Narrativas midiáticas contemporâneas. Epistemologias dissidentes
 9786599001253

Table of contents :
Apresentação
Marta Maia
Mateus Yuri Passos
Prefácio
Dione Oliveira Moura
I – Povos indígenas e disputas de sentido
O índio e os outros: apontamentos e contribuições sobre a invenção da
Amazônia na construção de uma narrativa dissidente
Alda Cristina Silva da Costa, Ivana Cláudia Guimarães de Oliveira, Lídia
Karolina de Sousa Rodarte e Nathan Nguangu Kabuenge
Memórias (re)configuradas e disputas de sentidos nas narrativas do
“Caminho das Missões”
Ingrid Bomfim Gonçalves e Larissa Conceição dos Santos
Legalize já! Narrativas sobre o garimpo ilegal em terras indígenas no portal
Roraima em Tempo
Maria Luciene Sampaio Barbosa e Vilso Junior Santi
II – Jornalismo, subjetividades e alternativas
A subjetividade como uma proposta de decolonização do jornalismo
brasileiro
Fabiana Moraes
Confinadas com seus próprios agressores: narrativas jornalísticas de
violências contra as mulheres no contexto da pandemia
Dayane do Carmo Barretos e Marta R. Maia
Narrativas midiáticas contra-hegemônicas: midiativismo e jornalismo
independente como condição de visibilidade
Tiago Segabinazzi e Jane Márcia Mazzarino
Narrativas jornalísticas no site Jornalistas Livres: as estratégias
argumentativas de seus narradores durante o impeachment da expresidente Dilma Rousseff
Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha
Cobertura de conflitos orientada para a paz: reflexões a partir da narrativa
de Bru Rovira
Tayane Aidar Abib
Os Vestígios da “Escola de Navarra” no Jornalismo brasileiro: primeiras
aproximações – o caso da Gazeta do Povo
José Carlos Fernandes e Myrian Del Vecchio-Lima
III – Imagens dissidentes
Atravessamentos da colonialidade de gênero nos blockbusters de
super-heróis
Letícia Moreira de Oliveira
Potências femininas: diversificação narrativa e desconstrução de
estereótipos nas personagens do filme Bacurau
Andriza Maria Teodolino de Andrade e Talita Iasmin Soares Aquino
“Um estuprador no teu caminho”: narrativas dissidentes do Chile para o
coração do mundo
Raquel Wandelli
Madame Satã: o sertão e a vida ordinária na poética de Karim Aïnouz
Márcia Gomes Marques e Iago Porfírio
Videoteratura como estratégia do telejornalismo: Um olhar epistemológico
sobre produtos das emissoras TV Globo e GloboNews
Cláudia Thomé e Marco Aurelio Reis
Atravessando fronteiras, desviando de abismos: narrativas de experiência
da realização de um festival de cinema no Oeste da Bahia
Hanna Vasconcelos, Michel Santos, Milene Migliano e Rafael Beck
#Favela: transformação social e disputas de visibilidade no Instagram na
era da cultura digital
Admilson Veloso da Silva
Humor, narrativa e história: A Constituição de 1988 nas charges da Folha
de S. Paulo
Paulo Henrique Soares de Almeida
IV – Literatura, jornalismo, artes e ressignificações
“Matem os monstros!”: reflexões sobre o punitivismo midiático ocidental
sob uma perspectiva decolonial
Vanessa Ribeiro do Prado e Victor Lemes Cruzeiro
Entre a loucura e o racismo: a construção da autorrepresentação em Lima
Barreto
Arthur Breccio Marchetto e Igor Oliveira Neves
História, dissidência(s) e estrutura(s) de sentimento: Estratégias narrativas
de Carlos Heitor Cony em crônicas contra o golpe militar de 1964
Maurício Guilherme Silva Jr.
Livro-reportagem e ethos compreensivo latino-americano: Um ensaio a
partir de Colômbia espelho América e As veias abertas da América Latina
Bruno Ravanelli Pessa
A história dos “ninguéns”: a narrativa decolonial em O livro dos abraços, de
Eduardo Galeano
Luiz Henrique Zart
Primeiro Comando: a transgressão sardônica das metanarrativas do MC
Zóio de Gato como arte contra-hegemônica
Victor Fermino da Silva
Análise do gênero “poesia documental” no Jornalismo cultural e literário
Andressa C. Monteiro
Narrativa ecológica: sintonizando texto, contexto e experiência
Agnes de Sousa Arruda e Tadeu Rodrigues Iuama
A sedução das fake news em tempos de COVID-19: anatomia narrativa e
pós-verdade
Fabiana Piccinin
Quem são os autores e as autoras

Citation preview

Organização

Marta Maia Mateus Yuri Passos

NARRATIVAS

MIDIÁTICAS

CONTEMPORÂNEAS epistemologias dissidentes

Santa Cruz do Sul 2020

Editora Catarse Ltda Av. Senador Alberto Pasqualini, 700/204 Bairro Verena Santa Cruz do Sul/RS CEP 96820-050 www.editoracatarse.com.br facebook.com/editoracatarse @editoracatarse Copyright© dos autores

N234

Narrativas midiáticas contemporâneas: epistemologias dissidentes [recurso eletrônico] / Organização Marta R. Maia, Mateus Yuri Passos - Santa Cruz do Sul: Catarse, 2020. 446 p. : il. Texto eletrônico. Modo de acesso: World Wide Web.



1. Narrativa (Retórica). 2. Jornalismo. 3. Comunicação de massa. 4. Jornalismo – Aspectos políticos. 5. Indígenas. 6. Estética. I. Maia, Marta. II. Passos, Mateus Yuri. III. Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas.

ISBN 978-65-990012-5-3

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Capa, projeto gráfico e diagramação: Mirian Flesch de Oliveira Revisão: Simone de Fraga Edição: Demétrio de Azeredo Soster

CDD: 808

CONSELHO EDITORIAL Ada Cristina Machado Silveira (UFSM) Ana Paula da Rosa (Unisinos) Antonio Fausto Neto (Unisinos) Ernesto Söhnle Jr. (Unisc) Eugenia Barichello (UFSM) Eunice Piazza Gai (Unisc) Fabiana Piccinin (Unisc) Fernando Resende (UFF) Gastón Cingolani (Universidad Nacional de las Artes – UNA – Argentina) Jairo Getúlio Ferreira (Unisinos) Jesús Gallindo Cáceres (Benemérita Universidad Autónoma de Puebla – México) João Canavilhas (Universidade de Beira Interior – Portugal) Jorge Pedro de Souza (Universidade Fernando Pessoa – Portugal) Mario Carlón (Universidade de Buenos Aires – UBA – Argentina) Marcos Fábio Belo Matos (UFMA) Natalia Raimondo Anselmino (Universidade Nacional de Rosario – UNR – Argentina) Pedro Giberto Gomes (Unisinos) Raquel Recuero (UFPel) Walter Teixeira Lima (Umesp)

SUMÁRIO Apresentação

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Marta Maia Mateus Yuri Passos Prefácio

11

Dione Oliveira Moura I – Povos indígenas e disputas de sentido O índio e os outros: apontamentos e contribuições sobre a invenção da Amazônia na construção de uma narrativa dissidente

14 15

Alda Cristina Silva da Costa, Ivana Cláudia Guimarães de Oliveira, Lídia Karolina de Sousa Rodarte e Nathan Nguangu Kabuenge Memórias (re)configuradas e disputas de sentidos nas narrativas do “Caminho das Missões”

31

Ingrid Bomfim Gonçalves e Larissa Conceição dos Santos Legalize já! Narrativas sobre o garimpo ilegal em terras indígenas no portal Roraima em Tempo

47

Maria Luciene Sampaio Barbosa e Vilso Junior Santi II – Jornalismo, subjetividades e alternativas A subjetividade como uma proposta de decolonização do jornalismo brasileiro

64 65

Fabiana Moraes Confinadas com seus próprios agressores: narrativas jornalísticas de violências contra as mulheres no contexto da pandemia

81

Dayane do Carmo Barretos e Marta R. Maia Narrativas midiáticas contra-hegemônicas: midiativismo e jornalismo independente como condição de visibilidade Tiago Segabinazzi e Jane Márcia Mazzarino

98

Narrativas jornalísticas no site Jornalistas Livres: as estratégias argumentativas de seus narradores durante o impeachment da expresidente Dilma Rousseff

111

Karolina de Almeida Calado e Heitor Costa Lima da Rocha Cobertura de conflitos orientada para a paz: reflexões a partir da narrativa de Bru Rovira

126

Tayane Aidar Abib Os Vestígios da “Escola de Navarra” no Jornalismo brasileiro: primeiras aproximações – o caso da Gazeta do Povo

141

José Carlos Fernandes e Myrian Del Vecchio-Lima III – Imagens dissidentes Atravessamentos da colonialidade de gênero nos blockbusters de super-heróis

159 160

Letícia Moreira de Oliveira Potências femininas: diversificação narrativa e desconstrução de estereótipos nas personagens do filme Bacurau

174

Andriza Maria Teodolino de Andrade e Talita Iasmin Soares Aquino “Um estuprador no teu caminho”: narrativas dissidentes do Chile para o coração do mundo

194

Raquel Wandelli Madame Satã: o sertão e a vida ordinária na poética de Karim Aïnouz

211

Márcia Gomes Marques e Iago Porfírio Videoteratura como estratégia do telejornalismo: Um olhar epistemológico sobre produtos das emissoras TV Globo e GloboNews

226

Cláudia Thomé e Marco Aurelio Reis Atravessando fronteiras, desviando de abismos: narrativas de experiência da realização de um festival de cinema no Oeste da Bahia Hanna Vasconcelos, Michel Santos, Milene Migliano e Rafael Beck

240

#Favela: transformação social e disputas de visibilidade no Instagram na era da cultura digital

257

Admilson Veloso da Silva Humor, narrativa e história: A Constituição de 1988 nas charges da Folha de S. Paulo

275

Paulo Henrique Soares de Almeida

IV – Literatura, jornalismo, artes e ressignificações “Matem os monstros!”: reflexões sobre o punitivismo midiático ocidental sob uma perspectiva decolonial

293 294

Vanessa Ribeiro do Prado e Victor Lemes Cruzeiro Entre a loucura e o racismo: a construção da autorrepresentação em Lima Barreto

315

Arthur Breccio Marchetto e Igor Oliveira Neves História, dissidência(s) e estrutura(s) de sentimento: Estratégias narrativas de Carlos Heitor Cony em crônicas contra o golpe militar de 1964

330

Maurício Guilherme Silva Jr. Livro-reportagem e ethos compreensivo latino-americano: Um ensaio a partir de Colômbia espelho América e As veias abertas da América Latina

346

Bruno Ravanelli Pessa A história dos “ninguéns”: a narrativa decolonial em O livro dos abraços, de Eduardo Galeano

359

Luiz Henrique Zart Primeiro Comando: a transgressão sardônica das metanarrativas do MC Zóio de Gato como arte contra-hegemônica

374

Victor Fermino da Silva Análise do gênero “poesia documental” no Jornalismo cultural e literário Andressa C. Monteiro

7

386

Narrativa ecológica: sintonizando texto, contexto e experiência

400

Agnes de Sousa Arruda e Tadeu Rodrigues Iuama A sedução das fake news em tempos de COVID-19: anatomia narrativa e pós-verdade

417

Fabiana Piccinin

433

Quem são os autores e as autoras

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apresentação

Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTEMPORÂNEAS: EPISTEMOLOGIAS DISSIDENTES Temos o imenso prazer em organizar o quarto livro-coletânea produzido no âmbito da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami), vinculada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo. São 44 autores e autoras, que escreveram os 27 capítulos reunidos neste livro (em formato e-book), que abordam diferentes noções hegemônicas presentes em narrativas da comunicação (ficcionais e não ficcionais), frequentemente pacificadas e normalizadas, que aqui são tensionadas e desafiadas. O grande número de pesquisas e reflexões sobre as narrativas da atualidade, com autores e autoras de todas as regiões do Brasil, indicam a premência desse tipo de estudo que, de certa forma, só ganha sentido se conseguirmos a reverberação e o compartilhamento do material aqui exposto. Para não cansar o/a leitor/a, resolvemos não comentar sobre cada capítulo individualmente, mas sim sobre os quatro tópicos que compõem o nosso Sumário. O tópico I, “Povos indígenas e disputas de sentido”, trabalha com as construções culturais em torno dos povos originários do território brasileiro, discussão mais pertinente do que nunca, visto a situação dramática vivida pelas comunidades indígenas nos últimos anos. O tópico II, “Jornalismo, subjetividades e alternativas”, ao mesmo tempo que questiona práticas conservadoras que limitam o fazer jornalístico, faz emergir novos modos de experimentação jornalística, com a forte presença do aspecto relacional e da empatia nesse processo. O tópico III, denominado “Imagens dissidentes”, além de desconstruir algumas imagens sacralizadas nos meios digitais e audiovisuais, também tensiona a questão de gênero em recentes produções audiovisuais. O IV e último tópico, “Literatura, jornalismo, artes e ressignificações”, afronta ideias conservadoras, ao trazer à tona novas perspectivas de abordagens no campo da estética e das recentes configurações narrativas nos mais variados suportes. A noção de decolonialidade perpassa boa parte dos capítulos, que questionam as construções de gênero, raça e classe, além da presença dos novos arranjos produtivos na criação e veiculação de narrativas. Configuram, assim, a preocupação com a desconstrução e superação das posturas colonialistas em seus aspectos culturais, ideológicos e epistemológicos.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Sabemos que as palavras não são suficientes para mudar o mundo, mas reconhecemos, por outro lado, o caráter acional da linguagem. Quem sabe não estamos precisando de estímulo para configurarmos outras realidades, outros modos de ser e estar no mundo, assim como aquela pichação estampada nos muros da França de maio de 68: “Sejamos realistas, façamos o impossível!”.

Marta Maia e Mateus Passos, em uma tarde quente, com ideias trocadas de maneira remota, cada um em seu computador, no período de pandemia. Outubro de 2020.

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prefácio

Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

SOBRE NARRATIVAS DISSIDENTES E O PODER DE EXIGIR DIGNIDADE HUMANA Narrativas e epistemologias dissidentes, como e por qual motivo surgem? Surgem como atos de vontade deliberada e de tônica individualista? Divergem por divergir, pelo gosto de causar rupturas ou surgem motivadas pela sócio-história? Seriam narrativas e epistemologias que se justificam e explicam-se em si mesmas ou existem pelo direito e poder de exigir dignidade humana? O que temos nesta potente coletânea Narrativas Midiáticas Contemporâneas: espistemologias dissidentes são pensares de contra-hegemonia, firmes na postura crítica a uma hegemonia dominante que prima pela manutenção de tais desigualdades, sejam de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, políticas e/ou econômicas. Vemos na obra, pois, epistemologias de resistência que eclodem no espaço público como formas alternativas de dizer e de construir a realidade. Um eclodir que nada tem de espontâneo (no sentido de sem causalidades), mas tudo tem de sócio-histórico (no sentido de estar situado entre atores sociais que atuam no tempo e espaço, inseridos em disputas de poder e de sentidos). Assim, ao lermos a obra, percebemos que construir narrativas desde epistemologias dissidentes é construir novos caminhos e alternativas para reduzir as desigualdades, para reequilibrar o jogo de forças que consegue manter uma significativa parcela da população mundial, e brasileira, excluída de múltiplas dimensões dos Direitos Humanos. Assim, leitora e leitor, convido para que você usufrua da oportunidade de leitura desta coletânea para rever a perspectiva dos Direitos Humanos como “faculdades de agir” e poderes de exigir”1. Para compreendermos, dessa forma, nas epistemologias dissidentes, pois, um caminho possível enquanto poder de exigir dignidade humana para cada um dos grupos, setores, comunidades, produtos midiáticos e linguagens 1 Nos valemos de Sarmento (2012), Doutor em Direito Público/UFPE, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito/UFAL para situar as gerações dos Direitos Humanos. Fonte: Sarmento, George. As gerações de direitos humanos e os desafios da efetividade, 2012. Disponível em: https://d1wqtxts1xzle7.cloudfront.net/55632962/ Geracoes__dos_direitos_humanos_e_os_desafios_de_sua_efetividade.pdf . Acesso em: 30 out 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

inovadoras que buscam reconstruir tais narrativas, espelhados nos ricos capítulos da obra. As epistemologias dissidentes aqui apresentadas passam tanto pelo poder de exigir os Direitos Humanos de primeira geração2 (liberdades públicas e direitos políticos), dos Direitos Humanos de segunda geração3 (direitos sociais, econômicos e culturais ) e, quanto mais, dos Direitos Humanos de terceira4 (direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos) ou de quarta geração5 (direitos da bioética e direito da informática). Afirma Sarmento (2012) que a teoria das gerações dos Direitos Humanos utiliza a conceituação de gerações como um metáfora para organizar os direitos humanos com uma mesma raiz axiológica, considera que os direitos humanos são complementares e intercomunicantes, assim como são, percebemos nessa obra da Renami, complementares e intercomunicantes as epistemologias dissidentes desenhadas na obra. Por fim, outro ponto alto da coletânea, além de permitir visualizar epistemologias dissidentes que cumprem o poder de exigir condições de dignidade humana, além de apresentar um retrato sócio-histórico das epistemologias contemporâneas dissidentes, quero destacar, é a capacidade de intercâmbios disciplinares que podemos ver nos textos. É riquíssimo como os estudos da obra trazem o saber-fazer (“savoir-faire”) de diversos campos disciplinares, tecendo uma leitura dinâmica a partir de contribuições dos estudos de linguagem, estudos de narrativa, Linguística, Comunicação, Jornalismo, Sociologia, estudos de Gênero, estudos Deocoloniais, História, Ciência Política e 2 Sarmento (op.cit., p.3) situa que os Direitos Humanos de primeira geração incluem as liberdades e os direitos políticos: “As liberdades públicas, também denominadas direitos civis ou direitos individuais, são prerrogativas que protegem a integridade física, psíquica e moral das ingerências ilegítimas, do abuso de poder ou qualquer outra forma de arbitrariedade estatal. Atuam na dimensão individual e protegem a autonomia da pessoa humana”. Os direitos políticos, por sua vez, “asseguram a participação popular na administração do Estado. O núcleo dos direitos políticos é composto pelo direito de votar (jus suffragi), pelo direito de ser votado (jus honorum), pelo direito de ocupar cargos, empregos ou funções públicas (jus ad officium) e pelo direito de neles permanecer (jus in officio). Consiste ainda no controle dos atos administrativos através de propositura de ação popular e do direito de filiação a partidos políticos.” 3 Prosseguimos com Sarmento (op.cit., p. 5), quando o autor pontua que “a 2ª geração [de Direitos Humanos] produziu direitos que obrigam a intervenção do poder público para assegurar condições básicas de saúde, educação, habitação, transporte, trabalho, lazer etc., através de políticas públicas e ações afirmativas eficientes e inclusivas. Do ponto de vista semântico as liberdades se inserem na categoria “direitos de...”, representada por prerrogativas individuais, enquanto a segunda geração é composta por “direitos à...”, pois implicam o poder de exigir do Estado o cumprimento de prestações positivas que garantam a todos o acesso aos bens da vida imprescindíveis a uma vida digna.” 4 Pontuamos com Sarmento (op.cit.,pp.8-9), que “os direitos [Humanos] de 3ª geração, também conhecidos como direitos de fraternidade, como foram batizados por Karel Vasak, ou direitos de solidariedade, como prefere Etiene-R. Mbaya, passaram a ser adotados nos textos constitucionais a partir da década de 60. Eles têm como a proteção de grupos sociais vulneráveis e também a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A defesa desses direitos depende sempre da atuação pro populo do Ministério Público ou de representantes da sociedade civil, sobretudo as organizações não-governamentais. Também pode ser exercida pelo cidadão nas ações populares.” 5 Finalizamos as referências das gerações, com Sarmento (op.cit., p. 11), quando o autor destaca que “a 4ª geração dos direitos humanos ainda não está plenamente configurada. As opiniões dos doutrinadores são divergentes em relação ao seu conteúdo. Muitos até discordam de sua existência. A polêmica foge aos propósitos dessa exposição. Apenas defendemos que ela se desenvolve em dois eixos: os direitos da bioética e os direitos da informática.”

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

Literatura, entre outros. São modos de saber-fazer que auxiliam a demonstração de que as narrativas dissidentes desta obra organizada pela Renami são também formas de politização, formas de agir político (não necessariamente no sentido político partidário), mas antes no sentido fundador de estar na pólis e nela configurar novos caminhos de cidadania. Assim, leitoras e leitores, ao prefaciarmos esta obra da Renami, convidamos vocês a verem como tais epistemologias dissidentes dialogam diretamente com os poderes de exigir do fluxo das quatro gerações de Direitos Humanos e nos ensinam mais uma vez (se não aprendemos como sociedade, a História se repete) o quanto a nossa população brasileira precisa resistir e reconstruir-se inclusive por meio das e a partir das epistemologias dissidentes. Em síntese, do mosaico relatado nesta importante obra organizada pelo competente trabalho de Marta Maia e Mateus Yuri Passos surgem fortes e potentes epistemologias dissidentes que formam um verdadeiro arquipélago de encorajamentos em prol da cidadania – desistir do que é justo, jamais. Boa e enriquecedora leitura!

Dione Oliveira Moura

Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC UnB) Diretora Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo (ABEJ). Brasília, outubro de 2020

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PARTE I

POVOS INDÍGENAS E DISPUTAS DE SENTIDO

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

O ÍNDIO E OS OUTROS: APONTAMENTOS E CONTRIBUIÇÕES SOBRE A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA NA CONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA DISSIDENTE Alda Cristina Silva da Costa Ivana Cláudia Guimarães de Oliveira Lídia Karolina de Sousa Rodarte Nathan Nguangu Kabuenge

Introdução De todos os territórios físicos e simbólicos existentes, parece-nos que a Amazônia é um dos lugares que ainda não conseguiram se libertar do pensamento colonial ou se impor a ele, seja negando as narrativas de viagem, as quais forjaram sua construção ao longo dos séculos, seja assumindo as narrativas dissidentes contra as leituras equivocadas com abordagens mais críticas a respeito do seu lugar no contexto regional, nacional e internacional. Para mudar esse estado de pensamento, é preciso reconfigurar as epistemologias de conhecimento da Amazônia, em que a resistência está em aceitar o pensamento endógeno e os saberes de suas populações na construção da sua história política, econômica, social e cultural. Ou, como bem diz Piza (2018, p. 113), “é o pensar a partir de e desde nossas origens. Ser original, em suma, é tratar daquilo que nos diz respeito como povo”. A autora nos convida a pensar em epistemologias mais situadas, com perspectivas que pensem desde a América Latina, mas com sentido para nós, de forma que “contribua para que vivamos melhor e para que possamos superar o que nos torna social, econômica e culturalmente subalternos em relação a outros povos e em relação a nós mesmos” (Piza, 2018, p. 113). Segundo ela, a prática da reprodução da narrativa ocidental leva à formação de uma subjetividade heterônoma e domesticada.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Assim, é mais que necessário, segundo Castro (2012, p. 9), mudar o estado de reflexões sobre a Amazônia, a qual precisa ser lida a contrapelo das narrativas opacas, ora privilegiando a região como verde ora como potencialidade econômica. Um jogo de representações, as quais se configuram, no mínimo, entre contraditório e ambíguo. Alinhamo-nos a essa perspectiva, materializando a tessitura deste texto, tendo como objetivo identificar o trabalho de Neide Gondim, pesquisadora amazonense, como uma relevante contribuição de cunho teórico, metodológico e cultural, na construção de uma narrativa dissidente amazônida. Seus pressupostos tomam como base as narrativas de viagem a partir da compreensão da inevitável oposição entre mundo novo e mundo antigo, tendo como arcabouço as sucessivas antíteses e polarizações, assim como as indevidas confrontações e comparações feitas pelos pensadores europeus na invenção da América. O imaginário será o elemento estruturante/estruturador desse pensamento, uma vez que ele é preconizado entre semelhanças e diferenças, aproximações e distanciamentos, animalização e endeusamento, fantástico e maravilhoso, natureza e cultura, mesmo quando a realidade se mostra outra e os fatos contradizem essa imaginação. A Amazônia tem sido o produto de interpelações diversas, que vão dos impactos das conquistas à mitologização da região, sendo o mito das amazonas um dos elementos mais marcantes no processo de definição da nova terra. Posteriormente, essa nova terra seria a região Amazônica, proveniente de um colonialismo que engendrou matrizes com estruturas de dominação, poder, saber e ser. Ou seja, com a construção do pensamento de anulação do Outro, reduzindo-o a um si-mesmo, construindo um encobrimento e opressão (Dussel, 1993). A partir daí, o olhar etnocêntrico do europeu quase sempre coincidia com a idealização impressa nos diários de viagens, endossados e citados como fontes fidedignas.  Nessa construção, a Amazônia será o mistério inventado pelos europeus, pois ela não foi descoberta. Vale dizer que o termo “descoberta” somente será utilizado com a chegada dos portugueses. Para o estrangeiro, ela é a mescla do início e do fim, o encontro dos opostos. Muitas vezes qualificada de terra sem história ou à margem da história, mesmo com uma vasta literatura produzida na atualidade (Dutra, 2009; Castro, 2012; Souza, 2019; Amaral Filho, 2016; Harris, 2017, entre outros). Esse sequestro da história de outros territórios e continentes se concretiza no encontro entre a cultura local e a civilização europeia. Na Amazônia, isso acontece até mesmo na configuração do próprio nome da região. Neide Gondim (2019) afirma que as histórias eram imaginadas muito antes dos europeus chegarem à América. As raízes estão nos relatos de viagens de Marco Polo (leitor das Maravilhas de Alexandre, o Grande) e diversos outros viajantes que existiram muitos séculos antes da chegada de Colombo à América, influenciando diretamente a percepção que os europeus teriam desse encontro.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes É importante lembrar que o pensamento dualista europeu, aprofundado por Descartes, durante o Renascimento, propiciou uma radicalização da separação sujeito/ corpo, estando o primeiro no domínio da razão, do discernimento e de tudo o que nos torna humanos; e o segundo no da natureza, dos objetos e, portanto, incapaz de raciocinar e produzir conhecimento por ele mesmo. Foram esse cenário e esse modelo de pensamento que tornaram possíveis a elaboração, naquele período, de questões científicas ligadas às raças (Quijano, 2005) e também a classificação de algumas raças como inferiores ou superiores. As primeiras seriam incapazes de raciocinar e as últimas, responsáveis por levar racionalidade e civilidade às demais. Esse processo tornou-se um argumento para legitimar a dominação das primeiras sobre as últimas. Além disso, eles configuraram uma nova perspectiva temporal da história do mundo, colocando o encontro com a Europa como clímax, ápice e ponto de virada na narrativa rumo à modernidade. As respectivas histórias dos outros povos ficariam relegadas a um passado cujo destino seria a civilização europeia. Todos esses aspectos são elementos centrais na avaliação do livro “A invenção da Amazônia”, corpus desta pesquisa, a partir de uma análise crítica, com foco em dois pontos principais: resistência às narrativas de viagem na construção teórica sobre a Amazônia e apontamentos críticos na elaboração de uma narrativa dissidente amazônida, especificamente na interpretação ideológica de um território, sobre o qual se configurou um imaginário estereotipado que se perpetua até os dias atuais, sendo muitas vezes reproduzido pelos próprios amazônidas. Na comunicação, a dissidência é compreendida, conforme Wainberg (2015), como o rompimento de silêncio e o enfrentamento das ideias que são ou aparentam ser hegemônicas. A obra pesquisada ganha maior relevância por ser resultado de uma geração pioneira de intelectuais da região, de que fez parte Neide Gondim, a qual problematizou o olhar sobre a Amazônia1. Gondim nasceu em Manaus, formou-se na primeira turma de Letras da Universidade Federal do Amazonas em 1968. Tornou-se mestre em Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, em 1982, e teve doutoramento em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo, em 1992. Foi docente da UFAM em Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, com ênfase em Literatura do Amazonas2. 1 Na presente pesquisa foi realizado um levantamento preliminar (buscadores na internet) onde a autora é citada em dissertações e teses sobre a Amazônia. Identificamos 514 resultados. No refinamento da busca, foi constatada a presença da obra de Neide Gondim, como literatura obrigatória nos programas de pós-graduação da Universidade Federal do Acre (UFAC), Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Universidade da Amazônia (PA), Universidade de Brasília (UNB); e  em trabalhos científicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), FIOCRUZ (RJ), Universidade Federal do Goiás (UFG) e Universidade Paris-Sourbone.   2 Publicou as seguintes obras: A bolsa amarela – uma interpretação psicanalítica (1981); Simá, Beiradão e Galvez, imperador do Acre (1996); Do paleolítico ao moderno: Mad Maria (1998); A Amazônia de Jules Verne (1998 e 1999); O Nacional e Regional na prosa de ficção do Amazonas (2002); A contribuição portuguesa para a literatura do Amazonas (2005).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Lançada em 19943, “A invenção da Amazônia” parte da ideia de que a imagem da região foi forjada no século 16, mesmo considerando dados arqueológicos que comprovariam a existência de povos há pelo menos 11 mil anos (Neves, 2016), através da produção dos relatos das viagens expansionistas da Europa. A construção social da Amazônia começa enredada em mitos e fábulas de mistério e riqueza e repousa até hoje na reificação dessas narrativas que se acumulam sobre ela. Assim, a periferia exótica do Velho Mundo apontada por Gondim em sua pesquisa documental se transforma numa construção ideológica nunca abandonada pelo imaginário sobre a região, reforçando expressões estereotipadas. A obra está dividida em quatro capítulos, com a finalidade de demonstrar de que maneira e por quais artifícios a Amazônia teria sido inventada: o primeiro e segundo capítulos constatam a primeira visão da Amazônia, oferecida pelos cronistas e viajantes, posteriormente utilizada como verdade científica; no terceiro e quarto capítulos, a autora apresenta a temática racial, as relações entre natureza e progresso, guerra, inclusão do território como fornecedor de produtos regionais – a borracha – ao mercado de consumo europeu e norte-americano. Os europeus Júlio Verne, Conan Doyle e Vicki Baum vão descrever a Amazônia com olhos de artista, perspectiva que, segundo Gondim, vai se contrapor às percepções sedimentadas pelo dualismo inferno/paraíso projetadas nas obras teóricas e nas narrativas dos viajantes. A narrativa dissidente apresentada por Gondim é um desafio endógeno ao olhar e às ideias que estigmatizaram a região, subjugando-a a uma incapacidade de desenvolvimento pleno pelos amazônidas, com uma representação hiperbolizada e fantástica e apelo sedutor à fauna e flora. O território não nos pertence. Não somos donos nem da história nem do lugar, pois sempre alguém fala por nós. E o mais grave é que até o mundo da vida foi colonizado, em referência a Dussel (1993), pois orientou nossas percepções e constituiu um outro imaginário diferente das realidades vividas, pois o europeu configurou em aproximações com os outros lugares. Um imaginário, que, segundo Ponte (2000, p. 167), “se impõe historicamente como modus de autodefinição e de dizer o que imaginamos ser e desejar ser”. Gondim questiona essas narrativas do conhecimento produzidas, e aponta a rica produção dos pesquisadores e cientistas da Amazônia, como ela própria, que enfrentam a tempos este modelo, oferecendo outra reflexão que se forma nos saberes e sujeitos amazônidas. A epistemologia “inventada” Gondim aponta que o pensamento ou argumentação que conduzirá as narrativas sobre a Amazônia tem início com a visão de antimundo de Colón e Vespucci para ser contraposto em seguida pelas narrativas e por Carbajal, com observações político3 A primeira edição é assinada pela editora paulista Marco Zero e as duas seguintes (2007 e 2019) têm o selo da amazonense Valer. Na segunda impressão, há uma homenagem ao carioca Joãozinho Trinta, que se inspirou na obra para desenvolver o enredo “Brasil, visões de paraísos e infernos”, da escola de Samba Viradouro, no carnaval do ano 2000.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes -estratégicas, visão bíblica e medieval da busca do paraíso terrestre. Assim, partimos do “caos” como um dos fenômenos que o cérebro humano não suporta. Para lidar com ele, o cérebro se mobiliza para organizá-lo a fim de dar um sentido e significado ao amontoado de coisas sem forma nem conteúdo na aparência. O humano organiza tudo a seu redor no intuito de interpretar e compreender o propósito de cada coisa disponível no seu mundo cósmico. É nesse sentido que enquadramos as narrativas dos viajantes sobre a Amazônia, as quais tinham como objetivo organizar e possibilitar a objetivação capaz de ser captada pela lógica da razão europeia. Assim, se o europeu não criou o território chamado hoje de Amazônia, ele ao menos o “descobriu”. Uma descoberta que soa como organização do caos encontrado em vastos territórios povoados. Desse modo, os europeus — através do encanto demiúrgico e não entendendo distintos modos de vida — chamaram os nativos de índios e ignorantes e os territórios, de Amazônia. Em Ricoeur (2010), somente a partir da narrativa é possível organizar o suposto caos encontrado. É ela que dá sentido à vida, ao mundo circundante e ao tempo; e este último torna-se humano na medida em que não é cronológico, mas simultaneamente psicológico, não tendo início nem fim, mas funcionando numa espiral, em que o seu fim pode ser o seu início e o início, o seu fim. É nessa circularidade em que estamos pensando a racionalidade do olhar europeu, que considerou os “índios” como incognoscíveis e incaptáveis, além de classificar todo o saber fazer e o fazer saber como não-conhecimento. Esse olhar, de forma romântica, chamou de civilização condenar as crenças e obrigar a professar a mesma fé europeia, além de vestir o homem do Velho Mundo como o conquistador. No pensamento dusseliano, o ameríndio não foi descoberto, mas encoberto por um mito “descobridor, conquistador e colonizador da alteridade do ameríndio” (Dussel, 1993, p. 8). O colonizador lançou mão de uma narrativa sem narratividade, baseada no tempo não humano, sem articulação com a realidade cósmica e psicológica dos “índios” que pretendiam representar. Uma narrativa — hoje conhecida como “narrativas de viagem” — tem o mérito, na lógica europeia, de homogeneizar e padronizar os diferentes através de uma dialética ou oposição, que, ao mesmo tempo, oculta e desoculta os acontecimentos e fenômenos. Em síntese, saberes e práticas desaparecem fazendo surgir o que Santos (2016, s/p) denomina de cinco monoculturas do pensamento moderno: a monocultura do saber, que cria o ignorante; a do tempo linear; a da naturalização das diferenças, a qual vai legitimar a classificação do inferior; a do universalismo abstrato, que trata o local como irrelevante; e a dos critérios de produtividade capitalista, decretando o improdutivo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Nessa perspectiva, a Amazônia foi apresentada, por exemplo, como inferno e paraíso; e os indígenas como selvagens bons e canibais; trabalhadores e preguiçosos. Assim, o problema das “narrativas de viagem” foi apresentado na obra de Gondim (2019), baseado em um tempo cronológico de objetivação de acontecimentos e fenômenos: a Amazônia foi “descoberta” e os “índios” foram civilizados e evangelizados com a chegada dos portugueses e espanhóis. A objetivação dos acontecimentos foi marcante na colonialidade da cultura, do poder e saber, impondo a sociedade ocidental como modelo, dominação e objetivação, um eurocentrismo epistêmico (Quijano, 2005; Mignolo, 2017). Os processos de colonização também foram uma colonização do mundo da vida dos sujeitos, “[...]o ‘modo’ como aquelas pessoas viviam e reproduziam a vida humana. Sob o efeito daquela ‘colonização’ do mundo da vida se construirá a América Latina” (Dussel, 1993, p. 43). Os sentidos e significados (des)construídos da Amazônia, apontados por Gondim (2019), encontram, nas “narrativas de viagem”, uma profusão da colonialidade cultural, do poder e saber, já que tudo passou a ser explicado e compreendido através do pensamento europeu, baseado em um binarismo interpretativo. Tal binarismo mostra hoje o seu poder corrosivo quanto à dignidade e imagem do homem, que passa a ser dominado por outro homem, o qual o considera essencialmente como um “Isso” no sentido buberiano de “coisa”, ou seja, como um mero objeto de disputa. Portanto, essa cultura que caracteriza a Amazônia contemporânea nos pede uma compreensão da comunicação como condição de interação, pela necessidade de interpretação que a narrativa oferece. A partir do pensamento de Buber (2003), percebemos as amarras das “narrativas de viagem”, quando consideram o “índio” somente como um “Isso”, sobre o qual experimentam-se hipóteses e formulam-se teorias, que no fundo buscavam mostrar como o indígena era diferente do europeu, reduzindo a condição desse indivíduo, desprovido de razão; portanto, somente um corpo. Segundo Quijano (2005), foi somente a partir da objetivação do “corpo” humano como “natureza”, que começou, no século XIX, a ser teorizada a “raça” e a inferiorização de todas as “raças” não europeias, já que estas últimas eram consideradas como corpo/natureza humana, o que implica dizer que os “índios” eram incapazes de raciocínio. Assim se deu, na história da humanidade, a dominação “racial” do europeu sobre o não europeu. Uma dominação, em Buber (2003), sinalizadora da instrumentalização do estar junto ao indivíduo, já baseado no “Eu-Isso”, mundo de experiência; e não no “Eu-Tu”, considerado como o mundo intersubjetivo ou de relação pelo autor. Ao retomar os aspectos centrais das “narrativas de viagem” na perspectiva de Gondim, é necessário primeiro apontar o lado instrumental que objetivava o “índio” enquanto “Isso”, desconsiderado na lógica demiúrgica europeia. Em outras palavras, o “índio” só será apresentado nessas narrativas para confirmar, muitas vezes, as hipóteses da superioridade do europeu sobre o não europeu. Em segundo lugar, a

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes partir de uma abordagem narrativa, percebe-se a atualidade do caráter dissidente da obra, que ainda tem o que nos dizer sobre a Amazônia de hoje e da existência onto-hermenêutica de seus povos em suas diversidades e humanidades.

As expectativas: um problema de interpretação Vamos encontrar em “A invenção da Amazônia” uma crítica da autora sobre a obsessão do colonizador em concretizar suas expectativas na busca do paraíso na terra, ressaltando como resultado a interpretação estigmatizadora da floresta como entidade fantástica e da representação de seus povos como preguiçosos, indolentes e incapazes, estereótipos ainda hoje reforçados pelo sistema capitalista. Inicialmente as Índias que os europeus buscavam “representava o sonho sempre perseguido de viver eternamente” (Gondim, 2019, p. 27), em um refúgio que estaria livre das dificuldades pelas quais o continente europeu passava naquele momento, como a fome, a peste e a miséria. O imaginário construído em torno desse sonho era a busca por um paraíso na terra, um lugar onde seria verão o ano inteiro, as árvores não cessariam de dar frutos, os rios seriam fartos e essa fartura seria garantida sem grandes esforços. Diante da exuberância da fauna e da flora da região, o europeu teria muitas vezes opiniões e reações contraditórias, que poderiam ser “utilitaristas, edênicas, europocentristas, ambíguas, benevolentes, infernistas” (Gondim, 2019, p. 77). A dependência que esses exploradores tinham da população local, seja para locomoção seja para manutenção do próprio sustento, causaria reações desagradáveis, uma vez que se considerava superior em todos os aspectos. A impossibilidade de sobreviver sozinho na floresta despertava rancores e incômodos, traduzidos em diversos trechos retratados por Gondim (2019), nos quais os indígenas eram vistos como estorvos, comparados a animais e frequentemente incompreensíveis em seus costumes, avaliados como bárbaros e selvagens. Reafirmamos que os cronistas que narraram e escreveram sobre os nativos da região contribuíram ativamente no processo interpretativo da cultura com a qual se confrontaram, compreendendo aqui a interpretação como um processo ativo (Ricoeur, 1990), comparativo, dependente principalmente da bagagem daquele que interpreta. Essa bagagem já vinha carregada de sentidos que se chocaram com a realidade propiciada pela revelação da Amazônia. De acordo com Márcio Souza (2019, p. 87), o que se passou foi “uma verdadeira colisão cultural, racial e social, como em toda a América Latina, provocou as mesmas contradições que se repetiram ao longo do caminho da empresa desbravadora”. Até então os europeus tinham experienciado contato com a tradicional cultura do Oriente, porém não na proporção do choque passado na Amazônia. Souza (2019, p. 88) ressalta que esse choque se mostrou crônico, podendo ser observado pelos relatos que mostram uma “incapacidade de reconhecer o índio em sua alteridade”. Incompreensão repetida até os dias atuais, em que esse

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes imaginário ganha nuances do passado e presente. As construções que permitiram o nascimento e popularização desse imaginário pelo mundo são o ponto de virada de Gondim (2019), em sua narrativa dissidente, sobretudo ao identificar aspectos da denominação de selvagem e bárbaro na cultura e na aparência das populações nativas das Américas. Ao retratar em descrições a fauna e a flora, e até mesmo as pessoas, os europeus buscavam referências na bagagem semântica e linguística que já tinham. Por isso, não conseguiam retratar precisamente o que viam e as descrições eram todas feitas por aproximação, carregadas de imprecisão e expectativas. Imprecisão pela ausência de vocabulário adequado e expectativa pela vontade de a realidade imaginada ser tal qual a realidade encontrada. Essa expectativa, segundo Gondim (2019), foi responsável por gerar boa parte das lendas propagadas sobre a Amazônia, que tinham como base as mitologias produzidas na e pela Europa, tanto as da Grécia Antiga quanto as oriundas das escrituras cristãs. Por isso era comum encontrar um descompasso entre realidade presenciada e a expectativa dos narradores. A autora afirma que essas contradições eram minimizadas “por fatos mais plausíveis que os consagrados na cristandade” (Gondim, 2019, p. 37). Ou seja, sempre era possível encontrar uma justificativa para uma contradição evidente, não sendo possível admitir que a voz da razão civilizatória europeia estivesse errada. Construções que se assemelham ao pensamento de Quijano (2005), ao discutir as bases do mundo globalizado atual, foram plantadas no período da expansão marítima europeia, evidenciando que até hoje somos, na América Latina, vítimas de distorções de nossa própria imagem, pois olhamos para nós mesmos com lentes que não são nossas, buscando uma imagem também não nossa. Piza (2017) reforça a necessidade de avançar nos debates e reflexões, porquanto não se pode reproduzir ou fortalecer regimes de verdade, reforçar consensos, pois assim a “reprodução pura e simples de Filosofia é antiética e produz uma submissão e uma ausência de soberania que afeta não apenas a Filosofia, mas nós mesmos como sujeitos” (Piza, 2017, p. 1006). Logo, essa prática inaugura um círculo vicioso, o qual resulta em ausência do pensamento de uma epistemologia situada. O olhar exógeno sobre a Amazônia se legitimou por meio da escrita dessas narrativas de viagem, que construíam um imaginário a perdurar por séculos, como aponta Gondim (2019) na terceira parte de seu trabalho, ao discutir como a Amazônia seria revisitada por ficcionistas europeus, como Júlio Verne, Conan Doyle e Vicki Baum. Porém, muito antes deles, no período medieval, temas como as monstruosidades corporais dos habitantes das índias e a exuberância da fauna ganharam popularidade, tanto nas tradições orais quanto por meio de manuscritos compartilhados entre as pessoas. As artes da época, sobre os habitantes do mundo não-europeu, passavam pelo que os artistas imaginavam e ouviam sobre monstros, raças e espécies estranhas, também

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes por crenças da sociedade europeia e valores cristãos regentes daquela sociedade, de sua forma de conduta e seu imaginário. Essas histórias fantásticas, carregadas de elementos míticos, na contemporaneidade podem parecer inverossímeis, porém eram compatíveis com os anseios e expectativas que os europeus tinham na época sobre o que pensavam ser as Índias. Gondim (2019, p. 43) ressalta que elas se tornavam ainda mais verossímeis, porque tinham “o apelo do testemunho ocular”. Muitos autores, conhecidos e/ou invisíveis, foram importantes para construir esse tecido imaginário que revestia as histórias de simbolismo, fazendo sentido para a sociedade da época, a qual encontrava correspondência de significados na sua linguagem, crença e cultura.

O antimundo e os sentidos produzidos Em sua narrativa dissidente, Gondim (2019) escolhe, num primeiro momento, a denominação antimundo para se referir a esse novo território confrontado pelos europeus. Entendemos aqui que o prefixo anti significa contrário. Portanto, antimundo seria a antítese do mundo, expressão que traduz o que a alteridade indígena confrontada significava para a civilização europeia da época. O mundo encontrado por Colombo não seria considerado ainda um Novo Mundo e sim um contrário, um mundo oposto, cujo referencial era o mundo europeu. O antimundo é um universo novo na prática, mas não na imaginação. Já havia uma mitologia existente, adaptada e imputada a ele; por isso, quando encontrado, ele foi sendo interpretado por meio dos relatos dos viajantes através de lentes do “mundo civilizado”, que encontrou, no seu antimundo, uma alteridade radical (Peirano, 1999). De acordo com Peirano (1999), essa alteridade radical se enraíza no exotismo, que se constitui no tipo mais distante, mais difícil de se apreender. Por isso havia a necessidade de facilitar, fincando as bases do novo no antigo, “assegurando a essa sua supremacia” (Gondim, 2019, p. 49), uma estratégia chamada pela autora de familiarização do exótico, que consiste na comparação das novidades com referenciais já conhecidos, domesticando o olhar. Tais reflexões remetem à sociologia de emergências de Santos: “A narrativa, mesmo quando se trata de uma narrativa histórica, subverte a lógica temporal ao produzir um efeito de sincronicidade e de contemporaneidade que ajuda a tornar o estranho em conhecido e em contemporâneo o que é distante no tempo” (Santos, 2019, p. 94), apontando dessa forma o fortalecimento do antigo que adquire um caráter documental estável. Essa estratégia de aproximação descritiva e conceitual é apresentada em vários exemplos pela autora amazonense, do novo com o familiar, como nas cartas de Colombo de Américo Vespucci, em que todos os elementos da natureza eram comparados com outros encontrados na Espanha ou na Índia.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Colombo oferece um dos primeiros relatos sobre o contato com o antimundo por meio de um Diário de Viagem, no qual demonstra um deslumbramento com o que encontra e a busca pelo jardim do Éden na terra. Mesmo não o encontrando, recusase a aceitar que ele não exista. Contudo, essa busca vai influenciar toda a visão que Colombo irá construir sobre o nativo. Na narrativa de Gondim (2019), o navegador vai fazer um esforço para embranquecer o nativo, torná-lo mais belo e mais próximo do ideal europeu. Isso ocorre na medida em que ele julga se aproximar do paraíso terrestre. Essa visão idílica de Colombo diviniza o nativo e, assim, torna-o aceitável só por ser cristão. Uma visão similar à de Colombo será a de Montaigne, o qual também considera que os europeus tenham encontrado “o paraíso na terra sem deidades” (Gondim, 2019, p. 81). O filósofo configura uma República idealizada, superior à proposta por Platão em muitos aspectos, considerando-a intocada pelas máculas sociais que corrompiam na época a sociedade europeia. Neide Gondim (2019) evidencia o aspecto autorreflexivo da trajetória narrativa de Montaigne, que identifica costumes também bárbaros dentro da própria sociedade europeia. Todavia, profundamente influenciado por suas próprias crenças e valores cristãos, ele — mesmo reconhecendo na cultura autóctone tradição e dignidade — nega ao nativo o valor reflexivo e crítico, pois crê em um autóctone sem vontade própria, sem consciência de si. Essa visão idílica, de um Adão imaculado, belo e europeizado não se estende aos demais cronistas que Gondim (2019) analisa. Porém representa uma parte do pensamento crítico, que se formou na sociedade europeia da época, principalmente entre os letrados. O oposto complementar desse imaginário era bastante disseminado nas narrativas orais e também nas escrituras compartilhadas no final do período medieval e ao longo da Renascença. Esse era o imaginário do selvagem, que se configurava na alteridade mais distante e incompreensível para a sociedade civilizada, a qual possuía uma simbologia e iconografia própria, sendo retratado por diversos cronistas da época, que iam acrescentando mais elementos à medida que seus escritos ganhavam notoriedade entre o público da época. Segundo Gondim (2019), a construção do tipo selvagem foi empreendida a várias mãos e é principalmente percebida na análise dos relatos de Vespucci e Buffon num primeiro momento. Posteriormente, outros viajantes e críticos do período Iluminista irão assumir essa narrativa. Assim, o “Homem Selvagem” adquiriu uma iconografia própria, que atendia às expectativas da sociedade europeia, envolvendo pelos, nudez e, por vezes, uma relação simbiótica com a natureza, misturando troncos de árvores e folhagens e/ou corpos disformes. Além dessa aparência, era esperado um determinado tipo de comportamento desse selvagem. A ideia de selvageria acompanhava comportamentos insanos, raivosos, dotados de inabilidade de comunicação e irracionalidade no cultivo da terra.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Vespucci, ao aplicar filtros interpretativos da sociedade europeia, não compreendia a falta de compromisso dos indígenas com regimes políticos ou com seitas religiosas, a desmotivação para guerrear e o desinteresse em acumular riquezas; comportamento que, por não encontrar paralelo na cultura europeia, foi apontado como exótico. O nativo é julgado, ainda na composição da iconografia do selvagem, por seus rituais antropofágicos, pelo liberalismo das práticas sexuais e a libidinagem das mulheres, classificados como práticas bestiais. A condição de selvagem seria curada pelo aculturamento, pela mudança no ambiente hostil habitado por esse homem no antimundo, pelo contato com a civilização. Ela também foi uma forma de afirmar a supremacia da própria raça, enquanto nivelava o outro, novo, ao animalesco e, assim, na crítica dissidente de Gondim (2019, p. 69) “exorcizava o novo, o que o amedrontava, o que o obrigava a reconhecer a inoperância do seu conhecimento, a sua inferioridade” Nas descrições de Buffon, discutidas por Gondim (2019, p. 89), por exemplo, o nativo aparece como um intruso em meio à natureza, o qual acaba sufocado por ela: “Autômato achatado sob um clima adverso, nômade, sem vontade própria, sem sociedade, o nativo não é anão, é um híbrido, algo intermediário entre o réptil e o vegetal que o camufla (...) Mal constituído, não tem o tamanho nem a vitalidade da fauna que o sufoca porque é um híbrido, quase que produzido espontaneamente”. A autora reflete, a partir da análise desses relatos, sobre a evolução dessas narrativas, que foram avançando, renovando-se e acomodando discursivamente de acordo com os eventos que aconteciam na Europa, tanto política quanto científica e economicamente.

O Novo Mundo e o jogo de inclusão e rejeição Com a chegada do chamado Século das Luzes e a modernização científica, acompanhada de novos valores sociais, houve também uma atualização de reflexões acerca dos habitantes do não mais antimundo, mas Novo Mundo, que passava a fazer parte dos questionamentos, pesquisas e da procura pela verdade e felicidade dos pensadores do século XVIII. As narrativas do Novo Mundo eram tecidas num jogo de inclusão e rejeição. Incluir o “novo” significava “reconhecer automaticamente o envelhecimento do velho” (Gondim, 2019, p. 91), porém não se poderia prescindir do controle sobre esse novo território, incluir era necessário. A solução encontrada foi a inclusão de forma diminuída. Surge um “novo” degenerado, vivo e verdejante, porém igualmente insalubre e infernalmente paradisíaco, comparado a um “velho” que significa autoridade pré-existente. O “novo” infantiliza o território colonizado. Essa visão é percebida por Gondim

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (2019) nos trechos dos relatos de La Condamine, que inaugura um novo período da história da colonização no continente, realizando a primeira viagem de cunho científico na região. Ele aponta os selvagens como bestas que estavam ainda na infância do mundo, cujo estado de maturação era referenciado pela própria Europa. O narrador compreendia o nativo como um coitado, privado de toda educação e cultura, abandonado em estado natural. Sobre os idiomas dos indígenas, ele também os considerava pobres, carentes de palavras, as quais expressassem ideias complexas ou traduzissem os ideais considerados importantes para a sociedade da época. Os relatos de La Condamine refletem ainda que a fartura estava associada à preguiça, teoria repetida nos relatos de Aldred Wallace, Spix e Martus. No mapeamento das narrativas empreendido por Gondim (2019), chama a atenção a força das ideias preconcebidas do que é considerado evoluído, necessário, importante e desenvolvido. Em trechos de Spix e Martius, trazidos à luz pela autora, eles descrevem os indígenas como pouco evoluídos e sem ambição, “uma raça de gente que, não por orgulho, mas por indiferença e indolência, detesta todas as peias duma civilização” (Spix, 1081 apud Gondim, 2019, p. 134) e que, apesar de possuir um germe de desenvolvimento, não o deixa se desenvolver, por preguiça e desinteresse. Eles enfatizam ainda que apenas a fome e a sede imediata lembram os nativos das necessidades da vida, as quais, saciadas, levam ao ócio sem finalidade. Eles criticam todas as formas de subjetividade, construção de vínculos, sociabilidades e laços, que regem o comportamento das populações nativas, como a dissolubilidade do matrimônio, a construção de laços de afeto, a guerra, as relações de trabalho, entre outros. Todas as críticas são baseadas em critérios comparativos de civilidade da sociedade europeia. Segundo Gondim (2019), o europeu procurava um paraíso civilizado a seu gosto. Sua análise ganha mais força pelo volume de dados e relatos que reforçam essa ideia, como os trechos de Alfred Wallace, o qual coloca os nativos como culpados por sua própria degeneração, sendo compreendida como degeneração o desinteresse pela adoção dos valores do colonizador. Os relatos chegam a abordar o fato de que os nativos manifestavam profundo desinteresse pela segurança civilizatória, preferindo se abandonar ao ócio, a uma vida improdutiva e à preguiça atávica que lhes era própria e impedia o desenvolvimento das potencialidades da terra. Nos dois últimos capítulos de sua obra, Gondim (2019) passa dos relatos dos viajantes para análises de obras literárias que têm a Amazônia algumas vezes como ambiente e outras como personagem. As três obras analisadas são: “A jangada”, de Júlio Verne, que data de 1881; “O mundo perdido”, de Arthur Conan Doyle, lançado em 1912; e a “A árvore que chora”, de Vicki Baum, que teve sua primeira publicação em 1943. A autora também faz menção — além de comparações — ao trabalho de Euclides da Cunha, sem analisar sua obra, porém a cita como referência, especialmente ao tratar do conceito de nação.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Percebemos, a partir da análise de Gondim (2019) sobre essas três obras, que predomina a visão quimérica, onírica e selvagem da Amazônia. Desses relatos, os autores da literatura extraem a geografia e a orientação no espaço, assim como suas ideias preconcebidas sobre o clima e a população local. A floresta permanece sendo a região de encantamento, onde tudo é possível e na qual o autóctone encontra-se na infância do mundo. Ele é retratado novamente como indolente e, portanto, excluído da noção de progresso que os autores formulam. Na análise do trabalho de Júlio Verne, Gondim (2019) encontra uma certa tensão entre permanência e avanço. O autor busca continuamente justificar o sacrifício da cultura e da identidade de tribos indígenas em benefício do que ele considera progresso. Ao mesmo tempo, ele se contradiz, quando, na mesma obra, lamenta essa perda da identidade, a deflorestação trazida por esses processos e condena a mistura de raças que advém da formação de novas cidades e novas atividades econômicas. A figura dos indígenas não adquire personalidade própria nas três obras, mas, em Vicki Baum, Gondim (2019) percebe o surgimento de alguns tipos nacionais, como o nordestino, ressaltando que o caboclo não será convidado a compor a identidade nacional. A obra, mais recente das três, trata do ciclo da borracha e vai delinear o reconhecimento da mestiçagem como um traço da brasilidade. Porém, pouco reflete sobre a condição das populações originárias. Em algumas passagens da obra, um dos personagens principais, padre Anselmo, reflete sobre a incapacidade do índio de pensar, destacando que na linguagem local nem existe uma palavra equivalente a “pensamento”. Quando personagens indígenas realizam ações dentro da obra, são sempre comandados, nunca exercem posição de liderança ou voz de comando. O livro descreve o ciclo da borracha, os processos de modificação urbana, os impactos desse ciclo na vida dos habitantes e o processo de escravização das populações que vinham para a Amazônia para trabalhar nos seringais.

Do aparente fim para o início da história O livro “A invenção da Amazônia” se insere numa categoria que instiga a pensarcom, em detrimento da reprodução de pensamentos sobre, em que Gondim identifica nas narrativas de viagem, questões ou conceitos que vão atravessar, do século 16 até hoje, a compreensão da Amazônia. Ou seja, a obra nos provoca a pensar a Amazônia a partir dela mesma, contra todos os imaginários relatados, construídos e impostos a sua configuração simbólica e territorial, que a colocaram numa condição de subalternização. A partir dos documentos utilizados por Gondim como também por Harris (2017) e outros pesquisadores da Amazônia, a perspectiva de uma cultura que se opõe a cultura imperialista europeia, se evidencia como uma construção central da narrativa dissidente de uma cultura própria, fundada nas relações de interação, superando a

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes visão pragmática das três raças que formam a população, e apontando para uma concepção que mostra a intervenção dos povos subalternizados como um lócus de resistência vinculadas às relações de emancipação como forma fronteiriça à dominação da cultura europeia. Os caminhos tecidos pela autora demonstram a bricolagem de preconceitos enraizados na nossa história, ao contrapor os arquétipos que tem origem no império europeu patriarcal e escravista colonial, em que a complexidade da realidade amazônica é simplificada a partir de um imaginário mítico e fantástico, estabelecendo uma relação de poder e dominação, que classifica os povos entre a superioridade e a inferioridade e, fundamentalmente, anula o mundo da vida das populações originárias. Pressupostos que se aproximam das discussões contemporâneas de Piza, Dussel, Quijano e Mignolo, quando apontam na colonialidade a construção de percepção do outro de forma dependente, deslocada e sem capacidade de um pensar original. Nós somos resultados de interpretações e representações pré-existentes, em que o olhar exógeno definiu os nossos significados. Gondim (2019, p. 330) sentencia a dramática consciência, reconhecendo “a irreversibilidade do processo, o qual, ao destruir as exuberâncias naturais, reduz a pó, igualmente, culturas seculares de povos intrinsicamente ligados a um conjunto com feições próprias, cujas vidas seguem um pulsar diferenciado do ritmo da modernidade”. Portanto, a crítica de Gondim se apresenta como uma narrativa dissidente às narrativas de viagem impostas, desafiando as ideias hegemônicas na construção de uma Amazônia como resultado do inautêntico e da comparação com modelos europeus. É uma narrativa que rompe com o que se convencionou institucionalmente e possibilita pensar a região com um novo olhar. Uma Amazônia que deve se impor como um lugar próprio, que possa desafiar e modificar a vida de suas populações pela emancipação que afirme esta cultura e suas próprias narrativas. Visada teórica importante na compreensão das experiências, tendo como base processos políticos, éticos e epistemológicos.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

MEMÓRIAS (RE)CONFIGURADAS E DISPUTAS DE SENTIDOS NAS NARRATIVAS DO “CAMINHO DAS MISSÕES” Ingrid Bomfim Gonçalves Larissa Conceição dos Santos

Introdução Narrar é contar uma história, seja ela verídica (narrativa histórica, mnemônica, biográfica ou jornalística) ou fictícia (literária, fílmica, publicitária/storytelling mercadológico), considerando seus protagonistas - a perspectiva de seu autor/narrador, o papel assumido pelos personagens, bem como pelo leitor/destinatário – em uma lógica temporal que permite dar sentido ao fato/evento relatado. O enredo, conteúdo do relato, prescinde de aspectos cronológicos, cuidadosamente ordenados a fim de garantir a inteligibilidade ou coerência narrativa (Adam, 1985), isto é, o sentido daquilo que é contado. Entende-se, portanto, que a escolha destes aspectos, fundamentais no processo de narrativização (mise en récit de fatos e eventos) é condicionado pela ótica ou mesmo versão que se espera contar, resultado da seleção de trechos, imagens, indícios, apagamento de evidências, silenciamentos ou omissões que conformam uma estratégia de construção narrativa, e que pode, muitas vezes, colaborar à legitimação de visões hegemônicas. Esse processo de construção estratégica foi observado nas narrativas do “Caminho das Missões”, por meio de pesquisa realizada no ano de 2019 (Gonçalves; Santos, 2019), no trajeto desenvolvido pela Operadora Turística de mesmo nome, e que tem como proposta retraçar o caminho percorrido por jesuítas e guaranis no território hoje conhecido como as Missões Jesuíticas do Rio Grande do Sul (São Borja, São Nicolau, São Luiz Gonzaga, São Miguel, São Lourenço, São João Batista e Santo Ângelo). A Operadora em questão vende passeios turísticos pela “Rota das Missões”, propondo um “caminho” prévia e estrategicamente traçado que conta, ainda, com o acompanhamento de um(a) guia que narra e/ou ajuda a reconstituir a história missioneira. São aqui apresentados os resultados da pesquisa em questão, no que se refere aos aspectos narrativos e a disputa de sentidos entre a versão jesuítica hegemônica (adotada pela operadora turística) e a narrativa dos povos indígenas originários, siste-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes mática e estrategicamente silenciada, a fim de atender aos interesses turísticos locais. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa etnometodológica, englobando pesquisa exploratória e bibliográfica, além de pesquisa de campo de 3 dias e observação participante registrada fotograficamente, bem como através de diário de campo. Como resultado, percebe-se que existe uma objetificação dos índios Guarani, que são muitas vezes tratados pelos visitantes como “coadjuvantes” neste cenário missioneiro. No entanto, cabe enfatizar que os índios são os atores principais desse contexto histórico, tendo resistido ao período reducional, garantindo a sua permanência até a atualidade. Sua cultura, apesar de enfatizada no percurso do Caminho das Missões, deveria ser exposta e discutida como parte fundamental na narrativa missioneira. Observa-se que há uma disputa pelo controle do sentido da narrativa oficial apresentada ao longo do Caminho das Missões, por parte da Operadora Turística que detém o poder e explora essa rota. Embora, durante o percurso, não tenhamos acesso à narrativa dos povos originários, isso não significa que estes não tenham voz, porém sua fala não é convocada na composição de um relato oficial apresentado durante o roteiro turístico. Há, portanto, uma disputa simbólica que culmina com a propagação da narrativa legitimante dos grupos que controlam a rota Caminho das Missões, reforçando o relato colonizador na região missioneira do Rio Grande do Sul e omitindo a visão dos povos indígenas, que veem sua história, terra e cultura serem objetos de consumo turístico.

Narrativa como objeto e metodologia no estudo sobre o Caminho das Missões Na perspectiva do psicólogo Jerome Bruner a narrativa configura um modo de apreensão do mundo, forma de construção e reconstrução da realidade, pois, através dos relatos, não apenas experimentamos o universo que nos cerca, mas, somos também capazes de traduzir nossas próprias experiências de forma coerente e organizada (Bruner, 1991). Da mesma forma, apreendemos a cultura e nos inserimos no horizonte cultural por meio de relatos, conforme destaca o autor: Vou argumentar que a principal maneira pela qual nossas mentes se adaptam às restrições de nossas experiências culturais é através das histórias que contamos e ouvimos, quer elas sejam verdadeiras ou fictícias. Defenderei que a cultura consiste em um conjunto de narrativas mais ou menos interconectadas e que a aprendemos principalmente graças à nossa capacidade narrativa pela qual “damos sentido” aquilo que está para acontecer, ao que aconteceu e o que poderia acontecer em nossos mundos”(Bruner, 2006, p. 119, em livre tradução)1. 1 No original: “je soutiendrai que la principale manière par laquelle nos esprits se conforment aux contraintes de nos expériences culturelles est par l’intermédiaire des histoires que nous racontons et que nous écoutons, qu’elles soient véridiques ou fictives. Je défendrai que la culture consiste en un ensemble de récits plus ou moins interconnectés et que nous l’apprenons principalement grâce à notre capacité narrative par laquelle nous « donnons du sens » à ce qui est en train de se produire, à ce qui s’est produit et à ce qui pourrait se produire dans nos mondes ».

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Esse processo de aprendizado e apreensão sobre e pela cultura, nos afirma Bruner (2006), está no centro dos trabalhos de antropólogos e etnólogos que se dedicaram a investigar os traços culturais, modos de vida, costumes, ritos e mitos apreendidos pelos povos nativos e passados de geração a geração. Nesse sentido, a vertente estrutural, aberta por Lévi-Strauss e pela difusão de suas obras na Europa e nas Américas, juntamente com as pesquisas dos formalistas russos como Vladmir Propp (1970), sobre a composição dos contos populares, situam-se na origem das investigações narrativas. Observa-se a influência e a referência direta à vertente estrutural de Lévi-Strauss em uma obra que é marco para os estudos das narrativas: a edição n. 8 da Revue Communications, publicada na França em 1966, dedicada integralmente à “análise estrutural da narrativa”. A abordagem narrativa destaca-se na antropologia e ganha notoriedade com a publicação das obras de Lévi-Strauss, tendo como ênfase, sobretudo, o estudo dos aspectos semânticos para a interpretação dos mitos e das mitologias dos povos originários (indígenas). Em um trabalho dedicado à Lévi-Strauss, intitulado “Elementos por uma teoria da interpretação da narrativa mítica”, Greimas (1966) salienta a importância das investigações conduzidas pelo antropólogo na construção de sua teoria semântica para a compreensão dos mitos: a descrição do universo mitológico dos povos indígenas, as dimensões da cultura e seus elementos estruturais que auxiliam na compreensão da narrativa mítica. Para Roland Barthes (1966), o pioneirismo de Lévi-Strauss dá origem também à diferentes aplicações etnográficas das narrativas, permitindo a antropólogos e etnólogos, interessados no estudo dos mitos e dos contos nas diferentes civilizações, a comparação dos tipos de estrutura e ainda a possibilidade de analisar tais mitos através de quadros analíticos - grilles analytiques - , como propostas por Lévi-Strauss. Nesse ponto, cabe a distinção proposta por Augé (1999) a respeito do tipo de apropriação narrativa realizada pelos antropólogos e etnólogos, quando comenta sobre a aversão destes ao serem comparados com “viajantes”. A narrativa de um viajante, os famosos carnets de voyage dos escritores-viajantes, como aquele de Gérard Nerval em sua “Viagem ao oriente”, fornecem impressões, imagens e memórias de uma jornada. Já para o etnólogo, o recurso ao relato é utilizado como subsídio às observações em profundidade, realizadas a partir do convívio com as culturas e os povos, permitindo o conhecimento e apreensão de suas práticas sociais. O viajante passa, o explorador entusiasma-se com os achados novos e o etnólogo permanece quando estes já partiram, afirma Augé (1999). O que faz com que a narrativa de viagem esteja muito mais interessada na captura de impressões e nas possibilidades de aproveitá-las futuramente, pois “o escritor-viajante vive já no futuro anterior: o que lhe atrai na viagem é a narrativa que ele poderá fazer a partir dela mais tarde[...]”2(Augé, 1999, p. 13, em livre tradução) como, por exemplo, visando a publicação de uma obra (ficcional ou não). 2 No original: « l›écrivain-voyageur vit déjà au futur antérieur: ce qui l’attire dans le voyage, c’est le récit qu’il pourra en faire plus tard

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No entanto, relembra Augé (1999) que, apesar de na introdução do livro “Tristes trópicos”, Lévi-Strauss declarar “odiar” as viagens e os exploradores, o que o antropólogo faz em sua obra assemelha-se, ao menos em partes, às narrativas de viagem, especialmente por suas evocações pessoais, recorrendo à memória individual e mesclando a história pessoal do viajante -do etnólogo-viajante - e a história dos grupos e civilizações com quem teve contato. aqueles a quem o etnólogo conhece e questiona também vivem suas próprias histórias, suas próprias jornadas reais ou metafóricas. O etnólogo pode ser mais capaz de ouvir e entendê-los a partir do momento que ele se torna consciente de sua própria. Porque o que o aproxima de seus interlocutores é precisamente o que ele compartilha com eles, mas que, ao mesmo tempo, o diferencia: a fala, a capacidade narrativa, a imaginação e a memória3 (Augé, 1999, p. 19, em livre tradução).

Entende-se que a narrativa, no trabalho antropológico, é matéria-prima observável - os relatos orais dos povos -, mas também ferramenta de registro descritivo e cronológico dos fatos e feitos observados que, como salienta Marc Augé, prescindem da memória, de um trabalho de rememoração que permite reconstituir o visto e o vivido e que, posteriormente, toma forma através da narrativa. Retomando o pensamento inicial de Bruner (2006), citado no início da nossa reflexão, as narrativas servem à compreensão da realidade e também como forma de apreensão da cultura, esta entendida como um sistema de significações que derivam da apropriação que realizamos do conjunto de narrativas que compõem a cultura de um povo ou civilização. Por isso é tão importante observarmos a circulação de tais narrativas na sociedade, o surgimento de narrativas dominantes ou legitimantes, conforme destaca Lyotard (1969), que buscam apresentar uma dada visão do mundo e da verdade a partir de óticas muitas vezes particulares e excludentes. Há na pesquisa etnográfica um trabalho de observação e de registro que encontra nas narrativas sua base fundamental. O pesquisador, embora implicado no trabalho de campo, precisa observar e analisar os relatos ouvidos e aqueles registrados, em perspectiva, cientificamente. Mas precisa, igualmente, recorrer às suas memórias particulares e confrontar, muitas vezes, suas preconcepções, em vista de uma análise crítica, em um movimento temporal que retorna ao passado, a partir de registros, e os revela à luz do presente, pela reconstituição narrativa. No âmbito específico da pesquisa sobre o Caminho das Missões, a narrativa é tanto um objeto analisado - a narrativa construída pelo Caminho das Missões, os relatos implícitos, explícitos, os personagens autorizados a falar e aqueles omitidos 3 No original: «  ceux que l’ethnologue rencontre et interroge vivent aussi leurs propres récits, leurs propres voyages réels ou métaphoriques. L’ethnologue est peut-être plus à même de les entendre et de les comprendre à partir du moment où il prend conscience des siens. Car ce qui le rapproche alors de ses interlocuteurs, c’est précisément ce qu’il partage avec eux mais qui, dans le même temps l’en distingue: la parole, la capacité narrative, l’imagination et le souvenir ».

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ou silenciados (narrativas dissidentes) -, como também um recurso metodológico - a narrativa elaborada pela pesquisadora-peregrina ao longo do percurso, registrada por meio do “diário de campo”. O percurso do Caminho da Missões é atravessado por narrativas: relatos orais, relatos dominantes dos guias, dos personagens coparticipantes -autorizados a falar pela própria Operadora Caminho das Missões-, as narrativas reconstituídas a partir dos elementos encontrados no caminho, as narrativas elaboradas pela pesquisadora a partir da experiência de peregrinação, ou seja, diante do vivido e experienciado com a realização da jornada de pesquisa e peregrinação. Para compreender melhor essa jornada pelas Missões e o percurso metodológico que nos leva a interrogar a tessitura narrativa em torno da memória e do patrimônio missioneiro, apresenta-se, a seguir, o contexto da Missões Jesuítico-Guaranis no Rio Grande do Sul e o Projeto e Rota de peregrinação “Caminho das Missões”.

Contextualização histórica das Missões Jesuítico-Guarani Ao que diz respeito a história das chamadas Missões Jesuítico-Guarani, podese destacar que no processo de amplificação das colônias europeias, em meados do século XV, grupos religiosos contribuíram com os governos imperialistas para a tomada de terras e de homens, como foi o caso dos jesuítas - uma ordem religiosa itinerante -, que integravam a Companhia de Jesus, autodeclarada como uma ordem católica moderna, fundada pelo espanhol Ígnacio López, e posteriormente canonizado como Santo Ígnacio de Loyola (Custódio, 2007). A então Companhia de Jesus definiu o “modo de proceder jesuítico”, que era guiado pela bondade, respeito, pobreza e autonomia do monasticismo (Custódio, 2007). Dessa forma, as Missões Jesuíticas foram parte do projeto de tomada da América, elaborado pelas coroas ibéricas durante os séculos de XVI, XVII e XVIII (Valenzuela, 2013). O processo de colonização dos espanhóis na América buscou a catequização e civilização dos povos indígenas que habitavam estes territórios. Nesta situação, os padres jesuítas foram essenciais para a consolidação das chamadas “Reduções jesuítico-guaranis”, pois eram os responsáveis pela catequização e pacificação dos guaranis (Pinto, 2011). As reduções, segundo Custódio (2007, p. 67) foram “assentamentos, onde conviviam dois padres e até seis mil índios”, e, conforme Pinto (2011, p. 87 apud Neumann, 1996), a redução “foi à maneira de empreender a Missão”, ou seja, a redução era construída e constituída através de uma estratégia para facilitar o trabalho dos jesuítas. Segundo Pinto (2011), o processo de fundação das Missões ocorreu em dois ciclos, que contribuíram para a constituição de trinta povoados missioneiros da Província Jesuítica do Paraguai. No primeiro ciclo das Missões foram fundadas reduções no Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil. No território pertencente ao Paraguai permaneciam os índios Tupi-guarani, “povos migrantes, itinerantes, originários da Amazônia, de onde alguns grupos saíram em direção ao sul - entorno do Rio Uruguai

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes -, em busca da ‘terra sem mal’”. A “terra sem mal”, de acordo com Custódio (2007, p. 65 apud Mélia, 1988), é “em primeiro lugar, a boa terra, fácil de ser cultivada, produtiva, suficiente e agradável, calma e pacífica, onde os Guarani podem viver em plenitude o seu modo de ser autêntico”4. Ou seja, esses povos saíam em busca de terras férteis para suas plantações e criações de gado, onde pudessem desfrutar da tranquilidade. Foi então, a partir da busca pela “terra sem mal”, que consolidou-se, no segundo ciclo, a fundação na banda oriental do Rio Uruguai dos chamados “Sete Povos das Missões”, atualmente pertencentes ao território do Rio Grande do Sul. Fazem parte dos povoados missioneiros no RS: São Francisco de Borja (1682), São Nicolau (1687), São Luiz Gonzaga (1687), São Miguel Arcanjo (1687), São Lourenço Mártir (1690), São João Batista (1697) e Santo Ângelo Custódio (1706) (Pinto; 2011). Ao longo do período colonial, os povos guaranis que habitavam a região platina, isto é, os “vales dos grandes rios Uruguai, Paraguai e Paraná, e de seus afluentes” (Barcelos, 2000, p. 98), passaram por diferentes situações: uma parte foi submetida ao regime da encomienda, ou seja, passando a trabalhar nas cidades da colônia espanhola; outra parte entrou para o sistema reducional jesuítico, integrando e construindo as Missões e, uma terceira parcela se manteve à margem deste processo, não se submetendo nem ao regime colonial, nem ao sistema missioneiro (Custódio; 2007, p. 66).

Em relação à economia rural missioneira, pode-se destacar dois produtos que se configuraram como a base econômica da região, sendo eles a erva-mate e a criação de gado. Para tanto, foram implantados, nas áreas das reduções, as chamadas “estâncias”, estabelecimentos rurais destinados, especialmente, à criação de gado bovino, cuja área era aproveitada também para cultivar os ervais de erva-mate (Custódio, 2007). Quando se faz referência a presença missioneira e suas utilizações, sejam elas turísticas ou patrimoniais, é importante salientar que esta envolve um conjunto de relações plurais entre o passado e o presente. Deste modo, Brum (2016, p. 31) evidencia que acionar o passado missioneiro “remete à questão das suas múltiplas utilizações sociais e outros suportes de memória menos valorizados, mas fundamentais para se entender os imaginários decorrentes dele”. Sendo assim, compreender e reconhecer que existem expressões culturais imateriais concebidas por atores sociais é importante para o entendimento de componentes que constituem as culturas, memórias e a identidade dos indivíduos (Vitor, 2016). No caso aqui analisado, tratamos os indígenas e guaranis como personagens que criam os sentidos e as narrativas presentes na expressão cultural imaterial, concebida por eles mesmos, chamada de “Caminho das Missões”. 4 No original: “ante todo la tierra buena, fácil para ser cultivada, productiva, suficiente y amena, tranquila y apacible, donde los Guaraní puedan vivir em plenitude su modo de ser auténtico”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O Caminho das Missões O Caminho das Missões, propriamente dito, é um roteiro turístico-cultural incluso na Rota Missões, que liga os caminhos originais percorridos de uma redução a outra por trilhas antigas. O projeto “Rota Missões” foi criado em 2003 e configura-se como um instrumento voltado para o desenvolvimento regional, tendo por objetivo a integração da região das Missões nos setores de turismo, artesanato e agroindústria (Pinto, 2011). Desse modo, vale salientar que o projeto do roteiro turístico-cultural Caminho das Missões foi criado por quatro sócios da Operadora de Turismo “Caminho das Missões”, em 1999, porém, somente em 2002 o primeiro produto turístico foi lançado. Percebe-se que o Caminho das Missões tem origem anterior à chamada Rota Missões, contudo, aquele é posteriormente incorporado a este como uma atração turística. Na visão de Alves (2007), o Caminho das Missões surge como uma proposta de valorização da cultura missioneira. Em entrevista realizada com uma das sócias da Operadora de Turismo Caminho das Missões, ela relatou que o itinerário surgiu com o intuito de criar um caminho similar ao Caminho de Santiago de Compostela. Dessa forma, reproduziu-se o que foi essencial em relação ao caminho de Santiago, mas, sempre preservando as características da região das Missões, sendo elas: a história, o contexto, a cultura, a gastronomia, a música, os traçados do roteiro, os quais foram definidos com o máximo de informação para que seguissem os percursos originais, não incluindo trechos asfaltados no trajeto. Para a elaboração dos traçados, a Operadora contou com o auxílio do exército que colaborou com infraestrutura e metodologias, além da assistência de historiadores, arqueólogos, educadores físicos e representantes indígenas. Para dar início ao roteiro, todas as casas que estavam incorporadas no trajeto foram visitadas, a fim de agregar personagens ao caminho. Percebe-se, assim, que por trás da concepção do Caminho das Missões há um longo trabalho de campo. Pinto (2011, p. 83) salienta que “este trajeto materializa e essencializa a cultura missioneira através de uma narrativa marcada pela alteridade”, ou seja, dispõe de um potencial turístico e de uma representatividade da herança cultural missioneira. Pode-se dizer que o “caminho”, de alguma forma, movimenta a economia local tanto do meio urbano quanto rural, já que as caminhadas são realizadas no interior dos municípios. Elas também impactam na economia dos indígenas, que vendem seus trabalhos aos peregrinos, e expõem sua cultura - pouco exaltada ao longo do Caminho - através do artesanato. Dessa forma, pode-se dizer que o Caminho busca manter relações culturais com a comunidade. Conforme Pommer (2008, p. 78 apud Brum, 2006): O roteiro é um projeto de peregrinação em sentido ampliado, cruzada em seu caráter comercial como uma das leituras do passado no presente, calcada na produção de um conjunto de representações com fins turísticos desenvolvida na região das Missões, efetuando uma integração de alguns aspectos atribu-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ídos a este passado para oferecê-lo aos peregrinos. É através da recepção e formatação de representações historiográficas e literárias que o Caminho das Missões constrói e comercializa o projeto de peregrinação turística que se desenvolve no espaço.

Por isso, pode-se dizer que o Caminho das Missões, com suas paisagens, simbologias, formas e objetos comunicacionais, narrativas e abordagens culturais, expressa e comunica a cultura missioneira, e, além disso, proporciona uma experiência que possibilita ao peregrino conhecer o patrimônio cultural imaterial das Missões.

Um olhar sobre as disputas de sentidos nas narrativas do “Caminho das Missões” Em função da natureza do objeto de estudo, optou-se pela etnometodologia para iniciar a abordagem teórico-metodológica. A etnometodologia originou-se através dos trabalhos do sociólogo Harold Garfinkel. Esta abordagem busca “compreender como os indivíduos veem, descrevem e propõem em conjunto uma definição de uma dada situação” (Coulon, 1995, p. 20). Para uma melhor compreensão, pode-se dizer que:

A etnometodologia é a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar as duas ações de todos os dias: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar. É portanto, o estudo das atividades cotidianas, o saber do senso comum. Os etnometodólogos tem a pretensão de estar mais perto das realidades correntes da vida social, para eles a realidade social é constantemente criada pelos atores, não é um dado preexistente (Coulon, 1995, p. 30).

Ou seja, na visão do sociólogo francês Alain Coulon, a etnometodologia se concentra nas atividades cotidianas, na linguagem comum do sujeito social. A pesquisa etnometodológica realizada englobou pesquisa exploratória e bibliográfica, além de pesquisa de campo de 3 dias e observação participante, registrada fotograficamente, bem como, através de diário de campo. Além disso, também foram realizados registros fotográficos do percurso e entrevistas não-diretivas (Thiollent, 1980) com a guia turística Estela Maris e com uma das sócias da Operadora de Turismo Caminho das Missões. Trata-se de entrevistas sem estruturação prévia ou roteiro formal, visando o levantamento exploratório de informações através da liberdade de fala e espontaneidade do interlocutor, a fim de obter informações mais detalhadas sobre a criação do roteiro turístico-cultural. O percurso realizado compreendeu três dias e foi executado no período de 18 de julho de 2019 à 21 de julho do mesmo ano, com o acompanhamento de uma guia

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes turística. O trajeto iniciou na cidade de São Miguel das Missões, interior do Rio Grande do Sul, passando ainda pelos municípios de Entre-Ijuís e Santo Ângelo, como relata-se a seguir, a partir da transcrição do diário de campo. Nas três situações em que nomeou-se como “Mapa, cajado, amuleto e ‘bom caminho’: início da caminhada”; “Terra vermelha, céu azul e pé na estrada: segundo dia de caminhada” e “Santo Ângelo ‘Capital missioneira’: fim da caminhada, buscou-se fazer uma descrição do percurso, tendo como base critérios já estabelecidos para a análise etnometodológica do caminho, sendo eles: o percurso; paisagens e símbolos; narrativa; formas de comunicação e abordagem cultural,. Destaca-se, a seguir, o relato sucinto do trajeto de três dias, enfatizando a análise da dimensão narrativa.

1º Dia – Mapa, cajado, amuleto e “bom caminho”: início da caminhada O roteiro da observação iniciou em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul. Primeiramente a guia turística da Operadora Estela Maris, que acompanhou o percurso, entregou o cartão do peregrino, o qual é uma espécie de passaporte. Em cada lugar que o peregrino passa, seja para parada de apoio ou pernoite, recebe um selo o qual deve ser colado no cartão, a fim de atestar que esteve em determinado local, além disso é recebido um cajado que deverá acompanhar durante todo o trajeto. O cajado é confeccionado com bambu e na ponta leva uma fita em couro, representando a importância do gado, trazido pelos jesuítas e que ainda hoje é uma das bases econômicas da região. Juntamente recebe-se um colar contendo a cruz missioneira que deve ser usado como amuleto, para fortalecer ainda mais o imaginário mítico religioso do projeto. Ambos artefatos, de acordo com informações da Operadora, são produzidos pelos índios mbyá-guarani, isto a fim de simbolizar proteção para a jornada de caminhadas. Posteriormente, realizou-se uma visitação ao Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, reconhecido como Patrimônio da Humanidade e tombado como Patrimônio Cultural Imaterial “Tava”, lugar de referência para o povo guarani. Após a visita técnica, os peregrinos foram conduzidos à casa de Dona Alzira, moradora de São Miguel, para um ritual de benzimento, técnica antiga muito utilizada pelos índios guaranis como símbolo de devoção e guarida. Posteriormente, iniciou-se a caminhada pelas trilhas jesuítico-guarani. Foram 31,9 km por estradas de chão, passando por propriedades rurais, sendo possível avistar açudes, lavouras irrigadas e animais silvestres. A parada de apoio foi realizada na Agropecuária Everling, no distrito de Carajazinho, interior de São Miguel. Em seguida, a caminhada seguiu por mais 13km até o “bolicho de campanha”, ainda no distrito de Carajazinho, para uma noite de causos, lendas, jantar típico das Missões e declamações gauchescas.Vale ressaltar que esses apontamentos foram transcritos no diário de campo, isto é, a cada final de caminhada foi possível descrever as experiências do corrente dia. Com relação ao aspecto narrativo, durante o percurso realizado no primeiro dia observou-se que, em todos os lugares de visitação, bem como os trechos importantes

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e históricos do caminho, eram narrados e explicados pela guia turística, com formação em História e Antropologia. A rota missioneira é construída e narrada através das duas perspectivas, jesuíta e guarani. Embora a cultura guarani seja lembrada nas narrações, observou-se durante a visita ao Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, local em que os guaranis vendem seus artesanatos aos visitantes, o papel de coadjuvantes em que os indígenas são postos. Arrisca-se dizer que são tratados como “objetos” e não como pertencentes àquele espaço, história e cultura. Nesse contexto, os guaranis não são convidados a falar, por outro lado, sua cultura e história são englobadas em uma narrativa oficial construída e difundida pela Operadora Turística e que ressalta, sobretudo, a perspectiva dos colonizadores jesuítas.

2º Dia – Terra vermelha, céu azul e pé na estrada: segundo dia de caminhada Durante o segundo dia de caminhada foram realizados 26,61km para uma visita técnica ao Sítio Arqueológico de São João Batista, no distrito de São João Velho, interior de Entre-Ijuís, considerado Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Logo após seguiu-se até a propriedade do seu João, onde foi realizada a parada de apoio para almoço. Em seguida retornou-se a caminhada pelas antigas trilhas até o Parque das Fontes, em Entre-Ijuís, para um pernoite. O Parque das Fontes é uma opção de turismo e lazer da região e conta com piscinas, quadras de esportes e cabanas para hospedagem. Em relação ao aspecto narrativo, durante o percurso realizado no segundo dia, conforme mencionado anteriormente, durante todo o trajeto a rota missioneira é construída e narrada através das duas perspectivas (jesuíta e guarani), sem deixar de ser evidenciado o lado da cultura guarani. Na visitação ao Sítio de São João a guia em sua explicação evidenciou as figuras que marcaram o período, como por exemplo o Padre Antônio Sepp (jesuíta) e um dos ícones missioneiros Sepé Tiaraju, que embora tenha origem guarani, foi criado desde pequeno pelos jesuítas. Na parada de apoio foi servido um almoço com as mesmas características da janta servida no “bolicho”, com pratos à base de mandioca, farinha de trigo, elementos esses que eram também cultivados pelo sistema missioneiro nas reduções. A parada nesta residência é estratégica, ou seja, não dispõe de nenhum simbolismo no local em si, a não ser o fato de estar dentro do trajeto do Caminho das Missões. A família, assim como todas encontradas durante o percurso, muito acolhedora e hospitaleira. A guia durante todo percurso orienta em relação aos km percorridos e a história daquele determinado local, também comenta sobre as experiências em grupo. Ela relatou que: “Neste trajeto (de São João Velho até o Parque das Fontes) o pessoal geralmente já vem cansado, com bolhas nos pés, querendo descansar. Aqui, nesta sombra de árvore geralmente param para contemplar a paisagem ou para comer alguma fruta que ganharam de alguma família”. Ela ainda dá dicas: “Coloca um curativo no teu pé”, “faz uma pausa para tomar uma água”, “passa filtro solar”,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes tudo isso, baseado nas experiências de caminhadas passadas, mesmo que uma peregrinação seja diferente da outra.

3º Dia – Santo Ângelo “Capital Missioneira”: fim da caminhada No terceiro e último dia de caminhada percorreu-se 14,11 km seguindo por antigos trajetos que ligavam os antigos povoados das Missões até a cidade de Santo Ângelo, a qual foi a última redução. Ao chegar na cidade percorre-se a rota até a Catedral Angelopolitana que é o ponto final da caminhada, passando por uma rua chamada de “missioneira”. Ela recebeu este nome pois dá acesso ao portal de entrada dos peregrinos. O portal contém um simbolismo único, assim como tudo o que compõem o Caminho das Missões. Pode-se observar que na estrutura do portal de um lado consta um anjo iluminando um menino guarani que recebe os peregrinos. O lado do anjo simboliza o passado jesuítico e o lado do guarani retrata o futuro. Atrás do portal se encontram os arcos que caracterizam os trinta povos das Missões, cada arco consta o nome de uma redução, sendo distribuídos por ordem de fundação. A praça também contém algumas estruturas próprias para receber os peregrinos. Essas estruturas representam elementos da natureza, os quais têm significado para os guaranis, como por exemplo, a água, o fogo e a terra. Ambos servem para o ritual de finalização da caminhada. Já em relação ao aspecto narrativo durante o percurso realizado no terceiro dia destaca-se a chegada na praça da Catedral em Santo Ângelo, onde a guia narra, assim como em todo local de visita, informações acerca da arquitetura, história e os símbolos contidos no espaço, como por exemplo, o portal de entrada dos peregrinos, os arcos simbolizando as trinta reduções das missões, os monumentos simbólicos e os detalhes da catedral.

Os Guaranis como coadjuvantes na História das Missões: narrativa indígena subjugada a uma visão dominante Através do estudo realizado foi notório observar como a narrativa indígena é subjugada a uma visão dominante, que busca colocar os logros e conquistas dos espanhóis e portugueses em primeiro plano. A história indígena é, na realidade, deixada como plano de fundo deste cenário. Embora alguns elementos, julgados como pertencentes a cultura indígena, sejam expostos pela Operadora, como, por exemplo, o ritual de início da caminhada pelo “Caminho das Missões”; o colar com a cruz missioneira como sendo um amuleto de proteção feito pelos índios, etc., em nenhum momento existe uma fala direta dos guaranis. Ou seja, será mesmo que esses objetos e cerimônias constituem de fato a narrativa da história das Missões Jesuítico-Guarani do ponto de vista deles? As palavras proferidas pela guia, que acompanhou a pesquisadora, apontam que: “provavelmente os guaranis não se intitulem como ‘missioneiros’; para eles a cruz missioneira não tem um grande significa-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes do, a não ser a renda, pois é através dos artesanatos que grande parte sobrevive”. E é justamente essa percepção que se pode notar no papel atribuído aos guaranis no contexto de São Miguel das Missões: de coadjuvantes no Sítio Arqueológico, vendendo seus artesanatos para os turistas, que em sua grande maioria visitam o Sítio para vislumbrar as sublimes ruínas, glorificadas pelo sucesso das antigas e romantizadas reduções jesuíticas. Dezordi (2016) salienta que compete ao pesquisador evidenciar estes personagens históricos, destacando que “trazer ao público elementos que compõem as histórias das comunidades indígenas é uma das formas de mostrar a necessidade de mudança na visão que a sociedade nacional, de um modo geral, ainda perpetua” (Dezordi, 2016, p. 65). Isso posto, cabe destacar que tal afirmação vale não somente para questões históricas, mas, também, do ponto de vista legal, dos direitos indígenas, da garantia de um espaço para viver e reconhecimento de seu lugar na sociedade brasileira. Embora essa situação se mantenha até a atualidade, é considerável destacar que esta postura de “apagar” e “ignorar” a presença indígena do cenário nacional, faz parte de um processo colonizador de mais de quinhentos anos. Luciano (2006, p. 35) destaca: As contradições e os preconceitos têm na ignorância e no desconhecimento sobre o mundo indígena suas principais causas e origens e que precisam ser rapidamente superados. Um mundo que se autodefine como moderno e civilizado não pode aceitar conviver com essa ausência de democracia racial, cultural e política. Como se pode ser civilizado se não se aceita conviver com outras civilizações? Como se pode ser culto e sábio se não se conhece - e o que é bem pior - não se aceita conhecer outras culturas e sabedorias?

Dezordi (2016) salienta que os Mbyá - grupo de habita a região das Missões e se concentra no Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo vendendo seus artesanatos desejam a valorização de sua cultura, o reconhecimento das multiplicidades étnicas e culturais de seu povo e o respeito mútuo. Sendo assim, percebe-se a necessidade de aceitar a diversidade étnica e cultural como parte fundamental da sociedade e como componente que auxilia o “bem viver” através de experiências multiculturais.

Considerações finais A partir da observação participante realizada no Caminho das Missões, pode-se considerar que a sua atração principal são as características culturais, místicas

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e religiosas remanescentes da experiência jesuítico-guarani a qual o trajeto está incorporado. A Operadora de Turismo que vende os passeios inclui em seus itinerários elementos que fazem referência ao simbolismo religioso agregado à história da região, expresso pela arquitetura e pelas esculturas da época reducional, as quais ainda estão presentes em museus e nos próprios sítios arqueológicos, e também pela crença guarani, povo que, ainda hoje, possui aldeias estabelecidas em algumas das localidades que fazem parte do percurso. Em relação a paisagem do Caminho, cabe destacar alguns aspectos, como por exemplo, a terra vermelha das Missões, que tem uma grande referência interligada, sendo a expressão “esta terra tem dono”, atribuída ao índio Sepé Tiaraju, o qual é uma das figuras mitológicas da região (Brum, 2016). Além disso, cabe destacar os Sítios Arqueológicos e as influências dos benzedores, remanescentes da experiência jesuítico-guarani e que são incorporados ao percurso e expressam o imaginário, a construção identitária e o modo de ser e viver missioneiro. A experiência comunicacional se dá através do contato direto com o cotidiano do Caminho e seus personagens, crenças, atributos, sentidos e subjetividades, como por exemplo, o “bolicho de campanha”, o mate ao final da caminhada, as trocas e diálogos com os moradores da região, a misticidade que envolve a história. Todos esses elementos comunicam a experiência missioneira, transmitem a cultura da região e colaboram para a construção de uma “identidade missioneira”. Outro fator observado, principalmente no Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, foi a objetificação dos índios guarani, que são muitas vezes tratados pelos visitantes como “coadjuvantes” neste cenário. Souza (2007), enfatiza que a permanência de alguns poucos indígenas das etnias Guarani ou Kaingang geram estranhamento aos indivíduos que visitam as Missões, pois muitos tem a perspectiva contrária de que “índio nas Missões é coisa do passado”. No entanto, cabe enfatizar que os índios são os atores principais desse contexto histórico, tendo resistido ao período reducional garantindo a sua permanência até a atualidade. Sua cultura, que embora seja enfatizada no percurso do Caminho das Missões, deveria ser mais exposta e discutida como parte fundamental do cenário missioneiro e, sobretudo, como personagens principais na narrativa originária das Missões. Esse processo, de reconhecimento dos povos originários e de descolonização das mentes, passa também pela identificação de uma disputa simbólica pelo controle das narrativas sobre as Missões Jesuítico-guaranis, que tem, até então, exaltado sistematicamente o relato colonizador dos jesuítas enquanto silencia a voz dos grupos indígenas.

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LEGALIZE JÁ! NARRATIVAS SOBRE O GARIMPO ILEGAL EM TERRAS INDÍGENAS NO PORTAL RORAIMA EM TEMPO Maria Luciene Sampaio Barbosa Vilso Junior Santi

Introdução Para muitos a notícia é (ou deveria ser) um produto jornalístico que retrata fatos e acontecimentos ancorados nos conceitos de verdade, imparcialidade e objetividade. Como sabemos, a notícia passa por um processo de checagem, apuração, edição, texto e veiculação. São normas básicas que exigem do jornalista rigor e honestidade em noticiar um acontecimento ou assunto destacando como valor-notícia, para ser divulgado para a sociedade (Traquina, 2008). O padrão das técnicas jornalísticas obedecido nas redações por muito tempo, caracterizou a forma de redigir em uma linguagem direta e concisa. O desfecho do fato apresenta-se logo nas primeiras linhas. De acordo com Lage (2001), na forma de lead a informação principal vem em destaque revelando as circunstâncias, tempo, lugar, modo, causa, finalidade e instrumento. Contudo, lembramos que o tempo no relato jornalístico é difuso e invertido, e a apresentação dos acontecimentos no tempo jornalístico é, também, “desordenada” cronologicamente, permitindo que as notícias sobre um mesmo tema circulem de forma dispersa e fragmentada durante dias, semanas ou meses, às vezes sem um desfecho claro. Dessa forma, para este trabalho, na tentativa de complexificar a questão e encontrar os elementos narrativos principais nas notícias veiculadas sobre o protesto de garimpeiros em Roraima, adotaremos como procedimento de análise principal a narratologia contemporânea e a crítica narrativa a partir de Ricoeur (1994), Domenici (2012) e Motta (2013). Conforme Motta (2013, p. 102), para analisar a notícia como uma narrativa é necessário organizar sua selvagem cronologia, reunir as informações dispersas sobre o mesmo tema, apontar a função dos personagens acionados e

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes recompor a sequência e a continuidade do acontecimento-intriga. Essa tessitura, segundo o autor, autoriza identificar o acontecimento em sua totalidade, permitindo seguir adiante nas análises para compreender criticamente o processo de comunicação narrativo-jornalístico, apontando que as fáticas notícias “[...] se aproximam de ficção, tornando-se contos, fábulas e mitos da contemporaneidade, impregnando de subjetividade o que antes parecia pura objetividade”. Aclaramos, assim, que objetivo desse artigo é compreender o contexto em que se desenvolve a configuração narrativa sobre o protesto dos garimpeiros de 2019, em Roraima, e identificar os elementos narrativos que descortinam a intenção dos jornalistas ao acionar umas (e não outras) construções que versam sobre essa temática. Também acionaremos no texto os conceitos do jornalismo ambiental de Bueno (2007), por entendermos que os protestos que pedem a legalização do garimpo em áreas indígenas, estão ligados (direta ou indiretamente) ao jornalismo especializado que trata de questões ambientais. Para compreender o processo de configuração da narrativa no protesto dos garimpeiros, analisamos as reportagens veiculadas pelo portal Roraima em Tempo no período ente 09 de outubro e 07 de novembro de 20191, respectivamente as datas de início e o fim dos protestos. Percebemos de imediato que portal jornalístico deu atenção especial ao protesto, veiculando dezessete (17) notícias no período – embora fragmentadas em tempos difusos. Foi essa repercussão dada ao tema pelo portal que despertou nosso interesse em selecionar as reportagens como objeto de estudo. O recorte dessas notícias possibilitou analisar a sequência de personagens vinculados à questão, a “importância” da atividade garimpeira ilegal na economia do estado de Roraima e o peso dos protestos em relação ao contexto socioambiental local. A análise das narrativas jornalísticas sobre o protesto dos garimpeiros em Roraima, propiciou também elucidar alguns episódios de um enredo que tem começo, mas que parece estar longe de ter fim e, também, evidenciar a partir de outro ângulo os relatos sobre atividades ilegais em áreas de preservação permanente que sofrem com a exploração mineral recorrente no estado de Roraima. Cremos que ao observar a narrativa jornalística nesses termos, contribuímos para tornar possível perceber a intencionalidade dos narradores nesta construção – os quais não conseguem se desprender do seu “eu”, já que, como bem lembra Benjamin (1987), não existe “desubjetivação”, mesmo em textos que nascem a partir de propostas tecnicistas padronizadas. Conforme Benjamin (1987, p.205), a narrativa aí, “[...] não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”. É assim que se imprime na narrativa jornalística a marca do narrador, “[...] com a mão do oleiro na argila do barro”. 1 Disponível em: . Acessado em 15 mar 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Concluímos, portanto, que é nesta retessitura, carregada de intencionalidades, que se revela o jogo de poder dos atores envolvidos e o processo de coconstrução de sentidos da narrativa jornalística sobre o garimpo ilegal nas terras indígenas de Roraima.

O contexto, o tempo e a narrativa Na construção realizada para esta pesquisa o protesto dos garimpeiros não pode ser entendido como fato isolado. A mobilização foi provocada por fatores que, para entender, precisamos recorrer ao passado histórico e contextual do território sobre o qual se assenta hoje o estado de Roraima. Pois, segundo Motta (2013, p. 120-121), as narrativas só existem em contexto e não podem ser analisadas de forma isolada. Elas “[...] criam significações sociais, são produtos culturais inseridos em certos contextos históricos, cristalizam crenças, os valores, as ideologias, a política, a cultura, a sociedade inteira”. As narrativas aqui são consideradas como produtos sociais. E, cremos, entender o contexto de configuração dessas narrativas contribui para compreender a intencionalidade das narrativas jornalísticas construídas, ancoradas nos aspectos sociais, econômicos e ambientais. Para Santi (2014, p. 06), contextualizar aí implica “[...] trazer para a discussão elementos exteriores as obras, exteriores àqueles argumentos registrados nas obras. Elementos estes que configuram e emprestam unidade às análises comunicacionais e aos seus mecanismos de reconhecimento”. Segundo o autor, para tratar das narrativas sobre o garimpo ilegal em Roraima é fundamental compreender a realidade na qual está inserido o processo jornalístico-comunicacional que trata de narrar estes acontecimentos. Conforme Motta (2013, p. 98) a realidade apresentada nas duras notícias do jornalismo tem um tempo cronológico difuso. Para tecer o fio da narrativa ligando todos os pontos da mesma e dispersa notícia, em desordem cronológica, será necessário reorganizar o seu tempo. É só aí que, segundo o autor, “[...] surge uma representação (mimese) mais tangível que fará surgir também a moral da estória” reportada. Essa visão é corroborada por Dalmonte (2009) para quem a narrativa se constitui no ato da imitação da realidade. A ilusão referencial, ou a simulação de ancoragem no real, possibilita envolver o fato narrado numa aura de realidade, assegurada pelos elementos que indicam a ligação entre aquilo que é relatado e sua configuração, na forma de narrativa. Como resultado, tem-se a ilusão de estar diante do real ou a ilusão da presença do objeto/questão reportada (DALMONTE, 2009, p. 110).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Conforme Dalmonte (2009), os elementos escolhidos para o ato de narrar são intencionais e esta escolha está marcada pelo “efeito de sentido” que se quer produzir, ou o sentido produzido. Motta (2013, p. 99), argumenta ainda que ao unir todos os pontos da mesma estória, reordenando o seu tempo, descobre-se o “acontecimentointriga”, revelando a mimese jornalística que passa a refletir a realidade e a construir significados nas relações sociais. A partir desse princípio, o “acontecimento-intriga” revela, por meio da sua estrutura de narrativa, personagens, dramas, depoimentos, cenários e estratégias do narrador, direcionadas a proporcionar significação ao receptor. Como postula Motta (2013, p. 121), “[...] é um caminho rumo ao significado, em um jogo de coconstrução da realidade”. O leitor ou ouvinte entra nessa relação com um tipo semelhante de intenção e desejo: ele quer saber a verdade e acredita por razão de autoridade e hierarquia, que o seu interlocutor tem legitimidade para discernir a verdade, e confia que ele vai lhe contar a verdade. Estabelece-se, então, o protocolo de veridicção. O leitor participa da coconstrução de sentido do real a partir do seu estado mental e de sua intenção de coconstruir a verdade, estabelecendo um contrato comunicativo e cognitivo para a instituição da realidade para ele objetiva (MOTTA, 2013, p. 40). Segundo Domenici (2012, p. 65), essa relação entre narrador-jornalista e receptor-narrador apresenta um jogo de intencionalidades no âmbito da configuração da narrativa. “[...] O jornalista não pretende simplesmente relatar acontecimento ou contar estórias. Ele deseja seduzir o receptor e estabelecer com ele um código comum; construir significados; alcançar todas as etapas desse processo comunicativo”. Motta (2013) também lembra que a análise crítica da narrativa proporciona a compreensão do ser humano na sua complexidade – pois demarca as identidades: o que somos, como nos construímos, como podemos entender as lutas e os anseios da população representada por meio das narrativas etc. Conforme afirma Gomes (2006, p.184), “[...] narrar história é enredar pessoas, instituições e ideias, é também enredarse como narrador – seja em textos científicos ou jornalísticos”. É, pois, por meio das narrativas que entendemos o significado da nossa vida e as nossas relações sociais. É nessa busca e com essa forma narrativa de construção de significados que parecem jogar os profissionais do portal Roraima Em Tempo na cobertura do protesto dos garimpeiros ocorridos em 2019. É nessa chave de leitura que o sentido ilegal, tanto do garimpo quanto do protesto, desaparece nos textos analisados para dar lugar a um padrão narrativo no qual os “criminosos” são sempre os outros.

A estória do protesto e sua cobertura Em Roraima, áreas de proteção ambiental e reservas indígenas correspondem a 46,37% do total do território do estado. Estudos apontam que riquezas minerais como

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ouro, diamante, nióbio, gás, petróleo, chumbo e outros minerais nobres têm potencial de exploração nessas áreas. A Terra Indígena Yanomami, por exemplo, que possui 9,6 milhões de hectares, é uma das áreas cobiçadas (e sistematicamente invadida) por garimpeiros ilegais. O líder indígena Yanomami, Davi Kopenawa, ganhador em 2019 do prêmio Right Livelihhood (o “Nobel Alternativo”), denunciou no dia da solenidade de entrega, que os índios Yanomami estavam morrendo por causa do garimpo – problemática agravada (e muito) com a pandemia de Covid-19. Davi pediu ajuda às entidades espalhadas pelo mundo para combater a exploração e as atividades ilegais em terras indígenas. Segundo dados do Comex Stat2, portal do Ministério da Economia que divulga informações sobre comércio exterior do Brasil, em três anos (de 2016 a 2019) o estado de Roraima exportou “legalmente” 771 quilos de ouro, com destino principal à Índia e aos Emirados Árabes Unidos. Conforme tais informações o ouro aparece como principal produto exportador na balança comercial do estado, sendo que em Roraima não existe nenhuma mina legal, autorizada para explorar o mineral. É importante lembrar ainda que a atividade garimpeira (ilegal) sempre representou uma força econômica importante na formação histórica e política do estado de Roraima. Segundo Queiroz (2016, p. 49), o debate em torno da liberação da extração do garimpo em terra indígena no contexto roraimense é muito antigo. Conforme o autor, as principais famílias de colonizadores portugueses do Vale do Rio Branco, sempre investiram na criação de gado e na agricultura, mas também aportavam seus recursos em garimpos ilegais para extração de ouro e diamantes. Esses minérios eram utilizados depois como objeto de troca para fomentar o comércio da região. Para Queiroz (2016), apesar de muito antiga e disputada, a mineração em terras indígenas se apresenta em Roraima ainda como agenda a ser discutida, mas a tarefa é hercúlea. A relação da atividade com a formação da elite econômica e política local é evidente e por isso os entraves são enormes. A defesa da extração de minerais em terras indígenas é recorrente na agenda de governadores, deputados e senadores3. Tais informações corroboram a importância de, segundo Santi (2014), “historicizar” as questões de pesquisa para, neste caso, entender como se estruturam as narrativas acionadas pelo portal Roraima em Tempo ao falar do garimpo (ilegal) em terras indígenas e dos protestos em seu apoio realizados em 2019. Segundo Santi (2014, p. 04), “[...] historicizar é o primeiro passo para o desenvolvimento de ferramentas exploratórias que permitam não apenas estabelecer limites definitivos nos territórios de nossos saberes, mas, sobretudo, concentrar energias na compreensão das transformações das ideias e dos conceitos”. 2 Disponível em: < http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home>. Acessado em 15 mar 2020. 3 Gente como Romero Jucá, Mozarildo Cavalcanti, Teresa Surita, Édio Lopes, Elton Ronhelt e mais recentemente Antonio Nicoletti, em suas respectivas alçadas, já apresentaram projetos direcionados a questão da liberalização da exploração mineral nas áreas protegidas de Roraima.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Como vimos, no decorrer da história, a atividade garimpeira mantém uma forte relação com o “desenvolvimento” social e econômico do estado de Roraima. Por isso que reconhecer esse papel na formação do estado, permite entender (no presente) suas influências e contribuições para construção das narrativas (jornalísticas) dos fatos reportado pelo Portal Roraima em Tempo, como parte de um dos ciclos da conturbada história local. Conforme Santi (2014, p. 03), a historicização permite fazer um resgate dos temas estudados e referenciados, reconhecendo os aspectos em que foram gestadas tais ideias e os fatores que contribuíram para suas transformações. Segundo o autor “[...] esse processo de resgate histórico implica em acompanhar o movimento de gestação dos conceitos e junto o tecido de significados e de referências de que eles são feitos”. Vale lembrar, se ainda não ficou evidente, que o garimpo em terras indígenas é atividade proibida no Brasil. A Constituição Federal no Parágrafo 3 do Artigo 231 diz literalmente que: “[...] o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, só podem ser efetivadas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados de lavra, na forma da lei”. Mais ainda: para que a exploração seja efetivada nestes espaços, é necessário que o Congresso Nacional aprove uma Lei Complementar para definir os critérios da extração mineral e da garimpagem nas terras indígenas – algo que não ocorreu desde 1988, mas pode acontecer ainda em 2020, já que o atual presidente Jair Bolsonaro assinou no início de ferreiro, um projeto de lei que estabelece as bases para a exploração econômica das terras indígenas. Antes disso, porém, em agosto de 2019, a Câmara dos Deputados já tinha aprovado na Comissão de Constituição e Justiça a PEC 187/2016 que autoriza atividades agropecuárias e florestais em terras indígenas. Foi essa sinalização, junto com a promessa feita publicamente pelo presidente da República em julho de 2019 e sua contradição com a deflagração da operação Curaré XI4 que, segundo a narrativa do portal Roraima Em Tempo, levaram a deflagração dos protestos e suas narrativas aqui tomadas para análise. No dia 09 de outubro de 2019, um grupo de garimpeiros se reuniu no início da manhã no parque urbano Germano Augusto Sampaio, na zona Oeste da capital do estado Boa Vista-RR, para anunciar que iria bloquear parcialmente a BR-174, principal rodovia de acesso a Roraima – fato que foi noticiado pelo portal do jornal Roraima em Tempo. No fim da manhã o portal publicou detalhes do protesto, dessa vez relatando que os garimpeiros já estavam bloqueando a rodovia. 4 Para combater crimes fronteiriços, ambientais e intensificar a presença militar na região Amazônica o Exército Brasileiro deflagrou a fase XI da operação Curaré em setembro de 2019. A ação envolveu instituições de segurança como as polícias Federal, Civil e Militar de Roraima, com o apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e Femarh (Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos). A operação desmontou acampamentos de garimpeiros e explodiu pistas clandestinas de voo, utilizadas para pouso e decolagens de aeronaves de transporte de ouro, insumos e garimpeiros.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No dia 10 de outubro de 2019 o portal noticiou que os garimpeiros pediam uma reunião com o presidente da República e com a Bancada Federal de Roraima (oito deputados) para ter informações sobre o projeto que legaliza o garimpo e chancelaria garimpar nas terras indígenas durante sua tramitação. Ainda no dia 10 de outubro o jornal publicou que os garimpeiros deixaram a BR-174 para acampar na praça do Centro Cívico5 e reivindicar uma reunião com o então governador do estado Antônio Denarium, para discutir a liberação da extração mineral em terras indígenas e exigir a retirada do Exército que executava a operação Curare XI naqueles territórios. Na manhã do dia 11 de outubro de 2019 o portal noticia que os garimpeiros continuam acampados na Praça do Centro Cívico e que aguardam a reunião com o Governador. E, pela tarde, veicula a notícia que os garimpeiros foram recebidos pelo Governador para debater sobre a aprovação de uma lei estadual que regulamenta a mineração nas terras fora das áreas indígenas e sobre as constantes operações do Exército que acontecem nas regiões de exploração de garimpo ilegal. No dia 14 de outubro de 2019 o portal do Jornal Roraima Em Tempo púbica mais duas matérias envolvendo a questão do garimpo. A primeira notícia a apreensão de dois helicópteros e mais vinte pessoas em uma fazenda do município de Amajari/ RR – todas acusadas de atuação em garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. A segunda atesta que o grupo que pede a legalização do garimpo em terras indígenas no estado continua acampado na Praça do Centro Cívico. Já no dia 22 de outubro de 2019 o portal publica matéria onde relata que o grupo de garimpeiros acampados no Centro Cívico será recebido na Assembleia Legislativa do Estado, para uma audiência pública na qual serão discutidas questões relacionadas com a legalização de suas atividades. No entanto, os garimpeiros voltam a protestar fechando a BR-174 no dia 04 de novembro de 2019 e o site volta a publicar matéria relacionada a questão, desta vez com o seguinte título: “Garimpeiros voltam a bloquear a BR-174 em protesto pela legalização da atividade”. No dia 05 de novembro o site publica mais duas reportagens mostrando que o grupo de garimpeiros não liberará a rodovia até que seja recebido pelo presidente da República. No dia seguinte, 06 de novembro de 2019, o site apresenta a manchete: “PRF negocia a liberação de caminhões parados na BR 174 devido ao protesto dos garimpeiros”. E também notícia que a Casa Civil da presidência da República está ciente do protesto dos garimpeiros em Roraima. Ainda no dia 06 o portal Roraima em Tempo publica outra matéria onde afirma que a Polícia Rodoviária Federal, junto com a Polícia Federal, já recebera autorização do Judiciário para desbloquear a BR-174. Na manhã do dia 07 de novembro, porém, o portal anuncia que, mesmo com a decisão da Justiça Federal, os protestos continuam e a principal rodovia que dá acesso a Roraima continua bloqueada. 5 A praça do Centro Cívico, também conhecida como Praça do Garimpeiro, é um lugar estratégico em Boa Vista-RR. Em seu entorno estão instaladas as casas principais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No centro dessa praça existe um monumento em homenagem ao garimpeiro erguido na década de sessenta.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Na parte da tarde, no entanto, o portal notícia que o protesto dos garimpeiros chega ao fim. Embora os manifestantes não temessem a ordem judicial e o seu descumprimento, dizem que pesaram os riscos de a capital Boa Vista ficar sem energia elétrica, já que a cidade é abastecida em grande parte por usinas termelétricas movidas a diesel que dependem de combustível vindo de Manaus.

O padrão das narrativas O protesto dos garimpeiros em Roraima e a interdição da BR-174 afetou a cidade de Boa Vista, pela falta de mantimentos e pela possibilidade de faltar combustível para abastecer as usinas termelétricas do estado. O movimento deixou evidente a existência de uma atividade clandestina perpetuada no processo histórico de formação local e enraizada no sistema econômico de Roraima. O padrão das narrativas veiculada pelo portal Roraima em Tempo no período, invocou o lead tradicional (que contém as respostas para as perguntas: o que, quando, onde, como e por quê?) e se concentrou em apresentar a pauta de reivindicação a partir do ponto de vista dos garimpeiros. Focou sua narrativa na necessidade de legalização da atividade em Roraima e nas reinvindicações de melhoria nas condições de trabalho dos garimpeiros. Nesse caso, os jornalistas que recolheram as informações das fontes primárias, como representantes de instituições que trabalham para estruturar as notícias, comerciaram com fontes por eles consideradas confiáveis e não identificaram a necessidade de buscar outras informações (em seus contextos) para apurar e ilustrar melhor os fatos. Se tivessem caminhado na direção das fontes secundárias, como aponta Lage (2012), talvez pudessem emprestar maior embasamento ao material recolhido, antes de consolidar as reportagens. A partir das narrativas construídas avaliamos que não se pode falar em “valor de descoberta” nestes textos, pois não há neles confronto de opiniões, acionamento de especialistas ou de outros documentos e arquivos. Para o portal Roraima em Tempo os garimpeiros, legitimamente, saíram da floresta impulsionados pela promessa presidencial de legalizar a exploração de minérios, com poder de voz para reclamar das ações do Exército Brasileiro em sua tentativa de coibir tal prática ilegal nas áreas indígenas. Ao analisarmos mais de perto a configuração da narrativa jornalística do portal Roraima em Tempo, no período observado, reunindo cada episódio apresentado nas notícias, posicionando-os de acordo com seu contexto e sua localização histórica, observamos certa unidade de temática das questões, com acionamentos de significados coerentes em cada episódio – mas sem deixar evidentes os conflitos, nem os vínculos estruturais dos personagens invocados na construção da narrativa. Tal forma de construção narrativa parece um tanto perigosa já que, conforme Todorov (2006, p. 86), a sequência ordenada dos fatos pode ser percebida pelo leitor como uma história acabada e a narrativa mesmo “mínima”, como “completa”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Como refere Motta (2013, p.100), os leitores ou ouvintes (público ou audiência) constroem cognitivamente significados a partir de informações provenientes do “texto da notícia”, mas não deixam de acionar informações do contexto e de suas próprias experiências, memória e cultura. Por isso, quando o veículo abre mão de acionar experiências, memórias, culturas e documentos outros na construção de sua narrativa parece apostar alto demais na capacidade dos leitores para completar a significação, revestindo os fatos com seu próprio sentido. Com isso o jornal reforça a ideia de história acabada, com narrativa mínima (mas completa), em suas publicações sobre os protestos que reivindicavam a legalização do garimpo no estado de Roraima. O protesto dos garimpeiros que interditou a principal rodovia de Roraima, iniciou no dia 09 de outubro 2019, num parque urbano localizado na periferia da cidade de Boa Vista. Conforme o texto da notícia publicada, participaram do ato cerca de 300 garimpeiros, os quais contaram com o apoio dos órgãos de segurança como a Polícia Federal e a Secretaria Municipal de Trânsito. Na segunda notícia sobre o protesto, o portal Roraima em Tempo invoca e apresenta um dos personagens principais de sua construção narrativa: o porta-voz do Sindicato dos Garimpeiros de Roraima, William Menezes. Em seu depoimento (tomado como narrativa mínima, mas completa), o garimpeiro caracteriza o movimento como uma ação apenas de “[...] trabalhadores e pais de família” que “[...] sustentam” a economia do estado de Roraima com sua atividade (ilegal). Não queremos brigar. Queremos apenas trabalhar porque também somos pais de família. As terras são da União, mas quem sustenta a União é o povo, e não o Governo [Federal]. Ele só é responsável por gerenciar. Queremos dialogar e tentar achar uma solução porque é o garimpo que sustenta o estado de Roraima6.

Como os garimpeiros não tiveram suas solicitações atendidos com o bloqueio da BR-174, resolveram acampar na Praça do Centro Cívico (a Praça do Garimpeiro), em frente a sede dos três poderes locais, para pedir audiências com o Governador do Estado e demais autoridades de Roraima. O texto da notícia que apresenta a iniciativa mais uma vez invoca um personagem e apresenta Jonas de Souza como o representante dos garimpeiros para reforçar a narrativa que a atividade (mesmo ilegal) forma a base econômica do Estado. “Queremos apenas a legalização da nossa atividade. Somos pais de famílias. Somos uma economia marginal, que movimenta o estado. Nós compramos comida, máquinas, combustível, e de onde vem esse dinheiro? Do garimpo. Queremos apenas a legalização”7. O grupo então é recebido pelo Governador de Roraima, mas quem dá detalhes do 6 William Menezes, porta-voz do Sindicato dos Garimpeiros, 09 de outubro de 2019. 7 Representante da categoria, Jonas de Souza, 04 de novembro de 2019.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes encontro é o personagem principal da narrativa, o porta-voz do Sindicato dos Garimpeiros, William Menezes. Mais uma vez, o personagem garimpeiro é invocado como o protagonista do acontecimento-intriga. Segundo Motta (2013, p. 174), a identificação das personagens revela as estratégias e as manobras argumentativas do narrador e neste caso aponta para o predomínio da voz do garimpo e de seus agentes garimpeiros que, mesmo na ilegalidade, assumem a dianteira do padrão narrativo reportado pelo portal Roraima em Tempo. Em todas as notícias analisadas no período o personagem principal garimpeiro aparece com poder de fala na composição da narrativa do protesto. Conforme nos lembra Motta (2013, p. 175-176), as personagens que compõem a narrativa “protagonizam a ação” e “conduzem a intriga”. Sua escolha é um processo premeditado, escolha prévia do narrador jornalista e, portanto, não é um processo inocente. Segundo o autor, [...] é o narrador quem cria premeditada e intencionalmente tudo que se passa na personagem e com personagem (ainda que de maneira inconsciente, algumas vezes). Ela não é vista como produto das demandas internas da narrativa apenas, mas como criada por vontade de um narrador em função de sua estratégia narrativa. É ele quem impõe força à personagem, que faz mover-se na estória (MOTTA, 2013, p. 177).

Conforme Motta (2013) tal máxima também vale para o jornalismo e para os personagens que o jornalismo elege na construção de uma narrativa sobre determinados fatos. Ao configurar a notícia, o jornalista aciona elementos que auxiliam na refiguração dos fatos, em consonância com as premissas do veículo para o qual trabalha ou com sua suposta conduta moral e ética de profissional de imprensa. Para dar direcionamento as narrativas, seleciona expressões, valoriza personagens e, com sua força (a força do narrador), empresta intenção e ritmo à leitura. Como afirma Motta (2017, p. 55), toda narrativa realiza algo (atrai, adverte, conquista, excita, motiva, coopta, mobiliza, etc.), [...] realiza jogos de linguagem e de poder. Por isso, toda narrativa é argumentativa, pois é dotada de intencionalidade, orienta-se para mudar espíritos, realizar determinado efeito de sentido. Se alguém escolhe organizar narrativamente seu discurso, é porque sabe, intuitiva ou racionalmente, que o relato é a melhor estratégia para realizar suas intenções comunicativas. Todo narrador conhece o potencial de sedução e envolvimento que a narrativa contém (MOTTA, 2017, p. 55).

Portanto, como frisamos anteriormente, a narrativa construída pelo portal Roraima em Tempo não é inocente. Ao conceder lugar privilegiado de fala ao garimpo e aos garimpeiros, contemporiza (ou apaga) a condição ilegal (e criminosa) de sua atividade e passa a tratar do protesto dos garimpeiros (um grupo que explora ilegalmente rique-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes zas minerais localizadas em áreas indígenas e de proteção permanente, causando inúmeros problemas ambientais, como a contaminação por mercúrio nos rios e nas florestas) como um simples fato (jornalístico) que merece cobertura, sem questionar sua legitimidade, nem os fundamentos (i)legais de sua ação. Quando tais práticas e seus padrões narrativos são confrontados com os pressupostos do jornalismo ambiental fica ainda mais evidente qual a sua fisionomia. Segundo Bueno (2007, p. 36), o jornalismo ambiental “[...] é um jornalismo que apresenta compromisso com o interesse público, com a democratização do conhecimento, com a ampliação do debate” e deve permear “[...] todas as páginas ou seções de um veículo por aglutinar assuntos que envolvem diversos setores como cultura, sociedade, economia e política”, para que a fragmentação imposta pelo sistema de produção jornalística não fragilize a cobertura. Na narrativa do portal Roraima em Tempo, no período analisado, apesar da potencialidade que o tema “garimpo ilegal” oferece para discussão das questões ambientais, estas em nenhum momento são acionadas, o que (de fato) fragiliza ainda mais sua cobertura. O jornal, na construção do seu padrão narrativo, ignora as funções previstas pelo próprio Bueno (2007, p. 35), para o jornalismo ambiental: não informa convenientemente, não educa e despolitiza. Peca por não atualizar as informações acerca da temática ambiental; não explica as causas e as origens dos problemas ambientais causados pelo garimpo ilegal; e, não consegue engajar as pessoas na defesa do meio ambiente e na luta contra depredação irracional causada por uma atividade criminosa. O padrão narrativo do portal Roraima em Tempo na cobertura dos protestos em defesa da legalização do garimpo em terras indígenas em Roraima esquece do pluralismo e da diversidade, ignora os fundamentos do jornalismo ambiental e, como acontece com a velha mídia tradicional, contribui para transformar (ao menos em nível de discurso), o ilegal em produto “vendável”, refém de ações mercadológicas, empresariais ou de interesses políticos e econômicos (BUENO, 2007, p. 36). Reafirmamos, portanto, que nas duras narrativas fáticas do dia a dia, o portal Roraima em Tempo esquece do forte apelo ambiental da extração ilegal de minerais em terras indígenas e não incorpora no seu padrão narrativo as questões envolventes do jornalismo ambiental e muito menos a fala dos povos indígenas. A cobertura, em geral, apresenta textos fragmentados, recortados de espaços temporais diferentes, nos quais aparecem apenas a voz do garimpo ou do garimpeiro, como personagens centrais relacionados à questão – todos “homens de bem” que, apesar dos seus crimes, só buscam “sustentar suas famílias” e “movimentar a economia” do estado.

Considerações finais Analisar a configuração da narrativa jornalística nas matérias produzidas pelo portal Roraima em Tempo sobre o protesto dos garimpeiros (e suas intencionalidades),

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes descortinando o contexto na qual foram produzidas, acabou por revelar parte dos jogos de poder efetivados entre interlocutores privilegiados e suas relações com a herança de um passado que entrelaça questões políticas e econômicas, com danos ambientais irreversíveis provocados pelo garimpo ilegal em nível local. Ao apontarmos a necessidade de reconfigurar a construção do contexto e historicizar a questão do garimpo ilegal em Roraima evidenciamos que a notícia, para construir narrativa, necessita reorganizar um espaço e um tempo outro, diferente daqueles difusos e desorganizados recolhidos dos fatos aleatórios reportados do cotidiano. Pois concordamos que o jornalismo ao recompor os acontecimentos em notícias, organizando-as em editorias e distribuindo-as conforme horas, dias e semanas, promove o surgimento de uma nova tessitura de significações sociais que não necessariamente corresponde àquela situação original de onde tais fatos foram recolhidos. No caso da cobertura dos protestos em defesa da legalização do garimpo em terras indígenas de Roraima essa reconstrução, essa nova tessitura, fica evidente tanto pela interferência e poder do narrador dos textos noticiosos e suas escolhas, quanto pela invocação sistemática de personagens pinçados do mesmo lugar de fala e que utilizam sempre das mesmas expressões na tentativa de emprestar legitimidade as suas ações duplamente ilegais – pois, se o garimpo em terras indígenas é ilegal, o trancamento de vias públicas como recurso de protesto também é. Com a investigação apuramos ainda que em todas as matérias veiculadas no período os jornalistas fazem menção a Projeto de Lei elaborado pelo Governo Federal que prevê a liberação do garimpo em áreas indígenas. Como discutimos nas seções anteriores, isso não é só coincidência, muito menos uma escolha inocente. Faz parte de uma estratégia para construção de um padrão discursivo que, quando acionado, ajuda a (re)construir a memória coletiva sobre o assunto. Aqui o jornalismo, em acordo com o que escrevem Maia e Tavares (2017, p. 79), atua como “agente de memória”, na medida em que ajuda a acionar fatos do passado para compreensão de determinados acontecimentos, para justificar fatos do presente ou induzir a interpretações Em contraponto, porém, o jornalismo, como bem demostrou a análise das matérias produzidas pelo portal Roraima em Tempo, também pode funcionar como “agente de esquecimento” na medida em que ajuda a perder de vista o contexto e a história dos fatos, agentes e acontecimentos, induzindo assim no universo de significações outras interpretações incompletas, mas possíveis. Ao enfatizar o poder existente na narrativa jornalística, Motta (2013), destaca que a notícia é um produto em disputa – disputado pelos veículos, pelos jornalistas, pelos personagens, pelos leitores etc. Nela cada agente tem interesses diferentes. Estes interesses por vezes se confrontam no texto que, dependendo do seu objetivo, pode privilegiar determinado ponto de vista em detrimento das demais forças envolvidas na disputa por esse poder simbólico.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A tentativa de equalização dessa disputa se reflete na configuração final da estória publicada, na configuração final do padrão narrativo do veículo analisado. Este padrão, para o caso em tela, refirma o que Bueno (2007) chama de “síndrome do jornalismo ambiental” em pelo menos três dos seus cinco sintomas principais – olhar vesgo, muro alto e indulgências verdes. A predominância de olhar apenas em uma direção, com destaque para as reivindicações dos garimpeiros em protesto; a obliteração de outras vozes e formas de ver; e, a tentativa por neutralizar (ou ignorar) as ações danosas causadas pelo garimpo ilegal em terras indígenas, além de atestar a síndrome da qual sofre o jornalismo praticado pelo portal Roraima em Tempo, relembra, em acordo com Motta (2013), que o texto narrativo jornalístico também é um ato intencional em contexto, que sempre tem um intuito ou propósito mais ou menos claro. No caso da cobertura dos protestos pela legalização do garimpo em terras indígenas em Roraima, nos parece que estes “estados intencionais” estão bem claros nas narrativas manifestas e no padrão narrativo configurado a partir delas. Para o mal ou para o bem (e apesar das ausências), estão aí: os crimes e os criminosos; as intenções ilegais e de legalização; as lutas de poder entre grupos sociais hegemônicos e não hegemônicos; a ausência das políticas públicas e do Estado; uma noção de economia marginal; ideias (equivocadas) de desenvolvimento; e, algumas estratégias de comunicação e (in)comunicação.

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PARTE II

JORNALISMO, SUBJETIVIDADES E ALTERNATIVAS

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

A SUBJETIVIDADE COMO UMA PROPOSTA DE DECOLONIZAÇÃO DO JORNALISMO BRASILEIRO Fabiana Moraes “A conscientização é um processo, não é uma exigência. É um caminho de muitas perguntas, e não um caminho moral, mas de responsabilidade política. É o reconhecimento de algo: o que é que eu faço com o que sei, agora que sei?” Grada Kilomba, 2018.

Introdução Há um vácuo prático-epistemológico no jornalismo brasileiro: nele, repousam tocadas apenas superficialmente questões pertinentes a raça, classe, gênero, geografias. Assuntos-chave das relações sociais que foram historicamente tratados apenas como temas, quase como “personagens”, com a imprensa e tantas vezes a academia servindo antes como veículos de divulgação, mas pouco implicando a si mesmas como partícipes. Assim, mantiveram-se distantes do exercício de realizar, por si, movimentos capazes de estabelecer uma nova ordem discursiva nessa área de conhecimento, algo urgente em um Brasil no qual expressivas fatias populacionais continuam sendo desconvidadas a surgir de maneira íntegra. Tanto da parte da academia quanto da imprensa decidiram seguir aquilo o que Sodré (2019) chamou de “boa consciência” iluminista que repetia para si e para o mundo: somos todos iguais. É algo que, no Brasil, ganhou contornos muito próprios a partir de uma “democracia racial” que faz, inclusive, com que a discussão sobre a decolonialidade ganhe caráter próprio quando estudada a partir daqui, como veremos. O fato é que essa intenção – também uma performance liberal que serve de escudo ao dono da boa consciência e explica parte da superficialidade citada – terminou por solapar assuntos estruturais da vida brasileira, o racismo derivado de uma abolição precária sendo um deles. Essa realidade, somada ao fato de termos a mídia como pedagogia secundária no Brasil (Sodré, 2019), produziu o tal vácuo que mal nos sustenta: nas áreas dedicadas à comunicação (cinema, publicidade, jornalismo etc.)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes continuamos a nos gabar de nosso fértil percurso tecnológico enquanto vamos somente tateando (e publicizando) uma sociedade permeada por silenciosas desautorizações justificadas por cor, classe e gênero. Quero falar um pouco mais sobre a dupla prática e epistemologia que absorve (e esconde) tão bem esses vazios. No nível prático, consigo refletir desde a experiência de mais de duas décadas como jornalista, a maior parte delas em uma redação na qual fui antes de tudo repórter, a despeito de ter trabalhado constantemente na edição e como colunista. Estive em editorias soft (turismo, cultura) e editorias hard (cidades, política), conseguindo nos últimos anos reunir o assunto “leve” a uma editoria “séria”, o que me fez pensar bastante sobre que temas, no ambiente jornalístico e fora dele, consideramos ou não importantes e “políticos”1. Com a sorte de ser agente e ao mesmo tempo observadora, pude perceber como, cotidianamente, produzíamos notícias sobre uma realidade com a qual tínhamos efetivamente pouco contato, levando falas “do povo” até as páginas de maneira industrial, rápida (muitos e muitas repórteres com três, quatro, matérias em um único dia), produzindo a errônea ideia de uma “inclusão”, de democracia. Simultaneamente, mas em produção menor, reportagens com profundidade eram realizadas, mas várias delas seguindo datas/efemérides específicas nas quais este ou aquele grupo estavam autorizados a aparecer de maneira mais positiva que o “normal”: indígenas, quilombolas, negros, mulheres, etc.2 De maneira geral, acontecia ali o que é comum nas redações ao redor do planeta: correndo contra o relógio, estava o/a jornalista que “não tem tempo para pensar” (Moretzshon, 2007) sobre o mundo, embora esteja autorizado a falar sobre o mesmo. Estávamos também cientes e orgulhosos de nossa missão guiada pelo equilíbrio e precisão dos fatos. Tecnicamente, nossa função era apenas reportar “o outro” de maneira neutra, batermos o ponto e irmos para nossas casas cobertos pelo manto da imparcialidade. O que nos escapava, porém, é que a objetividade jornalística tem, por exemplo, raça e tem gênero (Moraes e Veiga, 2019). No nível epistemológico, esse tatear continua no campo da comunicação (e do jornalismo) e explica boa parte do comportamento das redações. Temos boas pistas da falta de aprofundamento das relações sociais (e de uma perspectiva racional ocidental) e de uma base colonizada no interior da mídia já trazidas por nomes como Torrico (2018, 2019), Borges (2019), Medina (2008), Veiga da Silva (2014), Linhalis (2019). Borges vai até a semântica para buscar radicalmente aquilo o que a comunicação a princípio estabelecia: a partilha, a realização de vínculos entre 1 Explico: nos últimos seis anos no Jornal do Commercio, realizados simultaneamente ao mestrado e doutorado na UFPE, experimentei falar sobre temas como raça, estupro, identidade, representação, jornalismo, transexualidade, travestilidade, em uma editoria de cultura, o Caderno C, até então dedicado prioritariamente a assuntos “leves”, seguindo um padrão comum na imprensa brasileira, que faz uma separação esdrúxula entre o que é ou não político (esta categoria geralmente pensada apenas para a política institucional e partidária) 2 Algo parecido com o que vemos nos dias atuais, quando, por exemplo, jornais e portais dedicam espaço para temas sobre racismo em meses como maio e novembro, chamando jornalistas negros para o debate. É o caso do televisivo Roda Viva (TV Cultura), que raramente traz negros em suas bancadas de entrevistadoras e entrevistadores, quase sempre pessoas brancas e do Sudeste do país. Estes sim estão mais capacitados, parece sugerir o programa, a discutir temas mais “universais”. Os negros são chamados, ora veja só, para discutir raça.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes comuns, questões marginalizadas nas pesquisas que ganharam hegemonia nesse campo dominado pela mass comunication research. Considerando as diferenças entre perspectivas (escola funcionalista, escola crítica, Estudos Culturais), ela, baseando-se na questão do vínculo enfatizado por Sodré, procura reposicionar o papel da comunicação nas suas raízes mais fundas, se afastando de uma posição instrumental da linguagem. Diz:

Em templos conflagrados pelo ódio nas redes e nas ruas, em que o Outro é pisoteado pelo Eu hegemônico, como promover o vínculo? De que modo a reivindicação por novos estatutos da imagem, por novas formas de enquadramento, nos leva a pensar a radicalidade da comunicação, uma vez que colocou em cena a “não-semelhança”, termo bem explorado por Achile Mbembe (2018) no processo de produção de imagens estereotipadas? De que maneiras as relações raciais revelam, ao mesmo tempo que ocultam, os desafios e obstáculos para a produção efetiva de vínculos? A alterofobia, que no Brasil se materializa principalmente no racismo antinegro, é parte integrante das formas de comunicação prevalentes nas malhas digitais e extensivas aos espaços materiais (Borges, 2019, posição 385 de 4824).

A questão é que a comunicação (e, sublinhamos, o jornalismo) é mais um “produto” gerado a partir de uma perspectiva que se entende por universal, por uma “epistemologia-mãe” gerada e parida no continente europeu e assentada em pressupostos cartesianos distribuídos ao redor do mundo. Ela foi mapeada, por exemplo, por estudos feministas de diversas ordens interessados em questões como objetividade, raça e diferença (Haraway, 1995; Harding, 2019; Ferreira da Silva, 2019; Veiga da Silva, 2014) e nas investigações decoloniais (Grosfoguel, 2016; Torrico, 2018, 2019). Na comunicação, Medina já observava em 1995 uma “crise de paradigmas” que afetava um jornalismo baseado em princípios funcionalistas e positivistas, impregnados não só por Descartes, mas também Auguste Comte, este membro da tríade que ainda conformaria Darwin e Spencer e semearia “novas ideias” em jornais como A Província de São Paulo, mais tarde O Estado de S. Paulo (Schwarcz, 2017). Nesse sentido, é importante dizer que, ao escrever sobre os “abalos no edifício positivista”, Medina (2008) expunha em solo nacional que fatores como veracidade e objetividade já não davam conta (na verdade, nunca deram) da complexidade dos acontecimentos, “das experiências de dor e alegria, dos comportamentos humanos, os espantos da crueldade” (Medina, 2008, p. 29). Já a partir do começo dos anos 70, em pesquisa ao lado de Paulo Roberto Leandro sobre a cobertura jornalística brasileira (A arte de tecer o presente), ela percebe que elementos como o contexto social, as identidades culturais/raízes históricas e o protagonismo anônimo passam a agendar as temáticas da imprensa fazendo com que jornalistas devessem, para assumir uma narrativa mais complexa, realizar o método de desmistificação e promover uma articulação dos sentidos, aos moldes psicanalíticos. A realidade objetiva, afinal, precisa sofrer não uma interpretação, e sim várias.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Mas há uma questão que precisa ser sublinhada. Apesar de já espalhar os artefatos que permitiam ruir o tal edifício positivista, apesar de observar um jornalismo que ampliava sua ação sobre camadas mais amplas da sociedade brasileira, não vemos trabalhadas na análise as questões fundamentais do racismo, de uma abolição precária, de um positivismo/cartesianismo calcados na diferença racial, como estruturantes do fazer comunicacional e jornalístico3. Afinal, a imprensa herdou mais que uma ideia de “objetividade” e “neutralidade” científicas, herdou aquilo o que está impregnado na criação dessas estruturas e que infelizmente reverbera até hoje: uma racionalidade atravessada por hierarquias estabelecidas pela cor e pelo gênero. Três episódios que ambientam a escrita deste texto (feito em junho de 2020, durante isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19) merecem ser trazidos para expormos essa continuidade: no dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis (EUA), o policial branco Derek Chauvin se ajoelhou no pescoço do segurança negro George Floyd por quase nove minutos. O ato, que levou Floyd à morte, foi gravado por Darnella Frazier e as imagens percorreram o mundo, levando principalmente os EUA a verem suas ruas tomadas por protestos anti-racistas. No Brasil, uma semana antes, no dia 18 de maio, o adolescente negro João Pedro Mattos Pinto, 14 anos, foi assassinado com um tiro de fuzil dentro da própria casa. O assassinato de João já ecoava nas redes quando ganhou mais impulso a partir da repercussão da morte brutal de Floyd, o que levou a imprensa brasileira a pautar o tema. No dia 2 de junho, o programa Em Pauta, na Globonews, reuniu 7 jornalistas para debater temas diversos, entre eles racismo. Todos eram brancos, o que chamou atenção de internautas nas redes sociais. No outro dia, por conta das críticas, e não por uma reflexão editorial própria, o programa montou uma “bancada” totalmente negra. Há um ponto a ser pensado: como dito antes, em nota de rodapé, pessoas negras são comumente chamadas para discutir racismo.

Imagens: reproduções de tela em redes sociais. 3 Medina tratou especificamente sobre o tema racismo e imprensa em palestras como aquela realizada em 1995, na USP. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/9/26/cotidiano/46.html.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Não é possível fazer uma crítica ao mito da objetividade jornalística ainda tão forte na prática profissional sem antes explicitar como essa objetividade se estrutura e se mantém. Em suma, há um racismo epistêmico que fundamenta boa parte de nossa imprensa e seus modos de ver e fazer. Esse racismo, hoje encarado por alguns veículos como um problema também interno, do jornalismo4, está acompanhado por uma construção de uma outridade (Spivak, 1985) baseada em uma diferença estabelecida por quem gerencia esses modos de ver e fazer. Nela, por exemplo, mulheres, nordestinas e nordestinos, indígenas e outros grupos minoritários são trazidos de maneiras resumidas. É por isso que, pensando a partir de Medina e Roberto Leandro, cabe uma pergunta para a imprensa que se aproximou das temáticas sociais e identitárias: como se deu essa aproximação e que tipos de visibilidades foram conferidas? Não podemos partir do princípio que toda visibilidade se traduz de maneira positiva: ela pode reafirmar diferenças construídas simbolicamente – para vários povos indígenas, por exemplo, a visibilidade também pode matar5. Nesse ponto, retorno para a redação na qual estive 20 anos e para a cobertura jornalística que até hoje acompanho, estendendo esse olhar para como produtoras e produtores da notícia expressam suas práticas em redes sociais como o Twitter, que ganhou ainda mais relevância depois de ser tomado como plataforma política/ institucional (vide governos Trump e Bolsonaro). Apesar de termos caminhado para lugares mais interessantes, continuamos, jornalistas, a exibir a “imparcialidade” como nosso grande capital.

Imagens extraídas do Twitter.

É nesse sentido que me parece inescapável a reflexão do próprio campo sobre 4 Posso citar veículos como Agência Pública, o coletivo É Nóis Conteúdo e Marco Zero Conteúdo como exemplos. 5 Por exemplo, o experiente cineasta Vincent Carelli, um dos criadores do projeto Vídeo nas Aldeias, relata que se arrepende do uso da câmera escondida e ainda do uso do zoom no filme Corumbiara (2009), no qual ele mostra a violência de posseiros contra um grupo de indígenas. Este grupo evitava ser capturado pelas câmeras, mas terminou sendo registrado na película. Assim como Carelli, outras e outros profissionais refletem sobre os perigos de se visibilizar grupos que, uma vez mapeados, podem estar mais à sorte daqueles que querem suas mortes em nome da posse da terra. Depoimento de Vincent Carelli presente na entrevista publicada na Revista Zum (junho 2017), em https://revistazum.com.br/revista-zum-12/entrevista-carelli/.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes suas práticas, algo pertinente ao que chamo de jornalismo de subjetividade, que se entende não apenas como um “veículo” narrativo de questões como desigualdade de cor e gênero, de classe e território, mas como estruturador destes fenômenos. A seguir, realizo uma atualização do termo que comecei a trabalhar em 2015 e, posteriormente, o conecto a elementos de uma comunicação perpassada pelo conceito de decolonialidade.

Jornalismo de subjetividade: para além da “humanização” e dos “afetos” A reflexão inicial do que chamo de jornalismo de subjetividade foi realizada entre 2014 e 2015, quando trabalhava como repórter especial no Jornal do Comércio. Ao desenvolver um olhar sobre minha prática, minhas abordagens, minha escrita e minha relação com uma personagem específica, Joicy, passei a identificar elementos que de certa maneira se repetiam em meu cotidiano profissional: a necessidade de uma aproximação que não se configurasse apenas pelo elemento técnico do jornalismo, distanciado, mas também uma recusa em estabelecer uma falsa proximidade, uma esvaziada “humanização” dos personagens. Havia um certo cansaço, de minha parte, em continuar a publicizar, usando os mesmos lugares comuns nos jornais, as vidas de pessoas inseridas em ambientes precários: aquelas que “venceram”; as “vítimas”; as “engraçadas”; as “criativas” que davam um jeito de driblar a pobreza. As violentas, aquelas que fugiam um pouco desses aspectos “positivos”, seguiam aparecendo todos os dias. De maneira geral, parecia que aquilo o que muitos e muitas colegas chamavam de “humanização”, termo geralmente associado a pessoas inseridas em contextos economicamente/socialmente desfavoráveis, trazia poucas matizes sobre os grupos/indivíduos implicados, uma certa romantização e uma separação quase arquetípica entre “mal” e “bem”. A tal humanização de personagens também escondia muitas vezes apurações bastante frágeis. Essa necessidade de tentar estabelecer diferentes visibilidades e dizibilidades (Albuquerque Jr., 2018) tinha relação – algo que não estava naquele momento tão claro em minha cabeça – com fatores de raça e classe que me perpassavam. Exmoradora de um morro na zona norte recifense (Alto José Bonifácio), eu sabia que a pobreza tinha diversas outras apresentações e representações além daquelas publicizadas tanto pelo jornal no qual trabalhava quanto em outros que lia ou assistia. A leitura homogênea de classes populares e aquilo o que ela trazia a reboque era, assim, algo que se destacava como negativo para mim. Outro ponto foi perceber o alto grau de racismo instaurado naquela mesma redação, onde meu nome foi substituído muitas vezes por “nega” ou “neguinha”, algo comum (mas não natural) entre mulheres de pele escura6. Se boa parte desse tratamento foi aparentemente 6 Em uma ocasião, em meados dos anos 2000, substituía a editora em férias e participava de uma reunião de pauta. Todos os editores e editoras eram chamados e chamadas pelos seus nomes. Na minha vez, fui chamada de “Neguinha”. Comentei as pautas e, no final da reunião, chamei o então diretor executivo para dizer que, naquele ambiente, ele por favor me citasse pelo meu nome. Foi uma atitude repleta de medo, temia ser demitida e chamei a atenção do editor com bastante cuidado. Não adiantou muito: ele (que disse que o apelido era apenas “carinho”) passou meses sem falar comigo e meu medo de ser mandada embora do jornal só foi ultrapassado quando ele deixou a redação, tempos depois.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sublimado em nível pessoal, sua face coletiva não o foi: a constância nas pautas que tratavam da pobreza em suas dimensões materiais, afetivas e de representação passaram a dar a tônica das matérias e reportagens que desenvolvi, realizando uma espécie de autocrítica do campo produzindo no próprio campo. Acredito que aí, ao realizar o exercício do perguntar-se, enquanto jornalista, porque as coisas são como elas são (Moretzshon, 2007), descortinaram-se para mim de maneira mais explícita problemas diversos do jornalismo que, para serem tratados à altura, precisavam de um reposicionamento profissional, ético e epistêmico, entendendo que todos se contaminam e se interrelacionam. Ainda sigo este percurso. A dimensão individual da questão subjetiva no jornalismo, porém, não pode ser entendida somente nesse nível: a subjetividade também é uma construção social, coletiva. Esta é uma questão clara em áreas de conhecimento como a psicologia, a educação e a sociologia, por exemplo, mas que ainda encontra certa confusão nos debates centrados sobre jornalismo e subjetividade (inclusive na academia). Como diz Fontana (2000, p. 222), seguindo Vigotski e Politzer, “a personalidade não é um amálgama de processos psicológicos complexos e genéricos, mas o ‘drama’ vivido nas relações interpessoais, em condições sociais específicas, por indivíduos peculiares em constituição”. Por isso, reitero que o que classifico como jornalismo de subjetividade7 se estrutura tanto individualmente quanto socialmente. Acreditar que a subjetividade se conforma a um plano individual, a algo que no máximo tem relação com uma troca bastante localizada de afetos e experiências, é deixar de compreender o impacto da própria cobertura noticiosa, por exemplo. Há também outro erro comum na discussão: acreditar que podemos “entrar” ou “sair” da subjetividade, como se a mesma não estivesse sempre implicada na produção jornalística, como se não tivesse nascido com a própria prática. Pode-se negá-la, é fato. Mas ela sempre está lá. Inicialmente, em 2015, entendi que o exercício jornalístico subjetivo era sustentado também por uma absorção ciente de áreas do conhecimento como a sociologia, antropologia e a filosofia, todas elas colaborando na confecção de um jornalismo mais crítico e capaz de operar em uma sociedade complexa. Continuo acreditando que a tríade – há muito influente nos estudos da comunicação - seja capaz de nos fazer avançar para além de leituras mais superficiais de valores que o próprio jornalismo fomentou, como, é claro, a ideia de objetividade. No entanto, hoje, acho pertinente sublinhar que me interessa antes de tudo uma ciência social e uma filosofia que se percebam também como partícipes de um processo colonial (e tentem superar essa perspectiva), como bem descreveu Grosfoguel (2016) em sua análise sobre a estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas. Uma outra questão que foi incorporada no jornalismo de subjetividade é a absorção, e não a negação, de um posicionamento crítico e o abandono de uma 7 Como explicado no livro O Nascimento de Joicy, a palavra “subjetividade” foi costurada “jornalismo” como forma de explicitar algo visto aqui como qualidade e não defeito; algo a ser valorizado e não negado. A subjetividade considerada tão presente e necessária quanto a objetividade. Em suma, subjetividade para um tipo de jornalismo que até hoje gosta de estabelecer sua qualidade apenas por critérios objetivos, como se fosse possível.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes universalidade da fala, a prática de um ativismo que em nenhum momento distrai a capacidade informativa e plural do jornalismo. Isso porque entendo que, desde seu nascimento, o jornalismo massivo foi permeado por interesses econômicos, ou seja, a isenção nunca foi uma característica dessa área de conhecimento. Apesar disso, insiste-se em realizar separações absurdas entre práticas “puras” enquanto outras, ao deixarem claros os propósitos de suas produções, são menos confiáveis. Poderíamos pensar justamente o contrário: acreditar preferencialmente em quem se revela e olhar com sérias restrições quem se antepara em lugares comuns como “apenas relatei os fatos” para esconder interesses específicos. Uma prática ativista não significa abrir mão de ferramentas e procedimentos vitais (apuração, pesquisa, produção polifônica), mas sim empregá-los em abordagens que, bem realizadas, respeitam e potencializam aquilo o que o jornalismo tem de mais poderoso: iluminar o que está sob as sombras. É vital compreender que o caminho da objetividade no jornalismo, para além dos procedimentos técnicos, deve ser guiado também pela percepção da sub-representação que atinge diversos grupos sociais, uma sub-representação, repito, causada também pelo jornalismo. Nesse bojo, acusar a presença da repórter e a partir de onde a mesma fala também é outra estratégia subjetiva assumida nesse método, uma vez que ela proporciona um melhor entendimento da construção própria que o jornalismo realiza de seus personagens. Quem está filtrando aquela vida para leitoras e leitores não está apagado, ao contrário. Não se trata de dar ênfase a um testemunho, mas acusar um processo de construção (ou seja, uma verdade entre muitas) (Moraes, 2019). Importante explicitar que, na perspectiva do jornalismo de subjetividade, a objetividade jornalística, necessária, é percebida para além da técnica e é entendida também como âmago de uma ideologia que produziu historicamente narrativas de rejeição a um mundo não ordenado de acordo com pressupostos hegemônicos. É uma objetividade que também se entende acima do bem e do mal, uma ideologia que, se por um lado encontra mais resistência no campo acadêmico, ainda guarda força nas redações do país. Como aponta Voguel (2005), ao analisar as notícias cotidianas, “a reflexão crítica sobre os modelos e as técnicas de redação de notícias tem demonstrado, contudo, que eles não podem ser simplesmente considerados óbvios, neutros e, muito menos, definitivos (Voguel, 2005, p. 124). Uma outra força recente quem vem estruturar a perspectiva de um jornalismo de subjetividade é a teoria feminista, que adentra as análises dessa construção a partir dos trabalhos de Veiga (2014) e sua pesquisa que identifica os valores heteronormativos e masculinos como estruturantes e organizadores do trabalho de jornalistas – homens ou mulheres – no ambiente da redação. Essa noção de gênero que transcende posições de homem ou mulher vai, demonstra a pesquisadora (que também articula os estudos decoloniais), nos apresentar práticas sociais desiguais, valores diferentes não só para pautas, mas também para as e os profissionais que reportam. Veiga busca elementos em autoras como Haraway (1995) e sua rica proposta de uma objetividade parcial, situada – uma perspectiva de objetividade que não se pretende universal,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que se coloca como “contaminada”, ao apresentar-se como corporificada. Tanto Haraway quanto Harding (2019) e seu conceito de objetividade forte nos apresentam, em síntese, aquilo o que para o jornalismo de subjetividade é vital articular: nada é descorporificado e universal, nem a ciência, nem a filosofia, nem o jornalismo. Veiga (Moraes e Veiga, 2019), ao comentar o avanço que a filosofia feminista traz para a pesquisa na comunicação, coloca que as mesmas Ajudam a complexificar as noções de diferença, pensando nas interseccionalidades entre os diferentes marcadores e suas implicações nas formas de assujeitamento normativo e das hierarquias de poder produzidos por regimes de verdade em que a produção de conhecimentos é chave. Tais perspectivas colocam no cerne de suas críticas os valores hegemônicos que não apenas são reproduzidos, mas fundamentam a epistemologia dominante e os modos de produção do conhecimento validado (como o Jornalismo), contribuindo para a constituição das regras que estabelecem as hierarquias sociais (Moraes e Veiga, p. 7, 2019).

Decolonialidade e subjetividade: a re-humanização como um ponto de confluência Nos últimos anos, os estudos decoloniais foram alvo de um interesse cada vez mais crescente em terras brasileiras, marcando presença em áreas de conhecimento diversas como arte, saúde, ciências sociais e comunicação. No jornalismo, especificamente, ainda são poucas as análises que se utilizam dessa perspectiva como fio orientador, mas elas já se fazem presentes na academia – e fora dela – e indicam um caminho extremamente válido para pensarmos no reposicionamento proposto por Borges (2019). Estudar a decolonialidade a partir da realidade brasileira também nos ajuda a matizar os processos colonizadores que costuram as nossas especificidades sociais e históricas. Ballestrin (2013), havia chamado atenção para a ausência de análises que, justamente, colocassem em estado de tensão a “experiência” brasileira. Com o estudo do jornalismo nacional e da subjetividade a partir não só, mas também, de um aporte decolonial, quero contribuir para diminuir um pouco essa ausência. Tanto a intervenção proposta pela decolonialidade quanto o jornalismo de subjetividade propõem uma fissura em uma epistemologia que ainda se assenta nos paradigmas da clareza, da isenção, da neutralidade, um paradigma que hierarquiza, que tem cor, raça, gênero e que propõe uma fala que deve se situar sobre todas as outras. Torrico (2018, 2019), um dos estudiosos latino-americanos que vem desenvolvendo o que chama de comunicação insurgente (também uma comunicação ex-cêntrica), pautada em uma perspectiva decolonial, apresenta em seus textos diversas propostas que guardam semelhanças com o que o jornalismo de subjetividade preconiza. Em seu âmago, pode-se dizer que ambos realizam, em um exercício de síntese, uma mesma busca: o estabelecimento de uma narrativa/representação/autonomia de

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes grupos e pessoas de maneira complexa, devolvendo aquilo o que durante séculos lhes foi roubado: a multiplicidade de suas existências. Não se trata de um mero exercício de trocar códigos, símbolos, palavras e imagens (a visibilidade é uma armadilha e a representação é um beco sem saída, nos dizem Jota Mombaça e Musa Michelle Mattiuzzi em Ferreira da Silva, 2019), e sim colaborar, ao lado de outras tentativas irmãs e semelhantes, na instauração de um dizível e visível (Albuquerque Jr., 2018) que confronte o próprio processo de naturalização de hierarquias, de silenciamentos, de outremização. De desumanização, enfim. Torrico Villanueva, que cita Quijano ao colocar que a violência colonial implicou na negação da humanidade de povos por outros considerados superiores, vai chamar de in-comunicação aquilo o que estabelecemos como seu contrário. Ela foi construída tendo como base “a verticalidade dominadora que reprime culturas, que recorre ao genocídio, que coloniza imaginários, que classifica racionalmente os inferiores e que fixou um padrão excludente de conhecimento” (Quijano, 1992, apud Torrico, 2018). Seu ponto de partida para analisar essa comunicação fraturada é o aporte do grupo Modernidade/Colonialidade, que se assenta na observação de um projeto colonial calcado no ser, no saber e no poder, com a raça e a diferença gerada a partir de seu estabelecimento atuando como mola propulsora. Nesse aspecto, se configura uma diferença epistêmica que é cúmplice do universalismo, do sexismo e do racismo (Ballestrin, 2013). Incluir a raça na estruturação de nossa produção de conhecimento e na epistemologia vigente é essencial, também, para a análise de um Jornalismo de Subjetividade que procura identificar, no fazer e pensar jornalísticos, as marcas do adocicado racismo brasileiro. Torrico Villanueva vai localizar e realocar o ponto de definição do que chama de fato comunicacional na própria natureza da comunicação histórica e cultural e no seu caráter constitutivo do humano e do social. Diz: De ese modo, ese entendimiento se ocupó de instalar un patrón ordenador que, aparte de jerarquizar los saberes en sujeción a las premisas de la ciencia positiva (colonialidad del saber) y en correspondencia com la estratificación eurocéntrica de los pueblos (colonialidad del ser), definió asimismo un prototipo civilizatorio (colonialidad del poder). Consiguientemente, cuando la Comunicación empezó a estructurarse como área de conocimiento y espacio de teorización, adoptó asimismo esas fuentes epistémicas, seleccionó sus líneas temáticas dando prioridad – como resulta obvio – a cuestiones propias de su contexto de origen y aplicó las concepciones teórico-metodológicas preexistentes. Esto explica que el campo teórico comunicacional precise hoy de una intervención decolonizadora (2018, p. 75).

Para estabelecer esse caminho, é preciso uma operação que se dá em dois níveis: o epistemológico, que propõe historicizar e recompor as bases de conhecimento comunicacional desde a sub/alternidad; e o teórico, que busca por sua vez por uma reconceitualização da comunicação e sua zona de estudo – uma crítica direta aos modelos adotados até agora nas investigações hegemônicas.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes “Su norte es más bien pensar y observar lo real social desde una colocación distinta a la fijada por la Modernidad, lo cual hace posible una perspectiva no simplemente contestataria sino in/surgente, esto es, que irrumpe en el espacio del pensamiento desde otro lugar de enunciación y se alza en contra de las pretensiones de autoridad de lo establecido, a la par que ofrece una ruta consistente para reinterpretar la totalidad e intervenir en ella” (2018, p. 79).

Compreendendo essa base, a comunicação decolonial acontece através dos seguintes caminhos – o que Torrico (2018) chama de uma tripla alter/n/atividad: a não negação da possibilidade de uma “outridade” (otredad) epistemológica e teórica (Alternativa); a ênfase aos aspectos locais e históricos dessa outridade (Alter/ nativa); a abertura a uma alteração do status quo (Alter/ativa). A dimensão tripla que caracteriza essa comunicação decolonial encontra enorme ressonância, como dito, no que procuramos enquadrar no jornalismo de subjetividade, abordagem que vem sendo construída no intuito de estabelecer uma prática jornalística mais integral, não excludente, não racializada, não sexista, não classista. Nesse sentido, o jornalismo de subjetividade propõe a busca pela horizontalidade entre o eu e o outro (entendendo que as relações entre quem enquadra e quem é enquadrado guardam diferentes assimetrias); a escrita e observação a partir de critérios que não se assumem como neutros, mas levando em consideração aquilo o que atravessa também a autora/o autor do texto (Moraes, 2015; 2019), elementos que possuem ressonância na alteração do status quo proposto por Torrico (2018). Ambos se contrapõem a uma universalidade de fala e negam um conhecimento epistemologicamente racializado, em que populações não brancas foram durante muito refutadas e mesmo não entendidas como capazes de raciocínio (não penso, logo não existo). Ambas as perspectivas ainda propõem a superação de uma comunicação (e no caso da subjetividade, de um jornalismo) que não se estabeleça no desconhecimento e instrumentalização do outro. Assim, abrem espaços para existências (no caso de Torrico Villanueva, outridades) que ainda não encontram consistência no ambiente midiático, a exemplo da feminilidade dissidente apresentada através do corpo e da vida de Joicy. Há ainda uma outra ligação entre essa insurgência comunicacional, quando sublinha a ênfase às questões locais e históricas dessa outridade, e o Jornalismo de Subjetividade: dessa busca por uma heterogeneidade de pessoas e saberes – e não só uma visibilidade de pessoas negras ou indígenas, por exemplo, mas a recusa a entender seus contextos como “diferentes”, “exóticos” - também faz parte uma ênfase nos aspectos locais. É assim, por exemplo, que estudamos a construção de um Nordeste folclórico, dependente, faminto, por uma imprensa pautada por uma objetividade que até hoje insiste em trazer essa região-personagem à baila. Um jornalismo que outrora justificou, a partir de pressupostos científicos, a matança de centenas de sertanejos e sertanejas que seguiam Antônio Conselheiro (ou que se espantou com negros letrados), ainda possui dificuldade de não pensar em si como percebido como norma/normalidade. Esse, aliás, é outro aspecto local, territorial, que o Jornalismo de Subjetividade acentua e propõe na conformação de um debate

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes decolonizante centrado no Brasil. É central discutir classismo e racismo, profundamente interligados, em nosso jornalismo. Borges (2019) coloca que raça e racismo são categorias que renovam as práticas midiáticas e questionam a comunicação em suas múltiplas faces. Assim, convocar a insurgência ou a prática subjetiva comunicacional/jornalística não se trata de um mero exercício retórico, mas antes de tentar se aproximar de uma área fundamental de estruturação social para entender não como se dá a manutenção de estereótipos ou representações violentas, mas antes o que as sustenta e estabiliza. É um caminho necessário para pensar, por exemplo, o que levou a imprensa brasileira a abrir mão de seu papel de mediadora e de filtro ao colocar-se atrás do escudo da imparcialidade jornalística enquanto o projeto autoritário de Jair Bolsonaro, quando candidato à presidência do Brasil, avançava. A parcela do que chamamos de grande imprensa, é preciso dizer, ajudou a colaborar para o esmorecimento da própria democracia que sustenta a atividade jornalística (uma democracia que guarda várias falhas e protege de maneira incerta grupos como negros, indígenas, mulheres, etc.) ao naturalizar atos permeados por racismo, misoginia e preconceitos de várias ordens. Por qual razão uma parcela grande de nossos repórteres e editores, por exemplo, se recusou a classificar o então candidato como sendo de extrema direita ou ultradireita8? Porque seus atos foram chamados de “polêmicos”, mesmo quando o mesmo se referiu a um quilombola como “pesando sete arrobas”? O que faz com que nossa imprensa, por exemplo, tenha adotado – após a eleição de Jair Bolsonaro – como prática retórica equiparar um presidente que ataca repórteres e instituições como o Supremo Tribunal Federal aos dois governos de centro-esquerda de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011)? Todos esses posicionamentos se dão a partir da defesa de uma objetividade que torna esses profissionais virtualmente ilibados. Sodré nos dá algumas pistas para pensar nessas razões quando coloca que a elite brasileira, da qual a grande mídia faz parte, sempre reagiu a mudanças que toquem, de fato, em sua estrutura social. “As políticas de afirmação social nascidas no governo Lula provocaram uma reação violenta das elites”, comenta Sodré, que completa: “O ódio e o amor são formas sociais – e a questão da relação social nunca foi devidamente focada pela mídia brasileira, que costuma se gabar de seu percurso tecnológico” (2019). Assim como ele, Borges (2019) também aponta, ao observar uma sociedade nacional atravessada pelo discurso de ódio e de negação do outro, para o revanchismo e o racismo contra as classes pobres que emergiram a partir de políticas sociais estabelecidas nas administrações mais progressistas. Friso, aqui, que essa observação guarda uma leitura crítica sobre, por exemplo, as políticas conciliatórias 8 Na Folha de S. Paulo, por exemplo, o argumento lido em uma circular interna assinada pelo secretário de redação Vinícius Mota atentava que o Manual de Redação do periódico restringia o uso de “extrema” para direita ou esquerda apenas para designar “facções que praticam ou pregam violência como método político”. É uma boa mostra de nossa imparcialidade jornalística, assentada sobre a técnica para o jornal, racismo e misoginia não poderiam ser lidos como atos violentos – nem mesmo o “vamos fuzilar a petralhada”, gritado em plena campanha por Jair Bolsonaro.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes estabelecidas aí entre nomes e legendas que referendariam mais tarde este racismo e revanchismo. Mas a questão, entendo, é mais ampla e nos obriga a pensar no tipo de fenômeno que a presença de classes populares para além de lugares hierarquicamente inferiores (onde espera-se que elas fiquem) provoca na alma brasileira. Nos coloca a necessidade de analisar não exatamente a política partidária, mas antes em como o classismo e o racismo mobilizam elites nacionais de várias ordens e estão presentes na imprensa que também o guarda e reproduz. Diz Borges: Não podemos ficar indiferentes ao fato de que os dizeres destituidores transmitidos em escala vertiginosa na internet e fora dela ganham eco na sociedade de forma a constituir o agir comunicacional da esfera pública. É de admirar, por exemplo, que as palavras mal ditas do nosso atual presidente Jair Bolsonaro, um falastrão contumaz, para além das implicações jurídicas que suscitam, não sejam vistas como algo que fira de morte o pacto da civilização, da qual emerge o humano (2019, posição 508 de 4824)

O fato é que o discurso da objetividade jornalística foi bastante apropriado para que nossa imprensa não defendesse uma mudança social que finalmente começava a se desenhar a partir, por exemplo, de ações como transferência de renda e inclusão de negros e mais pobres nas universidades públicas. Na verdade, a questão é mais sofisticada: a objetividade jornalística derivada de uma estrutura de moldes desumanizadores torna-se tanto impeditivo na realização de mudanças sociais estruturais como também serve para cacifar aqueles que em tese a manejam melhor. Um ambiente mais do que nunca atravessado pela desinformação e no qual a checagem de fatos e dados ganha um peso ainda maior, só reforça esse elogio ao verificável – ao objetivo. Apoiar um ato não democrático em um país com a profunda desigualdade social como o Brasil é também apoiar um ato racista. A celebração, por exemplo, do impeachment de Dilma Rousseff, passa pela concordância ética com os deputados que, no dia 17 de abril de 2016, dedicaram seus votos à Deus, à família e à pátria. Mesmo com argumento técnicos, mesmo com justas críticas à gestão da então presidente e ao modelo econômico adotado, há uma razão que também sustentou, de maneira mal disfarçada, toda a narrativa colaborada pela imprensa objetiva: a recusa de novos atores sociais no contexto da política, da fala, da exposição pública e midiática. Aqui, me uno a Borges (2019), que pergunta: “que sujeitos e subjetividades são construídos quando, pela palavra e pela linguagem, evocamos aquilo o que nos afasta do Outro (ou do Eu) e mesmo decreta sua subalternidade e extinção?”. É essa a pergunta que precisamos nos fazer frente a uma nação cujo racismo brindou uma vasta parcela da população com, por exemplo, menor qualidade de vida, baixa escolaridade, menor tempo de atendimento em consultas médicas, morte (na pandemia da Covid-19, foi a população negra aquela com maior registro de óbitos). Não são pessoas que estão exatamente fora do ambiente midiático, mas que serviram como

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes personagens que parecem protagonizar uma ficção a ser consumida de tempos em tempos por classes mais protegidas. São diversas vezes instrumentalizadas por uma imprensa demasiadamente classista que acredita “só relatar” dores e seus problemas de um mundo externo e deixa de perceber a si mesma como agente possível tanto na manutenção das coisas quanto na mudança das mesmas. É preciso estabelecer uma outra comunicação, avançar sobre a imensa assimetria jornalística que teceu, por exemplo, que pretos e pretas são expostos e quando estes e estas podem falar. Diz Torrico: “Y como ‘los de arriba’ no estaban interesados en hablar con ‘los de abajo’, a la vez que buscaban asimilarlos culturalmente, deshumanización e in-comunicación se superpusieron y complementaron” (Torrico, 2019, p. 102).

A objetividade jornalística, instrumentalizada a favor de um projeto, desinforma, violenta e aniquila.

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CONFINADAS COM SEUS PRÓPRIOS AGRESSORES: NARRATIVAS JORNALÍSTICAS DE VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NO CONTEXTO DA PANDEMIA Dayane do Carmo Barretos Marta R. Maia

Introdução A pandemia do novo coronavírus provocou mudanças na rotina das pessoas do mundo todo, justamente pelas indicações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a contenção do seu avanço. O isolamento social, apontado como a principal medida, escancarou problemas sociais profundos, principalmente em países marcados por uma intensa desigualdade, como é o caso do Brasil. Dessa forma, se em um primeiro momento permanecer isolado em casa pode parecer uma instrução evidente, com o passar do tempo as consequências desse isolamento em nosso contexto começaram a apresentar alguns problemas, como o caso do aumento da violência contra as mulheres. E é esse o tema da série de reportagens Um vírus e duas guerras: Mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19 que será objeto de reflexão neste Capítulo. A série consiste em um levantamento de dados sobre a violência contra as mulheres, com atenção especial aos casos de feminicídio, no contexto da pandemia do novo coronavírus. Essas primeiras reportagens a que tivemos acesso são fruto de um monitoramento quadrimestral que será realizado durante todo o ano de 2020 por cinco mídias independentes parceiras: Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. A parceria entre essas mídias possibilitou o monitoramento de todo o território nacional, permitindo que as singularidades de cada região fossem levadas em conta nas investigações, além de propiciar uma ampla cobertura. Os dados enviados por vinte estados a que os veículos tiveram acesso mostram que 195 mulheres foram vítimas de feminicídio em apenas dois meses de isolamento social. Além disso, a grande maioria das assinaturas das matérias é composta por

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes mulheres; a única exceção é uma reportagem que foi produzida em co-autoria com um homem trans, revelando uma característica marcante dessa iniciativa e das narrativas por ela produzidas: o protagonismo feminino. Neste capítulo iremos analisar essas narrativas jornalísticas, com dados de janeiro a abril, mas com ênfase entre março e abril, a fim de compreendermos as possibilidades de narrativas desse fenômeno tão complexo. Partimos do pressuposto de que novas formas de financiamento do jornalismo, do qual as iniciativas de mídia independente fazem parte, trazem novas maneiras de encarar a realidade e de se apropriar dela narrativamente. A análise do período supracitado não desconsidera o fato de que a violência contra as mulheres tem atingido índices alarmantes nos últimos anos. O Mapa da Violência de Gênero de 20191 aponta que em 2017, o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) recebeu 26.835 registros de estupros em todo o país, o que equivale a 73 estupros registrados a cada dia daquele ano. Destes, 89% tiveram mulheres como vítimas. O Mapa indica ainda que as mulheres também foram maioria entre as vítimas nos 209.580 registros de violência física naquele ano. Em todo o país, elas foram 67% das pessoas agredidas fisicamente nos casos do Sinan. A matéria de apresentação das reportagens, inclusive, traz a informação que, desde 2015, os programas de proteção à mulher têm registrado cortes no orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Houve redução de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões, de acordo com levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo2. Como são muitas as ocorrências, é necessário dar visibilidade ao tema, ao mesmo tempo que é preciso investigar e publicizar quais as ações que o estado e a própria sociedade civil têm tomado para a redução dessas arbitrariedades. Propomos então uma reflexão sobre o patriarcado e suas vinculações com o poder a partir dessas narrativas. De forma articulada, apresentamos inquietações acerca da realidade específica vivenciada na América Latina presente nos estudos decoloniais. Desse modo, ao relacionar a crítica feminista à decolonial, torna-se possível discutir possibilidades para a produção jornalística que dê conta das especificidades da violência de gênero em nosso contexto.

Os usos da violência e o patriarcado Antes de adentrar na discussão acerca da violência contra as mulheres, é preciso tecer considerações sobre o próprio conceito de violência. De saída, é necessário entender que se trata de um termo em disputa, tanto no que se refere ao seu significado, como às suas articulações nos âmbitos sociais, políticos e econômicos. Há quem defenda que a violência é estritamente física, outros chamam atenção para a dimensão 1 Disponível em: https://mapadaviolenciadegenero.com.br/. 2 Disponível em: https://ponte.org/mulheres-enfrentam-em-casa-a-violencia-domestica-e-a-pandemia-da-covid-19/?fbclid=IwAR0IPrnb-X7e4jKX276K28ltl3WYz-vIzU_1ObzZoS6q1psQnT1tV2dfxa4.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes violenta dos discursos – nesse caso, alguns entendem que para ser violento o discurso tem que apresentar uma ameaça real, outros não – e ainda quem prefira evidenciar o quanto as estruturas políticas e sociais são violentas (Butler, 2020). Nesse esteio, para os interesses deste trabalho e, tendo em vista o campo da comunicação como ponto de partida e de chegada, mostra-se fundamental ampliar o conceito de violência para além da violência física. Ainda que o recorte aqui proposto aborde o crescente da violência física contra as mulheres, um olhar mais cuidadoso é capaz de detectar as suas articulações com uma violência estrutural, de caráter patriarcal. Assim, o conceito de violência que será tensionado nesse trabalho não se limita a apenas uma modalidade, mas permite enxergar a relação entre elas, a fim de que seja possível identificar as estruturas violentas que alimentam a violência física e simbólica, bem como as formas com que o jornalismo, ao evidenciar e denunciar esses fenômenos, ao menos na análise aqui proposta, cumpre um importante papel na reconfiguração das múltiplas compreensões acerca das violências sofridas pelas mulheres no Brasil. Em seu livro sobre a força da não violência, Judith Butler (2020) apresenta reflexões acerca da violência e seus usos, demonstrando que as opiniões sobre o tema divergem amplamente, o que dificulta uma conceituação tanto da violência, como da não violência. Uma das maiores divergências diz respeito ao uso tático da violência, principalmente nos casos em que ele ocorre em resposta à dominação e à opressão do próprio sistema. Nesse caso, a violência não seria um fim em si mesma, mas uma ferramenta de resistência e mudança social. É comum ver a legitimação da violência quando ela ocorre como uma espécie de mecanismo de defesa, principalmente no caso de minorias raciais, étnicas e de gênero. No entanto, conforme destaca Butler (2020), a violência é uma ferramenta que pode mudar de mãos, além de ser sempre interpretada, o que permite que essas respostas à violência estrutural que utilizam a própria violência como ferramenta tática acabe servindo de justificativa para o uso efetivo de uma violência institucional, como é possível observar em determinados protestos. É pertinente elucidar que este argumento é mais um questionamento do que uma crítica às respostas à opressão vivenciada diariamente por minorias sociais. A diferença consiste em admitir que a violência aberta como recurso dos dominados, nos termos de Miguel (2015), é um problema a ser enfrentado, questionado, não um ponto pacífico compreendido a partir dos enquadramentos normativos já disponíveis. Ao destacar a importância da não violência, Butler (2020) tem o cuidado de diferenciar violência de agressividade. Portanto, é possível adotar posições agressivas contra as injustiças sem, no entanto, utilizar a violência como ferramenta. Ainda que ela não seja usada de forma a se encerrar em si mesma, como no caso da violência física fruto de um conflito qualquer cotidiano, trata-se de uma ferramenta difícil de controlar, de definir quais os seus limites e impedir que ela seja utilizada novamente contra os dominados. A agressividade, apontada pela autora, permite que, ao opor-se à natura-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes lização da violência, outras estratégias sejam adotadas para combater a dominação e a opressão. Nesse contexto, o próprio jornalismo, em especial, em suas novas formas de produção, desponta como um campo fundamental para a efetivação dessa tarefa, uma vez que pode denunciar as violências e, ao mesmo tempo, chamar atenção para as suas vinculações com outras esferas da vida social. Ressaltamos então o aspecto da materialidade da linguagem e o seu papel agenciador de novas situações. A violência contra as mulheres, ainda que em um contexto doméstico, está intimamente vinculada à legitimidade da violência na sociedade, que encontra justificativas até mesmo para relativizar os atos violentos sofridos por mulheres no Brasil, algumas vezes buscando nas atitudes da própria mulher as razões para a sua agressão, minimizando a culpa do agressor. Ciúmes que supostamente teriam sido provocados pela mulher, traições e até mesmo a roupa e a personalidade da mulher são apontados como razões que acabam por minimizar o ato violento, já que haveria uma atitude motivadora. Desse modo, atuam conjuntamente a estrutura patriarcal e a naturalização da violência, auxiliando na perpetuação de uma realidade cruel partilhada por milhares de mulheres. Consequentemente, a justificativa da violência contra as mulheres acaba por justificar a própria violência em si. Não há o intuito de promover falsas simetrias entre a reação violenta dos dominados à violência estrutural do sistema e a violência sofrida pelas mulheres. No entanto, é importante compreender que não há uma fronteira tão bem delimitada assim entre a violência que é aceitável e aquela que não é, o que faz com que essa naturalização opere tanto legitimando as ações de resistência de minorias dominadas, como flexibilizando os limites do uso da violência como ferramenta. Uma ampla pesquisa sobre a cobertura jornalística dos crimes cometidos contra as mulheres, levada a cabo por pesquisadores da UFMG, evidencia a percepção de que “as agressões são apreendidas a princípio como episódicas e não como parte de um contexto alargado de violência contra a mulher e de um machismo que é estrutural” (Azevêdo, Chagas, Mendonça, 2020, p. 166). A condição da mulher em uma sociedade patriarcal, machista e misógina adquire contornos mais complexos na medida em que a assimetria de poder a coloca em situação de inferioridade e não garante seus direitos mais elementares. O discurso hegemônico masculino aparece então como parâmetro, o que leva a mulher a “necessitar” dessa proteção. Nessa perspectiva, a maioria das narrativas jornalísticas da chamada imprensa de referência, e também a popular, ao apresentarem notícias relacionadas ao feminicídio, desconsideram a trajetória de vida dessas mulheres: As histórias de vida das mulheres vítimas de violências físicas e simbólicas, ao contrário do que se poderia supor, não constituem elemento central das narrativas jornalísticas analisadas. Mais do que indicar o predomínio do imperativo estatístico de casos que se somam na generalidade de violências que se acumulam e de mortes que se sucedem, temos o apagamento da existência das vítimas, que no caso dos assassinatos, representam o que podemos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes compreender como uma “segunda morte”, agora decretada pela cobertura jornalística (Antunes, Carvalho, Leal, 2020, p. 31).

Notamos, na pesquisa citada, que às mulheres está reservada uma espécie de invisibilização, que a coloca em segundo plano em detrimento do protagonismo masculino. Um bom exemplo da reprodução e reiteração dessa dinâmica na sociedade é a adoção de discursos sexistas de submissão até mesmo por mulheres, como se essa fosse a posição a ela destinada, já que cabe ao homem a provisão do lar e a manutenção de valores familiares importantes. A partir da discussão de Saffioti (2004) é possível compreender que o discurso de ordem patriarcal calcado na dominação-exploração das mulheres possui aderência, inclusive entre as dominadas, demonstrando o quanto o poder masculino penetra a vida social de forma sofisticada. A naturalização dos papéis sociais de gênero que derivam desses discursos e lógicas é também promovida pelo que Lauretis (1994) chama de tecnologias de gênero, que operam em nosso cotidiano, nos produtos culturais e demais expressões da vida social. Ainda assim, mesmo com a efetividade das tecnologias de gênero na manutenção dos lugares destinados a mulheres e homens, o controle e o medo são primordiais para a manutenção do poder masculino, sendo que a sua operacionalização ocorre por meio do uso da violência.

Gênero, raça e classe A fim de descortinar as operações de poder que atravessam a vida social e que estão intimamente ligadas aos altos índices de violência contra as mulheres no Brasil e no mundo, é necessário analisar de maneira mais complexa o cenário contemporâneo. A relação dominação-dominado desmascara uma binariedade que se produz e se reproduz por intermédio de uma hierarquização dos sujeitos. A crítica decolonial denuncia que esse modo dicotômico de enxergar o mundo é produzido na modernidade através de lentes eurocêntricas, que partem da dualidade para hierarquizar, criando uma dicotomia que incide sobre corpos, saberes e compreensões de mundo. A ideia de colonialidade, central para os estudos decoloniais, pode ser brevemente conceituada como dinâmicas econômicas, políticas e sociais que foram criadas com a colonização, mas que perduraram até os dias de hoje, séculos após o fim do sistema colonial. Aníbal Quijano (2005) entende a colonialidade como uma estratégia da modernidade que contribui para o fortalecimento e a manutenção do capitalismo. Essa estratégia se desenvolveu como forma de manter o domínio europeu, por intermédio de uma compreensão hierarquizada das diferenças de raça e de classe. O processo teve início na invasão das Américas, com a dominação dos povos americanos e a imposição dos saberes europeus, entendidos como superiores. Desse modo, é exatamente a diferença que serve como argumento que vai legitimar a dominação, uma lógica semelhante a encontrada nos estudos sobre patriarcado. Para além na

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes inferiorização de raças, Quijano afirma que o controle do trabalho e das suas relações em torno do capital e do mercado contribuem para o estabelecimento e a manutenção dessa forma de poder. Ou seja, a exploração capitalista e a racialização são inseparáveis no sistema colonial e permanece na colonialidade. Os estudos decoloniais, portanto, apresentam uma compreensão da operacionalização da diferença racial como forma de dominação-exploração, assim como demonstram como a colonialidade relaciona-se intimamente com o capitalismo, ou seja, raça e classe entram na discussão. É o que também defende María Lugones (2008), que indica o dimorfismo biológico, a heterossexualidade e o patriarcado como os três grandes pilares que norteiam a compreensão do gênero na sociedade. Sua proposta é que tanto o dimorfismo biológico, como a dicotomia de gênero homem/mulher devam ser repensados a partir de uma matriz decolonial, que permite reavaliar os saberes que naturalizamos como neutros e válidos, mas que são de origem colonial e eurocêntrica. A reflexão proposta por Lugones, a partir da crítica decolonial, evidencia a complexidade das articulações entre gênero, raça e classe em uma sociedade com histórico colonial, como é o caso do Brasil. A crescente demanda de materiais simbólicos que são, em grande parte, reverberados pelos meios de comunicação contribuem para esse processo de dominação. Nesse sentido, precisamos acompanhar como essa simbologia se expressa nesse fluxo excessivo de informação e desinformação. Em estudo recente, Lorena Caminhas e Thales Vilela Lelo (2020) avaliaram o impacto das fake news sobre gênero e sexualidade na sociedade brasileira. Ela e ele concluíram, entre outras questões, que há um grande embate pelas questões morais, o que contribui para a reverberação da desinformação sobre esse tema, que passou a configurar um cenário de “pânico moral”, que aciona a necessidade, segundo essa perspectiva, de definir limites para as relações sociais. Ela e ele ainda verificaram que as histórias falsas “apontaram para condutas inadequadas de mulheres, utilizando casos conhecidos de violência de gênero para discernir os bons dos maus comportamentos” (p. 15), o que, conforme já foi citado, pode servir como justificativa para punições às mulheres que buscam romper com as normas seculares de submissão de gênero. Voltando ao trabalho de pesquisa realizado por pesquisadores e pesquisadoras da UFMG, achamos pertinente registrar que os resultados da análise do corpus evidenciam o protagonismo do agressor e a apresentação da mulher de maneira superficial, sem outros elementos que poderiam contextualizar determinadas situações traumáticas. Eles também questionam a maneira como as narrativas são conduzidas, em especial, a partir de uma perspectiva moral, ou seja, “um elemento que poderia ser empregado para demonstrar uma dimensão processual da violência acaba servindo, em muitos textos, para culpabilizar a mulher, como se ela tivesse feito algo que induzisse o homem a utilizar a violência”. (Antunes, Carvalho, Leal, 2020, p. 75) A partir das contribuições dos autores apresentados até aqui, parece possível, e pertinente, efetuar uma leitura feminista e decolonial do mundo social e das suas di-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes nâmicas, principalmente as de gênero, a fim de contribuir para uma compreensão da violência contra as mulheres que dê conta da multiplicidade de atravessamentos que o tema demanda. Da mesma forma que a crítica feminista e decolonial chamam atenção para a necessidade de relações mais igualitárias, apontadas por Butler (2020) como fundamentais para que a não violência possa se estabelecer. A partir das questões levantadas, passamos agora para a análise das reportagens.

Análise das reportagens Como o volume de matérias é bastante extenso, optamos por uma proposta inspirada no protocolo metodológico formulado pelas pesquisadoras Gislene Silva e Flávia Maia (2011) que apontam a análise de cobertura jornalística a partir de três níveis analíticos - (1º) marcas da apuração, (2º) marcas da composição do produto e (3º) aspectos da caracterização contextual. Nesse caso específico, iremos trabalhar com as “marcas da apuração”, visto que envolvem desde a escrita autoral e a presença do/a jornalista no local dos acontecimentos até a caracterização das fontes, o que, para efeito de nossa análise, é fundamental e, ainda, com o terceiro nível, relacionado ao contexto de produção. Tendo em vista que o processo não desaparece do produto, iremos analisar as 13 reportagens buscando investigar o que as escolhas no âmbito do processo produtivo evidenciam acerca de uma crítica decolonial e feminista do fenômeno abordado. Assim, é fundamental realizar uma análise que articule as marcas de apuração aos aspectos da caracterização contextual. Segundo as autoras, o terceiro nível analítico é complementar, no entanto, é ele que, ao nosso ver, permite de forma mais contundente ampliar a narrativa para além da materialidade textual das produções. Desse modo, entendemos que, ao produzir as suas narrativas, as jornalistas revelam algo do seu estar no mundo enquanto mulheres, bem como uma postura de caráter militante, que está intimamente articulado às dinâmicas do mundo social, sendo atravessadas por elas. Desde a leitura exploratória das reportagens, algumas questões emergiram em diálogo com as inquietações teóricas aqui apresentadas. Interessa, em um primeiro momento, compreender como o jornalismo, a partir das matérias analisadas, aciona e lida com questões centrais nas críticas feminista e decolonial, tais como a hierarquização de sujeitos a partir de uma binariedade, a denúncia à falsa neutralidade, o lugar destinado à mulher na sociedade patriarcal, a dominação-exploração das mulheres, a interseccionalidade entre gênero, raça e classe. Em um segundo nível, a investigação nos permitiu questionar os novos contornos da opressão das mulheres no contexto da pandemia, possibilitando uma reflexão acerca das formas com que as violências contra as mulheres foram potencializadas nesse cenário, tendo em vista as especificidades da conjuntura brasileira. Para tanto, no nível analítico das marcas de apuração, nosso enfoque são as fontes humanas e seus relatos, a fim de uma maior compreensão sobre o lugar a partir do

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes qual elas falam e qual papel cumprem nas narrativas. A escolha por essa centralidade nas fontes humanas se deu principalmente ao percebermos que a grande maioria das fontes entrevistadas é composta por mulheres, o que fornece algumas pistas para a reflexão sobre a postura adotada pelas jornalistas na produção das reportagens. Além disso, tendo em vista que o tema das matérias e deste artigo é a violência contra as mulheres, nos pareceu fundamental analisar os relatos que aparecem nas produções, tanto das próprias vítimas, como de mulheres envolvidas na luta contra essa violência. No quadro abaixo, reunimos dados sobre as produções que nos auxiliam a caracterizá-las para a análise: Reportagem

Mídia

Jornalista

Região

Mato Grosso tem alta de feminicídios na quarentena

Amazônia Real

Juliana Arini

Centro-oeste

Maranhão lidera no aumento de feminicídios no Nordeste

Agência Eco Nordeste

Não há assinatura

Nordeste

No Pará, crime de feminicídio aumentou 100% na pandemia

Amazônia Real

Roberta Brandão

Norte

Acre tem maior taxa de feminicídio entre 20 estados

Amazônia Real

Alícia Lobato e Bruna Mello

Norte

“Na pandemia, a mulher está em casa à disposição do agressor”, diz feminista do Amazonas

Amazônia Real

Kátia Brasil e Nicoly Ambrósio

Norte

“Me vi dormindo com um monstro”, relata vítima de violência doméstica ameaçada com álcool em gel

#Colabora

Liana Melo

Sudeste

Confinadas com companheiros, mulheres não conseguem denunciar agressões

#Colabora

Liana Melo

Sudeste

Luiza Brunet: “Os homens precisam ter medo antes de levantar a mão”

#Colabora

Liana Melo

Sudeste

“Idiota, vagabunda e puta”, ela ouviu dele. Mas não deu continuidade à denúncia

Ponte Jornalismo

Caê Vasconcelos e Maria Teresa Crus

Sudeste

Em Minas Gerais, subnotificação retrata o silêncio de mulheres sob violência

Ponte Jornalismo

Jennifer Mendonça e Maria Teresa Cruz

Sudeste

Feminicídios aumentam durante quarentena no Rio Grande do Sul

Portal Catarinas

Inara Fonseca

Sul

Cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC

Portal Catarinas

Juliana Rabelo

Sul

A falta de dados e a subnotificação da violência no Paraná

Portal Catarinas

Morgani Guzzo

Sul

Quadro 1 – Veículo e jornalista de cada reportagem. Elaboração própria.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes É possível notar que a autoria das reportagens varia com frequência. Avaliar tal aspecto é pertinente uma vez que mesmo com essa variação, que acarreta mudanças nas narrativas, a postura das jornalistas é constante em todas as produções. Todas elas têm como base os dados de violência contra as mulheres e feminicídios, principalmente aqueles fornecidos por instituições oficiais, além disso, os relatos das vítimas e as falas das entrevistadas são fundamentais para até mesmo confrontar esses dados e apresentar uma versão testemunhal e complexificada da realidade para além dos números. Mostra-se importante destacar que a série possui um cuidado especial com a captação e manejo dos dados, no entanto, para o escopo desse artigo optamos por delimitar o foco nas fontes humanas, a fim de que seja possível efetuar uma leitura mais cuidadosa no espaço de que dispomos. Para que fosse possível visualizar melhor as escolhas de fontes humanas, elaboramos um segundo quadro, em que as fontes são apresentadas. Como fontes institucionais entendemos aquelas que falam a partir de uma instituição, dos seus interesses e atribuições, já como fontes especializadas compreendemos as que são especialistas no assunto, seja por pesquisar o tema ou entendê-lo para além de uma dimensão institucional. Já as fontes testemunhais são aquelas que apresentam um testemunho sobre os fatos, no esteio do que propõe Lage (2013), o que no caso desta análise consiste nas vítimas de agressão. Reportagem Mato Grosso tem alta de feminicídios na quarentena

Fontes institucionais

Fontes especializadas

Jorzileth Magalhães, a titular da Delegacia da Sirlei Theis, Mulher de Cuiabá; Rosana Leite, coordenaadvogada dora do Núcleo de Defesa da Mulher em Mato Grosso;

Fontes testemunhais Ana

Antonieta Luísa Costa, presidente do Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso Maranhão lidera Silvia Leite, coordenadora do Setor de Atividano aumento de des Especiais Espaço Mulher (SAEEM); feminicídios no Susan Lucena Rodrigues, diretora da Casa da Nordeste Mulher Brasileira em São Luís; Zenaide Lustosa, coordenadora de Estado de Políticas Públicas para Mulheres no Piauí;

Mary Ferreira, professora e pesquisadora; Socorro Osterne, assistente social, professora e pesquisadora;

Franci de Oliveira, integrante da Coordenação Grayce Alencar Regional da (Fetraece) do Cariri cearense; Albuquerque, Débora Gurgel, titular da Delegacia de Defesa professora, pesquisadora; da Mulher de Juazeiro do Norte; Ivoneide Antunes, titular da Secretaria da Segurança Pública e Cidadania de Juazeiro do Norte; Ivenio Hermes, coordenador de Informações Criminais do Instituto e Rede de Pesquisa Obvio e coordenador de Análises Criminais da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Norte (SSP-RN)

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Luana Junqueira Dias Myrrha, demógrafa, professora; Karla Furtado, advogada.

Angela, Kalinka, Danissa

Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

No Pará, crime Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP; de feminicídio aumentou 100% Reijjane de Oliveira, juíza da Coordenadoria Estadual das Mulheres em Situação de na pandemia Violência Doméstica e Familiar (Cevid) Acre tem Lidianne Cabral, integrante do Departamento maior taxa de de Políticas para Mulheres na Secretaria de feminicídio entre Assistência Social e Direitos Humanos 20 estados ‘Na pandemia, a mulher está em casa à disposição do agressor’, diz feminista do Amazonas

Débora Mafra, delegada

Isaura, Soraia, Raquel

Armyson Lee, advogado

Luzanira Varela, Miriam, ativista feminista; Nayandra Flávia Melo, professora e antropóloga

‘Me vi dormindo com um monstro’, relata vítima de violência doméstica ameaçada com álcool em gel

Flávia Brasil, defensora pública;

Confinadas com companheiros, mulheres não conseguem denunciar agressões

Edna Calabrez Martins, membro do Fórum de Mulheres do Espírito Santo e da Articulação de Mulheres Brasileiras;

R. ; C.

Tenente Coronel Claudia Moraes, subchefe dos programas de prevenção da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ); juíza Adriana de Mello

Maria

Michele Meira, Gerência de Proteção à Mulher (GPM) da Secretaria de Segurança Pública (Sesp)

Luiza Brunet: ‘Os homens precisam ter medo antes de levantar a mão’ ‘Idiota, vagabunda e puta’, ela ouviu dele. Mas não deu continuidade à denúncia

Luiza Brunet

Jamila Jorge Ferrari, delegada; juíza Teresa Cristina Cabral Santana; promotora Juliana Gentil Tocunduva

Em Minas Núbia Oliveira, coordenadora da Casa Tina; Gerais, subnotificação Isabella Franco de Oliveira, delegada retrata o silêncio cabo Juliana Lemes da Cruz de mulheres sob violência

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Valéria Scarance, promotora e professora; Marília Taufic, jornalista

Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

Feminicídios aumentam durante quarentena no Rio Grande do Sul

Ariane Leitão, advogada e coordenadora da Força-Tarefa de Combate aos Feminicídios; Tatiana Bastos, delegada titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher; Deputada Estadual Luciana Genro

Raíssa Jeanine Nothaft, doutora em Ciências Humanas;

Laudelina

Renata Jardim, advogada; Télia Negrão, Conselheira Diretora da Rede Feminista de Saúde e da Rede de Saúde das Mulheres Latinoamericanas e do Caribe (RSMLAC)

Cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC

Salete Sommariva, desembargadora do Tribu- Luciana Zucco, nal de Justiça de Santa Catarina, pesquisadora; Amelinha Teles, Sheila Sabag, conselheira da Coordenadoria feminista e atida Mulher em Situação de Violência Domésti- vista ca e Familiar (CEVID/SC);

Nísia, Judite

Fabiana de Souza, gerente de políticas para mulheres da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social; Patrícia Zimmermann, delegada; Conceição de Andrade, superintendente geral do Instituto Maria da Penha.  A falta de dados e a subnotificação da violência no Paraná

Cristina Silvestri, deputada estadual; Lívia Martins Salomão Brodbeck e Silva, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Paraná; Priscilla Placha Sá, desembargadora; Priscila Schran, secretária da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de Guarapuava.

Quadro 2 – Os tipos de fontes encontradas em cada reportagem. Elaboração própria. Com base nos dados apresentados é possível tecer algumas considerações. De um total de 57 fontes, a maioria (26) é composta por fontes institucionais, seguido pelas fontes especializadas (16) e pelas testemunhais (15). Tal dado é coerente com o teor da série de reportagens, uma vez que elas lidam com dados oficiais de violência apresentados por instituições. Sendo assim, a consulta às fontes institucionais é fundamental para uma maior compreensão desses dados, seja para defendê-los, questioná-los e também para apresentar estratégias que estão sendo adotadas a fim

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de enfrentar esse contexto de violência contra as mulheres. Esse aspecto é reforçado através das instituições consultadas, em sua maioria vinculadas à polícia, ao judiciário e a órgãos de proteção à mulher, todas elas envolvidas em alguma forma no fenômeno de violência específica. Outro aspecto que se destaca é o protagonismo feminino nessas narrativas. De todas as fontes consultadas apenas duas são homens. Tal característica demonstra um movimento de valorização da voz da mulher, que é historicamente negligenciada em nossa sociedade patriarcal em que o homem ocupa a centralidade hierárquica, muitas vezes acompanhada de legitimidade para falar sobre os temas. Essa não parece ter sido uma escolha aleatória e, o que evidencia uma postura feminista na produção dessas narrativas. Vale ainda registrar que os nomes das fontes testemunhais encontram-se sem sobrenomes porque, em geral, são nomes fictícios, com o objetivo de resguardar a vítima. Para além dos dados apresentados no quadro, foram efetuadas leituras analíticas das produções, visando promover uma reflexão acerca das formas possíveis de narrar as violências contra as mulheres no contexto da pandemia, maneiras que escapem dos enquadramentos tradicionais da mídia de referência e popular (Antunes, Carvalho e Leal, 2020). Ademais, questões referentes às críticas decolonial e feminista aqui apresentadas estão presentes nessas produções. A primeira delas consiste no contexto específico do Brasil, compartilhado por países latino-americanos e que, portanto, vivenciam o que os autores decoloniais chamam de colonialidade. Na reportagem Maranhão lidera no aumento de feminicídios no Nordeste a jornalista traz a fala de Mary Ferreira, professora da Universidade Federal do Maranhão e integrante do Fórum de Mulheres Maranhense que busca explicações sobre a violência contra mulher e afirma que: muito da violência contra a mulher no Estado pode ser explicado pelo cenário interconectado do aumento do fundamentalismo religioso oriundo da ascensão das igrejas evangélicas; a ausência de infraestrutura, como saneamento básico, em muitos bairros e cidades do Maranhão; e a  falta da construção de um projeto a longo prazo para o enfrentamento do combate à violência (Agência Eco Nordeste).

Outro trecho que demonstra atenção para as singularidades foi encontrado na matéria Em Minas Gerais, subnotificação retrata o silêncio de mulheres sob violência, em que a cabo Juliana Lemes da Cruz chama atenção para a realidade vivenciada no interior: “Na zona rural, existe muito uma cultura de papéis definidos de homens e mulheres, uma influência grande do coronelismo e do patriarcado que faz com as mulheres não enxerguem uma situação de violência ou queiram denunciar” (Cruz, Mendonça, 2020). Nesse excerto, é possível perceber a vinculação entre o contexto do interior do Brasil, que apresenta aspectos de colonialidade como o coronelismo e o patriarcado, o que faz com que um se relacione com o outro criando uma realidade

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes social muito específica, que deve ser analisada a partir dessas particularidades para que a violência possa ser enfrentada. As engrenagens do patriarcado são evidenciadas nas narrativas de formas diversas. Na fala da promotora e professora Valéria Scarance, em ‘Idiota, vagabunda e puta’, ela ouviu dele. Mas não deu continuidade à denúncia (Cruz, Vasconcelos, 2020), fica evidente que os autores de violência contra a mulher não seguem os mesmos padrões daqueles que cometem outros crimes violentos, uma vez que geralmente possuem bons antecedentes e são réus primários. Além disso, em Feminicídios aumentam durante quarentena no Rio Grande do Sul, a pesquisadora Raíssa Jeanine Nothaft explica que “um grande entrave para prevenção e combate da violência doméstica e familiar contra as mulheres é a cultura patriarcal que naturaliza relações de domínio e abuso entre homens e mulheres” (Fonseca, 2020). Já a fala de Télia Negrão, na mesma reportagem, destaca que “A pandemia está dando apenas visibilidade para um problema enraizado: a relação de dominação socialmente estabelecida entre homens e mulheres que autoriza o machismo e, consequentemente, a propagação de violências”. As especificidades do patriarcado em nosso contexto estão intimamente ligadas à interseccionalidade entre gênero, raça e classe, o que torna a realidade vivenciada no contexto da pandemia ainda mais delicada, uma vez que a pobreza que acomete mulheres negras no Brasil faz com que elas estejam inseridas em relações de dependência, que se aprofundam nesse momento de aumento do desemprego. Antonieta Luísa Costa, presidente do Instituto Mulheres Negras de Mato Grosso, é incisiva ao afirmar que “a Covid-19 desmascara o Brasil e como esse estado trata suas mulheres. Expõe a falta de política pública e a vulnerabilidade da mulher, principalmente das negras e pobres” (ARINI, 2020). Na reportagem ‘Na pandemia, a mulher está em casa à disposição do agressor’, diz feminista do Amazonas há um trecho em que esse aspecto é apontado pela feminista Luzanira Varela: “Na pandemia, a mulher está em casa, à disposição do agressor, sem ter como pedir ajuda”. Ela [Luzanira] afirma que a pandemia expôs, ainda mais, as desigualdades, pois muitas mulheres que trabalham como empregadas domésticas, faxineiras, ambulantes, e outras profissões estão sem recursos financeiros dentro de casa, convivendo com os companheiros, também desempregados. “Agora, ficou mais difícil, pois tem muitas mulheres desassistidas. A violência doméstica é um mal que vamos demorar muito para combater”, disse ela (Ambrozio, Brasil 2020).

Ainda que à primeira vista o número de fontes testemunhais pareça pequeno, principalmente em comparação com as demais, os relatos das vítimas têm grande relevância nas produções, algumas vezes até norteando a estrutura da narrativa, como no caso de Cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC (Rabelo, 2020), que inicia com uma reprodução extensa do relato de violência de Nísia e de-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes pois apresenta a violência que foi cometida contra Judite. Abaixo apresentamos três falas testemunhais na íntegra, para que seja possível compreender a sua centralidade nas produções, assim como a sua importância na reflexão que trazemos nesse artigo: “Ele chegou a bater a minha cabeça na pia da cozinha. Eu desmaiei. Ainda sinto dor. Ele sempre foi violento, mas piorou muito com a bebida e a doença. Sinto medo de morrer e não poder ver meus netos nunca mais”, contou Ana à Amazônia Real pelo celular emprestado de uma vizinha (Arini, 2020). “Eu tinha muito medo de tomar atitude e aguentei muita coisa por causa dos filhos e porque era financeiramente dependente dele. As mulheres têm que entender que devem denunciar na primeira levantada de mão porque será daí para pior” (Agência Eco Nordeste, 2020). Trabalhadora do ramo da estética-afro, Raquel conta que o policial que atendeu à sua ocorrência de violência doméstica ficou olhando para ela de uma forma assediadora. Depois com o número de telefone da vítima em mãos, continuou o assédio enviando mensagens. “Eu estava com a roupa toda rasgada, devido à violência que havia sofrido, e ele só faltava me comer com os olhos“, lembra. Além disso, Raquel relata que a condução dos policiais na ação foi equivocada. “Eles falavam com ele [o agressor] como velhos amigos. Me trataram como se eu fosse uma vagabunda. Essa foi a segunda agressão. Eu já estava de medida protetiva, ele deveria ter sido preso. Deixaram ele ir embora. Eu denunciei o policial”, disse ela (Brandão, 2020).

Os relatos demonstram um esforço em apresentar a realidade vivenciada por essas mulheres através das suas próprias vozes. Ao contrário do que foi encontrado nas matérias analisadas por Antunes, Carvalho e Leal (2020), em que há um apagamento da existência das vítimas, nas reportagens dessa série os relatos das mulheres são centrais, fazendo com que o leitor tenha que encarar a violência sofrida por elas, ainda que em poucas linhas. Por fim, há ainda um último aspecto acerca das características que estão fortemente presentes nessas narrativas: os reflexos da pandemia na violência contra as mulheres no Brasil. Em Maranhão lidera no aumento de feminicídios no Nordeste Luana Junqueira Diar Myrrha, demógrafa e professora, afirma que: “o isolamento pesa ainda mais sobre as mulheres e revela mais uma face dessa violência: a vítima provavelmente não vai até uma delegacia para pedir socorro e registrar o crime por medo de contágio da doença ou por estar sob vigilância constante do agressor”. E revela: “aqui temos um grande problema, a forma de registro dessa violência ainda é presencial, então os registros mostram que reduziu a violência doméstica no período da pandemia, mas é porque as mulheres não estão conseguindo fazer o boletim de ocorrência” (Agência Eco Nordeste, 2020).

Essa fala levanta uma importante questão acerca dos dados de violência, uma vez que em determinados estados as mulheres não conseguem sequer fazer o bole-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes tim de ocorrência denunciando a violência a que estão sendo submetidas. Tal aspecto aparece também na fala da pesquisadora Luciana Zucco em Cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC: “O grande desafio é fazer com que os telefones dos canais de denúncia cheguem até essa mulher. Onde ela pode denunciar sem se expor ainda mais à violência e ao vírus? E aquelas que não têm acesso a computador e celular? É momento dos devidos órgãos montarem estratégias” (Rabelo, 2020).

No entanto, para além dos dados e do esforço para a criação de ferramentas e estratégias que auxiliem essas mulheres, a fragilidade a que estão submetidas durante a pandemia se materializa em seus cotidianos, se tornando mais um empecilho para que elas consigam escapar do ciclo de violência doméstica que se tornou ainda mais delicado nesse momento. Uma das entrevistadas, Miriam, expressa bem essa questão: “Não tenho família em Manaus. Não tenho como pegar meus filhos e sair por aí. Tenho medo de pegar o vírus, tenho medo de passar necessidade. Ainda tem o meu trabalho, que é um contrato temporário. É muito difícil tomar uma decisão assim” (Ambrozio, Brasil, 2020). Notamos, em muitos relatos, o agravamento da situação de violência por absoluta falta de possibilidade de deslocamento e de guarida. Nem todos os estados têm um espaço como a Casa da Mulher Brasileira, que fornece apoio às mulheres em situação de violência. Atualmente, somente seis capitais oferecem esse tipo de auxílio: Curitiba, São Paulo, Campo Grande, Fortaleza, São Luís e Boa Vista.

Considerações Finais Entender a complexa dinâmica social possibilita o entendimento de que uma mulher que é vítima de violência e continua morando com o seu agressor, ou uma vítima de estupro que aceita a violação para continuar viva, não está consentindo, apenas cedendo. E que, por trás desse ato de ceder, é possível encontrar a violência que usa o medo como forma de controle, constituída por um lugar legitimado de poder, assim como ocorreu na colonização, assim como ainda ocorre no cotidiano. Dessa forma, se o passado colonial brasileiro permanece conformando os processos sociais atuais por intermédio da colonialidade, as análises, que têm como intuito descortinar as lógicas e nuances da opressão da mulher e da violência contra as mulheres, devem se voltar para as singularidades que cercam esse problema. Tais como: a profunda desigualdade social, o racismo estrutural, a religiosidade, entre outros. O contexto de violência vivenciado pelas mulheres exige uma tomada de posição dos jornalistas que se propõe a abordar esse tema. Não há imparcialidade jornalística possível quando a realidade causa tamanha indignação. Da mesma forma que não é noticiando um caso isolado de violência, sem tratá-lo como uma emergência estrutural, que será possível contribuir para uma mudança tão urgente na ordem social. As-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sim, se o poder patriarcal atravessa a experiência cotidiana, é fundamental que uma postura feminista desponte de modo a questioná-la. Neste capítulo buscamos investigar as potencialidades de uma narrativa jornalística que demonstra uma postura clara de indignação e desconfiança, um exercício evidente e fundamental de uma não violência agressiva, nos termos de Butler (2020). As fontes, suas falas e os relatos das vítimas nas reportagens analisadas denunciam o poder patriarcal e a colonialidade, evidenciam que no contexto da pandemia muitas mulheres estão confinadas com seus próprios agressores, longe de redes de apoio, impossibilitadas de fazer um boletim de ocorrência, isoladas em um ambiente doméstico que as aprisiona. Nesse sentido, é fundamental que o debate avance no sentido de promover questionamentos acerca das emergências vivenciadas diariamente por séculos, mas que foram agravadas com a pandemia.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes BUTLER, Judith. The force of nonviolence: an ethico-political bind. New York: Verso, 2020. CRUZ, Maria Teresa, MENDONÇA, Jeniffer. Em Minas Gerais, subnotificação retrata o silêncio de mulheres sob violência. Disponível em: https://ponte.org/em-minas-gerais,-subnotificacao-retrata-o-silencio-de-mulheres-sob-violencia/. Acesso em 14 jul 2020. CRUZ, Maria Teresa, VASCONCELOS, Caê. ‘Idiota, vagabunda e puta’, ela ouviu dele. Mas não deu continuidade à denúncia. Disponível em: https://ponte.org/idiota-vagabunda-e-puta-ela-ouviu-dele-mas-nao-deu-continuidade-a-denuncia/. Acesso em: 10 jul 2020. FONSECA, Inara. Feminicídios aumentam durante quarentena no Rio Grande do Sul. Disponível em: https://ponte.org/feminicidios-aumentam-durante-quarentena-no-rio-grande-do-sul/. Acesso em: 02 jul 2020. LAGE, Leandro R. O testemunho do sofrimento como problema para as narrativas jornalísticas. Revista Contracampo, v. 27, n. 2, ed. ago-nov, ano 2013. Niterói: Contracampo, 2013, p. 71-88. LAURETIS, Teresa De. A tecnologia do gênero. Tradução de Suzana Funck. In: HOLLANDA, Heloisa (Org.). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242 LELO, Thales V., CAMINHAS, Lorena. Notícias falsas sobre gênero e sexualidade no Brasil: um campo de disputas morais. Anais do XXIX Encontro Anual da Compós, junho de 2020. LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, Bogotá, nº 9, 2008, p.73-101. MIGUEL, Luis Felipe. Violência e Política. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 30 n° 88, 2005, p. 29-45 QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 35-54. RABELO, Juliana. Cinco mulheres sofrem violência doméstica a cada hora em SC. Disponível em: https://ponte.org/cinco-mulheres-sofrem-violencia-domestica-a-cada-hora-em-sc/. Acesso em 12 jul 2020. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004. SILVA, G.; MAIA, F. D. Análise de cobertura jornalística: um protocolo metodológico. Rumores, v. 5, n. 10, 2011, p. 18-36.

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NARRATIVAS MIDIÁTICAS CONTRA-HEGEMÔNICAS: MIDIATIVISMO E JORNALISMO INDEPENDENTE COMO CONDIÇÃO DE VISIBILIDADE Tiago Segabinazzi Jane Márcia Mazzarino

Introdução Diversas iniciativas feitas fora da indústria questionam o modelo massivo do jornalismo, produzido verticalmente, distante de seu público. A premissa dessas práticas é que a inserção na mídia das pessoas que compõem sua audiência pode contribuir com um conhecimento pluralizado: elas podem saber mais do que os jornalistas sobre determinados assuntos (Gillmor, 2004). Além de duvidar da “competência superior” do jornalismo em produzir discursos sobre o mundo, as críticas se dirigem ao seu suposto desinteresse: a relação próxima com o mercado e com a política (Bourdieu, 1997; Castells, 2011; Ramonet, 2012) lhe raptam sua função social originária: a voz do povo, o quarto poder, o guardião da democracia. Como consequência da desconfiança, assiste-se a acusações de manipulação a partir do conteúdo que veicula. Além disso, a natureza massiva faz do jornalismo uma prática generalista, que não contempla a heterogeneidade da sociedade, de forma que diversos grupos sociais não se vejam representados na mídia; com isso, atores externos à indústria jornalística buscam construir a realidade de acordo com seus próprios valores e sua própria cultura. Se a desconfiança sobre o Estado é o que leva os manifestantes à rua, as coberturas independentes feitas pela sociedade civil sobre protestos, ocupações e outras manifestações contra-hegemônicas são a prova da descrença sobre a mídia, diz Castells (2013, p. 7): “Governos foram denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança desvaneceu-se. E a confiança é o que aglutina a sociedade, o mercado e as instituições. Sem confiança, nada funciona”. A diminuição da credibilidade do jornalismo como instituição social questiona a possibilidade de representação social no discurso midiático sobre o mundo. Segundo Bourdieu (2010, p. 15), a descrença num discurso é o que faz com que mensagens alternativas emerjam e busquem impor sua visão de mundo: “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que as pronuncia”. Mais extremo, Ramonet (2012) diz que os meios de comunicação não são apenas suspeitos, mas opressores dos cidadãos; o quarto poder se afirmou tanto que viciou sua atuação; isso suscita um contraponto: surge, então, o “quinto poder”: o monitoramento da sociedade sobre a mídia – práticas autônomas por parte da sociedade civil que propõem narrativas midiáticas alternativas às da grande mídia, chamadas de midiativismo, ativismo midiático ou ciberativismo; tais iniciativas são, além de um questionamento à imprensa, uma forma de afirmação identitária de grupos sociais. O objetivo deste artigo é, a partir da análise de materiais empíricos de iniciativas de jornalismo independente e de midiativismo, refletir sobre o enquadramento midiático de uma realidade complexa e as limitações desta operação; num cenário de disputa narrativa, como os movimentos sociais afirmam suas demandas e culturas e enfrentam os abusos e a violência simbólica decorrente de uma representação homogênea e generalizante?

Grande mídia e hegemonia A sociedade moderna normatizou padrões de beleza, verdade, bondade, felicidade: assim, as classes pensantes criavam leis às diferentes esferas, esperando que fossem obedecidas pela sociedade, de forma a unificar um “estado-nação” (Bauman, 2011); como já não se acreditava que a ordem fosse produto do cosmos ou do divino, mas sim da atuação do homem, houve um esforço em se manter a ordem, com base na força e na coerção de individualidades e diferenças. Na modernidade, a prática jornalística ocupou um lugar de referência, tal qual o discurso científico: um espaço de “saber verdadeiro” (Marcondes Filho, 2000), direcionado para um público indistinto. A imprensa como um espaço que dissemina saberes de forma ampla no tecido social contribui para que o cidadão se mantenha informado e atualizado; ao mediar o conhecimento comum, o campo jornalístico conquista a confiança pública (Rüdiger, 2010) por satisfazer as necessidades e anseios da sociedade e estar em consonância aos valores vigentes: tem credibilidade. Forma-se o modelo de comunicação massiva, segundo McQuail (2013): emissão de mensagens centralizada em um grande canal, de modo unidirecional e hierárquico, com conteúdo padronizado, para receptores anônimos, dispersos e desconectados. A produção cultural moderna, de forma ampla, se baseou na tentativa de encaixar a sociedade, sempre diversa, num modelo homogêneo (Morin, 1997). Entretanto, a atuação da mídia de massa na contemporaneidade é menos viável se comparada à sociedade de massa – se for possível fazer tal diferenciação –, já que o tecido social se fragmenta, de modo que um discurso homogêneo já não dê conta das multiculturalidades que são expostas pelo aumento do número de canais de informação disponíveis, que incentivam discursos alternativos aos da mídia tradicional. Uma tribalização da sociedade, de acordo com Maffesoli (2010, p. 49): volta a

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes heterogeneidade, reafirma-se a diferença, os diversos localismos, as especificidades culturais e de linguagem, as demandas religiosas, étnicas, sexuais. “É assim que o corpo social se fragmenta em pequenos corpos tribais”. Assim, mais do que pensar na comunicação no século XXI como fruto do registro e da distribuição de conteúdo pelas tecnologias emergentes, Wolton (2010) entende que a ruptura está nas condições de aceitação ou recusa de mensagens pelos receptores – heterogêneos e desconectados com os emissores de informação. A condição tecnológica também incentiva uma mudança de paradigmas: mais canais de disseminação de informação representam maior pluralidade de mensagens publicizadas (Shirky, 2011) e de visões de mundo alternativas – apenas se for pensado em um modelo de radiodifusão. Contudo, para além disso, o público não se limita ao consumo: a sociedade passa a produzir material de modo colaborativo com vistas à participação do processo noticioso porque é descrente da mídia (Bruns, 2011; Castells, 2011; 2013; Gillmor, 2004; Ramonet, 2012) e também para expressar sua identidade. Além da diversidade de canais incentivar uma pluralidade de discursos, o contrário, diz Shirky (2011), também ocorre: a pluralidade de mensagens faz com que os discursos anteriores, tidos como verdades, sejam contestados. Desta forma, o público homogêneo pressuposto na era de massas dá lugar a uma sociedade fragmentada em heterogeneidades que são expostas “à luz do dia” pelas tecnologias, conforme Wolton (2010, p. 16): Ontem, com tecnologias limitadas, as mensagens trocadas envolviam públicos mais homogêneos. Hoje, as mensagens são incontáveis, as tecnologias, quase perfeitas, e os receptores sempre mais numerosos, heterogêneos e reticentes. Isso não decorre apenas da diversidade de línguas, mas também das representações, culturas e visões de mundo que se entrechocam.

Uma sociedade “tribalizada” suscita valores diversos e visões de mundo alternativas: novos grupos surgem e se formam identidades que buscam afirmar-se no mundo, diante de uma tradição já colocada, de uma sociedade que, diz Bauman (2011), permite que os indivíduos aproveitem dela o que puderem aproveitar, não tudo que quiserem. As individualidades esbarram também no discurso que predomina numa sociedade, representado pelo jornalismo e pela mídia como um todo. É pressuposto que aquilo que se pode chamar de “grande mídia” ofereça uma visão de mundo hegemônica a partir de interesses socialmente aceitos, mas que deixa uma gama de heterogeneidades não representadas. A indústria cultural, inclusive na comunicação, age de forma generalista pois está baseada na lógica da oferta e da criação, antes de se pensar em demanda e em gostos. Isso acarreta riscos, já que está a produzir informação para públicos nem sempre identificados e isso não dá qualquer garantia de satisfação, de acordo com Wolton (2010). Pensar que o jornalismo tradicional, massivo, que é feito pensando em audiência, não representa o público é uma ideia frágil: se não representasse, não haveria

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes audiência. Entretanto, a operação de representar um grande público implica em exclusões, estereótipos e homogeneidade; portanto é preciso refletir sobre o que escapa a essa imagem da sociedade para a qual é dirigido o conteúdo midiático. Tomando por base que a atividade midiática massiva só tem sentido – e viabilidade financeira – se puder atrair interesse da audiência, já que é uma atividade financiada prioritariamente pela publicidade, e que não poderá representar todas as multiculturalidades contemporâneas – efêmeras –, é compreensível que dentre todos os acontecimentos que possam ser noticiados, sejam escolhidos os que proporcionem retorno de capital – financeiro ou simbólico – às instituições. Com isso, uma hegemonia opera e, em consequência disso, gera-se uma violência simbólica sobre o que está em desacordo com a realidade construída midiaticamente. A mídia como instituição capitalista, que precisa se manter competitiva, opera de modo a maximizar seu retorno, e com isso investirá em temáticas que atendam ao consumo amplo. Diante desse processo de escolha e suas inevitáveis exclusões, temáticas minoritárias1 são ignoradas em nome de assuntos e pontos de vista já estabelecidos, ou pouco questionados, alinhados a uma moral e um discurso dominantes. Diante disso, o campo jornalístico se afasta de sua função cívica originária: diante das desigualdades da sociedade, a atividade jornalística se legitimaria ao atuar contra os poderes abusivos, conforme o ideal moderno do “quarto poder”. A insatisfação com a condição de atuação da mídia incentiva narrativas autônomas, feitas de dentro da realidade que escapa ao olhar hegemônico; tais narrativas servem como crítica à própria mídia e sua forma de representação generalista. Queremos narrar nossas próprias histórias. Queremos ter direito de fala não somente quando essa é concedida. Somos múltiplos, somos muitos e plurais. A ótica de ser preto no Brasil se revela como um espectro, tamanha a diversidade dos povos ancestrais que nos originaram, e a variedade de experiências que podemos ter e ser2.

A descrição acima é da agência de jornalismo independente Alma Preta – que voltará à discussão mais adiante –, especializada na cobertura da temática racial no Brasil – um assunto que, por mais que esteja em debate e tenha alcançado considerável visibilidade nos últimos anos, necessita chamar atenção para que não seja apagado pela representação dominante indistinta: e exatamente por ser indistinta que esta representação contempla apenas a branquitude considerada “normal”. 1 Tomamos a noção de “minoritário” não como uma oposição meramente quantitativa do que é “maioritário”, mas como aquilo que não é contemplado pelo “metro-padrão” de uma constante maioritária, tal como o humano sendo o homem-branco-heterosssexual-adulto-europeu, conforme Deleuze e Guattari (1997, p. 52): É evidente que ‘o homem’ tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais... etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário. Supõe o metro padrão e não o contrário. 2 Disponível em: . Acessado em 21 set. 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Movimentos sociais e narrativas midiáticas, assim, se confundem: ao mesmo tempo em que propõem, permitem ver tal como propõem – assim é que é adotado o termo midiativismo para iniciativas que evidenciam uma discordância com a representação midiática e, em sua consequente combatividade ao modo massivo e generalista de operar, buscam uma democratização não apenas da sociedade, mas também de sua construção midiática.

Contra-hegemonia, movimentos sociais e midiativismo Manifestações culturais contra-hegemônicas surgem como contestação a determinado estado de coisas, por discordância com os valores defendidos pelo campo jornalístico e por uma expressão de valores e afirmação identitária. De acordo com Santaella (2013, p. 101), estes movimentos são uma forma de engajamento político e “o que os une na heterogeneidade é a oposição à ordem predominante por meio de estratégias de mobilização”. A contemporaneidade, entendida por alguns teóricos como pós-modernidade, é caracterizada pela manifestação pública; o espaço coletivo é ocupado por manifestações sexuais, religiosas, musicais, políticas ou culturais em geral advindas das mais variadas tribos pós-modernas (Maffesoli, 2010). Essa diversidade na sociedade, além de comprometer o modelo emissão-recepção, suscita a manifestação autônoma daqueles que não se identificam e resistem às mensagens, diz Wolton (2010, p. 15): “Os receptores, ou seja, os indivíduos e os povos, resistem às informações que os incomodam e querem mostrar os seus modos de ver o mundo”. Nas últimas duas décadas, com a facilitação das tecnologias de informação e comunicação, emergem narrativas midiáticas feitas pela sociedade civil de forma amadora: jornalismo colaborativo, participativo, cívico ou público. Além disso, movimentos sociais promovem suas atividades e narram suas próprias manifestações; tais práticas, como ocorreu na Primavera Árabe, nos movimentos Occupy em todo o globo e nas manifestações de junho de 2013 no Brasil têm sido chamadas de midiativismo, ciberativismo ou ativismo midiático. O midiativismo – se considerarmos como mídia não somente dispositivos de comunicação digitais – precede a internet, pois suas ações são uma herança dos movimentos sociais, fora do ambiente virtual (Santaella, 2013), que, em qualquer época, buscam a mudança da sociedade quando consideram que há condições insustentáveis de se viver e quando não há confiança nas instituições políticas. Há envolvimento coletivo para defender demandas e mostrar insatisfações com vistas ao reconhecimento público e à consequente renovação social (Castells, 2013). Nesse tipo de manifestação, há ligação íntima com a era da suspeita sobre a mídia (Ramonet, 2012). Como uma resposta ao caráter comercial da cobertura jornalística tradicional, pode-se dizer que o midiativismo inicia por propagandear temas de

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes interesse público, denúncia, direitos humanos e abusos de poder por conta própria. O simples ato de compartilhar imagens com conteúdo que satirize uma temática social ou política para seus contatos, diz Jenkins (2011), é um ato de cidadania tanto quanto tentar se manifestar por meio das mídias tradicionais. Esses movimentos sociais midiáticos, assim, necessariamente não são uma narrativa: é o caso da plataforma Avaaz3, que cria petições online para campanhas em diversas partes do mundo. O WikiLeaks4 é outro exemplo de midiativismo ligado à cultura hacker, que se estende em outras iniciativas. A partir da caça ilegal de elefantes e rinocerontes, foi fundado o projeto WildLeaks5, uma plataforma criada para monitorar, receber, publicizar e encaminhar os casos de delitos contra a fauna na África. A partir da crise hídrica percebida no Brasil a partir de 2013, foi criada uma conta na rede social Tumblr.com para denunciar o descaso com água. De forma descentralizada e colaborativa, os usuários registravam flagrantes de desperdício de água, seja da sociedade civil, do governo ou da iniciativa privada, para postar no Twitter com a hashtag #DesperdícioZero. Estas propostas tornam públicas informações que poderiam não ter espaço na mídia tradicional devido à dependência dos valores-notícia, que supõem um espaço limitado para o conteúdo que sustenta um meio de comunicação. Além de publicar o que poderia não ter lugar no jornalismo industrial, esta é uma divulgação daquilo que poderia nem chegar à grande imprensa, como quando há casos ocultados por fontes primárias e de considerável poder de coerção, como o Estado e/ou o mercado, por meio dos anunciantes. Desta forma, pode-se pensar que o jornalismo massivo não esteja representando parte do público – e importa menos se esta fração é considerável em relação ao todo da audiência do que a simples existência deste “hiato” entre a construção midiática e outras realidades. Este reconhecimento já ocorreu em outros momentos, por parte da própria imprensa, quando o jornalismo público buscava esta maior inserção de temas de interesse público no noticiário além das “editorias nobres” de economia e política (Rothberg, 2011). Agora se constata que isso é exacerbado com o midiativismo – afinal, o jornalismo público é uma percepção da mídia sobre uma possível falha, já o midiativismo é a sociedade civil buscando cobrir as (ditas) falhas da mídia por conta própria. Assim, vem se proliferando casos que imbricam o ativismo à construção de narrativas midiáticas próprias: em 2015, o site do Greenpeace passou a publicar uma série de reportagens, As veias abertas da Amazônia, sobre a luta da tribo indígena Munduruku contra a construção de barragens em suas terras para obras da usina hidrelétrica de Belo Monte. 3 Disponível em: . Acessado em 30 jul. 2017. 4 Disponível em: . Acessado em 30 jul. 2017. 5 Disponível em: . Acessado em 30 jul. 2017.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Conforme Malini e Antoun (2013), o midiativismo ou ciberativismo, impulsionados pelo ativismo midiático e pela cultura hacker da década de 1980, são práticas da sociedade civil que surgem como resposta àquelas vindas dos conglomerados de mídia. Na década de 1990, dois grandes episódios inauguraram este tipo de prática como se conhece atualmente: em 1994 a revolta de camponeses zapatistas em Chiapas, no México, que foram conduzidas pelo Subcomandante Marcos, ganhou atenção global devido à internet; em 1999, em Seattle, com o Indymedia, o Centro de Mídia Independente, que cobriu os protestos contra a reunião da Organização Mundial do Comércio (Santaella, 2013). Estas narrativas midiáticas autônomas da sociedade civil têm relação próxima à (maior) independência viabilizada pelas tecnologias de informação e comunicação. Nos protestos do Parque Gezi, na Turquia, em 2013, o Twitter foi a mídia fundamental para organizar e propagandear as ações, que irromperam como um protesto ambientalista à destruição de um parque para construção de um shopping, mas tendo como pano de fundo uma manifestação antiautoritária por parte do Estado turco. A grande mídia censurou estas iniciativas; as pessoas responderam saindo com seus celulares em busca de notícias que eram ignoradas pela imprensa local, de acordo com a socióloga turca Zeynep Tufekci6. Comumente, o jornalismo tradicional privilegia, por notabilidade e acessibilidade, dentre outros motivos, fontes oficiais, ligadas ao poder, que oferecem um discurso institucionalizado e conservador do status quo. O coletivo Intervozes (2014) constatou, em análise de 964 notícias e reportagens dos três maiores jornais brasileiros – o Estado de São Paulo, O Globo e a Folha de São Paulo – de 11 a 19 de junho sobre as manifestações em 2013 no Brasil, que em 45% das vezes, a polícia ou autoridades oficiais foram ouvidas como fontes únicas, enquanto que isso ocorreu em somente 11% das vezes com manifestantes – o que mostra a tendência em privilegiar a fonte institucional. A tendência dos meios de comunicação tradicionais em privilegiar opiniões ligadas ao poder, porta-vozes oficiais, levou ao conceito de “definidores primários” de Hall et al (1999): por uma “afinidade burocrática” (Anderson, Bell, Shirky, 2013), são as primeiras fontes buscadas para compor um relato jornalístico; suas opiniões iniciariam a interpretação de um acontecimento, fixando, assim, os termos de referência para entender este acontecimento e também uma nova cobertura sobre ele. A imagem da sociedade é construída a partir do que é considerado relevante para os definidores primários. No midiativismo, ao contrário, o que ocorre é justamente a busca por relatos marginais, de atores sociais que geralmente são excluídos da cobertura midiática convencional. Na matéria “Polícia tenta esvaziar Cracolândia em estreia de teatro”, da Ponte Jornalismo – que trata de informações sobre segurança pública, justiça e 6 Seu relato e as informações foram obtidas de sua palestra no TEDGlobal 2014. Disponível em: . Acesso em 03 mai. 2015.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes direitos humanos –, temos uma narrativa a partir de uma ótica e de um lugar não hegemônicos7: “A alameda Barão de Piracicaba, número 740, em Campos Elíseos, região central de São Paulo, local habitado por moradores de rua e usuários de crack até a semana passada, agora recebe carros importados e pessoas com poder aquisitivo elevado”. A inauguração do teatro – curiosamente chamado de Porto Seguro – contou com um show de Ney Matogrosso, com todos os ingressos vendidos. Um espetáculo que deve ser preparado para que seja uma bela experiência – para quem puder pagar a entrada. Na noite anterior houve um protesto intitulado “O drama está fora do teatro”, que denunciava a tentativa de retirar moradores de rua e desmontar barracas colocadas no local. Conforme a Ponte Jornalismo, havia mais de 50 seguranças privados no local, além de 6 viaturas da Polícia Militar – órgão estatal. Além do título encaminhar o entendimento da situação ocorrida, a reportagem segue o relato a partir da perspectiva que sugere uma ação conjunta entre o poder estatal e a iniciativa privada – uma “higienização” que buscava “limpar a área”, conforme o depoimento do padre Júlio Lancelotti. Atentemos que um padre poderia ser entendido como uma voz institucional, uma autoridade; entretanto, ele é citado como um dos manifestantes, que fala em nome da Pastoral Povo de Rua. A primeira parte da notícia é concluída como forma de denúncia: Com o argumento de revitalizar o centro da cidade, pertences de moradores de rua e dependentes químicos, como carroças, colchões e roupas, são recolhidos por equipes de limpeza. Em alguns casos, até documentos são perdidos. Essa estratégia da Prefeitura de São Paulo, de Fernando Haddad (PT), é a mesma de gestões anteriores, como de Gilberto Kassab e José Serra.

No subtítulo “Outro lado”, o outro lado é a prefeitura de São Paulo, que fala por nota oficial e por depoimento do secretário de comunicação da época – a partir do que foi dito anteriormente: um contraponto à denúncia. Ou seja, nesta proposta de fazer jornalismo se poderia pensar se os “definidores primários” são outros – vozes marginais em vez de fontes oficiais – ou se estes se mantêm, sendo a própria reportagem uma resposta que parte de um discurso amplo, um imaginário já pressuposto, formado por versões de pessoas poderosas; seria uma maneira de “equilibrar” o jogo no que diz respeito às fontes utilizadas em relatos jornalísticos. Pode-se observar a mesma proposta de se ouvir relatos marginais em vez de fontes oficiais – a partir, entretanto, de uma determinada ótica hegemônica – no documentário “Com vandalismo”, do Coletivo Nigéria8. 7 Texto de Paulo Eduardo Dias. Disponível em: . Acessado em 20 set. 2020. 8 Disponível em: . Acessado em 20 set. 2017.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Vândalos, segundo a imprensa, são pessoas sem motivação política, que depredam patrimônio público, carros e veículos de comunicação e atacam a polícia com o simples objetivo de estabelecer o caos. Vândalos seriam uma minoria infiltrada, baderneiros, bandidos. Por causa disso, não merecem ser escutados. Seriam esses manifestantes sem propósito? Qual a motivação para a desobediência civil?

O audiovisual traz cenas de manifestações de rua em Fortaleza (CE), durante a Copa das Confederações, em agosto de 2013 – ou seja, na esteira das marchas de junho daquele ano. Haveria uma separação, feita pela imprensa, entre os manifestantes “pacíficos” e os “vândalos”: a distinção entre cada grupo se daria por haver ou não confronto com a polícia – um órgão oficial. Logo em seguida, assistimos um manifestante alegar ter apanhado sem motivo; e também denúncias da situação de pobreza, carência de hospitais enquanto a preocupação é com a Copa do Mundo – citando Ronaldo –, uma estrutura e uma situação que seriam inaceitáveis; por isso, seria preciso denunciar, agir: “Tem que ser pacífico, mas a polícia tá indo pra cima da gente, metendo bala de borracha, diz um dos entrevistados”; haveria agressão policial desmotivada, não apenas a ação de “vândalos sem propósito, que não deveriam ser ouvidos”. Estes registros poderiam deixar de ser noticiados; entretanto, quando o são, podem mudar substancialmente a construção midiática sobre um evento, como durante as manifestações de junho de 2013, no Brasil: paralelamente às notícias da imprensa tradicional capturadas de helicópteros ou do alto de edifícios, na internet circulavam vídeos de dentro do protesto, que denunciavam a truculência com que a polícia tratou os movimentos sociais. Boa parte do conteúdo alternativo veio do coletivo Mídia NINJA, que captou imagens da polícia agredindo integrantes pacíficos dos movimentos. As imagens viralizaram na web e ofereceram outra face do movimento e dos próprios manifestantes – não se tratava somente de vândalos, mas de pessoas que sofreram violência gratuita. O que poderia ser classificado como apenas uma versão a defender a própria causa se mostrou como material valioso ao desmentir versões e imagens criadas sob a manifestação – ao ponto de serem usadas no principal telejornal brasileiro9. A ótica da indústria jornalística privilegiou o olhar institucional e condenou os protestos, conforme a pesquisa do Intervozes (2014): houve acusações dos jornalões brasileiros contra os manifestantes e em somente 23% das matérias analisadas o outro lado ouvido; além disso, os manifestantes foram os atores mais acusados antes de serem ouvido em 43% das vezes. O mesmo ocorria uma década e meia antes, nas manifestações antiglobalização promovidas pelo Indymedia, em que os ativistas saíram equipados com câmeras nas 9 No Jornal Nacional, imagens da Mídia Ninja contrapuseram a versão que um policial contou sobre a prisão de um manifestante – que supostamente portava explosivos. Disponível em: . Acessado em 29 jul. 2017.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ruas e reuniram material de diversas fontes; a intenção era promover uma cobertura que a mídia tradicional não faria: dos protestos contra o encontro da Organização Mundial do Comércio e seus propósitos (Gillmor, 2004). Nos registros, flagrantes de agressões policiais aos manifestantes; os próprios midiativistas foram enquadrados como vândalos e anarquistas pela mídia principal (Bruns, 2011): deste ponto de vista, notícia e ideologia se confundem, pois formam uma narrativa social ampla. Se existem os definidores primários, conforme Hall et al (1999) também há os contradefinidores, com um discurso baseado em “contraideologias”, que permitem uma interpretação alternativa dos acontecimentos. Vale pontuar, ainda, que para além de uma resposta contrária a um enquadramento midiático hegemônico, há a afirmação da pauta que poderia ficar no anonimato, que poderia não ascender à sociedade do espetáculo, onde “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (Debord, 1997, p. 17). A proposta do coletivo Alma Preta é narrar a própria realidade sem esperar para isso concessão de fala da mídia dominante. “Vivemos em um mundo de disputa. Nossa sociedade tem profundas marcas das desigualdades que foram desenhadas ao longo da história. Na atualidade parece que há espaço para debate, a tão falada representatividade está sobre a mesa”. Na matéria “Cultura periférica na quarentena: conheça ‘As Despejadas’”10, o jornalismo independente traz a música independente de uma banda formada por mulheres da periferia de Guarulhos (SP) e sua adaptação durante o isolamento social causado pela pandemia de Covid-19. Aparentemente, não se trataria de uma disputa pelo enquadramento midiático tal qual os exemplos anteriores, mas é interessante perceber que, ainda que a matéria busque trazer luz ao que poderia passar despercebido, como forma de afirmação identitária ou cultural, ainda há, no texto descritivo, uma contraposição a uma hegemonia que incomoda: “‘As Despejadas’ é uma reação. Como fruto de seu próprio tempo, segundo as integrantes, a banda não existiria se não existisse genocídio, violência contra a mulher, preconceito de gênero e tantos outros problemas sociais”. Assim, considera-se que estas narrativas midiáticas que podem ser chamadas de midiativismo são uma resposta a uma hegemonia dada, e também uma afirmação de identidades minoritárias ou culturas não representadas na grande mídia. Desta forma, pode-se traçar um paralelo entre os movimentos sociais e as narrativas contrahegemônicas: ambos advêm de uma busca por reconhecimento, conforme considera Castells (2013, p. 166): “os movimentos sociais surgem da contradição e dos conflitos de sociedades específicas, e expressam as revoltas e os projetos das pessoas resultantes de sua experiência multidimensional”. Se somente pela natural falibilidade da prática jornalística possa haver acusações de manipulação e de opressão sobre os cidadãos, o quadro torna-se mais sugestivo quando estas iniciativas contra-hegemônicas revelam pautas ou fatos até então 10 Disponível em: . Acessado em 21 set. 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes desconhecidos ou negligenciados pela grande mídia. Não se sugere, neste artigo, que o problema seja dualista: um conflito de classes, de partidos, ou da sociedade civil contra o Estado e/ou contra o Mercado – e que um dos lados esteja certo e o outro errado. A narrativa midiática é construída baseada num modelo interpretativo – por isso, um manifestante poderá ser chamado de vândalo ou de resistente democrático sob óticas diferentes (Alsina, 2009). Observa-se, assim, que o midiativismo pode fornecer um relato divergente da indústria jornalística pela insatisfação com o que é ali noticiado, decorrente de uma descrença e de valores distintos. A questão, portanto, é mais complexa e está intimamente atrelada à existência de multiculturalidades em jogo, que buscam reconhecimento ou lutam contra a violência que sofrem. A influência proporcionada pela globalização, conforme Hall (2006), é um dos motivos que faz com que as identidades – que podem ser transitórias – se fortaleçam: uma recusa não apenas à homogeneização, mas também à invizibilização promovida e decorrente violência simbólica ou mesmo física.

Considerações finais Essas iniciativas apresentadas se baseiam em temáticas tradicionais, que o jornalismo, no ideal de quarto poder, já tratava: direitos humanos, minorias sociais, abusos de poder. Ocorre que, além disso, existem protestos, demandas e manifestações que se localizam num lugar mais incerto diante da opinião pública do que temáticas como a proteção do meio ambiente, a luta contra o trabalho escravo: trata-se de uma luta por valores contra-hegemônicos na sociedade, ou por multiculturalidades que não encontram espaço devido a uma hegemonia operar – uma moral que atua sobre as diferenças. Se antes se poderia pensar no midiativismo como o “quinto poder” – como queria Ramonet (2012), fiscalizador do “quarto poder”, a imprensa, e denunciante de abusos –, o novo “guardião da democracia”, agora se entra num campo mais incerto, em que discursos múltiplos disputam um lugar em cada sociedade que irá acolhê-los como verdadeiros (Foucault, 2013) e, assim, já não se pode ocupar com certeza uma posição para falar em nome daquilo que é o certo diante daquilo que é errado. De certa forma, assim, o midiativismo implica em posicionamento político que questiona o jornalismo e a mídia como um todo. Todavia, o que se chama atenção é para as visões de mundo divergentes – culturas que não comungam dos mesmos valores, tribos que não falam a mesma língua (Maffesoli, 2010), que acaba por gerar uma incomunicação, segundo Wolton (2010, p. 15): “Os receptores, destinatários da informação, complicam a comunicação. A informação esbarra no rosto do outro. Sonhava-se com a aldeia global. Estamos na torre de Babel”. A virada do século, principalmente, mostrou que esta participação na construção

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes da realidade tem se disseminado entre iniciativas autônomas na sociedade civil. A partir das falibilidades a que o campo jornalístico está sujeito, surgem movimentos que não apenas se somam à imprensa tradicional como a esta se opõe, passando, então, a atacá-la, como uma forma de combate contra a hegemonia imposta. Junto a estas afirmações identitárias, é possível que surjam discursos, informações ou até completas realidades que até então não haviam ganho projeção pela indústria jornalística.

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NARRATIVAS JORNALÍSTICAS NO SITE JORNALISTAS LIVRES: AS ESTRATÉGIAS ARGUMENTATIVAS DE SEUS NARRADORES DURANTE O IMPEACHMENT DA EX-PRESIDENTE DILMA ROUSSEFF Karolina de Almeida Calado Heitor Costa Lima da Rocha

Introdução Em 31 de agosto de 2016, a então presidente Dilma Rousseff sofre um impeachment fruto de jogo político articulado por juristas, congressistas e mídia hegemônica. Naquele momento, a primeira mulher eleita presidente na história do Brasil sofre um processo de impeachment em apenas 30 anos de redemocratização do país. Tal temática, portanto, passou a permear tanto a grande mídia como os grupos da mídia independente. Nas ruas, os protestos contrários e favoráveis à saída de Rousseff se intensificaram e o tema abordado pela mídia refletia o cenário social, a partir de uma divisão nacional entre grupos favoráveis e contrários àquele processo. Na internet, os grupos da mídia independente agiram combatendo os discursos de movimentações favoráveis à queda da ex-presidente. Durante esse período, monitorávamos o site Jornalistas Livres a fim de buscar compreender como essa mídia enquadrava o acontecimento impeachment em suas narrativas. Objetivamos, a partir do problema elencado, analisar as estruturas das narrativas jornalísticas presentes naquele site, com o propósito de identificar nos textos as estratégias argumentativas desenvolvidas por seus narradores. Dada a relevância, elegemos, portanto, o impeachment como tema, ou seja, como acontecimento-intriga segundo a categorização de Gonzaga Motta (2013), e estabelecemos o período da coleta entre 1 de março até 31 de agosto de 2016. Escolhemos analisar o site Jornalistas Livres por este ser independente no âmbito financeiro, surgido a partir de uma campanha de financiamento coletivo e pela abertura dada para diferentes tipos de narradores, o que possibilita uma

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes diversificação de perspectivas para o acontecimento. Ao todo, somamos um corpus de 123 conteúdos. A justificativa para centrarmos nossa análise no processo narrativo do conteúdo se dá porque entendemos que a narrativa é capaz de desvendar o tipo de jornalismo que é feito pelo veículo, suas características e intenções. Acreditamos que essas narrativas independentes, construídas e m moldes diferenciados, podem desenvolver, intencionalmente, formas mais efetivas de debate, ou tornar mais visíveis os problemas sociais ao possibilitar que distintas vozes contribuam com sua fala na formação de uma opinião pública mais plural. Para tanto, utilizamos a metodologia de análise da narrativa jornalística desenvolvida por Motta, que se divide em sete movimentos: 1º) compreender a intriga como síntese do heterogêneo; 2º) compreender a lógica do paradigma narrativo; 3º) deixar surgirem novos episódios; 4º) permitir ao conflito dramático se revelar; 5º) a personagem, metamorfose de pessoa a persona; 6º) as estratégias argumentativas; e 7º) permitir o florescimento das metanarrativas (Motta, 2013). Contudo, focamos nossa análise no sexto movimento, pois nosso objetivo era analisar o modo como os atores sociais estruturavam suas narrativas sob o ponto de vista da argumentação assente na contra-comunicação, ou seja, quais recursos linguísticos tais pessoas se apropriavam para demarcar seu posicionamento na história narrada, ou seja, para construir o efeito de sentido pretendido no narratário. Nas iniciativas independentes, há um processo democrático incutido que se inicia na discussão de temas não pautada pela grande mídia, na inclusão de vozes diversas, na proposição de pautas por qualquer usuário, no financiamento de sites, reportagens e projetos, além da possibilidade de escolha sobre quais propostas serão financiadas pelo grupo. Há um engajamento por parte desses participantes em relação às causas ou temáticas envolvidas, de modo que eles se tornam os próprios divulgadores, comentadores das reportagens e financiadores dos projetos. Nesse sentido, o jornalismo da mídia independente não possui a pretensão de ser imparcial ou objetivo como observado no discurso disseminado pela grande mídia. Seu propósito é promover o debate a partir de pautas das demandas sociais, promovendo outros tipos de enquadramentos em relação àqueles propostos pela grande mídia, conforme Kelly Prudencio (2009). Para isso, mesmo quando não é desenvolvido por “jornalistas”, mas por ativistas, essa produção está baseada em recursos jornalísticos que trazem credibilidade ao acontecimento narrado. Atrelado à importância de incluir as pautas de grupos socialmente excluídos, há que se destacar que a formação de coletivos jornalísticos independentes também possui uma motivação econômica em decorrência da crise financeira que atinge as redações desde 2007. A submissão de projetos a editais de fundações como a Ford e Open Knowledge ou a criação de campanhas de financiamento coletivo são exemplos de estratégias utilizadas para angariar recursos financeiros. María Ángeles Cabrera

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (2014) afirma que o crowdfunding se estabelece em um período de crise financeira dos veículos de comunicação, de novas adaptações, convergência profissional e demissões. Tal financiamento, portanto, atua na redução dos danos causados pela crise.

A mídia radical e a internet Diferentes projetos de jornalismo independente com a colaboração de um público ávido por um conteúdo distinto daquele comumente produzido pela grande mídia têm surgido em meio a um panorama de crise do jornalismo tradicional. Esses projetos não apenas conseguem ser financiados pela coletividade como conseguem um peculiar engajamento. Especialmente, porque esse tipo de jornalismo se propõe a abordar pontos pertinentes caros à sociedade e aos grupos socialmente excluídos. A discussão que emerge de John Downing (2002) nos mostra a importância de se ter uma mídia independente para contemplar os assuntos em decorrência da estrutura montada para censurar informações. Nesse sentido, “o papel da mídia radical pode ser visto como o de tentar quebrar o silêncio, refutar as mentiras e fornecer a verdade. Esse é o modelo da contra-informação, que tem um forte elemento da validade, especialmente sob regimes repressores e extremamente reacionários” (Downing, 2002, p. 49). O autor também mostra que é a mídia radical ou comumente chamada de independente ou alternativa quem difunde as demandas dos movimentos sociais ou primeiro quem articula os anseios dos mesmos. De acordo com Downing (2002), diferentes suportes de mídia como livro, fita de áudio e vídeo foram utilizados em momentos históricos, como na revolução iraniana de 1979; na ex-União Soviética e na Revolução Francesa. Do mesmo modo, o autor acrescenta: “na revolução norte-americana, que se deu mais ou menos na mesma época em que se espalhava pela própria Inglaterra uma ardente antipatia por George III, (…) os volantes, panfletos e jornais contribuíram de maneira preponderante para aumentar a efervescência política” (Downing, 2002, p. 206). Nos Estados Unidos, há também registros de jornais trabalhistas e publicações em língua estrangeira, a partir de 1880, especialmente por conta da migração. Atualmente, potencializada pela comunicação em rede, a internet pode vir a ser uma esfera pública global dadas as suas configurações, por ser um veículo que possibilita uma audiência não apenas regional como internacional, com custo muito baixo, podendo ser participativa e interativa, permitindo que meios alternativos tenham voz. Ainda, a audiência possui um maior controle em relação à produção na internet. “Depoimentos, jornalismo freelance sem censura, relatórios de organizações de direitos humanos, vídeos e mídia interativa, fóruns de discussão multilíngues, reuniões de grupos de apoio e seções de estratégia política são diariamente transportados, enviados, transmitidos, circulados e divulgados on-line” (Downing, 2002, p. 271). A Internet também facilita a operacionalização de outros tipos de veículos alternativos, a exemplo do rádio, TV e jornal, como armazenamento, busca e disseminação

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de informação. Downing (2002) aponta para um fato interessante sobre a estratégia de vozes oriundas do ativismo social. Ele diz que, em vez de articuladores ativistas mediarem as vozes em notícias e documentários, seria interessante dar o espaço para as mesmas se expressarem: “os articuladores dos movimentos sociais têm oportunidade de expressar-se diretamente por meio de documentos divulgados pela Internet. Isso suscita a questão de se podemos trocar a estratégia de dar voz aos que não têm voz pela estratégia de deixar as pessoas falarem por si mesmas” (Downing, 2002, p. 275). O autor afirma que, “em consequência das atuais tendências socioeconômicas, os ativistas sociais estão cada vez mais na defensiva, lutando para proteger as liberdades civis e os direitos humanos, ao mesmo tempo em que contestam as políticas econômicas regressivas” (Downing, 2002, p. 275). São indistintas as barreiras que separam o ativismo popular da produção midiática, segundo Downing. No entanto, o autor também denuncia o fato de a internet também se vê ameaçada por finalidades mercadológicas e políticas estatais, constantemente, a partir de estratégias de enclosure, ou seja, cerceamento. Um dos grandes exemplos do ativismo em rede se refere ao Exército Zapatista de Liberação Nacional, o qual conseguiu articulação midiática para atuar em rede e difundir as ações do movimento e negociações com o governo federal do México, através da internet, no início de 1994. Para o autor, a sociedade civil sentiu-se estimulada para dialogar, de forma participativa, com o EZLN. Semelhante ao que aconteceu com o site Jornalistas Livres no impeachment, a internet foi utilizada pelo EZLN para auxiliar as pessoas envolvidas com o movimento e para chamar a atenção de autoridades locais e internacionais. Ele conseguiu pautar suas demandas na rede de mídia, ganhou o respeito de políticos locais e apoio de pessoas em todo o mundo. “Como o EZLN congregava pessoas historicamente excluídas do discurso hegemônico por questões de gênero, posição social, social, condições econômicas, valores culturais e raça, o diálogo que iniciaram era, por definição, uma arena de inclusão radical” (Downing, 2002, p. 294-295). Essas narrativas jornalísticas independentes, embora se assemelhem às notícias da grande mídia em alguns aspectos, trazem um outro foco para o palco social. Elas buscam fazer um enquadramento noticioso de acordo com os temas das demandas sociais e, assim, utilizam seus próprios critérios de noticiabilidade. Seus textos possuem uma narratividade que enfatiza determinadas personagens cruciais para construir efeitos de sentido alternativos em relação à grande mídia. Elas possuem seus heróis, seus adjetivos e suas fontes que legitimam seu papel na sociedade. Nessas, ainda é percebível a repetição de palavras-chave, inclusão de determinadas fontes estratégicas; inclusão de temáticas bastante específicas; e divulgação de eventos da ação coletiva (Entman, 1993). As narrativas dessa mídia pesquisada não têm a menor pretensão de serem imparciais, neutras ou objetivas. Procurando demarcar seu lugar social, baseada em seu próprio enquadramento, esse tipo de narrativa traz as marcas da luta simbólica para

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes estabelecer seus próprios significados. Seu objetivo é tornar a comunicação mais plural e horizontal e que o enquadramento seja transparente tanto para quem emite a notícia quanto para quem a recebe. O jogo discursivo desenvolvido pelos grupos independentes busca trazer ao debate as questões não problematizadas no jornalismo da grande mídia. Porta-voz dos movimentos sociais, boa parte da mídia independente media as diferentes abordagens trazidas pelos coletivos sobre temas como direitos humanos, reforma agrária, falta de moradia, entre outros. Porém, a mídia independente é multifacetada, há diferenciação na abordagem do conteúdo tanto em termos de formato da mensagem, quanto de abordagem temática. Em alguns casos, os grupos independentes procuram aproximar sua mensagem da grande mídia. Mostram-se imparciais, respeitam o lead, ouvem fontes variadas e trazem dados estatísticos. Tais mecanismos são estratégias em prol da legitimidade, da veracidade e da credibilidade. Há também um outro tipo de mídia que busca desenvolver uma comunicação mais aberta, priorizando opinião e ativismo. A diferença entre o jornalismo da grande mídia e jornalismo da mídia independente é o discurso da despretensão de ser uma mídia imparcial e procurar utilizar o espaço midiático como veículo de conscientização e participação. Vemos que os enquadramentos são utilizados para ressignificar os enfoques sociais feitos pela grande mídia, também para trazer denúncias e problematizar as questões relacionadas às demandas dos grupos silenciados e sistematicamente excluídos da representação simbólica da indústria das notícias. Kelly Prudencio (2012) afirma que os frames dessa mídia passam a ser os frames contests dos grupos independentes que entram na luta para legitimar seus quadros. “A maneira pela qual essa interação se dá é pelo concurso de enquadramentos interpretativos dos atores em disputa (frame contest). Os frames são dispositivos enfatizadores de significados atribuídos pelos atores sociais às injustiças de uma condição que compartilham” (Prudencio, 2012, p. 9). A autora acrescenta que os frames contests dos grupos independentes desempenham “o trabalho de nomear descontentamentos e construir quadros de significado mais amplos que orientem a ação em contextos particulares. O momento em que esses frames ficam visíveis é no confronto político aberto” (Prudencio, 2012, p. 9). A narrativa da mídia independente mais do que uma abordagem que preza pela estética e valorização textual, preocupa-se em trazer seu foco para os enquadramentos da ressignificação social ao tematizar assuntos caros à sociedade e ao incluir grupos socialmente excluídos. Portanto, a questão do frame, do reframe e do frame contests vem elucidar as formas de desenvolver uma narrativa não mais com o viés da ideologia positivista da imparcialidade, mas com a preocupação de contribuir com a formação da opinião pública para a mudança social. A hierarquia entre o veículo, o narrador e a personagem se distingue da mídia

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes independente para a grande mídia e, dentro da própria mídia independente, há diferentes formas de inclusão de vozes. Especialmente os veículos que têm como perfil o ativismo. Ativistas de mídia por meio de reportagens ou documentários abordaram conteúdos noticiosos ao longo dos anos e, agora, utilizam os meios de comunicação na internet para divulgar suas ações e produtos e estimulam a participação entre os demais atores coletivos. Desse modo, as fronteiras entre o ativista e o profissional de mídia estão cada vez menores de acordo com Kelly Prudencio (2009b). Através da internet, os atores coletivos que compõem movimentos sociais diversos podem se tornar tanto fonte de informação como ser o próprio comunicador, ou os dois ao mesmo tempo. Essa fronteira, entre fonte e comunicador, visível em alguns veículos da grande mídia ou da mídia independente, não se observa em veículos como Jornalistas Livres. Para Prudencio (2009b), há diversos tipos de mídia ativista porque cada uma define o que acredita ser a melhor forma de utilização da internet, a exemplo de como potencializar os recursos disponíveis na rede mundial de computadores. A autora vislumbra duas modalidades de profissionais na mídia ativista ou, especificamente, na cibercomunicação política. A primeira delas é a dos “ativistas de mídia” e a segunda é a dos “jornativistas”. “Os ativistas de mídia utilizam uma linguagem mais combativa e claramente contrária ao enfoque comumente difundido sobre os temas, enquanto os jornativistas apostam na linguagem referencial do jornalismo para obter mais credibilidade e interferir pragmaticamente nos rumos das decisões políticas” (Prudencio, 2009b, p. 101). A autora argumenta que, “para os ativistas de mídia, o conteúdo prevalece sobre a forma, e para os jornativistas é a forma que antecede o conteúdo” (Prudencio, 2009b, p. 101). Kelly Prudencio (2009b) explica que os ativistas de mídia participam de organizações cujas críticas tecidas são direcionadas para assuntos como neoliberalismo e as corporações midiáticas. A partir disso, eles “organizam a produção da informação para o fortalecimento dos seus pontos de vista e utilizam uma linguagem claramente militante, a qual predomina sobre o código legitimado do jornalismo” (Prudencio, 2009b, p. 101). O texto oriundo da mídia ativista, quanto mais próximo se torna do modelo jornalístico, mais legível e mais abrangente fica. Por outro lado, também os “jornativistas” constroem seus projetos pautados em seus critérios de noticiabilidade e independência e estabelecem uma outra relação com o conteúdo. “Ainda que questionem os procedimentos da imprensa, utilizam-nos para noticiar os acontecimentos que julgam negligenciados. Dessa forma, constroem seus próprios critérios de noticiabilidade, os quais vão orientar a seleção das informações que podem virar notícia” (Prudencio, 2009b, p. 102). A autora traz a discussão sobre o que significa o “jornativismo”, definindo-o como: “um espaço de atuação intermediário entre a perícia e o engajamento. Os jornativistas atuam ao mesmo tempo como profissionais da informação sem, contudo, aderir ao princípio da imparcialidade, assumindo claramente seu posicionamento” (Prudencio, 2009b, p. 102).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A narrativa jornalística O modelo de análise pragmática da narrativa jornalística apresentado por Luiz Gonzaga Motta (2013) é capaz de relacionar cada ponto de sentido no texto: o enredo, a personagem, o narrador, a intriga, entre outras unidades. A partir dele, desenvolvemos o processo de desconstrução da narrativa, para entender o encadeamento lógico e a função de cada peça. O sexto movimento, dentre os sete elencados pelo autor, que condensa “as estratégias argumentativas”, mostra que o narrador possui um poder singular de conduzir a narrativa a partir de argumentos que expressam o desejo de definir a situação, de conduzir o leitor a acreditar na veracidade daquilo que noticia. Esse movimento busca trazer a discussão do narrador para o centro do debate. No caso do jornalismo da grande mídia, Motta (2013) elenca uma série de estratégias utilizadas pelos repórteres para fazer parecer que não há mediação, que as fontes falam por si só. Ao consultar documentos e apresentar dados, procuram evidenciar que tal conteúdo não possui recorte e, portanto, eles retratam a realidade. Esses recursos os auxiliam em suas rotinas produtivas e os conduzem ao ideal de credibilidade e veracidade. Tais recursos também são utilizados pelos narradores da mídia independente, mas não necessariamente para se mostrar imparcial, mas para trazer credibilidade ao seu texto. Outras pistas podem ser observadas pelo analista: dêiticos espaço-temporal, ou seja, itens linguísticos utilizados para situar a história no tempo e no espaço, a exemplo do “aqui” e “agora”; figuras de linguagem; ou o próprio formato de consulta às fontes e a utilização de dados estatísticos. “O abundante uso de números e estatísticas nas narrativas jornalísticas confere também precisão ao relato (idades, quantias, volumes, porções, dimensões, etc.). São, igualmente, estratégias de linguagens cujo objetivo é repassar uma ideia de rigor, veracidade” (Motta, 2013, p. 202). Todos esses recursos são usados para mostrar ao leitor que o narrador-jornalista explicita a verdade. Esse, por sua vez, ainda entrevista fontes que, hierarquicamente, possuem legitimidade para falar por exercerem específicos papéis sociais e, por isso, são consideradas certas, verdadeiras, inquestionáveis. Como o narrador se utiliza dos efeitos estéticos de sentido para produzir o efeito de real, o autor defende que sejam analisadas as pistas que evidenciam tais efeitos. Gonzaga Motta (2013) afirma que toda narrativa traça um jogo permanente entre os efeitos de real, sua capacidade de transmitir a verdade e os sentimentos que deseja provocar, entre os quais: dor, ódio, revolta, ironia, entre outros. O drama comumente encontrado é, geralmente, exacerbado para enfatizar suas pretensões. Gonzaga Motta (2013) acrescenta que o narrador é discreto e procura construir seu texto baseado numa “retórica da narrativa realista” a partir de recursos linguísticos e advérbios. O efeito de real também está relacionado ao tempo presente, “aqui e agora”, enfatizado no jornalismo, mesmo quando se refere ao passado ou ao futuro.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes “A identificação sistemática de lugares (onde) e de personagens (quem) também cumpre uma função argumentativa: localiza, situa, transmite a ideia de precisão, causa a impressão de que o narrador fala de coisas verídicas, realisticamente situadas” (Motta, 2013, p. 202). Nesse sentido, Motta desenvolve o conceito de “referencialidade temporal” para fazer alusão aos recursos relacionados ao tempo como ontem, hoje e amanhã, pela manhã, etc. “São dêiticos espaço-temporais que precisam ser identificados e cujas funções táticas devem ser descortinadas pelo analista” (Motta, 2013, p. 202). O autor afirma que o uso de dêiticos no jornalismo traz confiabilidade ao receptor.

Procedimentos metodológicos O narrador na mídia independente possui aproximações e distanciamentos em relação ao narrador-jornalista idealizado por Motta. O enquadramento narrativo daquele ator social demarca uma defesa pautada nas demandas de grupos socialmente excluídos. Seu objetivo não é julgar, igualmente, os lados distintos da história e oferecer espaços iguais de fala dentro do texto jornalístico, como se o narrador estivesse em um “não lugar” criticado por Young (2012). Pelo contrário, devido à exclusão de determinados atores do debate público proposto pela grande mídia, os narradores da mídia independente têm por compromisso social incluir as vozes dos atores sociais não contemplados no espaço mainstream. Essa inclusão se dá, inclusive, sem processo de mediação como no caso dos Jornalistas Livres. Assim, partindo da construção de uma linha editorial pautada na defesa dos direitos humanos, os narradores desenvolvem diferentes “estratégias argumentativas” para provocar os efeitos de sentido conforme seu enquadramento político. Seu papel e ação social, portanto, são tipificados e guiados, intencionalmente, por quadros que promovem uma contra-comunicação em um panorama composto pelo oligopólio midiático responsável por enquadramentos que reforçam a manutenção do staus quo e os estereótipos de determinados grupos. Em contraposição à postura da grande mídia, eles formulam seus valores e se apropriam de diferentes estratégias para provocar em seus leitores reações de indignação, revolta, nostalgia, etc. Cada mídia independente, a sua maneira, estabelece o conjunto de recursos que possam associar maior veracidade ao seu conteúdo, a exemplo do uso de dados e datas que indicam precisão e confiabilidade; ou referencialidade temporal e espacial, “aqui e agora”, “naquele momento histórico”, “naquele dia simbólico”, ou seja, dêiticos espaço-temporais responsáveis por situar o leitor no tempo e no espaço da narrativa. Assim como na grande mídia, os narradores de veículos de mídia independente se apropriam de distintos recursos linguísticos: figuras de linguagem (metáfora, ironia), adjetivos, entre outros. Todos esses recursos objetivam provocar nos leitores sentimentos diversos, a exemplo de rejeição e espanto. Desse modo, buscamos identificar nas narrativas analisadas quais eram os recursos, acima citados, usados pelos narra-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes dores, para compreender quais eram seus critérios de noticiabilidade e seu enquadramento narrativo. Aproximamos os narradores identificados às figuras: ativista de mídia ou jornativista, conforme categorização de Kelly Prudencio (2009). Para coleta, utilizamos o site agregador de notícia “Digg Reader”1 que permitia organizar os RSS (Really Simple Syndication) do veículo, de modo que, cotidianamente, era possível visualizar as atualizações de conteúdo de cada site. No segundo momento, utilizamos o site “Diigo”2 que arquivava as matérias na íntegra e possibilitava grifos e comentários, facilitando, assim, o nosso processo de análise. Após observar os episódios ou encadeamentos lógicos das reportagens abordadas no veículo, elaboramos uma planilha onde organizamos por título e data todas as publicações. Voltamos novamente para as narrativas com intuito de verificar as pistas deixadas pelo narrador para marcar seus posicionamentos.

Análise das narrativas presentes no site Jornalistas Livres A rede Jornalistas Livres surgiu em 12 de março de 2015, como uma iniciativa de mídia independente para cobrir as manifestações relacionadas ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nos dias 13 e 15 daquele mês, conforme cita a jornalista e integrante do grupo, Carolina Trevisan3. Segundo ela, o veículo JL queria que as pessoas presentes em ambos os dias pudessem falar sobre as reivindicações de cada ato. Com o estímulo de desenvolver conteúdos plurais, abrangentes, éticos e de qualidade, um coletivo de pessoas, entre as quais, profissionais de mídia, propuseram uma campanha de crowdfunding na plataforma Catarse para que as pessoas interessadas naquele tipo de jornalismo pudessem ser, elas mesmas, as financiadoras daquele projeto. A campanha foi bem-sucedida e ultrapassou os 100% da meta estabelecida de R$ 100 mil, totalizando R$ 132.730. De acordo com as informações disponíveis no perfil do JL, na rede social Twitter, o dinheiro arrecadado sustenta o veículo até os dias atuais, até porque, ele não remunera os profissionais que produzem conteúdo, todos são voluntários e não necessariamente precisam ser jornalistas. O dinheiro que se repassa ao produtor de conteúdo se restringe ao transporte e à alimentação em ocasião de deslocamento para realização de coberturas, quando há necessidade. “Não recebemos dinheiro de ninguém, nem de partido, nem de organizações. Nossos maiores investidores são os próprios jornalistas livres que investem, além do seu tempo, também custeando, na maioria das vezes, a própria passagem, alimentação e equipamento” (@J_LIVRES, 2019)4. 1 Agregador de notícia que teve suas atividades finalizadas em março de 2018. 2 Diigo. Disponível em: < https://www.diigo.com/ > Acessado em 08 de fevereiro de 2019. 3 Fala da jornalista no vídeo criado para a campanha no Catarse. Disponível em: < https://jornalistaslivres.org/ como-surgiu/ > Acessado em 12 de dezembro de 2018. 4 Twitter dos Jornalistas Livres. Disponível em: < https://twitter.com/J_LIVRES/status/1083795443216248832 > Acessado em 19 janeiro de 2016.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ao todo, 94 autores, espalhados em países como Argentina, Brasil, Estados Unidos e Portugal, produzem conteúdo para o site; ainda 37 pessoas administram a conta do Twitter e mais de 80 pessoas editam a página do veículo no Facebook. Como mencionado, a nossa pesquisa tem como recorte temático o acontecimento-intriga “impeachment” da ex-presidente Dilma, a partir do qual pudemos mapear o frame contest ou o re-frame, ou seja, o enquadramento diferenciado que elucida as intencionalidades dos narradores desse grupo midiático investigado. Esse, por sua vez, está comprometido com diversas causas e buscam legitimar o seu enquadramento ou reenquadramento, a partir de uma contra-comunicação que inclui atores sociais e temáticas, rotineiramente, excluídas da agenda dos grandes meios de comunicação. Portanto, sua postura evidencia uma luta para promover uma reconstrução social da realidade.

Os narradores O narrador nos Jornalistas Livres explicita seus posicionamentos enquanto ator social a partir de um enquadramento jornalístico pautado no ativismo social e no engajamento em defesa das minorias. Tal narrador pode ser considerado um “ativista de mídia” segundo a categorização de Kelly Prudencio (2009), uma vez que não está preocupado com a estética e o estilo do texto, mas com a causa defendida. Esse “ativista de mídia” que assume a condição de narrador pode ser qualquer pessoa. O veículo propõe uma abertura para qualquer um participar de forma livre enquanto criador de conteúdo, mas desde que seja respeitado o “frame contest” (Prudencio, 2009), ou seja, desde que esteja de acordo com os enquadramentos estabelecidos por esse veículo. Abaixo vejamos um recorte de sua linha editorial: Lutamos pela democratização da informação, da comunicação e da vida em sociedade, contra a ditadura de pensamento único instalada dentro das redações convencionais. Agimos por espírito público, jamais por interesses privados. Produzimos reportagem, crônica, análise, crítica, nunca publicidade ou lobby privado. Somos jornalistas-cidadãs e jornalistas-cidadãos, comprometidos a informar sob a égide da cidadania e do combate às desigualdades. Trazemos notícias dos fracos e oprimidos, sabendo que individualmente também somos fracos e oprimidos, mas TODOS JUNTOS SOMOS FORTES (Jornalistas Livres, 2016).

A oferta de espaço de fala para distintos tipos de ativistas-narradores vai ao encontro do que John Downing (2002) aconselha quando diz que, em vez de mediar a fala, por que não permitir que o próprio ator possa se expressar?! Partindo dessa premissa, os Jornalistas Livres mostram que sua liberdade se expande para promover uma redação bastante horizontal: “não agimos orientados por patrão, chefe, editor, marqueteiro ou censor. Somos nossos próprios patrões/patroas, somos nossos próprios empregados. Almejamos viver em liberdade e vivemos na busca incessante por

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes liberdade” (Jornalistas Livres, 2016). Essa forma de conduzir a integração entre os participantes evidencia uma influência da comunicação popular citada por Cicilia Peruzzo (1998), segundo a qual, nessa modalidade, os membros gerenciam, produzem e disseminam conteúdo sem subordinação e sem almejar a autopromoção. Nessa proposta, os interesses coletivos são a finalidade máxima para a inclusão e permanência nesse tipo de grupo. Propondo essa participação horizontal entre os membros e um engajamento voltado para os grupos socialmente excluídos, o enquadramento narrativo dos JL sobre o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff focou nas vozes de atores sociais que propuseram uma conscientização, através de atos, análises e produção midiática, visando sensibilizar seus leitores em torno dos riscos que o Brasil corria ao legitimar o “golpe”. Inclusive, esse termo é utilizado em toda a narrativa do impeachment como estratégia para gerar efeito de sentido. Nas narrativas dos JL sobre as manifestações favoráveis e contrárias ao impeachment, os manifestantes se tornam personagens e são citadas de modo estratégico, buscando evidenciar a diferenciação partidária de um grupo em relação ao outro. Um é mais consciente, é o dos movimentos sociais, que grita por “sonho” e “esperança” ao contrário do outro que xinga. Ao se referir a uma das personagens contrárias ao impeachment que evidencia os avanços em sua vida após os governos Lula e Dilma, a narradora comenta: “ela sabe que o impedimento é uma ameaça aos direitos conquistados e que a troca de presidentes – cujo programa de governo não é objeto de escolha da população, mas, sim, uma imposição – significa um retrocesso que terá impacto direto na sua vida e de seus filhos” (Jornalistas Livres, 2016). Há ainda, em suas narrativas, a utilização de metáfora para provocar efeito de sentido, a qual pode ser percebida nesse título que lança mão do termo “garras” para fazer uma associação em relação à postura autoritária de procuradores: “O autoritarismo mostra as garras de novo: procuradores querem proibir manifestações na Universidade Federal de Goiás”. A seguir, vejamos outro exemplo: como o enunciado “grave agressão” qualifica de modo negativo a atuação de procuradores que tentaram proibir manifestações relacionadas ao impeachment na UFG. “O caso de Goiás é uma grave agressão ao direito de manifestação e expressão. Não há por que se iludir. O golpe tem como objetivo rasgar a Constituição de 1988. A liberdade de expressão e manifestação corre riscos cada vez maiores. Veja o que está acontecendo em Goiás” (Jornalistas Livres, 2016). Outro elemento demarcador de intencionalidade narrativa é a presença de dados. Eles são usados na narrativa do impeachment do coletivo Jornalistas Livres para provocar distinção, especialmente os estatísticos. O uso desses números procura trazer o foco para as ações dos governos Lula e Dilma, objetivando demonstrar a relevância da permanência do governo de Dilma Rousseff para as classes menos favorecidas. São evidenciados, então, valores e números estatísticos de beneficiados de políticas sociais: Minha Casa, Minha Vida; Programa Universidade para Todos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (Prouni) e Bolsa Família; além do fortalecimento das estatais e reajustes de saláriosmínimos. Como recurso, são utilizados gráficos, tabelas e links para outros sites como IBGE, Dieese, entre outros institutos de pesquisa. No texto “Por que eles querem tomar o poder: emprego”, o narrador dá ênfase aos dados para legitimar seu enquadramento analítico. “Em primeiro lugar, constatamos que a taxa de desemprego vinha bastante mais alta entre 2001 e 2003, na casa dos 12%. É no final de 2004 que o desemprego começou a cair marcadamente. O menor desemprego da série medida pelo IBGE se deu em 2014, atingindo 4,6% em abril, junho e outubro” (Jornalistas Livres, 2016). O recurso dêitico espaço-temporal também é frequentemente utilizado pelo veículo para situar a narrativa no tempo e espaço, de modo simbólico, a exemplo de como a localidade recebe destaque do narrador no momento em que ele faz referência a contextos históricos. No ato contra o impeachment acontecido na PUC de São Paulo, a ênfase é a de que aquele espaço foi símbolo de luta durante a ditadura militar, havendo destaque para os estudantes que foram presos há 40 anos: “na noite de 22 de setembro de 1977, 500 homens da tropa de choque e agentes do Dops – a polícia política – invadiram o campus da Pontifícia Universidade Católica (PUC) em São Paulo e prenderam 700 estudantes, arrastados a golpes de cassetete e pontapés” (Jornalistas Livres, 2016). O espaço em referência no texto é específico e descrito como importante para o movimento, para a democracia e, portanto, para a resistência, por ser contrário ao impeachment. “A PUC-SP é tradicionalmente um espaço de combate à repressão. Na semana passada, um ato com intelectuais lotou o TUCA, teatro da universidade, em apoio à democracia” (Jornalistas Livres, 2016). Do mesmo modo como o narrador se apropria do espaço para legitimar o ato, torná-lo simbólico e gerar efeito de sentido positivo, pode buscar gerar efeito de sentido negativo. Nos textos “Onde estavam os negros da Paulista” e “A crise política nacional em Manaus - como foram as manifestações na cidade” sobre atos favoráveis ao impeachment, os autores evidenciam que esses aconteceram em espaços estratégicos associados à elite, cuja finalidade era favorecer a mesma. Eles trazem lugares demarcadamente significativos para gerar efeitos de sentidos negativos previamente pretendidos. Abaixo, vejamos trechos do segundo texto citado: Março de 2016 também teve seus momentos históricos para Manaus. Acompanhando as manifestações que ocorreram no Brasil, a capital amazonense reuniu milhares de pessoas no dia 13 de março na Ponta Negra – um dos bairros mais ricos da cidade –, a favor do impeachment da presidenta Dilma e no dia 18 de março, contra o impeachment e em defesa da democracia, no centro histórico da cidade (Jornalistas Livres, 2016).

Elementos linguísticos são também apropriados pelos JL, a exemplo dos adjetivos, os quais são constantemente inseridos para descrever e qualificar as personagens. Atrelado à perspectiva do enquadramento, as personagens presentes nesse veículo exercem um papel social simbólico dentro do espectro político defendido

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes pelos Jornalistas Livres. São aqueles que, de algum modo, se mostram significativos para a construção da narrativa desenvolvida. Portanto, o emprego desses adjetivos descreve pessoas e situações, por exemplo: vários superlativos são usados para caracterizar a situação em que o país se encontrava no período dos governos Lula e Dilma, bem como as ameaças que surgem a partir do governo de Michel Temer; ou ainda para detalhar a emergência da economia que resultou na melhoria da qualidade de vida das pessoas. Nesse sentido, o narrador utiliza adjetivos para impactar os leitores e deixá-los em estado de alerta em outro texto: “O golpe venceu: o país ficará ingovernável”. Frases de efeito que provocam o sentimento de medo são evocadas naquele momento para mostrar aos leitores o risco que eles correm ao serem governados pelo presidente Michel Temer. Ainda observamos como a caracterização do sentimento de vergonha está posta ao fazer referência ao dia de votação do impeachment, na Câmara Federal. O narrador vai além do papel tradicional de repórter imposto pela política editorial da mídia tradicional e se expressa numa dimensão mais responsável e ampla como ativista, ao chamar seus leitores à resistência e ao enfrentamento. “Uma noite vergonhosa. O golpe sufocou a democracia. Mas não instalou um novo governo. (...) A guerra não está encerrada. O golpe não se consolidará. A partir desta segunda-feira o país acorda incendiado. Manifestações, atos, greves, trancamentos, luta nas ruas” (Jornalistas Livres, 2016). No final dessa matéria citada, o narrador revela o quanto o veículo está comprometido com a defesa do governo de Dilma Rousseff e com as causas associadas à luta pela democracia. Portanto, diferentemente da grande mídia que constrói perspectivas de enquadramento a partir do simulacro da imparcialidade e do mito da objetividade, os JL explicitam seu enquadramento. Considerações finais O veículo Jornalistas Livres cobriu, com viés ativista, as mobilizações favoráveis e, principalmente, contrárias ao impeachment. O JL é um veículo que desde a sua criação foi formado a partir da ideia de financiamento coletivo; investiu o dinheiro arrecadado e, até os dias atuais, usufrui do mesmo. Ele pauta sua ação no ativismo e se mostra contrário aos ideais simulados de imparcialidade e mitificados de objetividade defendidos pela grande mídia. Sua parcialidade revela seu engajamento em favor das pessoas socialmente excluídas e da participação coletiva horizontal em seu processo de gerenciamento, produção e disseminação de conteúdo, tornando seu formato muito próximo da comunicação popular. A exigência do veículo para com os colaboradores é a obediência ao frame contest, uma vez que existem critérios de noticiabilidade idealizados pelo JL e as pessoas que desejam participar com colaboração do conteúdo devem se adequar a tal enquadramento. Compreendemos que após o veículo da mídia independente passar a expor tais

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes reivindicações, é possível que a opinião pública seja mobilizada e os grandes meios de comunicação se sintam obrigados a incluir os reenquadramentos desse grupo social ou mesmo a utilizar o próprio conteúdo do veículo. Esse sentido de participação coletiva, em uma esfera pública pautada pelos temas das demandas sociais é fundamental para tematizar os assuntos de interesse público. A inclusão dessas reivindicações dos movimentos sociais e das demandas sociais como um todo se justifica também porque a ausência dessas ocasiona um “vácuo” ou um desequilíbrio democrático. Por fim, constatamos que os indivíduos que não se veem representados nas pautas dos grandes meios de comunicação sentem a necessidade de construir espaços de visibilidade para que suas questões possam ser contempladas e debatidas e assim conquistem o reconhecimento justo; porque mais do que pensar a inclusão, é necessário pensar como a mesma se configura. Referências CABRERA, María Ángeles. La audiencia como promotora de la innovación periodística a través del crowdfunding. Repositório Institucional de la Universidad de Málaga, Málaga, 2014. Disponível em: < https://riuma.uma.es/xmlui/bitstream/ handle/10630/7954/SEP14.pdf?sequence=1 > Acesso em abril de 2017. DOWNING, John D. H. Mídia Radical: Rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2002. ENTMAN, Robert M. Framing: Toward Clarification of a Fractured Paradigm. Journal of Communication, v. 43, dez. 1993. MOTTA, L. G. Análise Crítica da Narrativa. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2013. 254 p. PRUDENCIO, Kelly. MOBILIZAR A OPINIÃO PÚBLICA: sobre a comunicação dos ativistas políticos. In: Anais… XVIII Encontro da Compós, na PUC-MG, Belo Horizonte, MG, em junho de 2009. _____. Comunicação e mobilização política na internet. Extensão em Foco, Curitiba, n. 4, p. 97-105, jul./dez. 2009b. _____. Mobilizar é comunicar estruturas interpretativas: apontamentos para discussão e pesquisa sobre a comunicaçao dos atores coletivos. In: Anais… XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012. YOUNG, Iris Marion. O ideal da imparcialidade e o público cívico. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 9. Brasília, setembro - dezembro de 2012, pp. 169-204. A crise política nacional em Manaus – como foram as manifestações na cidade.

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COBERTURA DE CONFLITOS ORIENTADA PARA A PAZ: REFLEXÕES A PARTIR DA NARRATIVA DE BRU ROVIRA Tayane Aidar Abib

A morte de Francisco Franco Bahamonde, militar que esteve à frente da ditadura espanhola do final da Guerra Civil, em 1939, até 1975, é considerada não apenas um marco político na história da sociedade espanhola, com o início do reinado de Juan Carlos I, de Borbón, mas também um ponto de inflexão importante ao jornalismo do país. Se até então os setores da imprensa e radiodifusão locais estavam convertidos em canais de doutrinamento político e ideológico, o período da transição espanhola à democracia impulsionou o protagonismo do jornalismo na luta pela consolidação de um sistema de liberdades dentro e fora das redações. Foram os anos dourados da imprensa espanhola, conforme relatado em entrevista por jornalistas dessa geração1, com o resgate e o fortalecimento de seu valor social a partir de uma aposta muito clara pelo reporterismo e pelo ofício narrativo. Para além do tom ora partidário, ora informativo que caracterizara os meios espanhóis dos últimos três séculos, a dinâmica jornalística emergente do franquismo assumiu, assim, a complexidade da escritura e o exercício autoral e investigativo como marcos distintivos de suas coberturas. É nesse contexto sócio-histórico que se inscreve a atuação jornalística de Bru Rovira, cujos trabalhos de reportagem elegemos aqui analisar. Da escola de Ryszard Kapuściński (1932-2007), o repórter catalão especializou-se na cobertura de temas sociais e internacionais, tendo dedicado décadas de sua carreira a compreender a reconfiguração geopolítica da região dos Balcãs e da África subsaariana no pós-Guerra Fria. Durante os anos 1990, teve a oportunidade de reportar conflitos que assolaram Somália, Ruanda, Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Libéria, colaborando com a seção La Revista do jornal La Vanguardia, de Barcelona – uma publicação diária, nas duas páginas centrais do jornal, criada como projeto do periódico para reformular-se gráfica e editorialmente. 1 Citamos os jornalistas entrevistados: Lluís Foix, Josep Carles Rius, Juan José Caballero, Inmaculada Sanchís, Alfonso Armada, Gervásio Sánchez, além do repórter Bru Rovira. Essa proposta de estudo desdobra-se de projeto desenvolvido no Observatorio de Cobertura de Conflictos (Universitat Autònoma de Barcelona), com financiamento Fapesp – processo 2018/23954-3.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Especificamente para este estudo, optamos por dedicar atenção especial ao texto Liberia: la guerra de los tempos modernos, que é também capítulo da obra África: cosas que pasan no tan lejos (2006), de modo a identificar aproximações entre a prática jornalística de Rovira e a perspectiva da Comunicação para a Paz (Galtung, 1996; Guzmán, 2001; Lynch e McGoldrick, 2000). Sublinhando as incursões narrativas de Rovira sentido a uma cobertura orientada ao conflito (e não à violência), à verdade (e não à propaganda), à gente (e não às elites), e à solução (e não à vitória), buscaremos evidenciar, assim, um aparato noticioso divergente dos tradicionais modos de produção jornalística.

A narrativa jornalística de Bru Rovira Podemos elaborar uma espécie de resumo biográfico, a apresentar a vida do jornalista em fatos datados e diretos, como pede o lead noticioso: Bru Rovira i Jarque nasceu em Barcelona, em 1955, trabalhou nas revistas espanholas Arreu, Primeras Notícias e La guia del ócio, e nos diários Tele/Exprés, El Noticiero Universal, Avui, La Vanguardia e Ara. Atualmente, colabora com o programa A vivir que son dos días, transmitido aos sábados e domingos pela emissora Sociedad Española de Radiodifusión (SER), do conglomerado midiático PRISA. Sua trajetória profissional, no entanto, está marcada pelos 25 anos de atuação como repórter no jornal La Vanguardia, onde se destacou na cobertura de pautas sociais e internacionais, e recebeu os prêmios Miguel Gil Moreno (2002) e Ortega y Gasset (2004) pelo conjunto de seu trabalho. O exercício jornalístico que se está a defender neste estudo, entretanto, demanda um movimento de aproximação para ir além dos simples dados e alcançar a complexidade das histórias. Assim, é importante começar destacando que Rovira fez escola em um ambiente de resistência e com figuras referências ao jornalismo catalão, como Josep María Huertas Clavería, Joaquín Ibarz e Manuel Vázquez Montalbán, que lutaram pela defesa da liberdade de imprensa durante o regime ditatorial de Francisco Franco (1939-1975), desde o Grup Democràtic de Periodistes. Inspirou-se, também, no trabalho de Ryszard Kapuściński, sobretudo em suas incursões pelo continente africano, fazendo da atitude de reportar a partir de personagens anônimos a peça chave de sua conduta profissional. Da convicção do historiador e repórter polaco de que, “para se ter direito a explicar, é preciso ter um conhecimento direto, físico, emotivo, olfativo sobre aquilo que se fala” (Kapuściński, 2002, p. 15, tradução nossa), Rovira aprendeu o valor da observação às pequenas coisas. Identificar aqueles detalhes que significam aos sujeitos, que conferem sentido ao seu cotidiano e acabam por conectar suas micro-realidades a dimensões sociopolíticas mais amplas. São os elementos aparentemente simples, afinal, que carregam a potência de uma história, com sua vitalidade, suas contradições e fragilidades. O jornalismo, como ensina Kapuściński (2002, p. 37, tradução nossa), é também ofício de emoções, já que “a fonte principal de seu trabalho são ‘os outros’”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes E, para Rovira (2019, informação verbal2), é pelo escopo que atrela os diminutos da cotidianidade às subjetividades humanas que somos capazes de alcançar a complexidade do real – como uma espécie de porta de entrada à compreensão das redes contextuais que formam a vida em sociedade. Se o mundo pode ser explorado desde uma multiplicidade de rotas, Rovira elege adentrá-lo pelas vias secundarias. Investindo no caminho e sem se preocupar em acelerar a chegada, é como se o repórter preferisse tomar as pistas vicinais, em alusão às viagens de automóvel que cruzam as regiões interioranas, assim disfrutando o percurso e dedicando interesse aos seus entornos. Aplicada ao jornalismo, essa dinâmica assume a configuração de uma prática contracorrente: diante de um processo de produção noticioso acomodado pelas rotinas profissionais, manifesta-se como atitude vital de oposição às narrativas centradas nas figuras oficiais, sinalizando para uma espécie de jornalismo de antipoder. Na ideia de carreteras secundarias, portanto, está a conduta propositiva do repórter catalão de resgatar o protagonismo de pessoas e temas marginalizados pelas coberturas midiáticas hegemônicas, de modo a convertê-los em peças centrais nas discussões sobre as problemáticas socioculturais. Aos tradicionais saberes de reconhecimento, procedimento e narração (Traquina, 2005), que direcionam o modelo informativo em função de critérios de noticiabilidade, predileção por fontes oficiais e redação em formatos de lead e pirâmide invertida (Lage, 2005), a acepção de carreteras secundárias fundamenta possibilidades de coberturas de fôlego, onde o valor está na construção de sentidos tecida por cada sujeito, no compartir entre repórter e personagens, e na tomada de uma escritura que, antes de aplicar fórmulas, busca encontrar os pontos de cadência entre os acontecimentos, através de uma vinculação com seus contextos. Trata-se de um modus operandi que Bru Rovira manifestou com potência e liberdade em seus anos de reporterismo para o jornal espanhol La Vanguardia3, sobretudo no período em que contribuiu com as seções La Revista4 (1989-1997) e El Magazine (1997-2009) do diário. Foi uma etapa, conforme relata Juan José Caballero, redator-chefe do diário de 1982 a 2009, em que havia um projeto editorial interessado em desenvolver “uma visão distinta das notícias, mais aprofundada, sob as chaves da 2 Entrevista concedida à autora em 02 de outubro de 2019, como parte de projeto de pesquisa (FAPESP/processo 2018/23954-3) sobre a obra jornalística de Bru Rovira e a atuação da imprensa espanhola no período pós-franquismo. 3 Fundado pelos irmãos Carlos e Bartolomé Godó, em 01 de fevereiro de 1881, com finalidades partidárias, o jornal atendia, conforme o subtítulo de seus seis primeiros anos de história, como “Órgano del Partido Constitucional de la Provincia”. Mesmo desvinculando-se de tal partido para seguir uma linha mais informativa, o jornal continuou filiado ao Comité Liberal Monárquico de Barcelona, pela figura de Carlos Godó, também deputado nas legislaturas de 1893 e 1896 da cidade. Durante a Guerra Civil espanhola, Carlos Godó, neto, então diretor do diário, foi membro da Renovación Española, um partido de ideologia monárquica e direitista, e depois, procurador da Corte franquista em duas ocasiões. Apesar de buscar, nos últimos anos, uma posição editorial mais de centro-esquerda, até hoje La Vanguardia é considerado um periódico de alinhamento conservador (HUERTAS, 2006). 4 Criada em 03 de outubro de 1989, La Revista era uma seção de reportagens publicada diariamente, na cor salmão, nas duas páginas centrais do jornal La Vanguardia. Mais informações em: http://hemeroteca.lavanguardia. com/preview/1989/10/03/pagina-31/33083527/pdf.html.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes reportagem e da narração” (2019, informação verbal5, tradução nossa). Uma aposta, em outras palavras, pela singularidade na escolha das pautas e um cuidado com o tratamento narrativo, na concretização do lema “ver, ouvir e contar”, sobre o qual refletíamos antes. Como membro da equipe de profissionais criada pelo La Vanguardia em sua reformulação gráfico-editorial de 1989, Rovira colaborou como repórter de temas sociais e enviado especial a países do leste europeu, da Ásia, da América Central e da África, narrando cenários de crise humanitária e conflitos, durante um período em que também desenvolvia experiências fotográficas – sozinho, ou com o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Para a presente investigação, interessa-nos enfocar nossas análises às incursões de Bru Rovira sobre África subsaariana, publicadas nas seções La Revista e El Magazine, do jornal La Vanguardia, com circulação em todo território espanhol, e posteriormente reunidas no livro Áfricas: cosas que pasan no tan lejos (2006). De modo especial, elegemos apresentar neste texto os resultados de nosso trabalho interpretativo com a reportagem Liberia: la guerra de los tempos modernos. Considerando o aparato narrativo distinto que costuma configurar os registros de Rovira, em contraposição aos modelos tradicionais de escritura jornalística, nossa proposta, ao nos acercarmos do objeto de estudo em questão, é verificar se também em relação às coberturas de conflitos uma dinâmica noticiosa divergente se faz notar. Especificamente, nosso objetivo é articular os textos de Bru Rovira à perspectiva do Jornalismo para a Paz (Galtung, 1996; Lynch e McGoldrick, 2000), já que essa prática se caracteriza, como indica Eloísa Nos Aldás6, por sua atitude transgressora, de resistência e ruptura frente aos discursos e representações violentas que permeiam a mídia hegemônica. Neste sentido, o próximo tópico explora as contribuições do campo da Comunicação para a Paz às dinâmicas jornalísticas em zonas de conflito e crise humanitária, de modo a evidenciar as responsabilidades e compromissos profissionais frente a realidades como essas, bem como identificar as configurações do ethos narrativo de Rovira neste terreno.

Em diálogo com os Estudos para a Paz A dimensão da violência atravessa os discursos e as abordagens jornalísticas hegemônicas. No início dos anos 1960, Johan Galtung e Mari Huge já sublinhavam, em investigação publicada na revista Journal of Peace Research, a negatividade como um dos fatores que permitem entender por quê um fato ganha estatuto noticioso na cobertura internacional. O estudo The structure of foreing news, de 1965, analisa o trabalho editorial desenvolvido em quatro diários noruegueses acerca das crises de5 Entrevista concedida à autora em 04 de dezembro de 2019, como parte de projeto de pesquisa (FAPESP/ processo 2018/23954-3) sobre a obra jornalística de Bru Rovira e a atuação da imprensa espanhola no período pós-franquismo. 6 Entrevista concedida à autora em 05 de dezembro de 2019.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sencadeadas no Congo, em Cuba e Chipre naquele período, destacando duas conclusões importantes para este nosso capítulo: os atos de violência se convertem em acontecimentos noticiáveis em si mesmos, e quanto menor o ranking de uma nação, mais negativas serão as notícias sobre a mesma. As escolhas jornalísticas, demarcadamente não arbitrárias (Shoemaker, 2006; Charaudeau, 2009; Traquina, 2005), tendem a um grau de dramatização ao apelar aos confrontos diretos, à criminalidade e aos acidentes, “causando ou indiferença ante à dor alheia, ou um impulso irracional de ajudar de qualquer maneira e de modo urgente” (Giró; Farrera; Carrera, 2014, p.59, tradução nossa), quando deveriam operar para construir a paz, buscando as soluções mais justas possíveis – em favor dos que padecem discriminações e explorações – e com o menor sofrimento possível. Essa é a mudança de perspectiva que propõe o campo de estudos da Comunicação para uma Cultura de Paz, em seu horizonte específico sobre a prática jornalística: que as informações midiáticas que tratam de realidades de conflito, “como se fossem reality shows” (Guzmán, 2011, p. 29, tradução nossa), rompam com uma atuação de “apenas promover uma pseudo-paz de emoções” (idem), e assumam a responsabilidade de preocupar-se para que a repercussão dos conflitos favoreça a paz. A discussão que figura como pano de fundo, deste modo, é a de uma tomada de consciência dos profissionais sobre a necessidade de se avançar de um modelo informativo reducionista, permeado por aspectos de violência, a um jornalismo, conforme Alberto Piris (2000, p. 354, tradução nossa), “que permita compreender as origens das crises, situá-las em seu verdadeiro âmbito e estender na opinião pública a ideia de que essas podem ser controladas, inclusive antes de que explodam, se lhes forem dedicadas a atenção e os meios necessários”. Trata-se de uma reflexão que questiona os termos sobre os quais os conflitos são frequentemente concebidos e representados, e que assinala, assim, a importância de se empreender tratamentos narrativos distintos, a partir da conjugação de quatro condutas principais, aludindo à Jake Lynch e Annabel McGoldrick (2000): superar a concepção dualística de ‘nós’ contra ‘eles’, dar voz a todas as partes implicadas, abordar os efeitos invisíveis da violência, e abordar os processos de reconstrução e reconciliação dos conflitos. A primeira atitude se refere à tendência a reduzir, simplificar e generalizar as realidades, eliminando os matizes na abordagem contextual e humana, que por vezes predominam na cobertura jornalística de conflitos, e que acabam por fomentar uma comunicação egocêntrica, tal qual pontua Fisas (1987, p. 198, tradução nossa), “benéfica com a política interior e crítica em relação a de outros países e grupos”. Incorre, ademais, em preconceitos, estereótipos e relações de inimizade, que derivam facilmente em emoções negativas e hostis, e que podem se converter em elemento de uso político, produzindo tensões ou intensificando conflitos já existentes.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ao homogeneizar um grupo ou categoria, tornando-os reconhecíveis como um estereótipo particular, um ‘elemento de ordem’ é criado com base em hierarquias de relações aparentemente estabelecidas. Essas hierarquias trabalham para sustentar relações de poder existentes através de um senso de certeza, regularidade e continuidade, e, ao fazê-lo, permite um nível de controle que serve para reforçar os discursos dominantes e as percepções que eles evocam (Spencer, 2005, p. 80, tradução nossa).

Escutar todas as partes implicadas no conflito, o segundo posicionamento fundante de uma prática jornalística orientada para a paz, associa-se à conduta de romper com um tal maniqueísmo na medida em que, ao promover o diálogo com os envolvidos, não apenas amplia a compreensão sobre a realidade dos diversos atores do conflito, como também os humaniza. Neste sentido, uma inclinação narrativa à cotidianidade dos anônimos pode cumprir um papel importante, como observa Eloísa Nos Aldás (2019, informação verbal7), na tessitura de relações de identificação entre o público e os personagens, sob a estratégia de enquadrar o que todos temos em comum. Visibilizar outras perspectivas sobre a informação reportada desde o local, por um protagonismo conferido às vidas marginalizadas pelo interesse público e midiático, permite também traçar conexões de micro realidades a problemáticas globais – abordagens transversais, por assim dizer, que dão forma a conteúdos com profundidade e contextualização, em consonância à própria complexidade estrutural dos conflitos. Por isso, a referência aos aspectos invisíveis da violência é tão importante para coberturas noticiosas de paz: abre vias para se inscrever os fatos na história que os precede. Como explica Galtung (1996), a ênfase do tratamento midiático deve centrar-se em descobrir os porquês das enfermidades, e não em detalhar os sintomas, de modo que o encaminhamento informativo vá além do evidente e da mera descrição, aportando dados relevantes para a compreensão dos fatores em disputa nos cenários reportados – a violência estrutural do sistema internacional, por exemplo, que se manifesta na exploração de recursos dos países periféricos ou na venda de armas leves. Uma maior atenção aos processos, e não aos acontecimentos, podemos assim resumir o terceiro ponto de destaque no âmbito das dinâmicas orientadas para a paz. Por fim, como o que está em jogo neste campo de estudos é a promoção da justiça social – por uma luta eficaz em favor dos direitos humanos -, é necessário refletir sobre a importância de os discursos indignarem e sensibilizarem a cidadania sobre as realidades de exclusão, motivando-as, sobretudo, à ação e à participação em movimentos de mudança social. Os Estudos para a Paz se caracterizam por assumir um compromisso claro sentido a não-violência (direta, estrutural e cultural8), cobrando, portanto, do jornalismo um posicionamento para a transformação criativa dos conflitos 7 Entrevista concedida à autora no dia 05 de dezembro de 2019. 8 “Por trás de tudo isso está a violência cultural: no simbólico, na religião e na ideologia, na linguagem e na arte, na ciência e no direito, na mídia e na educação. Sua função é bastante simples: legitimar a violência direta e estrutural” (Galtung, 1996, p. 02, tradução nossa).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes – desde os seus processos de reconstrução e reconciliação Neste sentido, considerando os desafios do Jornalismo para a Paz frente à estrutura conservadora dos meios de comunicação e ao tratamento noticioso dominante, Xavier Giró (2017) lança a reflexão propositiva das grietas, espécie de abertura informativa de onde se podem revelar visões alternativas às hegemônicas. São tipos elásticos, que podem se ampliar ou se encolher conforme as reconfigurações das dinâmicas que as sustentam, e que podem emergir como veículos independentes – transmitindo visões de mundo mais críticas, assim perfurando o sistema comunicacional – ou dentro dos próprios meios tradicionais. O mais importante, aponta o autor catalão, é que a criação das grietas depende do fator humano, ou seja, do movimento de resistência por parte de jornalistas que se assumam enquanto sujeitos políticos. Assim concebemos o reporterismo de Bru Rovira, que aqui buscamos identificar como prática de carreteras secundárias: também uma rachadura que, desde a atitude noticiosa de reportar vidas e realidades marginalizadas pela noticiabilidade tradicional, inscreve miradas e valores distintos ao exercício jornalístico, inclusive em chave de dissidência com o próprio alinhamento conservador do periódico, buscando um modus operandi atento à cotidianidade e à complexidade contextual dos acontecimentos – conduta que, em sua trajetória internacional, toma forma na cobertura de conflitos.

Análise da cobertura jornalística de Bru Rovira sobre Liberia: la guerra de los tempos modernos Para realizar o estudo da narrativa de Rovira sobre os conflitos desencadeados na Libéria no período pós-Guerra Fria, aplicamos o discurso do repórter catalão ao quadro de comparação entre o Jornalismo para a Paz (modelo alternativo) e o Jornalismo de Guerra (modelo dominante), proposto por Jake Lynch e Annabel McGoldrick (2000).

JORNALISMO PARA A PAZ

JORNALISMO DE GUERRA

I – Orientado à paz/ ao conflito

I – Orientado à guerra / à violência

Explora a formação do conflito;

Centra-se no terreno do conflito;

Apresenta um tratamento e uma abor- Apresenta um tratamento e uma abordadagem mais amplos, críticos e aprofun- gem superficiais e simplificados sobre a dados sobre o conflito; guerra;

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

Explora a complexidade dos atores im- Centra-se nos atores principais; plicados no conflito; II – Orientado à verdade

II – Orientado à propaganda

Expõe as falsidades de todos os lados; Expõe as falsidades dos “outros” e colabora com “nossos” enganos e mentiras;

Defende um compromisso com a justi- Defende a objetividade e a neutralidade ça, a liberdade e a paz; jornalísticas; III – Orientado à gente

III – Orientado às elites

Enfatiza o sofrimento de todos os ato- Enfatiza o sofrimento dos “nossos”; res;

Dedica atenção às pessoas, dando voz Dedica atenção aos homens da elite, peraos que normalmente não a tem; sonalizando as guerras e convertendo-as em seus microfones; Identifica e destaca todos os grupos e Identifica e destaca os homens da elite pessoas que trabalham pela paz; que trabalham pela paz; IV – Orientado à solução

IV – Orientado à vitória

Destaca todas as iniciativas de paz, Oculta as iniciativas de paz até que a vitambém para prevenir mais violência; tória esteja garantida;

Promove efeitos e repercussões que Vive para uma próxima guerra, ou para a contemplam a resolução, a reconstru- mesma, se volta a violência. ção e a reconciliação. (Fonte: Jake Lynch e Annabel McGoldrick, 2000, p. 29).

Extraímos, desse modo, citações literais dos textos de Rovira que, pelo conteúdo que têm ou pela linguagem que utilizam, bem correspondem a algum dos quatro grandes pares de orientação do quadro e se associam a algum de seus vetores específicos contrapostos. Essas citações são como proposições que sintetizam e expressam

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes descrições, interpretações ou valorações do jornalista sobre a realidade dos conflitos que está cobrindo, o que nos permite identificar a tomada de posição de seu discurso e também os caminhos narrativos por ele elegidos para reportar o país em questão. Nosso objetivo, assim, além de constatar se existe uma aproximação entre a cobertura jornalística de Bru Rovira sobre a Libéria e a perspectiva do Jornalismo para a Paz, foi também registrar as incursões narrativas por ele empreendidas para tratar dos assuntos reportados, isto é: se houve uma abordagem complexo dos conflitos, como ou por quais caminhos isso foi alcançado; se as pessoas comuns, e não as elites, foram o centro de seus relatos, e como isso se revelou em sua escritura; de forma que, a partir de então, nos seja possível depreender considerações sobre a configuração narrativa do jornalismo de carreteras secundárias.

a) Orientado à paz/ao conflito ou orientado à guerra/à violência Frente a esse grande par de orientações contrapostas estabelecido por Lynch e McGoldrick (2000, p. 29), verificamos o predomínio da lógica do Jornalismo para a Paz no discurso do autor. Em geral, Bru Rovira não se centra no terreno da confrontação ao identificar e explicar as causas dos conflitos, mas busca estabelecer suas relações com os processos históricos de colonização, independência e Guerra Fria que atravessaram o país, bem como detalhar a formação dos conflitos desde fatores internos que já anunciavam problemáticas e riscos para a eclosão de combates. Começa, assim, com uma primeira estratégia narrativa de inscrever a realidade de guerra civil da Libéria, em 2003, em perspectiva relacional com a Guerra Fria, a partir dos interesses dos Estados Unidos no território, onde possuía a maior base de espionagem e transmissões da África Subsaariana, com o sistema Ômega alojado em Monrovia para disparar misseis desde os submarinos do Atlântico, e com interferências em apoio ao golpe de Estado de Samuel Doe, em 1980, que bem servia às políticas norte-americanas daquele período: “esse era o caráter do governo da Libéria, explorado pelos Estados Unidos na Guerra Fria como um instrumento de usar e jogar fora”, escreve Rovira (2006, p. 138, tradução nossa). A posterior escalada ao poder de Charles Taylor, através da incitação de uma revanche tribal pelos gio e manos, reunidos sob as siglas da Frente Nacional Patriótica da Libéria (NPFL), contra os krahn e mandinga, que durante os anos de governo de Doe os haviam perseguido, é explorada narrativamente por Rovira como a transição das lógicas de conflitos da Guerra Fria à nova ordem dos Senhores de Guerra: “se Charles Taylor é o arquétipo dos que chegavam, na década de 1990, Samuel Doe era um bom exemplo daquele período da história que ficava para trás” (ROVIRA, 2006, p. 135, tradução nossa). A emergência de um novo tipo de violência organizada, denominada por Mary Kaldor (2003, p. 79) de “novas guerras”, ganha terreno em contextos de erosão da autonomia dos estados, cenário enfrentado por muitos países africanos no pós-Guerra

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Fria, e se caracteriza, sobretudo, pela diversidade de tipos de forças armadas e por um poder que já não mais deriva de uma fonte central, e sim dos que exercem controle sobre o contrabando de armas, o tráfico de drogas e os recursos naturais. São guerras em rede porque são constituídas por redes armadas de atores estatais e não-estatais. Incluem grupos paramilitares organizados em torno a um líder carismático, senhores de guerra que controlam territórios concretos, células terroristas, voluntários fanáticos, organizações criminais, unidades de forças regulares e outros corpos de segurança do Estado, assim como mercenários e companhias militares privadas (KALDOR, 2003, p. 79, tradução nossa).

Por isso, a contextualização histórica empreendida por Rovira (2006, p. 135, tradução nossa) para tratar dos conflitos liberianos de 2003 é também permeada pela problemática das armas e da exploração de recursos naturais na região, que “configuram um círculo perverso alimentado pelo crime e pelo tráfico ilegal” e permitem “manter viva a privatização da luta armada”. Desde o período escravista, as armas de fogo ocupam um lugar de destaque na relação entre Europa e África: são um produto essencial, afirma Sebástian (2007, p. 64, tradução nossa), que a Europa vende ao continente africano em troca de ouro, diamantes, petróleo, minerais, cacau, café e etc. Os países europeus armaram os país africanos em uma medida totalmente desproporcional e contraproducente para o seu desenvolvimento político e para segurança civil de suas populações, e “estabeleceram uma espiral crescente de violência há mais de 400 anos, onde os reis africanos, que necessitavam cativos e não dispunham de equipes para fabricar armas de fogo, se viram obrigados a comprá-las dos europeus, e esses só a vendiam em troca de escravos”. Na perpetuação dos confrontos que assolam a Libéria, portanto, e outros tantos países africanos, está o fato de que “os combatentes podem se abastecer no mercado internacional sob uma lógica que promove uma sorte de poder corrupto onde o guerreiro se torna senhor e mestre, ao mesmo tempo que os cidadãos se convertem em seus reféns” (Rovira, 2006, p. 154, tradução nossa). Durante as ofensivas das forças armadas de oposição para derrubar Charles Taylor, iniciadas em cinco de junho de 2003, os combates foram tão intensos que os locais chegaram a chamá-los de Terceira Guerra Mundial - a guerra de verão que obrigou Taylor a fugir para Nigéria no dia 11 de agosto se desenvolveu em 3 atos, e teve seu pior momento em 18 de julho, quando os rebeldes lançaram munição abundante sobre os pontos nevrálgicos da capital. A prática jornalística que explora a historicidade dos fatos e uma abordagem complexa ao entorno social favorece também a promoção de nuances sobre a realidade e as pessoas reportadas, de modo a romper com associações maniqueístas e contribuir com uma dinâmica mais orientada à verdade que a propaganda, conforme a segunda disjuntiva do quadro de Lynch e McGoldrick (2000).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes b) Orientado à verdade ou orientado à propaganda Aqui, evidenciamos que a conduta narrativa de Bru Rovira busca apartar-se dos discursos oficiais para problematizar as ações de interferência estrangeira na realidade liberiana e para denunciar a conivência de empresas internacionais em negócios obscuros no país. O princípio da cadeia de distribuição de armas no território não está, segundo apurado em sua reportagem, “nos grupos mafiosos ou governantes ditatoriais, mas nos países que asseguram zelar pela segurança e paz no mundo” (Rovira, 2006, p. 155, tradução nossa). Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) – França, Rússia, China, Reino Unido e Estados Unidos – são os que mais armas convencionais vendem, acumulando 88% das exportações realizadas no mundo. No caso dos conflitos de 2003, que desembocaram na queda de Charles Taylor, o armamento utilizado nos combates pelas forças rebeldes foi comprado no Irã, com mediação da República da Guiné, e chegou na capital Conacri através de voos realizados pela companhia ucraniana LVIV. Foram os próprios militares guineenses, destacados pelas Nações Unidas dentro do contingente das forças de manutenção de paz para Serra Leoa, o MINUSIL, que o transportaram até a fronteira da Libéria e o entregaram ao LURD: “os traficantes de armas eram seus soldados em missão de paz”, conforme aponta Rovira (2006, p. 152), e para as companhias estrangeiras, “pouco importa que as mãos que recolhem seu dinheiro sejam mãos ensanguentadas”. O tom crítico à atuação da Missão das Nações Unidas para a Libéria (UNMIL) também prevalece nos registros do repórter:

Em uma daquelas noites me fixei em um grupo de soldados do UNMIL que conversavam animadamente enquanto tomavam grandes canecas de cerveja. ‘Como vocês estão?’ – perguntei a um dos bósnios. ‘-Nenhum problema’. ‘-E com os liberianos?’. ‘- Que gente tão selvagem!’ – riram, em coro, os soldados da ex-Iugoslávia. [...] Ao escutá-lo, não sei se o que resulta mais chocante é a visão hipócrita e racista que nós europeus temos da África ou o cinismo com que costumamos olhar para nós mesmos” (Rovira, 2006, p.129, tradução nossa).

A cercania, neste sentido, é um dos dispositivos acionados por Rovira para empreender uma apuração atenta, densa em matizes no que diz respeito ao olhar sobre as relações de poder que atravessam a cooperação internacional, e também interessada em abordar os conflitos desde suas implicações na vida comum. Essa dinâmica, que é uma atitude vital do jornalismo de Rovira, bem associa as duas proposições iniciais da perspectiva para a Paz ao par seguinte de orientações de Lynch e McGoldrick (2000), como pretendemos assinalar adiante.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes c) Orientado à gente ou orientado às elites A terceira disjuntiva inscreve a preocupação do Jornalismo para a Paz em conferir protagonismo aos sujeitos cujas vidas e vozes não são considerados pelos discursos dominantes, ao passo que o modelo para a Guerra se centra nas elites e em seus interesses. As incursões narrativas de Rovira sinalizam para um intento de aproximação dialógica com diferentes grupos envolvidos na realidade local: registram o testemunho de garotos sequestrados pelos Senhores de Guerra em meio à queda de Charles Taylor, como é o caso de Ibrahim e sua irmã, de homens que tiveram que abandonar seus lares pelas perseguições entre as guerrilhas, como James, ou, ainda, daqueles que estão do outro lado – soldados dessa nova ordem de guerra que, sob a mirada das carreteras secundárias, em orientação à paz, são humanizados e reportados em suas trajetórias de vida e percepções sobre os conflitos. Morris, Varney e Sako protagonizam esses relatos. Converteram-se em membros do exército de Taylor aos doze anos, quando empunharam um fuzil pela primeira vez após terem suas aldeias queimadas e suas famílias assassinadas. Passaram a última década lutando junto à Unidade Anti-terrorista (ATU), dirigida pelo filho de Taylor, Chuckie – a mesma ordem que destruiu os seus lares. Nunca foram à escola, e não têm outros laços que aqueles que mantém entre si desde então: – Sabe? – diz Morris, enquanto desenha círculos na areia com um graveto. –A primeira vez que você mata, o faz com uma arma na sua bochecha. Ou mata, ou morre. Essa é a instrução. É assim que te convertem em um soldado. Então, nada mais importa. Depois de um tempo, sua família são os camaradas de armas, e a guerra é a única vida que você é capaz de levar (Rovira, 2006, p. 148, tradução nossa).

Pelo deslocamento do ponto de vista, a reportagem sobre as guerras na Libéria se reveste da abordagem compreensiva que estamos a enfatizar aqui: “é a escuta que te pode levar ao mais profundo do ser humano, a te fazer perceber que uma pessoa em combate também ama, também sofre, é movida por muitas coisas como você” (Rovira, 2019, informação verbal9). Abre, assim, brechas para se refletir sobre as dimensões estruturais, nem sempre visíveis, que sustentam a lógica dos conflitos: “‘- Qual foi a razão da guerra para vocês?’, pergunto. – ‘Os políticos são os que decidem. Eles foram à escola, sabem ler os papéis. Os intelectuais também. São os que organizam. Nós só sabemos ir ao combate’, responde Morris” (Rovira, 2004, p. 149). Tampouco lhes resta riqueza, já que são os comandantes que se aproveitam do que é roubado – “‘é só olhar para os carros que dirigem’, é o que sugere Varney” (Rovira, 2004, p.148, tradução nossa). Depois da fuga de Taylor, decidiram entregar seus fuzis em troca de duzentos dólares, e assistiram ao curso de reeducação organizado pelas forças de pacificação no país, porque assim também conseguiam se alimentar 9 Entrevista concedida a autora em 02 de outubro de 2019.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes três vezes ao dia. “O problema está no que fazer agora, uma vez reeducados, mas sem estudos, sem família, sem terem aonde viver. ‘– Me faz mal pensar no futuro’ – diz Morris. O futuro...” (Rovira, 2004, p. 148, tradução nossa).

Considerações Em grande medida, escreve Mark Huband (2004, p. 16, tradução nossa), em seu livro África después de la Guerra Fría: la promessa rota de un continente, “a culpa pela intransigência dos déspotas africanos deve ser atribuída aos poderes estrangeiros, que concederam uma credibilidade decisiva a alguns dos piores líderes que o mundo já conheceu”. Essa linha de reflexão tece também a posição ideológica de Rovira sobre os conflitos na Libéria, como tivemos a oportunidade de verificar a partir da análise de suas incursões narrativas através das macro-proposições extraídas de seu discurso. Sua cobertura jornalística estabelece como marco para tratar a realidade moderna do país o período da Guerra Fria e a estratégica relação que os Estados Unidos estabeleceram com o território, enquanto esse lhes servia a seus interesses de espionagem e exploração de recursos no continente africano. Os oito textos compilados no livro Áfricas: cosas que pasan no tan lejos (2006) foram publicados como uma grande reportagem na seção El Magazine, do jornal La Vanguardia, em 16 de maio de 2004, e manifestam a mirada do repórter catalão à evolução das dinâmicas de guerra, desde a lógica do mundo polarizado pós Segunda Guerra Mundial até a dos Senhores de guerra, que atualmente impera em alguns países africanos. O tratamento narrativo de Rovira elege, assim, enfocar essas novas guerras que assolam a Libéria sob a implicação norte-americana nos golpes de Estado e eleições fraudulentas de Samuel Doe, em 1980, e de seu consequente abandono com a escalada de Charles Taylor ao poder, no início dos anos 1990, deixando como rastro o fortalecimento das juntas militares e do tráfico de armas na região. Aqui, uma vez mais, portanto, evidenciamos o trabalho jornalístico de Rovira de abordar os equívocos de todos os lados, conforme orienta a disjuntiva de Lynch e McGoldrick (2000) sentido à verdade, e que em seu discurso toma forma pela crítica ao envolvimento estratégico, e ademais colonial, do Ocidente com a África. Na atualidade, já concluída a Guerra Fria, os três países – Angola, Zaire e Libéria -, despejados por aqueles que em outro tempo os usaram, foram completamente destruídos pelas guerras travadas no território com a falsa promessa de que, se apoiassem o lado certo no conflito das superpotências, ganhariam um futuro esplêndido. Com a área já arrasada, eles foram deixados a se defender na solidão da vasta selva em que entraram, instigados pelos países do mundo desenvolvido aos quais sucumbiram com uma mistura de engano e bajulação (Huband, 2004, p. 26, tradução nossa).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Além de priorizar um recorte espaço-temporal amplo em seus relatos, de modo a explorar a evolução da configuração dos conflitos – que, se antes se baseavam em estruturas verticais e hierarquizadas, hoje incluem uma grande disparidade de atores e grupos, cuja legitimidade “se produz em estados frágeis, falidos, colapsados ou caóticos” (Fisas, 2002, p. 85, tradução nossa) –, o reporterismo de Rovira se atenta aos diferentes matizes dos atores implicados nesta nova ordem, aproximando-se das histórias dos soldados recrutados pelo governo Taylor – Morris, Sako e Varney. A escuta de seus relatos e o registro do que pensam sobre a guerra os homens que trabalham para o mesmo exército que matou seus familiares, conduz a narrativa de Rovira sentido à humanização dos atores implicados nos conflitos, rompendo com o tradicional esquema dualístico de heróis e vilãos que costuma protagonizar a cobertura midiática. Da análise desenvolvida neste estudo, portanto, extraímos uma matriz ideológica e narrativa que aproxima a prática noticiosa de Rovira ao Jornalismo para a Paz, pela priorização de um modelo narrativo complexo e orientado às pessoas em sua conduta e escritura jornalística.

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OS VESTÍGIOS DA “ESCOLA DE NAVARRA” NO JORNALISMO BRASILEIRO: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES – O CASO DA GAZETA DO POVO José Carlos Fernandes Myrian Del Vecchio-Lima

Introdução Em meados dos anos 1990, uma dezena de jornais brasileiros contratou a consultoria da Universidade de Navarra, na Espanha. A encomenda era clara – que os profissionais da instituição europeia ajudassem as empresas a se preparar para a “tragédia anunciada” da internet, que em poucos anos minaria a principal fonte de renda dos periódicos nacionais e regionais – a venda de classificados e a publicidade tradicional (Doctor, 2011; Meyer, 2007; Serva, 2016). Da carta de clientes de Navarra fizeram parte os jornais Zero Hora, Folha de S. Paulo, O Globo, Gazeta do Povo, A Tarde, Diário de Minas, O Dia, para citar alguns. O preço da consultoria era comentado apenas nos bastidores. Supõe-se que outras empresas de comunicação tenham “enchido os olhos” diante da promessa do ouro de Navarra, mas recuaram ao saber o quanto a reengenharia gráfica e editorial orientada pela instituição espanhola lhes pesaria no bolso. Mesmo ao alcance de poucos, o impacto provocado pelo modelo de Navarra no jornalismo brasileiro não deveria ser negligenciado, pois se estendeu, indiretamente, a outras empresas, que assimilavam as mudanças desenvolvidas entre os clientes da instituição (Johnson, 2003). O episódio, muito comentado à época, desperta pouco interesse entre os pesquisadores. À revelia do livro A arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat (2002), ter vendido muito e ser uma súmula do que os pesquisadores espanhóis difundiam – ainda que não os cite diretamente –, há poucos estudos publicados sobre o período de cinco anos em que se realizaram as consultorias. As premissas para este pacto de silêncio são fáceis de intuir. O “espírito de classe” jornalístico colidiu com o que pareceu, ainda que não nesses termos, representar

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes “uma ação de colonialidade1” (Quijano, 2009), numa reação que pode ser enquadrada, mesmo que de forma relativizada, ao chamado giro decolonial (Ballestrin, 2013). O termo, usado pela primeira vez por Maldonado-Torres, em 2005, significa, “o movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/ colonialidade” (Ballestrin, 2013, p. 105), sobretudo na América Latina. O conceito é tomado neste texto por meio de duas instâncias: a do trabalho e a do saber (Mignolo, 2002). Também podemos tratar esta resistência à imposição de um modelo estrangeiro nas redações como uma forma de narrativa dissidente (Wainberg, 2015), não dramática e cênica como muitas, mas marcada pelas reclamações dos jornalistas, assim como pela espiral do silêncio em relação ao episódio, praticamente sem análises produzidas pelo mundo acadêmico. A equipe de Navarra, detentora de um conjunto epistemológico e pragmático sobre a organização jornalística, do ponto de vista editorial e empresarial, vinha para desconstruir métodos de trabalhos, implodir editorias, alterar o cotidiano das redações, introduzir novas formas de design nas páginas dos jornais, como forma de sobrevivência editorial atrelada a um modelo de negócio em iminente disrrupção pela introdução das tecnologias ofertadas pelo capitalismo global (Harvey, 2011; Canclini, 2005). Depois deles, os recursos humanos e materiais passaram por uma devassa. A proposta dos estrangeiros ameaçava o modus operandi sedimentado de editores, confortáveis com seus oito repórteres e dez páginas diárias, por exemplo, mesmo que não tivessem todos os dias nada de interessante para publicar (Abreu, 1996; Barbosa, 2007). A expressão jocosa, que pipocava nas redações – “Navarra na carne” – traduz bem o estado dos ânimos naqueles idos. Acrescente-se ainda a questão levantada pelo jornalista Alberto Dines, também nos anos 1990, da influência das ideias da prelazia católica ultraconservadora Opus Dei na imprensa, por meio da própria Universidade de Navarra (Magalhães, 2006), que buscava aumentar sua influência, na América Latina. Para as universidades, é provável que a experiência de Navarra no Brasil tenha passado despercebida, o que justifica a ausência de pesquisas sobre o período. Quanto aos que atuavam em redações, o desejo de esquecer Navarra constituía um inconsciente coletivo, um momento em que o organograma das redações se desconstruiu e muitos tiveram de abandonar suas editorias em nome de teses pouco discutidas no coletivo. Pouco a pouco, os jornais envolvidos na proposta voltaram a fazer tudo como antes. Ou quase tudo. Na prática, o modo de fazer jornalismo proposto por Navarra ainda permanece vivo em vários aspectos. E é neste ponto que se abre um problema a ser investigado. Algo ficou. As reuniões de “abre” (abertura de edição), as “intermediárias” e as reuniões de “fechamento”, no fim da tarde, se tornaram uma rotina nas redações 1 Para Quijano (2009, p. 73), “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjectivos, da existência social quotidiana e da escala societal.”

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes brasileiras. Mesmo quem não tinha recursos financeiros para a contratação dos serviços, via o modelo acontecendo e o copiava de alguma maneira. Entendemos, que há, portanto, uma “escola de Navarra” estendida na imprensa brasileira. O que se propõe aqui é mapear as propostas de Navarra, não no conjunto de mais de uma dezena de jornais que utilizaram esta consultoria, o que diz respeito a uma pesquisa nacional e de longa duração; mas verificar, primeiramente, a proposta apresentada a um dos jornais que a contrataram, a Gazeta do Povo, veículo centenário de Curitiba (PR). O objetivo traçado funciona como proposta deste capítulo e como parte da metodologia, que se completa com depoimentos de alguns jornalistas locais que viveram a experiência de Navarra na redação do jornal. Não se trata apenas de uma curiosidade histórica — mas, também de tentar compreender como um movimento que se pretendia renovador no modo de fazer jornalismo, ainda que impositivo e contratual, virou, em duas décadas, uma escolha por um jornalismo sem pluralidade – pelo menos no caso da Gazeta do Povo –, que não circula em papel desde 2017, tendo se tornado um diário assumidamente antiprogressista do ponto de vista político e veiculador de um “conservadorismo de costumes” (Martins, 2018). Trata-se também de examinar um modelo importado de gestão de empreendimento jornalístico, do ponto de vista do negócio e do fazer editorial, que, ao contrário de modelos anteriores que vieram de fora, como o português, o francês, ou o norte-americano (com seu conjunto de técnicas) não se “tropicalizou” (Veloso, 1997; Melo, 2007), ou seja, não foi tingido pela cultura jornalística local, embora nela tenha deixado fortes marcas.

Contexto e teoria: a epistemologia “neocolonial” de Navarra e a resistência como narrativa dissidente nas redações A “escola de Navarra” e seu conjunto de saberes representam, neste recorte de análise, o modelo de conhecimento técnico e de gestão que vem do Norte global, no sentido das chamadas epistemologias dominantes concebidas e estudadas por Sousa Santos (Santos; Meneses, 2009). E consideramos, como narrativa dissidente, aquela que se exprimiu brevemente em poucas mídias nacionais2 e durante alguns anos ecoou em várias redações jornalísticas, emitida e ouvida por muitos profissionais, na forma de reclamações, má vontade, resistências. A narrativa dissidente “expressa o tipo de desconforto e oposição que um ator cultiva a um ou a vários aspectos de certo sistema social, político, cultural, religioso e/ou organizacional. O dissidente pode ser uma pessoa, um grupo, um movimento e como proposto, também a imprensa” (Wainberg, 2015, p. 116). O autor aplica isso à narrativa jornalística em si, mas aqui aplicamos o conceito para descrever o que os jornalistas 2 Em pesquisa exploratória inicial, detectamos críticas ao modelo de Navarra em alguns veículos como Observatório da Imprensa, AR News, revista Exame, Observatório do Direito à Comunicação. Não se trata de uma pesquisa sistemática.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes comentavam sobre a imposição do modelo de Navarra — de forma ostensiva, como no caso das colunas e entrevistas do exemplar Alberto Dines, ou a meia boca, como no caso de muitos repórteres e editores. Enfim, “a Comunicação Dissidente se propõe a enfrentar e a desafiar certa ideia que é ou que aparenta ser hegemônica.” (Idem). Como outros modelos negociados no mercado global, esse veio comprado pelas hierarquias patronais, com apoio de lideranças editoriais. Executado, bem ou mal, deixou marcas nas práticas e rotinas jornalísticas, em especial aquelas que passaram a se atrelar a um modelo de gestão corporativo, garantindo a clara interferência do departamento comercial e de marketing, com seus executivos bem pagos, e os repórteres da redação ganhando o piso salarial. Apesar da ingerência histórica da publicidade sobre o jornalismo (Marcondes Filho, 1984), a imposição tão ostensiva à moda de uma corporação de negócio internacional não foi assimilada culturalmente como outros modelos externos que chegaram, em diferentes épocas, às redações brasileiras.

Navarra e Opus Dei De forma sumária, é preciso compor noções da história e do contexto da “escola de Navarra” e de sua ligação com a Opus Dei (“Obra de Deus”).3 Neste trabalho, o que interessa apontar sobre este apostolado católico se refere a dois pontos: a) sua inserção na sociedade pela via do conhecimento e do trabalho intelectual, representado aqui pela Universidade de Navarra; e b) sua inserção no campo de conhecimento objeto deste texto, o jornalismo, em específico no jornal paranaense Gazeta do Povo. A prelazia Opus Dei, muito controversa devido a seus princípios e práticas ultraconservadoras e autônomas, é reconhecida pelo Vaticano, mas considerada, por sua vez, como um “trajeto dissidente” por religiosos progressistas. Foi fundada em 1928 pelo monsenhor José Maria Escrivá de Balaguer, santo católico que também fundou, em 1952, a Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha. Um dos campos de penetração da Opus Dei é no campo da ciência e da intelectualidade. Essa ação pastoral atende ao carisma expresso do movimento, cujos representantes atuam em universidades, notadamente na Espanha e no Peru, países nos quais tem presença expressiva. Acrescente-se sua inserção, por meio de lideranças, em instâncias jurídicas, midiáticas e empresariais – igualmente atendendo à vocação do movimento. A escassa bibliografia científica sobre a Opus Dei no Brasil afirma que o alcance da prelazia no país se alarga pela via científica e educacional. Ao estudar a categoria “trabalho”, entendida como “um conjunto de códigos e sociabilidades”, Brum (2012, s.p) afirma que a Opus Deis se atrela “a práticas sociais que se codificam na esfera científico-educacional e assume a forma do trabalho intelectual (...)” (Idem, 2012, s.p.) Ele salienta que estas práticas marcam o 3 “A Opus Dei (...), instituição leiga (...) tem por finalidade a prática santificada no mundo através do trabalho, ou seja, o mundo profano pode ser purificado através da santidade da atividade profissional cotidiana, transformadora da realidade.” (BRUM, 2012, s.p.).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes discurso religioso que inclui, entre os valores cristãos, os fundamentos acadêmicos e científicos. A concepção de “trabalho” gestada na Opus Dei não é a mesma do protestantismo de linhagem weberiana – “ao contrário, o trabalho é visto como atividade apostólica, onde se trata de santificar o mundo na posição em que se está (...). (BRUM, 2012, s.p). Uma das maiores escolas de negócio da Europa, Navarra também se destaca como escola de design e de comunicação/jornalismo. Na interface entre jornalismo e produção visual, este foi um dos aspectos de maior influência da consultoria da universidade junto aos jornais brasileiros nos anos 1990. De acordo com Moraes (2015, p. 75), “essa instituição de ensino fora a grande incentivadora do jornalismo visual, sobretudo da infografia no período.”. E acrescenta que: ... os consultores espanhóis pregavam a aproximação dos designers do centro de decisão da redação, interferindo na produção logo em sua fase inicial, em vez de figurar como uma espécie de prestadores de serviço, na ponta final do processo de edição, como era o costume. (Moraes, 2015, p. 72)

Os infográficos espanhóis consagrados em âmbito internacional faziam par com um design tipográfico refinado para os jornais, o que permitiu as “consultorias espanholas ancoradas na Universidad de Navarra se expandirem sobretudo pela América Latina e, a seguir, pelos países em desenvolvimento da Europa e da Ásia” (Moraes, 2015, p. 43), representando “o estabelecimento de um modelo hegemônico de jornal”, tido como “uma solução para as questões relativas ao futuro dos jornais diante do cenário de crise” (Idem). Ao justapor novas formas de gestão corporativa, o design como etapa central da produção jornalística e novas práticas de produção da notícia nos jornais diários, da pauta à edição, a “escola de Navarra” estabelece um modelo que marca os primeiros anos da década de 1990, com fortes repercussões nos jornais brasileiros. É importante apontar ainda a influência da Opus Dei, por meio do seu braço acadêmico (Navarra), e de seus membros numerários4, no jornalismo brasileiro, pela via do saber ou das consultorias. Em 2006, Luiz Antonio Magalhães, no Observatório da Imprensa, no artigo “Opus Dei investe na formação de jornalistas”5, ressaltava a questão da “crescente influência nas redações brasileiras de ideias e práticas gerenciais a partir do Opus Dei”, por intermédio de Navarra, conforme o jornalista Alberto Dines, então editor do Observatório, já apontava desde 1996. Para Moraes (2015, 4 Segundo a própria Opus Dei, “chamam-se numerários (ou numerárias) aqueles fiéis que, em celibato apostólico, têm uma máxima disponibilidade pessoal para os trabalhos apostólicos peculiares da Prelazia; podem residir na sede dos Centros da Prelazia, para se ocuparem desses trabalhos apostólicos e da formação dos outros membros do Opus Dei.” In: https://opusdei.org/pt-br/article/solteiros-e-casados-numerarios-adscritos-supernumerarios/ Acesso em 07 jul 2020. 5 In: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/opus-dei-investe-na-formacao-de-jornalistas/ Acesso em: 5 jul 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes p. 75), Dines, “um jornalista cujo perfil irretocável se enquadra no do ‘velho homem de imprensa’ (...) representava exatamente aquela categoria de jornalistas brilhantes que fora substituída por gerentes eficientes pelas reformas impostas pelos donos das empresas jornalísticas.” Ao reafirmar o binômio “conhecimento e jornalismo”, inicia-se no Brasil, em 1997, o curso de pós-graduação “Master em Jornalismo”, dirigido pelo jornalista Carlos Alberto Di Franco, numerário declarado da Opus Dei, representante no Brasil da Escola de Comunicação da Universidade de Navarra e ligado ao corpo editorial do O Estado de São Paulo. Em 2006, quase 200 profissionais foram diplomados pelo curso. Pesquisa apontada por Magalhães (2006), no artigo citado no parágrafo anterior, mostrava que “a maior parte dos ex-alunos, a maioria editores, veio do Grupo Estado: (...) do jornal O Estado de São Paulo, foram 9 profissionais que somados aos 4 da Agência Estado resulta em 13 masterianos do grupo – dois a mais do que os 11 free lancers que despontam na liderança. (...) A Editora Abril aparece com 9 masterianos, empatada com o Estadão e a Gazeta do Povo, do Paraná.”. O número de diplomados de veículos de comunicação do grupo RBS, do Sul do Brasil, também era alto. Artigo publicado no AR News6, em 2013, afirma que “o segundo homem da Opus Dei na imprensa brasileira é o também numerário Guilherme Doring Cunha Pereira, herdeiro do RPC, principal grupo de comunicação do Paraná e publisher da Gazeta do Povo. Por sua vez, Victor Gentilli, no artigo “Jornal muda e passa recibo ao concorrente”7 também no Observatório da Imprensa, em 2004, ao comentar sobre as mudanças gráficas e editoriais de A Gazeta, de Vitória (ES), com destaque para a editoria de política que migrava para o segundo caderno, fala em determinado trecho sobre a “Opus Dei mudando jornais” e se refere ao jornal concorrente A Tribuna: Não foi apenas na ação de empurrar a política para trás que os dois jornais se identificam. Ambos mudaram com o apoio dos consultores da Universidade de Navarra. Para quem não sabe, a Universidade de Navarra é o braço acadêmico do grupo conservador católico Opus Dei, forte na Espanha. No Brasil, tem como representante o jornalista e professor Carlos Alberto Di Franco, que agora também vende sua griffe de crítico de mídia para seus contratados.

Como esta revisão não pode ser exaustiva, apontamos ainda a influência do numerário da Opus Dei e ocasional colaborador do Master em Jornalismo, Guilherme Cunha Pereira, que leva a Gazeta do Povo, de Curitiba (PR), a uma “guinada à direita”, de acordo com Rafael Martins, em artigo do jornal independente The Intercept, em 12 de dezembro de 20188. Afirma Martins (2018) que o jornal paranaense, fundado 6 https://alagoasreal.blogspot.com/2013/03/a-presenca-da-opus-dei-na-politica-no.html#gsc.tab=0 Acesso: 5 jul 2020 7 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/feitos-desfeitas/jornal-muda-e-passa-recibo-ao-concorrente/ Acesso: 5 jul 2020 8 https://theintercept.com/2018/12/09/gazeta-do-povo-guinada-direita-bolsonaro/ Acesso em: 5 jul 2020

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes em 1919, “desde sempre um jornal de perfil conservador”, com razoável influência regional mas baixa inserção nacional, ao perceber “o avanço da direita no Brasil, palpável desde as manifestações de 2013”, viu aí a chance “para romper as barreiras de Curitiba” — “foi como juntar a fome à vontade de comer: o atual presidente do GRPCom, grupo que edita a Gazeta e é dono das afiliadas da TV Globo no Paraná, Guilherme Döring Cunha Pereira, é numerário do Opus Dei, a conservadora prelazia da Igreja Católica.” (Martins, 2018). O repórter relata que em entrevista a ele concedida, Cunha Pereira aponta o papel estratégico do conservadorismo na Gazeta do Povo: [O conservadorismo adotado pela Gazeta] Tem uma ressonância com parte importante da população brasileira, que não encontrava outros veículos com idêntico posicionamento”, me disse Cunha Pereira na longa entrevista que concedeu em sua sala na redação. “A gente percebeu que isso é uma riqueza também do ponto de vista estratégico, e montou toda uma estratégia em que o posicionamento [conservador] adquiriu status especial. Ele é um direcionador estratégico muito importante.

Diante do uso admitido do posicionamento conservador como direcionador estratégico importante para se obter audiência, conforme as palavras do herdeiro do Grupo RPC, é preciso destacar o pensamento de Dines, publicado pelo Observatório do Direito à Comunicação9, em março de 2010: “Hoje a visão da imprensa é controlada por instituições patronais e outras entidades, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), profissionais da Universidade de Navarra e o Opus Dei”. Esta premissa foi sustentada por Dines ao longo do tempo em vários de seus artigos, entrevistas e comentários. Neste contexto, assinale-se que a Universidade de Navarra e seu programa Master de capacitação dirigido por Di Franco são ligados à consultoria Innovation International Media Consulting de Miami (EUA) e à Sociedad Interamericana de Prensa (SIP). “Além da sua operosidade na salvação das almas desgarradas, a Opus Dei é um projeto de poder, de dominação dos meios de comunicação. E um projeto desta natureza não é nem poderia ser democrático”, analisou Dines no texto “A estranha conversão da Folha”10, publicado em maio de 2005. Estas constatações, consideradas aqui como narrativas dissidentes de alguns articulistas na imprensa, vai ao encontro do entendimento de que o modelo de Navarra implantado no Brasil é parte de estratégia de poder produzida globalmente e inserida localmente, por meio do discurso do conhecimento e da inovação técnica e de gestão midiática. 9 http://www.intervozes.org.br/direitoacomunicacao/?p=24166 Acesso em 6 jun 2020. 10 http://www.observatoriodaimprensa.com.br/imprensa-em-questao/a-estranha-conversao-da-folha/ Acesso em 6 jun 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O saber dominante e o giro decolonial como narrativa dissidente entre os jornalistas Para formular o contexto teórico sobre o recorte temático deste capítulo, operamos sobre os seguintes conceitos, que emergem, evidentemente, simplificados — o de um saber global que vem do Norte, em contraponto às chamadas epistemologias do Sul (Santos; Meneses, 2009); o entendimento deste saber (Mignolo, 2002), enquanto narrativa do conhecimento e da chamada inovação tecnológica, que em nosso recorte perpassa a gestão editorial do negócio jornalístico, como uma forma de “colonialidade do saber”; a resistência de alguns jornalistas ao modelo “do Norte”, manifestada por uma narrativa dissidente (Weinberg, 2015); que, por sua vez, remete de forma “miniaturizada”, em escala e ênfase, a um giro decolonial (Ballestrin, 2013). Colocamos como premissa central a ideia de que a resistência (discurso dissidente) de alguns jornalistas, na época, remete à não “tropicalização” (Veloso, 1997) do modelo de Navarra. Santos e Meneses (2009, p. 7), ao falarem das epistemologias dominantes, indicam que o colonialismo “para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica”, ao estabelecer uma desigualdade no binômio saber-poder, por meio da supressão dos saberes dos povos colonizados, definindo-os como “subalternos”. Os dois autores apontam que alternatividades às epistemologias do Norte – a dos países colonizadores – emergem a partir do reconhecimento de que existe uma pluralidade de conhecimentos no mundo, à qual denominam de “epistemologias do Sul11”. Ballestrin (2013, 99-100), ao se debruçar sobre a realidade latino-americana, relembra que foi Quijano que, ao desenvolver o conceito original de “colonialidade do poder”, conduz ao entendimento de que a colonialidade econômica e política não terminou com o fim do domínio colonial territorial eurocêntrico sobre os países do Sul do mundo. A autora assinala que o conceito alcança outras instâncias de níveis conectados ao poder político-econômico, e de acordo com Mignolo (2010), está ligado ao controle da subjetividade e do conhecimento. Dito de forma muito sintética, com base em Ballestrin (2013), esse controle colonial sobre múltiplas instâncias vai forjar uma modernidade mítica, pois não se desatrela da experiência colonial histórica de domínio territorial. Neste contexto de neocolonialismo surgem formas de resistência à colonialidade do poder, as chamadas ações ou pensamentos decoloniais. Mas, como as manifestações decorrentes do colonialismo já estão integradas à cultura latino-americana de forma profunda, tendo sido relida e ressignificada por vários grupos sociais, emerge o chamado giro decolonial, aquele que estabelece uma decolonialidade específica para a resistência às colonialidades da América Latina. 11 Santos et al (2009) concebem o Sul de forma metafórica, “como um campo de desafios epistêmicos, que procuram reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo.” (p. 12). Este “Sul”, como repositório de conhecimentos e saberes, se sobrepõe, em parte, ao Sul geográfico.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ainda conforme Ballestrin (2013), Mignolo (2002) também enfatiza a dimensão epistemológica, ou seja, a colonialidade do saber. Este autor estabelece uma “diferença colonial e geopolítica do conhecimento”, em termos latino-americanos, que ao ser por nós aqui miniaturizada pode ser representada pelo conhecimento técnico, que como qualquer saber técnico é marcado pelas ideologias, da Universidade de Navarra, “vendido” por suas consultorias para os jornais brasileiros e de outros países. Assim, podemos relacionar às narrativas dissidentes sobre o modelo de Navarra ao conceito, aplicado em escala miniatural, de giro decolonial, conforme já definido.

Um modelo afinado com o mundo corporativo A história da imprensa brasileira é um contínuo de influências estrangeiras e importação de modelos (Candido, 2000; Molina, 2015) – ainda que pesquisadores do quilate de José Marques de Melo considerem que essas matrizes foram aqui tropicalizadas (Melo, 2007). Para este artigo, fez-se uma revisão de literatura em livros sobre a formação do jornalismo brasileiro e, grosso modo, a constatação de que modelos exteriores moldaram as práticas locais não redunda, necessariamente, em considerá-las colonialistas. Entre os sete jornalistas entrevistados para o trabalho, apenas um problematizou a questão, restando aos outros desconsiderá-la. Os problemas com a consultoria de Navarra, afirmam, com suas palavras, foi mais “de dentro para fora do que se fora para dentro”. Deve-se considerar, igualmente, que numa perspectiva de modernidade (Berman, 2003; Bauman, 2003) o jornalismo ocidental seguiu o modelo americano, por ser uma consolidação pragmática de experiências da construção da notícia praticadas em várias partes do mundo. De qualquer modo, pede uma pesquisa em baia própria a influência das revistas estrangeiras na Belle Époque carioca; a linguagem dos tabloides de William Hearst no jornalismo policial brasileiro a partir da década de 1920; a reforma gráfica e editorial nos jornais Diário Carioca e Última Hora – que implantaram no Brasil o lead e a pirâmide invertida; os tentáculos estrangeiros na propalada reforma do Jornal do Brasil, nos anos 1960; o estilo magazine da revista Senhor, a partir de 1959; o modelo Time-Life na Editora Abril – expresso nas revistas Realidade e Veja. Por fim, a questionável marca do norte-americano USToday na reviravolta gráfica e editorial da Folha de S. Paulo nos anos 1980 (Costa, 2011; Oliveira et. al, 2010; SILVA, 2005). Presumimos que a “resistência” ao aqui chamado modelo de Navarra ocorreu em função de uma estranheza natural dos jornalistas – ou por verem suas crenças questionadas por uma consultoria estrangeira ou mesmo porque essa consultoria vinha para alterar metodologias sedimentadas, mesmo que não fossem as melhores, o que exigia rearranjos editoriais, temores de não se adaptar e risco de demissão. Paralelo à hipótese mais óbvia, o modelo de Navarra – diferente de outros pacotes importados pelo jornalismo brasileiro – se desenvolve em meio a um momento pós-industrial das empresas de comunicação brasileiras (Abreu, 2002). A lógica corporativa – com ên-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes fase no resultado, sustentabilidade, desempenho – é estranha à cultura jornalística, pautada na busca cuidadosa da informação e atenta à verdade factual. É arriscado afirmar que o modelo de Navarra legitimou a desconsideração com as tradições jornalísticas, equiparando-as com as práticas empresariais vigentes a partir dos anos 1990, mas há indícios de que, no mínimo, sugeriu tal engrenagem aos seus receptores. O exemplo mais flagrante foi a criação de coordenadores de área, ou editores executivos, uma espécie de gerente de três ou quatro editorias, responsáveis pelo planejamento e por abrir a edição, acompanhá-la e coordenar o fechamento, no final do dia, garantindo a boa execução; e mesmo por flexibilizar o planejamento. Isso ocorria quando um fato novo se impunha ao plano de edição ou quando uma matéria “crescia”, no jargão, derrubando algumas das que estavam previstas. A diferença salarial entre coordenadores, editores e repórteres se tornou considerável, acima dos padrões praticados até então pela imprensa brasileira. Legítima do ponto de vista corporativa, a estratégia piramidal criou um fosso numa profissão tradicionalmente horizontal. Gerou um imediato senso de defesa do cargo, entre os que ganhavam salários impraticáveis por outras empresas locais. Não raro, editores de outros jornais e de outros estados eram chamados para assumir essas funções de coordenação. Dentre os repórteres, em resposta ao modelo, havia a ansiedade de emplacar matérias com dados – que rendessem a página principal da edição, em geral a 3 ou a 4 –, com informações passíveis de gerar infográficos. O “jornalismo de rua” perdeu espaço para o de números, não raro tecnocrata.

Metodologia: mapeamento, depoimentos e análise A abordagem qualitativa deste trabalho se iniciou com uma pesquisa exploratória sobre as fontes relativas ao recorte temático traçado, quando encontramos, via Google, opiniões e posições de jornalistas sobre a influência de Navarra no jornalismo brasileiro. Utilizamos partes destes textos opinativos, como mostras de uma comunicação dissidente na área diante do projeto globalizante da escola espanhola. As referências acadêmicas são escassas e, na área de Comunicação/Jornalismo, ainda mais rarefeitas. Um dos poucos textos localizados, por meio de palavras-chave inerentes ao tema, foi o de Adghirni (2002), que enfatiza que a influência das consultorias e dos projetos de Navarra foi decisiva nas transformações dos jornais brasileiros, que se tornam “empresas jornalísticas”, introduzindo-se o conceito de “usina de informação12”: ... as empresas passaram a adotar a expressão ‘turbinas de informação’ para significar a produção do jornalismo como mercadoria de fábrica (...) disseminando uma gama diversificada de produtos destinada a diversos públicos e diversos objetivos. (Adghirni, 2002, p. 110) 12 Outro texto desta autora, em parceria com Fábio Henrique Pereira, “O jornalismo em tempos de mudanças estruturais”, publicado em 2011, também se refere ao mesmo conceito de “usinas de informação”, que vem dos professores da Universidade de Navarra, contratadas para as consultorias no Brasil. Ver em: https://repositorio.unb.br/ bitstream/10482/12443/1/ARTIGO_JornalismoTempoMudancas.pdf Acessado em: 2 de setembro de 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Em um segundo momento, foi reunido material disponível do que se implantou em termos de práticas e rotinas na redação da Gazeta do Povo, nos anos de implantação do modelo de Navarra, o que permitiu elaborar um mapeamento do modelo em termos de práticas e rotinas de produção jornalística.

Extratos de uma pequena enquete O terceiro momento de coleta de informações se deu por meio de uma breve enquete de quatro questões enviadas a 14 jornalistas que trabalharam na redação do jornal em exame, nos anos de inserção do modelo de Navarra. Seis responderam, um preferiu se manifestar por meio de artigos que colecionou sobre a consultoria e por telefone; e um alegou que não responderia, pois entende que o estudo já tem conclusões prévias e procura respostas que as legitime nos entrevistados. Dos sete respondentes (50% dos consultados), seis eram editores à época da consultoria e uma repórter. As identidades serão preservadas. Segue um resumo do resultado e as quatro questões:

1. A partir de sua experiência, você diria que o desenvolvimento/aplicação/prática do modelo de Navarra no jornal Gazeta do Povo foi: POSITIVO, NEGATIVO ou RELATIVO? Justifique sua resposta, apontando pelo menos um aspecto negativo, positivo ou sua ponderação.

Quatro entrevistados responderam “relativo” e três “positivo”, sendo que no conjunto a apreciação é de que o jornal teve ganhos significativos com a experiência. Destacou-se o “planejamento” das edições – que redundou em maior investimento na apuração e checagem, assim como no avanço do jornalismo de dados. “Não por acaso o aumento do número de prêmios ser posterior ao modelo de Navarra, o que demonstra o efeito”, destaca uma das entrevistadas. A Gazeta do Povo ganhou o Global Shining Light Award (2001, pela série Diários Secretos13 – cuja produção angariou outros quatro grandes prêmios. Também positiva foi a reforma gráfica, num jornal cuja diagramação era confusa e pouco atraente. E a prática de “apostas” diárias — “o jornal passou a trabalhar mais com pautas próprias e a depender menos da agenda oficial ou de releases vindos de assessorias de imprensa.” Para reforçar o quadro geral, um entrevistado afirmou: “... nunca houve nada mais profundo ou revolucionário [na Gazeta do Povo] até o advento do modelo de Navarra. Dentre os aspectos que causaram ruído na reformulação editorial proposta pelos técnicos de Navarra aparecem o afastamento da cobertura local – com consequente 13 A série Diários Secretos, feira em parceria com a Rede Paranaense de Comunicação (RPC), afiliada da Globo e empresa do mesmo grupo da Gazeta do Povo, é resultado de uma investigação de dois anos sobre fraudes em nomeações e escoamento de dinheiro público, tendo como recurso a publicação em diários oficiais não numerados – entre outros artifícios de corrupção.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ruptura dos laços que a empresa tinha construído com a comunidade; a falta de disposição do jornal em se reformular editorialmente, reduzindo a consultoria ao papel de promotora de uma reforma gráfica e de legitimadora do conservadorismo latente à empresa. “O discurso dos espanhóis coincidia com a visão política e social dos donos da empresa. Se o jornal se modernizou do ponto de vista estético, do ponto de vista editorial teve a posição conservadora fortalecida”, diz um dos editores consultados. Por fim, apontou-se a falta de lideranças capazes de sustentar a política de planejamento gráfico e editorial, de modo a vencer as resistências.

2. No período de sua atuação no jornal Gazeta do Povo, qual das rotinas editoriais propostas pelo modelo de Navarra lhe pareciam provocar mais resistência ou rejeição entre os jornalistas. Justifique.

As respostas são variadas. Passeiam pela estranheza diante da função de “coordenador de área”, ou editor executivo. “Houve uma superposição de funções”, diz um editor. A limitação do tamanho dos textos e sua divisão em vários Box, com funções diferentes, mexia no método de apuração e era fonte contínua de embates entre repórteres e editores. Em primeiro lugar aparece que a dificuldade à época da consultoria foi assimilar o planejamento das pautas – para os jornalistas mais velhos, essas práticas de “exatidão” pareciam contrariar a aura romântica e a intuição jornalística. Junto do planejamento vinha outra diretriz – que o jornal apostasse em temas candentes, aos quais se dedicaria com mais afinco, de modo a gerar impacto e políticas públicas. A cultura do “furo” perdia a força, a favor da cobertura mais demorada e qualificada, à moda das revistas semanais. Entre os mais jovens, o planejamento exaustivo, que levava à estruturação de cada edição, era recebido com mais tranquilidade. Dentre as resistências apontadas aparece a estratégia de que alguns repórteres circulassem pelas editorias, o que descontentava editores, presos a seus feudos e que estranhavam essas táticas de cooperação. Para um dos editores entrevistados não houve resistência, mas “frustração”. As propostas de Navarra acenavam para uma mudança editorial profunda, que não se realizava, pois práticas do modelo anterior permaneciam, como a falta de autonomia de editores de política, por exemplo.

3. Passados mais de 20 anos da reengenharia proposta pelos pesquisadores e técnicos de Navarra no jornal Gazeta do Povo, cite de uma a três rotinas editoriais que – a seu ver – se incorporaram às práticas de quem viveu aquela experiência.

Para os sete entrevistados, a consultoria de Navarra conseguiu implantar na rotina editorial da Gazeta do Povo: 1) O planejamento das edições diárias, ao longo de três reuniões diárias, o que cedo ou tarde seria uma necessidade emergente, por causa do

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes avanço do jornalismo digital, com vídeos, podcasts, infográficos, e outras variantes que exigem ações antecipadas. 2) A prática de repórteres, editores e designers pensarem juntos a distribuição de elementos gráficos em cada página – uma das facetas do planejamento; 3) A definição de apostas editoriais, em torno das quais se somam esforços de reportagem; 4) A produção de infográficos para compor com as matérias. Sem consenso com a maioria, um dos editores à época, colocando seu argumento na autocensura e o que chama de unilateralidade institucional, afirmou: ... “nada ficou, do ponto de vista editorial ou até mesmo ‘moral’, do que foi proposto pelos espanhóis”.

4. Qual seu grau de concordância com a afirmação “parte do insucesso do modelo de Navarra se deu por ser uma receita importada, colonialista, com tendência a desprezar as práticas dos jornalistas que atuavam na empresa”. DISCORDO TOTALMENTE CONCORDO TOTALMENTE CONCORDO EM PARTE [Justifique, caso deseje].

A questão foi a que gerou mais tensionamentos – a exemplo da recusa de um dos editores em responder, por considerá-la “manipuladora”, passando pelo desconforto com a expressão “insucesso do modelo de Navarra – a performance, adesão e resultados da consultoria não teriam sido os mesmos em todos os jornais, de modo que o caso Gazeta do Povo não se repete necessariamente em outras empresas. Uma editora lembra que alguns jornais foram praticamente “refundados” depois da passagem dos técnicos e pesquisadores da Universidade de Navarra. E que havia outras consultorias em curso no país, posto que era uma necessidade em meio aos imperativos da internet e o que representava para o futuro dos impressos. Outro senão é que o êxito ou não do modelo não pode ser confundido com a crise do modelo de negócios dos jornais impressos, cuja escala é mundial e não poupou nem gigantes como o The New York Times nem o The Guardian. Diz uma editora:

Não diria colonialismo porque a consultoria foi de Norte a Sul. Diria que a receita muito matematizada explica parte do insucesso, porque questões locais foram desrespeitadas, por uma crença específica do CEO. [O resultado se deu de forma diferente] onde o localismo foi respeitado, a cultura anterior foi mais respeitada, as identidades foram mais coerentes, como o Zero Hora e o Diário de Notícias [de Portugal].

Uma das editoras, que fez o curso Master em Jornalismo, diz se sentir desconfortável com a ideia de colonialismo – ou colonialidade, como se adotou neste artigo – pois nunca registrou que o modelo de Navarra fosse impositivo ou fechado, mostrando-se aberto para contribuições regionais. O contrário disso, afirma, seria um desrespeito com os próprios clientes.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Parece-me que para a Gazeta do Povo a passagem de Navarra foi um grande empurrão contra a pasmaceira e o amadorismo. É importante levar em conta as circunstâncias que cercavam a redação na época, que não eram favoráveis ao jornalismo de qualidade (comando familiar, redação inflada por jornalistas antigos/conservadores e novatos/despreparados etc).

A afirmação é corroborada por outros dois entrevistados – que veem uma “guinada editorial” no jornal pós-Navarra. Um dos ouvidos diz que “discorda totalmente”, mas não por se incomodar com um modelo vindo de fora, mas porque o modelo vigente – de alinhamento com os governos – não passou por transformações. Na mesma linha, uma repórter – e depois editora – destaca que faltou maturidade para que o melhor do modelo fosse implantado, ausência de boas lideranças e uma falta de habilidade em lidar com as boas propostas da consultoria. Por fim – em torno de um assunto recorrente nas demais questões, um editor afirma que o modelo tornou os jornais por onde passou muito parecidos.

(...) sem dúvida, o que pesa contra o modelo de Navarra foi a quebra da identidade do jornal com a cidade de Curitiba e com o Paraná. Nesse aspecto, talvez a culpa nem tenha sido tanto do ‘modelo’, mas sim pela falta de compromisso com boa parte da redação. Os jornalistas da Gazeta do Povo simplesmente deixaram de ir às ruas. Contrariando os ensinamentos do ‘modelo’, o jornal passou a ser burocrático: deixou de ver a cidade, esqueceu as pessoas das ruas, abandonou o ser curitibano e as causas paranistas. A Gazeta do Povo deixou de fazer a sua agenda e passou a usar a da Internet. O pessoal de Navarra alertava para um perigo (e ele ocorreu): boa parte dos jornalistas da Gazeta passou a usar pantufas na Redação – um pecado mortal para a vida de qualquer jornal.

Um discurso parcialmente dissidente Após examinar um primeiro grupo de vozes críticas sobre a consultoria de Navarra no Brasil, expressas em textos de opinião assinalados neste trabalho, que se levantaram contra o contrabando de diretrizes da moral católica, embaladas no mesmo pacote que as reformas gráficas, por exemplo — vozes especialmente registradas por articulistas externos ao processo dentro das redações na época; e ouvir um seguindo grupo de vozes, articuladas por sete jornalistas todos vinculados ao jornal Gazeta do Povo, no período de implantação do processo — que, em sua maioria, apontam um aprendizado de grande valor nas redações, foi possível alinhavar alguns análises sobre a temática deste estudo. As primeiras vozes, a dos articulistas, que conformam um discurso dissidente em relação a Navarra, de certa forma inibem a possibilidade de que, para muitos jornais, a experiência pode ter sido uma “refundação” e para seus jornalistas um aprendizado, conforme apontado pelo segundo grupo de vozes. Os articulistas do discurso dissidente marcam suas argumentações contra a consultoria espanhola, em especial, pelo

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes vínculo desta com a prelazia Opus Dei. E apontam a influência deste grupo católico sobre órgãos representantes da imprensa, sobretudo órgãos patronais. Com relação ao segundo grupo, formado por participantes da enquete, três dos ouvidos se mostraram bastante críticos à maneira como o modelo de Navarra foi implantado no jornal paranaense, sendo que um deles percebia um esforço de “catequese flagrante” e, reforça, nada de extraordinário – no aparato oferecido por Navarra – ao que já se sabia sobre bom jornalismo. No geral, podemos afirmar, que as vozes dissidentes ao modelo de Navarra parecem se confirmar mais entre seus observadores externos do que entre aqueles que passaram pelos treinamentos e implantações do modelo. Não se trata de um ponto conclusivo, contudo. As aproximações declaradas entre o jornal paranaense Gazeta do Povo e os princípios da Opus Dei aparecem, ainda que timidamente, como uma questão sem linha direta com a consultoria. Mais de um entrevistado defende, inclusive, que as propostas dos consultores eram solapadas pelo conservadorismo da própria empresa. E que outros jornais brasileiros tiraram grande proveito do aparato trazido pelos espanhóis. Em resumo, a Gazeta faz parte, mas não resume a experiência de Navarra no Brasil. Como geração de fontes para futuras pesquisas, os entrevistados atestam que o jornal saiu mais organizado, relevante, premiado e qualificado da experiência – em comparação a seu estágio anterior, que investia pouco em reportagens e se sustentava com a venda de classificados. A consultoria de Navarra veio num momento de esforço de dar àquela empresa lucrativa também a chancela de ser um bom jornal. O ponto negativo foi seu distanciamento dos leitores curitibanos e paranaenses, apartando-se das possibilidades contemporâneas de fazer um bom jornalismo hiperlocal. O hiperlocalismo, a propósito, era uma das recomendações da Universidade de Navarra.

Considerações finais Sobre as premissas deste trabalho, podemos afirmar que a existência de uma narrativa dissidente sobre a consultoria de Navarra se dá com relação a vários pontos ressaltados na análise crítica, mas emergem — e este foi outra de nossas premissas — pontos positivos que alteraram as formas de planejamento e práticas jornalísticas. Ao final, sobre a colagem que fizemos entre as possíveis narrativas dissidentes — constatadas apenas em parte — e um arcabouço teórico-ideológico mais amplo, aquele que coloca este tipo de consultoria externa ao país como uma prática de “colonialidade do saber” enquanto manifestação de poder, podemos afirmar que: as características gerais do projeto podem sim ser enquadradas no entendimento de colonialidade do conhecimento, embora se ressalte a preocupação dos responsáveis pela consultoria respeitaram as características locais (o que não foi atendido pelo jornal); mas como técnicas de gestão e práticas jornalísticas vindas do Norte global, impostas

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de “cima para baixo”, as características da “escola de Navarra” se enquadram na moldura de “colonialidade”, de acordo com os entendimentos utilizados neste artigo para este conceito. b) a premissa de um “giro decolonial” apontado de início ocorre apenas em parte, em especial nas narrativas de resistência dos articulistas, mas a maioria das falas dos jornalistas locais não percebe a colonialidade apontada, embalando essa não identificação com o conceito de colonialismo que eles negam estar presente na experiência. O legado das grandes consultorias a jornais brasileiros – notadamente a oferecida pela Universidade de Navarra, a partir de meados da década de 1990 – é um objeto de estudo em formação, mas, de forma anacrônica, também em processo de apagamento. Pesa para esse descompasso, por certo, ter sido um expediente da grande imprensa escrita e da grande imprensa regional, de forte impacto para os jornalistas e editores que trabalhavam nesses veículos, mas de pouco interesse para as pesquisas acadêmicas, pouco afeitas a investigar processos editoriais. Por outro lado, os contornos ideológicos que rondavam as consultorias - em que pesem as relações umbilicais entre Navarra e o movimento laico católico Opus Dei, e o discurso neoliberal, vertical, implícito nos treinamentos feitos nas redações - acabaram por monopolizar a crítica a esse episódio da história recente da imprensa brasileira. Esse peso sem medidas, acabou por recalcar o estudo de outros aspectos do episódio, a exemplo da possível contribuição do modelo editorial proposto pelos espanhóis, sua permanência e, por que não, sua tropicalização. Referências ABREU, A. A. de (org.). Imprensa em transição: o jornalismo brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. ABREU, A.A. A modernização da imprensa (1970-2000). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002) ADGHIRNI, Z.L. Informação on-line: jornalista ou produtor de conteúdos. Contracampo, UFF, n.6, 2002. pp.137-151, BARBOSA, M. História cultural da imprensa. Brasil – 1900-2000. Rio de Janeiro: Ed. Mauad X, 2007. BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, n.11. Brasília, maio agosto de 2013, pp. 89-117. BAUMAN, Z. Comunidade. A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

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PARTE III

IMAGENS DISSIDENTES

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

ATRAVESSAMENTOS DA COLONIALIDADE DE GÊNERO NOS BLOCKBUSTERS DE SUPER-HERÓIS Letícia Moreira de Oliveira

Estamos nos movendo em um tempo de encruzilhadas, de vermos umas às outras na diferença colonial construindo uma nova sujeita de uma nova geopolítica feminista de saber e amar. María Lugones, 1944-2020

Quando a filósofa María Lugones reivindica tomar a categoria “Gênero” como ficção ocidental moderna - uma narrativa que organiza e hierarquiza os sujeitos colonizados e racializados, sob a égide de uma matriz de pensamento travestido de racionalidade universal, - abrem-se fissuras nos modos como interpretamos e reproduzimos os regimes de imagens e visualidades que (re)elaboram corpos e suas formas de existência. A maneira como performamos os gêneros está intimamente atrelada àquilo que vemos e compreendemos como “homem”, “mulher” e quaisquer dissidências. Gênero, portanto, se constitui na intersecção dos sujeitos históricos com os repertórios visuais, simbólicos e discursivos das narrativas que engendraram imaginários e subjetividades no curso dos séculos. A “Colonialidade de Gênero” delineada por Lugones (2020) estabelece o caráter duplamente constitutivo e constituído desta categoria naquilo que ela denomina “sistema moderno/colonial de gênero”, ao qual se atrela a narrativização da história sob os olhos do ocidente, emprestando a expressão de Chandra Mohanty (2008). Investigando mitologias e religiões dos diversos cantos e contextos do mundo, Joseph Campbell (2007), em sua clássica teorização sobre o monomito - ou o herói universal - percebe que os mitos conformam as bases dos modelos culturais e subje-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes tivos que organizam as sociedades, oferecendo interpretações, respostas e representações possíveis aos mistérios do(s) universo(s). As mitologias mobilizam símbolos e cosmologias, sendo parte fundamental dos agrupamentos humanos (Campbell, 2007). Múltiplos modos narrativos se encarregam de materializar e preservar as histórias, e, se há um deles que goza de privilégio estético, sensorial e de sedução, é o cinematográfico. É no terreno do simbólico, onde as narrativas fantásticas não apenas avivam a imaginação, como propiciam modelos e inspirações aos públicos, que o cinema de ficção dispõe de vasto material. No cinema, a potência de imaginar outros mundos possíveis ganha uma dimensão de quase literalidade. Estéticas, poéticas, cenários, sons, montagens e efeitos especiais - mecanismos que arquitetam espacialidades e temporalidades, ancoradas também no mundo extradiegético. Corpos que encenam e habitam esses tempos-espaços outros, imprimindo outras existências. Entre afetos e sentimentos, o corpo se insere como matéria e como discurso. Há uma dimensão política da estética expressa nas escolhas das formas e dos conteúdos, tornando-os instâncias indissociáveis. Indagar como esses ethos desvelam concepções, arranjos e modos de performar os gêneros, bem como sua dimensão nas práticas de subjetivação mediadas pela experiência espectatorial, não é inédito nos estudos de cinema. Submetidas a uma crítica feminista radical sustentada nas perspectivas e práxis decoloniais, fica patente como, no empenho de historicizar as experiências de representação, as Teorias Feministas do Cinema1 não dão conta de abarcar plenamente a dimensão da colonialidade constitutiva do “gênero”. Embora sejam inegáveis as contribuições aos estudos das imagens em movimento, elaboradas pelas distintas vertentes deste campo multidisciplinar, é preciso ir além da interseccionalidade e, como propõe María Lugones (2007; 2020), compreender as organizações que atravessam os sujeitos - raça, a classe e a sexualidade, por exemplo - como produtos e produtoras da racionalidade moderna binária, e “analisar como essas categorias juntas, trabalhando em redes, são ao mesmo tempo causa e efeito d(n)a criação dos conceitos umas das outras” (Gomes, 2018, p. 71). A crítica de Lugones é radical não apenas porque convida a pensar as opressões entrelaçadas, mas por estimular uma postura epistemológica que localize os sujeitos não só como vítimas da violência, mas como agentes protagonistas do projeto feminista decolonial. O que se esboça aqui é justamente uma proposta ensaística de tecer leituras decoloniais sobre como o cinema blockbuster de super-heróis se articula à noção de sistema colonial de gênero, tecida por María Lugones. Mais do que determinar rupturas ou sustentações da colonialidade, pensar em termos de “negociações” parece mais profícuo. Dentre os recentes lançamentos do Universo Cinematográfico da Mar1 Reconhecendo a heterogeneidade e a transdisciplinaridade intrínsecas a este campo de estudos, o que aqui denominamos “teorias feministas de cinema” é o conjunto de reflexões que têm em comum o interesse pelo estudo dos papeis dos sujeitos sexuados, nas múltiplas esferas do audiovisual. Um interessante panorama recente sobre esse campo de estudos encontra-se no livro Mulheres de Cinema, organizado por Karla Holanda (2019) e publicado pela Editora Numa.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes vel (UCM)2, dois projetos repercutiram positivamente nas leituras críticas e nas estratégias de produção, por seu aparente apelo à representatividade racial e de gênero. Pantera Negra (2018, dir. Ryan Coogler) e Capitã Marvel (2019, dir Anna Boden e Ryan Fleck) são filmes de origem3 de personagens já conhecidos nos quadrinhos. O primeiro apresenta o super-herói africano e rei da nação fictícia mais desenvolvida do mundo diegético da Marvel, ao passo que o segundo retrata a heroína mais poderosa da franquia. Sem pretender esgotar uma análise dos filmes, o propósito aqui é abrir horizontes para perspectivas pluriversais nos estudos feministas do cinema, especialmente no que tange às “super humanidades” e “sobre humanidades” que habitam os imaginários das figuras heróicas. Em uma nação africana, oculta sob um manto-holograma de densas florestas, uma utopia afrocentrada se revela, protegida pelo poder da deusa Pantera. Wakanda figura como lócus central de uma ficção científica que entrelaça imaginários tradicionais de África com especulações afrofuturistas. A trama de Pantera Negra se tece em premissas de equidade e coletividade, podendo ser lida como símbolo de um passado não colonizado para um futuro-potência afrocentrado. A produção trouxe bons frutos para o UCM que, no ano seguinte, lança seu primeiro longa-metragem protagonizado por uma heroína4. Em Capitã Marvel, o que move o enredo é uma busca interior, a autodefinição - recuperar o passado para compreender o presente e se libertar das identidades violentamente impostas. Os discursos mais expoentes na recepção desses filmes se referem à representação das minorias5, uma vez que colocam, como protagonistas, heroínas femininas e um herói negro africano, algo não recorrente nesse cinema. Tal se evidencia, inclusive, nas estratégias publicitárias e mercadológicas de divulgação. Se isso significa que os públicos estão mais exigentes ou que Hollywood mercantilizou as outridades, demanda uma investigação ampla e interdisciplinar. A questão é que, embora novos temas e imagens tenham preenchido as telas, a base patriarcal, heteronormativa, cisgênera e binarista parece permanecer hegemônica na constituição dos sujeitos/personagens, ao passo que o sistema-mundo capitalista e suas instituições (exércitos, militarismos, ciência, Estados-nação) ainda conformam o pano de fundo para as sociedades diegéticas e suas organizações. 2 Franquia de mídia criada pela Marvel Studios, em 2008, que parte dos quadrinhos da Marvel Comics para criar um universo compartilhado dentro de uma série de obras de super-heróis (seriados de TV, curtas e longas metragens) na qual elementos das histórias, como personagens, acontecimentos, elenco e locações, se cruzam entre as diferentes produções. 3 O modelo de produção horizontal dos universos compartilhados, nas franquias citadas, permite que os elementos narrativos e temáticos de todas as histórias, como as personagens, eventos, localidades, transitem pelos múltiplos produtos. As “histórias de origem” correspondem às obras dedicadas à apresentação detalhada de um personagem específico, geralmente retratando a sua jornada enquanto herói e a sua relação com o universo mais amplos. 4 Capitã Marvel é o primeiro longa com protagonismo dentro do Universo Cinematográfico da Marvel, especificamente. Mulher-Maravilha (2017, dir. Patty Jenkins), do Universo Estendido DC (DC Comics) inaugurou um novo marco no gênero, sendo a primeira super produção com uma heroína, em muitos anos. 5 Sem um extenso rigor metodológico, mas recorrendo a uma breve investigação de críticas, textos de espectadores, anúncios publicitários, manchetes de jornal, entre outros relatos em rede, é patente a predominância de termos como “representatividade”, “empoderamento”, “minorias” ou “pluralidade representativa”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O argumento proposto neste capítulo encadeia-se em dois momentos, nos quais tento reconstruir o caminho que me conduz a uma inquietação decolonial com as representações mainstream da categoria “gênero” na cultura pop. O primeiro deles, de discussão teórica, retoma as inquietações que levaram à formação do pensamento decolonial e sua contribuição na exposição do entrelaçamento das violências no projeto moderno/ocidental, junto aos regimes visuais que constituem uma “colonialidade do ver”, focalizando o sistema de gênero colonial, conforme elaborado por María Lugones, cuja imposição violenta reorganizou cosmologias e destruiu modos de vida. Ao mesmo tempo, aproximo tais debates atrelados aos estudos do cinema, com intuito de identificar aberturas ao descentramento dos modos de representação e vivência dos corpos nos mundos e através dos tempos. Defendendo o entendimento que a colonialidade atravessa também as estéticas e as linguagens, exponho brevemente os conceitos em busca de, no segundo momento, tecer proposições possíveis sobre os atravessamentos da colonialidade do gênero no Universo Cinematográfico da Marvel. Este é, portanto, ensaio essencialmente exploratório.

Gênero, Colonialidade e Imagem - conceituações para o estudo dos super-heróis Revisitar as lembranças dos super-heróis na infância muito provavelmente nos aporta uma série de imagens de (muitos) homens e (poucas) mulheres, vestindo capas e uniformes personalizados, quase sempre figuras brancas, que carregam nos corpos e nas condutas, marcas do ideal ocidental de moralidade e poder. Sejam terráqueos ou nativos de galáxias distantes, povos alienígenas, deuses de outros mundos ou realidades paralelas, há, historicamente, a predominância do herói como um sujeito masculino, cisheterossexual, sem deficiência, esguio e forte. Humanos ou não-humanos, são quase sempre corpos normalizados e assimiláveis à lógica do sistema binário: homem ou mulher, macho ou fêmea. Os heróis da cultura pop ganharam popularidade ainda na primeira metade do século passado, nas histórias em quadrinhos, antes de serem adaptados a outras mídias, e alcançam hoje o status de mercadorias globais multimilionárias. Os dois maiores conglomerados no ramo, a DC Comics e a Marvel Comics, surgem, respectivamente, em 1934 e 1939, ambos estadunidenses. No cinema, avanços tecnológicos somados à variedade material e de linguagem à disposição, possibilitaram a consolidação de um gênero cada vez mais potente em termos de mercado, alcance e de formação de públicos fiéis (como as comunidades de fãs): os blockbusters de super-heróis6, que predominam nas bilheterias no Brasil e no mundo7. Carolyn Cocca, dedicada ao estudo das super-heroínas no universo dos comics, 6 Em Blockbuster Performances, Daniel Smith-Rowsey (2018, p. 71) demonstra que tem se convencionado, entre jornalistas como por acadêmicos, a sustentação de que os blockbusters de super-heróis dominam o cinema mainstream nos EUA e em quase todo o mundo (em termos de audiência, circulação, sucesso). 7 Dado revelado em levantamentos recentes sobre o gênero, disponível em Blockbuster Performances, por Smith-Rosey (2018) e Avengers, Assemble!, por Terence McSweeney (2018).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes observa como sua representatividade numérica têm crescido nos últimos anos, devido, sobretudo, às pressões populares por maior diversidade, embora prevaleça ainda um arquétipo feminino: brancas, corpo-padrão, heterossexuais e de classe média a alta (Cocca, 2016, p. 15). O renascimento do gênero na cultura pop, desde o início dos anos 2000, aponta para uma ressignificação do seu estado nos imaginários e anseios dos públicos. Segundo McSweeney (2018), tal fenômeno foi crucial para a indústria cinematográfica mundial e se deve não apenas a fatores econômicos, mas a demandas por representações de heroísmo e de defesa da justiça. Isso se revela na relação entre a diversidade racial e de gênero, em Hollywood, ter se tornado o cerne de uma série de mobilizações na última década, dentro e fora da indústria, e os lançamentos de filmes como Mulher Maravilha (2017), Pantera Negra (2018), Capitã Marvel (2019), Fênix Negra (2019), Arlequina e sua emancipação fantabulosa (2020), Viúva Negra (2020), obras que tensionam o cartel do protagonismo masculino. Embora tal tensionamento não se dê, nos mesmos moldes, ao privilégio da branquitude e do padrão heteronormativo nestes universos diegéticos, é possível entrever nesses projetos negociações com tais demandas em prol da diversidade (nas telas e fora delas) e a abertura para outros sujeitos d(n)as imagens, outros modos de visualidades, a contestação de estereótipos, o que pode ser vantajoso especialmente considerando o apelo afetivo que as personagens da cultura pop suscitam. O que se põe como questionamento é se estas aberturas de fato ressignificam as estruturas legitimadoras das opressões ou se apenas rearranjam as peças sem alterar as regras do jogo, visto que a apropriação neoliberal das identidades muitas vezes opera na episteme capitalista, transformando a visibilidade em produto. McSweeney (2018, p. 16) se centra no contexto estadunidense e seu argumento tenta demonstrar como o clima da guerra ao terror que sucedeu o 11 de setembro ressignificou demandas dos públicos. Sustenta ainda que esse gênero de heróis “deve ser considerado como articulação e manifestação das mitologias culturais contemporâneas”, entendendo “mitologias” no sentido barthesiano de discursos e narrativas que simbolizam visões de mundo e percepções históricas de povos ou culturas. Assim, a caracterização dos heróis e heroínas está associada ao contexto sociocultural que os concebe. O lugar do cinema na experiência social, portanto, transcende o entretenimento e se alarga à formação dos imaginários sociais e seus registros. Ele surge em consonância histórica (final do séc. XIX) com o estabelecimento da primeira modernidade e o apogeu do projeto imperialista colonial das “civilizações” europeias (Shohat e Stam, 2006), que, para além da dominação dos territórios e corpos dos povos colonizados, se impõe na produção intelectual, estética e simbólica. O legado eurocêntrico se alarga, portanto, às formações culturais e linguísticas que perpassam as subjetividades contemporâneas e “formam parte das gramáticas transculturais e dos regimes visuais racializantes produzidos sob a “invenção” do “Novo Mundo” (Barriendos, 2011, p. 15). A crítica ao eurocentrismo epistêmico é fundante para o projeto dos estudos deco-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes loniais, que têm como matriz analítica principal a “colonialidade”, conceito elaborado pelo peruano Aníbal Quijano (apud Lugones, 2007) para nomear o lado escuro/oculto da modernidade, as estruturas resistentes ao fim do colonialismo enquanto modelo político e de organização do mundo que se sustentou na instauração do medo, do servilismo, da inferioridade e imposição violenta da episteme única (a razão ocidental). A colonialidade é, portanto, um padrão de poder. Na esteira do pós-colonialismo da América Latina, os decoloniais, ou descoloniais8, inserem um tensionamento às categorias analíticas hegemônicas junto à proposição de modelos conceituais que contemplem os diversos saberes, resgatando cosmologias e categorias das formas de vida que foram silenciadas e subalternizadas. “Decolonialidade” é o conceito desenvolvido por Maldonado-Torres (2006, apud Ballestrin, 2013) como complemento à categoria de “descolonização”. Apoiada na noção de “Colonialidade do Poder”, empregada por Quijano para expressar a invenção da “raça” como legitimadora da exploração colonial, Lugones (2007; 2020) observa que o gênero se organiza dentro do sistema moderno/colonial sob traços específicos, como o dimorfismo sexual biológico e a organização patriarcal e heterossexual das relações sociais. Embora considere o potencial crítico das discussões propostas por Quijano e se apoie em seu conceito, Lugones (2007) percebe também que o autor comete o erro de supor que o gênero, bem como as sexualidades, seriam forçosamente elementos estruturadores de todas as sociedades, aceitando assim as premissas patriarcais e heterossexuais ocidentais, e empreende uma crítica às suas formulações, inserindo estas categorias como parte da colonialidade do poder. É nesse caminho que a autora formula o Sistema Moderno/Colonial de Gênero, o lado iluminado da modernidade, defendendo que gênero e raça se fundem nas operações violentas do poder colonial. Segundo ela, “o trabalho intelectual e prático transnacional que ignora a imbricação da colonialidade do poder e o sistema moderno/colonial de gênero também afirma esse sistema global de poder.” (Lugones, 2007, p. 188). Revisitando os estudos feministas do cinema, raros projetos acolhem a condição colonial em suas críticas ou articulam contundentemente os atravessamentos étnico-raciais e geoculturais, por exemplo. Um trabalho expoente nesse sentido é desenvolvido por bell hooks (2019), que demonstra como o “patriarcado supremacista branco capitalista” estabeleceu uma hegemonia nas imagens popularizadas na cultura de massas. O que predomina neste campo é o emprego do gênero como matriz analítica. As interseccionalidades, quando articuladas, não tomam em conta o entrelaçamento originário das categorias, e o fato de que o sistema de gênero não apenas hierarquiza e inferioriza corpos gendrados, mas é basilar na estruturação do próprio sistema moderno capitalista. Ou seja, a consolidação da diferenciação sexual 8 Os termos “decolonialidade” e “descolonialidade” encontram-se em disputa nos debates. Segundo Ballestrin (2013), a pesquisadora Catherine Walsh reivindica o uso de “decolonial” como marcador de uma ruptura do com o “descolonial” e um afastamento à noção de descolonização. Há, por sua vez, pesquisadores que reiteram que “decolonialidade” reforça a matriz anglófona (decoloniality) e defendem a utilização do “s” para localizar o conceito da língua espanhola.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e seus reflexos nas artes e no cinema se alinha a um projeto colonial capitalista e aos regimes visuais transmodernos que ele estabelece, e a “colonialidade do ver” (Barriendos, 2011) é, juntamente com a colonialidade do poder, do saber e do ser, constitutiva da modernidade. O que assinala o lado iluminado/visível é o dimorfismo sexual e o patriarcado. Já no lado escuro/invisível, habitam os matriarcados, as sexualidades fluidas, o “terceiro gênero”: identidades que transitam entre ou não se enquadram em “homens” e “mulheres” (Lugones, 2020). A elaboração da noção de gênero a partir da diferença sexual tem como corolário a concepção de “mulher” em oposição a “homem” e toda ordem de hierarquizações e violências subsequentes, como a divisão sexual do trabalho, fixação das mulheres na esfera privada/domesticidade, mitos de fragilidade, impotência e uma série assignação de valores, normas e comportamentos. Para Lugones (apud Dias),

A colonialidade se manifesta nas ideias de teóricas feministas hegemônicas, pois são ideias eurocentradas e universalidades de emancipação da mulher, sem considerar as diferenças essenciais que existem entre as mulheres brancas, as mulheres negras, latinas, índias e suas opressões. Sendo assim, essas teorias (...) são fontes de dominação e propagação da colonialidade (...) e perpetuam a divisão racial do trabalho, com consequências para a construção identitária e para as lutas por emancipação. (Dias, 2014, p. 4).

Este sistema de gênero se limita às categorias “homem” e “mulher”, excluindo pessoas não binárias, transgêneros, intergêneros, entre outros, fixando uma ideia de “normalidade” que torna alguns corpos inassimiláveis. Os trabalhos de Paula Gunn Allen e de Oyèrónkẹ Oyěwùmí, sobre sociedades originárias das Américas e da África, são fundamentais nas formulações de Lugones e apontam para uma experiência prémoderna que, em uma leitura contemporânea, se desvela subversiva justamente por aceitar e reconhecer outros gêneros e sexualidades. O conceito de “terceiro gênero”, acima descrito, é um emblema para “outros”, ao desprendimento das binaridades sexuais e gendradas (Lugones, 2020, p. 71). Para explicitar a relação proposta entre os regimes de imagem da cultura de massas (representada aqui pelo cinema blockbuster) e os engendramentos da colonialidade nas sociedades midiatizadas, é preciso recuperar a noção de colonialidade do ver, proposta por Barriendos (2011), que se forja no encontro colonial e a invenção do “Novo Mundo”.

A colonialidade do ver deve ser entendida como uma maquinaria heterárquica de poder que se expressa ao longo de todo o capitalismo (...) e consiste em uma série de sobreposições, derivações e recombinações heterárquicas (...). É necessário que o problema da invenção do “Novo Mundo” seja recolocado, tomando como ponto de referência os diferentes regimes de visualidade, as retóricas visuais sobre o canibalismo das índias e (...) a racialização

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes epistêmica da alteridade, pois, é a partir desses elementos que se articulam as matrizes binárias de gênero, classe, sexo, raça, etc, e se reproduzem nas estruturas biopolíticas do patriarcado, do capitalismo, do multiculturalismo, da interculturalidade, da globalização. (Barriendos, 2015, p. 16)

É na violência desse encontro que as outridades são ressignificadas e emergem as imagens do bom e do mau selvagem, do exótico mundo “descoberto”, do canibalismo e a organização ontológica dos corpos em humanos e não-humanos. É também a conjuntura em que a branquitude se estabelece como paradigma dominante - o “Eu” que contrapõe o “Outro” - ocultando o próprio caráter fictício. O exotismo do encontro se manifesta, a título de exemplificação, no cinema etnográfico discutido por Shohat e Stam (2006), que desbrava os corpos dos nativos, fagocitando as outridades e expelindo sentidos soberanos sobre os povos e sobre os regimes de olhar - os olhos do ocidente. Nas artes, as imagens estabelecem códigos normativos de performatividade, sexualidade e comportamentos. Os corpos se convertem, portanto, em espaços manifestos de sentido e de significação para as identidades, bem como das éticas e estéticas das existências. Os primórdios da crítica feminista do cinema, nos anos 1970, é marcado pela problematização das construções dos papéis sexuais e os conteúdos das suas representações, inserindo já aí o corpo como signo. Laura Mulvey (1975), em seu trabalho pioneiro, inaugura uma crítica aos códigos patriarcais e sexistas que estruturam o cinema hollywoodiano e aos regimes de olhar e da posição espectatorial que estes códigos estabelecem. Tal paradigma feminista aporta contribuições seminais para os estudos do cinema como um todo e desenrola-se como uma intervenção multidisciplinar. Em Pantera Negra e Capitã Marvel, as personagens, em suas funções narrativas e performances de gênero, por exemplo, tensionam certos padrões hegemônicos inerentes aos arranjos que compreendem a colonialidade, como a lógica da domesticidade e da fragilidade, ao passo em que também negociam com estruturas moderno-coloniais, como a noção de poder atrelada à uma lógica belicista, a manutenção do padrão heteronormativo, da família nuclear, a superioridade racional e o tecnológica. Sujeitos racializados, marcados pelas normatizações dicotômicas, são representados com matizes que negociam brechas com as representações hegemônicas da indústria cultural, como, por exemplo, os estereótipos, silenciamentos e invisibilidades que predominam nas imagens de mulheres e homens negros, amplamente discutidos por bell hooks (2019). Enquanto em Capitã Marvel a protagonista é uma heroína, em Pantera Negra, mesmo protagonizado por um herói masculino, as personagens femininas (todas mulheres negras) desempenham uma centralidade narrativa incomum nesse contexto historicamente masculinista, sendo determinantes na jornada diegética do rei de Wakanda. A figura do herói põe em jogo um embate simbólico com a noção de humanidade. Afinal, quais ontologias estabelecem esse status que supera a fragilidade humana

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e desloca o sujeito a um lugar de poder? Como a encenação e as performances conformam esses personagens emblemáticos, multirraciais e interplanetários?

Negociações estéticas e narrativas - Pensando o gênero na lógica do heroísmo Sob a orquestração do espetáculo visual, com os insights imaginativos, efeitos especiais, espaços fictícios e encenações épicas, subscreve-se uma cosmovisão fantástica de mundos que antes só existiam nos olhos e mentes dos leitores e criadores das histórias em quadrinhos. Na tela do cinema, essa representação assume uma dimensão criativa pulsante, que permite, inclusive, a invenção de sujeitos inteiramente a partir do CGI9, redimensionando a noção de construção subjetiva. Colocados os fundamentos conceituais que envolvem a discussão da colonialidade na representação do cinema, nas seções anteriores, buscarei explicitar o porquê de propor a ideia de “negociações” como condutora para uma leitura decolonial do Universo Cinematográfico da Marvel. Os sistemas de imagens ou motifs que possibilitam entrever os diálogos com as conceituações de María Lugones sobre o estatuto do gênero, nos dois filmes comentados, não apenas se referem aos protagonismos, mas, em grande parte, à elaboração das mitologias utópicas e heterotópicas, espaços imaginados pela diegese, que suscitam outras lógicas de organização. É partindo destas coerências e das articulações entre humanidades e alteridades que pensamos os sistemas de gênero em associação com as outras esferas sociais, as relações comunitárias e as lógicas moderno-coloniais, e ainda as masculinidades e feminilidades nas performances da violência. Enquanto Pantera Negra elabora uma utopia afrofuturista que convoca questões como tradição, ancestralidade, memória coletiva, supremacia tecnológica e colonização, Capitã Marvel recorre a uma estratégia oposta e adota o estilo nostalgia, cuja trama se desenvolve na Los Angeles de 1995 e é movida por uma busca de autoconhecimento e auto definição a partir da memória e do retorno às origens. O recém coroado rei T’Challa assume o trono de Wakanda, a nação mais desenvolvida do mundo, social e tecnologicamente, cuja potência se deve à posse de um metal raro e precioso e das riquezas naturais. No período das violentas intrusões coloniais na África e nas Américas, Wakanda se isola do resto do mundo, vivendo sob o disfarce de tribos subdesenvolvidas, como aquelas imagens etnográficas que povoam o imaginário ocidental de “África”. “Pantera Negra” é o título atribuído ao líder wakandiano, cujos poderes advêm da deusa Pantera, por meio da “flor em formato de coração”. Na jornada diegética do herói, as personagens Shuri (Princesa e chefe do setor tecnológico do país), a espiã-ativista Nakia e a General-chefe Okoye, exercem funções fundamentais. Wakanda pode ser lida como símbolo de um passado não colonizado, para um futuro potência afrocentrado. Não apenas o filme é protagonizado 9 CGI é a sigla inglesa para “Computer-generated imagery”, ou Imagens geradas pelo computador. Essa é uma aplicação de computação gráfica 3D para a criação de imagens, amplamente utilizada nos cinemas de alto orçamento, especialmente nos gêneros de fantasia, ficção-científica e super-heróis.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes por um herói negro, como a maior parte da equipe técnica, como os atores e os diretores, são afro-americanos. Em Capitã Marvel, a jornada se inicia no Planeta Hala, capital do Império Kree, onde Vers, que acreditava ser uma guerreira da raça alienígena Kree, guarda consigo uma força poderosa. Ela só conhece sua verdadeira identidade - Carol Danvers, piloto de testes da força aérea estadunidense que adquire poderes em uma explosão de radiação alienígena, - quando aporta no planeta C-53 (Terra). Danvers não recorda seu passado e apenas vê flashs, sem saber se são reais ou fantasia. Antes de se descobrir, Vers é manipulada e desacreditada, especialmente por seu tutor kree YonRogg. É Maria Rambeau, companheira de Carol na força aérea, quem a recorda de sua humanidade e identidade. A força da autodescoberta a transforma na heroína mais poderosa do Universo Marvel. Tanto T’Challa quanto Carol D. são, originalmente, seres humanos, cujos poderes advém de fontes externas e cujas identidades estão fortemente atreladas às memórias, coletivas e individuais, e aos seus territórios. No cerne das discussões de Lugones (2007) está a memória colonial da diferenciação sexual e a separação dos povos entre “humanos” e “não-humanos”. Nos termos metafísicos dos feminismos humanistas, aponta Karla Bessa (2015, p. 72), “há o entendimento de que o gênero é um atributo universal, uma substância da pessoa e que se conforma ao núcleo binário da diferença sexual (macho/fêmea)”. Segundo Lugones (2007), “homem e mulher colonizada” não existe, o que há são “machos e fêmeas animalizadas”, já que “mulher” e “homem” são referentes aos povos dotados da racionalidade burguesa ocidental, que performam feminilidades, masculinidades e comportamentos “civilizados”, um status a ser atingido a partir da renúncia de si e a assimilação aos códigos ocidentais, heterossexuais e normativos. Entendendo, portanto, que o humanismo está na base da discussão sobre as categorias de gênero, bem como na ontologia criativa do “super-herói”, percebe-se, nestes projetos, tensionamentos a isto. Um primeiro ponto notável se refere à construção dos sujeitos wakandianos, que não foram vítimas diretas do processo colonial, e dos povos alienígenas (Krees e Skrulls) retratados em Capitã Marvel. A dicotomia sexual é evidente – não vemos sujeitos dissidentes, “terceiros gêneros” e a família nuclear é representada como modelo familiar por excelência. O padrão heteronormativo, portanto, rege estas elaborações. É nítido também uma negociação entre um “imperativo da perfeição” direcionado aos corpos, que são sempre magros, esguios e cujo padrão de beleza é condizente àquele das imagens hegemônicas dos produtos culturais, com outros tipos de beleza e feminilidades, expressos especialmente nas mulheres africanas, com cabeça raspada, cabelos afro, por exemplo, ou ainda com o estilo despojado e pouco simpático de Carol Danvers. Esses corpos de luta são, ao mesmo tempo, corpos que lutam, visto que as personagens femininas encenam batalhas épicas e ocupam posições militares nos exércitos nacionais. Embora Wakanda se baseie em premissas de igualdade e nos valores comunais,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes mostrando mulheres e homens em posição de (relativa) equidade, abraçando diversidades étnicas e culturais nas vestimentas e ritos africanos, e, principalmente, colocando em espaço de visibilidade mulheres e homens negros de pele escura, em recusa às estratégias de branqueamento que hooks (2019) observa como estruturantes da cultura de massas, há ainda a manutenção das relações patriarcais – seja na representação do modelo paternalista de família ou nas relações afetivas (monogâmicas e heterossexuais). O risco é supor que as coisas são simplesmente determinadas, sem problematizações. A representação das mulheres negras nos arcos narrativos principais ganha destaque não apenas em Pantera Negra. Também em Capitã Marvel, a personagem Maria Rambeau, piloto da força aérea e amiga da protagonista, é uma figura de suma importância para o desenrolar da trama do filme e seus arcos narrativos. Nas duas obras há, ainda, um forte cruzamento entre a organização dos espaços laborais, a divisão do trabalho e os papéis de gênero. É patente o esforço de inserir as personagens femininas nas funções que poderiam popularmente serem tomadas como masculinas (na racionalidade capitalista) - a chefia do setor tecnológico (Shuri) e do exército da guarda-real (Okoye) de Wakanda, oficiais da força aérea (Maria e Carol), entre outros. O que não é suficiente, por sua vez, para desestabilizar as bases do sistema que cria e mantém as opressões e as hierarquias, uma vez que as organizações modernas – o militarismo, a esfera política estatal, a dominação territorial e expulsão dos povos originários, que são fundantes do projeto ocidental do sistema mundo capitalista. Alguns elementos como a sexualidade, o trabalho, as funções familiares e as posições sociais são aspectos fundamentais nas nossas trajetórias pessoais, pois estão intimamente ligados às leituras morais sobre o feminino, bem como às imagens e expectativas que as mulheres têm sobre si mesmas. E produtos culturais midiáticos constituem um ethos fundamental para as práticas de subjetivação, como buscou-se evidenciar. Nas histórias em quadrinhos mundialmente populares, “tornar visíveis” culturas, sujeitos, sem estereótipos e estigmas, é também um modo de reconhecer essas existências. É por isso que:

Na medida em que grupos de mulheres são negados, para que se mantenha um feminismo universal, esse feminismo, que se pretende universal é quem dita as possibilidades, a possibilidade de tudo. Dessa forma, lutas específicas desses grupos que não entram no coletivo universal se perdem e ficam do outro lado da linha, o colonial, onde não podem se tornar visíveis, pois se mantém no local do inexistente. (Dias, 2014, p. 3).

É nesse caminho que pensar em termos das brechas negociadas pode ser mais produtivo. Percebe-se como as noções de feminilidades e masculinidades são também retrabalhadas, por exemplo, quando as relações de afeto e companheirismo entre homens e mulheres se baseiam mais na colaboração e na evolução mútua do que na submissão romântica, que predominou por longos anos na representação fe-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes minina nos quadrinhos, como observa Carolyn Cocca (2015). Não é um homem ou um par romântico quem liberta a Capitã Marvel em sua prisão subjetiva. Ela liberta a si mesma (lógica neoliberal), mas não o faz sem o apoio e amparo solidário da amiga Maria Rambeau. Em Wakanda, quando o trono da Nação está em perigo e o rei T’Challa está (temporariamente) morto, a união e o cuidado das guerreiras com a matriarca da nação retratam nas imagens um sentido de sororidade, mesmo com o objetivo de proteção à pátria. Em Wakanda ou Los Angeles, podemos tecer leituras de espacialidades latentes, heterotopias possíveis para um devir coletivo, e não só no território e na cultura, mas o próprio espaço-corpo, o Eu ressignificado, também é lugar de luta e (auto)afirmação.

Considerações finais – Há fissuras possíveis? Esses filmes tangenciam disputas e debates que são constitutivos de lutas políticas, como os movimentos feministas. Em lugar de demarcar um estatuto ontológico aos enunciados audiovisuais, compreender as negociações com as estruturas vigentes se mostra mais interessante para uma exploração inicial, em especial porque as inovações, sejam elas temáticas, estéticas ou formais, estão enformadas nos moldes tradicionais dos espetáculos do cinema imperialista hollywoodiano, com enredos que correspondem às clássicas organizações de uma narrativa de heróis (traumas, obstáculos, batalhas, amor, superação do obstáculo, honra e glória, entre outros) e que, ainda, são parte de um universo que as transcendem (o UCM). A título de breve conclusão, tanto Pantera Negra como Capitã Marvel têm como central nos seus enredos as disputas territoriais, dominação de povos, colonização e diásporas. Embora esses temas se articulem diretamente aos debates decoloniais, busquei direcionar a discussão aos atravessamentos da noção de colonialidade de gênero no contexto destes blockbusters. É inegável que as análises e intervenções feministas nos estudos e na produção do cinema inserem contribuições basilares para a transformação das imagens ao longo dos séculos. Penso, porém, que uma mirada decolonial ressignifica as matrizes epistemológicas, artísticas e estéticas sob as quais construímos filmes, imagens e reflexões. É preciso questionar, primeiramente, o que os estudos feministas do cinema (cada perspectiva, mais do que o campo em si) entendem por “gênero”, no fim das contas. Se essa categoria não é apropriada de modo entrelaçado com a raça, a classe e as sexualidades, então continuamos operando no paradigma que entende as intersecções das opressões, mas não as percebe como conjuntamente estruturadas e estruturantes. Na episteme decolonial, não é possível hierarquizar os atravessamentos, sendo as categorias construtos coloniais tautócronos. O protagonismo e a representação das diversidades nos produtos de amplo alcance são socialmente relevantes, mas devemos atentar sobre quais enunciados ide-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ológicos esta representatividade se articula. A retórica neoliberal do empoderamento de si numa perspectiva individualista enfraquece as relações comunitárias e de colaboração e desenvolvimento mútuos. E, como aponta María Lugones, “comunidades, mais que indivíduos, tornam possível o fazer; alguém faz com mais alguém, não em isolamento individualista” (Lugones, 2014, p. 949), e quando falamos de decolonialidade, falamos da desconstrução do sistema mundo que segrega e hierarquiza em prol de um bem viver solidário e acolhedor das diferenças. Referências Bibliográficas BALLESTRIN, L. América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política (online). Brasília, nº 1, 2013. BESSA, K. “Um teto por si mesma”: multidimensões da imagem-som sob uma perspectiva feminista-queer. Revista ArtCultura (Online), v. 17, n. 30, p.67-85, jan-jun, 2015. BARRIENDOS, J. La Colonialidad del Ver: Hacia un nuevo diálogo visual interespistémico. Nómadas (Col.) (Online). N.35, pp. 13-29, out. 2011. CAMPBELL, J. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007. CAPITÃ Marvel. Direção: Anna Boden e Ryan Fleck. Roteiro: Anna Boden; Ryan Fleck; Geneva Robertson-Dworet. Elenco: Brie Larson; Samuel L. Jackson; Annette Bennin, Lashana Lynch e outros. Marvel Studios, 2019. Color: 123 min. COCCA, C. Superwomen: Gender, Power and Representation. New York: Bloomsbury Academic, 2016. DIAS, L. O. O Feminismo Decolonial de María Lugones. Anais ENEPEX – encontro de pesquisa, ensino e extensão. 8o ENEPE UFGD, 5o EPEX UEMS (Online). 2014. HOOKS, b. Olhares Negros: Raça e Representação. São Paulo: Elefante, 2019. LUGONES, M. Colonialidade e Gênero. In: BUARQUE, H. de H (Org.). Pensamento Feminista Hoje: Perspectivas Decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020. ___________ Heterosexualism and the Colonial/Modern Gender System. Hypatia (online) v. 22, n. 1, p. 186-209. 2007.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ___________ Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas (Online) Florianópolis, 22(3), 320, 2014. McSWEENEY, T. Avengers Assemble!: Critical Perspectives on the Marvel Universe. Nova York: Columbia University Press, 2018. MOHANTY, C. T. Bajo los ojos de occidente. Academia feminista y discurso colonial. In: SUARÉZ NAVAZ, L; HERNÁNDEZ, A (ed.) Descolonizando El Feminismo: teorias y prácticas desde los márgenes. Madrid: Editorial Cátedra, 2008. PANTERA Negra. Direção: Ryan Coogler. Produção: Kevin Feig. Roteiro: Jack Kirby, Joe Robert Coole e Stan Lee. Elenco: Chadwick Boseman, Danai Gurira, Michael B. Jordan, Lupita Nyong’o, Andy Serkis, Angela Basset e outros. Marvel Studios, 2018. Color. 134 min. SMITH-ROWSEY, D. Blockbuster Performances. Palgrave Studies in Screen Industries and Performance. Palgrave Macmillan, London, 2018.

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POTÊNCIAS FEMININAS: DIVERSIFICAÇÃO NARRATIVA E DESCONSTRUÇÃO DE ESTEREÓTIPOS NAS PERSONAGENS DO FILME BACURAU Andriza Maria Teodolino de Andrade Talita Iasmin Soares Aquino

Este texto propõe uma discussão sobre o filme Bacurau (2019), de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, a partir das escolhas narrativas no tocante à representação feminina. Para tanto, iniciaremos a argumentação apresentando um panorama histórico da cinematografia estadunidense1, seguida pela brasileira até o filme em questão e, posteriormente, analisaremos as personagens femininas da obra em diálogo com seus arcos narrativos. Nesse percurso, acionamos elementos quantitativos e qualitativos, que corroboram com a nossa defesa de que, quanto à representatividade feminina, o longa diverge em relação ao cinema ocidental. Construindo um discurso contrahegemônico, Bacurau rejeita a incorporação simplista de características planificadas às suas personagens, desenhando contornos diversificados, em que a composição de cada uma delas respeita uma diversidade de espectros, representando-as como seres complexos. Uma vez que se projetam em uma narrativa de autonomia e amplitude temática, as personagens se distanciam do padrão que constitui o universo feminino na grande maioria dos filmes, como discutiremos a seguir.

No mapa do cinema Delinear os espaços preenchidos pelas mulheres na história do cinema é uma tarefa árdua.  Contudo, não é difícil perceber a desigualdade na relação entre homens e mulheres, tanto à frente quanto por trás das câmeras. Assim como em outras esferas da sociedade, prevalece no cinema o domínio masculino. Não nos propomos aqui a esmiuçar as obras, mas antes, oferecer um cenário geral sobre o lugar das mulheres 1  Esse recorte é justificado pela compreensão de que os filmes produzidos nos Estados Unidos alcançaram uma posição de domínio em relação às produções realizadas em outros países. Sendo exibidos em salas de cinema de todo o mundo, tais obras representam forte influência tanto para outros artistas quanto para as culturas de outros povos. 

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes nos filmes: das mocinhas ingênuas do cinema mudo às beldades perigosas do cinema noir, as personagens femininas serviram sempre ao olhar e ao jugo masculino. Como discute Laura Mulvey (1989), as mulheres são inseridas nos filmes hollywoodianos como um objeto que materializa o desejo masculino, tanto dos personagens homens nas tramas, quanto dos espectadores. A autora afirma que o foco erótico voltado às mulheres, como o uso de close ups em partes de seus corpos, acaba por resumi-las a isso, dificultando seu desenvolvimento narrativo. Ann Kaplan (1995) analisa obras estadunidenses e avalia que por meio de mecanismos de representação (vitimização, fetichização, assassinato em nome da virtude), o patriarcado opera no cinema, reduzindo o imaginário cinematográfico feminino a estereótipos e visadas monótonas. Nos Estados Unidos, o policiamento das produções (como a implementação do Código de Produção de Cinema2, em 1934) e o desinteresse dos estúdios, ajudaram a manter a monotonia até os anos 1950. Kaplan defende que a partir desse período surgem filmes mais interessantes, que mostram “antigos códigos se desmoronando, prontos para ruir” (1995, p. 19). Não obstante, Guacira Lopes Louro comenta esse período e considera o cenário político, sinalizando a dificuldade de se romper definitivamente com as normativas patriarcais: Num tempo de pós-guerra, parecia necessário, de algum modo, deter ou reverter o avanço feminino que fora possibilitado pelo longo conflito. O cinema ajudaria a promover a “volta ao lar” e a recomposição da estrutura familiar tradicional. Roteiros de inúmeras comédias, romances ou dramas passavam a tratar daquele que se colocava como o novo dilema feminino: a escolha entre a família (casamento e filhos) ou a carreira profissional. Um happy end recompensava as mulheres que escolhiam certo, isto é, o lar, enquanto que as outras, muitas vezes representadas como “masculinizadas”, duras e amargas, terminavam sós e infelizes. (Louro, 2008, p. 83, grifos da autora)

Avançando para os anos de 1960, a profusão de movimentos de contracultura, incluindo os movimentos feministas e lgbts, fez afrouxar as normas morais em torno da sexualidade feminina, e consequentemente, sua representação no cinema. Essa transformação se estendeu pela década seguinte e, segundo Kaplan (1995), uma das reações da indústria, agora com seus mecanismos funcionando mal, foi a intensa veiculação, sem precedentes, de filmes que retratavam cenas de estupro. A autora argumenta que a hostilidade patriarcal passou a se expressar pela ideia de que “as mulheres anseiam o tempo todo por sexo” (p. 23). Essa sexualização mais explícita e violenta vai diminuindo nos filmes de grande circulação a partir da ascensão da indústria pornográfica. Na década de 80, os “chick flicks” (gíria para designar filmes que abordavam o 2 Conjunto de regras para os estúdios dos Estados Unidos produzirem seus filmes. Substituído em 1968 pela atual classificação indicativa, dividia-se entre “não pode” (por exemplo: a proibição de “cenas de parto – de facto ou insinuada”) e “tome cuidado” (“venda de mulheres ou venda de sua virtude por uma mulher”, “consumação do casamento”, “homem e mulher juntos na cama”).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes amor e o romance, melodramas conhecidos como “filme de mulher”) ganham espaço e engrossam o caldo de filmes com protagonistas femininas, mas sem avançar significativamente no teor das narrativas. Cresce a diversidade de papéis e a inserção em gêneros cinematográficos mais voltados para o público masculino, como ação e aventura. As personagens passam a ser mais relevantes à narrativa e há maior preocupação com a diversidade de raças, faixa etária e tipo físico3.  Nos anos 2000, o cenário permanece desigual. Segundo a pesquisa Gender Inequality in Film Infographic, realizada pela New York Film Academy4 (2018), dos 900 filmes produzidos entre 2007 e 2016, apenas 30,5% dos personagens que possuíam falas eram mulheres, e apenas 12% dos filmes apresentavam elenco balanceado entre personagens masculinos e femininos. A pesquisa apontou também que 25,9% das personagens femininas utilizavam roupas que deixavam o corpo à mostra, em oposição à apenas 5,7% dos personagens homens; da mesma forma, mais de um quarto das personagens femininas apareciam parcialmente nuas, enquanto o  mesmo ocorreu com menos de dez por cento dos personagens masculinos.  Em uma perspectiva mais global, outro estudo5, realizado pelo Geena Davis Institute on Gender in Media, juntamente com a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres e a Fundação Rockefeller, analisou produções exibidas entre 2010 e 2013, nos territórios mais rentáveis para a indústria cinematográfica (Austrália, Brasil, China, França, Alemanha, Índia, Japão, Rússia, Coreia do Sul, Estados Unidos e Reino Unido). Os resultados apontaram que apenas 30,9% dos personagens falantes são do sexo feminino, sendo que, nos gêneros ação ou aventura, esse número cai para 23%. Alguns países são melhores do que a norma global, embora todos estejam abaixo das médias populacionais de 50%: Reino Unido (37,9%), Brasil (37,1%) e Coreia do Sul (35,9%). Outras informações relevantes apontam para a inferiorização feminina, uma vez que personagens masculinos com profissões de prestígio são mais recorrentes: “advogados e juízes (13 para 1), professores universitários (16 para 1), profissionais médicos (5 para 1) e profissionais das áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática (7 para 1)”. A pesquisa também revelou que a sexualização das personagens femininas ainda é a norma nesses locais e “a probabilidade de meninas e mulheres serem representadas [...] como atraentes é cinco vezes maior”, sendo tanto adolescentes do sexo feminino (13-20 anos) quanto mulheres jovens (21-39 anos) suscetíveis à sexualização. Por fim, o trabalho concluiu que filmes com “diretoras ou autoras envolvidas mostram um número consideravelmente maior de meninas e mulheres na tela do que aqueles sem uma diretora ou autora envolvida”. 3 Cf. “Da submissão ao protagonismo: a evolução da representatividade feminina no cinema”, Disponível em:

4 Disponível em: 5 Disponível em:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Embora acima da média em relação a outros países nesse estudo, outros dados6 exemplificam a realidade desigual do Brasil dentro e fora da tela. Com base nos 142 filmes lançados em 2016, mais de 78% das produções foram dirigidas por homens (111 filmes), sendo a participação feminina igualmente menor em outras funções como roteiro, direção de fotografia e direção de arte (nesta área contabilizando apenas 7% do total de profissionais atuantes). Essas desigualdades tornam-se ainda mais gritantes quando inserimos a dimensão racial, já que, em um país de maioria não branca, tanto homens quanto mulheres negras ou indígenas têm participação quase inexistente em relação aos homens e mulheres brancos. Em relação ao elenco desses filmes, 480 personagens eram homens (cerca de 60%) e aproximadamente 81% do elenco principal era formado por pessoas brancas.  Esses dados evidenciam como o sexismo, enquanto sistema de dominação, “é institucionalizado, mas nunca determinou de forma absoluta o destino de todas as mulheres nesta sociedade” (hooks, 2015, p.197). Apesar de, neste texto, utilizarmos o termo mulheres de forma universalizante, compreendemos as diferenças entre representatividade branca e negra no cinema. Se o contexto apresentado já é perverso para mulheres brancas, a perspectiva das mulheres negras e outras mulheres racializadas é ainda mais terrível. Como define bell hooks (2015), o lugar da mulher negra na sociedade concentra outros tipos de opressão além do sexismo patriarcal, suportando “o fardo da opressão machista, racista e classista” (p. 207). Por fim, Guacira Lopes Louro argumenta que “os filmes hollywoodianos foram particularmente eficientes na construção de mocinhas ingênuas e mulheres fatais, de heróis corajosos e vilões corruptos e devassos” (2008, p.83). A popularidade desses filmes ao redor do mundo, especialmente no Brasil, reproduz essas normativas tanto na estrutura da indústria quanto nas narrativas que vemos em tela. Subverter essa realidade não é fácil, mas ao longo do tempo algumas obras conseguiram se destacar por fugir ao padrão, descolando suas personagens femininas da função de objeto erótico. Alguns exemplos no cinema norte-americano incluem A Paixão de Joana d’Arc (1928), O Mágico de Oz (1939), a franquia Alien (1979-1997), O Silêncio dos Inocentes (1991), Thelma e Louise (1991), Jackie Brown (1997), entre outros mais recentes como Mad Max: Estrada da Fúria (2015), A Chegada (2016), Estrelas Além do Tempo (2016), Atômica (2017), A Favorita (2018) e Harriet (2019). Muitos elementos indicam a influência do cinema estadunidense em Bacurau, desde a escolha dos gêneros (western, ficção científica e ação – gêneros notadamente consolidados por hollywood), até as inspirações estéticas que percebemos na obra (características do cinema de Quentin Tarantino, Sergio Leone, John Carpenter). Entretanto, até essas influências são transformadas no filme, aparecendo com nova roupagem. Há críticas, como ao racismo do gênero western, uma vez que os inimigos violentos aqui não são os índios, mas os cowboys que invadiram seu território. E há homenagens, como a escola do vilarejo que se chama “João Carpinteiro”, nítida 6   Dados retirados do texto  “Onde estão as mulheres do cinema brasileiro?”. Disponível em:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes referência ao diretor estadunidense. Apesar disso, nesse filme há algo que nos interessa mais, diferente do cinema no qual o longa tanto se referencia: não há mocinhas ingênuas, nem mulheres fatais em Bacurau; as personagens femininas são heroínas corajosas. E elas são muitas. No Brasil, durante as décadas de 70 e 80, o cinema nacional sofreu uma forte decadência. Além do domínio cada vez maior de filmes estadunidenses nas nossas salas de cinema, a ditadura civil-militar (1964-1985) acuou a indústria cinematográfica brasileira por meio de censura e de falta de investimento. A predominância das pornochanchadas evidenciava a hipocrisia de um momento em que falar de sexo era melhor que fazer reflexões politizadas, e a sexualização do corpo feminino era utilizada como ferramenta nesse gênero cinematográfico tipicamente brasileiro. Após a ditadura, o cinema nacional ainda caminhava a passos lentos e o fechamento da Embrafilme durante o governo Collor foi um golpe no setor já precarizado.  Com a Lei do Audiovisual (1993), o governo brasileiro assumiu, pela primeira vez em sua história, o financiamento de obras nacionais como política pública. Esse é um marco para as produções brasileiras e muitos consideram essa época como a retomada do cinema nacional. A partir daí alguns filmes brasileiros conseguiram valorizar o protagonismo feminino, tanto na produção quanto nas narrativas, como Central do Brasil (1998) de Walter Salles; Antônia – O filme (2006) de Tata Amaral; Elena (2012) e O Olmo e a Gaivota (2015) de Petra Costa; Que Horas Ela Volta (2015) de Anna Muylaert;  Animal Cordial (2016) de Gabriela Amaral de Almeida;  Benzinho (2018) de Gustavo Pizzi; e A Vida Invisível (2019) de Karim Aïnouz. Bacurau, vencedor o prêmio do júri no festival de Cannes de 2019, integra essa leva de filmes que fortalecem o cinema e a história do país, dando espaço às mulheres.  Nos anos 2000, ganharam força produções realizadas por atores, diretores e produtores nordestinos. Filmes como O Auto da Compadecida (2000) de Guel Arraes; Amarelo Manga (2002) de Cláudio Assis; Cinema, Aspirinas e Urubus (2005) de Marcelo Gomes; O Céu de Suely (2006) de Karim Aïnouz e, mais recentemente, O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016), ambos de Kleber Mendonça, conquistaram grande repercussão, sendo exibidos em todo país. Esses filmes ajudaram a consolidar o cinema nordestino e expandiram o imaginário popular sobre o nordeste brasileiro, em geral, resumido à ideia de atraso econômico e cultural.

Quem nasce em Bacurau é o quê? Em Bacurau, esses imaginários parecem ser desconstruídos por meio de um jogo com sua própria materialização. São diversos os exemplos da construção de uma realidade que é, continuamente, confrontada pelas ações das personagens. Vemos a estrada esburacada e o caminhão pipa, a barragem que causou a falta de água, as estradas de terra… E, também, o uso habilidoso de tecnologias, como o aplicativo de comunicação que deixa todos conectados e informados sobre o que acontece no

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes vilarejo, a conexão do tablet com a televisão no momento da educação infantil, o reconhecimento do drone inimigo (mesmo que, de certa forma, disfarçado de uma possível nave alienígena). Essas são algumas pistas que nos fazem pensar que esse futuro próximo pode ser agora e que o oeste de Pernambuco pode ser aqui.  Tentando não dar spoilers, uma possível sinopse de Bacurau diz muito: faroeste sobre um povoado fictício retratado como abandonado em termos de políticas públicas, cuja população é tratada como matável, à margem da cidadania, mas contabilizada como voto. Fazendo jus ao seu nome (um pássaro “brabo”) e provando ser gente, os desconfiados bacurauenses se unem contra forasteiros – uma carioca e um paulista vistos eles mesmos como “outros” pelos gringos americanos liderados por um alemão – que querem exterminá-los e o prefeito que incentivou sua chegada. Na rebelião, contam com os jagunços locais ao fazerem uso da memória de lutas passadas, materializada nas armas guardadas no museu do povoado – aquele que os estrangeiros não se prestam a visitar.  (Lacerda, 2019)7

Ao mostrar realidades comuns no cotidiano da maioria dos brasileiros, seja na convivência com o descaso político e com a infraestrutura precária, seja na apropriação tecnológica, o filme foi um sucesso de público e crítica; em grande medida porque nos faz encarar elementos que reconhecemos em nossa cultura, permitindo a nós, espectadores, sentirmo-nos um pouco bacurau. As emoções que o filme causa, de revolta, medo, alumbramento, alívio e, por que não, desforra, parecem ser uma das grandes conquistas da obra. Como exemplo, na cena da chegada dos forasteiros, para instalar o aparelho e cortar (do mapa) o sinal da comunidade, o povo, já avisado que vinha gente nova, acompanha os forasteiros até o mercadinho. A forasteira (Karine Teles) pergunta para Luciene (Suzy Lopes), dona da venda local: “Quem nasce em Bacurau é o quê?”. E a criança responde, jocosamente: “É gente!”.  O povo bravo de Bacurau entende rapidamente que as coisas que estão acontecendo não são normais. Eles veem com desconfiança os forasteiros e Luciene adverte: “Motoqueiro de capacete não é legal aqui não!”. Quando saem da venda, o repentista os surpreende com a pergunta: “O senhor sabe alguma coisa que aconteceu com aquele caminhão pipa?”. Com olhar superior e impaciência, o forasteiro (Antonio Saboia) responde: “Não entendi.”. O repentista pergunta novamente se ele sabe de alguma coisa e o invasor pergunta o que aconteceu, ao que ele responde que o caminhão “chegou todo crivado de bala”. Ele canta atrás do casal que o ignora: “Esse povo do sudeste não dorme nem sai no sol, aprender a pescar peixe sem precisar de anzol, se acha melhor que os outros, mas ainda não entendeu que São Paulo é um paiol. Haaaaaa.”. A população de Bacurau que acompanha a cena ri. A forasteira lhe oferece dinheiro e ele responde: “Eu não quero seu dinheiro, moça, eu tô aqui só de gaiato.”. Ela debocha: “Valeu gaiato, valeu gaiatão.”. Essa cena situa as diferenças entre Bacurau e os forasteiros, e a indiferença deles em relação ao povo de Bacurau.  7 Disponível em: https://www.deviante.com.br/noticias/antropologia-viagens-para-fronteiras-e-bacurau/#disqus_ thread.

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Figura 1 - Fotograma de Bacurau (2019) - Forasteira oferece dinheiro ao violeiro com olhar de desdém. No entorno, vemos os moradores de Bacurau rindo da cena.

Logo após esse momento, no diálogo – em inglês – entre eles e os estrangeiros, os forasteiros vão se sentir um pouco como aquelas pessoas: da mesma forma que, para eles, aquela comunidade não tinha importância alguma, para os estrangeiros, eles também não são ninguém. Quando perguntados se eram amigos dos homens que mataram, o forasteiro responde: “Amigos? A gente não mata amigos no Brasil. Mas não... A gente não é dessa região. A gente é do sul do Brasil. Uma região muito rica. Com colônias alemãs e italianas. Somos mais como vocês.” Após ouvirem as piadas e os deboches racistas, o casal é morto pelos estrangeiros. Nesse sentido, entendemos como a questão racial orienta as ações dos assassinos. Mais que uma inferioridade de classe, a desumanização dos brasileiros se dá por meio de uma subjugação de raça. Achille Mbembe, em sua vasta discussão sobre necropolítica, analisa esse tipo de dominação: Afinal de contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente sobre o pensamento e a prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros – ou dominá-los. [...] a política da raça, em última análise, está relacionada com a política da morte. (Mbembe, 2018, p. 128)

Na tentativa de extermínio daquela cidadezinha “cu de mundo”, como afirma o personagem Michael (Udo Kier), em que as pessoas não são consideradas “gente de verdade”, mas animais matáveis, os estrangeiros são os humanos e as não pessoas de Bacurau são os alvos. O filme elabora uma crítica à discriminação racial dos estrangeiros, mas também sinaliza a tendência às mesmas ideologias por parte dos brasileiros das regiões sul/sudeste, que se entendem mais próximos daqueles que vêm de fora do que as pessoas de seu próprio país. É o caso do casal de motoqueiros

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e do prefeito Tony Jr., eles se entendem superiores ao povo do vilarejo e estão dispostos a vender seus compatriotas para agradar àqueles que consideram pessoas evoluídas. A política da morte se manifesta nas ações governamentais (descaso, privação de infraestrutura básica, fornecimento de alimentos vencidos e remédios altamente viciantes, parceria com assassinos, violência contra moradores) e, de forma mais maquínica, no “safari” dos jogadores. Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido. Esse processo foi, em parte, facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um racismo baseado em classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos raciais, acabou comparando as classes trabalhadoras e os “desamparados pelo Estado” do mundo industrial com os “selvagens” do mundo colonial. (MBEMBE, 2018, p. 129)

Figura 2 - Fotograma de Bacurau (2019) Feição de êxtase de Julia.  Imagem 03 - Fotograma de Bacurau (2019). Notícia sobre as execuções públicas. 

Na Figura 2, temos um plano fechado em Julia (Marie Peterson), após a execução do casal de brasileiros que os ajuda. Com o crime, a estrangeira sorri e se assusta. O plano fechado na atriz mostra sua reação de prazer e espanto com a rápida execução. Na Figura 3, um estrangeiro chega em uma casa e na TV lemos: “Execuções públicas recomeçam às 14h – Vale do Anhangabaú”. Assim, o futuro mostrado no filme chama atenção para a banalização da morte na nossa sociedade: o homem “caça” as pessoas para matar e execuções acontecem em praça pública. Os planos focados nos rostos dos assassinos nos mostram o desejo e o prazer de matar. Nesse ponto, a virada do filme é surpreendente. Uma história que poderia facilmente se encerrar com a morte de todo povoado, como muitas vezes acontece fora da ficção, entrega a vitória ao povo de Bacurau. Ao ver ruas e casas vazias, e as roupas ensanguentadas no varal, os estrangeiros sentem medo e entram em alerta, talvez entendendo que vão morrer. Suas cabeças decepadas ficarão expostas na igreja, como nas fotos do museu que não visitaram. Michael será enterrado vivo e Tony Jr. seguirá seu destino incerto, sem roupa e mascarado, em cima do jumento.  

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Figura 4 - Fotograma de Bacurau (2019). Senhora leva máscara que será colocada em Tony Jr., enquanto as pessoas do povoado observam.

Bacurau subverte normativas sociais em diversas esferas, seja por meio de suas metáforas visuais e escolha de elenco, seja pelas reflexões políticas que levanta. Na Figura 4, vemos a cena de uma senhora que leva a máscara para cobrir o rosto de Tony Jr. A personagem idosa que, acompanhada pelo olhar de outras mulheres, destina seu algoz a um futuro incerto, reforçando a ideia de um western subversivo: não são os mocinhos de fora que vêm para salvar o povo, mas sim o próprio povo que se salva.  Em relação à esfera do protagonismo feminino, percebe-se que o filme é um dos poucos exemplos de obras com elenco equilibrado entre homens e mulheres, apresentando personagens femininas diversas e marcantes. Ao contrário da realidade apresentada nos tópicos anteriores, nessa trama há uma profusão de mulheres em tela e muitas são indispensáveis ao desenvolvimento da narrativa. Percebemos que evidenciar a diversidade e demonstrar cuidadosamente a complexidade das personagens, mesmo as com pouco tempo de tela, foi uma preocupação no filme. Cada uma é atravessada por diferentes aspectos da vida, como a relação entre independência e coletividade; vivência das relações pessoais, sexuais e profissionais; sofrer violências e lutar contra vícios; mostrar-se vulnerável ou forte; sucumbir ao sofrimento ou abraçar o heroísmo. 

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Figura 5 - Fotograma de Bacurau (2019) - Uma das cenas iniciais do filme nos mostra a estrada com o caminhão pipa, o que reforça a ideia do descaso público com a comunidade. Ao mesmo tempo, a placa nos situa sobre a paz pela qual aquele povo anseia.

Passarada brava São muitas as mulheres de Bacurau! E são poucas as cenas em que nem uma está presente. Durante o filme, a presença de personagens femininas é expressiva, protagonistas e coadjuvantes possuem falas, conversam entre si e, na maioria das vezes, não falam sobre homens8.  Mesmo em cenas amplas, com muitos figurantes, é possível perceber a maioria feminina. Apesar das funções de direção e roteiro serem encabeçadas por homens, a obra não apenas equipara o protagonismo de mulheres e homens como, muitas vezes, destaca o feminino. Na tentativa de demonstrar como isso ocorre, discutiremos o desenvolvimento narrativo das personagens.  Teresa (Bárbara Colen) é a primeira personagem a aparecer no filme, retornando a Bacurau para o velório de sua avó, Carmelita (Lia de Itamaracá). Ela viaja de jaleco na boleia do caminhão pipa e leva consigo uma mala com remédios importantes para o povoado. Quando o motorista pergunta o porquê do jaleco, Teresa afirma que é uma forma de proteção. A cena pode ser interpretada de diversas formas, mas faz perceber que ela entende aquela peça de uniforme como um símbolo de poder, talvez por ser algo que as pessoas dão valor, talvez porque ela própria o valorize.  A morte de Carmelita traz uma grande mobilização para a cidade e acompanhamos o luto de cada um ali. Durante o velório, Domingas (Sônia Braga) não consegue conter 8  Cf. Teste Bechdel. A cartunista norte-americana Alison Bechdel escreveu uma tirinha, publicada na série Dykes to Watch Out For, em que uma amiga a apresenta um teste para avaliar o nível de representação feminina em produções culturais. O Teste Bechdel, como passou a ser conhecido, vem sendo usado pela mídia e em discussões acadêmicas, e consiste em responder três questões: 1 - há mais de uma mulher?; 2 - elas conversarem entre si?; 3 - o assunto dessa conversa não é sobre homens?. Quanto mais respostas positivas, maior a representatividade feminina.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes as emoções e braveja, bêbada, na frente de todos, pela morte de Carmelita. Sentimos o desespero da personagem que grita: “Carmelita, bruxa nojenta. Só quero saber se no meu enterro vai dar tanta gente assim”. Domingas e toda a comunidade perdiam sua grande referência. O cortejo sai cantando a música Bichos da Noite de Sérgio Ricardo. A letra diz: “São muitas horas da noite / São horas do bacurau / Jaguar avança dançando / Dançam caipora e babau / Festa do medo e do espanto / De assombrações em um sarau”. O caminhar lento do cortejo, embalado pela canção, faz a cena ganhar profundidade.  O espectador consegue entrar em contato com a força transcendente de Carmelita e com a cultura daquele povo. Na letra da música, os perigos de bacurau, feitiços e magia; nas pessoas, a dor e a substância alucinógena cultivada por Damiano (Carlos Francisco) – o ritual nos conta ainda mais sobre a comunidade. Uma imagem etérea e divina parece ser construída sobre Carmelita e, não à toa, Teresa vê água vertendo do caixão da matriarca. A água podendo ser tomada em seu sentido mais direto na trama, da barragem e da carência hídrica no vilarejo, ou em seus simbolismos tradicionais de purificação e fertilidade, e ainda sobre a perspectiva do conhecimento e da sabedoria. A deificação de Carmelita se confirma de certa forma na cena em que Michael se vê derrotado e decide se matar. Quando ele se prepara para o tiro, Carmelita aparece em sua frente, lembrando Iemanjá. 

Figura 6 - Fotograma de Bacurau (2019). Cena do caixão de Carmelita fluindo água. Figura 7 - Fotograma de Bacurau (2019). Aparição de Carmelita para Michael.

Essa valorização da personagem fala sobre a importância da anciã enquanto conexão com a história e com a memória do povo, mantenedora da cultura e exemplo para os jovens. Ela materializa diferentes experiências de vida, unificando a comunidade. Também guardiã da memória, Isa (Luciana Souza) é responsável por cuidar do Museu Histórico de Bacurau, espaço que é citado algumas vezes na trama. Quando acaba a matança no vilarejo e alguns moradores vão limpar o museu, Isa pede que limpem só o chão, poupando as paredes. Ela diz: “Eu quero que fique assim. Exatamente do jeito que tá. Infelizmente”. Nas marcas de sangue ao lado das fotos, das armas, da história de Bacurau, o museu materializa, como coisa viva, a lembrança daquela e de futuras gerações. 

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Conceder-nos-ão, talvez, que um grande número de lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outros homens; conceder-nos-ão mesmo que, quando esses homens não estão materialmente presentes, se possa falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos; e que consideramos ainda agora, no momento em que lembramos, do ponto de vista desse grupo. (Halbwachs, 1990, p. 36)

Figura 8- Fotograma de Bacurau (2019). Isa mostra as marcas que não quer que sejam apagadas. Figura 9 - Fotograma de Bacurau (2019). A água suja de sangue quase atinge Tony Jr.  Outro aspecto da narrativa de Isa que demonstra manutenção da memória e da cultura é a cena na qual a personagem aparece gingando capoeira. Além dessa faceta, Isa ainda tem outros momentos reveladores de sua personalidade: como quando recebe, às portas do museu, o prefeito Tony Jr. (Thardelly Lima) com um balde de água ensanguentada, quando toca o rosto de Michael e diz: “Eu acho que ele já foi uma boa pessoa”, quando ajuda a enterrá-lo. Por outro lado, seu relacionamento com Domingas também é mostrado na tela. O primeiro momento no qual vemos as duas juntas é durante a cena em que a médica grita em frente à casa de Carmelita. Isa tenta levá-la embora e, em determinado momento, a conversa se torna mais agressiva. Isa se mostra insatisfeita e solta Domingas. Depois descobrimos que elas moram juntas e, mesmo quando Isa aparece transando com um homem na casa, tal comportamento não é questionado, nem visto de forma anormal por sua companheira. A relação das duas não é tratada com excentricidade pelos outros moradores. Questionamos, no entanto, a escolha dos diretores em incluir uma cena de sexo com um homem e não entre Isa e Domingas. Embora a intenção de mostrar um relacionamento aberto como possibilidade afetiva seja incomum no cinema, a invisibilidade da sexualidade lésbica é um ponto negativo da trama. Percebemos um retorno à sexualização do corpo feminino dentro da heteronormatividade e a cena acaba perdendo potência. As abordagens em torno da sexualidade são um aspecto forte na construção das personagens de Bacurau. Como dito inicialmente, em grande parte dos filmes, as mulheres são exploradas pelo viés sexual, em geral, sensualizando e mostrando seus corpos. Mas as mulheres do filme vivenciam sua sexualidade de forma mais livre e esse aspecto não é o foco de seus arcos narrativos. Como alguns exemplos, temos a cena em que Teresa convida Acácio (Thomas Aquino) para dormir com ela, mostrando agência em

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes relação aos próprios desejos. Também a personagem Sandra (Jamila Facury), profissional do sexo, que cumprimenta Acácio mostrando os seios e aparece nua, demonstrando naturalidade. O êxito do longa é mostrar que a relação entre ela e outras personagens que também parecem se prostituir, assim como com a comunidade, é de convivência harmoniosa. Não há disputas entre as mulheres, ciúme ou medo de “roubarem” seus maridos. Nem a profissão nem as profissionais são discriminadas. A trama desenvolve ainda mais o tema na cena em que Sandra é levada por Tony Jr. e seus capangas: ela mostra resistência e fala que, da última vez, ele não havia sido legal com ela. Domingas se aproxima do prefeito e diz: “Eu coloquei essa menina no mundo e gostava muito da mãe dela. Se ela voltar machucada, eu corto seu pau e dou pras galinhas”. Quando ela parte com o prefeito, Madame (Zoraide Coleto) diz: “puta também vota!”. Ou seja, apesar de Sandra ser vista por aqueles homens como objeto, na comunidade ela é vista como cidadã e amiga. Quando ela retorna à Bacurau, um plano aberto a acompanha. Ela vem surgindo do escuro e, aos poucos, é iluminada pelas luzes do vilarejo. O plano aberto dimensiona a solidão e o desconforto de Sandra: braços cruzados, encolhida, calada.

Figura 10 - Fotograma de Bacurau (2019). Sandra chega ao povoado após ser levada pelo prefeito.

É preciso também destacar o trabalho de representatividade de gênero que o filme enseja. Para viver a personagem Darlene, foi escalada a atriz trans Danny Barbosa, que desempenha um forte papel na trama. Uma questão interessante é que o papel não é centrado na questão da transgeneridade (sequer sabemos se a personagem também é trans). Darlene é a transmissora das informações e dos alertas e é tratada com respeito e amizade pela população de Bacurau. De maneira semelhante, a personagem Lunga (Silvero Pereira9) desafia a visão 9 O ator possui uma persona feminina chamada Gisele Almodóvar, e definiu Lunga, em entrevista, como “uma força construída a partir das injustiças políticas, sociais e educacionais. Ela é contra o sistema e acredita que a revolução deve ser feita a partir do momento que acreditamos na nossa força enquanto indivíduo em sociedade, respeitando as diferenças e se ajudando mutuamente. Caso isso não ocorra, então Lunga acredita que se deve enfrentar e dizer quem realmente manda no território”. Disponível em:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes estereotipada dos gêneros em sua performance. No início do filme, em um diálogo entre Teresa e o motorista, Lunga é tratada no feminino; na conversa, comentam que ela é querida pelo povoado e que tem entrado em conflito com os construtores da represa. Quando ela aparece pela primeira vez, temos no filme um jogo especular: Acácio sinaliza com um espelho onde Lunga está e é correspondido pelo amigo de Lunga com um reflexo luminoso. Daí vemos a cena de Lunga se olhando no espelho e percebemos que a personagem tem as unhas pintadas. Esse jogo reflexivo nos traz uma perspectiva de reconhecimento identitário. Tanto confere reconhecimento aos amigos, quanto indica as nuances de gênero da personagem. Quando chega em Bacurau, Lunga - mullet até os ombros, calça com estampa colorida, pulseiras, colares e anéis - é ovacionada pela comunidade. Uma senhora pergunta: “que roupa é essa, menino?”, mas não parece ser uma reprovação real. O figurino da personagem mistura referências masculinas e femininas, compondo um visual fora dos padrões. Nessa figura revolucionária, capaz de fazer justiça com as próprias mãos, estão abrigadas feminilidades e masculinidades, fluidas, sem isso ser um problema e sem naturalizar o que é de homem e o que é de mulher. Como defende Guacira Lopes Louro: Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes e, depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural. (Louro, 2013, p.12)

Figura 11 - Fotograma de Bacurau (2019). Notícia de que Lunga é procurado pela polícia. Figura 12 - Fotograma de Bacurau (2019) - Primeira visão de Lunga, frente ao espelho.

Outra característica das personagens de Bacurau é serem mostradas como pessoas fortes, que lutam para sobreviver. Daisy (Ingrid Trigueiro) atira em Kate (Allison Willow) na cena da emboscada à casa de Damiano, em um momento em que achávamos ou que ele morreria ou que se salvaria sozinho; entretanto ela aparece para salvar a ele e a si mesma. Além de atirar certeiramente na estrangeira, Daisy faz isso nua, com uma espingarda, sem apresentar desespero ou medo. 

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 Figuras 13 e 14 - Fotogramas de Bacurau (2019) Cena de Damiano e Daisy no ataque dos estrangeiros. O formato da sequência em que Daisy atira em Kate também nos oferece uma dimensão da grandeza dessas mulheres de Bacurau. A personagem surpreende Damiano ao atirar na estrangeira (Figura 13), que a olha assustado. Em seguida, o casal se aproxima da estrangeira. O plano de baixo para cima, denominado contraplongée, é muito utilizado para trazer essa dimensão de grandeza do personagem. Aqui, Daisy é quem se aproxima da estrangeira, mostrando-se superior a Kate (Figura 14). Kate, por sua vez, é responsável por pilotar o drone e, assim como a forasteira e Julia, mostra sangue frio e afeição à violência, tal como os homens do grupo.  No outro momento, que reforça essa ideia de mulheres fortes, Domingas e Michael se conhecem, em uma das cenas mais marcantes do filme. Um plano aberto mostra Domingas chamando Michael para se aproximar. A cena valoriza a coragem da personagem que recebe o estrangeiro sozinha, desarmada, sem precisar de aparatos ou de um homem por perto. O estrangeiro se aproxima da cidade para matar os moradores e é recebido pela médica com a mesa posta. Um banquete com pratos típicos do Nordeste e embalado por música americana. Na sequência do diálogo, a câmera se aproxima de Domingas, variando entre planos fechados e abertos entre os dois personagens. Em dois planos fechados, vemos mais uma vez a grandeza da personagem: Domingas passa a mão no pescoço dando a entender que Kate morreu. O assassino ameaça a médica com uma faca, e ela permanece onde está sem demonstrar medo ou sinal de fuga. Os dois se entendem, mesmo um falando português e o outro inglês. O plano fechado no rosto da atriz tem o intuito de mostrar sua força em enfrentar os estrangeiros, enquanto defende sua comunidade e sua própria vida. A cena ainda mostra como Domingas consegue dar o recado aos estrangeiros: é como se ela dissesse que eles não vão conseguir, pois aquele povo é forte. Ela se torna o demonstrativo do seu povo. Michael vira a mesa com a comida e Domingas permanece calma. Na sequência final, outro plano aberto, mostra Michael indo embora e Domingas bebendo algo em um cantil. Ela sai vitoriosa dessa cena ao mostrar que está tudo sob controle: é como se a bebida fosse a comemoração disso. Ele sai e ela permanece onde está. Aqui, mais uma vez, o plano aberto mostra o contexto em que tudo acontece. Domingas está na casa de Darlene na entrada de Bacurau, sua calma e frieza demonstram que a população tem controle sobre o que vai acontecer. Uma possível interpretação dessa sequência é que Domingas avisa ao homem, de certa forma, que a comunidade está preparada para executá-los ao alertá-lo que Kate já havia morrido.

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Figuras 15, 16, 17 e 18 - Fotogramas de Bacurau (2019) – Sequência entre Domingas e Michael. Na sequência final, as mulheres mostram mais uma vez sua força. Ao ver as cabeças dos estrangeiros sendo expostas em frente à igreja, Acácio pergunta a Teresa: “Não acha que Lunga exagerou não?”. Ao que Teresa responde, determinada: “Não!”. Aqui percebemos mais uma brincadeira com estereótipos femininos e masculinos. O homem se mostra sensível e incerto sobre os acontecimentos, enquanto a mulher se mostra fria e confiante. Na cena final, o enterro de Michael, há forte presença de mulheres, todas em volta com expressões sérias. Elas ajudam a enterrar o estrangeiro. Na trilha sonora, a música Réquiem para Matraga, de Geraldo Vandré, canta: “Vim aqui só pra dizer / Ninguém há de me calar / Se alguém tem que morrer / Que seja pra melhorar / Você que não entendeu / Não perde por esperar”.

Figura 19 - Imagem de divulgação do filme.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Há ainda mais um aspecto interessante sobre as personagens femininas do filme. A relação de apoio que estabelecem. A sororidade10 está presente em vários momentos do longa, passando a mensagem de que aquelas mulheres se ajudam, defendem uma a outra. Alguns exemplos são a cena de Sandra sendo levada por Tony Jr., e como não só Madame, mas também Daisy e Domingas defendem a moça e tentam fazer com que ela fique. Cada uma com seu argumento vai se juntando em torno do prefeito, enquanto chamam o resto do povo para ajudar. Quando Sandra volta machucada ao povoado, Daisy pergunta se está tudo bem e Domingas olha preocupada à distância. Na reunião do povoado, Domingas pede desculpas a todos pelo seu comportamento durante o velório de Carmelita e afirma que a amiga foi e é ainda muito importante. Em outra sequência, durante o velório dos moradores mortos pelos forasteiros, Luciene chora e é consolada por Domingas. Outras personagens com menor destaque, mas ainda assim com histórias interessantes são: Angela (Clebia Sousa), professora de música da escola e mãe da criança que morre – é ela quem protege as crianças dos forasteiros; Madalena (Eduarda Samara), filha mais nova de Plínio e irmã de Teresa, que também trabalha na escola e parece mais ligada à cultura de fora, por suas roupas e pela conversa que tem com Teresa e Acácio sobre os vídeos em que ele aparece; Nelinha (Fabíola Liper), que adverte o marido sobre a loucura de tentar fugir da cidade e, como ele não se importa, os dois saem de carro, sendo mortos pelos estrangeiros.  Dessa maneira, defendemos que as mulheres de Bacurau têm forte protagonismo na narrativa, não ficando atrás dos homens, nem precisando que eles validem suas falas e ações. Essas construções quebram estereótipos e nos mostram formas variadas de ser mulher, exercendo suas sexualidades, vontades e princípios sem precisarem de um homem para as defender e sem ter que usar a sexualidade como ferramenta. Essas personagens revelam modos de vida subversivos, resistentes aos padrões esperados pela sociedade patriarcal e que se proliferam nos filmes ocidentais.

Se alguém tem que morrer que seja para melhorar  Bacurau vai na contramão dos dados que apresentamos no início desse texto. O longa é bem sucedido na valorização do protagonismo feminino, seja na quantidade de cenas e falas das mulheres ou pela inserção delas nas tomadas de decisões da comunidade, heroínas da força de resistência apresentada no filme. Compreendemos ao decorrer da trama que sem essas mulheres o povoado não teria tanto sucesso contra os estrangeiros. Enquanto a representação de mulheres no cinema é, em geral, subjugada às escolhas dos homens, em Bacurau a voz ativa é feminina e os estereótipos de mulher/sensível e homem/guerreiro caem por terra. Ali, elas pegam as armas e defendem suas vidas, famílias e amigos; tanto quanto (e mais, talvez) que os homens do vilarejo. 10 Tatiane Leal retoma a origem etimológica do termo como estratégia para delimitar seu significado, observando que ele vem do latim soror, que quer dizer irmã. (LEAL, 2019, p. 87). De acordo com o dicionário Priberam, a definição de sororidade pode ser resumida em: 1. Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs. 2. União de mulheres com o mesmo fim, geralmente de cariz feminista. Disponível em:

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Figura 20 - Fotograma de Bacurau (2019) - As cabeças dos estrangeiros são expostas em frente à igreja. A população fotografa e registra a cena. Darlene aparece no lado esquerdo da imagem segurando uma espingarda e pronta para se defender e defender seu povo.

Na obra, antigos códigos não estão se desmoronando; eles já ruíram. Uma metáfora para essa afirmação pode ser encontrada na trama em si: forças imperialistas e coloniais (conceitos antigos que permanecem atuais) são derrotadas pelos ditos selvagens. Como nas invasões europeias a diversos países, as populações nativas são sempre consideradas selvagens, atrasadas, primitivas, enquanto os colonizadores se consideravam superiores, detentores do conhecimento. Se historicamente a exploração pelos estrangeiros traz devastação das terras, escravidão, morte, dentre incalculáveis prejuízos a esses povos, em Bacurau esse destino é momentaneamente contornado. Embora a comunidade possa permanecer sujeita à opressão e à exploração externa, incluindo do próprio governo, o filme subverte o final da História, com a sobrevivência daquele povo e o castigo aos colonizadores.  Por meio de várias metáforas, como a água no caixão ou o objeto voador não identificado, o longa nos presenteia com histórias possíveis, resistentes à padronização. O alucinógeno cultivado por Damiano, que todos consomem no dia da vitória contra o inimigo, parece ser uma analogia ao poder concedido pela cultura e pela memória. Seja como forma de conexão com forças superiores, como a matriarca Dona Carmelita, ou como forma de ampliar as percepções, o “poderoso psicotrópico”, como afirma Plínio, ajuda os moradores de Bacurau a subjugar seus inimigos. Ao longo do filme, o povo entendido como atrasado se mostra sagaz, consegue prever o que vai acontecer e se antecipar ao conflito, evitando assim o massacre. A comunidade vence porque valoriza a história, a coletividade e os conhecimentos de seu povo. O alucinógeno, as armas “vintage” (tal qual a regra de caça dos estrangeiros), o jardim, a escola, a igreja, a horta, o museu - são todos bens indispensáveis àquela gente. 

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Na personagem Domingas, por exemplo, vemos a construção de vários comentários sociais que materializam a realidade brasileira que conhecemos, mas oferecem revisões possíveis. Somos apresentados a uma médica incomum na audiovisualidade, que vive em um pequeno povoado do interior do país com sua companheira. Por suas roupas e cabelos, percebemos que a aparência não é a maior de suas preocupações. Ela é respeitada enquanto membro da comunidade e profissional da saúde e protagoniza cenas icônicas da obra (destaque para “tu tá de ressaca”, o esclarecimento sobre o remédio tarja preta que Tony Jr. deixou na cidade e a recepção a Michael). Por seu arco narrativo, somos chamados a refletir sobre a ausência de médicos nos interiores do Brasil, a precariedade dos recursos de saúde concedidos pelo governo, os perigos da indústria farmacêutica, desvalorização da cultura nordestina, dentre tantas outras mazelas reconhecidas em nossas próprias vidas.  Nesse jogo entre materialização e subversão, que aparece já no início do filme, as agruras brasileiras são retratadas. O descaso do Estado e a proximidade da morte são temas que vão escalonando até culminar no grande derramamento de sangue. A interpretação, no entanto, recusa a culpabilização das vítimas, apontando o problema para o campo externo, alheio à comunidade. Desta feita, temos mais um ganho do filme: não há cenas de violência ou discriminação entre os moradores.  Dessa forma, percebemos que, mesmo não havendo equidade de gênero e racial na equipe produtora do filme, na tela há igualdade de protagonismo e diversidade de representação para as personagens femininas. São mulheres jovens, idosas, casadas, solteiras, negras e brancas, em um panorama mais próximo ao do país. Essa pluralidade de histórias, de corpos e de personalidades contribuem para uma construção narrativa que se distancia do cinema hegemônico, oferecendo possibilidades outras de representar o gênero feminino, acentuando a potência do audiovisual para construir e questionar realidades, transformando o imaginário social não só de meninas e mulheres, mas do público em geral. Após ver o filme e discuti-lo nesse texto, fica em nós a compreensão de que algumas coisas devem mesmo morrer, como a ignorância e o preconceito, mas também que a sobrevivência de outras, como a memória e a cultura, é o caminho para evitar ser morto. “Se alguém tem que morrer/ Que seja pra melhorar”.

Referências HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. LACERDA, Renata. Antropologia, viagens para fronteiras e Bacurau. Deviante, 2019. Disonível em: Acesso em 12/05/2020.

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“UM ESTUPRADOR NO TEU CAMINHO”: NARRATIVAS DISSIDENTES DO CHILE PARA O CORAÇÃO DO MUNDO Raquel Wandelli

Introdução Dispostas em fileiras verticais e horizontais, ao modo de um quartel, elas dançam e cantam, com batidas dos pés no chão e das mãos no corpo. Como em um rap latino, a coreografia mistura movimentos de dança de rua e de ginástica rítmica. Parodiam um fragmento do hino dos carabineiros, agentes da polícia nacional chilena, propagandeados como guardiões da segurança pública, mas apontados por graves violações aos direitos humanos. Em outubro de 2019, após a derrota dos protestos feministas do “Ele Não” com a vitória de Bolsonaro em segundo turno, eclodem no Chile os protestos de rua contra a política neoliberal do governo de Sebastián Piñera. De dentro das manifestações, brotam as jornadas feministas chilenas, alavancadas por um manifesto que refaz a conexão entre arte e mídia ou arte e notícia para produzir sua narrativa decolonialista. A violência patriarcal está no cerne da performance “El violador en tu caminho”, tática de guerrilheiras urbanas para denunciar ao mundo a repressão aos protestos de rua e a violência sexual de Estado contra manifestantes. Amálgama de linguagens artísticas heterogêneas (performance, teatro, música, percussão, poesia, dança), o levante multimídia cava espaço para uma grande ocupação feminista que atravessa as fronteiras do país. “Um estuprador no teu caminho”, como essa performance foi traduzida no Sul do Brasil, tornou-se laboratório de narrativas dissidentes e estratégias capazes de perfurar o bloqueio midiático contra as teorias e movimentos feministas. Elas rasgam nas ruas um lugar para epistemologias contra-hegemônicas ao pensamento patriarcal. O impacto da coreografia do grupo chileno Las Tesis, aqui analisada como estratégia decolonialista, integra uma rede de narrativas insurgentes em minha pesquisa pósdoutoral sobre a categoria de arte-notícia na resistência. Em resposta ao festival de atrocidades e covardia nas marchas de 2019, os agachamentos das mulheres com as mãos atrás da cabeça funcionam como metalinguagem crítica do abuso de poder pelos agentes de Estado. O gesto coreografado

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes denuncia a violência sexual do colonizador reproduzida pelos policiais contra pessoas detidas nas manifestações, sobretudo, adolescentes, homossexuais e mulheres, molestadas quando obrigadas a se agachar nuas durante a custódia. Essas sevícias sexuais foram denunciadas no Relatório Mundial 2020, referente aos eventos de 2019 no Chile da ONG Human Rights Watch. O relatório apontou também lesões oculares graves por armas antimotins, uso excessivo da força contra manifestantes pacíficos e negligência estatal para conter os abusos policiais. A polícia chilena também deteve mais de 15.000 pessoas de 18 de outubro a 21 de novembro e maltratou algumas delas. O Instituto Nacional de Direitos Humanos registrou 442 denúncias sobre tratamento desumano, tortura, abuso sexual e outros crimes. A Human Rights Watch coletou testemunhos críveis de que a polícia teria forçado os detidos, especialmente mulheres e meninas, a se despirem e se agacharem completamente nuas, uma prática proibida pelos protocolos policiais. Também documentamos espancamentos brutais e estupro em detenção. Promotores estão investigando pelo menos cinco mortes supostamente causadas pelas forças de segurança no contexto de manifestações. (HRW, 2020)

Repetir o gesto do violador é desmascará-lo em público e obrigá-lo a lidar com o testemunho coletivo da própria perversidade arrancada do manto da impunidade. Essa forma de protesto vai marcar também as jornadas antirracistas nos Estados Unidos durante a pandemia. Com um joelho dobrado no chão e apoiando distraidamente o próprio braço no outro, os manifestantes reproduzem a postura dissimulada do policial que descansa enquanto mata. A coreografia do reflexo grita a Derek Chauvin, assassino de George Floyd, que o viram através das filmagens de celular, esganar o trabalhador negro com o joelho. Cinco dias depois de Valparaíso, Las Tesis eclodiu como coro de vozes dissidente das multidões nas ruas de Santiago, em frente ao Palácio das Armas e ao Ministério da Mulher. Alastrou-se feito pavio de pólvora pelas redes sociais e, em menos de um mês, tornou-se fenômeno de ocupação transcontinental pelas redes feministas. Da capital do Chile, alcançou em 48 horas boa parte da América do Sul (México, Brasil, Colômbia, Peru e Argentina, onde na véspera da quarentena foi adaptada à luta pela legalização do aborto) e Nova York. Foi além: cruzou o Atlântico em direção às capitais e grandes cidades da Europa (Paris; Madrid e Barcelona; Berlim; Bristol e Londres) atravessou a fronteira com a Ásia para ocupar o parlamento de Istambul, na Turquia, e chegou à Oceania (Sydney, na Austrália). Embalada pelo hino de Las Tesis, a luta feminista ganhou propulsão com o levante de centenas de milhares de mulheres dos mais distintos perfis. Passou a ser reencenada e recriada de forma compartilhada e colaborativa, multiplicando-se através das redes sociais de Norte a Sul do Brasil, onde recebeu novas traduções e adaptações às diferenças culturais e linguísticas de cada região. A organização dos atos gerou reuniões pela internet e ensaios pela cidade, onde inserções, adaptações e mudanças

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes foram democraticamente discutidas e decididas, conforme testemunhei como militante feminista e repórter voluntária do coletivo Jornalistas Livres. Mais do que uma coreografia, virou matriz de uma gigantesca intervenção urbana. Vibrante, brutal, ruidoso, o protesto criou uma plataforma metanarrativa capaz de sintetizar o caráter político da violência contra a mulher, associando o Estado patriarcal ao violador. O patriacado é um juiz que nos julga ao nascer e nosso castigo é a violência que não se vê

A letra do manifesto faz sentido imediato para os movimentos dos países em luta contra a destruição das políticas públicas e direitos sociais; contra as reformas trabalhistas e previdenciárias que atingem primeiramente as mulheres de baixa renda. Las Tesis trouxe um novo arrebatamento para o movimento feminista no Brasil, após quase um ano da eleição de Jair Bolsonaro. O Brasil pós-golpe de 2016, que culminou com a eleição de um governo declaradamente em guerra contra a chamada “ideologia de gênero”, que provocou um surto de feminicídios, estigmatização das feministas e episódios de violência contra mulher. No país cujas parlamentares, ativistas e pensadoras estavam sendo assassinadas, ameaçadas de morte e obrigadas a se exilar, mulheres da resistência ouviram o chamado do Chile. Tomado como objeto de trabalho, o noticiário de violência política de gênero, classe social, raça ou credo, potencializa a arte como força propulsora de resistência. Ao mesmo tempo, a arte torna-se tributária das estéticas que mobilizam vozes e corpos dissidentes por toda América do Sul. Artistas aproveitam o produto simbólico do trabalho político da juventude nas ruas da Argentina e Chile, impactando e transformando a resistência no Brasil. Passarela de vozes e corpos-estandartes, a rua se tornou uma mídia, um lugar de produção do imaginário, de proposição de mensagens e de reinvenção de estéticas. Das ruas para as redes sociais e vice-versa, as notícias no cenário político e social são transformadas pelas performances dos protestos, vídeo-manifestos, mensagens dos cartazes, camisetas, charges, palavras de ordem. A produção de arte-jornalismo é própria deste tempo, em que o estético e o político se atravessam desde o seu fundamento. Essa intersecção salta aos olhos se, como Jacques Rancière (2006, p. 370), compreendemos que a política “é um modo de ser da comunidade que se opõe a outro modo de ser, um recorte do mundo sensível que se opõe a outro”. A arte é política não na medida do seu engajamento a uma causa ou ideologia, nem precisamente pelo conteúdo que transmite, ensina ainda Rancière (2010). Ela é política na medida em que modifica as relações entre formas sensíveis e diferentes regimes de significação e, sobretudo, enquanto prospecta “maneiras do estar junto

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ou separado, fora ou dentro, face a face ou no meio de”. Nesse sentido, o filósofo vai dizer que a política bem antes de ser o exercício de um poder ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de “ocupações comuns”; é o conflito para determinar os objetos que fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou não delas, etc. (RANCIÈRE, 2010, p. 46).

Assim, as zonas de indeterminação entre arte e jornalismo são uma instância privilegiada para pensar o “dissenso”, o que irrompe o visível, desestabilizando-o com o abalo do que ainda não tem parte ou não tomou parte. “Enquanto a forma estética do dissenso redistribui a ordem do sensível, a forma política reorganiza o mundo em comum e os vetores de igualdade que atravessam o social”, aponta o filósofo Gabriel Giorgi (2011, p. 200). Sujeitos e vozes desviantes das ruas comparecem às produções do artista-repórter embarcado pelo seu tempo no sofrimento e na vitalidade dos coletivos aos quais se conecta em sua dimensão pública e política. Ao fazer a partilha do sensível, as artes ensaiam essa redistribuição e reorganização da ordem do visível com estéticas que atuam reconfigurando o tecido da experiência. Entram em cena perspectivas que escapam aos modelos de pensamento aos quais o jornalismo normatizado adere sem crítica. “O estético coincide com esse contorno ou essa abertura na qual a materialidade do sensível impacta e reordena uma ordem dada de significações” (Giorgi, 2011, p. 200). Nos protestos de rua, os corpos operam como mídias de resistência, ao mesmo tempo de expressão artística e de liberdade política, disputando lugar para a parte do dissenso. Repercutem na voz, na pele, nas posturas, roupas e indumentárias, no batuque dos tambores ou nos penteados, não só a revolta, mas a alegria do encontro nas ruas. No corpo político da multidão como classe revolucionária que faz todo corpo ser também uma multidão (Negri, 2004) reivindicando seu direito às múltiplas subjetividades, o movimento feminista respira como articulador principal de uma transformadora rede de alianças. As possibilidades de pensar o funcionamento do corpo como mídia estão dadas por fontes teóricas diversas que desenvolvo em minha pesquisa pós-doutoral. Em Investigação da mídia, Harry Pross (1972) já estabelece o corpo como mídia primária, classificação retomada por Baitello (1999). Donna Haraway (2000) aponta para a noção de corpo-mídia ao postular o feminino como um constructo de subjetividades heterogêneas, nas quais o biológico, o tecnológico, o cultural e o político estão intersectados de modo inseparável. Na grande mídia dos protestos de rua, corpos femininos comunicam definições biológicas modificadas por escolhas culturais e políticas inscritas como tecnologias de gênero (Lauretis, 2019). Reelaborados com arte e informação, cobertos de dispositivos extracorpóreos, são eles mesmos intervenções urbanas de arte-mídia. Como

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes locus de produção de sentidos, manifestam posições de pertencimento, disputam narrativas e reivindicam o direito a subjetividades dissidentes. Muito mais do que suportes de mensagem, formam uma rede complexa de comunicação e cruzamentos de informações. O corpo das revoluções se politiza como lugar de produção de narrativas contrapostas à do colonizador. Ao integrar uma mitologia das revoluções, os corpos resistem à violação, controle e disciplinamento pelo poder. Nessa perspectiva fabulatória, proponho pensar narrativas jornalísticas em torno da ocupação feminista na América do Sul a partir das revoltas do Chile.

Las Tesis: narrativa coreografada nas ruas As jornadas feministas que eclodem nas ruas do Chile no prolongamento das revoltas iniciadas em 18 de outubro de 2019 carregam uma experiência de resistência das mais fortes no campo da arte-mídia. Nesse campo minado, a intersecção entre arte, mídia e política pode explicar a forma potente e veloz como a performance Un estuprador en tu camiño rompeu a partir do Chile um espaço mundial para ocupação e encenação das lutas feministas. Las Tesis, o grupo que a encenou, foi criado apenas um ano antes da sua estreia em Valparaíso por quatro mulheres: Sibila Sotomayor e Dafne Valdés, a desenhista Paula Cometa e a figurinista Lea Cáceres. As artistas cênicas tinham o propósito definido de “traduzir teses de autoras feministas” pela linguagem da performance para alcançar uma “múltipla audiência” e assim aproximar a academia do cotidiano vivo das mulheres, conforme Paula Cometa em entrevista à repórter Ana Pais da BBC News Brasil (2019). O apagamento das perspectivas feministas pela grande mídia, qualificada como mídia do patriarcado, ou do capital pelas teóricas da decolonialidade, esteve no cerne dessa denúncia. Segato (2016) mostra que a marginalização dos feminismos ocorre pelo mascaramento da centralidade do patriarcado como pilar edificante de todos os poderes. Esse sexismo estruturante determina o paradigma patriarcal masculino como universal, central e público, e, em contraposição, marginaliza o residual do pensamento masculino como assunto particular, restrito aos grupos feministas. Isso explica, segundo a autora, por que a violência contra mulheres e os feminicídios não encontram lugar central no Direito, nos meios de comunicação e consequentemente na opinião pública. Foi através das mídias de resistência e redes sociais dos próprios movimentos feministas que Las Tesis alastrou a performance e se impôs como acontecimento no campo da notícia por sua visibilidade inegável no espaço urbano. Na própria grande mídia as artistas imiscuíram uma crítica metalinguística ao falar sobre as estratégias feministas de perfuração do bloqueio da mídia do capital. Contam as integrantes que se preparavam para apresentar a performance femi-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes nista no dia 24 de outubro em uma universidade, quando as jornadas contra o governo neoliberal eclodiram na capital, catalisando os protestos nas ruas de Santiago. A apresentação foi então reprogramada para o bojo das manifestações de 25 de novembro, Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, em Santiago. Todavia, a necessidade de denunciar os crimes de violência política do governo de Sebastián Piñera, facilitados pela declaração de estado de emergência e toque de recolher, precipitaram sua encenação fora da capital chilena. A denúncia dos incontáveis abusos de poder durante os protestos chilenos que exigiam a renúncia do presidente precisava vencer a tirania do noticiário jornalístico e ganhar o mundo, reverberando pelos movimentos feministas e organismos em defesa dos direitos humanos. No cômputo parcial do mês de novembro, o Instituto Nacional de Direitos Humanos1 registrava a morte de 23 manifestantes, fotógrafos e repórteres, vítimas de violência policial, além de mais de dois mil feridos. O mesmo INDH computou 467 casos de lesões oculares provocados pela ação policial, 152 com perda total da visão em um dos dois olhos, somando os ataques ocorridos contra manifestantes de outubro de 2019 a fevereiro de 2020. Entre eles estão o estudante de Psicologia Gustavo Gatica, que foi atacado quando fotografava a repressão policial, e a ativista social Fabíola Campillay, que igualmente ficou cega dos dois olhos ao receber uma bomba de gás lacrimogêneo da polícia no rosto. As estratégias criadas pelos movimentos feministas para mundializar o protesto do Las Tesis e criar sua própria caixa de ressonância encerra uma grande lição para as narrativas dissidentes: ajudaram a alcançar uma repercussão para os crimes subnoticiados ou obscurecidos pela grande mídia nacional. Através de veículos como o El País, BBC News Mundo, NYT, reproduzidos em vários continentes, mulheres de todo o mundo puderam conhecer o processo de construção do acontecimento dessa performance. Com o imperativo de ir às ruas diante da explosão dos crimes de violência política e de violação sexual de mulheres, a performance estreou na praça Aníbal Pinto, em Valparaíso, em 20 de novembro. Nasceu pequena, no contexto de uma mostra de apresentações promovida pela Companhia de Teatro La Peste alusiva à semana do Dia contra a Violência da Mulher, conforme as organizadoras. Paula Cometa conta como 20 mulheres da estreia se multiplicaram em milhares, dispostas em cordões que se perderam de vista no Chile e pelo mundo afora. Depois de Valparaíso, por causa dos registros (em vídeo), pessoas de outras regiões do Chile começaram a entrar em contato perguntando se poderíamos ir a Temuco, Valdivia e outros lugares. Mas, na verdade, era muito difícil para a gente conseguir ir a todos esses lugares coordenar a intervenção. [..] Quando nos ligaram de Santiago, decidimos ir, aproveitando a data de 25 (de novembro). Fizemos a convocação no fim de semana e (na segunda-feira) 1 Um protesto de três milhões de pessoas convocado pelo 8M Chile deste ano denunciou nas ruas de Santiago a preferência dos carabineiros (policiais chilenos militarizados) por atirar na cabeça dos manifestantes, atingindo os olhos pelos quais jornalistas, fotógrafos e ativistas se fazem testemunhas e narradores da violência de Estado (Brasil de Fato, 2020).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes havia cerca de 100 pessoas, às quais foram se juntando muitas outras na mesma intervenção na rua. (BBC News Mundo, 2019).

Valendo-se das redes sociais e da capilaridade do movimento feminista, o protesto se alastrou por todo Chile e quase simultaneamente para dezenas de países de outros continentes. A partir dos registros em vídeo da apresentação inaugural, que circulou entre os coletivos feministas, as coreógrafas compartilharam a letra e a melodia da performance para que cada território pudesse transformá-la. As decisões estéticas sobre a performance e o conteúdo da letra se inspiram e se fundamentam em textos de duas pensadoras incontornáveis para os estudos feministas, como as próprias organizadoras declararam à mídia independente e de mercado. A primeira teórica é a filósofa ítalo-americana Sívia Federici, autora de O Calibã e a Bruxa, que traz uma investigação epistemológica dissidente da própria narrativa marxista-leninista, encerrada na obra de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Lançado em 2004, no original em inglês, o livro de Federici localiza a discriminação da mulher na sociedade capitalista não como legado de um mundo pré-moderno, mas como formação intrínseca ao próprio capitalismo, que desemboca na colonização da América, explorando índios, negros escravizados e o campesinato expulso da Europa. Segundo essa tese, a diferença hierárquica se baseia no controle do corpo feminino e na exploração das atividades domésticas não remuneradas destinadas a criar as condições de reprodução gratuita da força de trabalho para a indústria. O esquema interpretativo de Federici encontra sua chave na execução de centenas de “bruxas”, que ela localiza não no apagar das luzes da Idade Média, como se apregoa, mas justamente no alvorecer do capitalismo. Essa perseguição aponta para uma relação entre a caça às bruxas e a divisão sexual do trabalho, na qual a sujeição da mulher ao homem aparece como instrumento da exploração de classes. A apropriação da sua capacidade reprodutiva torna-se condição de florescimento do capitalismo patriarcal. A segunda fonte da performance é a antropóloga argentina Rita Laura Segato, investigadora das questões sobre relações e violência de gênero, racismo e colonialidade entre povos indígenas e comunidades latino-americanas, autora de vasta e importante obra dentro dos estudos decolonialistas. Professora na Universidade de Brasília, Segato (2003) defende que a máquina abstrata e invisível do patriarcado confere aos homens o que ela chama de “mandato do estupro”. Esse mandato autoriza homens a exercerem o direito de posse do corpo feminino, numa espécie de pacto silencioso de irmandade que emana das “estruturas elementares da violência”, conceito que ela desenvolveu em sua tese de doutorado sobre a rede de feminicídios em Ciudad Juarez, no México. Segundo esse conceito, a violência sexual inscreve-se nas sociedades patriarcais como um crime de abuso de

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes poder. A autora busca desmitificar a ideia do estupro como patologia psíquica, e do estuprador como sujeito que desenvolve esse distúrbio por prazer sexual. E ao abordar na grande mídia questões estruturantes como o mandato do estupro, as feministas de Las Tesis tocaram em um conhecimento apagado das narrativas midiáticas que de outra forma não teria lugar para o jornalismo. Fora dos círculos acadêmicos e feministas, epistemologias dissidentes caem na vala desprezada dos discursos engajados, antes de chegar ao público dos grandes veículos. São tratadas como se dissessem respeito somente a um grupelho particular de mulheres, quando o feminismo é talvez a mais inclusiva das lutas porque fala a todas as quebras no continuum da espécie humana, desde a fratura entre homens e animais (Lugones, 2016). No cenário de lutas contra um Estado que estimula e valida a destituição dos direitos das mulheres e a violação dos seus corpos, o manifesto tem a propriedade de dar um sentido vivido à relação estruturante entre o machismo e o colonialismo patriarcal. Essa relação pesquisada e defendida pelo pensamento decolonialista há pelo menos três décadas ganha força de experiência cultural. A cada apresentação, esse saber se torna mais acessível também para o público, impactado pela presença sensível dos corpos femininos cobertos de palavras de ordem e signos das bandeiras feministas. Espaços públicos são tomados pelo entusiasmo raivoso e catártico do coral heterogêneo de mulheres que recusam, na firmeza gestual e verbal da violência simbólica revolucionária, a universalização do tipo feminino como um sujeito funcional para o capitalismo. A primeira tarefa da dança é libertar as vítimas de estupro da culpabilização: “E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia”. Cobertas de preto, de shorts e tops, de saias ou vestidos coloridos, adaptadas aos costumes e clima de cada região, elas erguem juntas os braços em punho e balançam as mãos dadas no ar, renovando o pacto de sororidade. E, finalmente, largam os braços à frente do peito, apontam destemidas os braços para o público e é como se nesse gesto libertário descarregassem dos ombros toda culpa imposta pelo coliseu social, devolvendo-a à mentalidade colonialista:

O estuprador é você (ou “eras tu”, no Sul do Brasil) O Estado opressor é um macho estuprador.

A letra faz referência ao desaparecimento de manifestantes nos protestos anteriores do Chile, que enfrentaram a onda de violência de Estado, especialmente praticada por policiais. No final de novembro, a organização Humans Rights Watch já havia registrado 71 denúncias de abuso sexual e 11 mil casos de manifestantes levadas aos hospitais (Carta Capital online, 2020). Já o Instituto Nacional dos Direitos Humanos do Chile acumulava 88 denúncias de violência sexual e 458 por tortura e tratamento cruel, num total de 830 vítimas representadas em queixas-crime, entre homens, mulheres e

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes crianças, incluindo assassinatos e tentativas de homicídio. Apesar dos testemunhos recolhidos pela Human Rights, o presidente continuou desmentindo as violações cometidas pelos carabineiros. Esse negacionismo, muito em voga entre governos neofascistas e neoliberais, produziu uma inversão de linguagem e de sentido que tem sido uma constante nas manifestações. Dentro da Linguística e da Análise do Discurso, o jornalismo é caracterizado pela informação, precisão, objetividade e pela linguagem referencial ou denotativa, enquanto a arte é marcada pelo sentido implícito, ambiguidade e polissemia. Na impossibilidade de se respaldar em narrativas jornalísticas oficiais, confirmadas pelas autoridades de Estado, uma vez que investigadores coincidem com os suspeitos dos crimes, segundo as estudiosas, a performance nomeia os assassinos, já conhecidos pela esfera pública. Estimuladas por essas autoras, as integrantes do Las Tesis começaram a pesquisar sobre violência sexual, homicídios e estupros especificamente no Chile. “Constatamos que as denúncias desse tipo se esvaem na justiça”. (BBC Mundo, 2019). Respaldada na compreensão do funcionamento da violência patriarcal, a letra acusa pausadamente, um a um, quem são os “machos estupradores”.

O estuprador era você. O estuprador é você. São os policiais, os juízes, o estado, o Presidente.

Dispostas em filas horizontais e verticais, panuelos na cabeça, apitos, vendas pretas nos olhos e marcas de espancamento pintadas na pele, os corpos-estandartes de signos e dizeres operam como mídia, onde a rua também é mídia. Os corpos expressam sofrimento, revolta, compaixão, desejos de mudança e liberdade. Comunicam seu engajamento e pedem adesão do público. Nas manifestações do “Ni una menos”, deflagradas na Argentina, do “Ele Não”, no Brasil, ou dos levantes chilenos, as ruas da resistência feminista tornam-se um platô horizontal que unifica a pesquisadora da academia, a trabalhadora braçal, rural e urbana, a liderança indígena, quilombola, sindical. As lutadoras buscam coalizão na afirmação da diferença que a epistemologia colonial apagou: O que estou propondo ao trabalhar em direção a um feminismo decolonial é aprender uma com a outra como resistentes à colonialidade de gênero na diferença colonial, sem necessariamente ser um membro dos mundos de significado dos quais surge a resistência à colonialidade. Ou seja, a tarefa da feminista decolonial começa por enxergar a diferença colonial, resistindo enfaticamente ao seu hábito epistemológico de apagá-la. Ao vê-la, ela vê o mundo de novo e, em seguida, exige que ela abandone seu encantamento com a “mulher”, o universal, e começa a aprender sobre outros resistentes à diferença colonial. (Lugones, 2010, p 753. Tradução minha)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Essa perspectiva exige superar a visão colonialista, recusando o olhar para as minorias como objeto de estudo. Em vez disso, propõe situar a pesquisadora no ponto de coalizão de uma rede de subjetividades heterogêneas que se agregam na arena da luta física e simbólica que abarca a disputa de narrativas, como propõe Lugones (2010, 753).

A leitura avança contra a leitura sócio-científica objetificante, tentando mais do que entender os sujeitos, a subjetividade ativa enfatizada, à medida que procura o locus fraturado em resistência à colonialidade de gênero em um ponto de partida de coalizão. Ao pensar no ponto de partida como coalizivo, porque o locus fraturado é comum, as histórias de resistência na diferença colonial são onde precisamos habitar, aprendendo uma sobre o outra. (Tradução Minha)

Encenados e gravados os manifestos feministas circulam das avenidas, praças, parlamentos para as redes sociais, mirando o colonialismo moderno no seu cérebro: o Estado e seus braços no Judiciário, nos aparatos policiais de violência e nos meios de comunicação que atuam para formar uma opinião pública cúmplice. Os versos do hino feminista ecoam o pensamento de Segato (RIHU, 2020), que alcança sua síntese paradigmática: “O patriarcado não deve ser visto como uma cultura, mas como uma ordem política”. O mecanismo patriarcal se baseia na propriedade do corpo feminino pelos grandes concentradores de riqueza que decidem também sobre a vida e a morte, como acentua a antropóloga. “A política machista nunca foi tão funcional para o Estado capitalista”, pontua Segato. Por isso, sustenta que crimes sexuais contra mulheres são crimes políticos, da ordem patriarcal. Não devem continuar a ser tratados pela justiça e pela mídia de forma despolitizada, como crimes de libido e desejo, sob a ótica da moralidade. É a mensagem da performance: O patriarcado é um juiz que nos julga ao nascer e nosso castigo é a violência que não se vê

O resultado crítico dos protestos feministas alavancados nos últimos quatro anos no mundo mostram que as ações do neoliberalismo destroem as perspectivas de vida digna para mulheres ao promover o desmonte das políticas públicas. Por isso as ruas se tornaram esse platô de alianças que reivindicam o direito ao trabalho, previdência social, saúde, segurança transporte, cultura, conhecimento, meio ambiente, moradia. A complexidade dessa guerra leva o feminismo a se posicionar no ponto de intersecção entre raça, etnia, classe, gênero e sexualidade, onde as minorias em luta formam uma grande maioria.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes El Mimo da luta: morte e mito na narrativa das revoluções Popularmente conhecida como “El Mimo” ou “La Mimo”, a artista de rua Daniela Carrasco, 36 anos, desapareceu em data imprecisa em torno dos protestos do dia 18. Seu corpo foi encontrado na madrugada de 20 de outubro por moradores da comunidade de Pedro Aguirre Cerda, em uma praça pública de Santiago. Jazia enforcada, amarrada e pendurada como um palhaço de pano junto à grade do Parque André Jarlam. No vácuo entre o desaparecimento da atriz e a confirmação da sua morte com a descoberta do cadáver, uma narrativa coletiva começou a ser formada, vinda de várias direções. Veio para refutar a alegação de suicídio pela polícia na tentativa de encobrir o assassinato. A versão de que Daniela havia sido assassinada com requintes de crueldade pela polícia nacional do Chile ganhou eco quando um morador local filmou o corpo enforcado e afirmou que vizinhos viram carabineiros prenderem a mímica ao final das manifestações do dia 18. Segundo se espalhou nas redes sociais, o corpo apresentava sinais de estupro e tortura até a morte. Outros vizinhos fizeram postagens nas redes sociais replicando essa narrativa e acrescentando que a polícia pendurara o corpo na grade para servir de exemplo à comunidade de Pedro Aguirre e intimidar as manifestações chilenas. A lenda urbana logo ganhou vida própria. Um elemento forte atribuiu verossimilhança à história quando outra ativista produziu uma imagem que foi colada à da vítima ainda viva, participando dos protestos. Esse índice de continuidade e aferição do real surgiu quando a estudante de teatro Ritha Pino, da Rede de Atrizes, saiu às ruas na manifestação de 12 de novembro vestida de palhacinha, à maneira de Daniela Carrasco. A intenção não era criar uma imagem falsa, mas homenagear a artista, como a própria Ritha esclareceria aos sites de checagem de notícias. Pedindo justiça para a mímica morta, ela mesma publicou um post em suas redes sociais com um vídeo da intervenção e duas fotos suas com o olhar triste da palhacinha que viralizou como emblema de uma juventude cujas ilusões de democracia e justiça social se perdiam novamente na violência do neoliberalismo. A imagem melancólica da performer trouxe o elemento que faltava para que a lenda se alastrasse, sem poder mais ser desmentida. Outros artistas ligados à resistência fizeram postagens em suas redes sociais replicando a denúncia. Esses registros, copiados e descontextualizados por outras manifestações nas redes sociais, viralizaram como mito em vários países e sites de notícias do mundo, acompanhadas de textos de profunda comoção, informando que se tratava da última imagem da artivista ainda com vida. Simultaneamente, outras homenagens, de outros artistas ligados à resistência inundaram as redes sociais. O rosto onírico da artista já se tornava um ícone em cards, cartazes, charges, faixas nas ruas do Chile, reproduzidos em posts das redes sociais replicados pelo noticiário mundial. A própria coordenação do 8M referendou a história ao realizar um ato em memória da artivista, um mês depois de sua morte, cujos motivos não foram justificados pela polícia. Líderes feministas deram um de-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes poimento pedindo justiça para a mártir das revoltas. Na postagem dos canais do 8M Chile, uma faixa fixada na grade do parque Jarlam a declarava “vítima do Estado assassino”. Eternizada pelo rosto performático de Ritha, La Mimo se tornou um símbolo e um motor da luta no Chile. Das redes sociais, a história do desaparecimento e estupro de Daniela Carrasco voltou para as ruas como matéria do teatro da tragédia escondida por baixo do cotidiano. Ela é citada dentro da letra e da coreografia do Las Tesis como singularização universal do conjunto de episódios de desaparecimentos forçados, morte e violência sexual praticados pela ditadura militar e repetidos nas revoltas de 2019 pelas forças do “Pinochet do neoliberalismo”, como Piñera passou a ser cunhado nas ruas da resistência. Canta o hino: O patriarcado é um juiz que nos julga por nascer, e nosso castigo é a violência que você já vê É feminicídio. Impunidade para meu assassino. É o desaparecimento. É o estupro.

Fortalecida pelo pacto do silêncio nutritivo em torno dos indícios de suicídio que cercavam a morte de Mimo, a narrativa gerou comoção pública não só no Chile, mas também em toda a América do Sul, EUA, Europa. Rodou muito pelo mundo até começar a ser oficialmente desmentida como fato pelas autoridades, pela grande mídia e pela Associação de Advogadas Feministas, que assumiu o processo em nome da família. Tentando atribuir uma causa para a cena do cadáver, sem o devido critério e averiguação, a narrativa associa a morte da artista a detalhes de outros crimes igualmente obscuros, relacionados à violenta repressão que se instalava no Chile. Alimenta-se naturalmente no inconsciente coletivo de um povo ainda traumatizado pelas atrocidades da ditadura militar. Em 3 de dezembro, a Agence France-Presse (AFP, 2019) publicou, no seu site de checagem de fatos, um contundente desmentido, provando que a foto não era da artista morta. A agência baseou-se em vários testemunhos das advogadas voluntárias e da própria estudante de teatro, que justificou a homenagem como um grito por justiça. Também afastou a hipótese da prisão por policiais, do assassinato e do estupro, apoiada em depoimentos das advogadas e de agentes oficiais baseados em laudo pericial. Segundo todos eles, a morte da artista continuava sendo investigada como suicídio, sem ajuda de terceiros e sem “indícios claros de violência sexual”, embora a própria checagem mostrasse a obscuridade das informações do Serviço Médico Legal

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes do Chile e da Procuradoria Legal Metropolitana, responsável pelo inquérito. Com o carimbo de notícia falsa e um X em vermelho sobre a foto da palhacinha no alto da página, a verificação inibiu o acompanhamento do resultado das investigações do inquérito pela mídia, cuja conclusão se desconhece. O desmentido como fake news, reproduzido e reverberado em vários outros sites internacionais de checagem de fatos – na Itália, França, Estados Unidos –, teve um efeito desmobilizador. Cessaram as cobranças em torno das condições da morte da atriz no contexto das revoltas chilenas, seja ela suicídio ou assassinato, com ou sem tortura e violência sexual. Com a lenda de La Mimo quero chamar atenção para aspectos do contexto político e do sofrimento físico e emocional vivido pelo povo chileno nos protestos de 2019 que transformam e desafiam a narrativa jornalística. Imagens ao vivo que chocaram o mundo com cenas da violência estatal exercida contra manifestantes, justificam a verossimilhança, entendida como aparência de verdade conferida à narrativa coletivamente “inventada”. Uma narrativa sobre o sequestro, tortura, violação sexual e assassinato de uma atriz por carabineiros do Exército chileno que os desmentidos não conseguiram apagar do imaginário popular não pode ser reduzida a fake news. É preciso encontrar instrumentos de análise menos empobrecedores para examinar a exegese que interliga cenas ocorridas em tempos e contextos diferentes da violência política do Chile para dar sentido a uma morte sem sentido. Ainda que tenha ocorrido invenções ou mesmo mentiras no seu percurso, a história de Mimo se apresenta para o jornalismo não apenas como uma fake news a ser “cancelada”, mas como narrativa midiática e mitológica das lutas políticas deste tempo que fazem sentido ao imaginário coletivo. Nessa condição, desafia a dimensão simbólico-mítica de um jornalismo que pode ser pensado de modo mais amplo como “exercício de entendimento do mundo”, de acordo com a proposta de Gislene Silva (2005) em rastreamento dos estudos de jornalismo. Seu inventário mostra que, enquanto “produtor de conhecimentos” e não apenas “forma de conhecimento da realidade”, o trabalho jornalístico vai muito além da percepção racional do mundo a partir da averiguação e reflexão crítica dos fatos. O jornalismo pode ser visto

como construção de sentido, com destaque para duas vertentes, a da construção social da realidade, incluindo os estudos sobre cotidiano e senso comum, e a da percepção do jornalismo como narrativa, em sua dimensão simbólico-mítica e em sua relação com os estudos do imaginário.

A violência política no Chile instalou um momento em que as multidões precisavam de uma narrativa para compreender o horror e revertê-lo como dínamo da luta de classes, em vez de se render à paralisia do medo. A lenda cresceu no fermento das lacunas, ausências de nexos que o pacto do silêncio sobre o suicídio entre a família e a polícia não permitia povoar.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Em primeiro lugar, o imaginário coletivo precisava de um rosto para o corpo pendurado na grade, de costas, inerte como um espantalho desfalecido. Estava à procura do nexo de tempo entre o antes e depois da morte. O contato com a vitalidade de um ser é necessário para se contrapor à imagem do seu desaparecimento. Sem isso, o corpo morto é só um fantasma a ser esquecido. Era preciso a foto da atriz viva para dar sentido a esse sacrifício e preencher a necessária relação de tempo entre a vida e a morte. A representação performática do rosto de Mimo, deu à história a materialidade que o imaginário coletivo buscava e nutriu a repercussão política que essa morte ensejava no cenário do Chile.

Considerações finais Em Sobrevivência dos Vaga-lumes, Didi-Huberman (2011, p. 52) se vale da metáfora de Pasolini, para falar da imagem sobrevivente dos povos. “É preciso vê-los dançar vivos no meio da noite”. A comoção pública precisa acessar a imagem sobrevivente desse corpo, em sua plena vitalidade, para materializar e qualificar o seu desaparecimento. Impossível não ouvir os ecos de Deleuze e Guattari sobre as “zonas femininas” de desvio do pensamento masculino e associá-los a uma filosofia decolonialista. Fabulação, no conceito deleuziano, é máquina de guerra política de um povo menor, colonizado do ponto de vista da cultura ou porque suas histórias vêm de outros lugares ou porque seus mitos foram colocados a serviço da língua do colonizador. Que resta ao autor então para não estar ao lado dos “senhores” e para não perpetuar nenhuma autoridade hierárquica advinda de seu lugar dominante de escritor ou pesquisador?, pergunto e respondo com a saliva de Deleuze (2013): Nem se fazer de etnólogo do povo nem inventar uma ficção pessoal que seria uma história privada, mas fazer o imaginário transbordar de significados políticos e coletivos, responde ele, fazendo derivar seu conceito de “literatura menor”, o que poderíamos conectar à ideia de narrativas dissidentes. Resta, segundo o filósofo, a possibilidade de tomar personagens reais e não fictícias, mas colocando-as em condição de “ficcionar” por si próprias, de “criar lendas”, de “fabular”.

O autor dá um passo no rumo de suas personagens, mas as personagens dão um passo rumo ao autor: duplo devir. A fabulação não é um mito impessoal, mas também não é ficção pessoal: é uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca para de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política, e produz, ela própria, enunciados coletivos (DELEUZE, 2013, p. 264).

É no campo da fabulação coletiva, da resistência colonialista e da dimensão míticasimbólica do jornalismo que a história de La Mimo e a viralização da performance “El violador eres tu” se afirmam como uma narrativa popular no campo da arte-notícia. Nesse sentido, a narrativa das revoluções não deve ser examinada sob o critério do

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes regime de verdade e mentira do jornalismo de fatos, extremamente empobrecedor e inadequado. Fora desse regime, o tecido do imaginário traz à lembrança de um povo que nas ruas produz histórias para continuar resistindo. Ele se autofabula. E nesse processo próprio da saúde revolucionária, as multidões encontram no gesto libertador da culpa pelo estupro da performance ou no sacrifício de Mimo, a singularização de sua história coletiva para não se sujeitar à história do colonizador. Ficamos aqui com a última palavra de Rita, a atriz que ajudou a criar uma imagem para Daniela Carrasco e com isso o povo lhe deu a sobrevida mítica que alimentou a resistência chilena: “Se for confirmado que ela se suicidou, ela é uma vítima do Estado também porque nós artistas e jovens não temos acesso a plano de saúde” (AFP, 2019). “Un violador em tu camiño”, ou “Um estuprador no teu caminho”, como a intervenção foi traduzida no Brasil, brotou como a “flor roja” do Chile no cenário da repressão às revoltas contra a crueldade social e econômica do neoliberalismo. Veio para denunciar a explosão de casos de feminicídio e estupros no contexto da onda conservadora na América do Sul. Na disputa com o pensamento colonialista que realimenta a violência patriarcal, impulsionou um acontecimento de repercussão internacional que fortaleceu as teorias decolonialistas como laboratório de lutas e produção de novas epistemologias. Levando as teorias feministas para a cena viva das ruas, retomou a conexão fundamental da arte e da teoria com a vida. A coalizão entre arte e jornalismo para transpor ódio político ajudou a criar narrativas dissidentes dentro das estratégias decolonialistas que realisticamente valorizam esse protagonismo feminista. Professora emérita da Universidade de Brasília, Segato adverte que a violência de gênero é o laboratório ou a incubadora de todas as outras formas de violência, pelas quais o estuprador se respalda em uma fraternidade masculina para o funcionamento do que ela chama de “corporativismo masculino”. Essa fraternidade se articula a uma rede de opressões hierárquicas da mesma ordem que autoriza o racismo, a homofobia, o especismo ou a xenofobia. Inabilitar o patriarcado, portanto, implica desequilibrar todas as estruturas de dominação e todas as hierarquias da sociedade. E, portanto, na esteira desse pensamento, lutar contra o machismo é lutar não só pelo fim da violência contra as mulheres, mas para que parem todas as guerras.

Referências AFP CHECAMOS. Esta mulher é uma estudante de teatro que homenageou uma artista de rua morta em Santiago. (Valentina de Marval). Publicado em: 03 dez. 2019. Disponível em: https://checamos.afp.com/esta-mulher-e-uma-estudante-deteatro-que-homenageou-uma-artista-de-rua-morta-em-santiago

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MADAME SATÃ: O SERTÃO E A VIDA ORDINÁRIA NA POÉTICA DE KARIM AÏNOUZ Márcia Gomes Marques Iago Porfírio

Introdução Depois de mais de uma década de florescimento contínuo do cinema brasileiro, especialmente do chamado período da “retomada” da produção cinematográfica, temse como saldo diretores e filmes que vêm se destacando nos circuitos de festivais nacionais e internacionais de audiovisual, com propostas que se voltam para a realidade social do país e refletem sobre os desafios enfrentados pelo sujeito contemporâneo. Entre esses diretores está Karim Aïnouz, que desenvolveu um estilo em relação à realização cinematográfica no qual se manifestam traços temáticos e expressivos, entre os quais cabe destacar a presença marcante do feminino e a ênfase no tratamento da vida ordinária no Brasil dos séculos XX e XXI. Esses elementos podem ser percebidos desde as primeiras produções de Aïnouz, em seus curtas-metragens realizados a partir da década de 1990, como experimento de inserção no mercado do audiovisual nacional e internacional, que se atêm ao ordinário, à experiência de vida de sujeitos comuns desde seus aspectos miúdos e corriqueiros, mas dotados de sentido e relevantes em seus percursos identitários. O trabalho de Aïnouz discute a questão do pertencimento a partir da vida de pessoas que, mostrando desconforto e desajuste com as situações em que se encontram, não têm poder para reordenar os seus entornos desde seus termos e aspirações. Seus protagonistas agem taticamente, e, no dizer de Certeau (2007, p.101), “a tática é a arte do fraco”, dos que se movem no campo do outro, que não têm domínio dos códigos nem força para ditar as regras e condições de funcionamento dos espaços sociais em que se encontram ou que almejam inserir-se. Outro aspecto importante na caracterização dos personagens é o debate sobre os projetos identitários em uma perspectiva não essencialista, cuja construção se dá, por vezes, em pedaços, ou mesmo a partir de figuras despersonificadas pela ausência. O cineasta delineia sua representação em uma perspectiva multicultural crítica (Kellner, 2001), discutindo as disparidades de poder desde o enfoque no gênero, na raça e na classe social, de

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes maneira a dar a ver certa “paridade representativa” em suas obras, com a presença de mulheres abandonadas, homossexuais, homens travestidos e famílias que fogem ao padrão normativo tradicional, apresentando uma performance dos personagens que desfaz “a rigidez da identidade sexual” (Stam, 2003, p. 292). As personagens de Aïnouz se desterritorializam e trazem a discussão sobre o ter para si um horizonte de vida (algumas vezes percebido como impossibilidade) e começar a vislumbrar um outro, sobre a decisão ou a circunstância de ter que deixar para trás o que se tinha até então em um lugar e o passar a transitar por aí. Trazem à tona, por isso, os conflitos relacionados ao processo de reterritorialização, na perspectiva de Deleuze e Guattari (1997), do movimento de retirada ou de abandono (ação tática) do território, uma “operação de linha de fuga”, para então se reterritorializar, o que implica voltar a construir outro território significante. Roteiriza a vida ordinária, pois “en las formas de vida el conocimiento tiene lugar en el mundo de la vida, a través del sujeto entendido como vida (el cuerpo, el interés de clase, el consciente, la voluntad de poder)” (Lash, 2005, p. 42). Nessa perspectiva, trabalha os deslocamentos e corpos em movimento na urdidura da realidade social brasileira, onde se performam formas de vida (Brasil, 2010) em seu “ambiente imediato”, ou no “‘pequeño’ mundo suyo” de escolha, onde a vida cotidiana se desenvolve (Heller, 1998), e a dimensão representacional que assume, na imagem, o lugar de performance. Ao lado de importantes nomes do cinema mais recente, entre os quais se pode citar Marcelo Gomes, Cláudio Assis, Lírio Ferreira, Guel Arraes, Eliane Café, Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles, Walter Salles, Aïnouz vem trabalhando aspectos representativos da vida ordinária no sertão brasileiro, ainda que sem focalizar necessariamente esse lugar social. Analisa-se dois curtas realizados nos anos 90 (Seams, 1993, e Paixão Nacional, 1994) e um dos anos 2000 (Rifa-me), que esboçam características estilísticas da obra de Aïnouz em um contexto de transformação para o cinema brasileiro. As situações disruptivas nas quais suas personagens se deparam são abordadas desde a perspectiva do drama do indivíduo, que é “sempre, simultaneamente, ser particular e ser genérico” (Heller, 2000), em operações cinematográficas que privilegiam a reflexão sobre as percepções de si e a interação com o entorno em um contexto de desarraigo e de não pertencimento. Como instância argumentativa, esses aspectos se veem associados ao trânsito, ao deslocamento como maneiras de buscar outras possibilidades de vida e saída para os dramas vivenciados, no qual se destaca a experiência do sertão desde os conflitos de desterritorialização, como primeira etapa para a formação de novos territórios culturais (Lull, 1995). Neste texto se põem em questão os traços que configuram a poética característica das obras do cineasta, já presentes em seus curtas-metragens e em seu primeiro longa, Madame Satã (2002), e demais realizações, como O Céu de Suely (2006), Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2010), de Marcelo Gomes e Aïnouz, Abismo Prateado (2014), Praia do Futuro (2014) e A Vida Invisível de Eurídice Gusmão

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (2019). Os curtas da década de 1990 constroem um conjunto de elementos que são retomados em seus longas, a começar por Madame Satã, a partir dos quais emerge o que vem a se constituir o estilo do cineasta e a estética de seus filmes, em planos de progressão dramática das personagens com suas ações representadas na diegese fílmica, onde os princípios que orientam as formas de vida se dão a partir da performance que se modula em sua dimensão representacional. A figuração da esfera do ordinário, como mundo da vida cotidiana e, portanto, fundamentalmente intersubjetivo (Schutz; Luckmann, 2003), vai da representação à experiência da imagem como lugar de performance, onde as formas de vida se experimentam e se inventam. Esse conceito se afina ao corpo performado (Brasil, 2010) do protagonista de Madame Satã, João (Lázaro Ramos), quando suas estratégias corporificadas confirmam o seu devir, constituído nos elementos de representação realçados pelas estratégias imagéticas de Aïnouz, como possível de observar em Hermila (Hermila Guedes), de O Céu de Suely. Neste texto, são discutidos os aspectos que manifestam os traços estilísticos, os recursos estéticos e as escolhas temáticas do cineasta a partir de Madame Satã e dos curtas indicados. A finalidade é a de configurar a proposta que se plasma, também em seus filmes seguintes, que realça uma poética da vida ordinária combinada com a questão do (não)pertencimento em um sertão associado a trajetórias de desterritorialização, destacando alguns filmes para “compor um quadro de análise” (Vayone; Goliot-Lété, 1994) das obras a partir de uma “desconstrução seletiva” destas.

O sertão nordestino do cinema novo ao contemporâneo O sertão e a favela são tidos, em um determinado momento do cinema brasileiro, como lugares onde é possível observar a realidade social, voltando-se para o cotidiano de ambientes marginalizados, como é possível de observar em 1935, com Favela dos Meus Amores (Humberto Mauro), e mesmo no período final da chanchada, com proposta de se voltar à realidade social, em Tudo Azul (Moacyr Fenelon, 1951) ou Também Somos Irmãos (José Carlos Burle, 1949), e das produções a partir de 1960. O Cinema Novo surge a partir de 1960 com a proposta de se voltar para o Brasil e olhar para o popular, de maneira a retratar, com uma estética de representação inspirada no neorrealismo italiano, a estrutura social, cultural e política do país em seu universo urbano e rural. Entre os filmes que marcam o nascimento do movimento com esta perspectiva, está Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964), Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e Cinco Vezes Favela (1962), com cinco histórias separadas e realizado por diretores ligados ao CPC (Centro de Cultura Popular) da UNE (União Nacional dos Estudantes), entre os quais Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros. A temática do sertão nordestino com os cinemanovistas traz para si o cangaço e o sertanejo, e é um momento da história da cinematografia brasileira, segundo Marcelo

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Dídimo (2001), em que o foque no Nordeste torna-se expressivo. Para este autor, o sertanejo é a alegoria que assume a estratégia de representar a vida miserável da caatinga, enfocada pela pobreza e permeada pela aspereza de sobreviver à seca e à fome, decorrentes das desigualdades sociais, como em Vidas Secas, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964), que constituem a expressividade do homem sertanejo e, neste último, plasmam a estética da violência – apresentada na súmula proposta por Rocha (1965)1 – sob o domínio das armas, não no sentido de estetização, senão da carga simbólica (Bentes, 2002) descrita de violência, pobreza e crime. Em meados da década de 1990, observa-se nova tendência de vasculhar e expressar as riquezas do Nordeste e da cultura nordestina no cinema. Trata-se da retomada das produções cinematográficas brasileiras após um período de intensa recessão para o cinema nacional, com a extinção de órgãos culturais e audiovisuais, como a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A). Esse período, que Lúcia Nagib (2002) compreende como o boom cinematográfico, conta com alguns exemplos expressivos sobre a representação do sertão no cinema da retomada, como Guerra de Canudos (Sérgio Rezende, 1996), Sertão das Memórias (José Araújo, 1996), Central do Brasil (Walter Salles, 1998), Corisco e Dadá (Rosemberg Cariry, 1996), Baile Perfumado (Lírio Ferreira, 1996), O Cangaceiro (Aníbal Massaini Neto, 1997), refilmagem do clássico homônimo de Lima Barreto (1953). A partir de 2000, o cinema pós-retomada (Nagib, 2002) redefine a expressão da vida sertaneja não somente pela busca da identidade e territorialidade em torno da vida miserável e violenta, mas também pela resistência diante das relações de poder vigentes, com personagens que estão em busca de si mesmos, travando lutas de alteridade em situações de desterritorialização. Cita-se, nesse contexto, Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005), Baixio das Bestas (Cláudio Assis, 2006), Cinema, Aspirinas e Urubus (Marcelo Gomes, 2005) ou O Caminho das Nuvens (Vicente Amorim, 2003). Esses filmes têm em comum o deslocamento físico, o mover-se como perspectiva reconciliadora com o lugar de onde se parte e, com efeito, o sentimento de não pertencimento a ele, como é possível observar em Hermila, em O Céu de Suely. Em outra perspectiva, Bacurau (2019), longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não propõe o desconforto das personagens com o próprio lugar: um município do sertão brasileiro, no interior do Rio Grande do Norte. As personagens unem-se no esforço para manter suas tradições vivas sob um misticismo político, utilizando-se da violência e da rebeldia como forma de resistência. Tal como em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), enfrentam o drama da falta de água na periferia rural e o entreguismo das elites, e combatem novas facetas do neocolonialismo estadunidense e suas relações pecuniárias com o poder público local. 1 Para Rocha (1965), em seu texto-manifesto Um Estética da Fome, a violência das imagens que propunha aos filmes cinemanovistas seria alternativa para romper com os estereótipos sobre a miséria, criando no limite do “intolerável” e do “insuportável”, segundo Bentes (2002), um afrontamento à percepção do espectador, de modo a provocar sua consciência crítica quanto à realidade social culturalmente violenta, sobretudo no sertão nordestino com os problemas agravados pela seca e fome.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Trazendo o sertão nordestino às telas do cinema em um cenário político como o que se plasmou nas eleições presidenciais de 2018, após ao golpe parlamentar da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles discute o Brasil de hoje e coloca o sertão como referência de rebeldia, como fez o cinema brasileiro de 1960. Bacurau cumpre a profecia de Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) – sem a alegoria deste –, proclamada pelo intelectual Paulo Martins, que incita à resistência ao golpe militar pela luta armada que, segundo ele, “será o começo de nossa história”. Na radicalização do “isolamento”, o sertão de Glauber Rocha é o mesmo do de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, mas distingue-se na organização como “cosmo fechado” e na autonomia do povo nordestino em suas “forças próprias” – desde a comunicação com os aparatos tecnológicos às forças místicas – que, separado do país, torna-se um espaço que representa a nação e sua realidade atual (Xavier, 2006).

O feminino, o sertão e a vida ordinária na obra de Karim Aïnouz O diretor estreia em 1993 com o curta-metragem Seams, que traz em primeiro plano temas como: inquietude feminina, sujeitos móveis, deslocamento, patriarcado, gênero e homossexualidade. O filme é parte realizado em Nova York, onde residia, e parte realizado em Fortaleza, Ceará, sua cidade natal, e é, de certa forma, um documentário autobiográfico. Nessa tessitura biográfica, Aïnouz entrevista sua avó e as filhas desta, que acompanharam sua infância e adolescência no Ceará, resgatando a visão feminina sobre temas como família, relações amorosas e o machismo estrutural da sociedade brasileira, em razão do qual as cinco mulheres renunciam à vida conjugal e apresentam seu ceticismo acerca do modelo de família patriarcal. O curta apresenta uma crítica a certo padrão de masculinidade a partir de figuras masculinas que se fazem presentes, no plano narrativo, como menção, em fotografias ou citadas nas histórias contadas. O masculino também é colocado em cena com a voz do narrador que, sem aparecer nas imagens, se manifesta em voz off2, a partir da qual não expressa opor-se ao ponto de vista das mulheres, que falam de si mesmas e sobre os homens da família, a cerca de como estiveram ausentes mesmo quando presentes em suas vidas, e corrobora a crítica a uma masculinidade que, segundo as personagens, não está suprimida somente em Seams, mas foi omissa para elas. O mesmo ocorre em Viajo porque Preciso..., narrado em voz off, onde a figura masculina desponta, novamente, pela “voz sem corpo”, na expressão de Mary Ann Doane (1983). Ao passo que problematiza o masculino a partir do ponto de vista crítico, o depoimento das cinco mulheres ressalta a tematização feminina nas obras do diretor: mulheres que relutam, dentre outros desconfortos, a desconsideração e a invisibilidade, e resistem aos cerceamentos ocasionados por uma sociedade machista e conservadora, como em O Céu de Suely, Abismo Prateado (2013) e, mais recentemente, A 2 Voz de Fernando Pinto.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Vida Invisível de Eurídice Gusmão (2019). A experiência feminina é abordada desde o cotidiano que “não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecimento histórico: é a verdadeira ‘essência’ da substância social” (Heller, 2000, p. 20). O cotidiano é interpelado, nesses casos, como lugar desde o qual o ser particular cria expectativas e traça seu percurso, cuja realização se dá em relação aos limites e possibilidades colocados pelas condições sociais concretas do contexto em que se insere, de modo que, a reprodução de si mesmo – enquanto ser particular – se dá sempre articulada a da sociedade, do indivíduo enquanto ser genérico, produto e expressão das relações sociais. Após Seams, Aïnouz lança a trilogia de curtas-metragens Paixão Nacional (1994), que traz o tema da mobilidade, do pertencimento e da “partida para outro lugar como urgência ontológica” (Costa, 2016, p. 80). O primeiro episódio, Paixão Nacional I – Choque Metabólico Irreversível, conta a história de um menino que trabalha como flanelinha e morre congelado, ao tentar fugir do Brasil desigual escondido no compartimento de um avião. No curta, o diretor anuncia seu estilo em personagens que estão presas em suas crises íntimas e precisam desviar de situações que as sufocam, sendo que a fuga é proposta como a alternativa vislumbrada para resolução dos conflitos, em uma figuração de formas de vida exposta a partir da vida ordinária sem espetáculo (Brasil, 2010). O aspecto da fuga não está somente na perspectiva dos dramas subjetivos, mas como elemento afetivo e geográfico do lugar onde se está, mesmo sem saber para onde ir: como Hermila (O Céu de Suely), que deseja comprar passagem somente de ida “para o lugar mais longe” dali. A fuga aparece, por outro lado, como saída para se livrar das lembranças de um amor que chegou ao fim, como Zé Renato (Irandhir Santos, Viajo Porque Preciso...) em sua espécie de expedição solitária pelo Nordeste brasileiro. Em 2000, é lançado Rifa-me, inspirado no cordel Rifa-se, de Abraão Batista, no qual Aïnouz antecipa o argumento de O Céu de Suely. Ana Paula sofre as consequências de um casamento opressor, em Quixeramobim, cidade do sertão cearense, e, para escapar dessa situação, rifa a si mesma, de modo a conseguir dinheiro para deixar a cidade. O prêmio será uma noite no motel com o ganhador. Ironicamente, a rádio anuncia, para a pequena cidade pacata e simples, a hora e o resultado da loteria. O local do “prêmio” da rifa é um motel dentro do posto de gasolina que beira a estrada – para onde Ana Paula já vai com a mala –, o que remete ao tema do sertão como lugar do qual se quer sair, como os postos de beira de estrada: lugares de abastecimento e trânsito. Como observado em Viajo porque Preciso...: Zé Renato procura o posto para abastecer seu carro e satisfazer-se sexualmente, de maneira a esquecer a amada, ou o posto de Árido Movie, onde um grupo de amigos, a caminho do interior pernambucano, detém-se a comer e se divertir. O sertão de Aïnouz é personagem de um lugar profundo, como em Central do Brasil, que expressa o sertão da busca de afetos – Josué, que procura o pai; Dora,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que busca a “afetividade recolhida” que quebre seu desencantamento com a vida (Oricchio, 2003). O sertão do autor vem atrelado aos afetos e ao sentido de pertencimento, não mais pelos enfoques dos conflitos coletivos cinemanovistas, senão pelas buscas pessoais ou íntimas e a resolução dos conflitos existenciais em situações de (des)territorialização. No plano da poética da vida ordinária, em Aïnouz, destaca-se O Céu de Suely, que trata do retorno de Hermila à sua terra natal, Iguatu, interior do Ceará�. Esse retorno é permeado por angústias e frustrações. Após morar por anos em São Paulo com o namorado Mateus, a jovem de 21 anos volta para Iguatu sozinha com o filho Mateusinho, na espera do namorado que iria ao seu encontro depois que resolver umas últimas pendências. Mateus aparece somente nos primeiros momentos do filme, em imagens que mostram os dois juntos, sorrindo e aparentemente felizes. Ao longo da trama, o namorado se faz presente novamente pela ausência e pelo abandono do filho e da protagonista, tal como em Seams. Hermila tem a ideia de procurar a “passagem para o lugar mais longe” de Iguatu, que, segundo descobre na rodoviária local, é Porto Alegre, que se torna o objeto de desejo da jovem. Logo percebe como esforço inútil economizar o pouco dinheiro que ganha, lavando carros no posto de gasolina de beira de estrada, para comprar as passagens, e deixar para trás o desconforto com a vida que tem ali. A jovem, então, tem a ideia de rifar a si mesma, tal como Ana Paula (Rifa-me), adotando o nome de Suely, e o prêmio é uma noite com o ganhador no motel do posto que beira a estrada – lugar de passagem e de conexão de dentro/cidade com o fora/mundo –, ou, como ela mesma intitula: uma noite no paraíso. Hermila torna-se Suely, como “uma nova forma de dizer sobre si, um desejo de vida nova” (Lima, Dídimo, 2014) para, então, realizar seu plano de deixar a cidade. A pacata Iguatu, ao saber da proposta da rifa, logo a hostiliza e sua avó a expulsa de casa, revelando o conservadorismo na tessitura das relações. A partir das imagens do sertão nordestino3, é montado Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo. A narrativa do filme estrutura-se com enquadramentos constantes sobre a paisagem desértica e seca, imagens de hotéis e postos de gasolina. O elemento para o qual o filme chama atenção, no entanto, é a voz off do geólogo Zé Renato (Irandhir Santos), que encontra, na viagem que faz a trabalho, o pretexto para fugir e reencontrar consigo mesmo. O personagem, que novamente manifesta sua presença apenas pela voz, mistura na narrativa o drama do fim de seu relacionamento com a descrição da paisagem do sertão, com suas recordações em narrativa memorialística, que opera no sentido da construção de significados pela oralidade e pelas imagens – expressando a ausência. A viagem, que se torna superação do amor rompido e esquecimento das lembranças do que vivera, Zé Renato encontra prostitutas pelas estradas do sertão, as quais julga serem tristes, com exceção de Pat, com quem estabelece o único diálogo no filme, que, segundo ele, é uma “puta feliz”. Com Pat, pela primeira vez, ele parece ter esquecido das desilusões de seu amor: “Pat é dançarina e faz programas nas horas vagas. Fiquei o dia inteiro com Pat. Pela primeira vez fiquei 3 Imagens produzidas para o documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 24 horas sem pensar no meu passado”. A paisagem nordestina é representada por frames e elementos determinantes com a “relação no tempo” em conservar as tradições – como em Sertão Acrílico..., ou em Central do Brasil, ao mesclar o moderno e o arcaico. O sertão nordestino retratado por Aïnouz não é tido como alegoria romantizada do país – como no Cinema Novo –, e toma a “distância” não como isolamento de outras localidades, nem como penúria, pobreza e descompasso tecnológico: ali há motos, celulares, controles remotos e postos de gasolina. A penúria, nesse caso, é problematizada desde o emocional, no pessoal e de perspectivas nos horizontes de vida, trazidas ao espectador desde as paisagens e linhas de horizonte propostas em planos gerais. Em O Céu de Suely, o sertão é proposto desde o desarraigo social, na expressão de Lull (1995), e o paradoxo do pertencimento.

Madame Satã: a emergência de um estilo Madame Satã é o primeiro longa-metragem dirigido por Karim Aïnouz e traz elaborados aspectos estilísticos presentes no conjunto de sua obra, que tem continuidade em seus demais longas. Apresenta aspectos que permanecem nas temáticas abordadas, como a feminilidade, resistente ao machismo opressor, por exemplo, e a poética do (não)pertencimento. A proposta, com relação a essa análise, é a de focar nos elementos caracterizadores dessa obra para, desde aí, compreender o configurar-se de seu estilo, verificando em quais pontos estabelece relação com suas demais obras como diretor. O filme trata da vida de João Francisco dos Santos, retirante do agreste pernambucano que vive na Lapa carioca desde meados da década de 1920. A personagem central, interpretada por Lázaro Ramos, que também estreia no cinema com esse longa, é apresentada antes de ganhar o nome artístico de Madame Satã, no carnaval de 1942, quando se torna uma figura célebre no imaginário carioca ao ganhar o concurso de fantasias no bloco Caçadores de Veado, com figurino inspirado no filme musical Madam Satan (Cecil Blount DeMille, 1930). João Francisco foi um dos mais afamados malandros cariocas até os anos 40, quando o governo de Getúlio Vargas inicia, com sua política de enaltecimento a uma certa figura de trabalhador que representasse o povo brasileiro, a perseguição a grupos sociais considerados avessos a essa, como capoeiristas, praticantes das religiões afro, sambistas e malandros. Na década de 1970, porém, o malandro volta a ser destaque na mídia carioca, já não mais nas páginas policias, mas a partir da entrevista que concede ao jornal da contracultura Pasquim. Em 1971, outra vez é destaque com o lançamento de sua autobiografia, escrita pelo jornalista Sylvan Paezzo, Memórias de Madame Satã; e em 1976, após a sua morte, com o lançamento de uma espécie de dossiê publicado mais uma vez pelo Pasquim, com uma longa reportagem intitulada Enquanto eu viver, a Lapa viverá, com depoimentos, entrevistas e fotografias do malandro.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O enredo transcorre em sequências que vão apresentando a vida do malandro antes de assumir o nome artístico que dá título ao filme, e a trama é ambientada na Lapa no início da década de 1930, com os acontecimentos que culminaram em sua prisão por 10 anos em 1932. As raízes rurais estão presentes na narrativa, retomadas desde a representação da vida na cidade carioca de figuras marginalizadas que vêm da periferia rural: Satã é retirante do sertão pernambucano; Laurita (Marcélia Cartaxo) é também retirante nordestina, que chega ao Rio de Janeiro com a filha e ali passa a ganhar a vida como prostituta no centro carioca. Essa situação de margem se combina aos desafios enfrentados por Satã, com seu projeto de afirmar-se como artista transformista. O mesmo ocorre em O Céu de Suely: assim que Hermila chega a Iguatu com o filho nos braços e a bagagem, fica em meio ao nada, na beira da estrada, em frente a um posto de gasolina onde aguardará a tia ir buscá-la. Hermila chega à sua cidade às margens, o que antecipa a instância de significação do relato, a percepção de não pertencimento e o sentir-se fora de lugar da personagem. Na imagem de abertura de Madame Satã – que é retomada nas cenas finais do filme, que inicia e fecha no mesmo ponto, mencionando os sucessivos encarceramentos de João – está o rosto do ainda João Francisco dos Santos, claramente machucado, enquanto uma voz em off narra seus autos criminais, datados de 1932. Em sequência, mas voltando-se para o passado da história, como que explicando as razões de seus machucados e de sua revolta, o malandro está atrás de uma cortina de cristais a observar, fascinado e com expressão sonhadora, a apresentação de Vitória dos Anjos (Renata Sorrah), para quem trabalha há dois meses sem receber. Esse início dá indícios do que esperar da construção do enredo, não linear ou progressivo. Aïnouz destaca as condições do meio social das personagens em sequências que parecem apresentar, quase que documentando, os porquês das ações do protagonista, configurando os impasses entre a sua vida na malandragem, a marginalização, a homossexualidade, e suas tentativas de concretizar seu projeto artístico nada convencional. Em plano conjunto, Satã desce as escadas do Cabaré Lux e para em frente ao anúncio do show de Vitória. Em seguida, está no bonde – e a música espetáculo vem com ele do cabaré e o acompanha na cena do bonde, indo embora devagar; vai em direção ao bar Danúbio Azul, local onde transcorrerão as cenas de apresentação do elenco. Enquanto atravessa os arcos da Lapa – como ponte e transição entre dois lugares/setores sociais –, o personagem permanece com a expressão de mergulho em seus pensamentos, que, em seguida, serão apresentados aos poucos aos espectadores, como o desejo de realizar uma apresentação performática. Ao chegar na Lapa, o espectador é apresentado a uma espécie de submundo noturno, onde a personagem circula com desenvoltura. Nas ruas por onde anda, a câmera o acompanha, de modo a identificar o ambiente cênico – como que fazendo um escrutínio, até a sua chegada ao bar, com prostitutas, malandros, jogadores e muito samba, que substitui a música francesa do cabaré. Quando chega à Lapa, encontra seus amigos, que são também sua família, e apresenta aos espectadores suas habilidades de capoeirista e sua homossexualidade.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O movimento de câmera dá indício da polivalência da personagem: o projeto de transformar-se em artista e sua vida de malandro, com sua origem de retirante do sertão nordestino, que vêm combinados com sua negritude, homossexualidade e pobreza. O movimento de campo e contracampo, inicialmente em plano conjunto, depois se aproximando sempre mais, entre plano conjunto, médio e aproximado, revela o universo periférico das personagens e seus ambientes, que vão sendo dados a ver aos pedaços e insistindo em seus detalhes, como em um mosaico. No filme, temáticas como o racismo, a homofobia e outras formas de preconceitos, como o de classe, se estendem para tematizar a opressão e a injustiça, com traços de um tratamento neorrealista de denúncia social. Aïnouz destaca a sequência de cenas usando efeitos da forma fílmica que, além das possibilidades técnicas que moldam a experiência cinematográfica – e isto permanece ao logo do filme –, caracterizam o efeito do estilo na montagem e na progressão da história. As personagens, desde as primeiras cenas, são caracterizadas desde as miudezas de suas vidas, com recorrência do plano detalhe, como quando se encontram no Danúbio Azul após o “expediente” de cada qual (Laurinda diz a um homem que a aborda que já “encerrou”, assim como Satã, que vem do cabaré para o bar já tarde da noite). Em movimento, a câmera dá a ver as miudezas da vida de cada dia, constitutiva do modo de vida dos seres particulares, como as de Laurita, que faz as unhas na porta de casa, enquanto João insinua tirar lêndeas do cabelo da filha, ou mesmo a vida doméstica como pagamento por algo não informado e a erotização de Tabu. Satã mora meu m cortiço na Lapa, com Laurita, sua filha e a travesti Tabu, formando com eles uma família que foge aos padrões tradicionais e heteronormativos. Laurita, sobre quem é dado a saber ter sido amparada por Satã, parece ter sido abandonada (ou corrida de casa) com a filha, assim como Hermila e seu filho, Mateusinho, ou também da personagem da classe média Violeta (Alessandra Negrini), de Abismo Prateado. Em Madame Satã, a representação ambígua do malandro, entre violência, brutalidade e rebeldia, é entendida aqui como um traço característico dos filmes de Aïnouz, nos quais as personagens estão sempre à procura de encontrar, ou – no caso de já terem encontrado antes – de “reencontrar algum sentido para a vida” (Costa, 2016). Esse sentido, no entanto, é provisório, pelas circunstâncias que se apresentam, pela intervenção estratégica dos que estão em dominância, pela mobilidade dos personagens e seus quereres cambiantes. Combinado a isso está a tematização da homossexualidade em cenas com carga de erotismo e sensualidade, como já pautado em Praia do Futuro. O afeto é uma singularidade no estilo de Aïnouz, segundo Costa (2016, p. 106), revelado “pelo viés da qualidade própria das relações” de seus personagens no desejo de pertencimento. Percebe-se a semelhança, em Madame Satã, entre a transgressão da performance e a busca por um modo de vida, como com Hermila, Zé Renato e Donato (Wagner Moura, Praia do Futuro). Hermila decide enfrentar o preconceito e

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes propõe-se a vender rifas, oferecendo “uma noite no paraíso com o ganhador”; rebelase ao estereótipo de “mulher perdida”, ao responder à tia, quando questionada sobre sua ideia: “Quero ser puta não! Quero ser porra nenhuma!”. Em Madame Satã, o afamado malandro, negro e pobre, mesmo que sua homossexualidade não tenha sido posta em oposição a sua valentia (Rodrigues, 2013), rompe de maneira transgressora com o convencional ao formar uma família com Laurita, sua filha e Tabu, uma travesti que também se prostitui. Tabu tem o mesmo desejo de Pat, a “puta feliz” encontrada por Zé Renato. Tal como Tabu, Pat sonha com uma “vida-lazer”, segundo revela na entrevista com o geólogo. Essa “vida-lazer” é também expressão do desarraigo e mote para o deslocamento, conexa com deixar o lugar para obter melhores condições de vida, ressalta Costa (2016). Em Tabu, a vida-lazer aparece associada ao desejo de “comprar uma máquina Singer (...), de pedal pra costurar as fardas do meu anjo de bondade, meu marido (...), e ter uma vida-lazer!”. Madame Satã delineia, junto as seguintes obras do diretor, alguns dos elementos estilístico de Aïnouz, como a questão do desarraigo, da busca – errática – por um ambiente mais propício onde afirmar-se como ser particular, e o sentido de não pertencimento. No caso de Satã, esse pairar é associado à exclusão, à perene rejeição que observa nos espaços sociais diferentes das ruas da Lapa, como no Cabaré Lux, onde sofre racismo e opressão, ou quando vai com Laurita e Tabu ao High Life Club e são impedidos de entrar, por não corresponderem às exigências dos frequentadores daquele espaço. Hermila que deseja partir para Porto Alegre, “o lugar mais longe” de onde está; Zé Renato, em sua expedição solitária pelo Nordeste para esquecer de si mesmo; Donato, que parte para Berlim, onde supõe que terá mais liberdade para ser o que deseja.

Considerações finais Aïnouz se debruça sobre as incursões e projetos de personagens que, como João Francisco dos Santos e Hermila, estão em constante ambivalência devido a questões que atravessam suas particulares dinâmicas de se colocarem em sociedade. É nesse sentido que as potencialidades das imagens, em Madame Satã, mapeiam a tensão do corpo de João, de Tabu e de Laurita, constituídos sob a recusa de uma compreensão convencional em detrimento da “performance sexual”. As três personagens contraargumentam com os padrões sociais e rebelam-se à rigidez dos atributos convencionais das identidades sexuais. Os planos subjetivos das personagens interpelam o espectador a refletir sobre a espetacularização, que é recusada constantemente ao longo do filme e em sua modulação narrativa – que apresenta uma ação que se prolonga no plano seguinte, de maneira a dar a ver que a distensão entre um plano e outro, que se edificam com fragmentos. Na ação de construir a trajetória dos protagonistas, o filme elabora uma representação das relações de poder, dominação e resistência, no âmbito da cultura

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e da sociedade que delineia sua potência estética e política, sobretudo pelo modo como “recorta esse tempo” e “povoa esse espaço” onde se vinculam os protagonistas, na esteira de Rancière (2010). Ao trazer em seu bojo práticas culturais e fenômenos sociais, como os constructos de raça, sexo e classe, o cineasta também desenvolve uma discussão sobre o racismo, o patriarcado e às desigualdades estruturais da sociedade brasileira. O protagonista de Matame Satã é dissidente em múltiplos sentidos: é dissidente do abandono, do desamparo social vivido pelos retirantes, que chegam aos grandes centros do sudeste em busca de um lugar que os acolha, e do padrão heteronormativo de família. É um dissidente que performa sua proposta alternativa, que põe à mostra, em sua arte transformista, suas várias facetas e sua alteridade. O filme já inicia com João radicado no Rio de Janeiro, mas essa escolha por ali habitar evoca o seu passado de saída em busca de outro lugar para ser, e alude a sua anterior desterritorialização, mas não de modo nostálgico ou melancólico, pois João olha pouco para trás e se mostra envolvido com o presente vivido na representação. O personagem não menciona o que deixou quando partiu rumo à cidade grande, mas de qualquer modo essa falta de vínculo pretérito com a cidade está posta com ele, assim como com Tabu e com Laurita. Esse lugar que o acolhe, a Lapa carioca, com seus cortiços e seus bares que se acendem à noite funda, não supera sua situação e seus atributos de exclusão – como sua negritude, sua homossexualidade, seu analfabetismo, sua valentia e soberba, sua reivindicação por oportunidades de realizar seus projetos de artista transformista. A dissidência, como desvio que se explicita e reivindica (Wainberg, 2017) seu direito a pretender, é posta em ato desde os múltiplos aspectos do personagem, que manifesta suas diferenças sem encolherse ou dissimular, inclusive em suas ambiguidades de ser oprimido e ser opressor. O trabalho de Aïnouz se sintoniza, por esse viés, com a perspectiva do multiculturalismo crítico: suas personagens se insurgem à opressão, ao mesmo tempo em que lutam contra a dominação e articulam “práticas de libertação”, entendidas pelo viés da pedagogia do oprimido, de Paulo Freire (1972 apud Kellner, 2001, p. 127). A oposição às formas de opressão ocorre, como ação tática de resistência, na relação das personagens, às vezes exasperadas, com arrebatamento, levadas por sentimentos que não cabem no próprio corpo, em um embate sem fim contra os estereótipos, a estigmatização e os padrões normativos de uma sociedade que não prevê – senão à margem – espaços de vida para seres como eles. No embate com esses fatores de opressão, se renuncia aos “princípios morais absolutos” que auxiliam as “tendências sexistas, racistas, classistas, homofóbicas e outras capazes de fomentar dominação e opressão” (Kellner, 2001, p. 124). O viés multiperspectívico se dá em virtude da representação que focaliza a dimensão estrutural e o contexto social das personagens, ao adotar formas convencionais e não convencionais de relação sexual e familiar. Essa abordagem ganha contornos com as tematizações das questões sobre raça, gênero e classe:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes João, que se movimenta entre um patriarcalismo insurgente e sua homossexualidade, e forma uma família com a travesti Tabu e com uma mulher, que não é sua esposa, imigrante do abandono (Laurita), que, como ele, chega ao Rio de Janeiro e ali leva a vida que alcança ter, em um contexto adverso e hostil.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

VIDEOTERATURA COMO ESTRATÉGIA DO TELEJORNALISMO: UM OLHAR EPISTEMOLÓGICO SOBRE PRODUTOS DAS EMISSORAS TV GLOBO E GLOBONEWS1

Cláudia Thomé Marco Aurelio Reis

Introdução No atual contexto do jornalismo midiatizado (Piccinin, Soster, 2012), no qual a audiência desliza entre diferentes plataformas, não se limitando mais unicamente ao aparelho de televisão, novas estratégias narrativas são experimentadas e implementadas nos grupos de comunicação brasileiros detentores de concessões de canais de TV, de modo a tentar manter a centralidade da televisão, em geral, e do telejornalismo, em particular, no cenário informativo nacional. Proposta de telejornal multimídia anunciada na Rede Record, de telejornal que propõe soluções na Rede Bandeirantes, telejornais com maior tempo de duração e entradas ao vivo na Rede Globo e suas afiliadas são algumas das estratégias em andamento. Mas além dos anúncios empresariais, há mudanças na linguagem, estratégias que buscam nova relação com o público, uma aproximação por meio de narrativas jornalísticas que divergem do padrão dos antigos manuais. Um jornalismo apimentado, contrário ao convencional hegemônico, configurando alteração de formato e modo de narrar, nos moldes pensados por Maia e Barretos (2018). O presente trabalho lança um olhar para uma dessas estratégias ao mapear, no telejornalismo das emissoras TV Globo e GloboNews, elementos do cronismo audiovisual, remetendo ao que o grupo de pesquisa CNPq/UFJF Narrativas Midiáticas e Dialogias (Namidia) identifica como videoteratura (Távola, 1980; Reis, Thomé, 2017). O estudo se insere ainda no sistema proposto por Martinez (2016), no tocante ao jornalismo literário no atual âmbito de inovação, presente não apenas no impresso, mas em outros meios, como a televisão, em uma disrupção que será observada aqui. 1 Trabalho com resultados de pesquisas desenvolvidas desde 2015, no grupo de pesquisa Namidia, da UFJF, em parceria com a Unesa-RJ, com bolsas de iniciação científica das duas instituições.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Após o mapeamento nos principais telejornais das duas emissoras, a pesquisa identificou tipologias distintas e particulares no cronismo televisual, classificadas no presente trabalho como Videoteratura (supostamente) Comunitária, Videoteratura Metajornalística, Videoteratura Internacional, Videoteratura Econômica, Videoteratura Política e Videoteratura Esportiva. Busca-se lançar um olhar epistemológico sobre esses novos arranjos produtivos na criação de narrativas audiovisuais, diferenciando-os dos formatos tradicionais. Para tanto, foram selecionados como objetos de análise, no telejornalismo das duas emissoras, quadros de crônica e de reportagens que apresentam elementos narrativos disruptivos. É sobre esse formato disruptivo da narrativa que o presente estudo se debruça. A partir de percurso metodológico de análise crítica do cronismo audiovisual (Reis, Thomé, 2017) foi possível identificar elementos narrativos que viabilizaram a identificação de critérios da narrativa divergente, identificados neste trabalho como critérios de cronicabilidade audiovisual, como por exemplo o cotidiano pitoresco, o BG como elemento narrativo, o repórter/cronista como narrador incluso e a dialogia com o espectador, além de uma centralidade da imagem cotidiana, aquela que remete ao que Candido (1992) chamou de “ao rés do chão”. A análise mostra que há reportagens que, mesmo sem a vinheta ou a chamada com a promessa (Jost, 2007) da crônica, têm elementos narrativos que as aproximam desse formato, em uma estratégia que expande o jornalismo literário para além dos quadros de crônica audiovisual, buscando a aproximação com o público, a conversa direta, a subjetividade e a atorização dos repórteres. O objetivo é entender tais estratégias, de modo a contribuir para futuras pesquisas sobre esses produtos jornalísticos com linguagem dissidente e para a atualização da formação de novos jornalistas no atual cenário do telejornalismo no Brasil, uma reconfiguração do fazer que resulta em um produto aqui chamado de apimentado. Interessa, portanto, observar como essas novas linguagens, mesmo em espaços hegemônicos do espelho dos telejornais, têm potencial para gerar narrativas dissidentes aos padrões homogeneizadores e às práticas jornalísticas assépticas e positivistas, como possibilidade ou como uma promessa, que pode ou não se efetivar.

A crônica audiovisual – tipologias entre jornalismo e literatura A crônica é um gênero literário que encontrou espaço nos jornais impressos, no rádio, na TV e nas mídias digitais por sua característica híbrida, ora vinculada ao noticiário, ora ao entretenimento, especificamente à própria literatura. No âmbito acadêmico, esta característica estimula a pesquisa da crônica no meio jornalístico, em especial no meio televisivo, pois não há uma fronteira clara entre a crônica literária e a crônica jornalística ou mesmo entre o texto mais leve de uma reportagem audiovisual e a crônica anunciada como promessa (Jost, 2007) televisual.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O caminho percorrido pela crônica no país é longo, tem origem em Pero Vaz de Caminha (Sá, 1985, p. 5), como relato cronológico de fatos. Contudo, é na mídia impressa que a crônica brasileira adotou uma característica própria, a de ser uma conversa informal com o leitor sobre fatos ocorridos ou sobre os pensamentos do autor, algo que remonta ao início da imprensa no Brasil, inaugurado por Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1825-1889) no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, na edição de 2 dezembro de 1852 (Reis, 2015). O cronismo se espalharia pelos jornais brasileiros e ganharia, com o passar do tempo, autores com a força de Machado de Assis, pena crítica contra o racismo brasileiro dentro da branca imprensa na virada dos séculos XIX e XX. A partir de 1940, com a imprensa nacional iniciando um processo de industrialização, as crônicas se tornaram mais enxutas e próximas do leitor. Essa mudança também alcançou as crônicas veiculadas nas rádios, que se fixaram como entretenimento, ficando apartadas do jornalismo que se formatava em jornais, por meio da introdução do lide, e emissoras de rádio, com o clássico Manual do Repórter Esso. Entre as décadas de 1950 e 1960, o rádio utilizou a crônica em sua programação e o cronismo teve um salto de popularidade graças aos recursos linguísticos e a interpretação dos textos por radioatores, formatando a chamada “literatura de ouvido” (Thomé, 2015, p. 86). Apesar de toda a programação radiofônica ter deslizado para a TV e, com ela, jornalistas, radioatores e autores de radionovelas, a crônica levaria 15 anos, desde a estreia da TV no Brasil, em 1950, para aterrissar nas telas. Mapeamento feito pela pesquisa identificou que, em 1965, um programa jornalístico trazia conteúdo sobre a cidade em formato de crônicas. Apresentado por José Antônio de Lima Guimarães, o programa “Se a cidade contasse” integrou a programação da estreia da emissora, em 26 de abril de 1965. Ficou no ar de abril a agosto de 1965, e “era anunciado como um programa voltado para o ‘jornalismo humano’ por mostrar casos diários”2, tendo ainda inspiração em coluna de crônicas de Paulo Rodrigues, irmão caçula do também cronista Nelson Rodrigues, publicadas no jornal O Globo, que trazia casos vividos por personagens cariocas. Ou seja, uma linguagem e um olhar novos diferentes do modelo informativo de então. Dois anos antes, em 1963, o Jornal de Vanguarda (JV), da TV Excelsior, mesmo sem indícios de crônicas, rompe com uma linguagem mais formal e inova com apresentadores encarnando personagens. Migrado para TV Globo, o JV traria Célio Moreira (irmão de Cid Moreira), como o “Sombra”, um locutor misterioso, que aparecia em silhueta e dava informações confidenciais em primeira mão”3. O Jornal de Vanguarda inovou ainda com os bonecos de Borjalo, que reproduziam frases de políticos, e introduziu o colunismo na televisão, tendo comentaristas para assuntos diversos. 2 Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/jornalismo/programas-jornalisticos/se-a-cidade-contasse.htm, acessado em 21 jun. 2016. 3 Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/mobile/programas/jornalismo/telejornais/jornal-de-vanguarda. htm, acessado em 20 jul. 2016.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Depois de oito meses na TV Globo, de abril a dezembro de 1966, o JV foi substituído pelo Jornal de Verdade, seguindo o estilo de seu antecessor, mantendo os bonecos de Borjalo e, agora sim, inserindo a crônica em seu noticiário. O telejornal levaria para tela a crônica de Otto Lara Resende, no quadro em que o jornalista fazia comentários sobre os acontecimentos do dia, ao vivo e sem um roteiro prévio, tudo de improviso. A consolidação do cronismo televisivo ocorreu em 1971, no entanto, com a estreia do Jornal Hoje, igualmente da TV Globo, que manteve um quadro especial dedicado à crônica apresentado por Rubem Braga (até 1990). No formato televisivo, a exibição da crônica se enriquece com imagens, depoimentos ou encenações na tentativa de uma comunicação efetiva com o público. O Jornal Hoje foi o telejornal que mais espaço dedicou à crônica televisual. Em 1975, quatro anos após sua estreia e graças à cobertura via satélite e à introdução de câmaras portáteis, o telejornal ganhou também edição nas tardes de sábado, com 16 minutos adicionais para apresentar reportagens especiais, novos quadros e colunas, incluindo as crônicas de Rubem Braga. Já consagrado como cronista, Braga deslizou para a televisão alguns de seus textos já publicados em jornais e livros de coletâneas, agora acrescidos com elementos da televisualidade. Após algum tempo, passou a escrever crônicas exclusivas para o telejornal. As crônicas de Braga foram exibidas no Jornal Hoje até 1986. Com a morte de Braga em 1990, o cronismo fica mais escasso no JH, sem um quadro fixo tão duradouro como o Crônicas de Rubem Braga. Mas o cronista já fizera escola4. Em 1981, seis anos depois da estreia de Braga no JH, o jornalista Humberto Borges passaria a exibir crônicas de sua autoria na TVE, experimentando linguagem diferente da mantida então pelo JH. Com o nome Saltimbanco, o conjunto de crônicas teve passagens pela TV Globo e pela TV Manchete, além de versão especial para o programa Mar Aberto, da SportTV. E foi elogiado pela crítica televisiva por suas inovações. O jornalista Artur da Távola, o principal crítico de tevê na época, distinguiu O Saltimbanco como o “melhor programa na TV brasileira, no ano de 1981” (Távola, 1981). Domingo passado marcou dois primorosos momentos de crônica na televisão. Canais diferentes, horários e estilos. Mas era o gênero, inteiro em seu esplendor (referindo-se a uma crônica de Rubem Braga sobre a festa de Cosme e Damião exibida no programa Fantástico, da TV Globo e a uma outra sobre favela, do jornalista Humberto Borges, exibida no programa Saltimbanco, na TVE). É possível a crônica televisada”? (Távola, 1981).

4 Depois de 15 anos com o mesmo quadro, houve uma pausa. As crônicas retornaram no Jornal Hoje em 2010, com o quadro Crônicas de New York, apresentadas pela correspondente Giuliana Morrone, sendo depois seguida pelos demais correspondentes, fazendo do Crônica do JH uma janela para várias partes do mundo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Entrevistado para o presente estudo, Humberto Borges, jornalista responsável pelo programa, explicou como foi elaborado o produto: “Eliminei as repetições exaustivas, as imagens inúteis e o exibicionismo do apresentador”. Nesse processo uniu sua experiência de fotógrafo e de repórter. Távola (1980) olharia para a crônica a partir do conceito que formularia um ano antes, quando afirma que existe uma videoteratura e que é preciso estudar as narrativas televisivas tanto quanto as literárias. O autor classificaria, então, como “videoteratura” as crônicas sobre as quais falava em sua crítica de 1981. Quanto à crônica do Saltimbanco, Távola diz se tratar de “obra-prima”, pelos processos de edição, trabalho de câmera e BGs. Ou seja, uma nova forma para a crônica televisiva. Quando eu fui para a televisão, já num estado mais avançado do vt, eu percebi o seguinte: em todas as emissoras de televisão, inclusive a Rede Globo, as imagens passavam uma eternidade no ar. O sujeito, para falar alguma coisa, demorava mais do que estou demorando agora. E as imagens eram monótonas, os cortes em formato de vinheta. Eu notei que as pessoas têm a percepção mais rápida do que a expressão. Então, eu estabeleci logo no primeiro Saltimbanco – porque eu gravava, escrevia e editava, que cada imagem não ia ter mais de três ou quatro segundos (Borges, 2018).

Com o Saltimbanco, estava inaugurado um novo modo de narrar televisivo, que vinte anos mais tarde, em 2010, poderia ser identificado no quadro “Crônicas de New York”, do Jornal Hoje, da TV Globo. Apresentado pela então correspondente Giuliana Morrone, retoma a promessa de exibir crônicas. Na edição, evidências de que a cronismo televisivo iniciado na década de 70 e formatado ao longo dos anos 80 já se consolidara e que ficaria no ar mesmo após o retorno da jornalista ao Brasil, dois anos depois quando correspondentes de outras praças também passaram pelo cronismo. Como espaço na grade de telejornais como o Jornal Hoje, da Globo, o produto videoteratura evidencia um novo formato narrativo, mas sem perder sua filiação com o cronismo impresso e a literatura de ouvido. A partir dessa filiação, cabe recorrer ao teórico da literatura Afrânio Coutinho (2001), e sua clássica distinção em referência às crônicas impressas, divididas por ele em cinco categorias: narrativa, metafísica, poema-em-prosa, comentário e de informação. E cada uma dessas categorias encontraria espaço na televisão. A crônica narrativa é uma história relacionada ao cotidiano. A crônica metafísica usa imagens e os recursos da edição em TV para apresentar reflexões do autor sobre acontecimentos e pessoas. A crônica poema-em-prosa tem o lirismo como característica e apresenta a força do texto que expressa sentimentos e olhares próprios do autor como matéria-prima da crônica. A crônica comentário faz uma crítica de acontecimentos, o autor defende uma ideia e convida espectadores a compartilhá-la. Por fim, a crônica de informação relata os fatos, mas o faz sem se privar de emitir comentários.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Critérios de cronicabilidade – entre a informação e a “videoteratura” Na fronteira entre o jornalismo e a literatura, a crônica apresenta algo que vai além do relato frio do acontecimento, ou pretensamente objetivo. Como afirma Rezende “mediante um estilo mais livre, de uma visão pessoal, o cronista projeta para a audiência a visão lírica ou irônica que tem do detalhe de algum acontecimento ou questão, que passa despercebido ou pouco valorizado no noticiário objetivo” (Rezende, 2000, p. 159). Nos meios de comunicação, a crônica é um formato pertencente ao gênero jornalístico opinativo (Marques de Melo, Assis, 2016, p. 51), com funções sociais e parâmetros específicos. Formato jornalístico, em decorrência, é o feitio de construção da informação transmitida pela Mídia, por meio do qual a mensagem da atualidade preenche funções sociais legitimadas pela conjuntura histórica em cada sociedade nacional. Essa construção se dá em comum acordo com as normatizações que estabelecem parâmetros estruturais para cada forma, os quais incluem aspectos textuais e, também, procedimentos e particularidades relacionados ao modus operandi de cada unidade (Marques de Melo, Assis, 2016, p. 50).

Ocorre, porém, que como formato, gradativamente, a partir do Saltimbanco, de Humberto Borges, o cronismo na televisão ganharia contornos próprios, representando um desafio de classificação, uma vez que as características típicas das crônicas exibidas na TV mais recentemente passaram a deslizar para algumas reportagens com linguagem menos convencional, passando a dividir espaço com crônicas simplesmente vocalizadas, sem imagens, sem serem apresentadas como crônicas televisivas nas chamadas dos programas em que são veiculadas. Partindo das bases metodológicas inauguradas no início do século passado pelo formalismo russo e pela chamada Nova Crítica, é possível classificar as crônicas primeiramente na forma, no sentido de se criar uma categorização inicial, antes de uma análise futura que leve em conta autoria, temáticas e contextos. Aplicando tal distinção, podem ser consideradas crônicas na televisão aquelas cuja forma apresenta colagens de imagens e até mesmo trechos de depoimentos (as sonoras do telejornalismo) ou atores encenando. Elas se distanciam das reportagens por não requererem passagem de repórter e se afastarem da forma do noticiário referencial. A crônica pode incluir BG (som de fundo em off) ou mais de um BG e adotar texto leve, com ritmo de bate-papo, mais coloquial, sendo aceito o texto em primeira pessoa, nada usual no telejornalismo convencional, uso de metáforas, figuras de linguagem, um lirismo para olhar o cotidiano que nem sempre tem espaço no noticiário com notícias consideradas hard news. Na remediação (Bolter, Grusin, 2000) do cronismo impresso para as telas, há, portanto, características que deslizaram e ganharam outros elementos narrativos no audiovisual. Assim como o noticiário tem os critérios de noticiabilidade (Wolf, 2006; Traquina, 2008), pode-se detectar que a crônica dentro do telejornal tem também

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes indicadores como a memória local, o peculiar aos olhos do cronista, uma experiência vivida por ele, o fato miúdo, que não cumpre os quesitos para virar notícia, e vira matéria-prima para a crônica. Na tevê, no entanto, há ainda outros elementos que precisam ser considerados, além do tema. A partir da análise crítica do cronismo audiovisual (Reis, Thomé, 2017) e das teorias sobre a crônica aqui expostas, foram identificados seis critérios para o cronismo na TV: cotidiano pitoresco/eventos miúdos, histórico/memória, BG como elemento narrativo, imagem como elemento narrativo (videoteratura), narrador incluso e dialogia com o espectador. Cada um ajuda a diferenciar crônicas de reportagens apresentadas como crônicas, uma questão identificável no cronismo televisual. Como cotidiano pitoresco, identifica-se que é tema para a crônica aquilo não entraria como notícia no telejornal ou entraria só para uma “gaveta” como feature. Já o BG como elemento narrativo, vetado nos telejornais formais, revela a inserção de tema sonoro como elemento com força na contação da história. A imagem como elemento narrativo, algo já identificado em estudo anterior (Reis, Thomé, 2017), identifica quando a imagem predomina sobre a narração em alguns momentos, não sendo meramente ilustrativa5. O registro histórico é outro critério que traz a crônica para o telejornal. Seria a narrativa que ressignifica um fato ou lembra algo vivido, a memória local, seguindo o que Arrigucci (1987) chama de “registro da vida escoada”, como citado anteriormente. Observa-se no telejornalismo, sobretudo no regional, crônicas com chamadas que reforçam essa tendência, de conhecer a história do local ou uma tradição pinçada pelo cronista. Outro elemento identificador relevante, o narrador incluso ajuda a identificar de forma fundamental o cronismo audiovisual, afinal o uso da primeira pessoa e de percepções pessoais marca a angulação que segue a partir do olhar do cronista, marcando a diferença para a linguagem do repórter na construção de uma notícia factual, de forma pretensamente objetiva ou isenta, em que não caberia a primeira pessoa. A este elemento, soma-se a dialogia com o espectador, outro aspecto da angulação do cronista, que se dirige ao público, assim como já acontecia no rádio, marcando a característica de conversa informal sobre um cotidiano compartilhado, própria da crônica. A partir desses critérios, é possível identificar que tais características transbordam para outros formatos do telejornal na contemporaneidade, em reportagens não identificadas como crônicas. O transbordamento da narrativa mais autoral, sem simular uma objetividade, é coerente com novas convenções narrativas que distanciam as reportagens, com cada vez mais frequência, de normas rígidas que se embasavam em uma ilusória neutralidade como garantia de autenticar o real. Piccinin (2016) trata dessa linguagem no jornalismo contemporâneo. 5 Após mapeamento no cronismo audiovisual, a pesquisa apresentou dois tipos identificáveis de crônica na TV: crônica stand up e crônica coberta. A primeira refere-se à crônica lida/interpretada na tela pelo(a) apresentador(a) de um programa (crônica stand up apresentada) ou àquela lida/interpretada na tela pelo(a) próprio (a) cronista (crônica stand up autoral). Já a crônica coberta é aquela que, nos moldes de uma reportagem, tem voz em off e imagens, que podem ilustrar o que está sendo dito ou vir como elemento imagético da narrativa.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Uma série de movimentos oportunizam pensar a linguagem adotada pelo jornalismo de TV contemporâneo marcada em boa parte pela ascendência de um modelo narrativo orientado pela informalidade de dizeres, pelo protagonismo do narrador e pela oferta de toda visibilidade, inclusive de seus afazeres, tanto quanto possível (Piccinin, 2016, p. 297).

Tal modelo narrativo que se impõe no espelho do telejornalismo contemporâneo, no atual contexto de um jornalismo midiatizado (Soster, 2013), de certa forma, já é característico da crônica desde muito tempo, e intensifica a presença no audiovisual do que Távola chamou de videoteratura, e que na pesquisa é conceito para produções que carregam o lirismo da crônica, na combinação de texto e imagem. No jornalismo televisivo, essa característica das crônicas transborda para as reportagens, em ações que permitem classificar diferentes videoteraturas nas grades de telejornais: Videoteratura (supostamente) Comunitária, Videoteratura Metajornalística, Videoteratura Internacional, Videoteratura Econômica, Videoteratura Política e Videoteratura Esportiva.

Diferentes videoteraturas no telejornalismo Para o presente estudo, foram analisados quadros da TV Globo, rede aberta, notadamente o produto RJ1, e ainda reportagens da TV por assinatura Globo News. As emissoras foram escolhidas por, historicamente, terem em suas grades de programação produtos identificados como crônicas: na Globo, os quadros aqui citados no Jornal Hoje, e, na Globo News, o quadro J10 em Crônica, quadro do Jornal das 10 que prioriza temáticas internacionais e angula a promessa do gênero e do produto audiovisual, nos termos de Jost (2007), de trazer o olhar do cronista sobre outros lugares, aproximando-os e (re)criando o cotidiano em espaços narrativos sem fronteiras. Do quadro RJ Móvel, do RJ1, busca-se o exemplo da Videoteratura (supostamente) comunitária, uma narrativa dissidente do telejornalismo comunitário e do telejornalismo popular. No ar desde 2007, o quadro promete ser um instrumento de aproximação do telejornal com a população. Tem como foco mostrar problemas nas áreas de saúde, infraestrutura, educação e transporte da periferia da cidade do Rio de Janeiro, da Região Metropolitana e da Baixada Fluminense. A jornalista Susana Naspolini, que assumiu o RJ Móvel em 2011, criou um modelo próprio de apresentação, em que funciona como intermediária entre a população e o poder público para solução de problemas em locais de baixa renda ou distantes dos centros urbanos. Um modelo espelhado para outras praças da emissora. O quadro6 traz elementos disruptivos com relação ao formato mais tradicional de reportagens, como o Calendário do RJ Móvel. Após ouvir a reclamação da população e um representante 6 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8043001/, acessado em 11/07/2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes do poder público, é dado um prazo a este para solucionar o problema e é agendado o retorno da equipe de reportagem. O calendário é entregue ao representante do poder público e ao morador responsável pela reclamação, que ser torna representante da comunidade e é exibido pelo apresentador em estúdio. Elemento material que marca o tempo, o calendário entra em cena como um instrumento que reafirma a função do telejornal de cobrar das autoridades providências para os problemas apontados. Observa-se também, na cena que é construída pelo quadro7, a estratégia de intimidade mediada (Miranda, Thomé, 2018), ou seja, a tentativa “em formar um lugar de intimidade pela TV” (Fechine, 2006, p. 56), que se intensifica no quadro quando a jornalista entra na casa das pessoas, toma café, brinca com as crianças, comemora com churrasco quando a reclamação é solucionada, tudo com objetivo de criar um vínculo com a população. Mesmo que de forma exagerada, Susana busca ao mesmo tempo vivenciar o problema e deixar que a própria população fale sobre sua demanda. O quadro traz ainda a dialogia com o espectador, sobretudo quando utiliza expressões como “vamos mostrar aqui” durante a matéria ao vivo, convidando o telespectador a seguir o reclamante e conhecer o problema local8. A repórter entra em cena também como personagem do quadro, em uma atorização que caracteriza o telejornalismo midiatizado (Piccinin, Soster, 2012; Soster, 2013) e que carrega de outros elementos a produção noticiosa com base no factual mas encenada dentro do telejornal, em uma espécie de novelização do noticiário (Thomé, 2005), em uma apropriação de elementos dramáticos pelo jornalismo. Esse fenômeno não é novo, porém pode ser detectado no quadro analisado de forma muito evidente, exemplificando essa tendência de hibridização de características entre gêneros televisivos. Como afirma Temer (2009, p. 102), “a periodicidade e as condições de produção comumente ‘empurram’ o telejornalismo para o uso de recursos de produção já testado em outros gêneros televisivos”. Há um diálogo permanente dos conteúdos na tela da TV, em que é possível constatar uma mescla de formatos no espelho do telejornal, assim como também entre gêneros na TV, tendo o docudrama como exemplo. Ainda que tenha mantido sua identidade e seja facilmente reconhecido pelos receptores, é bastante evidente a contaminação do telejornalismo pelos gêneros predominantes na televisão. De fato, há um trânsito permanente de conteúdos entre o telejornal e a telenovela (Temer, 2009, p. 102).

Da semana de apresentação do jornalista Heraldo Pereira como apresentador do Jornal das 10, da Globo News, saltam exemplos do que está sendo chamado na presente pesquisa de Videoteratura Metajornalística, aquela que explica o modo de fazer do telejornalismo, revelando os bastidores da profissão, com a promessa de 7 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7981140/, acessado em 11/07/2020. 8 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8052504/, acessado em 11/07/2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes falar da notícia, matéria-prima do Jornalismo, e se tornando discurso de reafirmação do campo de forma autorreferencial. O J10 exibiu uma série, na semana de 5 a 9 de março de 2018, com a promessa de crônica, mas texto e edição que unem a liberdade do cronismo com a estrutura da reportagem televisiva: cabeça (sonorizada pelo apresentador), off (fala do repórter coberta de imagens) e passagem (entrada do repórter na tela). Na “reportagem” sobre notícia feita por Mônica Waldvogel e exibida no Jornal das 10, na terça-feira 6 de março de 2018, na Globo News9, por exemplo, há uma crônicanarrativa, dentro do quadro J10 em Crônica. Pois apresenta a rotina do jornalista, suas dúvidas, aflições, a escolha da melhor notícia e a finalização da matéria. Esta rotina é apresentada através da combinação do texto de Mônica Waldvogel com imagens do dia a dia do jornalista, da redação e também imagens de apoio. A videoteratura Internacional segue uma tradição iniciada, como dito acima, pelo Jornal Hoje e seu quadro de crônicas elaboradas por correspondentes internacionais. Notadamente, esse tipo de videoteratura saiu da promessa de crônica e entrou no noticiário, ora como elemento narrativo do cotidiano internacional, ora consolidando fatos. Um dos repórteres recorrentes nesse deslizamento do cronismo televisivo internacional para videoteratura internacional é Pedro Vedova, correspondente da TV Globo na Europa. O retrato de cotidiano aparece na reportagem de Vedova, exibida em 18 de junho 201710, sobre a distante Dinamarca e a famosa honestidade de seu povo, algo nada relacionado ao cotidiano internacional de guerras e conflitos. Nela, texto leve e provocativo, o repórter faz uma comparação indireta com o cotidiano brasileiro, levando para as telas uma crítica autoral. O mesmo Vedova, três anos mais tarde, em 13 de junho de 2020, exibiria outra reportagem com tom de videoteratura Internacional, só que consolidando um noticiário planetário, unindo passado e presente, invenções em tempos de guerra e pandemia do Covid-19. Na construção da videoteratura, imagens de arquivo e contemporâneas consolidam fatos em uma ação pedagógico-informativa. Mais raras que as demais, as videoteraturas econômica e política surgem em momentos de crise, de pacote de medidas econômicas e de eleições. Têm como característica a consolidação de fatos. Sendo bons exemplos reportagens exibidas em tom de retrospectiva, algumas sustentado a promessa de crônica, como a levada ao ar em 31 de dezembro de 201611, no quadro J10 em Crônica, da Globo News. Consolidando crônicas exibidas ao longo do ano dentro do quadro, a promessa foi falar do impeachment da presidenta Dilma Roussef e da crise política daquele ano. Na Videoteratura Econômica, a humanização de estatísticas, notadamente aquelas vindas de pesquisas de fôlego, como as da Amostra de Domicílios do IBGE, são as que dão 9 Disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/v/veja-a-cronica-de-monica-waldvogel-sobre-a-noticia/6557125/, acessado em 11/07/2020. 10 Disponível em: https://youtu.be/XOOdPhcc48U, acessado em 11/07/2020. 11 Disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/jornal-das-dez/videos/v/sabado-e-dia-de-cronica-do-jornal-das-dez/5548693/, acessado em 11/07/2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes margem para o texto mais solto, mais próximo do espectador e do cronismo. É o que ocorreu na reportagem do dia 11 de julho de 2020, quando uma pesquisa sobre evasão escolar é narrada pela repórter com o seguinte texto: Gravidez na adolescência, baixa renda familiar, falta de tempo. A gente precisa muito mais do que dos dez dedos das mãos para enumerar as causas da evasão escolar. O que o estudo inédito mostra agora são as consequências disso. O quanto o Brasil perde cada vez que um jovem abandona a escola e não conclui o ensino básico. O custo social para o país, por ano, é de R$ 214 bilhões. Esse valor é a soma de tudo o que os alunos deixam de ganhar ao longo da vida quando abandonam a escola.12

A reportagem começa com casos de jovens que abandonaram os bancos escolares após engravidarem. A tendência de inserir “personagens” no noticiário é um processo iniciado no jornalismo no fim da década de 1980, quando a redemocratização do país dava os primeiros passos. Ou seja, ganhava espaço apresentar pessoas que viveram a situação descrita, para criar identificação e representar, de forma alegórica, o que estava sendo noticiado, no processo que passou a ser conhecido como fulanização (Motta, 2007, p. 8), a partir do pensamento de Mesquita (2002): Se na perspectiva do romancista ou do novelista é indiferente ou irrelevante a questão da correspondência entre a personalidade e a personagem, para o jornalista esse elo é fundamental. A personagem jornalística ‘representa’ idealmente um ser humano, identificado, com ‘existência real’ (Mesquita, 2004, p. 134).

Por fim, a Videoteratura esportiva indica os textos que se diferenciam da crônica esportiva tradicional, ligada a jogadores, resultados de partidas e a torcedores. Mais próximas da crônica-poema-em-prosa13, pode ser conferida quase que diariamente no noticiário especializado, como no caso da cobertura, pelo Globo Esporte, da TV Globo, da morte do jornalista Rafael Henzel, um dos sobreviventes do acidente da Chapecoense. Exibida em 27 de março de 201914, a crônica encerra com uma frase dita pelo jornalista logo após sobreviver ao acidente aéreo de 2016.

Considerações finais Como foi defendido ao longo do presente estudo, a narrativa no formato de crônica se consolidou no jornalismo impresso, migrou para o rádio e para TV e, no telejornalismo, deslizou para as reportagens contemporâneas na forma de formas de narrar 12 Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/07/11/estudo-calcula-quanto-o-brasil-perde-quando-um-jovem-nao-conclui-a-educacao-basica.ghtml), acessado em 11/07/2020. 13 Crônica-poema-em-prosa é uma das cinco categorias apresentadas por Afrânio Coutinho (2001), caracterizada pelo lirismo do cotidiano e pela força do texto que expressa sentimentos e olhares próprios do autor. 14 Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/7490127/, acessado em 11/07/2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que se distanciam do padrão previsto nos antigos manuais. Atendendo aos critérios de cronicabilidade, apontados na pesquisa, tais reportagens vão ocupando o espaço nos espelhos dos telejornais, por meio de correspondentes internacionais, repórteres esportivos e repórteres locais. Reportagens opinativas e interpretativas, como exige o atual momento do Telejornalismo midiatizado, seguem a trilha anterior da inserção de personagens em suas narrativas, e se identificam com a estratégia do que está sendo chamado na pesquisa de videoteratura, própria do cronismo, como linguagem mais informal, metáforas, BG, rastros do cotidiano, elementos que transbordam para outros formatos. O presente trabalho traz exemplos pinçados do material mapeado na pesquisa, como forma de evidenciar o transbordamento do lirismo, do olhar humanizado, do cotidiano que prevalece nas imagens, das temáticas “ao rés do chão”, voltando ao termo de Candido (1992), ou daquele espaço em que o cronismo prevalece e traz o que o crítico literário Afrânio Coutinho (2001, p.559) já denominou de “recreio do espírito”, ao tratar das crônicas ainda no impresso. No telejornalismo, detectamos que a videoteratura de que nos falou Távola caracteriza os quadros de crônica, quando a promessa desse formato se cumpre, mas não se limita a eles. Na esteira de uma novelização do noticiário, nesse processo de mesclagem de gêneros, do protagonismo do narrador, do olhar humanizado, a linguagem do telejornalismo se reinventa a cada momento, na busca por continuar fisgando a atenção do público, que garante ao jornalismo da TV a hegemonia e a centralidade mesmo em tempos de redes sociais e convergência midiática. Tal processo se apresenta como estratégia narrativa do telejornalismo contemporâneo, na disputa que vem travando com outras telas, para manter-se na posição de mídia hegemônica e principal fonte de informação. Com tal linguagem, garante compartilhamento quando sai da tela da TV para outras telas, e se mantém no “ar” mesmo após a exibição. O presente capítulo propõe uma reflexão sobre o potencial da crônica audiovisual na experimentação de novas linguagens, levando para as telas narrativas que quebram os padrões homogeneizadores e que evidenciam rastros de escolhas e subjetividades nas práticas jornalísticas. Além da disrupção das formas de narrar pretensamente imparciais, o cronismo que transborda para as reportagens, em possibilidades designadas como videoteratura, abre campo fértil para narrativas dissidentes, mesmo nos telejornais hegemônicos aqui estudados. A pesquisa detectou que a videoteratura, pelas características apontadas, abre brechas no telejornalismo para narrativas humanizadas e ancoradas na linguagem literária, o que se evidencia de forma mais efetiva quando traz para as telas personagens considerados da periferia, nem que seja como promessa de um jornalismo comunitário, ou como estratégia desses meios hegemônicos para atender a uma demanda contemporânea por tais narrativas.

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ATRAVESSANDO FRONTEIRAS, DESVIANDO DE ABISMOS: NARRATIVAS DE EXPERIÊNCIA DA REALIZAÇÃO DE UM FESTIVAL DE CINEMA NO OESTE DA BAHIA Hanna Vasconcelos Michel Santos Milene Migliano Rafael Beck

A proposição do movimento que se delineia no título de nosso texto busca assinalar o percurso de interação e transformação entre territórios físicos e simbólicos, na mediação de um festival de cinema idealizado e organizado por estudantes e egressos da primeira universidade criada pelo Programa REUNI- Reestruturação e Expansão de Universidades Federais, no Brasil, em 2006. Entre os territórios físicos que situam nossa investigação estão duas cidades no interior da Bahia e o trajeto entre ambas, percorrido por ônibus, quando da realização do festival. Cachoeira, no Recôncavo Baiano, sede do Centro de Artes Humanidades e Letras (CAHL), da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), desde 2006, e Luís Eduardo Magalhães, no Oeste do estado, cidade que, antes da emancipação de Barreiras, era conhecida como Mimoso do Oeste, que também guarda um campus de outra universidade federal criada no programa, a UFOB – Universidade Federal do Oeste da Bahia, em 2013. A cidade de Luís Eduardo Magalhães (LEM) emancipou-se pouco antes dos “Governos do PT”1 se instalarem, mas foi durante a primeira década do novo milênio que a cidade ergueu uma estrutura inimaginável no Oeste Baiano. Muito, devido às pró1 Com o fim da Ditadura Militar e um posterior governo liberacionista, um metalúrgico, Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a presidência do Brasil no ano de 2003. Filiado ao Partido dos Trabalhadores, Lula governou até 2009, quando assumiu sua sucessora, Dilma Rousseff, também do PT. O governo de Dilma, primeira mulher a presidir a República, iniciou-se em 2010, com uma dura reeleição em 2014, e teve fim em 2016, por um processo de impeachment, golpe de estado que reacendeu as dicotomias existentes desde sempre no Brasil. Durante os anos de governo do PT (2003 a 2015, efetivamente), inúmeras políticas públicas conhecidas e reconhecidas mundialmente repensaram as construções sociais da nação e possibilitaram que a população marginalizada (negros e negras, mulheres, comunidade LGBTQI+, indígenas, moradores de periferias de grandes e pequenas cidades) tomasse o que era seu de direito: o desemprego diminuiu, as unidades federais de educação (Universidades e Institutos) se multiplicaram, com a implementação de políticas de ação afirmativa, por exemplo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes prias políticas petistas de isenção de impostos para grandes indústrias. Considerada a capital do MATOPIBA, umas das mais férteis regiões do Brasil, e portanto, a maior fronteira agrícola da atualidade, compreende parte dos estados Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. LEM, como ocorreu com outras áreas do Brasil onde há exploração agropecuária - como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás -, recebeu migrantes de outros territórios brasileiros, sobretudo vindos da Região Sul, que monopolizaram os meios de produção, e hierarquizam a população nativa como mão-de-obra nas atividades do campo e de cuidado. Cachoeira, diferentemente, é um território físico reconhecido como cidade há mais de 400 anos. Cidade portuária durante boa parte de sua existência, “o vapor de Cachoeira não navega mais no mar”, como canta a letra da música “Triste Bahia”, de Caetano Veloso, está às margens do Rio Paraguaçu. Guarda incontáveis histórias sobre a resistência e (re)existência diante da escravidão dos povos africanos trazidos em diáspora, na reinvenção dos modos de vida e tradição, como as narrativas das religiões afrobrasileiras, dos quilombos, das orquestras, das festas de São João, da Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte e de Nossa Senhora D’Ajuda. A cidade também é território das lutas políticas nacionais, como a Independência da Bahia que culmina em 2 de julho de 1823, quando o Brasil deixou de se submeter ao poder de Portugal, condição ainda não conquistada apesar do grito da Independência no Ipiranga, que libertou apenas os territórios financeiramente bem menos produtivos, à época. As tropas formadas por gente de todo tipo, indígenas, negros, explorados, saem de Cachoeira em 25 de junho para o confronto com o exército nacional na Capital, Salvador. Como todo o Brasil, ameaçado por um estado extremamente opressor nos últimos anos, os territórios de Cachoeira e Luís Eduardo Magalhães sofrem com as mesmas questões relacionadas ao medo, onde o potencial para criar, pensar e agir de forma individual ou coletiva vai sendo engolido pelos processos burocráticos e pela desigualdade econômica e social, que cresce sem limites no país. Voltando-nos ao questionamento que Ailton Krenak (2019) expõe em relação ao conceito de “humanidade” em uso, observamos que vivemos períodos de estagnação, onde estamos “mamando no colo de nossa mãe: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa, nos alimentando forever” (p. 59), mas o peito nos é tirado, nos desesperamos, ficamos inseguros. Mas ela só tinha dado uma viradinha e logo voltará a nos dar o leite. A sociedade em que vivemos, entretanto, é quem nos tira dos momentos de aproveitar o que temos à nossa frente e nos lança no giro da roda. Não uma roda que abre outros horizontes e acena para outros mundos no sentido prazeroso, mas para outros mundos que só reproduzem a nossa experiência de perda de liberdade, de perda daquilo que podemos chamar inocência, no sentido de ser simplesmente bom, sem nenhum objetivo. Gozar sem nenhum objetivo. Mamar sem medo, sem culpa sem nenhum objetivo. (KRENAK, 2019, p. 64 - 65).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Eliminada a inocência, extirpados os prazeres primitivos, transforma-se o desejo em medo; segundo Suely Rolnik (2019), é através da produção do medo que o abuso se instaura. O sujeito, vivente social, se comunica por meio de um repertório cultural que o possibilita fazer associação a representações, existindo, assim, socialmente. Esvaziando o indivíduo de sua própria singularidade, torna-se simples à massa fascista, que (sempre) avança e converte o mal-estar causado pelo medo em ódio e ressentimento. Rolnik afirma que a demonização do outro - que pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe social, uma sexualidade, uma ideologia, um partido, um chefe de estado, etc. - contribui para que esse mal estar nos faça sucumbir ao medo. Sucumbidos ao medo, traumatizados pelo abuso, vulneráveis ao sistema colonial capitalistico/cafetinístico2, “a potência do desejo é desviada de seu destino ético, ativo e criador, para ser apropriada pelo capital e converter-se em potência reativa de submissão” (2019, p.87). Os territórios também serão acessados por meio das corporeidades dos estudantes, cineastas, atores, atrizes, personagens. Concordamos assim com a proposição teórica de Álvaro Dias Gomes e Sara Victória Alvarado Salgado que teorizam o corpo como o primeiro território de poder de um sujeito, que será acionado nas trocas simbólicas e expressividades das diferenças e similitudes comunicativas. Os corpos adquirem uma importância central em sua potencialidade de abrigar tanto operações de dominação como práticas de desobediência, quer dizer, desde o corpo se assumem linhas de fuga frente a delimitações e prescrições.3 (GOMES, SALGADO, 2012, p.117)

Em sua investigação a respeito do “tornar-se subjetividade política ser um ponto de referência para sujeitos políticos” (Idem) os pesquisadores concluíram que os jovens em ambientes universitários exploram tais condições de possibilidades transformando-se e consequentemente transformando seus colegas, amigos, afetos, pessoas próximas. Seja em casa, nas instituições escolares ou nas ruas, as ambiências nas quais Gomez e Salgado observaram as mudanças relacionadas às subjetividades políticas incorporadas, os territórios são expandidos e superam a contenção de imaginários políticos individuais e coletivos (RIBEIRO, 2011), e assim, concluímos, podem criar epistemologias dissidentes.

2 Suely Rolnik aponta a produção de tal sistema aqui: “É totalmente distinto o que se passa com o desejo quando se orienta segundo uma perspectiva antropo-falo-ego-logocêntrica, que é a que define o inconsciente colonialcapitalístico. Este consiste na anestesia da potência que o corpo tem de decifrar o mundo a partir de sua condição de vivente: o saber-do-corpo torna-se inacessível.” (2015, s/p) 3 Tradução livre de “Los cuerpos adquieren una importancia central en su potencialidad de alojar tanto operaciones de dominación como prácticas de desobediencia, es decir, desde el cuerpo se asumen líneas de fuga frente a delimitaciones y prescripciones.”

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Foto 1-Cirlla Machado, produção em Santa Maria da Vitória, na divulgação do evento na UFOB. Para atravessar tantos territórios, buscaremos acessá-los por meio de fragmentos de narrativas (MIGLIANO, 2020) das experiências (BENJAMIN, 1996) estéticas e revolucionárias de regimes de visibilidade (RANCIÈRE, 2012) à contra-pelo da manutenção do status quo. Os fragmentos trabalhados no artigo dizem respeito à excertos textuais, imagens, relatos, entre outros lampejos de sentidos em materialidade sensível e estarão relacionados com a vivência de um ou mais autores. Os fragmentos de narrativas serão em alguns momentos remontados (DIDI-HUBERMANN, 2016) a partir de um relato pessoal, imagem e textos postados em rede social, em outros momentos remontando as temporalidades da situação construída na dimensão dos transcinemas (MACIEL, 2009) que se encontraram nas duas edições do Festival Mimoso de Cinema. Para Kátia Maciel, o conceito de transcinemas delineia uma imagem que na presença de um participador cria ou gera uma nova construção de espaço-tempo cinematográfico. “Trata-se de imagens em metamorfose que podem se atualizar em projeção múltipla, em blocos de imagem e de som, e em ambientes interativos e imersivos” (MACIEL, 2009, p. 17). Muitas materialidades do cinema serão retomadas aqui, mas outras, como as do projeto de Extensão e Pesquisa Sonatório, que estiveram presentes na primeira edição e expandiram enormemente a consideração sobre os recursos para criação cinematográfica (MAPURUNGA, 2019) e a proposição de expansão da consciência espaço-temporal na pesquisa de sentidos e éticas na cidade, resultando inclusive como motivação para investigações monográficas de estudantes (CIRINO, 2019), não poderão ser aqui retomadas.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O Festival é uma realização da produtora Dois4Dois Filmes, que se concretiza a partir das redes formadas dentro do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, em Cachoeira, e do apoio essencial da instituição nas duas edições. A Universidade Federal do Oeste da Bahia também colabora ao trazer estudantes para compor essa comunidade imaginada. Esforçaremo-nos para fazer compreender uma parte da amplitude dos sentidos em interação entre a multiplicidade de territórios elencada: o transbordamento de gêneros e sexualidades dissidentes da heterossexualidade compulsória (RICH, 1993) que disputaram sentidos e narrativas na experiência de produção e realização do I e II Festival Mimoso de Cinema. Como será logo apresentado, as condições de possibilidades criadas pelas experimentações em transcinema do festival abriram caminhos muito potentes na vida dos que as presenciaram.

Mostras Competitivas, Paralelas e Especiais O Festival Mimoso de Cinema nasce ciente de si mesmo enquanto projeto fora da rota de grandes Festivais no Brasil (para além de situar-se fora do eixo Rio-São Paulo) e com o desejo de se colocar em uma rede de festivais interioranos, nesse caso, também nordestinos. Tais festivais estão por todo o país, alguns exemplos são Curta Taquary, Festival Taguatinga de Cinema, Curta Coremas, entre outros que pensam o cinema nacional em diálogo com o interior, promovendo encontros, formações, trocas de afeto e organização de uma rede de cineastas, estudantes, trabalhadores da área do audiovisual fora do eixo das maiores capitais nacionais. A primeira edição do Festival teve mais de 800 filmes inscritos e vieram de todas as regiões do Brasil. Realizações influenciadas por uma cultura popular e proliferação de videoclipes e reality shows, bem como de imagens amadoras das mais inventivas e veiculadas em diversos dispositivos. Processo intimamente vinculado a artistas que se formaram nos últimos anos, que narram histórias e personagens que fazem parte de grupos marginalizados, oprimidos, invisibilizados, silenciados, para os quais pouco sobra da participação da política institucional; são filmes que fazem existir, estética e politicamente, histórias antes não reveladas:

São a nova ciência histórica e as artes da produção mecânica que se inscrevem na mesma lógica da revolução estética. A revolução técnica vem depois da revolução estética. Mas a revolução estética é antes de tudo a glória do qualquer um - que é pictural e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica. Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstituir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico. (RANCIÈRE, 2005, p.49)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Esta cinematografia contemporânea é um programa estético, antes de ser técnico. Porque foi daqueles grupos sem parte na comunicação que surgiram as urgências de se manifestar, de tomar para si um lugar de voz e de escuta, de fazer valer leis e políticas públicas, de fazer reconhecer os danos que sofriam/sofrem. Aos poucos, perceberam sua possibilidade e potencialidade para produzir conteúdo. Deixaram de ser apenas objetos a serem observados e se integraram aos movimentos como produtores(as) e agentes de reflexões de ideias, de expressões, de estéticas. Movimentação individual, numa importante e indispensável produção de subjetividade partindo de cada um a partir de suas realidades e histórias de vida; e movimentação, invariavelmente, coletiva, quando encontraram a necessidade de se produzir através de uma alteridade tão indispensável quanto o ato de olhar para si.  Nesse contexto, imaginar a visão curatorial de uma mostra competitiva nacional para um festival estreante significava entender como filmes de todo o país estariam em diálogo com a cidade de Luís Eduardo Magalhães, dando a ver outras narrativas sobre o Brasil que constituem imaginários dissidentes dentro do contexto do poder luiseduardense. Em 2018, as equipes curatoriais4 buscaram contrapor panorama nacional ou estadual, mas selecionando filmes que estabelecem pontes e propõem conexões a partir das periferias, comunidades tradicionais, corpos negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQI+. A escolha dos filmes se deu muito consciente de que se tratava de uma disputa de narrativa com diversas normatividades, e ainda assim, com filmes que atingem lugares sensíveis e propostas estéticas que reverberam na produção de afetos. Buscávamos um caminho para atravessar o abismo cultural que se apresenta entre dissidência e normatividade junto aos filmes. A segunda edição do festival foi realizada, então, com a proposta “Atravessando Fronteiras” como guia para todas as ações que compuseram o evento. Em 2019, havia duas mostras competitivas: a nacional5 e a infantojuvenil6, ambas tiveram como principal público os estudantes e professores da rede pública municipal e estadual da cidade. Essa escolha de produção do festival influenciou a seleção de filmes, pensando que estes poderiam transpor pontes, dar a volta, rasgar, abrir caminhos entre a normatividade estéril em direção à uma diversidade inventiva.

4 Equipe curatorial Mostra Competitiva Baiana: Fabio Rodrigues Filho, Hulle Horrana e Shaolin Barreto. Equipe Curatorial Mostra Competitiva Nacional: Hanna Vasconcelos e Michel Santos. 5 Equipe curatorial Mostra Nacional 2019: Camila Camila, Clarissa Brandão, Glênis Cardoso, Hanna Vasconcelos, Michel Silva dos Santos, Milene Migliano, Reifra e Ulisses Arthur 6 Equipe curatorial Mostra Infantojuvenil 2019: Ana Paula Nunes, Bruna Maria e Rafael Beck.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Corpo e Território No primeiro ano, além das Mostras Competitivas de Cinema Brasileiro e Baiano, o festival organizou sessões associadas à ManduCA - Mostra de Cinema Infanto Juvenil de Cachoeira, evento que realiza curadoria voltada para crianças e jovens estudantes da rede de ensino do município, e é produzido pelo grupo PET CINEMA UFRB. A Mostra aconteceu no Cinema Premier, com participação dos estudantes da rede pública do município. Para muitas crianças, era a primeira visita a um cinema, e a mostra contemplou sessões com curtas-metragens nacionais e internacionais de temática acerca de relações parentais e familiares, além de contar com o longa-metragem baiano “Jonas e o Circo Sem Lona”, de Paula Gomes (2015), filme que narra a disputa dos valores família e circo na vida da criança, protagonista da história real também. As mostras especiais foram um outro espaço de visionagem e troca de perspectivas sobre os filmes produzidos naquele ano, ou no logo anterior, como a Mostra Cinema Corpo e Território. A sessão aconteceu no Colégio Estadual Constantino Catarino de Souza durante a tarde do primeiro dia do festival, antecedendo a abertura oficial realizada a noite. Durante a tarde, no refeitório da escola, com estudantes do ensino médio que atendiam a faixa etária exigida na classificação indicativa dos filmes. Curada pelos produtores audiovisuais Hanna Vasconcelos e Michel Santos, a mostra tematizou em quatro curtas o enfrentamento do racismo, da transfobia, da marginalização urbana e rural, ambientada no espaço do mangue, com os filmes, todos de 2017: “Hic”, de Alexander Burc, experimental, 14 anos; “Algo do que fica”, de Benedito Ferreira, ficção, livre; “Azul Vazante”, de Júlia Alqueres, ficção ambientada em São Paulo, entre a praça da Sé e uma esquina de um bairro, livre; e “Nanã”, de Rafael Amorim, ficção, livre, filmado em Recife. A inadequação do espaço de exibição, devido principalmente à claridade, e a falta de qualidade na reprodução sonora, não foram suficientes para desviar a atenção dos estudantes, da tela improvisada. Com reações diversas às audiovisualidades exibidas na primeira sessão do festival, os estudantes demoraram um pouco para se engajar no debate. A escola que abriga o ensino médio da parte periférica da cidade, o bairro Santa Cruz – onde aconteceram quase a totalidade das atividades do festival em ambas edições – tem má fama por abrigar os jovens entusiastas dos estudos, mas nada privilegiados, em relação às condições econômicas e sociais aos outros jovens da cidade.

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Foto 2 - Exibição da Mostra Cinema Corpo e Território que aconteceu no Colégio. Mas outra coisa é ver, é sentir a secura do ar, é sujar-se de terra vermelha. É caminhar numa cidade feita para carros, ver centenas de crianças entrarem pela primeira vez no único cinema de sua cidade, ver pessoas passarem reto da sessão de filmes que montamos na praça, desconfiadas. Crianças e adolescentes discutindo cinema na escola, no meio do dia letivo, numa sessão improvisada, com uma projeção difícil e ainda assim, valorizada. Deu muita sede de fazer tudo de novo, mas atingir mais, acessar mais, provocar mais. (....) Os olhares que acuavam ou acolhiam, que buscavam ou repeliam. Talvez por identificar-se ou por identificar ali tudo o que foi ensinado que era proibido, ruim, pecaminoso. (Relato de Hanna Vasconcelos, 2020)

O debate correu em torno do estranhamento acerca dos filmes, por conterem estéticas experimentais, por trazerem audiovisualidades acerca de corpos trans, negros, quilombolas. A estudante que toma a palavra discorre sobre a discriminação que sofre na cidade e escola, por conta de sua corporeidade e presença afirmativa, e foi aplaudida por professores e colegas. No ano seguinte, durante uma das atividades de investigação cartográfica do bairro, paramos na escola para tomar uma água e fomos reconhecidos e relembrados. As mostras competitivas em 2018 ocorreram na praça CEU, nas adjacências do bairro Santa Cruz e eram áreas de encontro e passagem de moradores do bairro. Muitas vezes crianças que brincavam por ali, ou tinham atividades recreativas ou aulas a noite ficavam para as sessões. Havia, certamente, além da curiosidade, um estranhamento pela quantidade de corpos e elementos diferentes da paisagem habitual do bairro, o encontro de dezenas de estudantes de Cinema, Artes Visuais, Jornalismo, Publicidade e Propaganda, vindos de Cachoeira (UFRB) e Santa Maria da Vitória (UFOB).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Atravessamentos Se a equipe de produção, promoção e realização do primeiro festival estava antenada e engajada na luta por visibilidade das dissidências e existências, a segunda edição esteve assumidamente planejada a partir da luta por visibilidade e conectando-se com a ideia de atravessar territórios e abismos com os filmes que foram selecionados para as competitivas nacional e infantojuvenil e mostras especiais. Em busca de compreender melhor o público de cineastas e realizadores audiovisuais que movimentou, a coordenação do festival solicitou o preenchimento de um formulário aos diretores e produtores dos filmes inscritos.

Foto 3 - Flyer de divulgação do II Festival Mimoso de Cinema, informando dados.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A preocupação da divulgação das informações contidas no flyer pode ser compreendida em duas direções: primeira a de transformar as opções de imaginário disponíveis às crianças e jovens de Luis Eduardo Magalhães, como podemos ler no relato de Michel Santos, que cresceu lá. Após narrar que cursou primeiro Agronomia em Curitiba para depois, cursar cinema no interior da Bahia, conta A escolha que fiquei martelando na minha mente, era de cursar algum curso de cinema, que me parecia o ideal, mas não parecia a “coisa certa”, a qual a mãe, do futuro companheiro de apartamento, se referia quando me puxou num canto da rodoviária, antes de partirmos para Curitiba. Eu acabei optando por agronomia, e vejo hoje que é esse o caminho que desemboca no festival mimoso, se eu tivesse ido pro cinema lá em 2005, tenho certeza de que até poderia existir algum festival realizado por mim, mas não seria o mimoso! (Relato de Michel Santos)

O curso de Agronomia foi finalizado e os conhecimentos adquiridos se consolidaram no filme Latossolo, realizado por Michel Santos, lançado em 2017 no circuito de festivais de cinema brasileiro, e com sua narrativa ancorada na terra, desvela desigualdades no modo de vida implementado na região, pelo agronegócio e seus interesses. A outra direção é da dimensão ética na consolidação de uma política cultural da ação do festival de cinema em dar a ver e fazer voz à necessidade de reconhecer a interseccionalidade nas lutas contra os imaginários mantenedores do status quo. A divulgação apresenta a diferença entre os números e qualidades de vulnerabilidades e privilégios dos realizadores. Segundo relato de Michel Santos e Rafael Beck, o planejamento feito na criação e estruturação do festival, se aproxima muito do Transfeminismo de Paul B. Preciado, título do livro lançado em 2015, e no Brasil em 2018. A revolução está acontecendo agora, na sua frente. Você está no meio dela e, consciente ou não, você faz parte dela. ‘Transfeminismo’ é o nome dessa revolução. Se você está cheio do seu gênero, cansado de binários (menino-menina, hetero-homo, branco-não branco, animal-humano, norte-sul), além do modelo ‘casal romântico’, perdendo as esperanças no capitalismo e vive verdadeiramente a utopia de se tornar outra pessoa, você é transfeminista. Transfeminismo não é pós-feminismo. Transfeminismo é o feminismo do século XXI reloaded. (PRECIADO, 2018, p.6)

Os filmes escolhidos pelas equipes de seleção e curadoria das mostras infantojuvenis, competitivas e mostras especiais, das quais nós quatro autores fizemos parte para o festival de 2019, foram organizados em sessões que conduziam uma narrativa de apresentação de outras imagens e imaginários do mundo. Alguns instigam a luta, outros apresentando suas singularidades em filmes que delineavam modos diferentes de conhecer, ensinar e ver. As sessões da mostra competitiva nacional foram apresentadas pelos realizadores, quando presentes ou então pelos curadores e tiveram textos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes escritos por cada curador para as sessões que a compuseram. A Mostra Competitiva Infantojuvenil, além de ser apresentada em caráter competitivo, teve curadoria e programação realizada por equipe do festival. Foram apresentadas duas sessões, a primeira, para o ensino-infantil, e outra, para o ensino-fundamental. Os filmes selecionados propõem reflexões sobre atravessar fronteiras “reais”, como conhecendo povos originais do Oeste no documentário regional “Conhecendo os Kiriris Barreiras-BA”, de Caique dos Santos Teixeira; acompanhando uma mulher catadora de materiais recicláveis na Grande São Paulom “Carroça 21, de Gustavo Pera; ouvindo as histórias de um artista-pescador na animação “O Poeta do Barro Vermelho”, de Matheus Nobre; ou fronteiras “imaginárias”, com viagens no tempo/ espaço na animação “Vivi Lobo e o Quarto Mágico”, de Isabelle Santos e Edu MZ Camargo; com os tênis velhos de uma adolescente como protagonista em “Par Perfeito”, de Débora Herling; e na improvisação de um filme de ação pesada “O Grande Amor de um Lobo”, de Adrianderson Barbosa e Kennel Rógis. Dos filmes recebidos para seleção da Mostra Competitiva Nacional, muitos ultrapassavam a demanda de serem vistos em competição, motivando-nos a criar as mostras especiais no desejo de aglutinar filmes que falassem de diferentes abismos, de questões complexas que envolviam diversas fronteiras: afetivas, culturais, raciais, de gênero; ao passo que evidenciam e questionam esses territórios: a Mostra Atravessando Fronteiras e a Mostra Atravessamentos Cinematográficos nas questões LGBTQI+. Atravessando Fronteiras contou com os filmes “AFETO”, de Gabriela Gaia Meirelles e Tainá Medida, o único de 2019, “Eu, Minha mãe e Wallace”, dos Irmãos Carvalho, “Odò Pupa, lugar de resistência”, de Carine Fiúza e “O índio é forte - Oz Guarani”, de Jair Pires de Borba Junior, os últimos três, de 2018. As sessões aconteceram no turno da tarde com a presença de turmas do ensino médio da rede de ensino público da cidade. Junto aos estudantes, diversos estranhamentos e reações, inclusive uma estudante que se levanta para comentar o filme “AFETO” e fala sobre sua percepção da própria cidade ter sido transformada, quando a partir da repetição da frase “cabeça de homem”, ela nota que são as cabeças dos homens que pensam a cidade, e que os homens são sim privilegiados na sociedade. “Eu, Minha Mãe e Wallace” tematiza a reinserção após confinamento em presídio em um encontro em uma casa simples da periferia, no entretempo da saída e a busca de Wallace por novos caminhos na construção civil no nordeste. “Odò Pupa” sagra um passeio pelo lugar de resistência em Salvador, atentando para a importância da defesa e respeito à todas as crenças religiosas. O filme protagonizado pelo grupo de rap Oz Guarani levou para Mimoso a discussão sobre a pauta indígena e a necessidade de demarcação de terras reconhecendo um direito constitucional.

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Foto 4 - Debate pós-sessão da Mostra Atravessamentos Fronteiras.

A sessão Mostra Atravessamentos Cinematográficos nas questões LGBTQI+ também contou com estudantes vindo da Escola para assistir e debater com os convidados da mesa, depois da sessão. Os filmes escolhidos foram “MC Jess”, de Carla Villa-Lobos, que conta a história de Jéssica, uma MC que trabalha no “shopping trem” para sobreviver e, assumidamente lésbica, enfrenta o racismo, machismo e outros preconceitos que como um corpo político vive, na cidade do Rio de Janeiro. “NEGRUM3”, de Diego Paulino, que, de maneira experimental, narra as lutas e as artes de corpos negros em dissidência sexual e de gênero em São Paulo. “BR3”, de Bruno Ribeiro, Rio de Janeiro, que acompanha momentos de três travestis na periferia da capital carioca, revelando alegrias, angústias, superações e encontros em suas vidas, associados à lugares belamente documentados. O último filme, “Verde Limão”, de Henrique Arruda, narra em fragmentos que se intercalam em uma linguagem ágil o sofrimento na infância, adolescência e juventude de um corpo dissidente, uma criança viada, que sofreu muitas violências simbólicas e físicas mas ao final da narrativa, se liberta em uma festa carnavalesca em performance em um beco de Natal. O personagem principal compreende que viado não fica sozinho quando velho, como seu pai falava, porque guarda em si todos os outros viados com quem se encontrou na vida. Este filme, foi exibido depois que os estudantes foram embora, sendo que praticamente todos da equipe de produção e estudantes convidados das duas universidades assistimos, e ficamos muito emocionados depois de sua exibição.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Para além dos filmes - I Mimoso Awards e Fake News Depois de findas todas as atividades oficiais do I Festival Mimoso de Cinema, os estudantes que estavam alojados em uma escola de ensino infantil da cidade, brindaram os convidados/equipe com uma premiação inusitada, o I Mimoso Awards. Noite de domingo, mais de 22h e o pátio de recepção das crianças se tornou auditório com cadeiras marcadas e palco de indicações, desfiles e recebimento dos prêmios, tudo decorado com papel crepom, purpurina e muita criatividade. Ficamos até o fim e percebemos que nenhuma das pessoas indicadas ficou sem prêmio.

Foto 5 - Registro do I Mimoso Awards, print do Instagram de componente do júri oficial daquele ano.

Corpos que são luta apenas porque existem, perfomaram naquela noite muito do que havia sido, em alguma medida de segurança, contido pelos espaços de convívio público em LEM. Logo quando o ônibus da UFRB havia chegado na cidade, 5 noites antes desta última, notamos em muitos carros os adesivos do, à época, candidato à presidência, pelo PSL. Na noite de sábado, antes da derradeira, o festival havia organizado um momento de confraternização no bar Espetinho da cidade. Com a presença de todos os convidados dos dois ônibus, um da UFRB e outro da UFOB, com estudantes do curso de Publicidade e Artes, a confraternização aconteceu em um espaço com outros habitantes da cidade e proporcionou inclusive superação de barreiras: as donas do bar, um casal de lésbicas, contam que nunca haviam trocado demonstrações de afeto no local, gestos que performaram durante o encontro. Paco Vidarte conclama: Uma ética bixa deveria recuperar a solidariedade entre os oprimidos, discriminados e perseguidos, evitando estar a serviço das éticas neoliberais cripto

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes religiosas herdadas em que fomos criados e nas quais se forjaram nossos interesses de classe, e recuperar a solidariedade com outros que foram e são igualmente oprimidos, discriminados e perseguidos por razões diferentes de sua opção sexual. (VIDARTE, 2019, p.22)

E completa que “não cabe uma ética bixa, sem memória, memória longa”, ou seja, é preciso que a opção política esteja fortalecida em narrativas das experiências que, engajadas em performances de subjetividades dissidentes, motivem e consolidem a luta pela vida plural. É por isso que é imprescindível ao menos apresentar qual foi dos momentos de maior engajamento na festa do Espetinho: os momentos de dança. Com um DJ nascido no interior da Paraíba, mas que já conquistou muitos territórios com o cinema, Kennel Rogis promoveu condições para que todos os corpos entrassem em situações de frequência sonora compartilhada intensamente também no tato e desse modo fizessem jus à festa enquanto território de luta de imaginários naquela cidade. Dançar é performar. A performance ritual é, pois, um ato de inscrição. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo é, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal, esse corpo/corpus não apenas repete o hábito, mas também, institui, interpreta e revisa o ato encenado. (…) Os sujeitos e suas formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história.” (MARTINS, 2003, p. 78)

As danças encontradas e performadas na festa do Espetinho e, posteriormente, no I Misoso Awards, deram visibilidade às experiências diversas dos corpos à disposição do encontro, remontando um território de luta pela diversidade sexual e de gênero mas também de inscrição da memória da luta por ali. As performances compostas pelos corpos individualmente ou em dimensão coletiva foram estimuladas pelas músicas e seus clipes já experimentados por alguns, mas também pelas imagens e imaginários trazidos pelo cinema expandido aos quais estávamos todos expostos e imersos. Daquela festa lembramos ainda que alguns carros passavam pela esquina e observavam nossos corpos em diversões múltiplas, relato depois confirmado pelos colaboradores que lá residiam. E assim, terminou a primeira edição do Festival Mimoso de Cinema. Ao final de fevereiro de 2020, a organização do Festival Mimoso de Cinema recebeu uma notificação de que estava circulando nos grupos de Whatsapp a postagem de uma fake news que manipulava a vinheta do último festival e espalhava uma notícia falsa LGBTfóbica com a inserção de frames de um suposto “seminário LGBT” que não aconteceu. Também foi adicionada a logo da gestão da prefeitura, que apoiou o festival nas duas primeiras edições, como se a gestão tivesse realizado o festival por completo. A postagem de denúncia da fake news nas Redes Sociais Facebook e Instagram do Festival Mimoso de Cinema elucida ponto a ponto todas as atividades desenvolvidas nas duas edições. A postagem ainda afirma que

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Destacamos a violência simbólica das mentiras propagadas pela Fake News em relação às questões LGBT+ e a comunidade LGBT+ de Luís Eduardo Magalhães, e também do Brasil, através de filmes e de cineastas que tiveram suas obras associadas à propagação dessas mentiras. Enfatizamos também a importância de se discutir as questões LGBT+ em uma sociedade bastante LGBTfóbica em um dos países que mais mata essas populações, através de crimes de LGBTFobia. É importante discutir e visibilizar a temática LGBT+ seja em mostras de cinema ou mesmo em seminários, defendendo o respeito à diversidade e os direitos humanos. A Fake News tentou utilizar do preconceito para produzir uma mentira induzindo a população de um suposto risco que o material exibido no festival poderia trazer às crianças, com a justificativa de protegê-las. Mais uma vez ressaltamos que em todas as sessões promovidas pelo Festival há o respeito às normas de classificação indicativa do Governo Federal. (postagem no facebook https://www.facebook.com/festivalmimoso/ photos/a.2302463736720392/2302464040053695/?type=3&__tn__=K-R)

A continuação do texto diz que a adulteração do material é um modo de operar e manipular os imaginários a respeito do festival, que age da mesma maneira que as mentiras a respeito da mamadeira de piroca e o kit gay que foram disseminados nas eleições presidenciais de 2018. As postagens tiveram muitos comentários apoiando a denúncia e enfatizando a importância de circulação das imagens e imaginários que mobilizam processos pedagógicos decoloniais a partir de epistemologias dissidentes criadas no encontro com subjetividades políticas incorporadas, que iluminam os abismos para que possamos nos desviar deles.

Considerações Finais Os fragmentos de narrativas acionados em nosso texto evidenciam que as disputas de sentidos, imagens e imaginários nas duas edições do Festival Mimoso de Cinema estão associadas às suas propostas metodológicas de composição e produção. Tais opções reafirmaram a dimensão política de fazer visível e debatida as diferenças e singularidades e lutas LGBTQI+, do povo negro, das mulheres, pelos direitos dos povos originários e indígenas, por outras formas de produzir conhecimento e trocas: linhas de fuga que se articulam e tecem memórias, projetos e tempo presente. O transbordamento dos corpos universitários, secundaristas e infantis revelam as subjetividades políticas incorporadas nos diversos âmbitos da relação cinematográfica. Relação que considera o cinema em um sentido expandido. Transcinema que se faz com filmes, vídeos, produtos audiovisuais que circulam em artefatos de redes sociais mas também nas performances e oficinas que trabalham a dimensão contemporânea das poéticas de audiovisualidade. Poéticas contaminadas pela ética bixa, pelo anti-racismo, pelo feminismo, pelo transfeminismo, pela luta aos direitos dos povos originários e da classe trabalhadora: contar muitas histórias, ampliar horizontes, imaginários e experiências estéticas de lutas, alegrias e conquistas.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Experimentar cinema no interior do Brasil pode ser pensar uma programação que tira crianças e jovens de seu lugar de (des)conforto da sala de aula e permite que a tela do cinema seja rasgada pelo morro, pela periferia, pelo corpo apresentado como marginal, sem juízo e sem futuro, revelando outros regimes de sensorialidades que motivam desviar de abismos e superar a contenção dos imaginários políticos em circulação. É acreditar na potência criativa viva no cinema das novas gerações como uma vertente de futuro possível para todos, com igualdade de condições de possibilidades dos corpos que compartilham territórios e territorialidades. Subjetividades políticas encorpadas que transformam qualquer criança ou jovem que entre em contato com elas. No contexto em que o Festival Mimoso de Cinema é realizado, não podemos esquecer que o agro é pop, mas o cinema é pop também.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes PARENTE, André. Moving Movie - Por um cinema do performático e processual. In: GONÇALVES, Osmar (org). Narrativas Sensoriais. Rio de Janeiro: Editora Circuito, p. 103-122, 2014. PRECIADO, Paul B. Transfeminismo. São Paulo: N-1 edições, 2018. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005. __________________. O espectador emancipado. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2012. RICH, Adrienne. Heterossexualidade Compulsória e existência lésbica. Trad. VALLE, Carlos Guilherme. In Revista Bagoas, n. 05. 2010 p.17- 44. Natal; CCHLA - UFRN. ROLNIK, Suely. A hora da micropolítica. In. Re-visiones N5, Madri, 2015. Versão reescrita de trechos da estrevista original. Disponível em: . Acesso em 17 de maio de 2020. ______________. Esferas de insurreição: notas para uma vida não cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018. RIBEIRO, Ana Clara Torres. Nós temos hoje uma espécie de contenção do imaginário político. Entrevista in Revista Marimbondo, v.01, 2011. Disponível em www.revistamarimbondo.com.br. VIDARTE, Paco. Ética Bixa: Proclamações libertárias para uma militância LGBTQ. São Paulo: N-1 edições, 2019.

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#FAVELA: TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E DISPUTAS DE VISIBILIDADE NO INSTAGRAM NA ERA DA CULTURA DIGITAL Admilson Veloso da Silva

Introdução O Brasil registrou 13.151 aglomerados subnormais espalhados por 734 municípios em 2019, com 5.127.747 famílias em vilas de baixa renda, favelas e conjuntos habitacionais populares. A classificação desses espaços urbanos é feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujos dados mais recentes referem-se a um relatório de estimativas de 20191. De acordo com o órgão governamental, um aglomerado subnormal é definido como “uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas”. Esses espaços, na definição do IBGE, têm por característica “um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação”. Tradicionalmente associados pela mídia a violência, pobreza e criminalidade (Jaguaribe, 2004; Vaz et al, 2005; Rosas-Moreno e Straubhaar, 2015; Davis, 2015), o advento da tecnologia móvel e da cultura digital, alinhados com transformações socioeconômicas, permitem agora que os moradores da favela disputem o imaginário social usando narrativas contrastantes em redes sociais on-line (Castells et al, 2009; Cunha e Polivanov, 2017; Nemer, 2016; Almeida e Mota, 2019). Neste capítulo, propomos uma breve recapitulação histórica sobre a formação das favelas no Brasil e, em seguida, realizamos uma análise de conteúdo (Krippendorff, 2004) com o apoio de técnicas netnográficas (Kozinets, 2014) sobre as disputas imaginárias em torno da #favela, a partir de uma perspectiva da cultura digital. Parte-se de duas questões centrais para a pesquisa: quais as perspectivas dos moradores da #favela nas disputas imaginárias travadas no contexto da cultura digital por meio da visibilidade no Instagram? Como as favelas são representadas por meio de imagens 1 Os dados foram publicados em 2020 pelo IBGE no relatório intitulado “Aglomerados Subnormais: Classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à Covid-19”, que se encontra disponível como referência no final deste capítulo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes compartilhadas na rede social com a #favela? Todavia, para compreender as práticas e as disputas desse meio digital, primeiramente, é essencial traçar a trajetória de formação desses ambientes off-line, ou seja, as próprias favelas e seu contexto social.

Favelas: história e contexto de transformação social A história das favelas está intrinsecamente ligada à própria história do Brasil, principalmente às transformações sociais pelas quais o país passou desde meados do século XIX. Segundo o IBGE, a maior aglomeração subnormal do Brasil é a Rocinha, no Rio de Janeiro, com 25.742 domicílios. No entanto, o fenômeno também pode ser observado em cidades pequenas. Na cidade de Vitória do Jari, no Amapá, que possui apenas 15,9 mil habitantes, 74% de seus domicílios estão em aglomerações subnormais. No Rio de Janeiro, onde foi registrada a primeira favela do país, segundo Zaluar e Alvito (2004), esta formação deu-se com a expulsão daqueles que não se encaixavam no padrão da sociedade desejada para as periferias e morros, em uma tentativa de construir o sonho de uma cidade europeia, com a busca pelo embranquecimento da então capital. Junto a isso, fatos históricos a exemplo da forma como se realizou a abolição da escravidão, disputas territoriais, urbanização e migrações contribuíram para o estabelecimento dessas comunidades na capital da jovem República (Chaves de Mello, 2007) e em outros centros urbanos como São Paulo, Fortaleza e Belo Horizonte. Em documentos encontrados no Arquivo Nacional, há a sugestão de um delegado, em 4 de novembro de 1900, para destruir o que viria a ser a primeira favela do país, o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, segundo aponta Bretas (1997, apud Valladares, 2000). Nas cartas, o agente relata a precariedade do local, onde cabanas de madeira empilhadas sem nenhuma infraestrutura urbana funcionavam como um espaço de proliferação da violência. Contraditoriamente, a população desse morro era formada, em parte, por militares e seus familiares que retornaram ao Rio de Janeiro em 1897 após a chamada Guerra de Canudos, na Bahia (Ferreira e Delgado, 2003). Esse agrupamento buscou a recompensa do governo pela vitória na batalha, mas não ganhou a casa prometida e teve que procurar outro lugar para se estabelecer fora da área nobre da então capital. O Morro da Providência passou a se chamar Morro da Favela em referência a uma planta comum na região de Canudos onde ocorreu a batalha, também chamada de favela (Cnidoscolus quercifolius - sin. C. phyllacanthu). Por volta de 1920, o termo começou a ser usado em referência a outras comunidades pobres do Brasil. Contudo, não foram apenas os vencedores de Canudos que influenciaram a formação dessa favela. O projeto de reforma urbana do prefeito e engenheiro Francisco Pereira Passos (1902-1906) impactou diretamente os cortiços, onde viviam trabalhadores de baixa renda e ex-escravos no centro do Rio de Janeiro. Com isso, tam-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes bém foram obrigados a buscar outros espaços para se instalarem, contribuindo para as formações periféricas. Quando se olha para o contexto nacional, o período pós-escravidão tem relação direta com a constituição dos espaços das favelas, como mostram outros autores (Carril, 2006; Gomes, 1990; Valladares, 2000). A Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, acabou simbolicamente com a escravidão no país após pressões internacionais. No entanto, a medida não trouxe garantias aos ex-escravos quanto à participação efetiva na sociedade, deixando-os à margem, sem poder econômico, moradia, terra ou qualquer perspectiva de ascensão social. O fim do século XIX e início do século XX foi marcado no Brasil por outro fenômeno que influenciou a formação das favelas: a migração em massa de pessoas do campo e interior para as grandes cidades. Além dos ex-escravos, os trabalhadores de baixa renda buscavam melhores condições de vida nos principais centros urbanos, fugindo da pobreza, das condições climáticas desfavoráveis em certas regiões do país e da exploração laboral por grandes agricultores. Como os preços dos imóveis nas áreas planejadas das capitais eram inacessíveis, restou a essa parcela já marginalizada da população encontrar seu lugar nas periferias, contribuindo também para o crescimento das favelas. A falta de ação do poder público para o planejamento urbano e a garantia de acesso aos serviços básicos, como água potável e saneamento, tornavam esses locais espaços de baixíssima qualidade de vida, marginalizando ainda mais seus moradores. Nas últimas décadas do século XX e primeiros anos do século XXI, governos municipais e estaduais passaram a intervir, com projetos de urbanização, substituição de assentamentos irregulares por edifícios verticais (Denaldi e Maricato, 2003), medidas de “pacificação” – com ocupação por forças militares – combatendo organizações criminosas sediadas em algumas dessas áreas (Fleury, 2012). Outras duas mudanças ocorreram de forma mais sutil: a primeira refere-se à cobertura noticiosa de parte da mídia, rebatizando esses espaços de “comunidades” e não mais de “favelas” (Freire, 2008); e a segunda, com o fenômeno da comercialização turística das favelas, que se tornaram ponto de atração de turistas interessados em conhecer de perto o lugar da pobreza, em uma espécie de safári humano pelos aglomerados subnormais, especialmente no Rio de Janeiro, conforme discutido por Frisch (2012). Para a maioria das favelas e assentamentos no Brasil, a imagem que a mídia veicula é ainda na atualidade quase sempre negativa, geralmente relacionada à pobreza e à criminalidade, como discutiremos mais adiante.

Cultura Digital: visibilidade e disputas imagéticas Com o desenvolvimento tecnológico das últimas décadas, a popularização dos dispositivos móveis, grande parte da população brasileira passou a ter acesso à Internet. Segundo levantamento (TIC Domicílios), em 2018, 70% da população tinha aces-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes so à Internet, o equivalente a 126,9 milhões de pessoas. Nas classes mais pobres, denominadas D e E, muitas das quais vivem em favelas e na zona rural, o percentual é menor, de 48%. O principal meio de conexão é o celular e, em 2019, já havia 230 milhões de aparelhos móveis ativos no país, segundo relatório da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Para Manuel Castells (2008), essas transformações econômicas e tecnológicas desde os últimos anos do século XX representam uma importante mudança estrutural para as sociedades ao se analisar o cenário do capitalismo globalizado, pois “no espaço de aproximadamente dez anos, a telefonia móvel passou de tecnologia dos poucos privilegiados para uma tecnologia essencialmente popular” (2009, p. 7. Tradução nossa)2. O autor aponta a transição da economia mundial de base industrial para o capitalismo informacional como uma das características desse período, analisando o cenário de colapso da União Soviética. “Uma revolução tecnológica com base na informação transformou nosso modo de pensar, de produzir, de consumir, de negociar, de administrar, de comunicar, de viver, de morrer, de fazer guerra e de fazer amor.” (Castells, 2008, p. 20). A constituição de uma cultura digital, na qual a conectividade medeia vários aspectos da vida contemporânea, é um fator chave neste novo contexto de transformação social. Uma cultura de virtualidade real, construída em torno de um universo audiovisual cada vez mais interativo, permeou a representação mental e a comunicação em todos os lugares, integrando a diversidade de culturas em um hipertexto eletrônico. O espaço e o tempo, bases materiais da experiência humana, foram transformados à medida que o espaço de fluxos passou a dominar o espaço de lugares, e o tempo intemporal passou a substituir o tempo cronológico da era industrial. (Castells, 2000, p. 20).

Segundo o antropólogo brasileiro André Lemos (2005), em uma perspectiva que dialoga com o pensamento de Castells, vivemos uma “Era da Conexão”. O autor lembra que o início do século XXI, com o advento dos smartphones e da conexão móvel, nos leva a uma nova fase da sociedade da informação. “Trata-se de transformações nas práticas sociais, na vivência do espaço urbano e na forma de produzir e consumir informação”. (Lemos, 2005, p. 2). Aspectos dessa cultura digital podem ser vistos ao observar o crescimento das redes sociais online e de outros negócios baseados na Internet. O Instagram, por exemplo, objeto deste estudo, tinha em junho de 2019 mais de 1 bilhão de usuários ativos mensais, segundo dados da própria empresa. O Brasil é o terceiro país no ranking com o maior número de Instagrammers, 72 milhões, atrás dos Estados Unidos (116 milhões) e Índia (73 milhões). Entre as características que marcam o Instagram estão 2 “Within the span of about ten years, mobile telephony has moved from being the technology of a privileged few to an essentially mainstream technology” (Castells, 2009, p. 7).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes o fato de ser uma rede com forte apelo visual, para compartilhamento de imagens, e ter sido desenvolvida inicialmente para uso por smartphones. É nesse contexto de transformação social e cultura digital, com maior possibilidade de novas camadas da população se conectarem à internet pelos telefones móveis, que a visibilidade das favelas muda significativamente. Agora, não são apenas os agentes externos que delimitam e enquadram o que o resto da sociedade pode interpretar como uma favela. Os residentes desses aglomerados subnormais têm a oportunidade, por meio de mídias alternativas independentes (Davis, 2015) e redes sociais (Cunha e Polivanov, 2017), de oferecer novos aspectos de sua realidade para serem vistos. A representação das favelas tem sido objeto de análises acadêmicas em várias perspectivas. Valladares (2009) observa que a própria nomenclatura utilizada para descrever esses espaços urbanos é objeto de controvérsia e que se deve ter cuidado na escolha das palavras devido ao seu significado semântico. Jaguaribe (2004) analisa aspectos estéticos da representação da favela no cinema e na literatura, indicando que há «conexões empáticas entre as experiências cotidianas dos centros urbanos» e suas representações artísticas. Rosas-Moreno e Straubhaar (2015) estudaram o enquadramento das favelas e seus habitantes (favelados) em reportagens, fotos e cenas de novela, concluindo que a novela pode apresentar uma versão mais progressiva, enquanto outras plataformas de mídia ainda mantêm uma visão hegemônica e retrógrada dessas pessoas e lugares. Embora as favelas tenham sido tradicionalmente associadas pela mídia a questões negativas, como violência, pobreza e criminalidade (Vaz et al, 2005), isso também está mudando lentamente. Nesse sentido, as formas pelas quais a população e os espaços dos aglomerados subnormais se tornam visíveis passam a ganhar novos atores. Os próprios locais podem operar mecanismos de visibilidade para mostrar sua realidade via Internet, conforme estudado por Holmes (2016), Nemer (2016) e Davis (2015). O advento das tecnologias móveis e das redes sociais, como o Instagram, também se tornam elementos importantes nessa disputa imagética pelo imaginário das favelas, extrapolando os estereótipos a elas associados (Almeida e Mota, 2019). Assim, propomos uma avaliação netnográfica, com análise de conteúdo, sobre a representação desses espaços urbanos no Brasil a partir de imagens postadas no Instagram com a #favela.

Experiência da pesquisa: contribuições e considerações metodológicas A pesquisa empírica para analisar a autorrepresentação online das favelas ocorreu em cinco etapas em 2019 e 2020: observação não participante e delimitação do corpus; busca e coleta de dados por #favela utilizando técnicas de netnografia (Kozinets, 2014); revisão da literatura sobre os principais termos referentes ao objeto empírico e teórico; análise qualitativa de conteúdo (Krippendorff, 2004) dos dados coletados na

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes segunda etapa, somando-se à netnografia como um conjunto combinado de métodos (Bauer e Gaskell, 2002); concluindo com a redação e revisão do material acadêmico. A primeira etapa corresponde à observação não participante do pesquisador no Instagram, em busca de termos que correspondam ao objeto desde 2019. Nessa fase, percebeu-se que além de #favela, também foi possível observar a utilização de geolocalização com o nome do conjunto da favela, a exemplo de Rocinha, Aglomerado da Serra, Complexo do Alemão etc., como forma de demarcar a presença online. Embora essa prática de geolocalização possa mostrar outras formas de disputas imagéticas e de territórios no contexto da cultura digital, esse não é o foco desta pesquisa. Portanto, optou-se por concentrar as buscas por #favela independentemente da geolocalização marcada, fazendo a posterior análise dos elementos que compõem as postagens com a hashtag. Assim, o foco do estudo está na hashtag, que na última data de coleta de dados (09 de julho de 2020), apresentava 1.049.016 imagens marcadas na plataforma. A imersão no conteúdo publicado online e nas diversas pesquisas anteriores à coleta de dados, com testes para avaliar quais elementos e aspectos do objeto são mais evidentes, é um processo importante dentro da pesquisa netnográfica. Segundo Kozinets (2014), assim como na etnografia tradicional, a prática no ambiente digital também exige do pesquisador o uso de várias técnicas e um olhar atento aos detalhes do objeto de estudo, a fim de compreender os significados nele colocados. A netnografia é uma pesquisa observacional participativa baseada em trabalho de campo online. Ela usa a comunicação mediada por computador como fonte de dados para chegar a uma compreensão e representação etnográfica de um fenômeno cultural ou comunitário. Portanto, assim como toda etnografia, ela se estenderá, quase natural e organicamente, de uma base de observação participante para incluir outros elementos como entrevistas, estatísticas descritivas, coleta de dados de arquivo, análise de caso histórico estendida, videografia, técnicas projetivas como colagens, semiótica e uma série de outras técnicas. (Kozinets, 2014, p. 61-62, tradução nossa)3.

Ao longo do desenvolvimento deste trabalho, o pesquisador também interagiu com o conteúdo que trouxe a #favela, “curtindo” as fotos, fazendo comentários e também usando a mesma hashtag, além de acompanhar e conversar com as pessoas que postaram imagens com a hashtag. A aplicação de métodos e técnicas distintas também é preconizada por Martin W. Bauer e George Gaskell (2002) a fim de apreender a complexidade do objeto nas pesquisas qualitativas envolvendo texto, imagem e som. 3 Netnography is participatory observational research based on online fieldwork. It uses computer-mediated communication as a data source to arrive at an understanding and ethnographic representation of a cultural or communal phenomenon. Therefore, just like all ethnography, it will extend, almost naturally and organically, from a participant observation base to include other elements such as interviews, descriptive statistics, archival data collection, extended historical case analysis, videography, projective techniques such as collages, semiotic analysis and a host of other techniques (Kozinets, 2014, p. 61-62).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Além da coleta de dados em si, aqui está também uma breve descrição das características da rede social online e do percurso netnográfico. Quando alguém faz uma pesquisa no mecanismo de busca do Instagram, os resultados são organizados em duas categorias: Mais Relevantes e Recentes. Embora a empresa não torne totalmente transparentes os requisitos para uma classificação na categoria Mais Relevantes, alguns dos fatores de classificação são o número de interações que o conteúdo recebe (curtidas e comentários). Na categoria Recente, as imagens são organizadas cronologicamente a partir da data e hora da postagem. A decisão de coletar em doze datas diferentes também possibilita avaliar a quantidade de conteúdo que a #favela recebeu ao longo do período. Houve um aumento de aproximadamente 100.000 imagens em pouco mais de três meses de observação. Como será elucidado a seguir neste capítulo, também existe uma disputa imagética constante pela representação do objeto de estudo nas imagens. Visto que objetivo da pesquisa é apresentar uma análise qualitativa, e considerando as características que um estudo acadêmica possui, optou-se por fazer uma delimitação do corpus. Portanto, este foi composto inicialmente de 12 dias em três meses, em que foram selecionadas nove imagens (Mais Relevantes) em cada dia, totalizando 108 publicações. As 12 datas abrangem todos os dias da semana e foram selecionadas com um intervalo de no mínimo dois dias, permitindo que novas imagens aparecessem na categoria na página Explorer do Instagram. Este processo de coleta de dados incluiu screenshots de imagens e outras informações das postagens: geolocalização, nome de usuário, legenda, hashtags e link da postagem. Para a análise final dos dados em julho de 2020, sete imagens que foram selecionadas e posteriormente excluídas da plataforma também foram retiradas do processo de codificação (geotags, representação e gênero), sendo mantidas apenas suas hashtags para o estudo. Com o objetivo de preservar a identidade e a privacidade dos usuários, apenas as páginas que foram classificadas como figuras públicas ou que autorizaram seu uso de dados serão reveladas no capítulo. O restante do conteúdo foi estudado e classificado, mas as contas não serão mencionadas diretamente. Na próxima seção, inicialmente, apresentamos mais alguns dados de nossa amostra, com foco em hashtags, geolocalização, gênero e representações. Em seguida, também realizamos uma análise semântica, conforme sugerido por Kozinets (2014) para uma netnografia, enfocando aspectos que se destacam nas imagens selecionadas, mas sem a descrição individual de cada uma. Não se pretende aqui saturar a análise ou oferecer uma descrição detalhada de cada imagem, mas sim apontar elementos que são utilizados na narrativa com o uso da hashtag #favela.

Análise: uma tentativa netnográfica da #favela As favelas geralmente são regiões densamente povoadas, como mencionado anteriormente, de riqueza cultural e social e de uma complexidade arquitetônica que

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes esta análise por si só não pode compreender totalmente. Entende-se aqui que esta pesquisa é humildemente uma tentativa de analisar aspectos das disputas imagéticas e da visibilidade permitida pela cultura digital por meio da netnografia. O número de imagens no Instagram marcadas com a #favela aumentou significativamente desde nossa primeira coleta de dados oficial até a última data. Inicialmente, em maio de 2020, eram aproximadamente 957 mil postagens, e em meados de julho de 2020 já eram contabilizadas 1.055.960 imagens, indicando uma grande apropriação do termo para descrever conteúdos na plataforma. #Favelas não foi usada individualmente e muitos outros termos também estão associados a ela no material analisado. Ao verificar a frequência da hashtag em todas as 108 postagens, constatou-se que um total de 2.161 termos foram empregados. Embora a #favela tenha sido a mais frequente, aparecendo 110 vezes, indicando que alguns conteúdos a aplicaram duas vezes, outras cinco hashtags também foram encontradas mais de 20 vezes: #riodejaneiro (31); #love (26); #favelavenceu (22); #brasil (21); e #funk (21). Vamos analisar o significado e discutir esses tópicos na sequência. Do total de 2.161 hashtags, 92 foram utilizadas mais de cinco vezes, totalizando 913. Das 1.248 restantes, as que foram utilizadas apenas uma vez ao longo dos dados correspondem a 514 hashtags. Esses dados mostram que apesar de adotar hashtags populares para associar suas postagens a outros tópicos populares da plataforma, buscando assim mais visibilidade e pertencimento à comunidade, muitos usuários ainda escrevem termos singulares para descrever suas imagens. Essas estratégias indicam, por um lado, certo de profissionalização na prática de compartilhamento nas redes sociais, incluindo o uso de grupos específicos de hashtags para se referir a temas recorrentes. Com isso, o usuário não apenas se pode tornar uma referência nas imagens relacionadas aqueles assuntos já populares, mas também constrói seus próprios termos e contribui para definir a temática à qual as imagens da favela estão associadas. Por outro lado, é perceptível que parcela dos usuários do Instagram mantêm uma prática mais espontânea e amadora, sem se apropriar de uma estratégia mais estruturada em seus conteúdos. Na nuvem de palavras a seguir (Imagem 1), ficam evidentes as hashtags mais frequentes entre as 2.161. Nota-se que há no material até mesmo termos em inglês, como #photooftheday, uma hashtag popular em todo o mundo e geralmente utilizada para marcar imagens do cotidiano, à qual estavam associadas mais de 836 milhões de postagens até agosto de 2020. Para melhor visualização das informações referentes às hashtags da pesquisa, a imagem foi composta com termos que apareceram pelo menos cinco vezes.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Imagem 1 - Nuvem de palavras das hashtags mais frequentes associadas a #favela

Fonte: autor/Instagram/reprodução.

A nuvem de palavras evidencia que pelo menos 23 grupos de hashtags foram associados a lugares/locais, sendo o Rio de Janeiro o mais comum e, dentro dele, a favela da Rocinha. É compreensível que a Rocinha tenha se popularizado no Instagram não só por sua vasta população de 100.000 habitantes, tornando-a a maior do país, mas também por suas belas vistas, riqueza cultural e sua popularidade após ter sido transformada em um ponto turístico, conforme observado por Thomas Frisch (2012). Outro fato que chama a atenção em relação à Rocinha é a forma como as contas de blogs especializados são utilizadas para retratar o local, com postagens regulares mostrando o cotidiano da favela. Muitas outras hashtags, como #favelavenceu e #euamorocinha, são usadas para demonstrar orgulho e amor pelas favelas, contrastando com a noção midiática de violência à qual os lugares costumam estar associados. Outro termo tradicionalmente referido como negativo, uma espécie de estereótipo para descrever as pessoas que moram em favelas, o #favelado agora é ressignificado para representar orgulho e não mais um “adjetivo ruim”. Como a pesquisa foi realizada parcialmente em 2020, quando ocorreu a pandemia do Coronavirus, esse fenômeno é destacado em hashtags como #fiqueemcasa e # covid19.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Gráfico 1 - Recorrência de geolocalização associada à #favela por estados

Como ficou claro pela análise das hashtags, o estado do Rio de Janeiro é amplamente representado pelo conteúdo publicado no Instagram e associado à #favela. Uma análise das 69 geotags aplicadas nos 108 postos revela que apenas 11 dos 26 estados e o Distrito Federal são marcados geograficamente, sendo uma das localizações utilizadas fora do Brasil (Atenas, Grécia). Mais do que isso, seis estados foram marcados apenas uma vez (Alagoas, Amazonas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Paraná). Enquanto os dados do IBGE apontam São Paulo como o estado com maior número de residências em aglomerados (1,06 milhão), em nossa análise ele divide o terceiro lugar com Pernambuco na recorrência de geotags entre as imagens Mais Relevantes analisadas. O Rio de Janeiro, segundo lugar na lista do IBGE em número de residências em favelas (717,3 mil), ocupa o topo do ranking na marcação geográfica do Instagram. Minas Gerais, que nas estimativas do IBGE aparece apenas em nono lugar, ocupa a segunda posição do conteúdo do Instagram. Esse resultado pode ser devido a vários fatores além do número de moradores nas favelas, como mais pessoas desses estados usando hashtags e se associando a #favelas; mais usuários do Instagram nessas regiões fazendo postagens com apropriação do recurso técnico (geotag); bem como interferências algorítmicas que colocam este conteúdo como Mais Relevantes no Instagram. Ao avaliar a representatividade por gênero, o masculino prevalece nas postagens, com 44 conteúdos, seguido de 24 imagens em que não há pessoas em primeiro plano, geralmente paisagens (Indefinido), com o feminino ocupado por 21 conteúdos e 5 nas quais há ambos os gêneros. Esses números contrastam com os dados do IBGE sobre o percentual de gênero nacional que é 51,8% feminino e 48,2% mascu-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes lino. Também podem indicar que 1) os homens postam mais imagens no Instagram em que aparecem, 2) usam mais a hashtag #favela para descrever suas postagens, associando-se às favelas, 3) a plataforma categoriza mais conteúdos com imagens masculinas como Mais Relevantes.

Gráfico 2 - Representações visuais da #favela nas postagens mais relevantes

Para as categorias retratadas nas imagens, foram identificadas 12 principais, sendo mantidas aquelas com prevalência superior a 2% e classificadas como “Outras” menos de 2%. Percebe-se que há uma variedade e diversidade de temas abordados nas imagens, que vão desde o conteúdo textual (como “Citações”) ao informativo. As categorias relacionadas a pessoas (“Moda e Beleza” e “Selfie”) são as mais representativas, seguidas de “Vista da Favela”. Uma observação da categorização dos temas marcados com #favela mostra como os moradores estão no centro da representatividade, como estratégia de dar rosto ao local. Além de imagens em que os moradores posam, mostrando atributos de beleza como roupas, acessórios e penteados, há também aquelas postagens em que a pessoa se registra, por meio de uma selfie, exibindo sua imagem como principal elemento da favela, em uma espécie de testemunho pessoal sobre seu espaço. A compreensão de “Moda e Beleza” aqui adotada vai além dos conceitos representados na mídia e na indústria da moda. Por exemplo, uma foto que mostra um novo corte de cabelo, independentemente do estilo, é classificada nessa categoria. As imagens do “Grafite” retratam a arte urbana representando o cotidiano ou uma forma de protesto visual, como em uma foto de um muro em que havia uma citação contra a violência policial sendo desenhada por um negro (por meio da metalinguagem de um grafite representando a ação de grafitar). “Motocicleta” e “Pessoa em Motocicleta” estão relacionadas a um meio de transporte comum nas favelas e à aqui-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sição/posse de um bem material. Apenas uma postagem continha violência direta e foi categorizada como “Outro”: um vídeo tutorial de maquiagem em que uma garota loira ouve sons de tiros e aparentemente tenta se esconder deles. Não contém localização específica, apenas a geolocalização “Rio de Janeiro”. Levando em consideração as categorias “Jogos e Diversão”, “Música e Dança”, “Idosos”, e na categoria “Outros” algumas cenas infantis em destaque – além das mencionadas anteriormente “Moda e Beleza” e “Selfie –, é perceptível como o conteúdo reforça o tom humano desses espaços urbanos, com a adaptação dessas áreas para o lazer e a convivência social. Essa percepção também está presente nas hashtags, conforme analisado anteriormente, com as palavras “favelado”, “favela venceu” e “amor” entre as mais frequentes, denotando orgulho de pertencer ao local da favela. Um olhar mais direcionado às contas do Instagram mostra que alguns são usuários frequentes, postando regularmente com a hashtag e sendo destacados várias vezes entre as postagens Mais Relevantes. Durante a pesquisa, entramos em contato e conversamos com alguns usuários, dos quais incluímos imagens neste capítulo. Optamos por apresentar imagens que não retratam nenhuma pessoa identificável diretamente, exceto o proprietário da conta que nos concedeu esse direito, para preservar a privacidade e a confidencialidade. A imagem a seguir (Imagem 2) retrata a “Vista da Favela” e é do fotógrafo Bruno Itan (@brunoitan), que se autodenomina “apaixonado por documentar o cotidiano das favelas do Rio” e na época tinha mais de 24.000 seguidores. Além de ter uma conta popular, Bruno também teve quatro imagens mostradas entre os principais posts da página de buscas do Instagram em datas diferentes. Imagem 2 - Vista do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro

Fonte: Crédito de Buno Itan/Instagram/Reprodução.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O conteúdo está marcado no Rio de Janeiro e mostra uma encosta ocupada por casas típicas de favelas no Complexo do Alemão, um dos principais aglomerados do país. Como legenda, o usuário adiciona uma citação motivacional dizendo que “não importa o que aconteça, nossas vidas sempre será (sic) um grande show”. A postagem conta com um carrossel de duas imagens que compõem uma fotografia dividida ao meio (panorâmica transformada em sequência de quadros). Nas hashtags, o usuário se apropria de alguns dos termos mais populares (#Cotidiano #Favela #ComplexodoAlemao #RiodeJaneiro #Brazil #OlharComplexo #Brunoitan), adotando seu próprio nome como marcação do material. O tom das mensagens otimistas utilizada na postagem mencionada acima (Imagem 2) também é comum na categoria “Citações”, reforçando o sentimento de orgulho e positividade associado à favela no conteúdo do Instagram que analisamos. Embora a mesma imagem possa ser interpretada de diferentes perspectivas, por exemplo, focando na falta de uma melhor infraestrutura habitacional (estereótipo de pobreza), parece que esta não é uma visão adotada pelos moradores locais.

Imagem 3 – Criança jogando basquete em uma favela

Fonte: Crédito de Buno Itan/Instagram/Reprodução.

A segunda fotografia (Imagem 3) também contém uma vista do Complexo do Alemão, porém, tem em primeiro plano uma criança jogando basquete em uma quadra. Atrás do morro da favela, o sol está no horizonte (se pondo ou nascendo, o que não é totalmente claro). Este conteúdo retrata mais uma atividade cotidiana, uma forma de seus jovens moradores passarem o tempo livre, portanto foi classificado como “Jogos e Diversão”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Como legenda, o fotógrafo reflete sobre seu trabalho e chama o espectador para ver além do que é evidente, dizendo: “A câmera não faz diferença nenhuma. Todos elas registram o que você está vendo. Mas você precisa VER! 📷”. Nas hashtags ele repete a maioria dos mesmos termos adotados em outras publicações de sua conta, reforçando sua disputa pela representação visual daqueles assuntos. Duas outras informações podem ser vistas na postagem e gostaríamos de destacar como elas são apropriadas neste contexto online. Primeiro, um emoji de uma câmera, que é um elemento visual para reforçar a mensagem que o usuário deseja transmitir. Em algumas outras postagens, nenhum elemento textual além das hashtags foi usado, com emojis sendo a informação predominante para descrever o conteúdo. O segundo elemento é uma marcação de conta que pode ser vista no canto inferior esquerdo da foto, na qual Bruno Itan marcou outra conta do Instagram. Essa estratégia foi adotada por 60 usuários que marcaram ao todo 266 perfis diretamente na imagem ou na legenda. Uma marcação pode ser aplicada para aumentar a audiência da postagem, para fazer conexões com outras contas semelhantes que poderiam eventualmente compartilhá-la, e para creditar os proprietários de conteúdo, entre outros objetivos de visibilidade. Considerando nossa análise até aqui, é possível inferir que há um contraste, ou uma disputa imagética, entre os conteúdos que apareceram como Mais Relevantes no Instagram com a perspectiva convencional retratada pela mídia tradicional, corroborando com o que Cunha e Polivanov (2017 ) e Almeida e Mota (2019) verificaram em seus estudos. Enquanto esta última representação é de um agente externo (mídia) e reforça estereótipos recorrentes de violência, a primeira é um agente interno (morador) e traz uma visão de um cotidiano pacífico na favela. Em entrevista ao autor das duas fotos apresentadas anteriormente, Bruno Itan, ele esclarece que o propósito de suas postagens é justamente mostrar “a outra realidade”: O objetivo é que quando as pessoas pesquisem sobre as favelas, encontrem uma perspectiva diferente, uma visão mais poética e sensível. Elas podem ver que favela não é só violência, tem gente boa, tem lugares incríveis e maravilhosos, como em qualquer lugar do mundo. Na favela tem gente que trabalha duro. Se não formos nós, de dentro, mostrando um aspecto bom e positivo, ninguém o fará. (Bruno Itan, 2020, entrevista concedida a Admilson Veloso.)

Em relação às cenas retratadas, prevalecem os perfis das pessoas e as imagens panorâmicas dos aglomerados, mostrando as casas empilhadas no morro. O primeiro formato, com a presença de pessoas posando e em selfies, dá identidade ao aglomerado, com os rostos de quem ali mora ou transita. Essa é uma estratégia importante na disputa imagética, pois promove uma humanização dos espaços. O segundo formato também ajuda a aproximar pessoas que não conhecem uma favela de sua

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes realidade estética urbana. Em um período de urbanização para criar unicidade com a identidade das cidades, reforçar a imagem do morro com suas casas também pode significar uma estratégia de resistência pela visibilidade. Legendas e hashtags estavam presentes em todas as principais postagens, mesmo que apenas com emojis. Geralmente, os elementos textuais carregam mensagens de otimismo ou uma breve descrição da cena representada. Diferentes conteúdos compartilhados pelo mesmo perfil costumam usar a mesma legenda e hashtags (em todas as publicações) ou têm pouca variação entre elas. Isso indica uma tentativa de competir por essa narrativa; reforçar sua presença em relação a temas específicos, como #favela; ou tornar a publicação mais prática e automática. Quatro outros detalhes chamam atenção nas publicações Mais Relevantes analisadas: a presença da favela em panorama ou como pano de fundo, imponente, mostrando sua arquitetura característica; o uso de fotos aparentemente profissionais com apelo estético geradas pelo tratamento de filtro via software ou diretamente na plataforma; a presença de perfis comerciais e profissionais se apropriando da hashtag para comercializar produtos, serviços e conteúdo; e o uso extensivo de hashtags como forma de dar mais visibilidade às imagens

Considerações finais Com base na pesquisa empírica realizada utilizando netnografia e análise de conteúdo, a descrição do objeto e o percurso teórico da cultura digital, pode-se inferir que as favelas estão participando ativamente, por meio de moradores, visitantes ou observadores, das disputas imagéticas por visibilidade no Instagram. A plataforma online permite que estes espaços se tornem mais visíveis e sejam associados a um imaginário coletivo e mais positivo, diferente do tradicional retratado pela mídia, reforçando estudos anteriores de Cunha e Polivanov (2017) e Almeida e Mota (2019). Para além das próprias imagens, isso pode ser visto também pelo uso de hashtags frequentes associadas à analisada, por exemplo #favelavenceu. Duas perspectivas principais são identificadas e relacionadas às favelas nos conteúdos estudados: 1) agentes internos atuando para retratar a rotina das favelas “de dentro”; 2) agentes externos menos prevalentes disputando a representação desses espaços e, eventualmente, reforçando estereótipos de violência e crime. Também podem ser identificados alguns agentes digitais, internos ou externos, mais ativos atuando nessas disputas - principalmente algoritmos e perfis especializados (ativistas, profissionais de fotografia; contas de empresas locais etc.). Considerando o território nacional, poucos estados estão constantemente representados entre na geolocalização das imagens Mais Relevantes, sendo o Rio de Janeiro o mais recorrente. Também é possível afirmar, a partir da análise aqui realizada, que a representação de favelas por meio de imagens compartilhadas no Instagram com a #favela não é

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes uma estrutura rígida e imutável, mas sim uma prática diversificada, flexível e crescente em constante transformação. Embora existam padrões, temas e locais que podem ser classificados e categorizados entre os conteúdos digitais, a ação dos agentes (externos e internos) altera continuamente as imagens classificadas como Mais Relevantes, proporcionando assim a possibilidade de modificar o imaginário associado às favelas na rede social. Além da categorização do conteúdo, a representação visual por meio da #favela no Instagram reforça questões que também estão presentes fora do ambiente digital, como violência policial, infraestrutura habitacional e a pandemia do Coronavírus. É notável que elementos de comportamento social estão sendo transportados para a plataforma, mas agora com a população local dos aglomerados tendo a oportunidade de participar das discussões e influenciar o que o resto da sociedade entende sobre sua imagem. Por fim, é necessário destacar que esta pesquisa é um trabalho experimental, uma tentativa de netnografia das favelas, e existem vários aspectos latentes nas redes sociais online que exigem análises novas e contínuas quando se trata de sua utilização pela população de aglomerados. Dessa forma, incentivamos pesquisadores de áreas como semiótica, sociologia, linguística e retórica visual, entre outros campos de estudo, a se dedicarem à análise do contexto da cultura digital e da representação das favelas. The present publication is the outcome of the project “From Talent to Young Researcher project aimed at activities supporting the research career model in higher education”, identifier EFOP-3.6.3-VEKOP-16-2017-00007 co-supported by the European Union, Hungary and the European Social Fund. Referências ALMEIDA, P. H. S.; MOTA, C. Rocinha: a representação no Instagram da maior favela do Brasil. Niterói, Brasil: Revista Mídia e Cotidiano, v. 13, n. 2, 2019. DOI: https:// doi.org/10.22409/ppgmc.v13i2.28692 ALVITO, M.; ZALUAR, A. (orgs). Um Século de Favela (3a ed). Rio de Janeiro, Brasil: FGV, 2003. BAUER, M. W.; GASKELL, G. Qualitative Researching with Text, Image and Sound: a practical handbook for social research. London, UK: SAGE, 2002. CARRIL, L. Quilombo, Favela e Periferia: a longa busca da cidadania. São Paulo, Brasil: Annablume; Fapesp, 2006. CASTELLS, M. Fim de milênio. (A era da informação: economia, sociedade e cultura; v.3). Tradução Klauss B. Gerhardt e Roneide V. Majer. 2.ed. São Paulo, Brasil: Paz e Terra, 2000.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

HUMOR, NARRATIVA E HISTÓRIA A CONSTITUIÇÃO DE 1988 NAS CHARGES DA FOLHA DE S. PAULO Paulo Henrique Soares de Almeida

Introdução As imagens constituem uma preciosa fonte de informação que, a cada dia, é mais visitada e explorada por diversas disciplinas acadêmicas. Nesse vasto campo de estudo, trataremos nesta pesquisa sobre um aspecto que acreditamos ser ainda negligenciado: a charge como narrativa e sua importância como documento histórico. Do francês charger, que significa carga, carregar ou exagerar, a charge é uma expressão brasileira semelhante ao que conhecemos em inglês por political cartoon ou editorial cartoon. É definida como “uma forma de representação pictórica de caráter burlesco e caricatural, em que satiriza um fato específico, tal qual uma ideia, situação ou pessoa, em geral de caráter político e do conhecimento público” (Fonseca, 1999, p. 26). Ao fazer a representação de algo, ela tende a destacar o estereótipo, o excessivo, permeando as figuras de linguagem como metáfora, ironia e hipérbole. Embora muitos autores usem os termos charge, caricatura e cartum como sinônimos, no Brasil há um consenso de que existem particularidades em cada uma dessas ilustrações, devendo ser tratadas de formas distintas. Romualdo (2000), por exemplo, aponta essa diferença tendo como base a temporalidade. Para o pesquisador, enquanto a charge se prende ao momento, por realizar uma crítica a um personagem ou acontecimento específico, o cartum não faz referência a um fato preciso, mas a uma realidade genérica, uma crítica social, na qual o leitor está inserido. Já a caricatura, derivada do italiano caricare, que significa carregar, em português. É focada na pessoa, sendo compreendida como o desenho que exagera propositadamente as características marcantes de um personagem: (...) compreenderemos a charge como texto visual humorístico que critica uma personagem, fato ou acontecimento político específico. Por focalizar uma realidade específica, ela se prende mais ao momento, tendo, portanto, uma limitação temporal. Como cartum, entenderemos todo desenho humorístico no qual o autor realiza a crítica de costumes. Por focalizar uma realidade

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes genérica, ao contrário da charge, o cartum é atemporal, desconhece os limites de tempo que a crítica a personagens, fatos e acontecimentos políticos impõe. A caricatura será compreendida como desenho que exagera propositalmente as características marcantes do indivíduo (Romualdo, 2000, p. 21).

Essas definições são importantes para entendermos as diferenças entre cada gênero do humor gráfico. No entanto, sugerimos ampliar a noção de temporalidade da charge, que a nosso ver, assim como as notícias, abarca sempre um sentido mais amplo que o imediato, articulando os três tempos: passado, presente e futuro. Logo, acreditamos que a charge não está limitada apenas ao momento específico que ela emerge, pois há nessas imagens camadas de significações mais densas e profundas, enraizadas na tradição, cultura e memória. Ou seja, nessas ilustrações, além do tempo cronológico, haverá sempre o tempo vivido ou da experiência, que pode ser imediato, mas também histórico, de curta ou longa duração. Isso porque, “o acontecimento não é necessariamente breve e nervoso como se fosse uma explosão. Ele é variável da intriga. Como variável, não pertence apenas ao terceiro nível, mas a todos, com funções diversas” (Ricoeur, 2010, p. 359). E isso, inclusive, é o que reforça a característica dessas ilustrações como evidência histórica. Nesse sentido, definimos a charge como uma narrativa satírica gráfica que tem como matéria-prima o acontecimento jornalístico. Em nossa concepção, usar os termos “narrativa e acontecimento jornalístico” na definição de charge é fundamental para evitarmos confusões sobre o seu conceito e ampliar o sentido de temporalidade. Ao retratar um assunto ocorrido e verdadeiro, essa narrativa conta uma história ancorada no real, na notícia do dia a dia. A charge é um rico gênero argumentativo, uma ação retórica que revela as relações de poder, a posição do autor e o jogo de persuasão. Ela fere, punge, denuncia e nos possibilita reflexões sobre um determinado tempo e representações, sejam elas políticas, econômicas ou sociais. Nesse gênero, é possível encontrar os mitos, fábulas, cultura, o modo de vida de uma sociedade e sua época. Ao narrar e representar um acontecimento, essa narrativa satírica gráfica tende a destacar formas simbólicas que contribuem para moldar o imaginário coletivo sobre um país, cultura, organização e política. Recuperar e confrontar os sentidos produzidos por essas imagens é fundamental para compreendermos suas reais intenções e ideologias, muitas vezes percebidas apenas como uma piada. Suas análises devem ser observadas dentro de uma leitura crítica, capaz de articular relações, não só com a economia e política, mas com todo o contexto social em que ela foi produzida. Logo, mergulhar no conteúdo dessas obras nos leva a compreender a representação do mundo a nossa volta, a cultura na qual elas são criadas, veiculadas e recebidas. Partindo desse princípio, este estudo consiste em analisar quatro charges publicadas no jornal Folha de S. Paulo sobre a tramitação da Constituição Federal brasileira de 1988. Utilizando como metodologia a Análise Crítica da Narrativa, tal como proposta por Motta (2013), o objetivo é investigar os significados e efeitos de sentido

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes produzidos e compreender como essas imagens interpretaram esse acontecimento histórico. Entre as perguntas de pesquisa estão: nos desenhos analisados, foi criado o sentido de que a Constituição de 1988 marcou o início de um novo Brasil? Que críticas essas narrativas dissidentes evocam ao se posicionarem frente às mudanças ocorridas no país naquele momento de redemocratização e enfrentamento entre o novo e o velho? Escrita após o final da Ditadura Militar (1964-1985) no país, a Constituição de 1988, em vigor até os dias atuais, não só restabeleceu a inviolabilidade de direitos e liberdades básicas no Brasil, como pretendeu instituir uma vastidão de preceitos progressistas, como a igualdade de gêneros, a criminalização do racismo, a proibição da tortura e tantos outros direitos sociais, como educação, trabalho e saúde para todos. Promulgada em 5 de outubro de 1988, com 245 artigos e 70 Atos de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), sendo a sétima do país desde sua independência, ficou conhecida como “Constituição Cidadã” por ter sido concebida no processo de redemocratização e ter como objetivo garantir os direitos sociais, econômicos, políticos e culturais que haviam sido perdidos durante a ditadura, tornando-se a Constituição mais democrática que o país já teve, tanto pela participação popular quanto pelo seu conteúdo. Por ser detalhada e inclusiva, é a terceira mais longa do mundo em número de palavras, atrás apenas da Índia e da Nigéria, segundo o estudo Comparative Constitutions Project de 2016, ocupando ainda a décima posição em quantidade de direitos (Arantes; Couto, 2019). Na lista dos seus benefícios, ampliou os direitos trabalhistas das Constituições de 1946 e 1967, reduzindo a jornada semanal de 48 horas para 44 horas, restituiu o direito de greve e instituiu a liberdade de associação sindical, décimo terceiro salário, direito ao abono de férias, seguro desemprego e proteção à maternidade. Restituiu o direito a manifestação de pensamento (vedado o anonimato) e a liberdade de expressão intelectual. Também, o direito de habeas data, que garante a todo cidadão acessar qualquer dado a seu respeito em arquivos do governo. Quanto às eleições, essas voltaram a ser diretas e universais, sem distinção de classe ou gênero, com voto obrigatório para todos os maiores de 18 anos e facultativo para jovens com idade entre 16 e 18 anos aos analfabetos.

A charge como narrativa É preciso deixar claro que a charge não é a reprodução transparente dos acontecimentos e sim a articulação discursiva deles. É uma representação, uma interpretação ou ponto de vista do autor. Essa narrativa será construída em condições tais que envolvem etapas de produção, seleção do que será noticiado, pesquisa das características dos personagens, cenário e demais traços que se relacionam com a história, desenvolvimento do desenho, etc. Portanto, ao narrar, o artista recorta uma parte da realidade, enfoca um ponto de vista e o transforma em algo novo. O resultado final é a charge e seus sentidos.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Mas o que entendemos como narrativa? De acordo com Motta (2013), elas são mais que representações, são estruturas que dão sentido e significação à vida. São relatos de acontecimentos, que recriam o passado, vivem o presente e o futuro. Ao narrar, alguém está explorando na sua imaginação possíveis desenvolvimentos (reais ou ficcionais) das condutas e comportamentos humanos, que os teóricos chamam de atividade mimética ou imitação. Motta (2013) classifica as narrativas como factuais e imaginárias, sendo o relato jornalístico, por excelência, um exemplo de narrativa factual. Ao buscar o conceito de fatos, Fonseca (2010), relaciona o termo com acontecimento e notícia. A autora parte do princípio, de que a matéria-prima do jornalismo é a informação. “Essa informação, no entanto, precisa apresentar determinadas características para ser transformada em notícia, e vários autores já se ocuparam de relacioná-las, podendo-se citar, por exemplo, as de veracidade, atualidade e interesse público” (Fonseca, 2010, p. 169). A charge tem o papel de informar e vai se apoiar sempre em uma narrativa maior, que são as notícias diárias. Entretanto, assim como explora o factual e tem como matéria-prima o acontecimento, a narrativa da charge também usa a criatividade como efeito artístico na representação do real. Contudo, esse artifício não contaminará sua validação como documento histórico. Pelo contrário, tendo como âncora a notícia, o imaginário da charge está mais próximo ao que chamamos nesse estudo de “realidade aumentada pelo traço”, onde o simbólico e o psíquico se fundem na habilidade artística do chargista com o objetivo de completar o mundo real, levando, por meio da sátira e exagero, mais informações e conhecimento ao leitor. Logo, ao usar esse recurso, a charge está impregnada de valores subjetivos, estéticos e morais, indo além dos limites de uma narrativa jornalística textual padrão para prender ainda mais a atenção do leitor e conquistar os efeitos de sentidos almejados.

O humor nas narrativas satíricas gráficas Outra característica importante nessas imagens é a sua relação com o humor. Muitas vezes, ao criticar algo, a charge provoca o riso, mas esse não é o seu principal objetivo. O humor da charge é uma defesa, uma crítica social. Uma negação que está mais próxima da expressão “rindo de nervoso”, uma válvula de escape quando notamos que algo está errado. “Fazer rir é tarefa do cômico. O humor pretende levar as pessoas a pensar nos acontecimentos. O humor mais perfeito é aquele em que o espectador nem se ri. Trata-se de um humor tão inteligente que o espectador fica a pensar na mensagem” (Fernandes, 2016, p. 9). No Brasil, um dos pesquisadores que estuda o humor nas charges é Romualdo (2000). O autor acredita que o riso nessas ilustrações esteja mais próximo do “riso carnavalesco” proposto por Bakhtin (1981), no qual a excentricidade e a profanação, assim como no carnaval, permitem que se expressem e revelem os aspectos mais ocultos e mascarados da natureza humana. O autor destaca que a concepção de car-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes naval que Bakhtin leva em conta não é a de nosso tempo – um carnaval de clubes e desfiles –, mas uma forma complexa ancorada em sua essência e origem: a festa da praça pública, a excentricidade, a profanação, os rituais de coroação e, posteriormente, o destronamento do rei. Conforme analisa Bakhtin, o riso carnavalesco é ambivalente e profundamente universal. Está dirigido para a mudança dos poderes e verdades, combina a morte e o renascimento, a negação, a ridicularização, a afirmação e o riso do júbilo. “Na forma do riso resolvia-se muito daquilo que era inacessível na forma do sério” (Bakhtin, 1981, p. 144). Neste sentido, também se observa um efeito moderador. Uma válvula de escape diante da triste situação em que se encontra e que não é possível mudar tão facilmente. É a mesma concepção de Freud (1927), que considera o humor como uma espécie de reforço do eu que anula algum sentimento doloroso através do riso. Para Freud, a arte – e aqui incluímos a charge – é uma compensação dos desejos humanos, de revelar as intenções e as vontades mais escondidas, a transformação do material latente em material manifesto.

Metodologia e apresentação do objeto Como a leitura da charge requer conhecimentos que envolvem contexto social, fatos históricos, personagens, enredo, relações de poder, política e linguagem, adotamos como caminho metodológico a Análise Crítica da Narrativa, proposta do professor Luiz Gonzaga Motta (2013). Nesse caminho, nosso objetivo é ir além do estruturalismo e observar, não apenas a mensagem produzida, mas também como a história sobre a promulgação da Constituição de 1988 se articula com a cultura, as representações dos personagens, figuras de linguagem (como metáfora, metonímia e ironia), o cenário, o enredo, o conflito, o contexto, os objetos de cena e a dramatização. Portanto, percorrendo a análise crítica da narrativa sugerida por Motta (2013), o estudo das charges aqui recortadas segue três caminhos interligados: a) Plano de expressão: discurso e linguagem. Onde a imagem se aflora e captura o olhar do espectador. Aqui, trabalhamos a linguagem verbal e não-verbal da charge, que se relaciona diretamente com a notícia e os elementos da realidade. b) Plano da história: é o plano virtual da significação e do conteúdo, no qual estudamos o dito e não dito da narrativa, o enredo, o drama, e as críticas que aparecem e as personagens. c) Plano da metanarrativa: onde veremos como essas representações remetem à memória e à identidade brasileira. É o plano que mergulha nos significados e sentidos cristalizados pela tradição histórica, social e política do espaço em que a imagem foi construída. Para respondermos às perguntas deste artigo, selecionamos quatro charges publicadas na página de Opinião da Folha de S. Paulo, entre fevereiro de 1987 e outubro

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de 1988, período da tramitação das novas leis na Assembleia Nacional Constituinte. A escolha do periódico deve-se pela sua importância nacional e o fato de estar incluso como fonte de pesquisa no banco de dados do Diário da Constituinte, publicado no portal da Câmara dos Deputados. Fundada em 1921, a Folha de S. Paulo nasceu com o nome Folha da Noite, dirigida para o leitor urbano paulista. Com formato pequeno de oito páginas, logo o jornal conquistou o público, usando também o humor, as sátiras e a ironia como meio de burlar a rígida censura da República Velha. Na sombra da ditadura (1964-1985), apoiou o golpe de 1964 (Da criação do jornal..., 2016), mas após o Ato Institucional Número 5 (AI-5), em 1968, a situação mudou. Neste período, o jornalista Claudio Abramo, identificado com a esquerda, assumiu à frente do jornal, que passou a mencionar denúncias de tortura e autoritarismo, levando a empresa a ser monitorada pela repressão e atravessar um forte período de repressão. Na década de 80, período de reabertura política, a Folha de S. Paulo adotou a defesa das eleições diretas e apoio à democracia. Otavio Frias Filho assumiu a Direção de Redação e implantou, em 1984, o primeiro Projeto Editorial com o Manual de Redação, estabelecendo não só as normas de estilo e gramática adotados pela empresa, mas a defesa de um jornalismo crítico, pluralista, apartidário e moderno. Na percepção de Silva (2011), essa normatização adotada pela Folha, o apoio à campanha das Diretas e a insistente propaganda de autopromoção na fixação de uma imagem ao jornal como democrático e plural, podem ser compreendidos como estratégias de esquecimento articuladas pelo jornal para eclipsar sua relação com os acontecimentos de 1964. “A abertura se tornou o grande capital político que possibilitou apresentar o jornal quase como opositor histórico ao regime, como se não tivesse apoiado o golpe ou talvez como se o tivesse feito tão somente para representar os anseios da população daquele momento” (Silva, 2011, p. 188). Em 1986, durante a campanha pela redemocratização do Brasil, a Folha de S. Paulo tornou-se o jornal impresso de maior circulação em todo o país, liderança que mantém desde então. De acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2019, a soma de tiragem média diário e assinaturas digitais da Folha alcançava 327.959, enquanto O Globo (RJ) atingia em segundo lugar, com 320.972 (Jornais no Brasil..., 2019). Sobre o recorte do objeto, de fevereiro de 1987 a outubro de 1988, a Folha de S. Paulo publicou 163 charges sobre o tema Constituição Federal de 1988 em sua página de Opinião. Foram consideradas dentro da seleção, as ilustrações em que a palavra Constituição aparece, bem como, a representação dos assuntos debatidos na Assembleia Constituinte. Ao fazer a análise dos dados, percebe-se que o tempo de mandato do presidente José Sarney é o enredo principal da história. Tanto que o assunto é tema de 54 das 163 charges, ocupando 33% do material do recorte. A discussão sobre o sistema de governo, parlamentarismo ou presidencialismo, aparece em 28 charges, ou seja, 17% das ilustrações. Apenas nove assuntos relacionados aos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes direitos sociais e civis surgem nos desenhos do referido jornal. São eles: igualdade de gênero, direito de greve, liberdade de expressão, leis trabalhistas, reforma agrária, saúde, divórcio, direito dos índios e habeas-data. Como o material é extenso, selecionamos para este artigo quatro charges publicadas em datas relevantes da história, na qual o início, o clímax e o desenrolar dos fatos configuram a cronologia do enredo e o fio condutor da trama. Para desvendar os sentidos pretendidos pelo autor, a proposta foi buscar nas quatro imagens, publicadas separadamente, a construção de uma grande narrativa, conectando os eventos em sequência e os principais pontos de virada que unem essas ilustrações. Portanto, neste trabalho, recortamos as charges relacionadas aos seguintes acontecimentos: a) 1 de fevereiro de 1987: instalação da Assembleia Nacional Constituinte; b) 3 de dezembro de 1987: momento em que o Centrão – grupo suprapartidário com perfil conservador de centro e direita, criado no final do primeiro ano da Assembleia Nacional Constituinte – impõem uma derrota à liderança do PMDB e partidos de esquerda ao aprovar, por 290 votos, o projeto do deputado Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP), alterando o regimento interno da Constituinte; c) 2 de junho de 1988: aprovação do mandato de cinco anos para o presidente José Sarney; d) 5 de outubro de 1988: data da promulgação da Constituição Federal de 1988. Todas as imagens analisadas neste estudo foram criadas pelo cartunista Glauco. O artista começou a colaborar com o jornal em 1977, onde permaneceu até 2010, quando morreu vítima de um assassinato. Autor de personagens como Dona Marta, Geraldão e Geraldinho (este último inspirado em seus filhos), Glauco colaborou com a modernização da charge na geração pós-ditadura, tendo como referência de estilo o humor ácido com traços limpos.

Análise dos dados A Constituição Federal de 1988 teve como principal objetivo encerrar a transição entre a ditadura militar (1964-1985) e a redemocratização, processo que se inicia em meados da década de 1970, liderado pelos militares e o presidente da República Ernesto Geisel, após uma profunda crise política e econômica instalada no país. O estopim para alavancar o movimento civil em prol da democracia foi o Pacote de Abril de 1977, um conjunto de medidas autoritárias impostas pelo presidente Geisel, consideradas na época um grave retrocesso a transição que ele mesmo dizia promover. Entre as mudanças anunciadas no pacote, estavam o fechamento do Congresso Nacional e a extensão do mandato presidencial de cinco para seis anos. Desde então, inúmeras organizações civis, entidades populares, órgãos de imprensa, estudantes, advogados, professores, trabalhadores e políticos de oposição intensificaram a luta contra a ditadura. Nessa batalha, duas campanhas foram importantes para a finalização do processo: o movimento Diretas Já, que pedia o voto direto da população para eleger os seus governantes, e a instalação de uma nova Constituinte.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Último presidente eleito pelo colégio militar, em 1985, Tancredo Neves faleceu antes da posse e seu vice, José Sarney, ocupou a presidência. Determinado a cumprir as mesmas promessas de Tancredo Neves, Sarney convocou a Assembleia Nacional Constituinte por meio da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, a qual foi instalada em 1 de fevereiro de 1987, com 559 parlamentares (487 deputados federais e 72 senadores). É a partir daqui que começa a história analisada neste estudo. Na Folha de S. Paulo, a primeira charge publicada sobre o tema foi em 2 de fevereiro de 1987. De autoria de Glauco, a imagem (Figura 1) apresenta em destaque os dois personagens principais da história: o presidente do Brasil, José Sarney, e o deputado Ulysses Guimarães (PMDB-SP), presidente da Câmara dos Deputados; presidente Nacional do PMDB; e também presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Tanto por meio dos elementos verbais dentro dos balões, quanto da imagem, percebe-se que há uma disputa entre os dois políticos, sendo o primeiro indício de uma rivalidade que se tornará o fio condutor da narrativa. A cena é composta por dois quadros, marcando a temporalidade cronológica da narrativa. O primeiro prepara a situação cômica que terá desfecho no seguinte: “Como vamos escrever a nova Constituinte com essa crise?” – pergunta Ulysses ao entrar na sala do presidente José Sarney.

Figura 1- charge de Glauco, publicada na Folha de S. Paulo, 2 de fevereiro de 1987. Fonte: Folha de S. Paulo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A expressão do presidente Sarney na primeira cena é de susto, como se estivesse sendo pego em flagrante, fazendo algo errado. Já a expressão facial do deputado Ulysses Guimarães, com os olhos para baixo e mãos na cintura, demonstra dúvida, mas também uma sensação de desânimo, que fica mais nítida na cena seguinte, após o presidente José Sarney mostrar-lhe o documento que ele escondia. “Pô, Ulysses! Se você não gostou da minha letra, fique frio que é só o rascunho”, afirma Sarney no segundo bloco da charge. Uma das mãos do presidente continua para trás, como se ele ainda estivesse escondendo algo e de fato estava. Suas principais articulações serão reveladas no decorrer da narrativa e nas charges seguintes. Todos esses elementos indicam que a tensão na fisionomia de Ulysses Guimarães vai muito além de gostar ou não “da letra” do presidente no texto. A palavra ‘rascunho’ em caixa alta, proferida por Sarney, reforça essa percepção. É um eufemismo, uma maneira de ridicularizar a situação e proporcionar ao leitor uma reflexão importante a respeito de um obstáculo que a Constituinte recém-instalada enfrentava naquele momento: a falta de um projeto para escrever as novas leis. Na história, em junho de 1985, antes mesmo de mandar a convocatória da Constituinte ao Congresso, o presidente José Sarney criou, como pretendia Tancredo Neves, uma Comissão provisória de Estudos Constitucionais com 50 integrantes, encarregada de elaborar um anteprojeto para a nova Constituição. O grupo ficou conhecido como “Comissão dos Notáveis” e seu presidente foi o jurista Afonso Arinos de Melo Franco. A ideia era que quando a Constituinte começasse, o ponto de partida já estivesse pronto. Mas não foi o que aconteceu. Ulysses e os demais membros da Assembleia não aceitaram o texto e resolveram partir do zero. Em entrevista 30 anos depois, o ex-presidente José Sarney explicou o fato:

O Ulysses me disse que não aceitava nem esse, nem nenhum projeto de Constituição. Se eu mandasse pra ele, ele devolveria. No fundo era porque o Ulysses queria fazer com a Constituição, como realmente ele tentou fazer e fez, uma campanha já da sua candidatura (Carvalho, 2017, p. 49).

É esta interdiscursividade e crítica que a charge de Glauco carrega. Ela representa, de forma bem-humorada, a turbulência que tomava conta dos bastidores da Constituinte, no qual o presidente José Sarney não só queria participar diretamente, como estava disposto, conforme a ilustração sugere, a escrever o novo texto constitucional a sua maneira. A expressão “pô, Ulysses!”, fala informal para um presidente da República, destrona e ridiculariza o poder executivo, como no riso carnavalesco de Bakhtin (1981), reforçando o atrito que se formava entre os dois personagens. No desenho, a palavra “crise” também tem um significado histórico. No contexto da charge, a Assembleia Nacional Constituinte foi instalada no dia 1 de fevereiro de 1987, às 16h11, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Carlos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Moreira Alves, em meio a um quadro de confusão generalizada nos planos políticos e econômicos, incluindo alta inflação, problemas sociais, negociação de dívida externa, FMI e moratória. Para ter uma ideia, só no ano de 1987, a Folha de S. Paulo publicou na página de Opinião mais de 150 charges relacionadas ao tema economia no país. Apenas durante o período Constituinte, 20 meses, o Brasil teve três diferentes ministros da Fazenda: Dilson Funaro (de 26 de agosto de 1985 a 29 de abril de 1987), responsável pela criação do Plano Cruzado, cuja principal marca foi o congelamento de preços e colapso da economia; o ministro Luiz Carlos Bresser (29 de abril de 1987 a 21 de dezembro de 1987), que instituiu o Plano Bresser, aumentando ainda mais a inflação; e Maílson da Nóbrega (6 de janeiro de 1988 a 15 de março de 1990). A polifonia da imagem nos remete ainda para outro tipo de crise que tomava conta daquele cenário: a política. Na Assembleia, os 559 constituintes não conseguiam entender entre si. Nem a respeito do funcionamento da Constituinte, nem sobre a suspensão ou não dos trabalhos na Câmara Federal, ou Senado durante o período em que a Constituição estivesse sendo elaborada. A discussão já começou durante a cerimônia de instalação da Assembleia. Isso porque, diferente dos senadores que juraram a Carta de 1969, o deputado Ulysses Guimarães modificou o juramento habitual e, em vez de jurar respeito à Constituição em vigor, ele e os demais deputados comprometeram-se a defender a nova lei fundamental, ainda que não sabiam que forma ela teria. “Um cheque em branco, que aumentava o poder de fogo da Constituinte”, como afirmou a reportagem publicada na Folha de S. Paulo, no dia 2 de fevereiro de 1987 (Rossi, 1987, p. A7). Toda essa referência histórica está inserida na pergunta da charge “como vamos escrever a nova Constituinte com essa crise?”. Ela marca, não só o tempo inicial da narrativa, como também documenta historicamente o contexto político e econômico, ao retratar para a população as incertezas sobre como seria o trabalho dos parlamentares, a falta de planejamento e organização. É assim que a história sobre a Constituição começa a ser desenhada nas charges do jornal Folha de S. Paulo. Com traços leves e humor ácido, Glauco apresenta ao leitor a realidade aumentada por trás daquele momento de euforia e festa. Com o Regimento Interno da Assembleia promulgado em 24 de março, na forma da Resolução nº 2, de 1987, decidiu-se que todos os parlamentares fossem membros da Constituinte, seguindo o modelo do chamado Congresso Constituinte, em que a Câmara e o Senado continuariam funcionando normalmente, e não o da Constituinte Exclusiva, na qual os representantes eleitos têm a missão exclusiva e temporária de elaborar uma Constituição. Para que todos pudessem participar, foram criadas oito comissões, cada qual subdividida em três subcomissões. Os trabalhos dessas comissões foram desenvolvidos separadamente e depois condensados em uma comissão central, chamada Comissão de Sistematização, sob a presidência do senador Afonso Arinos de Melo Franco, tendo como relator o deputado Bernardo Cabral.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No entanto, ao trabalharem separadamente, as comissões e subcomissões criadas causaram um problema de identidade ao texto, devido ao pluralismo extremamente fragmentário no que tange a valores, interesses, princípios e tendências de cada grupo, cuja homogeneização exigia um esforço extremo dos relatores, com prazos atropelados pela quantidade das emendas produzidas. “Foi o período mais duro e agônico vivido pela Constituinte. Realmente, naquela ocasião, o público parecia perder a fé na idoneidade da tarefa executada” (Bonavides; Andrade, 1991, p. 457). Durante esse período, as charges da Folha de S. Paulo destacaram as manobras políticas do presidente José Sarney para garantir o seu tempo de mandato. De acordo com a Constituição em vigor, ele tinha direito a seis anos, mas como foi eleito indiretamente durante o processo de transição, precisava da legitimação do novo texto constitucional. Na incerteza, o presidente José Sarney fez um pronunciamento em cadeia nacional de televisão no dia 18 de maio de 1987, anunciando a todos que abriria mão de um ano e ficaria com cinco. Uma tentativa de negociação política que acirrou ainda mais a guerra de poder que se formava nos bastidores da Constituinte. Neste cenário, entra em cena um novo e importante personagem: o Centrão, grupo conservador e contrário às muitas teses progressistas que estavam sendo debatidas na Assembleia. O bloco ficou conhecido por dar apoio ao presidente José Sarney que, além de outros interesses, lutava para manter a duração do seu mandato presidencial para cinco anos. Durante a Assembleia, no dia 3 de dezembro de 1987, o Centrão impôs uma alteração no regimento, na qual era preciso reunir a maioria absoluta para garantir a permanência dos dispositivos aprovados em comissão. Em vez dos 280 votos anteriormente necessários no regimento para rejeitar um item do projeto, agora era preciso 280 votos para manter um determinado dispositivo da proposta na Comissão de Sistematização. Essa inversão do ônus de quórum beneficiou o Centrão, que manteve a maioria dos interesses do governo. Na Folha de S. Paulo (Figura 2), a chegada do Centrão na narrativa é retratada de forma bem pitoresca. Ele entra na história vestido de Papai Noel, com cinco pernas, segurando um bolo de aniversário com os dizeres: 5 anos. Essa hiperbolização do número cinco realça o efeito do real criado pelo autor e sugere que o movimento do Centrão é, na verdade, uma manobra política para garantir o tempo de mandato pretendido por Sarney. De forma irônica, os elementos explícitos e implícitos colaboram para que o sujeito interpretante associe a vitória de Sarney como algo inacreditável, um milagre de Natal. Reforça a mensagem de autoritarismo do executivo, bem como a ideia de continuidade com o período político anterior. A expressão de alegria do presidente com a chega do Centrão de cinco pés e sua pergunta, “Papai Noel?”, intensifica a mensagem do autor e dá o tom sarcástico final a cena, garantido a zombaria e a ridicularização do episódio.

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Figura 2 - charge de Glauco, publicada na Folha de S. Paulo, 7 de dezembro de 1987. Fonte: Folha de S. Paulo. A duração do mandato de cinco anos para o presidente José Sarney foi decidida no dia 2 de junho de 1988, 16 meses depois da abertura dos trabalhos na Assembleia. A charge da Folha de S. Paulo sobre esse acontecimento foi publicada no dia 3 de junho de 1988 (Figura 3).

Figura 3 - charge de Glauco, publicada na Folha de S. Paulo, 3 de junho de 1988. Fonte: Folha de S. Paulo.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No desenho, Glauco retrata de forma criativa o presidente comemorando com seus aliados em um “trenzinho da alegria”, termo para se referir aos servidores públicos não concursados. O humor se forma justamente nessa referência. Não necessariamente ao concurso, mas uma crítica à legitimidade de José Sarney, um presidente que, mesmo sem ser eleito diretamente pelo povo, acabava de ser efetivado pela Constituinte. O elemento verbal do texto reforça e direciona o leitor para o sentido pretendido pelo chargista: “É cinco anos tchá-tchá-thá. É cinco anos tchá-tchá-tchá”. “Disfarça, pessoal! Trenzinho da alegria a gente comemora depois!”. Novamente, há na imagem a hiperbolização do número cinco, tanto quando é dito ou cantado verbalmente, como na caricatura dos cinco personagens, que têm cinco pernas. No discurso, portanto, predomina a ridicularização, a ironia e a ambiguidade. Todos esses elementos pictóricos formam o riso ambivalente e carnavalesco de Bakhtin (1981), marcado pela afirmação e ao mesmo tempo negação da autoridade presidencial. A mensagem principal da charge é a vitória do governo custe o que custar. A cena da comemoração entre amigos reafirma a ideia do patrimonialismo, clientelismo e grupos de conchavo presentes na elaboração da nova Constituição. O texto foi promulgado no dia 5 de outubro de 1988. No dia anterior, como parte da programação, uma cerimônia organizada pelo Ministério da Agricultura marcava a inclusão do Art. 225, inteiramente dedicado ao meio ambiente. Uma inovação, já que o Brasil era um dos primeiros países do mundo a tratar do tema em uma Constituição. Durante o evento, ocorrido em um terreno localizado atrás da praça dos Três Poderes, transformado em Bosque dos Constituintes, foram plantadas 600 mudas de 20 espécies de árvores brasileiras, cada uma com o nome dos 559 constituintes ou suplentes que participaram do processo de elaboração das novas leis. No ato, Ulysses plantou uma muda de “Pau-Ferro” e foi esse o acontecimento escolhido pelo chargista Glauco para retratar a promulgação da Constituição de 1988 (Figura 4).

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Figura 4 - charge de Glauco, publicada na Folha de S. Paulo, 5 de outubro de 1988. Fonte: Folha de S. Paulo. A charge mostra o presidente da Constituinte, Ulysses Guimarães, no centro da imagem, de joelhos, plantando a árvore e cercado de jornalistas. A construção do humor e o efeito do riso carnavalesco de Bakhtin com o “destronamento” e a ridicularização do deputado, é evidente em vários elementos. O efeito visual já é depreciativo não somente pela posição corporal, mas também pela expressão facial de Ulysses. Os olhos para baixo e o sorriso amarelo demonstram um embaraço, bem diferente do entusiasmo que ele afirmava estar sentindo na ocasião, conforme publicado na página A.5 da Folha de S. Paulo de 5 de outubro de 1988, edição do mesmo dia da charge:

Na primeira das quatro oportunidades em que se viu cercado por repórteres e câmeras de TV, Ulyssess Guimarães, presidente do Congresso Constituinte, disse se sentir “como uma noiva”, na véspera da promulgação do novo texto constitucional. E foi mais longe: “Uma noiva muito emocionada, partindo para um casamento tão duradouro quanto as instituições. Um casamento monogâmico e indissolúvel” (Natali, 1988, p. A5).

A análise dos elementos pictóricos da charge demonstra que o autor vai além e zomba até mesmo do novo texto constitucional. Para isso, ele usa como recurso de linguagem as falas dos personagens: “Dr. Ulysses, que árvore o senhor está plantando?”, pergunta um jornalista. “Pé de abobrinha!”, responde Ulysses.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O diálogo orienta o leitor para a relação intertextual da imagem com o acontecimento, mas também é onde se concentra o inusitado e o cômico da narrativa. Enquanto no evento Ulysses plantou uma muda de “Pau-Ferro”, cuja a própria expressão simboliza algo forte e duradouro, na charge o que o deputado tem em mãos é um “pé de abobrinha”, cujo, na cultura popular, quer dizer asneira, coisa sem sentido, sem nexo ou sem noção. É esse o efeito surpresa que Glauco coloca em sua charge para causar o riso. De forma irônica e bem-humorada, ele questiona a durabilidade e os efeitos na nova Constituição, representando e ressignificando o acontecimento histórico como uma grande falácia.

Considerações finais A charge é uma imagem sobeja de tudo que a notícia ou a fotografia consegue e não consegue, pode ou não mostrar. São narrativas satíricas gráficas muitas vezes convergentes com essas fontes tradicionais, mas nunca apenas complementos visuais, pois têm vida própria, indo até mesmo contra, desmistificando e subvertendo a linguagem escrita. Um empreendimento de demolição contra o poder. Uma revolta necessária que ganha força, principalmente, nos momentos de crises e esperanças. Isso nos leva a confirmar que, tal como os jornalistas são historiadores do presente ao escrever uma narrativa no calor dos acontecimentos, também são os chargistas ao transformar em imagem a síntese da notícia produzida nas redações. Neste estudo, vimos que, por meio do riso carnavalesco de Bakhtin (1981), as quatro charges de Glauco publicadas na Folha de S. Paulo ganham liberdade de expressão pós-ditadura e se posicionam como narrativas dissidentes na tentativa de alertar o leitor para as velhas práticas políticas que continuavam durante a redemocratização. Descontroem discursos dominantes e ridicularizam a maneira como os líderes políticos conduziram a tramitação da Constituição Federal de 1988. Em contraste com a ideia de cidadania, potencializada pelo discurso político de uma “Constituição Cidadã”, as charges analisadas sugerem que as novas leis estavam sendo elaboradas dentro de uma prática na qual Carvalho caracteriza como estadania, ou seja, orientada mais para o Estado do que para o povo. “Representa o cenário no qual o Estado é sempre visto como o todo-poderoso. Na pior hipótese como repressor e cobrador de impostos; na melhor, como um distribuidor paternalista de empregos e favores” (CARVALHO, 2014, p. 221). As ilustrações de Glauco mostram também que, na expectativa de uma transição democrática capaz de mudar o país para melhor e superar a crise política, social e econômica que assolava a nação após a ditadura, a construção das novas leis logo despertou incertezas se a Constituição Federal de 1988 estava sendo levada a sério por seus elaboradores, se ela realmente mudaria o país positivamente e se seria obedecida. Em suma, as críticas dissidentes predominantes nas imagens analisadas são: falta de um projeto constitucional como ponto de partida; o improviso do político brasileiro,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes acostumado a buscar sempre soluções de última hora e ao sabor das circunstâncias; disputas de lideranças com forças políticas fragmentadas; e a intromissão excessiva do executivo na elaboração das novas leis. Este último ponto o chargista deixa em evidência desde o primeiro desenho (Figura 1), quando o presidente José Sarney tenta escrever ele mesmo a Constituição, passando de coadjuvante ao protagonista da história. A partir daí, na Folha de S. Paulo, sua caricatura vai se desenhando como um vilão. Uma crítica ao jogo político orquestrado pelo Estado. O lado negativo é que na tentativa de tornar público e transparente os bastidores da tramitação das novas leis, concentrando suas críticas no jogo de poder, as charges da Folha de S. Paulo deixaram de lado muitos avanços que o novo texto alcançou. A Constituição Federal de 1988, representada em seu último capítulo como “pé de abobrinha”, por exemplo, não enaltece as inovações e mudanças conquistadas, como o restabelecimento das eleições diretas; o fim da censura; o racismo como crime inafiançável; melhoria nas leis trabalhistas, incluindo jornada reduzida de 48 para 44 horas semanais e o direito de licença maternidade de 120 dias. Entretanto, a arte não é diferente da vida. Em um país onde sempre se buscou nas leis, não o caminho, mas o desvio, narrativas satíricas como essas nos mostram o quanto a memória coletiva é da ordem da vivência, da experiência. Enquanto o constitucionalismo democrático é percebido por muitos estudiosos do direito como “a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários” (Barroso, 2012, p. 1), as charges da Folha de S. Paulo sugerem que, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 não nasceu somente em meio à euforia e entusiasmo de recuperação das liberdades públicas e conquistas de direito, como também entre percepções pessimistas de uma sociedade que ainda sentia o cheiro do autoritarismo e carregava as marcas da ditadura. Um povo que logo percebeu que a democratização não resolveria automaticamente os problemas mais graves do país e, principalmente, que a transição carregava com ela as velhas práticas políticas, como centralização do Estado, compras de votos e corrupção. É essa a principal mensagem que a síntese da narrativa satírica gráfica da Folha de S. Paulo nos revela sobre a tramitação da Constituição Federal de 1988: uma percepção de continuidade com o regime de governo anterior mais forte que a de ruptura. Uma crítica ancorada à tradição brasileira, cuja a política esteve continuamente sob uma dimensão patrimonialista e centralizada no poder do Estado, sempre capaz de submeter o povo à sua vontade, e um Legislativo fraco, inábil, sujeito a vender seus ideais em troca de favores e interesses. Em suma, se por um lado autores como Barroso afirmam que a Constituição de 1988 “promoveu uma transição democrática bem-sucedida e assegurou ao país estabilidade institucional, mesmo em momentos de crise aguda” (Barroso, 2012, p. 6), as charges da Folha de S. Paulo mostram que, no contexto de sua promulgação, o direito constitucional brasileiro deveria, primeiramente, superar o seu passado.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Referências ARANTES, Rogério B.; COUTO, Cláudio G. 1988-2018: Trinta anos de constitucionalização permanente. In: FILHO, Naercio Menezes; SOUZA, André Portela (orgs.). A Carta: para entender a Constituição brasileira. São Paulo: Todavia, 2019. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1981. BARROSO, Luís Roberto. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. In: GUERRA, Roberta Freitas; SILVA, Fernando Laércio Alves da. NERO, Patrícia Aurélia del. (Coord.). Neoconstitucionalismo em perspectiva. Viçosa: UFV, 2014, p. 27-61. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. CARVALHO, L. M. 1988: segredos da Constituinte: os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2017. DA CRIAÇÃO DO JORNAL AO FUTURO DIGITAL: veja 9,5 marcos da história da Folha. Folha de S. Paulo. 28.02.16. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ asmais/2016/02/1744105-da-criacao-do-jornal-ao-futuro-digital-veja-95-marcos-dahistoria-da-folha.shtml FERNANDES, P. J. Caricatura e Cartoon em Portugal: Humor sem contensão no Portugal Contemporâneo”, in Humor, Direito e Liberdade de Expressão. Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2016, p. 215-235. FONSECA, J. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. FONSECA, V. P. S. O acontecimento como notícia: do conceito à prática profissional. In: BENETTI, M.; FONSECA, V P. S (Orgs.). Jornalismo e acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular, 2010. FREUD, Sigmund, O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos. Volume XXI. Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer, 1927. JORNAIS NO BRASIL perdem tiragem impressa e venda digital ainda é modesta. Poder 360. 26. nov. 2019. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/jornaisno-brasil-perdem-tiragem-impressa-e-venda-digital-ainda-e-modesta/. Acesso em 09.03.2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes MOTTA, L. G. Análise crítica da narrativa. Brasília: Universidade de Brasília, 2013. NATALI, João Batista. Carta entra em vigor; acaba a transição democrática. Folha de S. Paulo, São Paulo, 5 de out. de 1988. Política. P. A.5. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. Volume 1. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. ROMUALDO, E. C. Charge jornalística: intertextualidade e polifonia: um estudo de charges da Folha de São Paulo. Maringá: EDUEM, 2000. ROSSI, Clóvis. Uma obscena República bananeira. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23 de março de 1987. p. 2. SILVA, Sônia Maria de Meneses. A operação midiográfica: a produção de acontecimentos e conhecimentos históricos através dos meios de comunicação – a Folha de São Paulo e o golpe de 1964. Tese de doutorado em História. Niterói (RJ): UFF, 2011.

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PARTE IV

LITERATURA, JORNALISMO, ARTES E RESSIGNIFICAÇÕES

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“MATEM OS MONSTROS!”: REFLEXÕES SOBRE O PUNITIVISMO MIDIÁTICO OCIDENTAL SOB UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL Vanessa Ribeiro do Prado Victor Lemes Cruzeiro

“Maldito seja o dia, demônio abjeto, em que você veio à luz! Malditas sejam (e eu mesmo as amaldiçoo) as mãos que lhe criaram! Você me tornou desgraçado muito além do que eu posso expressar! Não me deixou escolha sobre ser justo com você! Vá! Desapareça! Livra meus olhos dessa sua visão horrenda!” - Victor Frankenstein

Introdução: Criando Monstros Victor Frankenstein é um desses personagens formadores do espírito ocidental, ao lado de Fausto, Hamlet e uma outra dúzia de homens letrados e príncipes que, munidos unicamente das suas inabaláveis vontades e capacidades, lançam-se numa guerra contra o mundo e a natureza. No caso de Frankenstein, o jovem químico desafia a própria morte, criando um monstro de horrendos olhos opacos e pálidos, de órbitas fundas e marcadas. A perversa criatura foge do controle do seu mestre e peregrina pela Europa, cometendo e causando uma série de desventuras para Frankenstein e sua família, que fazem com que o cientista seja tomado por um desejo de destruir sua criação, pois vê nela um obstáculo à sua felicidade e paz. O jovem, contudo, se esquece que ele mesmo a criou e, como tal, deveria ser responsabilizado por ela, incluindo pelos crimes que ela cometeu! Fosse em uma época mais atual, encontraríamos vários testemunhos de avistamentos da criatura de Frankenstein pela Europa e, como em algumas versões para o cinema, veríamos pessoas munidas de foices e tochas perseguindo o monstro, enquanto seu criador permanece em paz, vítima talvez unicamente do fato de ser um gênio. É possível imaginar ainda que os jornais fariam as vezes de tochas e foices,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes incitando a população contra o perigoso monstro, enquanto inocentam ou vitimizam seu criador. Esse comportamento midiático não é novo, e não precisamos apelar para a ficção para saber que muitos homens são absolvidos de suas criações terríveis na ciência, na política, no direito... Há um costume histórico de absolver Victor Frankenstein e, na sua ausência, cria-se um monstro unicamente para ser culpado de algum crime. Porque é disso que se trata qualquer julgamento: criar narrativas de vilões para, só então, em comparação com eles, nascerem os heróis. De mãos dadas, mídia e justiça têm servido de agentes na construção dessas narrativas que opõem perfeição e perversão e, nas próximas páginas, veremos que não é preciso ser um monstro como o de Mary Shelley para ser alvo do ódio e do desprezo do resto do mundo. Basta, apenas, não ser Victor Frankenstein.

Michelle Carter: Eu te amo, agora morra “Se eles lerem minhas mensagens com ele, eu já era. A família dele vai me odiar e eu vou pra cadeia” - Michelle Carter

Na noite de 12 de julho de 2014, Conrad Roy III, então com 18 anos, parou a caminhonete de seu avô no estacionamento de um mercado, na cidade de Fairhaven, em Massachusetts, EUA. Com os vidros fechados, o jovem ligou um gerador portátil, que encheu a cabine de monóxido de carbono, matando-o naquela mesma noite. Segundo sua mãe, Lynn Roy, Conrad sofria de depressão e ansiedade, tomava medicamentos e se consultava com um terapeuta cognitivo (Lawrence, 2015) e já havia tentado suicídio antes, com uma overdose de paracetamol, aos 17. Em um país com uma taxa de suicídio de 15,3 a cada 100 mil habitantes (OMS, 2018, onde consta que a taxa regional das Américas é de 9,8 a cada 100 mil), e considerando que uma tentativa anterior é o fator de risco mais importante em casos de suicídio (OMS, 2014), o caso de Conrad seria apenas mais uma triste adição nas estatísticas, que passam, quase sempre, à margem das mais intensas discussões midiáticas. Foi apenas alguns meses depois, quando a polícia investigava o celular de Conrad , que uma nova personagem entrou em cena, atraindo a atenção de todos: Michelle Carter. A adolescente de 18 anos vivia um relacionamento à distância com Conrad e, aparentemente, havia sido a última pessoa a ter contato com o jovem na noite de sua morte. 1

1 Segundo a legislação do estado de Massachusetts, uma morte que apresente indícios de suicídio deve ser comunicada ao serviço médico legal local, que irá determinar a causa da morte e a necessidade de futura investigação Cf. Legislação Geral de Massachusetts, Seção 4, Parte I, Título VI, Capítulo 38, Seção 3 e 4. Disponível em: https://malegislature.gov/Laws/GeneralLaws/PartI/TitleVI/Chapter38/Section4. Acesso em 04 jun. 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Conrad e Michelle se conheceram em fevereiro de 2012, em Naples, na Flórida, onde os dois visitavam parentes. Pouco tempo depois, começaram uma extensa troca de mensagens que, segundo a investigação policial, preencheram 317 páginas (Barron, 2017). O que chamou a atenção dos investigadores, contudo, não foi apenas que Michelle foi a última a trocar mensagens com o jovem, mas o teor das mensagens. Segundo a promotoria, Michelle incitou Conrad a se matar, inclusive obrigando-o a voltar para o carro cheio de fumaça do qual ele, com medo, havia saído. Segundo a promotora assistente do caso, Maryclare Flynn, Carter enviou uma mensagem a uma amiga, dizendo: “A morte dele foi culpa minha. Eu podia tê-lo impedido. Eu estava no telefone com ele, e ele saiu do carro porque estava dando certo. Ele estava com medo, e eu o mandei voltar pra dentro da porra do carro”. São palavras da ré, Michelle Carter, 17 anos, que, durante semanas, incitou e provocou o namorado deprimido, Conrad Roy, de 18 anos, a se matar [...] Ela ajudou, desenhou, aconselhou e planejou o suicídio. Ela o aconselhou a esquecer as ressalvas e disse que, ao morrer, ele seria livre e feliz. (Eu..., 2019, tradução nossa)2

A promotora finaliza com palavras que, a princípio podem parecer duras, mas que ressoam um sentimento muito presente durante o julgamento: o de que Michelle desejou e levou Conrad a se matar, fazendo-o “um peão no seu jogo doentio de vida e morte” (Eu..., 2019). A partir de algumas mensagens tiradas das mais de trezentas páginas, a promotoria e os veículos de comunicação criaram uma narrativa de que Michelle Carter deliberadamente planejou e forçou o jovem a se matar, como pode ser visto nessa compilação feita pela CNN, na semana da condenação da jovem por homicídio culposo, ou seja, sem a intenção de matar:

19 de junho de 2014 Carter: Então o que você vai fazer? Vai continuar falando sem fazer nada passar todos os dias falando sobre o quanto você quer se matar? Roy: Eu não consigo ficar melhor. Já tomei minha decisão. 23 de junho de 2014 Carter: Como você quer se machucar? Roy: De algum jeito... eu ainda não sei 2 Muitos trechos foram retirados do documentário Eu te amo, agora morra: o caso de Michelle Carter, dirigido por Erin Lee Carr, em 2019, que cobre extensivamente a história, com imagens de arquivo e entrevistas de familiares, advogados e amigos dos dois jovens, além de repórteres envolvidos na cobertura.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 7 de julho de 2014 [neste dia, Michelle e Conrad discutiam a melhor forma de produzir monóxido de carbono (CO)] Carter: Bem, existem outras maneiras de se fazer CO. Procure no Google... Roy: Oh, meu deus! Carter: O que? Roy: Um gerador portátil! É isso! 11 de julho de 2014: Carter: ... Bem, na minha opinião, eu acho que você deveria usar o gerador porque eu não sei muito bem sobre usar uma bomba d’água, mas com o gerador não tem como errar. (Leblanc, 2017, tradução nossa)

Praticamente todos os veículos que cobriram o caso fizeram sua seleção da miríade de mensagens entre os jovens, algumas apresentando nuances de afeto entre Carter e Roy, outras, o desejo dela de obter atenção tornando-se “a namorada enlutada” (Machado, 2017). Em comum, as manchetes que giravam em torno da participação ativa de Michelle no suicídio: “Adolescente de Plainville acusada de incitar namorado a se matar” (Boston Globe, 2015) “Mensagens revelaram tudo! Rapaz que sofria bullying morre intoxicado após ex-namorada incentivá-lo a se matar” (R7, 2015) “‘Você vai ser feliz no paraíso’: a americana acusada de incitar suicídio de namorado” (BBC Brasil, 2017) “Michelle Carter, mulher que enviou textos incentivando o suicídio do namorado, pega 15 meses de cadeia” (The Florida Times Union, 2017) “Adolescente que ‘encorajou namorado a tirar a própria vida’ quer seus depoimentos policiais fora do julgamento de homicídio” (The Independent, 2016) “As mensagens que Michelle Carter enviou para o namorado antes dele morrer: ‘Pare de pensar e apenas faça’” (The Tab, 2019) “Michelle Carter: adolescente por trás do complô de suicídio por texto, sairá da cadeia mais cedo” (News.co.au, 2020) “Michelle Carter, mulher condenada por caso de suicídio por texto, solta da cadeia” (Huffpost, 2020)

O jornalista Jesse Barron, que elaborou um perfil de oito páginas de Michelle na revista Esquire de agosto de 2017, escolheu um título mais simples: “A Garota de Plainville”3. Barron começa a matéria perguntando “As palavras podem matar?”, e faz uma análise profunda do caso, percebendo que não só as palavras de Michelle 3 Por falta de espaço, não podemos nos voltar a outra questão importantíssima na construção narrativa midiática: a imagem. A grande maioria das matérias compartilham closes de uma Michelle Carter indiferente e contrariada, tiradas no tribunal, para o qual ela parece ter sido preparada. Jesse Barron diz que, no primeiro dia de audiência ela parecia “uma estrela do cinema ao contrário”, bronzeada e bem vestida, de saltos altos, cabelos loiros e olhos azuis. São poucas as matérias que trazem fotos dela chorando, geralmente relacionadas à condenação.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes podem ser compreendidas como perigosas, mas também da mídia e daqueles que a consomem: Christine Monahan, que jogou futebol com Michelle [...] “é insano o que ela fez. Ninguém na cidade gosta mais dela.” A bartender do Red Rooster tem acompanhado o caso no Facebook. “Se ela fosse minha filha”, ela me disse, “eu me mataria.” (Barron, 2017, p. 105).

A fala mais chocante, talvez, venha do presidente do Instituto Marítimo Nordeste, em Fairhaven, que disse a Barron ter trabalhado na área de segurança no norte da África e no Oriente Médio, onde presenciou as atrocidades de Saddam Hussein: “Corpos, partes de corpos...”, diz ele. “Agora essa é a mais – eu quase quero dizer coisa satânica. Eu não sou um cara religioso, mas se existe um mal, é ela [Michelle]” (Barron, 2017, p. 105). No documentário Eu te amo, agora morra: o caso de Michelle Carter (Erin Lee Carr, 2019), Barron diz que a figura de Michelle ganhou tanta força porque une duas coisas que compõem o imaginário da adolescente estadunidense: que elas são coercitivas, que elas têm uma espécie de poder secreto, que os homens não têm, que os garotos não têm, e que elas podem usar. A outra coisa é que elas são loucas e só querem atenção, que só querem ser populares e são insípidas (Eu..., 2019)

Considerando o longo e complicado histórico dos EUA – e de todo o Ocidente – com mulheres, incluindo Salem (que também se localizava em Massachusetts), não é de se esperar que o imaginário de misoginia, e até mesmo de um medo sobrenatural, viesse à tona neste caso. Michelle Carter foi enviada à sua fogueira, condenada por homicídio culposo em junho de 2017 e sentenciada a 15 meses de prisão. Presa em fevereiro de 2019, deixou a Prisão Feminina de Dartmouth em janeiro de 2020, por “bom comportamento”.

Wayne Williams: onde estão nossas crianças? “Nós estamos matando pretos. Nós vamos começar a matar mulheres também. Nós matamos muitos desses pretos malditos.” - Charles Sanders

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Em 7 de agosto de 1979, numa mata nos arredores de Atlanta, na Georgia, os corpos de Edward Hope Smith e Alfred Evans, ambos com 14 anos, foram encontrados por uma andarilha que procurava latas. Smith apresentava marcas de tiro calibre 22 nas costas, enquanto a causa da morte de Evans foi, provavelmente, “asfixia por estrangulamento” (FBI, 1980, ii, p. 69)4. Nos dois anos que se seguiram, ao menos 28 crianças foram sequestradas e estranguladas, baleadas, apunhaladas ou espancadas (Burch, 2019). Em uma cidade que emergia como um centro progressista para negros, o caso escancarou as contradições raciais dos Estados Unidos, atraindo a atenção de todo o país e da mídia. O episódio ficou conhecido como “O caso das crianças sequestradas e assassinadas de Atlanta”. Uma força tarefa, com mais de 100 agentes do FBI e das forças policiais locais, foi criada para investigar a onda de sequestros e assassinatos que, sendo todos de negros, ameaçava o já frágil equilíbrio racial estadunidense5, mais ainda em uma cidade que, à época, havia acabado de eleger seu primeiro prefeito negro: Maynard Jackson. A atenção crescente da mídia fez com que o FBI conjecturasse que a próxima vítima não seria deixada em um matagal, mas jogada num rio, para que o corpo não mantivesse possíveis evidências (Constable; Isaacson, 1982). A força tarefa organizou vigílias em 14 pontes ao redor da cidade (mesmo estimando-se que houvesse mais de uma centena) e, na noite de 22 de maio de 1981, detetives ouviram um barulho de algo caindo na água, seguido da identificação de um furgão Chevrolet 1970 (Constable; Isaacson, 1982). Cerca de um quilômetro depois da ponte, a polícia parou o carro suspeito. Na direção estava o promotor musical e fotógrafo amador Wayne Bertram Williams, então com 23 anos. Após uma revista rápida, foram encontradas luvas e uma corda de náilon, que remetia a marcas encontradas em outras vítimas. Além disso, perícias realizadas posteriormente no veículo identificaram fibras similares às encontradas nas vítimas. Análises laboratoriais afirmaram que tanto fibras sintéticas do carpete da casa dos pais de Williams, quanto pelos do cachorro da família, um pastor alemão idoso, condiziam com encontradas em diferentes vítimas. 4 A Agência de Investigação Federal dos Estados Unidos (FBI) disponibilizou grande parte dos arquivos acerca do caso, com eventuais censuras, em 24 partes. Portanto, as referências trarão as partes, em algarismos romanos, antes das páginas. 5 Basta ver as ondas de protesto atuais que tomam todos os EUA em 2020, sob a bandeira Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), disparados pelo covarde e truculento assassinato de George Floyd, estrangulado por um policial branco que permaneceu ajoelhado sob seu pescoço por 8 minutos e 46 segundos, enquanto ele clamava “Eu não consigo respirar”. A abordagem, em 25 de maio de 2020, foi feita porque Floyd supostamente tentou comprar em um mercadinho com uma nota falsa de U$ 20. Os quatro policiais envolvidos na abordagem foram demitidos no dia seguinte, mas ainda não foram condenados (Protesters, 2020). Desde então, uma série de protestos eclodiu em todo o mundo, e principalmente nos EUA, motivados por dezenas de episódios similares de brutalidade policial, de antes e depois. Cabe lembrar que o movimento BLM não é novo, vem de 2013, e que protestos contra a violência policial não são novos nos EUA. De 29 de abril a 4 de maio de 1992, a cidade de Los Angeles foi tomada por protestos que deixaram 63 pessoas mortas, 2383 feridas e aproximadamente 12000 detidas, com danos à propriedade em torno de U$ 1 bilhão e mais de mil prédios danificados (Wallenfeldt, 2012). O estopim foi a absolvição dos quatro oficiais que espancaram Rodney King, um motorista negro que se recusou a parar em uma barreira policial.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Dois dias após Williams ter sido parado, o corpo de Nathaniel Cater, de 27 anos, foi encontrado nu, flutuando a poucos quilômetros da ponte onde Williams foi parado. A autópsia identificou estrangulamento com algum tipo de fio (FBI, 1982, xiii, p. 63), que os investigadores que abordaram Williams estavam certos de ser o fio encontrado no banco do passageiro, na noite de 22 de maio. Contudo, o fio não foi sequer recolhido, registrado e enviado para análise6. Williams prospectava jovens talentos para formar um grupo baseado nos Jackson Five, chamado Gemini, que chegou a gravar uma música. Para tanto, o jovem distribuía panfletos em várias vizinhanças negras, o que aumentou ainda mais as suspeitas dos agentes. Em 21 de junho de 1981, menos de um mês após sua primeira aparição no radar da investigação, Wayne Williams foi preso e indiciado pelos assassinatos de Nathaniel Cater e Jimmy Ray Payne, de 27 e 22 anos, respectivamente. A figura de Williams já havia vazado para a mídia como suspeito, e a prisão fez sua imagem correr todo o país. Embora tenha sido indiciado apenas pelos assassinatos de dois jovens adultos, que destoavam do padrão seguido até então, o Estado tentou ligá-lo às mortes de outros 12 jovens, baseado nas fibras sintéticas encontradas nas vítimas e no carpete de sua casa. Não demorou para que os jornais se lançassem numa cobertura do julgamento de Williams, buscando fortalecer sua imagem de culpado e exaltar os métodos de sua condenação: O semanário The Red and Black foi um dos grandes arautos do tema, trazendo manchetes que atacam Williams e sua defesa, mesmo antes do início do julgamento: “Juiz nega pedido de fiança a Wayne Williams” (16 de julho de 1981) “A escolha do júri acabou, o julgamento de Williams começou” (06 de janeiro de 1982, primeiro dia de julgamento, manchete principal no topo da primeira página) “Pena de morte é necessária” (14 de janeiro de 1982) [trata-se de um artigo de opinião bastante agressivo] “Expert do FBI confirma combinação de fibras do carpete” (21 de janeiro de 1982) “Testemunhas ligam Williams a mais vítimas” (28 de janeiro de 1982) “Duas outras vítimas ligadas a Williams” (29 de janeiro de 1982) “Nova evidência de fibra apresentada liga Williams a 10 vítimas” (02 de fevereiro de 1982) “Manchas de sangue ligam Williams a dois dos negros assassinados” (03 de fevereiro de 1982) “Williams demonstra raiva durante julgamento” (25 de fevereiro de 1982)

6 No relatório da abordagem de Williams, na noite de 22 de maio, não consta o fio dentre os pertences recolhidos no carro, embora conste que os agentes encontraram cerca de um metro de um “cabo elétrico” no acostamento da pista, a alguns centímetros de onde o carro de Williams parou. (FBI, 1982, xv, p. 9)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Williams é condenado em 27 de fevereiro de 1982 a duas prisões perpétuas e, mesmo assim, o semanário prossegue numa campanha de difamação, desconstruindo elementos da defesa, reforçando sua culpa e louvando a atuação do Estado7: “Psicólogo da defesa afirma que Williams é um ‘mentiroso crônico’ capaz de matar” (5 de março de 1982) “Bailey: advogados ruins prejudicam o sistema” (25 de maio de 1982) [aqui, o semanário chama o jurista Francis Lee Bailey, que em 1995 ficaria famoso por defender o jogador de futebol americano O.J. Simpson, para atacar a defesa de Williams, trazendo a seguinte citação abaixo de uma foto sua: “Bailey: Wayne Williams é culpado”] “Promotores planejam livro sobre o julgamento de Williams” (30 de abril de 1982, após a condenação de Williams)8

O mesmo semanário, quando se vê obrigado a apresentar matérias contrárias à linha condenatória, as insere em tamanho menor, no fim das páginas, como quando afirma que “Morte acidental é possível, afirma testemunha” (04 de janeiro de 1982). Dias após o julgamento, em 02 de março, uma nota é publicada, dizendo: “Força tarefa é despachada; 23 outros casos são fechados”. E quando Williams solicita um novo julgamento, em 1985, uma nota de 12 linhas é publicada em uma seção chamada Briefly (Brevemente). Outros veículos, como o The Maroon Tiger e o Spelman Spotlight, jornais estudantis do Atlanta University Center e do Spelman College, trataram, sem o mesmo alcance, de defender Williams em editoriais, dando voz a outras teorias, como a do ativista Dick Gregory, que afirmava serem os assassinatos obra do governo para pesquisas com leucócitos de jovens negros (GREGORY, 1981). Wayne Williams cumpre sua pena na prisão estadual de Hancock, na Georgia, e ainda alega sua inocência. Em 2020, um documentário em cinco partes sobre o caso, dirigido por Sam Pollard, contesta a condenação de Williams com base na ausência de vínculos com todas as mortes, a dissolução quase imediata da força tarefa, e a insistência nas provas circunstanciais das fibras. Mais ainda, o documentário traz a atenção para o fato de que havia uma outra suspeita, já considerada pela polícia do estado, de que havia envolvimento do grupo supremacista branco Ku Klux Klan. Em 18 de fevereiro de 1981, a Agência de Investigação da Georgia (GBI) iniciou uma força tarefa, separada e secreta, para avaliar o envolvimento da Klan nas mortes das crianças. Contudo, apenas em 1991 essas novas provas vieram à tona, enviadas ao advogado de apelação de Williams. Segundo uma matéria publicada na época, “a ligação entre a série de mortes e a Ku Klux Klan foi mantida em segredo por medo de 7 Um outro veículo, o The West Georgian, publica uma matéria logo após o julgamento de Williams exaltando as técnicas de análise de material, então nos seus primórdios, e que trouxeram tantas dúvidas quanto à condenação: “Professores de criminologia acreditam que evidências físicas são um sinal de progresso nos tribunais” (10 de março, 1982). 8 Em 1986, quatro anos após sua condenação, Wayne Williams continua nas manchetes do The Red and Black, sendo chamado de “assassino serial local”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes causar um conflito racial” (Byrd, 1991). Billy Joe Whitaker, agente do GBI, infiltrou-se num grupo supremacista que se dizia ainda mais radical que a KKK9, e gravou conversas com os membros da família Sanders, que comandava o grupo. Contudo, o agente especial Robert Ingram, responsável à época pela investigação, informou que as fitas foram destruídas, com sua autorização, em 31 de julho de 1981, pouco tempo depois da prisão de Wayne Williams. Ingram também informou que fibras de carpete e pelos de cachorro da casa dos Sanders foram coletadas e enviadas para análise, mas que os técnicos afirmaram que “nenhuma evidência indicava para as crianças mortas”. E, infelizmente, diz Ingram, “não se sabe onde essas amostras estão agora” (Byrd, 1991). Charles Sanders, um dos líderes do grupo, passa por um breve teste de polígrafo, que o exime de culpa, e desaparece, enquanto Wayne Williams continua, culpado ou não dos dois assassinatos pelos quais foi julgado10, a carregar o fardo de mais de 20 mortes que foram sequer ligadas a ele. Wayne Williams tem, hoje, 62 anos.

Por que punir? “Dá vontade de dizer: ‘Sua nojentinha, como pôde fazer isso a um ser humano? Sua metida a Patricinha de Beverly Hills!’ Se eu estivesse naquele júri, eu diria: ‘Podem prendê-la! Seus pais não vão sentir sua falta se ficar presa por 30 anos!’ Eu juro pode Deus!” - Mulher não identificada, sobre Michelle Carter

O objetivo aqui não é defender os dois acusados, mas apontar as complicadas nuances criminais e sociais que os casos carregam, levantando mais questões após as condenações do que durante as investigações. Neste ponto, os dois documentários citados são pródigos em apresentar, graças a um retrospecto temporal e ao audiovisual – que pode unir várias visões e um largo período em um curto espaço de tempo – pontos importantes que escapam à lógica processual dos julgamentos que condenaram Michelle e Wayne. E parte dessa lógica processual particular, ligada a provas e especialistas, está fortemente ligada ao retrato pintado dos casos pela mídia. 9 Este grupo se autointitulava National States Rights Party (NSRP), ou Partido dos Direitos dos Estados Nacionais, dissolvido pouco depois, na década de 80. 10 O analista do FBI John Douglas, famoso por desenvolver a ciência do perfil criminoso moderno, escreveu um capítulo sobre Wayne Williams e as crianças assassinadas de Atlanta em seu livro Mindhunter, em que diz: “Apesar do que seus detratores e acusadores afirmam, acredito não haver provas contundentes ligando-o a todas as mortes e desaparecimentos [...] crianças negras e brancas continuam morrendo misteriosamente em Atlanta e em outras cidades [...] Não se trata de um único criminoso, e a verdade não é nada agradável. Até agora, no entanto, não há provas ou vontade política suficientes para buscar acusações formais.” (Douglas, 2017, p. 278-279).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes As mensagens de Michelle Carter e seu namorado somaram mais de 300 páginas e, contudo, a grande maioria dos veículos optou por focar nas mensagens mais chocantes – principalmente do dia 12, data da morte de Conrad – ignorando outras que mostravam Michelle querendo demover o jovem da ideia, ou dizendo que o amava, ou compartilhando com ele as próprias angústias e ideações suicidas. Da mesma forma, os jornais que cobriram o breve e acelerado julgamento de Wayne Williams – em especial o The Red and Black – optaram por criar uma narrativa baseada na autoridade de especialistas e em análises científicas, nunca nos testemunhos das famílias ou da comunidade. E é curioso como essa narrativa de louvor à ciência do julgamento de Williams não reaparece no julgamento de Michelle, onde a defesa tentou provar, com base no testemunho de um médico, que a jovem sofreu de “intoxicação involuntária” pelo uso do antidepressivo Celexa, alterando seu estado mental a ponto de que “tornou-se difícil para ela distinguir certo de errado” (Barron, 2017, p. 130). A promotoria desconsiderou completamente este argumento. Há de se confrontar esse argumento dizendo tratar-se de dois casos muito distintos, em épocas e estados diferentes, e que a legislação jurídica estadunidense muda de estado para estado. Verdade. Mas também existem ali correntes narrativas de culpabilização que servem a um propósito muito bem exposto no depoimento de Billy Joe Whitaker: manter a ordem. Um crime é uma ameaça à ordem social, que está vinculada à ideia de bem (Celis; Hulsman, 1993, p. 56). Por isso, toda punição busca não apenas impedir o criminoso, mas conservar a ordem ameaçada por aquele crime. Dentro dessa lógica, essencialmente maniqueísta, aquele que comete um crime torna-se um corpo estranho que ameaça um tecido saudável. Em sociedade tribais, um assassinato poderia dar vazão a um banho de sangue entre famílias em busca de vingança, noção que não está muito distante da sociedade atual (Girard, 1990; Ferrajoli, 2002; Freud, 1974). René Girard, antropólogo francês que se dedica com afinco ao fluxo psicológico desse desejo de violência subterrâneo ao pensamento ocidental, chama estes momentos de crise acionados por uma transgressão de “crises sacrificiais”, onde as hierarquias sociais deixam de existir e a comunidade é consumida pela vingança, que é um “processo infinito” (Girard, 1990, p. 30). Girard vê, nas palavras do general grego Ulisses, na peça shakespeariana Tróilo e Créssida, uma noção do vasto medo injetado em uma sociedade por uma crise desse tipo:

Tirai então a hierarquia, desafinai essa corda, e vê a discórdia que se segue! Cada coisa perecerá no conflito. E as fortes ondas se levantarão contra as praias reduzindo a um caldo indistinto todo o globo [...] Sufocada a hierarquia, segue-se o caos (Shakespeare, 2005, p. 29-30)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Frente a tal ameaça de violência indiferenciada é preciso, portanto, que todo o coletivo se una e canalize esse desejo viral de violência em um só indivíduo, aquele cujo sacrifício irá apaziguar o caos. Nas sociedades tribais e antigas, essa vítima sacrificial era, usualmente, um animal. No mundo grego, essa vítima tomava dois nomes: o pharmakós, um bode expiatório sacrificado em momentos de necessidade, como pragas, catástrofes naturais, ou festividades religiosas; e o anátema, um indivíduo que era expulso da cidade e deixado à própria sorte ou, ainda, obrigado a se jogar de um penhasco, sem que ninguém o tocasse (Girard, 1990, p. 40-41). O rei Édipo, da peça Édipo Rei, de Sófocles, é um exemplo de anátema, na medida em que se auto exila da cidade de Tebas após descobrir que a peste que recaía sobre a cidade foi causada pelos seus crimes de parricídio e incesto. Já o rei Penteu, da peça As Bacantes, de Eurípedes, é um pharmakós, desmembrado por sacerdotisas em frenesi, conduzidas pelo deus Dioniso, a quem Penteu recusou-se a adorar, na mesma Tebas, agora arrasada por terremotos e incêndios. Percebe-se que essa proibição de tocar o anátema e a própria etimologia de pharmakós, que se arvorou no nosso vocábulo fármaco, mostra a presente preocupação com o contágio que a transgressão apresentava para essas sociedades, ainda calcadas no divino. Na modernidade, fundada em sólidas bases racionais – ainda que não pareça – o medo da peste se mantém, presente nas liturgias jurídicas que mantém o acusado isolado dos demais (salas de confissão, prisões preventivas, e a própria estrutura das cortes) e, quando condenado, retirado do convívio social. Em um mundo sem muros e espaços vazios como o nosso, as instituições de sequestro das prisões – inclusive algumas perpétuas – servem como território dos anátemas modernos. Já a morte ritualística do pharmakós não é repetida à risca, com exceção de alguns países onde a pena de morte ainda vigora, como os Estados Unidos da América – talvez a mais primitiva das nações modernas. Percebe-se como o medo e as barreiras de disseminação do contágio violento se mantêm na modernidade, malgrado a demolição de um mundo divino para a edificação de um mundo racional. O poder judiciário estatal age como canalizador desse ritual de escolha e sacrifício de uma vítima, agindo em nome de um grupo maior que voluntariamente outorgou-lhe essa função pelos inúmeros contratos sociais que foram sendo costurados no Ocidente. E para unir todos em torno deste altar sacrificial moderno, garantindo que todas as vozes estejam consonantes com o desejo de, em nome da ordem social, sacrificar um indivíduo, foram criadas ferramentas que transmitem esse desejo a todos os lugares, por vários meios: a mídia, principalmente televisiva. Resta saber agora apenas como se dá essa escolha? Nos casos mencionados acima, por que Michelle Carter tornou-se alvo de tanto ódio em um caso que envolvia o suicídio de um jovem – detalhe que não foi problematizado em momento algum, e

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que exigia igual atenção, por também ter um risco de contágio que ameaça a sociedade? E por que foi Wayne Williams o escolhido no caso das crianças assassinadas, e não Charles Sanders, se havia contra este provas tão mais contundentes do que contra aquele? Como se decide quem sacrificar ou, melhor, quem punir?

Quem punir? “Eu estou convencida que Wayne Williams é inocente. Eu estou convencida de que foi uma ação política, mais do que um julgamento de culpa ou inocência. Eu não acho que ele tenha matado ninguém.” - Camille Bell, líder do comitê de pais das crianças assassinadas de Atlanta

Cesare Beccaria (1738-1794), um dos papas das ciências criminais e leitura básica nos primeiros anos de formação de advogados, compreende o direito do Estado de punir como “o verdadeiro direito do soberano de punir os delitos pois não se pode esperar nenhuma vantagem durável da política moral, se ela não se fundamentar nos direitos indeléveis do homem” (Beccaria, 1999, p. 28). Essa noção de soberano ligase intimamente à gênese do Estado moderno, remetendo não apenas ao contrato do inglês Thomas Hobbes (1588-1979), no qual os indivíduos abrem mão de pequenas partes de sua liberdade para construir um grande monstro que os proteja de uma “condição natural de guerra” (Hobbes, 1983, p. 52), mas também à premissa do seu conterrâneo John Locke (1632-1704) do título à “liberdade perfeita e a um gozo irrestrito de todos os direitos e privilégios da lei da natureza” a que um homem nasce com (Locke, 1998, p. 458). Vamos voltar a essa noção de “homem”. Qual a gênese dessa abstração presente em basicamente todos os textos fundamentais do pensamento ocidental? Temos alguma pista voltando a todos os autores citados até aqui: Cesare Beccaria, Thomas Hobbes, John Locke, Sigmund Freud, William Shakespeare, René Girard, sem mencionar os autores das inúmeras matérias jornalísticas utilizadas. É possível que, nas referências, não alcancemos um quarto de autoras femininas. “O homem esquece soberbamente que sua anatomia também comporta hormônios e testículos”, escreve a pensadora Simone de Beauvoir (1908-1986). Ele encara o corpo como “uma relação direta e normal com o mundo, que acredita apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da mulher sobrecarregado por tudo o que especifica: um obstáculo, uma prisão” (Beauvoir, 2009, p. 16). A pensadora francesa traz uma série de exemplos seminais da literatura ocidental, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) a São Tomás de Aquino (1225-1274), e de Emmanuel Levinas (19061995) a Alfred Kinsey (1894-1956) para concluir, ainda na introdução de O Segundo Sexo que: “O homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro” (Beauvoir, 2009, p. 17).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Essa noção de alteridade, de presença do outro é fundamental, e se torna ainda mais profunda se voltarmos para os berços dos autores que nos acompanharam até aqui: Hobbes, Locke e Shakespeare eram britânicos; Freud, alemão; Girard, francês; Beccaria, italiano (assim como Victor Frankenstein, o criador do monstro do início deste trabalho). É perceptível que o conjunto de teorias que conduziu este trabalho até aqui poderia reunir, em uma mesma sala, um grupo de senhores de feições e formações similares, criados neste berço do Ocidente – e da modernidade – chamado Europa. De lá também vem muito do que nos identifica como ocidentais: a filosofia, a arte, as ciências, a mídia, o direito. E, por mais que saibamos, cada vez mais, que há outras maneiras de fazer e traduzir cada uma destas coisas, insistimos em escrever, pensar, ver, produzir, comunicar e, claro, condenar, sob a égide do pensamento absoluto, masculino e essencialmente europeu. Tem-se, portanto, uma hegemonia epistemológica que, durante séculos, cunhou os símbolos e erigiu as instituições que compõem o núcleo do Ocidente e suas nações. Dentre elas está o direito que, numa pretensa igualdade, que nada tem a ver com diversidade11, esconde os instrumentos sacrificiais das sociedades tribais nos pratos da balança que a Justiça segura sem ver. E, sendo um instrumento canalizador da violência sacrificial, o direito ocidental, com seus códigos e liturgias, cargos e recursos, serve à mesma manutenção da ordem social, quando ameaçada. Ordem essa que é específica, servindo a alguns sujeitos e não sendo, de forma alguma, universal, já que se baseia em uma epistemologia particular, localizada e datada. O defensor do direito abolicionista, Louk Hulsman (1923-2009), conta que percebeu que havia no direito penal um nonsense similar à hieromancia romana – a adivinhação do futuro pelas entranhas de aves sacrificadas: Vi que o direito, a teologia moral, a interpretação das entranhas, a astrologia... no fundo, funcionam da mesma forma. São sistemas que têm sua lógica própria, uma lógica que nada tem a ver com a vida ou com os problemas das pessoas (Celis; Hulsman, 1993, p. 27-28)

E esta opinião não trata de desmerecer o direito como ilógico ou primitivo, posição própria à epistemologia ocidental, que parte do princípio de que é a única detentora da verdade do mundo. Trata de assumir que o direito não é um saber absoluto, assim como não o são a física ou a filosofia, mas direcionamentos de compreensão do mundo, a partir de uma forma de vê-lo. 11 “A noção de igualdade mais comumente utilizada pela prática e pelo discurso institucionais exclui a diversidade. A noção oficial de igualdade traz implícita uma simplificação da vida. As instituições, para tornar as coisas maleáveis, reduzem-nas à sua natureza institucional. Isto está em total contradição com a minha noção de igualdade, que, a meu ver, é sinônimo de diversidade.” (Celis; Hulsman, 1993, p. 41)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Portanto, ao tentar conservar o tecido social, que será um tecido social específico, haverá noções próprias da unidade necessária para conservá-lo e, portanto, noções próprias de diferença, que levarão à escolha específica de vítimas sacrificiais. E essa escolha passa, inegavelmente, pela forma de retratar sujeitos e construir narrativas. Rubens Casara (2018), ao diagnosticar o estágio atual que chama de pósdemocracia, traz a atenção para um dos seus maiores sintomas: a espetacularização do sistema de justiça criminal. Neste estágio pós-democrático, marcado pela relativização seletiva das garantias e direitos fundamentais, a liberdade de alguns torna-se mercadoria de troca, o que abala fortemente o princípio constitucional da presunção de inocência. No Brasil, recentes decisões jurisprudenciais12, inclusive de tribunais superiores, vêm realizando interpretações restritivas de postulados cuja natureza jurídica é abrangente, invertendo completamente a lógica da sistemática processual penal. Este modo de atuação é adotado, entre outros motivos, em nome de uma suposta eficiência jurídica que projete seu simbolismo, exigido, muitas vezes, pela espetacularização da justiça via aparelho midiático. Das instituições estatais, o poder judiciário é, sem dúvidas, o locus privilegiado de atenção da indústria do entretenimento. Selecionando os diversos conflitos judicializados aparentemente rentáveis (entendendo-se aqui uma economia não só monetária, mas também libidinal13), uma parcela da mídia, de caráter sensacionalista, constrói o espetáculo judicial, no qual os espectadores são os consumidores, que exercem a dupla função de atuar e assistir – ao mesmo tempo em que influenciam no desenvolvimento do espetáculo, são por ele influenciados (Casara, 2018). Os reais protagonistas do processo, por sua vez, não escapam aos insistentes preconceitos e lugares comuns produzidos e reproduzidos por sociedades estruturadas sob esses modelos hierárquicos. Pelo contrário, os marcadores sociais de raça, gênero e classe são amplamente explorados por esta parcela da mídia, que mescla jornalismo com entretenimento, em tabloides e programas de televisão. As expressões quase alegóricas apresentadas pela justiça criminal são cooptadas pela mídia sensacionalista, que não só manipula os afetos passivos de medo e insegurança, reforçando estigmas sociais, mas também mobiliza ativamente afetos de vingança e revolta diante de uma possível “impunidade”. Desse modo, a informação contribui para a ampliação e consolidação do Estado pós-democrático, subvertendo o postulado moderno de igualdade perante a lei e de contenção do poder estatal, especialmente penal, pela espetacularização da justiça e, muitas vezes, “condenação popular” antecipada dos monstros narrados. 12 Referimo-nos, especialmente, à decisão do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 126.292, onde relativizou-se o princípio constitucional de presunção de inocência, dando interpretação diversa do próprio texto positivado no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (Brasil, 2016). 13 O filósofo alemão Theodor Adorno traz importantes considerações sobre a economia libidinal do sensacionalismo midiático, analisando a influência recíproca – e contaminação – das pulsões individuais pelos sistemas de reprodução econômica, e vice e versa. Cf. Adorno, 2015.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Portanto, assim como o direito, a mídia também opera seletivamente. No limite, ambos objetivam a manutenção do status quo social, cuja característica principal é a mercantilização das relações objetivas e subjetivas, malgrado as diferentes ferramentas para tal. Casara (2018) pontua que a união contemporânea entre mídia e punitivismo configura uma regressão social pré-moderna, remontando a procedimentos inquisitoriais, fogueiras, provas tarifadas e juízos de semiculpabilidade. Através dos casos expostos no presente ensaio, não é preciso digressões muito grandes para compreender os objetivos que este tipo de sociedade procura. Billy Joe Whitaker, no julgamento de apelação de Wayne Williams, dez anos depois de sua condenação, ao contar sobre seu período infiltrado em um braço da Ku Klux Klan, relata que um membro do grupo afirmou que não apenas mataria uma das crianças ligadas ao caso, como “estava criando uma tensão entre os negros, e que estavam matando as crianças, e que matariam uma por mês até que as coisas explodissem” (Weber, 2005). Contudo, o então chefe da investigação, na época, disse que a informação foi mantida confidencial pois temiam “problemas raciais” em Atlanta, caso o envolvimento da KKK viesse a público (Byrd, 1999). Todas as provas envolvendo a Klan foram destruídas logo após a condenação de Williams, com o aval do chefe da investigação, sem que a defesa tivesse acesso – o que, segundo a legislação estadunidense, é uma grave violação, e acarretaria na anulação da sentença14. Vê-se, portanto, que a existência de uma legislação não é o suficiente para garantir a ordem, e que paira sobre ela um elemento subjetivo na construção das relações jurídicas, sem dúvida atravessado pela noção de “unidade” que a justiça ocidental pretende. E, compreendendo que essa “unidade” encontra-se, cada vez mais em um meio diverso, em que vozes distintas clamam por níveis distintos de acesso e participação na esfera pública, cabe à mídia atuar como porta voz dessa unidade hegemônica, disseminando as mensagens que construam, em toda a população, ao mesmo tempo que a confiança nas instituições, o medo da instabilidade social, transformando as vítimas sacrificiais escolhidas nos monstros que precisam ser destruídos. Daí a gênese das manchetes que optam por defender ou não posições científicas acessórias, mas são unânimes em desumanizar Wayne e Michelle. Nestes uníssonos, Wayne deixa de ser um jovem de 23 anos com um promissor futuro na música, para tornar-se um “mentiroso crônico capaz de matar” para quem a “pena de morte é necessária”; e Michelle perde sua identidade, sendo ora “adolescente”, ora “mulher”, ora “ex-namorada”, que “incitou”, “incentivou” e “encorajou” o jovem “rapaz que sofria bullying” a tirar a própria vida. As manchetes vão se alinhavando em narrativas que, ao longo do tempo, não apenas tornam-se discursos, mas unem-se a apresentadores de TV, políticos etc., for14 Refere-se aqui à Lei Brady, que considera ter o Estado mais recursos para a obtenção e análise de provas e evidências, exigindo da promotoria a comunicação e disponibilização à defesa de qualquer informação ou evidência que prove a inocência do acusado, ou garanta uma efetividade maior do interrogatório das testemunhas de acusação.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes mando uma voz única do tal “homem comum”, que ressoa nos céus do país clamando vingança por uma jovem alma que foi ceifada por este monstro impiedoso: Ao tratarem dos problemas da justiça penal, os discursos políticos, grande parte da mídia e alguns estudiosos da política criminal se põem de acordo e dão a palavra a um determinado “homem comum”. Este homem comum seria obtuso, covarde e vingativo. Não faria distinção entre os marginais, os violentos, os molestadores de todos os tipos, reservando-lhes em bloco o desprezo público (Celis; Hulsman, 1993, p. 55)

Este é, portanto, um sistema judiciário que “fabrica culpados” (Celis; Hulsman, 1993, p. 67) para serem encaixados em uma demanda de um grupo hegemônico, cuja vontade é projetada como universal a partir de uma mídia que fabrica narrativas. Sob esse ângulo de vista, o direito torna-se, não um suprassumo da racionalidade e virtude do Ocidente, mas, como a filosofia, o seu bichinho de pelúcia, um brinquedo estimado que não divide com ninguém (Bloch, 2015). E não se trata aqui de apontar um simples agenda setting da mídia, uma influência sobre a formulação de valores sociais e reforço de posições hegemônicas. Mas de que a mídia traduz, em um discurso inteligível, os símbolos abstratos de separação que a máquina jurídico-sacrificial cria para manter a ordem. Para tanto, ela parte de categorias socialmente construídas, como raça, gênero, status social, idade, endereço, veiculando narrativas incriminatórias e linchamentos virtuais espontâneos (Carvalho, 2010). O que não quer dizer que as manchetes apresentadas foram pontualmente racistas com Wayne Williams e misóginas com Michelle Carter. Não foram escolhas momentâneas, mas parte de um trabalho de “não informar”. Buscando construir o clamor uníssono pelo sacrifício, a mídia toma partido, julga e condena, aprofundando terror e medo a partir de mensagens e códigos estereotipados rasos, nascidos da epistemologia hegemônica. Mais ainda, essas manchetes, embora nasçam de uma demanda condenatória do sistema judiciário, atuam retroativamente, apressando as sentenças sob os augúrios de uma “opinião pública”, como no artigo do The Red and Black que, explicitamente, diz que, para Wayne Williams, “a pena de morte é necessária”. Felizmente, sem sucesso.

Epílogo: Perspectivas de libertação A socióloga britânica Carol Smart, ao analisar a figura da mulher no discurso e no trato jurídico, afirma que o direito é sexista, masculino e com um gênero definido (Smart, 2000). Pode-se adicionar a isso não apenas que ele também tem uma raça, mas uma voz, uma força e uma epistemologia próprias.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Portanto, para romper o ciclo de culpabilização, que inclui a “monstrificação” dos acusados, o primeiro e principal passo seria romper essa epistemologia única, oferecendo novos horizontes para uma prática que envolva a sociedade na sua diversidade. Toda a experiência social produz e reproduz conhecimento, diz o pensador decolonial e português Boaventura de Sousa Santos (2009), produzindo uma ou mais epistemologias. Contudo, a epistemologia eurocêntrica conseguiu, nos últimos séculos, esconder seu contexto cultural específico, envolvendo quase todo o mundo sob um véu de universalidade. Assim, o mundo ocidental cristão, branco, colonial e capitalista institucionalizou sua epistemologia de tal forma que ela estendeu-se a domínios que dificilmente se diriam como frutos desse mundo: da família à religião, da gestão do tempo ao lazer (Boaventura, 2009) e, sem dúvida, também à mídia e à justiça. Essa naturalização de uma experiência social em todos os cantos e atividades da sociedade leva a dois aspectos bastante intrincados: a necessidade, a todo custo, de conservação e expansão dessa experiência social; e o descrédito e supressão de todas as práticas sociais contrárias a ela. A essa supressão, Boaventura dá o nome de “epistemicídio” (2009, p. 10), a invasão e posterior substituição dos conhecimentos locais por um conhecimento alienígena e hegemônico. Assim, embora o crime seja um fenômeno individual e social, com “raízes e motivações extremamente complexas, impossíveis de serem compreendidas apenas por meio de uma variável” (Carvalho, 2010, p. 189), as narrativas hegemônicas tratam de eliminar outros vieses, oferecendo, no lugar, representações pré-conceituais e, quase sempre, punitivistas, traçando linhas abissais (Boaventura, 2009) que separam criminosos e monstros de cidadãos de bem e espectadores. Para transpor essas linhas abissais, Boaventura sugere uma série de condições que podem, em linhas gerais, ser aplicadas às narrativas midiáticas, se não como solução, ao menos como contraponto teórico. É necessário admitir uma co-presença desde as fundações. Somente ao compreender que ambos os lados do abismo são contemporâneos em termos igualitários, será possível identificá-los e apresentá-los fora da narrativa maniqueísta “bem/mal”, “herói/vilão”, “humano/monstro”, que é sempre uma forma de disfarçar a narrativa “Homem Ocidental/Outro”. Isto implica em deixar de lado a noção de linearidade do tempo, que calca não apenas a própria noção de investigação, como do próprio julgamento – ambos consideram o crime como o ápice de uma sucessão inevitável de eventos, sem causas externas ou desvios. Uma ecologia de saberes que admita a diversidade epistemológica, que inclua não somente as outras visões sobre o assunto, dentro da própria comunidade – como a que via Wayne Williams como um bode expiatório do governo ou da KKK – e das instituições – como o abolicionismo; mas que também abra mão da epistemologia totalizante da ciência, da verdade absoluta que reside nas figuras de autoridade, de

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes cientistas e agentes do Estado. Ao abrir mão de uma epistemologia absoluta, assume-se a coexistência de saberes e ignorâncias enquanto conhecimentos diversos se cruzam. Em um julgamento, isso envolve abandonar a visão dogmática da culpabilização, perpetuada pela mídia, dando espaço às versões, visões, fontes e interpretações de outras partes, sem a seletividade noticiosa. Como compreender os sérios fatores psiquiátricos anteriores de Michelle e Conrad, ou não ignorar a longa existência da KKK em Atlanta, abandonando a pretensão de ter acesso a um “conhecimento absoluto sobre o caso”, dado que “a aprendizagem de certos conhecimentos pode envolver o esquecimento de outros” (Boaventura, 2009, p. 47). Finalmente, deve-se ter em vista um horizonte de intraduzibilidade, pois cada epistemologia terá uma linguagem própria, oriunda dos seus contextos culturais específicos. São muitos os preceitos que não tem equivalente entre culturas, o que não quer dizer que as relações entre elas têm de ser descartadas. Culpado e vítima podem ser termos específicos em uma linguagem maniqueísta e punitiva, mas isso não quer dizer que outras visões de análise e narração não compreendam as causas e efeitos de uma transgressão, bem como a necessidade de reparação. Em suma, romper com os abismos de uma epistemologia que serve a um sistema punitivo não é uma tarefa fácil nem rápida, pois deixa muitas questões sem resposta, e suas tentativas não têm garantias de que não recairão nos mesmos instrumentos de divisão abissais de antes. No caso da construção de narrativas punitivas, dar voz a mais personagens, fora do binômio culpado-vítima, incluindo fontes fora do círculo científico e subvertendo a lógica temporal e linear cara às investigações, já é um começo. São poucos os veículos que se permitem isso, em nome da própria lógica de produção de notícias. Dos materiais apresentados, apenas a matéria da Esquire e os documentários ofereceram panoramas não tão hegemônicos. Tem-se um longo caminho ainda, nas redações e nos tribunais, até que o Homem Ocidental consiga fazer o juramento que fez Victor Frankenstein ao seu monstro quando, infelizmente, já era tarde demais: Vai-te embora! Eu quebro minha promessa! Nunca mais irei criar uma criatura como você, tão deformada e perversa! (Shelley, 2012, p. 216)

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ENTRE A LOUCURA E O RACISMO: A CONSTRUÇÃO DA AUTORREPRESENTAÇÃO EM LIMA BARRETO Arthur Breccio Marchetto Igor Oliveira Neves

Introdução Perseguido pelo estigma da loucura, do alcoolismo e da degeneração biológica, Lima Barreto foi um dos autores brasileiros que mais combateu abertamente o pensamento racista que imperava na Primeira República – o de que negros e mestiços eram biologicamente inferiores aos brancos – e não poupou esforços para demonstrar a estrutura racista da sociedade de sua época, ainda que sua postura ativista tivesse lhe custado a marginalidade no mercado editorial no Brasil. Em seu Diário Íntimo, Lima Barreto (2018, p. 478) chegou a registrar que “a capacidade mental dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”. Viu, desde pequeno, como negros eram inferiorizados. Sentiu o racismo na própria pele. Essa ferida transbordou para a literatura e a maioria de seus romances possuem traços autobiográficos. Em seus diversos contos e crônicas, o escritor escreveu sobre a loucura e o racismo científico, que partem da sua experiência e visão de mundo e são permeados por sua situação complexa do homem negro em busca de ser aceito nos espaços dominados pelos brancos, mas que não deixava de lado suas lutas raciais. De todas as suas obras, podemos destacar duas em que o autor aprofundou esses tópicos: o Diário do Hospício & O cemitério dos vivos. Lima Barreto foi duas vezes internado no Hospital Nacional de Alienados. Durante sua última estadia, ocorrida no fim de 1919 até 1920, o escritor fez registros sobre a situação do hospital, criticou a aplicação da medicina moderna aplicada pelos doutores e escreveu um depoimento bastante profundo e pessoal, analisando sua saúde e questionando as origens da loucura – criticando, principalmente, a falta de conhecimento humano dos doutores, que aplicavam suas teorias sem pensamento crítico ou

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes noção das problemáticas sociais, como a falta de dinheiro, amor e espaço profissional. Dessas anotações, Lima Barreto organizou o Diário do Hospício, uma mescla de depoimento com passagens inventadas que serviria de inspiração para um de seus romances: O Cemitério dos Vivos. Esta narrativa, jamais finalizada, compartilha trechos idênticos com o diário, mas tem um protagonista fictício que, bastante inspirado em Lima, tem a intenção de descrever “com fartura de pormenores, as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro dessas paredes inexpugnáveis” (Barreto, 2017, p. 234). A partir dessas duas narrativas, publicadas como um volume único, o que este trabalho procura é se aprofundar nas críticas feitas por Lima Barreto e sua luta antirracista, valorizando sua narrativa enquanto depoimento e seu espaço de acordo com as potências de uma voz marginal. Desse quadro, surge uma análise que visa ampliar as leituras de Lima Barreto e a importância do seu relato em suas lutas. Além disso, a importância da pesquisa também se faz presente na valorização do depoimento e da subjetividade enquanto narrativas dissidentes válidas para produção de conhecimento. Por isso, em primeiro lugar, o que nos salta aos olhos é o fato de que seus textos permitem verificar uma crítica sobre a desumanização no exercício técnico da medicina e a violência epistemológica da ciência Moderna, reflexões que serão feitas em diálogo com as Epistemologias do Sul e o pensamento abissal, desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos (2008; 2009) e João Arriscado Nunes (2009). Em seguida, nos aprofundaremos especificamente sobre a questão da loucura, da identidade e do racismo científico. Essa discussão tem como base o trabalho sobre linguagem e colonialidade: Achille Mbembe (2018), sobre a perda do nome, autodefinição e o significado do substantivo negro; bell hooks (2019) sobre raça, representação e marginalidade, além dos textos que lidam diretamente com a escrita e vida do autor, como a biografia de Lima Barreto feita por Lilia Moritz Schwarcz (2017) e o trabalho sobre o impacto da consciência na obra do escritor, de Cuti (2009).

Lima Barreto: um louco? Nascido em 1881, Lima Barreto morreu no fim do emblemático ano de 1922 – ano marcado pela Semana de Arte Moderna. O que existe de simbólico na data é a consideração de Barreto como um autor pré-moderno, já que moveu “as águas estagnadas da Belle Époque, revelando, antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional” (Bosi, 1994, p. 306-7) e “permitiu à realidade entrar sem máscara no texto literário” (Bosi, 1994, p. 318). No entanto, talvez o que mais separe o pré-modernista Lima Barreto dos seus sucessores seja sua posição periférica. Culto, sem diploma ou dinheiro e com a família socialmente rebaixada durante a transição do regime monárquico para o republicano, Lima Barreto teve que recorrer ao

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes jornalismo e ao emprego público para pagar as contas, enquanto mantinha seus livros como produção autoral e veículo para as críticas e bastidores do jornalismo. Em romances como Recordações do Escrivão Isaías Caminha, expôs e criticou sistemas de apadrinhamento que se aproveitavam da opinião pública para fazer triunfar as mediocridades literárias. Ainda que também tenha alugado sua pena, Lima não poupou a imprensa e as grandes figuras literárias de críticas nas páginas dos seus romances – o que, inevitavelmente, fez com que várias portas fossem fechadas ao seu trabalho. O autor, nascido no dia 13 de maio, exatos oito anos antes da abolição da escravidão, demonstrava grande conexão com a data, tanto que chegou a nomear a sua casa de Vila Quilombo. Tinha como posição de vida a crítica às injustiças sociais. Suas crônicas refletiam o dia a dia dos moradores dos subúrbios cariocas, as situações de injustiça social e o questionamento da ciência positivista da época. O autor travou uma batalha dura com o racismo científico da época e com o bacharelismo. Era grande crítico da ideia de que raças eram construções biológicas que definiam valores de superioridade e inferioridade entre seres humanos. Em vários textos atacou os cientistas que compravam e aplicavam as teorias raciais europeias sem nenhum senso crítico. O autor era também perseguido pela mancha da loucura. Grande parte de sua infância foi vivida na Colônia de Alienados da Ilha do Governador, onde seu pai trabalhou como administrador. Posteriormente, seu pai acabou adoecendo mentalmente devido ao trabalho e passou o resto de sua vida debilitado. O problema de Lima com a bebida fez com que ele fosse internado duas vezes no Hospital Nacional de Alienados e passasse por outras internações. Em uma dessas internações teve seu crânio medido e foi classificado como inferior. “Ele, que tanto lutara para construir sua persona literária, que denunciara as mazelas do clube da literatura, do jornalismo e do discurso racial, acabava ‘sequestrado’ justamente pela ciência à qual não se cansara de condenar” (Schwarcz, 2017, p. 400) Lima Barreto, enquanto ativista, não deixava de lutar contra as engrenagens do sistema – ainda que ocupasse uma posição ambígua, já que pretendia ocupar os espaços da elite literária. Era um crítico voraz das instituições da época, que impediam a entrada de pessoas como ele, negro e pobre. Sua posição crítica gerou consequências para o resto da vida. Lima tinha como uma de suas maiores características criticar. Criticou a todos e a tudo. Não poupava nem mesmo amigos próximos, o que o custou caro. Sua fama de ácido, junto à sua cor, impediu que conseguisse acessar espaços destinados para as camadas mais altas da sociedade. Nunca entrou na Academia Brasileira de Letras, instituição que atacava e desejava, ao mesmo tempo (Neves, 2019, p. 74).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No entanto, ainda que não tivesse reconhecimento em vida, seus trabalhos literários fomentaram debates e transformações na esfera pública. Na prosa de Lima Barreto, o romancista somou-se ao jornalista e a realidade passou a entrar, sem máscaras, no texto literário (Bosi, 1994, p. 318). Avesso a ideia de uma literatura contemplativa, puramente estética, buscava uma literatura militante “para a maior glória de nossa espécie na terra e mesmo no Céu” (Barreto, 2019, p. 13). Tinha grandes aspirações para seus escritos, imaginava-se parte de uma geração de autores “sinceros e honestos”, cujo dever era nada menos do que [...] deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si (Barreto, 2019, p. 12).

Com tais ideais na cabeça não é de se estranhar que seus textos ultrapassaram gerações, mesmo que ignorados pela crítica da época. Eles ressoam inquietações contemporâneas sem nunca deixarem de pertencer e criticar o momento histórico em que foram produzidos. Suas críticas não se resumem na postura antirracista. Em O triste fim de Policarpo Quaresma, Barreto configura “com bastante clareza o ridículo e o patético do nacionalismo tomado como bandeira isolada e fanatizante” (Bosi, 1994, p. 318), mas, como veremos abaixo, a própria estruturação do pensamento foi questionada.

Contra a ciência moderna e a ‘cultura do doutor’ Em uma entrevista para a imprensa, Lima Barreto (2017, p. 234) afirmou que “o Hospício é uma prisão como outra qualquer, com grades e guardas severos que mal nos permitem chegar à janela”. É desse lugar de opressão e humilhação que Lima fará suas análises e testemunhos sobre a medicina, a psiquiatria e a sociedade disciplinadora de controle durante o período da República Velha. Desde o início dos seus apontamentos Lima Barreto mostra que a polícia é um instrumento que serve de veículo para encaminhar o suposto demente a um lugar apartado, na medida em que ele é confundido com o marginal. Por algum tipo de comportamento considerado anormal, deve ser retirado da sociedade e encerrado em uma espécie de depósito onde os seres ‘normais’ não o vejam nem mantenham com ele qualquer contato. O aparelho policial parece, mais de uma vez, como a primeira triagem, que separa o joio do trigo social. O joio será em seguida peneirado: de um lado, o meliante, que vai para a delegacia e a cadeia; de outro, esta figura estranha, paradoxal, quase inclassificável, o réu sem culpa, mas igualmente forçado à reclusão (Bosi, 2017, p. 8).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Desse espaço carcerário surgem as críticas aos tratamentos apoiados em velhos modelos europeus que resistem às mudanças. “O texto fala por si na sua ácida clareza. Ao lado da arrogância clínica, marca registrada da autossuficiência de boa parte dos psiquiatras do século passado, Lima aponta o desinteresse em face do drama individual, do fato em si ou, com palavra mais abrangente, da natureza” (Bosi, 2017, p. 19). Do quadro, emergem cenas de violência e solidão geradas pelo descaso e que marcam a narrativa, como no seguinte trecho: Que dizer da loucura? Mergulhado no meio de quase duas dezenas de loucos, não se tem absolutamente uma impressão geral dela. Há, como em todas as manifestações da natureza, indivíduos, casos individuais, mas não há ou não se percebe entre eles uma relação de parentesco muito forte. Não há espécies, não há raças de loucos; há loucos só (Barreto, 2017, p. 55).

O abandono marca sua prosa. Na última frase do trecho, Lima não apenas reforça a singularidade do doente enquanto indivíduo, mas aponta a solidão e a falta de amparo ao dizer que “há loucos só”. Em outro trecho, Barreto (2017, p. 67) comenta sobre a situação degradante de ser internado: “cem anos que viva eu, nunca poderão apagar-me da minha memória essas humilhações que sofri. Não por elas mesmo, que pouco valem; mas pela convicção que me trouxeram de que esta vida não vale nada”. A humilhação começa desde o momento do trajeto, onde o doente é levado numa carriola pesada que, ao percorrer as ruas esburacadas, tomba pra aqui, tomba para ali; o pobre-diabo lá dentro, tudo liso, não tem onde se agarrar e bate com o corpo em todos os sentidos, de encontro às paredes de ferro; e, se o jogo da carruagem dá-lhe um impulso para frente, arrisca-se a ir de fuças de encontro à porta de praça-forte do carro-forte, a cair no vão que há entre o banco e ela, arriscando a partir as costelas... Um suplício destes, a que não sujeita a polícia os mais repugnantes e desalmados criminosos, entretanto, ela aplica a um desgraçado que teve a infelicidade de ensandecer, às vezes, por minutos... (Barreto, 2017, p. 144).

Depois da humilhação pública de ser transportado em um veículo degradante, com vista para os rostos curiosos que assistem o doente passar, o sujeito passa a ser humilhado pelos guardas, “principalmente os do Pavilhão e da seção dos pobres” (Barreto, 2017, p. 66) e também pelo sistema hospitalar e psiquiátrico. O terrível nessa coisa de hospital é ter-se de receber um médico que nos é imposto e muitas vezes não é da nossa confiança. Além disso, o médico que tem em sua frente um doente, de que a polícia é tutor e a impessoalidade da lei, curador, por melhor que seja, não o tem mais na conta de gente, é um náufrago, um rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e desgraça podem ainda ser úteis à salvação dos outros, e a sua teima em não querer prestar esse serviço aparece aos olhos do facultativo como a revolta de um detento,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes em nome da Constituição, aos olhos de um delegado de polícia. A Constituição é lá pra você? (Barreto, 2017, p. 193).

No entanto, em contraposição a esse aparato, Lima apresenta a camaradagem que surge do relacionamento entre os doentes e os enfermeiros – homens humildes que tratam os internados com resignação e carinho, um relacionamento não contaminado pela “ciência asséptica” (Bosi, 2017, p. 10), e aqui podemos ver uma primeira crítica à ciência surgir: a transformação de sujeitos em objetos. Em suas pesquisas, ao criticar o paradigma da Ciência Moderna enquanto bastião de todos os saberes, Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 14) mostra como “a hegemonia epistemológica da ciência converteu-a no único conhecimento válido e rigoroso”. Uma das etapas do processo foi traçar uma linha que pudesse tornar invisível tudo aquilo que não pertencesse ao ideal civilizatório eurocentrado, ignorando todas as experiências e saberes do outro lado – o Sul Global. “A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal” (Santos, 2009, p. 31). Nesse processo de desumanização, “os problemas dignos de reflexão passaram a ser apenas aqueles a que a ciência pudesse dar resposta” (Santos, 2008, p. 14) e os outros tipos de conhecimentos1, como os “populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas” acabam desaparecendo “como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso” proposto pela Ciência Moderna. Fora da ciência “não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objetos ou matéria-prima para a inquirição científica” (Santos, 2009, p. 25). Chamo fascismo epistemológico porque constitui uma relação violenta de destruição ou supressão de outros saberes. Trata-se de uma afirmação de força epistemológica que oculta a epistemologia da força. O fascismo epistemológico existe sob a forma de epistemicídio, cuja versão mais violenta foi a conversão forçada e a supressão dos conhecimentos não ocidentais levadas a cabo pelo colonialismo europeu e que continuam hoje sob formas nem sempre mais sutis (Santos, 2008, p. 28).

Ao propor as Epistemologias do Sul, Santos (2008, p. 11) procura recuperar esses saberes e práticas que, “por via do capitalismo e do colonialismo, foram histórica e sociologicamente postos na posição de serem tão só objeto ou matéria-prima dos saberes dominantes, considerados os únicos válidos”. A partir daí, é possível visualizar a importância de nos debruçar sobre um relato como de Lima Barreto. Conforme a 1 Boaventura de Sousa Santos (2009) explica que, ainda que a ciência tenha destituído muitas outras áreas do conhecimento de seus espaços de pergunta, como a filosofia e a teologia, são os conhecimentos populares e de outras experiências (que abalam as certezas do ideal moderno civilizatório, estruturado de acordo com a dominação de um Nortel Global capitalista) que são silenciados e tornados invisíveis, enquanto os primeiros tipos de conhecimento ainda possuem espaço dentro da hegemonia do Norte.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes narrativa fica mais autobiográfica, podemos visualizar trechos de análise e autoanálise, em que ele percebe os limites da psiquiatria moderna e faz um mergulho sobre sua história. Como nos lembra Bosi (2017, p. 14-6), Barreto se pergunta como que os médicos de plantão podem entender as razões para sua loucura e embriaguez sem entender os sentimentos e frustrações que o levaram até “às raias do delírio”. Tal postura parte do pressuposto de negar a universalidade da ciência e os postulados que haviam até aquele momento nos tratados de patologia mental – e a conclusão só surge graças à sua reflexão sobre sua experiência, um conhecimento que não surge das raias impessoais do conhecimento científico do momento. Barreto (2017, p. 193) tem consciência dessa diferença, como ao dizer que “há um grande mal em querer os nossos estudiosos de hoje desprezar as observações dos leigos; muitas vezes é preciso estar livre de construções lógicas, erguidas a priori, para se chegar à verdade, e não há como levar em linha de conta aquelas”. Ele chega a explorar esses limites ao longo da sua estadia. Em um dos casos, ao comentar sobre Roxo, um dos médicos na Casa de Alienados, Barreto (2017, p. 37) fala sobre como ele seria um “desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si”. Roxo “lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza” e se irrita quando ouve os motivos da internação do escritor, principalmente pela equiparação da Ciência com uma religião: “Disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do Hospício. Creio que ele não gostou”. Outro momento que parece bastante significativo nessa guinada é o terceiro capítulo do Diário do Hospício, quando Barreto se debruça em uma autoanálise: Ao pegar agora no lápis para explicar bem estas notas que vou escrevendo no Hospício, cercado de delirantes cujos delírios mal compreendo, (...) eu me lembro muito bem que um amigo de minha família, médico ele mesmo de loucos, me deu, logo ao adoecer meu pai, o livro de Maudsley, O crime e a loucura. A obra me impressionou muito e de há muito premedito repetir-lhe a leitura. Saído dela, escrevi um decálogo para o governo da minha vida; entre os seus artigos havia o mandamento de não beber alcoólicos, coisa aconselhada por Maudsley, para evitar a loucura. Nunca o cumpri e fiz mal. Muitas causas influíram para que viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias com tratamento caro e eu sem recursos; amedrontava-me com uma demissão e eu sem fortes conhecimentos que me arranjassem colocação condigna com a minha instrução; e eu me aborrecia e procurava distrair-me, ficar na cidade, avançar pela noite adentro; e assim conheci o chopp, o whisky, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele. (BARRETO, 2017, p. 49).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Lima logo passa a narrar os aborrecimentos com sua família, casa, vida econômica e profissional. Manifesta um profundo pesar com o que parece ser uma mediocridade nas críticas sobre seus livros – sem despertar muita simpatia ou desagrados dos jornalistas. Em pouco tempo, o escritor chega a refletir sobre os fatores sociais que causam a loucura, variando do caminho puramente técnico empregado na época. Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura a ele, embora sabendo bem que ele não é o fator principal, acode-me refletir por que razão os médicos não encontram no amor, desde o mais baixo, mais carnal, até a sua forma mais elevada, desdobrando-se num verdadeiro misticismo, numa divinização do objeto amado; por que — pergunto eu — não é fator de loucura também? Por que a riqueza, base da nossa atividade, coisa que, desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também causa da loucura? Por que as posições, os títulos, coisas também que o ensino quase tem por meritório obter, não é causa de loucura? (BARRETO, 2017, p. 55).

Em um de seus estudos, Quijano (2009, p. 72) esmiuçou as relações coloniais que existiram no estabelecimento desse ideal civilizatório e da Ciência Moderna: A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista. Sustenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos, meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e da escala societal.

Nessa ordem de dominação, inclui-se a já discutida imposição do conhecimento científico. Enquanto sujeito periférico, já que negro e pobre, inserido um país também periférico, visto que o Brasil não se inclui no dito Norte Global, Lima Barreto também critica a “cultura do doutor”, descrita por ele como uma ânsia pelo título universitário – ainda que, paradoxalmente, continue elegendo a Europa como ponto de referência: Esta sociedade é absolutamente idiota! (...) Só quer ver o doutor em tudo, e isso cada vez mais se justifica, quanto mais os doutores se desmoralizam pela sua ignorância e voracidade de empregos. Quem quiser lutar aqui e tiver de fato um ideal qualquer superior, há de por força cair. Não encontra quem o siga, não encontra quem o apoie. Pobre, há de cair pela sua própria pobreza; rico, há de cair pelo desânimo e pelo desdém por esta Bruzundanga. Nos grandes países de grandes invenções, de grandes descobertas, de teorias ousadas, não se vê nosso fetichismo pelo título universitário que aqui se transformou em título nobiliárquico. É o don espanhol (BARRETO, 2017, p. 77).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Lima aprofunda suas críticas na figura de Vicente, o intelectual que protagoniza o romance O Cemitério dos Vivos. Por meio do personagem, Barreto (2017, p. 135) conta como falta-lhes a capacidade crítica para examinar as teorias estrangeiras. Para Vicente, “os especialistas, sobretudo de países satélites, como o nosso, são meros repetidores de asserções das notabilidades europeias, dispensando-se do dever mental de examinar a certeza das suas teorias, princípios etc., mesmo quando versam sobre fatos ou fenômenos que os cercam aqui dia e noite”. Uma possível inspiração para a crítica de Vicente é o doutor Roxo, um dos médicos que cuidaram de Lima Barreto no Hospital dos Alienados, já citado acima. Ao falar sobre a atividade médica de Roxo, Barreto (2017, p. 44-5) diz Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient de paraître, das últimas criações científicas ou que outro nome tenham.

Além disso, Lima enxerga os doutores como pessoas intelectualmente fracas e que não se dedicam de fato aos estudos, mas que, devido a seus privilégios sociais por virem das classes mais altas, ocupavam cargos profissionais para os quais não estavam aptos, retirando oportunidades daqueles mais pobres que não possuíam condições de obter educação superior, o doutor como título de nobreza, conforme destacado acima (Neves, 2019). As críticas de Lima Barreto não deixam de levar em conta questões sociais, apagadas pela ciência. Ao descrever a sensação de estar no manicômio, Barreto (2017, p. 169) afirmou que o quadro que surge ao observador é de “uma grande abóbada de trevas, de negro absoluto”. Essa imagem é logo composta por Bosi (2017, p. 27) em um projeto colonial: “As Luzes do neoclassicismo trazido pela missão francesa no tempo do rei queriam ser racionais e modernas, mas dentro do solene edifício que construíram reinaria uma treva absoluta onde deveria ser encerrada a desrazão do negro e do pobre”. Desse lugar de fala silenciado, Bosi (2017, p. 20) nos avisa que os relatos do escritor estão marcados pela “amargura do intelectual humilhado na cor e na classe”. Lima Barreto é o representante de uma identidade marginalizada.

Reconhecimento e identidade marginalizada Após a abolição formal da escravidão, o negro, mesmo sendo livre, ainda não era visto como um sujeito pleno. A implementação de uma república com inspirações positivistas e que buscava formar uma ideia de povo nacional o excluía dos círculos de reconhecimento. A substituição da mão de obra escrava não aconteceu através da contração dos ex-escravizados, mas sim pela entrada massiva de trabalhadores europeus (Moura, 2019). O racismo científico em voga transforma o negro e mulato em

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes meros objetos de estudo, sem qualquer dizer sobre o próprio corpo. Transformada em patologia, a negritude vira sinônimo de degeneração, inferioridade, seriam seres sem livre-arbítrio como defendia o médico Nina Rodrigues, que chegou a propor um código penal diferenciados para esses “tipos inferiores” (Schwarcz, 1993). Os hospícios e prisões são os locais históricos onde o negro é relegado, marcado como inferior, seja por sua instabilidade psicológica, devido a inferioridade da raça, ou por algazarras que realizam nas ruas. O ideal da época é que o elemento africano desapareça. Por ter sentido na pele a violência da medicina que tratava corpos negros como meros objetos de estudo, Lima desenvolveu um olhar crítico para os usos da ciência pelo racismo. Já nas primeiras páginas do Cemitério dos vivos, o autor começa a questionar as acusações científicas sobre a hereditariedade racial: O réu, meus senhores, é um irresponsável. O peso da tara paterna dominou todos os seus atos, durante toda a sua vida, dos quais o crime de que é acusado não é mais do que o resultado fatal. Seu pai era um alcoólico, rixento, mais de uma vez foi processado por ferimentos graves e leves. O povo diz: tal pai, tal filho; a ciência moderna também. Muito menino, sem instrução suficiente, entretanto, semelhante aranzel me pareceu abstruso e sobretudo baldo de lógica e em desacordo com os fatos. Conhecia filhos de alcoólicos, abstinentes; e abstinentes pais, com filhos alcoólicos (Barreto, 2017, p. 125).

Lima coloca em dúvida a lógica do racismo científico mostrando que mesmo uma criança perceberia as falhas desse raciocínio. Mais adiante o autor, na voz do personagem Vicente Mascarenhas, continua a investida contra essa linha de pensamento, questionando se o pai no ato da geração do filho, já seria um degenerado, com as células que causariam o alcoolismo dentro dele, mesmo que ainda não fosse um viciado. Em outro trecho do romance inacabado, o autor continua a tentar desconstruir a ideia que coloca a culpa por vícios ou doenças mentais na hereditariedade, questionando como ela funcionaria já que se fosse tão impiedosa e certeira como se clamava, não haveria ser humano que escaparia de suas consequências. Apela-se para a hereditariedade que tanto pode ser causa nestes como naqueles; e que, se ela fosse exercer tão despoticamente o seu poder, não haveria um só homem de juízo, na terra. É bastante pensar que nós somos como herdeiros de milhares de avós, em cada um de nós se vem encontrar o sangue, as taras deles; por força que, em tal multidão, há de haver detraqués, viciosos etc., portanto a hereditariedade não há de pesar só sobre este e sobre aquele, cujos antecedentes são conhecidos, mas sobre todos nós homens. Por ser remota? Mas as forças da natureza não contam o tempo; e, às vezes mesmo, as mais poderosas só se fazem notar quando se exercem lentamente, durante séculos e séculos. A explicação por hereditariedade é cômoda, mas talvez seja pouco lógica. (Barreto, 2017, p. 169)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Expondo a fragilidade da ciência da época, Lima (2017, p. 126–7) alerta para os erros cometidos pelo pensamento positivista, para sua inabilidade de absorver críticas que já haviam sido formuladas antes e por sua mania doutoral: Parecia-me que estávamos, quanto à experiência, ao método experimental, caindo nos mesmos erros e exageros que os escolásticos medievais com os seus princípios aristotélicos, seus silogismos e outras alusões e preconceitos lógicos, bem etiquetados, enfileirados e disciplinados. Sobretudo, no que tocava aos confins da biologia e do que chamam sociologia ou estudos sociais, havia vícios insanáveis de pensar, e tudo o que parecia indução, resultado de experiências honestas e conclusões de documentos que as equivaliam, devia merecer uma crítica rigorosa, não só dessas experiências e documentos, como também dos instrumentos de observação e de exame — crítica que, neste e naquele ponto, já vinha sendo feita por espíritos mais livres, mais ousados, libertos das tiranias da tradição das academias e universidades.

Esse tipo de tratamento pode ser compreendido como o resultado das políticas de estigmatização, que transformam pessoas em “menos humanas”, que fazem com que os “normais” não sintam a necessidade de reconhecer intersubjetivamente o Outro racializado e ver nele um indivíduo digno de direito. A pessoa com estigma, como definiria Goffman (2008, p. 15), é aquela que poderia ser membro pleno de uma sociedade, mas que por alguma característica considerada inferior é separado do grupo dos normais, é por eles subjugado: Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida. Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social.

A construção do indivíduo estigmatizado acontece, então, na relação entre o normal e o “defeituoso”, entre quem tem poder e o quem não o possui, entre o médico e o doente, entre o são e o louco, entre o colonizador e o colonizado, entre o senhor e o seu escravo. Privado de sua individualidade, o sujeito étnico negro brasileiro é visto como um bloco. Suas atitudes são explicáveis não necessariamente através fatores específicos de sujeitos autônomos, mas sim a partir do estigma que carregam, essa invenção chamada raça (Cuti, 2009; Mbembe, 2018). No que tange a problemática do hospício, sua posição peculiar, de ser ao mesmo tempo um paciente e alguém que possui leituras e posições críticas sobre a ciência, faz com que a sua visão sobre as questões dentro do hospital seja especialmente sensível. No Cemitério dos vivos, Lima (2017, p. 194) mostra temor por sua integridade física diante da vontade de um médico do local e diz:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Essa sua falta de método, junto a minha condição de desgraçado, davam-me o temor de que ele quisesse experimentar em mim um processo novo de curar alcoolismo em que se empregasse uma operação melindrosa e perigosa. Pela primeira vez, fundamentalmente, eu senti a desgraça e o desgraçado. Tinha perdido toda a proteção social, todo o direito sobre o meu próprio corpo, era assim como um cadáver de anfiteatro de anatomia.

A violência sobre o corpo é o primeiro nível do não reconhecimento proposto por Honneth (2009). Não ter direitos assegurados é o segundo. “Não me incomodo muito com o Hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida” (Barreto, 2017, p. 34). O terceiro é a falta de autoestima, de ser não ver como sujeito de valor na sociedade e não ser visto como sujeito de valor pela sociedade. Percebe também como a condição de “desgraçado” não é exclusividade sua, mas sim padrão para quase todos os internados. Observa que as condições são piores para os negros e pobres, que não possuem amparo fora do hospital para ajudar a custear o tratamento e prover melhores condições de estadia. Esse pátio é a coisa mais horrível que se pode imaginar. Devido à pigmentação negra de uma grande parte dos doentes aí recolhidos, a imagem que se fica dele, é que tudo é negro. O negro é a cor mais cortante, mais impressionante; e contemplando uma porção de corpos negros nus, faz ela que as outras se ofusquem no nosso pensamento. É uma luz negra sobre as coisas, na suposição de que, sob essa luz, o nosso olhar pudesse ver alguma coisa. Aí é que há os berradores; mas, como em toda a parte, são só os seus gritos que enchem o ambiente. Eles são relativamente poucos (Barreto, 2017, p. 168).

Porém, sendo mais intelectual do que os outros internos (como mostra quando descreve a biblioteca do local e quem a frequentava), sentia-se superior a eles, deslocado numa multidão de loucos. “É uma triste contingência, esta, de estar um homem obrigado a viver com semelhante gente. Quando me vem semelhante reflexão, eu não posso deixar de censurar a simplicidade dos meus parentes, que me atiraram aqui, e a ilegalidade da polícia que os ajudou” (Barreto, 2017, p. 70-71). Lima encontrava-se numa posição “perversa” como diria Sodré (2018).

Considerações finais: Lima, o marginalizado Lima Barreto é um autor situado nas margens. Para conseguir trabalhar, o escritor tinha que se deslocar ao centro diariamente. Suas ações e contestações do status quo o marginalizaram. Ele nunca conseguiu ser aceito nos centros da cultura e literatura da época, tendo sido rejeitado diversas vezes para a Academia Brasileira de Letras. Seu alcoolismo e internações fizeram com que fosse estigmatizado e posto para fora da sociedade em quase todos os sentidos: da socialização, da identidade, do reconhecimento, dos direitos universais, da possibilidade de se portar como sujeito complexo. No entanto, é a partir desse posicionamento que pudemos destacar as

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes potencialidades da sua escrita: sua capacidade de criticar o pensamento hegemônico ocidental, a valorização da experiência subjetiva como fonte de conhecimento ou a luta antirracista e da violência psiquiátrica nos manicômios. Estar na margem é, primeiramente, uma experiência negativa. É ter negado tudo aquilo que os ocupantes do centro esbanjam. Mas, a margem é também um lugar de potencialidades e é esse aspecto que aqui nos interessa observar, porque ocupar as margens é também ter uma outra visão sobre o mundo, é transitar sobre ele de forma que os outros não conseguem, é ter uma visão que aqueles que vivem no centro nunca conseguiriam, para bell hooks (2019, p. 23): Estar na margem é fazer parte de um todo, mas fora do corpo principal. Para a maioria dos habitantes negros de uma pequena cidade de Kentucky, os trilhos da estrada de ferro nos faziam recordar diariamente nossa marginalidade. Do lado de lá desses trilhos, havia ruas pavimentadas, lojas em que não podíamos entrar, restaurantes onde não podíamos nos sentar e comer, e pessoas que não podíamos olhar diretamente no rosto. Do lado de lá desses trilhos havia um mundo em que podíamos trabalhar como empregadas domésticas, zeladoras e prostitutas, claro, desde que fôssemos capacitadas para o serviço. Podíamos frequentar esse mundo, mas não viver nele. Tínhamos sempre de retornar à margem, cruzar de volta os trilhos da estrada de ferro e nos recolher a barracos e casas abandonadas na periferia da cidade. Havia leis para assegurar nosso retorno. Não retornar implicava risco de punição. E por viver como vivíamos – nas extremidades – desenvolvemos um modo particular de enxergar as coisas. Olhávamos tanto de fora para dentro quanto de dentro para fora. Focávamos nossa atenção no centro assim como na margem. Compreendíamos ambos. Essa forma de ver nos lembra da existência de todo um universo, um corpo principal, com sua margem e seu centro. Nossa sobrevivência depende de uma conscientização pública contínua da separação entre margem e centro e de um contínuo reconhecimento privado de que nós somos uma parte necessária, vital, desse todo.

A margem pode ser tanto física quanto metafórica – ainda que, quase sempre, seja ambas. O que hooks (2019) nos mostra aqui é como, apesar das opressões que pessoas negras sofrem diariamente, apesar da exclusão social, apesar da violência imposta sobre eles, não existe somente a escuridão. Na luta pela sobrevivência criase algo novo, desenvolve-se uma sensibilidade inexistente para outros, a margem é um espaço poderoso de criação. Encontramos algo parecido em Boaventura Sousa Santos (2002, p. 348): Viver na fronteira significa ter de inventar tudo ou quase tudo, incluindo o ato de inventar. Viver na fronteira significa converter o mundo numa questão pessoal, assumir uma espécie de responsabilidade pessoal que cria uma transparência total entre os atos e suas consequências. Na fronteira vive-se a sensação de estar a participar da criação de um novo mundo.

É nesse lugar que podemos situar o sujeito étnico negro brasileiro que lutava con-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes tra o racismo. É por vezes, como disse Muniz Sodré (2018), um lugar perverso. Um lugar em que tudo falta, em que tudo é negado, onde, num primeiro momento, ninguém escolhe viver, é designado para lá. Mas é também um lugar de criatividade única, um lugar onde é possível desenvolver uma linguagem nova, um lugar de luta de sentidos. É esse lugar que Lima Barreto ocupa com excelência. Longe de se portar com um habitante do centro, o autor usa sua vivência da margem para a denúncia. É por estar nas margens que sempre foi visto como inferior, que foi excluído dos círculos sociais que tanto almejava. Mas é por estar nas margens que Lima enxerga o racismo do centro, é nas margens que ri e desdenha dos doutores que se deixam levar pelas teorias europeias. É por estar nas margens que pode dizer: “Eu não canso nunca de protestar. Minha vida há de ser um protesto eterno contra todas as injustiças” (Barreto, 2018, p. 743). Referências BARRETO, L. Lima Barreto: obra reunida, v. 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. BARRETO, L. Diário do Hospício & O cemitério dos vivos. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. BOSI, A. O cemitério dos vivos: testemunho e ficção. In: BARRETO, L. Diário do Hospício & O cemitério dos vivos. 1.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. CUTI. A consciência do impacto nas obras de Cruz e Sousa e de Lima Barreto. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2008. HONNETH, A. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009. hooks, b. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019. MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019. NEVES, I. O. O mestiço, “um parêntesis irritante” na Primeira República: Raça e discurso científico nos textos jornalísticos de Lima Barreto e Euclides da Cunha. [S.l.]: Universidade Metodista de São Paulo, 2019. ISBN 6103544947. QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.;

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 72-117. SANTOS, B. de S. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 11–43, 2008. SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 23-71. SANTOS, B. DE S. A Crítica da Razão Indolente. São Paulo: Cortez, 2002. SCHWARCZ, L. M. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças : cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930, 1993. SODRÉ, M. Uma lógica perversa de lugar. Revista ECO-Pós, 2018. v. 21, n. 3, p. 9–16.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

HISTÓRIA, DISSIDÊNCIA(S) E ESTRUTURA(S) DE SENTIMENTO ESTRATÉGIAS NARRATIVAS DE CARLOS HEITOR CONY EM CRÔNICAS CONTRA O GOLPE MILITAR DE 1964 Maurício Guilherme Silva Jr.

Introdução Publicado em 1964, ano de eclosão do golpe militar que levaria o Brasil a 21 anos de regime ditatorial, o livro O ato e o fato, de Carlos Heitor Cony (1926-2018), reúne 37 crônicas contra o movimento autoritário. Trata-se de textos escritos, entre 2 de abril e 9 de junho daquele ano, para o jornal Correio da Manhã�. Neste ensaio, pretendese interpretar, em tais narrativas, algumas das estratégias discursivas do cronista, cujo intuito seria a ampliação da capacidade (estética) da crônica em promover a resistência ao movimento reacionário. A interpretação do “cronismo de resistência” do autor paulista há de ser realizada com ênfase no princípio de “estrutura de sentimento”, expressão cunhada e dissecada, em diversas obras, por Raymond Williams (1921-1988). Destaque-se que a busca pela problematização das estratégias narrativas do escritor paulista – a partir de múltiplas ambientações teóricas (Comunicação Social, Linguística, Literatura, Sociologia etc.) – apresenta-se como importante oportunidade de reflexão acerca dos entrelaçamentos entre narrativa (no caso, a crônica e sua inerente polissemia) e história (leia-se: acontecimentos sociopolíticos do Brasil pós-golpe de 1964).

Arte & Política O que resultaria da complexa relação entre arte e política? De modo a problematizar tal relevante (e polissêmica) questão – ao invés de, simplesmente, almejar respondêla –, propõe-se, aqui, uma espécie de mergulho empírico direcionado. Que tal debater a referida problemática com ênfase no convívio entre expressões artísticas

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e acontecimentos políticos em um dos mais complexos períodos da recente história do Brasil? Refiro-me aos anos 1960 e 1970, período em que a nação enfrenta um de seus maiores desafios sociopolíticos. Trata-se, como se sabe, das décadas em que a ditadura militar instaura rigoroso regime de exceção no país, por meio do qual as liberdades cidadãs permanecem vigiadas e reprimidas. Uma das páginas políticas mais significativas da história da nação abre precedentes, pois, a uma série de digressões acerca do papel da arte como instância criadora/ partícipe de propostas de resistência ao autoritarismo – representado, no caso, em cores evidentemente expressivas, pelos militares no poder –, ou como ágora para debate de práticas e valores seminais à cultura e à sociedade. O desenvolvimento de tal discussão específica – o relacionamento entre arte e política no Brasil dos “anos de chumbo” –, porém, não pode se realizar sem o resgate de elementos teóricos capazes de universalizar tal contenda: o estudo da especificidade das experiências artísticas de resistência, nos mais distintos territórios geográficos, políticos e socioculturais, carece da construção de metodologia genérica, apta a problematizar a(s) distinção(ões) ontológica(s) entre “arte” e “política”. Afinal, os princípios fundamentais da ética [do grego Ethos, referente à “ciência da conduta” (ABBAGNANO, 2007)] e da política [termo derivado do grego Akropolis (cidadela), designador de “cidade”], não participariam, a priori, “da ontologia da obra de arte” (CHAGAS, 2005). Em outros termos, a aproximação entre as duas instâncias do fazer humano precisam ser investigadas sob a categoria da possibilidade, e não da necessidade. Tal máxima, discutida por Chagas (2005) em artigo sobre a relação entre arte e política a partir de sua autonomia recíproca, revela que a convergência entre as duas referidas áreas do criar/fazer humano dá-se a partir, justamente, da manutenção da autonomia e das especificidades de ambos os campos1. Ao se basear em Weber, o autor trata da existência de estilemas conceituais – epistemológicos –, construídos ao longo da tradição filosófica, que dificultam a incorporação, nos estudos sobre a arte, de uma autocrítica relativa “à sua função tutorial no campo político, função bastante fragilizada pela ‘autonomização das esferas do saber’ na Modernidade e pela ideia utópica de uma ‘comunidade de iguais’ entre os cidadãos, consagrada a partir de 1789”, e que, até os dias de hoje, orienta a episteme política (CHAGAS, 2005). Os estilemas referem-se à compreensão do “‘componente sensorial da arte – a aísthesis — como potência de sedução e de ‘desvio’ do receptor quanto ao ‘estado ideal’ de atenção e mobilização ético-política postulado pela filosofia’; assim como à noção de que as obras carregam em si “uma valência política passível de ser determinada objetivamente pela inteligência filosófica – e, portanto, externamente à interação 1 Chaia (2007, p. 17) ressalta que tanto “o lugar da arte quanto o da política são a história”. Eis a senha para a compreensão de um dos mais importantes pontos de convergência entre as duas áreas. Artista e cidadão (do político profissional ao civil que vivencia – e modifica – cotidianamente a rotina da polis) são obrigados e/ou estimulados a lidar, por meio do aparato que lhes convier, com os turbilhões da história.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes entre obra e receptor’” (CHAGAS, 2005)2. Antes, contudo, da discussão em torno de tais componentes externos, ou do mecanismo de fruição individual do objeto artístico – questão central ao debate que aqui se desenvolve –, importante abordar os primórdios da relação entre arte e política. Neste sentido, pode-se dizer que o intenso “companheirismo” entre as duas áreas remonta à Antiguidade: na Grécia, as “tragédias”, dramas teatrais de grande relevância – inclusive, por abordar nuances da democracia em discussão nas ágoras –, marcavam-se pelo entrelaçamento, em sua estrutura estética, de tramas encadeadas pelos cidadãos da polis. Da retórica dramática dos poetas helenos às experimentações da vanguarda no século XX, permanecem em mutação os matizes da relação “arte/política”. Tal pressuposto vai ao encontro de silogismo básico: se muda o homem, muda, também, sua visão em relação ao mundo. Conforme ressalta Chaia (2007, p. 13), o artista, sob distintas condições, “alcança a capacidade de expressar poeticamente a sua sociedade, de maneira que a obra passa a conter – de forma mais ou menos explícita – o conjunto de fatores sociais circundantes a ela”. Ao tratar do tema da relação entre literatura e vida social, Candido (2006) ressalta a necessidade, em primeiro lugar, de investigar as “influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais” sobre a obra de arte. Segundo o autor, apesar da dificuldade em definir tais fatores – devido à sua vasta diversidade –, três se destacam como decisivos para a interpretação do convívio entre arte e sociedade, quais sejam: estrutura social; valores e ideologias e técnicas de comunicação. Para Candido, em síntese, os fatores ligados à estrutura social manifestam-se mais visivelmente na posição social do artista, ou na configuração de grupos receptores; os segundos [valores e ideologia], na forma e conteúdo da obra; os terceiros [técnicas de comunicação], na sua fatura e transmissão. Eles [os fatores] marcam, em todo o caso, os quatro momentos da produção, pois: a) o artista, sob o impulso de uma necessidade interior; orienta-o segundo os padrões de sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio (CANDIDO, 2006, p. 31).

Ao investigar, mais especificamente, as instâncias de aproximação e distanciamento entre arte e política, Chaia (2007, p. 14) ressalta que se trata de campos autônomos circunscritos ao domínio comum da praxis humana, capazes de se interpenetrar e gerar “novas possibilidades de atuação do sujeito e de configuração estética”. Como forma de definir as particularidades de tal convívio – ou encontro – entre arte e política, o autor constrói quatro importantes instâncias [“situações”, no dizer do autor] conceituais.

2 Disponível em encurtador.com.br/muwF2.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes O primeiro conceito cunhado por Chaia refere-se à situação da arte crítica3. Tratase, em síntese, da relação básica entre arte e política suscitada pela consciência crítica do artista. Em outras palavras, as questões do homem e da sociedade revelamse, na “criatura” [obra], segundo os princípios e a natureza da sensibilidade social do criador [artista]. “Nesta situação a arte aparece como forma de conhecimento e investigação, constituindo uma modalidade de saber, apta a compreender o mundo e sintetizar a realidade” (CHAIA, 2007, p. 22). Segunda instância conceitual trabalhada por Chaia (2007, p. 24), a situação da politização da arte diz respeito à presença, na produção artística, de elementos ideológicos e/ou partidários e de ideias “brotadas nos manifestos de vanguardas”. Trata-se, em suma, dos frutos do artista que, pragmaticamente, revela-se engajado em determinada(s) causa(s): sua obra, pois, transforma-se em canal de crítica, protesto, desabafo. Em tal situação, artista e obra “incluem-se no fluxo da propagação difusa de algum projeto político, sem deixar-se apanhar completamente pela rede do poder centralizado e impositivo de alguma instituição”. O terceiro conceito, a situação da estetização da política, delimita-se a partir de proposição de Walter Benjamin, para quem, com o desenvolvimento da sociedade de massa, do avanço tecnológico, e sob a égide do nazismo e do fascismo, a humanidade “tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a prática do fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte” (BENJAMIN apud CHAIA, 2007, p. 25). A guerra, em grande medida, seria a consequência natural dos esforços por estetizar a política. Por fim, a situação da presença política da obra refere-se à transformação do objeto de arte, independentemente do projeto estético ou dos princípios do artista, em símbolo político, capaz de evocar “um conjunto de ideias ou condições sociais, sempre recuperável no presente político. Destacam-se, nesse caso, mensagens, conteúdos ou valores que entram em circulação com a obra ressignificada” (CHAIA, 2007, p. 28). Importante ressaltar, contudo, que tais “respostas” sociais à criação artística agem não só como estímulos à contestação, mas, também, como incentivo à propaganda política e às estratégias econômicas. Revela-se vital, ainda, a partir de tal situação, ressaltar a presença autônoma da obra de arte, “dada a sua estrutural potencialidade, expondo diferentes formas de falas, linguagens ou expressões” (CHAIA, 2007, p. 28).

Estrutura de sentimento Em Marxismo e literatura, o crítico Raymond Williams (1979) dedica discussão especial ao conceito de estrutura de sentimento. Inicialmente, o autor comenta a 3 Ressalte-se que, entre os exemplos usados para delimitação do(s) significado(s) de tal situação, o autor lance mão da bandeira Seja marginal, seja herói, obra crítica de Hélio Oiticica, desenvolvida no contexto da ditadura militar brasileira. Tal comentário de Chaia (2007) traveste-se, neste artigo, de pressuposto inicial para interpretação das situações de arte e política presentes nas crônicas de Carlos Heitor Cony.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes permanente – e imediata – transformação, nas sociedades, da experiência em produtos acabados. Segundo tal pressuposto, cultura e sociedade seriam “expressas num passado habitual” (WILLIAMS, 1979, p. 130). A crítica, neste sentido, diz respeito ao fato de processos formativos, ou em formação, transformarem-se, regularmente, em ações e elementos concluídos, o que faz com que a “presença viva” se afaste da realidade vivenciada no presente. Ao compreender a predominância de tal procedimento, Williams (1979) explica ser mais simples compreender a separação entre o social e o pessoal. Se o social é sempre passado, no sentido de que é sempre formado, temos na verdade de encontrar outros termos para a experiência inegável do presente: não só o presente temporal, a realização deste instante, mas o presente específico de ser, o inalienavelmente físico, dentro do que podemos realmente discernir e reconhecer instituições, formações, posições, mas nem sempre como produtos fixos, definidores (WILLIAMS, 1979, p. 130).

No caso de reconhecer o social apenas como o fixo, o explícito e o conhecido, tem-se, ao contrário, a instância do pessoal, tido por “este, aqui, agora, vivo, ativo, ‘subjetivo’” (WILLIAMS, 1979, p. 130). Após apresentar tal dimensão dicotômica, o autor reconhece na arte o espaço para a flexibilização de tais relações – antípodas e maniqueístas – entre o pessoal e o social. Afinal, as expressões artísticas – das experiências visuais à literatura (“figuras semânticas”, no dizer de Williams) –, ao mesmo tempo em que são objetos reais – “formas explícitas e acabadas” –, tornam-se presentes, através de leituras “especificamente ativas”. Em função disso, pode-se dizer que a própria feitura da arte jamais estará no passado. O autor discute, em seguida, a permanente contraposição entre duas categorias de sistemas ideológicos: de um lado, as redes de “generalidade social fixa”, que buscam conformar as formas pessoais; de outro, os grandes sistemas estéticos e psicológicos, derivados de sentidos “de processo e situação” (WILLIAMS, 1979, p. 131). Apesar de tal paradoxo sistêmico, o autor reafirma a incapacidade de controle, por parte dos grupos ideológicos de generalidade social fixa, em relação ao flexível sistema subjetivo. As formas sociais, permeadas pela complexidade, são por vezes identificadas pela análise social generalizada, mas rapidamente excluídas “de qualquer relevância possível para essa significação”. De tal processo de exclusão decorrem novas formas. Trata-se de abstrações – a imaginação, a psique e o inconsciente humanos – tomadas e desenvolvidas pela arte. Williams discute, ainda, a importante distinção entre os conceitos de consciência prática e consciência oficial. Afinal, nem sempre o que se vive é o mesmo que, acredita-se, esteja sendo vivido. Neste ponto, o autor trabalho chega ao ápice do conceito de estrutura de sentimento:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Não obstante, a alternativa real às formas fixas recebidas e produzidas não é o silêncio: não a ausência, o inconsciente, que a cultura burguesa mitificou. É um tipo de sentimento e pensamento que é realmente social e material, mas em fases embriônicas, antes de se tornar uma troca plenamente articulada e definida. Suas relações com o que já está articulado e definido são então, excepcionalmente complexas. (WILLIAMS, 1979, p. 133)

Ao tomar a história das línguas como exemplo, o autor comenta a permanente transformação dos idiomas, a partir de continuidades substanciais. A sobreposição de modos culturais, ligados a épocas distintas, faz com que sejam criadas novas formas de expressão linguística, definidas, por conseguinte, como “estilos”. Tal processo, contudo, define “uma modificação geral, e não uma série de escolhas deliberadas”. Em épocas e ambientes diversos, percebem-se tipos similares de modificações “nas maneiras, roupas, construções e outras formas semelhantes de vida social” (WILLIAMS, 1979, p. 133). Importante ressaltar que surgem, neste cenário, estruturas definidas como “qualidade particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferentes de outras qualidades particulares, que dá o senso de uma geração ou de um período” (WILLIAMS, 1979, p. 133). Tais modificações são definidas como estruturas de sentimento. Ressalte-se, neste ínterim, que o termo “sentimento” é escolhido pelo autor como forma de ressaltar a distinção entre conceitos formais de “visão de mundo” e “ideologia”. O enfoque do autor extrapola o conceito de cultura como imediato reflexo das condições econômicas da sociedade, de modo a ampliar o campo de análise. Em outros termos, a definição diz respeito a experiências sociais ainda em processo e leva em conta vivências e tensões adjacentes a tal processo – que se revelam independentemente de classificações ou generalizações pensadas, por vezes, a partir de critérios racionalizantes. Para Williams (1979, p. 134), não se trata, apenas, de “ultrapassar crenças mantidas de maneira formal e sistemática, embora tenhamos sempre de levá-las em conta”, mas da constatação “de que estamos interessados em significados e valores tal como são vividos e sentidos ativamente” (WILLIAMS, 1979, p. 134). Desse modo, a ideia de “estrutura de sentimento” pode ser compreendida como hipótese cultural, derivada de tentativas de compreensão de elementos específicos de um tempo ou geração. O conceito, em grande medida, pode ser bem aplicado à arte e, mais especificamente, à literatura. A arte e a literatura, na visão de Williams, são responsáveis pelos primeiros indícios de caracterização da estrutura de sentimento relativa a determinada sociedade ou a certo período. Afinal, os elementos constitutivos de tal estrutura relacionam-se à evidência de “formas e convenções – figuras semânticas” estilizadas pelas expressões artísticas. O aparecimento de determinada estrutura de sentimento liga-se a elementos bastante particulares da história das sociedades. Em grande medida, pode haver, até

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes mesmo, estruturas contemporâneas e concomitantes, diretamente relacionadas a classes, evoluções e pressupostos estéticos diferenciados. Revela-se vital, na verdade, a compreensão do conceito cunhado por Williams como fruto de “experiências sociais em solução, distintas de outras formações semânticas sociais que foram precipitadas e existem de forma mais evidente e imediata” (WILLIAMS, 1979, p. 136).

“Estrutura de sentimento” no Brasil pós-golpe No caso da arte produzida, no Brasil, ao longo dos anos 1960 e 1970, é possível dizer de um “imaginário crítico” surgido no país em função, principalmente, das condições políticas do período. Neste sentido, pode-se dizer do surgimento, iniciado já nos anos 1950, de certa estrutura de sentimento compartilhada por artistas e intelectuais ao longo dos 21 anos de liberdades vigiadas. Em grande medida, a realidade vigente seria responsável por “práticas sociais e hábitos mentais [que] se coordenam com as formas de produção e de organização socioeconômica que as estruturam em termos do sentido que consignamos à experiência do vivido” (CEVASCO apud RIDENTI, 2006, p. 230). Tal estrutura de sentimento fará com que se multipliquem elementos e princípios similares nas obras de arte produzidas em solo brasileiro. Ao observar o conjunto das expressões artísticas do período, trata-se, em suma, de “uma resposta a mudanças determinadas na organização social” (CEVASCO apud RIDENTI, 2006, p. 230). Em trabalho acerca da relação entre política e cultura nos “anos de chumbo”, Ridenti (2006) nomeia a especificidade da experiência brasileira. Para o autor, o País vivenciou o que chama de estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária. Neste ponto, ao citar Löwy e Sayre, discute a amplitude do conceito “romantismo”, compreendido enquanto ampla visão de mundo, como resposta ao advento do capitalismo. Na especificidade do caso brasileiro, a ideia de romantismo pode ser compreendida, portanto, como mecanismo de “autocrítica da modernidade”, a partir de um olhar inquiridor sobre as relações econômicas, políticas e sociais. Ao tratar dos anos 1960 e 1970, Ridenti ressalta o caráter romântico-revolucionário do florescimento cultural brasileiro à época. Em grande medida, artistas e intelectuais buscavam promover a figura do “homem novo”, indivíduo marcado por raízes rurais e avidez por justiça social. Pode-se dizer, pois, que se vislumbrava, à época, uma alternativa

de modernização que não implicasse a submissão ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, gerador da desumanização. A questão da identidade nacional e política do povo brasileiro estava recolocada, buscava-se ao mesmo tempo recuperar suas raízes e romper com o subdesenvolvimento [...]. (RIDENTI, 2006, p. 232)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes As origens da estrutura de sentimento da brasilidade revolucionária remontam, segundo Ridenti, às décadas anteriores ao golpe militar. Não nasce, portanto, do confronto direto com a ditadura. Na verdade, de 1946 a 1964, os indivíduos que compartilhavam de tal estrutura mantinham “relação ambígua” com a ordem então estabelecida no País. Neste cenário, a “razão dualista” dos “revolucionários” propunha um movimento em duas etapas: num primeiro momento, através de revolução burguesa, nacional e democrática, seriam extintos os resquícios feudais e semifeudais no campo, para, em seguida, o terreno ser preparado para a instauração do regime socialista. Após o golpe de 1964, a estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária torna-se frequente na produção artística nacional, tema do próximo tópico a ser discutido neste capítulo. Das canções de Geraldo Vandré à dramaturgia do Teatro de Arena, da literatura engajada de Antonio Callado, com Quarup, revela-se a busca pela valorização da identidade nacional. Tais obras, pois, “buscam no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e desalienada. Deixam transparecer certa evocação da liberdade no sentido da utopia romântica do povo-nação, regenerador e redentor da humanidade” (RIDENTI, 2006, p. 235).

Arte em “anos de chumbo” Dados estatísticos4 revelam que, dos 3.698 indivíduos denunciados em processos levantados pelo projeto Brasil Nunca Mais, junto à Justiça Militar, ao longo dos 21 anos de ditadura no País, apenas 24 declaravam-se artistas e apresentavam direta relação com organizações de esquerda. Apesar dos baixos índices de participação oficial na luta armada, ou em outras formas de resistência “física” ao governo militar, os artistas brasileiros tiveram papel político ativo e relevante, principalmente junto aos movimentos sociais de 1968, que aqui culminaram com grandes manifestações nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (RIDENTI, 2010, p. 72). Como forma de exemplificar tal enfática mobilização, basta lembrar que a classe teatral se reunia para debater a situação do país e organizar a participação coletiva da classe em manifestações políticas de rua. Milhares de artistas do teatro, como também de outras áreas da produção cultural, participaram, por exemplo, da famosa “passeata dos 100 mil”, no dia 28 de março de 1968, organizada como forma de protesto à morte do estudante Edson Luis de Lima Souto, de 18 anos, assassinado pelos militares no restaurante popular Calabouço. Neste sentido, os meios culturais também sofrem perseguição direta, seja pela censura, seja “pela repressão física configurada em prisões e torturas” (RIDENTI, 4 Referência aos dados estatísticos trabalhados pelo pesquisador Marcelo Ridenti (2010), com base em análise – quantitativa e qualitativa – de informações do projeto Brasil Nunca Mais, ao qual o autor se refere, por vezes, como “BNM”. Importante destacar, porém, que a Comissão Nacional da Verdade atualizou tais dados no volume 2 de suas atas e determinações, por meio do tópico “B) A cultura, os artistas e as formas de resistência nas diversas áreas: canção, teatro, artes plásticas, literatura”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 2010, p. 72). Daí o exílio de centenas de artistas, muitos dos quais sem qualquer vinculação oficial com grupos de esquerda. Neste cenário, era comum a simpatia – por vezes, ideológica – de setores artísticos e culturais aos grupos armados de esquerda, respeitados pela resistência à ditadura militar. Em 1968, Jean Paul Sartre será responsável por um dos mais importantes atos de “simpatia” à luta pela liberdade. Naquele ano, o escritor francês, em seu periódico Les Temps Modernes, veicula textos de organizações armadas brasileiras. Segundo Ridenti (2010), de 1964 a 1968, “a efervescência cultural contribuiu para a adesão de setores sociais intelectualizados à opção pelas armas no combate ao regime militar” (RIDENTI, 2010, p. 73). Neste sentido, importante lembrar que, apesar de sua ferocidade, o golpe militar de 1964 não é capaz de impedir a contínua ascensão estética e cultural vivenciada pelas artes no Brasil desde a efervescente década de 1950. Em grande medida, até 13 dezembro de 1968, data de implementação do Ato Institucional nº 5, os artistas não deixaram de expressar, em suas obras, as múltiplas contradições e idiossincrasias do período de exceção vivido pela sociedade brasileira ao longo dos 21 anos de regime militar. Importante ressaltar, contudo, que tal intensidade de contestação cultural não se restringiu ao Brasil. Exatamente como forma de explicar a ampla “receptividade” dos meios intelectualizados às causas da luta armada, Ridenti (2010) ressalta que a agitação artística e cultural do País dizia respeito a amplo movimento, que ia ao encontro das pretensões de liberdade da juventude em diversos pontos do planeta. Ao investigar os acontecimentos que tornaram simbólico o ano de 1968 – os 366 dias conhecidos pelo espírito “revolucionário, utópico, radical, rebelde, mítico, inesperado, surpreendente, profético” e repleto de “ilusões perdidas” –, Zappa e Soto (2008, p. 11-12) ressaltam as dicotomias intrínsecas às nuances daquele intenso momento da história: dividido em dois blocos maniqueístas – capitalismo e socialismo –, respectivamente capitaneados por Estados Unidos e União Soviética, o mundo vivia sob permanente alerta de extinção. Afinal, em questão de segundos, as grandes potências poderiam transformar confrontos ideológicos em destruição massificada. O poder nuclear das nações inimigas não só seria responsável por atemorizar permanentemente os cidadãos do mundo, como, principalmente nos meios intelectuais e artísticos, intensificaria a necessidade de discussão dos ideais humanistas e faria ganhar peso o que aqui chamar-se-á de “radicalização dos processos”, tanto estéticos quanto políticos. Afora isso, Zappa e Soto (2008, p. 12) afirmam que, para os jovens daquele período, e apesar do ambiente de excessiva ventura econômica, em que os poderosos respiravam “a euforia gerada pelo período de maior prosperidade e crescimento de toda a história do mundo industrializado”, a vida se revelava insatisfatória, autoritária, injusta. Os movimentos de contestação de 1968, portanto, revelam-se a “gota d’água” de um processo mais amplo, referente, ao mesmo tempo, à especificidade das trajetórias políticas, sociais, culturais, econômicas etc. das nações e à generalizada “angústia” em função do macroprocesso de massificação – também político, social, cultural,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes econômico e, principalmente, comportamental – idealizado e implementado por uma série de grupos e governos autoritários. Ao longo da década de 1960 – e em grande parte dos anos 1970 –, o processo de racionalização capitalista torna-se, na visão de muitos, a principal fonte de alienação e aprisionamento do “ser”. Exatamente neste período, as fontes de indignação revelamse também mais efetivas e, em certos casos, radicais. Trata-se, como já dito, do momento histórico em que a crítica social se articula à crítica cultural. Que o revelem os movimentos de maio de 1968, quando, em diversos países, operários e estudantes, antes distantes uns dos outros – devido à própria realidade da vida nos grandes centros –, unem-se em defesa da(s) mesma(s) causa(s). Diante de tal união de forças – culturais e sociais –, os grandes conglomerados “capitalistas” veem-se obrigados a reagir, através de estratégias múltiplas, entre as quais a transformação do meio ambiente empresarial e/ou industrial: ao investir em propostas como a ampliação da autonomia do tempo de trabalho do funcionário e o investimento em terceirização, as empresas e grupos hegemônicos pretendiam transformações capazes, entre outros fins, de “instrumentalizar” a crítica estética e suprimir a crítica social. A partir de 1964, intensifica-se o processo de abertura ao capital estrangeiro e o inchaço das grandes cidades, a valorização da figura dos camponeses e, por conseguinte, de sua arte popular, tornam-se sinônimo, para muitos setores artísticos, da face mais resistente à indústria cultural e à “inexorabilidade da modernização”. Por outro lado, experiências estéticas como o Tropicalismo fazem do processo de modernização o leit motiv para suas experimentações artísticas. Pode-se dizer, na verdade, que os movimentos artísticos brasileiros, no início da década de 1960, irão se dividir em duas categorias básicas – ou, para lançar mão do importante conceito desenvolvido no tópico anterior desta pesquisa, em dupla vertente de estruturas de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária: de um lado, os concretistas e outras vanguardas, a empunhar a “bandeira do moderno”; de outro, os “nacionalistas populares”, acostumados a vincular o ideal de progresso técnico ao de “libertação popular” (RIDENTI, 2010, p. 76). Com a eclosão do golpe militar, contudo, diversos artistas e intelectuais revelamse defensores da cultura nacional, contrários à modernização e ligados “às tradições populares pré-capitalistas”5. De outro modo, houve artistas que apresentaram postura diferenciada, buscando incorporar-se à indústria cultural para subvertê-la por dentro6. Por fim, como terceiro elemento propício à efervescência cultural no Brasil, principalmente de 1964 a 1968, realça-se a possibilidade – imaginativa – de uma revolução social. Mesmo antes do golpe militar, os setores mais intelectualizados da sociedade brasileira cultivavam a ideia de uma revolução “burguesa, pela via eleitoral, 5 Como exemplos de tal conduta estético-cultural, Marcelo Ridenti (2010) cita os artistas Geraldo Vandré, na música popular, Antonio Callado e Ferreira Gullar, na literatura. 6 Entre os expoentes de tal prerrogativa estética, destaque para José Celso Martinez Corrêa, no teatro, e Glauber Rocha, no cinema.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de libertação nacional, anti-imperialista e antilatifundiária”, que, tempos depois, seria possivelmente transformada em regime socialista.

Cronismo, “contraestrutura do sentimento” e “níveis de realidade” Conforme já analisado, por este pesquisador, no ensaio “Arte e política nos ‘anos de chumbo’: Carlos Heitor Cony e a ‘contraestrutura de sentimento’” (2017), a expressão acima, alusiva ao conceito de Williams, busca concentrar o que se pretende chamar de “o não-lugar” de Cony no palco das discussões culturais brasileiras, com ênfase nos anos 1960 e 1970. Trata-se do autor que desdenha de dogmas e ressalta que não se prende a regras. Após a instauração do regime militar no Brasil, o autor carioca passa, como cronista diário do Correio da Manhã, a desnudar equívocos e delitos dos militares, além de debater os horizontes políticos, econômicos e socioculturais do país. Escritas a partir do dia 2 de abril de 1964, as crônicas de Cony – posteriormente reunidas em O ato e o fato – revelam-se ferinas e irônicas em relação aos rumos da vida humana na nação periférica orquestrada pela repressão. Ao dizer do mundo “ao contrário”, o escritor “esfola” a realidade, até que, assombrado e exausto, o leitor questione seu próprio – e, obviamente, insignificante – “estar no mundo”. Em sua escrita, o autor estimula, categoricamente, as tais arestas previstas por Linda Hutcheon (2000), de modo a que suas “vítimas” – sejam os leitores dos romances; sejam os consumidores do “cronismo” diário e da realidade construída pelos jornais – não encontrem mais do que duas saídas: responder emocionalmente às provocações ou correr sem noção de destino. A “carga emocional” estimulada por Cony nos leitores diz respeito à sua própria memória íntima – e crítica – acerca da influência exercida pela máquina capitalista – e repressiva, no caso específico do golpe militar de 1964 – sobre o “ser” e o “fazer” dos cidadãos ocidentais (SILVA JR., 2011).

Destaque, pois, à autoironia do autor, com ênfase em seu posicionamento (a) político. Sem se definir de modo único, o cronista busca investigar as visões do cidadão brasileira em relação aos movimentos da política convencional. Busca, porém, manter-se “desterritorializado”, principalmente, do ponto de vista ideológico: Cony não é de centro, não de esquerda, nem de direita. Ao mesmo tempo, parece partidário de toda a tríade de possibilidades. Ao explicitar, nos próprios textos, tal aparente onisciência com relação às questões do mundo, o cronista busca, na verdade, decifrar os contornos do homem moderno numa nação periférica como o Brasil do pós-golpe. (SILVA JR., 2011).

Nas crônicas referentes a tal período, o cronista se revela juiz da percepção “extrapolada” (SILVA JR., 2011) – por parte de setores diversos da sociedade – em rela-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ção ao mundo. Tal extrapolação acentua-se, justamente, no que diz respeito aos primeiros momentos do golpe militar de 1964, quando milhares de cidadãos brasileiros ganham as ruas contra o “inimigo vermelho” – perigo também rechaçado por grande parte da mídia tradicional do país. Em Da salvação da pátria, texto que abre O ato e o fato, o cronista, a partir de seu “lirismo dissidente”, buscará contrapor-se – de modo, aliás, a surpreender público e crítica especializada – ao anuviado regime antidemocrático que se instala no Brasil. A ironia, neste sentido, apresenta-se como estrutura-base para que o discurso do cronista promova reflexões, por meio da instauração de uma série de “níveis de realidade”, segundo proposta conceitual de Calvino (2009). Em artigo7 apresentado em 1978, o escritor italiano busca investigar, a partir de textos clássicos, o fato de a literatura ser regida pela distinção entre diversos graus do real. Nas palavras de Calvino (2009, p. 368): “Numa obra literária, vários níveis de realidade podem apresentar-se ainda que permaneçam distintos e separados, ou podem fundir-se, soldar-se, misturar-se, encontrando uma harmonia entre suas contradições ou formando uma mistura explosiva”. Conforme ressalta o autor, contudo, os níveis de realidade não se restringem ao interior da obra em si. Há que se considerar, ainda, “a obra de arte na sua natureza de produto, na sua relação com o que está do lado de fora, com o momento da sua elaboração e com o momento em que chega até nós” (CALVINO, 2009, p. 370). Em seguida, ressalta: “não podemos perder de vista o fato de que esses níveis fazem parte de um universo escrito”. Afinal, a realidade de que “eu escrevo” seria “o primeiro e único dado de realidade do qual um escritor pode partir”. Neste sentido, destaca-se, ainda, a ideia de que “no interior da palavra escrita podem ser especificados muitos níveis de realidade, assim como em qualquer universo da experiência” (CALVINO, 2009, p. 371). Neste ensaio sobre o cronismo de Cony, parte-se do princípio de que tais níveis de realidade, identificados nos textos dos principais cronistas brasileiros do século 20 são os responsáveis pela “plurissignificação” da crônica enquanto gênero narrativo. Neste sentido, importante frisar algo: “ao invés de simular, fingir ou falsificar a realidade, a crônica se fortalece em função da coexistência, no interior de sua estrutura narrativa, de diversos ‘níveis de realidade’” (SILVA JR., 201, p. 15). Ao partir de tal premissa, frise-se a ideia de que a crônica, como relato escrito (e “objeto de arte”), busca promover a recriação do real – elaborada, como se sabe, após detalhada apreciação, por parte do cronista/narrador, da vida cotidiana e seus múltiplos acontecimentos. Diante do golpe, Cony reestrutura a realidade a partir da ironia: 7 O texto Os níveis da realidade em literatura foi apresentado durante a Conferência Internacional “Níveis de realidade”, ocorrida no Palazzo Vecchio, em Florença, de 9 a 13 de setembro de 1978.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Vejo um heroico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da avenida Atlântica com a rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro (CONY, 2004, p. 7).

Naquele instante, pois, a indecifrável engenharia dos paralelepípedos surpreende o “eu lírico” que – flâneur por excelência – não poderia se furtar à busca de “compreensão para o incompreensível”. Em meio à árdua tarefa, o cronista dissidente fará de sua perplexidade, diante das situações que se lhe anunciam, o mote para a plurissignificação da narrativa. Desde a estreia do escritor, em 1958, com O ventre, sua narrativa caracteriza-se por certo olhar descentralizado, amoral e “dissidente”. Será justamente tal posicionamento o que tornará sua escrita literária e jornalística peculiar em períodos específicos da vida cultural brasileira e, particularmente, após a instauração do golpe militar de 1964. Dissidente por natureza, ao longo de toda a “temporada” de exceção política vivida no Brasil, Cony também não coadunará com os princípios de nenhum dos dois principais “grupos” de elaboração estética surgidos com o pós-golpe (a vertente formalista ou vanguardista e a linha nacional e popular). Após a instauração do regime militar no Brasil, o compromisso do autor carioca, como cronista diário do Correio da Manhã, passa a ser o desnudamento de, conforme já discutido, de absurdos da ordem governamental.

Considerações finais Manter-se justo com relação a seus próprios princípios significa, no “cronismo” de Carlos Heitor Cony, abordar, narrativamente, os movimentos da vida cotidiana, com ênfase nas permanentes situações que têm levado o homem moderno à ruína (física e moral). Neste sentido, tido por muitos críticos como cético, negativista ou, até mesmo, apolítico, Cony acabaria por criar certo “folclore” em torno de si. Com bom humor, acaba por sublinhar a postura que, na visão de Portella (2011), tornaria o autor carioca – para lá do mero pessimista – um típico “dissidente”. O crítico literário ressalta que, após a publicação de O ato e o fato, por meio das crônicas contra o golpe militar de 1964, Cony passa a combater a força e o arbítrio sem concessões ideológicas: “Aí é o íntegro dissidente, longe de qualquer ideologia, que está em ação. O severo e honrado testemunho com que denuncia o golpe de 1964 como exemplo de subserviência aos interesses norte-americanos”8. Tal pendor à dissidência também se revela, por meio de seu “eu lírico”, na crônica 8 Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Roteiro, publicada em Eu, aos pedaços, por revelar, de modo explícito, a divergência como matéria-prima do “cronismo” do autor carioca:

Sou contra as reformas de base e contra a erradicação da malária. Contra o fomento da agricultura e contra a conjuntura nacional. Contra a livre determinação dos povos e contra as injunções de ordem político-social. Contra as reivindicações do proletariado e contra os sagrados postulados da nossa civilização cristã. Contra os imperativos de justiça social e contra as inalienáveis prerrogativas da pessoa humana. [...] (CONY, 1963, p. 3).

Ao comentar tal crônica, Eduardo Portella fala em “manifesto afirmativo contra todas as manifestações do establishment, em franco dissídio” diante das propostas do “saber preguiçosamente hegemônico”9. Surgiria, assim, o “dissidente imprevisível”, o “outsider insólito”, capaz de oferecer “a inesperada coleção de pedaços inteiros”10. Ao defender o termo “dissidente” como ideal à definição do posicionamento ético e estético de Cony, buscou-se, aqui, simultaneamente: 1) desfazer a falsa ideia de que o autor – principalmente, o cronista – mostre-se “pessimista”, diante da realidade, como estratégia de provocação ao leitor. Na verdade, tal aparente “pessimismo” estimula o encontro entre as dissidências ética e estética, recurso por meio do qual o artista estimula, no diálogo com o leitor, a contradição, a dúvida, a reflexão; 2) elaborar o conceito de “lirismo dissidente”, como definidor de grande parte da escrita do cronista à época do golpe militar de 1964. Para muito além do pessimismo, pois, o “lirismo dissidente” das crônicas de Carlos Cony – ou, de outro modo, a disposição do “eu lírico” em permanente estado de dissidência – será responsável, justamente, por estimular os efeitos narrativos de sua escrita: da “recriação” da realidade (íntima ou coletiva) observada e/ou experimentada à instauração e ampliação dos diálogos com o leitor; da promoção da reflexão à inserção da voz do próprio cronista nos estertores do tempo e, principalmente, da história. No que diz respeito às estruturas de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária, pode-se dizer que Cony também se revela outsider, ao não se filiar nem aos artistas e intelectuais atrelados a bandeira do moderno, nem aos nacionalistas populares, ansiosos pela libertação popular.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Cia. das Letras, 2009. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. CHAGAS, Pedro Dolabela. Arte e política: o quadro normativo e a sua reversão. Kriterion: Revista de Filosofia, Belo Horizonte, vol. 46, nº 112, p. 158-200, dez. 2005. Disponível em: < encurtador.com.br/muwF2>. Acesso em: abr. 2020. CHAIA, Miguel (Org.). Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. ___________________. Arte e política: situações. In: CHAIA, Miguel (Org.). Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. CONY, Carlos Heitor. O Ventre. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1958. ___________________. Da arte de falar mal. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963. ___________________. O ato e o fato – Crônicas políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. ___________________. O ato e o fato – O som e a fúria das crônicas contra o golpe de 1964. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004 ___________________. A revolução dos caranguejos. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. PORTELLA, Eduardo. “Desconstrução dos gêneros literários” – Conferência inaugural do ciclo Gêneros literários: um olhar atual, realizada no dia 15 de março de 2011, na Academia Brasileira de Letras. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2020. RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2010. ___________________. A canção do homem enquanto seu lobo não vem: as camadas intelectualizadas na revolução brasileira. In: RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 2010. SILVA JR., Maurício Guilherme. “O juiz da percepção ‘extrapolada’: Carlos Heitor Cony e as crônicas contra o golpe militar de 1964”. SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – 9º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Rio de Janeiro, ECO/UFRJ, novembro de 2011.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ___________________. “A crônica e seus níveis de realidade: análise de textos de Carlos Heitor Cony com base em conceito de Italo Calvino”. SBPJor – Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – 11º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo. Brasília, UnB, novembro de 2013. ___________________. “Arte e política nos “anos de chumbo”: Carlos Heitor Cony e a ‘contraestrutura de sentimento’”. In: In: Maria Ivonete Santos Silva e Maria Elisa Rodrigues Moreira. (Org.). Literatura - Espaço fronteiriço. Colatina/Chicago: Clock-Book, 2017, v. 1, p. 113-132. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1979. ___________________. O campo e a cidade – Na história e na literatura. São Paulo: Cia. das letras, 2011. ___________________. Palavras-chave – Um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007. ZAPPA, Regina; SOTO, Ernesto. 1968 – Eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

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LIVRO-REPORTAGEM E ETHOS COMPREENSIVO LATINO-AMERICANO: UM ENSAIO A PARTIR DE COLÔMBIA ESPELHO AMÉRICA E AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA Bruno Ravanelli Pessa

Introdução O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) se valeu de ampla pesquisa documental e histórica para produzir sua obra mais famosa mundialmente, As veias abertas da América Latina, que superou a marca de 40 edições desde 1971, quando foi publicada pela primeira vez. Já o jornalista e escritor brasileiro Edvaldo Pereira Lima, nascido em 1951, baseou sua obra Colômbia espelho América: dos piratas a García Márquez, viagem pelo sonho da integração latino-americana, publicada em 1989, majoritariamente a partir de uma viagem, realizada para a Colômbia em 1987. Diferentes escolhas e rotas adotaram esses autores, que em comum produziram livros-reportagens, os supracitados, e sobre um mesmo tema, a América Latina. Em ambos é possível identificar um olhar orientado pelo mesmo método, o método da compreensão1, recaindo sobre os traços e laços que unem os povos latino-americanos. Essa metodologia de produção de conhecimento, como nos ensina Dimas Künsch, consiste em abraçar distintos saberes, em um diálogo no qual os erros são tão importantes quanto os acertos e a produção de conhecimento não é privilégio único da ciência. “A compreensão é uma busca, não um ponto de chegada”, adverte Künsch na página 6 do ensaio “A academia, a comunicação e a compreensão. Saberes plurais em roda de conversa”, publicado em 2016 (Kunsch, 2016, p. 6). É a mesma busca que me orienta, como bússola, a procurar compreender como se deram as abordagens de Galeano e Lima, sob o ponto de vista do signo da compreensão, como sustentação conceitual. Como se manifestam esses ethos compreensivos nos respectivos textos? (considerando ethos como modo de ser, natureza, caráter). Em busca dessa(s) resposta(s), meu percurso metodológico se dirige para o estudo de caso 1 Mais informações sobre o método da compreensão podem ser encontradas no site dacompreensao.com.br, que reúne textos, publicações, notícias e eventos relacionados ao Grupo de Pesquisa “Da Compreensão como Método”, liderado pelo Professor Doutor Dimas Künsch na Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo-SP.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes desses livros-reportagens, em uma análise de cunho exploratório e interpretativo, que se expressa aqui por meio do texto ensaístico. Afinal, o gênero ensaio é o que melhor expõe os resultados do exercício do pensamento compreensivo, mais preocupado em mostrar do que explicar, indagar do que responder e ponderar do que concluir, dialogando com os saberes e seus sujeitos sem receio de explicitar sua voz autoral. Um exercício para quem está disposto a trafegar por lugares não muito seguros e previsíveis. Uma abertura para o risco que se nota também na proposição que o método da compreensão nos apresenta, quando nos convida para explorá-lo: Simultaneamente proposta e aposta, a compreensão mesma nada tem a oferecer como garantia. Ela foge da ideia de um universal e de um absoluto. Tece e entretece sentidos, articula narrativas, aponta mais para um horizonte inalcançável que para as alegrias da chegada ou a conclusão de um caminho. Nem fim algum há nesse caminho (Kunsch, 2016, p. 6).

O presente trabalho contribui para o campo dos estudos das narrativas dissidentes ao realizar uma conexão inovadora entre duas narrativas nas quais predominam a perspectiva decolonial, com vistas a mostrar como seus autores buscaram compreender as características que unem e integram os povos latino-americanos, tendo como referência a dominação político-econômica sofrida por eles desde o início da colonização europeia.

Os livros-reportagem em questão Antes de mergulharmos nas obras sob análise, convém apresentá-las. O professor Edvaldo Pereira Lima aproveitou uma viagem do Brasil à Colômbia para um congresso de ensino de comunicação, em maio de 1987, ampliou a estada no país e coletou dados da jornada para Colômbia espelho América. Já estava de caso pensado, conforme diria posteriormente em Páginas Ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura: um livro-reportagem-viagem, a fim de enriquecer sua pesquisa sobre livro-reportagem, que resultaria na tese de doutorado O livro-reportagem como extensão do jornalismo impresso: realidade e potencialidade, apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em 1990. Por sua vez, a citada tese originou o livro Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura, lançado pela primeira vez em 1995, pela editora Manole, e que se tornaria referência nacional sobre o tema. Nesta obra, o jornalista revela que a opção pelo formato livro-reportagem-viagem teve uma justificativa pessoal e outra técnica. A primeira deriva de sua predileção por temas transculturais e transnacionais, um gosto individual fomentado por vivências em países estrangeiros (Lima havia residido na Costa Rica, nos Estados Unidos e na Europa, antes de viajar para a Colômbia). A segunda se desdobra em duas: a facilidade de o livro-viagem percorrer diferentes aspectos de um local de forma suficiente para “estabelecer um grau de solidez e costura entre os diferentes fragmentos da realidade do real” e a virtude

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes de o formato fazer parte da mesma linhagem da ficção de aventura e de viagem que proliferou na Europa tempos atrás e estimulava o jornalista viajante a exercitar sua artesania literária (Lima, 2004, p. 304). Outro objetivo de Lima, com Colômbia espelho América, foi contribuir para abrir o horizonte brasileiro, muito mais abastecido com referências europeias e estadunidenses, de conhecimentos sobre os nossos vizinhos, em um momento histórico de aproximação dos 500 anos da invasão do continente. O autor narra sua passagem por sete cidades colombianas não como um viajante apaixonado, mas como um repórter, atento a dados e detalhes, aberto a descrições, digressões, simbolismos e reflexões pessoais típicas do jornalismo literário, modelo jornalístico distinto que abarca um conjunto diverso de gêneros enunciativos situados na fronteira entre jornalismo e literatura, como conceitua Mateus Yuri Passos (Passos, 2014)2. Uma definição mais simples para o jornalismo literário aparece em Páginas ampliadas: narrativa jornalística que emprega recursos literários (Lima, 2004, p. 183). O formato tradicional que vigora nos veículos de comunicação de matriz predominantemente informativa segue o que se convencionou chamar de jornalismo de pirâmide (Passos, 2010), por estruturar o texto segundo um modelo que remete ao desenho de uma pirâmide invertida, com a prevalência dos dados e ações primários de um acontecimento logo na cabeça do relato, ou seja, no lead. A construção da notícia aplica uma fórmula que redunda “na simplificação do relato em torno dos seus componentes o que, quem, quando, como, onde e por que” (Lima, 2004, p. 17). De forma diferente, o jornalismo literário permite que o narrador realize um registro expandido da realidade, subvertendo a ordem cronológica e qualquer conjunto esquemático pré-concebido. É muito didático o paralelo entre esses percursos divergentes e os movimentos opostos que a física nos ensina (centrípeto e centrífugo), realizado por Mateus Yuri Passos e Romulo Augusto Orlandini, como trazido abaixo: Assim, o modelo predominante se configura por um procedimento que propomos denominar centrípeto, pois há um movimento em direção ao núcleo informacional, com foco nos resultados imediatos do fato; em contrapartida, o jornalismo literário é essencialmente centrífugo, partindo do mesmo núcleo para encontrar correspondências anteriores e contemporâneas, tangenciais e paralelas, inclusive possíveis desdobramentos futuros. O foco aí se dá nos processos, na vida humana em movimento (Passos e Orlandini, 2008, p. 83).

Foco mais nos processos do que no produto. Na movimentação do que na chegada. No desenvolvimento do que na conclusão. Parece que estamos pedindo licença ao jornalismo literário para falar novamente do gênero ensaio e do método da compreensão. Seria apenas uma feliz coincidência? Por abrir espaço para a introdução de um arsenal de técnicas e recursos literá2 Para uma leitura introdutória sobre jornalismo literário, recomendo PASSOS, Mateus Yuri; ORLANDINI, Romulo Augusto. Um modelo dissonante: caracterização e gêneros do Jornalismo Literário. Contracampo. n.18, p.75-96, jan./jun. 2008.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes rios, disponíveis conforme o talento, a criatividade e as escolhas narrativas de cada jornalista-escritor, a prática do jornalismo literário torna mais fácil a produção de textos de qualidade superiores aos comumente observados no jornalismo cotidiano, convencional, de pirâmide. Muito mais sofisticados. Dependendo da apreciação de quem avalia, artísticos. “A narrativa jornalística de melhor qualidade beira a arte, assume alguns dos nobres ideais de que esta pode revestir-se”, conforme afirma Edvaldo Pereira Lima em Páginas ampliadas (Lima, 2004, p. 138). No mesmo livro, ele nos diz que, “de todas as formas de comunicação jornalística, a reportagem, especialmente em livro, é a que mais se apropria do fazer literário” (idem, p. 173). Atuam em favor do jornalista literário, geralmente, condições de produção bem mais favoráveis ao labor mais refinado do que as enfrentadas pelos jornalistas que redigem para veículos periódicos, especialmente os diários e semanais, ainda mais quando um único redator acumula pautas para transformar em matérias no mesmo espaço de tempo. Lima (2004, p. 192) nos conta que essa divisão de tarefas, dentro do jornalismo e mais especificamente das redações dos meios impressos, já aparecia na segunda metade do século 20, como uma distinção bem clara entre os responsáveis pelas pautas “quentes” (de prazo imediato) e “frias” (que poderiam ser convertidas em reportagens posteriormente, favorecendo a incorporação de recursos da literatura). Inspirado em alguns modelos de livros de viagem, de escritores como Paul Theroux e Bruce Chatwin, Edvaldo Pereira Lima explora, em Colômbia espelho América, aspectos de caráter sociológico, humano, cultural e histórico da Colômbia, que em sua avaliação representava as aspirações latentes de uma integração continental (a latino-americana) e as frustrações desse ideal. Imerge na realidade local, humaniza os personagens com quem conversa na caminhada, sejam figuras anônimas ou reconhecidas nacionalmente, e busca trazer o leitor para reflexões sobre a identidade da “nossa” América Latina. Em 2013, Lima lançou Colômbia espelho América 26, versão atualizada da obra original com a introdução de aspectos contemporâneos da vida colombiana, 26 anos depois daquela viagem. Como o próprio título já sugere, As veias abertas da América Latina se debruça sobre as feridas da exploração do continente, apropriação de riquezas que penetrou violentamente no sistema circulatório dos países desta porção do planeta, expondo o sangue de milhões de latinos durante quase 500 anos de uma torturada história, como adjetiva Galeano. Lembremo-nos de que ele terminou de escrever o livro em fins de 1970, e em abril de 1978, exilado em Barcelona, escreveu um posfácio intitulado “Sete anos depois”, atualizando informações e constatações posteriores à edição original, lançada em 1971. Vivia-se a Guerra Fria, opondo os centros de poder capitalista e socialista, e a ascensão de regimes ditatoriais nos países latino-americanos, de modo que o caráter denunciador do livro e sua posição claramente anticapitalista e contrária às elites políticas e econômicas do continente creditaram ao uruguaio os rótulos de esquerdista, revolucionário e subversivo. Foi então preso pela ditadura de seu país e depois exilado na Argentina e na Espanha. Uma vital repercussão para uma obra – proibida em vários países sul-americanos na década de 1970 – que procurou “oferecer uma história da pilhagem e ao mesmo tempo contar como funcionam os mecanismos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes atuais de espoliação”, como escrito na página 19, tendo se dividido em duas partes: “A pobreza do homem como resultado da riqueza da terra”, sobre as explorações via agricultura, mineração e petróleo, e “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes”, sobre as assimetrias comerciais e industriais com as nações desenvolvidas e como a espoliação econômica se estruturava na época de lançamento do livro, um ensaio sobre economia política por um escritor sem formação em economia nem em política (Galeano, 1987). A falta de graduação acadêmica nas áreas em que As veias abertas se situa não foi vista como empecilho para a empreitada, por Galeano. Porém, décadas depois ele admitiu que não se identificava mais com aquele estilo de escrita, que produziu um compêndio de mais de 300 páginas de múltiplas histórias, recheadas de episódios, desdobramentos, números e citações. Disse até, em 2014, que não se motivava mais a ler o livro na íntegra novamente, por se tratar de um conteúdo cansativo demais para seu atual gosto de leitura e escrita (G1 DF, 2015). Ou seja: nos últimos anos de vida, ele era um autor muito mais conciso, pautado pela síntese e o objetivo de dizer o máximo com o mínimo de palavras. Curiosamente, o Galeano do século 21 não estava disposto a produzir o mesmo inventário da contra-história latino-americana que o Galeano do século 20 transformou em marco da literatura e do jornalismo e em legado para milhões de leitores de gerações subsequentes. As classificações livro-reportagem-história, para a obra de Galeano, e livroreportagem-viagem, para a obra de Lima, se fundamentam na categorização realizada pelo próprio Edvaldo Pereira Lima em Páginas ampliadas, obra referencial para o estudo do livro-reportagem no Brasil. Nela, o estudioso apresenta o livro-reportagem como mídia que desempenha o papel específico de “prestar informação ampliada sobre fatos, situações e ideias de relevância social” (Lima, 2004, p. 1), a partir de uma demanda por informação oriunda de lacunas deixadas pelos veículos de comunicação do dia a dia. Assim, ele “avança para o aprofundamento do conhecimento do nosso tempo, eliminando, parcialmente que seja, o aspecto efêmero da mensagem da atualidade praticada pelos canais cotidianos da informação jornalística” (Lima, 2004, p. 4). Segundo o autor, a variedade de livros-reportagens existentes, distintos quanto à linha temática e aos modelos de tratamento narrativo, conduz à possibilidade de classificá-los em diferentes grupos. Desejo propor um critério que toma por base dois fatores intrinsecamente relacionados entre si: o objetivo particular, específico, com que o livro desempenha narrativamente sua função de informar e orientar com profundidade, e a natureza do tema de que trata a obra (Lima, 2004, p. 51).

Assim, Lima afirma que o livro-reportagem-história focaliza um tema do passado recente ou remoto que, independentemente da distância temporal com o presente, terá algum elemento que o conectará com a atualidade, gerando um elo comum com

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes o leitor atual (Lima, 2004, p. 54). Já o livro-reportagem-viagem “apresenta como fio condutor uma viagem a uma região geográfica específica, o que serve de pretexto para retratar, como em um quadro sociológico, histórico, humano, vários aspectos das realidades possíveis do local” (idem, p. 58). É um relato diferente do turístico, sem romantismos e exotismos típicos aos viajantes não treinados profissionalmente na escrita, e preocupado com a pesquisa, a coleta de dados e o exame de conflitos. “O conhecimento constrói-se, ao longo do livro, por via da ótica jornalística, alicerçada por recursos advindos de diversos campos do saber moderno” (idem, p. 59). O livro-reportagem é o veículo impresso que melhor dá vazão ao exercício do jornalismo literário, especialmente por dois fatores. Primeiramente pela elasticidade de tempo de produção da reportagem que normalmente esse projeto permite, facilitando uma extensa apuração, com visitas e entrevistas presenciais, pesquisa de campo e coleta de materiais de diferentes fontes. E em segundo lugar, pelo amplo espaço disponível para o texto final da reportagem: em dezenas ou mesmo centenas de páginas as possibilidades são plenas para a redação de um trabalho aprofundado, denso e complexo, ou seja, inevitavelmente extenso. Porém, nem todo livro-reportagem é necessariamente resultado de uma prática de jornalismo literário. Se por um lado Edvaldo Pereira Lima fez isso em Colômbia espelho América, de forma deliberada, buscando experimentar os diversos recursos relacionados à modalidade, não só como autor como também como pesquisador, por outro Eduardo Galeano não optou por essa via em As veias abertas da América Latina, que até flerta com o jornalismo literário em determinados trechos de imersão jornalística e elaboração literária evidentes, mas não vai além disso em termos de aderência ao formato.

Lima em sua amostra de América Vamos agora olhar para a abordagem de Colômbia espelho América. Assim Edvaldo Pereira Lima se descreve no trajeto da viagem de avião que o conduziu à Colômbia: “(...) o sujeito absorto em pensamentos de floresta e de integração sistêmica dela e dos rios e dos Andes e dos povos e querendo encontrar os pontos de conexão entre nós e os colombianos e este conjunto América Latina” (Lima, 1989, p. 21). Na página seguinte, a 22, mais uma autorreferência: “Sou eu... na decisiva busca de percepção do que é este vizinho, do que nos une, do que nos separa” (idem, p. 22). Fica claro que o jornalista brasileiro parte para a jornada colombiana em busca de algumas respostas, ou pelo menos indícios, motivado por uma necessidade de compreender. De comprovar ou talvez desmentir uma hipótese. De vislumbrar um caminho para a materialização de um projeto, até mesmo de um sonho. Lima não esconde sua utopia, o desejo de que os países vizinhos superem suas diferenças e se unam de um modo jamais visto, como “um consórcio integrado” (Lima, 1989, p. 20) para cuidar do continente como um todo. Também não deixa de evidenciar que esse desejo tem barreiras a superar, como a dificuldade de entendimento entre os povos. “Como é difícil sair da teoria à prática e mergulhar fundo, de peito aberto, no universo do outro”, escreve,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes resumindo uma situação de falta de convergência no seminário entre professores de comunicação de oito países latino-americanos do qual participou, em Villa de Leyva (idem, p. 57). A metodologia que o brasileiro pretendia adotar em seu caminhar pela Colômbia ficou exposta logo antes de ele desembarcar por lá, segundo o desenrolar do livro: Nada de cartesianismo, nem muito rigor da precisão científica, por favor. A vida e a realidade são muito complexas para a história do pão, pão, queijo, queijo. Nem qualquer pretensão de deitar verdades. Não. Aqui é um mergulho consistente, quando possível, mas jamais a única possibilidade. É uma vertente séria, mas descontraída. Jamais mentirosa, porém pouco linear (Lima, 1989, p. 22).

De fato, o narrador mescla, com a sequência dos episódios vivenciados e do seu percurso dentro da viagem, o desenrolar tortuoso de suas reflexões e, por que não, devaneios, fazendo questão de “pensar alto” para compartilhar com o leitor o que o intriga, preocupa, motiva, instiga. Diante de tamanha contundência, impossível não se lembrar de pensadores que também questionam o cartesianismo e o cientificismo como meios orientadores para se ver o mundo e agir nele. Como aponta Ramón Grosfoguel, sociólogo portorriquenho, o pensamento cartesiano fundamenta as ciências modernas ocidentais, criando um dualismo entre mente e corpo e entre mente e natureza. Vai mais além, criando uma entidade arrogante, pois o conhecimento, originado todo da mente, é abstrato, universal, “visto pelos olhos de Deus”, nas palavras de Grosfoguel. Deixemos que ele esclareça melhor: “Descartes substitui Deus, fundamento do conhecimento na teopolítica do conhecimento da Europa da Idade Média, pelo Homem (ocidental), fundamento do conhecimento na Europa dos tempos modernos. Todos os atributos de Deus são agora extrapolados para o Homem (ocidental)”, escreve o sociólogo em capítulo do livro Epistemologias do Sul3, organizado por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses (Santos e Meneses, 2010, p. 383). A ciência moderna ocidental, alçada à aura de saber divino, estabeleceu suas verdades como as únicas legítimas, ancoradas em balizas como a objetividade, o rigor e a precisão. Pilares que Edvaldo Pereira Lima prefere relativizar no início de sua trajetória em solo colombiano. O que não faz em relação ao juízo de valor que emite a respeito da colonização europeia na Colômbia, por exemplo. Ao descrever momentos importantes da formação do país, menciona que o povo muísca conheceu “a fúria desbravadora da santa civilização branca ocidental” (Lima, 1989, p. 50), fazendo uma colocação que remete ao discurso de Eduardo Galeano, um tanto quanto hiperbólico e irônico em uma mesma frase. Em outro momento do livro, Lima volta a criticar a ciência fechada em si mesma 3 As Epistemologias do Sul, segundo seu proponente original, Boaventura Sousa Santos, “referem-se à produção e à validação de conhecimentos ancorados nas experiências de resistência de todos os grupos sociais que têm sido sistematicamente vítimas da injustiça, da opressão e da destruição causadas pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado” (Santos, 2019, p. 17).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes e desconfiada diante de fenômenos que ela desconhece, ao defender que o cientista rechace preconceitos e se coloque como criança inocente diante da descoberta do novo. Que não se apegue a dogmas mas saia a campo, para comprovar, testar. “Nada de elucubrações filosóficas destituídas de vivência e observações in loco” (Lima, 1989, p. 36). É a defesa do método experimentalista, personalizado, no relato de Lima, quando é apresentado o padre espanhol José Celestino Mutis, chegado à América na segunda metade do século 18. Um religioso com fé na ciência, de acordo com o relator. Que, por sua vez, também critica o reducionismo do francês René Descartes (1596-1650), considerado um mero filósofo hipotético, sem base em suas proposições científicas. O experimentalismo, aliás, conecta-se ao método da compreensão. Quem nos lembra é o professor Dimas Künsch, em ensaio supracitado. “Não podem ser esquecidos os saberes cotidianos, os saberes da experiência, os saberes que nos advêm das incertezas do mundo físico tanto quanto do metafísico, a experiência do erro e do mal, da tristeza tanto quanto da alegria, da saúde tanto quanto da dor” (Kunsch, 2016, p. 5). A postura do jornalista brasileiro em busca de compreensões também aparece quando, em uma de suas digressões que se mesclam com a sequência cronológica da viagem pela Colômbia, ele se detém à figura de Simón Bolívar (1783-1830), considerado um mito da história sul-americana. Ao apresentar uma versão trazida por livros de história que não o convence, o narrador provoca: “Vamos conhecer a verdade? Vamos saber o que está por trás do perdão do Libertador, a sinceridade ou o tratamento de imagem para que nas páginas do tempo figure sempre o mito imaculado?” (Lima, 1989, p. 43). Em que pese o arroubo pretensioso de se considerar capaz de alcançar “a” verdade, e certa contradição, já que o autor rejeitou a postura de se “deitar verdades” para o leitor em trecho supracitado, são notáveis a ânsia por conhecimento, afinal Lima está descobrindo (e de certa maneira, se descobrindo também) o país a cada nova experiência que se apresenta em seu caminhar, e o incômodo com a impossibilidade de se confiar nas tendenciosas e exclusivas fontes para determinados episódios do passado. Didaticamente, o autor reconstitui a história de importantes polos colombianos que visitou durante sua viagem, como as cidades de Bogotá e Cartagena das Índias, postura que reflete uma busca por conhecimento para si e, obviamente, para quem o lê. Busca por conhecimento: guarde essa expressão na memória, porque ela reaparecerá por aqui em breve. Retomando a reflexão sobre o cartesianismo, historicamente o ego cogito (“Penso, logo existo”) surge como decorrência do ego conquiro ou conquistus (“Conquisto, logo existo”), autoafirmação que representa a persona do conquistador europeu que fincou bandeiras e poderes em continentes alheios desde o início da expansão colonial em 1492. Ramón Grosfoguel explicita essa relação, em texto já citado: “As condições históricas, políticas, econômicas e sociais que possibilitaram a um sujeito assumir a arrogância de se assemelhar a Deus e de se arvorar em fundamento de todo o conhecimento verídico foi o Ser Imperial, ou seja, a subjetividade daqueles que estão no centro do mundo porque já o conquistaram” (Grosfoguel, 2010, p. 384). Essa personalidade

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes aparece em figuras vinculadas ao domínio da metrópole sobre as colônias de língua espanhola, nas páginas escritas por Edvaldo Pereira Lima. Mas é na narrativa de Eduardo Galeano que ela predomina com ganância cruel, afinal para o autor foi a persona do ego conquiro a maior responsável por abrir as veias da América Latina. Galeano destrinchando a América Anos depois de ter escrito e lançado a primeira edição de As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano deixou transparecer que, ali na obra, se tratava de um homem comum se comunicando com pessoas comuns. “Um autor não especializado dirigia-se a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que a história oficial, história contada pelos vencedores, esconde ou mente”, como consta no posfácio (Galeano, 1987, p. 285). Nessa frase identificamos dois elementos que guardam relação com o signo da compreensão: a preocupação em se fazer entender por meio de uma linguagem simples, compreensível para um grande número de leitores, e o objetivo de investigar e revelar ocorrências outrora ocultas e deturpadas pela historiografia hegemônica, o que permitirá abrir caminho para compreensões inéditas, ou pelo menos diferenciadas, de certos fatos do passado latino-americano - um abraço que integraria sentidos negados e escondidos. Na sequência desse raciocínio, Galeano diz que seu livro procura as conexões do passado com o presente e enfatiza a importância de se conhecer a realidade, o que somos e o que fomos, como premissa para poder modificá-la e construir um futuro diferente. Busca e conhecimento, busca por conhecimento – veja aí, voltamos a ela! Busca por compreensão, inevitavelmente. Trazendo o latino-americanismo para o primeiro plano, o jornalista uruguaio denuncia a desumanidade do colonialismo que sustenta a modernidade ocidental europeia desde que as primeiras caravelas aportaram no assim chamado Novo Mundo. Crueldade que é a tônica da descrição da exploração econômica, especialmente nos primeiros séculos de colonização, na Bolívia, no Peru, no Brasil, no Caribe, na Colômbia, e aqui poderíamos descrever quase que a totalidade dos países ao sul dos Estados Unidos da América. Especialmente mas não somente nos séculos 15, 16, 17 e 18, pois, como afirmam Boaventura Sousa Santos e Maria Paula Meneses, o fim do colonialismo político, como meio de dominação que nega a independência política de nações subjugados, não significou o fim das relações sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado, tanto entre Estados como entre classes e grupos sociais no interior do mesmo Estado (Santos e Meneses, 2010, p. 19). Como dizia o sociólogo peruano Aníbal Quijano (1928-2018), o colonialismo continuou sobre a forma de colonialidade de poder e de saber4, baseada na inferioridade étnico-cultural e, inclusive, ontológica do outro (Santos, 2019, p. 27). No texto de Galeano, a perpetuação dessa desigualdade fica explícita. 4 Recomendo o Capítulo 2 do livro Epistemologias do Sul, intitulado “Colonialidade do poder e classificação social”, em que, a partir de uma análise da situação latino-americana, Quijano desenvolve o conceito de colonialidade.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Eis no trecho do livro a seguir um exemplo brasileiro bem emblemático, extraído do cenário de uma região em que a exploração do açúcar fez prosperar os donos de terras cultiváveis, ao passo que a maioria da população era miserável e subnutrida, em fins do século 16: Daqueles tempos coloniais nasce o costume, ainda vigente, de comer terra. A falta de ferro provoca anemia; o instinto leva as crianças nordestinas a compensar com terra os sais minerais que não encontram em sua comida habitual, que se reduz a farinha de mandioca, feijão e, raramente, charque. Antigamente, castigava-se esse “vício africano” pondo-se mordaças nas bocas das crianças ou pendurando-as dentro de cestas a grande distância do solo (Galeano, 1987, p. 75).

Galeano reforça um movimento de combate que encontramos em vozes dissonantes da filosofia moderna centro-europeia e norte-americana, resgatadas por Enrique Dussel, filósofo argentino naturalizado mexicano, no artigo “Meditações anticartesianas sobre a origem do antidiscurso filosófico da modernidade”5. Vozes como a do frade dominicano espanhol Bartolomé De Las Casas (1478-1566) e a do indígena inca Filipe Guamán Poma de Ayala (1535-1616). Las Casas viveu e trabalhou na América, rompendo com os conquistadores em defesa dos indígenas, a quem passou a ver como civilizados, e não bárbaros, como enxergavam os intelectuais alinhados ao projeto expansionista da Coroa Ibérica. Um dos mais emblemáticos deles, o filósofo Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), considerava os europeus “senhores superiores sobre os servos de alma submissa, desprovidos de virtude, humanidade e a verdadeira religião” (Dussel, 2010, p. 296). Não por acaso, Sepúlveda e Las Casas se colocaram em posições de embate argumentativo e disputa de sentido na querela travada em Valladolid, em 1550, quando a Corte espanhola colocou em discussão o direito de domínio cultural sobre os povos colonizados, no que Dussel apelidou de “o primeiro debate público filosófico e central da modernidade” (Dussel, 2010, p. 306). Sepúlveda, aliás, aparece na obra de Eduardo Galeano, como um dos justificadores da ideologia de subjugação indígena, relegando os nativos das terras colonizadas à condição de seres inferiores, bestas de carga, que mereciam ser tratados como animais “porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus” (Galeano, 1987, p. 52). Ironicamente, Ginés de Sepúlveda é chamado de “o humanista” por Galeano, que reconheceu, por outro lado, a atuação incisiva de Bartolomé De Las Casas em defesa dos indígenas, atribuindo ao religioso o discurso de que “os índios preferiam ir ao inferno para não se encontrarem com os cristãos” (idem, p. 53). Poma de Ayala é um caso especial, pois representa a própria vítima que padeceu da violência do conquistador. Segundo Dussel, seu testemunho mostra aspectos desconhecidos do cotidiano da comunidade indígena tanto na fase pré-colonial europeia 5 Capítulo 10 do supracitado livro Epistemologias do Sul, coletânea de artigos organizada por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Meneses.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes quanto durante a dominação. Demonstra a contradição entre o cristianismo pregado e a violência da primeira expansão da cultura ocidental moderna; entre a ética pregada e a perversidade praticada. De modo que podemos concluir que a lógica moderna do “violentar para civilizar” não segue uma coerência lógica. Imaginemos se Eduardo Galeano pudesse entrevistar Poma de Ayala, ou submeter os originais de As veias abertas para apreciação e comentários do inca, antes de ir para o prelo. Não seria curioso? O quão enriquecedoras seriam as contribuições que o indígena poderia dar? Voltando para a realidade das fontes que de fato pôde consultar para compor seu livro, Galeano, convém ressaltar, considerou e incluiu manifestações dos colonizados, publicadas por autores em diferentes épocas, como revelam as citações no texto e as notas de rodapé. Afinal, tal expediente foi fundamental para o objetivo, declarado, de trazer o que dizem as vozes dos vencidos. Poma de Ayala foi um deles, por exemplo, além de informantes indígenas, autores anônimos, escritores, historiadores, antropólogos e religiosos, dos diferentes países do continente. Testemunhos, relatos de lembranças, presságios, lendas, alguns “dizem que” e “ouvira falar”. Bem como informações captadas in loco, de passagens do autor por países latino-americanos que figuram entre os retratados pelo livro. Galeano revela que esteve na boliviana Potosí, uma das cidades de maior altitude do planeta (fica a quase 4 mil metros de altitude), onde o ciclo da prata atraiu a atenção da colonização espanhola desde meados do século 16, fazendo da localidade um dos pontos mais pujantes economicamente pelas décadas subsequentes (tanto que é uma das primeiras regiões a merecer destaque nas páginas de As veias abertas). Nesta passagem, ele traz um depoimento de uma moradora (“a velha potosina”) e descreve o que viu durante um percurso por algumas ruas, contemplando um cenário de decadência, bastante diferente da opulência de séculos anteriores (Galeano, 1987, p. 46). Páginas adiante, o uruguaio aparece no Brasil, conversando com um homem em situação de rua em Mariana, pequena cidade mineira, a respeito do passado banhado em ouro de Ouro Preto, que no momento do diálogo é apenas uma lembrança distante de um município que perdeu o protagonismo da dourada época em que se chamava Vila Rica. Tempos em que, como descreve o narrador, a região de Minas Gerais entrou para a história como palco da maior quantidade de ouro extraída no menor espaço de tempo (Galeano, 1987, pp. 62 e 63). Depois, o jornalista se descreve em visita à Cuba, especialmente na região produtora e exportadora de açúcar, onde ouviu histórias de quem trabalhou e ainda trabalha na cadeia dessa commodity, além de conhecer a grande estrutura do cais do porto de Guayabal, que escoa o gênero país afora. De acordo com Galeano, o “açúcar, que tinha sido o fator de subdesenvolvimento, converteu-se num instrumento do desenvolvimento” cubano na década de 1970 (Galeano, 1987, pp. 86 e 87).

Considerações finais Sob o signo da compreensão, vê-se que Galeano inclui informações e referências de diversas origens, promovendo um diálogo horizontal entre conhecimentos, que o

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sociólogo português Boaventura de Sousa Santos batizou de “ecologia de saberes”6. Abertura para ouvir o outro (do catedrático ao mendigo) nos fazendo lembrar da filosofia da libertação dusseliana, que enxerga o outro como sujeito, e não como um mero ente, dotado de rosto e voz, gritando e clamando por justiça. Um clamor subjacente ao texto de Eduardo Galeano, do princípio ao fim. Manifestações que também aparecem sob a pena de Edvaldo Pereira Lima, estrangeiro em solo colombiano não para ressaltar diferenças e expressar superioridade, mas para demonstrar equivalências e reafirmar o desejo de aproximação e integração entre semelhantes. O intuito deste ensaio não foi estabelecer um estudo comparativo entre as obras de Lima e Galeano, distintas em vários aspectos, produzidas de maneiras diferentes em contextos e momentos históricos diferenciados. Foi apresentar como, cada livro a seu modo, exerce um olhar compreensivo, interessado em conhecer e trazer para o leitor características da identidade e da integração dos países latino-americanos. A opção, portanto, em reunir dois objetos de análise em uma mesma pesquisa de proposição inédita, sem a finalidade primeira da comparação, deveu-se ao desejo de mostrar caminhos distintos para posturas semelhantes, enriquecendo o desenvolvimento do trabalho. Seja pelo viés da exploração in loco ou pelo da denúncia histórica, as epistemologias dissidentes e o ethos compreensivo estão presentes, em duas das múltiplas possibilidades de se realizar produção jornalística com a profundidade do método da compreensão. Duas abordagens que fortalecem essas narrativas no contexto das disputas de sentido do complexo mundo contemporâneo.

Referências AUTORES, Clube de. TV CLUBE DE AUTORES - Entrevista com Edvaldo Pereira Lima. Youtube, 31 jul. 2013. Disponível em < https://www.youtube.com/ watch?v=44m8JEJLQX4>. Acesso em: 08 jul. 19. DUSSEL, Enrique. Meditações anticartesianas sobre a origem do antidiscurso filosófico da modernidade. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 341-395. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 25. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. GROSFOGUEL, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 378-412. 6 Para um primeiro contato com o conceito, recomendo a leitura do capítulo 1 do livro Epistemologias do Sul, “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, assinado por Boaventura de Sousa Santos.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes G1 DF. Em 2014, Galeano disse não se sentir mais ligado ao seu principal livro. G1. Disponível em . Acesso em 29 jun. 19. KÜNSCH, Dimas Antonio. A academia, a comunicação e a compreensão: saberes plurais em roda de conversa. Tríade: Comunicação, Cultura e Mídia, v. 4, p. 6-22, 2016. LIMA, Edvaldo Pereira. Colômbia espelho América: dos piratas a García Márquez, viagem pelo sonho da integração latino-americana. São Paulo: Edusp e Perspectiva, 1989. _______. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 2.ed. São Paulo: Manole, 2004. ONLINE, TV Cultura. Entrelinhas - Eduardo Galeano. Youtube, 10 dez. 2009. Disponível em . Acesso em: 07 jul. 19. PANSARELLI, Daniel. A filosofia da libertação dusseliana e sua ética. Revista Urutágua, n. 4, 2002. PASSOS, Mateus Yuri. Jornalismo literário e a pirâmide: implicações na comunicação pública da ciência. Intercom – Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v.33, n.2, p.199-219, jul./dez. 2010. PASSOS, Mateus Yuri. Perfil e contraperfil: os três Joe Goulds de Joseph Mitchell. In: SOSTER, Demétrio de Azeredo; PICCININ, Fabiana (Orgs.). Narrativas Comunicacionais Complexificadas 2: A forma. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2014, p. 193-213. PASSOS, Mateus Yuri; ORLANDI, Romulo Augusto. Um modelo dissonante: caracterização e gêneros do Jornalismo Literário. Contracampo, n.18, p.75-96, jan./jun. 2008. PESSA, Bruno Ravanelli. Jornalismo literário a serviço da imprensa alternativa. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) - Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2011. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

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A HISTÓRIA DOS “NINGUÉNS”: A NARRATIVA DECOLONIAL EM O LIVRO DOS ABRAÇOS, DE EDUARDO GALEANO Luiz Henrique Zart

Quando Eduardo Galeano (1940-2015) fez nascer O livro dos abraços (2019), indicou que “se a uva é feita de vinho, talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é” (GALEANO, 2019, p. 16). Dessa forma, o uruguaio escreve para os que não poderiam lê-lo, aqueles “[...] de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, não sabem ler ou não têm com o quê” (GALEANO, 2019, p. 153). Assim, em busca desta percepção histórica e social, pretende-se observar, a partir de uma perspectiva ensaística e qualitativa-interpretativa, relatos que constituem, em certa medida, retratos particulares da América Latina dentre as 191 histórias presentes na obra, especialmente do ponto de vista da decolonialidade.

Sobre a América Latina: un pueblo sin piernas, pero que camina A América Latina não foi descoberta: foi invadida, violentada e saqueada. As feridas e cicatrizes estão expostas desde um processo iniciado em 1492, quando se funda o colonialismo, classificado por Quijano (2009) como uma estrutura de dominação e exploração do trabalho e das riquezas, além do controle político e militar, onde se garante uma relação assimétrica, favorável ao colonizador diante do colonizado. A modernidade surge, portanto, não com a Revolução Industrial ou o Iluminismo, mas, pelo contrário, com o controle do Atlântico e da América pela Europa entre o fim do século XV e começo do século XVI. Apesar de vinculada ao colonialismo, a colonialidade é mais profunda e enraizada no imaginário coletivo, um fenômeno histórico complexo que, diferente do anterior, se estende e sobrevive sob outra aparência até o presente, muito além da relação comercial entre metrópole e colônia. É a subordinação aos padrões de poder coloniais também na construção da identidade, do conhecimento, da existência. Afinal, ao longo dos últimos cinco séculos, é um dos elementos indissociavelmente constitutivos da modernidade, no estabelecimento de um padrão mundial de poder capitalista colonial/ moderno e de uma perspectiva eurocentrada estabelecidos a partir da e sobre a Amé-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes rica (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2003). A “mentira” da modernidade, questionada por Quijano (2005) ou o “mito” que oculta a colonialidade da modernidade, nas palavras de Dussel (2000), trata a história como processo linear em que a sociedade funciona sob um só sentido, o do evolucionismo, em uma única “racionalidade” aceita e ideal: um modelo que tem como ápice a Europa (e, depois os Estados Unidos). Este modelo é, da perspectiva da colonialidade, tido como excepcional, superior “por natureza”: o centro “europeu/norte-americano/moderno/capitalista/colonial/patriarcal” do sistema-mundo, desenvolvido por Grosfoguel (2008, p. 113). No conceito imaginado originalmente por Immanuell Wallerstein (2000, p. 13), o objetivo é “manter as pessoas dentro do sistema, mas com o estatuto de [...] seres inferiores passíveis de serem exploradas economicamente e usadas como bodes-expiatórios políticos”. Assim, a proposta colonial ressalta estereótipos e divisões, além da promessa ilusória de progresso, a única face visível da modernidade: o salvacionismo supostamente protagonizado pelos colonizadores diante da dinâmica inculta, da barbárie, do subdesenvolvimento e do primitivismo em que o “resto” do mundo se apresenta como oposto-negativo (MIGNOLO, 2007). Como aponta Dussel (2000, p. 49), a violência é o recurso para que se destruam os obstáculos à “modernização colonial” inevitável, em que o herói civilizador “reveste a suas próprias vítimas da condição de serem holocaustos de um sacrifício salvador”, em que o bárbaro tem “culpa” (por opor-se) e a modernidade se apresenta como inocente, responsável por “emancipar”, em um ato autoindulgente, o “pecado” da própria vítima. Para Walter Mignolo (2010, p. 12 apud BALLESTRIN, 2013, p. 100), a consequente reprodução desta perspectiva faz da matriz colonial de poder uma estrutura “complexa de níveis entrelaçados” que potencializa o lado obscuro da modernidade e implica no controle de dimensões variadas, de produção de conhecimento e de controle – da economia, da autoridade, da natureza, da religião, dos recursos naturais, do gênero e da sexualidade. Todas estas relações não existem sem a colonialidade, que atravessa e se reproduz no cotidiano em três dimensões: do poder, do saber e do ser. Além de contemplar todas as características já mencionadas, a colonialidade do poder ocorre a partir da imposição de uma classificação/hierarquização identitária racial/étnica da população não europeia, que naturaliza e legitima relações de submissão, e que opera nas esferas materiais e subjetivas da existência social cotidiana. A partir dela, o branco europeu/europeizado masculino está acima dos “inferiores”, sub/desumanos, relegados a uma condição subalterna – e à servidão de trabalhos não remunados como mão de obra descartável, forçados a trabalhar até morrer. Não sem que antes tenham suas identidades relativizadas: desta posição etnocêntrica, as definições de mestiços, índios e negros, reúnem, reduzem e trituram existências (QUIJANO, 2005). Assim, a colonialidade do poder é uma “chave analítica” que dá origem às outras e permite compreender a confluência entre modernidade e capitalismo. Neste sentido,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes é fundamental considerar a tríade composta por relações díspares de raça, gênero e trabalho como formas de classificação social que sustentam o capital enquanto causador de uma dependência histórico-social, determinando lugares e papéis de exploração/dominação/conflito diante da oposição ao processo civilizador e à práxis moderna. Cabe pensar que: [...] a primeira identidade geocultural moderna e mundial foi a América. A Europa foi a segunda e foi constituída como consequência da América, não o inverso. A constituição da Europa como nova entidade/identidade histórica fez-se possível, em primeiro lugar, com o trabalho gratuito dos índios, negros e mestiços da América, com sua avançada tecnologia na mineração e na agricultura, e com seus respectivos produtos, o ouro, a prata, a batata, o tomate, o tabaco, etc. (VIOLA; MARGOLIS, 1991 apud QUIJANO, 2005, p. 127).

Com isso, entre a escravização, o genocídio e a dizimação dos povos e culturas originárias iniciadas na América e, depois, expandidas ao mundo, existe um processo hegemônico pretensamente “civilizatório” que se dá, portanto, a partir das relações de poder entre a modernidade, a colonialidade e a racionalidade (M/C/R) (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2007). Nesse sentido, Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p. 13) falam de uma transição “do colonialismo moderno à colonialidade global”, onde a segunda atua mesmo na constituição de uma sociedade nacionalizada e politicamente organizada como Estados-Nação, e de suas estruturas de coerção e de manutenção de privilégios. Dessa forma, a segunda dimensão de colonialidade se dá no saber, onde a expansão do eurocentrismo coloca-se enquanto “atitude colonial frente ao conhecimento, que se articula de forma simultânea com o processo das relações centro-periferia e das hierarquias étnico-raciais” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 20). Por consequência, há um “epistemicídio” que centraliza a validade do conhecimento e universaliza a perspectiva europeia como normativa (SANTOS, 1999). Essa validação simbólica e fisicamente violenta acontece a partir da imposição de valores e da destruição de subjetividades, da prevalência de determinada “ciência” que, para Santos (2007), representa a monocultura do saber. Essa posição definida por CastroGómez (2005c, p. 14 apud BALLESTRIN, 2013, p. 104) como o “ponto zero”, é um ponto de partida de onde se fundamenta uma observação supostamente neutra a absoluta, em que, desde o iluminismo, a linguagem científica se coloca “como a mais perfeita de todas as linguagens humanas”, representando “a mais pura estrutura universal da razão”. Nesta filosofia, o sujeito epistêmico supostamente neutro, objetivo e asséptico define a verdade, para Grosfoguel (2007, p. 64-65), “desde um monólogo interior consigo mesmo, sem relação com ninguém fora de si. Isto é, trata-se de uma filosofia surda, sem rosto e sem força de gravidade”. A partir do ponto zero, de um saber que enrijece uma história única, se manifesta no massacre de sabedorias e ancestralidades; no silenciamento da divergência,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes no apagamento da memória e esquecimento da história, controlando corpos, mentes e a legitimidade da existência, ou do extermínio de povos supostamente “exóticos”, que não se encaixem nos modos de vida europeus. Em suma, a aniquilação cultural, religiosa, das formas de produção e organização econômica e familiar, das interpretações de mundo exteriores ao padrão de poder moderno/colonial; a eliminação das diferenças históricas, geográficas, socioculturais e linguísticas entre povos originários e descendentes não europeus. Assim, uma multiplicidade de identidades heterogêneas foi oprimida e forçada a se remodelar ou desaparecer, deslocada da origem, rebaixada, marginalizada e subjugada, como consequência da negação da complexidade e diversidade do outro, em uma desqualificação epistêmica do outro. A partir deste sistema, as relações sociais foram reconfiguradas cultural, intelectual e intersubjetivamente, articuladas numa só ordem global e dispostas em categorias dicotômicas de inferioridade/superioridade, orientadas por aquela que, para Silva e Cordiviola (2016, p. 732), é a “mais incisiva de todas, a saber, a dicotomia Velho/Novo Mundo”. Por consequência, Aníbal Quijano (2005, p. 122) reflete a orientação das dualidades entre: “Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Europa e não Europa”. O terceiro eixo, a colonialidade do ser, é exercida justamente pela inferiorização, subalternização e desumanização que ocorrem em conjunto com os demais, como uma marcação de quem tem direito à existência. As relações de espiritualidade e sagradas que conectam os “mundos de cima e de baixo”, não modernas, são colocadas como “primitivas”, “pagãs”. Conforme argumenta Walter Mignolo (2017, p. 26), “a ideia de modernidade é uma ficção na qual o eurocentrismo se funda e devemos tratá-la como tal; o que torna irrelevante a necessidade de sermos modernos”. Dessa reflexão, considerando todos estes processos, surge a proposta da decolonialidade.

Por lo que fue y por lo que pudo ser: os estudos decoloniais Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (MCD): é a partir desta tripla dimensão, e daquela da colonialidade do poder, do saber e do ser, que surge o diagnóstico que nomeia um grupo de estudos formado por intelectuais latino-americanos que têm como motivação “uma energia de descontentamento, de desconfiança, de desprendimento mobilizada por aqueles que reagem ante a violência imperial” (NETO; MORETTI; FLEURI, 2019, p. 15). O grupo (por vezes denominado como “projeto”) se inspira numa variedade de fontes e conhecimentos, e propõe uma maneira diferente de pensar, uma “opção outra” na contramão, questionando a narrativa hegemônica, relacionada à modernidade/colonialidade separada por Aníbal Quijano (2005) como forma de marcar a disjunção entre os termos. Como pontua Ballestrin (2013, p. 110), representa “um trabalho reflexivo coletivo, transdisciplinar e engajado, que ao mesmo tempo em que oferece novas leituras analíticas, é capaz de pensar em termos propositivos e programáticos”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ao refletir e problematizar as questões do continente, o movimento põe em dúvida “o universalismo etnocêntrico, o eurocentrismo teórico, o nacionalismo metodológico, o positivismo epistemológico e o neoliberalismo científico contidos no mainstream das ciências sociais” (BALLESTRIN, 2013, p. 109). A demanda principal pode ser descrita como um “giro decolonial”: é, assim, um “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade” que substitua todo o universo social de produção de sentidos imposto nos últimos mais de 500 anos (BALLESTRIN, 2013, p. 105). Por isso, conforme indica Maldonado-Torres (2007, p. 160), desvelar, desnudar e denunciar a lógica de reprodução da matriz moderna/colonial representa uma mudança de perspectiva e de atitude nas práticas dos colonizados e, também, em um “projeto de transformação sistemática e global das pressuposições e implicações da modernidade, assumido por uma variedade de sujeitos em diálogo”. Dentre as contribuições consistentes do grupo, estão as tentativas de marcar: (a) a narrativa original que resgata e insere a América Latina como o continente fundacional do colonialismo, e, portanto, da modernidade; (b) a importância da América Latina como primeiro laboratório de teste para o racismo a serviço do colonialismo; (c) o reconhecimento da diferença colonial, uma diferença mais difícil de identificação empírica na atualidade, mas que fundamenta algumas origens de outras diferenças; (d) a verificação da estrutura opressora do tripé colonialidade do poder, saber e ser como forma de denunciar e atualizar a continuidade da colonização e do imperialismo, mesmo findados os marcos históricos de ambos os processos; (e) a perspectiva decolonial, que fornece novos horizontes utópicos e radicais para o pensamento da libertação humana, em diálogo com a produção de conhecimento (BALLESTRIN, 2013, p. 110).

A ferida colonial ocasiona a reflexão sobre as subjetividades na construção de

uma outra interpretação dos acontecimentos, sem que deixe de criticar, obviamente, a ideologia que a oprime. A decolonialidade é, para Mignolo (2017, p. 13-14) uma “resposta necessária” às falácias e ficções desse sistema. Além da questão semântica propriamente dita, a preferência pelo termo decolonial, e não descolonial, se dá com a intenção de “provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, insurgir e incidir” (WALSH, 2009, p. 14-15). É um instrumento político-social-epistemológico no sentido da superação de estruturas opressoras. Um movimento de contra-hegemonia e resistência. Então, mais que a supressão de uma letra, a mudança representa não mais o empenho em “reverter o colonial”, mas na busca por um “caminho de luta contínua no qual podemos identificar, visibilizar e incentivar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas [...]” (ibidem, loc. cit.). A discussão transpassa sentidos, como indicam Castro-Gómez e Grosfoguel (2007, p. 17): A primeira descolonização (iniciada no século XIX pelas colônias espanholas e em seguida no XX pelas colônias inglesas e francesas) foi incompleta,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes já que se limitou à independência jurídico-política das periferias. Diferentemente, a segunda descolonização – a qual classificamos com a categoria decolonialidade – terá que dirigir-se à heterarquia das múltiplas relações raciais, étnicas, sociais, epistêmicas, econômicas e de gênero que a primeira descolonização deixou intactas. Como resultado, o mundo dos começos do século XXI necessita uma decolonialidade que complemente a descolonização levada a cabo nos séculos XIX e XX. Ao contrário dessa descolonização, a decolonialidade é um processo de ressignificação a longo prazo, que não se pode reduzir a um acontecimento jurídico-político.

A crítica decolonial procura afirmar uma heterogeneidade histórico-estrutural sem que se negue a história como forma de compreender o compasso do tempo na vida social (MIGNOLO, 2007). A intenção é mudar os termos do debate, reformular sentidos recontando os acontecimentos a partir das experiências massacradas dos colonizados, das “histórias de humilhação que marcam o ponto de referência para os projetos políticos e epistêmicos descoloniais e para a ética decolonial” (MIGNOLO, 2010, p. 33). Contrapor-se à perversidade e (re)tomar o que foi alienado por séculos é pressupor um pensamento fronteiriço como espaço de manifestação da diversidade das histórias subalternas, marginalizadas. Há também a ideia de que prevalece não a universalidade, mas a pluriversalidade, que se desenvolve a partir do conceito de transmodernidade cunhado por Enrique Dussel (2000), em um sistema-mundo que não nega as construções históricas, mas que parte da periferia sem imposições colonizadoras. Nesse sentido, o que se ambiciona é uma desconstrução dos valores coloniais, e uma democratização da sociedade latino-americana em relação ao poder. A decolonialidade procura enfrentar a dominação, a exploração e as demais situações decorrentes do atual estado de coisas a partir da desobediência epistêmica, da não aceitação das opções existentes: algo que diga que se não se pode evitar, “ao mesmo tempo não quer obedecer” (MIGNOLO, 2017, p. 19). Seguir o caminho decolonial significa “pensar a partir da exterioridade e em posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói, erige um exterior a fim de assegurar sua interioridade” (MIGNOLO, 2010, p. 304). A princípio, a decolonialidade dá forma a um paradoxo: “aprender a desaprender, e aprender a reaprender” (MIGNOLO, 2010, p. 305). Mais que revelar o lado sombrio e livrar-se dos padrões modernos/coloniais, o pensamento decolonial pressupõe resistir e pensar “más allá”, alternativas: imaginar um futuro possível antes obscurecido por essa lógica débil. Para Quijano (2016, p. 70), a libertação da prisão da colonialidade “implica também na liberdade de todas as pessoas, de optar individual e coletivamente em tais relacionamentos; uma liberdade de opção entre as diversas orientações culturais”, em um “processo de libertação social de todo poder organizado que alimenta a desigualdade, a discriminação, a exploração e a dominação”.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Assim, diante da tentativa de desenhar uma América Latina – talvez, em especial, a do Sul – Eduardo Galeano acaba por fazer do sul o norte que orienta sua produção. Como aquele que desnuda a podridão do passado e do presente, o uruguaio transmite para o papel o exercício constante da escuta, resgatando a história e a memória repletas de silêncio, golpes, roubos e sangue; mas também uma história rica, plena, sensível e humana. A história dos que “não são, embora sejam”.

Galeano e a história dos ‘ninguéns’, que não são, embora sejam Sem esquecer de suas raízes, Eduardo Galeano, uruguaio de Montevidéu, passou a fazer parte desse mundo em 1940: com um “montão de gente, mar de fogueirinhas”. Como escreve, “não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas” (GALEANO, 2019, p. 11). Um desses fogos que incendeiam a vida, Galeano povoou este mundo trilhando (des)caminhos sem nunca se esquecer de suas raízes. Não à toa, a América do Sul sempre esteve presente em relatos que não recorrem a eufemismos: retratam um real particular das pequenezas das quais muitos não se dão conta ou fazem o possível para que sejam esquecidas. Prova disso é que além da carreira literária, Galeano foi jornalista em periódicos como Marcha e Crisis na Argentina. Ademais, muito se ouviu falar de uma América Latina de Veias Abertas, obra que versa sobre economia política e que, em uma narrativa visceral mostrou um autor aguerrido, combativo e que, ainda que não tivesse uma formação acadêmica propriamente dita, traçou um percurso denso da história do continente. Cabe a postura de tom decolonial já nesta obra: Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neocolonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno (GALEANO, 1994, p. 14).

A crítica nunca abandonou os escritos de Galeano. Ele fez das palavras andantes um veículo para seus vagares pelo mundo: teve diversos títulos traduzidos em muitas línguas. Mais que isso, para lá e para cá, viveu exilado na Argentina e na Catalunha, na Espanha, desde 1973. Com o fim da ditadura uruguaia, 12 anos mais tarde, voltou à terra do Rio da Prata. No entanto, é difícil classificá-lo: escritor? A ironia responde:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Escritor é quem escreve livros, diz o pensamento burguês, que esquarteja o que toca. A compartimentalização da atividade criadora tem ideólogos especializados em levantar muralhas e cavar fossas. Até aqui, nos dizem, chega o gênero romance; esse é o limite do ensaio, ali começa a poesia. E sobretudo, não se confunda: aí está a fronteira que separa a literatura de seus baixos fundos, os gêneros menores, o jornalismo, a canção, os roteiros de cinema, televisão ou rádio (GALEANO, 1980, p. 14).

Como em muitas de suas obras, Galeano traça uma narrativa histórica antioficial. É, sobretudo, uma forma de resistência, denunciando os valores hegemônicos engendrados na nossa cultura, nos nossos modos de ser. Nesse sentido, como indica Traspaldini (2016, p. 33), a história da América Latina é expressa “na luta permanente entre ser para si e/ou ser para outros. Contudo, esta história não é única nem isolada. Conecta-se com outras histórias vividas por vários povos em seus territórios no passado e no presente”. Galeano (1994, p. 9) denuncia, antes mesmo de escrever O livro dos abraços, que os fantasmas das revoluções estranguladas ou traídas durante a torturada história do continente ressurgem, “assim como os tempos presentes tinham sido pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”. Dessa ancestralidade, pensa-se no “único lugar onde o ontem e o hoje se encontram e se reconhecem e se abraçam, e este lugar é o amanhã”. Onde “soam como futuras certas vozes do passado americano muito antigo. As antigas vozes, digamos, que ainda nos dizem que somos filhos da terra, e que mãe a gente não vende nem aluga” (GALEANO, 2019, p. 133). Buscando o saber ao qual se refere, Galeano constrói uma visão não colonialista, que desvenda o oculto, o que se insistiu em dizer que estava esquecido. Assim: Também nos anunciam outro mundo possível as vozes antigas que nos falam de comunidade. A comunidade, o modo comunitário de produção e de vida, é a mais remota tradição das Américas, a mais americana de todas: pertence aos primeiros tempos e às primeiras pessoas, mas pertence também aos tempos que vêm e pressentem um novo Mundo Novo. Porque nada existe menos estrangeiro que o socialismo nestas terras nossas. Estrangeiro é, na verdade, o capitalismo: como a varíola, como a gripe, veio de longe.

Por isso, o que tem a dizer no título aqui analisado é complementar ao conjunto da obra: como a cidade de Armero, somos condenados a “morrer de civilização” (GALEANO, 2019, p. 130). Mas persistimos conta um “sistema de desvínculos”, onde “as bancarrotas são socializadas, os lucros são privatizados. O dinheiro é mais livre que as pessoas. As pessoas estão a serviço das coisas” (GALEANO, 2019, p. 129); um sistema “que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços” (GALEANO, 2019, p. 81). Um sistema que:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Com uma das mãos rouba o que com a outra empresta. Suas vítimas: Quanto mais pagam, mais devem. Quanto mais recebem, menos têm. Quanto mais vendem, menos compram (GALEANO, 2019, p. 107).

O capitalismo, fruto dele, faz com que se pense que, em “nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento?”. Na sequência, um panorama da situação da América como um todo: enquanto “na América Central, as estatísticas sorriam e riam quanto mais fodidas e desesperadas estavam as pessoas”, na Colômbia, “os rios de sangue cruzam os rios de ouro. Esplendores da economia, anos de dinheiro fácil: em plena euforia, o país produz cocaína, café e crimes em quantidades enlouquecidas” (GALEANO, 2019, p. 79). Em divórcios, a crítica prossegue: Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços. [...] O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, nos guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. [...] O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história em vez de fazê-la. As tragédias se repetem como farsas, anunciava a célebre profecia. Mas entre nós, é pior: as tragédias se repetem como tragédias (GALEANO, 2019, p. 121).

Entendemos com a obra que é preciso que nos libertemos “do espelho eurocêntrico onde nossa imagem é sempre, necessariamente, distorcida. É tempo, enfim, de deixar de ser o que não somos” (QUIJANO, 2005, p. 138). Um pensamento que, talvez, ajude a nos livrarmos da “[...] interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários” (GARCÍA MÁRQUEZ, 2011, p. 26). Nas linhas de Galeano, se nota a estrutura de poder que sufoca a dignidade e provoca o suicídio da alma dos sujeitos. Afinal, como reflete Freire (1987, p. 99) em Pedagogia do oprimido, “[...] não há vida sem morte, assim como não há morte sem vida, mas há também uma morte em vida. E a morte em vida é exatamente a vida proibida de ser vida”. Assim, perceber a América Latina é vê-la com complexidade e nas características que a compõem: nas narrativas de Galeano, enquanto espaço de relações entre o real e a imaginação que constituem a memória, o individual e o coletivo que formam as identidades, além da transitoriedade entre passado, presente e futuro.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Como trágica ladainha a memória boba se repete. A memória viva, porém, nasce a cada dia, porque ela vem do que foi e é contra o que foi. Auíheben era o verbo que Hegel preferia, entre todos os verbos do idioma alemão. Auíheben significa, ao mesmo tempo, conservar e anular; e assim presta homenagem à história humana, que morrendo nasce e rompendo cria (GALEANO, 2019, p. 123).

Na apresentação do autor, que faz questão de ser (im)precisa, diz-se que o uruguaio viola, sem remorsos, as “fronteiras que separam os gêneros literários. Ao longo de uma obra na qual confluem narração e ensaio, poesia e crônica, seus livros recolhem as vozes da alma e da rua e oferecem uma síntese da realidade e sua memória” (GALEANO, 2019, s/p.). Em O livro dos abraços, o autor desfila destilando sarcasmo, denúncia e crítica, transita entre um relato análogo ao do jornalismo, mas faz as palavras dançarem expondo as contradições do discurso perpetuado pelo colonizador na estrutura social a partir da ideia de cultura “como dimensão social e política” (SILVA; CORDIVIOLA, 2016, p. 735). Desestabilizando as fronteiras entre fato e ficção; individualidade e coletividade; literatura e história, o tom testemunhal tem o propósito de manter vivo o passado sequestrado da América Latina. Neste sentido, o autor (1982, p. 12 apud SILVA; CORDIVIOLA, 2016, p. 734) aponta, enquanto sujeito de formação cultural afetada pela colonização, no prólogo do primeiro volume de Memória del fuego, que ao longo dos séculos, a “América Latina no sólo ha sufrido el despojo del oro y de la plata, del salitre y del caucho, del cobre y del petróleo: también ha sufrido la usurpación de la memoria”. Se em Anúncios (GALEANO, 2019, p. 77), retrato dos jornais uruguaios de 1840, vinte e sete anos depois da abolição da escravatura sobre os índios, estão “à venda” ou “trocam-se” por um carro pessoas negras, “mulatas”, “uma primeiriça com poucos dias de parida. Não tem cria, mas tem abundante leite bom” ou “uma criada sem vícios nem doenças, de nação conga, de idade de uns dezoito anos, e além disso um piano e outros móveis a preços cômodos”, e o horror se estende. Galeano (2019, p. 140) conta: a Sociedade Antropológica de Paris “os classificava como se fossem insetos: a cor da pele dos índios huitotos correspondia aos números 29 e 30 de uma escala cromática”. Caçados como feras, eram a mão de obra para a extração de borracha do mercado mundial. A quem fugisse das plantações “a empresa os agarrava, eram envolvidos numa bandeira do Peru empapada em querosene e queimados vivos”. A “cultura do terror” aplicada aos nativos foi além, uma vez que, já no século XX, com a tortura não se buscava arrancar informações: “mas uma cerimônia de confirmação do poder. Num longo e solene ritual, os índios rebeldes tinham suas línguas cortadas e depois eram torturados, para que falassem”. Note-se também: A linguagem como traição: gritam carrascos para eles. No Equador, os carrascos chamam de carrascos as suas vítimas:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes – Índios carrascos! – gritam. [...] Os índios são bobos, vagabundos, bêbados. Mas o sistema que os despreza, despreza o que ignora, porque ignora o que teme. Por trás da máscara do desprezo, aparece o pânico: estas vozes antigas, teimosamente vivas, o que dizem? O que dizem quando falam? O que dizem quando calam? (GALEANO, 2019, p. 132).

A narrativa, sobretudo, é contestatória e subversiva, mesmo na forma: Galeano diz mais com menos, torna-se objetivo com o tempo. Como se fosse possível congelar o tempo, o caminho percorrido pelo uruguaio, da grandeza vista nas pequenas coisas, entre lugares, formas de ser, povoados, aldeias e culturas nativas, sem deixar de apontar a crueldade das guerras, das ditaduras militares – no Chile, no Uruguai, na Espanha – e disputas de poder. Fala de crianças, de sonhos, de amor, teologia, luta de classes, banqueiros, e televisão como se fosse um amigo sentado em um banco de praça. Por isso, a partir da escuta, constrói um realismo fantástico particular, com o passar das páginas, a consciência é atingida em cheio: as palavras ora acalentam, ora cortam; oscilam entre o prazer descompromissado, a curiosidade, e o protesto e as dores que, sentidas por um, são sentidas por todos. Assim, se é verdadeira, aponta o uruguaio, quando nasce a necessidade de se dizer algo, não há quem detenha a voz humana: “Se lhe negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde for. Porque todos, todos, temos algo a dizer aos outros, alguma coisa, alguma palavra que merece ser celebrada ou perdoada” (GALEANO, 2019, p. 23). Da lógica de Bernd (2010), reclama-se um sentimento de “americanidade”: com sua voz, transposta às páginas, o uruguaio cria um contradiscurso que deslegitima “relações de poder consideradas opressivas” (ASSMANN, 2011, p. 152), quando “parece apagar as fronteiras entre o político e o poético e se constitui como uma força motriz da maioria dos microrrelatos” (SILVA; CRODIVIOLA, 2016, p. 735). Os “ninguéns” são aqueles aos quais transcende a ignorância alheia, afinal, como apontam Tirloni e Marinho (2013, p. 7): “O ato de ningunear implica um significativo e voluntário menosprezo, decorre do desejo implícito ou manifesto de fazer com que o outro apague sua existência, e introjete o próprio apagamento – apague – se para si mesmo”. Galeano (2019, p. 71) relata: As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros; mas a boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura. Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos: Que não são, embora sejam.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.

No dito e no não dito, da posição de enunciador marginal de Galeano, são compostos retratos da desigualdade, da negligência, da exclusão social como partes integrantes da formação da identidade latino-americana. A obra, em si, é um “jogo de desapropriação” que faz “uma releitura das figurações da América em suas narrativas” (MUNIZ; CORDIVOLA, 2016, p. 4). Como a história, O livro dos abraços dá traços a uma narrativa: fragmentária, sem sequência cronológica, não linear: sem começo, meio e fim. Uma narrativa de morte, dor, sofrimento; mas também de vida, nascimentos e renascimentos.

Considerações finais: um descaminho para nascer e renascer muitas vezes Entende-se que é necessário perceber a América Latina, em sua complexidade e nas características que a compõem nas narrativas de Galeano, enquanto espaço de relações entre o real e a imaginação que constituem a memória, o individual e o coletivo que formam as identidades, além da transitoriedade entre passado, presente e futuro. Vale notar o caminho percorrido pelo uruguaio, da grandeza vista nas pequenas coisas, entre lugares, formas de ser, povoados, aldeias e culturas nativas, sem deixar de apontar a crueldade das guerras, das ditaduras militares e disputas de poder. Sua narrativa é a culminação de um abraço – na França chamada de “pequena morte”: “que ao quebrar-nos faz por juntar-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce” (GALEANO, 2019, p. 95). Assim, pode-se perceber que n’O Livro dos Abraços, Galeano constitui um discurso, mas também atua como narrador/personagem, usando, por um lado, a informação jornalística com pitadas de conto, poesia, narração, ensaio, crônica; e, por outro, a imaginação, a história e a memória para retratar de forma sensível e subjetiva uma América Latina cheia de cicatrizes que “morreu e nasceu muitas vezes [...] e [...] continua nascendo” (GALEANO, 2019, p. 221). Com todas as 191 histórias, o uruguaio ajuda, de certa forma, a subverter a ordem ao expor e repensar as relações de colonialidade: desenha uma América Latina ao contrário, onde, como apontou Torres-García (1941 apud NETO; MORETTI; FLEURI,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 2019, p. 7), “nosso norte é o sul”. Como o retrato que, talvez, resuma a perspectiva decolonial d’O Livro dos Abraços, Galeano (2019, p. 157, grifos do autor) diz que “visível, te mutila sem disfarce” o colonialismo (e por consequência a colonialidade), por meio da cultura do terror: “te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é um destino e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser”. Neste sentido, a obra aqui analisada dá espaço à “história dos ninguéns” e segue o que diz o provérbio lembrado por Galeano – como forma de reafirmação das cicatrizes e da luta protagonizada neste território e por este povo diante do processo histórico destacado nestas linhas: porque “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador” (GALEANO, 2019, p. 116).

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PRIMEIRO COMANDO: A TRANSGRESSÃO SARDÔNICA DAS METANARRATIVAS DO MC ZÓIO DE GATO COMO ARTE CONTRA-HEGEMÔNICA Victor Fermino da Silva

Introdução Encontrar elementos da não-ficção em obras de cultura popular é sempre um exercício no reconhecimento de fronteiras das narrativas de não-ficção. Se por um lado, o relato de um evento real pela perspectiva do eu-lírico em uma música a faz tão próxima do jornalismo literário quanto Guerra e Paz, por outro lado encontramos a possibilidade de enxergar o desejo de falar a verdade por meio de outras vozes, outras narrativas. As obras de MC Zóio de Gato1, mesmo que esparsas, desvelam realidades exploradas de outras formas por outras mídias e outras vozes: os cinco dias de terror em São Paulo foram objeto de leitura sob a ótica jornalística, como no livro A Guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil, escrito por Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias; o cotidiano de facções criminosas e de seus pares também, como foi o caso de Abusado, de Caco Barcellos. Nessas duas obras, não é difícil perceber o contrato com o leitor e categorizar os textos como jornalismo, ou, ao menos no caso de Abusado, como jornalismo literário. Na cena seminal do funk proibidão paulista, as letras “falavam principalmente sobre o crime, armas, e não sobre ostentação. Mas essas letras nada mais eram do que um retrato do cotidiano dos jovens de periferia: criminalidade x sociedade x preconceito” (Ribeiro, 2015). Essa proximidade entre os discursos autobiográficos e grupos sensíveis a ações de um estado policial é um convite para examinar esses mesmos discursos sob uma perspectiva epistemológica que permite observar esses discursos transgressivos como algo mais do que meras instâncias de cultura popular. Tudo que não faz parte de um cânone aceitável da cultura popular precisa sempre ser lido com cuidado. 1 Há quem prefira se referir ao músico como Zói. Devido à variedade de nomenclaturas utilizada para se referir ao artista, optamos por Zóio, porque pareceu mais similar à forma como o nome é pronunciado

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Neste texto, buscamos analisar pequenos pontos de contenção dentro de um artista específico do funk paulista, como forma de contravenção a um discurso hegemônico e como veículo de refrações da realidade. Devido à forma da investigação da retórica, se trata de uma observação mais ensaística do que metodologicamente formalizada com um fim concreto.

Falas limpas e falas sujas O funk proibidão brasileiro representa, em muitas ocasiões, um movimento artístico contra-hegemônico cujo caráter transgressivo parece ironicamente ocluso dentro desta nossa contemporaneidade. É importante notar que o proibidão surge em duas formas: o proibidão mais ligado à sexualidade, e aquele mais ligado ao crime. Embora tenham a mesma nomenclatura, o proibidão mais sexual tem uma aderência naturalmente maior com o grande público, visto que as alusões mais literais a atividades sexuais costumam ser alteradas e censuradas. Com isso, artistas como Valesca Popozuda e Mr. Catra conseguiram se adaptar nos circuitos mais aceitáveis (moralmente falando). Enquanto isso, os proibidões de crime amiúde permanecem longe dos olhos do mainstream. É importante notar também que os proibidões mais sexuais contam com ritmos feitos sob medida para festas e danças acaloradas. Georges Bataille, em A literatura e o mal, conseguiu traçar elementos retóricos em obras literárias que ele destacou como exemplo para discutir a dialética entre ordem e caos, hegemonia e transgressão. Antes da popularização do funk pancadão como gênero domesticável, havia uma miríade de artistas cujas obras não encontraram o caminho para um disco de platina e MC Zóio de Gato (nome artístico de Dener Antonio Sena da Silva) cantava sobre crimes e sobre injustiças sociais com uma desesperança que ressoa dentro do Brasil necropolitizado de hoje. Na música Primeiro Comando, Zóio canta sobre os “cinco dias de terror” nos quais a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) promoveu um ataque coletivo por dezenas de alvos em São Paulo, matando pelo menos 59 policiais. Para Burke (1969), o papel da retórica não é o convencimento, pura e simplesmente. Não se trataria de um modelo bancário, com uma fórmula mágica que define como se convence cada pessoa. Ao invés disso, ele acreditava em um princípio de consubstancialização dos agentes discursivos: isto é, cada agente discursivo usa enunciações para criar identificação. Essa identificação se manifesta de múltiplas formas: o exemplo mais simples é no caso de uma música que soa familiar para um certo grupo. Tal grupo então se agrega “ao redor” daquela música, por meio de uma substância comum. Embora muito útil para esse exemplo, Burke talvez seja muito vago em relação a certos termos. O que ele chama de substância, por exemplo, não é algo relacionado a uma essência primordial, mas uma identidade resultante do processo dialógico das múltiplas divisões e consubstancializações pelas quais o indivíduo participou. Com isso, Burke propõe uma visão dialética da retórica, onde mesmo os termos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes antagônicos ajudam a “cooperar para a construção de uma forma completa” (Burke, 1969, p. 23). Usemos um exemplo do próprio Rhetoric of Motives: as torres das igrejas. Simbolicamente, elas representam o movimento de ascensão da terra ao celeste. Figuras arquitetônicas belas, que precisam, por obrigação, serem mais altas que as construções ao redor. E isso é uma obviedade, mas uma obviedade dialética: as torres só são altas porque todas as outras construções são telúricas. Obviamente, podemos trocar essa metáfora por algo mais contemporâneo, talvez relacionado aos arranha-céus do capitalismo. Mas vamos nos ater à religião para que o exemplo a seguir faça mais sentido. “Entretanto, a oposição pode notar: há os calabouços da religião, também. De fato, existe o underground” (Burke, 1969, p. 186, tradução nossa2). Burke comenta que os prédios maiores que as torres das igrejas são o que denotam a ordem teleológica desse mundo que ele chama de pós-cristão. Mas retornemos a esse tal underground: o vil ocluso que está abaixo do terreno mas que, portanto, expressa tanto os limites daquela cultura quanto a mais sacra das torres. Enquanto hegemonia, o Estado que perpetua o racismo estrutural exerce sua soberania necropolítica reproduzindo o discurso das vidas baratas da população negra, o que é semioticamente paralela à população periférica. Com isso, as mortes de membros de facções criminosas, em noticiários policiais, reforçam a noção de punitivismo como justiça efetiva contra os indivíduos ruins. E se o problema criminal é, de fato, um resultado da índole individual, e não da soberania sistêmica do Estado necropolítico, então tudo que reproduz a cultura que é oprimida por esse Estado é uma abominação imoral. Importante perceber que a imagem do funk como gênero com foco em libertinagem remete a outro mito, que é o do negro estuprador. É uma imagem interessante porque o apelo a esses aspectos exagerados que ameaçam outras classes oprimidas (especialmente mulheres brancas) apresenta um obstáculo na discussão da opressão à cultura do funk com grupos progressistas (Davis, 1981). O funk, especialmente aquele que não busca um público convergente com a música pop, se encontra nessa intersecção. E a figura do “bandido”, seja ele um assaltante, um soldado do tráfico, um cantor ou um simpatizante, é a imagem daquele que merece morrer, daquele que a hegemonia definiu como “descartável” (Mbembe, 2018, p. 41). Tal ambiente opressivo, no qual um grupo hegemônico é responsável por definir o Bem enquanto modelo social, propicia a reação dialética do Mal como fenômeno discursivo. Contudo, o funk no imaginário popular sempre evoca uma grandeza dialeticamente conflitante com o discurso hegemônico, pois não se trata de um gênero discursivo completamente alheio à fala do Bem: trata-se de uma negação de elementos ditos essenciais para esses bons costumes. No caso do funk proibidão, que corre o risco de ser oficialmente3 criminalizado, esses elementos são levados à mais longínqua fron2 However, the opposition might point out: There are the catacombs of religion, too. True, there is the underground 3 Embora formalizado em algumas propostas como a SUG 17/2017, que foi unanimemente descartada, o fantasma da associação ao crime ainda assombra os apreciadores e artistas do gênero. Os bailes funk por todo o país, especialmente os que se situam na periferia, são alvos fáceis para ações opressivas da polícia.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes teira do discurso, que é o Mal soberano (em relação ao bem). E o mais interessante é que, neste caso, o excesso serve perfeitamente para ilustrar a análise que Bataille fez da obra de Sade: ler o seu trabalho como uma apologia, como uma defesa sincera do mundo do jeito que é, seria um desrespeito à arte e à sua natureza transgressora. Mesmo quando mais canta sobre a glória do crime, há uma melancolia no fato de saber que é um crime, que o mundo do eu-lírico é do jeito que é. O conflito dialético-cultural entre o funk e a hegemonia possui uma raiz histórica e material, e pode ser diretamente associada a uma questão racial: esse mito de que a cultura negra ainda estaria presente por uma providência branca ainda se postula nos discursos sobre raça no Brasil. Tal discurso coloca a relação entre grupos opressores e oprimidos no plano do diálogo amigável. “Canções, danças, comidas, religiões, linguagem, de origem africana, presentes como elemento integral da cultura brasileira, seriam outros tantos comprovantes da ausência de preconceito e discriminação racial” (Nascimento, 2016, p. 66). A realidade, mesmo que depois de tanto tempo, não é tão amistosa assim, e essas mesmas canções, danças, comidas, religiões e linguagens são vistas como um aviltamento dos atuais “bons costumes”. Pois o problema não é, necessariamente, a arte que fala sobre o crime, mesmo que em primeira pessoa. Não é como se filmes como O Irlandês fossem colocados no mesmo plano que as músicas de MC Zóio de Gato. Uma problemática que surge nesse embate entre o discurso hegemônico e o rebelde é que não há apenas uma forma de funk, que se resume ao proibidão: na verdade, boa parte de suas propriedades enquanto gênero discursivo foram domesticadas dentro de um contexto de produção cultural digestível. Encontramos elementos da construção discursiva da cultura do funk, tanto nas letras quanto nas danças, em diversos outros artistas populares, incluindo aqueles que não reproduzem discursos periféricos. Assim como o rap, como o jazz e como o blues, é um gênero que se expandiu para além da classe que o originou, se tornando ao mesmo tempo uma coisa amplamente aceita como única. Entretanto, no caso de uma multiplicidade de artistas, o elemento da música pop ainda se sobressai em relação música a ser desprezada e uma música a ser normalizada. Depende do discurso. Em termos metanarrativos, representa uma cooptação do transgressivo para torná-lo aceitável. Mas não apenas aceitável para a hegemonia, aceitável também para os grupos que produzem o discurso transgressivo de outrora. Evidente que não é todo subgênero popularizado do funk que representa uma absorção da hegemonia: os funks cantados por drag queens, como Pabllo Vittar, Gloria Groove e Lia Clark, por exemplo, representam um choque em outra direção, no que diz respeito a noções de gênero, tanto nas letras quanto nas técnicas vocais. Mas o funk proibidão é aquele que de fato traz a transgressão ao cerne do gênero, e tende a ser o maior alvo das discussões sobre a criminalização das músicas e dos bailes. E, mesmo com esse tensionamento, se trata de um gênero popular imensamente orgânico, que segundo Vianna (1990), não pode ser considerado, de forma alguma, uma imposição da grande imprensa.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Essa estigmatização do crime como comportamento subversivo apenas para algumas classes ou culturas faz sentido se pensarmos na estrutura que condiciona esses sistemas: a representação da justiça serve para nos lembrar não apenas o que é certo ou errado, mas principalmente quais classes nos dominam. A voz violenta dos oprimidos não é um fenômeno anatópico: se é para citar Bataille, faz sentido falar seu ensaio sobre o Jean Genet de Sartre. Genet, que “se propôs a buscar o Mal como outros se propuseram a buscar o Bem” (Bataille, 2015, p. 170), discursava sobre o crime através de uma inversão de denominadores comuns da virtude. E reside aí a diferença epistêmica entre Jean Genet e MC Zóio de Gato: o francês exaltava o Mal ao ponto de transformá-lo de ato de transgressão em idealização como Bem. Segundo Bataille, o submundo de Genet fracassa por não apaixonar, por ser tão acomodado à sordidez que se torna frio. “A literatura é a comunicação. Ela parte de um autor soberano, para além das servidões de um leitor isolado, e se dirige à humanidade soberana” (Bataille, 2015, p. 181). Em contrapartida, o discurso de MC Zóio de Gato repercute uma relação dialógica com o Bem, com o discurso hegemônico. A relação, evidentemente, é de antagonismo, ou de revolta, mas ainda é um diálogo. E tal qual no caso de Genet, há um lugar de fala autoral que agrega à obra uma noção do que foi a construção do seu discurso. Destarte, as narrativas das músicas de MC Zóio de Gato, ainda que tematicamente variadas, carregam o contexto biográfico do autor, e esse fantasma da relação sistêmica entre ele e a cultura hegemônica possibilita uma transgressão mais sardônica dentro do meio. Ao falar sobre riquezas, sobre amor, sobre saudades e ainda assim relacionar esses temas gentis à aparente vilania de uma facção criminosa, a construção discursiva de MC Zóio de Gato ironiza a soberania cultural que o oprime.

A não-opção do moleque A questão é que, quando materializada em livro, a narrativa chega a um novo patamar cultural. No caso do jornalismo literário, ele “cresce, supera o caráter perecível do texto jornalístico tradicional, transcende o tempo, chega a um público diferenciado e conquista um status cultural de maior prestígio quando se apresenta em forma de livro” (Lima, 2009, p. 352). E esse esclarecimento sobre o jornalismo literário faz sentido quando falamos sobre livros, mas é interessante pensar nessa catarse cultural por outros meios: nos filmes documentais, nas músicas. Não se trata de afirmar categoricamente que uma música sobre um fato é jornalismo literário (ou mesmo jornalismo), mas de encontrar, em uma obra distante, um mesmo princípio de verdade no qual o jornalismo se converge. Diferente de uma outra obra que poderia ser considerada ocasionalmente convergente com o jornalismo literário, que é a Ilíada, o funk proibidão documental possui ainda mais o caráter de aversão aos definidores primários. Dentro do jornalismo que

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes almeja a objetividade, a regra é confiar aos “definidores primários o papel de intérpretes da realidade, delegando ao repórter a função de mediador e de «garimpador» de declarações dessas fontes” (Passos, 2010, p. 88). Nesse caso, a verdade é um objetivo em um plano cartesiano que dificilmente pode ser atingido sem o acesso aos cientistas, aos especialistas, aos órgãos governamentais. Embora necessário, esse jornalismo como forma de reprodução de poder disciplinar4 abre espaço para outros discursos, que possivelmente não fazem parte do jornalismo. Mas tal qual numa peça de teatro, está tudo nos atores: nesses possíveis discursos às margens do jornalismo hegemônico, encontramos personagens que “têm a validação de sua fala articulada a partir de suas vivências, que lhes conferiria credibilidade de modo independente de um amparo institucional.” (Passos, 2010, p. 89) Quando se pensa nas origens do contar uma verdade sob uma intenção estética, pode-se até dizer que a prática vem de quando o humano “começou a se questionar, pensar, simbolizar e, sobretudo comunicar suas inquietações e descobertas sobre essas questões que continuam nos intrigando até hoje” (Martinez, 2016, p. 29). Essa gênese explica não o jornalismo literário, mas a filosofia em si. Mas é um bom ponto de partida quando consideramos a questão da condição humana nessa origem do pensamento filosófico (e consequentemente, do jornalismo literário), porque é também o objeto sobre o qual Bataille oferece outras perspectivas. E, na prática, o jornalismo literário, escrito a partir da pele (Rabinovici apud Martinez, 2009), representa uma busca de continuidade na vida interna. Jornalismo feito de fora para dentro. E se esta for uma aproximação válida, talvez as músicas de MC Zóio de Gato estejam mais próximas do João do Rio do que de um funk feito para dançar. Em Primeiro Comando, com participação de MC Kelvin e MC Bruno, MC Zóio de Gato canta aquilo que parece ser um canto de guerra, ou de exaltação, em nome do PCC5. Mas além disso, há as menções a membros da facção, como Sidney, Ronaldinho, Gordão, Cabelo e Nenê (Gato, 2007a). Essa prática de mencionar os amigos não é exatamente incomum no mundo do funk. Além de MC Zóio de Gato, o fluminense MC Orelha, autor de Faixa de Gaza, também canta letras que aludem a pessoas reais nominalmente. E, num caso mais recente, a Homenagem pra tropa do Rodo, de MC Poze do Rodo, lista os “irmãozinhos que agora estão no céu” (Rodo, 2018). Essas homenagens nominais a soldados do tráfico (ou em alguns casos, inocentes não envolvidos na guerra) denota o caráter sardônico de uma narrativa da relativa impotência do artista em relação aos sistemas.

4 Tal qual diz Foucault, a leitura de como funciona o poder pode partir de uma perspectiva ascendente, isto é, não como ele funciona de um centro e se propaga em classes sobre as quais a classe dominante tem poderio, mas analisar a ocorrência do poder como fenômeno do qual não podemos escapar: sendo assim, divide-se poder em soberania (o poder óbvio) e disciplina (o poder sugerido como verdade natural). Neste caso, ao me referir ao jornalismo como disciplina, estou colocando-o como instrumento de normatização social (seja no caso do jornalismo de pirâmide, do literário, do hegemônico ou do transgressivo, mas em diferentes graus e com diferentes sujeitos) 5 Primeiro Comando da Capital, ou PCC, é uma organização criminosa que atua principalmente em São Paulo, mas também está presente em 22 estados do Brasil

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Diante desses espécimes narrativos de impacto, a presença de canais por onde factualidade e ficcionalidade sutilmente se tocam não esconde afinidades com componentes provenientes de outras ficcionalidades, ou seja, as das mídias visuais (cinema, televisão, fotografia, videogame etc). (Bulhões, 2006, p. 177)

Como dito anteriormente, não é nosso objetivo afirmar categoricamente que algumas músicas do MC Zóio de Gato façam parte do jornalismo literário, até porque música e literatura já são diferentes; a questão aqui é que algumas das mesmas propriedades que governam a compreensão da natureza do jornalismo literário podem ser encontradas em outras obras. A música de não-ficção conta uma história. Portanto, faz mais sentido repensar a questão do jornalismo enquanto arquiescritura6 ao invés de como puramente um gênero discursivo ou uma constelação de gêneros discursivos. Esse encontro entre jornalismo e outros meios que não são jornalismo (mas também não são necessariamente literatura) podem não necessariamente surgir de um descontentamento com as práticas jornalísticas dentro de uma compreensão crítica às instituições jornalísticas; o que observamos, no caso de MC Zóio de Gato, é uma expressão de contestação materialista dentro das relações do artista com o mundo ao seu redor. Isso inclui a forma como a imprensa reproduz a percepção social de jovens que moram em favelas, mas não representa, em si, uma tentativa de fazer jornalismo. Representa, entretanto, uma tentativa de expressar a sua realidade. Se observarmos as denúncias e descrições de eventos no funk proibidão, encontramos vários motivos para discutir também a função do jornalismo para quem não tem a preocupação com lides, pirâmides invertidas, fatores de noticiabilidade. Mesmo uma obra como Medo e Delírio em Las Vegas, de Hunter Thompson, parte de uma compreensão epistêmica do método jornalístico, e trabalha com sua negação parcial. Mas no caso do MC Zóio de Gato, não há necessariamente uma negação consciente do trabalho jornalístico enquanto hegemonia: há uma negação tácita do discurso hegemônico que rege a vida do autor. Mais importante do que compreender onde e como esse tipo de música poderia se encaixar em um gênero, questionemos a fortiori o que um elemento sempre presente nas descrições e definições desse gênero significa: verdade. E sob um certo ponto de vista, a verdade é não apenas um instrumento, mas uma reafirmação do poder. Segundo Sims (2009, p. 8), “as constelações literárias que observamos em nossa noite estrelada não possuem significado quando vistas de outra galáxia”, e talvez essa metáfora se mostre suficientemente complexa para falar que, embora as constelações inspirem significações diferentes, as estrelas são as mesmas. No caso, o que observamos está justamente nessa intersecção entre o discurso polifônico (devido à transgressão) e a fala franca. Embora autores como Chico Felitti, Eliane Brum, Caco Barcellos e Mário Magalhães produzam jornalismo que alguns vão chamar de literário 6 Para Derrida, arquiescritura é o campo anterior à escritura que permanece sempre em sua própria abstração, nunca podendo se aproximar do objeto.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (mesmo que os próprios autores nem sempre estejam de acordo com o termo), suas obras são joias lapidadas, amálgamas de tudo que aprendemos com o tempo enquanto buscávamos o texto didático, verdadeiro e belo. Mas é justamente em uma obra como a de um MC Zóio de Gato que a parresía é completamente despida e aviltada (no bom sentido). No funk proibidão, a verdade é tão vil quanto a realidade. Sob a perspectiva hegemônica, a verdade não está nos versos de um músico de periferia, mesmo que ele cante sobre sua vivência, ou sobre histórias reais de sua quebrada. A única expressão desse grupo oprimido em relação a seus opressores sistêmicos, neste caso, pode ser justamente a da música, das artes mais informais. Mesmo com as dinâmicas unilaterais, ainda há um tensionamento nas relações de poder, pois este nunca está nas mãos de um só grupo (Foucault, 1977). O autor, a figura individual, produz neste caso, o tal discurso da descontinuidade. O autor, não entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. Esse princípio não voga em toda parte nem de modo constante: existem, ao nosso redor, muitos discursos que circulam, sem receber seu sentido ou sua eficácia de um autor ao qual seriam atribuídos: conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos que precisam de signatários mas não de autor, receitas técnicas transmitidas no anonimato. (Foucault, 1997, p. 26)

É por meio dessa descontinuidade, sempre em diálogo com os arredores, que o discurso transgressivo do funk proibidão adquire um caráter polifônico. Não se trata de um discurso que inclui várias vozes, mas de um discurso que por si adere a um diálogo social constante e se insere como uma das vozes com importância. Essa descontinuidade, no entanto, entra em conflito com a intertextualidade bakhtiniana em certos pontos, pois não é que o texto se perde quando encontra pontos de tensão com outros textos, ou outros agentes discursivos: em Bakhtin, a continuidade e a relação entre textos é contínua justamente por essas relações, que podem ou não ser quebradas, ignoradas, refutadas. Bezerra (2008, p. XVIII) diz que “o fundamento do processo dialógico é a interação entre vozes que povoam a obra literária”. Posteriormente, Bezerra questiona se é possível dar conta de uma grande tensão na obra literária partindo dessa “intertextualidade”. Ora, o caso do MC Zóio de Gato é similar a Gente Pobre, de Dostoiévski (e com isso não estamos sugerindo que, para Bakhtin, tudo que Dostoiévski escrevera em sua vida era romance polifônico): trata-se de um indivíduo sofrendo uma individuação discursiva e sendo permitido a voz rebelde. Podendo se comunicar. E se pensarmos na obra dentro-de-si, é claro que assim como no caso de Gente Pobre, uma música como Primeiro Comando não conta com essa pluralidade discursiva em um sistema interno. “Polifonia e retórica. O jornalismo, com seus gêneros, concebido como retórica contemporânea. A palavra da retórica e a palavra do romance. Força persuasiva da arte e força persuasiva da retórica” (Bakhtin, 1997, p.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 392). Retornemos a Burke. A persuasão retórica se dá por meio da consubstancialização. A polifonia desse discurso se dá por uma consubstancialização da verdade de um grupo social que precisa se sentir ouvido. O discurso é persuasivo quando ecoa. Ecoa quando o enunciado emana de uma continuidade humana. A polifonia só é percebida observando o discurso dentro de um sistema metanarrativo, onde o não-discurso direto do interlocutor é justamente o que permite ao autor dar validade ao seu discurso. É importante notar que o enunciado (dentro de um gênero, mas ainda singular) ainda reproduz enunciados alheios de acordo com a perspectiva bakhtiniana. “O que ocorre é que na medida em que os enunciados são usados por um dado sujeito — com uma certa intenção discursiva e um horizonte ideológico, em uma dada situação social e direcionado a algum destinatário —, eles ficam marcados pela expressividade daquele sujeito. Ressalva-se, então, que o traço da singularidade do enunciado não pode ser tomado como se o indivíduo fosse a primeira fonte do sentido.” (Severo, 2013, p. 147) Pois tal qual se estivesse transmitindo os conteúdos de suas letras através de panfletos ou de uma rádio comunitária, MC Zóio de Gato discursa com a mesma parresía, a partir do mesmo locus de fala que teria se fosse um repórter de periferia. A parresía, ou fala franca, representa, “uma virtude, dever e técnica que devemos encontrar naquele que dirige a consciência dos outros e os ajuda a constituir sua relação consigo” (Foucault, 2010, p. 43). O ato e compromisso de dizer a verdade se encontra aqui intrinsecamente ligado ao lugar de fala do moleque da favela: sem esse posicionamento de mundo, esse discurso não seria possível enquanto verdade. É na voz de MC Zóio de Gato que os versos sobre guerra fogem da ficção e se encontram no campo biográfico. Dentro desse campo da não-ficcionalidade, o teor discursivo do Mal de MC Zóio de Gato projeta, em sua construção, ares de desejo de alteridade. Mesmo além das letras sobre universalização do amor materno, a representação dessa vida barata de uma parcela oprimida da população ecoou na sua presença como artista até a sua morte, em 2009. “Cheguei ao mundo pretendendo descobrir um sentido nas coisas, minha alma cheia do desejo de estar na origem do mundo, e eis que me descubro objeto em meio a outros objetos” (Fanon, 2008, p. 103). Um elemento predominante nos proibidões é a natureza literal das letras: não é incomum encontrar descrições diretas do que o eu-lírico faz. Assim como no jornalismo, há uma certa precisão que só se perde quando as gírias duras são colocadas nas letras. Mas quando se trata de dar nomes, o proibidão de crime vai ao ponto: ele fala sobre PCC nominalmente, ao introduzir músicas já com “Para começar esse funk, sem neurose eu vou dizer, não é falando de buchicho e também nem de PCC” (Gato, 2007b). E quando é para repetir em outras partes da letra, quando a rima talvez não combine, outras formas também óbvias são encontradas: 1533 (a décima-quinta letra do alfabeto, que é a letra P, seguida por duas vezes a terceira, que é a C, formando a sigla PCC), ou “1 P e 2 C que fez a Zona Sul tremer” (Gato, 2007a).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ainda em Primeiro Comando, o autor narra, com alta riqueza de expressões específicas, alguns comportamentos de seus colegas. É o caso do “irmão Jagunço”, que vem com sua “fura” (a gíria mais comum nacionalmente seria “brinquedo de furar moletom”, e suas variações, mas o contexto permite que se faça uma leitura rápida com esse sentido no discurso) na mão. Enquanto a posse de armas ainda é um tabu político em mídias hegemônicas, é justamente nessa narrativa contra-hegemônica underground que a naturalidade de se andar por aí armado que um outro elemento da realidade se encaixa. Os calabouços. O Mal. A transgressão. Outro elemento interessante na música é a referência a “cuspir na cara dos verme”, que provavelmente é uma figura de expressão, mas ainda se integra ao discurso de não-ficção do resto da música para apresentar uma intencionalidade ante a relação antagônica do artista com as forças policiais do Estado. Mas se os elementos de ficção subtraem da verdade parresiasta de MC Zóio de Gato e de sua proximidade com jornalismo narrativo, devemos talvez considerar que Hunter Thompson e Truman Capote sofrem do mesmo dilema. Mas talvez seja o caso de considerar a verdade em seu núcleo, e não rigidamente em sua totalidade.

Considerações finais A convergência entre a intenção do jornalismo e o funk proibidão de MC Zóio de Gato não se dá na forma, mas na construção. Com isso, a ideia do jornalismo narrativo se encontra quando interpretamos a mensagem por trás dessa verdade discursiva na música e no autor. Não há uma conclusão definitiva a respeito da natureza de boa parte das obras discursivas produzidas como arte na história da humanidade, mas observá-las como parte de uma narrativa que, mesmo dissidente e transgressiva, “colaboram” para uma polifonia. O caso do funk proibidão é complexo porque é um discurso de extrema tensão: há uma violência explícita tanto na voz do artista quanto na hegemonia que o condena. Em alguns casos, a transgressão vem de uma posição de assimetria: o artista argumenta com poiesis lírica, a sociedade o condena com leis, com permissibilidade aos sistemas opressivos; no caso de músicas como Primeiro Comando, o artista fala sobre usar armas contra o Estado que usa armas contra ele. Encontrar maiores significações em qualquer tipo de expressão que se coloca ou é vista como naturalmente contrária a um mundo hegemônico ou status quo é também encontrar ideologemas necessários a toda forma de discurso dissidente. No caso deste trabalho, a música marginalizada de um artista marginalizado ecoa vozes para a identificação de um pathos que só se encaixa através da inclusão dessa narrativa dissidente. Mesmo (ou especialmente) fora desse escopo teleológico, músicas como Primeiro Comando e Fábrica de Bico constituem um discurso que não é necessariamente das massas, mas que refrange as intersecções em uma pedra que se mostra polêmica perante a hegemonia. Para Burke, um diálogo que consubstancializa os rebeldes.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Para Bataille, um discurso que encontra a vida na descontinuidade. Para Bakhtin, a contradição dialética. Para Foucault, o discurso contra o poder.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes MARTINEZ, Monica. Jornalismo literário: tradição e inovação. Florianópolis: Editora Insular, 2016. NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro. 4. ed. [s.l.] : Perspectiva, 2018. PASSOS, Mateus Yuri. De fontes a personagens : definidores do real no jornalismo literário. [S. l.], p. 86–97, 2010. RIBEIRO, Eduardo. Demorô, fechô: uma década sem MC Zóio de Gato. VICE Brasil. Acesso em: . 2015. RODO, MC Poze do. Homenagem Pra Tropa do Rodo. 2018. SEVERO, Cristine Gorski. Bakhtin e Foucault: apostando em um diálogo. In: Círculo de Bakhtin: pensamento interacional. [s.l.] : Mercado de Letras, 2013. p. 143–166. VIANNA, Hermano. Funk e cultura popular carioca. Revista Estudos Históricos, [S. l.], v. 3, n. 6, 1990.

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ANÁLISE DO GÊNERO “POESIA DOCUMENTAL” NO JORNALISMO CULTURAL E LITERÁRIO Andressa C. Monteiro

Introdução Informações políticas, sociais, culturais, históricas, demográficas e geográficas são, de fato, importantes em um texto jornalístico. No entanto, quando tragédias, desastres naturais, crimes e situações extraordinárias acontecem e nos deixam sem explicações racionais ou lógicas, é possível que o Jornalismo consiga ser mais sensível em relação ao fenômeno ocorrido e que os indivíduos da história e o público reajam de maneira crítica ao que aconteceu? Saber como é a experiência e o cotidiano das pessoas que fazem parte dos fatos - e não somente transformar uma narrativa em dados e estatísticas - pode ser tão fundamental quanto compreender por quais razões sociais, políticas ou científicas uma história pode ser analisada. Quantas vezes, buscamos, por exemplo, na filosofia e na poesia significados e explicações para abstrações que acontecem em nossos mundos? É interessante pensarmos em formas contra-hegemônicas e dissidentes na produção de narrativas jornalísticas – com a participação mais efetiva de fontes não oficiais, isto é, de especialistas e de indivíduos e grupos institucionais, em um processo dialógico que visibilize as vozes das personagens que fazem parte dessas histórias. Este capítulo, portanto, buscará entender possíveis relações entre a Poesia e o Jornalismo por meio do gênero “poesia-documental”, que pode fazer parte do universo do Jornalismo literário e do cultural. O objeto de análise será o poema Clinic (2019), de Alissa Quart, em parceria com a fotógrafa Maisie Crown, ambas norte-americanas. Retirado do livro Thoughts and Prayers (2019), de Alissa Quart, o poema faz parte do projeto multimídia The Last Clinic (2013), que deu origem a um documentário de mesmo nome. Porém, pelo poema ser extenso, dividido em nove partes, serão analisados apenas os três primeiros trechos que já explicam como o texto é estruturado e qual é o seu principal tema: a experiência de aborto entre mulheres americanas de diversas idades.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A proposta é a de investigar novas formas de linguaguens poéticas, estéticas e críticas explicando o que é o genêro “poesia documental” e como ele pode produzir narrativas jornalísticas de resistência em pautas a favor do aborto entre as mulheres. Logo, o foco será em como trabalhos de jornalistas e/ou poetas ajudam a enriquecer a produção desse tipo de texto dentro e fora da academia.

Relações entre Poesia e Jornalismo Oliveira (2010) nos explica que há pelo menos 20 anos poemas e textos literários estiveram presentes nos jornais, como é o caso do caderno “Sabático” (2010), do Estado de S. Paulo, da “Ilustríssima” (2010), da Folha de S. Paulo, ou do caderno “Prosa & Verso” (1995), de O Globo, além de revistas como Piauí e Vida Simples. A união entre jornalismo e poesia veio, segundo o autor, do movimento naturalista, que teve seu auge na Europa, no século XIX. Unir poesia e jornalismo, para Oliveira, é estabelecer uma prática de desautomatização de um discurso jornalístico, visto comumente na mídia, preocupado, predominantemente, com questões de mercado, de consumo e de otimização de tempo dentro das empresas de comunicação. Para o autor, por meio do Jornalismo Cultural, haveria espaço de efetivação de “estratégias textuais como o diálogo com as artes – mais visível nos textos que propõem uma aproximação entre jornalismo e literatura ou entre o jornalismo e poesia” (Oliveira, 2010, p.84). Além de observarmos uma escrita mais afetiva e sensível, podemos dizer que há na ligação entre poesia e jornalismo um dialogismo bahktiniano (2012) que cria uma pluralidade de vozes em reportagens jornalísticas observadas pela perspectiva da estética do cotidiano – onde a experiência dos indivíduos participantes é primordial, sem a necessidade da mediação extrema e do julgamento de gosto ou de caráter vindos de fontes oficiais em relação a um tema ou a uma história. Para Lugão (2012), no Jornalismo literário, a partir de influências da literatura e do romance, se faz o oposto do que é comumente visto no Jornalismo de pirâmide: transforma-se um fato social em literário. “Se há a tentativa de extrair um conhecimento sobre a realidade a partir da Literatura, nesse tipo de Jornalismo se extrai Literatura da realidade, é a Literatura do Fato”. (Lugão, 2012, p.57). Segundo a autora, há uma fidelidade na experiência pela qual um indivíduo passa que leva-o a uma desobediência às convenções formais. “Tanto a valorização do indivíduo quanto a criatividade causada pelo afastamento das convenções são características encontradas no Jornalismo Literário”. (Lugão, 2012, p.57). Lugão comenta que jornalismo e história acabam por desempenhar a mesma função, pois suas autoridades científicas são provenientes de fatos. Aqueles que produzem o Novo Jornalismo [New Journalism] escolhem eventos de ordem diferente daqueles do Jornalismo convencional para serem incluídos em sua narrativa. Se estes acreditam que a “narrativa completa” tem

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes informações objetivas, gerais e eventos grandiosos cuja divulgação deve ser imediata, os primeiros prezam pela subjetividade, o detalhamento minucioso e o evento cotidiano, pois acreditam que eles sejam mais significativos na representação do real. (Lugão, 2012, p.64).

Assim como no New Journalism, se observamos a estética da “poesia documental” perceberemos uma descentralização no poder de escolha das fontes, além de notarmos uma importância maior ao registrar eventos cotidianos que fazem parte das vidas das pessoas retratadas. A junção do Jornalismo com a Poesia no Jornalismo cultural e literário pode criar um hibridismo interessante, como aponta Oliveira (2010) ao citar exemplos de escritores como Manuel Bandeira, em Poema Retirado de Uma Notícia de Jornal1 ou nos versos de Carlos Drummond de Andrade em Poema do Jornal2, que critica a relação entre a falta de tempo na produção de uma notícia e na imprecisão das informações reunidas. Arrigucci Jr. (1990) explica que o tratamento poético dado a uma notícia pode retirar seu caráter predominantemente informativo – transformando-a em uma experiência humana complexa. Essa forma de tratamento pode levantar questões sobre como uma comunidade interpretativa, assim como leitores de jornais e revistas, entendem de maneira coletiva e social realidades e contextos distintos de maneiras menos individualistas e instrumentalizadas. Para Leminski (1982), em discursos que se distanciam de estéticas e linguagens impessoais, naturalistas, neutras e objetivas, são visibilizando narrativas de indivíduos reprimidos e de suas culturas. Já para Oliveira (2010), é preciso que um texto criativo e “poético” desautomatize um texto “comum” ao produzir estranhamento e distanciamento. Sodré (2009) entende um acontecimento jornalístico como um fato marcado, direcionado a um sistema da informação pública, diferente de outros sistemas criados, entendidos como não-marcados, mas que formam um conhecimento sobre 1 POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. (Bandeira, 1966) 2 POEMA DO JORNAL O fato ainda não acabou de acontecer e já a mão nervosa do repórter o transforma em notícia. O marido está matando a mulher. A mulher ensangüentada grita. Ladrões arrombam o cofre. A pena escreve. A polícia dissolve o meeting. Vem da sala de linotipos a doce música mecânica. (Drummond, 2013)

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes a cotidianidade do urbano. Podemos pensar que os fatos importantes da vida em sociedade acontecem especialmente na esfera do cotidiano e não somente nas esferas públicas e feitos por um Jornalismo convencial e de pirâmide. Mas, comparado ao Jornalismo literário, como podemos entender melhor a definição do que seria o Jornalismo de pirâmide? Passos (2010) explica, ao citar Genro Filho (1987) e Comasseto (2003), que o Jornalismo de pirâmide baseia-se em um estrutura sobre o modelo de pirâmide invertida, posicionando as informações entendidas como “as mais importantes” no título e no início do texto - e as de “menos importância”, posicionadas no fim do texto. Tais informações são determinadas pelo repórter e pela empresa jornalística. O Jornalismo de pirâmide, de acordo com o autor, também pode ser conhecido pelos nomes de Jornalismo informativo (Erbolato, 2001; Bahia, 1990), em oposição ao Jornalismo opinativo, ou de Jornalimo convencional, termo dado por Edvaldo Pereira Lima (2009), que também entende o Jornalismo literário como uma modalidade que “importou técnicas narrativas da literatura de ficção, adaptando-as para histórias da vida real” (Edvaldo Pereira Lima, 2009, p. 352). Dessa forma, o autor adota o termo Jornalimo literário para entender como os processos do cotidiano podem oferecer ao leitor uma percepção mais crítica e menos imediatista, pautada pelo modelo de pirâmide, que foca em reducionismos e precipitações, além de criar uma hierarquia na escolha de fontes para uma reportagem nesse tipo de modalidade. Stuart Hall (2016) afirma que certas fontes possuem privilégios em detrimentos de outras, como especialistas, empresários, médicos e autoridades oficiais e políticas. Essas fontes, conhecidas comos “primárias” em jargão jornalístico, buscam uma objetividade que o Jornalismo de pirâmide precisa, “tornando-se intérpretes da realidade, delegando ao repórter a função de mediador e de garimpador de declarações” (Passos, 2017, p.4). Passos comenta que a análise de fatos feita por meio de instituições, governos, empresas e pela ciência é o que confere credibilidade às fontes. A definição da leitura do real por essas fontes, assim como a circulação majoritária de suas declarações, que as hierarquiza num estrato superior de qualidade e credibilidade em relação a outros tipos de fonte, acaba por reforçar o suporte à ideologia oficial e por silenciar e marginalizar outras vozes e possibilidades interpretativas, fenômeno a que Noelle-Neumann (1993) denomina espiral do silêncio. (Passos, 2017, p.5).

Edvaldo Pereira Lima (2009), Mark Kramer e Norman Sims (1995) comentam que alguns dos elementos fundamentais do Jornalismo Literário são: a criatividade (capacidade criadora de observar novas maneiras de enxergar o mundo e de manter o leitor interessado em um texto), a humanização e a universalização temática das histórias contadas, tratando os indivíduos que participam do texto não somente como

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes fontes de informação. De acordo com esses autores, o mundo não é apenas racional e concreto, mas também simbólico e com significados presentes em informações que nem sempre são vistos em relatos objetivos. Martinez (2016) entende que o Jornalismo literário tem a capacidade de “tecer narrativas com símbolos, metáforas e imagens que são de fácil compreensão para todos” (Martinez, 2016, p.29) - dando voz a quem é comum. Hartsock (2016) propõe um Jornalismo literário que ofereça uma variedade de experiências estéticas, que não simplifique vivências complexas, tornando os espectadores figuras nada passivas no processo de entendimento crítico e sensível de uma história. O que é notável na poesia e nos poetas, para Andrew Springer (2015), é que cada palavra é escolhida para um significado específico, em um local específico, para evocar sentimentos específicos, seja por objetivo capturar um humor ou sentimento, criar uma experiência vívida, expressar um ponto de vista, narrar uma história ou retratar uma personagem. Talvez os jornalistas possam aprender com poetas sobre a potência de uma mensagem que vai além de uma análise política ou social de um determinado fato ou de fontes que decidam por quais caminhos um texto deve seguir, reivindicando a pouca presença autoral dos repórteres. Se cada palavra, cada pausa e cada linha importam a um poema, o Jornalismo literário e o cultural talvez possam aproveitar o valor e a sensibilidade com as quais as palavras são usadas na poesia para criar um texto mais compassivo e dialógico. Tanto a poesia quanto o jornalismo são feitos de experiência e de fatos - e ambos investigam elementos objetivos e abstratos do cotidiano ao mostrarem as várias facetas da “verdade”.

Definições do gênero “poesia documental” Nomes como Jose Bello, Danez Smith e Doug Van Gundy fazem parte de um número crescente de jornalistas, fotógrafos e poetas que escrevem “poesia documental”. Mark Nowak (2010) afirma que esse tipo de gênero pode ser interpretado menos como um movimento e mais como uma modalidade dentro da poesia, cujo alcance observa um continuum na produção textual que vai desde o modo de inscrição autoetnográfico, escrito na primeira pessoa, até uma tendência documentarista mais objetiva, vindo da terceira pessoa. Para Josh Corson (2018), a poesia que considera eventos históricos e a presença de pessoas em comunidades é considerada “poesia documental”. Para o autor, a poesia, assim como toda forma de arte, é inerentemente um exercício de busca da verdade. Corson explica que muitas fontes de informação inspiram a “poesia documental”, incluindo: notícias, cartas, fotografias, transcrições de tribunais, registros médicos e uma variedade de registros públicos. Os poetas podem organizar linhas ou frases de textos originais para criar poemas e transmitir sua interpretação dos documentos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes por meio da poesia. Na “poesia documental” alguns poetas trabalham apenas com texto; outros misturam mídias ou colaboram com músicos e artistas visuais. Embora escolham diversas fontes e formas, muitos compartilham um objetivo comum: buscar mudanças sociais e quebrar silêncios ao testemunhar injustiças. Joseph Harrignton (2011) traz a definição de “poesia documental” ou “docupoetry”, que designa uma poesia com citações ou reproduções de documentos e declarações não produzidas pelo poeta relacionando narrativas históricas, sejam elas macro ou micro, humanas ou naturais. Harrignton aponta que alguns críticos responderam ao surgimento da “poesia documental” na década de 1930 e reinvidicaram a uma suposta divisão entre documentos literários e não literários e entre poesia e reportagem. Para o escritor, a poética documental não tem fundador, nenhuma criação contestada, nenhum porta-voz de seu capital cultural e sua prática não parte de contextos prémodernos, modernistas ou pós-modernos. Quart descreve a “poesia documental” como um tipo de poesia socialmente envolvida com textos não literários, reportagens, documentos legais, histórias orais transcritas – e que, às vezes, incorpora reportagens originais. O gênero historicamente tende a se concentrar em relatar as experiências de pessoas cujas histórias podem ter sido deturpadas ou negligenciadas. De acordo com a autora, poetas documentaristas costumam citar o livro Testimony, de Charles Reznikoff, escrito em 1934, e o poema de Muriel Rukeyser, de 1938, O Livro dos Mortos, definindo-os como exemplos de “poesia documental”. A poeta, escritora e professora norte-americana ganhadora do prêmio Pulitzer de poesia Gwendolyn Brooks (2013) deu um outro nome ao gênero: “jornalismo em verso”. Brooks afirmava que a poesia incentiva uma investigação mais robusta de notícias e eventos. Com o benefício da licença poética, o “jornalismo em verso” oferece aos poetas oportunidades de explorar a emoção, a imaginação criativa e diferentes tipos de opiniões (Lansana; Popoff, 2015, tradução nossa). A autora cita elementos em comum entre jornalismo e poesia. O primeiro deles é que na forma poética há a oportunidade de se criar um relacionamento íntimo com a notícia ao personalizá-la. Trabalhar em um verso também permite que estudantes se concentrem em aspectos particulares de uma notícia que eles consideram interessantes. Incorporar uma licença poética no processo jornalístico permite a expressão de opiniões e crenças, pois reportagens tornam-se opiniões pessoais. As opiniões funcionam dentro do mundo do poema, logo, o ambiente poético criado, oferece mais do que uma plataforma para dogmas ou mera documentação (Lansana; Popoff, 2015, tradução nossa).

Ajudar não apenas alunos de jornalismo, mas também jornalistas a entenderem uma notícia ou um evento atual, pode auxiliar a criar um nível de empatia entre o público, além de indicar uma base no desenvolvimento de estratégias de pensamento

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes crítico aplicadas em textos persuasivos, em debates e em currículos escolares. A poesia pode ser mais explorada dentro do Jornalismo literário e do cultural. Quart comenta que após dois anos das eleições presidenciais de Donald Trump a imprensa e a mídia, nos Estados Unidos, buscaram por novas formas de relatar em formatos mais frescos e efetivos modos de produzir e de compartilhar notícias. Logo, um gênero literário que poderia cumprir esse papel seria o da “poesia documental” como uma fonte de expressões jornalísticas e artísticas inesperadas. Depois de explicadas, brevemente, as definições de “poesia documental” e “jornalismo em verso”, iremos analisar os três primeiros trechos do poema Clinic (2019).

Análise do poema Clinic Nesta seção, serão analisados três trechos do poema que têm como tópico central a experiência de mulheres americanas com o aborto. O poema faz parte do livro Thoughts and Prayers (2019) e do projeto multimídia The Last Clinic (2013). O documentário, de mesmo nome, faz parte do projeto, e foi indicado ao prêmio Emmy na categoria News and Documentary, em 2014, além de ter sido finalista do prêmio National Magazine Award for Video no mesmo ano.

Figura 1: capa do documentário The Last Clinic (2013)

Fonte: Revista Atavist A autora explica que o poema

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes é uma versão filtrada de entrevistas com mais de duas dúzias de mulheres com quem conversei em clínicas de aborto, serviços de aconselhamento e centros de gravidez no Mississippi, em Indiana e em Nova York. Também têm influências dos curtas-metragens “The Last Clinic”, “Reconception” e “Jackson,” – assim como de muitos artigos que relatei e escrevi. Eu penso nesse poema como um meta-texto em torno desses materiais (Columbia Journalism Review, 2019, tradução nossa).

O primeiro exemplo de polifonia é a participação de personagens não-especialistas, ouvidas por Quartz, e que transformam-se nas vozes principais e poéticas do poema. Tendo relatado e produzido um trabalho extensivo sobre os direitos ao aborto enquanto trabalhava com a diretora de fotografia Maisie Crow, o trabalho é resultado de nove partes que desfocam as linhas entre verso e reportagem. O poema foi publicado em sites como Nylon e Columbia Journalism Review. Em entrevista ao site norte-americano Nylon, Quart disse que “como todos os sentimentos que existem quando se está em clínicas de aborto, você quer ser hiper-racional e imparcial. Porém, em um poema, isso não precisa ser assim. Também podem haver relatos emocionais” (Serena, 2019, tradução nossa). Quart ainda afirma que o jornalismo, pode em algumas ocasiões, ficar preso a um tipo de verdade literal. “Potencialmente, a poesia ou outros tipos de formas de cultura mais explosivas e disruptivas podem contar com uma verdade emocional em nosso período, especialmente o da era Trump.” (Serena, 2019, tradução nossa). Quart continua: “um poema ainda pode ser relatado, preciso e verificável, mas também pode ter um matrix de significados e simbologias” (Serena, 2019, tradução nossa). A escritora agradece seu treinamento em jornalismo por ajudá-la a encontrar “um equilíbrio entre transformar as histórias de suas entrevistadas em uma verdadeira obra de arte, sem nunca parecer voyeurística ou objetiva com valores ou códigos que o jornalismo tem, impondo-os à poesia” (Serena, 2019, tradução nossa). Figura 2: participante do documentário The Last Clinic (2013)

Fonte: Site Columbia Journalism Review

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Iremos, agora, analisar a primeira parte do poema chamada de “1.”:

1. When we type “abortion” autofill writes, I am pregnant.
 I am pregnant in
 Spanish. I am having
 a baby and have no
 insurance. I’m scared of having
 a baby. What trimester am I in. What trimester is abortion illegal? Google says: I need your love.
 I need an abortion.
 I am pregnant can I eat shrimp?
 Am I having a miscarriage?
 I need help paying for abortion. Abortion clinic violence.
 Not ready to have this baby3.

Parece ser muito comum que mulheres em período de gestação, e que estão pensando em interromper a gravidez, busquem no Google respostas para suas inúmeras perguntas, principalmente sobre assuntos que não são de seu domínio. Com medo de perguntarem, buscam no Google por questões como: “Se eu estiver grávida posso comer camarão?”, “Eu estou tendo um aborto natural?”, “Em qual trimestre estou?”. Já o verso do meio do poema, “Google says: I need your love”, pode apontar para o quanto as personagens se sentem sozinhas em uma fase difícil da gestação. Principalmente se realizarem um abordo clandestino, sem ajuda do pai do bebê ou de familiares. Percebemos, então, como o elemento factual (do jornalismo) se une ao aspecto sensível da linguagem poética do verso. O leitor entende como funciona o processo de busca do Google e o que mulheres americanas comumente procuram e sentem nessas situações - sem deixar de lado o fato de que elas estão com medo e se sentindo solitárias. Vamos para a segunda parte do poema: 3 Quando digitamos “aborto”, O preenchimento automático escreve, “estou grávida”. Estou grávida em Espanhol. Eu estou tendo um bebê e não tenho seguro. Estou com medo de ter um bebê. Em que trimestre estou. Em qual trimestre o aborto é ilegal? Google diz: eu preciso do seu amor. Eu preciso de um aborto. Estou grávida. Posso comer camarão? Estou tendo um aborto espontâneo? Preciso de ajuda para pagar o aborto. Violência clínica de aborto. Eu não estou pronto para ter esse bebê (tradução livre).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 2. God will punish, old ones say in unison. They sing, “Genocide.” A man with a Santa beard and a long gun enters a clinic in Indiana. In Mississippi, it’s day-glo signs, floppy hats, tiny peachy fetus dolls. Their lawn chairs too near Women’s Health, their flesh sunscreen white. Metal-detectorsas-framing-devices. Surveillance cameras as glass birds.   In a place like this, in America, a long gun.   Women afraid of dying while they are trying to find their life4.

No segundo trecho, nota-se a parte da religiosidade das mulheres e de pessoas ao redor delas. Nem a criminalização ou sentimento de culpa as impedem de querer abortar. Em um momento em que mulheres pedem por privacidade e conforto, homens e julgamentos estão presentes a todo instante. Há mais uma vez a junção do jornalismo com a poesia ao sabermos um pouco mais sobre o funcionamento de clínicas de aborto (elementos factuais) e como as mulheres se sentem quando estão nesses lugares (elementos sensíveis): “as mulheres têm medo de morrer enquanto tentam procurar pela própria vida”. É importante observar como Quart constrói esse trecho a partir da perspectiva de homens brancos e de como o machismo define uma decisão que deveria ser tomada pelas participantes sobre o que fazer com o próprio corpo. 4 Deus vai punir, dizem os velhos em uníssono. Eles cantam, “Genocídio.” Um homem com uma barba de Papai Noel e uma arma de cano longo entra em uma clínica em Indiana. No Mississippi, é dia de ver Placas da Day-Glo, chapéus em formato de disco, minúsculos bonecos em formato de feto feitos de pêssegos. Suas cadeiras de praia Perto da revista “Women’s Health”, Suas peles brancas cobertas de protetor solar. Detectores de metalcomo dispositivos que enquadram narrativas. Câmeras de vigilância como pássaros de vidro. Em um lugar como este, na América, uma arma de cano longo. Mulheres com medo de morrer enquanto tentam encontrar as próprias vidas.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Vamos para o terceiro e último trecho do poema: 3. On a normal day, women aged 23, 19, 41, 35. Work at Kmart, Home Depot, at daycares, at the hospitals at night. Today, they learn a new vocabulary. Ultrasound, waiting period, Trailways, TRAP law, witnesses. They learn the way euphemisms mostly tell the truth. That the polite word is always “discomfort.”   The door clicks when it locks. Hungry to talk. No words5.

Dos três trechos citados, este é o que reúne mais informações sobre as mulheres, como idades e lugares onde cada uma trabalha. Existe o relatar do cotidiano de cada uma delas e, como repentinamente, suas vidam mudam quando descobrem que estão grávidas. Quando a gravidez não é desejada, a palavra que rege as suas vidas é “desconforto”. Dessa forma, ao analisarmos os três trechos que fazem parte do poema Clinic, percebemos como as linguagens poética e jornalística são maneiras mais sensíveis de perceber o mundo, deixando de lado um formato rígido, vindo do Jornalismo de pirâmide, ao retratar a vivência dessas mulheres com o aborto. São repensadas questões sobre a descentralização na escolha das fontes (já que o único relato vem das participantes sobre suas experiências com as clínicas de aborto por qual passaram), sobre a humanização de um tema tão complexo para a sociedade e que é tratado, muitas vezes, de forma violenta e estigmatizada, e pela forma criativa como a estética do poema é criada. A produção de mais poemas do gênero pode ocorrer tanto no campos do Jornalismo literário quanto do cultural. 5 Em um dia normal, mulheres envelhecem 23, 19, 41, 35. Trabalham na Kmart, Home Depot, nas creches, nos hospitais à noite. Hoje, elas aprenderam um novo vocabulário. Ultrassom, período de espera, Sistemas de transporte, leis sobre aborto, testemunhas. Elas aprenderam como formas de eufemismos dizem verdades. Que a palavra educada a ser dita é sempre “desconforto”. A porta clica quando trava. Famintas por falar. Sem palavras.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Considerações finais Se no dialogismo bahktiniano (2012) percebemos vozes plurais em narrativas jornalísticas, criadas por meio de experiências individuais, sem mediações de fontes oficiais, Lugão (2012) também traz uma questão importante sobre como no Jornalismo cultural e literário é possível transformar um fato social em literatura de maneira mais crítica e inventiva. A partir de ideias vindas do Jornalismo de pirâmide e da descentralização das fontes, de Passos e Hall e, nos contextos propostos por Oliveira, Lima, Kramer e Sims de entendermos o mundo não apenas de forma racional e concreta, mas também de maneira simbólica, percebemos como o gênero de “poema-reportagem”, visto no trabalho de Quart, incita e influencia novos modelos de narrativas jornalística que o Jornalismo cultural e literário podem buscar. De acordo com Quart, a poesia é uma forma de tornar mais sensíveis questões sobre a sociedade que não devem ser tratadas puramente como fatos objetivos e frios. Literatura, Jornalismo, Ensaio, Poesia, Romance, Crônica, Prosa, Épico, Novela, Conto, Fábula... Narrativa. Qualquer que seja o tipo, gênero ou estilo de escrita utilizado pelo homem, ela é representativa, fala algo sobre ele, sua realidade e sobre a relação entre os dois. São muitas as formas de estudar e analisar as narrativas elaboradas nos mais diversos lugares, épocas e pelos mais diversos autores. O texto em si, aquilo que ele conta, a linguagem escolhida, o período em que foi escrito, o escritor e até a forma de recepção do leitor trazem infinitos significados. Não seria diferente com o Jornalismo ou, mais especificamente, com um de seus tipos, o Jornalismo Literário. (Lugão, 2012, p.54).

Diferentes tipos de comunidades interpretativas podem entrar em contato com histórias e contextos distintos de maneiras menos individualistas e funcionais. Como afirma Oliveira, um texto criativo desautomatize um texto “comum” ao produzir estranhamento e distanciamento. Vale aqui ressaltar que um número crescente de jornalistas, fotógrafos e poetas que escrevem “poesia documental” afirmam que esse tipo de gênero pode ser entendido como uma forma de produção textual autoetnográfico, com um objetivo em comum: buscar mudanças sociais e visibilizar silêncios. Na forma poética, podemos criar um relacionamento mais íntimo com a notícia ao personalizá-la. Além disso, estudantes e jornalistas formados podem se concentrar em aspectos particulares de uma notícia ao incorporarem licenças poéticas no processo de produção de uma narrativa, além de terem mais liberdade de encontrarem suas vozes e expressarem suas crenças de acordo com suas realidades políticas, sociais e afetivas. Como resultado desse tipo de produção, o nível de empatia entre o público pode aumentar, além de indicar uma base no desenvolvimento de estratégias de pensamento crítico nos leitores e na proposta de ensino pelas escolas. Se permanecermos em nossas esferas jornalísticas tradicionais, continuaremos

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes indignados e frustrados em reproduzir uma lógica dominante de quem já está no poder sem conseguirmos descentralizar o processo de escolha das fontes - além de continuarmos a invisiblizar as histórias de pessoas que não são escutadas, segregando vozes ao invés de uni-las.

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NARRATIVA ECOLÓGICA: SINTONIZANDO TEXTO, CONTEXTO E EXPERIÊNCIA Agnes de Sousa Arruda Tadeu Rodrigues Iuama Introdução em 3 atos

“Esses dias resolvi: chega dessa esquerda corrupta ficar espalhando mentiras sobre o mito! Onde já se viu? Defendo o capitão porque ACREDITO NELE! Assim como milhares de brasileiros. Meus irmãos, amigos… Ninguém aguenta mais o Lula, o PT. O povo já está cheio de mentiras e vai para as redes protestar! Não tem robô do Bolsonaro! O que estão querendo com isso? Até parece! Só se o robô for eu! Quer saber? É isso. Vou mostrar quem é o robô do Bolsonaro!”. Não dá para saber se foi exatamente assim que surgiu a ideia, mas imaginamos que tenha sido mais ou menos dessa forma… E com esse pensamento, provavelmente, foi idealizado o vídeo “Eu sou o robô do Bolsonaro”, hoje com quase 70 mil acessos no YouTube1. Nele, homens e mulheres em fila repetem a frase que dá título ao vídeo à exaustão, em um vergonhoso desfile que, para posteridade, já começa a fazer efeito, com alguns integrantes já viralizando em outros vídeos o sentimento arrependido.

Uma princesa, cuja beleza era invejada pela madrasta, é forçada a trabalhar como criada. Um dia, a madrasta decide matar a princesa. Fugindo pela floresta, sozinha e assustada, a princesa encontra uma casa com sete anões, com quem passa a viver seus dias até ser encontrada e envenenada pela mulher que a perseguia. Seus amigos anões a encontram desmaiada e pensam que ela estava morta. Velada na floresta em um caixão de vidro, um príncipe que passava pelo local a vê e, encantado com a beleza da princesa, beija-a (sem consentimento, é importante frisar). O feitiço é desfeito e, como de praxe em contos de fada, eles viveram felizes para sempre. Contada e recontada há décadas, a história é conhecida, mas é a imagem mental evocada com essa narrativa que nos parece nevrálgica: é muito difícil que você que 1 Consulta realizada em 24 maio 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes lê não tenha imaginado a princesa de pele branca como a neve vestida com uma longa saia amarela, blusa azul de mangas bufantes e laço vermelho na cabeça, que foi desenvolvida para o longa-metragem da Disney lançado em 1937. É essa imagem que temos da personagem até hoje. Tomando por base o conto homônimo dos irmãos Grimm, a Disney cria a personagem Branca de Neve, primeira de suas princesas.

Quando hoje eu, uma mulher gorda, que é gorda desde a infância, falo que meu sonho de criança era ser bailarina e assistente de palco da Xuxa, eu percebo o que os outros viam de absurdo. Mas quando pequena, tinha certeza que bastava pintar o cabelo de loiro que estava resolvido. Eu adorava dançar. Sabia todos os passos de todas as coreografias das Paquitas. Ensaiava e me apresentava com afinco sempre que podia, mas ninguém nunca levou muito a sério esse meu sonho. Na verdade, ao contrário. Em vez do estímulo, veio o balde de água fria quando me falaram que se fosse para aparecer dançando na tevê não seria como Paquita, mas sim como um ridículo e asqueroso hipopótamo, como os do desenho Fantasia, que na verdade só queriam mesmo era dormir. Daquele dia em diante, eu nunca mais me senti à vontade para dançar em público novamente.

As três histórias narradas, a princípio, não têm relação uma com a outra. Um quebra-cabeça sem encaixe; pontas soltas fora de contexto. No entanto, no que diz respeito a este trabalho, elas aparecem como forma de ilustração de nosso argumento central, que reclama uma revisão nas formas como olhamos para os objetos de estudo na área da Comunicação. Aqui, em específico, as narrativas. Oras; três narrativas a partir da centralidade dos media na sociedade contemporânea, três problemas reais que consideramos gravíssimos a ponto de pensarmos uma diferente solução: economia dos sinais, colonização do imaginário pelos media e apagamento do corpo. Vamos mais a fundo? Pois não:

Quando “Eu sou o robô do Bolsonaro” viralizou na internet, a tentativa era ironizar as acusações de que as postagens favorecendo o então pré-candidato à presidência do Brasil eram feitas por robôs, em um processo que envolve perfis falsos em diversas redes sociais, alimentados a partir de dinheiro de doações. O que ninguém conseguiu comprovar à época das eleições, foi confirmado dois anos depois (Kalil; Santini, 2020). De fato, existem pessoas que realizam postagens favorecendo o atual presidente do Brasil. Porém, 55% das postagens com esse teor são, realmente, replicadas por robôs. Quando nos perguntamos o que motivaria esse uso para fazerem determinadas postagens, lembramos daquilo que explica Pross (1997) acerca da economia dos sinais. Para o autor, esses recursos, que surgiram com os sinais de fumaça e hoje chegam à velocidade de um clique proporcionada pela internet, podem ser considerados

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes como motor da sociologia cultural “[...] uma vez que os donos desses recursos podem colonizar o tempo de vida dos outros” (Pross, 1997, p. 2). Isso porque “[...] os donos dos meios de comunicação conseguem alcançar simultaneamente mais pessoas num espaço maior e em menos tempo do que lhe seria possível de outra maneira em toda a sua vida” (Pross, 1997, p. 2). Pross explica que tais processos alteram a percepção das pessoas em massa, o que acaba então por se acumular em forma de lucro nos poucos operadores de mídia. É um processo econômico que consiste na constante busca em diminuir o esforço de emissão de um sinal, visando sua propagação mais efetiva no espaço/tempo e se configurando como um mecanismo de acúmulo de poder. Na economia dos sinais, esse processo se dá com a repetição periódica, “[...] tanto no ritual elementar quanto na programação eletrônica” (Pross, 1997, p. 2), sobrepondo a própria economia política em algumas regiões cuja tecnologia seja mais avançada. Nesse sentido, podemos inferir que a toda economia do sinal, corresponde também a uma economia política. Por isso, o uso de robôs comparece como estratégia de dominação narrativa, uma vez que existe uma notória redução do esforço na emissão.

O segundo ponto, é aquele que traz a perspectiva da colonização do imaginário pelos media. Nossa reflexão aqui é sobre o processo que se evidencia quando, ao pensarmos em Branca de Neve, Cinderela, Aurora, entre outras, pensamos na representação dos estúdios Disney para essas personagens. Não nos vêm à mente nenhuma outra interpretação, e nem cogitamos fazer a nossa própria. É assim e pronto. Bem, quando nossas próprias atividades de construção imaginativa de personagens são suprimidas por uma imagem previamente elaborada, entende-se como um processo de colonização do imaginário (Gruzinski, 2003). Mais que isso, quando essas imagens previamente elaboradas estão dentro dos sistemas midiáticos, tem-se o que Contrera (2018) nos apresenta como mediosfera, ou seja, todo um ambiente imaginativo que se autorreferencia nos próprios media. Os reflexos mercadológicos são claros: em 2012, as princesas Disney foram a franquia de entretenimento mais rentável no mundo (Ng, 2013). Como consequência, entre tantas, tem-se a supressão da diversidade. Parece-nos improvável, senão impossível, imaginar uma Branca de Neve com trajes mais próximos da nossa realidade, por exemplo, e com isso inspirar garotas diversas a serem independentes e destemidas como a princesa original foi. Fica claro, com isso, a função de tais contos de fada como da “propagação de determinada ideologia e pela procura evidente de lucro e consumo por parte dos grandes conglomerados de mídia” (Babo, 2015, p. 47).

Por último tem-se, neste modelo mediocentrado, um projeto ideológico de apagamento do corpo humano nos processos da comunicação. E não é apenas pela

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes sedação do mesmo no ato do consumo da informação, uma vez que os meios hegemônicos, agora eletrônicos, privilegiam a visão em detrimento aos demais sentidos (Baitello, 1998). Fala-se aqui de uma imbricada relação na qual a sociedade e os media retroagem entre si na criação, no fortalecimento, na manutenção e na propagação de estereótipos corporais dos mais diversos. No caso relatado como exemplo fala-se das pessoas gordas, mas o sistema funciona para qualquer corpo considerado dissidente. Nesse processo, dois caminhos são os possíveis: o da conformação, com a transformação dos corpos concretos em imagem (Kamper, 2000) ou o da hostilização, que leva a consequências extremas, inclusive a morte, como os suicídios cometidos por aqueles que não aguentaram seguir com a vida se fosse para continuar sendo vítima da gordofobia (Arruda, 2019). Em todos esses casos, está presente a perspectiva mcluhaniana dos fenômenos da comunicação. Midiocentrada, sua preocupação não se volta para os indivíduos envolvidos no processo. “O meio é a mensagem” (McLuhan, 2011, p. 21), e a informação (e, consequentemente, a mensagem e o meio), por ser objetiva e impessoal, não admite as subjetividades e idiossincrasias dos indivíduos nas margens do processo. Desenvolve-se uma perspectiva tecnocrata, já que entender o meio é entender a mensagem e, por consequência dentro dessa perspectiva, entender a própria Comunicação. Demonstra-se: no primeiro caso, o foco dos estudos em voga se encontra nas estruturas das redes, na imagem técnica, nos canais do YouTube, no Twitter, na dinâmica do WhatsApp. No segundo, é a linguagem cinematográfica, fílmica, o plano da imagem, a trilha sonora e a técnica de ilustração em movimento que estão em pauta. No terceiro, a discrepância fica ainda maior. Salvos os estudos de recepção, cuja origem se dá na preocupação com a efetividade das mensagens emitidas, o comportamento dos interlocutores, na perspectiva mcluhaniana vistos como meros receptores, a partir dessas mensagens, é algo pelo qual a área da Comunicação dificilmente se aplica, ficando esse impacto direcionado aos estudos das áreas da Psicologia e da Sociologia, principalmente. Compreendendo a necessidade de uma comunicação que esteja centrada nas pessoas, com seus próprios tempos, espaços, imaginações e corpos, busca-se uma alternativa para os estudos dos fenômenos dessa área, que privilegiem tais questões em equilíbrio com as demais já amplamente estudadas e compreendidas. Nesse sentido, encontramos ressonância com aquilo que se inicia com Abraham Moles (apud Menezes, 2013), ao apropriar-se da definição usual de Ecologia no contexto da Biologia (ciência da interação entre espécies em um determinado meio) e colocar isso em diálogo com a Ciência da Comunicação, de modo que a Ecologia da Comunicação seria a ciência da interação entre diferentes espécies de comunicação. A provocação de Moles é atendida quase 30 anos mais tarde por Vicente Romano (2004), que propõe a Ecologia da Comunicação como a busca por um equilíbrio entre os meios de difusão audiovisual e formas de comunicação mais voltadas à proximidade – e aos outros sentidos, além de um equilíbrio entre as funções informacional (prevalente) e social (escassa) da Comunicação.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes É nesse contexto que nos propomos a refletir como se daria a noção (propositadamente mais aberta, abrangente e imprecisa do que o conceito) de narrativa. De antemão, pensamos que seria uma narrativa não-subserviente às ciências da linguagem, dissidente ao predomínio da técnica, que privilegia a participação no lugar da difusão, com maior enfoque na função social do que na informacional e envolta em sentidos de proximidade, além dos sentidos de distância. Para atender tal proposta, nos amparamos em uma perspectiva ensaística (Künsch; Carraro, 2012) mesclada às técnicas do estudo de caso (Yin, 2001) e da revisão de literatura (Severino, 2010).

Bases para a comunicação ecológica A base epistêmica deste trabalho se dá a partir de Romano (2004) em uma análise crítica do sistema de comunicação da sociedade moderna. Em um modelo que superdimensiona o que é tecnocentrado, suas consequências, como os pontos previamente apresentados, escancararam-se na pós-modernidade, quando se consegue prever o fim do mundo, mas não do capitalismo. Se a perspectiva marxiana a princípio parece fora de contexto, cabe dizer que, para Romano, a comunicação tal qual entendemos hoje está diretamente relacionada aos sistemas de poder, tanto político quanto econômico, e uma revisão de seu modus operandi se faz necessária tendo em vista uma saída, por vias democráticas, de um sistema de opressão e de silenciamento. Romano propõe um contraponto claro ao atual modo de produção, em uma perspectiva que vem agregar aspectos quantitativos e valores de troca aos aspectos qualitativos e valores de uso que afetam também nossa qualidade de vida. Isso porque as relações comunicativas são essenciais para questões como construção de identidade, e estão diretamente relacionadas à saúde mental e ao desenvolvimento empático, o que “Requer a qualidade especial da troca direta, do princípio dialógico (Freire)” (Romano, 2004, p. 17), bem como um espaço sensorial concreto, contextualizado, situacional e que exige a resposta do interlocutor, que justamente vai fazer com que a nossa visão de mundo e compreensão de nós mesmos e do que está ao nosso redor, seja ampliada. Segundo Romano, essa perspectiva também pressupõe um entorno natural e social vivo, ou seja, espaços que sejam percebidos pelos sentidos e que permitam o desdobramento das profusões humanas. O autor fala de lugares de tempo, de encontro, de entrar em contato. Assim, tem-se um contexto que pretende o rompimento dos limites de meios de massa, o abandono das relações causa-efeito e a inclusão dos fatores econômicos, a partir de uma perspectiva crítica, para a compreensão dos fenômenos da comunicação. Busca-se um equilíbrio auto-regulador da comunicação, entendendo ainda as perturbações externas a esse equilíbrio. Nesse sentido, um discurso ecológico estaria na interação recíproca, de intensa cooperação, o que não é possível à medida em que, tendo a comunicação se convertido em um setor estratégico para a economia, destruiu-se a vida cultural dos lugares. Como consequência, tem-se o desaparecimento da diversidade.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes A experiência se descontextualiza, a realidade se faz virtual, fictícia. A autodeterminação diminui porque custa esforço. As experiências vicárias dos meios substituem o entorno de vivências reais. Desse modo, o ataque permanente à natureza externa afeta também a natureza interna. (Romano, 2004, p. 56)

O autor aponta para a necessidade de condições saudáveis não só para aquilo que está em seu entorno, mas também para o mundo interno; consciência e mente. Nesse sentido, deve-se atentar para os seguintes elementos (Romano, 2004):

● Linguagem; ● Representação; ● O meio humano como um todo; ● História; ● Composição e estrutura social; ● Elementos culturais.

Esses elementos se articulam então nas funções da consciência, a partir de: a) manejar a experiência adquirida na atividade; b) fusionar a experiência individual com a coletiva, decantada em linguagem; c) converter essa experiência no centro, foco, fonte de toda a ação, ou seja, converter a experiência individual fusionada com o conhecimento aportado pela linguagem na guia das decisões individuais. (Romano, 2004, p. 59)

Romano (2004, p. 59) trata a comunicação como “[..] o processo e o resultado da relação mediada pelo intercâmbio de informação e sentimentos entre pessoas, seus grupos e organizações sociais, instituições, etc.”, dividida em duas partes; uma que trata do processo de compreensão e outra de troca, sendo obrigatórias a participação de ao menos duas partes, objetos referentes e sistemas sígnicos sociais. Mais do que essa perspectiva técnica, no entanto, investigar acerca desses elementos requer também os demais fatores que influenciam a comunicação em si; sendo eles técnicos, sociais, científicos e também individuais. Isso porque “Os processos de comunicação humana não somente possibilitam a conexão, como também a vinculação” (Romano, 2004, p. 63). Em um contexto no qual a comunicação é vista somente a partir de seus aspectos técnicos (comunicação econômica), perde-se essa possibilidade vinculadora comuni-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes tária, ecológica, estando ainda o excesso de informação e de plataformas, relacionado a uma intoxicação informacional; além do fato de que, com o excesso da oferta, a possibilidade de se perder entre os inúmeros discursos também é grande. A questão é que, para Romano, trata-se de algo proposital, tendo como objetivo os processos antiecológicos exemplificados no começo deste texto, uma vez que a detenção dos meios de comunicação está relacionada à detenção do poder, tanto político, quanto econômico e, portanto, social. É com essa perspectiva que observamos que

“[...] a informação e a comunicação desempenham um papel cada vez mais importante nas economias capitalistas. [...] os meios comerciais, os mercados publicitários e as telecomunicações se mundializam rapidamente, mais ainda que a economia política. Sim, os meios de comunicação global constituem, em certo modo, as avançadas do capitalismo mundial. (Romano, 2004, p. 96).

No entanto, apesar do sensato alarme apocalíptico, Romano admite que hoje também se valem desses recursos os grupos que resistem às autoridades do capital, mesmo que a desigualdade fundamental do poder não reside, necessariamente, na desigualdade informativa e ela seja, na verdade, uma consequência desse sistema complexo. Assim, uma comunicação ecológica desponta a partir do momento em que bem comum, riqueza social, valor de uso e necessidades começam a ser postos em perspectiva, considerando ainda a dimensão ética da comunicação. É nesse sentido que “O valor de uso político da ecologia da comunicação reside em libertá-la do jogo de simples meio de produção útil, de seu aspecto técnico e de valor, para transformá-la em comunicação que produz e conserva relações de experiências” (Romano, 2004, p. 148). A reivindicação é a da tomada de consciência por parte da humanidade em relação à responsabilidade de seu entorno comunicacional. Assim, são pontos importantes a repercussão da técnica na índole da comunicação humana, bem como seus efeitos na sociedade e na natureza, nas perspectivas micro e macro. Dessa forma, a comunicação ecológica prioriza “[...] formas duradouras de comunicação compatíveis com a sociedade, a cultura e o meio natural” (Romano, 2004, p. 152). Dessa forma, a preocupação não está em transmitir-receber sinais apenas, mas também no estabelecimento de relações e na criação de uma comunidade que considera o próprio meio comunicacional, implicando em atenção e sinceridade recíprocas, confiança e respeito igualitário entre quem participa do processo. Assim, o paradigma da comunicação ecológica se constitui a partir de uma relação dialógica entre (Romano, 2004):

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes ●

Totalidade e diversidade;



Independência, religação e autonomia;



Relação e campos de força;



Destino comum e destino pessoal;



Bem comum cósmico e bem comum particular;



Atitude holística-ecológica e negação do antropocentrismo

Essas relações objetivam garantir um equilíbrio ecológico dos meios e adaptar toda a tecnicidade atual às necessidades ecocomunicacionais do ser humano, questionando o enfoque do poder e do domínio sobre outros seres humanos, suas questões psicológicas sistêmicas e éticas. Como desdobramento do pensamento de Romano nos estudos da Comunicação há, inicialmente, os estudos de Menezes (2013), que em diálogo com Baitello Junior (2010) aponta para a ecologia da comunicação como a relação entre as diferentes capilaridades comunicacionais: presencial, alfabética, elétrica e eólica. Com isso, indica como prática ecocomunicacional a convivência entre a comunicação centrada nos corpos, a comunicação escrita/imagética, a telecomunicação e a comunicação virtual. Com esse olhar, na análise de fenômeno concreto, Cunha e Miklos (2016) observaram a comunicação ecológica em protestos. Com uma perspectiva mais reflexiva acerca das possibilidades da ecologia da comunicação, Arruda Rocco e Miklos (2018) propuseram pensar a interseção entre comunicação e cidadania, enxergando na ecologia da comunicação um desafio e uma possibilidade de revigorar os vínculos humanos sociais e robustecer a cidadania. Finalmente, Iuama e Miklos (2019) apontam as diferenças na perspectiva econômica e na ecológica da comunicação, considerando que diferentes mundos são compostos a partir das diferentes lentes que usamos para enxergá-los. E a partir daqui, seguimos.

Rumo a uma Narrativa Ecológica: o lastro como pressuposto Para tratar de narrativa consideramos central a noção de montagem no pensamento de Benjamin (1984). Inquietado pela proeminência do cinema como meio que pautava as relações no entreguerras europeu, ele viu na montagem cinematográfica, e na sua intrínseca fragmentação, um mote para pensar seu entorno. A técnica da montagem deriva no fato de que, por otimização de recursos, as cenas sejam gravadas de forma não-linear para que depois sejam montadas no guião do filme, dando sentido à obra. No entanto, cria-se o imperativo de que cada cena contenha, encerrada em si mesma, um significado, uma vez que pode acontecer de elas serem encaixadas fora do lugar previamente determinado.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Nesse mesmo contexto, Benjamin (1987a) vê emergir uma população cujo trauma da guerra resulta em experiências dolorosas demais para serem narradas por quem vivenciou o horror. Certamente que essa não foi a primeira vez que a humanidade passou por uma situação similarmente dolorosa; contudo, pela primeira vez, os media conseguem preencher o espaço imaginativo dessas experiências. O indivíduo delega aos meios a função da narrativa, que por sua vez é construída a partir da lógica da montagem, fragmentada. Frisamos que, no pensamento benjaminiano, experiência é intimamente ligada à memória. Benjamin (1989) compreende que a experiência se relaciona com as camadas mais inconscientes do indivíduo, rememorando-se de maneira não-linear (Benjamin, 1987b). Oposta à experiência, Benjamin (1989) coloca a vivência como toda situação pela qual o indivíduo passa e sua atenção/consciência é solicitada. A essa vivência corresponde uma estética do choque, similar ao que acontece na montagem. Dessa forma, tal perspectiva estética advoga a necessidade de cada situação/cena criar um imperativo do significado e, assim, adverte Benjamin (1989): a atenção é constantemente requisitada no indivíduo exposto aos media sem que para isso se crie memória. É nesse sentido que o autor (1987c) opõe narrativa à informação. Ao afirmar que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”, Benjamin (1987c, p. 198) indica que a narrativa insere o indivíduo em uma tradição – uma relação que evoca memória, pertencimento e coletividade. A informação, em oposição, toma por base a estética do choque, de maneira que “só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele” (Benjamin, 1987c, p. 204). É, por excelência, econômica. Não por acaso, a informação assume a lógica industrial, ao passo que a narrativa é [...] uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em-si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1987c, p. 205).

Entendemos que esses pontos da obra benjaminiana fornecem um panorama que possibilita entender as justaposições entre a crise da experiência e os media, e suas implicações na noção de narrativa. Nesse sentido, é importante ressaltar que embora consideremos a crítica pertinente a um contexto em que os media se tornaram centrais na determinação da vida das pessoas, ao voltarmos nosso olhar para uma perspectiva ecológica, algumas dissonâncias se apresentam. As afirmações de que “por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva” (Benjamin, 1987c, p. 197), e que “a arte de narrar está em vias de extinção” (idem), culminando na “morte da narrativa”

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes (Benjamin, 1987c, p. 201), não nos cabem. Discordamos de uma visão de mundo que adota como pressuposto uma lógica pautada pelo ou – ou narrativa, ou informação. Alinhamo-nos à uma perspectiva compreensiva (Künsch; Menezes; Passos, 2017), na qual a lógica salutar é pautada pelo e – e por isso afirmamos que é possível pensar em um mundo onde coexistem narrativas experienciais e informações vivenciais. O nosso desalinhamento mais evidente com a narrativa benjaminiana é o de que essa também nos parece atrelada a uma perspectiva econômica. Benjamin (1987c) aponta o artesão e o viajante como dois modelos exemplares de narrador: o primeiro, fixado em um lugar, trafega no tempo daquele lugar, enquanto o segundo trafega no espaço. Em ambos os casos, é a ampliação espaço/temporal que se faz presente. Se o pressuposto para a narrativa de Benjamin é justamente essa articulação do indivíduo no espaço e/ou no tempo, entendemos que, por sua vez, a narrativa ecológica tem como pressuposto a relação social complexa. Nesse sentido, não há necessariamente a obrigação da relação espaço/tempo, mas sim de um lastro, seja do corpo ou de outros meios, mas que privilegiem o contexto social ou, nos termos que estamos trabalhando, o ambiente comunicacional. Assim, enquanto a comunicação econômica se relaciona com amplitude, a ecológica se articula justamente a esse lastro. Ao assumir o lastro como pressuposto, a cisão e a hierarquização habituais entre texto e contexto, em que o segundo serve como pano de fundo ao primeiro, esvai-se. Aquilo que é comumente chamado de contexto, aqui entendido como as relações entre os indivíduos envolvidos na narrativa, passa a ser considerado também parte do texto. Ou seja, também observamos contexto como narrativa. Similarmente, no lugar da concepção benjaminiana que aponta para a experiência como fonte da narrativa, passamos a adotar também a própria experimentação como narrativa – seja ela a experiência de um acontecimento vivido ou a experiência da fruição de um texto narrado, da forma que for. De maneira sintética, em uma perspectiva ecológica, texto, contexto e experiência passam a ser, no mesmo patamar, narrativa. Destarte, diferentes narrativas podem ter diferentes graus de cada uma dessas características: algumas são predominantemente contextuais, enquanto outras têm base quase que exclusiva na experiência. O que evidenciamos, é a coexistência desierarquizada dessas três instâncias. Assim, retomando as questões de Romano, percebemos que chama à atenção no âmbito da comunicação ecológica, a transversalidade no que diz respeito ao meio humano como um todo e aos elementos culturais em um tripé formado por texto, contexto e experiência, estando, portanto, o primeiro relacionado à linguagem, o segundo à composição e à estrutura social e o terceiro à representação.

A narrativa ecológica: pare e ouça na sequência No bestiário da internet, algumas máximas circulam com força de tempos em tempos. Uma delas diz respeito ao quão perigosos foram os anos 1980 e 1990 para

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes as crianças brasileiras. Apresentadoras infantis seminuas no auditório e programação extremamente sexualizada sendo livremente transmitida aos domingos são apenas a ponta do iceberg de uma programação televisiva que espelhava o nonsense social. A verdade é que questões de segurança e de proteção à integridade física e à saúde mental infantil passaram a ser discutidas e implementadas com empenho apenas a partir da segunda metade dos anos 1990. Até lá, não havia por exemplo legislação sobre como os pequenos poderiam andar de forma segura dentro dos carros; as brincadeiras de rua eram fisicamente intensas, como descer o morro de carrinho de rolimã, e as crianças também podiam comprar bebidas alcóolicas e cigarros para seus pais, além de elas próprias terem sua versão de cigarrinhos feitos de chocolate. A lista é infinita, e serve para contextualizar o momento de vida em que estava Ivan Mizanzuk, hoje um professor universitário já perto dos 40 anos. Além de certamente ter contato com a realidade brevemente desenhada, no início dos anos 1990 ele era uma criança que vivia no Paraná, onde um dos mais chocantes crimes contra crianças foi cometido e amplamente noticiado para todo o País. Trata-se do desaparecimento e morte de Evandro Ramos Caetano, de apenas 6 anos, que de acordo com a acusação foi sequestrado para que fosse a vítima sacrificial em um ritual satânico. Independente da problematização que essas informações suscitem, o fato é que essa história foi comprada pelos media, que a fizeram ter projeção nacional seguindo a cartilha dos critérios de noticiabilidade e dos valores-notícia (Lage, 1987, 1999). O sensacionalismo é um caso à parte a ser estudado (Angrimani Sobrinho, 1995), mas ele ganha camadas de problematização quando as principais suspeitas são a esposa e a filha do prefeito da cidade onde o crime foi cometido: Guaratuba, um balneário turístico no litoral paranaense. Elas ficaram conhecidas como “As bruxas de Guaratuba” (Mizanzuk, 2018a) e o que se desenrolou do momento em que os pais se deram conta do desaparecimento do menino e, poucos dias depois com a descoberta de um corpo de criança, que foi atribuído à vítima, é um caminho de mais de 20 anos de investigações que incluem abuso de autoridade política e policial, tortura em busca de confissões, provas adulteradas, testemunhas coagidas, o julgamento mais longo da história da justiça brasileira e muitas reviravoltas, para dizer o mínimo. Hoje, um plano mais abrangente do caso é possível, ainda que com muitas lacunas. Em 1992, no entanto, quando tudo aconteceu, Mizanzuk mal podia entender o que estava se passando; apenas lembra-se do medo que sentia das tais bruxas e de como os adultos estavam sempre tensos ao seu redor quando o assunto “Evandro” vinha à tona. Cabe dizer ainda que, é do início dos anos 1990 a onda de sequestros de crianças para tráfico humano que virou até tema de campanha social em novela da TV Globo (Castro, 2018), deixando pais, mães e crianças com medo de serem vítimas de tal crime. Os anos se passaram e a vida levou Mizanzuk para os caminhos da contação de histórias. Em 2014 lançou seu primeiro romance, mas desde 2011 é produtor de podcasts, formato de mídia em áudio distribuído pela internet que, desde 2018, caiu nas graças dos produtores de conteúdo, em especial, jornalísticos e publicitários, com

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes crescimento de audiência de quase 70% em 2019 (Mogno, 2019). Ainda intrigado pelas histórias que ouvia quando criança, Mizanzuk se empenhou para narrar o Caso Evandro, dando início assim à quarta temporada do podcast Projeto Humanos. Com o mote de trazer histórias reais de pessoas comuns, o podcast já havia contado sobre a vida de uma sobrevivente do holocausto nazista, de brasileiros e refugiados que se envolveram com conflitos no Oriente Médio e de pessoas que, em algum momento, viram-se forçadas a se tornarem heróis ou heroínas (Mizanzuk, 2018b). Todos construídos de acordo com os preceitos do storytelling, essa maneira contemporânea de se referir às narrativas. Em 31 de outubro de 2018 foi lançado o primeiro episódio do Caso Evandro, que ainda não chegou à sua conclusão2. A repercussão foi gigantesca. Projeto Humanos – Caso Evandro se tornou o podcast mais baixado do País no formato documentário em áudio, com mais de 4 milhões de downloads (Brodback, 2019). Uma legião de fãs/ ouvintes passou a discutir os episódios em seus círculos sociais e também na internet, criando e participando de grupos de debate e expansão da narrativa em sites como o Facebook, por exemplo. São buscas por novas provas, teorias conspiratórias, hipóteses contrárias às ponderações apresentadas por Mizanzuk. Um desses grupos conta com a participação das próprias acusadas de cometerem o crime e que, inclusive, cumpriram pena por isso. Para efeitos deste estudo, entendemos que o que ocorre a partir e com o Caso Evandro é a existência do lastro comunicacional entre a narrativa de Mizanzuk e os ouvintes de seu podcast; lastro esse que, inclusive pode ser mapeado. Isso porque não é novidade o que aconteceu nesses mais de 20 anos de história de investigação, cobertura jornalística e narrativas acerca do caso. Há uma experiência compartilhada sobre o assunto no imaginário, tanto social, quanto midiático. Ainda que a pessoa nunca tenha ouvido falar sobre e seu primeiro contato com o tema tenha sido o próprio podcast, basta uma rápida pesquisa pela internet para encontrar essas informações, que inclusive o próprio site do Projeto Humanos – Caso Evandro traz na forma de uma enciclopédia que contém o mapa de Guaratuba, material que circulou na mídia, minibio dos personagens envolvidos, material extra, entre outros (Mizanzuk, 2018a). Nos 26 arquivos de áudio disponíveis da temporada, o que Mizanzuk faz é deixar pistas da construção de sua narrativa justamente sabendo o quão intrigante é o caso em si. Ao início de cada episódio, a partir do segundo deles, vem o alerta: se você não ouviu os anteriores, pare… E ouça na sequência. Em o Caso Evandro, nada faz sentido por si só, não existe a montagem fragmentada que possa ser entendida sem o todo. Ousamos dizer, inclusive que a compreensão integral do caso nem é um objetivo almejado, mas justamente essa instigante busca por uma construção transversal do conteúdo que perpassa o meio humano como um todo e seus aspectos culturais envolvidos. Assim, compreender o Caso Evandro como narrativa em um estudo de caso na área da Comunicação ganha camadas de interesse e de complexidade se não voltarmos nosso olhar somente para os códigos utilizados, sua linguagem sonora, 2 De um total de 30 episódios previstos, 25 foram ao ar até o fechamento deste texto (Mizanzuk, 2018a).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes o cruzamento midiático do podcast propriamente dito e do site do Projeto Humanos, ou uma pesquisa de opinião aplicada junto aos seus ouvintes… Nem tudo isso junto. A partir da perspectiva da narrativa ecológica aqui proposta, vemos os três pontos de interesse, a recordar: texto, contexto e experiência, manifestados por meio da linguagem apresentada, da composição e da cultura social nas quais a narrativa está inserida e na representação performática que ela não só nos apresenta, mas que também nos suscita. Nesse sentido, o lastro como pressuposto para a narrativa se dá a partir da relação que o autor, bem como muito de seus ouvintes3, têm com o caso. Ao assumir a necessidade de recontar os fatos a sua maneira, Mizanzuk cria uma nova narrativa dos acontecimentos. Situada no tempo e no espaço, e considerando ainda as implicações especialmente de ordem política, seu texto traz a narrativa documental para jogo em um contexto no qual a interatividade com o público é uma prerrogativa. Assim, a dimensão da experiência está relacionada não só ao comportamento da audiência no processo passivo de audição, mas também no da escuta ativa que a estrutura narrativa escolhida para a proposta suscita, levando à intensa participação e consequente vinculação. Ressaltamos aqui a sutileza de observar o fenômeno pelo prisma complexo da perspectiva ecológica. Compreendemos que diversas ferramentas epistêmicas já existentes podem dar conta, de maneira isolada, de cada uma das facetas dessa narrativa. Assim como outras teorias já propõem uma análise conjunta dos fenômenos. Contudo, o que aqui se propõe é levar em conta justamente as implicações de uma narrativa que traga a interdependências entre texto, contexto e experiência, considerando sim a complexidade do fenômeno, mas com olhar direcionado não apenas para as questões midiocentradas e tecnocentradas, e sim para as relações que que o texto (no caso o percurso investigativo de um caso obscuro e multifacetado), o contexto (aqui as relações sociais lastreadas entre o produtor do programa, os ouvintes-interlocutores, e algumas das próprias personagens da história) e a experiência (tida na escuta atenta, na busca por resolver o mistério, nas implicações legais4 do programa) recuperam e despertam no ambiente externo e no ambiente interno daquelas pessoas que estão envolvidas no processo. Ecologia da Comunicação.

Considerações finais Apontar para uma nova perspectiva da narrativa é tarefa sísifa, já que talvez nenhuma outra seja tão fugidia e, ao mesmo tempo, abrangente. Talvez fugidia justamente porque abrangente. Daí nossa preocupação em trazer à baila a ciência das relações (ecologia) ou, fiéis ao termo original, saber do lugar habitado (oikos-logos). 3 Dados da Associação Brasileira de Podcasters (Abpod, 2018) informam que cerca de 70% da audiência dos podcasts no Brasil é composta por quem tem entre 23 a 39 anos, concentram-se na região Sul e Sudeste, cursaram o ensino superior, exercem atividade remunerada e estão entre as classes AB. 4 Destacamos o pedido de reabertura do inquérito sobre parte do processo em face de conteúdos descobertos, pela primeira vez, por Mikanzuk, que acaba trazendo possíveis provas para uma das inúmeras questões abertas pelo caso.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Fato é que, para além da produção e da fruição, habitamos as narrativas. E se nelas juntos habitamos, é preciso que uma dimensão ética exista como horizonte epistemológico. Nesse sentido, é preciso considerar a narrativa ecológica a partir do tripé texto, contexto e experiência, bem como suas interrelações, a relação dialógica entre o que é comum e o que é diverso, o que é individual e o que é relacional e entre os campos de força atuantes, considerando ainda a atitude holística-ecológica e a negação do antropocentrismo. É importante ressaltar que a harmonia entre esses três elementos não se dá a partir de uma prevalência igual de todos eles, mas de uma sintonia fina que cada caso, cada exemplo, cada narrativa, vai apresentar/requisitar. Encontrar essa harmonia é como encontrar a frequência certa no dial de um rádio analógico; girando o botão milimetricamente, ora mais para lá, ora mais para cá, olhando bem de pertinho e com ouvidos atentos, em busca de uma estação possível, muitas vezes, não sem interferências. Isso porque não apenas narramos as coisas, como é sabido e lugar comum. Também as coisas narram e nos narram. Mais do que narradores, somos também (parte de) narrativas. Daí nosso ímpeto em desierarquizar texto, habitualmente enclausurado em um pedestal, contexto e experiência, tão frequentemente usurpados de um dos possíveis lugares epistemológicos que podem habitar. Tal dimensão ética deve contemplar ainda, além da diversidade, o adverso. É reconhecer, por exemplo, que não importa o quão ecológica seja uma narrativa, ela ainda é passível de ser traduzida pela valoração econômica. Exemplo disso é o próprio Caso Evandro, em vias de habitar, além da podosfera, as prateleiras das livrarias e os catálogos virtuais de serviços de streaming, uma vez que o próprio Mizanzuk, dado o sucesso do podcast, foi convidado a transliterar sua narrativa fonográfica para o formato de livro e de minissérie televisiva. Narrativas econômicas por essência. Daí a preciosidade, propositadamente descolada de preciosismo, de se abordar o tema de uma maneira que busca desprender o olhar dessa lógica que mercantiliza tudo: espaço, tempo, experiência, contexto e texto.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

A SEDUÇÃO DAS FAKE NEWS EM TEMPOS DE COVID-19: ANATOMIA NARRATIVA E PÓS-VERDADE

Fabiana Piccinin

COVID-19 e fake news A compreensão a respeito das fake news e nelas as informações falsas especificamente postas para circular sobre o vírus COVID-19 demandam um investimento de olhar para o contexto do que se vai entender aqui como característica do contemporâneo em seu desenho sócio-tecno-discursivo. Leva por propor, portanto, que haja uma relação entre a anatomia narrativa das fake news com o fenômeno do que se convencionou chamar de pós-verdade (Kakutani: 2018), decorrente, entre outros fatores, da fragilização da razão e das metanarrativas (Lyotard: 2004), que fundamentaram a racionalidade moderna. Um contexto que promove as condições para desautorização do discurso científico e, consequentemente, a emergência de discursos sem lastro referencial que os possa sustentar, materializado, por exemplo, nas informações falsas, imprecisas e ou mal apuradas. Assim, parte-se nessa reflexão para observação dos efeitos decorrentes dessas disputas de sentidos que vão promover novos arranjos às narrativas, neste caso, jornalísticas, vítimas do abalo à sua legitimidade, em um tempo em que conhecer sobre as informações não é mais uma exclusividade dos peritos jornalistas. Compreende-se, então, que a recorrência e viralização das fake news ganham potência especial com a popularização e acesso às redes sociais, bem como com a facilidade que apresentam no sentido de oportunizar a publicação e compartilhamento dos conteúdos, sem demandar a responsabilidade de seus usuários. A partir daí, analisa-se essa dinâmica, especificamente nas falsas notícias postas em circulação a respeito do vírus COVID-19 e da pandemia gerada em razão disso, buscando atentar para suas anatomias, em geral marcadas pela espetacularização desses discursos. Na amostragem estudada, os dados foram analisados no sentido de como podem oferecer uma interpretação do fenômeno, baseada especialmente sobre o tema do vírus e de seus desdobramentos narrativos, buscando compreendê-los na dimensão

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes 1) das temáticas mais frequentes, 2) dos formatos e dispositivos utilizados para a viralização e 3) da sua narrativa enquanto linguagem. O que pode, por fim, ajudar a explicar, em alguma medida, o potencial de conectividade das informações falsas, levando seu consumo e compartilhamento e contribuindo para os perigos e ameaças à saúde oferecidos pelo vírus. Constituindo, por fim, dessa forma, um tipo particular da pandemia, a infodemia, segundo Salaverría (2020), que integra as preocupações ao redor das precauções e tratamentos necessários a respeito da doença.

Pós-verdade e as fake news A racionalidade, que por muito tempo sustentou a crença nas potencialidades da ciência e nas suas descobertas e avanços, vem demonstrando sua insuficiência em relação aos desafios apresentados pela experiência contemporânea. Novos sentidos e valores, agora orientados pela ideia da liquidez como apontam Bauman (2001) e Santaella (2007), vão promovendo as ideias e os conceitos, contornos inaugurais ao abandonarem sua rigidez conceitual, tornando-se fluidos e adaptáveis, e assumindo, por decorrência as formas e os suportes que passam a ocupar. Vão dando, assim, as bases para epistemologias baseadas na ascendência do que tem se convencionado chamar de pós-verdade, a verdade menos fruto da evidência científica, e mais decorrente da interpretação subjetiva de quem a customiza segundo interpretações próprias. Ou como diz Dunker (2017), a verdade fruto de um tempo em que circunstâncias e fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais, próprias dos limites já difusos entre fatos e ficção, especialmente identificadas no âmbito da produção e circulação de informações na ambiência da internet. Para Hofstadter (apud Kakutani, 2018, p. 25), o tempo da pós-verdade se trada de uma “(...) visão alimentada por fervorosos exageros, desconfiança e fantasia conspiratória, catalisados pelas incertezas das mudanças nos hábitos e práticas culturais, bem como nas desafiadoras mudanças contemporâneas”. E onde a sabedoria das multidões toma lugar do conhecimento legítimo resultando nessa confusão perigosa entre os limites entre fato e opinião e entre a argumentação racional e o que a autora chama de bravata especulativa. A resistência ao princípio filosófico da objetividade estabeleceria uma relação, dessa maneira, com certo niilismo contemporâneo e com a perda de credibilidade nas instituições, na medida em que substitui as noções de verdade, pela ideia de perspectiva, em um movimento potencializado ainda pela concepção de que a linguagem é sempre instável e insuficiente. A crença de que a linguagem não consegue abarcar o mundo, especialmente fortalecida neste momento, portanto, contribui para a desautorização do discurso científico e do trabalho dos especialistas, que vem progressivamente perdendo a legitimidade, autoridade e confiança, resultantes de um estilo paranoide, de suspeita e desconfiança no discurso das instituições (Kakutani, 2018).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes No âmbito jornalístico, o impacto da pós-verdade vai produzir mudanças nas práticas que passam a ser orientadas, não mais pela racionalidade e lógica positivista que fundou a mítica do jornalismo moderno, e mais para a abertura e explicitude das subjetividades. Arauto do iluminismo, o jornalismo que nasce com a incumbência de trazer à luz os fatos e os segredos medievais, como tradutor da realidade, (Marcondes Filho, 2000), vem manifestando as influências da liquidez dos discursos contemporâneos e da ideia do real, agora, dependente também dos diferentes contextos. O jornalismo que veio constituir e pautar a esfera de debate público (Habermas: 1984), tomando esse lugar de watchdog – o fiscalizador dos atos de governo – a partir da prática objetiva de seus discursos, portanto, vem sofrendo as influências de uma estética vigorosamente orientada pelas paixões e subjetividades das narrativas. Este é o contexto que oportuniza a ascendência das notícias falsas neste momento que, embora não sejam um fenômeno novo, encontram força impulsionadora para se propagarem, na medida em que o contemporâneo estimula e evidencia a subjetividade como constitutiva da construção narrativa, impondo como valoração e legitimidade o tanto que possam provocar impacto em relação aos fatos reportados. Podem ser assim, identificadas pelo seu investimento na simplificação do dizer num tempo de narrativas que, de forma recorrente, aposta na mistura entre o fático e o ficcional, resultando em um terreno fértil, portanto, para a falta de clareza entre as notícias que estabelecem algum grau de correspondência com a verdade e as chamadas fake news. Soma-se ao nebuloso cenário que promove essa indistinção entre informações falsas e verdadeiras, a popularização das redes sociais, que vem promover o impulsionamento e viralização das notícias falsas, em razão da interatividade promovida entre os usuários (Santaella & Lemos, 2010) e do sentido de conectividade disso decorrente (O’Reilley e Battelle, 2009). Para Van Dijck (2016), a cultura da conectividade é capaz de organizar a vida cotidiana na internet, conformando uma cultura com valores e atitudes próprias, que tem como centro o usuário e a interconexão como principal valor social. Portanto, as redes sociais (Recuero & Zago, 2011) passam a servir como fonte de informação frequente aos indivíduos, tornando-se parte nos hábitos de consumo, a ponto de esses criarem dependência na busca de novidades, tanto em relação a notícias, quanto em informações particulares, oriundas de parentes e amigos, por exemplo. Na medida em que retiram dos jornalistas a exclusividade em dar a conhecer o novo, as redes sociais fragilizam a importância da mediação jornalística, ao mesmo tempo em que isentam os indivíduos que consomem e compartilham informações falsas das responsabilidades com a informação e seu movimento de a levar adiante. No Brasil, que tem um dos maiores índices de uso de redes sociais no mundo, 75% dos brasileiros tem acesso à internet e 7 em cada 10 brasileiros diz se informar pelas redes sociais, as grandes responsáveis pela distribuição das fake news1. É preciso considerar que é a partir do consumo de informações em geral, entre 1 Disponível em: https://canaltech.com.br/internet/25-dos-brasileiros-nao-tem-acesso-a-internet-aponta-pesquisa-164107/. https://olhardigital.com.br/noticia/pesquisa-aponta-sete-em-cada-dez-brasileiros-se-informam-pelasredes-sociais/82274.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes elas, as embaladas sob a identificação de notícias, que os indivíduos constroem os significados que estruturam suas vidas, planejam e tomam decisões das mais complexas às mais prosaicas, definindo seus destinos e das sociedades onde vivem. Assim é que as informações falsas parecem ser estruturadas, em razão justamente de explorar o potencial de conectividade a fim de obter a adesão dos usuários, reforçando ideias simplórias, mal apuradas e construídas para este fim, até serem postas para circular a partir do trabalho de robots. Como diz Kakutani (2018), a realidade virtual e a de machine learning produzem, além de textos, inclusive imagens e vídeos tão convincentes que se torna difícil distingui-los da realidade. Da mesma forma, até vozes e expressões faciais podem ser reconstruídas a partir da tecnologia dos robots, a partir do monitoramento de gostos e preferências dos usuários. Por extensão, a rede de contatos dos usuários da rede social faz, por programação algorítmica, uma segregação ideológica das amizades, afiliações e conteúdos, de modo que estas estão mais propensas a ler e compartilhar notícias que se alinham às suas posições, reafirmando as “bolhas ideológicas” (Santaella, 2018), do que pela sua credibilidade ou veracidade. Por isso, não surpreende que as fake news tratem, com alguma frequência de assuntos e/ou temas produtores de algum tipo de polêmica, ou se trazem algum conteúdo verdadeiro, correm o risco de serem rejeitadas pelos usuários se apresentarem versões contrárias aos seus posicionamentos e crenças sobre o mundo. Além disso, como referem Allcott e Gentzkow (2017, p. 11), a narrativa das mídias sociais se dá a partir de “fatias finas de informações, visualizadas em telefones ou janelas de feeds de notícias” (Allcott e Gentzkow, 2017), que complicam inclusive a checagem do texto, para os casos em que há essa intencionalidade. Ou seja, as notícias publicadas na rede em geral obedecem a um formato de texto mais curto que nos meios tradicionais, não investindo em maiores contextualizações do fato, nem interpretações e análises que poderiam acabar por demandar a história real ou mais fidedigna, facilitando a proliferação das fake news nesse ambiente.

Fake news de COVID-19: um estudo da infodemia Dada essa reunião de fatores, propulsores das notícias falsas, o fenômeno manifesta-se também tratando do grande tema da pandemia, resultante da propagação do vírus COVID-19. Para Salaverria (2020), a divulgação de informações falsas já vem sendo entendida mundialmente como um problema de caráter sanitário, antes mesmo do coronavírus, em razão de terem sido identificadas em temas de saúde pública, enquanto objeto do que chama de campanhas de desinformação. O autor elenca entre alguns exemplos a questão das vacinas, dos tratamentos alternativos contra o câncer ou da eficácia dos remédios homeopáticos que são propagadas nas redes sociais, por meio das “(...) fabricaciones informativas, manipulaciones gráficas, teorias conspiratorias, contenidos intencionadamente descontextualizados y, en definitiva, embustes de todo tipo y condición”. Neste sentido, a Organização Mundial da Saúde alerta sobre se estar se vivendo uma “infodemia”, em adição à pandemia do coronavírus, por conta da

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes dificuldade de se encontrar fontes credíveis e confiáveis a respeito do assunto. Em um estudo recente a respeito das fake news sobre o grande tema da COVID-19 (Salaverría, 2020), o autor considerou diferentes naturezas de informações falsas, agrupadas basicamente em torno de mentiras construídas para desacreditar algo ou alguém com objetivos de lucro financeiro, ou notícias envenenadas para adaptar-se à agenda particular, ou ainda, notícias que promovam uma desacomodação ou polêmica. Todas foram construídas com base em desinformação deliberada ou imprecisão por falta de apuração, movidas por uma pretensão de se passarem por verdadeiras e buscarem o convencimento dos indivíduos. Uma pesquisa do Instituto britânico Reuters (2020) aponta para o perigo dos limites poucos claros entre as informações que correspondem a algum grau de veracidade e as falsas, pontuando que conteúdos construídos narrativamente a partir dessa mistura tem mais chances de serem levadas adiante, que aqueles totalmente inventados. Adicionar dados falsos a conteúdos verdadeiros é, assim, uma estratégia bastante eficaz adotada por quem produz fake news e as coloca para circular, conforme aponta a pesquisa2. Na amostragem analisada sobre informações falsas a respeito do COVID-19, o relatório aponta que 59% são conteúdos recriados, acrescidos de dados que não correspondem à realidade, a partir de notícias verdadeiras, enquanto 38% são conteúdos falsos inteiramente novos e, portanto, inventados, sem nenhuma correspondência com a realidade posto que, conforme D’Urso (2020) Misleading content on the internet is usually more complex than outright fakery3. A ONU, Organização das Nações Unidas, divulgou um relatório organizado pela Unesco4, em maio deste ano, apontando que 40% dos posts relacionados à pandemia no mundo, em redes sociais, não são confiáveis (ONU: 2020), mas fruto do trabalho de robots. Já quanto ao Brasil, uma pesquisa da Avaaz5 aponta que sete em cada dez internautas, cerca de 100 milhões de pessoas, já acreditaram em ao menos uma notícia falsa a respeito da pandemia de coronavírus. Segundo o estudo de 2020, 6 em cada 10 internautas receberam fake news pelo WhatsApp. O Facebook é a se2 A pesquisa analisou 225 notícias consideradas falsas ou enganosas por verificadores e publicadas em inglês entre janeiro e final de março de 2020, extraídas de um levantamento feito pelo First Draft. https://reutersinstitute. politics.ox.ac.uk/types-sources-and-claims-covid-19-misinformation. First Draft é um projeto “de combate à desinformação e desinformação on-line”, fundado em 2015 por nove organizações reunidas pelo Google News Lab. Inclui o Facebook, o Twitter, as Open Society Foundations e vários filantropos. Disponível e: https://en.wikipedia. org/wiki/First_Draft_News. 3 Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/risj-review/how-coronavirus-pandemic-changing-social-media?fbclid=IwAR3roXDbgb8xvgkRLdTk12E6mVa8bzbqzponYO1dx01IQFMFSQFMo5w4hQA. 4 ONU marca Dia Mundial da Liberdade de Imprensa pedindo esforços contra desinformação durante pandemia. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/05/1712482. 5 Avaaz.org (ou simplesmente Avaaz) é uma rede para mobilização social global através da Internet. Sua principal missão é mobilizar pessoas de todos os países para construir uma ponte entre o mundo em que vivemos e o ‘’mundo que a maioria das pessoas quer’’. Fundada em 2007, conjuntamente pela Res Publica, um grupo de advocacia global da sociedade civil, e pelo MoveOn.org, um grupo de ativismo online dos Estados Unidos, que uniram suas experiências no campo jurídico e de ativismo online para formar o Avaaz.org. O site da avaaz.org é operado pela Fundação Avaaz, uma associação sem fins lucrativos.[4] Em 2012 foi criado um novo site de abaixo-assinados da Comunidade da Avaaz, que encoraja as pessoas a criarem suas próprias campanhas usando as ferramentas de abaixo-assinados online da Avaaz – o site permite que pessoas ao redor do mundo iniciem campanhas com âmbito local, nacional e internacional. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Avaaz.org.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes gunda plataforma com maior propagação de informações falsas em que 5 em cada 10 internautas tem acesso a algum tipo delas pela rede social. Segundo Laura Moraes (2020), coordenadora de campanhas da Avaaz: Mais preocupante ainda é que 110 milhões de brasileiros acreditam em ao menos uma notícia falsa que afeta as decisões que as pessoas tomam para se proteger. Isso pode levar cada indivíduo a contagiar centenas de pessoas com o coronavírus, anulando os esforços de médicos e do poder público (Moraes: 2002, s/n).

Com base nesses levantamentos, empreendeu-se a pesquisa sobre como se apresentam narrativamente estas notícias, observando as temáticas mais recorrentes dentro do grande tema da COVID-19, onde são propagadas de forma mais recorrente e sob que formato, e que linguagem é adotada para tanto, objetivando se valer, nesse sentido, dos limites poucos claros entre fatos e ficção próprios do contemporâneo, para se fazerem críveis em alguma medida. Em razão disso, a pesquisa analisou as informações falsas a respeito da COVID-19 no Brasil, identificadas pela agência Lupa, no primeiro mês de quarentena estabelecida, compreendida entre os dias 16/03 a 16/04. Além de ser reconhecida como uma das agências de checagem mais importantes e respeitadas do país, a agência traz um diferencial que é a identificação da notícia

falsa, bem como a informação original, possibilitando analisar como esta narrativa se constrói e que alterações são feitas no texto, a partir de uma intencionalidade ou deliberação. No primeiro mês de quarentena, segundo o levantamento feito junto aos dados da agência, foram encontradas 91 informações falsas no âmbito da internet envolvendo o tema da COVID-19, detectadas em redes sociais e aplicativos de mensagem instantânea. Dessas, foram selecionadas para a análise, as notícias publicadas ou compartilhadas (do site original, rede social ou site de notícia) na rede social Facebook, em razão de serem o caso da maioria delas – 73 fake news – ou 80% dos casos. Ainda cabe referir que, das 73 informações falsas analisadas, 41 delas ou 56% – portanto mais que a metade – foram deliberadamente inventadas em sua íntegra, sem nenhuma notícia ou dado que pudessem a elas minimamente fazer referência. Já as 32 restantes derivaram de alguma notícia ou informação verdadeira, mas tiveram dados, fotos ou imagens em movimentos recriados, resultando em uma narrativa de novo sentido. Com relação à temática, na sequência, essas notícias passaram a ser analisadas e, em razão dos padrões de repetição encontrados, foram organizadas em seis temáticas mais recorrentes, conforme o quadro a seguir:

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes TABELA 1 – CATEGORIAS TEMÁTICAS Temática

Total de notícias

BRASIL E MUNDO, CELEBRIDADES, POLÍTICOS

73

Número de notícias por temática

Percentual (%)

27

37

COMPORTAMENTO

15

21

INDÚSTRIA, COMÉRICO E SERVIÇOS

13

18

HOSPITAIS

7

10

6

8

5

7

TRATAMENTOS VIOLÊNCIA

Conforme o quadro, na temática de BRASIL E MUNDO, CELEBRIDADES, POLÍTICOS, estão reunidas 27 notícias que correspondem a 37% das informações falsas encontradas pela Lupa no período. Nessa categoria, estão notícias sobre personalidades, políticos e a condução de alguns países a respeito da doença. No caso dos políticos, as fakes news atribuem a elas um dito ou um feito, como por exemplo, a defesa do uso da cloroquina por uma figura política de oposição ao governo, ou de lideranças de oposição incentivando à não aceitação do auxílio governamental de 600 reais, ou ainda do governador de São Paulo se colocando supostamente a favor da abertura do restaurante popular durante a pandemia, entre as mais frequentes. Com relação aos países, entendidos como “personalidades” no mundo, também são informações que dão conta tanto da origem do vírus atribuída à China, que teria criado em laboratório, bem como a vacina correspondente, com interesses mercadológicos. Da mesma maneira que foram informações a respeito do consumo de carne de animais silvestres e da venda de morcegos, atribuídos ao país, como razão da propagação do vírus, quando origem dos dados são da Tailândia, referentes à 2013. Também são encontradas aqui informações falsas sobre a Itália, relacionadas à criação do vírus em laboratório6, bem como atribuído ao país o uso de7 caixões falsos, supostamente para incrementar os números de COVID-19. Israel também foi falsamente apontado como o melhor país do mundo no controle da doença, baseado na eficácia do isolamento social – restrito aos idosos – da mesma forma que o Brasil, que aparece como líder no tratamento da doença no mundo. Com relação às celebridades, as fake news dão conta de que Preta Gil teria ido cantar no Carnaval mesmo depois de saber que contraiu a doença, enquanto é mentirosa também a postagem que trata de que Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, o empresário Roberto Justus e o cantor sertanejo Eduardo Costa teriam doado juntos 90 respiradores e 4 milhões de reais ao SUS. Ainda, uma informação falsa referencia 6 A falsa informação informa que um jornal italiano teria divulgado que o vírus foi criado na China. 7 A foto dos caixões é antiga, tirada quando aconteceu um acidente na Itália em 2013.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes que Maju Coutinho, jornalista e apresentadora do Jornal da Globo da Rede Globo de Televisão, foi acusada de romper o isolamento para passear na orla de Copacabana. Na categoria comportamento, COMPORTAMENTO, foram reunidas 15 informações falsas, ou 21% delas a respeito especialmente do isolamento social, aos problemas psíquicos correlacionados ao COVID como suicídio, bem como às informações falsas sobre o número de casos. Entre as mais recorrentes estão fake news que relatam a suspensão das aposentadorias de idosos que romperam o isolamento social, a referência a fotos antigas de bailes funk, indicando que foram realizados em 2020, durante o período de isolamento, bem como fotos antigas de banhistas em Copacabana que estariam também suspendendo a quarentena, da mesma maneira que a foto de uma aglomeração na Cracolândia não é atual e tampouco a distribuição de ranchos no interior do Maranhão também se trata de fotos antigas. Nesse item também foram identificadas notícias sobre pessoas desesperadas pelos prejuízos gerados em razão do isolamento social que, assim, teriam cometido suicídio. Tratam-se de notícias antigas em sua maioria, e mesmo as atuais também não são, na verdade, de pessoas que tiraram a vida em razão da alteração no desempenho dos negócios, supostamente causada pelo coronavírus. Ainda integram esta categoria, notícias que tratam falsamente dos surtos da doença, como por exemplo, a que diz respeito ao surto de H1N1 com números supostamente maiores que o do COVID-19, além de uma outra notícia que refere que todos os moradores de Joinville que tiveram a doença estariam, hoje, curados. Na temática INDÚSTRIA, COMÉRCIO E SERVIÇOS, foram aglutinadas 13 falsas notícias, ou 18% das fake news que envolvem empresas e prestadores de serviço e a COVID-19, como, por exemplo, a de que a empresa Uber faria parada de trabalho em razão da epidemia. Da mesma forma, outra falsa informação dá conta de que a Petrobrás fecharia refinarias por causa dos prejuízos resultantes da quarentena. Também foram identificados vídeos atribuídos a donos da empresa de aluguel de carros Localiza, defendendo o fim do isolamento e criticando as medidas de isolamento social adotadas pelos governadores, como também vídeos de supostos donos da empresa Carrefour, que criticam os impactos econômicos causados pelas medidas adotadas para enfrentar a pandemia como, por exemplo, as demissões, praticadas por causa dos prejuízos com o isolamento. Foi identificada ainda como notícia falsa que a rede de supermercados Atacadão doaria cestas básicas a necessitados durante a pandemia, da mesma forma que é falsa a promessa de recebimento de álcool gel gratuito da AMBEV, supostamente produzido pela empresa, aos internautas que fizessem comentários na sua página. Na categoria HOSPITAIS, foram reunidas sete notícias falsas sobre os hospitais, ou 10% do total, relativas à tentativa de denunciar estruturas montadas para o tratamento de vítimas de COVID-19, que estariam vazias especialmente em São Paulo, Fortaleza e Rio de Janeiro. Também há informação falsa sobre o exército

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes brasileiro que teria construído uma estrutura especial de 2 mil leitos para pacientes com coronavírus. Na temática TRATAMENTOS, estão reunidas seis notícias falsas, ou 8% delas, que propõem o tratamento da COVID-19 com terapias e substâncias alternativas, como, por exemplo, o uso do quinino presente na água tônica ou da água fervida com alho, bem como a prática de tomar sol, de prender a respiração por 10 segundos e evitar água gelada como formas de prevenção ao vírus. Com relação ao uso da hidroxicloroquina, as notícias falsas dão conta de que médicos de mais de 30 países usam o medicamento com sucesso, enquanto outra informação falsa refere que a atriz e cantora Rita Wilson, mulher do ator Tom Hanks, só se salvou do vírus porque usou cloroquina. Também há referência ao Federal Drugs and Aliments, sobre ter liberado a hidroxicloroquina para todos os pacientes com COVID-19, bem como foi detectada como informação falsa que Doria proibiu cloroquina nos hospitais de São Paulo. Outras informações falsas também dizem respeito à vacina para cachorros que poderia ser aplicada em humanos e que a suposta cura da doença causada pelo vírus é de apenas três horas, anunciada pelo presidente americano Donald Trump e que seria produzido pela empresa farmacêutica Roche8. E ainda, também identificada como informação de que foram bem-sucedidos os testes para uma de vacina contra a COVID-19 na França. Sobre a categoria temática da VIOLÊNCIA, há cinco notícias falsas, representando 7% do levantamento, em que maior parte trata-se, nesse tema de vídeos acompanhados de legendas. Há um vídeo que mostra uma mulher sendo agredida por um guarda na Bahia, por ter desrespeitado as regras de isolamento social, quando na verdade não há nenhuma relação do COVID-19 com a agressão9. Outro vídeo que mostra idosa sendo imobilizada por guarda municipal em Sorocaba, supostamente pelas mesmas razões do caso anterior, é antigo, portanto, não diz respeito à repressão policial decorrente da senhora ter tentado romper a quarentena. Teria intenção, enquanto informação falsa, de criticar a declaração do prefeito de São Paulo, João Doria, sobre a necessidade de medidas mais rígidas a respeito do isolamento social na cidade. Da mesma forma, é antigo o vídeo que mostra um idoso na rua, sendo imobilizado pela Polícia Militar de São Paulo, que tampouco faz parte de uma ação da polícia no sentido de contê-lo ao sair à rua porque estaria passando fome. A fórmula se repete também com o vídeo, que não é atual, que mostra frequentadores de praia, levando tiros da polícia, por estarem, segundo a informação falsa, rompendo isolamento. Ainda há um vídeo que mostra um saque de um grupo de pessoas a um supermercado, que também é antigo e descontextualizado, mas cuja legenda indica como se tratando da consequência do vírus, do isolamento social e da fome a que estariam submetidas essas pessoas. Ainda, há uma fake news dando conta de que um ex-detento, flagrado com drogas e armas no Rio Grande do Sul, havia sido supostamente colocado em liberdade por causa da COVID-19. 8 A fake news diz que o Coronavírus é antigo, não de agora, e que uma vacina para tratamento do vírus em cachorros curaria as pessoas também, ainda que cause problemas intestinais severos nos animais. 9 A legenda do vídeo diz que a mulher estava conversando com a vizinha e os policiais a teriam abordado, proibindo “a fofoca na frente de casa” por causa do Coronavírus e, assim, iniciaram os empurrões e xingamentos por parte da polícia.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Feita esta primeira análise, fruto das repetições que deram origem às temáticas, observa-se que as informações falsas estão assentadas, sobretudo, em questões polêmicas sobre as quais não se tem uma construção conclusiva e das quais há uma exploração de sentido político. Indicam que a falta de clareza sobre o tema é elemento catalisador e mobilizador para a sua proposição, de forma a aproveitar de algum modo, o contexto confuso e os limites poucos definidos entre o falso e o verdadeiro, a partir da sua socialização, viralização e compartilhamento. Dado esse primeiro olhar sobre a temática, o trabalho se encaminhou para um estudo sobre a forma de publicização das informações falsas. A análise selecionou, como já referido, apenas as fake news publicadas no Facebook dentro do conjunto das encontradas pela Lupa no período analisado, entre 16/03 e 16/04. Em acordo com os formatos mais frequentes, observou-se a partir da categoria temática, 5 tipologias de formato de publicação de informação falsa: 1) foto/legenda – quando havia uma foto e legenda, 2) foto/texto – quando as postagens tinham textos inseridos sobre as fotos, 3) somente texto – quando se tratava de texto sem fotografia, 4) vídeo/legenda – quando se tratava de um vídeo que vinha seguido de uma legenda e 5) vídeo/ texto – quando o vídeo vinha seguido de texto. Na tabela a seguir, foram apresentados os formatos de publicação mais frequentes em cada uma das categorias:

TABELA 2 - FORMATO Formato predominante

Notícias no formato na categoria

Percentual (%)

INDÚSTRIA, COMÉRICO E SERVIÇOS

Foto/texto

5

71

COMPORTAMENTO

Foto/texto

10

67

Vídeo/legenda

3

60

Foto/texto

16

59

Vídeo/texto

3

50

Texto

6

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Temática

HOSPITAIS BRASIL E MUNDO, CELEBRIDADES, POLÍTICOS REPRESSÃO POLICIAL – VIOLÊNCIA TRATAMENTOS

A tabela evidencia que o formato Foto/texto é o mais recorrente na maior parte das categorias analisadas. Das seis categorias de análise, foto e texto é o formato predominante de três delas, enquanto vídeo e texto aparecem em duas categorias, sempre sendo, pelo menos metade do formato encontrado nas notícias identificadas ali como fake news. Nas categorias em que esses formatos foram mais recorrentes, como INDÚSTRIA, COMÉRCIO E SERVIÇOS (71%) e COMPORTAMENTO (67%), de cada dez informações falsas encontradas, praticamente sete se utilizam de informação visual como recurso narrativo. Na categoria HOSPITAIS, os vídeos foram

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes utilizados em 60% das vezes como autenticadores de supostos “flagras” em instituições de saúde com pacientes de COVID-19 ali internados, mas cujas estruturas estão ociosas em razão de não haver doentes para essa ocupação. Esse sentido de desvelamento e denúncia de algo que estava encoberto e que vem a público graças ao trabalho de alguém preocupado com a “transparência” dos fatos é uma marca em todas as fakes, especialmente as que se utilizam nesse caso das imagens fixas ou em movimento para corroborar essa intenção. Assim, as imagens em foto ou vídeo recorrentemente mostram personagens supostamente protagonistas do fato descrito, podendo para isso se tratar de foto verdadeira da referida pessoa, quando conhecida, ou até mesmo de foto ou vídeo que não tem relação nenhuma com que ou quem está sendo descrito em determinada ação ou evento. Quando a foto ou vídeo corresponde à pessoa referida, são utilizadas imagens antigas que, via de regra, não tem nenhuma relação por isso, com o assunto descrito que são apropriadas de outras situações e ou eventos para a informação falsa que se deseja passar. Também se identifica, especialmente nas fotos, que são sobrepostos letterings sobre as imagens na intenção de corroborar o que diz a fake associada, em textos de frases curtas, mas a partir de uma linguagem marcada pelo sensacionalismo, para capturar a atenção e convencer o internauta. As imagens associam-se, portanto, à linguagem da própria notícia falsa que vem junto com a informação visual, buscando dar um sentido de exclusividade e raridade ao conteúdo socializado, para “acabar” com os segredos a respeito do assunto, forçosa e intencionalmente guardados para enganar a população. Esses letterings são escritos, para tanto, com fontes em bold, em geral, e com uso de cores bastante chamativas como vermelho e ou preto, em acordo com os contrastes gerados nas imagens. Ainda cabe referir que as imagens, tanto no caso das fotos como dos vídeos, porque usadas fora de contexto, são recriadas para os fins propostos de reafirmação e convencimento como se disse, não referindo dessa maneira, em momento algum a fonte de onde foram obtidos. Tão pouco é indicado, conforme o esperado nessas situações e usos, os créditos do fotógrafo ou do autor do vídeo. Essas recorrências quanto ao uso de imagens fixas e em movimento nas fake news sobre COVID-19, oportunizam pensar que, a narrativa sensacionalista resultante dessa construção narrativa se apresenta como uma estratégia de captura da atenção do internauta que vai rolando a tela em uma rede social como Facebook, “ajudando” a escolher em que assunto clicar. Busca capturar esse internauta pelo texto e imagens impactantes que pretendem potencializar o efeito de credibilidade e convencimento do dito, apesar da estética poluída que em geral disso decorre. Quanto ao último tópico de atenção a respeito das fake news, trata-se do estudo da LINGUAGEM adotada pelas informações falsas. Mais uma vez a metodologia de estudo se centrou na observação de emergências que pudessem constituir um certo padrão de repetição das principais características dessas fake news, ainda que a apresentação dos achados não seja feita a partir de dados quantitativos, mas em

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes uma perspectiva qualitativa10. Assim, para esse primeiro momento, o olhar longitudinal observou que as informações falsas, de maneira geral, apresentam uma estrutura de linguagem bastante sintética, tanto para as que vem acompanhada pelas imagens, quando pelas que são constituídas só de texto. O que faz correspondência com o que dizem Allcott e Gentzkow (2017), a respeito das informações que vem em fatias de realidade, porque adequadas às demandas e aos formatos das redes sociais consumidas em feeds do celular e a partir do movimento das barras de rolagem, não havendo, assim, espaço para as contextualizações. Outra característica observada nas fake news diz respeito ao seu sentido categórico/ conclusivo sobre o tema/categoria tratados, mesmo que, neste texto sucinto, não apresentem nem dados e tampouco fontes de sustentação e análise mais detalhada. Quando se utilizam de dados, em situações bastante raras, estes, via de regra, não são precisos e/ou verdadeiros. Essa combinação torna interessante a constituição narrativa das informações falsas porque, como se viu, todas as temáticas estão atreladas a assuntos subsidiários ao grande tema da COVID-19 que, invariavelmente, são polêmicos, portanto, sobre os quais não se tem clareza e segurança sobre a questão. Nesse sentido, as informações falsas parecem buscar o convencimento pela resposta “clara e segura às incertezas”, explorando, por este meio, o sentido de conectividade trazido por Van Dijck (2016), que vai dar as bases para a reafirmação das bolhas ideológicas, na medida em que serve aos interesses adaptativos da informação consumida e em acordo com a ideia de verdade como perspectiva. Dessa forma, observa-se o uso de verbos que dão conta dessa intenção, adotados aqui no modo categórico, indicando um sentido de desvelamento sobre algo que está sendo sonegado ou escondido das pessoas em geral pela mídia tradicional, imprimindo um sentido conspiratório a respeito do fluxo de informações que tratem desta temática, no caso da COVID-19 e seus desdobramentos. O texto cheio de certezas de um lado, invariavelmente não cumpre os requisitos mínimos do protocolo da narrativa jornalística, por exemplo, que é de responder as seis perguntas quem, o que, quando, como, onde e o porquê. Ainda assim, mesmo diante da insuficiência de informações, tem a pretensão de desvelar um algo escondido, ou flagrante ou ainda novidades de última hora, denúncia de excessos de autoridades e ou suas atitudes incorretas relacionadas à alguma esfera de repercussão da epidemia. Portanto, a construção narrativa endereça-se a um suposto grupo de pessoas, que se articulam pelos interesses em não ser enganadas, fortalecidas pelo sentido de cumplicidade em desfrutar de informações privilegiadas de quem está mais “inteirado” do assunto e quer, por “solidariedade”, prestar um serviço à população que vem sendo “enganada”. 10 Cabe referir que este estudo está sendo empreendido em dois momentos. Neste capítulo, com um olhar preliminar baseado em uma visada longitudinal que abarcou o conjunto das fake news encontradas no período, buscou-se constituir indicações que ajudaram a delinear a anatomia narrativa das mesmas. Numa segunda etapa, ainda em andamento, está se propondo uma análise detalhada da narrativa a partir de um recorte mais estrito e, em razão disso, mais aprofundando de uma amostra das notícias falsas em termos dos seus discursos, a fim de obter mais subsídios para a construção de uma tipologia narrativa.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Também cabe referir, por fim, que do ponto de vista da linguagem, além das imprecisões das informações, são recorrentes os comprometimentos no trato com a língua portuguesa, mais objetivamente identificados em erros de ortografia e pontuação11.

Considerações finais As observações decorrentes do olhar para as 73 falsas informações, publicadas da rede social Facebook, levantadas pela agência Lupa no primeiro mês de quarentena imposta por conta da pandemia, examinadas a partir das temáticas, formatos e linguagem permitem traçar alguns indicativos a respeito da anatomia dessas narrativas, baseados na identificação de traços comuns que constituíram padrões de repetição. No que diz respeito às temáticas, observadas inicialmente, percebe-se que todas elas se apresentam como subtemas associados ao grande tema da COVID-19, que encerram em algum tipo de polêmica ou questão duvidosa. Ou seja, as fake news parecem tirar partido justamente das inseguranças trazidas pelas inúmeras narrativas contemporâneas em um universo onde há possibilidades cada vez mais remotas de distingui-las entre as imprecisas, falsas e mal apuradas, das informações orientadas pelos princípios de fidelidade aos fatos. Para tanto, valem-se de figuras públicas, políticas ou até mesmo de tratar países como personalidades que, uma vez envolvidos nos temas polêmicos, pelo reconhecimento público, tendem a fortalecer a informação inverídica. É importante considerar que nesse caso em análise, esses temas associados diretamente à saúde, como é o caso da pandemia resultante da propagação de um vírus, são especialmente potentes no sentido de produzir inseguranças, na medida em que ameaçam de forma bastante imediata o bem maior que é a vida. E dessa forma, torna-se fácil compreender como o pânico potencializa o terreno fértil para proliferação das fake news. No que diz respeito ao formato, observa-se que a composição vídeo/texto ou foto/texto como constituinte dessas narrativas, apontam para o componente visual como o capaz de autenticar e dar dimensão “de verdade” ao narrado, levando ao fortalecimento do texto, ao mesmo tempo em que reafirma por ela também a informação visual. Nesse mesmo sentido, identifica-se nessa formatação narrativa, a intenção de produzir impacto por meio da espetacularização desse dizer, fortalecendo a possibilidade de a imprecisão ser tomada como versão de verdade. Em termos de linguagem, vê-se que o exagero, a caricatura são elementos concorrenciais que levam o dito até um sentido, por vezes, a produzir associações totalmente dissonantes e, por princípio, sem articulação entre si. Toma-se o exemplo dos 11 Cabe referir que estas descobertas que tratam das características da anatomia das Fake News encontram correspondência e similaridades num estudo feito por uma equipe de investigadores da USP que também procurou identificar padrões de repetição nas fake news relacionadas ao tema do COVID-19. A partir de um estudo qualitativo de 5 fake news que tratam desse tema, foi produzido um manual intitulado Fake news e como identificá-las. Disponível em: https://jornal.usp.br/universidade/grupo-de-divulgacao-cientifica-da-usp-mostra-anatomia-das-fake-news/. O manual está disponível em: https://drive.google.com/file/d/1J1LSiyenP74KkFZ6CiSJs6GyxGM kne59/view.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes temas de comportamento, apenas como ilustração, em que os suicídios, fenômeno de grande complexidade, foram explicados em razão exclusiva da decorrência dos problemas e angústias gerados pela quarentena. Há assunções, portanto, fruto de inferências sem lastro científico em acordo com os desprestígio apontado pelas fontes legítimas e baseadas no discurso da racionalidade, aos moldes do que de fato se identifica nos tempos e valores da pós-verdade. As falsas informações são pautadas em julgamentos emocionais, supersticiosos, frutos de interpretações subjetivas que não consideram dados científicos, e que são apresentadas como conclusões indubitáveis nesse processo. O que promove perigosamente prescrições sobre o que fazer e como conduzir o contexto delicado, a partir de subsídios equivocados que, ao fim, irão contribuir, portanto, decisivamente para a infodemia enquanto epidemia gerada pelo vírus da informação falsa. Referências ALLCOTT, H., & GENTZKOW, M. Social Media and Fake News in the 2016 Election. Journal of Economic Perspectives. 2017. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.258 p. DIJCK, J. van. La cultura de la conectividad. Buenos Aires: Siglo XXI Editores. 2016. DUNKER, C. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: Dunker, C. Tezza, J. Fucks, M. Tiburo, & W. Saflate (Orgs.). Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense. 2017. 144 p. HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 441 p. KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade. Notas sobre a mentira na era Trump. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018. 272 p. LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. 8. ed. Rio de Janeiro: Olympio, 2004. 131 p. MARCONDES Filho, C. Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos. Sao Paulo: Hacker, 2000. O’REILLEY, T., & BATTELLE, J. Web Squared: Web 2.0 Five Years On. Cambridge: O’Reilly Media, Inc., 2009. RECUERO, R., & ZAGO, G. A Economia do Retweet. Redes, Difusão de Informações e Capital Social no Twitter. In: Anais. XX Compós. Porto Alegre, 2011.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes SALAVERRÍA, Ramón; BUSLÓN, Nataly; LÓPEZ-PAN, Fernando; León, BIENVENIDO; López-Goñi, Ignacio; ERVITI, María- Carmen (2020). “Desinformación en tiempos de pandemia: tipología de los bulos sobre la Covid-19”. El profesional de la información, v. 29, n. 3, e290315. https://doi.org/10.3145/epi.2020.may.15. SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007. 468 p. SANTAELLA, Lúcia. A Pós-Verdade é verdadeira ou falsa? Fabio Cypriano (org.). Estação das Letras e Cores: Barueri, 2018. 96 p. e PUB. SANTAELLA, L., & LEMOS, R. Redes sociais digitais. A cognição conectiva do Twitter. São Paulo: Paulus, 2010.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes cao-cientifica-da-usp-mostra-anatomia-das-fake-news/. Acesso em jul 2020. Mais de 60% dos brasileiros não sabem identificar uma Fake News. Edição do Brasil. 21/02/2020. Disponível em http://edicaodobrasil.com.br/2020/02/21/mais-de-60-dos-brasileiros-nao-sabem-identificar-uma-fake-news/. Acesso em jun 2020. O Brasil está sofrendo uma infodemia de Covid-19. Avaaz. 04/05/2020. Disponível https://secure.avaaz.org/campaign/po/brasil_infodemia_coronavirus/. Acesso jun 2020. ONU marca Dia Mundial da Liberdade de Imprensa pedindo esforços contra desinformação durante pandemia. ONU News. 04/05/2020. Disponível em https://news. un.org/pt/story/2020/05/1712482. Acesso em jun 2020. Pesquisa aponta: sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais. Olhar digital. 01/02/2020. Disponível em https://olhardigital.com.br/noticia/pesquisa-aponta-sete-em-cada-dez-brasileiros-se-informam-pelas-redes-sociais/82274. Acesso em jul 2020. SYED, Wasim; ACELINO, Artur; MOREIRA, Eduarda A.; VALEZ, Rayane G.; e MORO, Francisco. Fake News e como identificá-las. Vidya Academics & Pretty Much Sciense. Jun 2020. Disponível em https://drive.google.com/file/d/1J1LSiyenP74KkFZ6CiSJ s6GyxGMkne59/view. Acesso em jul 2020. 25% dos brasileiros não têm acesso à internet, aponta pesquisa. Canaltech. 29/04/2020. Disponível em https://canaltech.com.br/internet/25-dos-brasileiros-nao-tem-acesso-a-internet-aponta-pesquisa-164107/. Acesso em jul 2020.

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes

ORGANIZAÇÃO: Marta Maia é pesquisadora sobre narrativas há muitos anos. Graduada em Jornalismo pela PUC Campinas e em História pela Unicamp. Mestra em Educação pela Unimep. Doutora em Comunicação pela ECA/USP, com pós-doutorado em Comunicação pela UFMG. Atuando em vários projetos de ensino, pesquisa e extensão, lançou, em 2019, o livro Narrativas radiofônicas: memórias da comunidade radiouvinte paulistana (1930-1950) e, em 2020, o livro Perfis no jornalismo: narrativas em composição. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto e vice-líder do Grupo de Pesquisa Ponto: afetos, gêneros, narrativas. É uma das coordenadoras da Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami/SBPJor). Integra o Conselho consultivo da série Novas Diretrizes, da Editora Insular. Contato: [email protected]

Mateus Yuri Passos é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e editor da revista Comunicação & Sociedade. Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp com período sanduíche na Ludwig-Maximilians-Universität München. Realizou estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero. Líder do grupo de pesquisa CENA (Comunicação, Enunciação e Narrativas). Integra a coordenação da rede de pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (RENAMI/ SBPJor). Organizador de diversos livros acadêmicos, dentre eles Literary Journalism and Latin American Wars: Revolutions, Retributions, Resignations  com Aleksandra Wiktorowska e Margarita Navarro Pérez (PUN - Éditions Universitaires de Lorraine, 2020) e Narrativas de Viagem/Travel Narratives com Demétrio de Azeredo Soster (Catarse, 2019). Contato: [email protected]

QUEM SÃO OS AUTORES E AS AUTORAS Admilson Veloso da Silva é doutorando e pesquisador em Comunicação Social na Corvinus University of Budapest, Hungría. Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Possui MBA em Comunicação Digital e Gestão de Mídias Sociais e é bacharel em Comunicação Social – Jornalismo. Seus principais tópicos de pesquisa são juventude, tecnologia móvel,

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes redes sociais, cultura digital, netnografia e imagens contemporâneas. Além da formação acadêmica, também atua há vários anos como Secretário Parlamentar (Assessor de Comunicação). Repórter e Analista de Marketing de Conteúdo. Contato: [email protected]

Agnes de Sousa Arruda é Mestra e Doutora em Comunicação pela Universidade Paulista. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pelo Centro Universitário Teresa D´Ávila. Professora dos cursos de graduação, pós-graduação (lato sensu) e extensão da Universidade de Mogi das Cruzes, onde também atuou como coordenadora dos cursos de Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Design Gráfico (2013-2018). Pesquisa sobre corpo, mídia e imaginário midiático nos processos da gordofobia. Concluiu o doutorado com bolsa CAPES (PROSUP/PDSE, desenvolvendo estágio de doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal. Contato: [email protected]

Alda Cristina Costa é Professora da Faculdade de Comunicação (Jornalismo e Publicidade e Propaganda) e do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) – Linha 01 – Comunicação, Cultura e Socialidades na Amazônia. Doutora em Ciências Sociais (UFPA) e Pós-Doutora em Comunicação, Linguagens e Cultura pela Universidade da Amazônia (UNAMA); Coordenadora do projeto de pesquisa Mídia e Violência: percepções e representações na Amazônia (parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq) e uma das coordenadoras do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). Contato: [email protected]

Andressa C. Monteiro é Graduada em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (2010). Especialista em Jornalismo Cultural pela FAAP (2016). Possui experiência na área de Comunicação Social com ênfase em Comunicação, Estética, Cartografia, Arte e Espaço. Já colaborou para os sites de Cultura, Comportamento e Política: Outras Palavras, Jornal GGN, Modefica, Portal Terra, entre outros. Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Contato: [email protected]

Andriza M. T. de Andrade é Jornalista graduada pela Universidade Federal de Viçosa. Mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Ouro Preto. Graduada em Pedagogia Plena pelas Faculdades Integradas de Ariquemes. Especialista em Orientação Educacional pela Faculdade de Educação São Luís. Sua dissertação de mestrado

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Narrativas audiovisuais: cinema, memórias ancestrais e rituais entre os Tikmũ’ũn_Maxakali foi indicado pelo PPGCOM/UFOP para concorrer ao Prêmio Compós de Teses e Dissertações Eduardo Peñuela 2018, como a pesquisa mais representativa da produção discente defendida no Programa em 2017. A obra foi também selecionada pela Editora UFOP no selo Teses e Dissertações, onde o livro foi publicado em 2019. Atualmente é proprietária da empresa Diza Comunicação e Cultura onde desenvolve trabalhos na área de comunicação visual, assessoria de comunicação, produção cultural e executiva. Contato: [email protected]

Arthur Marchetto é doutorando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) com um projeto de pesquisa sobre gêneros narrativos na obra da escritora e jornalista Svetlana Aleksiévitch. Defendeu seu mestrado sobre Booktubers e crítica literária jornalística na área de Comunicação e se especializou em Português – Língua e Literatura na mesma instituição. Integra o grupo Comunicação, Enunciação e Narrativas (CENA). Contato: [email protected].

Bruno Ravanelli Pessa é doutorando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp), de São Bernardo do Campo. Desenvolve pesquisa conectando comunicação (jornalismo literário) e educação, com auxílio de bolsa de estudos concedida pela CAPES. Mestre em Comunicação Social pela Umesp, Especialista em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário e Graduado em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Bauru. Atua no mercado profissional de comunicação desde 2005, atualmente prestando serviços para a agência ADS Comunicação Corporativa. É natural de Marília, a primeira de diferentes cidades paulistas em que morou até se fixar em São Paulo, onde reside desde 2007. Contato: [email protected]

Cláudia de Albuquerque Thomé é Professora Permanente do PPGCOM da UFJF, é líder do Grupo de Pesquisa “Narrativas midiáticas e dialogias”, cadastrado no CNPq, e docente dos cursos de Jornalismo e de RTVI da Facom/UFJF. Jornalista graduada pela Escola de Comunicação da UFRJ e mestre em Comunicação e Cultura também pela ECO/UFRJ. Doutora em Ciência da Literatura pela Faculdade de Letras da UFRJ. Autora do livro Literatura de ouvido: crônicas do cotidiano pelas ondas do rádio, integra as redes Telejor e Jim (Jornalismo, imaginário e memória), tendo como principais focos de pesquisa as estratégias narrativas no telejornalismo, a interação do jornalismo com produções ficcionais e o deslizamento das crônicas nos meios de comunicação. Atuou no mercado jornalístico do Rio de Janeiro e foi coordenadora do curso de Jornalismo da Facom/UFJF. Contato: [email protected]

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Dayane do Carmo Barretos é Jornalista graduada pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Mestra em Comunicação pela UFOP e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na linha de Textualidades Midiáticas. Integra o Grupo de Estudos sobre Lesbianidades (GEL/UFMG), vinculado ao Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCon/UFMG). Possui interesse de pesquisa em temas que abordam as narrativas, textualidades e práticas jornalísticas, principalmente aqueles ligados a alteridade, subjetividades e aos estudos de gênero. Contato: dayanecbarretos@gmail. com 

Fabiana Moraes é Professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico do Agreste (UFPE/CAA). Jornalista e Doutora em Sociologia, tem pesquisas acadêmicas e reportagens voltadas para a questão da hierarquização social com foco na (in)visibilidade de grupos vulneráveis. Investiga narrativas midiáticas, jornalismo, subjetividade e a relação entre celebridade e pobreza. É vencedora de três prêmios Esso: Os Sertões (2009); O Nascimento de Joicy (2011) e A Vida Mambembe (2007). Recebeu ainda os prêmios Petrobrás de Jornalismo (2015) com a série Casa Grande e Senzala; o Embratel (2011) com o especial Quase Brancos, Quase Negros e três prêmios Cristina Tavares (Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco) com Os Sertões, Quase Brancos Quase Negros e A História de Mim (2015). Lançou cinco livros: Os Sertões (2010); Nabuco em Pretos e Brancos (2012); No País do Racismo Institucional (2013); O Nascimento de Joicy (2015); Jormard Muniz de Britto – professor em transe (2017). Contato: [email protected]

Fabiana Piccinin é Professora do Curso de Comunicação Social e do Programa de Mestrado e Doutorado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). É vice-coordenadora do grupo de pesquisa “Grupo de Estudos de Narrativas Literárias e Midiáticas” (GENALIM – CNPQ), integra o Grupo de Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey – UFRGS-CNPQ) e o Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo (GIPTele – CNPQ). Integra a coordenação da Rede de Narrativas Midiáticas (RENAMI) e faz parte Rede de pesquisa TELEJOR, ambas ligadas à SBPJor. É editora da Revista Rizoma. Contato: [email protected]

Hanna Vasconcelos é estudante do Curso de Cinema e Audiovisual na Universidade Federal do Recôncavo desde 2016, onde atuou como bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET Cinema) de 2017 a 2019. No grupo PET Cinema desenvolveu pesquisa e extensão na área de Cinema, Infância e Juventude e Cinema e Educação, atuando em oficinas, ações cineclubistas e na produção e curadoria de mostras e festivais. Tem dois artigos publicados na Revista +Cinemas, que organiza as pesquisas

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes feitas anualmente pelos participantes do PET, em sua 6ª e 7ª edições, são eles: “A maternidade no cinema de Naomi Kawase” e “Territórios de vida e morte – necropolítica e infância no curta-metragem ‘Coração do mar’ de Rafael Nascimento”. Atuou nos dois anos do Festival Mimoso de Cinema como membro da equipe curatorial. Contato: [email protected]

Heitor Costa Lima da Rocha tem pós-doutoramento em Comunicação pela Universidade da Beira Interior/Covilhã/Portugal (2015). Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (1989). Graduado em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco (1983). Professor Associado do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, integrando o grupo de pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade, Coordenador do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu (Especialização) em Comunicação Política e Editor da Revista Jornalismo e Cidadania (ISSN 2526-2440), atuando principalmente nos temas: teoria do jornalismo; comunicação; ciência política; mudança social; ideologia. Contato: [email protected]

Iago Porfírio é Jornalista graduado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS, 2017). Mestre em Comunicação (2020) pela mesma IES, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), com período-sanduíche no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM/ECA/USP). É autor do romance-reportagem Deus foi dormir: histórias de vida da favela Cidade de Deus (Edições Terceira Via, 2018) e organizador do livro Estação Clarinda (Life Editora, 2017). Desenvolve pesquisas nas áreas de Cinema e Cinema Documentário.

Igor Oliveira Neves é mestrando em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Graduado em Jornalismo pela UMESP. Desenvolve pesquisa sobre a biologização do conceito de raça na comunicação pública da ciência. Membro do Grupo de Pesquisa CENA – Comunicação, Enunciação e Narrativas. Contato: [email protected]

Ingrid Bomfim Gonçalves é mestranda em Comunicação e Indústria Criativa (PPGCIC-UNIPAMPA). Bacharela em Relações Públicas pela Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Investigadora no Projeto de Pesquisa Memória Pública e Memória cultural: um estudo histórico-comunicacional e integrante do Grupo de Pesquisa t3xto (UNIPAMPA). Contato: [email protected]

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Ivana Claudia Guimarães de Oliveira é Professora de Jornalismo e Publicidade e Propaganda e do Programa de Pós-Graduação Comunicação, Linguagens e Cultura (PPGCLC) da Universidade da Amazônia (UNAMA) – Linha Sociedade, Representação e Tecnologias. Doutora pelo Núcleo de Altos Estudos da Amazônia (NAEA/UFPA). Vice-coordenadora do projeto de pesquisa Mídia e Violência: sentidos e significados na Amazônia. Integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia). Contato: [email protected]

Jane Márcia Mazzarino é Mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos – 2005). Graduada em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pela Unisinos (1991). Bolsista Produtividade CNPq PQ2. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento (PPGAD) da Universidade do Vale do Taquari (Univates). Contato: [email protected]

José Carlos Fernandes é Jornalista profissional, com 30 anos na cobertura de cultura e cidades. Desde 2008, publica crônicas sobre personagens e lugares da cidade de Curitiba, onde nasceu e vive. Mestre e Doutor em Estudos Literários, com acento em Sociologia da Leitura. Pesquisa leitores de jornal, iniciativas de fomento à leitura, escritores anônimos, leitores com baixa exposição à escola e a história do jornalismo no Paraná. Professor de Redação e Produção editorial na UFPR a partir de 2009, passou pela PUCPR e soma 22 anos de sala de aula. É também Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Vice-líder do Grupo de Pesquisa Click – Comunicação e Cultura Ciber. Contato: [email protected]

Karolina Calado é Mestra e Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco e jornalista pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca (UniFavip). É professora substituta do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade. Estuda as estratégias de construção de narrativas jornalísticas por parte da mídia independente a partir das pautas oriundas das demandas sociais. Contato: [email protected]

Larissa Conceição dos Santos é Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Pesquisadora vinculada ao Laboratoire GRIPIC (CELSA, Paris-Sorbonne) e ao Grupo de Pesquisa t3xto (UNIPAMPA). Doutora em Sciences de l’Information et de la Communication – Université Paris-Sorbonne (CELSA, Paris IV) e Doutora em Ciências da Comunicação – Escola de Comunicações e Artes/

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Universidade de São Paulo (ECA/USP). Mestra em Engenharia de Produção na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e em Sciences de l’Information et de la Communication na Université Paris-Sorbonne (CELSA, Paris IV). Bacharela em Administração e em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato: [email protected]

Letícia Moreira de Oliveira é mestranda no Programa de Multimeios, do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na linha de pesquisa em História, Estética e Domínios de Aplicação do Cinema e da Fotografia. Graduada em Comunicação – Produção em Comunicação e Cultura, na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Cursou o Bacharelado Interdisciplinar em Artes, na UFBA. Facilitadora pedagógica EAD na Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). Possui experiência em produção audiovisual e crítica audiovisual. Membro do Elviras: Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema. Áreas de interesse e pesquisa: Feminismo decolonial, estudos decoloniais, recepção e crítica da imagem, crítica feminista de cinema, análise fílmica, estudos latino-americanos. Contato: lettie. [email protected]

Lídia Karoline Rodarte é doutoranda do Curso de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) – Linha 01 – Comunicação, Cultura e Socialidades na Amazônia. Mestre em Comunicação pelo PPGCom/UFPA. Integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia (Narramazônia). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Contato: [email protected]

Luiz Henrique Zart é Jornalista graduado pela Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac). Especialista em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Araraquara (Uniara). É Professor e integrante do colegiado do curso de graduação em Jornalismo da Uniplac. Tem interesse por estudos em Jornalismo: Crítica de Mídia, Teoria da Comunicação, do Jornalismo e suas narrativas, Redação Jornalística, Cultura de Massa, além de Jornalismo Especializado – com destaque para Esportivo e Literário. Desde 2016, integra a Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (Renami), vinculada à Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Eventualmente, atua como freelancer. Contato: [email protected]

Márcia Gomes Marques é Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Università Gregoriana – Roma/Itália (2002), com Pós-doutorado pela Universitat Autonoma de Barcelona/España (2011), e mestre em Comunicación (1995) pela Pontificia Universidad Javeriana – Bogotá, com estágio de mestrado sanduíche pela Universidad Ibe-

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes roamericana – México. Socióloga, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RIO, e coordenadora do grupo de pesquisa “Mídia e mediações comunicativas da cultura” (UFMS/CNPq), é Professora da Pós-graduação em Comunicação e do Curso de Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso Sul – UFMS. Contato: [email protected]

Marco Aurelio Reis é Professor do curso de Jornalismo da Unesa-RJ, instituição onde é pesquisador bolsista do Programa de Pesquisa e Produtividade e coordenador da graduação em Produção Audiovisual (Campus João Uchôa). Vice-líder do grupo de pesquisa “Narrativas Midiáticas e Dialogias”, integra as redes Telejor e Jim (Jornalismo, imaginário e memória) e a Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (Alcar). É autor dos livros Arquitetura da informação e Narrativas midiáticas. Jornalista graduado pela Escola de Comunicação da UFRJ. Mestre e Doutor em Ciência da Literatura pela Faculdade de Letras da UFRJ, atuou no mercado jornalístico do Rio de Janeiro e tem como principais focos de pesquisa as estratégias narrativas e as novas funções e competências no jornalismo. Contato: [email protected]

Maria Luciene Sampaio Barbosa é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Roraima (PPGCOM-UFRR). Especialista em Jornalismo Digital pela Faculdade Internacional de Curitiba (FIC). Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Integrante do AMAZOOM – Observatório Cultural da Amazônia e do Caribe. Contato: [email protected]

Maurício Guilherme Silva Jr. é graduado em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG |1999). Mestre e Doutor em Estudos Literários (UFMG | 2004/2012), realizou, também pela UFMG, Pós-doutorado em Comunicação Social (2015). Professor dos centros universitários UniBH e UNA, ambos em Belo Horizonte, integra o Programa de Comunicação Científica e Tecnológica (PCCT) da Fapemig, por meio do qual é pesquisador e editor-chefe da revista Minas Faz Ciência. Contato: [email protected]

Michel Santos é realizador, produtor e sócio proprietário da Dois4Dois Filmes, produtora de cinema e audiovisual no oeste da Bahia. É idealizador e coordenador geral dos projetos Festival Mimoso de Cinema (2 edições realizadas) e Além da Margem – Oficina de Cinema, projeto contemplado pelo edital setorial de audiovisual Secult/ BA 2019. Atualmente está concluindo do curso de cinema e audiovisual na UFRB, além de se dedicar a pesquisa e elaboração de documentários e filmes experimentais. Durante a trajetória acadêmica lançou diversos curtas metragens, destacando

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes “Latossolo” (2017) e “Reduto” (2020), que tiveram circulação em aproximadamente 50 festivais nacionais e internacionais. Co-realizador de “Estilha” (2020) obra audiovisual selecionada pelo Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência, do Itaú Cultural, com Lorena da Silva. Contato: [email protected]

Milene Migliano é pós-doutoranda no Grupo de Pesquisa Juvenália: Culturas Juvenis: comunicação, imagem, política e consumo, no PPGCOM ESPM-SP. Professora na UNIP, onde integra o Grupo de Pesquisa Urbesom, em São Paulo. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU – UFBA. Mestra em Comunicação pelo PPGCOM – UFMG, onde se graduou jornalista com formação em cinema. Participa da Filmes de Quintal, desde 2003 na equipe do forumdoc.bh – Festival do Cinema Documentário e Etnográfico, entre outros projetos. Membro do Grupo de Estudos em Experiência Estética: Comunicação e Arte, da UFRB, lançou o primeiro livro, Entre a praça e a internet: outros imaginários políticos possíveis na Praia da Estação, 2020, Editora UFRB. Integra o GT Infâncias e Juventudes da CLACSO, Conselho Latino Americano em Ciências Sociais. Contato: [email protected]

Myrian Del Vecchio-Lima é Jornalista graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da UFPR. Líder do Grupo de Pesquisa Click – Comunicação e Cultura Ciber. Mestra em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Doutora em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR. Estágio de pós-doutorado em Jornalismo Digital, no curso de Ciências da Informação e Comunicação da Universidade de Lyon 2 (Lyon, França). Email: [email protected]

Nathan Nguangu Kabuenge é doutorando em Ciências da Comunicação no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA) – Linha 01 – Comunicação, Cultura e Socialidades na Amazônia. Mestre em Ciências da Comunicação (PPGCom/UFPA). Integrante do Grupo de Pesquisa Narrativas Contemporâneas na Amazônia Paraense (Narramazônia) e do projeto de pesquisa Mídia e Violência: percepções e representações na Amazônia. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Contato: [email protected]

Paulo Henrique Soares de Almeida é Jornalista, doutorando em Comunicação na Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche na Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Leitura e Produção de Texto pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Faz parte dos grupos de pesquisa Jornalismo e Construção Narrativa da História do Presente; e Cultura, Mídia e Política, da UnB. Grupos inseridos no DGP Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor dos livros Narrativas da Identidade Brasília: jornalismo e redes sociais (2014) e Memórias do Senado (2016). Contato: [email protected]

Rafael Beck é mestrando na Universidade Federal de Sergipe. Graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia onde integrou o PET CINEMA UFRB e desenvolveu pesquisas acadêmicas e atividades formativas em escolas e na universidade. Realizou produção executiva do II Festival Mimoso de Cinema, do IV Cine Virada – Festival de Cinema Universitário da Bahia e da ManduCA – I Mostra de Cinema Infanto-Juvenil de Cachoeira, tendo sido, também, curador de mostras nesses três eventos. Atualmente, desenvolve pesquisa sobre processos de criação e de relação no/com o cinema latino-americano; ministra oficinas e minicursos voltados para docentes e discentes em escolas e universidades, em redes públicas e privadas; e continua na produção audiovisual para cinema e TV. Contato: [email protected]

Raquel Wandelli é Ensaísta, Jornalista, Professora de Jornalismo há 20 anos em disciplinas como Literatura jornalística e Narrativas de não ficção (Unisul: 2000-20). Pesquisadora do Grupo “Artes e Mestiçagens Poéticas” da Universidade Federal de Santa Catarina/PGET e do Grupo E-LABORE(si) – práticas corporais e tecnologias, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Especialista em Estudos Culturais (UFSC). Mestra e Doutora em Literatura (UFSC/Capes), com estágio de doutorado na Université de Paris 3 sobre o inumano na literatura. Autora dos livros Leituras do hipertexto: viagem ao dicionário Kazar (EdUFSC/IOESP, 2004) e Existe, logo escreve; o inumano na arte-literatura (FURB, 2017), publicou inúmeros ensaios em livros e revistas sobre cinema, estética, filosofia, literatura e comunicação. Contato: [email protected]

Tadeu Rodrigues Iuama é Doutor em Comunicação (UNIP). Mestre em Comunicação e Cultura (UNISO), Especialista em Ludoterapia (FASOUZA) e Ludopedagogia (UNIASSELVI), bacharel em Administração (UNISO). Dedica-se aos estudos dos jogos, sobretudo o Larp (I) e o RPG (Role Playing Game), e sua relação com a comunicação. Participa dos Grupos de Pesquisas MiLu – Mídias Lúdicas e NAMI – Narrativas Midiáticas, sediados na Universidade de Sorocaba e Mídia e Estudos do Imaginário, sediado na Universidade Paulista. Professor do Centro Universitário Belas Artes. Contato: [email protected]

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Talita Iasmin Soares Aquino é doutoranda em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde realizou o mestrado na mesma área. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federal de Viçosa (UFV). Atualmente integra o Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático e Experiência Comunicacional (NEEPEC), do Departamento de Comunicação Social da FAFICH/ UFMG. Tem realizado pesquisas em torno do cinema e do audiovisual, discutindo principalmente questões de gênero, sexualidade e corporalidades. Contato: aquino. [email protected]

Tayane Aidar Abib é doutoranda em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) com bolsa Fapesp. Mestra em Comunicação Midiática e jornalista pela mesma instituição. É autora da dissertação  O jornalismo de desacontecimentos e o novo percurso narrativo de Eliane Brum: diálogos e transformações (repositório Unesp) e de capítulos de livros e artigos científicos nas áreas de narrativa jornalística; jornalismo de desacontecimentos; jornalismo, dialogia social e cotidianidade; cobertura de conflitos e epistemologia da comunicação. Desenvolveu estágios de pesquisa na Universitat Autònoma de Barcelona (2019), na Universidad Complutense de Madrid (2017) e na Universidade Nova de Lisboa (2014). Integra o grupo de pesquisa “Da compreensão como método” (UMESP). Contato: [email protected]

Tiago Segabinazzi é Jornalista e Radialista graduado pela Universidade do Vale do Taquari (Univates). Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Entre 2013 e 2015, na Graduação, estudou a emergência de narrativas independentes como forma de exercício da democracia comunicacional e, durante o mestrado, investigou novamente a comunicação alternativa à imprensa, desta vez na pista de conteúdos questionáveis, mensagens difamatórias e discursos de ódio a partir do fenômeno das notícias falsas e pelo clima de pós-verdade e desordem informativa na política brasileira. Contato: [email protected]

Vanessa Ribeiro do Prado é bacharela em Direito pela Libertas Faculdades Integradas e advogada, com atuação nas áreas de Direito Previdenciário, Processual Civil, Penal e Processual Penal. Possui interesse de pesquisa nas áreas de Direitos Humanos, Criminologia, Política e Gênero. Administra a página literária Livrices (https://www. instagram.com/livrices/). Contato: [email protected]

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Narrativas Midiáticas Contemporâneas: epistemologias dissidentes Victor Fermino é mestrando em Comunicação Social e graduado em Jornalismo (2018) pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Bolsista CNPq e membro dos grupos de pesquisa CENA (Comunicação, Enunciação e Narrativas) e da Compreensão como Método. Possui interesse versátil e ativo em desenvolver uma pesquisa interdisciplinar que envolva a arquiescritura da literatura modernista (especialmente James Joyce) e do jornalismo literário, assim como a complexidade tácita de suas execuções. Contato: [email protected]

Victor Lemes Cruzeiro é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de Imagem, Som e Escrita. Possui interesse nas áreas de estética, fenomenologia e escrita, com pesquisas sobre as intersecções entre subjetividades e dores, principalmente a partir de biografias, das ferramentas do jornalismo literário e de outras representações midiáticas. Atualmente é professor de filosofia no Instituto Federal de Goiás, câmpus Cidade de Goiás. Contato: [email protected]

Vilso Junior Santi é graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Mestre em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com período sanduíche na Universidade de Coimbra (UC). Pós-doutorado em Filosofía y Ciencias Humanas en Nuestra América pela Universid Nacional Experimental Simón Rodríguez (UNESR). Coordenador do AMAZOOM – Observatório Cultural da Amazônia e do Caribe. Contato: [email protected]

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Formato: A4 Tipografia: Arial Número de Páginas: 446 Ano: 2020

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