No silêncio que as palavras guardam 9786586941265

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No silêncio que as palavras guardam
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No silêncio que as palavras guardam Lula Wanderley Organização e prefácio Kaira M. Cabañas © n-1 edições, 2020 © textos: autores, 2020 ISBN: 978-65-86941-26-5 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes ASSISTENTE EDITORIAL Inês Mendonça TRADUÇÃO DO PREFÁCIO Pedro Taam REVISÃO Flavio Taam PROJETO GRÁFICO érico peretta ILUSTRAÇÕES (IMAGENS E POEMAS): Cortesia do autor CAPA: Vlademir Dias-Pino, Lula Wanderley e Allan Teixeira, 2016 CONTRACAPA: Lula Wanderley, Posologia e modo de usar , 1989 CONVERSÃO PARA EBOOK: Cumbuca Studio A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1a edição | São Paulo | abril, 2021 n-1edicoes.org

Sumário Prefácio Kaira M. Cabañas I. Primeiros escritos: Um olhar no espelho atemporal da memória 1. O antes é o depois 2. [ e ] 3. ...há no canavial oculta fisionomia... (De onde vem Lygia Clark?) II. Narrativas: Clínicopoemas 1. Quarenta minutos antes do nada 2. O corpo é a alma do corpo 3. Desobedeça-me 4. O silêncio que as palavras guardam 5. O vazio brasileiro 6. A cidade é o desencontro das linhas III. Derradeiros escritos: Tanto ética e estética quanto política 1. Também se cresce pelo prazer (2010) 2. Arrumações dominicais (2012) 3. Bandeira a vida inteira (2015) 4. Insônia: Eu vertical x Eu horizontal (2016) 5. Os objetos nos trazem a razão: Para compreender Bispo do Rosário (2017) 6. Antes que o Brasil acabe (2019) Agradecimentos e gratidão Lista de ilustrações Biografias Prefácio Kaira M. Cabañas Embora eu já conhecesse o trabalho terapêutico de Lula Wanderley pela publicação de O Dragão Pousou no Espaço (2002), só fui conhecê-lo pessoalmente quando participamos do mesmo seminário no Museu de Arte Moderna ( MAM ) do Rio de Janeiro, em 2012. Nesse evento, Lula falava da

provocativa exposição de Lygia Clark em Barcelona, em 1997, na Fundació Antoni Tàpies, que depois viajou por toda a Europa. Lula foi um dos principais conselheiros a respeito de como as proposições terapêuticas de Lygia Clark deveriam ser expostas. ¹ Nesse mesmo evento, no MAM , falei da minha curadoria da mostra “Espectros de Artaud”, que também tratava da dimensão terapêutica do trabalho de Lygia Clark, mas, mais especificamente, rastreava a recepção inicial de Antonin Artaud no Rio de Janeiro da década de quarenta e no contexto em que Lula atualmente trabalha: o Instituto Municipal Nise da Silveira, antigo Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no bairro do Engenho de Dentro. Mais tarde, o visitei no Espaço Aberto ao Tempo ( EAT ). Localizado no mesmo instituto, o EAT é um espaço transdisciplinar criado por Lula em 1988, em sua busca por uma nova ética de trabalho com pessoas que experimentam sofrimento psíquico agudo. O que eu ainda não sabia era que encontraria novamente o fantasma de Artaud nesse espaço clínico: aninhados na estante de metal no consultório de Lula estavam dois retratos de Artaud que um de seus clientes lhe dera. ²

Estante de Lula Wanderley em sua sala de consulta no Espaço Aberto ao Tempo No presente volume, Lula oferece um testemunho íntimo e profundo de seu trabalho na interseção entre arte e terapia, simultaneamente como um artista que traz a criação ao domínio dos cuidados psiquiátricos e como um terapeuta que expande a genealogia da psiquiatria e da criação que está no cerne da estética modernista brasileira (mais sobre isso adiante). ³ Por meio da produção do que chama de “zonas híbridas”, ele ativamente borra as categorias do que é e não é arte, do que é clínico e do que não é clínico. Ao mesmo tempo, ele fornece depoimentos em primeira mão de seu uso dos

Objetos Relacionais de Lygia Clark como parte de sua prática terapêutica expandida. Como é agora bem conhecido, depois de voltar definitivamente ao Rio nos anos 1970, Lygia Clark começou a adaptar suas proposições sensoriais para uma terapia individual em sessões em Estruturação do Self, por meio do que a artista denominou Objetos Relacionais. Na mesma época que Lygia Clark começou a atender pacientes individualmente e a transmitir a outros sua prática terapêutica – incluindo aí Lula e a psicóloga Gina Ferreira, sua companheira –, a grande mídia começava a denunciar os horrores da instituição psiquiátrica e a assim chamada reforma psiquiátrica ganhou força no País, levando a mudanças de nível nacional no cuidado de usuários da psiquiatria, o que coincidiu com os anos finais da Ditatura Militar. Figuras-chave da psiquiatria radical na Europa, de Franco Basaglia a Félix Guattari, visitavam e palestravam regularmente no Brasil nessa época. ⁴ É nesse contexto – o da terapia não convencional de Lygia Clark e de um apelo internacional para a reforma dos hospitais psiquiátricos e a socialização dos pacientes – que Lula desenvolveu sua abordagem singular no trabalho terapêutico. O livro começa com os “Primeiros Escritos”, que versam sobre a biografia de Lula, sua colaboração com a Drª. Nise da Silveira e com o crítico de arte Mário Pedrosa, um apanhado de conceitos psiquiátricos e as difíceis circunstâncias de seu trabalho. Um ponto crucial da prática clínica atual de Lula é sua elaboração crítica do trabalho terapêutico de Lygia Clark. Enquanto a artista trabalhava principalmente com pessoas de classe média e pertencentes à elite cultural em suas sessões de Estruturação do Self (Caetano Veloso foi seu cliente), Lula expandiu os limites e amplificou as aplicações de suas proposições terapêuticas e sensoriais ao trabalhar em hospitais psiquiátricos públicos de bairros periféricos e pobres do Rio de Janeiro. Dado o panorama do sofrimento humano que ele descreve, não é surpresa sua insistência em dizer: “O que eu vivi foi muito mais forte e denso do que consigo narrar.” Na parte 2, “Narrativas”, Lula se dedica ao seu desejo de contar histórias , mesmo quando confessa o quanto “a língua aprisiona”. Ele cuidadosamente evoca a impossibilidade de capturar completamente a intersubjetividade e a comunicação do sofrimento psíquico quando narra as experiências pessoais de seus clientes – entre eles Matheus, Diego, Pedro, Rosa, Célia e Roberta (evidentemente, em respeito à privacidade dos clientes, todos os nomes são pseudônimos). O que ele chama de “clínicopoemas” difere notavelmente dos casos históricos encontrados no arquivo psiquiátrico moderno. Basta olhar para trás, especialmente para as décadas de trinta e quarenta, no auge da fase anatômico-patológica no Brasil, para perceber o quanto os arquivos dos pacientes refletem o impulso de diagnóstico da medicina e seus tratamentos sob a forma de ditames prescritivos: da lobotomia à terapia eletroconvulsiva. ⁵ As histórias pessoais dos pacientes permaneceram nas sombras, confinadas ao arquivo psiquiátrico, presentes apenas em forma muito resumida em suas fichas médicas – um campo de batalha para reduzir a loucura à doença mental e os pacientes a diagnósticos como a paranoia esquizofrênica. Nesse paradigma moderno, o louco delira , enquanto o psiquiatra registra . ⁶

Em grande contraste, os clínicopoemas de Lula destacam o relevo dos modos de comunicação terapêutica, tanto verbais quanto não verbais, que ele desenvolve, de forma a permitir que a complexidade das experiências dos clientes seja contemplada em sua profundidade. Descobrimos, por exemplo, que Matheus era seminarista antes de abandonar a vida religiosa. Ele se arrependeu e tentou voltar para o seminário, mas foi rejeitado pelos padres, e essa rejeição em parte resultou em tentativa de suicídio. Lula narra as várias sequências de imagens, ou sonhos, que apareceram para Matheus ao longo das sessões de terapia e como os Objetos Relacionais engendraram um processo em que “o corpo reconstrói o Objeto tanto quanto o Objeto reconstrói o corpo”. Uma outra cliente, Roberta, foi vítima de abuso sexual na adolescência e acabou se voltando para as drogas. Antes de chegar no EAT , Roberta foi demitida por atacar um colega de trabalho e diagnosticada como “borderline”. Lula identifica como ela substituiu sua dor emocional por uma dor física, se cortando com gilete, tornando visível um sofrimento que antes era invisível. Ele nota ainda como, para Roberta, “o ritual da Estruturação do Self foi vivido como uma linguagem mágica transformadora”. Graças a esse trabalho terapêutico, Roberta conseguiu diminuir seu sofrimento, voltar a trabalhar e dedicar-se à sua vida. É também nessa seção que encontramos o capítulo que dá título ao livro. “No silêncio que as palavras guardam” apresenta Rosa, uma cliente que chegou a ser tratada com eletrochoques antes de chegar às mãos de Lula. Rosa é descrita como catatônica, imóvel e especialmente silenciosa, embora não muda. Segundo Lula, “Rosa era só olhar”. Por meio do trabalho terapêutico e do “toque” dos Objetos Relacionais, Rosa aos poucos expandiu sua comunicação verbal com aqueles em seu entorno. Cada clínicopoema demonstra como com cada indivíduo Lula desenvolve formas específicas do que eu chamo de “cuidado criador”, seja por sua participação em atividades coletivas como a do grupo musical Sistema Nervoso Alterado ou na Estruturação do Self, de maneira a engendrar o caminho singular de cada cliente em vista de construir para si alguma segurança (quer dizer, alguma estrutura ) e atravessar futuras crises. ⁷ No decurso de cada narrativa, Lula vai além da biografia pessoal e toca no discurso de poder, na cultura do consumo, no estresse da vida quotidiana e em como cada um desses fatores atravessa o sofrimento psíquico de cada indivíduo. Seu distanciamento deliberado da nomenclatura do caso clínico em favor de um poema clínico evoca a criação que está no cerne de sua abordagem e, ao mesmo tempo, um modo de comunicação que transborda a objetividade da linguagem científica e do discurso comercial. A última seção, “Derradeiros escritos”, inclui trabalhos previamente publicados de Lula, nos quais denuncia diversas cenas psiquiátricas, desde a recusa de colegas a tratar de pacientes porque não era “questão nossa” até a rigidez do sistema de saúde mental. No capítulo “Também se cresce pelo prazer” (2010), ele retraça as origens do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado, que toma como ponto de partida as experiências vividas dos clientes, transformando-as em performances apresentadas em diversos centros culturais, potencializando sua capacidade de criação e de integração social. Em “Arrumações dominicais” (2012), a descrição que Lula faz de seu trabalho com crianças torna visível o quanto, em sua atividade de criação, da filmagem à escrita dos roteiros, as relações sociais e afetivas

permanecem no centro das observações das crianças em relação à loucura. A esse respeito, ele observa que “Quando uma criança cria uma história para dizer que ninguém enlouquece porque quer, ela expressa uma opinião pouco usual na sociedade”. ⁸ Essa seção inclui uma carta de 2017 em que ele formalmente renuncia ao posto de coordenador do EAT em decorrência do crescente autoritarismo da administração, com a qual ele não concorda nem se identifica. Essa carta, diz ele, não é “uma carta nostálgica de despedida, é um texto sofrido de alerta”. Por fim, quando escreve sobre a produção de Arthur Bispo do Rosário para uma conferência em 2017, Lula trata dos paradoxos da arte e da loucura de maneiras que deslocam uma assimilação fácil do trabalho de Bispo como simplesmente “patológico” ou puramente “formal” – como é frequente descrito através das lentes da psiquiatria e da história da arte, respectivamente. * Para tratar de forma apropriada o trabalho de Lula e seu lugar numa genealogia específica da imbricação da arte e da terapia no contexto brasileiro, eu gostaria de situar sua prática estético-terapêutica conceitualmente entre duas figuras bem conhecidas da arte brasileira: Mário Pedrosa e Lygia Clark. Como crítico modernista, Pedrosa trabalhou extensivamente pelo reconhecimento do valor estético das obras dos pacientes de Nise da Silveira independentemente de suas biografias clínicas. Segundo Pedrosa, todos os criadores compartilham de um impulso de configuração – uma vontade de dar forma, de moldar, de criar, de construir – que não é ligada exclusivamente ao estilo formal (realista, expressionista ou abstrato, por exemplo), tampouco reduzível a um movimento histórico (concretismo) ou a uma psicologia individual do artista (como no surrealismo). Pedrosa era sensível às mais diferentes manifestações artísticas e mantinha uma posição aberta em relação a todo impulso criador. ⁹ Com relação à produção dos pacientes psiquiátricos, chamou a atenção para formas visuais que – graças a seus esforços juntamente a Nise da Silveira – escapavam ao arquivo psiquiátrico, à ficha clínica. Clark, por sua vez, dedicou-se gradativamente à investigação do poder emancipatório da experiência sensorial fora da linguagem codificada em Objetos sensoriais (1966–1968) e Máscaras sensoriais (1967), ¹⁰ desenvolvendo sua prática artística de modo a transitar do ato ao corpo e do corpo à relação entre os corpos, cada vez mais focada na dobra entre a imanência do objeto e sua percepção. Em seu trabalho terapêutico, Lula ao mesmo tempo amplia a noção de Mário Pedrosa de uma criação comum e compartilhada por todos e amplia os aspectos relacionais da arte de Lygia Clark, mas isso não é tudo. Lula vai além, declarando toda expressão artística uma ferramenta terapêutica e, com isso, trazendo o exterior como a cultura para o interior dos espaços de cuidados psiquiátricos. “Se música é uma coisa estruturante, trazemos a música para dentro; se dança é uma coisa estruturante, trazemos a dança; se cinema é uma coisa estruturante, trazemos o cinema”, afirma. ¹¹ Dessa forma, Lula também leva a produção de seus clientes para o exterior, como neste evento, que, aqui recontado, é o meu preferido: a Alterado Fashion Week. No silêncio que as palavras guardam é um testemunho da dedicação de Lula às experiências e ao trabalho com expressões culturais criadoras de seus

clientes. Seu desafio se refere não somente às convenções da arte, mas também às normas que definem quem é e quem não é um sujeito, quem é considerado são ou insano e quem se beneficia desse exercício de expressão criadora que é comum a todos. Em vez de apenas representar as visões internas dos clientes ou de falar no lugar de outrem, seu trabalho revela diferentes modos de ser e de subjetivação, unindo arte, corpo e psicologia, de modo que subjetividades estáveis nunca estejam colocadas de antemão. Como diz o verso de Caetano Veloso, “de perto ninguém é normal”. Finalmente, gostaria de debruçar-me sobre uma carta de Clark a Guy Brett na qual a artista descreve seu trabalho com seus clientes, tendo em vista especialmente esta frase, que ressoa diretamente com as práticas de Lula: “Costumo dizer: nunca trate um psicótico como um louco, mas sim como um artista sem a obra.” ¹² Aqui, Clark inverte Michel Foucault, quando este escreve que “ onde há obra, não há loucura ”. ¹³ No contexto foucaultiano da História da Loucura , a arte moderna tal qual é produzida por Vincent van Gogh e Antonin Artaud se mantém do lado de cá da razão pelo próprio fato de que o trabalho constitui uma obra, o corpo de um trabalho, e responde ao que Foucault descreve eventualmente como a “função-autor” – as múltiplas combinações, sociais e institucionais, que atualizam o trabalho de um autor na sociedade. ¹⁴ No ponto em que Foucault desloca o autor para salientar as múltiplas forças por meio das quais um autor é instanciado no discurso, com seu trabalho terapêutico, Clark transcende a instituição da arte e os limites discursivos de uma obra, apesar de jamais ter deixado de ser artista. Até hoje, sua prática e seu legado, nas mãos de Lula, desafiam aquilo que a instituição da arte e seus profissionais legitimam como trabalho artístico. No silêncio que as palavras guardam é um comovente registro do legado das práticas de Clark para além dos espaços institucionalizados do museu e do confinamento das discussões acadêmicas. Trata-se de uma urgente intervenção na história da arte e nos rumos assimilacionistas pelos quais engendram os estudos globais em arte contemporânea, que insistem em inscrever a obra de Clark em paradigmas que lhe são estranhos: “estética relacional”, “participação”, “performance”. ¹⁵ Pelo contrário, como ela mesma explicou, “é necessário realizar uma desinstitucionalização, tanto do corpo como de toda relação concreta”. ¹⁶ Assim acontece também com Lula, cuja posição, junto ao contexto particular que engloba – arte e terapia, estética e ética do cuidado –, apresenta uma conjunção de questões que não só reverberam, mas também renovam o espaço institucional e as práticas da psiquiatria, assim como da história da arte (afinal de contas, é uma historiadora da arte que escreve este prefácio). Lula dirige seus cuidados terapêuticos não somente àqueles considerados “loucos”, mas também à própria instituição psiquiátrica e às relações sociais ali produzidas, compreendendo aí o hospital, sua arquitetura, atividades, clientes e equipe como um coletivo de cuidado. ¹⁷ Dessa maneira, o significado de seu trabalho não está atado à sua identidade ou à de seus clientes/participantes, mas é imanente à própria estrutura, quer dizer, à proposição terapêutica na qual cada um é convocado a agir. 1 II Seminário Reconfigurações do Público: Arte, Pedagogia e Participação . Organizado pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. 8 nov. 2012.

2 No contexto deste prefácio, uso “paciente” apenas quando me refiro à história moderna da psiquiatria. Os termos “clientes” e “usuários” são os termos mais usados atualmente. Lula explica, “A reforma psiquiátrica no Brasil usa o termo ‘usuário’, o que usa os serviços de psiquiatria. Cliente é um termo usado por Nise da Silveira. Como eu venho dela, prefiro usar cliente em lugar de usuário. Acho que os dois termos não são satisfatórios.” (Lula Wanderley, correspondência pessoal com o autor, 25 out. 2019). 3 Ver, de minha autoria, Learning from Madness : Brazilian Modernism and Global Contemporary Art . Chicago: University of Chicago Press, 2018. 4 Ver Paulo Amarante, Loucos pela Vida : a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 1995. 5 A fase anatômico-patológica da psiquiatria brasileira se estendeu paralelamente a modelos então existentes de ergoterapia: uma série de trabalho e relaxamento físicos, eventualmente chamada de laborterapia, que hoje tornou-se o que se conhece por terapia ocupacional. No começo da década de 1890, essa concepção de trabalho físico como terapia ocupava o centro da organização hospitalar. Nesse regime, eram designados aos pacientes diferentes trabalhos, distribuídos por categorias: alguns viviam em uma fazenda perto das áreas de cultivo, outros trabalhavam com gado, e havia ainda os tinham ocupações como jardineiros, pintores, pedreiros e sapateiros. 6 Ver Laure Murat, O homem que se achava Napoleão : Por uma história política da loucura . Trad. Paulo Neves. São Paulo: Três Estrelas, 2012. 7 “Cuidado criador” refere-se a “Art: Creative Care”, seminário de dois dias de duração no Sterling and Francine Clark Institute que organizei com Suzanne Hudson em abril de 2017, no qual participaram ambos Lula Wanderley e Gina Ferreira. Foi uma honra ter trabalhado com um grupo tão engajado de acadêmicos e profissionais nesse seminário, assim como nas subsequentes discussões em um painel na College Art Association em Los Angeles, em fevereiro de 2018. 8 Lula Wanderley trabalhou com crianças em Cinema na Praça, projeto criado por Gina Ferreira cujo objetivo era mudar o imaginário social da loucura no momento que fechavam-se as portas de um manicômio e ocorria a reinserção social dos pacientes previamente institucionalizados em Paracambi. Ver: Gina Ferreira e Ana Maria Jacó-Vilela (orgs.), Cinema na praça: Intervenção na cultura/ Transformando o imaginário social da loucura: Relatos de experiências em saúde mental . São Paulo: All Print, 2012. O capítulo “Arrumações dominicais” (2012) foi publicado pela primeira vez nesse volume. 9 Ver, de minha autoria, “Una voluntad de configuración: el arte virgem ”, in Mário Pedrosa: De la naturaleza afectiva de la forma . Madrid: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, 2017. 10 Suely Rolnik, “Molding a Contemporary Soul: The Empty-Full of Lygia Clark”. In: The Experimental Exercise of Freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, Hélio Oiticica and Mira Schendel . Los Angeles: Museum of

Contemporary Art, Los Angeles, 1999. pp. 59-108 [Trad. bras. disponível em http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Molda.pdf]; Id., “Politics of Flexible Subjectivity: The Event Work of Lygia Clark”. In: Terry Smith, Okwui Enwezor e Nancy Condee (eds.), Antinomies of Art and Culture: Modernity, Postmodernity, Contemporaneity . Durham, NC: Duke University Press, 2008. pp. 97-112; Susan Best, Visualizing Feeling: Affect and the Feminine Avant-Garde . London: I. B. Tauris, 2011. pp. 47-66. Ver também o catálogo de exposição “Lygia Clark: De l’œuvre à l’événement”. Nantes: Musée des Beaux-Arts de Nantes, 2005. 11 Entrevista com Lula Wanderley publicada no periódico do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ), maio 2016. Disponível em: http://www.crprj.org.br/site/wp-content/uploads/2016/05/ jornal28_lula_wanderley.pdf. 12 Lygia Clark, carta a Guy Bret, 14 out. 1983, reproduzida em Lygia Clark . Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 1998. p. 338. 13 Michel Foucault, História da loucura . Trad.: José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 530. Grifo do autor. 14 Id., O que é um autor? Trad. José A. Bragança. São Paulo: Paisagens, 2000. 15 Ver Yve-Alain Bois e Lygia Clark, “Nostalgia of the Body”, in: October , v. 69 (Summer 1994). pp. 87-88. 16 Lygia Clark, Sem título, in Lygia Clark , p. 301. 17 Assim, o trabalho de Lula pode ser visto como parte de uma genealogia histórica mais ampla de mudanças dentro da psiquiatria. Por exemplo, na unidade de Saint-Alban, François Tosquelles dedicou-se à teoria e prática da psicoterapia institucional, uma abordagem terapêutica influenciada pelo marxismo e pela psicanálise lacaniana que compreendia o hospital, sua arquitetura, atividades, pacientes e equipe como um “coletivo de cura”. Ver a discussão em Camille Robcis, “François Tosquelles and the Psychiatric Revolution in Postwar France”, Constellations 23, no. 2 (2016). pp. 212-22. A clínica psiquiátrica de La Borde, fundada em 1953 na França pelo psiquiatra Jean Oury, também foi voltada para a psicoterapia institucional.

O antes é o depois No silêncio que as palavras guardam é um livro baseado em narrativas clínicas sintetizadas e com fortes elementos do “contar histórias”. Tentei escrevê-lo em uma linguagem simples e emocional para não distanciá-lo do leitor – para não distanciá-lo da vida. Contar histórias incomuns que o sofrimento constrói, como se pudessem acontecer a qualquer momento na minha ou na sua existência, na minha família ou na família de um amigo. Contar histórias evitando romanceá-las, desviando-me do risco de criar um personagem de mim mesmo a criar outros personagens. Procurei, ao narrar os fatos vividos, estar sempre próximo da semelhança da verdade. Sei, no entanto, que a língua aprisiona, que nenhuma palavra dá conta de descrever a intersubjetividade da comunicação humana quando mergulhamos nas convulsões de tempo e espaço contidas na experiência do sofrimento psíquico. O que eu vivi foi muito mais forte e denso do que consigo narrar. Procurei, no contar histórias, expor coisas observadas e sentidas numa linguagem que despreze uma observação vagarosa atrelada a uma metodologia, mas que traga a visão de um olhar afeito a uma investigação em profundidade – detalhada para que o leitor consiga pô-la em diálogo com suas preferências teóricas. As histórias contadas neste livro têm a mesma estrutura narrativa do meu livro anterior, O Dragão Pousou no Espaço : ambos trazem, em seu centro, as descrições das minhas experiências em paralelo com a obra de Lygia Clark. Minha busca é a de dar potência a essa obra tão original, antes que, definitivamente, seja amortecida pelos espaços institucionalizados dos museus ou pelas discussões acadêmicas. No entanto, ao estender minhas reflexões à totalidade de meu trabalho clínico/poético, com momentos até mesmo autobiográficos, trago para o No silêncio que as palavras guardam uma temporalidade narrativa anterior a O Dragão Pousou no Espaço : um anterior do anterior. Formei-me em medicina, em meados da década de setenta, sem muita convicção se deveria transformar os estudos em uma prática profissional. Tentei interessar-me pela psiquiatria e, posteriormente, pelo sanitarismo, mas fui desencorajado por professores devido à dificuldade em ter a disciplina que o estudo dessas matérias exigia. Minha experiência como artista gráfico, com fortes incursões na poesia experimental, era mais sólida e familiar. Havia perspectivas mais claras de que a arte pudesse vir a ser o instrumento preferido para a construção de minha identidade profissional. Em dúvida se aceitaria um convite para trabalhar em um grande projeto cultural no Maranhão, acabei aceitando o chamado de um primo, Jader Wanderley, para passar alguns dias no Rio de Janeiro. Era o momento de me afastar das pressões familiares e decidir, com calma, a direção do meu destino. Próximo à casa do meu primo morava um professor, com quem eu gostava de conversar, que era frequentador assíduo de um grupo de estudos na casa da Dr.ª Nise da Silveira. Fiquei curioso com o que ele me contava sobre as quartas-feiras e, sabendo que o grupo era aberto a qualquer pessoa, arrisquei pedir que me fizesse chegar a Nise. Tinha ouvido falar dela e de

seu Museu de Imagens por uma amiga, em uma das minhas vindas anteriores ao Rio de Janeiro. Essa amiga até sugeriu que eu conhecesse a Dr.ª Nise, mas, na ocasião, achei a ideia vaga e distante. Agora, pela curiosidade, me pareceu próxima. Por que não? Fui à casa da Nise na quarta-feira combinada, mas o professor não apareceu. Misturei-me entre os frequentadores do grupo e, constrangido, esperei os acontecimentos. Nise entrou e, logo, fulminando-me com o olhar, perguntou-me, com voz suave: “Quem é você?” Contei-lhe o ocorrido, de maneira franca, omitindo apenas o desejo de conhecê-la – contei do meu desejo de “conhecer o grupo e estudar um pouco”. Quando soube que era de Pernambuco, Nise recordou-se das sorveterias de Recife que conhecera na infância – seus pais eram pernambucanos. Aos poucos a conversa tornou-se descontraída. Iniciados os estudos, veio novo olhar, mas dessa vez suave, para, em seguida, a voz tornar-se fulminante: “Há um pernambucano aqui que disse-me estar louco para estudar; ele deve apresentar os dois primeiros trabalhos do ano.” Sentindo-me só e perplexo, afundei-me na cadeira arrependido da aventura – não tive coragem de recusar. Apresentar um trabalho em uma cidade estranha, para um grupo de pessoas que não conhecia, sobre temas que nunca tinha lido e diante de uma senhora que não conhecia, tudo isso exercendo um efeito determinante sobre a minha vida, era a aventura de que eu talvez necessitasse para me tirar do estupor das dúvidas e me recriar. Então parti para os estudos, no desafio de apresentar um bom trabalho. O primeiro trabalho foi sobre Eugen Bleuler, psiquiatra suíço, e a criação do termo “esquizofrenia”. Tive sorte de encontrar, com a ajuda de meu primo, seu raríssimo livro em um sebo. O segundo foi sobre Eugène Minkowski e seus conceitos fenomenológicos sobre a esquizofrenia – autor com quem logo me identifiquei, ajudando-me, mais tarde, a construir relações mais afetivas com pessoas em grave sofrimento psíquico. Apresentei os trabalhos com a ajuda da própria Nise, que ampliou a visão sobre os conceitos apresentados e seus autores. Cheguei até mesmo a expressar uma opinião pessoal: critiquei a frieza humana que havia encontrado nos hospitais psiquiátricos, particularmente aqueles dedicados ao cuidado de crianças. No fim da reunião, Nise contou-me, com o humor que lhe era peculiar, do dia em que esteve na casa de Minkowski. A recordação era apenas um pretexto para reter minha atenção, pois, logo em seguida, viria uma proposta direta: “Venha estagiar na Casa das Palmeiras!” Surpreso, disse-lhe, por insegurança, que teria dificuldade em trabalhar com teorias sobre o inconsciente e não tinha a menor vocação para o biologismo da medicina. A resposta veio imediata, de quem provavelmente me observava atenta: “Faça de sua sensibilidade o principal instrumento de trabalho.” A minha paixão pela Casa das Palmeiras da década de setenta, clínica de reabilitação psicossocial criada em 1957 por Nise, com sua espontaneidade e intensas trocas afetivas, foi instantânea. Ela me ajudou a recriar-me e a construir minha existência dentro da chamada “saúde mental”. Ajudou-me a construir para mim uma clínica que põe em estreita sintonia conhecimento e

experiência e que não tem na transcendência de uma teoria seu ancoradouro, mas na imanência do encontro – cada caso tem sua própria teoria e método. Uma clínica “pele de escorpião”, passível de descolar-se e recriar-se constantemente – recriação ao mesmo tempo ética, estética e política. A frase de Nise foi a ponte que logo me levaria às experiências clínicas poéticas de Lygia Clark e à criação do Espaço Aberto ao Tempo. Lygia Clark foi uma das primeiras artistas a compreender a participação do espectador na obra de arte para além da permissão democrática de tocá-la e transformá-la. Lygia, ao aproximar o participante (antigo espectador) da arte até romper com as fronteiras entre ambos, transforma a experiência artística no exercício de uma imanência poética. Para isso, rompe com o predomínio da visualidade e, através de objetos de múltiplas sensorialidades tácteis, recoloca o corpo e seus afetos no centro do acontecimento artístico. Em Lygia, o objeto é apenas um meio de revelar o corpo como o espaço para vivência que vem ocupar o lugar da obra de arte – o corpo como um receptáculo de experiência aberta. Os objetos sensoriais de Lygia Clark, por serem, na maioria das vezes, películas que guardam dentro de si uma matéria pura (saco de sementes finas, saco de água, saco repleto de água e conchas finas, pequeno saco plástico repleto de ar em cujo vértice é colocada uma pedra redonda etc.), possuem a sensorialidade criada pelo deslocamento da matéria em seu interior, e isso impede, no toque do corpo, a reconstrução imaginária do objeto, cria um interdito ao mundo visual. O objeto, indo para além da superfície, busca abrir o corpo e se alojar num dentro imaginário, à procura de significado. Essa mútua ruptura-incorporação corpo-objeto mundo se revela, para Lygia, a princípio, intensa e perturbadora, pois tende a abolir tanto a arte (objeto) quanto o corpo (imagem do corpo) e a se projetar para além do “eu” que determina a individualidade. Coletivizar a experiência – criando o conceito de “corpo coletivo”, onde a vivência de cada um está condicionada à vivência do grupo (criação da identidade como um todo) – foi a forma encontrada por Lygia para conter a intensidade individual da experiência. Na ausência da comunicação da arte (a experiência sensorial é de si para si), Lygia cria diálogos abstratos (intersubjetivos) com duas ou mais participantes onde o corpo coletivo se revela. Para esses diálogos abstratos, Lygia cria uma série de estruturas e rituais para serem vivenciados através da expressão corporal. Algumas se desenvolvem no espaço como arquitetura ( Arquiteturas Biológicas , Estruturas Vivas ), outras, como vestimentas ( Eu e o Tu , Camisa de Força , Corpo Coletivo ), outras, como… Na experimentação dessa série de propostas, Lygia percebe que a desconstrução e a simultânea reconstrução do corpo trazem a memória da construção do “eu” e sua ligação com o sofrimento psíquico. No final da década de setenta, Lygia surpreende a todos, criando uma síntese de todo esse percurso que chamou de Estruturação do Self. Cria uma série de objetos que considera mais fortes dentro da linguagem corporal que desenvolveu e passa a chamá-los de Objetos Relacionais. Em seu

apartamento no Rio de Janeiro, passa a receber pessoas regularmente para uma experiência semelhante à psicoterapia. Sua obra agora tinha dia e hora para acontecer e estava à margem das discussões sobre arte. Mas o corpo em si não existe (não me refiro ao corpo biológico, mas à experiência subjetiva do corpo), ele se revela outro a cada experiência. O corpo em Lygia Clark passa a ser uma experiência na qual uma totalidade dinâmica – corpo/sujeito+objeto/mundo – atravessa o vazio de uma dissolução cósmica e, paradoxalmente, reafirma a diferença, a individuação. Essa experiência mostrou-se de grande significação construtiva quando apropriada por pessoas em grave sofrimento psíquico: esquizofrênicos, autistas, melancólicos em grave despersonalização… Em No silêncio que as palavras guardam conto, entre outras histórias, experiências que fiz com as propostas de Lygia Clark em pessoas cujo corpo foi fortemente atingido por vivências psicóticas. Quando me refiro às propostas de Lygia, não me direciono apenas às experiências com o Objeto Relacional, mas também ao conjunto de suas propostas sensoriais. Para isso, tomo a obra de Lygia como uma linguagem de que me aproprio e a recrio a partir da minha própria experiência. A obra de Lygia, por mais ampla que seja, é apenas um instrumento (talvez o mais fascinante) que experimentei no meu interesse em recriar, de maneira original e nova, essa linha de continuidade entre a arte e o cuidado clínico. Nas histórias que compõem No silêncio que as palavras guardam , busco ir além do desejo de estabelecer um encontro entre as novas premissas da arte e da loucura, de descobrir talentos ou, ainda, criar formas de obtenção de renda através da arte. Se o mundo contemporâneo me pede, como artista, que o retire desse cotidiano impessoal e repetitivo e simultaneamente me pede, como psiquiatra, que recoloque os que vivem na experiência do sofrimento psíquico nesse mesmo cotidiano, meu projeto de toda uma vida se tornou criar zonas híbridas para encontros poéticos/clínicos que eliminem a diferença entre arte e não arte, clínica e não clínica. Esse lugar mais diversificado – capaz do acolhimento dos afetos, dos corpos e de linguagens – chamei carinhosamente de “Espaço Aberto ao Tempo”: uma metáfora de um lugar possível para uma vida mais poética e criativa, onde se possa trabalhar o sofrimento mergulhando em sua face mais crua, porém fazendo do cuidado clínico um exercício de leveza, liberdade e prazer. É do Espaço Aberto ao Tempo e suas oficinas que extraí as histórias que compõem o No silêncio que as palavras guardam. Histórias das experiências com a obra de Lygia Clark, das experiências musicais performáticas do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado, do projeto videopoético O Vaso dos Sonhos... Aprendi no Espaço Aberto ao Tempo que a construção da autonomia de um pessoa em grave sofrimento psíquico (que é nossa função enquanto terapeutas) passa pela reconstrução de diversas autonomias que, na verdade, são indissociáveis. A duas delas me interessa estar atento: a construção da autonomia social e a construção da autonomia diante do sofrimento. A primeira faz inserir o sujeito nos valores sociais que determinam sua presença na cidade, sem perder de todo a originalidade

construída pelas vivências psicóticas; a segunda o torna mais criativo diante de uma crise para suportá-la e ter clareza em pedir ajuda, apontar quando e como deve ser acolhido. Quando me oponho ao recolhimento de pessoas em hospitais durante uma crise é para poder construir, trabalhando sem a pressa de suprimir seus sintomas, formas de comunicação a partir da expressão de seu sofrimento. Isso favorece a construção dos mecanismos com que elas vão se defender criativamente da próxima crise. A atitude de recolhê-las em hospitais é perigosa no sentido de que os torna mais vulneráveis quando nova crise se avizinha. Em pessoas criativas e/ou que tenham uma ética da vida mais sólida, há muito mais chances de ser menos trágica uma experiência psicótica. É um fato. É frequente, também, que algumas pessoas que criaram mecanismos de defesas originais, diante do dilaceramento de uma crise psicótica, estendam seus impulsos criativos para mais além, criando peças poéticas que se descolam do campo do diagnóstico médico e passam a serem vistas como produções artísticas capazes de intermediar suas relações com o mundo. No Espaço Aberto ao Tempo, convivi com pessoas que parecem ter construído um mundo muito amplo e belo dentro de si, ao ponto de um dia sentirem-no fluindo através do corpo. Com Regina Célia e Marcos Inácio, isso acontece principalmente pelas mãos alcançando o branco do papel. Através de criações poéticas, falam sobre a forma criativa com que resistem à ação devastadora do sofrimento. Falam, também, da forma original com que buscam se inserir no mundo. Seus poemas farão parte deste livro, dividindo e dando ritmo à sucessão de capítulos. Em No silêncio que as palavras guardam descrevo uma trajetória difícil, porque foi toda construída em serviços públicos, no âmbito da medicina, em bairros pobres do Rio de Janeiro: quis aproximar a arte experimental mais verdadeira da população mais sofrida e, em algum ponto equidistante entre elas, construir uma psiquiatria poética e libertária. Uma trajetória que foi obrigada a incorporar-se às lutas políticas/ideológicas pelo fim dos grandes e insanos manicômios e à construção de uma psiquiatria mais democrática: transformação cultural que chamamos de “Reforma Psiquiátrica Brasileira”. No capítulo “Derradeiras histórias: tanto ética e estética quanto política”, publico alguns textos que escrevi para debate em instituições, revistas e redes sociais sobre minhas angústias ante um conservadorismo que, encontrando brechas na falha representação política brasileira, vai se infiltrando e destruindo uma cultura libertária e participativa que criamos com a Reforma Psiquiátrica, sem a qual o Espaço Aberto ao Tempo não sobreviveria. O título No silêncio que as palavras guardam se impôs em meu pensamento de maneira espontânea, sem mesmo saber, com precisão, seu significado. Mas com certeza esse título fala da postura silenciosa de estar sempre em trânsito, sem definir o corpo ou o psiquismo, a arte ou a ciência etc. Fala da mudez e da não afirmação contida na palavra [ e ] que descrevo no capítulo seguinte. [e]

A arte, no mundo contemporâneo, parece ter perdido seus limites precisos, aproximando-se da criatividade em si na busca de uma poética/política para a vida. Um convite de Nise da Silveira, psiquiatra criadora do Museu de Imagens do Inconsciente, fez com que eu estendesse os limites da arte à psiquiatria, criando continuidade entre ética e estética. Com isso, aproximeime de Lygia Clark e de suas pesquisas sobre arte/corpo/psiquismo, buscando um novo olhar sobre o sofrimento. A criatividade do início do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira (movimento social visando mudanças culturais na relação com os loucos) acolheu minhas propostas, e pude, aproximando a experiência dos que sofrem à do artista e dos terapeutas, criar uma psiquiatria poética e experimental que me levasse a uma apaixonada militância política e cultural. Hoje, passados trinta anos, sinto necessidade de rever o que fiz, de me situar: saber como e até onde cheguei, como e quando parar. Uma recordação insistente na minha memória é o ponto de partida para a reflexão. Nos idos do início da década de oitenta, numa larga e extensa mesa no Museu de Imagens do Inconsciente, Nise da Silveira e Mário Pedrosa, crítico de arte cujo pensamento tem forte influência na obra de Lygia Clark, escolhiam algumas pinturas para ilustrar o livro que escreviam. Mário, com seu olhar penetrante, acomodava- se na cadeira, enquanto Nise, sempre inquieta e de gestos largos, atravessava a sala de ponta a ponta. Minha função era ajudá-los: – Lula, me traz um copo com água. Segura essa pintura. Procura meus óculos . Não! Eu tinha uma outra missão, secreta e imprescindível: Nise, zelosa na escolha das imagens sob o ponto de vista simbólico, selecionava algumas pinturas que Mário condenava por serem de pouca força expressiva. Cabia a mim, aproveitando a inquietação de Nise e sem que ela percebesse, subtrair esses trabalhos e, por baixo da mesa, trocá-los por outros, escolhidos por Mário. O livro Museu de Imagens do Inconsciente , da coleção Museu da Funarte, é belo pelas imagens e pelas múltiplas possibilidades de leitura. Por alguns instantes, nosso trabalho foi interrompido por uma jornalista que insistia em escrever um artigo sobre a elaboração do livro. “Mário e Nise”, disse ela, apressada, dirigindo-se aos dois como se não percebesse minha presença. Não! Do ponto de vista linguístico, eu estava ali, presente e imprescindível em sua fala. Transitando entre Mário e Nise eu tinha me tornado o [ e ]  ¹⁸ – uma conjunção gramatical. Lugar de onde nunca saí. Tornar-se [ e ], esse artifício linguístico ambíguo e enganoso, capaz de conciliar coisas aparentemente irreconciliáveis como arte [ e ] loucura, é carregar em si a frustração de nunca ser. Um [ e ] nunca se tornará um [ é ]. Uns são. Eu sou [ e ]. Esse lugar em que não me afirmo, resvalando entre o artista e o terapeuta sem, contudo, ser capturado por nenhuma categoria, foi o que escolhi para construir uma aproximação com pessoas em grave sofrimento. Um lugar onde possa ter uma percepção do “outro” que seja sensível e criativa, para que então esse “outro” possa se afirmar. 18 Arte (e) pensamento: assim Ricardo Basbaum define como (e) sua arte no livro Além da pureza visual . Aproveito essa alegoria para criar o conceito do

lugar de “não afirmação”. Diante do sofrimento do outro, não me afirmo ser artista ou terapeuta. … há no canavial oculta fisionomia: como em um pulsar do relógio há possível melodia ¹⁹ (De onde vem Lygia Clark?) No início de suas experiências com o Objeto Relacional (década de setenta), Lygia Clark estava imersa em um ambiente cultural permeado pela linguagem psicanalítica: era difícil pensar o homem contemporâneo sem a presença do olhar psicanalítico. Nessa época, a linguagem lacaniana, hoje dominante e demarcadora, era ainda incipiente. Os limites da psicanálise eram testados e estendidos a cada instante, principalmente através de alguns autores que puseram em relevo a questão do corpo a partir das ideias de Freud sobre o orgânico como o lugar de onde o psiquismo se desprende: a psicanalise é, em si, corporal. Naquele tempo, era comum aproximar Lygia Clark do pediatra e psicanalista Winnicott, até mesmo pela sonoridade do nome dos objetos/conceitos criados pelos dois: Objeto Relacional/Objeto Transicional. Com Objeto Transicional, Winnicott descreve, no universo das ações criativas do bebê sobre a realidade, a criação de um objeto híbrido que, ao mesmo tempo, é oferecido pela mãe e, simultaneamente, é uma criação do bebê. É uma quebra de fronteira entre a subjetividade e a objetividade que aproxima a materialidade dos afetos. Pode-se ler em Winnicott o tempo como o espaço onde o acontecimento se dá: a elasticidade da aproximação e distanciamento se dá no tempo de espera e satisfação materna. A ação criativa do bebê, tanto imaginária quanto física (a criação do Objeto Transicional) acontece no jogo desse tempo/espaço, no esforço de manter a continuidade de sua existência. O Objeto Relacional de Lygia, ao mesmo tempo que é percebido pelo corpo em continuidade, é reconstruído como corpo. Tal como o objeto winnicottiano, apagam-se as dicotomias com que organizamos nossa realidade cotidiana – tempo e espaço, metafórico e físico etc. Como perceberá o leitor nos capítulos seguintes, a fenomenologia da percepção/criação do Objeto é o que aproxima Lygia de Winnicott, mas não mais que isso. Ele segue na sua ampliação do conceito de Freud sobre as pulsões, e ela, rumo ao desconhecido. Na década de oitenta, psicanalistas próximos a Lygia viam a Estruturação do Self como uma espécie de “pré-psicanálise”, pois não abordava a dimensão histórica do sujeito, na qual a psicanálise se insere. Encaminhavam clientes a Lygia para um “desbloqueio” quando o processo psicanalítico não avançava. A credibilidade do trabalho de Lygia é que sustentava esses encaminhamentos. Lygia Clark, no entanto, acreditava que os Objetos Relacionais eram bem mais que isso. Em uma sala em seu apartamento, que chamava carinhosamente de “consultório”, ousava assumir uma postura própria definindo a “Estruturação do Self” como um “processo terapêutico em si”. Quando, mais tarde, tivemos acesso ao seu diário clínico é que nos demos conta de sua coragem/ousadia em mergulhar na expressão dos graves conflitos de uma geração que buscava uma vida densa e estável

diante das bruscas transformações dos valores sociais que caracterizavam a época. Sentindo-se isolada, Lygia tomou-me como seu interlocutor, convidando-me para trabalhar com a Estruturação do Self. Logo descobriria que os Objetos Relacionais compõem uma linguagem dirigida ao corpo e só a ele, e que eles poderiam, dentro dos parâmetros dessa linguagem, criar outros objetos, propor outros rituais para o corpo, buscar outro “público” – andar por caminhos que Lygia desconhecia. Sua obra não é apenas para ser reproduzida, e sim para ser ampliada. Na ocasião, alguns Objetos Relacionais espalhados em meu ateliê chamaram a atenção de um jovem em grave vivência esquizofrênica catatônica. Ampliando seu interesse com um toque lúdico sobre seu corpo, pude perceber a potencialidade do Objeto no diálogo com pessoas cujo corpo foi gravemente atingido. Estendi meu trabalho para além de uma clínica para crises existenciais da classe média, chegando aos hospitais psiquiátricos públicos nos bairros pobres e periféricos do Rio de Janeiro. A Estruturação do Self tornou-se até um instrumento de luta político-ideológica contra a existência desses insanos guetos com seus tratamentos desumanos. Foi um dos instrumentos que me serviram de guia para entrar e transformar aqueles tristes lugares. Fascinou-me, desde o início do meu trabalho, a maneira com que pessoas com grave desestruturação do corpo e da linguagem tomam os objetos criados por Lygia como algo íntimo e familiar. Parecem não distingui-los dos objetos da vida cotidiana e aparentam ter o corpo aberto a tudo (cheio e vazio de tudo), capazes de perceber os movimentos imperceptíveis do mundo. Ouso dizer que foram os “loucos” o público que mais soube compreender Lygia Clark. E o que mais os fascina no Objeto Relacional é sua indecifrável fluidez e extensibilidade que o faz, de imediato, abrir-se ao outro. Esses Objetos conseguem alcançar vivências quase inacessíveis/ imprecisas e, nelas, ganham qualquer significado. Percebido e trabalhado pelo corpo, o Objeto Relacional transita entre vivências menos organizadas linguisticamente e construções de intensidade simbólica. Um dos recursos que acho mais precisos para a compreensão da Estruturação do Self é estudá-lo a partir do percurso de Lygia Clark, mas com uma singularidade: invertendo a direção cronológica, desconstruir uma experiência da Estruturação do Self para descobrir vestígios de propostas anteriores e os conceitos a elas associados para, só depois, estabelecer diálogos com predileções teóricas. * Clara tinha 22 anos quando me procurou. Um amigo muito próximo dela, com quem mantinha uma paixão secreta, fora morto, provavelmente, por forças repressivas da ditadura militar. Ela, por não suportar a violência de sua morte e pela ausência de clareza sobre os fatos ocorridos, acabou “enlouquecendo”. Iniciei, em Clara, o toque dos Objetos Relacionais no momento que seu intenso sofrimento acomodara-se um pouco. No início, a descrição de cortes

e buracos no corpo dela era comum, principalmente no tórax, nos quais os Objetos funcionavam como “ataduras de um curativo”. Certo dia, no entanto, Clara deu um grito de desespero, pedindo-me para encerrar a atividade. Disse-me que os Objetos que coloquei sobre seu corpo tinham sumido, o que lhe causou um vazio/vertigem insuportável. Isso tornou a acontecer diversas vezes, mas deixou de lhe incomodar. Parecia, agora, uma “condição natural”. Algumas vezes, Clara procurou perceber minha presença na sala, em lugar do Objeto, para que a agonia cessasse. Para minha surpresa, essa condição natural inverteu-se: os Objetos passaram a sumir em contato com seu corpo e, quando tornavam a aparecer, em momentos indeterminados, traziam com eles o vazio/vertigem angustiante. A fusão corpo-objeto-ambiente parecia, paradoxalmente, reconstruir-lhe o “eu”. A descrição de cortes e buracos no corpo, da ausência e presença do Objeto e da sua relação com a sensação angustiante compõe os conflitos da transição do Objeto para uma nova dialética com o corpo, em que se apagam as fronteiras existentes como “reais”: sujeito/objeto, interior/exterior, tempo/ espaço. Lygia, para explicar essa nova condição do Objeto, criou o mito da Baba Antropofágica: uma saliva que escorre ininterruptamente de nossa boca, ligando-nos ao mundo. ²⁰ A baba é um fio de vida que se expande, quebrá-la é o despedaçar de nosso próprio corpo – o sofrimento psíquico como metáfora da morte. O processo de Estruturação do Self é reviver nossa permanente busca por construí-la – a vida como expansão de todos os começos. O que se delineia como “eu” é uma possibilidade que desliza nas bordas do individual e do coletivo sem se deixar definir por nenhuma dessas categorias. Lygia Clark, ao abandonar a nomenclatura psicanalítica, substituiu a ausência de uma teoria pelas anotações minuciosas de todas as experiências e buscou um sentido para a Estruturação do Self através de construções literárias de densidade poética instigante. Assim fazendo, preservou o Objeto em sua origem e ampliou para a Estruturação do Self a possibilidade de novas experiências e novas afinidades teóricas. A particular sensorialidade dos Objetos Relacionais, que requer trabalho do corpo para percebê-lo e representá-lo, traz para ele uma autonomia, semelhante a uma organicidade, inimaginável para a arte da época, só comparável à que os objetos adquiriram com o advento da memória digital. A fluidez e extensibilidade, expressão dessa autonomia que faz com que o Objeto ganhe qualquer significado em nossa experiência, mesmo entre os sentimentos mais incompletos/imperceptíveis à consciência, é que o define e o torna difícil de ser capturado e diluído dentro do discurso teórico, pois sua captura será sempre parcial. Na tensão de fronteiras, os Objetos, ou, mais precisamente, a obra de Lygia como um todo, está sempre para além de onde buscamos encontrá-la, aproximando-se dos paradoxos da arte. Lygia recoloca o indecifrável (o mistério), que a arte contemporânea, em algum momento, quis afastar. No entanto Lygia, em seu tempo, parece ser contemporânea de recentes estudos sobre um mundo de trocas imperceptíveis que há entre nós e que envolvem o corpo, os afetos, a percepção do mundo e a construção do self. ²¹ Ao tentar superar a relação sujeito/objeto, Lygia abre o corpo para um

espaço imaginário interior onde a metafísica de sua obra acontece. Nele, todos os processos, que vão da percepção do mundo à criação de sentido e significado, ganham agora uma outra leitura, principalmente pela proximidade entre a materialidade e os afetos. Isso aproxima aspectos parciais da obra de Lygia a estudos contemporâneos sobre a percepção e sobre a memória vivida originários da neurociência; a aproxima também da psicologia que emerge do pensamento sobre a comunicação de inconscientes e o corpo em José Gil ou dos conceitos de transferência e escuta do corpo na obra do psicanalista Pierre Fédida, entre tantas outras aproximações. “Eles [os doentes mentais] não precisam ser induzidos a uma atitude emocional prévia para perceber a ‘cara’ das coisas. Vêem tudo, simultaneamente, por dentro quanto por fora.” ²² Com essa observação sobre frequentadores dos ateliês do Museu de Imagens do Inconsciente, Mário Pedrosa descreve a excitabilidade sensorial de esquizofrênicos, que os torna capazes de perceber a fisionomia oculta das formas. O exterior (o objeto percebido), num contínuo indivisível, une-se ao interior: objeto construído pelas nossas emoções e sentimentos. A expressividade da dinâmica formal dos objetos define nossas emoções tanto quanto é definida por elas. Esse mundo fisionômico, onde a relação subjetiva com os objetos é, simultaneamente, uma relação objetiva e concreta, para Mário é o acontecimento que se dá no fenômeno artístico, que não difere da percepção de um objeto qualquer, pois está no cerne do conhecimento sobre a realidade. Mário traça, assim, a “fita de Moebius” que Lygia Clark, mais tarde, iria cortar: todo objeto de arte é um objeto relacional. Deixemos a visualidade e voltemos ao mundo orgânico aracnídeo de Lygia Clark. As vivências de Clara com o Objeto Relacional, em seu jogo de proximidade/ausência, distância/presença, cabem inteiramente nessa frase de Mário Pedrosa, embora em outro plano da percepção. Clara percebe o Objeto, simultaneamente, por dentro e por fora. Seu corpo, capaz de perceber as mais ínfimas vibrações do mundo, abre-se para um objeto desnudo de qualquer significado, mesmo que, para isso, elimine qualquer vestígio de visualidade – tal como a figuração foi banida na arte das formas e das formações. O Objeto reduzido a feixes de sensações toca um corpo/ vivência impreciso, “apagado” pelo sofrimento. O objeto reconstrói o corpo e o corpo reconstrói o objeto num contínuo indivisível entre materialidade e afetos. Essa expansão aracnídea (baba antropofágica), cuja subjetividade se dá tomando o corpo como espaço, é, como o leitor verá nas narrativas clínicas que se seguem, de uma força criativa/poética surpreendente. Se, como nos leva a pensar Mário Pedrosa, perceber é uma ação criativa sobre a realidade (“ perceber é criar ”), o toque dos Objetos Relacionais traz a criatividade para nossa experiência mais arcaica de construção de nós mesmos diante de vazios na alma causados pelo sofrimento. Percebê-los é uma revolução criativa dentro de nós. A obra de Lygia Clark é seu próprio percurso, e, nele, cada proposta contém a origem e o futuro. A Estruturação do Self é a síntese de todo esse percurso. E, se ela se aproxima, em sua época, de saberes futuros, neles se chega à sua origem mais remota.

Arte do vento e da concha Acostumamo-nos com a ideia de que toda expressão artística é, em si, uma comunicação com o outro, com o mundo: para existir necessita de um suporte que chamamos de “objeto de arte”, feito para a leitura de alguém. Nesses objetos, “como um plano imaginário” (assim o entendemos a partir da modernidade), é onde se materializa uma ideia poética cuja complexidade expressiva revela o “eu” do artista em busca de si mesmo e em diálogo com seu tempo – tocando e transformando a cultura. Toda arte fala e pode tornar-se um instrumento clínico. Toda arte também escuta. Esse plano imaginário (nem sempre plano) tem vazios, descontinuidades, por onde o mundo penetra. Toda expressão vai para além do artista e se define na relação que estabelece com a percepção do espectador. Todo objeto de arte é relacional. O esforço de artistas como Lygia Clark diante da estridência de significados do mundo contemporâneo foi silenciar os objetos para criar uma arte como uma concha: apenas escuta. Nela, não cabe a personalidade do artista, apenas a fluidez da fantasia e a metáfora do espectador. Para isso, Lygia pretendeu ir para além da forma, transformando a arte em uma linguagem sensorial dinâmica que só existe na relação estabelecida com o corpo de quem a vivencia. Toda arte escuta e pode tomar a clínica como instrumento. Sempre gostei de observar as palavras, como elas se transformam e ganham novos significados: como elas não têm donos. Uma das palavras que têm me ocupado é “resistência”. Antes, resistir, ideologicamente, significava opor-se, destruir o que negamos e, simultaneamente, construir o novo. O sentido revolucionário da arte residia nessa destruição/construção. Hoje, aprendi a aproximar “resistir” de “perceber”, “selecionar” e “agir”. ²³ Não podemos negar o avanço tecnológico e a globalização que o novo nos trouxe, mas posso criar estratégias para me opor à ideologia que ele traz em si, que nos impõe ritmos e velocidades em uma exteriorização vertiginosa que nos destrói a cultura. Podemos criar formas de torná-lo mais dócil e maleável ao colocá-lo em nossas realidades cotidianas. Se, antes, tivemos a era da pedra lascada, do ferro e do bronze, hoje, somos da era da borracha: temos que ser flexíveis e, simultaneamente, resistentes. A medicação psiquiátrica é uma tecnologia a que temos que resistir/ selecionar: por seus benefícios, é impossível negá-la, mas posso negar a ideologia de eficácia que ela traz em si. Penso ser um equívoco acreditar que é necessário medicar, a priori , alguém em crise, para só depois tentar uma comunicação subjetiva com ele (psicoterápica, artística etc.). O esforço de uma comunicação estruturante, subordinando o uso da medicação, é uma pequena inversão ideológica, mas de alcance amplo. Logo, mesmo no intenso tumulto de emoções, há sempre um outro lado dos sintomas a ser compreendido, há sempre a possibilidade de uma comunicação a ser realizada e, a partir desse esforço, a medicação é imprescindível. Deixo claro que, quando trabalho com pessoas em sofrimento psíquico, não busco a dinâmica do psiquismo (como um psicanalista) ou os aspectos biológicos do sofrimento psíquico (como um psiquiatra): trabalho com a comunicação. Todo sofrimento psíquico intenso traz um corte na

comunicação com o mundo; meu esforço é reconstruí-lo. Ao me aproximar de alguém em sofrimento, busco o que chamo, para criar duplo sentido, de “negativismo”, que se contrapõe ao “positivismo”: não investir, a priori , contra os sintomas e, sem pressa, tecer um encontro a partir das vivências que eles trazem. Procuro me despir de qualquer querer (teorias, projetos, traçados), colocando-me à disposição para ser impressionado pelo sofrimento e, a partir desses riscos (traços) e registros, propor experiências subjetivas de diálogo. Transformo, assim, minha sensibilidade em um instrumento de trabalho, aproximando a posição de terapeuta à de um poeta que trabalha com a noção de “poiesis”: a construção poética é simultânea à construção de linguagens. Trabalho como quem cria um poema e descrevo esse trabalho como quem conta uma história. O que faço e dança Fomos chamados pela direção de um hospital psiquiátrico a fim de buscar uma saída para o impasse de uma internação psiquiátrica que já se estendia por dois anos sem solução. Rogério era alto, forte, corpulento e tinha, algumas vezes, um sorriso contagiante perdido num rosto largo, cujo olhar demonstrava um sofrimento dilacerante. A fragmentação de sua alma nos causava espanto, e até mesmo horror: costumava arremessar-se de cabeça contra a parede; tinha uma atração/pavor pelas lâmpadas acesas, quebrando todas as que alcançava no ambiente; tinha, também, impulsos de sujar seu rosto de fezes e de sair correndo sem direção alguma. À deriva, mergulhado num quadro alucinatório intenso, tudo em Rogério era surpreendente e pavoroso. Por isso, chegava a passar 48 horas (um final de semana) amarrado a uma cama. A família (o irmão) fez uma denúncia à Secretaria de Saúde pela falta de solução para o sofrimento de Rogério e, orientada por outros profissionais, exigia a adoção de eletrochoque. Daí veio o convite para somarmos esforços à equipe do hospital em busca de uma saída para o problema. Rogério nasceu em uma região rural no Nordeste do Brasil e, ainda criança, migrou com a família para o Rio de Janeiro. Seu pai, na grande cidade, logo revelou-se alcoólatra e violento, desestabilizando a família. Sua mãe, abandonada pelo marido, fechou-se numa religiosidade intensa. Rogério e o irmão seguiram na vida marcados pelos traumas da desagregação familiar. Rogério casou-se e, logo em seguida, surgiram os sinais de sofrimento psíquico. Para conhecê-lo melhor, buscávamos Rogério às nove horas da manhã e só o encaminhávamos de volta à enfermaria às cinco horas da tarde. E, como não era possível deixá-lo só, mesmo por alguns instantes, estabelecemos uma pequena equipe que o acompanharia, atentamente, nas atividades cotidianas do Espaço Aberto ao Tempo. Leandro Freixo, Ana Paula Mittelback e eu, além de nos revezarmos por toda a semana no cuidado intenso que Rogério requeria, tínhamos a tarefa de criar propostas, a partir das impressões que nos causavam sua fragmentação psíquica, para que ele pudesse exercitar um contato afetivo melhor com a realidade. Leandro, músico de profissão, trancava-se numa sala, cujo chão era repleto de objetos com os quais poderia extrair sons diversos. E, munido de um

gravador, explorava, com Rogério, um universo sonoro caótico, com o intuito de chegar a uma harmonização final. Eram quase sempre duas horas de trabalho. Ana, aproveitando o impulso de Rogério para o caminhar sem rumo, o acompanhava, criando com ele mapas afetivos do entorno do Espaço Aberto ao Tempo, assinalavam e desenhavam locais por onde passaram e, com esse mapa, recordavam o trajeto. Eu me detive num estranho comportamento de Rogério: ele tinha uma atração/pavor pelas lâmpadas acesas, quebrando todas as luzes do ambiente. Percebi que eram todas grandes lâmpadas fluorescentes que emitiam luz intermitentemente e que, talvez, isso lhe causasse mal-estar. Na fragmentação intensa vivida por Rogério, a percepção dos objetos lhe chegava de forma bruta, de tal maneira que uma oscilação luminosa, pouco perceptível para nós, tinha para ele a mesma dimensão de um grito. Sugeri oferecer-lhe rituais lúdicos, aproveitando a potencialidade sensorial dos Objetos Relacionais, durante os momentos de maior inquietação dele, em que costumava arremessar cadeiras, virar mesas. O intuito era buscar, na sensorialidade, a completitude (corpo/mundo) perdida na fragmentação psicótica. Assim, o isolaríamos daquela percepção dolorosa do mundo, oferecendo-lhe um mundo sensível que, embora intenso e direto, fosse uniforme e caloroso. Criei alguns Objetos maiores para também delinearem mais intensa e instantaneamente a superfície do corpo. O trabalho era árduo e frustrante. A imprevisibilidade trágica de Rogério tocava o desespero. Mas, ao longo do tempo, percebemos que, no final de cada dia, Rogério surpreendentemente se estabilizava um pouco mais, e isso era visível pela maneira como se engajava na construção coletiva do cotidiano no Espaço Aberto ao Tempo. Na manhã seguinte, começávamos tudo outra vez... Decidimos, a partir dessa constatação, que deveríamos nos aproximar da equipe que trabalhava com ele na enfermaria, participando com mais frequência das discussões sobre as experiências medicamentosas. Já tínhamos os instrumentos para traçar um caminho, mas era necessário ajustar outro tipo de suporte (medicamentoso) para que ele avançasse. Rogério finalmente deu sinais de melhora. Um dos quais era trocar sua inquietação destrutiva por um hábito que, no princípio, me incomodava: colocava-se ao meu lado e, como num jogo especular, copiava todos os meus gestos e atitudes. A seriedade com que o fazia (não me parecia estar exercitando um eco automático dos meus gestos) levava-me a pensar que Rogério buscava, ao criar uma dobra a partir da minha expressão gestual, um caminho possível (arcaico) para uma nova comunicação com o mundo. Ao apropriar-se de meus gestos, ele buscava a consciência dos seus. Lygia Clark tinha me presenteado com uma estrutura espacial geométrica que se formava a partir dos gestos de dois participantes. As “Estruturas Vivas” eram construídas por cada participante da proposta, com pequenos anéis de elásticos entrelaçados. Criávamos dois “Y”, entrelaçando os anéis de maneira que, em cada estrutura, a extremidade maior fosse presa, respectivamente, em um dos nossos pés, e as menores, alternadamente, em uma das nossas mãos.

Tomávamos o cuidado para que as mãos e os pés escolhidos fossem sempre opostos, de maneira que as extremidades se cruzassem e se entrelaçassem, formando um eixo central. Essa estrutura elástica (que lembra as esculturas Bichos , ²⁴ com seus planos geométricos que se deslocam no espaço) é condicionada aos nossos gestos. Entrelaçados pelos elásticos, cada gesto nosso se prolonga no gesto do outro, formando um corpo único em movimento. Passei a exercitar “esses sutis laços que nos unem” com Rogério. Nessa época, a bailarina Angel Vianna, aproveitando a vinda de bailarinos italianos que trabalhavam em enfermarias de deficientes físicos, organizou um festival de dança e performance, convidando o Espaço Aberto ao Tempo para participar. Chamei, então, Rogério para nos apresentarmos com as Estruturas Vivas. Diante dos espectadores daquele teatro improvisado, nos movemos (e comovemos) em busca de uma vibração na mesma sintonia que nos leva a criar novos ritmos e movimentos – uma comunicação abstrata, intensa e bela. Para nós, a estrutura de elástico era “invisível”, incorporada aos nossos gestos em fluxo espaço-temporal – pura vivência. No final, quando do último movimento, em um gesto ousado, ele encosta os pés nos meus pés, como quem quer perpetuar a fusão dos corpos. O jogo de elástico cria um contínuo entre meu corpo e o dele, mas a estrutura absorvida em um tempo interior, e simultaneamente devolvida ao espaço em forma de diálogo, traz para cada um de nós a consciência do gesto. Rogério chega a mim (e viceversa) por meio dos elásticos, nós nos comunicamos e nos reconhecemos a partir do outro. Era o que ele buscava ao copiar meus movimentos.

Fim da experiência, toda aquela estrutura dinâmica viva (os elásticos) são apenas restos, não significam mais nada. Sem densidade metafísica, são o que são, só existem em função do ato. A obra de arte é um vazio a ser ocupado pela vida que ocupa o lugar onde antes existia incomunicabilidade e sofrimento. 19 Tomei, como título deste capítulo, um trecho do poema de João Cabral de Melo Neto “O vento no canavial”, publicado no livro Duas águas: Poemas Reunidos . “De onde vem Lygia Clark?”, subtítulo deste capítulo, era uma

frase que sempre ouvia, em Nova York, por ocasião da retrospectiva da artista no MoMA. Os americanos estavam perplexos, pois não encontravam parâmetros para ler a obra de Lygia Clark. Ela era um novo paradigma na arte mundial. Este capítulo é uma tentativa, embora sucinta, de abordar pontos fundamentais para essa questão. 20 Com o mito da Baba Antropofágica, Lygia se coloca em posição aracnídea: tecemos uma rede orgânica que nos liga ao mundo. Isso a aproxima do poeta e educador Fernand Deligny e suas proposições aracnídeas (para fora da linguagem) de construções coletivas em seu trabalho com autistas. Aqueles com predileções teóricas que os deixam próximos a Deligny podem achar outros pontos em comum, como os psicanalistas encontraram semelhanças com Winnicott. É interessante que antes, em carta para Mário Pedrosa, Lygia se colocava como um escorpião: um outro aracnídeo de construções dilacerantemente orgânicas. 21 O catálogo da exposição “Lygia Clark, da obra ao acontecimento”, organizado por Suely Rolnik, é primoroso em mostrar esse paralelo. 22 No final da década de setenta, pedi a Mário Pedrosa que sugerisse alguns artigos que contribuíssem para compreender Lygia Clark. Ele emprestou-me o manuscrito de sua tese de doutorado, datilografada e corrigida à mão. Nessa época, sublinhei duas frases para tentar compreendê-las em outra ocasião: “Eles [os doentes mentais] não precisam ser induzidos a uma atitude emocional prévia para perceber a ‘cara’ das coisas. Vêem tudo simultaneamente por dentro e por fora” e “perceber é criar”. Mais tarde, encontrei novamente essa primeira frase, em um belo artigo de Kaira Cabañas sobre Mário. Foi esse artigo que me motivou a escrever este texto. Ver Kaira M. Cabañas, “Learning from Madness: Mário Pedrosa and the Physiognomic Gestalt”, October , n. 153, Summer 2015. 23 Amplio, aqui, um conceito de “resistência” (selecionar) que ouvi de Márcio Amaral. Resisto quando crio uma pequena torção na realidade que amplia minha percepção do mundo. Só então posso selecionar e agir. Essa torção mostrei no vídeopoema A arte é o futebol sem bola. 24 Esculturas de alumínio criadas por Lygia Clark, na década de cinquenta, em que planos geométricos são unidos por dobradiças de tal maneira que, sobre a ação do espectador, o conjunto revela diversos movimentos.

O tema de um vazio primordial na relação dialética entre a ausência absoluta e a potencialidade total está subjacente ao percurso de algumas pessoas, diagnosticadas como psicóticas, que vivenciaram o processo da Estruturação do Self, assim como também esteve sempre presente na arte brasileira a partir da metade do século passado, notadamente em Mira Schendel e Lygia Clark. A atitude de esvaziar/apagar/negar traz em si mesma a potencialidade de preencher/afirmar/criar. O Objeto Relacional toca e revela o vazio potencialmente criador da psicose. A arte toca e revela a capacidade de todo ser humano de reconstruir-se permanentemente a partir do nada. Quarenta minutos antes do nada ²⁵ Era difícil estar com Matheus, suportar a repetição vazia dos seus gestos e o peso do seu mau humor. Até minha escrita, ao descrevê-lo, tornava-se áspera; a vida parece tê-lo moldado à lixa. Procurou-me, por indicação de sua psicoterapeuta, para a experiência da Estruturação do Self. Sem muita convicção/desejo de estar comigo, disse-me, amargamente, que gostaria mesmo era de morrer e, se possível, matar o terapeuta antes. Ouvi, passivamente, suas ameaças e o convenci a experimentar o toque dos Objetos Relacionais. Ainda desconfiado, Matheus deitou-se num colchão recheado de bolinhas de isopor que não oferece muita resistência ao peso do seu corpo, mas que, por ser de plástico grosso, não o deixa afundar em demasia. Toquei suas articulações com firmeza e doçura para, em seguida, massageá-lo com pequenos objetos que transmitem particular sensorialidade tátil – os Objetos Relacionais de Lygia Clark –, por alguns minutos, deixei os Objetos distribuídos aleatoriamente sobre seu corpo. Durante esse tempo, coloquei em sua mão uma pequena pedrinha redonda envolvida por uma rede. Sendo totalmente diferente dos demais Objetos, por ser compacta e de contornos definidos, o gesto de segurá-la se contrapôs a todo o processo e, ao mesmo tempo, a ele pertencia. Ali, deitado, sem a estabilidade do corpo, com a visão e a audição suprimidas, Matheus se via sem seus pontos de referência espaciais, o que obrigava os demais sentidos, estimulados pelo toque dos Objetos, a se organizarem e a reorganizarem a nova percepção do espaço. O Objeto “desconstruído”, reduzido a feixes de sensações ²⁶ (imprecisas imagens sensoriais), acaba por trazer perda de unidade ao corpo. Essa fragmentação é vivida como um vazio que é preenchido pelo próprio Objeto: o corpo reconstrói o Objeto tanto quanto o Objeto reconstrói o corpo. Eles são um e mais nada. Nessa destruição e construção simultânea, o imaginário, mobilizado pelos sentidos, é convocado a participar. Quarenta minutos depois, retirei os Objetos com muito cuidado. Matheus levantou-se e disse-me, de pronto, que não mais voltaria àquela experiência. No momento que retirei os Objetos, ouviu sinos baterem como se estivesse no antigo seminário em que estudou. Assustou-se com a ilusão. Matheus é ex-seminarista, nascido de uma família de tradição religiosa. Seu pai, militar do Exército, vem de família católica, cujos antepassados se inclinavam para a vida eclesiástica. Um dos seus tios veio a ser membro da

Arquidiocese do Rio de Janeiro. Sua mãe, bem mais jovem que o marido, embora formalmente católica, vem de uma família repleta de histórias sobre o envolvimento de antepassados com a religião espírita kardecista. Não havia, no entanto, uma dicotomia religiosa na família, descrita por Matheus como uma família tipicamente brasileira: “misturavam-se o pensamento espírita e o católico de acordo com a ocasião”. Evitavam-se, no entanto, as religiões de origem africana. O que me intrigava em Matheus era a sua vivência de um cotidiano vazio, que o aprisionava pela repetição dos mesmos gestos do dia anterior. Vazio de desejo, prazer e sabor, como se o mundo chegasse a ele de forma bruta, sem os gestos da fantasia. O sexo era descrito por Matheus como algo quase puramente biológico. Costumava, na vivência desse vazio angustiante, cortar-se com lâminas de aço ou cacos de vidro. Essa despersonalização fazia com que se isolasse e mergulhasse na ficção. Lia compulsivamente e tinha sempre na memória as histórias que lia. Disseme que tinha o hábito de ler desde criança e achava que era devido à dificuldade que tinha com o próprio corpo. Desejava a morte, mas nem isso era tão explícito: tinha cuidados preventivos com a saúde e era incapaz de faltar a uma sessão com sua psicoterapeuta. Justificava essa obediência como “simples obrigação de um soldado no quartel”. Matheus, durante seus estudos no seminário, em uma de suas visitas à casa dos pais, percebeu que sua religiosidade era frágil e resolveu abandonar a vida religiosa . Arrependeu-se. Tentou voltar ao seminário, mas não foi aceito: tinha, meses antes, ingerido grande quantidades de ansiolítico, o que foi visto pela direção do convento como tentativa de suicídio. Na sua volta definitiva à cidade, ao tentar retornar ao seu cotidiano, viu-se numa solidão dolorosa, envolvido em dilacerantes sentimentos depressivos. Após o fim de um namoro, tentou se matar cravando uma faca no peito. Ao sair do hospital, Matheus, incentivado por sua terapeuta, tornou a me procurar. Convenci-o a experimentar o toque no seu corpo, mas a ilusão de acordar no seminário o assustou e o fez rejeitar a experiência. Durante meses, apenas conversávamos. Esperei por Matheus o tempo necessário para que construísse um fio de confiança que o ligasse a mim e o fizesse aceitar o ritual da Estruturação do Self sem medo. Por fim, aceitou. O que se seguiu foi uma série de vivências corporais, traduzidas em uma sequência de imagens oníricas que emergiam do toque no seu corpo. A Estruturação do Self nem sempre se revela através de produções oníricas, mas, em Matheus, as sensações criadas pelo toque dos Objetos estiveram sempre associadas à produção de imagens. Descrevo, a seguir, alguns momentos em que esses blocos de imagens revelaram-se a mim de forma clara e linear, indicando um caminho de leitura. E teço, algumas vezes, pequenos comentários sobre as impressões que me deixaram. De início, três delas me chamaram a atenção pela densidade dramática e pela força expressiva.

Matheus caminhava pelos bairros onde morou na infância: passava de um bairro ao outro sem rumo, como se as fronteiras não fossem nítidas, distorcidas pelas lembranças. Em um dos bairros, o Méier, encontrou-me por acaso. Perguntou-me: “O que faz aqui?” Estava ele numa sala cujas paredes eram vermelhas. Um casal de demônios, também vermelhos, operava em seu corpo como se estivessem realizando uma autópsia. Viu-se incluído na tela A Lição de Anatomia do Dr. Tulp , de Rembrandt. Deitado, em estado cataléptico, com o ventre aberto, expunha um corpo sem um único órgão. Estava numa sala cujas paredes, chão e teto desapareceram, bem como todos os objetos. Seu corpo estava mergulhado no que chamou de “espaço branco ” – espaço-ausência onde não existia perspectiva ou diferenciação de cores. Seu corpo era a única referência espacial. A descrição feita por Matheus era imprecisa e até mesmo contraditória: uma sala que não tem paredes? O Objeto Relacional, ao abrir fendas e ao tocar num interior imaginário do corpo, revelava o sofrimento de Matheus na sua vivência do vazio e da imobilidade: um corpo cataléptico e sem órgãos. Simultaneamente, o toque do Objeto trazia à tona um espaço/corpo para além da cisão eu–objeto– mundo: fora da história de sua relação interpessoal ou da linguagem. Um espaço/arte potencialmente criador de mundos. Estava preso, sem saída, numa sala vazia cujas paredes, teto e chão eram vermelhas de sangue. Ouvia gritos de desespero, embora a sala estivesse vazia. Para ele, os gritos eram de fetos e mães na hora do aborto, como se tivessem sido gravados pelas paredes ou “dentro de sua cabeça”. A imagem é poderosa e me traz a dimensão de um desespero dilacerante. O espaço já não é branco/infinito: traz agora a delineação de paredes cujo vermelho sugere organicidade. O interior de um corpo ainda sem órgãos cujas paredes trazem a memória de uma vida abortada, extirpada. Disse-me que teve um sonho com paredes sanguinolentas ainda quando criança, durante a convalescência de uma cirurgia. O início do toque dos Objetos no corpo de Matheus revela a vivência de três espaços: o espaço social para o encontro (o encontro comigo nas ruas de sua infância), o espaço vivido como corpo (a sala da Estruturação do Self, com paredes sanguinolentas, lembra o interior de um corpo) e o corpo vivido como espaço (o corpo como a única referência de um espaço/tempo). Depois desse início de fortes vivências/imagens em que o tema do vazio e da morte estavam presentes, a Estruturação do Self em Matheus atravessou uma fase “silenciosa”. As descrições de vivências corporais, traduzidas instantaneamente em imagens, não vinham numa sequência articulada que me permitisse a leitura – vinham como retalhos, sem que houvesse uma linha para cosê-los. Aos poucos, pela persistência de alguns temas, fui descobrindo nelas sentidos: na maioria das vezes, eram metáforas da posição em que Matheus se encontrava em relação ao toque dos Objetos e à minha presença mediadora.

O toque dos Objetos era associado muitas vezes a uma cirurgia e ganhava o sentido de um resgate da vida. O demônio era uma constante presença nesses blocos de imagens, algumas vezes operando as transformações corporais. Era submetido a uma cirurgia em que eram introduzidos tubos em seu corpo para drenar a podridão. Durante o toque dos Objetos sentiu a presença difusa do demônio na sala. O demônio era o médico que o operava, e retirava grampos de suas veias e artérias para que o sangue voltasse a circular. A presença constante da imagem do demônio, no momento do toque dos Objetos, me trouxe apreensão: tive medo de que viesse a significar uma relação difícil/negativa de Matheus com seu processo de Estruturação do Self. Com o tempo, ficou claro que a imagem do demônio, para Matheus, estava associada à posição do artista: inovador e iconoclasta, subversor da ordem. O demônio era, para Matheus, o “patrono das artes”, quem desobstrui a espontaneidade, a intuição e o espaço criativo. Quando lhe toquei o pé com o Objeto d’Água (saco plástico repleto de água), veio a imagem de estar sendo operado: pelo seu pé sairia um rim que salvaria a vida de seu irmão. Seu irmão mais velho morreu de complicações clínicas aguda no uso de drogas, o que era visto por Matheus como atitude suicida. A ideia de intervir no corpo para retirar as impurezas (purgar), como um caminho para a cura, esteve presente no início da medicina psiquiátrica e era sempre associada a práticas violentas semelhantes à tortura: criar abscessos para que os miasmas da loucura pudessem ser expelidos; injetar sangue de bezerros considerado o mais puro e melhor; usar banhos de imersão em águas de temperaturas extremas (quente e fria) para limpar a loucura do corpo. Assim, a Estruturação do Self, nas fantasias de Matheus, era vista também como uma intervenção direta no corpo para desobstruir, purgar... O demônio/artista é quem se apresenta para a missão sublime de ativar o corpo para interagir com o mundo, retirar os entulhos que obstruem os canais por onde circula a criatividade. No último sonho dessa sequência, o corpo já não está vazio, a vida se revela, embora, em dado momento, a anatomia seja estranha. A extração pelo pé de uma de suas vísceras vem agora associada ao refazer da história de um momento divisor: a morte de seu irmão. Estava afundando numa lama de gelo. Esforçava-se para não dormir, pois temia morrer congelado ou asfixiado. Sentiu que alguém o cobria com uma manta quente e o puxava com as mãos. Ele teve um tremor da ordem de um susto. Perguntei, quando se levantou, o que acontecera. Contou que era como se vivesse uma experiência mística, em que a alma se desprendia do corpo. No entanto ela continuava ligada a ele por um fio – a pequena pedra na mão seria esse fio. Repentinamente, a experiência cessou, e a consciência do corpo foi sentida de maneira bruta.

Nunca alguém deu uma definição tão exata desse Objeto Relacional: a pedra na mão envolvida numa rede que Lygia chamava de “a prova do real”. A Estruturação do Self, em Matheus, após essa “consciência do corpo”, adquiriu surpreendente novo ritmo e sentido. Quando coloquei, à altura de seu umbigo, uma pedra envolvida numa rede cujo interior tinha um saco de ar, viu que a pedra entraria em seu corpo e o esmagaria. A morte viria devagar trazendo uma espécie de gozo místico. Quando repeti o movimento, teve a sensação de que tinha um grande falo no lugar da pedra. Lembrou-se da celebração da fertilidade nos rituais de religiões orientais. Sonhou com a imagem de Iemanjá negra andando pelas águas e chamandoo, acenando com as mãos. Havia um clima sensual em seu chamado. Acontecia um desfile. As modelos não eram magras como é costume no mundo da moda; eram voluptuosas, vestindo roupas transparentes. Ao fim do desfile, elas participavam de uma festa dionisíaca com os costureiros. Elas, usando pênis de plástico, mantinham relações sexuais com eles. Depois, os devoravam. Eles sentiam prazer em serem mortos e devorados. Elas comiam a carne dos costureiros até os ossos ficarem limpos/brancos. A sensualidade do desfile é o início de uma aproximação insólita entre sexualidade e canibalismo. “Até os ossos ficarem brancos” é a frase que encontro, também, na descrição de um prisioneiro de uma tribo indígena no século XVI , Hans Staden, sobre os rituais canibalescos dos índios brasileiros em que, por sinal, havia forte participação das mulheres: “elas dançavam e cantavam; comiam a carne dos prisioneiros até os ossos ficarem brancos”. A vida em comum dos índios brasileiros ganhava coesão e identidade nesses rituais canibalescos. Tinham como objetivo vingar seus ancestrais e, simultaneamente, incorporar a bravura do prisioneiro (os tupis) ou dar seu corpo como última morada ao ente querido morto (tapuias). Para ambos, a “incorporação” e a “metabolização” do outro traria potência de vida. A sequência de pensamento/imagens de Matheus, cuja atmosfera canibalesca já pôde ser sentida na reprodução da Lição de Anatomia , segue roteiro no mesmo sentido. A incorporação e a metabolização simbólicas do Objeto trazem de volta o desejo. Em seguida, as modelos apareciam, numa sala, vestidas de branco como vestais de um templo romano. Adoravam uma divindade que era ao mesmo tempo homem, mas tinha seios como mulher; tinha escamas de peixe e asas de pássaro; trazia a Lua numa mão e o Sol em outra; tinha cabeça e pés de bode e trazia na cabeça uma tocha de fogo para iluminar os caminhos. Tinha também um pênis enorme, que era reverenciado pelas mulheres. Em outro sonho, a enigmática criatura fálica, agora mais humanizada, mantinha relações sexuais com as mulheres. Mostrando-se “pura potência”, era capaz de renovar constantemente o gozo sexual. Matheus reconheceu essa divindade como sendo Bafomé. Segundo Matheus, essa divindade, provavelmente originada da mitologia babilônica e associada à fertilização, foi desenhada por um místico francês, o abade Éliphas Lévi, a partir de descrições encontradas nos autos da inquisição dos Templários. Embora com

asas e luz, o que lhe traz uma conotação divina, essa figura híbrida veio a ser associada no universo ocultista como demônio – o bode era visto, no mundo rural da Idade Média, como animal lascivo. Meses depois, Matheus retomou a sequência de imagens, mas, agora, era ele a criatura a ser adorada. As mulheres eram negras e volumosas, e ele, albino. Elas o acariciavam. Em determinado momento, quando mudei de posição o Objeto d’Água sobre seu corpo, o sonho tomou uma direção surpreendente: um homem se aproximou e foi cercado pelas mulheres. Descobriu que o homem era um religioso (provavelmente, segundo ele, São Francisco) que, não podendo se defender – sendo as mulheres negras, ou seja, de outra cultura religiosa, ele não tinha poder sobre elas –, se entregava ao sexo. Matheus retomou a cena das mulheres fortes que “devoravam” a masculinidade frágil para que pudesse ressurgir o erotismo como potência de vida. A nova dialética corpo+objeto experimentada por Matheus na Estruturação do Self se revelou na vivência de multiplicidade e síntese, reafirmou dicotomias e/ou as aproximou. A aparente inconciliável dicotomia entre o rosto branco e sublime de São Francisco e o rosto negro e lascivo das mulheres tem, no corpo/sexualidade, sua possibilidade de encontro. Ainda como divindade, ele continuava com as mulheres que, agora, voltaram a ser brancas. Matheus se vê multiplicar em muitos outros. E cada outro não era uma cópia virtual, era ele mesmo. Estava com uma mulher em uma floresta tropical. Estavam nus com naturalidade. A sexualidade se revelava, novamente, associada ao primitivo/ selvagem. Disse-me que a exuberância da natureza e a naturalidade da nudez o lembravam um quadro de Hieronymus Bosch. Tenho de memória as imagens do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas . A princípio, o ambiente tropical descrito por Matheus em nada me sugeriu aquela profusão descabida de imagens de fantasia pintadas por Bosch. Mais tarde, voltando à pintura, percebi que, se esquecêssemos as referências religiosas de uma época assolada pelo medo das pestes e das guerras, as imagens mostrariam uma natureza exuberante e convulsionada onde aflora um erotismo inquieto e intenso, afirmando a vida. A figura simbólica de Bafomé, em sua ambivalência (homem e mulher, trevas e luz, humano e animal), traz uma síntese (panteísmo) que expressa a multiculturalidade das imagens surgidas no toque do corpo de Matheus. O que essa síntese parece apontar, nessa sequência de pensamento/imagens, é a sofrida reconstrução do corpo para o prazer, para o encontro com o outro. Reconstrução que se afirma ante a multiplicação dos “eus” – a fragmentação psicótica. O chamado sensual de Iemanjá levou Matheus a um mergulho numa série de vivências traduzidas em imagens (sonhos) sequenciais. Os Objetos Relacionais, ao tocar o corpo, aproximam a materialidade aos afetos: uma experiência vertical, no sentido de que ela se dá pela intensidade da experiência circunscrita a um toque que não delineia a forma do corpo, mas

molda-se ao corpo, preenchendo espaços vazios de um interior imaginário. Aqui, a metafísica não se revela no para além da matéria, mas dentro de um interior do corpo. ²⁷ Se a incorporação do objeto é uma experiência vertical, sua metabolização simbólica (como Lygia chamava o esforço do corpo/ sujeito em criar representações para as imagens sensoriais inusitadas) é uma experiência horizontal: os pensamentos/imagens se desdobram no tempo em sequência “cinematográfica”. Nesses “roteiros”, frequentes na Estruturação do Self daqueles cujos corpos estão gravemente atingidos por vivências psicóticas, essas pessoas constroem, a partir da relação com os Objetos, uma narrativa sobre a reconstrução do corpo que é, simultaneamente, a reconstrução de si e do mundo. Na maioria das vezes são narrativas extremamente originais e criativas. A experiência da Estruturação do Self foi apenas uma entre tantas experiências (psicoterápicas, medicamentosas, artísticas) oferecidas a Matheus. Durou cerca de dois anos e, depois, mantive um contato permanente com ele. Nesse tempo, ele retomou a sexualidade e fez dela um trampolim para a abertura do novo: passou a frequentar uma casa de prostituição e, habilmente, conseguiu transformar a relação profissional com uma das mulheres no contato humano de que precisava. A relação profissional da prostituição opera como uma ponte que impõe distância, separação, ao mesmo tempos que une, possibilitando um pequeno laço afetivo com o mundo do outro. Ele próprio se mostrava perplexo diante de como a sexualidade “pode irromper no vazio”. Questões de relacionamento materno e recalques profundos de pulsões sexuais são bastante evidentes nesses sonhos, mas não me cabe, neste momento, um trabalho interpretativo nessa direção. Entre a imagem que sugere Lição de Anatomia e a outra que o lembrou O Jardim das Delícias , o percurso de Matheus na Estruturação do Self é um caleidoscópio de blocos de imagens/vivências difíceis de serem sintetizados em uma narrativa única. Tomo aqui, como ponto de partida, a representação que faz do vazio de sua existência. De início o toque Objeto revela, simultaneamente, duas vivências opostas: a do vazio de um corpo cataléptico e sem órgãos como espaço de morte e a vivência de um vazio primordial, fora da linguagem – potencialmente criador de mundos. Todo o percurso de Matheus na Estruturação do Self foi um mergulho no contraditório, uma absorção de opostos pela aproximação de tudo aquilo que foi excluído: quente e frio, preto e branco, corpo e espírito, divino e demoníaco. Construção de uma totalidade na qual o equilíbrio dinâmico de opostos revela que o vazio da repetição e da imobilidade (a vivência psicótica) traz em si mesmo potencialidade criadora de começos, que recoloca a percepção em movimento e, consequentemente, o imaginário. Ativa o desejo e reconstrói o corpo para o prazer, para o outro. Abre uma pequena janela para a vida, embora a sombra de uma melancolia (pesado traço familiar) ainda se afirme em seu mundo. 25 “Quarenta minutos antes do nada” era como o dramaturgo Nelson Rodrigues se referia ao jogo Flamengo x Fluminense.

26 Conversando com Mário Pedrosa sobre os Objetos Relacionais e o percurso de Lygia Clark, ele usou essa expressão, “feixe de sensações”. Achei muito pertinente essa imagem descritiva. 27 Na ânsia de expressarmos um pensamento com clareza, muitas vezes nos apropriamos de frases escritas por outros que nos parecem mais apropriadas. Sempre usei, quando falo da obra de Lygia Clark, a frase “aproximação entre o metafórico e o físico”. Mas, agora, neste livro, acho mais pertinente usar, de Marcio Doctor, a frase “aproximação entre a materialidade e afetos”. É de Marcio também a colocação precisa sobre o que chamo de espaço imaginário interior do co rpo: “em Lygia, a metafísica não se revela no além da matéria, mas dentro de um interior do corpo”. SOMOS Somos soma que Emana, irmana Com toda Criação Toda Criação Com o que cada trouxer Acolhendo quem puder Colhendo e semeando Somos Canção que eclode No dia após dia De labuta e Alegria Folia e Amor Somos quando somos Somados, irmanados, espelhados, espalhados Alimento indigesto Ao cruel caçador Aquele ignaro Esquecido de onde nasceu e faz parte Pois do nós se apartou Somos, somos, somamos

Do jeito que der O Amor que há em nós Transformando o mando, o mundo, os modos, os meios Em mais de nós mesmos Desatando os acatos, coitados, tolhidos Desaguando e aguando No entorno crescente Onde nascem as diversas sementes Somadas a nós. Então, somos. Regina Peixoto Enquanto escrevia a história de Diego e seu inseparável saxofone, lembreime de Olinda. Guardo ainda na memória as imagens dos cortejos dos grandes blocos de frevo que seguem por entre aquelas ruas estreitas da velha cidade. Como no balanço dos canaviais, a grande massa popular movese no seu vai e vem constante em direções opostas: ora parece ir para a esquerda, mas não vai; ora parece ir para a direita, mas não chega. Só a orquestra, apenas ela, se impõe àquela delírica ²⁸ confusão: os instrumentos de sopro (clarinete, tuba, saxofone) com toda sua presença corpórea (são atrelados ao esforço da contração e expansão dos pulmões) lhe dão contorno, impulso e direção. Os instrumentos de sopro trazem corpo à alma da frevança. O corpo é a alma do corpo ²⁹ Quando, pela primeira vez, estive com Diego, inquietou-me a impressão de estar diante de alguém cuja suavidade/contenção gestual expressa uma tênue presença corpórea no mundo e que, no entanto, pode se transformar, a qualquer momento, em uma violência descabida. Diego conseguia sair de casa e andar pelas ruas densamente povoadas do Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, evidenciar essa quase ausente corporeidade da qual irrompem, intempestivamente, sentimentos agressivos de ansiedade e urgência. Diego esteve pela primeira vez no Espaço Aberto ao Tempo trazido por um funcionário de um hospital psiquiátrico. Veio conhecer nosso serviço porque iria morar sozinho em um quarto alugado próximo ao EAT . Estava internado em uma das enfermarias e a família relutava em levá-lo de volta para casa. Pouco antes dessa sua última internação, bateu na avó com tal agressividade que ela teve rupturas de vísceras. A ideia de Diego morar sozinho implicava afastá-lo da família e oferecer-lhe outro espaço de convívio, onde iniciaria um tratamento. A família de Diego cedeu ante à ideia de que esse espaço fosse o EAT e o tratamento fosse proposto por mim.

Diego nasceu e cresceu no bairro carioca do Méier, na extensa e populosa Zona Norte do Rio, área urbana extremamente musical e religiosa. Embora acompanhasse sua mãe no comércio ambulante (vendiam balas e doces em frente a um colégio), estudou o antigo segundo grau completo. Na adolescência, teve um período de grande introversão em que “ouvia vozes”, mas logo dissipou-se sem necessidade de revelar a alguém. Trabalhou, a princípio, em um supermercado e, depois, por indicação de uma tia, no setor jurídico de uma companhia telefônica. Parecia feliz no emprego quando lhe irrompeu uma estranha inquietação com atitudes dissociadas da realidade. As primeiras manifestações psicóticas de Diego foram surpreendentes para família; seu pai (já separado de sua mãe), junto à avó materna, tentou protegê-lo; sua mãe e irmã se afastaram, devido ao medo da violência. Sua irmã também veio a enlouquecer logo em seguida. As crises de Diego traziam sempre uma ansiedade avassaladora com uma vivência alucinatória intensa. Nesses momentos, costumava ter atitudes dissociadas explosivas: gritar palavras desconexas repetidamente, pular, sair correndo ou agredir o outro fisicamente. Costumava também agarrar-se compulsivamente a detalhes de um objeto: o botão de uma camisa, a ponta de um lençol ou mesmo seu nariz ou sua orelha. Para retirá-lo dessa compulsão era necessário muito tempo e dedicação exaustiva. De início, Diego teve pouco interesse pelo que lhe foi proposto. Mesmo quando saiu da enfermaria do hospital psiquiátrico, aderiu pouco ao convívio do Espaço Aberto ao Tempo. Tinha medo da psiquiatria e seus métodos. Tive notícias de que ele costumava aparecer no Museu de Imagens do Inconsciente, onde gostava de desenhar e, como havia histórico de gravidade em seu quadro clínico, resolvi procurá-lo, pois éramos formalmente responsáveis pelo seu tratamento. Fomos ao Museu de Imagens pedir informações sobre sua frequência na oficina de pintura. Soubemos que Diego desenhava muito bem, mas frequentou a oficina por pouco tempo. Com o pretexto de organizarmos o uso da medicação prescrita, já que tinha dificuldade em organizar-se por morar sozinho, passamos a frequentar semanalmente sua casa. Era a oportunidade de criar vínculos de cuidado com Diego. Tínhamos também medo de que ele, não conseguindo uma frequência adequada de sua medicação, ficasse mais vulnerável à intempestividade de suas crises. Por conta dessas crises, o proprietário do quarto onde morava estava ameaçando-o de despejo. Observei que algumas das crises de Diego eram desencadeadas quando alguém, de significação afetiva, se afastava. E talvez essa presença corporal tênue no mundo (como descrevi) faça parte de um vazio que determina essa “fusão com o outro”. Pensando assim, logo após uma crise que levou Diego a uma nova internação psiquiátrica, de forma intuitiva (e mesmo impulsiva), propus tocar-lhe com os Objetos Relacionais.

A princípio, Diego definiu a Estruturação do Self apenas como relaxante. No entanto seus vínculos com os Objetos tornaram-se tão fortes que, quando na urgência de uma angústia, me procurava pedindo que tocasse seu corpo. Dessa maneira, passou a frequentar diariamente o Espaço Aberto ao Tempo: o toque dos Objetos foi que o ligou, definitivamente, ao EAT . Passaram-se inúmeras sessões em que ele apenas “relaxava”, nada acontecia para nos contar. Dizia apenas sentir-se bem. Foi só bem mais tarde que a sequência de sessões passou a trazer, algumas vezes, conteúdos simbólicos. Em uma das sessões, teve um sonho intrigante. Sonhou com seu primo e sua prima – talvez um jogo especular dele e da irmã. Seu primo dizia, em determinado momento: “Abraão [o personagem Bíblico], traga um presente para Diego.” Sabemos que quem dá as ordens a Abraão é Deus, que ordena o sacrifício de seu filho em oferenda. A primeira metáfora que Diego cria do toque dos Objetos afasta-se do mito de sacrifício (despedaçamento do corpo), aproximando-se de um presente prometido. Enquanto se deixava tocar pelos Objetos, viu um moinho movido por um jorro de água vindo de uma fonte. Em dois outros momentos, sonhou que assistia a um jogo de futebol americano. Essa modalidade de jogo requer forte presença física/corporeidade. Era o que buscávamos. O toque dos Objetos Relacionais no corpo de Diego e sua aproximação com o Espaço Aberto ao Tempo trouxeram, de imediato, um alívio para aqueles que vivem em contato com ele: suas crises continuavam, mas pouco lembrávamos das violentas dissociações; Diego revelou-se de uma doçura cativante. Determinamos nunca interná-lo durante uma crise (semanalmente tinha crises) e ficávamos com ele até esgotar aquela angústia, alucinação... Era exaustivo. Sonhou, então, com um saxofone. Sonhou outra vez que um músico tocava esse instrumento. Diego contou, em um dos nossos encontros, que gostava de música e que tinha desejo de tocar saxofone. Quando adolescente, seu pai, ao vê-lo tocar uma flauta rudimentar, prometeu comprar um saxofone para que ele aprendesse música, mas o preço do instrumento era muito alto. Anos depois, tentou aprender guitarra com um músico que organizava um coral na igreja que frequentava. Sugerimos, portanto, que viesse aos ensaios musicais do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado (grupo musical criado no Espaço Aberto ao Tempo). Chegou a comprar uma flauta, mas não aderiu ao grupo, nem mesmo ao instrumento. Em pouco tempo, o antigo desejo de tocar sax tornou-se inadiável, tão compulsivo quanto alguns impulsos de suas crises. Tentou comprá-lo, mas o preço de um bom saxofone era inalcançável. A partir da leitura que fizemos de sua experiência na Estruturação do Self, tivemos a ideia de utilizar uma quantia de dinheiro que restava das apresentações do Sistema Nervoso Alterado e dar-lhe de presente o instrumento.

Aquele som que vinha de dentro, atrelado à respiração, parecia tão familiar a Diego que trouxe espanto para alguns músicos profissionais: com quase nenhum contato anterior com o instrumento, era capaz de executar solos, embora sem técnica, com aquela variação de timbres e escalas melódicas próprias de jazzistas contemporâneos. O timbre de seu sax e a maneira com que organiza grandes e pequenos blocos de notas, embora em técnica rudimentar, lembraram-nos, de imediato, o saxofonista John Coltrane. Passou a praticar o instrumento com um ardor sem precedente entre nós. Como seus solos demonstravam estruturas musicais indefinidas/ intermináveis (amolgadas à sua fragmentação psíquica), passou a buscar, insistentemente, lições de teoria musical que acrescentassem técnica àquele jorro infinito. Matriculei Diego, por insistência dele, na Escola de Música Villa-Lobos, apostando, embora preocupado, que sua paixão pelo saxofone seria capaz de intermediar suas difíceis relações sociais naquele ambiente de rígido ensino e formação de músicos: Diego nunca faltou uma aula ou deu alguma resposta dissociada às exigências do curso. Suportou, mesmo com sua estrutura psíquica frágil, as demandas do ensino teórico e a diferença dos colegas e, só após as aulas, algumas vezes, se via tomado, momentaneamente, por um desespero psicótico. Com a revelação do saxofone, Diego pôde participar da oficina de música e ingressar no Sistema Nervoso Alterado Jazz Band. Isto criou nele a necessidade de mais estudo de música. Ao ingressar na Escola de Música Villa-Lobos, Diego passou a frequentar círculos de músicos profissionais, e isto criou a necessidade de transitar cada vez mais pela cidade. Seu território de vivências ampliou-se, desdobrando sem impor limite. O som de Diego era como se a própria palavra viesse a se fundir com a música, ganhando outras dimen(sons) físicas concretas – Diego, incessantemente, buscava a síntese sonora viva do seu sofrimento. As imagens do futebol americano prepararam sua presença corporal no mundo para receber o presente anunciado na infância: um instrumento de sopro. A música tornou-se a fonte que move o moinho da vida. A Estruturação do Self pode vir a ser qualquer coisa (o Objeto Relacional, ao tocar o corpo, pode ganhar qualquer significado): para Diego, tornou-se música, mostrando-lhe um jeito mais criativo de lidar com o sofrimento em forma de um instrumento musical. O Objeto Relacional é o fio que liga, através do corpo, a memória à música – o processo mais original e enigmático desta história. O saxofone, instrumento prometido pelo pai, ligou a infância ao presente, refez sua história e o conectou com o mundo. Refez o caminho que a vida, pelas poucas oportunidades sociais, tinha-lhe obstruído. Convém, agora, reescrever o parágrafo acima, escrito em forma de síntese, para abri-lo a diversas leituras. A imagem do futebol americano (um jogo de muito contato físico) sugere que, em Diego, uma consistência corporal vai de encontro ao caos afetivo da vivência psicótica. Mas essa consistência (produção de contorno, traços) do corpo é só o lado visível de uma original reconstrução corporal que se passa num movimento de trocas invisíveis entre si e o outro, entre o corpo e o mundo. O toque dos Objetos cria imprecisos feixes de sensações percebidos como imagens sensoriais abstratas, que buscam significado num espaço interior imaginário do corpo.

Isso cria uma zona híbrida entre o corpo e o Objeto. Essa fusão do corpo com outros corpos traz uma imersão do corpo nas forças, intensidade e sentido do mundo – traz de volta o corpo à consciência de si, perdida na psicose. Traz de volta o corpo para produção de traços e contornos afetivos da cidade. 28 Aproprio-me da palavra “delírica”, criada pelo poeta Abel Menezes, por achar que ela deveria pertencer aos dicionários da língua portuguesa. 29 Esta frase está num poema-camisa do poeta Alex Varella.

“Desobedeça-me” é um paradoxo. Um jogo de linguagem que não deixa saída. A imposição tem apenas uma direção, absorvendo o seu contrário: desobedecer-me é, também, obedecer-me. No entanto, neste texto, “desobedeça-me” ganha um outro significado, longe da sentença autoritária. Evoca aqueles momentos em minha vida profissional quando, não tendo certeza dos caminhos que teria que apontar para meus clientes e, sendo obrigado, pela posição de terapeuta, a dar-lhes uma resposta, assisti a eles me desobedecerem e encontrarem seu caminho. Refiro-me àquelas histórias de vida de clientes que só encontraram uma saída quando me desobedeceram. Desobedeça-me Trago, em “Desobedeça-me”, a história de Pedro. Nascido em zona rural da Bahia, ele fugiu de casa ainda adolescente para trabalhar em colheitas no interior de Minas Gerais, de onde emigrou para o Rio de Janeiro, abrigandose na casa de um tio. Usava sempre, mesmo em dias de calor, camisas de manga comprida ou casaco, meias e, algumas vezes, luvas. Calado e de poucos amigos, Pedro tinha um olhar da angústia. Sentia o corpo transformar-se. Essa dolorosa percepção migrava de uma região para outra: ora suas mãos eram iguais às das mulheres; em outra ocasião, eram pés ou o rosto. Por isso, ocultava seu corpo. Conheci Pedro ainda quando trabalhava na Casa das Palmeiras, acompanhando-me, depois, quando criei o Espaço Aberto ao Tempo. Procurou a Casa das Palmeiras por iniciativa própria, buscando ajuda num momento de grande sofrimento. Quando o avistei, parado, sem nenhuma iniciativa, convidei-o, abrindo a porta, para que entrasse. Ele disse que havia lido uma matéria nos jornais sobre a instituição, mas que, pelo visto, não seria o lugar ideal para ele. Respondi que mesmo assim entrasse, que o escutaria. Então Pedro começou a frequentar a Casa de forma regular. Para sobreviver, passou a trabalhar num laboratório fotográfico e, à noite, quando o patrão saía, tirava fotografias de seu próprio corpo. Fazia-lhe bem ver o surgimento da imagem do corpo no momento do trabalho laboratorial da foto. Emergia do branco, do nada, numa revelação fascinante. Gostava de me mostrar as fotos, para me ter cúmplice do ato de olhar a imagem de seu corpo. Nessa época, trabalhava na Casa das Palmeiras uma professora de cinema, Marialva Monteiro, que coordenava um grupo criando pequenos filmes. Em uma discussão durante a elaboração coletiva do argumento, surgiu a cena em que uma jovem tentava matar-se entrando no mar. Era salva por um homem que, por acaso, testemunhou o impulso desesperado da jovem. Pedro propôs ser esse desconhecido que passeava na praia no momento da tragédia e resgatava a moça das águas. Para isso, teria que ficar vestido apenas com um calção, vencendo o medo de revelar seu corpo ao outro através das imagens cinematográficas. Quando o filme foi finalizado, faziame assistir a essa cena diversas vezes por dia.

Essa busca pela redescoberta do corpo fez com que eu propusesse a Pedro o toque dos Objetos Relacionais. O processo da Estruturação do Self foi curto, mas contundente. O toque do corpo era associado a uma “maternagem” dolorosa; dele emergiram vivências que Pedro associava a lembranças/ fantasias guardadas da difícil e dolorosa relação com a mãe. Vivências de destruição do corpo; lembranças/fantasias do medo paralisante da violência da sexualidade incestuosa. Quis parar o toque com os Objetos, mas lembrei-me de que o relacionamento intersubjetivo que tinha com Pedro me possibilitava dosar a intensidade e duração da experiência com os Objetos e criar outras possibilidades de encontro sem perda de continuidade de um processo maior. Continuei por cerca de oito messes. Nos anos seguintes, as angústias de Pedro, referidas ao corpo, acomodaram-se, embora ainda fossem ameaça permanente em sua vida. Pôde, assim, dar passos importantes na sua adaptação ao mundo: ligado a uma linguagem esotérica, criou uma rede de amigos nos grupos de estudo e de prática de filosofia oriental que frequentava regularmente; criativo e com aptidão para a arte, trabalhou em grupos de teatro amador e criou estamparias para design de moda. Mesmo assim, questões primárias quanto a sua identidade e dúvidas quanto à aceitação de si pelos outros ainda se transformavam em sofrimento. Aos poucos, a ideia de fugir, viajar para um lugar desconhecido e recomeçar vida nova, tal como fez ao sair de casa, foi se tornando dominante em seus desejos. Eu discutia com Pedro, mostrando o quanto sua vida mudara desde o dia em que lhe abri a porta da Casa das Palmeiras; o quanto se sentia melhor consigo mesmo. E, valendo-me da relação que tinha com ele, desaconselhei que continuasse em fuga. Em vão. Pedro viveu cerca de dois anos no México. A princípio na Cidade do México, depois em zona rural, onde viveu fortes experiências com seitas místicas. De volta ao Brasil, procurou-me. Preocupei-me com suas angústias dilacerantes, pois, embora de forma mais branda, voltaram os perigosos sentimentos de despersonalização sob a forma de estranheza do próprio corpo. Como eu não trabalhava mais na Casa das Palmeiras, trouxe-o para o Espaço Aberto ao Tempo. Demorou-se cerca de dois anos e meio no Rio de Janeiro. Novamente, surgiu o desejo de reconstruir sua identidade onde muitos a perderam: em terras estranhas, no confronto entre culturas. Pedro passou quatro anos em um kibutz em Israel, valendo-se de sua origem judaica materna. Voltou ao Brasil depois que a suspeita de um tumor, não confirmada posteriormente, o desestabilizou emocionalmente. Retomamos nossos encontros. Como um marinheiro incapaz de permanecer no porto, Pedro se atirava no mundo em busca de si mesmo, tendo como único ponto de referência a relação que estabeleceu comigo. A delineação do “eu” através da busca localizada da geografia do corpo cedeu lugar, principalmente depois do toque dos Objetos Relacionais, à estruturação de si mesmo através da busca globalizada da geografia afetiva das cidades. O Espaço Aberto ao Tempo passou a ocupar, então, o lugar que antes era das experiências místicas: um refúgio.

Pedro planejava emigrar para os Estados Unidos (nunca tive certeza se chegou a viajar) e, mais tarde, valendo-se agora do sobrenome paterno, chegou à Suécia. Tornou-se um barman de grandes casas noturnas, comprou uma casa, iniciou um acompanhamento psicoterápico e recebeu o direito à cidadania sueca. Fixou-se na Suécia, onde sentia a possibilidade de adaptarse e recriar-se. Pedro procurou-me quando veio visitar seus pais na Bahia e, até hoje, mantemos contato através das redes sociais. Refúgio (lugar para estar seguro) deriva do latim, de “re” (para trás, volta) + “fugire” (fugir, escapar). Daí vêm “refugiado”, que, numa tradução direta a partir da origem das palavras, significa “aquele que torna a escapar”, e “refúgio”, “lugar aonde se retorna para fugir”. Enquanto escrevia este texto, sentia-me incomodado ao adotar o sentido etimológico para descrever aquilo que pretendia ser o que ofereci a Pedro: uma porta aberta. No entanto, ao lembrar a migração que, na história de Pedro, fez a palavra refúgio – indo do sentido religioso, quando procurava as comunidades místicas, para o acolhimento da Casa das Palmeiras e do Espaço Aberto ao Tempo –, aponto para a ampliação do significado da palavra refúgio em certas tradições religiosas: a fé em uma divindade e a crença em uma utopia são vistas como um caminho de retorno que se escolhe em fuga. O re-fugire se funde ao religare . Bem mais preciso seria dizer que refúgio é um lugar/abrigo para onde, com urgência considerável e sob pressão das circunstâncias, se escapa para voltar. Em pessoas com indescritíveis sofrimentos como Pedro, “refúgio” pode ter um significado para além do que explica sua origem etimológica ou seu uso cotidiano linguístico: um retorno a um ponto, difícil de ser reduzido em palavras, que não é um lugar nem um não lugar – de onde vim, estou indo, vindo ou, quem sabe, de onde jamais saí – mas, com certeza, de onde todas as coisas parecem estar conectadas. Lugar aberto ao tempo de onde se escapa para encontrar a “cura”: um caminho na vida.

Era final de tarde quando entrei na empoeirada casa de Júlio. Estava acompanhado por sua mãe, mesmo assim tive que ouvir ofensas e ameaças: “Isto é invasão de domicílio, posso chamar a polícia!” Conservei a calma e disse-lhe que uma promotora de justiça, sabendo que ele há anos (mais de dez anos) não saía de casa, pediu-me que fosse compreender o que estava se passando. Júlio respondeu-me irritado, dirigindo-se ao computador: “Olhe aqui meu Facebook, tenho centenas de amigos.” Isto, talvez, é o que preocupa a promotora – eu disse a ele –, porque, tendo tantos amigos, você se relaciona apenas com uma máquina. O silêncio que as palavras guardam Quando conheci Rosa, ela estava internada na enfermaria de um hospital universitário à espera da sequência de doze eletrochoques prescritos. O médico residente que me atendeu, curvado sobre a paciente, aproveitou para dar-me uma aula sobre os benefícios do eletrochoque, sempre com o olhar curioso, de “canto de olho”, sobre minha expressão fisionômica; queria saber o quanto me horrorizava. Pouco prestava atenção, estava absorto na recordação do meu encontro com Júlio em sua empoeirada casa: por que se deixar e confiar tanto na eficácia da relação com uma máquina? Na ocasião, impassível, não opinei sobre o tratamento proposto, afinal estava apenas de passagem. Reforcei, no entanto, a ideia do trabalho paralelo e simultâneo de um fisioterapeuta: ela traria um toque humano ao tratamento. Estava ali apenas para conhecê-la, pois tinha notícias de que, quando saísse do hospital, iria morar em uma casa assistida pelo Espaço Aberto ao Tempo. Rosa nasceu em Recife. Foi forçada a migrar, com dois anos de idade, para as comunidades pobres do Rio de Janeiro, devido à internação de sua mãe em hospital psiquiátrico. Criada pelo pai e pela madrasta, casou-se jovem e, depois do parto de sua segunda filha, aos 26 anos, teve forte crise psicótica que se revelou quando tentou jogar a recém-nascida pela janela. Impedida pela enfermeira, foi internada no antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II, hoje Instituto Municipal Nise da Silveira. Após a longa internação, refez sua vida ao lado de um novo marido, agora com o apoio de um constante tratamento ambulatorial. Uma nova separação, coincidindo com o desmoronamento de sua casa devido às chuvas, levou a outra crise, e seus sintomas se agravaram ao longo do tempo. Com sucessivas perdas que a levavam a sucessivos desmoronamentos afetivos, Rosa afastava-se mais e mais das realidades cotidianas familiares e se aproximava dos leitos dos hospitais psiquiátricos – lugares que a doença lhe impôs. Estava sempre imóvel, deitada na cama, ou tinha atitudes dissociadas imprevisíveis, como a de guardar fezes na geladeira. Quando a conheci, parecia ausente: sempre deitada, tinha a imobilidade de quem não expressa através do corpo um contato afetivo com o mundo circundante. Rosa era descrita, na ocasião, como “paciente psiquiátrica com graves sintomas catatônicos”. Fora transferida para um hospital universitário depois do descredenciamento/falência de uma clínica psiquiátrica conveniada (clínica que, embora de iniciativa privada, mantém convênio com o Estado), para onde fora levada sem perspectiva de alta.

Oito meses depois dessa breve visita, voltei a encontrar-me com Rosa. Fora trazida ao Espaço Aberto ao Tempo para ampliação de nosso contato e responsabilidade em seu tratamento. Rosa tinha um corpo contraído (até suas mãos eram fechadas) dentro de uma cadeira de rodas: Rosa, definitivamente, não andava mais. Compensava a perda de mobilidade com um “olhar agudo/penetrante”, cujo serpenteado parecia delinear espaços permanentemente estranhos. Tinha também, em raros e esperados momentos, impulsos de dirigir-se ao outro em uma comunicação verbal espasmódica e intempestiva. Era quando expressava agressividade ou buscava aproximar-se do mundo através da alimentação. Era também quando nos surpreendia pela maneira despudorada e imprópria de expressar sua sexualidade. Uma sexualidade primária/indiferenciada/ amorfa, muito mais reflexo do despedaçamento do corpo do que a busca de múltiplas direções para o prazer. Rosa passou a ser acompanhada de perto por uma enfermeira residente, que tinha a missão de criar estratégias para ampliar um pouco mais seu mundo. Uma dessas estratégias era trazê-la ao Espaço Aberto ao Tempo para me ver. Cabia a mim criar linguagens que trouxessem uma comunicação/ aproximação afetiva de Rosa com o mundo – assim, colocava-me apenas como participante de um trabalho mais amplo desenvolvido pela enfermeira Reyna. Rosa vinha irregularmente, uma vez por semana. Sempre ia buscá-la na entrada do Espaço Aberto ao Tempo e a trazia à minha sala. Ali, em frente a Rosa, tentava de tudo para que falasse comigo (é da natureza humana a ansiedade pela fala), mas nem mesmo sabia como e o quanto me escutava: Rosa era só olhar. Passei a seguir aquele olhar ondulante de Rosa, que poderia ir de um detalhe da minha camisa à janela no fundo da sala e que, provavelmente, ordenava o espaço convulsionado pelas vivências de fragmentação. Criando uma coreografia de olhares, eu sinalizava a Rosa minha disposição afetiva de acolhê-la. Em seguida passei, enquanto seguia seu olhar, a tocá-la, sorrateira e delicadamente, com objetos construídos a partir da linguagem da Nostalgia do Corpo desenvolvida por Lygia Clark: pequenos sacos de água repletos de conchas finas/leves, saco de plástico contendo sementes finas, sacos repletos de ar... Rosa não recusava o toque/envolvimento do corpo e o recebia com o mesmo olhar agudo/penetrante. O cuidado com que envolvia seu corpo vinha do receio de tocar em Rosa, alguém com vivência mínima de corpo, com um Objeto que convoca, para existir, uma presença corporal. O toque não tirava-lhe a intensidade que vinha de seus olhos, o que me dava a impressão de que nossos olhares estavam mergulhados em todos os sentidos. Surpreendentemente, esse ritual, com a leveza quase lúdica, foi quebrado por um movimento novo de Rosa: passou, bruscamente, a me ofender de maneira direta e ingênua. Toda vez que a tocava, dizia que eu “era feio”, que eu “tinha um cabelo horroroso”, “um nariz de palhaço”, “um andar de ‘viado’”. As ofensas eram desconcertantes, mas me davam a certeza de que

eu já estava presente no espaço que o olhar ordenava. O que Rosa sentia no sutil toque dos Objetos que envolviam seu corpo é um segredo que o olhar dela não revelou, mas, com certeza, propiciava a criação de um espaço de trocas silenciosas/invisíveis entre nós: trocas entre a visão de si mesmo e a visão do mundo exterior. Rosa, de súbito, nos surpreendeu ainda mais com um novo movimento: na saída de cada encontro passou a ter necessidade de contar sua vida. Para o mergulho em sua história escolhia como interlocutores pessoas anônimas e fixas em sua função: porteiros, motoristas, faxineiros. Rosa tinha uma visão integral do Espaço Aberto ao Tempo: seu desejo, e não a organização funcional do serviço, era o que determinava a proximidade e a distância das pessoas. Quando esse impulso ocorreu pela primeira vez, causou-me espanto pela fluidez de sua fala. Na saída de nossa sala, deixei Rosa com o porteiro, enquanto esperava o motorista que viria buscá-la. Repentinamente, Rosa passou a perguntar sobre a vida pessoal dele: se era casado, se estudava, onde morava... Depois, começou a contar sua história como vendedora de doces na Central do Brasil. Descia a minúcias, narrando que tipo de doces vendia e como os preparava, a condução que tomava para ir à Central... Por mais três vezes, Rosa cumpriu esse ritual trocando as histórias e os interlocutores. Rosa imergia no espaço e, simultaneamente, mergulhava no fluxo temporal de sua história. O espaço abria-se ao tempo e ampliava seu universo de trocas com o mundo outro. Antes que Rosa viesse morar numa residência administrada pelo Espaço Aberto ao Tempo, o que possibilitaria a continuidade do trabalho, uma pneumonia trouxe-lhe a morte. Sei que repetidas crises psicóticas de natureza catatônica não levam à paralisia definitiva dos membros inferiores. Provavelmente foram as séries de eletrochoques, que nos anos de internações de Rosa viraram protocolares diante de suas crises, que causaram ou agravaram lesões antes não identificadas que a deixaram na cadeira de rodas e lhe trouxeram fragilidades que a levaram à morte. Essa história de Rosa confronta duas abordagens corporais: o eletrochoque e a reconstrução corporal pelo toque de objetos de particular sensorialidade. Recuso, nesse confronto, juízos de valor como se fossem elementos opostos, embora tragam, subjacentes, ideologias contrárias. Enquanto escrevia este texto, lembrei-me do trabalho que fizemos em uma mulher com grave anorexia delirante. Participei com o toque dos Objetos Relacionais em paralelo e simultâneo a três outras experiências clínicas – inclusive uma série de eletrochoques – sem que houvesse conflito. As práticas terapêuticas eram apenas instrumentos dentro de um projeto maior de resgate de vida. O que questiono, nessa história de Rosa, é o momento e a forma com é proposto o eletrochoque. Por que uma abordagem tão incisiva, reducionista e perigosa tem que ser a escolha primeira, com pretensões de ser exclusiva? Esse reducionismo tecnicista, sempre em voga em momentos autoritários da vida social do País, traz em si um outro reducionismo: a busca pela hegemonia da medicina de urgências práticas sobre a clínica como a ética do encontro, singular e pluralista como deve ser o exercício da liberdade. Volto às lembranças de nossa ida à casa de Júlio: não acredito que possa

haver uma saída duradoura no sofrimento psíquico quando o que é proposto, a priori , é apenas a eficácia da relação com uma máquina. Eu acordo em desacordo com a vida. O essencial eu tenho, me falta o superficial Regina Peixoto A globalização (me refiro principalmente à dos mercados) foi, a meu ver, violenta para o mundo ocidental. Por sua intensidade e velocidade, golpeou estruturas básicas de cidadania, como a cultura, a ideia primordial de nação, de bem-estar coletivo etc. Surge daí a destruição política do Ocidente, com a emergência de uma ultradireita que não sabemos o que quer. O que me assusta é que no Brasil a destruição social foi muito mais devastadora. As nossas instituições acabaram e já faz tempo: depois das revelações do Intercept , ³⁰ alguém tem que chamar o Supremo Tribunal Federal para explicar o que é a Justiça brasileira; nossos militares têm que nos dizer para que servem as nossas Forças Armadas, já que perderam a ideia mínima de nacionalismo; em relação ao nosso Congresso, dispenso qualquer comentário; nossa religiosidade, hoje refém de um pensamento pentecostal corrupto, faria inveja aos papas que Lutero tanto criticou. Nossa juventude está despreparada para reagir e, sofrendo pequenos assassinatos diários (destruição de laços culturais, desintegração da estrutura familiar com o desemprego persistente, condição de trabalho semiescravo etc.), se suicida: passa da vida para morte sem a noção do corpo. Se vê mergulhada no vazio onde, desesperadamente, se corta, se mutila e se mata. O vazio brasileiro Começaram a aparecer, há cerca de cinco anos, no Espaço Aberto ao Tempo, jovens (em sua maioria mulheres) em busca de ajuda. Têm estranhos impulsos: se cortam, ou mesmo se mutilam, na busca de alívio para dolorosos sentimentos depressivos carregados de angústia. Não raro, tinham tentado anteriormente matar-se, o que me leva a supor que a frieza com que se cortavam é a mesma com que se aproximavam da morte. Não parecem substituir a dor da alma pela dor física, pois dizem não sentir a dor corporal, sentem um vazio de existência contíguo à morte, no qual não sentem o corpo. Passam da vida à morte “sem o corpo”. Na maioria das vezes, tiveram a vida violada por abandono na infância, violência sexual na adolescência, culpa por aborto etc. Outras vezes não! A perda de um emprego ou a morte de um parente são o bastante para alojá-los nessa dor. Hoje, pouco vemos os quadros das grandes esquizofrenias, e, a cada ano, aumenta consideravelmente o número dessa dilacerante vivência melancólica. Se antes a loucura parecia uma metáfora da morte, hoje a morte é a concretude da loucura. Carlos chegou ao Espaço Aberto ao Tempo no final da tarde, trazendo uma folha de encaminhamento enviada por um serviço de emergência psiquiátrica: tentara matar-se com um profundo corte nos pulsos. Contoume, com um frio riso nos lábios, que nada do que estava escrito no

encaminhamento era verdadeiro. Não tentou contra a vida por conta de um fim de namoro e a perda do emprego. Na época, detestava o emprego e pensava em acabar o namoro, mas, sem ambos, teve o tempo livre suficiente para para pensar sobre sua morte e agir de maneira precisa. Disse-me que sente um vazio muito grande na alma e uma firme decisão em sair da vida. Ouve, constantemente, chamados para se matar, tanto em forma de pensamento compulsivo quanto de vozes em seu ouvido. Pouco sai de casa, sente fobia das ruas, o que faz suas pernas travarem. Tem no corpo as marcas de alguns cortes com que luta contra o vazio angustiante. Contou-me, na primeira vez que veio me ver, em dia combinado, que tem se ocupado em ler. Está lendo, no momento, Drácula , do irlandês Bram Stoker. Disse-me que o livro não é bom, mas o personagem é muito forte. Sim, Drácula é um semimorto que mora enterrado num caixão, e talvez isso o fascine. De algum modo, Carlos se sentia assim: alguém querendo se livrar do que lhe resta de vida. Conversamos, nesse dia, sobre a interpretação do livro feita por Francis Coppola, que vê no livro uma história de amor. Em oposição ao alemão Wim Wenders, que chama um anjo para falar do amor finito (no filme Asas do Desejo ), o cineasta americano chama o demônio (em seu filme Drácula ) para falar do amor eterno. Tornar a conversa diversificada e animada foi a estratégia que tive para suportar a compulsiva expressão do desejo de morte na fala de Carlos. Era evidente uma depressão em Carlos, mas ela se estendia a uma vivência perigosa de fragmentação do ser; há algo nele vivo e, simultaneamente, morto. Nesse dia, falou-me, espontaneamente, um pouco sobre sua história de vida. Sempre se sentiu exilado no mundo. Inadaptado ao colégio e vivendo conflitos familiares insuportáveis, com a separação dos pais, chegou a fugir de casa, aos oito anos, para viver nas ruas e a propor, aos catorze anos, ingressar em um convento. Decepcionado com o clima competitivo que havia entre os seminaristas, em busca de uma pureza religiosa maior, abandonou o convento depois de dois anos. Hoje, essa sensação de exílio é reafirmada pela fobia que tem ao sair de casa. Observando as marcas de corte em seu corpo e a maneira como vivencia uma sensação fóbica do mundo, convidei-o a frequentar o jogo expressivo das oficinas no cotidiano do Espaço Aberto ao Tempo e nele experimentar o toque dos Objetos Relacionais. Estipulei que nos veríamos, para o toque dos Objetos, duas vezes na semana. A Estruturação do Self Na primeira vez que toquei seu corpo no ritual da Estruturação do Self, Carlos ficou quieto, chegando mesmo a adormecer. Contou-me que foi surpreendente. Estava, a princípio, com um misto de medo e curiosidade, mas depois sentiu-se bem relaxado. Disse-me que era como se estivesse “enterrado”. Assustei-me! Imóvel, debaixo do chão e, ao mesmo tempo, relaxado – era uma metáfora absurda, nunca tinha ouvido algo parecido sobre a Estruturação do Self.

Nessa época, criei com ele um ritual para que se distanciasse das vozes e pensamentos compulsivos sobre a morte: gravaria aqueles que mais o impressionavam e os traria para mim. Chegava, em alguns momentos, a ser divertido ouvi-lo, pois ele narrava como um locutor de rádio. Na semana seguinte, quando toquei-lhe o corpo, sonhou (não sei se posso chamar de sonho essas imagens que as sensações despertam) que estava semienterrado nas areias de uma praia. Imagens de praia, com o encontro entre o vento, a terra e a água, passaram a ser o cenário permanente nesses pequenos sonhos em que as vivências de Carlos, com o toque dos Objetos, adquiriam formas. Sonhou que estava semienterrado nas areias de uma praia, mas dessa vez estava coberto pelas águas. Essa imagem voltou a aparecer diversas vezes. Surpreendente é que não há, seja enterrado ou mergulhado nas águas, a experiência de sufocamento. Percebi também que a imobilidade do corpo era uma das características dessas imagens. Estava sentado, imóvel, na areia da praia. Ao seu redor, um forte redemoinho de areia o envolvia. Estava soterrado nas areias de uma praia. Ouvia, ao longe, o barulho das águas. Sentiu-se desintegrando-se na terra. Estava sobre as águas. Como a imagem bíblica de Cristo, não afundava. Uma forte ventania o envolvia. Há, nos relatos de Carlos, imagens de um contato intenso com a natureza, no entanto, se tomamos como referência a nossa realidade cotidiana, veremos que o corpo, nessa imagens, está submetido a outras leis que não as naturais da física: não há sufocamento, gravidade etc. E, mais surpreendente ainda, que a atmosfera que compõe esses pequenos sonhos tem a mesma materialidade do interior da maioria dos Objetos Relacionais (ar que infla sacos plásticos, terra que preenche pequenas almofadas, água contida por uma película de plástico, conchas do mar etc.), o que me sugere a fantasia de que o Objeto se abre e o corpo se aloja em seu interior. Isto é surpreendente porque é uma torção, uma inversão do que normalmente escuto nos relatos da Estruturação do Self: os Objetos estão em primeiro plano e o corpo desintegra-se nele. O corpo se estende e se integra na materialidade da natureza, oferecendo a Carlos uma metáfora da morte – aprisionado dentro de uma grande bolha de ar, mergulhada nas águas do oceano. É uma poderosa imagem do distanciamento social em que Carlos vivia: ele não se identificava mais com o mundo criado pelo homem. No toque dos objetos, sonhou que estava numa bolha de ar que flutuava sobre as águas. A bolha se desintegra e ele também. Sentiu o desintegrar-se algo suave, uma sensação mais agradável que desintegrar-se na terra. Dias depois, retomou a imagem da bolha de ar. Dessa vez ela mergulha com ele para o fundo do oceano. A bolha girava e ele se movia sem a ação da gravidade.

Esses sonhos em que está totalmente enterrado, semienterrado, mergulhado nas águas, dentro de uma bolha de ar etc. aconteceram por longo tempo, até que essa série é quebrada por uma imagem simples, mas surpreendente: Carlos se vê criança, em uma praia tranquila, correndo na areia. Esse sonho repetiu-se diversas vezes. Aqui, as posições se invertem: o corpo, em movimento, está em primeiro plano, e a natureza compõe apenas o ambiente de fundo – o lugar em que ele se desloca. Uma nova torção acontece, agora em direção à vida, perdida em algum lugar na infância. O Objeto alcança Carlos em sua dissolução cósmica (metáfora da morte), mas, a partir dela, numa sutil torção, cria uma forte experiência relacional de vida. A experiência do toque dos Objetos em Carlos, até o momento de fechar a edição deste livro, continua. Nunca como uma experiência isolada, mas próxima de outras experiências que lhe possibilitem defender-se do sofrimento. Uma experiência bela de ser narrada e também eficaz em trazerlhe um pouco mais de vida: Carlos está tentando voltar a estudar. Sei, no entanto, que provavelmente o desejo de morte nunca lhe abandonará por completo, mas espero que lhe cheguem novas torções que lhe possibilitem uma visão crítica da morte em sua história, como também na história social do País. 30 Jornal digital que publicou conversas interceptadas por hackers entre procuradores da Operação Lava Jato.

Na última cena de Luzes da Cidade , Chaplin utilizou o close-up do rosto da atriz Virginia Cherrill para revelar uma sutil trama de emoções contraditórias: gratidão e decepção, amor e repulsa. E é através da imagem

desse rosto maleável que Chaplin traz a modernidade para o cinema. Afinal, o médico vienense que cura a cegueira pode ser clara alusão a Freud. Como um quadro pintado por Matisse, o rosto de Virginia Cherrill não é definido, não está pronto, organizado. As múltiplas emoções que se justapõem e que contrastam como cores não se organizam na espacialidade formada pelos olhos, boca, nariz, sobrancelha. O rosto não é uma construção orgânica: é a pura sensação que determina o encontro dos traços. A cidade é o desencontro das linhas Neste capítulo, conto as experiências que ofereci a Célia e Roberta, duas jovens dos bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro que, embora não se conheçam, trazem histórias de vida e sofrimento muito semelhantes. Ambas tiveram a infância violada que lhes deixou dolorosos rasgos na alma; era necessário, agora, cosê-los com urgência e precisão. Conheci Célia e Roberta na mesma época, ofereci-lhes o toque dos Objetos Relacionais quase simultaneamente, e tiveram experiências parecidas. Célia foi trazida por outro participante do Espaço Aberto ao Tempo que era próximo de sua família. Sua sogra e um vizinho vieram acompanhando-a e agiam como se ela fosse uma louca conduzida ao hospício. Dissociação histérica, quadro melancólico com sintomas psicóticos e início de uma fragmentação esquizofrênica eram alguns dos diagnósticos que Célia trazia de suas andanças pelos serviços psiquiátricos a que foi encaminhada. No primeiro contato, ela me pareceu apenas um pouco deprimida. Pensei em encaminhá-la para um ambulatório, mas tive dificuldade, pois a área onde mora (bairro de Oswaldo Cruz) não tem uma cobertura ampla em saúde mental. Contou que, desde pequena, tinha desmaios constantes com ligeira perda de consciência. Ainda adolescente, viu-se obrigada a cuidar de sua mãe, cujo câncer expandira-se do seio aos ossos. Célia era muito nova para suportar a responsabilidade que lhe foi imposta. Foi obrigada também a conviver com a paulatina decadência física e morte da mãe, e angustiava-se com a ideia de que, em breve, ficaria só. Célia tinha apenas catorze anos e pouco contato com seus dois irmãos, que deixaram a família cedo. Após a morte da mãe, ela experimentou morar com um dos seus irmãos, mas conflitos com a cunhada a obrigaram a sair de casa. Nessa época, trabalhava no comércio, o que a possibilitou ir morar com uma colega de trabalho. Conheceu Denis, que passou a frequentar sua casa até lhe propor morarem juntos. Disse-me que a solidão e as dificuldades da vida a fizeram aceitar passivamente o convite.

Com o nascimento do primeiro e único filho, Célia experimentou uma forte depressão pós-parto. No fim da depressão, passou a ter atitudes estranhas e extremas: sentimentos ambíguos em relação ao filho, queixando-se por ele não ser uma menina; impulsos agressivos, até mesmo com estranhos nas ruas, que a levaram a ser denunciada à Justiça e ameaçada por traficantes de drogas; desejos de matar-se que a levaram, diversas vezes, a tentativas de suicídio (em uma delas ficou em coma por dias). O rosto de Célia parecia ter se tornado “transparente” – sentimentos e desejos momentâneos, mesmo indefinidos e contraditórios, tornavam-se impulsos e intempestivos. Seu casamento, aos poucos, arruinou-se. Paralelamente, seu marido, a cada dia mais afeito à bebida alcoólica, tornou-se violento e opressor. Sua sogra, aproveitando-se das rupturas do casamento, apoderou-se do neto. O que cabia a Célia era o peso de camadas de diagnósticos psiquiátricos. Os impulsos suicidas de Célia eram o que mais nos preocupava, sempre antecedidos de percepções estranhas (vozes ao seu ouvido) que acentuavam seu desespero. Isso exigia respostas imediatas ao seu sofrimento e, pela dificuldade encontrada de subjetivação no trabalho com Célia (expressava-se muito concretamente), propus-lhe o toque dos Objetos Relacionais em seu corpo. De início, a relação de Célia com os Objetos expressava o estado emocional do momento: se estava angustiada, tinha sensações de precipícios; se estava bem, levantava-se “mais leve”. Algumas vezes, uma vivência dolorosa se distinguia. Ouvia vozes em desespero tão vivas que ficava em dúvida se eram alucinações ou sonho. Para ela, seriam vozes de sua mãe no tempo do adoecimento e morte. Contava-me sempre, nesses instantes, que, se sua mãe fosse viva, seu destino seria bem diferente. Eram, provavelmente, as vozes da memória de seu desamparo e solidão. Certo dia, Célia aquietou-se no colchão e, no toque dos Objetos, teve uma imagem/vivência inquietante. Estava numa cidade misteriosa. Nela, as pessoas não traziam sua alma expressa no alinhamento formado pela boca, nariz, sobrancelhas, olhos... Caminhava por uma cidade onde as pessoas não tinham rosto. O sonho com a cidade dos passantes sem nome se repetiu outro e outro dia. Os Objetos Relacionais têm esse poder misterioso de penetrar de golpe no mais íntimo das pessoas, ganhando significação por entre os sentimentos mais indefinidos. Esse excesso trazido pela aproximação entre a materialidade e os afetos (corpóreo+psíquico) às vezes se traduz em imagens desconcertantes: “sonhos performances”. Quando escutei a narrativa de Célia, senti um instante de estranhamento: como imaginar uma cidade que segue seu cotidiano sabendo que a coisa com a qual se vive e expressa o tempo todo sua alma, o rosto, não está em suas ruas? Como habitar uma cidade parada? Porque o que move verdadeiramente uma cidade é o contágio afetivo da fisionomia dos rostos. Enquanto Célia recordava o sonho/vivência, seu olhar distante e levemente contraído deu-me a impressão de que ele foi para Célia como um mirar-se no espelho. Estava ali a imagem concreta de seu desamparo e solidão: um vazio bruto e angustiante refletido das falhas da construção de sua própria

identidade. Escutar Célia descrever a cidade onde as pessoas não tinham rosto foi tão forte e enigmático que não me atrevo a escrever mais sobre essa imagem, prefiro resguardar seus mistérios. Os indecifráveis objetos de Lygia tocam, talvez, em estados da alma cada vez mais indecifráveis. Em uma das suas primeiras pinturas, Lygia Clark retrata uma mulher elegantemente sentada em uma cadeira. A pintura figurativa, aparentemente fora do percurso abstrato inovador de Lygia, tem um detalhe perturbador: a mulher não tem rosto. ³¹ No lugar, uma massa de tinta monocromática chapada. Lygia, ao retirar radicalmente o suporte da arte, acaba por retirar o suporte da própria subjetividade humana. Cabe ao participante de sua obra, na ausência de um “centro de gravidade” que lhe determine, a construção incessante de seu próprio rosto. Após esse sonho/vivência, o interesse de Célia pelo toque dos Objetos foi, aos poucos, diminuindo. Tudo me levava a crer que a experiência da Estruturação do Self tinha sido curta e intensa – agora, tinha se esgotado. A princípio, o desinteresse de Célia pela relação com os Objetos deixou-me a impressão de algo interrompido, inconcluso. Só mais tarde compreendi que, mesmo quando de curto tempo, mesmo quando não se revela o suficiente para uma leitura, mesmo quando guarda segredos, a relação corpo/Objeto pode ser uma forte experiência na vida de alguém. Não tenho mais notícias de sua violência extrema e da dissociação angustiante que a levavam a buscar a morte. Célia, possivelmente, reconstruiu um pouco mais seu rosto e o pôs em movimento na cidade e seus encontros e desencontros. Mantive ainda Célia sob meu olhar durante longo tempo com encontros frequentes para escutá-la e medicá-la quando preciso. * Roberta foi encaminhada ao Espaço Aberto ao Tempo por um ambulatório da rede pública de saúde mental: estava discutindo e agredindo pessoas em geral por motivos banais. Os frequentes impulsos agressivos de Roberta passaram a serem vistos por aqueles que conviviam com ela como “doentios”. Chegou exibindo um diagnóstico de “borderline”, escrito em papel de encaminhamento feito no seu último atendimento psiquiátrico. Exibia o diagnóstico como parte de sua identidade. Um pouco depressiva e extremamente angustiada, contou que foi demitida de um ótimo emprego ao agredir violentamente outro funcionário, que a tinha irritado. Essas agressões descabidas costumam acontecer quando começa a “desestabilizar-se”. Uma das características mais dolorosas dessa “desestabilização” é o impulso que tem de substituir a dor da alma por dor física: corta seu corpo com lâmina de barbear para se acalmar. Já chegou a cortar a vagina, para sentir uma dor física e assim “esquecer” a angústia. Recentemente, nesses momentos de desestatização, começou a “ouvir vozes”, mas não via relação direta com o desejo de cortar-se ou agredir o outro. Contou uma infância difícil ao lado de uma mãe viciada em jogos de azar e de um pai alcoólatra e perverso: quando Roberta era adolescente, teve que se defender de investidas sexuais dele. Após a adolescência, tornou-se

viciada em drogas e esteve internada em diversas instituições psiquiátricas. Atualmente, vê-se livre da cocaína. Teve um filho ainda muito jovem e mora com ele até hoje. Angustiava-se quando falava do filho, pois achava que era muito violenta com ele. Mesmo com todas essas vivências tão dolorosas, percebe-se em Roberta uma busca genuína para encontrar um caminho de saída de suas angústias, preservando a generosidade: ser boa mãe, voltar a ser produtiva socialmente, perdoar os pais e viver bem com o namorado. Quando busquei ouvir, em detalhes, a forma com que Roberta contrapunha a dor física à psíquica, veio-me a ideia de lhe propor o toque dos Objetos Relacionais. Acreditava que havia algo mais nesse seu masoquismo que substituir a dor física pela psíquica. Parecia-me uma volta ao corpo na busca de continuidade da existência psíquica ante um vazio angustiante e dilacerante. Já me impressionava a maneira com que ela, vorazmente, se apropriava das minhas palavras. Qualquer palavra que dissesse, até mesmo a mais displicente, reverberava em Roberta: tinha, para ela, força de apontar verdades, de defini-la. Julguei ser uma boa experiência distanciarme, criar para seu corpo, em lugar das palavras, fluidos sensoriais indefinidos para que ela se apropriasse e desse significado. A relação de Roberta com os Objetos foi diferente de tudo quanto já presenciei. Não havia relato de dor no corpo ou descrição de alívio ou descanso: era sempre silenciosa e repetitiva. Roberta deitava-se, eu tocavalhe o corpo e, ao apagar a noção cotidiana de tempo e espaço, ela via sempre um homem e uma criança caminharem em uma cidade, o mar era a paisagem de fundo. Cada novo toque dos Objetos reproduzia, quase exatamente, o toque anterior, variavam apenas a idade da criança ou os cabelos do homem: tudo se repetia, sem nenhuma conclusão. A cadência do andar, as vestes brancas dos personagens e a paisagem do infinito (céu e mar) davam-lhe a impressão de uma atmosfera sagrada. Enquanto para mim (mediador da relação com o Objeto) a repetição dava uma impressão de inconsistência, para Roberta, o ritual da Estruturação do Self foi vivido como uma linguagem mágica transformadora. O processo durou cerca de oito messes que podem ser reduzidos a seis, pois um novo trabalho (montou sua própria firma com um amigo) a obrigou a faltar muito. Esse tempo foi o suficiente para trazer-lhe um apaziguamento de seu sofrimento e, com certeza, um sentimento mais criativo de existir. Caminhando Tenho sempre o cuidado de combinar com as pessoas às quais proponho a Estruturação do Self a liberdade de mudar a posição de qualquer objeto que deixo sobre seu corpo, ou mesmo, se desejar, de encerrar a experiência caso algo a incomode. É rara essa iniciativa, mas, quando ocorre, é o único movimento que acontece dentro do denso silêncio do ritual. No entanto, quando recordo e transponho as experiências mais significativas para uma linguagem acessível ao público, percebo que a presença do tema do caminhar, do deslocar-se em determinado espaço, é constante. Pedro trocou a geografia do corpo para descobrir-se na geografia afetiva das cidades do mundo; Marcos (narrado no livro anterior, O Dragão Pousou no Espaço ) descobriu seu corpo e o Objeto Relacional depois que caminhamos juntos em

sintonia com a brutal lentidão de seus passos; Izaura (também narrada em O Dragão Pousou no Espaço ) reproduz, no belo sonho da esfera verde, em uma outra dialética da relação corpo/objeto, a caminhada que fazíamos antes de eu lhe propor a Estruturação do Self; Célia caminha por numa cidade sem rosto; a cadência do andar está na atmosfera sagrada do sonho de Roberta... Um caminhar sem submissão: sem qualquer traçado, objetivo... É no grande silêncio da imobilidade que tudo se move. Ali, no oposto das palavras, tudo é movimento, pois o Objeto, despojado de qualquer significado, leva ao agir – a criar. 31 Gina Ferreira foi quem me mostrou essa tela e logo a associou ao processo da Estruturação do Self: a arte desconstrói seu rosto, para que o rosto do espectador/participante seja reconstruído.

Também se cresce pelo prazer Se, diante de um espelho mágico, ³² o homem pudesse apagar da face aquilo que não fosse característica genuína de sua raça, ficaria com o rosto vazio: as muitas etnias que hoje compõem nosso rosto não nos fragmentam, trazem uma multiplicidade de interações com a diferença. Descobrimos também, diante desse espelho, que, se de perto ninguém é normal, como nos lembra Caetano Veloso, de perto, também, ninguém é totalmente louco ou louco em todos os instantes. Em nosso rosto, a sanidade e a loucura não são opostos simétricos; quando muito, formam polígonos de traços variados. Esse espelho que apaga as diferenças e cria territórios livres para acolher os corpos, os afetos e as linguagens é a criatividade em sua inserção na cultura: a arte. Foi olhando nesse espelho que criamos, em 1994, no Espaço Aberto ao Tempo, para inauguração de uma ampla sala de entrada do teatro da UERJ , um espectáculo musical performático: As Dízimas Periódicas , estrutura musical transformada em performance, criada por Roberto Garcia a partir de suas dolorosas vivências que uniam impulsos suicidas à matemática. Roberto procurou-me. Contou-me que “ouvia vozes” que exigiam que pulasse da janela do seu quarto. Se um dia as obedecesse, a morte seria inevitável. Para conter-se, criou o que chamou de “espiral de memória”. Na busca de uma catarse que lhe provocasse um alívio de sua angústia, tocava seu corpo e deixava vir, em “grande velocidade”, lembranças do passado. Há cerca de quatro anos, eu tinha tocado o corpo de Roberto com os Objetos Relacionais. Esse ritual, provavelmente, era uma tentativa de, em sofrimento, resgatar essa experiência corporal. Sem êxito, Roberto passou a interessar-se pela matemática, talvez como forma de exercitar um pensamento rigoroso em oposição ao caos que se avizinha. Sua intuição matemática fazia com que ele descobrisse e se fascinasse pela maneira com que uma série de números se repete em ritmos que, se projetados em uma espacialidade, lembram espirais em direção ao infinito: as dízimas periódicas. Roberto traz a estética para suas estruturas numéricas: combina duas séries de números espiralados, criando gráficos que, transpostos para uma tela, se transformam, ao serem coloridos, em uma forte arte de azulejaria. Depois de diversos estudos e experiências gráficas e pictóricas, Roberto teve a revelação da “matemática da vida”: as células que se multiplicam a partir da célula-mãe para formar nosso corpo obedecem aos ritmos dos números “espiralados”. E, atribuindo números às notas musicais, sonhou em construir uma estrutura musical que correspondesse a cada órgão. À estrutura numérica soma-se, agora, uma estética orgânica. Ao recompor seu corpo vazio, Roberto continha os impulsos que lhe impunham as vozes: o fluxo “espiralado” revela sua direção à vida. Roberto retoma à memória, de forma original, o toque dos Objetos Relacionais e desenvolve uma criativa forma de se defender do sofrimento. Aproximei Roberto do músico Leandro Fleixo, e eles construíram, através de um programa de computação, um sistema de composição musical aplicável a qualquer série numérica. Uma estrutura musical que transformamos em uma ação poética (performance) apresentada no teatro da UERJ .

Com a forma criativa com que conteve a desagregação psíquica ao momento que nos entregou um instrumento mediador na relação com a sociedade – uma peça musical –, Roberto nos revelou a busca da construção de sua autonomia, tanto a que se constrói diante do sofrimento quanto a que se adquire ampliando sua integração social. Apenas segui ao seu lado, no caminho que ele próprio traçou. Durante a apresentação na UERJ , surgiu a ideia de criarmos o Grupo de Ações Poéticas, que tinha como objetivo transformar as vivências mais singulares dos clientes em expressões criativas mais espetaculares – dança, performance, teatro. Construções coletivas que, quando levadas ao público, em forma de espetáculo, se transformam em instrumentos mediadores na relação entre aqueles com problemas de adaptação social e os que vivem em contato com eles. Passamos a apresentar pequenos espetáculos em teatros e centros culturais do Rio de Janeiro. Como algumas das nossas performances eram musicais, convidávamos o grupo Harmonia Enlouquece para nos acompanhar. Com o tempo, a agenda do Harmonia tornou-se mais extensa, impossibilitando a parceria. Foi quando uma série de fatores simultâneos precipitou os acontecimentos e nos levou à criação do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado. Anos atrás, o pintor Francisco Noronha, ligado a Nise da Silveira, foi encontrado como interno na Colônia de Alienados de Rio Bonito. Sem autorização da família, um plano foi posto em prática por um grupo de profissionais para resgatá-lo do grande e insano manicômio: deveríamos “sequestrá-lo”. Um colega que trabalhava na Colônia deixaria a porta aberta para que Francisco se “evadisse”; um outro o encontraria na rua por “acaso”; por fim, o plano incluía que viesse a se abrigar no Espaço Aberto ao Tempo. A princípio, nossa interferência nos levou a um desencontro/ constrangimento com a família de Francisco. No entanto, em uma reviravolta corajosa, Antônio, um dos irmãos, compreendendo que nossos interesses quanto a Francisco eram comuns, tomou a iniciativa de amparálo, alugando uma casa e convocando a família para recebê-lo. Em um dos nossos encontros para trabalhar a saída de Francisco, Antônio nos contou de dois filhos seus, músicos. Contou que Marcos, o filho mais velho, havia emigrado para o México com um grupo de amigos, entre os quais estava o músico Leandro Fleixo. Coincidentemente, durante anos, Leandro trabalhou conosco no Espaço Aberto ao Tempo. Logo ocorreu-me a ideia de sugerir que ampliasse nossa parceria com a família, convencendo Guilherme, o outro filho de Antônio, a ocupar o lugar de Leandro no Espaço Aberto ao Tempo. Guilherme Milagres tem, com sua musicalidade, uma habilidade extraordinária para acompanhar as pessoas. Isso faz com que aqueles mais distantes se aproximem da música. Criou, no Espaço Aberto ao Tempo, uma oficina musical que logo atrairia Ilcatã, Cristiana, Cláudio e Max. Naquela época, Cristiana Corsini, residente em saúde mental (psicóloga e ligada ao estudo do canto), e Cláudio Francisco (psicólogo e músico) tiveram

a ideia de criar, aproveitando a musicalidade de Max e Ilcatã, o grupo musical Sistema Nervoso Alterado. Bem, a essas alturas, os ingredientes (o grupo musical, o antigo grupo performático, a oficina de Guilherme etc.) já estavam postos, bastava mexer até chegar ao ponto: em 2005, no Espaço Aberto ao Tempo, criamos o Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado. Mesmo intitulando-se grupo musical, o Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado incorpora aos seus espetáculos, além da música, as linguagens da performance/dança/audiovisual. Como um grupo de espetáculos constituído por pacientes, técnicos da área de saúde mental e membros da comunidade onde se localiza o Espaço Aberto ao Tempo, colocamo-nos como instrumento de um movimento social contemporâneo (a Reforma Psiquiátrica Brasileira), que vem transformando, em curto espaço de tempo, a paisagem da exclusão social daqueles com grave sofrimento psíquico. Criado em 1988, o Espaço Aberto ao Tempo é uma das primeiras experiências brasileiras em uma saúde mental contemporânea, e tem, como uma das suas principais ferramentas de trabalho, a criatividade em seu sentido amplo, possibilitando a busca por uma clínica experimental e poética. O Sistema Nervoso Alterado passou a manter um diálogo direto e constante com a produção dos núcleos (oficinas) de criação/exercício de múltiplas linguagens que existem regularmente no EAT . A singularidade do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado está na construção de espetáculos a partir da vivência dos participantes transformada em criações, sem se deixar levar pelo caminho fácil da imitação de produtos da indústria de entretenimento. Está, também, na criação de um grupo plural no qual clientes, familiares, vizinhos e técnicos do Espaço Aberto ao Tempo compartilham o processo de criação tal como um vetor existencial que mobiliza a todos, independentemente de seus saberes, formação técnica e história de vida. O resultado dessa proposta, indo além das oficinas criativas, é a potencialização da capacidade de criação e integração de todos os envolvidos, materializada em um trabalho coletivo sob a forma de espetáculo apresentado em diversos segmentos culturais: escolas públicas, centros culturais e teatros. A diversidade de encontros, dentro de um esforço para a construção coletiva do espetáculo e sua celebração, torna-se forte experiência na vida de cada participante. A clínica, como é vista hoje, tem a dimensão de experiência construída pela linguagem, pela teia de significações que decorrem do modo pelo qual expressamos em palavras as vivências dolorosas que atravessamos e que nos atravessam. Mas é bom lembrar que esse não é o único recurso possível ou necessário. Algumas vezes é preciso buscar para a clínica, numa aventura transdisciplinar, uma outra dimensão da experiência humana, aquela imanente, vivida, extralinguística, cujo sentido se impõe no próprio ato de vivê-la. A arte pode ser a ferramenta para essa ampliação da clínica. A arte é capaz de fazer sutis e complexas ligações entre o dizível e o indizível, o “eu” e o outro, o individual e o coletivo, a clínica e a política; o fazer artístico, principalmente quando colocado no contexto de uma

construção coletiva, é sempre experiência forte de integração à vida. Lembro-me da nossa primeira apresentação, quando Jairo, deitado na beira do palco, não conseguia entrar em cena. Iria, em uma ação poética (performance), fazer o papel de um político preso em uma camisa de força, mas inibições fortes e profundas o paralisavam: seu corpo todo doía e seu rosto lhe parecia deformado. Suspendi a apresentação. Todavia, a poucos minutos de entrar em cena, de repente, Jairo recuperou-se. Criou um artificio cênico eficaz: lembrou-se das relações familiares e interpretou seu pai. Ali no palco, com quantos “artifícios”, por caminhos e por motivos diversos, Jairo interagiu e contracenou? É no movimento entre a criação individual e coletiva que extraímos energia para costurar as cisões que nos trazem barreiras e inibições. A arte revela-se terapêutica por ser arte. O Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado, ao acumular renda das dezenas de apresentações, tem se tornado um ponto de apoio social para alguns participantes. Com o cuidado de direcionar o ganho financeiro para projetos de vida e menos para o consumo imediato, foi possível colaborar com aquisição e reforma de casas, projetos de viagem, tratamentos de saúde etc. Nossos espetáculos têm sempre com o ponto de partida as criações musicais de Ilcatã, Gerônimo e Jackson. São deles as composições que, junto às performances (criação coletiva envolvendo múltiplas linguagens), compõem a estrutura dos espetáculos. Cabe a Guilherme a direção musical – dele aproximam-se os músicos Max, Diego, Cláudio Francisco, Marcos Inácio, Laércio Cláudio, Pedro Berenger, Alexandra Montovani, Cristiana Corcini e tantos outros. O Sistema Nervoso Alterado é um grupo plural e aberto. O Alterado Fashion Week foi o nosso primeiro grande espetáculo. A partir de uma antiga ideia de Sandra Autuori, criamos um musical em que ironizamos o imaginário social da exclusão através de uma paródia dos desfiles de moda. Nele, desenhamos, vestimos e desfilamos com “camisas de força” que representam as injúrias que somos obrigados a “vestir”, a suportar na sociedade brasileira: camisa de força da política, da imprensa, da opressão à mulher etc. A cada camisa de força, uma música, associada ao tema, antecedia e dava o clima da performance do modelo. Com o Alterado Fashion Week , nos apresentamos no CCBB do Rio de Janeiro, em uma Lona Cultural, em Barbacena, e em Bauru, São Paulo, pela comemoração dos vinte anos da Reforma Psiquiátrica. E, como foram muitos os pedidos para apresentação do Alterado Fashion Week , resolvemos montar um novo espetáculo para nos livrar da repetição. Corações em Desatino é uma ópera-cordel em que um cantador nordestino dialoga com um rapper sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira. A banda imprimia um dinamismo à cantoria com a fusão de diversos ritmos, enquanto um coro emprestava um contexto fantástico ao diálogo. As performances tiveram direção cênica de Daniel Oliveira, Lula Wanderley e Maurício Junqueira, e a eles juntaram-se os atores Monica Rodrigues, Luciano Soares, Márcio Romeu, Geronildo do Nascimento e Fernanda Nogueira. Com Corações em Desatino , nos apresentamos no Canecão, Rio de Janeiro, na

abertura do show dos Paralamas do Sucesso e Alceu Valença, na Concha Acústica, em Salvador, na abertura do show dos cantores Pitty e Arnaldo Antunes e em uma temporada no Nosso Teatro, na Gávea, no Rio de Janeiro. Enquanto escrevia este depoimento, nos apresentamos no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. A musicalidade esteve boa, mas a parte performática/cênica necessitou de melhor preparo. O Sistema Nervoso Alterado necessita, hoje, renovar também o repertório; ou seja, mais e mais ensaios. Alguns participantes saíram do grupo por dificuldade de tempo, enquanto outros chegaram. Temos mudanças estruturais em vista, quem sabe até um novo nome. ³³ Em determinado momento, no término do espetáculo, nos posicionávamos para uma foto coletiva quando me assaltou um pensamento doce/afetivo: no final desses seis anos, todos (técnicos e clientes) que participavam do Sistema Nervoso Alterado pareciam bem; muitos pareciam ter encontrado um caminho na vida capaz de revelar o quanto ela vale a pena. Compreendi, naquele instante do “flash”, que “também se cresce pelo prazer”. 32 Para essa alegoria sobre a imagem especular mágica, me baseei no conto “O Espelho”, de Guimarães Rosa. 33 Logo depois dessa apresentação, Guilherme Milagres emigra para o México e Leandro Fleixo, voltando dos Estados Unidos, assume o lugar de coordenador da oficina de música e do Grupo de Ações Poéticas Sistema Nervoso Alterado. Leandro imprime à banda um cunho mais instrumental do que performático, o que motivou a chamá-la, carinhosamente, de Sistema Nervoso Alterado Jazz Band. O Grupo de Ações Poéticas ressurge, agora, ligado à oficina de cinema. Arrumações dominicais ³⁴ Os dias de domingo são propícios ao tédio. De modo geral, nada acontece. Nem mesmo as praias e os cinemas prometidos pela sexta-feira me arrancam desse torpor silencioso. Contento-me, algumas vezes, nesses dias de desamparo, a arrumar gavetas e cadernos para encontrar, trazer à memória coisas que fiz e que se perderam. Num desses dias, encontrei imagens das oficinas de cinema que realizei para o projeto Cinema na Praça/ Intervenção na Cultura, em Paracambi. As imagens surgiram confusas e desconexas, material bruto que se estende por seis horas de gravação. Aos poucos, minha memória foi ordenando, imaginariamente, o fluxo de lembranças que as imagens traziam, como que editando um filme: um documentário afetivo no qual pude sentir-me como se estivesse novamente vivenciando aquela forte experiência. Paracambi é um município do Rio de Janeiro localizado na Baixada Fluminense, região árida, densamente povoada e com grave problema de degradação socioambiental. Como outros municípios, e também alguns bairros da região metropolitana do Rio de Janeiro, cresceu em torno da indústria têxtil. A grande fábrica de tecidos Brasil Industrial era a força motriz do desenvolvimento econômico da região e matriz de sua identidade sociocultural.

É no cenário da desagregação do trabalho industrial, com a falência da fábrica, que Paracambi assistiu à criação, no final da década de sessenta, de uma grande colônia agrícola para o tratamento de doentes mentais. Com seus 2.000 leitos disponíveis, a Casa de Saúde Dr. Eiras passou a ser o principal polo empregador da região. Todavia o grande e insano asilo era também uma assistência psiquiátrica cruel e desumana amalgamada ao tempo de repressão e medo próprio da ditadura militar. Entre as décadas de setenta e oitenta, a Casa de Saúde Dr. Eiras chegou a ter cerca de mil óbitos. Hoje, a Casa de Saúde Dr. Eiras, sob intervenção federal, vislumbra o seu fim. E isso implica numa imprevisível transformação sociocultural para o município. Não apenas pelo fim do ciclo do hospício empregador, mas também pela absorção, pela cidade, de centenas de pacientes institucionalizados. O projeto Cinema na Praça, criado por Gina Ferreira, se propõe a intervir na cultura local para provocar mudanças no excludente imaginário social sobre a loucura criado pelo hospício. Coube a mim o trabalho com as crianças. Foram cinco oficinas, direcionadas a três escolas públicas, que aconteceram sempre às quartas-feiras pela manhã. No princípio, havia muita resistência à “viagem” a Paracambi. Era longa, cansativa e, quando chegávamos, havia todo um “protocolo” a seguir que nos distanciava do prazer de criar: tinha que ir falar com a diretoria, conversar com a professora responsável pela turma, procurar um sala compatível etc. Na verdade, o que me incomodava era que, embora amáveis, as escolas nos viam como intrusos atrapalhando sua rotina; intrusos que se propunham, através de uma oficina de cinema, a discutir com crianças uma questão aparentemente tão distante dos objetivos pedagógicos: a loucura. O que buscávamos com a oficina não era realizar um documentário, cujo objetivo seria fazer com que as crianças falassem o que queremos que saibam sobre o tema, tampouco uma ficção em que a expressão filmada fosse previamente elaborada/criada e que a performance atingisse um admirável grau de elaboração técnica. O intuito da minha câmera era registrar a densidade de um momento de particularidades únicas, efêmeras, que emergem da interação humana, dos encontros não repetíveis entre nós, as crianças, a câmera e um tema. O tom da voz, o olhar, os ritmos, as falas, as pausas, as expectativas mútuas seguiam sem nossa interferência primeira, para preservar o frescor desse encontro a ser filmado; para que uma comunicação intensa acontecesse e, através dela, algo novo e verdadeiro, na discussão sobre a loucura, se revelasse pelo olhar inicial das crianças. O encontro era muitas vezes tenso, pois não tínhamos o domínio de onde queríamos chegar. O lúdico era nossa única saída. Em cada encontro com as crianças estavam em nós as reflexões de Mário Pedrosa sobre a arte e o mundo na percepção fisionômica das crianças; as entrevistas/encontros únicos de Wilson Coutinho em seus documentários; a maneira direta como Nelson Rodrigues escreve sobre temas difíceis (violência, perversões), como se aquilo pudesse acontecer a qualquer momento, em qualquer família – na minha e na sua.

“Vaso dos sonhos” era como chamava o início dos meus exercícios, a primeira aproximação dos participantes com a produção de imagens. Instalávamos uma filmadora no fundo de um grande vaso e depois pedíamos que as crianças me contassem/guardassem um sonho dentro dele. Depois, lembrando do trabalho Troca de Sonhos , de Ana Teixeira, pedíamos que trocássemos sonhos: nós lhes oferecíamos um bombom Sonho de Valsa, e eles, olhando para o fundo do vaso, contariam um sonho que tinham para suas vidas. As imagens são belas, e o vaso, por trazer a ilusão de intimidade, fazia com que os sonhos fossem íntimos/verdadeiros. As crianças pareciam viver num universo social de tão poucas oportunidades para os sonhos que poucos ousaram imaginar-se em um curso superior, por exemplo. A visão de futuro era o que viam do imediato – o horizonte dos pais. Em seguida, para exercitar o trabalho em grupo, fazíamos propostas lúdicas de construções corporais coletivas. As Estruturas Vivas de Lygia Clark, com pequenos anéis elásticos (usados em maços de dinheiro), foi o exercício vivenciado com maior prazer pelos grupos. Por último, reuníamos os participantes para a construção de um filme. Foram divididos em pequenas equipes com funções definidas (equipe de produção, roteiristas, atores, diretores, cenógrafos etc.) e, circulando entre eles, fomos debatendo o tema e construindo o filme. Na escola Nicola Salzano, quando propusemos que um grupo de participantes escrevesse o argumento do filme, logo adiantou-se um menino que, tomando para si a tarefa, indicou as pessoas que deviriam ajudá-lo. Seu texto, com o título Suborno no Hospício , contava a história de uma jovem internada em hospital psiquiátrico e cuja família, para mantê-la no hospício, subornava os funcionários. Ela, quando melhorou, descobriu a trama e planejou, com outras internas, uma rebelião. O mais surpreendente é que a história nos foi entregue descrita em planos cinematográficos com um desencadeamento dramático distante da dramaturgia televisiva. Como é que esse menino tinha a informação de que a história já deveria ser escrita com a visualidade de cenas: cena um, cena dois etc.? Que deveria escrever já com o nome dos atores e o momento que deveriam entrar? Inimaginável para uma criança de aproximadamente onze ou doze anos e, aparentemente, sem acesso maior a bens culturais: em Paracambi, nessa época, não havia cinema. O Enterro foi o filme criado pelas pequenas e barulhentas crianças (oito a dez anos) de uma grande escola municipal na região de Lages. Contava a história de um jovem que enlouquecera durante o enterro de seu melhor amigo. O argumento queria demonstrar que ninguém enlouquece sem uma causa dolorosa e trazia, em suas falas, um discurso político em favor do fim dos hospícios. A pequena que escreveu, dirigiu e interpretou – conseguindo unir, pela sua força de uma incomum liderança, todas as outras crianças em torno de suas ideias – era filha de funcionários que trabalhavam em saúde mental no município. Todavia algumas vezes tivemos que abandonar o olhar curioso sobre aquela pequena militante para perceber as sutilezas criativas de uma outra criança que se propôs a fazer o trabalho cenográfico. Ficávamos absortos vendo a forma como solucionava os espaços cênicos, como utilizava, através de pequenos deslocamentos, os objetos cotidianos, dando-lhes novos significados diante da câmera: fez o caixão com as

cadeiras; os lápis vermelhos viraram as velas do velório. A sala do velório, com espaço trabalhado para o desespero do personagem que enlouqueceu, teve intuição infantil poética de grande força. Aos alunos da Faetec (adolescentes), oferecemos o conto de Machado de Assis “Uma noite” para ser trabalhado cinematograficamente. No entanto tivemos o cuidado de narrar a historia até o ponto em que havia uma reviravolta na narrativa, deixando para a imaginação deles a sua conclusão. Machado conta a história de um homem que se apaixona por uma mulher recém-chegada à vizinhança de sua casa. Torna-se íntimo da família quando ela, surpreendentemente, enlouquece. A dor do enlouquecimento da amada e sua transferência para o hospício da Praia Vermelha o levam a abandonar o Rio de Janeiro e ir estudar na Europa. De volta ao Rio, em uma noite chuvosa, abriga-se em um teatro quando descobre que ela é uma das atrizes. Como, se ela enlouquecera? O personagem machadiano encaminha-se até o camarim. Nesse ponto, interrompemos a narrativa e entregamos o conto à imaginação daquele grupo de adolescentes. Caberia a ales responder a essa questão e reescrever o conto, dando destino aos personagens que se reencontram. Para os adolescentes, a questão afetiva falou mais forte. Entre muitas, ganhou a história que admitia que ela, na verdade, não tinha enlouquecido, e toda aquela cena do enlouquecimento foi a forma encontrada para se livrar daquele amor embaraçoso que não tinha coragem, por insegurança, de levar a diante. Ela era uma profissional de teatro e, na vida, precisou de seus recursos dramáticos para se proteger. Agora, naquele reencontro, ela admite que o ama. Os dois saem do teatro para uma conversa sobre a verdade daquela relação afetiva. Os adolescentes eram contidos e, para provocar, convidamos um jovem que aderia pouco à oficina para fazer o papel do enamorado da vizinha. Ele, percebendo a provocação, nos disse que poderia surpreender. E, junto à adolescente que criou a história, nos surpreendeu pela técnica e pela original interpretação dramática do roteiro. Tal como no conto, mesmo depois do fim da oficina/espetáculo, os jovens atores saíram conversando sobre o destino de seus personagens, sem saberem que, no naturalismo da literatura de Machado de Assis, esse encontro afetivo é cruelmente interrompido: um sentimento de repulsa toma conta do personagem e o faz decidir não prolongar aquele encontro. Havia uma diferença em sua antiga amada que, embora não soubesse definir, lhe causava nojo. Machado mostra, com toda a crueza, o sentimento de repulsa do homem ocidental diante da diferença. O tema da perda da amizade está presente fortemente na infância, mas a maneira original com que as crianças trouxeram para o tema a questão da loucura foi surpreendente. Em suas histórias, os pequenos não negaram a existência da loucura e a colocaram dentro do contexto humano: seja o contexto das perversões (do suborno nas relações institucionais, que é comum no Brasil), seja no contexto afetivo da amizade. Quando uma criança cria uma história para dizer que ninguém enlouquece porque quer, ela expressa uma opinião pouco usual na sociedade. As pessoas sempre se referem ao enlouquecimento como espontâneo, e a massificação dos meios de comunicação traz teorias genéticas que apontam para a predestinação de alguém para o enlouquecimento – a pessoa nasce com o problema.

Enlouquecer pela morte do amigo é falar de um tema muito grato para aquelas crianças: a importância da amizade. Mas é bom lembrar que, quando falam da perda da amizade, unem o que, entre os adultos, é visto como limite da vida humana: a loucura, a morte. A afetividade dominou as questões daquelas crianças no momento que deixamos de percebê-las como questão central do sofrimento psíquico. Revendo todo o material bruto das filmagens, as imagens daquelas crianças e adolescentes vinham com doçura à minha memória e, em meio àquelas lembranças, algumas perguntas persistentes foram tomando forma: a vida acolherá toda aquela potencialidade criativa ou a dureza da vida cotidiana, num universo social de tão poucas oportunidades para o sonho, dissolverá toda aquela originalidade de ser? O sambista Elton Medeiros conta que Pixinguinha foi seu professor de música em um colégio público. Hoje, isso parece inverossímil. No mundo tecnicista da vida contemporânea, a cultura tem perdido espaço nas escolas. Existe, no Brasil, uma dissociação preocupante entre educação e cultura. Que dano social isso acarreta? Bem, deixemos as quartas e voltemos aos domingos. Tédio, gavetas e silêncio. 34 Publicado no livro Cinema na praça: intervenção na cultura , organizado por Gina Ferreira e Ana Maria Jacó-Vilela. São Paulo: AllPrint, 2012. Bandeira a vida inteira ³⁵ Deixo, formalmente, a condição de Coordenador Técnico do Espaço Aberto ao Tempo. Os motivos são muitos, mas cito pelo menos três. Sinto-me ridículo interpretando um papel que, na verdade, atualmente não existe. Não acompanho mais o Espaço Aberto ao Tempo. A saúde mental tem trilhado caminhos rígidos, autoritários, com os quais não me identifico. Caminhos nos quais se falam palavras (hierarquização, uniformização) que eu não tenho no meu vocabulário. É tempo de “depositar os instrumentos”. Tempo de parar. Tempo de deixar a saúde mental, na qual, depois de 26 anos de EAT , sinto-me estrangeiro. É tempo de me reinventar, e tenho preguiça. Conta minha família que eu costumava “ninar” minha irmã caçula declamando poesias de Manuel Bandeira. Imagina a cara da pequena, querendo ouvir cantigas de ninar, tendo que escutar eu soletrar Estrela da Vida Inteira . Não me recordo (era adolescente/pós-adolescente), mas deve ser fato, pois trago até hoje, de cor, a poesia de Bandeira. Atualmente, particularmente agora, ela me embala. Em “Evocação de Recife”, o poeta coloca a infância na sua cidade e faz caber toda Recife na casa de seu avô. E, no final, distanciando-se das lembranças da infância, confessa a si próprio: “Meu avô morto. Recife morto. Nunca pensei que ela acabasse!” Quis, um dia, colocar traços poéticos/libertários da minha personalidade na saúde mental e fiz com que ela coubesse por inteira no Espaço Aberto ao

Tempo. Nunca pensei que ele um dia fosse acabar. Tudo que criamos de original – o trabalho com a relação entre arte/corpo/psiquismo, parcerias com Angel Vianna e Lygia Clark, o exercício da multiplicidade de linguagens, a criação de equipes unitárias – não está suportando o rolo compressor da uniformidade e rigidez que caracteriza a nossa época. Isto não é uma carta nostálgica de despedida, é um texto sofrido de alerta. É necessária, com urgência, uma nova reviravolta política/cultural na Reforma Psiquiátrica. Sem uma reinvenção cultural que traga a História dentro de si, a saúde mental é, simplesmente, um amontoado de conceitos e regras que se multiplicam uniformemente. Enquanto isso, visto, novamente, minha fantasia de marajá, com meu novo chapéu fone de ouvido, para ouvir Bandeira a vida inteira.

35 Escrito em 29 de janeiro 2015 para a página digital (Facebook) do Espaço Aberto ao Tempo, em momento de grave crise na instituição.

Insônia: Eu horizontal x Eu vertical ³⁶ Wanderlei Ribamar perguntou-me o que fazer com sua insônia. Sugeri que criasse filmes, aproveitando seu excesso de vigília. Com uma pequena filmadora rudimentar (de plástico), fez diversos filmes surpreendentes. A atenção flutuante do insone fez com que as imagens em fluxo lhe escapassem do domínio: são elas que imprimem ao seu olhar ritmo e direção. Um filme só imagens, que capta o tempo do amanhecer. Chamei Sandra Autuori (edição) e Manuel Lima (sonoridade) e criei para um dos seus filmes a instalação Insônia – Eu horizontal x Eu vertical . Um buraco em uma cama é de onde sai projeção do filme de Ribamar. Nela, a parceria como a clínica se realiza plenamente nos museus e galerias de arte.

36 Texto escrito em 2016 e publicado em 2017 para exposição “Lugares do Delírio”, MAR-RJ , SESC Pompeia- SP . Os objetos nos trazem a razão: Para compreender Bispo do Rosário Bispo do Rosário surge para o mundo no final dos anos oitenta, época de transição e deslocamentos. Na América Latina, nos deslocávamos de uma feroz ditadura militar para a utopia de uma democracia representativa. O sonho de construção coletiva do novo conceito de cidadania dava forma a paisagens de liberdade, sem a qual a obra de Bispo não surgiria. Os grandes e insanos hospícios foram denunciados, e seus porões, abertos. Na década de oitenta, experimentávamos em nossa vida cotidiana uma materialidade crescente que perdura até os dias atuais. Víamo-nos

inundados por uma quantidade enorme de objetos que passaram a ter valor não apenas pela sua função em si, mas pelas múltiplas maneiras com que nos relacionamos com eles. Aos poucos, a essa materialidade foi adicionada uma memória artificial, nova tecnologia que trouxe para o dia a dia uma ideologia de eficácia e urgência prática que, moldando o capitalismo, acelerou e exteriorizou a vida de uma maneira sem precedentes. Sem controle pleno dessa materialidade, fomos nos uniformizando e nos achatamos a um “eu” mínimo. Tudo isso trouxe transformações na forma com que expressamos nosso sofrimento psíquico. Os grandes quadros de esquizofrenia (que vimos no filme Nise: O Coração da Loucura ) foram tornando-se cada vez mais raros, surgindo agora perigosas formas de depressões com sentimentos de despersonalização dolorosos e também um número crescente de crianças que são empurradas para fora da linguagem: os autistas. A repugnância que as sociedades ocidentais têm aos loucos também deslocou-se. Já somos bastante indiferentes à questão razão versus desrazão. Temos, no entanto, nojo daquele que não consegue acompanhar essa veloz engrenagem capitalista do mundo contemporâneo – os loucos e os velhos nos causam idêntica repulsa. Isso faz com que a saúde mental voltese para o campo social. Os grandes manicômios, ao serem extintos, nos revelaram que convivemos, durante esse tempo todo, com a mentira de que aquela população, antes encarcerada, não tinha condições de circular livremente pela cidade: a liberdade e a construção da cidadania passaram a ser vistas como fundamentais para a recuperação psicossocial daqueles que antes a psiquiatria chamava de “doentes mentais”. Essa guinada ao campo social tornou-se inadiável, mesmo que para isso tenhamos que abrir a mão da crítica permanente à medicação psiquiátrica e sua reducionista ideologia de eficácia. ³⁷ As grandes coleções de arte nas instituições psiquiátricas perderam a importância – ora porque pertencem a um formalismo modernista que hoje tende a desaparecer, ora porque a medicação psiquiátrica uniformizou a originalidade das vivências psicóticas. Mas esse fio que liga a arte ao cuidado, hoje, ressurge fortemente na arte do espetáculo: as bandas de música do Rio de Janeiro, os grupos de teatro de São Paulo, os blocos de Carnaval por todo o Brasil e as experiências com rádio e televisão tornaram-se expressivamente complexas e eficazes intermediadores de relações sociais. É nesse cenário de transição que a obra de Bispo começa a vir a público, surpreendendo a todos. No início da década de oitenta, o artista/psicanalista Hugo Denizart ofereceu ao Ministério da Saúde um projeto de realização de uma documentação/exposição de fotos e, posteriormente, um filme sobre os moradores da Colônia Juliano Moreira. Houve discussões quanto a se o projeto seria bom investimento numa saúde pública carente como a nossa. Nessa época, argumentei que nosso olhar se acostuma com a miséria humana quando exposta diariamente e a obra de arte desestabiliza o olhar, renovando nossa percepção. Por isso, o trabalho de Hugo era imprescindível naquele momento. Hugo realizou o filme O Prisioneiro da Passagem e, nele, uma fascinante entrevista com Bispo do Rosário. Frederico Moraes, importante crítico de arte, já em vias de se aposentar, acompanhou o trabalho de Hugo e teve a ousadia de sonhar em transpor para o mundo

institucional da arte os objetos que compõem o universo daquele homem estranho e original. Frederico ligou-me, contou-me suas ideias e fomos juntos até a Colônia Juliano Moreira propor ao Bispo e à instituição psiquiátrica o desafio de uma exposição no Parque Lage que, quatro anos depois, foi refeita e ampliada no MAM-RJ . Nessa época, Frederico Moraes e Gerardo Vilaseca fizeram uma concepção espacial do conjunto desses objetos que marcou para sempre a obra de Bispo do Rosário: todas as exposições dele que vieram a seguir têm a marca dessa montagem. O universo de Bispo do Rosário é transportado para o campo da cultura como arte. A princípio, a obra de Bispo nos trouxe um dilema. Teríamos que trazer esse agrupamento de objetos, que se acomodava afetivamente em torno de Bispo, e recepcioná-lo em um espaço institucional de arte; depois, teríamos que interferir, de forma contundente, no arranjo desse conjunto. Bispo – de forma algumas vezes quase geométrica, e em outras, vertiginosa – juntava, ordenava, catalogava e recobria seus objetos dentro de uma lógica própria. Teríamos que, sem nos afastarmos demasiadamente dessa lógica, criar nossa ordenação e catalogação. Isso era e é complicado. A obra de Bispo é tão indissociada de sua existência que tudo que fazemos com ela num espaço institucional de arte está fadado ao erro. No entanto errado também é não fazer. Um paradoxo que nos constrange e, simultaneamente, nos liberta. A obra de Bispo se apresenta paradoxal como é a própria arte, e não temos conhecimento suficiente para a certeza de uma decisão sobre ela. Quando inaugurada, no final dos anos oitenta, a exposição de Bispo do Rosário no Parque Lage trouxe tanto espanto e fascínio que foi levada, logo em seguida, ao MAM-SP . Frederico e eu viajamos a São Paulo para debater, com diversos segmentos da sociedade, a exposição e seu desdobramento nas questões sobre a relação arte/loucura. Eram tantas apropriações/ interpretações da história/obra do Bispo que pareciam falar de pessoas diversas.

Alguns médicos da Sociedade de Medicina Paulista não admitiam que aquele mundo construído por Bispo pudesse ser chamado de arte: era pura patologia. Argumento aceito, por incrível que pareça, por alguns artistas reconhecidos, na estranheza de se verem ao lado de Bispo. Outros, os psicanalistas, se perdiam numa intrincada trama teórica que envolvia os objetos, a linguagem e a construção simbólica de um “grande outro” para o qual a obra era direcionada. A teoria era tão fechada em si mesma que não cabiam questões como a inserção da obra de Bispo na cultura. No campo da arte, alguns admitiam que, “apesar da loucura”, Bispo era um grande artista, o que era uma maneira de isolar a arte de Bispo, retirando-a da vida e inserindo-a “limpa”, “higienizada” no circuito de arte. Logo surgiria a ideia de que essa arte autônoma alçasse Bispo do Rosário à condição de artista contemporâneo, uma tentativa de recriá-lo dentro de uma nova identidade que o livrasse do aprisionante e excludente imaginário social da loucura. Embora morto, Bispo poderia circular pelos museus e galerias de arte de todo o mundo como um artista de seu tempo. Para isso, valiam-se de um formalismo superficial: uma miniatura da “roda da fortuna” (um jogo de azar comum em festas populares) veio a ser associada à Roda de Bicicleta de Duchamp. Cada grupo e cada época criava seu próprio Bispo do Rosário, algumas vezes recriando sua própria biografia. Se tomamos a realidade e as ideias delirantes como se fossem duas substâncias (o delírio talvez seja uma das expressões mais fascinantes da loucura), vemos que elas não se definem por atributos contrários, tampouco se fundem formando uma outra substância homogênea. Ao contrário, fios do delírio e da realidade se entrelaçam, formando uma tessitura comum que atravessa a percepção do mundo. Essa textura formada, que se refaz constantemente, é a construção permanente do “eu”. Em outras palavras, ao delirar, ninguém perde a realidade. Aquele universo de objetos criado por Bispo o guia para uma experiência cósmica delirante e simultaneamente traz-lhe a realidade – a consciência de estar no mundo. Do ponto de vista da existência, a recriação do mundo empreendida por Bispo tem diversos registros e direções. Essa tessitura e seus múltiplos significados são a mesma imagem que escolho para mostrar a relação entre a arte de Bispo e sua vida e, nela, além dos delírios e alucinações, o sofrimento de quem foi tantas vezes excluído pela doença, pela sociedade e pela cultura. Desfazer esse tecido bordado é esvaziá-la daquilo que ele tem de mais forte e o define como um grande artista: a capacidade de nos deixar face a face com os paradoxos da arte e da loucura. 37 Atualmente, há um movimento crescente de crítica ao uso indiscriminado da medicação psiquiátrica. Antes que o Brasil acabe ³⁸ Nós, brasileiros, somos muito depreciadores de nós mesmos. Imaginamos e nos conformamos em sermos “europeus-estadunidenses” de dois anos atrás. Nem mesmo percebemos que, assimilando ideias/conceitos que vêm de fora e nos despindo do fascínio que eles exercem, os digerimos dentro de nossa

multifacetada cultura “tupiniquim” – muitas vezes com resultados surpreendentes. A criação recente de uma assistência psiquiátrica contemporânea, que chamamos de Reforma Psiquiátrica, foi um desses momentos. Fomos muito além do que os europeus esperavam, pela agilidade, abrangência (em pouco tempo alcançamos todo o território nacional), inovação e, principalmente, pelo protagonismo lúcido e ativo daqueles chamados pela psiquiatria de “pacientes”. De maneira contundente, demos partida para o fim dos insanos manicômios e criamos meios eficazes de substituí-los: os centros de atenção psicossocial, as residências terapêuticas, os clubes de lazer e cultura. Por isso, ficamos indignados com um documento técnico, elaborado pelo Ministério da Saúde, cujo teor visa acabar com a Reforma Psiquiátrica. O texto recomenda até a retomada do uso cotidiano do eletrochoque e a volta dos hospitais psiquiátricos, inclusive para crianças. Os primeiros meses do governo Bolsonaro lembram-nos do início do nazismo. A atitude de suprir as leis que sustentam a Reforma Psiquiátrica é uma retórica ideológica própria da atração entre o neoliberalismo e o fascismo. Sendo os Hospitais Psiquiátricos ineficientes e caros (atualmente pouco atraentes até mesmo para a iniciativa privada) e tendendo a serem extintos em todo mundo, o que está em jogo, na retórica “bolsonarista”, é a imposição de uma cruel desassistência na área da saúde pública. Esse documento nos trouxe a lembrança de uma carta de Trótski, hoje publicada como texto histórico e literário. Trótski escreve a um amigo, numa intuição premonitória espantosa: “Se, na Alemanha, ele [Hitler] apropriar-se do poder, vamos ter uma guerra de proporções mundiais.” Não dá mais para só nos indignarmos: temos que partir para uma luta de grandes proporções, antes que o Brasil acabe. Conheci pela primeira vez o horror desses grandes manicômios no final da década de setenta. Trabalhava com Nise da Silveira na Casa das Palmeiras e, por ganhar pouco (a arte também não me dava lucro), aceitei substituir um colega por algumas noites no insano hospício de Paracambi. Quando recebi o plantão, tive a notícia de que duas pessoas (uma idosa e um jovem) poderiam morrer naquela noite e, mais ainda, como estavam em prédios distintos e distantes um do outro, eu teria dificuldade em dar assistência aos dois. Indignado, indaguei por que não eram transferidos para um hospital público. O colega disse-me que essa não era uma questão nossa. Olhando os pertences da senhora agonizante, encontrei fotos dela em uma praia com a família – parecia feliz. As fotos me impressionaram: se parecia feliz no passado, qual caminho percorreu para hoje morrer tão indignamente? Assegurei uma bicicleta emprestada e fiquei a noite toda entre o jovem e a mulher, ambos em coma. Queria dar presença humana àquelas pessoas que viviam diante de uma segunda e definitiva morte, o abandono. Nunca mais voltei ao plantão. Quem conheceu e não combateu com veemência o genocídio nesses grandes e insanos hospícios não tem direito de assumir cargo, nem de orientar a saúde mental de qualquer governo, em qualquer país.

Lula Wanderley nunca dançou conforme a música. 38 Publicado em fevereiro de 2019, na página digital (Facebook) do Espaço Aberto ao Tempo.

Agradecimentos e gratidão

As pessoas citadas neste livro são amigas: as encontro sempre pela vida tentando descobrir o quanto ela é um bem. Mas, aqui, como personagens do livro, suas histórias findam. E, no vazio deste ponto final, abro um pequeno espaço para outros personagens: aqueles a quem gostaria de, de coração, agradecer e dedicar. À memória da minha filha, Flávia, que nos deixou prematuramente. Quando inaugurava uma exposição de meus trabalhos, tinha dificuldade de estar na cerimônia de abertura. Acontecia sempre alguma coisa que me fazia chegar atrasado. Ela estava lá desde cedo me representando. Sua admiração e carinho pelo meu trabalho, assim como a saudade, estão guardados em cada palavra deste livro. Antes de pertencer ao leitor, ele pertence a ela. À memória de Hinda Burlamarque. Quando escrevia o meu livro anterior ( O Dragão Pousou no Espaço ), Hinda foi a pessoa indicada para fazer uma versão para o inglês de um dos capítulos – queria enviá-lo ao crítico de arte inglês Guy Brett. Leu o capítulo e disse-me, em tom humorístico: “Antes do inglês, vamos versar para o português.” E, sem me cobrar um centavo, estudou comigo todo o livro sob diversos pontos de vista: gramatical, linguístico, estilístico… Uma amizade intelectual e afetiva que durou até sua ausência. Neste livro, mesmo sem ter podido contar com sua presença, a vejo em cada frase. À memória de Wlademir Dias-Pino, grande amigo e entusiasta deste trabalho. Propôs ajudar-me a diagramá-lo e torná-lo graficamente original. Fizemos juntos o esboço para a capa a partir de uma de suas estruturas matemáticas que o computador transformou em desenho, mas… Não deu tempo de prosseguir. A memória da psicanalista Neusa Santos. Sempre que uma história, no meu trabalho no Espaço Aberto ao Tempo, me impressionava, corria para contarlhe. Ela ouvia com cuidado, para não interferir com os seus conhecimentos psicanalíticos na minha percepção e interpretação dos fatos. Quando estava elaborando meu livro anterior ( O Dragão Pousou no Espaço ), ela me ofereceu, espontaneamente, um texto sobre meu trabalho. A homenageio hoje, utilizando fragmentos desse texto para compor a contracapa. À Gina, pelo amor que é por toda uma vida. A Thiago e Max por tecerem comigo um cotidiano de afeto que me possibilita suportar as traições do destino. A Carmen Lucia Bragança, em nome de todos aqueles (clientes e técnicos) que juntos criamos o Espaço Aberto ao Tempo. A todos que participam/participaram do trabalho diário no EAT : foram nossos encontros que possibilitaram as narrativas deste livro. Agradeço a Kaira Cabañas pela participação direta na construção deste livro, seja organizando ou discutindo frases e temas. É de Kaira o prefácio, como também o entusiasmo que me contagiou. Lista de ilustrações página 8 _ Estante de Lula Wanderley em sua sala de consulta no Espaço Aberto ao Tempo, 8 de setembro de 2014. Fotos: Kaira M. Cabañas

página 18 _ Marcos Inácio Montes, Que crime foi a invenção do espelho… , 2013 página 41 _ Lula Wanderley e Rogério no filme Sutis Laços que nos unem (autor desconhecido), 2002. página 44 _ Regina Peixoto, “Esboço”, 2012 página 56 _ Regina Peixoto, “Somos”, 2019 página 63 _ Marcos Inácio Montes, Se o coração pensasse… , 2013 página 68 _ Marcos Inácio Montes, Se cada planta… , 2013 página 74 _ Regina Peixoto, “Acordos”, 2019 página 80 _ Regina Peixoto, “Vida”, 2012 página 90 _ Marcos Inácio Montes, Nem sempre fui considerado louco , 2013 página 107 _ Wlademir Dias-Pino e Lula Wanderley, Para ouvir Bandeira a vida inteira , 2008. Fotomontagem. página 108 _ Fotografia da instalação Lula Wanderley, Eu horizontal x Eu vertical , 2016. Foto: Everton Ballardin, 2018. página 116 _ Wlademir Dias-Pino e Lula Wanderley, Lula Wanderley nunca dançou conforme a música , 2008. Fotomontagem. Capa: Wlademir Dias-Pino, Lula Wanderley e Allan Teixeira, 2016. Quarta capa: Lula Wanderley, Posologia e modo de usar , 1989. Biografias AUTOR Lula Wanderley nasceu em Recife, Pernambuco. Colaborou com jornais e revistas como artista gráfico e participou de movimentos de poesia experimental. Simultaneamente, estudou medicina e formou-se pela Universidade Federal de Pernambuco. Migrou para o Rio de Janeiro em 1976, onde ligou-se a Nise da Silveira, trabalhando na Casa das Palmeiras e no Museu de Imagens do Inconsciente. Colaborou com Lygia Clark na transposição do Objeto Relacional para uma proposta psicoterápica, desenvolvendo um trabalho com pessoas em grave sofrimento psíquico: esquizofrênicos, autistas, melancólicos. Escreveu, sobre seu trabalho com Lygia Clark, o livro O Dragão Pousou no Espaço: Arte Contemporânea, Sofrimento Psíquico e o Objeto Relacional de Lygia Clark (Rocco, 2002). Em paralelo, continuou suas pesquisas como artista visual, publicando e expondo regularmente em galerias e museus. ORGANIZADORA

Kaira M. Cabañas é professora de História da Arte Moderna e Contemporânea na Universidade da Flórida em Gainesville. É autora de The Myth of Nouveau Réalisme: Art and the Performative in Postwar France [O mito do novo realismo: a arte e o performativo na França do Pós-Guerra] (Yale University Press, 2013), Off-Screen Cinema: Isidore Isou and the Lettrist Avant-Garde [Cinema off-screen : Isidore Isou e a vanguarda letrista] (University of Chicago Press, 2014) e Learning from Madness: Brazilian Modernism and Global Contemporary Art [Aprendendo com a loucura: O modernismo brasileiro e a arte contemporânea] (University of Chicago Press, 2018). Em 2012, foi curadora e organizadora do catálogo da exposição “Specters of Artaud: Language and the Arts in the 1950s” [Espectros de Artaud: a linguagem e as artes nos anos 1950] no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em Madri. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD W245n Wanderley, Lula No silêncio que as palavras guardam / Lula Wanderley ; organizado por Kaira M. Cabañas. - São Paulo, SP : n-1 edições, 2021. 128 p. ; 14cm x 21cm. Inclui índice. ISBN: 978-65-86941-26-5 1. Psicologia. 2. Arteterapia. 3. Artes visuais. 4. Lygia Clark. I. Cabañas, Kaira M. II. Título. Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Arteterapia 615.85156 2. Arteterapia 615.851:7