Montesquieu: a política e a história

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Lx)uis Althusser

Montesquieu a Política e a História

Tradução de

LUZ CARY e LUISA COSTA

bditorial Presença - 1972

Título original: M O N T E S Q V IE U L A P O L IT IQ U E E T U H IS T O IR E

©

Copyright t>y Presses Universitalres de France^ Paris

Oapa de F . O.

Distribuidores para o Brasil; Livraria Martins Fontes Praça da Independência, 12 Santos — S. P. — Brasil

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa à Editorial Presença, Lda. Av. João XXI, 56- 1 .» — LISBOA

«Transportar para séculos recuados todas as idelas do século em que se vive, é a mais fecunda das fontes do erro. As pessoas que querem tomar modernos todos os sé­ culos antigos, direi o que os padres do Egipto disseram a Solon: Oh atenienses, sois como as crianças!» Eaprit des Lois,

XXX,

14.

«Montesquieu mostrou...» M M E DE STAEL

«A França perdera os sens títulos de nobreza; Montesquieu reconquistou-lhos» VOLTAIRE

A B R E V IA T U R A S

-U esp rit des L ois é designado por; EL. O algarismo

romano designa o número do Livro, O algarismo árabe designa o número do capítulo do Livro. Exemplo: EL, XI, 6: E sp rit des L ois, capítulo 6 do Livro XI. -L a D éfense de VEsprit des Lois é designada por: Véfetise de VEL.

INTRODUÇÃO

Não tenho a pretensão de dizer algo de novo sobre Montesquieu. Gostaria apenas de dar deste personagem que vemos nos mármores uma imagem mais viva. Não me refiro tanto à vida interior do senhor de La Brède que foi tão enigmático que ainda hoje se discute se alguma vez terá acre­ ditado, se terá correspondido ao amor da mu­ lher, se teve, passados já os trinta e cinco anos, paixões de vinte. Nem tanto à vida quotidiana do presidente de Parlamento fatigado do Parla­ mento, do senhor absorvido pelas suas terras, do produtor de vinhos atento à produção e às vendas. Outros que devem ser lidos o fizeram antes de mim. Refiro-me a uma outra vida, que os tempos cobriram de sombra e os comentários esbateram. Esta vida é antes de mais a de um pensador em quem a paixão pelos domínios do direito e da política se manteve viva até ao fim, e que se debruçou sobre os livros, interessado em ganhar o único troféu que a morte lhe não roubaria: a sua obra acabada. Que ninguém se engane 11

pois: todo o Montesquieu não é a curiosidade pelo objecto, mas a inteligência deste. Ele que­ ria apenas compreender. Temos algumas ima­ gens suas que provam este esforço e orgulho em si próprio. Penetrava na massa infinita dos documentos e dos textos, na imensa herança das histórias, crônicas, recolhas e compilcíções, apenas para lhes captar a lógica, para lhes perceber a razão. Queria agarrar o «fio» da,quela meada que séculos e séculos tinham emara­ nhado, agarrar o fio e dobá-lo, para que o conhe­ cesse todo. E conhecia. Outras vezes julgava-se naquele universo gigantesco de dados minús­ culos, perdido como nas ondas do alto --mar. Queria que o mar encontrasse a praia, queria dar-lha e abordá-la. E conseguia. Ninguém o precedeu nesta aventura. Este homem, que tem tanto amor pelos navios que lhes estuda o desenho dos cascos, a altura dos mastros e a velocidade que podem adquirir; que se interessa pelos primeiros périplos a pontos de seguir os cartagineses ao longo das costas da Ãfrica, 12

e os espanhóis até ás Índias, sentia como que uma afinidade com todos os destinos do mar. Não é em vão que o evoca quando se surpreende 'na imensidão dos espaços do seu tema predilecto: a última frase do seu livro celebra a praia que enfim se aproxima. É verdade que partia para o desconhecido. Mas também para este navegador, o desconhecido era a descoberia de novas terras. Assim sentem-se em Montesquieu as ale­ grias profundas de um homem que descobre. Sabe-o. Sabe que traz em si idéias novas, que patenteia uma obra sem precedentes e se as suas últimas palavras são para saudar a terra enfim conquistada, a primeira é para advertir que partiu s 6, sem mestres, sem um pensamento por pai. Adverte também de que fala uma lin­ guagem nova visto que diz verdades novas. Até no pormenor da linguagem se sente o orgulho de um autor que carrega as palavras comuns que herda com os novos sentidos que descobre. Sente, no próprio instante em que está como que surpreendido por o ver nascer e tomado 13

por éle, e ao longo dos trinta anos de trabalho que foram a sua carreira, que o seu pensa­ mento abre para um mundo novo. Adquirimos o hábito desta descoberta. E quando celebramos a sua grandeza, não podemos evitar que Montesquieu não se fixe na necessidade da nossa cultura, como uma estrela no céu, não conce­ bendo já quanta audácia e paixão lhe foi pre­ ciso, para nos abrir este céu em que o fixámos. Mas ainda me refiro a outra vida. Ã que muitas vezes encobrem as próprias descobertas que lhe devemos. Ãs preferências, às aversões, numa palavra às tomadas de partido de Montesquieu nas lutas do seu tempo. Uma tradição demasiado apaziguadora pretende que Montesquieu lançou sobre o mundo o olhar de um ho­ mem sem interesses nem partido. Não foi ele próprio quem disse que era historiador precisa­ mente por estar desligado de quálquor facção, ao abrigo do poder e das suas tentações, livre de tudo devido a uma conjuntura miraculosa? Capaz precisamente de compreender tudo, por­ que livre de tudo? Concedamos-lhe esse direito. 14

que é ãe todo o historiador, o de acreditar não ffròpriamente nas suas palavras, mas na sua obra. Pareceu-me que esta imagem era um mito, e espero conseguir proná-lo. Mas ao fazê-lo, não queria que se pensasse que a tomada ãe partido apaixonada de Montesquieu nas lutas do seu tempo, tenha alguma vez reduzido a sua obra ao puro comentário dos seus votos. Outros antes dele partiram para Oriente e descobriram-nos índias a Ocidente.

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U M A R E V O L U Ç Ã O WO M É T O D O

I>eclarar Montesquieu o fundador da ciên­ cia política é uma verdade adquirida. Disse-o Auguste Comte, repetiu-o Durkheim e nunca ninguém contestou sèriamente tal afirmação. Mas talvez seja preciso recuar um pouco para o distinguir dos seus predecessores e compreen­ der o que 0 distingue deles. Já Platão escrevera que a política é o objecto de uma ciência, e como prova temos dele a Re­ publica, o Político e as Leis. Todo o pensamento antigo viveu sob a convicção não de que uma ciência do político era possível, o que é uma con­ vicção crítica, mas de que era necessário fazê-la. E os modernos retomaram esta tese que vemos expressa em Bodin, Hobbes, Spinoza e Grotius. Acho que se deve recusar aos antigos, não a pretensão de reflectirem sobre a política, mas a ilusão de lhe terem construído a ciência. Por­ que a ideia que faziam da ciência provinha 17

directamiente dos conheeimentos que tinham. E estes, para além de certas regiões matemá­ ticas não unificadas antes de Euclides, não passavam de visões imediatas ou de projecções da filosofia nas coisas, eram estranhos à nossa idéia de ciência, visto que não lhe conheciam ainda o exemplo. Mas os modernos! Como expli­ car que o espírito de um Bodin, de um Maquiavel, de um Hoibbes ou de um Spinoza, contempo­ râneo das disciplinas já rigorosas que triunfa­ vam em matemáticas e em física, tenha podido permanecer cego ante o modelo do conheci­ mento científico que herdámos? Ê verdade que, a partir do século XVI, se assiste ao nascimento e ao desenvolvimento, num movimento conjunto, de uma primeira fí­ sica matemática e à exigência de uma segunda a que depressa se chamará física moral ou 'polí­ tica, e que aspirará ao rigor da primeira. Ê que a oposição entre as ciências da natureza e as ciências do homem não surgiu ainda. Os mais metafísicos exilam em Deus essa ciência da po­ lítica ou da história que aponta o conjunção dos acidentes da fortuna ou dos decretos da liber­ dade humana: tal Lebniz. Mas só se põem nas mãos de Deus os defeitos da mão do homem — e Leibniz confiava de facto a Deus a ideia humana de uma ciência do homem. Quanto aos positivistas, moralistas, filósofos do direito e ao próprio Spinoza, não duvidam nem por um instante que as relações humanas pos­ sam ser tratadas como relações físicas. Hobbes 18

só vê entre as matemáticas e as ciências so­ ciais uma diferença: as primeiras unem os homens; as segundas dividem-nos. Mas é apenas por esta razão que nas primeiras a verdade e o interesse dos homens não se encontram em oposição, enquanto nas segnudas sempre que a razão é contrária ao homem o homem é contrário à razão. Também Spinoza pretende que se trate das relações humanas como se trata das coisas da natureza, e pelas mesmas vias. Leiam-se as páginas de introdução ao Tratado político: Spinoza denuncia os filóso­ fos puros que, como os aristotélicos sobre a natureza, lançam sobre a poilítica o imaginário dos seus conceitos ou do seu ideal, e propõe em vez destes sonhos a ciência real da história. Deste modo, como pretender que Montesquieu tenha aberto vias que encontramos já traçadas muito antes dele? Na verdade, se ele parece seguir vias já conhecidas, não vai ao mesmo objecto. Helvetius diz de Montesquieu que tem a «subti­ leza» de Montaigne. Possui a mesma curioisidade e tem a mesma maneira de reflectir. Como Montaigne e todos os seus discípulos, compiladores de exemplos e de factos inquiridos em todos os lugares e em todos os tempos, tinha por objecto a história inteira de todos os homens que viveram. E não foi por acaso que teve esta ideia. Pensemos de facto nesta dupla revolução que abala o mundo entre os séculos XV e XVI. Uma revolução no espaço do 19

mundo. Uma revolução na sua estrutura. Ê o tempo da Terra descoberta, das grandes explo­ rações que abrem à Europa o conhecimento e a exploração das Índias do Oriente e do Ocidente, e da África. Os viajantes trazem então nos seus cofres as especiarias e o ouro e, na memória, o relato de costumes e de instituições que abalam todas as verdades esta­ belecidas. Mas este escândalo não teria pro­ vocado mais que um rumor de curiosidade, se no seio dos próprios países que assim lança­ vam os seus navios em busca de novas terras, outros acontecimentos não tivessem também resolvido os fundamentos destas convicções estabelecidas. Guerras civis, revolução religiosa da Reforma, guerras de religião, transforma­ ção da estrutura tradicional do Estado, as­ censão dos plebeus, decadência dos grandes — estas transformações cujo eco se ouve em todas as obras deste tempo, conferem à maté­ ria dos escandalosos relatos trazidos de além­ -mar a dignidade contagiosa de factos reais e plenos de senso. O que anteriormente não eram mais que temas a compilar, bizarrias para satisfazer as paixões dos eruditos torna-se como que o espelho das inquietações presentes, 0 eco fantástico daquele mundo em crise. Ê este 0 fundamento desse exotismo politico (até a história conhecida, a Grécia e Roma, se toma esse outro mundo em que o mundo presente procura a sua própria imagem) que domina o pensamento a partir do século XVI. 20

Tal é o objecto de Montesquieu. Esta obra, diz ele acerca do Esprit des lois, tem por objecto as leis, os costumes e os diversos usos de todos os povos da terra. Pode dizer-se que o assunto é imenso pois abarca todas as instituições exis­ tentes entre os homens b Ê precisamente este objecto que o distingue de todos os autores que antes dele entenderam fazer da política uma ciência. Porque antes dele, nunca ninguém teve a audácia de reflectir sobre todos os usos e leis de todos os povos do mundo. A história de Bossuet ,pretende-se universal: mas toda a sua universalidade consiste em dizer que a Bí­ blia já disse tudo, que toda a história provém dela, como uma cadeia da sua extremidade. Quanto aos teóricos como Hobbes, Spinoza e Grotius, propõem mais do que a fazem, a idéia de uma ciência. Não reflectem sobre a totali­ dade dos factos concretos, mas sobre alguns deles (como Spinoza sobre o estado judeu e a sua ideologia no Tratado teológico-político), ou sobre a sociedade em geral como Hobbes em De eive e Leviathan, como o próprio Spi­ noza no Tratado político. Não fazem uma teo­ ria da história real, fazem uma teoria da essên­ cia da sociedade. Não explicam determinada sociedade particular, nem determinado período histórico concreto, e muito menos o todo das

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Defena ão EL, II Parte: Ideia geral.

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sociedades e da história. Analisam a essência da sociedade e dão dela lun modelo ideal e abstracto. Pode dizer-se: a ciência destes autores está separada da ciência de Montesquieu pela mesma distância que separa a fisica especulativa de um Descartes da física experimental de um Newton. Uma atinge directamente nas essências ou naturezas simples a verdade a priori de todos os factos físicos po'Ssíveis, a outra parte dos fac­ tos, observa as suas variações para deles extrair as leis. Esta diferença no oibjecto implica, de­ termina uma revolução no método. Montesquieu não foi 0 primeiro a conceber a ideia de uma física social, mas foi o primeiro a querer dar-Ihe o espírito da física nova, a querer partir, não das essências, mas dos factos e a partir* dos factos extrair as leis. Assim se vê simultâneamente o que une Montesquieu aos teóricos que o precedem e o que o distingue deles. Tem em comum com eles um mesmo projecto: edificar a ciência política. Mas m o tem o mesmo ohjecto, uma vez que se propõe fazer a ciência, não da socie­ dade em geral, mas de todas as sociedades con­ cretas da história. E por isso não tem o mesmo método, pois o que se propõe não é captar essências, mas descobrir leis. Esta unidade no projecto e esta diferença no objecto e no mé­ todo, fazem de Montesquieu simultaneamente o homem que deu às exigências científicas dos seus predeoessores a forma mais rigorosa — e 22

o adversário mais decidido da abstracção da­ queles. O projecto de constituir uma ciência da polí­ tica e da história supõe que a política e a his­ tória podem ser objecto de uma ciência, isto é contêm uma necessidade que a ciência pretende descobrir. Logo, é preciso destruir a ideía céptica de que a história da humanidade não é senão a história dos seus erros; de que um só princípio pode unir a prodigiosa e desencorajante diversidade dos costumes: a fraqueza hu­ mana; de que uma só razão pode esclarecer esta desordem infinita: a irracionalidade do homem. Ê necessário dizer: Comecei por exa­ minar os homens e concluí que na infinita di­ versidade das leis e dos costumes, não eram conduzidos apenas pelas suas fantasias (EL, Prefácio), mas por uma razão profunda que, embora nem sempre razoável, é pelo menos sempre racional; por uma necessi'dade cujo ‘poder é tão forte que nela entram não só insti­ tuições bizarras, mas até o próprio acaso que faz com que se perca ou ganhe uma batalha e pode determinar uma conjuntura qualquer Através desta necessidade racional é rejeitada, com o cepticismo que lhe serve de pretexto, toda a tentação apologética pascaliana que pro­ cura a todo 0 transe na desrazão humana a

2 EL, X, 13 (Pultava). Considerações, X V in .

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prova de uma razão divina; e todo o recurso a princípios que no homem passam por cima do homem, como a religião, ou lhe impõem fins, como a moral. A necessidade que governa a história, para começar a ser científica, deve deixar de beber a sua razão em qualquer ordem que transcenda a história. É portanto necessá­ rio varrer do caminho da ciência pretensões de uma teologia ou de uma moral que pretenderiam ditar-lhe leis. Não é à teologia que cabe enunciar a ver­ dade dos factos da política. Velha querela, esta. Mas hoje imaginamos dificilmente quanto pe­ sava sobre a história o decreto da Igreja. Basta lermos Bossuet em guerra aberta contra Spinoza, culpado de ter esboçado uma histó­ ria do povo judeu e da Bíblia, ou contra Richard Simon, que concebeu o mesmo projecto no seio da própria Igreja, para termos uma idéia da violência do conflito entre a teologia e a história. Este conflito ocupa toda a Défense ãe 1’Esprít des lois. Acusam Montesquieu de ateísmo, de deísmo; de ter calado o pecado original; justificado a poligamia, etc; numa palavra, de ter reduzido as leis a causas pura­ mente humanas. Montesquieu responde: intro­ duzir a teologia em história, é confundir as ordens e misturar as ciências, o que é o meio mais seguro para as deixar na infância. Não, o seu propósito não é fazer de teólogo; não é teólogo, mas jurisconsuito e político. Está de acordo em que todos os objectos da ciência 24

política .possam ter também um sentido reli­ gioso, que se possa discutir o celibato, a usura, a poligamia, como teólogo. Mas todos estes factos relevam também e anites de mais de uma ordem estranha à teologia, de uma or­ dem autônoma que tem os seus princípios pró­ prios. Deixem-no pois em paz. Não proíbe que se ajuize como teólogo. Cedam-lhe portanto em troca disso o direito de ajuizar como 'político. E não se procure teologia na sua política. Há tanto de teologia na sua política como de cam­ panário de aldeia no óculo através do qual um cura vê a lua A religião não pode portanto impedir a história de tomar foros de ciência. A moral também não. Montesquieu avisa, cuidadosa­ mente e desde o início, que é preciso não se ler moral onde escreve política. Assim a pro­ pósito da virtude. Não é uma virtude moral 'nem uma virtude cristã, é a virtude política {EL, Avertissement). E se volta uma série de vezes a este aviso, é para ferir o mais profundo dos preconceitos: em todos os países do mundo as pessoas aspiram à moral {EL, Avertisse­ ment). Já Hobbes e Spinoza tinham o mesmo discurso: todos os deveres do mundo não dão um só passo no sentido do conhecimento; na moral própria a estes deveres que pretende

3 Defesa ão EL, i Parte, H: Resposta à 9.* objecção.

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fazer do homem aquilo que ele não é, o homem confessa com demasiada evidência que as leis que 0 governam não são morais. Que se decida pois rejeitar a moral se se quiser penetrar estas leis. Objectam a Montesquieu as virtudes humanas e as virtudes cristãs quando este pro­ cura comipreender os usos escandalosos dos chi­ neses e dos turcos! Mas não é com estas ques­ tões que se fazem os livros de física, de política, de jurisprudência *. Também neste aspecto con­ vém distinguir as ordens distintas: nem todos os vícioe políticos são vícios morais, e nem to­ dos os vícios morais são vícios políticos (EL, XIX, 11). Visto que cada ordem tem as suas leis, só as defende a elas. Montesquieu res­ ponde aos teólogos e aos moralistas que apenas quer falar humanamente da ordem humana das coisas e politicamente da ordem política. De­ fende a sua mais profunda convicção: que uma ciência do político jamais poderá fundar-se em algo que não seja o seu objeeto próprio, na autonomia radical do político como tal. Mas a causa ainda não está exposta. Não basta distinguir as ciências e as suas ordens: na vida, as ordens entrançam-se umas nas ou­ tras. Admitindo que a verdadeira religião, a verdadeira moral, enquanto princípios de ex­ plicação, estejam excluídas da ordem política.

* Defesa do EL, II Parte: Clima.

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pertencem no entanto a esta ordem pelas con­ dutas ou pelos escrúpulos que inspiram! Ê aqui que o conflito se agudiza. Porque se pode parfeitamenite dar à moral o que é da moral e ajui­ zar apenas em termos de pura política. Tudo corre bem quando se fala da horrível moral dos japoneses ou da tenebrosa religião dos turcos. Todos os teólogos do mundo gostariam de o fazer ou de o ver feito. Mas quando por acaso se encontra a verdadeira moral! E a verda­ deira religião! Poderão também ser tratadas «humanamente», como coisas puramente hu­ manas? Poder-se-á mostrar, como se faz rela­ tivamente às pagãs, que a moral e a religião cristãs se explicam pelo regime político, dois graus de latitude, um céu demasiado rude, por costumes de comerciantes ou de pescadores? Poder-se-á afirmar que foi a diferença dos climas que conservou o catolicismo no Sul da Europa, e generalizou o protestanitismo no Norte? Poder-se-á autorizar assim uma so­ ciologia -política da religião e da moral? 0 con­ tágio do mal obriga assim que se regresse à origem deste, e ver-se-ão os teólogos como que dilacerados pelo destino reservado a Maomé ou aos chineses. Porque era da vontade de to­ dos que estas religiões falsas não fossem mais que criações do homem e portanto caíssem sob os olhares da ciência, mas como evitar que este olhar não abarque as verdadeiras reli­ giões ? Daí o teólogo que fareja a heresia numa teoria demasiado humana das rehgiões falsas. 27

E Montesquieu que se bate e se defende na margem terrivelmente estreita que separa as suas convicções de crente (ou as suas precau­ ções de espírito maligno), das suas exigências de estudioso. Porque não há dúvida de que Montesquieu expõe muitas vezes, através dos seus exemplos, toda a argumentação de uma verdadeira teoria sociológica das crenças reli­ giosas e morais. Religião e moral, às quais re­ cusa precisamente que julguem a história, não ipassam de elementos internos relativos a socie­ dade dadas, elementos que moldam a forma e a natureza dessas sociedades. O princípio que analisa uma sociedade, explica-lhe também as crenças. Que resta então da distinção das or­ dens? A distinção, se a quisermos reter, o que aliás é muito necessário, passa assim através da própria ordem do religioso e do moral. Dir-se-á portanto que a religião pode ser encarada no seu sentido e no seu papel humanos (que recaem no campo de estudo de uma sociologia), ou no seu sentido religioso (que lhe escapa). E deste modo Montesquieu recua, não querendo dar o salto. Daí a acusação de ateísmo e a fragilidade da sua defesa. Porque embora pondo vigor nas suas respostas, não pôde imprimir força às suas razões. Querem convencê-lo de que é ateu? Tem por único argumento: não é de ateu es­ crever que este mundo que segue sozinho o seu curso e as suas leis, foi criado por uma inteli­ gência. Afirmam-no adepto do spinozismo, da 28

religiÊío natural? A sua única réplica é: a reli­ gião natural não é ateísmo, e aliás não pro­ fesso a religião natural. Todas estas «retira­ das» não enganaram nem os seus adversários nem os seus amigos. Aliás, a melhor defesa que faz da religião, o elogio que dela faz aber­ tamente na Segunda Parte do Esprit des Lois, tanto pode ser de um cínico como de um crente. Veja-se a polêmica com Bayle {EL, XXIV, 2, 6). Bayle queria que a religião fosse contrária à sociedade (é o sentido do paradoxo sobre 03 ateus). Montesquieu opõedhe que ela lhe é indisipensável e proveitosa. Mas contudo, permanece dentro do princípio de Bayle: fun­ ção social, utilidade social e política da reli­ gião. Toda a sua admiração se resume a mos­ trar que a religião cristã, que apenas aspira ao céu, é muito conveniente à terra. Mas to­ dos os «políticos» utilizaram esta linguagem e sobretudo Maquiavel. Nesta linguagem tão «humana», não há lugar para a fé. São por­ tanto necessárias razões muito diferentes, para se conquistar um teólogo. Estes dois princípios prévios a toda a ciên­ cia política: que é preciso não ajuizar da his­ tória através de critérios religiosos ou morais, que, pelo contrário, é preciso colocar a religião e a moral dentro dos factos da história, e sub­ metê-los à mesma'ciência, não distinguem no entanto radicalmente Montesquieu dos seus predecessores. Hobbes e Spinoza disseram em li­ nhas gerais a mesma coisa, e como ele foram 29

acusados de ateus. A singularidade de Montesquieu está precisamente em atacar estes teó­ ricos de quem é no entanto o herdeiro, e de se opor decisivamente às teorias ão direito natu­ ral de que foram, pelo menos na sua grande parte, os doutrinários. Precisemos este ponto. Na sua obra sobre a teoria política, Vaughan ®mostra que todos os teóricos políticos dos séculos XVII e XVIII são, à excepção de Vico e de Montesquieu, teó­ ricos do contrato social. Que significa esta excepção? Para avaliarmos dela, convem-nos ter uma perspectiva rápida da teoria do di­ reito natural e do contrato social. O que une os filósofos do direito natural, é 0 facto de colocarem o mesmo problema: qual a origem da sociedade? e de o resolverem pelos mesmos meios: o estado natural e o con­ trato social. Hoje pode parecer muito singular que se levante tal problema de origem, e que se coloque a interrogação de como é que os homens, cuja existência, até física, supõe sem­ pre um mínimo de existência, social, puderam passar de um estado nulo de sociedade a rela­ ções sociais organizadas e como é que trans­ puseram este limiar imaginário e radical. Ê este no entanto o problema da reflexão polí-

* VAUGHAN, History of political Philosophy, II, pp. 253 sg.

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ti'ca da época, e se a sua forma é estranha, a sua lógica é profunda. Para se mostrar a origem radical da sociedade (pense-se em Leibniz querendo caiptar «a origem radical das coisas»), é preciso tomar os homens antes da sociedade: no estado nascente. Saindo da terra como abóboras, diz Hobbes. Como nus, dirá Rousseau. Despidos não só de todos os meios da arte, mas sobretudo de todos os laços hu­ manos. E tomá-los num estado que seja como que o nada de sociedade. Este estado origi­ nário recebe traços diferentes segundo os au­ tores. Hoibbes e Spinoza vêm nele o reino do estado de guerra, o triunfo do forte sobre o fraco. Locke, a paz. Rousseau, a solidão abso­ luta. Os diferentes traçados do estado natural ora se lançam no desenho das razões que os homens tiveram para sair dele, ora esboçam as forças geradoras do estado social que está para vir e o ideal das relações humanas. Para­ doxalmente, este estado ignorante de todo o tipo de sociedade, contém e prefigura o ideal de uma sociedade a criar. É o fim da história inscrito na origem. Assim a «liberdade» do indivíduo em Hobbes, Spinoza e Locke. Assim a igualdade e a independência do homem em Rousseau. Mas todos estes autores têm em comum 0 mesmo conceito e o mesmo problema: 0 estado natural é apenas a origem de uma sociedade de que querem descrever a gênese. Ê o contrato social que assegura a passa­ gem do nada de sociedade à sociedade exis31

tente. Também neste aspecto pode parecer es­ tranho que se represente que o estabeleci­ mento de uma sociedade seja o efeito de uma convenção geral, como se toda a convenção não supusesse já uma sociedade estabelecida. Mas temos de aceitar esta problemática visto que foi considerada necessária e pergnntarmo-nos apenas o que significa este contrato, que não é um simples artifício jurídico, mas a expressão de razões muito profundas. Dizer que a socie­ dade dos homens provém de um contrato equi­ vale de facto a declarar pròpriamente humana e artificial a origem de qualquer instituição social. Ê dizer que a sociedade não é o efeito nem de uma instituição divina, nem de uma ordem natural. É portanto recusar uma velha ideia do fundamento da ordem social e pro­ por outra nova. Vemos assim que tipo de adver­ sários se levantam diante da teoria do con­ trato: não só os teóricos da origem divina de toda a sociedade, que podem servir muitas causas, embora então servissem na maioria dos casos, a da ordem estabelecida, mas so­ bretudo os partidários do carácter «natural» (e não artificial) da sociedade, os que pensam as relações humanas prèviamente desenhadas numa natureza que não é mais que a projecção da ordem social existente, numa natureza em que os homens estão prèviamente inscritos em ordens e estados. Numa palavra: a teoria do contrato social revoluciona de uma maneira geral as convicções próprias à ordem feudal, 32

a crença numa desigualdade «natural» exis­ tente entre os homens, na ^recessidade das ordens e dos estados. Substitui pelo contrato entre iguais, por uma obra da arte humana, o que os teóricos feudais atribuíam à «natu­ reza» e à sociabilidade natural do homem. Na época, um índice seguro de descriminação entre as tendências é considerar-se que a doutrina da sociabilidade natural ou do ins­ tinto' de sociabilidade designa uma teoria de inspiração feudal, e a doutrina do contrato social, uma doutrina de inspiração «burguesa», mesmo quando está ao serviço da monar­ quia absoluta (como por exemplo em Hobbes). De faoto, a ideia de que os homens são os autores da sua sociedade através de um pacto originário, que por vezes se. desdobra num pacto de associação (civil) ou num pacto de domínio (político) é então uma ideia revolucio­ nária, fazendo, na teoria pura, eco aos conflitos sociais e políticos de um mundo em gênese. Esta ideia é simultaneamente um protesto contra a antiga ordem e um programa para a ordem nova. Priva a ordem social estabele­ cida e todos os problemas políticos então deba­ tidos do recurso à «natureza» (pelo menos à «natureza» fonte de desigualdades), denun­ cia em tais argumentos uma impostura e funda as instituições que os seus autores defendem, inolusivamente a monarquia absoluta em luta contra os feudais, na convenção humana. Dá assim poder aos homens de irejeitarem as ins33

tituições amtigas, de fundarem novas institui­ ções e se necessário, de as revogar ou reformar através de uma convenção nova. Nesta teoria d(' estado natural e do contrato social, que nos surge como pura especulação, vemos uma or­ dem social e política decadente, e homens que fundam, assente em princípios engenhosos, a ordem nova que querem defender ou edificar. Mas este caracter polêmico e reivinãicativo da teoria do direito natural explica precisa­ mente a sua abstracção e o seu idealismo. Disse anteriormente que estes teóricos estavam agarrados ao modelo de uma física cartesiana a qual conhece apenas essências ideais. Na verdade não é só a física que está em causa. E os que pretendem ajuizar de Montesquieu referindo-o a Descartes, como já se fez ® , ou a Newton, reduzi-lo-iam a uma aparência ime­ diata, mas abstracta. O modelo físico, neste caso, não é mais que um modelo epistemológico; as suas verdadeiras razões são-lhe em parte exteriores. Se os teóricos de que falo não se propuseram o objecto de Montesquieu: compreender a infinita diversidade das insti­ tuições humanas de todos os tempos e luga­ res, não foi apenas pela simples aberração de um método inspirado no modelo cartesiano da

« LiANSON, Revue do métaiphysique et de moralc, 1896.

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ciência, foi também por motivos de origem muito diferente. Não pretendiam explicar as instituições de todos os povos do mundo, mas combater uma ordem estabelecida ou justificar uma ordem nascente ou em vias de nascer. Não pretendiam compreender todos os factos^ mas funda/r, isto é, propor e justificar uma ordem nova. Ê esta a razão pela qual seria aberrante procurar em Hobbes ou em Spinoza uma ver­ dadeira história da queda de Roma ou do sur­ gimento das leis feudais. Não iam aos factos. Rousseau dirá prontamente que é preciso começar por afastar todos os factos \ Iam ao direito^ isto é ao que deve ser. Para eles os factos não eram mais que matéria para o exer­ cício desse direito, como que a ocasião simples e 0 reflexo da sua existência. Mas por isso mesmo permaneciam naquilo a que se pode chamar uma atitude polêmica e ideológica. Faziam do partido que tomavam a razão da história. E os seus princípios, que tinham na conta de ciência, não eram senão valores com uma função nos combates do tempo — valores que eles tinham escolhido. Não quero dizer que tudo seja vão nesta empresa gigantesca: poderiamos mostrar-lhe os efeitos que são grandes. Mas vemos como

T ROTJSSEAU, D iscurso sohre a origem da desi­ Introdução (Edição portuguesa, Ed. Pre­ sença, Lisboa), 1971. gualdade.

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os propósitos de Montesquieu o afastam destas perspectivas e nesta distância distinguem-se melhor as suas razões. São duplas, políticas e metodológicas, estreitamente ligadas entre si. Que se medite pois nesta ausência de con­ trato social em Montesquieu. Há um estado natural, de que o livro primeiro do Esprit des Lois nos dá uma descrição rápida, mas não um contrato social. Nunca ouvi falar do direito público, diz pelo contrário Montesquieu na 44.-'" Lettre Persane, sem que não se comece por procurar cuidadosamente qual é a origem das sociedades: o que me parece ridículo. Se os homens não vivessem em socied.ade, se se aban­ donassem e fugissem uns aos outros, seria necessário determinar a razão de tal coisa e procurar saber porque é que se mantinham separados. Mas já nascem unidos; um filho nascido junto do pai, permanece com ele: aqui está a sociedade e a causa da sociedade. Isto diz tudo. Condenação do problema da origem: absurdo. A sociedade precede-se sempre a si própria. O único problema, se ele existisse, seria saber porque é que os homens não têm sociedade. Não há contrato algum. Para expli­ car a origem da sociedade basta um homem e 0 seu filho. Assim, não surpreende, na rápida análise do estado natural do livro I, o facto de uma outra lei ocupar o lugar deste contrato ausente: o instinto de sociedade. Aqui está uma indicação que permite qualificar Montes­ quieu como adversário da teoria do direito 36

natural por razões provenientes de uma to­ mada de partido anti-fevdal. Toda a teoria política do Esprit des Lois contribuirá para sedimentar esta convicção. ■ Mas a recusa consciente do problema e dos conceitos da teoria do direito natural conduz a uma segunda indicação já não política, mas metodológica. A novidade radical de Montesquieu está bem patente sob este aspecto. Ao rejeitar a teoria do direito natural e do con­ trato, Montesquieu rejeita também as implica­ ções filosóficas destas problemáticas, e sobre­ tudo, o idealismo dos seus métodos. Situa-se do lado oposto, pelo menos na sua deliberação de ajuizar os factos pelo direito e de propor, a coberto de uma gênese ideal, um fim para as sociedades humanas. Apenas conhece factos. Se não ajuiza o que é pelo que deve ser, é que não extrai os seus princípios dos seus precon­ ceitos, mas da natureza das coisas {EL, Pre­ fácio). Preconceitos; ideia de que a religião e a moral podem julgar a história. Este precon­ ceito constituía um princípio base de alguns dos teóricos do direito natural. Mas preconceito é também: a ideia de que a abstracção de um ideal político, mesmo revestido pelos princí­ pios da ciência, possa ser tomado por história. Assim Montesquieu rompia radicalmente com os doutrinários do direito natural. Rousseau não se enganava ao escrever: O direito polí­ tico ainda está por nascer... O único moderno capaz de criar esta grande e inútil ciência te37

ria sido o ilitstre Montesquieu. Mas só se inte­ ressou em analisar os princípios do direito político; contenta-se com tratar do direito po­ sitivo dos governos estabelecidos; e não há nada no mundo tão diferente como estes dois estvÂos. Portanto, aquele que quiser ajuizar convenientemente os governos tal como eles existem, é obrigado a servir-se de ambos: para se ajuizar do que existe, é preciso saber-se o que deve existir (Emile, V). Este Montesquieu que, iprecisamente, se re­ cusa a ajuizar o que existe pelo que deve exis­ tir, que apenas quer dar à necessidade real da história a forma da sua lei, extraindo esta lei da diversidade dos factos e das variações des­ tes, este homem está só diante da sua tarefa.

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II

U M A W O VA T E O R íA D A LES

Recusa de submeter a matéria dos factos (políticos a princípios religiosos e morais, re­ cusa de a submeter aos conceitos abstractos da teoria do direito natural, que não são mais que juízos de valor mascarados, é isto que afasta os preconceitos e abre a estrada real da ciência. É isto que introduz às grandes revo­ luções teóricas de Montesquieu. A mais célebre destas revoluções teóricas cabe em duas linhas que definem as leis. As leis... são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas {EL, I, 1). O teólogo da Défense, que não é tão ingênuo quanto Montesquieu o quer fazer, não acredita nos seus próprios olhos. As leis, relações! Isto pode-se lá conceber? No entanto, não foi sem intenção que o cmtor alterou a definição vulgar 30

das leis ^ E não se enganava. Diga ele o que disser, a intenção de Montesquieu era de alte­ rar algo na definição estabelecida. Conhecemos a longa história do conceito de lei. A sua acepção moderna (o sentido de lei científica) só surge nos trabalhos dos físi­ cos e dos filósofos dos séculos XVI e XVII. E mesmo nessa época traz ainda marcas do seu passado. Antes de adquirir o novo sentido de uma relação constante entre variáveis feno­ menais, isto é, antes de estar ligada à prática das ciências experimentais modernas, a lei per­ tencia ao mundo da religião, da moral e da política. Estava impregnada de exigências directamente ligadas às relações humanas. A lei pressupunha portanto seres humanos ou seres à imagem do homem. Era pois mandamento. Queria portanto uma vontade para ordenar e vontades para obedecer. Um legislador e súb"ditos. A lei possuía assim a estrutura da acção humana consciente: tinha um ohjectivo, desig­ nava uma finalidade, ao mesmo tempo que exigia uma espera. Para os sujeitos que viviam soh a lei, oferecia o equívoco do constrangi­ mento e do ideal. Ê este sentido e os seus harmônicos que domina inteiramente o pen­ samento medieval de Santo Agostinho a S. To­ más. Visto que a lei tinha uma única estrutura,

1 Defesa do EL, I Parte, I: I obj,ecçãx5.

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podia-se falar na lei divina, nas leis naturais, nas deis positivas (humanas) num mesmo sen­ tido. A mesma forma de mandamento e de fim achava-se em todos os casos. A lei divina do­ minava todas as leis. Deus dera as suas ordens a toda a natureza e aos homens, e assim, fixa­ ra-lhes os seus respectivos fins. As outras leis não eram mais que o eco deste mandamento originário, repetido e atenuado no universo inteiro, na comunhão dos anjos, nas socieda­ des humanas, na natureza. Sabe-se que é pró­ prio dos que dão ordens, pelo menos em certos corpos, gostar de serem obedecidos. A ideia de que a natureza podia ter leis que não eram ordens, levou tempo a libertar-se desta herança. Veja-se Descartes querendo atribuir a um decreto de Deus as leis que des­ cobre nos corpos: conservação do movimento, queda, choque. Com Spinoza, nasce a consciên­ cia de uma primeira diferença. Ê por metáfora que se vê a palavra lei aplicada às coisas na­ turais, pois normalmente quando se diz lei, diz-se mandamento Este longo esforço con­ segue, no século XVn, encontrar um domínio próprio para o novo sentido de lei: o da natu­ reza, o da física. Ao abrigo do decreto de Deus, que lá das alturas protegia ainda a antiga forma da lei, salvando as aparências, desen-

2 SPINOZA, Tratado teolóffico-poKtico, IV.

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volvia-«e uima nova forma de lei, que a pouco e pouco, passando de Descartes a Newton, to­ mou a forma que Montesquieu enuncia: Uma re­ lação constantemente estabelecida entre termos' variáveis, e tal que cada, diversidade ê unifor­ midade, cada transformação, constância (EL, I, 1). Mas de que valiam os corpos caindo e entrechocando-se, e os planetas seguindo a sua órbita, se se co^ncebia ainda mal que se pu­ desse fazer disso um modelo universal?! O an­ tigo sentido da lei, que é ordem e fim enun­ ciados por um senhor, conservava as suas posições de origem: o domínio da lei divina, o domínio da lei moral (ou natural), o domí­ nio das leis humanas. E verifica-se inclusivamente, o que à primeira vista é paradoxal, que os teóricos do direito natural que referimos davam à antiga acepção da lei o apoio dos seus conceitos. É claro que também eles tinham «laicizado» a «lei natural» e que, para eles, o Deus que a ditara ou o decreto desse Deus, de guarda junto dela, eram tão inúteis como o Deus de Descartes: nada mais que um espan­ talho contra os ladrões. Mas tinham conser­ vado a estrutura teológica da sua antiga acep­ ção, 0 seu caracter de ideal mascarado sob as aparências imediatas da natureza. Para eles, a lei natural não era só um dever, era uma necessidade. Todas as suas reivindicações en­ contravam refúgio e apoio numa definição da lei ainda estranha à nova definição. 42

Ora, em duas linhas, Montesquieu propõe muito simplesmente que se rejeite a antiga aeepção da palavra lei, dos domínios em que ela ainda imperava. E que se consagre para a totalidade dos seres, de Deus à pedra, o reino da definição moderna; a lei-relação. Neste sentido, todos os seres têm as suas leis: a di­ vindade tem as suas leis, o mundo material tem as suas leis, as inteligências superiores ao ho­ mem têm as suas leis, os animais têm as suas leis, o homem tem as suas leis {EL, I, 1). Isto diz tudo. Desta vez, é o fim das reservas inter­ ditas. Imagina-se o escândalo. É claro que Deus continua no seu posto para imprimir o movimento senão as alterações. Criou o mundo. Mas não é mais que um dos termos das rela­ ções. É a razão primitiva, mas as leis põem-no em pé de igualdade com os seres: As leis são as relações existentes entre ela (a razão pri­ mitiva, isto é Deus) e os diferentes seres, e a relação destes diversos seres entre si (EL, I, 1). E se acrescentarmos que o próprio Deus que institui estas leis, criando os seres, vê o seu próprio decreto originário submetido a uma necessidade do mesmo tipo, o próprio Deus é, do interior, invadido pelo contágio universal da lei! Se fez estas leis que governam o mundo, é que elas têm relação com a suo. sabedoria e a sua potência. Resolvidas as coisas no que se refere a Deus, tudo o resto cai. O melhor meio para aniquilar o adversário é pormo-nos ao lado dele. Perscrutava os antigos domínios. EHos 43

abertos diante de Montesquieu, e para começar o mundo inteiro da existência dos homens nas suas cidades e na sua história. Pinalmente, vai poder impôr-lihes a sua lei. Vejamos bem de frente o que esta revolu­ ção teórica implica. Supõe que é possível aplicar às matérias da política e da histó, ria uma categoria newtomiana da lei. Supõe que é possível extrair das próprias insti­ tuições humanas matéria para pensar a sua diversidade numa unidade, a sua mudança numa constância: a lei da sua diversificação, a lei do seu devir. Esta lei não será já uma ordem ideal, mas uma relação imanente aos fenô­ menos Não será dada na intuição das essên­ cias, mas extraída dos próprios factos, sem idéias preconcebidas, pela investigação e pela comparação, por taeteamentos. No momento da descoberta será apenas hipótese e só se tomará princípio uma vez verificada por toda a espé­ cie de fenômenos diversos: Seguia o meu

3 Evidente ressonância newtomana das fórmulas de Montesquieu: o autor, diz de si ipróprio, «não fala das causas, não compara as causas; mas fala dos efeitos e compara os efeitos» (D efesa do E L , I Parte, I: Resposta à 3.“ objeegão). Cf. igualmente esta noita sobre a poligamia: «JSTão é de modo nenhum uma questão de cálculo quando se raciocina sobre a sua natureza; pode ser uma questão de cálculo quando se combina os seus efeitos» (D efesa do E L , EC Parte: I>a poligamia).

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ohjecto sem plano: nãxD conhecia nem as regras nem as excepções; se encontrava a verdade, era para a perder em seguida: mas quando descobri os meus princípios, tudo o que pro­ curava veio a mim {EL, Prefácio). Estabelecí os princípios e vi os casos particulares dobrarem-se-lhes por si mesmos, a história de todas as nações não serem mais que a consequên­ cia deles... {EL, Prefácio). Embora sem a ex­ perimentação directa, é de facto o próprio ciclo de uma ciência empírica à procura da lei do seu objecto que assim encontramos. Mas esta revolução teórica supõe igual­ mente que não se confunda o objecto da inves­ tigação científica (neste caso as leis civis e políticas das sociedades humanas) com os re­ sultados da investigação em si: não se pode brincar com a palavra lei. Aqui está uma peri­ gosa confusão que provém do facto de Montesquieu, que em todos os objectos do conheci­ mento extrai dos factos as leis, procurar aqui conhecer este objecto particular que são as leis positivas das sociedades humanas. Ora as leis que se encontram na Grécia no século V, ou no Reino da Primeira Raça dos Francos, não são leis no sentido primeiro da palavra: leis cien­ tíficas. São instituições jurídicas de que Montesquieu pretende enunciar a lei (científica) de constituição ou de evolução. Di-lo muito claramente, disitinguindo as leis e o espírito destas: Não trato das leis, mas do espírito das leis... este espírito consiste em diversas rela­ 45

ções que as leis podem ter com diversas coisas... (EL I, 3). Montesquieu não confunde portanto as leis do seu objecto (o espírito das leis), com o seu objecto em si (as leis). Julig'o que esta distinção simples é indispensável para evitarmos cair num erro. No mesmo Livro Pri­ meiro, após ter mostrado que todos os seres do universo, inclusive Deus, estão submetidos a leis-relações, Montesquieu encara a diferença de modalidade destas leis. Distingue assim as leis que governam a matéria inanimada e que nunca conhecem qualquer espécie de variação, das leis que regulam os animais e os homens. À medida que os graus do ser se vão elevando, as leis perdem em fixidez e a observação des­ tas em exactidão. O mundo inteligente deve ser tão bem governado como o mundo físico (EL, I, 1). Assim o homem, que tem sobre os outros seres o privilégio do conhecimento, está à mercê do erro e das paixões. Daí as suas oscilações: Como ser inteligente que é, o ho­ mem viola constantemente as leis estabeleci­ das por Deus, e do mesmo modo transforma as que ele próprio estabeleceu (EL, I, 1). Pior ainda: nem sempre observa as que ele próprio criou. Ora é preoisamente eSte ser errante atra­ vés da sua história, que é o objecto das investi­ gações de Montesquieu: um ser cuja conduta nem sempre obedece às leis que lhe são dadas, e que além disso pode ter leis particulares fei­ tas por ele: as leis positivas, sem que isso queira dizer que as respeite. 46

Estas reflexões podem ser interpretadas como de um moiralista deplorando a fraqueza do homem. Parecem-me no entanto mais de um teórico que se depara neste campo com um equívoco profundo. Pode-se de facto dar desta distinção da modalidade das leis duas interpre­ tações diferentes, que representam duas tendên­ cias no próprio Montesquieu. Na primeira, poder-se-á dizer: com base no princípio metodológico segundo o qual as leis de relação e de variação que se podem extrair das leis humanas são distintas dessas leis, os erros e as oscilações dos homens rela­ tivamente às suas próprias leis nada põem em causa. Ê que o sociólogo não depara, como o físico, com um objecto (o co:rpo) que obedeça a um determinismo simples, e siga uma linha de que não se afasta— mas com um tipo de objecto muito particular: os homens, os ho­ mens que se afastam até das leis que eles pró­ prios criaram. Que dizer então dos homens na sua relação com as leis deles ? — ■ Que as alte­ ram, as contornam ou violam. Mas nada disto afecta a ideia de que se pode extrair, desta conduta indiferentemente submetida ou re­ belde, uma lei que os homens seguem sem o saberem e a verdade dos erros que cometem. Para se perder a coragem de descobrir as leis da conduta dos homens, é preciso cair na ingenuidade de tomar as leis que os ho­ mens se dão a si próprios pela necessidade que os governa! Na verdade, o erro, a aber­ 47

ração dos htumores, a transifoirimaçãx> e a vio­ lação das leis por eles próprios criadas, fazem pura e simplesmente parte da conduta dos ho­ mens. O que interessa é determinar as leis da violação das leis ou da transformação desitas. É precisamente isso que Montesquieu faz em quase todos os capítulos do Esprit des Lois. Abre-se um livro de história (as sucessões entre os romanos, a justiça nos primeiros tempos da feudalidade, etc.); vê-se que o erro e a variação humana constituem precisamente o seu objecto. Esta atitude supõe um princípio de método muito fecundo, que consiste em não tomar os motivos da acção humana pelos seus móbeis, os fins e as razões que os homens se propõem conscientemente pelas causas reais, na maioria dos casos inconscientes, que os levam a agir. Montesquieu apela constantemente para causas que os homens ignoram: o clima, o terreno, os costumes, a lógica interna de um conjunto de instituições, etc., para explicar as leis hu­ manas e a desfazagem entre a conduta dos homens e as leis «primitivas» (que são as leis naturais da moral), por um lado, e as leis positivas. Tudo leva a crer que Montesquieu não tenha querido enunciar também o mau espírito humano das leis: a lei da violação des­ tas, num mesmo princípio. Esta interpretação permite talvez dar um sentido mais a um tema que aparece constan­ temente em Montesquieu, e que parece dizer respeito aos «deveres» da lei. De facto, multas 48

vezes Montesquieiu, ao falar das leis humanas e sobretudo, das leis humanas existentes apela para leis melhores. Estranho paradoxo da parte de um homem que recusa ajuizar do que é pelo que deve ser — e que no entanto cai assim no desvio que ele próprio denuncia! Diz por exem­ plo (o que destoa de todas as leis desprovidas desta razão que descreve no seu livro) que a lei em geral é a razão humana, na medida em que é ela que governa todos os povos da tema (EL, I, 1). Diz ainda que as leis devem ser relativas ao povo, que devem ser relativas ã natureza e ao princípio do governo, que devem ser relativas às características físicas do país, etc. 0 número destes deveres é infindável. E quando se ,pensa, na definição que Montesquieu dá da natureza e do princípio, ter captado a essência de um governo, é com espanto que se lê : O que não significa que numa república se seja virtuoso, mas que se deveria sê-lo sem o que o governo seria imperfeito (EL, III, 11). O próprio despotismo, para ser «iperfeito», e sabe Deus de que gênero de perfeição, tem deveres a respei­ tar! A partir destes textos conclui-se de uma maneira geral: é o teórico do ideal ou o legis­ lador que toma o lugar do estudioso. Este quer apenas factos, o outro propõe-se fins. Mas tam­ bém aqui 0 mal-entendido repousa em parte no jogo de palavras entre as duas leis: as leis que ordenam realmente as acções dos homens (as leis que o estudioso investiga) e as leis orde­ nadas pelos homens. Quando Montesquieu pro49

põe deveres às leis, rofere-se apenas às leis que os homens criam. E este «dever» não é mais que o apelo para que se ponha fim à distância que separa as leis que governam os homens sem que estes o saibam das leis que eles fazem e que iconhecem. Trata-se pois de um apelo ao legislador, um apelo para que o legislador, instruído das ilusões da consciência comum, crítico desta consciência 'ceiga, se reigule pela consciência esclarecida do estudioso, isto é pela ciência, e na medida do possível ponha ©m conformação as leis conscientes que dá aos ho­ mens com as leis inconscientes que os gover­ nam. Não se trata portanto de um ideal abstracto, de uma tarefa infinita que afectaria os homens porque impotentes e errantes. Tra­ ta-se de uma correcção da consciência errante pela ciência adquirida^ da consciência incons­ ciente pela consciência científica. Trata-se por­ tanto de passar as aquisições da ciência para a própria .prática política, corrigindo esta prá­ tica dos seus erros e da sua inconsciência. Tal é a primeira interpretação possível que esclarece a imensa maioria dos exemplos de Montesquieu. Assim compreendido, Montesquieu é de facto o precursor consciente de toda a ciência .poilítica moderna, para quem a ciên­ cia só o é se for crítica, que extrai as leis reais da conduta dos homens das leis aparentes que eles criam, .para criticar estas leis aparentes e para as modificar, regressando assim à histó­ ria dos resultados adquiridos no conhecimento 50

da história. Elste recuo científico relativamente à. história, e este regresso consciente à história, podem, é claro, se se tomar o objecto da ciên­ cia pela ciência, servir de ipretexito à acusação de idealismo político (veja-se Poincaré: a ciên­ cia está no indicativo; a acção, no imiperaitivo)! Mas para que todo este tipo de acusações seja destruído, basta verificar que a distância dita ideal entre o estado existente e o projecto de o reformar corresponde neste caso ao recuo da ciência relativamente ao seu Objecto e à sua consciência comum. No laparente ideal que a ciência propõe ao seu objecto, o que faz é devol­ ver-lhe o que lhe tirou: o seu próprio recuo, que é o conhecimento. Mas devo dizer que destes textos que co­ mento há uma outra interpretação possível que pode ser defendida com argumentos do próprio Montesquieu. Vejamos então como introduz as leis humanas no concerto das leis gerais: Os seres particulares inteligentes podem ter leis que eles fizeram: mas também têm algumas que não fizeram. Antes de existirem, os seres inteligentes eram possíveis: tinham portanto relações possíveis e, por conseguinte, leis pos­ síveis. Antes de haver leis feitas, havia rela­ ções de justiça possíveis. Dizer que não há mais nada ãe justo ou de injusto do que ordenam ou proíbem as leis positivas, equivale a dizer que antes de se ter traçado o círculo, nem todos os raios eram iguais. Portanto têm de se admi­ tir relações de equidade anteriores à lei positiva 51

que as estabeleceu... {ELj I, 1). E estas leis «primitivas» são as de Deus. Estas leis de uma justiça que se precede sempre, indepen­ dente de todas as condições concretas da história, remetem assim para o antigo tipo de leis, para a lei-'mandamento, para a lei-dever. Pouco importa que ela seja divina e se exerça através do 'ministério da religião; natural ou m.oral e se exerça através do ensinamento dos padres e dos senhores ou por essa voz da na­ tureza, que Montesquieu diz, antes de Rousseau, ser a mais doce das vozes; ou política. O que está em questão não são as leis humanas posi­ tivas estabelecidas em condições de existência concretas, a partir das quais o estudioso deve precisamente extrair a lei. É um dever fixado aos homens pela natureza ou por Deus, o que é o mesmo todo. E esta característica com­ porta, é claro, a confusão das ordens: a lei científica desaparece por detrás da lei-ordem. Esta tentação está claramente patente no fim do primeiro capítulo do Livro I. Os textos que serviram de base à primeira interpretação sur­ gem agora com um sentido novo. Deste modo, tudo se passa como se, a errância humana, essa parte indivisa da conduta dos homens, deixasse de ser um objecto da ciência, para se toraar a razão profunda que justifica a existência das leis, isto é dos deveres. Se os corpos não têm leis (positivas) é porque não têm espírito para desobedecer às leis deles! Porque se os homens têm aquele tipo de leis, é menos devido à im­ 52

perfeição humana (quem, por um homem, não daria todas as pedras do mundo?), que pela sua capacidade de insubmissão. O homem: Tem de se conduzir a si próprio; e no entanto, ê um ser limitado; está sujeito à ignorância e ao erro como todas as inteligências finitas; e ainda perde os fracos conhecimentos que pos­ sui. Como criatura sensível que é, fica sujeito a mil paixões. Um ser desta espécie poderia a todo o momento esquecer o criador: Deus cha­ mou-o a si, pelas leis da religião; um ser desta espécie poderia a todo o momento esquecer-se de si próprio: os filósofos aconselharam-no com as leis da moral; feito para viver na sociedade, poderia esquecer nela os outros homens: os legisladores chamaram-no aos seus deveres através das leis políticas e civis {EL, I, 1). Perante isto, rendemo-nos e de uma vez para sempre. Estas leis são ordens. Ordens contra o esquecimento, ordens de lembrança que re­ põem o homem na sua memória, isto é no seu dever, que o colocam face ao fim que quer queira quer não tem de prosseguir, se quiser realizar o seu destino de homem. Estas leis já não têm nada a ver com a relação exis­ tente entre o homem e as suas condições de existência, têm a ver com a natureza humana. A margem de dever-ser destas leis já não diz respeito, como antes, à distância que separa a inconsciência humana da consciência das suas leis, ela concerne a condição humana. Natureza humana, condição humana, eis-nos lançados 53

num mundo com o qual pecosávamos ter rom­ pido já. Num mundo de valores fixos no céu, para que o olhar dos homens seja desviado para lá. Montesquieu entra assim ajuizadamente na mais insípida das tradições. Há valores eternos. Leia-se o seu enunciado no capítulo 1 do Li­ vro I: obediência às leis; gratidão para com os nossos benfeitores; obediência para com o criador; punição para o mal cometido. Singu­ lar enumeração esta! Será completada por uma segunda: Livro I, capítulo 2, para que se aprenda: que a «natureza» nos dá a ideia de um criador e nos leva a ele; que quer que viva­ mos em paz; que comamos; que sejamos incli­ nados para o sexo oposto; e desejosos de viver em sociedade. O resto está disperso por vários textos: que um pai deve ao filho alimento, mas não forçosamente herança; um filho, sustento ao pai se este estiver na rua; que a mulher deve submissão ao marido; e sobretudo que as con­ dutas relacionadas com o pudor pesam, mais do que tudo, no destino humano (quer se trate da mulher na maior parte dos seus aotos, nas combinações dos casamentos ou nos dois sexos conjugados em encontros abomináveis); que o despotismo, a tortura e por vezes a escrava­ tura, ferem sempre a natureza humana. Enfim, meia dúzia de reivindicações liberais, outras tantas políticas e grandes banalidades assu­ mindo foros de usos bem enraizados. Nada que se pareça, nem de longe, com os atributos gene­ 54

rosos que outros teóricos, já não vergonhosos, mas resolutos ou ingênuos, dão ou darão à «natureza humana»: liberdade, igualdade e até fraternidade. Estamos de facto noutro mundo. Creio que esta faceta de Montesquieu não é indiferente. Que não representa apenas uma con­ cessão isoilada num conjunto de exigências ri­ gorosas, o tributo pago aos preconceitos do mundo para que lhe dessem paz. Montesquieu 'precisava deste recurso e deste refúgio. Como precisava do equívoco do seu conceito de lei para combater os seus adversários mais fero­ zes. Releia-se a sua resposta ao teólogo em estado de alerta. Estas leis que se precedem a si próprias, estes raios iguais desde a eterni­ dade antes que alguém, Deus ou homem, tenha traçado algum círculo, estas relações de equi­ dade anteriores a todas as leis positivas pos­ síveis, servem-lhe de argumento contra o pe­ rigo de Hobbes. O autor pretende atacar o sistema de Hobbes: sistema terrível, que, fa­ zendo depender todos os vícios e todas as vir­ tudes do estabelecimento das leis que os ho­ mens fizeram, destrói, como faz Spinoza, as bases da moral e da religião * O teóloigo en­ contrará nisto razões de contentamento. Mas a causa que está em jogo é outra. Não as leis que comandam a moral e a religião, mas as leis que governam a política, leis decisivas, aos

■* D efesa do E L , I Parte, I; Resposta à 1." objecção.

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olhos do (próprio Montesquieu. Ê o fundamento desitas leis que está em causa em Hobbes atra­ vés do contrato. Estas leis eternas de Montesquieu, preexistentes a todas as leis humanas, são sem sombra de dúvida o refúgio onde se .protegerá do seu adversário. Se há leis antes das leis, compreende-se que já não exista contrato, nem nenhum dos perigos políticos em que só a ideia do contrato compromete os homens e os governos. Ao abrigo das leis eter­ nas de uma natureza sem estrutura igualitária, pode-se combater o adversário de longe. É es­ perado no terreno da natureza, terreno esco­ lhido antes de ele o escolher como as armas convenientes. Tudo está disposto para a defesa de uma outra causa que não a sua: a de um mundo abalado que se pretende recolocar sobre as mesmas bases. O facto de Montesquieu se servir assim das causas antigas com idéias de entre as quais, as mais fortes são inteiramente novas, não constitui paradoxo. Mas é tempo de o seguir nos seus pensamentos mais conhecidos que são também os mais secretos.



m A D IA L É C T IC A D A H IS T Ó R IA

Tudo o que até ‘aqui foi dito apenas se refere aos métodos de Montesquieu, aos pres­ supostos e sentidos desse método, que aplicado ao seu objecto é incontestàvelmente novo. Mas e/mbora novo, um método pode ser inlitil se não -produzir nada de novo. Quais são então as descobertas positivas de Montesquieu? Comecei par examinar os homens, e achei que na infinita diversidade das leis e dos cos­ tumes não eram apenas conduzidos pelas stias fantasias. Estábeleci os princípios e vi os casos particulares vergarem-se-lhes por si próprios, eus histórias de todas as nações não serem mais q