Novas vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no Século XVIII 8586774022

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Novas vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no Século XVIII
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0 A publicação de New Towns for Colonial Brazil, W d a Dra Roberta Marx Delson; em 1979, foi um A fe ito pioneiro. Naquela época poucos * > estudiosos admitiam a idéia de que ^historicamente houvera pma padronização ■ das vilas no Brasif-colônia, , a concepção revolucionária de tím planejamento no nível g macroeconômico nd sécuío XVill era ainda - mais impensável

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No entanto, hoje as idéias da Dra: Delsori' são encaradas como um ponto crítico no âmbito mais amplo do estudo do urbanismo português. Aquilo oue foi praticado no Brasil naturafmente teve ■, I ■ a sua correspondência em Portugal e foi experimentado em menor escala em outras colônias do reino.

Mas foi o Brasil, cóm seu território ' - aparentemente infindo e suas massas errantes, gue atraiu os administradores ^portugueses. 2 Eles encaravam a sua colônia como um vasto laboratório espacial no qual eles deveríam criar >um cidadão novo e socialmente aceitável, alojado em composições arquitetônicas _ . perfeitamente alinhadas e homogêneas. Não é absurdo afirmar que suas idéias ainda r hoje têm repercussão. E com imenso prazer que damos a lume, pela primeira vez em português, esta obra de imensurável valor.

NOVAS ViLAS PARA O BRASIL-COLÔNIA Planejamento Espadai e Sodal no Século XVIII Um livro das edições ALVA-CIORD

Roberta Marx Delson

Novas Vilas para o Brasil-Colônia Planejamento Espacial e Social no Século XVIII

O que é o CIORD O Centro Integrado de Ordenamento Territorial - CIORD é resultado de um Convênio assinado entre a Universidade de Brasília - UnB e a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República SAE/PR, em 16.09.95. Está voltado para o desenvolvimento de um trabalho interdisciplinar no campo do Ordenamento Territorial, em colaboração com Faculdades, Institutos, Departamentos e Centros da UnB e de outras Universidades Brasileiras e Estrangeiras, orgãos governamentais, ONG’s e Empresas.

O que são as Edições ALVA As Edições ALVA têm por objetivo agilizar a divulgação de conhecimento produzido sobre questões práticas e conceituais de territorialidade e da adequação social à mesma, de geopolítica, das relações cidade/ campo e cidade/região, de arquitetura e urbanismo, bem como de sua história.

CIORD Centro Integrado de Ordenomento Territorial

Edições ALVA

© Roberta Marx Delson, 1979. Título do original em inglês: New Townsfor Colonial Brazil. Spalial and Social Planning of the 18th Century Dellplain Latin-Ametican Studies 2 Editor: David j. Robinson Departamento de Geografia da Universidade de Syracuse, Estado de Nova York, 1979

Edição para o Brasil: Tradução e Revisão de texto: Fernando de Vasconcelos Pinto Composição gráfica: Frank Svensson Capa: Adriana Tavares de Lyra Miriam Vargas Apoio: CIORD Centro Integrado de Ordenamento Territorial - Universidade de Brasilia Editoração: Editora ALVA Ltda. © SCLN 406 Bloco E Sala 110 70 910-900 Brasília DF Fone: (061) 347 45 33 Fax (061) 347 35 33

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília Delson, Roberta Marx Novas vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no Século XVIII/Roberta Marx Delson; [tradução e revisão, Fernando de Vasconcelos Pinto; composição gráfica, Frank Svensson; capa Adriana Tavares de Lyra, Miriam Vargas]. - Brasília : Ed. ALVA-CIORD, 1997, Cl 979. Traduzido de: New towns for colonial Brazil: spatial and social planning of the 18th Century. ISBN 85-86774-02-2 1.72”17’(81)I. Titula II. Título: Planejamento espacial e social no Século

xvin ISBN 85-86774-02-2

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À memória do erudito Professor E. Bradford Burns, detentor da comenda da Ordem do Rio Branco e meu mentor e amigo.

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Dedicatória Sumário Relação das ilustrações Abreviaturas Prefácio à edição brasileira Prefácio à edição em inglês Frase-chave

I III IV V

Capítulo I : O mito da cidade brasileira sem planificação ---------- ----1 ~ C a p í t u l o II : A formulação de um programa de construção de vilas ^ ----- --------* 9 Capítulo III : Aplicando o modelo: primórdios experimentais no Nordeste-----— 17 Capítulo IV : A expansão da autoridade: novas vilas no Centro e no Oeste r27 Capitulo V : Um repertório dos princípios de construção: São Paulo e o Sul 41 —— ^5Capítulo VI : O Marquês de Pombal e a política portuguesa de “europeização”^ - --------- 49 Capítulo VII : Planificadores e reformadores- ------69 Capítulo VIII : A arborização das cidades brasileiras do fim da era colonial 89 Capítulo IX :O programa de novas vilas numa visão panorâmica____ 95 Bibliografia 107 Apêndice 118 índice onomástico remissivo 120

III

i 1 i R ela çã o das ilustrações F ig u ra 1 2 3 4 5A 5B 6A 6B 7 8A 8B 9 10 11 12 13A 13B 14A 14B 15 16 17 18 19 20 21A 21B 22 23 24 25A 25B 26 27

IV

L egenda Planta básica de São João de Parnaíba, 1798 Croqui de Fortaleza, Ceará, aproximadamente 1730 Planta de Sumidouro, em Minas Gerais, 1732 Planta básica de Cuiabá, Mato Grosso, 1777 Planta básica de Vila Boa, Goiás, 1782 Planta de Vila Boa mostrando o realinhamento, aproximadamente 1782 Detalhe de Vila Bela, 1773 Planta básica de Vila Bela, 1780 Planta de Mariana, em Minas Gerais, depois da reconstrução de 1746-1747, sem data Planta básica de Barcellos, no rio Negro, tal como foi redesenhada por Felipe Sturm, 1762 O novo projeto para Barcellos, sem data Planta básica de São Miguel, 1765 Planta básica de Balsemão, 1768 São José de Macapá, no Amapá, 1761, mostrando o desenho da praça dupla São José de Macapá: detalhe da disposição das habitações, 1759 Esquema inicial de Nova Mazagão, no Amapá, sem data Nova Mazagão, aproximadamente 1800 Detalhe de Lisboa no século XVI O novo projeto de Lisboa depois do terremoto de 1“/H /1 7 5 5 (1755) Planta básica de Vila Viçosa, aproximadamente 1769 Planta básica de Portalegre, aproximadamente 1772 Planta básica de Prado, aproximadamente 1772 Planta básica de Guaratuba, Paraná, final do século XVIII Planta da praça forte de Iguatemy, aproximadamente 1785 Planta básica de Albuquerque (atualmente Corumbá), Mato Grosso do Sul, 1784 Planta básica e situação de Vila Maria do Paraguay, em Mato Grosso, 1784 Ilustração do dia-a-dia em Vila Maria do Paraguay Planta básica de Casalvasco, em Mato Grosso do Sul, 1782 Planta básica de Corumbá (antiga Albuquerque), Mato Grosso do Sul, 1786 Planta básica da Aldeia Maria para os índios caiapós, Goiás, 1782 Detalhe de São José de Mossamedes, Goiás, 1801 Planta básica em perspectiva de São José de Mossamedes, 1801 Planta básica de Linhares, no Espírito Santo, 1819 Localização de aglomerações urbanas planificadas no Brasil-colônia

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A breviatura s ABAPP ABNRJ AHI AHI-IA AHU AHU-CA AHU-Iria ANRJ APM BA BMSP BNL-AP BNRJ-RC BNRJ-SI CLB DH-BNRJ D1HSP H AH R IHGB IHGB-CU MCM MIGE MU-CI RIC RIHGB R SPH A N SGL

Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará, Belém Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro Arquivo Histórico do Itamaratv, Rio de Janeiro Catálogo da mapoteca do Arquivo Histórico do Itamaratv, de Isa Adonias, Rio de Janeiro Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa Catálogo de documentos do Arquivo Histórico Ultramarino de Castro Almeida Catálogo do acervo de mapas relativos ao Brasil de Alberto Iria, Lisboa Arquivo Nacional, Rio de Janeiro Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte Biblioteca da Ajuda Biblioteca Municipal de São Paulo Biblioteca Nacional, Lisboa, Acervo Pombalino Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Registro de Cartas de Luiz Antônio de Souza Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Seção de Iconografia Colecção de Leis do Brasil, Rio de Janeiro Documentos Históricos, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, São Paulo Hispanic-American Historical Review Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro Reproduções de documentos do Conselho Ultramarino guardadas pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro Correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado contida em A Amazônia na Era Pombalina, de Marcos Carneiro de Mendonça, 3 volumes Mapoteca do Instituto de Geografia do Exército, Rio de Janeiro Ministério de Ultramar, Lisboa, acervo de reproduções fotográficas de mapas da Casa da Insua Revista do Instituto do Ceará Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro Sociedade de Geografia, Lisboa

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Introdução à edição brasileira

Transcorreram quase 20 anos desde que es­ creví Novas Vilaspara o Brasil-Colónia. Não pude deixar de sorrir ao constatar que o livro acabara me transform ando numa espécie de grands dame de uma nova geração de intelectuais que agora iniciavam o estudo sistemático da urbanização no âmbito mais amplo da totalidade do império português, numa escala nunca antes imaginá­ vel. Uma parte desse esforço intelectual resultou de estudos promovidos e financiados pela Co­ missão Nacional para as Comem orações dos Descobrimentos Portugueses. A CNDP, inteli­ gentemente, criou uma subdivisão de estudiosos que neste m om ento estão coordenando uma comparação inédita de todos os escritos existen­ tes sobre a expansão e o desenvolvimento urba­ no português, em conexão com a meta mais abran­ gente da comemoração do quinto centenário dos grandes descobrim entos portugueses. Fiquei satisfeita de o organizador desse empreendimen­ to, o Professor Walter Rossa, da Universidade de Coimbra, erudito arquiteto português, ter ti­ do conhecimento do meu livro e, depois de mui­ ta dificuldade em me localizar, ter me incluído nesse novo projeto empolgante. Igualmente gratificante foi a proposta ex­ trem am ente generosa que o Professor Frank Svensson, da Universidade de Brasília, me fez há algum tem po de relançar o meu livro numa edição em língua portuguesa. Naturalmente eu aceitei a sua proposta com muita satisfação. Ao que parecia, ele também conhecia o meu livrinho e, sem eu saber, eu tivera leitores no Brasil, bem como em Portugal. Muito a propósito para con­ firmar isso, bem recentemente aconteceu algo numa sessão sobre planejamento urbano nos encontros da Brazilian Studies Association, em Washington, DC. Quando me aproximei de um jovem colega brasileiro para felicitá-lo pela sua

preleção, ele reconheceu-me imediatamente “Ah” - disse ao ver o meu crachá -, “Novas Vilas...” Evidentemente sinto-me satisfeita e lisonjeada de ser considerada um dos fundadores desse novo campo de estudos que é a história do urbanismo e da planificação portuguesa, que não para de crescer. j^ n o entanto, com toda a devida modéstia, devo confessar que fiquei tomada de emoção por ser subitamente “desco­ berta”. Quando realizei a minha pesquisa no Brasil e em Portugal, há muitos anos, é claro que eu tinha pouca consciência de que o meu estudo era “pioneiro”1, mesmo reconhecendo que estava desafiando o saber convencional. Certamente eu tive o privilégio de conhecer al­ guns dos mais eminentes estudiosos da maté­ ria, como Otávio Ianni, Pedro Pinchas Gei­ ger, Sérgio Buarque de Holanda, A rtur Cézar Ferreira Reis, Nestor Goulart Reis Filho, Jorge Hardoy e Graziano Gasparini, entre outros, e de discutir o meu projeto com eles. Na Universi­ dade de Colúmbia, estudei com E. Bradford Burns, Lewis Hanke, Charles Wagley, George Collins e, exatamente no seu último ano na faculade, com o legendário Frank Tannenbaum. Quando o livro foi publicado, graças aos bons ofícios de David Robinson (da Universi­ dade de Syracuse, no estado de Nova York, onde me bacharelei), ainda encontrei algum cepticismo, principalmente entre os meus colegas dos Estados Unidos. Como é que eu sabia que Vila Bela fora construída conforme eu descrevera, ou que Cazal Vasco (sic), cuja planta ilustrava a capa original, havia sido ajustada à retilineidade prescrita? Retruquei-lhes que os documentos existentes atestavam que a legislação de planeja­ mento urbano havia sido realmente obedecida. Além do mais, eu havia palmilhado pessoalmente as ruas de várias comunidades coloniais plani-

VII

ficadas remanescentes, como Mariana, em Mi­ nas Gerais, e Viamâo. no Rio Grande do Sul, sem falar em Lisboa, e podia afirmar, de visu, que ainda existiam provas daquilo que fora uma tendência. Ainda assim as dúvidas persistiam. Será que tudo aquilo era apenas uma abordagem fantasiosa? Talvez convencer os outros leve anos. No verão passado eu tive o prazer quase insuportá­ vel de ouvir uma jovem arquiteta brasileira dizerme que havia “descoberto” as ruínas de Vila Bela e que as medições que ela efetuara nos restos das edificações estavam exatamente de acordo com as especificações de Rolim de Moura. Além disso, ela havia localizado a “verdadeira” Cazal Vasco (não a nova aglomeração de mesmo no­ me), e esta também oferecia provas de que as ordens originais de planejamento haviam sido cumpridas. Estou imensamente penhorada a Re­ nata Malcher de Araújo pelas suas explorações corajosas e por ela ter dissipado qualquer resquí­ cio de dúvida que eu possa ter tido. Como era esperável, junto com os inevitá­ veis desgastes do tempo, eu experimentei um ine­ vitável amadurecimento das minhas idéias. Ain­ da estou firmemente convicta de que o plano diretor português para o Brasil do século XVIII era tão maravilhoso por seus objetivos quanto eu o havia considerado anos atrás, mesmo que a sensibilidade dos estudiosos modernos rejei­ te as bases dessa abordagem. Porém igualmente intrigante, eu acho, é uma conclusão a que cheguei paulatinamente. Concentrando-me nova­ mente nos dados originais e com o auxílio de pesquisas ulteriores, eu consegui compreender como a cultura material se desenvolveu no Bra­ sil colonial e apreciar as suas relações com o fenômeno mais amplo do colonialismo. Antes de tudo, estou convicta de que os portugueses tinham uma compreensão racional e claramente definida do que eles podiam e do que não po­ diam realizar. Com isso eu quero dizer que pare­ ce que eles estavam dispostos a transigir na sua maneira de proceder e mesmo a adaptar às for­ mas culturais locais, se isso favorecesse a acei­ tação global das normas portuguesas. Sugeri

VIII

isso no meu livro quando afirmei que, embora houvesse uma regulamentação das fachadas ex­ ternas das casas nas novas comunidades cons­ truídas no sertão, em muitas localidades os ad­ ministradores permitiam aos habitantes porem em prática suas próprias idéias no tocante ao interior de seus lares. Embora alguns colegas possam considerar isso apenas um “verniz de europeização”, ainda me inclino a encará-lo como uma disposição de aceitar uma cultura “híbrida”. Essa hibridação conduziu a conciliações que atendiam tanto à contribuição local como às exigências da metró­ pole, e que resultaram em soluções admiráveis e muitas vezes notavelmente adequadas para a localidade em questão. Como as ilustrações da época indicam, era perfeitamente possível cons­ truir uma casa em estilo europeu nas comunida­ des interioranas, mesmo utilizando, por exem­ plo, folhas de palmeira em vez de paredes de pedra e cal. Presentemente também me sinto propensa a dar maior destaque ao papel dos imi­ grantes das ilhas do Atlântico (na maior parte açorianos), pelo seu trabalho de adaptação e cria­ ção de uma nova cultura colonial. Em vista dis­ so, meus estudos afastam-me cada vez mais de concepções de dominação total (ou do fenôme­ no aposto, a repressão) e conduzem-me àquilo que acho que identifiquei instintivamente (e in­ sinuei neste livro), a saber adaptabilidade e for­ mas híbridas.2 Tudo isso alcança esse grau de maior clare­ za quando colocado no âmbito mais amplo dos estudos do colonialismo português em escala global. Parece que a adaptação, a remodelação e a fusão da cultura local com formas puramente européias são reconhecidas universalm ente como sinônimos do colonialismo português.3 Desconfio que os portugueses sabiam que nun­ ca poderíam dominar completamente o Brasil, nem moldar a sua cultura de maneira inteira­ mente européia, porém a cultura rural que eles procuraram criar (por meio da pequena proprie­ dade rural e das redes agrícolas regionais) certa­ mente era um passo naquela direção. Isso real­ mente ainda tem repercussões no Brasil de ho­

je, exatamente como eu observei há quase 20 anos. Quero externar o meu agradecimento ao Professor David Robinson, ainda hoje editor da Série Dellplain de Geografia, por sua anuência para a republicação deste estudo. Como sempre, sou reconhecido ao meu esposo, Dr. Erik D el­ son, invariavelmente paciente pela sua ajuda e incentivo durante todos esses anos, e à sua cole­ ga Lorraine Mesker, pela sua ajuda no que se referiu às ilustrações. Estou grata igualmente a Wolney Unes, da Universidade de Brasília, pela sua atuação com o intermediário no andamento das providências e pela gentileza de expedir mi­ nhas interm ináveis m ensagens pelo correio eletrônico. Sobre a tradução extraordinaria­ mente perspicaz de Fernando de Vasconcelos Pinto, só posso dizer que mal posso crer que ele conseguiu captar todas as nuances do meu trabalho. Acho que o maior elogio que lhe posso fazer é que o livro está mais bem escrito em por­ tuguês do que em inglês. Finalmente, quero agradecer ao Professor Frank Svensson por me proporcionar a opor­ tunidade de atingir um círculo de leitores brasi­ leiros ainda mais vasto. Só posso esperar que esta edição em português da minha obra conti­

nue a encorajar estudiosos mais jovens a pros­ seguirem as pesquisas que empreendí. Roberta M arx Delson Fort Lee, Nova Jersey Junho de 1998

(1) Essa foi a apreciação benevolente de minha obra que Walter Rossa fez na sua monografia apre­ sentada no IV Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, realizado no Rio de Janeiro em novembro de 1996, intitulada “O urbanismo re­ gulado è as primeiras cidades coloniais portugue­ sas”. (2) Ver Nicholas Thomas, Colonialism’s Culture: An­ thropology, Travel and Govemement. Princeton Uni­ versity Press, Princeton, Nova Jersey, 1994. Ver também Roberta Marx Delson, “Between Im­ perial Domination and Resistance: The process of creating material culture in the late colonial Amazon” , em fase de elaboração. (3) Urs Betterli, Cultures in Conflict: Encounters between Euyropean and Non-European Cultures, 1492-1800. Polity Press, Cambridge, Inglaterra, 1989.

I

Prefácio da edição em inglês

Para muitos brasileiros, a criação da nova capital federal, Brasília, significou o início da planificação urbana formal no seu país. Na melhor das hipóteses, quando questionados sobre a exis­ tência de planos diretores para suas cidades, os brasileiros, na sua maioria, dizem que tais planos não existem, e lembram a miséria das favelas sem previsão e sem estrutura. Essa visão absolu­ tamente não se restringe ao vulgo; ela também é característica dos mais ilustrados. Assim sendo, quando fui admitida na Uni­ versidade Columbia com o estudante de pósgraduação, como de praxe, logo fui familiarizada com o “fato” de que não houvera planejamento para a cidade do Brasil-colônia como uma pre­ missa im portante da história latino-americana. E m bora eu evidentem ente não tivesse c o n ­ dições de questionar as conclusões de especia­ listas no assunto, fiquei a imaginar por que os portugueses da era colonial, ao contrário dos seus contem porâneos espanhóis, não tinham nenhum desejo preconcebido de estabelecer um ordenam ento urbano. Eu não compreendia co­ mo os dois impérios ibéricos, que tinham forma­ ções, culturais tão acentuadamente semelhantes, poderíam diferir tanto nas suas respecrivas abor­ dagens da povoação colonial. As implicações de uma suposta diferença como essa são enor­ mes: se os espanhóis eram zelosos no seu empe­ nho em introduzir um ordenamento racional nas cidades coloniais das Américas, em comparação com os portugueses, tende-se naturalmente a concluir que estes devem ter sido relaxados e irresponsáveis com relação ao desenvolvimento municipal brasileiro. Decidindo dedicar-me a essa questão na m inha pesquisa de d o u toram ento, eu cedo percebi que a consabida “falta de planejamento” para as cidades do Brasil colonial na realidade

era um mito. Desde os primeiros anos do po­ voamento português, quando o governador-geral Tomé de Souza chegou para construir a capi­ tal de Salvador da Bahia com uma planta já traça­ da no bolso', há indícios da preocupação da Co­ roa portuguesa com o desenvolvimento de cen­ tros urbanos primários, preocupação essa que no século XVIII foi sistematizada numa filosofia completa de planejamento urbano. Enquanto eu aprofundava a minha compreensão do tema e acumulava dados, evidenciou-se que o prin­ cipal problema intelectual na minha investigação não era caracterizar os dois sistemas coloniais ibéricos, nem mesmo refutar o mito de que a ci­ dade brasileira não era planificada, mas sim ana­ lisar o surgimento de códigos de urbanização no Brasil setecentista como reflexo do absolutismo português na colônia. Quando a minha tese começou a evoluir para um manuscrito da extensão de um livro, eu me concentrei cada vez mais em questões de política e metas administrativas, em vez de limi­ tar o meu tema a estilos arquitetônicos. Em conseqüência, a proposição dominante nesta obra é que o programa de construção de cidades do século XVIII não constituía apenas uma prova do conhecimento rigoroso das técnicas arquitetônicas da época por parte dos administradores coloniais, mas revelava uma mudança de atitude da Coroa para com o Brasil. Examinando os do­ cumentos e mapas de planejamento urbano ana­ lisados até agora, eu consegui distinguir um padrão que depõe fortemente em favor da exis­ tência de um “plano diretor” português abran­ gente para o povoam ento no século X VIII. Minhas investigações conduziram-me a analisar áreas povoadas distantes dos centros urbanos tradicionais, como o Rio de Janeiro e Salvador da Bahia (os quais já foram bem estudados). Mi-

XI

nha arencão foi atraída para o desenvolvimento de cidades t viias em regiões muito afastadas da faixa litorânea e situadas bem dentro da vastís­ sima hinterlândia brasileira. O planejamento urbano no Brasil chegou equivaler à política de controle e absolutismo: a configuração urbana caprichosamente regula­ mentada que orientou a construção interiorana no século XVIII desenvolveu-se como uma re­ presentação simbólica de “bom governo”, uma indicação de que a sociedade estava funcionando dentro de limites predeterminados e disciplina­ dos. Essa fórmula imbuiu o pensamento dos administradores coloniais em toda a década de 1780, e na realidade as preferências estilísticas pela simetria barroca predominaram até uma época bem avançada no século seguinte. E difícil agradecer a todas as pessoas que me ajudaram nesse esforço. Sem dúvida o Pro­ fessor E. Bradford Burns merece uma menção especial, por seu interesse constante pela Histó­ ria do Brasil. Estou reconhecida aos Professores John Mundy e Herbert Klein, da Universidade Colúmbia, pelo seu encorajamento e apoio aos meus planos durante a fase de dissertação. No decorrer da minha pesquisa, o Professor N estor G oulart Reis Filho, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, deume sugestões valiosas que posteriormente eu pude incluir no contexto deste estudo. O Pro­ fessor Robert M. Levine, da Universidade Esta­ dual de Nova York, em Stony Brook, prestoume valiosa consultoria e apoio intelectual em períodos particularmente árduos. O Professor Jorge E. Hardoy, do Instituto Di Telia, de Bue­ nos Aires, também me assistiu no decorrer do meu estudo. Durante o período em que a exposição evo­ luiu para um livro, muitas vezes fui orientada pelos meus colegas do Departamento de Histó­ ria da Universidade Rutgers de Newark (Califór­ nia). Agradeço com especial empenho ao Pro­ fessor Samuel Bailey, do Departamento de His­ tória da Universidade Rutgers de New Bruns­ wick (Nova Jersey), pela leitura rigorosa do ma­ nuscrito original. O entusiasmo do Professor

XII

David J. Robinson, editor da série em que esta obra se inclui, pelo meu es-tudo também foi imensamente importante. Enquanto eu realizava a pesquisa para esta monografia, em 1970 e 1971, fui subvencionada por uma bolsa de estudo de língua estrangeira da Defesa Nacional dos Estados Unidos, e tam­ bém recebi um subsídio da Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa. A essas duas institui­ ções, o meu reconhecimento. Além disso, quero registrar a minha gratidão às equipes de funcioná­ rios dos muitos arquivos cujos acervos eu con­ sultei, sempre muito solícitas. Em Lisboa, esses arquivos compreendem: o Arquivo Histórico Ul­ tramarino, a Torre do Tombo, a Biblioteca N a­ cional de Lisboa, a Biblioteca da Ajuda e a Socie­ dade Geográfica de Lisboa. N o Rio de Janeiro, atenciosamente, abriram suas portas para mim as seguintes bibliotecas e arquivos: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Pa­ trimônio Histórico e Artístico Nacional, Mapoteca do Serviço Geográfico do Exército e Arqui­ vo Histórico e Mapoteca do Itamaraty. O Sr. Marcos Carneiro de Mendonça, bondosamente, permitiu-me consultar seus arquivos particu­ lares relativos à Amazônia. Em outras cidades do Brasil, fiquei grata pela ajuda das equipes do Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte, da Biblioteca Municipal de São Paulo e dos arquivos da Câmara Municipal de Porto Alegre. A viagem suplementar que fiz ao Brasil em 1973, financiada pelo Conselho de Pesquisa da Univer­ sidade Rutgers, permitiu-me com plem entar a pesquisa para este livro e assistir ao Seminário sobre a Urbanização Latino-Americana em Belo Horizonte, no âmbito do Programa de Bolsas de Estudo para o Exterior do governo dos EUA. Fico penhorada a essas duas instituições pelo apoio financeiro que me deram. Finalmente, dentre todas as pessoas a quem devo agradecimentos especiais, meu esposo, Eric Delson, é merecedor da minha mais profunda gratidão. Sem a sua boa vontade em me conceder tempo para a minha pesquisa, apesar dos seus próprios compromissos acadêmicos, esta obra

não teria sido possível. Dedico este livro a ele e a meus pais, pelas suas incontáveis horas de paciência e pela confiança que em mim depo­ sitaram. N aturalmente a responsabilidade por eventuais erros cabe a mim. A

Autora

quiteto nomeado pela Corca. Embora não reste nenhuma cópia da planta inicia! da cidade, exa­ minando-se o mapa mais anúgo existente (cerca de 1620),verifica-se que na construção original foi utilizada uma planta urbana muito seme­ lhante à de uma cidade renascentista ideal. Veja-se a análise feita por Nestor Goulart Reis Filho na sua obra Contribuição ao Estudo da Erolução Urbana do Brasil: 1500-1720 (livraria Pio­ neira, São Paulo, 1968), pp. 68-69 et passim.

(1) Tomé de Souza chegou ao sítio da futura Salva­ dor em 1549, acompanhado por Luís Dias, ar-

XIII

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E m bora na nossa sociedade m oderna nós ou­ çamos falar muito em planejam ento urbano, é im por­ tante com preender que a arte de projetar e co n stru ir um a cidade a partir do nada não é um avanço científi­ co m oderno como a engenharia aeronáutica ou a físi­ ca nuclear. Ao contrário, essa arte é uma das habili­ dades profissionais mais antigas do mundo civilizado. Richard Currier em City Planning in Ancient Times

Capítulo I

O mito da cidade brasileira sem planifícação Os historiadores da América Latina há mui­ to tempo vêm ensinando aos seus alunos que os espanhóis construíram cidades planificadas no Novo Mundo. Tornou-se quase axiomático falar entusiasticamente das ruas admiravelmente traçadas em cruz e das praças centrais em qua­ drado que caracterizavam as aglomerações urba­ nas da América espanhola, chamando-se a aten­ ção do estudante para a legislação de planeja­ mento bem elaborada que acompanhava a cria­ ção dessas comunidades. . E ntretanto, esses mesmos historiadores tendem a infamar as vilas e cidades construídas pelos portugueses no Brasil. Segundo as opi­ niões geralmente aceitas, as cidades brasileiras originaram-se de povoações espontâneas não planificadas, em vez de obedecer a normas de planejamento metropolitano. A sapiência con­ vencional conclui que esse crescim ento alea­ tório só foi contestado no final da década de 1950, quando a criação da nova capital federal, Brasília, anunciou uma nova era de consciên­ cia urbana no Brasil. Poucos leigos (e mesmo historiadores) se lembram dos esforços de planificação envidados na construção de Goiânia, nos anos 1930, ou da utilização de um plano diretor na construção de Belo Horizonte no final do século XIX. Para os que aceitam o mito de que tradicionalmente não havia nenhuma regulamen­ tação para a cidade brasileira, a idéia de que hou­ ve antecedentes de um planejamento urbano abrangente no Brasil datando do século XVIII deve parecer algo como uma anormalidade. É visando a documentar a história desse planeja­ mento e analisar a sua motivação geopolítica que apresentamos a presente monografia. ■>- Essa não é uma tarefa simples. O estudante sequioso de conhecimento profundo da origem

e evolução das vilas e cidades brasileiras verifi­ caria que a sua investigação estaria terminada antes de começar, já que historiadores, arquite­ tos e geógrafos, indistintamente, têm tendido a descartar sumariamente o assunto. Típica das afirmações vulgares encontradiças sobre esse tema é esta opinião superficial de um arquiteto bra­ sileiro: “As cidades [do Brasil] cresceram um tan­ to desordenadamente em torno de igrejas, que geralmente se localizavam na área mais alta dis­ ponível. As ruas e travessas... ramificavam-se e serpeavam.”1 Igualmente dogmática é a asserção de que as vilas e cidades brasileiras foram fundadas “segundo uma configuração realmente extrava­ gante”.2 Entretanto, o mais prejudicial de todos é o conceito aventado por um célebre intelectual brasileiro de que “a cidade que os portugueses construíram no Brasil não é produto de uma reflexão, nem ela contradiz a conformação natu­ ral do terreno. ... [Ela não tem] nenhum rigor, nenhuma metodologia, nenhuma previsão.”3 As poucas tentativas sérias de resgatar a imagem~hegadva das vilas e cidades primitivas do Brasil têm mostrado uma tendência de racio­ nalizar a “predominância” da disposição espon­ tânea da cidade, em vez de contestar essa suposição infundada. Numa extremidade da gama de eruditos envolvidos nessa discussão está o histo­ riador da arte Robert C. Smith, que sustentava que os centros urbanos do Brasil colonial eram essencialmente recriações das cidades medievais portuguesas, completas com ruas tortuosas e bairros congestionados.4 Todavia, uma analogia como essa lança uma sombra nefasta sobre todo o processo da urbanização do Brasil, pois induz o estudioso a considerar os centros urbanos brasileiros historicamente retrógrados e artisti­ camente atávicos.

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O MITO DA CIDADE BRASILEIRA SEM PLANJFICAÇÂO

O MITO DA CIDADE BRASILEIRA SEM PLANIFICAÇÀO

Outros, numa posição mais intermediária, afirmam que os primeiros centros urbanos brasi­ leiros funcionavam bem do ponto de vista admi­ nistrativo, mas visivelmente careciam de qual­ quer plano diretor. Um comentarista dessa esco­ la opinou que . .as vilas maiores dó Brasil colo­ nial, qualquer que seja o grau em que a sua plan­ ta física tenha sido ajustada às condições locais e à topografia, representavam, como as vilas da América espanhola, a intromissão de uma ordem metropolitana já pronta”.5 Finalmente, situado na extremidade oposta dessa gama de sábios, Luís Silveira observou que a característica espontânea das cidades e vilas bra­ sileiras na realidade era uma bênção disfarçada: A relutância dos planejadores portugueses de além-mar em adotarem um sistema geométrico regular, contrariamente ao que Robert Smith escreveu,... não me parece um arcaísmo, mas resultou de uma longa experiência metódica na criação sistemática de cidades.... Eu diría... que a cidade estruturada portuguesa, com a sua característica medieval, tende para a cidade perfeita, aquela em que cada elemento exerce uma função natural, e é superior às cidades com planta em xadrez..., que muitas vezes denotam uma clara falta de compreensão do conceito da cidade como um organismo vivo, funcional e intelectuamente ativo e, conseqüentemente, sujeito aos princípios gerais da biologia e da sociologia.6 Entretanto, independentemente de se ade­ rir a um ou ao outro partido dessa controvérsia, a análise crítica do processo da urbanização ini­ cial do Brasil ainda permanece largamente into­ cada pelos versados no período colonial. Em vez disso, os estudos levados a efeito concentraram-se no estabelecimento de tipologias heurís­ ticas dos centros urbanos brasileiros, as quais, embora intrinsecamente úteis, proporcionam uma compreensão limitada da dinâmica do cres­ cimento urbano. Um dos pioneiros nesse campo foi o geógrafo francês Pierre Deffontaines, que classificou as comunidades consoante uma análi­ se funcional, ;. e.,: arraiais de mineração, .vilas de estrada de ferro, aldeias indígenas, etc.7 Utili­ zando um critério diferente, Rubens Borba de

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Morais diferenciou entre centros urbanos que se desenvolveram espontaneamente (e. g., arrai­ ais de mineração) e os que deram mostras de intervenção direta (e. g., colônias militares).8 Certamente não se pode questionar a utilidade de divisões hierárquicas desse tipo para enfocar as variações estruturais no sistema urbano do Brasil. Porém essas tipologias são incapazes de fornecer uma análise processual em profundi­ dade dentro de um arcabouço verdadeiramente histórico. Essa crítica aplica-se também à clas­ sificação de Marvin Harris e Charles Wagley9, muito citada, bem como à obra que traz o título ambicioso de Como Nasceram as Cidades do Brasil\ uma tipologia altamente conjetural de autoria de um antigo político brasileiro.10 Uma direção intelectual inteiramente dife­ rente na pesquisa da urbanização do Brasil é a tendência de encarar as cidades e vüas como antitéticas da corrente principal da cultura brasileira. Os proponentes desse ponto de vista afirmavam que, historicamente, o Brasil tem sido dominado pela classe dos latifundiários, cuja visão era clara­ mente rural, e não citadina. Fernão de Azevedo, por exemplo, focalizou o relacionamento discor­ dante contínuo da cidade brasileira com o cam­ po, em sua análise mais ampla do fenômeno da ci­ vilização industrial numa sociedade agrária11, en­ quanto Gilberto Freyre escreveu com extraordi­ nário entusiasmo sobre o papel do sobrado como difusor do sistema de valores da oligarquia lati­ fundiária, sempre dentro do contexto urbano.12 Além do grande número de intelectuais que se concentraram na influência supostamente oni­ presente dos latifundiários, há um grupo bastan­ te numeroso que mostrou um interesse constante pelas i _______________ >outros grupos sociais (e. g., imigrantes europeus ou ga­ rimpeiros) para o processo de urbanização. Fi­ nalmente, há uma literatura bastante vasta de­ dicada à história específica de cidades grandes e pequenas. Esses estudos tradicionais amiúde fornecem excelentes antecedentes históricos, mas não conseguem situar o exemplo individual dentro do contexto mais amplo da proliferação urbana no Brasil.13

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Independentcmente das obras mencionadas nesta breve resenha literária, existem apenas quatro grandes estudos dedicados ao exame do panorama histórico e arquitetônico global do desenvolvimento urbano brasileiro dos primei­ ros tempos. Esses quatro exames são imensa­ mente diferentes na abordagem, em conseqüência das disciplinas muito diferentes que seus autores representam. Vilas e Cidades do Brasil, Colônial6, por exemplo, é um inventário geográ­ fico e cronológico de vilas e cidades fundadas no Brasil do século XVI ao século XIX. Cada século é estudado separadamente, e a obra forne­ ce dados sobre a localização e a data de fundação de cada centro urbano criado oficialmente na­ quele período. Entretanto, ela concede pouca atenção ao planejamento e à forma das comuni­ dades resultantes. Em contrapartida, A Formação de Cidades no Brasil Colonial1, ensaio escrito por um arquiteto praticante, compreensivelmente, preocupa-se mais com a forma e o traçado urbano. Nesse es­ tudo, o autor examina diversos documentos im­ portantes referentes à criação de vilas coloniais e conclui que a aplicação de planos diretores formais na realidade foi um sinal de urba-niz^ção retrógrada. De uma maneira inteiramente errô­ nea (como mostraremos a seguir), ele afirma que os portugueses, oportunisticam ente, simples­ mente copiaram as plantas das cidades espanho­ las, quando as duas potências se reuniram pa­ ra a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. Ironicamente, vários dos códigos de construção que o autor apresenta no seu estudo (fora do contexto) foram elaborados no princípio do século XVIII, antecedendo assim o Tratado de Madri de várias décadas! O terceiro estudo é mais precisamente uma interpretação convencional da evolução da cul­ tura brasileira16, em que os autores reproduzem diversos documentos de planejamento criativos e sugerem vagamente a existência de um código de construção abrangente. Infelizmente eles não vão além dessa tímida observação, deixando o leitor curioso, mas não apreciavelmente escla­ recido.

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O último estudo deste quarteto sem dúvida é o mais perceptivo e, claramente, o mais bem pesquisado. Valendo-se de material de arquivo relativo a questões municipais tais como pavi­ mentação das ruas e alinhamento, o traçado de praças públicas, etc., N estor G oulart Reis Fi­ lho17, bem fundamentado, defende a existência de uma legislação portuguesa de construção de vilas para o Brasil, aplicada com sucesso variável desde a época da fundação de Salvador da Bahia, em 1549, até.1720. O autor desse estudo é ar­ quiteto, mas sua obra, Evolução Urbana do Brasil, representa um avanço pioneiro na investigação histórica das comúnidades brasileiras de antanho, pois lança mão de dados inovadores e deci­ sivos para a história urbana que até então haviam sido ignorados pelos outros investigadores. Não obstante, mesmo aceitando a asserção de Reis Filho de que existia um planejamento form al incipiente nos prim eiros séculos da colonização portuguesa, seu estudo ainda deixa sem resposta diversas questões históricas funda­ mentais. Por exemplo, conjetura-se: até que ponto a política urbana estava estreitamente liga­ da aos objetivos mais gerais do governo? Além disso: os portugueses redigiram um código de planejamento abrangente, ou os exemplos cita­ dos representam apenas casos isolados? As vilas e arraiais situados fora do alcance geopolítico dos centros de governo primários, que consti­ tuem o enfoque principal da obra de Reis Filho, recebiam igual atenção da Coroa portuguesa? O que õ pèííodo posterior a 1720 (ano em que a análise de Reis Filho termina e que na presente pesquisa consideramos crítico para a história do desenvolvimento urbano brasileiro) revela acerca dos problemas e exigências de um processo urbano que estava evoluindo rapidamente nas regiões interioranas do País, longe do litoral povoado? Final­ mente, o planejamento urbano sistemático era conceitualmente excepcional, ou as preferências por­ tuguesas eram um reflexo dos estilos artísticos em voga na Europa? Por conseguinte, o objeto principal da minha exposição será um exame tanto dos requisitos admi­ nistrativos do Brasil do século XVIII corno das 3

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predileções arquitetônicas. A pesquisa sobre esse assunte lançou mais dúvidas sobre a idéÍ2 romântica de que o interior do Brasil foi penetrado principalmente por aventureiros. Seguindo os garimpeiros e caçadores de tesouros, a Coroa portuguesa ia estabelecendo a sua autoridade por meio de um sistema de comunidades criteriosamente planejadas construídas em regiões remotas. Influenciados pela 'descoberta de ouro na década de 1690 e diretamente ameacados. os administradores metropolitanos buscaram ansiosamente os meios de ampliar o seu controle; um sistema racional de distribuição de terras, combinado com a construção supervisionada de vilas, constituiu o processo pelo qual o interior podia ser protegido contra um crescimento independente e descontrolado. 75- N essas condições, a partir de 1716, quase todas as novas comunidades construídas no sertão foram subordinadas a um protótipo de pianejamento de vilas, promulgado naquele mesmo ano para a criação da municipalidade de Mocha, na zona norte do Piauí.18 O conceito geral do traçado desse plano diretor era barroco, com ênfase em ruas retilíneas, praças bem delineadas (amiúde orladas por fileiras de árvores plantadas simetricamente) e numa uniformidade de ele­ mentos arquitetônicos. O resultado do uso rei­ terado desse modelo foi um tipo de vila padro­ nizado que podia ser facilmente adaptado a re­ giões geográficas brasileiras muito diferentes. A mão-de-obra indígena não especializada (res­ ponsável pela maior parte das construções interioranas) podia ser empregada eficientemente, porquanto o domínio das técnicas de construção de um único conjunto de edificações básico per­ mitiría a ereção de um número ilimitado de uni­ dades habitacionais e administrativas, embora as edificações pudessem ser sobremodo monóto­ nas. Fisicamente, a construção de arraiais e vilas planificados no interior do Brasil ho século XVIII representava o compromisso de Portugal com o absolutismo e com o Iluminismo. O xadrez da malha urbana não era apenas um requinte artístico, mas sim uma clara representação da

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imagem “civilizada” e “europeizada” que Portugai esperava projetar no interior da colônia.' Para o administrador barroco, a regularidade equivalia v a beleza, sofisticação, civilização e progresso (se bem que por interpretações estritamente junoccntricas). Como nos planos atuais de modernização e desenvolvimento, os portugueses esperavam mudar completamente - e conseguiramno em parte - os sistemas de valores. Outras nações européias podem ter se apaixonado pela imagem pintada por J.-J. Rousseau19da ingenuidade da sociedade primitiva, mas os portugueses estavam decididos a elevar a população autóctone acima do seu estado de ignorância sem nenhuma ordem, não importando o custo nem quão ditosa a inocência pudesse ter sido. Por extensão, exigia-se que todos os colonos, indusive os europeus, se ajustassem às novas regras urbanas e de comportamento; o programa era decididamente obrigatório. A época da “conscientização”20 e da mobilização das massas que estavam por trás dos planos de desenvolvimento do governo estava muito adiante no tempo, Embora o ponto mais salientado neste li­ vro sejam os projetos de povoamento do século XVIII, minha pesquisa começa na década de 1690, quando a descoberta de ouro nas m onta­ nhas de Minas Gerais precipitou uma importante reconsideração do valor da terra, do seu uso e da sua distribuição. Começando com um exame dos motivos e pressupostos subjacentes ao p ro ­ grama de construção de vilas dos portugueses, eu passo a apresentar um estudo de casos parti­ culares das comunidades efetivamente construí­ das durante esse espaço de tempo, as quais são analisadas em ordem cronológica e por região geográfica (o Nordeste, o Centro-Oeste e o Sul). Nos Capítulos VI e VII são examinadas as refor­ mas do período pombalino (1750-1777), com destaque para os administradores responsáveis pelo cumprimento das novas diretrizes urbanas. ___D* ______ O estudo termina com o reinado de no final do século XVIII (mais precisamente de 1777 a 1792, quando ela começou a apresentar sinais de loucura e seu filho, D. João,depois D. João VI, assumiu a regência), embora os capí-

cimento oficial da Coroa portuguesa. E m incon-tuios finais contenham uma descrição sumária tát eis .casos, o critério pgr? elevar oticialmente da direção que o planejamento urbano no Brasil uma aldeia à categoria de vila baseava-se apenas seguiría posteriormente. na necessidade de instalar funcionários do go­ A maior parte dos casos de planificaçâo exaverno numa área ainda não superintendida. E n­ minados na exposição do livro referem-se ao tra­ tretanto, em outras coniunturas, a criação legai çado de comunidades relativamente pequenas, de uma vila marcava o início de um grande prooü seja, povoados, aldeias e vilas. Entretanto, nu­ ma amostragem de casos mais limitada, será apre­ çâo da administração governamental. Num nível ciado o planejamento urbano de grande escala, mais alto, quando as vilas eram promovidas a no nível de cidade. Lamentavelmente, não existe cidade, com frequência sofriam uma ampla re­ nenhum termo de uso corrente na América para modelação urbana com a finalidade de lhes dar denominar a gama de atividades de planificaçâo uma aparência consentânea com seu novo título. para aglomerações variando de 50 a mais de 10 mil habitantes. Empregar o termo “planejamen­ n > Por conseguinte, o verdadeiro significado das cartas régias que conferiam formalmente o to urbano” (ou seu eqüivalente “desenho urba­ título de vila não era o reconhecimento do cres­ n o ”) para este caso pode ser desorientador, por­ cimento físico do arraial ou aldeia, mas sim a que, embora geralmente ele seja aceitável, traz a percepção pragmática de que, dentro daquela conotação de centro urbano de grande porte, área específica, era preciso assumir determinadas que claramente não se aplica à maioria das comu­ responsabilidades administrativas. As vilas titu­ nidades do Brasil antigo. Uma alternativa seria ladas ganhavam o privilégio de uma câmara mu­ inventar uma perífrase que abrangesse todos os nicipal, cujos membros eram incumbidos de de­ tipos de planejamento21, como o termo eqüística veres que foram delineados originariamente na do arquiteto grego Konstantinos Apostolos D oIdade Média: xiadis (1913-1975); porém isso podería revelarse contraproducente, pois tendería a tornar a As câmaras tinham patrimônio e fonte de ren­ questão ainda mais confusa, A rubrica “planeja­ da próprios e não dependiam do Tesouro Real, mento urbano”, ou “planejamento de vilas”, é pre­ ou seja, dos fundos públicos das suas respec­ ferível a qualquer uma das opções supracitadas, tivas capitanias. O patrimônio era constituído de terras que lhes haviam sido concedidas no uma vez que define o fenômeno do planejamen­ ato de criação da vila, terras reservadas para o to sem discriminar o fator demográfico. rossio (passeio público), para a construção de Por conseguinte, em todo o resto desta dis­ prédios públicos e para a criação de parques sertação, o termo “projeto de vila” será substi­ públicos e de uma gleba comunal. As câmaras tuído por “planejamento urbano”, significando eram autorizadas a conceder algumas dessas uma abordagem do traçado de elementos arqui­ terras a particulares ou arrendá-las. Ruas, pra­ tetônicos num centro habitado, sem conside­ ças, vias de acesso, pontes, fontes públicas e ração do seu tamanho ou função. A única distin­ outras infra-estruturas também eram considera­ ção importante que se deveria fazer seria entre das partes do seu patrimônio. As rendas da câmara provinham dos aluguéis as comunidades que receberam um planejamenque ela tinha o direito de receber sobre terras to sistemático subsequente (i. e., depòis de fúnarrendadas e de tributos locais (taxas), autori­ dadas) e as que foram construídas obedecendo zados por lei ou por permissão especial do rei. desde o início a uma regulamentação. A câmara podia reter dois terços da renda muni­ Visto que os critérios empregados para dis­ cipal, porém um terço dnha de ser entregue tinguir entre vilas e cidades no período colonial aos representantes do Tesouro na capitania.22 eram no mínimo arbitrários, não procurei esta­ Embora fuja aos objetivos deste livro estudar belecer categorias demográficas diferentes para o papel da câmara municipal, os dados apresentaumas e outras; apenas baseei-me no reconheci-

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dos aqui dão a entender que, pelo menos com referência ao século XVIII, a incumbência tradicional da câmara de supervisionar a distri­ buição de terras foi eliminada. Outros privilé­ gios tradicionais foram reduzidos pelas intromissões reais nos direitos municipais de distri­ buição de rendas, no traçado da sede municipal, etc., e, visto que a própria Coroa se encarregava cada vez mais de empatar capital em projetos de construção no interior, a independência rela­ tiva da câmara como uma unidade auto-administrada diminuiu proporcionalmente. Só no final do século as câmaras locais fariam valer os seus direitos novamente, reassumindo lenta­ mente a iniciativa no desenvolvimento da vila, independentemente do governo metropolitano. Então, com toda evidência, qualquer discussão sobre o desenvolvimento urbano traz à baila não apenas a questão da configuração topográfica, mas atinge algumas das questões políticas momentosas do Brasil do século XVIII. As provas documentais utilizadas neste estudo foram colhidas em arquivos municipais, na correspondência oficial (tanto dentro do Bra­ sil como com a metrópole) e no currículo das academias militares que formavam os enge­ nheiros responsáveis pela maior parte das novas construções urbanas. Nos casos em que as pro­ vas documentais eram inadequadas ou obscuras, lancei mão de fontes cartográficas para confir­ mar as minhas conclusões; as excelentes plantas de cidades disponíveis nas mapotecas tanto de Portugal como do Brasil fornecem provas notá­ veis da homogeneidade dos projetos de planificação das vilas do Brasil colonial.

(1) Henrique Mindlin, Modem Architecture in Brazil (Reinhold Publishing Co., Nova York, 1956), p .l. (2) Richard M. Morse, FormaçãoHistórica deSão Paulo: De Comunidade a Metrópole (Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1970), p. 10. (3) Sérgio Buarque de Holanda, A s Raivei do Brasil (José Olympio, Rio de Janeiro, 3* edição,

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1956), p. 152. Além dessa obra, uma relação parcial dos livros cuios autores aceitam o mito da vila colonial brasileira não planificada com­ preende: Blake McKelvey, American Urbanisa­ tion: A Comparative History (Scott, Foresman & Co., Illinois, 1973); Nelson Omegna, A Cidade Colonial (José Olympio, Rio de Janeiro, 1961); Walter D. Harris,Jr., The Growth of Latin-Ameri:an Cities (University of Ohio Press, Athens, Ohio, 1971); e João Boltshauser, Noções da Evolução Urbana nas Americas (Faculdade de Arquitetura da Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968). (4) Robert C. Smith, “Colonial Towns of Spanish and Portuguese America”, in]ouma!of the Society of Architectural Historians, volume XTV, n1234, 1956, pi 7. Este autor, em “Baroque Architec­ ture”, in PortugalandBrazil, H. Livermore, editor (Oxford University Press, Londres, 1953), pp. 349-384, defende a tese de que as cidades brasi­ leiras têm um caráter medieval. (5) Richard M. Morse, From Community to Metropolis: A Biography of São Paulo, Brazil (University of Flonda Press, Gainesville, 1958), p. XVII. (6) Esta citação está contida numa pequena sinopse em Luís Silveira, Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas de Ultramar (4 volumes, Lisboa, sem data), volume I, p. 24. (7) Pierre Deffontaines, “The Origin and Growth of the Brazilian Network of Towns”, in Geogra­ phical Review, vol. XXVIII, julho de 1938, pp. 379-399. (8) Rubens Borba de Morais, “Contribuições para a história do povoamento em São Paulo até fins do século XVffl”, reeditado em Boletim Geográfico, ano III, n° 30, setembro de 1945, pp. 821-829. (9) Charles Wagjey e Marvin Harris, “A Typology of Latin-American Subcultures”, in Dwight B. Heath e Richard N. Adams, editores, Con­ temporary Cultures and Societies of Latin-America (Nova York, 1956), pp. 42-69. (10) Plínio Salgado, Como nasceram as cidades brasileiras (Edições Ática, Lisboa, 1946). Uma tipologia comparativa que coteja as comunidades urba­ nas da América espanhola, da portuguesa e da inglesa pode ser encontrada em João Boltshauser, Noções de Evolução Urbana nas Américas, 3 volumes (Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1968).

(11) Fernào de Azevedo, “A cidade e o campo na civilização industrial”, in Obras Completas, vol. XVIII, pp. 213-229. Ver também: Waidemiro Bazzanella, “Industrialização e urbanização no Brasil”, in América Latina, vol. VI, n“ 1, janeiromarço de 1963, pp. 3-26; e Manuel Diegues Júnior, Imigração, Urbanização e Industrialização (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, série VI, “Sociedade e Educação”, vol. 5, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 1964). (12) Gilberto Freyre, The Mansions and the Shanties: The Making of Modem Brazil (Sobrados e Mo­ cambos: A Formação do Brasil Moderno), edi­ ção e tradução de Harriet de Onis (Alfred A. Knopf, Nova York, 1966). (13) Na bibliografia constante do final deste livro será encontrada uma relação de muitos desses estudos. Informamos o leitor de que as revistas geográficas do Brasil constituem uma rica fonte de material sobre o desenvolvimento de muitas cidades, grandes e pequenas, menos bem conhecidas. Um exemplo desse tipo de trabalho é Paulistas e Mineiros: Plantadores de Cidades, de Mário Leite (EdArt, São Paulo, 1961). (14) Aroldo Azevedo, “Vilas e cidades do Brasil co­ lonial”, in Boletim n° 208, Geografia n° 11,1956, pp. 1-96, da Faculdade de FUosofia, Ciência e Letras da Universidade de São Paulo. A obra Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Rio de Janeiro, 1963), é uma aná­ lise pioneira do desenvolvimento urbano bra­ sileiro sob o aspecto da geografia humana. Todavia, o exame do período colonial da Histó­ ria do Brasil constitui meramente uma parte secundária da obra, que trata principalmente do crescimento urbano mais recente. (15) Paulo F. Santos, “A formação de cidades no

Brasil colonial”, V Cotóquio Internacionalde estudos - lusc-brasiieiros, Coimbra, 1968. (16) Tito Lívio Ferreira e Manoel Rodrigues Ferrei- • ra, História da Civilização Brasileira: 15001822 (Gráfica Biblio Ltda., São Paulo, 1959). (17) Nestor Goulart Reis Filho, op. cit. A obra A Cidade Colonial, de N. Omegna (José Olympio, Rio de Janeiro, 1961), foi excluída desta análise, porque o seu tema é mais precisamente um exame da estrutura social colonial com matizes francamente românticos. Da mesma maneira, A Evolução da Rede Urbana Brasileira, de Pedro Pinchas Geiger (Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, Ministério da Educação e Cul­ tura, Rio de Janeiro, 1963), não foi considerada, porque aborda apenas sumariamente a urba­ nização do período coloniaL (18) Veja-se a análise detalhada no capítulo III. (19) Jean-Jacques Rousseau, Social Contract, 1762. Reeditado por Modern Library, Nova York. (20) Em oposição ao conceito de educação de adul­ tos por meio da experiência cotidiana, o termo conscientização é empregado aqui com o signifi­ cado de “a transformação completa da cons­ ciência das pessoas que as faria compreenderem os parâmetros políticos da sua existência e as possibilidades de mudarem a sua situação pela ação política”. Essa definição foi extraída de The. Homeless Mind: Modernization and Consciousness, de Peter Berger, Brigitte Berger e Hansfried Kell­ ner (Vintage Books, Nova York, 1974), pt 76. (21) Veja-se o exame das definições de planejamen­ to urbano na obra de Charles Abrams The Lan­ guage of Cities:A Glossary of Terms (Avon Books, Nova York, 1972), p. 48. (22) Caio Prado Júnior, The ColonialBackground ofMo­ dern Brazil (versão para o inglês de Suzette Macedo, University of California Press, Berke­ ley, 1969)

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Capítulo II

A formulação de um programa de construção de vilas

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N o final do século XVII foi descoberto ou­ ro no interior acidentado a oeste da província do Rio de Janeiro. Esse acontecimento acarretou a avaliação do potencial da colônia por parte de Portugal e mostrou claramente que o governo precisava agir com presteza pára garantir o con­ trole imediato do rico território interiorano. Ás~ terras do sertão não podiam mais ficar sem supervisâo, c os administradores, cientes disso, logo estabeleceram as primeiras medidas de um programa legislativo para redefinir os direitos sobre a terra e, ao mesmo tempo, estender a au­ toridade real. > - N a formulação desse programa, foram le­ vadas em conta quatro questões básicas. A pri­ meira delas dizia respeito ao estabelecimento de uma regulamentação para áreas auríferas, prevendo-se a nomeação de funcionários reais. Isso visava a garantir o recebimento pela Coroa de uni quinto das receitas oriundas da mineração, o “quinto” de praxe, e possivelmente evitar ven­ das ilegais a grupos estrangeiros. A segunda ta­ refa que se impunha era estabelecer uma iurisdiçâo sobre os aventureiros (bandeirantes1e boiadeiros) que no decorrer do século XVII baviam sido os primeiros a explorar o agora precioso sertão, na sua maior parte sem nenhuma restrição da administração real. Em ligação com essa necessidade prioritária de reforma da lei e da ordem, havia a vontade da Coroa de conter a força crescente dos poderosos do sertão, indivíduos aue se haviam enriquecido ampliando as suas concessões de terras originais como grilei­ ros, fazendo valer os direitos de posse. Com o avanço do século, as autoridades da Coroa iam

não só desafiar esses barões fundiários, mas pro­ curar desbancá-los mediante a criação de mini­ fúndios para lavradores. Estes compunham-se principalmente de colonos europeus oriundos das possessões insulares atlânticas superpovoadas do reino, os quais eram considerados mais confiáveis e também mais propensos à agri­ cultura do que seus contemporâneos bandei­ rantes. Por último, os portugueses pretendiam ampliar os seus domínios territoriais à custa dos espanhóis, compreendendo que, com o estabele­ cimento de colônias lusas nas regiões recémexploradas do Oeste e do Sul longínquos, seus rivais hispânicos na América ficariam em nítida desvantagem. Embora as reivindicações espanholas sobre a região a oeste do rio Tocantins (e a leste dos Andes) tivessem sido aceitas pelo Tratado de Tordesilhas (em 1494, na pequena cidade espanhola de Tordesillas, fixou-se o meri­ diano situado a 370 léguas a oeste das ilhas Cabo Verde como limite entre as possessões espanho­ las e as portuguesas), esse patrimônio remoto nunca havia sido suficientemente colonizado pa­ ra garantir a hegemonia espanhola. A Coroa por­ tuguesa raciocinou corretamente (muito antes da aceitação internacional do princípio do uti possi de tis [como te apossaste]) que, se os lusita­ nos “ocupassem efetivamente” as terras recla­ madas pela Espanha, no final das contas pode­ ríam assegurar essas regiões para si. (Sfo Portanto, esses quatro objetivos condicio­ naram a política portuguesa para as regiões interioranas do Brasil durante a maior parte do sécu­ lo XVIII. O s administradores lisboetas resolve9

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ram que uma ampliação da autoridade e uma redefinição dos direitos sobre a terra finjdmen,t& tinham de ser incorporadas a um plano de de­ senvolvimento intensivo para a hinterlàndia bra­ sileira.. O mecanismo pelo qual o sertão seria subordinado à autoridade real baseava-se na fundacão de comunidades supervisionadas pela Coroa, as quais, com o tempo, formariam redes urbanas integradas, localizadas em pontos estra­ tégicos do interior. Assim, o planejamento e o desenvolvimento desses novos núcleos interioranos orientariam o processo de urbanização du­ rante todo o século.2 A penetração no interior iniciou-se no final do século XVI. Até então os esforços de coloni­ zação dos portugueses tinham se confinado de modo geral às zonas litorâneas, o que inspirou a Frei Vicente do Salvador a famosa metáfora dos caranguejos agarrados à linha costeira.3 En­ tre os anos de 1532 e 1536, a Coroa portuguesa dividiu o litoral do Brasil em 15 capitanias (ou donatarias), largas faixas de terras concedidas a 12 homens de alto prestígio no reino. O donatá­ rio era obrigado a assinar uma escritura formal com a Coroa. De forma quase medieval, ele tor­ nava-se diretamente responsável pelo cresci­ mento e desenvolvimento do seu patrimônio e praticamente recebia carta branca no tocante à urbanização. No estágio de capitanias hereditá­ rias, não havia nenhuma diretriz para o cresci­ mento das povoações, e aos concessionários re­ comendava-se apenas que eles podiam: ...estabelecer todas as aldeias que quiserem além das povoações que se situarem ao longo da costa da dita terra e nas margens dos rios navegáveis, mas no interior eles não podem construí-las a menos de seis léguas de distância uma da outra, de maneira que possa haver pelo menos três lé guas de terra de cada aldeia até o limite territorial da outra.4 A sorte estava lançada. Ao longo da costa, os donatários tomavam posse de imensos talhões de terra, ficando até 50 léguas ( ! ) nas mãos de um único homem.5 Cada beneficiário, ou capitão-mor, por sua vez, tinha o direito de conceder terras de sesmaria a colonos dentro da sua capi­

tania, cuja extensão o próprio donatario fixava. A prática da concessão de sesmos (grandes extensões de terras) teve origem na Idade Média, quando os senhores feudais buscavam avida­ mente voluntários para colonizarem os seus territórios. As novas comunidades assim forma­ das, o soberano concedia cartas, e um sesmeiro distribuía terra aos recém-chegados.6 Entretanto, o sistema de sesmarias foi mais amplamente utilizado no Brasil (onde grandes áreas de terras devolutas estavam imediatamente disponíveis), e a sua importância para o desen­ volvimento do País não devia ser subestimado. Conjugada com a influência senhorial do sistema de donatarias, a prática da concessão de sesma­ rias literalmente institucionalizou o fenômeno dos latifúndios. Mesmo com a decadência da política da capitania particular e a tentativa bemsucedida da Coroa de recomprar essas terras e estabelecer o controle real, processo que foi concluído no século XVIII, a configuração das concessões de terras das sesmarias persistiu. Acresce que muitas das terras concedidas gratui­ tamente no interior foram ampliadas pelo usuca­ pião, ou direito de posse efetiva. Os funcioná­ rios do governo permaneciam nas cidades lito­ râneas, longes demais para intervir deçisivamente nessa flagrante quebra da autoridade. Na au­ sência de fortes sanções governamentais, surgi­ ram poderosas famílias interioranas, que tiravam o seu prestígio e influência da “propriedade” de vastos domínios particulares.7 Nessas condições, o sertão amava como um poderoso ímã para aventureiros e habitantes das populosas comunidades litorâneas sedentos de terras. O célebre historiador brasileiro João Capistrano de Abreu foi o primeiro a assinalar a força de atração das terras do interior na sua obra-prima do final do século XIX Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasit. Nessa obra origi­ nal, o autor salientou que as entradas (expedi­ ções de exploradores destemidos ao sertão) poderíam ser mapeadas em ciclos cronológicos, começando com os boiadeiros, seguidos pelos caçadores de escravos silvícolas e depois pelos garimpeiros. Em vista disso, o século XVII po-

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FORMULAÇÃO DE UM PROGRAMA D E CONSTRUÇÃO D E VILAS

deria ser estudado como uma série de invasões não planejadas do sertão. De acordo com a cronologia de Capistrano de Abreu, o estudo da história do interior do Brasil começa propriamente no final do século XVI, quando decretos proibindo o pastoreio nas redondezas dos centros urbanos litorâneos for­ çaram os boiadeiros a migrarem para a caatinga do Nordeste. As primeiras boiadas a penetrar no sertão foram conduzidas ao longo do rio São Francisco, em busca da preciosa água necessária aos animais.9 Embora os boiadeiros não tives­ sem a intenção preconcebida de colonizar a área, seus complexos pecuários, instalados em terras ocupadas ao longo do rio, logo cresceram e se transformaram em pequenas povoações, com a incorporação de ajudantes da fazenda e de famílias. Por todo o interior da Bahia, para o norte, em direção a Pernambuco, e, por fim, mais ao norte, até o Maranhão, o processo foi o mes­ mo: as boiadas realizavam a penetração inicial, e atrás delas pequenos grupos de colonos estabe­ leciam-se. Os currais resultantes desse povoa­ m ento (aldeias de criação de,gado)10 proporcio­ navam uma renda escassa aos criadores seden­ tários, que vendiam os seus limitados excedentes aos boiadeiros que passavam. Enquanto àquela altura a produção pecuá­ ria se ümitava essencialmente ao Nordeste, o ciclo da caça de escravos amerígenas estava con­ centrado no Sul em geral. O objetivo dos aven­ tureiros escravistas que, partindo do altiplano ondulado de São Paulo, penetravam no sertão era incursionar pelas missões do Sul, onde os jesuítas haviam agrupado facilmente seus prote­ gidos índios em prósperas comunidades agríco­ las. Os caçadores de escravos vendiam então os índios capturados nas cidades costeiras já fundadas, aumentando assim a sua população e contribuindo muito pouco para o povoamento do interior. Em meados do século XVI, a caça de es­ cravos começou a diminuir em conseqüência de um programa de armamento levado a efeito pe­ los jesuítas, e um novo grupo de aventureiros surgiu, disposto a explorar o desconhecido. Este

último grupo também teve origem em São Paulo, porém o seu intuito era a descoberta de minerais preciosos, e não a obtenção de escravos indíge­ nas. Os paulistas pareciam particularmente bem adaptados à vida rude e penosa dos garimpeiros: certamente a vida na capital da sua província não os havia habituado aos padrões relativamen­ te luxuosos do Rio de jan eiro ou da Bahia. . Acresce que muitas vezes eles eram produto do caldeamento entre portugueses e índias, e ha­ viam assimilado a experiência indígena de sobre­ vivência no interior agreste. Organizados em grupos denominados ban­ deiras, os paulistas (junto com elementos de ou­ A tras regiões costeiras) penetravam profundamen­ te na hinterlàndia e não raro eram recom pensa­ dos com o achado de ouro em regiões que hoje fazem parte do estado de Minas Gerais. Em se­ guida às primeiras descobertas de ouro e pedras iA \ f O preciosas da década de 1690, um número cres­ cente de bandeirantes mineradores vagueavam pelos planaltos ondulados do interior, tentando repetir os sucessos dos primeiros achados; en­ quanto isso, iam deixando atrás de si uma trilha de pequenos campos de mineração construídos atabalhoadamente. N ão obstante, esses campos precários constituíram os núcleos dos primeiros povoados realmente perm anentes da região. Nessas condições, a abertura inicial do sertão brasileiro ocorreu sem qualquer interfe­ rência da fiscalização reaf O s aventureiros que buscavam fortuna no tráfico de cativos indíge­ nas, na criação de gado ou no garimpo de ouro prosseguiam tranqüilamente nas suas ativida­ des, certos de que aquelas regiões remotas esta vam fora do alcance do braço da lei. Im por qual- q (J' » quer controle ah, no século XVII, era uma tarefa irrealizável pela Coroa, pois simplesmente não existiam vilas nem cidades onde os delinqüen- ' r x-S9* tes pudessem ser julgados e, se preciso fosse, p segregados do convívio social. N a falta de cen­ tros administrativos apropriados, a atitude da Coroa foi simplesmente ignorar por completo aquela situação. Só quando a atração exercida pelos achados de ouro despertou o interesse da metrópole e quando, concomitantemente, a hin-

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A FORMULAÇÃO DE UM PROGRAMA DE CONSTRUÇÃO

DE VILAS

terlândia começou a seduzir um grande número de aventureiros é que os portugueses puseram em prática as primeiras providências necessárias para assegurar o controle do interior. A década de 1690 marcou uma virada na História do Brasil: na mesma época em oue cor­ reu a notícia da descoberta de ouro no sertãor o governo colonial proclamou a intenção de abrir “oficialmente” o interior.. Uma batalha inevitá­ vel começou a delinear-se: o poder real em guarda contra a “aristocracia” agrária, essencialmente uma repetição da luta bem conhecida entre a Coroa e os donatários e. coincidentemente, um claro reflexo do tempo muito curto transcor­ rido desde a Idade Média. Entretanto, na passa­ gem para o século XVIII, com a prática da sesmaria ainda gravada tão profundamente no inte­ rior, a luta assumiu aspectos mais parecidos com a situação de nossos dias, pois o interesse públi­ co, aqui representado pela Coroa, desafiou os detentores da propriedade privada. A preferênJ cia declarada dos portugueses pelos pequenos oí> fazendeiros, e não pelos grandes latifundiários, fazia parte do seu ambicioso programa de rees­ truturação fundiária iniciado nos anos 1690. A Coroa ia implantar um projeto visionário e tão radical para a época que implicava em nada me­ nos que “uma reformulação completa da situa'' ção jurídica do solo colonial”.11 Certamente não foi por mera coincidência que a primeira lei agrária formal foi elahorada na década em que se descobriu ouro em Minas Gerais. A lei de 1695, que limitava as concessões dê-jsesmarias a uma extensão de quatro léguas de comprimento por uma légua de largura, visava a atingir não só as zonas de mineração, mas também áreas de terras agricultáveis. Embora essa medida tenha sido interpretada pelos admi­ nistradores coloniais como um dispositivo para assegurar a ocupação efetiva da terra, seu efeito capital consistia em impedir que se reivindicas­ sem propriedades extensas em zonas que pudes­ sem revelar-se de valor pecuniário inestimável para a Coroa. Dois anos depois a Coroa promulgou uma lei ainda mais restritiva, reduzindo as sesmarias

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para três léguas por uma légua e prescrevendo, além disso, que entre uma concessão e outra se deveria deixar uma área de uma légua quadrada sem ocupação. Dessa maneira, a Coroa reservava-se um direito de via de acesso, ou um domínio público potencial, no caso de uma ocupação total da terra. O acesso assim obtido seria de imensu­ rável importância na eventualidade de um confli­ to motivado por litígios em torno de estremas de terras (o que não era raro) e, ao mesmo tem­ po, garantiría o acesso a futuras zonas auríferas ainda não descobertas, acesso esse que podería ser cortado por um conluio dos beneficiários de duas sesmarias contíguas. Á última lei do século XVII foi baixada em 1699.12 Ela fazia referência específica - e isso tem um viso bem moderno - ao “cultivo útil” como critério para manter a posse das terras de concessão, e ameaçava de expropriação quem deixasse de cumprir a prescrição. Conquanto esse corpo de leis provavelmente representasse mais uma veleidade do que uma determinação expressa da Coroa, e na realidade precisasse ser revisto depois, as leis revelam uma completa mudança da postura oficial. A burocracia portu­ guesa reconhecera que a colonização metódica do sertão só poderia ser levada a efeito se a terra fosse distribuída eqüitatívamentê em pequenas parcelas a um grande número de indivíduos; a manutenção de grandes propriedades particula­ res no interior teria o efeito negativo de desenco­ rajar o futuro povoamento. Inequivocamente, era do interesse dos por­ tugueses fazer cumprir essas leis tão rigorosa­ mente quanto possível. Durante as primeiras décadas do século XVIII, houve múltiplos casos de processos do Estado contra grandes proprie­ tários de terras que se recusavam a perm itir que colonos se instalassem nas “suas” terras.13 Igual­ mente demoradas eram as demandas motivadas por questões de limites entre vilas vizinhas, um transtorno inevitável, em decorrência do qual a terra em litígio não podia ser facilmente adjudi­ cada para fins de colonização.14 Conjuntamente com seu empenho em re­ gularizar a distribuição da terra, os portugueses

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UM PROGRAMA DE CONSTRUÇÃO D E VILAS

procuraram resolver a questão da propriedade das áreas de mineração reclamadas. Logo em 1700 o governador do Rio de Janeiro elaborou um código de mineração, que estabelecia o pro­ cedimento para a distribuição das áreas auríferas entre os garimpeiros. A lei determinava que to­ do aquele que descobrisse ouro tinha o direito de demarcar 60 braças quadradas (uma braça = seis pés = l,8288m; 60 braças = 109,728m) para si, uma superfície igual sendo reservada para a Coroa e seu representante no distrito de minera­ ção. O utros lotes auríferos eram delimitados e adjudicados de acordo com o número de escra­ vos que o minerador tinha a seu serviço. Todavia, como o historiador Charles Boxer salientou, mesmo com esse sistema de loteamenço claramente definido, os casos de corrupção eram comuns nas regiões de mineração.15 O su­ borno de funcionários da Coroa para obter lotes suplementares era notório. Mesmo onde a terra já havia sido distribuída de conformidade com as prescrições legais, não havia meio de impedir que os mineiros anexassem as concessões de outros aos seus lotes, ou que eles os vendessem por um bom preço. N o caso da outorga de terra agricultável, a área de mineração tinha de ser severamente vigiada para impedir a incorporação de terras em larga escala e trapaças. Mas a terra em si não era o único problema com que a Coroa se via a braços. Igualmente perturbadores eram os indivíduos que enxameavam sertão adentro, considerados uma casta particularm ente detestável pelos observadores portugueses. O potencial de conflito aberto sal­ tava aos olhos, principalmente porque os canavieiros do Nordeste, fortemente premidos pelas recentes recessôes provocadas pela concorrência do Caribe1*, abandonavam os seus canaviais aos bandos para tentar a sorte na mineração. Os paulistas eram infensos a esses intrusos (tanto aos plantadores como aos escravos) quase tanto quanto aos reinóis, portugueses que chegavam em grandes contingentes da metrópole com o fito de compartilhar da riqueza da terra. Se se quisesse evitar lutas armadas e fazer valer a lei e a ordem, era preciso tom ar providências drás­

ticas. Assim sendo, o governador do Rio de Janeiro (sob cuia jurisdição a área de mineração estava) em 1682 foi encarregado de controlar as atividades dos vagabundos e desordeiros, seguin­ do o exemplo das ordens religiosas e agrupando tais elementos à força em povoações adrede cria­ das. Com efeito, a fraseologia das instruções oficiais reforça a impressão de comunidades cle­ ricais, pois nelas se faz referência explícita a “re­ duzir” a população errante, exatamente a mesma terminologia empregada pelos missionários nas suas “reduções” (aldeias).17 Agrupando-se esses andarilhos em povoações facilmente administra­ das, os infratores potenciais provavelmente se­ riam desencorajados e, ademais, os resultados positivos que se deveríam colher da administra­ ção fo n e e da ação da justiça podiam set coadjuvados pela atuação de párocos. Pela sua lógica intrínseca, as instruções devem ter recebido forte apoio dos administradores coloniais, porque três anos depois, em 1696, o novo governador da capitania recebeu diretrizes semelhantes, desta vez instruindo-o a ampliar o programa mediante a construção de tribunais em que juizes itineran­ tes pudessem dar audiências.18 Evidentemente nem todos os governadores eram conscienciosos no cumprimento das novas diretrizes, ou então eram incapazes de pô-las em prática de modo a concretizar todas as suas po­ tencialidades. Em consequência disso, em 1709 a Coroa foi obrigada a renovar o edito para “re­ duzir toda a gente que anda nas minas e povoaçoens”.19 Por todo o século XVIII, ordens se­ melhantes para reunir os “espalhados” foram re­ cebidas pelas autoridades regionais. O princí­ pio era o mesmo, não importando a região onde a legislação determinasse a criação de comuni­ dades, se na bacia amazônica, no Sul ou no Centro-Oeste da colônia. Como observou um famo­ so historiador, os portugueses estavam “convic­ tos, com justa razão, de que a construção de tais municipalidades era o melhor meio de civilizar e promover o povoamento do agreste sertão”.20 A lógica da política da construção de vilas subsidiada pelo governo também era patente no trato do problema de manter o controle sobre o 13

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UM PROGRAMA DE CONSTRUÇÃO DE VILAS

escoamento do ouro que estava sendo extraído. Era conveniente que povoações e viias locali­ zadas em zonas produtoras de minerais precio­ sos sediassem casas de fundição e instalações reais de cunhagem de moedas, enquanto funcio­ nários residentes realizariam uma escrituração metódica das contas da mmeracàq restringindo assim as possibilidades do tráfico de conttabando. Aiém disso, se alguma fraude fosse come­ tida, os portugueses disporiam de autoridades judiciárias no próprio local, capazes de exercer a justiça. I— j> Por essa mesma lógica pecuniária, também era evidente para os representantes da Coroa que as novas povoações iam facilitar o recebimento de impostos dos habitantes agora agrupados, que indubitavelmente haviam escapado a esses inconvenientes enquanto não houvera nenhum controle no sertão Ademais, o próprio ato da criação de uma vila geraria renda suplementar para os cofres reais, porquanto a taxa devida pelo recebimento de um título de vila ia diretamente para o Tesouro Real. Assim, admira pouco que muitos acampamentos de mineração improvisa­ dos tenham sido oficialmente convertidos em vilas; essas novas “vilas” eram “necessárias para aumentar as rendas do Tesouro Real”.21 Como já foi assinalado, uma última razão para a decisão portuguesa de assumir o patrocí­ nio de um programa de urbanização nas regiões interioranas derivava do desejo luso-brasüeiro de ampliar os domínios territoriais em detrimen­ to dos espanhóis. A pedra angular desse progra­ ma foi assentada em 1680, quando os portugue­ ses fundaram a colônia de Sacramento na mar­ gem oriental (esquerda) do rio da Prata, no seu estuário, exatamente do lado oposto da cidade espanhola de Buenos Aires. Os espanhóis revi­ daram imediatamente, criando o núcleo urbano de Montevidéu a jusante de Sacramento (e tam­ bém na margem oriental), e uma luta pelo con­ trole foi desencadeada. Os portugueses perce­ beram que, se quisessem sustentar a sua-reivindicação da extremidade sul, era indispensável criar uma sólida linha de comunicação entre Sa­ cramento e a povoação mais próxima sob o do14

minio da Coroa (em São Paulo). Como ficou comprovado no interior do -Noroeste e na zona de mineração, a solução mais eficaz para manter a autoridade era fundar uma série de comuni­ dades com habitantes permanentes, uma verda­ deira fortificaçào humana responsável pela segu­ rança da região. Muitas das povoações de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul devem a sua origem a esse esforço. Nos anos 1740 e nas dé­ cadas ulteriores, a Coroa procuraria incremen­ tar a população adotando um programa de imi­ gração oficial para a região, pelo qual colonos dos Açores superpovoados e de outras posses­ sões portuguesas seriam reassentados no Sul. Se o território sulino era de interesse funda­ mental para os portugueses, o Extremo Oeste o era mais ainda, pois a descoberta de ouro nas suas zonas interioranas subitamente conferiu a essa região uma importância estratégica imensa. Consciente disso, a Coroa seguiría no encalço dos acampamentos de bandeirantes em Mato Grosso e Goiás, tomando as providências legais necessárias para a criação de vilas e arraiais p o r­ tugueses. N o meado do século XVIII, a cons-^ trução de uma cidade-capital no rio Guaporé e a fortificação de comunidades indígenas22 ao longo do sistema fluvial assegurariam a supre­ macia lusitana na região, um fato que foi reco­ nhecido internacionalmente no Tratado de Madri, em 1750. Portanto, em resposta a quatro estímulos interligados - a distribuição de terras; a desco­ berta de ouro; a necessidade de implantar a lei e a..ordem no sertão; e a ameaça pendente dos interesses espanhóis os portugueses resolveram-se a cobrir a hinterlândia com um sistema de cidades, vilas e povoações organizadas. Seus projetos racionais para levar a efeito essa emprei­ tada -que incluíram o emprego de planos direto­ res - e seu êxito final constituem um dos aspectos mais notáveis da História do Brasil do século XVIII e serão estudados extensamênte nos capí­ tulos subseqüentes. Todavia, é da máxima impottáncia ressaltar aqui que os portugueses, profeticamente, reconheceram a necessidade de urbanizar a hinterlândia brasileira e de realizar

A FORMULAÇÃO DE UM PROGRAMA D E CONSTRUÇÃO DE VILAS

uma reforma fundiária, isso há mais de 250 anos! Ironicamente, ainda hoje se discute o mesmo vação do uso efetivo do solo nas grandes propriedades. O que os portugueses empreenderiam e conseguiríam realizar num grau surpreen­ dente durante o úirimo século completo de ad­ ministração colonial era nada menos que um repto frontal a todo o status quo colonial.

(1) Na introdução de The Bandeirantes: The Historical Bole of the Brazilian Pathfinders, de Richard M. Morse, editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1965), este reconstitui a origem da palavra ban­ deira. Originariamente, o termo era empregado para designar uma unidade militar portuguesa de 36 homens; porém ele também tem a cono­ tação de “causa” defendida por um grupo orga­ nizado, pois é em torno da bandeira que o gru­ po se reúne. No contexto brasileiro, os homens que se incorporavam às expedições ao interior eram conhecidos pela denominação de bandei­ rantes, derivado de bandeira. (2) Noutro texto, eu resumi essas asserções e co­ mentei o êxito português em atingir esses obje­ tivos. Ver “Colonization and Modernization in the Eighteenth-Century Brazil”, de Roberta Marx Delson, in SocialFabric and SpatialStructure in ColonialLatin America, de David J. Robinson, editor (University Micro-films International, Ann Arbor, Michigan, 1979), pp. 281-313. (3) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil: 1500-1627, editada por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia (São Paulo, 1931), p. 19. (4) Documento real de outorga da capitania de Per­ nambuco a Duarte Coelho Pereira, in A Docu­ mentary History of Brazil, de E. Bradford Burns, editor (Alfred A. Knopf, Nova York, 1966), p. 38. Charles R. Boxer, em The GoldenAge of Bra­ zil: 1695-1750 (University of California Press, Berkeley, 1969), à página 357, afirma que uma légua é igual a 3.755 1/15 passos geométricos. Segundo o The Random Home Dictionary of the English Language (edição de texto integral, Random House, Nova York, 1967), um passo geométrico é igual a cinco pés. Assim sendo,

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uma légua seria igual a pouco mais de 3,4 mi­ lhas, ou 5,472km, uma milha terrestre medindo 1.609,35m. Para os fins desta exposição, uma légua será considerada igual a 3,5 milhas (5.632,725m). E. Bradford Burns, A History cf Brazil (Co­ lumbia University Press, Nova York, 1970), p. 24 etpassim. Para conhecer as práticas de sesmarias no Por­ tugal medieval, ver: Portugal, de J. B. Trend (Er­ nest Benn Ltd., Londres, 1957), p. 69; “The Donatory Captaincy in Perspective: Portuguese Backgrounds to the Setdement of Brazil”, de Harold B. Johnson, Jr., in H AH R, vol. LII, n“ 2, maiode 1972, p. 211; e “A Portuguese Estate of the Late Fourteenth Century”, de Harold B. Johnson, in Luso-Brasflian Review, vol. X, n° 2, inverno de 1973, p. 158. Caio Prado Júnior, The Colonial Background of Modern Brazil (versão de Suzette Macedo, University of California Press, Berkeley, 1967), p. 220. João Capistrano de Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil (Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 21 edição, 1960); ver sobretudo as páginas 59-164. Myriam Ellis, em “The Bandeiras in the Geographical Expansion of Brazil”, in The Bandeirantes, de Richard M. Morse, editor, às páginas 48-63, também disseca esse fenômeno cíclico. Segundo Caio Prado Júnior, op. cit., p. 216, era proibido criar gado em torno desses centros num raio de dez léguas marítimas. Essa disposi­ ção tinha por finalidade suprimir a competição pela área periurbana, necessária para a produ­ ção de gêneros alimentícios para os habitantes da cidade. Por exemplo, Pastos Bons, no Maranhão, e Cur­ rais Novos, no Rio Grande do Norte. Em “Em­ briões de cidades brasileiras”, in Boletim Pau­ lista de Geografia n° 25 (março de 1967), à página 53, Aroldo Azevedo dá uma relação mais ampla de cidades-currais. Ruy Cirne Lima, Terras Devolutas: História, Doutrina, Legfslação (Livraria do Globo, Porto Alegre, 1935), p. 37. Todas essas determinações legais são analisadas por Charles R. Boxer na sua obra The Golden Age of Brasil: 1695-1750, já citada.

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UM PROGRAMA D E CONSTRUÇÃO DE VILAS

Capítulo III (131 Por exemplo, em 1715 foi instaurado um pro­ cesso do Estado contra o detentor de uma sesmaria na proximidade da vila de Conceição, motivado pelo fato de ele não permitir assen­ tamentos de colonos na sua propriedade (AHU, Códice 241, fls. 321v. e 322). (14) Ver, por exemplo, o processo movido pela Coroa referente a litígios jurisdicionais susci­ tados pela criação de uma vila na região mineira de Serra Fria-Barra do Rio das Velhas, datado de 12 de janeiro de 1720 (AHU, Códice 241, fls. 321v. e 322). (15) Charles R. Boxer, op. cit., p. 52. (16) Ver o artigo “The Brazilian Sugar Cycle of the XVIIth Century and the Rise o f the West Indian Competition”, de Matthew Edel, in Ca­ ribbean Studies, vol. 9, n“ 1, abril de 1969, pp. 26-33. (17) Carta do rei Dom João V, o Magnânimo, ao governador do Rio de Janeiro, de 27 de dezembro de 1693 (ANRJ, Códice 952, vol. VI, n° 253).

(IS) Correspondência expedida de Iisboa por Dom João V ao governador Artur de Sá e Meneses, datada de 6 de novembro de 1696 (ANRJ, Códice 952, vol. XVIII, p. 101). (19) Parecer do Conselho Ultramarino sobre o estado das minas, de 17 de julho de 1709 (AHU, Códice 232, fl. 259). (20) Charles Boxer, op. cit., p. 47. Para conhecer mais detalhes sobre a anarquia reinante nas minas brasileiras, verJoão Pandiá Calógeras, A s Minas do brasil e Sua Legislação (Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1904). (21) Esse fato é assinalado na Carta Régia de 21 de abril de 1738 que dava permissão para fundar uma aldeia perto de Cuiabá. O texto reza: “ ... e vos concede-se a faculdade para poderdes fazer huma aldeya de que ahi se necessitava pello Rendimento da Fazenda Real”. AHU, Goiás, Papéis Avulsos. (22) Ver os Capítulos IV e VI, mais adiante.

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Aplicando o modelo: primórdios experimentais no Nordeste

Empenhada no desenvolvimento da hinterlândia por meio de uma série de comunidades planificadas e supervisionadas, a Coroa concen­ trou os seus primeiros esforços no N ordeste do Brasil, onde, no final do século XVII, as dificul­ dades criadas por sesmeiros excessivamente po­ derosos haviam se tornado cruciais. Por sua veZj o abrimento de diversas linhas de comunicação através da região aumentou a preocupação das autoridades nas duas unidades administrativas do Brasil, o estado do Maranhão e o estado do Brasil, que abrangiam cada um uma Jgarte do Nordeste. A comunicação entre a cidade lito­ rânea de São Luís, no Maranhão, e Salvador, ca­ pital do estado doBrasü^era inçadadle dificuldades. Os ventos predominantes tornavam uma viagem marítima contornando o cabo São Roque muito arriscada, enquanto a alternativa de acompanhar a linha da costa resultava numa viagem demorada e árdua. A solução lógica do problema era abrir caminho através do sertão do Piaui, pois assim a distância seria encurtada, tornando a viagem muito mais direta. Contudo, era preci­ so lutar contra os poderosos do sertão; para que a segurança da estrada pudesse ser assegurada, cumpria pacificar esses barões agrários. Assim sendo, o Piauí estava fadado a ser uma das pri­ meiras regiões onde os administradores portu­ gueses e os temíveis senhores do sertão entra­ riam em desavença. O sertão piauiense já havia sido escassamente povoado por aventureiros baianos, agora dispersos em povoados fragmen­ tários ao longo das margens dos rios.1 Esses in­ trépidos andarilhos haviam aberto as primeiras trilhas através do interior. Partindo de São Luís,

eies avançaram ao longo da costa até o rio Parnaíba; dali, voltaram-se para o interior, subindo o grande rio, e finalmente se espalharam em di­ versos pontos ao longo dele, atravessando o território do Piam pelos afluentes. A trilha ter­ minava em Juazeiro, uma povoação da capitania da Bahia, e dali o acesso à capital era relativamen­ te fácil.2 A Coroa imaginava que esses duros desbravadores, que haviam corajosamente aber­ to uma trilha através da caatinga bravia, seriam o material humano ideal para formar o núcleo de uma comunidade patrocinada pelo governo; além disso, essa aglomeração assegurava a aceita­ ção da autoridade real. Com esse fito em mente, a Coroa encarre­ gou D. Francisco Lima, bispo de Pernambuco, de criar a primeira paróquia do Piam.1 Pouco depois de o bispo receber essa incumbência, em 1697, houve uma reunião em que representantes de vários grupos estabelecidos ao longo do rio Parnaíba deliberaram sobre a localização da igreja matriz. O local escolhido na reunião para a nova congregação de Nossa Senhora da Victo­ ria era uma área aproximadamente eqüidistante de todos os assentamentos e facilmente acessível pelos meios de comunicação existentes.4 A Co­ roa esperava que a nova igreja atraísse futuros colonos e, com base nessa suposição, previa-se um futuro pacífico para o Piauí. Hoje, decorridos 300 anos, pode parecer que, ou os portugueses eram excessivamente otimistas quanto à tranqüilidade do Piam, ou eles estavam decididos a fazer pouco caso da ameaça dos poderosos sesmeiros, que já haviam demar­ cado vastas áreas na região como feudos pes-

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soais. Caso esses indivíduos continuassem pra­ ticando a apropriação indébita de terras, os co­ lonos da nova comunidade teriam pouca possi­ bilidade de adquirir glebas por iniciativa própria. Embora as leis gerais relativas às sesmarias da década de 1690 fossem plenamente aplicáveis à região do Piauí, a ameaça dos poderosos do ser­ tão ali era tão esmagadora que a Coroa foi força­ da a emitir uma série de disposições especiais para tratar do problema. Assim, em 1699 o rei declarou que os sesmeiros que possuíssem terras no Piauí e não as cultivassem, nem pessoalmente nem por intermédio de outrem, corriam o risco de perdê-las para quem quer que os denunciasse às autoridades.5 Essa disposição real (talvez vi­ sando expressamente a isto) precipitou uma re­ volta nò sertão. A despeito da contenda que se seguiu, o governo continuou a pressionar no sentido de uma demarcação efetiva da terra, na esperança de que a diminuição legal da exten­ são das sesmarias finalmente obrigasse os pode­ rosos a entregarem áreas consideráveis. Duas disposições complementares decreta­ das pela Coroa nesse estágio inicial atiçaram ain­ da mais a ira dos grandes proprietários. A pri­ meira delas, uma lei promulgada em 1699, que impunha a presença de um juiz, um capitão-mor e outros funcionários do governo em cada uma das paróquias recém-criadas‘, foi acertadamente interpretada pelos poderosos como um desafio ao seu poder irrestrito no sertão. Da mesma maneira, a decisão de anexar o Piauí ao vizinho estado do Maranhão7, também decretada na mesma época, foi encarada pelos barões da terra como uma tentativa de aumentar o controle do governo. A animosidade dos sesmeiros perma­ neceu contida por 13 anos, até que as medidas imprudentes do ouvidor (juiz adjunto da admi­ nistração central) do Maranhão precipitou uma crise. Em 1714 o ouvidor, sem autorização, de­ clarou que de então em diante todas as terras do Piauí eram consideradas devolutas, ou seja, legalmente sem dono.8 Para apaziguar o tumul­ to desencadeado no sertão por essa decisão ofi­ cial, a Coroa foi obrigada a retroagir, determi­ nando em 1715 que as velhas sesmarias, outor­ 18

gadas no tempo em que o Piauí era administrado pela Bahia e Pernambuco, ainda eram iegais, em­ bora o território agora estivesse sob a jurisdição do Maranhão.’ Com isso, os sesmeiros foram pacificados, e a Coroa, no essencial, perdeu o primeiro emba­ te. Por infelicidade, os índios do Piam escolhe­ ram exatamente esses anos tumultuados para rebelar-se contra os portugueses. Em 1712 e 1713 os tapuias do norte revoltaram-se ao longo da fronteira do Maranhão com o Piauí, ameaçan­ do a segurança de toda a estrada M aranhãoPiauí-Bahia. Liderados pelo ex-convertido pe­ los jesuítas Mando Ladino, os índios, durante quase quatro anos, atacaram as fazendas dos co­ lonos da região. Quando a revolta foi finalmente debelada em 1716“ , a paciência da metrópole estava quase esgotada. O único recurso da Co­ roa foi estabelecer imediatamente a autoridade real mediante a criação de vilas no sertão do Piam e a sua provisão com muitos funcionários portugueses confiáveis.11 No mesmo ano em que se conseguiu esta­ belecer um pouco de paz, em 1716, chegaram ao Piam ordens para a criação de duas novas vi­ las. Uma delas se localizaria na paróquia de N os­ sa Senhora da Victoria, já existente, enquanto a outra reuniría colonos da área do rio Longá (afluente do Parnaíba), precisamente na sua con­ fluência com o rio Piracuruca.12As leis de plane­ jamento recebidas pelas autoridades locais em 1716 forneceríam as instruções metodológicas para a fundação das duas novas vilas. Primeiramente a Coroa ordenou que se reunissem todos os moradores das redondezas para decidirem conjuntamente sobre a localiza­ ção mais apropriada para a praça central da nova comunidade, no meio da qual seria erigido o clássico pelourinho, símbolo da autoridade por­ tuguesa. A segunda providência era indicar uma área para uma igreja que, depois de terminada, pudesse abrigar todos os futuros paroquianos atraídos pela comunidade. Além disso, deve­ ríam ser escolhidos locais para a câmara, a cadeia e outras edificações públicas. Em seguida, as instruções insistiam em que os lotes destinados

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a residências nos âmbitos das vilas fossem de­ marcados em linha reta, ou '‘a régua”, garantin­ do assim uma disposição ordenada e em alinha­ mento das moradias.13 Finalmente, dever-se-ia procurar exigir que todas as casas tivessem o mesmo estilo de fachada, obtendo-se assim uma impressão de uniformidade e uma vista de con­ junto harmoniosa.14 Com referência a essas duas cidades piaui­ enses, duas indagações imediatamente vêm à mente: primeira, as ordens foram cumpridas tais quais exaradas na legislação de 1716?; e segunda, qual a razão do empenho tão grande da Coroa de conferir a essas novas comunidades uma apa­ rência harmoniosa, quando o Piauí em si estava tão afastado dos núcleos de “civilização” mais próximos? A resposta para a primeira pergunta parece ser afirmativa: consoante a pesquisa do historiador da arquitetura Paulo Barreto, as or­ dens de 1716 foram ignoradas unicamente no tocante à determinação de as igrejas serem sufi­ cientemente espaçosas para acomodarem as co­ munidades em crescimento. Barreto afirma que em 1733 a igreja de Victoria (topônimo mudado depois para Mocha) ainda estava em obras, ao passo que o templo de Piracuruca só'foi termina­ do dez anos depois.15 Uma prova mais convin­ cente é o relato de João da Maia da Gama, que esteve em Mocha em 1728 e descreveu a vila. Naquela época a cidade evidentemente tinha um número considerável de habitantes; haviam sido construídas cerca de 90 casas dentro da vila, e mais algumas dúzias estavam distribuídas pelos distritos exteriores, perfazendo perto de 120 moradias. Além disso, João da Gama observou que os habitantes estavam ocupados na cons­ trução de uma “vistosa” cadeia pública de pedra e cascalho e cumprindo a exigência de edificar uma casa da câmara.16 Infelizmente, o relato de Gama não faz nenhuma referência à disposição das casas, embora provavelmente ela também tenha o b edecido ao m odelo p rescrito pela Coroa. Não é fácil responder à segunda pergunta, mas é evidente que, pelo menos no caso de Mo­ cha, os portugueses estavam decididos a super­

visionar inteiramente o desenvolvimento da co­ munidade, inclusive o seu traçado físico. Visto que uma situação de crise havia se manifestado ao longo da via fluvial tão rapidamente depois da promulgação das leis de sesmarias, e que a necessidade de congregar os poderosos e subju­ gar os índios rebeldes era tão aflitivamente pre­ mente, a criação de uma nova vila, provida de funcionários reais, era ditada pela necessidade, bem como pela possibilidade de escolha. Se tal comunidade fosse construída solidamente, de conform idade com os princípios barrocos em voga de uniformidade e retilineidade, teria mais possibilidade de suportar um ataque violento de elementos dissidentes. Ademais, um emprego largo de dinheiro e competência como esse con­ tinuaria a receber a atenção do governo. Por uma equação simples, uma cidade permanente necessariamente atrairía colonos permanentes. Conquanto a ordem de 1716 não prescrevesse uma extensão definida para a praça central nem a largura específica das ruas (como algumas das legislações ulteriores prescreveríam), o objetivo era criar uma comunidade de aparência ordenada que logo à primeira vista desse a impressão de que havia uma autoridade estabelecida. Se a continuidade pode ser considerada um índice de êxito em planejamento urbano, a expe­ riência de Mocha satisfez todas as expectativas. Em 1761 a vila foi elevada à categoria de cidade (e teve seu nome mudado para Oeiras), a única t do Piauí na época. Além disso, a meta im por­ tante de criar uma estrada tranqüila e segura para a comunicação entre o Maranhão e a Bahia havia sido atingida. Pouco depois da construção da cidade nos anos 1720, os colonos tiveram toda liberdade de retornar à região (principalmente ao longo da fronteira com o Maranhão) para re­ construir as fazendas de gado destruídas durante a revolta dos tapuias. Finalmente, a nova vila p favoreceu a formação de outros centros urbanos ( j s na região, o que se traduziu numa proliferação de comunidades, algumas das quais alcançaram um porte considerável. Esses novos centros como Parnaíba (Figura 1), fundada em 1761 obedecem ao modelo traçado em 1716, apesar 19

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Fig. 1 - Planta básica de São João de Pamaíba, 1798 de posteriormente ter sido elaborada uma legis­ lação especial para a sua criação." A contrapartida negativa da criação de Mo­ cha foi que ela não possibilitou uma solução efe­ tiva do problema de controlar os sesmeiros, que continuaram a apoquentar as autoridades até o meio do século.” Contudo, a Coroa havia mos­ trado que uma vila construída numa das áreas mais remotas da colônia podia prosperar se fosse corretamente administrada. As autoridades de­ vem ter gostado imensamente dos resultados da experiência de Mocha, que foi a primeira vez que as novas leis de planificaçâo em plena escala foram postas em prática. A partir de 1716, a Coroa repetidamente assumiu os encargos de experiências urbanas no interior, num esforço

contínuo de impor ordem onde o caos havia pre­ dominado. Mocha havia sido uma primeira ten­ tativa de implantar a política de controle esbo­ çada na década de 1690. Contudo, a “pacificação” do Piauí não havia absolutamente garantido a segurança no Nordeste. Em seguida, a Coroa voltou a sua aten­ ção para o sul, para a regulamentação de centros urbanos no Ceará. Como no Piauí, o problema de importância capital para os portugueses ali era a segurança, pois duas importantes estradas atravessavam o território do Ceará. Á primeira estrada ladeava a costa, estendendo-se do norte de Pernambuco até pelo menos Fortaleza, no Ceará, enquanto a outra estrada fazia uma cone­ xão por terra entre Fortaleza e a Bahia."

Não havia muitos colonos na região do Ceará. A maior concentração localizava-se à beira-mar, no ponto em que hoje fica a capital do estado, Fortaleza. N o século XVII, os portugueses ha­ viam construído um forte - daí o nome da m e­ trópole - , porém a expansão urbana não havia sido promovida. Foi visando a aumentar o nú­ mero de colonos na região e a assegurar o dom í­ nio das duas estradas de penetração que os por­ tugueses resolveram, em 1699, fundar a vila do Ceará e conceder-lhe o título real. A vila deveria situar-se no local da velha fortificação. A instalação da nova vila, que deveria ter sido uma questão pacífica, gerou uma controvér­ sia que só cessou na década de 1720. Pela lógica, J r o sítio da nova vila deveria ter sido a antiga po' r ' voação à sombra do forte, porém o conselho municipal decidiu que a cidade ficaria melhor locaüzada a pouca distância dali, em Iguape. A 1 Coroa imediatamente se opôs, fazendo saber aos moradores da povoação que ela considerava o forte como o local mais adequado para a instala­ ção da sede do governo municipal. D e nada çadiantaram as discussões ásperas entre os cea­ renses e o governo local. Os portugueses não se demoveram, apesar do argumento da popula­ ção de que a zona de Iguape oferecia um clima mais saudável, terras férteis em abundância, água boa, fartura de peixe e um porto mais acessível que Fortaleza. N o 'fin al das contas, a Coroa indeferiu as objeções locais, e uma vila oficial foi criada em 1706 no local do antigo forte.*20 Nem assim a oposição dos habitantes ao local determinado por Lisboa foi aplacada, e em

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1713 os obstinados cearenses foram recompen­ sados com a decisão da Coroa de relocalizar a comunidade em Aquiraz, uma zona adjacente ao porto de Iguape. A despeito das suas propa­ ladas virtudes, infelizmente Aquiraz revelou-se uma vitória infausta. Tão logo os colonos se mudaram para a nova localização, os índios da região começaram a hostilizar a nascente comu­ nidade. O capitão-mor expressou as suas objeções ao novo lugar, mas a Coroa obstinou-se, e logo foram construídas uma casa da câmara, uma cadeia e uma igreja na comunidade, a essa altura completamente desmoralizada. Ademais, para certificar-se de que ninguém permanecesse em Fortaleza, deu-se um prazo de quatro meses aos comerciantes para transferirem suas merca­ dorias para Aquiraz. Nessas circunstâncias, a polêmica sobre a escolha da localização adequada continuou nos anos 1720, uma parte considerável da população optando agora pelo retorno ao sítio de Fortaleza. Para resolver o problema, a Coroa deu permis­ são às autoridades locais para instalarem uma vila alternativa no sítio da velha fortificação, em­ bora mantendo a capital oficial em Aquiraz.21 Com a implantação de Fortaleza a 13 de abril de 1726, a capitania do Ceará ficou na situação absurda de ter duas vilas fundadas oficialmente em áreas praticamente vizinhas, enquanto o resto da região não podia reivindicar nem mes­ mo uma única comunidade oficial. A proximi­ dade entre Fortaleza e Aquiraz não só era pouco prática do ponto de vista econômico (pois dupli­ cava as expensas oficiais) como criava rivalidades

Fico muito agradecida ao tradutor pela informação seguinte: O forte junto ao qual a vila de Fortaleza foi fundada, em 13/4/1726, foi construído pelos invasores holandeses, e não pelos portugue­ ses. É certo que, a cerca de uma légua dali, na barra do rio Ceará, Martim Soares Moreno havia erigi­ do o Forte de São Sebastião em janeiro de 1612. Porém em 6/4/1644, quando a expedição holande­ sa de 298 homens comandada por Matthias Beck aportou na enseada do Mucuripe, na atual Fortale­ za, desse forte português só restavam ruínas. O comandante Beck mandou transportar as suas telhas e velhas peças de artilharia, que encontrou semi-soterradas nas dunas, para o outeiro Marajaitiba, perto do riacho Marajaik (o córrego Pajeú, que atravessa o centro de Fortaleza). Nesse local foi construído o Forte Schoonenborch, de forma pentagonal. A Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que deu nome à capital do Ceará, só foi edificada em 1816, no mesmo local do forte holandês. As muralhas desse terceiro forte subsistem até hoje. Confira-se em Pequena História do Ceará, de Raimun­ do Girão.

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entre os dois núcleos demográficos incipientes. Diante de outra situação potencialmente explo­ siva como a do Piauí na década anterior, a Coroa sub-repticiamente subvencionou Fortaleza, fi­ nanciando a construção da futura urbe com fun­ dos do erário real. O mapa mais antigo existente da vila (cerca de 1730) ilustra até que ponto o governo real subsidiou a nova comunidade (Figura 2). As primeiras moradas são representadas como sim­ ples casas cobertas de palha; as edificações pos­ teriores, de tetos de telhas, são comparativa­ mente luxuosas.22 Numa carta de prestação de contas23 datada de 23 de abril de 1731, o capitãomor Manuel Francês, encarregado das opera­ ções, explica que deixou a nova vila aumentada de “26 casas com cobertura de telhas, todas ha­

desenho. N o meio desse quarteirão está a nova Casa da Câmara, e uma legenda no pé do dese­ nho salienta que o quartel municipal e a nova rua de casas foram criação do capitão-mor. O fato de não se ter conseguido uma regu­ lamentação completa dos elementos arquitetô­ nicos em Fortaleza decorreu do desenvolvimen­ to a esmo da comunidade nos seus primeiros anos. Inobstante, tanto Aquiraz como Fortaleza ilustram a essência do programa de construção de vilas, porquanto ambas serviram para asse­ gurar o controle português sobre um elo de co­ municação imprescindível na colônia. Consi­ derava-se que as duas vilas tinham uma função estabilizadora sobre uma região rem otam ente administrada, apesar do paradoxo aparente da rivalidade entre Aquiraz e Fortaleza. Por conseguinte, até os anos 1730, o poder administrativo português no Ceará esteve con­ centrado nos centros urbanos geminados de Aquiraz e Fortaleza.24 Esses centros garantiam o controle sobre o destino final da estrada Bahia-Ceará. Contudo, pelos anos 1730, parece que os portugueses compreenderam que era pre­ ciso aumentar a segurança ao longo dos trechos interioranos dessa artéria de intenso tráfego. Mais uma vez a Coroa resolveu obviar potenciais empecilhos, estabelecendo uma nova comunida­ de no sertão, a partir da qual os funcionários do governo poderíam manter o tráfego regional sob vigilância. O sítio escolhido em 1736 para a no­ va vila ficava num ponto intermediário da estra­ da Fortaleza-Salvador. Partindo de Fortaleza em direção ao sul, a estrada acompanhava a costa até o rio Jaguaribe e dali inflectia para o interior. O viajor acompanhava então o rio Jaguaribe até a foz do rio Salgado, seu afluente. Dali o trajeto se­ guia através do sertão até o rio São Francisco, no interior da Bahia.25 A confluência do rio Salgado com o rio Jaguaribe, em Icó, afigurava-se uma exce­ lente escolha para um baluarte administrativo. Essa nova povoação objetivava aumentar a autoridade na zona e contentar os habitantes, que tinham sofrido grandes incômodos, porque a sede de comarca mais próxima, Aquiraz, ficava a 80 léguas de distância.26 Conforme ocorrera

Fig. 2 - Croqui de Fortaleza, Ceará, aproximadamente 1730 22

bitadas, e que aiudcu a construir a Câmara com 5 mil réis”. Embora não exista nenhuma prova documental que confirme a apiicação de uma uma legislação de planejamento urbano, um exa­ me minucioso do croqui revela uma certa premeditação no traçado da nova comunidade. Em face da difícil tarefa de integrar as edificações antigas no desenho, é duvidoso que a nova For­ taleza pudesse ter sido ajustada ao traçado pre­ ferido de ruas retilíneas. Por outro lado, é perfeitamente visível que a área central da comunidade foi deixada vaga, servindo assim como praça principal, impressão confirmada pela presença da igreja matriz na sua cabeceira. Ademais, as casas do quarteirão paralelo à praça apresentam todas a mesma disposição de portas e janelas, o que indica uma tentativa de uniformização do

no Piauí, a criação da nova vila foi acompanhada de um a legislação de pianificação vinda de Lisboa, prescrevendo as ruas retas e o traçado retilíneo usuais. Entretanto, em Icó as autorida­ des estavam mais interessadas na configuração geral do que na uniformidade dos elementos arquitetônicos. Assim, cada habitante foi ins­ truído a decorar a fachada do seu imóvel como bem quisesse, sem a preocupação de manter um estilo homogêneo. Uma área de cinco léguas nas cercanias imediatas da povoação deveria ser dividida entre os habitantes, outorgando-se a cada família no máximo uma légua quadrada de terra.27 A fim de impedir o monopólio da terra, as ordens para a criação de Icó estipulavam ex­ plicitamente que os lotes não eram concedidos vitaliciamente, mas apenas por um determinado período. Isso evitava que o beneficiário se sen­ tisse com direitos perpétuos sobre a terra.28 N a década de 1740, as autoridades portu­ guesas resolveram acrescentar mais uma vila às únicas três existentes no Ceará, Aquiraz, Forta­ leza e Icó. Essa nova povoação localizar-se-ia à margem do rio Jaguaribe, não longe do mar, con­ solidando assim, ainda mais, a autoridade sobre a estrada Bahia-Fortaleza. Essa região especí­ fica havia sido colonizada nas primeiras décadas do século anterior por pescadores, que deram ao seu povoado o nome de São José.29 E ntretan­ to, o crescim ento da comunidade não se devia à atividade pesqueira em si, mas sim ao movimen­ to das boiadas que passavam pela circunvizinhança, cujos boiadeiros eram ávidos pelos pro­ dutos de São José. Além disso, na proximidade de São José do Porto dos Barcos foi montada uma instalação de preparo de carne seca por sal­ ga e insolação (“oficina” ou charqueada) antes de 1740, e essa indústria é que era responsável petA prõsperidideTd a comunidade,34 Naturalmente a Coroa estava sequiosa de participar das vantagens comerciais em São José; logo em 1739 houve uma troca de correspon­ dência com os funcionários locais propondo a criação oficial de uma vila no sítio da povoação existente.31 Todavia, as ordens efetivas para a criação da vila de Santa Cruz do Aracaty não 23

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foram escritas e recebidas pelo ouvidor-geral, fosé de Faria, senão em 1747.32 Quando as piantas finalmente chegaram, os fundadores da nova vila foram instruídos a escolher um lugar que estivesse topograficamente acima do nível das enxurradas do rio jaguaribe, mas que, concomi­ tantemente, fosse acessível aos barcos que che­ gassem ao rio com fins comerciais. As recomen­ dações para o traçado da cidade obedeciam às diretrizes de retilineidade, agora de praxe, porém também levavam em conta as dificuldades espe­ cíficas do local de Aracaty. Por exemplo, as or­ dens de 1747 recomendavam que as novas casas da vila fossem construídas com uma aparência uniforme; entretanto,

sancionado pela Coroa; os administradores dese­ josos de implantar ordem nos rincões incuitos que eles governavam iam aderir ao plano por todo o resto do século XVIII.

no caso de a nova villa ser localizada junto à povoação que já existe,... quando um morador de uma casa [antiga] tiver de reconstruí-la por moti­ vo de ruína, deve-se avisá-lo de que a casa deve­ rá ser reconstruída de forma a dar-lhe um con­ torno e aparência equivalente aos das novas casas. As novas ordens recomendavam o modelo ideal, mas, ao que parece, as autoridades podiam acei­ tar uma solução conciliatória. Essa sensibilidade à necessidade de flexibi­ lizar os padrões de urbanização foi da mesma forma evidente na advertência dirigida a José de Faria para construir a praça da vila suficiente­ mente ampla, de modo a “não padecer do defeito de ficar exígua quando a villa tiver o desenvolvi­ mento que se espera”. Além disso, os consulto­ res em Lisboa recomendavam que o curral e o matadouro fossem construídos em terreno pú­ blico, a uma distância tal da cidade que o maucheiro não incomodasse os habitantes. Essa no­ va filosofia urbana era um evidente refinamento em relação à mentalidade que havia aceitado as moradias superlotadas das famílias dos nego­ ciantes anexas às suas lojas da cidade medieval portuguesa tradicional, onde as famílias e os co­ merciantes conviviam intimamente com mias­ mas fétidos e doenças. Ou em relação ao caso de Salvador naquela mesma época, onde os depósitos de lixo diários, situados embaixo dos grandes edifícios da cidade, ameaçavam a pró­ pria vida dos seus habitantes.33 24

Outras características da planta básica de Aiacaty eram semelhantes às determinações das leis de plamtícãçao para as comunidades analisa­ das anteriormente, reservando-se localizações destacadas na praça para os prédios importantes. bem como um terreno de extensão considerável para uso coletivo da comunidade. As indicações mostram que as obras da vila começaram imediatamente, pois no início de 1748 carnaubeiras existentes no local já ser­ viam de marcos temporários na praça recémdemarcada.34 O relatório de um engenheiro mili­ tar que visitou a vila em 1799 confirma a obe­ diência dos seus fundadores ao decreto de 1747. Ele observou que ela tinha uma certa distinção e polidez, a par com “uma arquitetura das casas agradável e regular”.35 A fórmula de Aracaty logrou tanto êxito que as autoridades recomendavam-na com o modelo para a construção de outras cidades. Por exemplo, quando o Conselho Ultramarino ins­ truiu o governador Gomes Freire de Andrade a criar oficialmente uma vila na localidade de Rio Grande, no extremo Sul do Brasil, recomendou a utilização do modelo de Aracaty. A carta rece­ bida pelo governador em 1747 declarava que ...a fim de o dito Ouvidor ordenar melhor as ruas dessa cidade, sua praça, e a Igreja, a Casa da Camara e a Cadeia, estou determinando a instrução inclusa..., que foi remetida ao Ou­ vidor do Ceará para criar a nova villa na locali­ dade de Aracaty.36 Como se pode ver, no decurso de 30 anos os portugueses haviam desenvolvido um modelo padronizado para o traçado de novas vilas no interior. Essencialmente um aperfeiçoamento das ordens de 1716 para a criação de Mocha (mais tarde Oeiras), no Piauí, a fórmula de Ara­ caty revelava claramente um conhecimento das injunções do local, a conveniência de flexibi­ lidade ao fazer cumprir as exigências de unifor­ midade e um desejo de padrões sanitários eleva­ dos. Para a mentalidade portuguesa, uma cidade bem construída com certeza deveria gerar habi­ tantes satisfeitos. Foi assim que Aracati se tor­ nou o protótipo para o desenvolvimento urbano

(1) Ernâni Silva Bruno, Nordeste, vol. II: História do Brasil: Geral e Regional (Cultrix Ltda., São Paulo, 1967), p. 83. A bandeira de Domingos Jorge Velho penetrou na região em 1662-1663. Um contingente de baianos alcançou-a por volta de 1674. Ver também a exposição do ca­ so do Piauí constante em Capítulos de História Colonial: 1500-1800, de Capistrano de Abreu, revisto e anotado por José Honório Rodrigues (5a edição, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, 1969), p. 160. (2) Essa análise das vias fluviais é baseada em Caio Prado Júnior, op. cit., p. 282. (3) Consulta do Conselho Ultramarino sobre a carta do bispo de Pernambuco, datada de 20 de novembro de 1697, tal como citada em Er­ nesto Ennes, A s Guerras nos Palmares (Com­ panhia Editora Nacional, São Paulo, 1938), pp. 360-361. (4) Isso é evidente no “Termo de eleição q.e. fizerão os moradores do certão do Piauhi: do lugar para se fazer a Igreja de Nossa Senhora da Victoria”, tal como citado em Ennes, op. cit., p. 364. (5) Carta Régia de 20 de janeiro de 1699, tal como citada em Carlos Eugênio Porto, Roteiro doPiauí (Ministério da Educação e Cultura, Rio de Ja­ neiro, 1955), p. 66. (6) Carta Régia de 20 de janeiro de 1699 (trechos posteriores), tal como citada em Capistrano de Abreu, Capítulos..., p. 166. (7) Carta Régia de 3 de março de 1701, tal como citada em Porto, op. cit., p. 67. (8) A ação do ouvidor Antônio José da Fonseca Lemos é examinada em Porto , op. cit., pp. 66 et seq. (9) Ibidem. (10) Essa revolta dos índios foi tratada em Boxer, op. cit., p. 236. (11) Essa foi a recomendação do Conselho Ultra­ marino em 13 de março de 1717 (Lisboa). IHGB-CU, vol. X, Maranhão e Grão-Pará, 1678-1803.

(12) Silva Bruno, op. cit., p. 84, observa o rápido crescimento da população nessa área de 1720 a 1724. Paulo T. Barreto, em “O Piauí e sua arquitetura” (RSPHAN na 2, 1938, pp. 187223), indica que tanto o povoado de Piracuruca como o de Victoria seriam submetidos à legis­ lação de 1716. (13) A ênfase na uniformidade é um aspecto característico da nova construção de vilas no Brasil setecentista. (14) A Carta Régia de 1716 está reproduzida na íntegra em Barreto, op. cit. (15) Barreto, op. cit., p. 221. Enquanto a povoação de Mocha foi criada por volta de 1716, a de Piracuruca não foi concretizada senão muitos anos depois, conforme um consenso baseado em Reis Filho, op. cit., Silva Bruno, op. cit., e Aroldo Azevedo, Vilas e Cidades do Brasil Colo­ nial. Esse fato pode ter sido responsável pela aparente demora na construção de um templo em Piracuruca. (16) “Diário da viagem de regresso para o Reino, de João da Maia da Gama, e de inspecção das barras dos rios de Maranhão e das capitanias do Norte, en 1728”, tal como citado em F. A. Oliveira Martins, Um Herói Esquecido: João da Gama, vol. II (Agência Geral das Colônias, Lisboa, 1944), pp. 22-23. (17) Carta Régia ao Governador José Pereira Caldas, 1761, tal como citada em Barreto, op. cit., pp. 189-190. A planta de Parnaíba intitula-se “Mapa exacto da villa de S. João da Parnaíba”, 1798. Ela faz parte da mapoteca do Arquivo Histó­ rico Ultramarino, em Lisboa. Todos os mapas do AHU referentes ao Brasil foram catalogados e numerados por Alberto Iria em “Inventário Geral da Cartografia Brasileira Existente no Arquivo Histórico Ultramarino (Elementos para a Publicação da Brasila Monumenta Cartographica)”, IV Colóquio Internacional de Estudos Ljtso-Brasileiros, reeditado em Studia n“ 17, abril de 1966. Esse mapa tem o número de referên­ cia AHU-Iria n“ 68. (18) Ver explanação em Porto, op. cit., pp. 68-73. (19) Caio Prado Júnior, op. cit., p. 183. (20) Dois estudos históricos dos primórdios de For­ taleza podem ser encontrados em: Raimundo Girão, Pequena História do Ceará (Editora Insti­ tuto do Ceará, Fortaleza, 2a edição, 1962), pp. 138-149; e Tristão de Alencar Araripe, História

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da Província do Ceará: Desd‘ os Tempos Primitivos até ISSO, voi. I (Editora Instituto do Ceara, Fortaleza, 2* edição anotada, 1958), pp. 150153. Ibidem, p. 152. Mapa da “Villa Nova da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunpsão da Capitania do Ciara Grande, que S. Mag.de que Deos guarde foy cervido mandar criar”, aproximadamente 1730, AHU-Iria, n» 69. Carta do Capitão-Mor Manuel Francês ao Rei, de 6 de julho de 1730. Essa carta está inclusa numa coleção de cartas relativas a Fortaleza; recebeu o número 15 no catálogo de Anêmona Xavier de Basto Ferrer, intitulado Segunda Relação de DocumentosExistentes noArquivo Histó­ rico Ultramarino, Respeitantes a Fortaleças, Igre/as e Outros Monumentos Antigos, Civis, Religiosos e Militares, Construídos pelos Portugueses no Brasil (Lisboa, 1960). Daqui por diante, essa fonte será citada como Basto Ferrer. Ver “Carta de D. João em resposta a outra do Governador do Maranhão-Pará em que este lembrava a conveniência de se colonizarem

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certos pontos extremos da Amazônia com ca­ sais Açonanos”, de 18 de março de 1750. h Cortesão, op cit., pp. 475-476. Caio Prado Júnior, op. cit., p. 283. Ver a ordem real de 20 de outubro de 1736 na R1C, vol. IX (1895), p. 356. Ibidem, p. 357. Ibidem, p. 358. Emáni Silva Bruno, Nordeste, voL D, op. cit., p. 60. Raimundo Girão, op. cit., pp. 121-122. Carta de 1739 na R1C, vol. IX (1895), p. 360. A exposição que se segue é baseada na Carta Régia recebida por José de Faria, ouvidor-geral, datada de 17 de julho de 1747, ANRJ, Códice 952, vol. 34, fls. 19-20. A. J. R. Russell-Wood, op. cit. Isso é constatado no “Auto da Criação da villa de Aracaty”, de 10 de fevereiro de 1748, RIC, vol IX (1895), pp. 395-397. Carta do Chefe de Esquadra Bernardo Manuel de Vasconcelos, tal como citada em Raimundo Girão, op. cit., p. 152. Carta Régia a Gomes Freire de Andrade de 17 de julho de 1747. ANRJ, Códice, vol. 34, fl. 17.

Capítulo IV

A expansão da autoridade: novas vilas no Centro e no Oeste

Sem dúvida, o maior desafio enfrentado pelos portugueses foi implantar os novos pa­ drões urbanos nas regiões de mineração do Cen­ tro e na fronteira do extremo Oeste do País. Ali, os bandeirantes e outros mineradores tinham to­ mado a iniciativa na formação de comunidades, juncando os distritos de mineração de acampa­ mentos construídos atabalhoadamente. O histo­ riador da arquitetura Sylvio de Vasconcellos, que estudou a fundo as origens dos centros urbanos de Minas Gerais, descreve esses primeiros aglo­ merados de barracos como “de configuração li­ near, com elem entos dispersos, sem nenhum centro de polarização definido”.1 Em geral as ruas desses vilarejos eram simplesmente as estra­ das que passavam pela região, e não pistas espe­ cialmente construídas. As suas casas norm al­ mente eram do tipo improvisado, muitas vezes não passando de barracos levantados para ocu­ pação provisória. Tais “casas”, como Cassiano Ricardo observou com humor, “estavam com­ prometidas com o movimento”; a única coisa que as cabanas não faziam era caminharem junto com seus moradores.2 O arraial de Sumidouro, fundado pelo che­ fe de bandeira Fernão Dias Pais Leme, é um'otimo exemplo dos acampamentos de minejradores dispersos em Minas Gerais. Ocupado originariamente em 1675, Sumidouro futuramente desem­ penharia o papel de ponto de arrancada para a exploração ulterior dos planaltos colinosos auríferos. Todavia, um mapa do arraial de 17323 mos­ tra claramente que Pais Leme não construiu o seu campo com vistas a permanecer (Figura 3). Conquanto esse mapa represente visivelmente

um estágio mais avançado do desenvolvimento da povoação, ele realmente dem onstra que as Unhas gerais do crescimento de Sumidouro re­ sultaram da sua fundação fortuita. Por exem­ plo, o terreno em que o acampamento se situava é m ostrado no mapa como ondulado e cheio de arbustos, e, conseqüentemente, as edificações parecem dispostas em níveis diferentes; obser­ vam-se vários lotes cultivados locahzados em áreas mais elevadas que o resto da comunidade. A povoação compõe-se de umas poucas edifica­ ções de dimensões variadas enfileiradas ao longo da única “rua” do arraial, sem nenhuma preocu­ pação perceptível de alinhamento ou disposição sistemática. Apenas a praça da igreja m ostra alguma unidade arquitetural, e assim m esmo porque esse prédio im portante é o único a ocu­ par um espaço amplo e não definido por alguma outra circunstância. Contudo, seria errôneo concluir, com o ge­ ralmente se crê, que se perm itiu que todas as povoações interioranas dessa região se desen­ volvessem desordenadamente como Sumidouro. Quando a descoberta de ouro no interior abriu os olhos dos portugueses para a riqueza poten­ cial do sertão, houve uma tentativa quase ime­ diata de controlar o crescimento urbano. Pode­ rosos chefes de bandeiras eram persuadidos a servir de exemplo para seus homens mediante a promessa de nomeação para o posto de alcaidem or (prefeito) da comunidade onde eles resol­ vessem estabelecer-se. Além desse apelo à vai­ dade, a Coroa também esperava fixar os antigos desbravadores erradios pela garantia de que os bandeirantes que estabelecessem residência nas 27

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povoações seriam dispensados de pagar foros (impostos)4 Essa mesma legislação que oferecia vanta­ gens inéditas aos bandeirantes também continha algumas diretrizes para a criação de futuras al­ deias na região. Os fundadores dessas comunida­ des deveríam procurar “sítios saudáveis, próxi­ mos de rios e de fontes de água boa, com terre­ no propício e a pouca distância das minas de ouro.5 A localização das futuras povoações já não podia ser deixada à discrição dos colonos; a Coroa era favorável à escolha judiciosa de luga­ res que apresentassem claras potencialidades de evoluírem para comunidades permanentes. Ade­ mais, Lisboa estipulava que esses novos centros deveríam localizar-se perto de achados de ouro recentes, porque a proximidade das escavações significava que se podería exercer uma fiscaliza­ ção rigorosa sobre o ouro extraído.

Fig. 3 - Planta básica de Sumidouro, em Minas Gerais, 1732

Estranhamente, nessa ordem inicia! não se fez nenhuma referência a um traçado urbano, o que dá a entender que a preocupação primordial nessa região era literalmente fixar os errantes, e não criar comunidades ordenadas. Poucos mineradores se davam ao trabalho de pedir permissão oficial para fundar novos arraiais. Em todo caso, seguir os trâmites burocráticos muitas vezes revelava-se um procedimento demorado e compli­ cado. Um caso que ilustra bem isso foi o requeri­ mento de Garcia Ruiz Paes para fundar uma povoação à margem do rio Paraíba do Sul, em retri­ buição aos seus serviços por ter aberto a estrada entre o Rio de Janeiro e os Campos Gerais. A per­ missão foi concedida a título precário em 17116, porém quatro anos depois o Conselho Ultrama­ rino ainda não se havia decidido a permitir ,a Paes dar início às obras.7 Indiscutivelmente, es­ sas delongas administrativas tinham um efeito

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negativo, desencorajando outros a buscarem o aval da Coroa para iniciarem novas comunidades. & Em face disso, compreende-se facilmente cv por que, apesar das intenções em contrário da Coroa, a maioria das comunidades que foram toficialmente reconhecidas e tituladas como vilas na segunda década do século XVIII deveram a sua origem, não ao patrocínio oficial de arraiais, mas sim ao crescimento natural de acampamen­ tos de mineração não planificados que já haviam proliferado na região. Conquanto oito dos pri­ mitivos acampamentos de bandeirantes fossem promovidos à categoria de vila entre os anos de t 1711 e 1718, nenhum deles teve o privilégio de ser fundado p o r iniciativa do governo.8 Todas^ essas novas vilãs, sém" exceção,“óbedeciam lisJ características gerais dos arraiais de Minas G e­ rais supradescritos: agrupam entos lineares de casas dispersas. Mesmo assiríT, ãVHãçãcrde oito novas vilas era parte integrante do programa do i o d e levar adm inistradores oficiais às áreas de mineração. Exigia-se que cada nova 1vilã silijvênciona s sí, por intermédio da tesoura­ ria da câmara municipal, a construção de uma cadeia segura e do prédio da intendência munici­ pal.’ Posteriormente, as vilas assim constituídas sediariam casas de fundição, escritórios de conta­ bilidade e residências aificiais-.de coletores de impostos^do-atoverao/ Desse modo, as noVas atilas funcionavam como pontos de irradiação) dos serviços de supervisão governamentais. J . _ Apesar do surgimento da planificaçâo esta! tal no Nordeste, o crescimento dessas comunida: des foi deixado seín co n tro le nessa fase. A res­ ponsabilidade pelosm êlhoram entosurbanos em Minas Gerais era exclusivamente da alçada dos governos locais, e alguns deles conheciam perfeij tamente as novas normas urbanas. Assim foi que, nem 1714, aproveitando a oportunidade da des­ truição de O uro Rjwes-gor um incêndio, a câma­ ra local determinou que, ho futuro, as casas das ruas que dessem na praça principal seriam medi­ das e alinhadas, ifim de criar.üma vista de conjun­ to mais regular ha .partô-éentral da vila.10 Dois anos antes, a câmara tinha decretado que todos os que quisessem construir dentro do perímetro

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da vila tinham de obter uma permissão prévia do governo municipal, de modo que as novas cruas pudessem serjconstruídas em alinhamento reto.11 Entretanto, como obsetvõuA historiador mineiro Svlvio de Vasconcellos, a câmara estava travando uma batalha árdua, pois a topografia acidentada e cheia de morros de O uro Preto impossibilitava o traçado de ruas retas, tornando assim o planejamento global extrem am ente difícil.12 Enquanto a região sul-central de Minas Ge­ rais começou assim a assumir um caráter quase urbano, a geração seguinte de exploradores ban­ deirantes penetrou para o oeste, em direção a Goiás e Mato Grosso, na busca contínua de ri­ quezas minerais. Embora em 168215já houvesse indícios de ricos filões de minerais na zona do rio Vermelho, o verdadeiro estímulo para o po­ voamento dessa vasta região só veio na segunda década do século XVIII, quando finalmente a expedição de Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro na proximidade do ribeirão do Coxipo. Entre 1716 e 1719, os descobridores dessa nova zona aurífera erigiram uma capela e iniciaram uma modesta povoação que constituiu o núcleo do que uma década depois viria a ser a vila de Cuiabá.14 A maioria das trilhas que serpeavam pela aldeia seguiam em direção ao rio Cuiabá, junto ao qual a povoação cresceu; a configuração da comunidade apenas acompanhava as irregu­ laridades da topografia. As casas espalhavamse a touxe-mouxe, e mesmo a igreja paroquial não passava de uma simples cabana com um teto de palha precário.15 Apesar de tudo isso, em 1727 essa aglome­ ração miserável de simples casas foi agraciada, na devida forma, com o título de vila portugue­ sa, sob a auspiciosa denominação de Bom Jesus de Cuiabá (Figura 4).16 O princípio que norteou aquilo que à primeira visttTpareck uma medida prematura e incorreta baseava-se numa circuns­ tância decisiva: Cuiabá efa a única/aglomeração urbana de toda a região Q çsm yN essas condi­ ções, os portugueses enfrentavam um dilema complicado: ou a diminuta agjomeração de Cuia­ bá deveria ser reconhecida como centro admims"Jr

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outro caso essa m u d íH ^ de atitude foi mais evidente do que no processo de criação da loca­ lidade real destinada a ser a capitai da capitania de Goiás. Até os anos 1730, Goiás ainda não havia sitjo explorado sistematicamente. O interesse pela região só foi despertado quando o bandei­ rante Bartolomeu Bueno da Silva, o “Anhangüera” (diabo velho, em tupi) regressou a São Paulo em 1725, espalhando histórias de achados fabulosos de ouro na região situada entre Minas Gerais e Mato G rosso.19 Pelo ano de 1736 havia sido aberta uma trilha por terra entre Cuiabá e Goiás, a qual finalmente se ligava ao Rio de Ja­ neiro, e os portugueses receavam que ela se transformasse numa im portante estrada do con­ trabando.20 Diante de mais uma situação poten­ cialmente incontrolável, as autoridades, incontinenti, ordenaram o governador de São Paulo, o Conde de Sarzedas (sob cuja jurisdição estava o território recém-aberto), a seguir imediatamen­ te para o interior de Goiás.21 O superintendente da região resumiu o ponto de vista oficial ao proclamar que unicamente por meio da fundação de vilas e do estabelecimento nelas da administração governamental, esses homens que perambulam sem destino através desses campos auriferos podem ser controlados, sendo inconveniente deixá-los vaguearem sem vigilância, por causa das desordens que podem cometer.22

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Fig. 4 - Planta básica de Cuiabá, Mato Grosso, 1777 tivo, ou então seria preciso construir uma nova vila. Como a Coroa estava desejosa de controlar o fluxo de ouro dessa zona recém-aberta, e como o custo da constituição e aparelhamento de uma equipe para construir uma nova comunidade nessa região remota teria sido exorbitante, os portugueses viram-se obrigados a aceitar a urbanização nas condições dos bandeirantes, finalmente elevando devidamente o povoado à condição de vila. Porém havia sido atingido um ponto crítico, porquanto a criação da vila de Cuiabá de­ 30

monstrava o compromisso sério da Coroa com o desenvolvimento planejado do Oeste. A partir de 1727, exigiu-se que os administradores to­ massem todas aspfOVÍdêflcias posüíveis para reter a escassa população", mesmo èm zonas não produtoras de ouro, ao passo que Lisboa, além disso, ordenou que se estabelecessem re­ gistros de censos, a fim de obter dados sobre as zonas em que existissem vazios dem ográ­ ficos.18 As futuras povoações teriam de se sub­ meter às exigências dé planejamento, agora acei­ tas naturalmente no Nordeste. Em nenhum

Movido por essas convicções, em 1736 Sar­ zedas partiu para as minas do rio Vermelho (afluente do Araguaia), munido de cópias da lelegislação de planejamento urbano que o orien­ tariam na criação eficiente de uma nova vila. Cópias das ordens para a formação da vila de Goiás haviam sido enviadas antecipadamente tanto a Sarzedas como ao superintendente.23 Provavelmente o governador teria agido com toda presteza, se a sua viagem não tivesse sido interrompida pela sua morte inopinada em Meia Ponte, em fevereiro de 1737.24 A administração interina que se seguiu ao falecimento de Sarzedas fez poucos progressos no sentido de criar a vila de Goiás. Só quando

Dom Luís de Mascarenhas assumiu o governo é que as ordens foram finaimente cumpridas. Che­ gando ao território problemático em julho de 173925, Mascarenhas decidiu estabelecer a nova capital no arraial de Santa Ana, embora o de Meia Ponte, próximo, tivesse pleiteado a sede da vila26, e em dezem bro de 1739 a recém -organizada Câmara de Vila Boa de Goiás pôde declarar ofi­ cialmente que a vila havia sido inaugurada.27 Como o seu antecessor falecido, M ascare­ nhas sem dúvida levou consigo uma cópia da legislação de planejamento urbano. As ordens de 1736 requeriam a criação de uma comunidade segundo o m odelo retilíneo prescrito. Elas diferiam das ordens para a fundação de Icó, do mesmo ano, apenas no destaque à uniformidade das fachadas das edificações e na prescrição de que, nüm raio de seis léguas da vila, os habitantes só podiam receber meia légua quadrada de ter­ ra.28 Essas duas diferenças são compreensíveis em face da função específica de cada uma das duas comunidades. Vila Bela destinava-se a ser uma capital regional e, por isso, devia ter uma aparência consentânea com o seu papel. Icó, por sua vez, era apenas uma estação de parada na estrada comercial cearense. Assim sendo, por um lado, não era imperativo que essa vila se su­ jeitasse estritamente ao ideal de simetria pre­ dominante; por outro lado, certamente era possí­ vel atribuir mais terra aos colonos icoenses, m e­ nos numerosos, que aos da nova vila goiana, considerando-se ainda que a região de Goiás era particularmente mais lucrativa. Pela documentação existente, percebe-se que Mascarenhas seguiu as ordens referentes à construção dos prédios públicos necessários, mas foi negligente em exigir o cumprimento do padrão reticular no traçado das ruas.29 D essa forma, compreende-se por que muito depois, na década de 1770, foram expedidas ordens recomendando que fosse estabelecido um plano diretor para Vila Boa a fim de futuramente evitar “a mesma irregularidade... com que os fundado­ res da Capital haviam construído os prédios, es­ tragados pela falta de alinhamento”.30 Uma plan­ ta da cidade em 1783 indica que, enquanto o 31

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derosa que seja respeitada pelos seus vizinhos [os espanhóis] e que sirva de baluarte de todo o interior do Brasil”. Não só a presença de um oficial de alta patente e de tropas reais contri­ buiría para a defesa como a nova capitaniageral simbolizaria a ocupação permanente pela Coroa do extremo Oeste, proporcionando uma base firme para a aplicação do uti possidetis.32 A criação de uma vila em Mato Grosso foi proposta no começo dos anos 1740, pouco de­ pois da fundação de Vila Boa em Goiás. Em mar­ ço de 1741,0 Conselho Ultramarino respondeu à informação prestada pelo ouvidor da Comarca de Cuiabá autorizando a criação de uma comuni­ dade para ocupar a terra compreendida entre o Lerritório dominado pelos espanhóis e os limites exteriores da vila de Cuíàbá. Tal vila, consoante esse documento, podia ser construída “emitindo-se uma ordem semelhante à de Vila Boa de Goiás” (sic).33 Cinco anos depois, em 1746, uma

versão quase idêntica do código de planejamento áe Vila Boa foi enviada ao governador de São Paulo (sob cuja jurisdição o território de M ato Grosso estava), instruindo-o sobre os procedi­ mentos para projetar uma nova vila. A q u m m bém a ênfase recaía na ordem e na simetria: as ruas deveríam ser desenhadas com uma largura umfõnríe e em Unhas retas; as cãsãs tmhâfti d e ser construídas coriTuma fachada únífôrme. e todos os esforços dêvênâm ser envidados pqpi ‘‘p iescxvitytíe r tím ^ ^ iI i tcT ri^sic). Em vir­ tude, antesdFtudõTdãToMhzãçao remota dessa futura capital administrativa, as ordens prescre­ viam ainda que os fundadores exigissem que to ­ dos os funcionários da comunidade fossem casaAos e residisae^d^nTO deTahiG Thfuito era criar uma população permanente; como um incentivo a mais ao povoamento, os novos habitantes fica­ vam isentos de todos os impostos por 12 anos a

Fig. 5 A - Planta básica de Vila Boa, Goiás, 17S2 núcleo central apresentava uma falta de ordem, os lotes de edificações recém-delineados se­ guiam estritamente um padrão de malha ortogonal (Figuras 5A e 5B).31 As leis de planificação urbana foram postas em prájica com maior fidelidade na construção lBela da Santíssima Trindade, na capitania 'de MátO-Grosso. A história dessa região está inti­ mamente ligada à luta de Portugal pata prote^ ger a fronteira despovoadp-contra as intrusõesxspaflhotas. Acresce quer qiAiulo se comprovou Êjúê a área a oeste e ao nlprte le Cuiabá encerrava preciosas jazidas de ouroArCoroa decidiu defen­ 32

der os seus interesses, ordenando nos anos 1740 a construção de uma vila nas suas imediações pa­ ra cumprir duas funções: desencorajar os espa­ nhóis e evitar as atividades ilícitas de bandeiran­ tes mineradores. Essa nova vila seria a sede lógi­ ca da capital da nova capitania de Mato Grosso, cuja criação foi recomendada pelo Conselho Ultra­ marino em 1748. Depois de construída, a nova vila podería imediatamente acomodar o quadro habitual de funcionários e militares da Coroa: O capitão-geral residiría a maior parte do ano na nova vila a ser construída em Mato Grosso para “tornar a colônia de Mato Grosso tão po-

Fig. 5 B - Planta de Vila Boa mostrando o realinhamento, aproximadamente 1782 — 33—

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Fig. 6 B - Planta básica de Vila Bela, 1780 Fig. 6 A - Detalhe de Vila Bela, 177i contar da fundação da vila. Além disso, exigiase dos mineradores o pagamento de apenas um 1

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