Meu Professor Inesquecível
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Editora Rosely M. Boschin i

Coordenação editorial

Copyright © 1997 by Ana Maria Machado, Bartolomeu Campos de Queirós, Fanny Abramovich, Içami Tiba, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Angelo, Jean-Claude Bernardet, Lya Luft, Marcos Rey, Marina Colasanti, Walcyr Carrasco

Marco Polo R. Henriques

Assistente editorial Rosângela Barbosa

Capa ACPalma Comunicação

Todos os direitos desta edição são reservados à Editora Gente. Rua Pedro Soares de Almeida, 114 São Paulo, SP - CEP 05029-0 30 Telefone: (11) 3670-2500 Site: http://www.editoragente.com.br E-mail: [email protected]

Ilustrações da capa e miolo Paulo Caruso

Revisão Maria Alayde Carvalho

Diagramação Join Bureau

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Meu professor inesquecível: ensinamentos e aprendizados contados por alguns dos nossos melhores escritores /organização de Fanny Abramovich . — São Paulo : Editora Gente, 1997. Vários autores. ISBN 978-85-7312-125-4 1. Escritores brasileiros

2. Memórias autobiográficas

3. Professores

I. Abramovich, Fanny. II. Título..

97-3036

CDD-869.98503

índices para catálogo sistemático: 1. Escritores brasileiros : Século 20 : Reminiscências : Literatura brasileira 869.98503 2. Século 20 : Escritores brasileiros : Reminiscências : Literatura brasileira 869.503

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P

r e f á c io

Para participar desta antologia, foram convidados onze escritores. Homens e mulheres, de gerações diferentes, citadinos, interioranos, estrangeiros. Para cada um se pediu que falasse sobre o seu professor inesquecível. Do jardim de in fância, colegial ou da universidade. De algum curso extraclasse ou membro da família. Que tivesse deixado marcas por ter sido o melhor ou o pior. Como quisessem. Vieram abor dagens literárias — claro —, mas em que se reflete sobre o educacional. Humor, lirismo, emoção deslizam pelas pági nas fluentes e envolventes. As marcas deixadas — de cada professor, para cada autor — são fruto da memória desencadeada. Borbulham lembranças. Seguem- se descrições detalhadas, atmosferas recriadas, os cheiros impregnantes, as roupas, os gestos, a postura, a letra informativa ou corretiva, as dicas, os diálo gos travados, as paredes desenhadas. Afluem recordações nítidas, vividas, Há quemou seestudados, lembre dodas jeito dos ca dernos, dos livrosplenas. recomendados histórias contadas, das conversas sussurradas ou compartilhadas, dos empurrões decisivos. Os professores escolhidos (a alfabetizadora, o pai, os mestres da vida, os ensinantes de conhecimentos específi cos, o marido, os inúmeros e consecutivos, o único, o mais cobiçado e aparentemente inatingível) são desenhados com

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suas veias, seus trajes, seu tom de voz, seu jeito de pisar, sua afetividade, sua clareza e perspicácia, seu estabanamento, suas cobranças e seus olhares imperativos ou interrogantes. Retratos belos, sensíveis, poéticos, mergulhantes. Irresistíveis! Também, são textos de alguns dos melhores escritores bra sileiros contemporâneos. Os professores escolhidos o foram por ter sido apresen tadores mundo, agentes de significativos, transformaçãopor pessoal, res ponsáveisdopor encaminhamentos revelações, por descobertas decisivas, por ser paradigmas, por momentos iluminadores/hilários/desconcertantes/ampliantes. Suas significâncias éticas, suas exigências e expectativas, sua compreen são do real interesse de cada aluno depoente- escrevinhador permeiam todos os parágrafos. Acompanham- se métodos, cutucadas, abrangências, cumplicidade, aprontações, sustos, espantos, ganas, reen contros posteriores. Também a sedução, os envolvimentos, as cobranças, as portas abertas, a curiosidade respondida, as enganações, as dádivas e dúvidas, as relações afetivas. Retratos feitos e refeitos. Cada professor, mestre, ensinante escolhido ficou na memória por décadas por ter sido um modelo, uma referên cia marcante e clarificadora de como ser. Pelas páginas des te livro, se respira, transpira, pelos poros atravessam saudades. De um ser especial, duma escolha feita, dum ca minho encontrado. Marcas deixadas por professores em criadores para ser lidas por professores e alunos. Com prazer, gostosura, identi ficação, propulsionadoras das próprias memórias e da sele ção significativa. Provocativas e instigantes para repensar o papel do professor na vida de cada um. Marcas fundantes na formação das gentes. Inesquecíveis!

Fanny Abramovich

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H a s t e s , b o l in h a s

e s a pa t o s

APERTADOS

Marina Colasanti

y l o contrário de quase todos os adultos que conhe ço, não fiz jardim de infância. Nem pré. Não freqüentei gru po escolar. Não aprendi oHino à Bandeira.Não desfilei no 7 de Setembro. Ninguém me disse que as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. Não chamei minhas profes soras de tia nem de dona. Em resumo, não tive uma educa ção de criança brasileira. E isso porque brasileira não era. Até os 11 anos fui educada na Itália, durante a guerra — a Segunda —, num tempo que era de exceção mas que eu vivia como normal porque não conhecia outro. O percurso do meu ensino pri mário não foi exatamente regular. Tive muitas professoras, nem sempre terminei o ano com a mesma com quem o havia começado. Estudei em tantas cidades, em tantas me sas ou carteiras. Houve momentos em que atravessei cam pos cobertos neve sentada para ir ànaaula, emOutros que deslizei abaixo sobre de o gelo, pasta. em queladeira estu dei tateando no bolso as conchas que havia catado um dia antes na praia. E os dias em que largava a aula no meio porque a sirene do alarme antiaéreo tocava e meu pai vinha me buscar de moto — esses, inconsciente como toda crian ça, eram os de que mais gostava. Inesquecível para mim é —

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esse processo picotado e imprevisível, em que de alguma maneira tudo estava sempre recomeçando e sendo novo, em que meu único colega constante era meu irmão e em que as professoras, os rostos das professoras, se acendiam e se apagavam, como faróis apontando o caminho. Duas eu destaco pela importância especial que tiveram em minha vida, ensinando- me coisas de que nunca mais abriria mão. A primeira. E a última.

A primeira Era magra e alta, de cabelos compridos até os ombros, encaracolados nas pontas. Talvez não fosse alta, eu é que era pequena. E o encaracolado era de permanente. O nome dela esqueci. Junto com o nome esqueci uma porção de coisas dela, esqueci quase tudo. Mas guardei o essencial: que ela me seduziu para a arte de ler e escrever e que, com as ferramen tas que me deu, ganho a vida até hoje. Ela era jovem, e tinha um irmão. O irmão é importante nessa história de sedução, embora não me lembre de jamais tê-lo encontrado. Um irmão desenhista. Hoje sei que era um desenhista medíocre, provavelmente um mau desenhista. Mas quando vi seus quadros pela primeira vez, cobrindo quase todas as paredes da casa dela, me pareceram de uma beleza intransponível. Minha família vivia naquela época em uma cidade pe quena, pouco mais que uma antiga aldeia de pescadores, que ganhava algum movimento nos meses quentes graças aos veranistas. Imagino hoje que a escola, a única disponí vel, não fosse boa. E apenas uma dedução, ninguém me falou isso, não se davam muitas explicações às crianças. O que sei, com certeza, é que pela mão da nossa governanta, numa manhã que a distância tornou luminosíssima, meu ir mão e eu chegamos diante da porta da casa da professora. E a porta se abriu. —

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Três degraus para baixo, uma espécie de sala meio es cura, de pouquíssimos móveis, uma porta aberta para o jar dim. E nas paredes, ao alto — pelo menos para mim —, postos em duas e até mais fileiras, aqueles quadros, aqueles quadros todos, grandes aquarelas e pastéis confundindo suas cores com o brilho dos vidros. Eram cabeças de Cristo coroa das de espinhos e gotejando sangue, pintinhos saindo do ovo, Em galossua cantando na foram cerca, vasos de flores,encantamento gatos e nove los. profusão meu primeiro artístico. Posso até dizer que foram meu primeiro museu. Tão forte a atração que mal reparei na professora. Só depois de alguns minutos ela entrou de fato no meu olhar. E ali está até hoje, suave, pálida, leve. Não vejo nenhuma cor na roupa. Devia estar de cinza. Mas a saia era dançante contra as pernas finas, e os sapatos baixos eram certamente pretos. Caminhava à nossa frente, conduzindo- nos à sala seguinte. A sala das crianças. Aquela que — nem ela nem eu sabíamos ainda — ia ser minha sala de aula. Aqui tudo era luz. Paredes claras, uma janela aberta de par em par, uma porta dando para a cozinha — que tranqüilizadora aquela proximidade. No canto, entre janela e porta, no ponto de máxima claridade, a mesa redonda. E ao redor da mesa, ocupadas com suas tarefas, cabeça baixa sobre os cadernos, umas cinco ou seis crianças. Calculo retroativa mente que fossem cinco ou seis, mas talvez fossem mais, dez até. Naquele dia, entretanto, eu ainda não sabia contar. Cada uma estava empenhada em fazer uma coisa dife rente. Isso me pareceu absolutamente encantador, acredi tando eu que cada uma fizesse aquilo que bem entendia. Logo iria descobrir que não era assim. Cada criança fazia exatamente aquilo que tinha que fazer, aquilo que a profes sora mandava, como em qualquer escola. A diferença estava em que as necessidades variavam de uma criança para outra porque cada criança estava em um nível de aprendizado. Digamos que aquela era uma espécie de aula particular co —

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letiva. Crianças de várias idades, em estágios distintos, pas savam suas manhãs sob a orientação e o olhar amorosa da professora, ciscando conhecimentos ao redor da mesa como os pintinhos ciscavam nos quadros da outra sala. Nem se quer havia quadro-negro. E pra quê? Os novos dados, as dúvidas, as correções, tudo era resolvido individualmente, dito quase num sopro junto ã bochecha, enquanto a mão da professora guiava gordotas.com o olhar o tampo Na ponta dos mãozinhas pés, para alcançar da mesa, eu espiava o que as crianças faziam. Várias, empenhadíssimas, traçavam hastes. E isso mesmo, hastes. Eu sou do tempo, nem tão distan te, em que se acreditava que ter uma boa letra era importante na vida, e que uma boa letra se adquiria desde o princípio. Então, antes de qualquer outra providência, antes de saber identificar uma única vogal, a criança empunhava um lápis de ponta não muito afiada para não rasgar o papel e, no cader no quadriculado, começava a traçar hastes do tamanho de cada quadradinho, uma ao lado da outra, interminavelmente. Só depois de passados alguns dias, já capacitada a produzir hastes razoavelmente retas, a criança-estudante passava à etapa seguinte. A etapa seguinte eram bolinhas. Também estas do ta manho dos quadradinhos, também estas enfileiradas, preen chendo páginas e páginas do caderno. As bolinhas eram de importância vital porque, além de servir para fazer a barriga das letras que têm barriga, seriam utilizadas adiante para aprender Matemática, uma bolinha + uma bolinha = duas bolinhas. J á se percebe que a próxima fase do trabalhoso avanço do saber era uma alternância de hastes e bolinhas, cada uma em seu quadrado, independentes, mas de namoro armado, olho posto na união que fatalmente se daria de uma haste e uma bolinha, união que, graças ao acréscimo de um rabicho aqui ou de uma curvinha ali, geraria afinal a tão esperada letra. — 14



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Foi nesse ponto daquela manhã brilhante, em que er guida sobre a ponta dos pés eu alcançava a revelação quase mística da escrita, que deparamos com um fator complicante. Eu não tinha sido levada ali para aprender. Minha função era apenas acompanhar meu irmão, que, ele sim, ia ser al fabetizado. Na sala por onde eu havia passado, os quadros conti nuavam na estando penumbra. Aqui,uma em plena luz, crianças faziam- se hastes e luzindo bolinhas, mesmo ou duas maiores a escrever palavras. E a professora, já toda doce e solícita, debruçava-se para o meu irmão, acomodava- o na cadeira, enquanto a governanta, segurando firme minha mão, preparava a despedida... Fui rápida no gatilho. Ninguém ia me tirar dali. Nin guém ia me impedir de fazer hastes, de chegar um dia às bolinhas. Meus uivos de choro teriam feito inveja ao corpo de bombeiros. De nada adiantou professora e governanta explicarem que meu irmão era mais velho, que eu era muito pequena, que dali a um ano... A única coisa óbvia para mim — e como era possível que não o fosse para elas? — era que, exatamente por ser meu irmão o mais velho, tudo o que ele fazia tornava- se duplamente desejável para mim e que exata mente por ser pequena eu devia fazê- lo também, única ma neira de equiparar- me a ele. Vendo que eu não parava de chorar e que, temendo ser arrastada, cravava os pés no chão e me agarrava à mesa com as duas mãos pondo em risco a exatidão das hastes alheias, a professora — talvez parcialmente enter necida por tão frenético amor ao aprendizado — achou mais fácil fazer minha vontade. Trocando um olhar de en tendimento com a governanta, “Só por hoje”, disse. Empi lhou almofadas em uma cadeira, me depositou no alto das almofadas, empurrou a cadeira para junto da mesa, em purrou um caderno quadriculado para a minha frente. Pro videnciou um lápis. —

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dos, um apartamento a que se chegava por um último lance de escadas fora do alcance do elevador e que, abrindo- se a porta, oferecia somente o corredor estreito pontuado pelo terceto quarto- banheiro- cozinha e, ao fim, a sala. Agora apaguem o conceito que vocês têm de sala com sofá, poltro na, mesa de centro, estante de TV. E, no mesmo espaço não muito generoso em que isso caberia, ponham um biom bo pano de damasco de jogado por pálida cima, eponham doiscom altosum espelhos venezianos, moldura superfí cie escura, uma cômoda antiga, a porta verde-escuro de um armário que entreaberta deixa ver lá dentro incontáveis gar rafas coloridas, uma fruteira branca e algumas conchas. Agora posicionem a um lado a grande cama turca cheia de almofadas de sedas já gastas. Ao centro, sobre um estrado, ponham a bela cadeira de braços. E no meio, como um mínimo bosque, as madeiras escuras dos cavaletes. Não há ninguém sentado na cadeira do estrado porque hoje não se pinta modelo. Pintam- se dois arenques num prato. Mas para que isso tudo fique pronto é necessário ainda despejar a luz. A luz quase dourada que vem das clarabóias do alto. E a luz clara e fria, cortante, reflexo do mar que entra pelas grandes janelas da frente. O ateliê é de cara para o azul. Nesse ambiente, Caterina. Tão magra que vejo as veias sob a pele branquíssima, e nos primeiros tempos estremeço quando move as mãos, de medo que os pulsos se partam. Quase loura — mas a cor muda de vez em quando ao sabor das tinturas —, de cabelos curtos, às vezes retidos por uma faixa gazeuma azul-pavão, queavental ela arremata em indefinido grande laço lateral.deVeste espécie de de pintor, e limpo. Calça babuches com meias soquete. E fuma desbragadamente, segurando o cigarro no alto com os dedos finos. A idade dela jamais saberei, mas certamente não é jovem. Durante alguns anos serei a aluna mais jovem do ateliê. Talvez a favorita de Caterina. Que me chama à minúscula —

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cozinha a pretexto de me dar água e em vez disso, escondido dos outros, me dá o sorvete que ela mesma fez. Que me convida nas manhãs de domingo, quando não há alunos, e ela pinta enquanto o marido fuma cachimbo. Que me ensi na, pincelada a pincelada, os segredos da profissão. Aqui também se começava fazendo hastes, só que has tes de outra natureza. Primeiro desenhar objetos. Passado algum naturezassó bem depois, modelotempo, vivo. desenhar Na mesma ordem,mortas. pintar Enaturezasmortas — quantas maçãs pintei na minha vida, quantas garrafas! — e depois pintar modelo vivo, mas, atenção, as primeiras vezes quase sem cores, só com tons de terra e branco, nem sequer preto, que é criatura de difícil manejo e tempera mento invasor. Era italiana, Caterina, como eu. Do norte, porém. De família e modos aristocráticos. Contava- me de seus estudos de pintura, ainda jovem, da academia de arte onde se havia formado. E me dizia de quando, ainda tão moça, o primeiro marido a trancava em casa, por ciúme, e as vizinhas bota vam tubos de tinta e solventes na cestinha que ela descia com um barbante pela janela. Conversava, largava o cigar ro, vinha por trás do meu cavalete, olhava e, sem interrom per a conversa, ia apontando os defeitos, as soluções. As vezes, raramente, pegava o pincel da minha mão e então, como se numa mágica que eu jamais alcançaria, misturava rapidamente as tintas na palheta, e apenas com um toque aqui e uma pincelada ali iluminava o quadro inteiro, cons truía aquilo que estava mal definido e fosco. Uma tarde,Paulo? o grande convite:que nãosenti quereria ir com ela à Bienal de São A emoção era provavelmen te muito maior que o convite. Viajamos de ônibus, à noite, vento entrando por todas as frinchas, um frio dos diabos. Baixamos em um hotelzinho no centro, modesto, o tempo de largar as malas. E lá fomos nós. Tão grande a Bienal, tanto quadro para estudar, para comentar. Ela parava diante —

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de cada um, e me explicava, me mostrava, me dava uma aula. Ficamos até a hora do fechamento — fora chovia e dentro já não havia quase ninguém, mas nós não íamos ar redar pé antes que nos expulsassem. Repetimos a dose no dia seguinte, encasacadas e ali mentadas a sanduíches. Viajamos à noite, exaustas. Mas eu havia aprendido a ver criticamente uma exposição, e tinha começado logo por uma das mais complexas do mundo. Pintar um ovo. Coisa de grande delicadeza. Se você o pintar muito branco, me dizia Caterina, vira ovo de gesso. Mas, se meter umas sombras coloridas, uns reflexos de cor, vira ovo de Páscoa. Um ovo muito redondo não é um ovo, é uma bola. Um ovo perfeitamente oval é de madeira, da queles de remendar meias. O segredo de um ovo pintado está na gentileza do olhar e na firmeza do toque. Velásquez, esse sim, sabia pintar ovos por fora e por dentro. Sapatos apertados. Coisa fácil de resolver. Você o en che de álcool, me dizia boa riscos, chacoalhada, joga fora o álcool, enfiaCaterina, rápido odápé.uma Havia porém, me advertiu; uma vez fizera o truque do álcool, enfiara os sapatos e fora à festa, mas com o passar das horas os pés doíam tanto que se vira obrigada a passar o resto da noite sentada num sofá ao lado de uma velhinha surda. É que, amaciados os sapatos pelo álcool, enfiara o pé direito no sapato esquerdo e vice-versa. Caterina era assim. Distraída com as coisas do cotidia no, capaz de vestir a roupa pelo avesso e de deixar queimar a comida, mas atenta, muito atenta, às nuances das cores e dos gestos. Divertia-se usando- me para escandalizar as alunas mais velhas, senhoras que, a pintar garrafas, preferiam botões de rosa. Com seu jeito um tanto aéreo, Caterina lançava o mote, um comentário qualquer sobre fidelidade conjugal, por exemplo, ou sobre a suposta superioridade dos homens,



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e pedia minha opinião. No princípio eu respondia de manei ra inocente, cuidadosa até, mas a partir de certo ponto per cebi a brincadeira e passei a responder de forma radical, provocativa. Era o suficiente para que uma das senhoras segurasse seu pincel com mais vigor e entrasse na conversa, logo se cundada por outra, armadas ambas de santa indignação, na defesa daqueles quena minhas afirmações juvenis pareciamprincípios ameaçar. sagrados Tratava-se, verdade, de um jogo entre nós duas, não contra as outras, mas a favor da nossa cumplicidade, do temperamento libertário que a velha mestra partilhava com a jovem aluna. Eu ainda tinha, dos meus tempos de criança, um teatro de marionetes, desmontável, belíssimo. Um dia Caterina me disse que estava com vontade de pintar uma série de qua dros de marionetes. Feliz por poder colaborar, emprestei meu teatrinho. Nunca mais o pedi de volta. Com o tempo, ambas nos esquecemos dele. O teatrinho acabou largado em algum fundo de armário. Mas minhas marionetes conti nuam representando seu papel, pendentes das paredes de quem sabe quais casas, pintadas com toda a sua eloqüência por Caterina. Quando cheguei à idade da faculdade, fui para Belasartes, deixei minha mestra. Ainda falei com ela durante um tempo. Depois, nunca mais. Passaram- se muitos anos. Tornei-me jornalista. Parei de pintar. Tornei-me escritora. Voltei a pintar. E um dia fiz uma exposição dos meus quadros. Mandei convite para Caterina. Ela não foi à inauguração. Nem eu a esperava naquela noite. Sabia que teríamos que ter um espaço só nosso para podermos falar de pintura como falávamos antes. E de fato ela veio, numa tarde em que eu me encontrava sozinha na galeria. Estava ainda mais frágil, embora isso parecesse im



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possível. As veias azuis, os pulsos, e aquela elegância intacta dos gestos agora de pássaro. Que honra foi para mim ela gostar dos meus quadros. Que prazer ouvi-la comentar o meu trabalho com o mesmo sutil rigor que me havia ensina do naquelas tardes frias da Bienal de São Paulo. Ela estava contente de ver que, afinal, nada havia se perdido. Eu, feliz de poder oferecer- lhe essa certeza. Caterina Barattelli já morreu. Talvez a minha primeira professora também tenha morrido. Mas as duas estão vivas em mim, tão vivas na minha memória e no meu relato como estavam na manhã e na tarde ensolaradas em que pela pri meira vez as encontrei. E, quando quero, desço três degraus, entro na sala penumbrosa onde só os quadros cintilam, sigo até a sala das crianças, sento, e pouso as mãos na mesa, espalmadas. Ou então passo pela Vieira Souto, levanto a cabeça, vejo o ateliê lá em cima, as janelas fechadas, e cá de baixo eu as abro, me debruço, e ouço Caterina, que da co zinha me chama para beber água.

Marina Colasanti já publicou 31 livros.

Nasceu na África. Quando criança tomava banho no Mar Vermelho, depois foi para a Itália banhar- se no Mediterrâneo e acabou no Brasil, mergulhando no Atlântico. Não é à toa que se chama Marina. Pinta — é a ilustradora dos seus livros. E não é trocadi lho, mas também borda. E tremenda cozi nheira. E poeta. Tem duas filhas. E, em meio ao ruído que tudo isso faz, consegue manter um diálogo constante e intenso com o mundo das fadas.



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F

o r a m m u it o s

,

o s pr o f es s o r e s

Bartolomeu Campos de Queirós

Linha mãe guardava com cuidados de sete cha ves, sobre a cômoda do quarto, três cadernos. No primeiro, ela copiava receitas de amorosos doces: suspiros, amor-empedaços, baba-de- moça, casadinhos, e fazia olho-de-sogra de cor. No segundo caderno, ela anotava riscos de bordados, com nomes camuflados em pesares: ponto-atrás, ponto de sombra, ponto de cruz, ponto de cadeia, laçadas e nós. No terceiro, ela escondia longas poesias, boiando em sofrimen tos:A Louca d’A\ bano, Tédio, O Beijo do Papai. Eu repara va seus cadernos, encardidos pelo tempo e pelo uso, admirava sua letra redonda e grande, com caneta de molhar, sem ainda desconfiar das palavras. Eu sabia do todo, sem suspeitar das partes. Durante muitas tardes, com o pensamento enfastiado de passado, ela passava as páginas, lentamente, espreitando as folhas vazias, como se cansada de escrever e de pouco exercer. Erampoesia sempree muito as mesmas comidas, os mesmos pon tos, a mesma por decidir. Meu pai, junto ao rádio no alto da cristaleira e longe do meu alcance, protegia alguns poucos livros sobre homens célebres, com vidas prósperas sem precisar viajar de sol a sol. Aos pedaços ele lia os compêndios, escutandoVoz a do Brasil ou o Repórter Esso.Eu apreciava seu silêncio, sem —

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me aventurar em perguntas ou demandas. De vez em quan do ele interrompia a leitura e me acariciava com os olhos, me amando sem mãos, como se me desejando outros futu ros diferentes do seu. Seu jeito me arranhava por não ser meu anseio me fazer herói ou mártir. Eu queria saber, mas sem perdê- lo. Lastimando a ausência de futuro, ele fechava o livro, reparava as horas e buscava o sono. Seu dia era pequeno para escrito trabalhar pornão todos E nos alivros, eu sabia per cebia, estava o já maisnós. possível ele. Eu irrealizável, sem querer nascer de novo. Na pequena capela da praça morava uma imagem de sanfAna. Minha irmã levava piedosos ramos de flores, co lhidos na horta, e trocava pedidos balbuciados. Eu encarava a santa com seu livro aberto sobre os joelhos ensinando a Menina Maria. Eu espiava o livro de gesso, indagando o que a futura Mãe de Deus não sabia ainda. O que estava guarda do em abençoado livro e que a Rainha desconhecia? Apro veitava as suspeitas e rezava por mim, pelas minhas desconfianças. Mesmo sabendo repetir o credo, o pai-nosso, a ave- maria, meu coração se aventurava a interrogar o Perfeito por me ofertar tanta incoerência para sobreviver. Meu irmão, o mais velho, se debruçava sobre a mesa e examinava, enfastiado, seu livro de leitura. Passava horas sole trando, com desalento, seus afazeres. Os deveres lhe pareciam insossos, pois, constantemente, pedia a meu pai para lhe to mar as lições . Meu pai negava por não necessitar mais de li ções. Já trabalhava e amava. Minha mãe, propensa a justificar fracassos, elogiava o esforço do filho maior, o suposto respon sável pela família casocaminho. de desgraça, mesmo oreconhecendo não serem os livrosem o seu Eu invejava lugar de meu irmão estudando os afluentes do Rio Amazonas, a rosa-dosventos, os pontos cardeais, as três caravelas. Eu sonhava rio, vento, direção e barco sem querer partir. E, se partir, deixar bilhete sobre o norte buscado. Se sufocado em desejos, eu vivia cheio de medo de minhas vontades virarem verdades. —

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Minha avó, toda manhã, ainda em jejum, arrancava a página da folhinha Mariana e lia as recomendações. Medita va, cambaleando no meio da sala, sobre o pensamento es crito no verso do papel para depois conferir a fase da Lua, a previsão das enchentes e estiagens. Em seguida acendia mais uma vela para os santos do dia: santa Genoveva, são Philippus, são Clemente Maria, santo Antão, santo Agripino. Eu reparava sua fé e guardava o papelzinho como se armazenando sabedoria, como se acreditando na possibili dade de o passado se repetir no futuro. Minha mãe, de sos laio, espiava minha avó e continuava sem anotar receita de olho-de-sogra em seu primeiro caderno. Maria Turum, empregada antiga de meu avô, sabia de um tudo sem conhecer as letras. Conforme o meu olhar, ela me oferecia um pedaço de doce ou me abraçava em seu colo. Combinava o tempo de chuva com comida de angu, carne moída e quiabo, sem consultar caderno de receitas. Se meu avô pisasse mais forte, ela apressava o almoço; e, se tossia durante a noite, vinha um prato de mingau, com pe daços de queijo, no café da manhã. Ao apertar com os de dos um grão de feijão, sabia se estava cozido ou se precisava de mais um caneco de água. Olhava o céu e deixava a roupa para ser lavada em outro dia, pois faltaria sol para corar os lençóis. Nunca notei interesse seu diante das paredes do meu avô. Ela parecia não pensar além da casa. Não havia horizonte lá fora. Só conhecia o mundo tocado pelos olhos. E em sua alma, eu compreendia, não cabia mais amor além daquele dividido entre nós e revelado na limpeza da casa, no carinho da cozinha, na roupa alvejada no varal. Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com a navalha. A cidade era seu assunto: amores des feitos, madrugada e fugas, casamentos e traições, velórios e heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, ma —

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chado — e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seus significa dos. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto. restavadehoras fim, de coração aflito, seduzido pelasEu histórias amor,sem de desafeto, de ingratidão, de men tiras do meu primeiro livro — as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras — facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmas palavras com que escreverama Bíblia Sagrada: “Abondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espe to é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia. Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fi zesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava de ver de casa nem brincava de exercício de coordenação moto ra. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi an dando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. Também, coelho não usa va ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem gru dar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura. Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas pare —

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des mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranqüilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola bes ta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra era uma piada sem tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esti cando o pescoço, um pedaço mais Eu longe, um parágrafo maistentando alto. Elealcançar me apontava a cadeira. bus cava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino, desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”. Meu avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e maior livro. Não sei se aprendi a fazer contas com meu avô. Ele mais me ensinava a “fazer de conta”. No entanto, eu diferen ciava o mais alto do mais baixo, o bife maior do menor, as noites mais frias das noites mais quentes, o mais bonito do mais feio, a montanha mais longe, a dor mais pesada, a tris teza mais breve, a falta mais constante. Mas acreditava, e hoje ainda mais, não ser a casa de meu avô uma escola. Ela não possuía cartazes de cartolina nas paredes, vidro com semente de feijão brotando, cantinho de leitura com livrinhos infantis, lista de ajudantes do dia, tanque de areia, palhacinho de isopor, flanelógrafo de feltro verde. Meu avô devia supor que escola fosse o mundo inteiro, a vida inteira, com noite e dia, perdas e ganhos, dores e tristezas, sonos e sonhos. Mas eu somava o tempo de ausência de meu pai trans portando manteiga, as horas sonoras do relógio, os suspiros na bandeja. Meu palitos avô nãodeusava toquinhos tampinhas de garrafa, picolé nem mecoloridos, exigia uniforme. Ele nunca me convidou para fazer “rodinha”. Aprendi, po rém, e como ninguém, a dar nós cegos em barbante, seu passatempo preferido. Meu avô me dizia: “Um bom nó cego tem que ser ainda surdo e mudo”. Penso ter vindo daí essa minha paixão pelos abraços e pelos laços. —

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Em minha casa ninguém atribuía importância às mi nhas leituras. Eu aproveitava pedaços de jornais que vinham embrulhando coisas e lia em voz alta, procurando atenções e reconhecimentos. Meu pai me olhava e repetia sempre: “Menino, deixe de inventar histórias, você não sabe ler, nun ca foi à escola” ou “Menino, deixe esse papel e vá procurar serviço melhor pra fazer”. Passei a duvidar escola. só para dar autorizações. Se ada escola nãoParecia-me autorizasse,um eulugar não poderia saber. O medo desse lugar passou a reinar em minha cabeça. Comecei a dar razão ao meu irmão, já capaz de dirigir o cami nhão assentado em um travesseiro de paina. Mas logo me veio uma idéia: quando entrar para a escola, eu faço de conta que esqueci tudo e começo a aprender de novo. “Uma menti rinha é um santo remédio para botar um ponto final em con versa fiada”, me ensinou meu avô, coisa que comecei a praticar para encurtar perguntas e me livrar de incômodos. Havia pes soas que gostavam de indagar muito mais do que deviam. Cheguei de uniforme novo costurado pelo carinho de minha madrinha. O caderno era Avante, com menino boni to na capa, sustentando uma bandeira com um Brasil despaginado pelo vento. Menino rico, forte, com sapatos e meias soquete. O estojo de madeira estava completo: dois lápis Johann Faber com borracha verde na ponta e mais um apontador de metal. Um copo de alumínio, abrindo e fe chando como o acordeom de Mário Zan, completava as exi gências da escola. Só minha cabeça andava aflita para esquecer. E esquecer é não existir mais. Isso não é tarefa fácil para quem aprendia em liberdade, escolhia pelo prazer, guardava pela importância. Fui acolhido por dona Maria Campos, minha primeira professora, com livro de chamada, caderno com plano de aula encapado com papel de seda. No pátio ela nos leu da cabeça aos pés, conferindo a limpeza do uniforme, as unhas lavadas, o cabelo penteado. Pela primeira vez me senti o seu —

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livro. Miúdo, descalço, morria de inveja do menino Avante guardado no embornal. Fui o primeiro da fila. Dona Maria Campos segurou minha mão e a fila foi andando em direção à sala de aula. Mão fina e macia como o algodão da paineira, que minha mãe colhia aos tufos e costurava travesseiro com cheiro de mato. Meu coração disparou de amor e mão. Comecei, assim, naquele depois de meio-dia, a praticar mi nha promessa: tomar bomba no tudo já aprendido e come çar branco como o caderno Avante. Dona Maria vestia-se por todo o sempre com roupa clara, sapatos fechados, meias de seda, blusa bordada em branco sobre branco e mais um lenço preso no cinto ou na pulseira do relógio para assear as mãos depois de escrever no quadro-negro. Ela me emprestou seu lenço quando mi nha mãe viajou doente para a capital. Eu não usei. Preferi usar, como de costume, a manga da camisa, com medo de sujar no nariz e ela não mais gostar de mim. Todo o cuidado era pouco para não perder o seu amor. Sua alvura na roupa, seu olhar capaz de ver muito depois das coisas, sua voz mansa — mistura de fortaleza e doçura — me instigavam ao silêncio. Ela não pedia, mas eu a presenteava. Encher o caderno com fileiras e fileiras de e, a, i, o, u foi o primeiro exercício. Vaidosa, ela me apresentava os si nais para escrever e ler o mundo. Ganhar o seu visto feito com lápis azul ou vermelho riscava com alegria toda a minha vida. Eu me esforçava, caprichava na letra e mordia a língua no canto da boca. De carteira em carteira, ela corrigia os exercícios deixando no ar um cheiro de paineira e primavera. Estação que eu não distinguia “a olho nu”, mas imaginava. Um dia dona Maria Campos trouxe Lili, menina que gostava muito de doce e olhava pra mim. Lili foi o meu pri meiro amor. Eu lia os cartazes, colava as sílabas, recortadas, com grude de polvilho, mentindo descobrir pela primeira vez as palavras. Vencia as horas folheando a cartilha, lendo até o fim, em silêncio, guardando em segredo os depois. A —

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professora jamais soube do meu adiantamento. Na primeira carteira eu prestava atenção a tudo, sendo elogiado como menino aplicado, cheio de futuros. Nunca soube se precisa va mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela. Mas, se não me es queci de sua presença, valeu a pena. Fui escolhido para declamar no auditório da escola uma poesia. Serasescolhido prêmio. Decoreicheio e re petia para galinhas, já os significava chuchus e aum paineira o poema, de medo de gaguejar e de decepcionar minha professora: Eu comi ontem no almoço A azeitona de uma empada, Depois botei o caroço Sobre a toalha engomada. Mas a mamãe logo nota E me ensina com carinho: O caroço não se bota Sobre a toalha, meu benzinho. O que ela me diz eu ouço Sempre com muita atenção E perguntei- lhe: o caroço, mamãe, Onde boto então? Toda pessoa de linha, De educação e de trato, O osso, o caroço, a espinha Põe no cantinho do prato. Eu depressa lhe respondo Com respeitoso carinho: Mas meu prato é redondo, Meu prato não tem cantinho! Não me lembro do autor dos versos ou se eram anôni mos como eu, naquele fim de mundo, naquele miolo da Ter —

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ra arredondada e sem aparentes arestas. Contudo, se não caíram no esquecimento, não devem ficar ignorados como outras coisas mais. Também não sei se eram aritmética aqueles problemas passados no quadro-negro, dividindo as dúzias de ovos e bananas, fracionando laranjas e maçãs em quatro ou oito partes iguais. Os litros de leite, se bem me lembro, divididos entre todos, me sugeriam pensar se a ge nerosidade era um dom da vaca, do fazendeiro ou dos dois. Sei que nesses atos singelos, praticados com gestos amoro sos, dona Maria Campos me ensinou demais, muito além das paredes de meu avô. Ou melhor, me ensinava serem muitos os lugares da escrita e da leitura. De suas histórias lidas no fim da aula, eu ainda guardo o cheiro do livro. Ingênuo, supondo ser a vida um processo de soma e não de subtração, juntei de cada um dos meus mestres um pedaço e protegi em minha intimidade. Concluo agora que, de tudo aprendido, resta a certeza do afeto como a primordial meto dologia. Se dona Maria me tivesse dito estar o céu no inferno e o inferno no céu, seu carinho não me permitiria dúvidas. Os cadernos de receitas de minha mãe, os livros velhos de meu pai, as paredes de meu avô, o livro de sant’Ana, a mudez de Maria Turum, a fé viva de minha avó, a preguiça de meu irmão e tudo o mais, tudo ficou definitivamente im possível de ser desaprendido. Só não me convenço de ter comido apenas a azeitona da empada.

Bartolomeu Campos de Queirós,

minei

ro, escritor e educador. Autor, entre outros livros, dePor Parte de Pai, Ciganos, Ler, Escrever, Fazer Contas de Cabeça, Mine rações, Cavaleiro das Sete Luase Indez. Recebeu, entre outros prêmios: Jabuti, Bienal de São Paulo, Orígenes Lessa e FNLIJ. —

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O VELHO OU O HOMEM DOS 800 VOTOS

Marcos Rey

lesmo antes de saber ler eu já vivia num mundo de histórias, que meu pai, um gráfico, me contava. A realidade para mim resumia-se em escovar os dentes e amarrar os sapatos. O resto, fantasia das Mil e uma noites e de mil his torietas infantis. Algumas, ele próprio inventava, mas não era seu forte. Geralmente fazia a maior confusão, improvi sando finais que nenhuma relação tinham com o princípio. Sua memória nunca foi grande coisa. Ah, faltou- me dizer que nessa época, enquanto me contava histórias, ia toman do bons goles de vinho. Gostava de beber a qualquer hora, principalmente nos fins de tarde, quando o dia já dizia adeus. Tendo terminado seu trabalho, íamos para o fundo do quin tal. Toda casa tinha um, comprido e arborizado. Ele levava sempre uma folha de jornal: camuflagem de uma garrafa de vinho. Mamãe, no entanto, que o conhecia bem,— andava desconfiada. Vou contar histórias ao menino. — Não sabia que conhecia tantas. — Conheço centenas, minha cara. íamos felizes para o ex tremo da casa e sentávamo- nos sobre caixotes. Eu adorava suas histórias, que me custavam —

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uma condição, um compromisso. Eu não poderia falar sobre o vinho ã minha mãe. — Receita médica — confidenciou. É... Ele estava doente. Mas não queria que ela soubes se, coitada. Por que fazê-la sofrer? Por quê? — É grave, pai? — Se beber vinho regularmente, não. A guarda de tal segredo tornava-me mais responsável, quase adulto. A cada um de seus longos goles no gargalo da garrafa, eu crescia. — Como acaba a história, pai? — Qual? — A que está contando. — Refere-se à Branca de Neve? — Essa o senhor já contou, mas pode contar outra vez. — Bem, o Lobo Mau andava pela floresta de olho na Branca de Neve. Seguia a menina por toda parte, o malvado. Estranhei. — Não foi esse lobo que comeu a avozinha de Chapeuzinho Vermelho? Meu pai hesitou. Era ou não era? Eu exigia. — Primo dele. — A inimiga da Branca de Neve não era a bruxa? Meu pai virou a garrafa. — Diabo de bruxa. —E O quem que o diz loboque faznão? nessa história? — Pergunta oportuna. Ele passava pela floresta, como se não quisesse nada, quando viu a menina com os cinco anões. — Sete anões, pai. —

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— No momento eram cinco. Dois estavam em casa com gripe. T inham tomado muito sorvete. E cuidado você também com os gelados. Mas o lobo se deu mal porque o Pequeno Polegar, usando um estilingue, deu cabo dele. Dias depois Branca de Neve e o Pequeno Polegar casavam- se. — Ela não casou com um príncipe, pai? O contador de histórias ia virar novamente a garrafa, mas se deteve. — Um príncipe? — Sim, foi com um príncipe. — Em segundas núpcias — esclareceu. — Coisas da vida. Algum tempo depois, com o auxílio de uma cartilha, ele me ensinou a ler, tarefa então mais complicada porque cavalo era assim —cavallo. Farmácia era assimpharmacia. Ontem era hontem. E a cidade de Niterói escrevia-seNictlneroy. Dentro de casa, porém, não me sentia ainda alfabetiza do. O prazer da leitura eu descobriria, também com ele, nos anúncios expostos no interior dos bondes, osreclames, como então dizíamos. Notadamente nocamarão, o bonde fechado, apelido derivado de sua cor vermelha. Silabando. eu lia os anúncios um a um. Na maioria remédios. Capivarol, Biotônico Fontoura, Xarope São João. Eu e todo mun do porque a própria propaganda, uma novidade, chamava a atenção geral. Os bondes eram uma cartilha animada para os meninos daquela geração. Meu pai, um Luiz com z, era filho de italianos, porém seus elos com a Itália limitavam-se à comida e ao vinho. Achava os italianos excessivamente ruidosos e pouco re quintados. Gostava dessa palavra. Nasceu em Campinas, mas veio jovem para São Paulo e encantou- se pela cidade. Mesmo sem motivo, não passava um dia da semana sem ir “lá embaixo”, o velho centrão, que o atraía como um ímã possante. —

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Ignorava a periferia. Uma vez disse: “Prefiro morar mal, mas morar perto”. Foi ele quem ergueu o dedo, apon tando- me o Martinelli, ainda em andaimes. Levou- me para conhecer o Viaduto do Chá e presenciar a abertura da Nove de Julho. Outra de suas paixões citadinas eram os bairros ricos. Aos domingos, pela manhã, costumava passear à sombra das mansões dos barões do café, em Higienópolis. Quando via uma delas desocupada, dava um jeito de visitála. Lembro- me de nós percorrendo uma infinidade de cômo dos vazios de um verdadeiro palácio. Ele punha os olhos em tudo, observando os detalhes da construção. Amava lustres, escadas de mármore e ladrilhos portugueses. Nos banheiros exultava se as torneiras fossem douradas. Homem exigente. Requintado, sim. Quando o ouvi dizer ao vigia que desejava comprar a propriedade, fiquei entusiasmado. Ainda ignora va o alto muro de pedras separando as classes sociais. Ao sairmos, perguntei se compraria a mansão. — Não percebeu os vazamentos nas paredes? Seria um péssimo negócio. Ou não? Uma de suas paixões mais vivas era a política. Vivia discutindo com parentes e amigos. Dizia-se um cidadão idea lista, desses que não vendiam seu voto. Não perdia um co mício desde a mocidade, quando ouvira Rui Barbosa discursando em campanha para a Presidência da República. Admirava os políticos que empolgavam a praça com suas palavras e promessas sonoras. Sonhava um mundo melhor. Depois dos comícios ia cumprimentar os oradores, à saída do palanque, e, simpático e bem falante, às vezes era convi dado para jantares e banquetes. Meu pai costumava dizerlhes que tinha oitocentos votos no bolso. — O senhor disse 800? — Oitocentos. Naqueles tempos, porém, freqüentar comícios era pe rigoso e desaconselhado. Muitos terminavam em corre-cor —

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re e pancadaria. Acontecera de ele chegar em casa sem o chapéu ou sem um dos sapatos. Prometia, então, à minha mãe não retornar aos comícios, mas só promessa. Reconheço, todavia — era um vira-casaca. Impressionava-o mais a sonoridade das palavras do que o conteúdo. E constantemente mudava de ideais e partidos políticos. Foi co munista, getulista várias vezes, udenista, democrata- cristão, e só não foi trotskista porque sempre se atrapalhava com essa palavra. Ao envelhecer tornou- se um descrente — mais dos homens que dos partidos. E, mesmo próximo dos políticos, não falava mais dos oitocentos votos. O emprego que lhe haviam prometido na Imprensa Oficial jamais se concretizara. Eram uns ingratos. Na revolução de 32, com quase todo o comércio fecha do, inclusive sua gráfica, meu pai apresentou- se para lutar. Alguém lhe dissera que tudo não passaria de um passeio ao Rio Janeiro, onde uma otalrecusaram cerveja Cascatinha fazia furor. Mas,deconsiderado idoso, para as trincheiras. Deram- lhe, porém, um revólver e um distintivo. Homens de sua idade teriam a incumbência de policiar a cidade. — Prefere trabalhar de dia ou de noite? — pergunta ram- lhe. — De noite, lógico. — Se por questões familiares preferir o dia... — Isto é uma guerra, não é? Seu horário de guarda ia das dezenove à meia-noite. Geralmente ultrapassava de longe esse horário. Escolheu para exercer a vigilância os quarteirões do centro, próximos da querida Avenida São João, sua conhecida desde quando apenas uma rua — Rua São João. Um trecho cheio de res taurantes, pastelarias, botequins e casas suspeitas. Havia também lá o famoso Bar Automático, movido a níqueis, que dispensava garçons, imitação de bares norte a

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americanos. Segundo meu pai, por lá pululavam espiões e contra- revolucionários. O alto comando ignorava isso. Mas ficou sabendo. Meu pai apresentou um sucinto relatório de suas observações. Gente muito estranha circulava à noite por aqueles quarteirões ou se reunia nas esquinas. O relato devia ser verdadeiro porque o vigilante rece beu até uma pequena ajuda de custos para misturar- se com aquelas pessoas e descobrir Tramava-se na madrugada. Sacrificado, massuas comtramas. o apoioÉ.moral do coman do, passou a voltar para casa só ao amanhecer e sem acusar medo de suas missões arriscadas. Pelo contrário, satisfeito com o dever cumprido, voltava alegre, cantarolando. A marchinha Taí, de Shubert de Carvalho, era uma de suas prefe ridas. O teu cabelo não nega,outra. Observando seu esforço, em três meses de revolução, tive a primeira decepção de minha vida na noite em que não saiu para visitar a cidade. Abrira um livro, descansadamente. — O senhor não vai, pai? — Perdemos a revolução, meu filho. Já devolvi o revól ver e o distintivo. Eram todos contra nós, os paulistas. Mas não faça essa cara de choro. O mundo não acabou. E para você está tudo começando. Quando o assunto é cordialidade, bem viver, sempre me lembro de meu pai, nisso um mestre. No fim da vida sofreu de catarata, doença de velhos. Para ele, leitor apaixo nado, um castigo. E vivia dando esbarrões. Certa vez quase derruba um transeunte apressado. — O senhor não enxerga? — bradou o homem, irri tado. — Realmente não, cavalheiro. — Não vá dizer que é cego. — Tenho catarata. Nas duas vistas. Estou voltando do médico. Já marcaram o dia da operação. —

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— Desculpe- me — lamentou o outro. — O senhor aceitaria um café? — Mas claro. O homem não só pagou o café como uma cerveja e bolinhos de bacalhau. Como seu carro estava estacionado nas proximidades, ofereceu uma carona. E foi a primeira visita a aparecer no hospital após a operação. Levou um pacote de frutas, assinalando o início de uma grande amiza de. Durante anos o homem que ele atropelou na rua condu ziu-o a toda parte em seu carro e prestou-lhe um mundo de favores. Meu pai, um boêmio, estava sempre me advertindo do perigo que representavam certos puros, pessoas sem vício algum, alardeando honestidade e sentimentos religiosos. No geral referia-se aos amigos de minha mãe, ansiosos por convertê-lo. — Perto deles, abotoe o paletó — aconselhava. — São falsos e podem nos roubar a carteira. Desdenhava o jogo. O álcool, não. Dizia que vinho é uma bebida sagrada. O próprio Cristo — era cristão, embo ra não tivesse religião — o multiplicara em diversas ocasiões, com agrado geral. Conhecia bem esse trecho bíblico. E quem éramos nós para atribuir pecado ao Salvador? Pensando bem, ele tinha razão. Fumante, sofreu um choque quando o médico o proi biu de fumar. Questão de vida ou morte. Ficou casmurro e desanimado. Atéera dos livros andou afastado. Para ele o mun do sem fumaça real demais, duro e sem graça. Mas, com o tempo, conversando, conversando, fez tanta amizade com o médico, tanta, que ele suspendeu a proibição com a pro messa de que meu pai não exageraria nos cigarros. E, em bora ele nunca houvesse fumado, aceitou certa vez um cigarro tentadoramente oferecido por meu pai. —

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Além de vinho e cigarros, meu pai também gostava de ler, como já foi dito. Quando sobrava dinheiro, comprava livros, que ele próprio encadernava. Recusava-se a ler livros emprestados e a emprestá-los. Com prazer, alinhava em sua estante romances de Machado de Assis, Eça de Queirós, Anatole France, Emile Zola, Oscar Wilde e muitos outros. Sem preconceitos, admirava também romances de aventu ras e policiais. Qualquer gênero lhe agradava se estivesse cheio de emoções ou lhe provocasse riso. Às vezes, já na velhice, me surpreendia lendo e apre ciando autores que estavam muito acima da compreensão da média popular. Como o alemão Thomas Mann, por exemplo, com seu desafianteA Montanha Mágica.Seria ele, meu pai Luiz, um homem muito mais profundo do que eu imaginava? Para testar sua capacidade, recomendava- lhe a leitura de outros escritores também considerados comple xos, elitizados, de difícil entendimento. — Gostou desse, papai? Houve uma pausa. Se não houve, faço-a agora. — Não. Ele pensa que sabe tudo, mas é um imbecil. — Um imbecil? Mas... — Garanto-lhe. Um imbecil. E a incógnita permanecia. Seria meu pai Luiz um homem muito mais profundo do que eu imaginava? Quando eu já era um rapazinho levou- me a um res taurante do Bixiga para comer pizza e beber vinho. Estran geiro. — É caro, pai. — E daí? As doenças também saem caro. Mas diga. Como vai se saindo nos estudos? — Bem, graças aos livros da nossa biblioteca. Li um montão. —

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— Não seja apenas um estudioso, como a maioria dos doutores. Eles desconhecem o mundo, desconhecem o ho mem. Não gostaria que fosse um desses. Que tal? — Tem razão. — Refiro-me ao vinho. — Está ótimo, pai. — Já que é sua opinião, peça mais uma garrafa. Algumas décadas depois de tudo isso, tendo o tempo voado sobre nós, como pássaros em revoada, o telefone to cou certa manhã. Pessoas de minha família pediam- me para ver o velho. Dirigi- me para sua casa, tentando não pensar em nada, não adivinhar. Entrei em seu quarto ensolarado como se se tratasse de uma visita comum. Olhei o cinzeiro. Se houvesse um cigarro aceso, tudo bem. Não havia. Vestindo pijama, ele estava estirado em sua cama, so bre as cobertas, sorrindo. O que o faria sorrir tão cedo? Minha mãe e meus irmãos entraram logo em seguida. Tam bém ignoravam por que sorria. Mas não tinham boas noti cias para mim.

Marcos Rey nasceu muito paulistano, em 1925, quando seu nome era Edmundo Donato. Estreou publicando contos na an tiga Folha da Manhã. Em 1953, lançava o romance Um Gato no Triângulo,só re centemente relançado. Escreveu depois Café na Cama, O Enterro da Cafetina e Memórias de um Gigolô,este traduzido para diversos idiomas e adaptado, como os dois anteriores, para o cinema, além de vertido para a televisão. Escreveu ainda



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Ópera de Sabão, O Último Mamífero do Martinelli, A Arca dos Marechais eou tros. Desde 1981 escreve romances juve nis para a Editora Ática, tendo começado com O Mistério do Cinco Estrelas.Há cinco anos faz crônicas quinzenais para a Veja em São Paulo, já reunidas em livro, O Coração Roubado.E membro da Aca demia Paulista de Letras e em 1995 ga nhou o troféu Juca Pato, conferido, em votação, ao Intelectual do Ano.



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U m a bc d e m es t r e s

Ana Maria Machado

*^São tantos meus professores inesquecíveis que é im possível escolher um só. Posso fazer uma longa lista. Talvez em ordem alfabética, um modesto ABC, inspirado nos poe mas populares. Como este, em homenagem à Virgem Maria: Diz um A, ave- maria Diz um B, bondosa e bela, Diz um C, céu dos mortais, e um D, divina estrela, Esperança nossa, Facho de luz... Tento pensar nos mestres que me deixaram marcas fundas: A de A loísio Carvão, Barthes é o número 2, Cecilianovirão vem depois. então, Dezenas Mas seria nessa ordem? Entre eles mesmos, brinco de trocar de lugar: Abel de A lmeida será, Barthes também tem que ser, —

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Carvão na certa estará, De outros não posso esquecer. Vejo então que, independentemente da ordem alfabéti ca, esses três são meus primeiros. No pódio. Um ABC mu tante: Ceciliano Abel de Almeida, Roland Barthes e Aloísio Carvão. E decido que vou evocá- los em outra ordem, a cro nológica, na minha vida. Aproveitando para, aqui e ali, re cordar também outros professores queridos. Nenhum me deixou marcas tão fundas quanto Cecilia no Abel de Almeida, meu mestre de vida. Mas nunca fre qüentei as aulas que deu em classe, numa sala. Foi professor de Física e Matemática (sobretudo Geometria e Trigonometria), durante mais de cinqüenta anos, em Vitória. Com ele estudaram gerações de capixabas. Seus alunos (já com boa idade a esta altura, pois o professor Ceciliano morreu aos 86 anos, em 1965) sempre o recordaram pelo rigor, pela competência, pelo modelo ético e pela dedicação: “Severo, severíssimo, mas delicado e dedicado ao ex tremo. Aluno reprovado em primeira época era convidado a passar as férias inteiras indo diariamente à sua casa, aquela mesma casa onde ele veio a morrer, no horário da manhã ou da noite, para assistir às aulas que ele ministrava aos di tos reprovados, gratuitamente, para que eles pudessem fa zer os exames de segunda época. (...) Ele não ensinou apenas Matemáticas (...) mas a ser varões, viris, honestos, sóbrios, modestos e pobres de pecúnia terrena”.1 A mim, evidentemente, não ensinou a ser varão nem viril. Mas foi o modelo absoluto de como deve ser uma pes soa de bem, homem ou mulher. E me ensinou de tudo. Como antes formara minha mãe. Era pai dela. Mas, além de meu avô, era professor todas as horas do dia, todos os dias da 1 Dessaune, Jair Etienne. “Varão Ilustre”, Ain Gazeta, “Caderno Literá rio”, Vitória, 20/6/65. —

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semana. Muito além da Matemática. Quando um dos netos falava errado, ele jamais deixava passar, sempre explicando: — Não é “para mim falar”, “mim” não pode ser sujei to, é uma flexão oblíqua do pronome, tem que ser regido por uma preposição. Ou então: — Use o verbo adequado. “Colocar” significa “co-locar”, localizar ao lado. Deixe de bobagem e diga “botar”. Em Manguinhos, onde passávamos as férias em casa dele, me ensinou a conhecer as plantas pelas famílias, me contou como Lineu as classificara, como Mendel fundara a genética a partir da observação de diferentes feijões. Repetia as experiências conosco. Fazia com que os netos observas sem, comparassem, concluíssem. Perguntava muito. Por exemplo, queria que descobríssemos por que a porteira ran gia, por que se formava a fumaça da fogueira, por que seguia em determinada direção... Explicava o funcionamento da maré, as fases em da Lua, desenhava a rosa-dos-ventos, ensina va a descobrir que sentido soprava a menor aragem —e premiava o neto que captasse o instante exato em que, toda noite, a brisa se convertia em terral e passava a ir da terra para o mar. De noite, sentávamos na areia da praia e ele mostrava as constelações, aproveitando para contar histórias da mitologia grega, que dera nome aos corpos celestes. Também engenheiro, tinha aberto a Estrada de Ferro Vitória- Minas, e estava acostumado à vida dura dos acampa mentos na floresta densa, entre operários, mateiros e encon tros com índios — saga que contou num livro apaixonante, que mereceu elogios de gente importante como Câmara Cascudo, Gilberto Amado, M. Cavalcanti Proença.2Andari lho incansável, todo dia escolhia dois netos para irem com ele andar no mato — um privilégio e um prêmio. Andava 2Almeida, Ceciliano Abel de. O Desbrauamento das Selvas do Rio Doce, Coleção Documentos Brasileiros, Editora José Olympio, Rio de Janeiro. —

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depressa na frente, sem olhar para trás, muitas vezes abrin do picadas com o facão, e logo desaparecia entre as árvores. Deixava sinais para que o seguíssemos, além de explicar como devíamos prestar atenção ao sol, ao riacho que corria. Era uma aventura. Hoje desconfio que ele devia estar sem pre por perto, nos vigiando e protegendo às escondidas. Mas o fato é que com isso nos deu um raro sentido de orien tação — nunca me perdi, nem mesmo em cidades estrangei ras cheias de becos ou em mercados populares. À medida que fui crescendo, o leque de aprendizado foi se alargando vertiginosamente. Discutíamos política, literatura e ele fazia questão de que eu pudesse fundamentar minhas opiniões com um bom conhecimento do tema. Ensinou- me a ouvir o que o outro dizia e a ir pensando e preparando os ar gumentos devagar, para refutar se não concordasse. Adorava quando eu lhe trazia algo que não conhecia e podia aprender comigo. Como Guimarães Rosa: “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende”. Aos 80 anos, quan do minha avó morreu, teve dois enfartes em um mês. Recupe rando-se, decidiu que queria fazer duas coisas: andar a cavalo na fazenda e voltar a estudar Inglês. Claro que fez o que quis. E tivemos maravilhosas conversas sobre os romances ingleses que íamos descobrindo. Ao mesmo tempo, continuava exigin do minha leitura de ensaios, sobretudo da Brasiliana, como ele dizia. Fez-me ler um livrão de Fernando de Azevedo sobre a educação no Brasil, nossos historiadores clássicos eCasa Grande e Senzala,de Gilberto Freyre. E quando saiu Ban o deirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, lemos juntos, capítu lo a capítulo — ele em Vitória e eu no Rio —, discutindo a leitura por carta. Aliás, as nossas cartas são um capítulo à par te. Tenho uma coleção de cartas dele, amarradinhas com laço de fita, como coisa de namorado antigo. Vão desde eu menina até as vésperas de meu casamento, quando ele morreu. Esse mestre de vida só me deu aula uma vez. Quando eu estava no terceiro ano científico, nas férias de julho, co —

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mentei que estava com medo de ser reprovada em Física. Logo a matéria dele! Foi um choque, não acreditou. Foi seco e definitivo: — Impossível, você sabe Física. Eu mesmo ensinei. E sei que você aprendeu. Isso não se desaprende. É para sempre. Expliquei que estava com uma coleção de notas baixís simas porque encaminhava bem os problemas, mas sempre errava na resposta final, e a professora tirava os pontos da questão inteira. Muito diferente do que acontecia em Quími ca, matéria em que o professor Victor Notrica (outro de meus mestres inesquecíveis e queridos, paraninfo e amigo) aproveitava o raciocínio, certo para resolver o problema, e só descontava meio ponto pelo erro final — sempre o mes mo, a vírgula do decimal. Vovô Ceciliano me mandou fazer uma divisão de decimais. Fiz. Na hora de botar a vírgula, apliquei a regra, não confiei, desloquei. — Por que você fez isso? — Porque não é lógico dividir número por corrigi. outro e encontrar um maior. Só pode estarum errado, então Como é que se pode dividir um número de maçãs por um número de meninos e cada um ganhar mais maçãs do que havia no começo? — Pois errou. E errou mais ainda quem lhe meteu na cabeça essa noção de que divisão tem qualquer coisa a ver com maçãs e meninos... — É só um exemplo concreto, para facilitar... — Pois, minha filha, não esqueça nunca, a Matemática não époderosa concreta.criação Toda aabstrata beleza do dela está justamente ser uma espírito humano. Eem neces sário entendê- la como uma abstração. — Mas quando a gente divide alguma coisa... — Dividir não é repartir! Não me venha mais com suas maçãs! — interrompeu, irritado. — Lembre-se apenas de que divisão é uma operação aritmética que consiste em, dados —

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dois números, obter um terceiro que multiplicado pelo segun do reproduza o primeiro. Em caso de dúvida, faça a prova. No mês seguinte tirei boa nota em Física. E não esque ci nunca mais. Mas, a essa altura da vida, eu já sabia que não ia tomar o caminho científico, por mais que a admiração pelo profes sor Victor me atraísse para a Química e me tentasse a seguir seus passos. O estranho é que, embora sempre tivesse ado rado meus professores de Português, não me passava pela cabeça fazer Letras. No Ginásio Mello e Souza, dona Laís era meu ídolo — eu queria ser como ela, cortar meu cabelo igual ao seu, me vestir com a mesma elegância, ter o sorriso e as covinhas dela... E saber Português como ela, era tão bonita a maneira como ela sabia, de dentro, nada era deco rado. Dona Laís me marcou muitíssimo e tenho certeza de que exerceu uma influência duradoura na minha relação com o idioma. Mostrava a lógica da linguagem nos exercí cios constantes de análise sintática — toda aula dava um período como dever de casa, cada dia mais difícil, desafios ótimos e estimulantes, era uma alegria conseguir resolver, eu tinha paixão... E, além dela, minha querida Mrs. Libânio, de Inglês, era uma amiga, uma pessoa terna, afetiva, que confiava em mim e me estimulava. Nos momentos difíceis da adolescência, quando eu precisava de uma figura mater na substituta, ela foi uma dessas preciosas “mães postiças”. Depois, no científico, já no Colégio de Aplicação, uma série de professores de Língua e Literatura (sobretudo Mar garida Alves Ferreira e Carlos Lemos) me encaminhou e deixou pontocom exato para que pudesse entrar na facul dade deno Letras sucesso. Maseunem percebi. Achava que tinha horror a Latim, como todo mundo, e estava preocupa da com política, num colégio altamente politizado. E, por causa de dois maravilhosos professores de Geografia (Mau rício Silva e Artur Weiss), inteligentes e criativos, acabei se guindo os passos deles. —

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No curso de Geografia, minha professora inesquecível ensinava era História — Maria Yedda Linhares, uma mulher brilhante e admirável. Mas não demorei muito a trancar matrícula e ir embora, decepcionada com aquela Geografia árida e tão pouco voltada para a economia e o humano. Só aí, claro, fui me dar conta de que devia estudar Letras. Mas já sabia que era artista, ia ser artista sempre, e não tinha escolha. Essa descoberta — e muito mais — eu devo a Aloísio Carvão. Todo mundo conhece Aloísio Carvão como um dos maiores pintores brasileiros, um dos mestres do neoconcretismo, um colorista da grandeza de Volpi, um criador rigoro so e disciplinado que jamais perde o lirismo. Mas em 1957, quando fui estudar Pintura com ele no Museu de Arte Mo derna, eu era uma menina que não tinha como avaliar isso. Só sabia que ele me sacudiu por dentro, me virou pelo aves so, me renasceu. As aulas de Carvão pareciam muito simples. Num gru po pequeno de alunos, fazíamos alguns exercícios de com posição, de observação, nada de mais. Mas o principal é que dedicávamos as aulas quase inteiras a analisar e comentar os trabalhos feitos em casa, as telas em que estávamos traba lhando. Em outras palavras: eram quatro horas semanais de crítica e autocrítica, em que tínhamos que aguçar a percep ção, saber ver e refletir sobre o que víamos, ir além da su perfície do objeto. Todos falávamos, muito livremente. Carvão sabia estimular a manifestação de cada um, forçava a opinião apara se desprender dos não maisadmitia tímidos,que cobrava fundao mentação cada análise, houvesse menor traço de agressividade ou presunção, controlando atentamente qualquer impulso inconsciente que descambas se para o pessoal. Impossível dizer quanto aprendi com esse exercício constante. Mas sei que desenvolvi com ele um ri gor e uma exigência indispensáveis a qualquer criador. —

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O que acontecia não era apenas que aprendíamos a criticar o trabalho dos colegas, a ver pintura em geral — com uma atitude válida para qualquer arte. O mais importante é que, enquanto um de nós trabalhava numa tela, já ia imagi nando o que os outros poderiam achar, ouvindo por anteci pação que aquela composição era óbvia, o tratamento era fácil e estereotipado, a cor estava suja, a superfície se limita va a ser chapada, a solução era a emesma tinha Para sido explorada num trabalho anterior assim que por já diante. evitar ouvir isso — que era muito duro —, o jeito era conser tar, começar de novo, sair para outra. No fim de algum tem po, eu estava craque em ver as armadilhas em que podia cair, não conseguia me contentar com uma tela apenas bo nita. E, apesar disso, todos continuávamos ouvindo críticas — principalmente do mestre. Comigo, então, era implacá vel, e mais de uma vez me fez chorar. Mas era impossível ser mais terno e amoroso. Eu podia sofrer, mas tinha certeza de que ele só me exigia o que sabia que eu podia buscar dentro de mim. O negócio era descobrir como. Só quem já passou por processos semelhantes pode entender plenamente as agruras dessa busca e a euforia de uma eventual descoberta. Carvão me ensinou algumas coisas para toda a vida. De arte, principalmente. Mas também de caráter — algo que me faz associar a integridade de um artista à própria digni dade do ser humano. Sem facilitário, sem correr atrás do mercado e da fama, sem seguir modismos, sem levar a sério as críticas sem fundamento, sem desprezar a opinião alheia iluminadora. Mas no fundo sempre achei que ele era mais severo comigo do que com alguns dos outros. Há poucos anos, num encontro casual, mais uma de nossas conversas carinhosas, tomamos uns vinhos e ele re solveu me confessar uma coisa: — Sabe, Ana Maria, eu tenho um pouco de remorso em relação a você... E explicou: —

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— Eu era meio duro com todos os alunos. Mas com alguns, como você e o Áquila, eu era especialmente exigen te, muito mais. Porque eu achava que vocês tinham talento, então tinha que apertar... Com o Áquila deu certo, mas com você... Acho que exagerei na dose. De vez em quando pen so nisso: será que eu não te fiz desanimar de ser pintora? Disse a ele a verdade. Acho que não. Eu mesma é que fui descobrindo que minha forma de deixado expressãodeera maispara ver bal que visual, embora nunca tenha pintar mim mesma. Mas trouxe para a literatura as lições inesque cíveis que ele me deu. Devidamente adaptadas dos proble mas com linha, cor, textura e espaço para palavras, períodos, personagens e estruturas narrativas. Nessa passagem, foram muito importantes os professo res com quem estudei no curso superior. Na faculdade, antes de mais nada, o professor Lisboa. José Carlos Lisboa, de Es panhol. Se neste texto eu tivesse optado por falar apenas de um mestre, limitando- me àqueles com quem tive aulas regulares, numa classe com carteira e quadro- negro, sem dúvida teria sido ele meu professor inesquecível. Mas o que mais me lembro dele não era em sala de aula — embora seus ensina mentos tivessem ficado, desde o Cid e o romanceiro medieval até o arrojo das metáforas de Lorca e Alberti, passando por Cervantes, Lope de Vega, Calderón e Quevedo. Tudo regado e desbravado pelos maravilhosos teóricos a que o professor Lisboa me apresentou, em uma fantástica coleção da Edito rial Gredos — Leo Spitzer, Dámaso e Amado Alonso e tantos outros. Masdao faculdade: professor Lisboa tinha uma especial, dos muros osohrinhato. Não coisa sei como comefora çou, já o encontrei formado. Mas o fato é que em toda turma selecionava alguns alunos (talvez tendo em vista sua possível indicação futura para uma bolsa de estudos do Instituto His pânico, em Madri, que também acabei ganhando) e os incor porava aosobrinhato, levando- os a freqüentar sua casa, uma —

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experiência única. Lá éramos recebidos por ele e sua mulher, Teresinha Pinto (que antes de assim virar minha amiga já era inesquecível professora de meus irmãos no Colégio de Apli cação), pelos filhos dela, por outros alunos dele de outras sé ries, por ex-alunos, colegas e pela imensa família dele, de Minas, que volta e meia vinha ao Rio e se hospedava lá — e incluía até sua irmã, a poeta Henriqueta Lisboa. Morava num apartamento na Voluntários — que vim a conhecer muito bem, até nos detalhes de encanamento e lixeira, pois anos mais tarde morei lá, num negócio de pai para filha, quando o professor Lisboa me fez sair de São Paulo e vir trabalhar com ele na fundação da Escola de Comunicação da UFRJ e me cedeu o imóvel (então vazio e usado apenas para escritório). Mas nessa ocasião estava ocupado e vivia cheíssimo. Antes de mais nada, abarrotado de livros — e que livros! As estantes se derramavam da sala e dos quartos pelos corredores, pen duravam- se no teto e se abriam em generosos empréstimos e presentes. Mas não se pense que o ar da casa era sisudo e empoeirado. O professor nos azul, recebia em seusdesses trajes de caseiros: sempre um macacão de sarja folgadão, operá rio. E seguíamos diretamente para a mesa de pingue- pongue, que dividia com as estantes todo o espaço disponível da sala e onde nos fins de semana o revezamento com bolinha e ra quete não cessava o dia inteiro enquanto os outros “sobri nhos” esperavam a vez e se espalhavam como podiam pela casa, discutindo tudo — sobretudo literatura, arte e política. Impossível avaliar o que aprendi nesse processo ou listar as incontáveis pessoas fantásticas que conheci então, ou os ami gos verdadeiros que até hoje dividem comigo as memórias marcantes dosobrinhato. Dou apenas dois exemplos, ambos já mortos, como o professor: o sambista Ismael Silva (levado por Celso Cunha, claro) e o crítico Hélcio Martins. Como se tudo isso não bastasse, na faculdade ainda fui novamente aluna de minha querida Margarida Alves Ferrei ra (a essa altura, já como assistente de Cleonice Berardinelli, —

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outra mestra notável, de Literatura Portuguesa). E de Marlene Castro Correia, Celia Teresinha Pinto e Maria Arminda Aguiar — três outras assistentes que fizeram minha cabeça. Para não falar em mestre Alceu Amoroso Lima, que por si só merecia um artigo inteiro, louvando seu entusiasmo vi brante, sua eterna juventude, sua chama que nos incendiava de sede de justiça e amor à palavra — e que mais tarde seria paraninfo de nossa turma. do Dando sobre Euclides Cunha, seguia a descrição texto,aula ia imitando o andar da do sertanejo e se transformava no personagem. Contava como carregou Graça Aranha nos ombros para tomar de assalto a Academia. Comungava com Murilo Mendes e Jorge de Lima e transformou isso em paixão dos alunos. Uma vez pediu que levássemos um violão e deu aula de poesia ao som de música. Outra vez, me deu nota 20 num trabalho sobre Graciliano e escreveu embaixo: “10 pelo conteúdo literário, 10 pela densidade humana”. Para valer. Fiquei dispensada do último trabalho — mas fiz, só para dar de presente a ele. Com mestres desse calibre, saí de lá pronta para o que desse e viesse. E veio Roland Barthes. Mas veio aos poucos. No início de 1970, após prisões e perseguições, no meio de toda aquela barra da ditadura, não dava mais para ficar no Brasil e resolvemos ir embora. Meu marido tinha uma bolsa encaminhada na Europa e fomos para a França. Chegando lá, o ano letivo estava no meio. Para não perder tempo, entrei como ouvinte em vários cursos para decidir onde me matricularia depois. Acompanhei as aulas das grandes estrelas da Semiologia: A .J. Greimas, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, Gerard Genette. As que mais me atraíram foram as de Christian Metz (com quem cheguei a cursar um semestre regular) e Roland Barthes, com quem já sentia maior afinidade e que já era meu preferido. Gostaria que ele pudesse me orientar na preparação da tese de dou torado, que eu começara no Brasil e tivera que interromper, —

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levando uma mala de livros e fichas. Mas trabalhar com ele era um sonho impossível. Havia quase 2 mil pretendentes. Nessa época, ele dava um amplo seminário num teatro para caber todo mundo. Apenas uns privilegiados, menos de vin te, eram escolhidos para o grupo reduzido que toda semana se reuniria com ele em volta de uma mesa, no salão de um nobre “hotel” do século XVIII, dando para um pátio de pe dras as Era árvores melancolicamente perdiam folhas. Nemonde tentei. muito capim para minha égua.suas Matriculeime apenas como ouvinte, no auditório gigante. No dia da primeira conferência, antes de começar, ele leu o nome de meia dúzia de pessoas que deveriam procurálo no intervalo. Entre eles, o meu — para total surpresa. Na platéia, eu e meus amigos, os cineastas Zelito Viana e Cacá Diegues, conjeturávamos o que poderia ser. Mas subi ao pal co no intervalo, disputando um lugar em torno da mesa do professor. Uma multidão se acotovelava para chegar perto dele. Tenho horror a essas situações. Fiquei para trás. Desis ti. No final, quando já íamos descer de volta às cadeiras, ele reparou em mim — difícil não reparar, com minha barriga de grávida. Perguntou meu nome. E aí, surpresa: — Madame Machado? La brésiíienne? Eu mesma, né... Sorri amarelo, constrangida, todo mundo me olhando. E ele: — Era só para dizer que a senhora foi selecionada para o grupo que vai fazer tese comigo. Pode passar no meu es critório terça- feira para uma entrevista? Claro que podia. Mas como me escolheu? Eu nem ou sara me candidatar... Na entrevista, fiquei sabendo. Ele vira meu currículo. Ficou impressionado com a quantidade de coisas que eu já tinha feito em minha pouca idade — não sabia que o Brasil não tem preconceito contra jovem, que estávamos criando novas faculdades na ocasião e o pessoal qualificado para —

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ocupar as cátedras era raro. Mas me disse que ficou na dú vida. Havia duas hipóteses: ou eu era muito competente e ele me queria por perto, ou eu era uma arrivista “entrona”, do tipo que pisa nas pessoas, passa todo mundo para trás e não hesita em seu carreirismo. Quis me conhecer. Era um semiólogo em tempo integral, estava sempre observando signos e analisando sua significação. Quando me viu recuando da multidãodeque se com acotovelava seume redor e percebeu que eu desistia falar ele para anão meter naquela com petição de tietagem, chegou à conclusão de que a primeira hipótese era correta. E me chamou. Foi o início de uma bela amizade e uma inesquecível relação com um professor marcante. Logo de início, per guntou- me o tema da tese que eu queria fazer. Quando con tei que estudava, havia dois anos, o papel dos nomes próprios na geração do texto de Guimarães Rosa, ficou sé rio, acendeu um cigarro e começou a levantar problemas concretos que apareceriam por ocasião do fichamento do material. Fiquei pasma. Como podia saber? Era verdade. Eu já encontrara esses problemas, já quebrara a cabeça com eles, quase desistira, mas finalmente encontrara uma solu ção — que envolvia fichas de cores diferentes, escrevendo com tintas de cores diferentes, mudando de cor à medida que o uso do nome variava no universo rosiano. Parece complicado, mas era um ovo de Colombo, simplicíssimo de pois de descoberto. Ele ficou animado, disse que era uma saída muito engenhosa, me fez explicar em detalhes. Em seguida, admitiu que eu poderia desenvolver um artigo de vinte laudas o tema, masoutro jamais uma tese de duzentas páginas. Era sobre melhor escolher assunto, aconselhou. Fi quei frustrada e furiosa. Discuti, me exaltei, desconfio até que fiquei meio agressiva, afirmando que ele nem desconfia va da grandeza do Rosa, não percebia a riqueza do material que eu tinha nas mãos, o grau de consciência da linguagem que tinha o autor. Argumentei, dei exemplos. Barthes ouvia —

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calado, reclinando para trás a cadeira, a cinza enorme pen durada no cigarro preso ao canto esquerdo da boca. Depois riu, abriu a gaveta de baixo da escrivaninha, mexeu numas pastas, tirou uns papéis e me deu: — Há anos eu esperava pela senhora. Leia com aten ção, faça o uso que quiser e depois me devolva. Não vou mesmo lidar mais com isso. Eram umas vinte páginas de anotações e fragmentos sobre o nome próprio em Proust. Um tesouro! Barthes con tou que era fascinado pelo tema, já pensara em se dedicar a ele, mas enveredou por outros caminhos, esbarrou nas difi culdades com as fichas e empacou, ficando só com aquelas notas. Guardadas na gaveta, à espera de um aluno que as levasse adiante. Eu era a terceira a aparecer falando em nome próprio. Mas os dois anteriores não tinham resistido ao questionamento cerrado a que acabara de me submeter. Nesses dois episódios, ele falou pouco e observou muito. Mas nem preciso dizer que, quando falava, Roland Barthes era um deslumbramento, uma iluminação para a inteligência, um modelo de raciocínio e de integridade intelectual, um caso raro de leitor apaixonado e teórico coerente. Bem- humora do, irreverente, irônico, sensível, obcecado pela lucidez, fasci nado pelas infinitas possibilidades da linguagem, Barthes foi para mim uma prova viva de que é possível haver um intelec tual brilhante que fuja de rótulos e desconfie de si mesmo, que esteja sempre disposto a pensar por sua própria cabeça, con tra as correntes, contra o corrente, e que a maior recompen sa está na própria alegria das descobertas mentais. Toda essa carga intelectual não impedia que fosse uma doce pessoa no trato. Foi carinhoso comigo quando meu filho nasceu, continuou alimentando uma troca amiga quando voltei para o Brasil e me escrevia de vez em quando, insistindo em acompanhar o que eu andava fazendo. Um dia, ao entrar em sala, os alunos estavam comentando que ia haver na Universi dade de Urbino, na Itália, um curso intensivo de verão, com —

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dez horas de aulas de Semiologia por dia durante um mês e professores como Umberto Eco. Perguntou-me se eu ia fazer, respondi que não. Em nossa entrevista da terça seguinte, insis tiu, adivinhou que era só por falta de dinheiro, confirmei. — Então lhe consigo uma bolsa. — Tem bolsa? Eu não sabia... Então, vou pedir. — Não, não tem. Mas todos me conhecem, são meus amigos, nunca pedi nada a eles. Vou pedir uma bolsa para você e acho que dão. Deram. Fiz o curso. Maravilhoso presente de Roland Barthes, com o qual eu nem ousava sonhar. Quando finalmente entreguei a tese, uma das observa ção que fez o retrata mais do que a meu trabalho, e por isso transcrevo. Ao final da avaliação do meu ensaio comentou: — Não posso deixar de dizer uma palavra sobre sua lin guagem. Sempre encontro alunos que abusam do jargão, mas não dominam os conceitos a que ele se refere. Seu trabalho é o inverso disso. A conceituação é rigorosa, mas você evita o jargão técnico sempre que pode, substituindo- o por imagens e metáforas. Por que foge da terminologia mais exata quando está tão à vontade entre tudo aquilo a que ela se refere? Estou enganado ou isso revela uma crítica implícita a todos nós? Expliquei que desejava que o livro um dia fosse publicado no Brasil e pudesse ser entendido por estudantes e professo res que não precisavam conhecer Semiologia para compreen der Guimarães Rosa. Ele riu e aprovou. Aquele riso meio contido, irônico, com que sempre o tenho vivo na memória. Memória viva de todo o ABC de professores, mestres de muito mais do que o ABC. Podia vir um D de Darcy Ribeiro, com quem nunca estudei mas com quem muito aprendi quan do trabalhamos juntos. E Lauro Oliveira Lima, dinâmico e ir reverente desconsertador de certezas, mestre de meus filhos a me ensinar por tabela. E tantos, tantos outros, como Paulo —

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Freire e Anísio Teixeira, com quem meu caminho se cruzou poucas vezes, mas que me ensinaram o mundo — e hoje não estão mais aqui. Podem ser procurados na cantiga de roda que aprendi com a dona Jurema, minha primeira professora, lá no jardim de infância, entoandoCarneirinho carneirão: Olhai pro céu, olhai pro chão, pro chão, pro chão... A na Maria Machado, pintora, professora universitária, jornalista, livreira e escritora, nasceu no Rio de Janeiro. Após se formar em Letras Neolatinas, estudou com Roland Barthes, sob cuja orientação fez sua tese de pós- graduação na Ecole Pratique des Hautes Etudes, em Paris. Começou a escrever em 1969 e já publi cou cerca de cem livros, tanto para adultos quanto para crianças. Seus livros vende ram mais de 4 milhões de exemplares e têm sido objeto de numerosas teses uni versitárias — inclusive fora do país. Sua obra para crianças e jovens está traduzida e publicada em dezessete países e recebeu todos os principais prêmios no Brasil e al guns no exterior. Sua obra para adultos, também premiada, é considerada pela crí tica uma das melhores da literatura brasi leira Nos contemporânea. últimos quinze anos, vem exercendo atividades na promoção da leitura, tanto nacional quanto internacionalmente. Deu seminários da Unesco em países em de senvolvimento e fez conferências em quase todos os continentes. —

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M i n h a P r im e ir a

H is t ó r ia

Ivan Angelo

£ u odeio professores. Eu odeio professores. Eu sem pre vou odiar professores. Ficava repetindo isso para me acalmar e depois de umas cem vezes já conseguia aceitar o fato de que ia bombar. Eu não tinha problema nenhum com eles, a não ser o fato de eles terem vários problemas comi go. O de História, Zé Raimundo, me botava para fora da sala assim que chegava. Chamava de molecão e botava para fora. E depois me cobrava a lição de casa, que eu não tinha feito porque ele não me deixava assistir à aula. Dona Rosa, de Religião, achou que eu estava querendo acabar com o trabalho dela quando eu disse que religião tinha de ser ensi nada em História e deveria explicar igualmente todas as reli giões, até a dos índios. O de Matemática vivia repetindo que todos tinham de ter cabeça para exatas, que só a matemáti ca e o jogo de xadrez ensinavam a raciocinar, e ficou pê da vida quando eu perguntei na oitava vez que ele repetiu aqui lo se todos os filósofos sabiam matemática e xadrez. Achou que eu estava gozando ele e de lá para cá me faz perguntas valendo ponto e me chama na lousa para resolver um pro blema valendo ponto e jogou minha nota do bimestre lá para baixo. O de Educação Física não aceita o fato de eu não conseguir fazer todos os exercícios por ser gordinho e fica —

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gritando grossuras na frente das meninas, grossuras do tipo “geme mas faz”, todo mundo rindo e sabendo que é comigo. O de Geografia vem com tudo decorado e não aceita per guntas fora do tema, mas como é que alguém pode apren der sem perguntar? Se ele falava do mar eu queria saber qual era a origem da água, coisas assim que surgem de repente, e ele diz que eu quero é tumultuar a aula para ele não dar a matéria. O professor de Ciências vive metendo percebes no meio das frases, não fala uma coisa sem perguntar “Perce be?”, e todo mundo chama o cara de Percebe. O Percebe quer assim, o Percebe fez assado, o Percebe pediu isso ou aquilo. Quando eu pedi um esclarecimento a ele sobre a matéria, explicando direitinho o que eu não tinha entendido, meti também um percebe para ficar mais no jeito de ele fa lar, e a turma riu demais, e ele agora me odeia. Não vou ficar me estendendo muito para não encher o saco, mas toda hora eu entro numa dessas. Bom, e tem o meu problema com a Ferraz, de Português. Eu ainda não disse queque estou segundo é, estou. A Ferraz cismou euno tinha de sercolegial. escritor.Pois No ano passado ela leu o meu trabalho sobre os meninos assas sinados na igreja da Candelária e deve ter pensado: “Esse garoto deveria ser escritor”. Não, acho que ela pensou foi uma coisa mais sem talvez: “Esse garoto vai ser escritor”. Olha, persistente como é, deve mesmo ter pensado o se guinte: “Vou fazer esse menino virar escritor”. Foi a origem do meu problema com ela. Ela não é bonita, mas é muito, muito gostosa. Saiu da faculdade acho que de Pedagogia faz uns três anos e não tem nada de cansada. Prefiro professores meio cansados, que já conhecem as manhas todas e não querem mudar a gente nem o mundo. Só querem terminar um ano e come çar outro, depois das férias. Enchem menos o saco. No ano passado a Ferraz foi promovida de assistente a professora. O nome dela é Cleide Ferraz, mas como já havia outra Clei—

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de, professora de Inglês, começaram a chamá- la de Ferraz. Essa Cleide é outra que tem problema comigo. Como eu já sei inglês, não preciso prestar atenção na aula dela. E ela não suporta isso. Perto do fim do ano foi que a Ferraz cis mou de fazer de mim um escritor. Hoje eu sei que foi. Ela entrou na sala com aqueles jeans muito apertados que arrebitam ainda mais a parte mais espetacular do corpo dela. Chegou trabalhos do último do ano, junto comtrazendo um livro,ose disse que estava muitobimestre entusiasma da — foi a palavra que ela usou, uma palavra exagerada para uma professora de Português se referir aos trabalhos de uma turma de babacas, pois eu conheço muito bem todos eles e sei que são uns babacas ligados em Miami e rou pas de griffe—, estava muito entusiasmada com o rendimen to da turma. Disse que tinha dado nota 10 em um único trabalho, a única nota 10 do ano inteiro, o qual trabalho ela anunciou que ia ler para todos. Aí, olhou para mim com aque le ar de é de você que estou falando e eu gelei. Era como se fosse abrir minha braguilha na frente de todo mundo. Um trabalho de escola é uma intimidade, é uma coisa pessoal en tre aluno e professor, de mim para ela, professora, não para a turma. É quase como se fosse uma carta. Eu fiz aquele traba lho para me exibir para ela, para mostrar que posso ser bom numa coisa se me empenhar. Menos em Educação Física. Então ela segurou a calça apertada dos dois lados e puxou para baixo, dando uma reboladinha para deixar a coisa dela mais à vontade, e pegou o primeiro trabalho da pilha, que era o meu. Não entendo para que que as mulhe res para usambaixo. jeans apertados e minissaias se é calça para ficar do Homem não fica puxando parapuxan baixo. Acho que as barrigas deles e o jeito de andar não forçam as calças para cima. Eles até têm muito mais coisas entre as pernas para incomodar do que as mulheres e não ficam puxando. Acho que elas fazem isso é só para a gente ficar pensando no que está apertado. —

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A Ferraz tinha pedido que cada aluno escolhesse um tema entre os acontecimentos do ano e escrevesse sobre ele, de forma livre. Escolhi um assunto de que todo mundo falava em casa e na televisão, aquela história dos caras que chegaram de carro atirando e mataram os meninos de rua da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Para não ficar repetindo a notícia da televisão e dos jornais, eu pensei nos caras se preparando para ir matar os meninos. Uma coisa assim: um cara beijava o filho e saía para encontrar a turma que ia matar os meninos, outro beijava a namorada e ia junto com a turma matar garotos, um dizia boa- noite para a mãe e ia atirar nos meninos e assim por diante. Eu queria que aquilo parecesse verdade, então não podia escrever as conversas deles como a gente lê nos livros, mas como as pessoas falam mesmo. Queria mostrar que eles tinham as famílias deles e saíam de noite para matar. Era a farra deles, como aquela gente de Santa Catarina faz a farra do boi. Bom, a Ferraz leu esse negócio aí para a turma e na discussão ficou evidente que os babacas não entenderam direito, claro que não, pois são os maiores babacas do mun do, mas deixa pra lá. Ainda bem que ela se tocou e não disse que o trabalho era meu. No fim da aula me chamou para uma conversa particular. — Você já leu o Rubem Fonseca? — Não. Nunca. — Como é que você chamaria esse trabalho que você fez? — Como assim? — Em que gênero literário você o colocaria? — Ah, não sei. É um trabalho. Eu já tinha ouvido falar de professores que seduzem alunos. Por que ela não me seduzia em vez de ficar prolon gando a aula? Talvez porque eu fosse gordinho. — Isso é um conto, sabia? E muito bom. Eu jurava que você tinha se inspirado no Rubem Fonseca. —

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— Nem sei quem é. Ela puxou de novo as calças apertadas. — É incrível. Eu trouxe um livro dele para você ler. — É trabalho ou o quê? — Mais ou menos. Vai ser o seu trabalho de férias. Riu, porque no fim do ano não tem trabalho de férias. Catou na mesa aquele livro e me deu. O título era O Cobrador. — Pode ler com calma. No início das aulas do ano que vem a gente conversa. Bom, só me lembrei de ler o livro no último dia de fé rias, quando fui arrumar o material. Não que eu tivesse es quecido a Ferraz naqueles quase três meses de férias. De vez em quando sonhava com ela. Uns sonhos bem bons, em que ela estava sempre me seduzindo. Na melhor parte eu acordava. Acho que o meu subconsciente sabia que aquilo era impossível e acabava com a festa. Durante o dia só me lembravadela na hora do banho, mas nunca a associava ao livro do tal Rubem Fonseca. Não deu tempo de ler tudo, mesmo assim levei o livro para devolver. — Leu? Menti, correndo o risco de ser flagrado. Ensaiei a des culpa de que tinha lido no início das férias e já havia esque cido muita coisa. Não que eu tivesse obrigação de ler, é que não queria dar a impressão de que não me importava. Se eu fosse bem legal com ela, quem sabe um dia ela tivesse comi go um daqueles sonhos que eu tinha com ela. Pena eu ter engordado mais uns quilos nas férias. — O que achou? — O cara pensa que todo mundo é podre ou revoltado. — Você não pensa assim? — Não. — O que acha do estilo dele? Emendou, acho que não querendo parecer professora: —

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solto é comum, a não ser o pirado do Zé Raimundo, que usa o dele abotoado até quando está em mangas de camisa. Se gundo botão aberto também é comum. Terceiro botão só ali na minha frente. E se ela estivesse querendo me seduzir? — Se eu soubesse escrever como o Rubem Fonseca não precisava nem pedir. Os olhos dela até brilharam. Não tinha novidade nenhu ma no que eu estava dizendo. Se eu jogasse futebol como qualquer um da Seleção Brasileira, também ia viver jogando, mostrando que sou o bom. Se pintasse como algum pintor de museu, também ia viver pintando. Ela caiu na conversa. Mesmo assim ainda demorei a entender o projeto dela. — Não se apresse. É preciso ler muito primeiro. J á leu o Machado de Assis? Me deu Contos Escolhidos, uma seleção dos trinta melhores contos dele feita por professores e críticos. Tem um conto em que uma coroa de 30 tenta seduzir um rapaz da minha idade. Na noite de Natal! O dele. garotoMas é quem conta a história, tudo pode ser interpretação tem algu ma coisa parecida com a dança da Ferraz em volta de mim, puxando as calças e não vendo que o terceiro botão da ca misa estava aberto. — Como é, já leu? Assim, me apressando. Como se ela não soubesse que outros professores pediam trabalhos, que ainda tinha seis horas por semana na computação, que tinha minhas coisas para fazer, arrumar quarto e essas coisas de mãe, e tinha a turma do prédio para trocar umas idéias à noite enquanto não acabava aquela zoeira de telenovela. No meu prédio só as mulheres podem assistir. Se a gente não desce na hora da novela fazem coro de bicha, bicha, bicha em baixo da janela. A verdade é que três dias depois que a Ferraz me passou o livro eu já tinha lido, nem sei se foi só para ter outra conver sa particular com ela. —

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— Já. Achei ótimo. Mesmo quando usam saia comprida as mulheres arru mam um jeito de mostrar alguma coisa. A saia compridona dela tinha uma banda que passava por cima da outra e o tecido parece que deslizava em cima da outra banda e ela toda hora arrumava aquilo. De pé não acontecia nada, mas sentada acontecia aquele deslizamento. Não sei se isso a incomodava, de saia tantointeira que arrumava. Se não Ficou queriasentada proble mas, que usasse ou se levantasse. na carteira ao meu lado com as pernas cruzadas. — Quais os contos de que você gostou mais? — Mais?Missa do Galo. Uma história de sedução. Ela nem piscou. — Por quê? — Porque... Acho que pelo jeito de escrever. Pelo jeito não, acho que pelo ângulo, porque é o rapaz que conta a história. Se fosse ela não tinha graça, ficava tudo explicado. Sendo ele, fica tudo meio misterioso, meio escondido. — Eduardo... Todo mundo me chama de Dudu. Ela finge que não sabe. — Eduardo, que leitor esperto você é. A saia tinha escorregado e ela estava distraída. Ainda bem. — Mas ele mente porque começa a história dizendo que nunca entendeu a conversa que teve com a mulher, a Conceição. Se não tivesse entendido, não tinha reparado em tantos detalhes, não tinha descrito com tanta exatidão o que estava acontecendo. — Então você acha que ele sabia que ela estava preci sando de carinho e companhia? O ângulo das mulheres. Em vez de chamar de paquera o que era paquera, vinha com aquela história de carinho e companhia. Logo ela, de saia de tecido deslizante. —

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— Acho que sabia. Ela recolocou a banda deslizante da saia sobre a outra. — Do que mais você gostou? Quase como se estivesse mudando de assunto. — Da quele outro, Uns Braços. Uma história de fascinação. Ela piscou. Um homem fascinado por uns braços que uma mulher mostra e não mostra. No tempo de Machado de Assis, braço devia ser erótico. — Não gostou deDona Benedita?DoAlienista? — Gostei. OAlienista é engraçado. Não sei se ela estava mudando de assunto. Estas histó rias eram boas, mas aquelas tinham mais o que ver com as minhas preocupações do momento. — Você acha que ele escreve bem? A saia já estava escorregando outra vez. — Nossa! — Vou te trazer outro livro. TrouxeO Velho e o Mar.É a história de um velho pes cador que apanha um peixe tão grande que não cabe no barquinho. Ele amarra o peixe do lado de fora do barco. Os tubarões aparecem e comem o peixe todo. — Gostei. Se eu fosse escrever, ia escrever desse jeito. É mais fácil. — Parece... — Não é? — Nenhum jeito de escrever é fácil. Tem que ver com a história, com os personagens. O texto tem de vestir justinho a história, igual a uma roupa. Ah, ia me esquecendo do detalhe: ela estava outra vez com a calça jeans que tinha de puxar. — Se botar roupa grande num magro, vai ficar frouxa; se botar pequena num gordo, vai faltar. —

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Não acredito que ela falasse de gordo para me gozar, mas o exemplo me deixou sem graça. E será que ela não se enxergava, com aquela calça tão apertada? — Vou trazerMorte e Vida Severinapara você ver outro jeito de contar uma história. Li e não entendi. Quer dizer, não é que não entendesse. Entendi a história, não o porquê de escrever em versos. Nunca ia conseguir escrever daquele jeito. Não que eu pensasse em escrever algum dia, mas se alguém, qualquer pessoa, fosse começar, não ia ser pelo modo mais difícil. No dia em que conversamos sobreMorte e Vida Severinaela estava toda tapada e só então deu para reparar que ela conversava de maneira incômoda, olhando muito para a gente, e tinha mania de ficar puxando os cabelinhos do braço não sei para que ou de tirar os cabelos dos olhos, ou de passar a mão no rosto, nos braços, atrás da orelha, enfim, estava sempre se alisando. Li mais dois livros até terminar o semestre: Dom Casmurro, de Machado de Assis, eO Primo Basílio,de Eça de Queirós. Nessa altura já estava enrolado com os outros pro fessores, não dava tempo de ler tudo o que a Ferraz pedia e de ainda fazer os trabalhos deles. Questão de pernas e aten ção. Eles não tinham com o que concorrer. Eu sonhava cada vez mais com ela e já não acordava na melhor parte. Come cei a fazer regime e ouvi minha mãe dizer ao telefone que eu estava apaixonado, que ela ainda ia descobrir por quem. Tenho ódio de mãe bisbilhotando a vida da gente e falando esse tipo de coisa ao telefone. Quando conversamos sobre Dom Casmurro jáestava no inverno e a Ferraz usava saia escocesa curta com meias grossas. pirado que inventa — Bentinho pode ser bem um ciumento coisas. — Pode. — A gente nunca vai saber. — É.



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— Mas ele acredita na traição de Capitu e a gente acre dita nele. Acho mais interessante do que o escritor mesmo contar a história, não deixar dúvidas de que a mulher traiu e punir a coitada com uma doença mortal, como fez o Eça de Queirós. — Por que você não escreve uma história na primeira pessoa e na terceira para sentir a diferença? Uma no jeito do Machadoe uma no jeito do Hemingway. Hein? As pernas perfeitas dela, delineadas pela meia grossa, estavam juntinhas. Eu andava meio fissurado em pernas juntinhas, não sei por quê. Agora estou parado em nuca, cabe lo amarrado para cima. Comecei a perceber que ela queria que eu fosse escri tor e não entendia o porquê. Também não pensava muito nisso. O que eu queria era ficar perto delae se tivesse de escrever um romance para isso escreveria. Acho que minha mãe tinha um pouco de razão sobre estar apaixonado. Mas que davam ódio as conversinhas dela, isso davam. Tentei, tentei muito fazer o que a Ferraz me pediu, mas não conse gui escrever nada. Acredito que não seria muito difícil se ti vesse um assunto. Acontece que não tinha. Não fiquei frustrado por isso. Queria só me exibir para ela. — Como é? Escreveu? — Não. Menti: — Não tive tempo. — Não diga isso. Não desperdice o seu talento com preguiça. Talento. Então era isso. Uma batalhadora das letras. Uma descobridora de talentos. O famoso escritor foi desco berto no segundo grau pela professora de Português, a bela Cleide Ferraz. Prometi que nas férias leria alguns livros da lista que ela me deu: Borges, Manuel Antônio de Almeida, João Antô —

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nio, Clarice Lispector, Garcia Márquez, um listão. Procurei nas livrarias algum livro em que uma coroa seduz um garoto e me indicaramTia Júlia e o Escrevinhador,de Vargas Llosa, e ODiabo no Corpo,de um francês. Como este estava esgotado, compreiTia Júlia.Adorei. Além de ler alguns dos livros da Ferraz, levei para ela a minha descoberta quando recomeçaram as aulas. Era uma mudança de qualidade na nossa relação. Porém não havia livros em casa para eu man ter aquele tipo de troca nem tinha dinheiro para comprar. A mesada que eu tenho não dava para sustentar essa mudan ça. E eu não ia desperdiçar meu dinheiro com qualquer livro, tinha de ser algum que passasse o meu recado. Nesse do Vargas Llosa, o sobrinho, que veio a ser um escritor famoso, escreve novela de rádio, e uma tia gostosa, fascinante e inspiradora dá palpites nas histórias dele, ajuda, misturam fic ção e realidade e acabam indo para a cama. A Ferraz não estava usando sutiã quando veio conversar sobre Tia Júlia. Eu sei que não estava porque a gente perce be e elas sabem que a gente sabe. Há um balanço e um dese nho que é exatamente o efeito que elas querem obter. Depois de Tia Júlia não dava mais para ela fingir que não via qual era o tipo de sentimento que eu tinha por ela. Não quero di zer paixão nem essas coisas de mãe, e sim uma coisa mais objetiva. Não sei como dizer. Vontade de encostar, de me misturar com ela. Tesão, para falar com franqueza. E digo mais: nunca fiz sexo com ninguém. A não ser comigo. A maioria dos babacas da minha classe também não fez, apesar de muitos contarem vantagem de que fizeram. Ser gordinho não é fácil, a gente se intimida. Nas férias emagreci cinco quilos, mas ainda faltavam uns oito para eu ficar legal. Pensa va que isso ia facilitar as coisas com a Ferraz quando ela es quecesse aquela bobagem de me fazer virar escritor. — Precisa arrumar uma namorada, Eduardo, uma ga rota da sua idade. Muitos escritores se inspiraram no amor para escrever. —

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— A idade não interessa. A tia Júlia não inspirou Var gas Llosa? Mais explícito, impossível. Ela se ruborizou e cruzou os antebraços na frente do peito, afagando os braços com as mãos abertas, um pouco nervosa. E começou a falar de uma porção de coisas que inspiram os escritores, que uma revo lução inspira, uma guerra, um problema social, e dava exem plos de aque eu não me lembro a busca doo passado inspira, morte de uma pessoa,mais, a humilhação, ódio, a inveja, a evolução de um caráter, a própria vida na escola, O Ateneu, por exemplo, e falou muito tempo e muitas coisas e muito depressa para esquecer ou passar por cima do fato de eu ter insinuado que poderia acontecer alguma coisa en tre nós ou que eu poderia me inspirar nela para escrever. Naqueles três meses que nos separaram do fim do ano letivo ela devorou meu tempo com mais Machado de Assis, Flaubert, Antônio Torres, Raduan Nassar, Ivan Angelo, Graciliano Ramos, Manuel Antônio de Almeida, Mário de A n drade, Lygia Fagundes Telles, lgnácio de Loyola Brandão. Na Biblioteca Municipal eu tirei O Diabo no Corpo, deRaymond Radiguet, li e levei para ela ler. Ela já não levava sus tos comigo nem cobria o corpo de repente. Era o jeito dela de ter um corpo. Gostava dele, gostava que gostassem. Perto do fim do ano, já estava claro para mim e para os outros professores que eu ia me ferrar. Fiquei apavorado no princípio, com ódio deles, depois fui me acalmando. Na verdade, não havia trabalhado nas outras matérias. Dei ra zão a eles. Acabei achando que mesmo que eu bombasse o ano não seria perdido. AprendiImaginava muita coisa. Vivi.diaE atinha emagrecido mais cinco quilos. que um Fer raz ia me chamar para ir à casa dela discutir algum livro e então, em outro espaço, longe da escola, poderia acontecer algum lance. Aconteceu, mas ao contrário. No meio de novembro ela se casou. Só eu não sabia, só entre nós o assunto era o —

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mundo fictício dos livros. A idéia de ano perdido bateu forte, me arrasou. Se eu quisesse tentar me salvar, não podia per der um minuto. Teria de parar tudoimediatamente e estu dar como um cavalo para tirar 9 e 10 em quatro matérias mais fáceis, deixando quatro para recuperação. Ganharia um mês e meio para estudá- las. Então eu vim para casa e escrevi esta história. Minha primeira história. Quem sabe um dia Cleide Ferraz vai cru zar de novo meu caminho e incendiar de sensualidade meu primeiro romance.

Ivan Angelo, escritor e jornalista, nasceu em Barbacena, Minas Gerais, em 1936. É fundador do Jornal da Tarde, onde foi editor de Artes e é secretário de redação há vinte anos. Foi roteirista da TV Globo em 1981, na sériePlantão de Polícia. Livros publicados:Duas Faces, contos, Prêmio Cidade de Belo Horizonte; A Fes ta, romance, Prêmio Jabuti 1976 (traduzi do nos Estados Unidos:The Celebration; na França:La Fête Inachevée,na Áustria: Das Fest); A Casa de Vidro, novelas (tra duzido nos EUA:The Tower of Glass); A Face Horrível,contos, Prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte;O Ladrão de Sonhos, contos; Amor?, novela, Prêmio Jabuti; ePode me Beijar se Quiser.



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Um

imenso

l á pis

v e r m el h o

Fanny Abramovich

Para Paulo Freire, verdadeiro mestre e estrela-guia.

pr

L enso no meu depoimento. Escrever algumas pági nas sobre o meu professor inesquecível. Sinto cócegas, re vejo cicatrizes. Reflito, recordo, seleciono. Faço recortes e colagens de fotografias que a memória atiça e traz à tona. Flashes e maisflashes pipocando. Rodopios. Lembrei, revi, me revi em várias fases da minha vida escolar. Sorri com algumas recordações, me espantei com outras. Percebi que sabia o nome e visualizava a figura de to das as que me ensinaram no pré e no primário. No ginásio, já não afluíam tão facilmente. Muitos professores, de muitas matérias, de muitas escolas (mudei várias vezes de escola du rante o meu período de aprendizagem regular. Em geral, por puro fastio e canseira). Figuras meio enevoadas, embaçadas, se misturando e se mesclando nas cirandas de cobranças. Do normal e do cursinho, só alguns. E forçando muito aminha memória. decididamente, já não da vida. ADaescola, Faculdade de Pedagogia da era USPo eixo recordo todos. Não com nome e sobrenome. Suas características marcantes ressurgiram com nitidez, sem sombras (provavel mente por terem sido poucos e as brigas muitas), nem sem pre acompanhadas de elogios ou saudades. Honestamente, sem entusiasmo, constatando que deixaram poucas marcas —

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em mim. Também, eles não eram meu mundo. Explicadores de visões de mundo. Tacanhas ou fragmentadas e reacioná rias para minhas convicções políticas da época. E com pou ca sustentação teórica na minha já alentada prática diária de professora, coordenadora, orientadora. Estimulantes para o atrito, para a polêmica ou invenção de jeitos de infernizar suas vidas. Verdade verdadeira, poucos somaram. Nesse pe ríodo, eminhas fontes de aprendizagem eram a política estu dantil partidária, os grupos de teatro, os festivais de cinema europeu, o trabalho exigente e cobrante, os namorados, as leituras infindas, as conferências sobre qualquer assunto em basbacando e questionando, a Biblioteca Municipal abrindo o mundo... Tudo muito mais fumegante e atiçador do que as medíocres e pretensiosas aulas do curso de Pedagogia. Como eleger o inesquecível? O professor Roque Spencer Maciel de Barros, reacionário respeitador das convicções alheias e que me ensinou a fazer estudos monográficos da obra de Rousseau na faculdade de Pedagogia?? Tia Arminda, que desde o pré- primário nunca esqueceu o dia dos meus anos e me telefonava alegremente para dar um beijo, duran te décadas?? Dona Nicota, que me alfabetizou com o mesmo método e cartilha que tinha usado com meu pai, demons trando cabalmente como era inquieta e buscante??? O professor Jofre, do ginásio, que me enlouqueceu com equações de segundo grau que nunca consegui enten der a que vinham, pra que serviam e por que existiam?? Dona Eneida, a temida, que exigia teoremas na ponta da língua, incompreensíveis e causadores de colite pubertãria??? O professor Benjamim, na escola normal, que insistia em que se desenhassem — na lousa — coqueiros e janga das, árvores frondosas e ondas do mar, em plena São Paulo desvairada, jurando que era pedagógico??? A professora de Latim (de quem não lembro mais o nome) exigindo a canti lena do rosa, rosae, rosame do qui, quae, quod... conosco ninguém pode... Ou o professor de Desenho Geométrico —

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querendo o uso dominado dos compassos e transferidores, com tinta nanquim e caneta de pena, para resolver proble mas que eu não fazia a menor idéia do que tratavam, provo cando paralisia motora e mental simultânea e inconteste sujeira nas imaculadas blusas brancas do uniforme?? O professor Saraiva, de Geografia, no ginásio, por quem nutri uma paixão avassaladora e definitiva e por quem dese nhava mapas completos cobertos com raspa de lápis colorido embebido em algodão?? Amor que traí na série seguinte, sus pirando pelo Lourenço, jovem e atlético monitor do laborató rio de Ciências??? Alguns senhores completamente gagás, que falavam sobre o nada durante horas, cuspindo palavras — lato senso — em nossas irritadas faces?? Dona Ary, do admissão, que tinha nome de homem e portava um bigodinho fino, mui estranho??? A fofoqueira dona Maria Alice, que ministrava Trabalhos Manuais e que queria saber da vida de alguns artistas de teatro e televisão que eu conhecia (mas não tanto quanto inventava para seu gáudio, espanto e profundo prazer...)??? O professor Messias, desfilando sempre com um espantoso e apertado paletó xadrez, ensinante do idioma anglo com pro núncia de Tatuí, que até hoje martela sofridamente em meus ouvidos??? Dizia silabadamente e sem constrangimento algum: Ai si shi iesterdi...Juro,I neuer forget... O professor Severo — nunca um nome foi mais justo —, crente de que a Estatística era a única medida pra exata e plena compreensão do universo e que oferecia anos ao seu lado, mandando tantasvezes pra dependência quantas julgasse necessárias, até que esse instrumento básico do co nhecimento pedagógico fossenenhum.) dominado??? (Sem ter Bori, sido nenhum somatório em nível Dona Carolina inteligente, eficiente, ampliando nossas inquietudes e fazen do mergulhar nos mistérios da Psicologia Dinâmica??? O professor Antônio Cândido, cujas aulas segui como ouvinte, com volúpia insaciável e total arrebatamento?? Dona Mariinha Werebe, convicta da certitude da orientação educacio —

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nal e abridora pras leituras minuciosas e ideologicamente corretas, ampliando sempre o limite da sala de aula e nos fazendo andarilhar pelo universo da educação compromis sada com a transformação do homem e do sistema?? Não, não foi nenhum deles. De alguns me lembro pela cordialidade, disponibilidade, de outros pela presença entu siasmada ou risonha. Outros me divertiram pela incompe tência e burrice espantosas. Alguns por ser capazes e amantes de seu ofício e estimuladores de um mergulho mais intenso e mexetivo na sua matéria. Registros afetivos, aplauditivos, afastativos. Traços da fisionomia, contornos não de todo claros, sublinhação de uma ou mais características. Com distanciamento ou muito afeto. De modo intenso ou com intensas e vividas saudades. De poucos, muito poucos, com imensa ternura e derramada amorosidade. Para lembrar com as evocações nítidas dos sentimen tos que me provocou e ter como parâmetro por décadas, elejo dona Linda. Assim, sem sobrenome. Será que as pro fessoras das primeiras séries tinham sobrenome??? Ela foi minha professora no terceiro ano primário. Fui sua aluna no Colégio Batista Brasileiro, em Perdizes, bairro de São Paulo, onde freqüentava o semi- internato. Lá, maravilhada com os belos bosques, com a magia do flanelógrafo, com a diversidade apetitosa e convidativa da cantina, com o galpão enorme destinado a jogar queimada, com a portinho la escondida na rua lateral por onde se entrava para as aulas, com a imponente e bela escadaria da frente, com a biblioteca vasta, as inúmeras saletas com piano, os cultos protestantes e seus hinos glorificadores, menina judia,fascinada! passeava por esse mundo durante todo o dia.eu, Absolutamente Na classe mista, meninos e meninas impecavelmente uniformizados, limpos, alvejantes, com toda a vastidão do material escolar facilmente encontrável (segundos para loca lizar o que a mestra exigia...), viviam experiências pedagógi cas marcantes com dona Linda. —

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Pra mim, ela era uma mulher enorme, de tamanho descomunal, gordíssima, quase um gigante... Não sei se era bonita ou feia para os padrões da época. Guardo a imagem dum rosto severo e de cabelos enrolados num coque. Roupa neutra, sem originalidade embasbacante nem marca pes soal. Tão uniformizada quanto nós. Que idade teria??? Não faço idéia... Pra mim, era velha. Talvez fosse uma garota recémformada... sem sorrisos, incapaz gesto carinhoso ou dum Brava, afago especial. Durona, mal- dum humorada, seca são os primeiros adjetivos que me ocorrem. Não me vem nenhuma imagem cálida, aconchegante, chamante. Dona Linda enfatizava o aprendizado da dedo-duragem. Quando saía da classe, escolhia um dos alunos para ir ao quadro-negro, onde deveria marcar com todas as letras o nome de qualquer colega que piscasse ou se mexesse. E anotar quantas vezes esses atos atentatórios eram cometi dos, contabilizando risquinhos e mais risquinhos. Registro absoluto da infração. Esse poder sobre toda a classe, por minutos que pareciam séculos, era conferido ao aluno como forma de apreço e consideração. Isto é, o bom estudante merecia controlar toda a classe, trair os amigos e até colocar os desafetos em dia. Tornava-se uma figura tão ameaçadora quanto a professora ausente. Claro, autoridade de plantão não pode ser contestada. T inha, obviamente, a verdade ao seu lado e o direito de fazer justiça e ser participante da punição. Dona Linda não era muito versada em sentimentos de culpa. Ela também possuía uma fé inabalável no processo de limpar a boca. Literalmente. Ouvindo um palavrão (o que poderia se dizer na época e nesse espaço cristão??) ou algo considerado, por ela, como não pronunciável, imediatamen te se munia de água e sabão para que o orador mudasse seu repertório verbal e retirasse tal vocábulo de sua boca... Se não produzisse o efeito radical desejado, à água era somado algum remédio, líquido, pimenta ou condimento de sabor —

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intolerável e a partir daí... silêncio ou gagueira. Sem meias medidas para o que lhe desagradasse. Rapidez na ação e certeza convicta das reações. Nenhuma dúvida ou questio namento sobre os possíveis efeitos colaterais... O instrumento de trabalho favorito de dona Linda era um imenso lápis vermelho, todo- poderoso, que sublinhava erro do ditado ou da cópia, anunciava desacertos nas respos tas dos questionários, riscava soluções de problemas de arit mética, exigia repetição infinita de equívocos cometidos até a resposta única e certa ser incorporada.. .Vez ou outra, elogia va, mas sem muito entusiasmo nem eloqüência. Terrorífico!!! Passados tantos anos, ainda sinto calafrios com a lembrança desse lápis inclemente. Capaz de apontar para exercícios ex tras na hora do recreio, o dobro de lição de casa, ficar sozi nho na imensa escola até terminar tudo, copiar vinte vezes a grafia correta de cada palavra escrita de modo errado e ou tras alternativas lúdicas e estimulantes para qualquer criança. Fervorosa entusiasta da compreensão do desvio atra vés da repetição sucessiva, propunha — não brandamente — que se escrevessem cem vezes, sem aspas e obviamente sem carbono (existiria na época?), juramentos como: “Nun ca mais falarei quando não for perguntado”, “Nunca mais falarei um palavrão”, “Nunca mais assoprarei a resposta para o colega” e outras variações sobre o tema. As palavras, certamente, não seriam essas. Mas o espírito, sim. Solidarie dade e espontaneidade não faziam parte dos compêndios pedagógicos nos quais se baseava dona Linda. Muito menos fazia idéia de quando se forma a noção do nunca... SeusRepetição lemas: Punição sempre! Na dúvida, ficar de de castigo! de qualquer informação até vá sabê-la cor, sem hesitações nem paradas indicativas de alguma in certeza. Consideração para com os melhores alunos e ex pectativa de puxa- saquismo da parte deles. Risadas, só fora da classe. Isso, na época em que se dizia que a escola era risonha e franca... Seguramente, não com ela. —

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Dona Linda era uma sádica de plantão permanente. Sem disfarces nem nuances. Sem atenuantes. As quatro horas de aulas diárias com ela eram sufoco completo. Sem pausa para respirar, da entrada à saída. Vivia no medo permanente de uma reação momentânea sua, das possibilidades infinitas do depois. Pouco imaginativa, repetia os castigos. Comprazia-se em antecipar que eles viriam. Era só aguardar. Os alu nos, em estado permanente. Lembro maldeastaquicardia informações escolares que recebi de dona Linda (e eu era uma das melhores alunas da turma). Sei que tudo era decorado. Afluentes de cada margem do rio Amazo nas, paradas em cada cidade de todas as linhas ferroviárias do Estado de São Paulo, nome de capitais de remotos e inlocalizáveis países, datas de momentos históricos ditos relevantes, máximo divisor comum, mínimo múltiplo comum, coletivos de substantivos... Tudo fundamental e cristalino para a curiosida de duma garota de 9 anos de idade, vivendo na capital. Não me lembro de histórias comoventes (só as contadas pelo pas tor Enéas Tognini nos cultos diários), de cantorias desvairadas, de brincadeiras descompromissadas, de gostosuras envolven tes. Não havia surpresas, tenho certeza. Monótona e previsí vel rotina de cinco dias por semana durante todo um ano. E as sabatinas??? Provocadoras de insônia precoce, de tensão muscular. Exasperação nervosa, pavor de não coresponder às expectativas. Muito pior, a chamada repentina para dar uma resposta breve, impessoal e correta ao tópico em questão. Em voz alta,de pé, perfilada ao lado da carteira. Sem direito a dúvidas nem hesitações. Tinha que ser igualzi nho ao escrito no livro usado no barra caderno copiado. Paralisia momentânea, puxadae na da ditado saia e enas escor regadias meias soquete, suor frio e surto de mudez. Lembro que, com ela, vivi a rigidez, a dureza, a cobran ça permanente. E o medo!!! Que toda a alegria da minha idade, do espaço encantado do colégio, só era vivida no re creio, nunquinha em sala de aula. Que a soltura dos jogos —

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no bosque, no pátio se contrapunha à fila permanente da classe: para entrar, pra saudar quem quer que fosse, pra lhe dizer bom- dia, pra responder argüições, pra sair... Até pra ir ao banheiro, só com autorização especial sua. Estado de continência e de alerta permanente. Estilo militar à risca. Dona Linda me deixou a marca da déspota não-esclarecida. Daquelas que têm e detêm o poder pelo poder. Não como de experiência, clareza, levar a classe ademonstração efetivar uma proposta... Nadade disso. A suadeautoridade como demonstração permanente de força e de controle, mes mo quando estivesse distante da sala, dos alunos. Um único critério e uma única regra do jogo: AQUI QUEM MANDA SOU EU, não importa se com ou sem razão, por que ou pra que... Vale mais meu berro do que uma discussão. Vale mais meu lápis vermelho do que outro jeito de resolver o problema, mesmo que a resposta final esteja certa. Arrepiante!! Eu adorava o Colégio Batista Brasileiro. Saí de lá quan do terminei o primário e voltei, alguns anos depois, para concluir o normal. Qual não foi o meu espanto quando, numa manhã, dei de cara, num dos corredores, com uma mulher pequena, nem magra nem gorda, nem velha nem jovem, que me cumprimentou sorridente. Não tinha idéia de quem fosse. Era dona Linda, destituída do tamanho- domedo. Foi aí que compreendi o que significa a proporção afetiva para a criança: os objetos, as pessoas, os lugares têm o tamanho da sua importância e significado interno e nunca a sua dimensão real, concreta, exata, objetiva. Eu, menina judia, tive o meu primeiro contato com a onipresença e com a onisciência de dona Linda. difícil ao pastor tentar me explicaratravés esses atributos divinosFoi de outra forma... Quando comecei a dar aulas para crianças, busquei vá rios caminhos. Quis momentos divertidos, alegres, cheios de surpresas. Quis momentos organizados, concentrados, pro dutivos. Quis que vivessem, experimentassem, sentissem —

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gostosuras e importâncias. Que se encantassem, que cres cessem. Quis ter um relacionamento aberto, poroso, ser res peitada. Não sabia como, claro... Mas lá no fundinho intuía que não seria — jamais — pelas vias, atalhos e pontes de dona Linda. Com ela aprendi, claramente, como não queria ser. Nem remotamente. Pra nenhum aluno. Nunca. Foi meu modelo, meu paradigma. Atenção!!! Cuidado!!! Olha o olho, o lápis vermelho, o berro de dona Linda. Quando escorre gava, sabia por quê. Até a pele reagia. A garganta diminuía a intensidade do grito, o olhar se abrandava, o sorriso vinha e se transformava em sonora gargalhada. Funcionou. Fui cúmplice e não carrasca de meus alunos. E como é bom, gostoso, encontrar nas madrugadas da vida os hoje adultos que foram meus alunos quando peque nos me olhando com olhos piscando como crianças, baita sorriso aberto, abração apertado e comovido e ainda certa cumplicidade no ar a me dizer: “Oi, Fannyzinha. E aí? Tudo bem??” Suspiro aliviada. Contentona. Plena. Aprendi mes mo!!! Consegui não ser dona Linda. Amém!!! Fanny A bramovich é educadora e escrito

ra. Como professora, lecionou da pré-escola à pós- graduação. Deu cursos por todo o país, fez centenas de palestras, cutucou ca beças, aprendeu ensinando. Como escrito ra publicou mais de trinta livros para professores (entre elesQuem Educa Quem? Literatura Gostosuras e Bobices); para jovensInfantil: (entreeles Quem Manda em Mim Sou Eu, Que Raio de Professora Sou Eu?, As Voltas do Meu Coração, Cruzan do Caminhos); e para crianças (Também Quero pra Mim, Sai pra lá Dedo- Duro, Dias Difíceisetc.). —

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M

es t r es

e pr o f e s s o r e s

Içami Tiba

U epois de tantos anos como aluno, e tantos outros como professor, torna-se difícil eleger um como meu tipo inesquecível de professor. Hoje percebo que, conforme fui crescendo em idade e em graduação, meus critérios de ava liação foram mudando. Faço uma distinção entre professor e mestre. Com o professor, eu era aluno, queria simplesmente aprender e tirar nota boa para passar de ano. Com o mestre, eu era discípulo: queria ser como ele, se pudesse até respira ria como ele, vestiria as mesmas roupas, teria os mesmos comportamentos e ideais de vida. Mestre era um modelo de vida, uma identidade ideológica, portanto tudo o que ele fa lava ou fazia era um exemplo a ser seguido. Com o mestre não se buscava simplesmente a aprovação escolar, mas pela sua aceitação pessoal ter a honra de fazer parte da sua vida ou, pelo aprendizado, ter o orgulho de divulgar suas idéias. Se são inesquecíveis, nem sempre o são pelas suas no bres e positivas características, mas também porque foram professores muito ridículos e/ou carrascos e/ou ineficientes. Na realidade, essa é uma avaliação bastante subjetiva, e a memória exacerba alguns detalhes em detrimento de outros que freqüentemente nem sequer são lembrados. Essa ma gia, que é a saudade, me faz viajar por escolas, classes, pro —

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fessores, diretores, bedéis e colegas, evocando lembranças em imagens e sentimentos de situações que, de tão vivas e tão presentes, dão até um aperto no meu coração. À medida que fui elaborando este texto, reparei que não poderia escrever sobre meus mestres e professores iso lados dos seus respectivos contextos. Eles me foram ines quecíveis associados a momentos específicos de minha vida ealinhavo suas peculiares circunstâncias. Portanto, o fio vida. condutor do dos mestres e professores foi a minha E assim acabei escrevendo quase uma biografia minha, no aspecto voltado à educação. Não devo me autorizar a escrever mi nha autobiografia, pois ela não pode estar completa en quanto eu viver. Enquanto eu viver, posso me aprimorar mais, reduzindo meus defeitos e procurando aumentar mi nhas qualidades: isso porque a vida é dinâmica e plástica. Há sempre tempo para aprender para quem, como eu, gos tou tanto de ser aluno desses mestres e professores. Nasci em Tapiraí, no Vale do Ribeira, em São Paulo, onde fiquei até o terceiro ano primário. Papai viajava bas tante, enquanto mamãe tomava conta do mercadinho. As vezes eu ficava com o vovô,Rinnosuke Chiba, e achava sua vida muito interessante. Ele me levava para trabalhar com ele, e isso para mim era uma diversão muito grande. Eu gostava de ajudá- lo a carregar terra com carrinho de mão, fazer açudinhos no fundo do quintal, separar carpas grávidas em viveiros espe ciais, matar gambás e cobras no “bananagoia” (estufa para amadurecer bananas a ser vendidas no mercadinho). Ele me explicava, em japonês, tudo o que ia fazendo, depois pedia para eu fazer alguma coisa e meelogiava bastante quando eu conseguia. Elogios não pertenciam ao repertório de sua duríssima vida de imigrante. Com tais elogios, eu me sentia bem e me dava vontade de procurar fazer coisas cada vez mais pesadas e difíceis. —

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Surpreendi- me, há alguns anos, fazendo com a minha filha caçula, Luciana, então com 7 anos, o que meu avô fa zia comigo. Saí com Luciana para passear pela fazenda e ia lhe transmitindo o que meu avô havia me explicado, res saltando algumas plantas, borboletas, sapos etc. A cada novidade vinha uma fala interessante ou pitoresca que, sin ceramente, eu nem tinha tão claro na minha consciência que do que háfoiquase cinconadécadas avô me lembrasse dissera. O tanto que encantou perceber minha meu filha, os olhinhos brilhando, o espírito de aventura e a atenção com que sorvia minhas palavras. Será que meu avô me per cebeu assim? Se professor é aquele que ensina, dele eu aprendi mui to a conviver com a natureza, respeitando suas característi cas e forças, e aproveitá- la bem, sem destruí-la — então ele foi um grande professor. Se mestre é aquele que entra den tro de nós e nos leva a retransmitir o que dele recebemos, para mim ele foi um grande mestre. Talvez Luciana no futu ro leve a passear, em outro lugar, um filho pequeno para viver com ela o que eu e ela vivemos juntos naquela fazenda, assim como vivi em Tapiraí com o vovô. Ainda pequeno, um dia acompanhei meus irmãos, que iam treinar judô. Fiquei impressionadíssimo com o profes sor, um baixinho muito forte a quem todos os alunos respei tavam. Também quis aprender judô. Lá fui eu, querendo derrubar o professorInada de qualquer jeito. A cada inves tida minha, ele me desequilibrava com pequenos movimen tos e lá ia eu para o chão. Foi quando Inada -sensei (professor Inada) me deu a primeira lição de judô:Primeiro “ você pre cisa aprender a cair porque, caindo, você aprende a der rubar”. Ele dava risada e me dizia que minha afobação em querer derrubar me deixava mais fraco. Eu tinha que perce ber o ponto fraco do adversário e, quando atacasse, fazê- lo de um só golpe naquele ponto. Naquela época, o que eu —

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queria era ganhar as lutas, ser forte como ele, que derrubava todo mundo com a maior facilidade. Cheguei a São Paulo para fazer o quarto ano primário junto com o curso de admissão ao ginásio porque em Tapiraí o Grupo Escolar “Coronel João Rosa” só tinha o primá rio. Larguei o judô. Só o retomei quando estava na sétima série do Colégio Estadual e Escola Normal “Fernão Dias Pais”, em Pinheiros. Quando estava no curso científico comecei a dar aulas de judô. Não havia jovem que recusasse um dinheiro extra. Foi aí que percebi quanto os ensinamentos do Inada- sensei estavam dentro de mim porque eu fazia exatamente com os meus aluninhos o que ele fez comigo: muito carinho e cuida do para não ferir as crianças, estimular a descobrir os pró prios pontos fortes para treiná- los, perceber no adversário seus pontos mais vulneráveis e principalmente saber cair sem se machucar. Comecei a receber alunos com indicação médica por ser crianças hipercinéticas (hiperativas), e para eles a noção dos limites é importantíssima. Eles vinham mais afoitos do que eu ia contra o Inada- sensei, e lhes era terapêutico apren der o respeito aos limites e ao próximo. Foi assim que acres centei uma etapa ao que aprendi:só consegue derrubar o adversário quem souber cair e levantar.Portanto, para levantar bem é preciso saber cair sem se machucar. O ver dadeiro campeão é aquele que sabe valorizar quem lhe con sagrou a vitória: seu oponente vencido. Saber perder é a arte de manter a dignidade sem se subestimar nem se des truir, fazendo tudo o que sabia e podia. Quem não sabe perder também não sabe ganhar. Devo ao Inada- senseí meu título de campeão brasileiro universitário de judô, lutando pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Antes mesmo de ir à escola, eu já achava maravilhosa a escrita. Acompanhava meus irmãos ainda sem estar matri —

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culado e me lembro de ficar fora da classe, sentado no bar ranco perto da janela, prestando atenção no que o professor ensinava aos meus irmãos. Tamanha devoção foi reconheci da pela minha primeira professora: donaLúcia. Dona Lúcia era superbonita aos meus olhos e, o que era importante, ela me agradava muito quando reconhecia meus esforços nas lições de casa. Chorei muito no final do ano, se despediu de nós. Nãome estava acostumado a verquando adultosela chorando. Impressionoumuito vê-la com os olhos cheios de lágrimas e, olhando nos meus olhos, tam bém chorosos, despedir- se de mim. Não me lembro “nadi nha” do que ela especificamente me ensinou, mas trago dentro de mim a pessoa afetiva e bonita que ela era. Ficava superorgulhoso quando ela conversava com minha mãe. Talvez eu fosse auto-referente e não soubesse, pois cada vez que via minha mãe e minha professora querida eu imagina va que ambas estivessem falando bem de mim. Na minúscu la cidade, todos se conheciam, se falavam. Sabe-se lá de que tanto falavam, mas eu achava que era de mim... Auto-referência pode ser um dos primeiros sinais de uma futura psi cose paranóide. Como qualquer lugarejo que se preze, Tapiraí também tinha seu time de futebol. Meu ídolo era o goleiro, nosso respeitadíssimo professorCícero. Diante de tantos pernasde-pau chutando, ele defendia o gol como um super- herói que voava em direção às bolas e as agarrava com aquela classe de fazer a torcida, uns gatos- pingados atrás do gol, pular de alegria orgulho: bom! ir para a Seleção!” Até etentei jogar“Que bola,goleiro mas eu nãoDevia me entendi bem com ela. Tentei ser goleiro, pois achava que com as mãos me sairia melhor que com os pés. De tanto afundar o time, e antes que consagrasse minha fama de “frangueiro”, desisti do futebol. Mas o que me chamava a atenção no pro fessor Cícero era a sua versatilidade. Usava óculos de intelec —

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tual e dava aulas maravilhosas, das quais também não lembro “nadinha”, mas prendia a atenção de todos os alunos e ao mesmo tempo brilhava nos esportes. Eu gostava muito de ficar perto dele, ouvindo suas conversas após o jogo, come morando nos botecos, que se enchiam somente nesses dias. Os professores que provocavam as emoções mais vio lentas e inesquecíveis eram os do ginásio. No primário, quan do criança, bastava um adulto dar um pouco mais de atenção, fazer algo que eu achasse legal, e já era o suficiente para eu ficar admirado e querer fazer igual. O mesmo não ocorria na minha adolescência. Eu detestava as aulas, principalmente porque, antes delas, tínhamos que cantar oHino Nacionale hastear as três bandeiras (do Brasil, do Estado de São Paulo e do colégio) todas as manhãs e entrar em fila para as classes. Ginásio novo, uniforme novo. No começo até gostei do uniforme. Sentia-me não mais criança de calças curtas que usava lápis e borracha, e sim um adolescente que carre gava um fichário embaixo do braço e podia escrever com caneta-tinteiro, como um adulto. Nos primeiros dias achava até bonito o uniforme: jaqueta com botões dourados e pas sadeiras (se pelo menos fossem platinas ou dragonas...) mais as calças compridas de brim cáqui, camisa branca, mas pre tos eram os sapatos, as meias e a gravata. Não levou muito tempo para começar a odiar essa “rou pa de carteiro”, e a maior alegria era o dia de lavar o unifor me, porque nesse dia cada um podia usar o que quisesse. Nesse dia, o que havia de capricho nas meninas era o que sobrava desleixo “esculhambação” nos deixassem rapazes. Nabem ver dade erade porque nãoe havia roupas que nos (naquele tempo, coitado de quem tivesse cabelos compridos ou usasse brincos). Os rapazes, além do sem- gracismo natu ral, não contavam com nenhum tipo de adorno interessante como as meninas. Mas a alegria também vinha por ser esse o dia da vingança contra o bedel, que nada podia fazer con —

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tra nós porque era ele o encarregado de não deixar entrar em classe quem não estivesse de uniforme completo. O bedel era tão chato (hoje sei que era um neurótico obsessivo e compulsivo por ordem e maníaco por limpeza) que quando invocava com alguém o examinava até debaixo das unhas, procurando sujeira. O que não era nada difícil, pois no pátio de terra se jogava pião, bolinha de gude e, quando não havia bola,nonos divertíamos jogando,que “sem que rer”, algumas vítimas chão. Era só procurar sempre tinha alguém com as “unhas sujas” porque a terra era um dos elementos mais importantes para a diversão. Terra e areia eram ótimas para jogar para cima e empoeirar tudo e todos, ou mesmo para assoprar, outra vez “sem querer”, nos olhos daquele CDF. Era obrigação dos alunos já na fila, ao passar pelo bedel, levantar uma perna da calça para mostrar as meias pretas. Uma das diversões era enganá- lo calçando uma meia branca no outro pé. Agora nem lembro mais se realmente as meias tinham que ser brancas ou pretas. Lembro que ele não era chamado de bedel, e sim de vigilante dos alunos. Sentíamos era uma pressão muito grande, e logo des cobrimos a inutilidade dessas medidas, que portanto tinham que ser sabotadas. Os questionamentos nossos eram entendi dos pelo corpo docente como falta de educação e o não cum primento das normas como desobediência, e nossas notas de comportamento eram ceifadas com maestria, sem dó nem piedade, sem choro nem vela (hoje sei que eles eram sádicos com os alunos). O que mais nos judiava era prever como pa pai estaria a nos esperar e, é claro, as odiadas, doídas e infa líveis palmadas a nos atingir, coitados de nós. Assim como quem não deve não teme, apanhar não dói quando a gente sabe que merece. Mas eu tinha colegas que apanhavam tanto que desenvolveram uma espécie de anestesia e, quanto mais apanhavam, mais aprontavam. Até que um dos três se cansa va: o pai de bater, o filho de apanhar, a diretoria de mandar bilhetes para casa e então resolvia expulsá- lo do colégio. —

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Eu gostava muito de ir ao ginásio, mas o que atrapalha va a minha vida eram as aulas. Tanta farra fora da classe e aquela monotonia de aula. Tínhamos a obrigação de matar as aulas, e quem bolasse os melhores argumentos e conse guisse escapar das aulas impunemente virava nosso ídolo. Eu tinha raiva daqueles CDFzinhos que queriam sempre assistir às aulas, aqueles bebezinhos que, por mais que a gente judias se deles, insistiam em ir bem nas provas e não passavam cola para a gente. Que ódio dos CDFs! Por isso mesmo eram eles nossas vítimas preferidas. Para um professor ser inesquecível para nós tinha que ser muito bom ou muito ruim. A maioria pertencia a uma massa ignorada por nós o tempo todo. Ha via um momento em que nós temíamos os professores: pro vas! E outro em que necessitávamos muito deles: notas! Nesse período do nosso maior sadismo antiprofessor, tínhamos duas vítimas preferidas: professor “Mortinho” e outro, cujo nome nem lembro agora, o de Canto Orfeônico. Tive dois grandes professores, realmente muito bons, o de Português, professor Nélio, e a de Geografia, professora Maria José, e outro que não fedia nem cheirava, o de Inglês, professor Martins. Mas realmente inesquecível foi a de La tim, a professora Tereza. Quando o professor“Mortinho” entrava na classe, pa recia um ratinho assustado perante um bando de malvados e famintos gatos de rua. Usava independentemente do clima ou da situação os mesmos ternos: cinza-escuro ou azul-marinho. Sempre bem abotoado, com gravata bem apertada, barba bem- feita, óculos de aros pretos, ombros encolhidos, protegia- se contra a classe agarrando- se à lista de chamada. Fazia a chamada em voz baixa, sem olhar para a classe, muito menos para quem respondia (isso facilitava que um colega respondesse pelo faltoso), iniciava a aula olhando para o chão e falava mais consigo próprio que com os alu nos. A turma do fundão poderia derrubar a classe, matar de —

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porradas um CDFzinho ou até mesmo roncar alto que ele nada fazia; pelo contrário, falava cada vez mais baixo. Pres tava mais atenção no relógio que na matéria e, quando dava o sinal, percebia-se que ainda estava vivo porque ele saía correndo da sala. Suas provas tinham as mesmas caracterís ticas da aula, isto é, não olhava para ninguém, e todos cola vam, trocavam provas uns com os outros e nunca ninguém foi reprovado. Seuverdadeiro. apelido eraHoje tão apropriado que mais ninguém sabia o seu nome já nem lembro qual a matéria que ele dava. Talvez algum dia nem ele mesmo se surpreendesse se assinasse “Mortinho”. Calamitoso e insignificante mesmo era o professor de Inglês. Um senhor, bem velho para o nosso critério, deveria ter mais de 45 anos. Gostava de ler textos em inglês, senta do na sua mesinha, enquanto exigia o maior silêncio na clas se. Se alguém se manifestasse, ele erguia os olhos acima dos óculos de enxergar perto e dirigia seu olhar para alguém que ele achasse que estivesse zoneando. Então tirava aqueles óculos para pôr outros para enxergar longe, apontava inva riavelmente para outro aluno e o mandava ao quadro-negro escrever o presente do verboto be. Se algum aluno se ma nifestasse de outro canto da sala naquele momento — “Pro fessor?” —, ele respondia: “É você mesmo que eu estava procurando! Pode ir escrevendo o verboto be na lousa!” Não aprendemos nada de Inglês, e suas provas eram muito simples. Era o nosso professorTo be. Nosso professor de Canto Orfeônico era o respeita díssimo maestro e professor Aricó. Aprendi a ler música, inclusive a solfejar. Realmente ele era muito bom porque ensinava, era enérgico e, além de pôr ordem, fazia os rebel des e revoltados adolescentes cantarem sem se sentir afeminados. Mas um dia ele ficou doente e teve que ser substituído. Chegou um professor agitadinho, magrinho, um maestro —

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metido. Até aí tudo bem. Mas logo descobrimos que tam bém era bastante afetadinho e nervosinho, afeminado, cheio dos movimentos redondinhos. E para criar intimidade e ami zade com a classe pediu que o chamassem deRobertinho. Acabei de lembrar- me do nome dele enquanto eu revivia o que descrevo a seguir. Tinha rompantes histéricos quando perdia o controle da classe, o que não custava muito. Seus métodos eram para nós, os “garnisés empedernidos”, con forme nos chamam os gaúchos, bastante ridículos e suas reações, idem. Ele deveria estar cheio de ideais porque real mente se esforçou para continuar o que o professor Aricó tinha deixado. Sempre trazia um apitinho para dar o tom para nós cantarmos. Uma vez, a classe combinou trazer api tos de futebol. Naquele memorável dia, a classe estava bem- comportada, e com isso o professor se animou e com bastante en tusiasmo subiu na cadeira, bateu palminhas para nos chamar mais a atenção, pediu silêncio, para nós que já estávamos silenciosos desde o começo da aula, para que ouvíssemos bem o tom do seu apitinho. Preparamos os nossos ouvidos enquanto ele enchia o peito de ar e fazia biquinho para assoprar o apitinho. Ele apitou solene e melodiosamente, e a classe em silêncio, mas já com alguns risinhos aqui e acolá. Será que ele não percebera que era muito estranho esse si lêncio tão cooperativo, numa mudança drástica, quase dra mática, em relação à última aula? Enfim... Após o seu apitar, ainda em pé em cima da cadeira, ele virou o rosto para o lado, pôs a mão, formando uma concha, ao ouvido para escutar melhor e semicerrou os olhos à espera do nosso mavioso e suave entoar. Como verdadeiros arqueiros que estavam de atalaia, assoprando com a maior violência, na rapidez de um raio, todos atiraram selvagemente os agudos, irritantes e ensurdecedores sons dos seus truculentos apitos, contra os sensíveis tímpanos do delicado professor. Ele qua se caiu da cadeira, tamanho foi o impacto. Mas acabou não —

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resistindo e teve uma crise de choro. Isso alimentou os núcleos sádicos dos mais terríveis bárbaros da classe, que avançaram sobre ele, apitando com fúria, enquanto ele se defendia, sentado no chão, quase embaixo da mesa, tapan do os ouvidos com as duas mãos, gritando histericamente: “Parem, parem...” Deu tanta pena ver o professor reduzido àquela miséria que resolvemos intervir, bancando a turma do “deixa disso”, separando os vitoriosos e barulhentos fanfar rões da vítima quase nocauteada, encolhida num canto, debulhando- se em soluços e lágrimas... Robertinho virou nossa vítima preferida e logo da esco la toda. Até que um dia aconteceu o já esperado. Ao chegar a nossa classe, ele viu em cima de sua cadeira um montinho de cocô, papel higiênico usado e um cheiro terrível de intes tino podre. Ele literalmente desmaiou e teve que ser tirado da classe e carregado para a sala dos professores. Lá estava o diretor, que rapidamente atendeu o professor e veio até a classe verificar a situação. Nem tinha dado tempo de os co legas tirarem o cocô de plástico, desses que se vendem em feiras livres, recolherem o papel higiênico amassado e apa garem o barbantinho “peido-de- velha”. Para nossa glória a classe toda foi suspensa e para nosso gáudio o professor Robertinho nunca mais apareceu no colégio. Será que algum dos nossos colegas conseguiu esquecer o professor Robertinho? Inesquecível mesmo foi o professor Nélio Lorenzon, de Português. Sua marca registrada foram os campeonatos ver bais. Era exigente, conhecia a matéria, tinha muito humor, escrevia tiras de humor político num jornal de grande circu lação da época e era bastante engraçado, com muita didáti ca, sabia despertar nosso interesse numa matéria tão chata quanto Português. Antes dele eu não gostava de estudar Por tuguês porque achava muito chato ter que decorar tantas regrinhas, e os professores me massacravam nas provas com —

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as exceções. Foi com ele que aprendi que Português é uma língua viva, que se usa no cotidiano, e principalmente que falar e escrever bem é um saudável prazer. Os campeonatos verbais estimulavam os espíritos com petitivos do saber e não da força física bruta, as participa ções sob forma de torcidas e pareciam uma verdadeira olimpíada. Não importava a série, todos os alunos tinham o direito de participar do campeonato, e bastava um erro para ser eliminado. O mecanismo do campeonato era muito sim ples. Cada aluno fazia uma pergunta ao colega- adversário, e este teria que responder corretamente para não ser elimina do. Depois era a vez de o colega retribuir- lhe com outra pergunta. O perguntador deveria saber a resposta, caso contrário também seria eliminado. As perguntas mais difí ceis, sem dúvida, eram sobre os verbos irregulares. Um exemplo de pergunta: “Conjugue o verbo pôr na segunda pessoa do plural, no imperativo”. Se o inquirido respondes se “ponhais vós” no lugar de “ponde vós”, imediatamente o o lápisLogo na mesa e dizia “batatais”, eprofessor pronto, oNélio alunobatia era com eliminado. se classificava o cam peão da classe, que iria competir para se tornar o campeão da série. Já se formavam torcidas, e se o verbo fosse “assoprado” o competidor beneficiado seria desclassificado. Por tanto, era uma torcida muda para explodir quando se acertava a resposta. Assim se consagrava o campeão de conjugação verbal do colégio, com direito a medalha e honrarias. É preciso dizer que nas finais do campeonato o colé gio simplesmente parava? Com isso tudo, gostei muito dele e de estudar Portu guês e cada vez que não me lembro de uma conjugação verbal me vem à mente o professor Nélio batendo com o lápis na mesa, com aquela cara engraçada, me dizendo: “Batatais!” Ainda sinto saudades dele. A professora Maria José era tão feia quanto exótica, mas ensinava uma Geografia de não se esquecer nunca mais. —

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zia mapas, recortes e fotografias de revistas e jornais sobre o tema da aula, despertando nos alunos um grande interesse pelo tipo de vida do local em questão. Sem dúvida, nossas cabeças viajavam por onde estudávamos, num turismo ima ginário, em que cada um via conforme sua imaginação per mitia. Hoje tenho por hábito, antes de viajar, dar uma lidinha rápida para me informar sobre onde estou indo. Assim, mi nha viagem começa bem antes de eu embarcar. Para mim era um prazer assistir à aula de Latim. Por causa da professora, até estudar Latim passou a ser gostoso. A professoraTereza estava sempre bem-arrumadinha, pen teada, suavemente maquiada, roupas justas que ressaltavam o seu corpo e salto alto, que lhe dava postura e andar superelegantes. Como se isso não bastasse, ainda era bem- humo rada, alegre e sempre disposta a nos responder com muita sabedoria sobre qualquer questão. Era tamanha a sua anima ção que, apesar da sua exigência e das constantes chamadas orais, não perdíamos uma aula. Era tão simpática que nem reparávamos que ela não era tão bonita assim. Quando al guém tem dúvida ao escreverquis, quisera, quisesse, se é com s ou z, sempre lembro e transmito o que a professora Tereza dizia: “Tudo vem do passado do verbo quaerere (que rer em latim), queé quaesivi, portanto como o radical latino é escrito com s tudo do verbo querer é escrito com s”. Desde pequeno, eu tinha certa preferência por ser mé dico. Lembro- me de um velho japonês, médico, que ocasio Imamura. nalmente atendia em em Tapiraí, alguém ficava doente casa, doutor lá vinha ele nosQuando examinar. Lembro- me perfeitamente de vê-lo tirar seus óculos de aro fino, encostar sua orelha nas costas despidas, fechar os olhos e ouvir as misteriosas mensagens que o corpo emitia sobre a doença, e sabíamos da gravidade da doença pela sua expressão facial, antes mesmo de dizer alguma coisa. Todos —

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ficavam num expectante e respeitoso silêncio para ouvir a sua palavra final. O doutor Imamura parecia um deus que vinha trazer a salvação ou o consolo para uma dor irreversí vel. Tinha um ar compenetrado, bastante sério, pouco sor ria apesar de ser gentil. Enquanto escrevo estas linhas, me vem a lembrança dele me fitando nos olhos, gesto que eu retribuía com admiração e gratidão, como querendo me di zer alguma coisa, mas nada falava e afagava minha cabeça e ia embora. O que tanto me olhava? Será que ele adivinhou que eu pensava em ser médico como ele? Mas, enquanto minha admiração pelo médico ia crescendo, também crescia dentro de mim o espírito de aventura. Meu pai viajava de caminhão para São Paulo transportando carvão vegetal de Tapiraí e voltava trazendo suprimentos para o mercadinho, que mais tarde se transfor mou em armazém de secos e molhados. Vendia-se de tudo: pinga, sapatos, arroz, carne- seca, enlatados, tecidos, avia mentos, pães, frios etc. Meu pai era meu ídolo aventureiro, viajante, que dominava o caminhão e as estradas. Parecia que conhecia o mundo, e poucas mas marcantes vezes levou- me no caminhão. O que para ele era trabalho, para mim era a maior aventura. Ele me ensinava os segredos do caminhão, contava de peripécias e negócios nas estradas da vida. Esperava ele voltar para me contar as novidades da estrada Tapiraí—São Paulo, que já conhecia quase de cor, antes mesmo de viajar por ela. Realmente meu maior sonho era ser motorista de caminhão. Já no colegial do mesmo “Fernão Dias Pais”, mais im portante que as aulas eram as férias que eu passava em Ta piraí, onde meus tios e primos ficaram e continuaram com o armazém e os caminhões. Meu desejo de ser médico foi aumentando devido à carência desse atendimento em Tapi raí, mas não queria perder o espírito de aventura, enfrentan do desafios pelo mundo afora. Foi lentamente se formando dentro mim a idéia de ser um médico ambulante. Isto é, —

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atenderia os doentes dentro de uma Kombi, num consultó rio ambulante, por vilas e lugarejos em que não houvesse médico. Juntaria assim o atendimento a carentes e manteria o espírito de aventura e desafio. Pouco me lembro dos professores do colegial, pois meu interesse maior estava nas meninas e eu queria mesmo era estudar poder Pinheiros, que parabastante mim, napara minha totalentrar falta na de Medicina conhecimento de ou tras faculdades, era a única que me faria médico como eu gostaria. Um irmão do meu pai e uma prima já tinham entra do na Pinheiros (Faculdade de Medicina da USP), portanto não tinha por que eu também não entrar lá. Talvez eu já fosse um neurótico grave ou mesmo um psicótico e não sou besse, pois a todos eu dizia com muita segurança que eu queria a Pinheiros. Mal sabia eu da concorrência que teria de enfrentar. Tantas vezes, já no cursinho Brigadeiro, me arre pendi de ter dito isso a todos os que me perguntavam. Quan to mais eu estudava, mais tinha conhecimento do quanto teria que estudar mais. As provas me deixavam nervoso por que via que não ia tão bem quanto sabia, esperava e queria. Em comparação ao colegial, os professores do cursi nho eram bem mais dinâmicos e interessantes. Também o espírito dos alunos de cursinho era (e ainda hoje é) diferente do aluno do colegial, principalmente pelo estilo competitivo do vestibular, não mais simplesmente aprovativo. Na reali dade, pouco me lembro dos professores do cursinho, como dos do colégio. Estava eu mais interessado em estudar do que em reparar nos professores. O resultado do vestibular não poderia ter sido pior para mim: fui excedente na Pinheiros. Faltou muito pouco para eu entrar. Se algumas pessoas desistissem, estaria eu lá den tro. Confesso que cheguei a torcer para que alguns deles sofressem acidentes fatais, pois jamais me aceitaria com meus instintos assassinos... Nem me interessei pelo quarto —

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lugar que consegui na Medicina de Sorocaba. Se tivesse uma reprovação consagrada, sem dúvida iria para Sorocaba. Mas esse pouquinho que faltou me deu raiva e garra para enfren tar mais um ano de cursinho. Nesse período, de qualquer professor, ou mesmo de co lega, eu aprendia com muita voracidade. Foi o ano em que mais estudei na minha vida. Acabei com minha vida social e familiar. Só seria continuei dando enquanto aulas de descansava judô porqueminha achei ca que um esporte necessário beça. O sacrifício desta vez valeu a pena: tornei- me um “Por co” (como eram chamados todos os que entravam na Pinheiros pelos acadêmicos de outras faculdades de Medicina). A melhor fase da minha vida estudantil foi a da faculda de. Minha vida pessoal sofreu uma expansão tão grande, em todos os sentidos, que não havia espaço para ficar reparan do nos professores. O que considero importante assinalar é que os professores donos das cátedras, por isso mesmo cha mados de catedráticos, eram tão distantes, e suas aulas inau gurais tão sem sentido prático, que para nós, alunos, eles não tinham o menor significado. Bons mesmo eram os mo nitores, assistentes, preceptores que tinham maior contato pessoal, em pequenos grupos. Era na aula prática, no con tato com o paciente, que o professor transmitia seus conhe cimentos médicos, inclusive a sua maneira de se relacionar com o paciente, seja no questionário de sua doença, seja no exame físico. Tanto que eu aprendia muito mais nas aulas práticas com os pacientes do que nas aulas teóricas. Não tive grandes mesmo que os professores faziam bemídolos, as suaspois funções nãoachando me identificava integralmente com eles. Ficava faltando uma parte impor tante da vida do paciente: a psicológica. Inesquecível mesmo foi um episódio que aconteceu com o professor Clóvis Martins, livre- docente da Psiquia —

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tria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Era aula de Psiquiatria, como tínhamos sempre, às catorze horas. Era hábito da nossa turma descer, na hora do almoço, para a Atlética e praticar aquele esporte com o vi gor de adulto jovem para depois almoçar e em seguida ir ao anfiteatro assistir àquelas hipnóticas aulas. O anfiteatro tinha a forma de uma concha acústica, e para cada dois degraus havia uma fileira de bancos individua lizados por apoio de braços, mas de espaldar único e alto. No começo da aula os professores viam os alunos sentados, mas à medida que a aula prosseguia o sono pós- prandial atacava inexoravelmente os estudantes. As pálpebras pesavam tanto que obrigavam o corpo a deitar horizontalmente, protegido das vistas do professor pelo espaldar alto. Éramos ferrenhos adeptos da siesta. Depois de pouco tempo os professores viam somente alguns sonolentos gatos- pingados acordados na calorenta e abafada tarde de verão, pois o restante já ron cava por causa do coma sonífero em que entrava. Não importava qual o professor a dar aula, o sono real mente era um vício incorrigível. Quando todo o meu físico, psíquico e espiritual já estava recebendo Morfeu, ouço ao longe o professor Clóvis Martins dizer: “Vamos fazer a pro va!” Esta palavra,prova, bateu como um martelo no meu cérebro e despertou todos os meus neurônios.Prova? Como assim, prova?, pensei eu. Isto é, achei que pensei. Porque na realidade a surpresa foi tão grande que em vez de pensar eu tonitruei lá de cima, da última fileira, de pé sobre a mi nha “cama”, contra o professor Clóvis. J á conhecíamos o seu espírito perverso e vulpino pelas bazófias que nos con tava sentado no seu Mustang, ou Mercedes esporte, estacio nado bem na entrada principal da Psiquiatria. Mas naquele dia ele estava falando muito sério e seguro da prova que ia dar. Fui o único que reagiu violentamente. Então o profes sor me fitou e disse até com certa ironia, porém firme, cal ma e claramente: —

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— Como eu havia dito na aula passada, hoje faremos prova! Isso era demais para mim. Acima de tudo ele estava mentindo. Ainda dentro dos resquícios de racionalidade ponderei e achei melhor não afirmar que ele estava mentin do. Retruquei no meu controlado furor juvenil: — Não! O senhor não vai fazer a prova porque não nos avisou na aula fui logoesentando para encerrar a conversa. Maspassada! ele não — teveE dúvidas respondeu: — Você não presta atenção na aula e depois vem me dizer que eu não avisei? Quem é você para me desautorizar assim? — E continuou me fitando provocadoramente. O quê? Nem me viu dormindo e diz que não prestei atenção na aula passada? Está ele pensando que eu sou trouxa? Tudo isso eu pensei porque agora a classe toda olhava para trás, isto é, para mim. Agora não podia mais “afinar” (desistir sem justa causa). Tinha que salvar a honra. Resolvi “peitar” (enfrentar): — Isso mesmo! Você não pode fazer essa injustiça! Só porque está aí como professor acha que pode fazer de nós o que quiser? Não pode, não! — E a classe me apoiava e me encorajava a dizer mais e mais. Foi quando ele resolveu partir para o campo pessoal: — E quem é você para falar assim comigo? — Ralhou e apontou o dedo em riste para mim e ordenou: — Venha cá, desça até aqui e me enfrente como homem! Nem pensei direito, desci lá de cima muito bravo, cons ciente de que prova ele realmente não teria que dar, e tinha toda a classe comigo. Senti quase como a classe me empur rando para baixo para enfrentá- lo. Quando cheguei lá em baixo, ele subiu no estrado e ficou mais alto do que eu e realmente partiu para o campo pessoal: — Só porque você deu aulas de judô aqui no hospital pensa que é muita coisa? Você não passa de um reles e ago —

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o que provoca numa pessoa uma carga de adrenalina exces siva. Relembro essa situação com muita freqüência e sem pre acabamos em gostosas risadas. Se a relembro tanto porque também o professor Clóvis Martins me é inesquecí vel pela peça que me pregou. Apesar de flertar e mesmo namorar algumas especiali dades com do nenhuma realmente me casei. AtéPaulo que assisti médicas, a uma aula professor convidado doutor Gaudêncio. Era sobre sexualidade humana. O que ele falara e fazia era o que eu queria fazer de fato. Prescindindo dos termos científicos e médicos, usando termos populares, com liberdade de expressão e grande poder de comunicação, foi singelamente transmitindo seus conhecimentos. O que im portava era que nós entendêssemos o que ele tinha para transmitir. Realmente era isso que eu queria. Integrar a Me dicina que eu estudei tanto com a Psicologia para que os doentes tivessem mais poder sobre suas próprias vidas. Busquei a Psiquiatria, e depois o Psicodrama, como formação psicoterápica. Comecei a perseguir o meu mes tre, o Gaudêncio. Nessa ocasião, estudando o romeno na turalizado americano Jacob Levy Moreno, criador do Psicodrama, aprendi o que é a Sociatria: tratamento da so ciedade e não só do doente como um ser separado da sua família, dos seus amigos e da sociedade. Nessa mesma épo ca, Gaudêncio fazia um programa na TV Cultura chamado Jovem Urgente,de grande audiência, ao mesmo tempo que eu estava lendo a Sociatria de Moreno. Ali estava o meu futuro caminho: trabalhar com jovens numa leitura também social e quando possível divulgar minhas idéias para o social, utilizando o meio de comunicação que estivesse ao meu al cance: televisão, rádio, jornais, palestras etc. No Brasil, todos os que estudam Psicodrama têm como seu manual o livroPsicodrama da Loucura,do psiquiatra e —

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psicodramatistaJosé de Souza Fonseca Filho. Ser seu ami go é o maior orgulho que eu tenho. Com seriedade científi ca, boa formação médica, eficiência profissional e charme pessoal, Fonseca foi conquistando, sem jamais deixar de aju dar as pessoas, um lugar ao sol no cenário internacional. Apesar de eu ter escolhido o ramo da adolescência para o atendimento, minha referência viva psicodramática é o Fon seca, meu guru. Também o persigo a distância, para não in comodá- lo com tanta prox imidade, e acompanho seus passos à minha maneira. O que ele fez e faz em relação ao psicodrama é o que eu fiz e faço em relação à adolescência. Hoje o melhor caminho de prevenção dos sofrimentos, dos conflitos e das doenças é a educação escolar e a sociatria. Aquele meu sonho juvenil, do médico da Kombi, ficou inviável pelo tipo de vida e de medicina a que a faculdade me orientou. Seria quase impossível, e quando possível talvez de pouca efi ciência, o atendimento feito por um médico ambulante, sem exames complementares de laboratório, sem dar retornos nem seguimentos às suas esporádicas consultas. Entretanto, com o trabalho de palestras em escolas, lidando com os mul tiplicadores da educação (pais e professores), vi despertada dentro de mim a idéia de atender populações carentes especí ficas. Coloquei o “médico da Kombi” em ação, porém com adequações à minha realidade atual. Viajo constantemente de avião, carro, ônibus (e não de Kombi). No lugar daquelas “consultas médicas”, dou palestras para não só despertar o interesse dos multiplicadores para os aspectos psicopedagógicos da educação familiar e escolar mas também levar-lhes os conhecimentos adquiridos em minha experiência clínica como psiquiatra e psicoterapeuta de jovens e suas famílias. Existe na formação do professor uma carência de co nhecimentos de psicologia básica dos relacionamentos hu manos com suas intercomunicações e noções básicas das etapas do desenvolvimento da adolescência e suas psicodi—

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nâmicas sociofamiliares. Meus objetivos com as palestras são despertar seu interesse e motivá-lo a se aprofundar nos temas abordados através das leituras dos meus livros perti nentes ao assunto. O que é falado nas palestras é para ser ouvido, mas o verdadeiro conhecimento se adquire na leitu ra, pois o que está escrito pode ser lido, relido, destacado, ignorado, discutido entre os colegas etc. Faço questão de não utilizar o “psicologuês”, falar sem os termos técnicos da minha especialidade para que todos possam entender o que eu tenho a lhes transmitir. Assim, sou um viajante que leva seus conhecimentos aos educadores e seus multiplicadores mais distantes e ca rentes para aumentar seus instrumentos de trabalho e ter mos uma sociedade ética, digna e melhor. Com os livros do mestre do psicodrama, Jacob L. Moreno, aprendi muito, e com os psicodramatistas, seus multiplicadores, professores José de Souza Fonseca Filho, Jayme Rojas Bermudez, Dalmiro Bustos e tantos outros, continuei aprendendo. Tudo o que aprendi ponho em prática em cada uma das minhas atividades, pois o aprendizado faz parte da minha vida. Quando minha filha Luciana estava na quinta série, du rante um jantar em casa, eu contava animadamente um epi sódio tendo como platéia os meus filhos e seus amigos. Todos acompanhavam o meu relato atenta, barulhenta e alegremente. Todos menos Luciana, que estava prestando uma atenção tremenda na maneira como eu falava. Luciana corrigia meus erros de português, como concordância gra matical, número comque muita energia, dizendo: gênero, “Oô, pai! Não etc., é assim se precisão fala!” E econtinuava seguidamente a me corrigir. Comecei a relatar exagerando nos r e s, dizendo todas as sílabas, falando quase em letra de fôrma. Logo em seguida ela retrucou: “Pai, é melhor você continuar falando como antes porque não dá para ouvir você falando como o Tarcísio Meira!” —

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Sem dúvida esse episódio me interessou bastante e procurei descobrir como Luciana aprendera um português tão correto. Então ela me explicou que estava tendo aula de Português com a professora Onélia, que uma vez por sema na levava um saquinho de balas. O aluno que percebesse algum erro de português que ela, professora, ou alguém co metesse ganharia, no ato, uma tão cobiçada bala. Relato episódio porqueuma efeito professora coneu seguiu, com esse muita criatividade, cujo Onélia resultado senti na minha própria pele, dentro do meu lar. Se para Luciana a professora Onélia foi importante, para mim ela se tornou pitoresca e inesquecível por tabela. Através dos meus filhos, odiei alguns professores, da maioria nem tomei conhe cimento e já fiz referência à professora Onélia e a seus mé todos em inúmeras palestras a educadores. Quando pelos multiplicadores (Luciana) chegamos ao original professor (professora Onélia), constatamos seu real valor. Aceitei escrever este capítulo, pois gosto muito da Fanny Abramovich e do seu trabalho e pela importância deste tema para os educadores em geral. Querendo ou não, todos nós somos educadores, ativos ou passivos, bons ou maus, para o bem ou para o mal. Quanto maior for a nossa importância e evidência social, mais pessoas não só nos olham e em nós reparam como também nos tomam, ou não, como modelos a ser seguidos. Todo o cuidado é pouco. Muito mais que termos cuidado é sermos cuidadosos. Faz parte dos meus princípios deixar o mundo, o local, as pessoas um apouco melhores quea qualidade quando cheguei. Quanto melhor educação, melhordoserá de vida. Daí a fundamental importância dos educadores, principal mente dos professores em classe. A cada momento o pro fessor está transmitindo conhecimento aos alunos. Este chega como informação que os alunos transformam, ou não, em conhecimento.Nem sempre o professor ensinar —

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significa o aluno aprender.É preciso algo mais do que sim plesmente ensinar. Para quem quer aprender, qualquer in formação logo é transformada em conhecimento. É para os alunos que não estão tão interessados em aprender que se faz notar a importância do professor. Aqui vai um recado também aos pais, que são os prin cipais educadores familiares: os filhos pequenos gostam de ação, de fazer, de ajudar quando reconhecidos. Quanto cedo eles começarem a fazer o que pode ser feito por mais eles, mais capazes e responsáveis serão pelos seus atos. Por me nos que custe aos pais fazer algo para os filhos, é preferível que estes, filhos, façam. Caso não consigam, é bom que os pais sejam orientadores ou ajudantes dessa “pescaria”, como o valioso dito popular: “Mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe a quem tem fome”. As vezes custa menos, naquele exato momento, dar o peixe do que ensinar a pes car. Ensinar dá trabalho porque exige tempo, paciência e conhecimento. Ensinar é um gesto de amor. Fazendo também se aprende. O fazer produz a expe riência. A experiência ensina a quem quer aprender. A ex periência propicia descobertas e invenções, próprias da maior capacidade do ser humano: a criatividade. Quanto maiores e melhores forem o conhecimento (prático ou teórico), a inteli gência e a espontaneidade, maior será a capacidade criativa do ser humano. Portanto, a experiência e a ação elaborada e produtiva são também grandes mestras da vida. Querer aprender é fundamental para o crescimento, o amadureci mento e a felicidade.Aprender é um gesto de humildade. Desejos, fantasias e sonhos superiorida de humana sobre os outros seresfazem vivos.parte Aquidaentra o desejo de ter a vida realizada, o da imortalidade de nossas obras, principalmente o de nos tornar inesquecíveis, pois somos os relacionamentos que temos. Numa singular comparação, o professor, como conhecimento, é um livro vivo, porém suas funções são nobres, importantes e humanitárias, apesar de —

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pessimamente remuneradas e pouco reconhecidas pelos alunos. Sobre a má remuneração não há o que discutir, mas o reconhecimento dos alunos, isso sim dá “panos para man ga”. O fato de se tornar inesquecível demonstra o reconhe cimento, o agradecimento e a imortalidade nos corações dos seus alunos.

Içami Tlba é psicoterapeuta psicodrama-

tista pela Sociedade de Psicodrama de São Paulo. Graduação: professor, supervisor de Psi codrama de Adolescentes pela Federação Brasileira de Psicodrama. É autor de oito livros: Sexo e Adolescên cia, Puberdade e Adolescência, Saiba Mais Sobre Maconha e Jovens, 123 Res postas Sobre Drogas, Adolescência— O Despertar do Sexo, Seja Feliz, Meu Fi lho!, Abaixo aIrritação!, Disciplina— O Limite na Medida Certa.



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O MISTÉRIO ATRÁS DAS PORTAS DO LABORATÓRIO

Ignácio de Loyola Brandão

menino sabe ao menos a fórmula da água?

— Sei. — Se souber, dou 3 pontos. -

h

2o .

— E da água oxigenada? — Oxigenada? Essa não tenho idéia. — H20 0 , sendo o segundo O do oxigenada. Fiquei olhando com a certeza de que o professor me gozava. Não havia, entre todos, nenhum mais impiedoso do que ele. Tirava o pêlo friamente. — O menino tem estudado? — Muito. — Mas não sabe nada! Me dê o símbolo do cobre. — Fácil! Cu. — Acertou nas letras, errou na maneira de falar. Deve ria ter dito letra a letra, separando bem: C e U. E não da forma como pronunciou, dando a entender que é outra coi sa. Essa coisa é redonda, igual ao zero que posso te dar.



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torneiras. Quanto ao laboratório, jamais entrávamos ali, sabe-se lá qual a razão. Inacessível. Era comum, duas vezes por semana, o professor entrar na aula, mandar que abrís semos o livro, lêssemos um capítulo e anotássemos porque em seguida ele escolheria alguns para uma chamada oral. Feito isso, desaparecia dentro do laboratório com a loi ra assistente. Que assistente era essa, jamais soubemos. Será que era a encarregada de manipular os produtos que gera vam efeitos tão incríveis quando misturados nos tubos de ensaio? Ou sua função era preparar as questões das provas? O que faziam o professor e a assistente encerrados no labo ratório? Essa a questão que permaneceu secreta por cinco anos. Cinco porque, como fui reprovado duas vezes, no se gundo e no terceiro científico, fiz em cinco o curso de três. Muitas vezes nos aproximamos da porta, tentando olhar pela fechadura. Não havia buraco, chave, nada, era uma porta que se fechava por dentro com uma tranca. Saía mos para o pátio, tentando olhar pelo vitrô, mas o Macha dinho, vendo a nossa sombra — os dias na cidade eram tremendamente claros —, saía e nos passava uma descom postura, além de ameaçar com um zero. O zero era o terror. Porque baixava a média tremendamente e, se não obtivésse mos ao menos o 5 no total geral, ficava para o próximo ano. Olhem que havia matérias dificílimas como Matemáti ca, Física, Química, Desenho Geométrico, Geografia Geral e Filosofia. Misturávamos montanhas e Platão, penínsulas e sofismas, dodecaedros e teorema de Pitágoras. Mas e a loira? O que fazia fechada com o professor? Morríamos de cócegas. Tinha de haver um jeito de descobrir o mistério. Quantas vezes não segui a loira até a casa dela para tentar saber como vivia, como era a família, se tinha pai — como nós —, mãe — como nós —, um marido, filho. Saber se ela era normal. Porque era uma bela loira, de lá bios vermelhos, carnudos, pareciam maçã da mercearia, daquelas que o pai da gente comprava quando estávamos —

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doentes. Maçã e guaraná só quando vinha a doença. E tinha de ser doença brava, com febre. Fosse outra, a mãe enfiava a gente embaixo da coberta, dava um suadouro, mandava tomar o detestável chá de alho com limão. E pronto! Era preciso levantar-se da cama na manhã seguinte, principalmente se fosse domingo, dia de missa. Quanta coisa crianças e jovens tinham de cumprir! Os adultos mandavam, e mandavam mesmo, adoravam mandar, filho era escravo. O curioso na história do professor e da loira encerra dos no laboratório é que não se comentava fora do colégio. Em casa ninguém falava nada. Nem mesmo entre nós se indagava: “O que fazem ali?” Cada um fazia a pose de que sabia, mas não confirmava. E no fundo gostávamos daquele suspense, do enigma, era uma coisa diferente num mundo regido por normas estreitas de professores mandando e alu nos obedecendo, alunos estudando e professores mandando estudar, ameaçando com zero. Certo dia, Machadinho aproximou- se de minha carteira. — O menino entrou para o científico por quê? Olhei suas notas de Matemática e Física. Você é uma nulidade. Pretende ser engenheiro, arquiteto, médico? — Nada disso. Nem sei o que pretendo ser. — Mas vejo que o menino escreve em jornal. Escreve direito, faz umas críticas de cinema. — Faço. Talvez eu queira ser diretor de cinema. — E por que não se matriculou no clássico? — Como é mais fácil, não tinha mais vaga e eu não podia parar de estudar. — Não pensa escrever livros? Leva jeito. — Levo? Pode ser, pode ser, gosto de inventar. — Então, vamos fazer um acordo? De hoje em diante, o menino senta na última carteira. Fica lendo, escrevendo, fazendo o que quiser. Só não bagunce. No dia das provas, —

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exame dos outros. O ritual era invariável. Sorteava-se o ponto retirando- o de uma garrafinha de bambu. A cada ponto correspondia uma matéria. Apanhei a garrafa com tranqüilidade. Não sabia nada, para que me angustiar? Ma chadinho olhou o meu número, deu um sorriso sarcástico, despachou-me para um quadro- negro bem em frente a uma classe só de mulheres. Ali estavam as meninas mais bonitas de todas uma as turmas. me ditou o problema. T inha que resolver equaçãoEle complicadérrima. Fiquei perplexo por instantes. E a ajuda? Machadinho se afastou, dizendo: “Quando o menino resolver, vá para a mesa terminar o exa me”. Olhei para trás. Todas as meninas me olhavam. Per tencendo a uma classe ainda não tão adiantada, observavam abismadas o que eu iria fazer com aquela fórmula, para mim mais impenetrável do que para elas. Simplesmente contem plava os números e as letras, desviava o olhar para as meni nas. Podia acontecer de tudo, menos fazer um papelão, sofrer um vexame. Resolveria a equação. Tinha decidido que resolveria. Comecei os meus cálculos. Fui acrescentan do números, letras, raízes quadradas, X sobre Y, descobri até um pi, e fui enchendo o quadro- negro com uma bara funda das mais incompreensíveis. Cada vez que olhava para as meninas, percebia o olhar de espanto. Somente um gê nio poderia saber tais coisas. Elas me olhavam sôfregas. Em todos os meus anos de científico, aquele era o da minha consagração. Seria visto, dali para a frente, como um gênio. Súbito, dei por terminada a operação, atirei o giz com des prezo e altivez para a caixinha e, triunfante, passei pela fren te das alunas, em direção à mesa. — O menino merece 10. Fiquei abismado. Teria acertado? — 10. Fiz direito. Não fiz? O senhor não confiava em mim! — Aquilo que você fez é a maior vigarice do mundo. — Vigarice? E vai me dar 10? —

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— Pelo talento. O menino devia ser ator de cinema. Não existe ali um único dado que não seja de uma insanida de a toda prova. Mas percebi, ah se percebi. Não podia fa zer feio diante de moças tão bonitas. Elas adoraram, pode ter certeza. Hoje você foi o herói delas. Este dia vai ficar na memória de cada uma. Mesmo que você não seja nada, um dia, será lembrado. Por elas e por mim. Vou dar uma boa nota pela criatividade, audácia, inventividade. E pelos recur sos rápidos. Só te aconselho a não fazer pela vida afora o que fez hoje. Acho que nunca mais repeti a façanha falsificadora do quadro- negro e da fórmula química. Só sei que, outro dia, voltei à cidade e encontrei Machadinho. Deve estar com 90 anos. Ou mais. Ainda tem o mesmo ar que me deixa intrigado. — Tenho acompanhado o menino. Vai bem. Escreve li vros. Li alguns. Tem emoção. Isso você não esqueceu — a emoção. Como eu não esqueci aquele exame no salão nobre. Conversamos por algumas horas, diante de cálices de vinho do Porto. Então me levantei, queria me despedir e queria perguntar. Fiquei indeciso. — Tem uma coisa que eu queria saber. — Pergunte. — Não sei se devo. Uma curiosidade que me acompa nhou pela vida. — Vá lá! Diga. Pergunte o que quiser! — Quero saber, professor, passados quarenta anos, o que o senhor fazia com a loira assistente, os dois encerrados no laboratório. E ele, sorrindo, como se de repente todo aquele tempo tivesse retornado e nos envolvido. — Nada, nada mesmo. Apenas ficava provocando vo cês. Eu e ela.



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Tremendo gozador, sabia que éramos uns provincianos mexeriqueiros e curiosos. Ficavam ali os dois a bater papo, ler jornais, a fumar e a conversar, sabendo que na sala havia expectativas e pensamentos os mais desencontrados, esca brosos, malucos. Os dois sabiam que eram o assunto priva do de cada um. E provocavam. Levei quarenta anos para descobrir que não havia mistério no laboratório.

tem 60 anos, é escritor e jornalista, autor de vinte livros, entre contos, romances e viagens. Autor, entre outros, de Zero, Cadeiras Proibi das, O Verde Violentou o Muro, Não Ve rás País Nenhum. O último livro publicado foi Veia Bailar ina. Ignácio de Loy ola Br andão



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Walcyr Carrasco

ai tinha um tremendo sotaque caipira. Às vezes passa va horas no banheiro, trancado, com a língua espetada no céu da boca, fazendo rrrrrmrr... Para, no dia seguinte, na escola, provocar risos cada vez que traiçoeiras palavras com ar, er, ir ou or penetrassem no meu vocabulário. Chegara do interior, há apenas seis meses, com 15 anos. Não posso dizer que vie mos de Marília com uma mão na frente e outra atrás porque usávamos as duas para nos segurar nos ônibus superlotados de São Paulo, na década de 60. Meu pai, ferroviário, e minha mãe, comerciante, haviam visto todo o seu pequeno patrimô nio escorrer em dívidas. Eram tempos difíceis: morávamos de aluguel, e leite, só um litro por dia. Data dessa época minha mania de viver mudando de casa. Pois, nesses anos, chamáva mos o caminhãozinho a cada doze meses, sempre rumo a um aluguel mais baixo. Eu prestei exame para fazer o colegial — na época dividido em clássico e científico — em uma escola que meu irmão ouviu dizer que era boa. Era o Colégio de Aplicação Faculdade Filosofia, Ciênciascreio, e Letras da USP. Eu o da escolhi porquedeera grátis. Também, devido à minha intuição. Não sabia que era experimental nem que se tratava de um dos mais concorridos colégios da cidade. Além do sotaque, eu penava com as discrepâncias so ciais. A maior parte dos meus colegas era bem mais rica do que eu. Para falar a verdade, bastava ser de classe média —

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para estar melhor das pernas. Os jeans ainda não haviam democratizado as aparências, e eu me sentia feio e pobre, com minha única blusa de lã, meus sapatos de pano e as rou pas modestas do interior. Mas tinha os meus orgulhos: havia lido, por exemplo, toda a obra de Alexandre Dumas. Até os dezessete volumes de OVisconde de Bragelone.Para mim, História era uma mistura das aventuras dos Três Mosquetei ros com as do Pimpinela Escarlate. Este último, personagem de uma série de romances um tanto esquecidos ultimamen te, era um herói que, durante a Revolução Francesa, salvava os aristocratas e odiava o dístico “Liberdade, Igualdade, Fra ternidade”. Creio que em pleno século XX não poderia haver personagem mais contra a maré dos tempos. Eu o adorava. Suzana Sampaio chegou no meio do primeiro ano para ensinar História. Eu a odiei inicialmente. A professora ante rior havia exigido a compra de dois livros grossos e caros, só conseguida após dois meses de aula. Subitamente, descobri que eram inúteis e fiquei apavorado por ter que comprar novos volumes enfrentar angústiaque de ela minha mãe. Logo em seguida, parae meu pavor,adescobri pretendia usar vários títulos diferentes. Para safar- me, pesquisava em biblio tecas. A burguesia que freqüentava o colégio não se preocu pava muito com despesas escolares eeu, com outros alunos pobres, tentava me arranjar como podia. A nova professora era dramática, falava alto e, sabiase, era casada com um psicanalista importante. Também pertencia a uma família tradicional. Descobri que todo o meu arsenal de datas e nomes históricos era inútil. Suzana, como dizia, preocupava- se com “processos”. — O que importa não é quem fez o que... Mas o que move a História — explicava. Mas não resistia a contar certas fofocas históricas: ti nha admiração pela rainha Elizabeth I, da Inglaterra. — Era conhecida como a Rainha Virgem... Mas tinha amantes! — revelava para nossos ouvidos deliciados. — Não —

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se casou porque, naquela época, seria o mesmo que abdicar do poder para o marido. Elizabeth era um gênio! Descia fundo nos detalhes: Elizabeth usava dentadura de madeira escura. T inha ciúmes de sua prima, Mary Stuart, da Escócia, a quem mandou decapitar. — Foi um ato político, já que Mary poderia disputar o trono com ela. Eu ficava fascinado pela dentadura escura da rainha e até me conformava em abandonar oPimpinela Escarlate. Além dele, eu tinha paixão por uma espiã sexy chamada Brigite Montfort, agente de inteligência norte- americana encar regada de acabar com espiões russos, cujas aventuras eram vendidas em livrinhos de bolso nas bancas de jornais. Brigite sempre aparecia na capa, seminua, com os seios à mostra. — Não pode haver nada mais reacionário — explicou Suzana, para meu horror. “Reacionário”, “massas”, “ópio do povo” e “mais-valia” foram termos que fui aprendendo pouco a pouco. Eram essenciais no vocabulário. Reacionários eram todos aqueles a favor dos militares e do que se chamava de imperialismo americano. Massas era o termo usado para designar o povo, os oprimidos — gente à qual eu pertencia devido a meu status social. Mas isso não revelava a ninguém, porque meus amigos de esquerda eram ricos e eu tinha vergonha de ser pobre. Uma incongruência. Os outros termos, não cheguei a entender muito bem. Prometi a mim mesmo ler C Oapi tal, de Marx, algum dia. Não fiz isso até agora. Mas hoje pouquíssimos se sentem na obrigação. Como vim a descobrir mais tarde, ela fazia parte do que se convencionou chamar de “esquerda chique”. Herdeira de fazendas de café, instalada com marido e filhas numa man são do Pacaembu, bairro elegante e tradicional de São Pau lo, Suzana tinha ligações com grupos de esquerda radicais. Assim como o marido e outros intelectuais importantes da —

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queles anos. Não era uma professora do tipo carinhoso, dessas que passam a fazer parte de molengosos sonhos edipianos. Agia mais como uma companheira de luta. Como na ocasião em que todos os alunos resolveram fazer greve contra a saída de um diretor. Choviam as greves e os protes tos universitários. Nós, do colégio ligado à faculdade, éra mos apaixonados por gestos radicais. assembléia em frente ao prédio, de ma nhã. Marcamos Durante os uma discursos, começaram os gritos pela tomada do colégio e entramos de roldão. Fui um dos primeiros a correr para dentro, tomando posse de carteiras, salas de aula, quadros-negros. Instalamos seguranças e uma equipe de re sistência. Todos nos dividimos em grupos de estudo, em que ficávamos durante horas debatendo as agruras do capitalismo e posando para os jornais que vinham cobrir o acontecimen to. Passávamos os dias e as noites no colégio, revezando- nos em turnos de vigia. Cheguei a dormir enrolado numa cortina preta, no chão. Era uma delícia. Houve a ameaça de que um grupo de estudantes de extrema direita, o CCC, viria nos tirar a tapa, tiros ou fosse lá o que fosse. Propus, no meu grupo (eu vivia sempre próximo à liderança), que esquentássemos latas de óleo e as jogássemos ferventes das janelas no caso de ataque. Método, é claro, inspirado em Alexandre Dumas. Sabíamos que o importante era não deixar o colégio vazio. Suzana costumava chegar no fim da tarde, com cestas de sanduíches, para alimentar os revoltosos. Não por pena, mas por solidariedade. Até que o Exército nos expulsou aos empurrões e decidimos, em assembléia, voltar às aulas. A partir daí os laços da minha turma com Suzana au mentaram bastante. Além de amenizar os meus erres, eu fora fisgado pelos novos tempos. E claro que minha família já ouvira falar em política. Meu pai, quando jovem, durante o Estado Novo, chegou a ser preso sob a acusação de distri buir panfletos comunistas. Tema nunca devidamente escla recido em casa, pois tanto ele quanto minha mãe morriam —

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de medo de que agora o preso fosse eu. Embora distantes desse torvelinho, percebiam que eu andava aprendendo muito mais do que o exigido no vestibular. Horrorizavam-se : seu maior sonho era ter os filhos com profissões sólidas, con solidadas, com vidas estáveis, como não conseguiram ter. Eu abria mão de tudo isso. Não só eu. O comportamento de muita gente estava mudando. O pai de meu amigo Raul abriu a casa elegante no Jardim Europa para um batalhão de de socupados. Sempre havia alguém diferente morando: músi cos baianos, hippies americanos, uma prostituta de 15 anos. Em vários dias da semana, eu passava na casa de Raul ou de Pedro, outro amigo meu. Voltava em casa para trocar de roupa. O mundo estava mudando depressa, e Suzana nos incitava a fazer parte desse torvelinho. — Fui à Rússia — contou em classe, falando do tema proibido. — Ninguém passa fome. Os livros são vendidos a preços simbólicos. Todos têm a sobrevivência e os direitos básicos garantidos pelo Estado. Os russos, porém, se vestem de maneira muito cafona. Usam camisas pretas com grava tas brancas, por exemplo. E por aí ia, misturando grandes análises sociais com detalhes do dia-a-dia, do jeito de ser. Quando a Rússia inva diu a Tchecoslováquia, meneava a cabeça, magoada. — Eu não consigo entender — confessava, com since ridade. Lembro- me de que no primeiro ano ensinava com entu siasmo. Acreditava, como todos nós, que o governo militar deveria cair logo. Que o povo tomaria o poder. Quem sabe chegaríamos à igualdade? Os tempos foram se tornando mais tempestuosos. Ouvimos falar, pela primeira vez, das ações de comandos guerrilheiros. Boa parte dos meus colegas de classe — inclusive eu — já havia tido algum tipo de contato com a esquerda radical. Eu mesmo participava de um grupo de estu do na casa de Raul em que todos os nomes eram secretos. Nós nos falávamos por pseudônimos, embora nos conhecês —

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semos perfeitamente. Marcávamos encontros nas esquinas e olhávamos em torno para ver se não éramos seguidos. Embo ra o máximo que eu tenha feito tenha sido participar de todas as assembléias universitárias — um importante evento social —, das passeatas, corrido dos cavalos montados pelos mili tares e distribuído panfletos. Também entrei para um grupo de alfabetização de proletários e camponeses. Pode parecer muito, mas foi bem menos do que alguns colegas de escola, que seqüestraram aviões e assaltaram bancos mais tarde. Com os meses, o rosto de Suzana ficou vincado. Ela e outros professores com posições políticas próximas anda vam tensos. Até o dia que eu nunca vou esquecer. O rosto manchado de lágrimas, entrou na sala e bateu a porta. — Morreu um herói nacional — declarou. — Carlos Marighella foi assassinado a tiros pelos militares, aqui em São Paulo, na Alameda Casa Branca. Chorava, e fez um discurso emocionado sobre a vida do guerrilheiro. Sua opção por entrar na clandestinidade para enfrentar o governo militar. A guerrilha, alternativa já experi mentada com sucesso em Cuba. Eu ouvia, coração batendo forte. Descobri, finalmente, que a História acontecia à minha frente, todos os dias. Nos meses seguintes, as pessoas começaram a falar em voz baixa... Certos assuntos eram silenciados quando um desconhecido se aproximava. Surgiram os cartazes com os rostos de guerrilheiros procurados. Falava-se em tortura nos porões do governo militar. Eu sentia uma opressão, como se tudo aquilo fosse um assunto pessoal. Fui, com duas colegas gêmeas, visitar Suzana, que nos emprestou livros para estu dar para o vestibular. Eu e as gêmeas não podíamos pagar cursinho. Tomamos café com bolo. — Vou embora do Brasil no fim do ano — contou. Eu lhe entreguei uma história em quadrinhos, feita por mim, da qual ela era a personagem. Brincava com o fato de ficar entre a rainha Elizabeth e o comunismo. Eu havia cari —

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caturado até um anel de brilhantes que costumava usar. Riu, achou ótimo. — Tenho um convite para dar aulas na Escócia. As gêmeas me olharam. Sabíamos que não se tratava exatamente disso. Exílio, eis a palavra. Era o final do terceiro ano. Suzana lutou junto aos professores para não deixar nin guém repetir. O colégio seria fechado, de qualquer forma, a pedido dos generais. Melhor dizendo: deixou de ser experi mental para entrar na rede estadual. Perdeu os professores de alto nível, os pedagogos avançados. Anos e anos de tra balho jogados no lixo. — Você devia ter repetido, pois foi muito mal em algumas matérias. Eu sei — disse, me espetando o dedo. — Mas falei com os professores. Por que repetir se o colégio vai acabar? Foi um melancólico final de curso, com colegas sendo presos, outros mudando de escola. Fomos a uma choperia nos despedir. Dos professores, só Suzana nos acompa nhou. Tomou o maior pileque de sua vida. Confidenciava, voz mole: — Eu queria ter sido atriz, mas minha mãe não deixou. Em seguida, subiu nas mesas, agrupadas, desfilou can tando e fazendo pose de rainha Elizabeth. Na rua, as pes soas paravam para olhar aquela mulher madura dançando para um bando de adolescentes. Ela abraçava cada um. Lem bro- me de que passou as mãos em meus cabelos: — Eis aqui a sua rainha Elizabeth — riu. Eu e os amigos mais próximos a levamos até em casa num Karman Ghia em cujo espaço, ao invés de duas pes soas, como o previsto pelos fabricantes, foram nove. Car regamos Suzana cantando bêbada até o portão. Ainda me lembro da cara trágica do marido psicanalista quando a levou para dentro. Partiu em duas semanas, pouco antes de o marido ser preso, a casa devassada. Eu entrei na faculdade de História, —

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mas larguei dois anos depois. Soube que Suzana, já na Ingla terra, visitava alguns amigos que foram para lá. Um deles, que nunca mais voltou, começou a se vestir de mulher. — Você está diante de uma decisão importante — aconselhou Suzana, segundo eu soube depois. — Se conti nuar assim, vai ser travesti. E o que você quer? Ele preferiu ser psicólogo. Suzana voltou ao país com a anistia. Mas só nos vimos quando me tornei jornalista e ela me telefonou para comen tar alguma coisa que escrevi e perguntar se eu me lembrava dela! Tornou- se, rapidamente, minha fonte de notícias. Atra vés dela, comecei a saber das histórias da Nova República. Estava, outra vez, enfronhadíssima. Apresentou- me ao go vernador do estado. Mas mudara de profissão. — Prestei vestibular para Direito — revelou. Formou- se, já avó. Eu fui despedido. — Vou largar o jornalismo e viver de leitura de taro — decidi. — Estou farto de ter profissão intelectual. Sempre tive jeito para cartomante. Novamente, Suzana entrou em campo para me ajudar. Eu estava sem dinheiro, e ela me emprestou alguns livros com ilustrações celtas. — Você faz uns painéis, com símbolos esotéricos, para dar credibilidade — aconselhou- me enquanto eu a visitava, agora em um amplo apartamento de Higienópolis. — De pois ajudo a arrumar clientes. Tenho várias amigas que ado ram consultar adivinhos! O marido entrou soube de tudo, abanou a cabeçapsicanalista e saiu. Meu planonadesala, me transformar em cartomante nunca se realizou. Algum tempo depois, recebo um telefonema de convite para uma festa da minha turma de colégio, após vinte anos. Suzana estava lá, foi a única professora convidada. Comen tou, à procura de detalhes sobre o passado: —

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— Sabem, eu achava que vocês transavam demais en tre si. Mas eu e outros professores resolvemos ficar quietos. Os tempos estavam mudando, não havia por que reprimir. — Você estava errada — expliquei. — Foi muito me nos do que pensa. A maioria dos rapazes era virgem, até o segundo ano pelo menos. Depois... Todos nos despedimos com um travo na garganta. Em vinte anos, fica difícil encarar o que poderia ter sido. Belezas arrasadas. Sorrisos que ganharam um travo amargo. Rebel des transformados em respeitáveis cidadãos. Rebeldes que continuam rebeldes e são chatos. Só reencontrei Suzana recentemente. Eu estava no Ae roporto de Congonhas, a caminho do Rio de Janeiro, para dar uma entrevista coletiva sobre uma novela que escrevi. Ouço uma voz me chamando. Lá estava ela, em um vestido de seda, jóias discretas, maquiagem leve, a própria imagem da mulher refinada e tradicional. Acompanhada da diretora de um museu, também elegantíssima. — Estamos indo conseguir verbas para uma exposição, junto a uma estatal — confidenciou. Os intelectuais exilados no final dos 60, como Suzana, chegaram ao governo nos 90. O muro de Berlim desmoro nou, e o grande sonho da esquerda radical ruiu. Percebi que Suzana não se abateu pelos desvarios da História. Transfor mou- se. Não houve guerra, como pensávamos, nem a to mada do governo pelas armas. Mas ela aproximou- se do poder, como ambicionava. Eu me assustei ao vê-la. Cometi uma gafe, como é meu hábito inexorável. — Nossa, é você, Suzana! Pensei que tinha morrido! — Pois estou bem viva — respondeu com ar ofendido. Contou feliz de seus projetos, avisando que eu não po deria perder a exposição.



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— Vai ser muito importante. Vamos trazer um grupo de escultores franceses. Como professores costumam falar pelos cotovelos, fi quei quieto. Admirando sua capacidade de continuar tão cheia de vida. Se eu não a tivesse conhecido, teria saído do mundo provinciano e fechado de onde vim? Na vida, é impossível falar em talvez. Mas, enquanto eu a ouvia na sala de embar que, refleti no quanto foi, e é, importante para mim. O vôo foi chamado. Sorrimos e trocamos telefones. Ela insistiu: — A gente precisa se ver novamente. Qualquer dia desses, eu telefono. Faz tempo que deixei de ser aluno e ela professora. Mas certas relações são como um fio que borda encontros, histórias, acontecimentos e se guem, para não acabar nunca mais.

Walcy r Carr asco sempre gostou de remar em várias canoas diferentes: é jornalista,

cronista (revistaVeja em São Paulo), autor de várias peças teatrais, roteiros de televi são, novelas e livros infanto- juvenis. Em jornal, fez um pouco de tudo: de coluna so cial a reportagem esportiva. Chegou a ser ator, fez um filme como figurinista, dirigiu peças, foi de mochila até os Estados Unidos na década de 70 e atualmente adora viajar de primeira classe. É autor de O terceiro beijo, Uma cama entre nós, Batom, Êxtase (peças); O Guarani, Xica da Silva(TV);Irmão Ne gro, O Garoto da Novela, A Corrente da Vida, Balança Coração(livros infanto-juvenis); OGolpe do Aniversariante(livro de crônicas). —

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T i t y r e , t u pa t u l a e

r e c u ba n s

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TEGMINE FAGI

Jean-Claude Bernardet £ la era alta. Não usava salto e nunca tirava um boné de veludo marrom que lhe cobria em parte cabelos vaga mente acaju. Um dia, pediu que ficasse para conversar com ela de pois da aula. Disse-me que me achava muito solitário, que seria bom eu viver mais enturmado, e aconselhou- me a en trar no coral do colégio. Respondi que não era possível, meu pai tocava piano, minha madrasta era cantora, mas eu só desafinava. Pediu que cantasseFrère Jacques para ela. Can tei, só ela e eu na sala. Depois pediu que cantasse II était un petit navire. Cantei. Ela concluiu que cantava afinado. Saí da sala deslumbrado. Como alguém, ainda mais uma professora, podia tomar conhecimento de minha exis tência, e ainda por cima me fazer elogios? Nunca comentei essa cantoria com meus colegas, que não teriam deixado de fazer troça ao queridinho da professora. Mas não entrei no coral porque eu desafinava. Meus pais, certo dia, pediram a meu irmão e a mim que convidássemos cada um o nosso professor preferido para um almoço domingueiro. Convidei naturalmente a minha primeira professora de Latim. Ela aceitou, e foi sem saltos e com seu boné de veludo. Meus pais tiveram dela uma im pressão favorável, tanto mais que se chamava mademoiselle —

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molselle Déroulède concordavam. Mas eu achava que La tim tinha algo mais. Nunca me tornei bom latinista, mas melhorei muito e no último ano era um aluno bem razoável. Tinha uns 18 anos, já morávamos em São Paulo e estudávamos no liceu francês, o Pasteur da Vila Mariana. Por ocasião da tradução de um texto de não lembro que Cícero, minha última professora de Latim teceu comen tários sobre os senadores romanos, todos eles vestidos de togas. Imaginou que saíam do Senado, desciam majestosa mente as escadarias, todos com suas togas semelhantes, o que os diferenciava era a maneira como as drapeavam. Nes se drapeado é que consistia a sua elegância. Essa informação me fez o efeito de uma revelação. Nunca tinha imaginado que realmente, concretamente, existia uma época em que na vida cotidiana se falava essa língua morta que tão suadamente estudávamos. Nunca tinha imaginado que nessa épo ca de nobres idéias, de guerras, de augustos césares alguém se preocupasse com tão fúteis detalhes. Nunca tinha imagi nado que a moda e a elegância pudessem residir no dra peado de um pano que caía do ombro, quando todo mundo sabia que moda e elegância tinham a ver com altura de sal tos, decotes, chapéus ou saias rodadas. Mais tarde, ler Michel Foucault e outros textos sobre a alteridade na História não passou de simples prolongamento dessa que foi uma das últimas aulas de Latim. Era o algo mais do Latim. Minha última professora de Latim era magérrima, ves tia-se diferente cada dia, sempre com uma elegância re buscada, e cuidava do penteado e da maquiagem. Ela caminhava com passo resoluto e afirmativo, embora leve, e seus saltos ressoavam pelos corredores da escola. Chegava na hora da aula e ia embora logo depois, não se misturava com os outros professores. Dizia-se pelos corredores, sus surrado, que ela estava com câncer, por isso estava tão ma —

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gra, dizia-se que ela ia morrer. Eu não queria que ela morresse, mas achava muito bonito que uma mulher tão elegante fosse morrer. No caixão estaria tão charmosa quanto ao entrar na sala de aula. Ela morreu, acredito que vários anos mais tarde, de câncer, conforme notícia na imprensa. Um dia, ela chegou vestindo uma ampla saia rodada, o tecido aparentava plástico e o vermelho era esplendoroso. Chegamos a ouvir os rumores entre os limites. professores: vez, madame Granger tinha passado dos Masdesta eu sabia que vis comentários não a atingiam. Com sua elegância vistosa e sua morte, madame Gran ger completou minha formação de estudante secundário em Filosofia, enquanto meus professores de Filosofia mal conse guiam me motivar. O segredo da Filosofia era o diálogo ale gre e energético entre lantejoula e morte. Até hoje, a dança das aparências ofuscantes à beira do abismo é para mim fonte de uma energia vital. O Latim foi se esvaindo. Hoje não consigo nem enten der a primeiraBucólica, de Virgílio.MademoiselleDéroulède e madame Granger ficaram. Jean- Claude Bernardet, nascido em 1936 na Bélgica, chegou ao Brasil em 1949. Professor de Roteiro no curso de Cinema e Vídeo da Escola de Comunica ções e Artes da Universidade de São Pau lo. Autor de ensaios sobre cinema brasileiro, de textose Os de Histéricos, ficção (Aquele Rapaz, A Doença em colaboração com Teixeira Coelho) e de roteiros cine matográficos, sempre em colaboração com os diretores (Ocaso dos irmãos Na ves, de Luís Sérgio Person, eUm céu de estrelas, de Tata Amaral). —

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L e m br o - m e d e l e

Lya Luft

devia ter uns 21 anos, e terminara o curso de Pedagogia na universidade. Decidi então fazer Letras, meu velho sonho. Época de prova escrita e oral, essa a mais temi da, com bancas famosas pela severidade, especialmente em Latim e Português. Eu sempre tinha sido aluna medíocre na escola: em princípio não gostava de nada que me obrigasse, a sala me parecia antes uma prisão. Menina ainda, olhava pelas jane las da sala, o céu azul brilhante ou denso de nuvens e chuva, e pensava que seria infinitamente melhor estar em minha casa lendo numa rede no terraço ou aconchegada em cima da minha cama: sempre rodeada de livros. Além do mais, inquieta, perguntadeira e pouco discipli nada, dava dores de cabeça aos melhores professores. — Professor, por que não fala pra gente dos jardins suspensos da Babilônia? — eu perguntava numa aula que me parecia insípida, cheia de datas a decorar. No segundo grau já gostava de aulas: aprendera que, bem orientada, qualquer inteligência, mesmo mediana, podese deslumbrar com a possibilidade de conhecer — e se havia uma coisa que eu desejava desde que me lembro era enten der o mundo. Ainda vivo em parte essa utopia, e para tentar compreender a vida é que invento a minha literatura. —

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Meu inesquecível professor entrou em minha história no dia da prova escrita de Português, vestibular de Letras Anglo- germânicas, uma das divisões de Humanidades na quele tempo: começo da década de 60. Eu, que sempre fui instintivamente pontual e morava a dois quarteirões da faculdade, por alguma razão esquecida naquele dia me atrasei. Disparei pelos corredores, cheguei ofegante de uma porta fechada. tem pos maisdiante humanos, em alta, que escura um minuto de atrasoEram não des montava todo um projeto de vida ou um entusiasmo sincero. Hesitei, por fim tomei coragem e bati: um aluno me abriu a porta e fiquei na soleira, cheia de culpa e constrangimento. A prova não começara. De pé diante de uns quarenta alunos e alunas sentados com aqueles rostos ansiosos de vestibulandos — já naquele tempo era um certo tormento, e não havia cursinhos para nos preparar —, estava um dos mais belos homens que já vi. Moreno, alto, cabeleira ondulada, olhos claros me fitando severos. O único pensamento que me varou, espontâneo, foi: — Meu Deus, esse será o homem da minha vida. E imediatamente meu senso de ridículo fez chacota: — Não seja ridícula, Lya, esse é um homem inalcançável, e ainda por cima a sua frase é o maior clichê de todos os tempos. Ele me fez um sinal de cabeça para que me sentasse, e a única carteira vazia era uma da primeira fila. Vermelha de vergonha, ajeitei tudo embaixo da mesa, recebi folha, peguei lápistambém e caneta,esperava todo mundo aguardan do em asilêncio. O mestre calado que eu me preparasse: mal tive coragem de olhar para ele, mas achei que no fundo de seu olhar severo brilhava uma ponta de bom humor. Finalmente, ponto sorteado, alguma coisa sobre O Ho mem e a Linguagem. Recordo a frase idiota com que come —

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cei, achando- a imponente: “Desde os primórdios da humanidade...” Uma ou duas vezes passando entre as mesas a inatingí vel criatura parou um segundo ao meu lado, vendo o que eu rabiscava. Eu, mais calma e já entusiasmada, porque escrever era uma das coisas que mais prazer me davam, me entregava à fantasia. Não sei mais que bobagens escrevi, quantas frases feitas, quantos volteios inúteis — naquele tempo ele ainda não me fizera ver que a simplicidade é o meu jeito natural de fazer arte — grafei, mas recordo aquele começo pífio. Não lembro minha nota, mas fui aprovada — até mesmo no temido La tim, para o qual eu me preparara sozinha, da maneira mais desordenada possível, que sempre foi a minha maneira... O mestre seria meu professor de Língua durante todo o curso. Tímida diante da sua severidade, dos seus silêncios, das finas ironias e dasalunas) maneiras bruscas que quando deixava alunos (especialmente plantados nocom corredor o rodeavam com perguntas demasiadas, senti no entanto que ali havia algo especial: aquele nunca seria o “homem da minha vida”, idéia tão remota como as montanhas geladas do Alasca, mas poderia me entender e orientar aquela mi nha sede de saber, minhas inquietações intelectuais, minha desorganizada vivência de literatura. Em seu primeiro dia de aula não nos fez preleções so bre correção gramatical nem nos fez sentir o quanto éramos ignorantes: escreveu com sua bela letra clara, no quadronegro, todo um poema de Manuel Bandeira: “Quando eu tinha sete anos ganhei um porquinho- da- índia... ” E, partindo da beleza da arte, nos abria as portas da linguagem. Cedo viu em mim a sôfrega leitora desorientada. Quan do ainda nem sabia ler, eu fazia meus pais e avós me conta rem histórias sempre que possível, e logo soube*, esse seria —

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o melhor jogo, era disso que eu queria brincar quando fosse adulta, inventar personagens (que sempre achei que seriam pessoas minúsculas cabendo na palma de minha mão e obe decendo aos caprichos de minha fantasia). Até o começo da maturidade, escrevendo e publicando crônicas e poemas, eu não concretizara aquele mais antigo dos meus sonhos, de escrever ficção: aos 40, enfim, criei coragem, ou amadureci o suficiente, e apareceu As Parcei ras, o primeiro dos meus romances. Na infância, o universo adulto me parecia imensamen te invejável: lá as pessoas eram livres, tinham vidas interes santes, falavam de assuntos misteriosos, comiam comidas rebuscadas, as mulheres fumavam e usavam perfumes e jóias, ninguém tinha de dormir cedo nem comer sopinhas inofen sivas, nem era mandado para o castigo. Meu sonho libertário era a adultez: nele inseria-se ou tro, mais abrangente ainda, o miraculoso, inventar histórias e escrevê-las emfoi livros. O sonho uma espécie de preparação para o encon tro com o mestre especial: pois ele em breve começou a me aconselhar leituras. Percebeu que eu tinha mais conhecimen to (embora precário) de literatura estrangeira do que nacio nal, e me fez reler e ler os nossos autores. Mais que isso: emprestava- me um livro da biblioteca da faculdade e exigia: — Devolva com um comentário escrito. — Eu?! Mas professor... — Um comentário totalmente espontâneo, natural. Escreva o que você realmente pensaseja do simples. livro: bom, interessante, e por quê. Seja natural, Nãoruim, vou lhe dar nota, mas quero saber o que você pensa e se você sabe ler. E eu cumpri: lia, escrevia numa pequena máquina que meu pai me dera e descobria a alegria de escrever sobre coisas lidas, escrever sobre o escrito. —

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Em breve descobri também que havia maneiras de ler e de apreciar, de perceber entrelinhas, contornos, franjas de palavras, de frases ou textos inteiros, de os comparar a ou tros, de os classificar, mas especialmente de os saborear e deles extrair conhecimento e beleza. Foi um longo aprendizado, em que minha natural re beldia encontrava caminhos para se expressar. Em segredo, depoisdedoamor primeiro ano também escrevi delicados, sutis poemas renunciado, sem coragem de os mostrar ao amado inatingível. Aos poucos formava- se entre nós uma série de laços: eu sabia a hora em que ele ia aparecer no corredor com um novo livro para me emprestar; os comentários escritos con tinham também interrogações, pessoais embora nada ínti mas: por que o senhor gostou desse livro, o que o senhor pensa daquele autor, por que sublinhou aquele poema? Muitas vezes, conversávamos num canto da biblioteca ou nos corredores, ele sempre brusco, pronto para inespe radamente despedir-se cortando uma frase minha ao meio e se afastar pelo corredor escuro. Ele também era um singular organista, mãos de velu do sobre as teclas, entendendo os segredos do órgão, que se toca tão diferente do piano; com outros alunos e alunas, comecei a freqüentar a capela da faculdade para ouvi- lo tocar. Uma vez ou outra eu lhe disse, arriscando cheia de temor: — Ontem estive na capela e ouvi o senhor tocar... Um dia ele retrucou: — Lembra- se daquela última música? É composição minha... Foi uma grande revelação: música em estilo de Debussy, águas fluindo, marulhando cheias de segredos e belezas ocul tas. O severo professor também era um artista, que em breve me deu a ler um de seus próprios livros de poesia. —

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Trilhávamos lentamente um mesmo caminho de bele za, de encontro, de fim- de-solidão: literatura e música nos conduziam timidamente, a medo, tudo ainda indefinido e ainda cheio de hesitação. Quando terminei o curso de Letras o mestre seria meu marido, pai de meus filhos. Continuou por todos os longos anos de nosso casamento, depois durante alguns anos de separação e por fim num a ser meu Trabalhamos a vida toda novo nesterecomeço, mesmo escritório emmestre. nossa casa, a sua mesa de trabalho continua ao lado da minha, embora vazia porque quem nela tanto produziu se foi para o reino dos silêncios e mistérios maiores. Milhares de vezes ele parava de escrever ou pesquisar, virava-se para mim naquele seu jeito tranqüilo e indagava cheio de curiosidade e atenção: — O que acha disso o seu ouvido de romancista? Muitos de seus textos e livros ajudei a organizar, muitas pesquisas acompanhei apesar da minha precariedade como intelectual: meu reino era o da fantasia, não o da exatidão científica. Foi meu mestre sempre, e continua sendo. Mesmo em nossa vida cotidiana, quando esta casa se enche de filhos e netos e alegrias, muitas vezes nos indagamos o que ele diria disso, o que acharia daquilo: presente sempre, porque era sábio, e doce, e humilde, e bom, e iluminado. O piano onde tocava suas músicas não fica fechado: filhos ou netos dedilham nele, a sério ou de brincadeira. Sua biblioteca continua aqui, neste escritório, intocada: sempre penso em doá- la para a biblioteca da universidade onde há hoje um auditório com seu nome, mas o dia ainda não chegou: perturba-me a idéia das prateleiras vazias, e de os livros folheados e anotados pelas suas belas mãos saírem desta casa. Um dia, certamente, tudo irá para o seu melhor lugar. —

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Ele me ensinou quase tudo o que sei: não só o tesouro oculto nas páginas de cada livro fechado, não só a maravilha de cada pequena ou grande descoberta, não só a comunhão com autores e leitores, mas a sabedoria da vida cotidiana. A delicadeza no trato com as pessoas. O dom do perdão e a capacidade da tolerância. O cultivo da família e o valor da casa com estas árvores que plantamos a quatro mãos quan do viemos morar aqui, os filhos bem pequenos. Ensinou- me — sem jamais doutrinar, porque não era do seu jeito — muito sobre retidão e modéstia; sobre silêncio e trabalho; sobre simplicidade, sobre bom humor, sobre fide lidade a princípios, sobre uma eterna curiosidade intelectual, sobre o desprezo pelas badalações e vaidades deste mundo, de que ele sempre se esquivou. Mesmo a longa doença cruel que lhe roubou inteligên cia e movimentos e o deixou três anos sobre uma cama nesta casa sendo cuidado como um bebê foi para nós uma espécie de lição: porque era doce, porque era tranqüilo, por que sofria sem reclamar, porque se alegrava quando eu lhe dava uma flor para olhar e cheirar, porque era fácil lidar com ele e porque o bem que nos fizera ajudava a suportar a gran de dor da sua condição. Esse é o verdadeiro mestre: o que não castiga mas im pele, o que não doutrina mas desperta a curiosidade e a acompanha, o que não impõe mas seduz, o que não quer ser modelo nem exemplo mas companheiro de jornada, seja na vida, seja nos caminhos intelectuais. Muitas vezes, quando ainda jovem, eu lhe dizia: — Na verdade, eu crio nossos filhos, ajudo você em suas pesquisas, dou aulas na faculdade, mas ainda acho que não sirvo para nada intelectualmente, nada realmente me satisfaz. E ele, no jeito afetuoso de quem acha um pouco de graça das trapalhadas de sua aluna e mulher, dizia: — Você tem de se levar a sério em literatura. —

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— Mas como vou fazer isso? — Um dia você vai descobrir. E descobri. Talvez não a me levar a sério, mas encontrei o caminho. Aos 40 anos desisti de ser uma professora uni versitária medíocre — para o que não tinha talento nem vocação — e escrevi meu primeiro romance. As Parceiras foi lançado na data de um dos seus aniversários, e amigos organizarama uma lembro alegria dele, edição o seu entusiasmo cadadupla críticafesta: favorável aoalivro, a cada que se esgotava. Os livros se sucederam,e de todos, en quanto saudável, ele foi o primeiro e único leitor antes do editor. Cada vez fazia umas poucas observações ã margem, em sua letra discreta, a lápis, com a delicadeza que era sua: sabia que aquele era o meu texto, conhecia minhas fraque zas e respeitava meus jeitos. Confiava muito mais em mim do que eu mesma: esse foi um dos grandes legados que me deixou. Mesmo que eu não acredite muito em mim, ele acreditava. Os depoimentos de seus alunos, nas muitas décadas em que lecionou e escreveu artigos e livros sobre Língua Portuguesa, são mais ou menos unânimes: lembram a sua postura de eterno curioso, lembram como os estimulava a indagar e refletir, como era humilde, como aceitava opiniões alheias, embora fosse inarredável na fidelidade a seus pró prios conhecimentos, sua alegria pelas descobertas que fazia ou pelas realizações dos alunos, lembram seu apaixonado amor pela Língua e as sutilezas da linguagem, o seu respeito pelo outro, a sua devoção à profissão. Mesmo quando desi ludido comsaindo programas e burocracias, mesmo quando alu nos foram das escolas e chegando às suas mãososcada vez mais despreparados e mais inseguros, a sua alegria ao dar uma boa aula, ao ver um aluno ou aluna de mente inquie ta nunca se esgotou. Lembro- me dele eternamente com um livro na mão ou sentado no terraço diante da casa lendo e anotando; mas —

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também me lembro dele com um filho pequeno no colo, ou o primeiro neto, levando-o ao jardim para mostrar as flores, as folhas, os bichinhos. Lembro- me dele compondo uma ter na música ao piano para nossa primeira filha; lembro- me dele levando as crianças para pescar na praia e seu divertido encantamento ao ver os pequenos puxarem um peixe da água ou trazerem para casa um balde com meia dúzia de lambaris para ser preparados por todos nós na cozinha. Lembro-me dele amando a natureza, o sossego, a música. Lembro-me dele ensinando sem jamais ser professoral, incu tindo sem jamais oprimir, estimulando sem perseguir nunca. Lembro- me dele pela sua integridade e brandura, pela fina ironia, pela honradez. E lembro algumas de suas ines quecíveis frases, como: “Pais e escola já fazem muito se não estorvam nem inibem jovens ou crianças”. Ou: “A escola tem uma missão principal: ensinar a pensar, a duvidar, a indagar e a questionar”. Era um desbravador, um bandeirante do pensamento, da alma, da linguagem e seu conhecimento. Deixou sauda de, mas no fundo, no fundo, nunca saiu desta casa, destes corações e da lembrança dos seus milhares de alunos e dis cípulos: faço parte dessa sua gente. Lya Luft, escritora e tradutora, autora dos livros AsParceiras (romance, 1980),A Asa Esquerda do A njo(romance, 1981), Reunião de Família(romance, 1982), O Quarto Fechado (romance, 1984),Mu lher no Palco (poesia, 1984),Exílio (ro mance, 1987), O Lado Fatal (poesia, 1988),A Sentinela (romance, 1994) e O Rio do Meio(depoimento, 1996), ganha dor do prêmio Melhor Ficção pela Asso ciação Paulista de Críticos de Arte. É viúva do lingüista Celso Pedro Luft. —

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