Materialismo Histórico e Materialismo Dialético

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Althusser ■ Badiou MATERIALISMO HISTÓRICO E MATERIALISMO DIALÉTICO

TEORIA TEORIA TEORIA TEORIA

,2 bases 1mfl±yjRrno da iàentiáade.11' Sob sua fõrfoa mais'"gtosIeBã" vffi335 o marxismo totalitário, do qual possue a rigidez mecanicista, ao marxismo fundamental, do qual recupera, com o pretexto da unidade de princípio das formas, a transparência espiritual(6). Sob sua forma mais refinada, não evita substituir a constituição problemática de um objeto de conhecimento pela transferência indeterminada de questões pré-estabelecidas, submetidas à obser­ vação de níveis mais ou menos isomorfos da totalidade social(T), No ponto em que se nos deveria apresentar, na ordem mesma do discurso, a questão chave da causalidade estrutural, isto é5 da eficácia especifica de uma estrutura sobre seus elementos, só nos apresenta um sistema de similitudes e diferenças. De tudo isto resulta uma falsificação retroativa dos elementos teóricos reais incorporados à construção, porque, ao vir ocupar o lugar que lhes atribui a descrição das correspondências, estes elemen­ tos transformam-se em resultados dispersos e funcionam, a par­ tir daí, como simples índices descritivos. A principal importância da obra de Althusser consiste em reconstruir diante dos nossos olhos o~ fag#r comum do que,_dch ravante, seguindo^q exemplo deMSxEcna^reiw^.a^ do_marxismo_..vj4gar.„Se trata aí também da, des coberta "dp que essas^variantes_nãoAdízemr_ou sej a,_ 4q_sistema __de - omissões que cpnstitue, além de seu aparente antagonismo, o segredo de sua unidade.

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O resultado peculiar do marxismo? vulgar é o desapareci­ mento de uma diferença, desaparecimento realizado em todo o conjunto de suas instâncias. A forma aparente desta diferença suprimida, forma de apresentação na história empírica, é a antiga questão das relações ' entre Marx e JíegeL As variantes do marxismo vulgar têm em comum o seguinte: engendram afquestão desta relação em função das variações de uma resposta/ha quaFse afirma sua impor­ tância, ejjeflc/aZ. Os conceitos de “inversão77, de oposição, de rea­ lização, etc., preenchem sucessivamente os possíveis espaços^ fi­ xados originariamente pela êssènciandãde^da relação. E, como o _ nretende a sempre disponível, dialética, dos marxismos vulgatgg. Jpda negação aparente da continuidade Hegel-Marx produz, a forma reflexa _de su a 4 afirmação». Os primeiros textos de Althusser destinam-se sobretudo a desentranhar a diferença escondida. Restaurar a diferença signi­ fica mostrar que o problema das “relações” ente a proposta teó­ rica de Marx e a ideologia hegeliana ou pós-hegeliana é na ver­ dade insolúvel, isto é, informulâveU?}. Informulável precisamen­ te porque sua formulação é a ação qué escamoteia a diferença, diferença que não é nem uma inversão, nem um conflito, nem um método emprestado, etc., mas um corte epistemológico, isto é, a construção metódica de um novo objeto científico cujas co­ notações problemáticas não têm nada a ver com a ideologia hegeliana. A partir.de 1850, muito literalmente, Marx se coloca de outro lado, onde os quase-objetos da filosofia hegeliana e suas formas de ligação — a “dialética” — não podem ser nem inver­ tidos nem criticados, pela simples razão, de que não os encon­ tramos mais, a tal ponto que não se poderia proceder nem se­ quer a sua expulsão já que o espaço da ciência se constitui com sua ausência radical(°). E sem dúvida o corte produz de ma­ neira retrospectiva a outra particularidade da ciência, aquilo do qual, conforme nos ensina a epistemologia, a ciência se separa, No desvendamento da ciência podemos nos ocupar em lo­ calizar a “margem” do corte,(10) o lugar ideológico onde se mos­ tre, sob a forma de uma resposta sem pergunta, a necessária mudança de terreno. - Somente Althusser, em páginas notáveis (LC I, 17-31)*, determinou claramente o lado ideológico de Marx, e, não se trata aqui da especulação hegeliana, mas sim da economia clássica de~Smith e Ricardo.

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Não estamos frente a sua casualidade: uma obra de juven­ tude mencionada constantemente pelo marxismo fundamental tem 0 título de Critica, da filosofia do Estado de Hegel; a obra científica, O Capital, tem- como subtítulo: crítica da economia política. Produzindo os conceitos de uma disciplina inteiramente nova (a ciência da História), Marx não somente abandona o es­ paço da ideologia hegeliana, como também, pode-se dizer assim, o troca por outro: este outro em que se coloca não é o da pátria hegeliana, Desta forma’ Marx” se ■‘mãnifêstãnna ação "radical de o seu ser-outro, com relação às ideologias pós-hegelianas. A simples consideração teórica deste fato: Marx fundou uma nova ciência, nos mostra a diferença conceituai frente a qual todo'escamoteamento do corte histórico, por um efeito de­ rivado, efetua a supressão. Esta diferença essencial, interna agora ao projeto teórico de Marx e na qual a diferença Hegel|Marx é a manifestação histórico-empírica, é a diferença da ciência mar­ xista (o materialismo histórico) com a disciplina em cujo interior í possível declarar, com legitimidade, a cientificidade desta ciên­ cia. Althusser chama a esta segunda disciplina, segundo uma tra­ dição talvez discutível, materialismo dialético, e a segunda fase de seus textos está orientada para a distinção Materialismo histórico-Materialismo dialético: distinção fundamental, ainda que o seja apenas dentro da estratégia teórica, que Althusser não perde nunca de vista. As variantes do marxismo vulgar se espe­ cificam, de fato, segundo os diferentes procedimentos que levam ao desaparecimento desta diferença:

— Q marxismo fundamental faz com que o materialismo dialético se inclua no materialismo histórico. Por opção" consi­ dera a obra de Marx como uma antropologia dialética onde a historicidade é a categoria criadora e não um conceito criado. Destruindo desta forma o conceito de história, o amplia a di­ mensões conceituais de uma forma totalizante, na qual a reflexão das estruturas, sua “interiorização”, é uma função mediadora das próprias estruturas.(u) — Inversamente, o marxismo totalitário faz com que o ma­ terialismo histórico se inclua no materialismo dialético. Com efeito, tratada contradição como uma lei abstrata válida parà qualquer objeto, e considera as contradições estruturais de um modo de produção determinado como casos particulares tomados

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sob a universalidade da lei. Nestas condições, os procedimentos para a constituição do objeto específico do materialismo histó­ rico são suprimidos e os “resultados” de Marx são incorporados em uma sintese global que não poderia infringir a regra conce­ dendo toda atribuição de Totalidade ao imaginário. Estranha transmigração da qual Marx sai disfarçado com a batina “cós­ mica” do Padre Teilhard. . . ' —..O materialismo analógico, finalmente, estabelece entre o materialismo histórico e o materiaHsmó~^igdSico^Fawrelaç^ de correspondência que justapõe os dois termos, sendoafilosofia marxista a cada momento o reflexo estrutural de uma situa­ ção dada na formação social; e mais particularmente da forma objetiva da relação das classes. A determinação de um dos termos pelo outro ou a simples redundância, tais são os três procedimentos gerais da purificação da diferença. Mas, como o fáz notar com todo empenho Jacques Derrida, uma diferença purificada é apenas o desfazer de uma identidade. Toda diferença verdadeira é (12) a preservação dos concertos de materialismo histórico e materialismo dia­ lético, a teoria da impureza primitiva de sua diferença, de sua complexidade, da distorção produzida pela difusão dos termosx tudo isto realiza ao mesmo tempo 2. classificação sistemática das variantes do marxismo vulgar. E isto nao é pouco., Mas além disso, a diferença do materialismo histórico e do materialismo dialético — que serão designados de agora em diante: MH e MD — marca a extensão da revolução teórica marxista: à construção da ciência da história, esta revolução acrescenta, fato único no devir do saber, a construção de uma filosofia absolutamente nova, de uma filosofia “que fez passar a filosofia da situação de ideologia à situação de disciplina cien­ tífica (MH-MD, 113), de tal modo que a obra de Marx se apre­ senta com uma dupla construção em um só corte. Ou melhor: um duplo corte em uma só construção. Distinguir claramenté o MH e 0 MD, a ciência (da histó­ ria) e a ciência da cientificidade das ciências, é avaliar a impor­ tância de Marx e consequentemente atribuir-lhe seu devido lugar, sua dupla função — científica e científico-filosófica — dentro da conjuntura intelectual complexa na qual se descompõe sob nossos olhos a ideologia dominante do pós-guerra: o idealismo fenomenológico.

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Devolvida desta forma ao seu contexto estratégico, a obra de Althusser pode ser percorrida na sucessão de suas argumen­ tações. Não se trata aqui de descrevê-la, nem de confrontá-la com as teorias existentes ou a um conceito indiscriminado do real, mas sim de reduplicá-la sobre si mesma, de fazê-la atuar, enquanto teoria, segundo os conceitos metateóricos que produz, de investigar se obedece às regras que sua produção mesma determina, como a lei de construção de seus objetos. E se apa­ recem lacunas, espaços entre o que o texto engendra como nor­ ma de si mesmo e a produção transcrita destas normas, o que vamos procurar fazer é “suturar” (1|3) essas lacunas, introduzir dentro do texto os problemas cuja ausência está indicada por essas lacunas e não apenas questionar o projeto. Exporemos o discurso da teoria marxista a um auto-preenchimento de seus espaços. “O racionalismo é uma filosofia que não tem um co­ meço: o racionalismo pertence à ordem do recomeço. Quando o definimos em uma de suas operações, há muito tempo que ele recomeçou”. G. BAÇHELARD, Le racionalisme aplique, p. 121.

Poderíamos nos ocupar em proceder segundo a diferença inicial que desdobra a revolução marxista, e distribuir os pro­ blemas em duas explicações: a contribuição de Althusser(14) ao materialismo histórico de um lado e ao materialismo dialético de outro. Digamos desde já que isto seria encobrir o essencial, a impureza-complexidade da diferença. .Realmente: a) A distinção do MD e do MH é interior ao MDj o que torna vã toda simetria, toda distribuição analítica dos problemas. b) Podemos realmente exprimir aqui o discurso teórico do MH? Ou bem relatamos de maneira elíptica esta ciência e caímos assim na armadilha que nos faz dizer justamente aquilo que a obra de Althusser se propõe a não nos deixar dizer: estabele­ cendo o marxismo como formação de uma ciência, Althusser nos lembra que é impossível dirigir a particularidade dos argumen­ tos para resultados ilusórios, já que os objetos de uma ciência tomam corpo na estrutura de apoditicidade na qual aparecem. Ou bem tratamos de extrair a forma específica de raciona­ lidade do MH, levamos assim até o fim a “renovação de um

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descobrimento científico fundamental pela reflexão filosófica e pela produção [...] de uma forma de racionalidade nova* (LC II, 166) e sem dúvida neste caso falamos do MH, produ­ zimos o discurso daquilo que é a condição silenciosa de seu' discurso. Mas o espaço no qual operamos não é justamente aquele do MH, esse lugar é aquele do qual podemos pensar, não o objeto cientifico do MH (os “modos de produção’’ e as “formas de transição”), mas sim suá cientificidade, lugar pois, por definição, do MD, f

Do MH só podemos mostrar aqui aquilo que ocupa um es­ paço no MD. Nossa exposição será pois totalmente interna ao MD, incluídos os difíceis problemas do estatuto teórico do pró­ prio MD, abordados no final.

c) E contudo, de acordo com õ que seria necessário cha­ mar o paradoxo do duplo corte, o MD depende do MH, com uma dependência teórica ainda obscura: não somente porque o MD pode produzir o conceito das “novas formas de racionali­ dade” apenas a partir da consideração das ciências existentes, aí onde, segundo’ uma expressão enigmática de Althusser, essas formas existem “em estado prático”; mas também sobretudo porque diferentemente das epistemologias idealistas, o MD é uma teoria histórica da ciência. O MD é “a teoria da ciência e da história da ciência” (LC II, 110). O que acontece é que na verdade não existe outra teoria da ciência a não ser a da histó­ ria teórica das ciências. A epistemologia é a teoria da história do teórico; a filosofia é “a teoria da história da. produção dos acontecimentos” (LC I, 70). E é assim que a construção revo­ lucionária da ciência da história, ao mesmo tempo que torna possível uma história científica da produção dos acontecimentos científicos, produz também uma revolução filosófica, marcada pelo MD(15).

Vemos pois até que ponto a diferença entre MD e MH é não distributiva. x Temos aqui uma diferença não diferenciante originalmente mesclada: impura. O entrelaçamento do MD com todas as ciências, mas sobretudo com o MH, não acaba com a autonomia do processo de conhecimento científico. Não obstante estabelece esta autonomia, esta distância, em forma até de pre­ sença no seio do MD. O MD se mantém, se é que podemos dizer assim, “à superfície” da ciência, de maneira que a falta da

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ciência, o silêncio pelo qual seu discurso se mantém afastado, 6 a carência determinante da epistemologia, na qual esta ciência está constantemente exposta em sua .ausência, já que o conheci­ mento da cientificidade é também conhecimento da impossibili­ dade específica de uma descrição da ciência, conhecimento da níío-presença da ciência em outro lugar que não nela mesma, no produzir real de seus objetos. Dentro do MD, nossa colocação il prova dos conceitos de Althusser estará estruturada contudo pela imanência ausente do MH, forma da ausência que continua ocndo a sua. • ç .*

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Por razões que irão surgindo à medida que avançamos, or­ denaremos a análise em torno de duas diferenças: a da ciência e Ideologia, a da prática determinante e prática dominante. Fala­ remos pois sucessivamente da teoria do discurso e da teoria da causalidade estrutural. I — CIÊNCIA E IDEOLOGIA Da definição do MD (disciplina na .qual se enuncia a cienti­ ficidade do MH), resulta imediatamente que o conceito que deli­ mita seu campo é o da ciência. O MD não poderia mostrar sem dúvida a identidade da ciência apenas em um “olhar” que não se pode decompor: também aqui o que há em primeiro lugar é o par diferencial ciência-ideologia. O objeto próprio do MD é o flistema das diferenças pertinentes que separa e une ao mesmo tempo a ciência e a ideologia. Para caracterizar, a princípio grosseiramente, este par, diga­ mos que a ciência é a prática produtora de conhecimentos, cujos meios de'produção são os conceitos; enquanto que a ideologia é um sistema de representações cuja função é prático social, e que hc áuto-nomeia dentro de um conjunto de noções. O resultado próprio da ciência — “resultado do conhecimento1’ •—- é obtido pela produção orientada de um objeto essencialmente distinto cio objeto dado e distinto inclusive do objeto real. Em contrapartida a ideologia articula o vivido, isto é, não a relação real dos homens com suas condições de existência, mas sim “o modo pelo qual vivem [os homens] sua relação com suas condições de existência” (RTM. 194).

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Consequentemente a ideologia produz um resultado de reco­ nhecimento e não de conhecimento; para falar como Kierkegaard, é relação enquanto estiver relacionada a mim. Na ideologia, as condições apresentadas são representadas e não conhecidas. A ideologia é um processo de reduplicação, intrinsicamente •—■ ainda que misteriosamente, pelo menos no atual estágio de nossos co­ nhecimentos — vinculado à estrutura especulativa da fantasia. (16) Quanto à função desta reduplicação, consiste em entrelaçar o ima­ ginário e o real em uma forma específica de necessidade que asse­ gure o desempenho efetivo, por homens determinados, das tare­ fas prescritas “no vazio” por diferentes instâncias do todo social. Se a ciência é um processo de transformação, a ideologia/ quando o inconsciente se forma e se fixa nela, é um processo de repetição. Õ fato de que o par exista antes e nãó cada um de seus termos, significa — e isto é essencial — que a oposição ciên­ cia-ideologia não é distributiva: não permite repartir imediata­ mente as diferentes práticas e discursos, e ainda menos “valo­ rizar” abstratamente a ciência “contra” a ideologia. Para dizer a verdade, a tentação é bastante clara. Na luta política, e frente ao enfraquecimento teórico do P.C., corremos o risco de fazer funcionar o par de oposição como uma regra, e de identificá-lo ao par (ideológico) verdade-falsidade.

Por este caminho se conduz uma diferença teórica ao jogo no qual o Bem e o Mal perpetuam o limite sem fim de suas ima­ gens recíprocas. Todavia é evidente que uma função prático-social que obriga a um sujeito que “piantenha seu lugar” não pode ser a negação da produção de um objeto de conhecimento, e é exatamente por isto que a ideologia é uma instância irredu­ tível das formações sociais às quais a ciência não poderia dissol­ ver: “não se pode conceber que o comunismo, novo modo de produção que implica forças produtivas e relações de produção determinadas, possa prescindir de uma organização social da pro­ dução e de formas ideológicas correspondentes” (RTM. 192). Na realidade, a oposição ciência-ideologia considerada como aber­ tura do campo de uma nova disciplina (o MD) encontra-se, ela mesma, desenvolvida como um processo e não como uma con­ tradição simples. De.fato:

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a) A ciência ê ciência da ideologia. Para não repetir que H ciência é ciência de seu objeto, o que é pura tautologia, a colo» riiçííu da pergunta: “Do que a ciência é ciência?” não admite oitlTíl resposta que esta: a ciência produz o conhecimento de uni objeto cuja existência está indicada por uma região determi­ nada da ideologia.

De fato, os conceitos da ideologia podem ser descritos como ÍHtUeadores(lr) sobre os quais operam funções de vinculaçao, • O uliitema vinculado dos indicadores reproduz a unidade das exis­ tências em um complexo normativo que legitimam os elementos ícnomênicos (isso que Marx chama a aparência). Como diz Alihusser, a ideologia produz a sentimento do teórico. O imagi­ nário apresenta-se assim na relação com o “mundo” por uma pressão unificadora, (18) e a função do sistema global consiste em proporcionar um pensamento que ligitime tudo aquilo que se apresenta como real. Nestas condições fica evidente que é no Interior mesmo do espaço ideológico que se encontra produzida íl designação dos “objetos reais” dos quais a ciência produz o objeto de conhecimento, como também por outro lado, a indica­ ção da existência do próprio objeto de conhecimento (mas não o resultado do conhecimento que causa). Neste sentido, a ciência aparece sempre como “transformação de uma generalidade ideo­ lógica em uma generalidade científica” (RTM, 153). b) A ideologia é sempre ideologia para uma ciência, e in­ versamente. O mecanismo ideológico da designação totalitária e normativa dos fatos existentes só é descoberto (conhecido) pela região na qual estão designados os fatos existentes de uma ciência, isto é os objetos reais para os quais uma ciência produz a apro­ priação cognitiva. Sem dúvida podemos designar formalmente como ideológicos numerosos discursos. Não deixamos de fazê-lo na prática política. Mas exatamente por ser uma designação, esta avaliação é ela própria ideológica. Os únicos discursos co­ nhecidos como ideológicos, o são na análise retrospectiva de uma ciência.

Marx só nos deixou' a teoria desenvolvida (inclusive teve que dedicar à ela todo o livro IV de O Capital!') dé uma só ideologia: a ideologia econômica, divisível em economia clássica (ideologia “à beira do corte”) e economia vulgar (ideologia pro-

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priamente dita). (19) Acontece que ele só criou n’O Capital con­ ceitos científicos regionais — os da instância econômica — em cuja retrospecção ele somente poderia pensar esta ideologia. Ava­ lia-se assim a complexidade das relações entre a ciência e a ideo­ logia, sua mobilidade orgânica. Não seria exagero dizer que o MD chega a seu apogeu na colocação deste problema: como pen­ sar a articulação da ciência com o que não o é, preservando ao mesmo tempo a radicalidade impura da diferença? Como pensai a não-relação do que está duplamente relacionado? Partindo deste ponto de vista pode-se definir o MD como a teoria formal dos cortes.

Nosso problema ocupa um espaço dentro de um contexto ■ conceptual maior no que se refere a todas as formas de arti­ culação e de ruptura entre instâncias de uma formação social. yã-— CAUSALIDADE ESTRUTURAL

Vamos tentar ser o mais possível rigorosos, ainda que com isso estejamos correndo o risco de nãp ir além de uma parte do esforço de Althusset.

Como toda construção de conceito, o conhecimento do “me­ canismo de produção do efeito social”} objeto próprio do MH, (LC I, 84) pressupõe (invisivelmente) uma teoria geral. A ciência é de fato um discurso demonstrativo relacionado, no que tange à ordem sucessiva dos conceito?, à uma sistemá­ tica combinada que os hierarquiza “verticalmente”. A analogia linguística nos permitiria dizer que o processo de exposição no qual se . manifesta de maneira evidente o objeto da ciência é o sintagma de um paradigma teórico: a “estrutura de organização dos conceitos na totalidade-de-pensamento ou sistema” (LC I, S7J. (20) Por exemplo, a demonstração de Marx com relação à lei da tendência à queda da taxa de lucro aparece subordinada logicamente à construções conceptuais “anteriores” (teoria do va­ lor, construção do conceito de mais valia, teoria da reprodução simples, etc.). Mas esta subordinação diacrônica leva a um con­ junto sincrônico complexo onde encontramos: 1°) um sistema vinculado de conceitos que têm leis de combinação, 2.°) formas de ordenação do discurso que organizam o desenvolvimento que justifica o sistema. A teoria do resultado de conhecimento tem por finalidade tematizar a diferençâ-unidade, o desajuste** (LC I, 87) entre a

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nrdcnPde combinação dos conceitos dentro do sistema, e sua nrdein de apresentação-vinculação dentro do discurso científico, Toda dificuldade do problema está no fato de que a segunda urdem não é de nenhuma forma decorrência da primeira nem iam réplica, mas sim sua existência determinada pela própria auiiêncla do sistema, e a imanência desta ausência: sua não-presença no interior de sua própria existência.

Isto é o mesmo que dizer que a explicação do sistema não poderia ser resultado do discurso (científico), cujo funcionamento requer precisamente o nao-explicitamento da combinação “vertt cid" que produz. Conseqüentemente, a apresentação teórica do xistema de uma ciência não pertence a esta ciência. (21) De fato, ii apresentação do sistema do MH, a teoria do tipo especial de HUiSíilidade que ele aponta como lei de seu objeto, não pertence no MH e nem poderia pertencer-lhe. Os textos fundamentais de Althusser sobre a estrutura, com uma dominante (RTM, 132-181),e sobre o objeto de 0 Capital (LC II, 127-185)., tam­ bém não pertencem ao MH, mas sim ao MD. Esses conceitos ué desenvolvem no MD segundo formas de sucessão diacrônicas, ratando estas mesmas vinculadas ao sistema (ausente) que pode ser indicado o mais geral, o sistema do MD, ou Teoria. Consideremos então’ a organização sistemática dos conceitos do MH tal como a produz o MD. Esta organização começa por atribuir-se palavras primitivas, jato é noções nao definidas que serão transformadas em concei­ tos ‘por sua vinculação “axiomática” dentro do sistema. Estas noções elementares estão reunidas na definição do conceito mais geral do MD: o conceito de prática. “Por prática em-geral en­ tendemos todo processo de transformação de uma matéria-prima dada determinada em um produto determinado, transformação efetuada por um trabalho humano determinado, utilizando meios (de “produção”) determinados. Em toda prática concebida desta forma o momento (ou o elemento) determinante do processo não é a matéria-prima nem o produto, mas sim a prática em sen­ tido restrito: o momento mesmo do trabalho de transformação, que coloca em ação, dentro de uma estrutura específica, homens, meios e um 'método técnico para a utilização destes meios” (RTM, 136).

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r De fato, as noções primitivas são: 1) força de trabalho, 2) meios de produção, 3) modos de aplicação da força aos meios, Os dois extremos, matéria-prima à entrada e produto à saída, são apenas os limites do processo. Uma combinação específica destes. três elementos, pensada em sua própria estrutura “que é em todos os casos a estrutura de uma produção” (LC I, 74), define uma prática. Portanto, o primeiro cpnjunto construído desta forma cons­ titui a lista das- práticas. Althusser apresenta várias que são na maior parte abertas. A. parte invariável destas listas comporta: a prática econômica (cujos limites sãó a natureza ,e os produtos para uso); a prática ideológica; a prática política; a prática teó­ rica.

Dizer que o conceito de prática é o conceito mais geral do MD (sua primeira combinação regrada por noções), é dizer que no “todo social” só existem práticas. Qualquer outro objeto su­ postamente simples não é um objeto de conhecimento, mas só um indicador ideológico. É dizer também que a generalidade deste conceito nao pertence ao MH, mas somente ao MD, a prá­ tica não existe: “não existe prática em geral e sim práticas dis­ tintas” (LC I, 73). Devemos entender assim; a história, tal como é pensada' pelo MH, só. conhece práticas determinadas.

Nestas condições, a única “totalidade” concebível é eviden­ temente “a unidade complexa das práticas que existem em uma sociedade dada” (RTM, 136).

. Mas que tipo de unidade é este que articula as diferentes práticas umas sobre as outras?

De início convenhamos em chamar instância de uma forma­ ção social a uma prática enquanto articulada sobre todas as outras.(22) A determinação da autonomia diferencial de umas instâncias com relação as outras, isto é a construção mesma de seu conceito (o que possibilita o se falar de uma história da ciência, de uma história da religião, de “o político”, etc,) é ao mesmo tempo a determinação de sua articulação e de sua hie­ rarquia no interior de uma sociedade dada. De fato, pensar as relações de construção e de articulação das diferentes instâncias, é pensar- “seu grau de independência, seu tipo de autonomia 're­ lativa’” (LC I, 74). Uma instância se torna inteiramente defi­ nida pela relação específica que mantém com todas ás outras:

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o que “existe” é a estrutura articulada das instâncias. Só resta desenvolver seu conhecimento., Na atribuição de espaços determinada desta forma, para um estágio de uma dada sociedade, pode existir uma instância'privi­ legiada: a instância cujo conceito é necessário para se pensar a eficácia real das outras. Ou, mais exatamente, aquela a partir' da qual, pata uma determinada situação de um todo social, po­ de-se percorrer racionalmente o sistema completo, das instâncias na ordem real de suas dependências de eficácia. Convenhamos cm chamar conjuntura ao sistema das instâncias enquanto pennável segundo o trajeto explicitamente estabelecido pelas hierar­ quias móveis das eficácias. A conjuntura é antes de mais nada n determinação da instância dominante, cuja localização estabe­ lece o ponto de partida da análise racional do todo. A primeira grande tese do MD — considerada aqui como cpistemologia do MH — estabelece que o conjunto conjuntural ou dito de outra forma, que o “todo complexo possui a unidadede uma estrutura articulada com uma dominante” (RTM, 167). Mas é evidente que a conjuntura muda. Queremos dizer com isto que a conjuntura é o conceito das formas de existência do todo-estruturado e não o conceito da variação destas formas. Se nos colocarmos de início da hipótese máxima, podemos admi­ tir que se um tipo conjuntural é definido pela instância que ocupa “o papel principal” (RTM, 177) — dominante. — é pos­ sível se pensar qualquer outro tipo conjuntural: conjuntura com dominante política (crise no Estado), ideológica (luta anti-reli­ giosa, como no século XVIII), econômica (greve geral), cientí­ fica (corte decisivo como a criação da física galileana), etc. A partir daí, o importante é determinar o invariável dessas varia­ ções, isto é, o mecanismo dç produção do efeito-de-conjuntura, que, por outro lado, pode ser confundido com o efeito de exis­ tência do todo. Convenhamos em chamar determinação à produção deste efeito. Se verificará que a determinação se define totalmente por seu efeito: a mudança da conjuntura, e esta própria mudança é identificável com a mudança de campo da dominante. Mas que eficácia é esta da qual resulta este deslocamento? Uma observação’ que deve ser feita: apesar de tudo, não é nas instâncias, ou práticas pensadas segundo suas relações com­

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pletas com todas as outras instâncias, que poderemos encontrar o segredo da determinação. Ao nível das instâncias somente existe a estrutura articulada com uma dominante. Acreditar que uma instância, do todo determina a conjuntura é confundir fatal­ mente a determinação (lei de deslocamento da dominante) com a dominação (função hierarquizante das eficácias em um tipo conjuntural dado). Esta > é em suma a origem de todos os desvios ideológicos do marxismo e em especial do mais temível de todos, o economicismo. O economicismo alega que a economia e sempre do­ minante, que tudo é “econômico”. Na verdade está certo que uma instância econômica figura sempre no todo articulado, mas ela pode ou não ser dominante: depende da conjuntura. A ins-, tância econômica não tem nenhum privilégio de direito.

Se nenhuma instância pode determinar o todo, é possível, por outro lado, que uma prática, pensada em sua própria estru­ tura, defasada com relação àquela que articula essa prática como instância do todo, seja determinante com relação a um todo den­ tro do qual figura sob formas descentralizadas. Podemos ima­ ginar que o deslocamento da dominante e a correspondente dis­ torção da conjuntura e o resultado subjacente, em uma das ins­ tâncias, de uma estrutura-de-prática em não-coincidência com a instância que a representa no todo. Podemos imaginar que um dos elementos da combinação social (elemento invariável desta vez) realiza em sua própria forma complexa o preenchimento articulado de duas funções: a função de instância, que o rela­ ciona com o todo hierarquicamente estruturado; e a função de prática determinante, que se “exerce justamente, na história real, nas permutações do papel principal entre a economia, a política e a teoria, etc.” (RTM, 177), em resumo, no deslocamento da dominante e na fixação da conjuntura. Uma prática semelhante, como a natureza espinosista, seria ao mesmo tempo estruturante e estruturada. Estaria colocada dentro do sistema de lugares que ela mesma determina. Enquanto determinante permaneceria contudo “invisível”, não estando apresentada no conjunto das instâncias, e sim somente representada,(23) . A segunda grande tese do MD é esta (tremendamente sim­ plificada): existe uma prática determinante, e esta prática é a

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prática "econômica” (mais exatamente: a prática cujos limites são ii natureza e os produtos de uso). Agora fiquemos atentos pois o tipo de causalidade da deter­ minante é bastante original. Na realidade, pensada , como prin­ cípio da determinação, a prática econômica não existe. A que fnz parte do todo-ãrticulado-com-uma-dominante (o único exis­ tente verdadeiramente), é a instância econômica que não é a representante da prática econômica. Assim sendo, esta reprencntante está ela mesma incluída na determinação (conforme a instância econômica seja dominante ou subordinada, conformé- a extensão, estabelecida pela correlação das instâncias, de sua força conjuntural, etc.). A causalidade da prática econômica é a cau­ salidade de uma ausência sobre, um todo já estruturado, onde aparece representada por uma instância (LC II, 156). O problema da causalidade estrutural, problema da “deter­ minação dos fenômenos de uma região, dada pela estrutura desta região” (LC II, 166), e mais precisamente, dado que çada ins­ tância é uma forma combinada em si mesma, o problema da1 “determinação de uma estrutura subordinada por uma estrutura dominante” (LC II, 167), se encontra colocado nesta forma que lhe é atribuída pelo MH: unidade descentralizada entre a com­ binação das instâncias — “estrutura de desigualdade com uma dominante específica do todo complexo sempre-imediatamente-dado” (RTM, 180) — e a determinação-deslocamento deste todo — “processo complexo” — por uma prática representada mas sem outra evidência a não ser a do seu próprio efeito. Este problema, que segundo Althusser “resume (...) a ex­ traordinária descoberta científica de Marx (...) em uma excep­ cional questão teórica contida-em estado prático no achado cien­ tífico de Marx” (LC II, 167), está longe de ser resolvido. In­ clusive, não temos certeza se estamos em condições de formulâ-lo (teoricamente). Talvez no momento só possamos indicâ-lo. E esta indicação deverá, certamente para transformar-se no objeto de conhecimento que ela indica, tomar a forma inesperada de uma leitura de Spinoza.f24) De qualquer forma o progresso ul­ terior do MD depende da solução ou pelo menos da formulação do problema da causalidade estrutural.

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É necessário voltar agora aos “vazios” principais do tra­ balho, àqueles cujos efeitos deformantes sobre o texto são loca­ lizáveis nos níveis qué acabamos de distinguir (diferença inau­ gural entre ciência e ideologia; teoria da causalidade estrutural). Estes espaços podem ser expostos com certo rigor sob a forma de duas perguntas. a) Qual é o estatuto teórico do próprio MD? b) As estruturas nas quais se exerce a determinação estão definidas sobre conjuntos? Caso contrário, pode conceber-se real­ mente uma combinação sem se ter o conceito de um “espaço” dos lugares, e sem especificar os elementos combinados pela própria capacidade deles em ocupar-distribuir lugares? A ques­ tão do estatuto do MD não pode ser colocada sem mencionar a segunda pergunta, porque ela coloca em jogo os enigmas da re­ presentação. Trata-se de se saber agora se o MD está represen­ tado nas distinções operatórias que o tornam possível e orga­ nizar o seu próprio discurso. O MD está preso ao aspecto for­ mal das práticas “cognitivas”, as quais ele tem por função mos­ trar? (2B) O MD é uma ciência? E se não o for, é uma ideo­ logia?

Com relação a isto, Althusser demonstra uma certa vacila­ ção, ao ponto de classificar frequentemente o MD como filosofia. O fato de que esta classificação nos faça avançar muito pouco provém de que o par de oposições ideologia/não ideologia tem valor para a filosofia; de que o sinal (/), que esconde o corte, atesta de maneira precisa o MD, sobre o' que aparece finalmente enunciada e denunciada, a relação-espelho onde se encerra o velho problema (ideológico) do conhecimento: “toda história da filosofia ocidental está dominada não pelo problema do conheci­ mento, mas sim pela solução ideológica, isto é, imposta de an­ temão por interesses práticos, religiosos, morais e políticos, es­ tranhos à realidade ,do conhecimento, que esse problema deveria aceitar” (LC I, 66). A melhor definição que se poderia dar do MD seria a de “filosofia não-ideológiça”? Mas este agregado de nomes só é significativo se pensarmos a relação intrínseca da filo­ sofia com o não-ideológico como tal (a ciência).

Na realidade, Althusser pensa esta relação sob a forma de “produção por parte da filosofia de novos conceitos teóricos que solucionam os problemas teóricos, senão colocados explicitamen- ;

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Ic pelo menos contidos em estado prático nas grandes descober­ tas científicas” (LC II, 166). À cada corte científico corresponde uma “renovação” filosófica, que produz de forma reflexiva e proposional os conceitos teóricos utilizados de maneira prática, isto (?, operatória, nas diversas ciências. Assim está Platão para a geometria, Descartes para a nova física, Leibniz para o cálculo diferencial, Kante para Newton, o MD para o'MH, Marx (filónofo) para Marx (científico). Mas o que Althusser não nos diz é:

a) O que distingue esta “renovação” da pura e simples reinscriçao ideológica do fato novo que é uma ciência; o que dis­ tingue esta repetição de uma desarticulação reproduzida dos con­ ceitos da ciência que vão refletir-desconhecer a diferença absoluta do discurso científico na unidade ilusória do discurso ideológico, pelo caminho indireto dos operadores ideológicos de “verdade” c de “fundamento”; o que distingue a filosofia de uma região particularmente delicada da ideologia que é a região na qual se opera a ideologização daquilo que é essencialmente o não-ideoló­ gico, a ciência; se a correlação empiricamente evidente entre a ciência e a filosofia não está no fato de que a filosofia está es­ pecificada “na” ciência, isto é, especificada na dissimulação unificante-fundadora do único discurso cujo processo específico é Irredutível à ideologia: o discurso científico. b) O que distingue o MD, retratado como filosofia, das epistemologias anteriores (filosóficas) dedicadas explicitamente a produzir, diferenciar e portanto reduzir o conceito de ciência. Althusser não nos mostra como evitar, ou pelo menos restringir os isomorfismos localizáveis entre o MD e a forma geral da ideologia filosófica como o próprio MD a conceitualiza. Althusser sabe muito bem que as características formais mais evidentes da filosofia ideológica são aquelas que ele atribui ao ecletismo (RTM, 44): a teleologia teórica e o auto-entendimento. Sendo assim, o MD enquanto disciplina teórica “suprema” que “esboça as condições formais de toda prática teórica” (RTM, 137), as possui necessariamente: o MD é inevitavelmente auto-inteligível e circular, se for verdade que produz a teoria de toda prática teórica, e conseqüentemente (díferentemente de todas as outras ciências) a teoria dè sua própria prática.^) Teorja geral dos cortes epistemológicos, o MD (diferentemente de todas as outras

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/

' J( ciências) deve estar em condições de pensar seu próprio corte; de refletir suá diferença visto que uma ciência só é a ação de­ senvolvida desta mesma diferença.

• O MD recupera desta forma em seu próprio benefício a ideologia da presença da diferença, a ideologia da identidade de transparência. “Capaz de dar conta de si} assumindo-se como objeto” (RTM, 31) o MD difere muito do saber absoluto do** que Althusser o possa admitir, visto que contém em si os ele­ mentos que o possibilitam refletir, além de sua própria essência,sobre a cientifiddade de toda ciência, sua essência invisível mas realizada, e também porque articula os modos de produção teó­ ricos como representações formais de seu próprio processo. O MD corre o grande risco de ser, desta vez com relação ao MH, outra reprodução “filosófica” a mais, a perpetuação da tarefa a qual se dedica a história da filosofia; o impossível encerramento. da abertura científica na ilusão do enclausuramento da ideologia. O MD corre o risco de ser simplesmente a ideologia que o “necessita”. Mas —- e aqui está a segunda lacuna — inclusive nesta perspectiva limitada, as dificuldades são consideráveis, porque o conceito dominante do MD enquanto epistemologia do MH (o conceito de causalidade estrutural) coloca mais problemas do que os resolve. Já mostramos que entre a prática determinante (a prática econômica) e sua “presença” na qualidade de instância no todo, havia uma distorção-unificação bastante enigmática, cuja relação cartesiano-espinozista entre Deus e a idéia adequada de Deus proporciona indubitavelmente o primeiro “modelo”. Aqui, como em Spinoza, o problema continua sendo ó da “dedução” das formas, isto é o da determinação “disso que” é estruturado pela estrutura, disso sobre o qual a estrutura é definida. Pode-se di­ zer inclusive que ela está definida sobre o sistema das instâncias. Mas de início isto coloca o problema da lista ou enumeração das práticas: nem a determinação, que se manifesta na multipli­ cidade articulada das instâncias pelos efeitos de deslocamento, e portanto de limitação de eficácia, nem a dominante a partir da qual se pode pensar a conjuntura ou tipo de unidade existente nas instâncias, permitem produzir o conceito coletivizante das instâncias. A distinção dos níveis de uma formação social (po-.

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lítlcíl) estética, econômica, etc.) está pressuposta na própria consI ruçíío do conceito de determinação, visto que a determinação não í! outra coisa senão a estrutura com dominante definida sobre o conjunto das instâncias.

Então deve existir uma disciplina formal anterior,, a qual catamos inclinados a chamar teoria dos conjuntos históricos, que íidmite pelo menos os registros de “doação” das multiplicidades puras sobre as quais as estruturas vão sendo construídas progresalvamente. . C Esta disciplina, rigorosamente dependente, em seu completo desenvolvimento, da teoria dos conjuntos da matemática, ultra­ passa a simples doação de um processo de domínio, ou de um nistema inicial de diferenças vazias. Vimos que a conjuntura de­ veria ser- pensada como um sistema de “lugares” nos quais as Instâncias articulam-se umas sobre as outras. Partindo deste pon­ to de vista, a dominante (como toda estrutura, segundo Althus-. ser) é essencialmente um distribuidor de lugares e um definidor de funções (LC II, 157). A mesma coisa ocorre com a deter­ minante que é a atribuição, em uma instância determinada, do lugar dominante. A partir disso a construção completa do con­ ceito de determinação pressupõe os seguintes operadores for­ mais: (2T) a) Um conjunto L de lugares, o espaço (vazio), das eficá­ cias combinadas; b) Um conjunto F de funções, ou práticas, que distribuem os espaços (lugares) para as próprias funções, Portanto .essas fun­ ções estão definidas sobre uma parte de F e adquirem seus va­ lores em L: distribuem-ocupam lugares. Definimos as práticas como atribuições de lugares para outras práticas.

A imagem em L de uma função f por outra função fJ cha­ ma-se instância de f segundo fJ, ou “distância de eficácia” / — /í Pode-se considerar de modo particular se ela é definida (se a parte de F sobre a qual / é definida contém /) a instância de f , segundo / mesma (seja f (f)'). Esta é a instância representativa de /: o lugar que f se atribui a si mesma. Um subconjunto H de F (portanto um conjunto de práti­ cas) será chamado historicamente representâvel se são cumpridas as duas seguintes condições:

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I) Uma condição de determinação. Por exemplo: existe em H uma função det () que é uma aplicação biunívoca de H so­ bre L: $et () distribue as práticas de H sobre todos os lugares de L, e se distribue a si mesma. Está representada em L pela det (det). II) Uma condição de dominação. A teoria das condições de dominação já é mais regional, no sentido de que o conceito de causalidade estrutural obtido depende essencialmente do tipo de dominação adotado. O que eu proponho aqui, a título de exemplo, agrava propositalmente a diferença conceituai entre de­ terminação e dominação: uma demonstração simples, que deixa­ mos a cargo do leitor, mostra que a existência representativa da prática determinante não pode ocupar o lugar dominante. Observemos em primeiro lugar que a bi-univocidade de det () permite-nos considerar que em cada lugar de L reside uma prática (caráter acabado de uma formação social). Dada uma. função h de H, definida totalmênte em H, e um lugar l dè L, definiremos h (l) como sendo h (bJ)3 com det(h}) = l. Ou dito de outra forma, h(l) = h(detx — (l)): a funçãotoma por argumento a função que ocupa o lugar l. Desta forma pode-se considerar que uma função h age sobre os espaços (lugares) ao mesmo tempo em que age sobre as fun­ ções que ocupam estes lugares, ocupação atribuída pela determi­ nante: em uma situação dada uma função h (definida sobre H) é considerada como um endomorfismo dos lugares.

Seja agora dom () uma função de H definida sobre H. Va­ mos definir o lugar n-dom por decorrência: l-dom~det (dom) (instância de dom pela determinante) n-dom+dom ( (n-l)-dom) (definida como acima h(p) ) • Percebe-se que dom age primeiro sobre si mesma (porque 2 dom ~dom (dom) ), depois sobre a função enviada por det ao lugar ao qual dom se envia a si própria, depois sobre a fun­ ção que ocupa (sempre pof det) o lugar assim obtido e, assim por diante. Diremos que dom está na posição de. instância dominante se, para cada lugar l existir um número n tal que: * n — dom — l

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Neste caso, uma espécie de volta sobre a instância domi­ nante, volta esta que se realiza sobre a “distância’" de uma prá­ tica h até a determinante (seja d et (Z>), permite percorrer em uma certa ordem — hierarquia das instâncias — o sistema articulado de lugares. Um subconjunto H de F historicamente representável que possui uma só instância determinante e uma só instância domi­ nante será chamado historicamente representado, A partir destas fórmulas e “incorporando” progressivamente os conceitos fundamentais do MH ter-se-á condições, provavel­ mentej de construir o conceito de uma conjuntura. .Sem preten­ der uma materialização ainda maior do que a que se encontra no esquema exposto acima, acreditamos ser ainda necessário situar o intervalo abstrato que separa, no interior do MD, o conceito de prática do conceito de articulação-unidade, e indicar a forma de tratamento do problema.

Acrescentamos ainda que esta sistematização está inacabada c obscura, e sobretudo que Althusser acredita poder prescindir dela. Todo seu esforço está dirigido em obter de início, para uma disciplina sem tradição, o qúe os matemáticos obtém, penosamente através da recente teoria das Categorias: uma determi­ nação direta do conceito de estrutura que deixe de lado o em­ basamento de um conjunto. (28) De minha parte acredito que a prudência, epistemológica pede no momento uma formalização “clássica”. Todo hiperestruturalismo prematuro deixa inevitavel­ mente incòhipleta, e de certa forma nociònal (pré-teórica), a cons­ trução dos conceitos fundamentais do MH (estrutura com do­ minante, estrutura de estruturas, determinação). Creio que no MD o momento da teoria “pura”, dos conjuntos historicamente representáveis deve preceder o da teoria das estruturas históricas, **

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Para finalizar gostaria de destacar a absoluta necessidade e ao mesmo tempo o perigo desse (re)começo do MD. Antes de mais nada devo dizer que na minha opinião não existe atualmente outra possibilidade, se queremos poder falar pelo menos. daquilo através do qual a realidade (silenciosa na teoria) nos interpela e nos torna os “portadores” de funções historicamente determina­ das. Não existe outra possibilidade se queremos pensar aquilo que

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constitui nossa conjuntura política: a desestalinização e a “coexis­ tência pacífica”, ligadas a essa forma de transição regressiva que define o regime soviético; o imperialismo norte-americano e a revolução chinesa, outra espécie de transição. Somente à lucidez epistemológica dos marxistas que traba­ lham em torno de Althusser devemos a possibilidade de repro­ duzir esta conjuntura política em nossa conjuntura teórica e in­ versamente. Se nao fosse por isto seríamos obrigados a repisar sobre as explicações do marxismo vulgar e abandonar a ciência existente, sob todos os seus aspectos, nas mãos da direita formalista e nas dos teólogos da Literatura. A esses marxistas devemos a atualização dos conceitos do MH, e podemos dizer ainda que literalmente os des-cobriram, visto que desde Marx não haviam sido esquecidos, mas sim dis­ farçados, re-inscritos, reprimidos. Por ter-me dedicado ao MD por motivos de necessidade, não falei da ciência da história pro­ priamente dita (porém que se leia Marx: no futuro poderemos fazê-lo), por isso quero mencionar aqui os jemfo.r prestados na própria prática política pelos surpreendentes resultados obtidos por E. Balibar no que diz respeito justamente às formas de tran­ sição (LC II, 277-332). Sem dúvida a teoria da instância política está ainda por ser feita. Mas sabemos que alguns marxistas estão tratando disto; e já é muito que o espaço de tal teoria esteja daramente designa­ do. Neste momento no qual a conjuntura nos impõe, além de ultrapassar a crítica comum do idealismo fenomenológico, pre­ servar, através dás novas formas científicas e nelas mesmas, o rigor racionalista e revolucionário das organizações de classe, e pensar que será atribuído à prática política seu estatuto, tudo isto dá conta de nossa exigência. Contudo a questionadora obra de Althusser está em situa­ ção de ruptura. Em muitos aspectos ela ainda está tomada pelo ressentimento teórico o que a torna às vezes cega a tudo que nela há de tradição filosófica e inclusive ideológica. Cada um de nós deveria, por sua própria conta, desfazer-se, assassinando-a, da maior tirania teórica sob a qual aprendemos a falar: a tirania hegeliana. Mas não é suficiente declarar-se estar fora de Hegel para escapar realmente de um reino maldito onde, como se sabe, não há nada mais fácil do que cantar eterna­ mente no mesmo lugar a canção de adeus.

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Se se resumir provisoriamente a obra hegeliana aos conceiloü correlativos de totalidade e de negatividade, se poderá dizer que existem duas maneiras de se desembaraçar do mestre segun­ do as saídas que obstruem estes dois conceitos. Que o acesso a totalidade nos está vedado é o que estabe­ leceu, com rigor, a primeira crítica kantiana; estabeleceu-o desde íi origem e sem tentar reduzi-lo e nem deduzi-lo do puro fatoÇ2,9') dft ciência. Em muitos aspectos, a dialética transcendental é o lerritório secreto da polêmica althusseriana, É por isto que não devemos nos assustar se tantas explicações, em Lire le Capital.^re­ lacionam o objeto de conhecimento às suas condições’ de pro­ dução (a sua problemática, por exemplo) de um modo que lem­ bra bastante a obra progressiva e inovadora de Kant. Inclusive . quando, para sair do “círculo” empirista que confronta indefini­ damente o sujeito com o objeto, Althusser fala do “mecanismá da apropriação cognitiva do objeto real por meio do objeto de conhecimento” (LC I, 71), não está tão longe do esquematismo que cerca igualmente os problemas de garantia, de “polícia”, do verdadeiro e da questão positiva das estruturas de funcionamento do conceito. A teoria da produção dos conhecimentos é uma for­ ma de esquematismo prático. A filosofia do conceito, esboçada por Althusser como já o tinha sido por Cavailles, assemelha-se muito com a apresentação do campo estruturado do saber como campo multitranscendental sem sujeito. *' ‘ Se agora nos voltarmos para o conceito de negatividade, com tudo o que ele conota (causalidade manifesta, interioridade espiritual da idéia, liberdade do para-si, teleologia parusíaca do conceito, etc.) vemos claramente que sua crítica radical já foi feita há muito tempo por Spinoza (crítica da finalidade, teoria da idéia-objeto, irredutibilidade da ilusão, etc.). A dívida desta vez é pública, reconhecida, e não é preciso insistir nisso. Finalmente, a verdadeira questão é saber se existe compati­ bilidade entre o kantismo do múltiplo que vimos na epistemologiâ “regional” de Althusser, e o espinozismo da causalidade que regula os pressupostos de sua epistemologia “geral”. Ou, em outras palavras, a questão é a da unidade do MD, e até mesmo da sua pura e simples existência como disciplina teórica distinta.

Para que não nos enganemos: Kant e Spinoza podem ser mencionados aqui na medida exata em que se suprime aquilo que

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, poderia superficialmente aproximá-los:, foi suprimido o livro . V da Ética, onde se encontra restaurada no amor intelectual de Deus uma forma de co-dependência do homem ao fundamento : último; foi suprimida a segunda Crítica onde a liberdade abre caminho para o trans-fenomenico. Fica para ser pensada a difí­ cil vinculaçao de uma epistemologia regional, histórica e regres­ siva, com uma teoria global do efeito de estrutura. Althusser, ou para pensar à maneira de Marx, Kant em Spinoza. Esta é a difícil figura alegórica a . partir da qual é preciso decidir se, de fato, o materialismo dialético (re)começa.

* Para facilitar a utilização dos textos de Althusser utilizamos as seguintes nomenclaturas: (LC) Lire le Capital, Maspero, Paris, 1965; (RTM) La revolüción teórica de Marx, Siglo XXI, México, 1967 (MH-MD) movimento/Em sentido rigurado, quer dizer distância entre duas coivolume. ** No original: décalage = deslocamento no tempo e no espaço/Modificação da posição de um órgão fixo em relação à um órgão em movimento/Em sentido figurado, quer dizer distância entre duas coi­ sas: entre o pensamento e sua expressão, por exemplo.

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Louis Althusser Materialismo histórico e materialismo dialético

A DUPLA REVOLUÇÃO TEÓRICA DE MARX

Uma vez colocado como primeiro princípio que nossa ação revo­ lucionária tem por base a doutrina científica marxista, torna-se necessário responder à seguinte pergunta: no que consiste esta doutrina? Aqui tocamos em uma questão sumamente importante. A doutrina marxista apresenta a extraordinária particulari­ dade de estar constituída por duas disciplinas distintas^ unidas uma a outra por razões históricas e teóricas, mas na realidade distintas, uma da-outra na medida em que têm objetos distintos: o materialismo histórico, ou ciência da história, e o materialismo dialético, ou' filosofia marxista. Esta diferenciação tem sido confirmada pela tradição mar­ xista, não obstante tenha sido refutada por alguns teóricos marxistas que, ou a alteraram ou a negaram, reduzindo o ma­ terialismo histórico a materialismo dialético, ou de modo inver­ so, o materialismo dialético a materialismo histórico, como por exemplo o fez Labriolãj o jovem Lukács e, de certa forma, até o próprio Gramsci. Esta alteração se deve ao fato de que a filosofia marxista não deu lugar a obras da amplitude e do rigor de O capital, e a maior parte das obras filosóficas colocam pro­ blemas de interpretação bastante delicados. Por todas estas razões devemos entrar em alguns porme­ nores quais sejam os de definir brevemente ambas disciplinas e colocar o problema de suas relações enquanto coisas distintas.

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O MATERIALISMO HISTÓRICO É A CIÊNCIA DA HISTÓRIA • . Detalhando um pouco mais, podemos dizer que o materialismo histórico tem por objeto os modos de que surgiram eque surgirão na história. Êstuuã suaL estrutura, sua constituição e as formas de transição que permitem a passagem de um modo de produção para outro. A.

O materialismo, portanto, não se reporta somente ao modo de produção capitalista, mas sim a todos os modos de produção, aos quais fornece uma teoria geral. O próprio Marx chama a atenção para isto ao condenar a interpretação de um crítico que considerava que a nova teoria da história referia-se somente à sociedade capitalista e não às formações sociais da antiguidade (Atenas e Roma) e da Idade Média: o materialismo histórico re­ fere-se tanto à antiguidade e ao período medieval como ao mun­ do moderno/ E podemos acrescentar ainda que~ diz respeito igualmente às sociedades, primitivas,. enfim a todos os modos de pro­ dução existentes na história. Todavia, e devemos dizê-lo também, Marx nos forneceu em O Capital a teoria desenvolvida de um só e único modo de produção: o capitalismo. Não nos forneceu a teoria desenvol­ vida de outros modos de produção, tais como o das comunidades primitivas, o escravista, o “asiático”, o “germânico”, o feudal, o socialista e o comunista. Sobre estes modos de produção possuí­ mos apenas algumas indicações e, no melhor dos casos, alguns esboços.

Tampouco nos forneceu Marx — e esta omissão tem uma importância decisiva — alguma teoria sobre as formas de tran­ sição de um modo de produção determinado para outro, aqui também só encontramos indicações e esboços. O mais desenvol­ vido destes esboços diz respeito às formas de transição do modo de produção feudal ao capitalista, particularmente no capítulo de O Capital dedicado a acumulação primitiva. Por outro lado pos­ suímos algumas indicações, preciosas ainda que escassas, sobre certos aspectos das formas de transição do modo de produção capitalista ao modo de produção socialista, e deste ao Comunis­ ta: de modo especial na Crítica ao Programa de Gotha. Marx insiste aí na fase de transição a qual ele chama de “ditadura do proletariado”. Esta última fase é_objeto de numerosasjte-

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flexoes de Lenin, em especial no Q Estado e a Revolução e sobretudo^em seus textos do período revolucionário e pós-revolu­ cionário. A importância do desenvolvimento de uma teoria sobre as formas de transição para o socialismo e o comunismo é algo que nenhum marxista pode deixar escapar. O conhecimento científico destas formas orienta de fato, diretamente, toda a atividade econômica, política, jurídica e ideológica da “constru-ção do socialismo” e da “transição ao comunismo.”'

Ainda se torna necessário um detalhamento maior sobre o materialismo histórico e sobre o que Marx nos forneceu ou dei-c xou de fornecer a respeito. A teoria da história, teoria dos diferentes modos de pro­ dução é, por seu próprio direito, a ciência da “totalidade orgâ­ nica” (Marx) ou a estrutura que constitui toda formação social dependente de um modo de produção determinado. Sendo assim, cada estrutura social compreende, como o explicou Marx, o con­ junto articulado de seus diferentes “níveis” ou “instâncias”: a infraestrutura econômica, a superestrutura jurídico-política e a nuperestrutura ideológica. A teoria da história ou materialismo histórico é a teoria da natureza específica desta “totalidade orgâ­ nica” ou estrutura, e portanto do conjunto de seus “níveis” e do tipo de articulação e de determinação que os une uns aos outros . É a teoria que fundamenta por sua vez a dependência dessa estrutura com relação > ao nível econômico, determinante "cm última instância, e o grau de “autonomia relativa” de cada um dos “níveis”. Na medida em que estes “níveis” possuem tal "autonomia relativa”, podem ser considerados cada um como "um todo parcial”, uma estrutura “regional” e ser objeto de um tratamento científico relativamente independente.

É por isto que se póde legitimamente estudar separada­ mente em um modo de produção dado, — levando em conta esta “autonomia relativa” — seu “nível econômico”, seu “nível político”, ou outra de suas formações ideológicas, filosóficas, es­ téticas, científicas. Esta precisão é de grande importância, pois ó sçbre ela que se estabelece a possibilidade de uma teoria da história (relativamente autônoma e com um grau de autonomia variável, conforme o caso) dos “níveis” ou das realidades respec­ tivas: por exemplo uma teoria da história da política, da filo­ sofia, da arte, das ciências, etc.

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É também sobre ela que está assentada a possibilidade de uma teoria realmente autônoma do “nível econômico” de um modo de produção determinado. O Capital, tal como se nos oferece em sua condição de in­ completo (Marx queria também analisar nele o direito, o Estado e a ideologia do modo de produção capitalista) representa justa­ mente a análise científica do “nível econômico” do modo de produção capitalista. É por isto que é considerado geralmente, e com razão, antes de mais nada como a teoria do sistema eco­ nômico do modo de produção capitalista. Mas como esta teoria do “nível econômico” do modo de produção capitalista pressupõe necessariamente, se não a teoria desenvolvida, ao menos alguns elementos teóricos suficientes so­ bre os demais “níveis” (jurídico-político, ideológico), O Capital' não limita-se somente à economia, vai bem além dela, seguindo o critério marxista da realidade específica do econômico. É por causa deste critério que a economia não pode ser compreendida e analisada em seu conceito somente como um “nível”, uma ’ “região”, inscritos organicamente na totalidade do'modo de pro­ dução considerado. E é por isto que se encontram em O Capital elementos teó”ricos fundamentais para elaborar a teoria das superestruturas (jurídico-política e ideológica), ainda que Marx não nos haja dado esta teoria. Tais elementos, para dizer a verdade, não estão desenvolvidos, mas são suficientes para nos guiar na teoria das superestruturas, se bem que esta não tenha sido nunca posta em execução (é importante a respeito a obra de Gramsci), neín tampouco de longe realizada. Da mesma maneira, é possível se encontrar em O Capital, ainda que Marx não nos tenha fornecido uma teoria dos outros modos de produção nem das formas de transição, elementos teóricos que se- referem a elas, elementos, para dizer a verdade, não desenvolvidos, mas mesmo assim suficientes para nos dirigir em seu estudo teórico. . Por que é tão importante salientar ô que O Capital for­ nece ou deixa de fornecer, o que contém de fato e de direito? Porque a representação que se faz da essência de O Capital de­ termina a representação que se faz da essência da ciência mar-. xis ta da história.

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Se 0 Capital não contém outra idéia que não a do modo do produção capitalista, se permanece teoricamente centrado no presente histórico, se não é nada mais do que a “expressão” deste presente, então sua validade pode ser reconhecida para o preneiite, mas deve ser discutida para o passado e o futuro. No entanto é necessário ir mais longe: é a própria idéia da ciência que está sendo atingida. Se não existe outra ciência que a do “presente”, se toda ciência não é nada mais do que a expressão do seu “tempo”, de seu “presente” então a ciência da história uauá despojada do status das outras ciências e se aproxima, de maneira especial, do status hegeliano da filosofia, que é o da “consciência de si do presente”, ou ainda da “expressão” teórica do presente histórico. Por este caminho pode-se até chegar a tentação de converter a ciência marxista da história em uma tilmples filosofia e de considerar o materialismo histórico como uma filosofia. Se a ciência marxista da história é vista como filosofia, o materialismo dialético torna-se supérfluo ou suspeito de pecado metafísico. Se a,, ciência ..marxista da, hijtoria^é ^por excelência “a expressão de seu tempo”, então o marxismo é pen­ sado como um Iftstoricismo, como unia radicalizarão. do histo­ ricismo hegeliano. Todos estes temas reaparecem de uma forma explícita ou camuflada em algumas interpretações do marxismo, por~ exemplo, no jovem.Lukács ou Gramsci, e em '~ ’ estgõ^s^mpre'i^jlnados a cair no dogmano empirismo, um e outro ideologias da ciência, a qual desconhecem. . Se, ao invés disso, temos, uma idéia correta do que contém ou não O Capital obteremos outra concepção do marxismo, cor­ respondente à idéia que temos de uma ciência.

Neste caso diremos que O Capital não é a “expressão” de seu tempo, mas sim o conhecimento de seu tempo, especialmente da “região econômica” do modo de produção capitalista. Este conhecimento de um modo de produção particular é possível somente pela prática dos princípios teóricos gerais, cujo resultado é, nesta sua condição de princípios teóricos gerais, pro­ duzir o conhecimento dessa realidade particular que é o modo de produção capitalista. Se estudarmos de perto O Capital po­ demos extrair dele esses princípios gerais que vão permitir ela­ borar a teoria de todos os modos de produção possíveis e, por-

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tanto, não só do modo de produção capitalista, senão também de todos os demais modos de produção, passados e futuros. Po­ demos enunciar estes princípios, ver em que condições eles po­ dem ser colocados em prática para o estudo deste modo de pro­ dução particular (q capitalismo) e tirar deles as indicações teó­ ricas sobre as condições que permitem produzir a teoria dos outros modos de produção. Da mesma.forma, os conceitos teó­ ricos que permitiram elaborar a teoria da “região” econômica do capitalismo, uma vez extraídos e enunciados, apresentam-se a nós como princípios teóricos gerais que permitem colocar o problema da natureza'das outras “regiões”, isto é, criar a teoria das superestruturas. xVemos desta maneira que a ciência existente em O Capital não se comporta de um modo diferente que as outras ciências: se afasta da filosofia e se confunde, em seu princípio, com as outras ciências. Deixa de servir de pretexto para uma interpre­ tação “historicista” do marxismo e para a confusão entre mate­ rialismo histórico e filosofia. Uma vez reconhecidos os atributos da ciência da história marxista vai existir lugar para uma filoso­ fia marxista, distinta do materialismo histórico. A teoria cien­ tífica recupera, contra a especulação e o empirismo, seus direitos de teoria e isto torna possível um conhecimento novo da espe­ cificidade da prática científica. Dito de outra forma, o materia­ lismo dialético se faz pensável. B. O MATERIALISMO DIALÉTICO É A FILÔSOFIA MARXISTA A situação privilegiada de Marx na história do saber huma­ no é devida a que ao fundar esta nova, ciência (a ciência da histó­ ria), criou ao'mesmo tempo outra disciplina teórica: o materia­ lismo dialético ou filosofia marxista. Vimos que a caracterização da ciência da história não acon­ tecia sem colocar um certo número de problemas históricos e teóricos. Todavia, estas dificuldades, não são nada, comparáveis às dificuldades com as quais se topa quando se tenta definir o materialismo dialético. Não existe, de fato, nenhuma comparação entre a amplitu­ de e sobretudo o rigor dos textos que 'tratam da ciência da histó­ ria e dos textos que tratam do materialismo dialético. Nem Marx nem seus sucessores nos deixaram nada que possa ser com-

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parado- nem de longe a 0 Capital. Os textos que herdamos além de colocarem problemas delicados de interpretação, não são, teoricamente falando, textos marxistas. Eu estou me referindo aos textos mais explicitamente filosóficos de Marx: sua obra de juventude. Desta forma, posto que nos propomos a definir a filosofia marxista, ficamos numa situação particularmente difícil. Se por um lado, a tradição marxista, afirmada indubitavelmente por Marx, Engels e Lenin, nap nos deixa dúvida alguma quanto a existência de uma filosofia marxista distinta do materialismo histórico, por outro, só recebemos esta filosofia indiretamente e portanto é só indiretamente que.podemos chegar até ela. A filosofia marxista, na realidade, nunca nos é dada em uma forma em que esteja em correspondência com seu objeto. Ela está contida em “estado prático” em O Capital e nos efeitos da atuação dos partidos comunistas, assim como nas reflexões políticas de seus grandes dirigentes, por exemplo Lenin, Está contida em estado implícito na história das causas de Marx ter abandonado a ideologia de sua juventude; apresenta-se a nós de uma forma ainda parcialmente ideológica nos grandes textos polêmicos de Engels e Lenin. Em nenhuma dessas “obras” a filosofia marxista se apresenta a nós de uma forma verdadeira­ mente adequada e rigorosa. Sabemos que existe, sabemos onde encontrá-la, .mas para obtê-la temos que arrancá-la necessaria­ mente dos textos que a contém, inferi-la mediante um trabalho crítico profundo e uma análise rigorosa dos textos e das obras, teóricas e práticas, que nos deixaram. primeiro e maior obstáculo que temos de vencer em nossotrabalho de investigação da filosofia marxista está repre­ sentado pelas obras filosóficas de juventude de Marx. Estas obras foram descobertas por ocasião da III Internacional e são atualment.e_objetp_de uma ^vgrda^eim_ especulação j^eológica e política. Inclusive muitos marxistas que, ao reagirem contra o dogmatismo do período do Uculto”' buscam nelas algo que sa­ tisfaça e sirva de base a seus protestos “humanistas” e a sua ne­ cessidade de “liberdade**. Não obstante Marx tenha afirmado claramente que teve que romper em 1845 com sua “consciência filosófica anterior” e este rompimento está manifestamente de­ clarado nas Teses sobre Feuerbach e em Ideologia Àlema^

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Os textos filosóficos de Marx de 1841 a 1845, incluindo A Sagrada 'Família, estão construídos sobre uma problemática . idealista, naó importa se idealista liberal ou idealista antropoló­ gica, que Marx teve que criticar radicalmente para poder esta­ belecer sua nova teoria da história e a nova filosofia que cor­ responde a ela.

É interessante se apontar aqui quais seriam as conseqüêni. cias teóricas de toda interpretação que considere como marxistas os princípios teóricos básicos (a problemática) das obras de. ju­ ventude de Marx. Pode-se dar três interpretações a eles, as quais vão desembocar na negação da filosofia ratificada pela pro­ clamação do “fim da filosofia” sob as formas da ética, do histo­ ricismo e do positivismo. 1. Alguns textos de juventude de Marx (1842-44) anun­ ciam o fim da filosofia por sua “realização**", supõem que a filo­ sofia não existiu, antes de Feuerbach, a não ser sob uma forma especulativa^ contemplativa, abstrata e idealista, que expressava, sob as formas “alienadas” da especulação, os ideais e as reivin­ dicações da natureza humana. Seria necessário provocar uma revolução no status da filosofia para fazer aparecer e realizar a verdade que contém, acabar com a forma de existência filosófica desta verdade — acabar com a filosofia enquanto espec.ulação separada da vida e do concreto — fazendo-a passar necessaria­ mente para o concreto, isto é realizando-a. Desta., forma a filo­ sofia se torna “prática”, concreta, “real”, e se deslocaria total­ mente para. a política, para a prática revolucionária e para as demais práticas concretas. Em resumo, supõem qüe antes de Marx a missão da filosofia tinha sido a de expressar, sob a forma “alienada” da abstração especulativa, a essência humana, ou seja os ideais humanos através dos quais os homens refletem sobre sua natureza profunda. Com Marx a filosofia passaria à reali­ zação desses ideais e desapareceria enquanto filosofia em sua rea­ lização. A política revolucionária e todas as práticas concretas de transformação do mundo têm que ocupar o lugar da filosofia. Isto quer dizer que já não há mais lugar para a filosofia, que acabou se transformando em pratica concreta. Nestas condições o materialismo dialético desaparece e confunde-se com o mate-. rialismo histórico.

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2. A interpretação historicista baseia-se em outros textos do juventude de Marx, de eco hegeliano. Considera a filosofia romo uma ideologia privilegiada, que tem a função específica de expressar de forma adequada a essencia de um momento histó­ rico. A filosofia, nesta visão, é representada como a consciência adequada de um período histórico, social. Se reconheceria um por um cada período histórico visto que ele estaria expresso de um modo adequado em sua filosofia, e esta seria por sua vez nua consciência e seu conhecimento. Desta forma o cartesianisnio seria a consciência de si das camadas ligadas à manufatura na monarquia absoluta, o iluminismo seria a consciência de si da burguesia ascendente ao poder. E, quanto ao marxismo (e assim o entende Sartre), seria a consciência de si do período contem­ porâneo caracterizado pela hegemonia crescente do proletariado.

3. Em A Ideologia Alemã, em particular, se denuncia a filosofia como pura e simples ideologia, ilusão que deve ser des­ truída para se alcançar os caminhos que levam ao conhecimento científico. A questão do “fim da filosofia” é colocada mas com um sentido diferente daquele da interpretação ética. A filosofia deve morrer não realizando-se, visto que o conteúdo de sua an­ tiga existência especulativa não era nada além de idealista, mas nlm desaparecendo por completo, dissipando-se como uma mera Ilusão. Daí a necessidade de criticar e reduzir a nada a ilusão ideológica da filosofia e se partir para o estudo das coisas “poiiltivas”, isto é, para o conhecimento científico. Qual é então o papel que se atribui à filosofia a partir do momento em que ela perde seu lugar para a ciência? O papel positivista, pura­ mente epifenomênico, da ‘ “agrupação” e “generalização” dos re­ sultados científicos è nada mais do que isto já que a filosofia não tem objeto próprio. Algumas formulações de Engels (em especial na sua popular obra: Ludwig Feuerbach e o Fim da Fi­ losofia Clássica Alemã) fornecem o pretexto para esta interpre­ tação positivista, o mesmo ocorrendo com certa linguagem, de uso muito corrente nos partidos comunistas, que considera a “ge­ neralização” da experiência das “massas” como um conhecimento. No entanto um conhecimento não se reduz nunca a uma simples generalização, é o empirismo positivista que caracteriza a “gene­ ralização da experiência” como um conhecimento. Através deste desvio interpretativo a filosofia marxista. perde todo direito de existência e passa a não existir para nós nada além do materia­ lismo histórico.

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Para poder colocar o problema da natureza da filosofia mar­ xista é necessário que se comece por eliminar todas estas tenta­ ções que oferecem as obras de juventude de Marx e certos textos - de A Ideologia Alemã, É evidente que para^ se eliminar essas tentações é necessário um rigoroso trabalho de crítica histórica e teórica. Mas este trabalho, ainda que decisivo, não é suficiente, Para se chegar à filosofia marxista é preciso transpor outro obstá­ culo: o da forma na qual outros célebres textos nos apresentam esta filosofia.

Os textos de Marx dos quais dispomos são frequentemente enigmáticos (as Teses sobre Feuerbach), deliberadamente polêmi­ cos (A Ideologia Alemã, Miséria da Filosofia), ou bastante omis­ sos {Introdução à Contribuição a Critica da Economia Política, de 1857). O texto mais importante é mais um texto de meto­ dologia do que de filosofia: o Posfâcio da segunda edição alemã de O capital, no qual se encontram as famosas passagens sobre a dialética. Nao temos nada de Marx que. seja, nem de longe, equivalente a O Capital. Quanto às obras filosóficas de Engels {Anti-Dühring, Dialé­ tica da Natureza, Ludwig. Feuerbacb) e as de Lenin {Materialis­ mo e empirocriticismo, Cadernos filosóficos) nao se situam ao nível teórico de O Capital. Para compreender esta diferença de nível é necessário que se saiba que os grandes textos de Engels e Lenin, principalmente. Anti-Dubring e Materialismo e empiro­ criticismo, foram concebidos e realizados como medidas defensi­ vas urgentes contra graves ataques e desvios ideológicos. Tanto Engels como Lenin se viram obrigados, segundo eles mesmos dizem, a “seguir seus adversários”, a “conhecer o seu terreno”: o da ideologia. Lutando com qs meios de que dispunham, e que incluíam as armas do adversário que utilizavam-para atacá-los, engendraram uma luta ideológica inspirada sem dúvida nos prin­ cípios da filosofia marxista. Estes textos transformados em ele­ mento da ideologia filosófica estão marcados pelas circunstâncias de sua composição: polêmicos, par.cialmente ideológicos, não po­ dem ter a pretensão de alcançar q nível de elaboração teórica e de sistematização, e por conseguinte a cientificidâde, de uma obra como O Capital.

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Entre o materialismo histórico e as formas do materialismo dialético que nos legou a tradição marxista existe uma conside­ rável desigualdade de nível e de rigor teórico. Devemos estar conscientes disto e tirar as conclusões devidas. É indispensável, portanto, um .enorme trabalho de crítica para extrair dos textos de Engels e Lenin os princípios da filo­ sofia marxista. Esta crítica, combinada com a crítica das obras de juventude, pode ser um preâmbulo para o estudo de obras nas quais a filosofia marxista existe realmente, principalmente em O Capital. Lenin compreendeu perfeitamente isto, quando declarou que teria que investigar a lógica presente em O Capital para chegar à filosofia marxista. Novamente nos vemos na ne­ cessidade de formular esta exigência: é no estudo de O Capiial\ que estão latentes nao só o desenvolvimento necessário do' ma­ terialismo histórico, como também a constituição e a definição rigorosa do materialismo dialético. O materialismo dialético é uma disciplina teórica distinta do materialismo histórico. A distinção entre estas duas discipli­ nas repousa na distinção que existe entre seus objetos. O objeto do materialismo histórico está constituído pelos modos de produção, sua organização, seu funcionamento e suas transformações. O objeto do materialismo dialético está constituído pelo que Engels chama “a história do pensamento”, ou o que Lenin denomina “a história da passagem da ignorância ao conhecimentp”. Podemos ser mais precisos e designar este objeto como a história da produção de conhecimentos enquanto conhecimen­ tos/ definição que abrange e resume outras possíveis definições: a diferença histórica entre ciência e ideologia, a teoria da histó­ ria da cientificidade, etc. Todos estes problemas ocupam em geral o campo chamado na filosofia clássica, “Teoria do conhecimento”. Essa nova teo­ ria não pode ser mais o que era na teoria clássica do conheci­ mento, ou seja uma teoria das condições formais intemporais do conhecimento, do cogito (Descartes, Husserl), das formas “a priori” do espírito humano (Kant), nem uma teoria do saber absoluto (Hegel). A nova teoria só pode ser uma teoria da história da produção dos conhecimentos, isto é, uma teoria das condições reais (materiais e sociais de um lado, e condições in­ ternas à prática científica, de outro) do processo desta produção.

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Além dissoa nova teoria modifica completamente o pro, blema tradicional da “teoria do conhecimento”: ao invés de co­ locar a questão das garantais do conhecimento, coloça a questão do mecanismo de produção de conhecimentos enquanto conheci­ mentos,

Para pensar -a natureza específica da prática produtora de conhecimentos, a filosofia marxista deve ter desta prática uma concepção diferencial, isto é, deve pensar necessariamente a re­ lação existente entre esta prática e as outras práticas e ao mesmo tempo pensar a natureza específica destas outras práticas: eco­ nômica (transformação da natureza), política ’ (transformação das relações sociais) e ideológica (transformação das “formas de cons­ ciência social”). Deve pensar também, e isto lhe diz respeito, nos tipos de determinação (articulação) próprios, que vinculam entre si as diferentes práticas e explicam, por exemplo, a auto­ nomia relativa da prática ideológica e da prática científica. Por causa de sua*perspectiva e em função de seu próprio objeto, o materialismo dialético abarca também problemas que correspondem ao materialismo histórico. Esta mistura parcial po­ deria fazer renascer, se se considerar o problema de maneira su­ perficial, a hipótese da identidade dos objetos do- materialismo histórico e do dialético. Mas na verdade, o materialismo dialético considera as diferentes práticas e suas articulações de um ponto de vista que nao é o do materialismo histórico, isto é, em função de um objeto distinto. O materialismo dialético não se refere às diferentes práticas, exceto com relação ao aspecto da inter­ venção delas na produção de conhecimentos. Não se refere a elas como instâncias constituintes dos modos de produção, o que é objeto do materialismo histórico.

Para expor com toda clareza a diferença de objeto que dis­ tingue estas duas disciplinas, diremos que o termo definitivo da análise, no materialismo histórico, se refere à teoria da produção do “efeito de conhecimento” por uma prática teórica dada. Se certos termos sãó comuns em ambas disciplinas, a diferença das práticas intervem nelas diferentemente sob a forma de combi­ nações distintas e como resposta a questões distintas, Logo, o objeto do materialismo dialético é, sem dúvida alguma, dife­ rente do objeto do materialismo histórico.

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Para deixar bem claro que a filosofia marxista, diferentemente da ideologia filosófica com a qual rompe, tem caracterís­ ticas totalmente comparáveis as de uma ciência, diremos, que, como toda disciplina de caráter científico, se manifesta sob dois aspectos: 1. Uma teoria, que contém o sistema conceituai teórico no qual se pensa o objeto. 2. Um método que expressa a relação que mantém a teoria com seu objeto na sua aplicação ao mesmo. % cSendo assim, teoria e método estão profundamente unidos e constituem dois aspectos de uma mesma realidade: a disciplina científica em seu corpo de conceitos (teoria) e em sua vida,’ sua prática mesma (método). Contudo é bastante importante insistir, ao mesmo tempo, nesta identidade e nesta distinção. O que vemos prevalecer comumente no momento é uma con­ cepção “metodologista” (e portanto ideológica) das ciências: a existência de um simples método suficiente para conferir à uma disciplina seus predicados de cientificidade. Na realidade' todo método comporta uma teoria, esteja ela explícita ou implícita.

Falar do método sem mencionar a teoria significa, frequen­ temente, ocultar uma teoria ideológica latente sob as aparên­ cias de um método “científico”. Este embuste tem sido freqüente em nossos dias na maior parte das chamadas ciências humanas, que frequentemente consideram-se ciências porque ma­ nipulam, por exemplo, métodos matemáticos, sem se colocar a questão da validade de seu objeto, ou seja sem se colocar a questão da teoria (explícita ou implícita) relativa a este objeto. O materialismo não está livre desta tentação “metodologista”, na qual a teoria (materialismo) sacrifica-se nas aras do método (dia­ lética): a interpretação sartriana do marxismo nos oferece uma de suas variantes. É importante pois, distinguir (para pensar sua unidade) a teoria do método. É a única forma dê hão se cair em confu­ sões que possam dar lugar a uma interpretação metodologista' (na qual o método absorve a teoria, sem deixar de ser pm sim­ ples reflexo da teoria na prática teórica) ou a uma interpre­ tação dogmática (na qual a teoria se considera acabada) ou, ainda, se nega a existência da teoria em sua aplicação a seu obje­

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to: o método. Estas confusões não são imaginárias, existiram e ainda existem na história teórica e prática do marxismo. O período do “culto à personalidade” nos ensinou os perigos do dogmatismo no qual se consideravam como acabadas a ciência e a filosofia marxista e no qual se sacrificava o método por uma teoria que era, na verdade, esquemática. Pode ser que isto nos tenha tornado menos sensíveis à uma interpretação metodologista do marxismo, tentação esta que apa­ rece em Gramsci, por exemplo. Este é um dos efeitos da redu­ ção do materialismo dialético ao materialismo histórico e da con­ cepção “historicista” do marxismo.

Assim, não deixa de interessar o oferecer de algumas indi­ cações sobre a distinção e o conteúdo da teoria e do método. No materialismo dialético pode-se esquematicamente consi­ derar que é o materialismo o que representa o aspecto da teoria^ enquanto que a dialética representa o aspecto do método, mas isto sem deixar de ter bem presente que cada um de ambos os termos nos remete ao outro, ao qual inclui.

O materialismo expressa os princípios das condições da prá­ tica que produz o conhecimento. Seus dois princípios fundamen­ tais são: 1. A primazia do real sobre seu conhecimento, ou prima­ zia do ser sobre seu pensamento. 2. A distinção entre o real (o ser) e seu conhecimento. Esta distinção de realidade é correlativa de uma correspondência de conhecimento entre o conhecimento e seu objeto.

Geralmente se insiste sobre o primeiro princípio e, o se­ gundo, que é sem dúvida essencial (como Marx bem o revelou em sua Introdução à Contribuição a Critica da Economia Polítical1857'), nem sempre é demonstrado e até acontece casos em que ele é substituído pelo princípio idealista da identidade entre o pensamento e o ser. O segundo princípio é muito importante: protege o mate­ rialismo de uma dupla caída no idealismo, isto é, tanto no idea­ lismo especulativo (que reduz o ser ao seu conhecimento), como no idealismo empirista (que reduz o conhecimento ao seu objeto real).

Além disso, se este segundo princípio for assumido com seriedade, vai apresentar outra particularidade que é a de que ele

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exige um complemento teórico: a distinção materialista entre o objeto e seu conhecimento implica necessariamente a presença teórica da história da produção desta diferença e de seu efeito (a correspondência de conhecimento). É por isso que o mate­ rialismo é necessariamente dialético. É a história, sob a forma da dialética, que está presente como categoria que constitui o próprio materialismo, não a história no sentido ideológico mas sim no sentido teórico. Isto significa que os dois princípios do materialismo podem ser entendidos como princípios, de uma relação interior ao processo de uma história da produção de conhecimentos, e não como princípios que feriam valor por si mesmos e que se aplicariam, conseqüentemente, exteriormente a diferentes objetos, sendo um deles a história. Vemos assim que desde as premissas de sua definição o materialismo marxista inclui a dialética.

Esta mesma dialética reaparece agora, sob todos os aspectos, no método. desta teoria, Nao deve nos surpreender a circunstância de que seja uma verdade de fato que o materialismo dialético só pode produzir conhecimentos sob a lei que rege , todo processo produtor de co­ nhecimentos: a lei do conceito de história. O que é o método na verdade? É a forma de aplicação da teoria no estudo de seu objeto, é portanto a forma de existência da prática teórica em sua produção de novos conhecimentos. f Sendo assim, esta pro­ dução é a de um processo de reprodução e de produção que, como tal, tem a forma de uma História. Dizer que o método do materialismo dialético é a dialética é o mesmo que dizer que a produção de conhecimentos, mediante a aplicação da teoria do materialismo a seu objeto (que é a história considerada em si mesma), toma necessariamente a forma de uma história cujos mecanismos revelam a dialética. Vemos assim que o materialis­ mo reencontra duas vezes a dialética: em seu objeto, qué é a história da produção de conhecimentos, e na sua própria prática já que ele mesmo é uma disciplina que produz conhecimentos. O que distingue a dialética marxista de toda dialética ante­ rior, principalmente da platônica e da hegeliana, qualificadas como idealistas, é que a dialética marxista é necessariamente ma­ terialista. Vimos que esta distinção tem fundamento ainda que seja necessário aprofundá-la. De fato, quaisquer que sejam as

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relações históricas que se possam invocar entre o .materialismo marxista e esses materialismos “metafísicos” ou “mecanicistas” de um lado, e entre a dialética marxista, e a hegeliana, de outro, vai persistir uma diferença de essência fundamental entre a filo­ sofia marxista e todas as. demais filosofias. Nó. momento atual, a tarefa que os filósofos marxistas de­ vem encarar é de justamente atualizar cuidadosamenté esta dife­ rença, definir e pensar o mais rigorosamente possível esta dife­ rença específica. Vamos precisar melhor: não se trata de pensar esta diferença pelo mero prazer de criar uma obra erudita, mas sim de pensar, através destas diferenças, as categorias específicas da dialética marxista, naquilo que as distingue radicalmente das estruturas da dialética hegeliana.. Sabemos que Marx não pode concretizar esta tarefa a qual atribuía uma importância funda­ mental. Em nossa experiência histórica passada, e também na presente, tivemos motivos e ocasiões suficientes para reconhecer a urgência desse trabalho de investigação teórica, para insistir em sua importância, pois o mesmo determina a posição e por­ tanto a solução de numerosos problemas. É necessário para nós continuar a obra de Marx e terminar o que ele não pode, ex­ traindo rigorosamente todas as conclusões da obra que nos foi legada. Ao fundar o materialismo dialético, Marx produziu em filo­ sofia uma obra tão revolucionária como a que produziu no campo da história ao fundar o materialismo histórico, mas devemos ter sempre em mente que a filosofia marxista está em seus começos, Seus progressos dependem de nós. PROBLEMAS CAUSADOS PELA EXISTÊNCIA DO MATE­ RIALISMO HISTÓRICO E DO DIALÉTICO COMO DUAS •DISCIPLINAS DISTINTAS

A .existência conjunta destas duas disciplinas, ou seja o mate­ rialismo histórico e o materialismo dialético, suscita dois pro­ blemas :

a) Porque o estabelecimento do materialismo histórico pro­ vocou necessariamente o estabelecimento do materialismo dialé­ tico? b) Qual é a função específica do materialismo dialético, quais são suas relações com as ciências e, em particular, com o materialismo histórico?

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'Pergunta a) Podemos dizer, de modo bastante esquemático, que o estabelecimento do materialismo histórico, ou ciência da história, trouxe necessariamente consigo o estabelecimento do materialismo dialético devido ao seguinte princípio: Sabe-se que na história do pensamento humano a fundação de uma nova ciência importante sempre alterou e renovou a filo­ sofia existente. Assim sucedeu com as matemáticas gregas que influenciaram bastante na modificação teórica que desembocou na filosofia de Platão; com a física moderna que provocou as revoluções teóricas das quais resultaram a filosofia dé Descartes (depois de Galileu) e mais tarde a de Kant (depois de Newton); com a invenção do cálculo infinitesimal que provocou em grande proporção a modificação filosófica de Leibnitz; e com a lógica matemática moderna, que obrigou Husserl a tomar o caminho da fenomenologia transcendental. Pode-se dizer que o mesmo processo aplica-se à obra científica de Marx: a ciência da histó­ ria provocou uma revolução na filosofia, que engendrou o nasci­ mento do materialismo dialético.

Contudo temos que ir mais longe e mostrar que, com rela­ ção aos exemplos históricos que acabamos de citar, a filosofia de Marx ocupa um lugar privilegiado na história da filosofia. Guardadas as devidas proporções, a nova filosofia fundada por Marx está relacionada às filosofias clássicas na mesma proporção que uma nova ciência que acaba de ser fundada está relacionada à sua pré-história ideológica. A revolução de Marx não tem lu­ gar, como as revoluções anteriores, dentro do campo da ideologia filosófica. Muito pelo contrário, apresenta a característica, .única na história da filosofia, de romper com esse passado ideológico e de estabelecer a filosofia sobre bases novas, que lhe conferem uma forma de objetividade e rigor teóricos somente compará­ veis aos de uma ciência. Dessa forma, a revolução teórica que fundou a ciência da história teve o efeito de desencadear ao mes­ mo tempo uma revolução teórica na filosofia que fez passar a filosofia do estado de ideologia ao estado de disciplina científica. Como explicar a necessidade desta concatenação?. Podemos dizer que Marx fói, por assim dizer, obrigado, por uma lógica implacável, a fundar uma filosofia nova, revolucionária com re­ lação às filosofias clássicas, por causa do caráter bastante parti­ cular da nova ciência que ele havia instaurado: a ciência da his­ tória.

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Uma ligação muito profunda une efetivamente o objeto da nova ciência à revolução filosófica sem precedentes que ela cau­ sou. Isto aconteceu pela primeira vez na história, na medida em que nenhuma ideologia nem filosofia anterior havia sido capaz de pensar.

Para produzir sua teoria da história Marx enfrentou a ne­ cessidade de criticar e repelir todas as formas de filosofia (ideo­ lógicas) da história. Teve que romper com todas as tradições anteriores, religiosas e filosóficas, que haviam culminado na filo­ sofia hegeliana da história. Assim sendo, Marx, no decurso deste enorme trabalho crí­ tico, percebeu que existia uma ligação bastante profunda e oculta entre as teorias clássicas de conhecimento e a filosofia da histó■ ria. As filosofias clássicas, incapazes de explicar a realidade da história da produção dos conhecimentos, alteravam, deslocavam e elevavam a história, separada da teoria do conhecimento, para uma filosofia da história -idealista, destinada a preencher esse vazio. A partir de sua crítica das filosofias da história Marx des­ cobriu uma ligação oculta entre o idealismo da teoria- clássica do conhecimento e a filosofia da história: as teorias do conheci­ mento eram idealistas na mesma proporção em que falavam e encobriam a realidade da história. ~ —

As teorias • do conhecimento continham essa falha incluída ém sua própria problemática, isto é, no corpo de seus conceitos teóricos, e de forma especial nos conceitos de sujeito e objeto. O que Marx achou de falso ou vazio nas filosofias clássicas poderia ser tratado de maneira positiva, pela primeira vez na história do saber humano, como um objeto de conhecimento (e logo, não como um objeto ideológico) em sua ciência da história. No campo da ciência da história, Marx via não só a histó­ ria dos modos de produção (no sentido econômico restrito) como também a história do conjunto das “instâncias” constituintes de um modo de produção; não só a economia e a política, como também as diferentès ideologias, entre as quais se encontra a filosofia, especialmenté a filosofia da história, analogamente às diferentes formas de saber que se separam de sua base ideológi­ ca, adotando a forma de ciências.

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Pensando cientificamente a realidade da história, Marx se viu no dever e em condições de pensar igualmente a história das ideologias, e particularmente da filosofia, assim como a his­ tória da produção de conhecimentos, As filosofias apresentavam-se a ele como formações teóricas, que, ao anunciar a ‘ver­ dade”, desempenhavam também uma função social e pertenciam de direito à história: ao mesmo tempo à história social da huma­ nidade e à história da produção do saber humano. Por isso ele •se viu obrigado a modificar o antigo estado da filosofia, para poder abranger seu novo objeto, que. era descoberto através jde sua teoria da história. Por isso a história entrou por seus pró­ prios meios e por direito próprio na filosofia, não somente para explicar e criticar a função social das filosofias ideológicas clás­ sicas, mas também para constituir o novo objeto da filosofia. Ao deixar de ser “teoria do conhecimento” este novo objeto se con­ verteu em teoria da história da produção de conhecimentos. As filosofias idealistas clássicas, da mesma forma que as “materialistas” pré-marxistas, eram incapazes de pensar a histó­ ria e portanto sua própria história; e isto acontece não somente pelo fato de terem aparecido em um determinado momento da história, mas também pelo fato de pertencerem a uma história, de terem, atrás delas um passado histórico, fundado na relação da história da filosofia com a história das práticas humanas. A partir do momento em que se produziu^um verdadeiro conheci­ mento da história, a filosofia não pode continuar desconhecendo, repelindo nem desviar sua relação com a história, teve que assu­ mir e pensar esta relação. Teve que “mudar de terreno”, adotar uma nova problemática, definir seu objeto através de novas ques­ tões, para pensar na própria filosofia, sua relação com a histó­ ria ao mesmo tempo que pensa sua relação com o conhecimento. Por isso, as filosofias anteriores, assim como as posteriores, eram repelidas. A grande tradição da filosofía critica, desde Des­ cartes até Kant, e atualmente Husserl, era combatida principal­ mente porque tratava o conhecimento como um “problema” e colocava nele a questão de sua “garantia” de direito, ao passo que o conhecimento não é seúão o processo de sua própria pro­ dução, e só se pode colocar a questão das condições e do meca­ nismo de sua produção.

As filosofias dogmáticas clássicas, as ontologias antigas e modernas que não colocam nenhuma quentão ao conhecimento

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foram repelidas com muito mais razão. A impotência de todo o passado filosófico, de toda a filosofia ideológica anterior para pensar a história dos conhecimentos, separava radicalmente a nova filosofia de sua pré-história. As outras transformações ou revoluções ocorridas na filosofia, ligadas ao aparecimento de uma ciência (matemática ou ciêúcia natural) nunca abordaram, mas sempre dissimularam, o problema da história. Recorreram sempre ou a uma negação ideológica da realidade, da própria existência da história, sublimada em Deus (Platão, Descartes, Leibnitz) ou a uma concepção ideológica da história, concebida como realização da própria filosofia (Kant, Hegel, Husserl). Nun­ ca conseguiram considerar seriamente e pensar a realidade da história. Aqui está a razão porque existe entre essas filosofias, dog­ máticas, empiristas, críticas, filosofias do homem, do sujeito trans­ cendental ou do saber absoluto, de um lado, e a filosofia mar­ xista de outro, um verdadeiro corte epistemológico, comparável aquele que separa toda ciência nova de sua pré-história ideoló­ gica. Aqui está a razão que separa toda ciência nova de sua pré-história ideológica. Aqui está a razão porque a revolução filosófica de Marx é só comparável em parte às revoluções filo­ sóficas anteriores. Antes de Marx o aparecimento de uma nova ciência causava uma alteração ou uma revolução da filosofia, mas no espaço da ideologia filosófica, cujos prin­ cípios fundamentais ainda persistiam sob as modificações teó­ ricas. O surgimento da ciência da história, com Marx, faz com que a filosofia experimente uma revolução que a possibilita es­ capar do elemento ideológico e dá a ela as características de uma disciplina científica. Não é casual, sem dúvida, que as ciências matemáticas e naturais tenham transformado a filosofia somente no interior da ideologia, enquanto que o aparecimento da pri­ meira ‘ciência humana” (a ciência da história), por ampliação,: ciência humana fundamental; tenha causado esta ruptura revolu­ cionária e que Marx teve que romper explicitamente com as filo­ sofias clássicas e com as filosofias da história para criá-la. Tam­ bém não é casual que sua criação tenha provocado, por uma ne­ cessidade absolutamente decisiva, o advento de uma filosofia radicalmente nova. '

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Pergunta h) Quanto à função própria da filosofia, as suas relações com as ciências e particularmente com o materialismo histórico repousam também sobre profundas razões teóricas,

Estas foram expostas com muita clareza por Engels no Anti-Dühring e sobretudo em certas passagens dos manuscritos da Dialética da Natureza, e também por .Lenin em Materialismo e Empiroçriticismo. Consideram que a filosofia desempenhou sem­ pre um papel importante e às vezes decisivo na constituição e no desenvolvimento dó conhecimento, desde suas formas mera­ mente ideológicas até suas formas científicas. A filosofia mar­ xista não faz mais do que assumir esse papel por sua própria conta, mas com meios que eram, em sua própria origem, total­ mente distintos, muito mais puros e fecundos. x

Sabemos que o conhecimento, que em seu sentido, mais ge­ ral é o conhecimento científico, não nasce nem se desenvolve em um compartimento fechado, protegido por não se sabe qual milagre de todas as influências do meio ambiente. Entre essas influências estão as sociais e políticas que podem intervir dire­ tamente na vida das ciências, comprometer gravemente o curso de seu desenvolvimento e até ameaçar sua existência. Mas exis­ tem influências menos visíveis, igualmente perniciosas e inclu­ sive mais perigosas, pois.passam desapercebidas: são as influên­ cias ideológicas. . . Marx pode criar a ciência da história porque rompeu, ao término de um vigoroso trabalho de crítica, com as ideologias da história existentes.' E sabemos também pela luta de Engels contra Dühring e de Lenin contra os discípulos de Mach que, depois de fundada por Marx á ciência da história não pode esca­ par ao assédio das ideologias, de suas influências. e agressões. De fato todas as ciências, tanto as sociais quanto as naturais, estão constantemente submetidas ao assédio das ideologias exis­ tentes, especialmente dessa ideologia aparentemente não ideoló­ gica na qual, o sábio reflete “espontaneamente” na sua própria prática: a ideologia empirista ou positivista.

Como dizia Engels, todo sábio, queira ou não, pratica ine­ vitavelmente uma filosofia da ciência e, portanto, não pode pres­ cindir da filosofia. Todo problema consiste então em saber que filosofia deve ter por companheira: uma ideologia que deforme sua própria

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prática científica, ou uma filosofia rigorosa que a explique e a compreenda? Uma ideologia que o escravize por seus erros e ilusões ou, pelo contrário, uma filosofia que lhe abra os olhos, liberte-o dos mitos e lhe permita dominar realmente sua prática teórica e seus efeitos? A resposta não deixa lugar a dúvidas. Tal é, em princípio, a razão que justifica o papel da filosofia marxista com relação aos conhecimentos científicos. Uma ciência que se apoie em uma falsa representação das condições de sua prática teórica e da relação desta prática com as demais, corre o perigo de retardar seu avanço ou de entrar em um beco sem saída, ou ainda de pensar que suas próprias crises de crescimento são crises da ciência enquanto tal, dando opor­ tunidade a que surjam todos os tipos de especulações ideológi­ cas e religiosas. Temos exemplos recentes disso com a “crise da ciência moderna”, analisada por Lenin. Além disso, quando uma ciência está a ponto de nascer corre o perigo de colocar a ser­ viço de seus erros inevitáveis a ideologia da qual se nutre. Disto temos exemplos evidentes nas chamadas ciências “humanas”, que frequentemente não são mais do que téncicas, freiadas em seu desenvolvimento pela ideologia empirista que as domina, que lhes veda distinguir seu verdadeiro fundamento, definir seu objeto e at£. a buscar e encontrar em disciplinas, que ainda que existam são repelidas por interdições ou préjulgamentos ideológicos, seus verdadeiros princípios de base. . E aqui estou pensando no ma­ terialismo histórico, teoria fundamental para a maior parte das ciências “humanas” possíveis e que praticamente foi proscrita da história destas. Por não estarem embasadas pelos princípios do materialismo histórico e suás conseqüências, a maioria das “ciên­ cias humanas” continuam prisioneiras do empirismo ou submeti­ das aos objetivos dos quais elas são as técnicas. Em ambos os casos lhes falta seu objeto e são quase incapazes de construir a teoria desse objeto. Como tirá-las desta condição sem o auxílio de uma filosofia que critique seus princípios ideológicos ou téc­ nicos e que lhes ajude a estabelecer com todo rigor o problemía de seu objeto e por conseguinte de sua teoria?

O que é válido para estas ciências é válido para o próprio materialismo histórico, que é uma ciência como outra qualquer e que neste sentido não goza de nenhum privilégio de imunidade. O materialismo histórico também está constantemente ame-a- • çado pela ideologia. dominante e já conhecemos o resultado: as

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diferentes formas de revisionismo que, em sua origem e qualquer que seja a forma de sua existência (econômica, política, social, teórica), estão sempre relacionados com desvios de caráter filo­ sófico, ou seja pela influência direta ou indireta de filosofias ideo­ lógicas. Lenin mostrou isso claramente em Materialismo e Empirocriticismo ao afirmar que a razãó de ser do materialismo dia­ lético consiste em proporcionar princípios que permitam distinguir a ideologia da ciência e, portanto, evitar os ardis, da ideologia inclusive nas interpretações do próprio materialismo histórico. O próprio Lenin demonstrou que o que ele denominou de “espírito do partido em filosofia”, ou seja o rechaço de toda ideologia fe a consciência correta das exigências de cientificidade, era uma exi­ gência vital para a existência e o desenvolvimento não só das ciências naturais, como também das ciências sociais e principal­ mente do materialismo histórico. Se tem dito, com muita razão, que o marxismo é como teoria “um guia para a ação”. Ele pode ser um “guia”, porque é uma ciência, mas é só por isso. Para adotar a mesma imagem, e tomando todas as precauções indispensáveis para esta compa­ ração, pode-se dizer que em inúmeras circunstâncias também as ciências necessitam de um “guia”, não de um guia falso mas sim de um verdadeiro guia. E entre as ciências, o materialismo his­ tórico, mais do que qualquer outra, necessita de um “guia”. Este “guia” das ciências nao pode ser outro que um “guia” qualificado teoricamente: o materialismo dialético.

O materialismo dialético não está acima das ciências, ele nao é senão a teoria de sua prática científica. Se não estivesse constantemente submetido às ciências, se não estivesse atento a todos os acontecimentos, a todas as revoluções que caracterizam a existência das ciências, ele simplesmente nao existiria. Porém, na medida em que restitui às ciências, em forma de conhecimen­ tos da história das condições e da dialética de sua própria prá­ tica, o que recebeu delas, acrescenta algo essencial aos conheci­ mentos produzidos pelas ciências. Neste sentido, o materialismo, dialético pode em certas ocasiões servir de “guia” para elas, e em outras, de “guardião” vigilante, visto que ele mesmo não é mais do que teoria, o conhecimento do que constitui a cientifi­ cidade das ciências. . E como não existe outro “guia” acima do materialismo dia­ lético, compreende-se porque Lenin atribuía uma importância decisiva à tomada de posição científica em matéria de filosofia,

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que assumia, para ele, o caráter de uma verdadeira “tomada de posição política”. Compreende-se que, ao desempenhar esse, pa­ lpei, o materialismo dialético exija a mais elevada consciência, o 'mais alto rigor científico, a mais elevada vigilância teórica, visto que no dominio teórico ele é o último recurso, a última instân­ cia possível para os homens que, como os marxistas, se liberta­ ram dos mitos da onisciência divina ou da forma profana da re­ ligião: o dogmatismo..

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Louis Althusser Observação à segunda edição francesa de “Ler O Capitar1

1. Esta edição de Ler O Capital é, em muitos aspectos, dife­ rente da primeira edição, • Por um lado é uma edição parcial porque, para permitir sua publicação em formato reduzido, suprimimos algumas im­ portantes contribuições (os textos de Ranciére, Macherey e Establet). Por outro é uma edição revista e corrigida, e por. isto, de certo modo, nova: yárias páginas, especialmente no texto de Balibar, são inéditas èm francês, Todavia as retificações (cortes e aumentos) a que submete­ mos o .texto original não se referem nem à terminologia, nem às categorias e conceitos que utilizamos, nem às suas relações internas, nem consequentemente à interpretação geral que demos da obra de Marx. Diferente da primeira, esta edição de Ler O Capital, abre­ viada e melhorada, reproduz e representa assim, estritamente, as posições teóricas do texto original. 2. Esta última precisão era obrigatória. De fato, por respeito ao leitor e por pura honestidade, quisemos respeitar integral­ mente uma terminolqgia e posições filosóficas e que todavia ago­ ra nos parece indispénsável retificar em dois pontos precisos.

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Apesar das precauções tomadas para distinguir-nos da ideo­ logia “estruturalista” (temos dito de maneira muito clara que a “combinação” que se encontra em Marx “não tem nada a ver com uma combinatória”), apesar da intervenção decisiva de ca­ tegorias alheias ao “estruturalismo” (determinação em última ins­ tância, dominação, sobredeterminação, processo de produção etc.), a terminologia que empregamos estava sob diversos aspectos bas­ tante próxima a terminologia “estruturalista” de forma a não causar equívoco. Disto resulta que, salvo raras exceções — a de algumas críticas perspicazes que notaram a diferença — nossa interpretação de Marx tem sido reconhecida e julgada freqüen-. temente, em homenagem à moda reinante, como “estruturalista”. Pensamos que a tendência profunda de nossos textos não se vincula, apesar dos equívocos da terminologia, com a ideologia “estruturalista”. Esperamos que o leitor queira recordar esta afir­ mação, colocá-la à prova e ratificá-la. Pelo contrário, temos agora todos os motivos para pensar que uma das teses que havia desenvolvido sobre a natureza da filosofia revela, apesar de todas as. precisões apresentadas, uma clara tendência “teoricista”. Mais precisamente,, a definição (dada em A Revolução Teórica de Marx e retomada no Prefácio de Ler O Capital) da filosofia como teoria da pratica teórica é uni­ lateral e inexata. Neste caso não se trata de um simples erro de terminologia e sim de um erro na própria conceituação. Defi­ nir a filosofia de maneira, unilateral como Teoria das práticas teó­ ricas (e conseqüentemente’como Teoria da diferença das práticas) é correr o risco de provocar efeitos e ecos teóricos e políticos, sejam “especulativos”, sejam “positivistas”1. As conseqüências deste erro, que se; refere à definição da filosofia, podem ser reconhecidas e delimitadas em alguns pontos específicos dó Prefácio de Ler O Capital. Mas, afora certos de­ talhes menores, suas consequências não invalidam a análise que fizemos de O Capital (“O objeto do Capital”, e a exposição de Balibar). Teremos oportunidade de retificar a terminologia e de corri­ gir a definição de filosofia em uma série de estudos futuros. (Observação à edição surgida em 1968 de Lire le Capital, editions François Masperò, Petite Collection Maspero, Paris, tomo I, pág. 5-6). ' )

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Louis Althusser Rino Dal Sasso . Nicola Badaloni Luciano Gruppi Lucio Lombardo Radice Galvano Delia Volpe Discussão sobre o pensamento de Antonío Gramsci

A filosofia, a política e a ciência*

Querido companheiro:

Lí com muito interesse tua nota sobre meu texto “O mar­ xismo não é um historicismo”, publicado na revista Trimestre. Observo que tua crítica, mesmo quando coloca nítidas objeções, se preocupa em indagar o que procurei “dizer”, inclusive nas si­ tuações onde não o consegui inteiramente. Tens razão: minha grosseira aproximação entre alguns te­ mas de Gramsci e algumas teses de Colleti não se apoia nas justificações históricas e teóricas necessárias. Compreendo que é preciso ter cautela na interpretação de certas formulações “teóricas” de Gramsci, que não podem ser julgadas separadamente de seu pensamento “concreto”. Porém, concordarás comigo em que não basta a menção da existência do “pensamento concreto” de um autor para dissipar automaticainente os equívocos que podem estar implícitos nas fórmulas “abstratas” de sua “teoria”. Entre a teoria abstrata e o.pensa­ mento concreto de um autor, especialmente de um autor maduro e responsável como Gramsci, existe sem dúvida uma profunda unidade de inspiração. Se algumas de suas formulações “teóri­ cas”, “abstratas” estão sujeitas a equívocos é necessário verificar se seu “pensamento concreto” reflete e consagra (“concretamen­ te”), ou pelo contrário corrige e põe fim (“concretamente”) a tais equívocos. A existência de um “pensamento concreto” não constitui necessariamente a prova de que o equívoco presente *

Em 1.° de dezembro de 1967, Rlno Dal Sasso publicou em

Rínascita um comentário sobre um capítulo de Ler O Capital de Louis Althusser' que apareceu na revista Trimestre de Pescara. Althusser respondeu ao comentário com esta carta, que foi publicada em Rinascita juntamente com uma breve resposta de Dal Sasso e com inter­

venções de Nlcola Badaloni, Galvano Delia Volpe e Luciano Gruppl.

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em uma fórmula “abstrata’1 foi corrigido. A correção deste equí­ voco deve estar provada no “pensamento concreto” para que a a referência ao “pensamento concreto” não valha somente como garantia moral. Sendo assim, devo confessar que os melhores estudos sobre o “pensamento” de Gramsci que pude ler não dissiparam o equí­ voco “teórico” do qual falarei agora. E aqui está o ponto localizado de modo preciso no qual, no meu entender, está presente um equívoco “teórico”. Contra toda a corrente positivista de interpretação do mar­ xismo (e com relação a isto seu mérito é imenso, pois teve a ludidez e a coragem de lutar contra as opiniões dominantes), Gramsci viu e refletiu bastante em uma das duas determinações de toda filosofia: a relação entre filosofia e política. Mas nao viu, nem isolou, nem pensou realmente a outra determinação: a relação entre filosofia e ciência. No plano teórico, este é o ponto fraco de Gramsci. Alguns filósofos marxistas italianos salientaram claramente esta fraqueza. Gramsci defende em textos escritos de modo apressado e super­ ficial uma concepção evidentemente insuficiente, senão falsa, das ciências. Limita-se a repetir fórmulas totalmente equívocas e com reminiscências crocianas: teoria “instrumental” das ciências e teo­ ria “superestrutural” das ciências. Quanto ao aspecto objetivo de tais formulações podemos di­ zer que elas indicam:

1) o lugar que uma ciência ocupa em uma prática determi­ nada, na qual é só um elemento entre outros, e a função que ela desempenha em tal prática (por exemplo: a teoria marxista é um dos elementos da prática política marxista, e existe como “instru­ mento” do “método” e “guia” para a “ação”); 2) o lugar que as ciências ocupam em uma formação social dada, com relação a suas instâncias (infraestrutura, superestrutura jurídico-política,’ superestrutura ideológica). Neste sentido as ciên­ cias ocupam um lugar “na superestrutura”. Porém, tais formulações, que atribuem às ciências um lugar dentro de tópicos, não dão conta daquilo que é específico das ciências: a produção de conhecimentos objetivos. Disto se tira pelo menos uma conclusão importante.

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Como Gramsci não pensa a relação específica que a filoso­ fia estabelece 'com as ciências} tende constantemente a reduzir e a igualar completamente, salvo alguma variação meramente for­ mal, a “filosofia” à “concepção do mundo”. Na verdade, o que diferencia na visão de Gramsci a filo­ sofia (“dos filósofos”) da concepção de mundo (de todos os homens, na medida em que todo homem tem uma “concepção de mundo” e é por isto que Gramsci diz que “todo homem é filósofo”) é só isto: qu.e a filosofia se caracteriza por uma maior “coerência”. É claro que esta diferença é só formal, porqjie Gramsci a qualifica como uma mera diferença no grau de “coe­ rência”, sem explicar a razão nem da “coerência” nem da dife­ rença de grau, É verdade que Gramsci fala também do caráter “sistemático”, do caráter • “racional” da filosofia (dos filósofos e do marxismo), mas esses termos, que não explicam nada especí­ ficamente, não fazem nada mais a não ser repetir com outras pa­ lavras o caráter anteriormente afirmado da “coerência”»

Porém, a coerência (ou sistematicidade, ou ainda a raciona­ lidade) não são, como tais, critérios específicos e nem distinti­ vos da filosofia. Existem concepções de mundo que se apresen­ tam perfeitamente coerentes, sistemáticas e até com “racionali­ dade” e que, todavia, nao podem ser confundidas com a filo­ sofia: por exemplo, as manifestações teóricas da concepção reli­ giosa do mundo na teologia. Na realidade, para compreender verdadeiramente o que Gramsci quer designar como próprio da filosofia quando recor­ re à sua “coerência”, é necessário fazer intervir a relação espe­ cífica que a filosofia mantém com as ciências. Somente esta re­ lação é que confere à filosofia os caracteres (coerência, sistematicidadé e racionalidade) exigidos por Gramsci, mas neste caso tais caracteres não terão apenas um caráter formal e sim já adqui­ rirão um caráter preciso, definido não, pela “racionalidade” em geral, mas sim pela forma específica de “racionalidade” dominan­ te qué existe, em um dado momento, nas ciências com as quais a filosofia estabelece uma relação específica. As “concepções do mundo” contemporâneas, ou não têm nenhuma relação com as ciências (e- com sua “racionalidade”) ou estabelecem com as ciên­ cias uma “relação” totalmente distinta da relação filosófica. Se esta análise ainda que esquemática tem fundamento, de­ veria ser evidente que as filosofias estabelecem também uma relação determinada com as “concepções de mundo” existentes.

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Esta relação é,. certamente, a relação orgânica da filosofia com a política (porque na luta ideológica de classe, que é um mo­ mento da luta de classes propriamente dita, isto é, da política, só existem concepções de mundo opostas). Porém, as filosofias não se caracterizam somente pela relação com a política (se assim fosse, não seriam mais do que meras concepções de mundo, ainda que concepções “políticas”). Definem-se como filosofias (e esta é sua diferença específica) pela relação particular que estabele­ cem, ao mesmo tempo, com as ciências, e mais precisamente com a forma de “racionalidade” dominante çue existe nesse momento nas ciências. Esta dupla relação implícita tem como resultado uma com­ binação original que é o que vai fazer com que as filosofias exis­ tam como filosofias, distintas ao mesmo tempo das concepções de mundo e das ciências. Assim se compreende porque^ as filo­ sofias contém em si concepções de mundo, ou melhor como são o efeito de concepções de mundo: daí a validade da teoria de Engels e Lenin, da luta das duas tendências, materialista e idea­ lista, na história da filosofia, visto que tal luta é uma luta ideoló­ gica de classes entre concepções do mundo opostas. É compreen­ sível, ao mesmo tempo, que as filosofias sejam sempre distintas de outras concepções de mundo nao filosóficas porque, diferen­ temente das meras concepções de mundo, elas estabelecem uma relação específica com as ciências. Isto posto, me parece claro que Gramsci não pode, na falta de uma concepção correta da ciências e da relação específica da filosofia com elas, dar. uma definição completa e correta da filo­ sofia. É certo que ele • viu a relação fundamental que existiá entre filosofia e política, mas não compreendeu a relação espe­ cífica entre filosofia e ciências. Daí o claro equívoco na sua concepção “teórica” da filosofia. E, que eu saiba, este equí­ voco “teórico” não foi corrigido pelo “pensamento concreto” de Gramsci.

Se se concorda com a existência de tal equívoco, se com­ preenderá imediatamente que é dele que resulta a tendência, que em Gramsci é acentuada, de se confundir a filosofia marxista (materialismo dialético) com a ciência da história (cuja “teoria geral” é o “materialismo histórico”). Esta confusão é ratificada por Gramsci: 1) quando suprime o termo clássico materialismo dialético (no qual reprovava as ressonâncias positivistas sem ob­ servar o conteúdo real desta definição, a saber, a relação entre

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filosofia e ciênóías); 2) quando reúne a ciência da história com ii filosofia marxista em uma única expressão que é a “filosofia da praxis”. Creio que neste caso não se trata de uma simples questão de terminologia sem consequências teóricas e práticas. Estou consciente de que nessa minha insistência nas ciên­ cias deve existir algo que é próprio da “tradição cultural fran­ cesa”, de seu “iluminismo”. Mas, penso também que não se pode resolver com seriedade o problema objetivo de uma teoria correta das ciências, e da relação da filosofia com as ciências, mediante uma explicação de caráter historicista: “sociologia do conhecimento”. O mesmo procedimento, isto é, a recorrência à “tradição italiana”, tampouco serviria para resolver o problema nuscitado pelas teses de Gramsci, Todos nós estamos suficiente­ mente distanciados de nossas respectivas “tradições nacionais” e iiomos todos marxistas-leninistas o bastante para estarmos imuni­ zados contra o relativismo sociológico, que é um produto direto da ideologia burguesa na história, como também para rechaçar este ponto de vista “comparativo” superficial, que funciona como uma mera ideologia quando pretende dar conta do conteúdo teó­ rico de unia proposição. Tal “sociologismo” é, por assim dizê-lo, um “ótimo” exemplo dos estragos que pode provocar uma con­ cepção “historicista” vulgar do marxismo. Digo “vulgar” convencido de que, apesar de seus equívocos objetivos, a concepção gramsciana do “historicismo” está muito longe de ser “vulgar”. Mas, justamente por isto, a experiência que podemos ter cotidianamente, e nas mais variadas circunstân­ cias possíveis, dos nefastos efeitos teóricos e práticos do equí­ voco objetivo que, apesar de todas as precauções de Gramsci, contém a noção de “historicismo” (ainda que seja definido como “absoluto” para escapar do relativismo) nos obriga a colocar a questão do “instrumentalismo” de seu uso, e além ainda desta questão meramente pragmática, a questão de sua validade teó­ rica. Acima de tudo devemos “preservar”, salvaguardar aquilo que o “historicismo” de Gramsci contém de autêntico, apesar de sua formulação incerta e de seus inevitáveis equívocos teóricos. O caráter autêntico do historicismo de Gramsci consiste, essen­ cialmente, na afirmação da natureza política da filosofia, das for­ mações sociais (e dos modos de produção que as compõem), na tese correlativa da possibilidade da revolução, na exigência da união de teoria e praxis, etc. Porque não definir estas realidades por seus nomes já consagrados por uma enorrfíe tradição?

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Em compensação, se é obrigatório “preservar0 aquilo que o “historicismo” gramsciano tem de autêntico, devemos também evitar, a todo custo, comprometê-lo (e o simples uso da palavra nos obriga constantemente a fazê-lo) com as ideologias relativistas (burguesas) do conhecimento, as quais acreditam poder dar conta de um conteúdo teórico objetivo (conhecimento científico ■verdadeiro ou tese filosófica justa) reduzindo-o às suas condições “históricas”. A história dos conteúdos teóricos (isto é, científicos e filo­ sóficos, no sentido exato dos termos) é sem dúvida uma história. Porém:

1) esta história nao deve ser entendida como um simples devir empírico a ser registrado em uma crônica mas sim pensada dentro dos conceitos teóricos da ciência marxista da história;

2) é uma história sui generis, que ainda que se reintegre na história das formações sociais e que se articule sobre esta his­ tória (que é o que se chama, simplesmente. História) não é re­ dutível, pura e simplesmente, à história das formações sociais, ainda que seja concebida em termos não empíricos segundo os conceitos marxistas da ciência da história. Mas a menção à estas distinções, essenciais sob o meu ponto de vista, nos remete à interpretação do marxismo e a Gramsci outra vez. Podemos suspeitar que também sobre este ponto, quero dizer, sobre o modo de conceber a ciência marxista da história (como distinta da filosofia marxista), os equívocos de Gramsci com relação à ciência e a filosofia (principalmente seu silêncio sobre a relação filosofia-ciências) provocam consequên­ cias teóricas e práticas.

Espero poder voltar a estes problemas de uma forma mais ampla. Entretanto me alegraria muito se nossos camaradas ita­ lianos que conhecem bem a Gramsci, não só sua “teoria abstrata” como também seu “pensamento concreto”, contribuíssem com estas reflexões que estão bastante ligadas a problemas de grande atualidade. LOUIS ALTHUSSER

Método de leitura Em minha brevíssima nota ao capítulo de Althusser cujo título é: “O marxismo não é um historicismo” me limitava a algumas observações sobre o “método de leitura”. Não acusava Althusser de não ter provado a aproximação que fez de Gramsci com Colletti com “as justificações históricas e teóricas necessárias”. Eu 8Ó queria dizer o seguinte: pelo método “redutivo” pode-se che­ gar a igualar escritores que têm idéias e significados bastante diferentes. O' “historicismo” gramsciano pode ser aceito ou re­ jeitado, mas nunca aproximado à posições como as de Colletti (como neste caso) cuja teoria nunca teve repercussão, o que não foi por acaso, na história passada e presente. As analogias que parecem existir nas formulações são, na verdade, posições incomparáveis entre si, porque a mesma forma gramsciana de “seccionamento do presente” só é compreensível na relação dialética com a historização, através daquelas famosas “mediações” e que sem as quais esse mesmo “seccionamento do presente” seria outra coisa. A teoria análoga de Colletti jamais teve por resultado (nem tampouco foi solicitada como metodo­ logia) o discurso histórico. Talvez tenha que rejeitar por com­ pleto a posição de Gramsci, todavia acabo de cumprir a obriga­ ção de definí-la em linhas bastante gerais. O fato de que a tenha teorizado ou não, e teorizado com rigor, tem pouca importân­ cia. E é aqui, justamente, onde desde o início a questão do “mé­ todo de leitura” adquire uma importância fundamental. Althus­ ser age por extração. Concordo que um autor, um escritor (tam­ bém um filósofo) tem um valor e uma significação em sua tota­ lidade, a qual pode conter certos aspectos e formulações parti­ culares que podem ser contraditórios ou não coincidirem exata­ mente, isto é, dito mais precisamente, se encontram em relação dialética. Assim são lidos os poetas, além dos filósofos. Uma leitura correta de um escritor será sempre aquela que estabelece uma relação dialética entre os dois momentos (o geral e o das formulações e das investigações específicas sobre as quais se arti­ cula a obra), relação cada vez mais próxima à dialética real que existe entre a produção do pensamento e da obra examinados. Me desagrada o fato de usar uma fraseologia tão genérica e nor­ mativa, mas é que as vezes tenho a impressão de que as pre­ missas metodológicas de Althusser estão colocadas exatamente no lado oposto: ele parece estar convencido.de que é possível “extrair o pensamento de um escritor (filósofo, teórico, e tam-

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bem crítico, ensaísta, etc.), isolá-lo e observá-lo in vitro. Parece estar convencido de que é possível chegar a formulações unívo­ cas, a teorias que podem ser restituídas a uma fórmula exaustiva, sobre os- escritores (e filósofos) dignos desse nome. Eu tenho opinião oposta e creio que utilizando esse método se chega a um verdadeiro massacre e a uma permanente incompreensão do que o autor quer dizer. Todavia, é claro que ao se chegar a este ponto a discussão se amplia enormemente, até transbordar os limites (que já compreendem um enorme território) coloca­ dos por Althusser em sua carta; mas talvez também por este caminho se chegaria ao núcleo do* problema. Limitar-me-ei por isso a algumas observações sobre esta questão preliminar. Althusser parece, de certa forma, reduzir o adjetivo “absoluto” com o qual Gramsci define “seu” historicis­ mo, a estratagema para evitar o relativismo. Não entendo. An­ tes de mais nada esse adjetivo nasceu em Gramsci somente com relação a Croce: “historicismo especulativo” é o de Croce, histo­ ricismo absoluto (ou científico) é o marxista. Não vejo de onde possa surgir o espantalho do “relativismo”. Isto é uma indica­ ção de que não se leu atenta e “globalmente” os textos de Grams­ ci, que mostram uma luta, permanente contra o historicismo es­ peculativo. O mesmo' vale para os “resíduos” crocianos. O pró­ prio Gramsci salienta o fato de que Croce está na base de sua formação cultural e filosófica e que tem dele uma opinião “ele­ vada”. Mas o fato é que Gramsci cuida exatamente em articular a crítica “marxista” em confronto com o pensamento crociano (não só crociano, mas que seja acima de tudo crociano). Nenhu­ ma formulação de Gramsci é perfeitamente redutível ao crociahismo. Nunca. Pode ser que sua revisão crítica de Croce esteja errada, ou que seu diálogo-crítico seja sem interesse, mas a ver­ dade é que nunca há um retorno às posições crocianas (neni mesmo na “estética” onde sua reflexão é mais débil e fragmen­ tada). Acreditar ter descoberto algo através de uma fórmula (e em proveito da discussão posso afirmar que a “teoria gramsciana das ciências” tem o significado que lhe atribue Althusser) dizendo “agora tè peguei”, dá a impressão de um jogo muito fácil, que é fruto de um modo de ler desarticulado, “extrativo”, enfim,, escolástico, E o mesmo pode-se dizer a respeito do problema da teoria da ciência. No final de minha nota eu mesmo me referia ao pro­ blema, que nao está tão ligado a uma solução “teórica” correta da relação “ciência-história”, como a sua formulação prática cor­

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reta (a formulação correta da presença das ciências na sociedade, na cultura, no Estado, etc.). Por experiência sabe-se que a teo­ rização da ciência conduz, no movimento revolucionário, a aber­ rações, e bastaria citar as loucuras,impostas com as teorias de Lysenko. A articulação das ciências, de todas as ciências, só pode resultar de uma visão dialética do mundo, onde o momento das ciências encontra autonomia e ao mesmo tempo seus limites, como autonomia e limites encontrará também o momento da política. Gramsci pensou alguma vez de maneira diferente? Não é sua investigação histórica e sua tentativa de fundar científiçamente a história (na polêmica contra o especulativismo crociano) uma indicação metodológica de autonomia dos momentos dialé­ ticos? Tal é, em linhas gerais, o sentido global, além do parti­ cular, de Gramsci. Gramsci deve ser lido seguindo-se a direção geral de seu pensamento, a experiência de conjunto que expressa (até estilisticamente). 'Deve ser, sem dúvida, historizado, devem ser encontrados seus limites e contradições, mas no interior da direção de sua investigação, no interior do que ele disse real-, mente, pois do contrário corre-se o risco de reduzi-lo a formu­ lário e catecismo. Talvez uma leitura mais orgânica e “científica” arrisque uma “desvalorização” (uma determinação), maior. Po­ rém não vejo qual pode ser a. utilidade e o incentivo que pode produzir uma operação “extrativa” com relação a um autor que apesar de sua fragmentariedade (em parte necessária, em parte voluntária) distingue-se por sua coerência e organicidade.

RÍNO DAL SASSO

A tarefa do filósofo

A intervenção do companheiro Althusser me parece bastante in­ teressante não só pelas coisas que diz e que nos fazem pensar, mas também pelo esforço para determinar um espaço à relação entre filosofia e política. Nesta intervenção não há sinais da arrogante separação entre a teoria e a política que constitue um dos aspectos mais irritantes de sua elaboração anterior. Devo dizer que é interessante também o modo como ele encara o pro­ blema da relação filosofia-ciência. A tarefa do filósofo seria por

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um lado a de descobrir a determinação histórica das concepções do mundo, e por outro a de individualizar a racionalidade domi­ nante em um certo período histórico, No entanto, a esta altura surgem alguns problemas e difi­ culdades. Na minha opinião, para que a solução de Althusser seja satisfatória ela deveria conseguir compreender o vínculo en­ tre a primeira e a segunda função da filosofia. Uma das maiores limitações da posição de Althusser é justamente ter ignorado esta relação. Com isso eu quero dizer que a racionalidade dominante nas ciências em um certo período não pode ser designada como uma essência, como uma qualidade, mas sim, a partir do ponto de vista da filosofia, deve ser entendida como um sistema de tensões que trabalham dialeticamente afetando (exatamente ao nível da filosofia) as concepções de mundo existentes. A deter­ minação destas tensões (tarefa na qual se fundamenta em grande parte a racionalidade científica e em torno da qual, seguindo Gramsci, mas também nos esforçando para fazer uma crítica in­ terna de seu pensamento, estamos tentando trabalhar há muito tempo) vai originar o problema de uma relação entre a raciona­ lidade dominante nas ciências e as tensões práticas que lhe são correspondentes. A falta de atenção para este momento dialético (que é, por exemplo, o mesmo que impulsiona Voltaire a interpretar e a corrigir radicalmente o sentido filosófico da ciência newtoniana) induz frequentemente Althusser a tratar somente da racio­ nalidade dominante nas ciências; e esta unilateralidade por sua vez impulsiona, por um lado, a tentação de construir, utilizando a teoria, uma verdadeira meta-história de conceitos puros, e por outro lado, a realçar paradoxalmente o princípio de que a cons­ ciência que uma época tem de si mesma é totalmente falsa. So­ bre este assunto temos também, nos clássicos do marxismo, exemplos notáveis de como se pode encarar o problema de se dar significação a determinados fatos empíricos e a determina­ das concepções, sem recorrer ao des animador princípio da falta total de significado do factual e do empírico. A pesquisa histó­ rica que tem suporte teórico, tem formas de tentar a colocação dos fatos em determinados contextos, tem formas de verificar sua compatibilidade. Além disso, enriquece a teoria ao vinculá-la à variedade e à riqueza do factual, do qual desvenda o significado. Isto é possível porque a racionalidade das ciências dominantes em um certo momento se estrutura em uma relação dialética com sua própria época e com as épocas passadas.

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Dizíamos anteriormente que na carta de Althusser o isola­ mento da teoria tende a se diluir pelo reconhecimento da dupla função do filosofar. Contudo, ainda existe um ponto no qual se manifesta. Althusser define a relação da filosofia com a política como uma relação com concepções de mundo; a relação com a ciência como uma relação com a racionalidade científica. Mas eu me pergunto: o problema da vinculação com a política não afeta também, sob o ponto de vista da filosofia, a racionalidade cien­ tífica? Althusser não vê esse problema porque ele define como cientifico todo contexto no qual intencionalidade humana e sub­ jetiva é deixada de lado. Isto pode ser verdadeiro para a ciên­ cia, mas não, certamente, para a filosofia se ela estiver cum­ prindo sua missão de apreender a racionalidade científica domi­ nante. Althusser nos diz que a validade científica de O Capital está no fato de que nele sao deixadas de lado as intencionalida­ des humanas, e que todas as ações voluntárias tornam-se impos­ síveis pela presença coatora da estrutura. Por isto o marxismo é um anti-humanismo e um anti-historicismo. Mas, na minha opinião, esta é uma interpretação parcial de Marx. Na realidade a automatização da exploração e seu esquecimento na aguda cons­ ciência do operário, têm na descoberta dos modos de reprodução, automatismo ou de uma pretensa e imediata naturalidade da ex­ ploração, seu verdadeiro inimigo. Como se explica que a realidade da sociedade capitalista passa a ser questionada? Quando a consciência dos operários, e dos explorados, pelas necessidades de conhecimento, pelos de­ sejos de viver bem, pela decisão de regular a própria vida li­ vremente, coloca-se bem longe e do lado de fora do que a socie­ dade atual oferece, e é por isso que o capitalismo deixa de ter razão de ser. Mas que vantagem pode oferecer o fato de negar que, falando de forma filosófica, a consciência científica possa transformar-se em intencionalidade subjetiva? Por acaso não foi o próprio Marx que afirmou que as condições atuais da produção manifestam-se no movimento de sua destruição e já sob a forma de condições históricas de um novo modo de produção da socie­ dade? Portanto, sob o ponto de vista da filosofia, a racionalidade científica obriga a reestruturação da subjetividade em uma direção revolucionária e, O Capital, por causa de sua cientificidade, esta­ belece uma determinada ligação com a política. A consciência re­ volucionária se enriquece com a racionalidade científica e faz desta racionalidade uma maneira de fragmentar a estrutura capitalista.

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Sei pelas obras de Althusser que ele tem outra concepção da ação revolucionária; ela se apresenta para ele mais como um fenô­ meno espontâneo e irrefreável, em relação ao qual a política cum­ pre o papel de auxiliar a fusão do material incandescente. Enten­ do esta sua concepção, contudo, a idéia de Gramsci de que a força revolucionária deve unir-se em um bloco histórico de inte­ resses, convicções, etc.* tendo como objetivo imediato a nova.or­ dem social, parece ser para mim a única forma possível de fazer com que uma forte e intimidadora presença operária prevaleça em uma sociedade como a nossa. Althusser nos diz que Gramsci está cheio de defeitos e erros; que às vezes consente em ver somente o aspecto intencional e a relação com a política; que frequente­ mente não vê o problema da relação com a racionalidade cientí­ fica de sua própria época e portanto abandona o materialismo dialético e se deixa levar pelo idealismo. Tudo isto pode estar certo, mas o significado maior de Gramsci não está aí. A maior contribuição de Gramsci foi a de ter caracterizado sua própria investigação como resultante do leninismo e de colocar o proble­ ma da revolução em condições históricas diferentes e mais avan­ çadas, no sentido capitalista, do que as condições da Rússia.

Por outro lado, e com relação a Gramsci, Althusser está do­ minado por dois interesses. De um lado visa mostrar, suas insu­ ficiências, e com relação a este ponto deve-se salientar que ele nem sempre é justo.. Por exemplo, quando Gramsci fala de senso comum, fala sempre de um elemento desagregado em relação a uma determinação social; e quando fala de coerência, ele a de­ fine em relação a essa mesma determinação social» Não é o ca­ ráter da coerência formal o que modifica a desagregação, mas sim, pelo contrário, a coerência da interpretação de uma situação social determinada. Segundo a idéia aperfeiçoada por Gramsci do desenvolvimento do capitalismo (na época imperialista e fas­ cista), este somente consegue impor-se através do uso da vio­ lência, agora não mais de forma mediata e sim direta sobre os explorados. Daí origina-se o fato, historicamente novo, de que no mesmo senso comum desagregado revela-se uma inquietação, uma aversão pelos setores dominantes, embora a incoerência per­ maneça. Somente o partido pode unificar tal inquietação, mas um partido que seja sensível a essa inquietação, que possa ele­ var a consciência- fragmentada ao estágio o mais desenvolvido possível (historicamente) da luta de classes. Althusser tem todo o direito de não concordar com esta idéia da coerência na sua relação com a espontaneidade; tem todo o direito de nao concor­

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dar com o fato de que a espontaneidade contém já, em parte, a ciência; tem todo o direito de pensar que o socialismo de nossa época é uma fortaleza cercada, e também de pensar que o senso comum, na atual situação histórica, é totalmente, incapaz de com­ preender os fundamentos da exploração. O que ele não tem o direito de fazer é transformar a teoria gramsciana do senso co­ mum, que está sempre ligada a determinadas situações históricas, em uma teoria geral do senso comum, e também não pode fazer da teoria gramsciana da coerência (que reproduz em condições novas a temática leninista da relação entre espontaneidade e consciência) uma teoria da coerência em geral ou da coerência formal. Agora vejamos o outro interesse de Althusser. Gramsci dá uma grande importância teórica ao princípio marxista de que todo processo histórico oscila sempre entre dois pontos: a) que nenhuma sociedade estabelece para si mesma objetivos para os quais não haja, ou esteja em vias de aparecer, as condições ne­ cessárias e suficientes; b) que nenhuma sociedade desaparece /antes de ter manifestado todo seu conteúdo virtual. Gramsci in­ terpreta este princípio no sentido de que tais condições existem e que a velha sociedade está em sua derradeira fase: considera, no entanto, que sua queda exige uma forte vontade coletiva. Tirando-se a exatidão da análise teórica, o que vai aparecer como decisivo são os aspectos voluntaristas. Os aspectos voluntaristas e historicista-voluntaristas do pensamento de Gramsci têm por­ tanto um fundamento teórico. Mas no que diz respeito a Al­ thusser a polêmica com Gramsci é neste caso um falso alvo que tem por verdadeiro objetivo aqueles aspectos do pensamento de Marx e Lenin que convertem a teoria em prática. A polêmica contra os erros da Gramsci confunde-se dessa forma com a po­ lêmica contra os erros de Marx, e o resultado deveria ser a de­ puração dos aspectos historicistas do pensamento de Marx e de Lenin. Nestes aspectos, a fundamentação do historicismo gramsciano tem sua justificação. Para criticá-lo é necessário criticar tal fundamentação, isto é, é preciso demonstrar que já não estamos na época definida por Lenin como a da etapa superior do capi­ talismo e que exige uma mobilização coletiva das forças no ter­ reno da história, com o objetivo de exercer uma permanente pressão e participação da classe operária. No fundo o historicis­ mo marxista é isto: a importância central e decisiva de uma par­ ticipação operária em uma sociedade na qual se mantém, além

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das estruturas capitalistas, os gérmens do fascismo e do impe­ rialismo. No momento atual me parece que não existem condi­ ções para se pensar , em uma passagem espontânea (ou seja de­ terminada por outra coisa que não a vontade política) para o socialismo e é por isto que um historicismo marxista continua em vigência. Por outro lado, se a cientificidade fosse exclusiva, isto é, se não houvesse mediação na relação com a praxis, então a determinação no interior de uma certa formação social seria absoluta. E se admitíssemos que a questão da determinação pu­ desse se coordenar em uma relação não só com uma formação social determinada como também com uma continuidade histó­ rica que se manifestasse em cada momento através daquilo que Althusser chama deslocamento, continuaria sendo um mistério o que poderia produzí-lo, já que o homem está “morto”. E este é o erro no qual cai, pelo menos em parte, Althusser; é também o erro fundamental no qual caem alguns de seus amigos. 'A morte do homem é para Foucault o renascimento do nietzchismo e do heideggerismo, sobre um fundamento não dialético, de tal forma que, uma vez que o caráter dominante das ciências se es­ tabelece em um período histórico determinado, ele se torna absor­ vente e reduz à sua configuração tudo aquilo que poderia dar a impressão de se lhe opor. Nestas condições fica claro que toda presença historicista (no sentido político já indicado) não tem mais sentido. Porque eu deveria me preocupar com a história se tudo no mundo é igual?

Mas já que refutei isto também devo reconhecer que a pre­ sença histórica deve sempre ter como direção a fundamentação. Esta fundamentação está dada pela representação das caracterís­ ticas permanentes ou já solidificadas em todas as partes da for­ mação econômico-social capitalista, e também por novas caracte­ rísticas que devem ser compreendidos em sua raiz teórica e em sua funcionalidade histórica. Pode-se dizer, de forma geral, que existe um problema de entendimento da racionalidade das ciên­ cias de nossa época; e além disso, um problema de se dar rele­ vância ao seu significado em vinculação com os problemas de nossa época. Para uma problemática deste tipo as sugestões e as investigações de Althusser poderiam ter sido bastante valiosas se ele e seus amigos que colaboraram em Ler O Capital não aspi­ rassem criar as condições do isolamento da teoria como uma for­

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ma de alternativa ao historicismo e a consciência existente. A carta sobre Gramsci, apesar de seu forte conteúdo crítico, reco­ menda uma correção? Me parece que sim. De qualquer forma nos esforçaremos por extrair de suas inteligentes sugestões aquilo que pareça, para nós, ser útil ao marxismo contemporâneo.

NICOLA BADALONI

A relação homem-natureza

Louis Althusser coloca em sua carta um problema que merece ser seriamente considerado: o problema do lugar que ocupa no pen­ samento de Gramsci a relação homem-natureza, filosofia-ciência. Inicialmente é preciso reconhecer que os problemas que preocupam essencialmente Gramsci sao os da sociedade, dos par­ tidos e do Estado, da relação complexa entre estrutura e superes­ trutura, da forma como eles aparecem em sua concepção de hege­ monia. Existem duas razões para isso; a primeira é a de que Grams­ ci é um pensador revolucionário, que age em uma sociedade onde a classe operária está na oposição e onde a primeira questão que se coloca às forças produtivas é precisamente a da transformação desta sociedade. A segunda razão é a de que Gramsci está profundamente empenhado em uma luta anti-positivista e por isso dirige toda sua atenção em não permitir nenhuma redução (positivista) das leis que regem a sociedade às leis que regem a natureza. A terceira razão é, sem dúvida, a de um condicionamento cultural tipicamente italiano e particularmente ativo em sua épo­ ca. Porém este é, no meu entender, a última razão, pois a de­ cisiva. provém, por outro lado, da perspectiva revolucionária na. qual ele se coloca. Conseqüentemente, quem quiser avançar na linha de pensa­ mento de Gramsci teria que enfrentar a tarefa de refletir mais ampla e profundamente sobre o problema da natureza e da ciên­ cia? A mim parece que sim, Resta ver, contudo, se falta em Gramsci, como parece afir­ mar Althusser, a indicação de qual deve ser o ponto de vista

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no qual nos devemos colocar pata enfrentar o problema das ciências e da natureza. .Minha opinião é de que este ponto de vista existe, por exemplo onde ele diz: “. . . O homem não entra em relação com a natureza só pelo fato de ele mesmo ser natu­ reza, mas sim ativamente, através do trabalho e da técnica” (cf. II materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce, Einaudi, Torino, 1948, pág. 28). Temos aqui duas indicações: uma, a respeito não do dualismo, mas sim da unidade homem-natureza; e a outra, na # qual quero me deter, a respeito da ciência como praxis, como atividade transformadora, que prova, a partir desta sua própria capacidade de transformação, a validade de suas pro­ duções (veja-se a segunda tese de Marx sobre Feuerbach). Não me parece que exista nisso nada parecido à posição de Croce, para quem a função pratica das ciências chega a rebaixa-las a qualidade de pseudo-conceitos, a dialética hegeliana do trabalho desaparece em Croce e para ele a praxis se separa do momento teórico, enquanto que para o marxismo e para Gramsci, a praxis reune em si teoria e ação e representa o momento da verdade, da ciência. "Sem o homem o que seria a realidade do universo? Toda ciência está vinculada às necessidades, à vida, à atividade do homem” (cf. id., pág. 55). Existem certas inclinações idealistas na forma como Gramsci encara o problema da objetividade e de natureza, mas elas são superadas pelo desenvolvimento concreto de seu pensamento, pela crítica a qual ele submete o historicismo crociano, por sua refe­ rência permanente à base econômica, de classe, da história, da sociedade e da cultura. Isto posto não me parece justo afirmar que o problema das ciências e da natureza estaria oculto por causa destas inclinações idealistas. E mais ainda, pela maneira como Gramsci vincula as ciências à técnica, ao trabalho, à praxis humana, situa sua visão epistemológica dentro dos limites ma­ terialistas. O modo como Gramsci vincula a ciência "às necessidades, à vida, à atividade do homem”, nos leva a considerar a relação entre ciência e superestrutura. Com relação a isso é verdade que — como observa Althusser — a reflexão de Gramsci é apressa­ da, e o é de tal forma que acabamos vendo uma assimilação da ciência à superestrutura, o que é inaceitável porque sabe­ mos muito bem que as conquistas científicas só são válidas quan­ do superam as posições de classe. Mas também é igualmente certo que as ciências, sua vida e sua história, não podem ser con-

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sideradas se não se leva em conta sua relação com a estrutura e com a superestrutura. As relações de produção dão impulso a certas investigações científicas e a outras não; estabelece-se tam­ bém uma relação direta entre forças produtivas (além ainda das relações de produção nas quais elas se desenvolvem) e ciências, que são desconhecidas por outras formas de pensamento. Além disso, a superestrutura — as ideologias dominantes — condicio­ nam por sua vez o desenvolvimento científico. Assim sendo, parece-me que a relação ciências-natureza e filosofia-ciências pode ser colocada exatamente no espaço onde a filosofia é concebida como uma visão de conjunto da relação homem-sociedade-natureza e como capacidade de situar nesta re­ lação a função das ciências. O momento unificador está dado pela praxis. Para Althusser, ao contrário, esta unidade se rompe: pro­ duz-se uma separação entre a relação filosofia-ciências e a relação filosofia-política. A filosofia se converte em epistemologia e não é concepção de mundo. A concepção de mundo éstá relacionada com a política (praxir), mas não com a filosofia e as 'ciências. Conseqüentemente, temos de um lado uma restauração especula­ tiva da filosofia (quando se separa da praxis), que caminha em direção oposta da crítica marxista à filosofia especulativa. Temos uma redução da filosofia à epistemologia que paga um enorme tributo ao positivismo lógico, para não dizer apenas positivismo. Por outro lado temos uma redução da concepção de mundo e da política à ideologia, à não-ciência, quando todo o esforço do mar­ xismo está colocado exatamente na crítica da ideologia e em sua superação. Neste caso o tributo é pago a Levi-Strauss — isto é, mais uma vez sob a forma de positivismo — que entende que a política é, obrigatoriamente, a mitologia (e por isto ideologia} de nosso tempo. Ninguém vai negar que a política está cheia de mitos (mas seria a ciência imune a eles?). Ninguém vai negar que os mitos podem estar presentes no movimento operário e nas próprias con­ cepções dos marxistas. Mas o marxismo só é marxismo a partir do momento em que se esforça para uma constante superação crítica desses momentos ideológicos que estão presentes em sua concepção e que não regem a experiência e a praxis. O marxis­ mo, seu método, a concepção de mundo que ele permite cons­ truir, agora não mais como concepção especulativa — deduzida de forma puramente conceituai — mas sim como uma constru­ ção contínua na praxis, no confronto crítico dos dados da expe-

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riência que permite particularizar e superar suas contradições, para se passar da aparência do fenômeno à sua essência; o mar­ xismo, nesta sua construção da relação homem-sociedade-natu­ reza, é precisamente o esforço para fundamentar de maneira cien­ tífica a política, libertando-a da ideologia (através da análise da estrutura de classes da sociedade, da relação Estado-sociedade, partidos e sociedade, ideologias e sociedade). A mim me parece que o que se perde em Althusser é justamente a noção revolu­ cionária da praxis: da praxis que é revolucionária, transformado­ ra, na medida em que seja çientíficamente válida e capaz de pro­ var isua própria validade em sua própria capacidade transfor­ madora. Voltemos à separação entre teoria e praxis, ao dualismo da filosofia especulativa tradicional. O que significa, realmente, em Althusser a distinção entre materialismo dialético (como filoso­ fia geral) e materialismo histórico (como aplicação do materia­ lismo dialético à sociedade?) O que significa essa distinção que Gr. rmsci critica em Bujarin e que volta a aparecer no IV capítulo da História do Partido Comunista (b) da URSS, redigido por Stalin? Não pode significar outra coisa que o retorno a uma con­ cepção metafísica do marxismo. Quando á concepção materia­ lista e dialética não resulta da experiência da luta de classes, da contradição a partir da qual esta se desenvolve, da experiência da relação entre classes e cultura, ela só poderá ser inferida de uma forma transcendental, especulativa, idealista. Uma funda­ mentação não metafísica da teoria só é possível quanto a teoria se apresenta como experiência histórica que se torna, de forma crítica, consciente de si mesma. Quando Gramsci interpreta a dialética como dialética histó­ rica, e fundamenta seu caráter materialista na estrutura econô­ mica, não só retorna ao verdadeiro pensamento marxista — no qual não se pode encontrar, na minha opinião, a distinção esco­ lástica e pedante entre materialismo dialético e materialismo his­ tórico — como também recoloca a única forma de fundamentar uma concepção de mundo não especulativa, não ideológica, mas sim científica, porque está vinculada à praxis e colocada em uma união legítima (dialética e não de identificação mecânica) com a política. Desta forma, colocando ciências e técnicas na relação da praxis humana com a natureza, Gramsci está bem longe do dualismo do historicismo típico (Dilthey) entre- sociedade e na­ tureza, e vê a possibilidade de estender a dialética histórica e ma­

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terialista também à natureza, justamente pelo fato de que a rela­ ção com a natureza é dada pela praxis. Pode-se ver isto na obser­ vação que ele faz a Lukács: “A posição do professor Lukács frente a filosofia da praxis deve ser mostrada. Parece que Lukács afir­ ma que só se pode falar de dialética para a história dos homens e não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem está equivocado porque cai em uma concepção da natu­ reza própria da religião e da filosofia greco-crista e também pró­ pria do idealismo, que realmente não consegue unificar e colo­ car em relação o homem com a natureza a não ser em palavras. Mas se a história humana deve ser entendida também como his­ tória da natureza (mesmo que seja através da história da ciência), como a dialética pode estar separada da natureza? Talvez Lu­ kács, ao reagir às teorias barrocas do Ensaio Popular, tenha caído no erro oposto, em uma forma de idealismo” (cf. id., pág. 145). Aqui está a indicação, ainda que sumária, do caminho a ser seguido para estabelecer a unidade entre homem-sociedade-natureza, para construir uma relação unitária do saber humano, fundamentando-a não na visão metafísica de uma dialética em si e para si, mas sim de uma dialética que se origina e encontra sua base objetiva na relação entre o homem e a natureza, na praxis.

LUCIANO GRUPPI

Sim, para sorte nossa

Por uma feliz coincidência, pude ler a carta de Louis Althusser a Rino Dal Sasso sobre o pensamento de Gramsci, publicada por Rinascita em 15 de março cujo título é “A filosofia, a polí­ tica e a ciência”, no momento em que estava relendo as princi­ pais páginas de Gramsci reunidas e comentadas inteligentemente por Giovanni Urbani na antologia La formazione delVuomo (Editori Reuniti, 1967). Esta releitura, no que concerne aos frag­ mentos que se referem à concepção de mundo, à hegemonia e à filosofia escolhidos por Urbani, foi aclarada pela observação prin­ cipal da carta de Althusser: "‘Gramsci viu e refletiu bastante em uma das duas determi­ nações de toda filosofia: a relação entre filosofia e política. Mas

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não viu com igual ânimo, nem isolou a outra determinação: a relação entre filosofia e ciência. . . “Daí a origem da “tendência, que em Gramsci é acentuada, de confundir a filosofia marxista (materialismo dialético) com a ciência da hisfória (cuja “teoria ge­ ral é o'materialismo histórico”)”, Se ao invés de “confundir.. . com” se escrevesse “distinguir. . . de”, e se afirmasse portanto (como Althusser faz demasiadamente no final de sua carta) que Gramsci concebia a ciência marxista da história” como “distinta da filosofia marxista”, minha resposta impensada, instintiva se­ ria: “sim, para sorte nossa”. Nos textos de Gramsci reencontro, particularizado e espe­ cificado, aquele “sim”. Não diria que Gramsci confunde a filo­ sofia marxista, tomada em toda sua totalidade, com a ciência da história e de seu desenvolvimento segundo uma “vontade racio­ nal” (ciência marxista da revolução). Seria mais justo se dissesse que .ao Gramsci político interessa mais a ciência marxista da revolução, a qual chamava frequentemente de forma abreviada, “filosofia”, omitindo o adjetivo “política”.

“É necessário. . . colocar como fundamento- da filosofia a “vontade” (em última instância a atividade prática ou política), mas uma vontade racional, não arbitrária, que se realiza enquan­ to corresponde a necessidades históricas objetivas, isto é, enquan­ to é a própria história universal no momento de sua realização gradual’ (antologia Urbani, pág. 236). Os filósofos marxistas intéressam a Gramsci exclusivamente (ou quase exclusivamente) enquanto filósofos políticos, enquanto intelectuais orgânicos de massa, capazes de “elaborar e tornar concretos os problemas que as massas colocam através de uma atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e. social” (ibidem, pág. 222). Em sín­ tese, a concepção de mundo que interessa a Gramsci é a “con­ cepção implícita na atividade humana” (p. 227). As filosofias das quais tem necessidade e com as quais deve adequar-se como dirigente revolucionário são as “elaborações que correspondem às exigências de um período histórico complexo”, (pág. 231). Porque respondo à observação de Althusser não somente “sim”, .mas ainda agrego — imediata e instintivamente — “para sorte nossa”?

O faço porque Gramsci concentrou de tal forma seu inte­ resse sobre o marxismo como filosofia da praxis, como ciência da história e da revolução que levou o Partido Comunista Ita­ liano a uma concepção justa e correta da unidade de idéias de

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seus membros (e a uma justa e correta prática correspondente), Por um lado Gramsci salientou a necessidade vital de que “uma massa de homens seja levada a pensar de maneira coerente e unitária a realidade presente” e a perspectiva racional-científica de sua transformação. Estruturou, portanto, o partido revolu­ cionário como uma associação de homens que têm uma vontade política comum porque têm (de forma mais ou menos completa e consciente) uma concepção comum da história. O partido re­ volucionário é, na visão e na elaboração prática gramsciana, um partido que tem uma ciência da história e da revolução (que Gramsci chama freqüentemente “concepção de mundo”, mas cóm o significado já especificado por nós), mas que, como tal ■—• como partido — não tem uma filosofia geral. A expressão “partido marxista” contém em si uma ambiguidade, porque tem dois sig­ nificados possíveis: 1) partido que, como tal, tem uma filosofia geral: o materialismo dialético; 2) partido orientado pela ciên­ cia da história e da revolução fundada por Karl Marx, Gramsci escolheu evidentemente a segunda interpretação, e Togliatti de­ senvolveu-a coerentemente. Falando do marxismo como (e enquanto) guia teórico do partido revolucionário, Palmiro Togliatti usava o termo doutrina (nem “filosofia” e nem sequer “concepção de mundo”). Assim, no quarto número de Rinascita, isto é, em fins de 1944, escrevia: “Guia ideológico deste partido (o “partido novo”’que Pal­ miro T. se dispõe a construir teórica e praticamente desde o mo­ mento de seu retorno à Itália de volta do exílio) não pode ser outro que a doutrina marxista e leninista, a única que permite uma análise completa de todos os elementos da realidade, de suas interligações e de seu desenvolvimento, e portanto, a única que permite adequar à realidade, corretamente, a ação política, da classe operária e de um grande partido”. E no discurso pronunciado em Florença em 10 de janeiro de 1947, que é fundamental como síntese da concepção togliattiana do partido novo, ele dizia: “. . . o que é preciso estudar? Sobretudo é preciso estudar nossa doutrina fundamental, a doutrina política da classe ope­ rária: o marxismo, o leninismo, a bússola que nos guiou durante vinte anos em nossa história e que nos guiará ainda para en­ contrar o caminho correto, o caminho italiano da luta pela de­ mocracia e o socialismo. . . O marxismo, já devem ter lido em todas as partes, não é um. dogma mas sim um guia para a ação,

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Mas agora a atividade da classe operária chegou a tal ponto que para desenvolver-se deve seguir novos caminhos, que até agora não foram percorridos. Traçar este caminho, planejar o modo como eles devem ser percorridos e desenvolvidos com segurança, é isto o que devem conseguir fazer hoje os dirigentes de um partido operário marxista”.

Sob a direção teórica e prática de Palmiro Togliatti, du­ rante vinte anos, de 1944 a 1964, o marxismo — como dou­ trina do partido — foi considerado pelos comunistas italianos como uma filosofia política, como uma “doutrina política da classe operária”, como a “ciência marxista da história. . . distinta da filosofia marxista”. Para sorte nossa, porque o fato de ter dado esta solução à relação teoria revolucionária-partido revolucionário permitiu que o PCI reunisse em seu seio e em volta de si todos os revolucio­ nários, guiados pela concepção de história como luta de classes, pelo socialismo científico e não por utopias, independentemente das filosofias gerais que seguiam (particularmente, independen­ temente do fato de serem ateus ou cristãos). Esta é a minha resposta com relação à distinção entre ciên­ cia marxista da história e filosofia marxista. Mais difícil é res­ ponder a outra, questão colocada pelo companheiro Althusser: a da relação entre filosofia marxista (materialismo dialético) e ciências. Limitar-me-ei aqui a uma breve consideração sobre a relação entre materialismo dialético e ciência marxista da histó­ ria. No entanto, as opiniões que manifestarei dirão respeito à forma da relação e por isso poderão ser extrapoladas à relação entre filosofia marxista e ciências em geral.

Acredito na existência de uma estreita vinculação entre filo­ sofia, entendida como “hipótese geral de trabalho” e teorias cien­ tíficas no momento de sua formação. Acredito, ao mesmo tem­ po, em uma grande independência das.teorias científicas com relação à filosofia que todavia as inspiraram, a partir do mo­ mento em que essas teorias sejam comprovadamente instrumen­ tos válidos de conhecimento, dentro de limites mais ,ou menos amplos. Isto é, acredito na laicidade de toda ciência, em sua compatibilidade com filosofias diferentes daquela que foi deter­ minante para sua formação.

As duas afirmações não são contraditórias. Sou apaixona­ damente engelsiano no que se refere à sua luta contra o pre­

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tenso agnosticismo filosófico da ciência que se auto-intitula po­ sitiva (objetiva, puramente factual, etc.). “Os investigadores da natureza acreditam libertar-se da filosofia pelo fato de ignorarem-na' ou acusarem-na. Porém, como nao podem trabalhar sem pensar, e como para pensar necessitam de determinações do pensamento, e tomam essas determinações ou categorias da cons­ ciência comum das pessoas ditas cultas, dominada pelos restos de filosofias que já estão há muito tempo obsoletas. . . conti­ nuam submetidos à filosofia, e geralmente às piores...” (Dialé­ tica da Natureza, edição alemã, pág. 222). A tese de Engels sobre a relação necessária entre a filosofia e a ciência pode ser confirmada por todos os grandes descobri­ mentos e sistematizações científicas. Gostaria de me deter em um só exemplo: o de Galileu. As novas ciências fundadas por Galileu têm como pressu­ posto gerador indispensável uma hipótese filosófica geral: a do racionalismo matemático (particularmente o geométrico) segun­ do o qual o livro do Universo está escrito em caracteres mate­ máticos, e ainda mais, com as figuras da geometria euclidiana. Esta hipótese filosófica tem se mostrado unilateral e incompleta (uso os adjetivos que devem sempre substituir o adjetivo “falso”, porque este está ligado à metafísica do “sim ou não”). Isto não impede que a ciência de Galileu seja aceita hoje, em seu âmbito específico de validade, por homens que têm filosofias diferentes, não existindo contradição alguma entre aquela ciên­ cia e estas filosofias diferentes do racionalismo matemático. A mesma relação existe, no meu ponto de vista, entre ma­ terialismo dialético e ciência marxista da história. A dialética materialista foi a hipótese geral que permitiu a Marx atingir seu grande descobrimento científico, que podemos chamar “a lei do movimento da história”. Esta descoberta, uma vez atingida, converteu-se em uma verdade laica, que se impõe a homens que adotam as mais distintas filosofias, como descrição-compreensão de um processo real, como conhecimento que tem um valor pró­ prio, uma vida própria independentemente da hipótese filosófica que incitou sua conquista. Naturalmente, na ciência-conhecimento continua em pé a evidência da relação com a hipótese geradora (ou melhor, catalizadora), como a discordância dela com algumas hipóteses clara­ mente opostas à primitiva. Dessa forma, a ciência galileana não era compatível com a filosofia das “virtudes” ocultas do aristo-

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telismo escolástico tardio, e muito menos com a teologia que pretendia interpretar os fenômenos naturais com a Bíblia na mão. Assim, a ciência marxista da história não é compatível com a concepção heterogênea da humanidade agregada e de sua evolu­ ção, com uma concepção da história humana dirigida por “divin­ dade” externa a ela. Mas isto significa exatamente precisar o termo latcidade e não apenas anular a distinção entre uma teoria científica e a filo­ sofia que foi sua hipótese geradora. Era esta distinção que se desejava fazer aqui, porque exatamente dela surgiram, no meu entender, os grandes desenvolvimentos positivos da filosofia po­ lítica marxista na Itália. Partindo dessa formulação (dessa dis­ tinção), nosso partido estabeleceu a secularização do Estado so­ cialista, o livre confronto de idéias, a possibilidade de valores fora do marxismo (veja-se o memorial de Yalta)*, o pluralismo e a articulação da sociedade socialista que nos propomos cons­ truir, não como concessões à pequena burguesia ou, ainda pior, ao inimigo de classe, mas sim como necessidades vitais da pró­ pria luta e estratégia revolucionária. LUCIO LOMBARDO RADICE

Uma colocação “estrutural”

A carta de Louis Althusser publicada em resposta ao comentário de Rino Dal Sasso à tradução do capítulo de Ler O Capital que tem o programático título de “O marxismo não é um historicis­ mo” me deixa bastante perplexo. Não só pelo motivo mais ge­ ral que é o de que essa polêmica formulação althusseriana equi­ vale, no meu ponto de vista, à asserção, por exemplo, de que. . . “o cartesianismo é historicismo”, etc., etc., por causa de sua falta de verdade histórica e teórica. Me deixa perplexo pelo motivo particular de que a divagante carta (anti-gramsciana) evita responder a acusação de “cizânias filosóficas” com a qual Dal Sasso resumiu a “dificuldade” (que não é a única) manifestada por quem escreve, aqui na Rinascita (10 de novembro de 1967) * Refere-se ao “testamento" de Togliattl. n.° 5-6, 1964, págs. 112-118,

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Cf. Pasado y Presente,

e em outros lugares, na interpretação althusseriana do desenvol­ vimento filosófico do pensamento marxista. Esta dificuldade é (junto com outras) não só um produto típico da formação ‘"estru­ tural” ,da problemática marxista, como também uma dificuldade prejudicial que, se nãçs.fôr levada em conta, impede toda dis­ cussão “rigorosa” da filosofia” que é o marxismo. Deixo ao companheiro Althusser a iniciativa de enfrentá-la onde e quando quiser, porém se torna-inevitável para que exista um diálogo fe­ cundo, pelo menos essa é minha opinião.

GALVANO DELLA VOLPÊ

Resposta a Antonio Resenti sobre “Ler O Capital” Querido companheiro Pesenti:

Li seu artigo sobre o texto “Ler O Capital” publicado na Rinascita em 13 de dezembro de 1968 e desejo agradecer a aten­ ção que você dispensou aos meus ensaios e aos de Etienne Balibar. Estou totalmente de acordo com você. O texto é desneces­ sariamente difícil em diversos pontos e se tivéssemos que tornar a escrevê-lo hoje, quatro anos depois da primeira redação, acre­ dito que usaríamos uma linguagem muito mais clara. Mas acre­ dito que a dificuldade que encontramos para “abrirmos um ca­ minho” em uma obra imensa como O Capital é uma dificuldade subjetiva que foi transferida à redação de nossos textos, e é por isso que não pudemos fazer de outra forma, estava acima de nossas forças.

Estamos alegres por ter enfrentado essa dificuldade e tê-la superado; por ter sabido ver além dela os poucos pontos impor­ tantes que nos ocupamos em desenvolver.. Acho que compreendi a essência de suas restrições. Em nosso livro falta algo muito importante, que podemos chamar o reflexo da pratica política dos partidos comunistas. Estou per­ feitamente consciente disso e de certa forma a entrevista com UUnitâ contém algumas “teses” que, a partir desse ponto de vista, têm como objetivo “preencher” essa lacuna. Porém, gos­ taria de fazê-lo entender que nós quisemos sobretudo dar conta

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cio mecanismo teórico de O Capital que se destina, em primeiro lugar, ao estudo da “região” econômica do modo de produção capitalista. Nesta “região” os “homens” (e este é um ponto de vista fundamentado) são considerados pelo que são: “portadores” (Trager) de funções econômicas, que ocupam “postos” (Stelletí) na estrutura produtiva. É preciso compreender que O Capital, tal como chegou a nós, limita-se essencialmente à “esfera da produção e da repro­ dução capitalista” e às suas leis determinantes. Isto não exclue a necessidade de se “completar” aquilo que Marx não conseguiu terminar, e falar da superestrutura jurídico-política e da ideoló­ gica na qual os homens, os mesmos “homens”, não têm o “esta­ tuto” teórico que tinham na esfera da produção. Especialmente a ideologia, “elemento no qual” se desenvolve um aspecto deter­ minante da luta de classes (é onde os homens tomam consciência de que pertencem a uma classe e levam “até o fim” sua luta), transforma o “estatuto teórico” desses mesmos homens: eles se transformam em “sujeitos” (e não mais em simples “suportes”), Acredito que esta explicação responde algumas de suas preocupa­ ções, e em especial às suas experiências políticas. Obrigado novamente de todo coração. Uma fraterna sau­ dação.

LOUIS ALTHUSSER

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NOTAS

O (RE) COMEÇO DO MATERIALISMO DIALÉTICO

1. O pseudo-conceito de resultado pretende descrever a ciên­ cia como um amontoado de "verdades" desvinculadas do processo de sua produção. Exatamente em nome desta desvinculação, Hegel pronuncia a sentença de condenação do conhecimento matemático: “O movimento da demonstração matemática não pertence ao conteú­ do do objeto, e sim é uma operação exterior à coisa" (Fenomenologia do Espírito, pág. 29). Disto resulta que, para Hegel, à ciência "re­ baixa o que se move por si mesmo à matéria, para poder ter nela um conteúdo diferente, exterior e sem vida" (idem, pág. 31). Toda a polêmica contemporânea contra a insensibilidade, a exterioridade, a impermeabilidade do saber científico; todo esforço colocado para se opor à inércia-totalizada dos objetos científicos ao movimento-tota­ lizador do pensamento científico, conduz por fim a essa figura da morte, na qual Hegel fixa o resultado sem memória da ciência. Em um artigo falsamente hegeliano, Robert Paris não deixa de oferecer a clássica versão em cores deste argumento: "(...) a ten­ tativa de Althusser de libertar Marx da dialética hegeliana e de rede­ finir o ‘nível’ do marxismo (... RTM, 105-106) nos remete, e além disso nos faz regressar, não somente mais aquém do marxismo, como também a um universo cinzento e triste de um racionalismo pré-dialé­ tico, pré-hegeliano” (ROBERT PARIS, "En deça du marxisme", em Les Temps modernes, maio 1966. Grifos meus). Isto significa não ter lido Bachelard e perpetuar a ideologia insi­ diosamente religiosa que desacredita a ciência ao considerá-la como uma pqtrificação intolerável das almas. Mas a ciência é alguma coisa bastante diferente: produção organizada de seus objetos, transforma­ ção específica na qual “Nada está dado. Tudo se constrói" (G. BA­ CHELARD, La formacion dei espíritu científico, pág. 16), indica que seu domínio não é outro que o processo de' produção do qual aparen­ temente é consequência e que coincide com o registro de seu apa­ recimento.

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A crítica hegelíana do resultado não tem pois nenhuma relação com aquilo para o qual a ciência aponta. Em compensação, prepara a valorização - correlativa da. experiência resignada, do cristianismo sublimado em que esta “crítica’' resulta. 2. Conseqüentemente, -não há porque assustar-se em ver Althusser dedicar .longas explicações teóricas à posição genealógica das obras de Juventude de Marx (cf. por ex. RTM, 39-70. Ver tam­ bém o texto de J. RANCIERE, LO I, 95-210).

3. Cf. a crítica deste falso conceito no artigo de E. BALIBAR: “Leis ideologies pseirdo-marxistes de ralienation”, em Clarté, janeiro de 1965. 4. Assusta ver a rapidez com a qual Garaudy passou do totali­ tário ao fundamental, da liberdade segundo Stalin à liberdade segun­ do João XXIII. 5. Althusser distingue três conceitos da causalidade: o carte­ siano, o leibniziano e o espinosista (LC II, 167-171). 6. Como nas obras mais recentes de L. Goldmann. Chega-se nestas até a identificar pura e simplesmente as estruturas homológicas "descobertas” por Goldmann: "Desta forma as duas estruturas, a de um importante gênero novelesco e a do intercâmbio, revelam-se como rigorosamente homólogas, de tal forma acontece Isto que se poderia falar de uma só e mesma estrutura que se manifestaria em dois planos diferentes” (Pour une sociologie du roman, Gallimard, 1964, pág. 26). Uma simplicidade admirável! 7. O exemplo mais completo é sem dúvida a “psicologia histó­ rica" de J. P. Vernant. Transgride felizmente seus próprios pressu­ postos teóricos. Compreende-se toda sua ambiguidade lendo, entre outros, o último capítulo de Mythe et pçnsée chez les Grecs, Maspero, 1965.

8. “O homem só coloca problemas que pode resolver", esta célebre frase serviu de garantia para os mais variados desvios do marxismo e sobretudo para o historicismo empírico cujo processo Althusser Instaura (LC II, 73 e segs.), como também para as espe­ culações obscuras referentes à "unidade da teoria e da prática” (problema que não tem nenhum sentido na epistemologia pós-bachelardiana, onde a própria teoria é inicialmente pensada, como processo de produção, isto é como prática teórica). A “célebre fórmula” quer dizer simplesmente que um problema (científico) só pode ser produ­ zido enquanto problema se seu espaço posicionai — a problemática de seu objeto — já tenha sido produzido.

9. Assim acontece com o conceito aristotélico de "Natureza”, cuja ausência — a impossibilidade de construí-lo — determina a fí­ sica pós-galileana. Na realidade, não existe nenhuma relação, nem ao menos negativa, invertida ou ainda crítica, entre a nova “física" e o que leva esse nome na filosofia de Aristóteles. Do objeto de Aristóteles, a física positiva não poderia nem ao menos afirmar que não existe. Desse objeto ela não tem nada que dizer. Esse “nada" é designado por Bachelard como corte epistemológico [coupure epistémologique].

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10. Essa pesquisa constitui a genealogia de uma ciência. Os trabalhos de Koyré ou os de Canguilhem são genealógicos. O que separa Althusser do surpreendente trabalho no qual está compro­ metido Foucault — trabalho cuja’ obra fundamental, O nascimento da clínica, revela sua extraordinária importância — é a convicção teó­ rica de que, ainda que uma genealogia da ciência e uma arqueologia da não-ciência sejam possíveis, não poderia existir por outro lado ne­ nhuma arqueologia da ciência. A ciência é precisamente a prática sem subestrutura sistemática além dela própria, sem ‘'solo" fundamental, e isto acontece na proporção exata em que todo solo que constitue o embasamento é o inconsciente teórico da ideologia. Procuraremos explicar partindo desta discordância: a) a impotência de Foucault para produzir sobre o fundamento estrutural, e contudo universal, que ele esboça, os imperadores dis­ tintivos da ciência e da não-ciência; sua necessária limitação à ar­ queologia das pseudo-ciências; b) a leviandade pré-teórica de seus conceitos sobre Marx (Cf. As palavras e as coisas).

11. Sartre constitui aqui um exemplo nítido, e a partir deste ponto de vista, A crítica da razão dialética é um monumento do “mar­ xismo metafísico'1. O casi teórico de Sartre é mais complexo do bue aparenta e Althusser se apressou um pouco ao colocá-lo dentro dos “idealismos racíonalistas". Entre a transparência proveniente da praxis individual e a inércia formal das estruturas, existe em Sartre uma descentralização específica, provocada pela exterioridade infle­ xível e antl-dialética do em-si. A dialética sartriana é uma dialética fracionada, em cujo interior é possível pensar parcialmente certas distorções estruturais, inclusive colocar ou pelo menos traduzir os problemas fundamentais do materialismo^ dialético, certamente em troca do uso um pouco alegórico dos conceitos. (Cf. Crítica da razão dialética).

12. J. DERRIDA, “Le theatre de la cruauté et la cloture de la representation”, em Critique, n.° 230, julho 1966, pág. 617, nota 13. Pode-se pensar "ao mesmo.tempo" a leitura de Marx por Al­ thusser, a de Freud por Lacan e a de Nietzche-Heidegger por Derrida? Esta é a formulação, em nossa conjuntura, de uma pergunta mui­ to importante. Considerando estes três discursos, a resposta é para mim fatalmente negativa. E mais ainda: aproximar-se de forma inde­ terminada daquilo que os mantém mais afastados entre si é a condi­ ção de avanço de cada um: deles. Desgraçadamente, no mundo mo­ mentâneo no qual os conceitos são comercializados, o ecletismo é a regra. 13. É conhecido o fato de que o conceito de sutura foi intro­ duzido por J. Lacan e J. A. Miller para se poder pensar o lugar-deslocado do sujeito no campo psicanalítico. Cf. Cahiers pour Tanalyse, n.° 1, janeiro 1966. A utilização que faço dele é Indicativa. 14. Salientamos de uma vez por todas que restringindo nossa investigação aos conceitos essenciais introduzidos por Althusser, não pretendemos de forma alguma escamotear o fato de que o (re) começo do marxismo é uma obra coletiva, mais coletiva do que qualquer outra, e isto deve-se a seu exclusivo destino político.

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15. Sobre Isto ver o ítemi O materialismo dialético é a filosofia marxista, em MD-MH, neste volume.

16. Exatamente neste ponto se localizaria a articulação do mar­ xismo e do estatuto que a psicanálise atribui ao Imaginário. Como também o perigo de que esta articulação seja temporariamente impos­ sível de se encontrar. As investigações mais recentes de Laçan sobre o sujeito da ciência não devem nos fazer esquecer que, para o mar­ xismo, o sujeito é uma noção exclusivamente ideológica. 17. O melhor termo talvez fosse "denotador" ou algum equiva­ lente do inglês "designator" (Cf. CARNAP, Meaning and Necessity, Chicago, 1956, pág. 6). A teoria formal da denotação e mais genericamente a semântica formal, tal como a desenvolve o empirismo lógico anglo-saxão, forne­ cem, a meu ver, a sustentação para uma análise estrutural da ideolo­ gia. Para Carnap, provavelmente, a semântica é uma teoria da ciência, mas acontece que o empirismo lógico é, por sua vez, uma ideologia. Resta o fato de que ele inicie a construção sistemática das formas gerais mais abstratas de qualquer discurso ideológico. 18. O conceito de totalidade, tomado no seu sentido absoluto, é o exemplo arquetípico de uma ilusão teórica. A totalização sartreana é a crítica• Ilusória da Ilusão: é um deslocamento-progressivo Intra-ideológico. 19. A economia vulgar está caracterizada em diversos lugares. Por exemplo: "a economia vulgar (...) contenta-se com as aparências, rumina, continuamente, o material fornecido, há muito tempo, por seus predecessores, a fim de oferecer uma explicação plausível para os fe­ nômenos mais destacados, que sirva ao uso diário da burguesia, limitando-se, de resto, a sistematizar pedantemente e a proclamar como verdades eternas, as Idéias banais, presunçosas dos capitalistas sobre seu próprio mundo, para eles o melhor dos mundos" (O Capital, Edit. Civilização Bras., 1971, I, pág. 90 nota). Assim a ideologia: a) repete o imediato (a aparência), isto é, a ilusão objetiva; b) reinscreve neste imediato re-presentado os próprios conceitos científicos (materiais elaborados); c) totaliza o re-presentado (sistema) e pensa-o como Verdade: a Ideologia autodeslgna-se como ciência; d) tem por função servir aos Interesses de uma classe. 20. A distinção essencial entre objeto-de-conhecimento e obje­ to-real, a teoria do conhecimento como produção, a diferença entre sistema e processo de exposição, tudo isso é fruto de uma reflexão exaustiva, conduzida a partir do texto “canônico" de Marx: a intro­ dução de 1857 à Crítica da economia política (Cf. Cuadernos de Pasado y Presente, Córdoba, 1968, n.° 1).

21. A tese contrária é firmemente sustentada por Serres no que-respeita à matemática (M. SERRES, “La querelle des anciens et des modernes en mathématiques”, em Critique, n.° 198, Novembro 1963). Segundo Serres, a matemática moderna tomou-se a si própria por objeto e importou progressivamente a sua própria eplstemologia.

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De forma geral, uma ciência que chega à maturidade é "uma ciência que comporta a auto-regulação de sua própria região, e deste modo a sua epistemologia autóctone, a sua teoria sobre si mesma, mani­ festa em sua linguagem, de acordo com a descrição, o fundamento e a norma" (idem, 1001). A discussão específica desta tese está fora de questão aqui, indiquemos simplesmente que o fundamento ao qual Serres se refere está dirigido para uma perspectiva trans­ cendental. Se, pelo contrário, nos preocupamos com definir a ciência como produção de um efeito específico, e a epistemologia como história dos modos de produção deste efeito, afigura-se então como impossível a importação epistemológica. Na realidade, o que a ma­ temática "tratou" efetivamente não foi a lei real do seu proçesso, mas uma representação ideológica da matemática, uma ilusão de epistemologia. E este tratamento era-lhe objetivamente necessário, porque, como qualquer ciência, a matemática é ciência da ideologia. A especificidade da matemática reside no fato de que o seu "exte­ rior" determinado não é nada mais do que a região da ideologia na qual a própria matemática está Indicada. Tal é o conteúdo real do caráter "apriorístíco" desta ciência: só se ocupa com seu próprio fato tal como é indicado na representação. , 22. Nos textos de A revolução teórica de Marx, em conse­ quência de uns resquícios de respeito para com a tradição e para melhor se apoiar em um célebre texto de Mao, Althusser chama ainda à prática articulada uma contradição. Nós abandonamos deci­ didamente esta confusa designação. 23. O problema fundamental de todo estruturalismo é o do ter­ mo de função dupla que determina o relacionamento dos outros* termos com a estrutura, na medida em que ele próprio é excluído dela pela, operação específica que o faz aí figurar apenas sob as formas de seu representante (o seu lugar-tenente, para retomar um conceito de Lacan). É enorme o mérito de Lévl-Strauss. por ter reco­ nhecido, na forma ainda confusa do Signiflcante-zero, a verdadeira importância desta questão (Cf. Introduction à Toeuvre de Mauss, P.U.F., 1950, págs. XLVII e segs.). Localização do lugar ocupado pelo termo que Indica a exclusão específica, a ausência pertinente, isto é a determinação, ou "estruturalidade" da estrutura. J. A. Miller fez uma exposição deste problema à qual deve-se fazer referência. (Cf. "La suture", Cahíers pour 1’analyse, n.° 1, janeiro, 1966), Contudo tentaremos demonstrar mais tarde: a) que o uso — extraordinariamente engenhoso — da constru­ ção do número por Frege com a finalidade de ilustrar o problema da causalidade estrutural é eplstemológicamente inadequado; b) que não se podería pensar a lógica do significante como tal (do significante "em geral"), a não ser que se reforçasse a estrutura da metafísica.

24. Cf. por exemplo LC I, 49. A causalidade Imanente da subs­ tância não é outra coisa que o seu efeito: a mobilidade Intra-modal da Natureza naturalizada, da qual a Natureza naturalizante é a deter­ minação ausente. Contudo, Deus está efetivamente representado como modo (por sua Idéia Inadequada). Na configuração estrutural

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a que se chama o homem, esse representante da determinação pode ser (liberdade) ou não ser (escravidão) dominante: a Sabedoria ó uma conjuntura. 25. O campo completo destas práticas, tal como é Indicado em diversos lugares por Althusser, compreenderia, além da prática teó­ rica e da prática ideológica, o conhecimento "técnico” e o conheci­ mento "empírico”, provavelmente redutíveis a certas configurações de transição entre o conhecido, o representado, e outros efeitos, interiores a outras instâncias das formações sociais. 26. Como nota Althusser, a propósito de Husserl, assumir o círculo como círculo não nos leva a sair dele. Acrescentarei: cha­ mar "dialética” à circularidade do círculo não deve nos fazer esque­ cer o caso em que esse círculo é justamente o círculo da 'ideologia. "Mas o círculo desta operação é apenas, como qualquer círculo desta espécie, o círculo dialético da questão formulada a um objeto sobre sua natureza, a partir de uma problemática teórica que, submetendo à verificação seu objeto, se submete à verificação de seu objeto” (RTM, 31). Concordo. Mas quando o objeto, como é o caso do ma­ terialismo dialético, é o próprio conhecimento, isto é, justamente a relação de qualquer objeto científico possível à sua problemática? Então a questão formulada a esse objeto Institui um problema cuja estrutura é absolutamente original: o problema da problemática. Não se correra o perigo de constatar que este objeto tão particular é, como certos "objetos” da teoria Ingênua dos conjuntos, um objeto paradoxal? Não nos exporemos ao perigo de não podermos desig­ ná-lo senão por enunciados Inutilizáveis? 27. As indicações que seguem, bastante difíceis, são extrema­ mente sumárias. Apoiando-me no fato de que Althusser determina ge­ ralmente a eficácia "global" de uma instância por efeitos de deslo­ camento, construí um exemplo teórico mais completo, que utiliza como funções de base permutações de permutações. Este exemplo é muito técnico para ser transmitido aqui, limito-me a informar de sua existência. 28. A teoria das Categorias é talvez o acontecimento epistemológico mais significativo destes últimos anos, pelo esforço da abstração radical que testemunha: as estruturas matemáticas já não são construídas, para falar com propriedade, segundo vinculações operatórias entre elementos de uma multiplicidade pura (conjunto); • pelo contrário, aparecem como "cumes” de uma rede de percursos na qual as correspondências estruturais (os morfismos) são iniciais. No Universo (este é o. conceito utilizado) assim delineado. Estrutura das estruturas, a multiplicidade é apenas uma estrutura entre outras: falamos da Categoria dos conjuntos como da categoria dos grupos, etc Já que estou na matemática, devo chamar ‘a atenção para o pe­ rigo latente de um certo “aristotellsmo” em Althusser, de um mo­ vimento de pensamento mais "orgânico” do que matemático.. Com efeito, nos seus textos encontramos: a) A subordinação da matemática a uma conceitualização não-matemática: "A formalização matemática não pode deixar de estar subordinada com relação à formalização conceituai” (LC II, 67).

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b) A identificação do conceito com a definição: "...) a questão do estatuto da definição, iéto é, do conceito" (LC II, 67), Isto significa voltar um pouco preclpitadamente à antiga ideolo­ gia da matemática-linguagem. Recordemos que os conceitos de uma ciência são necessariamente palavras não definidas; que uma defi­ nição nunca é outra coisa a não ser a Introdução de um símbolo abreviador; que, consequentemente, a regularidade da eficácia de um conceito depende da transparência do código no qual ele figura, Isto é, da sua materialização virtual; que finalmente a matemática não é, em física, em biologia fundamental, etc., subordinada e ex­ pressiva, mas sim inicial- e produtora. 29. Releia-se o prefácio da segunda edição da Crítica da^ Razão Pura: Kant multiplica aí os indícios de uma singularidade sem con­ ceito, de um quase milagre que preside o surgimento "prático” da ciência: “revolução devida a um só homem"... "feliz Idéia de uma tentativa"... "quem teve a felicidade de realízá-lo"... "atingido por uma grande luz". A ciência é o fato puro "por baixo" do qual não existe nada.

que assumia, para ele, o caráter de uma verdadeira “tomada de posição política”. Compreende-se que, ao desempenhar esse, pa­ lpei, o materialismo dialético exija a mais elevada consciência, o 'mais alto rigor científico, a mais elevada vigilância teórica, visto que no dominio teórico ele é o último recurso, a última instân­ cia possível para os homens que, como os marxistas, se liberta­ ram dos mitos da onisciência divina ou da forma profana da re­ ligião: o dogmatismo..

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Louis Althusser Observação à segunda edição francesa de “Ler O Capitar1

1. Esta edição de Ler O Capital é, em muitos aspectos, dife­ rente da primeira edição, • Por um lado é uma edição parcial porque, para permitir sua publicação em formato reduzido, suprimimos algumas im­ portantes contribuições (os textos de Ranciére, Macherey e Establet). Por outro é uma edição revista e corrigida, e por. isto, de certo modo, nova: yárias páginas, especialmente no texto de Balibar, são inéditas èm francês, Todavia as retificações (cortes e aumentos) a que submete­ mos o .texto original não se referem nem à terminologia, nem às categorias e conceitos que utilizamos, nem às suas relações internas, nem consequentemente à interpretação geral que demos da obra de Marx. Diferente da primeira, esta edição de Ler O Capital, abre­ viada e melhorada, reproduz e representa assim, estritamente, as posições teóricas do texto original. 2. Esta última precisão era obrigatória. De fato, por respeito ao leitor e por pura honestidade, quisemos respeitar integral­ mente uma terminolqgia e posições filosóficas e que todavia ago­ ra nos parece indispénsável retificar em dois pontos precisos.

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Apesar das precauções tomadas para distinguir-nos da ideo­ logia “estruturalista” (temos dito de maneira muito clara que a “combinação” que se encontra em Marx “não tem nada a ver com uma combinatória”), apesar da intervenção decisiva de ca­ tegorias alheias ao “estruturalismo” (determinação em última ins­ tância, dominação, sobredeterminação, processo de produção etc.), a terminologia que empregamos estava sob diversos aspectos bas­ tante próxima a terminologia “estruturalista” de forma a não causar equívoco. Disto resulta que, salvo raras exceções — a de algumas críticas perspicazes que notaram a diferença — nossa interpretação de Marx tem sido reconhecida e julgada freqüen-. temente, em homenagem à moda reinante, como “estruturalista”. Pensamos que a tendência profunda de nossos textos não se vincula, apesar dos equívocos da terminologia, com a ideologia “estruturalista”. Esperamos que o leitor queira recordar esta afir­ mação, colocá-la à prova e ratificá-la. Pelo contrário, temos agora todos os motivos para pensar que uma das teses que havia desenvolvido sobre a natureza da filosofia revela, apesar de todas as. precisões apresentadas, uma clara tendência “teoricista”. Mais precisamente,, a definição (dada em A Revolução Teórica de Marx e retomada no Prefácio de Ler O Capital) da filosofia como teoria da pratica teórica é uni­ lateral e inexata. Neste caso não se trata de um simples erro de terminologia e sim de um erro na própria conceituação. Defi­ nir a filosofia de maneira, unilateral como Teoria das práticas teó­ ricas (e conseqüentemente’como Teoria da diferença das práticas) é correr o risco de provocar efeitos e ecos teóricos e políticos, sejam “especulativos”, sejam “positivistas”1. As conseqüências deste erro, que se; refere à definição da filosofia, podem ser reconhecidas e delimitadas em alguns pontos específicos dó Prefácio de Ler O Capital. Mas, afora certos de­ talhes menores, suas consequências não invalidam a análise que fizemos de O Capital (“O objeto do Capital”, e a exposição de Balibar). Teremos oportunidade de retificar a terminologia e de corri­ gir a definição de filosofia em uma série de estudos futuros. (Observação à edição surgida em 1968 de Lire le Capital, editions François Masperò, Petite Collection Maspero, Paris, tomo I, pág. 5-6). ' )

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Louis Althusser Rino Dal Sasso . Nicola Badaloni Luciano Gruppi Lucio Lombardo Radice Galvano Delia Volpe

Discussão sobre o pensamento de Antonío Gramsci

A filosofia, a política e a ciência*

Querido companheiro:

Lí com muito interesse tua nota sobre meu texto “O mar­ xismo não é um historicismo”, publicado na revista Trimestre. Observo que tua crítica, mesmo quando coloca nítidas objeções, se preocupa em indagar o que procurei “dizer”, inclusive nas si­ tuações onde não o consegui inteiramente. Tens razão: minha grosseira aproximação entre alguns te­ mas de Gramsci e algumas teses de Colleti não se apoia nas justificações históricas e teóricas necessárias. Compreendo que é preciso ter cautela na interpretação de certas formulações “teóricas” de Gramsci, que não podem ser julgadas separadamente de seu pensamento “concreto”. Porém, concordarás comigo em que não basta a menção da existência do “pensamento concreto” de um autor para dissipar automaticainente os equívocos que podem estar implícitos nas fórmulas “abstratas” de sua “teoria”. Entre a teoria abstrata e o.pensa­ mento concreto de um autor, especialmente de um autor maduro e responsável como Gramsci, existe sem dúvida uma profunda unidade de inspiração. Se algumas de suas formulações “teóri­ cas”, “abstratas” estão sujeitas a equívocos é necessário verificar se seu “pensamento concreto” reflete e consagra (“concretamen­ te”), ou pelo contrário corrige e põe fim (“concretamente”) a tais equívocos. A existência de um “pensamento concreto” não constitui necessariamente a prova de que o equívoco presente *

Em 1.° de dezembro de 1967, Rlno Dal Sasso publicou em

Rínascita um comentário sobre um capítulo de Ler O Capital de Louis Althusser' que apareceu na revista Trimestre de Pescara. Althusser respondeu ao comentário com esta carta, que foi publicada em Rinascita juntamente com uma breve resposta de Dal Sasso e com inter­

venções de Nlcola Badaloni, Galvano Delia Volpe e Luciano Gruppl.

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em uma fórmula “abstrata’1 foi corrigido. A correção deste equí­ voco deve estar provada no “pensamento concreto” para que a a referência ao “pensamento concreto” não valha somente como garantia moral. Sendo assim, devo confessar que os melhores estudos sobre o “pensamento” de Gramsci que pude ler não dissiparam o equí­ voco “teórico” do qual falarei agora. E aqui está o ponto localizado de modo preciso no qual, no meu entender, está presente um equívoco “teórico”. Contra toda a corrente positivista de interpretação do mar­ xismo (e com relação a isto seu mérito é imenso, pois teve a ludidez e a coragem de lutar contra as opiniões dominantes), Gramsci viu e refletiu bastante em uma das duas determinações de toda filosofia: a relação entre filosofia e política. Mas nao viu, nem isolou, nem pensou realmente a outra determinação: a relação entre filosofia e ciência. No plano teórico, este é o ponto fraco de Gramsci. Alguns filósofos marxistas italianos salientaram claramente esta fraqueza. Gramsci defende em textos escritos de modo apressado e super­ ficial uma concepção evidentemente insuficiente, senão falsa, das ciências. Limita-se a repetir fórmulas totalmente equívocas e com reminiscências crocianas: teoria “instrumental” das ciências e teo­ ria “superestrutural” das ciências. Quanto ao aspecto objetivo de tais formulações podemos di­ zer que elas indicam:

1) o lugar que uma ciência ocupa em uma prática determi­ nada, na qual é só um elemento entre outros, e a função que ela desempenha em tal prática (por exemplo: a teoria marxista é um dos elementos da prática política marxista, e existe como “instru­ mento” do “método” e “guia” para a “ação”); 2) o lugar que as ciências ocupam em uma formação social dada, com relação a suas instâncias (infraestrutura, superestrutura jurídico-política,’ superestrutura ideológica). Neste sentido as ciên­ cias ocupam um lugar “na superestrutura”. Porém, tais formulações, que atribuem às ciências um lugar dentro de tópicos, não dão conta daquilo que é específico das ciências: a produção de conhecimentos objetivos. Disto se tira pelo menos uma conclusão importante.

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Como Gramsci não pensa a relação específica que a filoso­ fia estabelece 'com as ciências} tende constantemente a reduzir e a igualar completamente, salvo alguma variação meramente for­ mal, a “filosofia” à “concepção do mundo”. Na verdade, o que diferencia na visão de Gramsci a filo­ sofia (“dos filósofos”) da concepção de mundo (de todos os homens, na medida em que todo homem tem uma “concepção de mundo” e é por isto que Gramsci diz que “todo homem é filósofo”) é só isto: qu.e a filosofia se caracteriza por uma maior “coerência”. É claro que esta diferença é só formal, porqjie Gramsci a qualifica como uma mera diferença no grau de “coe­ rência”, sem explicar a razão nem da “coerência” nem da dife­ rença de grau, É verdade que Gramsci fala também do caráter “sistemático”, do caráter • “racional” da filosofia (dos filósofos e do marxismo), mas esses termos, que não explicam nada especí­ ficamente, não fazem nada mais a não ser repetir com outras pa­ lavras o caráter anteriormente afirmado da “coerência”»

Porém, a coerência (ou sistematicidade, ou ainda a raciona­ lidade) não são, como tais, critérios específicos e nem distinti­ vos da filosofia. Existem concepções de mundo que se apresen­ tam perfeitamente coerentes, sistemáticas e até com “racionali­ dade” e que, todavia, nao podem ser confundidas com a filo­ sofia: por exemplo, as manifestações teóricas da concepção reli­ giosa do mundo na teologia. Na realidade, para compreender verdadeiramente o que Gramsci quer designar como próprio da filosofia quando recor­ re à sua “coerência”, é necessário fazer intervir a relação espe­ cífica que a filosofia mantém com as ciências. Somente esta re­ lação é que confere à filosofia os caracteres (coerência, sistematicidadé e racionalidade) exigidos por Gramsci, mas neste caso tais caracteres não terão apenas um caráter formal e sim já adqui­ rirão um caráter preciso, definido não, pela “racionalidade” em geral, mas sim pela forma específica de “racionalidade” dominan­ te qué existe, em um dado momento, nas ciências com as quais a filosofia estabelece uma relação específica. As “concepções do mundo” contemporâneas, ou não têm nenhuma relação com as ciências (e- com sua “racionalidade”) ou estabelecem com as ciên­ cias uma “relação” totalmente distinta da relação filosófica. Se esta análise ainda que esquemática tem fundamento, de­ veria ser evidente que as filosofias estabelecem também uma relação determinada com as “concepções de mundo” existentes.

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Esta relação é,. certamente, a relação orgânica da filosofia com a política (porque na luta ideológica de classe, que é um mo­ mento da luta de classes propriamente dita, isto é, da política, só existem concepções de mundo opostas). Porém, as filosofias não se caracterizam somente pela relação com a política (se assim fosse, não seriam mais do que meras concepções de mundo, ainda que concepções “políticas”). Definem-se como filosofias (e esta é sua diferença específica) pela relação particular que estabele­ cem, ao mesmo tempo, com as ciências, e mais precisamente com a forma de “racionalidade” dominante çue existe nesse momento nas ciências. Esta dupla relação implícita tem como resultado uma com­ binação original que é o que vai fazer com que as filosofias exis­ tam como filosofias, distintas ao mesmo tempo das concepções de mundo e das ciências. Assim se compreende porque^ as filo­ sofias contém em si concepções de mundo, ou melhor como são o efeito de concepções de mundo: daí a validade da teoria de Engels e Lenin, da luta das duas tendências, materialista e idea­ lista, na história da filosofia, visto que tal luta é uma luta ideoló­ gica de classes entre concepções do mundo opostas. É compreen­ sível, ao mesmo tempo, que as filosofias sejam sempre distintas de outras concepções de mundo nao filosóficas porque, diferen­ temente das meras concepções de mundo, elas estabelecem uma relação específica com as ciências. Isto posto, me parece claro que Gramsci não pode, na falta de uma concepção correta da ciências e da relação específica da filosofia com elas, dar. uma definição completa e correta da filo­ sofia. É certo que ele • viu a relação fundamental que existiá entre filosofia e política, mas não compreendeu a relação espe­ cífica entre filosofia e ciências. Daí o claro equívoco na sua concepção “teórica” da filosofia. E, que eu saiba, este equí­ voco “teórico” não foi corrigido pelo “pensamento concreto” de Gramsci.

Se se concorda com a existência de tal equívoco, se com­ preenderá imediatamente que é dele que resulta a tendência, que em Gramsci é acentuada, de se confundir a filosofia marxista (materialismo dialético) com a ciência da história (cuja “teoria geral” é o “materialismo histórico”). Esta confusão é ratificada por Gramsci: 1) quando suprime o termo clássico materialismo dialético (no qual reprovava as ressonâncias positivistas sem ob­ servar o conteúdo real desta definição, a saber, a relação entre

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filosofia e ciênóías); 2) quando reúne a ciência da história com ii filosofia marxista em uma única expressão que é a “filosofia da praxis”. Creio que neste caso não se trata de uma simples questão de terminologia sem consequências teóricas e práticas. Estou consciente de que nessa minha insistência nas ciên­ cias deve existir algo que é próprio da “tradição cultural fran­ cesa”, de seu “iluminismo”. Mas, penso também que não se pode resolver com seriedade o problema objetivo de uma teoria correta das ciências, e da relação da filosofia com as ciências, mediante uma explicação de caráter historicista: “sociologia do conhecimento”. O mesmo procedimento, isto é, a recorrência à “tradição italiana”, tampouco serviria para resolver o problema nuscitado pelas teses de Gramsci, Todos nós estamos suficiente­ mente distanciados de nossas respectivas “tradições nacionais” e iiomos todos marxistas-leninistas o bastante para estarmos imuni­ zados contra o relativismo sociológico, que é um produto direto da ideologia burguesa na história, como também para rechaçar este ponto de vista “comparativo” superficial, que funciona como uma mera ideologia quando pretende dar conta do conteúdo teó­ rico de unia proposição. Tal “sociologismo” é, por assim dizê-lo, um “ótimo” exemplo dos estragos que pode provocar uma con­ cepção “historicista” vulgar do marxismo. Digo “vulgar” convencido de que, apesar de seus equívocos objetivos, a concepção gramsciana do “historicismo” está muito longe de ser “vulgar”. Mas, justamente por isto, a experiência que podemos ter cotidianamente, e nas mais variadas circunstân­ cias possíveis, dos nefastos efeitos teóricos e práticos do equí­ voco objetivo que, apesar de todas as precauções de Gramsci, contém a noção de “historicismo” (ainda que seja definido como “absoluto” para escapar do relativismo) nos obriga a colocar a questão do “instrumentalismo” de seu uso, e além ainda desta questão meramente pragmática, a questão de sua validade teó­ rica. Acima de tudo devemos “preservar”, salvaguardar aquilo que o “historicismo” de Gramsci contém de autêntico, apesar de sua formulação incerta e de seus inevitáveis equívocos teóricos. O caráter autêntico do historicismo de Gramsci consiste, essen­ cialmente, na afirmação da natureza política da filosofia, das for­ mações sociais (e dos modos de produção que as compõem), na tese correlativa da possibilidade da revolução, na exigência da união de teoria e praxis, etc. Porque não definir estas realidades por seus nomes já consagrados por uma enorrfíe tradição?

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Em compensação, se é obrigatório “preservar0 aquilo que o “historicismo” gramsciano tem de autêntico, devemos também evitar, a todo custo, comprometê-lo (e o simples uso da palavra nos obriga constantemente a fazê-lo) com as ideologias relativistas (burguesas) do conhecimento, as quais acreditam poder dar conta de um conteúdo teórico objetivo (conhecimento científico ■verdadeiro ou tese filosófica justa) reduzindo-o às suas condições “históricas”. A história dos conteúdos teóricos (isto é, científicos e filo­ sóficos, no sentido exato dos termos) é sem dúvida uma história. Porém:

1) esta história nao deve ser entendida como um simples devir empírico a ser registrado em uma crônica mas sim pensada dentro dos conceitos teóricos da ciência marxista da história;

2) é uma história sui generis, que ainda que se reintegre na história das formações sociais e que se articule sobre esta his­ tória (que é o que se chama, simplesmente. História) não é re­ dutível, pura e simplesmente, à história das formações sociais, ainda que seja concebida em termos não empíricos segundo os conceitos marxistas da ciência da história. Mas a menção à estas distinções, essenciais sob o meu ponto de vista, nos remete à interpretação do marxismo e a Gramsci outra vez. Podemos suspeitar que também sobre este ponto, quero dizer, sobre o modo de conceber a ciência marxista da história (como distinta da filosofia marxista), os equívocos de Gramsci com relação à ciência e a filosofia (principalmente seu silêncio sobre a relação filosofia-ciências) provocam consequên­ cias teóricas e práticas.

Espero poder voltar a estes problemas de uma forma mais ampla. Entretanto me alegraria muito se nossos camaradas ita­ lianos que conhecem bem a Gramsci, não só sua “teoria abstrata” como também seu “pensamento concreto”, contribuíssem com estas reflexões que estão bastante ligadas a problemas de grande atualidade. LOUIS ALTHUSSER

Método de leitura Em minha brevíssima nota ao capítulo de Althusser cujo título é: “O marxismo não é um historicismo” me limitava a algumas observações sobre o “método de leitura”. Não acusava Althusser de não ter provado a aproximação que fez de Gramsci com Colletti com “as justificações históricas e teóricas necessárias”. Eu 8Ó queria dizer o seguinte: pelo método “redutivo” pode-se che­ gar a igualar escritores que têm idéias e significados bastante diferentes. O' “historicismo” gramsciano pode ser aceito ou re­ jeitado, mas nunca aproximado à posições como as de Colletti (como neste caso) cuja teoria nunca teve repercussão, o que não foi por acaso, na história passada e presente. As analogias que parecem existir nas formulações são, na verdade, posições incomparáveis entre si, porque a mesma forma gramsciana de “seccionamento do presente” só é compreensível na relação dialética com a historização, através daquelas famosas “mediações” e que sem as quais esse mesmo “seccionamento do presente” seria outra coisa. A teoria análoga de Colletti jamais teve por resultado (nem tampouco foi solicitada como metodo­ logia) o discurso histórico. Talvez tenha que rejeitar por com­ pleto a posição de Gramsci, todavia acabo de cumprir a obriga­ ção de definí-la em linhas bastante gerais. O fato de que a tenha teorizado ou não, e teorizado com rigor, tem pouca importân­ cia. E é aqui, justamente, onde desde o início a questão do “mé­ todo de leitura” adquire uma importância fundamental. Althus­ ser age por extração. Concordo que um autor, um escritor (tam­ bém um filósofo) tem um valor e uma significação em sua tota­ lidade, a qual pode conter certos aspectos e formulações parti­ culares que podem ser contraditórios ou não coincidirem exata­ mente, isto é, dito mais precisamente, se encontram em relação dialética. Assim são lidos os poetas, além dos filósofos. Uma leitura correta de um escritor será sempre aquela que estabelece uma relação dialética entre os dois momentos (o geral e o das formulações e das investigações específicas sobre as quais se arti­ cula a obra), relação cada vez mais próxima à dialética real que existe entre a produção do pensamento e da obra examinados. Me desagrada o fato de usar uma fraseologia tão genérica e nor­ mativa, mas é que as vezes tenho a impressão de que as pre­ missas metodológicas de Althusser estão colocadas exatamente no lado oposto: ele parece estar convencido.de que é possível “extrair o pensamento de um escritor (filósofo, teórico, e tam-

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bem crítico, ensaísta, etc.), isolá-lo e observá-lo in vitro. Parece estar convencido de que é possível chegar a formulações unívo­ cas, a teorias que podem ser restituídas a uma fórmula exaustiva, sobre os- escritores (e filósofos) dignos desse nome. Eu tenho opinião oposta e creio que utilizando esse método se chega a um verdadeiro massacre e a uma permanente incompreensão do que o autor quer dizer. Todavia, é claro que ao se chegar a este ponto a discussão se amplia enormemente, até transbordar os limites (que já compreendem um enorme território) coloca­ dos por Althusser em sua carta; mas talvez também por este caminho se chegaria ao núcleo do* problema. Limitar-me-ei por isso a algumas observações sobre esta questão preliminar. Althusser parece, de certa forma, reduzir o adjetivo “absoluto” com o qual Gramsci define “seu” historicis­ mo, a estratagema para evitar o relativismo. Não entendo. An­ tes de mais nada esse adjetivo nasceu em Gramsci somente com relação a Croce: “historicismo especulativo” é o de Croce, histo­ ricismo absoluto (ou científico) é o marxista. Não vejo de onde possa surgir o espantalho do “relativismo”. Isto é uma indica­ ção de que não se leu atenta e “globalmente” os textos de Grams­ ci, que mostram uma luta, permanente contra o historicismo es­ peculativo. O mesmo' vale para os “resíduos” crocianos. O pró­ prio Gramsci salienta o fato de que Croce está na base de sua formação cultural e filosófica e que tem dele uma opinião “ele­ vada”. Mas o fato é que Gramsci cuida exatamente em articular a crítica “marxista” em confronto com o pensamento crociano (não só crociano, mas que seja acima de tudo crociano). Nenhu­ ma formulação de Gramsci é perfeitamente redutível ao crociahismo. Nunca. Pode ser que sua revisão crítica de Croce esteja errada, ou que seu diálogo-crítico seja sem interesse, mas a ver­ dade é que nunca há um retorno às posições crocianas (neni mesmo na “estética” onde sua reflexão é mais débil e fragmen­ tada). Acreditar ter descoberto algo através de uma fórmula (e em proveito da discussão posso afirmar que a “teoria gramsciana das ciências” tem o significado que lhe atribue Althusser) dizendo “agora tè peguei”, dá a impressão de um jogo muito fácil, que é fruto de um modo de ler desarticulado, “extrativo”, enfim,, escolástico, E o mesmo pode-se dizer a respeito do problema da teoria da ciência. No final de minha nota eu mesmo me referia ao pro­ blema, que nao está tão ligado a uma solução “teórica” correta da relação “ciência-história”, como a sua formulação prática cor­

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reta (a formulação correta da presença das ciências na sociedade, na cultura, no Estado, etc.). Por experiência sabe-se que a teo­ rização da ciência conduz, no movimento revolucionário, a aber­ rações, e bastaria citar as loucuras,impostas com as teorias de Lysenko. A articulação das ciências, de todas as ciências, só pode resultar de uma visão dialética do mundo, onde o momento das ciências encontra autonomia e ao mesmo tempo seus limites, como autonomia e limites encontrará também o momento da política. Gramsci pensou alguma vez de maneira diferente? Não é sua investigação histórica e sua tentativa de fundar científiçamente a história (na polêmica contra o especulativismo crociano) uma indicação metodológica de autonomia dos momentos dialé­ ticos? Tal é, em linhas gerais, o sentido global, além do parti­ cular, de Gramsci. Gramsci deve ser lido seguindo-se a direção geral de seu pensamento, a experiência de conjunto que expressa (até estilisticamente). 'Deve ser, sem dúvida, historizado, devem ser encontrados seus limites e contradições, mas no interior da direção de sua investigação, no interior do que ele disse real-, mente, pois do contrário corre-se o risco de reduzi-lo a formu­ lário e catecismo. Talvez uma leitura mais orgânica e “científica” arrisque uma “desvalorização” (uma determinação), maior. Po­ rém não vejo qual pode ser a. utilidade e o incentivo que pode produzir uma operação “extrativa” com relação a um autor que apesar de sua fragmentariedade (em parte necessária, em parte voluntária) distingue-se por sua coerência e organicidade.

RÍNO DAL SASSO

A tarefa do filósofo

A intervenção do companheiro Althusser me parece bastante in­ teressante não só pelas coisas que diz e que nos fazem pensar, mas também pelo esforço para determinar um espaço à relação entre filosofia e política. Nesta intervenção não há sinais da arrogante separação entre a teoria e a política que constitue um dos aspectos mais irritantes de sua elaboração anterior. Devo dizer que é interessante também o modo como ele encara o pro­ blema da relação filosofia-ciência. A tarefa do filósofo seria por

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um lado a de descobrir a determinação histórica das concepções do mundo, e por outro a de individualizar a racionalidade domi­ nante em um certo período histórico, No entanto, a esta altura surgem alguns problemas e difi­ culdades. Na minha opinião, para que a solução de Althusser seja satisfatória ela deveria conseguir compreender o vínculo en­ tre a primeira e a segunda função da filosofia. Uma das maiores limitações da posição de Althusser é justamente ter ignorado esta relação. Com isso eu quero dizer que a racionalidade dominante nas ciências em um certo período não pode ser designada como uma essência, como uma qualidade, mas sim, a partir do ponto de vista da filosofia, deve ser entendida como um sistema de tensões que trabalham dialeticamente afetando (exatamente ao nível da filosofia) as concepções de mundo existentes. A deter­ minação destas tensões (tarefa na qual se fundamenta em grande parte a racionalidade científica e em torno da qual, seguindo Gramsci, mas também nos esforçando para fazer uma crítica in­ terna de seu pensamento, estamos tentando trabalhar há muito tempo) vai originar o problema de uma relação entre a raciona­ lidade dominante nas ciências e as tensões práticas que lhe são correspondentes. A falta de atenção para este momento dialético (que é, por exemplo, o mesmo que impulsiona Voltaire a interpretar e a corrigir radicalmente o sentido filosófico da ciência newtoniana) induz frequentemente Althusser a tratar somente da racio­ nalidade dominante nas ciências; e esta unilateralidade por sua vez impulsiona, por um lado, a tentação de construir, utilizando a teoria, uma verdadeira meta-história de conceitos puros, e por outro lado, a realçar paradoxalmente o princípio de que a cons­ ciência que uma época tem de si mesma é totalmente falsa. So­ bre este assunto temos também, nos clássicos do marxismo, exemplos notáveis de como se pode encarar o problema de se dar significação a determinados fatos empíricos e a determina­ das concepções, sem recorrer ao des animador princípio da falta total de significado do factual e do empírico. A pesquisa histó­ rica que tem suporte teórico, tem formas de tentar a colocação dos fatos em determinados contextos, tem formas de verificar sua compatibilidade. Além disso, enriquece a teoria ao vinculá-la à variedade e à riqueza do factual, do qual desvenda o significado. Isto é possível porque a racionalidade das ciências dominantes em um certo momento se estrutura em uma relação dialética com sua própria época e com as épocas passadas.

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Dizíamos anteriormente que na carta de Althusser o isola­ mento da teoria tende a se diluir pelo reconhecimento da dupla função do filosofar. Contudo, ainda existe um ponto no qual se manifesta. Althusser define a relação da filosofia com a política como uma relação com concepções de mundo; a relação com a ciência como uma relação com a racionalidade científica. Mas eu me pergunto: o problema da vinculação com a política não afeta também, sob o ponto de vista da filosofia, a racionalidade cien­ tífica? Althusser não vê esse problema porque ele define como cientifico todo contexto no qual intencionalidade humana e sub­ jetiva é deixada de lado. Isto pode ser verdadeiro para a ciên­ cia, mas não, certamente, para a filosofia se ela estiver cum­ prindo sua missão de apreender a racionalidade científica domi­ nante. Althusser nos diz que a validade científica de O Capital está no fato de que nele sao deixadas de lado as intencionalida­ des humanas, e que todas as ações voluntárias tornam-se impos­ síveis pela presença coatora da estrutura. Por isto o marxismo é um anti-humanismo e um anti-historicismo. Mas, na minha opinião, esta é uma interpretação parcial de Marx. Na realidade a automatização da exploração e seu esquecimento na aguda cons­ ciência do operário, têm na descoberta dos modos de reprodução, automatismo ou de uma pretensa e imediata naturalidade da ex­ ploração, seu verdadeiro inimigo. Como se explica que a realidade da sociedade capitalista passa a ser questionada? Quando a consciência dos operários, e dos explorados, pelas necessidades de conhecimento, pelos de­ sejos de viver bem, pela decisão de regular a própria vida li­ vremente, coloca-se bem longe e do lado de fora do que a socie­ dade atual oferece, e é por isso que o capitalismo deixa de ter razão de ser. Mas que vantagem pode oferecer o fato de negar que, falando de forma filosófica, a consciência científica possa transformar-se em intencionalidade subjetiva? Por acaso não foi o próprio Marx que afirmou que as condições atuais da produção manifestam-se no movimento de sua destruição e já sob a forma de condições históricas de um novo modo de produção da socie­ dade? Portanto, sob o ponto de vista da filosofia, a racionalidade científica obriga a reestruturação da subjetividade em uma direção revolucionária e, O Capital, por causa de sua cientificidade, esta­ belece uma determinada ligação com a política. A consciência re­ volucionária se enriquece com a racionalidade científica e faz desta racionalidade uma maneira de fragmentar a estrutura capitalista.

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Sei pelas obras de Althusser que ele tem outra concepção da ação revolucionária; ela se apresenta para ele mais como um fenô­ meno espontâneo e irrefreável, em relação ao qual a política cum­ pre o papel de auxiliar a fusão do material incandescente. Enten­ do esta sua concepção, contudo, a idéia de Gramsci de que a força revolucionária deve unir-se em um bloco histórico de inte­ resses, convicções, etc.* tendo como objetivo imediato a nova.or­ dem social, parece ser para mim a única forma possível de fazer com que uma forte e intimidadora presença operária prevaleça em uma sociedade como a nossa. Althusser nos diz que Gramsci está cheio de defeitos e erros; que às vezes consente em ver somente o aspecto intencional e a relação com a política; que freqüentemente não vê o problema da relação com a racionalidade cientí­ fica de sua própria época e portanto abandona o materialismo dialético e se deixa levar pelo idealismo. Tudo isto pode estar certo, mas o significado maior de Gramsci não está aí. A maior contribuição de Gramsci foi a de ter caracterizado sua própria investigação como resultante do leninismo e de colocar o proble­ ma da revolução em condições históricas diferentes e mais avan­ çadas, no sentido capitalista, do que as condições da Rússia. Por outro lado, e com relação a Gramsci, Althusser está do­ minado por dois interesses. De um lado visa mostrar suas insu­ ficiências, e com relação a este ponto deve-se salientar que ele nem sempre é justo.. Por exemplo, quando Gramsci fala de senso comum, fala sempre de um elemento desagregado em relação a uma determinação social; e quando fala de coerência, ele a definé em relação a essa mesma determinação social» Não é o ca­ ráter da coerência formal o que modifica a desagregação, mas sim, pelo contrário, a coerência da interpretação de uma situação social determinada. Segundo a idéia aperfeiçoada por Gramsci do desenvolvimento do capitalismo (na época imperialista e fas­ cista), este somente consegue impor-se através do uso da vio­ lência, agora não mais de forma mediata e sim direta sobre os explorados. Daí origina-se o fato, historicamente novo, de que no mesmo senso comum desagregado revela-se uma inquietação, uma aversão pelos setores dominantes, embora a incoerência per­ maneça. Somente o partido pode unificar tal inquietação, mas um partido que seja sensível a essa inquietação, que possa ele­ var a consciência* fragmentada ao estágio o mais desenvolvido possível (historicamente) da luta de classes. Althusser tem todo o direito de não concordar com esta idéia da coerência na sua relação com a espontaneidade; tem todo o direito de não concor­

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dar com o fato de que a espontaneidade contém já, em parte, a ciência; tem todo o direito de pensar que o socialismo de nossa época é uma fortaleza cercada, e também de pensar que o senso comum, na atual situação histórica, é totalmente, incapaz de com­ preender os fundamentos da exploração. O que ele não tem o direito de fazer é transformar a teoria gramsciana do senso co­ mum, que está sempre ligada a determinadas situações históricas, em uma teoria geral do senso comum, e também não pode fazer da teoria gramsciana da coerência (que reproduz em condições novas a temática leninista da relação entre espontaneidade e consciência) uma teoria da coerência em geral ou da coerência formal. Agora vejamos o outro interesse de Althusser. Gramsci dá uma grande importância teórica ao princípio marxista de que todo processo histórico oscila sempre entre dois pontos: a) que nenhuma sociedade estabelece para si mesma objetivos para os quais não haja, ou esteja em vias de aparecer, as condições ne­ cessárias e suficientes; b) que nenhuma sociedade desaparece /antes de ter manifestado todo seu conteúdo virtual. Gramsci in­ terpreta este princípio no sentido de que tais condições existem e que a velha sociedade está em sua derradeira fase: considera, no entanto, que sua queda exige uma forte vontade coletiva. Tirando-se a exatidão da análise teórica, o que vai aparecer como decisivo são os aspectos voluntaristas. Os aspectos voluntaristas e historicista-voluntaristas do pensamento de Gramsci têm por­ tanto um fundamento teórico. Mas no que diz respeito a Al­ thusser a polêmica com Gramsci é neste caso um falso alvo que tem por verdadeiro objetivo aqueles aspectos do pensamento de Marx e Lenin que convertem a teoria em prática. A polêmica contra os erros da Gramsci confunde-se dessa forma com a po­ lêmica contra os erros de Marx, e o resultado deveria ser a de­ puração dos aspectos historicistas do pensamento de Marx e de Lenin. Nestes aspectos, a fundamentação do historicismo gramsciano tem sua justificação. Para criticá-lo é necessário criticar tal fundamentação, isto é, é preciso demonstrar que já não estamos na época definida por Lenin como a da etapa superior do capi­ talismo e que exige uma mobilização coletiva das forças no ter­ reno da história, com o objetivo de exercer uma permanente pressão e participação da classe operária. No fundo o historicis­ mo marxista é isto: a importância central e decisiva de uma par­ ticipação operária em uma sociedade na qual se mantém, além

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das estruturas capitalistas, os gérmens do fascismo e do impe­ rialismo. No momento atual me parece que não existem condi­ ções para se pensar , em uma passagem espontânea (ou seja de­ terminada por outra coisa que não a vontade política) para o socialismo e é por isto que um historicismo marxista continua em vigência. Por outro lado, se a cientificidade fosse exclusiva, isto é, se não houvesse mediação na relação com a praxis, então a determinação no interior de uma certa formação social seria absoluta. E se admitíssemos que a questão da determinação pu­ desse se coordenar em uma relação não só com uma formação social determinada como também com uma continuidade histó­ rica que se manifestasse em cada momento através daquilo que Althusser chama deslocamento, continuaria sendo um mistério o que poderia produzí-lo, já que o homem está “morto”. E este é o erro no qual cai, pelo menos em parte, Althusser; é também o erro fundamental no qual caem alguns de seus amigos. 'A morte do homem é para Foucault o renascimento do nietzchismo e do heideggerismo, sobre um fundamento não dialético, de tal forma que, uma vez que o caráter dominante das ciências se es­ tabelece em um período histórico determinado, ele se torna absor­ vente e reduz à sua configuração tudo aquilo que poderia dar a impressão de se lhe opor. Nestas condições fica claro que toda presença historicista (no sentido político já indicado) não tem mais sentido. Porque eu deveria me preocupar com a história se tudo no mundo é igual?

Mas já que refutei isto também devo reconhecer que a pre­ sença histórica deve sempre ter como direção a fundamentação. Esta fundamentação está dada pela representação das caracterís­ ticas permanentes ou já solidificadas em todas as partes da for­ mação econômico-social capitalista, e também por novas caracte­ rísticas que devem ser compreendidos em sua raiz teórica e em sua funcionalidade histórica. Pode-se dizer, de forma geral, que existe um problema de entendimento da racionalidade das ciên­ cias de nossa época; e além disso, um problema de se dar rele­ vância ao seu significado em vinculação com os problemas de nossa época. Para uma problemática deste tipo as sugestões e as investigações de Althusser poderiam ter sido bastante valiosas se ele e seus amigos que colaboraram em Ler O Capital não aspi­ rassem criar as condições do isolamento da teoria como uma for­

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ma de alternativa ao historicismo e a consciência existente. A carta sobre Gramsci, apesar de seu forte conteúdo crítico, reco­ menda uma correção? Me parece que sim. De qualquer forma nos esforçaremos por extrair de suas inteligentes sugestões aquilo que pareça, para nós, ser útil ao marxismo contemporâneo.

NICOLA BADALONI

A relação homem-natureza

Louis Althusser coloca em sua carta um problema que merece ser seriamente considerado: o problema do lugar que ocupa no pen­ samento de Gramsci a relação homem-natureza, filosofia-ciência. Inicialmente é preciso reconhecer que os problemas que preocupam essencialmente Gramsci sao os da sociedade, dos par­ tidos e do Estado, da relação complexa entre estrutura e superes­ trutura, da forma como eles aparecem em sua concepção de hege­ monia. Existem duas razões para isso; a primeira é a de que Grams­ ci é um pensador revolucionário, que age em uma sociedade onde a classe operária está na oposição e onde a primeira questão que se coloca às forças produtivas é precisamente a da transformação desta sociedade. A segunda razão é a de que Gramsci está profundamente empenhado em uma luta anti-positivista e por isso dirige toda sua atenção em não permitir nenhuma redução (positivista) das leis que regem a sociedade às leis que regem a natureza. A terceira razão é, sem dúvida, a de um condicionamento cultural tipicamente italiano e particularmente ativo em sua épo­ ca. Porém este é, no meu entender, a última razão, pois a de­ cisiva. provém, por outro lado, da perspectiva revolucionária na. qual ele se coloca. Conseqüentemente, quem quiser avançar na linha de pensa­ mento de Gramsci teria que enfrentar a tarefa de refletir mais ampla e profundamente sobre o problema da natureza e da ciên­ cia? A mim parece que sim, Resta ver, contudo, se falta em Gramsci, como parece afir­ mar Althusser, a indicação de qual deve ser o ponto de vista

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no qual nos devemos colocar pata enfrentar o problema das ciências e da natureza. .Minha opinião é de que este ponto de vista existe, por exemplo onde ele diz: “. . . O homem não entra em relação com a natureza só pelo fato de ele mesmo ser natu­ reza, mas sim ativamente, através do trabalho e da técnica” (cf. II materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce, Einaudi, Torino, 1948, pág. 28). Temos aqui duas indicações: uma, a respeito não do dualismo, mas sim da unidade homem-natureza; e a outra, na # qual quero me deter, a respeito da ciência como praxis, como atividade transformadora, que prova, a partir desta sua própria capacidade de transformação, a validade de suas pro­ duções (veja-se a segunda tese de Marx sobre Feuerbach). Não me parece que exista nisso nada parecido à posição de Croce, para quem a função pratica das ciências chega a rebaixa-las a qualidade de pseudo-conceitos, a dialética hegeliana do trabalho desaparece em Croce e para ele a praxis se separa do momento teórico, enquanto que para o marxismo e para Gramsci, a praxis reune em si teoria e ação e representa o momento da verdade, da ciência. "Sem o homem o que seria a realidade do universo? Toda ciência está vinculada às necessidades, à vida, à atividade do homem” (cf. id., pág. 55). Existem certas inclinações idealistas na forma como Gramsci encara o problema da objetividade e de natureza, mas elas são superadas pelo desenvolvimento concreto de seu pensamento, pela crítica a qual ele submete o historicismo crociano, por sua refe­ rência permanente à base econômica, de classe, da história, da sociedade e da cultura. Isto posto não me parece justo afirmar que o problema das ciências e da natureza estaria oculto por causa destas inclinações idealistas. E mais ainda, pela maneira como Gramsci vincula as ciências à técnica, ao trabalho, à praxis humana, situa sua visão epistemológica dentro dos limites ma­ terialistas. O modo como Gramsci vincula a ciência "às necessidades, à vida, à atividade do homem”, nos leva a considerar a relação entre ciência e superestrutura. Com relação a isso é verdade que — como observa Althusser — a reflexão de Gramsci é apressa­ da, e o é de tal forma que acabamos vendo uma assimilação da ciência à superestrutura, o que é inaceitável porque sabe­ mos muito bem que as conquistas científicas só são válidas quan­ do superam as posições de classe. Mas também é igualmente certo que as ciências, sua vida e sua história, não podem ser con-

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sideradas se não se leva em conta sua relação com a estrutura e com a superestrutura. As relações de produção dão impulso a certas investigações científicas e a outras não; estabelece-se tam­ bém uma relação direta entre forças produtivas (além ainda das relações de produção nas quais elas se desenvolvem) e ciências, que são desconhecidas por outras formas de pensamento. Além disso, a superestrutura — as ideologias dominantes — condicio­ nam por sua vez o desenvolvimento científico. Assim sendo, parece-me que a relação ciências-natureza e filosofia-ciências pode ser colocada exatamente no espaço onde a filosofia é concebida como uma visão de conjunto da relação homem-sociedade-natureza e como capacidade de situar nesta re­ lação a função das ciências. O momento unificador está dado pela praxis. Para Althusser, ao contrário, esta unidade se rompe: pro­ duz-se uma separação entre a relação filosofia-ciências e a relação filosofia-política. A filosofia se converte em epistemologia e não é concepção de mundo. A concepção de mundo éstá relacionada com a política (praxir), mas não com a filosofia e as 'ciências. Conseqüentemente, temos de um lado uma restauração especula­ tiva da filosofia (quando se separa da praxis), que caminha em direção oposta da crítica marxista à filosofia especulativa. Temos uma redução da filosofia à epistemologia que paga um enorme tributo ao positivismo lógico, para não dizer apenas positivismo. Por outro lado temos uma redução da concepção de mundo e da política à ideologia, à não-ciência, quando todo o esforço do mar­ xismo está colocado exatamente na crítica da ideologia e em sua superação. Neste caso o tributo é pago a Levi-Strauss — isto é, mais uma vez sob a forma de positivismo — que entende que a política é, obrigatoriamente, a mitologia (e por isto ideologia} de nosso tempo. Ninguém vai negar que a política está cheia de mitos (mas seria a ciência imune a eles?). Ninguém vai negar que os mitos podem estar presentes no movimento operário e nas próprias con­ cepções dos marxistas. Mas o marxismo só é marxismo a partir do momento em que se esforça para uma constante superação crítica desses momentos ideológicos que estão presentes em sua concepção e que não regem a experiência e a praxis. O marxis­ mo, seu método, a concepção de mundo que ele permite cons­ truir, agora não mais como concepção especulativa — deduzida de forma puramente conceituai — mas sim como uma constru­ ção contínua na praxis, no confronto crítico dos dados da expe-

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riência que permite particularizar e superar suas contradições, para se passar da aparência do fenômeno à sua essência; o mar­ xismo, nesta sua construção da relação homem-sociedade-natu­ reza, é precisamente o esforço para fundamentar de maneira cien­ tífica a política, libertando-a da ideologia (através da análise da estrutura de classes da sociedade, da relação Estado-sociedade, partidos e sociedade, ideologias e sociedade). A mim me parece que o que se perde em Althusser é justamente a noção revolu­ cionária da praxis: da praxis que é revolucionária, transformado­ ra, na medida em que seja çientíficamente válida e capaz de pro­ var isua própria validade em sua própria capacidade transfor­ madora. Voltemos à separação entre teoria e praxis, ao dualismo da filosofia especulativa tradicional. O que significa, realmente, em Althusser a distinção entre materialismo dialético (como filoso­ fia geral) e materialismo histórico (como aplicação do materia­ lismo dialético à sociedade?) O que significa essa distinção que Gr. rmsci critica em Bujarin e que volta a aparecer no IV capítulo da História do Partido Comunista (b) da URSS, redigido por Stalin? Não pode significar outra coisa que o retorno a uma con­ cepção metafísica do marxismo. Quando á concepção materia­ lista e dialética não resulta da experiência da luta de classes, da contradição a partir da qual esta se desenvolve, da experiência da relação entre classes e cultura, ela só poderá ser inferida de uma forma transcendental, especulativa, idealista. Uma funda­ mentação não metafísica da teoria só é possível quanto a teoria se apresenta como experiência histórica que se torna, de forma crítica, consciente de si mesma. Quando Gramsci interpreta a dialética como dialética histó­ rica, e fundamenta seu caráter materialista na estrutura econô­ mica, não só retorna ao verdadeiro pensamento marxista — no qual não se pode encontrar, na minha opinião, a distinção esco­ lástica e pedante entre materialismo dialético e materialismo his­ tórico — como também recoloca a única forma de fundamentar uma concepção de mundo não especulativa, não ideológica, mas sim científica, porque está vinculada à praxis e colocada em uma união legítima (dialética e não de identificação mecânica) com a política. Desta forma, colocando ciências e técnicas na relação da praxis humana com a natureza, Gramsci está bem longe do dualismo do historicismo típico (Dilthey) entre- sociedade e na­ tureza, e vê a possibilidade de estender a dialética histórica e ma­

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terialista também à natureza, justamente pelo fato de que a rela­ ção com a natureza é dada pela praxis. Pode-se ver isto na obser­ vação que ele faz a Lukács: “A posição do professor Lukács frente a filosofia da praxis deve ser mostrada. Parece que Lukács afir­ ma que só se pode falar de dialética para a história dos homens e não para a natureza. Pode estar equivocado e pode ter razão. Se sua afirmação pressupõe um dualismo entre a natureza e o homem está equivocado porque cai em uma concepção da natu­ reza própria da religião e da filosofia greco-crista e também pró­ pria do idealismo, que realmente não consegue unificar e colo­ car em relação o homem com a natureza a não ser em palavras. Mas se a história humana deve ser entendida também como his­ tória da natureza (mesmo que seja através da história da ciência), como a dialética pode estar separada da natureza? Talvez Lu­ kács, ao reagir às teorias barrocas do Ensaio Popular, tenha caído no erro oposto, em uma forma de idealismo” (cf. id., pág. 145). Aqui está a indicação, ainda que sumária, do caminho a ser seguido para estabelecer a unidade entre homem-sociedade-natureza, para construir uma relação unitária do saber humano, fundamentando-a não na visão metafísica de uma dialética em si e para si, mas sim de uma dialética que se origina e encontra sua base objetiva na relação entre o homem e a natureza, na praxis.

LUCIANO GRUPPI

Sim, para sorte nossa

Por uma feliz coincidência, pude ler a carta de Louis Althusser a Rino Dal Sasso sobre o pensamento de Gramsci, publicada por Rinascita em 15 de março cujo título é “A filosofia, a polí­ tica e a ciência”, no momento em que estava relendo as princi­ pais páginas de Gramsci reunidas e comentadas inteligentemente por Giovanni Urbani na antologia La formazione delVuomo (Editori Reuniti, 1967). Esta releitura, no que concerne aos frag­ mentos que se referem à concepção de mundo, à hegemonia e à filosofia escolhidos por Urbani, foi aclarada pela observação prin­ cipal da carta de Althusser: "‘Gramsci viu e refletiu bastante em uma das duas determi­ nações de toda filosofia: a relação entre filosofia e política. Mas

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não viu com igual ânimo, nem isolou a outra determinação: a relação entre filosofia e ciência. . . “Daí a origem da “tendência, que em Gramsci é acentuada, de confundir a filosofia marxista (materialismo dialético) com a ciência da hisfória (cuja “teoria ge­ ral é o'materialismo histórico”)”, Se ao invés de “confundir.. . com” se escrevesse “distinguir. . . de”, e se afirmasse portanto (como Althusser faz demasiadamente no final de sua carta) que Gramsci concebia a ciência marxista da história” como “distinta da filosofia marxista”, minha resposta impensada, instintiva se­ ria: “sim, para sorte nossa”. Nos textos de Gramsci reencontro, particularizado e espe­ cificado, aquele “sim”. Não diria que Gramsci confunde a filo­ sofia marxista, tomada em toda sua totalidade, com a ciência da história e de seu desenvolvimento segundo uma “vontade racio­ nal” (ciência marxista da revolução). Seria mais justo se dissesse que .ao Gramsci político interessa mais a ciência marxista da revolução, a qual chamava frequentemente de forma abreviada, “filosofia”, omitindo o adjetivo “política”.

“É necessário. . . colocar como fundamento- da filosofia a “vontade” (em última instância a atividade prática ou política), mas uma vontade racional, não arbitrária, que se realiza enquan­ to corresponde a necessidades históricas objetivas, isto é, enquan­ to é a própria história universal no momento de sua realização gradual’ (antologia Urbani, pág. 236). Os filósofos marxistas intéressam a Gramsci exclusivamente (ou quase exclusivamente) enquanto filósofos políticos, enquanto intelectuais orgânicos de massa, capazes de “elaborar e tornar concretos os problemas que as massas colocam através de uma atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e. social” (ibidem, pág. 222). Em sín­ tese, a concepção de mundo que interessa a Gramsci é a “con­ cepção implícita na atividade humana” (p. 227). As filosofias das quais tem necessidade e com as quais deve adequar-se como dirigente revolucionário são as “elaborações que correspondem às exigências de um período histórico complexo”, (pág. 231). Porque respondo à observação de Althusser não somente “sim”, .mas ainda agrego — imediata e instintivamente — “para sorte nossa”?

O faço porque Gramsci concentrou de tal forma seu inte­ resse sobre o marxismo como filosofia da praxis, como ciência da história e da revolução que levou o Partido Comunista Ita­ liano a uma concepção justa e correta da unidade de idéias de

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seus membros (e a uma justa e correta prática correspondente), Por um lado Gramsci salientou a necessidade vital de que “uma massa de homens seja levada a pensar de maneira coerente e unitária a realidade presente” e a perspectiva racional-científica de sua transformação. Estruturou, portanto, o partido revolu­ cionário como uma associação de homens que têm uma vontade política comum porque têm (de forma mais ou menos completa e consciente) uma concepção comum da história. O partido re­ volucionário é, na visão e na elaboração prática gramsciana, um partido que tem uma ciência da história e da revolução (que Gramsci chama freqüentemente “concepção de mundo”, mas cóm o significado já especificado por nós), mas que, como tal ■—• como partido — não tem uma filosofia geral. A expressão “partido marxista” contém em si uma ambiguidade, porque tem dois sig­ nificados possíveis: 1) partido que, como tal, tem uma filosofia geral: o materialismo dialético; 2) partido orientado pela ciên­ cia da história e da revolução fundada por Karl Marx, Gramsci escolheu evidentemente a segunda interpretação, e Togliatti de­ senvolveu-a coerentemente. Falando do marxismo como (e enquanto) guia teórico do partido revolucionário, Palmiro Togliatti usava o termo doutrina (nem “filosofia” e nem sequer “concepção de mundo”). Assim, no quarto número de Rinascita, isto é, em fins de 1944, escrevia: “Guia ideológico deste partido (o “partido novo”’que Pal­ miro T. se dispõe a construir teórica e praticamente desde o mo­ mento de seu retorno à Itália de volta do exílio) não pode ser outro que a doutrina marxista e leninista, a única que permite uma análise completa de todos os elementos da realidade, de suas interligações e de seu desenvolvimento, e portanto, a única que permite adequar à realidade, corretamente, a ação política, da classe operária e de um grande partido”. E no discurso pronunciado em Florença em 10 de janeiro de 1947, que é fundamental como síntese da concepção togliattiana do partido novo, ele dizia: “. . . o que é preciso estudar? Sobretudo é preciso estudar nossa doutrina fundamental, a doutrina política da classe ope­ rária: o marxismo, o leninismo, a bússola que nos guiou durante vinte anos em nossa história e que nos guiará ainda para en­ contrar o caminho correto, o caminho italiano da luta pela de­ mocracia e o socialismo. . . O marxismo, já devem ter lido em todas as partes, não é um. dogma mas sim um guia para a ação,

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Mas agora a atividade da classe operária chegou a tal ponto que para desenvolver-se deve seguir novos caminhos, que até agora não foram percorridos. Traçar este caminho, planejar o modo como eles devem ser percorridos e desenvolvidos com segurança, é isto o que devem conseguir fazer hoje os dirigentes de um partido operário marxista”.

Sob a direção teórica e prática de Palmiro Togliatti, du­ rante vinte anos, de 1944 a 1964, o marxismo — como dou­ trina do partido — foi considerado pelos comunistas italianos como uma filosofia política, como uma “doutrina política da classe operária”, como a “ciência marxista da história. . . distinta da filosofia marxista”. Para sorte nossa, porque o fato de ter dado esta solução à relação teoria revolucionária-partido revolucionário permitiu que o PCI reunisse em seu seio e em volta de si todos os revolucio­ nários, guiados pela concepção de história como luta de classes, pelo socialismo científico e não por utopias, independentemente das filosofias gerais que seguiam (particularmente, independen­ temente do fato de serem ateus ou cristãos). Esta é a minha resposta com relação à distinção entre ciên­ cia marxista da história e filosofia marxista. Mais difícil é res­ ponder a outra, questão colocada pelo companheiro Althusser: a da relação entre filosofia marxista (materialismo dialético) e ciências. Limitar-me-ei aqui a uma breve consideração sobre a relação entre materialismo dialético e ciência marxista da histó­ ria. No entanto, as opiniões que manifestarei dirão respeito à forma da relação e por isso poderão ser extrapoladas à relação entre filosofia marxista e ciências em geral.

Acredito na existência de uma estreita vinculação entre filo­ sofia, entendida como “hipótese geral de trabalho” e teorias cien­ tíficas no momento de sua formação. Acredito, ao mesmo tem­ po, em uma grande independência das.teorias científicas com relação à filosofia que todavia as inspiraram, a partir do mo­ mento em que essas teorias sejam comprovadamente instrumen­ tos válidos de conhecimento, dentro de limites mais ,ou menos amplos. Isto é, acredito na laicidade de toda ciência, em sua compatibilidade com filosofias diferentes daquela que foi deter­ minante para sua formação.

As duas afirmações não são contraditórias. Sou apaixona­ damente engelsiano no que se refere à sua luta contra o pre-

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tenso agnosticismo filosófico da ciência que se auto-intitula po­ sitiva (objetiva, puramente factual, etc.). “Os investigadores da natureza acreditam libertar-se da filosofia pelo fato de ignorarem-na' ou acusarem-na. Porém, como nao podem trabalhar sem pensar, e como para pensar necessitam de determinações do pensamento, e tomam essas determinações ou categorias da cons­ ciência comum das pessoas ditas cultas, dominada pelos restos de filosofias que já estão há muito tempo obsoletas. . . conti­ nuam submetidos à filosofia, e geralmente às piores...” (Dialé­ tica da Natureza, edição alemã, pág. 222). A tese de Engels sobre a relação necessária entre a filosofia e a ciência pode ser confirmada por todos os grandes descobri­ mentos e sistematizações científicas. Gostaria de me deter em um só exemplo: o de Galileu. As novas ciências fundadas por Galileu têm como pressu­ posto gerador indispensável uma hipótese filosófica geral: a do racionalismo matemático (particularmente o geométrico) segun­ do o qual o livro do Universo está escrito em caracteres mate­ máticos, e ainda mais, com as figuras da geometria euclidiana. Esta hipótese filosófica tem se mostrado unilateral e incompleta (uso os adjetivos que devem sempre substituir o adjetivo “falso”, porque este está ligado à metafísica do “sim ou não”). Isto não impede que a ciência de Galileu seja aceita hoje, em seu âmbito específico de validade, por homens que têm filosofias diferentes, não existindo contradição alguma entre aquela ciên­ cia e estas filosofias diferentes do racionalismo matemático. A mesma relação existe, no meu ponto de vista, entre ma­ terialismo dialético e ciência marxista da história. A dialética materialista foi a hipótese geral que permitiu a Marx atingir seu grande descobrimento científico, que podemos chamar “a lei do movimento da história”. Esta descoberta, uma vez atingida, converteu-se em uma verdade laica, que se impõe a homens que adotam as mais distintas filosofias, como descrição-compreensão de um processo real, como conhecimento que tem um valor pró­ prio, uma vida própria independentemente da hipótese filosófica que incitou sua conquista. Naturalmente, na ciência-conhecimento continua em pé a evidência da relação com a hipótese geradora (ou melhor, catalizadora), como a discordância dela com algumas hipóteses clara­ mente opostas à primitiva. Dessa forma, a ciência galileana não era compatível com a filosofia das “virtudes” ocultas do aristo-

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telismo escolástico tardio, e muito menos com a teologia que pretendia interpretar os fenômenos naturais com a Bíblia na mão. Assim, a ciência marxista da história não é compatível com a concepção heterogênea da humanidade agregada e de sua evolu­ ção, com uma concepção da história humana dirigida por “divin­ dade” externa a ela. Mas isto significa exatamente precisar o termo latcidade e não apenas anular a distinção entre uma teoria científica e a filo­ sofia que foi sua hipótese geradora. Era esta distinção que se desejava fazer aqui, porque exatamente dela surgiram, no meu entender, os grandes desenvolvimentos positivos da filosofia po­ lítica marxista na Itália. Partindo dessa formulação (dessa dis­ tinção), nosso partido estabeleceu a secularização do Estado so­ cialista, o livre confronto de idéias, a possibilidade de valores fora do marxismo (veja-se o memorial de Yalta)*, o pluralismo e a articulação da sociedade socialista que nos propomos cons­ truir, não como concessões à pequena burguesia ou, ainda pior, ao inimigo de classe, mas sim como necessidades vitais da pró­ pria luta e estratégia revolucionária. LUCIO LOMBARDO RADICE

Uma colocação “estrutural”

A carta de Louis Althusser publicada em resposta ao comentário de Rino Dal Sasso à tradução do capítulo de Ler O Capital que tem o programático título de “O marxismo não é um historicis­ mo” me deixa bastante perplexo. Não só pelo motivo mais ge­ ral que é o de que essa polêmica formulação althusseriana equi­ vale, no meu ponto de vista, à asserção, por exemplo, de que. . . “o cartesianismo é historicismo”, etc., etc., por causa de sua falta de verdade histórica e teórica. Me deixa perplexo pelo motivo particular de que a divagante carta (anti-gramsciana) evita responder a acusação de “cizânias filosóficas” com a qual Dal Sasso resumiu a “dificuldade” (que não é a única) manifestada por quem escreve, aqui na Rinascita (10 de novembro de 1967) * Refere-se ao “testamento" de Togliattl. n.° 5-6, 1964, págs. 112-118,

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Cf. Pasado y Presente,

e em outros lugares, na interpretação althusseriana do desenvol­ vimento filosófico do pensamento marxista. Esta dificuldade é (junto com outras) não só um produto típico da formação ‘"estru­ tural” ,da problemática marxista, como também uma dificuldade prejudicial que, se nãçs.fôr levada em conta, impede toda dis­ cussão “rigorosa” da filosofia” que é o marxismo. Deixo ao companheiro Althusser a iniciativa de enfrentá-la onde e quando quiser, porém se torna-inevitável para que exista um diálogo fe­ cundo, pelo menos essa é minha opinião.

GALVANO DELLA VOLPÊ

Resposta a Antonio Resenti sobre “Ler O Capital” Querido companheiro Pesenti:

Li seu artigo sobre o texto “Ler O Capital” publicado na Rinascita em 13 de dezembro de 1968 e desejo agradecer a aten­ ção que você dispensou aos meus ensaios e aos de Etienne Balibar. Estou totalmente de acordo com você. O texto é desneces­ sariamente difícil em diversos pontos e se tivéssemos que tornar a escrevê-lo hoje, quatro anos depois da primeira redação, acre­ dito que usaríamos uma linguagem muito mais clara. Mas acre­ dito que a dificuldade que encontramos para “abrirmos um ca­ minho” em uma obra imensa como O Capital é uma dificuldade subjetiva que foi transferida à redação de nossos textos, e é por isso que não pudemos fazer de outra forma, estava acima de nossas forças.

Estamos alegres por ter enfrentado essa dificuldade e tê-la superado; por ter sabido ver além dela os poucos pontos impor­ tantes que nos ocupamos em desenvolver.. Acho que compreendi a essência de suas restrições. Em nosso livro falta algo muito importante, que podemos chamar o reflexo da pratica política dos partidos comunistas. Estou per­ feitamente consciente disso e de certa forma a entrevista com UUnitâ contém algumas “teses” que, a partir desse ponto de vista, têm como objetivo “preencher” essa lacuna. Porém, gos­ taria de fazê-lo entender que nós quisemos sobretudo dar conta

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cio mecanismo teórico de O Capital que se destina, em primeiro lugar, ao estudo da “região” econômica do modo de produção capitalista. Nesta “região” os “homens” (e este é um ponto de vista fundamentado) são considerados pelo que são: “portadores” (Trager) de funções econômicas, que ocupam “postos” (Stelletí) na estrutura produtiva. É preciso compreender que O Capital, tal como chegou a nós, limita-se essencialmente à “esfera da produção e da repro­ dução capitalista” e às suas leis determinantes. Isto não exclue a necessidade de se “completar” aquilo que Marx não conseguiu terminar, e falar da superestrutura jurídico-política e da ideoló­ gica na qual os homens, os mesmos “homens”, não têm o “esta­ tuto” teórico que tinham na esfera da produção. Especialmente a ideologia, “elemento no qual” se desenvolve um aspecto deter­ minante da luta de classes (é onde os homens tomam consciência de que pertencem a uma classe e levam “até o fim” sua luta), transforma o “estatuto teórico” desses mesmos homens: eles se transformam em “sujeitos” (e não mais em simples “suportes”), Acredito que esta explicação responde algumas de suas preocupa­ ções, e em especial às suas experiências políticas. Obrigado novamente de todo coração. Uma fraterna sau­ dação.

LOUIS ALTHUSSER

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NOTAS

O (RE) COMEÇO DO MATERIALISMO DIALÉTICO

1. O pseudo-conceito de resultado pretende descrever a ciên­ cia como um amontoado de "verdades" desvinculadas do processo de sua produção. Exatamente em nome desta desvinculação, Hegel pronuncia a sentença de condenação do conhecimento matemático: “O movimento da demonstração matemática não pertence ao conteú­ do do objeto, e sim é uma operação exterior à coisa" (Fenomenologia do Espírito, pág. 29). Disto resulta que, para Hegel, à ciência "re­ baixa o que se move por si mesmo à matéria, para poder ter nela um conteúdo diferente, exterior e sem vida" (idem, pág. 31). Toda a polêmica contemporânea contra a insensibilidade, a exterioridade, a impermeabilidade do saber científico; todo esforço colocado para se opor à inércia-totalizada dos objetos científicos ao movimento-tota­ lizador do pensamento científico, conduz por fim a essa figura da morte, na qual Hegel fixa o resultado sem memória da ciência. Em um artigo falsamente hegeliano, Robert Paris não deixa de oferecer a clássica versão em cores deste argumento: "(...) a ten­ tativa de Althusser de libertar Marx da dialética hegeliana e de rede­ finir o ‘nível’ do marxismo (... RTM, 105-106) nos remete, e além disso nos faz regressar, não somente mais aquém do marxismo, como também a um universo cinzento e triste de um racionalismo pré-dialé­ tico, pré-hegeliano” (ROBERT PARIS, "En deça du marxisme", em Les Temps modernes, maio 1966. Grifos meus). Isto significa não ter lido Bachelard e perpetuar a ideologia insi­ diosamente religiosa que desacredita a ciência ao considerá-la como uma pqtrificação intolerável das almas. Mas a ciência é alguma coisa bastante diferente: produção organizada de seus objetos, transforma­ ção específica na qual “Nada está dado. Tudo se constrói" (G. BA­ CHELARD, La formacion dei espíritu científico, pág. 16), indica que seu domínio não é outro que o processo de' produção do qual aparen­ temente é consequência e que coincide com o registro de seu apa­ recimento.

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A crítica hegelíana do resultado não tem pois nenhuma relação com aquilo para o qual a ciência aponta. Em compensação, prepara a valorização - correlativa da. experiência resignada, do cristianismo sublimado em que esta “crítica’' resulta. 2. Conseqüentemente, -não há porque assustar-se em ver Althusser dedicar .longas explicações teóricas à posição genealógica das obras de Juventude de Marx (cf. por ex. RTM, 39-70. Ver tam­ bém o texto de J. RANCIERE, LO I, 95-210).

3. Cf. a crítica deste falso conceito no artigo de E. BALIBAR: “Leis ideologies pseirdo-marxistes de ralienation”, em Clarté, janeiro de 1965. 4. Assusta ver a rapidez com a qual Garaudy passou do totali­ tário ao fundamental, da liberdade segundo Stalin à liberdade segun­ do João XXIII. 5. Althusser distingue três conceitos da causalidade: o carte­ siano, o leibniziano e o espinosista (LC II, 167-171). 6. Como nas obras mais recentes de L. Goldmann. Chega-se nestas até a identificar pura e simplesmente as estruturas homológicas "descobertas” por Goldmann: "Desta forma as duas estruturas, a de um importante gênero novelesco e a do intercâmbio, revelam-se como rigorosamente homólogas, de tal forma acontece Isto que se poderia falar de uma só e mesma estrutura que se manifestaria em dois planos diferentes” (Pour une sociologie du roman, Gallimard, 1964, pág. 26). Uma simplicidade admirável! 7. O exemplo mais completo é sem dúvida a “psicologia histó­ rica" de J. P. Vernant. Transgride felizmente seus próprios pressu­ postos teóricos. Compreende-se toda sua ambiguidade lendo, entre outros, o último capítulo de Mythe et pçnsée chez les Grecs, Maspero, 1965.

8. “O homem só coloca problemas que pode resolver", esta célebre frase serviu de garantia para os mais variados desvios do marxismo e sobretudo para o historicismo empírico cujo processo Althusser Instaura (LC II, 73 e segs.), como também para as espe­ culações obscuras referentes à "unidade da teoria e da prática” (problema que não tem nenhum sentido na epistemologia pós-bachelardiana, onde a própria teoria é inicialmente pensada, como processo de produção, isto é como prática teórica). A “célebre fórmula” quer dizer simplesmente que um problema (científico) só pode ser produ­ zido enquanto problema se seu espaço posicionai — a problemática de seu objeto — já tenha sido produzido.

9. Assim acontece com o conceito aristotélico de "Natureza”, cuja ausência — a impossibilidade de construí-lo — determina a fí­ sica pós-galileana. Na realidade, não existe nenhuma relação, nem ao menos negativa, invertida ou ainda crítica, entre a nova “física" e o que leva esse nome na filosofia de Aristóteles. Do objeto de Aristóteles, a física positiva não poderia nem ao menos afirmar que não existe. Desse objeto ela não tem nada que dizer. Esse “nada" é designado por Bachelard como corte epistemológico [coupure epistémologique].

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10. Essa pesquisa constitui a genealogia de uma ciência. Os trabalhos de Koyré ou os de Canguilhem são genealógicos. O que separa Althusser do surpreendente trabalho no qual está compro­ metido Foucault — trabalho cuja’ obra fundamental, O nascimento da clínica, revela sua extraordinária importância — é a convicção teó­ rica de que, ainda que uma genealogia da ciência e uma arqueologia da não-ciência sejam possíveis, não poderia existir por outro lado ne­ nhuma arqueologia da ciência. A ciência é precisamente a prática sem subestrutura sistemática além dela própria, sem ‘'solo" fundamental, e isto acontece na proporção exata em que todo solo que constitue o embasamento é o inconsciente teórico da ideologia. Procuraremos explicar partindo desta discordância: a) a impotência de Foucault para produzir sobre o fundamento estrutural, e contudo universal, que ele esboça, os imperadores dis­ tintivos da ciência e da não-ciência; sua necessária limitação à ar­ queologia das pseudo-ciências; b) a leviandade pré-teórica de seus conceitos sobre Marx (Cf. As palavras e as coisas). 11. Sartre constitui aqui um exemplo nítido, e a partir deste ponto de vista, A crítica da razão dialética é um monumento do “mar­ xismo metafísico'1. O casi teórico de Sartre é mais complexo do bue aparenta e Althusser se apressou um pouco ao colocá-lo dentro dos “idealismos racíonalistas". Entre a transparência proveniente da praxis individual e a inércia formal das estruturas, existe em Sartre uma descentralização específica, provocada pela exterioridade infle­ xível e antl-dialética do em-si. A dialética sartriana é uma dialética fracionada, em cujo interior é possível pensar parcialmente certas distorções estruturais, inclusive colocar ou pelo menos traduzir os problemas fundamentais do materialismo^ dialético, certamente em troca do uso um pouco alegórico dos conceitos. (Cf. Crítica da razão dialética). 12. J. DERRIDA, “Le theatre de la cruauté et la cloture de la representation”, em Critique, n.° 230, julho 1966, pág. 617, nota 13. Pode-se pensar "ao mesmo.tempo" a leitura de Marx por Al­ thusser, a de Freud por Lacan e a de Nietzche-Heidegger por Derrida? Esta é a formulação, em nossa conjuntura, de uma pergunta mui­ to importante. Considerando estes três discursos, a resposta é para mim fatalmente negativa. E mais ainda: aproximar-se de forma inde­ terminada daquilo que os mantém mais afastados entre si é a condi­ ção de avanço de cada um: deles. Desgraçadamente, no mundo mo­ mentâneo no qual os conceitos são comercializados, o ecletismo é a regra. 13. É conhecido o fato de que o conceito de sutura foi intro­ duzido por J. Lacan e J. A. Miller para se poder pensar o lugar-deslocado do sujeito no campo psicanalítico. Cf. Cahiers pour Tanalyse, n.° 1, janeiro 1966. A utilização que faço dele é Indicativa. 14. Salientamos de uma vez por todas que restringindo nossa investigação aos conceitos essenciais introduzidos por Althusser, não pretendemos de forma alguma escamotear o fato de que o (re) começo do marxismo é uma obra coletiva, mais coletiva do que qualquer outra, e isto deve-se a seu exclusivo destino político.

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15. Sobre Isto ver o ítemi O materialismo dialético é a filosofia marxista, em MD-MH, neste volume. 16. Exatamente neste ponto se localizaria a articulação do mar­ xismo e do estatuto que a psicanálise atribui ao Imaginário. Como também o perigo de que esta articulação seja temporariamente impos­ sível de se encontrar. As investigações mais recentes de Laçan sobre o sujeito da ciência não devem nos fazer esquecer que, para o mar­ xismo, o sujeito é uma noção exclusivamente ideológica. 17. O melhor termo talvez fosse "denotador" ou algum equiva­ lente do inglês "designator" (Cf. CARNAP, Meaning and Necessity, Chicago, 1956, pág. 6). A teoria formal da denotação e mais genericamente a semântica formal, tal como a desenvolve o empirismo lógico anglo-saxão, forne­ cem, a meu ver, a sustentação para uma análise estrutural da ideolo­ gia. Para Carnap, provavelmente, a semântica é uma teoria da ciência, mas acontece que o empirismo lógico é, por sua vez, uma ideologia. Resta o fato de que ele inicie a construção sistemática das formas gerais mais abstratas de qualquer discurso ideológico. 18. O conceito de totalidade, tomado no seu sentido absoluto, é o exemplo arquetípico de uma ilusão teórica. A totalização sartreana é a crítica• Ilusória da Ilusão: é um deslocamento-progressivo Intra-ideológico. 19. A economia vulgar está caracterizada em diversos lugares. Por exemplo: "a economia vulgar (...) contenta-se com as aparências, rumina, continuamente, o material fornecido, há muito tempo, por seus predecessores, a fim de oferecer uma explicação plausível para os fe­ nômenos mais destacados, que sirva ao uso diário da burguesia, limitando-se, de resto, a sistematizar pedantemente e a proclamar como verdades eternas, as Idéias banais, presunçosas dos capitalistas sobre seu próprio mundo, para eles o melhor dos mundos" (O Capital, Edit. Civilização Bras., 1971, I, pág. 90 nota). Assim a ideologia: a) repete o imediato (a aparência), isto é, a ilusão objetiva; b) reinscreve neste imediato re-presentado os próprios conceitos científicos (materiais elaborados); c) totaliza o re-presentado (sistema) e pensa-o como Verdade: a Ideologia autodeslgna-se como ciência; d) tem por função servir aos Interesses de uma classe. 20. A distinção essencial entre objeto-de-conhecimento e obje­ to-real, a teoria do conhecimento como produção, a diferença entre sistema e processo de exposição, tudo isso é fruto de uma reflexão exaustiva, conduzida a partir do texto “canônico" de Marx: a intro­ dução de 1857 à Crítica da economia política (Cf. Cuadernos de Pasado y Presente, Córdoba, 1968, n.° 1).

21. A tese contrária é firmemente sustentada por Serres no que-respeita à matemática (M. SERRES, “La querelle des anciens et des modernes en mathématiques”, em Critique, n.° 198, Novembro 1963). Segundo Serres, a matemática moderna tomou-se a si própria por objeto e importou progressivamente a sua própria eplstemologia.

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De forma geral, uma ciência que chega à maturidade é "uma ciência que comporta a auto-regulação de sua própria região, e deste modo a sua epistemologia autóctone, a sua teoria sobre si mesma, mani­ festa em sua linguagem, de acordo com a descrição, o fundamento e a norma" (idem, 1001). A discussão específica desta tese está fora de questão aqui, indiquemos simplesmente que o fundamento ao qual Serres se refere está dirigido para uma perspectiva trans­ cendental. Se, pelo contrário, nos preocupamos com definir a ciência como produção de um efeito específico, e a epistemologia como história dos modos de produção deste efeito, afigura-se então como impossível a importação epistemológica. Na realidade, o que a ma­ temática "tratou" efetivamente não foi a lei real do seu proçesso, mas uma representação ideológica da matemática, uma ilusão de epistemologia. E este tratamento era-lhe objetivamente necessário, porque, como qualquer ciência, a matemática é ciência da ideologia. A especificidade da matemática reside no fato de que o seu "exte­ rior" determinado não é nada mais do que a região da ideologia na qual a própria matemática está Indicada. Tal é o conteúdo real do caráter "apriorístíco" desta ciência: só se ocupa com seu próprio fato tal como é indicado na representação. , 22. Nos textos de A revolução teórica de Marx, em conse­ quência de uns resquícios de respeito para com a tradição e para melhor se apoiar em um célebre texto de Mao, Althusser chama ainda à prática articulada uma contradição. Nós abandonamos deci­ didamente esta confusa designação. 23. O problema fundamental de todo estruturalismo é o do ter­ mo de função dupla que determina o relacionamento dos outros* termos com a estrutura, na medida em que ele próprio é excluído dela pela, operação específica que o faz aí figurar apenas sob as formas de seu representante (o seu lugar-tenente, para retomar um conceito de Lacan). É enorme o mérito de Lévl-Strauss. por ter reco­ nhecido, na forma ainda confusa do Signiflcante-zero, a verdadeira importância desta questão (Cf. Introduction à Toeuvre de Mauss, P.U.F., 1950, págs. XLVII e segs.). Localização do lugar ocupado pelo termo que Indica a exclusão específica, a ausência pertinente, isto é a determinação, ou "estruturalidade" da estrutura. J. A. Miller fez uma exposição deste problema à qual deve-se fazer referência. (Cf. "La suture", Cahíers pour 1’analyse, n.° 1, janeiro, 1966), Contudo tentaremos demonstrar mais tarde: a) que o uso — extraordinariamente engenhoso — da constru­ ção do número por Frege com a finalidade de ilustrar o problema da causalidade estrutural é eplstemológicamente inadequado; b) que não se podería pensar a lógica do significante como tal (do significante "em geral"), a não ser que se reforçasse a estrutura da metafísica. 24. Cf. por exemplo LC I, 49. A causalidade Imanente da subs­ tância não é outra coisa que o seu efeito: a mobilidade Intra-modal da Natureza naturalizada, da qual a Natureza naturalizante é a deter­ minação ausente. Contudo, Deus está efetivamente representado como modo (por sua Idéia Inadequada). Na configuração estrutural

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a que se chama o homem, esse representante da determinação pode ser (liberdade) ou não ser (escravidão) dominante: a Sabedoria ó uma conjuntura. 25. O campo completo destas práticas, tal como é Indicado em diversos lugares por Althusser, compreenderia, além da prática teó­ rica e da prática ideológica, o conhecimento "técnico” e o conheci­ mento "empírico”, provavelmente redutíveis a certas configurações de transição entre o conhecido, o representado, e outros efeitos, interiores a outras instâncias das formações sociais. 26. Como nota Althusser, a propósito de Husserl, assumir o círculo como círculo não nos leva a sair dele. Acrescentarei: cha­ mar "dialética” à circularidade do círculo não deve nos fazer esque­ cer o caso em que esse círculo é justamente o círculo da 'ideologia. "Mas o círculo desta operação é apenas, como qualquer círculo desta espécie, o círculo dialético da questão formulada a um objeto sobre sua natureza, a partir de uma problemática teórica que, submetendo à verificação seu objeto, se submete à verificação de seu objeto” (RTM, 31). Concordo. Mas quando o objeto, como é o caso do ma­ terialismo dialético, é o próprio conhecimento, isto é, justamente a relação de qualquer objeto científico possível à sua problemática? Então a questão formulada a esse objeto Institui um problema cuja estrutura é absolutamente original: o problema da problemática. Não se correra o perigo de constatar que este objeto tão particular é, como certos "objetos” da teoria Ingênua dos conjuntos, um objeto paradoxal? Não nos exporemos ao perigo de não podermos desig­ ná-lo senão por enunciados Inutilizáveis? 27. As indicações que seguem, bastante difíceis, são extrema­ mente sumárias. Apoiando-me no fato de que Althusser determina ge­ ralmente a eficácia "global" de uma instância por efeitos de deslo­ camento, construí um exemplo teórico mais completo, que utiliza como funções de base permutações de permutações. Este exemplo é muito técnico para ser transmitido aqui, limito-me a informar de sua existência. 28. A teoria das Categorias é talvez o acontecimento epistemológico mais significativo destes últimos anos, pelo esforço da abstração radical que testemunha: as estruturas matemáticas já não são construídas, para falar com propriedade, segundo vinculações operatórias entre elementos de uma multiplicidade pura (conjunto); • pelo contrário, aparecem como "cumes” de uma rede de percursos na qual as correspondências estruturais (os morfismos) são iniciais. No Universo (este é o. conceito utilizado) assim delineado. Estrutura das estruturas, a multiplicidade é apenas uma estrutura entre outras: falamos da Categoria dos conjuntos como da categoria dos grupos, etc Já que estou na matemática, devo chamar ‘a atenção para o pe­ rigo latente de um certo “aristotellsmo” em Althusser, de um mo­ vimento de pensamento mais "orgânico” do que matemático.. Com efeito, nos seus textos encontramos: a) A subordinação da matemática a uma conceitualização não-matemática: "A formalização matemática não pode deixar de estar subordinada com relação à formalização conceituai” (LC II, 67).

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b) A identificação do conceito com a definição: "...) a questão do estatuto da definição, iéto é, do conceito" (LC II, 67), Isto significa voltar um pouco preclpitadamente à antiga ideolo­ gia da matemática-linguagem. Recordemos que os conceitos de uma ciência são necessariamente palavras não definidas; que uma defi­ nição nunca é outra coisa a não ser a Introdução de um símbolo abreviador; que, consequentemente, a regularidade da eficácia de um conceito depende da transparência do código no qual ele figura, Isto é, da sua materialização virtual; que finalmente a matemática não é, em física, em biologia fundamental, etc., subordinada e ex­ pressiva, mas sim inicial- e produtora. 29. Releia-se o prefácio da segunda edição da Crítica da^ Razão Pura: Kant multiplica aí os indícios de uma singularidade sem con­ ceito, de um quase milagre que preside o surgimento "prático” da ciência: “revolução devida a um só homem"... "feliz Idéia de uma tentativa"... "quem teve a felicidade de realízá-lo"... "atingido por uma grande luz". A ciência é o fato puro "por baixo" do qual não existe nada.