas se verificam, ele não pode deixar de criar; Quando estão ausentes, ele é impotente para criá-las.

125 Se um Deus Todo-Poderoso não tem intenção Mas ainda assim cria, uma outra coisa o força a fazê-lo. Se ele deseja criar, ele é impelido por seu desejo. Ainda que criador, como fica então sua onipotência? 126 Aqueles que consideram a permanência das partículas Já foram refutados anteriormente. São os Sāṃkhyas que julgam Ser a causa do mundo a prakṛiti permanente 127 "Prazer", "dor" e "neutralidade" São qualidades que, quando repousam Em equilíbrio, são denominadas "prakṛiti". O universo surge quando esse equilíbrio é perturbado. 128 Três naturezas em uma unidade é descabido; Portanto, prakṛiti não existe. Essas qualidades tampouco existem, Porque cada uma delas é, na verdade, três. 129 Se essas qualidades são desprovidas de existência, Uma coisa como o som fica completamente implausível. E tecidos e outros objetos destituídos de mente Não podem ser o assento de sensações como o prazer. 130 "Essas coisas, porém", diz você, "possuem a natureza da causa delas." Mas nós já não investigamos as "coisas"? Para você a causa é o "prazer" e outros que tais, Mas a partir do prazer tecidos nunca brotaram! 131 Antes, o prazer é produzido pelo tecido; Porém este não existe e, portanto, tampouco o prazer. Quanto à permanência do prazer e das outras sensações: Bem, eis aí algo que nunca foi observado. 132 Se o prazer e as outras sensações estão presentes de forma manifesta,

Por que não são constantemente percebidos? E, se você alega que eles assumem uma forma sutil, Como podem ser grosseiros e sutis ao mesmo tempo? 133 Se o estado grosseiro é abandonado e o sutil, assumido, Ambos estados, grosseiro e sutil, carecem de permanência. Então por que não aceitar que, desse modo, Todas as coisas têm o caráter da transitoriedade? 134 Se você diz que o aspecto grosseiro é ele próprio o prazer, É claro que o prazer em si é impermanente. Se você alega que o que não existe em sentido algum (Por não ter ontologia) não pode se manifestar, 135 Embora você tenha negado o nascimento das coisas Que anteriormente não existiam, é isso o que você está dizendo agora! E, se os resultados existem dentro de sua causa, Aqueles que ingerem alimento estão a consumir seus excrementos. 136 Da mesma maneira, com o dinheiro que gastariam com roupas, Deixem-nos comprar sementes de algodão para se vestir. "Mas", diz você, "o mundo é ignorante e cego." Visto que isso é ensinado por aqueles que conhecem a verdade, 137 Esse conhecimento deve estar presente nas pessoas mundanas também. E, se o possuem, por que não o veem? Se você afirma que o que a gente do mundo vê não tem validade, Isso significa que o que elas claramente veem é falso. 138 Você pergunta: "Se não há validade no conhecimento válido, Tudo o que ele avalia não é falso? A meditação sobre a vacuidade, realidade última, Torna-se, portanto, insustentável." 139 Se não há objeto de análise, Sua não existência não pode ser apreendida. Portanto, um objeto enganoso, seja de que espécie for,

Também terá uma não existência enganosa. 140 Assim, quando em um sonho uma criança morre, O estado mental que pensa que ela não mais existe Suplanta o pensamento de que ela ainda vive. Entretanto, ambos os pensamentos são igualmente enganosos. 141 Por conseguinte, como constatamos a partir dessa investigação, Não há nada que não tenha uma causa. E nada está a existir em suas próprias causas, Consideradas isoladamente ou em conjunto. 142 Não há nada que venha de outra parte, Nem que permaneça e tampouco que parta. Aquilo que a confusão considera verdade, Como pode ser isso, em qualquer sentido, diferente de uma miragem? 143 As coisas corporificadas por meio do encantamento de um mágico, E tudo aquilo que se manifesta por meio de suas causas: "De onde surgem?" cabe a nós indagar; E para onde vão cabe a nós examinar! 144 Aquilo que surge quando há uma reunião de circunstâncias E deixa de existir quando estas estão ausentes Não é real, é como uma imagem num espelho; Como lhe atribuir existência verdadeira? 145 Qual a necessidade uma causa Em algo que já é real? Mas então qual a necessidade de uma causa Em algo que não existe? 146 Mesmo por intermédio de cem milhões de causas Nenhuma transformação ocorre em coisas não existentes. Pois, nesse estado de "não coisa", como pode "coisa" vir a ocorrer? E em que as coisas não existentes poderiam se transformar?

147 Já que as coisas não podem existir quando são não existentes, Quando poderiam tais coisas existentes ocorrer? Pois, na medida que a entidade não surge, A não entidade em si não desaparece. 148 E, se a não entidade não é afastada, Não há oportunidade para a entidade se manifestar. A entidade não pode ser transformada em não entidade, Caso contrário teria uma natureza dupla. 149 Assim, não há entidade, E tampouco cessação da mesma. Portanto, os seres, todos, sem exceção, Não têm nascimento nem cessação. 150 Os seres errantes, assim, são semelhantes a um sonho, E também a uma bananeira, se você examinar bem. Na realidade última não há diferença alguma Entre os estados de sofrimento e os estados que estão além de todo sofrimento. 151 Com coisas vazias dessa forma, O que se tem a ganhar, o que, a perder? Quem haverá para me dispensar respeito e honrarias, E quem haverá para me desdenhar e insultar? 152 Prazer e dor: de onde vêm eles? E o que há capaz de me dar alegria e dor? Quando busco pela natureza última destes, Quem está a desejar, o que é desejado? 153 Examine agora este mundo de seres viventes: Quem há para nele perecer? O que está por vir, e o que já passou? E quem, na verdade, são parentes e amigos? 154 Possam os seres como eu discernir e apreender

Que todas as coisas têm a natureza do espaço! Porém aqueles que anseiam por felicidade e conforto, Por conta de desavenças ou divertimentos, 155 Ficam profundamente perturbados ou então esfuziantes de alegria. Eles sofrem, empenham-se, brigam entre si, Retalhando, apunhalando, ferindo-se uns aos outros: Vivem suas vidas mergulhados em malefícios e labutas. 156 De tempo em tempo, eles emergem nos estados de felicidade, Entregando-se a muitos prazeres. Porém, ao morrer, decaem e experimentam longos e intoleráveis Tormentos nos reinos de infortúnio. 157 Muitos são os precipícios e abismos da existência, Onde a verdade da vacuidade não é encontrada. É tudo contradição, tudo negação: A vacuidade neste mundo é algo muito diferente. 158 Aqui, adiante de qualquer descrição, Jaz um oceano sem fim de dores insuportáveis. A força é escassa, E a vida, breve e oscilante. 159 Todas as atividades destinam-se a sustentar a vida e a saúde, Aplacar a fome e o cansaço; O tempo é consumido pelo sono, por toda sorte de acidentes e ferimentos, E por amizades estéreis com pessoas infantis: 160 Assim, a vida passa rapidamente, sem significado. Discernimento verdadeiro: uma coisa rara. Como então encontrar os meios Para refrear as divagações fúteis da mente? 161 Além disso, as forças do mal trabalham e se esforçam Para nos lançar nos estados de desventura; Abundantes são os caminhos falsos, enganosos,

E é difícil dissiparmos as nossas dúvidas. 162 É difícil encontrar novamente este estado de liberdade, Ainda mais difícil, depararmo-nos com mestres iluminados, Difícil, sem dúvida, afastar a torrente das emoções negativas! Ai de nós! Nossos pesares vertem numa sucessão infindável! 163 Triste é, com efeito, o fato de os seres sencientes, Arrastados pela enxurrada de suas amargas dores, Por mais terrível e penosa que seja sua condição, Não perceberem o tanto que sofrem! 164 Eles são como os que se banham repetidas vezes E, depois, se queimam no fogo. Eles sofrem intensamente nesse processo, E, no entanto, lá ficam eles, alardeando sua felicidade. 165 Há ainda os que vivem e agem Como se a velhice e a morte a eles nunca chegarão. Mas primeiro são assassinados e sobrevém A queda atroz em direção aos estados desvalidos da existência. 166 Quando serei capaz de aplacar e extinguir O calor terrível que arde nas fogueiras do sofrimento Com as chuvas abundantes da minha bem-aventurança Que caem torrencialmente das minhas nuvens de mérito? 167 Tendo acumulado uma profusão de mérito, Com reverência mas sem um alvo conceitual, Quando poderei revelar a verdade da vacuidade Àqueles cuja ruína é a crença em uma existência real?

10. DEDICAÇÃO 1 Pela força de todas as virtudes por mim acumuladas Ao compor este livro, que descreve Como se entra no caminho do bodisatva, Possam todos os seres trilhar a via que leva ao estado búdico. 2 Em toda parte, possam os seres que experimentam Tormento no corpo e na mente Gozar, graças a meu mérito, De alegria e felicidade incomensuráveis. 3 Enquanto permanecerem no saṃsāra, Possa sua alegria nunca diminuir, E possam eles provar bem-aventurança inigualável, De forma constante e ininterrupta. 4 Em todas as esferas e cantos do universo, Em todos os estados infernais que possam existir, Possam os seres que lá permanecem Provar a sublime felicidade e paz de Sukhāvatī.111 5 Possam aqueles que vivem presos no frio gélido ser aquecidos. E das grandiosas nuvens de bodisatvas Possam jorrar torrentes sem fim Para refrescar aqueles que ardem no fogo dos infernos. 6 Possam as florestas cujas folhas são lâminas e espadas Transformarem-se em plácidos bosques e em clareiras aprazíveis. E possam surgir árvores dos milagres No lugar das árvores da colina Shālmali.112 7 Possam as valas dos infernos serem deleitantes, Com lagos perfumados pelo aroma da flor de lótus,

Embalados pelo canto de cisnes e gansos E outras aves aquáticas, tão prazerosos de se ouvir. 8 Possam as brasas ardentes transformarem-se em montes de joias, O chão ardente tornar-se um piso plano de cristal; As montanhas que esmagam, moradas sublimes, Templos de oferendas, vivendas dos budas. 9 Possa a chuva de armas, lava e pedras incandescentes, De agora em diante, tornar-se uma chuva de flores. Possam as batalhas de lâminas afiadas Transformarem-se em alegres batalhas de flores. 10 Possam aqueles mergulhados no escaldante Vaitaraṇī, Com a carne destruída, os ossos calcinados, brancos como o jasmim, Pela força do meu mérito, gozarem de formas divinas E do convívio com deusas nos riachos mansos de Mandākinī.113 11 "Que medo é esse", eles perguntarão, "que invade os servidores do Senhor da Morte, os sinistros abutres e corvos carniceiros? Que nobre força é essa que nos traz alegria e dissipa as trevas?" E, olhando para o céu, eles verão a forma radiante de Vajrapāṇi. Possam seus pecados ser cancelados pela alegria e possam se juntar a ele. 12 E, quando virem as torrentes de lava fervente dos infernos Extinguirem-se sob uma chuva de flores e de água perfumada, Imediatamente, repletos de êxtase, eles se perguntarão: "Como pode ser?" E assim aqueles que moram nos infernos contemplarão o Senhor que Segura o Lótus.114 13 "Amigos, descartem seus temores e cheguem logo aqui. Pois quem é esse que vem espantar todo pavor, esse jovem cintilante com o cabelo trançado, Esse bodisatva amoroso, salvador e protetor de todos os seres, Cujo poder alivia toda dor e concede alegria? 14 "Vejam, os cem deuses que depositam seus diademas diante de seus pés de lótus, A chuva de flores que cai sobre sua cabeça, os olhos úmidos de compaixão, O esplendor de sua casa, onde ressoa as louvações de mil deusas!"

Ao contemplar Mañjughoṣha, possam assim exclamar os seres lançados nos infernos. 15 E mais, quando, pelo efeito de minhas virtudes, Eles virem bodisatvas imaculados como Samantabhadra, As nuvens ditosas carregadas de chuva perfumada e refrescante, Que aqueles que padecem nos infernos venham a ter perfeita alegria. 16 Possam os animais ficar livres Do medo de serem atacados e devorados uns pelos outros. Possam os fantasmas famintos gozar de tanta felicidade Quanto aqueles que habitam o continente do norte.115 17 Possam eles se saciar e se satisfazer Com os fluxos de leite que jorram Das mãos do nobre Senhor Avalokita E, banhando-se neles, possam eles se refrescar e se revigorar. 18 Possam os cegos recuperar a visão, Possam os surdos começar a ouvir E possam as mulheres dar à luz Sem dor, como Māyādevī.116 19 Possam os desnudos agora ter o que vestir E todos os famintos ter o que comer. Possam aqueles atormentados pela sede receber Águas puras e bebidas deliciosas. 20 Possam os pobres e desvalidos encontrar riqueza; Os aflitos e os oprimidos pela dor, felicidade. Possa a confiança aliviar os que vivem em desespero E infundir-lhes constância genuína. 21 Possam todos os seres molestados por doenças Ser prontamente libertados de todo mal. Possam todas as enfermidades que afligem os seres Ser curadas e afastadas para sempre.

22 Possam aqueles que vivem apavorados não experimentar mais medo, E aqueles que vivem em cativeiro ser soltos. Possam os fracos encontrar força, E possam os seres, com bondade, ajudarem-se uns aos outros. 23 Possam os viajantes que seguem pelas estradas Encontrar felicidade onde quer que vão, E possam eles atingir, sem necessidade de esforço, As metas que os levaram a partir. 24 Possam aqueles que se lançam aos mares em barcos e navios Alcançar o porto pretendido, E possam eles chegar a salvo à terra firme Para reunirem-se alegremente com seus parentes e amigos. 25 Possam aqueles que se perderam e que perambulam em lugares selvagens Encontrar companheiros de viagem. E, ao abrigo da ameaça de ladrões e de feras, Possam eles seguir sem fadiga e ter uma jornada amena. 26 Possam as crianças e idosos, e todos os indefesos, Desnorteados em regiões desertas e assustadoras, Que adormecem alheios ao perigo que correm, Ser guardados por seres puros e celestiais. 27 Possam todos estar livres dos estados cativos E ser dotados de sabedoria, fé e amor. Com sustento e conduta perfeitos, Possam todos sempre ter a lembrança de vidas passadas. 28 Possam todos gozar de riqueza ilimitada, Tal qual o tesouro do espaço, E dela desfrutar de acordo com seus desejos, Sem sequer um traço de maldade ou hostilidade. 29 Possam os seres destituídos de esplendor

Tornarem-se magníficos e resplandecentes, E aqueles que sofrem com deformações Adquirir grande beleza e perfeição. 30 Possam todas as mulheres do mundo Alcançar a força da masculinidade.117 Possam os inferiores tornar-se excelentes, E os orgulhosos e soberbos desvencilhar-se de sua arrogância. 31 E, assim, por todo o mérito que conquistei, Possam todos os seres, sem nenhuma exceção, Abandonar toda conduta nefasta E abraçar o bem, agora e para todo o sempre. 32 Da boditchita possam eles nunca se separar, Engajando-se constantemente nos ações do bodisatva. E possam eles ser aceitos pelos budas como seus discípulos, E afastar-se de tudo o que seja obra dos demônios. 33 Possam esses seres, sem excluir nenhum, Desfrutar de longevidade sem igual, Vivendo sempre em meio ao contentamento, Sem nunca sequer ouvir a palavra "morte". 34 De todos os lados, nas dez direções, Possam se espalhar bosques de árvores que realizam desejos, Ressonantes com a doçura dos ensinamentos Proferidos pelos budas e por seus herdeiros, os bodisatvas. 35 Possa a terra ser segura em toda parte, Livre de rochedos, grotas e penhascos, Plana como a palma da mão E lisa como o lápis-lazúli. 36 E, para muitas congregações de discípulos, Possa uma profusão de bodisatvas Viver em todas as terras,

Adornando-as com toda excelência. 37 Possam todos os seres vivos, sem exceção, Constantemente ouvir o som do Darma A emanar do canto dos pássaros e do sussurro das árvores, Dos raios de luz e do próprio céu. 38 Possam eles sempre vir à presença dos budas E desfrutar da companhia dos filhos destes, os bodisatvas. Com nuvens de oferendas sem fim, Possam os mestres do mundo ser venerados. 39 Possam os espíritos benfazejos trazer as chuvas no tempo certo, Para que as colheitas sejam ricas e abundantes. Possam os príncipes governar segundo o Darma, E possa o mundo ser abençoado com toda a prosperidade. 40 Possam os remédios ser plenos de poder; Possam as palavras secretas de poder ser recitadas com êxito. Possam os espíritos do ar, que se alimentam de carne, Ser gentis, com a mente imbuída de piedade. 41 Que os seres jamais experimentem angústia, Que nunca fiquem doentes ou pratiquem o mal. Possam os seres vivos não ter medo, nem sofrer insultos, E possa a mente deles nunca experimentar a tristeza. 42 Em todos os templos e monastérios, Possam as leituras e recitações florescer em abundância. Possa a harmonia reinar no seio da saṅgha, E possam seus propósitos ser realizados. 43 Possam os monges ordenados, voltados para a prática, Encontrar locais perfeitos para se recolherem em solidão. Abandonando todos os pensamentos errantes, Possam eles meditar com a mente flexível e bem treinada.

44 Possam as monjas ter todas as suas necessidades atendidas; Possam desavenças e o rancor ser estranhos a elas. Possam todos aqueles que abraçaram a vida monástica Observar as regras de conduta de forma pura e intacta. 45 Possam os que quebram a disciplina sentir arrependimento, E sempre se empenhar para purificar suas faltas. Possam eles conquistar um renascimento bem afortunado, Em condições que lhes permitam manter disciplina impecável. 46 Possam os sábios e os doutos ser reverenciados E sempre ser sustentados por oferendas. Que eles tenham uma mente pura, E que sua reputação se espalhe por toda parte. 47 Possam os seres nunca padecer nos reinos inferiores; Possam as dores e tribulações ser deles desconhecidas. Com corpos superiores aos dos deuses, Possam eles, sem demora, alcançar a iluminação. 48 Por vezes sem conta, possam os seres sencientes Fazer oferendas a todos os budas. E, com a inconcebível bem-aventurança de Buda, Possam eles gozar de felicidade constante e desobscurecida. 49 Possam todos os bodisatvas agora cumprir Suas elevadas intenções em benefício dos seres, E possam os seres sencientes, também agora, receber Todo o bem que os guardiões lhes reservaram. 50 Possam os Discípulos e os pratyekabuddhas118 Alcançar felicidade perfeita. 51 E possa eu também, pela bondade de Mañjushrī, Chegar à terra da Perfeita Alegria.119 Possa eu lembrar todas as minhas vidas e

Receber ordenação monástica. 52 Assim, possa eu viver sustentado Por alimento simples e frugal. E, em todas as minhas vidas, possa eu Encontrar uma morada em meio à perfeita solidão. 53 Sempre que eu quiser fitá-lo Ou fazer-lhe uma pergunta, mínima que seja, Possa eu ver com visão desobstruída Meu protetor Mañjughoṣha. 54 A fim de satisfazer as necessidades dos seres Que habitam nas dez direções até os confins do firmamento, Possa eu refletir, em todas as minhas ações, Os feitos perfeitos de Mañjushrī. 55 Enquanto houver o espaço, Enquanto houver os seres sencientes, Possa eu também permanecer Para afastar as dores do mundo. 56 Possam as dores e os pesares de todos os seres errantes Amadurecer integralmente sobre mim. E possa a companhia virtuosa dos bodisatvas Propiciar felicidade a todos os seres. 57 Possa a Doutrina, a única cura para o sofrimento, A fonte de toda bem-aventurança e felicidade, Ser abençoada com prosperidade e mantida com veneração, E que ela perdure por muito tempo! 58 E agora prostro-me diante de Mañjughoṣha, Cuja bondade é a fonte das minhas boas intenções. E também me curvo diante de meus amigos virtuosos, Cuja inspiração me dá forças para crescer.



O texto foi traduzido, editado e finalizado em tibetano pelo erudito indiano Sarvajñādeva e pelo monge, tradutor e editor Kawa Peltsek, com base em um manuscrito da Caxemira. Posteriormente, essa edição foi revisada e finalizada pelo erudito indiano Dharmashrībhadra e pelos monges tibetanos, tradutores e editores, Rinchen Zangpo e Shākya Lodro, de acordo com a versão de Magadha e com o comentário desta. Depois, o texto foi novamente revisado e finalizado pelo erudito indiano Sumatikīrti e o monge, tradutor e editor Ngok Loden Sherab.120



Apêndice 1 - Biografia de Shāntideva Em termos gerais, nossas principais fontes sobre a biografia de Shāntideva são os historiadores tibetanos Butön121 e Jetsun Tāranātha.122 Além dessas, um pequeno relato (aparentemente uma combinação e versão condensada dos textos de Butön e Tāranātha) pode ser encontrado nos escritos do erudito tibetano do século XVIII Yeshe Peljor,123 e estudos mais recentes trouxeram à luz uma curta biografia de Shāntideva em sânscrito, preservada em um manuscrito nepalês do século XIV.124 O relato que se segue foi extraído de The nectar of Mañjushrī’s speech [O Néctar da fala de Mañjushrī], um comentário sobre O caminho do bodisatva, composto por Kunzang Pelden, que seguiu Butön rigorosamente, preferindo-o a Tāranātha, cujo relato, no entanto, ele também deve ter conhecido.125 O autor do Bodhicharyāvatāra foi o mestre douto e nobre bodisatva Shāntideva, que possuía, na medida perfeita, as três qualificações necessárias à composição de shāstras.126 Sua vida foi marcada por sete acontecimentos extraordinários e, em especial, pelo fato de ter sido aceito e abençoado por sua deidade yidam suprema, o venerável Mañjughoṣha. Os sete acontecimentos extraordinários foram: Agradar sua deidade yidam suprema, As ações perfeitas em Nālandā127 A resolução de um conflito e tomar como discípulos aqueles que tinham opiniões adversas, Como também mendigos, incrédulos e um rei. O grande Shāntideva nasceu na região sul de Saurāṣhṭra.128 Ele era filho do rei Kalyāṇavarman e chamava-se Shāntivarman. Desde a tenra juventude foi devoto aos budas de eras anteriores e, tendo uma afinidade natural pelo Mahāyāna, nutriu grande respeito pelos professores da religião e pela ordem monástica. Ele foi um benfeitor para todos, tanto para mestres quanto para servos e cuidou com especial atenção dos humildes, doentes e destituídos. Com o coração voltado tão somente para os caminhos da iluminação, ele se tornou exímio em todas as artes e ciências. Em particular, solicitou a um certo mendicante asceta a transmissão da Tīkṣhṇamañjushrī-sādhana,129 praticou essa sādhana e teve uma visão da deidade yidam. Quando finalmente seu pai, o rei, morreu, foi decidido que o poder real deveria ser investido em Shāntivarman, e um grande trono feito de substâncias preciosas foi devidamente preparado. Porém, em seus sonhos, naquela noite, o príncipe viu Mañjughoṣha sentado no mesmo trono ao qual deveria ascender no dia seguinte. Mañjughoṣha dirigiu-se a ele e disse: Meu amado e único filho, este é o meu trono, E eu, Mañjushrī, sou seu guia espiritual. Não seria correto você e eu ocuparmos Uma posição igual e sentarmos em um mesmo assento.

Com isso, Shāntivarman acordou de seu sonho e entendeu que seria um erro assumir o reinado. Sem desejo algum pela enorme riqueza do reino, partiu e ingressou no glorioso monastério de Nālandā, onde foi ordenado por Jayadeva, o chefe dos quinhentos paṇḍitas da instituição, adotando a partir de então o nome de Shāntideva.130 Com relação à sua vida espiritual interna, recebeu ensinamentos de todo o Tripitaka do Ser Nobre (Mañjushrī). Meditou sobre esses ensinamentos e condensou seus preciosos conteúdos em dois shāstras: O compêndio de todas as disciplinas (Shikṣhāsamucchaya) e O compêndio dos sutras (Sūtrasamucchaya). No entanto, embora tenha adquirido grande maestria nas infinitas qualidades da eliminação e da realização,131 os outros monges não tinham ideia disso, e, uma vez que externamente seu comportamento parecia se limitar às atividades de comer (bhuj), dormir (sup) e andar à toa (kuṭīṃ gata), eles o apelidaram de Bhusuku. Tal era o julgamento que faziam da conduta externa de Shāntideva. "Esse homem", reclamavam, "não faz nenhuma das três obrigações132 que os monges deste monastério devem fazer. Ele não tem nenhum direito de desfrutar dos alimentos e doações oferecidos à saṅgha por tradição religiosa. Devemos expulsá-lo!" O plano deles era estabelecer um revezamento para apresentar as escrituras para que, quando a vez de Shāntideva chegasse, ele ficasse constrangido e fugisse. Repetidamente pediram a Shāntideva que pregasse, mas à cada vez ele se recusava, afirmando ser completamente ignorante. Os monges decidiram, por conseguinte, pedir ao abade que interviesse. O abade o fez, e imediatamente Shāntideva prometeu dar um ensinamento. Diante disso, alguns dos monges começaram a ficar apreensivos, sem entender. A fim de testar Shāntideva, eles dispuseram muitas oferendas no chão do lado de fora do monastério. Convidaram um grande número de pessoas e ergueram um trono de leões excepcionalmente alto em meio à congregação. Mandaram buscar Shāntideva. Porém, ao repentinamente avistá-lo no alto do trono, a maioria dos monges ficou totalmente perplexa, sem ter a menor ideia de como ele havia conseguido chegar lá. "Vocês gostariam que eu recitasse algum ensinamento muito conhecido de Buda?", perguntou Shāntideva. "Ou vocês preferem algo que nunca escutaram antes?" Todos ficaram pasmos. "Por favor, nos ensine algo completamente novo", eles disseram. O Shikṣhāsamucchaya é muito longo, o Sūtrasamucchaya, por outro lado, é muito curto. Shāntideva decidiu, portanto, apresentar o Bodhicharyāvatāra, que, embora seja vasto em significado, é bastante conciso. O nobre Mañjushrī apareceu, sentado no céu, e muitos o viram e sentiram profunda fé. Ainda mais impressionante foi quando Shāntideva chegou ao início da estrofe 34 do nono capítulo, "Quando ambos, algo e sua inexistência, deixam de aparecer diante da mente...". Nesse momento, ele e Mañjushrī começaram a ascender cada vez mais alto no céu até que, por fim, desaparecerem. A voz de Shāntideva, no entanto, continuou a ressoar para que a transmissão fosse dada por completo. Aqueles na assembléia que possuíam uma memória fora do comum escreveram o ensinamento como o lembravam, porém produziram textos de vários tamanhos: alguns com setecentas estrofes, alguns com mil e outros com um número ainda maior. Os paṇḍitas da Caxemira produziram um

texto de setecentas estrofes em nove capítulos, enquanto os paṇḍitas da região central da Índia (Magadha) chegaram a um texto de mil estrofes em dez capítulos. Desacordo e incerteza reinaram. Além disso, eles não conheciam os textos aos quais Shāntideva se referia quando mencionou que o Shikṣhāsamucchaya deveria ser lido com frequência, e o mais curto, o Sūtrasamucchaya,133 consultado ocasionalmente. Soube-se, depois, que Shāntideva estava morando no sul, na estupa Shrīdakṣhiṇa.134 Dois dos paṇḍitas que tinham poderes supranormais de memória foram vê-lo com a intenção de trazê-lo de volta. Quando o encontraram, porém, ficou claro que o retomo a Nālandā seria inconveniente a Shāntideva. No entanto, em resposta às suas perguntas, Shāntideva afirmou que a versão correta correspondia à que os eruditos de Magadha haviam produzido. No que se refere ao Shikṣhāsamucchaya e ao Sūtrasamucchaya, ele disse que eles encontrariam ambos os textos, escritos em refinada caligrafia, escondidos na viga do telhado de sua cela monástica em Nālandā. Ele então ensinou os dois paṇḍitas, dando a eles explicações e a transmissão dos textos. Shāntideva mais tarde viajou para o leste, onde, com uma demonstração de poderes miraculosos, resolveu uma séria controvérsia, harmonizando as partes em disputa e criando uma atmosfera de satisfação geral. Ele também aceitou como discípulos um grupo de quinhentas pessoas, que defendiam estranhas opiniões não budistas e viviam não muito longe de Magadha. Um grande desastre natural havia acontecido, e essas pessoas estavam passando fome. Elas disseram a Shāntideva que, se ele as salvasse, elas respeitariam seus ensinamentos. O mestre pegou sua tigela de pedir esmolas onde havia arroz cozido que ele havia recebido como oferenda e, após abençoá-lo em concentração profunda, alimentou e satisfez todos. Desviando-os de superstições grosseiras, Shāntideva os introduziu à doutrina de Buda. Algum tempo após estes acontecimentos, durante um outro período terrível de fome, ele restaurou a vida e a saúde de pelo menos mil mendigos que estavam emaciados e morriam de inanição. Mais tarde, Shāntideva tornou-se guarda-costas do rei Arivishana, que estava sendo ameaçado por Machala, no leste (isto é, Magadha).135 Meditando sobre a inseparabilidade entre ele mesmo e Mañjughoṣha, Shāntideva imbuiu uma espada de madeira com tamanho poder de Darma que, armado dessa forma, ele era capaz de vencer todo e qualquer ataque. Ele criou tamanha harmonia que se tornou objeto de respeito universal. Alguns, no entanto, começaram a invejá-lo cada vez mais e acabaram por protestar junto ao rei. "Esse homem é um impostor!", vociferaram. "Exigimos uma investigação. Como é possível que ele o tenha defendido? Ele não tem outra arma senão uma espada de madeira!" O rei ficou enfurecido e as armas foram examinadas uma a uma. Quando Shāntideva foi ordenado a desembainhar sua espada, ele retrucou que isso seria um erro, pois, se assim o fizesse, acabaria por ferir o rei.

"Mesmo que ela me fira", disse o rei, "desembainhe-na!" Os dois foram para um lugar solitário. Shāntideva pediu ao rei que cobrisse um de seus olhos com a mão e observasse com o outro. Assim, a espada foi retirada. Seu brilho era tão intenso que o olho do rei pulou da órbita e caiu no chão. O rei e sua escolta ficaram aterrorizados e imploraram a Shāntideva que os perdoasse, requisitando também refúgio. Shāntideva colocou o olho de volta na órbita e, por meio de suas bênçãos, a visão do rei foi restaurada sem dores. O país inteiro foi inspirado pela fé e abraçou o Darma. Mais tarde, Shāntideva viajou para Shrīparvata, no sul. Lá ele adotou o estilo de vida dos mendicantes nus de Ucchuṣhma e sustentava-se com a água descartada após ser usada para lavar pratos e panelas. Kachalahā, uma criada do rei de Khatavihāra, percebeu certa vez que qualquer porção da água que caísse sobre Shāntideva era como se tivesse caído sobre ferro em brasa: sibilava e fervia. Nessa ocasião, um mestre hindu chamado Shaṅkaradeva lançou ao rei o seguinte desafio: ele disse que desenharia a mandala de Maheshvara no céu e que, se os mestres budistas se mostrassem incapazes de destruí-la, todas as imagens e escritos budistas seriam jogados às chamas e todos seriam obrigados a aceitar os princípios de sua religião. O rei convocou os representantes da saṅgha budista e informou-lhes sobre o desafio. Porém ninguém foi capaz de se encarregar de destruir a mandala. O rei ficou profundamente perturbado, mas, quando a criada lhe contou o que havia visto, ele ordenou que Shāntideva fosse convocado. Procuraram-no por toda a parte e finalmente encontraram-no sentado embaixo de uma árvore. Quando lhe explicaram a situação, Shāntideva anunciou que estaria apto a aceitar o desafio, mas precisaria de um jarro cheio de água, duas peças de tecido e fogo. Tudo foi preparado de acordo com suas instruções. Na noite do dia seguinte, o iogue hindu desenhou algumas linhas no céu e partiu. Todos começaram a ficar apreensivos. No entanto, no início da manhã seguinte, enquanto a mandala estava sendo desenhada, antes do portão leste ser finalizado, Shāntideva entrou em concentração profunda. Imediatamente um enorme furacão se formou. A mandala foi varrida para o vazio; as colheitas, as árvores e mesmo as vilas ficaram à beira da destruição. As pessoas se dispersaram, o professor hindu foi pego pelo vento como um pequeno pássaro e varrido para longe, e uma grande escuridão caiu sobre a terra. Porém da fronte de Shāntideva brilhou uma luz que mostrava o caminho ao rei e à rainha. Eles haviam sido despidos de suas vestes e estavam cobertos de poeira. Então, com o fogo Shāntideva os aqueceu, com a água os lavou e com o tecido os vestiu e confortou. Quando, pelo poder de sua concentração, o povo foi reunido, lavado, ungido, vestido e tranquilizado, Shāntideva introduziu muitos deles ao ensinamento de Buda. Ele fez com que lugares de idolatria pagã fossem demolidos e centros de ensinamentos budistas florescessem, disseminassem e permanecessem por muito tempo. Como consequência, o país ficou conhecido como o lugar onde os não budistas foram derrotados.

NOTA HISTÓRICA Em seu Tattvasiddhi,136 Shāntarakṣhita, o célebre mestre indiano convidado a visitar o Tibete pelo rei Trisong Detsen, cita uma estrofe inteira do Bodhicharyāvatāra (1:10). Isso mostra que Shāntideva já devia ser bem conhecido antes de 763, quando Shāntarakṣhita visitou o Tibete pela primeira vez. Desse modo, nós temos uma data final. Uma data inicial é fornecida por I-Tsing, peregrino chinês do século VII, que compilou uma exaustiva lista de todos os mestres Madhyamaka mais importantes de sua época. Ele não menciona Shāntideva (ou Jayadeva), indicando assim que o autor do Bodhicharyāvatāra ainda não havia nascido, ou pelo menos ainda não era conhecido por volta de 685, ano em que I-Tsing voltou à China. Assim, podemos afirmar com um bom grau de certeza que Shāntideva floresceu durante a primeira metade do século VIII. É interessante lembrar também que não apenas o Bodhicharyāvatāra foi amplamente aclamado na Índia (Butön sustenta que mais de cem comentários sobre esse texto foram compostos só em sânscrito),137 mas foi também quase imediatamente traduzido para o tibetano por Kawa Peltsek.138 Tais circunstâncias são, por si só, impressionantes e indicam a velocidade com que o Bodhicharyāvatāra se estabeleceu como um texto de grande importância. Devemos ter em mente que, como Shāntideva, Shāntarakṣhita também era proveniente do monastério de Nālandā, e podemos assim justificadamente especular que ele via o trabalho de seu ilustre colega como um instrumento precioso para a divulgação do budismo Mahāyāna no Tibete. Além disso, a proximidade histórica entre o mestre indiano e seu tradutor tibetano torna muito plausível que detalhes precisos da vida de Shāntideva tenham sido integrados à tradição tibetana. É certo que Butön escrevia com uma distância de quatro séculos, e seu relato é breve e hagiográfico, mas ele deve ter tido suas fontes. E, se estas derivam dos antigos registros tibetanos, é ao menos razoável concluir que os pormenores que constam na sua biografia de Shāntideva não devem ser tão fantasiosos como estudos modernos tendem a supor. De qualquer forma, alguns fatos incontestáveis emergem e são confirmados por outras fontes. Sabemos que Shāntideva foi monge durante pelo menos parte de sua vida e certamente o era quando compôs o Bodhicharyāvatāra. Não existe razão para duvidar de que ele foi ordenado em Nālandā, o principal reduto da filosofia Madhyamaka. Sabemos também que ele compôs três trabalhos: sua obraprima, o Bodhicharyāvatāra, o Shikṣhāsamucchaya e o Sūtrasamucchaya.139 A trajetória tântrica de Shāntideva também deve ser levada em conta. Indubitavelmente, não existe traços de ensinamentos tântricos tanto no Bodhicharyāvatāra quanto no Shikṣhāsamucchaya, porém, a essência do relato tradicional, que certamente é digno de credibilidade, tende a atribuir a Shāntideva vários textos tântricos traduzidos para o tibetano e preservados no Tengyur.



Apêndice 2 - A igualdade do "eu" e "outro" O trecho a seguir foi extraído de The nectar of Mañjushrī’s speech [O néctar da fala de Mañjushrī], de autoria de Khenchen Kunzang Pelden, e explica as estrofes 90 a 98 do Capítulo 8, fornecendo uma base metafísica para a meditação sobre a igualdade de "eu" e "outro" e, consequentemente, toda a prática da compaixão segundo o budismo Mahāyāna. Ao mesmo tempo, o texto esclarece de forma interessante os ensinamentos sobre reencarnação e carma (temas frequentemente mal compreendidos) e mostra como eles estão de acordo com a visão de que nem as pessoas ou as coisas possuem uma essência que seja sólida e imutável. (90) Duas coisas devem ser praticadas no nível da boditchita relativa: a meditação sobre a igualdade de "eu" e "outro", e a meditação sobre a inversão de papéis entre "eu" e "outro". Sem praticar a primeira, a última é impossível. É por isso que Shāntideva diz que devemos, antes de mais nada, meditar persistentemente sobre a igualdade de "eu" e "outro", pois sem esta uma atitude altruísta perfeitamente pura não pode emergir. Todos os seres, inclusive nós mesmos, têm o mesmo propósito de querer ser feliz e de evitar o sofrimento. Por essa razão, devemos vigorosamente colocar em prática modos de desenvolver a intenção de proteger os outros tanto quanto nós mesmos, gerando felicidade e eliminando sofrimento. Podemos pensar que isso é impossível, mas não é. Todos os seres pensam em termos de "eu" e "meu", muito embora não possuam fundamentos definitivos para isso. É a partir desse tipo de entendimento que eles concebem a ideia de "outro", imprimindo-lhe a conotação de algo alheio — embora essa ideia também não seja fundamentada na realidade. Além de serem meras imputações mentais, "eu" e "outro" são totalmente irreais. São ambos ilusórios. Adicionalmente, quando a não existência de "eu" é de fato percebida, a noção de "outro" também desaparece, pela simples razão de que "outro" é apenas postulado em relação à ideia de "eu". Assim como não é possível cortar o céu ao meio com uma faca, quando a qualidade — vasta como o espaço — da inexistência de "eu" é percebida, não é mais possível separar "eu" de "outro", e surge a atitude de querer proteger os outros como a si mesmo e de considerá-los como sendo si mesmo. Como é dito: "Aquele que abandona a percepção habitual e trivial de ‘eu’ descobrirá o significa do profundo do Grande Estado de Eu".140 Dessa maneira, é essencial à compreensão da igualdade de "eu" e "outro" que se entenda que "eu" e "outro" são meramente rótulos sem base alguma na realidade. Esse ponto vital sobre a inexistência do "eu" é difícil de entender, difícil até mesmo para uma pessoa com alto nível de inteligência. Desse modo, como diz o ensinamento, é de grande importância que o conceito de inexistência do "eu" seja claramente demonstrado e assimilado. (91) Deve-se refletir sobre a igualdade da seguinte maneira: somos capazes de distinguir as diversas partes do corpo, mãos, pés, cabeça, órgãos internos e assim por diante. Entretanto, em um momento de perigo, protegemos todas as partes, não queremos que nenhuma delas seja ferida, pois consideramos que todas elas formam um corpo único. Pensamos "Este é meu corpo", nos apegamos a ele e o protegemos como um todo, acreditando que ele seja uma entidade única. Da mesma forma,

todo o agregado de seres nos seis reinos, que nas suas diversas alegrias e tristezas são como nós em querer a felicidade e não querer o sofrimento, deveria ser identificado como uma única entidade, o nosso "eu". Deveríamos protegê-los do sofrimento da mesma forma que protegemos nós mesmos agora. Suponha que perguntássemos a uma pessoa quantos corpos ela tem. "Do que você está falando?, ela responderia. "Não tenho outro corpo que não este!" "Bem", podemos continuar "existem muitos corpos dos quais você deve cuidar?" "De fato não!", seria a resposta. "Cuido apenas deste meu corpo." Isso é o que ela pode dizer, mas o fato é que, quando ela fala sobre o "corpo dela", ela está simplesmente atribuindo um nome a uma coleção de itens diferentes. A palavra corpo de forma alguma se refere a um todo indivisível. Em outras palavras, não há razão para que o nome corpo seja afixado aqui (a esses itens) e não há razão para considerar errado afixá-lo a outro lugar. A palavra corpo é atada, sem uma justificativa última, àquilo que é meramente uma pilha de itens que o compõem. É a mente que diz "meu corpo", e é baseada nessa ideia de uma entidade única que é possível imputar as noções de "eu", "meu" e todo o resto. Afirmar, desse modo, que seria razoável atribuir "eu" a "esse agregado" e não atribuir "eu" a "outro agregado" é algo sem fundamento. Consequentemente, é ensinado que o nome "eu" pode ser aplicado a toda coleção de seres sofredores. É possível que a mente pense "eles são eu". E se, tendo os identificado dessa forma, ela se habitua a tal orientação, a ideia de "eu" em relação a outros seres realmente surgirá, resultando no fato de que nos importaremos com eles da mesma maneira que nos importamos com nós mesmos agora. (92) Mas como esse tipo de atitude afloraria, considerando que os outros não sentem minhas dores e eu não sinto as deles? O sentido do texto-raiz deve ser interpretado da seguinte maneira: enquanto esses meus sofrimentos não afetam os corpos de outros seres sencientes, eles são, no entanto, os sofrimentos do meu "eu". São insuportáveis para mim porque me apego a eles como sendo meus. (93) Embora as dores dos outros não caiam sobre mim de fato, por ser eu um bodisatva e por considerar que os outros são indistintos de mim, as dores deles são minhas também e, dessa forma, são insuportáveis para mim. Quando o sofrimento me aflige, por que a dor atinge apenas a mim, deixando os outros incólumes? Na minha atual encarnação, da mesma forma que desde um tempo sem princípio até agora, minha mente entrou em meio às substâncias geradoras dos meus pais no momento em que elas se juntaram. Subsequentemente, veio a existir o que agora identifico como "meu corpo". E é precisamente porque eu me aproprio dele como sendo "eu" que eu não tolero que ele seja machucado. Entretanto, no sofrimento em si, não há separação entre "meu sofrimento" e "sofrimento do outro". Assim, apesar da dor do outro não estar na verdade me afligindo agora, se esse outro for identificado como "eu" ou "meu", o seu sofrimento também se tornará insuportável para mim.141 Maitriyogin, o discípulo do Senhor Atīsha, sentiu de fato o sofrimento alheio como sendo seu próprio sofrimento.142 Essa foi a experiência de alguém que alcançou os níveis de realização de um bodisatva. Entretanto, mesmo no nível das pessoas comuns, podemos recorrer ao exemplo de uma mãe que preferiria morrer do que deixar seu bebê ficar doente. O sofrimento da criança lhe é verdadeiramente insuportável porque ela se identifica com seu bebê. Outras pessoas que não se identificam com a criança não são, por essa mesma razão, afetadas por seu sofrimento. Se elas se identificassem com o bebê, o sofrimento da criança seria intolerável para elas também.

Além disso, não é necessário um longo período de adaptação para que esse tipo de experiência ocorra. Considere o exemplo de um cavalo posto à venda. Até o momento em que o negócio é fechado, se cavalo não tiver capim ou água, ou se ele estiver doente ou, ainda, se sofrer qualquer outro tipo de desconforto, todos esses fatores serão insuportáveis para o dono do cavalo e, ao mesmo tempo, não terá efeito algum para o cliente. Tão logo a transação seja consumada, no entanto, será a vez do comprador não suportar o sofrimento do cavalo, enquanto que o vendedor ficará completamente indiferente. No que concerne ao cavalo, é claro, não existe nenhum fundamento para distinção entre o "cavalo do comprador" e o "cavalo do vendedor". O cavalo é identificado como sendo deste ou daquele homem apenas de acordo com a maneira que é rotulado pelo pensamento. Do mesmo modo, não existe a menor razão para se dizer que a noção de "eu" deva ser aplicada a mim e não a um outro. "Eu" e "outro" são nada mais do que uma simples rotulação conceituai. O meu "eu" é "outro" para outra pessoa, e o que é "outro" para mim é "eu" para o outro. As noções de "aqui" e "lá" são simples pontos de vista construídos pela mente, um dependente do outro. Não existe um "aqui" absoluto ou um "ali" absoluto. De forma semelhante, não existe um "eu" ou um "outro" no sentido absoluto. É uma mera questão de imputação. Assim, em relação a esse ponto crucial, o Darma ensina que, quando o "eu" é atribuído aos outros, especificamente aos seres sencientes, a atitude de aceitá-los e tomá-los como sendo você mesmo surgirá naturalmente. Sendo assim, os budas e os bodisatvas identificam-se de tal modo com os seres sencientes que mesmo a menor dor sentida por outros é para eles como se seu corpo inteiro estivesse em chamas. E eles não têm a menor hesitação em assim fazer, exatamente como quando Buda tomou para si a dor do cisne abatido por Devadatta com uma flecha.143 De forma semelhante, Machig 144 afirmou que, séculos após sua morte, praticantes degenerados de chöd subjugariam, com métodos violentos, deuses da prosperidade, fantasmas e demônios, seres que ela havia apanhado com o gancho de sua compaixão, o que significa que ela realmente estimava esses deuses e espíritos. Como já mencionamos, tomar os seres sencientes por si mesmo não requer um treino longo. Por exemplo, se você disser a alguém que lhe dará um cavalo velho, tão logo as palavras saiam de sua boca, a pessoa já terá se apropriado do cavalo e não suportará se o animal estiver sofrendo. Ainda assim, pode-se pensar que, pelo fato de alguém ter tais maus hábitos mentais, o pensamento de pensar no outro como sendo si mesmo nunca aflorará. O Senhor Buda, porém, disse que em todo o mundo ele nunca viu nada mais fácil de ser educado do que a mente em si, desde que ela seja colocada no caminho certo e que sejam tomadas medidas para subjugá-la.Por outro lado, ele também disse que não existe nada mais difícil de ser governado do que uma mente não treinada. Assim, se impedirmos que a mente tome um caminho errado e procurarmos treiná-la, é perfeitamente possível torná-la submissa. No entanto, se a mente não for subjugada, nos será impossível superar qualquer outra coisa. É por isso que os textos dizem que devemos nos esforçar para subjugar a mente. (94) A justificativa de Shāntideva para a necessidade de se eliminar o sofrimento foi apresentada na forma de um argumento probatório.145 Sua tese é que ele eliminará todos os sofrimentos dos outros, sofrimentos que não trarão a eles um benefício absoluto. Seu argumento é que o sofrimento deles não lhes traz nenhum bem e, para exemplificar, ele diz que os removerá como ele remove seu próprio desconforto com a fome, a sede etc. Shāntideva ainda afirma que beneficiará outros seres e

os fará felizes porque eles são seres vivos e, uma vez mais, para exemplificar, ele fará isso da mesma forma que ele se dedica ao conforto do próprio corpo. (95) Afinal, uma vez que não existe a menor diferença entre nós mesmos e os outros (no sentido de que todos querem ser felizes), que razão haveria para não trabalhar pela felicidade dos outros? Não faz sentido trabalharmos apenas em prol de nossos interesses. (96) Da mesma forma, não existe a menor diferença entre nós mesmos e os outros, no sentido de que ninguém quer experienciar o sofrimento. Portanto, qual a razão para não proteger os outros do sofrimento? Não faz sentido se empenhar em proteger apenas a si mesmo. (97) Suponha que alguém argumentasse da seguinte forma: "Sim, sou afetado por meus próprios sofrimentos e por isso tenho que me proteger". Mas os sofrimentos maiores e óbvios (desde os sofrimentos da próxima vida nos reinos dos infernos até as dores que sentiremos amanhã ou no próximo mês), ou os tipos mais sutis de sofrimento que ocorrem momento a momento, todos os desconfortos, sejam eles pequenos ou grandes, devido à falta de comida, roupas ou o que quer que seja, estão localizados no futuro. Não estão de fato nos prejudicando no momento presente. Se essas dores futuras não estão nos atormentando agora, do que temos que nos proteger? É ilógico fazer isso. (98) Mas podemos pensar que esses sofrimentos não são os mesmos sofrimentos dos outros seres. Pois mesmo que tais sofrimentos não estejam nos afetando agora, nós nos protegemos porque os experienciaremos no futuro. Mas se apegar, no nível grosseiro, aos agregados desta e da próxima vida como se constituíssem uma entidade única, e se apegar também, no nível sutil, aos agregados de um instante e do instante seguinte como sendo a mesma coisa, isso nada mais é do que uma concepção errônea. Quando refletimos sobre a nossa vida atual e a futura sob a luz de tais argumentos, podemos ver que a entidade que morre e deixa esta vida não é mesma que nasce na próxima existência. De modo inverso, aquilo que nasce na próxima vida, onde quer que seja, não é o mesmo que se extinguiu na existência precedente. O tempo vivido no mundo humano é o resultado do carma passado. Quando esse carma for exaurido e o momento final da consciência humana terminar, ele criará a causa imediata (para uma nova vida), ao passo que o carma que determina o nascimento em um dos infernos, ou em qualquer outro reino, constitui a causa cooperativa. Onde quer que a pessoa renasça mais tarde — nos infernos ou em outro lugar — , no momento da morte, ela terá um corpo humano, ao passo que, no momento do nascimento, ela terá o corpo de um ser dos infernos ou do reino onde renascerá. Da mesma forma, a consciência anterior, agora extinta, é aquela de um ser humano, enquanto que, no momento do nascimento futuro, a consciência será aquela de um ser dos infernos. As duas são, assim, distintas. Em outras palavras, quando a mente e o corpo de um ser humano morrem, a mente e o corpo da vida seguinte nascem. Não é que ocorra um movimento ou uma transmigração de algo de um estado prévio para um estado subsequente. Como é dito: Como recitação, chamas e espelhos, Ou selos ou lentes, sementes, sons e gostos adstringentes, Os agregados continuam seu curso contínuo. Ainda assim nada é transferido, e isso o sábio deve saber. Quando, por exemplo, alguém usa uma lamparina para acender outra lamparina, a chama da última não pode ser acesa de forma independente em relação à primeira. Ao mesmo tempo, porém, a

primeira chama não se transforma na segunda chama. Se a primeira entidade se extingue, no entanto, e a seguinte emerge de tal maneira que as duas se encontram bastante separadas, seria possível objetar, nesse caso, que o efeito da ação precedente teria necessariamente se perdido, enquanto (durante a próxima existência) efeitos cármicos estariam presentes sem que houvessem sido acumulados. Mas esse não é o caso. Aparências fenomênicas emergem inelutavelmente por meio da interdependência de causas e condições. E essas mesmas aparências não são capazes de resistir à análise,146 elas estão além do âmbito das posições do eternalismo e do niilismo. A afirmação de que os efeitos cármicos não são perdidos é uma característica especial dos ensinamentos budistas. A verdade desse entendimento só pode ser percebida de maneira plena por aquele que atingiu um estado de onisciência. Desse modo, ela deve ser aceita confiando-se na palavra do Conquistador. Como é dito: Aquilo que emerge na dependência de outra coisa, Não é de forma alguma essa coisa em si, Mas tampouco é algo diferente: Não há interrupção, não há permanência.147 Tudo o que temos são termos relativamente imputados. Não sendo nem idênticos nem diferentes, (momentos pregressos ou posteriores de consciência) aparecem. A consciência se manifesta de maneira diferente de acordo com o carma, seja ele bom ou ruim. Mas em si, tal consciência nada mais é do que momentos de mera apreensão, clara e cognitiva, surgindo ininterruptamente em sequência similar.148 As noções de permanência ou descontinuidade149 não se aplicam a ela. Dessa maneira, os resultados do carma não se perdem, e ninguém se depara com efeitos cármicos que não tenham sido acumulados. Se, em um nível mais sutil, considerarmos a natureza momentânea dos fenômenos, veremos que tudo, nas esferas exterior e interior, consiste de instantes pontuais. O momento anterior exaure-se e o seguinte intervém de tal modo que um é distinto do outro. Da mesma forma, quando o carma de permanecer no estado humano fornece as circunstâncias e o momento final da consciência (neste estado) fornece a causa, o momento seguinte de consciência nasce e aflora de forma similar. Mas os dois momentos são separados.

Apêndice 3 - A inversão de posições entre "eu" e "outro" O trecho a seguir, também extraído do comentário de Kunzang Pelden, é uma explicação sobre a inversão de posições entre "eu "e "outro". Um comentário sobre as estrofes 140 a 154 do Capítulo 8, explica como é possível, pela proeza da imaginação solidária, colocar-se no lugar dos outros. Com essa prática, obtém-se uma compreensão de como somos vistos pelos outros, e de como e porque os outros sentem o que sentem. A INVERSÃO DE POSIÇÃO ENTRE "EU" E "OUTRO" (140) Ao fazer a meditação da inversão, escolha outros seres sencientes, quer sejam inferiores, superiores ou iguais a você, e imagine que eles são você, colocando-se no lugar deles. Quando tiver trocado de posição, medite sem permitir que qualquer outro pensamento intervenha. Imagine-se na posição de alguém que esteja em uma situação pior que a sua e permita-se sentir inveja. A seguir, coloque-se na posição de alguém que esteja no mesmo nível que você e imbua-se de uma atitude de rivalidade e competitividade. Por fim, assuma a posição de alguém que esteja em uma situação melhor do que a sua e permita-se sentir orgulho e desprezo.

A PRÁTICA DA INVEJA DO PONTO DE VISTA DE ALGUÉM QUE NÃO ESTÁ TÃO BEM NA VIDA OUANTO VOCÊ (ESTROFES 141 A 146) Nessas três meditações, [seguindo a orientação de Shāntideva] quando o texto se referir a "ele" ou a "essa pessoa", está, na verdade, falando do seu próprio "eu", agora visto como uma outra pessoa. Quando o texto disser "você", está se referindo, na verdade, a essa outra pessoa (que está em uma condição melhor, igual ou pior que a sua), com quem você agora se identifica.150 Doravante, você deve cultivar sistematicamente antídotos contra o orgulho, a rivalidade e a inveja. A razão para desenvolver tais antídotos encontra-se no fato de que essas três emoções aflitivas surgem assim que a menor virtude desponta no fluxo mental. Elas são como demônios que minam nossa integridade, o que explica a importância dada a seus antídotos. Entre os oito darmas mundanos, a honra, as posses, a adulação e a felicidade são os que geram orgulho. Assim, coloque-se no lugar de um mendigo ou um vagabundo, alguém desprezível. Imagine que você é essa pessoa pobre e que a pessoa pobre é você. Agora, permita-se sentir a inveja que essa pessoa sente. (141) Olhe para quem você era (o seu ego que agora é uma outra pessoa), alguém talentoso, e pense o quão feliz, elogiada e respeitada "ela" deve ser. Você, por outro lado, não é nada, não é ninguém, um verdadeiro fracassado, desprezado e absolutamente miserável. A pessoa para quem você está olhando é rica, come muito bem, tem muitas roupas para vestir, dinheiro para gastar, enquanto você não tem nada. Ela é respeitada por seus conhecimentos, talentos e habilidades. Você, por outro lado, é desdenhado como se fosse um idiota. Enquanto ela goza da abundância de confortos e alegrias, você é miserável, sua mente está tomada por preocupações e seu corpo está devastado por doenças, dores e pelos desconfortos do calor e do frio. (142) Você tem que trabalhar como um escravo, cavando buracos e colhendo capim, ela, por sua vez, pode descansar sem ter nada a fazer. Enquanto esses pensamentos passam por sua mente, sinta a inveja. Ela tem empregados e um cavalo particular, aos quais inflige muitos desconfortos e sofrimentos. Ela nem chega a ter consciência de que eles estão sofrendo, e lá está ela, ah, tão confortável! E se isso já não bastasse, ela fica enraivecida e os ataca, chicoteando-os e batendo neles. Coloque-se no lugar dessas pobres vítimas e tome para si o sofrimento que lhes aflige. Se você conseguir fazer isso, é dito que você reconhecerá as aflições delas. A compaixão por elas crescerá, e você não as machucará novamente. Mais uma vez, pense que essa pessoa é talentosa, de boa família, rica e rodeada de amigos. Você, por outro lado, é um joão-ninguém, conhecido como não tendo nenhum talento. (143) Porém, mesmo que você não tenha nada para ostentar, você poderia perguntar a ela qual a razão para ser tão arrogante. Afinal, a existência ou a inexistência de qualidades e os conceitos de superior e inferior são relativos. Não existem valores absolutos. Mesmo pessoas tão depreciadas quanto você têm alguma boa qualidade, relativamente falando. Por outro lado, quando comparada a alguém ainda mais talentoso, ela (seu ego) não é tão grandiosa. Comparado com alguém ainda mais desfavorecido, fragilizado devido à idade, aleijado ou cego, pode-se dizer que você se encontra em uma situação muito melhor. Apesar de tudo, você pode andar com seus pés, ver com seus olhos e não está debilitado pela idade. Ao menos alguma coisa você tem.

Esta estrofe que começa com a frase "O quê? Um desconhecido sem distinção?" pode ser entendida em um sentido diferente, isto é, que você tem o potencial para atingir a excelência do treinamento, uma vez que possui todas as qualidades do tathāgatagarbha totalmente puro, a essência do estado búdico, implícita em sua natureza. Dessa forma, você está muito longe de ser desprovido de boas qualidades. (144) Se o seu altivo ego retrucar que você é desprezível porque sua disciplina e compreensão são vergonhosos, ou, por exemplo, porque você não tem recursos, isso não significa que você, em si, seja mal, ou que você é simplesmente inapto. Significa, antes, que suas emoções aflitivas do desejo, da ignorância, da avareza e outras são tão poderosas que você se torna impotente. Você deve, então, responder da seguinte maneira: Tudo bem, se você realmente é um bodisatva grandioso e maravilhoso, deveria me ajudar o máximo possível; você deve remediar as condições deficientes da minha disciplina, visão e recursos. Se você de fato me ajudar, estou até mesmo preparado para aceitar qualquer punição de sua parte — palavras duras e surras — exatamente da mesma forma que um aluno apanha do tutor quando está aprendendo a ler e escrever. (145) Porém o fato é que você, o grande bodisatva, não está fazendo nada por mim. Você não me dá nem mesmo um resto de comida ou algo para beber. Por que você se passa por uma pessoa tão formidável? Você não tem nenhum direito de me desprezar e de desdenhar a mim e a meus semelhantes. E, de qualquer forma, mesmo se você tiver virtudes verdadeiras, se não for capaz de me trazer alívio ou me ajudar, qual é a serventia de suas qualidades para mim? São totalmente irrelevantes. (146) Além do mais, se você, que é um bodisatva, puser de lado a intenção de me ajudar e salvar a mim e meus semelhantes, nós, que, pelo poder de nosso carma negativo, estamos a caminho dos reinos inferiores, como se estivéssemos caindo na boca de uma besta feroz — se você não tem compaixão, é culpado de algo completamente indescritível! Entretanto, não apenas você não toma conhecimento disso, mas o tempo todo você aparenta ser uma pessoa maravilhosa. O fato é, contudo, que você não tem nenhuma qualidade. Em sua arrogância, quer se colocar no mesmo nível dos verdadeiros bodisatvas, aqueles seres que são de fato habilidosos e que em sua compaixão verdadeiramente tomam para si o fardo dos outros. Seu comportamento é completamente ultrajante! Como principal antídoto para o orgulho, devemos meditar sobre a inveja e o ressentimento dessa maneira. Com a apreciação do sofrimento envolvido em ser uma pessoa pobre e insignificante, sem talentos ou honra, compreendemos como é errado ser arrogante e soberbo. Fica claro o quanto é desagradável nossa atitude de orgulho e altivez diante de alguém em uma posição humilde. Você deve parar de se comportar dessa maneira e começar a tratar as pessoas com respeito, oferecendo-lhes alimento, roupas e alguma ajuda prática.

A PRÁTICA DA RIVALIDADE INVEJOSA DO PONTO DE VISTA DE UM IGUAL (ESTROFES 147 A 15O) Em seguida, você deve trocar de posição com alguém similar a você ou mesmo um pouco melhor, alguém que faça você se sentir competitivo, em termos religiosos ou mundanos. (147) Diga a você mesmo que, por melhor que a outra pessoa seja em termos de reputação ou riqueza, você irá superá-la. Qualquer bem que ela tenha e respeito que adquiriu aos olhos dos outros você lhe furtará, seja em disputas religiosas ou até em lutas, e você fará de tudo para conquistá-las para você. (148) De todas as maneiras possíveis, você divulgará amplamente seus próprios talentos mundanos e espirituais, ao mesmo tempo em que se esforçará para encobrir quaisquer talentos que a outra pessoa possa ter, de modo que ninguém jamais os veja ou ouça falar deles. (149) Por outro lado, você encobrirá quaisquer defeitos que você tenha, escondendo-os dos olhos públicos, divulgando ao mesmo tempo as imperfeições que o seu rival porventura tenha, assegurando que todos tomem conhecimento delas. Dando a impressão de que você é irrepreensível, várias pessoas o congratularão, enquanto acontecerá exatamente o oposto com a outra pessoa. De agora em diante, você será o abastado, o centro das atenções. A ela não restará nada. (150) Por muito tempo e com satisfação intensa, você se jubilará diante dos castigos que ela terá de sofrer por ter quebrado votos religiosos ou por não ter se comportado de forma adequada na vida leiga. Você fará dessa pessoa um objeto de escárnio e, nas reuniões públicas, você a tornará desprezível aos olhos dos outros, expondo todos seus pecados secretos. Assim, valendo-se do espírito de rivalidade como um antídoto para a inveja, você reconhecerá seus próprios erros ao competir com os outros. Você então abandonará esse tipo de comportamento e, em vez disso, fará o que for possível para ajudar seus rivais com presentes e honrarias.

A PRÁTICA DO ORGULHO DO PONTO DE VISTA DE ALGUÉM EM UMA CONDIÇÃO MELHOR OUE A SUA (ESTROFES 151 A 154) Imagine-se agora na posição de alguém que está em uma condição melhor que a sua, que olha para você com orgulho e desdém. (151) (Desta posição vantajosa), pense que você ficou sabendo que essa pessoa, esse zero à esquerda, está tentando se equiparar a você. No entanto, como comparar vocês dois, seja em termos de conhecimento, de inteligência, de aparência, de classe social, de riqueza e de posses? A ideia em si é ridícula. Seria como comparar a terra ao céu! (152) Escutar o que todos dizem de seus talentos, de seu conhecimento etc., e de como tudo isso cria um abismo entre você e esse indivíduo abjeto é extremamente gratificante. A emoção causada é tão intensa que você se arrepia. Deleite-se ao máximo com esse sentimento! (153) Se essa outra pessoa, com esforço, conseguir de alguma forma progredir, apesar dos obstáculos que você coloca no caminho dela, você pode até concordar que, desde que ela se rebaixe e respeitosamente siga suas instruções, essa reles e miserável pessoa tenha em troca suas mais simples necessidades satisfeitas: comida para encher a barriga e roupas suficientes para protegê-la do vento. Qualquer coisa além disso, porém, você, sendo o mais forte, lhe negará. (154) Todo tipo de prazer que esse ser inferior possa ter você sabotará e, ainda por cima, constantemente o atacará, amontoando sobre ele toda a sorte de dissabores. Mas por que você é tão cruel? Devido às centenas de vezes que essa pessoa (esse seu ego) o feriu enquanto você vagava pelo saṃsāra. Ou, mais uma vez, essa estrofe pode ser explicada com o significado de que você abandonará a satisfação dessa mentalidade de prezar a si mesmo em primeiro lugar e constantemente a minará, pois é precisamente essa atitude autocentrada que lhe causou tantos sofrimentos em centenas de existências nos infernos e em outros lugares no saṃsāra. Essa é a forma como Shāntideva mostra o erro de não se livrar do orgulho. Desse modo, use essa meditação sobre o orgulho como o principal antídoto contra o ressentimento invejoso. Quando alguém superior a você comportar-se com orgulho e o insultar com uma atitude presunçosa, você pensará: "Por que essa pessoa está sendo tão arrogante e ofensiva?" No entanto, ao invés de sentir inveja e ressentimento, troque de lugar com essa pessoa. Valendo-se da meditação sobre o orgulho, coloque-se nessa posição de superioridade e pergunte-se se você tem os mesmos sentimentos de orgulho e desdém que ela. Se perceber que você também tem sentimentos de orgulho, desdém, escárnio e desprezo em relação àqueles que lhe são inferiores, você será capaz de olhar para essa pessoa que está sendo arrogante com você e pensar: "Sim, consigo entender por que ela se sente assim". Desse modo, você passará a servi-la respeitosamente, evitando atitudes de rivalidade e disputa.



Bibliografia Abaixo estão os nomes dos comentários em sânscrito do Bodhicharyāvatāra (dos quais, entretanto, apenas oito estão completos) traduzidos e preservados no Tengyur tibetano. Apenas um único comentário completo (de Prajñākaramati) e fragmentos de alguns outros sobreviveram em sânscrito (veja Pezzali, pág. 47). Nas referências, P. refere-se ao Tripiṭaka tibetano, edição de Pequim (veja Tokyo-Kyoto: Susuki Research Foundation, 1956, que é uma reimpressão deste); C. refere-se ao Catalogue of Kanjur and Tenjur de Alaka Chattopadhyaya (Calcutá: Indo-Tibetan Studies, 1972); e T. refere-se ao Guide to the Nyingma edition of the sDe-dge bKa’-’gyur/bsTan-’gyur de Tarthang Tulku (Berkley: Dharma Publishing, 1980). BYANG CHUB KYI SPYOD PA LA ’JUG PA’I DKA’’GREL (Bodhicharyāvatāra-pañjikā), Prajñākaramati (Shes rab ’byung gns blo gros). P. 5273, Volume 100. T. 3872. BYANG CHUB SEMS DPAI’I SPYOD PA LA ’JUG PA’I RNAM PAR BSHAD PA’I BKA’ ’GREL (Bodhicharyāvatārapañjikā-vivṛiti-pañjikā), em 9 capítulos, Kṛiṣhṇapa. P. 5274, Volume 100. T. 3873. BYANG CHUB SEMS DPAI’I SPYOD PALA ’JUG PA’I LEGA PAR SBYAR BA (Bodhicharyāvatāra-pañjikāsaṃskāra), em 10 capítulos, Kalyāṇadeva. P. 5275, Volume 100. T. 3874. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA’I RTOGS PAR DKA’ BA’I GNAS GTAN LA DBAB PA ZHES BYA BA’I GZHUNG (Bodhisattvacharyāvatāra-duravabodha[pāda] nirṇaya-nāma-grantha). Kṛiṣhṇapada, também conhecido como Kalāpa/ Nagphowa. P. 5276, Volume 100. T. 3875. BYANU CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA'I DKA’ ‘GREL (Bodhicharyāvatāra- pañjikā), Vairochanarakṣhita de Vikramashīla. P. 5277, Volume 100. T. 3875A. SHES RAB LE’U’I DKA’ ‘GREL (Prajñāpariccheda-pañjikā), comentário sobre o Capítulo 9, autor desconhecido. P. 5278, Volume 100. T. 3876. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA’I RNAM PAR BSHADPA (Bodhicharyāvatāra-vivṛiti), comentário sobre os Capítulos 9 e 10, autor desconhecido, provavelmente Dānashīla. P. 5279, Volume 100. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA'I SHES RAB LE’U DANG BSNGO BA’I KA’ ‘GREL (Bodhisattvacharyāvatāra-prajñāpariccheda-pariṇama-pañjikā), autor desconhecido. T. 3877. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA’I DON SUM CU RTSA DRUG BSDUS PA (Bodhisattvacharyāvatarā-ṣhaṭtriṃshat-piṇḍārtha), Dharmapāla (Gser gling bla ma chos skyong). P. 5280, Volume 100. T. 3878.

BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYODPA LA ’JUGPA’I DOM BSDUS PA (Bodhisattvacharyāvatarā-piḍṇārtha), Dharmapāla (Gser gling bla ma chos skyong). P. 5281, Volume 100. T. 3879. BYANG CHUB KYI SPYOD PA LA ’JUG PA’I DGONGS PA’I GREL PA KHYAD PAR GSAL BYED ZHES BYA BA (Bodhicharyāvatāra-tātparya-pañjikā-visheṣhadyotanī-nā-ma), comentário sobre todos os Capítulos 10, Vibhūtichandra. P. 5282, Volume 100. T. 3880. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA LA ’JUG PA’I MDO TSM GDAMS NGAG TU BYAS PA (Bodhisattvacharyāsūtrīkṛitāvāda), Dīpṃakara-shrījñāna (Dpal mar me mdzad ye shes). P. 5548, Volume 103. BODHISATTVACHARYĀVATĀRA-BHĀṢHYA, Dīpaṃkara-shrījñāna. C. MDO XXVII 5.210a:5-223b:2. BYANG CHUB SEMS DPA’I SPYOD PA BSDUS PA’I SGRON MA RIN PO CHE’I PHRENG BA (Bodhisattvacharyā[saṃgraha]-pradīparatnamālā), Dhārmika-subhūtigoṣha. C. MDO XXX 31.389B:1-395A:4. t. 3936.



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Considere a observação de Paul Griffiths: "O budólogo qua budólogo não pode ser um entusiasta religioso, um proselitista, ou pelo menos, poderíamos dizer, budista." Veja Buddhist hybrid English, págs. 17-33. Os mesmos sentimentos são expressos por Crosby e Skilton: "Esperamos que o leitor aprecie que todo esse material seja oferecido como uma forma de explicação para os leitores de maneira geral, mais do que uma exegese da escritura com o objetivo de uma prática religiosa". Veja Bodhicharyāvatāra, pág. XXVII. 1

Para mais detalhes, veja Kretschmar (Vol. 1, págs. 13-18), que é categoricamente a favor da autoria de Kawa Peltsek da tradução Dun-huang e que observa a crença de Saito de que havia duas ou talvez três versões diferentes em sânscrito do Bodhicharyāvatāra durante o período em que o texto foi traduzido para o tibetano. Veja www.kunpal.com/bcaicomm.pdf. 2

Veja Apêndice 1, sobre o encontro de Shāntideva com os paṇḍitas que foram enviados a Nālandā para encontrá-lo. 3

Veja as observações de Elizabeth Napper em Styles and principles of translation, em Buddhist translations: problems and perspectives, pág. 36. 4

Veja as interessantes reflexões de George Steiner sobre esse assunto em After Babel, pág. 34.

5

Veja Elizabeth Napper, pág. 40.

6

Extraído do Prefácio do tradutor, da versão da Bíblia do rei Jaime.

7

Há dois títulos em sânscrito para a obra de Shāntideva. O mais longo, Bodhisattvacharyāvatāra, foi dado literalmente como título da versão tibetana (byang chub sems dpa'i spyod pa la ‘jug pa), cujo significado literal é A entrada para o caminho do bodisatva. Há um título mais curto e muito mais usado, Bodhicharyāvatāra, que significa A entrada para o caminho do despertar. 8

Veja Apêndice 1, para o relato tradicional da vida de Shāntideva. Detalhes adicionais podem ser encontrados na excelente introdução à tradução do Bodhicharyāvatāra por Kate Crosby e Andrew Skilton. 9

Veja Dalai Lama, Essence of refined gold, pág. 136.

10

Veja os versos 23-24 do Capítulo 3.

11

Veja também Dalai Lama, Path to bliss, págs. 161-174.

12

Essa consideração sobre a Madhyamaka se deve em parte ao livro de T. R. V. Murti, The central

13

philosophy of Buddhism. Sua descrição da dialética da escola Madhyamaka (Capítulos 5 a 7) é de interesse particular. Veja Majjhima Nikāya (um artigo das escrituras Pali I sutta 72). Veja tradução de H.C. Warren, pág. 123. 14

Shamyutta Nikāya, XII, 15.

15

Veja Nāgārjuna, Mūla-madhyamaka-kārikā, 15.7.

16

Esta é, de fato, a abordagem usual das primeiras gerações de orientalistas ocidentais. Veja, por exemplo, Louis Finot na introdução a sua tradução do Bodhicharyāvatāra, La marche à la lumiére. 17

Veja Murti, Capítulo 2.

18

Veja, por exemplo, Murti, págs. 293-301.

19

Vindo depois de Āryadeva (aproximadamente 180-200), mas antes de Chandrakīrti (início do século VII), Buddhapālita (primeira metade do século V) expressa a técnica do reductio ad absurdum ou Prāsaṅgika como sendo a essência da Madhyamaka. Isso foi questionado por seu contemporâneo, Bhāvaviveka, que disse que a mera negação de uma teoria deve ser complementada com a afirmação de uma posição antagônica. Vindo depois dele, Chandrakīrti justifica Prāsaṅgika-Madhyamaka, a posição de Buddhapālita, como o sentido verdadeiro da Madhyamaka e critica severamente Bhāvaviveka. Veja Murti, págs. 95-96. Todas as quatro escolas do budismo tibetano consideram Prāsaṅgika-Madhyamaka como a posição filosófica suprema. 20

Kawa Peltsek (primórdios do século IX), um discípulo de Shāntaraṣkhita e Guru Rinpoche, foi um dos principais tradutores do período antigo. Rinchen Zangpo (958-1051) e Ngok Loden Sherab (1059-1109) pertencem ao novo período de tradução. 21

Veja Bibliografia.

22

Patrul Rinpoche Jigme Chökyi Wangpo (1808-1887), autor do célebre kun bzang bla ma 'izhal lung, traduzido como As palavras do meu professor perfeito, Editora Makara. 23

Veja a nota biográfica em Heart essence of the enlightened ones.

24

"Aqueles que vão em bem-aventurança" (tib. bde gshegs; sânsc. sugata): epíteto dos budas.

25

A palavra dharmakāya traduz aqui (tib. chos sku; sânsc. dharmakāya), literalmente, o "corpo do

26

darma". De acordo com a tradição de comentários, duas interpretações são cabíveis. O termo pode ser tomado como significando simplesmente "o corpo do Darma da realização e da transmissão" (que é a interpretação de Kunzang Pelden e outras autoridades), resultando daí que a primeira linha do poema consiste em uma saudação às Três Joias, que correspondem ao Buda, ao Darma e à Shanga. Por outro lado, pode ser entendida como referência ao dharmakāya ou "corpo da verdade", o aspecto absoluto de um buda, em contraste com rūpakāya, ou "corpo da forma" (subdividido posteriormente em sambhogakāya e nirmāṇakāya). Os herdeiros dos budas são os bodisatvas. Nós preferimos essa tradução, que inclui dois gêneros e corresponde mais proximamente à intenção óbvia de Shāntideva do que a versão literal "filhos" (tib. sras), pois é mais provável de ser compreendida por leitores ocidentais modernos. Essa interpretação é de fato apoiada por um dos mais antigos comentários conhecidos sobre o Bodhicharyāvatāra (composto por Sonam Tsemo, 1142-1182), onde sra é comentado como gdung 'tshob (herdeiro, sucessor). No contexto presente, a referência é feita aos "nobres" bodisatvas, assim chamados em razão de suas realizações corresponderem ao caminho da visão do Mahāyāna, em outras palavras, aqueles que estão nos bhūmis ou níveis, e que são, portanto, objetos de refúgio sublimes. 27

Para se avançar em direção à iluminação, é necessário possuir oito tipos de liberdades e dez tipos de fortuna ou dotes. As primeiras são: a liberdade de não nascer (1) em um dos infernos, (2) como um preta ou fantasma faminto, (3) como um animal, (4) no reino dos deuses de longa vida, (5) entre bárbaros que ignoram os ensinamentos e práticas do Darma de Buda, (6) como alguém que tenha ideias equivocadas sobre o carma e outras questões, (7) em uma época e lugar onde um buda não tenha aparecido, e (8) com deficiência mental ou física. 28

Os dez tipos de fortuna e dotes são subdivididos em cinco considerados intrínsecos e cinco extrínsecos à pessoa. Os cinco dotes intrínsecos são (1) nascer como ser humano, (2) habitar um "país central", ou seja, onde o Darma seja proclamado, (3) ter posse de faculdades normais, (4) não ter inclinação cármica para grandes negatividades, e (5) ter fé no Darma. Os cinco dotes extrínsecos são os fatos (1) de um buda ter aparecido no universo em que se vive, e em ocasião acessível, (2) de ele ter explanado a Doutrina, (3) de sua Doutrina ainda persistir, (4) de ser ela praticada, e (5) de a pessoa ter sido aceita como discípulo de um mestre espiritual. Os tibetanos frequentemente usam a expressão thub pa ou thub dbang (aquele que é hábil, aquele que é poderoso) para traduzir a palavra sânscrita muni (sábio, asceta). A tradução "sábios poderosos" como um sinônimo de budas é um amálgama dessas duas ideias. 29

30

Referência a Maitreya, o buda do futuro, como narrado no Gaṇḍavyūha-sūtra.

31

Tathāgata (tib. de bzhin gshegs pa): literalmente "aquele que assim se foi".

Referência ao sutra Subāhū-paripṛicchā-sūtra, o Sutra das perguntas de Subāhū. O texto original em sânscrito deste sutra se perdeu, mas sua tradução para o chinês foi preservada. 32

De acordo com a tradição da Índia antiga, os ṛiṣhis eram sábios que perceberam o som dos Vedas e os transmitiram ao mundo. Eles formam uma classe separada, entre os deuses e os humanos. 33

34

Brama, o criador do universo, segundo os Vedas.

"Aqueles que vagam pelo mundo" é uma tradução do tibetano ‘gro ba (lit. aquele que se move), um epíteto comum para os seres sencientes que migram impotentes de um estado samsárico para outro. 35

A confissão propriamente dita, que dá nome a este capítulo, começa na estrofe 27. Ela vem precedida pelas fórmulas tradicionais de homenagem e oferenda. Veja nota 48. 36

Samantabhadra é o bodisatva associado às orações e às oferendas ilimitadas; Mañjughoṣha (também conhecido como Mañjushrī) é o bodisatva que personifica a sabedoria; Lokeshvara (Senhor do Mundo), também conhecido como Avalokiteshvara (tib. spyan ras gzigs), é o bodisatva da compaixão. 37

A expressão "Joias do Darma Sagrado" refere-se ao Darma da realização e ao Darma da transmissão, isto é, as escrituras. O último se divide em doze categorias: (1) sūtra (tib. mdo sde), discursos condensados cobrindo um único tópico; (2) geya (tib. dbyangs bsnyad), epítome poético (de ensinamentos mais detalhados em prosa); (3) vyākaraṇa (tib lung bstan), profecias; (4) gāthā (tib. tshigs bcad), discursos em verso; (5) udāna (tib. ched du brjod pa), instruções não requisitadas mas dadas por Buda espontaneamente a fim de propagar o Darma; (6) nidāna (tib. gleng gzhi), instruções por ocasião de incidentes específicos (por exemplo, as regras do Vinaya); (7) avadāna (tib. rtogs brjod), a história da vida dos contemporâneos de Buda; (8) itivṛittaka (tib. de lta bu byung ba), relatos históricos; (9) jātaka (tib. skyes rabs), vidas pregressas de Buda; (10) vaipulya (tib. shin tu rgyas pa), explanações longas de ensinamentos vastos e profundos; (11) adbhūtadharma (tib. rmad byung), ensinamentos extraordinários sem precedentes; (12) upadesha (tib. gtan dbab), instruções sobre tópicos específicos para esclarecimento do significado do Vinaya e Sutra. O último é a classificação dos fenômenos samsáricos (agregados, elementos, āyatanas); esquema dos fenômenos do caminho (bases e caminhos de realização, várias concentrações) e a enumeração dos fenômenos resultantes (os kāyas, as sabedorias etc.). 38

Na prática tradicional de prostrações, é comum imaginar que a pessoa possui inúmeros corpos, os quais se prostram todos ao mesmo tempo. 39

Leitores ocidentais algumas vezes se opõem ao uso da palavra pecado nas traduções de textos budistas, com a justificativa que esta palavra carrega muitas associações judaico-cristãs. Aparentemente eles não conseguem perceber que o mesmo princípio pode ser igualmente aplicado para uma grande quantidade de outros termos, tais como amor, compaixão, voto, monge, causa, meditação e outros, cujo significado, no cenário cultural, filosófico e religioso nos quais se desenvolvem, são notavelmente diferentes das ideias que transmitem no contexto budista. Quando 40

usadas para expressar ideias budistas, muitas palavras comuns em inglês precisam de uma redefinição cuidadosa, para remover conotações exclusivamente judaicas ou cristãs. No caso da palavra pecado, se não levarmos em conta as associações ligadas com a doutrina da Queda, da punição divina etc., seu significado padrão (um ato maldoso, seja por natureza ou por ser uma transgressão de um voto ou preceito, que provocará consequências mortais se não purificado pela confissão) corresponde aproximadamente ao sentido de sdig pa (sânsc. papā) usada por Shāntideva. Veja V. e A. Wallace, pág. 24. 41

Yama, o Rei da Morte, não um ser senciente, mas um símbolo e uma personificação da morte.

Ākāshagarbha e Kṣhitigarbha são dois dos oito principais bodisatvas, conhecidos como os oito filhos próximos de Buda. 42

A felicidade ou sofrimento após a morte pode surgir apenas como frutos de ações passadas. No momento da morte, somos ajudados ou prejudicados apenas pela virtude ou pelo mal contidos em nosso fluxo mental. Não podemos ser beneficiados ou prejudicados pelas ações dos outros. Por esse critério, como distinguiremos então, no momento da morte, quem é amigo ou inimigo? 43

Há dois tipos de ações negativas: aquelas que são negativas por natureza e aquelas que são nocivas porque transgridem um preceito ou violam uma promessa ou voto. A primeira categoria compreende as dez ações desvirtuosas: matar, roubar, conduta sexual indevida, mentir, fala que causa discórdia, fala ríspida, tagarelice inútil, cobiça, malevolência e visão equivocada. A segunda categoria incluiria, por exemplo, a transgressão de um compromisso religioso, impedindo o praticante de avançar no caminho. 44

De acordo com os ensinamentos budistas, a experiência dos seres no saṃsāra se enquadra em seis grandes categorias, estados ou reinos. O nascimento nesses mundos é fruto do carma ou ações pregressas. Há três estados desafortunados (os estados de privação referidos neste verso), nos quais o sofrimento predomina sobre todas as demais experiências: o dos animais, o dos fantasmas famintos e o dos seres dos infernos. Há três reinos bem-afortunados, nos quais o sofrimento é mitigado por prazeres temporais, a saber: os paraísos dos deuses mundanos, os reinos dos asuras ou semideuses e a condição humana. O infortúnio dos seres nos reinos inferiores é exacerbado pelo fato de ser muito limitada sua capacidade de criar a energia positiva necessária para impeli-los para existências mais elevadas, ao passo que a negatividade abunda. 45

Shāntideva se regozija com a condição dos seres nos reinos mais elevados do saṃsāra, seres humanos, asuras (semideuses) e deuses. Em todos esses estados a experiência de felicidade e prazer é possível mesmo que eles nunca estejam além da possibilidade do sofrimento. 46

A partir do momento em que, pela realização direta da vacuidade, o caminho da visão começa a ser trilhado, e ao longo de todo o caminho da meditação até o ponto onde o estado búdico perfeito seja alcançado, o progresso do bodisatva passa por dez bhūmis, ou "níveis" de realização. Os bodisatvas 47

que estão nesses níveis são considerados seres nobres (tib. ‘phags pa), que passaram para além do mundo, no sentido que, daí em diante, eles não podem mais voltar para as condições comuns do saṃsāra. Esta estrofe de duas linhas não aparece na versão em sânscrito. Para uma explicação dos cinco caminhos, da acumulação, da reunião, da visão, da meditação e do não mais conhecimento, veja Treasury of precious qualities, págs. 301-304. A referência aqui são as sete ações tradicionais para acumular mérito, frequentemente expressas em forma de verso, conhecida como "prece dos sete ramos". Essas ações são: homenagem, oferenda, confissão, regozijo com todas as boas ações, pedido por ensinamentos, pedido para que os mestres permaneçam no mundo e não passem para o nirvana e dedicação. As primeiras três ações formam o conteúdo do capítulo anterior; as outras quatro são expressas aqui, nas estrofes de abertura do Capítulo 3. Veja Crosby e Skilton, págs. 9-13, para uma descrição das "sete venerações supremas". 48

Referência ao antarakalpa, período de extrema decadência, que aparece na concepção de sequências temporais da Índia antiga, no qual a qualidade da vida humana declinará gradativamente até que a idade de dez anos marque o ápice do crescimento e capacidade. E um tempo caracterizado por extrema instabilidade e fome. 49

O caso célebre sobre o assunto citado é aquele de Shāriputra, discípulo de Buda, tal como registrado no Saddharma-puṇḍarika-sūtra, o Sutra do lótus. Conta-se que Shāriputra era um praticante do Mahāyāna que já havia progredido muito no caminho. Um dia, um demônio apareceu para ele e, querendo testá-lo e, se possível, tramar sua queda, pediu-lhe que desse sua mão direita. Em resposta, Shāriputra cortou-a e entregou-a ao demônio. Mas este se enfureceu e se recusou a aceitá-la, queixando-se que Shāriputra havia a oferecido impolidamente com a mão esquerda! Nesse momento, diz-se que Shāriputra perdeu as esperanças de um dia poder satisfazer os desejos dos seres e se afastou do Mahāyāna para seguir o caminho que leva ao estado de arhat. 50

A habilidade de perceber e de se beneficiar dos ensinamentos de um buda requer uma disposição cármica correta e implica na presença de um grau considerável de mérito no fluxo mental. O fato de não se ter sido liberado pelos ensinamentos dos budas do passado ressalta a importância do momento presente, quando se encontra o Darma, e põe em relevo o imenso significado da relação com um mestre espiritual realizado. 51

De acordo com os ensinamentos budistas (vide observações na Introdução), os resultados cármicos aparecem inelutavelmente em razão dos atos praticados, independentemente de uma atitude consciente ou de consciência moral (embora a qualidade e potência do ato possam ser significativamente afetadas por esses fatores). Desse modo, os seres nos estados inferiores, os animais, por exemplo, acumulam carma, devendo, mais cedo ou mais tarde, experimentar as consequências de suas ações, ainda que tenham sido praticadas sob a influência inexorável do instinto. E a situação cármica é exponenciada — e não mitigada — pela falta de consciência do Darma. A força do hábito instintivo e a ignorância sobre qual comportamento deve ser adotado e qual comportamento deve ser abandonado constitui um dos principais infortúnios da existência em outros estados que não a condição humana preciosa. 52

53

Veja nota 45.

54

Monte Sumeru, o eixo do universo de acordo com a cosmologia hindu-budista tradicional.

O ponto aqui é ressaltar as promessas que devem ser honradas. A fim de liberar os outros seres, é necessário que nós mesmos sejamos livres, e Shāntideva está dizendo que a purificação das próprias negatividades é a melhor maneira de ajudarmos os outros. Ela constitui o indispensável primeiro passo. 55

Como um estímulo para a prática de ética pura e como objeto para a meditação sobre a compaixão, os ensinamentos budistas descrevem as diversas experiências nos reinos dos infernos com considerável grau de detalhes. Os tormentos pelos quais os seres passam nesses reinos, bem como a topografia dos próprios infernos são, em última análise, irreais, como em qualquer outro reino do saṃsāra: eles são o resultado alucinatório, onírico de atos praticados no passado. O fruto cármico da conduta sexual inadequada é a situação em que os seres se percebem na colina infernal das árvores shālmali. Lá, eles têm uma visão do antigo objeto de seu desejo. Ao subir a colina, são cortados continuamente pelas folhas das árvores, afiadas como lâminas, e então percebem que os antigos amantes se transformaram em um monstro horrível (um demônio feminino, no caso de homens heterossexuais) que se põe a devorá-los. Uma descrição vívida desse encontro pode ser lida em As palavras do meu professor perfeito, de Patrul Rinpoche. 56

Os três mundos compreendem os três mundos do saṃsāra: o reino do desejo (sânsc. kāmadhātu), o reino da forma (sânsc. rūpadhātu) e o reino da ausência de forma (sânsc. ārūpyadhātu). O reino do desejo é composto pelos seis estados do saṃsāra, indo dos infernos até os seis níveis dos deuses do reino do desejo. Os reinos da forma e da ausência de forma são existências celestiais superiores àquelas abrangidas pelo reino do desejo. Veja Treasury of precious qualities, pág. 414. 57

Essas são as montanhas e os penhascos encontrados no inferno que, vez após vez, chocam-se uns contra os outros, abruptamente, esmagando os seres presos entre eles. Veja As palavras do meu professor perfeito de Patrul Rinpoche, pág. 135. 58

Em outras palavras, quando os monges estão empenhados em uma tarefa caridosa, não é necessário que eles se fixem rigidamente em todas as minúcias do costume monástico. 59

Por exemplo, a meditação sobre a paciência como o antídoto para a raiva, ou sobre os aspectos repugnantes do corpo como o antídoto para o desejo. 60

A expressão "campo de excelência" se refere aos budas e bodisatvas; o "campo dos benefícios" se refere a todos aqueles que geram benefícios: pais, amigos etc.; o "campo das dores" (geralmente designado "campo da compaixão") se refere a todos os demais seres que sofrem ou que, de algum 61

modo, se encontram em situação desfavorecida, por exemplo, os doentes, os viajantes extenuados por sua jornada e outros mais. As seis perfeições (sânsc. pāramitā) formam a essência da prática Mahāyāna. Elas são a generosidade, disciplina ética, paciência, diligência, concentração e sabedoria. 62

De acordo com o ensinamento do Mahāyāna, em circunstâncias extremas e quando os motivos sejam ditados unicamente pela compaixão, atos do corpo e da fala normalmente vedados (não os da mente), que integram a lista das dez desvirtudes (vide nota 44), podem ser praticados. 63

Em outras palavras, a doutrina do Mahāyāna: "vasta" em suas atividades e meios hábeis e "profunda" em razão da sabedoria da vacuidade. 64

65

Referência ao Shrāvakayāna e ao Mahāyāna, respectivamente.

Fazendo a pessoa crer, por exemplo, que unicamente a prática tântrica vale a pena, e dando a entender que o estudo e as normas da disciplina ética podem ser ignorados. 66

Um palito de dentes ou "madeira de dentes" é um objeto para se limpar os dentes. Em seu diário, o viajante chinês I-Tsing registrou as elaboradas regras de etiqueta estabelecidas nos monastérios da Índia medieval para regular o uso e descarte desses utensílios. Veja I-Tsing, tradução de J. Takakusu, A Record of the Buddhist religion as practised in India and the Malaya Archipelago AD 671-695, págs. 24, 33-35. 67

De acordo com os preceitos literais da disciplina Vinaya (originalmente concebida no contexto da sociedade indiana tradicional), é uma infração para os monges e monjas ficarem sozinhos com membros do sexo oposto aos quais não estejam relacionados por laços familiares. 68

Na Índia e no Tibete, diferentemente de no Ocidente, estalar os dedos é considerado um gesto polido para chamar atenção. 69

O Sutra em três partes (sânsc. Triskandhaka-sūtra) consiste de uma confissão perante os trinta e cinco budas, de versos em louvor à virtude e de uma dedicação de mérito. 70

A biografia do glorioso Sambhava, o Shrīsambhava-vimokṣha, é de fato um capítulo do Gaṇḍavyūha-sūtra, no qual se encontra a seguinte passagem: Se você for prestar a devida homenagem ao mestre espiritual, deixe sua mente ser como a terra, que não se cansa de ser o suporte de tudo; como um diamante, indestrutível em sua intenção; como uma trincheira, onde o sofrimento não possa encontrar nenhuma brecha; como um escravo, que nunca se nega fazer tudo o que é necessário; como um confiável burro de carga, nunca teimoso; como uma 71

balsa, sempre querendo ir e vir; e como um filho perfeito, que bebe com os olhos o semblante de pai espiritual. Ó filho nobre, veja a si mesmo como um homem doente, seu mestre espiritual como um médico, seus ensinamentos como a salutar dose do medicamento e sua prática sincera como o caminho da saúde. 72

O Ākashagarbha-sūtra.

73

O Shikṣhāsamucchaya. Veja referências a Shāntideva no Apêndice 1 e na Bibliografia.

De acordo com Kunzang Pelden, Shikṣhāsamucchaya e Sūtrasamucchaya são os nomes de dois tratados compostos por Shāntideva e dois tratados compostos por Nāgārjuna. O Shikṣhāsamucchaya de Shāntideva ainda existe, o Sūtrasamucchaya foi perdido. Por outro lado, a existência do Sūtrasamucchaya de Nāgārjuna é confirmada no Madhyamakashāstra-stuti, atribuído a Chandrakīrti (veja Ruegg, pág. 8.), enquanto o Shikṣhāsamucchaya, atribuído a ele aqui, parece ser desconhecido em outras fontes. 74

Referência aos seguidores da deusa indiana Durgā, cujo culto exigia a prática de austeridades extremas. 75

Nas próximas nove estrofes, Shāntideva discute e mina a atitude do bom senso comum diante de inimigos e outras coisas que nos irritam. O argumento é colocado nos seguintes termos: em primeiro lugar, nas estrofes 22 a 26, Shāntideva afirma não existir algo que seja um agente independente, isto é, que atue sem fatores que o condicionem. Normalmente, pensamos ser razoável ressentir o comportamento hostil de um outro ser, ao passo que se admite, de modo geral, que a raiva contra um objeto inanimado é descabida e um tanto irracional, já que o objeto em questão apenas agride sob a influência de outras forças. Shāntideva, porém, argumenta que isso é igualmente verdade no caso das fontes animadas de nosso sofrimento. Elas também são impelidas pelos fatores extrínsecos das emoções negativas. É tão irracional odiar um agressor humano, vítima por sua vez de suas próprias negatividades, quanto o é odiar uma árvore que foi derrubada pelo vento e esmagou o nosso carro. A raiva contra um inimigo não se justifica, diz Shāntideva, porque, em última análise, a culpa não é "dele mesmo". Esse ponto é repetido na estrofe 41. Evidentemente há uma objeção óbvia a essa argumentação. Mesmo admitindo o poder das emoções, parece equivocado colocar entidades animadas e inanimadas na mesma categoria. Um agressor humano, diferentemente de uma árvore, é, afinal de contas, um agente a quem cabe responsabilidades; e os atos de uma pessoa não podem ser definidos simplesmente em termos de fatores externos — como um mero jogo de forças impessoais. De acordo com essa linha de raciocínio, certamente deve existir um objeto correto da nossa irritação, a saber, o próprio agressor — ou, em outras palavras, o "eu" dos agressores. Isso levanta uma questão especificamente metafísica e, embora seja dada a ela uma atenção muito 76

maior no curso do Capítulo 9, Shāntideva é obrigado a abordar brevemente aqui (estrofes 27 a 30) as noções de "substância primordial" (pradhāna) e "eu" (ātman), como propostas pelas diferentes escolas filosóficas indianas não budistas. Para todas essas escolas era axiomático que o “eu" e a substância primordial eram (1) entidades independentes e (2) permanentes ou imutáveis. Shāntideva, contudo, assinala que, se houvesse algo que fosse um "eu" independente e permanente, estados emocionais transitórios como a hostilidade nunca poderiam aparecer nele, sem assim negar a permanência desse "eu." "Aquilo que não era hostil e aquilo que agora é hostil" não são a mesma entidade. Por conseguinte, se o "eu" é imutável, nunca poderá premeditar e efetivar a hostilidade (estrofes 27.3-4 e 28.1-2), não podendo, portanto, ser responsabilizado por qualquer ato de agressão. Em outras palavras, uma teoria do "eu" jamais poderá racionalmente justificar o ressentimento diante de um agressor e a retaliação. Por mais abstrusos que esses argumentos possam parecer, cabe notar que sua finalidade é inteiramente prática. O conhecimento de que o agressor é impelido por outras forças e de que ele não é, em si, um inimigo constitui um poderoso auxílio no esforço de controlarmos e eliminarmos nossas próprias respostas agressivas. As linhas 3 e 4 da estrofe 28 representam uma breve referência à teoria Sāṃkhya de puruṣha e prākiṛti. Se o "eu" é permanente e imutável, consequentemente a apreensão de um objeto por esse "eu" também deve ser permanente. Uma sucessão de diferentes percepções é impossível. Dessa maneira, o "eu" de um outro ser não pode se tornar hostil em relação a você. Se ele é hostil agora, deve ter sido sempre assim e continuará sendo assim, permanentemente — o que é absurdo. De acordo com os ensinamentos budistas, quando se diz que algo é permanente, isso significa não apenas que é isento da impermanência grosseira e que é eterno (pois não pode ser quebrado ou destruído), mas também que, ao longo de sua existência, escapa dos efeitos da impermanência sutil e permanece completamente imutável. Sob o ponto de vista budista, tal fenômeno não existe. 77

As estrofes 29 e 30 referem-se à escola Nyāya-Vaisheṣhika. De acordo com essa teoria, e em contraste à da escola Sāṃkhya e da Vedānta que a sucedeu, o "eu" (permanente) — como algo distinto da mente — é considerado passível de ser conhecido. Em outras palavras, é o objeto e não o sujeito da consciência. Acredita-se que ele se relaciona com a mente e subsequentemente identifica as experiências como sendo suas. Novamente, aqui a crença na permanência do "eu" acarreta dificuldades insuperáveis. Se o "eu" é permanente, como se poderia dizer que ele se depara com novos fatores e os assimila? Ao sustentar que o "eu" é consciente ou inconsciente, respectivamente, as escolas Sāṃkhya e Nyāya-Vaisheṣhika ocupam, do ponto de vista da Madhyamika, os dois extremos do espectro da metafísica. Quando essas duas visões são refutadas, todas as posições intermediárias são rebatidas ao mesmo tempo. Sem dúvida, esse é o motivo pelo qual Shāntideva justapõe essas duas teorias aqui, como ele volta a fazer no Capítulo 9. 78

Os bosques de árvores de navalha são um dos quatro "infernos vizinhos". Os infernos vizinhos são quatro grupos formados por quatro infernos, um grupo em cada direção cardeal ao redor dos infernos quentes. Veja As palavras do meu professor perfeito, pág. 137. 79

Em outras palavras, para Shāntideva, um monge desfrutar de honras e renome é tão inadequado quanto jogar e beber. 80

Kunzang Pelden explica esse verso da seguinte maneira: uma pessoa que tem um amor perfeito pelos outros torna-se um objeto excelente de veneração, e as oferendas feitas a ela produzem resultados cármicos extremamente positivos. Entretanto, o amor perfeito de um santo somente acontece em relação a outros seres, o que, por sua vez, revela o valor e a importância destes. 81

Essa ideia é desenvolvida mais a fundo no decorrer do Capítulo 8. Veja o comentário no Apêndice 2. 82

A palavra tibetana traduzida aqui como "diligência" é brtson 'grus, uma tradução do sânscrito vīrya. Enquanto expressa um sentido de grande empenho, o tibetano, de acordo com Shāntideva, sugere um senso de alegria e entusiasmo, características que são apresentadas com vigor ao longo deste capítulo. O termo em sânscrito carrega um sentido de força indomável e coragem, e está conectado com as palavras "viril", "varonil", assim também com "virtude". O sentido genérico é de grande coragem e perseverança: destemor em face às adversidades. 83

A palavra tibetana para "dormir" aqui é gnyid log. Considerando as traduções de Crosby e Skilton, V. e A. Wallace e Berzin, o termo sânscrito pode ser interpretado como também se referindo ao intercurso sexual. O dormir e a atividade sexual, são, naturalmente, funções humanas naturais. Mas a pergunta "Como você pode ter prazer no sono e no sexo?", expressa de forma tão prosaica e sem comentários posteriores, é estranha para ser feita para uma audiência de monges celibatários. A segunda sílaba do termo tibetano talvez possa ser interpretada como uma abreviação de log g.yem (conduta sexual inadequada), e nesse caso, a pergunta nesse contexto teria algum sentido. Contudo, o comentário de Kunzang Pelden não faz alusão a isso e considera gnyid log simplesmente como "sono". 84

Em outras palavras, como se a morte fosse um evento de um futuro longínquo. De acordo com o ensinamento budista, os deuses mundanos, apesar de não serem imortais, desfrutam de uma longevidade imensa. Comparativamente, a extensão da vida humana é apenas uma centelha. 85

86

Essas práticas são explanadas com mais detalhes no Capítulo 8. Veja também Apêndices 2 e 3.

Shrāvaka (tib. nyan thos, lit. "ouvintes") é o nome dado aos discípulos Hīnayāna de Buda. Eles buscam se liberar do saṃsāra e alcançar a cessação perfeita de todo o sofrimento. Para eles falta, entretanto, a atitude de compaixão universal e responsabilidade, que é a boditchita. O fruto desse caminho é o estado de arhat, não o estado búdico. 87

Essa é uma descrição de como os bodisatvas nascem em Sukhāvatī (tib. bde ba can), a terra pura de Buda Amitābha. Uma terra pura, ou campo búdico (sânsc. Buddha-khṣetra; tib. rgyal ba'i zhing), é uma dimensão ou mundo que se manifesta através das aspirações iluminadas de um buda ou bodisatva em conjunção com o mérito dos seres sencientes. Aqueles que nascem em uma terra pura são capazes de progredir rapidamente até a iluminação. 88

O Vajradhavaja-sūtra, (O sutra do estandarte adamantino) é, na realidade, uma subseção da obra maior que é o Avantaṃsaka-sūtra. A seguinte passagem é dele extraída: "Quando o sol brilha, ó Devaputra, ilumina o mundo inteiro, independentemente da cegueira dos seres e das sombras das montanhas. Do mesmo modo, os bodisatvas aparecem para a liberação dos seres, independentemente dos obstáculos que estes possam apresentar". 89

Em outras palavras, devemos, com confiança, levar a cabo a ação de aplicar os antídotos; devemos, com coragem, tomar a decisão de não cairmos nas garras das aflições, e devemos ter autoconfiança e afirmarmos nossa capacidade de abandonar o comportamento maldoso e cultivar qualidades saudáveis. 90

Seguindo os termos da comparação, os corvos são as nossas faltas; nossas fraquezas são a serpente moribunda. 91

Aqui e nos versos seguintes, é traçada uma distinção entre dois tipos de orgulho. De um lado, há a qualidade positiva da confiança que leva à coragem e à perseverança; de outro, a qualidade negativa da arrogância e presunção, resultando no comportamento pedante que muitas vezes é a máscara da fraqueza e da dúvida sobre si mesmo. Usando a mesma palavra para denotar os dois sentidos, Shāntideva joga com a palavra "orgulho" de um modo que poderia, à primeira vista, ser confuso. Para assegurar maior clareza na tradução, os dois tipos de orgulho foram distinguidos de maneira mais marcante. 92

Esta estrofe não aparece no texto em sânscrito que agora está disponível para nós. Alguns comentaristas, ademais, questionaram a autenticidade da estrofe 62a. Entretanto, geralmente, ela é incluída. 93

"Desilusão salutar" (tib. skyo ba ou skyo shes) indica um sentido de repulsa e cansaço em relação aos sofrimentos fúteis do saṃsāra. 94

O contexto aqui e nas estrofes seguintes diz respeito aos complicados rituais envolvidos no namoro e no casamento na sociedade indiana. Em contraste brutal com os prazeres de uma relação romântica e do amor físico, Shāntideva nos impõe uma contemplação genérica das realidades da vida e da morte. 95

96

Em outras palavras, o útero e as substâncias generativas.

97

Veja Apêndice 2.

Em outras palavras, Shāntideva ajudará os outros exatamente da mesma maneira que ele satisfaz as necessidades de seu próprio corpo. 98

O bodisatva Supuṣhpachandra foi proibido pelo rei Shūradatta de ensinar o Darma sob pena de morte. Porém, sabendo que muitos se beneficiariam com seus ensinamentos, Supuṣhpachandra desobedeceu e foi alegremente para sua execução. A história é encontrada no Samādhirāja-sūtra. 99

100

"Sangue" se refere à substância generativa (óvulo) da mãe.

No Gaṇḍavyūha-sūtra, Avalokiteshvara diz: "Todos que estiverem diante de uma multidão e invocarem meu nome três vezes não terão medo". 101

Em outras palavras, o caminho do Darma, que conduz à realização do estado búdico, e não aos paraísos dos deuses mundanos. 102

Compare as visões expressas nesta estrofe e nas estrofes seguintes com o conteúdo da estrofe 12 deste mesmo capítulo. Veja também o Apêndice 2 para uma explicação completa. 103

Se eu fizer da apreciação demonstrada pelos outros o fundamento da atenção enamorada que dedico a meu próprio corpo, segue-se que terei que dispensar atenção igual ao conforto físico dos outros, pois a apreciação deles é igualmente direcionada a seus próprios corpos. 104

Esta estrofe pode ser encontrada apenas na tradução tibetana. Não existe equivalente em nenhuma versão sânscrita conhecida. 105

Como já foi mencionado na Introdução, o Capítulo 9 do Bodhicharyāvatāra é uma apresentação extremamente concisa da filosofia Madhyamaka, com a função de recapitular seus vários estágios de desenvolvimento e sua polêmica interação com outras escolas, budistas e não budistas. É interessante ter em mente que na famosa ocasião em que Shāntideva recitou este texto, sentado no elevado trono de Nālandā, ele o fez diante de um público extremamente versado tanto no conteúdo quanto na história da Madhyamaka. E, sem dúvida, o Capítulo 9 foi composto como uma brilhante e talvez até mesmo descontraída apresentação de um assunto altamente recôndito, feita a uma audiência especializada de filósofos e acadêmicos. Tal como está apresentado, o Capítulo 9 é de difícil compreensão para o leitor comum, e um comentário abrangente é indispensável. Os comentários Kunzang Pelden e Minyak Kunzang Sönam já foram traduzidos, e o aluno interessado também poderá se beneficiar de outros comentários listados na bibliografia. Em uma tentativa de tornar o texto-raiz ao menos inteligível, quase todos os tradutores têm recorrido à prática de colocar entre parênteses os diferentes pontos de vista (Sāṃkhya, Nyāya-Vaisheṣhika, Ābhidarma etc.) citados ao longo do capítulo. Entretanto, é discutível se, na ausência de um comentário abrangente, esses acréscimos façam algo além de complicar a questão e aumentar o espanto do já perplexo leitor. De qualquer forma, tais acréscimos tendem a obscurecer o fato de que o Capítulo 9, assim como o resto do livro, foi composto em versos livres, constituindo um dinâmico e cintilante tour de force. No que diz respeito à presente tradução, o objetivo foi facilitar a compreensão o máximo possível, e uma certa liberdade de interpretação parece ser justificável, principalmente sob a forma de paráfrases 106

explanatórias, que foram incluídas onde possível e apropriado. A interpretação oferecida pelo comentário de Kunzang Pelden e, por implicação, a de seus mestres Patrul Rinpoche e Mipham Rinpoche foram consistentemente seguidas. Veja também Crosby e Skilton, pág. 111, para uma análise útil do assunto deste capítulo. Os tibetanos normalmente usam duas expressões para se referir à verdade relativa: kun rdzob e tha snyab. Apesar de serem, com frequência, usadas alternadamente como sinônimos, esses termos têm conotações ligeiramente diferentes. Kun rdzob kyi bden pa literalmente significa "verdade que tudo oculta". Refere-se aos fenômenos como são encontrados na vida cotidiana e ao fato de suas aparências (como entidades independentemente existentes) ocultarem sua verdadeira natureza (isto é, a vacuidade de tal ser independente e intrínseco). Na medida em que as coisas e situações encontradas na vida são aceitas como genuínas no senso comum (em contraste a ilusões mágicas, miragens etc.), elas são "verdades" mas apenas de forma relativa; assim, o modo como elas aparecem não corresponde com seu status verdadeiro. Sendo assim, temos traduzido sistematicamente kun rdzob kyi bden pa como "verdade relativa". Tha snyab, por outro lado, significa "nome", "expressão convencional". Tha snyab kyi bden pa (que traduzimos como "verdade convencional’) se refere aos fenômenos, na medida em que podem ser concebidos pela mente comum e falados dentro dos limites do discurso convencional. 107

Esta é uma referência aos pensadores e praticantes budistas que, com diferentes níveis de sucesso, adquiriram uma compreensão do verdadeiro status dos fenômenos. Em termos dos cinco caminhos, que no budismo são usados para delinear o progresso da mente em direção à aquisição da onisciência ou iluminação completa, os iogues em questão estão no primeiro e no segundo, respectivamente, "acumulação" e "união." Eles não alcançaram ainda o caminho da "visão", quando a mente desfruta da experiência direta da vacuidade dos fenômenos, sendo que nesse ponto é dito que se passa para além do mundo, isto é, do saṃsāra. Apesar dos iogues no caminho da "visão" ainda terem que alcançar o estado búdico, eles nunca mais podem voltar a cair na existência samsárica. 108

Segundo o comentário sânscrito de Prajñākaramati, as estrofes 49, 50 e 51 não se encontram em suas posições originais. De acordo com o comentário de Gyalse Thogme Zangpo, elas deveriam ser inseridas entre as estrofes 43 e 44. No presente texto, seguimos a mesma colocação feita por Khenchen Kunzang Pelden e Mipham Rinpoche. 109

Mahākāshyapa tornou-se, após o paranirvana de Buda, o líder da saṅgha e desempenhou um papel importante na preservação dos ensinamentos. 110

111

Sukhāvatī, a terra pura de Buda Amitābha.

112

Veja nota 56.

113

Vaitaraṇī: nome de um rio no inferno. Mandākinī: nome de um rio no paraíso.

Aquele que Segura o Lótus (sânsc. Padmapāṇi; tib. phyag na pad ma): um título do bodisatva Avalokiteshvara. 114

O continente do norte (sânsc. uttarakuru; tib. sgra mi snyam): continente ao norte do Monte Sumeru, segundo a cosmologia tradicional budista. (Nosso mundo, Jambudvīpa, é o continente do sul). O continente do norte tem a reputação de ser um lugar de grande harmonia e prosperidade. 115

116

Māyādevī: a mãe de Buda Shākyamuni.

Shāntideva diz simplesmente: "Que todas as mulheres no mundo tornem-se homens". É óbvio que ele não expressa isso no sentido literal, uma vez que envolveria a extinção da raça humana. Nós traduzimos livremente, seguindo o comentário de Kunzang Pelden: "Que todas as mulheres no mundo — a quem falte a força física, que têm que sofrer a dor do parto e que são atormentadas com os trinta e dois tipos especiais de doenças que afligem as mulheres — possam adquirir as mesmas vantagens daqueles que têm um corpo masculino". 117

Um pratyekabuddha ou um "realizado solitário" é um praticante do Hīnayāna que alcança a cessação do sofrimento sem se fiar em um mestre. 118

Perfeita Alegria (sânsc. pramuditā-bhūmi; tib. sarab tu dga’ ba): nome do primeiro dos dez bhūmis ou níveis de bodisatva. Veja nota 47. 119

Shakya Lodrö e Rinchen Zangpo foram discípulos de Atīsha Dīpaṃkara, que reestabeleceu o budismo no Tibete depois do período de perseguição no reino do rei Langdarma. Veja o Blue Annals, pág. 262. Nada é conhecido com certeza sobre os paṇḍitas indianos com quem os tradutores trabalharam. É possível que Sumatikīrti que auxiliou Ngok Loden Sherab (1059-1109) fosse o mesmo paṇḍita que ajudou Marpa (1012-1099) na tradução de textos do ciclo Saṃvara. Veja Blue Annals, pág. 384. 120

Butön (Bu stom), 1290-1364, um adepto da escola Sakya e um importante erudito da tradição do budismo tibetano. Ele organizou e compilou o Cânone Escritural. 121

Tāranātha, também conhecido como Kunga Nyingpo (Kun dga’ snying po), 1575-1608, um renomado erudito tibetano e membro da escola Jonangpa. 122

Yeshe Peljor (ye she dpal ’byor), 1704-1777(?), autor do Paksam Jönzang (dpag bsam Ijon bzang), traduzido e editado por Shri Sarat Chandra Das com o título The history of the rise, progress and downfall of Buddhism in India. Veja Amalia Pezzali, Ṡāntideva: mystique boudhiste des VIIe et VIIIe siècles. 123

124

Veja Pezzali, págs. 27-32.

Os relatos de Butön e Tāranātha são os mais elaborados e detalhados dos 4 citados. Entretanto, eles não estão de acordo em certo número de questões, sendo as mais importantes na apresentação cronológica dos eventos. Tāranātha coloca o incidente da "espada de Mañjushrī" e o reconhecimento de Shāntideva como um mestre realizado antes de sua entrada na vida monástica em Nālandā. Butön faz o inverso. Pezzali opta pela ordem dada por Tāranātha, considerando incompreensível que Shāntideva tenha se tornado um guarda-costas real depois de ser um monge em Nālandā. Ao fazer isso, talvez ela esteja desnudando um preconceito ocidental, ao pressupor — possivelmente baseada em precedentes cristãos — que seria normal que uma renúncia monástica viesse no fim de uma carreira mundana. Porém, sob o ponto de vista do budismo indiano e também do budismo tibetano (onde a mesma tendência é observada ainda hoje), a ordem dos fatos dada por Butön e seguida por Kunzang Pelden é mais plausível, ou seja, um momento de renúncia seguido por um período de treinamento no monastério (certamente de tipo extraordinário), culminando com o abandono das restrições clericais e abraçando o estilo de vida de um siddha itinerante. De fato, a história de Busukhuwa, em Masters of Mahamudra: songs and histories of the eighty-four Buddhist siddhas, parece se referir claramente a Shāntideva; e os aspectos tântricos das vidas dos siddhas poderão, talvez, explicar a presença no Tengyur tibetano de comentários tântricos atribuídos a Shāntideva. 125

Shāstra (tib. bstam bcos), um comentário que ilustra especificamente o significado das palavras de Buda. As três qualificações para compor shāstras são: realização perfeita da realidade última, visão da deidade yidam e conhecimento completo das cinco ciências. 126

Nālandā'i bkod pa phun tshogs (a conduta perfeita em Nālandā). Isso se refere às atividades de Shāntideva em Nālandā, a mais evidente das quais foi o ensinamento sobre o Bodhicharyāvatāra, mas também inclui os estudos, meditações e visões secretas de Shāntideva. 127

128

Atualmente em Gujarat.

Tib. 'jam dpal rnon po ‘i sgrub thabs, uma sādhana, ou prática meditativa, baseada no bodisatva Mañjushrī, que é executada com a intenção de desenvolver inteligência e acuidade. O fato de Shāntideva ter tido uma visão de Mañjushrī significa que ele alcançou a realização completa dessa sādhana. 129

Seguindo a tradição, observada até os dias de hoje, Shāntideva adotou um elemento do nome do abade que o ordenou. 130

Qualidades espirituais que reluzem na mesma proporção em que os véus cognitivos e emocionais são removidos da mente. Veja Treasure of Precious Qualities, págs. 125-134. 131

132

Ou seja, estudo, meditação e atividades tais como imprimir livros, produzir medicamentos etc.

133

Ver Capítulo 5, estrofes 105 e 106.

134

Tib. mchod rten dpal yon can.

Essa referência às ameaças de Machala não está clara. Não conseguimos verificar os nomes em sânscrito dados aqui. Tomamos a liberdade de seguir Butön, cujas considerações Kunzang Pelden, em todos os outros aspectos, seguiu rigorosamente. 135

Ver B. Bhattacharya, Foreword to the Tattvasamgraha (Baroda, 1996). Aqui Bhattacharya anuncia sua descoberta do Tattvasiddhi, um então desconhecido tratado tântrico escrito em sânscrito. O colofão declara e, de acordo com Bhattacharya, o estilo do documento confirma que o texto foi composto por Shāntarakṣhita. 136

Talvez um número simbólico. Quatorze desses comentários foram traduzidos para o tibetano. Ver Bibliografia. 137

Kawa Peltsek (ka ba dpal brtsegs), um dos mais antigos e maiores tradutores tibetanos. Ele foi provavelmente um dos "sete postos à prova", ou seja, os primeiros sete tibetanos a adotar a vida monástica (chamados assim porque sua ordenação foi uma experiência feita para provar se os tibetanos eram capazes de manter o compromisso monástico). O nome de Kawa Peltsek nem sempre aparece na lista dos sete (há vários relatos), mas há poucas razões para se duvidar que ele foi ordenado por Shāntarakṣhita. 138

O Shikṣhāsamucchaya ainda existe em sânscrito e uma tradução tibetana (tib. bslab btus) foi preservada no Tengyur. O Sūtrasamucchaya (tib. mdo btus) se perdeu. De fato, a existência do Sūtrasamucchaya composto por Shāntideva e distinto da obra de mesmo título atribuída a Nāgārjuna foi colocada em dúvida por estudiosos ocidentais. Ver Pezzali. 139

140

Isto é, o estado em que a dualidade de "eu" e "outro" é totalmente transcendida.

Toda a força desse argumento está enraizada no axioma budista fundamental que, apesar de estarem proximamente associados, o corpo material e a mente imaterial são entidades de natureza completamente diferente. Algumas conclusões são tiradas a partir daí, o que pode ser ilustrado pelo exemplo de uma doença física. Um órgão com câncer, digamos, não é doloroso em si. É simplesmente um pedaço de carne, cuja estrutura celular foi modificada para além de sua condição normal. Na medida em que o órgão pertence a um corpo vivificado pela presença animada de uma mente, entretanto, o órgão é reconhecido como o assento de sensações que são identificadas como dor. E o sentimento de dor pode ser agravado por emoções tais como ansiedade e medo que derivam da mente que identifica a doença como sua. Dessa forma, surge o sofrimento e o pesar de pensar, por exemplo: "Estou com dor, eu tenho câncer; minha vida está destruída; vou morrer". Em qualquer doença, entretanto, a mente, sendo imaterial, não sente, e não pode sentir, diretamente, o estado puramente físico desse suporte material. Todavia, a condição anormal do corpo torna-se sofrimento 141

da mente à medida que o primeiro é identificado, apegado e aceito por esta. Se, como Kunzang Pelden acredita, o apego ao corpo como "meu" (e portanto adotar suas indisposições como "meu sofrimento") é uma questão de orientação psicológica e hábito, isso significa que, por um processo estrênuo de treinamento, ele pode ser redirecionado. A mente pode ser ensinada a identificar como sua própria dor não apenas a de seu suporte físico atual, mas também a do corpo de outros. Quando o objeto de identificação e apego é alterado, a experiência de sofrimento e dor, e a extensão dessa experiência, também se modificará. Há registro de que, certa vez, quando Maitriyogin estava ensinando, alguém jogou uma pedra em um cachorro que latia, e o animal ficou gravemente ferido. Maitriyogin deu um grito de dor e caiu do trono onde estava sentado. Para o espanto e constrangimento dos discípulos — que estavam inclinados a não levar em conta o comportamento do mestre, considerando-o como um gesto teatral exagerado — Maitriyogin levantou sua camisa para que eles vissem uma grande ferida em seu corpo, exatamente no mesmo lugar em que o cachorro tinha sido atingido. 142

Está registrado no Mahābhiniṣhkramaṇa que Devadatta, primo do príncipe Sidhārta, pegou um arco e flecha e atirou em um cisne. A criatura caiu, mas não morreu. O futuro Buda colocou o pássaro em seu colo e o confortou. Devadatta mandou que buscassem sua presa, sem dúvida com a intenção de matá-la, mas Buda recusou-se a entregar o cisne, afirmando que o pássaro lhe pertencia. Uma extraordinária descrição do incidente pode ser encontrada em The light of Asia, de Sir Edwin Arnold, pág. 11. ... Assim nosso Senhor Colocou o pescoço do cisne próximo à sua própria face macia E solenemente declarou: "Eu digo não! O pássaro é meu, A primeira da infinidade de coisas que deverão me pertencer Por conta do direito do perdão e da majestade do amor..." 143

Referência à Machig Labdrön, grande iogue tibetana e discípula do mestre indiano Padampa Sangye. Ela é particularmente exaltada como a propagadora de chöd (tib. gcod), prática meditativa em que o corpo do praticante é oferecido como alimento a espíritos malevolentes. 144

Khenpo Kunpel considera que Shāntideva fez a estrofe 94 na forma de um argumento probatório (sânsc. prayoga; tib ‘byor ba, às vezes traduzido, embora menos satisfatoriamente, como "silogismo"). De acordo com as regras da lógica indiana, um argumento probatório consiste em uma tese ou declaração feita sobre um sujeito e um predicado, apoiado em um sinal ou causa válida e ilustrada por um exemplo. "Nessa colina há fogo (tese) porque há fumaça nela (sinal ou causa), como encontramos em uma cozinha (exemplo). Seguindo o mesmo formato, segue o argumento de Shāntideva: "Eu eliminarei o sofrimento dos seres (tese) porque o sofrimento não os beneficia (causa), da mesma forma que removo meus próprios desconfortos (exemplo)". Dado que os argumentos probatórios são normalmente compreendidos como tendo o efeito de uma demonstração ou prova de algo, descrever a declaração na estrofe 94 em tais termos parece bastante forçado. Porém é importante perceber que, para Shāntideva, a decisão de beneficiar os outros é uma questão 145

de necessidade lógica e impessoal; não é uma questão de sentimento moralista e de necessidade de sentir que se "é uma pessoa boa". Isso quer dizer que, excluindo a pura aleatoriedade, é impossível demonstrar que eles sejam diretamente produzidos por seus antecedentes. Em outras palavras, é impossível provar a relação entre uma causa e o seu efeito, apesar do processo causal nunca falhar. 146

Esta estrofe foi extraída do Fundamental treatise on the Middle Way (Mūla-madhyamika-kārikā), composto por Nāgārjuna. (18.10) 147

Tib. rigs ‘dra rgyun mi chad pa. Isso significa que, quando um momento de consciência termina, surge um novo que é idêntico em sua essência ao precedente — ou seja, uma mera cognição — mas que varia de "cor" de acordo com as circunstâncias cármicas. Há simplesmente um continuum de momentos interligados, sem que exista nenhuma fundação, nenhuma entidade subjacente, que subsista como "experienciador" de um fluxo de eventos extrínsecos. 148

149

Tib. rtag chad.

Por toda essa descrição da troca de "eu" e "outro", Shāntideva usa os pronomes contrastantes "eu" e "ele". Seguindo o uso tibetano, esses mesmos pronomes aparecem no comentário sem que o significado seja obscurecido. Descobrimos, contudo, que torna a compreensão mais clara traduzir a palavra tibetana bdag ("eu") como "você", já que o narrador, no comentário quem Khenpo Kunpel, é quem se dirige ao leitor. Não é preciso dizer que essas reflexões são direcionadas a todos os leitores, independentemente do sexo e, portanto, o pronome da terceira pessoa poderia ser tanto "ele" como "ela". A repetição constante de ambos os pronomes seria demasiado entediante; assim, em deferência à situação pessoal de Shāntideva (um homem que morava em uma comunidade de monges), mantivemos o pronome masculino. 150

Table of Contents Página de Título Prefácio Prefácio Prefácio à edição revisada Prefácio à edição revisada Introdução O DESPERTAR DA BODITCHITA PROTEGER E MANTER A BODITCHITA INTENSIFICAR A BODITCHITA O CAPÍTULO SOBRE A SABEDORIA O texto e a tradução O caminho do Bodisatva 1. A EXCELÊNCIA DA BODITCHITA 2. CONFISSÃO 3. APODERAR-SE DA BODITCHITA 4. CUIDADO 5. INTROSPECÇÃO VIGILANTE 6. PACIÊNCIA 7. DILIGÊNCIA 8. CONCENTRAÇÃO MEDITATIVA 9. SABEDORIA 10. DEDICAÇÃO Apêndice 1 - Biografia de Shāntideva Apêndice 2 - A igualdade do "eu" e "outro" Apêndice 3 - A inversão de posições entre "eu" e "outro" Bibliografia Obras Citadas Notas de rodapé