Nó em pingo d'água: sobrevivência, cultura e linguagem 9788565679930

Inspiradas/os por autores que atravessam limites disciplinares, bem como por uma longa trajetória de pesquisa etnográfic

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Nó em pingo d'água: sobrevivência, cultura e linguagem
 9788565679930

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NÓ EM PINGO D’ÁGUA ADRIANA C. LOPES ADRIANA FACINA DANIEL N. SILVA (ORGS. )

SOBREVIVÊNCIA, CULTURA E LINGUAGEM

Entre dicotomias que fundamentam o pensamento moderno liberal, encontramos o binarismo vida/morte. Uma polaridade que parece uma simples autoafirmação da realidade, mas que esconde uma divisão assimétrica entre os dois termos. Uma hierarquia violenta, que se desdobra em tantas outras. Enquanto vida é percebida como a origem, a morte é temida, sinônimo de cinzas e de finitude humana. Trata-se de certa lógica vitalista que concebe o sujeito a partir de uma matéria orgânica que triunfa sobre a morte. No entanto, se pensássemos que não só existem diversas maneiras de morrer e de viver, mas, para além deste esquema, deixássemos transbordar distintas formas de se pensar, de se experimentar e de se fazer ‘o viver e o morrer’? Se trouxéssemos os rastros de histórias, de memória, de culturas, de narrativas, de corpos e de escritas que colocam em xeque o próprio maniqueísmo de tal divisão? Derrida, em Sobreviver/Diário de Borda, argumenta que há um intervalo entre essas polaridades, que continua, persiste, luta, dura e está além do viver e do morrer: a sobrevivência.

ADRIANA C. LOPES ADRIANA FACINA DANIEL N. SILVA (ORGS. )

NÓ EM PINGO D’ÁGUA SOBREVIVÊNCIA, CULTURA E LINGUAGEM

Todos os direitos desta edição reservados à MV Serviços e Editora Ltda. revisão

Leonardo Cunha projeto gráfico e diagramação

Patrícia Oliveira

cip-brasil. catalogação na publicação sindicato nacional dos editores de livros, rj

N66 Nó em pingo d'água : sobrevivência, cultura e linguagem / organizadores Adriana C. Lopes, Adriana Facina, Daniel N. Silva. — 1. ed. — Rio de Janeiro : Mórula ; Florianópolis [SC] : Insular, 2019. 336 p. ; 21 cm.

Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-65679-93-0

1. Antropologia. 2. Etnologia. 3. Civilização. 4. Cultura. I. Lopes, Adriana C. II. Facina, Adriana. III. Silva, Daniel N. 19-59058

CDD: 306 CDU: 304

R. Teotônio Regadas, 26/904 — Lapa — Rio de Janeiro www.morula.com.br | [email protected]

À querida professora, Mireya Suárez, in memorian, por semear invenção e coragem.

AGRADECIMENTO

A publicação desta obra se tornou possível com o auxílio financeiro de recursos do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Linguística (UFSC), aos quais agradecemos. Também somos gratos ao CNPq, pela concessão de bolsa de produtividade em pesquisa que parcialmente financiou o trabalho dos organizadores Adriana Facina (Processo 307156/2017-6) e Daniel N. Silva (Processo 305975/2017-0).

SUMÁRIO

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PRÓ LO GO

JANAÍNA TAVARES

APRE SE N TAÇÃO

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Linguística e Ciências Sociais DANIEL N . SILVA

• ADRIANA C. LOPES • ADRIANA FACINA

PAR TE I | CU LTURAS E LET RAMENT OS DE SOBREVIVÊNCIA

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Sobrevivência, linguagem e diferença: política no tempo do agora ADRIANA FACINA

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• DANIEL N. SILVA • ADRIANA C. LOPES

Letramentos de sobrevivência: costurando vozes e histórias ADRIANA C . LOPES

58

• DANIEL N. SILVA • ADRIANA FACINA • RAPHAEL CALAZANS • JANAÍNA TAVARES

A internet salvou a gente mais que a UPP: tecnologias digitais conectadas em meio a uma cultura de sobrevivência JUNOT MAIA

77

A escrita pixadora: uma escrita sobre-vida, destacando a “piXação” GUSTAVO COELHO

99

Cultura em tempo de perigo ADRIANA FACINA

PAR TE II | SO BREVIVER EM NARRAT IVAS

109

Filhas da sobrevivência NOEMI JAFFE

115

Exu e a pedagogia das encruzilhadas LUIZ RUFINO

133

Grupo Teatro da Laje: a dramaturgia e o discurso cênico de um territóriorio VERISSIMO JUNIOR

PA R T E I I I | SO BR E V IVER EM G Ê N E R O S

139

Viver e morrer, não necessariamente nessa ordem: sobrevivências com HIV/AIDS RUBERVAL FERREIRA

171

• RENAN CASTELO BRANCO

Peles trans, máscaras cis: transfobia, patologização e táticas de resistência RODRIGO BORBA

206

Bordas do corpo, fronteiras do mundo: notas sobre o feminismo fronteiriço MARIANA GOMES CAETANO

223

Praxis estética no pagodão periférico OSMUNDO PINHO

PA R T E I V | SO BR E V IVER EM FAVE L A S E P E R IF ER IA S

251

Sobrevivência pragmática da moradia favelada: a história de Dandara BRUNO COUTINHO DE SOUZA OLIVEIRA

269

Entre o mundo acadêmico e as realidades das favelas: (des)encontros e sobrevivências de uma pesquisa que se quer junto e misturada PÂMELLA PASSOS

287

O labirinto e o caos: narrativas proibidas e sobrevivências num subgênero do funk carioca DENNIS NOVAES

308

• CARLOS PALOMBINI

Sobrevivendo na Manguetown: a cidade como impressionantes esculturas de lama na cena mangue de Recife HENRIQUE FREITAS

328

SO BR E O S AU T O R ES

PRÓLOGO

Venham! Eu convido todos para participarem dessa tragédia. Não esqueçam das máscaras, dos martelos, do sofá, dos alicates, das calcinhas furadas, da escova cheia de cabelo, do tubo de pasta de dente amassada, do ralo do banheiro, das toalhas molhadas, das cebolas cortadas, dos fungos da parede da cozinha, de toda ferramenta jogada no terraço da casa, do osso mordido do cachorro vira-lata. Sobrevivemos e celebraremos a desgraça! Mas ó: aqui não tem TV a cabo ou teto espelhado. Aqui se cospe no outro. A gente fala alto. Gritamos. Fingimos ser contentes. Lavamos toda roupa suja e tocamos punhetas matinais. Aqui, as reuniões de domingo são no barraco, regadas a cerveja e churrasco. Aqui você pode ter a faca e o queijo na mão. Mas a faca bem amolada, daquelas que arranca o dedo fora e fura o coração. No instante em que se imagina não poder mais caminhar, aqui você pode voar sem seus carros luxuosos, potentes para correr, mas que param no engarrafamento de suas almas, embutidos como linguiças. Seguimos nas vias abertas. Estupradas. Arrancadas dos braços nas vielas. Laterais. Horizontais. Aqui você pode ser puta, fazer sexo anal, oral, astral, coisal. Fingir ser gente. Não olhar nos olhos. Ser plástico, bolha, que estoura, protege as coisas. Eu convido todos para brincarem de deus (com letra minúscula)! A criar monstros e espelhos de si mesmos. Divorciar-se do desejo. Enfeitar os seus cabelos, as suas orelhas e os seus enterros. Aqui não se tem linha pra escrever. Por isso os garranchos. Mas por que o espanto? Vangloriamos os palavrões, as gírias, o estreito, os esbarrões e as cotoveladas. Aqui você encontra cinco bananadas por um real. Tristeza misturada no aço gelado do metrô. Uma cantada de graça. Uma mão armada, pronta para atirar. Aqui você é o assassino e a vítima. O grito e a mudez. A surdez que desatina. O silêncio das esquinas. A sujeira e o nó em pingo d’água. Aqui nos afundamos na cama, nos servimos de lama, nos purificamos com os porcos. Aqui, temos a lavagem, a cafagestagem, o bigode grosso, o pau duro e a buceta larga. E não diga: oh, que pouca vergonha, menina! Vergonha é se matar todo dia, nessa miserável rotina de morrer em vida.

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Vergonha é o caralho. Vai todo mundo pro inferno. Se quiser o endereço é só pedir ao vendedor ao lado. Tua filha tá de quantos meses? Tua estrutura tem quantos eixos pra gente ajustar teu caminhar? Aqui se come pão com ovo e café requentado. No noticiário: assalto. Cambada de marginal, tem tudo que morrer. Ah, muito fácil falar de honestidade morando numa casa grande, né moço?! De bucho cheio. Aqui eles mandam a gente ser o que não podemos ser. Mas somos! E o que tu tem a ver com isso, né mermo? Baseado em atos reais. Sendo passado de mão em mão pra playboyzinho fumar. Aqui estamos nos trens lotados, fedorentos. Como enlatados. Prontos para dar a nossa força de trabalho, a mais valia nos esbanja. Rir de nossas caras suadas. Aqui você encontra pornografia, esquizofrenia e sonho. Aqui a gente se ajeita no mundo e ocupa. Temos o rolezinho, o batidão, o pancadão. Nas paredes e na cabeça. Beijinho no ombro para indecência de seus valores tradicionais. Nosso Jesus é transexual e leva pedrada. Aqui você encontra ratos roedores de madeiras de terrenos. Asquerosos como nossa maldade disfarçada de ingenuidade. Aqui o teto desaba sobre nossas cabeças. E fica sob o entulho o resto do pouco todo do que somos nós.

JANAINA TAVARES

MC do Sarau “V” de Viral, Baixada Fluminense

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A P R E S E N TAÇÃO

Linguística e Ciências Sociais ADRIANA LOPES

• ADRIANA FACINA • DANIEL SILVA

Esta obra é o resultado do trabalho colaborativo de dois linguistas (Daniel Silva e Adriana Lopes) e uma antropóloga (Adriana Facina). A cada dia mais é possível perceber, ao redor do mundo, a reaproximação entre linguistas e cientistas sociais na compreensão dos problemas do mundo feitos e refeitos por meio da linguagem. Essa reaproximação é talvez uma forma de reatar um laço constituído na própria invenção moderna da linguística como ciência, o que teve estreitas relações com a fundação anterior da sociologia e, posteriormente, da antropologia. Apesar de disputada por alguns, a influência exercida por Emile Durkheim no trabalho de Saussure é conhecida e discutida por vários autores (Lahud, 1977, Culler, 1986, Joseph, 2012). Durkheim defendia que, no tocante à relação indivíduo-sociedade, a sociedade seria a realidade primária e objetiva, e a mente individual seria formada a partir desse fato primário. O pioneiro da sociologia elegeu o “fato social” como princípio interpretativo da experiência individual. Numa nítida releitura de Durkheim, Saussure teoriza seus conceitos de língua e fala a partir da relação sociedade-indivíduo de seu contemporâneo: para Saussure, a língua é um “fato social” (1916, p. 21), sendo “a fala um fato individual de vontade e inteligência” (p. 22). Por muitas décadas o diálogo e a interinfluência entre linguística e teoria social foi marcante. Por exemplo, Roman Jakobson, judeu de origem russa, empreendeu uma longa fuga dos nazistas, escapando em 1939 de Praga para Copenhagen (onde pesquisaria com Hjelmslev), depois para a Noruega e Suécia (onde trabalharia com afásicos) até chegar em Nova York em 1941. Em sua longa diáspora, Jakobson teria diálogos frutíferos com Franz Boas, Benjamin Lee Whorf e Leonard Bloomfield, linguistas e também antropólogos, e com Claude Lévi-Strauss, antropólogo cuja influência da e na

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linguística é notória. Seria ele, afinal, que formaria influentes antropólogos da linguagem como Michael Silverstein e outros, demonstrando que compreender linguagem e sociedade é uma tarefa conjunta. Outro exemplo: em 1954, Keneth Pike cunhava, no campo da antropologia, a distinção entre fenômenos “‘éticos” e “êmicos” a partir da distinção em linguística de fato “fonético” e “fonêmico”, demonstrando que a sofisticação analítica em fonética e fonologia poderia ser incorporada pela análise antropológica. Ainda outro exemplo: em 1955, o sociólogo Erving Goffman publicava uma primeira versão de seu artigo “Face-work”, em que desenvolve a noção de “face”, ou a imagem positiva que criamos de nós mesmos nas interações — um construto que influenciaria fortemente os estudos interacionais da linguagem, em especial a pragmática da polidez de Brown e Levinson (1987) e a da recente pragmática da impolidez (Bousfield, 2008: Culpeper, 2011: Silva, 2013). Como a breve historiografia acima atesta, o ponto desta apresentação não é novo, mas sua recontextualização é fundamental: a compreensão da linguagem como “fato social” demanda um esforço interdisciplinar e, como tal, exige uma compreensão aprofundada, de um lado, da linguagem, e de outro, da sociedade. Parafraseando o inspirador Marcuschi, para quem “a cognição é uma construção social e não individual, de modo que para uma boa teoria da cognição precisamos, além de uma teoria linguística, também de uma teoria social” (2002, p. 45), afirmamos que para uma boa teoria sociolinguística é imprescindível também uma boa teoria social. Assim, a presente obra congrega pesquisadores do campo dos estudos da linguagem e das ciências sociais de forma mais ampla, interessados em entender a questão da sobrevivência e em produzir conhecimento novo e rigoroso sobre esse problema. Inspirada por autores que atravessam limites disciplinares, bem como por uma longa trajetória de pesquisa etnográfica em contextos periféricos, esta coletânea se propõe a pensar a questão do sobreviver, em sua relação com a linguagem, com a cultura, com a política e com a arte. Nesse sentido, a obra enfatiza não apenas as culturas de sobrevivência, mas também as escritas, os letramentos, as histórias e os testemunhos de sobrevivência. Práticas narrativas formadas por uma imaginação própria aos que devem inventar desvios para viver, como os compositores populares Juninho Thybau e Kiki Marcellos nos inspiraram para a escolha do título do livro:

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“Gente que dá nó em pingo d’água Se o calo aperta no embalo se liberta E na adversidade encontra diretriz”

REFERÊNCIAS

BOUSFIELD, Derek. Impoliteness in interaction. Amsterdam: Benjamins, 2008. BROWN, Penelope; STEPHEN, Levinson. Politeness: Some universals in language usage.

Cambridge: Cambridge University Press, 1987. CULLER, Johnathan. Ferdinand de Saussure. Cornell: Cornell University Press, 1986. CULPEPER,

Johnathan. Impoliteness: using language to cause offence. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.

GOFFMAN, Erving. The presentation of self in everyday life. New York: Anchor Books, 1955. JOSEPH, John. Saussure. Oxford: Oxford University Press, 2012. LAHUD, Michel. Alguns mistérios da linguística. Almanaque 5, p. 28-37, 1977. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Do código para a cognição: o processo referencial como

atividade criativa. Veredas 6(1), p. 43-62, 2002. SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. Trad. I. Blikstein e J. Paes. São Paulo: Cultrix,

1981. SILVA, Daniel. Review of “Culpeper, Jonathan (2011). Impoliteness: using language to cause

offence”. Journal of Language Aggression and Conflict, 1(2), p. 257-266, 2013.

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PA R T E I

LETRAMENTOS E CULTURAS DE SOBREVIVÊNCIA

INTRODUÇÃO

Sobrevivência, linguagem e diferença: política no tempo do agora ADRIANA CARVALHO LOPES

• ADRIANA FACINA • DANIEL N. SILVA

...para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. Ainda que por pouco tempo. [ GEORGES DIDI-HUBERMAN, SOBREVIVÊNCIA DOS VAGA- LUMES ]

Suspensão Redigimos este texto num momento de suspensão. O assassinato da vereadora do Rio de Janeiro com reconhecida trajetória de defesa dos direitos humanos Marielle Franco e do motorista que a acompanhava, Anderson Gomes, , atingiu fortemente coletivos de mulheres, negros, moradores de favelas, pessoas LGBT e outras minorias na cidade do Rio de Janeiro. Coletivos semelhantes em outras cidades do Brasil e do mundo sentiram a mesma dor, o que instigou um movimento certamente não previsto por seus assassinos e que se espraiou ao redor do mundo. Lemas como “Marielle Presente”, “Anderson Presente”, “Marielle Vive”, “Marielle é semente” circularam pela fala, pela escrita e por imagens em várias cidades no Brasil e no mundo. Em comum, esses lemas tinham o desafio à distinção entre vida e morte: Marielle morreu brutalmente mas continua viva na memória;

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tornou-se semente que desabrochou mundo afora. Enquanto escrevemos, o crime brutal, que aconteceu sem ameaças ou indícios prévios, já está há mais de um ano sem solução. O resultado disso é que uma sensação de suspensão do tempo tem sido compartilhada por aquelas e aqueles que já viam ou passaram a ver em Marielle um ícone da resistência de milhares de mulheres negras e faveladas. Como realizar o trabalho do luto quando a justiça não cumpre o seu papel? A tragédia de Marielle — associada a outros acontecimentos igualmente disruptivos no momento do agora, como a intervenção militar na segurança pública no Rio de Janeiro, a ascensão do fascismo na campanha presidencial de Jair Bolsonaro e o incêndio que destruiu o Museu Nacional — nos faz aqui refletir sobre esse tempo que nos apavora. Acima de tudo, essa tragédia nos impele a pensar em como sobreviver ao momento do agora. A questão que levantamos nesta introdução e que ressoa em todos os capítulos deste livro é: que sonho é possível quando a perspectiva de futuro está em suspensão? Como sonhar quando a incerteza, a instabilidade, a ameaça e o perigo nos rondam? Para além do ato de sonhar, como pensar em arte, cultura e linguagem em contextos nos quais a sobrevivência não está garantida? Aprendemos com Derrida (1999 [1979]) que a sobrevivência nunca é uma garantia, mas uma promessa. No entanto, o que fazer quando essa promessa se esvanece no horizonte? Pensemos sobre essa questão inicialmente no contexto da arte. Em termos de história hegemônica da arte e da concepção de arte que inspira práticas e políticas culturais, podemos dizer de modo muito simplificado que há basicamente dois caminhos contemporâneos que orientam essa história e essa concepção. O primeiro é o da arte burguesa, encastelada, vista como uma espécie de adorno ou coisa supérflua num mundo em que os negócios e a tecnologia são tidos como centrais. Esta é uma concepção de arte como perfumaria, acessível apenas a alguns privilegiados que têm a sua existência física e material asseguradas. Nessa visão, em que a subsistência de artistas e apreciadores simplesmente não se coloca como questão, o fazer artístico é tido como um apêndice, um algo a mais que é, ao mesmo tempo, recurso de distinção social, pois demarca a distância de produtores e consumidores da arte em relação ao mundo do trabalho, em relação àqueles que têm a necessidade de trabalhar para ganhar a vida. O segundo caminho é aquele trilhado

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pela perspectiva utilitária em que a arte é vista como salvação, isto é, como uma prática que salva, ilumina, dociliza, civiliza, controla, ameniza e pacifica aqueles que têm contato com ela. Gostaríamos de argumentar que, embora aparentemente antagônicas, essas duas posições andam juntas. Além disso, ambas estão em crise. Elas são constantemente desafiadas no contexto em que vivemos. A arte burguesa, pelo elogio a um modelo ocidental e colonial de civilização, tem sido permanentemente questionada. A arte utilitária, pelo motivo muito simples da crescente destruição de políticas públicas de cultura que ainda se inspiravam em grande medida nesse ideal, viu suas bases de sustentação ruírem. No caso da produção cultural de segmentos populares, geralmente vista por essa última perspectiva como possibilidade de geração de emprego e renda e, portanto, como mecanismo pacificador, o colapso desse modelo de arte utilitária se tornou bastante visível. Recentemente, em encontro de Cultura realizado na cidade de Niterói para pensar territorialidades e políticas públicas no campo da cultura, Fernando Espanhol, um artista carioca morador da favela do Fumacê, Zona Oeste do Rio de Janeiro, fez uma fala muito significativa. Membro de um grupo de dança chamado Descolados, contou que o grande problema para ele agora, na ausência de editais públicos, é como assegurar a continuidade de seu trabalho com os jovens de sua comunidade. Em suas palavras, o retrocesso é um fato, não tem como a gente negar mais isso. A gente tá passando por esse momento. Em 2016, que eu acredito que foi o meu melhor momento enquanto agente cultural da cidade do Rio de Janeiro, eu unicamente produzia cultura. Era só o que eu fazia. E conheço muitos outros amigos que também só faziam isso. Em dias de hoje, 2018, eu tô trabalhando em coisa que não é a minha área, assinei carteira, trabalho num shopping vendendo roupa. Porque antes eu conseguia viver fazendo cultura. Agora eu preciso ter um outro trabalho pra conseguir sobreviver fazendo cultura. Antes eu tinha um orçamento pra fazer as coisas em que eu acreditava e consegui que o impacto fosse grande dentro da minha realização. Hoje eu tenho que fazer com um orçamento mais reduzido, mas o trabalho é o mesmo, ele tem o mesmo impacto, o mesmo tempo. Muitas vezes eu tenho que pegar o meu dinheiro, do meu trabalho de carteira assinada pra botar na frente também

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se eu quiser que aquilo aconteça. A gente precisou de certa forma se reinventar pra que a gente não desapareça. (...) Eu realmente não vou mentir pra vocês, eu tô totalmente perdido. Eu sei que eu não posso parar, que eu preciso continuar do jeito que dá pra fazer. Se antes eu tinha 40 mil pra fazer e agora eu tenho 10, eu preciso me virar pra conseguir fazer com 10 mil. Mas o que fazer pra que esse cenário mude é algo que me desespera, de fato eu não faço ideia. Eu converso muito com outros produtores, com o resto da galera e eu vejo que tá todo mundo na mesma que eu. Eu não sei o que fazer. Não sei se é questão de fazer. Não sei se é inferno astral que daqui a pouco passa. Mas a situação realmente é essa e é preocupante. Falando de território e cultura, e a gente vê que dentro do governo há um descaso por essa área, um descaso gigantesco pra essa área1.

Entendemos que esse trecho de fala mostra exatamente a ruína dessa perspectiva, simbolizada em sua narrativa pela afirmação de que é preciso se reinventar para não desaparecer. A possibilidade de uma morte simbólica, a morte do sonho de viver da arte como trabalho significativo, está colocada. O artista centra sua fala no tema a que este livro se dedica — a ideia de sobrevivência. Na narrativa desse artista e nos capítulos a seguir, sobrevivência não é pensada como um amesquinhamento da vida ou mera corrida atrás da subsistência imediata. Ao contrário, sobrevivência, no sentido que Derrida atribui a esse termo, é vista como algo que suplementa a vida e a morte. Que não é nem a vida — entendida como vitalismo, uma ontologia que “opõe vida à morte, espírito à matéria/mecanismo e, em última instância, a atualidade concreta da vida à forma fantasmagórica abstrata” (Cheah, 1999, p.227) — nem a morte propriamente, tida pela ontologia vitalista como a matéria inorgânica, fantasmagórica, inerte, incapaz de se reproduzir ou de dar frutos. Sobreviver, diz Derrida, “vai além tanto do viver quanto do morrer, suplementando ambos com um ímpeto súbito e um certo adiamento, decidindo a vida e a morte, finalizando-as em uma parada [arrêt] decisiva” (1999 [1979], p.89). A sobrevivência é exatamente a suspensão da vida e da morte. A sobrevivência é, ainda segundo Derrida, um sursis — a suspensão condicional de uma pena. 1

Excerto da fala de Fernando Espanhol no Seminário Cultura e Territórios, realizado pela prefeitura de Niterói nos dias 4 e 5 de junho de 2018.

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Temporalidade e diferença O curso das coisas está suspenso. O futuro está incerto. O que surge desse momento de suspensão? O que dizer dessa temporalidade suspensa? O subtítulo desta introdução evoca a questão do tempo e sobretudo sua dimensão política — política no momento do agora. Essa dimensão temporal do agora é inspirada pelo conhecido texto de Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história” (1994 [1942]), em que o autor argumenta que a história não é um progresso infinito, na medida em que as narrativas triunfantes da civilização ocidental ruíram. No momento do agora, é equivocado imaginar uma narrativa triunfante do progresso, diante de personagens políticos como Donald Trump, líder do país mais poderoso do mundo que ameaça os direitos humanos, o meio ambiente e a paz globais, numa marcha de franco retrocesso em relação ao pós-guerra, e de Jair Bolsonaro, cujo desprezo por negros e indígenas, por mulheres e pessoas LGBT, pela democracia e pelo estado de direito se anuncia como movimento de desmonte de nítidos avanços do processo de redemocratização iniciado com o fim da ditadura militar. Foi precisamente num contexto parecido com o momento do agora, isto é, a subida do nazifascismo na Europa, que Walter Benjamin apontou ser necessário — se pretendemos contar a história ao lado da narrativa dos oprimidos, portanto daqueles que são derrotados na história — romper com a ideia de um continuum, de um progresso triunfante, de um tempo linear que segue rumo a um futuro glorioso. Assim, a ideia de suspensão também está presente no pensamento de Benjamin. Para ele, o presente é pleno de agoras. Trata-se de um agora que é ao mesmo tempo passado, futuro e presente. Nessa chave, o que seria então esse agora, essa suspensão? É precisamente a ideia de sobreviver. O tempo histórico do sobreviver é o momento do agora. Essa temporalidade aberta, não-linear e liminar é típica das manifestações culturais de sobrevivência nas periferias do Brasil. Um verso de funk proibidão no Rio de Janeiro canta o seguinte: “Hoje somos festa, amanhã seremos luto”. Coisas totalmente opostas — a festa e o luto, a celebração da alegria e o pesar coletivo, a vida e a morte — se unem no verso dessa canção. O funk ecoa a experiência de incerteza sobre a vida partilhada por milhares de moradores das favelas. Quem canta esse verso não o faz abstratamente. Está cantando num cenário de genocídio da juventude popular, da juventude negra.

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Esse é o pano de fundo contra o qual o verso se destaca como figura. É também o lugar de onde o verso extrai sua força. A noção de sobrevivência — o intervalo agentivo entre viver e morrer, essa suspensão, o momento do agora — é também um conjunto de táticas e estratégias que correspondem apenas em parte à noção corrente de resistência. De um modo geral, a resistência tende a ser concebida nos termos de uma oposição entre fora e dentro. É como se o poder ou a hegemonia fossem uma imanência, uma entidade com arestas definidas, e a resistência fosse uma força exterior, que precisaria confrontar ou desafiar frontalmente essa entidade. Do lado de fora, a resistência seria ainda um desafio aberto às forças hegemônicas, um confronto em grande medida consciente em relação a essas forças. No entanto, a noção de sobrevivência desafia essa visão imanente de poder, justamente porque a sobrevivência não é um fora consciente e circunscrito que se choca contra um dentro, igualmente circunscrito e autocontido. Aqui nos utilizamos de inferências de pensadores como Milton Santos e Jacques Derrida, para os quais operar diante de forças hegemônicas não é algo que se dá de modo dicotômico, por meio de uma lógica de opostos ou de entidades que colidem ou se chocam, mas sim numa lógica que dá lugar, ao mesmo tempo, ao conflito e à negociação. Lemos em Milton Santos (2002) que lidar com a hegemonia implica obediência e revolta, enfrentamento e acomodação. Teorizando sobre relações de força e conflitos na sociedade contemporânea, o autor argumenta que há momentos de negociar e há momentos de enfrentar, num movimento espiral permanente. A partir de Derrida (2004 [1979]), entendemos que o desdobrar das táticas e estratégias de sobrevivência dentro da política, entendida como dissenso e conflito, é algo marcado pela diferença. Vale ressaltar que Derrida rasura a palavra diferença [différence, em francês] ao escrevê-la como différance, com um a “erroneamente” colocado no lugar do e da grafia padrão. Do ponto de vista da fala, em francês não faz diferença nenhuma pronunciar différence ou différance. Ambas as palavras têm o mesmo som. Do ponto de vista da escrita, porém, o “erro” de grafia salta aos olhos, instaurando uma marca de instabilidade e rasura. Cabe ressaltar que é justamente no suplemento da fala — isto é, na escrita, vista como secundária e inautêntica por filósofos como Platão — que a différance se torna visível para Derrida. Em vez de um dado da natureza [como os linguistas e filósofos veem a fala], a différance se faz ver

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naquilo que é aprendido, que é suplementar, que permite uma suspensão ou pausa entre emissão e recepção, isto é, na escrita. No trabalho de Derrida, essa diferença sob rasura aponta para um sentido que não está fechado, que está aberto, que não tem um centro, que pode ser disseminado, que pode ter frutos inesperados. Tal como Marielle, que mesmo morta segue vivendo na linguagem e nos gestos de milhares de pessoas, a différance é a marca do desafio aos pares dicotômicos, do descentramento da hegemonia e da disseminação da sobrevivência. Vista dessa forma, a diferença nos leva de volta ao estado de suspensão a que nos referimos no início desta introdução, a esse terreno do inesperado que é também um espaço de aprendizagem, de identificação, de diferenciação e de contínua reidentificação. Além disso, a noção de diferença é um alerta, uma promessa, um desafio. Entendemos que pensar a diferença em contextos de sobrevivência implica ainda pensar na política em sentido lato — não como a política institucional ou eleitoral, mas como aquela que se dá, por exemplo, em contextos de criminalização e de dissenso político. Como pensar a política em territórios onde o Estado tem uma evidente prática de extermínio? Em territórios onde a diferença é vista como algo a ser criminalizado e se possível eliminado? Em vista de nossa adesão àqueles e àquelas que sofrem os efeitos dessas práticas de criminalização? A partir de nosso lugar nessa história, de nosso lugar de fala, como podemos pensar a diferença em nossas práticas?

Redistribuição e reconhecimento Tempos de suspensão e incerteza são acompanhados de angústia e ansiedade, o que tende a impulsionar os sujeitos a tentar encontrar estabilidade e certeza, a buscar algo que possa fixá-los em algum lugar seguro. Esse desafio à busca do igual muitas vezes informa nossa maneira de fazer política. A lógica das redes sociais certamente tem um impacto nisso, na medida em que elas são informadas por bolhas que tendem a alimentar o conforto de falar com nossos iguais. Questão parecida foi levantada pela pensadora feminista Nancy Fraser, que em 1995 publicou o artigo “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era ‘pós-socialista’” (traduzido para

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o português, em 2006, por Julio Simões; ver Fraser, 2006). Nele a autora propõe que há uma falsa dicotomia no debate entre redistribuição e reconhecimento. Volta e meia essa dicotomia retorna ao debate dentro do campo da esquerda e do campo contra- hegemônico: ou seja, coloca-se nesse debate que a política ou será baseada em identidade ou será baseada em classe social, como se uma fosse contrária à outra. Segundo Fraser, trata-se de uma falsa dicotomia, porque é impossível pensar em redistribuição sem pensar em reconhecimento. De fato, é impossível obter reconhecimento sem pensar em redistribuição. Tomemos o Brasil como exemplo. Trata-se de um dos países mais ricos e mais socialmente desiguais do mundo, um país com algumas das mais altas taxas de feminicídio, de desigualdade de gênero, de transfobia e de racismo estrutural. Esse dado implica que política no Brasil deve ser pensada nos termos de um debate que dê conta dessas duas demandas, dessas duas questões. No Brasil, o lugar desigual ocupado pelas mulheres, pelos negros e pelas pessoas trans na economia (um marcador invocado em políticas de redistribuição) está diretamente ligado à violência física e simbólica sofrida por esses sujeitos no cotidiano das cidades brasileiras (um marcador invocado em políticas de reconhecimento). De modo muito interessante, Fraser argumenta que é possível pensar numa política que acentue ambas as demandas e que as entenda como não opostas. Segundo a autora, reconhecimento não se subordina à redistribuição; ao contrário, redistribuição e reconhecimento são igualmente demandas por justiça. O que esse debate tem a ver com a questão da diferença? Pensar essas demandas a partir de justiça significa dizer que eu posso me reconhecer como radicalmente diferente daqueles que estão clamando por suas pautas, mas ainda assim reconhecer que essas pautas são justas. No limite, eu não preciso ter empatia por essas pessoas, eu não preciso ter afeto, eu não preciso me colocar no lugar delas. De fato, colocar-se no lugar do outro é impossível, as experiências individuais e coletivas são singulares e marcadas por vários pertencimentos impossíveis de serem anulados. Mas, ao mesmo tempo, a necessidade de justiça me coloca uma questão moral que me faz não poder desconsiderar essas demandas, ainda que eu não me sinta conectada por relações de afeto, por relações significativas com essas pessoas e mesmo com suas demandas. Essa questão recoloca a diferença no jogo político. A diferença se mantém. A diferença não se anula.

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Assim, entendemos que, por um lado, é legítima a luta política no campo das redes de proteção — sobretudo em função do desgaste que é o enfrentamento político, tendemos a criar nossas bolhas de acolhimento —, mas, por outro lado, a diferença pode ser pensada como elemento que não anula essa tendência à fala com iguais. Acolhimento e diferença são estratégias de sobrevivência e, como tais, não são pares opostos, não são etapas de uma marcha histórica teleológica e triunfante. De forma prática, o que significaria fazer política a partir da diferença? Trazemos o caso empírico do trabalho de Adriana Facina e Adriana Lopes com artistas de funk no Rio de Janeiro para pensar essa questão (Facina e Palombini, 2017; Lopes, 2011). Expressão diaspórica da juventude negra do Rio de Janeiro, o funk é um fazer artístico e uma forma de letramento — como tantos outros — que pode ser pensado a partir da diferença, como arte/escrita que vem daqueles com quem reconhecemos que temos demandas por justiça comuns, mas que falam o que não queremos ouvir, ou que não toleramos ouvir. Muitas vezes o chamado “funk putaria” fala coisas machistas. O “funk proibidão” pode exaltar as armas e a violência urbana. Como eu, a partir de meu lugar de fala, posso me relacionar com esse gênero? Como pensar sobre essas formas artísticas para além da chave da resistência política — entendida no sentido por nós resumido acima — uma vez que elas são clivadas por contradições, sentidos em aberto, ingovernabilidades e muitas vezes impossibilidade de empatia? Como lidamos com fazeres artísticos e com essas práticas de letramentos que nos incomodam, que nos descentram — nós que queremos fazer a revolução, que queremos mudar o mundo, e sabemos que é com esses sujeitos que faremos isso, recusando as saídas paternalistas do tipo “vamos fazer um processo de formação com eles, para que não pensem mais assim”, e assim reproduzindo hierarquias sociais e o racismo? Como podemos dialogar com jovens de periferia que votam em Bolsonaro? Com jovens que estão indignados com a política, que têm raiva, que têm seu sentimento de justiça ferido por toda uma série de precariedades de direitos e que manifestam sua revolta dessa forma? Como nós, a partir da política da diferença, lidamos com isso? Como podemos lidar com a diferença sem tropeçar para o caminho do punitivismo ou para outro muito parecido, o do paternalismo, da tutela, da tentativa do governo de civilizar esses jovens? Afinal, esses são jovens que querem reconhecimento e redistribuição também. O que temos a dizer a eles a partir desse alerta da diferença?

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Entendemos que o enfrentamento dessas questões implica, inicialmente, descentrar o idioma da resistência — sem deixar de reconhecer a sua importância. Somente assim, descentrando esse idioma, essa gramática, e buscando outras traduções, poderemos aprender com táticas e estratégias de sobrevivência que são comuns em grupos que sofrem as consequências da desigualdade no neoliberalismo. Somente ao descentrar esse idioma nossa escuta será capaz de ouvir aquilo que não queremos ouvir, mas que precisamos ouvir. Desvincular reconhecimento de empatia e associar justiça a essas demandas pode ser também uma pista pra esses caminhos para os quais nenhum de nós tem resposta; caminhos que, no entanto, precisamos tentar trilhar. É imprescindível nessa perspectiva fazer política a partir da diferença sem eliminá-la. Assim como pensamos a arte e a linguagem a partir da diferença como perigo, posto que elas são manifestações do diferir, podemos entender esse alerta da diferença como um alerta para entendermos a política como um todo, num momento em que a política enquanto prática de negociação, de conflito, de dissenso, de discordância está ameaçada.

Sobrevivência e esperança A sobrevivência, conforme esboçamos acima, está diretamente articulada à questão da esperança. Como podem pessoas ou grupos submetidos à violência política, às violações de direitos humanos ou à destruição florescerem subjetivamente? Esta pergunta, com algumas variações, anima a ainda exígua produção acadêmica sobre o tema da esperança (ver Bloch, 1986; Myiakazi, 2000; Crapanzano, 2003; Lear, 2006; Mahmood, 2016; Silva e Alencar, 2018). Uma reflexão pioneira sobre o tema, publicada pela primeira vez em 1959, foi oferecida pelo filósofo Ernst Bloch, que realizou uma interessante leitura marxista do afeto da esperança. Em seu “Princípio da esperança” (1986), Bloch aponta que a esperança é uma emoção que nos propele adiante. A leitura marxista de Bloch inverte a temporalidade do platonismo: enquanto para Platão “todo conhecimento é meramente anamnese, um relembrar de algo que já vimos antes” (p. 140), o conhecimento da esperança está no futuro, no mais adiante, no “Não-Ser-Ainda”. Bloch afirma ainda que a esperança é um afeto ensinável, que transforma a Coisa em Si de Kant na Coisa

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para Nós (p. 249). Esse afeto coletivo é ainda um modo de sonhar acordado. Essa modalidade de sonho, diz Bloch, libera o inconsciente “para cima” e “para frente”, para o Ainda-Não-Consciente do sonhar acordado. Três anos antes, em 1956, Frantz Fanon intitulou sua fala para a Conferência de Escritores e Artistas Negros de “Racismo e Cultura”. Como se houvesse dialogado com Bloch, Fanon parece delinear linhas de esperança diante do panorama mortificante disseminado pelo colonialismo. Fanon aponta que o racismo é a expressão “mais visível e mais crua” de uma estrutura colonial. No colonialismo, “o grupo social, subjugado militar e economicamente, é desumanizado segundo um método polidimensional” (Fanon, 1980 [1956], p. 39). Polidimensional: a expressão do colonialismo, implementado pela via militar e econômica, se dá nas mais variadas dimensões da vida social, em especial na cultura. Fanon enxerga então uma desestruturação da cultura nos lugares por onde a empreitada colonial avançou — note que em vez de “destruição” cultural, Fanon sugere “desestruturação”, ou “desestabilização” de sistemas de referência preexistentes. O excerto a seguir é elucidativo: (...) a implantação do regime colonial não traz consigo a morte da cultura autóctone. Pelo contrário, a observação histórica diz-nos que o objetivo procurado é mais uma agonia continuada do que o desaparecimento total da cultura preexistente. Essa cultura, outrora viva e aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada no estatuto colonial, estrangulada pela canga da opressão (Fanon, 1980 [1956], p. 38).

“Cultura em agonia”, para Fanon, é uma espécie de morte em vida experimentada pelos sujeitos no colonialismo. Perceba que Fanon contrapõe no excerto acima a abertura para o futuro da cultura e a fixidez da opressão colonial. Como comenta Stefania Pandolfo (2018), uma cultura em agonia é aquela que “Fanon identifica como incapaz de realizar seu trabalho, ‘o trabalho da cultura’, Kulturabeit (paralelo de Traumarbeit, o ‘trabalho do sonho’), que Freud tinha dito ser a condição de possibilidade da socialidade humana, na sublimação das pulsões inconscientes em criações simbólicas e espirituais” (p. 7-8). A superação desse estado de mumificação, nos termos de Fanon, passa necessariamente pelo reconhecimento das condições de opressão que fazem o trabalho da cultura falhar. Se articularmos a situação

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colonial e a questão da esperança, temos que, para Fanon, tornar visível e enunciável a fixidez e o aprisionamento do colonialismo é o primeiro passo em direção ao “Não-Ser-Ainda” da esperança. Observando a operação do colonialismo no norte da África, Fanon identificou também que “as pessoas dispersas e mortificadas em vida encontraram uma nova coesão em seu sofrimento, uma comunidade espiritual da dor, que se tornou um pilar da revolução na Argélia” (p. 7). Desafiando os limites da vida e da morte — “pessoas mortificadas em vida” — aqueles submetidos ao colonialismo francês reconfiguraram seu sofrimento individual, identificando em outros companheiros alguns traços de seu próprio sofrimento e assim formando uma “comunidade da dor”. Esse salto rumo à esperança passou pelo reconhecimento da lógica da sobrevivência. Como as pessoas submetidas à opressão, às violações de direitos humanos, à violência política podem ter esperança, isto é, podem lançar-se ao tempo futuro da esperança? Pandolfo aponta que Fanon imaginou ainda um “salto” como “o resultado criativo de uma realização da perda, uma interrupção que é também uma vinda fugitiva à vida, que resiste ao endurecimento numa identidade” (Pandolfo, 2018, p. 8). Pandolfo cita Fanon: “Eu me encontro, como ser humano, em um mundo em que as palavras estão repletas de silêncio, em um mundo em que o outro se endurece interminavelmente” (apud Pandolfo, 2018, p. 8). Contra essa paralisação causada pelo mutismo e pela fixidez, Fanon articula os termos da esperança: “Não sou um prisioneiro da História... Devo lembrar a toda hora que o verdadeiro salto é trazer invenção à existência” (ibid). É este salto direcionado ao “ainda não”, ao “estar junto” e ao “sonhar acordado” que os capítulos deste livro procuram delinear.

Escrever e sobreviver Há uma década, a noção de sobrevivência apareceu em nosso campo de pesquisa, mais especificamente em contextos de diálogo com artistas, com ativistas, com professoras, professores, fazedoras e fazedores de cultura que habitam territórios periféricos da cidade do Rio de Janeiro. Inspirados por essas pessoas que aprenderam a “(re)inventar a vida a partir daquilo que nega a própria vida”, como nos ensinou Raphael Calazans, um artista do Funk Carioca,

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buscamos diversas fontes — teóricas, filosóficas e literárias — que nos auxiliassem a pensar a sobrevivência. Ao longo desse percurso, compreendemos com Derrida que a sobrevivência, esse intervalo entre vida/morte, é um espaçamento onde a escrita/rastro faz viver, criativamente, aquilo que poderia estar morto. Assim, os capítulos que se seguem tem como fio condutor rastros de falas, de narrativas, de testemunhos, de corpos e de imagens que sobrevivem e que, de alguma maneira, desafiam o estado de barbárie e de suspensão do momento presente, semeiam esperança e nos convidam a parar e sonhar. Arquitetado de forma semelhante ao curso “Sobreviver: sobrevivências”, que ministramos, conjuntamente, no primeiro semestre de 2015, para o curso de pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, o livro traz uma primeira parte introdutória, “Sobreviver: letramentos e culturas de sobrevivência”, em que os textos apresentam um debate mais teórico sobre as culturas, os letramentos e as escritas de sobrevivência. O artigo multiautoral “Letramentos de Sobrevivência: costurando vozes e histórias” apresenta uma trama dialógica entre as autoras e autores na qual é elaborada a ideia de letramentos de sobrevivência, ou seja, “práticas escriturais de sujeitos subalternizados que desafiam (...) os princípios de racionalidade e de individualismo que permeiam as definições eurocêntricas daquilo que conta como ‘escrita’ na modernidade”. Em seguida, como o próprio título já indica, “A internet salvou a gente mais que UPP: tecnologias digitais conectadas em meio a uma cultura de sobrevivência”, Junot Maia focaliza um contexto digital específico, destacando como moradores do bairro do Complexo de Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, utilizam as tecnologias digitais para sobreviver à extrema violência a que foram submetidos no período de implementação das Unidades de Polícia Pacificadora, conhecidas como UPPs. Na sequência Gustavo Coelho, ainda que não utilize o termo letramentos, também discute tal fenômeno em “A Escrita Pixadora: uma escrita sobre-vida”, destacando a “piXação”, cultura popular da cidade do Rio de Janeiro, como uma escrita enigmática ou uma escrita intervalo, que está para além do viver e do morrer. Retratando as desigualdades que estruturam as políticas culturais, Adriana Facina, em “Cultura em tempo de perigo”, elabora o conceito de cultura de sobrevivência, considerando as estratégias de luta de artistas de classes populares, que foram tocados pelo “sonho de viver de seu trabalho com a cultura”.

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Na segunda parte do livro, “Sobreviver em narrativas”, os artigos tratam de contextos específicos com poéticas que, em alguns momentos, arriscam a desafiar a formalidade do gênero acadêmico consagrado na linguística e nas ciências humanas e sociais. Assim, a escritora Noemi Jaffe constrói uma narrativa sobre o fenômeno (palavra) sobrevivência, em diálogo com o livro também escrito por ela, “O que os cegos estão sonhando?” (Jaffe, 2012), baseado na história de sua mãe, uma sobrevivente de Auschwitz. Em “Exu e a pedagogia das encruzilhadas”, Rufino também tece uma narrativa sobre uma educação sobrevivente, desafiadora de saberes e formas coloniais. Em “Dramaturgia e o discurso cênico de um território”, Verissimo Junior conta a história do Grupo Teatro da Laje, em que ele, como professor de teatro de uma escola pública, juntamente com os seus estudantes, “inventam para sobreviver” uma dramaturgia própria, visceralmente relacionada com os territórios periféricos e de favela. Na terceira parte do livro, “Sobreviver em gêneros”, os autores olham para contextos diversos, apontando para uma questão comum: a forma pela qual as pessoas reinventam suas identidades de gênero em face da matriz heteronormativa dos gêneros, ou melhor, como aqueles considerados abjetos sobrevivem a uma perspectiva dicotômica colonial violenta sobre os corpos, as performances e os desejos. Assim, em “Viver e morrer, não necessariamente nessa ordem: sobrevivências com HIV/AIDS”, Ruberval Ferreira e Renan Castelo Branco analisam as falas e os discursos que circularam tanto pelas mídias hegemônicas, quanto em outros espaços de ativismo político, sobre pessoas portadoras do vírus HIV. Os autores mostram que, se por um lado os significantes HIV/AIDS apontavam para uma sentença de “pena de morte”, por outro lado foi o próprio nome da “doença” que possibilitou a construção de uma sobrevivência ou uma forma incondicional de afirmação da vida. Rodrigo Borba, em “Peles trans, máscaras cis: transfobia, patologização e táticas de resistência”, baseado em um longo trabalho etnográfico com análise de documentos e de procedimentos médico-institucionais obrigatórios à cirurgia de transgenitalização, destaca as estratégias que essas pessoas utilizam para sobreviver a todo um aparato heteronormativo de conformação, de controle e, até mesmo, de extermínio de seus corpos. Mariana Gomes Caetano, em “Bordas do corpo, fronteiras do mundo”, interpela vertentes do feminismo

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com vozes de sujeitos marcados por diferentes estéticas ou mesmo por distintos pertencimentos étnico-raciais. Osmundo Pinho, em “Praxis Estética no Pagodão Periférico”, também traz à tona questões raciais, destacando a forma como a “estética negra, popular e radical” presente no pagode periférico da cidade de Salvador desafia os padrões ocidentais e eurocêntricos que constituem as representações das masculinidades negras. Na quarta parte do livro, “Sobreviver em favelas e periferias”, o conceito de sobrevivência é contextualizado em um território específico, as favelas cariocas. Bruno Coutinho de Souza Oliveira, em “Sobrevivência pragmática da moradia favelada: a história de Dandara”, analisa parte da trajetória de uma mulher negra e favelada que, ao ficar desabrigada, cria táticas de sobrevivência diante de agentes públicos e privados na busca por uma nova moradia. Considerando a situacionalidade não só de seu texto, como também de sua própria pesquisa, Pamella Passos, em “Entre o mundo acadêmico e as realidades das favelas: (des)encontros e sobrevivências de uma pesquisa que se quer junto e misturada”, traz o conceito de sobrevivência como um entre-lugar, que nos possibilita compreender a relação entre pesquisadora e os sujeitos pesquisados, ou melhor, a relação entre os sujeitos da universidade e da favela. Continuando nesse território, o artigo de Dennis Novaes e Carlos Palombini, “O labirinto e o caos: narrativas proibidas e sobrevivências num subgênero do funk carioca”, mostra como os MCs do funk sobrevivem em uma cidade que os criminaliza, reinventando suas vidas como poetas, compositores, intérpretes e produtores culturais diante de todo aparato violento de opressão do Estado. Por fim, Henrique Freitas, em “Sobrevivendo na Manguetown: a cidade como impressionantes esculturas de lama na cena mangue de Recife”, discute a cena do movimento Manguebeat de Recife, na década de 1990, apontando que a sobrevivência é uma narrativa polifônica e cosmopolita das cidades que escapa e desafia as representações hegemônicas e oficiais do espaço urbano. Na literatura distópica produzida no século XX, frequentemente livros são queimados ou proibidos. São eles também sobreviventes, testemunhos de traumas e barbárie. Como luz de vaga-lume — inconstante e frágil, mas de tão necessária beleza —, esperamos que as narrativas aqui presentes agucem nossos sentidos na percepção dos infindáveis caminhos do sobreviver.

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Letramentos de sobrevivência: costurando vozes e histórias ADRIANA C . LOPES

• DANIEL N. SILVA • ADRIANA FACINA RAPHAEL CALAZANS • JANAÍNA TAVARES

Apresentação Em 3 de dezembro de 2009, a revista “Época” veiculou uma reportagem com o seguinte título: “32% dos brasileiros com ensino superior não são plenamente alfabetizados” (Venticinque, 2009). Sete anos depois, o jornalista Antônio Gois publicou em sua coluna do jornal “O Globo” uma matéria sobre o analfabetismo funcional brasileiro. Segundo o jornalista, somente “22% dos alunos que chegam ao ensino superior são proficientes em leitura e em escrita” (Gois, 2016). Esse número parece que continuou crescendo em notícias de mídias corporativas e independentes. Não é por acaso que em abril de 2017 o portal “Sensoincomum” anunciou uma matéria sobre uma pesquisa, feita pelo autointitulado filósofo Olavo de Carvalho2, apresentada em um dos berços do saber acadêmico moderno, com o seguinte título: “Em Havard, Olavo de Carvalho prova que 80% dos universitários são analfabetos” (Martins, 2017). Ainda que cada um desses textos apresente a questão da leitura e da escrita de maneira específica e não assuma posicionamentos políticos idênticos, trouxemos esses pequenos fragmentos, veiculados em um intervalo de tempo de quase dez anos, como uma forma de exemplificar uma narrativa hegemônica altamente disseminada que parece impingir o rótulo de não leitores aos estudantes que chegam ao ensino superior. Perpassa essa narrativa a hipótese do déficit: estudantes do ensino superior seriam 2

Olavo de Carvalho transformou-se em um dos principais mentores da agenda educacional do governo ultraconservador nos costumes e de índole neofascista do atual presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro.

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inábeis para leitura e para escrita. Vale notar que essa narrativa parece ter se intensificado no período de democratização do ensino superior, em que jovens, negros em sua grande maioria, provenientes de classes populares e a primeira geração de sua família a adentrar no ensino público superior, passaram a compor boa parte dos corpos discentes de algumas universidades brasileiras.3 Buscando fazer um contraponto a essas narrativas, que enfatizam uma suposta “falta” de letramento de estudantes das classes populares, este texto apresenta, a partir de um diálogo com dois alunos de graduação, integrantes de nossas pesquisas e co-autores deste artigo, construir narrativas contra-hegemônicas que indiciam aquilo que, de fato, esses estudantes, moradores de áreas periféricas da cidade, produzem em termos de letramentos e de cultura dentro e fora do ambiente escolar e universitário. Sem pretender estabelecer uma “autoridade etnográfica” (Clifford, 1986) na interpretação das histórias, procuramos costurar narrativas, ou melhor, trazer a tona histórias de vida que contam histórias diferentes, muitas vezes silenciadas, sobre a leitura e a escrita; histórias que desafiam certa concepção “escolarizada e/ou pedagogizada do letramento” (street, 2014). Para tanto, este artigo é organizado do seguinte modo. Na seção 2 apresentamos o que compreendemos por narrativa: trata-se não só de um método de pesquisa, mas sobretudo de uma perspectiva teórica e política, em que as autoras e autores assumem que toda a produção de conhecimento é resultado de uma escolha e de uma decisão epistemológica sobre o que é necessário narrar. Na seção 3 expomos algumas nuances da polivocalidade deste artigo, explicitando o modo como os diversos autores têm dialogado e a forma como Adriana Lopes demandou as narrativas de Calazans e Janaína. As seções 4 e 5, respectivamente “Sobrevivências” e “Nascimentos”, são o ponto central deste artigo: narrativas em que esses dois jovens se posicionam sobre suas

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Este texto foi publicado, em versão ligeiramente modificada, na “Revista da Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros” (ver Lopes, Silva, Facina, Calazans e Tavares, 2018). Em 2017 publicamos na revista “Trabalhos em Linguística Aplicada” outro artigo em que problematizamos as narrativas e trajetórias de Janaina e Calazans a partir das fronteiras dentro/fora da escola, argumentando que o trânsito desses jovens configura práticas de “transletramentos” (ver Lopes, Silva, Facina, Calazans e Tavares, 2017). Agradecemos às revistas pela autorização de publicar o material aqui.

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trajetórias de letramentos. Na seção 5 teorizamos nascimentos e narrativas, mostrando que as histórias de letramentos transbordam a si mesmas, desafiando formas dicotômicas de imaginar práticas de leitura e escrita que estariam unicamente “dentro” da escola, em oposição àquelas que estariam “fora” dos cotidianos escolares: as histórias de letramentos são histórias de trânsitos dos sujeitos entre espaços/tempos localizados em territórios de uma cidade marcada por uma série de segregações, violências e exclusões. Na seção 6, como resultado de nossa interação e das histórias narradas, elaboramos uma concepção de leitura e escrita que chamaremos de “letramentos de sobrevivência”, práticas escriturais de sujeitos subalternizados que desafiam o letramento formal e pedagogizado e, por conseguinte, o grafocentrismo, a dicotomia oral/escrito, bem como os princípios de racionalidade e de individualismo que permeiam as definições eurocêntricas daquilo que conta como “escrita” na modernidade. Por fim, destacaremos nas palavras finais deste artigo a importância da compreensão etnográfica sobre a escrita como uma forma de construção de currículos mais dialógicos em instituições de ensino, tanto de escolas, quanto de universidades.

Narrativas A “narrativa” é uma temática fundamental em vários debates das ciências humanas. Crapanzano (1984, p. 86) destaca que, apesar de ser um tipo de textualidade central para compreensão da experiência, das identidades e da realidade social, as narrativas são contraditórias e de difícil encaixe em moldes disciplinares, pois é “mais literária que científica — e, ainda assim, mais científica que literária” (op. cit.). Desse modo, o estudo da narrativa parece colocar em xeque o pressuposto da impessoalidade e da objetividade, exigida em muitos campos do saber. Porém, adotando, uma abordagem “desconstrutivista” (Bauman & Briggs, 1990) ou um pressuposto chamado de “virada narrativa” (Clandinin e Connely, 2011), pesquisadores de várias áreas, como por exemplo da educação, da antropologia, da psicologia, da linguística e da história, vêm trabalhando com o que denominam de “narrativas” ou “historias de vida” (cf. Clandinin e Connely, 2011; Moita Lopes, 2010; Briggs, 2007; Josselson e

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Lieblich, 1999). Mais do que perscrutar por uma verdade imanente e natural dos acontecimentos e da vida das pessoas, esses estudos destacam que a experiência torna-se significativa e acessível ao ser narrada pelos sujeitos; e tal narração, por sua vez, só pode ser conhecida ao ser interpretada, (re) contextualizada e (res)significada pelos próprios pesquisadores. De uma maneira geral, entendemos que os significados da vida não podem ser determinados fora das histórias que são contadas sobre ela. Assim, a vida não pode ser vista como algo independente de sua adequação em histórias, tampouco as histórias podem ser compreendidas independentemente de sua conexão com a vida e a forma pela qual é vivida. Vida e história não são fenômenos separados; elas são parte de uma mesma fábrica em que a vida informa e é informada por histórias (Widdershoven, 1993). Entretanto, conceber a vida e a narrativa como fenômenos intrinsecamente relacionados, não significa dizer que essas possuam uma relação especular, isto é, uma narração não é um espelho fiel do que ocorreu, tampouco o próprio “eu” da narrativa é um reflexo de um “self” interior e exterior à narratividade. Compartilhamos a visão de alguns autores da antropologia (Bauman, ANO?; Briggs, 1990) e da linguística (Moita Lopes, 2009; Silva, 2014) na qual a narrativa é entendida como uma performance, ou seja, no momento em que as pessoas narram suas histórias, elas estão relacionando “não só eventos de uma narrativa (os eventos narrados), mas também estão envolvidos na performance de quem são na experiência de contar a narrativa (o evento de narrar)” (Moita Lopes, 2009, p.134-135). Vale destacar ainda que o termo performance não é aqui utilizado para designar uma forma artificial de comunicação habilidosa (Bauman e Briggs, 1990)4. Performances são sobretudo atos performativos, isto é, são narrativas por meio das quais os sujeitos reinventam, reiteram e modificam a si mesmos, as suas próprias experiências, bem como o contexto em que vivem. As performances narrativas são fundamentalmente intertextuais, ou seja, as histórias que contamos sobre nós mesmos são sempre influenciadas por 4

Bauman e Briggs (1990) destacam que os estudos da performance são muitas vezes criticados e minimizados por teóricos de perspectiva limitada e etnocêntrica. Ainda segundo eles, muitos estudos antropológicos desconsideram o caráter “heterogêneo e dinâmico” do uso da linguagem (ou seja, sua característica fundamentalmente performática) “e o papel central que esta ocupa na construção da realidade social” (p. 188).

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histórias de outras pessoas. Em nossas vidas, estamos citando a nós mesmos e aos outros, criando sempre novos padrões de significados. Performances narrativas são como os signos linguísticos que, de acordo com o filósofo Jacques Derrida, provocam uma différance, ou melhor, uma disseminação de sentidos. Nas palavras de Derrida, todo signo, linguístico ou não linguístico, falado ou escrito, no sentido corrente dessa oposição, em pequena ou grande escala, pode ser citado, posto entre aspas. Por isso ele pode romper com todo o contexto dado, engendrar infinitos novos contextos de modo absolutamente não saturável (1990, p. 25).

Assim, em cada performance narrativa que produzimos, estamos transferindo e colocando a nossa experiência em outros contextos e em outras redes de relações. Como destacam Bauman e Briggs, uma dada performance, apesar de única e singular, está sempre ligada a outras que a precedem e a sucedem — “performances passadas, leituras de textos, negociações, ensaios, fofoca, relatos, críticas, desafios, performances subsequentes, e similares” (1990, p. 189). Assim a vida seria um processo infinito de différance (Derrida, 1990), em que os sujeitos (re)criam histórias de outras histórias, (res)significam narrativas únicas ou rupturas particulares, parciais e contingentes sempre historicamente situadas. Trabalhar com narrativas é, então, situar-se politicamente, decidir, fazer escolhas entre performances narrativas possíveis. Assim, cabe nos perguntarmos quais narrativas pretendemos tecer? Segundo Briggs (2007) há um mapa de comunicabilidade em que algumas narrativas são constituídas por discursos preferíveis e “entextualizados”, outros são marginalizados ou silenciados; alguns discursos são considerados verdades, outros mentiras, falsidades ou nem sequer são ouvidos. Como destaca Silva (2014), Bauman e Briggs (1990), inspirados por Jacques Derrida, criam o termo “entextualização” para designar a viagem do signo, sua caraterística disseminadora. De acordo com os próprios autores, “entextulização” é a característica que possui todo o discurso de capturar o discurso “extraível, de fazer de um trecho [stretch] de produção linguística uma unidade — um texto — que pode ser levado [lifted out] para fora de seu evento interacional” (Bauman e Briggs, 1990, p. 73). Utilizamos

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“entextualização” aqui por capturar bem a ideia de que ao contar histórias, estamos deslocando, (re)contextualizando, selecionando ou silenciando aspectos de tantos outros discursos, de tantas outras histórias. Todo texto carrega a história de seu uso consigo. Portanto, não são textos que foram encontrados ou descobertos em nosso campo de pesquisa, mas emergiram como resultado de nossas interações, negociações e demandas, que aconteceram principalmente ao longo de 2015. Diríamos que se trata de um exercício de “colocar-se diante do outro”, numa espécie de “tradução cultural” (Asad, 1986) em que importa compreender as diversas formas pelas quais os sujeitos envolvidos nesta produção textual traduzem seus contextos, ou melhor, “entextualizam discursos” (Bauman e Briggs, 1990) ou histórias que constituem suas experiências e cotidianos.

Demanda por narrativas5 Calazans, jovem, negro, nascido no Complexo do Alemão, MC do Funk, cursou entre 2013 e 2017 Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Janaína, jovem, branca, nascida na Baixada Fluminense, organizadora de um dos Saraus que acontece na cidade de Nova Iguaçu, cursa Letras na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mesmo morando e estudando em lugares distintos, os dois se conhecem, pois participam (ou participaram) de partidos políticos de esquerda e de grupos militantes pelos direitos humanos, mais especificamente de coletivos que trabalham com cultura, violência e juventude. Ambos fizeram parte da Associação de Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk), um coletivo que, entre outras coisas, procurou criar canais alternativos de comunicação com a

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Utilizamos a expressão “demanda por narrativas” fazendo referência a um dos escritos de Jacques Derrida, “Living on/Border Lines” (1979). Para o filósofo, já que as narrativas não têm a propriedade de dizer tudo como aconteceu “à risca”, deveríamos nos perguntar sobre “qual é a demanda para a produção de uma determinada narrativa?”. A resposta a essa pergunta, apesar de não estar explicitamente no texto, é constitutiva dos sentidos que ali serão tecidos. Por exemplo, a partir de qual demanda se produz uma narrativa? Uma demanda policial, escolar, amorosa etc.? Pensar qual é a demanda é compreender os efeitos de sentido que certa narrativa encena e provoca.

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sociedade, buscando combater estigmas ligados às produções culturais periféricas, principalmente discursos e práticas que criminalizam o Funk Carioca. Calazans, Janaína, Adriana Lopes e Adriana Facina tiveram suas histórias cruzadas na Apafunk. Em outros espaços de ativismo e pesquisa, como o Museu Nacional da UFRJ e o Instituto Raízes em Movimento, no Complexo do Alemão, Calazans, Adriana Facina, Adriana Lopes e Daniel cruzaram caminhos. Adriana Lopes e Adriana Facina foram sócias fundadoras da Apafunk. Adriana Lopes escreveu um livro destacando que tal associação permitiu que o funk fosse significado como uma forma de mobilização social em torno da reivindicação e da promoção de direitos não só para os artistas do funk, mas para a juventude de periferias e favelas (Lopes, 2011). Os artistas da Apafunk organizaram, por um longo período, eventos culturais pela cidade do Rio de Janeiro, como Rodas de Funk ou Saraus. Por um certo período, Calazans passou a atuar diretamente na Apafunk, como MC, produzindo o que ele chamou de primeiro funk crítico às Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), presentes na região onde ele mora. Janaína, por sua vez, entendeu que com os Saraus da Apafunk a poesia estava nas ruas. A partir da vivência nesses eventos, que aconteciam mensalmente no Centro da cidade do Rio de Janeiro, Janaína decidiu criar um Sarau em Nova Iguaçu, chamado Sarau V de Viral. Mas o restante dessas histórias será apresentado nas próximas seções. Por ora voltaremos à demanda de produção das narrativas. No primeiro semestre de 2015, convivemos — Raphael Calazans, Adriana Lopes, Adriana Facina e Daniel Silva — quase que semanalmente; Adriana Lopes e Janaína, em outro contexto, também conviviam semanalmente. Mas diferentemente de outros momentos, os encontros de todos, a partir de 2015, passaram a acontecer na universidade. Calazans foi um dos idealizadores do curso “Sobreviver/Sobrevivências”, ministrado por Adriana Facina, Adriana Lopes e Daniel Silva no curso de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, onde Facina atua como professora. Janaína, por sua vez, começou a trabalhar com Adriana Lopes quinzenalmente na UFRRJ, na leitura da revisão bibliográfica para a elaboração de sua monografia, que tem como tema os letramentos e as identidades do Sarau V de Viral. Esses encontros foram muito produtivos: dois sujeitos únicos, mas que, aos poucos, pareciam tecer histórias de letramentos semelhantes em tantos pontos; histórias que mostram algo que a escola quase sempre negligencia:

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aprender a escrever não é aprender uma técnica neutra, mas sim aprender a posicionar-se no mundo a partir de uma determinada experiência singular e dos recursos disponíveis. Ao final do semestre, Adriana Lopes solicitou que cada um deles produzisse uma narrativa sobre a sua história de letramento para que pudéssemos fazer um artigo em conjunto para ser publicado. Ambos ficaram altamente empolgados com a ideia. São jovens que têm um gosto especial pela escrita e fazem isso cotidianamente. Parafraseando e juntando trechos das narrativas de Calazans e de Janaína: “são jovens que já escreviam, antes mesmo de aprender a escrever”. Passemos então às narrativas de Raphael Calazans e Janaína Tavares.

Sobrevivências A minha história se confunde com a de muitos outros moleques, negros, pobres, nascidos no início da década de 1990; moleques que nasceram junto com o surgimento do “símbolo favela” e a sua circulação nos jornais e no imaginário da população do asfalto. Os morros da Zona Norte e Oeste, o mundo para além do túnel Rebouças [que liga a Zona Sul à Zona Norte carioca], antes desconhecidos e reclusos, cada vez mais se aproximavam das terras nobres da Zona Sul. Muito especialmente através do nascimento do Movimento Funk. Esse, quase um irmão gêmeo, que hoje é meu melhor amigo e minha mais potente arma, também foi meu primeiro professor; os bailes, a minha primeira escola, meu jornal, meu livro e minha caixa de depósito de tristezas e de saudades. Venho ao mundo, na década que a favela começa a pular o muro da cidade partida, por isso, não à toa, toda minha caminhada tem sido nesse sentido: pular os muros, mas nunca esquecer o meu verdadeiro lado, até a completa derrubada desses muros. Meu pai, José Carlos, ou como é conhecido, o ‘’Zé Borracha’’, saía de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, para trabalhar como borracheiro na Penha, bairro da Zona Norte. Como a viagem era longa, vez ou outra, ficava na casa de amigos, no conjunto de favelas do Complexo do Alemão. Lugar onde fez grandes amizades, passando a ser conhecido por todos da área. Mudou-se para lá com minha mãe e minha irmã mais velha. Minha mãe passou a ser zeladora de uma igreja presbiteriana.

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No fundo dessa igreja nasci e tive meus primeiros contatos com o mundo. Devo à igreja a barriga cheia, por nunca ter passado fome, e a casa pequena, de um cômodo, que foi cedida à minha família. Mas o meu principal ganho foi o contato com a música gospel. Causava-me bastante emoção ver a música negra ecoando nas vozes graves das simpáticas senhoras e de um senhorzinho franzino, negro e pobre, tocando um contrabaixo. Ainda que a Igreja, a música gospel e o samba tivessem importante peso na minha trajetória, foi a vida no Complexo do Alemão em que eu, o “borrachinha”, filho do “Zé Borracha”, iniciei os grandes estudos da minha vida. Ruas, becos, amigos, brigas, aniversários, calote de ônibus, bailes, muitos bailes. Vivendo entre o perigo dramático da violência no dia a dia das operações policiais e a correria cotidiana para inventar a sobrevivência, comecei a ler o mundo que estava ao meu redor. Se por um lado a pobreza, a ausência de serviços públicos, a falta de saneamento básico colocavam-se como prisões que não nos permitiam sair “desse lugar”, por outro foi a partir dessa escassez que aprendi e comecei a me alfabetizar. Tiê e Playboy, dois pretinhos, uma das primeiras duplas de MCs do já movimento bombástico da cidade, o Funk, foram as minhas inspirações primárias. No contexto de brigas nos bailes e de formação dos bondes no Alemão (o da Fazendinha e o da Grota), a dupla lançou uma música que virou febre na comunidade, o “Rap da Mudança”. Eles cantavam assim: “Se entre duas pedras nasce uma flor / Entre os funkeiros pode nascer o amor / Papapapapare pare pra pensar / Papapapapare pare Dj pode soltar”. Muito impactado por essa música, que falava de amor, pedra, favela, briga: coisas tão antagônicas entre si, mas que faziam todo o sentido em quem vivia por aqui. Fui percebendo que nas favelas as dicotomias não faziam muito sentido. O traficante “mal”, “diabólico”, era o colega que curtia as festas comigo. A pobreza, a fome e a violência não impediam que existissem relações amorosas, embora nos filmes e nas novelas, o cenário de amor sempre fosse a “praia” ou um lugar “bonito”, “rico” e “harmônico”. Nesse sentido, meus amigos e eu, mesmo sem saber escrever, escrevíamos sobre tudo que vivenciávamos e sentíamos no Complexo. Eram brincadeiras de escrever “raps”, sobre esse mundo onde os antagônicos encaixam-se e formam um quadro por meio do qual desenhamos a vida. Aqui, viver e morrer, chorar e rir, dor e alegria, eram sinônimos. De modo que escrevíamos, colocávamos as

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letras que não combinavam e eram sem sentido de acordo com a escrita escolarizada, mas eram os nossos sentimentos que davam sentido à caneta e ao papel. E, assim, após ser alfabetizado pelos becos, eu traduzi o meu primeiro rap: “Obá, obá, obá... ôôô... amigos de verdade, / é o nosso bonde, demoro. /Aqui do beco da 10, / da Nova Brasília, / vejo a Danila / os meus olhos até brilha. / Se fosse um cara rico, / um homem de valor, / compraria até o sol / e dava prá você, meu amor’’.

Porém, a favela é onde os meninos tornam-se homens mais cedo. E isso valeu para mim quando, aos 12 anos de idade, após uma das operações mais violentas no Complexo do Alemão, perdi dois dos meus melhores amigos, além de um primo, sobrinho do meu pai, que morreu na nossa frente. Naquele momento, tive que optar por “ser alguém”, deixar de ter apelido e ter um nome. Deixar de andar nos becos e andar nas ruas; deixar de falar gíria e falar de acordo com a gramática. Ou seja, tive que deixar de escrever e ler a favela pelo funk e entrar para a escola. O chamado para isso veio pelos meus pais, já envelhecidos, doentes e preocupados comigo — a última esperança viva da família. Eles tinham medo que eu me perdesse no morro e virasse estatística. Assim, minha mãe limparia o chão da igreja, mesmo que sua coluna estivesse já bastante comprometida, para pagar um cursinho preparatório. Seu sonho era que estudasse numa escola que me desse, no mínimo, a chance de pegar um ônibus para fora dos braços do Complexo do Alemão. Já bastante emocionado pelas perdas dos amigos e o apelo da família, abracei o projeto com determinação. Mesmo sabendo que as chances eram muito poucas: um filho da periferia carioca, filho de uma zeladora e de um pai borracheiro semianalfabetos, disputar vaga nas escolas mais tradicionais da cidade. Porém, embalado nos CDs dos Racionais, fugindo do drama para “não ser mais um preto fudido”, fui aprovado para cursar o ensino médio no Colégio Pedro II, onde conheci o grêmio e o movimento estudantil. No ano seguinte, no entanto, fui aprovado para a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fundação Oswaldo Cruz. Foi lá que minha vida deu um giro. Como um dos poucos negros e pobres da escola, tive que forçar a minha “intrusão social”, disputando com os demais alunos que

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estavam bem à frente de mim na escolarização. Compensei a dificuldade de leitura e escrita com muito esforço. Naquele lugar, vivi dez anos em três! Por ser uma escola que pretende construir uma educação crítica, havia um grande incentivo à participação política dos alunos em movimentos sociais e na vida política da própria instituição. Lá eu conheci e participei de diversos movimentos sociais. Tive contato com a literatura marxista, participei de grupos de estudos. Ao circular pela cidade, encontrei pessoas e um mundo novo bem diferente e distinto do que tinha conhecido até então. Foram anos intensos de muito estudo, articulações e conhecimentos. Fui liderança do grêmio da escola, passei a ser um aluno respeitado pelo meu engajamento político. Foi no ano de 2010, época da Campanha de reeleição do deputado Marcelo Freixo do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que conheci outros movimentos populares definitivos na minha história. Grupos que organizavam suas reivindicações em torno de críticas às Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs) instaladas em algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Nesse contexto, conheci pessoas que estudavam a criminalização da pobreza, a cultura popular e grupos político-culturais que agitavam a cidade. Sem perceber já estava voltando para a favela, agora de forma mais ampla, coletiva e crítica. Mal sabia que esses grupos e pessoas que ali encontrei — do qual destaco a Apafunk e a professora Adriana Facina, o Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro e o reencontro com meu parceiro de vida, Alan Brum, do Instituto Raízes em Movimento — seriam tão importantes. Aos poucos, portanto, estava “voltando para o Complexo”. A própria formação acadêmica me levou a isso: o meu trabalho de conclusão de curso foi sobre o funk no Alemão — assim, a retomada do meu território foi imprescindível e inevitável. Naquele momento, o Complexo iniciou um dos processos mais violentos da sua história: a instalação da UPP. Em 27 de Novembro de 2010, as tropas militares invadiram e ocuparam o território. Foi o início de um novo contexto em que o dramático aumento das violações dos direitos foi acompanhado por múltiplas formas de resistência e sobrevivência criadas pelos atores sociais locais. Nem eu nem o Complexo já éramos o mesmo. Da minha geração, quase metade foi morta ou presa. Lugares, amigos, bailes, minha primeira e decisiva escola estava sob escombros. Eu mesmo, enquanto estudante, militante, já não tinha mais a “pegada dos becos”, talvez por ter me tornado um “pretinho

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tipo A”, como diz Mano Brown. Isso me trouxe uma série de confusões. De tanto criticar e me esforçar para compreender criticamente a sociedade, precisava eu mesmo passar por uma autocrítica: até que ponto valeu a pena minha “intrusão social”? Qual validade daquilo para o meu lugar? A autocrítica permanece comigo até os dias atuais, porém decidi voltar para o Complexo, de volta para o banco de aluno. Foi quando assumi minha profissão de MC, tendo gravado a música “Polícia passa e fica a dor”, a primeira música de crítica do funk à UPP. Voltei para o Instituto Raízes em Movimento e passei a participar da vida política do território, num momento especial e delicado. Articulei coletivos, fracassei em muitos. Os bailes já não existiam e agora também não existem mais, porém ficou a luta por eles. Percebi que ao pular o muro da cidade partida, me tornei um pouco como aqueles que moravam do outro lado do mundo e, de certa forma, demorei muito a voltar. E essa volta só assume sentido para mim se for para a derrubada completa desse muro. Ao ler a favela e me alfabetizar pela metodologia da cultura viva e criativa da sobrevivência, que reinventa a vida a partir daquilo que nega a própria vida, percebi que a “escola do asfalto” não é mais importante ou sofisticada e detentora do verdadeiro conhecimento. Durante um tempo confundi esses papéis e foi onde mais perdi tempo. Para exemplificar isso termino com uma história, que é muito cara e significativa, por explicitar bem tudo isso. Nas minhas voltas da Fiocruz, eu sempre entrava no Alemão de jaleco e com livros na mão. Certa vez, um grande amigo, que naquela altura havia se tornado traficante, me pediu emprestado um “daqueles livros de política que eu sempre lia”. Nunca levei esse pedido a sério, uma vez que ele era semianalfabeto, tendo apenas estudado comigo nas ruas. Nunca entenderia o que aquele texto argumentava, nem o que significavam as expressões neoliberalismo, capitalismo etc. Tempo depois, na invasão do exército, ele morre. Fiquei triste por não tê-lo presenteado com o livro, mas dediquei a ele a minha monografia sobre funk e favela. Era um texto meu, sobre tudo aquilo que vivemos e até certo ponto, sobrevivemos. Das nossas escritas, da nossa escola nos becos, dos nossos momentos e das dificuldades que enfrentamos. Esse é o preço de você abandonar os seus estudos e ir para escola. Preço que pago até hoje: o de refletir, por fora, tudo aquilo que você aprendeu e viveu, por dentro.

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Nascimentos A primeira vez que nasci foi no ano de 1990. Cresci ouvindo funk melody, tomando guaraná Simba e jogando um Super Nintendo velho que tinha passado de mão em mão. A vida no subúrbio do Rio, especificamente na cidade de Nova Iguaçu, lugar que cresci e vivo até hoje, foi boa apesar dos grandes índices de violência que assombram essa região. A rua foi minha primeira escola, a minha primeira rotina. Diferente de hoje, ela vivia cheia, crianças correndo pra todo lado e os adultos no portão. A rua ajudou a costurar minha infância e a esquecer das brigas causadas pelo alcoolismo do meu pai e dos meus tios que davam trabalho. Eu brincava de tudo um pouco, pique-bandeira, queimada, pique-esconde e corria com medo dos bate-bolas no período de carnaval. Sempre me escondia atrás dos cabelos brancos e crespos da minha vó, que cheirava a leite de rosa e ficava sentada no portão tomando cerveja nas noites de verão. Mesmo de família humilde e a casa cheia, eu sempre gostei de estudar e tinha meus momentos introspectivos. E o que me iniciou na literatura foi a sensação da garotada daquela época: Harry Potter. Devorava a história daquele jovem bruxo europeu que era desprezado pelos tios, mas tinha um refúgio justamente na escola. Estudei até o último ano do ensino fundamental nessas escolas particulares pequenas de bairro em que todos conhecem a todos e a mensalidade sempre pode ser paga atrasada. Aprendi a ler e a escrever com 6 anos, lembro pouco desse período, mas guardei o nome e a fisionomia da minha primeira professora, Leila, tinha covinha na bochecha e era muito paciente. Quando li minha primeira frase, nasci pela segunda vez. Dos meus muitos nascimentos, quase todos, a figura do docente estava lá auxiliando no parto. Fabiana, minha primeira professora de redação, me viu crescer e acabou sendo minha professora porque ela dava aula nesta escolinha de bairro que mencionei. Contei que conseguia digitar rápido no meu computador usado 386, presente da minha irmã mais velha que vivia no Nordeste e tinha uma situação financeira melhor que a nossa, mas que não tinha internet. Ela me pediu pra digitar um trabalho da graduação dela sobre Fernando Pessoa. E aí aconteceu a mágica. Fiquei fascinada com aquele português que tinha muitos heterônimos, que se multiplicava em vários,

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assim como a Horcrux (o bruxo insere em objetos partes de sua alma) nas histórias do Harry Potter. Fernando Pessoa faz isso com as palavras, transfere pedaços de sua alma em cada poema e eu em estado de encantamento fui presenteada por ela com o livro “A mensagem de Pessoa”. Depois desse livro, nasci pela terceira vez. Dos fingimentos de ser poeta, acho que aprendi a (res)significar as dores da infância muito bem. Filha de costureira e neta de dona de casa, nunca tive incentivo direto dentro de casa para ler e escrever, mas minha família vivenciava o universo musical, alguns cantavam e outros compunham. Um dos meus tios chegou a participar do quadro de calouros do Chacrinha. Minha mãe cantou por um período curto de tempo em barzinhos. Mas ninguém seguiu carreira musical, minha mãe continuou costurando e costura até hoje; um tio sobrevive como pintor em obras; um outro é pedreiro; o mais velho trabalha com dedetização e abriu uma pizzaria; e eu virei estudante do curso de Letras. Mas como cheguei até aqui? Minha mãe cursou até a sétima série e meu pai até a quarta, ambos não possuem prática de leitura: nem jornal e nem livros. Eles só trabalhavam e sofriam, o gênero literário daqui de casa era o dramático. A vida de minha mãe sempre foi rodeada de problemas e a válvula de escape era ouvir música e reunir a família nos churrascos dos finais de semana em casa. Se não tive uma cultura de leitura dentro de casa, dentro da escola muito menos. Mas o incentivo partiu dos professores. Eles foram figuras importantes e então tentei meu primeiro concurso: edital do Centro de Educação Federal Tecnológica (CEFET). Cursar o ensino médio em uma escola renomada e federal colocou tudo de cabeça para baixo. De certa forma, eu estava sendo privilegiada, ninguém da minha família cursou um ensino destes. Na escola, a escrita ia assumindo importância para mim, à medida que ia me politizando. Com quinze anos descobri o que era passeata, depois fui coordenadora de cultura do grêmio estudantil e promovi um evento com debates sobre direitos humanos e capoeira. Eu não sabia, mas já estava escondido em mim um lado produtora cultural que anos depois iria se revelar. Em 2009, conheci a Apafunk e em 2010 me filiei ao PSOL. Como gremista estudantil me envolvi com movimentos estudantis e partidários. A Apafunk conheci por meio de Guilherme Pimentel, que na época era estudante de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do

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movimento “Direito para Quem?”. Lembro quando Guilherme falou sobre maioridade penal numa atividade do grêmio estudantil do CEFET de Nova Iguaçu. Neste momento, conheci vários grupos e partidos de esquerda. Foi quando nasci pela quarta vez. Em 2011, me afastei dos movimentos sociais e por problemas pessoais, parti para o Nordeste, onde vive minha irmã mais velha (logo depois do falecimento da minha avó — morri pela primeira vez). Vivi um ano em Aracaju, cidade pequena, uma das menores capitais do Brasil e bem diferente cultural e socialmente da Baixada Fluminense. Foi neste período que a palavra “território” entrou no meu vocabulário. Eu precisei sair da minha cidade para me reconhecer como iguaçuana. Foi em Aracaju que percebi que quando estava no Rio, morava na Baixada, mas vivia focada na capital, não olhava para o meu próprio lugar, habitava Nova Iguaçu de fora para dentro. Fui bolsista do Programa Universidade para Todos (Prouni) em uma faculdade particular por lá e cursei um ano de Letras mais como distração e terapia do que como paixão. Participei de um concurso de poesia (até aqui já estava escrevendo com frequência) e com o prêmio de primeiro lugar viajei para Salvador. Objetivo? Conhecer um sarau de poesia, recomendado por Mano Teko, que na época era presidente da Apafunk. Quando ouvi o poeta Nelson Maca vivendo, sentindo e incorporando a poesia, nasci pela quinta vez. Entendi que a escrita de “carne e osso” estava na rua. Teko me contou da proposta de inserir intervenções poéticas nas rodas que a Apafunk estava promovendo por alguns espaços públicos da cidade do Rio de Janeiro. Daquela conversa, decidi voltar pra Nova Iguaçu, lugar que sempre vivi mas que jamais conheci. Nasci pela sexta vez e desta vez eu não era mais carioca e sim “baixadense”. O retorno foi difícil. Estávamos endividadas e ainda pagando empréstimo feito para bancar o caminhão de mudanças. Fui trabalhar como recepcionista num preparatório para concursos e ao descobrir que era um curral eleitoral, pedi demissão. O jogo virou quando finalmente ingressei na UFRRJ — campus Nova Iguaçu. Não prestei vestibular para nenhuma outra universidade. Queria estudar no meu território! Entrar numa universidade pública me fez nascer pela sétima vez. Começou a pesar no bolso e no psicológico eu ter que me deslocar de Nova Iguaçu até a Cinelândia tarde da noite e durante a semana para o Sarau

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Apafunk — principal espaço de lazer e referência pra mim. Decidi, então, que faria algo parecido em algum espaço público da cidade de Nova Iguaçu. Surgiu assim o Sarau V de Viral. Primeiro sarau de rua, de ocupação e intervenção do espaço público na cidade de Nova Iguaçu. Com o surgimento do Sarau, me projetei, conheci outros espaços culturais já existentes na cidade e adjacências e nasci pela oitava vez. Passei a viver a minha cidade de dentro para fora. Como disse Galeano, nós não somos feitos de átomos, como acreditam os cientistas, somos feitos de histórias. E como se conhecer e se reconhecer sem saber a nossa própria história? Se historicamente ela sempre foi contada pelo vencedor, pelo branco e europeu? Entendi a importância dos espaços nas periferias. O Sarau V é um evento periférico onde podemos contar outras histórias. No Sarau V, me transformo em MC e o microfone numa arma de palavras. No Sarau V, o microfone é aberto e na rua: local onde as pessoas têm a oportunidade de expandir-se através do contar-se para o outro. Desde 2013, o Sarau V acontece, mensalmente, na Via Light, no Centro de Nova Iguaçu. O Sarau dialoga com diversas linguagens artísticas, como o teatro, o circo, a poesia, o funk, o hip hop, a pichação e o grafite. É uma ação coletiva protagonizada por jovens da Baixada Fluminense; uma intervenção que busca escrever e constituir novos imaginários sobre e para a Baixada Fluminense. O “V”, como é conhecido, vem oxigenando a cena cultural da cidade de Nova Iguaçu, influenciando outros movimentos que surgiram com o mesmo recorte e ocupando o espaço público em outras cidades da Baixada, como o Sarau Rua, em Nilópolis, e o Caldo de Cultura, em Mesquita. No “V” a Baixada não é unicamente o lugar de mazelas e de violência, o lugar do “corpo estendido no chão”; no “V” reescrevemos o nosso território por um olhar de dentro, um olhar que desvela toda a nossa criatividade e a nossa potência, como poetas, como escritores, como fazedores de cultura e contadores de nossas próprias histórias.

Teorizando sobrevivências e nascimentos As narrativas de Calazans e Janaína interligam espaços e tempos, encenando “cronótopos”, ou seja, “uma condensação e concretização espaciais dos índices do tempo — tempo da vida humana, tempo histórico — em

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regiões definidas do espaço.” (Bakhtin, 1988, p. 355). O tempo dos nascimentos e das sobrevivências concretizam-se e condensam marcos espaciais que vão ganhando sentido no trânsito de Calazans e Janaína por vários territórios da cidade: estar “dentro e fora” do Complexo; estar “dentro e fora” de Nova Iguaçu; estar “dentro e fora” da escola. É, portanto, nesse trânsito que eles fragmentam-se, reinventam-se, sobrevivem e renascem em diversos contextos que encenam as “múltiplas redes educativas” (Alves, 2010) nas quais eles estão inseridos. Em suas histórias, a escrita é constituída de diversas maneiras — da escrita e da leitura do funk, nos becos da favela, à escrita e leitura da gramática, nos bancos escolares; da escrita da primeira professora, na escolinha de bairro, à reescrita do próprio território e da própria identidade, nas ruas da cidade. Janaína e Calazans parecem tecer narrativas em que as múltiplas redes educativas são acompanhadas por múltiplos letramentos: tanto aqueles que alguns pesquisadores dos “Novos Estudos de Letramentos” (Street, 2014; Mahiri, 2008; Barton e Uta, 2010) chamam de “letramentos marginais e/ou vernaculares”, quanto aqueles concebidos como “letramentos escolares e/ou hegemônicos”. Para a perspectiva dos “Novos Estudos dos Letramentos”, enquanto os letramentos hegemônicos são escolarizados, reconhecidos como a única forma legítima de escrita, um índice de inteligência e prestígio, “os letramentos vernaculares” estão relacionados com escritas incipientes e ordinárias e, além disso, são formas de letramentos, frequentemente, ignoradas e tidas como irrelevantes pelas instituições dominantes, principalmente pela a escola (Street, 2014). Porém, entendemos que tentar situar a forma pela qual Janaína e Calazans narram a escrita e a leitura em uma dessas duas tipologias não dá conta de toda a complexidade de significados que essa prática assume em suas trajetórias. Como já destacamos, é no trânsito por espaços físicos e/ ou simbólicos que eles apropriam-se de letramentos hegemônicos e vernaculares. No entanto, esse transitar não é destituído de conflitos, mas é permeado por “muros”, como enfatiza Calazans, ou seja, é um movimento tecido por embates e relações de poder (o que contará como escrita e o que contará como saber serão sempre disputados localmente). Nos “mapas comunicáveis” (Briggs, 2004) das narrativas escolares, poderíamos dizer, com Brian Street (2014, p. 130), que há um discurso que

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performativiza uma pedagogização do letramento, ou seja, tradicionalmente nas escolas, funda-se a falsa dicotomia oral/escrito e os processos sociais de leitura e escrita são indexicalizados por uma voz pedagógica como se fossem competências independentes, neutras e não carregadas de significação para as relações de poder e ideologia. Ainda de acordo com Street (2014), nesse processo a língua é tratada como um código formal, fixo, descorporificado e exterior aos sujeitos que falam e escrevem. Porém, para Calazans e para Janaína essa pedagogização é colocada em xeque em toda a sua trajetória, até mesmo no espaço-tempo escolar de suas vidas. Para eles, a escrita e a leitura parecem caminhar juntamente com o seu engajamento político — não é por um acaso que a própria escolarização desses dois jovens é permeada por suas participações em grêmios estudantis e movimentos sociais. Os dois jovens entextualizam discursos oriundos de letramentos vernaculares, tão fundamentais em suas vidas, quanto a escola e os seus letramentos hegemônicos. Diante da complexidade de trânsitos, instituições e imagens de pessoa humana invocados nas narrativas desses jovens, cabe aqui nos perguntarmos pela localização da escola nessas histórias de vida. Angela Kleiman (1995), uma das principais pesquisadoras dos estudos dos letramentos no Brasil, afirma que escola é a mais importante agência de letramento da sociedade moderna. Dito de outro modo, seria principalmente na escola que os sujeitos se engajariam em atividades de leitura e escrita em vistas de um objetivo comum. No entanto, acreditamos que deveríamos nos perguntar: principal agência de que tipo de letramento? Ao assumirmos que a escrita não é tecida apenas no interior da escola, mas também num circuito muito mais amplo, adquirindo diversos significados e usos locais de acordo com as demandas, os recursos e as histórias pessoais, julgamos que seria difícil circunscrever em um único contexto a agência de letramento mais determinante não só na vida de Janaína e Calazans, mas também na de qualquer outra pessoa. Desse modo, compreendemos que a escola funciona menos como um local limitável onde se aprende a ler e escrever e mais como a instituição que decreta performativamente o que conta como escrita em nossa sociedade, quais a dimensões dessa prática e, ainda, qual é a forma do corpo do sujeito que escreve. No trabalho de Ana Lúcia de Souza (2011) na periferia de São Paulo, lemos que não é a escola, mas sim o hip hop que funciona como um poderoso agente

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de letramento, produzindo leituras e escritas contra-hegemônicas. Ainda segundo Souza (2011, p. 40), “para ser leitor, dentro de um processo em que a palavra escrita é europeia e responde às teorias racistas vigentes, é preciso embranquecer”. Assim, em um jogo de disputas e reexistências, o hip hop contamina a escrita escolarizada com outros corpos e outras vozes, transformando continuamente aquilo que conta como língua e como escrita nos regimes de letramentos hegemônicos. Nesse sentido, observamos que na história de vida de Janaína e de Calazans, o funk, o samba, o hip hop, o grafite, a pichação, a rua são “agentes de letramento” tão poderosos quanto a professora de redação das escolinhas de bairro e os docentes de outras instituições escolares que cruzam os seus caminhos. Nesse transitar entre letramentos, a língua deixa de ser um código formal e exterior, transformando-se numa forma de ação no mundo, uma prática fundamentalmente dialógica de engajamento com o outro. Parafraseando MC Janaína, nas ruas, a palavra vira arma, pois se expande e se democratiza.

Letramentos de sobrevivência Como aludimos na seção 3 deste artigo, juntamente com Calazans, em 2015, procedemos a uma empreitada teórica de estudar a questão da sobrevivência — algo que havia emergido do campo, numa entrevista com o próprio Calazans, em 2012, quando ele correlacionou a cultura na favela a uma cultura de sobrevivência, i.e., uma forma coletiva de imaginar a partilha de recursos simbólicos e materiais em territórios periféricos (Facina, 2014). Inspirados pela ideia de sobrevivência, encontramos autoras e autores que criticam a ideologia vitalista da filosofia ocidental (Cheah, 2003), formulada com base em dicotomias como vida/morte; ou em algum tipo de presença imanente, em que algumas vidas valem mais do que outras (Levi, 1988; Butler, 2005); ou ainda na atribuição desigual de voz e verdade às narrativas, atribuindo citacionalidade a algumas e silenciamento a outras (Burgos, 1993; Arias, 2001; Briggs, 2007). Para nós, sobreviver, além de implicar movimento, é uma forma de criticar binarismos como viver e morrer. Derrida (1979, p. 89) argumenta que a sobrevivência está para além da dicotomia moderna

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viver/morrer: “o sobreviver transborda, ao mesmo tempo, o viver e o morrer, suplementando-os, um e outro, como um sobressalto e um alívio temporário, parando a vida e a morte e ao mesmo tempo”. A demanda de narrativas apresentada por Adriana Lopes aos dois jovens, assim, produz respostas sobre os letramentos que não apenas sobrevivem à demanda em si (no sentido trivial de sucedê-la), mas também entextualizam — isto é, recontextualizam e invocam elementos de uma história de uso (Bauman e Briggs, 1990) — uma cadeia de interlocuções. Retomemos um excerto da narrativa de Calazans: Vivendo entre o perigo dramático da violência no dia a dia das operações policiais e a correria cotidiana para inventar a sobrevivência, comecei a ler o mundo que estava ao meu redor. Se por um lado a pobreza, a ausência de serviços públicos, a falta de saneamento básico colocavam-se como prisões que não nos permitiam sair “desse lugar”, por outro foi a partir dessa escassez que aprendi e comecei a me alfabetizar.

O evento de letramento onde se produziu o excerto acima transborda a si próprio. A perspectiva sobre viver e morrer na favela produzida por Calazans tem uma temporalidade aberta — aponta para o passado e futuro e para diversas camadas da vida social. Assim, esse evento requer uma “análise de discurso para além do evento de fala”, como sugerem Wortham e Reyes (2015) no título de sua obra recente. Nos termos de nossa etnografia, essa temporalidade aberta dos letramentos tem implicado não apenas traçar circuitos inteligíveis às nossas aspirações e aos constrangimentos das tramas institucionais de que participamos, mas também enfrentar demandas dos próprios sujeitos no campo. Por exemplo, como se lê no excerto acima, para nós, entender regimes de letramento também tem implicado entender regimes de policiamento. No metadiscurso de Calazans, alfabetizar-se emerge não da vocação iluminista dos agregados modernos, tampouco da apropriação de um técnica neutra escolarizada, mas da resposta à violência policial e à “ausência de serviços públicos” (que não sejam UPPs ou presídios). Escrever, para Janaína e Calazans, coaduna-se com os títulos de suas narrativas: “Nascimentos” ou “Sobrevivências”. Obviamente, ela e ele não estão se referindo a um sentido biológico de nascer ou sobreviver, mas ao seu

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sentido político. Trata-se de um nascimento ou de uma sobrevivência que “vem depois”, ou melhor, do surgimento de uma segunda natureza, que não inaugura o puro e genuíno; ao contrário, traduz ou reescreve a vida a partir de uma inserção política no mundo. É nessa repetição e nessa reinscrição que residem o que estamos chamando de sobrevivência. Já que todo texto carrega a história de seu uso consigo, o signo “favela”, ao ser enunciado por Calazans, carrega as marcas de um discurso que situa esse território unicamente como “o outro lado da cidade da cidade partida” — local da pobreza, da miséria e do crime. Porém, ele inverte essa perspectiva, entextualizando outros discursos, aqueles que entendem a favela não como o espaço da alteridade assustadora e irredutível, mas como o território de origem e de habitação; o território do cotidiano e, como tal, o local onde se cria, se sobrevive e se aprende: “onde se escreve, mesmo sem saber escrever.” Como já apontamos, em contextos de sobrevivência, viver e morrer não se opõem. Trata-se antes de forças agentivas que moldam e dimensionam a experiência. Ao fim de sua narrativa, Calazans relata que um de seus grandes amigos foi morto na invasão empreendida pelo exército em 2010, etapa inicial para a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora no Complexo do Alemão. Uma vez que, em vista do escasso letramento escolar do amigo, Calazans havia ignorado sua demanda para lhe emprestar um “daqueles livros de política que [ele] sempre lia”, o pesar e a tristeza pela morte ulterior do rapaz o fazem inscrever a memória do amigo como dedicatória à sua monografia sobre funk e favela. Reinventando a vida “a partir daquilo que nega a própria vida” — a morte? —, Calazans então questiona o preço que se paga pela hierarquização topográfica entre o “dentro” e o “fora” do território. Tal como Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (Rocha, 1965), que morre junto com Virgulino Lampião e, por isso, “precisava ficar de pé, lutando sem fim, desarrumando o arrumado, até que o sertão vire mar e o mar vire sertão”, o amigo de Calazans (e o próprio Calazans) desafiam a morte, fazendo a escrita sobreviver em sua monografia — e de lá para outros artefatos, como o que você tem diante de seus olhos agora. De maneira semelhante, Janaína se apropria da escrita em diversos momentos de seus nascimentos e mortes em vida. E a escrita vai ganhando um significado fundamental “à medida que [ela vai se] politizando”. Assim,

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sua trajetória de socialização na escrita culmina com a ressignificação de si mesma e de seu próprio território. Em suas próprias palavras: “de dentro para fora”. Nesse trânsito, a Baixada também é ressignificada: ela deixa de ser o lugar da “violência” e das “mazelas” e passa a ser entextualizada como o território “da criatividade”, da “potência juvenil” e da “poesia de carne e osso” que se escreve nas ruas.

Palavras finais Esperamos que essas histórias sejam lidas como metáforas para outras histórias: de “outros moleques, negros e pobres que (...) nasceram juntos com o surgimento do símbolo favela” ou de outros jovens que participam de intervenções culturais em territórios periféricos. Metáforas que causam estranhamento na forma pela qual essa juventude, frequentemente, é representada na mídia corporativa, na política e até mesmo na escola, como sujeitos destituídos de habilidades e competências, marcados pelo “iletramento”, que necessitam ser colonizados, civilizados e educados, como foi destacado nas matérias jornalísticas citadas no início deste artigo. Fazendo um contraponto a essa narrativa hegemónica, costuramos histórias da qual emergem citações que constituem sentidos opostos a essa suposta “falta” de letramentos. As performances narrativas de Calazans e Janaína encenam o que essa juventude efetivamente faz em termos de cultura, de educação e de letramentos. Vale destacar que mais do que observar “como os letramentos hegemônicos transformam as pessoas”, em nosso trabalho de investigação buscamos compreender “como as pessoas transformam os letramentos hegemônicos”. Em outras palavras, procuramos trazer à tona a forma pela qual esses jovens que foram subalternizados pela modernidade não se entregam pacificamente à escrita, mas dela se apropriam, transformando seus significados, constituindo-se como autores de suas próprias histórias e reinventando formas de sobreviver culturalmente. Por fim, vale destacar que como educadores e educadoras sustentamos que esse tipo de compreensão etnográfica sobre a escrita é fundamental, para entendermos que os estudantes não possuem qualquer tipo de “déficit” de letramento, mas que são pessoas com histórias de letramentos singulares,

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mobilizadoras de recursos simbólicos e materiais específicos no interior de suas comunidades; recursos que, muitas vezes, vão além dos saberes e das demandas de letramentos tradicionalmente exigidas pelas escolas. Além disso, tal entendimento é fundamental para construção de currículos mais dialógicos — tanto em escolas, quanto em universidades: onde se reconheça os diversos significados e usos da leitura e da escrita, criando nas instituições de ensino territórios de empoderamento, formas de reexistir e de sobreviver culturalmente.

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A internet salvou a gente mais que a UPP: tecnologias digitais conectadas em meio a uma cultura de sobrevivência JUNOT DE OLIVEIRA MAIA

Introdução O filme “Cinco Vezes Favela”, produzido em 1962 pela União Nacional dos Estudantes, é composto por cinco narrativas, cada uma retratando cenários e enredos específicos de favelas que cresciam no Rio de Janeiro durante a metade do século XX. Entre as histórias que compõem esse longa, chamo atenção para a última, dirigida por Leon Hirszman e intitulada “Pedreira de São Diogo”. A história começa com a explosão de encostas próximas a uma favela que está situada no alto da pedreira. Insatisfeito com os rendimentos decorrentes das explosões, o responsável pela produção exige que a carga de explosivos seja aumentada para 500kg, o que significava, por consequência, não só acabar com as moradias presentes naquela favela, mas também sentenciar à morte boa parte de seus moradores. Sabendo disso, os funcionários, tocados pela ação destrutiva da empresa, encontram uma alternativa discreta a fim de convocar os moradores para uma mobilização capaz de evitar a tragédia. Enquanto a maior parte dos pedreiros continuaria a trabalhar normalmente, um deles escalaria a pedreira e pediria a algum morador que convocasse os seus vizinhos para aparecerem na encosta do morro às 15 horas daquele mesmo dia. Chegada a hora, após alguma hesitação — a sirene autorizando a explosão chega a ser tocada —, os favelados vão chegando à encosta e, em alguns minutos, tomam toda sua extensão, demonstrando seu poder de resistência em relação à ordem dada pelo gerente da pedreira e sua motivação

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em proteger o local em que residem. A explosão é inviabilizada e a favela situada no alto do morro, então, sobrevive. Na situação retratada, a mobilização para que a favela fosse salva se dá pela comunicação direta entre falantes, o chamado boca-a-boca, ou seja, pelo ato de um trabalhador que, apoiado por seus colegas, passa a informação de mobilização para outra moradora, que, também tocada pela iminência de tragédia, entra em contato com outros moradores, e assim por diante. Trata-se, pois, de uma rede de ação política, formada por pessoas unidas por uma mesma causa e estabelecida por meio de um recurso tecnológico existente na década de 1960 — o contato direto via aparelho fonador, no caso — e disponível para aquela ocasião. Passados mais de 50 anos, podemos considerar — sem grandes chances de errar — que o personagem que trabalhava na pedreira provavelmente não precisaria gastar tanto tempo para escalar todo o morro e, somente após esse árduo trabalho, comunicar os moradores da favela de que uma nova explosão os colocaria em risco. Afinal, atualmente, os recursos tecnológicos para comunicação interpessoal são variados e permitem outras múltiplas formas de concretizar interações. O personagem principal poderia, por exemplo, usar o seu telefone celular para ligar para algum conhecido seu que também residisse na região. Se a ligação não fosse atendida, poderia deixar um recado na caixa postal de um outro morador ou tentar, talvez, uma chamada de áudio ou vídeo via Skype. Se preferisse escrever, poderia mandar um SMS ou, ainda mais comum hoje em dia no contexto brasileiro, mandar uma mensagem via WhatsApp. Poderia, ainda, variar ou multiplicar a transmissão de sua informação acionando a lista de contatos salva em seu celular. Tudo isso, toda essa gama de possibilidades, poderia funcionar, é claro, se a cobertura oferecida pela operadora de celular do personagem estivesse disponível na região em que ele se encontrava, fosse para sinal de telefone, fosse para conexão de internet sem fio. Ou, então, tudo isso poderia funcionar se os créditos constantes em seu celular fossem suficientes para fazer uma ligação, enviar um SMS ou ter acesso à internet para usar seu WhatsApp. Ou, ainda, tudo isso poderia funcionar se a conta de seu celular pós-pago estivesse em dia, ou se seu chefe não proibisse estritamente o uso de celulares durante o período de trabalho, monitorando por câmeras o cumprimento dessa regra por parte de seus empregados.

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Enfim, todas essas possibilidades anteriormente mencionadas — para o bem ou para o mal, diga-se de passagem — ilustram uma situação que, como nos aponta Leander (2009), já não precisa ser entendida como revolucionária ou incomum. Em contextos urbanos e de alta densidade demográfica, caso da cidade do Rio de Janeiro, a conexão à internet por meio de dispositivos móveis já é realidade há algum tempo e se torna cada vez mais abrangente. Ao fazer essa afirmação, não ignoro o fato de que o acesso a tecnologias digitais de informação e comunicação — as TDICs — no Brasil ainda seja caro, se comparado ao poder de compra do trabalhador comum formalmente assalariado. No entanto, concordo com Braga (2010) quando a autora afirma que há um aumento do acesso das camadas mais populares às TDICs devido ao investimento das próprias indústrias que fabricam esses recursos. Afinal, é interessante para elas facilitar o consumo de seus produtos por parte das populações mais pobres, pois estas representam um nicho de mercado promissor e robusto, o que indica uma grande oportunidade para aumento de lucros (Braga, 2010, p. 374). Assumo também que o acesso à internet por meio de tecnologias digitais nas favelas cariocas já é uma realidade perceptível, inclusive, nas pesquisas acadêmicas. Lícia do Prado Valladares, por exemplo, já chamava atenção para o fenômeno da favela.com nos idos de 2005 (Valladares, 2005, p.153). Pâmella Passos, em 2013, investigou diferentes efeitos da existência de lan-houses nas favelas do Santa Marta e de Acari (Passos, 2013). Nesse mesmo ano, defendi minha dissertação de mestrado sobre os letramentos digitais de Renê Silva, criador do portal “Voz das Comunidades”, na busca por participação política mais ampla (Maia, 2013). Adriana Facina, em 2014, ao refletir sobre cultura e “pacificação”6 no contexto do Complexo do Alemão, já registrava depoimento dado por MC Calazans que apontava o gatonet como elemento caracterizador de uma cultura de sobrevivência (Facina, 2014). Esse fato, por sinal, trazido à baila pela fala de MC Calazans registrada em Facina (2014), é a grande inspiração para este texto. Minha argumentação busca, sobretudo, levantar reflexões sobre as TDICs como recursos que, com

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Assim como Facina (2014), utilizo aspas ao mencionar o termo “pacificação” pela ironia nele contida se analisarmos a forma brutal e violenta com a qual o Estado age nos espaços de favela.

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todas as suas ambiguidades, têm se tornado peça fundamental na dinâmica de uma cultura de sobrevivência. Mais especificamente, pretendo analisar usos das tecnologias digitais que têm contribuído para expandir as possibilidades de participação política dos moradores do Complexo do Alemão entre os âmbitos local e global, considerando que cada um desses usos seja produto e produtor de sobrevivência. Proponho essa discussão a partir de declarações fornecidas em entrevista — da qual pude participar — feita com dois moradores do Complexo do Alemão, Mariluce Mariá e Cléber Santos, que fazem uso de um perfil na rede social Facebook para interagir com seus vizinhos e com outras audiências mais amplas na tentativa de ampliar suas chances de participação cidadã. Esse encontro, importante registrar, assim como tantos outros que tive com o casal, é um dos eventos que compõem o trabalho de campo que desenvolvi na região ao longo de cinco anos — entre 2013 e 2017 — e que resultou no texto final de minha tese de doutorado, intitulado “Fogos Digitais: letramentos de sobrevivência no Complexo do Alemão/RJ” (Maia, 2017). Antes de finalizar essa introdução, chamo atenção para o fato de que não busco, em hipótese alguma, propor reflexões que ajam no sentido de homogeneizar os contextos que caracterizam cada uma das favelas da cidade do Rio de Janeiro. Afinal, como nos mostra o trabalho de Lopes (2011) sobre o funk carioca, “a favela tem nome próprio” (Lopes, 2011, p. 134) e cada comunidade possui uma dinâmica social específica. De qualquer modo, acredito que esse texto, em suas particularidades, possa oferecer caminhos interessantes para se refletir sobre como as tecnologias digitais têm alterado as dinâmicas sociais das favelas em geral.

Tecnologias digitais em uma cultura de sobrevivência: possibilidades para a expansão de causas locais Para iniciarmos uma análise sobre como as TDICs afetam as dinâmicas sociais das favelas, proponho uma reflexão sobre o efeito mobilizador exercido por essas tecnologias em outra situação. Uma perspectiva mais ampla nos conduz ao trabalho de Shirky (2012 [2008]), que traz exemplo concreto

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ocorrido nos Estados Unidos acerca do papel das TDICs nas novas dinâmicas de circulação da informação. De acordo com o autor, em 2002, a Igreja Católica sofreu um forte ataque a sua reputação em função da publicação, feita pelo jornal “Boston Globe”, de uma matéria que denunciava as práticas de pedofilia realizadas pelo padre John Geoghan, da arquidiocese de Boston. As consequências, então, foram desastrosas para a instituição, que teve que lidar com o crescimento de organizações de fiéis questionadores independentes da própria Igreja Católica, como a VOTF (Voice of the Faithful), e com a renúncia do arcebispo da diocese de Boston, Bernard Law. O escândalo, por sua vez, não era o primeiro enfrentado pela mesma arquidiocese. Em 1992, uma década antes do caso Geoghan, James R. Porter, outro padre atuante em Boston, também foi acusado de abusar de menores em, pelo menos, três paróquias diferentes da cidade. No entanto, diferentemente do ocorrido em 2002, o caso de Porter não alcançou notoriedade naquela ocasião, tendo suas consequências restringidas praticamente somente ao âmbito da própria Igreja Católica. É curioso refletir sobre o que poderia ter mudado em uma década e que seria capaz de fazer com que duas situações consideravelmente semelhantes dessem origem a consequências tão diferentes. Shirky (2012 [2008]), então, vai sustentar, com base nesse caso relativo à diocese de Boston, que o advento das TDICs foi fundamental para que, em 2002, os crimes praticados pelo padre John Geoghan tenham causado tantos problemas para a Igreja Católica. Para o autor, as grandes diferenças residem na evidência de que, em 1992, não havia meios que viabilizassem o compartilhamento de informações com grande facilidade e nem ferramentas que permitissem a coordenação e a articulação de ações e de reações de forma ágil e organizada. No caso, o surgimento das tecnologias digitais de informação e de comunicação agiram determinantemente no sentido de cobrir essas lacunas, permitindo que o compartilhamento de informações entre sujeitos em diferentes regiões do mundo e a organização de ações concretas de mobilização via meio digital fossem facilitados. Shirky (2012 [2008]) chama atenção para o fato de que essas práticas, no entanto, não são necessariamente inéditas. Afinal, a ideia de compartilhar conteúdos já era posta em prática, por exemplo, por meio do recorte de

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artigos de jornal e do envio de cópias desses recortes para pessoas interessadas. Seria tentador, portanto, entender que essas ferramentas tecnológicas conectadas são potencializadoras de práticas já existentes. Esse reconhecimento, por sua vez, é certo e errado. Sua dualidade consiste na evidência de que as transformações provocadas pelo advento das TDICs são tão representativas que passam, então, a gerar novos efeitos nas práticas sociais que envolvem esses recursos. Shirky sustenta essa compreensão ao apelar para a distinção que certos filósofos propõem entre diferença de grau — correspondente a práticas já existentes — e diferença de qualidade — algo novo. Os filósofos por vezes fazem uma distinção entre diferença de grau (mais do mesmo) e diferença de qualidade (algo novo). O que estamos testemunhando hoje é uma diferença tão grande no grau de compartilhamento que se torna uma diferença de qualidade. Antes do e-mail e da web, ainda podíamos passar adiante e comentar as notícias do dia, mas o processo era pontuado por pequenas dificuldades. Os efeitos econômicos de obstáculos mesmo aparentemente insignificantes são imprevisíveis, mas notáveis: até o mínimo incômodo de enviar um recorte de jornal para um grupo (xerocar o artigo, providenciar envelopes e selos, escrever endereços) alarga o fosso entre intenção e gesto (Shirky, 2012 [2008], p. 128).

Em termos mais diretos, isso significa que é muito mais fácil para o sujeito compartilhar informação em rede por meio de um clique do que realizar uma série de procedimentos analógicos que, mais trabalhosos, acabam desmotivando os possíveis agentes de compartilhamento. Por isso, é fundamental entender que o papel das tecnologias digitais conectadas nas dinâmicas de informação e de comunicação foi o de modificar significativamente a difusão, o poder e, sobretudo, o tempo envolvido nas ações de mobilização social. Desse modo, tornaram-se mais fluidas as ações de interação entre os sujeitos na medida em que as barreiras às possibilidades de organização em rede para ativismo social foram consideravelmente dissolvidas, além de o caráter local da informação não mais se configurar como um fator limitante de sua circulação. Esse caráter expansionista do compartilhamento de informações é o que tem contribuído para que as lutas sociais praticadas pelos moradores do Complexo do Alemão extrapolem os seus limites geográficos. Situadas

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na fronteira — em um terceiro espaço, propõe Bhabha (2013 [1994]) — entre o local, fronteiriço e marginal, e o global, as postagens produzidas em redes sociais digitais por esses sujeitos acabam alcançando audiências diversificadas, o que representa uma grande chance de ampliação de suas pautas e, consequentemente, das possibilidades de participação cidadã em sua realidade. Diante desse panorama de veiculação de informação em meio à tensão local-global, chamo atenção para o fato de que as postagens feitas pelos moradores do Complexo do Alemão enunciam a existência de um cotidiano de resistência constante naquela região. Esse sujeito, nos termos de Bhabha, pensador poscolonial7, por meio de suas diversas práticas sociais e culturais, performatiza uma cultura de sobrevivência (Bhabha, 2013 [1994]). Em linhas gerais, [a] cultura como estratégia de sobrevivência é tanto transnacional como tradutória. Ela é transnacional porque os discursos pós-coloniais contemporâneos estão enraizados em histórias específicas de deslocamento cultural, seja como “meia-passagem” da escravidão e servidão, como “viagem para fora” da missão civilizatória, a acomodação maciça da migração do Terceiro Mundo para o Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, ou o trânsito de refugiados econômicos e políticos dentro e fora do Terceiro Mundo. A cultura é tradutória porque essas histórias espaciais de deslocamento — agora acompanhadas pelas ambições territoriais das tecnologias “globais” de mídia — tornam a questão de como a cultura significa, ou o que é significado por cultura, um assunto bastante complexo (Bhabha, 2013 [1994], p. 277).

Nesse sentido, essa cultura de sobrevivência é performatizada em enunciados que denunciam as situações de opressão existentes no Complexo do Alemão — simbolizadas majoritariamente pelas instituições de repressão do Estado, caso da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e

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Refiro-me aqui a um poscolonialismo sem hífen por concordar com Venn (2000). Segundo ele, não se trata de reconhecer que o poscolonialismo seja um período temporalmente posterior ao colonialismo; trata-se, isso sim, de refletir sobre como a diferença foi fator fundamental para que o colonialismo europeu conseguisse impor seus padrões e modernidades sobre outras culturas e, desse modo, subjugá-las.

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das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) —, mas que também registram a resistência desses sujeitos diante das adversidades, suas táticas para subversão de uma lógica do controle simbolizada pela cultura do asfalto, dominante e opressora. Podem, desse modo, ser interpretados como enunciados transnacionais — a seu modo, decolonizadores —, pois praticam o deslocamento cultural na medida em que intervêm desestabilizando o terreno do outro-colonizador a partir do momento em que se expandem. Além disso, apresentam caráter tradutório uma vez que, ao mesmo tempo em que tornam complexas as relações de deslocamento e de pertencimento praticadas pelos moradores, fazem com que as ações de violência e de resistência ocorrentes em seu cotidiano sejam ressignificadas a partir de outros olhares, de outras interpretações praticadas pelo outro, externo ao contexto e dele distante espacial e, sobretudo, simbolicamente. Essa reflexão, um tanto complexa, é traduzida no depoimento dado pelo jovem morador MC Calazans — registrado no trabalho de Facina (2014) — durante encontro promovido pelo Instituto Raízes em Movimento sobre políticas públicas e cultura: Não existiria o Complexo do Alemão se não fosse a cultura. E não só a cultura artística do grafite, do rap, do pagode, do samba. Não, eu acho que é uma cultura da sobrevivência. Por exemplo, o gatonet. O gatonet nada mais é do que uma cultura de universalizar o acesso à TV a cabo. O gatoluz nada mais é do que uma cultura da sobrevivência para universalizar o acesso à luz. Cultura da favela, do Complexo do Alemão principalmente, ela sempre veio da solidariedade. Então é assim: se você que mora embaixo do morro tem uma internet, o cara que mora aqui no pico da Grota tem que ter. Então pega os fiozinhos, vai engatando até chegar lá. Se você mora no pé do morro e tem saneamento básico, mano, puxa um caninho lá da puta que o pariu e vem emendando, fazendo gato, passando perrengue. Então essa cultura, que é o que acho mais importante, foda, incrível, essa cultura da sobrevivência fundada numa solidariedade, uma identidade de irmandade mesmo, que eu acho assim que é a mais... que poucas pessoas valorizam isso e quando valorizam é para legalizar: “vamos botar TV por assinatura, vamos acabar com os gatonets...”. Quando isso é uma cultura que o morro criou. Lan-houses, né, que foram criadas na própria favela para dar acesso à internet, mototáxi... Então a primeira cultura que a gente

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tem é uma cultura da sobrevivência. A gente tem uma realidade difícil, então, como vamos superar ela? Uma das formas de superar é construir uma cultura local (Facina, 2014, p. 40-41).

A fala de MC Calazans expõe a maneira como essa cultura de sobrevivência, estabelecida na tensão entre a opressão e a resistência, é pautada a partir do híbrido, da articulação de práticas culturais para sobreviver pelos becos. Nessa direção, a sobrevivência se constrói, assim como Bhabha (2013 [1994]) nos aponta, na “meia-passagem” de um histórico marcado pela escravidão e pela servidão, que ainda apresenta os seus reflexos na contemporaneidade, e pelas ações de luta social dos sujeitos, que agem no sentido de legitimar suas manifestações de cultura diante da opressão exercida pelos grupos de poder — no caso, Estado, classes mais abastadas e corporações de grande mídia, principalmente. A cultura de sobrevivência resiste e persiste, segundo o casamento das ideias de Bhabha (2013 [1994]) e de MC Calazans, no compartilhamento e na solidariedade. Levando em consideração, portanto, o potencial das TDICs de veicular informações que ampliam as possibilidades de participação política dos moradores do Complexo do Alemão e a maneira como esses enunciados são performances de uma cultura de sobrevivência, parto para a análise de algumas situações que ilustram como as tecnologias digitais têm sido (res)significadas nessa região que, a meu ver, materializa uma cultura de sobrevivência. Digo isso porque, desde o final de 2010, quando o Complexo do Alemão foi invadido e o processo de “pacificação” foi iniciado, ações violentas e desumanas, que vão desde agressões verbais e físicas até torturas e homicídios, são praticadas pelos agentes das UPPs e, muito raramente, são denunciadas por veículos da mídia corporativa. Diante dessa situação, os moradores têm usado amplamente as redes sociais digitais, como Facebook e Twitter, para fazer suas denúncias. Mariluce e Cléber, anteriormente citados, são um casal de moradores do Complexo do Alemão que, tal como alguns de seus vizinhos, exploram diferentes maneiras de usar seu perfil na rede social Facebook a fim de ampliar suas possibilidades de participação política em sociedade. Com base em declarações do casal fornecidas por meio de entrevista gravada em áudio, proponho, então, reflexões sobre como as TDICs interferem na dinâmica de uma cultura de sobrevivência como a que caracteriza o Complexo do Alemão.

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Complexo do Alemão entre o local e o global: reflexões sobre Mariluce e Cléber e as tecnologias digitais Mariluce Mariá é nascida e criada na Alvorada: em suas palavras, “é cria do Complexo do Alemão”. Mas foi no asfalto, mais precisamente no bairro de São Cristóvão, enquanto trabalhava como atendente da loja de conveniências de um posto de gasolina, que ela conheceu o companheiro, Cléber, cuja trajetória é bastante diferente. Nascido no extremo sul da Bahia, em uma cidade situada dentro do Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal, Cléber migrou para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Sonhando com artistas da Rede Globo e com praias paradisíacas, acabou se instalando na cidade de Nova Iguaçu, a 45km de distância do centro da cidade carioca. Na entrevista concedida às professoras Adriana Facina, Adriana Carvalho Lopes e Daniel do Nascimento e Silva no dia 19 de maio de 2015 no âmbito do curso de pós-graduação “Sobreviver, sobrevivências”, oferecido pelo PPGAS/ MN/UFRJ8 na Quinta da Boa Vista e da qual pude participar, Mariluce afirmou que foi ela quem apresentou Cléber ao Complexo do Alemão e o levou para morar lá. No entanto, foram as percepções dele — de similaridade entre sua terra natal e a favela em que, então, passava a morar — que motivaram o casal a pensar sobre uma forma de aproximar as pessoas de sua própria comunidade. [3’51’’] CLÉBER: Quando eu tava dentro da favela... Eu sempre fui muito curioso, gostei muito sempre de ler revista, tal, livro, essas coisa tudo, daí eu comecei a ver que eu poderia ajudar em alguma coisa aqui, que eu tava inconformado com a realidade dali de dentro, de tantas oportunidades, de tantas pessoas de bem que têm ali, tantas pessoas que têm a mesma realidade que eu, e eu, eu falo assim, eu queria levar as pessoas a terem essa inquietação que eu também tinha. Aí, a forma que teve foi a gente começar a analisar a realidade da Mariluce e a realidade dos parentes, dos primeiros, das pessoas que eu podia ter contato e foi quando a gente teve a ideia de criar, é... Tava em alta, né, o Facebook tava começando a

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Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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efervescência, aquela coisa toda. Tanto que tinha o Orkut na época, eu não era muito fã de Orkut, mas aí, quando o Facebook bombou mesmo, eu falei assim, “Agora tá na hora da gente começar a ter uma linguagem pra que a gente alcance o maior número de pessoas possível, pra que as pessoas tenham capacidade de entender essa minha inquietação e que a Mariluce entenda que a nossa ferramenta de comunicação com as pessoas seja de proximidade”, e aí foi quando a gente começou. A gente começou a fazer o Facebook com o objetivo de trazer as pessoas ao conhecimento, à luz do conhecimento, a gente falava de coisas de dentro da favela que nem a favela sabia!

É interessante notar como essa evidência já nos esclarece que a ideia de montagem de um perfil no Facebook por parte do casal nasce de um fator central da cultura de sobrevivência, que é a solidariedade. Isso significa que é a vontade de compartilhar experiências e de aproximar pessoas que faz com que eles decidam usar uma rede social digital para tornar mais efetivas as interações dos moradores de seu entorno. Nos termos de Cléber, a ferramenta precisava ser usada para impulsionar encontros e trocas de informações que, embora ocorressem naturalmente no cotidiano da favela, poderiam ser muito mais frequentes e numerosos se potencializados pelo recurso digital. Ora, a percepção do casal se mostra coerente com o exemplo anteriormente citado por Shirky (2012 [2008]) sobre o escândalo da Igreja Católica no contexto estadunidense. Não podemos nos esquecer, todavia, de que os efeitos de uma determinada tecnologia dependem dos usos que se faz dela (Braga, 2007): por isso mesmo, Cléber chama atenção para a linguagem utilizada nas interações que constrói com o perfil. Atentar-se à modalidade linguística de suas postagens significa, no caso, ter noção de quem será seu interlocutor, o que é fundamental para o intuito do casal de expandir contatos de sua rede local e, por que não, global — as marcas de papo reto9 (Facina, 2014) nas postagens servem, muitas vezes, como autenticação do enunciado como produto original do favelado. Nesse sentido, as postagens tornam-se mais efetivas no

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De forma sucinta e baseado em Facina (2014), entendo o papo reto como o favelês, ou seja, como a linguagem difundida pelos becos das favelas e que é fortemente marcada por uma interação direta, sem rodeios ou meias palavras.

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que tange a atingirem o morador e permitirem que ele se reconheça como público-alvo, provocando uma certa sensação de segurança e de pertencimento comunitário (Bauman, 2003). Passado algum tempo da criação do perfil, os efeitos das postagens na realidade do Complexo do Alemão foram, gradativamente, aparecendo. O cinema da Nova Brasília passou a ter um público maior após ter sua programação divulgada pelo casal. Fotos de alguns bailes funk foram veiculadas, algo que representa um comprometimento pressuposto entre o casal e sua comunidade, uma vez que a realização dos bailes foi proibida pela polícia no período das UPPs. Comerciantes locais chegaram ao ponto de procurar os donos do perfil para anunciarem seus estabelecimentos a fim de aumentarem seu faturamento. Enfim, as devolutivas da comunidade davam indícios de que o casal tinha cumprido com distinção seu propósito original. Contudo, a mesma solidariedade, frisada nas palavras de MC Calazans sobre a cultura de sobrevivência, foi responsável por fazer com que o casal passasse, a partir do processo de “pacificação”, implementado em 2012, a buscar audiências mais globais, ou seja, para além do Complexo do Alemão. [9’19’’] CLÉBER: O Alemão viveu um momento, né, naquele primeiro momento de invasão, aquela coisa de... A gente não se preocupou muito com isso. O pessoal do “Voz da Comunidade” pregou muito isso aí, foi muito bacana. A gente se preocupou mais com o interior da favela, a gente não queria mostrar pra fora da favela. A gente sabia que o Facebook, ele tem um alcance mundial, mas a nossa grande preocupação, a nossa linguagem era com as pessoas de dentro. A gente não queria alcançar Londres, Estados Unidos, universidades lá fora, como a gente tem alcançado, não, a gente queria alcançar a favela, por isso a gente fala a linguagem de lá. [14’12’’] CLÉBER: Justamente foi num período que explodiu com a guerra dentro do Alemão, vocês acompanharam aí agora, né, foi logo no começo do ano de 2014 pra cá e a coisa ficou muito séria lá dentro, ficou muito complicado, ficou muito forte, e a gente não conseguiu mais focar no que a gente tava propondo. A gente conseguiu reverter tudo aquilo que a gente queria, fazer com que as pessoas lá dentro ganhassem orgulho daquilo [que a gente fazia] (...) e foi quando intensificamos só o nosso ativismo mesmo, foi quando nós intensificamos nossas postagens contra a UPP, intensificamos nossas postagens contra o massacre do governo lá dentro.

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As palavras de Cléber reforçam o fato de que as ações do casal tinham mesmo foco local, ainda que ele e a esposa estivessem cientes do potencial de difusão de informações dessa rede social para além de seu entorno. Essa reafirmação do contexto a que pertencem por meio da veiculação de boas notícias agia no sentido de alimentar a autoestima de uma comunidade marcada pela violência: é como se cada postagem do perfil do casal lembrasse os moradores de que a solidariedade ainda apontava caminhos possíveis de sobrevivência. As ações agressivas dos agentes das UPPs, no entanto, foram minando a força dessa compreensão. Nesse sentido, as histórias de violência cada vez mais constantes na região do Complexo do Alemão fizeram com que o casal assumisse outra forma de sobreviver: o confronto. Essa postura reativa age extrapolando a ideia de Bhabha de que a cultura de sobrevida seria uma “viagem para fora da missão civilizatória” (2013 [1994], p. 277). Mais do que isso, o enfrentamento passa a indicar a sobrevivência como ação que vai “de encontro” à missão civilizatória, como contestação e combate que busca superar a “realidade difícil” que MC Calazans traz em sua fala. O perfil do casal no Facebook, então, vira voz de ataque aos atos dos agentes das UPPs e passa a denunciar ações violentas da PMERJ para audiências mais amplas. Além disso, um caráter que se fortalece por conta do uso do Facebook no cerne dessa cultura de sobrevivência é o tradutório, pois as postagens fazem com que o casal passe a ter que planejar uma interlocução situada entre o pertencimento local e a audiência global. Especificamente, é preciso usar uma linguagem capaz de traduzir o conflito para outras culturas, já que a audiência, como aponta Cléber, passa a ser “Londres, Estados Unidos, universidades lá fora”, indo muito além do exterior oposto e imediato da Zona Sul carioca ou de qualquer outra região mais abastada do Brasil. Assim, ele faz questão de registrar como a interlocução é uma das principais preocupações dele e de sua esposa, além de considerá-la a grande responsável pelo êxito de suas postagens. [35’58’’] CLÉBER: E a gente, assim, o que que as pessoas veem? O que que as pessoas observam na gente? O que que as pessoas... A nossa grande preocupação é essa, o que que as pessoas vão pensar quando eu faço essa reportagem? O que que eu quero atingir aqui? Quem é a pessoa específica que eu idealizo na minha cabeça quando

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a gente faz uma postagem? A gente sempre se preocupou com isso e eu acho que, talvez, o nosso sucesso tenha sido mais isso do que a gente mesmo.

Esse deslocamento das questões locais para o âmbito global a partir de uma postagem que tem o caráter tradutório em sua essência faz com que, consequentemente, outras redes sociais se estabeleçam. “Londres, Estados Unidos, universidades lá fora” já não são tão distantes. Pelo contrário, são elas que passam a ter interesse em veicular a informação de locutores preciosos, inseridos na realidade do Complexo do Alemão. Ora, podemos pensar, em função disso, em um caráter transnacional da cultura de sobrevivência, entendendo que ela encontra suas próprias formas de ecoar em outros ouvidos, inclusive colonizadores. Novas formas de buscar e alcançar visibilidade, então, emergem em função de novas audiências conquistadas. [30’50’’] CLÉBER: Nós conseguimos, para você ter uma ideia, com esse Facebook, chegar até Stanford. Nós conseguimos chegar nos principais jornais do mundo. Todos os correspondentes, todos os correspondentes dos jornais do mundo. A gente não fala inglês, não escreve [em] inglês, os caras se comunicam com a gente pelo Google Tradutor. A gente fala pra eles... Correspondentes de todos os jornais do mundo mesmo! Nós estamos até com um agora do Japão, que veio, teve ontem lá na favela, vai voltar, já teve várias vezes já na favela com a gente, ele falou que não tem confiança de entrar em favela nenhuma do Rio de Janeiro, só entra com a gente lá do Complexo do Alemão (...). E agora a gente conseguiu muitas e muitas e muitas coisas, acho que, talvez, se a gente fosse presidente do Brasil a gente não conseguiria! Pra você ter ideia, um diretor das Lojas Americanas entrou em contato com a gente uma vez, sem se identificar, e falou: “Não conheço vocês, não sei quem vocês são, para mim, não me importa, mas o que eu vejo aí é verdade. Eu quero doar para aí 500 cestas...” [31’57’’] MARILUCE: 2500 cestas de Natal e 500 árvores de Natal! [31’59’’] CLÉBER: “(...) 2500 cestas de natal e 500 árvores de natal, só quero só que vocês aceitem”. Eu falei “tá bom, obrigado”. Eu não acreditei naquilo, não, eu falei, só acreditei quando vi caminhão chegando. Chegou dois caminhões lá em cima, na Palmeiras...

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Essas declarações de Mariluce e de Cléber deixam claro como suas postagens acabam resultando em diferentes efeitos que, de certo modo, determinam formas diversas de agir politicamente em relação ao Complexo do Alemão. Provoca, por exemplo, no gerente das Lojas Americanas, o desejo de fazer uma doação de itens que, provavelmente, fizeram o Natal de muitos moradores mais alegre, mesmo diante dos recorrentes episódios de violência. No jornalista japonês, por sua vez, gera uma curiosidade relativa à dinâmica interna da favela e faz com que ele, do outro lado do mundo físico, passe a ser um canal de divulgação de violações de direitos humanos praticadas pelos agentes da UPP. Na Universidade de Stanford, renomada instituição de ensino superior, desperta a iniciativa de financiar a ida de Mariluce até os Estados Unidos a fim de contar sua trajetória de vida: no dia 28 de abril de 2015, estudantes da Califórnia assistem à palestra ministrada por ela, “Iniciativas Educacionais e Empresariais de Apoio a Jovens em Áreas de Violência”. Isso mostra, mais uma vez, como o caráter transnacional dessa cultura de sobrevivência ganha força em função das “tecnologias globais de mídia” (Bhabha, 2003 [1994], p. 277) e se materializa, inclusive, no trânsito internacional e decolonizador de uma moradora da periferia carioca por espaços originalmente impensados para seu corpo. Esses fatores todos apontam para o fato de que as TDICs, portanto, exercem papel importante nas dinâmicas dessa cultura de sobrevivência. São evidentes as situações em que elas agiram de forma a expandir questões locais para além dos limites físicos do Complexo do Alemão e, não bastasse, ampliaram os canais viáveis para participação cidadã por parte de seus moradores. Assumir unicamente essa postura entusiasta seria, entretanto, uma atitude ingênua. Afinal, não podemos nos esquecer de que, como nos mostra o caso do gatonet, o acesso às tecnologias digitais e à conexão nas áreas de favela é repleto de obstáculos e só se torna viável, na maioria das vezes, justamente em função da criatividade e da insistência do favelado. Como é de se esperar, há barreiras técnicas para o acesso à internet em áreas de periferia urbana. Passos (2013), por exemplo, relata a dificuldade de um dono de lan-house em Acari para conseguir ter uma linha telefônica em seu estabelecimento e garantir a prestação de serviço a seus consumidores. O acesso à banda larga por linha telefônica, no caso, é complicado em todo processo, seja pela dificuldade de instalação no local afastado do centro, seja pelos intermediários que nela trabalham e cobram propina para

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liberar o sinal, seja pela qualidade do serviço em si ou, ainda, pelo seu preço. A questão financeira, por sinal, faz com que a maior parte dos acessos via internet pré-paga também esteja sujeita à disponibilidade de dinheiro por parte do usuário: é o caso de Mariluce e de Cléber, que afirmam, durante a entrevista, chegar a colocar quantias mínimas, como dois ou cinco reais, para conseguir manter uma regularidade de conexão. Não bastasse, existem, ainda, no contexto da favela, as tensões existentes entre o uso de tecnologias digitais e o seu potencial como ferramenta de denúncia. Mais especificamente, o fato de os smartphones funcionarem como recursos móveis e condensarem em si múltiplas funções — conexão à internet, geolocalização e geração de som e imagem, principalmente — faz com que eles se tornem um poderoso instrumento de documentação e veiculação das violações de direitos humanos praticadas nos becos e vielas da favela. Desse modo, conversas via WhatsApp e gravações de áudio e vídeo têm sido as formas mais utilizadas recentemente para evidenciar o modus operandi truculento e ilegal dos agentes das UPPs, que, ameaçados, passam a tentar impor barreiras reais à utilização desses recursos no Complexo do Alemão. [37’16’’] CLÉBER: Me pararam. Esse meu telefone foi ganhado, não tenho condição de ter um telefone desse. Aí me pararam. Eu nem te contei isso. [37’23’’] MARILUCE: “E a nota fiscal?”. [37’24’’] CLÉBER: Eu falei, “Ó, se eu ligar pra pessoa que era dona desse celular e falar que você tá falando que esse telefone é roubado porque eu não tenho condição de ter um telefone desse, você vai passar vergonha, porque quem me deu vai fazer você passar vergonha. Quer que eu ligue?”. Aí o cara que tava do lado falou assim: “Rapaz, não mexe com esse cara, não. Esse cara é aquele cara do Face, vai dar muito problema”. (...) E é verdade, o BOPE10 não pode fazer um treco desse, não, porque é da favela, ou é bandido, ou é porque você roubou de alguém na praia, coisa desse tipo. É coisa desse tipo, vocês sabem.

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O BOPE, Batalhão de Operações Policiais Especiais, é uma divisão da PMERJ treinada para agir em situações de risco e que tem atuado recorrentemente nos contextos de favela. Simbolizado por uma caveira atravessada por uma faca, é costumeiramente reconhecido como o órgão mais violento da polícia carioca.

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[38’03’’] MARILUCE: Só se você apresentar a fatura, parcelada em 12 vezes, com a nota fiscal. [38’08’’] CLÉBER: É porque, agora, tá sendo assim. Eles tão pedindo telefone, entendeu? Deram pra pegar telefone dos jovens lá. Ih, rapaz, tá uma confusão doida por causa de telefone lá agora, nesse momento, inclusive.

Na rede, é possível encontrar vídeos de moradores e policiais em discussões mais acaloradas, bem como flagrantes de violência extrema, caso daqueles que retratam mortes provocadas pelas ações descabidas dos agentes das UPPs. Em alguns desses vídeos, chega a ser possível visualizar o sangue de jovens recém-assassinados escorrendo pelas ruas em meio aos gritos inconformados da população. Não é de se espantar que esses policiais, lançando mão do poder que representam e detêm no espaço da favela, passem a violar ainda mais11 o direito de propriedade dos moradores para tentar evitar a veiculação dessas evidências. Uma situação em que policiais abordam inesperadamente cidadãos perguntando se eles são os verdadeiros proprietários de um determinado bem e, ainda, exigem a apresentação de nota fiscal para comprovação de posse é totalmente absurda. Contudo, sabemos bem que a indignação popular decorrente de uma ação como essa depende do local onde ela ocorre e de quem é o sujeito abordado. Uma situação como essa na Zona Sul carioca é hipotética e imediatamente condenável; no Complexo do Alemão, é realidade que, na maior parte dos casos, ainda é acompanhada de violência física. Reconheço que, infelizmente, os obstáculos para o uso dessas tecnologias digitais persistem e — não nos enganemos — silenciam grande parte das barbaridades ocorridas na favela. Os moradores, não bastasse, ainda são obrigados a lidar com insultos de interlocutores que, de realidades tão distantes, criminalizam e violentam o Complexo do Alemão em coro com a mídia corporativa. No entanto, mesmo diante dessas dificuldades, a resistência diante da opressão e o desejo de sobreviver mostram sua força também 11

Os propósitos desse artigo não me permitem desenvolver esse tópico, mas uso a locução adverbial “ainda mais” a fim de registrar que, além dessa que relato, há inúmeras outras formas utilizadas pelos policiais de violar as propriedades de moradores do Complexo do Alemão, como as invasões de domicílio, por exemplo.

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por meio das TDICs e, desse modo, ampliam consideravelmente o poder de ação política desses sujeitos. Expandindo informações e aumentando o alcance de denúncias relativas à conduta dos agentes das UPPs, as tecnologias digitais acabam, portanto, assumindo papel fundamental de combate às violações de direitos humanos em meio a essa cultura de sobrevivência que caracteriza o Complexo do Alemão.

Considerações finais Um vídeo compartilhado de morador agredido por policial é um agente poderoso na luta contra a infinidade de discursos que criminalizam a favela e a tratam como exceção dentro do espaço urbano. Desse modo, em um contexto marcado pela violência constante e pela consequente violação de direitos básicos de qualquer cidadão, as tecnologias digitais conectadas à internet acabam assumindo um papel fundamental nas dinâmicas de participação política, principalmente chamando atenção para as atrocidades praticadas pelos agentes das UPPs, as quais, não fossem esses recursos, muito dificilmente seriam divulgadas. Ainda existem, como pontuei anteriormente em minhas análises, barreiras poderosas, sejam técnicas ou sociais, para o acesso às TDICs por parte dos moradores de favelas. Por isso mesmo, seu uso para fins de ação política configura uma estratégia de luta em meio a uma cultura de sobrevivência, principalmente se considerarmos que a mesma inventividade utilizada para a criação do gatonet, mencionado por MC Calazans, também é responsável por fazer com que as reivindicações on-line se espalhem e consigam ecoar por outros espaços. Não há como negar, assim, que as tecnologias digitais como ferramentas imersas em uma cultura de sobrevivência ampliaram as possibilidades de reivindicação de direitos e de participação política em sociedade por parte dos moradores do Complexo do Alemão. Sabendo disso, Mariluce, ativa nas redes digitais, afirma: “A internet salvou a gente mais que a UPP”. Moradora, testemunha da violência que assola o Complexo do Alemão e sobrevivente, ela sabe, por experiência própria, que as tecnologias digitais são ferramentas poderosas na luta por dias mais tranquilos na favela em que nasceu.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A escrita pixadora: uma escrita sobre-vida GUSTAVO COELHO

FIGURA 1:

piXações em muro de pedra em Laranjeiras – Rio de Janeiro – RJ

Se pensarmos no movimento primordial da linguagem, o da nomeação — esse mecanismo dinâmico que funda nossa relação inteligível com o mundo —, pautado, resumidamente, entre a operação de significação designativa e a potência de imanência da coisa significante nunca plenamente capturável, embora sequer acessível senão por essa captura que nem tudo capta, é notório como esse ajuste sempre guardado de uma impossibilidade, recebe destacado interesse da filosofia e obviamente da linguística. Blanchot, em capítulo de seu “A conversa infinita”, dedicado a Heráclito, filósofo pré-socrático conhecido como “obscurso”, atribui essa obscuridade ao fato de

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o filósofo reconhecer nesse limiar entre o movimento de expressão pela palavra e a reserva de indefinição inerente a todo nomeado, um estado de “diferença” que garante, pela dimensão indizível que essa materialidade do mundo resguarda, um devir vacilante, princípio de movimento que por fim é paradoxalmente causa de tudo o que se diz. No fundo, para Heráclito, o que é linguagem, o que fala essencialmente nas coisas e nas palavras e na passagem, contrariada ou harmoniosa, de umas às outras, enfim, em tudo que se mostra e em tudo que se esconde, é a própria Diferença, misteriosa porque sempre diferente daquilo que a exprime, e tal que não há nada que não a diga e não remeta a ela ao dizer, mas tal ainda que, mantendo-se indizível, tudo fale por sua causa(Blanchot 2007, p. 19).

É nessa “separação”, então, que para Blanchot “não detém nem separa, mas, ao contrário, reúne” (2007, p. 19), que para ele é o lugar do logos, “fazendo sinal em direção àquilo que de outro modo não aparece” (ibid). É nesse sentido, então, que vamos iniciar uma espécie de ensaio de inclinação linguística e filosófica sobre a piXação12 como escrita do indizível, como enigma que não se deixa captar. Para tanto, seguimos em Blanchot e sua concepção de logos que, nesse texto, consiste num substantivo que dá nome a uma, podemos dizer, condição enigmática do que movimenta o expresso: Linguagem que fala em virtude do enigma, enigmática diferença, mas sem comprazer-se nela sem apaziguá-la; ao contrário: fazendo-a falar e, ainda antes de ela ser palavra, denunciando-a já como logos, esse substantivo altamente singular no qual se retém a origem não falante daquilo que incita à fala e que, em seu nível mais alto, ali onde tudo é silêncio, “não fala, não esconde, mas faz sinal” (Blanchot,2007, p. 21)

Tomo tal trecho aqui como definição do que quero trabalhar como a potencialidade da escrita piXação. Escrita que, utilizando os mesmos termos 12

Sempre, neste percurso textual, a palavra piXação e suas derivadas virão com “X” maiúsculo em simpatia à mesma utilização de Canevacci em Culturas eXtremas (2005). Faço também uma analogia entre o enigma como conceito importante nesse trabalho e a letra-símbolo “X”, que em diversos contextos representa a presença da incógnita.

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de Blanchot, “fala em virtude do enigma” mas sem “apaziguá-lo”, portanto mantendo-o enquanto tal. Que traços, que contornos, mesmo que nunca definitivos, sempre incompletos, sempre apequenados diante da imensidão fundante, é possível dar a esse caos primordial que origina toda escrita/fala, mas que encontra justamente nisso a que serve de origem, na forma legível da “palavra” e mais ainda do “conceito”, o obstáculo último ao seu devir-ilimitado? Como empreender uma escrita que não esteja, em sua superfície, absolutamente refém da missão de “mostrar” um significado, que opere então por uma paradoxal mostra do recuo, por uma forma disforme, mas que não seja somente traço, pintura, que ainda assim seja letra, seja palavra, seja escrita? Parece-me, e tomo aqui como uma aposta conceitual, que o xarpi13 é um fenômeno escriturístico popular que exibe esteticamente essas questões e tem nelas um material fértil para entendermos os choques epistemológicos que ele dispara em nossa sociedade, herdeira dos regimes de verdade, portanto de leitura, da ocidentalidade burguesa, tendo, no nosso caso, a linguagem como campo de estudos para essa apreciação.

FIGURA 2:

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piXações no Rio de Janeiro

Se piXação é o nome dado nacionalmente a esse fenômeno, xarpi é sua expressão carioca. No Rio de Janeiro, há uma espécie de língua secreta falada entre alguns jovens que têm na rua uma zona de socialidade intensa. Chama-se língua do TTK e funciona invertendo as posições silábicas das palavras, pondo a última na primeira posição e assim por diante. O nome TTK provavelmente é uma inversão de Catete, bairro da Zona Sul do Rio ao qual se atribui a origem dessa língua. Assim, nessa língua “pixar” tornou-se “xarpi” e logo deixou de ser apenas verbo para tornar-se substantivo, sendo hoje sinônimo carioca para piXação.

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Derrida, em seu texto “Força e significação”, chamou de “defunto” o escrito estático em sua forma de “signo-sinal”, uma vez que este “diz então o que é” sendo “puro funcionamento”. As garantias da poética, portanto, estariam largamente dependentes do ato, da ação da escritura, em suas palavras, “da inscrição”: “Ora, paradoxalmente, só a inscrição — embora esteja longe de o fazer sempre — tem poder de poesia, isto é, de invocar a palavra arrancando-a ao seu sono de signo” (2009, p. 16). Em outros termos, a dimensão poética da expressão, ou da própria vida, seria determinada por um espaço criativo de indeterminação, sendo mais movimento do que estabilidade, mais inscrição do que escritura, mais ato que estrutura, tendo portanto divergência com as configurações de linguagem e do Ser demasiadamente enrijecidas pelo “é”, pelo “isto é”, o que nos leva a outro trecho de Derrida no texto “Edmond Jabés e a questão do livro”, ao falar do rompimento da “unidade do Ser — no frágil elo do ‘é’ — acolhendo o outro e a diferença na origem do sentido” (2009, p. 103). Portanto, a poética tendo que ver com o indizível, seria como uma espécie de atividade de diferença, de refugo às demandas gramaticais de alocação fixantes da existência, antifascista em seu devir portanto. Pensando o fascismo e a escritura nesses termos, a meu ver, ele seria resultado do engano hipnótico que acaba tratando essa fragilidade do “é” determinante, como fortaleza absoluta e indestrutível, ou seja, que vai entender a vida igualando, como equação ideal e definitiva, o “Ser” e o “é” que o define, assim como a obra produzida e seu conceito. Em todo caso, essa associação “ideal” entre o “Ser” e o que a ele é anexado pelo “é”, caso de fato fosse consolidável, seria o próprio fim da linguagem, a própria quebra de uma condição prévia à linguagem — a diferença, o algo de inadaptável entre o nome e o nomeado, o vão entre devir e estrutura, a “indeterminação” do sujeito, se formos a Freud e Lacan14. Sem isso, nome e nomeado seriam coisa só, não sendo mais possíveis sequer as condições de nomeá-lo, não sendo possível a centelha da poética. Portanto, o fascismo seria a histeria produzida pela crença na possibilidade de reduzir a vida ao “dizível” dela, sem desconfiar de que sem a dimensão do indizível, do comum em estado radical, não haveria condições para dizermos nada. Nesse cenário neurótico, então, o fascista o é fascista por aproximar-se velozmente, dada essa atrofia 14

“Trata-se sempre é do sujeito enquanto que indeterminado” (Lacan, 1979, p. 31).

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dos limites do Ser ao “elo do é”, de um terrível mundo mudo, no qual as letras se ergueriam feito grandes estruturas sem espaço a dúvidas de sentido, e só essa linguagem seria possível, língua do regime. Voltando, então, ao xarpi, o traço da sua escrita, como vemos pelas imagens, não opera por sucessão, letra após letra, cuja linearidade teria a chamada “letra de forma” como expressão por excelência da dinastia da transparência do sentido único, não por acaso tipografia utilizada quando se pretende fazer inscrições com intuitos políticos tradicionais, onde a forma da letra precisa ser absolutamente posta a serviço da informação clara, evitando equívocos e duplos sentidos, limpando suas bordas, aparando suas arestas. Nesses casos, portanto, não à toa, ela se dá por abertura, vai se esticando em sucessão, “desembolando”, mantendo espaços “sem tinta” entre cada letra, o que auxilia na dureza necessária ao alicerçamento de um único sentido, base defendida para a segurança de sua “identidade”, ou de sua imediata “identificação”. Quando o que está em jogo é um desejo de persuasão, quando é o convencimento que pauta nossa escrita, objetivo este que de forma protagonista parece movimentar a enunciação do homem com vontade de verdade hipertrofiada, é a ânsia de clareza que conduz a mão do escritor, deixando pelo caminho tipografias outras, iluminuras, e o que quer que por capricho, por luxo, não sucumba às ordens do esclarecimento. Sendo assim, junto com Barthes, como veremos, pode parecer estranho às concepções reduzidas da escrita, mas “ser clara” não é um valor fundante do acontecimento da linguagem, sendo, quando muito, apenas uma de suas ferramentas de contenção de si mesma, de controle da centelha poética, de segurança contra o germe de polissemia que incessantemente nutre toda palavra. Indo em Barthes: Na realidade, a clareza é um atributo puramente retórico, não é uma qualidade geral da linguagem, possível em todos os tempos e lugares, mas apenas o apêndice ideal de determinado discurso, aquele mesmo que está submetido a uma intenção permanente de persuasão. É porque a pré-burguesia dos tempos monárquicos e a burguesia dos tempos pós-revolucionários, utilizando uma mesma escrita, desenvolveram uma mitologia essencialista do homem, que a escrita clássica, una e universal, abandonou todo tremor em benefício de um contínuo do qual cada parcela era uma escolha, quer

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dizer, eliminação radical de qualquer possível da linguagem. A autoridade política, o dogmatismo do Espírito e a unidade da linguagem clássica são portanto as figuras de um mesmo movimento histórico (2004, p. 50).

O xarpi, ao contrário, parece empreender re-volta, re-“embolando” em direção a uma espécie de talhe primordial ancestral da letra, ainda que, no caso, já tendo passado por letra, tampouco a descarte, mas a deforma, retorce, lança uma sobre a outra, modificando-as até a impossibilidade da leitura linear, reagindo, então, por justaposição enigmática, à sucessão reveladora, mas ainda assim mantendo-se todos eles, letras.

FIGURA 3:

piXações no Rio de Janeiro

Podemos pensar, então, numa operação de desintegração de posse do sentido daquela que seria sua obra por excelência, ou melhor, dessa obra humana que o tornou finamente expresso — a palavra. Entregue aos traços, desarmadurada do sentido único, o que emerge no seu manuseio é o devir movente que a precedia, do qual Blanchot e Heráclito falavam juntos anteriormente. Libertas, então, protegem-se de nova reintegração de posse do sentido, e pela retorção da forma, garantem a condição necessária a esse entrincheiramento — a condição de ilegível, indizível, porém ainda

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expresso, dito, feito presença. O enigma ganha forma pela afirmação em presença traçada da negação à subserviência ao sentido único que, como vimos, tratou-se de uma das propriedades mais bem consolidadas durante a modernidade, e que tanto fundou nossa compreensão de indivíduo, assegurando a ele traços normativos, emblemas de sentido como gênero, profissão, partido, coerência, consciência, quanto fez do expresso por esse homem, algo de seu pleno domínio, portanto tão mais bem expresso quanto mais claro, sendo a clareza aqui, a transparência mesma do sentido único sempre persuasivo. Podemos propor então aqui uma analogia entre a condição ilegível do xarpi, sabendo que para algo ser ilegível é preciso, contudo, que esse algo “seja”, e que além se “ser”, seja objeto de uma tentativa de leitura aportada por determinada gramática, por alguma máquina de aprisionamento, e o “sujeito enquanto que indeterminado” da psicanálise. Sendo letra, então, o xarpi se expõe à leitura, mas as embolando, ao mesmo tempo se furta à mesma, esquiva-se. Põe-se no jogo, mas seu golpe é o da negação, escapa sem fugir, escorre sem desaparecer. Apresenta-se com as ferramentas da tradução, expõe-se à superfície das coisas da sociedade a serem traduzidas, mas resguarda as garantias de intradutibilidade nessa dobra do não-sentido. Outra vez indo a Derrida, dessa vez no seu texto “Sobreviver”, ele afirma que “um texto apenas vive se ele sobre-vive e ele só sobrevive se é simultaneamente traduzível e intraduzível” (2004, p. 33-34), e na sequência sugere: “O mesmo se dirá do que chamo de escritura, marca, rastro, traço etc. Isso não vive nem morre, sobrevive” (grifos do autor) (Ibid.). O xarpi, então, mostra-se numa estrutura, acontece substancialmente escrito nos muros, é coisa “estável” tão logo a tinta seque, mas protege da captura gramatical, nessa esquiva que é a própria diferença, o dinamismo do seu impulso. Se é preciso dizer, com Schelling, que “tudo é apenas Dioniso”, é preciso saber — e é escrever — que, como a força pura, Dioniso é trabalhado pela diferença. Vê e deixa-se ver. E arranca(-se) os olhos. Desde sempre, mantém relação com o seu exterior, com a forma visível, a estrutura, como com a sua morte. — É assim que aparece a si mesmo (Derrida, 2009, p. 39).

Vê, deixa-se ver, portanto compõe o mundo, mas arranca os olhos tanto de si quanto dos que o observam, o determinam, garantindo a permanência

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da força indefinida, do dinamismo vital, característica também de outras figuras mitológicas que possuem o mesmo, digamos, parentesco simbólico, como nosso Exu, para não ficarmos refém do repertório grego. Sendo assim, estabelecemos uma relação entre o legível, o determinado, as bordas, o dizível, a clareza, como fatores que estruturam mundos, erigem gramáticas e regimes sólidos, assim como relacionamos o ilegível, o indizível, o indeterminado, como espécie de reserva contingente que, a um só tempo, impulsiona o vir a ser das obras, da vida, das estruturas, dos sujeitos, mas que garante uma polissemia de base, uma sobre-vida, um dinamismo aceito, uma diferença que impede a fixidez ideal, a qual seria o tal defunto citado anteriormente. Indo novamente a Derrida para também aproximarmos esse nosso ilegível dinâmico ao seu conceito de sobre-vida: Alegria, reafirmação, triunfo (do) sobre: sobre a vida e da vida, sobre-vida, ao mesmo tempo entre vida e morte na cripta, mais-que-vida, mais-de-vida, adiamento e hipervitalidade, suplemento de vida que vale mais que a vida e que a morte, triunfo da vida e da morte (2004, p. 48, grifos do autor).

Aproveitando, então, essa relação entre sobre-vida, mais-que-vida e mais-de-vida, parece-me fértil aproximar esses termos, essa sobras, do conceito de mais-de-gozar de Lacan que segundo o psicanalista Lacadée, “designa a incidência do significante sobre o corpo. A linguagem implica uma perda de gozo, mas esta busca uma compensação, que Lacan chamou de mais-de-gozar. Há ‘necessidade do mais-de-gozar para que a máquina funcione’” (2011, p. 112), como que reconhecendo nesse “luxo”, nesse além do “necessário”, nessa inutilidade indizível, um material fértil e do qual depende inclusive o funcionamento da máquina, do reinado do dito. Cabe destacar ainda que, mesmo que cada piXador desenvolva um sinal/ nome15 singular, a lógica da escrita só pôde constituir-se enquanto tal e tornar-se cultura popular jovem, o que é evidente tanto pelo histórico ininterrupto de cerca de 40 anos de existência, quanto pelo lastro geográfico que ocupa não só em todo o Rio de Janeiro, mas com algumas variações, em 15

Eles chamam de “nome”. “Vamos tacar um nome” é como frequentemente convocam um amigo para piXar juntos.

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todas as capitais do país e mesmo nas cidades não tão grandes assim, graças ao bom nível de reverberação das irradiações coletivas que um corpo, não mais subalternizado aos regimes da racionalidade objetiva e à dinastia da autoria, como o do piXador, possui. É inclusive dessa mesma capacidade de reverberação às irradiações coletivas, ou seja, do protagonismo da estética na composição da ética comum, que se alimenta e se expande qualquer cultura popular, o que acaba fazendo dela depositária fértil de uma sabedoria sem autoria, dispersa porém eloquente, que ficaria retida caso só de individualidade fosse realmente composto o ser. Como sinalizou Castoriadis: Mesmo que ela não seja feita explicitamente para durar, ela dura de fato, de um jeito ou de outro. Sua durabilidade é incorporada em seu modo de ser, em seu modo de transmissão, no modo de transmissão das “capacidades subjetivas” que a sustenta, no modo de ser da própria coletividade (2009, p. 24).

Em resumo, o sujeito moderno por excelência, se de fato fosse possível materializar-se e universalizar-se, interromperia em definitivo o vitalismo necessário à continuidade da cultura popular, haja vista que teria conseguido tornar qualquer fragilização da sua consciência, qualquer ilegível, uma impossibilidade definitiva. É justamente, então, dessa mesma concepção de vida que, para Barthes, nasce e consolida-se uma escrita com afã pela unidade, pela dureza de uma forma assegurada de qualquer dilaceração. Em suas palavras: “Ver-se-á, por exemplo, que a unidade ideológica da burguesia produziu uma escrita única e que, nos tempos burgueses (isto é, clássicos e românticos), a forma não podia ser dilacerada visto que a consciência não o era” (Barthes, 2004, p. 4). Nesse jogo da humanidade composta de sujeitos esclarecidos, desses que vivem como se não houvesse sombra não esclarecível, parece-me que a lógica privilegiada de funcionamento da linguagem e suas proposições foi aquela que Deleuze chamou de designativa: A designação opera pela associação das próprias palavras com imagens particulares que devem “representar” o estado de coisas: entre todas aquelas que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à proposição, é preciso escolher, selecionar as que correspondem ao complexo dado. A intuição designadora exprime-se então sob a forma: “é isto”, “não é isto” (2011, p. 13)

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Pelo domínio dessa forma de proposição, então, o “devir-ilimitado” do “acontecimento”, para seguirmos usando os mesmos termos de Deleuze, acachapado pela força da designação exclusiva, é lançado ao avesso, às profundezas, as quais, se nossa leitura estiver toda ela compreendida na estreiteza apenas do que fora designado, sequer ameaçará nossa percepção. Assim, leremos velozmente, apanágio da escrita “meramente” informativa, anseio da neutralidade e clareza jornalísticas. Em todo caso [...] é próprio da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites estabelecidos: por isso compreende termos que não param de deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da ligação em uma série considerada (assim, demasiado e insuficiente, muito e pouco) (idem, p. 9)

Desse modo, a linguagem, para Deleuze, sempre oferece resistência, guardando meios de impedir que o “devir” isole-se pelas forças da designação em uma profundidade inacessível, oferecendo-nos para isso a figura do paradoxo como possibilidade de uma espécie de nó na racionalidade cognitiva. Não por acaso, trata-se de figura frequente na artesania poética, assim como determinante ao pensamento trágico que precisa de meios para afirmar o duplo contraditório ao mesmo tempo, afirmando a negação, sim e não, todo e unidade. Assim, “o paradoxo aparece como destituição da profundidade, exibição dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo deste limite” (Ibid.), lançando na superfície a determinação indeterminada necessária à aparição enigmática do “devir-louco, [do] devir-ilimitado [que] não é mais um fundo que murmura, mas sobe à superfície das coisas e se torna impassível.” (Idem, p. 8). Deleuze, por fim, chama a imagem do anel, da continuidade de borda entre seu lado direito e seu avesso para expressar essa elevação do devir ao nível da linguagem: A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de profundidade; e os efeitos e superfície em um só e mesmo acontecimento, que vale para todos os acontecimentos, fazem elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus paradoxos (Idem, p. 12).

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FIGURA 4:

piXações no Rio de Janeiro

Dessa reflexão então, volto à escrita Xarpi para pensá-la em um lugar de liminaridade paradoxal no qual se dá sua formação — uma escrita da não escrita, uma expressão cujo sentido é oferecer formas ao não-sentido, e que, se voltarmos em Blanchot, justamente quando ele está preocupado em pensar alguma escrita fora da linguagem, encontraremos momentos de uma intuição que fez ele, por pelo menos duas vezes, apontar os muros, a noite e o graffiti, como possíveis locais afeitos à sua aparição: [...] escrevendo em ruptura com toda linguagem de fala e de escrita e desde então renunciando tanto ao ideal da obra bela quanto à riqueza da cultura transmitida e à validez do saber certo do verdadeiro. E, assim, escrevendo, mas não escrevendo, pois dessa escrita sempre exterior àquilo que se escreve, nenhum traço, nenhuma prova se inscreve visivelmente nos livros, talvez aqui e ali sobre os muros ou sobre a noite (Blanchot, 2007, p. 270).

Tentando, então, se desgarrar de uma escrita ideológica, Blanchot chega à conclusão de que “não está ainda jamais livre da ideologia, pois ainda não há escrita sem linguagem” (idem, p. 270-1). Continuando nessa reflexão, ele decide então assumir uma ideologia, aquela que o lançará numa busca

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por uma escrita não ideológica, uma ideologia, portanto, segundo ele, “humanista”, não no sentido habitual, nem filosófico, nem antropológico do termo, mas sim cavando “aquilo que mais [...] afastará [o homem] de uma linguagem” (idem, p. 271). Algo do homem, próprio dele, mas que ainda estivesse o máximo possível recuado à linguagem, que guardasse um arcaísmo de devir primevo às palavras, ali então estaria o “humanismo por excelência”, segundo ele. Blanchot chega, então, ao grito, ao murmúrio. É aí que ele, ao tentar pensar uma escrita de “grito”, sugere novamente os “grafites nos muros”: O que é então “o humanismo”? Por onde defini-lo sem comprometê-lo no logos de uma definição? Por aquilo que mais o afastará de uma linguagem: o grito (isto é, o murmúrio), grito da necessidade ou do protesto, grito sem palavra e sem silêncio, grito ignóbil ou, a rigor, o grito escrito, os grafites dos muros. (ibid.)

FIGURA 5:

piXações no Rio de Janeiro

Parece-me que a escrita xarpi pode ser entendida como uma poética que se serve desse “grito” do divórcio com a linguagem, para mover seus traços enigmáticos, justamente pois traçam-se ali letras que desenham sua vontade

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de escapar das letras que desenham, numa fuga que, no entanto, precisa evitar a completa escapada, sob o risco de interromper qualquer traço e ver-se aprisionada na outra extremidade, a do mutismo suicida. Uma escrita, então, que vai da linguagem à coisa, retorcendo seus traços para fazer da letra, coisa, sem deixar de ser ainda letra. Uma linguagemque figura uma força imanente que para Merleau-Ponty, “todos veneramos secretamente [por] esse ideal de uma linguagem que, em última análise, nos livraria dela mesma ao nos entregar às coisas” (2012, p.30). Podemos também fazer uma analogia com Heidegger em “A origem da obra de arte”, especialmente nas passagens em que desenvolve a relação de afetamento recíproco entre o desabrochar do “mundo” por via das obras humanas, e o solo que o abriga mas também o ameaça. Em suas palavras: a “Terra”. Heidegger chama a atenção da complexidade do sentido que atribui ao termo “Terra”, a fim de escapar das noções modernas e reducionistas de “natureza”. Para ele, Do que a palavra Terra aqui significa deve-se afastar tanto a representação de uma massa de matéria aglomerada como também, segundo a astronomia, a ideia de planeta. A Terra é aquilo em que se reabriga o desabrochar de tudo que, na verdade, como tal, desabrocha. Nisso que desabrocha, a Terra vige como a que abriga (Heidegger, 2010, p. 105).

Em todo caso, é justamente pelo erguimento das obras, portanto do mundo, que o homem se oferece a de fato sentir a grandiloquência da Terra em sua imensidão de potências, com a qual está sempre em relação de composição partilhada. A tempestade também constrói uma obra arquitetônica, assim como a obra oferece superfície à tempestade que, portanto, tem sua força finalmente sentida. “Aí permanecendo, a obra arquitetônica resiste à tempestade que se abate furiosamente sobre ela e mostra, deste modo, a própria tempestade em sua força. (...) O erguer-se seguro torna visível o invisível espaço do ar” (idem, p. 103). Sendo assim, é somente pelo “mundo” que a “Terra” pode ser sentida em seu dinamismo construtivo e ameaçador, muito embora esta mantenha com aquele sempre um estado de reserva. Se então, aquele oferece à Terra superfícies de contato que desvelem sua aparição, esta será sempre resguardada pela condição paradoxalmente velada da Terra e

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suas potências. Uma obra arquitetônica, portanto, pode, pelos efeitos de sua presença, nos ofertar com as sensações da força da tempestade, mas nunca poderá dar em nossas mãos a própria tempestade, o que se fosse realmente possível, cessaria por completo todo o vir a ser das obras humanas, e com isso, do mundo e, por fim, da Terra. Em resumo, tomar posse da Terra, se possível fosse, seria o mesmo que interromper a vida, que lidar com o defunto de Derrida. Portanto, seguindo em Heidegger, a Terra “recua diante de qualquer tentativa de apreensão”: Tentemos conceber isso de outro modo, colocando a pedra sobre a balança, então só trazemos o peso ao cálculo de quanto pesa. Talvez esta determinação bem exata da pedra permaneça um número, mas o peso como tal nos escapou. A cor brilha e só quer brilhar. Quando nós a decompomos em frequências vibratórias através de medidas racionais, ela se vai. Ela apenas se mostra quando permanece desvelada e sem esclarecimento. Assim, a Terra faz despedaçar-se contra ela mesma toda intromissão nela. Ela deixa toda impertinência apenas calculante transformar-se numa destruição. Mesmo que essa traga a aparência de domínio e progresso, na forma da objetivação técnico-científica da natureza, este domínio permanece, contudo, uma impotência da vontade. Aberta em sua claridade, a Terra somente se mostra como ela mesma ali onde a preservam e guardam como a que é essencialmente indecifrável e que recua diante de qualquer tentativa de apreensão, isto é, mantém-se constantemente fechada(idem, p. 115-17).

Parece-me evidente aqui a crítica de Heidegger à racionalidade moderna e ao cientificismo de concepção cartesiana que, como já apontamos outras vezes, tomou a plena e definitiva apreensão da Terra, como algo desejável e possível mediante rigoroso uso das capacidades cognitivas do homem. Para Heidegger, então, tal concepção de vida encontra no próprio dinamismo da Terra sua impossibilidade, seu limite conceitual, muito embora já sugira nas entrelinhas que o aprisionamento desse devir pela técnica tem um custo ao técnico e à comunidade técnica — o de justamente não perceber que de suas mãos tecnicamente habilidosas escapara, sem que ele desse conta, a maior parte daquilo que ele analisa — o íntimo vínculo vital entre o impensado e a vida. Voltando então à linguagem, para depois retomarmos a escrita

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xarpi, Blanchot chama atenção de uma “tentação do eterno”, dessa “recusa da morte”, como uma “necessidade verdadeiramente capital” que move o ato nomeador e que afasta do ser o contato com uma “escrita exterior à linguagem”, uma escrita da Terra, eu diria analogamente, diante da qual seria impossível sustentarmos nossas duras aparências, as quais garantem certa segurança diante do fantasma da completa dissolução que, ao mesmo tempo, assim como a Terra, a tudo ameaça para tudo erguer. [...] pois é a morte, quer dizer, a recusa da morte, a tentação do eterno, tudo que conduz os homens a preparar um espaço de permanência onde possa ressuscitar a verdade, mesmo se ela perece. O conceito (toda linguagem pois) é o instrumento neste empreendimento para instaurar o reino seguro. Incansavelmente, edificamos o mundo, a fim de que a secreta dissolução, a universal corrupção que rege o que “é”, seja esquecida em favor desta coerência de noções e de objetos, de relações e de formas, clara, definitiva, obra do homem tranquilo, onde o nada não poderia infiltrar-se e onde belos nomes — todos os nomes são belos — bastem para nos tornar felizes (Blanchot, 2010, p.73).

Entendendo então que toda linguagem pode ser compreendida nesse dinamismo entre o inapreensível nomeado (significante) e a vontade de acabamento do nomeante (significado), parece-me que somente o iluminismo e seus desdobramentos cientificistas puderam optar pelo monopólio de apenas um lado dessa balança. Pela primeira vez na história humana, tomou-se como projeto de mundo o seu encerramento acabado no ato nomeador, portanto, no “belo”, se seguirmos em Blanchot. Voltando a Heidegger, a Terra, então decifrada, finalmente se igualaria ao mundo, e a força tempestade estaria em definitivo domada em nossas mãos pelo nome. Dessa obra de durabilidade eterna, se elevaria o reino da humanidade esclarecida. Em todo caso, essa sabedoria de progresso não atentou para uma sabedoria milenar e bem disseminada em nossos berços populares, aquela que “sabe” a força nutritiva da aceitação da dimensão enigmática na manutenção de um dinamismo vital ao erguimento de todas as coisas, mesmo dos nomes. Em outros termos, a própria premissa que norteou o projeto de reino estaria fadada a encontrar sua própria dissolução caso atingisse sucesso pleno em seu empreendimento, uma vez que, exorcizado o fantasma de sua dissolução

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pela segurança acabada do nome, como vimos, terminariam por testemunhar uma gradativa atrofia da linguagem, já que esta, pelo que diz Blanchot, precisa estar como que em ameaça de dilaceramento pelo nomeado para continuar nomeando. Resumidamente, no reino da humanidade esclarecida, dinastia do enunciado acabado, onde sendo tudo desvelado não se sabe mais o sentido da palavra “velado”, dentro de pouco tempo, não haveria mais qualquer enunciado. É nesses termos que sugiro aqui compreendermos a escrita xarpi como aquela que faz um caminho imprevisto aos planos de progresso dessa escrita designativa que deu páginas fundantes ao reino esclarecido. Se esta pretendeu libertar-se do mundo, das coisas, da presença, estabelecendo o sentido como obra última e definitiva, o xarpi parece ser escrita da saturação desse processo, pois, sem deixar de ser escrita, dá forma escritural a essa vontade de escapar da dinastia do sentido, na qual tentou-se conter toda potência poética do mundo. Como podemos perceber pelas seis fotos abaixo, três com xarpis dos anos 80 (figuras 6, 7 e 8) e outras três xarpis já dos anos 2000 (figuras 9, 10 e 11), trata-se inclusive de uma passagem gradativa, a meu ver. Nas fotos nota-se como que, pela separação mais notada das letras, aqueles nomes mais antigos, que já eram enigmas por estarem “soltos” nos muros sem propósito persuasivo aparente, podiam ainda assim, mesmo com alguma possível dificuldade, ser “lidos” a partir de um conhecimento alfabetizado na oficialidade da língua, o que não acontece nas três fotos seguintes, quando por aglutinação, frequente nos xarpis atuais, a escrita radicaliza-se, furta-se a uma leitura pautada pela alfabetização escolar, fazendo da gramática oficial da cidade uma analfabeta, sendo para esta, portanto, algo “sem sentido”mas não permitindo que se diga ser “sem presença”.

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FIGURA 6: HAIR

FIGURA 7

: FYT

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FIGURA 8:

NADO’S e FASO’S

FIGURA 9:

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RUNK

FIGURA 10:

TOKAYA

FIGURA 11:

VUTO

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Em resumo, se é apenas por desvelamento que a linguagem resultante de um movimento histórico-social-epistemológico de consagração da clareza permite desdobrar-se, a escrita piXadora, em especial essa carioca da qual trato aqui, recupera o velamento como modo de operação de seu traço, convocando o velado para “aparecer” na clareira da presença escrita, sendo “desvelamento”, “velamento” e “clareira”, termos usados por Heidegger para pensar o “sendo” de toda obra. Segundo ele, tudo o que “vem a ser”, todos os “sendos”, quando se “mostram”, só podem fazê-lo usando do “velamento” para se “desvelar”. Em outras palavras, tudo aquilo que se define, ao mesmo tempo, ao fazê-lo, vela a maior parte dos agenciamentos que o atravessam. Assim, toda definição mostra escondendo e a escrita xarpi parece aceitar isso ao propor-se como escrita que dilacera a escrita. Nas palavras de Heidegger: Todo sendo, que vem ao encontro e nos acompanha, submete-se a este estranho antagonismo da presença, na medida em que, ao mesmo tempo, sempre se mantém retraído num velamento. A clareira na qual o sendo se desvela é, em-si e ao mesmo tempo, velamento (2010, p. 133).

De tal forma, para Heidegger, a “verdade” não é uma oposição ao que seria “falso”, ou seja, não é um desvelamento “que se livrou de todo velado”, como é a concepção de verdade moderna alcançável pelo discurso, pelo conceito. Para ele, o desvelamento é todo “vir a ser” do “sendo” que, como vimos, se dá justamente por um processo de “velamento” e a verdade é exatamente a presença dessa ambiguidade em todo desvelamento, não sendo, portanto, “nem uma propriedade das coisas, no sentido do sendo, [ou seja, que não está sob controle da coisa que se torna presente nesse desvelamento,] nem uma propriedade das proposições [ou seja, nem é possível ser dita definitivamente pelo discurso sobre a coisa]” (idem, p. 137). A verdade para Heidegger tem muito mais a ver com a presença, justamente por esta guardar em si a polissemia do velado, do que no sentido atribuído pelo discurso, especialmente quando este opera pela designação. Para finalizarmos, sugiro que toda a revolta mais ou menos disseminada da sociedade contra a piXação repousa não somente nas justificativas mais repetidas, ou seja, naquelas da depredação do patrimônio público e particular ou dos danos ambientais, onde criminalmente a legislação a enquadra,

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mas especialmente nesse choque epistemológico que a subjetividade da sua escrita nos impõe — a perda da propriedade do sentido, faculdade que fora necessário primeiro constituir-se como base das relações do homem moderno com o mundo, para, a partir dela, empreender toda sua cruzada de acúmulos. Portanto, a propriedade privada, em defesa da qual bradam-se e levantam-se ferramentas de penalização, tortura e extermínio de jovens piXadores, assim como a concepção de espaço público e meio-ambiente, como espaços vigiados onde qualquer intervenção é, a princípio, um dano, são mais efeitos dessa propriedade anterior, a do sentido, do que causas primeiras da animosidade contra a piXação. Tal raciocínio, a meu ver, fica mais evidente quando percebemos que não há qualquer campanha de repressão contra as inscrições, tão ilegais quanto, que, movidas por uma vontade persuasiva, pretendem enunciar sentidos precisos, como por exemplo os “Só Jesus expulsa o demônio das pessaos”, “Leia a Bíblia”, “Compro seu carro batido”, “Joga-se Búzios”, “Trago a pessoa amada”, que também povoam as superfícies de nossa cidade sem, por isso, convocarem seus desejos de extermínio. Objetarão que estes não escrevem sobre os muros das casas das pessoas, nem nas janelas dos apartamentos, apenas em muros das linhas dos trens, viadutos, postes, tapumes. Tudo bem, em todo caso, parece-me um tanto pouco crível que um policial possa retirar as roupas, pichar16 o rosto, violentar alguém que esteja escrevendo “Leia a Bíblia”, não importa onde. Ou seja, suspeito que as justificativas materiais sejam dissimulações discursivas que mantêm veladas as razões epistemológicas mais decisivas de que tratei ao longo deste artigo.

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Aqui, propositalmente escrevi com “ch”, justamente por ser um ato de pichar reativo, torturador, em nada assemelhado com a piXação que me interessa.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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mentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

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Cultura em tempo de perigo ADRIANA FACINA

“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. [ WALTER BENJAMIN, “SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA” ]

O filósofo judeu alemão Walter Benjamin escreveu as palavras acima no último texto escrito antes de seu suicídio, em 1940. Benjamin se suicidou enquanto tentava escapar da perseguição nazista, na fronteira entre França e Espanha. Hitler havia invadido a França e vários perseguidos pelo regime nazista foram para a fronteira da Espanha, que estava sob o governo de extrema direita do general Franco, com a intenção de fugir para os Estados Unidos. Detido junto com o grupo pela polícia espanhola, Benjamin preferiu a morte a ser deportado para os campos de concentração nazistas17. Nas teses “Sobre o conceito de história”, o filósofo apresenta uma concepção de tempo não linear, crítica ao “tempo vazio e homogêneo” do historicismo, base das narrativas triunfantes do progresso. O progresso traz a percepção do passado como algo morto e o futuro como promessa de vitória, sobrepujando a tradição dos oprimidos. Benjamin afirma que o historiador comprometido com a história dos vencidos deve ir na contramão do progresso, reconhecendo que o passado está sempre em aberto e precisa 17

Este artigo resulta da pesquisa “Sobreviver e sonhar: trajetórias de artistas com experiências de sobrevivência”, apoiada com bolsa de produtividade do CNPq.

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ser redimido. Assim, não há porque se espantar com a emergência da barbárie a interromper a marcha da civilização, pois ambas estão indissoluvelmente ligadas: “Nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie” (Benjamin, 1993, p.245). O fascismo, nessa perspectiva, não é exceção, é regra. Em suas palavras, a tradição dos oprimidos nos ensina que “o estado de exceção” em que vivemos é a regra. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a esse ensinamento. Perceberemos, assim, que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; e com isso nossa posição ficará melhor na luta contra o fascismo. Este se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX “ainda” sejam possíveis, não é um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história em que se origina é insustentável (ibid).

Como essas reflexões de Walter Benjamin podem nos ajudar a pensar o Brasil de 2018? Mais especificamente, como avaliar a partir delas o desmonte das políticas culturais que se aprofundou após o impeachment da presidente Dilma Rousseff, ocorrido em 31 de agosto de 2016? Entre o “povo da cultura”, segmento heterogêneo que abarca produtores, artistas, coletivos, grupos artísticos, empresários, trabalhadores da cultura em geral, havia a impressão de que estávamos num ponto de não retorno. Por mais que o montante das verbas públicas pudesse oscilar, conforme períodos de maior ou menor crescimento econômico, a caminhada em direção à democratização das políticas culturais e à ampliação de seu alcance parecia inabalável. Poderíamos traçar como marco dessa percepção o período da redemocratização, consolidado pelo Constituição de 1988 que, de modo inédito, inclui o direito à cultura como parte do tema mais geral da garantia de direitos. A criação do Ministério da Cultura, nesse contexto, responde à centralidade do entendimento da cultura como um direito observada nesse período. O tema dos direitos — e não apenas os culturais — ganha enorme relevância na redemocratização, e é nessa conjuntura que, acreditamos, a criação do Ministério pode ser compreendida como uma das mudanças que marcaram a

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passagem à democracia. Nosso argumento central (...) está embasado na hipótese de que não é a partir do MinC que se compreende a cultura como direito, mas é porque a cultura passa a ser compreendida como um direito que um Ministério da Cultura, no momento em que foi criado, é possível. E, de modo mais amplo, que esse passo seria mais um entre os necessários marcos, em múltiplas esferas, para produzir a democratização (Dias, 2014, p. 36-7)

A despeito do breve governo Fernando Collor (1990-1992), em que as instituições da cultura sofreram forte ataque, a impressão era a de que o passo dado no período após o fim da ditadura empresarial-militar (1964-1985) era o início de um processo irreversível. Com os dois governos Lula (2003-2011), ganhou corpo uma política de desconcentração dos recursos públicos para a cultura, insuficiente para atender as demandas daqueles historicamente excluídos das políticas estatais de cultura, mas importante para sinalizar uma mudança na atuação do Estado no setor. Mais do que a Lei Rouanet, sempre dependente do gargalo da captação de recursos junto ao setor privado, os editais se tornaram alvo da ação de fazedores de cultura em busca de condições de produção menos precária e mais “profissionalizada”. Essa tendência foi seguida por estados e municípios de diversas regiões do país, criando redes de pequenos e médios produtores culturais e pressão política para a implementação de um Sistema Nacional de Cultura, com vistas a consolidar tais políticas de gestão cultural e repasses de verbas regulares por meio de fundos de cultura, independentemente de alternâncias de governos. O chamado SUS da Cultura nunca foi implementado por completo, mas havia a expectativa de que isso acontecesse a médio ou longo prazo. O primeiro governo Dilma foi marcado por um retrocesso na gestão federal da Cultura, com redução expressiva das verbas e o segundo governo sinalizou com a retomada das iniciativas das gestões Gilberto Gil e Juca Ferreira (2003-2011). Após o golpe parlamentar que resultou na deposição da presidente eleita, o governo Michel Temer tentou extinguir o Ministério da Cultura, o que desencadeou intensa reação de agentes culturais em todo o Brasil. O movimento Ocupa MinC ocupou sedes do ministério em protesto, articulando manifestações políticas com programações culturais abertas ao público. O esforço de mobilização resultou num recuo do governo federal, que manteve o ministério, ainda que de forma precária e anêmica em termos de orçamento.

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Desde as manifestações de 2013, mas de modo ainda mais explícito nos grupos a favor do impeachment da presidente que ocuparam as ruas e as redes sociais em 2016, um discurso anti-cultura foi ganhando expressividade. Acusações de “mamar na Lei Rouanet” foram destinadas a artistas que se posicionaram publicamente contra a destituição da presidente, como se o apoio político houvesse sido recompensado com verbas públicas. Aprofundando essa perspectiva, defesas contrárias à destinação de verbas públicas para a cultura se multiplicaram na internet. O Movimento Brasil Livre (MBL), um dos principais articuladores da direita jovem que ocupou as ruas vestida de verde e amarelo, escolheu a Lei Rouanet como alvo de vídeos publicados em seu canal no Youtube e em sua página no Facebook. Vista pelo MBL como fonte de financiamento da esquerda, a lei que leva o nome do filósofo liberal Sergio Paulo Rouanet, editada quando o mesmo era secretário de Cultura do governo Collor de Mello, sempre sofreu críticas justamente de setores mais à esquerda por transferir a responsabilidade de implementar políticas culturais com verbas públicas para as mãos do setor privado e por não alcançar pequenos e médios produtores da cultura. Nos vídeos do MBL, no entanto, a Lei se torna um mecanismo de transferência direta de recursos públicos para o financiamento de artistas e eventos culturais afinados com pautas “esquerdistas” ou “comunistas”, associadas à corrupção moral da sociedade. Como fábrica de fakenews, o MBL ajudou a popularizar a ideia de que financiamento público da cultura era “coisa de vagabundo” ou de corruptos. A vitória de Jair Messias Bolsonaro, candidato de extrema-direita nas eleições presidenciais de 2018 foi acompanhado de gritos, nas ruas e nas redes, que diziam “a mamata vai acabar”, máxima que se refere a tudo que é entendido como corrupção, incluindo aí a Lei Rouanet. Desde a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro prometia a extinção do Ministério da Cultura. Seu desprezo por assuntos da alçada do MinC se manifestou explicitamente quando indagado sobre a tragédia do incêndio do Museu Nacional, ocorrida em dois de setembro: “Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre”. Segundo os jornais que noticiaram o fato, sua declaração teve tom irônico18.

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Disponível em .

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Concretamente, o que esse retrocesso, que Benjamin leria como reafirmação da “regra”, significa para a vida daqueles que foram tocados pelo sonho de viver de seu trabalho com a cultura? Para pensar sobre essa questão recorro à fala de um dos palestrantes do seminário Cultura & Territórios, realizado pela Prefeitura de Niterói em junho de 2018. Fernando Espanhol é há anos um dos mais ativos agentes culturais da cidade do Rio de Janeiro. Cria da favela do Fumacê, Zona Oeste do Rio de Janeiro, desenvolveu dezenas de projetos captando recursos por meio de editais de fomento. Com forte ênfase em danças urbanas, seus projetos culturais agregavam também outras linguagens. Um exemplo é o Festival HipFunk, reunindo moda, audiovisual, apresentações musicais, além da dança. Espanhol é um jovem negro, oriundo de uma periferia urbana, que viu seus sonhos de produzir arte em seu território, e viver disso, se tornarem realidade graças às políticas de democratização das verbas públicas para a cultura. Com a interrupção dessas políticas, sobreveio a sensação de desnorteamento e a necessidade de obter recursos para sobrevivência própria e para a continuidade das ações culturais por meio de “trabalho de carteira assinada”, categoria utilizada para nomear o labor não relacionado à sua vocação, sem alma: O retrocesso é um fato, não tem como a gente negar mais isso. A gente tá passando por esse momento. Em 2016, que eu acredito que foi o meu melhor momento enquanto agente cultural da cidade do Rio de Janeiro, eu unicamente produzia cultura. Era só o que eu fazia. E conheço muitos outros amigos que também só faziam isso. Em dias de hoje, 2018, eu tô trabalhando em coisa que não é a minha área, assinei carteira, trabalho num shopping vendendo roupa. Porque antes eu conseguia viver fazendo cultura. Agora eu preciso ter um outro trabalho pra conseguir sobreviver fazendo cultura. Antes eu tinha um orçamento pra fazer as coisas em que eu acreditava e consegui que o impacto fosse grande dentro da minha realização. Hoje eu tenho que fazer com um orçamento mais reduzido, mas o trabalho é o mesmo, ele tem o mesmo impacto, o mesmo tempo. Muitas vezes eu tenho que pegar o meu dinheiro, do meu trabalho de carteira assinada pra botar na frente também se eu quiser que aquilo aconteça. A gente precisou de certa forma se reinventar pra que a gente não desapareça. Porque isso aconteceu. Muita gente desapareceu. Conheço muito produtor cultural

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muito bom que não tá fazendo mais. Não dá mais pra fazer. O projeto que eu mencionei anteriormente, Arte do Corte, do Charlie Brown, é maravilhoso. Porque ele dá um curso de corte de cabelo pra molecada e a gente sabe que corte de cabelo é um dos maiores empreendedorismos dentro de uma favela. Ele dá esse curso pra 10 jovens e depois ainda dá o equipamento pra que os jovens possam montar seu próprio salão. Dá máquina, cadeira, espelho. Ele não consegue mais um apoio pra desenvolver esse projeto. Como educador, como uma pessoa que tá pensando a favela, ele se limita. A gente conversa muito, ele fala: “Fernando eu não posso mais ensinar, porque esse tempo que eu tô aqui ensinando eu não tô cortando cabelo e não tô ganhando dinheiro. Quando eu tinha o apoio do projeto, eu conseguia pagar uma bolsa pra molecada, eu conseguia pagar uma bolsa pro meu trabalho, por aquele tempo que eu estava dedicando e agora eu não consigo mais, porque eu preciso do tempo da minha vida também, eu preciso viver.” Eu realmente não vou mentir pra vocês, eu tô totalmente perdido. Eu sei que eu não posso parar, que eu preciso continuar do jeito que dá pra fazer. Se antes eu tinha 40 mil pra fazer e agora eu tenho 10, eu preciso me virar pra conseguir fazer com 10 mil. Mas o que fazer pra que esse cenário mude é algo que me desespera, de fato eu não faço ideia. Eu converso muito com outros produtores, com o resto da galera e eu vejo que tá todo mundo na mesma que eu. Eu não sei o que fazer. Não sei se é questão de fazer. Não sei se é inferno astral que daqui a pouco passa. Mas a situação realmente é essa e é preocupante. Falando de território e cultura, e a gente vê que dentro do governo há um descaso por essa área, um descaso gigantesco pra essa área.

Na concepção desse artista, e de tantos outros agentes culturais populares e periféricos, arte e cultura são trabalho. E um trabalho com sentido, que se conecta a desejos, realizações, projetos esperançosos de futuro. É também um trabalho coletivo, em que a felicidade individual se liga organicamente à luta por direitos e por emancipação do grupo a que se pertence, tendo o território como referência. Em suas palestras, Verissimo Júnior, professor da rede pública municipal do Rio de Janeiro e criador do Teatro da Laje, grupo que forma jovens artistas na favela Vila Cruzeiro há mais de uma década, resume o significado da arte como trabalho sonhado para jovens de periferia. Ele afirma que sempre que se depara com a pergunta

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estigmatizante, aprisionadora das identidades dos jovens negros da classe trabalhadora, “quantos jovens o senhor já perdeu pro tráfico?”, responde, em desafio: “para o tráfico não sei, mas para as Casas Bahia e para o McDonald’s já perdi muitos!”. Oposto ao trabalho alienado, o trabalho sonhado é trilha a ser escavada em pedra por essa juventude. Nada mais distante da ideia do financiamento público da cultura como “mamata”. A trajetória desses jovens fazedores de cultura é feita de intensa dedicação, aprendizado autodidata das linguagens tortuosas dos editais e das cabulosas prestações de contas, capacidade de fazer muito com pouco, invenção de técnicas inovadoras de mobilização e divulgação de suas ações. Junto a isso, a produção de novas estéticas e mesmo novas concepções do fazer artístico, que desafiam noções hegemônicas cristalizadas sobre o que é arte e criação cultural. Processos criativos inventados não apesar da precariedade, mas a partir dela, ao mesmo tempo crítica e de superação de uma condição onde nem o direito à vida é garantido. E fica a pergunta de Fernando Espanhol: o que fazer? Creio que nenhum de nós sabemos. A facilidade com que se deu o desmonte expôs a fragilidade das bases sobre as quais as políticas públicas de cultura estavam assentadas. Apesar do impacto que tiveram na vida de pessoas como Espanhol, sabemos que essas políticas foram tímidas em transformar de modo mais radical o modelo concentrador do financiamento público e em conferir centralidade à cultura no orçamento público. O que o MBL de modo tosco denomina mamata pode ser uma outra maneira de manifestar a visão histórica da cultura como área supérflua dentro do Estado brasileiro. Seu desmerecimento é regra e não exceção. A diferença do atual momento histórico é que o desmonte das políticas culturais passou a atingir segmentos mais amplos da população, que passaram a demandar do Estado a garantia da cultura como direito. E não apenas o consumo ou fruição cultural, mas principalmente como produção descentralizada e horizontal da cultura. Enquanto pergunta o que fazer, Espanhol e tantos outros artistas e produtores culturais fazem. Reestruturam ações, buscam apoios, criam redes de solidariedade, inventam formas de financiamento. O que não necessariamente implica renunciar às reivindicações junto ao Estado. Nas palavras de Espanhol,

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A gente não depende do Estado pra produzir, mas é importante a gente não retirar a responsabilidade do Estado de cima disso. Eu conheço muito amigo produtor que tem esse pensamento: “eu não dependo do Estado pra nada”. Mas quando você reproduz esse discurso você tá dizendo pro Estado que você não precisa dele e a gente precisa dele sim. É a obrigação dele.

A cidadania se manifesta em definir a “obrigação” do Estado para com o financiamento do fazer artístico cultural das classes trabalhadoras, em conceber a cultura como direito e a arte como trabalho que escapa à lógica da superexploração que caracteriza as ocupações disponíveis no mercado para as camadas populares. Nesse processo de reinvenção em meio a condições adversas, há ainda uma camada mais profunda. Logo após o incêndio do Museu Nacional, nós, funcionários da instituição, recebemos uma série de cartas escritas e desenhadas por crianças de uma escola pública sediada em área de quilombo no estado do Rio de Janeiro. Essas crianças jamais haviam visitado o Museu, mas enviaram mensagens de solidariedade e apoio a nós, manifestando seu pesar e seu luto por essa perda incalculável para a história da humanidade. Estimuladas por suas professoras, elas pesquisaram sobre o Museu Nacional e sem muito esforço compreenderam que se tratava de uma grande catástrofe. Uma dessas cartas me chamou a atenção. A criança nos enviava mensagens de esperança e dizia: “eu sei o que vocês estão sentindo, eu sei o que é perder tudo”. E ela sabia mesmo. Segundo suas professoras, numa chuva torrencial a sua casa havia sido levada numa avalanche de pedra e lama. E essa criança estava ali, com suas palavras e seus desenhos coloridos, nos dizendo que íamos sobreviver. Trago este exemplo para ilustrar o significado profundo da experiência do sobreviver no cotidiano de milhões de pessoas no Brasi. Ter de recomeçar do zero, aprender desde cedo a driblar dificuldades quase intransponíveis, ser sagaz para jogar no campo no inimigo, como diria Michel de Certeau (1990), fazer planos em contexto de incertezas, sonhar grande de barriga vazia. Quantos saberes nascem dessa experiência de não ter garantia de vida? Flores que irrompem o asfalto, gente que ensina a dar nó em pingo d’água. Carolina Maria de Jesus a escrever livro, com fome sua e dos filhos, em papéis encontrados no lixo onde também se buscava comida.

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Esses saberes, antigos, imemoriais, estão sendo exercidos na produção cultural que emerge dos territórios em que o baixo IDH convive com intensa criatividade. Não se trata aqui de romantizar o precário. O foco é reconhecer artes de fazer que podem inspirar e alimentar esperanças em momentos de perigo. Astúcia que se aprende com quem sabe que para lutar é preciso estar vivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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crítico da ideia de políticas culturais no Brasil (1985-2013). Rio de Janeiro, PPGAS/ MN/UFRJ, tese de doutorado, 2014.

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PA R T E I I

SOBREVIVER EM NARRATIVAS

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Filhas da sobrevivência NOEMI JAFFE

Certamente, o convite para esta coletânea sobre a sobrevivência deve ter sido feito em função do livro que escrevi: “O que os cegos estão sonhando?”, publicado em 2012, pela Editora 34 e baseado na história de sobrevivência de minha mãe. Em 1944, ela, juntamente com milhares de outros judeus sérvios, foi presa pelos soldados nazistas e enviada para Auschwitz, onde passou alguns meses e onde perdeu o pai e a mãe. Levada mais tarde para o campo de Bergen Belsen, no norte da Alemanha, foi resgatada pela Cruz Vermelha, que, já no final da guerra, levou-a e a outros sobreviventes para a Suécia, onde, durante o período de quarentena, ela escreveu um diário em que conta, dia a dia, os principais acontecimentos pelos quais tinha passado, desde a captura até a libertação, incluindo várias páginas da mais pura euforia com a quantidade de comida que ela via e recebia e a redescoberta da feminilidade, vendo o cabelo crescer, o corpo engordar e os moços começarem a paquerá-la. Sempre soube da existência desse diário, desde muito pequena e, posso dizer que desde que aprendi a ler e escrever tinha vontade de, um dia, publicar um livro a seu respeito. A oportunidade surgiu, finalmente, no ano de 2008, quando, após receber uma bolsa da Petrobras, decidi, já com minha filha, escrever um livro que contemplasse as três gerações de mulheres, cada uma com sua versão a respeito do fenômeno da sobrevivência. O que ela significou para minha mãe, para quem a sobrevivência foi uma questão literal, trágica, de necessidade de suportar mais um dia para evitar a morte sempre iminente; para mim, que nunca passei por nada nem de longe semelhante, e para quem a sobrevivência se dá no plano simbólico, pelo fato de eu ser filha de uma sobrevivente; e para minha filha, sua neta, que reflete sobre o fato de pertencer à segunda geração, no Brasil, para quem a sobrevivência é muito mais um dado teórico ou familiar, do que literal ou simbólico e, mesmo assim, ainda a afeta.

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Não vou aqui repetir fatos e reflexões expostos no livro, mas pretendo especular um pouco mais sobre esta palavra, a “sobrevivência” e sobre o que ela significa para mim, filha de sobrevivente de guerra, sobrevivente de uma ditadura no Brasil, mulher e escritora. É estranho pensar que “sobrevivência” tem um significado semelhante ao de “surrealismo” e chega até a ser engraçado imaginar que uma poderia se chamar “survivência”, assim como o outro poderia ser “sobrerealismo”. Ambos são “sobre”: a vida e a realidade, conceitos não distantes um do outro, já que existe uma espécie de unanimidade tácita que concebe a vida como a instância mais real que existe e a realidade como a instância mais vital de todas. Nesse sentido, se concordarmos com a aproximação entre os dois conceitos, a ideia de “sobre” se entenderia como algo que se localiza acima da vida e da realidade. Na acepção de surrealismo, no entanto, a superioridade do “sobre” é plurissignificativa. Tanto pode ser uma perspectiva suspensa acima do real, que o sobrevoa e para quem o real é visto como uma dimensão nebulosa, um referente apenas apagadiço, uma fronteira remota; ou como uma perspectiva abaixo do real, compreendendo as camadas recônditas do inconsciente, dos sonhos e da livre associação do discurso; ou, ainda, como um viés entre-real, em que o surreal estaria nas brechas da realidade, nos intervalos clandestinos ou imperceptíveis que ocorrem nos desvãos e nas dobras da normalidade, a partir da exploração de ambiguidades, lapsos, trocadilhos, jogos de ótica e de linguagem. Seria, enfim, uma espécie de super-realidade, sobre e/ou sub-realidade, em que o real é visto como por uma lupa ou por um telescópio, de forma a, pela distorção, tornar-se estranho àquelas mesmas pessoas que o vivem cotidianamente. Por outro lado, na acepção de sobrevivência, a superioridade do termo “sobre” carrega o sentido de superação, sustentação, de extensão ou prolongamento da vida, baseado em esforço ou dificuldade. É, novamente, estranho que, para prefixos iguais, os sentidos tenham adquirido sentidos tão diferentes. Entretanto, se pensarmos com mais flexibilidade nos dois termos, e também com um pouco mais de poesia e generosidade, veremos que é igualmente possível compreendê-los de forma invertida. Ou seja, a sobrevivência como uma suspensão onírica da vida, em que a própria vida física e psíquica é vista e vivida de um ponto de vista

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distante e “espantado”, incrédulo e estranho, e o surrealismo como uma extensão, um prolongamento difícil e amargurado do real. Podemos, por um intervalo de tempo, operar esta “brincadeira”. Imaginemos que a sobrevivência é uma espécie de survivência, em que a vida se torna irreal ou, ainda, mais real do que o real (o que acaba dando no mesmo). Quem é o sobrevivente? É aquele que restou, após a ocorrência de uma catástrofe, uma tragédia, uma hecatombe coletiva, uma situação opressiva que o assolou e a muitos outros, independentemente de sua vontade e potência. O sobrevivente sobra, testemunha a destruição dos outros, próximos ou não e se mantém vivo. Vivo e, quase necessariamente, culpado por viver, já que a sorte, o acaso e, por vezes, a esperteza e outras estratégias nem sempre éticas, o pouparam. O sobrevivente restante — sinônimos — vive, quase sempre, um dilema. Lembrar ou esquecer? Contar ou calar-se? Continuar a vida, por honra aos mortos, ou deixar de viver, deprimindo-se, ou, no pior dos casos, subtraindo a própria vida, também por honra a eles? Cumprir uma missão ou, por ser apenas vítima, furtar-se a ela? Perdoar ou vingar-se? São aporias indecidíveis e, qualquer que seja o caminho que se tome, fica sempre a possibilidade de que o outro, oposto, poderia ser mais construtivo, saudável, necessário. O sobrevivente, portanto, além de sobreviver à catástrofe, vive também em estado permanente de sobrevivência às ideias, às exigências — próprias e alheias — e à vida. É praticamente impossível que um sobrevivente deixe de sê-lo algum dia, mesmo que consiga esquecer quase tudo o que viveu. Todas as opções são legítimas para um sobrevivente. Lembrar é a mais aceita de todas, pois as justificativas para ela são unânimes — não permitir que as futuras gerações repitam o que ocorreu e conscientizar os mais jovens sobre as injustiças históricas. Mas esquecer também é perfeitamente aceitável: o sobrevivente deve defender-se da memória para poder continuar vivo. E, nesse sentido, quem tem a obrigação de lembrar-se são as gerações seguintes, próximas ao sobrevivente, mas poupadas da desgraça e, por isso, capacitadas para a narrativa. Como narrei em meu livro, o sobrevivente viveu a tragédia - o fato em si, o fato absoluto, a coisa imanente, inenarrável. Já quem descende dele, seus filhos, vivem o drama - o fato narrado, a versão, a possibilidade da relativização e da dúvida. Quem vive o drama inveja a tragédia e, por isso, conta.

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Imaginemos, assim, o sobrevivente como um “survivente”. A vida, para ele, surge enevoada no passado e também no presente. Viver, para ele, é estranho. Ele não consegue participar das coisas como todos os outros e tudo repercute nele como que através de um véu; os acontecimentos imediatamente viram lembrança ou esquecem-se. As coisas se misturam umas com as outras e soam impossíveis: por que todos sorriem? Por que não querem me ouvir, como conta Primo Levi, que não tinha para quem contar seus sonhos? Os vivos não querem conhecer as histórias repetitivas e monótonas dos sobreviventes. Os vivos querem viver e, por isso, as histórias dos sobreviventes são “surhistórias” e a vida, para ele, ou o real, é surreal. As pessoas são assustadoras, o tempo escorre, as palavras não soam reais. Por que todos pertencem ao mundo? Quem são vocês, os vivos? O “survivente” habita no intervalo entre a vida e a morte, não somente nos momentos inevitáveis, como todos nós, mas em todos os momentos. Sua vida é quase-morte e a morte quase-vida: retorno ao lugar de onde ele não deveria ter saído. Lá era a minha casa: no campo de concentração. Foi lá que deixei meus mortos. Aqui, no conforto do lar e da nova família, onde estou? Que língua é essa que vocês falam com tanta fluência e naturalidade? Por que vocês falam tanto? Nesse sentido, sobreviver é viver, permanentemente, com uma lupa ou um telescópio agigantando ou visualizando o real de perto ou de longe demais, de modo a ver, nele, mais coisas do que veem os outros. Sobreviver é não pertencer, ser estrangeiro e estar sempre além, fora, aquém, dentro, mais para a esquerda, antes ou depois, atrasado ou adiantado, sozinho. Não há, na vida e no real, nada que redima o sobrevivente de sua condição e, mais do que isso, ele não quer ser redimido, porque, para ele, ser sobrevivente é o mesmo que existir. Como ainda disse Primo Levi, o sobrevivente é uma testemunha à própria revelia, porque ou não gostaria de ter visto o que viu, ou gostaria de ter morrido junto com quem viu morrer. Mas, diferentemente de outras testemunhas, ele não tem como utilizar sua visão contra ninguém; ter sido testemunha só age contra si mesmo e ele deve, então, ser sobrevivente do próprio fato de ter testemunhado. Como diante do surrealismo, são também muitas as perguntas irrespondíveis que cercam aqueles que convivem com os sobreviventes, tornando-os por isso, também eles, sobreviventes por seu turno. Cerca-nos o fantasma de

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algumas missões: a de contar, por eles, aquilo que os imobiliza; a de integrá-los ao novo real que eles vêm a habitar; a de ouvi-los. E também uma dúvida: em que medida cada um de nós pode se dar o direito de ser porta-voz de uma história que não viveu? E, ainda, até que ponto não somos todos, de alguma forma, também sobreviventes de um século de guerras, preconceito, ditaduras e impossibilidade de fala e devemos, por isso, ajudar os sobreviventes de tragédias mais radicais e corporais? A tragédia é, como se sabe, irrepresentável e é conhecida a colocação de Adorno de que, após Auschwitz não se podem mais escrever poemas. Entretanto, poemas continuam sendo escritos e a irrepresentabilidade nunca foi tão teorizada e testada. Talvez porque os sobreviventes dos sobreviventes — a família gerada no outro país, aqueles que estudam as tragédias, que se conscientizam e sofrem com os problemas dos séculos XX e XXI — não consigam calar-se, como muitas vezes conseguem os sobreviventes diretos. Precisam dizer o que não se pode dizer e dizer que é impossível dizê-lo, como estou eu mesma fazendo neste texto. Esta talvez seja — além da que conseguiram monstros sagrados como Beckett, Celan, Wiszlawa Szymborska e Herta Muller — a única alternativa que tenha nos restado para tentar entender, minimamente, a banalidade do mal que nos cerca cada vez mais. Sabemos que, ao final, não será possível explicá-la nem detê-la, mas temos a sensação de que, especulando a seu respeito, talvez possamos evitar sua irrupção em cada um de nós. É uma possibilidade. O certo é que o mal, este fenômeno incompreensível e onipresente, habita em todos nós, de forma mais ou menos clandestina e oculta e só é preciso uma condição de extrema insegurança ou algo que ainda escapa ao nosso controle e conhecimento para que ele aflore imperceptivelmente. Os textos sobre a irrepresentabilidade da tragédia talvez sejam uma forma de processar as sementes do mal em cada indivíduo e também uma maneira de nos convencer de que somos todos sobreviventes, senão de eventos externos e incontroláveis, certamente de algo que está dentro de todos. Somos todos sobreviventes do mal. Já o “sobrerealismo” pode, também ele, ser compreendido como superação ou sustentação extensa e prolongada do real. Por ser o real uma instância necessariamente e cada vez mais adversa, representá-lo é, também inevitavelmente, suportá-lo. O artista “sobrerealista” é aquele que, aceitando enfrentar o real, consegue vir a expressá-lo da forma distorcida como a vida

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se apresenta a ele, já que viver o real é sofrê-lo. Como diz Caetano Veloso (sempre ele), “viver é um desastre que sucede a alguns”. Relógios derretendo-se; pessoas defecando na sala de jantar; manchas esparsas e multicoloridas de tinta; centenas de homens de chapéu coco flutuando no espaço são todos gritos adulterados e catárticos de quem suporta e enxerga, na realidade, o que nela se oculta. O “sobrerealismo” é o lado avesso da história, o lado avesso do visível, onde se veem as costuras, os nós, os vieses, os erros, os andaimes, os disfarces, os borrões. Ou, ainda, seu lado magnificado, mostrando espinhas gigantes, insetos monstruosos, cânceres alienígenas. “Surviventes” ou “sobrerealistas”, estamos todos, nesse século que mal começou, vivendo a vida de forma ou perplexa ou anestesiada. É difícil pensar em outras alternativas, a não ser por pequenas brechas simbólicas. Olhando o real por entre seus ângulos retos, de forma surreal ou ainda estranhando-o e suportando-o, sobrevivendo. Quando refugiados que atravessam oceanos em busca de um novo lugar são constantemente rejeitados por países ricos; quando pessoas querem morrer e matar em nome de uma causa, qualquer que seja ela; quando povos e etnias ainda teimam em se considerar superiores a outros, não há por onde escapar da condição de sobrevivência. O que difere é, certamente, o grau e a intensidade. Mas cabe a nós, leitores, agirmos em nome daqueles que não podem fazê-lo, aqueles que não podem sentar-se diante de um livro para refletir. Aqueles que vivem o drama devem falar por quem vive a tragédia, porque estes estão mudos ou emudecidos.

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Exu e a pedagogia das encruzilhadas LUIZ RUFINO

Peço licença para praticar algumas estripulias. Farei isso invocando e encarnando o poder que é próprio a toda e qualquer forma de invenção. Apostarei nas potências daquele que faz “o erro virar acerto e o acerto virar erro”. As travessuras aqui praticadas se darão na busca por desatar alguns nós. A brincadeira será essa: desatar os nós para lançar novas amarrações. Fiel ao que me mobiliza, firmarei o ponto dizendo que aquilo que entrou goela abaixo será vomitado. O que a boca engoliu será cuspido, restituído de forma transformada. Assim se inscreve parte dos poderes de Exu, laroiê! Mojubá! Neste escrito, versarei sobre algumas travessuras de Exu, falarei de parte de seus domínios e potências para apresentar o que conceituo como pedagogia das encruzilhadas. Essa pedagogia, assentada e vigorada em seus domínios e potências, é compreendida como um projeto poético/político/ ético antirracista/decolonial. Em outras palavras, é um balaio tático que, por intermédio de múltiplas operações teórico-metodológicas, busca expurgar o carrego do colonialismo para lançar parte da problemática dos conhecimentos e das educações nas encruzas. O praticar Exu e as suas encruzilhadas miram a transformação radical, impulsionando-nos para horizontes pluriepistêmicos e para a prática de ações comprometidas com o combate às injustiças cognitivas/sociais. Exu é o orixá iorubano que versa sobre os princípios da mobilidade, da transformação, das imprevisibilidades, das trocas, das linguagens, das comunicações e toda forma de ato criativo. Nas máximas que trançam as esteiras dos saberes19 de terreiro, Exu é reivindicado como o dínamo do universo, o linguista e o tradutor do sistema mundo. Para muitos, é o signo

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Trabalho com os termos “conhecimento” e “saber” como sinônimos, sem que exista, aqui, nenhuma forma de distinção e hierarquização entre os mesmos.

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que representa o inacabamento. Esse caráter é parte de seus atributos e lhe confere a condição de senhor de todas as possibilidades. Assim, Exu é um princípio cosmológico — em seu signo estão assentadas as noções sobre as estruturas, as composições e as dinâmicas do universo. É também parte de uma problemática ontológica, na medida em que trata da natureza dos seres, das produções e dos princípios explicativos sobre as realidades e as suas múltiplas formas de interação. Exu está também vinculado a uma problemática epistemológica. A(s) sua(s) presença(s) cruza(m) esse debate, já que as questões acerca dos conhecimentos estão diretamente ligadas a seus princípios e potências. Nesse sentido, está vinculado às produções, presenças e origens dos conhecimentos. Ainda sob essa dimensão, o orixá protagoniza suas peripécias no que tange as questões relativas à diversidade de conhecimentos e à necessidade de giros, transgressões e rebeldias frente aos processos de racismo/colonialismo epistemológico. Outro ponto a ser destacado e que ressalta seus vínculos com esse campo é sua potência/ natureza semiótica. Exu é primordial. O primeiro a ser criado, a protomatéria, é ele que nos concede a condição de existência, como também é o poder que opera dando o tom do acabamento em tudo que é criado. Porém, um dos aspectos que ganha destaque aqui é o fato de que Exu, transladado, ressignificado e praticado na diáspora, dimensiona a infinidade de golpes operados nos interstícios das estruturas coloniais. Essa potência é o que me orienta para as problematizações aqui tecidas e para a conceituação de uma pedagogia assentada em seu signo. Em outros termos, o fato de, nas bandas de cá, praticar-se as encruzilhadas cuspindo marafo, baforando fumaça, arriando farofa, acendendo a vela, velando a vida, inventando terreiros e transgredindo mundos, fortalece a perspectiva da invenção nas frestas. Enquanto o colonialismo edificou a cruz como sua égide, sobrevivemos vadiando nos vazios deixados, ocupando e praticando as esquinas da modernidade ocidental, fazendo das encruzilhadas campo de possibilidades. O que Mignolo (2008) chamou de “desobediência epistêmica” — ação que deve ser suscitada para opções de decolonização política — será aqui encruzado ao que chamo de traquinagens exusíacas. Essas traquinagens são os golpes, sucateios, antidisciplinas, gingas, amarrações, saberes de fresta, mandingas e outras múltiplas formas de fazer que praticam caminhos por

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encruzilhadas, dimensionando horizontes pluriepistêmicos e polirracionais. Ressalto que a opção decolonial é epistêmica. Assim, as traquinagens sugerem a prática de giros e deslocamentos das produções fundamentadas nas lógicas ocidentais e nos seus acúmulos. O que reivindico como outros caminhos possíveis não se credibiliza a partir da ignorância ou da negação dos conhecimentos já produzidos e institucionalizados pelo Ocidente. O que sugiro como caminho é o cruzo entre essas perspectivas e muitas outras historicamente subalternizadas, partindo da premissa de que a diversidade de experiências e práticas de saber (Santos, 2008) são infinitamente mais amplas do que aquilo que é autorizado pelo discurso Ocidental. Nesse sentido, é na potência do cruzo e na emergência do que eclode nas zonas de fronteira que se fundamenta a minha opção por Exu. As encruzilhadas são campos de possibilidades, tempo/espaço de potência, onde todas as opções se atravessam, dialogam, entroncam-se e se contaminam. Uma opção fundamentada em seus domínios não versa, meramente, por uma subversão. Dessa forma, não se objetiva a substituição do Norte pelo Sul, do colonizador pelo colonizado, dos centrismos ocidentais-europeus por outras opções também etnocentradas. A sugestão pelas encruzilhadas é a de transgressão, é a traquinagem de Exu. São as potências do domínio de Enugbarijó20, a boca que tudo engole e cospe o que engoliu de forma transformada. Os caminhos que partem do radical Exu de forma alguma podem se reivindicar como únicos. Não cairia bem a ele. A encruzilhada como um dos símbolos de seus domínios e potências fortalece a potência que versa na máxima: “Exu é o que quiser!”. Assim, ele é aquele que nega toda e qualquer condição de verdade para se manifestar como possibilidade. É Elegbara21, o dono do poder, o andarilho que caminha na direção do rei, decepa-lhe a cabeça, mete-a no bornal e desaparece na curva a gargalhar. Exu é assim, perambula pelo mundo, reinventando-o a partir de travessuras.

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Enugbarijó é o título de Exu que o referenda como a boca do universo ou boca coletiva. Na máxima versada nos terreiros, Exu, enquanto Enugbarijó, é a boca que tudo come. Este princípio está implicado nas potências como realizador das transformações radicais, das comunicações e das continuidades.

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Título de Exu que o define como o senhor do poder mágico.

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Apresentarei a pedagogia das encruzilhadas seguindo passo a passo, esquina a esquina, encarnando os saberes assentados naquele que fundamenta a encruza como o campo do possível. Assim, esculhambam-se as normas, rodopia-se no meio da rua, “mata-se o pássaro ontem com a pedra atirada hoje”. Para aqueles que firmam o ponto de uma tal redenção colonial, digo: Exu está a vagabundear pelo mundo praticando suas desordens, decepando a cabeça de reis, descadeirando os obsidiados pela grandeza e estilhaçando regimes de verdade para, a partir de cada caco, narrar uma nova história. Seguimos o caminho cuspindo marafo na esquina, ofertando o sacrifício que encanta a vida. Onde Exu come está a se reinventar um novo mundo.

Oríta Métà, Igba Ketá: cruzos, rolês e ebós epistemológicos Oritá Métà ou Igbá Keta são títulos de Exu que conferem a ele a condição de o senhor da terceira cabaça, podendo ser também conhecido como o senhor da encruzilhada de três caminhos. Entre as muitas histórias que são narradas nos terreiros, conta-se que em tempos imemoráveis Exu recebeu a opção de escolher entre duas cabaças. A primeira continha o pó mágico referente aos elementos que positivavam a vida no universo, enquanto na segunda estava outro pó, referente aos elementos que negativavam a vida no universo. Frente ao dilema entre as duas opções, Exu acabou surpreendendo a todos quando optou por uma terceira cabaça, esta vazia, sem absolutamente nada dentro. Assim foi feito: trouxeram a terceira cabaça e a entregaram a Exu. Tendo a terceira cabaça em seu domínio, Exu retirou o que havia na primeira — o pó mágico referente aos elementos positivadores — e despejou na cabaça vazia. Logo em seguida, repetiu o procedimento com a segunda cabaça, retirando dela os elementos negativadores, e os despejou na terceira. Exu, então, chacoalhou a terceira cabaça, misturando os dois elementos, e em seguida os soprou no universo. A mistura rapidamente se espalhou por todos os cantos, sendo impossível se dizer o que era parte de um pó ou do outro, mas, agora, um único, um terceiro elemento. Esse é o poder do senhor da terceira cabaça, aquele que versa sobre os domínios e a potência das ambivalências, das dúvidas, das imprevisibilidades e transformações. É no vazio das incertezas que Exu nos aponta caminhos.

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Já nos diz a máxima versada nos terreiros: “onde existe dúvida, é sinal de que Exu está a praticar seus furdunços para que nos reinventemos! Obá Oritá Métà/Igba Ketá”, aquele que é o “3” por excelência. Sua potencialidade nesse sentido é a de operar nas frestas, no tempo/espaço da síncope. É ele a energia propulsora do dinamismo e das interações; é ele quem cria a partir das desconstruções e desordens. O sentido de Obá Oritá Métà/Igba Ketá uma vez ou outra também é apresentado a partir da interpretação de Exu como sendo o “+1”. Esse caráter o dimensiona enquanto ser inacabado, como potência que pode vir a se somar e alterar toda e qualquer situação. Assim, um de seus atributos diz respeito à regência das transformações do destino. Existe uma série de passagens que narram como Exu, a partir de suas transgressões, alterou de maneira improvável o desenrolar de situações limite. Cabe ressaltar, contudo, que as duas interpretações — dele enquanto 3 ou como +1 — indicam a força dinâmica do desequilíbrio, ou até mesmo do conflito e da contradição existente entre dois polos. Como já dito antes, a potência de Exu não está na instância da ordem pelo seu avesso, mas sim nos deslocamentos e efeitos produzidos pela sua presença enquanto princípio dinâmico do universo, força motriz de todas as coisas. Partindo dessa breve apresentação do caráter de Exu enquanto Obá Oritá Métà/Igba Ketá, ata-se o ponto: o que Exu tem a nos ensinar enquanto o senhor da terceira cabaça, o senhor da encruzilhada de três caminhos? Quais as contribuições podem vir a emergir e substanciar ações antirracistas/ decoloniais? Ora, camaradinhas, desatemos o ponto. Haveremos de convir que se educa para os mais diferentes fins. A educação, enquanto ética e prática emancipatória, deve incorporar instâncias de inconformismo, rebeldia e transgressão. Partamos do pressuposto de que uma educação que nega Exu nega também a possibilidade de mobilidade e de transformação. Os modos de educação praticados nas bandas de cá não podem estar isentos de uma crítica que desestabilize os pressupostos coloniais, nem de giros epistemológicos que desmantelem os arranjos alicerçados em estruturas monoculturais e monorracionalistas. A meu ver, a potência de Exu como Obá Oritá Métà/Igbá Ketá nos lança a perspectiva de outros caminhos, que apontam para a transformação radical — um rumo que se codificará a partir do cruzamento de instâncias opostas,

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ou seja, sob a perspectiva da desordem das mesmas. Esse caminho é tido como impossível diante das razões que se fixam nos esquemas maniqueístas do mundo Ocidental. Como já dito por Fanon (1968), o mundo colonial é um mundo cindido em dois. Mas, como também ressaltado por ele, a descolonização, que se propõe como uma mudança radical do mundo, é um programa de desordem absoluta. Esse processo, aqui problematizado, se dará no cruzar de duas forças congenitamente antagônicas que se despedaçarão, e dos seus cacos se constituirá um novo quadro. Assim, o que emerge como possibilidade não se fixa nos limites da primeira ou da segunda opção, mas aponta para uma terceira. Esse terceiro caminho, cruzado, ambivalente, é aquele que veio a se somar para mobilizar as transformações e as continuidades. A encruzilhada aponta para múltiplos caminhos, afinal, a noção de caminho assentada no signo Exu se compreende enquanto possibilidade, e não como certeza. Dessa forma, a encruza compreende a coexistência de diferentes rumos. Lá, diferentemente do que é praticado pela lógica ocidental, um caminho não se torna crível em detrimento de outros. A encruzilhada esculhamba a linearidade e a pureza dos cursos únicos, uma vez que suas esquinas e entroncamentos ressaltam as fronteiras como zonas interseccionais, onde múltiplos saberes se atravessam, coexistem e pluralizam as experiências e suas respectivas práticas de saber. É a partir dessa perspectiva que lanço mão do que conceituo como cruzo, noção que compreende os procedimentos teórico-metodológicos que se orientam pelas lógicas assentes no signo Exu e em suas encruzilhadas. Os cruzos operam praticando rasuras e ressignificações conceituais. No que tange as questões acerca da produção de conhecimentos, essa noção versa-se como uma resposta responsável, fiel à noção de que nossas práticas de saber se tecem a partir das relações e das consequentes alterações e acabamentos que nos são dados pelos outros. A noção do cruzo versa acerca da diversidade de saberes e suas interações. O que é lançado na encruzilhada ou praticado a partir de suas lógicas será, necessariamente, alterado. O cruzo revela as encruzilhadas como complexos interculturais mobilizados por saberes cosmopolitas (ver Santos, 2008). Na encruzilhada, tudo o que é lançado é também modificado; qualquer “verdade” logo se transforma em dúvida, potencializando assim a abertura de outros caminhos.

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Para nós, que vivemos em um mundo que edificou seus regimes de verdade a partir da interdição e da descredibilização da diversidade, nos resta lançar nossos dilemas na encruza, rasurá-los e reinscrevê-los de forma cruzada. Para que isso seja possível, teremos de praticar Exu enquanto Obá Oritá Métà/Igba Ketá; é isso que propõe a noção de cruzo assente na pedagogia das encruzilhadas. Essa noção está articulada a outras duas operações integrantes do balaio tático exusíaco. São elas as noções de rolê epistemológico e ebó epistemológico. Seguimos passo a passo, dobrando esquinas, bebendo e cuspindo marafo, inventando terreiros, alumiando o mundo. Na marcação binária que entoa a rítmica do mundo colonial emerge um terceiro tempo, um vazio ressaltado no intervalo entre os dois tons. A síncope, o vazio, campo do imprevisível e, por isso, das possibilidades, há de ser preenchida pelos poderes do corpo. Ali, há de se inscrever algo. Eis que nasce a ginga, produção de saber do corpo e suporte para um infinito repertório gestual de esquivas, negaças, golpes e rolês. Todas essas ações são versadas como operações de fresta, estratégias de sobrevivência (Bhabha, 2008). A noção de rolê epistemológico inspira-se nas sabedorias da capoeira para propor ações de desvio e avanço. Imprime, nesse sentido, a lógica do jogo, onde o bote se dá no momento oportuno. Os rolês caçam tempos/espaços para a prática das virações, esquiva-se, rola-se de um lado para o outro, finge que vai, mas não vai e aí se dá o bote, certeiro, eis que o cruzo então acontece. O rolê é ao mesmo tempo o movimento de desvio, de fuga, de ganho de espaço e de montagem de estratégias para a operação de golpes. A lógica do jogo não presume a aniquilação do outro com quem se joga, mas permite a sedução, o destronamento, o drible e o golpe. “Se tentar me prender, eu giro; pronto escapuli, já estou do outro lado!”. O rolê versa a partir da sabedoria de que não se bate de frente, mas sim dá voltas. Assim, o conceito encarna as manhas do jogo de corpo para praticar no campo dos conhecimentos outras virações que potencializem a prática das frestas. Considero que a noção de rolê epistemológico é cotidianamente praticada por aqueles sujeitos a quem o colonialismo impôs métodos ocidentais simultaneamente com seus próprios modos de conhecimentos. Essa perspectiva é reforçada por Masolo (2010), na medida em que nos mostra que aquilo que poderia aparentar um conflito de racionalidades é, provavelmente, apenas

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um desconforto por parte daqueles que são monorracionais. Os sujeitos que sobrevivem cruzando, traduzindo22 e ressignificando conhecimentos assentados em diferentes modos de racionalidades tecem uma rede intercultural, pluriepistêmica e polirracionalista. O rolê epistemológico encarna na vida a lógica do jogo. Como se sobrevive preservando referências e negociando posições em meio a relações solapadas pelas violências, irregularidades e desproporções que colocam grande parte dos saberes subalternos como alvos de extermínio? Arrisco dizer que isso só é possível incorporando as astúcias da ginga. Há de se jogar o jogo, afinal, o cotidiano colonial é um verdadeiro campo de batalhas e mandingas. Daí a necessidade dos rolês epistemológicos, operação essa diretamente articulada à noção de cruzo e que vem a invocar e amarrar o verso de uma terceira ação, a que conceituo como ebó epistemológico. Ah, camaradinhas, a vida tem seus mistérios. Tenho que admitir que, além dos rolês e cruzos, haveremos de contar ainda com as instâncias da magia e do encantamento. Se a vigência do projeto ocidental se constituiu por intermédio da subalternização, do desencantamento e do desaparecimento de inúmeros saberes, agora será preciso invocar um outro espírito que os restitua. Existem nós atados pelas razões ocidentais que nem mesmo ela é capaz de desatar. Assim, o que nos resta na tentativa de desfazer essas amarrações é esculhambá-las via os poderes do encante. Lancemos mão do repertório de mirongas dos “negos véio”, já que se torna cada vez mais necessário “desobsediar” os assombros e carregos alimentados pelo racismo/ colonialismo. O ebó se configura como o conhecimento praticado, os ritos de encante e as tecnologias codificadas nos cruzamentos de inúmeras sabedorias negro-africanas transladadas e ressignificadas na diáspora, tem como efeito operar na positivação dos caminhos. Ao incidir sobre seu alvo, afeta-o, conferindo a ele mobilidade, dinamismo e transformação. O ebó epistemológico, nesse sentido, compreende todas as operações teórico-metodológicas que vêm a produzir efeitos de encantamento nas esferas de saber.

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A noção de tradução é aqui utilizada a partir do que sugere Santos (2008), como o estabelecimento de relações de inteligibilidade mútua.

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Tomo como efeito de um ebó epistemológico a presença de Exu encruzado no debate educativo. À medida que Exu atravessa o debate, fundamentando uma pedagogia que lhe é própria, emergem transformações que desmantelam completamente a organização das estruturas dominantes. Contudo, ressalto que o efeito do ebó na positivação de caminhos não garante uma ordem livre de conflitos. Toda e qualquer ação que mire a transformação radical presume o conflito e o tem como potência. Independente dos impactos que podem ser gerados, considera-se que os efeitos que trazem dinamismo garantem a perspectiva da abertura de caminhos. A noção de ebó epistemológico contribui para enfatizar as questões dos conhecimentos como parte de uma problemática étnico-racial. De fato, existem instâncias dos conhecimentos versados na esteira ocidental que não só negam como também são incapazes de pensar o mundo a partir de elementos assentes em outros modos de racionalidade. Um desses elementos é a dimensão da espiritualidade na imbricação com as questões acerca dos conhecimentos. A espiritualidade lida de forma integrada com as instâncias do saber, revelando-nos perspectivas presentes em outros assentamentos, perspectivas essas que se inscrevem nas dimensões do “pensarsentirfazer” (Carvalho e Florez, 2014). Assim, tomo como efeito do encantamento praticado pelos ebós epistêmicos a emergência, a credibilização e o uso afirmativo de noções historicamente relegadas pelo projeto de ocidentalização do mundo. A presença da espiritualidade cruzada à problemática dos conhecimentos não compromete os parâmetros da laicidade. A espiritualidade aqui reivindicada está encruzada à emergência de outros saberes que, por sua vez, inscrevem outras formas de ser/estar no mundo. A perspectiva a favor da diversidade aponta para repertórios pluriepistêmicos, que se distinguem e não se encaixam nas categorias advogadas pelas tradições ocidentais. O ebó é um procedimento que confere uma espécie de sobrevida àquilo que padece de desencantamento. O que se compreende aqui como efeito de abertura de caminhos, de positivação, está diretamente vinculado à ordem do encantamento como acúmulo de energia vital, força mobilizadora da pujança criativa e da vivacidade dos saberes. Cruzos, rolês e ebós epistemológicos, operações integrantes da pedagogia das encruzilhadas, versadas nos domínios e potências de Obá Oritá

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Métà/Igbá Ketá. Aí está o princípio instaurador das dúvidas, das ambivalências e desordens. Para um mundo edificado a partir das obsessões de grandeza e totalidade, produtor de regimes de verdades alicerçados em práticas de injustiças cognitivas/sociais, lança-se a sugestão: desvios, golpes, cruzos, antidisciplinas, desobediências, feitiços, pragas rogadas, traquinagens, calças arriadas, tombos na ladeira... há uma infinidade de formas possíveis. Lança-se a arte do brincalhão, esculhambam-se as normas, as lógicas, e a destruição emerge como potência para a invenção. Onde emerge a dúvida, Exu está a nos apontar os caminhos para a reinvenção da vida.

Diáspora africana; encruzilhadas, assentamentos e terreiros Diáspora africana é o verso lançando que ata as problematizações sobre as travessias de milhões de corpos negros pelo Atlântico. O que foi a maior dispersão populacional forçada da história foi também o cruzar de infinitas sabedorias e experiências civilizacionais que codificaram a invenção de outros mundos. Essa perspectiva nos dá base para pensarmos as sociabilidades transafricanas, os processos trans/interculturais, as múltiplas relações das culturas com os tempos/espaços e as suas ecologias de pertencimento, as perspectivas translocais das culturas negras e as suas cosmopolíticas, produtoras de contra-culturas e contra-narrativas em relação à modernidade (Gilroy, 2008). Todas essas perspectivas apontadas a partir das reflexões de Gilroy, ao problematizar o ir e vir dos navios na liquidez do oceano, são aqui cruzadas ao que é trançado na esteira da pedagogia das encruzilhadas. Assim, como mais uma faceta das traquinagens de Exu, venho defender que a diáspora africana se codificou também como encruzilhada, assentamento e terreiro. São novamente as estripulias epistêmicas que me permitem os giros explicativos para o alargamento de outras compreensões e a emergência de outros saberes. A abordagem dos fluxos, a partir de uma leitura do Atlântico como encruzilhada, enlaça Exu ao que é produzido a partir das trajetórias dos navios e dos cruzamentos de suas rotas feitas entre as Áfricas e as Américas. A noção de diáspora africana enquanto encruzilhada problematiza as ambivalências e contradições presentes no que foi projetado enquanto

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impossibilidade e se reinscreveu enquanto invenção. Ou seja, como a experiência trágica de despedaçamento das vidas, de suas práticas e organizações, reinventou-se, a partir das múltiplas formas de sobrevivência e mediação do sofrimento, como um dos maiores empreendimentos inventivos do Novo Mundo. As retiradas compulsórias, as travessias, os não retornos, a coisificação dos seres, a desordem das memórias e o desmantelamento cognitivo — trágicas faces que devem ser lidas em viés, na medida em que os modos de sobrevivência a esses acontecimentos revelam reinvenções da vida. Mirar a diáspora africana a partir da noção de encruzilhada nos faz problematizá-la também nos termos dos inacabamentos. A provocação é tensa. A diáspora negra é um acontecimento em aberto, é um contínuo. A potência inventiva dessa grandiosa encruzilhada transatlântica enreda muitos outros cruzos que apontam muitos outros cursos possíveis. Assim, a diáspora continua a reverberar poderes de reinvenção da vida, seja cruzando e invocando potências ancestrais, seja produzindo novos sentidos a partir de um imaginário na África. A manha dos jogos de corpo, a rítmica versada pelos tambores, a amarração de palavras, os encantes, as formas de cura, os conhecimentos do invisível, a leitura dos caroços e conchas, os transes, os sacrifícios que encantam a vida. Capoeiras, jongos, sambas, candomblés, macumbas, toda e qualquer sorte de expressões aqui recriadas. Todas essas manifestações são ressignificações a partir do recolhimento, montagem e cruzamento dos estilhaços de culturas vernaculares que foram despedaçadas ao serem lançadas em travessia. A noção de assentamento propõe pensarmos as culturas afrodiaspóricas como práticas que vibram, encarnam e se imantam trançando uma esteira que se desenrola sobre um chão comum, que recebe calçamento a partir de condições e motivações próprias ao longo dos processos de invenção de territorialidades, saberes e identidades. Essas experiências multiplicadas a partir da fragmentação de outras23 buscam reconstituir os elos de pertencimento alterados no trânsito e na impossibilidade de retorno. 23

O caráter de multiplicação a partir da fragmentação faz alusão ao protagonismo de Exu presente na passagem atorun dorun esù, que integra o corpo poético de Ifá.

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Nessa perspectiva, a ideia de assentamento cruza o sentido do termo, na amplitude de seus significados nos ritos afrobrasileiros, ao fenômeno de tessitura de uma rede cosmopolita, inter/transcultural afrodiaspórica. O que proponho com esse enlace é lançar mão do argumento que aponta a existência e as condições próprias de uma base estruturante que identifica e vigora as inúmeras expressões recriadas no Novo Mundo. Essas expressões se enredam a partir do que Edouard Glissant (1995) chamou de “relação”. Assim, as culturas negras transatlânticas encontram-se enredadas em uma complexa trama interseccional que evidencia conflitos, negociações, circunstâncias, alianças, contaminações, recriações, frestas, dribles, entre outras inúmeras formas de invenção da vida cotidiana. Chão sacralizado onde são plantados os segredos e praticados os encantamentos que vigoram e ressignificam a vida, o assentamento imanta e reverbera as energias que lhe foram consagradas, afetando diretamente aqueles que com ele estabelecem relações. Lá se estabelecem e se potencializam os vínculos entre os tempos presentes e os tempos ancestrais. Assim, grande parte do que é constituído enquanto assentamento se compreende como parte de um jogo secreto, não revelado. Compartilhar dos princípios que fundamentam o segredo é parte de uma experiência iniciática. Manter os enigmas e mistérios compreende a própria manutenção do vigor e da mobilização das energias assentadas. Aquilo que se enterra se transmuta e se encanta nos ritos de consagração do axé (energia vital); mesmo não revelado, torna-se responsável por afetar as práticas da comunidade. A diáspora negra enquanto assentamento é o calçamento de um chão comum onde se plantaram e plantam axés que imantam e emanam as energias que conferem mobilidade, criatividade e possibilidades para as invenções. No curso das problematizações relativas ao fenômeno da diáspora negra, lanço mão de uma terceira traquinagem, que conceituo como terreiro. Essa noção se encarna no enigma versado nas travessias; o nó dado está encruzado entre a experiência de desterritorialização e as invenções de outros tempos/ espaços praticados. Assim, a noção de terreiro assente na pedagogia das encruzilhadas não se limita somente à fisicalidade do que se compreende como espaço de culto das ritualísticas religiosas de matrizes africanas, mas abrange

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todo “campo inventivo”, seja ele material ou não, emergente das criatividades, das necessidades e dos encantamentos dos tempos/espaços. Na perspectiva aqui traçada, o termo se pluraliza, excedendo as compreensões físicas para transbordar, em outros sentidos, para os campos simbólico e político. As invenções de terreiros nos possibilitam mirar o alargamento das interpretações e conhecimentos acerca do mundo. A cada pedido de licença ao dobrar a esquina, a cada gole lançado ao chão, nos repertórios gestuais, nos benzimentos, nos alinhaves de versos, na circunscrição de sons e ritmos, na moeda lançada na porta do mercado, no cigarro compartilhado na rua, em todas essas e ainda em muitas outras formas estão a se inventar terreiros, que são as múltiplas temporalidades/espacialidades encarnadas por esses saberes praticados — aí se determina quem “tá dentro e quem tá fora” do jogo e do mundo criado. A máxima já nos diz como se “reza as cartilhas do proceder”: “Que não se arrisque entrar onde não foi chamado ou sem saber rezar os mínimos pedidos de licença!”. A perspectiva lançada a partir da noção de terreiro nos revela ainda um elemento que deve ser abordado de forma cuidadosa e atenta: o elemento corporal. Considero que os corpos negros transladados na diáspora são o suporte principal para as invenções de terreiros. Esses devem ser compreendidos como sendo a própria incorporação desses tempos/espaços, ou seja, corpos terreiros. Assim, à medida que o corpo negro foi desterritorializado, através de seu suporte físico e de suas potências, foi tornando-se capaz de recuperar e ressignificar memórias comunitárias, reconstruindo formas de sociabilidade e práticas de saber. O corpo é a instituição máxima e integrante da experiência em comunidade; é ele o elemento que institui e organiza o projeto comunitário. Dessa forma o corpo, tomado como um dos principais referenciais que compõem a pedagogia das encruzilhadas, nos proporciona praticar giros epistêmicos necessários para a releitura tanto das produções negro-africanas na diáspora, quanto para a formulação de críticas e opções de superação aos efeitos do racismo/colonialismo. Proporei alguns caminhos desdobrando as questões concernentes ao corpo e aos seus saberes a partir dos conceitos de Bara, Elegbara, incorporação e mandinga. Caminhemos.

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Bara e Elegbara: incorporações e mandingas, tudo que o corpo dá O que pode o corpo24? Ata-se o verso. Deslizarei nessa esquina praticando gingas, negaças, esquivas e rolês... ah, os rolês!. Esses são sempre bem-vindos, me permitem as fugas, os pulos e deslocamentos, e quando menos se espera, o bote! (Gargalha-se)! Não se aperreiem, quando o silêncio é absoluto, é porque Exu já os engoliu! As questões enlaçadas no verso acima nos abrem muitos caminhos, que atravessarei sendo fiel ao espírito traquina que me toma. Exu é também Bara (dono do corpo) e Elegbara (senhor do poder mágico), princípios dos quais partirei para versar minhas problematizações acerca dos saberes corporais. Nessa última esquina invocarei as potências do corpo para lançar mão das noções de “incorporação” e mandinga, que nos ajudarão a destravar as tensões e os nós dos nossos esquemas cognitivos. A ênfase no corpo e nas suas potências o revela como suporte fundamental para a emergência e a credibilização de saberes que transgridam as ordens do racismo/colonialismo epistemológico. A retomada do corpo é ponto crucial da pedagogia das encruzilhadas. Digo isso não somente por ser Exu o princípio que fundamenta todo o poder e capacidade explicativa em torno desse elemento, mas por ser o território corporal o primeiro lugar de ataque do colonialismo. O racismo, o desmantelamento cognitivo, a desordem das memórias, a coisificação do ser, os protocolos disciplinares coloniais a que o corpo está submetido, os traumas, as tensões musculares, marcam o corpo do colonizado, produzindo a experiência do duplo e o polimento de seus modos que o levam para a construção de um embranquecimento alucinatório. Tudo o que foi eximiamente problematizado nas passagens de Fanon (1968, 2008) e revelou as atrocidades do colonialismo deve ser implodido, atacado nas mais profundas raízes de sua edificação. Para essa transformação radical direi que devemos colocar o pau de Exu para fora! Perdoem-me a indelicadeza, mas a sugestão feita busca ir na contramão do que paira em nossas mentalidades assombradas pelo pecado.

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Menção ao pensamento de Spinoza em “Ética” (2007).

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Não é grosseria de minha parte, mas puro rebaixamento, nos termos rabelaisianos. O investimento da religião como parte do projeto de dominação colonial foi crucial para a construção de alguns demônios. Por aqui, “pintaram o diabo a quatro” e até os dias de hoje ele insiste em nos assombrar. Rasurando a máxima que reivindica a expulsão dos demônios25, reivindico que eles sejam libertados das garrafas26. Livres, essas potências desestabilizadoras nos ajudarão a desatar os nós dos pecados, das culpas e dos infernos aqui criados. O ereto e vigoroso falo de Exu esculhamba a produção de ignorância que interdita o corpo como esfera de saber. A dilatação dos vasos sanguíneos e o enrijecimento do órgão falam sobre os poderes de mobilidade, dinamismo, transformação, procriação e continuidade. Para as visões miradas a partir de seu signo, o poder de Exu manifesta-se aí. Outra forma dessa expressão é também o que é soprado pela boca, no hálito ritmado, vestido em sons e palavras. Nesse sentido, Exu nos dá importantes contribuições para o alargamento dos conhecimentos, contrastando o que está posto pelas razões ocidentais. Para as noções assentes em seu signo, não há separação entre corpo e mente, tampouco entre os discursos verbais e não-verbais. São as perspectivas elegbarianas que nos permitem trabalhar com esferas de saber que revelam uma complementaridade entre os gestos e falas na produção de presenças da afrodiáspora. As noções de Bara (dono do corpo) como o princípio das nossas individualidades e de nossa fisicalidade, junto a Elegbara (senhor do poder mágico) como princípio das potências encarnadas pelo corpo, como todo movimento e ação criativa, são fundamentais para giros conceituais que nos permitam outras leituras sobre o corpo e suas potências. Esses domínios, para perto dos quais também podemos trazer o de Enugbarijó, serão responsáveis por nos apontar caminhos a partir da indagação que problematiza as possibilidades corporais. Partindo das três perspectivas, lanço o verso que diz: o corpo pode tudo aquilo que cruza os domínios de Bara, Elegbara e Enugbarijó.

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Menção às inscrições urbanas “só Jesus expulsa demônios das pessoas”.

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Menção à narrativa popular que trata sobrede pactos feitos a partir do aprisionamento de demônios em garrafas. Essa narrativa tem inúmeras variações: em algumas delas, o referido demônio aparece na veste de outras figuras da cultura popular brasileira, como por exemplo o Saci-Pererê.

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No que tange as dimensões do corpo, a pedagogia das encruzilhadas o compreende como matriz/motriz de memórias e saberes. Essa consideração está presente na noção de incorporação, conceito que circunscreve e credibiliza a dimensão dos saberes praticados, partindo do pressuposto de que todo saber, para se manifestar, necessita de um suporte físico. Assim, o suporte físico-corpo é, por sua vez, parte do saber; não há separação entre eles. O suporte físico — corpo humano ou outra materialidade — é incorporado por um efeito, um poder que o “monta”. A mulher que, ao sambar, carrega “o diabo nos quadris”; o moleque que corre, pula, gargalha, tem molas no corpo... “eita, moleque endiabrado!”. O exímio capoeira que esquiva, floreia, gira, foge e ninguém pega. “Esse aí só pode estar com o catiço!”. Há um vasto repertório que, se for lido em viés, contrastará com os tons racistas, monoculturais e hierarquizadores que nos espreitam cotidianamente. O que é enunciado negativamente pelos discursos ocidentais como impulso, possessão, fetiche e desregra é aqui rasurado e reinscrito na dimensão dos saberes corporais (Tavares, 2014). A noção de incorporação traz pra encruzilhada também a de mandinga, que, por sua vez, é versada aqui como uma das formas de sapiência do corpo vibrada nos tons da magia e do encantamento. As mandingas ressaltam aspectos ímpares e estão vinculadas aos saberes corporais envoltos a atmosferas mágicas, únicas e intransferíveis; configuram aquele tipo de saber que não pode ser traduzido por outras textualidades que não sejam as pertinentes aos limites da sua própria manifestação, e só pode ser vislumbrada no rito, na performatividade, em consonância com os elementos que compõem a dimensão da magia. Ah, camaradinhas, o mundo tem seus mistérios! Mandinga é mumunha de “nego véio”, é buraco de cobra, é nó em corda seca, é besouro preto que avoa! Mandinga é Exu, que “carrega azeite em uma peneira e não perde sequer uma gota”. As mandingas são os saberes que navegam no invisível, viram, mexem e baixam em nós! O mandingueiro é aquele que incorpora o saber que se manifesta e se dilui em questão de segundos. “Quem viu, viu! Quem sabe, sabe! Quem tá dentro não sai, e quem tá fora não entra!”. Existem muitos outros caminhos possíveis. A ênfase no corpo alude aos saberes cosmopolitas enredados em tramas pluriepistêmicas. Ao elencar o protagonismo do corpo e a potência de seus saberes, a pedagogia das

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encruzilhadas dobra a lógica colonial. Se para cada centena de mortos pelo colonialismo constrói-se uma igreja, na perspectiva das encruzilhadas cada corpo é um totem que imanta e reverbera potências de saber. É nesses termos que, vira e mexe, baixam por aqui praticantes de outros tempos. Firmo o ponto novamente: a racionalidade moderna ocidental é decapitada e assombrada pela má sorte de ter o corpo (bara) deslocado da cabeça (ori). As questões acerca dos saberes (epistemologias) perpassam necessariamente por um reconhecimento do corpo, na medida em que todo saber só é possível quando praticado, ou seja, incorporado. Se as questões acerca do saber estão diretamente vinculadas à dimensão das práticas, das incorporações e dos agentes que as fazem, as questões epistemológicas inscrevem-se como uma problemática étnico-racial. A partir dessa defesa é que me fidelizo a ressaltar as proezas de Bara e Elegbara, para despachar uma crítica à negação dos saberes corporais investida pelo projeto monorracionalista ocidental e lançar proposições que o transgridam. As perspectivas advindas de Exu são mais um golpe operado pela pedagogia das encruzilhadas que provoca uma desordem, na medida em que traz o corpo para o cerne do debate poético/político/ético. As perspectivas da pedagogia proposta estão radicalmente fundamentadas nos princípios de Exu para propor outros cursos epistêmicos. Segundo as sabedorias versadas nos terreiros, Bara é o elemento individual corporificado que, junto ao Ori, individualiza o ser — Bara, o corpo, e Ori, a cabeça, integrados, marcam as individualidades e os caminhos que cada um de nós carregamos. É nos domínios de Elegbara (senhor do poder mágico) onde estão de frente o dinamismo e o pulsar das energias que constituem, conectam e perpassam as existências como um todo, que se assentam as potências de todo movimento e ação criativa. É Elegbara que funde o princípio da existência, das possibilidades e da imprevisibilidade. Nas palavras assentadas na esteira do saber popular dos terreiros, é a força de Exu — o movimento como um todo — que nos dará forças para reinventarmos os mundos, praticando caminhos por encruzilhadas. Laroiê! Mojubá Exu!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Grupo Teatro da Laje: a dramaturgia e o discurso cênico de um território VERISSIMO JUNIOR

Em 1999 comecei a trabalhar como professor de Artes Cênicas de uma escola pública municipal localizada na Vila Cruzeiro, comunidade integrante do Complexo de Favelas da Penha. Desde cedo deparei-me com algumas questões agudas: como praticar, em um espaço moldado para a vigilância e o adestramento de corpos e mentes, uma pedagogia do teatro que aposta na livre expressão do educante? Uma pedagogia que entende o princípio educativo como algo intrínseco ao teatro, algo que se realiza pelo ato de jogar e não por meio de mensagens edificantes, em que o vício é punido e a virtude premiada? Como romper com a ideia do teatro como instrumento de catequese dos gentios da terra em um espaço ainda tão jesuítico? Como “propor o enquadramento da desmedida dionisíaca - imponderável - do teatro na moldura apolínea e indefectível da educação”, como diz o professor Ricardo Japiassu (2001, p. 16)? A saída que se afigurou para mim e para um conjunto de jovens que estudavam ou haviam estudado na escola foi desdobrar e ampliar as ações desenvolvidas em sala de aula para além do espaço da instituição, e foi assim que, em 2003, nasceu o Grupo Teatro da Laje. Desde seus primórdios, o grupo não teve outra alternativa a não ser caçar jeito para sobreviver, como diria o poeta Manoel Barros. Sem experiências próximas que nos servissem de parâmetros, dando um tiro no escuro, afastados do eixo Centro-Zona Sul, sem acesso aos meios de produção convencionais, à margem do modo de produção hegemônico, sem cabermos inteiramente na dramaturgia conhecida, restou-nos, como disse o professor Leonardo Guelman, explicando-nos para nós mesmos durante um seminário, trabalhar fenomenologicamente, ou seja, fazendo primeiro para depois entendermos o sentido do que fazíamos. Restou-nos, numa palavra, “inventar” para sobreviver — inventar nossos próprios padrões

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estéticos, nossos meios e modos de produção, nossa própria dramaturgia, nosso próprio jeito de fazer teatro a partir das condições que nos eram dadas. Desse modo, mais do que uma escolha arbitrária e racional, a originalidade apresentou-se para nós como a única saída possível para nossa sobrevivência, uma necessidade. Sim, a necessidade foi a mãe de nossas invenções. Paradoxalmente, o que se mostrava impossível para nós era a realidade, enquanto a utopia mostrava-se como a única saída. Ou, como se diz popularmente, resolvemos chutar a bola e correr atrás. Sem outra alternativa, tivemos que “ir pra galera”, convocar as energias do território para, em seguida, devolvê-las ressignificadas pela linguagem do teatro. Foi assim, usando inicialmente as lajes das casas dos integrantes do grupo como locais de ensaio; tocando bumbo pelas ruas, becos e vielas da comunidade dentro de um elástico que simulava um ônibus e com os rostos pintados para pedir donativos aos moradores para produzir nosso primeiro espetáculo - “Tieta: o ônibus que Jorge Amado nunca imaginou”; estendendo uma rotunda no fundo dos lugares onde nos apresentávamos para compensar a ausência de coxias; fazendo performances nas ruas, becos, vielas e praças para pedir aos moradores que nos ajudassem a confeccionar a dramaturgia do espetáculo “A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página do Facebook”, dando-nos depoimentos sobre suas experiências na praia, tema do espetáculo; fazendo das escolas e casas dos moradores da comunidade palco para a apresentação do espetáculo “A última resenha”, fazendo ensaios abertos aos moradores e incorporando suas observações e contribuições ao espetáculo; e, por fim, criando na comunidade uma escola de teatro, a Escola do Teatro da Laje, que sistematizasse esse jeito de fazer teatro, a dicção, a forma de colocar o corpo no mundo, a inventividade, a alegria, a energia, o habitus e o gestus da juventude dos territórios populares da cidade, que fomos percebendo que nossa fragilidade poderia ser nossa força. Se, como diz o professor Donaldo Schuler, “a ação traça fronteiras”, pois “o que é sem limite não se move porque não tem pra onde se mover” (2003, p. 9), foi como fomos percebendo que os limites que nos constrangiam eram os mesmos que nos definiam, que nossa grandeza reside, paradoxalmente, na nossa limitação, na nossa restrição. Falando de um ponto de vista mais pessoal, percebi que não sou diretor de teatro; sou, quando muito, diretor do Teatro da Laje. Preciso da Vila Cruzeiro para criar. Não sei se dou frutos sem a nutrição dessa seiva. Sou planta que precisa desse solo.

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Migramos, portanto e por assim dizer, do reino da necessidade para o reino da liberdade quando descobrimos que as condições em que trabalhávamos poderiam não ser um peso, mas uma força propulsora da nossa criação; quando a Vila Cruzeiro deixou de ser para nós uma presença maciça e informe a que tínhamos que nos adaptar, para ser um “território” que vai tomando forma na medida da nossa ação, como diria Pierre Furter (1966, pp. 26-7); quando tivemos “consciência” desse território, dos temas e da dramaturgia que ele nos revela; quando conseguimos nos separar de nossa atividade para refletir sobre ela, ou seja, quando deixamos apenas de agir para também “atuar” sobre o território. Foi assim que, parafraseando Paulo Freire, entendemos que o cerne e o traço distintivo do nosso projeto artístico consistiam em pronunciar nosso território, modificá-lo e que, ao ser pronunciado, nosso território volta problematizado para nós, sujeitos pronunciantes, exigindo-nos novo pronunciar. Assim, o trabalho artístico da sala de ensaio, voltado para a busca do gesto adequado, para a investigação das possibilidades do corpo e da voz, para a pesquisa de materiais, para a criação de dramaturgia, para a experimentação das possibilidades do espaço, etc, tornou-se apenas parte integrante e inseparável desse trabalho artístico maior de invenção e reinvenção do nosso território, de acender sua luz no mapa do mundo, de colocá-lo para falar, de transformá-lo em linguagem. Mas além de descortinar para nós mesmos o fulcro de nosso projeto artístico, aquilo que plasma nossa dramaturgia e nosso discurso cênico, a atuação sobre o território também nos propiciou a consciência dos diálogos que temos travado dentro da história do teatro, de que somos responsáveis por levar adiante um legado histórico, herdeiros de uma tradição e de uma linhagem que têm o território como base de toda criação artística. O desejo de aprofundar esse entendimento gerou o ciclo de palestras “Teatro e território através da história” como a primeira ação de nossa escola de teatro, a Escola do Teatro da Laje, fundada recentemente. Não foi, então, com pouca alegria que descobrimos que, mais do que encenadores das peças de Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Shakespeare, Molière ou Brecht, podemos nos orgulhar de sermos alimentados pela mesma seiva bruta que os alimentou. Os gregos antigos foram o que foram porque, dentre outras coisas, souberam captar e traduzir os mitos e as questões de seu lugar; Shakespeare fez, como alguém

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já disse, uma verdadeira ilíada do povo inglês; Molière fez da afetação, dos maneirismos e do cotidiano da sociedade francesa em que viveu o alvo de suas comédias. Todos eles se fizeram universais falando de seu lugar. E nós? O que temos a dizer ao mundo? De que forma o mundo está contido em nós? Que universalidade está contida em nossa localidade? Foi assim que, lutando para sobreviver, conseguimos também vicejar. Soube pela professora Mônica Peregrino de uma polêmica envolvendo o historiador inglês Edward Gibbon e o escritor argentino Jorge Luis Borges acerca da autenticidade do Alcorão. Para o inglês era surpreendente que o livro maior da religião mulçumana não fizesse qualquer alusão a camelos, enquanto o argentino via nisso justamente a prova da autenticidade do texto escrito por Maomé. Para ele, o profeta “não tinha motivos para saber que os camelos eram especificamente árabes; sendo parte da sua realidade, ele não tinha por que distingui-los” (Borges, 1998, p. 291-2), ao passo que um falsário querendo se passar por árabe, um turista ou um árabe não mediano, ultranacionalista, sapecariam camelos em todas as páginas do Alcorão em busca de autenticidade. Pois é nisso que consiste o projeto artístico do Grupo Teatro da Laje: descobrir os camelos da Vila Cruzeiro, nosso lugar na cidade e no teatro, o que nos distingue dentro deles, que contribuição única, singular e insubstituível temos a dar a um e a outro, ver e escutar a dramaturgia e o discurso cênico que cada beco, cada rua, cada viela, cada praça, cada campo, cada muro, cada poste, cada banco de praça, cada birosca, cada barbearia, cada casa da Vila Cruzeiro oferece para nós. Foi assim que colocamos em cena o cotidiano dos moradores que usavam a única linha de ônibus que subia a parte alta da favela, apelidada pela comunidade de Tieta (“Tieta, o ônibus que Jorge Amado nunca imaginou”); nosso Romeu e Julieta, substituindo a guerra de famílias, do original de Shakespeare, pela guerra de facções do comércio varejista de drogas como o impeditivo do amor de dois adolescentes (“Montéquios, Capuletos e nós”); o paralelo entre a peregrinação dos hebreus pelo deserto, à procura da terra prometida, e a saga de um grupo de jovens moradores da Vila Cruzeiro perambulando pela orla da cidade para encontrar uma faixa de areia de praia num fim de semana de verão (“A viagem da Vila Cruzeiro à Canaã de Ipanema numa página de Facebook”); foi assim que transformamos as casas dos moradores e as salas de aula das escolas da região em palcos de apresentações do espetáculo

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“A última resenha” e será assim que colocaremos em cena os jovens estudantes das escolas públicas da região falando de si, de seus desejos, de suas questões no espetáculo “Posso falar?”, nosso próximo projeto. Com o que aqui foi dito não tenho, por fim, a pretensão de dizer que esse é o jeito certo de fazer teatro. Quero apenas dizer que esse é o nosso jeito, o que nos serviu, o que inventamos para driblar nossas dificuldades específicas. Porque, como diz o professor Luis Antonio Simas, não queremos fazer resistência. Queremos fazer invenção, porque resistir é se deixar pautar. Tampouco desprezamos as teorias e técnicas teatrais. Mas também não queremos ficar enfiados dentro delas “como um par de óculos dobrado dentro do estojo”, como diria o poeta Maiakovski. Queremos redescobri-las em nossa práxis. E também criar as nossas teorias, nossos conceitos, descobrir o teatro que já está entre nós, o teatro que só nós podemos fazer. E se ele não cabe no paradigma hegemônico de teatro, não tem importância. Fazemos como Brecht e o chamamos de taetro (Peixoto, 1981, p. 38).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORGES, Jorge Luis. O escritor argentino e a tradição. Obras Completas de Jorge Luis

Borges, vol. I. São Paulo: Globo, 1998. FURTER, Pierre. Educação e vida. Petrópolis: Vozes, 1966. JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do ensino do teatro. São Paulo: Campinas, 2001. PEIXOTO, Fernando. Brecht: uma introdução ao teatro dialético. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1981. SCHULER, Donaldo. Os sete contra Tebas e a tragédia guerreira de Ésquilo. In. Ésquilo.

Os sete contra Tebas. Porto Alegre: L&PM, 2003.

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PA R T E I I I

SOBREVIVER EM GÊNEROS

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Viver e morrer, não necessariamente nessa ordem: sobrevivências com HIV/AIDS RUBERVAL FERREIRA

• RENAN DA PONTE CASTELO BRANCO

Gozar e chorar a morte que espreita, para mim, é a mesma coisa. [ JACQUES DERRIDA ]

Encerra-me em teus dois braços: Se não tens mais alegria a me ofertar, Pois bem — restam-te teus tormentos. [ LOU ANDREAS-SALOMÉ ]

Introdução No início dos anos 1980, a descoberta na comunidade científica americana do chamado vírus da imunodeficiência humana, conhecido entre nós pela sigla HIV, e da AIDS27, termo-sigla que designa a síndrome da imunodeficiência adquirida, instaurou um novo tipo de sobrevivente, tanto em termos clínicos quanto em termos socioculturais. Inicialmente, essa sobrevida era assustadoramente curta e marcada por um agressivo definhamento do corpo, que logo sucumbia aos efeitos lesivos do recém-descoberto micro-organismo. Poucos anos depois, com a descoberta do AZT (azidotimidina), o primeiro fármaco antirretroviral utilizado para combater os efeitos do HIV no organismo humano, as pessoas que tinham o vírus da imunodeficiência

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Os termos AIDS e HIV são designações que correspondem respectivamente às expressões inglesas Acquired Immunodeficiency Syndrome e Human Immunodeficiency Virus.

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experimentavam uma sobrevida um pouco mais longa, mas não sem efeitos colaterais que mostravam um agressivo processo de definhamento do corpo, o que explica, em parte, referências midiáticas tão deletérias em relação ao vírus nos primeiros anos da doença, como por exemplo, a denominação “câncer gay”, utilizada pela imprensa americana nos início dos anos 1980. No caso da imprensa brasileira, a referência mais conhecida é a histórica capa da revista “Veja”, que trouxe na edição 1.077, de 26 de abril de 1989, a imagem do cantor e compositor Cazuza, já bastante debilitado, com a seguinte manchete de capa: “Cazuza — Uma vítima da AIDS agoniza em praça pública”. A descoberta de novos medicamentos antirretrovirais aos poucos minimizou o efeito de sentença de morte que o diagnóstico da doença implicava, mas, ainda assim, não foi suficiente para minar de vez a compreensão de que a vivência com o vírus e a AIDS implicam uma experiência de sobrevivência que estaria, conforme nos lembra Derrida a propósito da compreensão habitual deste conceito, “mais do lado da morte, do passado, do que da vida e do porvir” (Derrida, 2005, p. 55). Diante dessa questão, apresentamos neste capítulo algumas considerações sobre vivências com HIV/AIDS, com vistas a perceber possíveis relações entre a enunciação dessas experiências, isto é, as subjetivações que elas implicam, e o lastro filosófico que as noções de vida e morte comportam em nossa tradição de pensamento. Para isso, recorremos a duas reflexões que constituem, a nosso ver, duas formas de resposta à dimensão violenta e sentencial da linguagem, tanto em seu pendor conceitual e representacional, como nos fez crer a tradição lógica, de Sócrates à filosofia analítica, quanto em seu pendor performativo, como nos fez crer a tradição retórica, dos sofistas à virada pragmática empreendida por Wittgenstein e Austin. Essas duas reflexões são, respectivamente, a discussão que Derrida faz sobre a oposição vida/ morte, que implica, por sua vez, sua abordagem dos temas da sobrevivência e da pena de morte (arrêt de mort), e a discussão que Deleuze e Guattari fazem sobre a palavra de ordem e sua dupla dimensão de morte e fuga. A discussão que segue organiza-se basicamente em três momentos: no primeiro, apresentamos um exemplo paradigmático de enunciação da AIDS e duas questões que ele implica; no segundo, refletimos sobre a relação da enunciação da AIDS com a violência performativa da oposição vida/morte, a partir da desconstrução que Derrida propõe dessa dicotomia; no terceiro,

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refletimos sobre a problemática levantada por Deleuze e Guattari em torno do conceito de palavra de ordem, com vistas a apresentar algumas considerações resultantes de uma cartografia28 sobre as formas de subjetivação implicadas nos atos de fala (ou palavras de ordem) de alguns participantes da ONG Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS do estado do Ceará (RNP+/CE)29.

A enunciação da AIDS e a emergência de duas questões No final dos anos 1980, numa entrevista feita especialmente para um programa de tevê dedicado à questão da AIDS no Brasil, num momento em que ainda não havia nenhum controle da epidemia e o estigma em torno da doença só crescia, o escritor e sociólogo Herbert Daniel faz uma histórica declaração que vai de encontro às coordenadas pelas quais essa questão vinha sendo pensada até então e que até hoje, com menos intensidade, vale lembrar, acompanham esse tipo de vivência. A enunciação de Daniel, que constitui um interessante sintoma da forma como o Ocidente historicamente tratou a relação entre vida e morte, traz a seguinte declaração: “Eu sou escritor, homossexual e estou doente de AIDS. Isso me torna um cidadão absolutamente comum, um brasileiro como quase todos os outros, oprimido, mas cheio de esperança”30. Noutro momento do mesmo programa, ao falar de sua reação à notícia de que tinha o HIV, Daniel produz outro ato de fala bastante revelador da violência performativa da oposição vida/morte que sempre comandou nossas formas de subjetivação. O entorno desse segundo ato de fala é uma entrevista concedida à jornalista Mônica Teixeira, ao lado de seu companheiro à época, o artista plástico carioca Cláudio Mesquita, com quem o escritor vivia há dezoito anos. O cenário da entrevista é a praia de Ipanema, no verão carioca de 1988. 28

Abordaremos brevemente o conceito de cartografia no segmento “Micropolíticas soropositivas e gritos de fuga na RNP+/CE” deste capítulo.

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Este último momento da discussão é parte de uma pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará, nos anos de 2014 e 2015, que aqui retomamos com alguns acréscimos de análise.

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Disponível em: . Acesso em 2 nov. 2016.

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No início da entrevista, Cláudio conta à repórter que, no momento que soube da nova sorologia de seu companheiro, a primeira coisa que lhe veio à mente foi a ideia de um duplo suicídio, para evitar os tormentos da angustiante experiência de ver a morte aproximar-se aos poucos. A reação de Cláudio, ao saber que seu companheiro tinha o vírus da AIDS, condizia perfeitamente com a confirmação de sorologia positiva para o HIV na época, que tinha o peso de uma sentença ou pena de morte31, e a descoberta da síndrome contava apenas com uma década. Até o momento, as pesquisas sobre a nova doença eram incipientes e não havia tratamento efetivo como nos dias atuais. Daniel responde à sugestão de suicídio de seu companheiro da seguinte forma: Aí eu disse não! (...) Mas que absurdo, ninguém morreu! Aí, nesse instante, eu falei... quando eu falei: que barra, ele fez esse convite...! Então a gente morre! Eu falei: não vem não! A gente tem muita coisa a fazer. E ele, imediatamente, disse: é! E começamos a listar coisas que a gente ia fazer. Comprar um apartamento, montar uma firma, trabalhar, viajar, é... e viver muitas coisas e... comprar coisas e... e divertir... e pensar muito...! Eu achei... Era verão, um lindíssimo verão no Rio de Janeiro. E eu me achei muito pequeno, porque eu esperava que realmente o mundo mudasse quando soubesse que eu ia morrer, que acontecesse raios, trovões, catástrofes, terremotos e que alguma coisa acontecesse. O mundo continuava mais bonito do que nunca, as pessoas mais charmosas do que nunca. O verão estava aí. E eu dizia: mas que absurdo! Então é isso que é a gravidade dessa coisa de você saber que vai morrer e tudo continuar exatamente igual? Você: não vou perder esse bonde! Eu vou continuar também! Aí, de repente passou um rapaz muito bonito e começou a atravessar a rua naquela direção, e nós começamos a acompanhar. E era muito sensual, o rapaz, e nós dois começamos a comentar a beleza dele etc. E aí nós começamos a brincar um pouco mais. A vida passou ali. A vida passou, e a vida passou com seus convites todos e com todas as suas delicadezas e brutalidades32. (Grifo nosso). 31

A noção de “pena de morte” será retomada mais à frente, a propósito da discussão que Derrida faz sobre esse tema e que aqui será considerada para uma melhor compreensão da relação da enunciação de Daniel com a violência performativa da oposição vida/morte.

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Disponível em: . Acesso em 2 nov. 2016. A transcrição dessa passagem da entrevista não segue as normas previstas pela Análise da Conversa porque não é este o foco de nossa análise.

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Começamos a discussão destacando esses dois momentos da enunciação de Daniel por considerar que eles nos remetem instantaneamente a duas questões que, a nosso ver, são bastante relevantes para uma discussão sobre as tensões que até hoje acompanham as vivências e subjetivações com HIV/ AIDS. A primeira é a indiscutível violência performativa que está na base da oposição vida/morte cujo lastro filosófico sempre comandou os sentidos que habitualmente damos a essas duas experiências. A segunda é a urgência de pensar vida e morte para além dos limites de tal dicotomia. Consideramos a enunciação de Daniel oportuna para esta discussão não apenas porque ela constitui um interessante exemplo da tensão histórica que acompanha as enunciações sobre vivências com HIV/AIDS, no que diz respeito à violência performativa da oposição vida/morte no pensamento ocidental, mas, principalmente, pela forma como ela responde ao caráter sentencioso de tal oposição, conforme veremos a seguir.

Vida e morte em Derrida e a suspensão dessa dicotomia na enunciação de Herbert Daniel sobre a AIDS Para termos uma melhor compreensão da primeira questão que a enunciação de Daniel sobre sua experiência com AIDS suscita, a reflexão que Derrida faz em seu ensaio “Mal de Arquivo: uma impressão freudiana” nos parece inicialmente útil, porque nos ajuda a entender em que sentido tal enunciação guarda estreitas relações com a violência performativa da oposição vida/morte. Neste ensaio, Derrida observa que a palavra arkhê, designação central à metafísica logocêntrica, comporta ao mesmo tempo duas noções: a de começo e a de comando. Este nome coordena aparentemente dois princípios em um: o princípio da natureza ou da história, ali onde as coisas começam — princípio físico, histórico ou ontológico —, mas também o princípio da lei ali onde se exerce a autoridade, a ordem social, nesse lugar a partir do qual a ordem é dada — princípio nomológico (2001, p. 11).

Essa passagem do texto de Derrida remete à clássica compreensão de que todo “nome”, quando justamente dado, conforme nos lembra Sócrates

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no diálogo “Crátilo”, de Platão, advém de uma autoridade, sendo, por essa razão, igualmente portador de autoridade. Na perspectiva epistemológica socrático-platônica, quem detinha essa autoridade para denominar as coisas (dar o nome de) era a figura do legislador. Portanto, a palavra, o nome, desde que produto da “correta” atividade racional, era visto por essa matriz de pensamento como uma forma de lei. Assim, desde que advinda da pura atividade racional, a palavra teria verdadeira força de lei33, sendo compreendida, portanto, em função de sua dimensão nomológica ou sentencial. Por essa via, toda e qualquer dicotomia é concebida como um veredictum (dictum verus — dito verdadeiro), isto é, como uma verdade dita, falada sobre cada um dos polos. Assim, podemos dizer que, em termos nomológicos, tanto a palavra “vida” comporta uma sentença ou um veredictum sobre o viver, quanto a palavra “morte” comporta uma sentença ou um veredictum sobre o morrer. Essa forma de compreensão da linguagem em sua dimensão puramente descritiva ou constatativa atravessou mais de vinte séculos e só veio a ser questionada no século XX, inicialmente com a virada linguístico-pragmática empreendida por Wittgenstein e Austin e, posteriormente, com o pós-estruturalismo francês, em sua crítica tanto do estruturalismo quanto da própria filosofia da linguagem. Derrida e Deleuze/Guattari são referências de crítica desse caráter nomológico da linguagem, o primeiro nos chamando atenção para as crenças que tornam possível essa suposta força de lei da linguagem, ao mesmo tempo em que denuncia sua condição de suplemento de si mesma; os segundos questionando sua dimensão de ordem e as possibilidades de fuga que toda ordem à vida implica. Quando Derrida nos chama atenção para o lastro filosófico da oposição vida/morte e para a necessidade de desconstrução dessa dicotomia, sua leitura nos leva a perceber que essa questão se estende à própria compreensão de linguagem que predominou no Ocidente, concebida em função da diferença entre fala e escrita. Nessa tradição, que nasce com Sócrates e Platão e se estende, a rigor, até o século XX, enquanto a fala é concebida em sua relação com as noções de presença e vida, a escrita é concebida em sua relação com as noções de ausência e morte. 33

Para uma compreensão mais vasta dessa questão ver Derrida, J. “Força de Lei: o fundamento místico da autoridade”. Porto: Campo das Letras, 2003.

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Derrida flagra as relações que nossa tradição metafísica estabelece entre fala, presença e vida, e entre escrita, ausência e morte em seu ensaio “Gramatologia”, de 1967, quando afirma: A escritura, no sentido corrente do termo, é letra morta, é portadora de morte. Ela asfixia a vida. De outro lado, sobre a outra face do mesmo propósito, venera-se a escritura no sentido metafórico, a escritura natural, divina e viva; ela iguala em dignidade a origem do valor, a voz da consciência como lei divina, o coração, o sentimento etc. A escritura natural está imediatamente unida à voz e ao sopro. Sua natureza não é gramatológica mas pneumatológica. É hierática, bem próxima da santa voz interior da Profissão de Fé, da voz que se ouve ao se entrar em si: presença plena e veraz da fala divina a nosso sentimento interior (Derrida, 1967, p. 20-1) (grifo nosso).

Essa concepção de linguagem, como sabemos, resultou da vitória da matriz socrático-platônica de pensamento sobre a concepção de linguagem dos sofistas. Platão, em um de seus diálogos mais importantes, “Fedro”, argumenta, de forma bastante engenhosa, por que a fala, em nossa tradição linguístico-filosófica, sempre foi associada às noções de presença, identidade e vida, e a escrita, às noções de ausência, não identidade e morte. Nesse diálogo, cujos personagens são Fedro e Sócrates, encontramos toda a simbologia que sustenta essas relações, evidenciadas no momento em que a escrita é comparada por Sócrates a um phármakon, termo que entre os gregos significava ao mesmo tempo remédio e veneno. Ao fazer isso, Sócrates concebe a escrita como significante estranho, estrangeiro, como descaminho, elemento de sedução, de feitiço que leva ao desvio, à queda, ao êxodo e à morte, enquanto a fala, em sua dimensão de logos, é concebida como lei (nomos). Esse caráter de lei, no entanto, não se dá em oposição a physis34, como queriam os sofistas, mas no sentido mesmo de lei ou natureza do ser. 34

Os sofistas diferenciam physis (origem ou natureza das coisas) de nomos (lei, aquilo a que se chega por convenção). Para a tradição socrático-platônica de pensamento, no entanto, frontalmente oposta à tradição sofista, o nomos é a lei que resulta de um trabalho da razão. Em termos linguísticos, o nomos seria a própria “lei do ser”, uma vez que, segundo Sócrates, no diálogo “Crátilo”, de Platão, essa noção diz respeito ao “nome adequado” de cada coisa, isto é, à justa forma (eidos) do ser.

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Derrida nos chama atenção para o fato de que essa forma de compreender a linguagem em sua proximidade com o logos, no registro da fala, implica a crença de que a palavra racional seria a própria lei do ser. Tal crença, entretanto, tem em sua base, segundo Derrida, uma diferença artificial entre fala e escrita que constitui, por sua vez, a condição de possibilidade dessa forma de pensamento. Em sua leitura desconstrutora da metafísica ocidental, Derrida traz à tona esse artificialismo e põe sob suspensão essa concepção de linguagem sustentada nas relações entre fala, presença e vida e entre escrita, ausência e morte, na medida em que argumenta que toda linguagem constitui tão somente um sistema de rastros. A esse sistema de rastros Derrida chama genericamente de escritura. Ao fazer isso, ele propõe a noção de rastro como substituto para a noção de signo sob o argumento de que o sentido de uma palavra resulta sempre de um movimento constante de diferenciação consigo mesmo, que ele chama de différance. Na opinião de Derrida, como esse movimento do sentido implica ao mesmo tempo vida e morte, ausência e presença, ele implode a diferença entre fala e escrita e inviabiliza uma compreensão do pensamento tanto em função dessa distinção, quanto em função da distinção entre vida e morte. Com isso, a leitura que Derrida faz do texto da metafísica ocidental, particularmente no que diz respeito à diferença entre fala e escrita, nos mostra que a possibilidade de existência tanto do pensamento quanto da vida só se dá em termos de sobrevivência. No caso do pensamento, sua instância de sobrevivência é a escrita. Tal sobrevivência, no entanto, por não se dar mais nos termos da oposição vida/morte, constitui, segundo Derrida, apenas uma promessa de sobrevivência do pensamento na escrita. Ou ainda, conforme nos lembra Fernanda Bernardo, em um texto que compara o pensamento de Derrida à experiência de uma viagem, uma morada da promessa de sua sobrevivência: “(...) o tempo e a experiência do pensamento viajam rumo à escrita, enredando-se imediatamente na double bind de uma fidelidade infiel a fim de sobreviver” (Bernardo, 2012, p. 15). Sobre essa questão Bernardo nos lembra que Derrida, em um texto intitulado “Avances”, de 1995, compara a “obra” de um autor a um túmulo que tenta fazer da palavra uma morada “mais resistente do que a pedra”. No entanto, tal morada, diz ela, não constitui propriamente “uma garantia, mas tão somente uma promessa de imortalidade — uma promessa de sobrevivência confiada à responsabilidade dos seus leitores” (ibid,. p. 19).

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Derrida, no entanto, não concebe essa sobrevivência do pensamento como estando “mais do lado da morte, do passado, do que da vida e do porvir”. Ao contrário. Para ele, “a desconstrução está todo o tempo do lado do sim, da afirmação da vida” (Derrida, 2005, p. 45). Tudo quanto digo (...) da sobrevida (survie) como complicação da oposição vida/morte, procede em mim de uma afirmação incondicional da vida. A sobrevivência (survivance) é a vida para além da vida, a vida mais do que a vida, e o discurso que eu mantenho não é mortífero, pelo contrário, é a afirmação de um vivente que prefere a vida e, portanto, o sobreviver à morte, porque a sobrevida (survie) não é apenas o que resta, é a vida mais intensa possível. Nunca me sinto tão assediado pela necessidade de morrer como nos momentos de felicidade e de fruição. Fruir e chorar a morte que espreita é, para mim, a mesma coisa (Derrida, 2005, p. 45-6).

Bernardo nos lembra ainda que, não contendo nada de negativo ou de pessimista, essa sobrevivência do pensamento na escrita ou no rastro se apresenta em Derrida como estrutural e originária, sendo, portanto, a incondição tanto do pensamento quanto do próprio vivente e devendo, por isso, ser vista para além da dicotomia vida/morte. Derrida, ao estabelecer uma analogia entre pensamento e vida e sustentar que a vida é sobrevida, concebe o vivente como um sobrevivente condenado à morte. No entanto, em sua abordagem do tema da sobrevivência, no ensaio “Espectros de Marx”, de 1993, ele se volta para os problemas de um mundo extremamente desigual, em que milhares de pessoas são privadas dos direitos humanos mais elementares e do direito a uma vida digna. Quando problemas de saúde começaram a se tornar prementes em sua vida, conforme ele nos lembra em sua última entrevista, concedida a Jean Birnbaum, em 2004, dois meses antes de sua morte, a questão da sobrevivência, que sempre lhe interessou, ganhou nova coloração, à medida que, segundo ele, “o tempo do sursis35 começou a encolher de modo acelerado” (Derrida, 2004, p. 2). (Nossa traduação)36. 35

Sursis é um termo jurídico que significa a suspensão condicional da execução de uma pena.

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“Le temps du sursis se rétrécit de façon accélérée”. Disponível em , acesso em 05 jan. 2017.

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Assim, da mesma forma que a desconstrução da oposição fala/escrita em Derrida implica uma noção ampla de escritura, que transborda os limites dessa dicotomia, a desconstrução da oposição vida/morte implica a noção de sobrevida (survie) enquanto transbordamento do viver e do morrer. Com isso, Derrida nos mostra que nem a escritura suplementa a fala nem a sobrevida suplementa a vida, sendo a própria vida em si. No ensaio “Living On: Borderlines”37, de 1979, ao discutir o tema da sobrevivência para além dos limites da dicotomia vida/morte, Derrida explora a indecidibilidade da expressão sentença de morte (L’arrêt de mort) em Blanchot, termo que, em francês, significa o “veredito final”, a palavra ou a sentença que é dada no fim de um julgamento e que condena o culpado à prisão ou à morte, isto é, a sentença ou palavra que é entregue ao prisioneiro pelo Amos. Derrida nos chama atenção para a ambiguidade e o antagonismo da palavra arrêt, que significa ao mesmo tempo “pena”, “condenação”, mas também “interrupção”, “suspensão”, ação de parar, de deter, de conter algo. Não à toa, a palavra “detenção” significa, em português, não apenas o ato de aprisionar, mas também o ato de deter, de parar, de barrar algo ou alguém. Ao refletir sobre a ambiguidade ou o antagonismo da palavra arrêt, na expressão arrêt de mort, Derrida concebe esse termo e, consequentemente, a própria noção de pena de morte, que sempre acompanhou nossa tradição de pensamento, em sua relação com a questão da decisão e da indecidibilidade. Assim, quando explora a ideia de suspensão na palavra arrêt, ele se refere à suspensão de uma decisão ou de uma sentença que nos foi dada pelo Amos da tradição metafísica ocidental sobre vida e morte ou sobre o que devemos entender por viver e morrer. Ao tomar essa ambiguidade para desconstruir não apenas a dicotomia vida/morte posta por essa tradição, mas a própria ideia de “pena de morte” que, segundo ele, sempre a acompanhou, Derrida suspende a decisão sobre o viver e o morrer nessa tradição, que nos foi imposta enquanto sentença, no momento em que denuncia sua própria condição de indecidibilidade. Ao fazer isso, ele toma a ideia de sobrevivência, não como um suplemento à

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Este ensaio foi traduzido para o português por Élida Ferreira, como parte de sua tese de doutoramento intitulada “Jacques Derrida e o récit da tradução: o Sobreviver/Diário de Borda e seus transbordamentos”. Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2003.

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vida, como quer essa tradição, mas como um transbordamento do viver e do morrer. Em outras palavras, a vida como o próprio suplemento. Dessa forma, ele pensa a noção de sobrevivência em sua própria literalidade — sobrevivência —, ou seja, enquanto experiência vaga que só se dá como suplemento ou “triunfo do sobre”. Conforme nos lembram Sherwood e Caputo (2005, p. 225), em texto no qual comentam este ensaio de Derrida, a morte que a sentença de morte promete para o vivente é igualmente contida ou interrompida, adiada ou diferida. Tudo isso para dizer que a vida em si é estruturada como um arrêt de mort, como o triunfo da vida que emerge, não necessariamente conforme sugere o título deste capítulo, como uma vitória ativa sobre a morte no sentido de uma suspensão passiva ou diferida dela. Quando Derrida faz referência ao sentido de arrêt como suspensão ele fala, no entanto, de uma suspensão ativa da morte, nunca passiva. Quando observamos a enunciação de Daniel sobre sua experiência com a AIDS contra o pano de fundo da discussão de Derrida sobre a questão da sobrevida enquanto triunfo do sobre, percebemos que ao operar uma suspensão da sentença de morte implicada no significante AIDS, ela opera simultaneamente uma suspensão das sentenças de vida e de morte implicadas em tal oposição, na medida em que há uma clara recusa de seu conteúdo nomológico sobre o viver e o morrer. Em “Living On: Borderlines”, Derrida faz uma observação que nos ajuda a entender por que a enunciação de Daniel produz uma suspensão tanto de uma sentença de morte quanto de uma sentença de vida. Essa observação diz respeito ao seguinte fato: O sobreviver transborda, ao mesmo tempo, o viver e o morrer, suplementando-os, um e outro, com um sobressalto e sursis, parando a morte e a vida ao mesmo tempo, pondo fim a um veredicto [arrêt] decisivo, este [arrêt] que dá um fim e que condena com uma sentença, com um enunciado, com uma fala, com uma sobre-fala (Derrida, 2003, p. 38-9).

Quando observamos as falas de Daniel à luz dessa citação, percebemos que, a exemplo do que pensa Derrida sobre o viver e o morrer, elas promovem uma suspensão, um arrêt, um sursis da injunção da linguagem em

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sua dimensão de lei (nomos) no que diz respeito às sentenças que os signos “vida” e “morte” implicam em nossa tradição filosófica, reivindicando, ainda que sem utilizar esses termos, uma vida enquanto transbordamento do que se entendia habitualmente por viver e morrer com HIV/AIDS. Em termos derridianos, uma sobrevida (survie) que, por estar desde sempre à mercê do que acontece, no mundo e em nós mesmos, e do devir, implica a todo instante a criação de linhas de fuga num fluxo que nos afeta ininterruptamente e nos lembra a estar sempre atentos aos seus apelos, em suas delicadezas e brutalidades. As enunciações de Daniel respondem, portanto, a uma forma de compreensão filosófica da vida e da morte cuja característica mais acentuada é ser arqueo-lógica e teleo-lógica, por conta da crença numa possível origem (arkhê) a comandar o sentido das coisas e seu fim (telos). Tais enunciações respondem, assim, ao caráter de sentença, de veredicto, de lei ou de ordem que a oposição vida/morte comporta, constituindo, ao mesmo tempo, uma linha de fuga à ordem que ela institui e uma suspensão dessa ordem e de seu veredicto. Quando Daniel diz: “Eu sou escritor, homossexual e estou doente de AIDS. Isso me torna um cidadão absolutamente comum”, sua enunciação suspende tanto uma sentença de morte quanto uma sentença de vida implicadas na dicotomia vida/morte. A partir dessas penas, dessas sentenças, ele produz uma suspensão. Essa suspensão é um transbordamento do viver e do morrer, uma espécie de triunfo do “sobre”, uma alegria, uma reafirmação de vida sobre a vida. A enunciação de Daniel remete a um dos momentos da última entrevista de Derrida que, ao ser questionado pelo jornalista se havia aprendido finalmente a viver, nos lembra que a felicidade é algo que se encontra tanto no prazer quanto na dor ou, conforme nos dá a ver a segunda epígrafe deste texto, nos dois braços da vida de que fala o trecho do poema de Lou Andreas-Salomé. Podemos dizer, por fim, que a fuga ou a suspensão que a enunciação de Daniel promove é, sem dúvida, em relação ao lastro de uma tradição filosófica que em grande parte explica por que ainda lidamos de uma forma tão desconfortável e angustiante com certas experiências, como por exemplo vivências com o câncer e com a AIDS. Enquanto parte desse lastro filosófico que

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sempre pautou nossas formas de compreensão sobre vida e morte, (sobre) viver e morrer, a oposição vida/morte tal como formulada pela tradição filosófica que dominou no Ocidente responde diretamente por esse desconforto e pela dificuldade que ainda temos de compreender a experiência da doença, principalmente quando ela envolve questões morais, como é o caso da experiência e da vivência com o HIV e a AIDS. À suspensão que a enunciação de Daniel opera da sentença de morte implicada no significante AIDS, estende-se à própria dimensão sentenciosa da oposição vida/morte, configurando, assim, micropoliticamente, uma resposta, no sentido derridiano do termo, à violência performativa que subjaz historicamente a tal oposição. A enunciação em questão opera uma suspensão ativa dessa oposição porque implica uma atitude ética que se dá, conforme nos lembra Derrida, como uma “transação entre o imperativo de autonomia e o imperativo de heteronomia” (2004, p. 141). O gesto enunciativo de Daniel implica, portanto, um viver compreendido em função do conceito nietzschiano do eterno retorno cuja justificação só se dá em termos estéticos, isto é, a partir de uma compreensão da vida como produção contínua de uma obra de arte constituída inexoravelmente por um viver-morrer constante ou um viver morrendo, como diria Derrida, o que não significa, necessariamente, uma negação, mas uma afirmação incondicional da vida. Em outros termos, a experiência de uma heteronomia sem sujeição.

Violência performativa e palavra de ordem: vivências e subjetivações com HIV/AIDS na RNP+/CE Deleuze e Guattari (1995), ao insistirem na condição da linguagem como palavra de ordem — isto é, palavra que dá ordens à vida, que, dócil e resignadamente, apenas escuta e aguarda38 — denunciam a tirania do regime de signos significante, que pode ser descrita, entre outros aspectos, como a postulação da linguagem enquanto “mandatária de um regime universal capaz de

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“A linguagem não é a vida, ela dá ordens à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 13).

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traduzir todos os outros estratos e sistemas (subjetivos, estéticos, científicos e filosóficos)” (Rebello, 2003, p. 23). Essa “faculdade abominável”, como a descrevem os autores, constitui uma função coextensiva à linguagem, uma função-linguagem “que consiste em emitir, receber e transmitir as palavras de ordem” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 12), sendo a condição de possibilidade de uma dada língua, e não, como tentou nos fazer crer a tradição que dominou no Ocidente, uma categoria específica de enunciados, por exemplo, no modo imperativo. Trata-se, portanto, da “relação de qualquer palavra ou qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele” (p. 17). Entre outras intersecções, a palavra de ordem é um conceito alinhavado a partir do encontro de Deleuze e Guattari com a visão performativa da linguagem de Austin (1990). É válido demarcar que este filósofo, autor da célebre obra “How to do things with words”, problematiza o truísmo da linguagem como decalque de estados de coisas, fazendo atentar para a sua potência de ação e intervenção sobre o real. Ou, para dizer com outras palavras, Austin aponta para o fato de que os signos linguísticos não substituem ou descrevem o real, porém atuam performativamente na sua fabricação. A existência dos enunciados performativos39 e a generalização da perfomatividade na tese do ilocutório austiniano chamam a atenção de Deleuze e Guattari, uma vez abrindo espaço para uma abordagem do linguístico sob um ponto de vista que ao mesmo tempo inverte e desloca o paradigma representacional em favor de uma mirada múltipla e menor do linguageiro. Resultam dessa aproximação com os atos de fala três ilações indissociáveis ao que Almeida (2003) caracteriza como uma pragmática agramatical nessa filosofia da diferença: (i) a impossibilidade de conceber a linguagem como código e a fala como a comunicação de uma informação; (ii) a impossibilidade de

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Enunciados performativos, para Austin (1990), são aqueles que realizam ações, e não apenas constatam ou declaram estados de coisas no mundo, os quais são classificados, num primeiro momento da exposição teórica austiniana, como enunciados constativos. Ao longo das doze conferências que compõem a obra mais conhecida de Austin, How to do things with words, entretanto, o filósófo problematiza a dicotomia constativo/performativo, argumentando no sentido de uma performatividade generalizada na linguagem. Tem-se com isso que mesmo os enunciados constativos seriam “performativos mascarados”, na medida em que “constatar” é também realizar um tipo de ação sobre o mundo.

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prescindir a fonética, a sintaxe e a semântica da pragmática, que, despojada da posição de “cloaca” da linguística, seria alçada à condição de pressuposto de todas as outras dimensões; e (iii) a impossibilidade de sustentação da dicotomia língua/fala, visto que “a fala não pode mais ser definida pela simples utilização individual e extrínseca de uma significação primeira, ou pela aplicação variável de uma sintaxe prévia” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 15). Além da performatividade austiniana, outro atravessamento teórico na composição do conceito de palavra de ordem está na doutrina estoica dos atos ou transformações incorporais. Como expõe Deleuze (2011a), em “Lógica do Sentido”, os estoicos opunham à espessura dos corpos e das ações, paixões e “estados de coisas” os “acontecimentos incorporais”, que não dizem respeito a qualidades e propriedades físicas, mas a atributos lógicos e dialéticos. Estes, por sua vez, concernem não ao “ser profundo e real”, mas ao “plano dos fatos, que se produzem na superfície do ser e instituem uma multiplicidade infinita de seres incorporais” (ibid, p. 6), nesse sentido se assemelhando mais a verbos que a substantivos. Um ato incorporal, portanto, apresenta dupla face: é o expresso de uma proposição e o atributo de um corpo, sendo a instantaneidade a marca de sua realização, pois é no momento mesmo de sua enunciação que se produz o efeito sobre os corpos (Deleuze e Guattari, 1995, p. 72).

A fim de situar melhor o quadro da incorporalidade no âmbito da palavra de ordem deleuzo-guattariana, lançaremos mão do seguinte engenho narrativo: um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos dirige-se a um posto de saúde e solicita fazer o exame anti-HIV. No Brasil hoje, 2017, há predominância do chamado teste rápido, que, numa fração de dez a quinze minutos, diagnostica em terminologia biomédica: amostra não reagente ou reagente para HIV. Caso se ateste o primeiro termo, o homem deverá respirar aliviado; o enfermeiro ou assistente social responsável pela leitura do exame poderá enunciar algo como “melhor assim” ou, em caso de o homem sumariamente descrito ter atravessado alguma situação de risco, proclamar em voz entre maternal e austera: “previna-se”, “evite passar por semelhante situação novamente”. Mas caso o teste declare o segundo termo, nosso personagem imaginário, embora sabidamente factual, além da genérica expressão

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homem, poderá também ser predicado por um feixe de novas designações: soropositivo, HIV-positivo, portador, paciente, pessoa vivendo com HIV/ AIDS (PVHA); ou, para usar uma expressão bastante grosseira e estigmatizada — e, em função disso, rechaçada pela maioria dos movimentos sociais que ao longo dos anos 1980 e 1990 se organizaram visando à detenção do mal —, aidético. O ato de fala/palavra de ordem professado com o teste a transformar imediatamente o homem em soropositivo é um incorporal: direciona-se ao corpo, intervém sobre ele, mas distingue-se dele ou de suas misturas na medida em que a ele se atribui como puro ato instantâneo. Entre os “seres corporais” e as “transformações incorporais” não há identidade, mas agenciamento40, ou seja, intervenção entre elementos heterogêneos. Toda palavra de ordem, ressalvam Deleuze e Guattari, deve ser deduzida da soma das particularidades de uma situação política determinada. Dito isso, “soropositivo” é um atributo que só se presta a designar a condição clínica de alguém — a experiência da saúde e da doença — após a aferição do diagnóstico. Que o indivíduo tenha experimentado determinadas enfermidades em decorrência da ação do vírus no corpo essa é uma problemática relativa à “paixão”, ou seja, à esfera da corporalidade. Mas a transformação do personagem fictício em soropositivo é um acontecimento incorporal, uma espécie de ato jurídico ou de sentença que se impõe sobre um corpo do momento da diagnose em diante. Disso se pode concluir que:

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Com Deleuze e Guattari (2014) entendemos agenciamento como uma conexão contingenciada entre elementos de expressão e conteúdo, que fazem ver uma pragmática atuando na produção de enunciados. Este conceito nos permite pensar linguagem e sujeito não como entidades preexistentes, mas como estratos em composição que tanto apresentam lados territoriais ou reterritorializados, quanto pontas de desterritorialização. Não se pode dissociar o agenciamento das palavras de ordem, na medida em que estas são consideradas as suas variáveis: “atos que estão ligados a enunciados por uma ‘obrigação social’” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 17). Como veremos adiante no trabalho de campo realizado na RNP+/CE, as palavras de ordem foram tomadas como pistas que indicam processos de produção de subjetividades, os quais, aqui, poderão ser lidos como um sinônimo para o conceito de agenciamento.

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Um tipo de enunciado só pode ser avaliado em função de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com pressupostos implícitos, com atos imanentes ou transformações incorpóreas que ele exprime, e que vão introduzir novos recortes entre os corpos (Deleuze e Guattari, 1995, p. 24).

A palavra de ordem se articula enquanto uma ponte é içada entre o enunciado e o ato, constituindo-se como o agenciamento real mínimo entre ambos. A relação que se estabelece aí é de redundância, no que concerne tanto à significância da informação (frequência) quanto à subjetividade da comunicação (ressonância). Cumpre ressaltar, entretanto, que informação e comunicação subordinam-se à redundância da palavra de ordem em vista do fato de que não há “significância independente das significações dominantes nem subjetivação independente de uma ordem estabelecida de sujeição” (Ibid, p. 18). A palavra de ordem determina, assim, sempre em campos sociais específicos, o itinerário semiótico a ser vivido pelos sujeitos e pelas significações41. Tal seria a feição de sentença de morte relativa a essa variável da enunciação e do agenciamento: “A palavra de ordem traz uma morte direta àquele que recebe a ordem, uma morte eventual se ele não obedece ou, antes, uma morte que ele mesmo deve infligir, levar para outra parte.” (Ibid., p. 57). Sob essa valência, a palavra de ordem se encarna como “transformações incorpóreas pelas quais os corpos limitam-se, separam-se, interditam-se, formam figuras, ganham contornos claros e estáveis” (Almeida, 2003, p. 82). A morte desenha-se aí enquanto ato ou “pura transformação que a enunciação junta ao enunciado, sentença” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 58). Trata-se de um processo majoritário regido, primordialmente, pela enantiomorfose enquanto proibição social dos fluxos, dos devires e da variação contínua — a palavra de ordem em estado de reterritorialização.

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Deleuze (2011a) realiza uma distinção entre significação e sentido enquanto diferentes dimensões da proposição. A significação diz respeito à “relação da palavra com conceitos universais ou gerais, e das ligações sintáticas com implicações de conceito” (p. 15). O sentido refere-se ao expresso da proposição, sendo “o incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que insiste ou subsiste na proposição” (p. 20).

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Mas assim como Derrida (1979) em “Living on” aponta para um antagonismo latente na expressão arrêt de mort, ao mesmo tempo designando uma pena de morte sentencial e uma suspensão, a palavra de ordem também comporta outro tom, um modo menor inseparável da dimensão injuntiva da sentença de morte: o grito de fuga. Aqui, a expressão já não se dirige impositivamente em direção ao conteúdo; a palavra já não dá ordens à vida, mas segue um continuum de variação com potencial para transformar substâncias, dissolver formas. “Potência incorpórea dessa matéria intensa, potência material dessa língua” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 61). Uma linguagem agramatical intensiva que se realiza no plano de composição, onde, graças a uma desterritorialização absoluta, concretizam-se diferenciados processos de variação contínua. Há, nesse traçado do agenciamento, um esteio vital para a emergência de um devir minoritário42 da linguagem, em que esta, furtando-se à identidade das constantes e abrindo-se à diferenciação, dilata-se para a deriva dos processos criativos. Uma mesma palavra abriga tanto o modo maior quanto o menor. É preciso descobrir, numa cartografia, as senhas que transformam as composições de ordem em componentes de passagem; ou, para falar com o vocabulário derridiano (1979), é preciso forjar a pena suspensiva que adiará o veredicto decisivo. Na novela “A doença, uma experiência”, de Jean-Claude Bernadet (1996, p. 35), a palavra aidético, a exemplo do primeiro enunciado de Herbert Daniel, citado no início deste texto, já não veicula unilateralmente a sentença de um estigma; ao contrário, diz de um vigoroso potencial de subversão, de um visceral e orgânico grito de fuga:

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“É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado, criativo. O problema não é nunca o de obter a maioria, mesmo instaurando uma nova constante. Não existe devir majoritário, maioria não é nunca um devir. Só existe devir minoritário. As mulheres, independentemente de seu número, são uma minoria, definível como estado ou subconjunto; mas só criam tornando possível um devir, do qual elas mesmas têm que entrar, um devir-mulher que concerne a todos os homens, incluindo-se aí homens e mulheres” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 56).

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A doença é uma fonte de energia. A doença não é uma fonte de energia, fonte de energia é o enfrentamento da doença. Fernando me reprime e não quer ouvir o que digo. Digo AIDS, e não doença, digo SOU AIDÉTICO, e não digo “Estou doente” ou “Sou portador do HIV”. Já que estamos com AIDS, pelo menos que se viva a doença com intensidade.

A palavra dilata seus poros de significância e, mesmo que se alegue sua identidade fonomorfologicamente atestada em discurso, já não se poderá dizer, no entanto, que se trata da mesma: no agenciamento, inclinando-se num movimento em direção às suas aberturas desterritorializadas, ela articula novos sentidos para si, atualiza-se, devém totalmente outra. De vez que elege aidético para se autodesignar, o protagonista gera uma singularidade, uma quebra nas redundâncias dominantes. E isso se dá mediante o poder actancial do enunciado, seu poder performativo ou, melhor dito, sua força ilocucionária (Austin, 1990). Outra subjetividade se produz a partir da assunção do termo negativizado, instituindo uma potência de (sobre)vida em meio à agonia tanática. Esse grito de fuga ou essa suspensão são um investimento rente à sentença de morte impregnada sobre o significante AIDS, contra cuja aura monumental se volta o personagem de Bernadet ao reclamar alguma dose de vitalidade e intensidade à doença, vivida como experiência através da qual, no enfrentamento e no coração do próprio pathos, ele extrai uma “fonte de energia”. O NOME DA AIDS : SENTENÇA DE MORTE

Valle (2002) nos chama atenção para o fato de que os referentes soropositivo, HIV-positivo ou portador passaram a ser progressivamente disseminados, no Brasil, como uma resposta frente à deletéria dimensão assumida pelo designativo aidético, bastante popular à época da emergência da epidemia, nos anos 1980. Muito mais do que fazer referência à Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), sigla a partir da qual deriva, o aidético enredou-se ontologicamente ao signo da morte, mas também a trajetórias moralmente condenadas, como a prostituição, a drogadição e, especialmente, a homossexualidade. Em virtude do fato de que a epidemia, ao menos nos seus primeiros anos, alastrou-se com muita intensidade sobre as populações

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homossexuais masculinas, gravaram-se sob tal rubrica não só a categoria de proveniência médico-psiquiátrica do homossexual, mas também categorias ainda mais estigmatizadas como a “bicha” e o “veado”. Diante disso, tornou-se bandeira política dos movimentos sociais emergentes em torno da AIDS o rechaço do aidético e o endosso em torno do soropositivo, como uma espécie de imagem eufemística a neutralizar os significados negativos de ordem moral relacionados àquele estereótipo subjetivo. É de certo modo a negação de tudo o que condena o nome da AIDS ao mutismo ou ao eufemismo biomédico que cria as condições de expressão do enunciado de Bernadet. Sem, entretanto, debruçar-nos sobre um espectro de considerações a propósito de quem, em dadas circunstâncias socioculturais, teria ou não condições de vozear “sou aidético” tal como o personagem dessa ficção autobiográfica, interessa-nos sublinhar o grito de fuga tramado por essas palavras e a micropolítica que estas efetivam ao afirmarem um modo singular de linguajar intensidades (Rolnik, 2014); e, sobretudo, ao agenciarem um modo de existência soropositiva — outra soropositividade — que desobedece à sentença de morte da palavra de ordem expressa com o diagnóstico e a transformação incorporal que este suscitou. Se levarmos em conta o fato de que, mesmo no presente, dizer o nome “da doença” ainda é tabu para muitos, inclusive para pessoas de sorologia positiva, podemos ouvir com mais acuidade os ecos do grito de Bernadet. Para Helena43, participante da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/ AIDS do estado do Ceará44 (RNP+/CE) é assim. A possibilidade de um dia ser interpelada como “aidética” lhe é insuportável, como ela fez questão de mencionar a partir de conversa que tivemos. Ao questioná-la acerca do seu posicionamento refratário à presença de pessoas de sorologia negativa

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Lançamos mão de nomes fictícios a fim de preservar a identidade dos participantes da pesquisa, seguindo o protocolo estabelecido pelo Comitê de Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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Os relatos aqui apresentados integram a dissertação de mestrado “Soropositividades: (cartografando) performatividade e produção de subjetividade HIV-positiva na Rede”, de Renan da Ponte Castelo Branco. A pesquisa consistiu em uma habitação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/AIDS (RNP+/CE), que, entre outras formas de interação, se deu por meio do acompanhamento das reuniões de ajuda mútua e da realização de entrevistas com os participantes dessa ONG.

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nas reuniões da Rede45, como essa ONG é informalmente chamada, ela respondeu que teme ter sua sorologia escancarada para/por pessoas desconhecidas, especialmente vizinhos. “AIDS”, para ela, ressoa como um nome abjeto, portador de um excesso de significações às quais não gostaria de ser associada; ou, ainda, um significante que, por conter a força de uma injúria, é demasiadamente pesado para carregar consigo. [CARTÓGRAFO]: Você se lembra daquela reunião que teve pra dividir, pra deixar as reuniões só pros soropositivos? Você mudou de opinião acerca daquilo? [HELENA]: Não, não. Eu acho assim, é bom e não é, porque aquela senhora [faz menção a uma frequentadora da Rede cujo esposo é soropositivo, porém ela é soronegativa] é o esposo dela que é e não ela. Então ela tem que participar pra saber onde o esposo tá entrando, com quem o esposo dela tá convivendo. É certo? É. Mas será que se ela chegar lá na rua que eu moro, ela vai conhecer alguma vizinha minha e vai me julgar também? [Simula conversa da mulher] “Ah, eu conheço essa menina aí lá da reunião que eu vou com meu esposo!”. “E a reunião é de quê?”. “Não, ela tem HIV”. “Ah, ela tem AIDS!”. Porque a BOCA da população é “ela tem AIDS”, jamais “ela tem HIV”. Entrevista realizada no dia 25 de novembro de 2015.

De todas as vozes que atravessaram a habitação do território da RNP+/ CE durante os anos de 2014 e 2015, é possivelmente em Helena onde há a irrupção de um ponto em que a palavra de ordem da AIDS mais se aproxima de uma feição sentencial, sufocando um grito de fuga por vir. E isso não apenas por seu veto ao nome da AIDS — elipse também largamente efetuada nos enunciados de outros soropositivos vinculados a essa ONG. Tendo sido

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Em junho de 2015 a coordenação da RNP+/CE propôs aos participantes uma votação para deliberar acerca da presença de pessoas de sorologia negativa nas reuniões de ajuda mútua. Helena foi uma das vozes que se posicionaram de modo favorável ao embargo aos soronegativos, justificando ser esta uma estratégia para conter possíveis situações de homofobia entre “heterossexuais” e “homossexuais em geral” — o que, para ela, contemplaria gays, travestis e transexuais. Todavia, diante de um quadro de opiniões bastante heterodoxas sobre o tema, considerado de teor polêmico por muitos, nos meses seguintes, a Rede optou pela manutenção de uma atitude conivente relativamente à participação de acompanhantes soronegativos durante esses encontros.

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diagnosticada como HIV-positiva há três anos (à época da pesquisa), não raro, apesar de já bastante integrada às atividades da Rede e próxima a alguns redianos, ela ainda manifestava inconformidade ante o diagnóstico positivo. Decerto, tal incômodo é igualmente expresso e compartilhado por outros membros, inclusive por alguns mais “veteranos” no tempo de convivência com o vírus, uma vez que, de fato, são muitas as dores relacionadas não apenas à experiência de uma doença atravessada por vários processos de estigma e discriminação, mas também a própria adaptação à terapia com os medicamentos antirretrovirais, cujos efeitos colaterais são inúmeros. No entanto, é forçoso pontuar no discurso dessa participante a insinuação de algumas significações cristalizadas da doença a recuperar determinadas metáforas como a “invasão” e a “poluição”, as quais constituem a discursividade de outras patologias que, assim como a AIDS, também foram semiotizadas (pelos olhares mais conservadores do campo global) como “pestes”46, como bem argumentado por Sontag (2007) no ensaio “AIDS e suas metáforas”. [HELENA]: Às vezes eu tenho vontade de fazer novamente o exame. Dentro de mim me diz, mas eu tenho medo também, mas agora vai sair esse teste na farmácia, né? Aí eu disse: “menina, eu acho que eu vou é fazer” porque, às vezes, dentro de mim, lá no meu íntimo mesmo (me pergunto) “será meu Deus? Será que foi engano?” Porque não tem lógica. Como foi? Se eu fosse uma pessoa que fosse com um, fosse com outro (homem), entendeu? Tinha aquele processo, eu teria minha culpa, então eu teria consciência, mas eu não tive, eu não tive esse vínculo com vários parceiros, eu não tive, então será que só de um (homem) e desse um eu fui premiada? [ ENTREVISTA NO DIA 25 DE NOVEMBRO DE 2015 ].

Ao interrogar-se acerca de como veio a ser contaminada — ou, como ela ironicamente enuncia, “premiada” —, Helena questiona a veracidade do 46

Embora a invasão e a poluição tenham sido sustentáculos figurativos estratégicos no processo de significação da AIDS, para Sontag (2007) a principal metáfora através da qual se compreendeu a epidemia, quando de seu despontar, foi a peste. É correlata a essa imagem a ideia de “condenação” pelo comportamento “delinquente” de uma sociedade. Assim, nem todas as doenças são suscetíveis à condição de peste; apenas aquelas que estão assimiladas ao outro, ao “estrangeiro” e a uma “comunidade de párias”: seres que, de um prisma moralista, são vistos como “promíscuos” em estado de “licenciosidade geral”.

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próprio diagnóstico positivo. Provavelmente, pondera em outro momento, ela fora infectada pelo ex-marido que, anos atrás, morreu subitamente após manifestar sintomas de uma doença oportunista. O “prêmio” faturado por ela mantém alguma similitude com a invasão e a poluição descritas por Sontag na medida em que assimila o vírus a um invasor com o qual convive de modo bélico, militarizado, abrigando no corpo de sua fala as marcas de uma sentença de morte da qual, paradoxalmente, busca se desvencilhar ao participar das reuniões de ajuda mútua da RNP+/CE. Pensando com os rastros deixados por Helena, podemos delinear melhor o contorno da sentença aqui considerada: o nome da AIDS apresenta-se como um impronunciável; o “viver com” o vírus torna-se matéria para culpa, autocomiseração, mas também para um expurgo, uma “vontade de limpeza” que se expressa nas frestas do discurso. Tais percepções sedimentadas impõem-se incorporalmente na produção de uma soropositividade estigmatizada, ainda que o estar na Rede, num contato “contagioso” com outras pessoas vivendo com HIV/ AIDS, impulsione, nela, um exercício permanente (e paciente) de desterritorialização dessas significações. MICROPOLÍTICAS SOROPOSITIVAS E GRITOS DE FUGA NA RNP +/ CE

A cartografia é uma possibilidade de divisar outramente o conceito de campo. Não sendo tomado como uma forma estanque, este passa a ser visto como um “coletivo de forças” (Escóssia e Tedesco, 2010) onde se desenham linhas e processos de subjetivação. Por tal razão, este conceito, extraído do texto “Rizoma”, de Deleuze e Guattari (2011), é tido como um antimétodo, uma vez que não visa representar fatos ou formas sob o pretexto de uma suposta fidedignidade, mas, sim, busca traçar mapas intensivos dos agenciamentos enquanto processos de composição subjetiva. Foi assim em nosso percurso cartográfico na RNP+/CE, quando nos propusemos a trabalhar com um conceito deslocado de soropositividade, tencionando pensá-lo para além de um diagnóstico instituidor de subjetividade HIV-positiva. Com essa ideia em mente voltamos nosso olhar para as múltiplas palavras de ordem e para os diversos arranjos subjetivos ou micropolíticas que estas engatilham na Rede, uma grupalidade multivocal atravessada por alguns agenciamentos que atuam na produção de subjetividades soropositivas.

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De tão insistente nas redações de campo da cartografia, o agenciamento ativista se consolidou no cartografar como um relevo. Um território subjetivo correlato à soropositividade. Ao procurar traçar os modos de confecção dessa subjetividade no encontro com a RNP+/CE acabamos por esbarrar no ativismo como um modo de existência através do qual o “ser soropositivo” ganha encarnação. É preciso pontuar, todavia, que nem todos os participantes de alguma forma vinculados à Rede aderem a tal micropolítica subjetiva, uma vez que, nessa ONG, as práticas ativistas implicam abrangentemente na abdicação do anonimato e da confidencialidade, prerrogativas de que muitos, como Helena, não estão dispostos a largar mão. Em posição diferente à dessa participante estão os redianos Gilberto e Cândido que, convivendo com o vírus há tempo bem maior, ocupam posições no front da RNP+/CE. Embora os ativismos por eles praticados estejam conectados a palavras de ordem distintas, importa sublinhar, a partir deles e com eles, a emergência de duas formas de subjetivação47 (Deleuze, 2013) que, dizendo não à sentença de morte impingida com o diagnóstico, gritam um sim disparado como uma espécie de “lampejo” de sobrevida (Derrida, 2003): “mais-que-vida, mais-de-vida, adiamento e hipervitalidade, suplemento de vida que vale mais que a vida e que a morte, triunfo da vida e da morte” (p. 56). O ativismo de Gilberto é fundamentalmente de combate. Diz, portanto, de uma militância, no duplo sentido de que tanto se orienta para a luta por direitos para as pessoas vivendo com HIV/AIDS, quanto para a hierarquia e a liderança político-institucional. Ocupando atualmente o cargo de coordenador administrativo do grupo, assume a responsabilidade de representá-lo diante de outras instituições governamentais ou não. Como faz questão de enfatizar, exerce a função política “por excelência” da ONG, uma vez que dialoga com as gestões federal, estadual e municipal, fiscalizando e participando de frentes para a discussão e criação de políticas públicas para a população soropositiva cearense e brasileira. Ao curso do ano de 2015, a palavra de ordem mais frequente em seus extensos discursos nas reuniões mensais da Rede foi “denúncia”. Por meio desta, vislumbrou chamar atenção dos mais diversos setores da sociedade para a má gerência dos recursos do 47

Segundo Deleuze (2013), a partir de leitura de Foucault, a subjetivação é “uma relação da força consigo, um poder de se afetar a si mesmo, um afeto de si por si” (p. 108).

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FIGURA 1:

“Socorro ao São José”: a denúncia como palavra de ordem. Foto disponível no perfil de Gilberto no Facebook

Programa Nacional de AIDS (PN-DST/AIDS) no Ceará, como no encontro do mês de novembro, quando, com diversos preservativos distribuídos pelo Ministério da Saúde, produziu o seguinte enunciado numa mesa de reunião: Com esse ato de fala Gilberto, em nome da RNP+/CE, fez menção às precárias condições do Hospital São José (HSJ), principal equipamento público de saúde no tratamento de doenças infectocontagiosas do estado do Ceará. No bojo desse grito-denúncia havia uma série de queixas sobre casos de indevida acomodação no hospital, com pacientes instalados em corredores e pátios em função de uma reforma que, à época, já perfazia o tempo de cinco anos. Num esquema dominó, tal enunciado, propagado via Facebook por Gilberto, deflagrou como efeito perlocucionário (Austin, 1990) a ação ou o fato de que, nesse mesmo dia, um deputado estadual realizou um pronunciamento em tom francamente indignado na Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, amplificando as denúncias elencadas nessa reunião. A partir disso o ativista obteve sucesso ao garantir uma efêmera visibilidade social e midiática não só para a ONG, mas para a preocupante situação em que se encontrava o HSJ. Ainda que previsível e materializado sob a forma expressiva de um discurso político de verve representacional, tal palavra de ordem reverbera

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como grito na geografia desse plano cartográfico. Um grito ativista a afirmar um modo de existência combativo, produzindo uma outra maneira de (sobre)viver (soro)positivamente numa resistência que toma por impulso a convivência com o intruso, o vírus. “Antes nos escondíamos para morrer, hoje nos mostramos para viver”48 é um enunciado que se tornou bastante popular na RNP+ em dimensão nacional e que bem exprime o tom “escancarado” do ativismo de Gilberto, caracterizado como um enfrentamento ao que Daniel (1991) denominava como “morte civil”, ou seja, uma morte que acontece ainda em vida e que aliena o soropositivo dos seus mais primários direitos humanos. Mas, apesar de hegemonizar o tempo das reuniões, a denúncia não é palavra de ordem exclusiva nessa cartografia. Aliás, não é sequer a forma unívoca de “fazer política”, como prefigura o coordenador, demasiadamente aferrado, talvez, a uma lógica centralista e hierárquica de organização grupal. Outra voz também se lança na direção de um grito, não menos político, mas dessa vez manifestando-se como um agenciamento artista a desalinhar o ativismo ou, melhor dizendo, a encarnar outra figura de ativista. Esse é o caso de Cândido, que assiduamente convoca um repertório de poemas e canções interpretados com entusiasmo cênico nos intervalos da retórica mais “sisuda” de Gilberto. A seleção desses textos se dá, como assinala, em alinhamento com as datas comemorativas de cada mês e com o seu estado de espírito. Assim, este mediador dos encontros mensais procura sempre cantar músicas do cancioneiro popular brasileiro e recitar poemas que apelem à reflexão e à disseminação dos sentidos da vida, do outro e de si. Acerca dessa trilha singular de exercer o “a(r)tivismo” pela qual enveredou, ele observa: “A música por si só manifesta a alegria, mesmo que a música seja triste. O poeta é que sabe dizer essas coisas. É uma tristeza alegre, porque termina você gostando”49. Está nessa escolha um desejo de inocular paixões alegres, isto é, paixões que aumentem a potência de agir (Pelbart, 2008), abrindo fissuras imperceptíveis nas sentenças de morte. Através da arte, portanto,

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Disponível em , acesso em 6 dez. 2016.

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Entrevista realizada no dia 11 de dezembro de 2015.

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ele busca efetivar também um agenciamento clínico50, relevo que aponta para as práticas de ressignificação da sorologia positiva. Muitas foram as intervenções poético-musicais de Cândido no círculo de reuniões organizado no pátio da Rede. Ao longo de 2015, geralmente acompanhado por rudimentares melodias de karaokê, ele interpretou desde Chico Buarque e Gonzaguinha às mais radiofônicas canções de Fábio Jr., para o quase certo arrebatamento dos participantes — frequentemente entediados com o cerimonial “representantes/representados” desses encontros. Já em matéria de poesia, recitou textos de José Régio, Elisa Lucinda e Florbela Espanca; mas o autor cujas palavras mais vezes lhe cruzaram a fala foi, certamente, Carlos Drummond de Andrade. Um instante bem-sucedido de quebra da cadência usualmente protocolar se deu num dia de agosto, quando Cândido declamou, deste poeta, “A flor e a náusea”. A designação desse texto para leitura despontou, segundo ele, em razão de que, ao mesmo tempo em que expressa esgotamento e desencanto em relação ao tempo — “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera./ O tempo pobre, o poeta pobre/ fundem-se no mesmo impasse. [...]” (Andrade, 1998, p. 24) —, também anuncia o alento de uma “esperança mínima” sob a imagem de uma rosa feia que, brotando do asfalto, fura “o tédio, o nojo e o ódio”. Embora não seja virtuosa do ponto de vista da atuação, a performance desse ativista em devir-artista atuou no sentido de uma mobilização das linhas afetivas dessa coletividade, suscitando uma afecção com potência de perspectivar outramente a imagem do contágio, não mais tomado como signo negativo de uma invasão ao “corpo-propriedade”, mas como indício do que Deleuze (2011b) descreve como uma vitalidade não orgânica que põe o corpo em relação “com forças ou poderes imperceptíveis que 50

O agenciamento clínico — voltado às práticas de ressignificação da sorologia positiva e, portanto, às fissuras nas sentenças de morte — não constituiu um relevo dominante nas reuniões mensais da RNP+/CE, em 2015. Como pudemos pontuar durante esses encontros, a coordenação privilegiou o ativismo e a palavra de ordem da denúncia, escanteando a “ajuda mútua” enquanto função em que os soropositivos partilham narrativas de tratamento e de vida. A clínica, no entanto, não deixou de se manifestar: embora disparada em baixa frequência, articulou-se aos agenciamentos ativista e artista; e também se apresentou nos instantes de distração, quando os redianos, em ambiente mais descontraído, mostraram-se abertos à conversação de temas diversos, o que geralmente não acontecia durante o momento “sério” das reuniões.

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dele se apossam ou dos quais ele se apossa” (p. 169). Por essa força de suscitar acontecimentos intensivos capazes de instaurar uma disrupção (ainda que provisória) no caráter sentencial das palavras de ordem impregnadas sobre a AIDS, a poesia intervém, aí, como grito a desestabilizar significações estigmatizadas e a abrir a potência incorporal do sentido (Deleuze, 2011a), enquanto domínio que não está “a ser descoberto, restaurado ou reempregado”, mas enquanto algo a se “produzir por meio de novas maquinações” (p. 75). Todo um outro modo de se subjetivar frente à condição soropositiva, mas também toda uma outra forma de “estar-na-Rede”, se estabelecem a partir dessa micropolítica investida por um desejo (Rolnik, 2014) produtor de um real social artista e, por vias oblíquas, também ativista. Tanto em Gilberto como em Cândido, o grito manifesta-se como uma espécie de ataque ao monumental significante da AIDS. Ele intervém na abertura de uma a(r)resta, um ângulo de instabilidade que põe fim a um veredicto decisivo, gerando um instante de sobressalto, survie (Derrida, 2003). A AIDS já não se introduz, nesse ponto, como uma Esfinge a escamotear um segredo sobre o sexo e a morte, mas talvez como um significante flutuante (Deleuze, 2011a) ou uma “casa vazia” dentro da qual há tão somente a [...] complexidade de um “vazio” de onde se pode criar, inventar tudo, aquele conjunto de infinitas dimensões sociais de onde parte a fundação imaginária da sociedade: ali onde não há determinação nem acaso, liberdade nem opressão, porque dali saem todas as forças trágicas da possibilidade de inventar (Daniel, 1991, p. 83).

E é precisamente no espaço de uma brecha aberta por uma dessas “forças trágicas” onde o grito — enquanto potência de invenção — age sobre os corpos contagiados por essa palavra de ordem totalmente outra. Onde uma linha de fuga se retesa sobre o estrato cristalizado das redundâncias, das subjetividades dominantes e das representações. E onde, por fim, a AIDS devém aids, como propunha Daniel (1991): uma realidade social a pôr em jogo simultaneamente o risco e o gozo, a flor e a náusea do desejo. Um devir minoritário (Deleuze e Guattari, 1995) concernente não só aos soropositivos, mas a todo o mundo, pondo-nos a pensar com “as correntes possíveis, as de morte e as de vida, os contágios e as contaminações diversas que se oferecem a cada dia” (Pelbart, 2011, p. 246).

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Os processos de mutação subjetiva que se desencadeiam, tanto na escala indivíduo quanto na escala grupo, parecem se agenciar na tensão entre a sentença e o grito. Mesmo em Cândido há alguns indícios de sentença quando, por exemplo, durante alguns instantes, reporta a AIDS como “uma desgraça” ou como algo a relegar à categoria do esquecimento. Coextensivamente articula-se nele todo um rumorejo fugidio a investir contra o muro das significações estigmatizadas. Nisso, à maneira de um gesto afirmativo, ele emaranha sua voz à de Cazuza ao gritar: “Senhoras e senhores/ trago boas novas/ eu vi a cara da morte e ela estava viva/ viva”51” No face a face com a morte, diz o ativista, pedira licença para viver mais alguns dias; e ela, em geral tão resoluta em seu ofício eterno e universal, decidira recuar. Assinala Deleuze inspirado em Nietzsche e Lawrence: “tudo o que é bom provém de um combate” (2011b, p. 171). E a vitalidade de Cândido parece aflorar a partir de um “querer-viver obstinado” que se modula no/pelo combate, num trabalho de conjugação ativa das forças que lhe faz entrar num devir-artista: um artesanato cênico com o canto e a poesia na invenção de um outro ativismo, de uma outra pose ativista. Nesse interstício, onde a soropositividade é ao mesmo tempo um agenciamento de talhe ético, estético e político, o sobreviver se faz, transbordando e sobressaltando o viver e o morrer, à maneira de um grito, um salto, uma suspensão.

Considerações finais Para falar em sobrevivência, (sobre)vida, relacionada ao HIV/AIDS, selecionamos, para compor nossa reflexão, diversas vivências textualmente conectadas à transformação incorporal da soropositividade. Situadas num recorte temporal amplo, operado desde a emergência da epidemia no Brasil, nos anos 1980, até o presente, buscamos, pensando numa intersecção com Derrida, Deleuze e Guattari, assinalar rastros de sentenças — quando o nome

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CAZUZA. Boas Novas. Intérprete: Cazuza. In: O tempo não para. Rio de Janeiro: Universal Music, 1988. 1 CD.

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da “doença” é marcado pelo selo de uma condenação, uma morte —; e de gritos — quando essas sentenças são ativamente suspensas numa linha de fuga que desbarata uma suposta verdade sobre o colossal significante da AIDS. Tais gritos, que aqui nos interessaram demarcar mais que seus antagonistas sentenciais, implicam em diferentes micropolíticas subjetivas que, problematizando a violência performativa da dicotomia vida/morte, disseminam a noção de soropositividade para além do diagnóstico. Assim, através das enunciações das experiências de Herbert Daniel e Jean-Claude Bernadet, mas também de Gilberto e Cândido, ativistas contemporâneos da RNP+/CE, o “ser soropositivo” mostrou-se em sua potência de composição estética, num fazer cuja singularidade resplandece no momento mesmo em que a sentença de cada um devém uma palavra de ordem de afirmação vital; um “triunfo do sobre” a produzir soropositividades outras. Totalmente outras.

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Peles trans, máscaras cis: transfobia, patologização e táticas de resistência RODRIGO BORBA

O mais profundo é a pele. PAUL VALÈRY

Se a linguagem sustenta o corpo, pode também ameaçar sua existência. JUDITH BUTLER

A sangue frio: cenas transfóbicas e cisnormatividade Em maio de 2009, na cidade de Uruacu, Goiás, Ketlin foi assassinada com golpes de machadinha; seus seios foram arrancados quando ainda estava viva. Em julho do mesmo ano, Bianca foi morta por três adolescentes em João Pessoa. Jundiaí, São Paulo, setembro de 2009: Samara da Silva foi torturada até a morte. Na delegacia, seu algoz afirmou o motivo: pensava que Samara era mulher e, após descobrir que se tratava de uma travesti, a estrangulou. Em 7 de dezembro de 2010 na cidade de Belém, Mica Teles foi morta. Ela se divertia com suas amigas, uma das quais fez uma brincadeira enquanto o carro de polícia passava. Um dos policiais gritou do carro: “continue rindo que vocês vão ver o que acontece”. Vinte minutos depois, dois homens se aproximaram de motocicleta. Um deles apontou a arma para Mica e deferiu dois tiros; ela faleceu no hospital. No mesmo ano, Monica de Jesus foi encontrada morta em uma lata de lixo no bairro de Stella Maris em Salvador, Bahia. De acordo com amigos da vítima, ela havia recebido ameaças em uma rede social de um homem que já

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havia matado outra mulher trans. Em 2 de março de 2011, em Belo Horizonte, Priscila foi assassinada com 9 tiros a sangue frio; o crime foi registrado por câmaras de vigilância. O criminoso, Fernando Túlio Miranda Lage, foi condenado em 2014 a 24 anos de prisão. Ainda em 2011, em Campina Grande, na Paraíba, Inete foi atacada por 4 homens que lhe deferiram 30 facadas. Apesar das evidências em vídeo, o suspeito ainda não foi condenado. Estas cenas de violência contra pessoas trans foram retiradas do relatório “Transrespect versus Transphobia Worldwide”52, publicado pela organização não-governamental “Transgender Europe”, que monitora casos de transfobia no mundo. Segundo esta instituição, em seu mais recente mapa de monitoramento de assassinatos, o Brasil aparece em primeiro lugar no ranking de países mais transfóbicos: entre 2008 e 2016, 802 pessoas trans e travestis foram mortas53. É importante frisar que essa estatística pode ser ainda mais alarmante visto que nem todo assassinato de pessoas trans é denunciado, e quando o é tende-se a enquadrá-lo como crime deferido contra homossexuais. Nesse sentido, por exemplo, o “Relatório de Violência Homofóbica no Brasil: ano 2013”, publicado pela Secretaria Especial de Direito Humanos do governo federal, indica que a cada dia 5,22 pessoas são vítimas de ataques motivados por sua identificação de gênero e/ou orientação sexual. Neste documento entende-se homofobia como um termo guarda-chuva que engloba a violência contra gays, lésbicas, transexuais e travestis, o que dificulta uma sistematização estatística mais precisa sobre ataques a pessoas trans. Essa equiparação entre homofobia e transfobia, segundo a transfeminista Jaqueline Gomes de Jesus (2015) é equivocada, pois confere uniformidade a tipos de violência distintos (ver também Borba e Milani, 2017). Grosso modo, homofobia seria a aversão contra a não-heterossexualidade; a violência transfóbica, por sua vez, seria motivada pela incorformidade às normas de gênero; aquela seria derivada da heterossexualidade compulsória (Rich, 2010); esta, da cisnormatividade (Vergueiro, 2015), embora possam haver cruzamentos e sobreposições entre elas. O preconceito contra homossexuais é guiado por um mecanismo de hierarquização das sexualidades, que, 52

Disponível em

53

O mapa pode ser acessado em

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através de uma plêiade de práticas e discursos, naturaliza a inferiorização e a discriminação daqueles e daquelas que contradizem a norma heterossexual (Gomes de Jesus, 2015). A transfobia, por outro lodo, consoante a filósofa transfeminista Talia Mae Bettcher (2013), se refere a “quaisquer atitudes negativas (ódio, repugnância, raiva ou indignação moral) nutridas em relação a pessoas trans com base em suas performances de gênero” (p. 280). Trata-se de um conjunto de crenças e comportamentos agressivos contra indivíduos que infringem as expectativas do que Butler (2003) chama de “matriz de inteligibilidade de gênero”. Tal matriz institui como natural e necessária a relação retilínea entre sexo, gênero e desejo sexual: pênis-homem-hetero; vagina-mulher-hetero. Nesse contexto, “pessoas trans ainda não são vistas como seres humanos, mas como seres abjetos, porque não são inteligíveis para os padrões hegemônicos de gênero (fundamentados no binarismo) e até mesmo de sexualidade” (Gomes de Jesus, 2013, p. 105). Essa matriz é a base do que transfeministas têm chamado de cisgeneridade: condição de se identificar e manter-se identificado com o gênero designado com base no sexo de nascimento (Enke, 2012 e 2013; Koyama, 2003; Edelman, 2009; Gomes de Jesus e Alves, 2010; Gomes de Jesus, 2012 e 2015; Vergueiro, 2015; Serano, 2007; Rodovalho, 2017)54. A cisgeneridade

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Embora relativamente recente em língua portuguesa, o termo “cisgênero” foi utilizado pela primeira vez na língua inglesa em 1994 em um fórum online para pessoas trans pela bióloga Dana Leland Defosse. Defosse importou o prefixo latino “cis” utilizado na biologia molecular para descrever processos que acontecem em uma mesma molécula (intramolecular) e na química para se referir a grupos orgânicos substituintes que se orientam para a mesma direção. Transferido para os estudos transfeministas, o prefixo “cis” quando modifica o substantivo gênero “abarca as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento, ou seja, as pessoas não-transgênero” (Gomes de Jesus, 2012, p. 14). Contudo, no transfeminismo norte-americano, a dicotomia cis versus trans tem sido criticada, pois se acredita que a construção teórica de fronteiras bem delimitadas entre essas diferentes experiências de gênero cria mais problemas do que soluções. Uma crítica contundente é apresentada por Enke (2012). Em seu argumento, essa teórica transfeminista defende que “cis” funciona como uma ferramenta disciplinadora que “apaga as variações de gênero e estende o alcance prático e o poder de múltiplas normatividades” (p.11), isso porque “há variações nas experiências cis, assim como há diferenças nas vivências trans” (Enke, 2013, p. 238). O movimento transfeminista brasileiro é ainda bastante jovem e, por essa razão, acho relevante a manutenção dos debates sobre o privilégio cisgênero (Serano, 2007) e das exclusões que dele decorrem. É importante, contudo, usar a dicotomia cis/trans com cautela e ciência dos problemas teóricos e dos apagamentos políticos que ela pode provocar.

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naturaliza e perpetua essa relação reta e permanente que mede o grau de inteligibilidade cultural dos indivíduos e “exige que certos tipos de identidade não possam existir” (Butler, 2003, p. 39) para manter sua aparência de fato natural e necessário da vida generificada. Essa aparência, segundo Vergueiro (2015), se mantem por conta de três traços que naturalizam a cisgeneridade: a pré-discursividade, ou seja, a crença de que o gênero é um fato biológico derivado de certas características corporais; a binariedade, a ideia de que corpos “normais” terão somente duas alternativas de identificação: pênis/ homem, vagina/mulher; e a permanência, premissa na qual a coerência entre sexo e gênero imposta pela matriz de inteligibilidade “se manifeste [...] de maneira consistente através da vida de uma pessoa” (Vergueiro, 2015, p. 66). Contudo, para que se mantenha firme, a matriz de inteligibilidade de gênero requer trabalho e vigilância. Inete, Bianca, Priscila, Ketlin, Samara e muitas outras perderam suas vidas por conta da fragilidade dessa matriz: foram assassinadas a sangue frio para que não mais desafiassem o que se produziu como normal e desejável. A transfobia, assim, é uma das estratégias de defesa do que o transfeminismo chama de cisnormatividade, “uma série de forças socioculturais e institucionais que discursivamente produzem a cisgeneridade como ‘natural’” (Vergueiro, 2015). De forma estratégica, a transfobia funciona como um cálculo (ou manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio a ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes, os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da pesquisa) (...) toda racionalização “estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um “ambiente” um “próprio”, isto é, o lugar do poder e do querer próprios. Gesto cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do outro. (Certeau, 2005, p. 99-100)

Nessa definição, Certeau enfatiza como a estratégia é vinculada ao poder hegemônico, uma ação de intimidação dos fortes sobre os fracos. Ao

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cartesianamente circunscrever o outro, o diferente, o anormal, a transfobia age sobre seu corpo, sua subjetividade, sobre sua vida, enredando-o em suas artimanhas violentas que visam manter hierarquias de autenticidade e inteligibilidade; mata-se o trans para fazer viver o cis. Como estratégia, a transfobia insidiosamente dilacera as vivências trans: não é apenas a faca e o revólver que matam. O Relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos mencionado anteriormente lista os diferentes tipos de violência perpetrada sobre as vidas que desafiam a matriz de inteligibilidade de gênero: violências psicológicas atingem o percentual de 40,1% do total, seguidas de violências físicas com 36,4% das ocorrências registradas em 2013. Na categoria “violência psicológica”, o Relatório elenca o seguinte: humilhações, hostilizações, ameaças, injúria e difamação — atos de fala (Austin, 1962) prenhes de ódio que não descrevem uma realidade que os antecede, mas a deflagra a sangue frio. De acordo com Butler (1997), “a linguagem opressora não substitui a experiência da violência. Ela performa um tipo próprio de violência” (p. 9); ou seja, as palavras ferem. Nesse sentido, esse discurso violento contra pessoas trans dá visibilidade à vulnerabilidade linguística que nos constitui em virtude de sermos seres constituídos na/pela linguagem (ver Silva, 2017). Dessa forma, as diferentes práticas transfóbicas, físicas e verbais ameaçam dois âmbitos básicos da vida social: a existência corporal e a possibilidade de existência linguística, sem os quais a vida não é possível de ser vivida (Borba, 2014). Como estratégia da cisnormatividade, o deferimento de discurso transfóbico visa a deslegitimar e a desautorizar os cruzamentos de gênero efetuados por pessoas trans, tentando torná-las invisíveis, apagar sua existência e a ameaça que apresentam para a permanência e a aparência de substância da cisgeneridade. Contudo, “lá onde há poder, há resistência” (Foucault, 2003, p. 91). Parafraseando Michel Foucault a partir de Michel de Certeau, podemos dizer que lá onde há estratégia, há tática. Em outros termos, lá onde as instituições dominantes (como a cisgeneridade e a heterossexualidade compulsória) tentam apaziguar um “mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do outro” (Certeau, 2005, p. 100), os indivíduos se engajam em formas de resistência moral e política e, com isso, engendram táticas de sobrevivência que fissuram o tecido de uma vida difícil de ser vivida. Para Certeau (2005), “a tática é o movimento dentro do campo de visão do inimigo [...] e no espaço por ele controlado [...] ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita

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as ocasiões e delas depende (p. 100)”. A tática, assim, se insere furtivamente por dentro da estratégia produzindo dobras que podem passar despercebidas mas que, não obstante, têm o potencial de retorcer a norma. Se a cisnormatividade é “um discurso restritivo sobre o gênero que insiste no binarismo homem/mulher como a única forma de entender a vida generificada”, ela, assim, “performa uma operação regulatória de poder que naturaliza as instâncias hegemônicas e impede a possibilidade de seu rompimento” (Butler, 2004, p. 43). Toda norma, contudo, oferece os dispositivos para sua contestação, como observa Foucault (2013); Certeau (2005) talvez dissesse que toda estratégia de dominação contém em si os elementos para táticas que a contestam, “bricolagens” que a minam por dentro. É esse jogo escorregadio entre estratégia transfóbica, táticas de resistência e políticas de sobreviência o foco deste capítulo. Pergunto: como pessoas trans insistem em (sobre)viver e em produzir ações e discursos sobre a vida num dos países mais transfóbicos do mundo? Como garantem sua existência corporal e linguística? Que táticas de resistência confeccionam para tentar driblar as normas de gênero que persistem em negar sua existência? Afinal, quantos nós conseguem dar num pingo d’água? Aqui, me engajo com duas agendas centrais para o transfeminismo: a luta contra a transfobia (Serano, 2007; Gomes de Jesus, 2013 e 2015; Bettcher, 2013) e o movimento pela despatologização da transexualidade (Bento, 2006; Bento e Pelúcio, 2012; Oliveira, 2015; Borba, 2016a). Essa discussão terá por base um trabalho de campo de cunho etnográfico realizado entre 2009 e 2010 no qual acompanhei a rotina do Programa de Atenção Integral à Saúde Transexual (PAIST) que é vinculado ao Processo Transexualizador do Sistema Público de Saúde (SUS) onde se oferece acompanhamento da saúde geral de pessoas trans, hormonoterapia e as cirurgias de redesignação de sexo55. Durante essa incursão etnográfica gravei em áudio 75 consultas entre profissionais de saúde das várias especialidades que compõem o serviço e usuários e usuárias trans. Para os propósitos deste capítulo foco nas consultas com o psiquiatra do PAIST visto que a psiquiatria teve e tem papel central nos processos de patologização da transexualidade. Além disso, segundo os documentos que regulamentam o Processo Transexualizador 55

Para uma discussão mais detalhada sobre a metodologia da pesquisa ver Borba (2016a).

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no SUS, o psiquiatra é responsável por emitir o diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero (TIG) seguindo os parâmetros de avaliação apregoados pelo Manual Diagnóstico e Estatístico Mental (DSM) da Associação Americana de Psiquiatria (APA), onde a transexualidade é classificada como um problema mental (ver Borba, 2017)56. Vemos nessa breve discussão que no processo duas grandes estratégicas de controle do corpo e das subjetividades de pessoas transexuais entram em jogo: o poder psiquiátrico (Foucault, 2006) e a cisnormatividade que o retroalimenta. A patologização da transexualidade se encontra nessa interseção onde o “poder de terapêutica e de adestramento” (Foucault, 2006, p. 451) da psiquiatria busca produzir uma ortopedia dos gêneros inconformes: é preciso engessar performances de gênero que quebram a norma, que a desvirtuam para que a aparência de coisa natural e permanente da cisgeneridade não sofra deformações. Defrontadas com essa prática transfóbica, como pessoas transexuais (sobre)vivem no SUS? A resposta a essa indagação será confeccionada a partir de uma crítica transfeminista às práticas de cuidado em saúde elaboradas no Processo Transexualizador.

A linguagem como tática de resistência transfeminista Os princípios que guiam a ação e a reflexão transfeministas, segundo Koyama, são os seguintes:

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Faz-se mister salientar que o DSM modificou os termos dessa classificação em sua versão mais recente publicada em 2012 na qual se usa a classificação “disforia de gênero”. Em 2019, a Organização Mundial de Saúde publicou a 11ª versão do seu Código Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde no qual retira a transexualidade do capítulo sobre transtornos sexuais. Renomeando como “incongruência de gênero”, insere a transexualidade num capítulo à parte sobre necessidades específicas no cuidado à saúde trans. Embora essas mudanças demonstrem, em parte, o sucesso do movimento pela despatologização, elas ainda não tiveram efeito prático. No Brasil, por exemplo, as normativas mais recentes sobre o Processo Transexualizador são uma nota técnica do Conselho Federal de Medicina e uma Portaria do Ministério da Saúde, ambas publicadas em 2013, que ainda são pautadas por uma visão patologizante. Aqui faço referência à versão anterior do DSM, pois essa era vigente durante o trabalho de campo. Vale notar ainda que no imaginário social e médico, a recente despatologização da transexualidade teve pouco impacto.

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Primeiro, acreditamos que todo indivíduo tem o direito de definir sua identidade e esperar que a sociedade a respeitará. (...) Segundo, defendemos nosso direito pleno de fazer decisões sobre nossos corpos e que nenhuma autoridade política, médica ou religiosa pode violar a integridade de nossos corpos contra nossa vontade ou impedir que tomemos decisões sobre o que fazer com eles (2003, p. 245).

Como fica claro, o transfeminismo exige que pessoas trans tenham o direito de falar de si por si mesmas; uma política linguística, de facto. A linguagem, assim, é central para as táticas de enfrentamento ao privilégio cisgênero elaboradas por feministas e ativistas trans. Serano (2007) explica que o privilégio cisgênero é uma estrutura sociocultural que “promove a ideia de que gêneros trans são distintos ou menos legítimos que gêneros cis” (p. 35), funcionando, dessa forma, como um árbitro de validade e legitimidade e determinando quais vidas generificadas merecem ser vividas. É essa estrutura que faz com que a cisgeneridade seja tomada como natural e a transexualidade como uma cópia mal feita, um arremedo do modelo de autenticidade cis, servindo, assim, de base para ações e discursos transfóbicos. O transfeminismo tem desafiado o privilégio cisgênero a partir dos próprios sistemas de inteligibilidade que ele promove e naturaliza, sendo a linguagem uma ferramenta central para essa contestação. Um exemplo disso é justamente o neologismo “cisgênero” e seus derivados; com essa inovação linguística, pessoas trans tomam para si o poder de nomear a experiência naturalizada de gênero que, em primeira instância, nomeou suas vivências de transformação corporal e subjetiva como diferentes do “normal”: “nós te nomeamos trans!”. Em termos austinianos, este performativo tem satisfeito as condições de felicidade desde que Harry Benjamin cunhou o conceito de “transexual verdadeiro” na obra “The Transsexual Phenomenon” (1966), livro central para os processos de patologização e intervenção médica nos corpos trans. Afinal, como observa Serano (2007), historicamente, discursos sobre transexualidade foram forjados pela linguagem e conceitos criados por médicos e pesquisadores que tomaram pessoas transexuais como seus objetos de estudo — tendo, assim, autoridade para executar a nomeação. Nesse contexto, as experiências de pessoas cisgênero têm sido tomadas como pré-discursivas, naturais e normais, escapando assim o escrutínio (nesse sentido ver Vergueiro, 2015).

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Em contrapartida, vemos o grupo subjugado taticamente dizendo para o grupo dominante “nós te nomeamos cis!” (nesse sentido ver Cameron, 2012, p. 246), invertendo, assim, as relações de poder que sustentam uma das ferramentas centrais do privilégio cisgênero, i.e., a linguagem57. Com efeito, Monica Roberts (2009), ciberativista transfeminista norte-americana, argumenta que pessoas cis sentem-se insultadas pela palavra cisgênero já que indivíduos transgênero (o grupo estigmatizado) ousam nomeá-las e trata-lás como o outro58. O transfeminismo, portanto, tem produzido táticas pelas quais “o sujeito constituído pelo discurso do outro se torna capaz de usar a linguagem para falar desse outro” (Butler, 1997, p. 26). Com sua atenção a como a linguagem faz com que a cisgeneridade passe despercebida e, assim, mantenha sua aparência de fato natural e inevitável da vida, o transfeminismo tem o potencial de fazer explícitas as estratégicas de naturalização do privilégio cisgênero. Na seção seguinte discuto como os documentos que regulamentam o Processo Transexualizador no SUS patologizam a transexualidade a partir dos eixos que movimentam a cisgeneridade, ou seja, a pré-discursividade, a binariedade e a permanência, institucionalizando o discurso transfóbico no SUS. Com essa análise, argumento que os critérios diagnósticos disponibilizam recursos identitários para que os médicos avaliem as performances de gênero de usuários e usuárias do SUS com base numa estética cisgênera e, assim, produzem hierarquias de autenticidade; ou seja, as pessoas transexuais que mais se aproximarem dessa estética estereotipada de gênero são vistas como mais legítimas que aquelas cuja apresentação corporal dela se distancia, mesmo que minimamente. Nesse contexto, Butler (2009), pergunta: “O que significa [sobre]viver com esse diagnóstico?” (p. 98).

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Embora ainda restrito a círculos acadêmicos e ativistas, o termo tem ganhado visibilidade. O Oxford English Dictionary (2015), um dos mais importantes e tradicionais da língua inglesa, incluiu o termo cisgender em sua versão mais recente e define-o como “relacionado a (...) uma pessoa cujo sentimento de identidade pessoal corresponde com o gênero designado no nascimento” (disponível em ). O dicionário português “Priberam” oferece a seguinte definição: “relativo a ou que tem uma identidade de género idêntica àquela que foi atribuída à nascença, por oposição a transgénero” (disponível em ). O vocábulo ainda não entrou em dicionários de português brasileiro, embora uma rápida pesquisa no Google encontre, em 15 de novembro de 2017, 35.100 usos da palavra.

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Disponível em

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É no consultório do psiquiatra que o diagnóstico funciona como estratégia de instituições médicas para manutenção da cisgeneridade, mas é lá também onde se gestam alternativas para se lidar com o diagnóstico taticamente, sem, contudo, aceitar seus termos (Borba e Milani, 2017). Assim, a partir da crítica transfeminista dos textos que guiam o Processo Transexualizador elaborada a seguir, apresento um estudo de nível microanalítico inspirado pela análise da conversa aplicada a contextos de atenção à saúde (Ostermann e Meneghel, 2012) onde discuto os recursos avaliativos que o psiquiatra faz uso e as táticas de resistência que eles movimentam. Como argumento nas conclusões, esses recursos avaliativos, chamados de atribuições de aparência (Speer e Green, 2007), ou seja, turnos de fala nos quais o médico avalia a estética dos usuários e usuárias trans do PAIST, reatualizam, em consultório, o privilégio cisgênero que guia os critérios diagnósticos do DSM e instaura, assim, práticas transfóbicas de (falta) de cuidado em saúde contra as quais pessoas transexuais confeccionam táticas de sobrevivência corporal e subjetiva.

Transfobia institucionalizada: privilégio cisgênero no Processo Transexualizador No SUS, para que uma pessoa transexual tenha seu cuidado à saúde garantido ela necessita receber um diagnóstico psiquiátrico para que as cirurgias de redesignação sexual e a terapia hormonal sejam oferecidas gratuitamente pelo Estado. O diagnóstico exigido pelas normativas que regem o Processo Transexualizador no SUS é baseado nos critérios preconizados pela Organização Mundial de Saúde em seu Código Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID) e pela Associação Americana de Psiquiatria em seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM). Em ambos os documentos, a transexualidade é categorizada como uma patologia psiquiátrica: no CID-10 ela é classificada como um transtorno da personalidade e do comportamento adulto; no DSM-IV a encontramos no capítulo sobre transtornos da identidade sexual onde está elencada como um transtorno da identidade de gênero. Ecos dessas posições epistemológicas são encontradas na documentação brasileira que regula o Processo Transexualizador, nomeadamente a

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Portaria 2.803/2013 do Ministério da Saúde, que institui o processo no SUS, e as Resoluções 1.652/2002 e 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina, que regulamentam o cuidado em saúde transespecífico oferecido no país. Com efeito, para a Resolução 1.955/2010 do CFM, “o paciente transexual [é] portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio” (Brasil, 2010, p. 110, grifos meus). Tais documentos impõem a obrigatoriedade de acompanhamento psiquiátrico por no mínimo dois anos durante os quais um profissional de saúde mental deve avaliar, seguindo o CID e o DSM, se a pessoa que requer acesso à terapia hormonal e/ou às cirurgias de redesignação sexual é, de facto, transexual. A exigência do diagnóstico é, por si, uma estratégia institucional de proteção da cisnormatividade. Esse objetivo é disfarçado pelo discurso do “cuidado”: diz-se que os dois anos de avaliação psiquiátrica são necessários para evitar arrependimento após as cirurgias. Como diversas pesquisas ilustram (Bento, 2006; Arán, 2012; Teixeira, 2013; Borba, 2016a), são raras as pessoas trans que se arrependem das modificações cirúrgicas. Além disso, tem-se argumentado que o transtorno não está na estrutura psíquica desses indivíduos, mas sim na sua potencialidade de desestruturar a matriz de inteligibilidade de gênero já que, nas experiências trans, o gênero não está vinculado ao sexo assignado no nascimento. A patologização, destarte, é um discurso transfóbico par excellence, pois, ao fim e ao cabo, “receber o diagnóstico [...] é ser considerado doente, errado, disfuncional, anormal e sofrer uma certa estigmatização em consequência desse diagnóstico” (Butler, 2009, p. 96). De fato, como veremos adiante, o DSM inclui como “sintomas” práticas muito estereotipadas de gênero que, na vida diária, são incomuns. Produz-se ali um paradigma de masculinidade e de feminilidade que quase ninguém de fato conseguiria satisfazer sem intervenção exterior. O DSM, assim, funciona como um script para performances de gênero (Borba, 2016b) estereotipadas que só fazem naturalizar a cisgeneridade. Vejamos, então, como nesse manual diagnóstico se privilegiam práticas de gênero com base na pré-discursividade, na binariedade e na permanência, eixos que movimentam a cisgeneridade, consoante Vergueiro (2015). O DSM estabelece os critérios diagnósticos para o que chama de “perturbações mentais, incluindo componentes descritivas, de diagnóstico e de

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tratamento, constituindo um instrumento de trabalho de referência para os profissionais de saúde mental em todo mundo” (Associação Americana de Psiquiatria, 1994, p. xv); assim, seu alcance ao nível internacional contribui para a circulação global de certas epistemologias médicas (Briggs, 2005; Borba, 2017). Vale destacar que em 2012 foi publicado o DSM-V, versão atual do documento, onde a transexualidade é classificada como disforia de gênero. Em psiquiatria, disforia seria o antônimo de euforia, condição na qual o indivíduo apresenta uma tristeza psiquicamente debilitante. Embora o DSM-V apresente uma nova nomenclatura para a condição, os critérios diagnósticos sofreram poucas alterações (nesse sentido, ver Oliveira, 2015; Borba, 2016a). Apesar de atualmente o DSM-V estar em vigor, utilizo como texto de referência e análise o DSM-IV, já que este vigorava durante o trabalho de campo realizado entre 2009 e 2010 no PAIST. É importante enfatizar que o DSM-V ainda não teve sólido impacto institucional no SUS no que tange o Processo Transexualizador. Embora em 2013 o Ministério da Saúde tenha publicado a Portaria 2.803 que revisa e substitui Portarias anteriores, este documento não absorveu as poucas mudanças que o DSM-V inclui para o que agora chama de disforia de gênero. A discussão que segue, portanto, discute o DSM-IV já que este ainda exerce grande influência no imaginário médico e leigo assim como nas práticas de cuidado à saúde transespecíficas no SUS. A intenção explícita do DSM é a de “proporcionar um guia útil para a prática clínica. Mediante a brevidade e concisão dos critérios, a clareza de expressão e a manifestação explícita das hipóteses contidas nos diagnósticos, se espera que este manual seja prático e de utilidade para os clínicos” (Associação Americana de Psiquiatria, 1994, p. xvi), sendo considerado a “bíblia da psiquiatria” (Sarbin, 1997, p. 233) ao apresentar as bases diagnósticas para as “perturbações” nele listadas. É importante ressaltar que o DSM serve como uma das engrenagens na intensificação dos processos de medicalização da sociedade e fortalecimento do poder da racionalidade biomédica sobre o corpo coletivo e individual. A cada nova versão do manual, apesar das constantes críticas sobre a falta de confiabilidade dos critérios e a pouca atenção dada a questões de validade diagnóstica (Sarbin, 1997), o número de experiências humanas sujeitas à intervenção psiquiátrica aumenta: o DSM-I, de 1952, continha 106 categorias diagnósticas; em 1968, a segunda edição já listava 182; no DSM-III, publicado em 1980, figuravam 205 categorias e em

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sua versão revisada (o DSM-IIIR), feita pública em 1987, esse número passou para 297. O DSM IV, de 1994, lista 390 categorias diagnósticas (Sarbin, 1997, p. 234). Contudo, o DSM-V, publicado em 2012, elenca pouco mais de 250 categorias. A oscilação dos números de transtornos listados é testemunha do fato de que o DSM não é um tratado científico, mas sim uma construção social (Russo, 2004), um “produto de comitês negociando e renegociando a nomenclatura, um resultado de debate entre peritos/as para alcançar um consenso nos critérios para cada categoria diagnóstica” (Sarbin, 1997, p. 233). O aumento e a (recente) diminuição das classificações do DSM são indicativos das dificuldades epistemológicas e políticas em chegar a esse consenso sobre as bases diagnósticas. Porém, uma coisa é certa: as várias versões do DSM funcionam como estratégias do poder psiquiátrico (Foucault, 2006) (1) para legitimar seu escopo de atuação dentro da medicina e (2) para garantir controle da vida social com base nos padrões de normalidade que a psiquiatria estabelece. Como observa a teórica transfeminista Sandy Stone (1987), as instituições médicas sempre funcionaram como aparatos de produção de normalidade e anormalidade e no caso do manual da APA isso não seria diferente. Os padrões de normalidade de gênero, no DSM, tomam por base (ou melhor, produzem) a cisgeneridade como balança de aferição. O manual propõe que há dois componentes no TIG sendo que ambos devem estar presentes para a realização do diagnóstico: Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste do desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (critério A). Esta identificação com o gênero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo. Também deve haver evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (critério B) (Associação Americana de Psiquiatria, 1994, p. 532-3, grifos meus).

Vê-se que o critério base para a definição de “transexuais autênticos” parte da cisgeneridade como modelo diagnóstico. Afinal, para provar a existência de uma “forte e persistente identificação com o gênero oposto”,

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como apregoa o DSM, a pessoa transexual deve afirmar a persistência de sua identidade de gênero: durante o trabalho de campo, não foi incomum ouvir em consultório frases do tipo “nasci assim” ou “descobri que era transexual quando tinha 3 anos”. Como pontua Vergueiro (2015), a persistência é um dos eixos de suporte da cisgeneridade. No Processo Transexualizador, essa persistência funciona como medida de avaliação da legitimidade do gênero de pessoas trans. Mas não basta ser persistente e contínua, a identificação dever ser direcionada ao “gênero oposto” sem oscilações. A binariedade é um discurso regulador que produz o gênero como sendo composto por somente duas alternativas: masculino ou feminino. No entanto, o que se vê na vida social é que a vida generificada excede qualquer binarismo. O transfeminismo, com sua crítica radical à dicotomia homem/mulher, argumenta que gênero se refere à identificação psicossocial do indivíduo com a masculinidade, com a feminilidade ou com ambos (Gomes de Jesus e Alves, 2010). Aqui também há uma plêiade de possibilidades: homem, mulher, bigênero etc. A prefeitura de Nova York passou em 2016 reconhecer 31 gêneros diferentes com nomenclaturas específicas para serem usadas em âmbitos oficiais59, legitimando, assim, uma reivindicação do movimento transfeminista, qual seja, respeitar a autodeterminação de gênero que a pessoa profere (Koyama, 2003; Gomes de Jesus, 2015). O DSM e, por consequência, a psiquiatria, perecem não enxergar que a vida social está a anos luz de suas tentativas “científicas” de homogeneização e estabilização do gênero. Após a definição de critérios diagnósticos básicos, o texto do DSM-IV passa a caracterizar elementos do “transtorno” por fases da vida: Em meninos, a identificação com o gênero oposto é manifestada por uma acentuada preocupação com atividades tradicionalmente femininas. Eles podem manifestar uma preferência por vestir-se com roupas de meninas ou mulheres ou improvisar esses itens a partir de materiais disponíveis, quando os artigos genuínos não estão à disposição (...). Existe uma forte atração pelos jogos e passatempos estereotípicos de meninas. Pode ser observada uma preferência particular por brincar de casinha, desenhar meninas bonitas e princesas e assistir televisão ou vídeos de

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suas personagens femininas favoritas. Bonecas estereotipicamente femininas, tais como Barbie. (...) Esses meninos evitam brincadeiras rudes e esportes competitivos e demonstram pouco interesse por carrinhos ou caminhões ou outros brinquedos não-agressivos, porém estereotipicamente masculinos. As meninas com Transtorno de Identidade de Gênero apresentam reações negativas intensas às expectativas ou tentativas dos pais de que se vistam com roupas femininas. (...) elas preferem roupas de meninos e cabelos curtos e com frequência são erroneamente identificadas por estranhos como meninos (...). Seus heróis de fantasia são, com maior frequência, figuras masculinas poderosas, tais como Batman ou Super-Homem. Ela pode declarar que quando crescer será um homem. Essas meninas tipicamente revelam acentuada identificação com o gênero oposto em brincadeiras, sonhos e fantasias. Essas meninas preferem brincar com meninos, e com eles compartilham interesses em esportes de contato, brincadeiras rudes e jogos tradicionalmente masculinos. Elas demonstram pouco interesse em bonecas ou em qualquer forma de roupas ou atividades femininas de faz-de-conta. Uma menina com este transtorno pode recusar-se, ocasionalmente, a urinar sentada (Associação Americana de Psiquiatria, 1994, p. 533, grifos meus).

O papel da infância é significativo na elaboração do diagnóstico de TIG. Com efeito, na prática esse critério se materializa nas frequentes perguntas de profissionais da saúde mental sobre o momento em que um usuário ou usuária se sentiu pela primeira vez diferente dos demais. O DSM-IV tem, nesse sentido, uma força performativa retroativa (Hacking, 2007): faz com que a infância seja relida nos termos do transtorno. Durante minhas observações e gravações das consultas, não foram raras as vezes em que ouvi pessoas transexuais relatarem aos profissionais de saúde mental do programa aqui estudado que se sentiam diferentes desde muito cedo. A memória é, assim, também afetada pela força performativa do diagnóstico. Celina, por exemplo, repetia para o psiquiatra que percebeu que era diferente dos outros meninos “quando eu tinha 3 anos”. Gregory, por sua vez, afirmava que aos 2 anos de idade tentava retirar à força os brincos que a mãe o fazia usar. Ao ser desafiado pelo psiquiatra sobre o fato de ter uma memória espetacular, pois “afinal ninguém consegue lembrar de nada quando tinha 2 anos de idade”, Gregory

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rebateu dizendo que ele não lembrava disso, mas sua mãe o contou essa e outras histórias de quando ele era bebê que, segundo ele, confirmariam sua legitimidade como “transexual verdadeiro”. Central para a descrição do TIG é a comparação de performances e estéticas de gênero a partir de pares binários: MENINOS

MENINAS

• vestir-se com roupas de meninas ou mulheres ou improvisar esses itens a partir de materiais disponíveis

• preferem roupas de meninos e cabelos curtos

• brincar de casinha, desenhar meninas bonitas e princesas

• interesses em esportes de contato, brincadeiras rudes e jogos tradicionalmente masculinos

• demonstram pouco interesse por carrinhos ou caminhões ou outros brinquedos não-agressivos, porém estereotipicamente masculinos

• demonstram pouco interesse em bonecas ou em qualquer forma de roupas ou atividades femininas de faz-de-conta

• bonecas estereotipicamente femininas, tais como Barbie

• figuras masculinas poderosas, tais como Batman ou Super-Homem

Consoante Vergueiro (2015), “o traço da binariedade é outra importante característica da cisgeneridade”, pois “quando se considera que a leitura sobre os corpos seja capaz de, objetivamente, determinar gêneros, ela também é atravessada pela ideia de que esses corpos, se ‘normais’, terão estes gêneros definidos a partir de duas, e somente duas, alternativas: macho/ homem e fêmea/mulher” (p. 64). A partir dessa perspectiva, usar como guia diagnóstico pares opositores de atividades e estéticas esteriotipicamente generificados não só descreve o “transtorno”, mas, de forma mais ampla, performativamente produz ideais de gênero que na vida social são raros. Pesquisas demonstram que até mesmo crianças cujas percepções de gênero são bastante rígidas efetuam cruzamentos (Eckert e McConnell-Ginet, 2003). Assim, o DSM não faz mais que sustentar uma idealização de cisgeneridade que não condiz com o que acontece fora do consultório médico. Após sublinhar a centralidade da infância para o diagnóstico, o DSM-IV continua seu trabalho performativo que produz práticas de cruzamento de gênero como um transtorno psiquiátrico:

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Os adultos com Transtorno de Identidade de Gênero preocupam-se com seu desejo de viver como um membro do sexo oposto. Esta preocupação pode manifestar-se como um intenso desejo de adotar o papel social do sexo oposto ou adquirir a aparência física do sexo oposto através da manipulação hormonal ou cirúrgica. Os adultos com este transtorno sentem desconforto ao serem considerados ou funcionarem, na sociedade, como um membro do sexo designado. Eles adotam em variados graus, o comportamento, roupas e maneirismos do sexo oposto. (...) A atividade sexual desses indivíduos com parceiros do mesmo sexo geralmente é limitada pelo fato de preferirem que os parceiros não vejam nem toquem seus genitais (Associação Americana de Psiquiatria, 1994:533, grifos meus).

Como esses excertos do DSM deixam claro, a construção da transexualidade como um transtorno é sedimentada pelas normas de gênero e pela matriz “reguladora altamente rígida” (Butler, 2003:45) que objetiva manter relações retilíneas e contínuas entre sexo, gênero e desejo. Está explícita na concepção do DSM-IV a premissa de que se um indivíduo possui um pênis, ele deve se engajar em atividades tidas como masculinas; se possui uma vagina, as atividades de seu interesse devem estar em consonância com o que é “estereotipicamente feminino”. Qualquer desvio dessa rota, estabelecida em última instância pela genitália, deve ser considerado um sintoma do transtorno (Bento, 2006). Nesse sentido, o DSM toma como pressuposto diagnóstico outro traço da cisgeneridade: a pré-discursividade (Vergueiro, 2015), ou seja, “o entendimento sociocultural (...) de que seja possível definir sexos-gêneros (...) a partir de critérios objetivos e de certas características corporais” (p.61), localizando “em certas partes do corpo uma determinada verdade” (p. 63) e eclipsando o intenso trabalho discursivo envolvido na construção do que conta legitimamente como sexo e como gênero60. 60

É importante observar, como o faz a bióloga Anne Fausto-Sterling (2000), que nem mesmo o sexo cromossômico ou genital é binário. Há pessoas que nascem com variações anatômicas (nem claramente um pênis, nem obviamente uma vagina). Segundo a “Intersex Society of America”, 1 em cada 2000 recém-nascidos vem com alguma forma de variação morfológica. Os cromossomos também não vêm somente como XX ou XY. Há múltiplas possibilidades: XXY, XYY, XO, XXX, entre outras. Isso tudo quer dizer que nem mesmo no nível biológico somos divididos em pares binários muito claros. Essa divisão e sua naturalização demandam um investimento discursivo intenso sobre os corpos.

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A descrição do TIG no DSM-IV inclui ainda uma seção intitulada “Características e Transtornos associados” na qual assevera que Muitos indivíduos com Transtorno da Identidade de Gênero tornam-se socialmente isolados. O isolamento e o ostracismo contribuem para a baixa autoestima e podem levar à aversão e abandono da escola. O ostracismo e a zombaria por parte dos seus pares são sequelas especialmente comuns para meninos com o transtorno. Os meninos com Transtorno da Identidade de Gênero em geral exibem maneirismos e padrão de fala acentuadamente femininos. A perturbação pode ser tão invasiva, que a vida mental de alguns indivíduos gira unicamente em torno de atividades que diminuem o sofrimento quanto ao gênero. Eles preocupam-se frequentemente com a aparência, em especial no início da transição para uma vida no papel do sexo oposto. Os relacionamentos com um ou ambos os pais também pode ser seriamente prejudicados. Alguns homens com Transtorno da Identidade de Gênero recorrem à automedicação com hormônios e podem, muito raramente, executar sua própria castração ou penectomia. Especialmente em centros urbanos, alguns homens com o transtorno podem envolver-se em prostituição, o que os coloca em alto risco de infecção com o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Tentativas de suicídio e Transtornos Relacionados a Substâncias estão habitualmente associados (Associação Americana de Psiquiatria, 1994, p. 534-535, grifos meus).

Vemos aí que quaisquer problemas relacionados com a vida social de pessoas transexuais são explicados em virtude do “transtorno”. Nas entrelinhas, o manual da APA faz uma inversão conceitual que se torna central para o cuidado em saúde transespecífico: a materialização de práticas e discursos transfóbicos, fonte principal dos problemas enfrentados por pessoas transexuais em suas vidas hodiernas (como as cenas que abrem esse capítulo ilustram), é apagada em nome do transtorno. A transfobia, assim, não existe no DSM; é o “transtorno” que causa sofrimento. Nesse cenário, o DSM-IV pontua que elas sofrem de ostracismo. No texto, esse ostracismo parece ser um problema interior e individual. Não se problematiza o fato de que o isolamento social não é necessariamente uma escolha, mas sim uma necessidade já que por terem corpos e documentos que contradizem as verdades

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hegemônicas sobre os gêneros essas pessoas estão sujeitas a tratamentos preconceituosos e violentos. Com efeito, as táticas de sobrevivência social elaboradas por pessoas transexuais são no DSM-IV consideradas como produtos do “transtorno” e não como causadas por fatores externos. Essas táticas são, para o DSM-IV, motivadas pelo fato de “a perturbação ser tão invasiva que a vida mental de alguns indivíduos gira unicamente em torno de atividades que diminuam o sofrimento quanto ao gênero” (Ibid.) e não por necessidades impostas por um contexto social altamente categorizado que não admite cruzamentos, áreas borradas e misturas na vida social. É esse contexto social que também pode “prejudicar o relacionamento com os pais”, fazê-los/as se “envolver em prostituição”, “tentar suicídio” e desenvolverem “transtornos relacionados a substâncias”, i.e., drogadição. Para o DSM-IV, muitos sujeitos transexuais são expulsos de casa por seus pais, sofrem castigos físicos, abandonam a escola e alguns são obrigados a se prostituir devido ao “transtorno”; o manual não leva em consideração os efeitos materiais de discursos que mantêm a matriz de inteligibilidade de gênero e que os produz como seres ininteligíveis socialmente. A partir dessa análise textual, vemos que o DSM institucionaliza práticas e estéticas cisgênero como pressuposto diagnóstico e de “cuidado” e, a partir disso, naturaliza discursos transfóbicos nos quais o sofrimento psíquico e social que aflige pessoas trans deriva de seu “transtorno” e não de uma estrutura social hostil para suas vivências de transformação de gênero. Nesse contexto, o DSM confere aos profissionais de saúde do SUS uma função avaliativa: deve-se aferir se ususários e usuárias são de fato transexuais. Central para essa avaliação são os esteriótipos de gênero que o DSM produz a partir da binariedade, pré-discursividade e permanência de um ideal de cisgeneridade que guia o olhar clínico (Foucault, 2001) de profissionais da saúde ainda hoje quando já se despatologizou a transexualidade, pelo menos nos manuais diagnóticos. É esse olhar clínico que a próxima seção analisa com base nas atribuições de aparência (Speer e Green, 2007) feitas pelo psiquiatra do PAIST para avaliar a autenticidade dos usuários e usuárias do serviço. Discuto como essas avaliações reatualizam as estratégias de institucionalização da cisgeneridade como pressuposto diagnóstico presentes no DSM e como usuários trans do PAIST se movimentam “dentro do campo

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de visão” dos profissionais de saúde (Certeau, 2005, p. 100), criativamente confeccionando táticas de sobrevivência à transfobia institucionalizada do SUS através da simulação de práticas e estéticas com as quais não necessariamente se engajam fora do hospital. Para tanto, analiso duas consultas que Estela teve em 2010 com vistas a dar visibilidade a como o discurso transfóbico “performa um tipo específico de violência” (Butler, 1997, p. 9) que, não obstante, oferece à usuária os termos para sua contestação.

Simulação cis como tática de sobrevivência Quando de seu encontro com Fernando, o psiquiatra do PAIST, em 30 de março de 2010, Estela se apresentou vestindo roupas que chamava de unissex: calça larga verde musgo, camiseta preta larga e tênis de corrida. Também não deixara os cabelos crescer, pois temia represálias na escola. Embora Estela não usasse roupas ou adornos convencionalmente femininos, sua gesticulação e voz, em minha interpretação, eram muito femininos. Contudo, apesar de se autoidentificar como transexual, sua performance de gênero não cumpria os requisitos diagnósticos do DSM e, de fato, desafiava, em vários níveis, os pressupostos de pré-discursividade, binariedade e permanência (Vergueiro, 2015) que guiam o DSM e a cisnormatividade em geral. Defrontado com as rupturas que a estética de Estela provocava no modelo de autenticidade que o DSM produz para a transexualidade, Fernando se engaja em avaliações de sua aparência e reatualiza discursos transfóbicos e homofóbicos. No excerto abaixo, temos a primeira sequência diagnóstica proposta por Fernando. Tal sequência é construída com base em uma crítica que o psiquiatra faz à aparência de Estela, que havia ido ao consultório vestindo roupas, na interpretação do médico, convencionalmente masculinas. Vemos aí a estética cisgênero que sustenta o DSM funcionando a todo vapor, por assim dizer. O psiquiatra repetidamente indaga o porquê de Estela ainda não se vestir com roupas de mulher, afirmando que ela “tem um jeito feminino mas com aparência masculina”, o que faz com que ela pareça, em sua avaliação, mais um homossexual efeminado do que uma mulher transexual.

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Estela afirma que não usa roupas femininas, pois está esperando os efeitos da hormonoterapia para se sentir mais confortável; ela está claramente nervosa e tenta convencer o psiquiatra de que satisfaz os quesitos para ser diagnosticada como um “transexual verdadeiro” 61. Excerto 162 285 ESTELA: 286 287 FERNANDO: 288 289 290 291 ESTELA: 292 FERNANDO: 293 294 ESTELA: 295 FERNANDO: 296 297 ESTELA: 298 FERNANDO: 299 300 301 ESTELA: 302 FERNANDO: 303 ESTELA: 304 FERNANDO: 305 306 ESTELA: 307 FERNANDO: 308 ESTELA: 309 FERNANDO: 310 311

não::: o::: sabia sim, >pode falá< desculpa (0.3) Estela >com essa aparência masculinamuito femi↑nina?< ↑ta>ta muito femi↑nina< a sua gesticulação↓ [você ta-] [no::ssa] mas eu nunca tomei hormônio, mas cê- ↑não:: não é- não é na aparência [física] [não sim↓] entendi, entendi= na gesticulação, >maneira de falá< (XXX) eu posso até usá uma palavra vulgar > posso usá?acham que vo[cê é vi↑adomuito femi↑nina?posso usá?acho que eu falei até lembro que o doutor Fernando não gostô< eu só quero começá - é:: eu só vô me senti se↑gura de me ves↑ti é::: de menina é: quané:: começá a to- >começá a tomá os hormônios< pra::: [>não chamá muita atenção= [então olha quanta coisa= =não ficá muito-pra não ficá ambíguoa gente vai fazê do gel ta?curti do lenço< a::(hh)i: obrigada:: tava em dúvida se - se usava esse. acho muito colorido >cê acha que combi[na?n a r u a>por favor não diz nada tá