Nietzsche na Alemanha
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Nietzsche na Alema ha

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Scarlett Marton (org.)

NIETZSCHE NA ALEMANHA

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discurso editorial

São Paulo

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Ijuí 2005

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Copyright © Discurso Editorial & Editora UNIJUÍ, 2005

·Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem a autorização prévia da editora.

Projeto editorial: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP Direção editorial: Milton Meira do Nascimento Projeto gráfico e editoração: Guilherme Rodrigues Neto _Capa: Camila Mesquita Ilustração da capa: Caspar David Friedrich - Der Watzmann, 1825 Revisão: Luís Rubira Tiragem: 1.000 exemplares

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Netzsche na Alemanha / Scarlett Marton (org.). São Paulo: Discurso Editorial ; ljuí, RS : EditorJ. Unijuí, 2005. - (Coleção sendas e veredas. Série recepção) ISBN: 85-86590-60-5 1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 - crítica e interpretação 1. Marton, Scarlell li. Série. 05-5036

CDD-193 lndices para catálogo sistemático: 1. Nietzsche : Filosofia alemã

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discurso editorial

Editora CJNIJCJI

Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 (sala 1033) 05508-900 - São Paulo - SP Telefone: ( 11) 3814-5383 Telefax: (11) 3034-2733

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DEDALUS • Acervo - FFLCH-GE 1 1

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Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) agradeço o apoio com que vem contemplando a minha pesquisa.

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SUMÁRIO

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DESFIGURAÇÕES E DESVIOS ScARLETT MARTON

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O DESAFIO NIETZSCHE WüLFGANG MüLLER-LAUTER

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DÉCADENCE ARTÍSTICA ENQUANTO DÉCADENCE FISIOLÓGICA WoLFGANG MüLLER-LAUTER

103

A CONCEPÇÃO BÁSICA DE ZARATUSTRA

JÔRG 5ALAQUARDA 131

ZARATUSTRA E O ASNO

JôRG SALAQUARDA

179

VERDADE E INTERPRETAÇÃO GüNTER ABEL

199

CONSCIÊNCIA - LINGUAGEM - NATUREZA A FILOSOFIA DA MENTE EM NIETZSCHE GüNTER ABEL

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NOTA LIMINAR A Coleção Sendas & Veredas, assim como os Cadernos Nietzsche, adota a convenção proposta pela edição Colli/ Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos ong1na1s.

1. Siglas dos textos publicados por Nietzsche: 1. 1. Textos editados pelo próprio Nietzsche: GT /NT - Die Geburt der Tragodie ( O nascimento da tragédi,1) DS/Co. Ext. I - Unzeitgemiisse Betrachtungen. Erstes Stück: David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller ( Considerações extemporâneas L David Strauss, o devoto e o escritor) HL/Co. Ext. II - Unzeitgemiisse Betrachtungen. Zweites Stück: Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben ( Considerações extemporâneas 11: Da utilidade e desvantagem da história para a vida) SE/Co. Ext. III - Unzeitgemiisse Betrachtu ngen. Drittes Stück: Schopenhauer ais Erzieher ( Considerações extemporâneas III- Schopenhauer como educador) WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemiisse Betrachtungen. Viertes Stück: Richard Wagner in Bayreuth ( Considerações extemporâneas IV: Richard ~gner em Bayreuth) MA 1/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1)) MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2)) VM/0S - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea de opiniões e sentenças)

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ScARLETT MARTON (ORG.)

WS/AS _ Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O andarilho e sua sombra) MIA - Morgenrote (Aurora) IM/IM - Idyllen aus Messina (ldílios de Messina) FW/GC - Die frohliche Wissenschaft (A gaia Ciência) ·za/ZA -Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra) JGB/BM - Jenseits von Gut und Bose (Para além de bem e mal) GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral) WA/CW - Der Fall 'Wtgner (O caso 'Wtgner) , GD/Cl - Gotzen-Diimmerung (Creptísculo dos Ido/os) NW/NW - Nietzsche contra Wágner I. 2. Textos preparados por Nietzsche para edição: AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)

EH/EH - Ecce homo DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)

'n. Siglas dos escritos inéditos inacabados: GMD!DM-Das griechische Musikdrama (O drama musical grego) ST/ST - Socrates tmd die Tragodie (Sócrates e a Tragédia) DWND - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca do mundo) GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trdgico) BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) CV/CP - FünfVorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefdcios a cinco livros não escritos) PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trdgica dos gregos) WL/VM - Über 'Wthrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)

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NOTA LIMINAR

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EDIÇÕES:

Salvo indicação contrária, utilizamos as edições das obras do filósofo e de sua correspondência organizadas por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Wérke. Kritische Studienausgabe (KSA). Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967/ 1978, 15V. Samtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB). Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1975/ 1984, 8V. Sempre que possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche - Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 2ª. ed., 1978 (Coleção "Os Pensadores").

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DESFIGURAÇÕES E DESVIOS

Acerca da recepção de Nietzsche na Alemanha

SCARLETT MARTON*

Na Alemanha, talvez mais do que em qualquer outra parte, Nietzsche foi objeto de múltiplas leituras - e de múltiplas apropriações. É certo que seus escritos repercutiram nas mais diversas áreas: na literatura, nas artes, na psicanálise, na política; na filosofia. Certo é, também, que das mais variadas perspectivas se examinou o impacto por eles causado nos últimos· cem anos e dos mais diferentes pontos de vista se escreveu a história da sua recepção. Minha intenção, aqui, não é a de propor um estudo exaustivo da recepção de Nietzsche na Alemanha. Não seria o momento nem o lugar. Meu intuito consiste apenas, na apresentação deste volume, em delinear horizontes, delimitar terntonos, com vistas a situar os ensaios que se seguem. •

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Professora Titular de Filosofia Contemporânea do D epartamento de Filosofia da USP.

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ScARLETT MARTON

"Quem acreditou ter entendido algo de mim, havia ajustado algo de mim à sua imagem - não raro um oposto de mim, por exemplo, um 'idealista'; quem não entendeu nada de mim, negava que eu em geral entrasse em consideração" (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, § 1). Já em sua autobiogr~fia, ao queixar-se do "não-entendimento" dos seus escritos, Nietzsche se mostra indignado com seus leitores suíços e alemães. Heinrich von Stein confessa-lhe não compre1 ender uma palavra de Assim falava Zaratustra; Carl Spitteler, que considera o livro um "exercício superior de estilo", desmerece o seu conteúdo;2 um professor da Universidade de Berlim sugere-lhe recorrer a outra forma literária. A propósito de Para além de Bem e Mal, JosefViktor Widmann, num

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Em outra passagem, Nietzsche manifesta grande apreço por Heinrich von Stein, "morto imperdoavelmente jovem", referindo-se à visita de três dias que ele lhe fizera em Sils Maria, entre 26 e 28 de agosto de 1884. Diz ele: "Este homem excelente, que com roda a impetuosa simplicidade de um junker prussiano mergulhara no lamaçal de Wagner (- e, além disso, ainda no de Dühring!), foi nesses três dias como que transformado por um vendaval de liberdade, como alguém que de repente é alçado à sua altura e recebe asas" (EH/EH, Por que sou tão sábio, § 4). O jovem poeta suíço publicou um ensaio intitulado "Friedrich Nietzsche através de suas obras" na revista Bund de Berna, em primeiro de janeiro de 1888 (Cf. SPITTELER, Carl. Meine Beziehungen mit Nietzsche. Munique: 1908). Embora de início Nietzsche esteja satisfeito com o texto, logo se mostra contrariado (cf. carta de 04 de fevereiro de 1888 e cartão postal de 13 de fevereiro do mesmo ano a JosefVikror Widmann; e carta ao próprio Spitteler de 1O de fevereiro de 1888). Meses m ais tarde, p~rece entusiasmar-se com a resenha elogiosa do Caso W'ágner, que Carl Spmeler faz aparecer na revista Bund, em 8 de novembro (cf carta a Heinrich Koselitz de 13 de novembro de 1888 e cartão postal a Spitteler de 19 de novembro do mesmo ano).

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artigo intitulado "O Perigoso Livro de Nietzsche,, ,3 elogia sua coragem em esforçar-se por suprimir todos os sentimentos decentes. Mais grave, porém, é a posição que o jornal prussiano Nationalzeitung toma a respeito desse seu livro, pois chega a entendê-lo "com toda seriedade, como um 'sinal dos tempos', como a bem genuína filosofia junker, que só não é a do Kreuzzeitung 4 porque esse jornal não tem tanta coragem" (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, § 1). Tudo se passa como se os seus escritos, quando não inteiramente ignorados, sempre gerassem controvérsias. Desde logo, na Alemanha, O Nascimento da Tragédia, embora acolhido nos círculos wagnerianos, não deixou de constranger os filólogos e ensejar severas críticas. Ritschl, o antigo mestre que, em seus anos de formação, Nietzsche seguira de Bonn a Leipzig, não quis pronunciar-se a seu propósito. 5 3 O escritor e jornalista publicou seu artigo no número da revista

Bund

de 16-17 de setembro de 1886 (cf. a propósito carta a Widmann de 28 de junho de 1888). No Crepiísculo dos Ídolos, Nietzsche também se refere a esse episódio: "Um suíço, redator da revista Bund, não sem exprimir respeito pela coragem de tal façanha, foi tão longe a ponto de 'compreender' o sentido de minha obra como sendo o de propor a supressão de todos os sentimentos decentes" (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, § 37). 1

A esse propósito, vale lembrar o comentário de Rubens Rodrigues Torres Filho: "Junker é, bem especificamente, o aristocrata rural prussiano, em ascensão na época, com seus valores nacionalistas e reacionários. O jornal Kreuzzeitung, porta-voz de suas reivindicações, era o adversário político do Nationalzeitung, também prussiano, e burguês, que identifica Nietzsche com o inimigo" (cf. NIETZSCHE. Obras incompletas. São Paulo: Abril Cultural, 2ª ed., 1978 (Coleção "Os Pensadores"), p. 376, nota 6).

5 Tanto

é que Nietzsche comenta em carta de 28 de janeiro de 1872 a

Erwin Rohde: "Em Leipzig, a irritação deve reinar outra vez. De lá ninguém me escreve uma palavrinha sequer. Nem mesmo Ritschl".

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Wilamowitz-Mõllendorf desqualificou a obra, julgando-a demasiado literária e imaginativa. 6 Foram apenas Erwin Rohde7 e Richard Wagner8 que, então, se manifestaram em sua defesa. A Primeira Consideração Extemporânea teve alguma repercussão, com artigos e resenhas publicados nos jornais de Augsburgo e Leipzig; o orientalista Ewald de Gõttingen, o teólogo Bruno Bauer e o historiador Karl Hillebrand aprovaram a verve do jovem polemista. Mas a Segunda e a Terceira passaram quase desapercebidas e Quarta, Richard 'Wágner em Bayreuth, foi festejada apenas pelos que se achavam ligados ao compositor. Humano, demasiado Humano e os dois apêndices, Miscelânea de Opiniões e Sentenças e O Andarilho e sua Sombra, como Aurora e A Gaia Ciência, só encontraram resposta em cartas de amigos - entusiasmadas, embaraçadas, consternadas. Assim falava Zaratustra - que, de seus livros, virá a ser o mais vendido - teve de enfrentar grandes dificuldades para ser publicado. A primeira parte esperou meses até ser lançada,

a

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O helenista publicou no final de maio de 1872 um panfleto intitulado ''A Filologia do Futuro, réplica a Friedrich Nietzsche", em que se opôs ao Nascimento da Tragédia por razões puramente científicas.

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O amigo, que, em 26 de maio de 1872, fizera uma resenha elogiosa do Nascimento da Tragédia na Gazeta da Alemanha do Norte (Norddeutschen Affgemeinen Zeitung), conseguiu, depois de algumas tentativas, publicar em outubro do mesmo ano resposta meticulosa e séria ao panfleto de Wilamowitz-Mollendorf, colocando-se enquanto filólogo e profundo conhecedor do helenismo.

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O compositor replicou ao panfleto de Wilamowitz-Mollendorf com uma "carta aberta" a Nietzsche, publicada em 23 de junho de 1872 na

Gazeta da Alemanha do Norte (Norddeutschen Affgemeinen Zeitung), em que acusava a filologia e a cerveja de serem prejudiciais ao espírito alemão.

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pois o editor Schmeitzner cumpria sem pressa o contrato com um escritor mal sucedido, dando prioridade à impressão de cânticos religiosos e brochuras anti-semitas; a segunda e a terceira partes, depois de muita insistência, foram impressas juntas; e a quarta, categoricamente recusada pela casa editorial, teve uma tiragem de quarenta exemplares custeada pelo autor. Sem alternativa; este assumiu, desde então, todas as despesas com publicações. Não foi, por certo, da parte dos alemães que vieram a Nietzsche os primeiros sinais de reconhecimento. Para além de Bem e Mal despertou o interesse de Hippolyte Taine em Paris; a Genealogia da Moral atraiu a atenção de Georg Brandes que, entusiasmado, decidiu difundir -as suas idéias. 9 Às mãos do filósofo, chegaram as primeiras cartas de admiradores: Karl Knortz, de Nova York, e a princesa Anna Tenischeff, de São Petersburgo. 10 Nos últimos meses de 1888, ele enviava a amigos exemplares do Crepúsculo dos Ídolos. Também fazia planos e estabelecia contatos para assegurar a tradução de seus escritos. Queria editar o Ecce Homo em 1889 e, daí a dois anos, lançar O Anticristo em sete línguas simultaneamente. Taine sugeria-lhe tradutores para a edição francesa do

9

A correspondência entre Nietzsche e Brandes iniciou-se em novembro de 1887. Em fevereiro de 1888, Brandes fez uma série de conferências sobre a filosofia de Nietzsche na Universidade de Copenhague. Cf. a propósito carta de Nietzsche a Malwida von Meysenbug do final de julho de 1888: "O brilhante Dr. Georg Brandes atreveu-se a dar um longo ciclo de conferências a meu respeito na Universidade de Copenhague! E com um esplêndido sucesso! Mais de 300 ouvintes regulares! E uma grande ovação no final!"

°Cf. a esse respeito carta de Nietzsche a Heinrich Koselitz de 09 de de-

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zembro de 1888 .

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Crepiíscu!o dos Ído!os; 11 Brandes relatava-lhe o sucesso das conferências sobre sua filosofia na Universidade de Copenhague; Strindberg participava-lhe a emoção causada pela virulência de suas palavras e coragem de suas idéias. 12 Contudo, na Alemanha, os wagnerianos, que bem acolheram o seu primeiro livro, irão abominar um dos seus últimos. Lançado no final de setembro de 1888, O Caso Wágner provoca reações imediatas. Malwida von Meysenbug mostrase tão indignada, que, à sua revolta, Nietzsche responde com cartas agressivas que levam à ruptura da amizade. 13 Ferdinand Avenarius, diretor de redação da revista Kunstwart, publica um comentário, em que deplora o caráter panfletário e jor-

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12

13

Na carta de 14 de dezembro de 1888, o crítico de arte francês desculpa-se por não assumir a tradução do livro: "Não conheço bem a língua para sentir de imediato todas as suas audácias e finezas". Em sua autobiografia, Nietzsche a ele se refere, retomando essas suas palavras: "Em Paris mesmo estão assombrados com toutes mes audaces et finesses - a expressão· é de Monsieur Taine" (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons,§ 2). Ao receber A Genealogia da Moral, o escritor sueco respondeu-lhe: "Sem sombra de dúvida, o senhor deu à humanidade o livro mais profundo que ela possui e, o que não é o de menos, teve a coragem, os recursos calvez, de jogar na cara da plebe essas palavras soberbas! E eu lhe agradeço! ... (... )Termino rodas as cartas aos meus amigos: leiam Nietzsche! É a minha Carthago defenda est!'

Cf. carta de 18 de outubro de 1888, em que Nietzsche escreve: "Não há coisa alguma, sobre a qual eu admita oposição. Sou, em questões de décadence, a mais alta instância que agora existe sobre a Terra"; cf. ainda carta de 20 de outubro, em que ele declara: "A senhora nunca compreendeu uma palavra minha, nunca compreendeu um escrito meu: não há remédio; a esse respeito temos de ter clareza entre nós - também nesse sentido o Caso Wágner é para mim ainda um caso feliz (ein

G!iicksfa!~ ".

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nalístico do texto. 14 Após breve correspondência, 15 Nietzsche faz com que torne públicas, em sua revista, duas cartas que lhe dirigira. Termina uma delas com uma lista de passagens dos seus livros, que atestam não ser recente a sua mudança de posição em face de Wagner. 16 Mas é Richard Pohl, um dos primeiros redatores das Folhas de Bayreuth (Bayreuther Bliitter ), 17 que se opõe com maior veemência ao Caso ~gner. Em defesa do compositor, publica ''O Caso Nietzsche" no Semanário Musical (Musikalisches Wochenb!att), 18 revista de Leipzig sob a responsabilidade de Ernst Wilhelm Fritsch. 19 É contra ele que o filósofo desfere o golpe em sua autobiografia: "Penso que conheço os wagnerianos; 'vivi' três gerações deles, do falecido ~rende!, 20

14 O comentário segue-se à resenha extremamente favorável que Heinrich

Koselitz faz do Caso Wágner. 15 Cf. cartas d'e 1O de dezembro de 1888. 16

Trata-se da carta nº 1184. Assim ocorre a Nietzsche elaborar outro livro sobre o . compositor. Nietzsche contra Wágner é uma coletânea de textos extraídos das suas próprias obras: a prova de que, pelo menos, desde 1877, são antípodas.

17

Esta revista, de circulação entre os wagnerianos, funcionou como canal de um pangermanismo místico, onde as idéias de Gobineau sobre a desigualdade das raças se achavam mescladas à doutrina cristã.

18

O artigo aparece em 25 de outubro de 1888.

19

Desde o verão de 1886, Fritsch havia cuidado das edições dos livros de Nietzsche, do Nascimento da Tragédia à terceira parte de Assim falava Z aratustra. Revoltado, o filósofo escreve-lhe tentando recuperar os direitos de suas obras que lhe cedera (cf. cartas a Fritsch de 18, 20 e 25 de novembro de 1888). Chega até a recorrer a Paul Deussen em carta de 26 de novembro de 1888, pedindo-lhe que lhe avance a soma necessária, cerca de dez mil marcos, para concluir a negociação.

°Karl Franz Brendel, morto em 1868, foi co-fundador da Affgemeiner

2

deutscher Musikverein (Liga Musical Alemã).

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que confundia Wagner com Hegel, aos 'idealistas' das Folhas de Bayreuth, que confundem Wagner com eles mesmos - ouvi toda espécie de confissões de 'belas almas' sobre Wagner. Meu reino por uma palavra sensata! - Em verdade, uma horripilante companhia! Nohl, 21 Pohl, Kohl2 2 com graça in infinitum!" (EH/EH, Humano, demasiado humano, § 2). Certo de que ninguém pode pintar uma imagem sua que lhe faça justiça, Nietzsche previne-se. De desfigurações e acusações, eventuais ou efetivas, defende-se. Não lhe foi dado, porém, defender-se das distorções de seus textos feitas pela sua irmã. Não lhe foi dado prevenir-se contra as apropriações de suas idéias por ela realizadas. Em 1901, Elizabeth Forster-Nietzsche publicou uma obra a que deu o nome de Vontade de Potência. A partir de apontamentos que o filósofo deixou e de um plano que ele seguiu durante algum tempo, reuniu 483 fragmentos póstumos redigidos entre o outono de 1887 e os primeiros dias de janeiro de 1889. Escolheu-os a dedo no caos das notas escritas durante meses e organizou-os sem respeitar sequer a ordem cronológica. Assim, com a ajuda de Heinrich Kõselitz, compilou o que apresentou como a "obra filosófica capital" de Nietzsche. Para legitimar sua empresa, a irmã do filósofo não hesitou em falsificar cartas por ele dirigidas, na sua maioria, à amiga Malwida von Meysenbug; obteve os originais, compôs o

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Karl Friedrich Ludwig Nohl é o autor de uma biografia de Wagner, que Nietzsche lê no verão de 1888.

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O termo, que significa literalmente "couve", "repolho", é empregado também no sentido de "bobagem". Já na carta a Overbeck de 22 de dezembro de 1884, Nietzsche escrevia: "Não tenho vontade alguma de deixar crescer ao meu redor uma nova espécie de Nohl, Pohl e 'Kohl'".

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DESFIGURAÇÓES E DESVIOS

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texto a partir deles e depois os destruiu. Apresentando-se como destinatária das missivas, pretendia impor imagem de credibilidade junto aos editores e amigos do filósofo; queria levar a crer que conhecia as intenções dele melhor que ninguém. Espírito empreendedor, Elizabeth empenhou-se na difusão do nome de Nietzsche pela imprensa; entre 1893 e 1900, fez dele o ídolo das revistas. De posse da custódia de seus escritos, elaborou uma nova edição de seus livros, supervisionou as publicações, insistiu no lançamento de edições baratas. Leiloou os manuscritos das conferências "Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino", vendendo-os para um jornal popular em dezembro de 1893; autorizou a publicação de O Anticristo em setembro de 1895; organizou uma antologia de poemas lançada antes do Natal de 1897. Graças ao capital proveniente dos direitos autorais e a algumas doações, adquiriu uma propriedade em Weimar e nela instalou os Arquivos Nietzsche, onde recebia personalidades do mundo cultural e político. Mais tarde, permitiu e incentivou a utilização da filosofia nietzschiana pelo Terceiro Reich e, em 1935, foi enterrada com as honras nacionais. A respeito do filósofo, Elizabeth Fõrster-Nietzsche escreveu ensaios, artigos e uma biografia em três volumes. Para a primeira edição da Vontade de Potência, redigiu longa introdução. Nela afirmava que o livro constituía a principal obra em prosa do irmão; infelizmente não fora concluído ou talvez tivesse sido, perdendo-se o manuscrito por ocasião da crise de Turim. Em 1906, lançou a segunda edição, publicada por Otto Weiss· e também conhecida como "edição canônica''. Nela, reuniu 1067 fragmentos póstumos, e mais uma vez não respeitou a ordem cronológica nem explicitou os critérios de seleção. Nos manuscritos de Nietzsche, a intenção de escrever um livro intitulado Vontade de Potência surge por volta de

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agosto de 1885; é apenas um título ao lado de outros, um projeto literário dentre vários. No verão do ano seguinte, um plano de trabalho intitulado "Vontade de potêncià' traz como subtítulo "Ensaio de uma transvaloração de todos os valores. Em 4 livros", disposição que se mantém até 26 de agosto de 1888. A partir daí, o título "Vontade de potência" desaparece, cedendo lugar a "Transvaloração de todos os valores". 23 Prevendo ainda a publicação de uma obra composta de quatro livros, o filósofo elabora este projeto: "Transvaloração de todos os valores. Primeiro livro: O anticristo - ensaio de uma crítica do cristianismo. Segundo livro: O espírito livre - crítica da filosofia como movimento niilista. Terceiro livro: O imoralista - crítica da mais fatal espécie de ignorância: a moral. Quarto livro: Dioniso - filosofia do eterno retorno". Mas chega a redigir apenas uma das quatro partes. Na carta a Georg Brandes de 20 de novembro do mesmo ano, passa a considerar O Anticristo não o primeiro livro, mas o conjunto da "Transvaloração de todos os valores"; essa idéia reaparece em outras cartas. Portanto, é por mera convenção que se dá o nome de Vontade de Potência aos fragmentos póstumos de 1882 a 1888. Questionável sob vários aspectos, a obra que Elizabeth Forster-Nietzsche publicou como Vontade de Potência serviu, até a década de 50, enquanto instrumento de trabalho para os estudiosos. Contudo, depois da Segunda Grande Guerra, Karl Schlechta denunciou o procedimento da irrriã do filósofo e desqualificou o livro por ela inventado. Baseando-se

23

A esse propósito, comenta Mazzino Montinari: "Assim terminam, na vigília do próprio fim de Nietzsche, as vicissitudes do projeto literário da Vontade de potência" (Su Nietzsche. Milão: Editori Riuniti, 1981, p. 65).

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em pesquisas feitas nos Arquivos Nietzsche em Weimar, constatou que não existia a Vontade de Potência, a "obra capital"; tudo o que havia eram papéis póstumos. 24 Não coube a ele, porém, publicar na íntegra os escritos do filósofo; na edição em três volumes que levou a termo, limitou-se a divulgar pequeno número de inéditos. E, ao lado de alguns outros textos, nela incluiu justamente os fragmentos póstumos reunidos na edição de 1906 da Vontade de Potência. É bem verdade que procurou estabelecer a ordem cronológica em que teriam sido redigidos; mas não alcançou grande êxito, pois, ao que consta, não teve acesso aos manuscritos originais. Se o grande mérito da edição que Schlechta organizou residiu em denunciar a lenda de que a Vontade de Potência constituiria a "obra filosófica capital" de Nietzsche, seu maior defeito - apesar de não ser essa a intenção do editor - consistiu em reforçar a imagem do filósofo que esse inesmo livro divulgou. Veio a público, por fim, a edição crítica das obras completas de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Fruto de um trabalho de fôlego, desenvolvido ao longo de anos com extremo cuidado e rigor, ela contou com a colaboração decisiva de Wolfgang Müller-Lauter. De início parceiro de Montinari nesse empreendimento, ele acabou por substituí-lo, depois de sua morre em 1986, passando a coar-

24

Foi, então, incisivo: "basta folhear esse conjunto para ver que os textos reunidos na (Vontade de potência), embora póstumos, despertaram in-

teresse considerável. Deve-se refletir ainda mais sobre o fato, quando se percebe que a maior parte desses textos impressos sem a autorização de Nietzsche não concorda com a textura dos manuscritos: a Vontade de potência não é uma obra póstuma" ("A lenda e seus amigos". ln: Le Cas Nietzsche. Trad. André Coeuroy. Paris: Gallimard, 1960, p. 123).

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denar e dirigir as tarefas editoriais relativas aos póstumos e às cartas de Nietzsche. 25 Imprescindível para a pesquisa internacional acerca da obra do filósofo, esta edição crítica acumula méritos inquestionáveis: tornou acessível aos estudiosos a totalidade dos escritos de Nietzsche; buscou recuperar os textos de acordo com os manuscritos originais ordenados cronologicamente; procurou depurar das deformações e falsificações que sofreram a obra publicada, as anotações inéditas e a correspondência; incluiu imenso aparato histórico-filológico de valor inestimável. Contribuiu assim para elucidar graves equívocos gerados pelas edições que a antecederam, equívocos esses que concorreram p~ra as diferentes apropriações ideológicas das idéias do autor de Zaratustra. O fato é que, logo depois da crise de Turim, momento em que Nietzsche interrompeu as suas atividades intelectuais, a súbita repercussão de sua obra trouxe em seu bojo o exorcismo de sua filosofia. Nos "círculos nietzschianos", que começaram a proliferar em toda Alemanha na passagem do século XIX ao XX, tudo se passava como se a crise em que ele mergulhara o envolvesse numa aura de mistério, conferindo a afirmações suas o peso das proclamações de um profeta. Num primeiro momento, o interesse que despertou a sua biografia e a ênfase que se atribuiu a seu estilo atenuaram a força de

25

Não se detém af a atividade editorial de Müller-Lauter. Além de responder durante algum tempo enquanto diretor de Theologia Viatorurn, um dos mais importantes periódicos na área de teologia filosófica e filosofia da religião, fundou em 1972 os Nietzsche Stuclien. Até bem recentemente, foi um dos editores responsáveis dessa publicação anual, que, por sua qualidade e rigor, conquistou um lugar ímpar na cena filosófica mundial.

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suas idéias. Episódios de sua vida - como a estada em clínicas psiquiátricas - atraíam a atenção e aguçavam a curiosidade. Genialidade e loucura eram tidos por termos indissociáveis. Era na literatura mais do que em qualquer outro campo que, então, se exercia a influência de Nietzsche. Nele se inspiraram autores neo-românticos, impressionistas, naturalistas e expressionistas menos conhecidos e, também, escritores de renome como Stefan George, Thomas Mann, Ernst Jünger, Heinrich Mann e, mais recentemente, Hermann Hesse. Muitos partiam do princípio de que Nietzsche não elaborou um programa, mas criou uma atmosfera: o importante era respirar o ar de seus escritos. Então, apreciavam, em seus textos, a sonoridade pura e cristalina das palavras, a correspondência exata entre nuanças de sons e sentidos; festejavam o encanto produzido por sua linguagem; nele celebravam, enfim, a nova perfeição da língua alemã. E, por vê-lo sobretudo como um fino estilista, abandonavam quase por completo o exame de suas idéias. Entre 1890 e 1920, biografia e estilo ficaram em primeiro plano; com os anos, porém, começaram a surgir as mais diversas leituras da filosofia de Nietzsche. Alguns tentaram esclarecer os textos partindo de uma abordagem psicológica. Na Alemanha, Lou Andreas-Salomé procurou entender as possíveis contradições neles presentes, como manifestação de conflitos pessoais; 26 Hans Wolff percebeu as idéias do filósofo

26

Cf. ANDRÉAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich Nietzsche in seinen Werken . Frankfurt am Main: lnsel Verlag, 1983; em português, Nietzsche em suas obras. São Paulo: Brasiliense, 1992. O propósito do livro é esclarecer o pensador através do homem; o pressuposto de que parte é o de que, em Nietzsche, obra e biografia coincidem.

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como uma "biografia involuntária de sua alma,,. 27 Outros, apoiando-se na psicanálise, diagnosticaram seu pensamento como expressão de uma personalidade neurótica. Na Suíça, Carl Gustav Jung encarou a doutrina da vontade de potência como tradução filosófica do jogo de seus mecanismos inconscientes;28 Gerhard Adler tomou as teses da morte de Deus e do surgimento do além-do-homem como o ponto de chegada de um processo que remontava às origens da consciência moderna. 29 E multiplicaram-se as interpretações de suas idéias na Alemanha, assim como as apropriações de caráter ideológico que delas se fizeram. Vale lembrar que, por ocasião da Primeira Grande Guerra, Assim falava Zaratustra, verdadeira Bíblia, acompanhava os voluntários alemães que iam para o front. Tornara-se um livro da moda, assim como se tornara da moda cultuar o além-do-homem. Com o final da guerra e face às seqüelas que ela deixou, tal atitude se diluiu; não se procurava mais viver de acordo com as idéias de Nietzsche. •Pouco mais de uma década depois, ideólogos dele fizeram um dos pilares do nazismo. Nessa direção, grande foi o empenho de Alfred Baumler. Antes de aderir ao nacional-socialismo, Baumler se considerava nietzschiano. Tendo participado da queima de livros "não alemães,, prornovida ·pelos nazistas, foi por eles

27

Cf. WOLFF, Hans. Friedrich Nietzsche. Der Weg zum Nichts. Berna: A. Francke Verlag, 1956. O autor procura fazer ver como o empenho de Nietzsche em conhecer condenou-o ao niilismo.

28

Cf. JUNG, Carl Gustav. Über die Psychologie des Un bewussten. Zurique: Rasher Verlag, 1951.

29

Cf. ADLER, Gerh ard. Études de psychologie jungienne. Genebra: Librairie de l'Université, 1957. Consagra uma parte do trabalho ao esclarecimento de idéias de Nietzsche, a partir de teses de Jung.

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chamado para ?cup_ar a recém-fu?dada cátedra de Pedagogia Política da Un1vers1dade de Berlim e não deixou de contribuir para "a fiscalização da formação e educação do Partido Nacional-socialista". No início dos anos trinta, professor de filosofia, publicou duas coletâneas de textos de Nietzsche3° extraídos da edição canônica da Vontade de Potência. Em seguida, lançou a sua interpretação do pensamento nietzschiano;31 nela buscava empreender a "nordificação" do autor de Zaratustra; sua politização extrema enquanto pensador germânico. 32 À imagem nacional-socialista de Nietzsche forjada no Terceiro Reich veio contrapor-se uma imagem marxista. Para tanto, em muito concorreu o trabalho de Georg Lukács. Discordando da tentativa de sistematização do pensamento nietzschiano operada por Baumler, ele pretendeu explicar as colocações do filósofo como resultantes de determinada posição ideológica, que vinha em defesa da burguesia imperialista na Alemanha. Recorrendo à sociologia, defendeu a posição de que, apesar de suas idéias serem nebulosas, suas afirmações confusas e sua reflexão eivada de contradições, o conteúdo social expresso em seu pensamento a ele garantia coesão. E esse conteúdo consistia justamente na luta contra o socialismo. Não foi por acaso que seu livro, A Destruição

30

Trata-se de Nietzsches Philosophie in Selbstzeugnissen. Erster Teil: Das System. Zweiter Theil: Die Krisis Europas. (A filosofia de Nietzsche a partir dos testemunhos de seu autor. Primeira parte: O sistema. Segunda parte: A crise da Europa).

31 Publicada sob

o título Nietzsche der Philosoph und der Politiker. Berlim: Reclam, 1931.

32

A esse respeito, cf. MONTINARI, Mazzino. "Interpretações nazistas". Trad. Dion Davi Macedo. ln: Cadernos Nietzsche 7 (Setembro de 1999). São Paulo: GEN, p. 55-77.

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da Razão, se tornou determinante na antiga República Democrática da Alemanha; ele contribuiu para a maneira pela qual lá passaram a encarar Nietzsche. Julgaram que seu pensamento se propunha a fazer a roda da história girar para trás; entenderam, por exemplo, que a vontade de potência e o eterno retorno do mesmo estavam na base da visão de mundo que alimentava todas as cruzadas anticomunistas. 33 Trabalhos de outra natureza surgiram na mesma época. Para os estudiosos alemães que se dedicaram a examinar a filosofia de Nietzsche, desde logo se impôs a pergunta acerca da existência ou não de um sistema em sua obra. E não por acaso. No início do século XX, era sobretudo como poeta ou, no limite, poeta-filósofo que se via o autor de Zaratustra. Foi só aos poucos que passou a haver consenso quanto à existência de uma filosofia nietzschiana; e, por muito tempo, duvidou-se de que ela pudesse comportar um sistema. Com o passar do tempo, porém, atenuou-se o encanto outrora produzido pela perfeição de sua linguagem. Alguns não hesitaram em falar do mal-estar que lhes provocavam os escritos do filósofo; outros, da sedução que ainda exerciam. No Colóquio de Cerisy, Eugen Fink34 reconheceu que sua obra literária não mais influenciava escritores de talento como outro-

33

34

, ·

..

A esse propos1to, cf. MULLER-LAUTER, Wolfgang. "O desafio Nietzsche". ln: discurso21 (1993). Trad. Comissão Editorial da revista. São Paulo: Departamento de Filosofia da USP, p. 7-29. Cf. "Nouvelle expériencc du monde chez Nietzsche". ln: Nietzsche aujourd'hui? Paris: UGE, 1973, vai. 2, p. 345-64; em português, "Nova ex~eriência ~~ mundo ~m Nietzs:he". ln: MA~TON, Scarlett (org.) Nietzsche ho1e. Trad. Milton Nascimento e Sorna Salzscein Goldberg. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 168-92.

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. h35 d . . b. ra. E Low1t a m1t1u que a em naguez provocada por suas metáforas, parábolas e aforismos pertencia ao passado. Contudo, a aversão ou o fascínio, que porventura seus textos ainda podem causar, não devem ofuscar o olhar do comentador. Atentos a essa determinação, os estudiosos adotam diversos procedimentos em relação aos textos de Nietzsche. É bem possível que suas decisões metodológicas escondam intenções; é provável até que exponham ângulos de visão. É certo que revelam o viés pelo qual o estudioso compreende o autor de Zaratustra, a maneira pela qual o intérprete apreende como o próprio Nietzsche se percebeu e se colocou. Assim é que Karl Jaspers, por exemplo, compara a obra do filósofo a um canteiro de obras: as pedras estão mais ou menos talhadas, mas a construção se acha por fazer. Eugen Fink, por sua vez, assegura que "Nietzsche mais dissimulou que publicou sua filosofia". 36 E Heidegger, de quem esta interpretação é tributária, afirma que "é nos escritos 'póstumos' que será preciso buscar a autêntica filosofia de Nietzsche". 37 Heidegger e Jaspers, embora adotem distintos ângulos de visão para abordá-la, têm um pont~ em comum: não trabalham com periodizações. E, manifestando-se contra a divisão em períodos, Eugen Fink sustenta que tal procedimento leva em conta muito mais os dados biográficos e o itinerário

35 Cf "Nietzsche et l'achevement de l'athéisme". ln: Nietzsche aujourd'hui?

Paris: UGE, 1973, vol. 2, p. 207-22; em português "Nietzsche e a completude do ateísmo". ln: MARTON, Scarlett (org.) Nietzsche hoje?Trad. Milton Nascimento e Sonia Salzscein Goldberg. São Paulo: Brasiliense, 1985,p. 140-67. 36

Nietzsches Philosophie. Stuttgart: 1960, p. 1O.

37

Nietzsche. Berlim: Gunther Neske Verlag, 1961, vol. 1, p. 17.

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intelectual do autor que seus escritos. Raoul Richter38 parece ser um dos primeiros a distinguir fases no pensamento nietzschiano: uma, de 1869 a 1881, diz respeito à obra em elaboração, e outra, de 1882 a 1888, à obra acabada. Karl Lowith, por sua vez, constata duas transformações radicais em Nietzsche: a de jovem reverente em espírito livre e a deste em mestre do eterno retorno; elas levam à divisão da obra em três períodos: o primeiro é marcado pela crença do filósofo na renovação da cultura alemã; o segundo mostra a busca de seu próprio caminho enquanto espírito livre; o terceiro apresenta a doutrina do eterno retorno. Na década de 30, vieram a público trabalhos sistemáticos de capital importância; as obras de Jaspers e Lowith, por exemplo, converteram-se em referenciais determinantes para a pesquisa das idéias do filósofo. Em 1941, Karl Lowith publicou um estudo, 39 em que tentava reinscrevê-las no quadro do pensamento alemão do século XIX, confrontando-as com as de outros pensadores, em especial, as de Hegel, dos velhos e dos jovens hegelianos. Antes disso, em 1935, ele lançara outro,40 em que se detinha no exame de uma questão central no contexto da filosofia nietzschiana: a doutrina do eterno retorno do mesmo. Em 1936, Karl Jaspers escreveu um trabalho sistemático 41 sobre a vida e obra do filósofo. No entender de Jaspers, Nie~zsche não constrói um conjunto intelectual lógico e os esboços de sistema, presen-

38 39

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Cf. Nietzsche, sein Leben und sein Werk. Leipzig: 4a ed., 1922. Cf. _Von Hegel zu Nietzsche. Zurique: Europa Verlag, 1941. Cf. Nietzsches Philosophie der ewigen Wiederkehr des Gfeichen. Hamburgo: Felix Meiner Verlag, 3' ed., 1978.

Cf. ~ietzsche - Einfiihrung in das Verstandnis seines Phifosophierens. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1950.

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tes em seus escritos, são apenas apresentações provisórias de idéias visando à exposição, conseqüências de determinada orientação de pesquisa ou resultados da ação que pretende exercer através da reflexão filosófica. Propondo-se a procurar entre os escombros o plano do edifício, Jaspers acredita ser necessário interpretar os escritos do filósofo como um todo. As contradições neles existentes não se deveriam, porém, ao privilégio de um modo de expressão, mesmo porque a obra não apresentaria uma forma dominante e abrigaria tanto o discurso contínuo quanto o aforismático ou o polêmico. A interpretação teria de buscar todas as contradições e, reunindo concepções relativas a um mesmo tema, chegar à "dialética real", que levaria a esclarecer o projeto nietzschiano e, com isso, compreender a necessidade das contradições. Lõwith, por sua vez, considera que os textos de Nietzsche constituem um sistema em aforismos. Sua produção aforismática apresenta uma unidade, ligada à da própria tarefa filosófica, ambas sustentadas pela lógica de certa sensibilidade diante da filosofia. Acerca da questão "como ler Nietzsche?", ele advoga a tese de que não são as leituras que constituem um texto filosófico; ele permanece o que é, independentemente delas. E mostra-se incisivo: há portanto leituras corretas e erradas. O critério que se impõe é o de compreender o autor como ele mesmo se compreendeu - nem mais nem menos. No caso de Nietzsche, as dificuldades não são grandes, uma vez que ele reexaminou seus escritos nos prefácios de 1886 aos livros já publicados e ainda na autobiografia. 42

42

"N'1etzsch e e' o tipo . de pensador que sempre tentou, e1e propno, ' · 1azer e o balanço de seu pensamento", afi rma Lowith; "no Ecce Homo, visão retrospectiva da o bra, constata, surpreso, que teve idéias, m as ignorava sua unidade e era inconsciente de sua coerência, que só lhe apareciam no fin al" (In: Nietzsche aujourd'hui? Paris: UGE, 1973, vol. 2, p. 227).

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Anos mais tarde, em textos de 195043 e de 1954,44 Heidegger apontou a íntima ligação entre a teoria da vontade de potência e a doutrina do eterno retorno. E, em 1961,45 permitiu que fossem editados seus cursos sobre a filosofia nietzschiana. No seu entender, a metafísica, não se colocando a pergunta pelo Ser, encerra-se nos parâmetros exclusivos do ser do ente. 46 É nesse espaço que Nietzsche desenvolve a reflexão filosófica. Seu pensamento apresenta cinco termos fundamentais: a vontade de potência, o niilismo, o eterno retorno do mesmo, o além-do-homem e a justiça; através de cada um deles, a metafísica revela-se sob certo aspecto, numa relação determinada. A vontade de potência designa o ser do ente enquanto tal, sua essência; o niilismo diz respeito à história da verdade do ente assim determinado; o eterno retorno do mesmo exprime a maneira pela qual o ente é em totalidade, sua existência; o além-do-homem caracteriza a humanidade requerida por essa totalidade; a justiça constitui a essência da verdade do ente enquanto vontade de potência. A partir daí, Heidegger empenha-se em mostrar de que modo o pensamento nietzschiano fica enredado nas teias da metafísica. Procurando impor a própria reflexão como um movimento antimetafísico, Nietzsche opera tão-somente a inversão do platonismo, pois "a inversão de uma proposição metafísica permanece uma proposição metafísica". 47

43 Cf. 44 Cf.

Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2• ed., 1952. Vortriige und Aufsiitze. Tübigen: Gunther Neske Verlag, 1954.

45

Cf Nietzsche. Berlim: Gunther Neske Verlag, 1961. 2v.

46

Cf., entre vários outros textos, Kant und das Problem der Metaphysik, onde se lê: "a metafísica é o conhecimento fundamental do ente enquanto tal e em totalidade" (Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2. ed. , 19 5 1, p. 18).

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Com a morte de Deus, o filósofo nomeia o destino de vinte séculos da história ocidental, apreendendo-a como 0 advir e o desdobrar-se do niilismo. Ao afirmar que "Deus está morto", quer dizer que o mundo supra-sensível não tem poder eficiente. Encarando-o como ilusório, é levado a considerar verdadeiro o mundo sensível - e, nisto, segue a inspiração positivista da época. Ao passar do espírito para a vida, pensa a metafísica até as últimas conseqüências, sem conseguir, porém, romper com ela.48 Sem chegar a desmontar a estrutura fundamental do ente enquanto tal, a filosofia nietzschiana continuaria a desenvolver-se no horizonte do "esquecimento do Ser". Em 1971, Wolfgang Muller-Lauter publica um trabalho, 49 em que se propõe a fazer uma crítica imanente da obra de Nietzsche. Buscando compreender os interesses e questionamentos específicos do autor de Zaratustra, opta por estar atento àquilo que ele disse ou quis dizer. Tomadas tais decisões metodológicas, acaba por apresentar refutação filosófica decisiva da interpretação. proposta por Heidegger. Com Heidegger, Müller-Lauter poderia muito bem pôr-se de acordo quanto a incluir Nietzsche na história da metafísica. Com . ele, poderia também concordar quanto à necessidade de outro

47

Cf. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 47-8.

48

Heidegger conclui: "Enquanto simples inversão da metafísica, o antimovimento de Nietzsche contra ela cai irremediavelmente nas suas ciladas - e de tal forma que a metafísica, divorciando-se de sua natureza própria, não pode mais, enquanto metafísica, pensar a própria essência" ("Nietzschc's Worc 'Gott isc coe"'. ln Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2ª ed., 1952, p. 200).

49

Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensiitze und die Gegensiitze seiner Philosophie. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1971.

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começo para o pensar. Contudo, Heidegger julga que a reflexão nietzschiana constitui o momento de completude da metafísica ocidental, uma vez que, ao inverter o platonismo, a ela propiciou esgotar suas possibilidades essenciais. E Müller-Lauter entende que a empresa de Nietzsche consiste justamente em proceder à destruição da metafísica a partir dela mesma. Se, por vezes, o filósofo assume ares de metafísico, (ao pensar, por exemplo, o eterno retorno como a suprema aproximação entre o vir-a-ser e o ser50), por trás das aparências que inventa para si a cada momento, leva a metafísica a desmoronar, porque não se detém em momento algum em suas investigações. 51 Em suas obras, é sobretudo com Heidegger que Müller-Lauter se propõe a discutir; com ele, defronta-se várias e repetidas vezes. 52 E o principal objetivo que persegue é o de demonstrar que a reflexão de Nietzsche exclui a pergunta pelo fundamento do ente, no sentido da metafísica tradicional. Com isso, põe em evidência o que ela tem de mais

°

5 Cf. o fragmento póstumo 7 (54) do final de 1886/ primavera de 1887,

onde se lê: "Que tudo retorne é a mais extrema aproximação de um mun-

do do vir-a-ser com o do ser". 51

''A significação completa desse acontecimento", conclui Müller-Lauter, "só poderia ser adequadamente interpretada no quadro de uma extensa discussão em que a metafísica fosse problematizada na multiplicidade de suas camadas" ("Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht". ln: Nietzrche-Studien 3 (1974). Berlim: Walter de Gruyter & Co., p. 2).

52

Dentre seus vários escritos, impõe-se aqui mencionar seus 1.'tltimos trabalhos publicados: Über Werden und Wil!e zur Macht. Nietzsche lnterpretationen 1. Berlim: Walter de Gruyter, 1999; Über Freiheit und Chaos. Nietzrche lnterpretationen 11. Berlim: Walter de Gruyter, 1999; Heidegger tmd Nietzrche. Nietzrche lnterpretationen 111. Berlim: Wàlter de Gruyter, 2000.

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próprio: o pluralismo e o dinamismo, pois é graças a eles que pode abrir-se para o futuro. Inaugura assim uma nova vertente interpretativa da filosofia nietzschiana: ela se daria ao leitor enquanto reflexão incessante, em permanente mudança. Como o rio de Heráclito, afirmaria a inocência do vir-aser; mais ainda, ela se poria enquanto vir-a-ser.

*** Os ensaios aqui reunidos são estudos recentes da filosofia de Nietzsche. São trabalhos de pesquisadores experimentados que, em circunstâncias diversas, eu tive o privilégio de apresentar ao público brasileiro. Assim é que "O desafio Nietzsche" de Wolfgang Müller-Lauter, ''A concepção básica de Zaratustra" de Jõrg Salaquarda e "Verdade e Interpretação'' de Günther Abel foram os primeiros textos desses pensadores a serem publicados no Brasil. Wolfgang Müller-Lauter, por sua reflexão filosófica e atividade editorial, representa um marco no contexto da recepção da filosofia nietzschiana na Alemanha. Além de uma extensa obra, deixou dois discípulos, grandes estudiosos por ele formados. Jorg Salaquarda, embora austríaco de origem, é alemão de formação; hoje, já falecido, sucedeu o mestre na edição dos Nietzsche-Studien. Günther Abel, atual editor da revista, sem abandonar as perspectivas abertas pelo pensamento nietzschiano, vem se dedicando a explorar questões atinentes à filosofia da linguagem e à filosofia da mente. No ensaio "O desafio Nietzsche", 53 Wolfgang M üllerLauter empenha-se em discutir como Nietzsche expõe suas

53

Veio a pt.'1blico in discurso 21 (1993). Trad. Comissão Editorial da re. vista. São Paulo: Departamento de Filosofia da USP, p. 7-29.

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idéias e como essa forma de exposição constitui uma provocação para os seus intérpretes. Começa por fazer uma incursão em alguns momentos do século XX, em que a influência de Nietzsche foi marcante, para então examinar as caracterizações que o próprio filósofo propõe de seu pensamento. Em que medida seria ele um "sismógrafo,,, uma "fatalidade", "um campo de batalha"? Com essa estratégia, quer sublinhar que, em face das interpretações e auto-interpretações de Nietzsche, o leitor é instigado a defrontar-se com este desafio: o de compreender o seu pensamento. E isto lhe permite, por um lado, dialogar com outros comentadores, dentre eles Lukács e Deleuze, e, .por outro, explorar as conseqüências do estilo aforismático que o filósofo adota. Mas uma coisa é denunciar as utilizações indevidas que se fez do autor de Zaratustra; outra é apontar as dificuldades de compreensão que seus escritos colocam. Atento a estas duas ordens de questões, Müller-Lauter adverte: "À primeira vista parecem.ser supérfluas indicações acerca de como se deve ler Nietzsche. Nenhum filósofo alemão escreveu textos tão acessíveis como ele". 54 É bem verdade que, neste caso, o leitor não se arrisca a defrontar-se com um escrito hermético e impermeável a toda abordagem. É certo, porém, que corre o risco de julgar, iludindo-se, apreender com justeza o que parece facilmente acessível. Mais grave é este perigo que tem de enfrentar: o de deter-se onde é instado a prosseguir investi-

54

"Uma filosofia para ruminar", Folha de São Paulo, 9 de outubro de 1994, Caderno f:1ais, p. 7. Sob esse título veio a público a primeira parte do texto "Über den Umgang mit Nietzsche" (Sobre o trato com Nietzsche). E este foi o segundo texto de Müller-Lauter que eu logrei trazer para o leitor brasileiro .

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gando, o de abandonar arbitrariamente a busca e apegar-se ao já conhecido. Nada mais avesso ao espírito nietzschiano que cristalizar convicções. 55 Se é com argúcia que Müller-Lauter se dedica a examinar a.maneira pela qual o filósofo apresenta suas idéias, é com determinação que se empenha em desmascarar as apropriações de caráter ideológico que foram feitas de sua obra. Tanto é que faz ver com clareza de que maneira, no jogo de imagens e contra-imagens, as "ideologias. têm freqüentemente relações próprias de reciprocidade". 56 No correr deste seu ensaio, porém, aos poucos traz à luz a questão central, a ques.: tão mesma que se acha no cerne de sua interpretação da obra de Nietzsche. Ela consiste em saber se nela se expressa uma filosofia incoerente, contraditória, ou se nela se constrói uma filosofia que vive de seus próprios conflitos e tensões internas. Em seu trabalho "Décadence artística enquanto décadence fisiológica", 57 é a partir da crítica tardia de Nietzsche a Wagner que Müller-Lauter põe em cena a questão da décadence. Investigando o que leva o filósofo a denunciar a decadência artística do compositor, faz ver como ele desloca seu alvo de ataque. E mostra que, por tomá-la como bem mais do que um fenômeno estético, passa da análise da arte wagneriana para o exame do artista Wagner. Então, MüllerLauter esclarece de que maneira Nietzsche acaba por reduzir

55 Lembremos do aforismo 483 de

Humano, demasiado humano, onde

se lê: "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras " . 56 "O desafio Nietzsche", 57

loc. cit., p. 69.

Foi publicado in: Cadernos Nietzsche 6 (Maio de 1999). São Paulo:

GEN, p. 11-30.

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a dimensão artística à fisiológica. Explorando a questão da décadence tal como ele a coloca no âmbito da filosofia e dá religião, elucida o seu conceito de fisiologia, deixando claro que não se confunde com mero fisiologismo. É bem verdade que, à primeira vista, o artigo de Müller-Lauter pode parecer modesto. A modéstia já se daria a ver em seu subtítulo, "a propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner". Ela se faria notar, também, na escolha que o autor faz de uma abordagem bem delimitada e circunscrita da questão da décadence. E se revelaria até no propósito que ele declara perseguir com o seu texto, "apresentar uma contribuição para a compreensão que Nietzsche tem da décadence acima de tudo". 58 Mas é apenas para leitores incautos e, numa primeiríssima aproximação, que "Décadence artística enquanto décadence fisiológica" se põe enquanto tal. Contextualizar - talvez seja essa a palavra que mais bem define a estratégia a que, neste trabalho, recorre M üllerLauter. De forma minuciosa e paciente, ele procura contextualizar a questão da décadence na obra de Nietzsche, começando por investigar o que permite ao filósofo compreJ' J )) en der-se como um "uecauent e ao mesmo tempo como o seu oposto e terminando por mostrar que, ao descrever o caminho para que se realize o fisiologicamente bem-constituído, o tipo contrário do décadent, ele se coloca contra si mesmo. Contextualizar a obra de Nietzsche em sua época histórica é também o que Müller-Lauter tenta empreender em seu texto. Não é por acaso que ele aponta o fato de o filósofo usar o termo "fisiologia" na acepção em que o empre-

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/

"D-'r:Ctlaence J . enquanto deca ' dence 11s10 c. . 1og1 ' .ca" , p. 83 . are íst1ca

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gavam as ciências da natureza, mostrando-se familiarizado com a literatura a esse respeito. Tampouco é por acaso que examina atentamente a relação que ele estabelece com Paul Bourget, avaliando a contribuição que a leitura dos Essais de Psychologie Contemporaine trouxe para o seu conceito de

décadence. Contextualizar a recepção da obra de Nietzsche em nosso século é ainda o que Müller-Lauter busca realizar com o seu artigo. Tanto é que, nas notas de rodapé, não deixa de apontar o fato de Westernhagen, por ignorância ou má fé, ter acusado o filósofo em 1938 de plagiar Paul Bourget. Mas, também faz questão de contrapor a essa posição as palavras lúcidas de Mazzino Montinari: "Devemos falar em plágio como era costume no final do século (e, ainda depois, entre wagnerianos pouco inteligentes como Curt von Westernhagen) ?" 59 Afinal, acusações dessa ordem ainda hoje apenas revelam mediocridade ou, então, patologia. Na verdade, o trabalho de Müller-Lauter vale pelo que ele traz num triplo registro: acerca da compreensão das idéias do autor de Zaratustra, a respeito da reinscrição de seu pensamento no século passado e a propósito dos efeitos de sua obra no nosso. E isto o intérprete logra realizar de duas maneiras: de forma positiva, trazendo preciosos esclarecimentos conceituais, textuais e contextuais e, de forma negativa, descartando nefastas leituras do filósofo que se acumularam ao longo de décadas. Para recorrer a uma imagem ou para lançar mão de várias, ele assim nos coloca diante de peças que se justapõem montando um quebra-cabeça, camadas que se sobrepõem formando um quadro ou, melhor ainda,

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"Décadence artística enquanto décadence fisiológica", p. 82, nota 3.

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perspectivas que se alternam e complementam ensejando um caleidoscópio. É das ambivalências de Nietzsche que parte Salaquarda em seu trabalho ''A concepção básica de Zaratustra". 60 Ele começa por investigar as hesitações que o filósofo manifesta quanto à rubrica a que pertenceria Assim falava Zaratustra. E faz ver que o livro poderia ser uma "pregação moral", uma "sinfonia", uma "poesià', um "escrito sagrado" - e, também, nada disso. Passa então a examinar as oscilações que Nietzsche deixa entrever quanto à maneira de caracterizar sua personagem. E mostra que.Zaratustra é moralista, poeta, profeta, fundador de religião, sedutor - e, mais uma vez, nada disso. , A estratégia a que Salaquarda recorre é tal que ele analisa as ambivalências de Nietzsche para ressaltar, com maior vigor, a·idéia de que a concepção básica da obra não se deixa apreender facilmente e ainda menos através de um único conceito. Procurando trabalhar com o mosaico que as indicações dadas pelo filósofo compõem, ele acaba por refazer a trama conceituai presente no livro~ Com isso, lança nova luz sobre temas centrais da filosofia nietzschiana da manturidade: a idéia de auto-superação, a noção de além-do-homem, a exigência de tornar-se si-mesmo. E chega, assim, à concepção básica do livro: a "doutrina,, do eterno retorno. É justamente o vínculo profundo entre o pensamento de que tudo retorna sem cessar, o protagonista Zaratustra e a idéia de amor jati que Salaquarda quer pôr em relevo. E nisto reside o caráter inovador de sua interpretação. Se ele se limitasse a apontar a ligação, estreita por certo, entre Zaratustra e

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Veio a público in: Cadernos Nietzsche 2 (Maio de 1997). São Paulo: GEN, p. 17-39.

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eterno retorno nada teria acrescentado ao que Nietzsche mesmo já afirmara. Mas, perscrutando ao longo do livro os silêncios da personagem-diante de seu pensamento abissal, dirige sua análise para o momento decisivo em que, por fim, ela o aceita enquanto a máxima afirmação da existência. Para Salaquarda, mais importante, porém, que apontar o tom crítico da obra é ressaltar a intenção de Nietzsche em abraçar o amor foti. E sua estratégia se torna cada vez mais instigante. Ao exame do desenvolvimento conceitual presente em diversas passagens de Assim falava Zaratustra, eie junta a análise do desenrolar dramático das cenas que se sucedem. Com especial atenção, focaliza dois discursos da terceira parte, "Da visão e enigma" e "O convalescente", os únicos em que a idéia de eterno retorno aparece de forma expressa no livro. Lançando um contra o outro, de forma a iluminaremse reciprocamente, faz ver que o adversário decisivo .de Zaratustra é um inimigo interior. Aceitar que tudo retorna sem cessar implica aceitar que o pequeno, o miúdo, o mesquinho, este também retorna. E, como o pulgão, está em toda parte; assume.as mais diversas máscaras, encarna os tipos mais variados. Encontra-se - diríamos - na figura do erudito que não quer sujar as mãos, do burocrata que arrota seu pequeno poder. Encontra-se na figura daqueles com quem Nietzsche tem de conviver em sua época; com quem ainda hoje temos de conviver na nossa. Diante de tal espetáculo, só resta o nojo. Não! É preciso dar mais um passo, dar o passo decisivo. Para aceitar plenamente o eterno retorno do m·esmo, Zaratustra tem de vencer "o grande fastio pelo homem". Afinal, como ele mesmo afirma: "Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja min~a única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz-sim!" (FW/GC § 276)

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. "Zaratustra e o asno", 61 J·· org Salaquard a proN o ensaio põe-se a investigar o que se esconde por trás do animal de orelhas -c ompridas. Caracterizando, pelo avesso, o leitor tão almejado por Nietzsche, quer expulsar o asinino que habita algumas interpretações da sua filosofia. Rico, o método de Salaquarda nasce da intersecção de três procedimentos. Para investigar o papel desempenhado pelo asno na Quarta Parte de Assim falava Zaratustra, repertoria todas as ocorrências do termo na obra do filósofo. Inscrevendo-as em seu contexto imediato, procede à análise de cada uma delas, para refazer a trama conceituai em que se acham inscritas. E, com vistas a aprofundar o seu exame, busca ainda inscrevê-las em seu contexto mais amplo, remetendo-as a dados históricos e biográficos. Ao tratar das convicções, Salaquarda distancia-se de uma linha interpretativa que remonta ao primeiro estudo de fôlego sobre Assim falava Zaratustra. 62 E ao lidar com as perspectivas consolidadas, acaba por diagnosticar as que norteiam as interpretações dos autores com quem dialoga.63 Porque tomaram o "asno" como o símbolo de "povo" e este como o sinônimo de "plebe", for~m levados a negligenciar a importância do papel que o "asno" desempenha em Assim falava Zaratustra. E assim se detiveram onde ainda seria necessário prosseguir.

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Foi publicado in: "Zaracustra e o asno". Trad. Maria Clara Cescaco. ln: discurso 28 (1997). São Paulo: Departamento de Filosofia da USP, p. 167-208. Trata-se do trabalho de Guscav Naumann. Z arathustra Commentar. Leipzig: H . Haessel Verlag, 1899-1901. 4v., publicado entre 1899 e 1901, em Leipzig pela H. Haessel Verlag. Dentre eles, encontram-se Gustav Naumann, Otto Gramzow, H ans Weichelc, August Messer e M. Rauh.

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No diálogo com os comentadores, Salaquarda aplica de modo exemplar a frase de Nietzsche: "as convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras" (MA I/HH I § 483). Ao contrapor-se toda uma tradição de intérpretes, persegue o intento nietzschiano de desmascarar as perspectivks que se consolidaram e deixaram de ser questionadas. Mas que não se engane o leitor! Por trás da aparente simplicidade do ensaio de Salaquarda, esconde-se uma interpretação global da filosofia de Nietzsche. Assim é que ele sustenta referir-se o "asno" a atitudes humanas que remetem a impulsos ou complexos de impulsos. E, ao estabelecer a convicção como seu significado básico, entende que ela é sobretudo a consolidação da perspectiva de um impulso ou de um complexo de impulsos; Julga que a sabedoria da Nietzsche, por ele mesmo tratada no primeiro capítulo do Ecce Homo, consiste antes de mais nada no seu ser bem-constituído e, por conseguinte, em suas "precondições fisiológicas". E não hesita em afirmar que, nesse livro, o filósofo "deu expressão à mais extrema perspectiva que a organização unificadora 'Friedrich Nietzsche' pôde pela última vez impor ao agregar todos os impulsos que nela atuavam, antes de ela cessar de existir como organi~ação". 64 Razões bastantes para suspeitar que, no entender do intérprete, a psicologia do desmascaramento que o autor de Zaratustra põe em ação tem base psicofisiológica. E, quanto a este ponto, sem dúvida fundamental, estamos inteiramente de acordo com a interpretação de Salaquarda.

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"Zaratustra e o asno", loc. cit., p. 160.

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No ensaio "Verdade e Interpretação", 65 Günther Abel, a partir da filosofia nietzschiana, propõe-se à repensar a questão da verdade. Com uma argumentação cerrada, faz ver, num primeiro momento, que as concepções tradicionais de verdade não se sustentam. Com a crise da metafísica, também entra em crise todo discurso que se toma como o único verdadeiro. · Não é por acaso que Nietzsche se empenha em combater a duplicação de -mundos operada pelos metafísicos. Ao distinguirem entre mundo sensível e mundo inteligível, eles acabariam por ver este mundo em que nos achamos pelo viés do outro por eles inventado. Esse defeito de ótica os levaria a postular a ·existência de ·leis, relações causais e necessárias e até substâncias; mas se explicaria pelo fato de lhes ser intolerável este mundo em que vivemos.66 Mas, na crítica à metafísica, Nietzsche opera num duplo registro: recorre a suas teses cosmológicas e lança mão da análise da linguagem. Concebendo o mundo. como plurali-

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Veio a público in: Cadernos Níetvche 12 (Maio de 2002). São Paulo: GEN, p. 15-32. Nietzsche apresenta, numa passagem, subsídios "para a psicologia da metafísica. Este mundo é aparente - por conseguinte, existe um mundo verdadeiro; este mundo ~ condicionado - por conseguinte, existe um mundo incondicionado; este mundo é cheio de contradições - por conseguinte, existe um mundo sem contradições; este mundo é do vir-a-ser -por conseguinte, existe um mundo do ser (... ). É o sofrimento que inspira essas conclusões: no fundo, são votos de que tal mundo exista; o ódio contra um mundo que faz sofrer igualm ente se exprim e ao imaginar-se um outro, de maior valo,~ o ressentimento dos metafísicos contra o real é aqui criador." (8 [2] do verão de 1887. Cf. também (28) 9 [38] do outono de 1887, onde se lê: "'o mundo verdadeiro e o aparente' essa oposição é remetida por mim a relações de valor.")

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dade de forças em combate permanente, não pode admitir a existência de matéria, átomos, coisas, substâncias. Entendendo que a vontade de potência, caráter intrínseco da força, não reflete um telos nem impõe um nomos, não pode tolerar que 0 efetivar-se das forças tenha caráter necessário ou vise a algum fim. Por outro lado, ao considerar a linguagem ditada pelo desejo de conservação; defende que ela é incapaz de exprimir o vir-a-ser. Ao vê-la como o solo onde se enraízam concepções metafísico-religiosas, su'stenta que abriga a idéia de substância, que surgiu quando se projetou no mundo circundante a noção de alma e se postulou um sujeito por trás da ação. Afinal, dirá o filósofo, "temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática ... " (GD/CI, A "razão,, na· filosofia, § 5) Apoiando-se nas posições de Nietzsche, Günther Abel defende, então, a idéia de que levar às últimas conseqüências a crítica às concepções tradicionais de verdade não impede que se dê um novo sentido para o discurso da verdade. Pois, se esse questionamento radical inviabiliza toda verdade transcendente, no mesmo movimento também abre espaço para uma nova formulação da concepção de verdade. Abraçando tal projeto, Abel se dispõe a pensar a verdade a partir do conceito de vontade de potência. Sem resvalar em qualquer sorte de relativismo, acaba por associá-la, de forma decidida, decisiva, à noção nietzschiana de i~terpretação. Quanto a Consciência - linguagem - natureza. A filosofia da mente em Nietzsche de Günther Abel, o último ensaio que integra este volume,67 por ser ~m trabalho inédito no Bras~l, deixo ao leitor o prazer da descoberta.

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Agradeço a Clademir Luís Araldi o ~poio na organização deste volume, em particular em relação aos dois ensaios de G ünther Abel.

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REFER!NCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ABEL, Günther. "Verdade e Interpretação". Trad. Clademir Luís Araldi. ln: Cadernos Nietzsche 12 (Maio de 2002). São Paulo: GEN, p. 15-32. 2. ADLER, Gerhard. Études de psychologie jungienne. Genebra: Librairie de l'Université, 1957. 3. ANDRÉAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich M'etzsche in seinen Werken. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1983. 4. ___. Nietzsche em suas obras. Trad. José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1992. 5. BAUMLER, Alfred. Nietzsche der Philosoph und der Politiker. Berlim: Reclam, 1931. 6. FINK, Eugen. Nietzsches Philosophie. Stuttgart: 1960. 7. _______ . "Nouvelle expérience du monde chez Nietzsche". ln: Nietzsche aujourd'hui? Paris: UGE, 1973, vol. 2, p. 345-64. 8. _ _ _ . "Nova experiência do mundo em Nietzsche". ln: MARTON, Scarlett (org.) Nietzsche hoje? Trad. Milton Nascimento e Sonia Salzstein Goldberg. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 168-92. 9·_HEIDEGGER, Martin. Kant und das Problem der Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2ª ed., 1951.

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36. SCHLECHTA, Karl. Le Cas Nietzsche. Trad. André Coeuroy. Paris: Gallimard, 1960. 37. SPITTELER, Carl. Meine Beziehungen mit Nietzsche. Munique: 1908. 38. WOLFF, Hans. Friedrich Nietzsche. Der Weg zum Nichts. Berna: A. Francke Verlag, 1956.

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O DESAFIO NIETZSCHE* WoLFGANG MüLLER-LAVTER**

1. Interpretações e Auto-Interpretações de Nietzsche como Desafio Há cem anos, por volta de 1890, ocorria a primeira das "ondas" nietzschianas, que tanto marcariam a história intelectual de nosso século. O próprio Nietzsche nada soube desse seu primeiro impacto: nos primeiros dias de janeiro de 1889 ocorreu seu colapso psíquico. A história de sua influência, que

* As considerações que se seguem têm como ponto de partida uma conferência proferida durante a fundação da Foder-und Forschungsgemeinschaft Friedrich Nietzsche, em 15 de novembro de 1990, em Halle. Na longa conferência, discutiu-se o desafio que a obra de Nietzsche representa através de uma série de situações. Para a versão que ora se publica, foram escolhidos e tratados pormenorizadamente alguns desses temas. A escolha foi determinada por pontos de vista a respeito dos quais parecia valer a pena refletir, considerando-se sobretudo uma mudança de postura frente a Nietzsche nos novos Estados da República Federal da Alemanha. (Tradução, em sua versão definitiva, de responsabilidade da Comissão Editorial da revista.)

** Editor dos Nietzsche-Studien e autor de Nietzsche, seine Philosophie der Gegenséitze und die Gegenséitze seiner Philosophie.

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não se li1nitou nem à Alemanha, nem à Europa, já foi diversas vezes escrita sob diferentes pontos de vista. Com resultados consideráveis, foi inserida no conjunto de experiências de sucessivas gerações do nosso século. Tomando como ponto de partida o prognóstico de Nietzsche sobre a iminência do niilismo, Hermann. Rausching distinguiu três fases em que ocorrem diferentes elaborações a respeito da perda do sentido da vida. Antes da virada do século e nos anos subseqüentes, a negação de toda pretensa ordem de sentido e de valores foi vivida como "se se libertasse da última corrente despótica ... como se as forças criadoras do homem tivessem sido desentravadas, como se a humanidade pudesse se expandir sem limites,, (Rausching 24, p. 23 e ss.). Esse impacto de Nietzsche sobre a postura dos literatos do fim do século foi comprovado por Bruno Hillebrand. Ninguém se preocupava com sua filosofia e com as contradições a ela imanentes. "Nietzsche era tomado ao pé da letr_a. Era citado ao gosto de cada um,, (Hillebrand 11, p. 9). Extasiava-se com ele: o Zaratustra se tornou um livro da moda e se fazia o culto do alémdo-homem. Essa atitude se diluiu com as experiências da Primeira Guerra Mundial. Num romance de Ernst Jünger de 1920, intitulado ln Stahlgewittern (Tempestades de Aço), observa-se a destruição da autoconsciência do indivíduo capaz de produzir sentido. A segunda geração, para citar Rausching, já não vive, conforme Nietzsche e com Nietzsche, "a felicidade da libertação, mas do dever, da adaptação, da sujeição, do sacrifício do próprio eu,,. Com isso, não ocorre uma interrupção da influência de Nietzsche sobre a literatura e a arte, mas apenas uma mudança de ênfase. O niilismo já não é transformado, como pela primeira geração, em esperança otimista no futuro e em confiança nas forças criadoras do homem. O diagnóstico de Nietzsche sobre o niilismo contemporâneo é agora levado mais a sério. Das tendências estilísticas

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do neo-romantismo, impressionismo e Jugendstil, marcadas em graus diferentes pela influência do filósofo, surge o expressionismo, que se compromete a seu modo com o individualismo de Nietzsche. Após a Segunda Guerra Mundial, a terceira geração perde cada vez mais a fé em instâncias coletivas, suporte buscado e encontrado por uma individualidade que já não tinha em que se apoiar. "O coletivo já não é força geradora, não possui 'ser' real. Estado, povo, nação, classe ou raça são moradas vazias de uma vida que passou", escreve Rausching (24, p. 30). Por mais que se engaje socialmente, o homem agora experimenta a total ausência de sentido. Das profundezas do espírito da época surgem o ceticismo e adesconfiança, freqüentemente dissimulada. No lugar do sentido esvaziado, entra o poder da técnica, que, com a diversificação de sua força, substitui a essência do homem. Depois de: ter destacado o filósofo justamente como representante da não-essência ( Unwesen) da técnica, nas aulas dos anos trinta, Martin Heidegger lançou mão de Nietzsche para tratar da superação do pensamento técnico-metafísico, nas aulas e conferências de 1953 e 1955. A afirmação de Nietzsche "O deserto cresce: ai daquele que oculta desertos!" é interpretada pelo Heidegger tardio como se, "antevendo muito além, do ponto de vista mais elevado", Nietzsche reconhecesse o avanço da devastação, que era algo maior que a destruição e mais sinistro que o extermínio, pois interromperia o crescimento futuro e impediria a futura colheita. Ainda que permanecesse preso à metafísica, Nietzsche reconheceu o perigo de que "o homem até agora se voltou cada vez mais obstinadamente para a mera superfície e fachada de sua essência atual", ao mesmo tempo que se preparou para "assumir a dominação completa sobre a terra". (Heidegger 1O, p. 21-24). Temos aqui uma prova impressionante de como, após a metade de nosso século, a filosofia de Nietzsche foi

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considerada importante para o futuro. A despeito de seus aspectos discutíveis, a interpretação heideggeriana de Nietzsche exerceu capital influência, que ainda perdura, não só sobre as leituras de Nietzsche na Alemanha, mas também na França e nos Estados Unidos. Deixemos de lado essa breve incursão por alguns dos momentos da influência de Nietzsche nos últimos cem anos. Após esse rápido panorama histórico, apresentaremos três caracterizações que provêm do próprio Nietzsche ou a ele são imputadas: Nietzsche seria um "sismógrafo", uma "fatalidade" e um "campo de batalha". Tais caracterizações determinam, de modo bem representativo, a acolhida que seu pensamento obteve. Nelas se torna claro em que medida é possível considerá-lo como desafio talvez também para o século vindouro. Gottfried Benn afirmou que, para sua geração, Nietzsche havia sido "o terremoto da época" (Benn 3, p. 483). Foi ele mesmo um terremoto ou apenas o anunciou? Há muito tempo os espíritos se dividem a respeito dessa questão. Freqüentemente se caracteriza Nietzsche como sismógrafo. Há pouco tempo sua sensibilidade para registrar ínfimas oscilações do espírito, nas quais o futuro se anuncia, foi mais uma vez sublinhada por Carl Friedrich von Weizsacker. Entre as "inúmeras oscilações" registradas por Nietzsche seria possível "fazer apenas uma seleção", seleção "ela mesma provocada sismograficamente, oscilando entre o pró e o contra". Em grande parte o leitor é, com efeito, diretamente envolvido pelo impacto dessa filosofia. "Com uma generosidade que talvez não nos seja própria", Weizsacker concede ao sismógrafo "a ilusão de que provoca o terremoto por ele sinalizado" (Weizsacker 26, p. 88, 93). Albert Camus perguntou certa vez se o filósofo não preparou a dominação pela violên. eia, Justamente por compreender e perceber que a lógica interna do niilismo tinha tal dominação como um de seus re((.

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sulcados finais". Pois se empenhou em "tornar a situação dos homens de sua época insustentável,, e "sua única esperança,, consistia manifestamente em "levar a contradição ao extremo,,: "Se o homem não quiser morrer nos laços que o estrangulam, terá de cortá-los de um só golpe e produzir seus próprios valores." Camus prefere ouvir o Nietzsche diagnosticador ao Nietzsche profeta. (Camus 5, p. 87, 79, 73). Como quer que seja, Nietzsche estava longe de recusar a análise com o intuito de não estimular aquilo que se teme, ele que desdenhava o consolo. Nietzsche descreveu a si mesmo como fatalidade. Sob o título Por que sou um Destino escreve no Ecce Homo: "Conheço minha sina. Um dia o meu nome será ligado à lembrança de algo tremendo, - de uma crise como jamais houve sobre a terra ... Eu não sou um homem, sou dinamite.» Ouçamos uma vez mais Gottfried Benn: o próprio Nietzsche "se autodenomina e foi uma fatalidade - mas de onde provêm as fatalidades? ... Aqui estão em jogo forças profundas, que não sabemos de onde vêm e que subitamente deixam de jogar com um homem na terra o mesmo jogo que com o resto.,, (Benn 3, p. 492) As profecias de Nietzsche, caso se queira assim denominar suas projeções futuras, são por demais genéricas e se prendem a idéias do século XIX, mais do que comumente se quer acreditar no século XX. O vínculo de Nietz;che com sua época é muito mais considerável do que parecem admitir as estilizações que mais tarde fez de si mesmo. Não se nega, com isso, que foi sensível a prenúncios de evoluções ulteriores. "Em muitos aspectos, do corpo e da alma,,, Nietzsche seria desde 1876 "mais um campo de batalha do que um homem,,, como ele mesmo escreve a Heinrich Koselitz em 25/7/1882. Ernst Noite considerou tal autocaracterização "uma declaração de muito mais impacto e mais elucidativa do filósofo,, do

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que afirmação de que era mais uma dinamite que um homem (Noite 23, p. 10 e ss.). Naturalmente, deve-se levar em conta que, nela, Nietzsche faz referência a algo por que passou pessoalmente. Mesmo quando ainda se vê como a "luta em pessoa", tal como escreve a Franz Overbeck em 14/8/1883, tal expressão deve ser entendida antes de mais nada em referência a sua situação pessoal. No entanto, pode-se com direito, assim como o fez Noite, destacar essas expressões para caracterizar o que há de geral, os conflitos internos do filósofo (sem se ter por isso de seguir a interpretação de Noite). A "ambição" do filósofo era "percorrer toda a esfera da alma moderna, estar em todos os seus recantos", encontrando nisso sua "tortura" e "felicidade" (Nietzsche 22, vol. VIII, 2, 9 (177), p. 104). Nietzsche continuou sendo um campo de batalha, ainda que nos últimos anos de atividade tentasse livrar-se de todas as hesitações que permitissem reconhecer contradições em suas próprias intenções - por mais relativas que fossem. Em 23/7/ l 88 l, o crítico radical do cristianismo escreve a Overbeck: "No que se refere ao cristianismo, pelo menos numa coisa você há de acreditar em mim: em meu coração jamais fui moderado com ele e desde criança muito me esforcei interiormente por seus ideais, mas por fim cheguei à conclusão de sua pura impossibilidade." Soa de modo diferente aquilo que Nietzsche anota no outono de 1887: "Declarei guerra ao ideal anêmico dos cristãos (... ), não com o intuito de aniquilá-lo, mas para pôr um fim a sua tirania e abrir espaço para novos ideais, para ideais mais robustos (... ) A permanência do ideal cristão está entre as coisas mais desejáveis que existem: e isso já em vista dos ideais que querem se impor ao lado e talvez acima dele - eles precisam de inimigos fartes para se tornar fartes (id, ibidem 22, vol. VIII, 2, (117), p. 189). A 30 de setembro de 1888, no entanto, Nietzsche formula sua "lei contra o cristianismo", em nome

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da qual se deve fazer "guerra mortal ao vício" que é 'o cristianismo" (Nietzsche 22, vol. VI, 3, p. 252). Seria já esse texto expressão de um entendimento perturbado? No Ecce Homo, livro claro a despeito de toda excentricidade, Nietzsche desafia repetidamente o leitor a compreender seu pensamento, de uma maneira mais decidida do que antes. É como se aquele que antes aparecia por trás de máscaras e de ambiguidades quisesse agora cobrar o reconhecimento de sua identidade: "Ouçam-me! Eu sou isso e isso. Não me confundam!' A indicação de que não "deixou de dar testemunho" remete como que a si mesmo enquanto "natureza de contradição" e, com isso, não somente às contradições que tem fora de si, mas também as que traz em si (id. 21, Ecce Homo, Prefácio, 1, p. 2).

2. O "desafio do aforista" Os representantes do pensamento de Nietzsche - que, como tais, são o artista, o que conhece, o espírito livre, Zaratustra, o além-do-homem, o filósofo do futuro, Dioniso carregam, cada um a sua maneira, contradições. É preciso mover-se nelas, caso se queira aproximar daquilo que ele pensou. Tentativas de apresentar a filosofia de Nietzsche em linhas gerais soçobram diante de sua complexidade. Divisões esquemáticas da evolução de Nietzsche em três ou cinco (ou ainda sete ou oito) fases são mais apropriadas para fazer com que se passe ao largo das questões que o ocupavam do que para esclarecê-las. Além disso, não são raros os casos em que Nietzsche se antecipa: muitas idéias que se apresentam de início são anotadas, recuam e parecem já não ter importância, mas por fim sofrem ainda uma elaboração ampliadora. Pretendemos discutir aqui como Nietzsche nos apresenta suas idéias. A diferença em relação àquilo a que estamos

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acostumados em outros filósofos é manifesta. Nietzsche não nos oferece uma obra fechada em si, unívoca em suas idéias, mas diversos textos curtos, cuJa conexao, se nao e contestada, é discutida de maneira controversa pelos intérpretes. A história da repercussão de seus escritos é essencialmente . marcada pela discussão de saber se são, no todo ou em particular, coerentes entre si ou se contêm uma variedade de afirmações parcialmente contraditórias. Ele foi chamado depreciativamente de "filósofo-poetà', não apenas pelo seu estilo, mas porque se sentia a falta de uma exposição sistemática de suas idéias. A partir de apontamentos deixados pelo irmão e segundo um plano temporariamente seguido por ele, Elisabeth Fõrster-Nietzsche, juntamente com Heinrich Kõselitz, compilou uma suposta "obra principal em prosa" do filósofo, que todavia não é mais que uma coletânea de aforismos, questionável sob vários aspectos. A filosofia de Nietzsche vive de suas tensões imanentes. Somente a partir delas se obtém a unidade de sua obra. Mas tal unidade não pode ser encontrada como um último substrato de "verdades" subjacentes a seu pensamento, nem simplesmente extraída de seus textos. Como escreve Walter Kaufmann, adotando uma distinção de Nicolai Hartmann, Nietzsche não é um "pensador de sistema" (Systemdenker), mas um "pensador de problemas" (Problemdenker) (Kaufmann 13, p. 96). No caso de Nietzsche, isso não deve ser entendido como se ele se concentrasse em problemas isolados e neles permanecesse. Ao contrário, ele sempre tem em vista a conexão destes com o todo da realidade - e portanto a sua unidade. Ele experimenta com o pensamento. Se nos deixarmos levar por seus questionamentos, que no essencial ainda são os nossos, poderemos ser enredados por suas reflexões, poderemos trilhar os caminhos que levam ao âmago dos problemas e conjuntos de problemas de seu filosofar. No entan•

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to, com isso não se alcançará um fim ao qual o pensamento possa chegar_ com? c~nclusão. Como expôs Gilles Deleuze, Nietzsche foi o pnmeuo a desenvolver um tipo "nômade,, de discurso que, em sua alteridade diante da filosofia feita até hoje, poderia ser designado como contrafilosofia (contre-philosophie). A dimensão de seu rompimento com aquela se manifesta em seu caráter aforismático (Deleuze 6, I, p. 173, 175). Deleuze é um daqueles intérpretes de Nietzsche que ressalta, com particular agudeza, a oposição entre sistema filosófico e procedimento aforístico. Contudo, se se levam em conta, apesar de todas as suas oposições, as conexões imanentes do pensamento nietzschiano, este não pode ser simplesmente oposto à sistematicidade. Karl Lõwith falou do "sistema em aforismos,, de Nietzsche: o "caráter sistemático de sua filosofia,, provém da "forma e do modo determinado como Nietzsche põe em marcha, mantém e leva a termo seu experimento filosófico,, (Lowith 15, p. 15). Motivos consideráveis levaram Nietzsche a se manifestar irônica e polemicamente contra a pretensão de verdade dos sistemas filosóficos. É justo, pergunta, "considerar um complexo de idéias como sendo mais verdadeiro caso possa ser inscrito em esquemas e tábuas de categorias previamente esboçados,,? Não estariam aqueles que querem "atar a ordem, a clareza, a sistematicidade ao verdadeiro ser das coisas,, presos a um "preconceito fundamental" ( Grundvorurthei{) de tipo humano, demasiado humano? Aqui Nietzsche põe em cena aquilo que se chamou de sua psicologia do desmascaramento. Visto que "o homem verdadeiramente digno de confiança,, se apresenta "no conjunto como algo com que se pode contar,,, os sistemáticos transferem, sem ter consciência, esse estado de coisas para a realidade como um todo. Todavia, continua Nietzsche (fazendo alusão a Kant), é "absolutamente indemonstrável que o em-si das coisas se comporte conforme

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essa receita de um funcionário-padrão,,. Nietzsche, por seu lado, defende a idéia de que, "ao contrário, a desordem, 0 caos, o incalculável" se encontram na base do mundo (Nietzsche 22 , VII, 3, 40 (9), p. 364). Isso não quer dizer que pretende fazer com que o caos triunfe (ainda que ocasio, nalmente sucumba a essa tentação). Ele sabe que classificação e ordenação constituem uma necessidade indispensável à vida. Em suas genealogias, investigou a origem do estabelecimento de ordenações no reino animal e vegetal. 1 Também seu próprio pensamento "ordena". A pardr daí é compreensível que em 1888 ele, que desconfiava de todos os sistemáticos, confesse que somente "com esforço se desviou,, do sistemático que ele próprio era (id., ibidem, VIII, 2, 11 (410), p. 431). Neste contexto, devemos ao menos tocar na questão do irracionalismo da filosofia de Nietzsche. Se com isso se entende que não há um procedimento racional nem no fundamento do mundo nem na história, essa caracterização ser. ve tanto para ele quanto para seu "mestre" Schopenhauer. Em compensação, como este, ele se considera um sóbrio realista. Por outro lado, os que defendem a concepção segundo a qual a marcha da história se cumpre racionalmente ou conforme uma lei cognoscível - concepção que é posta em vigência por Hegel e perpassa o pensamento de Marx -, estes podem ser por nós caracterizados como representantes de um "racionalismo" irrealista (sendo necessário notar, naturalmente, que um racionalismo rigoroso se opõe ao método dialético de Hegel e de seus seguidores). Entre esses "racionalistas" se encontra Heinz Malorny, autor, ao que eu saiba, do último livro sobre Nietzsche publicado na República Democrática da Alemanha. Ele nos diz que Nietzsche negou que "a evolução

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Cf. a esse respeito Müller-Lauter 19, p. 39-41 .

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histórica, o progresso social se dê segundo uma lei" e, com seus ensinamentos sobre a vontade de potência e O eterno retorno do mesmo, lançou uma base definitiva para a concepão de mundo de todas as estratégias das cruzadas anticomuçnistas, que "querem razer e ' · girar · para trás". a ro da da h'1stona Deve ser certamente um sentimento sublime saber como as "leis históricas" atuam. (Malorny 17, p. 243).

3. Aspectos do estilo aforístico em Nietzsche O sentido do aforismo na obra de Nietzsche já foi percebido com clareza. No entanto, não se deve chamá-lo de aforístico por vários motivos. Antes de mais nada porque também empregou outras formas para exprimir suas idéias: os primeiros escritos', das dissertações filológicas aos "tratados" das Considerações Extemporâneas, passando pelo Nascimento da Tragédia, são tão pouco "aforísticas" quanto as posteriores exposições ensaísticas da Genealogia da Moral e também do Anticristo, sem falar do peculiar caráter estilístico do Zaratustra, que de modo algum é um "livro de aforismos", embora viva do aspecto aforístico. Alexander Nehamas indicou com razão que a diversidade dos meios estilísticos de expressão de que Nietzsche dispunha não foi suficientemente observada devido ao fato de seus intérpretes se voltarem para o aforismo. Além deste, também é necessário que se examinem, por exemplo, as metáforas e o emprego das hipérboles em Nietzsche. Tal exame é de grande importância para a compreensão de suas idéias (Nehamas 20, p. 39). 2

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Sobre a metáfora em Nietzsche, veja-se Sarah Kofman (14).

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No entanto, se se entende, tal como também freqüentemente ocorre em Nietzsche, a palavra aforismo num sentido amplo, então é possível dizer, com Karl Jaspers, não apenas que a forma de expressão aforística domina as publicações da fase intermediária, mas também que "jamais é abandonada" e que já se encontra "secretamente nos primeiros ensaios» Qaspers 12, p. 11, cf. p. 396 e ss.). A despeito das ressalvas aludidas acima, também pode ser proveitoso partir do sentido tradicional do aforismo para tornar visíveis os momentos do estilo aforístico nietzschiano. A origem da palavra, do grego "aphorismós", faz referência a seu significado de frase sucinta, que resume concentradamente um estado de coisas em sua determinação essencial, delimitando-o em relação a outros. Tal frase existe e deve subsistir por si: isso vale tanto para o tratamento dado ao aforismo pelos moralistas franceses do século XVII, quanto para Lichtenberg e Goethe e os primeiros românticos alemães. Nietzsche foi influenciado por todos eles no que diz respeito ao estilo (cf. a esse respeito Greiger 8). Merecem especial atenção as reflexões de Friedrich Schlegel sobre a teoria estilística e lingüística: há, indubitavelmente, interessantes afinidades sobretudo nos momentos de inesperada agudeza, nos momentos de exagero, do jocoso e do paradoxal. Passemos às caracterizações feitas pelo próprio Nietzsche. O aforismo ou a sentença (seguindo seus estímulos franceses, Nietzsche usa ambos conceitos sem distinguilos expressamente; a palavra aforismo, no entanto, é freqüentemente empregada por ele num sentido ampliado) devem exprimir algo "geral", uma "atmosfera ou ensinamento" filosófico, que pode ser encoberto quando se volta ao "particular... ao qual a sentença deve sua origem" (Nietzsche 21, Humano, Demasiado Humano, II, p. 124). Esse algo geral, como "algo dito de modo conciso", pode "ser o fruto e a colheita

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de algo que se refletiu por muito tempo", ainda que "o leitor neófito nesse campo pense ver ali algo não-cultivado, imaturo". "Aqueles que censuram a concisão" (id., ibidem, p. 127) mostram que sao m10pes , uma vez que sempre tomam os "pedaços" (Stücke) que lhes são apresentados como sendo apenas "obra em pedaços" (Stückwerk) (id., ibidem, p. 128). A diversidade que jorra das experiências de vida e das leituras de Nietzsche em busca de uma formulação concisa permanece-lhes oculta. Para um autor que se dirige apenas a poucos leitores, a sentença é recomendável já pela miopia da maioria. Sua excelência pode ao mesmo tempo ser "cautela", como observa Nietzsche fazendo referência a Heráclito. Por esse motivo, a sentença é "uma insolência": "é um elo de uma corrente de idéias: requer que o leitor reconstrua essa corrente com os seus próprios meios: o que é exigir demais" (Nietzsche 22, IV, 2, 20 (3), p. 457). No quinto livro de A Gaia Ciência, dez anos depois dessa anotação de 187 6/77, ainda vale para Nietzsche: "Quando se escreve, não se quer apenas ser entendido, mas também, com a mesma certeza, não ser entendido ... Cada espírito e gosto mais elevado escolhe para si, quando quer se comunicar, os seus ouvintes; na medida em que os escolhe, também traça seus limites em relação 'aos outros"'. Os leitores em que pensa e que trata como amigos têm de se conformar com a "vivacidade" de seu "temperamento", que o "obriga a se aproximar rapidamente de um~ coisa, para se aproximar absolutamente dell,. O inesperado da apresentação de uma idéia deve desafiar o leitor: deve afastá-lo do habitual, familiar, daquilo que se lhe tornou óbvio. "Com problemas profundos eu procedo da mesma maneira que com banho frio entro rápido, saio rápido." É apenas "superstição dos hidrófobos não ir até a profundeza, até onde é bastante fundo" . Uma coisa não permanece "incompreendida e desconhecida" ,-,((,))

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apenas porque "é tocada, observada, iluminada em sobrevôo". (Nietzsche 21, A Gaia Ciência, p. 381). Para Nietzsche, importa "consternar o leitor, expô-lo ao choque do conhecimento" (Alleman 1, p. 51). Mas ao mesmo tempo Nietzsche exorta o leitor à leitura meticulosa, avessa à pressa, à "arte da interpretação" de seus aforismos: "Um aforismo, corretamente cunhado e fundido, ainda não está 'decifrado' pelo fato de ter sido lido; ao contrário, é só então que deve começar sua interpretação". Para esta, "falta" sobretudo "uma coisa": "o ruminar... " (Nietzsche 21, Genealogia da Moral, Prefácio, p. 8). Tanto o autor quanto seu leitor, a despeito do desafio que o inesperado lhes lança, devem ser pacientes "amigos do lento". Nietzsche se volta contra a "pressa", que "quer logo 'dar conta' de tudo, mesmo de qualquer livro antigo ou recente ... ler bem significa ler vagarosamente, examinando o fundo, o verso e a frente (tief, rück- und vorsichtig), significa ler de portas abertas, com dedos e olhos finos ... " (Nietzsche 21, Aurora, Prefácio, p. 5). O que diz Nietzsche sobre o nexo que o leitor cauteloso pode descobrir? Em 1883, ao reunir os Esboços de uma ''Moral para Moralistas" a partir de seus materiais ("organizeime e corrigi-me em vários pontos", como ele próprio afirma), escreve numa carta a Heinrich Koselitz, datada de 16 de agosto, que "a congruência e coerência de idéias totalmente inconsciente e não-planejada da massa desordenadamente acumulada" de seus "livros mais recentes" causou-lhe "espanto" e, em 22/12/1888, numa carta ao mesmo destinatário, exprime a "absoluta convicção" de que desde o princípio tudo está bem feito - "tudo é um e quer o um". Mas não nos deixemos levar, por essas declarações das cartas, a crer que a unidade do pensamento de Nietzsche possa ser encontrada nessa coesão. Um último aspecto do caráter aforístico, particularmente acentuado por ele, pode nos

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preservar de uma tal ilusão. Aí também poderemos encontrar a amplitude do espectro da influência de Nietzsche. Na Misce/,ânea de Opiniões, reflete sobre "o favor das musas" que, segundo a Odisséia, daria "Bem e Mal" ao poeta, "pois lhe tirou os olhos e lhe deu um canto doce". Eis "um texto sem fim para aquele que pensa: ela deu o Bem e o Mal, este é seu jeito afetuoso de amar! E cada um interpretará por si especialmente por que nós pensadores e poetas temos de dar nossos olhos por isso" (Nietzsche 21, Humano, Demasiado Humano II, p. 212). A interpretação desse texto, mesmo em vista da relação entre conhecimento e arte, não terá tão cedo um fim. Investigaremos aqui tão-somente a especificidade de cada interpretação particular diante de textos que devem ser sem fim. Se há, afirma Nietzsche, "sentenças, pequeno punhado de palavras, em que toda uma cultura, toda uma sociedade inesperadamente (sic!) se cristaliza", tais "lances do espírito" (Nietzsche 21, Para Além de Bem e Mal, p. 235) se apresentam, ao contrário, para a compreensão como inesgotavelmente profundos, tal como afirma Nietzsche em relação às Pensées de Pascal (Nietzsche 22, VIII, 3, (35), p. 31). "Uma boa sentença é muito dura para o dente da época e não será digerida nem em todos os milênios, embora sirva de alimento para . todas as épocas", se diz na Miscelânea de Opiniões (Nietzsche 21, Humano, Demasiado Humano II, VM, p. 212). Com isso ela é "o imperecível em meio ao mutável". No Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche ainda retoma essa imagem quando pergunta: "quem sabe afinal se eu também apenas desejo ser lido hoje? - criar coisas em que inutilmente o tempo experimenta seus dentes; buscar uma pequena imortalidade segundo a forma, segundo a substância - jamais fui suficientemente modesto para exigir menos de mim". À imodéstia, que realmente explode em seu último ano produtivo, ele acrescenta, indo um pouco mais além: "O

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aforismo, a sentença, nos quais, sendo o ~rimei_ro, so,u o r_nestre entre os alemães, são as formas da eternidade; minha ambição é dizer em dez frases aquilo que qual~uer _outro diz em um livro, _ aquilo que qualquer ?urro nao diz em um livro ... ,, (Nietzsche 21, Crepúsculo dos Ido los, Incursões de um Extemporâneo, p. 51). Nesses desenvolvimentos é possível lembrar-se particularmente da reflexão infinita de Friedrich Schlegel e Novalis - apesar de todas as diferenças, que decorrem já de que Nietzsche não parte, como os primeiros românticos, de uma interpretação da filosofia transcendental de Fichte (cf. Ernst Behler 2, p. 59-87). Não nos ocuparemos mais aqui da tese da infinita interpretabilidade de textos, da qual Nietzsche se ocupou a fundo (veja-se Nietzsche 21, A Gaia Ciência, p. 374). Devemos nos deter aqui no fato de que em seus aforismos não faz nenhuma afirmação definitiva sobre a verdade. Ao contrário, com elas apela ao dom do achado, mais ainda, ao dom do leitor de fazer descobertas, permitindo, portanto, livres possibilidades de compreensão. A recepção de sua obra mostra que isso pode ser algo perigoso. Nesse ponto, levantemos apenas a questão de saber em que medida Nietzsche levou a sério esse livre talento (Frei-gabe). Não representa este também um arranjo refinado, que sugere ao leitor que ele próprio chegará a uma "solução" para a qual está na verdade sendo dirigido? Ou Nietzsche quer mesmo desafiar o leitor a encontrála por si mesmo (Selbstfindung), tal como o põe na boca de Zaratustra? É ele quem diz a seus alunos: "afastai-vos de mim e protejei-vos de Zaratustra! Envergonhai-vos dele!. .. Retribui-se mal o mestre, permanecendo sempre aluno. Por que não quereis arrancar-me a coroa? ... Dizeis que acreditais em Zaratustra. Mas o que há em Zaratustra? Sois meus crentes! Ainda não procurastes a vós mesmos: aí encontrareis a mim ... Então vos ordeno que me percais e que vos encontreis; e so-

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mente quando todos vós me abjurardes, a vós retornarei.,, Deixemos de lado as alusões bíblicas, indicando que Zaratustra espera que então, ao retornarem, os amigos festejem com ele o grande banquete (Nietzsche 21, Assim Falava Zaratustra, I, Da Virtude que Dá, 3).

4. A equivocidade do aforismo(!): Georg Lukács Zaratustra/Nietzsche abre caminhos, dos quais nem todos certamente levam de volta a ele. Muitos trilham suas pegadas ou acreditam trilhá-las. Eugen Biser tem razão ao escrever que não há "quase nenhuma posição à qual Nietzsche não tenha sido referido,, e "quase nenhuma corrente ideológica que não tenha, ao menos de passagem, jogado com suas idéias, reivindicando-as para si" (Biser 4, p. 18). Muitas vezes já se apontou essa utilização e inserção de textos nietzschianos no quadro de concepções de mundo bastante diferenciadas. A possibilidade de uma interpretação ideológica de Nietzsche foi explorada por Lukács em função de sua própria ideologia. A conseqüência com que o faz leva, sem dúvida, ao grotesco. E preciso se deter um pouco nisso, uma vez que seu livro A Destruição da Razão foi determinante para a "imagem marxista de Nietzsche" na antiga República Democrática da Alemanha. O aforismo, afirma ele, garante (ao lado do mito) "a expressão adequada à mescla de mero pressentimento do desenvolvimento futuro e de observação e valoração de seus sintomas". Como marxista, Lukács parte de um curso histórico determinado por necessidade objetiva. Segundo ele, homens que dispõem especialmente de um "fino sentimento antecipatório,, podem pressentir desenvolvimentos futuros. É por isso que podem diagnosticar seus sintomas. Ao mesmo tempo, porém, posicionam-se de algum

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modo e tomam partido. É assim que, segundo Lukács, em seus aforismos os moralistas franceses - enquanto foram "progressistas" - "já criticavam a moral do capitalismo", embora ainda vivessem "numa sociedade feudal-absolutista". Com seus apontamentos Nietzsche, ao contrário, disse sim a "uma reação vindoura qualitativamente mais forte, a reação do período imperialista". No seu caso, o estilo aforístico-ensaístico se revela como um meio particularmente eficaz na luta de classes. Em seus aforismos, de certo modo preparou os materiais que se tornaram necessários em diferentes etapas da tomada de poder imperialista. O fato de que "conforme as necessidades do momento outros aforismos sejam trazidos à cena e mesclados uns aos outros" deve ser entendido como uma intenção secreta, uma contribuição de classe por parte de Nietzsche (Lukács 16, p. 249-256): ele forjou uma "ideologia completa para todas as tendências decisivamente reacionárias do período imperialista". Na perspectiva de Lukács, disso faz parte que o mito -de Nietzsche "seja inteiramente nebuloso do ponto vista das idéias, permitindo todo tipo de interpretação arbitrária'' e ao mesmo tempo "completamente inequívoco do ponto de vista social e ético". Lukács não se detém "propositalmente" ... "nas contradições gritantes das 'estruturas dos mitos' de Nietzsche", propósito em virtude do qual se dispensa de uma interpretação séria: sob o ponto de vista "lógico-filosófico", afirma, está-se diante de "um confuso caos das afirmações mais chocantes, excludentes e aleatórias". No entanto, observa que "Nietzsche tem um sistema conseqüente". Aquilo que "dá coesão", o "ponto de unificação" da reflexão nietzschiana reside "no conteúdo social de seu pensamento: a luta contra o socialismo". Pode-se demonstrar melhor o irracionalismo de Nietzsche do que quando se lhe nega toda coerência de idéias e se encontra sua unidade pura e simplesmente na irrazão ideológica -da fundamentação

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do imperialismo? Ao final de seu capítulo sobre Nietzsche, Lukács ainda apaga a possível impressão de que o fundamentador do conjunto ideológico da burguesia tardia possa ser mais do que um apologeta do capitalismo em virtude de sua - admita-se - "indubitável capacidade filosófica'' ou em vista de sua grande influência sobre "escritores progressistas como Heinrich e Thomas Mann ou Bernard Shaw", e mesmo momentaneamente sobre Franz Mehring. Com todo o "medo do declínio" de sua própria classe" ele é - e como poderia ser de outra forma na perspectiva marxista? - incapaz de "se medir realmente em idéias com seu adversário (isto é, marxista ou socialista)": "Assim iluminado, o modo de expressão aforístico surge como a forma adequada a essa situação sócio-histórica: a podridão, a vacuidade e a falsidade interna de todo o sistema se cobrem com esses farrapos de· idéias de cores cintilantes, que recusam formalmente qualquer coerência" (id., ibidem, p. 289 e ss., 316, 256, 316, 251, 317). Ideologias têm freqüentemente relações próprias de reciprocidade. Assim, pode-se mostrar que "a imagem de Nietzsche" traçada por Lukács representa a reação à "imagem" nacionalsocialista de Nietzsche, que naturalmente é menos unívoca do que a marxista. Se se examina mais de perto, vê-se que Lukács polemiza com a "sistematização" nietzschiana de Alfred Baeumler, tal como mostrou Eike Middell em 1985 nos Weimarer Beitragen (Middell 18, p. 559-571). 3

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Publicando trabalhos diversificados na República Democrática da Alemanha, os Weimarer Beitriige também foram úteis para a compreensão de Nietzsche. Foi ali que se publicou, em 1983, o artigo informativo de Renate Reschke (25) Kritische Aneigung tmd notwendige Auseinander-

setzung. Ztt einigen Tendenzen moderner biirgerlicher Nietzsche-Rezeption (Apropriação crítica e discussão necessária. Sobre algumas tendências da moderna recepção burguesa de Nietzsche), que recebeu violenta

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5. A equivocidade do aforismo(2): Gilles Deleuze Em geral, no modelo da interpretação marxista de Nietzsche o «desafio dos aforismos" foi repelido com a afirmativa de que sua filosofia era totalmente expressão da luta da classe burguesa contra a classe operária e o socialismo, onde se supunha que à sua crítica da cultura ainda subjazia «o encargo social" de sinalizar para os pensadores burgueses (bürgerliche lntelligenz) «um caminho que tornasse supérflua toda ruptura e mesmo toda tensão grave com a burguesia" (Lukács 16, p. 250). Em oposição a isso, desde o início dos anos setenta, intérpretes franceses tentaram tornar sua a questão da luta de Nietzsche contra o "caráter burguês" (das Bürgerliche). São três os nomes evocados por esses críticos de nossa época: Marx, Nietzsche e Freud. O efeito público a que visavam fez, por sua vez, soar os alarmes dos ideólogos na República Democrática da Alemanha: não era possível nem permitido falar de Nietzsche e Marx num só fôlego, como se estivessem de acordo. Em pouco se advertia para o perigo de uma nova onda nietzschiana vinda da França. Alain de Benoist, um nietzschiano francês de extrema direita, foi o alvo

crítica de marxistas dogmáticos . Contra os trabalhos de Middell e Reschke polemizaram Wolfgang Harich e outros num artigo cujo título, em forma de imperativo, era Mehr Respekt vor Lukács! (Mais respeito por Lukács!) e que também foi publicado na revista comunista da Alemanha Ocidental Kultur und Gesellschaft, nº 11, 1988, p. 3-1 0)(Harich et alii 9) De início Harich faz notar que o artigo fora escrito já em 1986 para os Weimarer Beitrdge, mas não foi publicado ali (o que ao menos fala a favor do nível da revista). - De lá para cá, as duas revistas citadas tiveram de encerrar suas atividades, o que, no caso dos Weimarer Beitrii.ge, é deveras lamentável.

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visado para que se acertasse, juntamente com ele, toda adiscussão que ocorria na França, retirando-a de suas próprias fronteiras. 4 Destacaremos uma conferência de Gilles Deleuze em que de certo modo se intensifica ainda mais a pretensão do aforismo nietzschiano de tirar o leitor de seus hábitos, para que este compreenda a si mesmo de uma nova maneira. "Nietzsche afirma bem claramente,,, escreve Deleuze: "Se quiserdes saber o que quero dizer, encontrai a força que dá sentido e, se preciso, um novo sentido àquilo que digo. Associai o texto a essa força. Desta maneira não há problema de interpretação de Nietzsche, mas probleina de maquinação (machination) ": desenvolver uma questão com ajuda dos textos de Nietzsche. O movimento da intelecção incorporadora, espécie de corrente de força, deve (e só pode) vir de fora (dehors), mas leva de novo necessariamente para fora. Deleuze descreveu de forma arguta o inesperado (das Plotzliche) do efeito do aforismo: "Quelque chose saute du livre, entre en contact avec un pur dehors.» (Alguma coisa que salta do livro,

4 Malorny foi o primeiro a chamar a atenção para Alain de Benoist (no

Wochenpost de Berlim de 23/5/1986. A esse respeito, veja-se posteriormente Malorny 17, p. 246 e ss.). Harich alçou Benoist a "ideólogo-chefe" da "nova direita" da França, ligando-o indevidamente (mas ideologicamente o fez de boa consciência) à moda nietzschiana francesa (e "ocidental") (Harich et alii 9, p. 1052). Não se e_ode tratar aqui do triste capítulo da "caça ao renascimento de Nietzsche na República Democrática da Alemanha", realizada anos a fio por Harich, que "atirava" em qualquer um que ainda encontrasse um fiapo aproveitável cm Nietzsche (ele tentou impedir mesmo a publicação do livro de Malorny). Que justamente Harich dirija a "Hager e consones " a pergunta: O que fazer com aqueles que pensam de outro modo? (no taz de Berlim, de 22/2/1992), isso não carece de maiores comentários.

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entra em contato com um fora puro.) No entanto, a partir ou por meio do aforismo a intensidade da corrente de vida pode aumentar e se juntar a outras correntes da mesma espécie. É próprio do aforismo, como diz Deleuze em referência a Nietzsche, que não nos oriente para um determinado significante (signifiant). Há, por isso, um vínculo do aforismo com o humor e a ironia. Estes provêm da emergência do inesperado no aforismo, que deixa o leitor livre. "E nos é falsa toda verdade que não resultou numa gargalhadl', como ensina o Zaratustra de Nietzsche (Nietzsche 21, Assim Falava Zaratustra, III, De Tábuas Novas e Velhas, p. 23). "Um aforismo é um puro objeto de riso e de alegria'\ escreve Deleuze. Fala ele de uma "alegria revolucionária" diante dos medos de nosso pequeno narcisismo e dos terrores de nossa culpabilidade (culpabilitl) (Deleuze 6, p. 167, 171, 170). A interpretação deleuziana de Nietzsche, que em muitos aspectos concorda com a de Michel Foucault, se presta à crítica da "cultura burguesa", na medida em que busca dissolver os três instrumentos essenciais em que se assenta a sociedade: lei, contrato e instituição. Dos três pensadores que se encontram no início (comme aube) da modernidade (a trinité, como diz Deleuze) - Nietzsche, Freud, Marx -, o papel decisivo cabe a Nietzsche, mas de um modo tal que seu pensamento se reveste de um pathos social que lhe é estranho. À dissolução dos códigos sociais estabelecidos, segue-se, com o apelo a Marx e Freud, a recodificação (recodage) mediante os dois sistemas burocráticos fundamentais do marxismo e da psicanálise, en-quanto ordens que fixam a vida pública, de um lado, e a vida privada, de outro (des deux bureaucraties fondamentales, !'une publique, l'autre privée) (id., ibidem, p. 161 e ss.). De acordo com seus esforços anarco-socialistas - contra roda codificação pela lei, contrato ou instituição-, tanto Deleuze quanto Foucault lançam mão de Nietzsche contra um "abur-

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guesamento" que imp~tam t~mbém ao pensamento maneista _ cont~a a concepçao que este ~em _de si mesmo, a partir da qual, inversamente, eles própnos, Junto com Nietzsche · re1e?ad?s ao pano 1 "b urgues " ,, . - Em meio às imputa-' seriam ções conce1tua1s de ambos os lados, falar de "consciência de classe burguesa,, põe a perder o que ainda resta de sentido atual (não histórico). Ainda continuaremos a deparar com esse tipo de afirmação como instrumento de luta ideológica? Impõe-se a questão de saber se a corrente de força, com a qual Deleuze penetra de fora (dehors) no interior dos aforismos nietzschianos e de novo volta para fora, enriquecido pelo seu conteúdo, não acaba por estabelecer um tratamento arbitrário dos textos do filósofo, tratamento que excede a abertura já concedida por Nietzsche a seus leitores. Tal pergunta deve ser respondida afirmativamente. É característico do modo como os franceses lêem atualmente Nietzsche que se liguem a ele de uma maneira particularmente descompromissada a fim de pôr em campo reflexões próprias. Deleuze não se preocupa muito com o mau uso do pensamento nietzschiano pelo fascismo. Como ele diz, Nietzsche foi completamente deformado (completement déforme") pelos facist'as e nacional-socialistas; o mesmo provavelmente acontecerá no futuro com jovens facistas. Segundo Deleuze, no que diz respeito ao passado desse tipo de leitura de Nietzsche na França o essencial já foi dito por Jean Wahl, Georges Bataille e Pierre Klossowski. Quanto ao futuro, parece-lhe mais importante descobrir as forças que tragam de volta à luz (rejoindre) o livre sentido, que se expele para fora, das diferentes construções (à telle phrase ou telle phrase) de Nietzsche. O filósofo francês caracteriza o método de Nietzsche apontando seu caráter ativo, extrapolador de fronteiras. Já não se deve perguntar hoje se um de seus· textos é, em si, fascista, burguês ou revolucionário.Trata-se, antes, de encontrar e re-

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forçar na realidade a força revolucionária (la force révolutionnaire) que subjaz aos textos de Nietzsche. Com isso, mostrase sob uma nova luz quem é o além-do-homem (qui est surhomme?) O aforismo deve ser tratado como algo que espera entrar em cena, que se pode fazer funcionar (fonctionner) ou · explodir (éclater). O aforismo como instrumento de luta, dinamite do espírito, contra a incrustação burguesa - incluindo a socialista: tal aplicação do "saber subversivo" pelos netos de Zaratustra poderia ocorrer a Nietzsche. Mas naturalmente não no sentido de que seus textos fossem postos a serviço da luta da maioria, e mesmo das massas, a não ser que, com as mudanças de nosso século, abrisse mão de suas concepções fundamentais. Todavia, apesar da distância entre o ideal nietzschiano de nobreza e o empenho dos dois franceses pela emancipação das massas, estes últimos também podem se ligar, de modo sério, a Nietzsche. Ao incorporar sua forma de observação genealógica na compreensão da história, fizeram jus a um traço fundamental de seu filosofar, normalmente desprezado pelos intérpretes alemães de Nietzsche. Os filósofos franceses também encontraram em Nietzsche o instrumental analítico para a desmistificação da "idéia de homem". O tema da dissolução do sujeito, ou seja, do homem, é freqüentemente mal-entendido. Do ponto de vista da história da filosofia, ele tem sua raiz na destruição do conceito de substância, na Crítica da Razão Pura, de Kant, destruição em virtude da qual já não se pode atribuir substancialidade ao eu. O caminho que vai de Kant a Nietzsche não pode ser descrito aqui. Mas ao fim da interpretação nietzschiana do homem como uma multiplicidade sempre em mudança, Deleuze pode perguntar: "Quem fala? Quem age? É sempre uma diversidade - mesmo numa única pessoa que fala ou age. Todos nós somos 'grupos'". Por certo, as consequências filosó-

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fico-sociais que retira são diametralmente opostas ao modelo básico nietzschiano da estruturação hierárquica do homem e da sociedade: "Já não há representação, há apenas ação: a ação da teoria e a ação da práxis numa rede de relações e transferências". (Deleuze/ Foucault 7, p. 129).

6. Nietzsche como desafio ao pensamento não-dogmático

Ao nos concentrarmos na especificidade da repercussão literária de Nietzsche, fomos obrigados a abstrair de todos os conteúdos filosóficos, tais como as chamadas "teorias" da vontade de potência e do eterno retorno do mesmo. Tendo como propósito saudar a fundação de uma agremiação aberta à herança de Nietzsche ao mesmo tempo em que com ela se compromete criticamente, pretendi chamar a atenção para os problemas de leitura de um autor cujos escritos são relativamente fáceis de ler e, no entanto, difíceis de entender. Espero, naturalmente, que nos eventos desta agremiação se discutam vivamente as questões que levantou e que respondeu - quase sempre com reserva, jamais definitivamente. Com certeza, todos nós temos de nos submeter ao desafio que sua filosofia nos coloca atualmente. Para mim, importava aqui apenas uma coisa: prevenir, com o próprio Nietzsche, para que não se faça dele um "pensador" com "visões de mundo,,, em cujas palavras podemos nos apoiar como em novas fórmulas, depois que as antigas se despedaçaram. Não é nem como nietzschiano, nem como antinietzschiano, que se pode dar conta daquilo que nos deixou para pensar. Não devemos seguir-lhe as ocasionais inclinações para o pensamento dogmático. No Ecce Homo, Nietzsche escreveu: "nada tenho de fundador de religião ... Não quero 'crentes' ... Tenho um medo

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pavoroso de que um dia me declarem s~nto: perceberão por que publico este livro antes, ele deve ev1tar _que se cometam abusos comigo ... Eu não quero ser um santo~ prefiro ser um bufão ... Talvez eu seja um bufão ... E, apesar disso, ou melhor, não apesar... a verdade fala em mim" (Nietzsche 21, Ecce Homo, Porque sou um Destino, 1). ·

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. ALLEMAN, B. Nietzsche und die Dichtung. ln: Nietzsche. Werk und Wirkungen. Organizado por H. Steffen. Gottingen, 1974. . 2. BEHLER, E. Nietzsche und die frühromantische Schule. ln: Nietzsche-Studien 7, 1978, p. 59-87. 3. BENN, G. Nietzsche - nach fünftig Jahren. (Conferência de 25/8/ l 950.) ln: Gesammelte Werke in vier Biinden. Editadas por D. Wellershoff. Vol. 1, 1962, 2 ed. 4. BISER, E. Das Desiderat einer Nietzsche-Hermeneutik. ln: Nietzsche-Studien 8, 1980. 5. CAMUS, A. L' Homme révolté. Paris, 1951. Citado em Der Mensch in _der Revolte. Tradução de J. Streller. Hamburgo, 1953. 6. DELEUZE, G. Pensée nomade. ln: Nietzsche aujourd'hui. Paris, 1973, vol. I. 7. DELEUZE, G./FOUCAULT, M. Gespriich zwischen Michel Foucault und Gilles Deleuze: Die Intellektuellen und die Macht. Citado em M. Foucault Von der Subversion des Wissens. Tradução de W. Seitter. Munique, 1974. 8. GREIGER, B. Friedrich Nietzsche: Versuch und Versuchung in seinen Aphorismen. Munique, 1972.

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O DESAFIO NIETZSCHE

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DÉCADENCE ARTÍSTICA

ENQUANTO DÉCADENCE FISIOLÓGICA

A propósito da crítica tardia de Friedrich Nietzsche a Richard Wagner* WüLFGANG MüLLER-LAUTER**

"Não há coisa alguma, sobre a qual eu admita oposição. Sou, em questões de décadence, a mais alta instância que agora existe sobre a Terra'' (carta 1131), escreve Nietzsche de Turim, em 18 de outubro de 1888, a Malwida von Meysenbug, com cuja resposta ao envio do Caso W'cigner se sentira ofendido. Já no prefácio a este escrito ele observara que aquilo com que se ocupou mais a fundo foi o problema da décadence; tivera razões para tanto (WNCW; carta de Turim de maio de 1888). As razões atingem até a sua própria personalidade. Ele se compreende enquanto décadent, e isto com respeito a

* Tradução de Scarlett Marton. ** Professor emérito da Humboldt Universitat de Berlim.

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crês aspectos: hereditário, num olhar retrospectivo sobre a morbidez do pai; biográfico, já que exposto de forma desmedida ao estar doente (EH/EH, Por que sou tão sábio); e, por fim, enquanto filho de sua época, de um tempo de declínio (FW/GC, Prefácio da segunda edição,§§ 2-3). Experiente em questões de décadence, soletrou-a, como escreve no Ecce u "de tras , para a frente e de irente L , )) nomo, para eras . Nietzsche compreende-se ao mesmo tempo como " oposto de um decadent)) , como "sadºzo no fu ndamento)) . por ser ambos, pode "transtrocar perspectivas"; pode "a partir da ótica de doente" olhar para o mais sadio e, inversamente, a· partir da riqueza da vida "olhar para baixo e ver o secreto trabalho do instinto de décadence". Se é que em algo, foi neste exercício, segundo o testemunho no Ecce Homo, que se tornou mestre (EH/EH, Por que sou tão sábio). · Desde cedo, Nietzsche refletiu sobre a questão da décadence, mas só em 1888, em seu último ano de atividade, a palavra converteu-se num dos conceitos centrais do seu filosofar. Para tanto, concorreu a leitura que fez do primeiro volume dos Essais de Psychologie Contemporaine (1883) de Paul Bourget, onde encontrou o conceito empregado de maneira específica. Nietzsche tinha em alta conta a capacidade analítica de Bourget. Ainda numa de suas últimas anotações (de dezembro de 1888/ janeiro de 1889), ele o denomina "alguém da raça profunda (... ), aquele que por si mesmo mais se aproximou de mim". Isso deve significar que Bourget se engajara, em seu próprio caminho, bem próximo daquilo que Nietzsche também pensava. 1 Bourget descreveu um moviI

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25 [9] de dezembro de 1888/ início de 1889. Antes do rompimento com Malwida von Meysenbug, a que leva a carta citada logo no início,

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1nento de desagregação, em particular na literatura francesa contemporânea. Desagregação dessa espécie o próprio Nietzsche discutiu em múltiplos contextos. Que as suas próprias análises aprofundassem aquelas em que Bourget permaneceu reservado, em nada altera que por ele se sentisse não só estimulado mas também confirmado. Impressionara-o, pois, a caracterização que Bourget faz da décadence literária no ensaio sobre Baudelaire. 2 Lá ~ourget explica a décadence enquanto processo pelo qual se tornam independentes partes subordinadas no interior de um organismo. Esse processo tem por conseqüência a "anarquià'. A língua, como a sociedade, constitui um tal organismo. Escreve Bourget: "Um estilo de décadence é aquele em que a unidade do livro se decompõe para dar lugar à independência da página, em que a página se decompõe para dar lugar à independência da frase e a frase, para dar lugar à independência da palavra. Na literatura atual, multiplicam-se os exemplos que corroboram essa fecunda verdade" (Bourget 1, p. 25). Nietzsche julgou essa caracterização apropriada para designar o estilo artístico de Richard Wagner. Já no inverno de 1883/84, ele observa: "Estilo da decadência em ~gner:

Nietzsche aconselhara-se com a amiga em sua procura de um tradutor do Caso Wágner para o francês. A esse propósito escrevera-lhe: "Decerto, teria de ser um fino e mesmo refinado estilista, para reproduzir o tom do escrito"; e entre parênteses observara: " Durante todo o verão, eu teria tido a oportunidade de aconselhar-me com outra pessoa, o Senhor Paul Bourget, que morava nas proximidades; mas ele não entende nada in rebus musicis; não fosse por isso, seria o tradutor de que preciso" (carta de 04/10/1888). 2

Sobre "N ietzsches Baudelaire Rezeption", cf. com esse título as considerações de Karl Pescalozzi (Pestalozzi 9). Cf. também a discussão dessa conferência que a ela se segue.

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cada andamento particular torna-se soberano, a subordinação e classificação tornam-se aleatórias. Bourget p. 25!" (24 [6] do inverno de 1883/1884) Numa carta da primavera de 1886 a Carl Fuchs, então se lê sobre a música de Wagner: "A parte torna-se senhora sobre o todo, a frase sobre a melodia, o instante sobre o tempo (também sobre o ritmo), o pathos sobre o ethos e, por fim, o esprit sobre o 'sentido'. (... ) Vê-se o particular muito nítido, vê-se o todo muito embotado ( ... ) Mas isto é décadence, uma palavra, que, como entre nós se compreende por si mesma, não deve censurar, mas apenas designar" (carta 688). No Caso Wágner, encontramos uma variação do texto de Bourget citado: "Como caracterizar toda décadence literária? Com isto: a vida não m ais anima o todo. A palavra torna-se soberana e irrompe para fora da frase, a frase transborda e obscurece o sentido da página, a página ga_nha vida em detrimento do todo - o todo já não é mais um todo". Mas isto seria "a imagem para todo estilo da décadence", 3 acrescenta Nietzsche.

3

WA/ CW § 7. Discutiu-se com freqüência o fa to de N ietzsch e aqui ter util izado em silêncio a formul ação de Bourget . Cf. a propósito J. Kamerbeek. (Kamerbeek 2, p. 273 e seguintes) . Em 1938, W esternhagcn acusou Nietzsche de plágio (Westerhagen 1O). Mon tinari chan:1ºu atenç~o para ª. variante de Nietzsche: "( ... ) no Caso Wágner, 0 m ovimento vai do particular para o geral, da palavra para o todo; nos Essais de Bourget, vai do todo e do geral, do livro, p ara o particular, para a palavra. Devemos fal ar em plágio como era costume no fin al d o século (e, ainda depois, entre wagnerianos pouco inteligentes como C ure von Wesre:nh~gen)?_Ou incomodar o d ireito que o gênio tem de pilhar, com a referencia de n gor a Goethe?" M o nrinari reclama, em vez d isso, q ue a problem á ti ca d a décadence deveria subm eter-se, face a Ni etzsche, Bourgct e outros de seu tempo , à consideração histórica (Moncinari 3,

p. 145).

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11 Antes de mais nada, sigo a descrição que Nietzsche faz da "décadence artística" de Wagner. Ela deve preparar a exposição de suas relações com os "dados fisiológicos". Com isso, trata-se para mim apenas de apresentar uma contribuição para a compreensão que Nietzsche tem da décadence acima de tudo. Por isso descarto todos os outros aspectos de seu multifacetado trato com Wagner. 4 Oriento-me principalmente pelo Caso ~gner e pelos póstumos de 1888. Não são poucas as "objeções" de Nietzsche contra Wagner, relevantes para o meu tema, que Jª se encontram nos seus escntos ou anotaçoes anteriores (já nos apontamentos de 1874 existem primeiras indicações a esse respeito), antes pois de serem subsumidas no conceito de décadence. Alguns dos textos anteriores, como se sabe, foram retomados na "coletâneà' Nietzsche contra ~gner. Uma vez que a última fase ativa de Nietzsche ganha especial significado para a problemática aqui discutida, remeto-me (em poucos casos) a essa seleção tardia de textos, sem mencionar a publicação anterior. Que no estilo da décadence a parte se torna independente em relação ao todo, que se torna "soberana", manifesta a falta de força organizadora. A censura da "incapacidade para • I

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Aqui se tem de prescindir inclusive da estreita relação (significativa para a problemática da décadence) que Nietzsche estabelece entre Wagner e o romantismo francês tardio. As abalizadas determinações para a compreensão que Nietzsche tem da décadence artística precisam apartar-se de suas apreciações musicais pessoais. Estas talvez tenham de ser deixadas de lado, por exemplo, quando se lê numa anotação da primavera de 1888 que as melhores óperas modernas são as de Koselicz, em seguida a Carmem de Bizet e, em terceiro lugar, os Mestres Cantores de Wagner, "uma obra-prima do diletantismo" (15 [96] da primavera de 1888).

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formas orgânicas" constitui assim"a princip:l obje~ão ~e Nietzsche contra a arte de Wagner. Wagner nao podia criar a partir do todo; ele não tinha ~s~olh~; precisav~ fa~~r uma obra fragmentária". Enquanto miniatunst~, que cno_u pequenas preciosidades", "só curtos trechos de cinco a qu1nz~ compassos", Wagner pode ser grande. Mas as pequenas unidades, separadas umas das outras, que pôs em movimento, produzem em sua sucessão uma perturbação da ótica, que obriga a uma mudança contínua de atitude face a sua obra (WA/CW §§ 7 e 1O. Cf 11 [322] de novembro de 1887/ março de 1888 e 15 [12] da primavera de 1888). São no fundo gestos musicados, atitudes reforçadas pela música, a partir dos quais se compõe a selvagem multiplicidade (WA/CW § 7), uma grandiosa massa que confunde os sentidos (1 O [37] da primavera de 1888). De acordo com Nietzsche, Wagner está, enquanto músico, entre os pintores (cf JGB/BM § 256). Indicar a multidão das "pequenas unidades" é, porém, insuficiente, para caracterizar a compreensão que Nietzsche tem da décadence de Wagner. Mais importante ainda é "o excesso de vida nas menores coisas" (WNCW 2º posfácio; cf § 7), o dispêndio de significados a que ele impele. O gesto particular é arrastado na duração (WNCW § 8), repetido e aumentado. Seria "ambição de Wagner coagir até os idiotas a compreenderem Wagner" (14 (62] da primavera de 1888). Ele "diz uma coisa tantas vezes até que se chegue ao desespero - até que se creia nela". Sob a "lente de aumento", que nos oferece, "as coisas" crescem até o gigantesco. Sentimentos ex· tremas devem surgir e abalar nossos nervos: o sublime e o passional e, em verdade, na forma que "o ideal da décadence exige": o "expressivo a qualquer preço". Tais sobrecargas artísticas devem compensar a falta de organização. Mas a própria composição a partir dos gestos que entram em . cena como importantes resulta apenas num artefato e não num todo vivo

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(WA/CW §§ 1, 3, 6, 11 e 7). Para substitui-lo de algum modo, Wagner oferece a idéia de infinitude, que sua música "significa,,, a que ela remete o pressentir. 5 Com tudo isso, Nietzsche busca tornar evidente a falta de unidade interna e de coesão na árte de Wagner. Ele faz mais do que o necessário, quando a ela opõe a "completude,, da música de Bizet. Esta "é rica. É precisa. Constrói, organiza, perfaz; é por isso o oposto do pólipo na música, da 'melodia infinita,,,. 6

111 Que Nietzsche não se atenha à décadence de Wagner enquanto fenômeno estético, fica claro quando recorre à sua

5 WNCW

§ 10; cf. § G; cf. também a carta de Nietzsche a C . Fuchs do inverno de 1884/85. Surpreende ler que Wagner seria tributário de Hegel no que diz respeito à idéia de infinitude. Westernhagen viu, também aqui, a influência de Bourget na obra. Uma vez que, para este, o que havia de nebuloso no espírito alemão estava representado no hegelianismo, Nietzsche teria combinado Wagner e Hegel e, em tal retrato, teria visto apenas o alemão em Wagner (em comparação com o francês outrora em evidência) (Westernhagen, p. 513 e seguinte).

6

WNCW § 1. Ocasionalmente, Nietzsche vai além dessa oposição polêmica e põe em dúvida a capacidade da música em geral para chegar ao grande estilo. O grande estilo despreza os "belos sentimentos"; não quer persuadir. Ele ordena. Pelo seu querer, o caos é dominado. "Tornar-se forma (... ): lógico, simples, inequívoco". "Matemática", "tornar-se lei: eis aí a grande ambição", com a qual não se agrada, mas se rechaça. Nietzsche pergunta: Por que faltam os ambiciosos do grande estilo precisamente na música? "Nenhum músico jamais construiu corno aquele construtor que criou o Palazzo Pitti". Faria parte do caráter de "toda nossa música" ser "contra-Renascimento na arte" e "décadence enquanto expressão da sociedade" (14 [G1] da primavera de 1888).

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personalidade. A estética estaria ligada a pressupostos biológicos, lê-se no epílogo do Caso Wágn:r. ~'Os princ~pios e práticas de Wagner são todos eles redut1ve1s a calamidades fisiológicas; constituem a sua expressão ('histerismo' enquanto música)" (16 [75] da primavera/ verão de 1888; cf. WA/CW § 7). Isto deve referir-se a cada perversão particular da arte inaugurada por Wagner. Em que consiste a décadence agora não mais apenas da arte, mas do artista Wagner? Nietzsche reúne essas "características" no conceito de "comediante". Já em sua Quarta Consideração Extemporânea, ele falara do "talento" originário de comediante em Wagner, que se "forçou o acesso violento às outras artes, para poder, enfim, comunicar-se e fazer-se compreender com cem vezes mais clareza e forçar à compreensão o maior número de pessoas" (WB/ Co. Ext. IV§ 7; WA/CW §§ 7 e 9) . Mas isto já não é considerado tão positivo quanto soa no contexto. A mobilidade na pluralidade que Wagner tem deixa de ser para Nietzsche um sinal de fortaleza, mas de fraqueza ou, mais precisamente, de uma fraqueza, que se arvora em fortaleza. Uma vez que Wagner se põe para a música como um comediante, então ele poderia de certo modo falar a partir de diferentes almas musicais e justapor o totalmente diverso. De acordo com Nietzsche, ele seria inconsistente, o que nos permite, por analogia ao que diz respeito à sua obra, assim interpretar: a unidade de sua personalidade não lhe dava nenhuma força orga. . n1camente const1tut1va. O que é dessa maneira inconsistente encontra naquilo que faz efeito de modo mais veemente o substituto para o verdadeiro efetivo. Wagner "não quer nada além do efeito". A partir daí, compreende-se sua "retórica de teatro", de que fazem parte meios como o "reforço dos gestos" e a "sugestão". Em todos os outros estados que não os dos mais elevados afetos, ele vê fraqueza e falsidade . "Tirano pelo seu

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pathos", dotado de uma "consciência quase inquietante de todo elementar no efeito da música", Wagner é, por fim, para Nietzsche, o maior "mestre do hipnotismo" (WA/CW § 8; 15 [6] da primavera de 1888). Daí resulta seu amplo efeito, que Nietzsche também vê como profundo. Ele não se esgota em mera ressonância estética. O comediante Wagner é "um sedutor em grande estilo": "Não há, nas coisas do espírito, nada de cansado, de extenuado, nada de perigoso para a vida e de caluniador do mundo, que não seja tomado em segredo sob proteção por sua arte. ( ... ) Ele lisonjeia todo instinto niilista (budista) e o traveste em música; lisonjeia toda forma de cristianismo, ~oda forma religiosa que exprime a décadence1'. Sua arte, enraizada na décadence fisiológica, auxilia os outros modos de expressão da vida declinante; mais ainda, promove o declínio. "O que é prejudicial atrai o esgotado. ( ... ) Wagner agrava o esgotamento; é por isso que atrai os fracos e esgotados'' (WA/CW posfácio e § 5). Pois isto vale para todo tipo de décadence: o fraco prejudica instintivamente a si mesmo e "tanto fisiológica quanto psicologicamente; o instinto de reparação e plasticidade não atua mais". O instinto desencaminhado escolhe até o que acelera o esgotamento (WA/CW § 5; 14 [102] e 14 [210] da primavera de 1888; 17 [l] e 17 [6] de maio/junho de 1888).

IV Notamos quão longe Nietzsche leva a redução do artístico ao fisiológico. Segundo ele, Wagner não apena~ representa suas próprias "calamidades fisiológicas", mas para elas também transfere seus ouvintes. É a partir da própria experiência que Nietzsche fala, quando menciona as conseqüências

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de ouvir a música wagneriana: "respiração irregular, perturbação da circulação sangüínea, extrema irritabilidade com coma repentina". Anota o que é muito pessoal: "Como se explica que a música de Wagner me debilita, que suscita em mim uma impaciência fisiológica, que por fim se manifesta numa leve transpiração? Depois de um, depois no máximo de dois atos de Wagner, dele corro". Generalizando sua vivência, Nietzsche encontra "causas para o esgotamento extremo que a arte de Wagner traz consigo" na "ótica mutável" e na "resistência fisiológica", com que conduz expressamente o "respirar" e o "andar"; no "constante exagero" dessa música "descobre" "a tirânica segunda inçenção: a excitação dos nervos mórbidos e dos centros por meios terroristas". O efeito de Wagner é, por causa de seu pathos, "profundo; é sobretudo · muito pesado". A necessidade de respirar que se sente é reduzida à "duração desse pathos"; o "prender o fôlego" musical de Wágner é o que a provoca (I 6 [75] da primavera/ verão de 1888; 15 [111] e 15 (12] da primavera de 1888; 16 [37] da primavera/ verão de 1888; WA/CW §§ 7 e 8; NW/NW, Lá onde faço objeções) . Nietzsche contrapõe sua resistência fisiológica à refutação fisiológica de Wagner (15 [111] da primavera de 1888; 16 [75] e 16 [80] da primavera/ verão de 1888. Cf. WA/CW posfácio e epílogo). O doente torna doente (WA/CW § 5; 16 [75] da primavera/ verão de 1888); então, ele tem de ser combatido. De acordo com Nietzsche, as heroínas de Wagner são, todas elas, casos de doença (WA/CW § 5) (até Eva nos Mestres Cantores teria de submeter-se "sem falta à inspeção psiquiátrica"), que decerto, apesar de sua verdade natural "até o repugnante", devem ter importância também no futuro para "uma análise psicofisiológica de •estados doentios" ( 15 [99] da primavera de 1888). Mesmo quando Nietzsche considera os décadents como excre1nentos da sociedade (16 [22] da pri-

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mavera/ verão de 1888), um tal excesso (como muitos outros) de expressão não permite que haja engano quanto a isto: ele sempre considerou os décadents - como também o decadente em si - como indispensáveis para as possibilidades humanas de crescimento.

V Por isso, o filósofo, em especial, "não (é) livre, para ignorar Wagner". Pois, o filósofo tem de "ser a má consciência de seu tempo - e, para tanto, tem de ter a melhor ciência de seu tempo". Ele não poderia encontrar "um guia mais bem iniciado" no "labirinto da alma modernà' do que Wagner.7 Não é apenas nos modernos que o filósofo deve poder constatar os fenômenos psicológicos, e por fim os fisiológicos, de declínio. A própria filosofia já está, desde Sócrates, na via da perversão. O esquema de interpretação, que se confirma no que diz respeito à décadence artística de Wagner, deve também ajudar a desmascarar a décadence filosófica dos gregos. Nietzsche evidencia a falta de unidade orgânica, que deve remeter por fim à décadence fisiológica, em "O problema de Sócrates" no Crepúsculo dos Ídolos, cuja publicação ele fez suceder à do Caso Wágner. Ali, indo além de suas declarações anteriores sobre a inimizade do instinto de Sócrates, ele fala de sua "desordem e anarquia nos instintos" (GD/CI, O problema de Sócrates,§ 4; 14 [92] da primavera de 1888).

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WNCW prefácio. A refutação fisiológica da arte de Wagner não diminui o "interesse" de Nietzsche por ela. "O caso Wagner é para o filósofo um caso feliz"; ele permite "um diagnóstico da alma moderna" em sua "contraditoriedade de instintos" (WA/CW epílogo).

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Já no Caso ~gner, logo após a paráfrase de Bourget, Nietzsche falara da "anarquia dos átomos,, e da "desagregação da vontade,, como características de toda décadence (WN CW § 7). Ele as encontrara, em Wagner, por trás do volume de unidades musicais separadas, por trás da selvagem pluralidade. O movimento da décadence em Wagner levaria ao exagero do sentimento, ao êxtase. O movimento socrático vai na direção oposta, mas é também um movimento de decomposição. Wagner é tirano através de seu pathos; Sócrates é tirano através da dialética de sua razão fundada na moral. Não apenas ele próprio precisava dessa tirania; toda a velha Atenas que estava a findar começou a padecer da mesma doença. "Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, apenas aquele que mais saltava aos olhos, daquilo que naquele tempo começava a tornar-se a indigência geral: que ninguém mais era senhor de si, que os instintos se voltavam uns contra os ,, outros . Sócrates torna-se senhor dos instintos, na medida em que produz "contra os desejos sombrios uma permanente luz do dia". Nietzsche fala nessa relação, retomando um conceito do Nascimento da tragédia, da "superfetação do lógico" em Sócrates (GT/NT § 13). A razão que se expande anômala luta contra os instintos e os enfraquece. Perturba-se com isso a cooperação orgânica das funções fisiológicas. Esta permanece em décadence; apenas recebe uma outra forma de expressão. Sócrates é um médico, que só cura em aparência. Seus meios até preservam do perecimento no confronto dos instintos, mas apenas protelam a decadência. O médico, que põe um fim à décadence, não é Sócrates, mas a morte. Por fim, Sócrates queria morrer; talvez porque soubesse que assim correspondia à mais íntima intenção da décadence (GD/CI, O problema de Sócrates).

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VI Sócrates aparece _no Crepiísculo dos ídolos como O representante do cansaço vital dos mais sábios de todos os tempos. Para ele, para o que Nietzsche diz dele, encontram-se correspondências essenciais no domínio da décadence religiosa. E isto vale, em especial, para o padre ascético, posto em evidência por Nietzsche enquanto tipo, a respeito do qual se lê na Genealogia da Moral que teria "servido, até a época mais recente, como repulsiva e tenebrosa lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar" (GM/GM III § 1O). Quando fala da "praxis" do padre ascético, Nietzsche tem diante dos olhos todo efeito retardado, que mais tarde descreveu tendo em vista Sócrates: evitar a desintegração repentina através da mudança do movimento numa decadência gradual. Enquanto pastor de um rebanho de doentes, o padre comporta-se ao mesmo tempo como médico. Os meios que emprega não serão aqui enumerados por completo. 8 Consistem basicamente, de acordo com Nietzsche, no fato de que com sua "medicação de afeto" não cura. Ele apenas atenua o sofrimento com práticas de espécies muito diferentes, como por exemplo o hipnotismo, que amortece o sentimento de vida, ou com a intensificação de um afeto, que leva à confusão de sentimentos, através da qual se reprime temporariamente o desprazer. As correspondências com o artístico, como Nietzsche destaca em relação à décadence de Wagner, são evidentes. O padre ascético não combate as causas dosofrimento dos doentes, na medida em que ele não é médico. Para poder ser enfermeiro (no sentido em que pode sê-lo), ele próprio tem de ser doente: aos doentes "tem de ser aparen-

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Cf. a respeito Müller-Lauter 4, p. 72-80.

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tado desde O fundamento, para entendê-los - para se entender com eles" (GM/GM III §§ 15-20). Também a este aspecto Nietzsche recorreu para compreender o efeito de Wagner, como foi exposto acima. Diante da radicalidade, da tarefa, que o padre ascético tem de colocar-se, para Nietzsche diminui a importância da décadence artística. Para ele, trata-se de dar, através de sua interpretação, um sentido ao sofrimento para fechar a porta "a todo niilismo suicida". Decerto, no lugar do fim rápido vem agora "um novo sofrimento (... ), mais profundo, mais íntimo, mais venenoso, mais corrosivo da vida". Nele é eficaz a vontade de nada (GM/GM III § 28). O artista pode, sem dúvida, ostentar sua eficácia particular a serviço do ideal ascético. É o caso do Wagner tardio. Na Genealogia da Moral, Nietzsche examina o seu caminho de Feuerbach a Schopenhauer. Este último, enquanto "um espírito realmente assentado em si mesmo (... ), um homem e cavaleiro de olhar de bronze, que tem a coragem de ser ele mesmo, que sabe estar só", afasta-se claramente de Wagner, que enquanto um seguidor nunca "teria tido a coragem para um ideal ascético" "sem o amparo que a filosofia de Schopenhauer lhe ofereceu". A décadence artística de Wagner, no que diz respeito à sua gravidade, recua ainda uma vez diante da décadence filosófica, na medida em que Nietzsche a esta subordina Wagner; ele teria aceito os ideais filosóficos de Schopenhauer indiretamente, apenas por causa de seu elevado apreço pela arte, em particular pela música, que deve falar "a língua da própria vontade". Com a "elevação do valor da música" promovida por Schopenhauer, com sua "soberania,, em relação às outras artes, "também a cotação do miísico subiu prodigiosamente,,, observa Nietzsche com sarcasmo; "ele tornou-se um oráculo, um padre, mais que um padre, uma espécie de porta-voz do 'em-si' das coisas, um telefone do

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além, - já não fala:'ª a~~nas de música: esse ventríloquo de Deus, - falava de metafisica: como admirar que um dia falasse de ideais ascéticos?" (GM/GM III §§ 2-5). Com Schopenhauer, Wagner foi "salvo", lê-se no Caso Wtgner. "O benefício que Wagner deve a Schopenhauer é imenso. Precisamente o filósofo da décadence revelou o artista da décadence para si mesmo". 9

VII Tal polêmica de Nietzsche, que quer atingir o demasiado humano de Wagner, oculta por certo a pergunta pela relação entre a décadence artística e a fisiológica, a que se deve chegar aqui. Essa questão exige sobretudo um esclarecimento acerca do conceito de fisiologia em Nietzsche. E este não é de modo algum inequívoco. Três determinações gerais deixam-se evidenciar; elas se sobrepõem com freqüência. A relação entre elas apresenta-se como inteiramente plausível, mas aqui se tem de renunciar a tratar de que maneira isso se dá. Em primeiro lugar, Nietzsche segue o uso da palavra "fisiologià' feito pelas ciências de sua época. Ele familiarizou-se bastante com a literatura, de diferentes níveis, a esse respeito. Embora lhe faltassem conhecimentos especializados das ciências da natureza, procurou, com ajuda de sua consciência dos diferentes problemas metodológicos, responder de algum

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WNCW § 4. Nietzsche volta-se contra "o mau gosto de tentar subsumir Wagner e Schopenhauer aos doentes de espírito". "O ~ue corres~on,di_a inteiramente à verdade era salientar o forte traço de decadence fis1olog1ca nesse tipo" (14 [122] da primavera de 1888; cf. também 15 [35] do mesmo período) .

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modo questões básicas relevantes do ponto de vista teóricocientífico, cuja importanc1a ate _agora nao se_ ap~e~1ou O bastante. Em segundo lugar, para N1etzsch~ o fis10log1co é O que determina de modo somático (e por isso fundamental) os homens. Está na base, em sua respectiva auto-compreensão, dos ocultamentos "ideais" taticamente já dados. O conceito remete, com freqüência, às funções orgânicas ou ao afetivo · no sentido do imediato corpóreo. Posso observar apenas que as próprias experiências de Nietzsche relativas ao corpo trazem esta compreensão de "fisiologia" e que, levado por elas, tanto acolheu muitos de seus estudos das ciências da natureza quanto elaborou alguns conceitos filosóficos fundamentais. Estes últimos levam à terceira determinação de "fisiologia" em Nietzsche. Ele chega a interpretar os processos fisiológicos como a luta de quanta de potência que "interpretam". Ao descrever a complexidade de toda simplicidade, apenas aparente, dos dados últimos, escapa tanto dos esquemas de pensamento mecanicistas das discussões científicas de sua época quanto dos teleológicos. 10 A partir do confronto dos quanta de potência determinam-se suas respectivas força e fraqueza. De acordo com considerações tardias de Nietzsche, também os "macroprocessos" sociais determinam-se fisiologicamente. Assim "a civilização acarreta o declínio fisiológico de uma raça"; aí se questiona a corrupção da maioria dos homens em seu caráter fisiológico. É preciso estar atento .a esta trindade, quando se lê as considerações dispersas de Nietzsche sobre a décadence fisiológica. Nos seus escritos e manuscritos de 1888 em particular, o corporal aparece como irredutível e, por sua vez, cons-

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°Cf. a respeito Müller-Lautcr 5, p. 205 e seguintes.

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titutivo. Se não se remete declarações dessa espécie à terceira determinação acima mencionada, chega-se inevitavelmente à concepção de que a filosofia de Nietzsche acaba, em último lugar, num fisiologismo de cunho limitado. 11 Sem dúvida, ele sempre atribuiu ao corpo prioridade em relação ao "espírito", à "consciência", em particular na polêmica contra as concepções "idealistas". Muitas de suas convicções quanto à criação (Züchtung) de um tipo de homem mais elevado partem deste ponto: o espiritual seria conseqüência do corporal. Mas isto é apenas o primeiro plano, em que Nietzsche, por certo, amiúde se detém. O próprio corpo, porém, é, segundo considerações suas diferenciadas, uma "prodigiosa síntese de seres vivos e intelectos"; "existem, pois, no homem tantas consciências quanto seres (... ) que constituem o seu corpo" (37

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Como exemplo de que Nietzsche defende um tal reducionismo em sua filosofia tardia, estaria uma anotação da primavera de 18 88 (14 [ 15 5]). Lá ele recomenda "o tratamento do remorso pela cura Mitchell" (cf. a propósito GM/GM I § 6). E reclama que "toda prática do restabelecimento psíquico" teria de "ser recolocada sobre uma base fisiológica: o remorso enquanto tal" seria "um obstáculo à convalescença". Fica patente assim o procedimento estreito e dogmático, de que Nietzsche por fim se tornou obstinado. De acordo com esse texto, a prática psicológica e a religiosa levam apenas à "mudança dos sintomas". Numa outra anotação da primavera de 1888, ele descreve as "religiões niilistas todas j untas" como "histórias patológicas sistematizadas com uma nomenclatura moral-religiosa". "O cristianismo" vale aqui apenas "enquanto sintoma de décadence fisiológica": "a crença" enquanto "uma forma de doença do espírito"; "o arrependimento, a redenção, a oração" "tudo neurastênico"; "o pecado" enquanto "uma idéia fixa" (14 [13]). Nietzsche cai numa oposição, quando, de um lado, concebe a história do niilismo como conseqüência imanente da auto-supressão da moral, do cristianismo e da verdade e, de outro, coloca-os sob uma grosseira representação fisiológica. Cf. Müller-Lauter 4, p. 106 e seguintes.

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[4] de junho/ julho de 1885). Nietzsche concebe, por fim, 0 homem como "uma pluralidade de 'vontades de potência'",

"cada uma com uma pluralidade de meios de expressão e formas" (1 [58] do outono de 1885/ primavera de 1886). "A melhor imagem" para a cooperação delas é "o que nós denominamos 'corpo"' (37 [4] de junho/ julho de 1885). Portanto, agora "corpo" é apenas um nome; não é de modo algum um dado último. O que assim denominamos não é uma unidade estável, mas reuniões temporárias de muitos. Com isso, a pluralidade é ao mesmo tempo interpretação e, na verdade, num duplo sentido. Ela interpreta a si mesma no estar-em-relação interpretante dos muitos uns com os outros e com o que a ela se opõe. Isto ela compreende por si mesma. Mas ela é também interpretação num outro sentido, ou seja, interpretação do corpo através do filósofo Nietzsche. Este sabia bem mais do caráter de interpretação de suas suposições básicas do que geralmente se supõe. Procurou pensar em conjunto o efetivo dos "processos fisiológicos" e o caráter interpretante de toda existência. Fica aqui em suspenso se, nesse pensar em conjunto, ele teria ou não tomado um "terceiro" ponto de vista da interpretação, que supusesse ultrapassador. 12

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Em todo caso, o Nietzsche da franqueza interpretativa põe-se contra o do fisiologismo limitado. Coloquemos aqui este último frente à exposição de Para além de Bem e Mal, segundo a qual atrás de um filosofia se esconde uma outra. Cada opinião seria um esconderijo, cada palavra também uma máscara (JGB/BM § 289). Em tal abertura do filosofar, que não se põe de modo algum aberta para a popularidade, mas, ao contrário, exige um verdadeiro rigor de consciência, reside, em minha opinião, a importância singular do pensamento de Nietzsche.

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Se se examinar a fundo a fala de Nietzsche sobre o fisiológico, percebe-se (por certo, contra a sua auto-compreensão temporária) que, por fim, a estrutura da organização hierarquicamente sintonizada é determinante e não uma interpretação fisiológica da efetividade, num sentido estreito, que estaria ela própria subordinada a uma interpretação distinta. Quando Nietzsche descreve o corpo como "edifício social" e como "formações de domínio", orienta-se para o mais exterior, a organização social, para compreender o mais interior, os organismos biológicos. 13 Temporário, o dominante reducionismo de Nietzsche, em seu último ano de atividade, ao fisiológico, num sentido grosseiro e numa primeira aproximação, depende de fazer valer seu conhecimento do caráter da estruturação globalizante de tudo o que é, que se achou confirmado por sua leitura de Bourget. Nietzsche é corrigido pelo próprio Nietzsche, especialmente quando reduz a obra de Wagner em certa medida de modo monocausal à sua constituição fisiológica, como ocorre no Caso 'Wtigner. Ainda na Genealogia da Moral se lê que se faz "certamente o melhor ao separar o artista da obra, a ponto de não tomá-lo tão seriamente como a obra". Ele seria, pois, "por fim apenas" a sua "pré-condição", "o útero, o chão, o esterco e o adubo no qual e do qual ela cresce". Com tal exposição, Nietzsche tem em conta as próprias construções da obra. Adiante escreve que se deveria "guardar da confusão, em que, por contiguity fisiológica, para falar como os ingleses, um artista cai facilmente: como se ele mesmo fos-

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Cf. a respeito o trabalho do autor, "Der Organismús ais innerer Kampf - Der Einfl uss von Wilhelm Roux auf Friedrich Nietzsche", loc. cit., p. 220 e ss.

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se O que pode representar, imaginar, expressar. Na verdade, se ele O fosse, simplesmente não poderia representá-lo, imaginálo, expressá-lo; um Homero não teria criado um Aquiles, urn Goethe não teria criado um Fausto, se Homero tivesse sido um Aquiles e Goethe, um Fausto". Na medida em que reconduz tal distância do efetivo à "típica veleidade do artista'>, Nietzsche pode esclarecer o "aperfeiçoamento" do Parsifal de Wagner. Que ele caia em contradição consigo mesmo, quando estende ao artista em geral - e a Goethe em particular toda veleidade (pode compreender-se, pois, a "fisiológica,, como nada além do que uma espécie de décadence), a este ponto ainda se voltará a seguir. Se se procurar extrair de tudo isso um resultado, pode-se dizer tão-só que Nietzsche vê o que chama de décadence artística numa relação de dependência - e, ocasionalmente, também apenas numa relação de correspondência - com o que descreve como décadence fisiológica. A espécie de dependência ou a particularidade de correspondência nele não encontram uma explicação unânime.

VIII Tal informação é, por certo, insatisfatória - que não se deixe a partir dela de referir aos respectivos significados de Nietzsche em sua particularidade. A partir das três determinações de fisiologia apresentadas na última seção, pode-se descrever décadence como perda da capacidade de organização. Segue-se daí desorganização ou desagregação de uma pluralidade reunida num todo: desintegração de uma estrutura disposta em ordem. Poucas indicações sobre o tipo contrário do décadent em Nietzsche devem compor a conclusão destas considerações. Na longa história da patologia humana, existiram, como ele

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expõe na Genealogia da Moral, "os casos raros de pujança do corpo-alma, os casos felizes do homem" (GM/GM III§ 14). E ele os descreve como os '(fisiologicamente) bem-constituídos. No Crepiísculo dos Ídolos, apresenta Goethe como um tal caso feliz. A respeito dele se lê que "combateu o divórcio ~ntre razão, sensibilidade, sentimento, vontade". "Ele se disciplinou para a totalidade; ele se criou". Atingiu e preservou a totalidade, na medida em que se cercou "de horizontes limitados" (GD/CI, Incursões de um extemporâneo,§ 49). Já na Segunda Consideração Extemporânea, Nietzsche opôs à "doença históricà', que desloca continuamente as "perspectivas de horizonte" (HL/Co. Ext. III § 9), a força pldstica dos homens sadios, que se cerca de um horizonte limitado. Essa força transforma o passado e o desconhecido, incorpora-o a si ou elimina-o através do esquecimento (HL/Co. Ext. III§§ 1 e 10). O bem constituído, assim se lê mais tarde na expressa auto-descrição de Nietzsche, "adivinha meios de cura contra danos, utiliza acasos ruins em sua vantagem; o que não o derruba, torna-o mais forte" (EH/EH, Por que sou tão sábio, § 2). Em resumo, na medida em que se organiza e constrói dessa maneira a partir de si mesmo e, além disso, traz "a ordem, que obtém fisiologicamente, para as suas relações com homens e coisas" (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 2), o bem constituído representa, ao contrário de um décadent, a vida ascendente. De acordo com Nietzsche, tal vida só é, em verdade, ascendente, se não apenas se preservar desse modo, mas também se ultrapassar no imensurável. Poder-se-ia pensar que Nietzsche encontrou em Goethe um passar-além rumo a tal "ampliação" ou "elevação". Já no início de um dos aforismos do Crepúsculo dos Ídolos acima mencionado, lê-se sobre Goethe que ele se teria cercado "de horizontes limitados" e, na conclusão, que enquanto um "espírito que se tornou livre"

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se poria "no 1neio do universo, com a crença de que só O individual é condenável, de que tudo se redime e afirma no todo - ele não mais diz não... " Mas essa crença Nietzsche batizou "com o nome de Dioniso" (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, § 49). Contudo, "a palavra Dioniso" significa mais para Nietzsche, quando na conclusão do livro mencionado recua até as Dionisias gregas. Nelas encontra o ((dizer-sim à vida" acentuado ao extremo, "o eterno prazer do vir-a-ser ser ele mesmo, - aquele prazer, que também encerra em si até o prazer de aniquilar... " (GD/CI, O que devo aos antigos, § 5) Isto é levar a crença "dionisíaca" de Goethe tão longe que Nietzsche pode escrever aqui que não duvida de que Goethe "teria excluído fundamentalmente das possibilidades da alma gregà' o orgiástico, "a partir do qual cresce a arte dionisíaca". "Conseqüentemente Goethe não entendeu os gregos" (GD/CI, O que devo aos antigos, §§ 5 e 4). Em comparação com o verdadeiro dionisíaco - poderíamos também dizer, com o extremo da vida ascendente-, Goethe perde o lugar, que Nietzsche em geral lhe atribui de bom grado. Goethe não soubera "nem por um instante" "respirar na monstruosa paixão e altitude", que, segundo Nietzsche, só o seu Zaratustra atingiu. Em Assim falava Zaratustra, o "conceito de dionisíaco" se teria tornado "a mais alta ação" (EH/EH, Assim falava Zaratustra, § 6). Entre o "fatalismo alegre e confiante" da crença dionisíaca de Goethe (GO/CI, Incursões de um extemporâneo, § 49) e o dionisismo do Nietzsche tardio põe-se a sua incondicional vontade que diz-sim ainda ao ocaso. Por isso, quando pensa num ''forttr!ecimento do tipo", que poderia ter como conseqüência "a purificação do gosto" em seu sentido iUtimo, Nietzsche encontra em Goethe apenas a "mais bela expressão do tipo" do homem m1íltiplo e "de modo algum um olímpico!" (Fragmento póstumo 9 [119] do outono de 1887)

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Na idéia de além-do-homem deve realizar-se a boa constituição. Mas, també1n ao descrever o caminho para que se realize, Nietzsche coloca-se contra Nietzsche. 14 Por.um lado, exige o homem da grande síntese, que reúne em si um máximo de experiências contrárias, inclusive as da décadence; por causa dessa extensão, ele teria o mais alto valor, mesmo quando fosse sublimado e frágil. Por outro lado, de.senvolve o pensamento da formação seletiva do horizonte, separando-se no organis1no as partes "sadias" e as "degeneradas"; o homem mais poderoso deveria ser bem-sucedido na segregação ou até na eliminação das últimas. Aquela sublimação e essa radical (negadora e até aniquiladora) robustez todavia se excluem. Na medida em que, em seu último ano de atividade, Nietzsche se declara partidário da última, estreita-se seu ângulo de visão no que diz respeito à utilidade e desvantagem dos fenômenos de décadence para a vida bem constituída.

l/4Quanto ao que se segue, cf. o livro do autor, Nietzsche. Seine Philosophie

der Gegensli.tze und die Gegenséi.tze seiner Philosophie, Berlim, Walter de Gruyter, 1971, p. 1 l 6-34.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. BOURGET, Paul. Essai de Psychologie Contemporaine. Paris, 1883; segunda edição, 1885. 2. KAMERBEEK. "Style de décadence. Généalogie d'une formule". ln: Revue de littérature comparée 39 (1965), p. 268-86.

3. MONTlNARI. '~ufgaben der Nietzsche-Forschung heute: Nietzsches Auseinandersetzung mit der franzõsischen Literatur des 19. Jahrhunderts". ln: Nietzsche heute. Die Rezeption s~ines Werkes nach 1968, editado por Bauschinger, Cocalis, Lennox, Bern/ Stuttgart, 1988, p. 137-48.

4. MÜLLER-LAUTER. Nietzsche. Seine Philosophie der Gegensiitze und die Gegensiitze seiner Philosophie. Berlim, Walter de Gruyter, 1971.

5. MÜLLER-LAUTER. "Der Organismus als innerer Kampf - Der Einfluss von Wilhelm Roux aufFriedrich Nietzsche". ln: Nietzsche-Studien 7 (1978), Berlim, Walter de Gruyter, p. 189-223. 6. NIETZSCHE. Werke. Kritische Gesamtausgabe. Edição de Colli e Montinari. Berlim, Walter de Gruyter, 1967-78.

7. _ _ _. Samtliche Briefe. Kritische Studienausgabe. Edição de Colli e Montinari. Berlim, Walter de Gruyter, 1975-84.

8. _ _ _ . Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo, Abril Cultural, 1978, 2a. edição.

9. PESTALOZZI, Karl. "Nietzsches Baudelaire Rezeption". ln: Nietzsche-Studien 7 (1978), p. 158-78. 10. WESTERNHAGEN. "Das Urbild des 'Fali Wagner,,,. ln: Bayreuther Blattern 61 (1938), p. 174-83.

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A CONCEPÇÃO BÁSICA DE ZARATUSTRA* JôRG SALAQUARDA**

Nietzsche hesitou quanto ao gênero a que pertenceria a obra Zaratustra, uma vez concluída. Pouco depois de terminar a primeira parte, resumiu assim sua impressão: ((É uma espécie original de 'pregação moral'" (a Peter Gast, 1/02/ 1883) . 1 Alguns dias mais tarde, escreveu a seu editor: "É uma poesia ou um quinto 'Evangelho' ou algo para o qual ainda não existe nome" (13/02/1883). A Rohde confessou que sempre combateu em si mesmo o impulso para o poetar2 e, apesar disso, foi como poeta que elaborou Assim falava Zaratustra ... (22/02/1884) Pouco tempo depois, observou em contrapar-

* Versão reformulada da conferência proferida em 24 de outubro de 1992 por ocasião da segunda assembléia geral anual da Forder- und Forschungsgemeínschaft Fr. Nietzsche, sociedade registrada em Halle. A conferência foi publicada em sua primeira versão no volume III (1993/ 94) do "Anuário" da Sociedade, Halle, 1994 e, nesta, in Nietzsche und díe Schweíz, organizado por D .M .Hoffmann, Zurique, 1994, p. 85-95. Tradução de Scarlett Marton.

** Professor da Universidade de Viena. 1

As indicações das citações de Nietzsche seguem Nietzsche 8.

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Através da "cura positivista" que prescreveu a si mesmo, depois de sua ruptura com Schopenhauer e Wagner. ·

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G . "A que rubrica pertence com efeito esse Za a a ast. , . e . ,,, ( / ra4 /1883) Ga ~ C · que é quase à das sinronias 2 O tustrat reto . · st m outra sugestão, que generalizou a caracterís respon d eu Co " . ,, . tica da primeira parte com~, quinto Evangel~o : A obra pertence aos "escritos sagrados (6/04/1883). Nietzsche acolheu 0 que lhe chegou pelo correio: Produzira um novo "livro sarado" (a Malwida von Meysenbug, 20/04/1883). g Todas essas caracterizações põem em evidência um aspecto importante, mas somente um aspecto, de Assim falava Zaratustra. De "pregação" Nietzsche pode falar, se pensa na tradição retórica a que estava ligado; de "sinfonia", se leva em conta a forma sonora e rítmica de sua obra assim como a execução dos motivos que nela aparecem; de "poesia", se pensa na composição enquanto um todo; de "Evangelho" ou "escrito sagrado", se quer salientar a luta empreendida no livro contra o paradigma central da tradição. Mas cada um dos aspectos citados também não é correto, na medida em que a rubrica se altera, quando nela se inclui a obra. Assim falava Zaratustra é uma pregação, pois o autor fala de forma tética e serve-se de todas as figuras e truques retóricos, que os pregadores protestantes de Lutero a Ludwig Nietzsche desenvolveram; observa o andamento, o ritmo, o timbre, etc.; escreve uma prosa em suave transição para a poesia. Mas Zaratustra é também uma anti-pregação, pois a personagem exige de n.ós que deixemos falar nosso si-mesmo e nada aceitemos por mera autoridade. Do mesmo modo, Zaratustra é com efeito um~ poesia, mas bem curiosa, pois nela todos os poetas, inclusive o seu próprio, são' desmascarados como mentirosos. Por outro lado, esse inspirado escrito sagrado também anuncia "~ morte de Deus" e representa todo sagrado como estabelecido por uma vontade de potência humana. O livro é, por fim, uma pregação moral, que incita a quebrar todas as "velhas tábuas". 'd

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A CONCEPÇÃO BASICA DE ZARATUSTRA

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Ambivalências análogas encontram-se na caracterização que Nietzsche faz de seu protagonista. Quem é esse Zaratustra?3 E!e. é poeta_, profeta, fundador de religião, moralista e, sem duvida, mais uma vez nada disso (cf. Za/ZA II Da redenção e EH/EH, prólogo, § 4). Ele é um sedutor, mas tal que gostaria de seduzir cada um para si mesmo. Seu pressuposto é "a grande saúde" (EH/EH, Zaratustra, § 2), que lhe permite desempenhar os mais diferentes papéis e encarná-los até melhor do que quem se identifica com eles - como o ator que no palco representa o rei com mais realeza que um verdadeiro rei faria ou poderia fazer. E, ao mesmo tempo, guarda distância em relação aos papéis, quando ocasionalmente pisca para o leitor, como numa peça didática de Brecht, e diz: "Veja, é assim que se faz!", para então, com o mesmo sucesso, e com a mesma distância, enfiar-se num outro papel. Zaratustra é um camaleão? Não tem nenhum si-mesmo? Pelo que responde? No fim das contas, qual é, segundo a própria opinião de Nietzsche, a intenção da obra? O autor dá uma série de indicações, que compõem um mosaico. Zaratustra visa à probidade (Redlichkeit), ao tornar-se si-mesmo (Selbst-werdung) e à auto-suficiência (Eigenstandigkeit), à síntese, ao futuro do indivíduo como da humanidade. Em tudo isso, visa à superaçáo. 4 Nietzsche faz . de Zaratustra o protagonista, porque representa a auto-superação da moral".5 Depois de concluir a segunda parte da obra, confessa que a redação dessa parte significou também ((

3

Cf. Heidegger 3, p. 1O1-126. ,, " Cf. os capítulos "Das três transmutações", "Dos mil e um alvos e Da superação de si" (Za/ZA I 1; Za/ZA I 15; Za/ZA II 12). 5 Cf. em especial EH/EH, Por que sou um deSt ino, § 3 e ~ fragmento póstumo 18 [15] de julho-agosto de 1888, KSA, 13, P· 53 ·

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para ele próprio uma considerável (auto;) s~~eração. cc~~o (teria sido) uma vitória pequena sobre o esp1nto de peso - e "quase atrás de cada palavrà' estaria «uma auto-superação de primeiro grau" (a Gast, final de agosto de 1883). Para ele está 6 claro desde logo o que nós, homens, temos que superar, ou seja, a preguiça e a pusilanimidade que _n os levam a «uivar com os lobos" e renegar nosso "verdadeiro si-mesmo". Essa tese também se encontra na base do Zaratustra. Quando se lê no início da segunda parte: «Minha doutrina está em perigo", esse perigo não consiste no fato de que sentenças e pensamentos de Zaracustra não sejam tomados ao pé da letra em relação às suas intenções, mas que sejam tomados ao pé da letra por pessoas que não os conquistaram e vivenciaram e por isso não têm nenhum direito sobre eles. No final da primeira parte, o protagonista já exortava seus discípulos a renegarem-no e a procurarem a si mesmos. Quem repete maquinalmente, o "macaco" de Zaratustra (Za/ZA III Do passar além), ele não quer. Prefere os ((homens superiores", porque têm coragem de voltarem-se para si mesmos, ainda que de outro ponto de vista não correspondam à sua expectativa. ((Torna-te quem tu és!" permanece a divisa de Nietzsche também em relação a Zaratustra. Nesse sentido, ele escreve no final de abril de 1884 a Paul Lanzky: ((Todos os homens que têm em si um impulso heróico qualquer para os seus próprios alvos extrairão uma grande força do meu Zaratustra". 7 6

Cf. sobretudo a Terceira consideração extemporânea: Schopenhauer como

educador. 7

E:ucida_tiva é a atitude de Nietzsche em relação a H. von Stein, a quem ~ao estimulou para nada, mas de quem muito esperava, porque nele Julgava_~?tar um _essencial traço "heróico". "( ...) por ora ainda trop wagnetzse , a respeito dele escreveu Nietzsche a Overbeck (14/09/84),

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Zaratustra representa o tornar-se si-mesmo de duas maneiras. Por um lado, Nietzsche descreve como ele se tornou e se torna cada vez mais ele mesmo, ou seja, através de erros, tentações, experiências, etc... Por outro, a obra expõe o que o motiva e sobretudo o que ele tem de superar. Modelar é, ou melhor, deve ser somente o primeiro aspecto; o segundo mostra-se exemplar apenas na medida em que o homem, que quer encontrar a si mesmo, precisa ter coragem de sustentar suas opiniões como de atacá-las (cf o fragmento póstumo 14 [159] da primavera de 1888; KSA, 13, 343). Em parte alguma lhe é dado esconder de si mesmo, por covardia ou preguiça, o que com efeito há muito tempo melhor conhece. O que quer Zaratustra? "( ... ) esse gênero de homem, que concebe, concebe a realidade como ela é; ele é forte o bastante

mas através da educação racional, que recebeu com Dühring, "bastante preparado para mim". Apesar do afastamento temporário, Nietzsche nutria grandes esperanças em relação a Stein e por isso fiçou profundamente comovido com sua morte prematura: "(... ) ainda estou completamente fora de mim (... ). Queria-lhe tanto bem; ele fazia parte dos poucos homens cuja existência em si me dava alegria. Também não duvidava de que ele como que me seria guardado para depois" (a Overbeck, 30/06/87; cf. ainda o monumento literário que erigiu para Stein no Ecce homo (EH/EH, Porque são tão sábio, § 4). É evidente, em todo caso, que Nietzsche não julgava que o discípulo devesse assumir todas as suas "doutrinas" e opiniões (cf. a documentação pormenorizada e a interpretação desse episódio em in Nietzsche 1O. Tampouco de Lou von Salomé esperava mera repetição de seus pensamentos. Quando da estada em Tautenburgo em setembro de 1882, apreciou muito, ao contrário, a troca de impressões com uma pessoa intelectualmente independente. - A atitude geral de Nietzsche está bem expressa na seguinte anotação póstuma: "São os meus juízos; e, pelo fato de tê-los impresso, não dou a ninguém o direito de repeti-los como seus; não os considero um bem público e quero 'bater nos dedos' de quem atentar contra eles" (34 [ 156] de abril-junho de 1885, KSA, 11, 473).

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para isso-; ele não é a ela estranho, dela alijado; ele é ela mesma; ele também tem ainda em si tudo o que nela é terrível e questionável" (EH/EH, Por que sou um destino, § 5). No tema da "superação" pulsa sem dúvida a concepção que Nietzsche tem de "além-do-homem"8 e que lhe serve para preparar a comunicação de outra doutrina - a doutrina do "eterno retorno do mesmo". Sobre esta vou estender-me um tanto, porque representa, segundo a própria expressão do filósofo no Ecce homo (EH/EH, Zaratustra, § 1), a "concepção básica" da obra. Em Assim falava Zaratustra, ela só é expressamente nomeada bem adiante, mas desde o início do livro está presente em imagens, metáforas e alusões, como no círculo da águia e no anelar-se da serpente. 9 Quando da redação de seu Zaratustra, Nietzsche tem em vista essencialmente comunicar esse pensamento. Por certo, não chega a fazê-lo no trabalho em questão, embora o fato de Zaratustra reconhecer esse pensamento constitua seu clímax dramático e sua conclusão conceituai. Zaratustra é, antes de mais nada, "o mestre do eterno retorno". O pensamento do retorno é, sem dúvida, a "doutrina" mais curiosa de Nietzsche. Onde quer que dele trate - na Gaia ciência, no Zaratustra, no Ecce homo, nas cartas e conversas - sempre o envolve com um ar de mistério e de algo extraordinário. Apresenta-o, por um lado, como assustador quando não mortífero e, por outro, como libertador, como a "fórmula suprema da afirmação" (EH/EH, Zaratustra, § 1). Limita-se assim, nos trabalhos por ele mesmo publicados, a caracterizações concisas e até incidentais desse pensamento

8

Cf Haase 2, p. 228 e ss.

9

É o que A. Pieper devidamente enfatiza (Pieper 11, p. 371) contra L. Lampert (Lampert 5, p. 81 e ss.), que contesta esse ponto.

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extraordinário. E o que comunica nessas circunstâncias é bastante decepcionante. Teria ele em mente a doutrina, conhecida ~esde_a ~nt_iguid~de, _de que o c_urso do mundo se repete em Ciclos 1dent1Cos? E evidente! Pois se lê no Ecce homo: '½. doutrina do 'eterno retorno', isto é, da translação incondicionada e infinitamente repetida de todas as coisas - essa doutrina de Zaratustra poderia, afinal, já ter sido ensinada também por Heráclito. Pelo menos o estoicismo, que herdou de Heráclito quase todas as suas representações fundamentais, tem vestígios dela'' (EH/EH, Nascimento da tragédia,§ 3). Esta é uma estranha constatação. Por que Zaratustra se assusta com essa hipótese há muito conhecida e ainda altamente questionável? Por que é necessária uma visão nas montanhas suíças para que o próprio Nietzsche aceite o pensamento sobre o qual escreveu anos antes (cf. HL/Co. Ext. II) com sóbrio distanciamento? Durante sua excursão na Alta Engadina, em agosto de 1881, é evidente que ele experienciou de maneira aprofundada um tema que não lhe era novo de modo algum. Na variação de uma passagem familiar de Hegel, pode-se dizer: O pensamento do retorno há muito lhe era conhecido, mas seu verdadeiro significado até então ele não havia reconhecido. Nietzsche pronuncia-se publicamente sobre o seu pensamento do retorno pela primeira vez no penúltimo aforismo do quarto livro da Gaia ciência. 10 Lá, um demônio anuncia a repetição da vida. Com isso, enfatiza três aspectos que levam a radicalizar o pensamento: • A repetição de tudo. Nada se perde; até o menor "suspiro", cada pensamento, cada prazer e cada dor, todos os pequenos e grandes acontecimentos retornarão.

°FW!GC § 341. Cf. a propósito Salaquarda 12, P· 317 e ss.

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• O retorno de tudo, na mesma disposição, sem qualquer possibilidade de variação: "Tudo na mesma ordem e se-

.. " . ,,

quenc1a .

• O retorno de tudo, que acontece sempre outra vez, na mesma ordem e seqüência. O interlocutor terá de viver esta sua vida atual não apenas "ainda uma vez", mas "ainda incontáveis vezes". "A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez". Sem que seja dito, isso-também implica sem dúvida que ele já a viveu infinitas vezes. O demônio não fundamenta essa radicalização e o interlocutor dela toma conhecimento, na exposição de Nietzsche, sem .objeções . .O demônio representa evidentemente uma voz interior, que no recolhimento da "mais solitária solidão" exprime o que há muito se preparou num homem. O que até então permaneceu inconsciente ou semiconsciente agora não se deixa mais reprimir. É com o que tem de haver-se o interlocutor do demônio. De acordo com seu relato no Ecce homo, o próprio Nietzsche passou por isso com o seu pensamento do retorno. Durante uma c~minhada na Alta Engadina, num lugar que localizou exatamente na margem sul do lago de Silvaplana, o pensamento dele se apoderou. Cerca de dez dias depois, manifestou-se a esse respeito de tal forma que leva a pensar numa visão: 11 "No meu horizonte surgiram pensamentos tais como nunca vi" (a Gast, 14/08/1881). Em sua retrospectiva, lê-se algo semelhante: "No verão, de volta ao lugar sagrado, onde me iluminara o primeiro relâmpago do ·pensamento de Zaratustra (... )" (EH/EH, Zaratustra, § 4).

11

Comparável à de Paulo em Damasco, de que Nietzsche trata no aforismo 68 da Aurora. A propósito desse paralelo, cf. Salaquarda 13, p. 288 e ss.

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A primeira reação que apreendemos em Nietzsche, face à vivência ~ue .º despertou, não consiste em desdobrar o pensamento d1dat1camente. Na obra publicada, mesmo mais tarde ele quase não se manifesta sobre o seu conteúdo nem forneceu argumentos para sustentar sua pretensão à verdade. É apenas nos fragmentos póstumos que se encontram conside.. d . 12 No pnme1ro . . apontamento, sob o título raçoes esse tipo. "O eterno retorno do mesmo. Projeto,, e munido da caracterização: "Início de agosto de 1881 em Sils Maria. Seis mil pés acima do mar e muito mais acima de todas as coisas humanas! -", ele põe no papel um esboço de plano em cinco partes, em que fala de sentimentos, opiniões e maneiras de viver (cf. o fragmento póstumo 11 [141] da primavera-outono de 1881; KSA, 9, 494). Nesse esboço de plano, lê-se, entre outras afirmações, que se pode conceber a vida enquanto "experimento quando ela é centralmente tomada pela "paixão do conhecimento». Além disso, Nietzsche ressalta aqui expressamente o conceito-título do aforismo 341 da Gaia ciência: "O novo peso: o eterno retorno do mesmo,,, para prosseguir: "Importância infinita de nosso saber, nosso errar, nossos hábitos, maneiras de viver para tudo o que venha a acontecer". Por fim, fala de como se chega a "incorporar" a si o pensamento, assim como no curso da história do platonismo e do cristianismo se incorporou o peso atual. Como melhor meio para a incorporação, recomenda ensinar o novo conhecimento. É evidente também a tarefa que Nietzsche atribui a Zaratustra. Este é basicamente o "mestre do eterno retorno,, (Za/ZA III O convalescente; cf. EH/EH, Zaratustra). Quando se lê o livro com essa expectativa, percebe-se, sem dúvida, 11

,

12

Cf. Magnus 6.

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que Zaratustra justamente nele não ~nsi~a o ,,pensam~nto. Não chega a fazê-lo; não enco~tra os ouv_idos apropnados para sua mensagem; e, como o Jovem Jeremias, assusta-se com a grandeza da tarefa. Nas duas prime~ras partes ~a obra, o pensamento, como,, mencionamos, s~ aparece cifrado em alusões e símbolos. E somente na terceira parte que encontra expressão, mas aí também apenas quando Zaratustra está só com si mesmo. No capítulo "O convalescente" da terceira parte, ele fornece "the most direct statement of the meaning of eternal return", 13 como escreve com justeza Lamperc.14 Mas, até aqui, Nietzsche representa o seu pensamento do retorno de forma a não deixá-lo claro de modo algum. O que entende a propósito do que seja o seu "filho Zaratustra" torna-se manifestamente indicado apenas através de parábolas e imagens. Os animais de Zaratustra e seu adversário expressam-se de forma mais direta e compreensível, mas ele mesmo recusa como insuficientes suas versões do pensamento. Faz-se necessária, pois, uma cuidadosa análise de texto, para compreender a "concepção básica" de "Zaratustra" na significação propriamente pensada por Nietzsche. E não devemos esperar que ela se deixe apreender a partir de um simples conceito. O capítulo "O convalescente" apresenta dois subcapítulos. No primeiro, Zaratustra desafia o pensamento mas desmaia antes de a luta parecer de fato começar. No s~gundo, restabelece-se e conversa com seus animais sobre os resultados e conseqüênci a~ da luta. A respeito dela própria, já fe~ um relato num cap1tulo anterior, ou seja, em "Da visão e enigma" (Za/ZA III 2). 1

13 1/4

"O

. . . enunciado mais direto do sentido do eterno retorno" (N. T.).

Lamperc 5, p.211.

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Certa manhã, Zaratustra comporta-se c · ,.. . . orno se nao estivesse só em sua cama. Mas aqui o intruso que l b . d ,. . e e perce e consiste, como no caso o demon10 do aforismo 34 l d G. . . . . . a aza ciência, num antagonista 1ntenor. Zaratustra chama- d ,, " ,l . e. o e seu "abismo e sua u ttma prorundeza", que já "trouxe à luz" 15 ou seja, identifica-o como o antagonista interior decisivo. T;ata-se de uma disputa interipr, de que ele tem de tomar parte completamente só e em que se trata para ele de ser ou não ser. Quando "a visão do mais solitário" (Za/ZA III Da visão e enigma; cf. FW/GC § 341) o tomou dessa maneira, seus animais (o orgulho e a esperteza), eles próprios, de lá fugiram. A iniciativa para esta derradeira luta só pode partir evidentemente dele mesmo: Ele é quem desafia o abismo. Quer des- . penar "o verme" 16 com o cantar do galo e cuidar para depois também permanecer desperto, portanto, para não mais recair no estado inconsciente/semi-consciente anterior. 17 Não se dá por satisfeito com o "estertor" inicial do pensamento que se apresenta com resistência à claridade da consciência. Gostaria muito mais de levar seu abismo a falar, em vez de ouvilo proferir sons inarticulados. 18 15 Cf.

GBIBM § 146: "Quem luta contra monstruosidades deve cuidar

para não se tornar com isso um monstro. E se tu olhares longamente num abismo, o abismo também olha dentro de ti" . 16

Como no "Siegfried" de Richard Wagner, o herói desperta o dragão para desafiá-lo à luta.

17

Com a expressão "tataravós" {Urgrofmiitter) Nietzsche alud: n_esse _co~texto à evocação de Erda por Wotan no primeiro ato de Siegfr~ed · , . b , WAICW § 9. "Jn summa: uma cena cheia de Cf. a proposlto tam em · ,, l • d . . , . · P""essente Os e1tores e arrepios m1tolog1cos, em que o wagnenano ,, ... . . falava Zaratustra, ao contrano, , • d evem n ão apenas pressentir mas Assim compreender.

18

.

.



· damente (Histomch-krzCf. a nota autobiográfica de 18 68 aproxima . _ , . 4 205)· "O que rece10 nao e a tlsche Gesamtausgabe. Werke. V. 5, 19 O, P· · ·

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Como O herói no mito que desafia o monstro para a luta, apresenta-se e, numa atitude verbal ameaçadora, posiciona suas peças de artilharia mais pesadas. Ele é Zaratustra _ _

0 0

· que D eus es t'a mor t o.1 sem-Deus, que ensina porta-voz da vida, que se volta contra a fuga e

negação do mundo.

~ 0 porta-voz do sofrimento, para quem o sofrimento

não representa uma objeção contra a vida. · - · 0 porta-voz do círculo, que se pronuncia contra toda forma de consideração teleológica.

Quando o adversário reage da maneira por ele esperada e começa a falar, Zaratustra primeiro se alegra. Exclama: "Viva!" e desafia o adversário a estender-lhe a mão. Ou é este que o desafia? Como o espírito de pedra desafia Don Giovanni no final da ópera de Mozart? Em todo caso, como na ópera, o aperto de mãos aqui também modifica a situação de uma só vez. Zaratustra parece não estar à altura do demônio. Começa a balbuciar: "deixa!", "nojo", "ai de mim!" 19 -e desmaia. Depois de uma longa perda de consciência, quando volta a si, está pálido e treme. Permanece deitado e recusa o alimento. Dele cuidam seus animais. Esta situação dura sete

forma assustadora atrás de minha cadeira, mas a sua voz; também não são as palavras mas o som horrível, inarticulado e desumano daquela forma. Se ela ainda falasse como os homens falam!" - Cf. também o "estertor" do "mais feio dos homens", que na quarta parte do Zaratustra é mencionado duas vezes e em ambas converte-se numa alusão ao pensamento do retorno: em IV, "O mais feio dos homens" ' está em questão o que tem a ver com a "vingança contra a testemunha"; e em IV, ''A canção bêbada", com a confissão "ainda uma vez". .

19

~f._ a evocação do espírito da terra no Fausto de Goethe (1, 466 e ss.): Visão assustadora! (... ) Ai! Não te suporto!"

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dias.. - O ,,que sucedeu sabemos através do cap't 1 "Da v1sao · ,., 1 u o e enigma (Za/ZA III 2). Lá, no início de uma · , viagem mantima, Zaratustra encontra-se exatamente como depois de despertar do desmaio. Está triste e calado. Mas, por fim, comunica aos marinheiros - aos "buscadores, tentadores (... ), ébrios de enigmas, que se alegram com a luz do crepúsculo", que preferem adivinhar a deduzir20 - na forma de enigma suas vivências e pede-lhes que interpretem para ele a sua visão. Seu relato apresenta três partes: na primeira, carrega o anão para. a montanha; na segunda, com ele disputa; na terceira, aconselha o pastor em apuros e vivencia a transformação dele. O que aprendemos com isso sobre o pensamento do retorno? Zaratustra caminha numa paisagem sombria, num "crepúsculo cor de cadáver", e também está sombrio e duro, . porque sem esperança. "Mais de um sol se havia posto.(... para ele)". As imagens evocam a experiência do niilismo depois. da supressão dos pressupostos platônico-cristãos. É apenas o seu "pé", portanto a "grande razão do corpo", que o impele para diante, para cima, apesar de todas as circunstâncias adversas. É a carga em seus ombros, meio anão, meio toupeira, que lhe cria os maiores problemas. Esse indesejável "cavalei-. ro" não é apenas pesado de carregar; ele ainda procura persuadir Zaratustra com ironia. "Pingando pensamentos-gotas de chumbo em (s)eu cérebro", quer convencer sua vítima de que é inútil todo aspirar e fazer. De que vale caminhar para diante e para cima: Por mais longe e alto que alguém possa chegar, de novo cairá, 21 recairá em si mesmo.

20

Isto significa os homens que, como ele, abandonaram toda segurança.

21

Cf. E merson 1 , p. 341 ·• "Podemos lançar uma pedra por um instante d no ar; contudo, isco não se pode mudar: que rodas as pedras caem e novo para baixo".

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Quanto à forma, o modelo encontra-se num tema dos contos de Mil e uma noites. Em sua quinta viagem, Simbad é " . 22 Quanto ao conteu'do, N.1etzsche escraviza d o por um gen10. parte de uma imagem conhecida de Schopenhauer: O cego poderoso (a vontade) carrega o vidente paralítico (o intelecto) .23 Lampert interpretou com justeza o anão como a personificação do niilismo fraco, que foge do mundo, à la Schopenhauer.24 Para Nietzsche, a imagem schopenhaueriana é uma caricatura do homem, uma conseqüência do domínio de dois milênios do paradigma platônico-cristão. O cavaleiro paralítico, o intelecto, usurpou o domínio às custas do corpo,· escravizou-o, fez da terra um vale de lágrimas e deixou a nós, homens, como única esperança extinguir-se no nada. O anão e toupeira é um representante do pessimismo. , Já na Segunda consideração extemporânea, Nietzsche trata desse problema~ Descreve, então, o niilismo como conseqüência da "febre histórica". A consideração histórica reduz perdefinitionem, através de seus pressupostos metodológicos, todo acontecer a um padrão médio. Através dele, toda (aparente) grandeza dissolve-se num vir-a-ser, em que só há diferença de quantidade, nunca de qualidade. No nono capítulo do escrito sobre ·a história,· ele fala da doutrina do vir-a-ser soberano, da fluidez de quaisquer conceitos, tipos e espécies, da falta de qualquer diversidade capital entre homem e animal e acrescenta expressamente que considera essa doutrina verdadeira, mas também mortal. Como remédio recomenda

.

22

Cf. "Esclarecimentos" de M .-L. Haase a esse propósito no volume Nachbericht ao Zaratustra ed_itado por ela e por M. Montinari (KGW VI/4), Berlim e Nova Iorque, 1991, p. 898.

23

Cf. Schopenhauer 14, v. 2, cap. 19 .

24

Cf. id., ibid., p. 162 e ss.

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1-17

as forças a-históricas do esquecer e do abrir-se ao imediato, assim como os poderes supra-históricos da religião, da filosofia e da arte. Na redação de Zaratustra, insiste no diagnóstico, mas nao mais na terapeuuca. . . A que apela Zaratustra na luta com seu arqui-adversário, o "espírito de peso"? 25 Depois que o orgulho e a esperteza o abandonaram, ele só pode apoiar-se em sua coragem. É ela que o arranca do sonho, cansaço e opressão. Zaratustra é um guerreiro. Não se conforma, mas busca a decisão. ·A coragem faz parte, junto com a perspicácia, a simpatia e a solidão, das quatro virtudes básicas de um filósofo (segundo JGB/BM § 284). Conhecer pressupõe coragem, ensina o psicólogo (das profundezas) Nietzsche, pois sempre "sabemos" muito mais do que nos atrevemos a saber. "Mesmo o mais corajoso de nós raramente tem coragem para o que de· fato sabe... " (GD/CI, Sentenças e setas, § 2) Assim também Zaratustra "conhece" há tempo seu pensamento abissal, mas só agora, quando a necessidade se torna máxima, tem coragem para a vontade criadora como a virada possível de toda necessidade. Ele não se reporta a uma "convicção"; ao contrário, volta-se por fim contra o pré-juízo mais profundamente assentado. 26 Como no mito ou no conto, trata-se de uma luta de vida ou morte. Quem é mais forte? A vontade criadora de ,-J



A



25 Cf. "Do espírito de peso" (Za/ZA III): "O homem

é difícil de desco-

brir e a si mesmo é ainda mais difícil; com freqüência, o espírito mente a respeito da alma. Assim obra o espírito de peso. M as quem descobriu a si mesmo diz: 'Este é o meu bem e mal'. C om isso fez calar-se a toupeira e anão, que diz: 'Bem para rodos, mal para todos"'. 26

Cf. o fragmento póstumo 14 [159] da primavera de 1888; KSA, 13 , 344: "- erro muito popular: ter coragem para suas convicções-? mas ter coragem para ataca r suas convicções!!!"

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Zaratustra? Ou o paralisante espírito de peso? A decisão deve levar a um enigma que Zaratustra propõe ao anão. Se o anão "resolvê" -lo, Zaratustra estará perdido; caso contrário, será 0 anão. 27 Mas não se trata aqui de um saber intelectual e sim de um problema existencial: quem pode suportar o "pensamento abissal". No primeiro round da troca de golpes, importa a Zaratustra apenas não ter de continuar a levar a carga. Está saturado; qualquer coisa é melhor do que deixar que esse estado se mantenha. "Anão! Tu! Ou eu!" - A consciência subseqüente de sua coragem e vontade criadora faz com que Zaratustra fique certo de sair vitorioso da luta. No início do segundo round, repete assim o desafio na seqüência inversa, nomeando o tema do combate e sublinhando a sua certeza da vitória: ''Alto, anão!", falei eu. "Eu! Ou tu! Mas eu sou o mais forte de nós dois~: tu não conheces meu pensamento abissal! Esse - tu não poderias carregar!" -

Como sinal de que aceita o desafio, o anão pula -dos ombros de Zaratustra. Também ele parece estar certo de sua posição. O pensamento do curso circular certamente também lhe é familiar. Parece não ter-se impressionado com a autoapresentação de Zaratustra. No fim das contas, há muito que é ateu. Sabe cantar uma canção do sofrimento. Tanto quanto seu adversário, dispensou a confiança num sentido superior. 1

27

Cf. suposição semelhante no mito de Édipo e no conto de Rumpelstilzchen. (Trata-se do nome do anão, que é personagem central de um conto da antiga mitologia germânica, conhecido na Inglaterra por Tom Tit Tot e na Suécia por Titteliture. Ele ajuda uma jovem donzela a tecer ouro a partir do linho ou da palha; em retribuição, ela terá de darlhe o filho, caso não adivinhe o seu nome em tempo oportuno (N.T.)).

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O que pode despertar a sua "curiosidade'' é · " apenas o que possa levar o seu antagonista a ser um porta-voz d 'd ,, E , ,. . a vi a . sta certo de que Zaratustra nao sabe .bem do que 1e l . . ª a e por isso se vangloria. Em seu ataque verbal, .Zaratustra parte do "portal", em cuja entrada eles s~ postam, ou melhor, se agacham. O portal marca ~~a fron,~eira no ·espaço. Z_aratustra faz uma analogia com o instante enquanto fronteira no tempo. Assim como o car:iinho que conduz através do portal aponta em duas direções opostas, também no instante o tempo presente. Ambos os caminhos .que transcorrem em direções opostas acham-se aparentemente separados, mas, já que nossa terra é uma esfera, acabam por desembocar outra vez um no outro. Não deveria ser também assim com o tempo, que tende a separar-se aparentemente em passado e futuro? Não deveria também o "curso do mundo" desembocar de volta em si mesmo, ser da forma de um círculo? Ora, disso sabiam Heráclito e os estóicos; era a doutrina dos pitagóricos (cf HL/Co. Ext. II § 2) e inclusive Schopenhauer ensinou o "eadem, sed aliter". 28 Não há por que surpreender-se que o anão se veja confirmado e, até desapontado com esse fácil enigma, manifeste "com desdém": "Tudo o que é reto mente (... ). Toda verdade é curva, o próprio tempo é um círculo". É a sua versão do pensamento do retorno. Como pôde Zaratustra tornar tudo tão fácil para ele? Conhecedores de enigmas e contos susp_eitam de uma armadilha, e assim é de fato. Zaratustra quena apenas induzir o adversário a confessar o caráter circular do tempo, 29 para ainda mais seguro poder nele desferir o golpe.mortal. 2s " o mesmo, mas de outra maneira · " (N •T)· · 29 . d L ert quanto a esse ponto Cf. a interpretação penetrante e Ju st a e amp (H 'degger 'd ~ o perce 6 · eu (Lamperc 5, p. 160 e ss.), enquanto e1 egger nao

e,

4, tomo I, p. 289 e ss.).

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A segunda etapa da disputa de vida ou morte termina com O desaparecimento do anão e uma mudança de cenário. próximo_argumento de Zaratustra deve dar o passo além do simples conhecimento do pensamento do retorno - ou melhor: um passo. Pois a verdadeira prova para ele mesmo só virá depois. O ápice de sua argumentação não é novo; já o conhecemos a partir do aforismo 341 da Gaia ciência: o mero pensamento do círculo ou da repetição intensifica-se na repetição infinita de tudo na mesma ordem e seqüência. Essa radicalização acerta na medula o "pessimismo fraco" do anão. O arqui-inimigo de Zaratustra conhece e afirma o pensamento do círculo, mas não ama a vida. Anseia por deixar de existir e ensina, como Schopenhauer, a possibilidade de extinguir-se no nada. Preconiza o pensamento do retorno, para que se quebre a vontade de viver nos "otimistas" tolos e "doidos"•. O radicalizado pensamento do retorno de Zaratustra, que também veda a saída no nada, é insuportável para ele. Com o anão acontece o que Nietzsche na Gaia ciência formula em forma interrogativa como reação provável à mensagem do demônio: "Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim?" No fragmento da charneca de Lenz (Lenzer-Heide-Fragment) sobre o "niilismo europeu", ele anota nessa direção: "Pensemos esse pensamento na sua forma mais terrível: a existência, tal como é, sem sentido ou alvo, mas retornando inevitavelmente, sem um final -no nada: 'o eterno retorno'. É a forma mais extrema do niilismo: o nada (o 'sem-sentido') eterno!" (fragmento póstumo 5 [71] de verão de 1886 - outono de 1887; KSA, 12, p. 212-17) Para quem em contrapartida afirma a realidade e vive em sintonia com si mesmo, o próprio pensamento em sua forma radicalizada nada tem de assustador. Seria, ao contrário, a chancela de seu consentimento, de seu dizer-sim à vida.

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Para Zaratustra vale a alternativa ponderad . . e . a presente na Gaza ciência apenas na rorma interrogativa: "·Ou e t. . n ao, como terias de ficar d e b em contigo mesmo e com a vida p - J · d , . ' ara nao aesemais o que essa_ultima, eterna confiirmaçao h J·ar nada ,, e c ancela? - Pelo . , menos, Zaratustrapensa em sua auto-ap resentação que Jª avançou rumo a essa atitude. É na fórmula ''amor fati" que Nietzsche a resumiu. "Para o ano novo", 0 autor da Gaia ciência permitiu-se exprimir um voto no início do quarto livro (FW/GC § 276): não quer mais negar ou acusar, não quer mais ser desmascarador, anticristo e crítico da ideologia; ao contrário, quer apenas ver o positivo e belo e contribuir assim para que as coisas se tornem belas. '54.mor fiui: que seja doravante o meu amor! Não quero fazer a guerra contra o feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo: acusar os acusadores. Desviar o olhar: que seja minha única negação! Em suma, quero em algum momento por uma vez ser apenas aquele que diz-sim!" A esfinge é portanto derrotada. Édipo sai vitorioso. Rumpelstilzchen tem de libertar o filho da rainha. Zaratustra, o porta-voz da vida, venceu a luta de vida ou morte. Ou? ... Antes mesmo que o anão desapareça e o cenário mude, ele começa a hesitar. Sua fala não soa certa da vitória; ao contrário, fica mais baixa - "pois", mais tarde é assim que relata aos marinheiros que se puseram à escuta - "tinha medo dos meus próprios pensamentos e dos que estavam por trás deles". Mas o que Zaratustra teme? Por q~e re~arda tanto a ~omunicação do pensamento? O que lhe 1nsp1rou tanto noJO, quando por fim despertou o pensamento? Teme Zaratustra a repetição de seus sofrimentos e lutas, de suas penas e _superações? Não! Zaratustra é também o porta-voz do sofnmento. Teme a falta de sentido? Não! Zaratustra, o negador de Deus e da teleologia, sabe e reconhece que só a vontade criadora produz os deuses e os que são além-do-homem.

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Lancemos um olhar no próximo quadro, o mais horrível de todo Zaratustra. Um jovem pastor retorce~se, sufoca, cai em convulsão; seu rosto está desfigurado: noJo e ,pálido horror estão nele escritos. "Uma negra, pesada serpente rastejara para dentro de sua boca_~ ali se a~erra~a. Zaratustra quer arrancá-la - em vão. Na dec1s1va luta 1ntenor, de que se trata aqui, um terceiro não pode trazer qualquer ajuda. Então, Zaratustra grita para o pastor que deve morder a cabeça da serpente fora. Ele faz o que lhe mandam, cospe a cabeça fora, ri, transforma-se. 30 No capítulo "O convalescente", Zaratustra descobre o que Nietzsche em "Da visão e enigma" pôs na boca dos marinheiros. Ele mesmo é esse pastor. A "serpente do niilismo" rastejou para dentro de sua garganta; com a mordida, ele a venceu. Quando repetimos a sua expressão "serpente do niilismo" sem exame, corremos o risco de deixar escapar a nuança decisiva. Trata-se, por certo, de uma forma do desespero niilista face à realidade, mas ela não se ilumina sob os aspectos que tornam o eterno retorno insuportável para o anãq, a saber, o sofrimento e a ausência de um sentido superior. O aspecto que aflige Zaratustra é muito mais "(... ) O grande fastio pelo homem - era ele que me sufocava e havia rastejado para dentro de minha garganta (... )

3

°Cf. Nachbericht ao Zaratustra (p. 898 e ss.) quanto ao modelo tomado das Mil e uma noites (na sétima viagem de Simbad, embora inversamente, um homem foi engolido por uma serpente a tal ponto que apenas a sua cabeça fica de fora) e quanto a Emerson (que em Die Fiihnmg des Lebens (Conduct of lifo) relata práticas cruéis em "conversões" na velha Escandinávia, como por exemplo a de empurrar uma víbora pela boca de um "pagão obstinado").

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'Eternamente ele retorna O hom d , ' em e que estás cansado, o homem pequeno - assim boceJ· . h . ava mm a tnsteza (... )

- 'Ai, o homem retorna eternamente' 0 h queno retorna eternamente!-'"

·

ornem pe-

. Da perspectiva do, além-do-homem criador, o menor e 0 maior dos h?mens ate agora são por demais parecidos, ambos são demasiado humanos. Quando Zaratustra, durante sua convalescença, disso se lembra, o nojo ameça apoderar-se dele outra vez. Ele não venceu o nojo definitivamente. O radicalizado pensamento do retorno, uma vez que impede a esperança de que o homem da plebe possa ser superado, é terrível para ele tanto antes quanto depois. Nosso herói apenas o suporta, porque e enquanto tem em vista o além-do-homem. Por certo, não extrai de sua problemática uma lei geral. Pois sabe que "a cada alma pertence um mundo diferente; para cada alma, qualquer outra alma é um ultramundo". Pode ser que outros homens sintam de outro modo o pensamento do retorno, tenham outras objeções. O que é decisivo é que o pensamento em sua forma radicalizada não deixa nenhuma saída em aberto. Quem espera por uma outra vida, por uma vida melhor e também quem espera poder privar-se da vida definitivamente em algum momento e de algum modo - entra em crise com essa versão do pensamento do retorno. Ou também engole esse sapo - morde fora ele próprio a cabeça dessa serpente, que é a mais negra e nojenta - ou tem de desesperar-se e perecer. Os animais de Zaratuscra representam, nesse contexto, · · com a terra. Para os seres da natureza, que vivem em sintonia eles, o pensamento do retorno não cria problema algum; expressa a situação que lhes é normal. Eles cantam uma harmo0 . · ntosa canção do retorno. A ceitam como evidente o que anão e toupeira não suporta: 1 1 1 Digitalizado com CamScanner

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, , . . "Para os que pensam como nos, as propnas coisas dançam: vêm e estendem-se a mão e riem e fogem - e

voltam. (... ) Em cada instante começa o ser; em torno de todo 'aqui' rola a bola 'acolá'. O centro está em toda parte. Curvo é o caminho da eternidade." ,1

.l '1 'j

1'.

1:

e

Zaratustra alegra-se com essa harmonia; dela toma conhecimento com um riso benevolente. Mas não pode partilhar o entusiasmo de seus animais. Está enfermo por morder e cuspir fora, enfermo por sua "redenção". Quando o nojo ameaça apoderar-se dele outra vez, é interrompido por seus animais. Eles o desafiam a ir para fora, para o mundo, a aprender com os seres da natureza e, em particular, a aprender a cantar com os pássaros. Ele precisa de um novo instrumento para novas canções: "Canta e exulta, ó Zaratustra, cura com novas canções tua alma: para que suportes teu grande destino, que ainda não foi destino de nenhum homem! ·Pois teus animais bem sabem, ó Zaratustra, quem tu és e tens de te tornar: vê, tu és o mestre do eterno retorno - e esse é o teu destino!,,

É o seu destino, 31 porque ele é o primeiro a ensinar essa doutrina. Mas ser o primeiro comporta perigos: enganos e doença ameaçam. Os ani_mais sabem o que Zaratustra ensina,

31

Nictzs · 1ou o u' It1mo · capítulo do Ecce homo "Por que sou um . c"he ·mmu des_tlno - e respondeu: Porque represento uma crise, "a mais profunda colisão de consc1enc1as · · , uma dec1são (... ) contra tudo o que até entao A



"

"

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. petem ainda uma vez: a repetição sem fi d .. " . S im e tudo n a ordem e sequencia. e Zararustra deve ames1n, sse morrer, ele d'1na: · ie

"Retornarei com este sol, com est . a terra, com esta águia, com esta serpente - não para um 'd . a VI a nova ou uma vida melhor ou uma vida semelhante_ Retornarei eternamente para esta mesma e I'd"enttca · vida, . nas coisas maiores e também nas meno res, para ensinar outra vez o eterno retorno de todas as coisas - para dizer outra vez a palavra do grande meio-dia da terra e do home1n, para anunciar outra vez aos homens o além-do-homem. Disse a minha palavra, despedaço-me por causa dela: assim o quer a minha eterna sina-, como anunciador pereço! Chegou a hora em que aquele que declina abençoa a· si mesmo. Assim - termina o declínio de Zaratustra". Essa é a conclusão do desenvolvimento conceituai do livro. O "declínio" de Zaratustra, que começara no primeiro capítulo do prólogo, termina no momento em que o protagonista aceita o seu destino. Não mais se esquiva de seu "abismo", toma a si a sua "mais difícil superação" e - dentro de certos limites - dela sai vitorioso. Dessa forma assume a atitude do ''amor fati". Efetiva (existencialmente) o ·q ue deveria ensinar. Tornou-se o que é. Ora, Nietzsche poderia ter iniciado uma continuação ou uma nova obra-Zaratustra, em que o protagonista anunciasse de outro modo o seu pensamento do retorno tão difie · acre d 1cado, ' · 'do, sann·ri1cad o ,, , com a fi'O rmula "cransvaloração de 101 ex1g1 l _ ele refere-se natura to d os os valores". Nas ilustraçoes que se seguem, mente ao seu Zaratustra.

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cilmente conquistado. Se assim pensou, não chegou a realizar.32 Fez apenas uma espécie de sátira, em que representa a compaixão para com os "homens superiores" de seu tempo como uma "tentação de Zaratustra". Essas pessoas precisam de Zaratustra, ou melhor, precisam de alguém que como ele se tornou o que é, ao sair vitorioso da sua "mais difícil superação". Junto de Zaratustra estão bem; por causa dele, também podem afirmar o pensamento do retorno, que fez o anão e toupeira despedaçar-se. ·M as por sua própria vontade disso não são capazes. 33 Zaratustra adivinha o perigo de poder deixar-se levar a um "papel de redentor", por sentir compaixão pelas disposições iminentes que esses "homens superiores" têm para a grandeza do além-do-homem e que sem sua ajuda se atrofiam - e supera mais essa tentação. Ah! A terceira parte da obra não termina com a indicação acima citada quanto à completude do "declínio" de Zaratustra. Seguem-se ainda três capítulos, em que o desenvolvimento conceituai não tem continuidade. São momentos líricos; o "mestre do eterno retorno,, segue claramente o conselho de seus animais. Exorta sua alma a cantar e ela não se faz de rogada por muito tempo. Em seus hinos, celebra naturalmente a vida, 34 a eternidade e o retorno.

32

Cf. a propos1to ' . as expos1çoes . ~ de M .-L. H aase " Planos para uma quinta parte de Zaratustra" e 'Zaratustra depois de Assim falava Zaratustra" in Nachbericht ao Zaratustra, p. 972-78.

33

Cf. a observação de Nietzsche em GBIBM § 256 sobre os artistas de seu tempo, que tiveram de ensinar a muitos o conceito de "homem superior", mas - "todos por fim prostrados e quebrantados diante da cruz cristã" - não foram fortes o bastante para suportar a "morte de Deus".

3-1

Cf• o "H'ino a' v1·d a" , que N.1etzsche compôs para o poema de Lou Salomé "Prece à vida". No Ecce homo (EH/EH, Zaratustra, § 2), ele descreve essa obra como expressão do "pdthos afirmativo par excellence".

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Também o próprio Nietzsche se . . . d z N ' . gu1u o conselho dos animais e aratustra. as ultimas sem ' . . anas antes de perder b. 0 centro 1e d e seu esp1nto, ainda preparou . . b d D. . para a pu l1cação os Dtttram os e tonzso. No Ecce homo (EH/EH z "fi lh , aratustra § 6) , apresentou o seu 1 0 Zaratustra" c _' "d. • , " orno a encarnaçao do 1on1s1aco e com ele relacionou O canto d'1tuam · " b'1co. "Que linguagem falará um tal espírito, ao falar só com si mesmo? A linguagem do ditirambo".

Nietzsche acrescenta uma surpreendente observação: "Eu sou o inventor do ditirambo".

Enquanto "historiador antiquário" (cf. HL/Co. Ext. li), tenho de contradizê-lo. No Klein Pauly, lemos que o ditirambo representa uma das mais antigas formas líricas conhecidas, mais ainda, "uma das mais significativas formas do coro lírico", intimamente relacionada com o culto de Dioniso. Sabemos, além disso, que Arquíloco (cerca de 680 a.C.) foi o primeiro a testemunhar o primeiro ditirambo não-grego na Grécia. Quanto ao conteúdo, compreendeu-se .por ditirambo um poema entusiasmado, em que tardiamente a música se impõe cada vez mais no primeiro plano. Melanípides (um contemporâneo de Sócrates) converteu o ditirambo com uma espécie d~ libreto na então "música moderna". É o que encontramos, quando por fim lemos: "Sobre essa música 'moderna' deparamo-nos, a·começar pelos cômicos áticos, passan~ do por Platão e Aristoxeno, até Plutarco e ainda posteriores, quase só com testemunhos e juízos depreciativos". Nietzsche retomou, pois, a forma das canções de embriaguez entusiástica do culto a Dioniso, que decaíram e foram proscritas na era clássica. Quando diz que "inventou" essa

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forma, então só pode ter em mente uma nova "transva1oração", assim como quando "criou" sua versão do pensamento do retorno enquanto a mais alta fórmula da afirmação. Em que consiste o novo? No seu entender, o normal da geração posterior sempre se mostrou primeiro no excepcional, o sadio no enfenno, o bem no mal. Assim também as experiências de êxtase dos primeiros homens se converterão em experiências normais dos homens superiores do futuro. Os ditirambos de Nietzsche, essas canções de Zaratustra, são canções bêbadas de um noctâmbulo, experiências de êxtase de um homem, que não precisa de drogas para tanto, exaltações vindas da altura. "Serenidade, tesouro, vem" ...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. EMERSON, R.W Versuche. Tradução para o alemão de

G. Fabricius, Hannover, 1858. 2. HMSE, M.-L. "Der Übermensch in 'Also sprach Zarathustra' und im Zarathustra-Nachlass 1882-1885". ln: Nietzsche Studien, 13 (1984). 3. HEIDEGGER, M. "Wer ist Nietzsches Zarathustra?". ln: Vortriige und Aufiatze. Pfullingen, 1954. 4. _ _ _ . Nietzsche. 2 vols. Pfullingen, 1961. 5. LAMPERT, L. Nietzsches Teaching. An Interpretation of Thus spoke Zarathustra. New Haven and Londres Yale University Press, 1986. ' 6. MAGNUS, B. Nietzsches Existential Imperative. Indiana Univ. Press, 1978.

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7_ Nachberichts-Band zu Also sprach Zarathustra. Volume editado por M.-L. Haase e M. Montinari. Berlim/Nova Iorque, 1991. B. NIETZSCHE, F. Kritische Gesamtausgabe der Werke und der Briefwechsel Fr. Nietzsches.

9, ___ . Kritische Studienausgabe. Edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim, Walter de Gruyter & Co., 1967-78. 1O. Nietzsche und Wttgner. Stationen einer epochalen Begegnung. Editado por D. Borchmeyer e J. Salaquarda. 2 vols. Frankfurt am Main, 1994. ·

11. PIEPER, A. Ein Seil geknüpft zwischen Tier und Übermensch. Nietzsches Erster Zarathustra. 1990. 12. SALAQUARDA, J. "Der ungeheure Augenblick". ln: Nietzsche-Studien, 18 (1989). 13. _ _ _ . "Dionysos gegen den Gekreuzigten. Nieczsches Verstandnis des Aposteis Paulus". ln: Salaquarda, J. (org.) Nietzsche. Darmstadt, 1980. 14. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação.

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Uma Investigação sobre o Papel do Asno na Quarta Parte do Assim falava Zaratustra · de Nietzsche* jôRG SALAQUARDA**

Sabe-se que as figuras e situações que Nietzsche faz desfilar na Quarta Parte de Assim falava Zaratustra 1 têm significado sobretudo alegórico ou, antes, simbólico. O próprio Zaratustra representa, por exemplo, o movimento em dire,.. ao "l' e çao a em- do- hornem" e, dessa rorma, representa tam b'em Nietzsche, na medida em que o filósofo se identificava com o experimento do desenvolvimento superior, do fortaleci-

* Publicado numa primeira versão em Theologia Viatorum XII 1973, p. 181-213. Tradução de Maria Clara Cescato. Revisão técnica de Scarlett· Marton.

** Professor de Filosofia da Universidade de Viena. 1

Os trabalhos de Nietzsche já publicados serão citados segundo a edição de G. Colli e M. Montinari, Kritische Gesamtattsgabe, Berlim, 1967 e ss., indicada como KGW; nos demais casos, segundo a edição grande in

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mento e da agregação numa organização dos básicos complexos de impulsos. Os "homens superiores" representam esses básicos complexos de impulsos e assim caracterizam, em seu _. conjunto, tanto a época quanto o material que NietzscheZaratustra quer e deve levar a uma síntese nele mesmo. Alguns dos "homens superiores" portam traços de pessoas que se tornaram de alguma forma significativas para Nietzsche, na medida em que nelas se havia estampado com especial clareza um dos impulsos básicos da época. Assim o "adivinho"

octavo das Obras (I 894 e ss., em 19 vols. - GA) ou a pequena (1898 e ss., em 16 vols. - KA), de Leipzig. A correspondência de Nietzsche será citada segundo a edição em cinco volumes Gesammelte Briefe, Berlim e Leipzig, 1900 e ss., ou a de Leipzig, 1907 e ss. (indicada como Gbr). Para os textos de Nietzsche, utilizamos as seguintes siglas: HH=Humano, demasiado humano, vol. 1

AS=O andarilho e sua sombra A=Aurora GC=A gaia ciência ZA=Assim falava Zaratustra BM=Para além de bem e mal GM=Para a gen~alogia da moral CI = Crepúsculo dás ídolos AC=O anticristo -EH=Ecce homo NW=Nietzsche contra Wágner !=~scri~os efra!7':entos póstumos; junto a essa sigla geral, encontra-se uma md1:açao,_a md adis exata possível, do texto original e/ou da data de pro· d'tcaçoes - re1erentes e d uçao; serao . _ a as , ' em especial , as m aos fragmentos a compila?ªº. postuma de Vontade de potência (VP). Referencias serão apresentadas no propno , . texto enA ( ao Zaratwtra • t re parenteses pe 1a edição KGW VI 1) A · para· a tra d ução das passagens de NietzsUtilizamos h . d como referenc1a vol

c "e,_c1ta has as traduções de Rubens Rodrigues Torres Filho no ume - Os Pensadores São Paulo Ab ·1ivzetzsc e I eI Obras incomhl r et as, C 0 1eçao ' n u tura, 3ª ed., 1983. [N. T.] '

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evoca Wagner; o "consciencioso do espírito" • . .. , em sua cienu61cidade consequente, lembra Overbeck e Rohd " b ,, e; a som ra niilista de Zaratustra, Rée, e assim por diante Al, d z " . em e aratustra e ~os h~r:riens su_periores'', também desempenham um papel coisas uttltzada~ simbolicamente, por exemplo, 0 "mel" representa a sabedoria de Zaratustra e a videira, sua virtude que dá. Por fim, surge ainda, como ocorria nas partes anteriores, uma série de animais, sobretudo os "animais de Zara,, "' . ,, ,, tustra , a agu1a e a serpente , que representam o orgulho e a esperteza do protagonista, mas também aparecem como símbolos do "pensamento do retorno". 2 Entre os animais presentes no Quarto Zaratustra, o asno desempenha importante papel. Foi interpretado, desde Gustav Naumann até publicações mais recentes, como símbolo . con duzem" e' "o povo,,·; "o asno de "povo" . "O asno que os reis é, na Quarta Parte, o representante do povo" (Naumann 15, IV, p. 24 e 122). 3 O "asno [... ] (serve como) imagem do povo, que no máximo aprendeu isto: dizer-sim*" (Gramzow 3, p. 57). "Encontram-no (isto é, Zaratustra) dois reis que conduzem um asno - o povo" (Weichelt 22, .p. 54). 4 "O asno é [... ] utilizado como símbolo do povo" (Messer 11, p. 139). Num trabalho recentemente publicado sobre o Quarto Zaratustra, o autor considera o asno que os reis trazem consigo a princípio "um tanto enigmático", mas termina por concluir que, (( .



C(





,,



2

Cf. a esclarecedora interpretação de M. Heidegger d~ ZA I Prólogo § 1O; KGW VI 1, p. 21 '(Heidegger 4, p. 1O1 e ss., aqui: P· 104).

3

Cf. também IV, p. 30, 121 e 199.

r lJa ir sagen -- d'zer sim) e !ah {onoma1

* 1-a-Sagen: jogo de palavras entre 1ª

topéia para o zurrar do asno) (N. da T.). 4

·

..

:hrach Zaratttstra, erkl.art C( também do mesmo autor, Fr. 1 vtetzrche: Ais0 Sr "''

und gewiirdigt. Leipzig, 1901, p. 161 e ss.

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de serem J·ustamente os reis que o conduzem, ele l f:ato peo "(Ruh17 55 e ss.; este " ·m [ ] referir-se a povo a , P· ... d eve ass1 ponto, em particular: P· 67). . · térpretes de Nietzsche, de CUJOS trabalhos provêm Os 1n " as passagens citadas, sem exceção, e~tab~ecem povo:' co~? significado básico de asno. Suas dec1fraçoe~ d~ asno s1mbohco permanecem todas relacionadas a esse s1gn1ficad?, ~mbora variem de acordo com o autor e o contexto. A ma1ona ten. · "povo" a "p 1eb e" 5 ou a "homem de reb an h o".6 de a restnngu Mas, por representar em primeiro lugar "povo", asno deve poder representar igualmente a "democracia" (Weichelt 21, p. 162) ou o "ideal do demos cristão" (Naumann 15, IV, p. 30) e, na opinião de um dos intérpretes, "fazem parte" do povo representado pelo asno "também seus guias, porta-vozes e sábios" (Gramzow 3, p. 115). - A afirmação de que o asno no Quarto Zaratustra seria símbolo de "povo" certamente não é falsa, na medida em que, em Nietzsche, o asno sem dúvida faz certa referência a "povo". Mas trata-se, a meu ver, de uma interpretação bastante superficial, que ignora aspectos básicos desse livro singular. Considerar o asno um símbolo de "povo" e interpretar "povo" sobretudo como "plebe" leva os intérpretes a concluir que o asno não tem qualquer importância no livro como um todo e que, por conseguinte, não se deve dar a ele muita atenção. Todos os autores aqui citados interpretam ainda dessa forma as passagens em que o asno aparece como resultado de uma ridicularização da "plebe". Por certo, essa também pode ter sido a intenção de Nietzsche, mas, como mostrarei, não era sua verdadeira intenção ao introduzir o asno na "trama". ·

5 6

Assim fazem Naumann, Gramzow, Weichelt e Rauh. Como, por exemplo, em Messer 11, p. 139.

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Quando se mobilizam os três outros livros do Zaratustra, verifica-se que neles a identificação entre asno e "povo" encontra pouco apoio. Na Primeira Parte, o asno aparece somente uma vez, e Nietzsche o utiliza como símbolo de perseverança e tenacidade: "Vós me dizeis: 'a vida é difícil de suportar'. Ma~ p:ra que :eríeis d~ ~anhã vosso orgulho e à noite vossa subm1ssao? A vida e d1fic1l de suportar: mas não vos façais de tão delicados. Somos todos bonitos e robustos asnos e jumentas" ("Do ler e escrever", p. 45). Da mesma forma, na Segunda Parte, há apenas uma passagem em que o asno aparece, e nela Nietzsche designa .os "sábios" como asnos: "obstinados e espertos, como o asno, sempre fostes enquanto porta-vozes do povo. E mais de um poderoso, que queria andar bem com o povo, atrelou à frente de seus cavalos - um pequeno asno, um sábio famoso" ("Dos sábios famosos, p. 128"). O asno tem aqui, sem dúvida, certa referência a "povo", mas trata-se de uma referência secundária. Os "sábios famosos" são asnos,7 porque, como estes, são "obstinados e espertos"; é possível atribuir-lhes essas características na medida em que são porta-vozes do "povo", ou antes, provêm "do povo". Asno não representa, por certo, diretamente "povo", mas sim - digamos de forma bem genérica - uma síndrome, que também se aplica ao "povo". Na Terceira Parte, o asno aparece duas vezes. A primeira delas ("Dos renegados,,,§ 2, p. 225) prenuncia claramente o Quarto Zaratustra: em termos de conteúdo, alude à adoração do asno pelos "homens superiores"; textualmente, refere-se ao "asno embriagado" do capítulo "A ceia". Aqui, na Terceira Parte, Nietzsche 1

7

Gramzow devia referir-se a essa passagem com sua afirmação: "[ .. .] do povo representado pelo asno fazem parte também seus guias, porta-vozes e sábios" (Gramzow 3, p. 115).

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denomina asnos aqueles que, de sua antiga atitude de espíritos livres, se voltaram para uma nova devoção e buscam mascarar essa conversão com discursos céticos. Nessa perspectiva, a última passagem a ser mencionada está no capítulo "Do espírito de peso" (§ 2; p. 240). Aí Zaratustra faz uma caricatura do tudo aceitar sem resistência e do dizer sim a tudo. Essa atitude apresenta-se simbolicamente pelas características do "porco" e do asno. "Mas tudo mastigar e digerir - isso é próprio de porcos! Sempre dizer 1-A- isso aprendeu somente o asno e quem tem o seu espírito!-" Cabem aqui ainda alguns outros argumentos gerais contra uma equiparação entre asno e "povo" na Quarta Parte do Zaratustra. Restrinjo-me a um único e remeto os demais à interpretação, que sumariza todas as passagens do livro em que o asno aparece, na parte III do presente trabalho. O asno não é o único animal que Nietzsche utiliza simbolicamente no Zaratustra em geral, bem como em sua parte final. 8 Os outros "animais,,, Nietzsche utiliza - segundo a interpretação unânime de todos os que abordaram o tema em detalhes prioritariamente para se referir a características e atitudes humanas que remetem a impulsos ou a complexos de impulsos. Já mencionamos a "águia", a "serpente" e o "porco"; outros exemplos são "o leão com o bando de pombas", que representa a síntese de Zaratustra entre fortaleza e inocência (do vir-a-ser), ou o "camelo'\ que simboliza a perseverança paciente. Em nenhum desses casos, Nietzsche estabelece significados arbitrários, ao contrário, segue, no mínimo, o uso me-

8

Numa anotação póstuma do período de elaboração do Zaratustra, Nietzsche reuniu a "águia,', a "serpente,, e o asno: "Foi naquela hora profunda da noite que Zaratustra começou a cantar a grande redondilha, na q uai seus convidados entraram em fila; mas o asno, a águia e a serpente ficaram escutando [... ]" (KA XII, p. 385).



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tafórico mais sugestivo e comum das diversas espécies de animais. Se faz o me~mo ~om o asno, será então de esperar que empregue, estupidez, insensatez, inércia etc.,9 como suas significações básicas. . Decerto a ~resente interpretação não deve apoiar-se em suposições. Em vista do consenso dos intérpretes que até agora atribuíram asno a "povo", é prudente não dar início a uma interpretação das passagens em questão sem antes examinar se de fato existe em Nietzsche um uso específico da metáfora do asno. Se for possível estabelecer tal uso em outros textos além do Zaratustra, disso vão resultar conseqüências também para a interpretação do asno no Quarto Zaratustra. Dessa forma, na parte II procuro estabelecer uma primeira aproximação, que mais adiante deverá mostrar-se fértil para nossa interpretação específica na parte III.

11

Após 1885, Nietzsche fala cada vez menos de Zaratustra e cada vez mais de si mesmo. Essa tendência já se manifesta claramente nos prefácios de 1886, e é inquestionável nos

9

No Dicionário dos irmãos Grimm (vol. 3, p. 1143 e ss.) diferenciam-se oito significados. Para o quarto deles, o dicionário introdu~ numerosas citações, extraídas de obras de todos os séculos, desde a l~teratura da Antiguidade até a do século XIX, esboçando-se da seguinte forma: "Como [... ] todos os animais são considerados com relação ao homem . . e estup1 , ·d os, msu · lta-se e griºta-se usando-se os termos: como .irrac1ona1s . e mesmo gado, e em espec1a · l, b01,· bezerro, cordeiro, ' .e asno'· asno. animal · ºfi1ca não somente po b re e m1enor, · i: • mas também estup1do, pregu 1s1gn1 . . d . l l scivo [ ) e amda se conçoso, indolente, grosseiro, ru e, mso ente, e ª ··· ' d d melhante a ele, sen o esd trapõe a corcel, nobre e ve1oz, mas e resto se prezado [... ]".

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últimos textos de 1888, em especial no Ecce homo. Se na Gaia ciência ainda designava o "auto"-conhecimento, isto é, o conhecimento da organização que reúne os complexos de im,. . mais . dºfJ' pulsos desarticulados, como a operaçao 1 1c1·110 , no úl-. timo terço do ano de 1888, Nietzsche considerava possível manter sua perspectiva básica para "si", e suas obras para os contemporâneos e a posteridade. Nessas anotações importantes, às quais deu o título de Ecce homo, encontramos a passagem: "Sabemos Todos Nós, Alguns sabem até mesmo por experiência, o que é um animal de orelhas-compridas. Bem, ouso afirmar que tenho as orelhas mais curtas. [...] Sou o antiasno par excellence e dessa forma um monstro da história universal [... ]" (EH, "Por que escrevo livros tão bons", § 2; KGW VI 3, p. 300). Não é por acaso que Nietzsche introduz a palavra ''antiasno': que ele próprio grifa. A partir disso, pretendo indicar o uso especificamente nietzschiano da metáfora. O ''antiasno"presta-se a essa tarefa, pois remete de modo deliberado ao Quarto Zaratustra. Zaratustra não é, segundo diz, numa espécie de homenagem, o "rei da direita", "um asno" ("A ceia", p. 35 I), e com isso se estabelece que não so-

10

E m "Pºlh ' . astucia ' . e vingança . ", a "Inero d ução em versos alemães", I ena, lê-se sob o nº 25: "Prece. Conheço o sentido de muitos homens E não sei quem eu mesmo sou! Meu olho está demasiado perto de mim Não sou o que vejo e via. Queria tirar mais proveito de mim, Se pudesse estar mais distante de mim mesmo. Mas n_ão tão _distante quanto meu inimigo! O amigo mais próximo já está distante demais Mas entre ele e mim, 0 meio! Adivinhais o que peço? (GC; KA v, p. 20).

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139 mente é sábio, mas também esperto É . · 1ustamente nesse f: b de ser sá 10 como nenhum outro sábio d h' , . ato, 0 . a tstona mas além d isso esperto, que, no Ecce homo N' h ' ,., , ietzsc e O ''ant1· asno': ve sua marca característica. 11 ' Nietzsche refere-se a si mesmo no sup 1 . N. ,. , . er ativo. ao lhe é suficiente nao ser um animal de "orelhas-co 'd ,, . . " mpn as ; atnbui a si mesmo as orelhas mais curtas" 12 De · d " . ,, . • s1gnan o-se 0 antiasno par excellence , exclui de si todo "asi·n1· " · . , . no e, JUstame~te por,.,me_io dessa enfattca exclusão, confere ao asno grande 1mportanc1a. O que exatamente Nietzsche exclui de si? o que significa o animal de "orelhas-compridas", ou melhor, 0 asno rejeitado por meio do prefixo "anti"? No contexto imediato, Nietzsche escreve que tem ''esprit': aquele "sal" "que jamais se torna estúpido* - 'alemão"' (EH, "Por que escrevo 11

Os dois primeiros capítulos do Ecce homo têm os títulos "Por que sou tão sábio" e "Por que sou tão esperto". Mais adiante comentarei a problemática indicada pelas palavras "sábio" e "esperto".

12

Na obra de Nietzsche, o tema das "orelhas" vincula-se estreitamente ao asno. Numa alusão ao versículo do Novo Testamento, "Quem tem ouvidos para ouvir, ouça", Nietzsche gosta de empregar a expressão "ter orelhas para algo" (cf., por exemplo, Póstumos, GAXIII, p. 164 /nº 381/ e KA XIV, p. 174 e ss. /Parte 1, nº 338/); fala de "orelhas sensíveis" (por exemplo, BM, § 1O), de "caráter de orelhas sensíveis" (por exemplo, AS,§ 214), de "orelhas pequenas ou as menores" (cf., além da passagem citada no texto, também Póstumos, KA XII,?· 381), de_ "caráter de orelhas longas" (por exemplo, GC, § 223 e Postumos, pnmaveraverão de 1888, 16(40); KGWVIII 3, p. 294) etc. N. da T.: o versículo é de Mateus, 11, 15 e diz na tradução para O alemão: "Wer Ohren hat zu horen, der hore", literalmente, "Quem tem . ouça,, . N a tra d uçao - para. O português , perde-se a reoreIh as para ouvir,

ferência a "orelhas" (Ohren), visada por Nietzsche. * . . . h , · t . [o sal] "das niemals dumm O texto ongmal de Nietzsc e e o segum e. . " d . d" A de Mateus 5 13 é a segumtc: se o sal per er [... ] wir . passagem ' L "d ,, , tilizado por utero em sua sua força". No alemão o termo umm , e u

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livros tão bons", § 2; KGW VI 3, p. 300). Assim, asno representaria "estúpido" e "alemão" e se caracterizaria pela falta de "esprit". De fato, Nierzsche segue o uso lingüístico convencional, que, como vimos, geralmente ~mprega asno ~ara referir;. se a estupidez. 13 Mas ele tem em vista uma estupidez especí- . fica, que põe em estreita conexão com "alemão" e determina de modo mais preciso como falta de "esprit". Em Nietzsche, é bastante freqüente essa associação entre "alemão" e falta de "esprit" como forma específica de estupidez, por exemplo, nas seguintes passagens: "Na França o 'esprit' gostaria muito de ter gênio. Na Alemanha o gênio gostaria muito de ter esprit': "Aos alemães falta esprit, porque não possuem excesso de espírito: se gastaram o seu, estão pobres e lá ficam. Odeiamno, e no entanto sentem que sem ele a sociabilidade é uma tediosa grosseria: daí, 'afeto"' (Póstumos, outono de 1880, 14 6[328] e 6[334]; KGWV, 1, p. 611 e 612).

tradução da Bíblia com o sentido de "incapaz", "inútil" (ver nota 13), correspondendo a "perder sua força" da tradução para o português, mas si~nifica também "estúpido", o sentido imediatamente visado por Nietzsche, que se perde no texto em português (N. da T.). 13

Cf. acima, p. 183 e nota 09. Quando fala do "sal" "que jamais se torna estúpido", Nietzsche está fazendo uma ai usão à tradução de Lutero de Ma teu~, 5, 13, e?1 ~~~ "tornar-se estúpido" significa o mesmo que "tornar-se ,'.ncap~z, i~unl . Isso mostr~ que com asno Nietzsche designa de fac~ a e~t~p1dez , mas uma estupidez específica, que precisa de explicaçao ad1c10nal.

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Cf também 8[28]; loc. cit., p. 718 e ss. Nietzsche constatava a falta de ''esprit" [em francês no original] não apenas nos alemães· também os "ingleses utilitaristas", "uma espécie de homem modesto e,basicamente medíocre", são na sua opinião ''sans génie et sans esprit!" (BM, § 228; ~GW VI 2, P· 171). Sobre o provérbio cuja última linha acabamos de citar fo~am preservados trabalhos preparatórios de Nietzsche (publicados na Integra no volume VI 4 da edição italian a da KGW e já publi-

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Como se sabe, a crítica de Nietzsche a «0 s,, al emaes -- ero1·. . ., se tOrn'ando cada vez mais. acerba. E que acreditava en contrar . ércia e rigidez de espínto com especial freqüência nos h _ tn·cantes da "p lanie1e ' . europeia '. " (CI ' « O que falta aos alema-- ª" es , b1 15 § 3; KGW VI_ 3, p. 99), como polemicamente os denominava. Todavia, para o tema em questão, é importante observar que, para a «estupidez alemã" da falta de "esprit': Nietzsche também em outras passagens recorre à metáfora do asno ou utiliza outras formulações, nas quais ela está ausente de modo mais incidental. Quando por exemplo observa "Na Alemanha sempre houve falta de espírito, e lá cabeças medíocres agora chegam ao mais alto prestígio porque já são raras" (Póstumos, GA XIII, p. 388 (nº 840)), a designação asno quase se impõe para «cabeças medíocres". Seria possível imaginar que Nietzsche a teria inserido numa reelaboração dessa nota, e foi justamente o que fez na seguinte passagem: "O ridículo na Alemanha não é temível para aquele que temespírito. Pois não é o riso das pessoas espirituosas, mas o do jovem asno, que aqui forma o conceito de ridículo" (Póstumos, outono de 1880, 6[337]; KGW V 1, p. 612). Apesar da existência, no uso lingüístico de Nietzsche, de um vínculo estreito entre asno e "falta de esprit alemã", não é possível simplesmente substituir um termo por outro como se fossem sinônimos. É somente na medida em que têm falta de

cados anteriormente em parte em GA VIII, p. 360), Nietzsche hesitou quanto a se deveria dirigir-se (como finalmente aconteceu no BM, § 228) aos próprios ingleses ou aos alemães que consideravam Darwin um gênio. Preparou-se para o segundo caso com o título, entre outros, "Aos asnos alemães" (KGW - edição italiana - VI 4, p. 114; vertambém GA VIII, p. 448). 15

Cf. Nw, Prefácio; KGW VI 3, p. 413 e EH, "Por que escrevo livros tão bons",§ 2; KGW VI 3, p. 299.

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'es rit" ue "os" alemães são asnos; "C1a1ta de esprit. " e' o conteúddconc~itual básico, "alemão" apenas fornece o exemplo extremamente polêmico. Isso se verifica ~om clareza _numa a~otação dos textos póstumos, em que Nietzsche designa He1ne como, além de Goethe, o único poeta alemão relevante e 0 caracteriza da seguinte forma: "ele tinha o mais refinado instinto para a flor azul alemã, certamente também para o asno cinza alemão" (Póstumos, KA XIV, p. 173 (Parte 1, nº 334)). Assim, numa primeira conclusão, podemos afirmar que com o termo asno Nietzsche designa uma forma específica de estupidez, que pode ser descrita como inaptidão, falta de espírito no sentido de 'esprit': mediocridade etc. Na medida em que acredita encontrar essa síndrome de características de modo muito mais freqüente em seus conterrâneos, pode, em algumas passagens, empregar em seu lugar também "alemão", ou antes, designá-la simultaneamente como asno e "alemão". Mas nem "alemão" descreve de modo suficiente o que Nietzsche quer designar com asno, nem sua imagem dos "alemães" se esgota porque seriam asnos. Trata-se de uma sobreposição parcial das duas "circunstâncias". Nosso exame do específico uso nietzschiano da metáfora do asno deve partir do conteúdo de significação de "estupidez", no sentido de uma falta de ''esprit". Na obra de Nietzsche encontramos diversas passagens que permitem precisar melhor essa falta de ''esprit". Ela se manifesta sobretudo na aceitação impensada sempre do mais óbvio, por exemplo, na tendência a compreender o que é dito ou escrito em seu significado mais trivial e imediato. Numa passagem, Nietzsche observa que haveria "somente nobreza de nascimento, somente nobreza de sangue", e a essa afirmação acrescenta entre parênteses: "Não falo aqui da partícula 'von' e do Calendário de Gotha: parênteses para asno" (Póstumos, VP, §

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942; KA XVI, p. 329). Quando a aceitação impensada do mais óbvio aparece não apenas ocasionalmente, mas se consolida numa atit ude, ~~etzsche fala ?e convicção. Convicção é, em seu conteudo bas1co, a consolidação da perspectiva de um impulso ou complexo de impulsos. Dessa forma, tornase claro por que Nietzsche prefere utilizar o asno para referirse a convicções de toda espécie. Assim, ele pode por exemplo designar como "observação para asno" (Póstumos, outono de 1887, 10[150]; KGW VIII 2, p. 206 (= VP, § 17)) a regra hermenêutica básica de sua psicologia do desmascaramento: "uma coisa que convence nem por isso é verdadeira: ela é meramente convincente". É em especial dos chamados sentimentos edificantes que, nesse contexto, Nietzsche desconfia. ''As emoções nobres, como acompanhantes das ações, nada provam quanto a seu valor: um artista pode, levado pelo mais alto estado de arrebatamento, trazer mesquinhez ao mundo. Ao contrário, deve-se dizer que essas emoções são sedutoras, desviam n·osso olhar, nossa força, da crítica, da suspeita de que fazemos uma estupidez[ .. .] elas nos tornam estúpidos-" (Póstumos, primavera de 1888, 15[92]; KGWVIII 3, p. 255 e ss. (= VP, § 294)). Quem está convicto abandona a investigação e enterra sua desconfiança. Por isso, muito cedo Nietzsche estabelecia de modo lapidar: "as convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras" (HH I, § 483; KGW IV 1, p. 329). A elas contrapunha sua desconfiada máxima de pesquisa de em ponto algum se deter de modo definitivo. Para caracterizar seu procedimento metodológico, Nietzsche empregou diversas imagens, mas com elas sempre se referia ao mesmo tema da dissolução de convicções. Suas atividades de escudo e docência em Basiléia sugeriram-lhe denunciar o deter-se diante de convicções como "falta de filologia" e contrapor a análise crítica dos textos à permanente 1

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confusão entre texto e interpretação. ~os livros de aforismos, orientava seu uso lingüístico princ1p~lmente p~la pesquisa na esfera das ciências _natur~is,_ e para isso aprec1~va e~ especial a imagem da anál~se qu1_~1ca_, e~ que. se ev1den~1a que resultados à primeira vista ong1na1s sao produtos tardios 17 de processos mais lentos e complexos. Na Aurora e nos Prefácios de 1886, Nietzsche, visando à dissolução desconfiada das convicções, em parte mobilizava imagens e expressões 18 provenientes do campo da mineração. A diversidade de nomes e imagens revela claramente a grande importância que atribuía ao desmascaramento e à dissolução de convicções e o quanto se empenhava em não se tornar ele próprio vítima de uma convicção, da consolidação de uma perspectiva.

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Em vez de uma série de citações de passagens, reproduzimos aqui uma observação conclusiva de K. Schlechta: "Nietzsche era [... ] filólogo [... ] E quanto mais se contrapunha criticamente à filologia clássica dos contemporâneos, tanto mais por outro lado sempre foi orgulhoso de ser filólogo criticamente erudito: quanta calamidade espiritual - e não apenas 'espiritual' - vincula-se para Nietzsche à 'falta de filologia': a eterna confusão entre, por exemplo, 'explicação' e 'texto'!" (Schlechta 19, p. 353 e ss., este ponto, em particular: p. 355). Ainda nos Póstumos, primavera de 1888, encontra-se a seguinte anotação: ''A falta de filologia: confunde-se constantemente explicação com texto - e que 'explicação'!" (15[82]; KGWVIII 3, p. 250 = VP, § 477).

17

São paradigmáticos o título e o conteúdo do primeiro aforismo de HH 1: "Química dos conceitos e sensações" (KGW IV 2, p. 19 e ss.; cf. uma construção análoga de Heller 6, p. 21 O e ss.).

18

No decorrer da elaboração de Aurora, Nietzsche escreveu: "com isso cavo furiosamente em minha mina moral e com isso às vezes me encontro totalmente sob a terra" (Carta a Gast de 18.7.1880; GBr IV p. 31 ). Em Aurora, Nietzsche emprega imagens como: cavar buracos de toupeira (aforismo 4 1), perfurar passagens escuras (aforismo 88), escavar tesouros (aforismo 457) etc. Mais tarde encontraria imagens análogas cm Dostoievski. A esse respeito, cf. Miller 13.

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A psicologia nietzschiana do desmascaramen to não permaneceu mero pro_gr~ma: nos livros d: aforism?s, em eseciaL ele apresenta 1numeras observaçoes especificas que P ,., cnuca ' . tam b'em de comportamentos e ilustram a d'isso1uçao opiniões aparentemente mais óbvios. É com observações específicas que pe~etr,:i de mo~o ,c~da vez ?"1ais profundo no interior das convicçoes. A pnncip10 parecia-lhe que a investigação científica, por sua própria natureza e tendência, era o adversário decisivo e definítivo de todas as convicções. Pois ela jamais se detém num resultado; ao contrário, se exercida de modo correto, imediatamente toma cada. resultado, por sua vez, como um novo problema. Em contrapartida, o deter-se e o fixar-se numa perspectiva, quando por exemplo a convicção se impõe, são, para a investigação científica, sempre arbitrários (cf. BM, § 289; KGW VI 2, p. 244). Ao nos remetermos a convicções, não podemos em última análise alegar razões científicas, mas apenas morais - mesmo que subjetivamente acreditemos estar-nos comportando de outra maneira. Na obra da década de 80, podemos estabelecer diversas passagens que mostram que com as observações acima nos aproximamos do conjunto de circunstâncias que Nietzsche se empenha em designar como asno. Com o asno, ele tem em vista toda convicção fundada num juízo moral, quer implícito, quer explícito, ou antes, todo aquele que se deixa impedir de prosseguir em sua investigação devido a uma tal convicção. Pelo menos já desde o Humano, demasiado humano, vol. 1, considerava os moralistas como o protótipo dos que com sua análise científica apreendem muito pouco - como revelam algumas de suas observações, especialmente as que se referem aos moralistas franceses e àquele que por algum tempo foi seu amigo, Rée. O moralista está, segundo Nietzsche, tão penetrado da moral da decadência, que deve, comando-a

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como medida, denunciar e desmascarar todas as ações que se tornam "efetivas" como imorais em última análise. Dessa forma o "moralista" é um "ideólogo da virtude", para Nietzsche, que a ele se dirige ironicamente como "Meu Senhor Virtuoso e Orelhas-compridas" (Póstumos, VP, § 281; KA XV, p. 350). 19 Pois o moralista se apóia justamente na mesma concepção de valores do homem moral, cuja moralidade ele próprio havia desmascarado. como, em seu núcleo, imoral. Nietzsche vê-se inserido no movimento de "transvaloração de todos os valores" e dessa forma não mais como moralista, e sim como "imoralista". Ao contrário do moralista, não considera sua tarefa o desmascaramento da imoralidade dos impulsos interiores dos homens exteriormente morais, que apenas leva a uma consolidação ainda maior da medida da moral da decadência, que tanto desmascarador quanto desmascarado invocam. Trata de problemas centrais da moral com brevidade aforística, pois "deve-se [... ] como imoralista evitar corromper a inocência, refiro-me aos asnos e às solteironas de ambos os sexos, que nada têm da vida, exceto sua inocência[... ]" (GC, § 381; KA V, p. 341). 2 º Assim, para Nietzsche, o "imoralista", são asnos todos os que agem por convicção motivada moralmente, não importando se, com o auxílio

19

Cf. Póstumos, ?utono de 1887, 10(83]; KGW VIII 2, p. 170 e ss. (= VP: § 318): "E:se uma espécie de h~mem basicamente pequena, quando se e somente virtuoso, a esse respeito, nada deve nos induzir ao erro! H_omens que s_ão considerados sob um aspecto qualquer nunca foram tais asnos de VIrtude [...]".

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ue a m~cenc1a se eve equiparar à "convicção virtuosa" confirmase na seguinte ·passagem: ''A virtude é sob certas circunstâncias mera ~on~a honrosa de estupidez: a quem seria permitido querer-lhe mal por iss~. [... ] Para que perturbar essa pura estultice?" (Póstumos, primaveraverao de 1888, 16(31); KGWVIII 3, p. 287 (= VP, § 320).

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dessa medida e critério, mascaram ou desm . . . . ascaram o imoral Nietzsche em geral cons·d d Presente no cotidiano. ... 1 era asno to 0 aquele que nao p~rscruta o que veio a ser de toda medida moral e talvez ate mesmo chegue a identificar um d . ... , a eterminada conv1cçao a n_atureza humana. Por exemplo, um educador que, convenc1~0 do ~,em e_da moralidade originais da natureza humana, gritasse continuamente a seus discípulos 'sede verazes! Sede naturais! Mostrai-vos como sois!"' seria para ele um "asno mais virtuoso e ingênuo" (BM, § 264; KGW VI 2, p. 229). Como bem observou Karl Joel, Nietzsche na verdade "despreza" "o 'asinus' da convicção em nós, 'desconfia de tudo o que em nós quer se consolidar', tudo o que não seria ensinável, isto é, não seria modificável, mesmo nossas 'convicções', esses 'guias para a grande estupidez que somos'. O 'caráter' seria 'útil para as naturezas de instrumento' [... ]" Qoel 7, p. 153; cf p. 66). No decorrer da década de 80 Nietzsche percebe que, com a alternativa ou a dissolução científica de consolidações ou o estar convencido sobre bases morais, sempre estivera simplificando em demasia o desmascaramento de perspectivas consolidadas. Expressou de modo mais claro essa constatação no Quinto Livro da Gaia ciência, no aforismo intitulado "Em que medida nós somos devotos ainda" (GC, § 344; KA V, p. 272 e ss.). 21 Reconheceu que também a investigação científica se sustenta por uma "vontade de verdade", cuja máxima ou convicção diz: "não quero enganar, nem sequer a mim mesmo". Aquele que por um desconfiado esforço em direção à verdade destrói todas as outras convicções, também ele, parte de uma convicção e dessa forma se situa ''no terreno

21

• As citações que se seguem no texto acham -se em GC § 344; KA V. p. 274 e ss ..

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da moral'~ Como não pratica abstratamente uma ciência pela ciência, mas sim uma análise concretamente científica para •dissolver convicções, Nietzsche não se exclui da percepção que atinge nesse momento; ao contrário, analisa a convicção que antes o · orientara com tanta determinação quanto por meio dela havia analisado outros. É um ato de .extrema crítica-de-"si mesmo,,, isto é, de crítica do impulso, até então dominante, que ocupou o lugar do "si mesmo,,, aquele em que Nietzsche extrai a .conseqüência: "já se terá compreendido aonde quero chegar, ou seja, que é semp're ainda sobre uma crença .metafisica que repousa nossa crença na ciência - que também nós, conhecedores . de hoje, nós os, sem-Deus e os antimetafísicos, também nosso fogo, nós ainda o tiramos da fogueira que uma crença milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também a crença de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina [... ]". 22 Nessa· luta contra todas ·as perspectivas consolidadas, e com a pretensão de ·promover o conhecimento puro e simples, Nietzsche por certo tempo favorecera uma única forma do conhecer. Havia identificado o esforço em direção à "verdade" (científica) ao esforço em direção ao aumento do conhecimento. Dessa forma, exatamente ao contrário do que pretendia, havia favorecido uma única coalizão de .impulsos e feito seu jogo; com re~ação a ela havia se portado como um asno. Pois todo impulso e toda coalizão de impulsos buscam sem dúvida o conhecimento, mas nem todos buscam a "verdade,, .

22

Pod~mos aqui. d.1_scut1r . a pro 61 em áuca · expressa pela citação apenas na medida em que isso é necessário p ara a compreensão da m etáfora do asno. Sobre a tentativa de Nietzsche de redefinir a natureza da verdade, tendo em perspectiva a visão do en raizam ento m o ral do que até agora se entendeu por "verdade", cf. as análises de Müller-Lauter 14, p. 95 e ss.

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Com·essas refl~xões, de forma alguma perdemos de vista o asno; ao contrario, penetramos mais ainda no contexto a partir do qual. podemos compreender O uso específico da metáfora em N1~tzsche. Como resultado, vimos que por meio do asno ele designa convicções, isto é, perspectivas consolidadas, e não mais questionadas, ou antes, seus portadores. Até agora em nossas análises, mobilizamos unicamente exemplos em que o asno representa. alguma convicção resultante da moral da décadence. Os resultados de nosso procedimento de investigação são · além disso confirmados pelo fato de Nietzsche empregar o termo .também quando tem ein vista a perspectiva consolidada dos até então nobres e fortes. Numa ocasião, cita como exemplo o ~'amor". Podemos aqui ignorar que para ele-esse é um fenômeno complexo, que supõe uma multiplicidade de impulsos, e dessa forma uma coalizão de impulsos. 23 O importante neste caso é o fato de que o amor, quando obtém domínio sobre um ser humano, estabelece e consolida sua perspectiva. Isso também produz uma convicção, e Nietzsche assim descreve o modo como ela se efetiva: "Aquele que ama se torna esbanjador: é rico o suficiente para isso. Agora· ele ousa, torna-se aventureiro, torna-se um asno de magnanimidade e •inocência; volta a crer em Deus, acredita na virtude porque acredita no amor: e por outro lado nascem asas para esses idiotas da felicidade e são-lhes abertas as portas a novas aptidões, até mesmo para a arte" (Póstumos, primavera de 1888, 14(120]; KGW VIII 3, p. 92 (= VP, § 808). Na Gaia ciência há uma passagem que apresenta e esclarece com mais detalhes essa "convicção do amor,,: "reco-

23

Que o "amor" possa designar a perspectiva comum de múltiplos im: e · "Tiu d O O que se chama amor pulsos, Nietzsche salientou no a10nsmo · (GC § 14; KA V, p. 52 e ss.).

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nhece-se a natureza baixa pelo fato de que, inabalável, mantém em vista sua vantagem e pelo fato de que esse pensar na meta e na vantagem é nela até mesmo mais forte que os impulsos mais fortes: não se deixar levar por seus impulsos a ações sem meta - essa é sua sabedoria e sua dignidade. Em contrapartida, a natureza superior é a mais desrazoável - pois Aquele Nobre Magnânimo que se Auto-sacrifica, na verdade, submete-se a seus impulsos e em seus melhores momentos bloqueia sua razão" (GC, § 3; KA V, p. 39). A idéia que Nietzsche aqui apresenta vincula-se a suas reflexões sobre a história da moral e é relevante para seu programa do "alémdo-homem". Ceder insensatamente à paixão de um impulso dominante, seguir, contra o "aconselhamento" da moral da decadência, somente a perspectiva desse impulso, essa é segundo Nietzsche a marca dos até então bem-constituídos e fortes. Existe por certo um grande perigo na "estupidez nobre" desse tipo de convicção. Ela fez com que a moral nobre dos até então bem-constituídos, que diz sim à vida e a seus impulsos, não pudesse se impor com relação à moral de rebanho dos fracos, que diz não. A esperteza dos fracos, dos décadents, venceu em toda parte. 24 A oposição dos fortes algumas vezes, é verdade, se ergueu poderosa, por exemplo no !lenascimento ou na figura de Napoleão, mas no todo o que importa para Nietzsche é o que ele "mais uma vez" diz em Para além de bem e mal, apesar de "já ter dito centenas de vezes": '54. moral é hoje na Europa a moral do animal de rebanho" (BM, § 202; KGW VI 2, p. 126).

2/4 " (

e ... ] os ,racos se tornam sempre de novo senhores dos fortes - é ~ue são_ em grande número e são também mais espertos [... ]" '(CI, Incursoes de um extemporâneo", § 14; KGW VI 3, p. 114; cf. também Póstumos, primavera de 1888, 14(123]· KGWYIII 3 p 95-7 (= YP, § 685)). ' ' .

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A convicção · . , .dos fracos, .até então em geral vt'to nosa no decorrer da h1stona, caractenza-se para Nietzsche por uma espécie de inversão das convicções dos fortes. É sem dúvida mesquinha e baixa, mas por isso mesmo esperta_ "esperta" na medida em que torna possível aos fracos não aperias 0 modo de vida a eles apropriado e conveniente, mas abre-lhes, para além disso, a possibilidade de enfraquecer os fortes e dessa forma degradá-los até seu nível. No Zaratustra, Nietzsche designava os fracos e suas tendências pela fórmula o «último homem" que, por sua esperteza, fez da terra o refúgio da igualdade e da felicidade (ZA, Prólogo, § 5; KGW VI 1, p. 12 e ss.). Aqui se manifesta uma tensão na terminologia. A esperteza dos fracos, que acabamos de examinar, lembra-nos muito a estupidez de asno anteriormente discutida, por exemplo, daqueles que Nietzsche designara como «asnos e solteironas de ambos os sexos". 25 Os homens de rebanho convencidos de sua moral são estúpidos ou espertos? São ambos, ou antes, sua própria estupidez é sua esperteza, e vice-versa. São espertos com relação à estupidez dos até então forces, que não se pouparam; são estúpidos com relação à análise científica que desmascara e perscruta a mendacidade interior de seu comportamento. Como mencionamos, Nietzsche termina por descobrir no decorrer de sua destruição das convicções que até mesmo seu esforço radical em direção à verdade tem fatalmente um parentesco com a esperteza dos fracos, que também por trás dele está operando a moral da décadence. Daí se segue que são asnos não apenas, de um lado, os até então fortes, por se deixarem consumir a serviço de um impulso dominante e, de outro, os fracos, por rejeitarem os impulsos

25

Cf., anteriormente, neste mesmo artigo, p. 176 e nota 20.

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imorais da vida com base na medida de sua estupidez esperta. Há ainda um terceiro grupo de asno_s, o dos que, em seu esforço radical em direção à "verdade", dissolvem todas as (até então) convicções e por isso mesmo - servem a uma convicção. Representam essa atitude sobretudo o~ até então filósofos. É conhecida a caracterização que Nietzsche deles faz como décadents: 26 a designação asno vincula-se estreitamente a ela. "Em cada filosofia existe", segundo Nietzsche, "um ponto em que a 'convicção' do filósofo entra em cena: para exprimi-lo na linguagem de um velho mistério: adventavit asinus 27 pulcher et fortissimus" (BM, § 8; KGW VI 2, p. 15).

Se asno metaforicamente representa a convicção dos filósofos, Nietzsche pode então, em outras passagens e em decorrência dessa convicção deles, designar o próprio filóso26

Cf. em especial a primeira parte de Para além de bem e mal.

27

Cf. também a carta de Nietzsche a Gersdorff, de 9.5.1885, que encaminha o Quarto Zaratustra: "Ocorreu-me ·um belo mote de um velho mistério: 'adventabat asinus pulcher et fortissimus"' (GBr I, p. 245). Ambos os versos são extraídos do "Conductus ad tabulam" da festa do asno de Sens; Nietzsche provavelmente tomou conhecimento deles por ocasião das leituras de Lichtenberg (ver G. Chr. Lichtenberg, Das Eselfist, publicada pela primeira vez no Gottingischer Taschenkalender de 1799, e depois em Vermischte Schriften, vol. 5, Gottingen, 1844, 1867 (2), p. ?26 e ss.). Cf., a esse respeito, a parte III do presente texto, em especial, a p. 189 e a nota 33. O fato de Nietzsche utilizar na correspondência a forma (incorreta) do imperfeito (em contraponto à f~rma correta do perfeito em Para além de bem e mal), evidencia que citou os versos de memória - um indício de que a metáfora do asno lhe era presente de modo mais que incidental.

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fo como asno: "Pode um asno ser trági ~

S . co. - ucumb1r b uma carga que nao se pode carregar nem b d so , i: ,, (CI S ' a an onar~ [ ] O caso do fili osoro . ' entenças e setas § 11 · KGW. ... 2s e · ·descreve-se bem a situaç' ,d VI 3 ' . 54). om isso P , ao aque1e que b em o esforço em direção a' d d ercebeu que tam P . d ver a e, aparentemente 1ivre e pressupostos se enraíza num . ,. , . ... ' a conv1cçao e que, no entanto, nao encont~a saída dessa situação paradoxal. Numa outra passagem Nietzsche atribui a metáfora do asno aos_ ~lós~f~s que ai~da não ~erceberam a própria autocontrad1çao.• Sao anunciadas no ideal ascético tantas pontes para a independência que um filósofo não consegue ouvir, sem aplausos e uma certa alegria interior, a história de todos aqueles decididos que um dia disseram não a toda servidão e seguiram para algum. deserto: mesmo supondo-se que eram meros asnos fortes e absolutamente o oposto de um espírito forte" (GM, III, § 7; KGW VI 2, p. 369). Por meio do "espírito forte", que se distingue do asno mesmo quando se trata de um "asno forte", Nietzsche faz referência ao filósofo do futuro que deve superar o dilema do asno trágico. Esse filósofo, assim espera, unirá ambas as coisas: o domínio temporário de um impulso e sua perspectiva à esperteza que não deixa tal domínio durar em demasia. Como "além-do-homem", o filósofo do futuro levará a uma síntese os sistemas de moral que até então se excluíram reciprocamente, síntese na qual esses dois componentes levados a uma agregação passarão por uma mudança também neles mesmos. Se esse forte do futuro permite o domínio temporário de um impulso, ele nã? 0 faz tornando-se ele próprio um asno cegamente convencido 1

28

Um claro ponto de parnda . encontra-se nos Póstumos' primavera dde 1888, 1S[118]; KGW VIII 3, P· 273: "Pode um asno sobrecarrega o ~ se pode carregar, nem

ser trágico? - Sucumbir sob uma carga que nao

abandonar? [... ] ".

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com relação a esse domínio, mas servindo-se da estupidez do impulso em questão. A esperteza do filósofo do futuro irá se distinguir consideravelmente da espe:teza temerosa dos fracos. Ele destruirá o domínio de um impulso que, devido a uma tirania demasiado prolongada, se torna destrutivo para a inteira organização, mas não por meio do enfraquecimento de todos os impulsos nem por meio de um auto-aniquilamento, e sim pelo fortalecimento, a cada vez, de um outro impulso que deve romper esse domínio nele mesmo. Somente tal filósofo e "além-do-homem" será o verdadeiro antiasno, e sua máxima Nietzsche assim formula: "Viver com uma monstruosa e orgulhosa serenidade; sempre -para além -. Ter despoticamente seus afetos, seus prós e contras, ceder a eles, por horas, montá-los como cavalos, muitas vezes como asnos: - isto é, deve-se saber utilizar sua estupidez tão bem quanto seu fogo" (BM, § 284; KGW VI 2, p. 241). Para esses do futuro terá sentido fazer a pergunta "és forte?" como pergunta alternativa de: "forte como um asno? forte como Deus?" (Póstumos, verão de 1888, 20[88]; KGWVIII 3, p. 368). Pois sua fortaleza não é a do "asno forte" que, diferenciado do verdadeiro "espírito forte" já na Genealogia, se submete a sua convicção; é ao contrário a fortaleza do além-do-homem que toma o 1ugar d o "Deus morto ". O "além-do-homem" é a esperança de Nietzsche, o alvo que ele delineia aos olhos dos homens de sua época, mas não apenas de sua época. Como contra-imagem do "além-do-homem" está o já mencionado "último homem", sobre o qual Nietzsche dizia que o criara "juntamente com o outro" (Póstumos, KA XIV, p. 262 (Parte II, nº 5)). Em conseqüência, ele vê dois movimentos operando. "Um movimento é incondicionado: o nivelamento da humanidade, grandes construções-de-formigas etc. O outro, o meu 1novÍlnento: é inversamente O aprofundamento de todas as oposições e abismos, 0

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155 c. tarnento da igualdade, a criação dos s b O te-poder aias h ,r ' duz o último ornem, o meu, 0 ale'm-d h osos. um pro o- orne ,, (P, KA XIV, p. 262 (Parte II nº 4)) O _m ostu,nos, . 1 . ' . mov1ment d .,._rietzsche vincu a-se a diversas condiçÉ e 1~ 1 1d e oes. a1tament uestionáve se e e e 1ato consegue pô-lo em _ .. ,e q , açao e prop1c1alo. Esperava que, apos o aprofundamento máxim d ... " d ,, . o o nul1so retorno viesse a fazer rno' O pensamento . avançar,e sustentar seu ~ovimento, o que não examinaremos aqui. _ O outro movimento, que conduz ao "último homem" , cc• ·· d" C . N' ' e mcond1c1?na o ; om isso 1etzsche não está sugerindo que não sena possivel encontrar suas condições e pressupostos mas sim. que_ está j~ há muito tempo em processo, que du~ rante dois mil e quinhentos anos os filósofos, desde Sócrates e Platão, passando pelo judaísmo e por fim e sobretudo pelo cristianismo, promoveram seu favorecimento e fortalecimento. Assim, os homens não precisam ser agora impelidos a esse movimento. Quase todos estão convencidos de que ele e somente ele "conduz à salvação". Quando na praça do mercado Zaratustra delineia a imagem do último homem, assustadora para sua compreensão e a de seu autor, ele é interrompido pela multidão: "Dá-nos esses últimos homens, oh Zaratustra, [...] transforma-nos nesses últimos homens. E nós te damos de presente o além-do-homem!" (ZA, Prólogo, § 5; KGWVI 1, p. 14). Segundo Nietzsche, no entanto, ao favorecer ~ movimento que conduz ao ((último homem", as ((idéias modernas" estão assumindo a herança da filosofia e do cristianismo. Em parte, elas estão em violenta luta entre si, em parte, parecem não ter absolutamente nada em comum. Mas, aos olho"s de Nietzsche, trata-se apenas de ~lgo superficial: na verdade, as idéias modernas são somente vias e . . d os no sen tido desse alvo méto dos diversos todos orienta único, o "último'homem". Tendo isso em vi st ª' po_de~_os ente arb1trano, compreender por que, de mo d o aparentem

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Nietzsche reúne e rejeita, sob o título de "idéias modernas" 0 liberalismo e o socialismo, a música moderna e a emanei~ pação da mulher, a crença no progresso e o anarquismo etc. O que de maneira incidental observa no Anticristo sobre as idéias de progresso vale para todas as demais: trata-se de "meramente uma idéia moderna, isto é, uma idéia falsà (AC,. 1

§

4; KGW VI 3, p. 169).

Aqueles que profetizam as "idéias modernas,, e se deixam guiar por elas estão, como os moralistas, mas numa dimensão ainda maior, determinados por uma convicção que eles próprios não mais reconhecem como tal, . determinados por um juízo básico da moral, que ironicamente os orienta de modo tão mais eficaz quanto eles próprios acreditam poder, a partir de sua "idéià a combater e desestabilizar toda a moral anterior. Dessa forma é compreensível que Nietzsche prefira aplicar a metáfora do asno aos profetas e aos "crentes,, das idéias modernas. No Quinto Livro da Gaia ciência, o filósofo descreve o processo em cujo decorrer se desenvolveu a entronização progressiva do "homem bom,,, a entronização do tipo homem que, assim como o fraco e inofensivo, deixa o rebanho tranqüilo e cuja imposição definitiva significaria o surgimento do "último homem,,. Em sua visão, o 'homem bom estava muito mais manifesto no protestantismo que no catolicismo; "mas somente a Revolução Francesa passou o cetro completa e solenemente ao "homem bom,, (ao cordeiro, ao asno, à gansa, a tudo o que é incuravelmente superficial e espalhafatoso e a tudo o que está maduro para o hospício das 'idéias modernas (GC § 350; KA V, p. 286). A conjunção dos três animais é em especial interessante. A "gansa,, é claramente o correlato feminino do asno, 29 embora Nietzsche 1

,

1

1

29

r

Que Nietzsche tem em mente a "gansa estúpida" do provérbio, é o q~e revela uma reflexão sobre uma passagem em que Schopenhauer ocaslO

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num outro contexto, no provérbio: be'm utilize jumenta carn "d ''Palavras curtas, senti o amp1o - ge1o escorregadio para a ju. nta" (BM, § 237; KGW VI 2, p. 180). O "cordeiro" é aqui, me ocorre com freqüência, apenas o símbolo que o autor comO . d b h emprega para a e~1stenc1a e re an o e que, por certo, devia considerar sugestivo também para a caracterização alegórica do ''povo". · Para Nietzsche, entre os qµe sustentam e promovem as "idéias modernas", estão também os artistas românticos, sobretudo Wagner. Concordando satisfeito com Baudelaire, observa certa feita que o poeta chama Victor Hugo "um asno de gênio" (Póstumos, KA XIV, p. 177 (Parte I, nº 347)) Victor Hugo que ele mesmo _considerava um parente espiritual de Wagner. Também o movimento de emancipação das mulheres, como vimos, inclui-se, em seu entender, no.gênero "idéias modernas". O asno não é primariamente a mulher que enceta esse caminho. específico rumo ao ." último homem", mas sim aqueles que a convencem a trilhá-lo. "Há uma A



nalmente observa com referência a uma explicação da "Hereditariedade das qualidades" no segundo volume. de O mundo como vontade e representação: "Se se pudesse castrar todos os espertalhões, trancar num convento todas as gansas estúpidas, dar às pessoas de caráter nobre todo um harém, e a todas as moças de bom senso e de espírito fornecer homens, e homens verdadeiramente homens: logo se veria nascer uma geração que representaria mais que a era de Péricles" (WW ed. A. Hübscher, III, p. 604). Nietzsche retoma criticamente essa passagem numa anotação póstuma: "Schopenhauer deseja que se castrem os espertalhões e que se prendam as gansas no convento: de que ponto de vista isso poderia ser desejável? O espertalhão tem sobre os medíocres a vantagem de não ser medíocre; e o estúpido tem sobre nós, a de não sofrer com a visão da mediocridade [...]" (Póstumos, outono de 1887, lO[l04]; KGW VIII 2, p. 179 = VP, § 746, que na verdade aponta para um erro de decifração).

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estupidez nesse movimento, uma estupidez quase masculina, da qual uma mulher bem-constituída - que é sempre uma mulher esperta:-- deveria envergonhar-se profundamente. [... ] Por certo há um número suficiente de amigos idiotas da mulher e corruptores da fêmea entre os doutos asnos do sexo masculino, que aconselham a fêmea a se desfeminizar dessa maneira e a imitar a estupidez da qual padece o 'homem' na Europa, a 'masculinidade' européia [... ]" (BM, § 239; KGW

VI 2, p. 182 e ss.). Neste ponto podemos retomar o início desta parte de nossa investigação e fazer um apanhado dos resultados. Partimos da passagem do Ecce homo em que Nietzsche se autodenomina ~'antiasno par excellence': pois uma autopredicação assim enfática sugere que o asno designa um dado específico e relevante para seu pensamento. Em todas as passagens investigadas, por mais que difiram entre si sob outros aspectos, pudemos determinar o significado básico convicção como fixação da perspectiva de um impulso ou complexo de impulsos. Com isso, é legítimo estabelecer o significado para ''antiasno par excellence'~- aquele que está livre de convicções de toda espécie. Podemos com alguma certeza admitir que Nietzsche tinha aí em vista os diversos graus do estar convencido que foram aparecendo no decorrer desta parte. O contexto comprova claramente que a princípio o filósofo tinha em mente a estupidez que, em sua opinião, podia ser observada em especial nos alemães e se expressava na aceitação superficial do mais óbvio, na falta de ''esprit" e na confusão entre texto e interpretação. Mas, para além disso e sobretud~, pretendia fazer o leitor compreender que n ão se submetia nem à estupidez nobre mas autodestrutiva dos até então fortes, nem à esperteza decadente dos fracos. Como me ncwnamos, · · isso se percebe em todo o texto do Ecce homo. Pois a sabedoria de Nietzsche, salientada no primeiro capítu-

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159 lo de sua autobiografia, consiste antes de tud O . 'd d e no seu ser bemconst1tu1 o, e essa iorma, por suas precond' - e-. • e içoes ns1ológi no fazer parte dos rortes, no caber-lhe a "n b d cas, ,. , , . o reza e sangue" No entanto, nao esta, assim assinala ao leit · 'd or, como os até então fortes, su b meti o ao cego impor-se de u · d , . m 1mpu1so ominante; ao contrano, empenhou-se em adestr . . . . ar em s1 mesmo múlnplos impulsos. Nisso está sua esperteza , , que se d.1stingue_ da dos decadents. Sua esperteza não enfraquece nem se aquieta, mas se expressa no trabalho de seu instinto de conservação, que ele descreve da seguinte forma: "uma inonsrruosa pluralidade, que no entanto é o inverso do caos_ essa foi a precondição, o trabalho e a arte prolongados e secretos de meu instinto" (EH, Por que sou tão esperto, § 9; KGW VI 3, p. 292). Como ''antiasno par excellence" Nietzsche é também o ':Anticristo" (EH, Por que escrevo livros tão bons, § 2; KGW VI 3, p. 300). Isso significa do ponto de vista negativo: é o negador do "ideal cristão", daquela convicção que caracteriza o móbil decisivo do movimento rumo ao "último homem". Nessa medida, é o adversário impiedoso de todas as "idéias modernas", por trás das quais vê atuante o "ideal cristão" como convicção básica não identificada. Mas o ~nticristo" não tem apenas esse significado negativo. Por meio dele, Nietzsche refere-se àquele que, em antecipação ao modo de existência do forte do futuro, se situa de modo dionisíaco com relação à existência (cf. Salaquarda 18). O paralelismo entre o "antiasno" e o "anticristo" confirma que "antiasno,, se refere àquele que se serve das formas do estar convicto de até então e ao mesmo tempo se coloca acima delas. . Em geral, compreendeu-se erroneamente a auto-eSt1mativa de Nietzsche no Ecce homo. Interpretaram-no como .., u l tet-'or h'.Y bris. para a1ém de to da d'1scussao 1 , ou então como . ·1nf1 uenc1ada . pela doença menta l que irrompei • ·ia' pouco depois . . .., . elam O embaraço dª composição do texto. Essas op1n10es iev '

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daqueles para quem a intenção do Ecce homo permaneceu inacessível. Nietzsche nesse livro deu expressão à mais extrema perspectiva que a organização unificadora "Friedrich Nietzsche" pôde pela última vez impor ao agregar de todos os impulsos que nela atuavam, antes de ela cessar de existir como organização. O filósofo sabia que a perspectiva que se manifestava no Ecce homo estava mais ameaçada que qualquer outra e era, além disso, um presente tardio, cuja auto-imposição temporária somente "agora" se tornava possível, "nesse dia perfeito em que tudo amadurece", em que tudo o que era realmente vivo em sua vida estava "salvo" e, dessa·forma, se tornava "imortal" (EH, Prólogo; KGW VI 3, p. 261). Nietzsche não era o "além-do-homem", nem se compreendia como tal. Mas era, quando não mais falava pela boca de Zaratustra, aquele que anunciava o além-do-homem e, no experimento de sua vida, o protótipo do movimento rumo ao "além-do-homem". Mas sabia muito bem que era também um décadent e, juntamente com sua época, sofria de suas fraquezas e carências. Ele se via alinhado com os filósofos de até então, sabia-se adoecido pelas "idéias modernas", era nos longos períodos de fraqueza e desorganização dependente da boa vontade e da tolerância dos que o circundavam, sofria em toda doença etc. Tudo isso é bem conhecido e comprovado, em especial, pela correspondência com Overbeck e Gast. O fato de, em tais circunstâncias, Nietzsche poder auto-designar-se asno fornece uma última comprovação dos resultados a que até agora chegamos nesta investigação. No esboço de uma carta a Lou Salomé e a Patil Rée lêse: "Eu devia ser um asno mal-compreendido?".3º O contexto não deixa claro se com essa pergunta retórica Nietzsche

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e·ItadO a partir de Podach 16, p. 156.

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161 espécie de autoconh • quer,., exprimir. alguma d . , ec1mento, ou se expoe a suspeita e que os destinatarios pud , ,. . essem toma-lo precisamos aqui nos decidir Por um asno. .Nao . .d d d . por qua1quer das duas poss1 6 111 a es e interpretação dessa p ergunta. N os dois ~as~s, asno_ representa a "~stupidez" com O significado de conv1cçao que impede uma situação de ser julgada apropriadamente. Numa carta a Rohde, Nietzsche é levado a constatar: "Sou um _asno, não há dúvidà', e o explica afirmando que sempre estaria procurando saber se seus amigos ao menos tentavam entender seus pensamentos (Carta a Rohde de 23.2.1886; GBr II, p. 576). Numa carta a Gast, Nietzsche descreve, estarrecido, o quanto de "plebeu" às vezes percebe em si, e, embora não utilize expressamente a palavra asno, o conteúdo lhe permitiria fazê-lo. ''Anotei ontem, para meu próprio fortalecimento no caminho da vida que um dia encetei, um conjunto de traços nos quais salientei a 'nobreza' ou o 'nobre' nos humanos - e inversamente tudo aquilo que faz parte da 'plebe' em nós. (Em todos os meus estados de doença eu sentia, estarrecido, uma espécie de deterioração rumo aos fracos plebeus, aos brandos plebeus, e mesmo às virtudes plebéias - o senhor compreende isso? Oh saudável!)" (Carta a Gast de 23.7.1885; GBr IV, p. 218 e ss.). Entre os últimos textos póstumos encontra-se esta estranha nota: "Meus amigos, hoje já é preciso agachar e ficar ·de quatro neste 'Estado' e zurrar como um asno: é necessário fazer a peste saber que se é um asno - o único meio de não ficar contaminado por esse delírio" (Póstumos, novembro de 1887-março de 1888, 11 [288]; KGW VIII 2, p. 354). Um relato do livro de Wellhausen, Reste arabischen Heidentums, * que Nietzsche lia nessa ocasião e do qual extraiu diversas passa-

* "Vestígios de paganismo árabe" (N. da T.).

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gens, estitnulou-o a fazer essa an~tação. O t~xto original diz: "Se alguém teme entrar numa cidade, devido a uma peste, ele se agacha e fica de quatro, zurra dez vezes como um asno e então se sente mais seguro. [... ] O beduíno quer mostrar à peste que é um asno, para que ela considere tempo perdido arriscar-se por ele: o asno, especialmente o asno selvagem, é considerado um ser muito robusto, imune a toda doença" (Wellhausen 23, p. 162 e ss.). 31 A reelaboração que Nietzsche faz dessa passagem é sugestiva. É o Estado que ele percebe como peste que o ameaça, bem como a seus discípulos potenciais, Estado cuja configuração moderna, especialmente a do Reich alemão de Guilherme, é a efetivação de uma "idéia moderna". Como todas as "idéias modernas", também o Estado, a seu ver, visa a tornar todos os homens convictos de si. Somente deixa em paz aquele que já está convicto: em termos metafóricos, o asno. Dessa forma, ao retomar a passagem, Nietzsche não apenas chama o "Estado" de "peste", mas modifica o significado da metáfora asno. Pois o Estado, no seu entender, não deixa em paz os que são fortes e robustos; ao contrário, captura-os e procura enfraquecê-los; somente deixa em paz aqueles que já foram convencidos por ele, ou antes, se põem nessa situação.

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Voltemos agora ao Quar:to Zaratustra. A situação que Nietzsche queria nele exprimir por meio do asno deve, em última análise, resultar de uma interpretação do próprio li-

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Ni_ec7..schc leu a primeira edição de 1887 (cf. a nota introdutória do edi tor cm KGW VI II 2); a(, a passagem se encontra na p. 218.

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Vro '

sobretudo das passagens em questão N,... · ao se trata meramente de transpor os resultados obtidos na part ' II p . 11 d e . or outro lado, o matena evanta o e interpretado na,...o e, 1rre · 1evan te A atenção adequada . a ambos os pontos de vi'sta parece-me· garanti~a_s~ nossa interpretação do asno no Quarto Zaratustra for 1n1c1ada pelas passagens que têm ligação direta com outras em que o asno aparece e que não fazem parte do Zaratttstra. Vimos que existem duas passagens que satisfazem essa exigência: de um lado, a adoração do asno retratada no capítulo "O despertar" e, de outro, a homenagem do "rei da direita", de acordo com a qual Zaratustra não é "um asno". Sabe-se, e em parte é bastante evidente, que para a composição da adoração do asno pelos "homens superiores", no capítulo "O despertar" (p. 382 e ss.; em especial, p. 384 e ss.), Nietzsche utilizou como modelo diversos textos e temas32 - a maioria deles sem interesse para a problemática aqui abordada. O importante é que Nietzsche extraiu o título

32

Sem dúvida um dos modelos é a "Adoração do bezerro de ouro" (t.xodo 32): assim corno o povo de Israel recai na idolatria, após Moisés deixálo, também os "homens superiores", após a saída de "Zaratuscra" da caverna, na ''Adoração do asno". É análoga a figura do animal do objeto de culto e sua discrepância com relação à visão excessivamente esperançosa do povo de Israel ou dos "homens superiores": U~a a u~a.aparecern na "Liturgia" urna gama de alusões a citaçoes b~blicas, modificadas em seu sentido e em parte na letra do texto, assim, por exemplo, "quem ama seu Deus, castiga-o" é urna distorção de Provérbios, 3, 12 e Hebreus, 12, 6 (cf. já em ZA, Prólogo,§ 4; K?W_VI 1,_P· , . "I A" do asno ). untam ente com a litania des1g12) . Para o estereotipo ' fi 1 . 1 d modelos foi a estrofe ma nada na nota segumte, provave mente um os . ,, " , 1· ' d "Für d1e Mouche [ Paraª do poema de Heine, de seu u t1rno peno o, d (H • . d·O faz O poeta acor ar eme mosca"] na qual o som d 1ssonante asno 2 1) 5, II, p.' 447 e ss.; cf. a esse respeito Kaufmann 81,5P·IV.377, ;;~ªe ss . . e " · cf.· Naumann , , P· So b re outros mo d eIos e re1erencias,

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"A festa do asno" •e o tema da adoração irônica de um asno de um modelo histórico, as festas dos loucos na Idade Média, em especial, a festa do asno ou dos loucos de Sens. Naumann documentou isso amplamente (Naumann 15, IV, p. 180 e ss.) ; 33 ele também sabia que, numa carta a seu amigo Gersdorff e no Para além de bem e mal, Nietzsche havia citado dois versos da estrofe introdutória do "Conductus ad tabulam" da festa do asno de Sens;34 mas, surpreendentemente, daí não extraiu conseqüências para a interpretação da metáfora do asno. Na primeira parte de Para além de bem e mal Nietzsche, no entanto, não apenas cita uma passagem da litania medieval, mas deixa claro o que ele entende com o asno nesse contexto. "Em toda filosofia", diz o texto, "existe ,um ponto em que a convicção do filósofo entra em cena: ou, para expressá-lo na linguagem de um velho mistério: adventavit asinus pulcher et fortissimus" (BM, § 8; KGW VI 2, p. 15).

Como já mostramos, segundo Nietzsche, os até então filósofos se apoiaram em última análise em alguma convicção, para além da qual deixaram de perguntar, e em vez disso apenas interpretaram reflexiva1nente. A princípio, a convicção aí presente poderia consistir na estupidez da perspectiva, consolidada por tempo demasiado longo, de um impulso dominante, a qual Nietzsche considerava característica dos até 33

O texto completo em latim da liturgia (revisada) está publicado no volume XX da Analecta Hymnica Medii Aevi, editada em Dreves 1, p. 215 e ss.; Lehmann 9, p. 94 e ss., oferece uma tradução para o alemão do "Conductus"; sobre a história da festa e seu desenvolvimento, as melhores informações estão em Dreves 2, p. 571 e ss.

34

Cf. p. 180 e nota 27.

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então fortes; mas ela poderia também consistir . "b d na esperteza dos fracos, CUJa usca a verdade~' por mais q , . ,. ' ue avançasse, se fundava, em ultima analise, na máxima moral d ,. . 35 O e nao se deixar enganar. . contexto da passagem .de Para além de bem e mal não deixa qualquer dúvida de que com O termo convicção Nietzsche se refere ao segundo fenômeno, de que está pensando nos filósofos que ele próprio designa como décadents, 36 porque sucumbiram à "sedução" da moral da décadence, essa ''circe dos .filósofos" e, dessa forma, "edificaram em vão" (MIA, Prefácio,§ 3; KGWV 1, p. 5).37 Os filósofos da décadence também se caracterizam pelo deter-se diante de uma convicção que deve ser fundamentada apenas moralmente: a essa convicção Nietzsche aplica a metáfora do asno, ou antes, diz que é a partir do "Conductus" que assim entende o asno. Na medida em que se submetem à convicção, os próprios filósofos se tornam asnos, isto é, convictos, cuja filosofia no futuro somente poderá consistir em

35 ''Após por muito tempo buscar em vão ligar um conceito preciso

à pa-

lavra 'filósofo' [... ] finalmente percebi que existem duas espécies diferentes de filósofos: 1) aqueles que querem constatar algum processo importante de estimativas de valor (lógica ou moralmente) ; 2) aqueles que são legisladores de tais estimativas de valor. Os primeir?s b~scam se apropriar do mundo presente ou passado, agregando e simplificando por meio de signos, a diversidade do acontecer: ocupam-se em tornar percebível, pensável, concebível, utilizáv_el o at~ a~ora aconte~~r [: ..] Os últimos no entanto são comandantes; dizem: assim deve ser. Sao eles que determinam o 'para onde' e o 'para quê', o útil, o que é útil para 0 homem [... ]" (Póstumos, VP, § 972; KA XVI, p. 347 e ss.). 36

Em vista do processo desde Sócrates até Schopenhauer, ~iet~che não · c.l'os010 e d a décadence foi considerado, pode deixar de constatar que "o 11 , c. , e , · ,, ('n' turnos primavera de 1888, ate agora pelo menos, o 11 1os010 t1p1co ros , . 14[83]; KGW VIII 3, p. 55 = VP, § 444). 37 Cf. EH, Por que sou um destmo, · § 6·, KGW VI 3' p. 369.

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"fundar" e interpretar esses limites de sua investigação. Tais filósofos podiam acreditar "ter fundado a moral; mas a própria moral era tida (por eles) como 'dada"' (BM § 186; KGW VI 2; p. 107 e ss.). A adoração do asno pelos "homens superiores" expõe seu reverenciamento à convicção fundada moralmente, ou antes, àquilo de que se convenceram, e mostra a própria adoração também como convicta, ou como asno. O tom irônico presente nessa cena do Quarto Zaratustra em nada altera esse fato básico, assim como a oposição (subjetiva) de muitos dos profetas das "idéias modernas" em nada modifica o fato de que também sua contestação do "ideal cristão" é sustentada pela força desse mesmo ideal. Consideremos agora a segunda passagem. A uma fala de Zaratustra no capítulo "A ceia", diz o "rei da direita": "'estranho! Alguém já ouviu coisas tão espertas da boca de um sábio? E sem dúvida o mais estranho num sábio é que ele também seja esperto, e não um asno'. Assim falou o rei da direita e admirou-se; mas diante de sua fala o asno disse com malevolência I-A" (p. 351). Dessa forma Zaratustra não é "um asno", não apenas porque é sábio, mas também porque é "além disso também esperto". Como já vimos, no quadro da perspectiva unificadora do Ecce homo, Nietzsche se compreende como o ''antiasno par exce!lence': porque tem "esprit" e "jamais se torna estúpido" (EH, Por que escrevo livros tão bons, § 2, KGW VI 3, p. 300). Se antes designara seu "filho Zaratustra" como sábio, no Ecce homo procede de igual modo com relação a si mesmo, atribuindo simultaneamente sua sabedoria a sua boa constituição fisiológica, inata e herdada. Isso deixa claro que, se ele se destaca da multidão e se alinha com os até então bem-constituídos e fortes, sua autêntica marca com relação também a estes últimos se manifesta somente no segundo grupo de características descritas no capítulo "Por que sou tão

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167 erco". Trata-se do conhecimento e aplica - d . esP . , çao os meios e omportamentos que contnbuiram para que el e , _ e nao permaos ate entao fortes, na perspectiva d . necesse, como . . e um imp ulso dominante e. se consumisse a seu serviço • N esse contexto, Nietzsche discute questões de clima, nutrição, leitura, hábitos etc. - em resumo, todos aqueles conhecimentos at, então negligenciados em ~a~or de preceitos morais insignifi~ cantes neles mesmos, os un1cos conhecimentos que em sua opinião podem garantir que o bem-constituído possa dominar-"se" e dirigir-"se", isto é, dominar e dirigir a multiplicidade de seus impulsos fortes. 38 O "antiasno par excellence" exclui de si toda forma de "estupidez da convicção» e serve-se dela no cálculo de sua esperteza, mas não cai mais vítima dela. É isso justamente o que Nietzsche tem em vista, ao fazer o "rei" dizer que Zaratustra não é "um asno». O "esperto Zaratustra" sabe não apenas para si mesmo o que lhe é, a cada vez, prejudicial ou conveniente; ele pode até mesmo aconselhar os outros, como, por exemplo, na seguinte orientação ao "mendigo voluntário", que faz parte do contexto da adoração: "procura estar de bom humor [...] Continua fiel a teu costume, homem admirável, mói teu cereal, bebe tua água, elogia tua cozinha: se ela te torna alegre [... ]" (p. 350), em termos gerais, segue tuas necessidades, faz sempre o que te é conveniente, mas não faças disso uma regra universal. O fato

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Cf. por exemplo: "Vão-me perguntar por que, pro~ria_mente, contei todas essas coisas pequenas e, ao juízo tradicional, m_d1ferentes: com isso prejudico a mim mesmo, ainda mais se estou destmado ª ~ra ncles • - a1·1men cação , lugar' clima, retaref:as. Resposta: essas pequenas c01sas _ a meeira . . casu1st1ca , . do amor-propno , · - são creaçao ' ' para além de rodos . , ' . d deu importância ate os conceitos mais importantes que tu o a que se ·' • , · •eanrender" (EH, Por que agora. Aqui precisamente e preciso começar a ' , sou tão esperto, § 1O; KGW VI 3, p. 293).

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de que o asno zurra com seu malévolo 1-A justamente di' ante dessa fala e de outras semelhante_s, bem como diante da indicação de Zaratustra por elas mouvada- de que não seria "u asno,,-, mostra que ele se percebe desmascarado. Nada é .1 o nefasto para a convicção, em espec1a para a convicção da moral una e universal, quanto perscrutar a singularidade das estimativas de valor. Se o asno nessas duas passagens do Quarto Zaratustra ' assim como nas passagens abordadas que não fazem parte do livro, representa em primeiro lugar a convicção ou o portador de uma convicção, então é bem provável que nas demais passagens ele tenha também esse significado e este no mínimo forneça o significado básico. Por outro lado, é incontestável que a indicação de um significado básico deixa ainda em aberto um espaço relativamente amplo para a decifração mais exata da metáfora nas passagens específicas: até o presente os intérpretes por certo utilizaram-no apoiados num significado básico incorretamente estabelecido, que por outro lado ficou claro na parte II desta investigação; por fim a interpretação das duas passagens já comentadas sobre o asno no Quarto Zaratustra mostrou certas variações, na medida em que o asno do capítulo "O despertar" simboliza em especial a convicção dos décadents, enquanto o do capítulo "A ceia" representa em especial a estupidez nobre dos até então fortes. Tendo isso em vista e com base nessa primeira aproximação, agora justificada o suficiente, de que o asno representa basicamente a convicção ou o portador de uma convicção, podemos a seguir esclarecer as demais passagens em questão. O asno entra no "reino de Zaratustra'' no capítulo "Colóquio com os reis". Quando Zaratustra nota que os dois "reis" conduzem um asno com sua carga, diz para si: "Estranho! Estranho! Como entender isso - vejo dois reis - e somente um asno!" (p. 300). Messer vê nesse solilóquio uma

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ilhéria": "Não seriam dois reis, dois asnos? Isto é, não ''clara p . d h . -~» ( burrice querer ain a OJe ser rei. Messer 11, p. 139). é urnaé uma "exp1·icaçao .., " demasia · do super fiicia · 1, e Naumann Essa . . d rco se aproxima mais o ponto em questão ao afirmar por ce e " . l e a pilhéria se rerere ao nive amento dos caracteres dos qu " e assim · esclarece essa a fi1rmaçao: .., "H'a em certo senn· povoS , . do um povo europeu quase uniforme; em contrapartida as relações de força políticas a ele impostas são divergentes, resistem à unidade [...] As massas são vontades de tornar-se unas · e fazer desaparecer progressivamente as velhas diferenças nacionais no democratismo cosmopolità' (Naumann 15, IV, P· 25). Nessa explicação mesclam-se elementos verdadeiros e falsos. É recomendável aqui um cuidado especial, pois Naumman chegou a sua decifração asno = "povo" tomando como base sobretudo essa passagem. Para Nietzsche, um "rei" é o representante de um povo, a expressão personificada de suas especificidades, fortalezas e fraquezas etc., em resumo: das estimativas de valor específicas desse povo, consolidadas no decorrer do tempo. Ele concorda com o código de Manu, em seu retrato do rei "como formulação mais alta do guerreiro, juiz e preservador da lei" (AC, § 57; KGW VI 3, p. 241). Na medida em que, em sua opinião, instituíram mais cedo seu."bom e mau" independentemente de cada povo vizinho e em oposição a sua estimativa de valor (ZA, I, Dos mil e um alvos; KGW VI 1, p. 70 e ss.), os povos se tornaram "agora [... ] iguais a comerciantes" que somente se preocupam com seu pequeno lucro. Esse desenvolvimento, a seus olhos, naturalmente negativo e lamentável coincide com o progressivo avanço triunfal da moral da décadence na Europa. Quanto mais os povos assimilam essa moral por meio do cristianismo e de suas herdeiras, as "idéias modernas", tanto mais perdem sua especificidade, seu caráter específico de povo: em conseqüência, não mais precisam

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de um representante próprio, e, rigorosamente falando, não m mais de modo algum, ter um tal representante; nas po de , d . palavras de Nietzsche: "não é ~,ais tempo e reis: o que hoje se chama povo não merece reis (ZA III, Das velhas e novas tábuas,§ 21; VI 1, p. 259). 39 No lugar dos povos de até ago- . ra e de suas especificidades, cada vez mais entram em cena os Estados, ou antes "o" Estado, pois os Estados que nivelam as especificidades dos povos são basicamente todos iguais. O Estado é basicamente administrador de um presente egoísmo em grupo: pretende-se representante do povo ou mesmo ser o povo, mas é na verdade seu aniquilador. Dessa forma a entrada em cena do Estado, esse "novo ídolo" conduz Zaratustra a sua "palavra da morte dos povos" (ZA I, Do novo ídolo; KGW VI 1, p. 57). Como não há mais "povos", também não podem mais existir reis. O assombro de Zaratustra é compreensível, pois o asno único confirma sua visão de que não mais existem povos e, no entanto, com suas vestes exteriores, os dois condutores do asno evocam a impressão de ainda ser reis. Zaratustra alegra-se, ao notar no decorrer da conversa que os "reis" concordam com seu julgamento sobre a situação, e o expressam por exemplo com a afirmação "Que nos importam os reis" (p. 301; cf. p. 302). Dessa forma, afirmar, como Naumann e os que o seguem, que o asno representa "o" povo é bastante questionável; não é propriamente uma afirmação falsa, mas ela é correta de um modo que oculta mais que revela a intenção de Nietzsche. Representando "povo", o asno, como ex~licita~os acima, não está designando o conteúdo que ele vincula a palavra, mas sim o "povo" que já deixou de 39

Cf. Póstumos' VP.' § 725 (KA XVI , P· 178) : "O tempo dos reis . passou, porque - mais · d'1gnos deles; eles não querem ver no rei• . . os povos n-ao sao 0 ongmal de seu ideal · um me10 · uni , • para eles,, . , mas sim

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que ele entende por «povo" poi·q d . ' ue etxou d d e ser tu o 0 que faz parte de um verdadeiro "po ,, M vo · as observ com mais atenção: no sentido de Nietzsch " emos . " ' d e, um povo verdadeiro e representa o por um rei na m d'd 'd d , e t a em que o rei reúne numa uni a e pessoal visível suas cara t , • . · d 1 · c ensticas, est1manvas e va or e convicções. Pode-se tamb, d' . " ,, em 1zer que 0 rei representa seu povo , na medida em que · · . . ,., ,, pnmanamente exprime as. conv1cçoes desse povo · E de modo an a'logo que o povo se vincula ao asno. O asno de fato representa O "povo europeu como um to do" , mas apenas na medida em que antes de t~do represe~ta a convicção da moral da décadence que p:edo~una em ~e1~ a esse povo. "Povo" nesse sentido especifico e um dos significados secundários da metáfora, derivado do significado básico "convicção", que deve servir de referência primeira para explicá-lo. Tendo perdido sua função, os "reis" buscam "o homem superior [... ], o homem que é superior a nós, embora sejamos reis. Para ele, trazemos este asno. Pois o homem superior a todos deve ser também na terra o senhor supremo-" (p. 302). ~ Essa passagem deu ocasião a interpretações equivocadas, pois os intérpretes misturaram as duas maneiras de domínio ou de ser-senhor que Nietzsche apresenta e distingue: o domínio do sábio que determina os sistemas de valor, e o domínio ·do rei que representa os sistemas de valor, quando um povo deles se apropriou. Aos dois "reis" do Quarto Zaratustra pode-se atribuir a segunda espécie de domínio; mas as relações que o asno simboliza não mais lhes permitem exercer tal domínio. Em sua indigência, os reis vão até Zaratustra, que acreditam ser o único capaz de anunciar e estabelecer um novo sistema de valor que derrote o que se tornou dominante. O domínio de Zaratustra consuma-se, quando é o caso, na figura de uma nova avaliação do be1;1 e d~ mal, que Nietzsche fora do livro expressou com o t1tulo erans-

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., d d 0 s os valores" .40 Os "reis" não querem dizer valoraçao e to tustra reinar sobre o povo europeu _no lugar que cabe a Zara d Naumman. Na verda e, esperam que . . d eles, como sUgere ·o de sua estimativa de valor, suplante a . Z aratustra, Por mei · · de valor dominante e antinatural da" moral da estimativa , . .,, · décadence, que torna impossível o dominio_de um re~ . Zaratustra não deve reinar sobre o asno, mas sim derrota-lo. Zaratustra é da mesma opinião, como deixam claro seus "versos", que encerram o capítulo: neles desmas~ara o "ideal cristão" como expressão da décadence e do rebaixamento. O asno reconhece o desafio e se coloca em posição de defesa, pois aqui "aconteceu que também o asno falou: mas ele disse claramente e com malevolência I-A" (p. 302). O asno aparece a seguir no capítulo ''A ceia". Já vimos o que significa um dos "reis" dizer de Zaratustra que ele não é "um asno" (p. 317). O capítulo também retrata a seguinte situação: como Zaratustra não pode atender o desejo do "adivinho" que pede vinho, o "rei da esquerda" diz: "nós providenciamos o vinho, [... ] eu e meu irmão, o rei da direita: temos vinho suficiente - todo um asno carregado [...]" (p. 350). O comentário de Naumann nesse ponto beira o grotesco, ao afirmar, a título de explicação, que por sorte ocorre. '' . . na que os reis trazem consigo um asno carregado com vinho, um povo muito bem dotado de idéias tempestuosas"; e a re~ rê~ci~ provavelmente seria sobretudo ao povo alemão, que esta ncamente carregado.de ideais efervescentes" (Naumann 15, IV, p. 119).41 Esse comentário não se apóia em afir-

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Cf. a esse respeito Salaquarda 18, em especial partes V e VI · , . Essa interpretação é não so d , mente exagera a em termos de especulação, mas tambem está em contraste com outras allrmaçoes e: ' . do propno autor, por exemplo quand0 • b . " , b . ,, ( f , retrata o povo sim olizado pelo asno como so no c . Naumann 15, IV, p. 195 e 199).

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e não passa - Sem maÇ,ão alguma de .Nietzsche ,., . de espec u1açao. me ncionar. as ocasioes em que . se manifesta em sua corresponafirma diversas vezes na obra, q ue, com rede"ncia , Nietzsche . ,. , . . nao participa da communis oninio b iaÇão a s1. mesmo, 1 d . h 42 . . r so re o e.eito esumu ante o v1n o. Mais ainda· consi'dera erc . . . · o a'l cool, junto com o ~nstian1smo, um dos estimulantes decisivos para O desenvolvimento do homem europeu até sua confor43 mação atual. Desse modo o vinho, no Quarto Zaratustra, muito provavelmente representa tanto o álcool como O "ideal cristão", na medida em que para Nietzsche ambos coincidem em se,u efeito negativo. De modo significativo, o asno traz 0 vinho na forma de carga. Ele simboliza o convicto, sobretudo o décadent convencido pelo "ideal cristão" em alguma de suas cunhagens históricas, décadent que não mais apresenta uma marca característica que poderia revelá-lo enquanto parte de um povo determinado ou mesmo como forte. O que o caracteriza não tem origem nele mesmo; ao contrário, é algo que lhe é estranho e com que foi carregado. O asno identifi. . ca-se e caractenza-se como asno JUStamente por sua carga em vinho. Ele é tão dependente dela que apenas consegue se erguer acima da pesada monotonia de sua existência despojada

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Ainda no Ecce homo, entre as regras de sua esperteza que prevalecem sobre todas as convicções, Nietzsche cita a abstinência de vinho. Ele não "saberia como aconselhar com seriedade suficiente a todas as naturezas mais espirituais a completa abstenção de álcool. A água basta [... ] ln vino veritas: parece que também nisso estou mais uma vez em ~esacordo com todo o mundo quanto ao conceito de 'verdade' - em mim 0 espírito se move sobre a água [... ]" ("Por que sou tão esperto", § 1i

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[... ] os dois grandes narcóticos europeus, o alcool e o cnst1an1smo ... _ (CI, "O que falta aos alemães", § 2; KGW VI 3, P· 98. Cf. GM, III,§ 21; KGWVI 2, p. 409 e ss.).

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· lsos verdadeiros, quando recebe estímulos de caráter " . d e 1mpu análogo ao do "ideal cristão". Somente porque o mais feio dos homens" deu "vinho para o asno beber" ("A festa do asno",§ 2, p. 388), é que pôde surgir o ~:1°:~\de que_também "o asno teria dançado (naquela ocasiao) ( 'A cançao do noctâmbulo", § 1, p. 392); mas com relação a isso o cronista, por Nietzsche forjado, que relata esse acontecimento, nem 44 mesmo está em condição de confirmar o rumor. Se o asno é mencionado apenas incidentalmente nos capítulos até agora examinados, nos capítulos "O despertar" e "A festa do asno", ele passa ao centro dos acontecimentos. Pode-se afirmar que Nietzsche insere o asno no Quarto Zaratustra com vistas à cena da adoração retratada nesses capítulos, bem como a sua interpretação pelos "homens superiores". Já mostramos que ele utilizou um modelo para a festa do asno, sobretudo para a cena da adoração, e que em Para além de bem e mal interpretou o asno desse modelo como a convicção dos filósofos da décadence. 45 Aqui é preciso acrescentar algo. No início do capítulo "O despertar", é dito que "o asno" está em sintonia com o tom geral de alegria a que dera origem a apresentação feita pelo "andarilho e sua sombra" do ditirambo "Entre as filhas do deserto". Zaratustra "tapa as orelhas", para não ter de ouvir o "I-A do asno" que se mistura "estranhamente ao barulho alegre [... ] (dos) homens superiores", e por fi_m deixa a caverna (p. 381 e ss.). É compreensível que o as.no sinta que é a ele que se dirige a "inacreditável poe44

No Crep!íscit!o dos ~do/os Nietzsche designa como um terceiro narcótico, estreitamente · outros, a musica ' · wagnenana, · de " vmculado aos d 01s "modo que . o . asno. b e"b a d o " tam b,em ( pe l a música) pode significar wagnenano mebnado". (CI, "O que falta aos alemães",§ 2; KGWVI 3, p. 98).

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Cf

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. , ac11na, p. 180 e 189 bem como as notas 27 e 33.

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. do europeu no deserto, entediado, insatisfeito consigo e d _ . d rn O mun o, nao mais capaz e um ato firme, europeu que co tudo nºd'1cul o e se entretem • em associações . rorna de idéias tão céticas quanto sem força [...], (deserto que está) evidentemen46 . O "europeu,, aqm· retratado é te nele " (Rauh 17, P· 69) : pois ele mesmo. A adoração do asno encaixa-se sem grandes dificuldades nesse contexto: à descrição irônica do décadent e de sua convicção segue-se a adoração irônica que lhe fazem os "homens superiores". Há muito a se comentar sobre essa adoração, a irritação de Zaratustra diante dela, as "respostas de espertalhão" com as quais os "homens superiores" recebem suas repreensões e, por fim, o pedido de Zaratustra de que se comemore a "C1esta do asno " no fiuturo "por amor" a e1e e "em [... ] memória dele (p. 384 e ss.). Tudo isso não é muito relevante para o tema desta investigação. Limito-me a salientar o fundamental para uma interpretação apropriada do asno. Para concluir em conformidade com seu hino, os "homens superiores" se divertem à custa do asno e ao mesmo tempo parodiam diversas citações bíblicas. Isso em nada modifica o fato de que de modo manifesto trazem consigo a necessidade irrefreável de simplesmente adorar, seja o que for mesmo um asno. Não se deve ignorar que nesse contexto o asno de fato representa sobretudo um "asno", de modo a permitir que, através do ridículo do objeto da adoração, seja posta em sua evidência máxima a força desenfreada da necessidade de adoração. Mas assim e de forma decisiva o asno adorado representa a convicção à qual os "homens superiores" permas1a

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O ditirambo foi muitas vezes interpretado erroneamente. Que ele apresenra uma ridicularização da síndrome que, de acordo com o resultado do presente trabalho, Nietzsche pode exprimir também pela metáfora do asno, ou antes, uma ridicularização do portador dessa síndrome, isso foi demonstrado detalhada e convincentemente em Miller 13.

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necem atrelados, a perspectiva consolidada do "ideal cristão". Em outras passagens, Nietzsche diagnostica essa mesma ambigüidade, que aqui assinala por meio da adoração irônica, também em Wagner e seus parentes espirituais franceses, descrevendo-a da seguinte forma: são "virtuoses de ponta a ponta, com acessos misteriosos a tudo o que seduz, atrai, campeie, transtorna [... ], no todo uma espécie ousada-temerária, esplêndida-violenta, altaneira e arrebatadora, de homens superiores que pela primeira vez teve de ensinar a seu século - o século das massas! - o conceito de 'homem superior,,,_ Sem recusar esse lado positivo dos "homens superiores", Nietzsche em contrapartida está seguro de que eles não atingem a altura em que se encontra Zaratustra, de que, ao contrário, estariam "com toda a razão [... ] todos enfim quebrantando-se e prostrando-se diante da cruz cristã", pois nenhum deles seria "suficientemente profundo e primordial para uma filosofia do Anticristo" (BM, § 256; KGW VI 2, p. 211). Como já mencionamos, Nietzsche no Ecce homo de. . ,.,, '' . nom1na a s1 mesmo nao apenas como o antiasno par excellence': mas também como "Anticristo" (EH, "Por que escrevo livros tão bons",§ 2; KGWVI 3, p. 300). Os "homens superiores" não alcançam a posição que essas duas palavras circunscrevem. Se não são pura e simplesmente asnos e se sob o impacto de Zaratustra podem se alçar até uma caricatura dele, não são por certo "antiasnos" - a respeito deles jamais se diz que "não são asnos". Os "homens superiores se situam entre Zaratustra e o asno. Se às vezes se orientam na direção dele, nem por isso se livram da convicção; numa imagem: caem aos pés da cruz ou adoram o asno. O asno do Quarto Zaratustra é apenas em aparência objeto passivo de caricatura e ridicularização. Na verdade, ele é altamente ativo, na medida em que atua "a partir de dentro". O asno é "incondicionado", no sentido de que, na ótica

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e Nietzsche, o movimento rumo ao "último hom ,, , . d . d O ,.. . em e 1ncondic~~na o. asno nao prec1~a atuar de fora, porque há muito Jª atua naquele~ que o caricaturam do exterior. Ele é a verdadeira contrapartida de Zaratustra, a razão decisiva para que seja impossível a Zaratustra anunciar, aberta e solenemente, 0 " pensamen t o do retorno ,, . Nos textos de 1888, à contraposição entre Zaratustra e o asno, corresponde a luta de Nietzsche contra o "ideal cristão,,, agora aberta, e não mais encoberta por alegorias ou símbolos. O Quarto Zaratustra conclui-se com a superação de Zaratustra de sua última tentação, a compaixão pelos "homens superiores,,. Essa superação tornou-se o ponto de partida para a caminhada de Nietzsche rumo à "solidão azul" (EH, "Assim falava Zaratustrà', § 6, KGW VI 3, p. 341) em cujo final está o Ecce homo, o livro no qual o ''antiasno par excellence" relata sua vida a si mesmo.

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VERDADE E INTERPRETAÇÃO* GÜNTER

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I. Interpretação da verdade "Verdade" é a palavra-chave da filosofia ocidental, que no âmago foi a metafísica. Atingir a verdade é uma meta pela qual são prometidas elevadas recompensas intelectuais, morais, religiosas e metafísicas. Por isso, a crise do conceito de "verdade" pode ser vista como a crise da metafísica mesma. Duas distinções ajudam a aclarar esse cenário. Em primeiro lugar, a distinção entre um sentido amplo e um sentido estrito de "verdade". Em segundo lugar, a distinção entre o esquema mais antigo e tradicional de verdade e um sentido novo do discurso sobre a verdade. O presente texto se baseia nessas duas distinções.

• Conferência proferida em 17 de outubro de 2000 no Instituto Goethe de São Paulo. Tradução de Clademir Luís Araldi, revisão de André Luís Mota ltaparica. •• Professor do Instituto de Filosofia da Universidade Técnica de Berlim.

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1. O sentido amplo da verdade . No âmbito da q~estão d_a verdade, podem-se distinguir três representações basilares: (1) Verdade como concordância e adequação entre o pensamento e os objetos; (ii) verdade como automanifestação, ou seja, como o mostrar-se da natureza pura e essencial das coisas e (iii) verdade como atividade de tal procedimento. Em todas as três perspectivas é pressuposto, além disso, que não há muitas, mas 'Uma Única Verdade'. A crítica dessas concepções e, portanto, do âmago da metafísica ocidental, radicaliza-se, sobretudo, com Nietzsche. No pensamento de Nietzsche, não se trata simplesmente de substituir as representações anteriores de verdade por uma outra. Ao contrário, é a arquitetura do questionamento mesma, ou seja, do sentido da verdade, que é reinterpretada. Não somente o conteúdo, mas também o esquema fundamental se modifica. Isso ocorre não só por meio de uma crítica externa, mas de uma crítica 'interna'. Quando é pensada até o fim, a concepção metafísica da verdade, assim parece, corre perigo de se destruir a si mesma. Como se pode entender isso? Se ao discurso sobre a 'verdade' fosse ligada a exigência de obter conhecimento, poder-se-ia, então, assegurar que há muitas vias de conhecimento e, portanto, muitas verdades. De um lado, há vias de conhecimento muito distintas (a via cotidiana, científica, artística, religiosa, por exemplo). Por outro lado, podem ocorrer resultados conflitantes e distintos no interior de um único modo e/ou relacionados a um mesmo estado de coisas (Sachverhalt). Nem as vias de conhecimento nem os seus resultados podem ser reduzidos a uma base comum a todos. Mas, se se pode partir de muitas verdades, não se pode mais partir, então, de 'Uma e Única Verdade'. Além disso, cada uma das três representações basilares são autodestrutivas.

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Em primeir~ l~gar: - Não se. . po?e explicar, rigorosamente falando, a 1de1a de concordanc1a e adequação entre pensamento e objetos. Uma tal te~tativa fracassa já no .primeiro passo. Sem o emprego de signos, sem pensamento, portanto, não se pode sequer.apontar para aquilo com que se deve concordar. Toda tentativa nessa direção conduz, no melhor dos casos, a uma regressão ao infinito. Segundo Nietzsche e Kant, já a exigência de concordância é absurda, "disparatada'' (cf. KSA XIII, 14 [122]). Não é possível pensar que haja um mundo pré-fabricado e um sentido prévio, que simplesmente estejam à disposição, aguardando por sua representação e espelhamento em nossa consciência. Em segundo lugar: - A idéia de automanifestação, ou seja, do mostrar-se da 'natureza pura e essencial das coisas', é problemática. Para seres humanos (menschliche Geister) finitos e perspectivísticos, algo somente pode ser um objeto individualizado ou um evento se estiver sob as condições dos esquemas, dos signos e das interpretações que nós empregamos enquanto seres finitos. Caso contrário, há a ameaça da mitologia das coisas (Sachen) e dos estados de coisas (Sachverhalten). Em terceiro lugar: - Nietzsche acentuou que -a tradicional 'vontade de chegar à verdade', numa consideração mais atenta, não leva a apreender os traços característicos da realidade (como, por exemplo, a troca e a transformação contínuas, a multiplicidade e o caráter processual do que acontece). Segundo Nietzsche, a 'vontade de verdade' mostra-se, ao contrário, como uma estratégia do a-firmar, do tornar fixo, da reinterpretação do fluxo contínuo das coisas no ente. Ela leva a uma produção de mundos fictícios, 'verdadeiros', 'essenciais', 'incondicionados' e 'que permanecem iguais a si mesmos'. Nesse sentido, a verdade não é 'dada', em si e preestabelecida; ao contrário, ela é "criada" por meio de processos de determinação de signos e de interpretações. Aqui 'desco-

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brir' e 'produzir' vão de m~~s dadas. A 'ver~ade', segundo . h e' nome para a vontade de dominação que em . " N 1etzsc e, 0 si não tem fim". Ela é, nesse sentido, uma palavra" para a "vontade de potêncià' (KSA XII, 9 [9 l]) · . . · Além disso, uma vontade de verdade h1postas1ada tem conseqüências niilistas. Isso é visível, tão logo a perspectividade e a relatividade conceituai fundamental do entendimento humano do mundo, do outro e de si mesmo devam ser transcendidas ou eliminadas. Perspectividade e relatividade conceituai fundamental - que não deve ser confundida com um relativismo da preferência - são, contudo, elementos indispensáveis de todo entendimento humano do mundo, de outras pessoas e de nós mesmos. Quem quisesse eliminar esses elementos suprimiria, com isso, precisamente a efetividade do mundo. Conseqüentemente, aniquilar-se-ia também, com isso, a verdade. Ao final, pois, da realização estrita desta 'vontade de verdade', restaria, segundo Nietzsche, não o 'Ser Puro e Pleno', mas, ao contrário, o 'nada vazio'. (cf. KSAXII, 9 [91]) Por isso, a vontade de verdade aparece na visão de Nietzsche como uma vontade de nada não transparente a si mesma. Do mesmo modo, a dicotomia entre o mundo 'verdadeiro' e o 'aparente' vai abaixo. Quando se dissolve o 'mundo verdadeiro', também o discurso do 'mundo aparente' perde seu sentido (cf. GD/CI, Como o "verdadeiro mundo" acabou por se tornar em fábula; cf. tb. Abel l, p. 324-341). Desse modo, a dicotomia 'verdade-aparência' é reconhecida no seu todo como defeituosa. A questão que resta, portanto, é a de que aspecto poderia ter uma filosofia para além dessa dicotomia.

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z. Osentido estrito de verdade Verdade, em sentido estrito, significa uma propriedade das proposições, dos juízos mais próximos em que se expressa algo sobre a constituição dos objetos, dos eventos, dos estados e dos fenômenos. A questão acerca de quais critérios de verdade podem ser empregados desempenha um papel central. À diferença das questões da verdade há pouco discutidas, trata-se aqui do âmbito das teorias da verdade em sentido estrito (por exemplo, da teoria da correspondência, da teoria da coerência, ou da teoria da redundância da verdade). A forma defendida e dominante mais corrente da teoria da verdade é a teoria da correspondência. Ela está mais próxima também de nosso entendimento do cotidiano. A posição fundamental da teoria da correspondência é a de que uma proposição (um juízo, uma representação) só e somente só é verdadeira quando concorda com a parte correspondente da realidade - quando, portanto, há correspondência entre a proposição (o juízo, a representação) e o mundo, não importando se essa relação é pensada. como isomorfismo ou como reprodução de qualquer tipo. Entretanto, a dificuldade da teoria da correspondência não consiste em encontrar a "Relação Única e Corretà' entre proposição e mundo, ou seja,· entre proposição e estados de coisas. Ao contrário, a dificuldade da teoria da correspondência consiste no fato de que há ·demasiadas relações que podem valer legitimamente, de certo modo, como relações que correspondem bem. Para poder discriminar, a partir de fora, uma relação determinada enquanto correta e metafisicamente una, necessitar-se-ia ter anteriormente um acesso ao inundo independente da linguagem e do espírito. Seres finitos não dispõem, evidentemente, de um acesso a um mundo inteiramente não interpretado.

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Em nossos dias, esse pont~ se apóia sobretudo na assirn chamada "teoria do modelo", particularmente nos argumentos desenvolvidos por Hilary Putnam ~cf Putnam 8, p. l-2S; · Jem 7 cap. II). Segundo a teona do modelo, um precf. t b . za1 , " ,, d clicado sobretudo um predicado vago , po e manter uma relação' com mais do que um único mem~~o de u~a totalidade de estados de coisas. Deve-se adm1t1r, por isso, que quando ocorrer um desses estados de coisa~ e ~ão outros, 0 predicado não é verdadeir~ nem falso: Is~o s1gn1fica que a bivalência estrita de verdadeuo e falso e minada. Desse modo, 0 conceito de verdade no sentido estrito da teoria da correspondência se dissolve a si mesmo.

II. Verdade como interpretação

1. O modelo da interpretação As dificuldades esboçadas da concepção metafísica da verdade não podem ser resolvidas somente com uma mera modificação no plano do conceito de verdade. Ao contrário, parece haver a exigência de que o antigo esquema no seu todo seja submetido a uma reinterpretação. Seguindo a linha de Nietzsche, pode-se fazer a tentativa de compreender a verdade não mais como aquilo que preexiste independentemente da sua interpretação. Ao contrário, a verdade poderia ser vista como o nome para a produção nos processos interpretativos. Com esses processos não se chega, definitiva e universalmente, a um fim obrigatório. Neles surge a verdade, que serve também à classificação de proposições (juízos, representações) enquanto 'verdadeiro' ou 'falso'. Nesse sentido, podese conceber a 'verdade como interpretação'. Nos processos de

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não se trata, portanto primariam d d ' ente, e esdesvelar uma verdade preexistente e pront N... , cobrir, de . ... d a. ao e n1ais a 1nterpretaçao que epende da verdade mas , •·· · . , antes e a verdade que depende da interpretação. Desse mod~, a questão da verdade perde sua posição central, em proveito da problemática da interpretação. Isso não significa - e esse é um ponto muito importante!_ que a questão da verdade ~enha s~ tornado obsoleta, nem que ela desapareça no conceito de interpretação, pois nós fazemos, enfim, a distinção entre 'verdadeiro' e 'falso' e a entendemos com evidência. Não se trata, portanto, da destruição, mas da re-concepção do sentido da 'verdade'. E esta re-concepção pode resultar da base dos processos de interpretação fundamentais e continuamente compreendidos em contraposição ao discurso da "Verdade". Em tais discursos sobre a "interpretação", é empregado um determinado conceito de interpretação. Não ocorre nele o entendimento estrito de interpretação no sentido da exegese {Auslegung) e da explicação (Deutung) hermenêuticas de algo dado previamente, por exemplo, de um texto ou de uma ação. No sentido amplo, todas essas relações, cujos componentes são centrais, podem ser vistas como relações de interpretação, podendo ser caracterizadas como perspectivísticas, esquematizadoras, construcionais, projetáveis e interpretantes. Isso ocorre em todos os processos em que discriminamos, identificamos e reidentificamos fenomenalmente algo como Algo determinado. Temos, então, em relação ao mundo e às configurações de sentido assim formados, opiniões, convicções e um saber pragmático. Interpretação não significa, ~ortanto, somente um procedimento complementar do exph~ar e do conhecer, nem meramente uma ars interpretandi. Desse modo, sobretudo os processos da percepção, da fala, do sa-

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ber, do pensar e do agir humanos podem ser caracterizados como interpretativos. O sentido predicativo, adjetivo e adverbial de "interpretativo" é particularmente importante em vista da caracterização dos respectivos processos. Diante desse pano de fundo, pode-se distinguir dife-rentes tipos e níveis de interpretação. Pode-se nomear aqui, pelo menos, três níveis: em primeiro lugar (a) o já mencionado nível da apreensão e da explicação, em resumo, as chamadas "interpretações/ (como, por exemplo, a explicação de uma palavra, bem como a formação de hipóteses e teorias); destas interpretações pode-se, então, distinguir (6) os modelos interpretativos que estão apoiados em nossos hábitos e formas de relaçªo (como, por exemplo, as convenções estabelecidas e as práticas culturais), em suma, as também chamadas "interpretações/; e, de ambas, por sua vez, pode-se distinguir aqueles componentes interpretativos que já são efetivos nas funções categorizantes de nossos sistemas de linguagem e de signos, bem como de nosso ser-no-mundo (Heidegger), enfim, as ditas "interpretações/. Nesse último plano leva-se em conta, por exemplo, o emprego dos conceitos "existência" e "pessoa", os princípios de localização espaço-temporal e da individuação 1•

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Desenvolvi essas relações em pormenor nos livros: Mundos da interpre-

tação: A filosofia contemporânea para além do essencialismo e do relativismo, 1993, 2. ed. 1995; e Linguagem, signos, interpretação, 1999. Não ~uero me deter aqui nos pormenores. Por ora é importante somente salientar que se trata de um modelo de interpretação de três níveis, e que este modelo pode se tornar também frutífero para reformular a relação entre verdade e interpretação.

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Tendo e~ vista a reh:ção ent~e ~erdade e interpretação, se modelo de 1nterpretaçao em n1ve1s permite uma nuance descrição. Com sua ajuda pode-se precisar a tese funda:ental, segundo a qual não é a interpretação que depende da verdade, mas a verdade que depende da interpretação. Isso é possível no sentido estrito da concepção da verdade (a saber, na verdade das afirmações discursivas, e em vista das teorias da verdade). Isso é possível também para o·sentido amplo da concepção de verdade (a saber, em relação à questão do que, como se diz, 'na verdade é'). Dois aspectos constituem o ponto de partida: (i) no plano fundamental das relações de interpretação 1, facticidade e interpretatividade não estão ainda separadas, ou seja, estão fundidas; (ii) as relações de interpretação 1 são logicamente anteriores à verdade discursiva. Toda esfera individualizada pode ser vista, diante desse pano de fundo, como um mundo da interpretação. Sem os processos precedentes de interpretação 1 e seus resultados não haveria nada a descrever, a esclarecer, a fundamentar, a explicar, a conhecer e a entender, portanto, nenhuma exigência de interpretações, ou seja, de explicações nos três planos. Nos processos dos planos de interpretação 1 é somente assegurado, em geral, o que vale como 'ente' ou como 'não-ente' e o que vale como 'verdadeiro' ou 'falso' e, portanto, o que pode ser também objeto da interpretação 3 explicativa e apropriadora. A questão da verdade no sentido estrito e discursivo do termo se coloca somente depois que (i) aqueles objetos e eventos, sobre os quais as proposições (juízos, representações) entram em relação, são formados nos processos de interP_retação1, e depois que (ii) alguém tenha perguntado explicnamenre pela verdade ou falsidade de uma proposição (de

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um juízo, de uma representação). A respectiva proposição (juízo, representação), bem como a pergunta por sua verdad ou falsidade estão localizadas no terceiro plano das relaçõe~ de interpretação. A questão da verdade discursiva consiste, portanto, no interior do modelo de interpretação em três níveis, na relação entre: a) os juízos no plano 3 das interpretações, (b) outros juízos, que já são tidos por verdadeiros, e (c) os objetos e eventos que foram identificados e individualizados nos processos de interpretação no plano 1. Isso mostra, aliás, que a verdade discursiva, a verdade em sentido estrito e ligada à gramática do juízo, não basta para caracterizar a vida humana em suas figuras fundamentais. Consideremos agora a concepção de verdade no sentido amplo e essencial do termo. Também aqui a dependência esboçada da verdade em relação à interpretatividade conduz à concepção da verdade como interpretação. Segundo Nietzsche, da concepção 'mais antiga' da verdade não resta nada mais a considerar, a não ser os processos múltiplos e irredutíveis de interpretação, aquilo que, como se diz, 'na verdade é'. Isso vale ainda mais na medida em que a mais antiga concepção de verdade estava comprometida com a veracidade enquanto sua lei moral. Em conseqüência dessa imbricação, a busca da verdade provoca, justamente, a dissolução do mais antigo esquema da questão da verdade. O caráter interpretativo dos processos -vitais e, em geral, de tudo o que ocorre, obstruiu sistematicamente o caminho para um essencialismo renovado atrás dos processos de interpretação. Segundo Nietzsche, "o interpretar mesmo tem . , ex1stenc1a , nao enquanto um ser, porem enquanto um processo" (KSA XII, 2 (151]) . É importante acentuar isso, pois tanto o sentido estrito quanto o amplo de verdade somente "•))((,.,

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~ ser tratados e considerados enquanto mo J d . d'd aos a tnterividade na me 1 a em que os processos de i'nte rpretapre tat . ... ,, recuam a essas pos1çoes fundamentais e irreduti'veis. • çao . , , . Além disso, e esse carater interpretativo dos processos que nos leva a afirmar que as verdades 'nasceram' e 'se tornaram forces', mas també~ que elas podem 'envelhecer' e 'morrer'. Tanto a vitalidade quanto a mortalidade das verdades inclusive a sua historicidade, são conseqüências de seu cará~ rer interpretativo. Desse modo, o tempo_entra na verdade. A metafísica clássica havia esquecido o tempo e a história. A posição central da problemática da interpretação não conduz, de modo algum, a um relativismo, no sentido de que roda interpretação seria válida para cada um de nós em igual medida. Há uma diferença fundamental entre a relatividade conceitua!fundamental (que é indispensável e não-eliminável) e um relativismo da preferência (que não pode ser explicitado de modo coerente). Além disso, não podemos, de modo algum, modificar voluntariamente a estrutura das relações de interpretação 1, ou trocá-la por uma outra. Por isso, depara-se facilmente, por exemplo, com estruturas duradouras de interpretação1, que dificilmente se modificam no suceder das gerações. Nesse sentido, há uma necessidade interna ligada aos processos reais de interpretação. Os processos vitais repousam nessa necessidade. Do mesmo modo, a vida também se delimita no relativismo. De nossos dois primeiros passos (interpretação da verdade, verdade como interpretação), deve seguir um terceiro: a verdade da interpretação. Não se trata mais, em realidade, de posicionar-se novamente 'atrás' dos processos fundamentais de interpretação. A questão da 'verdade da interpretação' deve desdobrar-se de modo que ela não recaia no âmbito da metafísica da 'essência'.

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III. A verdade da interpretação

1. Erro e verdade Algumas das mais antigas respostas à questão da 'verdade da interpretação' não estão mais disponíveis. A elas pertence também o recurso à versão tradicional da oposição verdadeiro-falso, sobretudo no sentido de uma relação de correspondência. No falar, no pensar e no representar não comparamos nossas interpretações (palavras, juízos, representações) com 'coisas puras', transcendentes às interpretações. Sempre podemos compará-las somente com outras interpretações tidas já por verdadeiras. Nesses casos, não se trata nem da relação entre 'interpretação' e 'coisa pura' nem da relação entre 'signos' e 'coisas'. Ao contrário, trata-se das relações entre os signos, bem como das interpretações entre si, das formações mais próximas de signos sobre signos, a saber, das formações de interpretações sobre interpretações. Nietzsche acentuou que a função de representação dos signos remonta à "invenção de signos para espécies inteiras de signos" (KSA XII, 1 [28]), principalmente à "abreviação" de muitos signos por meio de outros signos almejados. Tais processos de signos e de interpretação podem ser aplicados, segundo Nietzsche, no plano do orgânico. Nos processos do organismo humano, trata-se de funções altamente especializadas e da mais elevada complexidade do arranjo dos sistemas compostos. Com a complexidade e com a especialização das funções, cresce também a perspectividade (cf FW/ GC § 354). Esta se manifesta nas formações de constructos fixadores, simplificadores e representantes das mais distintas espécies. E, justamente nesses casos, surge também o 'erro'. Ocorrendo isso, torna-se claro, então, em que sentido os erros são paradoxalmente indispensáveis e não-elimináveis

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nossa vida. Sem os erros, por exemplo, do tornar igual e

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anter-nos na ex1stenc1a. Nos nos difundiríamos, ao contrá~ no fluxo das coisas, mais precisamente, desapareceríamos no, no fluxo indiscreto dos processos de interpretações múltiplos. Nesse sentido, estamos "em certa medida presos ao erro, necessitados do erro" (GD/CI, A "razão" na filosofia, § 5). "Verdade", na célebre formulação de Nietzsche, é "'a espécie de e_rro' sem o qual uma determinada espécie de seres vivos não poderia viver" (KSA XI, 34 [253]). O erro é tomado aqui como genus; a verdade, como species. E a differentia specifica consiste na relação com as condições de vida: "o valor para a vida decide finalmente" (ibidem). Com isso, depara-se com a questão de se a "inverdade" pode ou não ser admitida como condição de vida (cf. JGB/BM § 4). Desse modo, 'verdade' e 'falsidade' aparecem não mais como opostos com origens metafísicas próprias e separadas. Nietzsche questiona se não bastaria talvez, em vez da dicotomia essencialista entre verdade e falsidade, supor "graus de aparência" QGB/BM § 34).

2. Verdade como propriedade A verdade da interpretação não pode mais ser concebida como uma propriedade atemporal que uma interpretação não pode perder. Uma tal perspectiva se oporia ao caráter de interpretação enquanto tal, bem como à temporalidade e à historicidade de um entendimento humano do mundo, do outro e de si mesmo. Nossos signos e interpretações possuem traços semânticos (ou seja, significação, referência e condições de satisfação); eles possuem também traços pragmáticos (ou seja, uma relação com o tempo, com a situação, com o contexto e com

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pessoas). Esses traços nã~ pode~ ser concebi~os como propriedades supratemporais dos signos e das interpretações. Ao contrário, eles dependem, usando a expressão de Wittgenstein (cf. Wittgenstein 9, 1-64 e 198-242), da práxis do em-: prego dos signos. Entretanto, se os traços semânticos e pragmáticos não são propriedades supratemporais, como poderia a verdade, então, ser uma propriedade supratemporal de um signo e de uma interpretação? Isso só seria possível se a semântica e a pragmática das interpretações pudessem ser concebidas mais ou menos no sentido das condições objetivas de verdade de Donald Davidson (cf. Davidson 4). Uma tal prova deve, contudo, fracassar. Ela teria, em primeiro lugar (i), que explicitar um realismo sem relatividade conceituai fundamental; e deveria, em segundo lugar (ii), mostrar que uma expressão só e somente só tem significado quando e porque ela é verdadeira, de modo que sua verdade objetiva pudesse ser suposta, em toda interpretação plena de significado, como certa. Evidentemente, esse não é o caso. Também não se têm em vista critérios independentes da interpretação nem pressuposições internas à interpretação que permitissem conceber a verdade da interpretação enquanto uma propriedade atemporal e objetiva construída antes da interpretação.

3. Tempo e verdade Deve-se notar que a questão da 'verdade da interpretação' não está obrigatoriamente vinculada a um essencialismo. Pode-se agora substituir a p~rgunta "o que é verdade?" pela pergunta "Quando ocorre a verdade?". Desse modo, a pragmática e a temporalidade ingressam decisivamente na problemática da verdade. A verdade mesma torna-se temporal.

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193 Certamente, a ligação entre ,. ., . tnterpretaç, existe Jª previamente ao cruzamento e , e tempo ' d . d ntre tempo e d d , O tempo e etermina o pelas interpr _ ver a e . ,. etaçoes que 1 rem. Com auxilio dos modos temporai· (d _ ne e ocor. s uraçao se .. simultaneidade), o tempo serve, por sua , d ' q~encia, . ,., vez, a eterm1na das 1nterpretaçoes no tempo. O tempo , . çao . 1· h d K e, assim poder-se-ia dizer, na 1n a e ant, (cf. Kant 5 B34 ss 4 )e · ,. . O ' ., e 9 ss. rorma da 1nterpretaçao. tempo não é sob cond' ,. . 1 . ' içoes cnucas e kantianas, a go que exista por si só e fora das 1·nt . , e , . erpretaçoes, das quais ele e rorma.. Alem disso ' ele não subsi'sti· na · se se afascassem dele todas as Interpretações ou se se abstraísse delas.

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4. Projetabilidade e compatibilidade Como foi ressaltado, a verdade da interpretação não consiste mais na correspondência ou adequação à "própria coisa,, externa. Ao contrário, ela diz respeito à projetabilidade de signos e de interpretações e à compatibilidade recíproca, isto é, à possibilidade de acordo e de combinação do modelo e do standard das interpretações, bem como à sua posição no sistema, que vale por ora como norma na práxis do tempo. Por isso, 'a verdade da interpretação pode ser concebida como uma posição regulada da interpretação em relação a outras interpretações já tidas por verdadeiras no interior de uma rede e, portanto, como função de coerência face à rede de interpretações. . As normas da interpretação asseguram, antes de mais nada, quando e sob que condições uma interpretação pode 1 ser considerada como 'verdadeira ou como 'falsa,• Essas normas não são definíveis ou dadas previamente por um con. ' , · e e:.r1xo d e pnnc1p1os. · ' · Isso não quer dizer que Junto a-h 1stonco . _ m sem regra. Antes, os processos de 1nterpretaçao transcorra 1

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quer dizer que as regras do inter~retar e~etivo podem ser reconstruídas 'apenas internamente; elas nao certificam previamente, mas determinam o uso efetivo dos signos.

5. Complexidade e individualidade Nietzsche formula a hipótese de que as interpretações humanas têm sua sede já no organismo, na organização corporal, a qual não somente escolhemos, mas somos individualmente. Com isso, a organização corporal pode ser vista, por sua vez, como um sistema altamente complexo de diferentes processos de interpretação. Ocorrendo esse sinal distintivo, cada um de nós pode ser visto, então, enquanto organização corporal, que existe individualmente enquanto fundo interpretativo da verdade de suas interpretações. Correspondentemente, a questão da verdade da interpretação é tão complexa quanto o homem como complexo de interpretações. Sob essa complexidade e individualidade, não se pode mais possuir agora a verdade. Ela não é, por exemplo, o que resta quando ordenamos nossas proposições com auxílio da sintaxe lógica da linguagem. Na questão da 'verdade da interpretação', trata-se, por fim, da posição que nós mesmos ocupamos, enquanto sistemas interp_retativos que somos, no acontecer da interpretação que não pode ser vislumbrado em sua totalidade e que se encontra em fluxo.

6. Gradação da verdade A verdade da interpretação possui uma gradação. No Iugar d a "Véerd ad e" d e uma interpretação, · ocorrem graus de verdade. O grau de verdade de uma interpretação é medido segundo a proxim1'dade ou a d·1stanc1a " · entre as 1nterpretaçoes • ,., 3

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(nas quais é lev~ntada um:pret~nsão ~e verdade na forma de urn juízo) ~ as interpreta~oes 1 (~s quais se devem os objetos de referência, para os quais se orientam as pretensões de verdade dos juízos). O grau de verdade de uma interpretação depende: (i) da relevância da interpretação para o indivíduo; (ii) da consolidação e da firmeza da interpretação no interior do corpo de interpretações; (iii) da capacidade de coalizã.o com outras interpretações; (iv) da aptidão de poder ser adotada na rede existente de interpretações; (v) da capacidade de poder organizar nossa experiência de um modo mais abarcante e simples do que o vigente; (vi) da força de poder contribuir para a intensificação da experiência; (vii) da entrega a perspectivas distintas e também conflitantes; e (viii) do ultrapassamento de horizontes de interpretação restritos e da capacidade de abertura

de novos. Os cinco primeiros aspectos podem servir, ao mesmo tempo, para reformular o conceito de verdade no sentido do esquema mais antigo (a saber, da verdade no sentido do fixar, ou seja, do tornar fixo). Em contrapartida, os três últimos aspectos nomeados se referem ao novo sentido do discurso da 'verdade da interpretação'. Esse novo sentido está relacionado ao fluxo não-fixável das interpretações, ao fluxo contínuo das coisas do mundo e da vida. Se o horizonte da interpretação puder ser intensificado e ampliado, sem prejudicar a capacidade de viver, será possível, então, a intensificação tanto da potência quanto da verdade. Quem, por exemplo, pode permitir e admitir contradições e não-identidades, em vez de reprimi-las ou torná-las iguais, este é poderoso por isso e está, no novo sentido, "na verdade". Essa possibilidade se dá de um modo mais enfático antes nas artes do que no âmbito da gramática do juízo e dos conceitos. Por isso, segundo Nietzsche, "a arte é mais valiosa

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que a verdade" (KSA XIII, 17 [3]), mais p~ecisa:°1ente: ela é 1nais valiosa que o esquema da ver?a?e mais antigo. Para Nietzsche é a "verdade uluma do fluxo das coisas" (KSA IX, 11 [162]) ambivalente e perigosa para a continui~ dade e sobrevivência do tipo, tanto para o indivíduo quanto para a espécie. Aqui instituem-se, agora Nietzsche, as questões centrais em relação ·ao novo· sentido da verdade: "Quanto de verdade suporta, quanto de verdade ousa um espírito?", e: "Em que medida a verdade suporta a incorporação? - esta é a questão, este é o·experimento" (FW/ GC § 11 O).

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CONSCIÊNCIA - LINGUAGEM - NATUREZA

A filosofia da mente em Nietzsche*

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1. O papel da consciência, da linguagem e da natureza Consciência, linguagem e natureza são temas fundamentais no pensamento de Nietzsche. Os processos, estados e fenômenos correspondentes são objeto de análises sutis. A discussão precisa desses temas conduz ao centro de seu filosofar. Esses campos de pesquisa têm importante significado também na filosofia atual. Depois _d o linguistic turn e da dominância da filosofia da linguagem nas últimas décadas, a filosofia - sobretudo a filosofia de orientação analítica redescobriu a consciência. A consciência foi elevada à condição de tema chave da filosofia atual da mente. É um fenôme-

* Tradução de Clademir Luís Araldi. Este texto foi originalmente publicado nos Nietzsche-Studien 30 (2001), Berlim, De Gruyter, p. 1-41.

** Professor do Instituto de Filosofia da Universidade Técnica de Berlim.

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no digno de nota, pois a filosofi~ d: consci~ncia, pri~cipalmente tinha até agora uma apreciaçao negattva e era tida por superada. Visto que cada um de nós crê ter consciência, e visto que tanto a existência da c?~sci~nci~ como a questão de como ela se insere em nossa v1sao c1ent1fica da natureza suscitam grandes enigmas, não é de se admirar o renascimento recente da problemática da consciência. A tríade formada pela consciência, linguagem e natureza (em suma, as funções cerebrais) é discutida hoje, de modo veemente e controverso, no interior da filosofia, das neurociências, da psicologia, da lingüística, da informática, assim como nas ramificações dessas disciplinas, a saber, nas ciências da cognição. Prova disso é a onda de publicações recentes acerca do tema consciência 1• Pelo mundo afora são desenvolvidos programas de pesquisa voltados à solução do enigma da consciência, visto no fato elucidativo de que organismos físicos possuem consciência e espírito 2 . Os aspectos físicos, fisiológicos, neuronais, biológicos e evolucionários

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({) 1 São exemplos: BLOCK, N., FLANAGAN, O . & GÜZELDERE, G. (orgs.). The Nature of Consciousness. Philosophical Debates; ROSENTHAL, D. M. (org.) The Nature of Mind; METZINGER, T. (org.). Bewubtsein. Beitriige aus der Gegenwartsphilosophie; ESKEN , F.& HECKMANN, H. D. (org.). Bewubtsein und Repriisentation; DENNETT, D. C. Consciousness Explained; FLANAGAN, O. Consciousness reconsidered; SEARLE, J. R. The Rediscovery ofMind; McGINN, C. The Proble1:7 °/ Consciousness. Essays towards a resolution; LYCAN, W G. Consc10usness. 2

Tornou-se célebre o "ign orab"1smus,, d o contemporaneo " · . de Nietzsche, o fis1ólogo Emil du Bo is· Reymon d, o qua l a11rmava c. não ser fundamenta1mente possível O surgiºmc t d ·" • d • e , n o a consc1enc1a a mter-re lação de d.11erentes ato mos · Ou Bois -Reymon d quena • provar "que a consc1enc1a, •,. · na . ~ s1tuaçao atual de no sso con hec1menco, · • não é explicada somente a parttr

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exercem hoje nesse contexto um papel im É . 1 d " . portante. o discurso, por exemp o, a neuro biologia da consc·" . ,, 3 « f' . 1enc1a ou até mesmo de uma nova isica da consciência»4. Encontram-se reflexões variadas dispersas · . " . ' nos escritos de Nietzsche, acerca dos ambttos da conscie"nci·a 1· . , 1nguagem e natureza, assim como de suas conexões. A consciênci·a ,. . , sua gê?e:e, _abrangen~1~, como ~~m?ém as distintas produções epistem1cas do SUJe1to-consc1enc1a, do eu, são rematizadas in puncto. Entre as produções está, p. ex., a delimitação ao campo do não-consciente, da percepção, do pensar consciente, do conhecimento e do reconhecimento, do associar e classificar, dos conceitos, juízos, da intencionalidade e funcionalidade da consciência. Além disso, ocorrem considerações sobre âmbitos fenomenológicos próprios, como a memória, a recordação, experiências subjetivamente qualitativas (como a experiência de um som musical), o entendimento do texto, da natureza, da pessoa e da ação. Em tudo isso Nietzsche se destaca como aquele que procura mostrar criticamente os limites da consciência e os riscos ligados a uma hipóstase do modelo da consciência. Nietzsche, contudo, não é um eliminador reducionista, isto é, ele não defende a tese (trazida nas discussões atuais) de que o~ estados e processos mentais e conscientes não são, por fim, nada mais do que estados e processos físicos, que nós compreendemos somente (seduzidos por nossa ~sicologia cotidiano) como estados e fenômenos mentais e conscientes.



. . o que to dos ad mitem ' mas que ela não de suas condições matena1s, d' pode _ ., , 1 d . sas segundo essas con içoes ser explicada tambem pe a natureza as co1 ,

(OU BO1S-REYMOND, p. 74 e p. 77). CHURCHLAND 9, p. 463-490. 4 Cf. PENROSE 32.

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Segundo essa concepção, os estados mentais existem tamp 5 N" h OUco quanto fantasmas ou demon1os . 1etzsc e, em contrapartida, é um realista da consciência. Negar a consciência seria um sinal de percepção limitada da realidade. Não é necessário acentuar que o papel da linguagem e o entendimento da natureza possuem do mesmo modo um· elevado valor no pensamento de Nietzsche6• Em assuntos de linguagem,. ele trata sobretudo do falar efetivo, do entendimento entre pessoas e da função da "gramática" para 0 entendimento humano do mundo, do outro e de si mesmo. E os processos naturais são concebidos por Nietzsche como processos dinâmicos de um conjunto complexo de centros de força. Com isso, a triangulação entre consciência, linguagem e natureza tem significado fundamental no pensamento de Nietzsche, como também no âmbito central da filosofia " contemporanea. A



II. Aspectos da investigação atual da consciência e da filosofia da mente

No centro da atual filosofia da mente (philosophy of mind)~ está a questão acerca da relação entre estados, proces-

5

Compare-se principalmente as posições de P. S. CHURCHLAND. The engine of reason, the seat of the sou! e A neurocomputational perspective. Confira também P. S. CHURCHLAND. Neurophilosophy. É interessante lembrar que a posição do materialismo eliminacionista foi defendida também por P. Feyerabend e R. Rorty. Cf. FEYERABEND 18, p. 24-54.

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Acerca do programa de Nietzsche para uma nova interpretação da realidade, confira ABEL 6.

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c{sicos e mentais, principalmente os consciente-mentais É

d . . l 'fi . ível colocar uas teses - s1mp 1 1cando bastante_ no que poss . d ." . . e refere ao enigma a consc1enc1a, que constituem uma dicosomia: (i) Estados e processos mentais são estados e procesros da matéria. Essa é a tese do materialismo/fisicalismo ~onista da consciência e da mente; (ii) Estados e processos mentais não p~dem ser reduzidos a estados e processos físico-fisicalistas. E a tese do mentalismo dualista. Ambas as teses e suas diferentes variações não podem ser vistas, contudo, como superadas, e _isso pelos seguintes motivos 7. O menta/ismo atual afir!Ila que os significados dos signos por nós usados com sucesso são fixados através dos estados psicológicos daqueles que empregam signos, ou seja, em suas cabeças. Isso pressupõe, contudo, que os falantes obtenham um saber seguro, no caminho da introspecção, sobre seus estados psicológicos e sobre as características semânticas (significado, referência, condições de verdade, de realização) dos signos por eles postos. Também nessa visão, a introspecção se choca em seus limites. Os significados de nossos signos, falando com Wittgenstein, não são concebíveis como resultados de nossos estados mentais internos, e nós não empregamos uma linguage1n segundo regras disponíveis e fixadas anteriormente. 8 Essa é a versão mais forte·da tese materialista: fenômenos mentais e cognitivos são fenômenos físicos, isto é, estados e processos descritos pelas neurociências. As leis a ela correspondentes deveriam ter a forma: Peter sente dor precisamente num momento determinado ou então exerce nesse exato momento uma atividade cognitiva, se determinados neu-

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Acerca das questões que se seguem, confira ABEL 4, p. 19-44. Cf. WITTGENSTEIN 52, no. 65-197.

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rônios estão ativos em seu cérebro nesse instante. Deve-se lembrar das três dificuldades que foram trazidas nas discussões dessa posição, as quais não podem ser dirimidas com seus , . . . propnos meios: (i) Se dois estados ou processos são idênticos, eles devem também ter propriedades idênticas. Ao passo que uma dor pode ser desagradável, uma sensação da cor benfazeja, um pensamento distinto, de modo algum os estados e processos neuronais correspondentes são qualificados como desagradáveis, benfazejos ou distintos. Não se pode observar o pensar e o desejar através da visão que o neurofisiólogo tem do cérebro de um outro homem. Desse modo, são concebidos somente parâmetros de observação, por exemplo, o potencial de ação neuronal ou a troca de matéria no cérebro. É de central importância que o predicado subjetivo e fenomenal "é desagradável" e o predicado neuronal "ativação das C-fases" não são evidentemente sinônimos. Assim, não se realiza a posição fundamental da identidade exigida por esta teoria. (ii) A tese da identidade passa por alto.que nos discursos freqüentemente citados, como por exemplo: "Água é H 20" e, de modo análogo, "o fenômeno mental consciente X é o fenômeno neurofisiológico Y", não se trata do "é" da identidade, mas de um "é" da identificação teorética. 9 Não entram em jogo complementos como "considerado do ponto de vista químico ... " ou "considerado do ponto de vista neurofisiológico ... ". Esse modo de falar está totalmente em ordem. Mas com isso abandona-se a pretensão de que nós podemos expressar o essencial de todas as propriedades dos estados e processos mentais conscientes e não conscientes unicamente na posição neurofisicalista.

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Acerca desse termo, confira PUTNAM 34, P· 379 ss.

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(iii) Em vista das coisas do mundo exterior e dos elefaz sentido distinguir, com Th. Nagel e . mencos naturais 1O A. I(ripke e~tre o que nos apa~ece c~mo uma coisa e O que , como se diz, conforme sua constituição objetiva'. Um ::emplo conhecido: um cristal aparece como espesso e homogêneo; os físicos, contudo, dizem que se trata de uma rede de átomos, que consiste em grande parte de espaço vazio. Em relação aos _estados e processos mentais, no entanto, (como por exemplo convicções, desejos, pensamento consciente) não é permitido fazer essa diferenciação. Nesses casos, o estado qualitativo, fenomenal e subjetivo, é 'sua natureza inteira' mesma. Por isso, não se pode dizer com sentido que um desejo, segundo sua natureza, não seria nada mais que um determinado estado do cérebro, que uma pessoa sente somente como desejo. Desse modo, fracassa a tentativa de restringir o que explana ao aspecto físico e material, em relação ao explanado 'consciência'; assim, o tema da consciência se torna somente um caso, um problema da relação consciência-cérebro, tradicionalmente, da relação corpo-alma. Estão ligadas à questão da consciência, como também será visto em afirmações de Nietzsche a ela relacionadas, uma série de outros aspectos e problemas. A consciência é um campo amplo que dá acesso a interpretações muito diversas. Assim como Nietzsche disse acerca do querer, ele seria "uma unidade somente enquanto palavra" CTGB/BM 19), mas de fato seria algo de extremamente complexo e complicado, também se pode afirmar em relação à consciência, que ela seria somente como palavra uma unidade e algo simples, demonstrando ser, numa visão mais próxima, algo extrema-

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°Cf. NAGEL 28, p. 165-180; KRIPKE 21, p. 135-164.

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· , ltiplo e complexo. Isso vale tanto ao processo d mente mu d , .,.. . , o . 'chegar-à-consciênc~a, e ao esc~ o c~nsciencia , c~mo também para a perspectiva da te~°:,inologia e ~a armaçao concei·tual empregada para a de~cnçao, esclar~cimento e/o~ expli,.cação da consciência. Assim, f~ uma diferença c??siderável se alguém se move numa armaçao e num vocabulano funcional ou naturalista no que se refere aos estados e processos da consciência, do estar consciente, do tornar-se consciente e da 'A

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11

autoconsc1encia. O problema da consciência abrange bem mais aspectos do que somente aqueles que nos parecem colocar, no quadro da problemática corpo-alma, diante da alternativa: ou ter de defender uma espécie de dualismo ou um monismo reducionista. O problema da relação corpo-alma, ou melhor, cérebro-consciência, poderia por fim parecer insolúvel precisamente porque ele está preso a uma armação conceituai que implica ou tem como conseqüência essa não-resolução. Caso se queira ir adiante, deve-se fazer a tentativa de modificar a arquitetura da armação conceituai mesma, de modo que o problema da consciência pudesse ser resolvido um pouco mais, - através da indicação das condições sob as quais ele não pode mais ocorrer. Uma tal estratégia estaria de acordo também com nossa intuição, no que tange à relação entre consciência e cérebro/ corpo. Em casos normais, a relação _con:ciência-céreb:o não apresenta nenhum problema na realizaçao factual da vida. Mas como deveria parecer uma armação conceituai que estivesse munida com a capacidade de

re Ievanc1a dessas dist1' nçoes ~ e' acentua d a com razão por VA N GULICK 51 . ~ de npo . fenomenais, . . . ' p · 79 - 101 • Sem essas d.1stmçoes term1nológ1cas e con ceituais · · se chegana . facilmente . . a confusões acerca d aqui1O que precisame t · . n e m puncto consciência deve ser debatido.

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explicação e estivesse em condições d . e ancorar em . ruição? Nos escntos de Nietzsche enco nossa 10,., ,., . n tram-se elemen t d interpretaçao que sao importantes para O d . os e . e11neamento d . · e seu Própno pensar, como também são elucidativos em face dos aspectos es b oça d os. Alguns desses element d . ,., ,., 'd d' os e Interpretaçao serao reconstrui os e iscutidos nas s ,., • , . . eçoes segmntes, nas palavras-chave: prznctpto do continuum (III) J , J . , moaew ao processo (IV) , organização funcional (V) conscie"ncz·a L·

.

." .

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e tnguagem

(VI), fenomenalzsmo e exherzencza interna (VI) e consczencza ·" · e r

corporeidade (IX).

III. O princípio do continuum Em vista das dificuldades esboçadas in puncto Teoria da consciência, deve-se fazer a tentativa de colocar a questão da consciência para além das dicotomias entre dualismo e monismo, assim como entre menta/ismo e materialismo/fisicalismo. Exige-se um modo de ver não-dualista. Nietzsche defende uma tal concepção. Ele parte de um espectro de continuidade daquilo que existe ou acontece dessa ou de outra forma, __ na margem extrema do inorgânico, passando pelo orgânico, . __ até os estados mentais, a consciência, o tornar-se consciente, até as atividades cognitivas e espirituais, os projetos de ação e sua consecução. O orgânico aparece assim como camada prévia contínua, na história de desenvolvimento da consciência. O mundo de Nietzsche é um mundo dessas relações de continuidade. Conforme ele, o homem "não é somente um indivíduo, mas o reino orgânico inteiro que sobrevive numa determinada linha" (XII, 7(2)). Isso pode ser lido tanto ponto de vista do desenvolvimento até aqui alcançado asSim como desde o seu início.



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Olhando rerrospectivamente desde a posição de desen· nto alcançada ' isso significa que, vo1vime , . para Nietzsche , 0 caráter 'espiritual' e 'inteligente das ~ssim chamadas 'atividades vivas' pode ser encontrado em diversas formas de manifestação, até no âmago do orgânico e para além deste. Desse modo, 0 mundo do Orgânico em seus processos pressupõe, segundo Nietzsche, um "~nte~~ret~ con~ínu~" (XII, 2(148)), portanto, uma atividade esp1nt~a~ em senndo amplo, uma espécie de localizar, perceber, delimitar, ordenar ou taxar. Essa visão inclui também a possibilidade de que o Eu da consciência e, principalmente, (cf. a seção VIII) o '~i mesmo' (Selbst) do corpo humano influencie num certo sentido os processos orgânicos; ele pode influenciar, por exemplo, o aparelho motor, de modo que uma determinada intenção (tal como colocar a carteira de dinheiro no bolso da jaqueta, ou tomar um táxi, para visitar o tio Paulo e congratulá-lo pelo aniversário) é transposta, melhor dizendo, realizada, através dos movimentos corporais correspondentes. Em tais casos, a causação mental é evidentemente dada. Esses componentes exercem em Nietzsche um papel importante no contexto da questão de saber até onde e em que situações determinados pensamentos podem ser "incorporados" organicamente, e se eles podem ou não conduzir para a organização da experiência. 12 Visto a partir do começo do desenvolvimento, isso significa que o homem pode ser considerado uma determinada corporificação de todas "as mais antigas estimativas de valor", isto é, de todas as atividades 'inteligentes' que se encontram Jª n~ ?rganico - que se tornaram orgânicas - e desde então parucipam da organização da experiência. Nesse sentido, se• ,/

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Acerca do tema " inc - " , con fiira nessa perspectiva, · p. ex.: XII , (l Sl) XI orporaçao 9 , I, 6(13) e IX, 11 (14 I).

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undo Nietzsche, poder-se-ia "retraduzir O h g GB/BM 230) C ornem na natu reza" O · omo os processos nat · " .,. . d' . ura1s, no ambt to do organico, izem respeuo a processo , . . ., . 1 s espintua1s em senudo amp o, esse programa de naturaliza - d h . d 1· . ,. , çao o amem implica uma e im1taçao em relação à posi e, . . çao metaus1ca transcendente, assim como em relação a um nat 1· b' ura ismo iologista. Trata-se, ~e uma naturalização para além da dicotomia entre metafisica transcendente e fisical 1ºsmo red uc1on1sta. · · . . Em vista do surgimento da consciência, Nietzsche busca explicações na relação com a fisiologia e com a zoologia de sua 13 época • O surgimento da consciência, no sentido estrito de estados e processos mentais conscientes (da consciência fenomenal até o pensar consciente e a autoconsciência, assim como a possibilidade de delinear ações individuais), é nessa perspectiva algo que tem início somente mais tarde na história do desenvolvimento, sendo precedido por determinadas diferenciações filogenéticas e ontogenéticas no âmbito do orgânico. O modelo do continuum pode ser visto, desse modo, sempre em ligação com os pensamentos de desenvolvimento e de evolução. Visto que a consciência está estreitamente ligada com o tornar-se consciente - não encontrada no espectro inteiro do inorgânico (p. ex., nas pedras e nos cristais) até a autoconsciência orientada para a ação -, designa-se com o discurso da 'consciência' um fenômeno gradual. Desse modo, pode-se atribuir a animais, por exemplo, certos elementos formais de consciência, como o discriminar e per~eber fenomenal de algo, enquanto que o tornar-se consc1e_nte e ·a autoconsciência em sentido estrito, bem como os proJetos de ação intencionais e explícitos podem ser encontrados somente em homens.

13

Cf. FW/GC 354.

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É importante, por isso, que o modelo do continuum não seja igualado simplesmente ao modelo do monismo, nem seja visto simplesmente como a superação do modelo do dualismo. Não se trata de relações de redução do consciente ao orgânico ou de congruência entre si, nem de derivação de um a partir do outro com a ajuda de princípios de ligação, para a transposição do referido abismo, da célebre lacuna de explicação entre o orgânico e o consciente, entre o físico e o mental. Uma das vantagens do modelo do continuum é que em sua armação a controvertida questão discutida, a saber, a lacuna de explicação (explanatory gap) 14 assume uma outra forma. Não s"e trata mais de relações de transposição entre âmbitos, em princípio separados. Ao contrário, reduz-se ao lado interno das relações contínuas do orgânico com o consciente e com a autoconsciência a questão da lacuna de explicação à questão (não menos persistente) de como se pode pensar que formas de vida 'espirituais' e 'inteligentes' implícitas se modificam em formas explícitas, mais precisamente em consciêneia, esp1nto, pensamento e autoconsc1enc1a. Se em decorrência do processo, que 'algo entra na consciência', ao mesmo tempo um eu, a saber, um sujeito da consciência aparece, isso significa, no interior do modelo do continuum, que isto se delimita da corrente contínua de acontecimentos e também do contexto, o que é visto como eu consciente e 'indexical', lingüisticamente como pronome pessoal 'eu', mais precisamente como essential indexicaf. 15 Isso n_ão significa que há uma corrente independente de acontecimentos de uma coisa individual existente chamada 'eu', que precede a consciência-de-algo. •

14

,

Cf

• A



0

argumento da lacuna de explicação em LEVINE 22, p. 543-555. Acerca dessa figura , cf· PERRY 33 , so bretu . do o cap. 2. ·

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No que se refere ao modelo do continuum N' h " . . , 1etzsc e ·• enaltece a suspeita premonitória,, de LeibnizIG• Este ad m1t1ra atividades, 'percepções' _ (petites perceptions) inteligentes préconscientes, que são atuantes sobretudo no que ocorre nas formas de vida inorgânica, orgânica e outras, sem no entanto ter de entrar explicitamente 'na consciência', isto é, sem que seja necessário uma consciência explícita, no sentido estrito de consciência-de-algo, do tornar-se-consciente ou do pensar consciente. Um exemplo disso seria a sensação não-consciente, a recepção de muitos estímulos visuais, que, apesar de não ingressarem explicitamente na consciência, asseguram mesmo assim nossa orientação no mundo, por exemplo, para atravessar uma rua bastante movimentada numa extensão considerável. A reflexão de Nietzsche deve ser entendida diante desse pano de fundo, qual seja, que nós poderíamos "per,i: sar, sentir, querer e lembrar, (... ) assim como 'agir' em todo o sentido da palavra: e inobstante, isso tudo não precisa 'entrar na consciência' (como se diz de modo figurado). A vida inteira seria possível, sem que ela se visse no espelho; como isso ainda ocorre de fato, sem esse espelhamento, em grande parte preponderante de nossa vida" (FW/GC 354). Em tais formulações não há um erro categorial, mais precisamente uma conclusão naturalista errônea no que se refere à consciência? Como se pode pensar, sentir ou querer, sem que isso necessite entrar na consciência? Duas respostas se delineiam: (i) No modelo do continuum essa noção é concebível com sentido, desde que as formas de vida pré-conscientes e orgânicas possam ser vistas, por sua vez, como processos di16

FW/GC 354. Para a situação histórica do conceito nietzschiano de consciência, confira SCHLIMGEN 42, os caps. I e II, e SIMON 45, p. 17-33.

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nâmicos, não uma mera matéria morta, mas forças vivas de muitas 'inteligências vivas' e 'seres espirituais'. Sendo supostos esses processos pré-conscientes, mas já 'inteligentes' como basilares e pré-formadores, então o discurso apresentado é possível e pleno de sentido. 17 (ii) Distinguimos com êxito os 'estados mentais conscientes' dos 'não-conscientes' ou 'inconscientes', p. ex., os desejos e convicções conscientes das não conscientes. Este último âmbito é mais amplo que o primeiro. Nenhum de nós conhece a totalidade desses desejos e convicções, que estão ocultos e atuantes, sem que os mesmos entrem explicitamente na consciência. Torna-se claro que isso assim sucede, quando se questiona de modo mais detido sobre todos os componentes mentais não conscientes já pressupostos em determinada opinião, crença ou convicção, quando creio, por exemplo, que um certo ruído acima das nuvens provém de um avião . (como nas convicções de que aviões podem voar acima das nuvens, que ruídos são também perceptíveis, mesmo quando o agente causador não é visível etc.). Um segundo exemplo seria - em consonância com o discurso de Nietzsche acerca do 'pensar', no contexto acima - o de tirar conclusões não

17

Até mesmo a formulação de Nietzsche, de que o 'pensar consciente' pode ser visto como uma determinada 'relação' dos 'impulsos' entre si QGB/BM 36), não deve ser confundida com um naturalismo biolog~sta-fi_sicalista. ~ce_rca disso, confira ABEL 6, p. 55 ss. A suspeita de b1olog1sm~ e fis1cal~smo pode ser _afastada através da tese de que tam~é~ nos_ •m~ulsos. se deve partir de um tipo de 'espiritualidade' e rac10nal1dade • Os impulsos não são cegos em suas atividades. Eles estão, poderíamos assim dizer, constantemente ocupados em observar, perceber, orde~1ar, del_imitar, intensificar, preferir ou desprezar, - em ~-uma: no s~nttdo mais amplo, em executar atividades 'espirituais' e 1ntcl1gentes .

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nscientes ou - conforme o discurso de Nietzsche na .. eO , , b . seçao irada sobre o querer, so re ter desejos não conscient e . . es, ou melhor, 1nconsc1entes. A distinção entre estados mentais conscientes e não conscientes tem também um papel na atual filosofia da mente e, de modo mais preciso, na pesquisa da consciência. Ela ocorre exatamente no instante em que algo 'entra em nossa consciêncià. Pois com isso se faz referência ao que vale como não consciente mental e ao que vale como um âmbito ou criatura sem consciência. Uma teoria satisfatória da consciência deve poder explicar essa diferença. 18 Segundo esse ponto de vista, faz sentido definir um 'estado mental consciente' como "estado mental, do qual nós somos conscientes" 1.9. No quadro dessa concepção alguns autores sugeriram, sobretudo David Rosenthal e de certo modo também Daniel Dennett, considerar um estado mental consciente (um desejo, por exemplo) como um estado mental, que é acompanhado e determinado por um "pensamento não consciente de ordem superior" (Rosenthal) ou, como na teoria de Dennett dos multiple drafts, através de um estado mental não consciente, ou seja, um processo de intencionalidade20. Nessas teorias se opera com uma forma determinada de

18

Cf. VAN GULICK 51, p. 80.

19

!d., ibidem.

°Cf. DENNETT 15; cf tb. ROSENTHAL 41, p. 423-438, em que

2

Rosenthal discute também sua relação com a posição de Dennett. Rosenthal imagina a situação seguinte: quando se deseja x, vem ao mesmo tempo o "pensamento", de que se deseja x. Essa visão contém um elemento claro, pré-consciente, mas de simultânea auto-referência. Pode-se vincular o modelo dos multiple drafts, de Dennett, com a visão hoje preponderante na pesquisa do cérebro, no que se refere 1 ocorrência emergente da consciência. Isso é visto como uma conseqüên-

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hierarquias de ordem, ou, seja, de organ~zação. ~om s,ua ajuconscientes record a devem ser explicados estados mentais . , rendo a 'estados mentais não conscientes. Esses modelos, mesmo que expostos à crítica, podem ser completamente incluídos no modelo do continuum. Caso se conceda ao âmbito mental pré-consciente e ao orgânico um papel decisivo e pré-formador também para os estados e processos mentais conscientes, explícitos, e se acrescente a reflexão de que a consciência mesma não está em condição de indicar uma 'causa objetiva' para sua própria origem - pois para isso a consciência, cuja origem deve ser explicada, já precisa ser pressuposta-, então se esboça o pano de fundo para a provocadora formulação de Nietzsche: "Para que em geral consciência, se ela é no geral supérflua?" (FWIGC 354). A resposta de Nietzsche a essa pergunta consiste na tese de que a consciência é "propriamente só uma rede de ligação entre homem e homem", e que ela teve de "desenvolver-se somente enquanto tal..." (FW/GC 354). Esse contexto será tratado mais detidamente na seção VI. Antes, no entanto, devem ser desenvolvidos dois outros aspectos: em primeiro lugar (seção IV), em que sentido o modelo do continuum pode ser complementado pelo modelo do processo; a seguir (seção V), em que sentido a perspectiva da organização funcional é de significação fundamental.

eia da co m bmaçao · - e d os e1e1tos e · recíprocos de formas de organização altamente complexas e de muitos componentes do cérebro interligados uns ' - espec1a · 1d a consc1en· . aos outros · Não se busca mai·s por um orgao cia, como a céleb_re glândula pineal, de Descartes, ou por um análogo moderno. Consciência n-ao aparece mais · como uma propneda · d e de parte especial do sistem a. N esse senti'do, nao - se parte mais . de um ponl'. to uxo ou de um lugar fir me d a conscienc1a. · A

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IV. O modelo do processo

l. Prioridade do modelo do processo em relação ao modelo da coisa Tendo em vista uma concepção não dualista da conexão entre orgânico e consciente, fisicalista e mental, é de grande importância que os 'elementos' da natureza e da vida não seja comados como 'coisas', no sentido de 'corpos materiais' . ,.,, ' que ocupam pos1çoes no espaço-tempo, mas como eventos ('Ereigrzisse'), ou seja, 'processos'. 21 Essa transição do modelo da coisa para o modelo do evento, do processo, é de grande importâ_ncia, no que tange à problemática da consciência, assim como à relação entre orgânico e consciente, entre o que é fisicalista e o que é mental. A situação do problema se altera sempre que se põe ao fundo ou o modelo da coisa ou o modelo do processo. No último caso, as chances para uma visão não dualista (nem dualista nem reducionista) são claramente melhores que na primeira perspectiva. Estados e processos mentais conscientes e não conscientes não podem ser concebidos segundo o modelo da coisa e seu paradigma dos corpos (Kdrper) materiais. O conceito nietzschiano de mundo, a saber, de natureza, pode ser caracterizado por meio da figura de efeitos cambiantes dinâmicos, altamente complexos, de variadas organizações de forças 'vivas' e 'inteligentes'. Na nova interpretação da realidade em Nietzsche, essas organizações de forças processuais são qualificadas como forças-da-vontade-de-potência. O sentido preciso dessa caracterização não é apresentado aqui em pormenor22 . Aponte-se somente para a dificuldade )

21 22

Acerca disso, confira ABEL 1, p. 157-185. Para uma apresentação minuciosa, cf. ABEL 6.

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de toda forma de filosofia do evento, do processo, qual seja, que a transição dinâmica de um estado a outro mais próximo não pode ser descrita e concebida nem no modo e no elemento do estado inicial nem em seu estado final. Isso diz respeito, do mesmo modo, à questão acerca do caráter de efetivação, a saber, do acontecer daquilo que ocorre, e também à questão acerca do 'vir-a-ser' processual, que na con.cepção nietzschiana de mundo e de natureza é de surpreendente significação. O mundo de Nietzsche é um mundo de objetos-processo. Deparamos nessa concepção com representações da física moderna. Com a recorrência aos desenvolvimentos das ciências em nosso século, tornou-se norteadora a concepção de que coisas/objetos são no fundo seqüências de eventos, os 'elementos' últimos do universo, que, por sua parte, não possuem mais o status categorial de coisas 23 . Próprio às estruturas microfísicas, embora designado ainda como partícula, ele é algo que dificilmente pode ser comparado aos corpos macroscópicos, ao paradigma da ontologia da coisa. Uma coisa/ objeto, no sentido da física moderna, é concebida como uma série de eventos ligados temporalmente uns aos outros, sendo de forma idêntica entre si. A identidade física das coisas particulares num espaço de tempo repousa, então, no tipo de identidade dos eventos envolvidos. A passagem do esquema da coisa para o esquema do evento, do processo, é possibilitada também sob os augúrios da filosofia da linguagem. No âmbito da filosofia de orientação analítica foram indicados, com os trabalhos prévios de Hans Reichenbach, sobretudo através de Donald Davidson, que a forma lógica de grande parte das proposições de nossa linguagem natural não pode ser construída como individualidade ge-

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Cf. ABEL 1, principalmente a p. 159 ss.

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uína sem a assunção de 'eventol24_ Isso d' . n ' 1 ... d .. " . iz respeito, por xemplo, as re açoes e sequencia temporal , l'd e , ... , a causa i ade à explicação ou a açao. Ao entendermos sentenças "P ' . como eter visitou Paul, e comemorou-se o aniversário prim · . d' ,, , eiro na casa, depois no Jªr, im , e pressuposto tacitamente em tal enten d'1. mento que ha eventos, ou sep, processos (visitas e festas de aniversário), e não somente coisas, em relação às quais algo ocorre.

2. Processo e sujeito A passagem ao modelo do processo tem conseqüências críticas não somente no que tange ao status e papel do conceito de 'coisa', mas também em face do sentido do discurso do 'sujeito'. Uma questão não desprezível é a de saber se nos processos sempre têm de ser pressupostos e admitidos também sujeitos dos processos, ou se é possível partir de processos sem sujeito, usando uma formulação de Nietzsche: os processos mesmos existem? 25 Diante do pano de fundo do modelo do continuum e em face da reflexão de que segundo Nietzsche, sempre está presente, representada, na consciência somente uma seção limitada da realidade, essa questão assume uma significação fundamental, em vista também da relação entre orgânico e consciente, entre o que é físico e o que é mental.

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Cf. REICHENBACH 39, § 48, p. 266-274, principalmente a p. 268. Por meio do operador existencial, ao qual a variável deve sua vinculaçã~ nas proposições referentes às ações e eventos, é vedado que proposições, como p. ex. aquela de G. H. v. ~right (W~IGH: 5~, P· 24), concebidas como proposições genéricas: Brutus be1JOU Cesar , p_ossam . . ser arnbuídas a quaisquer eventos. A esse go lpe de mestre de Re1chen, , · · Cf DAVIDSON I 4 p 117. Cf. tambem bach esta ligado Davidson. . ' · DAVIDSON 13, p. 164 ss.

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XII, 2(151).

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Com O surgimento da consciência entra em cena simultaneamente O eu, isto é, o sujeito da consciência. Esse é 0 efeito interno da circunstância de que eu sou isso que se encontra no respectivo estado de consciência, que eu sou isso na perspectiva da primeira pessoa, a quem os conteúdos da consciência estão disponíveis. Assim que 'algo entra na consciência', isto é, a consciência é 'consciência-de-algo' - e consciência é sempre consciência-de-algo, designada, portanto, por meio da intencionalidade -, é posto com isso, ao mesmo tempo, o eu, o sujeito da consciência. Esse eu se manifesta por meio do aspecto, com que eu poderia representar-me, classificar e ordenar também de outro modo o conteúdo da consciência. Através da recorrência ao modelo do evento/processo e da inclusão da figura dos eventos sem sujeito é possível também tornar compreensível os postulados: (a) de que o eu (sujeito) que surge no interior da consciência já depende de um amálgama de processos sem sujeito, e (6) que o estado e fenômeno da consciência repousa genealogicamente já sobre estados mentais não conscientes e, além disso, sobre processos e eventos não conscientes. Nessa perspectiva, poder-se-ia esclarecer que ambos os pontos de vista, tanto o eu, o sujeito da consciência (no sentido do pertencimento a mim, isto é, a uma detenninada pessoa) quanto a figura dos processos sem sujeito estão mutuamente implicados. Isso deve ficar mais claro no que segue. Em primeiro lugar, é importante que o eu, o sujeito da consc1enc1a entre em Jogo somente em virtude do surgimento da consciência. Ele não é considerado, contudo, como um eu_ (sujeito) já pré-consciente, determinado, fixo, estável e préex1stente, que, num sentido secundário, entre outras proprie?:des, p~ssui_tamb~m a de ter consciência e de guiá-la. Nessa visao, senam 1nvert1dos o condicionante e o condicionado. • A





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Seríamos levados à conclusão tentadora de ter de pressupor algo que per~anece ao fundo do tornar-se consciente, que rern consciência e é o portador da consciência, do pensar e dos pensamentos. Nesse c?ntexto, há de se lembrar da posião crítica de Kant, enfatizada em sua teoria dos paralogisç -- e' nen huma subsrnos, asa ber, que o eu do "eu penso" nao tantia cogitans objetivável, não é algo determinado. Ali já está a concepção, que é também a de Nietzsche. Kant concebia 0 eu como princípio daquele movimento, em que ocorre a determinação de objetos dentro dos limites da experiência. Nietzsche submeteu à crítica a importante vinculação, em sentido estrito, do 'eu' ao 'pensar', na célebre formulação kantiana do 'eu penso' (Jch denke). Ela culmina na ênfase no caráter de .processo, de evento desses fenômenos. A crítica de Nietzsche é bem sucedida, na medida que ele decompõe· aquele processo, que deve ser expresso na fórmula 'eu penso', em "afirmações desencontradas", cuja fundamentação, segundo ele, é "difícil, talvez impossível". São exemplos dessas afirmações: "que eu sou, aquilo que pensa, que deve existir em geral algo que pensa, que pensar é uma atividade e efeito por parte de um ser, pensado como causa, que ha, um ((eu", por fim, que já está assegurado, o que deve ser designado com o pensar, - que eu sei, o que é pensar" OGB/BM 16). Segundo Nietzsche, é uma ''falsificação dos fatos" dizer: "O sujeito 'eu' é a condição do predicado 'penso"' OGB/BM 17)26. Concluise aqui "segundo o hábito gramatical". A partir disso, pode-se prosseguir, na questão: "Não é possível substituir o 'eu penso' por um 'algo pensa' (es denkt)? Essa sugestão remonta a Georg Christoph Lichtenberg, que foi de grande importância como autor, para a concepção de

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Confira também JGB/BM 54.

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Nietzsche acerca das possibilidades e limites da linguagem27_ Nietzsche julga ser importante, não identificar esse "algo" com o antigo "eu". Em seguida, no entanto, ele enfatiza que "já com esse 'algo pensa' muito foi feito": "já esse 'algo' contém" - e desse modo se evidencia, além do caráter de processo, também o caráter de interpretação dos fenômenos _ "uma interpretação do processo, que não pertence ao processo mesmo" CTGB/BM 17). Nessa perspectiva, pode-se dizer, que o recurso ao caráter de processo subjaz sempre ao sujeito consciente e autoconsciente, designado com a palavra inde. l' eu.' xzca Se as funções do "eu penso", assim como as produções de unificação do pensar consciente podem ser concebidas, em sentido amplo, como ações, e se ações apresentam uma espécie de eventos/processos (não o contrário), então a palavra indexical 'eu' designa uma função, cujo argumento não é do tipo da coisa, mas do processo 28 . A função do eu pode ser construída, assim, como função do processo. Isso é igualmente importante em razão da retroversão esboçada do eu no esquema do processo, com a dissolução de um sujeito fixo, inerente a determinado portador. Essa dissolução do conceito de sujeito ocorre no retorno do sujeito da consciência em si mesmo, como sua conseqüência interna. Mais adiante mostraremos que, nessa linha, também se torna acessível a relação entre consciência e corporeidade (seção VIII) e a relação que Nietzsche designa como "si mesmo" (Selbst) do corpo, a saber, "a grande razão do corpo". (Za/ZA I. Dos desprezadores do corpo).

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Acerca disso, confira STINGELIN 50. Para uma apresentação mais detalhada, confira ABEL 1, p. 172-176.

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No plano lingüístico já se esclarece, na concep ~ d . b 'd çao os acessos como o bJetos o tt os através da nominalização d pr b . e encenças ver ais, que sentenças de processo não são mais vin~uladas a _um.suje~~º gramatical. Isso se mostra em expressões impessoais como x sucedeu, aconteceu, se passou". Fica claro isso também em sentenças como "relampeja" (es blitzt), "escala" (es knallt) ou "é tempo de degelo" (es ist Tauwetter). Não se trata de algo que relampeja, estala ou degela. Mas 0 que e quem é o sujeito de uma festa ou de um tempo de degelo, por exemplo? Perguntar "quem é o sujeito do evento?" significa reconhecer o aspecto já nomeado, qual seja, que os próprios eventos e processos existem. Com a pergunta "n, ' '-