Massa e poder

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Eis uma obra fundamental e totalmente original de investigação dos fenõmenos sociais. Situandose entre o ensaio e a narrativa para construir seus modelos cognitivos lúcidos, Canetti organiza seu trabalho de pesquisa por meio da fenomenologia e da dialética dos símbolos. Esta metodologia permite ao autor-vincular dados histõricos e sociológicos com os resultados mais recentes da investigação em psicopatologia. Nasce assim uma nova disciplina, uma espécie de Antropologia Patológica, que, ao estudar a interação entre a massa e o poder, revela as anomalias patológicas do ser humano em sua totalidade biopsíquica. Entretanto, o autor não se detém no simples diagnóstico. A Antropologia Patológica, o estudo da patologia social e cultural, o conduz, contrapondo as constantes do comportamento coletivo com as expressões do poder, a estabelecer as própriaS bases de uma terapêutica. Como na psicanálise, a revelação da natureza da enfermidade com a indicação precisa dos centros infecciosos, a tomada de consciência das próprias raízes do mal, são fatos que na realidade predispõem à cura. ~ -27.

Cód. 7-02-04-060

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Editara Universidade de Brasília

/ MELHORAMENTOS

MASSA E PODER Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, Canetti não era considerado um azarão, pois, ao longo de muitos anos, ele construiu uma sólida reputação literária, baseada em dois livros muito sólidos e incomuns; o próprio Auto de Fé, um embasamento para chegar a sua obra maior Massa e Poder, na qual tenta uma análise imaginária mais sistemática das multidões como um fenômeno e dos efeitos de massa nas sensações do cotidiano. Não há dúvida de que Canetti com esta obra enriqueceu sobremaneira nosso conhecimento dos processos de massa e poder. Ele olha para os fenômenos como se estes ainda não estivessem enevoados por qualquer teoria, não organizados para fácil acolhimento. A obra de Canetti, escrita numa linguagem ,alara, objetiva e forte deve muito às disciplinas científicas e a um conhecimento envolvente de culturas estranhas, especialmente das "primitivas", que encontraram acolhida com ele. Canetti está lá, onde a antropologia, a sociologia e a psicologia nascem e se fecundam reciprocamente.

MASSA E PODER

Elias Canetti

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MASSA E PODER FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CONSELHO DIRETOR Abílio Machado Filho Amadeu Cury Aristides Azevedo Pacheco Leão Isaac Kerstenetzky José Carlos de Almeida Azevedo José Carlos Vieira de Figueiredo José Ephim Mindlín José Vieira de Vasconcellos

Tradução de Rodolfo Krestan

Reitor: José Carlos de Almeida Azevedo Vice-Reitor: Luiz Octávio Moraes de Sousa Carmo EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA CONSELHO EDITORIAL Afonso Arinos de Melo Franco Antônio Paim Arnaldo Machado Camargo Filho Cândido Mendes de Almeida Carlos Castello Branco Geraldo Severo de Souza Ávila Heitor Aquino Ferreira Hélio Jaguaribe Josaphat Marinho José Francisco Paes Landim José Honório Rodrigues Miguel Reale Octaciano Nogueira Tércio Sampaio Ferraz Júnior Vamireh Chacon de Albuquerque Nascimento Vicente de Paulo Barretto Presidente: Carlos Henrique Cardim

EditoraUniversidade de Brasília

/ MELHOMMERTOS

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP

C225m

Canetti, Elias, 1905Massa e poder / Elias Canetti ; tradução de Rodolfo Krestan. — São Paulo Melhoramentos ; [Brasília] : Ed. Universidade de Brasília, 1983. (Hoje e amanhã) 1. Comportamento de massa 2. Poder (Ciências sociais) 3. Psicologia social 4. Sociedade de massa I. Título.

CDD-301.155 -301.181

83-0424

índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4.

Comportamento de massa : Psicologia social 301.181 Massa : Comportamento : Psicologia social 301.181 Massas : Sociologia 301.181 Poder : Psicologia social 301.155

Título do original em língua alemã: MASSE UND MACHT 1960 claassen Verlag GmbH, Düsseldorf Todos os direitos reservados Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel Caixa Postal 8120, São Paulo Composto pela Artestilo Compositora Gráfica Ltda. Impressão e acabamento em oficinas próprias Edição: 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 Ano: 1986 85 84 83 Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 7-02-04-060

1, DO PINHEIRO AO LIVRO, UMA REALIZAÇA0 MELHORAMENTOS

SUMÁRIO

A MASSA Inversão do temor de ser tocado Massa aberta e fechada A descarga Impulso de destruição O estouro O sentimento de perseguição Domesticação das massas nas religiões universais Pânico A massa como anel As propriedades da massa Ritmo Estancamento Lentidão ou a distância da meta As massas invisíveis Classificação segundo o efeito dominante Massas de perseguição Massas de fuga Massas de proibição Massas de inversão Massas festivas A massa dupla: homens e mulheres. Vivos e mortos A massa dupla: a guerra Cristais de massa • Símbolos de massa

11 12 14 16 18 21 22 25 27 28 30 35 40 43 49 50 55 58 61 65 66 72 78 80

A MALTA Malta e maltas A malta de caça A malta de guerra A malta de lamentação A malta de multiplicação A comunhão A malta interna e a malta silenciosa

101 106 108 113 171 123 125 5

A determinação das maltas. Sua constância histórica Maltas nas lendas históricas dos arandas Formações de homens entre os arandas „ ...

127 129 133

MALTA E RELIGIÃO A inversão das maltas 139 Selva e caça entre os leles de Kasai 140 Os despojos de guerra entre os jívaros 145 As danças da chuva dos índios pueblos 149 Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo 151 O islamismo como religião de guerra 155 157 Religiões de lamentação 160 A festa do muharram entre os xiitas Catolicismo e massa 170 174 O fogo sagrado de Jerusalém .....

185 197 201 207 209 212

AS ENTRANHAS DO PODER Tomar e incorporar A mão Sobre a psicologia do ato de comer

223 233 242

6

ELEMENTOS DE PODER Força e poder Força e rapidez Pergunta e resposta O segredo Sentenciar e julgar O poder do perdão. A graça

313 315 317 323 330 332

A ordem: fuga e aguilhão A domesticação da ordem Contragolpe e medo de mandar A ordem a muitos Espera de ordens Espera de ordens dos peregrinos em Arafat Aguilhão-ordem e disciplina Ordem. Cavalo. Flecha Castrações religiosas: os skoptsys Negativismo e esquizofrenia A inversão A dissolução do aguilhão Ordem e execução. O verdugo satisfeito Ordem e responsabilidade

337 341 342 344 346 349 350 352 355 358 361 364 367 369

A METAMORFOSE

O SOBREVIVENTE O sobrevivente Sobrevivência e invulnerabilidade Sobreviver como paixão O poderoso como sobrevivente A salvação de Flávio Josefo

269 273 278 291 303 306 308

A ORDEM

MASSA E HISTÓRIA Símbolos de massa das nações A Alemanha de Versalhes Inflação e massa A essência do sistema parlamentar Divisão e multiplicação. Socialismo e produção A autodestruição dos xosas

Aversão dos chefes pelos sobreviventes Soberanos e sucessores As formas de sobrevivência O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos Os mortos como sobreviventes Epidemias A respeito da sensação de cemitério A respeito da imortalidade

251 252 254 256 260

Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos Metamorfose de fuga. Histeria, mania e melancolia Automultiplicação e auto-ingestão. A figura dupla do totem Massa e metamorfose no delirium tremens Imitação e simulação

375 381 387 399 412 7

O personagem e a máscara . . . A desconversão Proibições de metamorfose Escravidão ........... , . .

416 421 422 427

ASPECTOS DO PODER -As posições do homem: o que elas contêm de poder 431 O maestro 439 Glória 442 A ordenação do tempo 443 445 A corte 446 O trono crescente do imperador de Bizâncio 447 Idéias de grandeza dos paralíticos PODERIO E PARANÓIA Reis africanos O sultão de Delhi: Muhammad Tughlak O caso Schreber. Primeira parte O caso Schreber. Segunda parte

457 471 483 499

Epílogo

515

Notas

523

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A MASSA

Inversão do temor de ser tocado

Não existe nada que o homem mais tema do que ser tocado pelo desconhecido. Ele quer saber quem o está agarrando; ele o quer reconhecer ou, pelo menos, classificar. O homem sempre evita o contato com o estranho. De noite ou em locais escuros o terror diante de um contato inesperado pode converter-se em pânico. Nem mesmo a roupa oferece segurança suficiente; é fácil rasgá-la, é fácil chegar até a carne nua, lisa e indefesa do agredido . Todas as distâncias que o homem criou em torno de si surgiram a partir deste temor de ser tocado. As pessoas se fecham em suas casas nas quais ninguém pode entrar, e somente dentro delas é que elas se sentem relativamente seguras. O medo do ladrão não diz respeito apenas às suas intenções de assalto, mas também a um temor de ser tocado por um ataque repentino e inesperado vindo das trevas. A mão, transformada em garra, sempre volta a ser utilizada como símbolo deste medo. Uma boa parte deste contexto foi incluída no duplo sentido da palavra "agarrar". Tanto o contato mais inofensivo como o ataque mais perigoso estão incluídos neste termo, e sempre existe uma certa influência do segundo sentido sobre o primeiro. O substantivo "agressão" passou a designar unicamente o sentido pejorativo do termo, Esta aversão em relação ao contato não nos abandona quando nos misturamos com outras pessoas, A maneira como nos movimentamos na rua, entre muitas pessoas, em restaurantes, trens e ônibus, é determinada por este medo. Mesmo quando nos encontramos muito próximos de outras pessoas, quando podemos contemplá-las e estudá-las detalhadamente, evitamos, na medida do possível, entrar em contato com elas. Quando agimos de outra maneira, isto ocorre apenas porque a outra pessoa nos agrada e então a aproximação parte de nós mesmos. A rapidez com que nos desculpamos quando, involuntariamente, entramos em contato com alguém, a ansiedade com a qual se esperam estas desculpas, a reação violenta e às vezes agressiva quando o pedido de desculpas não é feito, a anti11

palia e o ódio que sentimos em relação ao "malfeitor", mesmo quando não existe maneira de se ter certeza de que ele realmente o é -- toda esta confusão de reações psíquicas relativas ao ser tocado pelo estranho, em sua extrema instabilidade e irritabilidade, demonstra que se trata de algo muito profundo que nos mantém em posição de alerta e nos deixa suscetíveis a um processo que jamais abandona o homem depois que ele estabeleceu os limites de sua pessoa. Até mesmo o sono, que nos torna muito mais indefesos, é extremamente fácil de ser perturbado por este tipo de temor. Somente quando imerso na massa é que o homem pode escapar deste temor em relação ao contato. Esta é a única situação na qual o temor se transforma no seu oposto. Para isto é necessária uma massa densa, na qual um corpo se estreita contra outro corpo, densa também na sua constituição anímica, ou seja, quando já não se presta mais atenção a quem "se aperta" contra a gente. Assim que uma pessoa se abandona à massa, ela deixa de temer o seu contato. Neste caso ideal, todos são iguais entre si. Nenhuma diferença conta, nem mesmo a dos sexos. Qualquer pessoa que se aperte contra nós, torna-se idêntica a nós mesmos. Nós a sentimos, da mesma forma como sentimos a nós mesmos. De repente, tudo acontece como que dentro de um só corpo. Talvez este seja um dos motivos pelos quais a massa procura se apertar tão densamente: ela quer se livrar da maneira mais completa possível do temor do contato de cada um dos seus indivíduos componentes. Quanto maior for a veemência com a qual os homens se apertam, tanto maior é a certeza de que eles não se temem entre si. Esta inversão do temor de ser tocado faz parte da massa. O alívio que se propaga dentro dela — e que será examinado dentro de outro contexto — alcança uma proporção impressionantemente elevada na sua densidade máxima.

Massa aberta e fechada Uma aparição tão enigmática quanto universal é a da massa que surge repentinamente onde antes não havia coisa alguma. É possível que algumas pessoas tenham estado juntas, umas cinco, dez ou doze, no máximo. Nada foi anunciado, nada era esperado. Repentinamente, tudo está cheio de gente. De todos os lados pessoas começam a afluir como se todas as ruas tivessem uma única direção. Muitos não sabem o que aconteceu, sendo incapazes de responder a qualquer tipo de 12

pergunta; no entanto, mesmo assim, têm pressa de chegar lá onde se encontra a maioria. Existe uma espécie de decisão nos seus movimentos que se diferencia consideravelmente da manifestação de uma curiosidade comum. Pensa-se que o movimento de uns contagia os outros, mas não é apenas isto: eles têm todos uma meta. E antes de encontrarem palavras apropriadas para descrever isto, a meta passa a ser a zona de maior densidade, o lugar onde se reúne o maior número de pessoas. É preciso dizer mais algumas coisas a respeito desta forma extrema da espontaneidade da massa. Lá onde ela se origina, no seu próprio núcleo, ela não é tão espontânea quanto parece. Mas no restante, se deixarmos de lado as cinco, dez ou doze pessoas a partir das quais ela se originou, a espontaneidade realmente existe. E a partir do momento em que ela se torna consistente, existe o desejo de aumentar esta consistência. A ânsia do crescimento é a primeira e principal característica da massa. Ela quer incluir todos os que estão, de alguma forma, ao seu alcance. Todo e qualquer ser com forma humana pode tomar parte dela. A massa natural é a massa aberta: seu crescimento não tem limites prefixados. Ela não reconhece casas, portas ou fechaduras; todos os que relutam em se incluir nela tornam-se suspeitos. O termo "aberta" deve ser compreendido aqui num sentido amplo: a massa é aberta em todas as partes e em todas as direções. A massa aberta existe enquanto cresce, Sua desintegração tem início no instante em que deixa de crescer, Pois com a mesma rapidez com a qual se formou, a massa também se desintegra. Nesta forma espontânea, ela é uma configuração frágil, Sua abertura, que lhe possibilita o crescimento, é simultaneamente seu perigo. Dentro dela sempre permanece vivo o pressentimento da desintegração que a ameaça, e da qual ela procura escapar através de um crescimento acelerado, Enquanto pode, ela incorpora tudo; no entanto, por incorporar tudo, ela é forçada a se desintegrar. Em oposição à massa aberta, que pode crescer até o infinito, que se encontra em todos os lugares e que justamente por este motivo reclama um interesse universal, existe a massa fechada, Esta renuncia ao crescimento e estabelece como sua meta principal a permanência. A característica que mais chama a atenção nela é o limite. A massa fechada se estabelece; ela cria o seu lugar limitando-se; o espaço que ela irá preencher lhe é assinalado. Ela é comparável a um recipiente no qual 13

se verte um liquido; sabe-se sempre quanto líquido pode ser colocado dentro dele. Os acessos ao espaço são limitados; não se pode ingressar nele de qualquer maneira, O limite é respeitado. Este limite pode ser feito de pedra, de paredes sólidas. É possível que haja a necessidade de um determinado ato de recepção; talvez seja preciso pagar uma determinada quantia pelo ingresso. E quando o espaço está repleto com a densidade desejada, ninguém mais é admitido. Mesmo quando transborda, a parte principal continua sendo a massa densa dentro do espaço fechado; e os que permaneceram do lado de fora não podem realmente fazer parte dela. O limite serve para impedir um aumento desordenado, mas também para dificultar e para retardar a desintegração. A massa ganha em estabilidade o que sacrifica em termos de possibilidade de crescimento. Ela se protege de influências externas que poderiam ser-lhe hostis e perigosas. No entanto ela conta de maneira toda especial com a repetição. Através da perspectiva de voltar a se reunir, a massa supera todas as vezes a sua própria dissolução. O edifício, o arcabouço espera por ela, ele existe por causa dela, e enquanto ele existir a massa continuará se reunindo exatamente da mesma maneira, O espaço continua existindo mesmo nos momentos de maré baixa e, pelo seu vazio, ele lembra o tempo da maré cheia.

A descarga O acontecimento mais importante que se desenrola no interior da massa é a descarga. Antes disto, a massa em si não chega a existir realmente; é através da descarga que ela se integra de verdade, A descarga é o momento no qual todos os que pertencem a ela se despojam de suas diferenças e sentem-se iguais Entre estas diferenças devem ser consideradas principalmente as de imposição externa: diferenças de status, de posição e de propriedade. Os homens, como indivíduos, sempre têm consciência destas diferenças, que têm peso enorme, forçando-os a posições claramente separadas. O homem se situa com segurança num lugar determinado, mantendo-se distante de tudo o que se aproxima dele com gestos judiciais eficazes. Como um moinho de vento numa planície extensa, assim o homem permanece em pé, expressivo e em movimento; até o próximo moinho de vento não existe coisa alguma. Toda a vida, como ele a conhece, é definida por distâncias: a casa na 14

qual ele encerra sua propriedade e sua própria pessoa, o posto que ele ocupa, o status que almeja, tudo isto serve para criar, para fortalecer e para aumentar distâncias. A liberdade é tolhida no momento em que existe um movimento de maior profundidade em direção a outra pessoa. Impulsos e reações desaparecem como água num deserto. Ninguém é capaz de chegar às proximidades, às alturas de outra pessoa. Hierarquias firmemente estabelecidas em todos os âmbitos da vida impedem a intenção de chegar até os superiores, de inclinar-se até os inferiores, a não ser em termos de aparências superficiais. Nas diversas sociedades existentes, estas distâncias estão reciprocamente equilibradas de maneira diferente. Em algumas delas, a ênfase é dada às diferenças de origem; em outras, às diferenças de ocupação ou de propriedade. Não é importante detalhar aqui todas as características destas hierarquias. O importante é que elas existem por todos os lados, que estão instaladas na consciência dos homens, e que determinam de maneira decisiva o comportamento deles em relação aos demais. A satisfação de se estar acima de outras pessoas dentro de uma hierarquia não compensa a perda de liberdade de movimentos. Nas suas distâncias, o homem se torna mais rígido e mais sombrio. Ele é obrigado a suportar estas cargas e não avança, não progride. Ele se esquece de que estas cargas foram criadas por ele mesmo e deseja libertar-se delas. Mas como poderá libertar-se delas sozinho? Por mais que faça para conseguir isto, por maior que seja sua determinação neste sentido, ele continua situado entre os demais, que fazem seus esforços malograrem. Enquanto os demais se ativerem às suas distâncias, ele será incapaz de se aproximar deles. Somente todos juntos são capazes de se libertar de suas distâncias. E é exatamente isto o que acontece dentro de uma massa. Na descarga todas as separações são colocadas de lado e todos se sentem iguais. Dentro desta densidade, como praticamente não existe espaço entre as pessoas, os corpos se pressionam uns contra os outros, e cada um fica tão próximo do outro como de si mesmo. O alívio que isto provoca é impressionante. É em função deste momento feliz, no qual ninguém é mais, ninguém é melhor do que os outros, que os homens se transformam em massa. No entanto o momento da descarga, tão desejado e tão repleto de felicidade, comporta em si mesmo um perigo particular. Ele padece de uma ilusão básica: os homens que repentinamente estão se sentindo iguais, não foram realmente 15

igualados para sempre. Eles retornam às suas casas separadas e dormem nas suas próprias camas. Eles conservam suas propriedades; não renunciam aos seus nomes. Eles não repudiam os seus familiares, nem tampouco escapam deles. Somente em casos de transformações especiais e muito sérias é que os homens se libertam de velhos laços, contraindo novas ligações. E estas ligações que pela sua própria natureza são capazes de admitir apenas um número limitado de membros e que devem assegurar sua própria existência mediante regras especiais e rígidas, eu as denomino cristais de massa. Posteriormente tratarei demoradamente de suas funções. A massa propriamente dita, porém, se desintegra. Ela sente que acabará por se desintegrar. E teme esta decomposição. Ela somente poderá subsistir se o processo da descarga tiver continuidade devido à chegada de novos elementos humanos. Somente o incremento da massa impedirá que seus componentes tenham de submeter-se novamente às suas cargas privadas.

Impulso de destruição Fala-se freqüentemente a respeito do impulso de destruição da massa; esta é a primeira de suas características, que salta aos olhos e é impossível negar que se encontra em toda parte, em todos os países e dentro das mais variadas culturas. Apesar de se tratar de uma realidade comprovável e que é geralmente desaprovada, ela jamais chega a ser satisfatoriamente explicada. De preferência, a massa destrói casas e coisas. Como muitas vezes se trata de objetos frágeis, como cristais, espelhos, vasilhames, quadros e louças, existe uma tendência a se acreditar que seria justamente esta fragilidade das coisas que incita a massa à destruição. É bem verdade que o ruído produzido pela destruição, o barulho das vidraças se partindo fornece uma contribuição importante ao encanto da coisa toda: são os vigorosos vagidos de uma nova criatura, os gritos de um recém-nascido. O fato de eles serem tão facilmente provocados aumenta sua popularidade; tudo grita em uníssono e esse barulho equivale ao aplauso das coisas. Uma necessidade particular desse tipo de barulho parece existir no início dos acontecimentos, quando a massa ainda está sendo formada por um número bastante reduzido de elementos, e quando ainda não aconteceu quase nada. O barulho promete o reforço desejado e funciona como um presságio feliz de que haverá uma con16

tinuação. No entanto seria errôneo acreditar que a facilidade de quebrar os objetos constitui o fato decisivo. Já foram atacadas esculturas feitas das pedras mais duras, que foram mutiladas e tornaram-se irreconhecíveis. Os cristãos destruíram as cabeças e os braços dos deuses gregos. Reformadores e revolucionários fizeram com que fossem baixadas dos seus pedestais imagens de santos, às vezes até de alturas consideradas como um perigo mortal; e mais de uma vez a pedra que se quis triturar era tão dura que foi impossível destroçá-la completamente. A destruição de imagens que representam alguma coisa é a destruição de uma hierarquia que deixou de ser aceita. Desta forma são atacadas as distâncias habituais, que estão à vista de todos e que são válidas em todos os lugares. Sua dureza era a expressão de sua permanência; elas existiam, eretas e imóveis, há muito tempo, desde sempre, e era impossível aproximar-se delas com intenções de hostilidade. Mas agora elas estão caídas e destroçadas. A descarga se consumou através deste ato. No entanto, não é sempre que se chega a este ponto. A destruição do tipo mais comum, à qual nos referimos inicialmente, consiste somente num ataque a todos os limites. Portas e janelas pertencem às casas, sendo ao mesmo tempo a parte mais delicada de sua limitação com o exterior. Uma vez destroçadas as portas e as janelas, a casa perdeu sua individualidade. Agora, qualquer pessoa pode entrar nesta casa segundo sua própria vontade; nada e ninguém se encontra protegido dentro dela. De maneira geral, acredita-se que nestas casas estejam abrigados os homens que pretendem se excluir da massa, os seus inimigos. Agora, tudo o que os separava da massa foi destruído. Entre eles e a massa já não existe coisa alguma. Estes homens podem sair e juntar-se a ela. Podem ser procurados e apanhados. No entanto, existe mais do que isto. O próprio indivíduo tem a sensação de que dentro da massa ele consegue ultrapassar os limites de sua própria pessoa. Ele se sente aliviado, já que todas as distâncias que o voltavam para si mesmo e que o encerravam em si mesmo foram abolidas. Ao eliminar estas cargas da distância, ele se sente livre e sua liberdade o impele à ultrapassagem destas fronteiras. E o que acontece com ele deve acontecer também com os outros, e ele espera a mesma coisa por parte dessas outras pessoas. Ele se irrita com o fato de que um recipiente de barro seja formado apenas por limites. Numa casa desagradam-lhe as portas fechadas. Ritos e cerimô17

nias, tudo o que serve para conservar as distâncias, são coisas que o ameaçam e que lhe são insuportáveis. Haverá uma intenção posterior de conduzir a massa fragmentada para estes recipientes pré-moldados. A massa odeia suas futuras prisões, que sempre foram suas prisões. Para a massa nua tudo tem a aparência da Bastilha. O mais impressionante de todos os meios de destruição é o fogo. Ele é visível a grandes distâncias e serve para atrair outras pessoas. Ele destrói de maneira irremediável. Depois de um incêndio, nada volta a ser como era antes. A massa que incendeia julga-se irresistível. Tudo vai se incorporando a ela enquanto o fogo avança. Tudo o que lhe for inimigo é destruído pelo fogo. Como se verá mais tarde, o fogo é o símbolo mais vigoroso que existe para a massa. E depois de toda a destruição, o fogo, exatamente como a própria massa, está fadado a se extinguir.

O estouro A massa aberta é a massa propriamente dita que se abandona livremente ao seu impulso natural de crescimento. Uma massa aberta não tem uma sensação ou uma visão clara da magnitude que pode chegar a alcançar. Ela não se prende a uma construção que lhe seja conhecida e que haja necessidade de preencher. Sua medida fixa não está estabelecida; ela quer crescer até o infinito, e para isto o de que necessita são quantidades cada vez maiores de pessoas. É neste estado primitivo que a massa chama mais a atenção. No entanto ela conserva algo de excepcional em si, e o fato de ela sempre acabar se desintegrando faz com que nunca seja levada totalmente a sério. É possível que ela tivesse continuado a ser encarada com pouca seriedade, se o enorme aumento populacional registrado em toda parte e o crescimento acelerado das cidades — dois fatos que caracterizam nossos tempos modernos -não tivessem fornecido oportunidades cada vez mais freqüentes para a sua formação. As massas fechadas do passado, a respeito das quais ainda falaremos de maneira mais detalhada, tinham todas se transformado em instituições familiares, O estado peculiar no qual entravam freqüentemente os seus participantes parecia ser algo natural; a reunião sempre era realizada com um fim determinado — religioso, festivo ou bélico — e esta meta parecia santificar aquele estado. Quem assistisse a um sermão, 18

convencido de boa fé de que o importante era o próprio sermão, ter-se-ia mostrado surpreendido e talvez até bastante indignado se alguém lhe explicasse que o que lhe causava satisfação era o grande número de ouvintes e não o sermão propriamente dito. Todas as cerimônias e as regras características de instituições deste tipo procuram, no fundo, interceptar a massa: mais vale uma igreja segura e repleta de fiéis do que o mundo incerto na sua totalidade. Com a regularidade da ida à igreja, com a repetição familiar e exata dos rituais exatos, garante-se à massa algo assim como uma vivência domesticada de si mesma. A realização destas cerimônias em tempos estabelecidos acaba se convertendo no sucedâneo de necessidades de índole mais dura e violenta É possível que organizações deste tipo tivessem sido suficientes, se o número de pessoas tivesse permanecido mais ou menos estável. Porém as cidades cresceram sem parar; o aumento populacional dos últimos cem anos ocorreu com uma velocidade crescente. Isto também criou todos os estímulos necessários para a formação de massas novas e maiores, e nada, nem mesmo uma liderança mais experiente e sofisticada, teria sido capaz de evitar este fato em tais circunstâncias. Todas as sublevações contra um cerimonial tradicional de que nos fala a história da religião têm sempre como objetivo acabar com a limitação da massa que, finalmente, quer voltar a sentir seu próprio crescimento Tome-se como exemplo o Sermão da Montanha do Novo Testamento: ele ocorre ao ar livre, pode ser ouvido por milhares de pessoas e, não resta a menor dúvida quanto a isto, é dirigido contra a manipulação das cerimônias limitadas do templo oficial. Pense-se na tendência do cristianismo paulino de evadir-se dos limites nacionais e tribais do judaísmo para converter-se numa fé universal para todos os homens. Pense-se no desprezo existente dentro do budismo em relação ao sistema de castas, vigente na época, na índia. Também a história interna das diversas religiões mundiais é rica em acontecimentos de conteúdo semelhante. Templo, casta e igreja sempre são limites por demais estreitos. As cruzadas levam a formações de massas de uma tal magnitude que nenhum edifício eclesiástico da época poderia congregar. Cidades inteiras se transformam mais tarde em espectadores dos flagelantes e estes ampliam sua fama transferindo-se de cidade para cidade. Ainda no séc. XVIII, Wesley constrói seu movimento sobre sermões pronunciados ao ar livre. Ele tinha uma grande consciência do significado das suas enormes mas19

sas de ouvintes, chegando inclusive a mencionar várias vezes em seus diários estimativas de quantas pessoas o teriam ouvido num determinado dia. O estouro para fora dos locais fechados habituais tem sentido cada vez que a massa deseja recuperar o seu antigo prazer pelo crescimento repentino, rápido e ilimitado. Portanto, estouro é a denominação que eu dou à repentina transição de uma massa fechada para uma massa aberta. Este processo é bastante freqüente; no entanto, ele não deve ser compreendido num sentido excessivamente espacial. Muitas vezes, tem-se a impressão de que uma massa não cabe mais nos limites de um espaço dentro do qual estava bem guardada, e que ela se estende pela praça e pelas ruas de uma cidade, onde, atraindo tudo e sendo exposta a tudo, ela se movimenta livremente. No entanto, mais importante do que este processo externo é o processo interno que lhe é correspondente: a insatisfação do número dos participantes em relação à limitação, a determinação repentina de atrair, o desejo passional de alcançar todos. A partir da Revolução Francesa estes estouros foram adquirindo uma forma que consideramos moderna. Talvez devido ao fato de a massa ter-se libertado a tal ponto das religiões tradicionais, isto nos tenha facilitado considerá-la desde então de maneira nua, por assim dizer, biologicamente, sem todas as injeções de sentidos e de metas transcendentes que antes podiam tingir nossos julgamentos. A história dos últimos cento e cinqüenta anos registrou uma multiplicação acelerada de estouros deste tipo; até mesmo as guerras estão incluídas, uma vez que se tornaram guerras de massa. A massa já não se conforma com condições e promessas piedosas; ela quer experimentar por si mesma o sentimento supremo de sua potência e de sua paixão selvagens e, para alcançar esta meta, torna sempre a se utilizar de todas as situações e exigências sociais que lhe apareçam. É importante estabelecer em primeiro lugar que a massa nunca se sente saciada. Enquanto existir um homem que não esteja incluído nela, ela demonstrará apetite. Ninguém pode afirmar com certeza que ela continuaria apresentando este apetite, se alguma vez realmente conseguisse absorver todos os homens, mas é muito provável que sim. Suas tentativas de perdurar têm, no fundo, algo de impotência. O único caminho no qual ela tem possibilidades de sobreviver consiste na formação de massas duplas, ou seja, que depois uma massa possa se medir com outra. E quanto mais elas se aproximarem em 20

força e em intensidade, tanto maiores possibilidades terão de sobrevivência através do confronto.

O sentimento de perseguição Entre as características que mais chamam a atenção na vida da massa, existe uma que se poderia definir como um certo sentimento de perseguição, uma sensibilidade peculiar e uma irritabilidade furiosa em relação aos inimigos assinalados como tais de uma vez por todas. Estes inimigos podem se comportar da maneira como quiserem — podem proceder com dureza ou com amabilidade, podem mostrar-se compreensivos ou frios, duros ou brandos; todas as suas atitudes sempre serão interpretadas como se se originassem de uma maldade constante, de um posicionamento negativo em relação à massa, de uma intenção preconcebida de destruir a massa de maneira declarada ou não. Para explicar este sentimento de inimizade e de perseguição, precisamos partir novamente de um fato básico: a massa, uma vez formada, quer crescer rapidamente. É difícil fazer uma imagem exagerada da força e da imperturbabilidade com a qual ela se estende. Enquanto ela sente que está crescendo — por exemplo, em situações revolucionárias que começam com massas pouco numerosas mas de elevada tensão — ela sente como limitação toda e qualquer coisa que se opuser ao seu crescimento. Ela pode ser dispersada pela polícia, mas isto terá um efeito meramente temporário — é o equivalente a uma mão que passa em meio a uma nuvem de mosquitos. No entanto ela também pode ser atacada a partir do seu próprio interior, dado que se concorde com as exigências que levaram à sua formação. Os mais fracos então se afastam dela; outros, que estavam em vias de se juntar a ela, voltam do meio do caminho. O ataque exterior à massa somente pode fortalecê-la. Ela volta a ficar coesa com uma intensidade maior depois de fisicamente separada. O ataque de dentro, no entanto, é o que apresenta perigos verdadeiros. Uma greve que tenha conquistado algumas vantagens começa a desintegrar-se de forma visível. O ataque de dentro apela às características individuais. Este ataque é considerado pela massa como um suborno, algo "imoral", uma vez que é contrário à sua convicção clara e transparente. Todo indivíduo que pertence a uma determinada massa leva dentro de si um pequeno traidor que quer comer, beber, amar e ser deixado em paz. Enquanto satisfizer estas suas necessidades de maneira paralela e sem fazer muito alarde delas, ele 21

terá permissão para continuar. Porém, assim que ele se fizer notado, começará a ser temido e odiado; fica publicamente notório que deu ouvidos às tentações do inimigo. A massa sempre é semelhante a uma fortaleza sitiada, mas sitiada de maneira dupla: ela tem um inimigo do outro lado das muralhas, e tem um outro inimigo no seu próprio porão. Durante a luta, ela atrai partidários em números cada vez maiores. Diante de todos os portões reúnem-se seus novos amigos que pedem passagem com golpes decididos e impetuosos. Em momentos favoráveis, esta petição costuma ser aceita; mas também existem os que preferem escalar as muralhas. A cidade fica cada vez mais e mais repleta de lutadores; mas cada um deles traz consigo o seu próprio pequeno e invisível traidor, que se esconde rapidamente dentro de algum porão. O estado de sítio consiste na tentativa de impedir o acesso dos novos convertidos. Para os inimigos que estão do lado de fora, as muralhas são mais importantes do que para os sitiados. São os sitiadores que sempre reforçam as muralhas, dando-lhes alturas mais elevadas. Eles procuram subornar os recém-convertidos e, quando não conseguem dissuadi-los totalmente, procuram pelo menos dar uma carga suficiente de hostilidade ao pequeno traidor que sempre os acompanha no seu caminho. O sentimento de perseguição da massa nada mais é do que este sentimento de ameaça dupla. Os sitiadores cercam cada vez com mais força os muros externos; simultaneamente, os porões ficam cada vez mais minados por dentro. As ações do inimigo são abertas e visíveis quando ele trabalha nas muralhas; mas são ocultas e traiçoeiras quando ocorrem nos porões. Entretanto, a utilização de imagens deste tipo somente nos proporciona uma parte da verdade. Os que chegam de fora, os que querem ingressar na cidade, não são apenas novos partidários, reforços e apoio; eles também funcionam como alimento da massa. Uma massa que não aumenta de tamanho está em estado de jejum; as religiões sempre souberam aproveitar com maestria este argumento. Veremos em seguida como as grandes religiões conservam suas massas sem que o processo de crescimento seja demasiado agudo ou violento .

Domesticação das massas nas religiões universais As religiões com pretensões universais, quando são mundialmente reconhecidas, logo modificam a tônica utilizada para alcançar suas metas. No começo, o que lhes importa é alcançar 22

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e conquistar todos os que possam ser alcançados e conquistados. Elas aspiram a uma massa universal; a uma massa que dependa de cada uma das almas e na qual todas as almas lhe pertençam. Porém a luta que são obrigadas a travar as leva pouco a pouco a uma espécie de respeito encoberto pelos adversárias, cujas instituições já existem. Elas percebem que é difícil conseguir manter-se. Cada vez vão lhe parecendo mais importantes as instituições que lhes assegurem solidariedade e permanência. Estimuladas pelas instituições dos seus adversários, fazem tudo para introduzir novas instituições; e, quando o conseguem, com o passar do tempo estas acabam se transformando no assunto principal. O próprio peso das instituições, que passam então a ter uma vida própria, vai aplacando pouco a pouco o ímpeto da finalidade inicial. As igrejas são construídas de maneira a acolherem os fiéis que já existem. Elas somente são ampliadas com reservas e cautelas, e somente quando existe uma verdadeira necessidade de que isso seja feito. Existe uma tendência acentuada para reunir os fiéis em unidades que sejam separadas entre si. Justamente porque agora eles chegaram a ser tantos, a tendência à desintegração é muito grande — um perigo que deve ser enfrentado permanentemente. Por assim dizer, as religiões universais históricas têm dentro do próprio sangue um sentimento de desconfiança em relação à perfídia das massas. Suas próprias tradições, que têm um caráter obrigatório, lhes mostram o quão rápida e inesperadamente elas cresceram. Suas próprias histórias de conversões em massa lhes parecem ser milagrosas e realmente o são. Nos movimentos de apostasia, que as igrejas temem e perseguem, este mesmo tipo de milagre se volta contra elas, e os ferimentos que lhes são infligidos na própria carne são dolorosos e inesquecíveis. Estes dois fatos, o rápido crescimento nos seus primórdios e as apostasias não menos rápidas mais tarde, mantêm sempre viva sua desconfiança em relação à massa. O que elas desejam em substituição à massa é um obediente rebanho. É bastante habitual encarar os fiéis como se fossem cordeiros, elogiando sua obediência. Elas renunciam por completo à tendência essencial da massa, ou seja, ao crescimento rápido. Conformam-se com uma ficção passageira de igualdade entre os fiéis que, sem dúvida alguma, jamais chega a ser completamente real; contentam-se com uma determinada densidade, que é mantida dentro de limites moderados e com uma forte direção. A meta, de preferência, é colocada numa grande distância, num além para o qual as pessoas não devem 23

se transferir imediatamente, uma vez que ainda estão vivas, e que deve ser merecido por meio de muitos esforços e submissões. Gradativamente a direção vai se transformando no que existe de mais importante. Quanto mais distante estiver a meta, tanto maior é sua possibilidade de permanência. No lugar daquele princípio de crescimento, aparentemente imprescindível, é colocada uma coisa completamente diferente: a repetição. Os fiéis são reunidos em determinados espaços e em determinados momentos; mediante atividades sempre idênticas, eles adquirem um estado semelhante ao da massa, que os impressiona sem no entanto chegar a ser perigoso, e ao qual eles se acostumam. O sentimento de sua unidade lhes é ministrado em doses. Da exatidão destas doses depende a subsistência da igreja. Onde quer que os homens se tenham acostumado a esta vivência repetida com precisão e limitada com exatidão dentro de suas igrejas ou templos, não podem mais prescindir dela. Mantêm com respeito a ela uma dependência como se fosse uma espécie de alimento essencial para tudo o que significa vida para eles. Uma proibição inesperada do seu culto, a repressão da sua religião por um decreto estatal são coisas que não podem ocorrer sem conseqüências. A perturbação da sua economia de massa cuidadosamente equilibrada deve levar, depois de algum tempo, ao estouro de uma massa aberta. Esta apresenta então todas aquelas características elementares que já vimos anteriormente. Ela se expande com rapidez. Implanta uma igualdade real e não fictícia. Procura densidades novas e agora muito mais intensas. Abandona momentaneamente aquela meta distante e difícil de ser alcançada, para a qual foi educada, e fixa-se numa meta aqui, imediatamente próxima à vida concreta. Todas as religiões repentinamente proibidas se vingam através de uma espécie de secularização: num estouro inesperado de selvageria, o caráter de sua fé se modifica completamente, sem que elas mesmas consigam compreender a natureza desta modificação. Elas acreditam que se trata da fé antiga e acham apenas que estão se segurando com maior intensidade às suas mais profundas convicções. No entanto, na verdade, elas se transformaram em coisa completamente diferente, com um sentimento agudo e singular de massa aberta que agora são, e que não querem deixar de ser por preço nenhum. 24

Pânico Como já foi dito freqüentemente, o pânico num teatro é uma desintegração da massa. Quanto mais unidos tenham estado os espectadores pela representação, quanto mais fechado seja o formato do teatro que os mantém exteriormente unidos, tanto mais violenta será esta desintegração. Porém também pode acontecer que, somente pela representação, não se tenha formado tipo algum de massa autêntica. Muitas vezes o público não se sente cativado e permanece junto apenas por já estar ali. O que a obra não conseguiu é produzido instantaneamente por um incêndio. O fogo é tão perigoso para os homens como para os animais e constitui o mais intenso e antigo símbolo de massa. A percepção do fogo leva a limites insuspeitados quaisquer sentimentos de massa que tenham existido entre os espectadores. Diante do perigo comum e inequívoco aparece um medo comum a todos. Assim, durante um curto espaço de tempo, existe no público uma massa de verdade. Se não estivessem dentro de um teatro, seria possível fugir em conjunto como uma manada de animais em perigo e, mediante movimentos sincronizados, aumentar ainda mais a energia da fuga. Um terror ativo de massa deste tipo é a grande vivência coletiva de todos os animais que vivem em bandos e que, como bons corredores, costumam salvar-se em conjunto. No teatro porém a massa deve desintegrar-se da maneira mais violenta possível. As portas permitem a passagem de poucas pessoas de cada vez. A energia da fuga se transforma por si mesma numa energia de revide. Entre as fileiras dos assentos pode passar apenas uma única pessoa e cada um está meticulosamente separado do seu vizinho; cada pessoa está sentada sozinha, cada qual ocupa o seu próprio lugar. A distância até a porta é diferente para cada uma das pessoas. O teatro normal procura fazer as pessoas sentarem-se deixandolhes apenas a liberdade das mãos e das vozes. O movimento das pernas lhes é limitado o mais possível. A ordem repentina de fuga que é ditada pelo fogo se vê imediatamente confrontada pela impossibilidade de um movimento comum. A porta pela qual cada indivíduo deve passar, que ele vê, na qual ele se vê nitidamente recortado contra todas as demais pessoas, passa a ser uma espécie de moldura de uma imagem que logo o domina. E desta forma a massa, ainda em seu apogeu, é forçada a se desintegrar violentamente. Este processo torna-se evidente nas mais violentas tendências 25

individuais: cada um empurra, golpeia e pisoteia em torno de si, num verdadeiro frenesi. Quanto mais se luta "pela própria vida", tanto mais evidente se torna a luta contra os outros que atrapalham de todos os lados. Ali estão eles de pé feito cadeiras, feito balaustradas, feito portas fechadas, com a diferença de que atacam violentamente. Empurram de um lado para o outro, para onde lhes apraz, ou melhor, para onde eles mesmos são empurrados. Mulheres, crianças e pessoas idosas não são poupadas; nenhuma destas pessoas é diferenciada da categoria de homens adultos. Faz parte da constituição da massa que todos sejam iguais; e mesmo que alguém já não se sinta como parte da massa, ela continua a envolvê-lo totalmente. O pânico é uma desintegração da massa dentro da massa. O indivíduo quer sair do seu interior e escapar de uma massa que está ameaçada na sua forma de todo. No entanto, como ainda se encontra fisicamente mergulhado, imerso dentro dela, precisa lutar contra ela, pois entregar-se, deixar-se levar, significaria sua perdição, já que a própria massa está ameaçada. Num momento destes não é possível acentuar-se suficientemente a própria individualidade. Golpes e empurrões têm sua réplica em outros golpes e empurrões. Quanto mais golpes a pessoa distribuir, quanto mais golpes receber, tanto mais claramente se sentirá ela mesma, tanto mais nítidos se tornarão seus próprios limites. É curioso observar até que ponto a massa assume, para quem está lutando dentro dela, o caráter do próprio togo. Ela nasceu pela visão súbita de uma chama ou por um grito de "fogo!"; ela joga com o indivíduo que tenta escapar como se fosse formada de labaredas também. As pessoas que o indivíduo empurra são, para ele, objetos ardentes, seu contato está carregado de hostilidade e cada parte do seu corpo que entra em contato com os outros lhe causa sustos. Qualquer pessoa que se coloque em seu caminho está contagiada por esta intenção hostil e generalizada do fogo; a maneira como ele se propaga, como avança pouco a pouco em torno dos indivíduos, e como finalmente os rodeia completamente, se assemelha muito ao comportamento da massa que os ameaça por todos os lados. Seus movimentos imprevisíveis, o gesto de um braço, de um punho ou de uma perna são como as labaredas do fogo, que podem aparecer repentinamente de qualquer lugar. O fogo, como o incêndio de um bosque ou de uma estepe, é uma massa hostil, podendo chegar a despertar um sentimento deste tipo em qualquer pessoa. O fogo como sím26

bolo de massa entrou na economia psíquica dos indivíduos e forma uma parte inseparável dela. Aquele pisotear frenético de seres humanos que é observado com tanta freqüência em casos de pânico, e que parece ser tão absurdo, nada mais é do que o pisotear para apagar o fogo. O pânico como desintegração somente pode ser evitado prolongando-se o estado original do medo unitário da massa. Isto pode ser provocado, por exemplo, numa igreja que esteja ameaçada: numa situação de medo comunitário reza-se a um Deus comum a todos, em cujas mãos está o poder de extinguir o fogo por meio de um milagre.

A massa como anel Encontramos um tipo de massa duplamente fechada no caso do circo. Vale a pena estudá-lo em relação a esta sua qualidade peculiar. O circo é bem delimitado exteriormente. Em geral ele é visível a uma grande distância. Sua localização na cidade, o espaço que ocupa são conhecidos por todas as pessoas. Sabese sempre onde ele se encontra, mesmo quando não se está pensando nele. Os ruídos que saem dele chegam a atingir lugares muito distantes. Uma boa parte da vida que transcorre dentro dele acaba se comunicando à cidade circundante. Porém, por mais excitantes que sejam estas comunicações, não é possível entrar nele sem algumas dificuldades. O número de lugares no circo é limitado. Sua densidade tem um limite fixo. Os assentos estão dispostos de tal maneira que as pessoas não se apertem de maneira excessiva. Pretende-se que as pessoas dentro dele tenham uma certa comodidade; todos devem ter uma boa visão, cada qual do seu lugar, sem que se atrapalhem uns aos outros. Em relação ao lado externo, contra a cidade, o circo representa uma muralha inanimada. Em relação ao lado interno, ele ergue uma muralha de homens. Todos os presentes viram suas costas para a cidade. Eles se desprenderam da ordem da cidade, de suas paredes, de suas ruas. Durante sua permanência no circo não lhes importa o que acontece na cidade. As pessoas deixam para trás a vida dos seus relacionamentos, de suas regras, de seus usos e costumes. Sua permanência em conjunto em grande número está garantida apenas por um determinado espaço de tempo; a excitação lhes foi prometida, po27

rém sob uma condição muito especial: a massa deve descarregar-se para dentro. As filas são escalonadas de baixo para cima para garantir que todos possam ver o que está ocorrendo embaixo. No entanto isto tem como conseqüência que a massa está sentada perante si mesma. Cada um tem mil corpos e mil cabeças instaladas à sua frente. Enquanto ele estiver lá, todos também estarão. O que provoca a excitação neste espectador também excita os demais, e ele o percebe. Os demais estão sentados a alguma distância dele; os detalhes, que em outras ocasiões servem para distinguir e individualizar as pessoas, se perdem. Todos se tornam muito parecidos, todos se comportam de maneira semelhante. O indivíduo percebe nos demais apenas as coisas que ele mesmo está sentindo naquele instante. A excitação visível dos demais aumenta a excitação que ele mesmo sente. A massa que se exibe desta forma não é interrompida em lugar algum. O anel que ela forma é fechado. Nada escapa dela. O anel formado por rostos fascinados e superpostos possui alguma coisa de curiosamente homogêneo. Este anel inclui e contém tudo o que ocorre abaixo dele. Nenhum dos seus membros integrantes o deixa escapar, nenhum quer partir dali. Cada falha neste anel poderia evocar a desintegração, a separação posterior. Mas não existe falha alguma: esta massa é fechada em relação ao lado externo e também em si, ou seja, é duplamente fechada.

diretamente como um estado de igualdade absoluta. Uma cabeça é urna cabeça, um braço é um braço, as diferenças entre eles carecem de importância. É justamente por causa desta igualdade que as pessoas se transformam em massa. Tudo o que poderia desviar deste intento é deixado de lado. Todas as exigências de justiça, todas as teorias de igualdade extraem sua energia, em última instância, desta vivência de igualdade que cada qual conhece à sua maneira a partir da massa. 3 — A massa ama a densidade. Não existe uma densidade que seja densa demais. Nada deve interpor-se, nada deve ficar vacilando; na medida do possível, tudo deve ser ela mesma. A sensação de densidade máxima ocorre no momento da descarga. Urna dia será possível medir-se e determinar com mais exatidão esta densidade. 4 — A massa necessita de uma direção. Ela está em movimento e se movimenta em direção a algum lugar. A direção, que é comum a todos os componentes, intensifica o sentimento de igualdade. Uma meta, que está fora de cada um e que é coincidente em todos, submerge as metas privadas, desiguais, que seriam a morte da massa. Para esta subsistir, a meta é indispensável. O temor da desintegração, que sempre está vivo dentro dela, faz com que seja possível orientá-la em direção a quaisquer objetivos. A massa existe enquanto tenha uma meta não alcançada. Mas ainda há nela outra tendência ao movimento que leva a formações novas e superiores. Freqüentemente é impossível prever a natureza destas formações.

As propriedades da massa

Cada uma destas quatro propriedades que foram determinadas podem estar presentes em maior ou menor medida. Conforme focalizarmos uma ou outra, chegaremos a uma divisão diferente das massas. • Já falamos a respeito de massas abertas e fechadas e também explicamos que esta divisão se refere ao seu crescimento. Enquanto não houver obstáculos ao seu crescimento, a massa é aberta; ela é fechada, assim que existirem quaisquer limitações ao seu crescimento. Outra divisão, a respeito da qual ainda falaremos bastante, é a que existe entre massas rítmicas e estancadas. Esta divisão se refere às duas propriedades principais seguintes: a igualdade e a densidade, mas vistas em conjunto. A massa estancada vive em função de sua descarga. Porém ela se sente segura desta descarga e a posterga. Ela deseja um período relativamente prolongado de densidade para pre-

Antes de tentarmos uma divisão da massa, vale a pena resumir rapidamente as suas principais propriedades. Quatro características devem ser destacadas: 1 — A massa sempre quer crescer. Seu crescimento não tem limites impostos pela natureza. Onde tais limites são criados artificialmente, ou seja, em todas as instituições que são utilizadas para a conservação de massas fechadas, sempre existe a possibilidade de um estouro, que de fato ocorre às vezes. Não existem disposições que possam evitar o crescimento da massa de uma vez por todas e que sejam realmente seguras. 2 — No interior da massa reina a igualdade. Trata-se de uma igualdade absoluta e indiscutível, que jamais é colocada em dúvida pela própria massa. Ela possui uma importância tão fundamental que seria possível definir o estado da massa 28

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parar-se para o momento da descarga. Seria quase possível dizer que ela se esquenta em sua densidade, postergando o mais possível a descarga. O processo da massa, neste caso, não começa com a igualdade, mas sim com a densidade. A igualdade se torna, neste caso, a meta principal da massa, na qual ela finalmente desemboca; todo grito comum, toda exteriorização comum expressam então de uma maneira válida esta igualdade. Na massa rítmica, muito pelo contrário, a densidade e a igualdade coincidem desde o princípio. Aqui, tudo depende do movimento. Todos os estímulos corporais que irão se produzir estão predeterminados e se transmitem através da dança. Esquivando-se e reaproximando-se, a densidade é modificada de uma forma consciente. Por uma representação de densidade e de igualdade, o sentimento de massa é provocado artificialmente. Estas configurações rítmicas nascem com muita rapidez e é apenas a fadiga física que lhes determina um fim. A dupla seguinte de conceitos, os de massa lenta e rápida, refere-se exclusivamente à natureza de sua meta. As massas que chamam a atenção, ou seja, as que geralmente são assunto de conversa, e que formam uma parte tão importante da nossa vida moderna, as massas políticas, esportivas, bélicas, com as quais entramos em contato diário, são todas massas rápidas. Completamente diferentes delas são as massas religiosas do além ou dos peregrinos; nestas, a meta se encontra na distância, o caminho é demorado e a verdadeira constituição da massa é postergada para algum país muito distante ou para um reino existente nos céus. Destas massas lentas, na verdade, vemos apenas os afluentes, porque os seus estados finais, tão almejados, são invisíveis e inalcançáveis para os que não são crentes. A massa lenta se reúne com lentidão e se considera como algo permanente numa distância extremamente remota. Todas estas formas, cuja substância foi apenas ligeiramente esboçada aqui, exigem considerações mais detalhadas.

Ritmo O ritmo, originalmente, é um ritmo dos pés. Todo ser humano caminha, e como ele caminha sobre duas pernas, golpeando alternadamente o chão com os pés, isto produz, independentemente de sua vontade, um ruído rítmico. Os dois pés nunca pisam no chão com a mesma intensidade. A diferença entre eles pode ser maior ou menor, dependendo da disposição 30

pessoal ou do ânimo de cada um. Mas as pessoas também podem caminhar mais depressa ou mais devagar, podem correr, estancar de repente ou começar a saltar. O homem sempre prestou atenção aos passos dos outros homens; ele sempre teve mais consciência dos passos alheios do que dos próprios. Também os animais tinham um passo familiar. Muitos deles possuíam ritmos mais ricos e perceptíveis do que os dos homens. Os animais providos de cascos, ao fugir, faziam um barulho como o de um regimento formado apenas por tambores. O conhecimento mais antigo do homem dizia respeito aos animais que o rodeavam, que o ameaçavam e que ele caçava. Ele aprendeu a conhecê-los pelo ritmo dos seus movimentos. A forma mais primitiva de escrita que ele aprendeu a decifrar foi a das pegadas — era uma espécie de notação musical rítmica que sempre existiu; ela se imprimia automaticamente no solo mole, e o homem que a lia a associava aos ruídos inerentes à sua formação. Muitas destas pegadas apareciam em grandes quantidades e muito próximas umas das outras. Os homens, que original mente viviam em pequenos bandos, podiam assim tomar consciência, pela tranqüila observação destas pegadas, do contraste existente entre o pequeno número de seu bando e a enorme quantidade de algumas manadas. Os homens estavam sempre com fome e sempre caçando; quanto maior a possibilidade de caça, tanto melhor para eles. Mas eles mesmos também queriam ser mais. O sentimento do homem em relação à sua própria multiplicação sempre foi muito intenso. Este sentimento não se restringe, de forma alguma, apenas àquilo que se costuma designar, insatisfatoriamente, como tendência à reprodução. Os homens queriam ser mais naquele exato momento, naquele exato local. A grande quantidade da manada a que estavam dando caça e sua própria quantidade que desejavam aumentar estavam vinculadas de maneira especial ria sua maneira de sentir as coisas. Eles expressavam tudo isto num determinado estado de excitação comum que eu chamo de massa rítmica ou palpitante. O meio encontrado para isto foi, em primeiro lugar, o ritmo dos próprios pés. Onde muitos andam, outros andam conosco. Os passos somados rapidamente a outros passos simulam um maior número de participantes Eles não se movem do lugar onde estão; em sua dança, permanecem sempre no mesmo lugar. Seus passos não se apagam; eles se repetem e persistem durante multo tempo, sempre com a mesma intensidade e animação. Suprem com intensidade o que lhes falta 31

em número. Quando pisam com maior intensidade, o ruído é mais forte. Eles exercem sobre todos os homens das proximidades uma força de atração que não diminui enquanto a dança não é interrompida. Todo ser vivo que se encontra ao alcance do ruído se une a eles, permanecendo unido. O natural seria que se fossem unindo quantidades cada vez maiores de homens. Mas como depois de pouco tempo não há mais quem se possa unir a eles, eles precisam, a partir dos seus números reduzidos, simular este aumento desejado. Movimentam-se como se a quantidade aumentasse cada vez mais. Sua excitação vai aumentando até entrar num estado de loucura. De que maneira, porém, eles conseguem suprir o que não podem alcançar em termos de números crescentes? É muito importante, por exemplo, que cada um deles faça a mesma coisa. Cada um deles pisoteia e o faz exatamente da mesma forma. Cada um balança os braços e agita a cabeça. A equivalência dos participantes se ramifica na equivalência dos seus membros. Tudo o que é móvel num ser humano adquire uma espécie de vida própria; cada perna, cada braço passam a viver sozinhos. Os vários membros passam todos a coincidir. Ficam muito próximos uns dos outros; freqüentemente descansam uns sobre os outros. À sua equivalência junta-se desta forma sua densidade; densidade e igualdade passam a ser uma única coisa. Finalmente, está dançando uma única criatura equipada com cinqüenta cabeças, cem pernas e cem braços, sendo que todos atuam da mesma maneira ou com a mesma intenção. Na sua excitação máxima, estes homens se sentem realmente como uma unidade, e é apenas o esgotamento físico que os derruba. Todas as massas palpitantes têm — justamente devido a este ritmo que predomina nelas — algo de parecido. O relato seguinte, que serve apenas para ilustrar uma destas danças, é originário do primeiro terço do século passado. Ele diz respeito à haka dos maoris -- uma tribo da Nova Zelândia — que originalmente era uma dança de guerra. "Os maoris se dispõem numa fileira alongada, com uma profundidade de quatro homens. A dança chamada haka deveria encher de espanto e de medo qualquer pessoa que a presenciasse pela primeira vez. Toda a sociedade, homens e mulheres, pessoas livres e escravos, se misturavam sem consideração à posição hierárquica que cada grupo ocupava na comunidade. Os homens ficavam totalmente nus, excetuando-se apenas uma cartucheira que lhes pendia da cintura. Todos estavam armados com fuzis ou com baionetas, fixadas na ex32

tremidade de lanças e pedaços de paus. As mulheres jovens, até mesmo as esposas do chefe, participavam da dança com o busto descoberto. "O compasso do canto que acompanhava a dança era observado com muito rigor. A mobilidade das pessoas era espantosa. De repente saltavam verticalmente do solo, todos ao mesmo tempo, como se todos os bailarinos estivessem animados por uma única vontade. Ao mesmo tempo brandiam suas armas e deformavam o rosto e com as grandes cabeleiras, usadas tanto pelos homens como pelas mulheres, assemelhavam-se a um exército de górgonas. Ao cair, batiam simultaneamente com ambos os pés no chão. Este salto era repetido com freqüência e cada vez mais depressa. "Os traços do rosto eram distorcidos de todas as maneiras possíveis aos músculos de um rosto humano; e cada nova careta era pontualmente adotada por todos os participantes. Quando um deles contraía o rosto fortemente, como se estivesse num torniquete, todos o imitavam imediatamente. Eles giravam os olhos de um lado para outro; às vezes apenas o branco dos olhos ficava visível, e tinha-se a impressão de que iam saltar para fora da órbita. A boca era esticada até perto das orelhas. Simultaneamente todos esticavam as línguas para fora da boca; jamais um europeu seria capaz de imitar gestos desse tipo; eram gestos que mostravam um aprendizado longo e precoce. Seus rostos ofereciam um aspecto tão espantoso que era um alívio desviar os olhos. "Cada parte de seus corpos estava em ação, separadamente; os dedos. dos pés, os dedos das mãos, os olhos, as línguas, bem como os braços e as pernas. Com a mão espalmada eles se golpeavam às vezes no lado esquerdo do peito, às vezes nas coxas. O barulho do canto era ensurdecedor; mais de trezentas e cinqüenta pessoas participavam da dança. Pode-se imaginar o efeito que ela devia produzir em tempo de guerra; como servia para aumentar a coragem e como levava a um ponto ainda mais elevado a aversão recíproca entre dois grupos diferentes." O girar dos olhos e o esticar da língua são sinais de teimosia e de desafio. No entanto, se bem que a guerra de maneira geral seja uma coisa dos homens, e em especial dos homens livres, todos se entregavam à excitação da haka. Neste caso a massa desconhece todas as divisões de sexo, de idade e de hierarquia social: todos agiam da mesma maneira. O que porém diferencia fortemente esta dança de outras de intenções semelhantes é uma ramificação particularmente extrema da 33

igualdade. É como se cada corpo se descompusesse em todas as suas partes isoladas, não somente em pernas e braços como freqüentemente acontece, mas também em dedos, artelhos, línguas e olhos, e repentinamente todas as línguas se unem e fazem a mesma coisa no mesmo instante. Logo em seguida é a vez dos artelhos e dos olhos executarem exatamente o mesmo movimento. As pessoas em cada uma de suas menores partes são tomadas por esta sensação de igualdade, que passa a ser representada numa ação que a aumenta ainda mais de forma violenta. A visão de trezentas e cinqüenta pessoas que saltam simultaneamente, que esticam simultaneamente a língua, que rolam simultaneamente os olhos deve criar uma sensação insuperável de unidade. A densidade não é apenas uma densidade das pessoas, mas sim de todos os seus membros, de suas partes componentes em separado. Seria possível pensar que os dedos e as línguas, mesmo se não pertencessem às pessoas, seriam capazes de se reunir e de lutar por conta própria. O ritmo da haka destaca isoladamente cada uma destas igualdades. Juntas e em sua escalada, elas são irresistíveis. Porque tudo isto acontece sob a condição de que seja visto: o inimigo está acompanhando, olhando para o que acontece. A intensidade da ameaça comum é que caracteriza a haka. Mas como a dança já existia, ela acabou se transformando em algo mais. Ela é ensaiada desde a infância, possui várias formas diferentes, e é apresentada em todos os tipos de ocasiões. Muitos viajantes já foram recepcionados amistosamente com a apresentação desta dança. O relato citado, aliás, diz respeito a uma ocasião deste tipo. Quando uma tropa amiga se une a outra, ambas se saúdam com uma haka; e isto é feito com tanta seriedade que qualquer espectador desprevenido passa a temer o início dos combates a qualquer instante. Durante os funerais de um grande chefe, depois dos momentos da mais intensa lamentação e de automutilação que são costumeiros entre os maoris, depois de uma ceia festiva e abundante, repentinamente todos se erguem num salto, pegam suas armas e adotam a formação de uma haka. Nesta dança, da qual todos podem participar, a tribo toda se sente como massa. Eles se utilizam desta dança quando sentem necessidade de serem massa e de aparecerem como tal diante de outras pessoas. Na perfeição rítmica alcançada por esta dança, ela certamente atinge sua finalidade. Graças à haka, a unidade dos maorís nunca chega a ser seriamente ameaçada de dentro para fora. 34

Estancamento A massa contida é compacta; nela não existe a possibilidade de um movimento verdadeiramente livre. Seu estado possui algo de passivo; a massa contida espera. Espera por uma cabeça que lhe será mostrada, ou por palavras, ou está contemplando um combate. Neste caso importa principalmente a densidade: a pressão, que se sente por todos os lados, também pode servir aos afetados como medida para a força da formação, da qual eles agora fazem parte. Quanto maior for o número de pessoas participantes, tanto maior se torna esta pressão. Os pés não têm para onde ír, os braços estão comprimidos; livres permanecem apenas as cabeças para ver e ouvir; os corpos transmitem os estímulos diretamente uns aos outros. Entra-se em contato com vários homens simultaneamente, com o próprio corpo. Sabe-se que são vários homens, mas, como eles também estão unidos, eles são considerados como uma unidade. Este tipo de densidade não tem pressa; sua influência é constante por uma duração determinada; ela também é amorfa, não se submetendo a nenhum ritmo familiar e ensaiado. Durante muito tempo não acontece nada; porém os desejos de ação se reprimem e se rompem finalmente com uma violência tanto maior. A paciência da massa contida talvez não seja tão surpreendente se levarmos em consideração o significado que este sentimento de densidade tem para ela. Quanto mais densa for, tanto maior será o número de pessoas atraídas. Com sua densidade ela mede sua magnitude, mas a densidade também é o estímulo máximo para um crescimento posterior. A massa mais densa cresce mais depressa. O ato de se conter antes da descarga é uma exibição desta densidade. Quanto mais ela se contém, tanto maior é o tempo durante o qual ela sente e mostra sua densidade. Do ponto de vista dos indivíduos que formam uma massa, o momento da contensão é como um momento de admiração; são colocados de lado as armas e os aguilhões com os quais em geral as pessoas se defendem tão bem umas das outras; as pessoas se tocam e, por isso mesmo, não se sentem coibidas; os toques deixam de ser toques, o temor recíproco deixa de existir. Antes de sair em qualquer direção que seja, as pessoas querem ter certeza de que permanecem unidas. Trata-se de um crescer em conjunto, para o qual se requer tranqüilidade. A massa contida não tem certeza absoluta quanto à sua unidade, 35

e por este motivo se mantém tranqüila durante o maior período possível de tempo. Mas esta paciência tem seus limites, Uma descarga, finalmente, acaba se tornando indispensável; sem ela não é possível sequer afirmar que a massa chegou a existir. O grito que era habitual antigamente nas execuções públicas, quando a cabeça do malfeitor era erguida e apresentada pelo carrasco, ou o grito que conhecemos atualmente em espetáculos esportivos representam a voz da massa. Sua espontaneidade é da maior importância. Os gritos ensaiados e repetidos em intervalos regulares ainda não são um sinal de que a massa conseguiu atingir uma vida própria. Eles podem conduzir a isso, mas são exteriores como os exercícios táticos de uma divisão militar. Por outro lado o grito espontâneo, que a massa não pode prever com exatidão, é inequívoco; seu efeito costuma ser imprevisível. Ele pode expressar sentimentos de qualquer espécie; freqüentemente é menos importante o tipo de sentimento expresso do que sua força e densidade, bem como a liberdade na sua seqüência. Estes são os elementos que dão à massa o seu espaço espiritual. Mas eles podem ser tão violentos e concentrados que dissolvem instantaneamente a massa, As execuções públicas provocam este resultado; só é possível acabar uma vez com a vida de uma mesma vítima. E, quando se trata de uma pessoa que sempre foi considerada invulnerável, até o final a massa duvida que sua vida tenha terminado. A dúvida, que neste caso se origina do motivo, aumenta a contensão natural da massa. O efeito será tanto mais agudo e cortante ao se avistar a cabeça decepada. O grito que se segue será terrível, mas será também o último grito desta massa tão absolutamente determinada. É possível dizer-se que, neste caso, a massa paga o excesso de expectativa estancada, que desfruta de uma maneira mais intensa, com sua própria morte instantãnea. Nossos modernos espetáculos esportivos são mais funcionais. Os espectadores podem permanecer sentados; a paciência coletiva se torna visível em toda a sua clareza. Todos têm a liberdade de sapatear, mas não se movem de seus lugares. Têm a liberdade de aplaudir com as mãos. Está prevista uma determinada duração para o espetáculo, e normalmente não há motivos para reduzi-la; pelo menos durante este tempo as pessoas permanecem juntas. E durante este tempo uma série de acontecimentos pode ocorrer. Não é possível saber de antemão de que lado e quando será marcado um- gol; além disso, à margem destes acontecimentos centrais, muitos outros podem 36

acontecer que provocam manifestações ruidosas. A voz é ouvida com freqüência e em ocasiões distintas. Da desintegração final se aboliu uma parte de seu caráter doloroso graças à predeterminação da duração. Por outro lado, o derrotado terá a oportunidade de uma revanche e a situação não ficou encerrada definitivamente. Aqui a massa realmente pode se tornar ampla; ela pode primeiro congregar-se nas entradas e depois conter-se nos assentos; ela grita de uma forma que está ao alcance de todos, quando chega o momento exato para isso; e, mesmo quando tudo termina, ela fica almejando outras oportunidades semelhantes. Massas contidas de natureza muito mais passiva se formam nos teatros. O caso ideal é quando se representa diante de uma casa cheia. O número desejado de espectadores é dado desde o início., Eles se reúnem por própria conta e, excetuando-se pequenos congestionamentos diante das bilheterias, as pessoas encontram sozinhas seus caminhos para dentro da sala. Tudo está prefixado: a peça apresentada, os atores, a hora de começar e os espectadores instalados em seus lugares. Os atrasados são recebidos com um leve descontentamento. Como um rebanho disposto a pastar, as pessoas permanecem ali sentadas, tranqüilas, e com uma paciência infinita. No entanto cada um está muito consciente de sua existência separada; pagou seu ingresso e está consciente de quem se instalou a seu lado. Antes do início do espetáculo, o espectador contempla com calma aquela série de cabeças reunidas; elas lhe despertam um sentimento agradável de densidade, mas não demasiadamente intenso. Em si, a igualdade existente entre os espectadores consiste apenas no fato de que todos se submetem aos mesmos estímulos vindos do palco. Mas suas reações espontâneas diante da representação estão limitadas. Até mesmo o aplauso tem seus momentos predeterminados, e na maior parte das vezes as pessoas aplaudem apenas nos momentos em que devem aplaudir. É apenas pela intensidade dos aplausos que se pode julgar até que ponto a massa foi formada; a intensidade é o único parâmetro conhecido, e é aplicado também pelos atores. No teatro o estancamento se tornou um rito a tal ponto que pode ser sentido externamente, como uma leve pressão exterior que não chega ao fundo das pessoas e que, de qualquer modo, apenas lhes proporciona o sentimento de alguma forma tênue de unidade interna. Porém não se deve esquecer quão grande e comum é a expectativa com que aguardam sentadas e que esta expectativa perdura durante toda a representação. Somente raras vezes as pessoas deixam o teatro antes 37

Talvez o caso mais impressionante seja a famosa Parada de Arafat, o ponto culminante da peregrinação a Meca. Na planície de Arafat, a algumas horas de distância de Meca, reúnem-se num dia determinado e estabelecido ritualmente de 600 a 700 mil peregrinos. Eles se agrupam num grande círculo em torno do Monte da Misericórdia, uma colina que se ergue no meio desta planície. Por volta das 2 h da tarde, quando o calor está no seu ponto mais intenso, os peregrinos tomam suas posições e permanecem ali de pé até o pôr-do-sol, de cabeça descoberta e trajando a túnica branca típica. Com atenção apaixonada escutam as frases do pregador, instalado no alto da colina. Seu sermão é um elogio ininterrupto a Deus. Os peregrinos respondem com uma fórmula que é repetida mil vezes. "Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos tuas ordens!" Alguns soluçam de excitação, outros golpeiam o próprio peito. Alguns desmaiam devido ao terrível calor. Porém é essencial que eles permaneçam durante todas essas horas na planície sagrada sob um calor incandescente. No momento em que o sol se põe, é dado o sinal da partida. Os processos restantes, que pertencem ao que de mais enigmático se conhece em costumes religiosos, serão tratados e interpretados posteriormente noutro contexto. Aqui apenas nos interessa esse momento de contensão, que tem duração de várias horas. Centenas de milhares de homens em excitação crescente permanecem na planície de Arafat e não podem abandonar essa posição diante de Alá, aconteça o que acontecer. Juntos tomam posição e juntos recebem o sinal da partida. O sermão os incentiva e eles incentivam a si próprios por meio de gritos. Na fórmula que empregam está contido o termo "aguardar", que sempre se repete. O sol, que se movimenta com lentidão imperceptível, submerge tudo na mesma luz deslumbrante, no mesmo ardor; seria possível falar até de uma encarnação do estancamento. Entre as massas religiosas ocorrem todos os tipos de graduações de imobilidade e de silêncio, mas o grau mais elevado de passividade que se pode alcançar é o imposto à massa de fora para dentro .de maneira violenta. Na batalha duas massas se encontram, cada uma querendo ser mais forte que a outra. Por meio de gritos de combate procuram provar a si mesmos e ao inimigo que realmente são os mais fortes. A meta do combate é emudecer o outro lado. Quando todos os inimigos estiverem derrotados, sua potente voz que era temida com razão emudeceu para sempre. A massa mais silenciosa é a dos inimigos mortos. Quanto mais perigosa ela tenha sido, tanto

do final; mesmo quando estão decepcionadas, as pessoas agüentam; isto significa, portanto, que durante este tempo as pessoas se mantêm unidas. O contraste entre o silêncio do auditório e as manifestações sonoras do aparelho que atua sobre as pessoas é ainda mais perceptível em concertos. Aqui, tudo se baseia na total ausência de perturbações. Qualquer movimento é indesejável, todos os ruídos são execráveis. Ao passo que a música que é apresentada vive, em boa parte, em função do seu ritmo, nenhum efeito rítmico por parte do auditório pode ser notado. Os efeitos provocados pela música de maneira contínua e mutável são do tipo mais diverso e intenso possível. Está excluída a possibilidade de que a maioria dos presentes não os sinta, e é impossível que não os sinta simultaneamente. No entanto, todas as reações exteriores são omitidas. As pessoas ficam sen tadas imóveis, como se não ouvissem coisa alguma. É evidente que neste caso foi necessária uma educação prolongada e artificial para o estancamento, a cujos resultados nós já nos acostumamos. Pois, julgando-se com objetividade, existem poucos fenômenos na nossa vida cultural que sejam tão surpreendentes como o público de concertos. As pessoas que permitem que a música atue naturalmente dentro delas se comportam de forma muito diferente; e pessoas que jamais tiveram oportunidade de ouvir música, quando vivem uma tal situação pela primeira vez podem deixar-se cair na mais irrefreável agitação. Quando os aborígines da Tasmânia ouviram pela primeira vez a Marselhesa, tocada por marinheiros desembarcados lá, deram expressão à sua satisfação com estranhas contorções do corpo e com os gestos mais assombrosos, provocando gargalhadas nos marinheiros. Um jovem entusiasmado puxava os cabelos, coçava a cabeça com as duas mãos e dava grandes gritos. Apesar de tudo conservou-se nos nossos concertos uma pequena dose de descarga física. O aplauso representa a gratidão aos intérpretes; trata-se do intercâmbio de um ruído breve e caótico por outro prolongado e bem organizado. Quando os aplausos não existem em absoluto, quando as pessoas se separam silenciosas tal como quando estavam sentadas, sente-se por inteiro a esfera do reconhecimento religioso. É daí que deriva originalmente o silêncio do concerto. O estar de pé juntos diante de Deus é um exercício muito difundido em algumas religiões. Isto se caracteriza pelos mesmos sintomas de contensão que já conhecemos nas massas seculares e que podem provocar descargas igualmente repentinas e intensas.

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maior é a alegria de vê-la imóvel e reunida num monte. Trata-se de um vício peculiar sentir os inimigos tão indefesos quanto um monte de mortos. Isso porque como monte eles se arremessaram uns contra os outros, como monte gritaram uns contra os outros. Essa massa silenciada dos mortos não era considerada anteriormente como morta. Supunha-se que em outra parte continuariam vivendo à sua maneira todos juntos, e no fundo deveria ser uma vida semelhante à conhecida. Os inimigos que jaziam como cadáveres representavam assim para o observador o caso extremo de uma massa contida. Em lugar dos inimigos abatidos, podem ser considerados todos os mortos que jazem na terra comum aguardando a ressurreição. Cada um que morre e é enterrado aumenta o número deles; todos os que já viveram alguma vez pertencem ao grupo que assim vai aumentando seu número. A terra que os une é sua densidade e desta forma se tem a sensação de que estão muito próximos uns aos outros apesar de estarem enterrados isoladamente. E assim permanecem por tempo indefinido até o dia do juízo final. Sua vida é interrompida até o momento da ressurreição, e esse instante coincide com o de sua reunião perante Deus que os julgará. Por enquanto, nada acontece; jazem como massa, como massa tornam a erguer-se. Para a realidade e o significado da massa contida não existe demonstração mais grandiosa que o desenvolvimento desta concepção de ressurreição e juízo final,

Lentidão ou a distância da meta À massa lenta pertence a distância da meta. Avança-se com grande tenacidade em direção a uma meta que é imóvel e no caminho é preciso que todos permaneçam juntos. O caminho é longo, os obstáculos desconhecidos, os perigos ameaçam de todos os lados, Não é permitida uma descarga antes que se alcance a meta. A massa lenta tem a forma de um comboio. Desde o princípio ela pode ser formada por todos os que pertencem a ela, como foi o caso da saída dos filhos de Israel do Egito. Sua meta é a Terra Prometida e eles formam uma massa enquanto acreditam nessa meta. A história da sua marcha é a história dessa fé. Freqüentemente as dificuldades são tão grandes que começam a duvidar. Sofrem fome ou sede, e quando murmuram se vêem ameaçados pela desintegração. Constantemente o homem que os conduz se esforça para restabelecer a fé de todos. 40

Ele sempre consegue o resultado desejado, por si mesmo ou graças aos inimigos pelos quais eles se sentem ameaçados. A história da marcha, que dura quarenta anos, contém muitas formações isoladas de massa de natureza súbita e aguda, a respeito das quais teremos ocasião de falar mais adiante com maior profundidade; porém todas elas estão subordinadas à idéia mais ampla de uma massa lenta única que se movimenta em direção à meta, à terra que lhes foi prometida. Os adultos envelhecem e morrem, nascem e crescem novas crianças, mas apesar de os indivíduos não serem os mesmos, o grupo, como conjunto, continua o mesmo. Ele não é integrado por novos grupos. Desde o começo está estabelecido quem pertence a ele e tem direito à Terra da Promissão. Como esta massa não pode crescer de forma brusca, durante toda a sua marcha ela se atém a uma única pergunta central: como conseguir que não se desintegre? Uma segunda forma de massa lenta poderia ser comparada melhor a um sistema fluvial. Ele começa com riachos que vão se unindo pouco a pouco; no rio que se forma desembocam outros rios de ambas as margens; tudo se transforma, desde que haja território suficiente para isso, numa grande corrente, cuja meta é o mar. A peregrinação anual a Meca talvez seja o exemplo mais impressionante dessa forma de massa lenta. Das partes mais distantes do mundo islâmico partem caravanas de peregrinos, todas elas em direção a Meca. Algumas começam muito pequenas; outras, equipadas com todo o luxo dos príncipes, são desde o princípio o orgulho dos países onde tiveram origem. Porém, no decorrer de sua marcha, todas se encontram com outras caravanas que têm a mesma meta, e assim vão aumentando cada vez mais; nas proximidades da meta final, elas se transformam em poderosas correntes. Meca é o seu mar, lugar onde desembocam. Cada peregrino pode dedicar muito tempo ao cultivo de vivências de tipo comum que nada têm a ver com o sentido da viagem em si. Cada dia se transforma numa luta constante. É necessário discutir o tempo todo, às vezes com muitos riscos, pois habitualmente as pessoas são pobres e precisam preocupar-se com o alimento e a bebida. A vida destes homens está muito mais exposta a perigos do que em casa. Não são perigos que .se refiram necessariamente ao seu empreendimento. Desta maneira, esses peregrinos permanecem amplamente como indivíduos que, separados, vivem para si mesmos como se não fizessem parte de uma massa. Porém desde que perseverem em sua meta, o que ocorre na maior parte das vezes, eles são 41

sempre parte de uma massa lenta que perdura — não importa de que maneira se comportem em relação a ela — e perdurará até que a meta seja alcançada. Uma terceira forma de massa é encontrada em todas as formações que se referem a uma meta invisível e inalcançável nesta vida. O além, no qual os bem-aventurados esperam por todos os que ganharam um lugar lá, é uma meta bem articulada e propriedade exclusiva dos que crêem. Eles a vêem de maneira clara e exata diante de si, e não precisam conformar-se com um símbolo vago que a substitua, A vida é como um caminho de peregrinação até lá e entre esse além e eles está apenas a morte. O caminho não está determinado detalhadamente, e é difícil percebê-lo pelos aspectos visuais. Muitos se extraviam e o perdem de vista. De qualquer forma, a esperança do além influi tanto na vida dos crentes que temos o direito de falar de uma massa lenta à qual pertencem todos os adeptos de uma crença. Como eles não se conhecem uns aos outros, vivendo dispersos em muitas cidades e países, o aspecto anônimo dessa massa é o que causa mais impressão. Qual porém é o aspecto dentro dela, e o que mais a diferencia das formas rápidas? A descarga não ocorre na massa lenta, Seria possível dizer que esta é a sua principal característica e assim, em vez de lentas, seria possível falar de massas sem descarga. Porém é preferível a primeira designação, pois não se pode renunciar inteiramente à descarga. Na representação de um estado final, ela sempre está contida. Ela está deslocada a uma grande distância. Lá onde está a meta também se encontra a descarga. Uma intensa visão dela sempre existe, sua certeza está no fim. Na massa lenta procura-se retardar o processo que conduz à descarga, colocá-lo a longo prazo. As grandes religiões revelaram notável maestria neste processo de aproximação da meta com lentidão. A elas importa conservar os adeptos que foram conquistados. Para conservá-los e para conquistar novos adeptos é preciso que se reúnam de tempos em tempos. Se durante essas assembléias se chegou alguma vez a descargas violentas, elas devem ser repetidas e, na medida do possível, superadas em intensidade; pelo menos é imprescindível uma repetição regular das descargas, caso não se queira perder a unidade dos crentes. O que acontece nesse tipo de serviço religioso, que ocorre em massas rítmicas, não é controlável a maiores distâncias. O problema central das religiões universais é o domínio sobre seus fiéis em extensas regiões da Terra. Esse domínio somente é possível mediante um retardamento consciente dos 42

processos de massa. As metas devem ganhar significado na distância, as mais próximas devem perder cada vez mais seu peso e parecer finalmente como carentes de valor. A descarga terrena nunca é de grande duração; somente o que foi transferido para o além tem permanência. Desta forma a meta e a descarga coincidem; a meta porém é invulnerável. Como a Terra Prometida aqui na terra pode ser ocupada e devastada pelos inimigos, o povo ao qual ela foi prometida pode ser desalojado dela. Meca foi conquistada e saqueada pelos carmatas, que levaram consigo a pedra sagrada da Kaaba. Durante muitos anos não foi possível realizar peregrinação alguma. O além, no entanto, com seus bem-aventurados, está a salvo de todas as devastações deste tipo. Ele vive somente da fé e somente através dela pode-se chegar até ele. A desintegração da massa lenta do Cristianismo começou no momento em que a fé nesse além começou a se decompor.

As massas invisíveis Em qualquer parte habitada da Terra encontramos a idéia dos mortos invisíveis. Seria possível até dizer que ela é a idéia mais antiga da humanidade. Certamente não existe nenhum grupo, tribo ou povo que não se preocupe seriamente com seus mortos. O ser humano era possuído por eles; eles tinham uma tremenda importância para ele e sua influência sobre os vivos era parte essencial da própria vida. Eles eram imaginados todos juntos, como os vivos hoje, e era habitual reconhecê-los. "Os antigos bechuanas, da mesma forma que os demais nativos do sul da África, acreditavam que o espaço deles estava povoado pelos espíritos de seus ancestrais. Terra, ar e céu estavam repletos de espíritos que tinham poder de exercer influências maléficas sobre os vivos." "Os polokis, povo do Congo, acreditam estar rodeados por espíritos que a todo. momento procuram fazer-lhes mal, que a todas as horas do dia e da noite procuram prejudicá-los. Rios e riachos estão povoados pelos espíritos de seus ancestrais. O bosque e a selva virgem também estão cheios de espíritos. Eles podem tornar-se perigosos para os viajantes surpreendidos pela noite. Ninguém é suficientemente corajoso para cruzar à noite a floresta que separa uma aldeia da outra. Nem sequer a perspectiva de uma grande recompensa consegue convencê-los a fazer 43

isso. A resposta a tais propostas sempre é: existem espíritos em demasia na floresta." Acredita-se comumente que os mortos morem juntos num país distante, debaixo da terra, numa ilha ou numa casa celeste. Uma canção dos pigmeus do Gabão diz: "As portas da caverna estão fechadas. Os espíritos dos mortos se reúnem lá aos bandos como um enxame de moscas que dançam ao entardecer. Um enxame de moscas que dançam ao entardecer, quando a noite caiu, quando o sol desapareceu, um enxame de moscas: movimentos de folhas mortas numa forte tempestade". Mas não é suficiente que os mortos se tornem cada vez mais numerosos e que um sentimento de densidade se torne predominante. Eles também estão em movimento e procuram empreendimentos conjuntos. Eles são invisíveis para a maioria das pessoas, mas existem homens com dons especiais, os xamãs, que sabem conjurá-los e que podem submetê-los à condição de seus servidores. Entre os chukches, da Sibéria, "um bom xamã possui legiões inteiras de espíritos auxiliares e quando ele convoca todos, eles chegam em quantidades tão grandes que rodeiam a pequena tenda onde ocorre o esconjuro, como uma parede de todos os lados". Os xamãs dizem o que vêem "com uma voz que treme de emoção. O xamã grita através do iglu: `O espaço celeste está repleto de seres nus, que chegam voando pelo ar. Seres humanos, homens nus, mulheres nuas, que vão voando e incitam as tormentas e as nevadas. Ouçam os silvos. É como o bater de asas de grandes pássaros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a fuga das pessoas nuas! Os espíritos do ar sopram a tormenta, os espíritos do ar derramam a neve sobre a Terra' ". Esta imagem grandiosa de espíritos nus em fuga faz parte das crenças dos esquimós. Alguns povos imaginam os seus mortos, ou uma certa parte deles, como exércitos combatentes. Entre os celtas da região montanhosa escocesa, o exército dos mortos é designado por uma palavra especial: sluagh. Esta palavra poderia ser traduzida por "multidão de espíritos". O exército de espíritos voa em grandes nuvens que vão e voltam — como os estorninhos sobre a terra. Eles sempre retornam aos locais dos seus pecados terrestres. Com suas infalíveis flechas envenenadas, matam gatos, cachorros, ovelhas e bovinos dos seres humanos. Travam batalhas no ar exatamente como os seres humanos fazem sobre a terra. Em noites claras e geladas pode-se ver e 44

ouvir como os exércitos avançam uns contra os outros para depois recuarem e tornarem a avançar. Depois de uma batalha, o sangue deles tinge as pedras e os rochedos de vermelho. A palavra ghairm significa "grito", "chamada", e sluagh-ghairm era o grito de guerra dos mortos. Mais tarde se transformou no termo slogan. Os gritos de combate das nossas massas modernas derivam daqueles dos exércitos de mortos das terras montanhosas. Dois povos nórdicos que vivem em locais muito distantes — os lapões da Europa, e os tlingits do Alasca — têm a mesma idéia a respeito da aurora boreal como batalha. "Os lapões-kolta acreditam ver na aurora boreal os tombados na guerra que, como espíritos, continuam combatendo entre si no ar. Os lapões russos vêem na aurora boreal os espíritos dos mortos. Eles habitam uma casa onde às vezes se reúnem; lá eles se matam entre si e o chão se cobre de sangue. A aurora boreal indica que as almas dos mortos vão dar início às suas batalhas. Entre os tlingits do Alasca todos os que morrem de doença e não na guerra vão para o inferno. Somente os guerreiros valentes, mortos em batalha, estão no céu. Este se abre de vez em quando para acolher novos espíritos. Ao xamã os espíritos aparecem sempre como guerreiros inteiramente armados. Estas almas dos extintos aparecem freqüentemente como aurora boreal, principalmente como labaredas com formato de flechas em movimento constante, que às vezes passam umas junto às outras ou trocam de lugar, o que lembra muito a maneira de combater dos pingüins. Uma intensa aurora boreal anuncia, acredita-se, um grande derramamento de sangue, porque os guerreiros mortos estão desejando novos companheiros". Segundo as crenças dos germanos, um enorme número de guerreiros se encontra reunido no valhalla. Todos os homens que desde o começo do mundo morreram em batalhas chegaram ao valhalla. Sua quantidade cresce cada vez mais, pois as guerras não têm fim. Lá eles se alimentam e bebem, e seus alimentos e suas bebidas são renovados constantemente. Todas as manhãs eles empunham suas armas e partem para o combate. Neste jogo eles se matam, mas tornam a se erguer, pois não se trata de uma morte verdadeira. Através de seiscentos e quarenta portões eles voltam a entrar no valhalla em colunas de oitocentos homens. Porém não são apenas os espíritos dos mortos que os seres vivos imaginam invisíveis em grande quantidade. "Depende apenas do homem — afirma antigo texto judaico — e é preciso ter muito presente que nenhum espaço livre existe entre o céu e a terra, que tudo está repleto de bandos e multi45

dões. Uma parte delas é pura, cheia de graça e doçura; outra parte, porém, são seres impuros, predadores e atormentadores. Todos voam no ar de um lado para outro: alguns querem a paz, outros buscam a guerra; alguns estabelecem o bem, outros provocam o mal; alguns trazem vida, outros a morte." Na religião dos antigos persas os demônios formam um exército especial que possui um comando supremo próprio, A respeito do número incontável desses demônios encontra-se no livro sagrado Zend-Avessa a seguinte fórmula; "Milhares e milhares de demônios. Dezenas de milhares e dezenas de milhares são suas miríadas incontáveis". Na Idade Média cristã havia sérias preocupações quanto ao número de diabos. No Diálogo sobre os Milagres, de Caesarius de Heisterbach, informa-se que em determinada ocasião eles invadiram a tal ponto o coro de uma igreja que perturbaram o canto dos monges; estes tinham iniciado o terceiro salmo: "Senhor, quão numerosos são nossos inimigos". Os diabos começaram a voar de um lado para outro no coro, e se misturaram aos monges que esqueceram completamente o que estavam cantando e, na confusão, os de um lado procuravam abafar com gritos a voz dos do outro lado. Se tantos diabos se reúnem num lugar para perturbar uma única missa, quantos não haveria então na Terra toda! Mas o Evangelho, segundo Caesarius, confirma que uma legião deles entrou num único ser humano. Um sacerdote malvado, no seu leito de morte, disse a uma parenta que estava junto dele: "Você está vendo aquele grande celeiro na nossa frente? Debaixo de seu teto existem tantos fios de palha quantos diabos estão agora em torno de mim". Eles esperam ali pela alma do sacerdote para conduzi-Ia ao castigo. Mas eles também fazem suas tentativas ao lado do leito de morte das pessoas piedosas. Durante o enterro de uma bondosa abadessa, havia mais diabos reunidos em torno dela do que folhas nas árvores de uma grande floresta. Ao redor de um abade moribundo seu número era superior ao dos grãos de areia na beira do mar. Esses dados são provenientes de um diabo que esteve lá pessoalmente e que transmitiu a informação a um cavalheiro que conversou com ele. Ele não escondeu sua decepção pelos esforços vãos que fizeram, e confessou que já por ocasião da morte de Cristo estivera sentado sob um braço da cruz. Como se vê, a insistência desses diabos é tão grande quanto sua quantidade. Quando o abade cisterciense Richalm fechava os olhos, via-os tão densos como o pó ao seu redor. 46

Houve estimativas mais precisas quanto ao seu número. Entre estas conheço duas que diferem muito entre si: uma afirma existirem 44,635,569 e a outra 11 bilhões. Contrastando muito com o que acabamos de referir, encontramos a idéia que cada um faz dos anjos e dos bem-aventurados, Entre eles tudo é calma, nada se deseja conseguir, pois já se chegou à meta. Mas também eles estão reunidos em exércitos celestiais, "uni sem-número de anjos, patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, confessores, virgens e outros justos", Dispostos em grandes círculos, eles estão em torno de seu Senhor, como os súditos de uma corte se voltam para o rei. Uma cabeça junto a outra, baseiam sua bem-aventurança na proximidade do Senhor. Eles foram aceitos para sempre a seu lado; assumem sua contemplação e não a deixarão jamais. Isto é a unica coisa que ainda fazem, e a fazem em comum. O espírito dos crentes está povoado de tais idéias de massas invisíveis, Tanto os mortos como os santos são imaginados em grandes multidões concentradas. Seria possível dizer que as religiões começam com estas massas invisíveis. Sua sedimentação é distinta; em cada crença existe um equilíbrio particular para elas. Seria possível e muito desejável fazer uma classificação das religiões segundo a maneira como manipulam suas massas invisíveis. As religiões superiores, entre as quais se incluem as que conseguiram vigência geral, nos mostram uma grande segurança e clareza neste sentido. Às massas invisíveis, que são mantidas vivas em seus sermões, unem-se os temores e os desejos dos homens. Esses invisíveis formam o sangue da fé. Na medida em que vão perdendo sua força, a fé enfraquece, mas continuamente novas multidões ocupam o lugar das anteriores. De urna destas massas — que talvez seja a mais importante — não se falou ainda. É a única que também para nós, homens de hoje, apesar de sua invisibilidade, nos parece natural. Trata-se da descendência. Um homem é capaz de conhecer duas ou talvez três gerações. Mas na sua infinidade a descendência não é visível para ninguém. Sabe-se que ela tende a aumentar, primeiro lentamente, depois com aceleração cada vez maior. Tribos e povos inteiros remontam a um único patriarca, e das promessas que foram feitas a ele é óbvio que ele deseja bons descendentes, mas sobretudo em grande quantidade: numerosos como as estrelas dos céus e como a areia do mar. No Shi-King, cancioneiro clássico dos chineses, encontramos um poema no qual a descendência é comparada a uma nuvem de gafanhotos: 47

As asas dos gafanhotos dizem: Puxe, puxe! Oh, oxalá teus filhos e teus netos Estejam ali em incontável exército! As asas dos gafanhotos dizem: Ate, ate! Oh, oxalá teus filhos e teus netos Se sucedam em linhas e sem fim! As asas dos gafanhotos dizem: Une, une! Oh, oxalá teus filhos e teus netos Sejam para sempre uma unidade!

O grande número, a não-interrupção da sucessão — ou seja, uma espécie de densidade não influenciada pelo tempo — e a unidade são os três desejos expressos neste caso para a descendência. A nuvem de gafanhotos como símbolo da massa de descendentes é especialmente impressionante, porque os insetos aqui não são mencionados como bichos daninhos, mas sim por causa do vigor da sua multiplicação, que é considerada como exemplar. O sentimento da descendência continua tão vivo como sempre esteve. Mas a idéia de massa se desligou da idéia da descendência, e foi transferida à humanidade futura no seu conjunto total. Para a maioria de nós os exércitos dos mortos se transformaram numa superstição vazia, no entanto considera-se uma atitude nobre e de maneira alguma ociosa preocupar-se com a massa dos que ainda não nasceram, desejandolhes o bem e preparando para eles uma vida melhor e mais justa. Dentro da inquietação comum a respeito do futuro da Terra, este sentimento em relação aos não-nascidos é da maior importância. Graças à repugnância que sentimos quanto à sua eliminação, pode ser que a idéia que fazemos do que eles poderão vir a sofrer, se levarmos adiante as possibilidades bélicas do momento, conduza, mais do que todos os outros temores privados, à supressão destas guerras e da guerra em geral. Se considerarmos ainda o destino das massas invisíveis das quais estamos falando, pode-se afirmar que algumas desapareceram em grande parte, outras por completo. A estas últimas pertencem os diabos, em sua forma familiar, que, apesar das quantidades referidas, já não são encontrados em lugar algum. No entanto, eles deixaram seus vestígios. Quanto ao seu tamanho diminuto, poderíamos citar vários testemunhos surpreendentes da época de seu maior florescimento, como os 48

contidos, por exemplo, na obra de Caesaríus de Heisterbach. Desde então eles abriram mão de todas as suas características que podiam lembrar a figura humana e diminuíram ainda mais de tamanho. De forma muito diferente e em quantidade incomensuravelmente maior, eles tornaram a aparecer no séc. XIX como bacilos. Em vez de atacarem a alma, o objetivo deles é o corpo humano, para o qual podem se tornar muito perigosos. São poucas as pessoas que já usaram um microscópio para vê-los. Porém todos os que ouviram falar a seu respeito têm consciência de sua presença e se esforçam ao máximo para não entrar em contato com eles; mas, graças à sua invisibilidade, trata-se de um esforço um tanto quanto vago. Com sua periculosidade e com suas quantidades enormes concentradas em espaço muito pequeno, eles sem dúvida tomaram a posição anteriormente ocupada pelos diabos. Uma massa invisível que sempre existiu, mas que apenas se reconheceu como tal quando apareceu o microscópio, é a do esperma Duzentos milhões destes animaizinhos espermáticos se colocam em movimento simultaneamente. Eles são iguais entre si e estão reunidos em enorme densidade. Todos têm uma meta e, excetuando-se apenas um, os demais perecem no caminho. Pode-se objetar que não são seres humanos e que fundamentalmente, neste sentido, não se deveria falar de uma massa como as descritas anteriormente. Porém esta objeção não nos oferece a chave do assunto. Cada um destes animaizinhos espermáticos leva consigo tudo o que se conserva dos ancestrais. Ele contém os ancestrais; ele é os ancestrais. É uma tremenda surpresa voltar a encontrá-los aqui, entre uma existência humana e a próxima, sob forma totalmente diferente: todos eles incluídos em uma criatura minúscula e invisível e esta criatura repetida em números tão incomensuráveis.

Classificação segundo o efeito dominante As massas que conhecemos estão dominadas pelos mais diversos sentimentos. Ainda não se falou a respeito do tipo destes sentimentos. A primeira intenção da investigação era de se fazer uma classificação segundo princípios formais. O fato de a massa ser aberta ou fechada, lenta ou rápida, invisível ou visível nos díz muito pouco do que elas sentem, do seu conteúdo. Este conteúdo, sem dúvida, nunca aparece em estado puro. Já se conhecem as ocasiões em que a massa passa por uma 49

série de sentimentos que se sucedem rapidamente. Os homens podem passar horas e horas no teatro e as vivências que ali têm no seu conjunto são dos tipos mais variados. No concerto suas emoções estão ainda mais desprendidas da ocasião do que no teatro; pode-se dizer que neste caso elas alcançam o seu nível extremo de variedade. No entanto, essas ocasiões são artificiais; sua riqueza é o produto final de culturas evoluídas e complexas. Seu efeito é comedido. Os extremos se anulam uns aos outros. Estas disposições servem de maneira geral para um apaziguamento e uma diminuição de paixões, às quais apenas os seres humanos se sentem entregues. As principais formas afetivas da massa remontam porém a épocas muito anteriores. Elas aparecem muito cedo, sua história é tão antiga quanto a própria humanidade e duas delas são mais antigas ainda. Cada uma delas se caracteriza por uma coloração uniforme: uma única paixão principal a domina. Depois de terem sido delineadas com clareza, é impossível voltar a confundi-las entre si. A seguir faremos a distinção de cinco tipos de massa segundo seu conteúdo afetivo. A de perseguição e a de fuga são as duas massas mais antigas. Elas ocorrem tanto entre os animais como entre os homens e é provável que sua formação entre os homens se tenha baseado sempre nos modelos animais. As massas de proibição, de inversão e a festiva são especificamente humanas. Uma descrição destas cinco espécies principais é indispensável, e sua interpretação pode ter um alcance considerável.

Massas de perseguição A massa de perseguição se forma tendo como finalidade a obtenção de uma meta de maneira rápida. Esta meta é conhecida e está caracterizada de maneira precisa; ela também está próxima. Esta massa está disposta a matar e sabe também quem será morto. Com uma determinação sem igual, ela avança em direção à meta; é impossível impedir que ela a alcance. Basta dar a conhecer esta meta, basta comunicar quem deve morrer, para que a massa se forme. A concentração para matar é de índole particular e não há nenhuma que a supere em intensidade. Todos querem participar dela, todos golpeiam. Para poder desferir o seu golpe, cada um se aproxima o mais possível da vítima. Quando não podem golpear, querem ver como fazem os demais. Todos os braços avançam como se 50

pertencessem a uma só criatura. Mas os braços que acertam têm mais valor e mais peso. A meta é tudo. A vítima é a meta, mas também é o ponto da maior densidade: ela reúne as ações de todos em si mesma. Meta e densidade coincidem. Um motivo importante para o rápido crescimento da massa de perseguição é a ausência de perigo do empreendimento. Não existe perigo, pois a superioridade do lado da massa é total. A vítima nada pode fazer. Ela foge ou morre. Ela não pode golpear; em sua impotência ela é apenas vítima. Mas ela também foi entregue à sua perdição. Está destinada, pela sua morte ninguém precisa temer uma sanção. O assassinato permitido substitui todos os assassinatos dos quais as pessoas se devem abster, e cuja execução poderia provocar duras penas. Um assassinato sem risco, permitido, recomendado, compartilhado com muitos outros constitui uma sensação irresistível para a grande maioria dos homens. Quanto a isso cabe dizer que a ameaça de morte que pende sobre todos os homens e que sob diferentes disfarces está sempre ativa, ainda que a defrontemos continuamente, torna necessária uma derivação da morte para os outros. A formação das massas de perseguição corresponde a esta necessidade. É uma empresa tão fácil e que se desenvolve com tanta rapidez que é preciso apressar-se para chegar a tempo. A pressa, a euforia e a segurança de uma massa como esta têm algo de inquietante. É a excitação de cegos que estão mais cegos quando de repente acreditam ver. A massa vai ao sacrifício e à execução para desfazer-se de uma vez por todas da morte de todos aqueles que a constituem. O que realmente ocorre é o contrário do que se esperava. Pela execução, mas somente depois de ela ter ocorrido, a massa se sente mais ameaçada do que nunca pela morte. Ela se desintegra e se dispersa numa espécie de fuga. Quanto mais elevada for a categoria da vítima, maior é o seu medo. Ela somente pode manter-se coesa, se uma série de efeitos idênticos se sucederem com grande rapidez. A massa de perseguição é muito antiga; ela remonta à unidade dinâmica mais primitiva que se conhece entre os hobens: a malta de caça. A respeito das maltas, que são pequenas e que além disso se diferenciam muito das massas, falaremos mais detalhadamente em outro lugar. Aqui trataremos apenas de algumas ocasiões gerais que dão motivo à formação de massas de perseguição. Entre os tipos de morte que uma horda ou um povo impõe ao indivíduo, podemos distinguir duas formas princi51

pais; uma é a expulsão. O indivíduo é abandonado, exposto indefeso às feras ou à morte por inanição. O grupo a que antes pertencia nada mais tem a ver com ele; não é permitido acolhê-lo e todos estão proibidos de lhe oferecer alimentos. Toda a comunidade se contaminaria com ele e se tornaria culpada. Essa solidão, em sua forma mais rigorosa, é aqui o castigo extremo: a separação do grupo a que pertencia, a qual — principalmente em relacionamentos primitivos — muito poucos são capazes de suportar. Uma derivação deste isolamento é a entrega ao inimigo. Quando se trata de homens, e quando é efetuada sem combate, ela se torna particularmente cruel e humilhante, como uma morte dupla. A outra forma é a de matar coletivamente. O condenado é conduzido a um campo aberto e apedrejado. Todos participam desta morte; atingido pelas pedras de todos, o culpado é destruído. Ninguém assume o papel de executor. Toda a comunidade mata. As pedras estão no lugar da comunidade, servem de lembrança da sua decisão e do seu ato. Em lugares onde se perdeu o uso do apedrejamento, continua existindo essa inclinação para matar coletivamente. A morte pelo fogo pode ser comparada a isso: o fogo atua no lugar da multidão que desejou a morte do condenado. A vítima é alcançada pelas chamas em todo o seu corpo; pode-se dizer que ela se vê atacada e morta por todas as partes. Nas religiões infernais se acrescenta algo mais: com a morte coletiva pelo fogo, que é um símbolo para a massa, relaciona-se a idéia da expulsão, ou seja, o inferno, a entrega nas mãos dos inimigos infernais. As chamas do inferno chegam até a terra e acabam com o herege a que se destinam. A morte por flechadas, o fuzilamento de um condenado à morte por um pelotão de soldados têm um grupo executor cujos membros funcionam como delegados da sociedade. No enterramento de homens em formigueiros, prática conhecida na África e em outras regiões, delega-se às formigas, que substituem uma massa poderosa, esta empresa vergonhosa. Todas as formas de execução pública dependem do velho exercício de matar coletivamente. O verdadeiro verdugo é a massa que se reúne em torno do cadafalso. Ela aprova o espetáculo; num impulso apaixonado, ela chega de lugares muito distantes para presenciá-lo do começo ao fim. Ela quer que a morte suceda e não vê com agrado que lhe arrebatem a vítima. O relato da condenação de Cristo aborda este fato na sua essência. O "crucifica-o" parte da massa. Ela é o elemento propriamente ativo; noutros tempos ela mesma teria se en52

carregado de tudo e teria apedrejado Cristo. O julgamento, que normalmente é realizado diante de um grupo limitado de homens, representa a grande multidão que em seguida presencia a execução. A sentença de morte que, pronunciada em nome da Justiça, soa abstrata e irreal, converte-se em algo claro quando é executada diante da multidão, porque é precisamente ela que faz justiça e a publicidade da justiça é uma referência à massa. Na Idade Média as execuções são realizadas com pompa solene e da maneira mais lenta possível. Ocorrem casos em que a vítima profere discursos edificantes aos espectadores. Em seu último momento, ela se preocupa com a sorte da massa e lhe aconselha a não fazer o que ela mesma fez. A vítima mostra aonde se chega com uma vida como a sua. A massa sente-se muito lisonjeada por esta preocupação e pode dar à vítima uma última satisfação: estar novamente entre eles como igual, ser um "bom" como eles, condenando junto a eles sua vida passada. O arrependimento dos malfeitores ou dos infiéis diante da morte, que os eclesiásticos procuraram por todos os meios sob o pretexto de salvar suas almas, também tem este sentido: converter a massa de perseguição numa futura massa festiva. Cada qual deve sentir-se confirmado em suas boas intenções e acreditar na recompensa futura. Em tempos de revolução as execuções são aceleradas. O verdugo parisiense Samson se sente orgulhoso pelo fato de seus ajudantes não precisarem de mais de "um minuto por pessoa". Uma grande parte da excitação do estado de ânimo das massas em tais momentos deve ser atribuída à rápida sucessão de um sem-número de execuções. Para :a massa é importante que o verdugo lhes mostre a cabeça do justiçado. Este é o momento da descarga. Aquele a quem tenha pertencido a cabeça está agora degradado; no curto instante em que fixa os olhos na massa é uma cabeça como todas as outras. É possível que tenha estado sobre os ombros de um rei, porém, mediante o fulminante processo da degradação, diante de todos ele se igualou aos demais. A massa que aqui está constituída por cabeças de olhares fixos alcança a sensação de sua igualdade num abrir e fechar de olhos quando, por sua vez, a cabeça os olha fixamente. Quanto mais poderoso tenha sido o justiçado, quanto maior a distância que antes o separava da massa, tanto maior a excitação da descarga. Se ele era um rei ou um personagem poderoso, ocorre além disso a satisfação da inversão. O direito de uma justiça sangrenta, que foi seu privilégio durante tanto tempo, foi exercido agora contra ele. Os que 53

ele mandava matar, antes, o mataram agora. A importância desta inversão hão pode ser considerada como excessivamente elevada: existe um tipo de massa que se forma por mera inversão. O efeito da apresentação da cabeça à multidão não se esgota com a descarga. Reconhecendo-a com tremenda violência como uma das suas, caindo, por assim dizer, entre a multidão e não sendo mais do que eles mesmos, igualando desSa maneira todos, cada um se vê refletido nela. A cabeça cortada é uma ameaça. Os olhos mortos olharam tão fixamente para a massa que esta agora não consegue se libertar deles. Como a cabeça pertence à massa, sua morte também a afeta: assustada e influenciada de maneira misteriosa, a massa começa a se desintegrar. Trata-se de uma espécie de fuga na qual agora se dispersa. A desintegração da massa de perseguição que cobrou sua vítima é particularmente acelerada. Os donos do poder são• muito conscientes disso. Eles lançam uma vítima à massa para deter seu crescimento. Muitas execuções políticas foram ordenadas com este fim exclusivo. Por outro lado, os porta-vozés dos partidos radicais freqüentemente não percebem que, ao alcançar sua meta (a execução pública de um inimigo perigoso), se prejudicam mais do que ao partido inimigo. Pode acontecer que, após tal execução, a massa dos seus partidários se desfaça e que por muito tempo — talvez nunca mais — não consiga reencontrar sua antiga força. Teremos ocasião de nos aprofundar mais nos motivos desta transformação, quando falarmos das maltas e, em particular, das maltas de lamentação. A aversão ao matar coletivamente é de data muito recente. Isto não deve ser supervalorizado. Ainda hoje todos participam das execuções públicas através dos jornais. A diferença é que assim tudo é mais cômodo. Pode-se ficar tranqüilamente instalado em sua própria casa e, entre cem detalhes relatados, pode-se gaStar mais tempo com os que nos excitam de maneira especial. Quando tudo termina, o prazer não é estragado pelo mais leve vestígio de culpa. Não se é responsável nem pela condenação, nem pelas testemunhas, nem pelo relato e nem mesmo pelo jornal que publicou este relato. Porém agora se está muito mais informado do que em épocas anteriores, quando era necessário andar e ficar de pé durante horas, e quando se via pouca coisa. No público dos leitores dos jornais se mantém viva uma massa de perseguição, moderada . porém devido à distância dos acontecimentos; entretanto mais irresponsável, estaríamos tentados a dizer, e com uma forma 54

de comportamento mais execrável e ao mesmo tempo mais estável, Como nem sequer precisa se reunir, ela também evita sua desintegração; e a repetição diária do jornal garante suas distrações.

Massas de fuga A massa de fuga se estabelece pela ameaça. É inerente a ela que tudo fuja, que tudo seja arrastado. O perigo que ameaça um dos seus componentes é o mesmo para todos os demais. Ele se concentra sobre um determinado lugar. Não faz diferenças. Pode ameaçar os habitantes de uma cidade, ou todos os que compartilhem da mesma fé, ou todos os que falem um determinado idioma. Foge-se em conjunto, porque assim se foge melhor. A excitação é a mesma: a energia de uns é acrescentada à dos outros; os homens avançam unidos numa mesma direção. Enquanto estão juntos, sentem o perigo como que repartido entre eles. Existe a idéia remota de que o perigo irá se abater sobre algum lugar. Enquanto o inimigo se apodera de um dos fugitivos, os demais têm oportunidade de escapar. Os flancos da fuga estão descobertos, mas como são muito extensos é inimaginável que o perigo possa atacar a todos de uma só vez. Entre Tantos, ninguém em particular supõe que será a vítima. Como o movimento único de todos tende à salvação, o indivíduo sente grandes esperanças diante da possibilidade de alcançá-la. O que mais chama a atenção na fuga de massa é a intensidade de sua direção. A massa, por assim dizer, se transformou toda em direção com a finalidade de se afastar do perigo. Como importa apenas a meta onde as pessoas se salvam, e o espaço existente até lá, as distâncias que antes existiam entre os homens passam a ser irrelevantes. Criaturas muito diferentes e opostas, que jamais se uniram, neste caso podem repentinamente encontrar-se lado a lado. No decorrer da fuga, não desaparecem as diferenças mas sim as distâncias entre elas. De todas as formas de massa, a de fuga é a mais abrangente. A imagem desigual que ela oferece não é resultado apenas da participação de todos, deve-se também à velocidade muito diferente que pode ser desenvolvida pelos homens em fuga. Entre eles existem jovens, velhos, fortes, fracos, mais ou menos carregados, Os diferentes aspectos desta imagem podem confundir um observador que esteja à margem. Mas eles são secun55

quando comparados com a força imensa da diredários e ção -- carecem de qualquer significado. A energia da fuga se multiplica enquanto cada integrante reconhece os demais: eles podem ser empurrados para a frente, mas não excluídos lateralmente. Porém no momento em que se passa a depender apenas de si mesmo, e cada qual considera os que o rodeiam unicamente como obstáculos, a fuga em massa muda de caráter, transformando-se no seu oposto, o pânico; uma luta de cada um contra todos os demais que estejam no seu caminho. Com mais freqüência se chega a uma inversão quando a direção da fuga é perturbada várias vezes. Basta bloquear o seu caminho, para que a massa se movimente noutra direção. Quando seu caminho é bloqueado diversas vezes, ela não sabe mais para onde se dirigir; neste momento ela perde sua consistência. O perigo, que até então tinha um efeito unificador e de incentivo, passa a caracterizar cada um como inimigo dos demais, e todos começam a tentar a própria salvação. A fuga de massa no entanto, ao contrário do pânico, extrai sua energia da coesão. Enquanto ela nao se deixa dispersar por coisa alguma, enquanto perdura sua continuidade como uma poderosa corrente que não se divide, o medo que a impele também é suportável. Assim que ela começa a se movimentar, uma espécie de euforia se apossa da fuga em massa: a euforia do movimento em comum. Ninguém está mais exposto do que os demais e, apesar de cada um dos participantes correr ou cavalgar no máximo de suas forças para se colocar em segurança, cada qual tem sua posição dentro do conjunto, que pode ser reconhecido em meio à agitação generalizada. No decorrer da fuga, que pode estender-se durante dias ou semanas, alguns ficam para trás, porque suas forças se esgotaram ou por terem sido alcançados pelo inimigo. O destino que atingiu este indivíduo poupou os demais; ele passa a ser um sacrificado ao perigo. Por mais importante que ele tenha sido pessoalmente para cada um como co-fugitivo, na sua condição de caído ele se tornou ainda mais importante para todos. Sua sina confere novas forças aos que já estão enfraquecidos. Como ele era mais fraco do que os outros, o perigo o atingiu. O isolamento em que ele fica atrasando-se, vislumbrado rapidamente pelos demais, enfatiza para os outros o valor da coesão. Não se pode enfatizar demais a importância do caído para a consistência da fuga. O fim natural da fuga é alcançar a meta. Na segurança, a 56

massa torna a dissolver-se. O perigo porém também pode ser eliminado na sua própria fonte de origem. Declara-se um armistício e a cidade da qual se fugia deixa de estar ameaçada. Volta-se isoladamente, apesar de todos terem fugido em conjunto, e tudo volta a ficar tão separado como estava antes da fuga. No entanto existe ainda uma terceira possibilidade, que pode ser considerada o desaparecimento da fuga na areia. A meta está excessivamente distante, o ambiente é hostil, as pessoas sofrem fome, enfraquecem e se cansam. Ao invés de alguns, são centenas e milhares que ficam para trás. Esta decomposição física começa lentamente, e o movimento original é mantido durante um espaço de tempo infinitamente superior. Os homens continuam se arrastando, mesmo quando já desapareceram completamente todas as possibilidades imagináveis de salvação. De todas as variantes de massa, a mais tenaz é a da fuga; nela, os últimos componentes permanecem juntos até o momento final. Não são escassos os exemplos de fuga de massa. Nossa era tornou-se muito rica neste sentido. Até os acontecimentos da última guerra, todos pensariam primeiro no destino da Grande Armée de Napoleão, por ocasião de sua retirada da Rússia. Este é o caso mais grandioso: a composição deste exército por homens de tantos idiomas diferentes, o inverno terrível, a enorme distância que a maioria deles foi obrigada a percorrer a pé... Esta retirada, que acabou degenerando numa fuga de massa, é conhecida em todos os seus detalhes. A fuga de uma metrópole, nestas mesmas proporções, sem dúvida foi presenciada pela primeira vez quando os alemães se aproximaram de Paris em 1940. Este famoso "êxodo" não teve uma duração muito longa, já que logo em seguida foi assinado o armistício. Porém a intensidade e a magnitude deste movimento foram tais que o episódio se tornou para os franceses a principal lembrança de massa da última guerra. Não pretendemos acumular aqui toda uma série de exemplos de épocas recentes. No entanto eles ainda estão vivos na memória de todos. Vale a pena ressaltar que a fuga de massa sempre foi bem conhecida pelo homem, mesmo quando ele ainda vivia em grupos muito reduzidos. Ela já desempenhava um importante papel em sua imaginação, antes mesmo que houvesse número suficiente para que ela pudesse ocorrer. Lembramos neste contexto a versão de um xamã esquimó: "O espaço celeste está repleto de seres nus que vêm voando pelo ar, Seres humanos, homens nus, mulheres nuas, 57

que vão voando, provocando tempestades e nevascas. Ouçam o ruído que provocam. É como o bater de asas de grandes pássaros lá em cima, no ar. É o medo das pessoas nuas, é a fuga das pessoas nuas"!

Massas de proibição Uma espécie especial de massa forma-se através de uma proibição: muitos, em conjunto, não querem continuar fazendo o que até então faziam como indivíduos. A proibição é repentina; ela é auto-imposta pelos próprios indivíduos. Pode tratar-se de alguma proibição antiga que, por algum motivo, tenha caído no esquecimento; ou então de alguma outra proibição que é retomada de tempos em tempos. Mas também pode ser alguma proibição inteiramente nova. De qualquer forma, ela é imposta com grande força. Tem o caráter absoluto de uma ordem, mas seu aspecto decisivo é o que tem de negativo, Ela nunca vem de fora, ainda que assim pareça. Sempre surge a partir de uma necessidade dos próprios afetados. Apenas a proibição é pronunciada, a massa começa a se formar. Todos se negam a fazer o que o mundo exterior espera deles. O que até então faziam sem muito alarde, como se lhes fosse natural e fácil, repentinamente deixa de ser feito, não importa por que motivo. Na determinação de sua negativa pode-se reconhecer sua solidariedade. O próprio elemento negativo da proibição contagia a massa desde o instante do seu nascimento e continua sendo, enquanto ela existir, sua característica principal. Poderíamos portanto falar também de unia massa negativa. A resistência é o elemento que a caracteriza; a proibição representa um limite e um dique; ninguém pode cruzar a fronteira, ninguém pode romper este dique. Quem cede e desobedece à proibição é repudiado pelos demais. Nos nossos tempos o melhor exemplo de massa negativa ou de proibição é a greve. Os trabalhadores estão habituados a desempenhar seu trabalho regularmente, em horas determinadas. Eles realizam tarefas dos mais diversos tipos; um faz isto, outro faz algo completamente diferente. Entretanto num mesmo horário todos se apresentam e num mesmo horário todos abandonam o lugar de trabalho. Eles são iguais em função desse momento comum de apresentar-se e de retirar-se. A maioria deles realiza trabalhos manuais. Também estão próximos num outro ponto: a remuneração do seu trabalho. No 58

entanto, segundo seu rendimento, os salários são distintos. Sua igualdade certamente não é muito profunda, e não basta para provocar a formação da massa. Porém, quando se chega a uma greve, os trabalhadores se tornam iguais de uma maneira Mais unificadora: na negativa de continuar trabalhando. A proibição do trabalho gera uma atitude aguda e resistente. O momento da parada é um .grande momento, glorificado em todos os hinos dos trabalhadores. Para isso contribui em grande parte o sentimento de alívio com que é iniciada a greve entre os trabalhadores. Sua igualdade fictícia, da qual tanto se fala mas que na verdade não vai além da utilização de suas mãos, torna-se real. Enquanto trabalhavam tinham que fazer coisas dos tipos mais variados e tudo lhes era prescrito. Quando suspendem o trabalho, todos fazem a mesma coisa. É como se todos deixassem cair os braços no mesmo instante, como se agora todos tivessem de empregar suas forças em não voltar a levantá-los, indiferentes à fome que possam sofrer seus familiares. A suspensão do trabalho iguala os trabalhadores. Comparada com o efeito deste instante, sua reivindicação concreta tem pouco peso. Pode ser que o objetivo da greve seja um aumento salarial e não resta a menor dúvida de que em função deste objetivo eles se sintam unidos. Porém somente isso não bastaria para que formassem uma massa. Os braços que caem têm um efeito contagioso sobre os outros braços. O que eles não fazem comunica-se à sociedade toda, A greve se expande por "simpatia" e impede que outros, que inicialmente não pensavam numa interrupção, continuem desempenhando sua tarefa normal. 0 sentido da greve é que ninguém deve fazer coisa alguma enquanto os trabalhadores insistirem em ficar parados; e quanto maior for o resultado alcançado por esta intenção, tanto maiores são as probabilidades de que eles vençam com a greve. Dentro da própria greve é importante que cada qual se atenha à proibição. Chega-se espontaneamente à criação de uma organização a partir do interior da própria massa. Ela tem a função de um estado que nasce com plena consciência de sua existência fugaz, e que é regido apenas por um punhado de leis; estas, no entanto, são respeitadas da maneira mais rigorosa possível. Piquetes vigiam os acessos ao lócal de onde partiu a ação: o próprio lugar de trabalho passa a ser um terreno proibido. A proibição que pesa sobre os trabalhadores modifica totalmente suas vidas diárias e lhes confere uma dignidade 59

especial. A responsabilidade que cada um tem em relação à greve faz com que esta se torne um bem comum. É neste sentido que a responsabilidade é protegida e considerada num sentido mais elevado. No seu vazio e no seu silêncio existe algo de sacrossanto. Qualquer pessoa que se aproxime deve ser examinada quanto às suas convicções. Quem aparecer com intenções profanas, quem quiser trabalhar, é considerado inimigo ou traidor. A organização se encarrega de uma distribuição justa de víveres ou de dinheiro. O disponível deve durar o mais possível. É importante que cada qual receba quantidades idênticas. O mais forte nem pensará em receber mais; até mesmo o avarento se dá por satisfeito. Como geralmente existe multo pouco para cada um, e como a distribuição é feita de maneira eqüitativa, já que é feita em público, este tipo de distribuição contribui ainda mais para o orgulho que a massa sente pela sua igualdade. Existe algo de muito sério e respeitável em torno dessa organização. Não se pode deixar de pensar no sentido da responsabilidade e na dignidade de uma formação deste tipo, surgida espontaneamente de seu próprio meio, quando se fala da selvageria e do prazer destrutivo da massa. Um estudo da massa de proibição é indispensável pelo fato de mostrar aspectos muito característicos e até mesmo únicos. Enquanto ela permanece fiel à sua essência, consegue evitar qualquer destruição. É verdade, sem dúvida, que não é fácil mantê-la neste estágio. Quando as coisas não correm bem e a carência alcança proporções difíceis de suportar, e principalmente quando se sente atacada ou sitiada, a massa negativa tende a converter-se numa massa positiva ou ativa. Após um certo tempo é possível que os grevistas, que de maneira tão repentina proibiram atividade às suas mãos, tenham de fazer um grande esforço para não usá-las de alguma forma. Basta que eles sintam que a unidade de sua resistência está ameaçada para que se mostrem inclinados à destruição, antes de mais nada à destruição na esfera das atividades às quais estavam acostumados. É justamente aqui que começa a tarefa mais importante da organização; ela tem de manter puro o caráter da massa de proibição, e impedir toda e qualquer ação individual positiva. Da mesma forma ela deve reconhecer quando chega o momento de levantar a proibição à qual a massa deve sua existência. Quando sua visão corresponde ao sentimento da massa, ao levantar a proibição ela deve determinar sua própria dissolução. 60

Massas de inversão "Meu querido, meu bom amigo, os lobos sempre comeram os cordeiros; será que desta vez os cordeiros comerão os lobos?" Esta frase encontra-se num carta que Madame Jullien escreveu a seu filho durante a Revolução Francesa. Ela contém, reduzida a uma fórmula concisa, a essência da inversão. Até agora alguns poucos lobos subjugaram muitos cordeiros. Chegou o momento de os muitos cordeiros se voltarem contra os poucos lobos. Sabe-se que os cordeiros não são carnívoros. Porém o que chama a atenção nesta frase está justamente na sua aparente falta de sentido. As revoluções são os tempos típicos da inversão. Os que durante tanto tempo permaneceram indefesos repentinamente começam a mostrar os dentes. Seu número deve compensar o que lhes falta em experiência e maldade. A inversão pressupõe uma sociedade estratificada. A limitação de certas classes entre si, possuindo umas mais direitos que as outras, deve ter existido durante bastante tempo, deve ter exercido suas influências na vida cotidiana dos homens durante muitos anos, antes que surja a necessidade da inversão. O grupo superior tinha o direito de dar ordens ao inferior, seja por ter chegado ao país por conquista colocando-se acima de seus habitantes, seja porque a estratificação ocorreu a partir de acontecimentos no interior do próprio povo. Toda ordem deixa nos que são forçados a obedecer a ela um doloroso espinho. Quanto à natureza destes espinhos, que são indestrutíveis, muita coisa será dita mais adiante. Homens que estão constantemente recebendo ordens e que se sentem repletos destes espinhos possuem um forte impulso para se livrar dessa situação. Esta liberação pode ser alcançada de duas maneiras. Podem transmitir para outros as ordens que foram recebidas de cima; para isso é necessário que haja inferiores que estejam dispostos a receber suas ordens. Mas também podem devolver a seus superiores tudo o que durante muito tempo suportaram e sofreram por parte deles. Um indivíduo, fraco e indefeso, terá pouquíssimas ocasiões de conseguir esta oportunidade. Mas quando muitos se encontram numa massa, pode acontecer o que lhes estava vedado num plano individual. Juntos podem voltar-se contra aqueles que até então lhes davam ordens. A situação revolucionária pode ser considerada como o estado clássico de tal inversão. E a massa cuja descarga consiste principalmente numa liberação conjunta dos "espinhos-ordens" deve ser designada como massa de inversão. 61

A Queda da Bastilha é tida como o princípio da Revolução Francesa, que na verdade tinha começado antes com um banho de sangue entre coelhos. Em maio de 1789 os Estados Gerais se reuniram em Versalhes. Deliberaram a abolição dos direitos feudais, entre os quais se contava o direito de caça da nobreza. No dia 10 de junho, um mês antes da Queda da Bastilha, Camille Desmoulins, que participava como delegado das reuniões, informa a seu pai numa carta: "Os bretões estão pondo em prática alguns artigos dos seus cadernos de reivindicações. Matam pombas e animais silvestres. Cinqüenta jovens participam aqui na região de uma devastação sem precedentes entre lebres e coelhos. Dizem que caçam à vista dos guardas de quatro a cinco mil animais na planície de Saint Germain". Os cordeiros, antes de enfrentar os lobos, voltam-se contra as lebres. Antes da inversão, que é dirigida contra os próprios superiores, as pessoas maltratam os que estão mais abaixo, os animais de caça. O acontecimento propriamente dito ocorre, portanto, no día da Bastilha. A cidade toda se abastece de armas. O levante dirige-se contra a justiça real, simbolizada pelo edifício atacado e tomado. São libertados os presos que podem então incorporar-se à massa. O governador responsável pela defesa da Bastilha e seus ajudantes são executados. Mas também ladrões são enforcados nos postes. A Bastilha é arrasada e não fica pedra sobre pedra. A justiça nos seus dois aspectos principais — como sentença de morte e como indulto -- passa às mãos do povo. A inversão, momentaneamente, consumou-se. Massas desse tipo formam-se nas mais diversas circunstâncias: podem ser levantes de escravos contra seus senhores, de soldados contra seus oficiais, de gente de cor contra os brancos que estão instalados em seu meio. Trata-se sempre de um grupo de pessoas que durante muito tempo estiveram sob o domínio de outros. Os insurgentes atuam sempre a partir de seus espinhos acumulados e sempre, portanto, tiveram que esperar bastante antes de poderem começar a agir. Entretanto, grande parte do que pode ser observado na superfície das revoluções desenvolve-se, sem dúvida alguma, entre massas de perseguição. A caça é feita contra homens individuais; quando eles são alcançados, são mortos em conjunto por todos, sob forma de tribunal, ou até mesmo sem julgamento. Porém a revolução nunca consiste nisto. As massas de perseguição, que atingem rapidamente seu fim natural, nunca são suficientes. A inversão uma vez iniciada segue sempre em frente. Cada um procura chegar a uma situação na qual seja 62

possível libertar-se do seu espinho. A massa de inversão é um processo que ataca toda uma sociedade e, mesmo tendo êxito imediato a princípio, somente chega ao final de maneira lenta e difícil. A massa de perseguição existente na superfície é uma condição de processo rápido. A inversão lentamente começa a aparecer a partir do que existe de mais profundo. Mas a inversão pode ser ainda muito mais lenta: ela pode ser uma promessa de glória. "Os últimos serão os primeiros". Entre as duas situações encontra-se a morte. No outro mundo as pessoas tornarão a viver. Quem foi o mais pobre aqui e nada fez de mal, valerá muito mais no outro mundo. Ele continua existindo como ser novo em melhor situação. Ao crente se promete a libertação de seus problemas. Entretanto, nada se diz a respeito das circunstâncias mais precisas desta libertação; e mesmo que mais tarde todos estejam juntos no além, não se faz propriamente uma referência à massa como substrato de uma inversão. No centro deste tipo de promessa existe a idéia da ressurreição. Casos de ressurreição realizados por Cristo neste mundo são relatados nos Evangelhos. Os pregadores dos célebres Revivais dos países anglo-saxões utilizavam o efeito de morte e ressurreição de muitas maneiras. Os pecadores reunidos eram ameaçados por eles com os mais espantosos castigos infernais e caíam num estado de indescritível temor. Viam um enorme lago de fogo e enxofre diante deles e a mão do Todo-poderoso prestes a lançá-los no terrível abismo. Conta-se a respeito de um destes pregadores que a violência de sua oratória era aumentada por suas repugnantes expressões faciais e por sua voz trovejante. As pessoas viajavam 60, 80, 150 km para poder ouvir esses pregadores. Os homens traziam consigo suas famílias em carroças cobertas e vinham abastecidos de víveres e cobertores para vários dias. Por volta do ano 1800, uma parte do Estado de Kentucky caiu num transe febril por causa desse tipo de assembléias. As reuniões eram realizadas ao ar livre, pois não havia edifícios naquela época capazes de abrigar estas enormes massas. Vinte mil pessoas se reuniram em agosto de 1801 no Meeting de Cane Ridge. Mais de cem anos depois as lembranças deste acontecimento ainda se encontravam vivas no Kentucky. Os espectadores eram aterrorizados pelos pregadores até o ponto de caírem por terra e lá permanecerem imóveis como mortos. Eles eram ameaçados com as ordens de Deus. Por causa destas ordens eles se precipitavam na fuga, buscando a salvação numa espécie de morte aparente. Esta era a inten63

ção consciente e declarada do pregador, ele queria "derrubá-los". Tudo ocorria como num campo de batalha; à direita e à esquerda caíam no chão filas inteiras de pessoas. Os próprios pregadores faziam a comparação com o campo de batalha. Para a inversão moral que queriam provocar, eles achavam muito apropriado fazer alusão a esta situação extrema. O êxito da pregação era medido pelo número de "derrubados". Uma testemunha ocular, que realizou uma contabilidade exata, informa que no transcorrer do Meeting de vários dias, cerca de três mil pessoas caíram inertes ao chão, ou seja, quase a sexta parte de todos os presentes. Os que caíam eram transportados a uma sala de reuniões vizinha. Todo o tempo metade do assoalho estava coberto por homens prostrados. Muitos ficavam imóveis durante horas, incapazes de falar ou de se movimentar. Às vezes voltavam a si durante alguns minutos e com gemidos profundos, gritos penetrantes ou orações piedosas davam a entender que continuavam vivos. Alguns ficavam batendo com os calcanhares no chão. Outros gritavam como se estivessem à beira da morte e se agitavam como peixes apanhados numa rede. Alguns ficavam rolando horas a fio no chão. Havia outros que, repentinamente, saltavam sobre os estrados dos oradores ou sobre os bancos e fugiam em direção à floresta gritando: "Perdidos! Perdidos!". Quando os caídos voltavam outra vez a si, eram outros homens. Levantavam-se e exclamavam: "Redenção!". Eles tinham "renascido" e podiam agora dar início a uma vida boa e pura. Tinham deixado para trás sua velha existência de pecadores. Porém a conversão somente era digna de crédito quando precedida por uma espécie de morte. Ocorriam também fenômenos de natureza menos extrema, mas que atuavam no mesmo sentido. E em certa ocasião todas as pessoas concentradas romperam em pranto. Muitos foram acometidos por contrações convulsivas irresistíveis. Alguns, geralmente em grupos de quatro ou cinco, começaram a latir como cachorros. Após alguns anos, quando a excitação adquiriu uma forma mais tranqüila, primeiro alguns poucos e depois toda a multidão eram possuídos por "riso sagrado". Mas tudo o que ocorria, ocorria na massa. Poucas formas mais excitadas e mais tensas do que essa se tornaram conhecidas. A inversão que enfocamos aqui é diferente da que acontece nas revoluções. Trata-se da relação dos homens para com os mandamentos de Deus. Até agora eles tinham atuado contra ele. Mas agora o terror dos seus castigos desabou sobre eles. 64

Este medo, aumentado pelo pregador de todas as formas possíveis, os leva ao estado de inconsciência. Eles se fingem de mortos como alguns animais que tentam fugir; porém seu terror é tão grande que no decorrer do processo perdem a consciência. Quando voltam a si, declaram-se dispostos a submeter-se às ordens e às proibições divinas. Em troca disso, o temor, exacerbado ao máximo, diminui diante do castigo iminente. Seria possível dizer que este processo é semelhante ao da domesticação: a pessoa se deixa domesticar pelo pregador para servir obedientemente a Deus. Este caso é diametralmente oposto ao de uma revolução como foi interpretada acima. Lá tratava-se de uma libertação de espinhos que iam sendo acumulados progressivamente pela submissão a um senhor. Aqui trata-se de uma submissão nova aos mandamentos de Deus; de uma disposição, portanto, a aceitar voluntariamente todos os espinhos que podem decorrer disso. Comum a ambos os processos existe apenas o fato de uma inversão e do cenário psíquico no qual ela ocorre: num e noutro caso, a massa.

Massas festivas Designarei um quinto tipo de massa como massa festiva. Existem muitos suprimentos num espaço limitado, e todas as pessoas que se movimentam nesta área determinada podem participar da festa. Os produtos, de qualquer espécie, são expostos em grandes porções. Cem leitões estão dispostos em fila. Foram empilhadas montanhas de frutas. Em recipientes enormes preparou-se a bebida predileta que aguarda os consumidores. Existem coisas em quantidades maiores do que as que podem ser consumidas. E para consumi-las chegam grupos cada vez maiores de pessoas. Enquanto houver comida e bebida as pessoas se servem e tem-se a impressão de que os suprimentos jamais chegarão ao fim. Existe um excesso de mulheres para os homens e um excesso de homens para as mulheres. Nada e ninguém ameaça, nada impele à fuga; a vida e o prazer estão assegurados enquanto durar a festa. Muitas proibições e separações foram suspensas; permitem-se e favorecem-se as aproximações pessoais menos usuais. A atmosfera para o indivíduo é de distensão e não de descarga. Não existe uma meta idêntica para todos e que todos devem alcançar unidos. A festa é a meta e ela foi conseguida. A densidade é muito grande; a igualdade, por outro lado, deve-se 65

à situação e à alegria. As pessoas se movem entre as outras e não com as outras. As coísas que estão expostas, que se acumulam visualmente e que se consomem são uma parte essencial da densidade: seu núcleo. Primeiro se reúnem os objetos e somente quando eles estão reunidos as pessoas são convocadas para se reunir em torno deles. Podem transcorrer anos até que haja tudo o que é necessário, e pode ser que grandes privações tenham de ser suportadas para proporcionar esta abundância efêmera. Porém as pessoas vivem pensando neste instante e o evocam conscientes de que é a meta. Pessoas que em geral pouco se vêem foram solenemente convidadas e em grupo. A chegada dos diversos contingentes é acentuada de maneira forte e aumenta consideravelmente a alegria geral. Este estado provoca um sentimento geral de que graças ao prazer comum desta festa será possível garantir numerosas festas posteriores. Com danças rituais e representações dramáticas comemoram-se acontecimentos de natureza idêntica. Sua tradição está incluída no presente desta festa. Pouco importa que se celebrem os fundadores desses eventos, os heróis culturais responsáveis por todas as maravilhas desfrutadas, os antepassados ou, como em sociedades mais frias posteriores, apenas se homenageiem os ricos anfitriões; em qualquer um destes casos parece estar garantida uma futura repetição de ocasiões similares. Uma festa provoca a outra e pela densidade de objetos e de homens multiplica-se a vida.

A massa dupla: homens e mulheres. Vivos e - mortos O mais seguro e freqüentemente o único meio de conservar a massa é a existência de uma outra massa com a qual a primeira se possa comparar. Seja que elas se enfrentem de maneira lúdica e meçam forças, ou seja que se ameacem seriamente, a visão ou a representação intensa da segunda massa não permite que a primeira se desintegre. Enquanto as pernas se mantêm juntas umas às outras, os olhos estão fixos noutros olhos diante deles. Enquanto os braços se movimentam seguindo um ritmo comum, os ouvidos estão atentos ao grito que aguardam do outro lado. Existe uma proximidade física em relação às outras pessoas e age-se com elas numa unidade familiar e natural. Toda 66

curiosidade e expectativa ou todo medo são dirigidos a uma segunda aglomeração de seres humanos que estão separados por uma distância clara. Quando eles são vistos de frente, seu aspecto fascina; quando não são vistos, podem ser ouvidos. Da ação ou da intenção do segundo grupo depende tudo o que se faz. As atitudes contra eles influem sobre as atitudes que temos para com os elementos do nosso próprio grupo. O confronto, que em ambos provoca um alerta especial, modifica a natureza da concentração dentro de cada grupo. Enquanto aquele grupo não se dispersa, este deve continuar unido. A tensão existente entre ambos os grupos se traduz numa pressão sobre os elementos de cada grupo. Quando se trata da tensão de um jogo ritual, a pressão se manifesta com uma espécie de pudor: faz-se tudo o que é possível para não deixar descoberto o nosso lado perante o adversário. Porém, se os adversários ameaçam e se realmente a vida está em perigo, a pressão se transforma na couraça de uma defesa decidida e unida. De qualquer forma, uma massa mantém a vida da outra, o que pressupõe que elas sejam mais ou menos equivalentes em termos de tamanho e de intensidade. Para manter-se como massa não se pode ter um adversário demasiadamente superior, ou pelo menos ele não deve ser considerado como sendo demasiadamente superior. Se se tiver a sensação de inferioridade diante do adversário, a massa procurará a salvação na fuga e, caso esta pareça impossível, a massa se desintegrará em pânico, cada qual fugindo individualmente. Porém não é este o caso que nos interessa aqui. Para a constituição do sistema de duas massas, como também podemos denominá-lo, ambos os lados devem ter um sentimento de equilíbrio de forças. Se quisermos compreender a origem desse sistema, devemos partir de três oposições básicas. Elas aparecem sempre onde existem seres humanos e todas as sociedades conhecidas eram muito conscientes de sua presença. A primeira oposição, e também a mais nítida, é a que existe entre homens e mulheres; a segunda, entre os vivos e os mortos; a terceira, na qual se pensa quase exclusivamente hoje em dia quando se fala de duas massas que se enfrentam, é a oposição entre o amigo e o inimigo. Se considerarmos a primeira divisão, ou seja, a que separa homens e mulheres, não fica imediatamente evidente o que isto poderia ter a ver com a formação de massas especiais. Homens e mulheres vivem juntos em famílias. Existirá possi67

velmente uma divisão de trabalho, mas mal podemos imaginar que os grupos se enfrentem em classes separadas e excitadas. É preciso voltar a relatos de condições de vida mais espontâneas para se obter uma imagem diferente da forma desta oposição. Jean de Léry, jovem huguenote francês, foi testemunha, em 1557, de uma grande festa entre os tupinambás do Brasil. "Recebemos ordens para ficar na casa onde estavam as mulheres. Não sabíamos ainda o que iriam fazer, quando de repente começou um barulho bastante forte na casa onde se encontravam os homens, a uma distância de uns trinta passos de nós e das mulheres. O som se assemelhava a um murmúrio de orações. "Quando as mulheres, cerca de duzentas, ouviram o ruído, levantaram-se aguçando os ouvidos, juntando-se para formar um grupo bem unificado. Logo em seguida, os homens elevaram suas vozes. Percebemos com clareza que todos cantavam em coro, repetindo muitas vezes uma interjeição com a qual pareciam se incentivar: 'He, he, he, he!'. "Ficamos muito espantados quando as mulheres responderam usando a mesma interjeição: 'He, he, he, he!'. Durante mais de um quarto de hora choraram e gritaram de modo tão alto que não sabíamos que expressão mostrar no rosto. "Em meio ao choro, elas saltavam a grandes alturas, os seios tremendo, com espuma em volta da boca. Algumas caíram desmaiadas, como pessoas que sofrem de epilepsia. Tive a impressão de que o diabo entrara nelas, enlouquecendo-as totalmente. Bem perto de onde estávamos era possível ouvir a algazarra das crianças fechadas num recinto separado. Apesar de já estar convivendo há mais de meio ano com os selvagens, e de me ter acostumado bastante a eles, eu me senti — não quero ocultá-lo — cheio de pavor. Perguntei-me como terminaria a situação e desejei estar de volta ao nosso forte." Finalmente a algazarra diminui, as mulheres e as crianças emudecem e Jean de Léry ouve os homens cantando maravilhosamente em coro. O canto é tão bonito que ele não resiste à tentação de querer vê-los. As mulheres procuram retê-lo, pois conhecem a proibição e sabem que não podem ir até onde estão os varões da tribo. No entanto, o francês consegue ir até lá. Nada lhe acontece e juntamente com dois outros compatriotas, ele participa da festa. Homens e mulheres encontram-se portanto estritamente separados, em casas diferentes mas próximas. Os grupos não podem ver-se um ao outro, mas cada qual escuta com grande 68

atenção os ruídos feitos pelo grupo oposto. Eles usam as mesmas exclamações e com elas se exaltam até chegar a um' estado de excitação de massa comum a ambos. As atividades essenciais ocorrem entre os homens. Porém as mulheres compartilham do desenvolvimento da massa. Vale a pena observar que elas, assim que ouvem os primeiros ruídos vindos da casa dos homens, se reúnem num amontoado muito denso, respondendo aos gritos selvagens que ouvem com intensidade cada vez maior. Elas estão repletas de medo por estarem fechadas — não podem sair por motivo algum — e, como não podem saber o que acontece entre os homens, sua excitação vai adotando um colorido especial. Elas saltam no sentido vertical, como se pulassem para fora. As características histéricas que o observador nota são típicas de uma fuga de massa impraticável. A tendência natural das mulheres seria fugir para onde estão os homens, mas como existe uma grave proibição quanto a isso, elas fogem, por assim dizer, permanecendo no mesmo lugar. Notáveis também são as sensações do próprio Jean de Léry. Ele compartilha da excitação das mulheres sem no entanto pertencer realmente à massa que elas formam. Ele é um estranho e é um homem. Em meio a elas, mas delas separado, ele deve temer a possibilidade de se tornar vítima dessa massa. Que a participação das mulheres à sua maneira não é indiferente ao outro grupo salta à vista em outra passagem do relato. Os feiticeiros da tribo, ou "caraíbes", como os chama Jean de Léry, proíbem terminantemente que as mulheres abandonem sua casa. Mas lhes ordenam que ouçam com o máximo de atenção o canto dos homens. A influência das mulheres sobre o grupo dos seus homens pode ser de importância também quando estão muito mais separados entre si. Para o êxito de expedições guerreiras, as mulheres às vezes contribuíram à sua maneira. Em seguida daremos três exemplos — um da Ásia, outro da América e o último da África — de povos que nunca tiveram contato entre si e que com toda certeza jamais se influenciaram mutuamente. Entre os kafirs de Hindukusch, as mulheres representam a dança guerreira, quando seus homens estão ausentes numa expedição. Assim elas enchem de vigor e coragem os guerreiros, e aumentam sua vigilância para que eles não se deixem surpreender pelo inimigo. Entre os jívaros, da América do Sul, as mulheres se reúnem enquanto seus homens estão numa expedição de guerra, noite após noite, numa determinada casa, executando uma 69

dança especial. Elas usam maracás e conchas penduradas no corpo e entoam cantos de esconjuro. Acredita-se que essa dança guerreira das mulheres possui um poder peculiar: ela protege seus pais, maridos e filhos das lanças e das balas do inimigo, e dá também uma segurança efêmera ao inimigo, de modo que este não perceba o perigo até que seja demasiado tarde. Os cantos também servem para impedir que os inimigos se vinguem no caso de uma derrota. Myrary chama-se, em Madagascar, uma antiga dança das mulheres que somente deve ser executada no momento do combate. Quando uma batalha era anunciada, mensageiros especiais avisavam as mulheres. Estas, então, soltavam os cabelos, começavam a dança, estabelecendo desta maneira uma espécie de comunicação com os homens. Quando os alemães marcharam contra Paris em 1914, as mulheres de Tananarive, com a finalidade de proteger os soldados franceses, dançaram a myrary. Apesar da grande distância, isto parece ter tido um efeito prático. No mundo todo existem festas nas quais homens e mulheres dançam em grupos separados, se bem que visíveis um ao outro; geralmente ficam um diante do outro. Não é necessário descrevê-los, pois são universalmente conhecidos. Eu me limitei a relatar apenas alguns casos mais extremos em que a separação, a distância e também a excitação são especialmente notórias. Nestes casos podemos falar de uma massa dupla que está profundamente arraigada; ambas estão reciprocamente predispostas de maneira positiva. A excitação de uma serve para favorecer o bem-estar e a prosperidade da outra. Homens e mulheres pertencem a um povo e dependem uns dos outros. Nas lendas das amazonas, que não se restringem apenas à antiguidade grega e das quais encontramos exemplos entre os nativos da América do Sul, as mulheres se separavam para sempre dos homens e os combatiam nas guerras como se fossem um povo diferente. Mas antes de voltar à análise da guerra, onde a essência perigosa e aparentemente inevitável da massa dupla encontrou sua expressão mais forte, não podemos deixar de lado a antiguíssima oposição entre os vivos e os mortos. Em referência ao que ocorre em torno dos moribundos e dos mortos, é importante a idéia de que no além atua uma quantidade muito maior de espíritos, entre os quais o defunto acabará sendo incluído. O lado dos vivos não entrega de bom grado seus integrantes. Sua perda enfraquece os vivos e quando se trata de um homem na plenitude de suas forças, a morte 70

é considerada como especialmente dolorosa pelos sobreviventes. Eles resistem da melhor maneira que lhes é possível, mas sabem que sua resistência não lhes ajudará muito. A massa existente do outro lado é maior e mais forte e o homem em questão é atraído por ela. Tudo o que é feito neste mundo leva em consideração a noção da superioridade do além. É preciso evitar tudo o que irrite o outro lado, que tem influência sobre os vivos e que pode prejudicá-los em todos os sentidos. Para alguns povos a massa dos mortos é o reservatório de onde surgem as almas dos recém-nascidos. Deles depende que as mulheres tenham filhos. As vezes os espíritos se aproximam sob a forma de nuvem, trazendo a chuva. Eles podem impedir a existência das plantas e dos animais dos quais os vivos se nutrem; eles podem fazer novas vítimas entre os vivos. O próprio morto que somente entregamos após dura resistência, já está disposto a participar do poderoso exército existente do outro lado. Morrer portanto é um combate, um combate entre dois inimigos de força desigual. Os gritos que soltamos, os golpes que infligimos a nós mesmos em meio ao luto e ao desespero talvez também sejam tidos como expressões desse combate. O morto não deve acreditar que foi entregue sem resistência, que os daqui não combateram por ele. Trata-se de um combate muito peculiar. É um combate perdido de antemão, sem que a coragem empregada tenha importância. Desde o princípio foge-se do inimigo, e no fundo o enfrentamos apenas para conservar as aparências com a esperança de derrotá-lo mediante uma escaramuça de retaguarda. O combate é simulado também como um último tributo prestado ao agonizante, que logo em seguida passará a engrossar as fileiras do inimigo. Trata-se de conseguir que o morto que nos abandona fique bem disposto em relação a nós, ou pelo menos que ele não se volte demais contra os vivos, já que isto poderia estimular os inimigos potenciais a novos e perigosos ataques. O essencial neste tipo de combate entre os mortos e os vivos é seu caráter intermitente. Nunca se sabe quando algo voltará a acontecer. É possível que nada ocorra durante muito tempo. Mas ninguém pode confiar nisso. Cada novo golpe chega de improviso e vem das trevas. Não há uma declaração de guerra. Depois de uma única morte, tudo pode terminar. Mas também é possível que o ataque continue, como sucede em tempos de pestes e epidemias. A retirada é contínua e a situação nunca termina completamente. 71

Posteriormente falaremos a respeito da relação dos vivos para com os mortos. Aqui quisemos enfocar apenas o problema de uma massa dupla, cujas partes mantêm uma relação recíproca e perpétua. A terceira forma de massa dupla é a da guerra. É ela que atualmente mais nos interessa. Depois das experiências deste século, daríamos qualquer coisa para compreendê-la e para acabar com ela.

A massa dupla: a guerra Nas guerras o que importa é matar. "As fileiras do inimigo foram dizimadas." Trata-se de matar aos montes. É preciso acabar com a maior quantidade possível de inimigos; a perigosa massa de adversários vivos deve ser transformada num monte de mortos. Vence aquele que mata mais inimigos. Na guerra se enfrenta uma massa crescente de vizinhos. Seu aumento é inquietante em si. Sua ameaça, que já está contida no mero crescimento, desencadeia a própria massa agressiva, que força a guerra. Na sua condução, procura-se ser sempre superior, ou seja, ter sempre em campo um grupo mais numeroso e aproveitar, em todos os sentidos, a fraqueza do adversário antes que ele possa aumentar numericamente. A forma de conduzir a guerra é portanto, em detalhe, a imagem exata do que ocorre no plano geral: pretende-se ser a maior massa de vivos. Do lado adversário deve ficar o monte maior de mortos. Nesta concorrência das massas de crescimento se encontra o motivo de fundo essencial, poderíamos até dizer, o motivo básico mais profundo das guerras. Em vez de mortos também se podem fazer escravos, principalmente mulheres e crianças, que servem exatamente para multiplicar a massa da própria tribo. Porém a guerra nunca é uma verdadeira guerra quando não tem primeiro como objetivo um monte de inimigos mortos. Todas as palavras familiares para designar feitos bélicos, tanto nas línguas antigas como nas novas, expressam exatamente esta relação. Fala-se de "matança" e de "carnificina". Grandes quantidades de sangue tingem os rios de vermelho. O inimigo é abatido no campo até o último homem. Cada um se bate "até o último homem". Não existe perdão. No entanto é importante notar que também o monte de mortos é considerado como unidade e algumas línguas possuem palavras especiais para designá-la. A palavra alemã walstatt contém a antiga raiz wal, que significa "os que ficaram 72

no campo de batalha". Valr, no nórdico antigo, significa os "cadáveres do campo de batalha"; valhall nada mais é do que a "morada dos guerreiros caídos". Por derivação do antigo termo alemão wal formou-se a palavra woul, que significa "derrota". No anglo-saxão, porém, a palavra correspondente, wol, significa "peste, enfermidade contagiosa". Comum a todos estes termos, quer se trate de caídos no campo de batalha, de derrota, de peste ou de enfermidade contagiosa, é a idéia de um monte de mortos. Porém esta idéia não é apenas germânica. Ela é encontrada no mundo inteiro. Numa visão do profeta Jeremias a Terra toda aparece como um enorme campo de cadáveres em decomposição. "Os mortos do Senhor num mesmo tempo ficarão estendidos no solo de uma extremidade da Terra à outra; eles não serão chorados, nem recolhidos, nem enterrados; deverão jazer no campo e transformar-se em esterco." O profeta Maomé tem um sentimento tão intenso em relação aos seus inimigos mortos que se dirige a eles numa espécie de pregação triunfal. Após a batalha de Bedr, o primeiro grande triunfo sobre seus inimigos em Meca, "mandou lançar os inimigos mortos numa cisterna. Somente um deles foi sepultado debaixo de terra e pedras, porque estava tão inchado que não era possível tirar-lhe a couraça; apenas este foi excluído, ficando fora. Quando os demais já tinham sido lançados à cisterna, Maomé se colocou diante dela e exclamou: `Oh, homens da cisterna! A promessa do vosso senhor se cumpriu? A promessa do meu Senhor estava correta!'. E seus companheiros disseram: 'Oh, enviado de Deus! São apenas cadáveres'!. E Maomé replicou: 'Eles sabem, mesmo assim, que a promessa do Senhor se realizou". Desta maneira ele reuniu os que anteriormente não queriam ouvir suas palavras; na cisterna eles estão bem guardados e intimamente unidos. Não conheço exemplo mais penetrante que defina esta classe de vida e o caráter de massa que se atribui ao monte de inimigos mortos. Eles já não ameaçam, porém é possível ameaçá-los. Com eles pode-se exercer impunemente qualquer ato pérfido. Tenham eles sentimento ou não, supõe-se que o tenham para enfatizar o próprio triunfo. Eles estão reunidos na cisterna de tal maneira que nenhum se poderia mover. Caso um deles despertasse, teria apenas mortos ao seu redor. Seus próprios companheiros o privariam do ar necessário para respirar; o mundo ao qual regressaria estaria formado de mortos, de cadáveres das pessoas que lhe eram mais próximas. 73

Entre os povos da Antiguidade, os egípcios não eram considerados grandes guerreiros; a energia do seu Velho Império era canalizada mais para a construção das pirâmides do que para as conquistas. Apesar disso, eles também realizaram expedições bélicas. O relato seguinte foi feito por Une, um juiz superior que seu rei Pepy nomeou comandante contra os beduínos. Em seu túmulo, Une nos dá informações a respeito de sua vida: Este exército foi feliz e despedaçou o país dos beduínos. Este exército foi feliz e destruiu o país dos beduínos. Este exército foi feliz e derrubou suas torres, Este exército foi feliz e cortou suas figueiras e videiras. Este exército foi feliz e incendiou todas as suas aldeias. Este exército foi feliz e matou dezenas de milhares de soldados. Este exército foi feliz e trouxe prisioneiros em grande quantidade. A forte imagem da destruição atinge o ponto culminante no verso que nos informa a respeito das dezenas de milhares de soldados mortos. No decorrer do Novo Império os egípcios realizaram, se bem que não durante muito tempo, uma política sistematicamente agressiva. Ramsés II mantém prolongadas guerras contra os hititas. Num hino de louvor diz-se o seguinte sobre ele: "Ele que pisoteia o país dos hititas, convertendo-o num monte de cadáveres, como Sekhmet quando almeja a peste». Já em sua história mitológica a deusa Sekhmet, com cabeça de leão, havia provocado entre os homens rebeldes um terrível banho de sangue. Ela continua como deusa da guerra e do massacre. O autor do hino de louvor, porém, reúne a imagem do monte de cadáveres dos hititas com a das vítimas de uma epidemia; um relacionamento que para nós não é novidade. Em sua célebre crônica sobre a batalha de Kadesh, travada contra os hititas, Ramsés II narra como foi separado de suas tropas e como, graças a uma força e a uma coragem excepcionais, conseguiu vencer a batalha. Seus soldados "descobriram que todos os povos nos quais penetrei jaziam no próprio sangue com todos os melhores combatentes dos hititas e com os filhos e irmãos de seu soberano. Eu fiz com que o campo de Kadesh se tornasse branco, não sendo possível pisá-lo devido à quantidade". É a quantidade dos cadáveres e 74

de suas vestes brancas que modificam a cor do campo — a frase mais terrível, definitiva, do resultado de uma batalha. Porém este resultado somente pode ser visto pelos combatentes. A batalha foi travada à distância e o povo que permanece na pátria também gostaria de ter algo do monte de inimigos mortos. Usando a imaginação lhes é proporcionada esta satisfação. O filho e sucessor de Ramsés II, Merenptah, nos diz como ganhou uma grande batalha contra os líbios. Todo o acampamento deles, com todos os seus tesouros e com os parentes de seu príncipe, caiu nas mãos dos egípcios; depois do saque, ele foi incendiado; 9.376 prisioneiros completavam o saque. Mas isto ainda não era suficiente; para que o povo tomasse conhecimento do número de mortos, cortaram-se os órgãos sexuais dos caídos; aos circuncidados cortavam-se as mãos, e todo este carregamento foi transportado por burros. Mais tarde, Ramsés III teve de combater novamente os líbios. Neste caso o número de troféus se elevou a 12.535. É evidente que estes carregamentos macabros nada mais são que um monte reduzido dos inimigos mortos, transportável e visível, para o povo todo. Cada um dos caídos contribui com uma parte do seu corpo para o monte global; e é importante que todos os troféus se assemelhem. Outros povos se interessavam mais por cabeças. Os assírios estabeleciam um preço pela cabeça de cada inimigo; cada soldado procurava reunir o maior número possível delas. Num relevo da época do rei Assurbanipal, podemos ver uma cena na qual os escribas estão de pé em suas grandes tendas, anotando a quantidade das cabeças decepadas. Cada soldado traz suas cabeças, joga-as sobre um monte comum, dá o seu nome e o da sua divisão e se retira. Os reis assírios sentiam grande paixão por esses montes de cabeças. Quando estavam junto ao exército, presidiam a entrega dos troféus e entregavam pessoalmente os prêmios correspondentes aos soldados. Quando se encontravam distantes do campo de batalha, ordenavam que o monte de cabeças fosse levado até eles; caso isto fosse impossível, conformavam-se apenas com as cabeças dos comandantes inimigos. O objetivo imediato e muito concreto da guerra é portanto visível. Não é necessário procurar mais ilustrações para isto. A história é pródiga destes exemplos. As vezes tem-se a impressão de que ela se preocupa sobretudo com estes casos e que graças apenas a um esforço contínuo e repetido conseguiu dedicar-se também a outros eventos da humanidade. Se considerarmos ambos os lados combatentes, a guerra 75

oferece a imagem de duas massas duplamente entrelaçadas. Um exército do maior tamanho possível procura produzir o maior monte possível de inimigos mortos. Exatamente o mesmo é válido também para o lado oposto. O entrelaçamento é resultado do fato de que cada participante de uma guerra pertence sempre simultaneamente a duas massas: para o seu próprio povo ele pertence ao número dos guerreiros vivos; para os adversários, pertence a um número de mortos potenciais e desejáveis. Para manter o espírito bélico num nível elevado, é necessário afirmar constantemente a própria força, ou seja, mencionar o número de guerreiros existentes no próprio exército e também a quantidade de inimigos mortos. Desde os tempos mais remotos as crônicas de guerra se caracterizam por esta dupla estatística: tantos soldados nossos participaram, tantos inimigos foram mortos. Existe uma grande tendência para exageros, principalmente no que diz respeito ao número de inimigos mortos. Enquanto durar a guerra jamais se admitirá que o número de inimigos vivos seja excessivo. Mesmo quando se sabe disso, o fato não é comentado; procura-se minimizar este inconveniente mediante a distribuição das tropas em combate. Conforme já observamos, tudo é feito para conseguir, por meio de trocas e de mobilidade constante das divisões do exército, uma superioridade no terreno. Somente depois da guerra é que se mencionam as baixas sofridas. As guerras podem durar muito tempo; elas continuam sendo travadas, mesmo quando já estão perdidas; isso está relacionado com a mais profunda tendência da massa: manter-se em estado agudo, não se desintegrar, continuar sendo massa. Este sentimento às vezes é tão forte que se prefere sucumbir em conjunto a reconhecer a derrota e com ela viver a decomposição da própria massa. Mas como ocorre a formação da massa bélica? O que é que cria num determinado momento esta incrível coesão? O que induz o homem repentinamente a arriscar tanto e tudo? Este processo ainda é tão enigmático que deve ser abordado com bastante cautela. Trata-se de uma empresa surpreendente. Chega-se à conclusão de que se está ameaçado de extermínio físico e proclama-se esta ameaça publicamente diante do mundo todo. "Eu posso ser morto", diz-se, e por dentro pensa-se: "porque quero matar este ou aquele". A ênfase certamente deveria ser dada à segunda frase: "Eu quero matar este ou aquele e por 76

isto eu mesmo posso ser morto". Porém, para começar uma guerra, para que ocorra o seu estalo, para que apareça uma consciência guerreira entre o próprio povo, concorda-se apenas com a primeira parte da frase. Mesmo que sejamos os agressores, sempre tentaremos criar a ficção de estarmos ameaçados. A ameaça consiste no fato de que alguém se arvora no direito de matar outra pessoa. Cada um dos que formam um determinado lado se encontra sob a mesma ameaça: ela iguala todos, a ameaça é dirigida a cada um. A partir de um dado momento, que para todos é o mesmo, ou seja, o da preparação da guerra, pode acontecer a mesma coisa a todos. O extermínio físico do qual as pessoas habitualmente se sentem protegidas pela própria sociedade, justamente por pertencerem a ela, está agora muito próximo. Decretou-se a um só tempo a mais terrível ameaça para todos os que fazem parte de um mesmo povo. Mil pessoas, cada uma das quais foi informada no mesmo instante da proximidade de sua morte, reúnem-se para desviar o perigo. Procuram atrair rapidamente todos os que podem ser afetados pela mesma ameaça; reúnem-se em grande densidade, e para sua defesa submetem-se a uma direção comum de ação. Os afetados de ambos os lados em geral se reúnem bastante depressa, fisicamente ou no plano das idéias e sentimentos. O estouro de uma guerra é, antes de mais nada, o estouro de duas massas. Assim que elas se formam, a suprema intenção de cada uma delas é manter-se como convicção e como ação. Renunciar a elas equivaleria a abandonar a própria vida. A massa guerreira atua sempre como se tudo o que está fora dela fosse morte. E o indivíduo, por mais guerras a que tenha sobrevivido, voltará a sucumbir a esta mesma ilusão numa nova ocasião, sem opor resistência. A morte, que na realidade sempre ameaça cada um, deve ser anunciada como sentença coletiva para que seja enfrentada de forma ativa. Existem, por assim dizer, épocas declaradas de morte nas quais ela se volta contra um determinado grupo escolhido arbitrariamente. "Agora é contra todos os franceses", ou "agora é contra todos os alemães". O entusiasmo com o qual os seres humanos recebem semelhante declaração tem sua raiz na covardia do indivíduo em relação à morte. Ninguém deseja enfrentá-la sozinho. É mais fácil fazê-lo a dois, quando dois inimigos executam a sentença reciprocamente; e já não se trata da mesma morte, quando milhares caminham juntos ao seu encontro. O pior que Pode acontecer aos homens numa guerra é que morram juntos; 77

isto os livra da morte individual, que é o que temem acima de tudo. No entanto eles não acreditam que o pior venha a acontecer. Eles vêem uma possibilidade de desviar e de evitar a sentença coletiva que foi decretada contra eles. Seu pára-mortes é o inimigo; e tudo o que têm a fazer é agir antes dele. É. preciso apenas ser suficientemente rápido e não vacilar um instante sequer diante da morte. O inimigo vem como se tivesse sido chamado, pois foi ele quem pronunciou a sentença, quem disse "morte!" em primeiro lugar. Sobre ele recai o que ele mesmo dirigiu contra os outros. É sempre o inimigo quem começou. Se ele não foi o primeiro a declará-lo, pelo menos já o planejava, e se não o planejava, já tinha pensado nisso; e se ainda não tinha pensado, iria pensar dentro de pouco tempo. A morte como desejo existe por toda parte, e não é preciso ir muito a fundo no ser humano para encontrá-la. A notável e inconfundível alta tensão, característica de todos os acontecimentos bélicos, tem duas causas: querer adiantar-se à massa e atuar na massa. Sem este último elemento não se tem a menor perspectiva de êxito no primeiro. Enquanto durar a guerra é preciso que se permaneça como massa; a guerra chega ao seu fim quando isto não acontece. A perspectiva de certa esperança de vida que se oferece à massa tem contribuído muito para o apreço em que se têm as guerras. Pode-se demonstrar que sua densidade e sua duração nos tempos modernos estão relacionados com as massas duplas, multo maiores, que se vêem tomadas pela convicção bélica.

Cristais de massa Por cristais de massa eu designo pequenos e rígidos grupos de homens, fixamente limitados e de grande constância, que servem para desencadear massas. É importante que esses grupos sejam facilmente controláveis, que possam ser abrangidos de uma só vez. Sua unidade é muito mais importante que seu tamanho. Sua função deve ser familiar. É preciso saber para que existem. Uma dúvida quanto à sua função os privaria de todo sentido; o melhor é que sempre se mantenham iguais a si mesmos. Eles não podem ser confundidos. Um uniforme ou um determinado local de ação é. muito conveniente. O cristal de massa é duradouro. Nunca varia de tamanho. Seus integrantes aprenderam o que fazer ou que convicção devem ter. Eles podem ter funções distribuídas como uma 78

orquestra, mas é importante que se manifestem como uma totalidade. Quem os vê ou os vir deve sentir, antes de mais nada, que eles jamais se desintegrarão. Sua vida fora do cristal não conta. Mesmo quando se trata de uma profissão, como é o caso de um músico de orquestra, nunca se pensa em sua existência privada: eles são a orquestra. Em outros casos eles estão uniformizados e é somente assim que os vemos juntos. Eles se convertem em homens muito diferentes quando deixam o uniforme. Soldados e monges podem ser considerados como a forma mais importante desta espécie. Neste caso, o uniforme expressa que os integrantes do cristal moram juntos; mesmo quando aparecem separados, pensa-se sempre na sólida unidade à qual pertencem: o convento ou a divisão de exército. A clareza, o isolamento e a constância do cristal formam um contraste agudo e inquietante em relação aos agitados fenômenos da própria massa. O processo de crescimento rápido e controlado e a ameaça de desintegração, que confere à massa sua inquietude particular, não estão ativos dentro do cristal. Mesmo nos momentos de maior agitação, ele sempre se destaca da massa. Qualquer que seja a massa à qual dê origem, e por mais que pareça misturar-se com ela, jamais perderá totalmente o sentimento de sua singularidade, e após a desintegração da massa voltará a reunir-se imediatamente. A massa fechada não se distingue do cristal apenas por sua maior magnitude, mas também por possuir um sentimento mais espontâneo de si mesma, e por não poder permitir-se uma séria distribuição de funções. A massa nada tem em comum com o cristal a não ser sua limitação e sua repetição regular. Porém no cristal tudo é limite; todos os que o integram estão constituídos como limite. Para a massa fechada, pelo contrário, coloca-se um limite fora, talvez na forma e no tamanho do edifício em que ela se reúne. Dentro deste limite, o lugar em que cada um de seus integrantes se encontra com os demais permanece fluido e por isso a qualquer momento são possíveis surpresas, atitudes imprevistas e mutáveis. Sempre, também nesta constituição limitada, a massa fechada pode alcançar um grau de densidade e de intensidade que leva ao seu estalo. O cristal de massa, porém, é totalmente estático. Suas atividades estão prefixadas. Ele é muito consciente de cada manifestação ou movimento. Também a permanência histórica do cristal de massa é surpreendente. Apesar de se produzirem formas novas, as antigas continuam sempre existindo de maneira obstinada e paralela. É possível que, por alguns momentos, elas passem a um 79

segundo plano, perdendo algo de sua nitidez e do seu caráter indispensável. As massas que lhe pertenciam talvez tenham sido extintas ou totalmente reprimidas. Como grupos inofensivos, sem qualquer influência sobre o exterior, os cristais continuam vivendo então para si mesmos. Pequenos grupos de comunidades religiosas resistem em países que mudaram de crença. No momento em que se tornam necessários, voltam com segurança, em número proporcional ao das massas que tenham surgido e cujo incitamento e desencadeamento possam ser oportunos. Todos os rígidos grupos "desativados" podem ser reassumidos e reativados. Eles podem voltar a ser utiliza. dos como cristais de massa com pequenas modificações em sua constituição. Praticamente não existe nenhuma grande mudança política que não se lembre de antigos grupos destronados, usando-os, reformando-os com tal intensidade que possam dar a impressão de algo completamente novo e perigosamente ativo. Posteriormente veremos como funcionam os cristais de massa nos seus detalhes. De que maneira eles desencadeiam as massas somente pode ser demonstrado mediante casos concretos. Os cristais são formados de maneira diversa, por isto dão origem a massas muito distintas entre si. No decorrer deste trabalho — de maneira quase imperceptível — entraremos em contato com uma série deles.

Símbolos de massa Símbolos de massa é o nome que dou às unidades coletivas que não estão formadas por seres humanos, mas que no entanto são compreendidas como massas. Unidades deste tipo são o trigo e a floresta, a chuva, o vento, a areia, o mar e o fogo. Cada um destes fenômenos contém em si características essenciais da massa. Mesmo não sendo constituídos por seres humanos, estes fenômenos lembram a massa e a representam em mitos e sonhos, em conversações e em cantos, sempre simbolicamente. Convém separar estes símbolos dos cristais de forma clara e inequívoca. Os cristais de massa se apresentam como um grupo de homens que chamam a atenção' pela sua coesão e pela sua unidade. Os cristais são concebidos e vivem como unidades, mas também são formados por homens que atuam realmente: soldados, monges, toda uma orquestra. Os símbo80

los de massa, pelo contrário, nunca são formados por seres humanos, sendo apenas percebidos como massa. A análise detalhada destes símbolos pode à primeira vista parecer imprópria em relação ao tema. Porém veremos que desta maneira podemos focalizar a massa propriamente dita de uma forma nova e frutífera. Examinando os seus símbolos, lançaremos sobre a massa uma luz nova e não seria inteligente deixar de aproveitar a oportunidade.

O fogo Quanto ao fogo, pode-se dizer de antemão que ele se assemelha em todas as partes: quer seja pequeno ou grande, quer apareça aqui ou lá, quer tenha grande ou pequena duração, para nossa imaginação ele tem algo de igual que independe de suas contingências. A imagem do fogo nos parece uma marca vibrante, inextinguível e determinada. O fogo se propaga, é contagioso e insaciável. A violência com que devasta bosques, estepes e cidades inteiras forma uma de suas características mais impressionantes. Antes do princípio do incêndio uma árvore estava junto de outra árvore, uma casa junto de outra casa, cada qual separada da outra, independente. Não resta a menor dúvida de que o que se encontrava isolado é unido pelo fogo num tempo mínimo. Os objetos isolados e diferenciáveis se fundem com as próprias chamas. Eles se igualam até o ponto de desaparecerem completamente: casas, criaturas, tudo é devastado pelo fogo. Ele é contagioso: a pouca resistência às chamas sempre é algo assombroso. Quanto mais vida tenha alguma coisa, tanto menos pode defender-se do fogo; somente o que existe de mais inanimado — os minerais — consegue resistir ao fogo. Sua célebre falta de misericórdia não conhece limites. Ele quer abranger tudo, alcançar tudo. O fogo pode ocorrer em todos os lugares. Ninguém se surpreende com o fato de ocorrer um incêndio aqui ou ali; existe sempre um potencial de fogo em todos os lados. Este surgir de improviso, porém, é sempre impressionante e será investigado na procura das causas. Como freqüentemente estas causas não podem ser encontradas, isto contribui para o sentimento reverente vinculado à idéia do fogo. Ele possui uma onipresença oculta que pode manifestar-se a qualquer momento e em qualquer lugar. O fogo é múltiplo. Não somente temos consciência de que 81

existe fogo em inúmeros lugares, mas também de que o fogo em si mesmo é múltiplo: fala-se de chamas e de labaredas. Nos Vedas o fogo é designado como "o Agni uno, o múltiplo inflamado". O fogo é destrutivo; ele pode ser combatido e domado; ele se extingue. Ele tem um rival elementar, a água, que o enfrenta sob a forma de rios e de chuvas. Este rival sempre existiu, e com todas as suas diversas qualidades é igual ao fogo. A inimizade entre eles é proverbial, "água e fogo" é a expressão para a inimizade da mais extrema e inconciliável espécie. Nas mais antigas concepções do fim do mundo, sempre é um ou o outro que se torna vencedor. O dilúvio universal faz com que toda a vida pereça na água. A conflagração mundial destrói o mundo pelo fogo. Às vezes aparecem ambos, mutuamente se influenciando, numa mesma mitologia. Mas o homem aprendeu a dominar o fogo na sua existência temporal. Além de conseguir utilizar sempre algum tipo de água contra ele, o homem também mantém o fogo dividido. Em fogões e fornalhas ele é mantido prisioneiro. O homem alimenta o fogo como se alimenta um animal; ele pode causar sua morte por inanição; pode sufocá-lo. E com isto já insinuamos a última propriedade do fogo: ele é tratado como se tivesse vida própria. Ele tem uma vida inquieta e se apaga. Quando o asfixiamos completamente aqui, ele mesmo assim continua vivendo em outros lugares. Se reunirmos estas características isoladas do fogo, teremos uma imagem surpreendente: ele é igual a si mesmo em toda parte; propaga-se com rapidez; é contagioso e insaciável; pode originar-se em qualquer lugar e o faz rapidamente; é múltiplo; é destrutivo; tem um inimigo; apaga-se; age como se vivesse, e por este motivo é tratado como se trata um ser vivo. Todas estas propriedades são também propriedades da massa; dificilmente seria possível fazer um resumo mais exato dos seus atributos. Voltemos ao que já foi dito: a massa, em todas as suas partes, é igual a si mesma; nas épocas e nas culturas mais diversas, entre homens de todas as procedências, idiomas e tipos de educação ela é essencialmente a mesma. Nos lugares onde aparece, ela se amplia com maior violência. Poucos conseguem resistir ao seu contágio, ela quer continuar crescendo sempre, a partir do seu interior, ela não tem limites fixados de antemão; ela pode constituir-se em todos os lugares onde haja homens reunidos e sua espontaneidade e rapidez são inquietantes. Ela é múltipla, mas forma uma unidade; é constituída por um sem-número de seres humanos e nunca se sabe exatamente quantos são eles. A massa pode ser destrutiva. 82

Ela pode ser contida e domada. Ela prbcura um inimigo. Ela se apaga tão rapidamente como aparece, freqüentemente de modo igualmente inexplicável; e, obviamente, possui a sua própria vida inquieta e violenta. Estas semelhanças entre o fogo e a massa levaram à sua íntima interpenetração. Ambos se confundem, podendo aquele assumir o lugar desta. Entre os símbolos de massa que sempre estiveram ativos na história da humanidade, o fogo é um dos mais importantes e mutáveis. É necessário abordar algumas dessas relações entre fogo e massa. Entre as características mais perigosas da massa, que sempre são destacadas, a que mais chama a atenção é a tendência a incêndios criminosos. Esta tendência tem uma importante raiz no incêndio de florestas. A floresta, que também é um antiguíssimo símbolo de massa, muitas vezes é incendiada pelos seres humanos com a finalidade de criar espaço para que eles possam se estabelecer. Existem bons motivos para se supor que os homens aprenderam a manipular o fogo pelos incêndios das florestas. Entre floresta e fogo existe uma relação préhistórica. Os campos de cultivo se localizam sempre onde antes existiam florestas e quando surge a necessidade de os campos serem ampliados, é sempre preciso destruir novas partes da floresta. Os animais fogem da floresta incendiada. O terror de massa é a reação natural, e seria possível até mesmo dizer a reação eterna, dos animais perante os grandes incêndios; em outros tempos, esta também foi a reação do homem. Este, no entanto, apoderou-se do fogo e agora o tem em suas mãos, não precisando temê-lo. Ao antigo temor o ser humano sobrepôs seu novo poder e ambos, fogo e homem, formam agora uma surpreendente aliança. A massa, que antes punha-se a correr diante do fogo, agora se sente intensamente atraída por ele. Conhece-se o efeito mágico que os incêndios têm sobre os homens de todas as categorias. Eles não se conformam com os fogões e fornalhas que cada grupo estabelecido mantém para seu uso privado; querem um fogo visível a grande distância, junto ao qual todos se possam reunir. Uma curiosa inversão do velho temor de massa lhes ordena que se precipitem ao local do incêndio somente quando ele for suficientemente grande; lá eles sentem algo do magnífico calor que antes os unia. Em tempos de paz, muitas vezes eles são obrigados a abrir mão por longos Períodos desta vivência. Faz parte dos mais fortes instintos da 83

massa, assim que ela se forma, criar o fogo para si mesma, e utilizar sua atração para o próprio crescimento. Todo homem leva dentro de seu bolso um pequeno vestígio destas importantes relações antigas: a caixa de fósforos. Ela representa, de maneira uniforme, uma floresta de troncos isolados, cada qual equipado com uma cabeça inflamável. Seria possível acender vários deles, ou até todos, provocando assim artificialmente um incêndio de floresta. O indivíduo pode sentir-se tentado a fazer isto, mas geralmente não o faz, porque a expressão minúscula deste ato estaria totalmente privada de seu antigo esplendor. Porém a atração que o fogo exerce pode ir ainda mais longe. Os homens não se limitam a correr até ele e rodeá-lo; existem antigos costumes com os quais eles expressam sua identificação com o fogo. Um dos mais belos exemplos disto é a famosa dança do fogo dos índios navajos. "Os navajos do Novo México preparam uma gigantesca fogueira em torno da qual dançam a noite toda. No período entre o pôr-do-sol e o amanhecer são representados onze atos determinados. Assim que o disco do sol desaparece no horizonte, os organizadores entram dançando freneticamente na clareira. Eles estão quase nus e com os corpos pintados; deixam seus longos cabelos soltos para que se movimentem livremente. Trazem consigo bastões de dança enfeitados com plumas na extremidade; dando saltos selvagens, eles se aproximam das altas labaredas. Estes índios dançam em atitude desajeitada, meio agachados, meio rastejando. Na verdade, o fogo é tão quente que os atores precisam rastejar no chão para poder se aproximar dele. Eles querem incendiar as plumas que enfeitam as extremidades de seus bastões. Um disco, que representa o sol, é erguido e em torno dele tem prosseguimento a dança selvagem. Cada vez que o disco desce e torna a ser erguido, tem início uma nova dança. Quando já está quase amanhecendo, as cerimônias sagradas se aproximam do final. Homens pintados de branco avançam e acendem pedaços de cascas nas últimas brasas da fogueira; depois voltam a saltar numa caçada selvagem em torno do fogo, jogando fagulhas, fumaça e chamas sobre todo o corpo. Eles chegam a saltar até mesmo dentro das brasas, confiando na argila branca que os deve proteger de queimaduras mais sérias." Eles dançam no fogo, eles se convertem em fogo. Seus movimentos são os das chamas. O que eles seguram em suas mãos e incendeiam deve causar a impressão de que eles mesmos estão ardendo. No final dispersam as últimas fagulhas das 84

cinzas ardentes até que o sol se levante recebendo deles o fogo, o mesmo sol do qual haviam recebido o fogo no anoitecer do dia anterior. Aqui, portanto, o fogo ainda é uma massa viva. Assim como outros índios durante a dança se transformam em búfalos, estes assumem o fogo. Posteriormente o fogo vivo no qual se transformam os navajos converte-se num simples símbolo de massa. É possível encontrar para cada símbolo de massa que se reconhece a massa concreta da qual ele se alimenta. Aqui não nos referimos apenas a hipóteses. A tendência do homem a converter-se em fogo, a reativar este antigo símbolo, também é forte em culturas posteriores mais complexas. Cidades sitiadas que já não têm mais esperança de socorro freqüentemente se incendeiam. Reis com toda a sua corte, encurralados e sem esperança de salvação, incineram-se. Exemplos disso encontramos tanto nas antigas culturas do Mediterrâneo como entre os hindus e os chineses. A Idade Média, que acredita no fogo do inferno, se contenta com hereges isolados, que ardem em lugar do público todo reunido; este, por assim dizer, envia seus representantes ao inferno, certificando-se de que ardem também na realidade. Uma análise do significado que o fogo assumiu nas diversas religiões seria do maior interesse. Porém esta análise somente teria valor se fosse realmente exaustiva e por esse motivo deve ficar para mais tarde. Entretanto parece-nos válido mencionar já aqui o significado que os atos incendiários impulsivos têm para o indivíduo que os comete; o indivíduo que está realmente isolado e que não pertence ao círculo de uma convicção religiosa ou política. Kriibelin narra o caso de uma mulher solitária, de meiaidade, que em sua vida provocara cerca de vinte incêndios, os primeiros ainda em sua infância. Ela é acusada seis vezes de incêndio intencional e passa mais de vinte e quatro anos numa penitenciária. "Se ao menos isto ou aquilo se queimasse", diz ela em sua idéia fixa. Principalmente quando tem fósforos na bolsa, ela se sente impulsionada por um ímpeto invisível. A única coisa que lhe importa é contemplar o fogo. Mas ela também gosta de confessar seus feitos e o faz com muitos detalhes. Desde muito jovem ela deve ter experimentado o valor do fogo como meio de atrair as pessoas. Provavelmente a aglomeração em torno de um incêndio foi sua primeira impressão de massa. O fogo pôde então facilmente ocupar o lugar da própria massa. Ela é impelida em direção de sua culpa e a 85

assumir esta culpa pela sensação de que todos olham para ela. É isto que ela deseja e através disto ela própria se transforma no fogo que é contemplado. Sua relação com o ato incendiário tem portanto um caráter duplo. Por um lado ela quer ser parte da massa, que observa fixamente o fogo. Ele está nos olhos de todos ao mesmo tempo, reunindo estes olhos através de uma violenta compulsão. Ela não tem a menor oportunidade de ingressar numa massa, e menos ainda durante os intermináveis períodos de cárcere, por causa de seus miseráveis antecedentes que a isolaram desde muito pequena. Depois, quando este primeiro incidente do incêndio se encerra e a massa ameaça escapar das mãos dela, ela a mantém em vida, transformando-se ela mesma em fogo. Isto acontece da maneira mais simples: ela confessa o ato incendiário. Quanto mais detalhada seja sua confissão, quanto mais ela tenha a dizer a este respeito, tanto maior será o período durante o qual ela é observada com atenção, justamente porque ela mesma é o fogo. Casos deste tipo não são tão raros como se pensa. Mesmo não sendo sempre tão extremos, eles nos fornecem, do ponto de vista do indivíduo isolado, a prova irrefutável da relação existente entre a massa e o fogo. O mar O mar é múltiplo, está em movimento e possui uma densa coesão. O múltiplo nele são as ondas que o constituem. Elas são incontáveis; qualquer pessoa que esteja no mar, encontra-se rodeada de ondas por todos os lados. O caráter uniforme do seu movimento não exclui diferenças de tamanho entre elas. Elas jamais estão numa calma total. O vento, que vem de fora, determina sua direção; as ondas rolam ora num, ora noutro sentido, seguindo as ordens dele. A densa coesão das ondas expressa também o que sentem os homens que fazem parte de uma massa: flexibilidade em relação aos demais, como se um determinado indivíduo fosse os demais, como se já não fosse mais limitado por si mesmo, como se se tratasse de uma dependência da qual não existe maneira de escapar e, justamente, em contrapartida, aparece uma sensação de força, um ímpeto que é dado por todos em conjunto. A índole peculiar desta coesão entre os homens é desconhecida. O mar também não consegue explicá-la, expressando-a porém muito bem. No entanto, além das ondas, existe outro múltiplo que 86

pertence ao mar: são as gotas. Elas estão isoladas, são apenas gotas; quando não estão coesas entre si, seu pequeno tamanho e seu isolamento têm algo de impotência. São quase nada e despertam um sentimento de compaixão no observador. Basta mergulhar a mão na água, erguê-la e observar as gotas que, fracas, escorrem dela. A compaixão que se sente por elas pode ser comparada à que é provocada em nós pelos homens sem esperança, pelos marginalizados. As gotas somente voltam a contar quando não podem mais ser contadas, quando voltam a formar um amálgama com o todo. O mar possui uma voz, que é extremamente mutável e que se escuta sempre. Trata-se de uma voz que soa como mil vozes. Muitas nuanças podem ser ouvidas nela: paciência, dor, cólera. Porém, o que mais impressiona nesta voz é a sua tenacidade. O mar nunca adormece. Ele é ouvido o tempo todo: de noite, de dia, durante anos, decênios; sabe-se que ele já podia ser ouvido há séculos atrás. Tanto no seu ímpeto como na sua rebeldia, ele lembra uma única criatura que compartilha destas características com ele: a massa. Porém ele tem a constância que falta a esta. Ele não desaparece de tempos em tempos; ele está sempre presente. O desejo máximo e nunca alcançado da massa, ou seja, o desejo de perdurar, é representado pelo mar como algo já conseguido. O mar engloba tudo e jamais atinge um ponto de saturação. Todos os rios, as correntes fluviais, ªs nuvens e as demais águas da Terra poderiam ser despejados no mar, sem que seu tamanho aumentasse perceptivelmente; ele não se modificaria e teríamos sempre a sensação de que se trata sempre do mesmo mar. Ele é tão grande que pode servir de modelo à massa que deseja tornar-se cada vez maior. A massa gostaria de se tornar grande como o mar, e para atingir isto ela procura atrair quantidades cada vez maiores de homens. Na palavra oceano o mar encontrou algo semelhante à sua mais festiva e solene dignidade. O oceano é universal; ele chega a todas as partes, banha todas as terras; é sobre ele que, nas concepções antigas, flutua a Terra. Se o mar não fosse insaciável, a massa não teria uma imagem para sua própria insaciabilidade. Ela não poderia se conscientizar de maneira tão clara de seu próprio impulso mais profundo e obscuro, a necessidade de atrair números cada vez maiores de componentes. No entanto o oceano, que naturalmente se encontra diante dos olhos da massa, lhe confere um direito mítico à sua indomável aspiração de universalidade. Apesar do mar ser mutável nos seus caprichos, podendo 87

apaziguar e ameaçar, podendo irromper em tormentas, ele está sempre presente. Sabe-se onde ele se encontra; sua localização tem algo de aberto, de descoberto. Ele não nasce repentinamente onde antes não havia coisa alguma. Ele não possui a característica misteriosa e repentina do fogo, que ataca a partir do nada, feito um animal selvagem e que, como tal, pode surgir de qualquer parte. O mar é encontrado apenas nos lugares onde sabemos com certeza que ele está. No entanto não se pode afirmar que ele careça de mistério. Seu mistério não reside na característica do repentino, mas sim no seu conteúdo. A vida da massa, da qual ele está repleto, faz parte tão intrínseca dele como a sua constância. Desta maneira a grandiosidade desta formação é realçada ainda mais pela idéia do seu conteúdo: todos os vegetais e animais que ele contém em quantidades imensas. O mar não tem limites internos e não está dividido em pequenos povos e territórios. Ele tem apenas um idioma, que é o mesmo em todas as partes. Não existe, por assim dizer, homem algum que possa ser excluído dele. Ele é por demais abrangente para que possa corresponder a alguma das massas que conhecemos. Mas ele é o modelo de uma humanidade saciada em si mesma, na qual desemboca toda a vida e que tudo contém. A chuva Em todas as partes e principalmente lá onde é escassa, a chuva, antes de cair, é percebida como unidade. Ela se aproxima em forma de nuvem e primeiro cobre o céu, que escurece antes de chover; tudo fica cinzento. É possível que se possua uma consciência mais unificada daquele instante em que a chuva parece segura que do próprio sucesso, pois freqüentemente podemos desejá-la com grande intensidade, pode transformar-se numa questão vital o fato de chover. Nem sempre é fácil fazer com que isto aconteça, e ajuda-se a situação com feitiços; existem métodos numerosos e muito diversos para atraí-la. A chuva cai sob a forma de muitas gotas. Elas são visíveis e são vistas todas movimentando-se na mesma direção. Em todos os idiomas diz-se que a chuva cai. A chuva é vista como muitos traços paralelos; devido ao número das gotas que caem, acentua-se a unidade de sua direção. Não existe direção capaz de causar uma maior impressão ao ser humano do que 88

a direção da queda; todas as demais têm, comparadas com ela, algo de derivado, de secundário. A queda é o que mais se teme desde os tempos mais remotos, e contra o que nos equipamos durante toda a vida. Aprende-se a procurar uma proteção para a queda; fracassar neste sentido a partir de uma certa idade é algo ridículo ou perigoso. A chuva é, ao contrário do ser humano, aquilo que deve cair. Nada cai com tanta freqüência e em tal quantidade quanto a chuva. É possível que o número de gotas retire da queda uma parte de seu peso e de sua dureza. Ouve-se quando elas batem no chão e este é um ruído agradável. Sentimos as gotas na pele e esta sensação é agradável. É possível que não deixe de ser importante o fato de que pelo menos três sentidos participem da vivência da chuva: visão, audição e tato. Todos esses sentidos compreendem a chuva como algo múltiplo. É fácil proteger-se contra ela. Poucas vezes chega a ser realmente ameaçadora e na maior parte das vezes envolve o ser humano de maneira tensa e agradável. Sentimos a queda de todas as gotas como algo uniforme. O paralelismo dos traços, a uniformidade do ruído, a mesma sensação de umidade que cada gota provoca na pele — tudo isso contribui para acentuar ainda mais a impressão de igualdade das gotas. A chuva pode ser mais intensa ou mais leve, sua densidade é variável. O número de suas gotas está sujeito a grandes flutuações. Nunca se espera um aumento cada vez maior; pelo contrário, sabemos que tudo terá um fim e que este fim significa que as gotas irão sumir no solo sem deixar rastro. Como símbolo de massa, a chuva não caracteriza o crescimento frenético e imperturbável que é representado pelo fogo. Ela não tem a constância e apenas ocasionalmente tem a característica inesgotável do mar. A chuva é a massa no instante de sua descarga, e por isso caracteriza também sua desintegração. As nuvens das quais elas se originam desaparecem com a chuva; as gotas caem porque já não podem mais permanecer juntas e não se sabe se elas posteriormente voltarão a se reunir nem como farão isso. O rio O que mais chama a atenção no rio é sua direção. Ele se movimenta entre margens estáticas, nas quais é visível a sua passagem incessante. A ausência de repouso de suas massas de 89

água, que se sucedem de forma ininterrupta enquanto o rio é um rio, o caráter decidido da sua direção geral, mesmo podendo variar em casos isolados, sua decisão de caminhar para o mar, sua incorporação de outros rios menores, tudo isto lhe confere um inegável caráter de massa. Desta forma o rio se transforma também em um de seus símbolos, porém não tanto da massa em si, mas sim das formas singulares de sua manifestação. A limitação da largura, do que não pode aumentar de maneira contínua e repentina, faz com que o rio, como símbolo de massa, tenha sempre algo de provisório. Ele representa as procissões: os homens que observam das calçadas da rua são como as árvores nas margens, o sólido encerra o que é fluido. As manifestações em grandes cidades têm uni caráter semelhante ao do rio. Dos diferentes bairros chegam os afluentes até que se forme a corrente principal propriamente dita. Os rios são principalmente um símbolo para o tempo em que se forma a massa, o tempo em que ela ainda não alcançou o que chegará a ser. Ao rio falta a universalidade do mar e a força de propagação do fogo. Porém, por outro lado, sua direção é levada ao extremo e, como cada vez existe mais água, ele se transforma, por assim dizer, desde o começo, numa direção que parece inesgotável e que talvez seja levada mais a sério em sua origem do que em sua meta. O rio é a massa em sua vaidade, a massa que se exibe. O elemento de exibição não é menos significativo que o de direção. Sem margens não existe rio. A fileira dupla da vegetação é como a dos homens. O rio, poderíamos dizer, possui uma pele que quer ser vista. Todas as formações de caráter fluvial — como procissões e manifestações — mostram a maior parte possível de sua superfície: elas se esticam o mais que podem, exibindo-se ao maior número possível de espectadores. Elas querem ser admiradas ou temidas. Sua meta imediata não é realmente importante, importante é o tamanho do espaço que as separa dos espectadores, o comprimento das ruas pelas quais elas se estendem. Quanto à densidade, não existe um caráter decisivo entre os participantes. Ele é maior entre os espectadores e se estabelece uma densidade especial entre os participantes e os espectadores. Existe algo de aproximação amorosa entre duas criaturas muito compridas, uma das quais mantém a outra prisioneira, permitindo que ela deslize lenta e ternamente ao longo de si própria. O crescimento ocorre a partir da vertente, porém através de afluentes estritamente predeterminados no espaço. A igualdade das gotas é subentendida no rio. Porém ele 90

contém muitos elementos diversos em si, e o que transporta é mais importante e determinante para seu aspecto do que o que está incluído no mar e que desaparece debaixo de sua enorme superfície. Unindo todos esses fatores, poderíamos considerar o rio como símbolo de massa apenas limitadamente. Ele o é de maneira muito diferente da do fogo, do mar, da floresta ou do trigo. Ele é símbolo de um estado ainda dominado, antes do estalo e antes da descarga; representa mais sua ameaça do que sua realidade: é o símbolo da massa lenta. A floresta A floresta está acima dos seres humanos. Ela pode ser espessa e com uma abundante vegetação rasteira; é possível que seja difícil penetrar nela, e mais difícil ainda avançar dentro dela. Porém sua densidade propriamente dita, aquilo que realmente a constitui, sua folhagem, está em cima. Ë a folhagem de cada um dos troncos, que se entrelaça e forma um teto contínuo; é a folhagem que retém quase toda a luz lançando uma sombra extensa e conjunta. O homem, vertical como uma árvore, alinha-se entre as demais árvores. Porém elas são muito mais altas do que ele e, para vê-las, ele precisa levantar os olhos. Não existe outro fenômeno natural no seu ambiente que esteja acima dele de maneira tão permanente e ao mesmo tempo tão próxima e tão múltipla. As nuvens passam, a chuva some e as estrelas estão distantes. De todos esses fenômenos, que em sua multiplicidade atuam de cima para baixo, nenhum possui a proximidade permanente da floresta. A altura das árvores é alcançável. É possível subir nelas para colher os frutos; quando isso acontece, é possível dizer que já se viveu lá em cima. A direção que atrai os olhos do homem é a de sua própria transformação: a floresta cresce constántemente de baixo para cima. A igualdade dos troncos é aproximada, sendo também, na verdade, uma igualdade de direção. Quem está na floresta sente-se protegido; ele não está na parte superior onde a floresta continua crescendo, e também não está no local de sua maior densidade. Justamente esta densidade é sua proteção e a proteção está lá em cima. E assim a floresta se converteu num modelo de recolhimento. Ela obriga o homem a levantar os olhos, agradecido pela sua proteção superior, O levantar dos olhos ao longo de tantos troncos se transforma num olhar 91

mais elevado. A floresta antecipa o sentimento de igreja, o de estar diante de Deus entre colunas e pilastras. Sua expressão mais regular, e portanto mais perfeita, é a curvatura da cúpula, todos os troncos entrelaçados formando uma unidade suprema e inseparável. Outro e não menos importante aspecto da floresta é a sua imobilidade múltipla. Cada um dos troncos está enraizado e não cede diante de ameaça alguma. Sua resistência é absoluta, nunca cedendo seu lugar. O tronco pode ser cortado, mas não movido. Assim, a floresta se converteu num símbolo do exército: um exército em formação, um exército que não foge em circunstância alguma; que se deixa despedaçar até o último homem antes de ceder um único palmo de terreno. O trigo Sob mais de um aspecto o trigo é uma floresta reduzida. Ele cresce onde antes estava a floresta, mesmo nunca chegando a alcançar a altura dela. O trigal pertence inteiramente ao ho mem e é uma obra dele. É ele quem o semeia, é ele quem o ceifa; nos antigos rituais, o homem realiza cerimônias para que ele cresça melhor. Ele é flexível como os pastos, exposto à influência de todos os ventos. Todos os talos cedem juntos ao impulso do vento, o trigal todo se inclina de uma só vez. Durante tempestades ele é abatido inteiramente e permanece caído durante longo espaço de tempo. No entanto ele possui a misteriosa capacidade de voltar a se erguer outra vez e, desde que não tenha sido seriamente afetado, não demora muito para retomar sua antiga posição. As espigas crescidas são como cabeças pesadas; elas se inclinam afirmativas em nossa direção ou se viram, dependendo de onde sopre o vento. Normalmente a altura do trigo é inferior à do ser humano. No entanto, de qualquer forma, ele, o homem, continua sendo senhor do trigo, mesmo quando este cresce acima de sua cabeça. O trigo é cortado em conjunto, da mesma forma que cresceu e foi semeado em conjunto. Até os restos que o ser humano não aproveita para sí mesmo permanecem sempre juntos. Mas muito mais coletivo é o destino do trigo que é semeado, cortado e colhido, batido e armazenado. Enquanto cresce, ele permanece enraizado; não pode se afastar dos outros talos. O que acontece, acontece a todos. Ele possui uma grande densidade, e sua altura não é muito diferente da dos homens; no seu conjunto, ele sempre tem mais ou menos a mesma apa92

rência. Seu ritmo, quando é agitado pelo vento, é semelhante ao de uma simples dança. A igualdade do homem perante a morte é vista com agrado na imagem do trigo. No entanto, como este cai sempre em conjunto, ele provoca a imagem de um tipo muito preciso de morte: a morte coletiva na batalha, quando são exterminadas fileiras inteiras de soldados; o trigal é como o campo de batalha. A flexibilidade se converte em submissão; ela tem algo de uma reunião de súditos fiéis que jamais seriam capazes de conceber um pensamento de resistência. Levemente estremecidos pelo sentimento de obediência, receptivos a qualquer ordem, permanecem assim. Quando o inimigo se abate sobre eles, são pisoteados sem piedade. A origem do trigo a partir de um amontoado de sementes é tão importante e característica como os montes de grãos, que são o resultado final. Pouco importa se o resultado da colheita for sete ou cem vezes maior, os montes de grãos que vão sendo armazenados são sempre um múltiplo do monte que lhes deu origem. Crescendo e ficando unido, o trigo se multiplicou. É nesta multiplicação que está a sua bênção.

O vento Sua intensidade varia, e com ela a sua voz. Ele pode gemer ou uivar, pode ser forte ou fraco, e existem poucas notas que ele não possa alcançar. Desta maneira, ele age como algo vivo, mesmo muito tempo depois de outros fenômenos naturais terem perdido sua característica de coisa viva para os seres humanos. Além da voz, o que mais chama a atenção nele é a direção. Para caracterizá-lo, é importante saber de onde sopra. Como estamos inteiramente rodeados pelo ar, os golpes que recebemos do vento são sentidos de uma maneira multo física; sentimos que estamos totalmente dentro do vento, ele tem algo de unificador; na tempestade ele gira tudo o que encontra diante de si. Ele é invisível, mas o movimento que confere às nuvens e às ondas, às folhas e às plantas, dá-lhe uma presença que se faz sentir de múltiplas maneiras. Nos hinos dos Vedas, os deuses da tormenta, os maruts, aparecem sempre no plural. Deles existem três vezes sete ou três vezes sessenta. Eles são irmãos da mesma idade, moram no mesmo lugar e nasceram no mesmo local. Seu barulho é o trovão e o choro do vento. 93

Eles sacodem as montanhas, derrubam as árvores e engolem, como elefantes selvagens, as florestas. Freqüentemente também são chamados de "cantores": o canto do vento. Eles são poderosos, iracundos e terríveis como leões, mas também são travessos e gostam de brincar como as crianças e os bezerros. A antiguíssima identificação da respiração e do vento demonstra a maneira concentrada como o sentimos. Ele possui a densidade da respiração. Mas, justamente em sua invisibilidade, ele se torna apropriado para simbolizar massas invisíveis. Desta forma, ele é atribuído aos espíritos (como uma tormenta se aproxima feito um exército selvagem), ou podem ser espíritos em fuga, como os da visão do xamã esquimó. As bandeiras são o vento que se torna visível. Elas são como pedaços cortados de nuvens, mais próximos e mais coloridos, pertencem aos homens e têm uma forma permanente. Elas chamam a atenção pelo seu movimento. Os povos, como se fossem capazes de dividir o vento, valem-se das bandeiras para demonstrar publicamente que o ar existente acima deles lhes pertence. A areia Das propriedades da areia, que são importantes dentro deste contexto, é preciso destacar principalmente duas. Temos por um lado a sua pequenez, a igualdade entre todas as suas partes. Tudo isto forma uma única característica, pois os grãos de areia somente são percebidos em conjunto devido ao seu diminuto tamanho. Por outro lado, temos o infinito da areia. Ela não pode ser avaliada, sempre existe mais areia do que se pode abranger com a vista. Quando ela aparece em montes pequenos, não se dá atenção a ela. Realmente ela é notória apenas onde é incontável, como na praia e no deserto. O movimento incessante da areia tem como conseqüência que ela é colocada mais ou menos a meio-termo entre os símbolos de massa líquidos e os sólidos. Ela forma ondas como o mar, pode subir no ar como nuvem; a poeira é uma areia ainda mais fina. Uma característica significativa é a ameaça da areia, a maneira como ela se opõe ao homem isolado como algo agressivo e hostil. O deserto inanimado, uniforme e colossal, enfrenta o homem com um poder quase insuperável: ele é formado por inúmeras partículas da mesma espécie. Ele sufoca o homem exatamente como o mar, mas de maneira muito mais traiçoeira, porque leva mais tempo. 94

A relação do homem com a areia do deserto prepara algumas de suas atitudes posteriores: a luta que ele tem de travar com força crescente contra numerosos inimigos muito pequenos. A areia é seca e esta sua característica foi transferida para os gafanhotos. O homem que cultiva as plantas teme os gafanhotos como teme a areia, porque o que eles deixam atrás de si após sua passagem é um deserto. Surpreende o fato de a areia ter podido transformar-se num símbolo da descendência. Mas o fato, que conhecemos tão bem pela Bíblia, demonstra quão intenso é o desejo da multiplicação. Aqui o enfoque não é dado apenas à qualidade. É certo que se deseja para si mesmo um grande número de filhos fortes e virtuosos, mas para um futuro mais distante, como soma da vida de várias gerações, queremos uma massa de descendentes que seja a mais extensa possível, e ao mesmo tempo a mais numerosa, incontável; e a massa mais numerosa que se conhece é a da areia. Num símbolo semelhante adotado pelos chineses, é enfatizado o fato de que pouco importa a valorização individual dos descendentes. Lá os descendentes são identificados com um enxame de gafanhotos, cuja imensidade numérica, solidariedade e não-interrupção se transmitem à descendência. Outro símbolo que a Bíblia também emprega para comparar a descendência são as estrelas. Também aqui trata-se principalmente da quantidade; elas são incontáveis; obviamente não se trata da qualidade de determinadas estrelas isoladas e mais destacáveis. Mas o mais importante é o fato de elas permanecerem para sempre. As estrelas nunca passam, estão sempre presentes.

Os montes Os homens reuniram em um mesmo grupo todos os montes que têm alguma importância para eles. A unidade do monte formado por frutas ou grãos é o resultado de uma atividade. Muitas mãos participaram da colheita; esta depende de uma determinada época do ano, e tem portanto uma importância primordial, ou seja, ela determina a mais antiga divisão do ano. Os homens exprimem com festas sua alegria em relação ao monte que conseguiram formar. Eles expõem estes montes com muito orgulho. Freqüentemente as festas são realizadas em torno destes montes. As coisas reunidas são todas de uma mesma natureza; 95

um determinado tipo de fruta, um determinado tipo de grão. As coisas reunidas são amontoadas na maior densidade possível. Quanto maior a quantidade e a densidade, tanto melhor. Um monte significa que se tem muito à disposição, não precisando mais trazer as coisas de longe. O tamanho do monte é importante. As pessoas se orgulham dele; somente quando ele tem um tamanho suficiente é que pode perdurar por muito tempo e ser de utilidade para todos. Desde que as pessoas se acostumem à formação do monte, este jamais será demasiadamente grande. Elas se recordam principalmente dos anos que lhes trouxeram as maiores bênçãos. Nos anais estes anos são anotados como os mais felizes. As colheitas competem entre si de ano para ano, ou de local para local. Pouco importa que os montes pertençam a uma comunidade ou a um indivíduo; de qualquer forma eles servem de modelo e garantem segurança. É verdade que estes montes são consumidos, em alguns lugares, de maneira muito rápida, em ocasiões especiais. Outras vezes são consumidos lentamente, de acordo com a necessidade. Sua constância é limitada, sua diminuição faz parte da idéia que se tem do monte desde o início. Sua reconstituição depende do ritmo das estações do ano ou das chuvas. Todas as colheitas formam montes rítmicos e a realização das festas é determinada a partir deste ritmo. Montes de pedra Mas existem também montes completamente diferentes, que não são comestíveis. Montes de pedra são formados porque é muito difícil desmontá-los novamente. Eles são construídos para durarem muito tempo, uma espécie de eternidade. Eles não devem diminuir jamais, devem continuar sendo o que são. Não são transferidos para os estômagos e ninguém vive dentro deles. Na sua forma mais antiga, cada pedra representa o homem que a levou para o monte. Posteriormente aumenta o tamanho e o peso das partes que constituem esses montes, e eles somente podem ser formados graças aos esforços de muitos. Sem contar o significado destes montes, eles sempre contêm em si os esforços concentrados de inúmeros e árduos caminhos. Muitas vezes a forma como eles foram construídos é um enigma. Quanto menos se compreende sua presença, quanto mais distante seja a procedência da pedra e quanto mais longos os caminhos percorridos, tanto maior deve ter sido o número 96

de homens que os construíram, tanto mais profunda a impressão que produzem nas gerações posteriores. Eles representam o esforço mítico de muitos, dos quais nada resta a não ser esse monumento indestrutível. O tesouro Também o tesouro, como todos os montes, foi acumulado. Mas em vez das frutas e dos grãos eles têm como unidades formadoras elementos que não podem servir de alimento e que não são perecíveis. Importante é o valor especial destas unidades e somente a confiança na durabilidade deste valor incentiva a formação do tesouro. Ele é um monte que deve permanecer intato e que deve crescer. Quando pertence a um poderoso, ele seduz outros poderosos a tentativas de roubos. O prestígio que ele confere a seu proprietário coloca este em perigo. Lutas e guerras se originaram pela conquista de tesouros e muitas pessoas poderiam ter vivido mais tempo se possuíssem tesouros menores. Por este motivo ele forçosamente é guardado em segredo. A característica peculiar do tesouro reside conseqüentemente na tensão entre o brilho que ele deve difundir e o segredo que o protege. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente se desenvolveu em sua forma mais perceptível no tesouro. Todas as demais contagens que buscam resultados cada vez mais elevados — as de gado e de homens, por exemplo — não podem alcançar a mesma concentração dos elementos contados. A imagem do dono que conta secretamente seu tesouro está tão profundamente gravada no espírito do homem como a esperança do tesouro que é descoberto de maneira repentina: ele está tão bem escondido que já não pertence mais a ninguém, seu esconderijo acabou sendo esquecido. Exércitos bem disciplinados foram atacados e sucumbiram devido a esta súbita avidez de tesouros; muitos triunfos acabaram sendo transformados em derrotas. A transformação de um exército num bando de homens à procura de tesouros, antes mesmo de participarem de uma batalha, é narrada por Plutarco em sua obra Vida de Pompeu. "Pompeu mal acabara de atracar sua frota nas proximidades de Cartago, quando sete mil homens dos inimigos passaram para seu lado; ele mesmo trouxera seis legiões completas para a África. Ocorreu então um curioso incidente. Alguns soldados encontraram casualmente um tesouro e obtiveram 97

uma soma considerável de dinheiro. Quando isto se tornou conhecido, todos os demais soldados tiveram a idéia de que a região deveria estar repleta de riquezas que os cartagineses teriam enterrado anteriormente, em seus tempos de infortúnio. Durante muitos dias Pompeu nada pôde fazer com seus soldados, que se preocupavam apenas com a procura de tesouros. Rindo, ele passeava e observava os milhares de homens que cavavam e reviravam o solo. Finalmente eles se cansaram da busca e pediram a Pompeu que os conduzisse para onde quisesse, uma vez que já estavam suficientemente castigados pela sua tolice." Ao lado destes montes que se tornam irresistíveis por estarem ocultos, existem outros que são reunidos de forma pública, como uma espécie de imposto voluntário, na esperança de serem concedidos posteriormente a um só ou a um pequeno grupo de indivíduos afortunados. Todas as formas de loterias devem ser incluídas nesta categoria; elas são formações rápidas de tesouros: sabe-se que logo depois de verificado o resultado, serão entregues ao feliz contemplado. Quanto menor for o número dos ganhadores, ou seja, quanto maior for o tesouro, tanto maior será sua atração. A cobiça que une os homens nestas ocasiões pressupõe uma confiança absoluta na unidade do tesouro. Dificilmente se conseguirá fazer uma imagem exagerada da força desta confiança. O homem se identifica com seu dinheiro. Uma dúvida a respeito de seu valor o ofende; um abalo no seu valor faz com que se abale também a confiança que ele tem em si mesmo. Na desvalorização de sua unidade monetária se atinge o próprio homem, que é diminuído. Quando a velocidade deste processo aumenta, quando se chega ao caso de uma inflação, os homens despojados se agrupam em formações que se identificam inteiramente com as massas de fuga. Quanto mais os homens perdem, tanto mais eles se identificam com seu destino. O que em alguns privilegiados que estão em condições de salvar alguma coisa para si mesmos, parece pânico, transforma-se para todos os demais que foram despojados de seu dinheiro, e que portanto são iguais na pobreza, numa fuga de massa. As conseqüências deste fenômeno que principalmente no nosso século teve um alcance histórico imprevisível serão tratadas em outro capítulo.

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A MALTA

Malta e maltas

Tanto os cristais de massa como a massa, no sentido moderno dado a esta palavra, derivam de uma unidade mais antiga, na qual ainda coincidem; esta unidade mais antiga é a malta. Em bandos, de número reduzido, que vagueiam em pequenos grupos de dez ou vinte homens, ela é a forma de excitação conjunta que encontramos em todos os lugares. Uma característica da malta é o fato de ela não poder crescer. Na vasta e ampla desolação que a rodeia não existem homens que possam integrá-la. A malta consiste em um grupo de homens excitados que nada desejam com maior veemência do que ser mais. Qualquer coisa que eles empreendem em conjunto, quer saiam para a caça ou para a guerra, sempre alcançariam melhores resultados se fossem mais numerosos. Para um grupo integrado por tão poucos membros, qualquer indivíduo que se reúna a eles se transforma no incremento insubstituível, patente e importante. A força que este novo elemento traria consigo representaria uma décima ou vigésima parte da força total. O lugar que ele ocuparia seria devidamente apreciado por todos. Ele contaria muito dentro da economia global do grupo; tanto quanto pouquíssimos de nós podem hoje contar. Na malta que se forma de tempos em tempos a partir de um grupo e que expressa com densidade máxima seu sentimento de unidade, o indivíduo nunca pode perder-se tão completamente como um homem moderno numa massa qualquer. Constantemente, nas constelações mutantes da malta, em suas danças e empreendimentos, ele se encontrará à margem dela. Ele estará dentro dela e logo em seguida estará à sua margem; estará à margem e logo depois dentro dela. Quando a malta forma um círculo em torno do fogo, cada um poderá ter vizinhos à direita e à esquerda, mas as costas ficam descobertas; as costas estão nuas e entregues ao desconhecido. A densidade interior da malta sempre possui algo simulado: é possível que eles se apertem estreitamente e que mediante movimentos rítmicos tradicionais pretendam ser muitos. Mas não o são, eles são poucos; o que lhes falta de densidade real suprem pela intensidade. 101

Das quatro propriedades essenciais da massa, conforme já sabemos, duas são fictícias na malta, ou seja, elas são desejadas e representadas com a maior ênfase; as outras duas existem com intensidade muito maior na realidade. Crescimento e densidade são as propriedades fictícias; igualdade e direção são as que existem. A primeira coisa que chama a atenção na malta é o caráter imperturbável de sua direção. A igualdade se expressa no fato de estarem todos possuídos pela mesma meta: talvez a visão de um animal que querem abater. A malta é limitada de várias maneiras. Além de ela ser formada relativamente por poucos elementos (dez, vinte, e algumas vezes um pouco mais), estas poucas pessoas se conhecem muito bem entre si. Elas sempre viveram juntas, encontram-se diariamente, aprenderam a se avaliar com toda a precisão em numerosos empreendimentos coletivos. A malta dificilmente pode ter um aumento inesperado; são poucos os homens que vivem em tais condições e além disso estão muito dispersos. Mas como ela é formada por conhecidos, num ponto ela é superior à massa que pode crescer até o infinito: a malta, apesar de às vezes ser dispersada por circunstâncias adversas, sempre volta a se reunir. Ela pode contar com sua permanência; sua duração está garantida enquanto seus integrantes estejam vivos. A malta pode desenvolver determinados ritos e cerimônias; os que irão executá-los aparecerão, pode-se confiar neles. Eles sabem a quem pertencem, eles não se deixam atrair por outros. Tentações deste tipo são raras, tão raras que não pode aparecer totalmente o hábito de sucumbir a elas. Porém quando, apesar de tudo, as maltas crescem, esse crescimento é quantitativo e está sujeito ao consentimento recíproco dos participantes. Uma malta que se formou a partir de um segundo grupo pode encontrar-se com a primeira e, quando não ocorre um combate entre elas, pode acontecer que se juntem para executar empresas transitórias. Mas a consciência separada dos dois grupos se conservará sempre; é possível que no entusiasmo da atividade comum esta consciência desapareça por um curto período, mas nunca por muito tempo. Na distribuição das honras ou em outras cerimônias, ela seguramente torna a aparecer. Mais forte que o sentimento que uma pessoa tem como ser individual quando não está agindo em sua malta, continua sendo o sentimento da própria malta. Este sentimento quântico da malta é decisivo num determinado nível de convivência humana, e não pode ser abalado por coisa alguma. 102

Aqui, a tudo o que costuma ser designado por tribo,. linhagem ou clã, se opõe deliberadamente uma outra unidade: a da malta. Esses conceitos sociológicos, por mais importantes que sejam, têm todos algo de estático. A malta, pelo contrário, é uma unidade de ação e aparece de uma maneira concreta. Dela deve partir quem queira explorar as origens do comportamento das massas. É a forma mais antiga e limitada dos homens; e ela já existia antes que houvesse massas humanas no sentido moderno desta palavra. Ela se manifesta de maneiras muito diversas, e é sempre claramente definível. Sua atividade, ao longo de milhares de décadas, é tão intensiva que deixou marcas por toda parte; e mesmo na nossa época, de caráter tão diferente, ainda se encontram vivas muitas configurações que derivam diretamente dela. A malta sempre aparece sob quatro formas ou funções diferentes. Todas elas são fluidas e passa-se com facilidade de uma para a outra, mas é importante, antes de mais nada, determinar aquilo em que elas se diferenciam. A malta mais natural e autêntica é aquela da qual deriva nossa palavra: a de caça. Ela se forma em todos os lugares, quando se trata de ir contra um animal perigoso ou muito forte que um indivíduo dificilmente conseguirá dominar sozinho; ela se forma também quando se vê uma presa da qual se quer perder o menos possível. O tamanho do animal abatido, seja ele um elefante ou uma baleia, mesmo quando foi atingido por vários indivíduos, importa que ele somente pode ser apresado e compartilhado por muitas pessoas reunidas. A malta de caça passa assim a um estado de partilha; às vezes aparece apenas este último, mas como ambos estes aspectos estão sempre estreitamente relacionados, devem ser examinados em conjunto. O objeto de ambos é a presa, e somente ela com seu comportamento, sua condição específica — viva ou morta —, determina com precisão o comportamento da malta que se forma em função dela. A segunda forma de malta, que tem muito em comum com a malta de caça e que está ligada a ela sob muitos aspectos, é a malta de guerra. Esta pressupõe uma segunda malta de homens que se ataca, que possui uma vivência própria, mesmo que no momento nem sequer exista. Na sua forma mais precoce ela freqüentemente persegue uma única vítima, da qual precisa vingar-se. Na determinação do que deve ser morto, este tipo de malta se aproxima muito do tipo de caça. A terceira forma é a malta de lamentação. Ela se forma quando um dos seus membros é arrebatado pela morte. O 103

grupo, que é pequeno e que acusa toda e qualquer perda como insubstituível, nesta ocasião se reúne em malta. É possível que para ela o importante seja tentar reter o moribundo; arrancar-lhe toda a força vital que possa incorporar a si mesma, antes que ele desapareça totalmente; é possível que sua finalidade seja a de apaziguar a alma do morto, para que não se torne inimiga dos que permanecem vivos. De qualquer maneira, uma ação lhes parece ser necessária e em parte alguma existem homens que renunciem completamente a ela. Em quarto lugar reúno uma multiplicidade de fenômenos que, apesar de sua diversidade, têm uma coisa em comum: a intenção de multiplicação. As maltas de multiplicação se formam porque o próprio grupo, ou as criaturas às quais está ligado, animais ou plantas, devem ser mais. Freqüentemente essas maltas são representadas em forma de danças, às quais se atribui um determinado sentido mítico. Também elas são conhecidas em todos os lugares onde vivem juntos seres humanos. Elas aparecem sempre que o grupo não está satisfeito com o seu próprio tamanho. Uma das propriedades essenciais da massa moderna, a compulsão do aumento, se manifesta portanto já muito cedo nas maltas, que ainda não podem crescer totalmente. Determinados ritos e cerimônias servem para forçar esse crescimento; podemos ter opiniões variadas quanto à eficiência desses métodos, mas é possível que, no decorrer do tempo, eles acabaram levando à formação de grandes massas. Uma análise detalhada destas quatro diferentes formas de malta leva a resultados surpreendentes. Elas têm a tendência de se transformar uma nas outras, e nada está Mais repleto de conseqüências do que a passagem de um tipo de malta para outro. A instabilidade da massa já é encontrada nestas formações pequenas e aparentemente mais sólidas. Suas transformações, freqüentemente, são ocasião de estranhos fenômenos religiosos. Mostraremos como maltas de caça podem se transformar em maltas de lamentação e como em torno desta transformação se formam mitos e cultos particulares. Os lamentadores desejam então não ter assumido jamais o papel de caçadores, e a vítima que eles lamentam serve agora para redimi-los do pecado de sangue da caça. A escolha do termo "malta" para esta forma mais antiga e mais limitada de massa serve também para lembrar que sua aparição entre os homens se deve a um modelo animal: a manada de animais que caçam em conjunto. Os lobos, que o homem conhecia bem e que no transcorrer de milênios foram educados para se tornarem cães, lhes causaram forte impressão 104

desde muito cedo. Sua presença como animal mítico entre tantos povos, as diversas concepções do lobisomem, as histórias de homens que, disfarçados em lobos, assaltam e roubam, todas as lendas a respeito da origem de crianças que são criadas por lobos, tudo isto comprova a proximidade que sempre existiu entre o lobo e o homem. A malta de caça, pela qual se compreende hoje uma matilha de cães adestrados para a caça conjunta, é o vestígio vivo desta velha vinculação. Os homens aprenderam dos lobos; em algumas danças, por assim dizer, eles treinavam "ser lobo". Naturalmente também outros animais contribuíram em parte para o desenvolvimento de faculdades análogas entre os povos caçadores. Eu emprego a palavra "malta" para os homens porque é a que melhor caracteriza a harmonia do movimento apressado e a meta concreta que é perseguida. A malta quer uma presa; quer o seu sangue e a sua morte. Ela tem de ir ao seu encalço de maneira rápida e sem desvios, com astúcia e constância para alcançá-la, e se incentiva com seus próprios latidos. O significado deste ruído, no qual se confundem as vozes dos vários animais, não deve ser subestimado. Ele pode decrescer e voltar a ser mais alto, porém é imperturbável e contém em si toda a agressão. A presa, finalmente acossada e derrubada, é devorada por todos. Habitualmente existe o "costume" de deixar para cada um dos participantes alguma coisa do que foi abatido; até para a malta de partilha já é possível encontrar os primeiros rudimentos entre os animais. Emprego este termo também para as outras três formas básicas mencionadas, embora nesses casos dificilmente se possa falar de modelos animais; não consegui encontrar uma palavra que expressasse melhor o que existe de concreto, de direcional e de intensivo nesses acontecimentos. Também a história justifica um emprego neste sentido. Ela é derivada do latim médio movita, que significa "movimento". O francês antigo meute, que se originou daí, tem um duplo sentido: pode significar "levante", "levantamento", mas também "partida de caça". O elemento humano aqui ainda aparece com força num primeiro plano. A palavra antiga designa exatamente o que se quer expressar neste caso; é justamente este significado duplo que nos interessa. O uso limitado ao conceito de "matilha de cães de caça" aparece bem mais tarde, e em alemão apenas a partir de meados do séc. XVIII, ao passo que palavras como "amotinador" e "motim", derivadas da antiga palavra francesa, aparecem já por volta de 1500, 105

A malta de caça A malta de caça se movimenta com todos os meios que tem à sua disposição em direção a algo vivo que deve ser incorporado. Sua meta mais próxima portanto sempre se traduz no ato de abater. Alcançar e cercar são seus principais meios. Persegue-se um único animal grande ou muitos que se encontram em fuga de massa. A presa está sempre em movimento e é caçada. Tudo depende dos movimentos rápidos da malta, que precisa correr mais que o animal para deixá-lo esgotado. Quando se trata de muitos animais e quando se consegue cercá-los, a fuga em massa da presa se transforma em pânico: cada um dos animais perseguidos procura então escapar do círculo formado pelos inimigos utilizando-se de seus próprios meios. A caça se estende por um espaço vasto e variado. No caso de caça ao animal isolado, a malta se mantém enquanto o animal acossado defende sua própria pele. A excitação aumenta durante a caça e é exteriorizada pelos gritos que os caçadores soltam uns para os outros de forma a aumentar sua sede de sangue. A concentração sobre um objeto que está sempre em movimento, que é perdido de vista mas que volta a aparecer, que se perde com freqüência e que deve ser novamente procurado, que nunca está totalmente livre das intenções mortais dos perseguidores, que se mantém num interminável estado de terror — esta concentração é sentida por todos juntos. Cada um dos participantes tem o mesmo objeto diante dos olhos, e cada um deles se movimenta em direção a este objeto. A separação entre a malta e o seu objeto, que diminui pouco a pouco, diminui para cada um dos seus integrantes. A caçada toda possui um ritmo cardíaco comum e mortal. Este ritmo se mantém durante um longo tempo, através de paisagens diferentes, vai se intensificando à medida que diminui a distância em relação ao animal. Quando este é alcançado, quando ele é encontrado, todos têm oportunidade de matá-lo e todos tentam fazê-lo. Sobre uma única criatura podem concentrar-se as lanças e as flechas de todos. Estas lanças e flechas são o prolongamento dos olhares ávidos lançados durante a caçada. Todo o estado deste tipo tem o seu fim natural. A meta que a malta se propôs é clara e nítida, e clara e nítida é também a transformação da malta quando a meta é alcançada. O frenesi diminui no momento da morte. Todos ficam de pé em torno da vítima caída, todos repentinamente calados. Dos 106

presentes se forma o grupo de todos aqueles aos quais cabe alguma coisa dos despojos. Seriam capazes de cravar seus dentes no animal, como se fossem lobos; no entanto, a devoração que as alcatéias de lobos iniciam quando o corpo ainda está com vida é postergada pelos homens para um momento posterior. A partilha porém ocorre sem disputas, obedecendo a determinadas regras. Seja o despojo conseguido grande ou numeroso, desde que tenha sido alcançado por toda a malta a partilha dos frutos conseguidos é inevitável. O processo que agora se inicia é diametralmente oposto ao da formação da malta. Agora, cada um dos participantes deseja algo para si, e gostaria de receber a maior quantidade possível. Se a partilha não esti-. vesse regulamentada com exatidão, se não existisse uma espécie de lei consuetudinária para realizá-la e homens experientes que velassem pelo cumprimento desta lei, a expedição terminaria em matança e massacre. A lei da partilha é a mais antiga das leis. Existem duas versões fundamentalmente diferentes: segundo úma delas, a partilha se reduz exclusivamente ao círculo dos caçadores; segundo a outra, também são integrados os homens que não participaram da malta dé caça e as mulheres. O supervisor da partilha, que precisa cuidar para que ela seja realizada em ordem, originalmente não tira qualquer tipo de vantagem desta sua posição. Pode até -mesmo acontecer, como no caso da pesca da baleia entre alguns esquimós, que em função da honra do seu posto ele renuncie a tudo. O sentimento comunitário da partilha pode ir muito longe: entre os coriacos da Sibéria, o verdadeiro caçador convida todos a se servirem dos seus despojos, contentando-se com o resto que lhe é deixado. A lei da partilha é bastante complexa e variável. A parte de honra da presa nem sempre corresponde a quem lhe tenha dado o golpe mortal. Às vezes o direito a esta parte pertence a quem avistou o animal em primeiro lugar. Mas também quem apenas de muito longe foi testemunha da morte pode ter direito a parte dos despojos. Neste caso os espectadores são considerados cúmplices do ato, são co-responsáveis por ele e podem gozar dos seus frutos. Menciono esta disposição extrema e não muito freqüente para mostrar quão forte é o sentimento de unidade irradiado pela malta de caça. Qualquer que seja a maneira adotada para regulamentar a partilha, os dois atos decisivos são considerados o avistar e o matar a presa. 107

A malta de guerra A diferença essencial entre a malta de guerra e a de caça consiste na disposição dupla da malta de guerra. Enquanto um bando excitado estiver caçando um único homem, para castigá-lo, trata-se de uma formação análoga à malta de caça. Caso este homem pertença a um outro grupo que não deseja perdê-lo, não demora muito para que uma malta seja obrigada a enfrentar a outra. Os inimigos não são muito diferentes entre si. São seres humanos, homens, guerreiros. Na forma primitiva da condução da guerra, os dois são tão parecidos que se tem dificuldade em distinguir quem é quem. Eles têm a mesma forma de lançar-se uns sobre os outros, seus armamentos são mais ou menos idênticos. Ambos os lados soltam gritos selvagens e ameaçadores. Ambos têm a mesma intenção em relação ao outro. A malta de caça, pelo contrário, é unilateral: os animais contra os quais ela ataca não têm intenção de cercar ou caçar os homens. Eles estão em fuga, e se às vezes se defendem isto ocorre no momento em que se quer matá-los. Geralmente neste momento eles já não se encontram mais em boas condições para se defender contra o homem. O decisivo e realmente característico da malta de guerra é que temos agora duas maltas movidas exatamente pela mesma intenção. A dicotomia é total e absoluta enquanto se trata do estado de guerra. Porém, para compreender qual é exatamente a intenção recíproca, basta ler com atenção o relato seguinte. Trata-se do relato da expedição de uma tribo sul-americana, os taulipangues, contra seus inimigos, os pischaukos. Este relato foi feito pessoalmente por um dos homens taulipangue e contém tudo o que se deve saber a respeito da malta de guerra. O narrador está entusiasmado com a empresa; ele a narra de dentro para fora, de dentro do seu bando, com uma espécie de crueza, de nudez, que é tão verídica quanto repugnante e que dificilmente encontra paralelo. "No começo havia amizade entre os taulipangues e os pischaukos. Depois começaram as brigas por causa das mulheres. Primeiro os pischaukos assassinaram alguns taulipangues isolados, que eram atacados na floresta. Depois eles mataram um jovem taulípangue e uma mulher e, finalmente, três taulipangues na floresta. Desta forma, os píschaukos queriam acabar, pouco a pouco, com toda a tribo dos taulipangues. "Neste momento, Maníkuza, cacique de guerra dos taulipangues reuniu toda a sua gente. Os taulipangues tinham três chefes: Manikuza, o cacique supremo, e dois subcaciques, um 108

dos quais era baixo, gordo, mas homem muito valente, e o outro era o seu irmão. Também estava com eles o velho cacique, o pai de Manikuza. Entre a sua gente estava ainda um homem pequeno e muito valente de uma tribo parente, os arekunas. Manikuza mandou que preparassem uma massa fermentada de kashiri, cinco grandes cabaças cheias, Depois mandou que preparassem seis barcas, Os pischaukos viviam nas montanhas. Os taulipangues levaram duas mulheres que deviam colocar fogo dentro das casas. Eles foram para lá, não sei por qual dos rios. Eles quase não comiam, nada de pimenta, nenhum peixe grande, nenhum animal de caça; comeram apenas peixes pequenos até o final da guerra. Levaram também tinta e argila branca para se pintarem. "Chegaram perto de onde moravam os pischaukos. Manikuza enviou cinco homens até a casa dos pischaukos para descobrir se todos estavam lá. Todos estavam lá. Era uma casa grande com muita gente, rodeada por uma cerca circular. Os cinco homens regressaram e informaram isto ao cacique. Neste momento, o velho e os três caciques sopraram sobre a massa fermentada de kashiri. Também sopraram sobre a tinta e a argila branca e sobre os tacapes de guerra. Os velhos tinham apenas arcos e flechas com pontas de ferro, faltavam-lhes armas de fogo. Os outros tinham escopetas e escumilha de chumbo. Cada um deles tinha um saco de escumilha e seis cartuchos de pólvora. Também estas coisas foram sopradas (insufladas de poder mágico). Depois eles se pintaram com listras vermelhas e brancas: começando pela testa, uma listra vermelha em cima de uma listra branca abaixo, cobrindo o rosto todo. Sobre o peito pintaram três listras, alternadamente, vermelho .na parte superior e branco na inferior; fizeram a mesma coisa com os braços para que os guerreiros pudessem se reconhecer entre si. Também as mulheres se pintaram da mesma forma. E então Manikuza ordenou que se acrescentasse água à massa de kashiri. "Os exploradores tinham dito que havia muitas pessoas nas casas. Era uma casa muito grande e mais três menores, situadas um pouco ao lado. Os pischaukos eram muito mais numerosos do que os taulipangues, que eram apenas quinze, ' além de um arekuna. Depois eles beberam o kashiri, cada um uma cabaça cheia; kashiri suficiente para conseguir muita coragem. Então Manikuza disse: 'Este irá atirar primeiro. Enquanto ele estiver carregando de novo sua escopeta, o outro atirará. Sempre um depois do outro'. Ele dividiu os seus homens em três destacamentos de cinco homens cada um, fazendo com que circundassem toda a paliçada que rodeava a casa. Depois disse: 109

`Não disparem qualquer tiro inútil. Quando um homem cair, deixem-no caído e atirem sobre os outros que ainda estiverem de pé'. "Depois disto, eles avançaram em três destacamentos separados; as mulheres iam atrás com a§ cabaças cheias de bebida. Chegaram ao limite da savana. Manikuza então disse: 'Que vamos fazer agora? Eles são muitos. Talvez fosse melhor retornar e ir buscar mais gente'. Mas o arekuna retrucou: 'Não. Vamos em frente. Quando eu avanço rodeado por muitas ou. tras pessoas, simplesmente não encontro a quem possa matar'. (Ou seja: Todas essas pessoas aí ainda não são suficientes para o meu tacape, pois eu mato muito depressa.) E Manikuza respondeu: 'Adiante! Adiante! Adiante!' Ele incentivou a todos. Eles se aproximaram da casa. Já era noite. Dentro da casa estava um feiticeiro, que naquele momento soprava sobre um doente. E ele disse: 'Vem gente', avisando dessa forma os moradores da casa. O dono da casa, o cacique dos pischaukos, respondeu: 'Que venham. Eu sei quem são. É Manikuza. Mas ele não voltará a sair daqui'. O feiticeiro continuou advertindo: 'Eles já estão aqui'. E o cacique então disse: 'É Manikuza. Ele não voltará. Sua vida terminará aqui'. "Nesse momento Manikuza cortou o cipó que amarrava a paliçada; em seguida as mulheres entraram e botaram fogo à casa; uma na entrada e outra na saída. Havia muitas pessoas dentro da casa. Depois as duas mulheres saíram novamente do local cercado pela paliçada. O fogo tomou conta da casa. Um velho subiu na casa para tentar apagar o fogo. Muitas pessoas começaram a sair da casa; elas atiravam muito com seus rifles, mas atiravam a esmo, sem fazer pontaria, porque nada podiam ver; elas pretendiam apenas assustar os inimigos. O velho cacique dos taulipangues quis acertar um pischauko com uma flecha, mas não acertou. O pischauko estava dentro do seu buraco na terra. Quando o velho estava preparando sua segunda flecha, o pischauko o derrubou com sua escopeta. Manikuza viu que seu pai estava morto. Aí os guerreiros começaram a disparar muito. Eles tinham cercado toda a casa e os pischaukos não tinham saída, não tinham para onde escapar. "Então avançou um guerreiro taulipangue chamado Ewama. Atrás dele ia um subcacique; atrás deste, seu irmão; atrás deste, Manikuza, o cacique de guerra, e finalmente o arekuna. Os demais ficaram do lado de fora para matar todos os pischaukos que quisessem escapar. Os outros cinco avançaram entre os inimigos e os derrubaram com seus tacapes. Os pischaukos 110

dispararam contra eles, mas não conseguiram acertar nenhum. Então Manikuza matou o cacique dos pischaukos. O subcacique matou o subcacique dos pischaukos. Seu irmão e o arekuna matavam com muita rapidez e derrubaram muitos inimigos. Fugiram apenas duas virgens que ainda vivem no curso superior do rio, casadas com homens taulipangues. Os demais foram todos mortos. Em seguida colocaram fogo à casa. As crianças choravam. Então as crianças foram jogadas no fogo. Entre os mortos ficara vivo um pischauko. Ele tinha se manchado completamente com sangue, e se deitara entre os mortos para que os inimigos acreditassem que ele também estava morto. Os taulipangues então pegaram todos os pischaukos e lhes cortaram o corpo em dois pedaços com um facão. Descobriram o homem que ainda estava vivo, agarraram-no e mataram-no. Depois pegaram o cacique morto dos pischaukos, amarraram-no com os braços levantados numa árvore e dispararam o restante de sua munição sobre ele, até que seu corpo se desfez em pedaços. Em seguida eles pegaram uma mulher morta. Com os dedos, Manikuza abriu o órgão genital dela e disse a Ewama: `Veja isto, é bom para você entrar!' "Os demais pischaukos que estavam nas outras três casas menores se separaram na fuga e se dispersaram pelas montanhas da região. Por lá ainda vivem hoje, inimigos mortais das demais tribos e assassinos às escondidas, que atacam principalmente os taulipangues. "O velho cacique dos taulipangues foi enterrado ali mesmo. Apenas dois outros guerreiros estavam levemente feridos no ventre por disparos de chumbo. Então eles retornaram para suas casas, gritando `Hai-hai-hai-hai-hai!' Quando chegaram às suas casas, encontraram os banquinhos que já tinham sido preparados para eles." A disputa, no princípio, está relacionada com as mulheres. Indivíduos isolados são mortos. Menciona-se apenas os que os outros mataram. A partir deste momento, reina a crença inabalável de que os inimigos querem acabar com toda a tribo dos taulipangues. O cacique conhece perfeitamente a sua gente, que é reunida imediatamente; não são muitos, apenas dezesseis, contando-se o homem pertencente à tribo parente, e todos sabem o que devem esperar uns dos outros em situações de combate. Jejua-se severamente, as pessoas são obrigadas a se alimentar de peixes muito pequenos. Com a massa fermentada preparou-se uma bebida forte. Antes do combate, bebe-se "para adquirir valor". Com as cores, pinta-se uma espécie de uniforme, "para que os guerreiros possam se reconhecer uns aos 111

outros". Todos os objetos que se consideram relacionados com a guerra — principalmente as armas — são "soprados". Desta maneira lhes é insuflado um poder mágico e ficam benzidos. Assim que eles chegam às proximidades do acampamento inimigo, exploradores são enviados para comprovar que todos se encontram lá reunidos. Todos estão presentes. Quer-se que todos estejam reunidos para que todos possam ser exterminados ao mesmo tempo. Trata-se de uma casa grande com muitas pessoas, uma superioridade perigosa. Os dezesseis têm razão em procurar a coragem na bebida. O cacique transmite suas instruções como se fosse um oficial. No entanto, chegando perto da casa inimiga, ele sente sua responsabilidade. "São muitos", diz ele, e hesita. Não seria melhor voltar atrás e procurar reforços? Mas em sua tropa encontra-se um homem para o qual nunca existem inimigos suficientes para matar. Sua determinação contagia o cacique e este dá a ordem: "Avante!" É noite, mas as pessoas dentro da casa estão despertas. Um feiticeiro, mais desconfiado do que os demais, aguça os sentidos e percebe o perigo. "Vem gente", diz ele; e logo depois: "Eles estão aqui!" O cacique sabe muito bem de quem se trata. Ele tem um inimigo e está seguro da sua inimizade. Porém também está certo de que o inimigo está vindo apenas para perder a própria vida. "Não sairá daqui. Aqui ele terminará sua vida!" A cegueira do que irá morrer é tão notável quanto a hesitação do que irá atacar. O ameaçado nada faz: a desgraça se abate sobre ele. Pouco depois a casa está ardendo; foram as mulheres que lhe atearam fogo e os seus moradores saem para fora. Eles não conseguem ver quem atira do escuro em direção a eles; pelo contrário, eles mesmos se tornam excelentes alvos. Os inimigos penetram no local e atacam os ocupantes com seus tacapes. A história de como eles sucumbem é concluída em algumas poucas frases. Não se trata aqui de um combate, mas sim de um extermínio total. As crianças chorando são atiradas ao fogo. Os mortos são despedaçados, um depois do outro. Um sobrevivente, que se lambuza de sangue e se mistura aos mortos na esperança de escapar, compartilha do destino dos demais. O cacique morto é amarrado a uma árvore e as armas são disparadas contra ele despedaçando-lhe o corpo. A violação de uma mulher morta é o clímax horripilante. Tudo perece inteiramente no fogo. Os poucos que se salvaram e que se encontravam nas ca112

sas vizinhas menores fogem para as montanhas e continuam vivendo lá como "assassinos às escondidas". Dificilmente há qualquer coisa a ser acrescentada a esta descrição da malta de guerra. Entre inúmeros relatos semelhantes, este é o mais real em toda sua crueza. Ele não contém nada que seja desnecessário, nada que tenha sido corrigido pelo narrador. Os dezesseis homens que partiram não regressam com os despojos de guerra; em nada foram enriquecidos pela vitória. Nenhuma mulher, nenhuma criança foi deixada com vida. Seu objetivo era o extermínio da malta inimiga de maneira que nada, literalmente nada, sobrasse dela. Com prazer narram-se as próprias façanhas. Os outros eram, e continuam sendo, os assassinos. A malta de lamentação A descrição mais impressionante que conheço de uma malta de lamentação é proveniente dos warramungas da Austrália Central. "Mesmo antes de o homem moribundo ter exalado seu último suspiro, começaram as lamentações e as mutilações intencionais. Assim que se soube que o fim estava próximo, todos os homens correram rapidamente ao local. Algumas mulheres que se tinham reunido, vindas de todas as direções, jaziam prostradas sobre o corpo do moribundo, enquanto outras permaneciam de pé ou de joelhos nas proximidades, cravando as pontas agudas dos seus bastões tumulares no crânio; o sangue escorria pelos seus rostos, enquanto simultaneamente emitiam um pranto ininterrupto de lamentação. Muitos homens que acorreram ao local jogaram-se em desolada desordem sobre aquele que lá estava deitado; as mulheres se levantavam e lhes abriam espaço, até que finalmente nada mais se via além de uma confusa massa de corpos nus. De repente chegou com gritos estridentes um homem que brandia uma faca de pedra. Quando se aproximou do local, fez cortes com a faCa nos próprias coxas atravessando os músculos, de modo que não pôde mais ficar de pé e caiu sobre a massa de corpos em convulsão. Sua mãe, suas esposas e irmãs o arrancaram da confusão e aplicaram a boca às feridas abertas, enquanto ele, esgotado e indefeso, jazia no solo. Pouco a pouco, a massa de corpos escuros foi se desenrolando, permitindo a visão do infeliz doente, que era o objeto, ou melhor, a vítima desta bem-intencionada 113

demonstração de afeto e de pena. Se antes ele já estava doente, agora passava bem pior, quando os amigos o abandonaram; era evidente que não lhe restava muito tempo de vida. O pranto e as lamentações continuavam. O sol se pôs e o acampamento ficou escuro. Naquela mesma noite o homem morreu. Então o pranto pôde ser ouvido com mais intensidade ainda do que antes. Homens e mulheres, em um frenesi provocado pela amargura, se jogavam de um lado para outro, ferindo-se com facas e lanças pontiagudas, enquanto as mulheres se batiam com maças na cabeça; ninguém se defendia dos cortes ou dos golpes. "Uma hora mais tarde, uma procissão fúnebre colocou-se em movimento à luz de tochas. Levaram o cadáver até um bosque distante cerca de 2 km e ali o colocaram sobre uma plataforma de galhos construída numa seringueira de pouca altura. Quando o dia seguinte amanheceu, não havia mais um único sinal de vida no acampamento onde o homem tinha morrido. Todos tinham transferido suas miseráveis choupanas para um lugar mais distante, deixando em total desolação o local onde ocorrera a morte. Porque ninguém desejava encontrar-se com o fantasma do defunto, que sem dúvida ficaria vagando pelas imediações, e muito menos ainda com o espírito do homem vivo que tinha provocado a morte com feitiços, e que certamente voltaria sob a forma de algum animal ao local do crime para deleitar-se com seu triunfo. "No novo acampamento, por todos os lados havia homens prostrados no chão, com feridas abertas nas coxas; feridas que eles mesmos tinham causado em seus corpos. Eles tinham cumprido seu dever para com o morto e carregariam até o fim de suas vidas as cicatrizes nas coxas como uma espécie de distintivo de honra. Em um deles viam-se os sinais de até vinte e três ferimentos provocados no decorrer do tempo. Neste ínterim, as mulheres, cumprindo suas obrigações, tinham retomado as lamentações. Quarenta ou cinqüenta delas, divididas em grupos de cinco ou seis e com os braços entrelaçados, choravam e gritavam num estado de loucura; enquanto isto, algumas, consideradas as parentes mais próximas, machucavam as próprias cabeças com varas pontiagudas e as viúvas iam ainda mais além, chamuscando as feridas em suas cabeças com brasas. Deste relato, e de muitos outros semelhantes que poderíamos apresentar, uma coisa se torna imediatamente clara: trata-se da própria excitação. Várias intenções participam do sucedido e será necessário estudá-las uma a uma. Porém, o essencial é a excitação como tal, um estado de coisas no qual 114

todos juntos têm algo para ser lamentado. O frenesi do lamento, sua duração, o fato de ele ser retomado no dia seguinte no novo acampamento, o assombroso ritmo que vai aumentando e que, mesmo após um esgotamento completo, torna a recomeçar, já seriam provas suficientes de que neste caso se trata, antes de mais nada, da excitação do lamento coletivo. Basta o conhecimento deste único caso, característico dos aborígines australianos, para compreender por que esta excitação é definida como típica de uma malta e por que parece ser indispensável introduzir a denominação especial de malta de lamentação para designá-la. Tudo principia com a notícia de que a morte está próxima. Os homens se precipitam apressadamente e se encontram com as mulheres que já estão presentes. As parentes mais próximas jazem amontoadas sobre o enfermo. É importante que a lamentação não se inicie apenas depois de ocorrida a morte, mas sim imediatamente após se constatar a gravidade do estado do enfermo. Assim que se acredita que ele vai morrer, as pessoas já não podem mais conter o lamento. A malta se solta, ela estava à espera dessa oportunidade e já não deixa mais sua vítima escapar. A força tremenda com a qual ela se lança sobre seu objeto, praticamente sela o seu destino. É difícil imaginar que uma pessoa seriamente enferma, após ter sido submetida a este tratamento, fosse capaz de se recuperar dele. Debaixo do pranto desenfreado dos homens, ela é praticamente sufocada; pode-se supor que ela às vezes acaba realmente sufocada neste processo; de qualquer forma, isto serve para acelerar sua morte. A exigência generalizada em nossa cultura de que se deve deixar os seres humanos morrer em paz, seria algo completamente incompreensível para estas pessoas entregues a sua excitação. Qual é o significado deste monte que se forma sobre o doente, deste emaranhado de corpos que evidentemente parecem lutar para poder se aproximar mais dele? Dizem que as mulheres que chegam primeiro a estes lugares abrem caminho e cedem seus postos para os homens, como se estes, ou pelo menos alguns deles, tivessem o direito de se aproximar mais. Sejam quais forem as interpretações que os aborígines dêem para a formação desse tumulto, o que na realidade ocorre é que o monte de corpos incorpora mais uma vez seu objeto de maneira total. A proximidade física dos que pertencem à malta, sua densidade, não poderia ser levada mais além. Eles se tornam uma mesma coisa com o enfermo. Ele pertence a eles, eles o 115

retêm entre si. Já que ele mesmo não consegue mais se levantar, não podendo estar entre eles, eles se deitam junto dele. Todos os que acreditam ter direito sobre a pessoa em questão lutam pelo privilégio de permanecer no monte, em cujo centro está o doente. É como se quisessem morrer com ele: as feridas que causam em si mesmos, o ato de se lançarem sobre o monte e, quando isto não é possível, em qualquer outro lugar, os desfalecimentos dos automutilados, tudo serve para demonstrar quão sério é tudo isto para eles. Talvez também seja correto dizer que eles querem ser iguais a ele. Mas eles não têm a verdadeira intenção de se matar. O que deve continuar existindo é o monte ao qual ele pertence, e pelo comportamento que adotam isto é facilitado. Neste processo de igualação com o moribundo consiste a essência da malta de lamentação, enquanto a morte ainda não ocorreu. Mas também faz parte dela a repugnância em relação ao morto, assim que o doente deixou de viver, A transformação dos esforços violentos para conter e reter o moribundo em uma aterrorizada atitude de repulsa e de isolamento do morto é que forma a tensão propriamente dita da malta de lamentação. Na mesma noite o cadáver é rapidamente afastado. São destruídos todos os vestígios de sua existência: seus utensílios, sua choupana, tudo o que lhe pertencia em vida. Até mesmo o acampamento no qual ele tinha vivido com os demais é arrasado e queimado. Repentinamente ele se transformou num inimigo. Tornou-se perigoso por ter abandonado os demais. Poderia ter inveja dos vivos e vingar-se deles por estar morto. Nem os sinais de afeto e nem mesmo a densidade corporal foram capazes de retê-lo. O rancor pelo morto o transforma num inimigo; mediante mil artimanhas ele poderá introduzir-se entre os vivos que agora necessitam de igual quantidade de meios para defender-se dele. No novo acampamento prossegue a lamentação. A excitação, que dava ao grupo o impetuoso sentimento de sua unidade, não é abandonada imediatamente. As mulheres ao que parece conseguem ir mais longe neste sentido; pelo menos elas demonstram mais persistência nesta lamentação. Existe muita cólera nesta automutilação; uma cólera em relação à impotência diante da morte; é como se a pessoa se castigasse pela morte. Também seria possível pensar que o indivíduo quer manifestar no seu próprio corpo o dano que a perda sofrida causou ao grupo todo. Porém a destruição também é dirigida contra o próprio acampamento, por mais miserável que seja, e neste sentido ela lembra a fobia destrutiva da massa 116

como nós a conhecemos e já explicamos noutro lugar. A malta perdura mais pela destruição de tudo aquilo em que ela se completa; e a separação da época em que conheceu e sofreu a a meaçadora desgraça é mais aguda. Tudo recomeça outra vez e começa justamente no vigoroso estado da excitação coletiva. É importante fixar finalmente as duas tendências de movimento que são essenciais para o desenrolar da malta de lamentação. A primeira é o impetuoso movimento em direção ao moribundo, e a formação de um monte de duplo sentido em torno do enfermo que se encontra entre a vida e a morte. O segundo movimento é a fuga aterrorizada para afastar-se do morto; para afastar-se dele e de tudo o que possa ter sido tocado por ele.

A malta de multiplicação Pode-se contemplar a vida de qualquer povo em estado natural; por toda parte encontramos imediatamente, conforme os acontecimentos concentrados de sua existência, as maltas de caça, de guerra ou de lamentação. O transcorrer destas três espécies de maltas é claro; todas elas possuem algo de elementar. Onde uma ou outra destas formações tenha sido relegada a um segundo plano, encontramos mesmo assim vestígios que demonstram sua presença e sua importância no passado. Descobrimos uma formação mais complexa na malta de multiplicação. Ela é de enorme importância porque foi o impulso que levou à propagação do ser humano. Ela conquistou a Terra para ele e o conduziu ao aparecimento de civilizações cada vez mais ricas. Sua eficiência nunca foi compreendida no seu alcance total porque o conceito de reprodução se modificou e obscureceu os processos propriamente ditos da multiplicação. Desde o princípio ela só se torna compreensível para nós em relação aos processos de metamorfose. Os primeiros homens, que se movimentam em número reduzido por amplas e freqüentemente desertas paragens, enfrentam um número muito superior de animais. É possível que nem todos sejam hostis; a maioria deles não é perigosa para o homem, mas muitos aparecem em quantidades incríveis. Um rebanho de búfalos ou de antílopes, cardumes de peixes ou de lagostas, enxames de abelhas ou de formigas — comparando-se o seu número com o dos homens, este se torna insignificante. Isto porque a descendência do homem é escassa. Os descendentes aparecem um a um e leva muito tempo para que 117

eles apareçam. O desejo de mais, de. aumentar o número das pessoas às quais se pertence, deve ter sido sempre profundo e urgente. Este desejo aumentava constantemente; cada vez que uma malta se formava era necessário fortalecer o impulso para aumentar ainda mais o número de seus componentes. Uma malta de caça que fosse maior estava em condições de cercar um maior número de animais selvagens. Nem sempre era possível confiar nos animais selvagens; repentinamente eles apareciam em grande número, e se houvesse mais caçadores maiores seriam as presas, os despojos. Na guerra queria-se ser mais forte do que a horda de inimigos: teve-se sempre consciência do perigo inerente a um número reduzido. Cada morte precisava ser lamentada, principalmente quando se tratava de um homem experiente e ativo; nestes casos a morte se transformava numa perda decisiva. A fraqueza do homem era o seu número reduzido. Mas também é certo que os animais perigosos freqüentemente viviam isolados ou em pequenos grupos como o próprio homem. Como eles, o homem também era uma fera bravia, mas uma que nunca desejava estar só. Ele gostaria de viver em alcatéias como os lobos, porém estes se davam por satisfeitos, o que não acontecia com o homem. Durante o enorme período de tempo em que ele viveu em pequenos grupos, incorporou a si — por metamorfose, por assim dizer — todos os animais que conhecia. Neste mesmo exercício da metamorfose é que ele realmente acabou se transformando em homem; ela era o seu talento e o seu prazer mais característicos. Durante suas primeiras metamorfoses em outros animais, ele representava e dançava imitando as várias espécies que apareciam em grande número. Quanto mais perfeita era sua representação destas criaturas, tanto mais intensamente ele percebia a magnitude do seu número. Ele percebia o que era ser muitos e depois sempre voltava a tomar consciência do seu isolamento como homem, em pequenos grupos. Não pode haver dúvidas de que o homem, assim que passou a ser tal, quis ser mais. Todas as suas formas de crença, seus mitos, ritos e cerimônias estão repletos deste desejo. Os exemplos são numerosos e alguns deles serão encontrados no decorrer desta pesquisa. Considerando-se que tudo o que tende à multiplicação está dotado de uma violência extremamente elementar, pode ser surpreendente que no princípio deste capítulo se tenha enfatizado a complexidade da malta de multiplicação. Um pouco de reflexão será suficiente para mostrar porque ela faz sua aparição de tantas formas diferentes. Ela 118

deve ser procurada por toda parte e aparece naturalmente onde é esperada. Mas ela também tem os seus esconderijos, e aparece repentinamente onde menos se supõe poder encontrá-la. O homem a princípio não pensou em sua própria multiplicação de forma isolada da das demais criaturas. Seu desejo de multiplicar-se estende-se a tudo que o cerca. Da mesma forma que ele se sente impelido a ampliar sua própria horda através de uma produção abundante de crianças, ele também quer mais caça e frutos, mais rebanhos e trigo, e maiores quantidades de tudo o que serve para sua alimentação. Para que ele prospere e se multiplique, é necessário que exista tudo o que necessita para sua existência. Onde a chuva é escassa, ele se concentra em atrair a água. O elemento que todas as criaturas mais necessitam, como ele mesmo, é a água. Por isto, em muitas regiões da Terra, os ritos de chuva e de multiplicação aparecem de forma unificada. Seja que os homens dancem pessoalmente na chuva, como ocorre entre os índios pueblos, ou seja que rodeiem sedentos o feiticeiro enquanto este faz esconjuros para chamar a chuva, em todos os casos deste tipo eles se constituem como malta de multiplicação. Para reconhecer o relacionamento íntimo existente entre a multiplicação e a metamorfose é necessário aprofundar-se nos ritos dos australianos. Eles foram descritos há mais de meio século por vários exploradores da maneira mais precisa possível. Os ancestrais, de que tratam as lendas a respeito da origem dos australianos, são seres estranhos, criaturas duplas, parte homem, parte animal; com precisão maior, poderíamos dizer que são ambas as coisas. Foram eles que introduziram as cerimônias, e estas são celebradas porque os ancestrais assim o ordenaram. Chama a atenção o fato de terem juntado o homem com uma espécie animal ou vegetal muito determinada. Assim, o ancestral-canguru é simultaneamente canguru e homem; o ancestral-avestruz é simultaneamente homem e avestruz. Nunca ocorre que um ancestral represente dois animais diferentes. O homem sempre está presente, sendo por assim dizer uma metade; mas a outra metade é sempre um determinado animal. Entretanto, não se pode insistir demais no fato de que ambas as coisas existam simultaneamente num única figura. As características das duas coisas estão misturadas da maneira mais ingênua e mais impressionante possível para a nossa sensibilidade. É evidente que os ancestrais não representam outra coisa senão os resultados de metamorfoses. O homem que conseguiu 119

sempre sentir-se como canguru e ver-se como tal, transformou-se no totem-canguru. Esta determinada transformação, que foi praticada e utilizada freqüentemente, adquiriu o caráter de uma conquista, e foi transmitida em mitos que podiam ser representados dramaticamente, de geração em geração. O ancestral dos cangurus, dos quais se estava rodeado, passou a ser simultaneamente o ancestral daquele grupo de homens que se denominavam canguru. A metamorfose que se encontra na origem desta dupla descendência era representada em ocasiões coletivas. Uma ou duas pessoas faziam o papel de canguru, enquanto as demais participavam como espectadores da metamorfose transmitida. Numa apresentação posterior, eles mesmos podiam dançar o canguru, que era seu ancestral. O prazer desta metamorfose, o peso especial que adquiriu com o passar do tempo, seu valor para as novas gerações de homens, expressava-se nos ritos sagrados durante os quais era praticada. A transformação conseguida e bem-sucedida chegou a ser uma espécie de dom. Ela era tratada com o mesmo cuidado com que se trata o tesouro de palavras de uma língua, ou com que se trata aquele outro tesouro que nós caracterizamos e reputamos como material: armas, jóias e determinados utensílios sacros. Esta metamorfose que como tradição bem guardada, como totem, designava o parentesco de determinados homens com os cangurus, significava também um vínculo com o seu número. Este número sempre foi superior ao dos homens; seu aumento era desejável, pois estava relacionado com o dos homens. Quando eles se multiplicavam, também se multiplicava o número dos homens. A multiplicação do animal-totem era idêntica à multiplicação dos próprios homens. Não é possível exagerar a força deste relacionamento entre metamorfose e multiplicação: as duas coisas sempre aparecem unidas. Assim que uma metamorfose é fixada e cultivada na sua figura exata como tradição, ela assegura a multiplicação de ambas as criaturas que se tornaram inseparáveis e indivisíveis. Uma destas criaturas sempre é o homem. Em cada totem ele assegura para si a multiplicação de um outro animal. A tribo, que é formada por vários totens, apropriou-se da multiplicação de todos eles. A grande maioria dos totens australianos são animais, mas também existem plantas, e como geralmente se trata de plantas que o homem ingere, nunca ninguém se surpreendeu de forma especial com os ritos relativos à sua multiplicação. Parecia natural que o homem se interessasse por ameixas e nozes 120

e que desejasse consegui-las na maior quantidade possível. Também alguns insetos, que para nós são desprezíveis mas que o a ustraliano considera como iguarias, determinados tipos de larvas, de térmitas e de gafanhotos, aparecem como totens. Mas que se pode dizer quando encontramos pessoas que consideram como seu totem escorpiões, piolhos, moscas ou mosquitos? Neste caso é impossível falar de utilidade no sentido comum da palavra; estas criaturas são pragas tanto para o australiano como para nós. Somente a quantidade monstruosa destes seres é que pode atraí-lo, e quando ele estabelece um parentesco com eles o que lhe importa é garantir este número para si mesmo. O homem que descende do totem-mosquito quer que seu pessoal se torne tão numeroso quanto os mosquitos. Não quero encerrar esta referência provisória e muito sumária às figuras duplas australianas, sem mencionar uma outra espécie de totem que se encontra entre elas. Ficaremos surpresos com a lista seguinte que o leitor já conhece. Entre os totens australianos existem nuvens, chuva e vento, pasto, pasto em chamas, fogo, o mar, a areia e as estrelas. É a lista dos símbolos naturais de massa que já foram estudados em profundidade. Não seria possível oferecer melhor demonstração de sua antiguidade e de seu significado do que sua existência entre os totens australianos. Mas seria errôneo supor que as maltas de multiplicação estão sempre relacionadas com totens e que sempre permanecem tanto tempo como entre os australianos. Existem esquemas de natureza mais simples e mais densa, nos quais se trata de uma atração instantânea e imediata dos animais desejados. Eles pressupõem a existência de grandes manadas. O relato da famosa dança dos búfalos dos mandans, tribo indígena da América do Norte, foi escrito na primeira metade do século passado. "Os búfalos se reúnem ocasionalmente em massas enormes e vagueiam em todas as direções do país, de leste para oeste ou de norte para sul, a grandes distâncias, para onde seus caprichos os levam. Quando isto acontece, os mandans ficam sem ter o que comer. Eles são uma tribo pequena e, devido aos inimigos mais fortes que querem lhes tirar a vida, não se atrevem a afastar-se de suas casas. Desta forma eles podem ser vítimas de morte por inanição. Numa crise deste tipo, cada qual pega sua máscara de sua tenda; uma máscara sempre preparada para uma tal situação: trata-se da pele de uma cabeça de búfalo com os chifres característicos. Tem início 121

a dança dos búfalos, para que 'venham os búfalos'. É preciso seduzir a manada, convencê-la a mudar de direção, a caminhar rumo à aldeia dos mandans. "A dança é realizada em praça pública no centro da aldeia. Cerca de dez ou quinze mandans participam dela, cada qual com uma cabeça de búfalo sobre a própria cabeça, e segurando na mão o arco ou a lança, a arma com a qual prefere matar os búfalos. "A dança sempre surte o efeito desejado, ela não cessa nunca, continuando dia e noite até que 'venham os búfalos'. Tambores são tocados, matracas acionadas, canções entoadas e gritos proferidos incessantemente. Os espectadores permanecem de pé, com máscaras nas cabeças e armas na mão, prontos para substituir qualquer dançarino que fique cansado e que saia do círculo. "Durante todo este tempo de excitação geral, existem vigias instalados nas colinas que rodeiam a aldeia e, quando eles percebem a aproximação de búfalos, fazem o sinal combinado, que é visto e compreendido imediatamente pela tribo toda. Existem danças que duram duas ou três semanas ininterruptamente, até o momento feliz da aparição dos búfalos. Elas nunca falham e a elas é atribuído o fato de os búfalos voltarem. "Normalmente há uma tira de pele presa à máscara; esta tira tem o comprimento do animal, incluindo a cauda; ela fica sobre o dorso do dançarino, arrastando-se pelo chão. Quem se cansa, anuncia isto inclinando-se inteiramente para a frente e aproximando seu corpo do chão; então, algum outro aponta seu arco para ele e o atinge com uma flecha sem ponta e ele cai como um búfalo. Os circundantes o agarram, puxando-o pelos pés para fora do círculo e movimentam suas facas sobre ele. Depois dos gestos característicos da retirada da pele e do esquartejamento, eles o deixam ir e seu lugar é imediatamente ocupado por outro, que de máscara sobre a cabeça entra dançando no círculo. Desta forma a dança pode prosseguir facilmente noite e dia, até que se alcance o efeito desejado e os `búfalos venham'." Os dançarinos representam simultaneamente búfalos e caçadores. Pela indumentária, eles são búfalos; mas arco, flechas e lanças os caracterizam como caçadores. Enquanto um participante está dançando, deve ser visto como búfalo e ele também se comporta como tal. Quando se cansa, é um búfalo cansado. Não pode deixar a manada sem ter sido abatido. Ele cai atingido por uma flecha e não por causa do cansaço. Até na agonia 122

da morte continua sendo búfalo. Ele é transportado e esquartejado pelos caçadores. Primeiro ele foi "manada", depois termina como presa. A idéia de que a malta pode por melo de uma dança veemente e constante atrair a manada dos búfalos verdadeiros pressupõe uma série de coisas. Os mandans sabem, por experiência própria, que a massa cresce e atrai para seu círculo todos os que são da mesma espécie e que se encontrem nas proximidades. Onde quer que haja muitos búfalos reunidos, outros se unem a eles. Mas eles também sabem que a excitação da dança aumenta a intensidade de uma malta. Sua força depende diretamente da veemência do seu movimento rítmico. O que lhe falta em número, a malta pode conseguir pela veemência. Os búfalos, cuja aparência e cujos movimentos se conhecem tão bem, são como os homens, pois gostam de dançar e se deixam atrair para um festejo pelos inimigos disfarçados. A dança é contínua porque deve atuar em longas distâncias. Os búfalos que a sentem em algum lugar qualquer, por mais distantes que estejam, como atração da malta, cedem diante dela enquanto se mantiver viva como dança. Se a dança deixasse de ser contínua, já não representaria uma malta, e os búfalos, que talvez se encontrassem ainda muito distantes, poderiam partir em direção a outros lugares. Manadas existem por toda parte e alguma delas poderia distrair a atenção dos búfalos. Os dançarinos devem constituir uma atração mais forte. Como malta de multiplicação, que não cede um instante sequer em sua excitação, eles são mais fortes do que qualquer manada solta e atraem esta de maneira irresistível.

A comunhão Um ato de multiplicação de tipo particular é a refeição em comum. Num rito determinado, cada um dos participantes recebe um pedaço do animal abatido. É comido por todos o que por todos foi conseguido. Partes de um mesmo animal são incorporadas à malta inteira. Alguma coisa de um único corpo passa para todos eles. Eles agarram, mordem, mastigam, engolem a. mesma coisa. Todos os que saborearam a coisa estão agora relacionados por meio deste animal: ele está contido em todos eles juntos. Este rito da incorporação em comum é a comunhão. Ela recebe um sentido particular: deve ser realizada de tal maneira que o animal que é saboreado se sinta honrado. Ele deve 123

regressar e trazer consigo muitos dos seus irmãos. Os ossos não são quebrados, são cuidadosamente guardados. Se tudo for feito da maneira correta, eles se recobrirão novamente de carne; o animal se levantará e se deixará caçar novamente. Se a coisa for feita de maneira errada e o animal se sentir ofendido, ele se retrairá. Foge com todos os seus irmãos e não volta a ser visto; como resultado, os homens padecem de fome. Em determinadas festas consegue-se que o animal que é saboreado esteja presente. Assim, entre alguns povos siberianos, o urso é tratado como hóspede durante a refeição em que ele próprio é comido. Homenageia-se este hóspede oferecendo-lhe os melhores pedaços do seu próprio corpo. Encontramse palavras convincentes e solenes para ele; pede-se a ele que interceda junto a seus irmãos. Quando se consegue ganhar sua amizade, ele até se deixa caçar com boa vontade. Comunhões deste tipo podem levar a uma ampliação da malta de caça. As mulheres e todos os demais homens que não participaram da expedição de caça tomam então parte nela. Mas ela também pode restringir-se a um pequeno grupo que corresponde ao grupo dos próprios caçadores. O acontecimento interno, no que se refere ao caráter da malta, é sempre o mesmo: a malta de caça passa a ser uma malta de multiplicação. Uma determinada caçada foi bem-sucedida, saboreia-se a presa conseguida, mas no momento solene da comunhão os participantes têm presente a idéia de todas as caçadas futuras. A imagem da massa invisível desses animais que se desejam flutua diante da vista de todos os que participam da refeição, e todos se esforçam ao máximo para transformá-la em realidade. Esta primitiva comunhão dos caçadores se mantinha, mesmo quando se tratava de desejos de tipos completamente diversos. Podiam ser lavradores preocupados com a multiplicação do seu trigo, do seu pão de todos os dias; mesmo assim eles saboreavam em comum e com solenidade o corpo de um animal, como nos antigos tempos em que eram exclusivamente caçadores. Nas religiões superiores, um novo elemento intervém na comunhão: o pensamento de uma multiplicação dos crentes. Se a comunhão permanecer intata, se ela se desenrolar de maneira correta, a fé se propagará cada vez mais, e mais adeptos irão se reunir. No entanto, como se sabe, de significado muito maior é a promessa da reanimação e da ressurreição. O animal, que os caçadores saboreavam cerimoniosamente, voltaria a viver, ressuscitaria e se deixaria caçar outra vez. A provocação desta ressuscitação se transforma nas religiões supe124

riores na meta essencial; mas, em lugar do animal, saboreia-se o corpo de um deus e sua ressurreição é considerada pelos crentes como referente a eles mesmos. Deste aspecto da comunhão falaremos mais tarde, quando tratarmos do tema das religiões de lamentação. O que nos interessa aqui é a passagem da malta de caça para a de multiplicação: uma determinada espécie de alimentação assegura a multiplicação do alimento. A princípio este era representado como algo vivo. Mostra-se aqui a tendência de guardar a preciosa substância psíquica da malta, situando-a em algo novo. Seja qual for esta substância — e talvez seja até discutível a utilização do termo "substância" — tudo é feito para impedir que ela se decomponha e se disperse. O relacionamento entre a alimentação comum e a multiplicação do alimento pode ser imediato, mesmo sem que exista o elemento da reanimação e da ressurreição. Basta lembrar os milagres do Novo Testamento, onde com cinco pães e dois peixes são alimentadas milhares de pessoas com fome.

A malta interna e a malta silenciosa As quatro formas básicas das maltas podem ser agrupadas de muitas outras maneiras. Pode-se fazer uma distinção entre maltas internas e externas. A malta externa, que é a mais notória, e conseqüentemente a mais fácil de ser caracterizada, movimenta-se na direção de uma meta que está situada no exterior. Ela se estende por um longo caminho e seus movimentos, quando comparados com os da vida normal, são intensificados. Tanto as maltas de caça como as de guerra pertencem a esta categoria. Os animais que se caçam devem ser encontrados e alcançados. O inimigo que se quer combater precisa ser procurado. Por maior que seja a excitação que se consegue durante uma dança de caça ou de guerra num determinado lugar, a atividade propriamente dita da malta externa tende sempre a uma meta distante. A malta interna possui algo concêntrico. Ela se forma em torno de um morto que deve ser sepultado. Sua tendência implica reter alguma coisa, não alcançá-la. A lamentação por um morto enfatiza por todas as maneiras o quanto ele pertence aos que estão reunidos em redor do seu cadáver. Seu caminho em direção ao que é remoto ele o toma sozinho. Trata-se de um caminho perigoso e aterrorizante, que leva até onde os demais mortos o esperam e acolhem. Como o morto 125

não se deixa reter, é — por assim dizer — desincorporado. Os que o lamentam representam, enquanto malta, algo como um corpo unido, do qual o cadáver somente é retirado com muita pena. Também a malta de multiplicação é uma malta interna. Um grupo de homens dançantes se forma num centro ao qual deve unir-se, de fora para dentro, algo que ainda é invisível. Mais homens devem unir-se aos que estão presentes, mais animais aos que se caçam ou criam, mais frutos aos que se colhem. O sentimento dominante é uma fé no já-estar-presente de todos os seres que devem juntar-se às unidades visíveis. Eles estão presentes em alguma parte e é preciso apenas atraí-los. Tende-se a celebrar as cerimônias onde se supõe que existam, invisíveis, muitos destes seres. Uma passagem significativa de uma malta externa para uma interna temos na comunhão. Pela incorporação de um determinado animal que foi abatido na caçada, pela solene consciência de que algo do animal existe dentro de todos os participantes, assim que estes saboreiam sua carne, interioriza-se a malta. Nesta disposição, ela pode agora aguardar sua reanimação e, principalmente, sua multiplicação. Uma outra maneira de classificação é a distinção entre maltas silenciosas e ruidosas. Basta lembrar quão ruidoso é o lamento. Ele não teria sentido se não se fizesse notar com a maior veemência possível. Assim que o ruído termina inteiramente, assim que deixa de ser captado ou aumentado de alguma outra forma, a malta de lamentação se separa e cada qual continua vivendo por si só. Pela sua própria natureza, a caça e a guerra são ruidosas. Se por, uma razão estratégica qualquer o silêncio pode se tornar necessário durante algum tempo, o ponto culminante da ação em contrapartida será ainda mais ruidoso. Os latidos dos cães, as exortações dos caçadores que procuram aumentar sua excitação e sua sede de sangue pertencem em todos os lugares aos momentos decisivos da caça. Mas na guerra sempre foram indispensáveis a intensidade do desafio e a ameaça do inimigo. Os gritos de matança e o fragor das batalhas soam na história, e sem o estrondo das explosões a guerra também é impensável nos nossos tempos. A malta silenciosa é a da esperança. Ela tem paciência. Uma paciência que se torna particularmente notória quando a malta se reúne. Ela ocorre sempre onde a meta da malta não pode ser alcançada por uma intervenção rápida e excitada. Talvez a palavra "silenciosa" seja um pouco equívoca, e a denominação malta de esperança fosse mais clara. Pois todas as atividades possíveis como cânticos, esconjuros e sacrifícios po126

dem caracterizar esta classe de malta. Faz parte dela que sua meta seja algo distante, que não pode ser realizado imediatamente. É esta espécie de esperança e de silêncio que passou a fazer parte das religiões do além. Existem homens que passam a vida inteira esperando por uma existência melhor no além. Mas o exemplo mais claro de uma malta silenciosa continua sendo a comunhão. O processo da incorporação, para ser perfeito, exige um silêncio concentrado e paciência. A reverência pelo sacro-significativo que se encontra dentro de cada um exige por um momento um comportamento tranqüilo e digno.

A determinação das maltas. Sua constância histórica Conhece-se o morto que é pranteado. Somente os que conviveram com ele ou que sabem perfeitamente quem ele é têm o direito de juntar-se à malta de lamentação. A dor aumenta na medida da intimidade que se tinha com ele. Os que melhor o conheciam o lamentam com maior veemência. O máximo da lamentação pertence à mãe, de cujo ventre ele saiu. Não se usa luto por um forasteiro. Desde a origem, a malta de lamentação não se forma em torno de qualquer um. Esta determinação em relação ao seu objeto caracteriza sem dúvida todas as maltas. Mas os participantes de uma malta não apenas se conhecem bem entre si, eles também conhecem sua meta a ser atingida. Quando estão caçando, sabem o que estão perseguindo. Quando organizam uma guerra, conhecem muito bem o inimigo. Na lamentação, sua dor é dirigida a um morto muito conhecido. Nos ritos de multiplicação, sabem exatamente o que se deve multiplicar. A malta tem uma determinação implacável e feroz. Mas esta determinação também contém um elemento de familiaridade. Não se pode negar aos caçadores primitivos uma ternura peculiar em relação à sua presa. Durante a lamentação e durante a multiplicação, esta intimidade terna é natural. Mas, mesmo sobre o inimigo, às vezes recai um pouco desse interesse íntimo no momento em que ele já não é mais temido. As metas que uma malta determina para si são sempre as mesmas. Uma repetitividade que vai até o infinito, própria de todos os processos vitais do homem, caracteriza também suas maltas. A determinação e a repetição levaram aqui a formações de tremenda constância. É esta constância, o fato de estarem as maltas sempre dispostas e disponíveis, que possibilita sua 127

utilização em civilizações mais complexas. Sempre que se trata de provocar a rápida aparição de massas, elas são utilizadas constantemente como cristais de massa. Mas também muito do que existe de arcaico na vida das nossas culturas modernas se expressa sob a forma de maltas. A nostalgia por uma existência simples ou natural, por um desprendimento das crescentes pressões e coerções do nosso tempo, tem exatamente este conteúdo: o desejo de uma vida em maltas isoladas. Caça à raposa na Inglaterra, viagens transoceânicas em pequenas embarcações com tripulação reduzida, retiros espirituais em conventos, expedições a países desconhecidos, até mesmo o sonho de viver com poucas pessoas numa natureza paradisíaca, onde tudo por assim dizer se multiplica por conta própria, sem exigir o mínimo esforço por parte dos homens — comum a todas estas situações arcaicas é a idéia de um número reduzido de pessoas que se conhecem bem entre si e que participam de um empreendimento claro e preciso, com grande determinação ou delimitação. Ainda hoje podemos encontrar uma forma descarada da malta em todo ato de justiça de linchamento. A expressão é tão descarada como o próprio ato, pois trata-se de uma supressão da justiça. O acusado é considerado indigno dela. Ele deve sucumbir como um animal, sem as formalidades habituais entre os homens. Sua diferença na aparência e no comportamento, o abismo que no sentimento dos assassinos existe entre eles e sua vítima, facilita-lhes tratá-la como uni animal. Quanto mais ela escapa deles pela fuga, tanto maior é o prazer com que eles se transformam em malta. Um homem com todas as suas forças, capaz de correr bem, proporciona-lhes a oportunidade de uma caçada que eles aceitam com prazer. Por sua natureza esta caçada não pode ser muito freqüente e é possível que este aspecto a torne ainda mais excitante. As crueldades que os assassinos se permitem em relação à vítima talvez se expliquem com o fato de eles não poderem devorar sua presa. Provavelmente eles se consideram seres humanos por não fincarem seus dentes na vítima. A acusação de índole sexual, da qual freqüentemente esta malta toma seu ponto de partida, transforma a vítima num ser perigoso. Imagina-se com detalhes o crime real ou suposto. A vinculação de um homem negro com uma mulher branca, a imagem da intimidade corporal entre eles sublinham, aos olhos dos vingadores, a diferença que existe entre os dois. A mulher fica cada vez mais branca, ao passo que o homem se torna cada vez mais negro. Ela é inocente, pois como homem ele é 128

mais forte. Caso ela tenha consentido, isto se deve ao fato de ter sido enganada por ele. A idéia desta superioridade é o mais insuportável para eles e os obriga a se juntarem contra ele. Como animal feroz — ele atacou uma mulher — ele é acossado e morto por todos. O assassinato dele lhes parece permitido e necessário, proporcionando-lhes uma franca satisfação.

Maltas nas lendas históricas dos arandas Como se desenha a malta na mente dos aborígines australianos? Duas lendas ancestrais dos arandas apresentam uma imagem clara a este respeito. A primeira trata de Ungutnika, célebre canguru dos míticos tempos primordiais. Relata-se o seguinte a respeito de suas aventuras com os cães selvagens: "Ele ainda não era adulto, era um animal pequeno quando partiu em peregrinação. Depois de ter viajado umas três milhas, mais ou menos, chegou a uma planície aberta onde viu uma malta de cães selvagens. Estavam deitados perto de sua mãe, que era muito grande. Ele brincou por ali e examinou os cães selvagens; neste momento eles o perceberam e começaram a dar-lhe caça. Ele saltava tão depressa quanto possível para escapar, mas eles o alcançaram numa outra planície. Rasgaramlhe o ventre e comeram primeiro seu fígado, depois lhe arrancaram a pele, jogando-a de lado, e lhe arrancaram toda a carne dos ossos. Assim que terminaram, voltaram a deitar-se outra vez. "Mas Ungutnika não estava completamente destruído, uma vez que sua pele e seus ossos ainda restavam. Diante dos olhos dos cães, a pele se moveu e se colocou sobre os ossos. Ele ergueu-se novamente e fugiu correndo. Os cães o seguiram e o alcançaram desta vez perto de Ulima, uma colina. Ulima significa fígado e tem este nome porque desta vez eles não comeram o seu fígado, preferindo jogá-lo fora; e o seu fígado se transformou numa colina escura que assinala este lugar. O que já tinha acontecido antes voltou a acontecer e Ungutnika, que voltou a ser o que era, correu desta vez até Pulpunja. Esta palavra designa um ruído peculiar que é emitido por pequenos morcegos. Neste lugar, Ungutnika se virou para trás e fez este ruído para assustar os cães e para zombar deles. Ele foi agarrado outra vez e despedaçado, mas, para assombro dos seus perseguidores, mais uma vez voltou a ficar inteiro. Ele então correu até Undiara com os cães atrás de si. Quando atingiu um lugar perto de uma fonte, eles o alcançaram e o comeram. 129

Cortaram sua cauda e a enterraram ali, onde em forma de pedra continua existindo até hoje. Chama-se churinga-cauda-de-canguru; durante as cerimônias de multiplicação ela é desenterrada, mostrada a todos e limpa com esmero". Quatro vezes o canguru é caçado pela malta de cães selvagens. É morto, despedaçado e devorado. Nas três primeiras vezes sua pele e seus ossos permanecem intatos. Enquanto estão inteiros, ele pode voltar a se incorporar e seu corpo volta a movimentar-se; os cães o caçam outra vez. Portanto, um mesmo animal é comido quatro vezes. A carne, depois de devorada, volta a existir. De um canguru formaram-se quatro, mas mesmo assim ele continua sendo sempre o mesmo animal. A caçada também é sempre idêntica, modificando-se apenas os locais dos maravilhosos acontecimentos, que ficam para sempre assinalados na paisagem. O morto não cede; volta a viver e caçoa da malta que não pára de se assombrar. Mas a malta também não cede: ela precisa matar a presa, mesmo quando já foi devorada. A determinação da malta e a repetitividade de suas ações não poderiam ser concebidas de maneira mais clara ou mais simples. A multiplicação é atingida aqui por uma espécie de re-ressurreição. O animal não é adulto e não produziu filhotes; em vez disto, ele quadruplicou a si próprio. Como se vê, a multiplicação e a reprodução estão longe de serem coisas idênticas. A partir da carne e dos ossos, ele se reincorpora diante dos olhos dos seus perseguidores e os incita à caça. A cauda que é sepultada permanece como pedra; é monumento e testemunho deste milagre. A força desta ressurreição quádrupla está agora nela, e quando ela é bem tratada, como ocorre durante as cerimônias, sempre volta a ajudar na multiplicação. A segunda lenda principia com a caça que é feita por um único homem contra um canguru grande e muito forte. Ele o viu e quer matá-lo e comê-lo. Segue-o por longas distâncias numa caçada demorada; eles acampam em muitos lugares, mantendo sempre uma determinada distância entre si. Em todos os locais por onde o animal passa, deixa marcas na paisagem. Num determinado local ele ouve um ruído e se coloca de pé nas patas traseiras; uma pedra de 8 m de altura ainda hoje o representa desta forma nesse lugar. Mais tarde ele escava o chão à procura de água; também esta nascente continua existindo ainda hoje. Mas por fim o animal se sente extremamente cansado e se deita. O caçador encontra um grupo de homens que per130

tencem ao mesmo totem, se bem que a um subgrupo diferente. Os homens perguntam ao caçador: "Você tem lanças grandes?" e ele responde: "Não, apenas pequenas". E o caçador acrescenta: "E vocês têm lanças grandes?" Eles dizem: "Não, a penas pequenas". Aí o caçador diz: "Coloquem suas lanças no chão". E eles respondem: "Bem, mas coloque as suas também no chão". As lanças são jogadas no chão e todos os homens, agora unidos, partem contra o animal. O primeiro caçador conserva apenas um escudo e a sua churinga — pedra sagrada — na mão. "O canguru era muito forte e afastou os homens de si com golpes. Então todos saltaram sobre o animal e o caçador, que ficou por baixo no monte, foi pisoteado até morrer. O canguru também parecia estar morto. Eles enterraram o caçador com seu escudo e sua churinga e levaram o corpo do animal consigo para Undiara. Ele não estava realmente morto, mas morreu pouco depois e foi colocado numa caverna. Não foi comido. Lá, onde estava o corpo do animal, formou-se um banco de pedra na caverna e depois de sua morte seu espírito entrou nele. Pouco depois morreram também os homens e os seus espíritos foram morar num charco situado ao lado. A tradição diz que, em épocas posteriores, cangurus em grandes quantidades foram a esta caverna e penetraram por ali na terra; também os seus espíritos passaram a morar na pedra." Neste caso, a caça individual passa a ser a caça de toda a malta. O animal é atacado sem armas. Querem sepultá-lo debaixo de um monte de homens. O peso dos caçadores unidos conseguirá sufocá-lo. O animal é muito forte e dá golpes em torno de si; a situação não é fácil para os homens que têm dificuldades em dominá-lo. No ardor do combate, o primeiro caçador fica embaixo do monte e, no lugar do canguru, é pisoteado até a morte. Ele é enterrado com seu escudo e com a churinga sagrada. A história de uma malta de caça que sai à procura de um determinado animal e, devido a um erro, em vez do animal acaba matando o mais proeminente dos caçadores, está difundida pela Terra toda. Ela termina com a lamentação pelo morto: a malta de caça passa a ser uma malta de lamentação. Esta transformação forma o núcleo de muitas religiões importantes e amplamente difundidas. Também neste caso, nesta lenda dos arandas, fala-se a respeito do enterro da vítima. Escudo e churinga são enterrados com ela e a simples menção da churinga, que é considerada sagrada, dá ao acontecimento um certo toque solene. 131

O próprio animal, que somente morre depois, é sepultado em outro lugar. Sua caverna se transforma num santuário para os cangurus. No decorrer dos períodos posteriores, grande número de cangurus vão até a pedra e penetram nela. Undiara, este é o nome do local, acaba se transformando num local sagrado, onde os membros do totem-canguru celebram suas cerimônias. Estas servem para a multiplicação deste animal e, desde que sejam realizadas com perfeição, haverá sempre cangurus em número sufícente pelos arredores. Vale a pena observar como nesta lenda foram apresentados dois acontecimentos básicos religiosos inteiramente distintos entre si. O primeiro contém, como já foi dito, a transformação da malta de caça em malta de lamentação; o segundo, que ocorre na caverna, representa a transformação da malta de caça em malta de multiplicação. Para os australianos, o segundo acontecimento tem um significado muito maior, colocando-se no centro do seu culto. O fato de eles aparecerem um ao lado do outro depõe a favor de uma tese fundamental deste ensaio. Cada uma das quatro espécies básicas de malta existe desde o princípio e em todos os lugares onde haja homens. Assim são sempre possíveis as transformações de um em outro tipo de malta. Dependendo da ênfase dada a esta ou àquela transformação, originam-se formas religiosas básicas. Como os dois grupos mais importantes distingo as religiões de lamentação e as religiões de multiplicação. Porém também existem, conforme veremos mais adiante, religiões de caça e de guerra. Um vestígio de acontecimentos bélicos está presente até mesmo na lenda mencionada. A conversa a respeito das lanças, mantida entre o primeiro caçador e o grupo de homens que ele encontra no caminho, refere-se às possibilidades bélicas. Quando eles jogam no chão todas as lanças que possuem, estão renunciando a um combate. Somente depois disto é que atacam unidos o canguru. Aqui encontramos o segundo ponto que me parece ser digno de nota nesta lenda: o monte de homens que se lança sobre o canguru. Uma massa coesa de corpos humanos deve sufocar o animal. Entre os australianos fala-se freqüentemente a respeito de tais montes de corpos humanos. Encontramos estes montes constantemente em suas cerimônias. Num determinado momento, nas cerimônias de circuncisão dos jovens, o candidato se deita no chão e um certo número de homens se deita sobre ele, de maneira que ele se vê obrigado a suportar o peso de todos. Em algumas tribos um grupo de homens se 132

joga sobre um moribundo, apertando-se contra ele por todos os lados. Esta situação, que já mencionamos, é particularmente interessante: ela representa uma transição para monte de moribundos e de mortos de que ainda falaremos várias vezes neste livro. Alguns casos destes densos montes australianos serão tratados no próximo capítulo. Aqui basta mencionar que o monte denso de vivos, formado intencional e violentamente, não é menos importante do que o monte de mortos. Se este último parece ser mais familiar para nós, isto se deve apenas ao fato de ele ter assumido dimensões colossais no decorrer da história. Normalmente se diria que os homens estão reunidos em grande número apenas depois de mortos. Mas o monte de vivos nos é igualmente conhecido: em seu núcleo, a massa não é outra coisa.

Formações de homens entre os arandas As duas lendas ancestrais que foram mencionadas acima estão contidas no livro que Spencer e Gillen escreveram a respeito da tribo dos arandas (que eles preferem chamar de "aruntas"). A maior parte desta obra famosa é dedicada à descrição de suas festas e cerimônias. Dificilmente se poderia dar uma idéia exagerada de sua multiplicidade. Especialmente notória é a riqueza de formações físicas realizadas pelos participantes no decorrer das cerimônias. Em parte são formações que conhecemos intimamente, uma vez que mantiveram seu significado até nossos dias; em parte porém são formações que nos causam espanto devido à sua estranheza extrema. As mais importantes serão mencionadas rapidamente, Em todos os empreendimentos secretos que se realizam em silêncio, é freqüente a fila indiana. Em fila indiana partem os homens para buscar suas churingas sagradas, que são escondidas em cavernas ou em outros lugares. Eles caminham cerca de uma hora ou mais antes de alcançar sua meta; os jovens que são levados nestas expedições são proibidos de formular perguntas. Se o homem mais idoso, sob cujas ordens eles estão, lhes quer explicar qualquer coisa — digamos a respeito de determinadas formações na paisagem relacionadas C0111 as lendas dos ancestrais — ele o faz usando uma linguagem mímica. Nas cerimônias propriamente ditas aparece habitualmente um número multo reduzido de intérpretes, disfarçados de ancestrais de um totem que atua por meio deles. Geralmente 133

são dois ou três, às vezes apenas um. Os jovens formam um círculo, dançando em torno deles, emitindo determinados gritos. Este rodar em círculo é uma formação muito freqüente, que sempre volta a ser mencionada. Numa outra ocasião, durante as cerimônias do engwura, que são o acontecimento mais importante e solene na vida da tribo, os jovens se deitam enfileirados sobre tini montículo alongado e permanecem assim ligados ao chão, em silêncio, durante horas a fio. Este estender-se em fileira no chão repete-se freqüentemente e numa ocasião chegou a ter uma duração de oito horas, das nove da noite até as cinco da manhã. Impressionante também é uma outra formação muito mais densa. Os homens chegam bem perto uns dos outros, formando um monte; os velhos ficam de pé no centro, os jovens na parte externa. Esta figura em forma de disco, na qual todos os participantes estão estreitamente comprimidos uns contra os outros, gira durante umas duas horas numa dança circular, durante a qual se canta o tempo todo. Depois todos se sentam com a mesma formação, de maneira que o monte continua tão compacto como quando estavam de pé, e continuam cantando durante mais umas duas horas. As vezes os homens formam duas fileiras, uma diante da outra, e cantam. Na cerimônia decisiva com a qual se conclui a parte ritual do engwura, os jovens se formam em quadrilha e passam em companhia dos anciãos para o outro lado do leito do rio, onde as mulheres e as crianças esperam por eles. Esta cerimônia é muito rica em detalhes; em nossa enumeração, à qual importam apenas as formações, devemos mencionar um monte no chão, que se forma com todos os homens juntos. Os três anciãos que carregam um objeto especialmente sagrado representando a bolsa na qual estavam contidas as crianças dos tempos primordiais, caem no chão e cobrem com seus corpos esse objeto, que as mulheres e as crianças estão proibidas de ver. Depois todos os demais homens, mas principalmente os jovens para os quais a cerimônia é realizada, se lançam sobre os três anciãos e todos jazem juntos num desordenado monte no chão. Nada se distingue mais no grupo e apenas as cabeças dos três anciãos sobressaem do monte. Durante algum tempo eles permanecem assim estendidos e depois todos procuram se levantar e se individualizar outra vez. A formação de tais montes no solo também ocorre em outras ocasiões, mas esta é a mais importante que os observadores mencionam. Nas provas de fogo, os jovens se deitam sobre as ramas 134

quentes, mas naturalmente não uns sobre os outros. As provas de fogo se desenrolam de maneiras muito variadas; uma delas é realizada da seguinte maneira: os jovens se dirigem ao outro lado do leito do rio, onde as mulheres os esperam em dois grupos. As mulheres avançam na direção deles e os cobrem com uma chuva de ramos em chamas. Em outra ocasião, a longa fila dos jovens se coloca diante da fila formada pelas mulheres e pelas crianças. As mulheres dançam e os homens lançam com toda a força que lhes é possível ramos incendiados por cima de suas cabeças. Numa cerimônia de circuncisão, seis homens que se deitam juntos no chão formam uma mesa. O noviço se deita sobre eles e é operado nesse local. O "deitar-se sobre o noviço", que faz parte da mesma cerimônia, já foi mencionado no capítulo anterior. Se procurarmos um sentido para estas formações, talvez seja possível dizer o seguinte: A fila indiana simboliza a migração. Seu significado na tradição da tribo é fundamental. Freqüentemente se diz que os antepassados migraram para baixo da terra. É como se, andando um atrás do outro, os jovens tivessem de pisar nas pegadas dos seus ancestrais. O tipo de sua movimentação e seu silêncio contêm o respeito em relação aos caminhos e às metas sagradas. O rodar ou dançar em círculo aparece como a proteção das representações que se desenrolam no seu centro. Elas são defendidas de tudo o que não pertence ao círculo; elas são aplaudidas, homenageadas e desta forma toma-se posse delas. O deitar-se numa fileira poderia ser símbolo da morte. Os noviços permanecem neste estado absolutamente mudos, e durante muitas horas ninguém se move. Depois, repentinamente, eles levantam com um salto e nascem outra vez para a vida. As duas fileiras colocadas frente a frente, que atuam numa e noutra direção, expressam a divisão em duas maltas inimigas, onde o outro sexo substitui a malta inimiga. A quadrilha parece ser uma formação destinada à proteção por todos os lados; pressupõe-se que os homens estejam se movimentando num ambiente hostil. Esta formação é bastante conhecida na história que está mais próxima de nós todos. Restam agora apenas as formações mais densas: o disco dançante que está repleto de homens e o monte enredado no solo. O disco, justamente pelo seu movimento, é o caso extremo de uma massa rítmica: uma massa que é tão densa e fechada 135

quanto possível, dentro da qual não existe espaço algum, a não ser para quem lhe pertença. O monte no chão protege um segredo precioso. Indica que se quer cobrir e reter algo com toda a força. Num monte deste tipo também se envolve um moribundo e é desta maneira que, imediatamente antes de sua morte, se rende a ele uma última homenagem. É tão importante para os seus iguais que, com ele no meio, este monte relembra o dos mortos.

MALTA E RELIGIÃO

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A inversão das maltas

Todas as formas de malta que foram descritas tendem a se transformar umas nas outras. Por mais constante que a malta seja em sua repetição, por pouco que se tenha modificado quando reaparece, em seu decurso individual e único, ela sempre tem algo de flutuante. Já o simples fato de ter alcançado a meta que persegue traz como conseqüência uma mudança inevitável em sua constituição. A caça em conjunto, tendo conseguido uma presa, provoca uma partilha. Vitórias, excetuando-se os casos "puros" em que se trata do extermínio do inimigo, sempre degeneram em saques. O lamento conclui com a remoção do morto; assim que ele é colocado no lugar onde se deseja, assim que as pessoas se sentem relativamente seguras em relação a ele, a excitação da malta cede e ela se desagrega. Mas a relação com o morto não está completamente esgotada. Supõe-se que ele continue vivendo em alguma outra parte; para a obtenção de ajuda ou de conselhos é possível que volte a ser citado entre os vivos. Na evocação do seu morto a malta de lamentação, por assim dizer, volta a se reconstituir, mas o objetivo do seu comportamento é agora oposto ao primitivo. De uma maneira qualquer, não importa qual, o morto que tinha sido afastado é trazido de volta entre os seus. A dança dos búfalos executada pelos mandans encerra-se com a chegada dos búfalos. A malta de multiplicação que foi bem-sucedida passa a ser uma festa de partilha. Cada espécie de malta, como se vê, tem um negativo no qual acaba se transformando. Mas além da transformação neste negativo, que parece ser algo natural, existe um movimento de índole completamente diferente: a transformação de diferentes maltas, umas nas outras. Neste sentido lembramos a lenda ancestral dos arandas. Um forte canguru é pisoteado por muitos homens juntos até morrer. Neste episódio o primeiro caçador perece vitimado pelos seus próprios camaradas e é ritualmente enterrado por eles: a malta de caça se converte numa malta de lamentação. Do sentido da comunhão já se falou de maneira exaustiva: a malta de caça se transforma numa de multiplicação. Uma outra 139

transformação se situa no começo da guerra: um homem é morto, os membros de sua tribo o lamentam; logo em seguida formam uma tropa e partem para vingar seu morto na pessoa do inimigo. A malta de lamentação passa a ser urna malta de guerra. A inversão das maltas é um processo que chama a atenção. Ele se encontra por toda parte e pode ser investigado nas mais diversas esferas da atividade humana. Sem um conhecimento preciso deste processo não existe fenômeno social, seja qual for sua natureza, que possa ser completamente compreendido. Algumas destas inversões se isolaram de contextos mais amplos e se tornaram estáveis. Elas alcançaram seu sentido especial e se converteram em rituais. São representadas sempre de maneira exatamente idêntica. São o conteúdo propriamente dito, o núcleo de qualquer crença significativa. Pela dinâmica das maltas e pela maneira especial como elas se interpenetram, explica-se a ascensão das religiões universais. Não é possível apresentar aqui uma interpretação exaustiva das religiões. Este será o assunto de outro trabalho. Em seguida examinaremos algumas formações sociais ou religiosas em relação às maltas que nelas predominam. Veremos que existem religiões de caça e de guerra, de multiplicação e de lamentação. Entre os leles do Congo Belga, a caça, apesar da sua pouca produtividade, encontra-se no centro da vida social. Os jívaros do Equador vivem inteiramente para a guerra. Os índios pueblos do sul dos Estados Unidos distinguem-se pela escassa atividade de caça e de guerra e por uma surpreendente repressão do lamento: eles vivem inteiramente para uma multiplicação pacífica. Para a compreensão das religiões de lamentação, que em tempos históricos recobriram e reuniram a Terra, estudaremos o Cristianismo e uma variedade do Islão. Uma descrição do muharram dos xiitas servirá para confirmar a posição central do lamento neste tipo de fé. O ultimo capítulo é dedicado à descida do fogo sagrado da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro de Jerusalém. É a festa da ressurreição na qual desemboca a lamentação cristã, sua justificação e seu sentido,

Selva e caça entre os leles de Kasai Em um novo e profundo estudo, a antropóloga inglesa Mary Douglas conseguiu encontrar a unidade real entre a vida e a 140

religião de um povo africano. Não se sabe o que é mais admirável em seu trabalho: se a clareza de suas observações, ou se a sinceridade e a imparcialidade do seu pensamento. A melhor forma de agradecer-lhe é seguir seu trabalho ao pé da letra. Os leles, povo de aproximadamente vinte mil pessoas, vivem no Congo, nas proximidades do rio Kasai. Suas aldeias se encontram estabelecidas na savana, em quadrados compactos de vinte a cem choças, nunca muito distantes da selva. Seu alimento principal é o milho que cultivam na selva; todos os anos eles abrem uma nova clareira para o milho e nunca esperam mais do que uma colheita. Na mesma clareira crescem então palmeiras de ráfia, das quais se aproveita quase tudo. Das folhas novas obtém-se um material que os homens tecem para fabricar esteiras de ráfia. Ao contrário do que ocorre com seus vizinhos, todos os homens leles sabem tecer. Pedaços quadrados de tecido de ráfia são utilizados como uma espécie de moeda. Desta palmeira se obtém também um vinho não-fermentado e bastante apreciado. Bananeiras e palmeiras, apesar de crescerem melhor na selva, também são plantadas ao redor da aldeia; amendoins são cultivados apenas nesta zona. Todos os demais bens apreciados são provenientes da selva: água, lenha, sal, milho, mandioca, azeite, peixe e carne. Tanto os homens como as mulheres têm muitas tarefas a serem executadas na selva. Mas a cada três dias as mulheres são excluídas da selva. Suas provisões em alimentos, lenha e água devem ser armazenadas no dia anterior. Entre os leles a selva é considerada como esfera do homem. "O prestígio da selva é incomensurável. Os leles se referem a ela com um entusiasmo quase poético ... Freqüentemente acentuam o contraste entre a selva e a aldeia. Durante o calor do dia, quando na aldeia poeirenta reina uma temperatura desagradável, eles procuram com prazer refúgio na sombra fresca da selva. O trabalho aqui os fascina e lhes proporciona alegria; o trabalho em outros lugares é uma calamidade. 'O tempo', dizem eles, 'passa lentamente na aldeia, mas depressa na selva.' Os homens se vangloriam de conseguir trabalhar durante o dia todo na selva sem sentir fome, ao passo que na aldeia estão sempre pensando em comer." Mas a selva também é um lugar de perigo. Quem está de luto ou quem teve um pesadelo não deve pisar nela. O pesadelo é interpretado como uma advertência. Quem for à selva no dia seguinte sofrerá alguma desgraça. Uma árvore lhe cairá sobre a cabeça, ele se cortará com uma faca, cairá do 141

alto de uma palmeira. Um homem que não dá atenção à advertência coloca em perigo apenas sua própria pessoa. Mas uma mulher que entre na selva em momentos proibidos põe em perigo a aldeia inteira. "Para o grande prestígio da selva parecem existir três motivos bem definidos: ela é a fonte de todas as coisas boas e necessárias; dos alimentos, da bebida, da habitação e das vestes; ela é a fonte dos medicamentos sagrados; e em terceiro. lugar é o local da caça, que aos olhos deles representa a atividade mais significativa de todas." Os leles têm uma verdadeira avidez pela carne. Considera-se grave ofensa oferecer a um hóspede uma refeição de alimentos apenas vegetais. Nas suas conversas a respeito de acontecimentos sociais, eles costumam deter-se com agrado na quantidade e no tipo das carnes oferecidas. No entanto, mesmo assim, eles não criam cabras nem porcos como seus vizinhos do sul. A mera idéia de comer animais que tenham crescido na aldeia lhes é repugnante. Um bom alimento, segundo dizem, deve ser proveniente da selva, onde é limpo e sadio, como o javali e o antílope. Ratos e cães são impuros, haura; para designá-los usam uma palavra que significa pus e excremento. consideram igualmente impuros os porcos e as cabras, justamente por terem sido criados na aldeia. Sua avidez em relação à carne nunca os leva a comer alguma que não tenha sido conseguida na selva ou mediante a caça. Eles conhecem muito bem a criação de cães e, se quisessem, não lhes custaria muito manter algumas cabras. "A separação das mulheres e dos homens, a divisão entre selva e aldeia, a dependência da aldeia em relação à selva são os elementos mais importantes e sempre repetidos em seu ritual." A savana, que é árida e estéril, não tem prestígio; ela é entregue inteiramente às mulheres e é considerada como uma esfera neutra entre a selva e a aldeia. Os leles acreditam num Deus que criou os homens e os animais, os rios e todas as coisas. Também acreditam em espíritos aos quais temem e dos quais falam com muita prudência e reserva. Os espíritos nunca foram homens e nunca foram vistos por homens. Quem visse um espírito ficaria cego e morreria completamente coberto de úlceras. Os espíritos vivem nos locais mais profundos da selva, principalmente nos mananciais das correntes de água. Eles dormem de dia e vagueiam à noite. Não morrem e jamais ficam doentes. Deles depende a sorte dos homens na caça e a fertilidade das mulheres. Eles 142

podem causar muitas calamidades a uma aldeia. Os porcos selvagens são considerados como os animais mais carregados de poder supra-sensível, pois andam sempre pelos arroios e pelos mananciais, locais prediletos dos espíritos. O javali é considerado como o cão dos espíritos; ele vive com eles e lhes obedece como um cachorro obedece ao caçador. Quando um javali desobedece ao seu espírito é castigado por este, que faz com que ele seja morto durante uma caçada por um homem, ao qual concede assim uma espécie de recompensa. Os espíritos exigem muitas coisas dos homens, principalmente que reine paz na aldeia. "O sinal mais evidente de que tudo está correndo bem na aldeia é uma caçada feliz. A pequena quantidade de carne que cada homem, cada mulher e cada criança recebe quando se abate um porco selvagem não é suficiente para explicar a alegria que continua se manifestando semanas mais tarde nas conversas a respeito do acontecimento. A caça é uma espécie de barômetro espiritual, cujos altos e baixos são cuidadosamente observados pela aldeia inteira." Chama a atenção o fato de que parir crianças e caçar são atividades designadas sempre juntas, como se fossem funções análogas da mulher e do homem. "A aldeia está 'estragada' ", podem eles dizer, "a caça não teve sucesso, as mulheres estão estéreis, tudo está morrendo." Quando os leles estão satisfeitos com o estado das coisas, eles dizem: "Nossa aldeia agora é boa e rica. Matamos três javalis, quatro mulheres conceberam, todos estamos sadios e vigorosos". A atividade que goza do maior prestígio é a caça conjunta. Esta, e não a caça privada de cada um, é que conta. "Homens armados com arcos e flechas se colocam em círculo em torno de uma parte da selva. Batedores com seus cães levantam a caça. Jovens e velhos, que mal estão em condições de caminhar, procuram incorporar-se à caça. Os mais estimados são os donos de cachorros; penosamente eles abrem caminho pela vegetação, enquanto incitam e dirigem seus animais com gritos. Os animais de caça, assustados, se precipitam contra as flechas dos caçadores que estão à espera deles. Este parece ser o método de caça mais eficiente na floresta espessa. Sua finalidade é surpreender os animais; os homens atiram rápido e a distâncias muito curtas. "É assombrosa, num povo que tanto se orgulha de sua caça, a carência generalizada de habilidades individuais. Um homem que penetra na selva sempre leva consigo arco e flechas para qualquer eventualidade, mas ele se utiliza de suas armas 143

apenas contra pássaros ou esquilos, e jamais lhe ocorreria a possibilidade de atacar sozinho algum animal de maior porte. Ignoram todas as técnicas especializadas do caçador individual. Não sabem espreitar animais nem imitar seus gritos; iscas e camuflagem são truques desconhecidos por eles. Poucas vezes alguém se embrenha sozinho nas profundezas da selva. Todos os seus interesses se concentram na caça em conjunto. É possível que um homem encontre na selva toda uma manada de porcos selvagens que esteja numa zona pantanosa; arrastando-se, ele pode aproximar-se tanto que consegue ouvir-lhes a respiração. Porém, sem arriscar um único disparo, afasta-se novamente na ponta dos pés e vai procurar os demais moradores da aldeia. "Na savana se caça apenas uma vez por ano, na época da seca, quando se pode atear fogo ao pasto. Várias aldeias se unem então para cercar a paisagem em chamas. Os meninos contam com a possibilidade de conseguir assim suas primeiras presas. A carnificina, dizem, é atroz. É a única ocasião na qual a unidade de caça não é formada apenas pela população masculina de uma única aldeia; na caça na selva participam sempre apenas os homens de uma mesma aldeia. Em última instância, a aldeia forma uma unidade política e ritual por ser uma unidade de caça. Não pode surpreender que os leles considerem sua cultura em primeiro lugar como uma cultura de caça." De importância especial é a partilha das presas. Ela está rigidamente regulamentada, de um modo que enfatiza o sentido religioso da caça. Existem três sociedades culturais entre os leles; cada uma tem direito a uma alimentação muito determinada, que é proibida aos que não pertençam a ela. A primeira sociedade cultural é a dos genitores e é formada por todos os homens que tenham gerado um menino. A eles corresponde o peito de todas as presas de caça e também a carne de todos os animais jovens. Entre os genitores existem alguns que geraram um menino e uma menina; deste grupo são escolhidos os membros da segunda sociedade, ainda mais exclusiva: a dos homens-pangolim. Eles recebem esta denominação porque somente eles têm direito à carne do pangolim, animal desdentado semelhante ao tatu. A terceira sociedade é a dos adivinhos. Estes recebem a cabeça e as entranhas do porco selvagem. Nenhum animal de maior porte pode ser morto sem que — juntamente com sua partilha — se transforme em objeto de um ato religioso. O mais importante de todos os animais é o porco selvagem, e sua divisão é realizada da seguinte maneira: depois de os adivinhos terem recebido a cabeça e as entranhas, o peito 144

é dado aos genitores, a paleta aos homens que carregaram o animal até a aldeia, o pescoço aos proprietários dos cães, o lombo, um quarto traseiro e um quarto dianteiro ao homem que abateu o animal, e o estômago ao grupo dos ferreiros da aldeia que fabricaram as flechas usadas na caça. A articulação da sociedade lele se consolida, por assim dizer, após cada caçada. Mas a excitação da malta de caça se ampliou até converter-se num sentimento que apóia toda a comunidade. Podemos, sem contradizer a autora, falar a respeito de uma religião de caça, no sentido mais próprio da palavra. De maneira tão convincente, excluindo-se todas as dúvidas, nunca se tinha descrito uma religião de caça. Mas obtémse também uma valiosa idéia a respeito da transformação da selva em símbolo de massa. Tudo o que se considera de valor está contido nesta selva, e o que é mais valioso é retirado em conjunto de dentro dela. Os animais, que são o objeto da malta de caça, moram dentro dela, mas também os temidos espíritos que concedem seus animais aos homens.

Os despojos de guerra entre os jívaros O povo mais guerreiro da América do Sul são, atualmente, os jívaros do Equador. É muito revelador examinar seus costumes e suas organizações em relação à guerra e aos despojos. Neste caso não se pode falar de um excesso populacional. Eles não vão à guerra com a finalidade de conquistar novas terras. Seu espaço vital é antes grande demais do que pequeno demais. Num território com mais de 60.000 km2 vivem, talvez, uns vinte mil jívaros. Eles também não conhecem aglomerados maiores; nem mesmo as aldeias gozam de prestígio entre eles. Cada família ampliada vive numa casa própria, sob o comando do homem mais idoso, que é o chefe supremo; a família mais próxima pode encontrar-se a alguns quilômetros de distância. Não existe nenhuma organização política que os vincule entre si. Na paz, cada um dos chefes de família é a instância suprema, e ninguém pode lhe ordenar coisa alguma. Se os jívaros não se procurassem com intenções hostis nos imensos espaços de suas matas virgens, um grupo talvez jamais viesse a se encontrar com outro. O laço que os mantém unidos é a vingança de sangue ou, propriamente, a morte. Para eles não existe morte natural; quando um homem morre é porque um inimigo o enfeitiçou à distância. É dever dos seus parentes descobrir quem é o res145

ponsável pela morte e vingar esta na pessoa do feiticeiro. Toda morte, portanto, é um assassinato e todo assassinato somente pode ser vingado por um contra-assassinato. Porém, ao passo que o feitiço de perigo mortal do inimigo é eficiente a longas distâncias, a vingança física ou de sangue, que se tem a obrigação de executar, somente é possível pela procura. Os jívaros se procuram portanto uns aos outros para vingar-se e, neste sentido, a vingança de sangue pode ser considerada como o seu laço social. A família que vive junta numa casa forma uma unidade muito densa. O que um homem empreende, ele o empreende na companhia dos demais homens da casa. Para as expedições maiores, que são mais perigosas, os homens de várias casas relativamente próximas se associam. Somente para realizar uma campanha de vingança séria, é que elegem um chefe supremo, um homem experiente, geralmente mais idoso, ao qual se submetem voluntariamente durante o tempo necessário para realizar a empresa pretendida. Desta forma, a malta de guerra é propriamente a unidade dinâmica dos jívaros. Ao lado da unidade estática da família, é a única que possui importância. Em torno da malta de guerra formam-se todas as suas festas. Eles se reúnem uma semana antes de partir e voltam a se reunir numa série de grandes festas mais tarde, depois de voltarem triunfantes da expedição. As expedições de guerra servem exclusivamente para a destruição. Todos os inimigos são mortos, excetuando-se algumas mulheres jovens, e talvez algumas crianças que são adotadas pela família. A propriedade do inimigo, que geralmente é escassa, seus animais domésticos, suas plantações e sua casa são destruídos. A única coisa que se tem como objetivo é a cabeça cortada do inimigo. Por esta, entretanto, tem-se uma verdadeira paixão, e a meta suprema de todo guerreiro consiste em regressar a casa com pelo menos uma cabeça. A cabeça é preparada de maneira especial, e é reduzida ao tamanho aproximado de uma laranja. Passa então a ser chamada tsantsa. O proprietário de uma cabeça adquire, graças a ela, uma consideração especial. Depois de transcorrido um certo tempo, um ou dois anos talvez, celebra-se uma grande festa, no centro da qual está a cabeça devidamente preparada. Para esta festa são convidados todos os amigos; come-se, bebe-se e dança-se muito; tudo o que ocorre já foi estabelecido cerimonialmente. Trata-se de uma festa de caráter obviamente religioso, e uma observação atenta mostra que o desejo de multiplicação e os meios de consegui-la constituem sua própria 146

essência. É impossível abordar aqui todos os detalhes que Karsten, no seu trabalho intitulado Vingança de sangue, guerra e festas triunfais entre os jívaros, descreveu com muita amplitude. Será bastante mencionar uma de suas danças mais importantes, na qual se evocam com extrema veemência, um depois do outro, todos os animais que se caçam, e depois disto se fala do ato sexual do próprio homem, que serve para a multiplicação do grupo. Esta dança é a introdução propriamente dita da grande festa. Homens e mulheres se colocam em círculo ao redor da coluna central da-casa; dão-se as mãos e se movimentam lentamente em círculo, enquanto são gritados, como evocação, os nomes de todos os animais cuja carne é saboreada com prazer. Em seguida acrescenta-se o nome de alguns objetos de que o índio necessita para seu uso doméstico e que são fabricados por ele mesmo. Após cada um destes nomes, exclama-se com voz alta e de forma violenta: "hei!" A dança principia com assobios agudos. A evocação empregada é a seguinte: Hei, hei, hei! O macaco barulhento, hei! O vermelho, hei! O macaco pardo, hei! O macaco negro, hei! O macaco capuchinho, hei! O macaco cinzento, hei! O porco selvagem, hei! O papagaio verde, hei! O de rabo grande, hei! O porco caseiro, hei! O gordo, hei! Roupa de fêmea, hei! Faixa, hei! Cesto, hei! Esta evocação perdura durante cerca de uma hora; os dançarinos se movimentam ora para a direita, ora para a esquerda. Cada vez que eles se detêm para mudar de direção, emitem assobios estridentes e gritam "chi, chi, chi", como se com este grito quisessem manter a continuidade da evocação. Parte do rito destina-se às mulheres e à sua fecundidade: 147

Hei, hei, hei! Fêmea, hei! Fêmea, hei! Coito, hei! Que a tsantsa nos conceda o coito! Acasalar, hei! Acasalar, hei! Fêmea, hei! Fêmea, hei! Que seja de verdade, hei! Nós o fazemos assim, hei! Que seja bonito, hei! Basta, hei!

No centro deste rito e de todos os demais atos da festa está tsantsa, a cabeça do inimigo conquistada e transformada em cabeça reduzida. Seu espírito sempre se mantém próximo à cabeça, sendo altamente perigoso. Procura-se conquistá-lo de todas as maneiras possíveis. Assim que se consegue dominar este espírito, ele pode ser de grande utilidade. Garante que todos os porcos e galinhas que se possuem se multipliquem; graças a ele multiplicam-se também os tubérculos da mandioca. Ele traz toda a prosperidade que se possa desejar em forma de multiplicação. Mas não é fácil escravizá-lo completamente. A princípio ele ainda está repleto de desejos de vingança, e é inimaginável tudo o que pode causar de ruim. Mas a quantidade de ritos e de observâncias dos quais se lança mão para dominá-lo é surpreendente. A festa, que dura vários dias, é encerrada quando se consegue que a cabeça e o espírito que lhe corresponde se coloquem inteiramente sob o domínio do proprietário. Se considerarmos a tsantsa do ponto de vista dos nossos costumes habituais de guerra, podemos dizer que ela ocupa o lugar daquilo que nós chamamos despojos. Vai-se à guerra para obter a cabeça; ela é o único despojo. No entanto, por menor que seja este despojo, principalmente depois que foi reduzido ao tamanho de uma laranja, ele contém tudo o que possa ser de importância. Esta cabeça consegue para seu proprietário todas as multiplicações que ele possa desejar: a dos animais e das plantas de que se vive, a dos objetos que se fabricam e, finalmente, a das próprias pessoas. É um despojo terrivelmente concentrado e não basta obtê-lo; é preciso também, no decorrer de demoradas cerimônias, esforçar-se para transformá-lo no que se quer que ele seja. Estas ações culminam na excitação conjunta da festa, principalmente nas suas numerosas evocações e danças. A festa da tsantsa como um 148

todo está a cargo de uma malta de multiplicação. A malta de guerra, quando teve sorte, desemboca finalmente na malta de multiplicação da festa, e a inversão de um tipo de malta em outro deve ser considerada como a dinâmica própria da religião dos jívaros.

As danças da chuva dos índios pueblos São danças de multiplicação, cuja finalidade é provocar o aparecimento da chuva. De alguma forma elas fazem a chuva brotar a partir do solo. O pisar dos pés é como o cair das gotas. Se a chuva começa a cair durante a representação, eles continuam dançando nela. Um grupo de cerca de quarenta homens se transforma em chuva por intermédio de movimentos rítmicos. A chuva sempre foi o símbolo de massa mais importante dos índios pueblos. Ela sempre foi significativa também para os antepassados que podem ter vivido em outros lugares. Mas desde que eles passaram a habitar suas áridas mesetas, a importância da chuva aumentou tanto que determina desde a base a natureza de sua fé. O milho do qual se alimentam e a chuva sem a qual o milho não cresce estão no núcleo de todas as suas cerimônias. Os numerosos meios mágicos, dos quais eles se servem para conseguir a chuva, são resumidos e intensificados nas danças da chuva. É preciso enfatizar que estas danças nada têm de selvagem; elas estão relacionadas com a própria natureza da chuva. Como a nuvem, na qual ela se aproxima, ela é uma unidade. Ela está alta e distante, branca e macia, e quando se aproxima desperta sentimentos ternos nos homens. Mas assim que ela se descarrega também se desintegra; em gotas isoladas ela chega aos homens e ao solo que a absorve. A dança, cuja finalidade é atrair a chuva por transformação nela, representa também a fuga e a desintegração de uma massa, mais ainda do que a sua formação. Os dançarinos desejam a nuvem, mas ela não deve ficar lá em cima; deve transbordar sobre os que estão embaixo. A nuvem é uma massa amiga, a tal ponto que chega a ser comparada com os antepassados. Os mortos retornam nas nuvens de chuva e trazem consigo as bênçãos. No verão, quando à tarde aparecem nuvens de chuva no céu, eles dizem às crianças: "Vejam, seus avós estão vindo". Com isto eles se referem não apenas aos mortos desta família em particular, mas de maneira geral a todos os antepassados. 149

Mas os sacerdotes, no seu isolamento ritual, permanecem sentados durante oito dias, imóveis e recolhidos dentro de si mesmos diante de seus altares, e fazem invocações para atrair a chuva: Onde quer que se encontre vossa morada estável, De lá iniciareis o caminho para cá, Para encher as pequenas nuvens impelidas pelo vento, Vossas finas tiras de nuvens Com as águas cheias de vida. Enviareis, para que conosco permaneça, A vossa bela chuva que acaricia a terra, Aqui em Itiwana, Residência de nossos pais, De nossas mães, Dos que antes de nós tiveram vida, Com vossa enorme quantidade de água Chegareis todos juntos. O que se deseja é uma enorme quantidade de água. Mas esta quantidade, que se acumulou em nuvens, desintegra-se em gotas. A ênfase das danças da chuva é dada à desintegração. É uma massa suave que se deseja, não um animal perigoso que se deve abater, ou um inimigo odioso que é necessário combater. Ela é comparada à massa dos antepassados, que para eles são pacíficos e benevolentes. A bênção que suas gotas trazem ao solo, leva logo em seguida a uma outra massa, da qual eles se alimentam: o milho. Como toda a colheita, ele significa um acúmulo em montes. É o processo exatamente inverso: a nuvem de chuva se desintegra em gotas; o monte da colheita, por sua vez, é reunido com todas as suas espigas ou, melhor ainda, com todos os seus grãos. Com este alimento as pessoas se tornam fortes e as mulheres fecundas. A palavra "criança" aparece freqüentemente em suas orações. O sacerdote fala dos vivos da tribo como se fossem crianças, mas ele também fala de todos os meninos e meninas que ainda "têm diante de si o caminho da vida para ser trilhado". Eles são o que nós chamaríamos o futuro da tribo. Ele os vê, numa imagem mais precisa, como todos os que ainda têm diante de si o caminho da vida. As massas essenciais na vida dos índios pueblos são, portanto, os antepassados e as crianças, a chuva e o milho; ou se 150

quisermos fazer uma espécie de série causal: antepassados, chuva, milho e crianças. Das quatro espécies de malta, duas delas (a malta de caça e a de guerra) desapareceram quase completamente. Existem apenas alguns vestígios da caça aos coelhos. Existe ainda uma sociedade de guerreiros, mas sua função é apenas de polícia, e para a polícia, no sentido em que a entendemos, existem poucas ocasiões entre os índios pueblos. A malta de lamentação foi restringida de maneira surpreendente. São executadas apenas as cerimônias fúnebres indispensáveis e procura-se esquecer os mortos, como indivíduos, o mais rápido possível. Quatro dias depois de a morte ter ocorrido, o sacerdote supremo aconselha que os enlutados não pensem mais no morto. "Ele já está morto há quatro anos!" O morte é relegada para o passado e a dor é aplacada desta forma. Os índios pueblos não têm maltas de lamentação: eles isolam a dor. Resta-lhes apenas, como forma ativa e ricamente elaborada, a malta de multiplicação. Toda a ênfase da vida comunitária é transferida para ela. Seria possível dizer que eles vivem apenas para esta multiplicação, cujo caráter é exclusivamente positivo. Aquela cabeça de Jano que se conhece entre tantos outros povos — multiplicação por um lado, diminuição do inimigo por outro — lhes é totalmente desconhecida. Eles não se interessam pela guerra. A chuva e o milho os predispuseram à doçura; sua vida depende inteiramente dos seus próprios antepassados e das crianças.

Dinâmica de guerra. O primeiro morto. O triunfo A dinâmica interna (ou de malta) de guerra se apresenta da seguinte forma na sua origem: da malta de lamentação em torno de um morto forma-se uma malta de guerra para vingá-lo. E da malta de guerra que venceu forma-se a malta de multiplicação do triunfo. É o primeiro morto que contagia todos com a sensação de ameaça. O significado deste primeiro morto para atiçar todas as guerras não pode ser suficientemente enfatizado. Os detentores do poder que querem desencadear uma guerra sabem muito bem que precisam conseguir ou inventar um primeiro morto. Não se trata tanto do seu peso dentro do grupo. Pode ser alguém que não possua nenhuma influência especial; às vezes, é até mesmo um desconhecido. O que importa é a sua morte e nada mais; é preciso acreditar que o inimigo seja 151

responsável por esta morte. Todos os motivos que podem ter levado à sua morte são ocultados, excetuando-se um só: ele pereceu como membro de um grupo ao qual se pertence. A malta de lamentação, rapidamente estabelecida, atua como cristal de massa; ela, por assim dizer, se abre: todos os que se sentem ameaçados por esse mesmo motivo se unem. Sua mentalidade transforma-se numa de malta de guerra. A guerra, que para ser deflagrada se serviu de um ou de alguns mortos, provoca um grande número de mortes. O lamento por estes outros mortos, quando se consegue o triunfo, tem algo de muito moderado em comparação com o lamento pelo primeiro morto. A vitória, que é compreendida como uma diminuição decisiva, quando não como o extermínio dos inimigos, reduz a importância do lamento pelos próprios mortos. Eles foram enviados como uma patrulha avançada ao território dos mortos, para onde arrastaram inimigos em quantidade muito maior. Desta maneira eles conseguiram afastar o medo, sem o que ninguém teria marchado para a guerra. O inimigo foí derrotado; a ameaça que uniu os homens caiu no esquecimento e cada qual parte agora em busca dos seus próprios interesses. A malta de guerra está em vias de se desintegrar no saque, muito semelhante ao que ocorre com a malta de caça no momento da partilha. Se a ameaça não chegou a ser realmente vivida de forma coletiva, foi exclusivamente a perspectiva do saque a motivação que conseguiu levar os homens à guerra. Neste caso é sempre necessário permitir que o saque se realize; um comandante militar dos velhos tempos dificilmente se teria atrevido a negar este privilégio aos seus soldados. Mas o perigo de uma desintegração total da tropa pelo saque era tão grande que sempre se procurou conseguir encontrar meios capazes de restabelecer o espírito bélico. O meio de maior êxito para isto foram as /estas de vitória. O confronto entre a diminuição do inimigo e a própria multiplicação é o sentido particular das festas de vitória. Reúne-se o povo todo: homens, mulheres e crianças. Os vencedores aparecem nas mesmas formações em que partiram para o combate. Desfilando diante do povo, eles conseguem contagiá-lo com o clima de vitória. Reúne-se cada vez mais gente até que, finalmente, estão presentes todos os que podem abandonar suas residências. Mas os vencedores não se exibem sozinhos. Eles trouxeram consigo muitos objetos e atuam como multiplicadores. Seus despojos são exibidos também para a população. Existe uma grande abundância de tudo o que se necessita e de que 152

se gosta, e cada um receberá sua parte. Isto tanto pode ocorrer mediante a organização de grandes distribuições entre o povo, ou mediante a promessa de redução dos impostos, acompanhada de outras regalias. Não são apenas o ouro e os bens que fazem parte dos despojos de guerra; há também prisioneiros e sua grande quantidade torna visível a diminuição do inimigo. Em sociedades que alcançaram um certo grau de civilização, as pessoas se contentam com esta exibição dos prisioneiros inimigos. Outras, que nos parecem mais bárbaras, exigem mais: querem, justamente como congregados, como elementos reunidos e já sem a sensação de ameaça imediata, viver a diminuição do inimigo. Chega-se desta forma à execução pública de prisioneiros, que faz parte das festas de vitória de muitos povos guerreiros. Estas execuções adquiriram dimensões francamente fantásticas na capital do reino do Daomé. Lá existia a instituição de uma festa anual que perdurava durante vários dias: o rei oferecia ao seu povo um espetáculo sangrento em que centenas de prisioneiros eram decapitados à vista de todos. O rei se instalava em seu trono sobre uma plataforma, rodeado pelos seus dignitários. Abaixo dele encontrava-se o povo, densamente reunido. A um sinal do rei, os carrascos punham mãos à obra. As cabeças dos mortos eram lançadas em um monte; vários destes montes ficavam à vista de todos. Havia desfiles pelas ruas ladeadas pelos corpos nus de prisioneiros enforcados. Para não ferir o sentimento de pudor das inúmeras esposas do rei, os prisioneiros tinham sido castrados. No último dia da festa, a corte se reunia novamente sobre uma plataforma e se fazia a entrega de grandes presentes ao povo: conchas que serviam como moedas eram lançadas ao povo que lutava para consegui-las. Depois eram lançados inimigos amarrados, que também eram decapitados. O povo lutava pela posse do corpo e dizem que os homens, delirantes, o devoravam. Pode-se falar neste caso de uma verdadeira comunhão no triunfo. Os seres humanos eram seguidos por animais; o decisivo continuava sendo o inimigo. Existem relatos de testemunhas oculares européias destas festas realizadas no séc. XVIII. Nesta época os representantes das nações brancas tinham seus estabelecimentos no litoral; o objeto do seu comércio eram os escravos. Eles também viajavam para a capital do país, Abomei, para comprá-los do rei, que vendia parte de seus prisioneiros aos europeus. Suas expedições de guerra tinham exatamente esta finalidade e os europeus daquele tempo toleravam com agrado esta situação. Eles 153

consideravam bem menos agradável a obrigação de presenciar as horrorosas execuções de massa; mas sua presença fazia parte do bom-tom, da etiqueta da corte. Eles procuravam convencer o rei de que era preferível vender como escravos os prisioneiros destinados à execução. Agindo assim eles se sentiam humanos, e faziam bons negócios! Porém, para sua surpresa, às vezes constatavam que o rei, apesar de sua cobiça, não estava disposto a renunciar às suas vítimas. Em épocas em que havia escassez de escravos e o comércio ia mal, eles se revoltavam contra a teimosia do rei. Não compreendiam que para ele importava mais o poder do que as propriedades. O povo estava acostumado à exibição das vítimas; da demonstração da grande diminuição dos inimigos dessa forma cruel e pública, o povo extraía a certeza de sua própria multiplicação. Da mesma demonstração também emanava de maneira imediata o poder do rei. O efeito causado pelo espetáculo era de natureza dupla. Este era o método mais infalível de que dispunha o rei para convencer o povo de sua própria multiplicação sob seu reinado, mantendo-o em estado de massa religiosamente submissa. Mas o método servia também para manter desperto o terror em relação às ordens do rei. As execuções eram ordenadas por ele pessoalmente. A maior cerimônia pública dos romanos era o triunfo. Toda a cidade se reunia nele. Porém, quando o império chegou ao apogeu do seu poder e deixou de sair constantemente para realizar novas conquistas, institucionalizou-se a mesma vitória, que passou a ser comemorada periodicamente em determinadas datas. Na arena lutava-se diante dos olhos do povo reunido, sem quaisquer conseqüências políticas e, certamente, não sem sentido, pois era uma forma de voltar a despertar o sentimento de vitória e de mantê-lo bem aceso. Os romanos, na sua qualidade de espectadores, já não lutavam mais eles mesmos; no entanto decidiam como massa quem era o vencedor e o aclamavam como nos velhos tempos. Era exclusivamente este sentimento de vitória que lhes interessava. As próprias guerras, que já não pareciam tão necessárias, perdiam sua importância diante da importância dada a estes acontecimentos. Entre povos históricos deste tipo, a guerra se converte no meio mais claro da multiplicação. Seja porque por meio da guerra se conseguem despojos dos quais se vive, seja porque desta maneira se obtêm escravos que trabalham para os vencedores; qualquer outra forma mais paciente de multiplicação é repelida e considerada como sendo desprezível. Forma-se as154

sim uma espécie de religião bélica estatal: sua meta está relacionada com a mais rápida de todas as multiplicações.

O Islamismo como religião de guerra Os fiéis maometanos se reúnem de quatro maneiras diferentes. 1 — Eles se reúnem várias vezes por dia para a oração, à qual são convocados por uma voz que lhes vem do alto. Trata-se neste caso de pequenos grupos rítmicos que podem ser considerados como maltas de oração. Cada movimento está prescrito de forma exata e é dominado por uma direção: a de Meca. Uma vez por semana, na oração de sexta-feira, estas maltas se transformam em massas. 2 — Eles se reúnem para a guerra santa contra os infiéis. 3 — Eles se reúnem em Meca durante a grande peregrinação. 4 — Eles se reúnem para o juízo final. No Islamismo, como em todas as religiões, as massas invisíveis são as de maior importância. Porém, de forma mais distinta do que nas demais religiões universais, existem aqui massas duplas invisíveis que se enfrentam. Assim que ressoa a trombeta do juízo final, todos os mortos se erguem de seus túmulos, dirigindo-se rapidamente, como se obedecessem a ordens militares, para o campo do juízo. Lá eles se formam, diante de Deus, em dois poderosos grupos separados entre si; de um lado permanecem os fiéis, os infiéis ficam do outro lado, e cada um é julgado por Deus. Todas as gerações dos homens se reúnem desta forma e cada um deles dá a impressão de ter sido sepultado na véspera. Nenhum tem a menor idéia dos períodos de tempo incomensuráveis que podem ter decorrido enquanto jazia sepultado. Na morte não há sonhos, e dela não se tem lembrança. Porém o soar da trombeta é ouvido por todos e por cada um. "Nesse dia, os homens se erguerão aos bandos." O Corão está repleto de referências aos bandos que irão se erguer nesse dia, nesse grande momento. Esta é a idéia de massa mais englobante que um crente maometano pode ter. Ninguém é capaz de imaginar um número maior de seres humanos do que numa reunião de todos os que já tenham vivido, aglomerados num mesmo lugar. Esta é a única massa que não cresce mais e é a que tem a 155

maior densidade, pois cada um dos seus participantes, e todos no mesmo local, se apresenta diante do seu juiz. No entanto, com todo o seu tamanho e sua densidade, desde o princípio até o fim, esta massa permanece dividida em duas. Cada qual sabe perfeitamente o que o espera: em uns há esperança, terror em outros. "Haverá neste dia rostos radiantes, risonhos, felizes; e haverá neste dia rostos cobertos de pó, cobertos de trevas; estes são os infiéis, os sacrílegos." Como se trata de uma sentença absolutamente justa — cada ação foi anotada por escrito e pode ser verificada — ninguém pode escapar da metade à qual pertence de direito. No Islamismo a divisão da massa em duas partá é incontornável: ela é formada pelo grupo de fiéis e pelo dos infiéis. O destino de ambos, que permanecerão sempre separados, é combater-se reciprocamente. A guerra santa é considerada como um dever sagrado, e desta maneira, já durante esta vida, em cada batalha está prefigurada a massa dupla do juízo final — se bem que de maneira menos global. Uma imagem totalmente diferente aparece diante dos olhos dos maometanos como um dever não menos sagrado. a peregrinação a Meca. Neste caso, trata-se de uma massa lenta, que se forma paulatinamente pela somatória de fiéis vindos de todos os confins do mundo. Ela pode perdurar, dependendo da distância que o fiel é obrigado a percorrer até chegar a Meca, semanas, meses ou até mesmo anos. O dever de realizar esta viagem pelo menos uma vez no transcorrer da vida acaba caracterizando toda a passagem terrena de um homem, Quem não esteve nesta peregrinação não viveu realmente. Sua vivência engloba, por assim dizer, todo o território coberto pela fé e leva todos a se reunirem e a se concentrarem no mesmo lugar onde esta fé se originou. Esta massa de peregrinos é pacífica. Ela se dedica exclusivamente ao sucesso de sua meta. Sua tarefa não é a de subjugar infiéis; ela deve apenas chegar a um lugar assinalado e deve ter estado lá. Considera-se como um milagre muito especial o fato de que uma cidade do tamanho de Meca possa acolher estes incontáveis grupos de peregrinos. O peregrino espanhol Ibn Jubayr, que chegou a Meca pelos fins do séc. XII e que deixou uma descrição detalhada de sua viagem, acredita que nem mesmo a maior cidade do mundo teria espaço para tanta gente. Mas Meca teria sido abençoada com uma capacidade especial de ampliação para abrigar as massas; poder-se-ia compará-la a um útero que, segundo a constituição do embrião nele contido, pode aumentar ou diminuir de tamanho, 156

O momento mais importante da peregrinação é o dia em que todos se reúnem na planície de Arafat: setecentos mil homens devem ficar lá reunidos de pé. O que lhes falta em números para atingir esta quantidade é fornecido por anjos que se colocam, invisíveis, entre os homens. Porém, passados os dias de paz, a guerra santa volta a exigir seu direito. "Maomé", diz um dos melhores conhecedores do Islamismo, "é o profeta da luta e da guerra. .. O que ele realizou primeiro em seu âmbito árabe legou-o por testamento ao futuro de sua comunidade: a luta contra os infiéis, a expansão não tanto da fé mas sim de sua esfera de poder, que é a esfera de poder de Alá. Aos paladinos do Islamismo o que mais importa em primeiro lugar não é tanto a conversão, mas sim a subjugação dos infiéis." O Corão, o livro do profeta inspirado por Deus, não deixa dúvidas a este respeito. "Quando os meses sagrados tiverem passado, matem os infiéis onde quer que eles estejam; prendam-nos, ataquem-nos e preparem contra eles todos os tipos de emboscadas."

Religiões de lamentação A terra toda está repleta de religiões de lamentação. No Cristianismo elas alcançaram uma espécie de validade universal. A malta que as sustentava tem apenas uma curta duração. O que foi que deu consistência às formas de fé que derivam da lamentação? O que lhes proporciona esta perseverança peculiar durante milênios? A lenda em torno da qual elas se formam é a de um homem ou de um deus que pereceu injustamente. Sempre é a história de uma perseguição, seja ela uma caçada ou não. Também um processo injusto pode estar vinculado ao todo. Se for uma caçada, mata-se por descuido o principal dos caçadores em lugar do animal perseguido. Pode ocorrer, numa reversão, que o animal acossado ataque e fira o caçador com conseqüências mortais, como sucede na tradição de Adônis e do javali. Justamente esta morte jamais deveria ter ocorrido e a dor provocada por ela ultrapassa todas as medidas. É possível que uma deusa ame e chore a vítima, como Afrodite em relação a Adônis. Na nomenclatura babilônica a deusa se chama Ishtar, e Tammuz é o belo joven prematuramente morto. Entre os frígios, é a deusa-mãe Cibele que chora seu jovem amante Átis. "Ela está consideravelmente transtor157

nada, atrela leões diante de seu carro, desloca-se por todo o monte Ida com os seus coribantes, que ela transtornou como a si mesma, chorando seu Átis; um dos seus coribantes perfura os próprios braços, outro perambula pelas montanhas com os cabelos soltos ao vento, um terceiro toca a corneta, outro mais acima golpeia um tambor ou faz barulho batendo pedaços de metal; todo o monte Ida está revolto e em furor fanático." No Egito, é fsis quem perdeu seu esposo Osíris. Ela o procura sem descansar; aflita percorre o país todo, e não pára antes de conseguir encontrá-lo: "Vem para tua casa", lamenta-se ela, "vem para tua casa... não te vejo, e meu coração teme por ti e meus olhos te desejam. Vem para junto daquela que te ama, que te ama, bem-aventurado! Vem para tua irmã, vem para tua esposa, tua esposa, tu, cujo coração parou. Vem para tua dona da casa. Eu sou tua irmã, nascida da mesma mãe, não deves ficar distante de mim. Os deuses e os homens voltaram seus rostos em tua direção e juntos choram por ti, .. Eu choro por ti e clamo por ti, e até no céu se ouve isto, mas tu não ouves minha voz, e eu sou tua irmã, que tu amavas na terra; tu não amavas nenhuma outra além de mim, meu irmão!" Mas também pode ocorrer — e este caso já é posterior e não mais mítico — que um grupo de familiares e de discípulos chore por ele, como por Jesus ou por Hussain, o neto do profeta, o mártir dos xiitas. A caça ou perseguição é representada com todos os detalhes; trata-se de uma história exata, mantida como algo muito pessoal; sempre corre sangue, mesmo na mais humana de todas as paixões; nem mesmo na de Cristo abre-se mão do sangue e das chagas. Cada uma das ações que formam a paixão é tida como injusta; quanto mais se afasta dos tempos míticos, tanto mais existe a tendência em prolongar e em equipar a paixão com inúmeras características humanas. A caçada ou a perseguição sempre é percebida do ponto de vista da vítima. Em torno do seu fim forma-se uma malta de lamentação, mas seu lamento tem urna nota especial: um homem que morreu por amor dos homens que o choram. Ele era o salvador deles, talvez por ser um grande caçador, talvez por ter outros méritos maiores, Seu valor é destacado de todas as maneiras possíveis; ele é justamente aquele que não deveria estar morto. Sua morte não é aceita pelos que a lamentam. Todos querem tê-lo de volta, vivo, Na narração da malta de lamentação arcaica, como no caso australiano já citado, chamou-se a atenção para o fato de 158

a la mentação começar em torno do moribundo. Os vivos procuram retê-lo consigo e o cobrem com seus próprios corpos. Eles o acolhem no monte que formam, por todos os lados se apertam contra ele, procurando impedir que se vá. Freqüentemente se pede que retorne, mesmo depois da chegada da morte e somente quando se tem certeza absoluta de que ele não retornará mais é que principia a segunda fase, a da rejeição, ' do envio para o mundo dos mortos. Na malta de lamentação que estamos abordando, que se forma como lenda em torno de um morto de valor, o processo da morte é prolongado de todas as maneiras. Seus parentes ou fiéis, que neste caso são a mesma coisa, se recusam a entregá-lo. A primeira fase, a do querer reler, é a mais decisiva e todo o peso cai sobre ela. É a época em que todos correm para reunir-se, vindos de todos os lados, e todo aquele que queira lamentar-se é bemvindo. Nestes cultos religiosos a malta de lamentação se abre e se amplia, formando uma massa que cresce de maneira irreprimível. Isto ocorre nas festas pelo próprio morto, cuja paixão é representada. Cidades inteiras se unem a estas festas e freqüentemente também numerosos grupos de peregrinos que chegam de lugares distantes. A malta de lamentação, entretanto, também pode abrir-se durante prolongados espaços de tempo: o número dos fiéis se multiplica. Começa com uns poucos seguidores que estão ao pé da cruz como núcleo do lamento. Na primeira festa de Pentecostes podem ter participado uns seiscentos cristãos; nos tempos do imperador Constantino, eles já são dez milhões. Mas o núcleo da religião continuou sendo o mesmo, seu centro é a lamentação. Por que tantos se unem ao lamento? Em que consiste sua atração? Em que o lamento ajuda as pessoas? Em todos os que aderem ao lamento ocorre a mesma coisa: a malta de caça ou de perseguição se redime como malta de lamentação. Os homens viveram como perseguidores e, à sua maneira, continuam sempre vivendo como perseguidores. Eles procuram a carne alheia e cortam pedaços dela, alimentando-se do tormento das criaturas mais fracas. Nos seus olhos reflete-se o olhar quebrado da vítima, e o último grito dela, com o qual se regozijam, fica gravado de forma indelével em suas almas. Em sua grande maioria, talvez as pessoas nem desconfiem que simultaneamente com seu próprio corpo estejam alimentando também o que existe de tenebroso dentro delas. Mas a culpa e o medo vão aumentando nelas de maneira irreprimível, de maneira que, sem suspeitar, desejam a redenção. Por isso, aderem 159

a um que morre por elas e, no lamento por ele, elas mesmas se sentem como perseguidas. Não importa o que tenham feito, que mortes tenham ocasionado; pela duração deste instante, elas se colocam ao lado do padecimento. Trata-se de uma repentina e transcendente mudança de partido, de lado. E isto as liberta da culpa acumulada de matar e do medo de que a morte consiga atingir elas próprias. O que quer que tenham causado a outras pessoas, neste momento outro alguém assume tudo isso, e desde que o sigam fielmente e sem reservas, conseguirão escapar — pelo menos assim esperam — da vingança. Constata-se assim que as religiões de lamentação são imprescindíveis à harmonia espiritual dos homens, enquanto eles não forem capazes de renunciar à atividade de matar em maltas. Das religiões de lamentação que foram transmitidas até nossos tempos e que merecem ser submetidas a uma análise mais detalhada, a dos xiitas islâmicos é a mais reveladora. Também seria correto relatar o culto de Tammuz ou o de Adônis, o de Osíris ou o de Átis. Mas todos eles pertencem ao passado; são conhecidos apenas pelos escritos cuneiformes e hieroglíficos, ou ainda pelas obras dos autores clássicos; pelo que, apesar de estas informações terem um valor incalculável, parece mais conveniente tratar de uma fé que continua existindo ainda hoje e que, onde existe, atua de maneira aguda e sem atenuações. A mais significativa de todas as religiões de lamentação é o Cristianismo. A respeito da sua forma católica ainda teremos algumas coisas a dizer. Mas dos momentos concretos do Cristianismo, dos momentos de verdadeira excitação de massas, em vez de escolhermos um de lamentação autêntica, que se tornou bastante rara, descreveremos outro: a festa da Ressurreição na igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém. A lamentação propriamente dita, como malta apaixonada que se abre para formar uma massa verdadeira, manifesta se com ímpeto inesquecível na festa do muharram dos xiitas,

A festa do muharram entre os xütas Do Islamismo, que tem características inconfundíveis de uma religião de guerra, gerou-se por divisão uma religião de lamentação; a mais concentrada e extrema que se poderia encontrar: a fé dos xiitas. É a religião oficial do Irã e do Iêmen. Ela também é amplamente difundida na índia e no Iraque. Os xiitas acreditam num líder espiritual e temporal de 160

sua comunidade, que é chamado de imã. Sua posição é mais significativa do que a do papa. Ele é o portador da luz divina. É infalível. Somente o fiel que se une ao seu imã pode ser salvo. "Quem morre sem conhecer um verdadeiro imã do seu tempo, tem a morte de um infiel." O imã descende em linha direta do profeta. Ali, o genro de Maomé, que se casou com sua filha Fátima, é considerado como o primeiro imã. O profeta confiou a Ali conhecimentos especiais que não deu aos demais companheiros e que vão passando hereditariamente na família. Ali foi nomeado expressamente seu sucessor na vocação docente e no governo. Ele é o escolhido por disposição do profeta; somente a ele pode ser dado o título "soberano dos verdadeiros crentes". Os filhos de Ali, Hassan e Hussain, herdaram depois a função dele: eram os netos do profeta. Hassan foi o segundo imã e Hussain o terceiro. Qualquer outro que se arrogasse um governo sobre os crentes era um usurpador. A história política do Islamismo após a morte de Maomé incentivou a formação de uma lenda em torno de Ali e dos seus filhos. Ali não foi imediatamente eleito para o cargo de califa. No decorrer dos primeiros vinte e quatro anos após a morte de Maomé, três outros de seus companheiros de luta ocuparam sucessivamente esta dignidade máxima. Somente quando o terceiro deles morreu é que Ali chegou ao poder, mas governou por pouco tempo. Durante um serviço religioso de sextafeira na grande mesquita de Kufa, ele foi assassinado com uma espada envenenada por um oponente fanático. Hassan, seu filho mais velho, vendeu seus direitos por uma soma de vários milhões de dirhams e se retirou para Medina, onde após alguns anos morreu em conseqüência de uma vida extravagante. Os sofrimentos de Hussain, seu irmão mais jovem, tornaram-se o verdadeiro núcleo da fé dos xiitas. Ele era a imagem oposta de Hassan; era um homem reservado e sério, que vivia retirado em Medina. Embora após a morte de seu irmão ele se tenha tornado o chefe dos xiitas, durante muito tempo não se meteu em atividades de cunho político. Mas quando o califa regente morreu em Damasco, e seu filho quis proclamar-se seu sucessor, Hussain opôs-se-lhe à pretensão. Os habitantes da turbulenta cidade de Kufa, no Iraque, escreveram a Hussain, convidando-o a ir até lá. Eles o queriam como califa, e quando assumisse o cargo todos o apoiariam. Ele então se pôs a caminho com sua família, com suas mulheres e filhos e com um pequeno grupo de partidários. Era necessário percorrer um longo caminho pelo deserto. Quando chegou nas imediações 161

da cidade, esta já o tinha abandonado. O governador enviou ao seu encontro um grande destacamento de cavaleiros, que o intimou à rendição. Hussain recusou render-se e eles lhe cortaram o acesso à água. Depois ele foi cercado com seu pequeno grupo. Na planície de Kerbela, no décimo dia do mês de muharram, no ano 680, segundo nossa contagem de tempo, Hussain com seus seguidores, que se defenderam valorosamente, foram atacados e mortos. Com ele caíram oitenta e sete homens, e entre eles quase toda a sua família e a de seu irmão. Seu cadáver apresentava as marcas de trinta e três ferimentos de lança e de trinta e quatro golpes de espada. O comandante da tropa inimiga ordenou que seus subordinados cavalgassem sobre o cadáver de Hussain. O neto do profeta foi pisoteado pelos cascos dos cavalos. Sua cabeça foi cortada e enviada ao califa de Damasco, que a golpeou com um bastão na boca. Um ancião, que tinha sido companheiro de Maomé e que estava presente nesta ocasião, reprovou-lhe esse gesto: "Não use o seu bastão", disse ele, "eu vi a boca do profeta beijando essa boca". As "tribulações da estirpe do profeta" se transformaram no tema propriamente dito da literatura religiosa xiita. "Os verdadeiros membros deste grupo são reconhecidos pelos corpos enfraquecidos pelas privações, pelos lábios ressecados pela sede e pelos olhos marcados pelo choro incessante. O verdadeiro xiita é perseguido e desgraçado como a família, por cujo direito ele responde e padece. Quase podemos considerar como profissão da família do profeta sofrer dificuldades e perseguições." Desde o dia de luto em Kerbela, a história desta estirpe é uma sucessão contínua de sofrimentos e de tormentos. Seu relato em poesia e prosa é cultivado numa rica literatura de martirológios; estes temas constituem o objeto das reuniões dos xiitas durante o primeiro terço do mês de muharram, cujo décimo dia — ashura — é considerado como o aniversário da tragédia de Kerbela. "Nossos dias de comemoração são nossas reuniões fúnebres", conclui um poema, no qual um príncipe de orientação xiita celebra as muitas tribulações da família do profeta. Chorar, lamentar-se e ficar de luto pelas desgraças e perseguições da família de Ali e do seu martírio é o assunto primordial dos verdadeiros fiéis. "Mais comovedor do que a lágrima xiita", diz um provérbio árabe. "Chorar por Hussain", diz um indiano moderno, que pertence a esta fé, "este é o preço da nossa vida e da nossa alma; de outra maneira seríamos as mais ingratas de todas as criaturas. Mesmo no paraíso 162

continuaremos de luto por Hussain ... O luto por Hussain é o símbolo do Islamismo. Para um xiita é impossível não chorar. Seu coração é um túmulo vivo, o verdadeiro túmulo da cabeça do mártir decapitado." A contemplação da pessoa e do destino de Hussain se encontram emocionalmente no centro da fé. São a fonte principal de onde flui a experiência religiosa. Sua morte foi interpretada como auto-sacrifício voluntário através do seu sacrifício é que os santos chegam ao paraíso. De início, a idéia de um mediador era estranha aos Islamismo. Na religião xiita, ela se tornou predominante desde a morte de Hussain. O túmulo de Hussain na planície de Kerbela se converteu muito rapidamente no local de peregrinação mais importante dos xiitas. Quatro mil anjos rodeiam o túmulo do neto do profeta, chorando por ele noite e dia. Eles vão ao encontro de cada peregrino até a fronteira, venha ele de onde vier. Quem visita este sepulcro consegue as seguintes vantagens: o teto de sua casa jamais cairá sobre ele. Ele nunca se afogará. Não perecerá no fogo. Os animais selvagens não o atacarão. Além disso, quem rezar com fé verdadeira nesse sepulcro terá anos adicionais de vida. Ganhará o mérito equivalente a mil peregrinações a Meca, a mil mortes por martírio, a mil dias de jejum, a mil libertações de escravos. Durante todo o ano seguinte, nada poderão fazer contra ele os diabos e os maus espíritos. Caso morra, será enterrado por anjos, e no dia da ressurreição se erguerá juntamente com os crentes do imã Hussain, que ele reconhecerá pela bandeira que o imã levará na mão. Este conduzirá os seus peregrinos de forma triunfal e direta ao paraíso. Segundo uma outra tradição, todos os que são enterrados no sepulcro de um irmã não serão submetidos ao juízo no dia da ressurreição, por mais que tenham pecado; eles serão lançados diretamente no paraíso, como que por uma lona de linho, e os anjos lhes apertarão a mão com satisfação. Por este motivo xiitas velhos se estabeleciam em Kerbela para lá morrerem. Outros, que sempre viveram a grande distância da cidade santa, determinavam como última vontade serem enterrados lá. Há séculos, intermináveis caravanas da Pérsia e da índia deslocam-se para Kerbela transportando mortos; a cidade se transformou num único e gigantesco cemitério. A grande festa dos xiitas, onde quer que eles vivam, são os dias do mês de muharram, durante os quais Hussain sofreu sua paixão. Durante dez dias , toda a nação persa fica de luto. O rei, os ministros, os funcionários vestem-se de negro 163

ou de cinza. Soldados e condutores de caravanas andam de camisa aberta ao peito, o que é considerado como grande sinal de dor. No primeiro dia de muharram, que também assinala o início do ano novo, começa a festa. Do alto dos púlpitos de madeira narra-se a história da paixão de Hussain. Ela é descrita com todo o luxo de detalhes, sem que nenhum episódio seja omitido. Os ouvintes ficam profundamente comovidos. Seus gritos "Ó Hussain! Ó Hussain!" são acompanhados de gemidos e lágrimas. Este tipo de lamentação se prolonga durante o dia todo, e os pregadores se revezam em diferentes púlpitos. Durante os nove primeiros dias do muharram, grupos de homens, com os peitos nus e pintados de vermelho ou negro, percorrem as ruas. Arrancam os próprios cabelos, provocam ferimentos em si mesmos com a espada, arrastam pesadas correntes ou representam danças selvagens. Chegam a ocorrer combates sangrentos com membros de outras seitas. A celebração culmina no dia 10 de muharram com uma grande procissão, que originalmente representava o enterro de Hussain. Seu centro é formado pelo ataúde do imã, que é carregado por oito pessoas. Cerca de sessenta homens manchados de sangue marcham atrás do ataúde, entoando uma canção marcial. Eles são seguidos por um cavalo, o corcel de guerra de Hussain. No final, costuma ir um grupo de aproximadamente cinqüenta homens, que golpeiam ritmicamente dois pedaços de madeira. O delírio que se apossa destas massas de lamentação durante as festas é quase inimaginável. Teremos ocasião de comprovar isto ainda melhor um pouco mais adiante, por uma narração vinda de Teerã. As verdadeiras representações da paixão, nas quais se evocam dramaticamente os padecimentos de Hussain, somente se transformaram numa instituição permanente nos princípios do séc. XIX. Gobineau, que por volta dos meados do século passado residiu durante muito tempo na Pérsia, forneceu urna apaixonante descrição destes acontecimentos. Os teatros eram doados por pessoas ricas; os gastos eram considerados como obra multo meritória, com a qual o doador "construía para si um palácio no paraíso". Os maiores tinham capacidade para duas a três mil pessoas. Em Ispahan as cenas eram representadas diante de mais de vinte mil espectadores. O acesso era público; qualquer um podia entrar, tanto o mendigo esfarrapado como o mais rico dos senhores. As representações eram iniciadas às cinco horas da manhã. Antes da encenação da paixão, durante muitas horas realizavam-se procissões, danças, pregações e cantos. Refrescos eram servidos aos 164

spectadores; homens ricos e de prestígio faziam questão de servir pessoalmente até mesmo os espectadores mais andrae josos. Gobineau descreve dois tipos de confrarias que intervêm nesses acontecimentos. "Homens e meninos com archotes entram no teatro em procissão atrás de uma grande bandeira negra; cantando fazem uma volta completa. A noite podem-se ver estes bandos passando rapidamente pelas ruas, dirigindose de um teatro para outro. Algumas crianças os precedem correndo e soltando gritos estridentes: "Ai, Hussain! Ai, Akbar!" Os irmãos se instalam diante dos púlpitos dos pregadores, cantando e golpeando-se de maneira bizarra e selvagem. Com a mão direita formam uma espécie de concha, batendo com violência e num determinado ritmo logo abaixo do ombro esquerdo. Conseguem desta forma um ruído surdo que, quando produzido simultaneamente por muitas mãos, é audível a grande distância e muito eficaz. Algumas vezes os golpes são pesados e lentos, produzindo um ritmo arrastado. Outras são ligeiros e rápidos, excitando os assistentes. Quando as confrarias começam esta atividade, logo começam a ser imitadas por todo o auditório. A um sinal do seu chefe supremo, todos os irmãos começam a cantar, a golpear-se, a saltar no mesmo lugar, repetindo com voz entrecortada e rápida: `I-lassan! Hussain!' "Uma confraria de outra índole é a dos flagelantes. Eles se fazem acompanhar por música produzida por tamborins de tamanhos diferentes. Andam com o peito e os pés nus e a cabeça descoberta. São homens adultos; algumas vezes há também velhos e até mesmo jovens de doze a dezesseis anos. Carregam correntes de ferro e agulhas pontiagudas. Alguns levam discos de madeira. Entram no teatro em procissão e entoam, de início bastante devagar, uma litania formada por apenas duas palavras `Hassan! Hussain!' Os tamborins os acompanham num ritmo cada vez mais rápido. Os que têm discos de madeira batem uns contra os outros ritmicamente, e todos começam a dançar. Os espectadores os acompanham batendo no próprio peito. Depois de algum tempo os irmãos começam a se flagelar com suas correntes, primeiro lentamente e com uma cautela evidente; depois vão se animando e se golpeiam com mais força. Todos os que têm agulhas as espetam nos braços e nas faces; escorre o sangue, a multidão se exalta e soluça, a excitação cresce. O chefe do grupo corre de um lado para outro entre as filas, estimulando os fracos e segurando os braços dos que exageram em seu fre165

nesi. Quando a excitação se torna excessiva, ele interrompe a música e suspende tudo. É difícil não se deixar influenciar por tal cena: sente-se empatia, compaixão e espanto, tudo ao mesmo tempo. Às vezes vêem-se flagelantes, no momento em que a dança termina, levantando os braços com as correntes para o céu, exclamando com voz tão profunda e olhar tão forte e repleto de fé: `Ya Alá! ó Deus!' que todo o seu ser parece estar transfigurado a ponto de provocar admiração em todos." Poder-se-ia classificar esses grupos como orquestras de amargura; seu efeito é o de cristal de massa. A dor que ocasionam a si mesmos é a dor de Hussain. Ao representá-la, ela se transforma na dor de toda a comunidade. Pelos golpes desferidos contra o peito, que todos acabam imitando, origina-se uma massa rítmica. Ela é sustentada pelo sentimento da lamentação. Hussain lhes foi arrebatado a todos, e ele pertence a todos eles juntos. Porém não são apenas os cristais das confrarias que desencadeiam uma massa de lamentação entre os assistentes. Também os pregadores e outras pessoas que aparecem de forma isolada provocam este mesmo efeito. Basta ler o que Gobineau presenciou como testemunha ocular numa ocasião. "O teatro está completamente lotado. É fim de junho; tem-se a sensação de sufocar debaixo da imensa tenda. A multidão toma refrescos. Um dervixe sobe ao palco e canta um hino que é acompanhado por golpes no peito. Sua voz não chega a ser precisamente arrebatadora; ele parece estar fatigado. Não causa grande impacto; os cânticos tornam-se mais lentos. O homem parece perceber isso; interrompe-se, desce do tablado e some. Volta a reinar silêncio. Nisto um soldado grande e pesado, um turco, toma bruscamente a palavra com voz de trovão e vai dando palmadas cada vez mais fortes no próprio peito. Outro soldado, também turco, mas de outro regimento e tão esfarrapado quanto o primeiro, começa a responder. Os golpes sobre o peito recomeçam com precisão. Durante vinte e cinco minutos a massa ofegante é arrebatada por estes dois homens e se golpeia a ponto de ficar com manchas visíveis. O canto monótono e perfeitamente compassado a embriaga. Todos se golpeiam da melhor forma que podem; produz-se um ruído surdo, profundo, regular, resoluto; mas para alguns isto não é suficiente. Um jovem negro, que parece um carregador de mercadorias, se levanta em meio à multidão acocorada. Tira seu gorro e começa a cantar a plenos pulmões, enquanto golpeia a cabeça com os dois punhos. Ele estava a dez passos de mim; eu podia acompanhar todos os seus mo166

vimentos. Seus lábios iam perdendo a cor; quanto mais descorado ele ficava, mais se animava, gritando e golpeando-se como numa bigorna. Continuou assim durante cerca de dez minutos. Mas os dois soldados já não agüentavam mais; estavam cobertos de suor. O coro, assim que deixou de ser guiado e transportado pelas suas vozes firmes e potentes, começou a vacilar e a se confundir. Uma parte das vozes emudeceu e o negro, como se agora lhe faltasse todo o apoio material, fechou os olhos e tombou sobre o seu vizinho. Todos pareciam sentir muita compaixão e grande respeito por ele. Puseram-lhe gelo sobre a cabeça e levaram-lhe água aos lábios. Mas ele estava desmaiado e somente voltou a si depois de algum tempo. Quando recuperou os sentidos, agradeceu de forma mansa e amável a todos os que o haviam ajudado. "Assim que a calma se restabeleceu, subiu ao palco um homem trajado de verde. Não havia nada de insólito na sua pessoa; ele se parecia com um vendedor de artigos de um bazar. Este homem fez um sermão a respeito do paraíso, cuja grandiosidade pintou com veemente eloqüência. Para entrar nele não bastava ler o Corão do profeta. 'Não basta fazer tudo o que recomenda este livro sagrado, não basta vir chorar no teatro como vocês o fazem todos os dias. Vocês devem praticar boas obras em nome de Hussain e por amor dele. Hussain é a porta do paraíso, Hussain é quem sustenta o mundo; é através de Hussain que ocorrem as bênçãos. Gritem: Hassan! Hussain! "A multidão toda gritou: 'Ó Hassan! Ó Hussain!' "'Mais uma vez!' "`C) Hassan! Ó Hussain!' "'Roguem a Deus, para que ele sempre conserve vocês no amor a Hussain! Vamos, clamem a Deus!' "A massa toda, com um único gesto, levanta os braços para o alto e grita com voz surda e forte: `Ya Alá! Ó Deus!'." A representação propriamente dita da paixão, que ocorre depois desta longa e excitante introdução, consiste numa sucessão solta de quarenta a cinqüenta cenas. Todos os acontecimentos são relatados pelo arcanjo Gabriel ao profeta ou previstos em sonhos, antes de desenrolar-se no cenário. Tudo o que irá ocorrer já é conhecido dos espectadores; não se trata de uma tensão dramática como a entendemos; trata-se, isto sim, de uma participação total. Todos os padecimentos de Hussain, os suplícios de sua sede por lhe terem cortado o acesso à água e os episódios da batalha e de sua morte são descritos com um vigoroso realismo. Somente os imãs e os san167

tos, os profetas e os anjos cantam. Personagens odiados como o califa Yazid, que ordenou a morte de Hussain, e o assassino Schamr, que lhe deu o golpe mortal, não podem cantar; eles apenas declamam. Pode ocorrer que eles próprios fiquem comovidos com a monstruosidade dos seus atos. Nesse caso eles irrompem em lágrimas enquanto pronunciam suas palavras malvadas. Não há aplausos; as pessoas choram, gemem, batem nas próprias cabeças. A excitação dos espectadores alcança um ponto tão extremo que não é raro tentarem linchar os personagens infames, os assassinos de Hussain. No final mostra-se como a cabeça cortada do mártir é levada para a corte do califa. Durante o caminho ocorre um milagre após outro. Um leão faz uma profunda reverência diante da cabeça de Hussain. A caravana detém-se junto a um mosteiro cristão; quando o abade vê a cabeça do mártir, abjura sua fé e converte-se ao Islamismo. A morte de Hussain não foi em vão. Na ressurreição lhe é confiada a chave do paraíso. Deus mesmo dispõe: "O direito de intercessão é expressamente seu. Hussain será, por minha graça especial, o mediador de todos". O profeta Maomé entrega a Hussain as chaves do paraíso e diz: "Vai e salva das chamas cada um que durante a vida verteu uma única lágrima por ti, cada um dos que te ajudaram de alguma maneira, cada um dos que empreenderam uma peregrinação ao teu santuário ou que fizeram lamentações por ti e cada um dos que escreveram versos trágicos em teu louvor. Leva cada um destes e todos contigo para o paraíso". Não existe religião que tenha dado uma maior ênfase à lamentação. É o maior mérito religioso e supera muitas vezes qualquer outra boa obra. Pode-se falar com toda certeza de uma religião de lamentação. Seu paroxismo, no entanto, não é alcançado por este tipo de massa durante as representações das cenas da paixão. O "Día do Sangue" nas ruas de Teerã, que envolve meio milhão de pessoas, foi descrito por uma testemunha ocular com as palavras que se seguem. Será difícil encontrar um relato mais perturbador. "Quinhentas mil pessoas, tomadas de loucura, cobrem a cabeça com cinza e batem com a testa no chão. Querem submeter-se a uma tortura voluntária, querem matar-se em grupos e mutilar-se de forma refinada. Os desfiles das corporações vão se sucedendo um após outro. Como são formados por pessoas que conservam um vestígio de razão, ou seja, o ins168

tinto da autopreservação, seus participantes vestem-se de forma normal. "Faz-se um grande silêncio; centenas de homens de camisas brancas aproximam-se, tendo no rosto voltado para o céu uma expressão de êxtase. "Destes homens, muitos estarão mortos ao entardecer; muitos estarão mutilados e desfigurados, e suas camisas brancas tingidas de vermelho serão suas mortalhas. Estes seres já não pertencem à terra. Suas túnicas de corte tosco lhes deixam livres apenas o pescoço e as mãos; rostos de mártires, mãos de assassinos. "Com gritos de estímulo e por contágio de sua loucura, outros lhes entregam sabres. Agora sua excitação se torna assassina; giram em círculos sobre si mesmos, brandindo as armas que lhes foram entregues sobre suas próprias cabeças. Seus gritos dominam os da massa. Para suportar seus sofrimentos, eles precisam cair num estado de catalepsia. Com passos de autômatos, avançam, retrocedem, vão para o lado, sem qualquer ordem aparente. A cada passo, compassadamente, eles golpeiam as próprias cabeças com os sabres serrilhados. O sangue corre. As túnicas se tingem de escarlate. A visão deste sangue leva ao máximo a confusão em suas mentes. Alguns destes mártires voluntários caem por terra e golpeiam com seus sabres à esquerda e à direita. De suas bocas crispadas corre sangue. Em seu frenesi, eles cortaram suas próprias veias e artérias, e morrem no próprio local antes que a polícia tenha tempo para transportá-los a um pronto-socorro que foi instalado atrás da porta fechada de uma loja. "A massa, insensível aos golpes da polícia, se fecha em torno destes homens, envolvendo-os e arrastando-os para uma outra parte da cidade, onde o banho de sangue continua. Ninguém mantém a consciência clara. Os que não têm coragem suficiente para derramar seu próprio sangue oferecem coca aos outros como revigorante, excitando-os com esta substância e com imprecações. "Os mártires despem a túnica, que é considerada sagrada, e as dão aos que os arrastaram. Outros, que inicialmente não estão entre as vítimas voluntárias, descobrem repentinamente em meio à excitação geral sua própria sede de sangue. Exigem armas, arrancam suas vestes e se ferem no corpo todo. "Às vezes forma-se um claro no meio de um desfile; um dos participantes cai esgotado. O claro se fecha imediatamente; a massa se fecha sobre o infeliz, que é impelido com os pés e pisoteado. 169

"Não existe sorte mais bela do que morrer num dia de festa de aschura; os portões dos oito paraísos estão abertos de par em par para os santos e todos procuram entrar lá. "Soldados em serviço, encarregados de cuidar dos feridos e de manter a ordem, tomados pela excitação da massa, despem seus uniformes e mergulham também no meio desse banho de sangue. "O delírio toma também as crianças, inclusive as mais pequenas; junto a uma fonte está uma mãe, embriagada de orgulho, apertando contra o coração seu filho que acaba de mutilar-se. Outro chega correndo e gritando: acabou de vazar um olho e dentro de instantes vaza também o outro; os pais o contemplam com regozijo."

Catolicismo e massa Numa análise livre de preconceitos chama a atenção no Catolicismo uma certa lentidão e calma, relacionadas com uma grande amplitude. Sua pretensão principal, a de oferecer lugar para todos, está contida no seu próprio nome. Deseja-se que todos se convertam a ele, e cada qual é aceito sob certas condições que não podem ser consideradas duras. Nisto, no princípio, e não no processo de recepção, o Catolicismo conservou um último vestígio de igualdade que contrasta curiosamente com sua índole rigidamente hierárquica. Sua alma, que, junto com sua amplitude, exerce a maior atração sobre muitos, se deve à sua antiguidade e à sua aversão em relação a toda violência de massa. A desconfiança em relação à massa não abandona o Catolicismo desde muito tempo, talvez desde os mais remotos movimentos heréticos dos montanistas, que se dirigiram aos bispos com resoluta irreverência. A periculosidade dos estalos súbitos, sua rapidez e imprevisibilidade, e principalmente a supressão das distâncias obrigatórias, entre as quais devem-se contar de modo especial as distâncias da hierarquia eclesiástica, tudo isto fez com que desde cedo a Igreja passasse a ver na massa aberta seu principal inimigo, e fez com que ela se opusesse a esta massa de todas as maneiras possíveis. Todo o conteúdo de sua fé, como também todas as formas práticas de sua organização estão eivados deste inabalável sentimento. Até hoje não houve sobre a face da Terra estado algum que soubesse defender-se de tantas maneiras di170

ferentes contra a massa. Comparados com a Igreja, todos os poderosos dão a impressão de serem modestos diletantes. É preciso pensar, antes de mais nada, no próprio culto, que atua da maneira mais imediata sobre os fiéis reunidos. Ele é de uma lentidão e de uma parcimônia sem paralelo. Os movimentos dos sacerdotes em seus ornatos pesados e rígidos, a medida dos seus passos, o tom de suas frases, tudo lembra um pouco uma lamentação fúnebre infinitamente diluída, repetida por séculos com tal regularidade que do que existe de repentino na morte, da intensidade da dor, praticamente nada restou: o processo temporal da morte é mumificado. Mas a vinculação entre os próprios fiéis é impedida de mais de uma forma. Eles não pregam uns aos outros; a palavra do crente simples não tem valor algum de santidade. Tudo o que ele espera, tudo o que tenha a resolver, a pressão múltipla exercida sobre ele, emanam sempre de uma fonte superior; o que não lhe é explicado, ele nem sequer compreende. A palavra santa lhe é ministrada já mastigada e dosada; ela é, justamente na sua qualidade de santa, protegida dele. Até mesmo os seus pecados pertencem aos sacerdotes, aos quais ele deve confessá-los. Não é um alívio para ele comunicá-los a outros fiéis, e ele também não pode guardá-los para si. Em todas as questões morais mais profundas, ele encara somente o clero; em troca da vida mediatamente satisfeita que o clero lhe oferece, ele se entrega totalmente. Mas mesmo a maneira como é dada a comunhão separa o crente dos demais que a recebem com ele em vez de vinculá-los num mesmo lugar. O comungante recebe, somente para si, um valioso tesouro. Ele espera este tesouro para si mesmo, sozinho ele terá de cuidar dele. Quem observa as filas dos que vão tomar a comunhão não pode deixar de observar até que ponto cada qual se preocupa apenas consigo mesmo. Os que estão na sua frente ou atrás lhe importam ainda menos do que o próximo com o qual se relaciona na vida diária — e o relacionamento com este próximo já é em si bastante tênue. A comunhão vincula o destinatário com a Igreja, que é invisível e que tem dimensões descomunais; ela o arrebata dos presentes. Entre si os comungantes se sentem muito pouco como unidade, da mesma forma como um grupo de homens que, tendo encontrado um tesouro, acabam de reparti-lo entre si. Na natureza deste fato, tão importante para a fé, a Igreja revela sua prudência diante de tudo o que seria capaz de evocar a massa. Ela enfraquece e freia tudo o que existe de comum entre os homens realmente presentes e coloca em seu lugar um 171

misterioso país remoto, superpotente, que não necessita de forma imprescindível do crente, e que jamais suprime realmente a fronteira que o separa do crente, enquanto este ainda está com vida. A massa permitida, que é constantemente citada pelo Catolicismo, a massa dos anjos e dos bem-aventurados, está situada em um além distante e é por isso, pelo seu distanciamento, inofensiva e fora do alcance de qualquer contágio imediato. Além disso ela é, em si, de uma impassibilidade e de uma calma exemplares. Não se imagina que os bem-aventurados sejam muito ativos; sua impassibilidade lembra a de uma procissão. Eles perambulam lentamente e cantam, entoam hinos e sentem sua própria felicidade. Todos agem de forma semelhante; não se pode deixar de perceber uma certa uniformidade em seus destinos; nunca se tentou dissimular ou ocultar o que existe de semelhante em suas maneiras de vida. Eles são muitos, estão juntos e muito próximos e se encontram tomados pela mesma bem-aventurança. Mas em tudo isso estão enumeradas suas características de massa. Eles se tornam mais; isto no entanto ocorre de forma tão lenta que mal se percebe; nunca se fala a respeito do seu número crescente. Eles também não têm uma direção. A situação deles é definitiva. A corte que eles formam é imutável. Eles já não querem ir para lugar algum; já não existe algo que possam esperar. Certamente esta é a forma de massa mais mansa e menos danosa que se possa imaginar. Talvez ela esteja justamente no limite do que ainda pode ser qualificado como massa; é um coro reunido que entoa cânticos bonitos, mas não muito excitantes; a eleição como estado eterno, depois de todas as labutas que servem de prova. Se a duração não fosse o que é mais difícil de ser alcançado em tudo o que os homens desejam, seria difícil compreender em que consiste, especificamente, a atração dos bem-aventurados como massa. Na terra, nem tudo ocorre de forma tão imobilizada como entre os bem-aventurados; mas, qualquer coisa que a Igreja mostre, é sempre mostrada lentamente. As procissões são um exemplo impressionante. Elas devem ser vistas pelo maior número possível de pessoas; seus movimentos são orientados neste sentido — ela flui lentamente. As procissões reúnem os crentes, passando ao longo deles para incorporá-los paulatinamente, sem provocar grandes movimentos a não ser cair de joelhos e entrar na seqüência-prevista no final do cortejo, sem que os crentes tenham a idéia ou mesmo o menor desejo de subir de posição dentro da seqüência estabelecida. A procissão oferece sempre uma imagem da hierarquia 172

eclesiástica. Cada qual desfila paramentado de acordo com sua dignidade e é reconhecido e designado pelo que representa. Espera-se pela bênção daquele que tem o direito de dá-la. Já esta articulação de procissão inibe no espectador a aproximação a um estado semelhante ao de massa. Ele é retido em muitos níveis da contemplação ao mesmo tempo; todo o movimento de equiparação entre eles, todas as reuniões repentinas estão excluídas. O contemplador adulto jamais se verá como sacerdote ou como bispo. Estes sempre permanecem separados dele, sempre acima dele. Porém, quanto mais crente ele for, mais tenderá a testemunhar-lhes sua veneração, pois estão acima dele e são mais santos do que ele. Ë exatamente isto, e não outra coisa, a meta da procissão: procura-se alcançar a veneração conjunta dos fiéis. Uma maior atividade comunitária nem é desejada, pois poderia conduzir a ações e estalos passionais que já não poderiam ser controlados. A própria veneração também é graduada; ascendendo no decorrer da procissão, de degrau em degrau, degraus conhecidos e esperados, estáticos, fica neutralizado o espinho da ação brusca. A veneração aumenta de forma lenta e imperturbável como a maré; ela alcança seu nível mais elevado, e depois, lentamente, volta a cair. Considerando-se a importância de todas as formas de organização para a Igreja, não é de se estranhar que ela apresente um rico número de cristais de massa. Talvez em nenhuma outra parte seja possível estudar sua função tão bem como aqui; o que porém não deve ser esquecido é que eles servem à direção geral da Igreja, que é justamente a de impedir ou de desacelerar as formações de massa. A estes cristais de massa pertencem os mosteiros e as ordens religiosas. Eles contêm os cristãos propriamente ditos, que vivem para a obediência, a pobreza e a castidade Eles servem para colocar de vez em quando à vista dos outros, dos muitos que se denominam cristãos mas não são capazes de viver como tais, exemplos de pessoas que realmente o são. Seu traje funciona como o mais importante meio para conseguir este objetivo. Ele significa renúncia e desprendimento do laço costumeiro com os familiares. Sua função modifica-se completamente em épocas de perigo. Não é sempre que a Igreja pode se permitir sua elegante reserva, sua aversão em relação à massa aberta, a proibição gueimpôs ôs à formação desta massa. Existem épocas em que ela é ameaçada por inimigos externos; épocas em que a apostasia se propaga com tanta rapidez que somente é possível combatê-la com os meios da própria epidemia. Nestas épocas 173

a Igreja se vê obrigada a opor massas próprias às massas inimigas. Os monges se convertem então em agitadores que, fazendo suas pregações, cruzam o país, instigando as pessoas a uma atividade que em condições normais se prefere evitar. O exemplo mais grandioso de uma formação deliberada de massas realizada pela Igreja são as cruzadas.

O fogo sagrado de Jerusalém A festividade grega da semana santa em Jerusalém culmina numa ação de caráter excepcional. No sábado de aleluia, na igreja do Santo Sepulcro, o fogo sagrado desce do céu para a terra. Milhares de peregrinos vindos do mundo inteiro estão reunidos para acender seus círios na chama, assim que esta aparece no sepulcro do Redentor. O fogo propriamente dito é considerado inofensivo; os crentes estão convencidos de que ele nada lhes pode fazer. No entanto, a luta para obter o fogo custou a vida a não poucos peregrinos. Em 1853, Stanley, que posteriormente chegou a deão de Westminster, presenciou durante uma viagem a comemoração da Páscoa na igreja do Santo Sepulcro, deixando um relato detalhado a este respeito. "A capela que contém o Santo Sepulcro está situada no centro da igreja. Em dois grandes círculos, separados por duas fileiras de soldados, encontram-se reunidos os fiéis, estreitamente apertados em torno do sepulcro. O espaço existente entre os dois anéis de pessoas é mantido livre por soldados turcos. Nas galerias superiores estão sentados os espectadores; é a manhã do sábado de aleluia e por enquanto tudo ainda está tranqüilo. Nada anuncia os acontecimentos que ocorrerão mais tarde. Dois ou três peregrinos se seguram firmemente a uma abertura do muro da capela do Santo Sepulcro. "Por volta do meio-dia, um grupo desordenado de cristãos árabes irrompe na passagem livre e corre em círculos até serem presos pelos soldados. Aparentemente estes árabes" acreditam que o fogo não virá se eles não correrem algumas vezes em torno do sepulcro. Durante duas horas completas ocorrem estes saltos de regozijo ao redor do sepulcro. Vinte, trinta ou cinqüenta homens começam a correr de repente, perseguindo-se uns aos outros, erguendo um deles sobre os ombros ou sobre a cabeça e correndo para a frente com ele, até que ele desça com um salto, sendo substituído por outro. Alguns vestem-se com peles de carneiro, outros estão quase nus. Geral174

mente um deles vai na frente como porta-voz. Ele bate palmas e os demais também o fazem, emitindo um alarido feroz: 'Este é o sepulcro de Jesus Cristo. Deus guarde o sultão. Jesus Cristo nos redimiu'. O que é iniciado em grupos menores vai aumentando rapidamente, até que por fim todo o espaço circular entre os soldados fica repleto por uma correria, um torvelinho, uma corrente torrencial de figuras selvagens. Paulatinamente o frenesi se aplaca ou é bloqueado. A pista circular é desimpedida e da capela dos gregos se aproxima uma grande procissão com estandartes bordados, que se movimenta em torno do sepulcro. "A partir deste momento, a excitação, que até então se restringia aos que corriam e dançavam, se torna generalizada. As duas gigantescas massas de peregrinos, separadas pelos soldados, permanecem ainda paradas em seus lugares; no entanto, todos juntos começam a emitir uma sucessão selvagem de gritos, entre os quais de quando em quando — o que soa bastante estranho -- se ouvem os cânticos da procissão. Três vezes a procissão gira em torno do sepulcro. Na terceira vez, as duas filas de soldados turcos se reúnem e juntam-se ao final da procissão. Num único grande movimento, a massa oscila ondulante. O ponto culminante do dia está se aproximando. A presença dos infiéis turcos impede, acredita-se, a descida do fogo, e chegou o momento de expulsá-los da igreja. Eles se deixam expulsar e um tumulto como de batalha e vitória preenche a igreja toda. De todas as direções o populacho raivoso irrompe sobre as tropas, que fogem da igreja pelo canto sudeste; a procissão é interrompida, os estandartes estremecem e oscilam. "Num grupo pequeno mas compacto de pessoas, o bispo de Petra, que desta vez é o 'bispo do fogo' e que representa o patriarca, é levado rapidamente à capela do Santo Sepulcro e a porta é fechada atrás dele. A igreja toda é agora um só mar de cabeças e retumba com força. Uma única parte permanece livre: um estreito corredor que conduz da abertura no lado norte da capela ao muro da igreja. Ao lado da abertura colocou-se um sacerdote para apanhar o fogo. De ambos os lados do corredor, até onde a vista alcança, estendem-se centenas de braços nus, que estremecem como os galhos de uma floresta abalada por uma violenta tempestade. "Em épocas anteriores e mais audaciosas, neste instante aparecia uma pomba sobre a cúpula da capela, para tornar visível a descida do Espírito Santo. Este costume foi abolido, mas a crença na descida continua existindo, e somente tendo 175

isto em vista é possível compreender a excitação crescente dos próximos momentos. Uma chama luminosa como de lenha ardendo aparece dentro da abertura; ela foi acesa — como todo grego culto sabe e admite — pelo bispo no interior da capela. Cada peregrino, no entanto, acredita que se trate da luz da descida de Deus ao Santo Sepulcro. Tudo se dilui agora na excitação generalizada que preenche a igreja toda; é impossível perceber nitidamente qualquer incidente ou característica do todo. Lenta e paulatinamente, o fogo passa de mão em mão, de vela em vela, pela enorme multidão, até que finalmente o prédio todo, de uma galeria à outra, forma um único fogo de milhares de velas acesas. "É neste momento que o bispo ou o patriarca, carregado nos ombros das pessoas, é levado para fora da capela, prestes a desmaiar, para causar a impressão de estar abalado pela glória do Todo-poderoso de cuja presença ele acaba de voltar. "Uma grande corrida inicia-se então, para escapar da fumaça e do calor sufocante e também para levar as velas acesas para as ruas e para as casas de Jerusalém. A multidão lança-se para fora pela única porta da igreja e às vezes a aglomeração é tão grande que ocorre uma desgraça como em 1834, quando custou a vida de centenas de pessoas. Durante mais alguns momentos os peregrinos continuam correndo de um lado para outro, expondo o rosto e o peito ao fogo, para demonstrar a sua inofensividade, na qual acreditam. O entusiasmo selvagem porém extinguiu-se com a comunicação do fogo. Um dos aspectos não menos impressionantes do espetáculo é a rápida e total diminuição de um frenesi de tal intensidade. A furiosa agitação da manhã forma um estranho contraste com o repouso profundo da noite, quando a igreja volta a ficar repleta e coberta por uma única massa de peregrinos, mas que desta vez estão imersos em sono profundo. É assim que eles esperam pela cerimônia da meia-noite." Também o grande desastre de 1834 teve uma testemunha ocular inglesa, Robert Curzon. Seu relato a respeito da catástrofe é de uma plasticidade aterradora e nós o apresentamos aqui nos seus principais detalhes. À meia-noite precedente ao sábado de aleluia, Curzon dirigiu-se com seus amigos à igreja do Santo Sepulcro para assistir à procissão dos gregos. Cada janela e cada canto, cada espaço mínimo onde pudesse ser colocado o pé pareciam estar repletos de pessoas, excetuando-se apenas a galeria reservada a Ibrahim Pascha, o governador turco de Jerusalém, e a seus hóspedes ingleses. Pelo que se dizia, dezessete mil pere176

grinos encontravam-se na cidade e quase todos tinham vindo para ver o fogo sagrado. Pela manhã, os soldados abriram caminho em meio à multidão para Ibrahim Pascha. Ele foi recebido por uma espécie de procissão maluca e tomou seu lugar na galeria. "As pessoas foram se tornando enlouquecidas. Durante uma noite inteira elas tinham permanecido de pé numa massa enorme e agora estavam esgotadas. Quando se aproximou o momento da apresentação do fogo sagrado, elas não conseguiam conter sua alegria. Sua excitação foi aumentando. Por volta de uma hora da tarde, uma magnífica procissão saiu da capela dos gregos. Eles conduziram três vezes o patriarca em torno do sepulcro. Depois o patriarca despiu seus paramentos externos feitos de tecido bordado com prata, e entrou no sepulcro cuja porta foi fechada atrás dele. A agitação dos peregrinos tinha alcançado seu ponto culminante; soltavam gritos estridentes. A densa massa humana oscilava de um lado para outro como um trigal ao vento. "O fogo sagrado é apresentado por um orifício redondo numa determinada parte da capela do Santo Sepulcro. O homem que tinha pago a soma mais elevada por esta honra foi conduzido por um grupo de soldados ao local indicado. Durante um momento reinou silêncio; depois apareceu uma luz no sepulcro e o feliz peregrino recebeu do patriarca, que estava lá dentro, o fogo sagrado. Este consistia num maço de finas velas de cera acesas; elas, estavam presas numa armação de ferro; desta maneira pretendia-se evitar que fossem separadas e apagadas pela multidão, pois logo em seguida se formou uma batalha furiosa. Todos estavam tão ocupados em conseguir a luz sagrada que várias pessoas, procurando acender as próprias velas, acabavam apagando as de seus vizinhos. "Nisto consistia a cerimônia toda; não houve sermão, nem orações, apenas alguns poucos cânticos durante a procissão. Logo em seguida era possível ver as luzes multiplicando-se em todas as direções; cada um acendera a própria vela na chama sagrada. As capelas, as galerias, cada canto onde fosse possível aparecer uma vela — tudo refulgia num mar de luz. Em seu frenesi, os homens esfregavam os maços de velas acesas no rosto, nas mãos e no peito para se purificarem de seus pecados. "Logo tudo ficou obscurecido pela fumaça das velas; eu vi essa fumaça escapando em grossas nuvens pela abertura existente no centro da cúpula superior. Havia um horrível mau cheiro. Três infelizes pessoas, abatidas pelo calor e pela falta 177

de ar, caíram das galerias superiores e foram despedaçar-se sobre as cabeças das pessoas que estavam embaixo. Uma pobre mulher armênia de dezessete anos morreu onde estava, vítima do calor, da sede e da fadiga. "Finalmente, depois de termos visto tudo o que havia para ser visto, Ibrahim Pascha se ergueu e foi embora. Seus numerosos guardas abriram à força caminho para ele em meio à densa massa que tomava a igreja toda. Essa massa era monstruosa; por isso esperamos um pouco antes de iniciarmos nosso regresso ao convento onde estávamos hospedados. Eu ia na frente, sendo seguido por meus amigos; os soldados nos abriam caminho através da igreja. Eu tinha chegado ao lugar onde ficara a Virgem Maria durante a crucificação, quando vi uma grande quantidade de homens caídos uns sobre os outros nesta parte da igreja que eu podia ver até a porta. Procurei da melhor forma possível passar entre eles, até que foram ficando tão juntos que fui obrigado a pisar sobre um grande monte de corpos. Repentinamente passou-me pela cabeça que todos deviam estar mortos. A princípio eu não tinha percebido isto; achava que eles estavam apenas extenuados pelos esforços da cerimônia e que tinham se deitado para descansar. Mas, quando cheguei ao monte maior e olhei para baixo, percebi aquela expressão dura e angulosa nos rostos que não dava margem a equívocos. Alguns estavam completamente pretos em conseqüência da sufocação, e mais adiante havia outros cheios de sangue e cobertos com os miolos e as entranhas dos que tinham sido pisoteados e despedaçados pela massa. "Nesta parte da igreja já não existia mais uma massa viva; mas um pouco mais além, num ângulo em direção à entrada principal, as pessoas em pânico continuavam pressionando para a frente e cada qual se esforçava ao máximo para escapar. Os guardas de fora, atemorizados pelas pressões de dentro, acreditavam que os cristãos quisessem atacá-los: a confusão se transformou rapidamente em batalha. Com suas baionetas, os soldados mataram muitos pobres-diabos que estavam caindo de esgotamento; as paredes estavam salpicadas de sangue e dos miolos dos homens que tinham sido abatidos como gado pelos mosquetes dos soldados. Cada qual procurava se defender ou se salvar. Todos os que caíam na refrega eram imediatamente pisoteados pelos demais. A luta se tornou tão selvagem e desesperada que por fim até mesmo os peregrinos tomados de pânico e de susto pareciam estar mais interessados em destroçar os outros do que em salvar a própria vida. "Assim que percebi o perigo gritei para meus companhei178

ros, dizendo-lhes que retrocedessem, o que eles fizeram. Eu mesmo porém fui arrastado pela multidão até as imediações da porta, onde todos lutavam pela vida. Aqui, vi a morte certa diante de mim e fiz todos os esforços possíveis para voltar atrás. Um oficial do Pascha, reconhecível pela estrela de coronel, alarmado como eu, também procurava voltar para trás. Ele me agarrou pelas roupas e me jogou sobre o corpo de um velho que estava dando seu último suspiro. O oficial me prendia contra o solo e, com a coragem do desespero, lutamos entre mortos e moribundos. Briguei com esse homem até conseguir abatê-lo. Finalmente pude pôr-me de pé outra vez. Mais tarde fiquei sabendo que ele não se levantou mais. "Durante um momento fiquei de pé em melo à refrega sobre a base instável de corpos mortos, soerguido pela densa massa que se aglomerava nesta parte estreita da igreja. Todos permanecemos quietos durante um curto espaço de tempo. Repentinamente, a massa oscilou. Um grito ecoou, a massa se abriu e eu me vi no meio de uma fila de homens, oposta a outra que se encontrava na minha frente, todos lívidos e desfigurados, com as roupas rasgadas e manchadas de sangue. Ali estávamos e nos olhávamos fixamente; um súbito impulso tomou conta de nós, e com gritos que retumbaram pelas largas naves da igreja do Santo Sepulcro as duas filas inimigas se lançaram uma contra a outra. Logo depois eu me encontrei agarrado a um homem semidespido, cujas pernas estavam sujas de sangue. A massa voltou a cair em lutas desesperadas e com duros golpes consegui retornar ao interior da igreja, onde encontrei meus amigos. Conseguimos alcançar a sacristia dos católicos e de lá o aposento que os monges nos tinham desig• nado para o período de nossa permanência. Ainda na entrada da sacristia tivemos de travar um furioso combate com um número considerável de peregrinos que pretendiam entrar conosco. Dei graças a Deus por minha salvação, que quase não consegui. "Os mortos jaziam estendidos aos montes; eu vi talvez mais de quatrocentos desgraçados, mortos e vivos, todos empilhados em desordem, em alguns lugares em montes de mais de um metro e meio. Ibrahim Pascha tinha saído da igreja apenas alguns minutos antes de nós, tendo escapado com vida por milagre. A massa o cercava por todos os lados e alguns chegaram a atacá-lo. Somente graças aos maiores esforços do seu séqüito, do qual vários homens foram mortos, é que ele conseguiu atingir o pátio externo. Durante a luta ele chegou a desmaiar mais de uma vez; seus homens foram obrigados a 179

abrir com golpes de sabre caminho para ele através da densa massa de peregrinos. Ao chegar lá fora ele ordenou que os cadáveres fossem retirados e que fossem separados os corpos dos que ainda pareciam estar com vida debaixo do monte de mortos "Depois da pavorosa catástrofe na igreja do Santo Sepulcro, a multidão de peregrinos em Jerusalém foi tomada de pânico e cada qual procurava fugir o mais rapidamente possível da cidade. Corria um boato de que a peste estava se espalhando. Como os demais, demos também início aos preparativos para a partida." Para compreender o que ocorreu ali, é necessário fazer uma distinção entre o transcorrer regular das festas da Páscoa e este pânico de 1834, que Curzon testemunhou. Trata-se da festa da Ressurreição. A malta de lamentação, que se formou em torno da morte de Cristo e do seu sepulcro, transformou-se em malta de vitória. A ressurreição é a vitória e é comemorada como tal. O fogo atua aqui como símbolo de massa de vitória. É preciso que ele seja comunicado a cada um dos presentes para que a sua alma participe da ressurreição. Cada qual, por assim dizer, deve converter-se no próprio fogo que vem do Espírito Santo, e assim é indispensável que cada qual acenda sua vela nele. A partir da igreja, este valioso fogo é transportado para casa. A fraude na maneira como este fogo é gerado é irrelevante. Essencial é a transformação da malta de lamentação em malta de vitória. Participa-se da morte do Salvador, reunindo-se em torno do seu sepulcro. Mas, acendendo-se a vela no fogo pascal que surge do seu sepulcro, participa-se de sua ressurreição. Muito bonita e significativa é a multiplicação das luzes; a maneira como de uma rapidamente se formam milhares de luzes. A massa destas luzes é a massa dos que viverão porque acreditam. Ela nasce com uma rapidez espantosa, com a mesma rapidez do fogo que se expande. O fogo é o melhor símbolo da rapidez e do que existe de repentino na formação das massas. Mas antes de se chegar a isso, antes que o fogo realmente apareça, luta-se por ele. Os soldados turcos, infiéis, que estão presentes na igreja, devem ser expulsos; enquanto eles estiverem presentes, o fogo não pode aparecer. Sua retirada faz parte do ritual da festa, e dá-se quando chega a procissão dos dignitários gregos. Os turcos dirigem-se para a saída, mas os crentes os empurram como se os estivessem expulsando, e um tumulto 180

como de batalha e de vitória reina imediatamente dentro da igreja. A cerimônia começa com duas massas retidas que estão separadas pelos soldados. Pequenas maltas rítmicas de cristãos árabes movimentam-se entre elas e as excitam. Estas maltas ferozes e fanáticas funcionam como cristais de massa e contagiam com sua excitação todos os que estão esperando pelo fogo. Depois é iniciada a procissão dos dignitários, uma massa lenta, que porém nesta ocasião chega mais rapidamente do que nunca à sua meta: o patriarca meio desmaiado que mais tarde, após o fogo ter sido aceso, é carregado pelos dignitários é testemunho vivo disso. O pânico de 1834 deriva com aterrorizante conseqüência do elemento de luta que faz parte da cerimônia. O perigo de pânico quando existe fogo num ambiente fechado é sempre muito grande. Mas neste caso ele é reforçado ainda mais pela oposição entre os não-crentes, que inicialmente estão presentes na igreja, e os crentes que querem expulsá-los. O relato de Curzon é rico em detalhes que esclarecem este aspecto do pânico: num dos seus muitos momentos aparentemente incoerentes e absurdos, ele se vê de repente no meio de uma fila de homens enfrentando outra fila inimiga. As duas filas avançam uma contra a outra, travando um combate de vida ou morte. Ele menciona também os montes de cadáveres sobre os quais se pisa e sobre os quais se procura salvar a própria vida. A igreja do Santo Sepulcro converteu-se num campo de batalha. Cadáveres e corpos ainda com vida amontoam-se em numerosas pilhas. A ressurreição transformou-se no seu oposto: um massacre geral. A imagem de um monte ainda maior de mortos, a idéia da peste, apodera-se dos peregrinos, e todos fogem da cidade onde está o Santo Sepulcro.

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MASSA E HISTÓRIA

Símbolos de massa das nações

Na maior parte das vezes as tentativas de se chegar ao fundo das nações padeceram de uma falha essencial. Queria-se chegar a definições do nacional propriamente dito; uma nação, dizia-se, é isto ou aquilo. Vivia-se na crença de que importava apenas encontrar a definição correta. Uma vez conseguida, ela poderia ser aplicada a todas as nações. Invocava-se o idioma ou o território, a literatura escrita, a história, o governo, o assim chamado sentimento nacional, e em seguida as exceções eram sempre mais importantes do que a regra. O resultado era sempre agarrar algo vivo por uma ponta solta de sua roupagem insignificante; esta se desprendia facilmente, e ficava-se então de mãos vazias. Ao lado deste método aparentemente objetivo havia outro, ingênuo, interessado numa única nação, ou seja, na própria; para este método, todas as demais nações eram indiferentes. Ele consistia numa inabalável reivindicação de superioridade; de visões proféticas a respeito da própria grandeza; de uma mescla singular de pretensões relativas à moralidade e à animalidade. Entretanto não se deve pensar que todas estas ideologias nacionais se parecem entre si. Elas se igualam apenas em seu insistente apetite e na sua reivindicação. É possível que todas queiram a mesma coisa, mas elas não são a mesma coisa. Querem uma ampliação e justificam isso por meio da multiplicação. A Terra inteira, parece, foi prometida a cada uma delas e a Terra toda acabará pertencendo naturalmente a cada uma delas. Todas as demais, ouvindo isto, se sentem ameaameaçadas, e em seu medo vêem apenas a ameaça. Desta maneira não çad sepercebe rbe ce que o conteúdo concreto, as verdadeiras ideologias destas formas de reivindicação nacional são muito diferentes entre si. É preciso dar-se ao trabalho — mas sem compartilhar de sua avidez — de determinar "o próprio" no caso de cada nação. É preciso manter-se à margem sem pertencer a nenhuma, mas também é preciso interessar-se de maneira profunda e honesta por todas. Deve-se permitir que cada uma delas floresça espiritualmente dentro da gente, como se tivéssemos sido condenados a pertencer-lhes realmente durante uma 185

boa parte da vida. No entanto não se deve pertencer a uma delas às custas das demais. Pois é uma vaidade vazia falar de nações sem determinar as diferenças que existem entre elas. Elas realizam prolongadas guerras umas contra as outras. Uma parte muito grande dos membros de cada uma toma parte nessas guerras. Fala-se com freqüência do porquê destas lutas. Mas ninguém sabe como que lutam. Elas têm um nome para isto; dizem como franceses, como alemães, como ingleses, como japoneses. Mas qual é o significado desta palavra para o homem que a emprega em relação a si mesmo? Em que ele acredita ser diferente quando vai à guerra como francês, como alemão, como inglês, como japonês? Aqui não importa tanto a real diferença. Um exame dos seus usos e costumes, do seu governo e de sua literatura poderia parecer ser exaustivo e, entretanto, passar por cima do elemento determinadamente nacional que está presente como fé quando conduz às guerras. Por isso as nações serão abordadas aqui como se fossem religiões. Com efeito elas tendem por vezes a considerar-se desta forma. A disposição para isso existe sempre, e nas guerras as religiões nacionais se tornam agudas. Em princípio deve-se esperar que o membro de uma nação não se veja só, isolado. Assim que ele é designado ou que se autodesigna, algo mais englobante aparece em sua imaginação, uma unidade maior com a qual ele mesmo se sente relacionado. O tipo desta unidade é importante, bem como também sua relação com ela. Não se trata simplesmente da unidade geográfica do país como é encontrada no mapa-múndi; esta é indiferente para o homem normal. As fronteiras podem ter alguma extensão para ele, mas isto não ocorre com a área completa e propriamente dita de um país. Ele também não pensa no seu idioma, que poderia colocar-se de forma definida e reconhecível em oposição aos idiomas dos outros. Certamente palavras que lhe são familiares, justamente em tempos de maior agitação, têm um grande efeito sobre ele. Mas não é um dicionário que está por trás dele e pelo qual ele está disposto a lutar. Para um homem normal, menos importante ainda é a história de sua nação. Ele não conhece nem o seu verdadeiro curso, nem tampouco a plenitude de sua continuidade, nem a vida como foi antes; conhece apenas alguns nomes dos que viveram no passado. Os personagens e os momentos que passaram à sua consciência estão além de tudo o que qualquer historiador sensato considera como história. A unidade maior, com a qual ele se sente relacionado, é 186

uma massa ou um símbolo de massa. Esta unidade sempre tem algumas das características próprias das massas ou dos seus símbolos: densidade, crescimento e abertura para o infinito; uma coesão surpreendente ou muito notória, um ritmo comum, uma descarga repentina. Muitos destes símbolos já foram abordados. Falamos a respeito do mar, da floresta, do trigo. Seria ocioso repetir aqui suas propriedades e funções e como chegaram a ser considerados símbolos de massa. Nas idéias e nos sentimentos que as nações têm de si mesmas voltaremos a encontrá-los. Mas estes símbolos nunca aparecem despidos, nunca aparecem isolados: o membro de uma nação sempre vê a si mesmo, disfarçado à sua maneira, em rígida relação com um determinado símbolo de massa que chegou a ser o mais importante para sua nação. Neste retorno regular, neste emergir quando o momento assim o exige, está a continuidade do sentimento nacional. Com ele e somente com ele varia a autoconsciência de uma nação. Esta é mais variável do que se pensa e isto permite que se tenha alguma esperança quanto à continuidade da existência da humanidade. No texto seguinte tentaremos observar algumas nações tomando por base seus símbolos. Para procedermos sem preconceitos, convém remontar a uns vinte anos atrás. Mas trata-se naturalmente, e não se pode enfatizar isto o bastante, de uma redução a características bem simples e universais; sobre os indivíduos falaremos alguma coisa. Ingleses É aconselhável começar com a observação de uma nação que faz pouco alarde de si, mas que sem dúvida alguma ainda mostra o sentimento nacional mais estável que o mundo conhece hoje: a Inglaterra. Todos sabem o que o mar significa para os ingleses. Mas é demasiadamente pouco conhecida a forma como o seu muito mencionado individualismo e sua relação com o mar estão concatenados. O inglês se vê como capitão de um pequeno grupo de homens em um navio; em torno dele e debaixo dele, o mar. Ele está quase só; mesmo como capitão ele se isola da tripulação sob muitos aspectos. O mar, no entanto, é dominado; esta idéia é decisiva. Os navios estão solitários em sua vasta superfície, como indivíduos esporádicos, personificados num capitão; a autoridade de comando deles é indiscutível. O curso que ele segue é a ordem que é dada ao mar, e somente a sua imediata execução por 187

parte da tripulação dissimula que na verdade é o mar que deve obedecer. O capitão determina a meta e o mar, na sua maneira cheia de vida, o transporta para lá, não sem tempestades e sem correntes contrárias. Considerando-se a amplitude do oceano, o que importa é a quem ele obedece com mais freqüência, e sua obediência é facilitada quando a meta é uma colônia britânica. Neste caso o mar é como um cavalo que conhece bem o seu caminho. Os navios dos demais assemelham-se a cavaleiros ocasionais, aos quais o mar é emprestado, mas somente para mais tarde voltar a se comportar muito melhor sob as ordens do seu senhor. O mar é tão grande que também importa o número de navios que o sujeitam. No que diz respeito ao seu caráter, é preciso levar em consideração a quantas e a quão apaixonadas transformações ele está submetido. Nas suas transformações, ele oferece mais variedade do que todas as massas animais com as quais o homem teve de se relacionar; e, comparados ao mar, quão inofensivos são as florestas do caçador, os campos do lavrador! O inglês busca suas catástrofes no mar; freqüentemente ele é obrigado a imaginar seus mortos no fundo do mar. Desta forma o mar lhe oferece transformações e perigo. Sua vida em casa é formada de maneira complementar ao mar: a regularidade e a segurança são as suas principais características. Cada qual possui o seu próprio lugar, que não deve ser abandonado por nenhuma razão, a não ser, é claro, que se vá para o mar; e todo homem está seguro dos seus hábitos como de suas posses. Holandeses O significado dos símbolos nacionais de massa pode ser percebido com uma clareza especial no contraste existente entre os ingleses e os holandeses. Estes povos são aparentados tribalmente, seus idiomas são semelhantes, sua evolução religiosa é quase a mesma. Ambas são nações marítimas e ambas fundaram impérios marítimos mundiais. O destino de um capitão holandês que saía em busca de oportunidades comerciais em nada se diferenciava do destino de um capitão inglês. As guerras que eles travaram entre si foram as que ocorreram entre rivais ligados por estreitos laços de parentesco. No entanto, existe uma diferença entre eles, que pode parecer insignificante mas que determina tudo. Esta diferença diz respeito aos seus símbolos nacionais de massa. 188

Os ingleses conquistaram sua ilha mas não tiveram de arrancá-la do mar. Eles dominam os mares somente através dos seus navios, o capitão é o comandante do mar. O holandês teve de conquistar primeiro do mar a terra onde ele habita. As terras eram tão baixas que ele teve de protegê-las do mar por meio de diques. O dique é o princípio e o fim de sua vida nacional. A massa dos homens se identifica com os próprios diques; unidos, eles opõem resistência ao mar. Se os diques estão danificados, o país inteiro corre perigo. Em tempos de crise os diques são perfurados; em ilhas artificiais se está a salvo do inimigo. Em nenhum outro lugar o sentimento da muralha humana que se ergue contra o mar está tão evoluído como na Holanda. Nos diques confia-se em tempos de paz; mas, quando eles precisam ser destruídos diante de um inimigo, sua força se transmite aos homens que depois da guerra voltarão a construí-los. O dique se mantém na intenção desses homens até que possam ser transformados novamente em realidade. De maneira notável e inconfundível, os holandeses levam dentro de si suas fronteiras contra o mar em épocas de ameaças sérias. Quando os ingleses são atacados em sua ilha, eles confiam no mar. Este, com suas tempestades, veio em ajuda deles contra o inimigo. Na sua ilha eles estão seguros, sentem a mesma segurança que em seus navios. O holandês sempre teve o perigo nas costas. Para ele, o mar nunca foi completamente dominado. Ele navega certamente sobre o mar, dirigindo-se a todos os cantos do mundo. Mas em sua própria pátria o mar pode voltar-se contra ele; e, mais do que isto, em casos extremos, quando for necessário impedir o avanço de um inimigo, deve-se fazer tudo o que é possível para forçar o mar a voltar-se contra os homens. Alemães O símbolo de massa dos alemães era o exército. Mas o exército era mais do que um exército: era a floresta em marcha. Em nenhum outro país moderno do mundo o sentimento da floresta permaneceu tão vivo como na Alemanha. O que existe de rígido e paralelo nas árvores eretas, sua densidade e seu número fazem o coração dos alemães transbordar de uma alegria profunda e misteriosa. Ainda hoje ele vai com prazer à floresta na qual viveram seus antepassados e se sente identificado com as árvores. Sua limpeza e delimitação, bem como o arrojo de suas 189

linhas verticais diferenciam a floresta da selva tropical, onde plantas trepadoras crescem em desordem e em todas as direções. Numa selva tropical, o olhar perde-se nas proximidades, numa massa caótica, inarticulada, animada da maneira mais colorida possível, que exclui toda imposição de norma e de repetição regular. A floresta das regiões temperadas têm seu ritmo evidente. O olhar se perde ao longo de troncos visíveis, numa distância sempre igual. A árvore isolada, no entanto, é maior do que o homem isolado e continua sempre crescendo até atingir dimensões titânicas. Sua resistência tem muito da virtude característica do guerreiro. As cascas, que num primeiro momento poderiam ser consideradas como couraças, na floresta onde estão reunidas tantas árvores da mesma espécie, se assemelham mais aos uniformes de uma divisão do exército. Para o alemão, sem que ele mesmo tivesse plena consciência disto, o exército e a floresta se juntaram de várias formas diferentes. O que para outros parecia desolado e árido no exército, tinha para o alemão a vida e a luminosidade da floresta. Ele não sentia medo dentro dele; ele se sentia protegido, um entre muitos. A rigidez e a retidão das árvores foram transformadas em regras para ele mesmo. O rapaz, atraído pela floresta para fora da estreiteza de sua casa, para, como acreditava, poder sonhar e ficar só, vivia lá de forma antecipada sua incorporação no exército. Na floresta já estavam dispostos os demais, que eram fiéis, verdadeiros e retos como ele mesmo queria ser em relação aos outros, porque, embora todos cresçam direito, cada um é muito diferente dos outros quanto à altura e à força. Não se deve subestimar o efeito deste romantismo precoce da floresta sobre o alemão. Em centenas de canções e de poemas ele cristalizou este romantismo e a floresta nestes textos freqüentemente chama-se "floresta alemã". O inglês se via com prazer sobre o mar; o alemão gostava de se ver dentro da floresta. É impossível expressar com menos palavras o que os separa no seu sentimento nacional. Franceses O símbolo de massa dos franceses tem uma história jovem; é a sua revolução. A festa da liberdade é comemorada todos os anos. Ela se transformou na festa nacional da alegria propriamente dita. No dia 14 de julho cada qual pode dançar com quem quiser na rua. Homens que em geral são tão pouco livres, 190

iguais e fraternos como nos demais países uma vez por ano podem se comportar como se tivessem essas qualidades. A Bastilha está tomada e as ruas estão novamente repletas como naquela ocasião. A massa, que durante séculos foi vítima da justiça real, exerce a justiça por si mesma. A lembrança das execuções daquele tempo — uma série contínua de excitações de massa do tipo mais repulsivo — pertence a este sentimento de massa, por mais que não se queira admitir isso. Quem se opunha à massa oferecia-lhe sua própria cabeça. Ele devia sua cabeça à massa e, à sua maneira, isto servia para manter e para aumentar o sentimento de plenitude da massa. Nenhum hino nacional, seja de que país for, possui a vivacidade do hino francês — e a Marselhesa originou-se naquele período. O estalo da liberdade como acontecimento periódico, retornando anualmente, esperado anualmente, oferecia grandes vantagens como símbolo de massa de uma nação. Até mesmo mais tarde, da mesma forma que outrora, serviu para desencadear as energias da defesa. Os exércitos franceses que conquistaram a Europa surgiram a partir da revolução. Ela encontrou seu Napoleão e sua glória guerreira máxima. As vitórias pertenciam à revolução e ao seu general; ao imperador foi reservada a derrota final. Contra esta concepção da revolução como símbolo nacional de massa dos franceses seria possível fazer várias objeções. A palavra aparece de maneira por demais indeterminada, não tem o concreto do capitão inglês no seu navio solidamente limitado, nem a ordem lígnea característica do exército alemão em marcha. Porém não se deve esquecer que ao navio do inglês também pertence o mar revolto e, ao exército alemão, a floresta ondulante. O mar e a floresta nutrem seus sentimentos e fixam seu fluxo. Também o sentimento de massa da revolução se expressa num movimento concreto e num objeto concreto: a tomada da Bastilha. Até há duas ou três gerações, todos teriam acrescentado à palavra "revolução" o adjetivo "francesa". A lembrança mais popular dos franceses também os caracterizava diante do mundo; era o que de mais peculiar eles tinham produzido. Desta forma os russos, com sua revolução, acabaram provocando uma brecha sensível no sentimento nacional dos franceses. Suíços Um

estado cuja coesão nacional ninguém discute é a Suíça. O sentimento patriótico dos suíços é maior do que o de 191

muitos povos que falam apenas um idioma. O uso de quatro línguas, a multiplicidade dos cantões, sua estrutura social distinta, o contraste das religiões cujas guerras ainda permanecem em lembranças históricas -- nada consegue perturbar seriamente a consciência nacional dos suíços. Mas é verdade que eles têm em comum um símbolo de massa, que está constantemente diante dos seus olhos e que é inabalável como o de nenhum outro povo: as montanhas. De qualquer lugar o suíço vê sempre o cume de suas montanhas. Mas de alguns pontos a seqüência parece ser mais completa. A sensação que destes pontos se possam ver, juntas, todas as suas montanhas, confere a estes pontos de visão um caráter sacro. As vezes, ao entardecer, em dias que não podem ser previstos, sobre os quais o ser humano não tem influência alguma, as montanhas começam a fulgir: esta é a sua consagração suprema. Tanto o seu difícil acesso como a sua dureza inspiram segurança ao suíço. Separadas nos seus cumes, nas partes superiores, as montanhas estão coesas na parte inferior, formando um corpo único, gigantesco. São um corpo apenas e este corpo é o próprio país. Os planos de defesa dos suíços durante as duas guerras passadas expressam esta identificação de sua nação com a própria cordilheira dos Alpes. Todas as terras férteis, todas as cidades, todos os locais de produção deveriam ser evacuados num caso de ataque. O exército se retiraria para a cadeia de montanhas e ali combateria. O povo e a terra seriam sacrificados. Mas o exército nas montanhas continuaria representando a Suíça, e o símbolo de massa da nação se converteria no próprio país. É um dique particular que os suíços possuem ali. Eles não precisam, como os holandeses, construí-lo com suas próprias mãos. Eles não o constroem, não o derrubam; não existe um mar que se arroja contra ele. Suas montanhas permanecem; basta conhecê-las bem. Eles as escalam e percorrem em todas as reentrâncias. Elas têm a força magnética de um ímã e atraem pessoas de todos os países que imitam os suíços na admiração e na exploração das montanhas. Os alpinistas dos países mais remotos são algo assim como crentes suíços; seus exércitos espalhados pelo mundo inteiro, após um breve e periódico serviço nas montanhas, mantêm vivo o prestígio da Suíça. Valeria a pena analisar até que ponto isto contribuiu na prática para manter a.independência da Suíça. 192

Espanhóis Assim como o inglês se vê como capitão, o espanhol se vê como matador. Mas em vez do mar que obedece ao capitão, o toureiro é dono da multidão que o admira. O animal, que ele deve abater segundo as nobres regras de sua arte, é o velho monstro traiçoeiro das lendas. Ele não pode demonstrar medo; seu controle é tudo. Cada um de seus menores movimentos é visto e julgado por milhares de pessoas. É a arena romana que sobreviveu aqui, mas o toureiro se transformou num nobre cavaleiro; ele aparece como combatente único; a Idade Média modificou o seu sentido e o seu traje, mas, principalmente, o seu prestígio. O animal selvagem submetido, o escravo dos homens, ergue-se mais uma vez contra ele. Mas o 'herói dos tempos míticos, que partiu para submetê-lo, está presente. Ele se apresenta diante de toda a humanidade; está tão seguro de seu ofício que é capaz de representar o combate ao monstro em todos os detalhes aos seus espectadores. Ele conhece exatamente sua capacidade; seus passos são calculados e seus movimentos têm a previsão de uma dança. Mas ele mata realmente. Milhares de pessoas vêem esta morte e a multiplicam pela excitação. A execução do animal selvagem, que já não deve ser selvagem mas que se torna selvagem para, justamente por causa disto, ser condenado à morte, esta execução, o sangue e o cavaleiro sem mácula refletem-se de maneira dupla aos olhos dos admiradores. Passa-se a ser pessoalmente o cavaleiro que combate o touro, mas também se é a massa que o aplaude. Sobre o toureiro, que seria a própria pessoa, o indivíduo vê-se outra vez a si mesmo, do outro lado, como massa. Como o anel é coeso, passa-se a ser uma criatura fechada em si mesma. Por todos os lados encontram-se olhares; por todos os lados ouve-se uma voz, escuta-se a si mesmo. E assim o espanhol, que está cioso do seu matador, se acostuma desde cedo à visão de uma massa muito determinada. Ele aprende a conhecê-la profundamente. Ela é tão viva que exclui muitos desenvolvimentos e formações mais recentes, inevitáveis em países de outro idioma. O toureiro no anel, como o vê o espanhol, se transforma também em seu símbolo nacional de massa. Quando se pensa em muitos espanhóis reunidos, pensa-se no local onde eles se reúnem com mais freqüência. Comparadas com estas violentas alegrias de massa, as da Igreja são massas mansas e inofensivas. Isto nem sempre foi assim, e naqueles tempos em que a Igreja não vacilava em acender o 193

fogo dos infernos para os hereges aqui mesmo na terra, a economia de massa do espanhol estava ordenada de urna forma completamente diferente. Italianos O sentimento de si mesma de uma nação moderna, seu comportamento numa guerra dependem em grande parte do reconhecimento do seu símbolo nacional de massa. Neste sentido a história prega peças desagradáveis a muitos povos, muito tempo depois de eles terem obtido sua unidade. A Itália pode servir de exemplo para demonstrar como é difícil para uma nação ver-se a si mesma, quando suas cidades se sentem afetadas pela presença de recordações maiores e o seu presente é perturbado conscientemente por estas recordações. Enquanto a Itália ainda não tinha conquistado sua unidade, tudo era bem mais claro para as pessoas; o corpo despedaçado voltaria a se reunir, a se sentir e a se comportar como um único organismo, assim que o inimigo — essa praga — tivesse sido expulso. Em tais casos de sentimento agudo de opressão, quando o inimigo já se encontra há muito tempo no país, todos os povos criam para si idéias análogas a respeito de sua situação. O inimigo é visto como numeroso, feio, odiado, como uma nuvem de gafanhotos que vive do solo bom e generoso dos nativos. E, se tem sérias intenções de ficar, ele se mostra inclinado a dividir este solo e a enfraquecer os nativos, debilitando de mil maneiras suas vinculações. A reação é então a vinculação secreta, e numa série de momentos afortunados se elimina a praga nociva. Foi exatamente isto o que acabou acontecendo, e a Itália encontrou sua unidade, desejada em vão por muitos e freqüentemente pelos seus espíritos mais esclarecidos. Mas a partir desse momento se percebe que não se devolve a vida sem perigo a uma cidade como Roma. Os edifícios de massa dos tempos passados continuam de pé, vazios; o anfiteatro era uma ruína demasiadamente bem conservada. Dentro dele as pessoas tinham de sentir-se modestas e marginalizadas. A segunda Roma, a Roma de São Pedro, pelo contrário, preservara bastante de sua velha atração. A basílica de São Pedro se enchia com peregrinos vindos do mundo inteiro; como pólo de discriminação nacional, porém, esta segunda Roma não era apropriada de forma alguma. Ela se dirigia sem diferença a todos os homens, sua organização remontava a uma 194

época em que as nações, no sentido moderno, ainda nem existiam. Entre estas duas Romas, o sentimento nacional da Itália derna ficou paralisado. Não havia lesaj5- -ãíória possível, pois mo ma existia e os romanos tinham sido a Itália. O fascismo Ro tentou a solução aparentemente mais fácil e adotou o traje autêntico e antigo. Mas este traje não lhe assentava bem, era a mplo demais, e tão violentos foram os movimentos que nele se permitiram que ele acabou quebrando todos os ossos. Os foros todos podiam ser desenterrados, um depois dos outros, mas eles não voltaram a se encher de romanos. Os feixes de varas somente despertavam o ódio dos que eram açoitados por estas varas; ninguém se orgulhava das ameaças ou dos castigos. A tentativa de impor pela força um falso símbolo nacional de massa à Itália, para sorte de todos os italianos, acabou fracassando. Judeus Nenhum povo é mais difícil de ser compreendido do que o judeu. Os judeus estão espalhados por toda a Terra habitada, seu país de origem estava perdido para eles. Sua capacidade de adaptação é famosa e malfadada, mas seu grau de adaptação é tremendamente variável. Havia entre eles espanhóis, chineses e indianos. Carregam consigo idiomas e culturas de um país para outro, e os conservam com maior tenacidade do que a seus próprios haveres. Os tolos podem falar a respeito da igualdade dos judeus por toda parte; quem os conhece, porém, terá antes a opinião de que entre eles existem mais tipos distintos do que entre os membros de qualquer outro povo. A amplitude de variação dos judeus quanto à essência e à aparência faz parte das coisas mais assombrosas que se podem encontrar. O mito popular de que entre eles se acham tanto os melhores como os piores homens expressa isto de forma ingênua. Eles são diferentes dos demais. Mas na verdade, se pudéssemos dizer assim, eles são os mais diferentes entre eles próprios. Eles já despertam admiração pelo simples fato de ainda existirem. Não são os únicos homens que estão espalhados pelo mundo todo, pois os armênios estão difundidos com a mesma amplitude. Também não são o mais antigo de todos os povos: a história dos chineses remonta a tempos mais remotos. Mas, entre todos os povos antigos, os judeus são os únicos que 195

migram há tanto tempo. Eles tiveram o tempo mais amplo para desaparecer sem deixar vestígios; entretanto, estão hoje mais presentes do que nunca. Até poucos anos atrás, não havia entre os judeus uma unidade territorial ou lingüística. A maioria já não entendia mais o hebraico e eles falavam cem línguas diferentes. Para milhões deles sua antiga religião era um saco vazio; até mesmo o número de judeus convertidos ao Cristianismo foi aumentando paulatinamente, de modo particular entre os intelectuais; e muito mais ainda o número de ateus. Considerando-se o fato de maneira superficial, do ponto de vista comum da autoconservação, eles deveriam fazer tudo o que lhes fosse possível para que o mundo esquecesse que são judeus, para eles mesmos se esquecerem disso. No entanto eles não o esquecem, e na maioria dos casos não querem esquecer. É o caso de se perguntar em que continuam sendo judeus esses homens, o que é que os faz serem judeus, qual o elemento definitivo que os vincula uns aos outros quando dizem: eu sou judeu. Este elemento está no começo de sua história e tem reaparecido com aterradora regularidade no decorrer dessa história: é o êxodo do Egito. É preciso que se tenha presente o conteúdo dessa tradição: um povo inteiro, em enormes multidões, migra durante quarenta anos através do deserto. Ao seu ancestral mítico foi anunciada uma descendência numerosa como a areia do mar. Agora essa descendência está presente e caminha como outra areia sobre a areia do deserto. O mar, que se abate sobre os inimigos, os deixa passar. Sua meta é uma terra prometida que será conquistada pela espada. A imagem desta multidão, que cruza durante anos e anos o deserto, transformou-se em símbolo de massa para os judeus. Ela se conservou tão nítida e apreensível como em outros tempos. O povo se vê reunido; inclusive antes de terem se estabelecido e se dispersado, eles se vêem em migração. É neste estado de densidade que eles recebem suas leis. Têm uma meta como nenhuma massa jamais a teve. Passam por aventuras e mais aventuras, um destino sempre compartilhado. Trata-se de uma massa nua; a multiplicidade, que geralmente entrelaça o homem numa rede de vidas isoladas, praticamente não existe neste ambiente. Em torno deles existe apenas areia, a mais nua de todas as massas; nada como a areia conseguiria levar mais alto o sentimento de se estar sozinho consigo mesmo -exatamente como esta caravana em marcha. Com freqüência a meta desaparece e a massa ameaça desintegrar-se; com os golpes fortes dos tipos mais diversos ela é despertada, é limi196

tada, é mantida unida. A quantidade de homens na caravana, de seiscentos a setecentos mil, não é enorme apenas para as modestas pretensões daqueles tempos. De importância especial é a duração da marcha. O que na massa perdura por quarenta anos mais tarde pode perdurar por qualquer tempo. A imposição desta duração como castigo se parece porém com todos os padecimentos de migrações posteriores.

A Alemanha de Versalhes Para esclarecer o máximo possível a delimitação dos conceitos que foram estabelecidos aqui, é preciso dizer algo a respeito da estrutura de massa da Alemanha, da Alemanha que durante o primeiro terço deste século surpreendeu o mundo com formações e tendências novas, cuja seriedade mortal ninguém compreendia e que somente agora lentamente está começando a ser decifrada. O símbolo de massa da nação alemã unificada, como se formou depois da guerra francesa de 1870-1871, era e continuou sendo o exército. Todo o alemão se orgulhava dele; houve muito poucos que conseguiram subtrair-se à avassaladora influência deste símbolo. Um pensador de cultura universal como Nietzsche recebeu desta guerra o impulso inicial da "vontade de poder": foi a visão para sua obra de um esquadrão de cavalaria, da qual ele jamais se esqueceu. Esta referência não é ociosa; ela mostra até que ponto era generalizado o significado do exército para o alemão, como este símbolo de massa exercia sua ação até mesmo entre os que, orgulhosamente, souberam marginalizar-se de tudo o que lhes lembrasse a multidão. Burgueses, camponeses, trabalhadores, intelectuais, católicos, protestantes, bávaros, prussianos, todos viam no exército o símbolo da nação. As raízes mais profundas deste símbolo, sua origem na floresta, já foram esclarecidas em outro local. Floresta e exército estão intimamente relacionados para o alemão, e tanto um como o outro podem ser considerados como o símbolo de massa da nação; neste sentido, sem dúvida alguma, ambos são a mesma coisa. É de importância decisiva o fato de que o exército, além da sua eficiência simbólica, também existisse de forma concreta . U vive na imaginação e no sentimento dos homens;mso ist ocorreu na curiosa formação floresta-exército. O verdadeiro exército, ccoitrore,uno qual to do . ovem ale mão servia , tinha , pelo contrário, a função de uma assa f echada. A cre nça no 197

serviço militar geral e obrigatório, a convicção do seu sentido profundo, a veneração que provocava iam mais além do que as religiões tradicionais, interessando tanto aos católicos como aos protestantes. Quem se excluía não era alemão. Já se disse que os exércitos somente devem ser considerados como massa num sentido bastante restrito. Porém, no caso do alemão, era diferente: ele sentia a vivência do exército como a mais importante de suas massas fechadas. Ela era fechada uma vez que apenas determinadas faixas etárias de jovens serviam nela por um tempo limitado. Para os demais, o exército era uma profissão, e já por isso deixava de ser algo coletivo. Mas todos os homens passavam uma vez por ele e permaneciam interiormente ligados a ele durante toda a vida. Como cristal de massa servia neste exército a casta prussiana dos junkers, aristocratas rurais que constituíam a melhor parte do corpo estável de oficiais. Era como uma ordem de leis rígidas, se bem que não escritas; ou como uma orquestra hereditária que conhece e que ensaiou com precisão a música com a qual deverá contagiar o seu público. Quando teve início a Primeira Guerra Mundial, todo o povo alemão se transformou em uma única massa aberta. O entusiasmo reinante naqueles dias já foi descrito muitas vezes. No exterior, muitos tinham contado com a idéia internacionalista dos social-democratas e se surpreenderam com seu fracasso total. Eles não consideraram que também estes social-democratas levavam dentro de si como símbolo de sua nação a "floresta-exército"; eles mesmos tinham pertencido à massa fechada do exército; e nesta massa eles estavam sob as ordens e sob a influência de um cristal de massa preciso e extremamente eficaz: a casta dos junkers e dos oficiais. Em relação a isto, o fato de pertencerem a um determinado partido político tinha pouca importância. Mas aqueles primeiros dias de agosto de 1914 são também o momento de concepção do nacional-socialismo. Existe uma declaração acima de qualquer suspeita a este respeito feita por Hitler: ele conta como, ao ficar sabendo da declaração de guerra, caiu de joelhos e agradeceu a Deus. Esta foi sua vivência decisiva, o único momento em que ele próprio foi sinceramente massa. Não se esqueceu deste momento; toda a sua trajetória posterior foi dedicada à reconstrução deste momento, mas a partir de fora. A Alemanha tinha de voltar a ser, como naquele instante, consciente de sua força militar de choque, concordando com ela, unificada nela. Mas Hitler jamais teria alcançado o seu objetivo se o 198

Tratado de Versalhes não tivesse dissolvido o exército dos alemães. A proibição do serviço militar geral e obrigatório privou os alemães da sua massa fechada mais essencial. Os exercícios, que agora lhes eram proibidos, o receber e transmitir ordens eram algo que todos precisavam procurar conseguir novamente por todos os meios possíveis. A proibição do serviço militar geral e obrigatório é o nascimento do nacional-socialismo. Toda a massa fechada, dissolvida à força, transformase numa massa aberta à qual comunica todas as suas características. O partido toma o lugar do exército e para ele, dentro da nação, não existem fronteiras. Todo o alemão — homem, mulher, criança, soldado ou civil — pode tornar-se um nacional-socialista; com freqüência a importância disto é maior para aquele que não foi soldado, porque desta forma ele consegue a participação numa conduta que de outra forma lhe seria vedada. Com uma insistência infatigável e sem paralelo, Hitler usou o slogan do Tratado de Versalhes com suas imposições. A eficácia deste slogan provocou muita surpresa e espanto. Sua repetição não prejudicou sua eficiência; pelo contrário, a eficiência foi aumentando com os anos. Em que consistia esse slogan? O que é que Hitler transmitia com ele a seus ouvintes? Para os alemães, a palavra Versalhes não significava tanto a derrota, que eles de resto jamais aceitaram realmente, mas sim a proibição do exército; a proibição de um exercício determinado e sacrossanto, sem o qual o alemão dificilmente conseguia imaginar a vida. A proibição do exército era como a proibição de uma religião. A fé dos pais estava impedida; restabelecê-la era o dever sagrado de cada homem. A palavra Versalhes mexia nesta ferida todas as vezes que era pronunciada; ela servia para manter este ferimento vivo, sempre sangrando, sem jamais cicatrizar. Enquanto nas reuniões de massa a palavra Versalhes continuasse sendo proferida com bastante ênfase, impedia-se todo o princípio de uma eventual cura. É significativo que sempre se falou de um Diktat, nunca de um tratado. Diktat lembra a esfera da ordem. Uma ordem única, estranha, ordem do inimigo, chamada por este motivo de Diktat, tinha suprimido o direito de se transmitirem ordens militares de alemães para alemães. Quem ouvia ou lia a expressão Diktat de Versalhes sentia da maneira mais profunda possível o que lhe tinha sido proibido: o exército alemão. Sua reconstrução aparecia como sendo a única meta realmente importante. Com ela, tudo voltaria a ser como antes. O significado do exército como símbolo nacional de massa não tinha 199

sido abalado em nada; a parte mais profunda e mais antiga do símbolo continuava intata: como floresta. A escolha da palavra Versalhes como slogan central foi extremamente feliz do ponto de vista de Hitler. Ela não apenas relembrava o último e doloroso acontecimento da vida nacional dos alemães, a proibição do serviço militar geral e obrigatório, a abolição do direito a um exército no qual todos os homens pudessem ingressar durante alguns anos, como também resumia outros momentos importantes e bem conhecidos da história alemã. Em Versalhes tinha sido fundado, por Bismarck, o segundo Reich alemão. A unidade alemã — imediatamente após uma grande vitória — tinha sido proclamada num instante de euforia e de força irresistível. A vitória tinha sido conquistada sobre Napoleão III, que se considerava como sucessor do grande Napoleão; carregado pela veneração legendária em relação ao seu nome, ele tinha ascendido ao trono como herdeiro do espírito de seu antecessor. Mas Versalhes também foi a residência de Luís XIV, que construiu o palácio. De todos os soberanos franceses anteriores a Napoleão, Luís XIV foi o que mais profundamente humilhou os alemães. Por causa dele, Estrasburgo com sua catedral tinha sido anexada à França. Suas tropas tinham devastado o castelo de Heidelberg. A proclamação do imperador alemão em Versalhes era, por tudo isso, como que uma vitória tardia e resumida sobre Luís XIV e Napoleão juntos, e tinha sido obtida sem a ajuda de nenhum aliado. Para um alemão daquela época isto tinha de causar efeito; existem testemunhos suficientes que o confirmam. O nome deste palácio estava vinculado ao maior triunfo da história alemã mais recente. Cada vez que Hitler falava do malfadado Diktat, voltava a soar na palavra a lembrança daquele triunfo que se transmitia como promessa aos ouvintes. Os inimigos deveriam ter ouvido esta palavra como ameaça de guerra e de derrota se tivessem tido ouvidos para escutar. Pode-se dizer sem exagero que todos os slogans importantes dos nacional-socialistas, excetuando-se apenas os que eram dirigidos contra os judeus, podem ser derivados do Diktat de Versalhes: o Terceiro Reich, Sieg-Heil e assim por diante. O conteúdo deste movimento estava incluído de forma concentrada nesta única frase: "A derrota que há de se transformar em vitória"; o exército proibido que, para este objetivo, ainda será formado. Talvez ainda se deva dar um muco de atenção ao símbolo do movimento, a cruz gamada. 200

Seu efeito é duplo: o do signo e o da palavra. E ambos têm algo de cruel. O próprio signo tem alguma coisa de duas forças torcidas. Ele ameaça o observador de forma um pouco traiçoeira, como se quisesse dizer: espere, você ainda vai se espantar de ver quem penderá aqui. E, dado que a cruz gamada tem um movimento rotatório, este também é ameaçador: lembra os membros partidos dos que antes eram amarrados à roda de torturas. A palavra buscou na cruz cristã as características cruéis e sangrentas, como se fosse bom crucificar. As gamas, os ganchos, relembram as brincadeiras, as rasteiras das crianças e anunciam aos partidários o grande número dos que serão derrubados. Para muitos também pode abrir uma saída crucial para o ambiente militar, relembrando o hábito de bater os calcanhares numa postura típica do exército (em alemão Hackenschlagen significa "bater os calcanhares"). De qualquer forma, a cruz gamada reúne uma ameaça de castigos cruéis com uma capciosa malícia e uma advertência dissimulada de disciplina militar.

Inflação e massa Uma inflação é um fenômeno de massa no sentido mais próprio e restrito da palavra. O efeito perturbador que exerce sobre a população de países inteiros em caso algum está limitado ao momento da própria inflação. Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações. As comoções, os abalos que provocam são de natureza tão profunda que se prefere ocultá-las e esquecê-las. Talvez também se receie atribuir ao dinheiro, cujo valor é artificialmente fixado pelo próprio homem, efeitos geradores de massa que vão muito mais além de sua determinação propriamente dita e que têm algo de absurdo e de infinitamente vergonhoso. É necessário entrar neste assunto e dizer alguma coisa a respeito das propriedades psicológicas do próprio dinheiro. O dinheiro pode transformar-se em símbolo de massa; mas, ao contrário de todos os outros que foram tratados aqui, é um símbolo no qual as unidades — pelo acúmulo das quais, em determinadas circunstâncias, se constitui uma massa — estão categoricamente realçadas. Cada moeda está claramente delimitada e possui um valor próprio; ela é reconhecível à primeira 201

vista, circula livremente de mão em mão e muda interminavelmente de lugar. Freqüentemente leva estampada a efígie de um soberano, que às vezes lhe dá o nome, principalmente quando ela é de alto valor. Existiram luíses de ouro e táleres Maria Teresa. Sente-se com prazer a moeda como sendo uma pessoa apreensível. A mão que se fecha em torno dela, a sente por completo, em todos os seus relevos e superfícies. Uma certa ternura pela moeda, que nos pode proporcionar isto ou aquilo, é universalmente humana e contribui para o seu "caráter" pessoal. Num ponto a moeda supera a criatura viva: sua consistência metálica, sua dureza, lhe assegura uma existência "eterna"; ela — a não ser pelo fogo — dificilmente pode ser destruída. A moeda não cresce até atingir seu tamanho; ela já sai pronta da matriz e deve continuar sendo o que é; ela não deve mudar. É possível que esta confiabilidade da moeda seja a sua característica principal. Do seu proprietário tão-somente depende guardá-la bem; ela não sai correndo por conta própria como um animal; apenas tem de ser vigiada em relação às outras pessoas. Não é preciso desconfiar dela, ela pode ser utilizada sempre, não tem caprichos que devam ser levados em consideração. Além disso, cada moeda se autoconsolida em seu relacionamento com outras moedas de valor diferente. A hierarquia entre as moedas, que é rigidamente respeitada, faz com que elas se pareçam ainda mais com as pessoas. Seria possível falar de um sistema social das moedas com várias classes, que neste caso são classes de valores; com uma moeda de valor elevado pode-se obter outras de valor menor; com uma inferior, jamais uma superior. O monte de moedas é conhecido desde os tempos mais remotos, e entre a maioria dos povos, como tesouro. Na maneira como ele é percebido como unidade, na forma em que é encontrado, sem que se saiba quanto ele realmente contém, existe muito de massa. O tesouro pode ser revolvido, separando-se moeda por moeda. Espera-se sempre que ele seja maior do que é. Freqüentemente ele é oculto e pode ser descoberto de um momento para o outro. Mas a esperança não é somente do homem que durante toda a sua vida sonha encontrar um tesouro; quem o acumula também espera que ele cresça constantemente, e faz tudo o que lhe é possível para conseguir que isso aconteça. Não resta a menor dúvida de que em alguns homens, que vivem apenas para seu dinheiro, o tesouro acaba assumindo o lugar da massa humana. Muitas histórias de avarentos solitários pertencem a este tipo; são a continuação dos 202

dragões dos contos, para os quais a vigilância, a contemplação, os cuidados de um tesouro eram o único conteúdo da vida. Seria possível objetar-se que esta relação com a moeda e tesouro é antiquada para o homem moderno; que em todos o os lugares já se usa o papel-moeda; que as pessoas ricas guardam seus tesouros de forma invisível e abstrata nos bancos. Mas a importância das reservas de ouro para se ter boas divisas mostra que o tesouro ainda não perdeu, em absoluto, seu antigo significado. A maioria dos homens, também nos países tecnicamente mais desenvolvidos, é assalariada pelo seu trabalho horário e o montante deste salário se movimenta numa ordem que, em quase todas as partes, ainda é concebida em termos de moeda. Ainda se recebem moedas em troca de papel-moeda; o velho sentimento em relação às moedas, a velha atitude perante elas continuam sendo familiares a todos; a troca de dinheiro como atividade cotidiana pertence aos mecanismos mais freqüentes e simples da nossa vida, que toda a criança aprende o mais cedo possível. Mas é correto que, ao lado desta relação mais antiga, desenvolveu-se uma outra forma de relação para com o dinheiro. A unidade monetária de cada país adquiriu um valor mais abstrato. Mas nem por isso ela deixa de ser considerada como unidade. Se as moedas antes tinham algo da rígida organização hierárquica de uma sociedade fechada, agora, com o papelmoeda, as coisas ocorrem mais como entre os homens das grandes metrópoles. O tesouro se transformou hoje no milhão. Existe algo de cosmopolita nesta palavra, cujo significado se estende por todo o universo moderno, podendo referir-se a qualquer moeda. O interessante no milhão é que, através de uma habilidade especulativa, ele pode ser conseguido repentinamente: ele flutua diante de todos os homens cuja ambição está orientada na direção do dinheiro. O milionário assumiu para si algumas das qualidades mais esplêndidas dos velhos reis das lendas. Como designação de um número, o milhão tanto pode referir-se ao dinheiro como aos homens. Este caráter duplo da palavra pode ser analisado muito bem nos discursos políticos. O prazer voluptuoso do número que cresce repentinamente, por exemplo, é característico dos discursos de Hitler. Em geral ele se refere aos milhões de alemães que ainda vivem no exterior do Reich e que ainda precisam ser redimidos. Depois das primeiras vitórias incruentas antes do início da guerra, Hítler tinha uma predileção especial pelas cifras crescentes da população do seu Reich. Ele as confrontava com o total de todos os alemães que 203

iffer"— vivem na Terra. Tê-los todos em sua esfera de influência era seu objetivo declarado. E ele também sempre empregava a palavra milhão em suas ameaças e exigências. Outros políticos usam mais esta palavra com referência ao dinheiro. Mas o uso da palavra adquiriu sem dúvida algo de ambíguo. O número abstrato foi preenchido pelas cifras das populações dos países e sobretudo das grandes cidades, que em todos os lugares sempre são expressas em milhões, acabando por adquirir um conteúdo de massa inexistente hoje em dia em qualquer outro número. Como o dinheiro está relacionado com o milhão, massa e dinheiro estão atualmente mais próximos do que nunca. Mas o que acontece numa inflação? A unidade monetária perde repentinamente sua personalidade. Ela se transforma numa massa crescente de unidades; estas possuem cada vez menos valor à medida que aumenta a massa. Os milhões, que sempre tanto se quis possuir, estão repentinamente em nossas mãos, mas já não são mais milhões, apenas se chamam assim. É como se o ato de saltar tivesse retirado todo o valor de quem salta. Uma vez que a moeda entra neste movimento, que tem o caráter de fuga, não é previsível um limite. Assim como se pode contar chegando-se sempre a números superiores, o dinheiro também pode desvalorizar-se cada vez mais. Neste acontecimento reencontra-se aquela propriedade da massa psicológica que considerei como especialmente importante e notória: o prazer pelo crescimento rápido e ilimitado. Mas este crescimento se volta para o negativo: o que cresce torna-se cada vez mais fraco. O que antes era um marco, é agora dez mil, depois cem mil, depois um milhão. A identificação do homem individual com o seu marco é abolida desta forma. O marco perdeu sua solidez e seu limite; a cada momento ele é algo diferente. Ele já não é mais como uma pessoa e não tem duração alguma. Tem cada vez menos valor. O homem, que confiava nele, não pode evitar sentir seu rebaixamento como um rebaixamento dele próprio. Afinal, ele se identificou durante muito tempo com o marco, a confiança que tinha nele era como a confiança em si mesmo. A inflação não abala apenas tudo externamente; nada mais é seguro, nada permanece no mesmo local durante uma hora; mas em virtude da inflação ele mesmo, o homem, diminui. Ele mesmo, ou o que ele foi, é nada; o milhão, que ele sempre desejou ter, também é nada. Todos o possuem. Mas cada um é nada. O processo da formação do tesouro inverteu-se passando a ser o contrário. Toda a confiabilidade do dinheiro evaporou-se. Nada se acres204

centa, tudo se torna cada vez menos tudo, todo tesouro desaparece. Pode-se considerar a inflação como uma festa de bruxos da desvalorização, na qual homens e unidades monetárias confluem da maneira mais estranha. Um substitui o outro; o homem se sente tão mal quanto o dinheiro que fica cada vez pior; e todos estão entregues a este mau dinheiro e juntos se sentem igualmente sem valor. Na inflação, portanto, ocorre algo que propositalmente nunca se quis, algo tão perigoso que todo aquele que de qualquer forma tenha alguma responsabilidade pública, caso pudesse prevê-lo, deveria retroceder assustado: uma desvalorização dupla que se origina de uma dupla identificação. O ser singular se sente desvalorizado, porque a unidade na qual confiou, que ele respeitava tanto como a si mesmo, começou a deslizar para baixo. A massa se sente desvalorizada porque o milhão foi desvalorizado. Já se mostrou até que ponto é ambígua a utilização da palavra milhão; como é usada para ambas as coisas (a elevada soma de dinheiro e o grande conglomerado de homens, especialmente na idéia que se faz de uma grande cidade moderna); como um conceito passa para o outro e alimenta o outro. Todas as massas que se formam em tempos de inflação — e é justamente nestes períodos que elas se formam aos montes — estão sob a pressão do milhão desvalorizado. Como pouco se vale sozinho, igualmente pouco se vale então unido aos demais. Quando os milhões aumentam, todo um povo de milhões se converte em nada. Este acontecimento reúne homens cujos interesses materiais, em outras ocasiões, divergem totalmente. O assalariado fica tão confuso pela situação como o que vive de rendas. Numa só noite, pode-se perder muito e tudo, inclusive aquilo que se acreditava estar em boa segurança depositado no banco. A inflação abole diferenças entre os homens que pareciam ter sido criadas para toda a eternidade e reúne numa mesma massa de inflação pessoas que, em outras circunstâncias, dificilmente se teriam sequer cumprimentado nas ruas. Nenhuma desvalorização repentina da pessoa consegue ser 'olvidada: ela é por demais dolorosa para que isso possa acontecer. Carrega-se o fardo consigo durante a vida toda, a não ser que se consiga jogá-lo sobre uma outra pessoa. Mas a massa como tal também não se esquece de sua desvalorização. A tendência natural então é a de encontrar algo que valha ainda menosdo que a própria pessoa, algo que possa ser desprezado da mesma forma como se foi desprezado antes. Não é suficiente 205

apoderar-se deste desprezo tal como foi encontrado, conservá-lo no nível em que estava antes de ser alcançado. O que se faz necessário é um processo dinâmico de rebaixamento: é preciso tratar alguma coisa de tal maneira que ela valha cada vez menos, como a unidade monetária durante a inflação, e este processo deve continuar até que o objeto tenha chegado a um estado de completa carência de valor. Então é possível jogá-lo fora como um papel com impressão defeituosa. Durante a inflação alemã, Hitler encontrou como objeto para esta tendência os judeus. Eles eram ideais para representar este papel: sua antiga vinculação com o dinheiro, para cujos movimentos e flutuações de valor eles tinham como que um faro tradicional; suas habilidades nas atividades especulativas, sua afluência às bolsas de comércio, onde sua maneira de agir contrastava cruamente com o ideal de conduta militar dos alemães, tudo isto devia fazer com que eles parecessem, numa época repleta de suspeitas e caracterizada pela falta de estabilidade e pela hostilidade do dinheiro, como particularmente duvidosos e hostis. O judeu era individualmente "mau": ele estava bem com o dinheiro, quando ninguém mais sabia como lidar com ele, preferindo manter uma boa distância. Se na inflação se tivesse tratado de processos de desvalorização dos alemães como indivíduos, teria sido suficiente despertar o ódio contra determinados judeus. Mas não era este o caso; os alemães, como massa, estavam se sentindo humilhados pelo descrédito dos seus milhões. Hitler, que tinha uma visão muito clara a este respeito, orientou sua atividade contra os judeus como um todo. No tratamento dos judeus, o nacional-socialismo repetiu da forma mais exata possível o processo da inflação. Primeiro eles foram atacados como maus e perigosos, como inimigos; depois foram sendo cada vez mais desvalorizados; como já não se tinha mais judeus em quantidade suficiente, eles passaram a ser coletados nos países conquistados; e, no final, eles eram considerados literalmente como insetos nocivos, que podiam ser exterminados aos milhões. Ainda hoje ficamos boquiabertos diante do fato de os alemães terem ido tão longe, de terem sido capazes de cometer, de tolerar ou de ignorar um crime dessas proporções. Dificilmente eles poderiam ter chegado tão longe, se poucos anos antes não tivessem passado por uma inflação durante a qual o marco chegou a valer apenas um bilionésimo do seu valor original. E foi esta inflação como fenômeno de massa que eles descarregaram sobre os judeus. 206

A essência do sistema parlamentar o sistema de dois partidos do parlamento moderno utiliza a estrutura psicológica dos exércitos combatentes. Na guerra civil eles estavam realmente presentes, se bem que a contragosto. Não se mata com prazer gente do nosso próprio povo, sempre existe um sentimento de tribo que se opõe às guerras civis e, na maior parte das vezes, faz com que elas terminem logo após alguns anos, ou antes. Mas os dois partidos que existem devem continuar se enfrentando. Lutam, abrindo mão dos seus mortos. Supõe-se que o de número maior vença num choque cruento. A preocupação principal de todos os generais é a de ser o mais forte, de ter mais homens à disposição do que o lado contrário num determinado momento e num lugar de choque real. O general que triunfa é aquele que consegue, dentro do que é possível em muitas localidades importantes, manter a supremacia, mesmo que no conjunto ele seja o mais fraco. Numa votação parlamentar não há nada a ser feito senão verificar a força de ambos os grupos num mesmo lugar. Não basta que se conheça isto desde o princípio. Um partido pode contar com 360 delegados e o outro com 240; a votação continua sendo decisiva em todos os instantes em que existe uma verdadeira medição. Ela é o resquício do choque sangrento que se expressa de múltiplas maneiras com ameaças, insultos e agressão física, que pode levar a golpes ou a lutas. Mas a contagem dos votos representa o final da batalha. Supõe-se que os 360 tenham triunfado sobre os 240. A massa dos mortos fica fora do jogo. Dentro do parlamento não deve haver mais mortos. Esta intenção é expressa de maneira mais clara na imunidade parlamentar, que tem um aspecto duplo: fora, em relação ao governo e aos seus órgãos; dentro, entre os seus pares (este segundo ponto geralmente não recebe a devida atenção). Ninguém jamais acreditou realmente que a opinião da maioria numa votação seja, devido ao seu maior peso, também a mais sensata. Vontade confronta-se com vontade, como numa guerra; cada uma destas vontades tem a convicção do maior direito próprio e da própria razão; é uma convicção fácil de ser encontrada, ela se encontra a si mesma. O sentido de um partido consiste justamente nisto, em manter vivas esta vontade O adversário que fica em minoria não se e esta porque submete que de repente tenha deixado de acreditar em seu direito, m s simplesmente porque se dá por vencido. É fácil para ele dar-se por vencido, pois nada lhe sucede. Ele não é 207

castigado por sua atitude hostil anterior. Caso se tratasse de colocar sua vida em jogo, ele reagiria de forma completamente diferente. Porém ele conta com batalhas futuras. E o número destas batalhas não tem limite fixado e ele não morre em batalha alguma. A igualdade dos parlamentares, justamente o que os transforma em massa, consiste em sua imunidade. Neste ponto não existe diferença alguma entre os partidos. O sistema parlamentar funciona enquanto se mantiver esta imunidade. Ele desmorona assim que algum posto seja ocupado por alguém que se permita contar com a morte de qualquer um dos membros da corporação. Nada é mais perigoso do que ver mortos entre estes vivos. Uma guerra é uma guerra porque inclui mortos em seu resultado. Um parlamento somente é um parlamento enquanto excluir os mortos. O distanciamento instintivo de seus próprios mortos, por exemplo, no parlamento britânico, inclusive dos que morreram de forma pacífica e fora do parlamento, manifesta-se no sistema da eleição complementar. O sucessor do defunto não está predeterminado. Ninguém sobe de posto e ocupa automaticamente o lugar do falecido. Novos candidatos se apresentam. A luta eleitoral é conduzida novamente em todas as suas formas regulares. Para o morto não existe posto de espécie alguma no parlamento. Ele não tem sequer o direito de dispor de sua própria herança. Nenhum parlamentar que está a ponto de morrer pode saber com certeza quem chegará a ser seu sucessor. A morte, com todas as suas perigosas repercussões, está eficientemente excluída do parlamento inglês. Contra esta concepção do sistema parlamentar seria possível levantar a objeção de que todos os parlamentos continentais são formados por muitos partidos que têm tamanhos desiguais; que estes partidos apenas ocasionalmente se juntam em dois grupos de combate. No sentido da votação, este fato não altera coisa alguma. Ela é sempre e em todos os lugares o momento essencial. Ela é que determina o que deve acontecer e ela sempre depende de dois números, dos quais o maior obriga todos os que participaram da votação. Com a imunidade do parlamentar vive e morre o parlamento de qualquer país. Em princípio, a eleição do delegado está aparentada com as coisas que acontecem no parlamento. Considera-se como o melhor dos candidatos, o vencedor, aquele que demonstrar ser o mais forte. O mais forte é o que obtém o maior número de votos. Se os 17562 homens que o apóiam se formassem como exército fechado contra os 13.204 que seguem seu adversário, 208

eles haveriam de conquistar a vitória. Aqui também não se deve chegar ao ponto em que haja mortos. No entanto, a imunidade dos eleitores não é tão importante quanto a das cédulas de votação, que eles entregam e que contêm o nome do seu candidato preferido. É permitido influenciar os eleitores de quase todas as maneiras, até o momento em que eles se comprometem definitivamente com o nome de sua preferência, que o escrevem ou que o assinalam. O candidato oposto é ironizado e entregue ao ódio generalizado de todas as maneiras possíveis. O eleitor pode parecer que não se decide em muitas batalhas eleitorais; se ele tiver uma orientação política, seus destinos variáveis têm para ele o maior dos encantos. Mas o momento da votação propriamente dita é quase sagrado; sagradas são as urnas fechadas e lacradas que contêm as cédulas eleitorais; sagrado também é o processo de contagem. O aspecto solene de todos estes acontecimentos origina-se na renúncia da morte como instrumento de decisão. Com cada uma das cédulas usadas descarta-se, por assim dizer, a morte. Mas o que ela teria conseguido, a força do oponente, é conscienciosamente anotado em um número. Quem joga com estes números, quem os adultera, quem os falsifica, volta a dar lugar à morte e nem sequer se apercebe disto. Os entusiasmados amantes da guerra, que gostam de fazer pouco das cédulas de votação, confessam desta forma suas próprias sangrentas intenções. As cédulas de votação, da mesma forma como os tratados, não passam de simples pedaços de papel para eles. Como estes papéis não estão manchados de sangue, não têm valor para eles; para eles valem apenas as decisões pelo sangue. O deputado é um eleitor concentrado; os momentos muito isolados em que o eleitor existe como tal acumulam-se muito mais para o deputado. Ele existe justamente para votar com freqüência. Mas também é muito menor o número de homens entre os quais o delegado vota. Sua intensidade e o seu exercício devem substituir em excitação o que os eleitores extraem de seus grandes números. Divisão e multiplicação. Socialismo e produção O problema da justiça é tão antigo quanto o da partilha ou divisão. Em qualquer lugar onde um grupo de homens saía para caçar, sempre se chegava por fim a uma partilha. Na malta, eles tinham agido como unidade, mas na partilha eles voltavam a se separar, a formar indivíduos isolados. Entre os homens 209

jamais se desenvolveu um estômago comum que possibilitasse a um certo número deles alimentar-se como se fosse uma única criatura. Na comunhão eles deram origem a um ritual que mais se aproximava desta idéia de um estômago comum. Foi como uma aproximação — insuficiente, mas mesmo assim uma aproximação — de um estado de coisas ideal e do qual sentiam necessidade. O que existe de isolado na ingestão, na incorporação é uma das raízes da pavorosa formação do poder. Quem come sozinho e às escondidas, unicamente para si, também é obrigado a matar sozinho e para si. Quem mata junto com os outros também deve compartilhar sua presa com os demais. Com o reconhecimento da partilha tem início a justiça. Sua regulamentação é a primeira lei. Até o dia de hoje, esta é a lei mais importante e como tal é o objetivo específico de todos os movimentos que se preocupam, de forma definitiva, com a coletividade das atividades e da existência do ser humano. A justiça exige que cada qual tenha o que comer. Mas ela também espera que cada qual contribua com sua parte para a obtenção deste alimento. A grande maioria dos homens está ocupada com a produção de bens de todas as espécies. Alguma coisa andou mal com a sua partilha. Este é o conteúdo do socialismo, quando reduzido à sua fórmula mais simples. No entanto, seja qual for a opinião que se tenha a respeito da maneira de repartir os bens no nosso mundo moderno, tanto os seguidores como os adversários do socialismo estão de acordo quando à premissa para a solução deste problema. Esta premissa é a produção. De ambos os lados do conflito ideológico que dividiu a Terra em duas metades atualmente de potência semelhante, estimula-se a produção por todos os meios. Pouco importa se produzimos para vender ou se produzimos para repartir; o processo de produção em si não só não é discutido por lado algum, como também é venerado e não se exagera quando se afirma que este processo atualmente fixá-la historicamente é insuficiente. É possível que as pessoas se perguntem de onde se origina esta veneração. Alguém poderia julgar que fosse possível reconhecer um momento da história da humanidade em que se tenha iniciado a sanção da produção. Um pouco de reflexão mostra que este momento não existe. A sanção da produção remonta a tempos tão distantes que qualquer tentativa de fixá-la historicamente é insuficiente. A hybris da produção remonta à malta de multiplicação. É fácil ignorar esta relação, uma vez que já não são mais as maltas que se dedicam praticamente à multiplicação. Elas se 210

transformaram em massas enormes que em quase todos os centros da civilização continuam crescendo diariamente. Porém, se considerarmos que não é possível prever o fim deste crescimento, que cada vez mais homens produzem cada vez mais bens, que entre estes bens também se encontram seres vivos, animais e vegetais, que os métodos para a geração de bens animados e inanimados quase já não se diferenciam mais, será forçoso admitir que a malta de multiplicação foi a formação mais rica e de maior êxito que a humanidade conseguiu produzir. As cerimônias que como meta tinham a multiplicação foram transformadas em máquinas e em processos técnicos. Cada fábrica é uma unidade que serve a um mesmo culto. A novidade está na aceleração do processo. O que antes era uma geração e uma intensificação da espera — da chuva, do trigo, da aproximação de manadas de animais que se caçavam, do crescimento de outros que eram mantidos domesticados — transformou-se hoje em geração imediata. Apertam-se alguns botões, mexe-se em algumas alavancas e obtém-se o que se quer, da forma que se deseja, em algumas horas ou até mesmo em menos tempo. Vale a pena chamar a atenção para o fato de que a relação rígida e exclusiva entre proletariado e produção, que há mais ou menos cem anos ganhou tanto prestígio, restabelece de maneira particularmente clara a velha idéia que serviu de base para a malta de multiplicação. Proletários são os que aumentam mais rapidamente e este aumento ocorre de duas formas. Por um lado, eles têm mais filhos do que as demais pessoas; já pela sua própria descendência eles têm algo de massa em si. Mas seu número também aumenta de outra maneira: pela afluência cada vez maior de homens do campo para os locais de produção. E justamente este duplo sentido de aumento, como sabemos, é uma característica da malta de multiplicação primitiva. Para suas festas e cerimônias confluíam pessoas que assim, como um todo formado por muitos, se entregavam a procedimentos que haveriam de lhes garantir urna rica descendência. Quando foi erigido e efetivado o conceito de um proletariado despojado de seus direitos, deixou-se a ele a plena euforia do aumento. Em momento algum levantou-se a possibilidade de que seu número pudesse ser reduzido, uma vez que seus ao me mbros não passavam bem. Confiava-se na produção. Devido auAmpen rotodudzta que produção deveria haver também mais proletários. eles provocavamdeveria servir eles mesmos. Proletários e produção tinham de crescer m 211

tua dependência. Esta porém é exatamente a mesma relação inseparável própria da atividade das maltas primitivas de multiplicação. Queremos nos tornar mais, e desta maneira também deve se tornar mais tudo aquilo de que se vive. Uma coisa não pode ser separada da outra; tudo está tão intimamente relacionado que muitas vezes não se sabe mais o que deve crescer. Já mostramos que o homem, identificando-se com certos animais que sempre vivem juntos em grande número, adquiriu um sentimento exacerbado da multiplicação. Seria possível dizer que ele somente aprendeu esta idéia a partir dos animais. Ele tinha diante de si cardumes de peixes, enxames de insetos e enormes manadas de animais quando, em suas danças, representava estes animais de forma tão perfeita que acabava se transformando neles, que se sentia igual a eles se conseguia fixar em seus totens essas determinadas metamorfoses para transmiti-las aos seus descendentes como tradição sagrada; com isso ele transmitia também uma intenção de multiplicação que ultrapassa amplamente a do próprio ser humano. Esta é exatamente a relação que atualmente o homem tem em relação à produção. As máquinas são capazes de produzir mais do que se podia sonhar. Toda a multiplicação cresceu assim de uma maneira enorme. No entanto, como de maneira geral se trata de objetos e somente em grau menor de seres vivos, ele aumenta sua dedicação ao número destes objetos, aumentando sua própria necessidade em relação a eles. Existem cada vez mais coisas para as quais ele vê alguma utilidade; utilizando estas coisas, geram-se novas necessidades. É este aspecto da produção, a multiplicação irrefreada como tal em todas as direções, que mais salta à vista em todos os países "capitalistas". Nos países que dão uma importância especial ao "proletariado" — onde se impedem as grandes acumulações de capital nas mãos de 'pessoas individuais — os problemas da distribuição comum são, teoricamente, equivalentes aos da multiplicação.

A autodestruição dos xosas Numa manhã de maio de 1856, uma jovem xosa foi bus car água num riacho que passava perto de sua casa. Quando retornou, contou que tinha visto uns homens estranhos junto ao rio, muito diferentes dos que ela encontrava normalmente. Seu tio, chamado Umhlakaza, foi ver os forasteiros e os encontrou no lugar indicado. Estes lhe disseram que voltasse para casa e executasse determinadas cerimônias; em seguida ele 212

deveria sacrificar um boi aos espíritos dos mortos e, no quarto dia, voltar até onde eles estavam. No aspecto deles havia algo que exigia obediência e o homem fez tudo o que lhe tinha sido ordenado. No quarto dia retornou ao rio. As estranhas Pessoas lá estavam outra vez; surpreso, reconheceu entre eles seu irmão que estava morto havia muitos anos. Foi então que ficou sabendo quem eram eles. Disseram que como eternos inimigos dos homens brancos tinham vindo dos campos de batalha além do mar para ajudar os xosas; que graças ao seu invencível poder os ingleses seriam desalojados do país; que Umhalakaza teria de servir de intermediário entre eles e os chefes e receberia as instruções para retrarsmiti-las. Se a ajuda oferecida fosse aceita, aconteceriam feitos surpreendentes, mais surpreendentes do que tudo o que jamais tinha acontecido. Antes de mais nada, ele deveria dizer às pessoas que acabassem com suas bruxarias dirigidas contra o próximo e que matassem e comessem o gado mais gordo. A notícia desta relação com o mundo dos mortos rapidamente se divulgou entre os xosas. Kreli, o chefe supremo da tribo, saudou a mensagem com alegria; dizem inclusive, mas sem que se possa prová-lo, que ele próprio foi o autor do plano todo. Correu a voz de que a ordem dos espíritos devia ser obedecida; deviam ser sacrificados e comidos os melhores espécimes do rebanho. Uma parte da tribo vivia sob a soberania britânica. Mensageiros foram enviados também aos chefes deste setor; eles foram informados do que tinha ocorrido e sua colaboração foi solicitada. Os clãs dos xosas se colocaram imediatamente em movimento. A maioria dos chefes começaram imediatamente a matança do gado. Somente um deles, Sandile, homem prudente, titubeava ainda. O alto comissário inglês mandou que comunicassem a Kreli que ele podia fazer o que quisesse em seu próprio território, mas se não deixasse de instigar súditos britânicos a destruírem suas propriedades seria castigado. Kreli pouco se importou com a ameaça; estava convencido de que logo chegaria o momento em que ele distribuiria os castigos. As revelações feitas pelo profeta tinham cada vez maior alcance. A jovem, de pé no meio do rio entre multidões incalculáveis de crentes, ouvia até mesmo estranhos ruídos subterrâneos que vinham de sob seus pés. Seu tio, o profeta, explicou que eram as vozes dos espíritos que confabulavam a respeito dos assuntos dos vivos. A primeira ordem já determinara que era necessário matar gado; mas os espíritos eram insaciáveis. Cada vez se sacrificava mais gado, mas nunca era 213

suficiente. O delírio crescia de mês para mês, causando sempre novas vítimas. Depois de um certo tempo até o cauteloso chefe Sandile acabou cedendo. Seu irmão o convenceu com muita eficiência. Com seus próprios olhos ele teria visto os espíritos de dois falecidos conselheiros de seu pai, tendo falado pessoalmente com eles; pediam-lhe que ordenasse a Sandile que matasse seu gado, sob pena de sucumbir junto com o homem branco. A última ordem do profeta também foi comunicada. Sua execução haveria de ser o último preparativo dos xosas; depois dela, eles seriam dignos da ajuda de um exército de espíritos. Nem um único animal deveria continuar com vida em seus rebanhos; todos os cereais estocados teriam de ser destruídos. Para os que obedecessem delineava-se um futuro paradisíaco. Num dia predeterminado, rebanhos de milhares e milhares de cabeças, mais bonitas do que todas que se tinham matado, sairiam da terra e cobririam as pastagens por todas as partes. Grandes campos de milho, maduro e pronto para ser consumido, brotariam do solo num abrir e fechar de olhos. Neste dia os antigos heróis da tribo, os grandes e sábios do passado, ressuscitariam e participariam do regozijo dos crentes. Desapareceriam a preocupação e a enfermidade, bem como todos os achaques da velhice; a juventude e a formosura seriam atributo tanto dos mortos ressuscitados como dos vivos fracos. Mas pavoroso seria o destino de todos os que se opusessem à vontade dos espíritos ou dos que se descuidassem da execução de suas ordens: o mesmo dia em que os crentes receberiam tanta alegria seria para eles um dia de ruína e de perdição: o céu cairia e os trituraria junto com os mestiços e os brancos. Os missionários e os agentes do governo se esforçavam em vão para pôr um freio a estes acontecimentos loucos. Os xosas estavam totalmente enlouquecidos e não toleravam objeção ou resistência. Os brancos que se intrometiam no assunto eram ameaçados; eles já não se sentiam sequer seguros de suas próprias vidas. Uma fé fanática tinha se apoderado de todos os xosas; alguns dos seus chefes, no entanto, viram em tudo isto uma boa oportunidade para iniciar uma guerra. Eles tinham constantemente um plano em mente: lançar toda a tribo xosa armada e em estado de extrema inanição contra a colônia dos brancos. Eles mesmos estavam por demais exaltados para conseguir ver os perigos desta empresa, contra o êxito da qual tudo parecia conspirar. Alguns não acreditavam nas previsões do profeta, nem no êxito da guerra; mas mesmo assim destruíram todas as suas 214

reservas de alimento até o último vestígio. Entre estes estava um tio do chefe Kreli. "É a ordem do chefe", disse; depois, quando já não havia mais nada para comer, o ancião e sua esposa favorita se sentaram num kraal vazio e morreram. Também o principal conselheiro de Kreli se opôs ao plano, até ver que suas palavras eram inúteis. Então, declarando que tudo o que tinha pertencia ao seu chefe, deu ordem para matar e destruir e fugiu como um demente. É possível que muitos tenham agido desta forma contra sua própria convicção. O chefe ordenava e eles obedeciam. Nos primeiros meses de 1857 reinava uma atividade incomum no país inteiro. Preparavam-se grandes currais para abrigar o gado que logo haveria de chegar em grandes quantidades. Fabricaram-se gigantescos recipientes de couro para guardar o leite, que logo iria existir com a abundância da água. Alguns já passavam fome enquanto executavam este trabalho. A leste do rio Kei, as ordens do profeta tinham sido executadas literalmente, mas mesmo assim o dia da ressurreição tinha sido adiado. É que no território do chefe Sandile, onde as ordens tinham começado a ser executadas somente mais tarde, a matança ainda não chegara ao fim. Uma parte da tribo já passava fome, ao passo que outra ainda estava destruindo seus haveres. O governo fez tudo para proteger suas fronteiras. Todos os postos foram reforçados, todos os soldados disponíveis foram enviados para lá. Os colonos também se tinham preparado para absorver o choque. Depois de se terem preocupado com a defesa, começaram a reunir provisões para salvar a vida dos que passavam fome. Finalmente chegou o dia tão ansiosamente esperado. Durante a noite toda os xosas tinham ficado acordados na maior das excitações. Eles esperavam ver nascer sobre as colinas do oriente dois sóis vermelhos como sangue; o céu então cairia e esmagaria todos os inimigos deles. Quase mortos de fome, passaram a noite em meio a uma alegria selvagem. Depois, finalmente, o sol apareceu como sempre, sozinho, apenas um único sol e o coração dos xosas desfaleceu. Mas eles não perderam as esperanças de imediato; talvez fosse necessário esperar até o meio-dia, quando o sol alcançasse seu ponto mais alto; e como então nada aconteceu eles esperaram ainda pelo pôr-do-sol. Mas o sol se pôs e tudo terminou. Os guerreiros, que deveriam ter-se lançado juntos contra a col poralgum gum erro incompreensível não tinham sido reunidos. E agora era demasiado tarde para isto. Uma tentativa 215

de adiar novamente a data da ressurreição não surtiu efeito. A alegre excitação dos xosas tinha se transformado no mais profundo desespero. Como mendigos, não como guerreiros, num estado de total inanição, tinham agora de tomar o caminho em direção à colônia. Por pequenos pedaços dos grandes recipientes para o leite, que naqueles dias de grande esperança tinham sido confeccionados com tanto esmero, irmãos lutaram contra irmãos, pais contra filhos. Velhos, fracos e enfermos foram abandonados ao seu próprio destino pelos mais jovens. Para comer, procuravam todos os tipos de vegetais, inclusive as raízes das árvores. Os que estavam próximos do mar tentaram subsistir à base de crustáceos, mas como não estavam habituados a este tipo de alimentação sofreram disenteria e pereceram rapidamente. Em alguns lugares, famílias inteiras se sentavam juntas para morrer. Mais tarde, muitas vezes se encontraram, debaixo de uma única árvore, de quinze a vinte esqueletos juntos, pais que tinham morrido junto de seus filhos. Uma interminável corrente de criaturas esfomeadas despejou-se sobre a colônia; na maior parte eram homens e mulheres jovens, mas também pais e mães com crianças meio mortas nas costas. Eles se acocoravam diante das fazendas e pediam comida com vozes lastimosas. Durante o ano 1857, a população do setor britânico do país xosa caiu de 105.000 para 37.000. Morreram 68 mil pessoas. E a vida de milhares deles somente pôde ser salva graças às reservas de cereais que o governo distribuiu. Na zona livre, onde não existiam tais reservas, pereceram quantidades ainda maiores. O poder da tribo xosa ficou completamente aniquilado. Relatamos estes acontecimentos de maneira bastante detalhada, e o fizemos propositalmente. Poder-se-ia suspeitar que tudo isso foi inventado por alguém que tivesse a intenção de esclarecer a sucessão dos acontecimentos de massa, seu desenvolvimento previsto e sua precisão. No entanto, tudo realmente aconteceu dessa forma em meados do século passado, ou seja, num passado que não é tão remoto assim. Existem relatos de testemunhas oculares do acontecimento, relatos que qualquer pessoa pode consultar. Vamos tentar extrair alguns pontos essenciais da história. Por um lado, chama a atenção o fato de que os mortos dos xosas estejam tão vivos. Eles realmente participam dos destinos dos vivos. Eles encontram meios e maneiras de entrar 216

em comunicação com estes. Prometem-lhes um exército auxiliar. Como exército, ou seja, como massa de guerreiros mortos, eles se unirão ao exército dos xosas vivos. Este esforço será realizado exatamente como se tivesse sido feita uma aliança com uma outra tribo. Mas desta vez trata-se de uma aliança com a tribo dos próprios mortos. Assim que chegar o dia prometido, repentinamente todos serão iguais. Os velhos voltarão novamente a ser jovens, os doentes terão saúde, os angustiados ficarão alegres; os mortos se misturarão aos vivos. Um começo nesta direção de igualdade generalizada já se efetua com a primeira ordem. Os vivos devem abandonar os feitiços que usam uns contra os outros; a confusão existente em suas intenções de hostilidade é o que mais perturba a unidade e a regularidade da tribo. Depois, naquele grande dia previsto, a massa da tribo, que por si mesma é fraca demais para poder vencer seus inimigos, repentinamente se verá aumentada por toda a massa dos seus mortos. Também a direção na qual se movimentará a massa está prescrita: ela se abaterá sobre a colônia dos homens brancos, sob cujo domínio uma parte da tribo já se encontra. Seu poder, graças ao reforço dos espíritos, será insuperável. Aliás, os espíritos têm os mesmos desejos dos vivos; eles gostam de comer carne e por causa disso exigem que o gado lhes seja sacrificado. É de supor-se que eles também saboreiem os cereais que são destruídos. A princípio os sacrifícios ainda são isolados; eles podem ser interpretados como sinais de piedade e submissão. Depois porém eles aumentam, os mortos querem tudo. A tendência de multiplicação que geralmente se tem pelos animais e pelos cereais transforma-se numa tendência de multiplicação para os mortos. O que agora deve aumentar é o gado morto, os cereais destruídos, uma vez que agora se trata de gado e cereais para os mortos. A inclinação dinâmica da massa de crescer de forma impetuosa, desconsiderada e cega, sacrificando-se tudo a ela — fenômeno que aparece onde quer que se forme uma massa de homens vivos —, essa inclinação é transferida. Os caçadores a transferem para seus animais de caça, que nunca existem em número suficiente e cuja fertilidade procuram incentivar através de numerosas cerimônias. Os criadores de gado a transferem para seus animais: eles farão tudo para que seus rebanhos cresçam, e graças à sua habilidade na criação, realmente os transformam pouco a pouco em grandes e vastas manadas. Os agricultores transferem a mesma inclinação para os produtos que conseguem extrair do solo. Seus cereais multiplicam-se por 30 ou por 100 e os silos 217

onde são armazenados, visíveis e admirados por todos, são a nítida expressão de que eles foram bem-sucedidos nesta súbita multiplicação. Eles fizeram tanto para isso que este sentimento de massa transferido para as manadas ou para o cereal se transforma como que em uma nova consciência de si mesmos, e freqüentemente eles devem sentir-se como se tivessem conseguido tudo isso sozinhos. Durante esta "autodestruição" dos xosas, tudo o que neles havia de tendências de multiplicação de homens, de gado e de cereais, transferiu-se para sua idéia dos mortos. Para vingar-se dos brancos que os despojavam cada vez mais de suas terras, para realizar contra eles uma guerra com possibilidade de êxito depois de todas as guerras que já tinham perdido, necessitavam de uma coisa: da ajuda de seus mortos. Assim que conseguissem assegurar realmente o apoio destes, assim que estes efetivamente aparecessem em bandos numerosos, eles poderiam iniciar a guerra. Com eles, também voltariam o gado e o milho do país dos mortos em quantidades muito maiores do que as que tinham sido enviadas, tudo o que se tinha acumulado entre os mortos no decorrer dos tempos. O gado que era morto e os cereais que eram destruídos tinham a função de um cristal de massa aos quais iriam se agregar todo o gado e todos os cereais do além. Noutras épocas, para conseguir esta mesma meta, teriam sem dúvida sacrificado seres humanos. Naquele grande dia previsto, os campos ficariam repletos de novas e enormes manadas e sobre os campos brotaria milho maduro e pronto para o consumo. A finalidade desta empresa, portanto, era a reaparição dos mortos juntamente com tudo o que pertence à vida. Em função desta intenção prioritária sacrificava-se tudo. Esse modo de pensar e de agir era confirmado por membros daquele mundo que se conheciam. O irmão do profeta, os dois conselheiros do antigo e falecido chefe eram os avalistas de um convênio que foi estabelecido com os mortos. Quem se opunha ou hesitava, tirava da massa algo que lhe pertencia, perturbando assim sua unidade. Por isso era melhor colocar imediatamente essas pessoas entre os inimigos; juntamente com estes haveriam de morrer. Considerando-se o resultado catastrõfico dos acontecimentos — o fato de que no solene dia prometido não ocorreu coisa alguma, de que não apareceram campos de milho nem rebanhos, nem exércitos de mortos — pode-se dizer que, do ponto de vista da crença dos xosas, eles foram enganados pelos seus mortos. Estes não tinham levado a sério o convênio, não lhes 218

interessava um triunfo sobre os brancos; interessava-lhes somente aumentar seu próprio número. Através de truques e simulações, ,priaram-se primeiro do gado e dos cereais dos vivos; depoi , c,s mortos por inanição se foram, seguindo um após outro. Apesar de tudo, portanto, a vitória foi conquistada pelos mortos — se bem que se tratou de outra vitória e de outra guerra. No final, os mortos ficaram sendo a maior das massas. De importância especial para o comportamento dos xosas nos parece ser também a ordem. Ela tem algo de autônomo e como ação ela tem seu valor de forma independente, por si própria. Os mortos que dão a ordem necessitam de um intermediário para a sua transmissão. Eles reconhecem assim a hierarquia terrestre. O profeta deve dirigir-se aos chefes e convencê-los a aceitar as ordens espirituais. No momento em que Kreli, o chefe supremo, se declara favorável ao plano dos espíritos, a ordem segue seu curso normal. Mensageiros são enviados a todos os clãs dos xosas, mesmo aos que se encontram sob a "falsa" soberania dos ingleses. Até os incrédulos, que se defendem durante bastante tempo contra a execução do plano, entre eles o tio de Kreli e seu principal conselheiro, terminam acatando a "ordem" do chefe e explicam enfaticamente que esta ordem é o único motivo de sua submissão. Tudo se torna ainda mais estranho, no entanto, quando levamos em consideração o conteúdo da ordem. Trata-se essencialmente de sacrificar o gado, ou seja, de matar. Quanto mais enfaticamente a ordem é repetida, quanto mais envolvente e maciça é sua aplicação, tanto mais a ordem antecipa a própria guerra. Do ponto de vista da ordem, por assim dizer, o gado substitui os inimigos. Ele substitui os inimigos e também o gado deste, da mesma forma que os cereais que são destruídos substituem os cereais dos inimigos A guerra começa no próprio país, como se os homens já estivessem no país inimigo. A ordem entretanto retorna à sua origem, quando ainda era sentença de morte, a sentença de morte instintiva de uma espécie contra a outra. Sobre todos os animais que o homem mantém em cativeiro pende sempre a sentença de morte. Se bem que a sentença seja — com freqüência durante muito tempo — suspensa, nenhum desses animais é indultado. Dessa maneira o homem transfere impunemente sua própria morte, da qual ele tem perfeita consciência, aos seus animais. O lapso de vida que ele lhes concede está relacionado com sua própria vida; a única diferença é que, no caso dos animais, é ele quem estabe219

lece quando devem morrer. A morte dos seus animais lhe é mais suportável quando ele possui muitos e retira apenas alguns da manada para serem sacrificados. Suas duas metas — a multiplicação de seus rebanhos e a morte necessária dos animais isolados — podem existir muito bem lado a lado. Desta forma, como pastor, ele é muito mais poderoso do que qualquer caçador. Seus animais estão todos juntos e não fogem. A duração da vida deles está em suas mãos. Ele não depende da oportunidade que os animais lhe oferecem, não precisa matá-los no ato. A violência do caçador se transforma no poder do pastor. A ordem, portanto, que é dada aos xosas, é uma ordem íntima em sua essência: a execução da sentença de morte sobre seus animais deve preceder a matança de seus inimigos, como se, no fundo, ambos fossem a mesma coisa; e de fato são. É digno de consideração o fato de que esta ordem de matar emane dos próprios mortos, como se eles tivessem autoridade suprema a este respeito. Em última instância, eles fazem com que tudo seja transferido para o além. Entre eles se encontram todos os que deram ordens no passado, gerações de chefes. Seu prestígio reunido é grande; sem dúvida, também seria grande se todos eles, não como mortos, repentinamente estivessem entre os homens. Mas não se pode evitar a impressão de que seu poder aumentou ainda mais pela morte. O fato de eles terem podido chamar a atenção por meio do profeta, de que tenham aparecido e falado com ele, confere-lhes um poder maior do que possuíam em vida, um prestígio sobrenatural; desta maneira evitaram a morre e continuam impressionantemente ativos. Contornar a morte, o desejo de esquivar-se dela constituem as mais antigas e tenazes tendências de todos os que detêm o poder. Neste contexto é significativo acrescentar que o chefe Kreli sobreviveu durante muitos anos após a morte do seu povo por inanição.

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AS ENTRANHAS DO PODER

Tomar e incorporar

A psicologia do ato de tomar e incorporar — como a do ato de comer, de maneira geral — ainda está por ser investigada; tudo nos parece extremamente óbvio a este respeito. No entanto existem muitos processos de natureza enigmática, sobre os quais jamais chegamos a refletir. Não existe nada em nós que seja mais antigo. Nem mesmo o fato de compartilharmos uma grande parte destes processos com os animais constitui, até hoje, algo surpreendente para nós. Uma criatura se aproxima de outra pela qual sente hostilidade, em diferentes atos, cada um dos quais tem seu determinado significado tradicional. Temos, por exemplo, a espreita da presa: ela é espreitada, observada, muito antes de perceber quais são os nossos objetivos. Ela é contemplada com um sentimento de aprovação e de extrema satisfação; ela é observada e vigiada; é vista como carne, se bem que ainda esteja viva; tão intensa e decisivamente ela é vista como carne que nada jamais poderia nos dissuadir da intenção de consegui-la. Durante todo o tempo a rodeamos, sentimos até onde ela nos pertence; a partir do momento em que a escolhemos como presa, nós já a incorporamos na nossa imaginação. A espreita é um estado tão peculiar de tensão que, independentemente de tudo, pode adquirir um significado em si mesmo. Nós o prolongamos; posteriormente, ele é provocado como estado autônomo, independente da presa que nos é prometida. Não é sem riscos que o homem fica na espreita e se entrega à perseguição. Tudo o que o impele ativamente nesta direção é também vivenciado de forma passiva por ele mesmo, porém de maneira intensificada, pois sua maior inteligência permite que ele perceba mais os perigos, e conseqüentemente faz com que sinta tormentos maiores quando perseguido. Nem sempre o homem é suficientemente forte para alcançar sua presa de forma direta. A perseguição, já por si hábil e apropriada, o conduziu às mais complicadas armadilhas. Freqüentemente o homem se utiliza da transformação, que é o seu principal talento, e se disfarça no animal que está perseguindo. Ele é capaz de fazer isto de forma tão perfeita que o animal acredita no disfarce. Esta maneira de espreita poderia 223

ser considerada como uma lisonja. No fundo estamos dizendo ao animal: "Eu sou idêntico a você; eu sou como você. Você pode me deixar chegar perto". Depois da aproximação rastejante e do salto — fatos tratados noutro contexto — verifica-se o primeiro contato. Talvez seja isto o que mais se teme. Os dedos apalpam o que brevemente pertencerá por inteiro ao corpo. A tomada de posse pelos outros sentidos, pela visão, pela audição, pelo olfato, é muito menos perigosa. Estas outras maneiras ainda deixam espaço entre a pessoa e sua vítima, e enquanto existir este espaço continua havendo uma possibilidade de escapar e tudo é indeciso. O apalpar, no entanto, como toque, já é um precursor do sentir pelo paladar. Nos contos de fadas, a bruxa obriga o menino a estender o dedinho para apalpá-lo e para determinar se a vítima já engordou o suficiente. As intenções que um corpo tem em relação a outro tornam-se concretas a partir do instante do contato. Já nas formas inferiores de vida este momento tem algo de decisivo. Ele contém os terrores mais antigos; nós sonhamos com ele; nós o transformamos em versos ou o intensificamos; nossa vida civilizada nada mais é do que um único esforço para evitar este contato. O resistir ou o abandonar dependem, a partir deste instante, da relação de poder entre o que toca e o que é tocado. Porém, mais ainda do que da relação real de poder, dependem da imagem que o tocado faz dela. Na maior parte das vezes, ele procurará defender sua pele; somente deixará de empreender alguma ação contra um poder que lhe pareça ser imbatível. O contato definitivo, o contato ao qual o indivíduo se resigna porque toda resistência, e principalmente toda resistência futura, parece ser inútil, é em nossa vida social a detenção. Basta sentir sobre o ombro a mão de quem tem autoridade para prender e, comumente, a pessoa se rende, antes mesmo de chegar a sentir o contato propriamente dito. As pessoas se dobram, se deixam levar; comportam-se de maneira controlada; no entanto o que habitualmente vem depois deste instante não costuma ser do tipo das coisas que podemos encarar com calma e tranqüilidade. O grau seguinte da aproximação é a tornada. Os dedos da mão formam uma concavidade na qual tentam introduzir uma parte da criatura tocada. Eles o fazem sem qualquer preocupação com a estrutura, com a articulação orgânica da presa. Se eles a machucam ou não neste estágio, é indiferente. Mas alguma coisa pertencente ao corpo da criatura tocada deve entrar neste espaço formado pelos dedos, convertendo-se desta 224

forma em prenda para o todo. O espaço na parte interna da mão crispada é a ante-sala da boca e do estômago, pelos quais a presa será definitivamente incorporada. Em muitos animais, em vez da garra ou da mão é a boca aberta que se encarrega da tomada. Entre os homens, a mão que já não solta mais sua presa converte-se no símbolo propriamente dito do poder. "Foi colocado em suas mãos." "Estava em suas mãos." "Está nas mãos de Deus." Expressões semelhantes a estas são freqüentes e familiares em todos os idiomas. O verdadeiramente importante no processo da tomada é a pressão que é exercida pela mão humana. Os dedos se contraem em torno do que foi tomado; a concavidade, dentro da qual a criatura foi pressionada, se restringe. Deseja-se sentir esta criatura com toda a superfície interna da mão; senti-la com a maior intensidade possível. O primeiro contato foi leve e cauteloso; depois ele se intensifica e se concentra, até que se tenha uma parte da presa da maneira mais pressionada e apertada possível. Este tipo de pressão acabou assumindo o lugar do dilaceramento por meio das garras. Nos cultos antigos o dilaceramento ainda era praticado; mas era considerado como algo bestial, era um jogo entre animais. Para um caso de emergência, ele foi transferido, há muito tempo, para os dentes. A pressão pode ser aumentada até o ato de esmagar. Quanto mais perigosa for a presa tanto maior será a pressão, que poderá chegar até o esmagamento. Se foi preciso travar uma luta árdua contra a presa, se ela constitui uma séria ameaça, se provoca a raiva ou, pior ainda, se causou ferimentos, far-se-á com que ela o sinta e será apertada mais fortemente do que seria necessário para a própria segurança. Entretanto, muito mais do que a periculosidade e a fúria, é um sentimento de desprezo que impele ao ato de esmagar. Algo muito pequeno, que quase não conta, um inseto, é esmagado porque, caso contrário, não saberíamos o que aconteceu com ele. Não existe mão capaz de formar uma concavidade suficientemente estreita para ele. Mas, além do fato de querermos nos livrar de algo que nos importuna e de querermos saber se realmente conseguimos nos livrar disso, este tipo de comportamento em relação a uma mosca ou a uma pulga mostra nosso desprezo por seres inteiramente indefesos, que vivem numa ordem de magnitude e de poder completamente diferente da nossa, com os quais nada temos em comum, nos quais nunca nos transformamos e os quais nunca tememos a não ser que, repentinamente, se apresentem como massa. A destruição destas minúsculas criaturas é o único ato que permanece com225

pletamente impune, também dentro de nós mesmos. Seu sangue nunca cai sobre nossa cabeça; ele não faz com que nos lembremos do nosso próprio sangue. Nós não vemos seu olhar no momento da morte. Não comemos essas vítimas. Elas não foram integradas — pelo menos entre nós ocidentais no crescente, se bem que não muito eficiente, reino da humanidade. Estão, numa palavra, fora da lei, entregues a quem quiser abatê-las, livres como pássaros; livres ao arbítrio como pulgas e moscas, seria mais correto dizer. Se eu digo a alguém: "Eu posso esmagar você com a mão", estou na verdade expressando o maior desprezo imaginável por este alguém. Estou dizendo o seguinte: "Você é um inseto. Você nada significa para mim. Eu posso fazer com você tudo o que quiser, e mesmo assim você não significa coisa alguma para mim. Você não significa coisa alguma para pessoa nenhuma. Eu posso exterminar você impunemente. Ninguém notaria se eu fizesse isso. Ninguém se lembraria disso. Nem mesmo eu". O grau supremo da destruição por pressão, a trituração, já não é mais possível pela mão; a mão é macia demais para isso. A trituração pressupõe uma superioridade mecânica muito grande, duas superfícies duras, uma em cima e outra embaixo, entre as quais se tritura o objeto. Os dentes realizam aqui o que as mãos já não conseguem fazer. De maneira geral, já não se pensa mais em coisa viva quando se fala de trituração; o processo como tal já avançou demais em direção ao inorgânico. O mais provável é vincular a palavra com uma catástrofe natural; grandes rochedos que se desprendem podem triturar criaturas muito menores. No sentido transposto, a expressão certamente é aplicada, mas ninguém a leva muito a sério. Ela transmite a imagem de um poder que destrói, que pertence às ferramentas do homem, mas não autenticamente ao próprio homem. Existe algo de objetivo na trituração; o corpo sozinho, como exterioridade, não é capaz dela e renuncia a ela. O máximo de que pode dispor é o punho "de aço". É curioso observar o grande respeito de que goza o ato de agarrar. As funções da mão são tão múltiplas que não pode causar espanto o grande número de variações lingüísticas que se referem a ela. Na verdade seu nimbo, sua aura propriamente dita residem no gesto de agarrar, ato central e mais celebrado do poder. "Surpreso", adjetivo que dificilmente poderia encontrar um superlativo, é talvez o testemunho mais impressionante disso. Ele expressa a condição de se estar inteiramente envolvido por uma força sobre a qual não se tem nenhuma influência. A pessoa "surpresa" está agarrada por uma gigan226

tesca mão, aprisionada por ela, sem poder fazer coisa alguma para se defender de algo cujas intenções não pode conhecer. É natural encontrar o ato decisivo do poder lá onde, desde todos os tempos, ele sempre foi mais notório, tanto entre os animais como entre os homens: no ato de agarrar. O prestígio supersticioso de que entre os homens gozam os animais felinos, tanto o tigre como o leão, tem aí sua origem. Eles são os grandes agarradores; e eles agarram sozinhos. A espreita, o salto, o golpear com as patas, o dilacerar, tudo neles está reunido em um ponto. O ímpeto deste processo, sua implacabilidade, a segurança com que é executado, a indiscutível superioridade do executante, o fato de que tudo, por mais variado que seja, pode se transformar numa presa — tudo isto contribui para o seu violento prestígio. Não importa de que ponto de vista se analise a situação, em todos eles o poder se manifesta na sua concentração máxima. Desta forma, deixaram uma impressão indelével no homem; todos os reis teriam sido leões com o máximo prazer. Era o ato de agarrar que eles admiravam e elogiavam, seu êxito. Em todos os lugares passou-se a qualificar de coragem e de grandeza o que se baseava numa força amplamente superior. O leão não precisa se transformar para conseguir sua presa; ele a consegue sendo ele mesmo, como leão. Antes de se colocar em movimento, ele se dá a conhecer por seu rugido; ele, o único, pode revelar sua intenção, anunciando-a em voz alta e de modo audível para todas as criaturas. Existe nisto uma obstinação inalterável que jamais se modifica, e que somente por isto já aumenta o terror que provoca. O poder, na sua essência e nos seus momentos culminantes, despreza todas as transformações. Ele se basta a si mesmo; ele quer apenas a si mesmo. Nesta forma é que ele se mostrou admirável para o homem; absoluto e irresponsável, o poder não trabalha em favor de nada e de ninguém. Seu maior brilho para o homem é quando ele se apresenta desta forma; e ainda hoje nada pode impedir que ele volte a aparecer desta forma. Mas existe um segundo ato do poder, não tão brilhante mas nem por isso menos essencial. A grandiosa impressão do ato de agarrar faz às vezes com que se esqueça uma ação paralela e não menos importante: o ato de não se deixar agarrar. Todo o espaço livre que o poderoso cria etrí torno de si está em função desta segunda tendência. Todo poderoso, até mesmo o menor deles, procura evitar que cheguem excessivamente perto dele. Onde quer que haja uma forma de convivência entre os homens, ela se exprime em distâncias que diminuem 227

esse incessante terror de ser pego e agarrado. A simetria, tão evidente em determinadas civilizações antigas, deriva exatamente da distância uniforme que o homem cria em torno de si. A segurança nestas civilizações é uma segurança de distâncias e isto também é expresso plasticamente. O poderoso, de cuja existência depende a dos demais, goza da maior, da mais nítida das distâncias; por isso, e não apenas pelo seu brilho, ele é o sol ou, mais amplamente, como entre os chineses, o céu. O acesso a ele torna-se difícil; palácios com salões cada vez mais numerosos são construídos em torno dele. Cada portão, cada porta está sob rígida vigilância; é impossível entrar contra a vontade dele. Ele, no entanto, a partir de sua distante segurança, pode mandar agarrar qualquer pessoa onde quer que ela se encontre. Mas como agarrar o poderoso, que está cem vezes distante? A incorporação da presa tem início na boca. Para ela levava originalmente o caminho de tudo o que era comestível: da mão para a boca. Em muitas criaturas que não dispõem de braços para agarrar, esta função está a cargo da própria boca, dos dentes ou de algum bico anteposto a ela. O instrumento mais notório do poder que o homem, da mesma forma que muitos outros animais, carrega consigo são os dentes. A fileira em que estão dispostos, seu polimento brilhante fazem com que eles não possam ser comparados a nenhuma outra parte ativa do corpo. Seria possível designá-los como o primeiro ordenamento, um ordenamento que exige formalmente ser reconhecido de maneira geral; um ordenamento que funciona como ameaça para fora, nem sempre de maneira visível mas quando se abre a boca, e isto ocorre com freqüência. O material dos dentes é diferente do das demais partes visíveis do corpo; a impressão causada seria a mesma, ainda que tivéssemos apenas dois dentes. Eles são lisos, duros, não cedem; podem ser comprimidos sem que mudem de volume; funcionam como pedras engastadas e polidas com muito esmero. Desde muito cedo, o homem utilizou todas as pedras possíveis para fabricar armas e utensílios; mas levou muito tempo para conseguir poli-las até dar-lhes a lisura dos dentes. É provável que, para melhorar a constituição dos seus utensílios, os dentes lhe tenham servido de modelo. Os dentes de muitos animais de grande porte sempre lhe foram de muita utilidade. É possível que ele se tenha apoderado destes dentes colocando a própria vida em perigo; e alguma coisa do poder do animal que com eles o ameaçava devia estar ainda contido 228

neles, na opinião dele. Ele os usava como troféus e como amuletos para que passasse a outros o terror que ele mesmo tinha sentido. As cicatrizes que tinham sido provocadas pelos dentes em seu corpo, ele as ostentava com orgulho; elas eram consideradas como sinais de honra e eram tão apreciadas e desejadas que, posteriormente, passaram a ser provocadas artificialmente. O efeito dos dentes sobre os seres humanos é extremamente rico e múltiplo; tanto dos dentes dos animais mais fortes como dos seus próprios. Pelo seu tipo eles se situam entre uma parte natural do corpo e a ferramenta; o fato de eles poderem ser perdidos ou extraídos os aproxima ainda mais da categoria de ferramenta. As propriedades manifestas dos dentes, o fato de serem lisos e de estarem ordenados, passaram à essência do poder de maneira geral. São inseparáveis dele e são a primeira coisa que se pode estabelecer em qualquer forma de poder. Os utensílios primitivos já o demonstravam; mas com o crescimento do poder suas primeiras propriedades também cresceram. A passagem da pedra para o metal foi talvez o maior salto nesta direção de polimento cada vez maior. Por mais bem polida que fosse a pedra, a espada — primeiro de bronze e depois de ferro — era ainda mais lisa. O que há de verdadeiramente atraente e sedutor no metal é o fato de ele ser mais liso do que qualquer outra coisa. Nas máquinas e nos veículos do nosso mundo moderno, esta lisura aumentou ainda mais, passando a ser uma espécie de "lisura de funcionamento". A linguagem expressa este estado de coisas de forma ainda mais clara; dizemos que alguma coisa funciona de maneira "lisa" ou seja, sem atritos. Desta forma nos referimos a algum acontecimento, seja ele qual for, que está perfeitamente controlado, que ocorre sem qualquer espécie de estorvo. A preferência pelas coisas lisas e polidas na vida moderna se estendeu a setores que antes eram evitados. As casas e as instalações eram freqüentemente enfeitadas exatamente como o corpo e os membros do homem. Os adornos se modificaram, mas sempre existiram; eles persistiam, mesmo quando seu significado simbólico já se tivesse perdido. Atualmente "o liso" também conquistou as casas, seus muros, suas paredes, os objetos que são colocados dentro delas; ornamentos e enfeites são desprezados e considerados como sinais de mau gosto. Fala-se muito a respeito da função, da claridade e da utilidade, mas o que na verdade triunfou foi "o liso" e o secreto prestígio que lhe é inerente. 229

O exemplo da nova arquitetura deixa bem claro quão difícil seria separar aqui o liso do ordenamento. Sua história conjunta é antiga, tão antiga corno os dentes. A igualdade de toda uma fileira de dentes, as distâncias uniformes entre eles foram modelos para muitos ordenamentos. Grupos regulares de toda espécie, que atualmente são considerados por nós como óbvios, podem ter derivado disso. A disposição das divisões de tropas, imposta artificialmente pelo próprio homem, está mitologicamente vinculada aos dentes. Os soldados de Cadmos brotaram do solo em que tinham sido semeados dentes de dragão. Certamente o homem encontrou outros ordenamentos na natureza; as ervas, por exemplo, e as árvores mais duras. Mas ele não encontrou estes ordenamentos em si mesmo, como no caso dos dentes. Não estavam relacionados de maneira tão imediata e constante com sua absorção de alimentos nem eram tão práticos. Foi justamente sua atividade como órgãos para morder que mais impressionou o homem, chamando sua atenção para o ordenamento. Foi a queda de vários dentes, com suas dolorosas conseqüências, que fizeram com que ele viesse a se conscientizar do significado deste ordenamento. Os dentes são os guardas armados da boca. Este espaço realmente estreito é a imagem primordial de todos os cárceres. O que penetrar lá está perdido; muitas coisas penetram ainda com vida na boca. Um grande número de animais mata suas presas na boca; alguns as engolem ainda com vida. A rapidez com que a boca se abre — quando já não está aberta durante a espreita —, a maneira efetiva com que, uma vez fechada, assim permanece, lembra as propriedades mais temidas dos cárceres. Não seria errado supor que realmente existiu uma obscura influência das bocas em relação às prisões. Certamente, para o homem primitivo, não eram apenas as baleias os únicos animais dentro de cujas bocas ele tinha espaço para ficar. E nesse pavoroso lugar coisa alguma poderia prosperar, nem mesmo se chegasse a ser habitado. É um lugar árido e não permite a semeadura. Quando quase desapareceram as bocas enormes dos monstros e dos dragões, encontrou-se um substituto simbólico para elas: os cárceres. Antigamente, quando ainda existiam câmaras de tortura, elas se assemelhavam a bocas hostis em muitos dos seus detalhes. Ainda hoje o inferno tem este aspecto. Os cárceres propriamente ditos, no entanto, se tornaram puritanos: o polimento dos dentes conquistou o mundo, as paredes das celas são uma única superfície lisa e suas aberturas para a entrada de luz são muito estreitas. A 230

liberdade para o prisioneiro é tudo o que existe para além destes dentes apertados, no lugar dos quais se erguem agora as paredes desnudas da cela. A estreita garganta pela qual a presa é obrigada a passar é, para as poucas que aí passam ainda em vida, o máximo de todos os horrores. A fantasia do homem sempre se ocupou com estas etapas da incorporação. A bocarra rigidamente aberta das grandes feras que o ameaçavam o perseguiu até em seus sonhos e em seus mitos. As viagens de descobrimento por estas gargantas não lhe eram menos importantes do que as viagens por mar e, sem dúvida, não eram menos perigosas. Alguns, que já não tinham mais esperanças, puderam ser arrancados ainda com vida da boca desses monstros e carregaram em seus corpos, durante o restante de suas vidas, as cicatrizes dos ferimentos causados pelos dentes. Mais longo ainda é o caminho que a presa percorre através do corpo. Ao longo deste caminho ela é lentamente desfrutada; qualquer coisa que ela possua e que possa ser utilizada lhe é subtraída. O que sobra são detritos e mau cheiro. Este processo, que está no final de toda conquista animal, é esclarecedor em relação ao caráter do poder em geral. Quem quer dominar os homens procura diminuí-los e rebaixá-los; procura privá-los maliciosamente de sua resistência e dos seus direitos, até que fiquem impotentes diante dele, como animais. Como animais, ele se utiliza deles; mesmo quando não o diz, sempre tem muito claro dentro de si o pouco que representam para ele; diante de seus confidentes ele os qualificará de ovelhas ou de gado. Sua meta final sempre é a de "incorporá-los" e de absorvê-los. É-lhe indiferente o que possa sobrar deles. Quanto pior ele os tratar, tanto mais os desprezará. Quando já não servem para coisa alguma, livra-se deles em segredo como se fossem excrementos, e toma cuidado para que não poluam a atmosfera de suas casas. Ele não terá coragem de se identificar com este processo em todas as suas fases. Caso goste de declarações audaciosas, é possível que confesse a seus confidentes essa degradação dos homens ao nível dos animais. Porém, como não envia seus súditos para serem mortos em matadouros nem os utiliza de fato como alimento de seu próprio corpo, ele negará que os absorve e que os digere. Pelo contrário: será sempre ele que lhes dá de comer. É muito fácil passar por cima do significado real de todos esses fenômenos, uma vez que o homem cria animais que não estão destinados a morrer imediatamente, nem 231

a morrer necessariamente, uma vez que são mais úteis quando destinados a outros fins Mas, afora o detentor do poder que sabe concentrar tantas coisas em suas mãos, também a relação do homem com seus próprios excrementos pertence à esfera do poder. Nada pertenceu tanto a um homem como o que ele transformou em excrementos. A pressão constante sob a qual se encontra a presa transformada em alimento durante sua longa peregrinação pelo corpo, sua dissolução e a íntima relação que assume com quem a está digerindo, o desaparecimento total e definitivo, primeiro de todas as funções, depois de todas as formas que um dia constituíram sua própria existência, a igualação ou a assimilação ao que já existe em quem a digere como corpo, tudo isso pode ser considerado como o que há de mais central, ainda que também de mais oculto, no processo do poder. É algo tão óbvio, tão automático e tão além de tudo o que é consciente que seu significado costuma ser subestimado. Tendemos a ver somente os milhares de joguinhos divertidos de poder que ocorrem na superfície; mas todos eles constituem apenas a menor de suas partes. Sob isso, dia após dia, as coisas são digeridas e continuam sendo digeridas. Algo externo é agarrado, destroçado, incorporado, assimilado e integrado ao que se tem no interior; é somente graças a este processo que se vive. Basta que ele seja interrompido para que rapidamente se chegue ao fim; isto todos sabem. Mas é evidente que todas as fases deste processo, não 'apenas as externas e semiconscientes, devem refletir-se também no plano psíquico. Encontrar suas correspondências não é tarefa fácil; algumas pistas importantes aparecerão no decorrer desta investigação de maneira natural, convidando para serem seguidas. Muito reveladores, conforme se verá mais adiante, são, neste sentido, os sintomas da melancolia. Os excrementos que restam no final estão carregados com todas as nossas culpas de sangue. Por eles podemos reconhecer que cometemos assassinatos. São a totalidade concentrada dos indícios existentes contra nós mesmos. Exatamente como nossos pecados cotidianos, contínuos e jamais interrompidos, eles fedem e clamam aos céus. Chama a atenção o modo como nos desfazemos deles. Desfazemo-nos deles em lugares próprios, destinados unicamente a este fim; o mais privado de todos os momentos é o da excreção; ficamos realmente a sós com nossos excrementos. É claro que nos envergonhamos deles. Eles são o sinal antiguíssimo daquele pro232

cesso da digestão que ocorre num plano oculto e que sem este sinal permaneceria oculto.

A mão A mão deve sua formação à vida nas árvores. Sua primeira característica é a separação do polegar: sua constituição vigorosa e o maior espaço existente entre ele e os demais dedos permitem a utilização daquilo que em outros tempos foi garra para segurar nos galhos. O deslocamento em todas as direções sobre uma árvore torna-se fácil e natural; nos macacos podemos ver o grande valor das mãos. Esta função mais antiga da mão é conhecida por todos e não poderia ser colocada em dúvida. O que no entanto não se considera com atenção suficiente é a função diversa das mãos no ato de trepar nas árvores. As duas mãos não fazem a mesma coisa num só momento. Enquanto uma procura alcançar o galho seguinte, a outra segura o galho anterior. Este ato de segurar é de importância básica: durante um deslocamento rápido é a única coisa que impede a queda. A mão, da qual pende todo o peso do corpo, não deve de forma alguma soltar o que segura. Nisto ela adquire uma grande tenacidade que, no entanto, deve ser bem diferenciada do antigo ato de segurar a presa. Porque assim que o outro braço alcançou o galho seguinte, o galho anterior precisa ser solto. Se isto não acontecer rapidamente, o trepador não pode avançar muito. Portanto, é o soltar com a rapidez de um relâmpago a nova aptidão que se agrega à mão; antes a presa nunca era solta, a não ser sob coerção extrema e de forma pouco habitual. No ato de trepar o rendimento depende portanto, para cada mão, de duas fases separadas e sucessivas: pegar, soltar; pegar, soltar. Apesar de a outra mão fazer a mesma coisa, ela o faz num deslocamento de fase. Num mesmo momento, cada mão está fazendo o contrário da outra. O que diferencia o macaco dos demais animais é a rápida sucessão destes dois movimentos. Pegar e soltar se sucedem, e conferem aos macacos a leveza que tanto admiramos neles. Também os macacos superiores, que desceram das árvores e se instalaram na terra, conservaram sempre esta faculdade essencial das mãos que consiste, de certa forma, em conseguir que uma faça sempre o jogo da outra. Uma atividade ampla233

mente difundida do homem mostra claramente ter a mesma origem. Referimo-nos ao comércio. Basicamente o comércio consiste em dar algo determinado em troca de algo determinado. Uma mão segura com força o objeto com o qual se procura induzir o interlocutor a comerciar. A outra mão é estendida, cheia de desejo, em direção do segundo objeto, que se quer obter em troca do que se possui. Assim que a mão toca neste objeto, a primeira mão solta sua propriedade; não o faz antes porque, se o fizesse, poderia ver-se totalmente privada daquilo que tem. Esta forma mais crua do engano, em que alguma coisa é tomada de alguém sem que esta pessoa receba nada em troca, corresponde, dentro do processo de trepar, a uma queda da árvore. Para evitar que isto aconteça, permanece-se de sobreaviso durante toda a negociação e observa-se todos os movimentos do interlocutor. A alegria difundida e profunda que o homem encontra no comércio, em parte pode ser explicada porque perpetua uma de suas mais antigas configurações de movimento sob a forma de atitude psíquica. Em nada o homem ainda está tão próximo do macaco como no comércio. Mas vamos remontar desta incursão por épocas recentes a uma época muito mais remota: à própria mão e às suas origens. Nos galhos das árvores a mão aprendeu um modo de segurar que já não tinha mais a finalidade da alimentação imediata. O caminho curto e monótono da mão para a boca foi interrompido desta maneira. Quando o galho se quebrou na mão, nasceu o porrete. Com ele era possível manter os inimigos à distância. Ele serviu para criar um espaço em torno de uma criatura primitiva que talvez tinha apenas alguma semelhança com o homem. Do ponto de vista de quem está na árvore, o porrete era a arma mais próxima. O homem lhe foi fiel; ele nunca renunciou ao porrete. Batia-se com ele; aguçou-o para transformá-lo em lança; desbastou-o e lascou-o para a produção de flechas. Porém, por trás de todas essas transformações, o porrete permaneceu o que sempre tinha sido desde o princípio: um instrumento com o qual se consegue criar distância; um instrumento que evita o contato e o tão temido momento de ser tomado. Assim como a postura ereta jamais perdeu sua característica patética, da mesma forma o porrete, com todas as suas transformações, jamais perdeu sua função primária: como vara mágica e como cetro, ele se manteve como atributo de duas importantes formas de poder. 234

Sobre a paciência das mãos Percebem-se como primitivas todas as atividades bruscas da mão. Não é apenas o agarrar com intenções hostis que reflete im petuosidade e crueldade. Muitas ações que vieram a aparecer somente mais tarde, como golpear, beliscar, empurrar, lançar e disparar, por mais que se tenham ramificado e complicado tecnicamente, continuam situando-se num mesmo plano. É possível que sua rapidez e precisão tenham aumentado, mas tanto seu sentido como sua intenção são o que sempre foram. Para o caçador e para o guerreiro estas atividades se fizeram muito importantes, mas nada agregaram à glória propriamente dita da mão humana. A mão conseguiu sua perfeição por outros caminhos, ou seja, pelos caminhos em que renunciou à violência e à presa. A verdadeira grandeza das mãos está na sua paciência. Os processos tranqüilos e compassados da mão criaram o mundo em que queríamos viver. O oleiro, cujas mãos sabem como modelar formas na argila, aparece como Criador já no princípio da Bíblia. Mas como as mãos se tornaram pacientes? Como conquistaram a delicadeza dos seus dedos? Uma das ocupações mais antigas de que se tem notícia e da qual os macacos tanto gostam é coçar o pêlo de seus companheiros. Acredita-se que eles estejam procurando alguma coisa e, como sem dúvida algumas vezes realmente encontram algo, imputou-se a esta atividade um sentido demasiadamente restrito, apenas utilitário. Na realidade o que verdadeiramente lhes interessa é a sensação agradável que os dedos experimentam entre os pêlos da pele. Estes exercícios dos dedos são os mais antigos que se conhecem e contribuíram para transformá-los no delicado instrumento que atualmente admiramos.

Os exercícios digitais dos macacos A cuidadosa revisão recíproca da pele chama a atenção de qualquer pessoa que observe os macacos. A contemplação e o detalhado ato de apalpar cada um dos pêlos dá a impressão de que eles estejam procurando parasitas. A posição adotada pelos animais lembra a de homens que procuram pulgas; freqüentemente eles levam seus dedos cuidadosamente à boca; desta forma demonstram ter encontrado alguma coisa. O simples fato de que isto ocorra com tanta freqüência parece 235

mostrar a necessidade de tal busca. Esta sempre foi a opinião popular. Somente em épocas mais recentes é que o fato pôde ser interpretado com maior precisão pelos zoólogos. Uma exposição e um estudo coerente deste costume dos macacos encontra-se no livro de Zuckermann, a respeito da Vida Social dos Macacos e Antropóides. Seu texto é tão revelador que transcrevo aqui um trecho: "Catar pulgas, por mais que os sociólogos possam discordar disto, é a forma mais fundamental e própria de intercâmbio social entre os macacos rhesus. Os macacos, e em escala menor os antropóides, passam uma grande parte do dia dedicando-se a um cuidado recíproco. Um animal vai examinar cuidadosamente com os dedos o pêlo de seu companheiro e comer grande parte das pequenas coisas que lá encontrar. Ele leva o que encontra à boca utilizando a mão, ou então, depois de ter lambido uma mecha de pêlos, mordiscando-os diretamente. Esta ação exige movimentos bem coordenados dos dedos, associados a uma exata convergência dos olhos. Este comportamento em geral é interpretado como tendo por finalidade eliminar piolhos. Na verdade raras vezes são encontrados parasitas em macacos que se encontram em cativeiro; e isto também é raro nos macacos que se encontram em liberdade. Os resultados da busca costumam ser, de maneira geral, pequenas escamas da pele, partículas de pele e de secreções, espinhos e outros corpos estranhos. Quando não estão preocupados com alguma outra coisa, os macacos reagem à presença de uma pelagem fazendo nela uma cuidadosa revisão. Um macaco reage logo depois de nascer ao estímulo dos pêlos e este estímulo é conservado de forma poderosa e eficiente durante todas as fases do seu crescimento. Quando não dispõe de um companheiro, o macaco examina sua própria pelagem. Dois ou às vezes até três macacos podem examinar em grupo um de seus camaradas. Geralmente aquele que está sendo limpo mantém-se passivo, apenas fazendo movimentos que facilitem as investigações dos demais. Às vezes porém ele pode também ocupar-se em examinar a pele de outro animal. Os macacos não limitam esta atividade aos seus congêneres. Qualquer objeto peludo, animado ou inanimado, pode incitá-los a investigar. Com entusiasmo dedicam-se ao exame da cabeleira de um ser humano amigo. O fato parece ter um significado sexual, não apenas pelo tênue estímulo de numerosas terminações nervosas da pele, mas também porque ele às vezes é acompanhado de uma atividade sexual direta. Por este motivo e por sua freqüência, talvez seja válido considerar as reações de busca e o estímulo 236

do pêlo como fatores que servem à coesão do grupo social entre os primatas inferiores." Nada poderia surpreender mais do que a interpretação sexual do fato depois de ler-se a descrição feita pelo próprio Zuckermann. Ele fala de vários macacos que se ocupam simultaneamente da pele de outro. Enfatiza a importância de todos os tipos de pelagem para eles. Em passagens posteriores do livro, formula uma antítese entre a investigação da pelagem e os fenômenos sexuais. Por exemplo, ele menciona que os animais em períodos de calma sexual, quando mostram um mínimo de interesse desse tipo, continuam mesmo assim aproximando-se das grades para se deixarem coçar. Também sobre o significado precoce da pelagem para os filhotes de macaco ele tem muitas coisas a dizer. A primeira experiência sensorial de um macaco seria justamente a da pelagem. Logo depois do parto, o filhote é puxado pela mãe para o peito; seus dedos agarram e seguram o pêlo dela. O animalzinho procura o mamilo até conseguir encontrá-lo; a mãe não o ajuda nisso. "Durante todo o primeiro mês, ele vive exclusivamente de leite e a mãe o carrega nas costas para toda parte. Quando a mãe está sentada, segura seu filhote fortemente apertado contra seu próprio corpo, e as patas dele se agarram aos pêlos da barriga dela. As mãos dele se enfiam no pêlo do peito dela. Quando ela anda de um lado para outro, o filhote continua pendurado dessa mesma forma. Geralmente ele se segura sozinho na mãe, sem que esta o ajude; mas às vezes ela o segura com um braço, saltando então sobre três pernas. Quando está sentada, segura o filhote com os dois braços. O filhote manifesta um forte interesse pela pelagem materna. Passa os dedos entre os pêlos da mãe, e depois de unia semana é possível que já esteja coçando seu próprio corpo. Observei um macaquinho de uma semana de idade explorando com movimentos vagos de mão a pelagem do seu pai, sentado ao lado de sua mãe. Às vezes a mãe se mostra irritada pela maneira com que o filhote puxa seu pêlo e afasta-lhe as mãos e as patas para longe." O comportamento de uma macaca lactante não se modifica quando seu filhote morre. Ela continua apertando-o contra o peito e carrega-o nos braços por toda parte. "No começo, ela não o coloca no solo; continua examinando sua pelagem como quando estava vivo. Examina a boca, os olhos, o nariz e as orelhas. Depois de alguns dias percebe uma mudança no seu comportamento. Um corpo inerte, agora já em princípio de decomposição, pende do seu braço. Somente quando ela se 237

movimenta é que continua apertando-o contra o peito. Apesar de continuar revisando-lhe o pêlo e mordiscando-lhe a pele, ela o deixa agora com maior freqüência no solo. A decomposição avança, tem início a mumificação, mas a revisão da pele e da pelagem continua. O corpo ressecado começa agora a se desintegrar e percebe-se que falta um braço ou uma perna; depois de algum tempo, resta apenas um pedaço de pele ressecada. A mãe arranca-lhe pedaços com a boca cada vez com mais freqüência; ignora-se se os engole ou não. Depois da pode abandonar espontaneamente o que sobrou dos restos ressecados." Os macacos gostam de guardar objetos de pêlo e de plumas Uma fêmea de babuíno de um ano de idade, que se achava sob a observação de Zuckermann, agarrou um gatinho, matou-o e segurou-lhe o corpo durante o dia todo em seus braços, explorando-lhe a pele, e se defendeu com veemência quando ele lhe foi tomado no final da tarde. No jardim zoológico de Londres pode-se observar às vezes como os macacos examinam as penas de pardais que eles conseguiram matar. Narra-se também o caso de um rato morto que foi recolhido por um macaco, que o tratou exatamente com o mesmo zelo dedicado ao filhote morto citado acima. A partir de sua exposição, Zuckermann conclui que é necessário distinguir três fatores determinantes do comportamento maternal. Os dois primeiros são, no fundo, de significação social, ou seja, a atração que exerce um pequeno objeto peludo, e a forte atração que o pêlo materno possui para o filhote. O terceiro fator é o reflexo de sucção do animal jovem, que pela sua atividade alivia a tensão no peito da mãe. A reação ao pêlo seria pois um fator fundamental no próprio comportamento social. Sua importância também pode ser deduzida do fato de um macaco jovem continuar agarrando-se ao pêlo da mãe mesmo após a morte dela. No momento, não é este corpo específico que lhe interessa — o corpo de qualquer outro macaco morto, no qual ele fosse colocado, o tranqüilizaria da mesma forma. "A natureza fundamental da reação ao pêlo se deduz também da rigorosa delimitação de suas características e da variedade de situações que podem provocá-la. Plumas, ratos ou gatinhos podem servir de estímulo para esta reação. É bastante provável que o processo social do 'cuidado' do 'examinar' seja derivado de uma reação inata ao pêlo, e que seja um dos laços fundamentais que mantêm juntos os macacos." 238

Não haverá mais dúvida — depois destas extensas citações de seu livro — de que o próprio autor não leva a sério uma interpretação especificamente sexual do cuidado da pelagem dos macacos entre si. Ele é bastante claro: o pêlo em si exerce uma atração particular sobre os macacos em todas as circunstâncias vitais. O prazer que lhes é proporcionado pelos cuidados com os pêlos deve ser de natureza muito particular; eles o procuram por toda parte, em seres vivos ou mortos, em companheiros de espécie ou em estranhos. O tamanho do outro animal não importa. Neste sentido, o filhote significa tanto para a mãe como a mãe para o filhote. Casais de amantes e de amigos se abandonam em igual medida a este hábito. Vários animais podem dedicar-se simultaneamente ao pêlo de um outro. Este prazer é próprio dos seus dedos. Eles nunca se cansam dos pêlos; horas e horas podem transcorrer com os macacos examinando pêlos entre os dedos. Trata-se dos mesmos animais cuja vivacidade e cujos caprichos se tornaram proverbiais; segundo uma antiga tradição chinesa, os macacos não têm estômago e digerem seus alimentos saltando de um lado para o outro. O contraste da paciência interminável que eles demonstram nesses cuidados torna-se assim ainda mais notável. Nesse exercício seus dedos vão ficando cada vez mais delicados; os numerosos pêlos que eles sentem de uma só vez contribuem para que se cultive uma sensação tátil especial, que se distingue muito das sensações mais grosseiras de agarrar e de segurar. Não se pode deixar de pensar em todas as ocupações posteriores do homem e que são baseadas na finura e na paciência dos seus dedos. Os ancestrais ainda desconhecidos do homem, exatamente como os macacos, passaram por um prolongado período de exercícios digitais, sem os quais nossa mão não teria se aperfeiçoado tanto. Na origem deste cuidado podem ter influído coisas muito distintas: tanto uma procura de insetos parasitas, como as primeiras experiências do macaco junto ao pêlo da mãe. No entanto o fenômeno, como pode ser observado atualmente e que ocorre em todos os macacos, tem a sua própria unidade e sentido. Sem ele nunca teríamos aprendido a modelar, a costurar ou a acariciar. É com este fenômeno que a mão começa a adquirir uma vida realmente própria. Sem a observação das figuras que os dedos formam durante este trabalho e que deviam pouco a pouco ir ficando estampadas na mente do animal, provavelmente jamais teríamos chegado a conseguir nem mesmo sinais para indicar as 239

coisas, e conseqüentemente nunca chegaríamos a desenvolver uma linguagem. As mãos e o nascimento dos objetos A mão que recolhe a água é o primeiro receptáculo. Os dedos das duas mãos, que se entrelaçam, formam o primeiro cesto. É justamente aqui que, acredito, nasce a rica evolução de todos os tipos de trançados, de jogos de fios, até se chegar finalmente ao tecido. Tem-se a sensação de que as mãos levam sua própria vida de transformação. Não é suficiente que esta ou aquela conformação já exista no ambiente ao redor. Antes que o homem primitivo tenha a intenção de lhe dar alguma forma, suas mãos e seus dedos devem começar representando. É possível que há muito tempo já existissem cascas vazias como, por exemplo, as de coco, mas eram jogadas fora sem que se prestasse maior atenção a elas. Somente os dedos, que formam uma concavidade para recolher a água, é que tornaram o recipiente uma realidade. Poder-se-ia imaginar que os objetos como os entendemos, e aos quais corresponde um certo valor porque nós mesmos os fizemos, existem primeiro como sinais das mãos. Parece existir um ponto central de enorme importância, onde o nascimento da linguagem gestual \correspondia ao prazer de dar pessoalmente forma aos objetos, antes mesmo de se tentar indicá-lo realmente O que se representava com a ajuda das mãos, somente mais tarde, depois de ter sido representado suficientemente, tornou-se uma realidade. Palavras e objetos, conseqüentemente, seriam emanação e resultado de uma única experiência unitária, justamente a representação através das mãos. Tudo o que o homem é e pode, tudo o que num sentido representativo constitui sua cultura, foi incorporado por ele mediante transformações. As mãos e os rostos foram os veículos propriamente ditos desta incorporação. Sua importância aumentou — em relação ao restante do corpo — cada vez mais. A vida própria das mãos, neste sentido primitivo, conservou-se ainda com maior pureza na gesticulação. A mania destrutiva nos macacos e nos homens A mania destrutiva nos macacos e nos homens pode muito bem ser considerada como um exercício de endurecimento da mão e dos dedos. A utilização dos galhos colocou o ma240

caco trepador e suas mãos em constante relação com um material mais duro do que eles mesmos. Para dominar os galhos ele precisava segurar-se neles, mas também precisava saber como quebrá-los. A compreensão do seu " terreno" era uma compreensão dos galhos e dos ramos; tudo o que se quebrava com facilidade era um solo falso para o seu deslocamento. A exploração deste mundo de galhos era um interminável confronto com a dureza; a experimentação dos galhos continuou sendo uma necessidade, mesmo depois de ele ter adquirido uma grande experiência nesta matéria. O pedaço de pau que o macaco, como o homem, converteu na sua primeira arma, iniciou toda uma série de instrumentos duros. As mãos eram medidas por ele, como mais tarde foi feito em relação às pedras. Os frutos e a carne dos animais eram macios; e o mais macio de tudo era a pelagem. Com o ato de coçar e de eliminar os piolhos, ele exercitava a finura dos dedos; quebrando tudo o que caía entre estes dedos, exercitava sua dureza. Existe portanto uma mania destrutiva particular das mãos, que não tende de imediato à atividade de pegar e de matar. Trata-se de algo puramente mecânico e isso teve o seu prolongamento justamente nas invenções mecânicas. Precisamente devido à sua inocência é que isso se tornou especialmente perigoso. Esta mania sente-se livre de qualquer intenção de matar, e por este motivo pode permitir-se qualquer empreendimento. O que ela provoca aparentemente diz respeito apenas às mãos, à sua agilidade e capacidade de realização, à sua inócua utilidade. Em qualquer momento em que esta mania mecânica de destruição das mãos, transformada num complexo sistema técnico, se associa com a intenção real de matar, ela fornece a parte automática, irreflexiva, do processo resultante, o vazio e o que existe de especialmente inquietante para nós neste processo; uma vez que ninguém quis que isto acontecesse, tudo ocorreu como que por si mesmo. No âmbito privado e em pequena escala, todos nós experimentamos este mesmo processo durante o jogo irreflexivo dos dedos, quando quebramos palitos de fósforo ou rasgamos pedaços de papel. As múltiplas ramificações deste impulso de destruição mecânica estão intimamente vinculadas à evolução da tecnologia. Apesar de o homem ter aprendido a dominar o duro com o duro, a mão continua sendo para ele a última instância de tudo isso. A vida independente da mão teve as mais monstruosas conseqüências. Ela foi, sob mais de um aspecto, nosso destino. 241

Os que matam continuam sendo sempre os poderosos A mão funcionou como modelo e estímulo não apenas como um todo. Também os dedos em separado, e principalmente o dedo indicador estendido, adquiriram um significado. O dedo se afinava na extremidade e se apresentava armado com uma unha; a sensação ativa do espetar foi dada primeiramente por ele. O punhal que se desenvolveu a partir do dedo, nada mais é do que um dedo mais duro e mais pontudo. A flecha era um cruzamento entre ave e dedo. Para poder penetrar mais profundamente, ela cresceu de tamanho; para voar melhor, tinha de se afinar. O bico e o espinho confluíram na sua composição;- o bico aliás já era algo próprio dos animais alados. O pedaço de pau pontiagudo transformou-se em lança: um braço que termina num único dedo. Todas as armas desta classe têm em comum a concentração num único ponto. O próprio homem era espetado por espinhos duros e grandes; e ele os extraía com o auxílio de seus dedos. O dedo que se separa da mão e que funciona como um espinho que transmite o espetar é, psicologicamente, a origem deste tipo de arma. O homem que é espetado começa a espetar ele mesmo com seus dedos e com os dedos artificiais que aos poucos vai aprendendo a fazer. Nem todos os trabalhos executados pela mão conferem igual quantidade de poder; seu prestígio é bastante diferente. Algumas coisas, que se revestem de importância especial para a vida de um grupo de homens, podem ser consideradas em elevada estima. O prestígio máximo, no entanto, sempre é obtido pelo que se orienta em direção ao ato de matar. O que pode chegar a matar é temido; o que não serve imediatamente para matar é meramente algo útil. Todos os pacientes afazeres da mão não trazem às pessoas que se limitam a eles mais do que uma certa submissão. Mas os outros afazeres, os que se dedicam a matar, detêm todo o poder.

Sobre a psicologia do ato de comer Tudo o que se come é objeto de poder. O esfomeado sente um vazio dentro de si. O mal-estar que é provocado por este vazio interior pode ser superado pela ingestão de alimentos. Quanto mais saciado ele está, melhor se sente. Pesado e cheio de satisfação fica deitado aquele que mais pode devorar: o comedor máximo. Existem grupos humanos que vêem 242

num tal comedor máximo o seu chefe, seu cacique. O apetite sempre saciado desta pessoa parece-lhes uma garantia de que nunca padecerão fome durante muito tempo. Eles depositam confiança na sua barriga cheia, como se ela tivesse sido enchida também para todos os demais. A relação existente entre digestão e poder se manifesta aqui com extrema clareza. Em outras formas de domínio, o respeito pelas dimensões físicas do comedor máximo passa para um segundo plano. Já não é necessário que ele seja um barril mais grosso que os demais. Mas ele come e bebe com as pessoas que ele escolhe ao seu redor e tudo o que ele lhes serve pertence a ele. Se ele mesmo não é o comedor mais forte, suas provisões devem ser as maiores; ele é quem possui o maior número de cabeças de gado e maiores estoques de cereais. Se quisesse, poderia sempre ser o comedor máximo. Mas ele transfere o prazer de estar saciado à sua corte, a todos os que compartilham da sua mesa, reservando-se apenas o direito de ser o primeiro a servirse de tudo o que for oferecido. A figura do rei como grande devorador jamais se extinguiu inteiramente. Sempre houve soberanos que representaram este papel diante de seus súditos entusiasmados. Também grupos inteiros de poderosos se abandonaram com gosto à comilança; proverbial neste sentido é o que se conta dos romanos. Todo o poder familiar solidamente estabelecido se exibia freqüentemente dessa forma, e foi depois imitado e superado pelos sucessores de ascensão recente. A possibilidade de esbanjar e a força necessária para isso cresceu em determinadas sociedades, chegando a converter-se em orgias de destruição formais ritualmente estabelecidas. A mais famosa é o potlatch dos índios do noroeste norte-americano; trata-se de reuniões festivas de toda a comunidade, que culminam em concursos de destruição entre os caciques. Cada um dos caciques se ufana de quanto está disposto a destruir sua propriedade; quem manda destruir mais coisas é considerado como vencedor e goza de maior glória. Já o comer o mais possível pressupõe a destruição da vida animal que nos pertence. Tem-se a impressão de que no potlatch esta destruição se transportou para a parte da propriedade que não é comestível. Desta maneira o cacique pode jactar-se muito mais do que se tivesse de comer tudo e, além disso, evitam-se todos os inconvenientes corporais. Talvez seja útil examinar ainda os comensais, independentemente da posição que ocupem na hierarquia. Um certo respeito recíproco de todos os que comem juntos é inequívoco. Ele se expressa já no fato de estarem compartilhando alguma 243

coisa. A comida que se encontra diante deles pertence a todos juntos. Cada qual come alguma coisa; cada qual se preocupa com que os outros também comam alguma coisa; cada qual se esforça por ser eqüitativo e não prejudicar os demais. Mais forte ainda é a coesão que se origina entre os comensais quando eles saboreiam um animal, um corpo que também quando em vida conheceram como unidade. Mas a solenidade em sua atitude não se explica apenas com isto; seu respeito significa também que eles não se comerão entre si. É certo que sempre existirá a garantia de que as coisas serão assim entre os homens que vivem juntos num grupo. Mas é no momento da comida que isto se expressa de forma mais convincente. Todos estão sentados junto com os demais, todos mostram seus dentes, comem e, nem mesmo neste momento crítico, sentem apetite pelo outro. As pessoas se respeitam a si próprias por causa disto e respeitam também as demais pessoas por sua reserva, cujo valor é idêntico à que elas mesmas sentem. O homem traz os alimentos para a família, e a esposa lhe prepara a comida. O fato de ele consumir regularmente a comida preparada por ela constitui o vínculo mais importante entre ambos. A vida em família é tanto mais íntima quanto maior for a freqüência das refeições em comum. A imagem que salta à vista quando se pensa numa família é a de país e filhos reunidos em torno de uma mesa. Tudo parece ser apenas uma preparação para esse momento; quanto maior for a freqüência e a regularidade com que isso se repete, tanto mais os que comem juntos se sentem como família. Ser recebido nessa mesa praticamente equivale a ser recebido na família. Esta talvez seja a melhor oportunidade para se dizer alguma coisa a respeito do núcleo e do coração desta instituição: a mãe. Mãe é a que dá o seu próprio corpo para ser comido. Ela alimentou dentro de si a criança e depois lhe oferece seu leite. Esta tendência continua de forma atenuada durante muito tempo; seus pensamentos, justamente à medida que é mãe, giram em torno do alimento que a criança necessita para o seu crescimento. Não é preciso que seja um filho dela mesma; pode-se entregar-lhe um filho de outra — ela pode adotar uma criança. Sua paixão é dar o que comer; é ver que a criança come; é prestar atenção para certificar-se de que a comida a está fazendo crescer. O crescimento e o aumento de peso da criança são sua meta invariável. Sua atitude parece ser desinteressada e realmente o é, se considerarmos o filho como uni244

dade separada, como um homem em si. Na verdade, porém, o estômago da mãe se duplicou e ela exerce controle sobre a mbos. A princípio ela está mais interessada no novo estômago e no novo corpo ainda não desenvolvido do que no seu próprio; o que ocorreu durante a gravidez foi simplesmente exteriorizado. A interpretação da digestão como um processo essencial do poder, tal como é defendida aqui, se aplica também à mãe; mas ela distribui este processo por mais de um corpo, e o fato de que o novo corpo, de cuja alimentação ela se ocupa, esteja separado do seu próprio corpo torna mais nítido e consciente o processo total. A mãe tem um poder absoluto sobre a criança nas suas primeiras fases não apenas porque sua vida depende dela, mas também porque ela mesma sente o mais veemente desejo de exercer constantemente este poder. A concentração deste prazer de domínio sobre uma criatura tão pequena lhe proporciona uma sensação de supremacia que dificilmente pode ser superada por qualquer outra relação normal entre os homens. A continuidade deste domínio que a ocupa noite e dia, o número tremendo de detalhes que o compõem confere-lhe uma perfeição e uma globalidade que não são próprios de nenhum outro tipo de domínio. Não se restringe a dar ordens, que no começo nem sequer poderiam ser compreendidas. Significa que se pode manter cativa uma criatura, se bem que neste caso isso realmente seja em benefício da própria criatura; que se pode — sem compreender o que se faz — transmitir o que se recebeu décadas antes sob pressão, e que foi mantido como espinho indestrutível no próprio interior; que se pode fazer com que alguém cresça (coisa que um soberano consegue fazer apenas artificialmente conferindo uma ascensão na escala social). Para a mãe a criança reúne as propriedades da planta e do animal. Ela lhe permite o usufruto de direitos de soberania que normalmente são exercidos em separado: sobre as plantas, provocando seu crescimento segundo a própria vontade, sobre os animais, mantendo-os cativos e controlando seus movimentos. A criança cresce como o trigo nas mãos da mãe e executa como um animal doméstico os movimentos que ela lhe permite; alivia-a de antigos espinhos de ordens que todo ser civilizado carrega consigo; além disso a criança torna-se um adulto novo e completo cuja contribuição para o grupo em que vive faz com que este lhe seja para sempre devedor de uma certa gratidão. Não existe forma mais intensa de poder. O fato de usualmente o papel da mãe não ser visto dessa 245

forma tem um duplo motivo. Todo homem guarda na lembrança principalmente a época da diminuição desse poder materno; para cada um de nós parecem mais significativos os direitos mais notórios, porém muito menos essenciais, de soberania do pai. A família se torna rígida e dura quando exclui as demais pessoas de sua comida; aqueles com os quais a família tem de preocupar-se são um pretexto natural para a exclusão doS demais. O vazio deste pretexto se torna evidente nas famílias que não têm filhos e que, mesmo assim, não demonstram a menor disposição de compartilhar sua comida; a família de apenas duas pessoas é a formação mais desprezível que a humanidade conseguiu produzir. Mas também quando existem filhos este pretexto serve freqüentemente como mero rótulo para o mais desvairado dos egoísmos. "Pelos próprios filhos" as pessoas economizam e deixam os demais passarem fome. Na verdade, porém, e devido a isto, enquanto se vive tem-se tudo para si. O homem moderno gosta de comer em restaurantes, em mesas separadas, em seus pequenos grupos, pelo que em seguida paga a conta. Uma vez que todas as demais pessoas no local fazem exatamente a mesma coisa, durante a refeição gosta-se de imaginar que os demais têm o que comer. Mesmo as naturezas mais sensíveis nem sequer necessitam desta ilusão durante muito tempo; uma vez saciado, pode-se tropeçar sem problemas nos que estão com fome. Quem come aumenta de peso, sente-se mais pesado. Nisto existe uma espécie de jactância; já não se pode mais crescer, mas pode-se aumentar, ali mesmo, diante dos demais. Também por este motivo come-se com agrado em companhia de outras pessoas; trata-se, no fundo, de uma tentativa para ver quem consegue ficar mais cheio. O bem-estar da sensação de estar saciado, quando não se pode comer mais, é um ponto extremo que se atinge com muito gosto. Primitivamente ninguém se envergonhava disso: uma presa grande precisava ser consumida rapidamente; comia-se tanto quanto possível, acumulando-se as provisões dentro de si mesmo. Quem come sozinho está renunciando desta forma ao prestígio que pode obter comendo diante de outras pessoas. Mostrar os dentes apenas para os alimentos, quando ninguém está presénte, não causa impressão a pessoa alguma. Quando em companhia, podemos ver como cada qual abre a boca em separado, e enquanto acionamos nossos próprios dentes, per246

cebemos também os dos demais. Não possuir dentes é algo desprezível; não mostrar os que a gente mesmo possui tem algo de ascético em si. A oportunidade natural de exibi-los é dada justamente pela refeição em comum. Nossa educação moderna exige que se coma sempre com a boca fechada. E a ameaça velada que sempre está presente num inocente entreabrir da boca se limita desta forma a um mínimo. No entanto, nós não somos tão inofensivos assim. Comemos com o auxílio de garfo e faca, dois instrumentos que poderiam facilmente ser utilizados para a agressão. Cada qual está com os seus instrumentos diante de si; em determinadas ocasiões chegamos até mesmo a carregá-los conosco. E não devemos nos esquecer de que a porção de comida que cada um forma para si e que empurra boca adentro, na medida do possível com bastante dignidade, chama-se, em todas as línguas modernas, bocado. O riso já foi considerado como uma coisa vulgar porque nesse momento abrimos amplamente a boca e mostramos todos os dentes. Nas suas origens, o riso certamente continha em si a alegria por uma presa ou por um alimento que parecia estar assegurado. Uma pessoa que cai lembra um animal que era perseguido e que se conseguia abater. Toda queda que provoca o riso lembra a impotência do caído; caso se quisesse seria possível tratar esta pessoa como uma presa indefesa. Nós não riríamos se fôssemos mais além na série de fenômenos descritos e se incorporássemos realmente a pessoa caída. Ri-se em vez de comer. O alimento que nos escapa é o que provoca o riso: é o repentino sentimento de superioridade, conforme já foi dito por Hobbes. Mas ele não acrescentou que este sentimento aumenta até transformar-se em riso somente quando esta superioridade não tem outras conseqüências. A concepção que Hobbes tem do riso encontra a verdade na metade do caminho; ele não chegou à sua origem propriamente "animalesca", talvez porque os animais não riem. Mas os animais também não recusam um alimento que podem alcançar quando realmente têm vontade de comê-lo. Somente o homem aprendeu a substituir o processo inteiro da incorporação por um ato simbólico. Os movimentos que partem do diafragma e què são característicos do riso aparentemente servem para substituir, resumindo, toda uma série de movimentos peristálticos do ventre. Entre os animais, somente a hiena emite um som que realmente se aproxima do nosso riso. Este som pode ser pro247

vocado artificialmente apresentando-se a uma hiena em cativeiro algo para ser devorado e retirando-se rapidamente esta coisa antes que ela tenha tempo de abocanhá-la. Vale a pena lembrar que o alimento da hiena quando em liberdade consiste em carniça; podemos imaginar quão freqüentemente o que ela deseja lhe é arrebatado diante de seus próprios olhos.

O SOBREVIVENTE

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rwr O sobrevivente

O momento de sobreviver é o momento do poder. O espanto diante da visão da morte se dissolve em satisfação, pois não se é o morto. O morto jaz estendido e o sobrevivente está de pé, É como se um combate tivesse antecedido aquele momento, e nós mesmos tivéssemos derrubado o morto. Na sobrevivência, cada qual é inimigo do outro; comparado com este triunfo elementar, qualquer outra dor não tem muita importância. Mas é importante que o sobrevivente esteja sozinho diante de um ou de vários mortos. Ele se vê só, se sente só, e, quando se fala do poder que este momento lhe confere, jamais se deve esquecer que ele deriva da sua unicidade e somente dela. Todos os desejos humanos de imortalidade contêm um pouco da mania de sobreviver. O homem não quer apenas ficar para sempre, ele quer ficar quando os outros já não estejam mais. Cada qual quer chegar a ser o mais velho e saber disto, e quando ele próprio já não existir as pessoas deverão continuar sabendo o seu nome. A forma mais baixa de sobrevivência é a de matar. Assim como o homem mata o animal que lhe serve de alimento — e que jaz indefeso à sua frente e pode ser cortado em pedaços e repartido como presa que ele incorpora a si e aos seus —, assim também deseja matar quem se interpõe no seu caminho, quem se opõe a ele, quem se ergue diante dele como um inimigo. Ele quer derrubar o outro para sentir que ele mesmo ainda existe e que o outro deixou de ser. Mas o outro não deve desaparecer inteiramente; sua presença como cadáver é indispensável para esta sensação de triunfo. Agora pode-se fazer com ele o que se quiser, ao passo que ele já não pode mais fazer coisa alguma. Ele está caído, e permanecerá caído para sempre; jamais voltará a se levantar. Podemos tomar sua arma; podemos cortar partes do seu corpo e conservá-las para sempre como troféus. Este momento do confronto com o que foi morto enche o sobrevivente de uma força muito particular que não é comparável a nenhuma outra. Não existe momento que exija com tanta força a sua própria repetição. Porque o sobrevivente tem conhecimento de muitos mor251

tos. Se ele esteve numa batalha, viu outros caindo ao redor de si. Ele foi à batalha com a intenção consciente de afirmarse contra seus inimigos. Seu objetivo declarado era o de derrubar o maior número possível deles, e ele somente pode vencer quando consegue fazer exatamente isso. Vitória e sobrevivência são palavras que têm o mesmo significado para ele. Mas também os vencedores são obrigados a pagar seu preço. Entre os mortos jazem muitos que pertenciam a seu lado. Amigos e inimigos misturados jazem no campo de sangue, o monte de mortos é comum. Às vezes as batalhas são travadas de tal maneira que não é possível separar os mortos de cada lado: uma única vala comum recebe então todos os cadáveres dos caídos. Diante deste monte de caídos, o sobrevivente se ergue como o homem de sorte e o preferido. Que ele ainda conserve a vida enquanto tantos outros que momentos antes estavam a seu lado a perderam é um fato monstruoso. Os mortos jazem indefesos e, entre eles, ele está de pé: é como se a batalha tivesse sido travada apenas para que ele pudesse sobreviver. A morte desviou-se dele para abater os demais. Não que ele tenha procurado evitar o perigo. No meio de seus amigos, ele enfrentou a morte. Eles caíram. Ele está de pé e triunfa. Esta sensação de algo sublime é conhecida por qualquer pessoa que já esteve em alguma guerra. Ela pode ser disfarçada pelo luto em relação aos companheiros, mas estes são poucos e os mortos sempre são muitos. A sensação de força, de estar de pé e com vida diante de tantos mortos é, no fundo, mais intensa do que qualquer luto; é o sentimento de ter sido eleito entre muitos, cujos destinos são manifestamente idênticos. De alguma forma, sente-se que se é melhor, simplesmente porque ainda se está com vida. Foi possível comprovar isto porque, afinal, ainda se está vivo. Foi possível comprovar isto entre muitos e isto é incontestável, já que os que estão caídos não vivem mais. Quem consegue sobreviver muitas vezes desta forma é um herói. Ele é o mais forte. Ele possui mais vida dentro de si. Os poderes superiores lhe são propícios.

Sobrevivência e invulnerabilidade O corpo do homem é nu e está exposto; em sua maciez, ele está sujeito a todos os tipos de golpes inesperados. Tudo o que nas proximidades, por suas artimanhas, ele consegue manter longe do seu corpo, pode alcançá-lo com facilidade de 252

uma distância maior. Espadas, lanças e flechas são capazes de penetrar nele. Ele inventou o escudo e a armadura, levantou muralhas e fortalezas em torno de si. Mas a segurança que ele mais deseja é um sentimento de invulnerabilidade. Ele tentou conseguir isto por dois caminhos diferentes. Estes caminhos são exatamente opostos um ao outro e seus resultados, conseqüentemente, são muito diferentes. Por um lado, ele tentou afastar de si o perigo, interpondo grandes espaços entre ele e o perigo, espaços que pudesse vigiar e controlar com um olhar. Por assim dizer, ele se ocultou do perigo e o desterrou. O outro caminho, no entanto, é o que sempre lhe provocou mais orgulho. Todas as antigas tradições estão repletas da glória e da fama adquiridas pela coragem de procurar o perigo e de enfrentá-lo. O homem deixou que o perigo se aproximasse o mais possível e depois jogou tudo no seu sucesso. De todas as situações possíveis, ele procurou a de maior perigo e a elevou ao ponto máximo. Transformou alguém em inimigo e o desafiou. É possível que o outro já fosse seu inimigo ou que, nesse determinado momento, ele o tenha transformado em tal. O que quer que tenha acontecido, a intenção era a de procurar o maior perigo possível e uma solução inadiável. Este é o caminho do herói. E o que quer o herói? O que é que ele realmente deseja? A glória que todos os povos tributaram aos seus heróis, uma glória tenaz, dificilmente passageira, à medida que suas façanhas ofereciam variedade ou se sucediam com suficiente rapidez, engana quanto aos motivos mais profundos destas façanhas. Supõe-se que apenas a glória lhes interessava, mas eu acredito que originalmente eles queriam uma coisa completamente diferente: a sensação de invulnerabilidade que desta maneira conseguiam ganhar numa rápida escalada. A situação concreta, na qual o herói se encontra depois de um perigo superado, é a do sobrevivente. O inimigo queria a sua vida, da mesma forma que ele queria a vida do inimigo. Com este objetivo declarado e irredutível eles se enfrentaram. O inimigo sucumbiu. Ao herói no entanto nada aconteceu durante o combate. Totalmente tomado pelo monstruoso fato de sua sobrevivência, ele se lança no combate seguinte. Como nada pôde afetá-lo, nada poderá afetá-lo. De vitória em vitória, de inimigo morto em inimigo morto, ele se sente cada vez mais seguro: sua invulnerabilidade aumenta, transforma-se numa armadura cada vez mais perfeita. 253

Esta sensação de invulnerabilidade não pode ser adquirida de outra maneira. Quem afastou o perigo, quem se esconde diante dele somente adiou o seu próprio destino. Quem enfrenta o destino, quem realmente sobrevive, quem volta a enfrentá-lo novamente, quem acumula os momentos de sobrevivência, este pode alcançar a sensação de invulnerabilidade. Na verdade ele somente se transforma num herói no momento em que possui esta sensação. Então ele arrisca tudo; ele nada tem a temer. Talvez tivéssemos uma tendência para admirá-lo mais enquanto ainda houvesse motivos para sentir medo. Mas este é o conceito do observador externo. O povo quer que seu herói seja invulnerável. Deve acrescentar-se que as façanhas do herói não se esgotam apenas em duelos singulares. É possível que ele tenha de enfrentar toda uma malta de inimigos; aquele que mesmo assim resolve atacá-los, aquele que não apenas consegue escapar deles com vida, mas consegue também matar todos eles estabelece de uma só vez sua sensação de invulnerabilidade. Em certa ocasião, Gengis-Khan foi interrogado por um dos seus companheiros mais antigos e fiéis: "Você é o soberano e é chamado de herói. Quais são as marcas de conquistas e de vitórias que você leva em sua mão?" E Gengis-Khan lhe respondeu: "Antes de subir ao trono do império, certa vez eu cavalgava por um caminho. Lá encontrei seis homens que se tinham colocado em emboscada junto à cabeça de uma ponte e que queriam acabar com minha vida. Quando me aproximei, puxei minha espada e os ataquei. Eles me inundaram com uma chuva de flechas, mas todas elas erraram o alvo e nenhuma me tocou. Matei todos eles com minha espada e continuei cavalgando sem ter sido ferido. No caminho de regresso passei junto ao local onde tinha enfrentado aqueles seis homens. Seus seis cavalos vagavam por ali sem dono e eu os levei todos para minha casa". Nesta invulnerabilidade numa luta contra seis inimigos de uma só vez, Gengis-Khan via a prova mais certa de todas as suas conquistas e de suas vitórias.

Sobreviver como paixão A satisfação de sobreviver, que é uma espécie de volúpia, pode transformar-se numa paixão perigosa e insaciável. Ela cresce de acordo com as ocasiões. Quanto maior for o monte de mortos diante dos quais alguém se ergue com vida, quanto 254

mais freqüentemente se viver estes momentos, tanto mais intensa e mais imprescindível se torna esta necessidade de sobrevivência. As carreiras dos heróis e dos mercenários comprovam que se origina uma espécie de mania irremediável. A explicação usual que se dá a isto é que estes homens não conseguem mais respirar quando não se encontram em situações de perigo; que toda a existência carente de perigo lhes é estranha e sem incentivos; que já não podem mais encontrar prazer ou gosto numa vida pacífica. Não se pode subestimar a atração exercida pelo perigo, mas freqüentemente se esquece que estas pessoas não saem sozinhas em busca de aventuras, que outros as acompanham e sucumbem ao perigo. O que elas realmente necessitam e de que já não podem mais prescindir é a volúpia constantemente renovada do sobreviver. Mas, para satisfazer esta volúpia, não é preciso que a pessoa sempre se exponha pessoalmente ao perigo. Ninguém pode, sozinho, abater um número considerável de homens. Nos campos de batalha, toda uma multidão trabalha num mesmo sentido e, quando se é o comandante desta multidão, quando a batalha é o resultado de uma decisão pessoal, é lícito também apropriar-se do sucesso pelo qual se é responsável; pode-se tomar posse de todos os cadáveres. Não é em vão que o marechal-de-campo ostenta seu título arrogante. Ele manda: ele envia seus homens contra o inimigo, em direção à morte. Quando vence, é a ele que pertence todo o campo dos mortos. Alguns caíram por ele, os outros caíram contra ele. De vitória em vitória, ele sobrevive a todos. Os triunfos que ele comemora expressam da maneira mais exata possível o que ele queria. Sua importância se mede pelo número de mortos. O triunfo é ridículo quando o inimigo se rendeu sem travar um verdadeiro combate, quando apenas alguns mortos foram reunidos. Mas o triunfo é glorioso quando o inimigo se defendeu com valor, quando a vitória foi conquistada a duras penas e custou um elevado número de vítimas. "César superou todos os heróis de guerra e todos os generais juntos por ter travado mais batalhas e por ter ceifado a vida da maior quantidade de inimigos. Pois em menos de dez anos, durante o tempo que conduziu a guerra contra a Gália, ele tomou de assalto mais de oitocentas cidades, submeteu trezentos povos, combateu contra três milhões de homens, dos quais matou um milhão durante as batalhas, e transformou outro milhão em prisioneiros." Esta opinião é de Plutarco, que ninguém pode acusar de instintos bélicos ou de sede de sangue, pois foi um dos espí255

ritos mais humanos que o mundo conheceu. Ele tem seu valor porque estabelece o balanço de maneira tão contundente. César combateu contra três milhões de inimigos, matou Mn milhão e transformou outro milhão em prisioneiros. Outros generais, mongóis e não-mongóis, o superaram posteriormente. Mas esta antiga opinião também é característica pela maneira ingênua como tudo é atribuído exclusivamente ao general. As cidades tomadas por assalto, as nações submetidas, os milhões de inimigos vencidos, mortos, prisioneiros; tudo pertence a César. Não é a ingenuidade de Plutarco que se expressa desta maneira, e sim a ingenuidade da própria história. Desde os relatos de guerra dos faraós egípcios estamos acostumados a esta ingenuidade; e até os dias de hoje praticamente nada mudou neste sentido. César, portanto, sobreviveu feliz a tantos inimigos. É considerado falta de tato nestas ocasiões contabilizar também as baixas sofridas do próprio lado. Elas são conhecidas, mas não são creditadas ao grande homem. Nas guerras de César, estas baixas, comparadas com o número dos inimigos abatidos, não foram excessivamente numerosas. O certo é que ele sobreviveu a alguns milhares de aliados e romanos; neste sentido, ele também não sai com as mãos totalmente vazias. De geração em geração, estes orgulhosos balanços foram repetidos; em cada uma delas apareceram heróis guerreiros em potencial. Sua paixão de sobreviver aos outros homens foi estimulada até a loucura. O julgamento da história parecia justificar seus feitos, antes mesmo de eles serem realizados. Os mais aptos nesta forma de sobrevivência ocupam o lugar mais elevado e mais seguro dentro da história. Para esta espécie de glória póstuma, em última instância, mais do que a vitória ou a derrota conta o monstruoso número de vítimas. Não se sabe ao certo como Napoleão realmente se sentia durante sua campanha na Rússia.

O poderoso como sobrevivente Poder-se-ia definir como paranóica a atitude do chefe que se mantém afastado do perigo por todos os meios possíveis. Em vez de provocá-lo e de enfrentá-lo, em vez de correr o risco de um destino talvez desfavorável numa luta, ele procura afastar o perigo com astúcia e previsão. Irá criar um espaço livre em torno de si, um espaço que possa ser controlado, e analisará todo e qualquer sinal de perigo que se 256

aproxime de qualquer lado, porque a consciência de que está envolvido com muitos que poderiam atacá-lo de uma só vez mantém vivo dentro dele o medo de ser cercado. O perigo está espalhado por todos os lados, não apenas diante dele. O perigo é até mesmo maior às suas costas, onde ele não o poderá perceber de maneira suficientemente rápida. Por este motivo ele volve os Aos para todos os lados e nem mesmo o ruído mais imperceptível pode deixar de ser notado, pois poderia ser sinal de alguma intenção inimiga e hostil. O perigo por excelência, naturalmente, é a morte. É importante esclarecer de maneira precisa qual é a atitude do poderoso em relação a ela. A primeira e decisiva característica do poderoso é o seu direito sobre a vida e a morte. Ninguém pode aproximar-se dele; quem lhe trouxer uma mensagem, quem precisa chegar perto dele é revistado. Sistematicamente a morte é mantida a uma certa distância dele, que poderá impô-la a quem e quantas vezes quiser. Sua sentença de morte sempre é executada. Este é o selo do seu poder; seu poder somente é absoluto enquanto o seu direito de impor a morte seja indiscutível. Porque realmente só está submetido quem se deixa matar por ele. A última prova de obediência, da qual tudo depende, é sempre a mesma. Seus soldados são educados para uma espécie de disposição dupla: são enviados para matar os inimigos dele e estão dispostos a dar suas próprias vidas por ele. Mas também todos os seus demais súditos, que não são soldados, sabem que a qualquer momento ele pode destruí-los. O terror que ele difunde lhe pertence; é seu direito e por isto é supremamente venerado. Ele é adorado de forma extrema. O próprio Deus pronunciou a sentença de morte sobre todos os homens vivos ou que ainda irão viver. De sua vontade apenas depende quando esta sentença será executada. Ninguém seria um empensaria sequer em se opor a esta sentença preendimento inútil. No entanto, a sina dos poderosos terrestres não é tão fácil quanto a de Deus. Eles não vivem eternamente; seus súditos sabem que também os seus dias têm um fim; um fim que, até mesmo, pode ser acelerado. Como qualquer outra coisa, o poder também tem fim. Quem nega obediência apresenta combate. Nenhum governante pode ter certeza definitiva da obediência dos seus súditos. Enquanto eles se deixarem matar por ele, ele poderá dormir tranqüilo. No entanto, assim que um deles se subtrair ao seu julgamento, o governante corre perigo. 257

"Ir O sentimento deste perigo está sempre vivo dentro do poderoso. Posteriormente, quando abordarmos a natureza da ordem, veremos que os seus temores precisam aumentar, à medida que mais ordens suas tenham sido executadas. Ele somente pode aquietar suas dúvidas dando um exemplo. Determinará uma execução de pena capital por sí mesma, sem que tenha muita importância a culpa da vítima. De tempos em tempos ele necessitará de execuções deste tipo, em quantidades tanto maiores quanto suas dúvidas forem aumentando. Seus súditos mais seguros, isto é, os mais perfeitos dentre eles, são os que foram vitimados por ele. Cada execução pela qual ele é responsável lhe confere algo de força. E é justamente a força do sobreviver que ele procura desta forma. Suas vítimas não precisam ter-se voltado realmente contra ele; basta saber que o poderiam ter feito. O medo que o domina as transforma — talvez a posteriori — em inimigos que lutaram contra ele. Ele as condenou, elas sucumbiram, ele sobreviveu a elas. O direito de pronunciar sentenças de morte se transforma em sua mão numa arma como outra qualquer, mas muito mais eficaz. Os soberanos bárbaros e orientais freqüentemente davam grande importância ao acúmulo de vítimas deste tipo entre os seus mais chegados, de maneira a tê-los sempre sob suas vistas. Mas mesmo onde os costumes se opunham a um tal acúmulo, os pensamentos dos poderosos ainda se ocupavam disso. Um jogo sinistro deste tipo é relatado a respeito do imperador romano Domiciano. O banquete idealizado por ele, e que certamente nunca mais foi oferecido da mesma maneira, serve para, evidenciar com clareza a natureza mais profunda do poderoso paranóico. O relato deste acontecimento transmitido por Cassius Dio diz o seguinte: "Em outra ocasião Domiciano entreteve os senadores e cavaleiros mais importantes de forma diferente. Ele decorou um recinto onde tudo — teto, paredes e chão — era preto como piche, e colocou sobre o piso nu leitos da mesma cor. Seus hóspedes foram convidados à noite e sem séqüito. Junto a cada um deles mandou colocar uma lousa que tinha a forma de uma lápide funerária e ostentava o nome do hóspede; além disto havia ainda uma pequena lâmpada, como as que são colocadas nos túmulos. Entraram depois alguns rapazes de corpos bonitos e nus, igualmente pintados de negro como fantasmas; executaram uma dança horripilante em torno dos convidados, e colocaram-se em seguida aos pés deles. Então foram servidas aos hóspedes as comidas que normalmente são ofere258

cicias durante os sacrifícios pelas almas dos mortos; os alimentos também eram negros e foram apresentados em vasilhas desta mesma cor. Cada um dos hóspedes começou a tremer, esperando ser logo degolado. Com exceção de Domiciano, todos tinham emudecido. Reinava um silêncio mortal, como se eles já estivessem no reino dos mortos. O imperador discorria longamente a respeito da morte e de massacres. Finalmente ele os despediu. Mas os escravos dos hóspedes, que aguardavam por eles na ante-sala, tinham sido retirados. Os hóspedes foram então confiados a outros escravos que lhes eram desconhecidos, e foram transportados para suas casas em carros ou liteiras. Desta maneira o medo deles aumentou ainda mais. Assim que chegaram a casa e começaram a respirar aliviados, apresentou-se um mensageiro do imperador. Certos de que esse era seu último momento, perceberam que alguém lhes trazia a lousa, que era de prata. Outros vinham com diversos objetos, entre eles as vasilhas de material precioso nas quais as refeições tinham sido servidas durante a ceia. Por fim, apresentou-se na casa de cada hóspede o rapaz que o tinha atendido de modo particular; mas agora estava lavado e adornado. Depois de terem passado toda a noite em angústia mortal, recebiam agora presentes." Este foi o famoso "banquete fúnebre de Domiciano", como passou a ser chamado pelo povo. O terror incessante no qual ele manteve seus hóspedes fez com que eles emudecessem. Somente ele falava e falava de mortes e de massacres. Era como se todos estivessem mortos e somente ele continuasse vivo. Durante a ceia tinha reunido todas as suas vítimas, pois como tais eles deviam sentir-se. Disfarçado de anfitrião, mas na verdade como sobrevivente, ele falava para suas vítimas disfarçadas de hóspedes. Mas a situação de sobrevivente não era evidente apenas pelo acúmulo de vítimas; ela era realçada de modo refinado. Apesar de os convidados estarem como mortos, ele ainda podia matá-los. Desta maneira o processo propriamente dito da sobrevivência é exemplificado. Quando ele os despediu, isto foi o equivalente a um indulto. Mas ele os fez tremer novamente, entregando-os nas mãos de escravos estranhos. Quando chegam a suas casas, ele lhes envia novamente mensageiros de morte. Trazem-lhes presentes, e com eles o maior' dos presentes: a vida. Ele pode, por assim dizer, transferi-los da vida para a morte, e logo em seguida trazê-los de volta à vida. Ele se diverte repetidas vezes com esse jogo. Ele se autorga assim a sensação máxima do poder; não se pode imaginar outra maior. 259

A salvação de Flávio Josefo Da guerra entre os romanos e os judeus, que ocorreu durante a juventude de Domiciano, chegou-nos a narrativa de um acontecimento que ilumina de forma definitiva a natureza do sobrevivente. O comando supremo dos romanos se encontrava nas mãos de Vespasiano, pai de Domiciano; foi durante esta guerra que os Flávios chegaram a alcançar a dignidade imperial. Os judeus tinham se erguido, havia algum tempo, contra o domínio dos romanos. Quando o movimento se expandiu, os judeus designaram comandantes para as diferentes partes do país. Eles deveriam reunir homens para a guerra e colocar as cidades em condições de se defenderem com êxito contra as legiões romanas, que certamente não demorariam a chegar. A Josefo, ainda jovem, com apenas trinta anos de idade, foi confiada a província da Galiléia. Com muito zelo ele se dedicou à execução de sua tarefa. Em sua História da Guerra Judaica, ele descreveu os obstáculos contra os quais foi obrigado a lutar: falta de união entre os cidadãos, rivais que faziam intrigas contra ele e que reuniam tropas por conta própria, cidades que se recusavam a reconhecer seu comando supremo, ou que depois de algum tempo acabavam desertando. No entanto, com surpreendente energia, ele conseguiu colocar de pé um exército, se bem que mal armado, e ergueu fortalezas para receber os romanos. Quando eles chegaram sob o comando de Vespasiano, este trazia consigo seu jovem filho Tito, da mesma idade de Josefo. Em Roma, Nero ainda era o imperador. Vespasiano tinha fama de ser um velho e experiente general, que tinha se destacado em vários cenários bélicos. Ele penetrou na Galiléia e isolou Josefo com seu exército judeu na fortaleza de Jotapata. Os judeus se defenderam com a maior coragem; Josefo possuía uma grande capacidade inventiva e soube rechaçar todos os ataques; os romanos sofreram duras perdas. A defesa durou quarenta e sete dias. Quando os romanos finalmente conseguiram penetrar à noite na fortaleza graças a um ardil — todos dormiam e a presença do inimigo foi percebida apenas ao clarear do dia —, os judeus se entregaram a um terrível desespero e muitos acabaram matando-se mutuamente. Josefo escapou. Quero citar seu destino depois da ocupação da cidade com suas próprias palavras pois, quanto eu saiba, não existe em toda a literatura universal nenhum outro relato semelhante de um sobrevivente. Josefo descreve com 260

uma notável consciência e com uma espécie de compreensão da própria essência do sobreviver tudo o que empreendeu para poder escapar. Não lhe foi difícil ser sincero, pois escreveu este relatório mais tarde, quando já gozava de grande reputação entre os romanos. "Depois da queda de Jotapata, em parte por um sentimento de amargura contra Josefo, em parte porque o comandante estava extremamente interessado em sua captura — quase como se ela fosse decisiva para o desfecho da guerra —, os romanos procura,T.m o odiado inimigo entre os mortos e em todos os esconderijos da cidade. No entanto, durante a ocupação da cidade, como que movido por uma assistência divina, ele tinha se esgueirado entre os inimigos e saltado numa funda cisterna que se prolongava lateralmente formando uma espaçosa cova, invisível para quem estivesse em cima. Neste esconderijo ele encontrou quarenta homens eminentes, abastecidos de víveres suficientes para muitos dias. Durante o dia ele ficava escondido, porque os inimigos tinham ocupado todos os arredores; de noite, porém, ele subia, na tentativa de encontrar um caminho de fuga e de determinar a posição das sentinelas. Como porém por sua causa os arredores estavam extremamente bem guardados, não havia qualquer possibilidade de fugir, e ele voltava sempre à cova. Durante dois dias conseguiu escapar desta forma à vigilância; no terceiro dia, porém, foi delatado por uma mulher que estivera com eles, mas que tinha sido presa. Vespasiano imediatamente enviou dois tribunos encarregados de lhe prometer segurança, caso Josefo concordasse em deixar a cova. "Os tribunos chegaram, tentaram persuadi-lo e lhe deram garantia de vida. Mas nada conseguiram dele, pois ele acreditava saber o que o esperava por causa dos prejuízos causados aos romanos. O modo benévolo como o exortavam de maneira alguma conseguiu modificar sua opinião a respeito da sorte que o aguardava. Ele não conseguia afastar o temor de que eles apenas o queriam atrair para fora com artimanhas para em seguida executá-lo. Por fim Vespasiano enviou um terceiro mensageiro na figura do tribuno Nicanor, bem conhecido de Josefo, do qual aliás era velho amigo. Este chegou e o informou do clemente procedimento dos romanos em relação aos inimigos derrotados, explicando-lhe que os generais admiravam Josefo por sua coragem, que eles não o odiavam e que o comandante de maneira alguma tinha intenções de executá-lo — mesmo porque poderia fazê-lo sem que ele saísse de onde estava —; pelo contrário, estava resolvido a permitir que con261

tinuasse vivo por tratar-se de um homem valente. Além do mais, seria inimaginável que Vespasiano enviasse a Josefo um amigo deste com a intenção enganosa de disfarçar com a amizade uma falta de palavra; tampouco ele, Nicanor, se teria prestado a enganar um amigo. "Como porém Josefo não conseguiu chegar a um acordo com Nicanor, os soldados enfurecidos começaram a fazer preparativos para lançar fogo dentro da cova. Seu superior conseguiu contê-los, já que lhe importava muito ter o homem vivo. Enquanto Nicanor tentava convencê-lo e a tropa inimiga proferia ameaças sem cessar, na mente de Josefo apareceram lembranças de sonhos nos quais Deus lhe tinha revelado a iminente desgraça dos judeus e o futuro destino dos imperadores romanos. Josefo conhecia bem a interpretação dos sonhos: como sacerdote e filho de sacerdote, estava intimamente familiarizado com os vaticínios dos livros sagrados e era capaz também de explicar os anúncios que Deus tinha deixado na ambigüidade. Justamente nesse momento, ele foi tomado por um entusiasmo divino; os horrores dos sonhos recentes apareceram diante do seu interior e ele enviou a seguinte oração a Deus: 'Como resolveste dobrar o povo judeu, que Tu mesmo criaste, como toda a fortuna passou para os romanos e como escolheste minha alma para revelar o futuro, estendo a mão para os romanos e permaneço vivo. Porém, invoco Teu testemunho de que não é como traidor mas como servidor Teu que passo para o lado deles'. "Depois desta oração ele prometeu a Nicanor que se entregaria. Quando os judeus que se encontravam com ele no esconderijo se deram conta de que ele estava resolvido a ceder às exortações do inimigo, rodearam-no em grupo compacto e o atacaram com acusações. Lembraram-lhe quantos judeus tinham morrido pela liberdade devido à insistência dele. Ele, cuja reputação de coragem tinha sido tão grande, estaria disposto a continuar agora vivendo como escravo? Ele, cuja inteligência tanto valia, esperava demência por parte daqueles contra os quais tinha combatido com tanta insistência? Ter-se-ia esquecido totalmente de si mesmo? A lei dos pais recairia pesadamente sobre ele e ele ofenderia a Deus mostrando-se tão interessado na sua própria vida. Ele poderia estar cego diante da fortuna dos romanos, mas eles continuavam pensando na honra do seu povo. Ofereceram-lhe seus braços e espadas para que caísse voluntariamente como comandante dos judeus; do contrário morreria involuntariamente como traidor. Desembai262

nharam suas espadas contra ele e ameaçaram matá-lo caso se rendesse aos romanos. "Josefo ficou com medo deles, mas parecia-lhe uma traição morrer antes de cumprir os encargos divinos. Em meio à pressão de suas aflições, procurou argumentos racionais para responder-lhes. Era bonito morrer na guerra, disse-lhes, mas, segundo os costumes da guerra, pelas mãos dos vencedores. A pior covardia seria matar-se a si próprio. O suicídio vai contra a natureza íntima de todo ser vivo, e ao mesmo tempo é um sacrilégio contra Deus, o Criador. De Deus e'ie recebera sua existência e a Ele também deveria confiar seu próprio fim. Deus odiava e castigava ainda nos seus descendentes todos os que erguiam suas mãos contra si mesmos. Não seria conveniente acrescentar à perda de tantos homens um sacrilégio contra o Criador. Eles não deveriam colocar empecilho algum no caminho de sua salvação, caso esta fosse possível. Para eles não seria uma desonra sobreviver, uma vez que já tinham demonstrado suficientemente sua valentia através dos feitos. Porém, se a morte lhes estava reservada, esta lhes deveria ser infligida pelos vencedores. Ele não pensava em passar para o lado inimigo e transformar-se num traidor. Almejava, isto sim, uma traição por parte dos romanos. Ele morreria feliz se, apesar da palavra empenhada, eles o assassinassem e esta falta de palavra, pela qual provocariam o castigo de Deus, era para ele um consolo maior do que a vitória. "Assim Josefo tentou de todas as maneiras dissuadir seus companheiros do suicídio. Mas o desespero os deixava surdos a todas as argumentações. Há muito tempo eles se tinham consagrado à morte e suas palavras conseguiam apenas aumentar o ódio que eles sentiam. Eles o acusaram de covardia e por todos os lados avançaram com espadas na mão contra ele. Cada um deles parecia estar disposto a transpassá-lo ali mesmo. A difícil situação provocou nele uma multiplicidade de atitudes: chamou este pelo nome, naquele cravou o olhar de comando; tomou um terceiro pela mão e mudou a opinião de um quarto por meio de súplicas. Desta forma conseguia afastar de si a espada homicida. Ele se comportava como o animal encurralado que sempre se volta contra quem fez menção de atacá-lo. Mas, mesmo nesta situação extrema, eles ainda o respeitavam como comandante; seus braços ficaram como que paralisados, os punhais lhes caíram das mãos e muitos que tinham levantado a espada contra ele voltaram a embainhá-la espontaneamente. "Apesar desta situação desesperada, Josefo não perdeu 263

sua calma; pelo contrário, confiando na ajuda de Deus, colocou sua vida em jogo e disse o seguinte a seus companheiros: `Uma vez que tomamos a resolução de morrer e que esta resolução é irrevogável, deixaremos que a sorte decida quem de nós haverá de acabar com o outro. Cada um que for designado pela sorte, morrerá pelas mãos do seguinte. Desta maneira a sorte de morrer nos tocará a todos e nenhum de nós se verá obrigado a matar a sí mesmo. No entanto, seria uma grande injustiça se, depois da morte de seus companheiros, o último se arrependesse e salvasse sua vida'. "Esta proposta fez com que todos voltassem a confiar nele e, depois de todos terem concordado com ela, ele mesmo participou do sorteio. Cada um que era sorteado se deixava matar pelo sorteado seguinte, sabendo que pouco depois também haveria de morrer seu comandante, e a morte com Josefo lhes parecia melhor do que a vida. No final sobrou justamente Josefo — por uma feliz casualidade ou por divina providência — com mais um companheiro; e, como ele não queria ser escolhido pela sorte e também não queria manchar sua mão com o sangue do companheiro, conseguiu convencê-lo a se entregar aos romanos para salvar suas vidas. "Depois de Josefo ter saído vivo tanto da luta contra os romanos como da disputa com sua própria gente, foi conduzido por Nicanor até Vespasiano. Todos os romanos se reuniram para ver o comandante dos judeus e a multidão comprimida gritava multo. Uns se regozijavam por sua captura, outros o ameaçavam, outros ainda abriam violentamente o caminho para poder vê-lo de perto. Os que se encontravam mais distantes gritavam exigindo que o inimigo fosse executado; os que estavam mais perto recordavam suas façanhas e se admiravam com a reviravolta do seu dèstino. Entre os oficiais, porém, não havia um 'único que, apesar de toda a amargura anterior, não se sentisse agora enternecido por seu aspecto. Principalmente o nobre Tito, de sua mesma idade, ficou muito comovido pela constância de Josefo na desgraça e compadeceu-se de sua juventude. Queria salvar-lhe a vida e intercedeu com toda força a favor dele diante de seu pai. Vespasiano, todavia, mandou que ele fosse colocado sob forte custódia; sua intenç era enviá-lo sem demora a Nero. "Quando Josefo ouviu falar a este respeito, pediu para conversar em particular com Vespasiano. O comandante ordenou que todos os presentes se retirassem, com exceção de seu filho Tito e de dois amigos de confiança. Josefo então disse o seguinte: `Vespasiano, tu acreditas que eu nada mais sou do 264

prisioneiro de guerra que conseguiste dominar. Estás que um do•. estou diante de ti como porta-voz de assuntos mais equivoca importantes. Eu, Josefo, devo cumprir para contigo uma misde Deus. Não fosse isso eu saberia muito bem o que exige são i lei dos judeus e como deve morrer um comandante. Queres a enviar-me para Nero? Para quê? Seus sucessores, que ainda deverão ocupar o trono antes de ti, não o manterão durante muito tempo. Tu mesmo, Vespasiano, chegarás a ser César e imperador, e este teu filho o será depois de ti! Agora, faze com que me acorrentem melhor e guarda-me para mais tarde, para ti. Porque serás César e terás poder não somente sobre mim, mas sobre a terra e o mar e sobre toda a estirpe humana. Faze com que me vigiem da maneira mais rígida possível e então, se usei em vão o nome de Deus, manda-me executar como terei merecido!' "No começo, Vespasiano não deu muito crédito a estas palavras e estava inclinado a considerá-las como um ardil pelo qual Josefo procurava salvar sua própria vida. Aos poucos porém, começou a acreditar nelas. Deus tinha despertado nele a idéia do trono e lhe tinha insinuado o seu futuro reinado também por outros sinais. Além disto ficou sabendo que já em outras ocasiões seu prisioneiro tinha vaticinado o futuro. Um dos amigos de Vespasiano, presente à entrevista secreta, expressou sua surpresa perante o fato de que Josefo não tivesse previsto nem a destruição de Jotapata, nem tampouco sua própria captura: o que agora alegava talvez fossem apenas pa• lavras vazias para ganhar o favor do inimigo. Josefo respondeu com o que tinha previsto para as pessoas de Jotapata: que depois de quarenta e sete dias eles cairiam nas mãos do inimigo, e que ele mesmo seria capturado vivo. Vespasiano ordenou então que fossem feitas averiguações secretas entre os prisioneiros; quando as declarações de Josefo foram confirmadas, começou a dar crédito à previsão a respeito de sua própria pessoa. Apesar de ter mantido Josefo preso e acorrentado, ele o presenteou com um traje luxuoso e com outros objetos suntuosos. Depois disto, dispensou-lhe também um tratamento amável, graças principalmente a Tito." O relato de Josefo se divide em três fases diferentes. Uma vez ele escapa ao massacre da fortaleza conquistada de Jotapata. Todos os defensores da cidade que não acabam com a própria vida são mortos pelos romanos; alguns tornam-se prisioneiros. Josefo se salva na cova situada junto à cisterna. Lá ele encontra quarenta homens que são enfaticamente qualificados por ele como "eminentes". Todos são sobreviventes como 265

ele. Eles se abastecem de mantimentos e pretendem manter-se ocultos até que se ofereça uma possibilidade para escapar dos romanos. Porém o paradeiro de Josefo, que é o mais procurado de todos, é denunciado aos romanos por uma mulher. Com isto a situação se modifica e tem início o segundo ato, o mais interessante do relato todo; pela sinceridade com que é evocado pelo seu protagonista, pode ser qualificado como único. Os romanos lhe prometem a vida. Assim que ele acredita neles, eles deixam de ser seus inimigos. Visto num sentido mais profundo, é uma questão de fé. Uma visão onírica, profética, ocorre-lhe no momento exato. Foi-lhe revelado que os judeus seriam vencidos. Eles foram vencidos se bem que, no momento, apenas na fortaleza que ele comandava. A sorte está do lado dos romanos. A visão em que isto lhe foi anunciado vinha de Deus. Com a ajuda de Deus, ele será capaz de encontrar o caminho até os romanos. Ele se entrega a Deus e se volta agora contra seus novos inimigos, os judeus que, junto com ele, se encontram na caverna. Estes querem cometer suicídio para não caírem nas mãos dos romanos. Ele, o chefe, que os tinha incentivado para o combate, deveria ser o primeiro a enfrentar este tipo de morte. No entanto, ele está firmemente decidido a viver. Procura persuadi-los; invocando cem razões diferentes, procura tirar deles a vontade de morrer. Não consegue êxito. Qualquer coisa que ele diga contra a morte serve apenas para aumentar-lhes a decisão cega e também a raiva que sentem contra ele, que quer se subtrair à morte. Ele vê então que somente pode escapar se os outros morrerem; se eles se matarem entre si e somente ele conseguir sobreviver. Aparentemente ele resolve concordar com eles e recorre à idéia de decidir tudo pela sorte. A maneira como é tirada esta sorte não fica totalmente clara, e é difícil não pensar na possibilidade de um embuste. Este é o único ponto do relato todo no qual Josefo não se expressa com clareza total. Ele explica o surpreendente resultado desta loteria da morte como sendo algo pelo qual Deus ou o destino é responsável, mas a impressão que se tem é de que ele confia na inteligência do leitor para reconstruir a verdadeira sucessão de acontecimentos. Pois o que acontece em seguida é pavoroso: diante dos seus olhos, os seus homens se matam uns aos outros. Mas isto tudo não acontece de uma só vez; tudo acontece aos poucos, um matando o outro com ordem e seqüência. Entre cada morte, eles tiram a sorte. Cada um deles tem de matar um companheiro com suas próprias 266

mãos, e é morto em seguida pelo sorteado seguinte. Os escrúpulos religiosos que Josefo utilizou contra o suicídio aparentemente não são válidos em casos de assassinato. A cada homem que morre aumenta dentro de Josefo a esperança de sda própria salvação. Ele deseja a morte de cada um e de todos; para si mesmo, deseja apenas a vida. Eles morrem de bom grado, acreditando que ele, seu comandante, irá morrer com eles. Não podem imaginar que ele irá ficar por último. Não é provável que eles tenham sequer pensado nesta possibilidade. Como porém um deles forçosamente terá de ser o último, ele também se precavém contra isto: seria uma grande injustiça, diz ele aos seus homens, se após a morte dos seus companheiros, o último se arrependesse e salvasse a própria vida. É justamente esta injustiça que ele espera. O que ninguém poderia fazer após a morte de todos os companheiros é o que ele mesmo tem intenções de fazer. Sob o pretexto de que neste último momento pertence totalmente a eles, é um deles, ele os envia todos para a morte, conseguindo desta forma salvar a própria vida. Eles não desconfiam o que ele sente enquanto presencia a morte dos demais. Encontram-se totalmente presos pelo destino comum e acreditam que ele também esteja preso; ele porém está do lado de fora e previu a morte apenas para os demais. Eles morrem para que ele se possa salvar. O engano é total. É o engano de todos os condutores. Eles fingem estar encabeçando a marcha de seus subordinados para a morte. Na verdade os enviam na frente para eles próprios poderem salvar a própria vida. O ardil é sempre o mesmo. O condutor quer sobreviver; ele se fortalece nisto. Quando tem inimigos aos quais possa sobreviver, muito bem; quando não os tem, continua tendo seus próprios companheiros. De qualquer forma, ele utiliza ambos, alternadamente ou de uma só vez. Os inimigos são utilizados abertamente; afinal, é para isto que eles são inimigos. Os companheiros só podem ser utilizados às escondidas. Na caverna de Josefo, este ardil se torna evidente. Do lado de fora estão os inimigos. Eles são os vencedores, mas sua velha ameaça se transformou agora em salvação. Dentro da caverna estão os amigos. Eles continuam na antiga convicção de sua conduta, que ele mesmo lhes inspirou, e se negam a aceitar a nova salvação. E assim, a caverna, dentro da qual o líder queria se salvar, se transforma para ele num grande perigo. Ele engana seus amigos, que pretendem acabar com a vida dele da mesma forma como querem matar a si próprios, e os vota antecipadamente à morte em comum. Desde o co267

meço, ele se subtrai a esta morte em comum em pensamento, e depois de fato. Junto com um único companheiro, ele sobrevive. Uma vez que, como ele mesmo diz, não quer manchar suas mãos com o sangue de um companheiro, convence este a se entregar aos romanos. Ele consegue persuadir apenas esse companheiro a viver. Quarenta teriam sido demais. Os dois se salvam entre os romanos. E assim ele também conseguiu escapar incólume da luta com seus próprios companheiros. É justamente isto o que ele leva aos romanos: o sentimento realçado de sua própria vida, alimentado pela morte dos seus companheiros. A transferência deste poder recém-adquirido para Vespasiano é o terceiro ato da salvação de Josefo. Ela se expressa através de uma promessa profética. Os romanos tinham perfeito conhecimento da rígida fé em Deus dos judeus. Sabiam que isto seria a última coisa à qual um judeu se obrigaria a fazer: falar em vão no nome de Deus. Josefo devia desejar veementemente ter Vespasiano como imperador no lugar de Nero. Este, ao qual ele deveria ser enviado, não lhe teria prometido a vida, De Vespasiano, pelo menos, ele tinha uma palavra. Ele também sabia que Nero sentia desprezo por Vespasiano, que costumava dormir durante suas exibições musicais. Ele o tratara freqüentemente com mau humor, e somente agora que o levante dos judeus estava assumindo proporções perigosas é que resolvera voltar a se utilizar dele como general antigo e experiente. Vespasiano possuía muitos motivos para desconfiar de Nero. A promessa de uma futura soberania tinha, forçosamente, de lhe ser agradável. Josefo deve ter acreditado ele mesmo nesta mensagem de Deus que ele deveria transmitir a Vespasiano. A capacidade de profetizar estava em seu próprio sangue. Ele se considerava um bom profeta. Desta forma ele dava aos romanos algo que eles não tinham. Ele não levava os deuses deles a sério; o que vinha deles, ele considerava superstição. Mas ele também sabia que precisava convencer Vespasiano — que, como todo romano, desprezava os judeus e sua fé — da seriedade e da validade de sua mensagem. A segurança com que ele se apresentou, o vigor com que se expressou — ele, sozinho, entre inimigos aos quais tinha infligido danos, inimigos que até pouco antes o maldiziam —, a confiança em si mesmo, mais intensa nele do que qualquer outro sentimento, tudo isto ele devia ao fato de ter sobrevivido aos seus próprios companheiros. O que tinha conseguido fazer na caverna, ele transferiu 268

para Vespasiano, que sobreviveu a Nero, trinta anos mais jovem do que ele, e a seus sucessores, que foram três. Estes três sucessores sucumbiram, por assim dizer, um à mão do outro, e Vespasiano tornou-se imperador romano.

Aversão dos chefes pelos sobreviventes. Soberanos e sucessores Muhammad Tughlak, o sultão de Delhi, tinha vários planos que superavam em grandiosidade os de Alexandre e de Napoleão: entre eles a conquista da China atravessando o Himalaia. Foi organizado um exército de cem mil cavaleiros. Em 1337 este exército se colocou em marcha, perecendo cruelmente na região montanhosa. Somente dez destes homens conseguiram salvar-se e regressaram a Delhi com a notícia do desaparecimento dos demais. Estes dez homens foram executados por ordem do sultão. A aversão dos tiranos pelos sobreviventes é generalizadã. Eles consideram todo e qualquer ato de sobrevivência como algo que lhes pertence exclusivamente; esta é a sua riqueza propriamente dita, é seu bem mais apreciado. Quem, de maneira suspeita, em circunstâncias perigosas, e principalmente entre muitos outros, conseguir sobreviver, estará atrapalhando seus assuntos particulares e contra essa pessoa é dirigido todo o seu ódio. Nos lugares onde existiu uma forma de domínio índiscutido — no oriente islâmico, por exemplo — a fúria dos donos do poder contra os sobreviventes podia se manifestar abertamente. Os pretextos de que eles talvez precisavam para aniquilá-los encobriam apenas de forma velada os verdadeiros motivos que os levavam a fazer isso. Graças a uma cisão de Delhi, formou-se um outro império islâmico em Dekkan. O sultão desta nova dinastia, Muhammad Shah, manteve durante todo o seu governo o mais duro combate com os reis hindus que eram seus vizí-hos. Um dia, os hindus conseguiram conquistar a importante doade de Mudkal. Todos os seus habitantes, homens, mulheres e crianças, foram assassinados. Um único homem escapou e levou a notícia à capital do sultão. "Quando este foi informado", narra o cronista, "foi tomado por grande dor e ira; ordenou que o infeliz mensageiro fosse imediatamente executado. Seria impossível para ele suportar em sua presença um miserável que 269

tinha visto e sobrevivido ao massacre de tantos corajosos companheiros". Neste caso, ainda é possível falar de um pretexto, e é provável que este sultão realmente não soubesse por que não suportava a visão da única pessoa que se salvara. O califa do Egito, Hakim, que governou por volta do ano 1000, via com clareza muito maior os jogos do poder e os desfrutava de uma forma que lembra o imperador Domiciano. Hakim gostava de passear à noite usando todos os tipos de disfarces. Numa dessas caminhadas noturnas, numa colina próxima ao Cairo, ele encontrou dez homens bem armados que o reconheceram e que lhe pediram dinheiro. Ele lhes disse: "Separem-se em dois grupos e lutem uns contra os outros; quem sair vencedor receberá dinheiro de mim". Eles obedeceram e lutaram com tanto ímpeto que nove deles perderam a vida. Ao que sobreviveu Hakim lançou uma grande quantidade de peças de ouro que carregava na manga. Mas, enquanto o homem se agachava para recolhê-las, Hakim mandou que fosse trucidado por seus criados. Desta forma ele demonstrou sua clara compreensão do processo da sobrevivência; ele o gozava como uma espécie de representação que ele mesmo provocava e, no final, o aniquilamento do sobrevivente ainda servia para lhe dar alegria. A mais peculiar de todas as relações é a que existe entre o detentor do poder e o seu sucessor. Quando se trata de uma dinastia e o sucessor é filho do soberano, o relacionamento entre eles se faz duplamente difícil. É natural que o filho sobreviva ao pai, e é natural também que o filho aumente dentro de si a paixão pela sobrevivência, uma vez que ele próprio está destinado a ser o detentor do poder. Ambos têm todos os motivos para se odiarem. A rivalidade entre eles, que parte de condições desiguais, vai se tornando extrema, justamente por causa desta desigualdade, até atingir uma agudeza especial. O que tem o poder nas mãos sabe que deverá morrer antes do outro. O outro, que ainda não tem o poder, sente-se seguro de sobreviver. A morte do mais idoso, que entre todos é o que menos quer morrer — caso contrário não seria detentor do poder —, é desejada ardentemente. Por outro lado, o acesso do mais jovem ao governo é protelado por todos os meios. Trata-se de um conflito para o qual não existe uma verdadeira solução. A história está repleta de relatos de rebeliões deste tipo, de filhos contra os país. Alguns conseguiram derrubar os pais, outros foram vencidos por eles, sendo depois perdoados ou assassinados. É de se esperar que, numa dinastia de soberanos absolutos 270

de longa vida, as revoltas dos filhos contra os pais se cone ertam numa espécie de instituição. Uma abordagem dos impev radores mongóis na índia é bastante reveladora neste contexto. O príncipa Salim, filho mais velho do imperador Akbar, "ardia de vontade de tomar em suas mãos as rédeas do governo, e estava furioso por causa da longa vida de seu pai, que o mantinha afastado do prazer de usufruir as elevadas dignidades. Por este motivo decidiu usurpá-las, assumindo arbitrariamente o nome de um rei e arrogando-se as prerrogativas de um tal cargo". Esta informação faz parte de um relato contemporâneo, de autoria dos jesuítas, que conheciam muito bem tanto o pai como o filho, e que cortejavam ambos. O príncipe Salim criou uma corte própria. Contratou assassinos que assaltaram e mataram numa emboscada o mais íntimo amigo e conselheiro de seu pai. A rebelião do filho perdurou durante três anos; durante este período chegou-se uma vez a uma reconciliação hipócrita. Finalmente Salim foi ameaçado com a escolha de um outro herdeiro para o trono e, devido a esta pressão, aceitou um convite para ir à corte de seu pai. A princípio foi recebido cordialmente; depois seu pai o arrastou para um aposento interior, o esbofeteou e o prendeu num banheiro. Em seguida entregou-o a um médico e a dois criados, como se estivesse transtornado; o vinho, do qual ele gostava muito, lhe foi proibido. Na ocasião o príncipe tinha trinta e seis anos. Depois de alguns dias, Akbar o despediu e voltou a restituir-lhe sua dignidade de herdeiro do trono. No ano seguinte Akbar faleceu devido a uma disenteria. Falou-se que seu filho o teria envenenado, mas não é possível estabelecer-se isto com certeza. "Depois da morte de seu pai, pela qual tanto tinha ansiado", o príncipe Salim tornou-se imperador e adotou o nome de Jahangir. Akbar tinha reinado quarenta e cinco anos, Jahangir reinou vinte e dois. Mas durante este reinado, embora bem mais curto, ele viveu exatamente a mesma experiência de seu pai. Seu filho predileto Shah Jahan, que ele tinha designado para sucedê-lo no trono, rebelou-se e lutou durante três anos contra ele. Shah Jahan foi derrotado e implorou a paz. Foi perdoado em troca de uma dura condição: devia enviar seus dois filhos como reféns à corte imperial. Ele próprio evitou apresentar-se diante de seu pai, aguardando a morte dele. Dois anos após o tratado de paz, Jahangir morreu e Shah Jahan tornou-se imperador. Shah Jahan governou durante trinta anos. O que ele tinha feito ao pai aconteceu também a ele; mas seu filho teve mais 271

Nuir sorte. Aurangzeb, o mais jovem de seus dois filhos que tinham vivido como reféns na corte do avô, rebelou-se contra o pai e contra o irmão mais velho. A famosa "guerra de sucessão" que se iniciou então, e que foi relatada por testemunhas oculares européias, terminou com a vitória de Aurangzeb, que mandou executar o irmão e manteve o pai em cativeiro durante oito anos, ou seja, até a morte. Pouco depois de sua vitória, Aurangzeb proclamou-se imperador, governando durante meio século. Seu filho predileto porém perdeu a paciência muito antes disso, Rebelou-se contra o pai, mas o velho era mais astuto e soube conquistar os aliados de seu filho. Este foi obrigado a fugir para a Pérsia, onde morreu bem antes do pai. Se considerarmos a história dinástica do império mongol de forma global, percebe-se um quadro surpreendentemente uniforme. O tempo do seu esplendor máximo foi de cento e cinqüenta anos; durante esse tempo não governaram mais de quatro imperadores, filhos um do outro, todos dotados de tenacidade e de vida longa, todos apaixonadamente interessados no poder. Seus períodos de governo são realmente longos: Akbar reinou quarenta e cinco anos, seu filho vinte e. dois, seu neto trinta e seu bisneto durante cinqüenta anos. A partir de Akbar, nenhum dos filhos suportou o longo tempo de espera, cada um dos que posteriormente chegou a ser imperador se ergueu quando príncipe contra o pai. Cada uma destas revoltas termina de maneira diferente; Jahangir e Shah Jahan são derrotados e perdoados pelos pais. Aurangzeb prende o pai e o depõe. Seu próprio filho morre mais tarde no exílio. Com a morte de Aurangzeb chega ao fim o poder do império mongol. Nesta' longa dinastia, cada filho se rebelou contra o pai e cada pai guerreou contra o filho. O sentimento mais extremo de poder existe lá onde o detentor do poder menos quer um filho. O caso mais bem documentado é o de Shaka, que durante o primeiro terço do século passado fundou a nação e o império dos zulus, na África do Sul. Ele era um grande general, tendo até sido comparado a Napoleão, e jamais houve um detentor do poder que tivesse sido mais duro do que ele. Recusava-se a casar para não ter um herdeiro legítimo. Nem mesmo as mais insistentes súplicas de sua mãe, a qual ele sempre tratava com respeito, conseguiram demovê-lo dessa decisão. Ela nada desejava tanto como um neto, mas ele se manteve firme em seu propósito. Seu harém era formado por centenas de mulheres que chegaram a 272

ser, no final, mil e duzentas; o título oficial destas mulheres era de "irmãs", Elas estavam proibidas de engravidar e, mais ainda, de dar à luz uma criança. Todas se achavam sob um controle rígido e severo. Toda "irmã" cuja gravidez fosse desoberta era castigada com a morte. O filho de uma dessas muc lheres, que lhe tinha sido ocultado, foi morto pelas mãos do próprio Shaka. Ele tinha em elevada conta sua própria arte morosa; sempre conseguia controlar seus instintos, e por isso a chava que nenhuma mulher poderia engravidar por sua causa. a Assim ele não precisava temer um filho em fase de crescimento. Aos quarenta e um anos de idade, porém, foi assassinado por dois de seus irmãos. Se fosse lícito passar dos mandatários terrestres para os divinos, caberia lembrar aqui o Deus de Maomé, cuja autocracia é a mais indiscutida entre todos os deuses. Desde o princípio dos tempos ele está só nas alturas e não precisa lutar, como o Deus do Antigo Testamento, contra rivais sérios. No Corão constantemente se assegura de forma enfática que ele não foi engendrado por ninguém, e que também não dá origem a ninguém. A polêmica contra o Cristianismo, que se expressa nisso, origina-se do sentimento de unidade e de indivisibilidade do seu poder. Em oposição a isso existem mandatários orientais com centenas de filhos, que precisam combater entre si para decidir quem chegará a ser o verdadeiro sucessor. É de se pensar que a consciência da hostilidade que os divide atenue a amargura que o pai sente em relação à sua sucessão por qualquer um deles. Noutra parte abordaremos o sentido mais profundo da sucessão, suas intenções e vantagens. Aqui observamos apenas que soberanos e sucessores se encontram numa inimizade especial uns com os outros; uma inimizade que deve justamente aumentar ainda mais com esta paixão mais característica do poder: a paixão de sobreviver.

As formas de sobrevivência Observar as formas de sobrevivência não é algo ocioso; existem muitas delas e é importante não descuidar nenhuma. O primeiro processo na vida de cada ser humano, muito antes do nascimento e com certeza superior a este em seu significado, a procriação, ainda não foi vista sob este importante aspecto da sobrevivência. A partir do momento em que 273

o espermatozóide penetra no óvulo, sabe-se muito a respeito do processo da procriação; poderíamos até dizer que dentro em breve se saberá tudo. Porém quase não se meditou ainda sobre o fato de que uma quantidade incomensurável de espermatozóides não chega nunca à meta, apesar de participar ativamente do processo global. Não é um espermatozóide que procura encontrar seu caminho em direção ao óvulo. Existem aproximadamente uns 200 milhões deles. Numa única ejaculação, eles são expulsos juntos e logo em seguida começam a se movimentar num grupo denso e compacto em direção a uma meta. Seu número, portanto, é enorme. Uma vez que todos eles nasceram por divisão, elès são iguais entre si; sua densidade dificilmente poderia ser maior, e todos têm uma única meta. Vale a pena lembrar que justamente estes quatro fatores foram considerados como características essenciais da massa. Não é preciso sublinhar que uma massa de células seminais não pode ser a mesma coisa que uma massa de homens. Porém não resta a menor dúvida de que existe uma analogia, e talvez até mais do que uma simples analogia, entre os dois fenômenos. Todos esses espermatozóides, seja no caminho em direção à meta, seja mais tarde em sua aproximação imediata, perecem. Um único espermatozóide penetra no óvulo. Ele pode ser considerado como o sobrevivente. Ele é, por assim dizer, o condutor deles e conseguiu sobreviver a todos os que conduzia, coisa que todos os condutores desejam de forma declarada ou velada. É a partir deste sobrevivente de um grupo de 200 milhões que se forma cada um dos seres humanos. A partir desta forma elementar, se bem que nunca suficientemente ponderada, passamos a outras formas que nos são mais familiares. Nos capítulos anteriores falou-se muito a respeito de matar. Luta-se contra inimigos: contra um inimigo isolado, no assassinato ou no assalto por surpresa ou num combate singular; contra uma malta, pela qual a pessoa se sente cercada, ou finalmente contra toda uma massa. Neste caso, não se está sozinho: lançamo-nos na batalha na companhia de nossa própria gente. Mas a sobrevivência é considerada tanto mais como pertencente a um indivíduo quanto mais elevado for o cargo que ele ocupa. O "general" vence. Mas, como muitos dos integrantes de nossa própria gente também caíram, o monte dos mortos é misto, ou seja, é formado tanto por amigos como por inimigos; a batalha é a transmissão para o caso "neutro" da epidemia. 274

O matar se aproxima aqui do morrer; aliás, na sua forma roais monstruosa, ou seja, o morrer por causa de epidemias atástrofes naturais. Neste caso sobrevive-se a todos os ou de c que são mortais, amigos ou inimigos a um só tempo. Todas as relações se dissolvem; o morrer pode tornar-se tão uniersal que já não se sabe mais quem é enterrado. Muito caracv rísticas são as antigas e renovadas histórias de pessoas que te renascem dentre os mortos, despertando entre o monte dos caídos. Estas pessoas tendem a considerar-se invulneráveis, heróis da peste, por assim dizer. Uma satisfação mais moderada e encoberta é derivada do morrer esporádico dos homens. Trata-se de parentes e amigos. Ninguém mata pessoalmente, ninguém se sente agredido. Não se coopera em coisa alguma, mas espera-se a morte do outro. Os mais jovens sobrevivem aos mais velhos, o filho ao pai. O filho acha que é natural que seu pai morra antes dele. O dever exige que ele vá ao seu leito de morte, que ele lhe feche os olhos, que ele o leve ao cemitério. Durante estes acontecimentos que se prolongam durante alguns dias, o pai jaz morto diante dele. A pessoa que como nenhuma outra lhe pode dar ordens emudeceu. Indefeso, é obrigada a agüentar todas as manipulações do seu corpo, e seu filho, que durante muitos anos esteve sob seu poder, dispõe agora dele. A satisfação de sobreviver está presente inclusive aqui. Ela é resultante das relações entre ambos: um, durante muitos anos, foi débil e indefeso e esteve totalmente dominado pelo outro; este, que em outros tempos foi todo-poderoso, está agora derrotado e extinto; aquele dispõe dos seus despojos inanimados. Tudo o que o paí deixa fortalece o filho. A herança é o seu botim. Com ela pode fazer o contrário do que seu pai teria feito. Se este era econômico, o filho pode ser esbanjador; se ele era sensato, o filho pode ser imprudente. É como se houvesse uma nova lei, cuja validade é promulgada agora. A ruptura é tremenda, irreparável. Ela se consumou pela sobrevivência, na sua forma mais pessoal e íntima. Bem diferente é a sobrevivência entre pessoas da mesma idade. A tendência a sobreviver neste caso, tratando-se do próprio grupo, se encontra velada por formas atenuadas de rivalidade. Um grupo de pessoas da mesma idade forma parte de uma classe etária. Mediante determinados ritos, constituídos de provas difíceis e freqüentemente cruéis, os jovens sobem de 275

uma classe para a classe imediatamente superior. Pode-se excepcionalmente morrer numa destas provas. Os velhos, os homens que após um certo número de anos se conservam com vida, gozam entre os povos primitivos de um grande prestígio. Nestes povos, os homens de maneira geral morrem jovens; vivem entre perigos maiores e estão muito mais expostos às enfermidades do que nós. Para eles é uma façanha atingir uma determinada idade, e este fato implica uma certa recompensa. Os velhos não apenas sabem mais, não apenas adquiriram experiência em um número maior de situações, mas também deram boas provas de resistência porque ainda estão vivos. Eles devem ter tido sorte para conseguirem sair ilesos de caçadas, de guerras e acidentes. Seu prestígio aumentou com a superação de todos esses perigos. Seus troféus podem provar suas vitórias sobre os inimigos. Sua existência prolongada como membros de uma horda, que nunca é formada por um número demasiadamente grande de pessoas, é particularmente notável para os demais. Eles participaram de muitas ocasiões de lamentação. No entanto, eles ainda estão vivos, e as mortes dos que pertenciam ao seu grupo etário contribuem para o seu prestígio. É possível que isto não seja tão importante para os membros de um grupo como as vitórias sobre os inimigos. Uma coisa no entanto é indiscutível: o êxito mais elementar e evidente é o fato de ainda estarem com vida. Os velhos não apenas existem, eles ainda existem. Caso queiram, podem tomar esposas jovens, ao passo que os moços muitas vezes devem conformar-se com mulheres maduras. São os homens velhos que determinam a direção dos movimentos migratórios, contra quem se faz guerra, com quem se devem fazer acordos de aliança. Na medida em que se pode falar de um governo nessas condições de vida, são eles, os velhos, que governam. O desejo de se ter uma vida longa, que na maioria das culturas desempenha um papel importante, significa na realidade que se quer sobreviver aos próprios coetâneos. Sabe-se que muitos morrem jovens e deseja-se um destino diferente para si mesmo. Ao pedir aos deuses uma vida longa, cada homem se exclui dos seus camaradas. Na oração eles não são mencionados, mas imagina-se que será possível ficar mais velho do que eles. O fenômeno "sadio" da longevidade é um patriarca, capaz de ver muitas gerações de descendentes. Nunca se pensa na existência de patriarcas simultâneos. É como se ele desse início a uma nova estirpe. Enquanto os netos e os bisnetos estejam com vida, pouco importa que alguns dos seus 276

filhos o tenham precedido na morte; seu prestígio aumenta à medida que sua vida é mais resistente do que a deles. Na classe dos mais velhos finalmente resta vivo apenas ; justamente o mais velho de todos. Segundo a duração de um sua vida determinava-se o século etrusco, a respeito do qual vale a pena dizer algumas palavras. O "século" dos etruscos tem uma duração variável; às vezes é breve, outras vezes é mais prolongado e sua duração deve ser determinada em cada ocasião. Em toda geração existe um homem que chega a ficar mais velho que os demais. Quando este que sobreviveu a todos morre, os deuses fornecem determinadas indicações aos homens. Do momento de sua morte depende a duração do século: se o sobrevivente tinha 110 anos, este século tem 110 anos; se ele morreu com 105 anos, temos um século menor de apenas 105 anos. O sobrevivente é o século, que é formado pelos anos de sua vida. Toda cidade e todo povo tem uma duração predeterminada. A nação dos etruscos correspondem dez destes séculos; eles são calculados a partir da fundação de uma cidade. Se o sobrevivente de cada geração dura particularmente muito, a nação inteira chega a ficar muito mais velha. Esta relação é curiosa; como instituição religiosa ela é única. Sobreviver numa distância temporal é a única forma de se permanecer inocente. Pessoas que viveram muito antes de nós, que nem sequer chegamos a conhecer, não poderiam ter sido mortas por nós, não seria possível desejar nem esperar a morte delas. Fica-se sabendo que estas pessoas existiram quando elas já não existem mais. Através da conscientização destas pessoas fornece-se a elas uma certa forma de sobrevivência, se bem que muito moderada e freqüentemente inútil. Neste sentido é possível que lhes sejamos mais úteis do que elas o são para nós. Mas é possível demonstrar que elas também contribuem para o nosso próprio sentimento de sobrevivência. Existe portanto a sobrevivência dos antepassados, que não foram conhecidos pessoalmente, e de toda a humanidade anterior, de maneira geral. Esta última experiência temo-la nos cemitérios. Esta experiência se vincula com a sobrevivência numa epidemia: em vez da peste, a epidemia é a morte em geral, reunida de muitas épocas num único lugar. Seria possível objetar que nesta investigação do sobrevivente falamos somente sobre o que já se conhecia há muito tempo sob o conceito mais antigo do instinto de autopreservação. Mas será que os dois conceitos coincidem realmente? 277

Será que eles são totalmente idênticos? Como imaginamos os efeitos do instinto de autopreservação? Na minha opinião este conceito não é correto por postular o homem singular, sozinho. A ênfase, por um lado, é dada ao prefixo auto. Mais importante ainda é a segunda parte da palavra: preservação. Ela indica propriamente duas coisas: em primeiro lugar, que toda criatura deve comer para permanecer viva e, em segundo lugar, que ela deve defender-se contra toda e qualquer agressão. É como imaginar uma criatura rígida qual um monumento, que com uma mão se alimenta e com a outra mantém o inimigo à distância. Uma criatura pacífica no fundo! Se ela fosse deixada em paz, comeria um punhado de ervas e não causaria o menor mal a pessoa alguma. Existe alguma representação mais inadequada, mais errada e mais ridícula do ser humano? É verdade que o homem come, mas ele não come o mesmo que uma vaca e também ninguém o conduz até o pasto. A maneira como ele procura sua presa é pérfida, cruenta e tenaz e seu comportamento pode ser tudo, menos passivo. Ele não mantém seus inimigos à distância com mansidão; ele os ataca assim que os percebe ao longe. Suas armas agressivas foram mais bem desenvolvidas do que as que lhe servem para a defesa. O homem quer se autopreservar, não resta a menor dúvida, mas existem outras coisas que ele também quer simultaneamente e que são inseparáveis disso tudo. O homem quer matar para sobreviver aos demais. E ele não quer morrer para que os outros não sobrevivam a ele. Se estas duas coisas pudessem ser resumidas como autopreservação, o termo teria algum sentido. Mas eu não vejo por que motivo haveríamos de nos ater a um conceito tão aproximativo, quando existe um outro que capta melhor os fatos todos. Todas as formas mencionadas de sobrevivência são antiqüíssimas e já podem ser encontradas, como demonstraremos adiante, entre os povos primitivos.

O sobrevivente nas crenças dos povos primitivos Nos mares do Sul, mana significa uma espécie de poder sobrenatural e impessoal que pode passar de um homem para outro. Trata-se de um poder muito desejável e é possível enriquecê-lo em indivíduos isolados. Um guerreiro valente pode adquiri-lo em grandes quantidades. No entanto ele não o deve 278

à sua experiência em combate, nem à sua força corporal; ele lhe é transferido a partir do seu inimigo abatido. "Desta maneira, nas Ilhas Marquesas, um membro da tribo podia chegar a ser chefe de guerra através de sua coragem pessoal. Supunha-se que o guerreiro contivesse em seu corpo o mana de todos os que tinham sido mortos por ele, Seu próprio mana crescia de maneira proporcional à sua própria coragem. No entanto, na mente dos nativos, sua coragem era cada morte que o resultado e não a causa do seu mana. Com causava, crescia também o mana de sua lança. O vencedor no combate de homem contra homem assumia o nome do inimigo derrotado: um sinal evidente de que o seu poder agora lhe pertencia. Para incorporar diretamente o mana do inimigo ele comia parte de sua carne; e para fixar esse crescimento de poder durante uma batalha, para assegurar para si essa relação íntima com o mana capturado, ele levava sobre seu corpo, como parte do seu equipamento de guerra, qualquer parte física do inimigo vencido: um osso, uma mão ressecada, às vezes até mesmo um crânio inteiro " Não é possível formular com maior clareza o efeito da vitória sobre o sobrevivente. Matando, ele se tornou mais forte e o acréscimo de mana o torna capaz de novas vitórias. É uma espécie de bênção que ele arranca do inimigo, mas somente pode recebê-la após a morte desse inimigo. A presença física do inimigo, vivo e morto, é indispensável. É preciso que ele tenha sido combatido e é preciso que ele tenha sido morto; tudo depende do próprio ato de matar. As partes removíveis do cadáver, das quais o vencedor se apropria, que ele incorpora a si mesmo, que carrega consigo, lembram-lhe sempre o aumento do seu próprio poder. Ele se sente mais forte graças a elas e ele inspira terror por meio delas: todo novo inimigo que o desafiar tremerá diante dele e com horror verá o seu próprio destino. Uma relação mais pessoal, mas igualmente vantajosa, entre o matador e o abatido existe, segundo a crença dos murngins, na terra de Arnhem, na Austrália. O espírito do abatido penetra no corpo do matador e lhe confere uma força dupla, tornando-o efetivamente maior. É de se imaginar que esta ganância incite os jovens à guerra. Cada qual procura um inimigo para apoderar-se de sua força. Mas esse intento só pode ser realizado à noite, pois durante o dia a vítima pode ver seu assassino, ficando então irritada demais para penetrar-lhe no corpo. Este processo da "entrada" foi narrado com muita exa279

tidão. É tão curioso que transcrevemos aqui boa parte da narrativa. "Quando um homem matou outro durante uma guerra, ele retorna para casa e não ingere nenhum alimento cozido até que a alma do morto se aproxime dele. Ele é capaz de ouvir sua aproximação, porque a haste da lança ainda está presa à ponta de pedra cravada no morto; ela se arrasta pelo chão, bate contra arbustos e árvores, fazendo barulho ao caminhar. Quando o espírito está muito perto, o matador ouve sons que vêm da ferida do morto. "Ele toma a lança, retira a ponta e coloca esta extremidade da haste entre os dois primeiros dedos do pé. A outra extremidade da haste é apoiada no ombro. A alma passa então pela abertura onde antes estava a ponta da lança, sobe pela perna do matador e penetra em seu corpo. Ela caminha feito uma formiga. Penetra no estômago, fechando-o. O homem sente então náuseas e febre no abdome. Esfrega o estômago e pronuncia em voz alta o nome do morto. Isto o cura e ele volta a sentir-se bem, pois o espírito abandona o estômago, entrando no coração. Assim que ele está no coração, o efeito é como se o sangue do morto estivesse agora dentro do matador. É como se o homem, antes de morrer, tivesse dado seu sangue vital ao outro que o mataria. "O matador, que agora se tornou maior e particularmen'e forte, adquire toda a força vital que noutro tempo era possuída pelo morto. Quando ele sonha, o espírito lhe diz que tem alimentos para ele, indicando a direção na qual poderá encontrá-los. embaixo, junto ao rio', diz ele, 'encontrarás muitos cangurus', ou 'Naquela árvore velha existe uni grande ninho de abelhas com mel', ou ainda 'Junto àquele banco de areia irás capturar uma grande tartaruga e na areia da praia irás encontrar muitos ovos'. "O matador ouve e depois de um certo tempo sai do acampamento e vai à floresta, onde encontra a. alma do morto. A alma se aproxima e se deita. O matador se assusta e grita: `Quem é? Há alguém aí?' Retorna ao local onde estava o espírito do morto e lá encontra um canguru. Trata-se de um animal excepcionalmente pequeno. Ele o contempla e compreende o significado disto: está exatamente no lugar onde ouviu os movimentos do espírito. Recolhe o suor de sua axila e a esfrega no braço. Ergue a lança, grita em voz alta o nome do morto e abate o animal. Este morre imediatamente, mas começa a crescer depois de morto. O homem tenta erguê-lo, mas percebe que isto é impossível porque o animal ficou gran280

de demais. Ele deixa a presa de lado e retorna ao acampamento para informar seus amigos. 'Acabo de matar a alma do homem morto', diz ele. 'Não permitam que outros saibam disso, porque ela poderia voltar a se irritar outra vez.' Seus amigos Mais íntimos e seus parentes retornam com ele ao local para ajudá-lo a retirar a pele do animal e para prepará-lo para ser comido. Ao abri-lo, encontram gordura por todas as partes e esta é considerada um dos principais manjares. Colocam-se primeiro pedaços muito pequenos sobre o fogo. Estes pedaços são experimentados com muito cuidado e a carne sempre tem sabor desagradável. "Em seguida, o animal todo é cozido e as partes mais apreciadas são saboreadas. O restante é transportado ao acampamento principal. Os anciãos o examinam: trata-se de um animal excepcionalmente grande. Eles se colocam em círculo e um deles pergunta: "'Onde o mataste?' "Lá em cima, junto ao rio.' "Os anciãos sabem muito bem que não se trata de uma presa comum, uma vez que esta tem gordura por todas as partes. Após uma breve pausa, um dos velhos pergunta: "'Viste alguma alma, lá fora, na floresta?' "'Não', mente o jovem. "Os velhos provam a carne, mas ela tem um sabor diferente, não é o sabor de um canguru comum. "Os velhos sacodem afirmativamente a cabeça e estalam suas línguas: 'Não resta dúvida de que viste a alma do morto!" O sobrevivente, neste caso, adquire para si a força e o sangue do seu inimigo. Não é apenas ele mesmo que aumenta, que se torna maior, também sua presa animal engorda e cresce. Trata-se de um ganho pessoal e imediato que ele extrai do inimigo. Desta forma a maneira de pensar do jovem é orientada desde muito cedo para a guerra. Mas como este acontecimento ocorre à noite e em segredo, isto tem pouca coisa em comum com a idéia de herói como nós a entendemos. O herói que se lança sem temor e completamente só contra os inimigos é encontrado nas Ilhas Fidji. Uma lenda conta a história de um jovem que é criado pela mãe sem conhecer o próprio pai. Por meio de ameaças ele a obriga a revelar o nome de seu pai. Ao ficar sabendo que seu pai é o Rei do Céu, ele se põe a caminho para encontrá-lo. O pai, porém, fica decepcionado ao ver que seu filho é tão pequeno. Ele necessita de homens, não de jovenzinhos, uma vez que neste momento se encontra em guerra. Os homens que rodeiam o rei riem do me281

nino quando, repentinamente, este, usando uma dava, arrebenta a cabeça de um dos que riam dele. O rei fica encantado e o convida a ficar com ele. "Na manhã seguinte, bem cedo, os inimigos subiram até a cidade com clamores de guerra, gritando: 'Vinde até nós, ó Rei do Céu, que estamos famintos. Vinde até nós para comermos'. "Então o jovenzinho se ergueu e disse: 'Que ninguém me siga. Fiquem todos na cidade!' Pegou a dava que ele mesmo tinha feito, precipitou-se para fora entre os inimigos e começou a desferir golpes furiosos em torno de si, à direita e à esquerda. A cada golpe matava um inimigo, até que finalmente todos fugiram. Ele sentou-se então sobre um montão de cadáveres e chamou sua gente da cidade: 'Saiam todos para carregar os mortos daqui!' Eles saíram, cantaram o cântico da morte e carregaram os quarenta e dois cadáveres dos inimigos enquanto na cidade rufavam os tambores. "Quatro vezes mais o jovenzinho derrotou os inimigos de seu pai, de forma que suas almas se tornaram pequenas e eles vieram com oferendas de paz procurar o Rei do Céu: 'Tende piedade de nós, ó Senhor, deixai-nos com vida!' E assim o Rei ficou sem inimigos e o seu reino se estendeu por todo o Céu," O jovenzinho enfrenta aqui sozinho todos os inimigos; nenhum dos seus golpes é dado em vão. No final ele se vê sentado sobre um monte de cadáveres, e cada um dos que formam este monte foi uma vítima pessoal dele. Mas não se deve pensar que isto ocorra apenas nas lendas. Existem quatro palavras fidjis totalmente diferentes para designar os heróis. Koroi é o matador de um homem. Koli é o nome dado a quem matou dez, Visa é quem matou vinte e Wangka é uma pessoa que matou trinta homens. Um famoso chefe, que conseguiu se destacar mais do que os outros, chamava-se Koli-VisaWangka; ele tinha matado dez mais vinte mais trinta homens, ou seja, um total de sessenta. As façanhas destes super-heróis são talvez ainda mais imponentes do que as dos nossos, uma vez que eles comem os seus inimigos depois de os matarem. Um chefe que tenha desenvolvido um ódio muito especial contra alguém se reserva o direito de comê-lo sozinho e não convida ninguém para compartilhar de um só pedaço do morto. Mas pode-se objetar que o herói não sai apenas contra inimigos. Seus feitos principais nas lendas são contra os perigosos monstros dos quais liberta seu povo. Um monstro devo282

pouco a pouco um povo inteiro, e ninguém é capaz de se ra defender dele. No melhor dos casos chega-se a uma regulamentação do terror: um certo número de homens lhe é entreanualmente como comida. Então o herói se compadece de gue seu povo, parte totalmente só, e correndo graves perigos mata o monstro com suas próprias mãos. O povo lhe fica grato e sua memória é fielmente reverenciada. Em sua invulnerabilidade, graças à qual conseguiu salvar os demais, ele aparece feito uma figura luminosa. Entretanto existem mitos nos quais se reconhece claramente a relação entre esta figura luminosa e os cadáveres amontoados; cadáveres que não são apenas de inimigos. O mais notável destes mitos vem de um povo sul-americano, os uitotos. Ele se encontra na importante e não muito conhecida antologia organizada por K. Th. Preuss e é citado aqui, de forma abreviada, no que se refere ao nosso assunto. "Duas meninas, que viviam com seu pai às margens de um rio, viram certo dia na água uma minúscula e muito bonita cobra e tentaram capturá-la. Ne entanto ela sempre lhes escapava até que o pai, atendendo ao pedido das meninas, teceulhes uma peneira de malhas muito finas. Com ela conseguiram capturar o pequeno animal e o levaram para casa. Colocaram a cobra num pequeno recipiente com água e lhe serviram todos os tipos de alimentos, mas a cobra recusava tudo. Uma noite o pai, num sonho, teve a idéia de alimentá-la com um tipo especial de amido, e ela começou a comer de verdade. Ficou gorda como um cordel e depois como um dedo, e as meninas a colocaram num recipiente maior. A cobra continuou comendo o amido e ficou gorda como um braço. Colocaram-na então num pequeno lago; ela comia o amido com uma gula cada vez maior e se mostrava tão esfomeada que introduzia na boca, juntamente com o amido, a mão e o braço da menina que lhe dava de comer. Dentro de pouco tempo parecia uma árvore que tivesse caído na água. Começou então a sair para a margem e a comer os veados e outros animais, mas respondia sempre imediatamente aos gritos de chamada e vinha devorar as monstruosas quantidades de amido que as irmãs lhe preparavam. Ela preparou para si uma caverna debaixo das aldeias e das tribos e começou a comer os antepassados dos homens, os primeiros habitantes do mundo. 'Amorzinho, venha comer', gritaram as meninas; então a cobra veio, pegou o recipiente com o amido que uma das irmãs segurava no braço até a altura de sua cabeça, engoliu a menina e a levou consigo. "Chorando, a outra irmã foi contar tudo ao pai. Este 283

decidiu vingar-se. Lambeu tabaco, como sempre se faz entre este povo quando se decide a morte de uma criatura, embriagou-se e em sonho lhe ocorreu a maneira apropriada de vingança. Preparou o amido para dar comida à cobra que tinha devorado sua filha, chamou-a e disse-lhe: 'Engula-me!' Ele estava disposto a suportar tudo e bebeu do recipiente de tabaco que carregava no pescoço, para matá-la. Ao seu chamado a cobra saiu e tomou o amido que lhe era oferecido. Então o homem saltou para dentro de sua boca e lá se sentou. 'Eu o matei', pensou ela, e levou o pai consigo. "Então ela comeu uma tribo inteira, e dentro dela os homens começaram a apodrecer sobre o corpo do pai. Depois ela foi devorar uma outra tribo; as pessoas todas apodreciam sobre o corpo dele, que lá estava sentado; os corpos se decompunham e ele tinha de agüentar o intenso mau cheiro. A cobra devorou todas as tribos que viviam junto ao rio e acabou com elas até não sobrar ninguém. O pai tinha trazido consigo uma concha para cortar-lhe a barriga, mas fez apenas um pequeno talho que causou dores na cobra. Então ela comeu as tribos que viviam à margem de outro rio. Os homens tinham medo e não saíam para suas plantações, ficando sempre dentro de suas casas. Também não era possível vagar pelo local porque no meio do caminho a cobra tinha sua caverna, e quando alguém vinha do campo ela o agarrava e o levava consigo. Todos choravam e temiam que a cobra os comesse e já não davam um passo sequer fora de casa. Quando saíam de suas redes, temiam que a cobra tivesse ali sua caverna e os comesse e levasse consigo. "Sobre o corpo do pai apodreciam e cheiravam mal os homens devorados. Ele bebia suco de tabaco do recipiente e fazia talhos no ventre da cobra, de maneira que esta sentia grandes dores. 'O que está acontecendo comigo? Engoli Deihoma, o cortante, sinto dores', disse a cobra soltando um grito. "Então ela foi até a outra tribo, onde saiu da terra e agarrou todos. Ninguém podia ir a parte alguma nem se aproximar do rio. Quando alguém ia buscar água no porto, a cobra o agarrava e o levava consigo. Pela manhã bem cedo, assim que eles se levantavam, ela os agarrava e levava consigo. E o pai talhava o seu ventre com a concha e ela gritava: 'Por que sinto estas dores? Engoli Deihoma, o cortante, e por isso sofro tanto'. "Então os espíritos tutelares do pai o alertaram: `Deihoma, este ainda não é o porto junto ao rio onde vives; tem cuidado com os talhos. Ainda estás muito distante do teu 284

Ouvindo estas palavras, o pai deixou de fazer os talhos. A cobra, apesar de tudo, voltou para comer entre as pessoas onde já tinha comido antes e as agarrou de surpresa. 'Ainda não terminou! Aonde iremos parar? Ela exterminou todo o nosso povo', diziam os habitantes das aldeias. Eles emagrecia m cada vez mais. Também, o que é que eles ainda tinham para comer? "As pessoas pereciam e apodreciam sobre o corpo dele. Enquanto isso ele bebia um pouco do tabaco e continuava cortando o ventre da cobra. E assim Deihoma ficou sentado o tempo todo dentro dela. Havia tempos inimagináveis ele não comia coisa alguma, o coitado; apenas bebia o suco de tabaco, pois o que haveria de comer? Tomava o suco de tabaco, e apesar do mau cheiro de toda aquela podridão ficava tranqüilo. "As tribos já não existiam mais e a cobra tinha comido todos os corpos de todas as margens do rio ao pé do céu, de maneira que já não existiam mais homens. Os espíritos tutelares do pai então lhe disseram: `Deihoma, este é o porto do rio onde vives; corta agora com força; após duas curvas do rio estarás em casa'. E ele cortou. 'Corta, Deihoma, corta com força', disseram eles. Deihoma então cortou com mais força, abrindo o couro do ventre no porto, e saltou para fora pela abertura. "Assim que saiu, sentou-se no chão. Sua cabeça estava totalmente calva, pois seus cabelos tinham caído. A cobra se debatia, jogando-se de um lado para outro. Ele agora estava de volta, após ter permanecido um tempo inimaginavelmente longo no interior da cobra. Lavou-se bem no porto, chegou à sua palhoça e voltou a ver suas filhas que se alegraram com o pai." No texto completo do mito, que aqui foi consideravelmente abreviado, narra-se, em pelo menos quinze passagens distintas, como os homens apodrecem dentro da cobra sobre o corpo do herói. Esta imagem tão impressionante tem algo de fascinante; juntamente com o ato de devorar, é o que com mais freqüência aparece no mito. Deihoma se mantém vivo graças ao estratagema de beber suco de tabaco. Esta calma e impassibilidade em meio a todo o processo de apodrecimento caracterizam o herói. Todos os homens do mundo podiam apodrecer sobre ele; mesmo assim ele continuaria imperturbável, como o único, no meio da podridão generalizada, orientado em direção à sua meta. Ele é, por assim dizer, um herói inocente, pois nenhum dos que apodrecem pesa sobre sua consporto'.

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ciência. Mas ele suporta a podridão; ele está no meio dela. Ela não o abate; quase se poderia dizer que é ela que o mantém firme. A densidade deste mito, no qual tudo o que é verdadeiramente importante se passa dentro do corpo da cobra, é irresistível; é a própria verdade. O herói é aquele que, em circunstâncias perigosas, sobrevive sempre matando. Mas não é apenas o herói que sobrevive. Na massa de sua própria gente existe um processo correspondente, justamente quando todos sucumbiram. Como consegue um indivíduo salvar-se na guerra, quando todos os que pertencem ao seu próprio grupo sucumbiram? E como se sente ele nesta ocasião? A este respeito existe uma passagem de um mito indígena recolhido por Koch-Grünberg entre os taulipangues da América do Sul. "Os inimigos vieram e os atacaram. Chegaram à aldeia que tinha cinco casas e a incendiaram em dois lugares, à noite, para iluminar o lugar e para que os moradores não pudessem fugir na escuridão. Muitos foram mortos com golpes de dava enquanto queriam escapar das casas. "Um homem chamado Maitchaule deitou-se ileso em meio ao monte de mortos e sujou de sangue seu rosto e seu corpo para enganar os inimigos. Estes acreditaram que todos estavam mortos e foram embora. O homem ficou sozinho para trás. Então ele se afastou, tomou banho e se dirigiu a outra casa, não muito distante. Pensou que havia gente lá, mas não encontrou pessoa alguma. Todos tinham fugido. Encontrou apenas tortas de mandioca e velhos pedaços de carne assada que comeu. Então refletiu, saiu da casa e foi para muito longe. Depois se sentou e pensou. Ele pensava em seu pai e em sua mãe que tinham sido mortos pelos inimigos, e pensou também que agora já não tinha mais ninguém. Então disse: 'Quero me deitar ao lado •dos meus companheiros que estão mortos'. Cheio de temor, retornou à aldeia queimada. Lá havia agora muitos abutres. Maitchaule era um médico feiticeiro e tinha sonhado com uma linda mulher. Espantou os abutres e deitou-se ao lado de seus companheiros mortos. Tinha sujado novamente seu corpo com sangue. Mantinha as mãos na cabeça para poder agarrar rapidamente. Os abutres voltaram e começaram a brigar pelos cadáveres. Chegou então a filha do abutre real. E que fez logo em seguida a filha do abutre real? Sentou-se sobre o peito de Maitchaule. Quando quis picar-lhe o corpo, ele a agarrou. Os abutres fugiram. Maitchaule disse à filha do abutre real: 'Transforma-te numa mulher! Estou muito só aqui e não tenho ninguém que possa me ajudar'. E levou-a 286

consigo para a casa abandonada. Lá ele a mantinha como um pássaro manso. Disse-lhe: 'Agora vou pescar. Quando voltar, quero encontrar-te transformada em mulher'." Primeiro ele se deita entre os mortos para escapar. Disfarça-se em um deles para não ser encontrado. Depois descobre que está só e fica triste e temeroso. Decide deitar-se entre os companheiros mortos. É possível que a princípio ele brinque com a idéia de compartilhar do destino deles. Mas sua intenção não pode ser muito séria, pois sonhou com uma linda mulher e como não vê mais nenhum ser vivo a não ser os abutres, toma corno mulher a filha do abutre real. Pode-se acrescentar que o pássaro, atendendo a seu desejo, se transforma depois realmente numa mulher. Chama a atenção a quantidade de povos — em todas as partes da Terra — que concebem sua origem a partir de um primeiro casal, que são os únicos sobreviventes depois de uma catástrofe. O bem conhecido caso do dilúvio bíblico é atenuado pelo direito de Noé levar consigo toda a sua família. Ele recebe permissão de transportar toda a sua estirpe na arca; além disso, um casal de todas as espécies de seres vivos. Mas foi ele quem encontrou graça diante dos olhos de Deus; a virtude para sobreviver, que neste caso é religiosa, é possuída por ele e é somente por sua causa que os demais podem entrar na arca. Existem exemplos mais extremos desta mesma lenda; relatos nos quais, excetuando-se o casal de progenitores da tribo, todos os demais perecem. Estes relatos nem sempre estão relacionados com a idéia de um dilúvio. Freqüentemente são epidemias nas quais todos desaparecem com exceção de um único indivíduo, que passa a vagar até conseguir encontrar uma ou talvez duas mulheres que ele desposa e com as quais funda uma nova estirpe. Uma parte da força e da glória deste ancestral está no fato de ele alguma vez ter ficado só. É, mesmo que isto não seja dito, uma espécie de mérito de sua parte o fato de ele não ter morrido junto com os seus semelhantes. Ao prestígio de que goza como ancestral de todos os que vêm depois dele soma-se o respeito diante da força feliz de sua sobrevivência. Enquanto ele ainda vivia entre seus iguais, é possível que não tenha se distinguido, que tenha sido apenas um homem como todos os demais. Depois, porém, repentinamente fica só. O período de sua perambulação solitária costuma ser narrado freqüentemente com muitos detalhes. Ele cobre o espaço mais amplo possível à procura de seres vivos, em vez dos quais, por todos os lados, ele encontra apenas cadáveres. A certeza 287

crescente de que realmente ninguém mais existe além dele próprio o enche de desespero. Porém existe ainda um outro elemento, também inconfundível: a humanidade que recomeça com ele depende unicamente dele; sem ele e sem sua coragem para voltar a recomeçar tudo sozinho, a humanidade não existiria. Uma das tradições mais simples neste sentido diz respeito à origem dos kutenais. Textualmente ela diz o seguinte: "As pessoas viviam lá, e repentinamente ocorreu uma epidemia. Elas morriam. Todas morriam. Iam de um lado para outro e transmitiam a notícia uns aos outros. A enfermidade reinou entre todos os kutenais. Eles chegavam a um local e contavam tudo uns aos outros. Em todos os lugares ocorria a mesma coisa. Num lugar não viram ninguém. Todos tinham morrido. Restava apenas uma única pessoa. Um dia, o único que restava sarou. Era um homem. Ele estava só e pensou: `Vagarei pelo mundo para ver se restou alguém em alguma parte. Se ninguém restou, não quero mais retornar. Aqui não resta ninguém e ninguém mais virá'. Partiu em sua canoa e chegou ao último acampamento dos kutenais. Quando chegou a um lugar onde habitualmente havia gente na margem, não encontrou pessoa alguma; e quando percorreu o local viu apenas mortos; em nenhuma parte havia sinal algum de vida. Assim soube que não restava ninguém. Então partiu novamente em sua canoa. Chegou a uma determinada localidade, desceu do barco e novamente encontrou apenas mortos. Em todos os lugares não havia pessoa alguma. Retomou o caminho de regresso. Chegou ao último povoado onde tinham vivido os kutenais. Nas palhoças havia apenas cadáveres empilhados. Assim continuou andando e viu que as pessoas não existiam mais. Caminhando, ele chorava. 'Sou o único que resta', dizia. `Até os cachorros morreram'. Quando chegou ao povoado mais distante, viu pegadas de ser humano. Lá existia uma palhoça; mas não encontrou cadáveres dentro dela. Soube então que mais dois ou três homens estavam vivos. Viu pegadas maiores e outras menores, mas não saberia dizer se eram três. Sabia porém que mais alguém conseguira salvar-se. Continuou em sua canoa e pensou: 'Remarei nesta direção. Os que antes viviam aqui costumavam remar nesta direção. Se for um homem, talvez tenha resolvido ir mais longe'. "Sentado assim em sua canoa, viu a uma certa distância dois ursos negros que comiam frutas. Pensou: `Vou matá-los. Depois de mortos, eu os comerei. Secarei sua carne. Depois disto verificarei se sobrou mais alguém. Primeiro seco a carne 288

depois procuro as pessoas, pois vi pegadas de gente. Talvez sejam homens ou mulheres que estão com fome. E eles também precisam ter algo para comer'. E caminhou em direção aos ursos.Quando chegou perto deles, viu que não eram ursos, mas sim mulheres. Uma era mais velha e a outra era menina ida. Pensou: 'Estou contente por serem seres humanos. Tornarei esta mulher como esposa'. Foi até elas e pegou a menina. A menina disse à sua mãe: 'Mãe, estou vendo um homem'. A mãe ergueu os olhos e viu que sua filha estava dizendo a verdade. Viu como um homem pegava sua filha. Então a mulher chorou, chorou a menina e chorou o jovem, porque todos os demais kutenais estavam mortos. Eles se olhavam uns aos outros e choravam juntos. E a mulher disse: 'Não tome minha filha. Ela ainda é muito jovem. Tome a mim. Serás meu marido. Mais tarde, quando minha filha tiver crescido, ela será tua mulher. Então poderás ter filhos'. E o jovem casou-se com a mulher mais velha. Não passou muito tempo e ela lhe disse: 'Agora minha filha é adulta. Agora ela já pode ser tua mulher. É bom que venham filhos. O ventre dela agora é forte'. Então o jovem tomou a menifia como esposa. A partir de então os kutenais se multiplicaram." Um terceiro tipo de catástrofe, às vezes conseqüência de uma epidemia e de uma guerra, o suicídio em massa, também produziu os seus sobreviventes. Neste contexto vale a pena citar uma lenda dos ba-ilas, um povo bantu da Rodésia. Dois clãs destes ba-ilas, um dos quais derivava seu nome das cabras e o outro das vespas, tinham uma grave disputa entre si. Tratava-se de ver a qual dos clãs correspondia o direito de atribuir a dignidade de chefe. O clã das cabras, ao qual tinha pertencido a primazia, perdeu este posto e seus membros, feridos em seu orgulho, decidiram afogar-se todos juntos no lago. Homens, mulheres e crianças reuniram-se para trançar uma corda muito comprida. Depois foram à margem, amarraram-se uns atrás dos outros com a corda no pescoço, e juntos lançaram-se à água. Um homem, que pertencia a um terceiro clã, o dos leões, tinha se casado com uma mulher do clã das cabras. Ele tentou demovê-la do suicídio; como não o conseguisse, decidiu morrer com ela. Por acaso os dois foram os últimos a se amarrarem à corda. Foram arrastados e já estavam quase se afogando, quando o homem se arrependeu; cortou a corda e soltou sua mulher e a si próprio. Ela tentou livrar-se dele e gritava: "Solte-me!" Mas ele não cedeu e trouxe-a para terra firme. É por isto que até hoje os membros do 289

clã dos leões dizem aos do clã das cabras: "Fomos nós que salvamos vocês da extinção". Finalmente devemos lembrar outro recurso utilizado pelos sobreviventes, que vem de data histórica e é perfeitamente fidedigno. Numa luta de extermínio entre duas tribos indígenas da América do Sul, um único homem da parte derrotada fica com vida e é enviado de volta ao seu povo pelo inimigo. Sua função é a de informar os seus a respeito de tudo o que viu e desestimulá-los a empreender uma nova luta. Humboldt nos deixou um relato a respeito deste mensageiro da tragédia: "A demorada resistência que os cabres, reunidos sob o comando de um corajoso chefe, tinha oferecido aos caraíbes, causou a perdição daqueles depois de 1720. Os cabres tinham derrotado seus inimigos junto à desembocadura do rio; uma grande quantidade de caraíbes foi massacrada enquanto eles fugiam entre as corredeiras do rio e uma ilha. Os prisioneiros foram devorados; mas com aquela astúcia refinada e com a crueldade que é própria dos povos da América do Sul e do Norte, os cabres deixaram um caraíbe vivo; ele foi obrigado a subir numa árvore para ser testemunha dessa cena bárbara e informar seu povo a respeito do acontecido. A ebriedade da vitória do chefe dos cabres foi de curta duração. Os caraíbes voltaram em número tão grande que sobraram, apenas alguns míseros restos dos cabres antropófagos." O indivíduo que foi mantido vivo como testemunha presencia do alto de uma árvore o modo brutal como seus companheiros são devorados. Todos os guerreiros com os quais havia partido caíram durante a luta ou terminaram no estômago dos inimigos. Ele é enviado de volta como sobrevivente forçado, com as cenas de terror gravadas na retina. O sentido de sua mensagem, como foi imaginada pelos inimigos, seria: "Um de vocês sobreviveu. Isto mostra quão poderosos nós somos. Não se atrevam a lutar novamente conosco!" No entanto a impressão do que ele viu é tão grande, sua sobrevivência forçada é tão chocante que ele acaba incitando os seus à vingança. Os caraíbes se reúnem em grande massa e dão cabo definitivamente dos cabres. Esta tradição, que não é a única do seu tipo, mostra com que clareza estes povos primitivos vêem o sobrevivente. O peculiar da situação lhes é perfeitamente consciente. Eles contam com ela e procuram utiIizá-Ia para seus fins particulares. De ambos os pontos de vista, tanto dos inimigos como dos amigos, o caraíbe que foi obrigado a subir na árvore desempenhou corretamente o papel que dele se esperava. De sua dupla função, 290

de de que ela seja analisada com coragem, é possível aprender rnclita coisa.

Os mortos como sobreviventes Ninguém que se ocupe com os testemunhos originais da vida religiosa deixará de se surpreender com o poder dos mortos. A existência de muitas tribos está inteiramente tomada por ritos que se refere m aos mo r tos. O primeiru f a tu que ehaina a atenção em todas as partes é o medo diante dos mortos. Eles estão descontentes e cheios de inveja em relação aos seus, que deixaram para trás. Procuram se vingar dos vivos, às vezes por causa de ofensas que lhes foram feitas ainda em vida, mas freqüentemente também pelo simples fato de os outros ainda estarem vivos. A inveja dos mortos é o que os vivos mais temem. Eles tratam de apaziguá-los, adulando-os e oferecendo-lhes alimento. Proporcionam-lhes tudo o de que necessitam no caminho até o país dos mortos, somente para que estes permaneçam bem distantes e para que não retornem para causar dano ou para atormentar os seus familiares. Os espíritos dos mortos enviam enfermidades ou as trazem consigo, têm influência sobre a prosperidade dos animais e sobre as colheitas, influem na vida de cem maneiras diferentes. Uma verdadeira paixão, que sempre volta a aparecer entre os mortos, é a necessidade de levar os vivos consigo. Uma vez que os mortos invejam todos os objetos da existência cotidiana, que eles são obrigados a deixar para trás, originalmente era costume não conservar coisa alguma (ou o menos possível) do que lhes havia pertencido. Colocava-se tudo dentro do túmulo ou cremava-se com os cadáveres. Abandonavam-se as palhoças nas quais eles haviam morado; jamais se retornava a elas. Freqüentemente eles eram enterrados numa casa com todos os seus pertences; desta maneira dava-se-lhes a entender que não se tinha a menor intenção de conservar qualquer coisa deles para si próprio. Mas isso não era o suficiente para afastar completamente a cólera dos mortos. Porque a maior inveja dos mortos não se referia aos objetos, que podiam ser fabricados ou adquiridos novamente, mas sim à própria vida. Chama a atenção o fato de que mesmo nas condições mais diferentes, os homens sempre atribuíram aos mortos este sentimento. E este sentimento parece dominar os defuntos de todos os povos. Eles sempre preferiam permanecer com vida. 291

Para os que ainda vivem, todos os que já não vivem sofreram uma derrota; esta derrota consiste em não se ser um sobrevivente. O morto não consegue se conformar com isto e é natural que ele queira provocar em outras pessoas esta dor suprema que lhe foi infligida. Cada morto, portanto, é alguém que foi sobrevivido. Somente nas catástrofes grandes e relativamente raras em que todos perecem é que a relação passa a ser diferente. A morte isolada que nos interessa aqui desenrola-se de tal forma que um homem é arrancado do meio de sua família e do seu grupo. Ele deixa todo um bando de sobreviventes e todos os que têm qualquer tipo de direito sobre o morto se unem numa malta fúnebre que o lamenta. Ao sentimento de enfraquecimento devido à sua morte soma-se o de amor que se sentia por ele, e freqüentemente um sentimento é inseparável do outro. Ele é lamentado e pranteado da maneira mais apaixonada possível e, em seu núcleo, esse lamento é certamente um sentimento autêntico. O fato de os estranhos suspeitarem da autenticidade desse lamento deve-se à natureza complexa e múltipla da própria situação. Porque as mesmas pessoas que têm motivos para a lamentação são também sobreviventes. Como portadores de uma perda, eles se lamentam; como sobreviventes, eles vivenciam uma espécie de satisfação. Normalmente eles não irão confessar este sentimento indevido. Mas eles sabem muito bem o que o morto está sentindo. Ele deve forçosamente odiá-los porque eles ainda têm a vida que ele não possui mais. Os vivos chamam a alma dele de volta para convencê-lo de que não desejavam sua morte. Fazem tudo para que se lembre de como foram bons para com ele, enquanto ainda se encontrava entre os vivos. Enumeram as demonstrações práticas de que respeitam suas vontades. Conscienciosamente cumprem os últimos desejos do falecido. Em muitos lugares esta última vontade tem força de lei. Tudo o que eles fazem pressupõe de maneira insofismável o ressentimento do morto diante do fato de eles terem sobrevivido. Um menino índio em Demerara contraiu o hábito de comer areia e morreu por causa disso. Seu cadáver estava num ataúde aberto que seu pai providenciara com um carpinteiro das imediações. Antes do enterro sua avó se aproximou do féretro e disse com voz chorosa: "Meu neto, eu sempre te disse para não comer areia. Eu nunca te dei areia, eu sabia que isto não te faria bem. Tu sempre foste buscar areia sozinho. Eu te disse que isso era 292

E agora, vê só, ela causou tua morte. Não me faças nada, mesmo causaste o teu próprio mal, alguma coisa de ruim meteu dentro de tua cabeça esta vontade de comer areia. Olha, estou colocando aqui o teu arco e tuas flechas para que tu possas brincar. Eu sempre fui boa para contigo. Agora não deixes de ser bom também para comigo, e não me faças coisa ,, alguma. Em seguida, aproximou-se a mãe e disse numa espécie ri.14A++•

tu

filho, eu te trouxe ao mundo para que pudesses s as coisas boas e para que te divertisses com elas. : i ea ‘Mu d na litt O dver Este meu peito te alimentou enquanto quiseste mamar. Eu te fiz coisinhas lindas e roupinhas. Eu me preocupei contigo e te alimentei e brinquei contigo e nunca te bati. Agora deves ser bom e não me causar nenhum mal." O pai do menino morto também se aproximou e disse: "Meu menino, quando eu te disse que a areia te mataria, tu não quiseste me escutar e agora estás morto. Eu saí para te comprar um lindo caixão. Vou ter de trabalhar muito para conseguir pagá-lo. Eu cavei para ti uma sepultura num lugar lindo, onde gostavas de brincar. Eu vou te acomodar lá e vou te dar muita areia para comer, agora que ela não pode mais te fazer mal; eu sei quanto gostas dela. Tu não podes me trazer mal algum; melhor será que vás procurar a quem te fez comer areia." Tanto a avó como a mãe e o pai amavam esse menino e, apesar de ele ser ainda muito pequeno, temem seu ressentimento porque eles ainda estão vivos. Todos lhe asseguram que não são culpados pela sua morte. A avó lhe dá o arco e as flechas. O pai lhe comprou um caixão caro e também lhe dá areia para que possa comer dentro da sepultura porque sabe quanto ele gosta disso. A ternura simples que eles demonstram é constrangedora; mas, mesmo assim, ela tem algo de inquietante, pois está impregnada de medo. Em alguns povos a crença na vida dos mortos deu origem a um culto dos ancestrais. Lá, onde ele adquiriu formas fixas, é como se os homens tivessem sabido domar os próprios mortos que são tão importantes. Dando-lhes regularmente o que eles pedem, honra e alimento, eles ficam satisfeitos. Seus cuidados, desde que realizados segundo todas as regras da tradição,• os convertem em aliados. O que foram nesta vida continuam sendo depois; eles ocupam seu lugar anterior. Quem, na terra, foi um chefe poderoso, também o é debaixo da terra. Durante os sacrifícios e as invocações, seu nome é citado em 293

primeiro lugar. Sua suscetibilidade é considerada ao extremo; quando ela é ferida, as conseqüências podem ser muito perigosas. Ele se interessa pela prosperidade dos seus descendentes; muitas coisas dependem dele, e sua boa disposição de ânimo é indispensável. Ele gosta de permanecer perto dos seus descendentes e nada deve ser feito que possa afugentá-lo. Entre os zulus da África do Sul, esta convivência com os ancestrais assume uma forma particularmente íntima. Os relatos que o missionário inglês Callaway reuniu e editou há cerca de cem anos são o testemunho mais autêntico a respeito do culto dos ancestrais deste povo. Callaway deixa que seus informantes tomem a palavra e anota as declarações deles no seu próprio idioma. Seu livro The Religious System of the Amazulu é muito raro e, por este motivo, não é suficientemente conhecido; no entanto ele figura entre os documentos essenciais e básicos da humanidade. Os ancestrais dos zulus se tornam serpentes e descem para baixo da terra. Mas não são, como se poderia supor, serpentes míticas que ninguém pode ver. São espécies bem conhecidas que se arrastam até perto das palhoças, entrando com freqüência dentro delas. Algumas destas serpentes, graças a certas singularidades físicas, lembram determinados ancestrais, e os vivos as consideram como sendo eles. Mas não são apenas serpentes, uma vez que em sonhos aparecem aos vivos sob forma humana, falando com eles. Os zulus aguardam esses sonhos, sem os quais a existência se torna desagradável; eles querem falar com seus mortos, e é importante vê-los de maneira clara e distinta em seus sonhos. Às vezes a imagem dos ancestrais fica turva e obscura; nestes casos, mediante determinados ritos, consegue-se que a imagem volte a ficar clara. De quando em quando, especialmente em todas as ocasiões mais importantes, são-lhes oferecidos sacrifícios. Imolam-se bodes e bois para eles, que são convocados de forma solene para que comam essas vítimas. São chamados em voz alta pelos seus títulos de glória, aos quais dão grande importância; eles são muito sensíveis e considera-se uma ofensa esquecer estes títulos de glória por ocasião dos chamamentos. O animal sacrificado deve soltar um grito que possa ser ouvido pelos ancestrais, que amam este grito. Os carneiros, que morrem mudos, conseqüentemente, não servem para este tipo de sacrifício. Aliás, o sacrifício neste caso nada mais é do que uma ceia da qual participam vivos e mortos em conjunto, uma espécie de comunhão entre os vivos e os mortos. Quando se vive como estavam acostumados a viver os 294

ancestrais, quando se respeitam os antigos hábitos e costumes e não se introduzem modificações, quando se realizam regularmente os sacrifícios, os ancestrais ficarão satisfeitos e irão incentivar o bem-estar dos seus descendentes. Quando alguém adoece, sabe que provocou o descontentamento de algum dos seus ancestrais, e conseqüentemente fará tudo o que lhe for possível para descobrir o motivo deste descontentamento. Porque os mortos estão longe de ser justos o tempo todo. Eles foram seres humanos que todos conheceram pessoalmente e cujas fraquezas ainda estão presentes na lembrança dos vivos. Nos sonhos eles aparecem de uma forma que combina com o seu caráter. Vale a pena citar um caso anotado com alguns detalhes por Callaway. Este caso mostra que até mesmo os mortos bem cuidados e famosos às vezes são tomados de ressentimento contra os sobreviventes simplesmente porque eles ainda estão vivos. A história de um destes ressentimentos, como se verá — transposta para o contexto que nos ocupa —, está ligada ao desenvolver-se de uma perigosa enfermidade. Um irmão mais velho morreu. Suas propriedades e em particular todo o seu gado — que entre os zulus é considerado a propriedade mais importante — passaram para seu irmão mais jovem. Esta é a ordem habitual da herança. O irmão mais jovem, que assumiu a herança e que realizou todos os sacrifícios necessários, não está consciente de ter cometido nenhuma falta contra o morto. Mas de súbito ele adoece gravemente e em sonho seu irmão lhe aparece. "Eu sonhei que ele me batia e dizia: 'Como é que você já não sabe quem sou?' Eu lhe respondi: 'Que posso fazer para que você veja que eu o reconheço? Eu sei que você é meu irmão!' Ele perguntou: 'Quando você sacrifica um boi, por que não me chama?' Eu respondi: 'Mas eu chamo e honro você com os seus títulos de glória. Diga-me que boi eu sacrifiquei sem ter invocado você'. Ele disse: 'Quero carne'. Eu recusei e lhe disse: 'Não, meu irmão, eu não tenho, boi algum. Você está vendo algum no curral?' Ainda que haja um só', disse ele, 'eu o quero para mim.' Quando despertei senti dores nas costas. Tentei respirar mas não conseguia; meu fôlego "O homem era obstinado e não queria sacrificar um boi. E disse: 'Estou realmente doente e conheço a doença que me afeta'. As pessoas lhe disseram: 'Se você sabe qual é a sua doença, por que não se livra dela? Será que um homem pode causar voluntariamente sua doença? Se ele sabe o que é, 295

será que ele quer morrer? Porque quando um espírito está irado com o homem, ele o destrói'. "Ele respondeu: `Não, senhores! Eu fiquei doente por causa de um homem. Eu o vejo em sonhos quando me deito. Porque ele sente vontade de comer carne, ele se aproxima de mim cheio de enganos e diz que não o invoco quando mato algum animal. Ele me surpreende muito, porque eu matei muitas cabeças de gado e nunca deixei de invocá-lo. Se ele tem vontade de carne, poderia simplesmente me dizer: Meu irmão, eu gostaria de carne. Mas ele diz que eu não o honro como deveria. Estou irritado com ele e acredito que ele somente queira me matar'. "E as pessoas disseram: 'Você acha que o espírito ainda sabe falar? Onde está ele para que lhe possamos dizer o que pensamos? Nós todos sempre estivemos presentes quando você sacrificou alguma cabeça de gado. Você sempre o elogiou e chamou por todos os seus títulos de glória, títulos que ele recebeu por sua coragem. Nós ouvimos o que você disse e se fosse possível que este seu irmão ou qualquer outro morto se tornasse a levantar, poderíamos interpelá-lo e lhe perguntar: Por que você diz coisas como estas? "O doente respondeu: 'Ai, meu irmão é prepotente porque é o mais velho. Eu sou mais novo do que ele. Fico surpreso com o fato de ele exigir que eu destrua todo o gado. Ele não deixou o gado como herança quando morreu?' "As pessoas disseram: 'Este homem morreu. Mas nós ainda estamos falando com você e seus olhos ainda nos vêem realmente. Por isso dizemos a você o que importa a ele: fale com ele com muita calma e, mesmo se você tiver apenas uma única cabra, sacrifique-a. É uma vergonha que ele possa vir e matar você. Por que você vê constantemente seu irmão em sonhos e fica doente? Um homem que sonha com seu irmão deveria despertar com saúde'. "Ele disse: 'Bem, senhores, eu darei a carne que ele ama. Ele exige carne. Ele me mata. Ele comete uma injustiça comigo. Todas as noites sonho com ele e acordo sentindo dores. Ele não é um homem; sempre foi um sujeito miserável e briguento. Porque sempre foi assim: uma palavra, um golpe. Quando alguém falava com ele, ele sempre respondia com golpes físicos. Quando havia alguma briga, ele era sempre o culpado e sempre golpeava os outros. Ele nunca quis ver isto e nunca reconheceu este fato. Jamais disse: Eu cometi um erro, não deveria ter brigado com esta ou aquela pessoa. Seu espírito é como ele. Ele é ruim e está sempre bravo e irritado. Mas eu 296

lhe darei a carne que está pedindo. Se eu vir que ele me deixa paz e que me curo da doença, amanhã mesmo matarei o em ga do para ele. Se for ele o responsável, que me faça sarar e respirar com facilidade. Que ele faça o meu fôlego voltar ao normal'. "E as pessoas concordaram com ele: 'Sim, se pela manhã você estiver com boa saúde, saberemos que é o espírito do seu irmão. Mas, se pela manhã você ainda estiver doente, não diremos que é o seu irmão; neste caso será apenas uma simples doença'. "uando o sol se pôs no horizonte, ele ainda se queixava de dores. Mas quando chegou a hora de ordenhar as vacas ele pediu comida. Pediu um mingau aguado e conseguiu comer um pouco. Então disse: 'Quero um pouco de cerveja. Tenho sede'. Suas mulheres lhe deram cerveja e sentiram confiança no coração. Elas se alegravam porque tinham sentido muito medo e tinham perguntado: 'Será que a doença é tão grave a ponto de ele não comer coisa alguma?' Elas se alegravam em silêncio; não manifestavam a alegria com palavras, apenas olhavam umas para as outras. Ele bebeu a cerveja e disse: 'Agora quero rapé; quero uma pitada bem pequena'. Deram-lhe o rapé, que ele tomou e depois se deitou outra vez. Pouco depois, tornou a adormecer. "À noite veio seu irmão e disse: 'E então? Você já escolheu o gado para mim? Você vai matá-lo amanhã?' "E o adormecido disse: 'Sim, vou matar um boi para você. Meu irmão, por que você diz que eu nunca o invoco, se sempre honro você com todos os seus títulos de glória, quando sacrifico gado? Pois você foi muito corajoso e um excelente guerreiro'. "Ele respondeu: 'Tenho bons motivos, pois tenho vontade de carne. Afinal„ eu morri e deixei uma aldeia para você. Você tem uma grande aldeia'. " 'Está bem, meu irmão, você me deixou uma aldeia. Mas, quando você me deixou a aldeia e morreu, você tinha matado todo o seu gado?' " 'Não, eu não tinha matado todo ele.' `Mas agora, filho do meu pai, você me pede que eu des" truatudo?' " 'Não, eu não exijo que você destrua tudo. Mas eu lhe digo: mate para que sua aldeia seja grande!' despertou e se sentiu bem; as dores do seu corpo tinham sumido. Sentou-se e cutucou a mulher: 'Levante-se e faça fogo'. A mulher acordou e obedeceu. Ela perguntou como ele se sentia. 'Fique quieta', disse ele; 'ao acordar senti o cor297

po leve. Falei com meu irmão e quando acordei estava curado'. Tomou uma pitada de rapé e tornou a adormecer. O espírito de seu irmão retornou e disse: 'Veja como curei você. Mate o gado pela manhã!' "Pela manhã ele se levantou e foi até o curral. Ele tinha mais alguns irmãos menores e os chamou; eles o acompanharam. 'Eu chamo vocês porque agora estou curado. Meu irmão diz que foi ele quem me curou.' Então mandou que eles lhe trouxessem um boi. Eles o trouxeram. 'Tragam esta vaca estéril!' Eles a trouxeram. Chegaram à parte superior do curral e ali ficaram junto dele. Rezou com as seguintes palavras: " 'Agora comam todos vocês, gente de nossa casa. Que um bom espírito permaneça conosco, que as crianças prosperem e que todos fiquem com boa saúde. E eu pergunto a você que é meu irmão: por que volta e torna a voltar em sonhos para mim? Por que sonho contigo e fico doente? Um espírito que é bom vem e traz boas notícias. Eu tenho que me queixar o tempo todo por estar doente. Que tipo de gado é este que seu proprietário deve devorar, depois do que sempre fica doente? Eu lhe digo: pare com isso! Pare de me deixar doente! Eu lhe digo: venha a mim em sonhos, fale comigo tranqüilamente e me diga o que você quer! Mas você sempre vem com a intenção de me matar! Está mais do que claro que em vida você foi um sujeito ruim. E debaixo da terra você continua sendo um sujeito ruim? Eu nunca esperei que seu espírito se apresentasse a mim de forma gentil e que me trouxesse boas notícias. Mas por que é que você vem com maldade? Você, o mais velho dos meus irmãos, que deveria trazer coisas boas para a aldeia para que nada de ruim aconteça com ela; você, que era o proprietário da aldeia. "Depois ele disse as seguintes palavras sobre os animais e agradeceu: 'Aqui estão os animais que sacrifico para você: um boi vermelho e uma vaca vermelha e branca estéril. Mate-os! E eu lhe digo: fale amavelmente comigo para que eu desperte sem dores. Eu digo: deixe que todos os espíritos de nossa casa se reúnam aqui em torno de você que tanto gosta de carne!' "Depois ele ordenou: 'Matem os animais!' Um dos seus irmãos pegou uma lança e matou a vaca estéril; ela caiu. Depois o boi, que também caiu. Ambos berraram. Ele os matou; eles morreram. Ele ordenou que lhes tirassem a pele; e a pele lhes foi tirada. Eles os comeram no curral. Todos os homens se reuniram e pediram comida. Pedaço por pedaço, foram levando a carne. Comeram e ficaram satisfeitos. Eles agradeceram e disseram: 'Nós agradecemos a você, filho de fulano de tal. Se um 298

espírito deixar você doente nós saberemos que é o seu miserável irmão. Durante sua grave doença, não sabíamos se ainda comeríamos carne com você. Vemos agora que o miserável quer que você morra. Estamos contentes por ver que você está novamente com saúde'." "Afinal, eu morri", diz o irmão mais velho, e esta frase contém em si a essência da disputa entre eles, da perigosa enfermidade. Não importa de que forma o morto se comporta, não importa o que ele peça; ele está morto e isto é motivo suficiente de amargura. "Eu te deixei uma aldeia", diz ele, e acrescenta em seguida: "Você tem uma grande aldeia". A vida do outro é esta aldeia; ele também poderia ter dito: "Eu estou morto e você ainda está vivo". É esta repreensão que o vivo teme e, sonhando com ela, dá razão ao morto: afinal ele realmente sobreviveu ao morto. A amplitude desta injustiça, diante da qual todas as demais injustiças empalidecem, confere ao morto o poder de transformar a repreensão e a amargura numa grave doença. "Ele quer me matar", diz o irmão mais moço; pois afinal ele morreu, pensa consigo mesmo. Ele sabe portanto muito bem por que o teme, e para apaziguá-lo consente finalmente em fazer o sacrifício. Sobreviver aos mortos, como se vê, implica consideráveis incômodos para os vivos. Mesmo onde se estabeleceu uma veneração regular dos mortos não se pode confiar inteiramente neles. Quanto mais poderoso foi um deles entre os homens, tanto mais perigoso é seu ressentimento quando está do outro lado. No reino de Uganda encontrou-se uma maneira de manter o espírito do rei defunto entre os seus súditos devotos. Ele não podia ir embora, não podia ser enviado para longe, era obrigado a permanecer neste mundo. Depois de sua morte, designava-se um médium, um mandwa, no qual se alojava o espírito do rei. O médium, que tinha a função de sacerdote, devia ser parecido com o rei e comportar-se exatamente como ele. Imitava suas peculiaridades na maneira de falar e, quando se tratava de um rei de tempos remotos, utilizava, como está comprovado num caso, o idioma arcaico falado trezentos anos antes. Quando o médium morria, o espírito do rei entrava num outro membro do mesmo clã. Assim um mandwa recebia seu cargo de outro e o espírito do rei tinha sempre uma residência. Era possível, portanto, que um médium utilizasse palavras cujo significado ninguém mais entendia, nem mesmo seus colegas. Mas não se deve imaginar que o médium representava 299

perpetuamente o rei. De tempos em tempos, como se dizia, "o rei o tomava pela cabeça". Ele caía então num estado de obsessão e encarnava o morto em todos os detalhes. Nos clãs responsáveis pelo fornecimento dos médiuns transmitia-se por meio de palavras e de imitações as peculiaridades do rei, na época do seu falecimento. O rei Kigala morreu em idade muito avançada; seu médium era um homem bastante jovem. Mas quando o rei o "tomava pela cabeça" ele se transformava num velho: seu rosto se enchia de rugas, a saliva escorria de sua boca e ele começava a mancar. Estes ataques eram contemplados com a maior veneração. Considerava-se uma honra poder presenciar um deles; estava-se então na presença do rei, que era identificado. O morto, porém, que podia manifestar-se quando queria no corpo de um homem cuja função era apenas esta, não devia sentir o mesmo ressentimento em relação aos sobreviventes que os outros, que eram expulsos irremediavelmente deste mundo. Particularmente rico de conseqüências é o culto dos ancestrais entre os chineses. Para compreender o que é um ancestral entre os chineses, é preciso abordar antes a concepção que eles tinham da alma. Acreditavam que todos os seres humanos possuíam duas almas. Uma delas, chamada po, originava-se a partir do esperma, estando conseqüentemente presente desde o momento da procriação; era responsável pela memória. A outra, hun, originava-se do ar que a pessoa respirava depois do nascimento e ia se formando pouco a pouco. Tinha o formato do corpo ao qual dava vida, mas era invisível. A inteligência, que lhe pertencia, crescia com ela, que era a alma superior. Depois da morte, esta alma-respiração subia ao céu, enquanto a- alma-esperma permanecia com o cadáver dentro do túmulo. Era esta, a alma inferior, que mais se temia. Ela era maligna e invejosa e procurava arrastar os vivos consigo para a morte. Enquanto o corpo se decompunha, a alma-esperma se dissolvia pouco a pouco, perdendo desta forma seu poder maligno. A alma-respiração, pelo contrário, subsistia. Ela necessitava de alimentação, pois o caminho que tinha de percorrer até o mundo dos mortos era longo. Se os descendentes não lhe ofereciam alimento, ela sofria espantosamente. Era infeliz quando não conseguia encontrar o caminho e então se tornava tão perigosa quanto a alma-esperma. Os ritos de inumação tinham uma dupla finalidade: proteger os vivos da ação dos mortos e garantir sobrevivência às 300

almas dos mortos. Pois a comunicação com o mundo dos mortos era perigosa se estes tomavam a iniciativa. Era propícia se aparecia como culto dos ancestrais, realizada segundo as prescrições da tradição e efetuada nos intervalos devidos. A sobrevivência da alma dependia da força física e moral que tivesse conseguido durante a vida. Esta força era adquirida mediante a alimentação e o estudo. De importância muito especial era a diferença entre a alma do senhor, que era um "comedor de carne" e que se tinha nutrido bem durante toda a vida, e a de um camponês comum, sempre mal alimentado. "Somente os senhores", diz Granet, "têm uma alma no sentido próprio da palavra. Nem mesmo a velhice desgasta esta alma; pelo contrário, ela a enriquece. O senhor se prepara para a morte comendo a maior quantidade de manjares refinados e tomando bebidas vivificantes. No decorrer de sua vida, ele assimilou grandes quantidades de essências; tanto mais quanto maiores e mais opulentas eram suas posses. Ele multiplicou ainda mais a rica substância dos seus ancestrais, que já tinham se alimentado de carne e de caça fina. Sua alma, quando ele morre, não se dispersa como uma alma vulgar; ela sai do cadáver com força total. "Se o senhor levou uma vida de acordo com as regras de sua situação, sua alma, enobrecida e purificada pelos ritos fúnebres, possui depois de sua morte um poder augusto e sereno. Possui o vigor benéfico de um gênio tutelar e conserva ao mesmo tempo todas as características de uma pessoa duradoura e santa. Ela se torna uma alma de ancestral." Passa então a receber um culto próprio num templo especial e toma parte das cerimônias das estações, da vida da natureza e da vida do país. Quando a caça é abundante, ela recebe muita comida. E jejua quando a colheita é má. A alma do antepassado se alimenta dos cereais, da carne e da caça fina das comarcas que são sua pátria. No entanto, por mais rica que seja a personalidade de uma alma de ancestral, por mais que continue vivendo em sua força acumulada, também para ela chega o momento em que se dispersa e extingue. Depois de quatro ou cinco gerações, a tabuleta de ancestrais, à qual fazia jus por determinados rituais, perde o direito a um santuário especial. Ela é então colocada numa arca de pedra, junto com as tabuletas dos ancestrais mais antigos, cujas lembranças já não existem. O ancestral que essa tabuleta representava e cujo nome estava escrito nela já não é mais venerado como senhor. Sua vigorosa individualidade, que durante multo tempo se destacou com nitidez, se dissipa. Sua trajetória chegou 301

ao fim, seu papel de antepassado está encerrado. Através dos cultos que lhe foram dedicados durante longos anos, ele tinha escapado ao destino dos mortos comuns. Agora ele retorna à massa dos demais mortos e torna-se anônimo como antes. Nem todos os antepassados perduram quatro ou cinco gerações. Depende de seu status especial que sua tabuleta seja mantida durante tanto tempo, que se invoque sua alma suplicando que aceite alimentos. Algumas tabuletas são depositadas na arca já depois de uma única geração. No entanto, independentemente do tempo durante o qual perduram, o simples fato de eles existirem já serve para modificar em muitos aspectos as características do sobreviver. Para o filho deixa de existir o triunfo secreto de ter permanecido vivo quando seu pai morreu. Porque afinal, como ancestral, o pai continua estando presente; o filho lhe deve tudo o que possui, e precisa manter a benevolência dessa alma. Deve alimentar o pai, apesar de ele estar morto, e certamente evitará qualquer demonstração de arrogância em relação a ele. A alma de ancestral do pai existe enquanto o filho estiver vivo e, como já vimos, conserva todas as características de uma pessoa determinada e reconhecível. O pai está muito interessado em ser honrado e alimentado. Para sua nova existência como ancestral é essencial que o filho esteja com vida: se não tivesse descendentes, não teria quem o venerasse. Ele deseja que seu filho e também as gerações seguintes sobrevivam. Ele quer que eles prosperem, porque dessa prosperidade depende sua própria existência como ancestral. Ele exige que se viva enquanto se mantenha viva sua recordação. Forma-se assim uma relação íntima e feliz entre esta espécie moderada de sobrevivência adquirida pelos ancestrais e o orgulho dos descendentes que estãos vivos e que procuram conservá-la. Também é bastante significativo que os ancestrais permaneçam isolados durante o espaço de algumas gerações. Eles são conhecidos como indivíduos e como tais são venerados, e somente quando relegados a um passado mais remoto é que se reduzem a uma única massa. O descendente que ainda vive está separado da massa dos seus ancestrais justamente por aqueles que, como o pai e o avô, se interpõem como indivíduos isolados e bem determinados. Se na veneração do filho influi o fato de ele mesmo ainda estar com vida, esta influência ocorre de maneira atenuada e moderada. Dada a natureza da relação, esta influência não pode incitá-lo a multiplicar o número dos mortos. Será apenas ele próprio quem irá aumentar sua quantidade e ele deseja que este fato ocorra o mais tarde 302

possível. A sobrevivência, desta forma, fica despojada de toda e qualquer característica de massa. Como paixão seria algo absurdo e incompreensível; perdeu todas as características assassinas. As recordações e o sentimento de si mesmo celebraram uma aliança. Cada um destes elementos desbotou o outro, mas conservou-se o melhor de ambos. Quem contemplar a figura do poderoso ideal, tal como se aperfeiçoou na história e no pensamento dos chineses, ficará comovido por sua humanidade. É de se supor que a carência da brutalidade nesta imagem possa ser atribuída a esta modalidade de veneração dos ancestrais.

Epidemias A melhor descrição da peste nos foi dada por Tucídides, que a conheceu no próprio corpo e que conseguiu sobreviver a ela. Na sua concisão e exatidão, o texto contém todas as características essenciais desta enfermidade e vale a pena transcrever aqui as passagens mais importantes. "Os homens morriam como moscas. Os corpos dos moribundos eram amontoados uns sobre os outros. Viam-se criaturas semimortas cambaleando pelas ruas ou reunindo-se sedentas em torno das fontes. Os templos nos quais se alojavam estavam repletos de cadáveres de pessoas que tinham morrido ali. "Em algumas casas, os homens estavam tão abalados pelo peso de suas desgraças que deixaram de celebrar os lamentos tradicionais pelos mortos. "Todas as cerimônias fúnebres se transtornaram; os mortos eram enterrados da melhor maneira possível. Algumas pessoas, em cujas famílias tinham ocorrido tantas mortes que elas já não podiam mais custear os gastos das cerimônias, recorriam aos estratagemas mais insolentes. Chegavam primeiro às fogueiras que outros tinham construído, depositavam lá seus próprios mortos e acendiam a lenha; ou, se encontravam uma fogueira que já ardia, lançavam seus mortos sobre os outros cadáveres e se afastavam do local. "Temor algum em relação às leis divinas ou humanas conseguia contê-los. No que dizia respeito aos deuses, parecia ter pouca importância se eles eram ou não venerados, uma vez que se via que tanto os bons como os maus morriam da mesma forma. Ninguém temia ter de prestar conta de delitos contra as leis humanas; afinal ninguém esperava viver durante o tempo 303

suficiente para que isto acontecesse. Cada qual sentia que urna sentença muito mais grave já tinha sido ditada contra ele. Antes da execução desta sentença, cada um procurava conseguir ainda algum tipo de prazer nesta vida. "Os que se mostravam mais compadecidos em relação aos doentes e aos moribundos eram os que tinham sofrido da peste e que tinham conseguido escapar da morte. Eles não apenas conheciam o assunto, mas também se sentiam seguros, desde que ninguém contraía a enfermidade duas vezes; e, caso a contraíssem, o segundo ataque nunca era mortal. Estas pessoas eram felicitadas em todos os lugares e elas mesmas se sentiam tão exaltadas por sua cura que acreditavam que jamais haveriam de morrer de alguma doença." Dentre todas as desgraças que sempre se abateram sobre a humanidade, as grandes epidemias é que deixaram lembranças particularmente vívidas. Elas se iniciam de forma tão repentina quanto as catástrofes naturais; no entanto, ao passo que um terremoto se esgota na maior parte das vezes em alguns tremores rápidos, a epidemia pode perdurar meses e até mesmo um ano inteiro. O terremoto produz seus estragos de uma só vez; todas as suas vítimas são atingidas no mesmo instante. Uma epidemia de peste, pelo contrário, tem um efeito cumulativo; primeiro são atacadas apenas algumas pessoas, depois os casos se multiplicam; vêem-se mortos por todos os lados; em seguida se vêem mais mortos reunidos do que pessoas vivas. O resultado final de uma epidemia pode ser o mesmo provocado por um terremoto. Mas numa epidemia as pessoas são testemunhas da grande mortalidade que se difunde e se espalha diante dos seus olhos. Elas são como participantes de uma batalha; mas de uma batalha que perdura durante mais tempo do que todas as batalhas conhecidas. O inimigo, porém, é secreto, não pode ser visto em lugar algum, não pode ser atacado. Só se pode esperar ser atacado por ele. O combate é conduzido exclusivamente pelo lado adversário, que ataca quem quiser. O inimigo ataca tantas pessoas que todas são levadas a temer a possibilidade de serem atacadas. Assim que a epidemia é reconhecida como tal, ela somente pode resultar na morte de todos. Os que são atacados esperam — uma vez que não existe remédio contra ela — a execução da sentença. Somente os atacados pela epidemia são massa: são iguais quanto ao destino que os espera. Seu número aumenta de forma cada vez mais rápida. Eles alcançam a meta em cuja direção se movem em questão de poucos dias. Alcançam a maior densidade possível tratando-se de corpos huma304

nos; todos juntos num monte de cadáveres. Esta massa es-

--tanque dos mortos, segundo as idéias religiosas, somente per-

manece morta durante algum tempo. Ela irá ressuscitar num único instante e, apinhada fortemente, se apresentará diante de Deus para o juízo final. Porém, mesmo deixando de lado o destino futuro dos mortos — porque as crenças religiosas não são iguais em todos os lugares —, existe uma coisa que é indiscutível: a epidemia desemboca na massa de agonizantes e de mortos. "Ruas e templos" ficam repletos deles. Freqüentemente deixa de ser possível sepultar isoladamente vítima por vítima, da maneira tradicional; os mortos são empilhados uns sobre os outros, milhares numa única sepultura, reunidos em gigantescas valas comuns. Existem três fenômenos significativos, bem conhecidos da manidade, cuja meta são os montes de cadáveres. Eles são hu estreitamente relacionados entre si e, por este motivo, é preciso delimitá-los bem. Estes três fenômenos são a batalha, o suicídio em massa e a epidemia. Na batalha a meta é o monte de cadáveres de inimigos. Quer-se diminuir o número dos inimigos vivos para que assim o número de aliados seja maior. É inevitável que um certo número de aliados também morra, mas não é isto o que se deseja. A meta é o monte dos inimigos mortos. Esta meta é procurada de forma ativa por iniciativa própria, pela força dos próprios braços. No suicídio em massa esta iniciativa é voltada contra os próprios aliados, Homens, mulheres e crianças, todos se matam reciprocamente até que nada mais resta a não ser o monte de mortos. Para que nada caia nas mãos do inimigo, para que a destruição seja total, recorre-se ao fogo. Na epidemia o resultado é o mesmo que no caso do suicídio em massa, com a diferença de não ser arbitrário e de parecer imposto de fora para dentro por algum poder desconhecido. Leva-se mais tempo para alcançar a meta; dessa forma, vive-se numa igualdade de expectativa atroz, durante a qual todos os vínculos habituais existentes entre os homens se desfazem. O contágio, tão importante na epidemia, faz com que os homens se afastem uns dos outros. É mais seguro evitar a aproximação de outras pessoas, uma vez que elas podem trazer consigo o contágio. Alguns fogem da cidade e se dispersam por suas propriedades. Outros se fecham em suas casas, onde não permitem a entrada de outras pessoas. As pessoas se evitam umas às outras. A manutenção das distâncias se transfor305

ma numa última esperança. A expectativa de vida, a própria vida se expressa, por assim dizer, no ato de se manter distância em relação aos doentes. Os contagiados se transformam aos poucos numa massa morta; os não-contagiados se mantêm distantes de todos os demais, freqüentemente até mesmo de seus parentes, de seus cônjuges, de seus filhos. É notável como neste caso a esperança de sobreviver faz do homem um ser isolado, diante do qual se situa a massa de todas as vítimas. No entanto, dentro desta maldição geral, na qual todos os que adoecem estão perdidos, acontece o mais surpreendente: existem alguns poucos que saram da peste. É de se imaginar como devem sentir-se em meio aos demais. Eles sobreviveram e se sentem invulneráveis. Assim, eles também conseguem se compadecer dos enfermos e dos moribundos que os rodeiam. "Estas pessoas", enfatiza Tucídides, "se sentiam tão exaltadas devido à sua cura que achavam que no futuro jamais morreriam de alguma doença."

A respeito da sensação de cemitério Os cemitérios sempre exercem uma forte atração; nós os visitamos mesmo quando não temos parentes que foram enterrados lá. Quando se chega a cidades estrangeiras visitamos seus cemitérios, reservando para eles o tempo necessário como se eles existissem para ser visitados. E, mesmo no exterior, não é sempre o túmulo de algum homem venerado e ilustre que nos atrai. E, quando originalmente a visita foi decidida por este motivo, ela sempre acaba se tornando mais ampla. Num cemitério sempre entramos num estado de ânimo muito especial. Os costumes piedosos querem que nós nos enganemos a respeito deste estado de ânimo; pois a contrição que sentimos e que demonstramos com maior ênfase do que o normal encobre, na verdade, uma satisfação secreta. O que é que um visitante faz quando se encontra num cemitério? Como é que ele se movimenta e com que se ocupa? Caminha lentamente de um lado para outro entre os túmulos, examina esta ou aquela lápide, lê os nomes e se sente atraído por muitos deles. Em seguida começa a se interessar pelo que está escrito debaixo dos nomes. Lá está um casal que viveu junto durante muito tempo e que agora repousa junto no mesmo túmulo. Ali está uma criança que morreu ainda muito pequena. Do outro lado, uma moça que chegou apenas aos dezoito anos. 306

Cada vez mais é o decurso de tempo que mais cativa o visitante. Cada vez mais sua atenção se desprende das particularidades comoventes, fixando-se apenas no decurso de tempo. Ali está o túmulo de um que chegou aos trinta e dois anos idade; ao lado, outro que chegou aos quarenta e cinco. O vide sitante já viveu mais que eles e esses mortos estão, por assim dizer, fora do páreo. Ele encontra muitos que chegaram à idade dele e, caso não tenham morrido muito jovens, seu destino não desperta nenhuma compaixão. Mas também existem muitos que o ultrapassaram. Alguns chegaram aos setenta e ali está um que passou dos oitenta. Estes ainda podem ser alcançados. Eles o incitam a uma imitação. Tudo ainda lhe é possível. A indeterminação da vida que ele tem diante de si é uma grande vantagem sobre esses mortos, e com algum esforço poderia até ultrapassá-los. Ao medir-se com eles, ele se enche de esperança, uma vez que de antemão já tem uma vantagem: a meta deles já foi alcançada, eles não vivem mais. Não importa com quem irá medir-se; de qualquer maneira a força estará do seu lado. Pois do outro lado não existe força; existe apenas uma indicação da meta alcançada. Os mais idosos já sucumbiram. Eles não podem mais nos encarar nos olhos, homem a homem, e nos incentivam a chegar além da meta que eles alcançaram. O morto de oitenta e nove anos que está sepultado ali adiante funciona como um estímulo. O que é que nos impede de chegar à marca dos noventa anos? Mas este não é o único tipo de cálculo que fazemos quando estamos entre tantos túmulos diferentes. Começamos a pensar no tempo transcorrido desde que alguns dos mortos foram ali sepultados. Os anos que nos separam da data da morte deles têm algo de tranqüilizador: significam que o homem está no mundo desde há muito tempo. Os cemitérios com lápides bem antigas, que datam do séc. XVIII ou até mesmo do séc. XVII, têm algo de enaltecedor. Ficamos pacientemente parados diante das inscrições de difícil leitura e não nos movemos antes de conseguir decifrá-las. A cronologia, que normalmente serve apenas para fins práticos, adquire uma vida intensa e plena de sentido. Todos os séculos dos quais conhecemos a existência nos pertencem. Quem está enterrado ali não suspeita sequer do interesse de quem contempla o curso de sua vida. A cronologia para ele termina com o ano de sua morte; para o observador, no entanto, ela continua até o momento presente. Quanto não daria o morto para poder estar ainda ao lado do observador! Paz duzentos anos que ele morreu; nós, por assim dizer, sobrevivemos a ele em duzentos anos. Pois, graças a informações de 307

todos os tipos, grande parte do tempo que transcorreu desde sua morte, nos é bem conhecida. Nós lemos e ouvimos contar muita coisa desse tempo e vivemos pessoalmente uma boa parte dele. É difícil não sentir certa superioridade nessa situação; até mesmo o homem ingênuo a sente. Mais ainda, porém, o visitante sente o fato de estar passeando sozinho pelo cemitério. A seus pés jazem muitos desconhecidos, densamente apinhados. Seu número é indeterminado se bem que elevado; e cada vez este número aumenta mais. Eles, os mortos, não podem separar-se uns dos outros; eles permanecem formando um monte. Somente quem está vivo vem e vai, seguindo os seus próprios caprichos. Entre todos os que jazem deitados, apenas ele está de pé.

A respeito da imortalidade É bom partir de um homem como Stendhal quando se fala de imortalidade privada ou literária. Seria difícil encontrar uma pessoa com maior aversão às representações correntes de fé. Stendhal foi um homem inteiramente livre das promessas e dos laços de qualquer religião. Seus pensamentos e seus sentimentos voltavam-se exclusivamente para esta vida. Ele a sentiu e desfrutou da maneira mais precisa e profunda. Ele se abriu para tudo o que podia lhe dar prazer, e isto não fez com que se tornasse insípido, porque respeitou o que havia de individual em si mesmo. Não reduziu nada a uma unidade duvidosa. Desconfiou de tudo o que não era capaz de sentir. Pensou muito, mas nele não existe pensamento frio. Tudo o que registrou, tudo o que criou conserva o calor de sua origem. Ele amou muitas coisas e acreditou em algumas, mas tudo era sempre milagrosamente concreto. Tudo podia ser facilmente encontrado dentro dele, sem que tivesse a necessidade de lançar mão de algum truque. Esse homem que nada pressupunha, que sempre quis encontrar tudo através de si mesmo, que era a própria vida como sentimento e espírito, que se encontrava no centro de todo acontecimento e que por isto também era capaz de contemplar o que acontecia de fora para dentro, no qual a palavra e o conteúdo coincidem da maneira mais natural possível, como se ele se tivesse proposto a depurar a linguagem por conta própria, esse homem excepcional e realmente livre tinha, apesar de tudo, uma fé, da qual fala de maneira tão natural e tão leve como se fosse uma amante. Ele se contentou, sem revolta, em escrever para poucos, 308

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com a certeza de que cem anos mais tarde muitos o leriam. Nos tempos modernos não é possível conceber uma fé na imortalidade literária que seja mais clara, mais isolada e mais modesta. Que significa esta fé? Qual é o seu conteúdo? Significa que a pessoa continuará existindo quando todos os seus contemporâneos tenham deixado de existir. Não que ela esteja indisposta e m relação aos vivos como tais. Eles não são eliminados, nada se faz contra eles; eles nem sequer são combatidos de alguma for ma. Desprezam-se os que alcançaram uma glória falsa, mas sente-se também desprezo diante da alternativa de combatê-los com seus próprios meios. Nem sequer se sente rancor em relação a eles, uma vez que se sabe até que ponto eles estão equivocados. Opta-se pela companhia daqueles aos quais se irá pertencer algum dia; a companhia de todos os que são autores de obras lidas ainda hoje; daqueles que falam conosco, dos quais nos nutrimos. A gratidão que se sente em relação a eles é uma gratidão pela própria vida. Matar para sobreviver nada pode significar para este estado de ânimo, porque não se trata de sobreviver agora mas, sim, de entrar na liça apenas dentro de cem anos, quando já não se estará mais vivo pessoalmente e por conseguinte não se poderá matar. Serão as obras que se confrontarão, e será demasiado tarde para acrescentar qualquer coisa. A rivalidade propriamente dita, a que realmente importa, começa quando os rivais já não estão presentes. O combate que será travado por suas obras nem sequer poderá ser presenciado por eles. Mas essa obra precisa existir, e para que exista deve conter a maior e mais pura medida de vida. Não apenas se desdenhou a possibilidade de matar; fez-se com que entrassem para a imortalidade todos os circunstantes. Para aquela imortalidade onde tudo se torna efetivo, tanto o menor como o maior. Trata-se do oposto daqueles donos do poder que arrastam consigo para a morte tudo o que os cerca para que, numa existência futura, reencontrem tudo aquilo a que estavam acostumados. Nada caracterizava de maneira mais espantosa sua impotência íntima. Eles matam em vida, matam na morte, um séqüito de mortos os acompanha para o além. Quem, porém, abrir um volume de Stendhal torna a encontrá-lo juntamente com tudo o que o rodeava, e o encontra aqui nesta vida. Assim, os mortos se oferecem aos vivos como o mais nobre de todos os alimentos. Sua imortalidade acaba sendo proveitosa para os vivos; nesta reversão da oferenda' aos mortos, todos acabam sendo beneficiados. A sobrevivência perdeu seus aspectos negativos e o reino da inimizade chega ao fim. 309

ELEMENTOS DO PODER

Força e poder

Ao conceito de força .associamos a idéia de algo que esteja próximo e presente. A força é mais coerciva e mais imediata que o poder. Fala-se com ênfase maior de força física. Em níveis inferiores e mais animais é mais apropriado falar de força que de poder. Uma presa é agarrada pela força e é levada à boca pela força. Quando a força dura mais tempo, transforma-se em poder. Porém no instante crítico, que sempre acaba ocorrendo, no instante da decisão e do irrevogável, o poder volta a ser novamente força pura. O poder é algo mais genérico e mais vasto do que a força; ele contém muito mais e não é tão dinâmico. Ele é mais complicado e inclui até mesmo uma certa medida de paciência. A palavra macht, poder, deriva de uma antiga raiz gótica, magan, que significa "poder, ser capaz" e não está de maneira alguma relacionada com a raiz machen que significa "fazer". A diferença entre força e poder pode ser exemplificada de maneira evidente pela relação entre o gato e o rato. O rato, uma vez caçado, encontra-se sob o regime de força do gato; este o agarrou, o mantém preso, sua intenção é matálo. Mas, assim que ele começa a brincar com o rato, acrescenta algo de novo ao relacionamento. Solta-o e permite que ele corra um pouco. Assim que o rato se vira e corre, escapa do regime de força. Mas está em poder do gato fazer com que ele retorne. Se o gato permite que o rato se vá definitivamente, este é excluído de sua esfera de poder. Até o ponto em que o rato pode ser alcançado com toda a certeza, ele permanece em poder do gato. O espaço que o gato controla, os momentos de esperança que ele concede ao rato vigiando-o atentamente sem perder o interesse por ele e por sua destruição, tudo isto reunido — espaço, esperança, vigilância e interesse destrutivo — poderia ser designado como o corpo propriamente dito do poder ou, simplesmente, como o próprio poder. Portanto, ao contrário do que ocorre com a força, o poder pressupõe uma certa amplitude: mais espaço e também algo mais de tempo. Já formulamos anteriormente a suposição de que a prisão poderia ser algo derivado da boca; a relação entre 313

estes dois conceitos expressa também a relação entre o poder e a força. Na boca não restam esperanças, não existe tempo nem espaço. Deste ponto de vista, a prisão é como uma ampliação da boca. Nela é possível dar alguns passos para cada lado, exatamente como o rato faz sob os olhos do gato; às vezes sente-se o olhar do carcereiro cravado nas costas. O prisioneiro tem tempo diante de si e esperanças de escapar ou de ser libertado; e durante todo o tempo percebe-se o interesse destrutivo do aparelho da prisão em que se está, mesmo quando este interesse parece ter deixado de existir. Mas a diferença entre poder e força se torna visível também numa esfera completamente distinta: nos múltiplos matizes da devoção religiosa. Todos os que acreditam em Deus encontram-se sempre em poder de Deus e cada qual à sua maneira se conforma com isso. Mas para muitos isto não é suficiente. Eles esperam uma intervenção taxativa, um ato imediato de violência divina que possam reconhecer e sentir como tal. Encontram-se na situação de quem aguarda ordens. Para eles Deus tem as características mais cruas do soberano. Sua vontade ativa, que implica a submissão ativa deles em cada caso particular, em cada manifestação, torna-se para eles o próprio núcleo da fé. As religiões deste tipo tendem a acentuar o princípio da predestinação divina; desta forma seus fiéis têm motivos para sentir que tudo o que lhes sucede é uma expressão imediata da vontade divina. Eles podem submeter-se com maior freqüência e até o fim. É como se eles já vivessem dentro da boca de Deus, que irá triturá-los logo a seguir. Eles, no entanto, têm a obrigação de continuar vivendo neste terrível tempo presente sem qualquer temor, e agindo da maneira mais correta possível. O Islamismo e o Calvinismo são conhecidos principalmente por esta tendência. Seus partidários estão sedentos da força divina. Não lhes basta apenas o poder divino; este lhes parece por demais generalizado e distante, deixando que muitas coisas fiquem aos cuidados deles mesmos. O efeito desta permanente espera de ordens sobre os que se entregaram a ela de uma vez por todas é profundo e tem as mais graves conseqüências sobre seu comportamento em relação aos demais. Dessa atitude surge o tipo de crente-soldado para o qual a batalha é a expressão mais exata da vida; batalha na qual ele não sente medo, porque afinal sente-se dentro dela o tempo todo. Quando falarmos exclusivamente a respeito da ordem examinaremos este tipo de crente com maiores detalhes. 314

orça e rapidez A rapidez, enquanto pertence ao âmbito do poder, é a velocidade em alcançar ou em agarrar. Em ambos os casos os animais constituíram o modelo para o homem. O homem aprendeu com as feras corredoras, principalmente com os lobos, a ação de alcançar. O agarrar mediante um salto súbito lhe foi ensinado pelos felinos: seus mestres invejados e admirados nisto foram o leão, o leopardo e o tigre. As aves de rapina reúnem os dois tipos de rapidez: alcançar e agarrar. Na ave de rapina, que voa solitária e visível e que depois se precipita de elevada altura, o processo se expressa de maneira perfeita. Ela inspirou ao homem uma arma: a flecha, que durante muito tempo foi o instrumento de maior velocidade que ele pôde possuir. Por meio de suas flechas o homem voa para ir alcanesa. çar sua presa. a nimais servem desta forma, desde muito cedo, como símbolos do poder. Eles representavam os deuses ou os ancestrais do homem poderoso. Um lobo era ancestral de Gengis-Khan. O falcão Hórus era o deus do faraó egípcio. Nos reinos africanos os animais sagrados da estirpe real são o leão e o leopardo. Das chamas, nas quais se queimava o cadáver do imperador romano, sua alma voava aos céus como uma águia. O mais rápido, porém, é o que sempre foi o mais rápido: o raio. O medo supersticioso em relação ao raio, diante do qual não existe proteção possível, está amplamente difundido. Os mongóis, diz o monge franciscano Rubruk, que chegou até eles como enviado de Luís IX da França, ou São Luís, temem o trovão e o raio mais do que qualquer outra coisa. Durante uma tempestade eles expulsam de seus abrigos todos os estrangeiros, envolvem-se em feltros negros e se escondem até que tudo tenha passado. Eles se abstêm (informa o historiador persa Rashid, que esteve a serviço deles) de comer a carne de um animal abatido por um raio, não ousando sequer aproximar-se dele. Entre os mongóis, proibições de todos os tipos servem para se obter o favor do raio. É preciso evitar tudo o ue possa que p a at atraí-lo. í-lo. Oraio freqüentemente é a arma principal deu mais poderoso. Seu aparecimento repentino entre as trevas tem o caráter de uma revelação. O raio alcança e ilumina. A partir do seu comportamento rtamentopeculiar procura-se deduzir conclusões a resque lugarvontade do cé dosdeuses. Em que forma ele aparece e em u. , e onde vem? Para onde vai? Entre os etruscos, a interpretação do raio era tarefa de uma classe espe315

cial de sacerdotes que foram adotados pelos romanos como fui_ guratores. "O poder do soberano", afirma um antigo texto chinês, "assemelha-se ao do raio, apesar de ser inferior em sua energia". É surpreendente o número de detentores do poder que foram fulminados pelo raio. É possível que os relatos a este respeito nem sempre correspondem à verdade, mas o fato de essa relação ter sido estabelecida já é em si algo significativo. Notícias a este respeito são numerosas entre os romanos e entre os mongóis. Ambos esses povos acreditam num deus supremo no céu, ambos têm um sentido fortemente desenvolvido do poder. O raio, neste caso, é tomado como uma ordem sobrenatural. Quando ele fulmina, é porque deve fulminar. Quando fulmina um poderoso, foi enviado por alguém que é ainda mais poderoso. Serve como o castigo mais rápido e repentino, mas também como o castigo mais evidente. Ele foi imitado pelos homens e deu origem a um determinado tipo de arma: a arma de fogo. O relampejar e o trovão do disparo, o fuzil e principalmente o canhão provocaram o terror daqueles povos que não os conheciam e que os viam como se fossem um raio. Mas bem antes disso o homem já quis transformar-se no animal mais veloz. A domesticação do cavalo e a formação da cavalaria em sua forma mais perfeita determinaram as grandes irrupções históricas a partir do Oriente. Nos relatos contemporâneos sobre os mongóis sempre se destaca sua rapidez. Sua aparição sempre era inesperada; apareciam tão rapidamente como desapareciam, e reapareciam mais repentinamente ainda. Sabiam utilizar até mesmo a precipitação da fuga como agressão; quando os inimigos acreditavam que eles tinham fugido, viam-se cercados por eles. A velocidade física como qualidade do poder aumentou desde então de todas as maneiras possíveis. Seria supérfluo entrar em detalhes a respeito de seus efeitos nesta nossa era técnica. À esfera do agarrar pertence um tipo muito distinto de rapidez, a do desmascaramento. Um ser inofensivo ou submisso está à nossa frente; arrancamos-lhe a máscara; por trás dela existe um inimigo. Para ser eficaz, o desmascaramento deve ser súbito. Este tipo de rapidez poderia ser designado como rapidez dramática. O ato de alcançar se restringe aqui a um espaço muito pequeno, concentra-se. A utilização de uma máscara como melo de dissimulação é antiqüíssimo e seu oposto é o desmascaramento. De máscara em máscara é possível conseguir 316

deslocamentos decisivos nas relações de poder. Combate-se a dissimulação do inimigo com a própria dissimulação. Um governante convida importantes militares ou civis para um banquete festivo. De repente, quando eles menos temem sua inimizade, são assassinados. A mudança de uma atitude para outra corresponde com precisão à retirada da máscara. A rapidez do acontecimento é aguçada ao extremo; dela depende o êxito do projeto. O detentor do poder, bem consciente de sua constante simulação, somente pode esperar a mesma coisa por parte dos outros. Toda rapidez, com a qual ele se adianta aos outros, lhe parece ser permitida e indicada. Ele pouco se importará de pôr as mãos num inocente; afinal, no complexo jogo das máscaras, qualquer um pode equivocar-se. Por outro lado, ficará profundamente irritado se, devido à falta de rapidez, um inimigo conseguir escapar.

Pergunta e resposta Toda pergunta é uma penetração, uma incursão. Quando a pergunta é utilizada como meio de poder, ela corta feito uma navalha o corpo do interrogado. Já se sabe o que se pode encontrar; mas não se quer realmente encontrar nem atingir isso. Com a segurança de um cirurgião, penetra-se nos órgãos internos. O cirurgião mantém sua vítima com vida para averiguar coisas mais precisas a respeito dela. Este é um cirurgião de tipo especial, que trabalha conscientemente com a provocação de uma dor local. Ele irrita determinadas zonas da vítima para saber coisas seguras a respeito de outras. As perguntas procuram respostas; as que não recebem respostas são como flechas disparadas para o ar. A pergunta mais inocente é a que permanece isolada e que não traz outra consigo. Pergunta-se a localização de um edifício a uma pessoa desconhecida. Esta nos indica o caminho. Contentamo-nos com esta resposta e prosseguimos em nosso caminho. Retemos o desconhecido durante um instante. Forçamo-lo a se lembrar de alguma coisa. Quanto mais clara e objetiva for a resposta, tanto mais rapidamente ele se livra do embaraço que nós lhe causamos. Ele entregou o que esperávamos dele, e não tem nenhuma obrigação de voltar a nos ver. Mas um indagador poderia não ficar satisfeito e continuar formulando perguntas. Quando estas se acumulam, não tardam a.,provocar desgosto, insatisfação por parte do interrogado. Ele já não é mais retido apenas externamente; em cada resposta 317

ele mostra mais alguma parte de si mesmo. É possível que sejam coisas sem importância, superficiais, mas elas estão sendo extraídas dele por um desconhecido. Estão relacionadas com outras coisas mais ocultas e que ele considera mais importantes. A insatisfação, o desgosto que ele sente não demora muito para se transformar em desconfiança. Porque o efeito das perguntas consiste justamente em realçar o sentimento de poder do interrogador; elas lhe dão vontade de formular cada vez mais e mais perguntas. Quem responde se submete tanto mais quanto mais ceder às perguntas. A liberdade da pessoa reside em boa parte em sua capacidade de defender-se das perguntas. A tirania mais exigente é a que se permite fazer as perguntas mais exigentes. Sensata é uma resposta que põe fim às perguntas. Quem pode permitir-se isto recorre às contraperguntas; entre pessoas iguais este é um meio comprovado de defesa. Aquele a quem sua posição não permite réplica deve dar uma resposta exaustiva e esclarecer tudo o que o outro procura ou, pela astúcia, tirar-lhe a vontade de continuar indagando. Ele pode adular o interrogador e reconhecer sua superioridade, de tal forma que este já não tenha mais necessidade de manifestá-la ele mesmo. Pode desviar sua atenção para outras pessoas, às quais seria mais interessante ou produtivo interrogar. Se for alguém hábil em dissimulações, pode ocultar sua verdadeira identidade. A pergunta então passa a ser dirigida a outra pessoa e a resposta não é sua incumbência. A pergunta, que no fundo é uma espécie de dissecação, começa com um toque. O contato se intensifica e chega a diferentes lugares. Onde encontra pouca resistência, penetra. O que é encontrado é colocado de lado, de reserva, para ser utilizado posteriormente; as coisas encontradas não são aproveitadas imediatamente. Primeiro é necessário encontrar aquele ponto bem definido que está sendo procurado. Toda pergunta sempre dissimula uma finalidade perfeitamente consciente. As perguntas indefinidas, como as de uma criança ou de um tolo, não têm força e são fáceis de ser eliminadas. Quando se exigem respostas breves e concisas, a situação se torna mais perigosa. Uma simulação convincente ou uma metamorfose de fuga em poucas palavras passa a ser difícil ou até mesmo impossível. A maneira mais rudimentar de defesa é fazer-se de surdo ou fíngír não entender. Mas este estratagema funciona apenas entre iguais. Noutros casos, quando o mais forte interroga o mais fraco, a pergunta pode ser formu318

ioda por escrito. Uma resposta então compromete muito mais. Está sujeita a comprovações e o adversário pode utilizar-se dela. Quem carece de defesas externas apela para sua armadura interior; esta armadura íntima contra a pergunta é o segredo. como se fosse um segundo corpo, mais bem protegido, que se encontra dentro do primeiro; quem se aproximar demais deve preparar-se para encontrar surpresas desagradáveis. Como algo mais denso, o segredo se separa do ambiente que o circunda e é mantido num local escuro que poucos conseguem iluminar. O que existe de perigoso no segredo sempre é colocado acima do seu conteúdo propriamente dito. O mais importante e, poderíamos quase dizer, o mais denso do segredo é sua defesa eficaz contra a pergunta. O silêncio diante de uma pergunta é como o choque de uma arma contra um escudo ou uma armadura. Emudecer é uma forma extrema de defesa, em que as vantagens e as desvantagens se equilibram. A pessoa emudecida não se expõe, mas em compeisação parece ser mais perigosa do que realmente é. Supõe-se que ela oculte muito mais do que aquilo que ela prefere não dizer. Ela emudeceu apenas porque tem muito para ocultar; é importante então não deixá-la ir. O silêncio obstinado acaba provocando o interrogatório penoso, a tortura. Mas sempre, também em circunstâncias ordinárias, a resposta nos prende a alguma coisa. Não se pode abandoná-la com facilidade. A resposta obriga a pessoa a se situar num determinado lugar e a permanecer aí enquanto o interrogador pode atacar de qualquer ângulo; de certa forma, quem faz as perguntas contorna o interrogado e escolhe a posição que mais lhe convém. Ele pode ficar girando em torno do outro, surpreendendo-o e confundindo-o. A mudança de posição lhe confere uma espécie de liberdade que o interrogado não pode ter. Ele procura agredi-lo com a pergunta e quando consegue tocá-lo com ela, ou seja, quando o obriga a dar uma resposta, consegue subjugá-lo, prendê-lo num lugar. "Quem é você?" "Sou fulano". O interrogado já não pode mais ser outra pessoa, ele está privado da possibilidade de escapar por metamorfose. Se o processo for prolongado, pode ser considerado como uma espécie de encadeamento. A primeira pergunta se refere à identidade, a segunda ao lugar. Uma vez que ambas pressupõem uma linguagem oral, seria interessante saber se é concebível uma situação arcaica, queteria existido antes da pergunta em forma de palavra, e que fosse equivalente a esta. Nela, lugar e identidade deveriam coincidir ; uma coisa sem a outra deveria carecer de sentido. Esta 319

situação arcaica efetivamente existiu. É o contato vacilante coro a presa. Quem é você? Você pode ser comida? O animal, constantemente em busca de alimento, toca e fareja tudo o que encontra. Coloca o nariz em toda parte. Você pode ser comido? Qual é o seu gosto? A resposta é um odor, uma contrapressão, uma rigidez inerte. O corpo estranho é aqui seu próprio lugar e por meio do farejamento e do toque familiariza-se com ele ou, transladando isto para nossos costumes humanos, dá-se-lhe um nome. Na educação precoce da criança existem dois fenômenos que ao se cruzarem se intensificam de forma desmedida; parecem ser desproporcionais e no entanto estão intimamente relacionados. Os pais, por um lado, ditam permanentemente ordens vigorosas e insistentes; a criança, por outro lado, formula um sem-número de perguntas. Essas perguntas precoces da criança são como gritos pedindo alimentos, de forma diferente e agora já mais elevada. Elas são inofensivas, uma vez que de modo algum podem comunicar à criança todo o saber dos pais; a superioridade destes continua sendo tremenda. Com que perguntas a criança começa? As primeiras são sempre as que se referem a um lugar: "Onde está?" Outras são: "Que é isto?" e "Quem?" É possível ver claramente o papel que já é desempenhado pelo lugar e pela identidade. Estas são realmente as primeiras coisas que uma criança indaga. Somente mais tarde, já no final do terceiro ano de vida, é que ela indaga: "Por quê?" E ainda mais tarde: "Quando?" e "Quanto tempo?" que são perguntas temporais. A criança sempre tarda muito em ter idéias precisas a respeito do tempo. A pergunta que começa de um modo titubeante procura, como já se disse, penetrar mais fundo. Ela tem algo de cortante, funciona como uma navalha. Isto se reconhece na resistência que as crianças muito pequenas opõem a perguntas duplas. "O que é que você prefere, uma maçã ou uma pera?" A criança se calará ou responderá "pera", porque esta foi a última palavra. Mas uma verdadeira decisão, que seria fazer uma separação entre a maçã e a pera, lhe é difícil. No fundo, a criança gostaria das duas frutas. A separação culmina lá onde são possíveis apenas as duas respostas mais simples de todas: sim ou não. Por serem diametralmente opostas, todas as soluções intermediárias ficam excluídas e a escolha de uma ou outra opção é uma escolha de compromisso e alcance especiais. Antes de uma pergunta nos ser formulada, muitas vezes não sabemos o que pensamos a respeito. A pergunta nos obriga 320

separar os prós e os contras. A medida que a pergunta r fo cortês e sem intenção de cobrança, ela nos dá uma liberdade de decisão. Nos diálogos platônicos, Sócrates é elevado a uma espécie posição de rei das perguntas. Ele recusa todos os tipos de usuais de poder e se esquiva diligentemente de tudo o que poderia lembrar isso. A sabedoria, que era sua superioridade, pode ser buscada nele por qualquer pessoa. No entanto Sócrates freqüentemente não a comunicava numa conversação coerente, mas sim através da formulação de perguntas. Nos Diálogos, Platão coloca em sua boca as perguntas mais determinantes e mais importantes. Desta forma Sócrates não solta seus ouvintes; obriga-os a separações dos tipos mais diversos. Ele consegue seu domínio sobre os ouvintes exclusivamente mediante suas perguntas. São importantes as formas de cortesia que restringem as perguntas. Certas coisas não devem ser perguntadas a um estranho. Se apesar de tudo o fazemos, nós o assediamos, penetramos nele; ele teria motivos para sentir-se ferido. Nossa reserva, por outro lado, o convence do respeito que sentimos por ele. O estranho é tratado como se fosse o mais forte; trata-se de uma forma de adulação que provoca nele uma atitude idêntica. Somente assim, mantendo uma certa distância uns dos outros, protegidos de perguntas como se todos fossem fortes e iguais nessa força, é que os homens se sentem seguros e se mantêm em paz. Uma pergunta monstruosa é a que indaga a respeito do futuro. Seria possível chamá-la de pergunta suprema; ela também é a mais intensa de todas. Os deuses, aos quais ela é dirigida, não estão obrigados a responder. Esta pergunta, dirigida ao que existe de mais forte, é uma pergunta desesperada. Os deuses nunca se comprometem, nunca se pode penetrar neles. Suas exteriorizações são ambíguas, não podem ser decompostas. Todas as perguntas feitas a eles são feitas como primeiras perguntas, que somente têm uma resposta. Freqüentemente a resposta consiste apenas em sinais que são reunidos Pelos sacerdotes de certos povos em grandes sistemas. Os babilônios nos deixaram milhares destes sinais. Chama a atenção o fato de que cada um deles se encontra isolado dos demais. Não são conseqüência um do outro, não têm coerência interna. São listas de sinais, nada mais; mesmo quem conhece todos eles nunca pode concluir, a partir de cada um, mais do que algo separado do O interrogatório, em oposição exata a isso, reconstitui o 321

passado na totalidade de seu decurso. O interrogatório é dirigido contra alguém mais fraco. Mas antes de nós nos consagrarmos à interpretação do interrogatório, convém dizer algumas palavras a respeito de uma instituição que atualmente se impôs na maioria dos países, o fichamento policial universal da população. Definiu-se um determinado grupo de perguntas, as mesmas em todos os lugares, que basicamente servem à segurança e à ordem. O objetivo é saber quão perigoso cada um pode chegar a ser e permitir a captura imediata daquele que realmente se tornou perigoso. A primeira pergunta que se formula oficialmente a uma pessoa é a respeito do seu nome ; a segunda se refere ao seu local de residência, seu endereço. São, como já sabemos, as duas perguntas mais antigas: a de identidade e a de lugar. A profissão, em seguida, revela sua atividade; a partir dela e da idade conclui-se sua influência e seu prestígio: como pode ser manipulado? Seu estado civil indica a propriedade humana mais imediata, seja marido, esposa ou filho. Origem e nacionalidade dão uma referência a respeito de suas possíveis opiniões; nesta nossa época de nacionalismos fanáticos, estes dados definem melhor a pessoa do que a religião, que já perdeu sua importância. Com isto tudo — juntamente com uma fotografia e uma assinatura — já são muitos os elementos que ficam estabelecidos.. As respostas a estas perguntas são aceitas. Provisoriamente elas não são colocadas em dúvida. Somente no interrogatório, dirigido a um fim determinado, é que a pergunta fica carregada de desconfiança. Neste caso se estabelece um sistema de perguntas que serve de controle para as respostas; em si, qualquer uma delas poderia ser falsa. O interrogado se encontra em relação de inimizade com o interrogador. Sendo muito mais fraco, ele somente consegue escapar se convencer o outro de que não é um inimigo. Nos interrogatórios judiciais, o ato de perguntar estabelece retroativamente uma onisciência do interrogador como poderoso. Os caminhos que foram percorridos, os lugares que foram visitados, as horas que foram vividas, coisas que enquanto ocorriam pareciam ser livres e não controladas, repentinamente são colocadas sob suspeita. Todos os caminhos devem ser novamente percorridos, todos os locais voltam a ser visitados até que reste o menos possível daquela liberdade antiga e usufruída. O juiz precisa saber de muitas coisas antes de poder julgar. Seu poder está baseado principalmente na onisciência. Para adquiri-la, ele tem o direito de formular qualquer pergunta: "Onde você estava?" "Quando esteve lá?" "O que 322

fez ?" Na resposta que serve de álibi, lugar é oposto a lugar, identidade é oposta a identidade. "Neste momento eu me encontrava noutro lugar. Eu não sou a pessoa que fez tal coisa." "Certa vez", diz uma antiga lenda dos Vedas, "por volta do meio-dia, nas proximidades de Dehsa, uma jovem camponesa estava dormindo sobre a relva. Seu noivo estava sentado ao do dela. Ele pensava em como fazer para se livrar dela. Nisto la chegou a Dama do Meio-Dia e lhe fez perguntas. Por mais que de lhe respondesse, ela sempre fazia novas perguntas. Quando o sino anunciou uma hora da tarde, seu coração parou de bater. A Dama do Meio-Dia o tinha interrogado até a morte."

O segredo O segredo está no núcleo do poder. O ato de se ocultar por sua natureza é algo secreto. A criatura se esconde ou se mimetiza e não se dá a conhecer por nenhum movimento. Toda criatura que se está ocultando desaparece, envolve-se no segredo como se este fosse uma segunda pele e permanece durante longo período de tempo ao seu abrigo. Uma concatenação peculiar de impaciência e de paciência caracteriza a criatura nesse estado. Quanto mais ela permanece assim, tanto mais intensa se faz a esperança de conseguir um êxito repentino. Para que ela afinal consiga algo, a paciência deve crescer ao infinito. Caso ela acabe demasiadamente cedo, tudo terá sido em vão, e a criatura precisa, sob o peso da decepção, recomeçar tudo novamente. O agarrar em si é algo que se manifesta publicamente, inclusive porque se quer incrementar seu efeito pelo terror; mas, assim que a ingestão tem início, tudo volta a ocorrer na obscuridade. A boca é obscura e tenebrosos são o estômago e as entranhas. Ninguém sabe e ninguém medita sobre o que sucede interminavelmente em seu interior. Deste processo primordial da assimilação, a maior parte permanece secreta. O processo começa ativamente, com o segredo que a própria criatura cria ao esconder-se; termina de forma desconhecida e passiva na escuridão misteriosa do corpo. Somente o instante de agarrar é que ilumina bruscamente as sombras como um relâmpago mais interior do corpo. Um curandeiro, cuja ação depende do seu conhecimento a respeito dos fenômenos do corpo, antes de 323

exercer sua profissão deve submeter seu corpo a operações muito estranhas. Entre os arandas, na Austrália, um homem que deseja ser consagrado como curandeiro instala-se diante da caverna na qual residem os espíritos. Ali primeiramente lhe perfuram a língua. Ele fica completamente só e um dos elementos de sua iniciação é o terror que lhe inspiram os espíritos. A coragem de permanecer em solidão, principalmente num local onde a solidão é especialmente perigosa, parece ser um dos requisitos para exercer essa vocação. Mais tarde, segundo ele acredita, morrerá por um golpe de lança que lhe atravessa a cabeça de orelha a orelha e os espíritos o deitarão dentro da caverna, onde irão morar juntos durante algum tempo numa espécie de além. Para o nosso mundo ele está inconsciente, mas no outro mundo lhe são extraídos os órgãos internos, em troca dos quais recebe outros órgãos novos. É de supor-se que estes sejam melhores do que os órgãos usuais, que sejam invulneráveis ou menos expostos a intervenções mágicas. Desta maneira o curandeiro se fortalece em sua profissão, mas este fortalecimento é de dentro para fora; seu novo poder tem início a partir das entranhas. Ele teve de morrer antes de poder começar a agir, mas sua morte serve para a penetração total do seu corpo. Seu segredo é conhecido apenas por ele e pelos espíritos; este segredo jaz dentro do seu corpo. Uma característica curiosa é que a indumentária do mago inclui numerosos pequenos cristais. Ele os carrega consigo no corpo e são indispensáveis para sua profissão; em todos os tratamentos ocorre uma ativa manipulação dessas pedrinhas. Às vezes é o próprio mago que distribui algumas delas, outras vezes ele as extrai das partes doentes do enfermo. Partículas sólidas, estranhas ao corpo do doente, causaram a doença. É como se fosse uma curiosa moeda da enfermidade cuja cotação somente é conhecida pelos magos. Excetuando-se este tratamento muito íntimo do doente, a magia sempre é praticada à distância. Prepara-se em segredo uma série de pontiagudas varinhas mágicas que são arremessadas depois, de uma grande distância, na direção da vítima desprevenida, sobre a qual haverá de cair o efeito terrível do feitiço. Aqui se aproveita do segredo do ato de acuar. Pequenas lanças são jogadas com más intenções; às vezes elas se tornam visíveis no céu como cometas. O ato propriamente dito é breve, mas o efeito pode se fazer esperar durante algum tempo. Todo aranda tem a possibilidade de fazer mal mediante 324

a magia em atos individuais. Mas rechaçar o mal é algo que apenas os curandeiros conseguem. Graças à sua iniciação e à sua prática, eles estão protegidos de outra maneira. Alguns feiticeiros muito velhos são capazes de atrair o mal sobre grupos inteiros de homens. Existem portanto como que três graus de aumento de poder. Quem consegue fazer com que muitas pessoas adoeçam simultaneamente é evidentemente o mais poderoso. Muito temido é o poder mágico dos estrangeiros que vivem em locais distantes. Eles são mais temidos porque os antídotos contra seus feitiços não são tão bem conhecidos como os antídotos para os próprios feitiços. Além do mais, desaparece toda a responsabilidade por feitiços que se perpetuam sempre dentro do próprio grupo. Na defesa contra o mal, no tratamento das enfermidades, o poder do curandeiro é considerado benéfico. Mas, ao lado disso, existe a prática do mal em grande escala. Nada de ruim acontece por si mesmo; tudo é sempre provocado por um homem ou por um espírito mal-intencionado. Qualquer coisa que para nós seria chamada de causa, para eles é culpa. Toda morte é um assassinato e como assassinato deve ser vingada. A semelhança com o mundo do paranóico é surpreendente sob todos os aspectos. Nos dois capítulos a respeito do caso Schreber, incluídos no final deste livro, daremos indicações mais precisas a este respeito. Até mesmo o ataque contra os órgãos internos é narrado lá em detalhes; depois de sua destruição total, depois de demorados períodos de dores, eles se renovam e se tornam invulneráveis. O caráter duplo do segredo é mantido em todas as formas superiores de poder. Do curandeiro primitivo ao paranóico existe apenas um passo. E não é maior a distância de ambos em relação ao detentor do poder, cuja evolução histórica é ilustrada por muitos exemplos bastante conhecidos. Aqui o segredo se expressa excepcionalmente de forma ativa. O detentor do poder, que dele se vale, o conhece muito bem e sabe apreciá-lo devidamente segundo sua importância cada caso. Sabe o que deve ser ocultado quando ele quer alcançar alguma coisa, e sabe também qual de seus ajudantes deve emcae o ato de ocultar. Ele tem muitos segredos, já que desejamuit para coisas, e os combina num sistema no qual muitas eles se preservam reciprocamente. A um ele confia uma coisa e confia outra coisa a outro, certificando-se de que eles jamais irão comunicar-se si. Todo aquele que sabe de alguma coisa é vigiado por ou325

tro, o qual porém jamais fica sabendo o que é que na verdade ele está vigiando no outro. Ele deve registrar cada palavra e cada movimento da pessoa cuja vigilância lhe foi confiada; mantendo informado o seu senhor a respeito de tudo isso, ele lhe transmite uma imagem da atitude mental do vigiado. Mas o próprio vigilante é vigiado por sua vez, e o relato do outro serve para corrigir o seu. Desta forma, o soberano está sempre a par da confiabilidade das pessoas nas quais depositou seus segredos, dos responsáveis pela sua segurança, e está em condições de apreciar qual destes recipientes se encontra tão cheio que poderia transbordar. Somente ele possui a chave para todo este sistema de segredos. Ele se sente ameaçado quando confia totalmente noutra pessoa. Uma das características do poder é a distribuição desigual do calar das intenções. O poderoso cala, mas não permite que os demais se calem. Ele mesmo deve ser o mais reservado de todos. Ninguém pode conhecer suas convicções nem suas intenções. Um caso clássico de impenetrabilidade deste tipo foi o de Filippo Maria, o ultimo dos Visconti. Seu ducado de Milão era uma grande potência na Itália do séc. XV. Ninguém igualava sua capacidade de dissimular sua intimidade mais recôndita. Nunca dizia abertamente o que queria; ocultava tudo por detrás de uma maneira peculiar de expressar-se. Quando deixava de apreciar alguma pessoa, ele continuava a elogiá-la; quando distinguia algum cidadão com honras e presentes, ele o acusava de rispidez ou de estupidez e fazia com que esse indivíduo sentisse não ser digno de sua sorte. Se desejava ter alguém perto de si, ele o atraía durante algum tempo até que nutrisse esperanças, e depois se esquecia dele. Quando o interessado acreditava ter sido esquecido, ele o chamava novamente para seu lado. Se concedia uma graça a alguém cujos méritos reconhecia, interrogava com curiosa astúcia outras pessoas, como se nada soubesse do favor concedido. De maneira geral, ele concedia algo diferente do que lhe tinha sido pedido, e sempre em desacordo com o que os outros desejavam. Quando queria oferecer um presente ou uma distinção a alguém, costumava interrogar essa pessoa dias antes a respeito dos assuntos mais indiferentes, de maneira que ela não podia adivinhar suas intenções. Além disso, para não revelar a ninguém suas intenções mais íntimas, lamentava freqüentemente a outorga de graças que ele mesmo tinha concedido, ou a execução de penas de morte que ele mesmo tinha determinado. Neste último caso, tem-se a impressão de que ele pro326

curava guardar seus segredos até mesmo de si próprio. Seu caráter consciente e ativo lhe escapa, ele se sente impulsionado em direção àquela forma passiva de segredo que se carrega dentro das trevas da própria caverna corporal; que se conserva lá onde jamais se pode conhecer; e que se acaba por esquecer. "É um direito dos reis guardar seus segredos diante do pai, da mãe, dos irmãos, das esposas e dos amigos". Esta afirmação está no Livro da Coroa, obra árabe que contém muitas tradições antigas da corte dos Sassânidas. O rei persa Cósroes II, o Vitorioso, inventou métodos muito especiais para testar a discrição das pessoas que ele queria utilizar. Quando sabia que duas pessoas do seu ambiente estavam ligadas por uma estreita amizade e que concordavam entre si em todos os pontos, ele se fechava com uma dessas pessoas e lhe confiava um segredo relacionado com o amigo. Comunicava-lhe que tinha tomado a decisão de mandar executar o outro, e proibia-lhe com ameaças de castigo de revelar esse segredo à parte interessada. A partir de então, passava a observar o comportamento do ameaçado em suas idas e vindas peló palácio, a expressão de seu rosto e sua atitude quando estava diante dele. Se constatava que sua conduta em nada tinha se modificado, sabia que ele não tinha revelado seu segredo. Depositava então sua confiança nele, tratando-o com consideração particular, elevando sua posição e fazendo com que sentisse seu favor. Mais tarde, quando estava a sós com ele, lhe dizia: "Eu tinha a intenção de mandar justiçar aquele homem devido a certas informações que me chegaram a seu respeito; entretanto, averiguações mais precisas revelaram que era falso tudo o que se dizia". Quando porém percebia que o ameaçado demonstrava temor, mantendo-se afastado e virando o rosto para outro lado, compreendia que seu segredo tinha sido traído. Então Cósroes fazia o traidor cair em desgraça, degradava-o e o tratava com dureza. Ao outro, porém, informava que apenas tinha querido provar seu amigo confiando-lhe um segredo. Assim apenas confiava na discrição de um cortesão forçando-o a trair mortalmente seu melhor amigo. Dessa forma ele se assegurava a maior discrição possível. "Quem não está apto a servir ao rei", dizia ele, "carece também de valor para si mesmo, e de quem carece de valor para si mesmo não se pode tirar proveito". O poder do silêncio sempre é altamente apreciado. Significa que se é capaz de resistir aos incontáveis motivos externos que nos induzem a falar. Não se responde a coisa alguma, como se não fôssemos interrogados. Não se deixa perceber se 327

algo nos agrada ou não. A pessoa se mostra muda sem ter emudecido. Porém escuta. Em sua concepção extrema, a virtude estóica da impassibilidade deveria conduzir ao silêncio. O silêncio pressupõe um conhecimento exato daquilo que não se diz. Como na prática não se emudece para sempre, faz-se uma opção entre o que se pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o que melhor se conhece. É algo mais preciso e também mais precioso. O silêncio não serve apenas para proteger esta coisa, mas também para concentrá-la. Um homem que silencia muito sempre dá a impressão de ser mais concentrado. Supõe-se que saiba muito, uma vez que cala muito. Supõe-se que pense muito em seu segredo, porque se encontra com ele sempre que julga necessário protegê-lo. O que cala não deve portanto esquecer seu segredo. Ele é respeitado mais, à medida que o segredo mais arde dentro dele, à medida que aumenta mais dentro dele sem que ele o revele. O silêncio isola: quem cala está mais solitário do que os que falam. Assim, atribui-se a ele o poder da singularidade. Ele é o guardião do tesouro e o tesouro está dentro dele. O silêncio atua contra a metamorfose. Quem se retirou para seu posto de guarda interno não pode afastar-se dele. Quem cala pode dissimular, mas de maneira rígida. Ele pode usar uma determinada máscara, mas de uma forma rígida. A fluidez da metamorfose lhe é proibida. Seu efeito é demasiadamente incerto, não se pode prever aonde se chegará caso a pessoa se abandonar a esta fluidez. Cala-se em todos os lugares onde a pessoa não quer se transformar. No emudecer desaparecem todos os motivos para a metamorfose. Por meio da fala trama-se tudo entre os homens; no silêncio tudo se torna rígido. O que cala tem a vantagem de que suas palavras são mais esperadas. Dá-se um peso maior a elas. Elas são concisas e isoladas, aproximando-se assim da ordem, A relação de diferença artificial de espécie entre quem ordena e quem deve obedecer significa que estas pessoas não têm uma linguagem comum. Elas não falam entre si; é como se não pudessem fazê-lo. A ficção de que somente são capazes de compreender-se através da ordem é mantida em todas as circunstâncias. Desta maneira, os mandatários, dentro da esfera de sua função, calam. Por este motivo se costuma esperar que os silenciosos, quando por fim resolvem falar, digam palavras que são como ordens. A dúvida, o desprezo que se manifesta em relação às 328

formas mais livres de governo — como se elas não pudessem funcionar seriamente — estão vinculados à sua falta de aspectos secretos. Os debates no parlamento são travados entre centenas de homens; seu sentido está enraizado justamente no fato de serem públicos. Opiniões opostas são expostas e confrontadas. A curiosidade profissional da imprensa, o interesse do mundo financeiro levam freqüentemente às indiscrições. O indivíduo isolado, acredita-se, ou um grupo muito pequeno em torno dele são capazes de preservar um segredo. Parece ser mais seguro que as discussões sejam realizadas em grupos muito pequenos, formados em vista da manutenção do segredo; grupos que tenham imposto as mais severas penalidades à traição. O melhor, porém, seria que a decisão dependesse de um único indivíduo. Pois esta pessoa não poderia saber de antemão qual seria sua decisão antes de tomá-la e, uma vez tomada, como ordem ela encontra uma rápida execução. Uma boa parte do prestígio de que gozam as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser concedida a força concentrada do segredo, que nas democracias se reparte e se dilui entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas democracias tudo se dilui em palavrório. Todos falam demais, todos se intrometem em tudo, nada acontece que não se saiba de antemão. Tem-se a impressão de que a queixa se origina da falta de decisão, quando na verdade a decepção tem sua origem na falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar muitas coisas, desde que elas sejam impostas com violência e em segredo. Parece ser uma espécie de destino servil, de índole muito peculiar, já que não se é nada, ir parar dentro do ventre de um poderoso. Não se sabe o que realmente está acontecendo, não se sabe quando irá acontecer; é possível que outros tenham precedência para entrar no monstro. Espera-se de forma submissa, temendo e desejando ser a vítima escolhida. Nesta atitude é possível ver uma apoteose do segredo. Todo o restante é subordinado à sua glorificação. Não importa tanto o que acontece, desde que aconteça com a força repentina e ardente de um vulcão, inesperado e irresistível. Mas todos os segredos concentrados de um lado apenas e numa única mão acabam necessariamente sendo fatais: para o seu depositário, o que em si não teria muita importância, mas igualmente para todos os afetados, e isto é tremendamente importante. Todo segredo sempre é explosivo, aumentando sua potência graças ao próprio calor interno. O juramento é o seu selo; e é também o ponto onde ele se torna a abrir. Até que ponto um segredo pode vir a ser perigoso é algo 329

que apenas hoje conseguimos conhecer inteiramente. Em diversas esferas, que eram independentes entre si apenas na aparência, ele foi se carregando com um poder cada vez maior. O ditador por excelência, contra o qual o mundo unido realizou a guerra, mal tinha acabado de morrer quando o segredo reapareceu sob a forma da bomba atômica, mais perigoso do que nunca, crescendo rapidamente em suas devastações. Por concentração de um segredo entende-se a relação existente entre o número dos que são afetados por ele e o número dos que o guardam. Por esta definição é fácil compreender que nossos modernos segredos tecnológicos são os mais concentrados e os mais perigosos que já existiram. Eles afetam todos, mas apenas um número muito reduzido sabe algo a respeito deles, e de cinco ou dez homens depende a decisão de eles serem ou não utilizados.

Sentenciar e julgar É recomendável partir de um fenômeno que é familiar a todos nós: o prazer de julgar. "Um péssimo livro", diz alguém, ou "um quadro medíocre", dando a impressão de que tem algo objetivo a dizer. Toda a sua expressão revela que está dizendo aquilo com gosto, com prazer. Mas a forma da declaração engana e logo passa ã ser interpretada como de índole pessoal. "Um mau poeta" ou "um mau pintor", acrescenta-se em seguida, e isto soa como se se tivesse dito "um mau homem". Sempre temos oportunidade de surpreender conhecidos, desconhecidos e até a nós mesmos neste processo de julgar. O prazer que uma sentença negativa proporciona é sempre inconfundível. Trata-se de uma alegria dura e cruel que não se deixa perturbar por coisa alguma. A sentença somente é uma sentença quando é emitida com segurança atemorizante. Ela ignora a bondade, da mesma forma como ignora a prudência. A sentença é rapidamente encontrada; e combina perfeitamente com sua essência que ela seja formada sem reflexões. A paixão que ela revela deve-se à sua rapidez. A sentença incondicional e a sentença dada às pressas espelham-se com prazer no rosto de quem as profere. E em que consiste este prazer? Afasta-se algo de si, empurra-se algo para um grupo inferior, o que pressupõe que nós mesmos pertencemos a um grupo melhor. Nós nos elevamos rebaixando os outros. A existência da dualidade, que repre330

senta valores opostos, é considerada como natural e necessária. Tudo o que é bom existe para que se destaque do que é mau. E nós mesmos decidimos o que pertence a um campo ou a outro. O que assumimos desta forma é o poder do juiz. Porque é apenas aparentemente que o juiz se encontra entre os dois campos, no limite que separa o bom do mau. De qualquer forma, ele se conta entre os bons; a legitimação do seu cargo repousa, em grande parte, no fato de ele pertencer inabalavelmente ao campo do que é bom, como se tivesse nascido ali. Ele sentencia, por assim dizer, constantemente. Sua sentença é lei. São coisas muito determinadas aquelas sobre as quais ele deve proferir suas sentenças; seu amplo conhecimento a respeito do que é ruim e do que é bom se origina a partir de sua prolongada experiência. Mas também aqueles que não são juízes, aos quais ninguém encarregou destas funções e aos quais ninguém em plena posse de suas faculdades mentais encarregaria delas, se permitem interminavelmente proferir sentenças em todos os campos. Não se pressupõe qualquer conhecimento do assunto para isso; os que evitam proferir julgamentos, por terem vergonha de fazê-lo, podem ser contados pelos dedos. A enfermidade do sentenciar é uma das mais difundidas entre os homens, e praticamente todos nós somos atacados por ela. Procuremos descobrir a raiz disto. O homem tem uma profunda necessidade de voltar sempre a classificar todas as pessoas que possa imaginar. Dividindo o número vago e amorfo dos existentes em dois grupos e colocando-os um diante do outro, ele lhes atribui algo semelhante à densidade. Ele os concentra como se tivessem de lutar entre si; ele os radicaliza e os enche de inimizade. Da maneira como os imagina, da maneira como os quer, eles têm necessariamente de ficar uns contra os outros. A separação entre "bom" e "mau" é um método antiqüíssimo de classificação dualista, que no entanto nunca é inteiramente conceitual e que nunca é totalmente pacífica. Ela implica a existência de tensão entre os dois lados, e é importante que a sentença crie e renove esta tensão. É a tendência à formação hostil de maltas que está na base deste processo. Em última instância, ela deve levar à formação de maltas de guerra. Estendendo-se a todos os campos e a todas as atividades da vida, ela se dilui. Mas mesmo quando ela se desenvolve de forma pacífica, mesmo quando parece ser liquidada em uma ou duas palavras da sentença, esta inclinação de 331

levar a situação mais além, até o embate ativo e sangrento de duas maltas, sempre está presente como forma embrionária. Qualquer pessoa, nos mil relacionamentos de sua vida, pertence desta forma a inúmeros grupos de "bons", que se opõem a um número igualmente enorme de grupos de "maus". Depende apenas das circunstâncias o fato de este ou aquele grupo se exacerbar, se transformar em malta e se lançar sobre a malta inimiga. Sentenças aparentemente pacíficas transformam-se em sentenças de morte contra o inimigo. Os limites dos bons ficam então precisamente delimitados e coitado do mau que ousar ultrapassá-los! Ele nada tem a procurar entre os bons e deve ser aniquilado.

O poder do perdão. A graça O poder do perdão é um poder que cada um se reserva e todos o possuem. Seria curioso reconstruir uma vida segundo os atos de perdão que uma pessoa se permitiu. O homem de estrutura paranóica é aquele que dificilmente ou nunca consegue perdoar; ele avalia atentamente; nunca se esquece de nada onde existe algo para ser perdoado; arma-se de pretextos para não perdoar. A principal resistência na vida de indivíduos desta espécie se dirige contra toda e qualquer forma de perdão. Mesmo quando conseguem chegar ao poder, e para merecerem sua afirmação nele são obrigados a outorgar o perdão, isto ocorre apenas de forma aparente. O poderoso nunca consegue perdoar realmente. Todo e qualquer ato de hostilidade permanece rigorosamente registrado: apenas fica encoberto e guardado em reserva. Muitas vezes o perdão é concedido em troca de uma submissão verdadeira; os atos de generosidade dos poderosos sempre têm este sentido. Eles desejam tanto a submissão de tudo o que encontram que freqüentemente estão dispostos a pagar um preço excessivamente elevado por ela. O impotente, para quem o detentor do poder é descomunalmente forte, não vê quanto é importante para este a submissão completa de todos. Se ele tem alguma sensibilidade, apenas conseguirá apreciar o aumento do poder tomando por base seu peso efetivo, mas nunca será capaz de apreciar o que significa para o rei resplandecente a genuflexão do último, do mais esquecido e miserável de seus súditos. O interesse que o Deus da Bíblia tem por cada uma das pessoas, a constância e a preocupação com que cuida de cada alma devem servir de 332

modelo elevado para todos os detentores do poder. Foi Ele também quem instituiu o complexo relacionamento de perdões; quem se submete a Ele é recebido novamente em sua graça. Mas Ele analisa detalhadamente a conduta do seu servo e, dada sua onisciência, é bastante fácil para Ele perceber até que ponto estão tentando enganá-lo. Não pode haver a menor dúvida de que muitas proibições existem apenas para sustentar o poder dos que podem punir ou perdoar as transgressões. A graça é um ato muito elevado e concentrado de poder, pois pressupõe a condenação; sem que esta tenha ocorrido previamente, é impossível que aconteça o ato da graça. Na graça também existe uma escolha. Não é costume indultar senão um número determinado e restrito de condenados. Quem castiga tomará cuidado para não ser excessivamente clemente; mesmo quando aparenta demência, quando se comporta como se a dureza da execução contrariasse sua natureza mais íntima, ele se sentirá na necessidade de recorrer a ela pelo sagrado dever de castigar. Mas deixa sempre aberto o caminho da graça, quer ele mesmo decida usá-la em casos especiais, quer a recomende a uma instância superior encarregada da sentença. O crescimento do poder culmina lá onde o indulto se verifica no último momento possível. Quando a morte que se decretou está para ser executada, no patíbulo da forca ou diante do pelotão de fuzilamento, o indulto aparece como sendo uma nova vida. O limite do poder está no fato de ele não poder realmente fazer com que os mortos retornem à vida; no entanto, no ato longamente prolongado da graça, o poderoso se sente freqüentemente como se tivesse conseguido ultrapassar este limite.

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A ORDEM

A

ordem: fuga e aguilhão

"Uma ordem é uma ordem": o caráter definitivo e indiscutível que é próprio da ordem pode também ter contribuído para que tão pouco se tenha refletido a respeito dela. Ela é aceita como algo que sempre existiu assim; parece ser tão natural quanto indispensável. Desde pequeno se está acostumado às ordens; elas formam uma boa parte daquilo que chamamos educação; toda a vida adulta também está repleta delas, seja nas esferas do trabalho, da luta ou da fé. Praticamente ninguém se perguntou o que é exatamente uma ordem; se ela realmente é tão simples quanto parece ser; se, apesar da rapidez e da lisura com a qual provoca o previsto, não deixa outros vestígios mais profundos, talvez até mesmo hostis, no homem que obedece. A ordem é mais antiga do que a fala, caso contrário os cães não a poderiam entender. O adestramento dos animais baseia-se justamente em que eles, sem conhecer a fala, aprendem a compreender o que se espera deles. Por meio de ordens breves e muito claras, que em princípio não diferem das que são dadas aos homens, lhes é comunicada a vontade do domador. Eles obedecem a esta vontade, da mesma forma como acatam as proibições. Tem-se portanto todo o direito de buscar raízes mais antigas da ordem; pelo menos está mais do que claro que alguma forma de ordem existe também fora da sociedade humana. A forma mais antiga do efeito da ordem é a fuga. Ela é ditada ao animal por alguém mais forte, por uma criatura fora dele. A fuga é espontânea somente na aparência; o perigo sempre tem uma forma; e sem supor esta forma, animal algum fugiria. A ordem de fuga é tão forte e direta quanto o olhar. Desde o começo pertence à essência da fuga a diversidade de ambas as criaturas que desta maneira entram em relacionamento uma com a outra. Uma delas apenas dá a entender que quer devorar a outra: daí a seriedade mortal da fuga. A "ordem" obriga o animal mais fraco a se colocar em movimento, independentemente de ele ser perseguido logo em seguida ou não. Importa apenas a intensidade da ameaça: a intensidade da voz, do olhar, da forma que impõe o terror. 337

A ordem é derivada, portanto, da ordem de fuga: em sua forma mais primitiva, ela ocorre entre animais de diferentes espécies, dos quais um ameaça o outro. A grande diferença de poder entre ambos, o fato de que um deles — poderíamos dizer — está acostumado a servir de presa ao outro, o inabalável desta relação que parece estar estabelecida desde sempre, tudo isto confere algo de absoluto e de irrevogável ao acontecimento. A fuga é a última instância à qual se pode apelar contra esta sentença de morte. O rugir de um leão que sai à caça realmente é uma sentença de morte: trata-se de um som de sua fala que todas as suas vítimas entendem; e é possível que esta ameaça seja a única coisa em comum entre elas, que são tão distintas entre si. A ordem mais antiga — dada muito antes de os homens existirem — é uma sentença de morte e obriga a vítima à fuga. Será bom lembrar isso quando abordarmos a questão da ordem entre os homens. A sentença de morte e o seu terror desapiedado transparecem por trás de toda ordem. O sistema das ordens entre os homens está constituído de tal forma que geralmente as pessoas escapam da morte; mas o terror em relação a ela, a ameaça, está sempre contido na ordem; além disso, a manutenção e a execução de verdadeiras sentenças de morte mantêm desperto o terror diante de cada ordem, diante das ordens de maneira geral. Mas agora esqueçamos por um momento o que já descobrimos a respeito da origem da ordem e vamos contemplá-la sem preconceitos, como se o fizéssemos pela primeira vez. A primeira coisa que chama a atenção numa ordem é o fato de ela provocar uma ação. Um dedo estendido apontando numa determinada direção pode ter o efeito de uma ordem: todos os olhos que percebem esse dedo viram-se na direção indicada. Parece portanto que a ação provocada, cuja direção está determinada, é tudo o que importa na ordem. Sua difusão numa direção é particularmente importante; sua reversão é tão imprópria quanto sua modificação. É próprio da ordem não admitir réplica. Ela não deve ser explicada, discutida ou colocada em dúvida. É clara e concisa, já que deve ser entendida imediatamente. Um atraso na recepção prejudica sua força. Em cada repetição que não for seguida de execução, a ordem perde um pouco de sua vida; após algum tempo ficará esgotada ou impotente, prostrada no solo; e nestas circunstâncias é melhor não tentar reavivá-la. Porque a ação que a ordem provoca está ligada ao seu instante. Ela também pode ser fixada para mais tarde, mas deve estar deter338

minada, seja de forma expressa, seja de maneira claramente pela sua pr ópr ia natureza. wanif Aestaaçao q ue é execu tadaem virtude de uma ordem é disestratinta de todas as demais ações. É considerada como algo a lembrança tem algo de passageiro. Alguma coisa difesu nho; rente passa junto à pessoa como um vento fugaz. A rapidez de execução que uma ordem exige talvez contribua para que ela eja vista como algo estranho; mas só isso não é suficiente para s fora. explicá-la. Para a ordem é importante que ela venha de Sozinho, ninguém teria tido tal idéia. Ela pertence aos elementos da vida que são impostos; ninguém os desenvolve dentro de si mesmo. Mesmo quando aparecem repentinamente homens solitários com uma massa monstruosa de ordens tentando fundar uma nova fé, renovando uma fé antiga, a aparência de uma carga alheia, imposta, é estritamente mantida. Estas pessoas jamais falarão em seu próprio nome. O que elas exigem dos outros lhes foi ordenado; e, por mais que mintam em algumas coisas, neste ponto sempre são sinceros: acreditam ter sido enviados. A origem da ordem, que é algo estranho, também deve ser considerada como algo mais forte. Obedece-se porque não seria possível combater com perspectivas de êxito; quem vencesse, mandaria. O poder da ordem não deve ser colocado em dúvida; caso este poder tenha diminuído, ele deve estar disposto a reafirmar-se por meio de lutas. Na maior parte das vezes este poder é reconhecido durante muito tempo. É surpreendente notar quão poucas vezes se exigem novas decisões; os efeitos das decisões antigas perduram. Lutas vitoriosas continuam vivendo nas ordens; em cada ordem obedecida renovase uma vitória antiga. Visto de fora, o poder de quem manda cresce de forma incessante. A menor ordem consegue acrescentar-lhe algo. Ela não é dada habitualmente apenas para ser útil a quem se utiliza dela; existe também na natureza da própria ordem, no reconhecimento que encontra, no espaço que atravessa, na sua pontualidade peremptória, algo que garante ao poder uma maior segurança e um crescimento de seu âmbito. O poder emite ordens como uma nuvem de flechas mágicas: as vítimas que são atingidas por elas se oferecem ao todo-poderoso, chamadas, tocadas e conduzidas por essas flechas. No entanto a simplicidade e a unidade da ordem que à primeira vista parecem ser absolutas e incontestáveis, quando examinada s com maior atenção revelam-se aparentes. A ordem 339

pode ser decomposta. É necessário decompô-la, caso contrário jamais conseguiremos compreendê-la realmente. Toda ordem consta de um impulso e de um aguilhão. O impulso força o receptor à execução, de um modo adequado ao conteúdo da ordem. O aguilhão permanece dentro de quem executa a ordem. Quando as ordens funcionam normalmente, como se espera delas, nada se vê deste aguilhão. Ele é secreto, não se suspeita de sua existência; talvez se manifeste, levemente perceptível, numa pequena resistência antes de a ordem ser obedecida. Mas o aguilhão penetra fundo no homem que cumpriu uma ordem e permanece lá dentro,) inalterável. Entre todas as configurações psíquicas não existe,qualquer outra coisa que seja menos mutável. O conteúdo da ordem mantém-se conservado no aguilhão; sua força, seu alcance, suas limitações, tudo foi prefigurado para sempre no momento em que a ordem foi dada. Podem-se passar anos ou décadas sem que esta parte aprofundada e armazenada da ordem (sua réplica em ponto pequeno) apareça novamente. Mas é importante saber que ordem alguma se perde; ela nunca se acaba realmente com sua execução — ela é armazenada para sempre. Os receptores de ordens mais afetados são as crianças. Parece um milagre que elas não sucumbam debaixo do peso de tantas ordens, que elas consigam sobreviver aos mandos e desmandos de seus educadores. O fato de elas, com a mesma crueldade de seus educadores, transmitirem posteriormente tudo isso aos seus próprios filhos é algo tão natural quanto mastigar e falar. Mas o que sempre causará surpresa é que elas tenham mantido intactas as ordens desde a mais tenra infância; estas ordens estão à disposição assim que a próxima geração ofereça suas vítimas. Nenhuma ordem foi modificada no menor detalhe sequer; ela poderia ter sido dada uma hora atrás apenas, mas na verdade ela foi dada há vinte, trinta ou mais anos. A força com que a criança recebe ordens, a tenacidade e fidelidade com que as guarda dentro de si não são um mérito individual. Inteligência ou talento especial nada têm a ver com isso. Toda a criança, até mesmo a mais comum, não perde nem perdoa nenhuma das ordens com as quais foi maltratada. É mais fácil que se modifique o aspecto de um homem, as características pelas quais os outros o reconhecem — a postura da cabeça, a expressão da boca, o modo de olhar —, do que a imagem da ordem que permaneceu dentro dele como um aguilhão e que foi armazenada de maneira inalterável. Inalterada, a ordem volta a ser expulsa, mas para isto é preciso 340

,, ue haja uma oportunidade; a nova situação na qual esta ordem se desprende deve assemelhar-se à situação antiga na qual ecebida. A reconstrução destas situações primordiais, mas foi r de maneira inversa, é uma das grandes fontes de energia psíquica do homem. O incentivo, a "espora", como se diz, para conseguir alcançar isto ou aquilo é o impulso mais profundo para desfazer-se de ordens recebidas no passado. Somente a ordem executada é que deixa o seu aguilhão cravado em quem a cumpriu. Quem evita as ordens também não precisa armazená-las. O homem "livre" é somente aquele que aprendeu a se desviar das ordens, e não aquele que somente mais tarde consegue se libertar delas, Mas quem necessita de mais tempo para esta libertação, ou quem não é capaz disso, sem dúvida alguma é a pessoa mais carente de liberdade. Nenhum homem imparcial considera como uma carência de liberdade obedecer a seus próprios impulsos. Mesmo quando estes impulsos se tornam mais fortes e sua satisfação leva às mais perigosas complicações, o indivíduo tem a impressão de que está agindo a partir de sí mesmo. Mas, quando ele se opõe dentro de si à ordem que lhe foi dada de fora para dentro e que ele foi obrigado a executar, então fala-se de pressão, e a pessoa se reserva o direito de reversão ou de rebelião.

A domesticação da ordem A ordem de fuga, que contém uma ameaça de morte, supõe uma grande diferença de poder entre os participantes. Quem coloca outro em fuga poderia matá-lo. Na natureza esta situação fundamental se deve ao fato de que muitas espécies animais se alimentam de outros animais. É de outras espécies que elas vivem. Por este motivo, a maior parte dos animais se sente ameaçada por outros de. outra espécie, recebendo deles, estranhos e inimigos, a ordem de fuga. Mas o que nós na vida comum chamamos ordem se desenvolve entre os homens: o senhor manda no seu escravo, a mãe manda no seu filho. A ordem, tal como nós a conhecemos, evoluiu afastando-se de sua origem biológica: da ordem de fuga. Ela se domesticou. Ela é empregada nas relações sociais em geral, mas também na mais íntima convivência humana. Ela é bastante diferente do que descrevemos como ordem de fuga. O senhor chama o escravo e este se aproxima, mesmo sabendo que irá receber uma ordem. A mãe chama seu filho e não é sempre que este escapa. Apesar de ela sobrecarregá-lo 341

com ordens de todos os tipos, de maneira geral mantém-se o carinho. O filho permanece na sua proximidade, vem correndo em direção a ela. O mesmo também é válido para o cachorro : ele sempre permanece nas proximidades do seu dono, e ven correndo assim que ouve o assobio. Como se chegou a esta domesticação da ordem? O que tornou inócua a ameaça de morte? A explicação desta evolução está no fato de que em cada um destes casos pratica-se uma espécie de suborno. O senhor dá a comida ao seu cão ou ao seu escravo, a mãe alimenta seu filho. A criatura em estado de submissão está acostumada a receber seu alimento apenas de uma única mão. O escravo ou o cão recebem seu alimento exclusivamente do seu dono; nenhuma outra pessoa tem obrigação de fazê-lo; na verdade nenhuma outra pessoa deve alimentá-los. A relação de propriedade consiste em parte em que todo e qualquer alimento chegue a eles apenas pelas mãos do dono. A criança, porém, ainda não é capaz de se alimentar sozinha. Desde o seu primeiro momento de vida ela depende do peito materno. Entre a entrega do alimento e a ordem criou-se uma estreita relação. Muito claramente esta relação aparece na prática do adestramento de animais. Quando o animal fez o que devia fazer, recebe uma guloseima da mão do domador. A domesticação da ordem a transforma numa promessa de alimento. Em vez de ameaçar com a morte e de provocar a fuga, promete-se o que toda criatura deseja em primeiro lugar, e cumpre-se estritamente a promessa feita. Em vez de servir de alimento ao seu dono, em vez de ser devorada, a criatura à qual se dá este tipo de ordem recebe o que comer. Esta desnaturação da ordem de fuga biológica educa homens e animais para uma espécie de cativeiro voluntário, do qual existerrn todos os tipos de intensidade e de nuanças. Entretanto isto não modifica inteiramente a essência da ordem. Ela passa a ser atenuada, mas existem sanções expressas em casos de desobediência; estas sanções podem ser muito severas e a mais severa de todas é a sanção primitiva, ou seja, a morte.

Contragolpe e medo de mandar Uma ordem é como uma flecha. Ela é disparada e acerta. O mandatário faz pontaria antes de dispará-la. Ele irá acertar um alvo muito determinado com sua ordem; e a flecha também sempre tem uma direção que foi previamente escolhida. 342

permanece cravada em quem foi atingido; este preA ordem xtraí-1a e atirá-la por sua vez para livrar-se de sua ameaça. cisa eerdade o processo da transmissão de ordens se desenvolve Na v destinatário extraísse a ordem de si mesmo, reteComo s- o próprio arco e voltasse a disparar outra vez a mesma seu sasse a qual foi. atingido. A ferida no seu próprio corpo porém uma cicatriz. Cada cicatriz tem uma hismarca sftó laerrcaiha,,adéecioaxmando deixada por uma determinada flecha. Mas o mandatário que dispara a flecha percebe um ligeiao fazê-lo. O próprio efeito, por assim dizer, o ro contragolpe contragolpe psíquico, ele o sente quando percebe que atingiu o alvo. Neste ponto termina a analogia com a flecha física. Mas é muito mais importante observar as marcas que o disparo bem-sucedido deixa no atirador contente. A satisfação pelas ordens cumpridas, ou seja, pelas ordens dadas com êxito, engana em grande parte sobre o que acontece com o atirador. Existe sempre como que a percepção de um contragolpe; o que a pessoa fez fica também estampado nela, não apenas na vítima. Muitos contragolpes se acumulam dando origem ao medo. Trata-se de um tipo especial de medo aquele que resulta da freqüente repetição de ordens; por este motivo prefiro denominá-lo o medo de mandar. Ele é menor na pessoa que apenas transmite ordens. É tanto maior quanto mais perto esteja quem dá as ordens da fonte de mando propriamente dita. Não é difícil compreender como se produz este medo de mandar. Um disparo que mata um ser isolado não deixa após si perigo algum. O morto já não nos pode causar mal algum. Uma ordem que ameaça de morte, mas que 'apesar disso não mata, deixa a recordação da ameaça. Algumas ameaças se perdem e outras atingem o alvo; são justamente estas que jamais são esquecidas. Quem fugiu perante a ameaça ou quem cedeu a ela certamente irá se vingar. Pessoas nestas situações sempre se vingam quando chega o momento adequado e aquele de quem partiu a ameaça tem plena consciência disso; ele precisa fazer tudo o que lhe for possível para impedir que ocorra uma inversão dos papéis. Há um sentimento de perigo que consiste em saber que todo aquele a quem se deram ordens, a quem se ameaçou de morte, vive e se recorda; nesse perigo se sentiria alguém, se todos os que foram ameaçados de morte se unissem contra ele. Trata-se de um sentimento profundamente motivado, que no entanto é impreciso porque nunca se sabe quando os ameaçados passarão da lembrança para a ação. Este torturante, ines343

gotável e ilimitado sentimento de perigo eu defino como medo de mandar. Ele é tanto maior quanto mais elevada for a posição da pessoa. Na fonte da ordem, na pessoa que dá as ordens a partir de si mesma, que não as recebe de qualquer outra pessoa, que por assim dizer gera as próprias ordens, a concentração do medo de mandar alcança sua densidade máxima. Esse medo pode permanecer durante muito tempo domesticado e oculto nos detentores do poder. Ele pode ir aumentando no decorrer da vida de um governante, e manifestar-se numa espécie de delírio cesarista.

A ordem a muitos É preciso distinguir entre a ordem dada a um indivíduo e a que é dada simultaneamente a muitos. Já na origem biológica da ordem existe essa diferença. Alguns animais vivem isolados e recebem a ameaça dos seus inimigos de forma individual. Outros vivem em bandos e são ameaçados coletivamente. No primeiro caso o animal foge ou se esconde sozinho. No segundó caso foge o bando todo. Um animal que normalmente vive em bandos, mas que por casualidade é surpreendido sozinho pelo inimigo, procura fugir e reintegrar-se no bando. A fuga individual e a fuga em massa são diferentes a partir da própria base. O medo em massa de um bando que foge é o mais antigo e, seria possível dizer, o mais familiar de todos os estados de massa que se conhecem. É muito provável que a partir desse medo de massa tenha se derivado o sacrifício. Um leão que está perseguindo um bando de gazelas, todas fugindo juntas com medo dele, cessa sua perseguição assim que consegue agarrar um dos animais. Este animal é sua oferenda no sentido mais amplo da palavra. Ele proporciona tranqüilidade aos demais companheiros do bando. Assim que o leão obtém o que quer e os demais animais percebem que isso acontece, o medo diminui. Da fuga de massa, eles tornam a entrar no estado normal do bando: cada animal pasta livremente e faz o que deseja. Se as gazelas tivessem religião, se o leão fosse o deus delas, elas poderiam, para saciar sua avidez, entregar-lhe por iniciativa própria uma gazela. Exatamente isto é o que acontece entre os homens: a partir do estado de medo de massa, deriva-se entre eles o sacrifício religioso. Graças a ele detêm-se a perseguição e a fome do poder perigoso durante um certo tempo. 344

A massa, em estado de medo, quer permanecer junta. No auge do seu perigo ela se sente protegida apenas quando sente a proximidade dos outros. Ela é massa principalmente pela direção comum da fuga. Um animal que escapa e que se locomove numa direção própria está mais exposto do que os demais. Além disso ele sente o perigo com maior intensidade porque está só: seu medo é muito maior. A direção comum dos animais que fogem poderia ser chamada sua "convicção"; o que os mantém unidos os empurra para a frente com maior vigor. Eles não sentem pânico enquanto não estejam abandonados,enquanto cada animal ao lado faça a mesma coisa e esteja realizando exatamente os mesmos movimentos. Esta fuga em massa, pelo movimento paralelo das patas, dos pescoços e das cabeças, assemelha-se ao que, entre os seres humanos, eu chamaria de massa palpitante ou rítmica. Entretanto, assim que os animais estão cercados, a imagem se modifica. Uma direção comum de fuga já não é mais possível. A fuga em massa se transforma agora em pânico: cada animal procura salvar-se a si próprio e atrapalha o outro. O anel em torno deles se contrai sempre mais. No massacre que agora tem início, um animal é inimigo do outro, uma vez que todos se bloqueiam mutuamente o caminho da salvação. Mas voltemos à ordem propriamente dita. A ordem dada a indivíduos, dissemos, é diferente da ordem dada a muitos. Antes de fundamentar esta frase, é recomendável falar a respeito de sua exceção mais importante. Um acúmulo artificial de muitos é o que se dá no exército. Nele anulam-se as espécies diferentes de ordens; justamente isto constitui sua essência. Que a ordem se dirija a indivíduos, sejam poucos ou muitos, aqui não faz diferença. Um exército existe somente se a ordem é equivalente e constante. Ela vem de cima e permanece estritamente isolada. Desta forma o exército nunca pode ser uma massa. Porque na massa a ordem se expande horizontalmente entre seus membros. No começo é possível que ela alcance um indivíduo isolado, vinda de cima. Porém, como existem outros iguais a ele a seu redor, ela se transmite também a eles. No seu medo, o indivíduo se aproxima mais dessas pessoas. Imediatamente os demais passam a ser contagiados. Primeiro alguns se colocam em movimento; pouco depois outros seguem esse exemplo, e logo todos estão se movimentando. Pela expansão instantânea da mesma ordem, essas pessoas se transformaram em massa. Agora todos fogem juntos. Uma vez que a ordem é imediatamente difundida, ela não 345

deixa aguilhão ou espinho. Não existe tempo para que isso aconteça; o que se teria convertido num elemento permanente é imediatamente dissolvido. A ordem dada à massa não deixa aguilhão. A ameaça, que leva à fuga em massa, se dissolve precisamente nessa fuga. É a situação de ordem isolada exclusivamente que nos leva à formação do aguilhão-ordem. A ameaça, que comporta uma ordem dada a um ser singular, não pode dissolver-se completamente. Qualquer pessoa que tenha cumprido uma ordem sozinha conserva sua resistência como aguilhão, como espinho dentro de si, um duro cristal de rancor. Somente consegue desfazer-se dele, dando ela mesma uma ordem idêntica. Seu aguilhão nada mais é do que o retrato fiel e oculto da ordem que recebeu e que não pôde transmitir no mesmo momento. Somente na forma desse retrato fiel é que a pessoa consegue libertar-se do aguilhão. Uma ordem dada a muitos tem portanto um caráter muito peculiar. Sua meta é transformar uma maioria numa massa e, à medida que consegue fazer isso, não dá origem ao medo. A "palavra de ordem" de um orador que impõe uma direção aos homens reunidos tem exatamente esta função, e pode ser considerada como uma ordem dada a muitos. Do ponto de vista da massa, que gostaria de se formar rapidamente e manter-se como unidade, essas palavras de ordem são úteis e indispensáveis. A arte do orador consiste em conseguir resumir e expressar vigorosamente tudo o que deseja em palavras de ordem que ajudam a constituição e a manutenção da massa. Ele gera a massa e a mantém viva através de uma ordem superior. Depois de ter conseguido isso, não tem muita importância o que ele realmente irá exigir dela. O orador pode insultar e ameaçar um aglomerado de indivíduos isolados da maneira mais terrível; mesmo assim eles o amarão, se dessa maneira ele conseguir formá-los como massa.

Espera de ordens O soldado em serviço apenas cumpre ordens. É possível que tenha vontade de fazer isto ou aquilo, mas como é soldado isso não conta. Ele não pode encontrar-se diante de encruzilhadas; e mesmo que se encontrasse não seria ele quem iria decidir qual dos caminhos tomar. Sua vida ativa está restringida por todos os lados. Ele faz o que todos os demais soldados fazem com ele; e faz o que lhe é ordenado. A eliminação 346

rivremen

todas as demais ações, que os demais homens executam te (ou assim pensam), o deixa ávidÕ das ações que tos de executar. A sentinela, que permanece imóvel durante horas em seu o melhor exemplo da constituição psíquica do sol, posto, a não pode se afastar, não pode adormecer, não pode Ela do. El se movimentar, a não ser que lhe tenham sido prescritos certos movimentos, fixados nos menores detalhes. Seu serviço proríamente dito é a resistência a qualquer tentação de abandoPna r seu posto, seja qual for a forma sob a qual esta tentação possa aparecer. Esse negativismo do soldado, como poderia ser definido, é sua espinha dorsal. Todos os motivos habituais de ação, como os desejos, o temor, a inquietude, que constituem a essência da vida do homem, são reprimidos dentro dele. E ele os combate melhor quando nem sequer chega a confessá-los. Todo ato que ele então realmente executa deve estar sancionado por uma ordem. Como é muito difícil para um homem não fazer coisa alguma, acumula-se dentro dele uma grande expectativa pelo que lhe é permitido empreender. O desejo de ação se represa e cresce até atingir proporções desmedidas. Mas, como antes da ação existe uma ordem, a expectativa se volta para esta: o bom soldado está sempre em estado de consciente espera de ordens. Esta espera é ampliada de todas as formas possíveis pela educação; ela se manifesta claramente nas posturas e nas fórmulas militares. O momento vital na existência do soldado é o da posição de atenção diante de seu superior. Num estado de tensão e de receptividade máximas, ele se coloca diante do superior e a fórmula que pronuncia — "Às suas ordens!" — expressa com grande precisão do que se trata. A educação do soldado começa no momento em que lhe são proibidas muito mais coisas do que aos demais homens. Para as menores transgressões existem castigos severos. A esfera do proibido, com a qual já está familiarizado desde criança, se amplia até atingir o gigantesco para o soldado. Muros e mais muros são construídos em torno dele; muros que são iluminados para ele, e que dão a impressão de crescer diante dele. Sua altura e severidade se igualam à sua claridade. Constantemente fala-se a respeito desses muros; o soldado não pode alegar desconhecê-los. Começa então a se movimentar como se eles estivessem sempre ao seu redor. O aspecto anguloso do soldado é como um eco, em seu corpo, da dureza e da lisura desses muros ; ele adquire algo de uma figura estereométrica. 347

É um prisioneiro que se adaptou aos seus muros; um prisioneiro que está satisfeito; que se defende tão pouco contra a situação em que se encontra quanto os muros que o moldam. Enquanto outros prisioneiros vivem apenas de uma única idéia (como conseguir saltar ou perfurar seus muros), o soldado os aceita como uma nova natureza, como um ambiente natural ao qual se adapta, no qual ele mesmo acaba se transformando. Somente quem incorporou dentro de si, desta maneira intensa, a medida plena das proibições, quem através dos afazeres de todos os dias — e isto dia após dia — demonstrou que sabe se esquivar da maneira mais precisa de todas as coisas que são proibidas é que passa realmente a ser soldado. Para ele, a ordem tem um valor superior. É como a saída de uma fortaleza, dentro da qual se tenha permanecido durante tempo demasiado. A ordem o atinge como um raio que o lança contra os muros do que é proibido; como um raio que mata apenas esporadicamente. Neste enorme deserto monótono das coisas proibidas que se estende por todos os lados em torno dele, a ordem acontece como uma redenção: a figura estereométrica se anima e se coloca em movimento ao ouvir a voz de comando. Faz parte da formação do soldado que ele aprenda a receber ordens de duas maneiras; sozinho ou na companhia de outros. Os exercícios o habituaram a movimentos que são executados juntamente com os demais; todos devem realizá-los de maneira absolutamente idêntica. Trata-se de uma espécie de precisão que se aprende melhor pela imitação dos demais do que sozinho. Desta forma o indivíduo torna-se igual aos outros; estabelece-se uma igualdade que eventualmente pode ser utilizada para transformar a divisão do exército em massa. Normalmente, porém, deseja-se exatamente o contrário: igualar o mais possível os soldados, sem que eles se transformem em massa. Quando estão juntos como unidade, eles reagem a todas as ordens dadas em conjunto. No entanto, deve continuar existindo a possibilidade de separá-los: um, dois, três homens, metade deles, quantos o comandante desejar. O fato de eles marcharem juntos deve ser exterior; a divisibilidade da divisão constitui sua utilidade. A ordem deve sempre poder atingir o número que se quiser: um, vinte ou a divisão inteira. Sua eficiência não pode depender da quantidade dos que são atingidos. É a mesma ordem, pouco importando que seja apenas um quem a recebe ou todos. Esta natureza invariável da ordem é da maior importância: ela a subtrai de todas as influências da massa. 348

A pessoa que deve dar ordens num exército deve poder rqanter-se livre de toda e qualquer massa — fora dele, dentro Ela aprendeu isso tendo sido educada para esperar ordens. ele. Espera de ordens dos peregrinos em Arafat o momento mais importante durante a peregrinação a Meca, a culminação propriamente dita, é o wukzif ou o "ficar parado em Arafat", a estação antes de Alá, a algumas horas de dis• tância de Meca. Uma multidão enorme de peregrinos — às vezes seiscentos ou setecentos mil homens — acampa num vale rodeado de penhascos áridos e estende-se em direção ao Monte da Comiseração, situado no centro desse vale. Um pregador se encontra no local onde em outros tempos esteve o profeta, e pronuncia um sermão solene. A multidão lhe responde com o grito: "Labbeika ya Rabbi, labbeika! Aguardamos tuas ordens, Senhor, aguardamos tuas ordens!" Este grito é repetido durante o dia todo de forma incessante e vai aumentando até a demência. Então, numa espécie de repentino medo de massa — chamado ifadha ou "rio" —, todos fogem juntos como possessos de Arafat em direção à localidade vizinha de Mozdalifa, onde passam a noite, indo no dia seguinte para Mina. Todos correm numa terrível confusão, empurrando-se e pisoteando-se uns aos outros; esta correria geralmente custa a vida de vários peregrinos. Uma vez em Mina são sacrificados muitos animais, cuja carne é consumida imediatamente por todos. O solo fica empapado de sangue e encontram-se restos de animais por todos os lados. A parada em Arafat é o momento no qual a espera de ordens das massas de crentes alcança sua intensidade máxima. A fórmula concisa repetida milhares de vezes, "Aguardamos tuas ordens, Senhor! Aguardamos tuas ordens", expressa isto com muita clareza. O Islamismo, a submissão estão reduzidos aqui ao seu denominador mínimo, um estado no qual os homens pensam apenas nas ordens do Senhor e clamam por elas com toda a violência imaginável. O medo súbito que se produz a um determinado sinal e que provoca uma fuga em massa sem paralelo tem uma explicação: o antigo caráter da ordem, que é uma ordem de fuga, irrompe sem que os crentes possam saber por que isso acontece. A intensidade de sua expectativa como massa aumenta ao máximo o efeito da ordem divina, até que se converte no que toda ordem originalmente é: uma ordem de fuga. A ordem de Deus coloca os homens em fuga. 349

A continuação desta fuga no dia seguinte, depois de terem passado a noite em Mozdalifa, demonstra que o efeito da ordem ainda não se esgotou. Segundo a concepção islâmica, é a ordem imediata de Deus que traz a morte aos homens. Eles procuram escapar desta morte e a transferem para os animais que são sacrifica. dos em Mina, ponto final dessa fuga. Os animais tomam aqui o lugar dos homens, substituição corrente em muitas religiões ; basta lembrar, por exemplo, o sacrifício de Abraão. Desta maneira os homens escapam do banho de sangue que Deus lhes destinou. Eles se submeteram às ordens Dele, tanto que fugiram de sua presença, não o privando sequer do sangue: o solo finalmente fica encharcado com o sangue dos animais sacrificados em massa. Não existe nenhum outro costume religioso que torne tão evidente a natureza íntima da ordem como a parada em Arafat, o wukuf e a fuga em massa que ocorre logo em seguida, o ifadha. No Islamismo, onde o mandamento religioso ainda possui muito do caráter imediato da própria ordem, a espera de ordens e a própria ordem de forma geral se revelam da maneira mais pura possível no wukuf e no ifadha.

Aguilhão-ordem e disciplina A disciplina constitui a essência do exército. Mas trata-se de uma disciplina dupla: uma declarada e outra secreta. A disciplina declarada é a ordem: já se mostrou como o estreitamento da fonte de ordens conduz à formação de uma criatura extremamente curiosa, mais figura estereométrica do que criatura humana propriamente dita: o soldado. O que mais o caracteriza é o fato de viver sempre em estado de espera de ordens. Este estado marca sua atitude e sua estatura; o soldado que sai deste estado já não está mais a serviço — simplesmente é uma pessoa que usa uniforme para combinar com as aparências. A constituição do soldado é reconhecível por todas as pessoas, ela não poderia ser mais pública do que é. Mas esta disciplina declarada não é tudo. Com ela existe outra a respeito da qual o soldado não fala, e que ele nem deveria mostrar: uma disciplina secreta. Para certos tipos mais obtusos é possível que esta outra disciplina se torne consciente apenas algumas vezes. Mas na maioria dos soldados, principalmente em nosso tempo, ela sempre está desperta, se bem que de maneira oculta. Trata-se da disciplina da promoção. 350

Pode parecer estranho que se qualifique como secreta coisa tão conhecida como a promoção. Mas a promoção tuna .oenas é a expressão pública de uma coisa muito mais pro.f-uri-ida que permanece secreta, porque na maneira de sua função é• pouco comi,reendida• A promoção é a expressão do que existe aguilhão-ordem. de oculto no É evidente que esses aguilhões devem acumular-se de maneira francamente monstruosa no soldado. Tudo o que ele faz, é obedecendo a uma ordem; ele não faz outra coisa, não deve fazer outra coisa; é exatamente isto que a disciplina declarada exige deles. Seus próprios impulsos espontâneos são reprimidos. Ele engole ordens e mais ordens e, como quer que ele se sinta durante essas ações, jamais pode cansar-se delas. Para cada ordem que ele executa — e executa todas as ordens que recebe — fica um aguilhão, um espinho, dentro dele. A saturação desses aguilhões dentro dele é um processo rápido. Se ele está servindo como soldado raso, no mais baixo degrau da hierarquia militar, lhe é negada toda e qualquer oportunidade para se desfazer dos seus aguilhões, pois ele próprio não pode dar ordem alguma. Somente pode fazer o que lhe é ordenado. Obedece e vai se tornando cada vez mais rígido em sua obediência. Uma mudança nesse estado, que possui algo de violento, somente é possível mediante uma promoção. Assim que ele é promovido, deve começar a dar ordens também, e fazendo isso começa a livrar-se de uma parte dos seus aguilhões. Sua situação — se bem que de maneira muito restrita — se inverteu. Ele deve exigir coisas que anteriormente foram exigidas dele próprio. O modelo da situação permaneceu exatamente o mesmo; somente sua posição é que se modificou dentro dele. Seus aguilhões aparecem agora como ordens. O que antes lhe era ordenado por seu superior imediato, ele próprio começa a ordenar. Não depende dos seus caprichos a libertação dos seus aguilhões, mas ele é colocado numa posição que é ideal para que isso aconteça: deve dar ordens. Cada posição permaneceu exatamente a mesma, cada palavra continua sendo exatamente a mesma. Outros ficam parados diante dele, exatamente na mesma posição que ele assumia anteriormente. Dele se ouve a mesma fórmula que ele ouvia antes, com o mesmo tom de voz, carregada com a mesma energia. A identidade da situação tem algo de macabro: é como se ela tivesse sido inventada unicamente para satisfazer seus aguilhões-ordens. Com o que antes o atingia, ele passa agora a atingir outros. Mas, embora ele agora tenha chegado a um nível onde 351

seus antigos aguilhões-ordens podem manifestar-se embora — por assim dizer — se exija agora que eles falem, ele coo_ tinua recebendo ordens de cima. O processo então se torna duplo: ao mesmo tempo que ele se desfaz dos seus antigos aguilhões-ordens, vão se acumulando novos aguilhões dentro dele. Agora são um pouco mais fáceis de serem suportados do que antes, pois o processo da promoção que foi iniciado lhe confere asas: a esperança fundamentada de que ele irá conseguir livrar-se também desses novos aguilhões. Resumindo este processo, podemos dizer o seguinte: a disciplina declarada do exército se expressa na emissão atual de ordens; a disciplina secreta consiste na utilização dos aguilhões-ordens que foram armazenados.

Ordem. Cavalo. Flecha Na história dos mongóis chama a atenção a estrita e original relação existente entre ordem, cavalo e flecha. Nesta relação podemos ver a razão principal do aumento súbito e repentino do poder deles. Uma análise desta relação é indispensável e será tentada aqui em rápidas palavras. A ordem, como sabemos, deriva biologicamente da ordem de fuga. O cavalo — como todos os demais animais ungulados que se assemelham a ele — foi adaptado durante toda sua história a esta fuga; seria possível até mesmo afirmar que sua própria finalidade era a fuga. Ele sempre viveu em manadas e estas manadas estavam acostumadas a fugir em conjunto. A ordem para isto lhes era dada pelos perigosos animais de presas que pretendiam tirar-lhes a vida. A fuga de massa passou a ser uma de suas experiências mais freqüentes e como que uma característica natural dos cavalos. Quando o perigo passa, ou quando eles acreditam que o perigo tenha passado, retomam sua despreocupada vida gregária, onde cada um faz o que lhe agrada. O homem que se apoderou do cavalo, que o domesticou, forma uma nova unidade com ele. O mesmo homem aprendeu uma série de procedimentos que podem ser considerados como ordens. Alguns destes procedimentos são constituídos por sons; em sua maioria, porém, são formados por movimentos bastante determinados de pressão e de tração que transmitem ao cavalo a vontade do cavaleiro. O cavalo compreende os impulsos da vontade do cavaleiro e obedece a eles. Entre os povos de cavaleiros, o cavalo é tão necessário e tão familiar ao seu 352

quee se formou entre eles uma relação inteiramente submissão de uma intimidade que não é possível soar aedip ...c r—rraalinente• po distância física que normalmente existe entre quem A _da e quem obedece, e também entre o dono e o seu carro, por exemplo, deixa de existir neste caso. É o corpo do leiro que transmite as indicações ao corpo do cavalo. O cava de comando reduz-se a um mínimo. Os aspectos disespaço tantes, estranhos, vagos, que pertencem ao caráter original da m, desaparecem. A ordem neste caso é domesticada de orde neira muito especial; um novo agente se introduziu na ma história das relações entre as criaturas: a cavalgadura; o servidor sobre o qual o dono se assenta, o servidor que está exposto ao peso físico do dono e que cede a cada pressão do seu corpo. o repercute esta relação com o cavalo sobre o exerComo cício de comando do cavaleiro? É preciso notar, em primeiro lugar, que o cavaleiro tem a possibilidade de transmitir ao seu cavalo as ordens que recebe de um superior. A meta que lhe é fixada, ele não a alcança correndo pessoalmente em sua direção; ele transmite ao seu cavalo a ordem de chegar até lá. Uma vez que isto ocorre de imediato, ele não mantém em si o aguilhão desta ordem. Ele evita isso pela transmissão da ordem ao seu cavalo. A limitação específica de liberdade que esta ordem lhe teria ocasionado escapa-lhe antes mesmo de ele ter a oportunidade de senti-la de fato. Quanto mais rapidamente ele realiza seu encargo, quanto mais depressa montar, quanto mais depressa cavalgar, tanto menor será o aguilhão que irá permanecer nele. A arte propriamente dita destes cavaleiros, quando reveste o caráter militar, consiste no fato de eles serem capazes de adestrar uma massa muito maior de receptores de ordens, aos quais transmitem sem demora tudo o que eles próprios receberam de cima. A organização militar dos mongóis possuía uma disciplina especialmente rígida. Aos povos que eles atacaram e que foram forçados à submissão, e que tinham oportunidade de observá-los mais detalhadamente, esta disciplina parecia ser o que de mais surpreendente e severo jamais tinham visto. Fossem eles persas,árabes ou chineses, russos, húngaros ou os monges franoiscaooque s chegaram até lá como embaixadores do papa, a todos era igualmente incompreensível que seres humanos pudessem obedecer de maneira tão incondicional. Esta disciplina era suportada com facilidade pelos mongóis (ou tártaros, como 353

freqüentemente eram chamados) porque a parte deste povo que realmente arcava com o peso principal eram os cavalos. Crianças pequenas de dois ou três anos de idade já eram colocadas sobre o dorso de um cavalo para aprenderem a montar. Já mencionamos que, na primeira fase da educação de uma criança, ela é literalmente crivada de aguilhões-ordens. Principalmente pela mãe, desde muito cedo e de muito perto, mas também pelo pai, mais tarde e a uma distância maior, e por qualquer pessoa encarregada de sua educação. Na prática, qualquer pessoa adulta ou de idade maior que esteja em contato com a criança não se cansa de sobrecarregá-la com determina. ções, ordens e proibições. Desde cedo vão se acumulando na criança todos os tipos de aguilhões; são eles que se transformarão posteriormente nas coerções e coações de sua vida, forçando-a a procurar outras criaturas nas quais possa desfazer-se dos seus aguilhões. Sua existência se transforma numa aventura de procurar livrar-se desses aguilhões, sem saber por que comete esta ou aquela ação inexplicável, por que estabelece esta ou aquela relação aparentemente absurda. A criança mongol que aprende a cavalgar tão cedo tem portanto, em comparação 'às crianças de culturas sedentárias e superiores, uma liberdade de tipo muito particular. Assim que ela passa a entender de cavalos, pode transmitir a estes tudo o que lhe for ordenado. Desde muito cedo esta criança se livra dos aguilhões que — em medida muito menor — também pertencem à sua educação. O cavalo faz o que a criança deseja, muito antes que o faça qualquer outra pessoa. Essa criança se habitua a tal obediência, e assim vive mais aliviada; mais tarde, porém, exigirá da pessoa por ela subjugada o mesmo tipo de comportamento, ou seja, uma submissão física de natureza absoluta. A esta relação — de importância decisiva para o exercício do comando — entre o homem e o cavalo, acrescenta-se em segundo lugar para os mongóis o significado da flecha. Ela é a réplica exata da ordem primordial, não domesticada. A flecha é hostil, sua finalidade é matar. Ela atravessa em linha reta uma grande distância. É preciso esquivar-se dela. Quem não o consegue, perece; a flecha fica cravada nele. É possível extraí-la mas, mesmo que ela não se quebre, sempre deixa uma ferida. (Existem alguns relatos a respeito de ferimentos causados por flechas na História Secreta dos Mongóis.) O número de flechas que se pode disparar é ilimitado; a flecha é a arma principal dos mongóis. Elas matam à distância; mas 354

matam em movimento, a partir do dorso de um çàvaio. bservamos que toda ordem, desde sua origem biolójá o gica, leva acoplada uma sentença de morte. Quem não foge é atingido. Quem é atingido é destroçado. Entre os mongóis a ordem manteve o seu caráter de sena tenç de morte em grau muito mais elevado. Eles matam hoens como se fossem animais. Matar é sua terceira natureza, m do mesma forma que cavalgar é a segunda. Suas matanças de seres humanos se assemelham muito às suas caçadas de animais. Quando não estão em guerra, vão à são as caçadas. Eles devem ter ficado caça; suas manobras altamente assombrados quando, no decorrer de suas vastas expedições de conquistas, encontraram budistas e cristãos, cujos sacerdotes lhes falavam a respeito do valor especial de toda espécie de vida. Um contraste maior dificilmente pode ter existido: os mestres da ordem pura, que a encarnam por instinto, se encontram com aqueles que por meio de sua religião a querem enfraquecer ou modificar a ponto de perder suas características letais, transformando-a em algo humano.

Castrações religiosas: os skoptsys Sabe-se de alguns cultos religiosos que são celebrados com tanta intensidade que acabam induzindo à prática de castrações. Na Antiguidade, os sacerdotes da Grande Mãe Cibele eram conhecidos por esse motivo. Existiram milhares deles que num ataque de frenesi se castraram em homenagem à sua deusa. Em Comana, nas imediações do Ponto, onde se erguia um célebre santuário dedicado à deusa, dez mil seres humanos estavam a seu serviço nessas condições. Não eram apenas homens que se consagravam dessa forma. Mulheres que queriam expressar sua veneração emputavam os seios e se incorporavam à corte da deusa. Em sua obra Sobre a Deusa Síria, Luciano narra como os fiéis caem em delírio durante uma reunião e como um deles, cuja vez havia chegado, se castra. É um sacrifício que ele oferece à deusa para demonstrar-lhe de uma vez por todas o quanto a ama e que nenhum outro amor terá lugar em sua vida. A mesma prática se conhece também em relação à seita russa dos skoptsys, as "pombas brancas", cujo fundador, Silivanov, causou nos tempos da imperatriz Catarina II a maior das sensações devido ao êxito de suas pregações. Sob sua 355

influência, centenas, talvez milhares de homens se castra. ram, e mulheres amputaram os seios como prova de sua fé. É impossível supor que exista alguma conexão histórica entre estas duas configurações religiosas. Esta última seita se originou a partir do Cristianismo russo, cerca de 1500 anos depois de terem terminado os excessos dos sacerdotes frígiosírios. Os skoptsys se distinguem pela concentração sobre um escasso número de mandamentos e de proibições e também por constituírem pequenos grupos de prosélitos que se conhecem muito bem entre si. Concentrada ao máximo está também sua disciplina — o reconhecimento e a adoração de um Cristo vivo entre eles. Eles temem a distração causada pelos livros e quase não lêem. Na Bíblia são poucas as passagens que significam alguma coisa para eles. Sua vida comunitária é muito densa, protegida por diversas maneiras mediante juramentos sagrados. O segredo desempenha para eles um papel extraordinário e decisivo. Sua atividade cultural se desenvolve principalmente à noite, isolada e oculta do mundo exterior. O centro de sua vida reside naquilo que eles devem guardar da maneira mais secreta: a castração, que eles chamam branqueamento. Mediante esta operação eles devem transformar-se em anjos puros e brancos. E passam a viver já na terra como se estivessem no céu. A complicada veneração que têm uns em relação aos outros, suas reverências e adorações, seus elogios mútuos são semelhantes àqueles que os anjos deveriam ter entre si. A mutilação à qual devem submeter-se tem o caráter rígido de uma ordem. Trata-se de uma ordem que vem de cima; eles a extraíram de certas frases de Cristo nos Evangelhos e também de uma frase dita por Deus a Isaías. Eles recebem esta ordem com uma força tremenda e é com esta mesma força que devem transmiti-la. A teoria do aguilhão pode muito bem ser aplicada a eles. A ordem neste caso é executada no próprio receptor. Faça ele o que fizer, o que realmente deve fazer é castrar-se. Para esclarecer as coisas, será necessário revisar uma série de ordens de índole especial. Considerando que se trata de ordens que são dadas dentro do âmbito de uma disciplina rígida, elas podem ser comparadas às ordens militares. Também o soldado é educado para expor-se ao perigo. Todo o seu treinamento serve para que 356

lio fim se apresente diante do inimigo, mesmo quando este ele aincaça de morte. O fato de ele próprio tentar matá-lo não é portante do que sua resistência; sem esta, ele jamais reais im seria capaz de realizar seu intento. O soldado, exatamente como o skoptsy, se oferece como vítima. Ambos têm esperança de sobreviver, mas contam com a possibilidade de serem feridos, com a dor, o sangue e a mutilação. Pela batalha o soldado espera tornar-se vencedor. pela castração o skoptsy se transforma em anjo e tem direito ao céu, no qual a partir desse momento ele já passa a viver. Mas trata-se dentro desta disciplina de uma ordem secreta, e assim ela somente é comparável à situação na qual se encontra quem está sob comando militar e que deve executar sozinho uma ordem secreta, sem que ninguém saiba do assunto. Para atingir esta finalidade ele não pode ser reconhecível pelo uniforme, devendo portanto disfarçar-se. O uniforme do skoptsy, aquilo que o iguala aos demais aos quais pertence, é sua castração, e esta por sua própria natureza permanece sempre secreta, não podendo jamais ser revelada. Seria possível dizer, portanto, que o skoptsy se assemelha a um membro daquela temida seita dos assassins, ao qual um superior ordenou um assassinato de que ninguém jamais terá conhecimento. Mesmo quando a execução é levada a termo, pessoa alguma ficará sabendo como foi realizada. A vítima pode ser atingida e o assassino capturado depois do ato; mesmo assim jamais se esclarecerá o procedimento propriamente dito. A ordem neste caso é uma sentença de morte e está desta forma muito próxima de sua origem biológica. O emissário é enviado a uma morte certa, mas isto não é levado em consideração, pois sua morte, que ele aceita voluntariamente, é usada para se atingir outra pessoa, a vítima escolhida. A ordem se amplia transformando-se numa dupla sentença de morte: uma delas não é formulada, apesar de se contar com ela; a outra é apontada com consciência clara e plena. O aguilhão, que pereceria com o subordinado, é desta forma utilizado antes de desaparecer. Os mongóis têm uma expressão muito gráfica para designar este matar precipitado, antes de a própria pessoa ser morta. Os heróis, em sua História Secreta, dizem de um inimigo que querem matar no último instante antes de morrer: "Eu o levarei comigo como travesseiro". Mas, se com esta consideração a respeito dos assassins nós conseguimos nos aproximar da situação do skoptsy, mesmo assim ainda não conseguimos apreendê-la com precisão. Pois 357

o skoptsy é obrigado a atingir ou a mutilar sua própria pessoa, A ordem que ele aceitou somente pode ser executada em si mesmo, e somente executando esta ordem é que ele se transforma num membro efetivo do seu exército secreto. Não podemos deixar-nos confundir neste diagnóstico pelo fato de que a castração na maioria das vezes é realizada por outras pessoas. Seu sentido reside no fato de que é o próprio indivíduo quem se oferece voluntariamente à castração. Uma vez que ele se declarou disposto a permitir que isso aconteça, perde importância o como é feito. Posteriormente ele irá querer transmitir isso de todas as maneiras; seu aguilhão para tanto permanece sempre igual, uma vez que ele recebeu a ordem a partir de fora para dentro. Mesmo se, como é de se supor, houve uma primeira pessoa que começou a efetuar a operação em si mesma, ela também agiu em função de uma suposta ordem celeste. Ela está firmemente convencida disto. As passagens bíblicas que utiliza para converter outras pessoas são as que a levaram à conversão; ela transmite exatamente o que recebeu. O aguilhão adquire neste caso a forma visível de uma cicatriz física. Ela é menos secreta do que o aguilhão habitual da ordem. No entanto, ela permanece secreta diante de todos os que não pertencem à seita.

Negativismo e esquizofrenia Um ser humano pode esquivar-se de ordens não lhes dando ouvidos; pode esquivar-se deixando de executá-las. O aguilhão — e nunca se insistirá demais neste ponto -- somente aparece com a execução de ordens. É a própria ação realizada sob pressão alheia, de fora para dentro, o que leva o homem à formação de aguilhões. A ordem que é levada à ação estampa sua forma exata no executante; da força com que é dada, de sua aparência, de sua superioridade e de seu conteúdo dependem a profundidade e a dureza com que ela pode estampar-se. Ela sempre permanece como algo isolado, e desta forma é inevitável que todo homem finalmente acumule uma porção de aguilhões, tão isolados como o foram as ordens recebidas. Sua capacidade de aderência nos homens é surpreendente, nada penetra tão profundamente neles e nada chega a ser tão indissolúvel. É possível que chegue um momento no qual um indivíduo esteja tão repleto de aguilhões que já não tenha 358

para nenhuma outra coisa; excetuando-se esses sensibilidade não sente mais coisa alguma. aguilhões,defesa ele cm relação a novas ordens se converte então Sua ão vital. Ele procura não ouvi-las, para não ter de numa quest . Quando é obrigado a ouvi-las, não as compreende, itá-ias delas de maneira ostensiva, fazendo o contrário adesviando-se ordenado. Quando lhe dizem para avançar, retroé do que lhe lhe dizem para retroceder, avança. Não se pode cede. Quando dizer que ele seja livre em relação à ordem. Trata-se de uma reação desastrada ou até mesmo impotente, pois de certa forma ela é também determinada pelo conteúdo da ordem. É esta reação que a psiquiatria designa como negativismo; ele desempenha um papel especialmente importante entre os esquizofrênicos. Nos esquizofrênicos o que mais chama a atenção é a carência de contato. Eles estão muito mais isolados do que os demais. Freqüentemente dão a impressão de estarem enrijecidos dentro de si mesmos; é como se não existisse nenhum tipo de relação entre eles e os demais; como se nada entendessem; como se nada quisessem entender. Sua obstinação é como a das estátuas de pedra. Não existe uma posição na qual eles não possam enrijecer. No entanto estas mesmas pessoas, noutras fases de sua enfermidade, se comportam repentinamente de maneira diametralmente oposta. Mostram-se de uma sugestionabilidade que assume proporções fantásticas. Fazem tudo o que lhes é ensinado ou que se pede a eles com tal rapidez, com tal perfeição que é como se nós mesmos estivéssemos dentro deles, fazendo as coisas por eles. Trata-se de ataques de servilismo que lhes acontecem repentinamente. "A escravidão da sugestão", como foi definido por um deles. De estátuas passam a ser zelosos escravos do dever, e levam ao extremo, de um modo que às vezes parece ridículo, qualquer coisa que se lhes peça. O contraste entre estas duas atitudes é tão grande que se torna difícil compreendê-lo; mas se por um momento nos abstrairmos da maneira como estas atitudes se apresentam dentro deles, se os contemplarmos, por assim dizer, de fora para dentro, não se pode negar que ambos os estados são bastante conhecidos também na vida dos seres "normais". A diferença é que, neste caso, esses estados servem a um determinado fim e dão a impressão de ser menos exagerados. O soldado que não dá atenção a qualquer estímulo externo, que permanece rígido, parado onde foi colocado, que não abandona seu posto, a quem ninguém pode induzir a fazer algo 359

que normalmente faria e que já fez com muito agrado, esse soldado corretamente treinado para seu serviço encontra-se artificialmente num estado de negativismo. É verdade que em determinadas circunstâncias ele também pode agir, mas única e exclusivamente por ordens de seu superior. Ele foi adestrado neste negativismo para agir apenas sob determinadas ordens. Trata-se de um negativismo que se deixa manipular, pois está no arbítrio e no poder do superior levá-lo ao estado extremo oposto. Assim que a autoridade competente ordena algo ao soldado, ele se comporta com o mesmo zelo e com o mesmo servilismo do esquizofrênico em sua fase oposta. É necessário acrescentar que o soldado sabe muito bem por que age dessa maneira. Ele obedece porque se encontra sob ameaça de morte. Num capítulo anterior já descrevemos como ele se habitua pouco a pouco a este estado, chegando no fim a adaptar-se a ele de dentro para fora. Deve realçar-se apenas uma coisa: a inconfundível semelhança externa que existe entre o soldado em serviço e o esquizofrênico. Mas uma idéia bastante distinta se impõe aqui e ela me parece importante. O esquizofrênico, no seu estado de extrema sugestionabilidade, comporta-se como membro de uma massa. Ele é igualmente impressionável, cede de igual maneira a todo e qualquer estímulo externo. Somente não percebemos que ele poderia estar neste estado porque está sozinho. Como não vemos massa alguma em torno dele, não nos ocorre supor que ele — do seu próprio ponto de vista — se sente como se a ela pertencesse: ele é um pedaço desprendido de massa. Esta afirmação somente pode ser demonstrada se entrarmos nas representações internas dos próprios enfermos. Inumeráveis são os exemplos que podem ser citados. Uma mulher declara ter "todos os seres humanos no seu ventre". Outra "ouvia os mosquitos conversando". Um homem escutou "729 mil moças", outro "as vozes sussurrantes de toda a humanidade". Nas representações dos esquizofrênicos aparecem — por trás de disfarces múltiplos — todas as espécies de massa que existem; seria até mesmo possível começar a estudar a massa a partir deste ponto de vista. A meta de um trabalho especial será reunir e revisar as representações de massa dos esquizofrênicos. Sua classificação irá mostrar a grandiosa integridade e amplitude existente nelas. Vale a pena perguntar por que os dois estados opostos que mencionamos aqui são necessários para o esquizofrênico. Para compreendê-los é preciso lembrar o que ocorre com um indivíduo, assim que ele entra na massa. A liberação das dis360

tâncias obrigadas foi narrada e designada como descarga. Para complementar podemos acrescentar que os aguilhões-ordens que estão acumulados em cada indivíduo fazem parte destas distâncias obrigadas. Na massa todos os seres individuais são iguais entre si, nenhum tem o direito de mandar nos outros; também seria possível dizer que todos mandam em todos. Não só não se formam novos aguilhões: o indivíduo se desfaz ao mesmo tempo de todos os antigos. Por assim dizer ele escapuliu de casa e deixou seus aguilhões para trás, no sótão, onde jazem amontoados. Este sair de tudo o que faz suas rígidas uniões, seus limites e cargas é o motivo principal do sentimento de elevação, quase de euforia, que o homem sente dentro da massa. Em parte alguma ele se sente mais livre, e, se ele deseja tão ardentemente continuar sendo massa, isto se deve ao fato de saber o que irá acontecer depois. Quando ele retornar a si, quando voltar para sua casa, voltará a encontrar-se com tudo isso: limites, cargas e aguilhões. O esquizofrênico que está tão sobrecarregado de aguilhões a ponto de ficar por momentos paralisado por causa deles, sucumbe à ilusão do estado oposto: o estado de massa. Enquanto ele se encontra na massa não sente seus aguilhões. Ele saiu — pelo menos assim pensa — de si mesmo, e embora isso aconteça de maneira insegura e duvidosa, ele parece extrair daí um alívio temporário para o seu tormento; sente-se como se estivesse novamente relacionado com os demais. O valor desta redenção, é claro, é apenas ilusório. Justamente onde inicia sua libertação o esperam novas e mais intensas coerções. Mas a natureza completa da esquizofrenia não é o assunto que desejamos estudar aqui. Basta lembrarmo-nos de um fato: ninguém necessita mais da massa do que o esquizofrênico, tão repleto de aguilhões-ordens que se sente asfixiado por eles. Incapaz de encontrar a massa fora, ele se abandona a ela dentro de si.

A inversão "Pois o alimento que o homem comer neste mundo há de comer ele no outro". Esta frase enigmática e inquietante se encontra no Shatapatha-Brahmana, um dos antigos tratados de sacrifício dos hindus. Mais inquietante ainda é o relato que aparece neste mesmo tratado. Trata-se da excursão do vidente Bhrigu ao além. Bhrigu, um santo, era filho do deus Varuna; ele tinha 361

adquirido uma grande sabedoria brâmane e isto lhe tinha subido à cabeça. Tornou-se arrogante e colocou-se acima do próprio deus seu pai. Este lhe quis demonstrar o quão pouco sabia e lhe recomendou visitar, uma depois da outra, as diferentes regiões celestes: Leste, Sul, Oeste e Norte. Deveria prestar o máximo de atenção a tudo quanto visse e, no regresso, contar-lhe tudo o que tinha presenciado. "Primeiro, ou seja, no Leste, Bhrigu viu homens que arrancavam a machadadas os membros de outros homens, um depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto pertence a você, isto pertence a mim'. Quando Bhrigu viu isso ficou espantado e as pessoas que esquartejavam os outros lhe deram como explicação o fato de que as vítimas tinham feito o mesmo com eles no mundo dos vivos e que eles agora nada mais faziam do que proceder da mesma forma. "Depois disso Bhrigu iniciou sua viagem para o Sul, e lá viu homens que cortavam os membros de outros homens, um depois do outro, e os repartiam entre si dizendo: 'Isto pertence a você, isto pertence a mim'. Quando perguntou o motivo, Bhrigu tornou a ouvir a mesma resposta: os que agora estavam sendo cortados tinham feito a mesma coisa no outro mundo com os que agora os cortavam. No Oeste, depois disso, Bhrigu viu pessoas que, caladas, devoravam outras pessoas, as quais, também caladas, se deixavam devorar. Exatamente desta forma eles tinham se comportado no outro mundo com os que os devoravam. No Norte, viu novamente homens que aos gritos devoravam outros homens que também gritavam, exatamente com estes tinham feito com aqueles no outro mundo. "Depois do seu retorno, Bhrigu foi convidado por seu pai Varuna a recitar sua lição como um aluno na escola. Mas Bhrigu disse: 'O que devo dizer? Não existe lição alguma!' Ele tinha visto coisas por demais pavorosas e tudo lhe parecia sem sentido. "Então Varuna soube que Bhrigu tinha visto essas coisas e lhe explicou: 'Os homens do Leste, que arrancavam com machados os membros de outros, eram árvores. Os homens do Sul, que cortavam os membros de outros, eram bois e vacas. Os homens do Oeste, que calados devoravam homens calados, eram ervas. Os homens do Norte, que gritando devoravam outros homens, eram as águas'." Para todos estes casos ele conhecia um remédio. Mediante determinados sacrifícios, que indicou ao filho, podiam evitar-se as conseqüências, no além, das próprias ações. Noutro tratado de sacrifícios, o Jaiminiya-Brahmana, a 362

mesma história de Bhrigu é contada de forma algo diferente. Ele não percorre as várias direções cardeais, mas vai de um mundo para outro. Em vez das quatro cenas que foram narradas, existem apenas três. Primeiro Bhrigu vê árvores, que assumiram formas humanas no além, e agora cortam homens em pedaços e os devoram. Depois Bhrigu vê um homem que devora outro que grita. A este respeito dá-se uma explicação: 4,0 gado que foi sacrificado e comido aqui assumiu no além uma figura humana e agora faz ao homem o que este lhe fez antes". Finalmente ele vê um homem devorando outro que não diz coisa alguma. O arroz e a cevada assumiram forma humana e retribuem agora o que sofreram antes. Também aqui são indicados determinados sacrifícios. Quem os realiza corretamente escapa do destino de ser devorado no além pelas árvores, pelo gado ou pelo arroz e a cevada. Mas o que aqui nos interessa não são os antídotos contra o destino. O importante é a idéia popular que se oculta por trás do disfarce sacerdotal. O que fazemos aqui nos é feito no além. Não são instituídos servidores especiais de justiça para executar este castigo; pelo contrário, cada qual castiga seu próprio inimigo. Também não se trata de ações quaisquer, mas sim do próprio ato de comer. "Assim como neste mundo os homens comem animais e os consomem, da mesma forma, os animais no outro mundo comem os homens e os consomem". Esta frase de um outro Brahmana, semelhante ao que colocamos no início deste capítulo, encontra uma estranha confirmação no Código de Manu. Lá explica-se que não é pecado comer carne, porque este é o comportamento natural das criaturas. Mas promete-se uma recompensa especial a quem se abstiver da carne. A palavra em sânscrito para designar a carne, mamsa, se explica pela decomposição de suas sílabas: mam significa "a mim", sa significa "ele"; mamsa quer dizer "a mim-ele"; "a mim" "ele" lá no além irá comer, ele cuja carne eu comi aqui; isto é o que os sábios explicam como a "carnalidade da carne". Nisto consiste a natureza-carne da carne; este é o verdadeiro sentido da palavra carne. A inversão é reduzida aqui à mais concisa de todas as fórmulas, e é captada na imagem da carne. Eu a como, ela me come. A segunda parte, a conseqüência do que eu fiz, é então precisamente a palavra que designa a carne. O animal que nós comemos lembra-se de quem o comeu. A morte não acabou com al. Sua alma continua vivendo, e no além ela se transformaem homem. Este aguarda então pacientemente a morte es deteseau devorador. Assim que este morre e chega ao além, a 363

situação primitiva se inverte, transformando-se no oposto. A vítima encontra seu devorador, agarra-o, corta-o e come-o. A relação que tudo isso tem com nossa concepção da ordem e do aguilhão é evidente. Entretanto tudo foi levado a tais extremos, tudo se transforma em algo tão concreto que se começa a ter medo. Em vez de acontecer nesta vida, a inversão ocorre no outro mundo. Em vez da ordem, que apenas ameaça com a morte e que assim consegue por extorsão todos os tipos de serviço, trata-se realmente de morte em sua forma mais extrema, na qual o morto é devorado. Segundo nossa maneira de ver, que já não encara seriamente a existência no além, o aguilhão que a ameaça de morte provoca continua existindo enquanto a vítima vive. Se ela irá conseguir uma inversão é sempre algo duvidoso; de qualquer forma a vítima tentará consegui-la. Finalmente, o homem é governado por seus aguilhões, sua fisionomia interna é determinada por eles; conseguindo ou não libertar-se deles, eles são o seu destino. Segundo a concepção hindu, para a qual o além é uma premissa segura, o aguilhão como núcleo duro da alma continua existindo no além, mesmo depois da morte; a inversão ocorre de qualquer maneira, ela se converte na atividade propriamente dita da existência no além. Faz-se exatamente o que nos foi feito, e somos nós mesmos que o fazemos. O fato de a mudança de aparência não constituir um obstáculo parece ser uma característica especial. Já não é o animal que comemos que nos agarra no além e que nos retalha: é um homem com a alma desse animal. Externamente a criatura se modificou completamente, mas o aguilhão continua sendo invariavelmente o mesmo. Nas visões de horror que são presenciadas por Bhrigu em sua viagem, o aguilhão aparece como o tema principal da alma; seria inclusive possível dizer que esta é formada inteiramente por aguilhões. A essência propriamente dita do aguilhão, do qual tanto se falou nesta análise da ordem, sua absoluta imutabilidade e a precisão da inversão à qual ele aspira encontram nesta crença hindu do devorado que deve devorar por sua vez sua expressão mais conclusiva.

A dissolução do aguilhão O aguilhão se forma durante a execução da ordem. Ele se desprende desta e se grava com a figura exata da ordem no executante. Ele é pequeno, oculto e desconhecido; sua propriedade mais essencial, a respeito da qual já falamos repetidas 364

vezes, é sua absoluta imutabilidade. Ele permanece isolado do restante do homem como um corpo estranho em sua carne. Por maior que seja a profundeza alcançada, por mais camuflada que seja sua existência, ele sempre causa desagrado ao seu possuidor. Permanece suspenso dentro dele de maneira misteriosa, aprisionado numa espécie de país estrangeiro. O próprio aguilhão quer ir embora, mas tem dificuldade em desprender-se. Não é possível livrar-se dele de qualquer maneira. A força com a qual ele se liberta deve ser idêntica à força com a qual penetrou. De uma ordem reduzida, ele precisa transformar-se novamente numa ordem completa. Para a aquisição desta força é necessária uma inversão da situação original: sua exata recomposição é indispensável. É como se o aguilhão contivesse sua própria recordação e esta recordação constasse de uma só coisa; como se ficasse à espreita durante meses, anos, décadas, até o regresso à situação antiga. É imprescindível que ele a reconheça, pois ele consta apenas dela; ela é a única coisa que ele é capaz de reconhecer. Repentinamente tudo volta a ser igual ao que era antes, mas os papéis estão invertidos. Neste instante ele aproveita a ocasião e se lança com todo o vigor sobre sua vítima: a inversão finalmente aconteceu. Este caso, que poderia ser chamado puro, não é no entanto o único possível. Uma ordem pode ser repetida freqüentemente pelo mesmo indivíduo à mesma vítima, de maneira que uma ou outra vez se formam aguilhões da mesma espécie. Estes aguilhões idênticos não permanecem isolados, eles devem relacionar-se entre si. Esta nova configuração aumenta a olhos vistos, e não pode mais ser esquecida por quem a possui. Ela sempre chama a atenção, ela sempre é pesada; por assim dizer, ela fica acima da superfície da água. Porém, a mesma ordem também pode ser dada e repetida por diferentes indivíduos. Se isto acontece com muita freqüência e numa sucessão implacável, o aguilhão perde sua forma pura e se desenvolve até se tornar — dificilmente se poderia chamar isto de outra maneira — um monstro mortalmente perigoso. Ele assume proporções enormes e se converte no conteúdo principal do seu possuidor. Sempre consciente dele, este o carrega consigo e tenta eliminá-lo em todas as oportunidades. Inúmeras situações lhe parecem então idênticas à original; parecem-lhe apropriadas para a inversão. No entanto elas não o são, uma vez que, devido à repetição e ao entrecruzamento, tudo se tornou impreciso; podemos dizer que a chave 365

da situação original foi perdida. Uma recordação se colocou por cima de outra, como um aguilhão sobre o outro. Sua massa já não pode ser decomposta em suas partes constituintes. Por mais que se tente, tudo continua como antes, e sozinha a pessoa jamais conseguirá libertar-se de sua carga. A ênfase, neste caso, está na palavra "sozinha". Pois existe uma libertação de todos os aguilhões, inclusive dos mais monstruosos, mas esta libertação está na massa. Diversas vezes já mencionamos aqui a massa de inversão, mas não era possível elucidar sua essência propriamente dita, antes de termos analisado o modo como funciona a ordem. A massa de inversão é formada por muitos para, em conjunto, livrarem-se de aguilhões-ordens aos quais estão individualmente entregues sem esperança. Um grande número de homens se une e se volta contra outro grupo, no qual vêem os causadores de todas as ordens que foram obrigados a suportar durante tanto tempo. Se eles por acaso forem soldados, qualquer oficial poderá ocupar o papel daqueles sob cujas ordens se encontravam. Se forem trabalhadores, qualquer empresário pode substituir os patrões para os quais trabalhavam. Nesses momentos classes e castas se transformam em realidade, elas passam a ser verdadeiras; seus componentes se comportam como se fossem todos iguais. A classe inferior que se sublevou forma uma massa coesa em todos os pontos; a superior, cercada pela maioria, constitui uma série de maltas medrosas e interessadas apenas na fuga. Nos que agora pertencem à massa, cada aguilhão em separado, complexo e cristalizado após muitas e diversas ocasiões, encontra uma série de possíveis origens de uma só vez. Os agredidos estão ali diante deles, isolados ou lado a lado, e parecem saber muito bem por que sentem medo. Não é necessário que sejam os causadores reais deste ou daquele aguilhão; sejam ou não causadores, estão no lugar deles e são tratados com toda a seriedade como tais. A inversão, que aqui é dirigida simultaneamente contra muitos, dissolve até os mais pesados de todos os aguilhões. No caso mais concentrado desta espécie, quando se vai contra uma única cabeça, um rei por exemplo, o que a massa sente é a maior clareza. A única fonte de todas as ordens era o rei; seus dignitários e a nobreza eram apenas elementos para a transmissão e para a aplicação dessas ordens. Os indivíduos que formam a massa sublevada foram mantidos durante longos anos à distância por meio de ameaças e em estado de obediência por meio de proibições. Numa espécie de movimento re366

nativo, eles eliminam agora as distâncias: penetram no paláes era proibido. Examinam o que ele contém: salões, ci que lh móveis. A fuga, que as ordens reais antes provomoradores, eles, se inverte em familiaridade íntima. Se por temor o cavam n rei permite esta aproximação, é possível que as coisas não ultrapassem este ponto, mas não por muito tempo. O processo geral de uma libertação de aguilhões, uma vez iniciado, prossegue de forma inabalável. É preciso pensar em tudo o que foi feito para manter em obediência os seres humanos, e em tudo o que durante longos anos se acumulou dentro deles sob a forma de aguilhões. A ameaça propriamente dita aos súditos, ameaça que pendia interminavelmente sobre suas cabeças, era a ameaça de morte. Por meio de execuções ela era renovada de tempos em tempos, demonstrando sua seriedade de maneira inequívoca. De uma única maneira esta ameaça pode ser completamente compensada: o rei, que mandava cortar cabeças, deve ser decapitado também. Com isto, o supremo, o mais amplo de todos os aguilhões, o que em sua aparência engloba todos os demais, é retirado dos que eram obrigados a suportá-lo coletivamente. Nem sempre se pode compreender o sentido da inversão de forma tão nítida, e nem sempre ela culmina com tanta perfeição. Quando a revolta não é bem-sucedida e os homens não conseguem livrar-se realmente de seus aguilhões, mesmo assim eles guardam agora a lembrança do tempo em que foram massa. Durante esse estado, pelo menos, estiveram livres dos aguilhões e sempre irão se recordar dele com nostalgia.

Ordem e execução. O verdugo satisfeito Até aqui nesta análise omitimos conscientemente um caso. A ordem se explica como ameaça de morte; dissemos também que ela é derivada da ordem de fuga. A ordem domesticada, tal como nós a conhecemos, relaciona a ameaça com uma recompensa; a alimentação atenua o efeito da ameaça, mas nada muda em seu caráter. A ameaça nunca é esquecida. Em sua forma original ela permanece para sempre, até que se apresente uma oportunidade para que a pessoa afetada se desfaça dela, transferindo-a para outros. A ordem porém também pode ser um encargo de matar; neste caso, ela leva à execução. Aqui realmente ocorre o que, nos demais casos somente é ameaçado. Mas o que acontece e 367

dividido entre dois homens. Um recebe a ordem, o outro é executado. O verdugo está, como todos os que se submetem a uma ordem, sob ameaça de morte. Mas ele se livra dessa ameaça matando. Ele transfere imediatamente o que poderia lhe suceder e, desta forma, antecipa a sanção extrema que pesa sobre ele. Disseram-lhe: você precisa matar, e ele mata. Ele não está em condições de se defender contra tal ordem; ela lhe é dada por alguém cujo poder superior ele reconhece. Tudo precisa acontecer rapidamente; em geral acontece logo em seguida. Não há tempo suficiente para a formação de um aguilhão. Mas, mesmo que houvesse tempo, não existe motivo para a formação de um aguilhão. Porque o verdugo transmite o que recebe. Ele nada tem a temer, uma vez que nada permanece dentro dele. Neste caso, e somente neste, a equação da ordem se resolve sem deixar saldo algum. Sua natureza mais profunda e a ação que esta ordem provoca são idênticas. Tudo foi preparado para que a execução seja viável; nada pode atrapalhar; é improvável que a vítima consiga escapar. O verdugo tem consciência de todas estas circunstâncias desde o começo. Ele pode aguardar a ordem com calma; tem confiança. Sabe que com sua execução nada irá se modificar dentro dele. Por assim dizer, ele passa incólume pela situação toda, permanecendo completamente intato em relação a ela. Dentre todos os homens o verdugo é o mais satisfeito, o mais carente de aguilhões. Trata-se de uma situação monstruosa, que nunca foi seriamente enfocada. Ela somente pode ser compreendida quando levamos em consideração a verdadeira natureza da ordem. A ordem existe apenas como conseqüência da ameaça de morte; é desta que ela extrai toda a sua força. O excedente desta força, que é inegável, explica a formação do aguilhão. Porém as ordens que levam a morte a sério, que procuram, e que realmente a provocam, são as que menos vestígios deixam em quem as recebe. O verdugo é um homem que é ameaçado de morte para que mate. Ele só pode matar os que deve matar. Se ele se ativer estritamente às ordens recebidas, nada pode lhe acontecer. Certamente na execução ele também irá incluir algo do que lhe foi ameaçado em outras oportunidades. É de supor que acrescente às suas execuções um pouco dos aguilhões de origem totalmente diferente que se foram acumulando dentro dele. Mas de mais importância continua sendo o mecanismo do seu encargo propriamente dito. Matando, ele mesmo se liberta da morte. Para ele tudo isto é um negócio limpo e nada ín368

quietante. O horror que desperta nos outros, ele não o sente dentro de si. É importante ver claramente este aspecto: os matadores oficiais estão tanto mais satisfeitos dentro de si mesmos quanto mais numerosas forem as ordens que levem diretamente à morte. Mesmo para o carcereiro, o dever é mais duro do que para o verdugo. É verdade que a sociedade faz com que ele pague a satisfação que seu ofício lhe dá com uma espécie de proscrição. Mas, em si, nem mesmo isto está acompanhado de uma desvantagem para ele. Ele sobrevive, "sem ter culpa disso", a cada uma de suas vítimas. Uma parte do prestígio do sobrevivente recai sobre ele, um mero instrumento, e compensa totalmente aquela proscrição. Ele é capaz de encontrar uma esposa, tem filhos, leva uma vida familiar.

Ordem e responsabilidade Sabe-se que homens que atuam sob ordens são capazes dos atos mais atrozes. Quando a fonte da ordem é sepultada e eles são obrigados a voltar os olhos para seus atos, eles próprios não se reconhecem. Dizem: isso eu não fiz. E nem sempre têm consciência de que estão mentindo. Quando se vêem acusados por testemunhas e começam a vacilar, mesmo assim continuam afirmando: eu não sou assim, eu jamais poderia ter feito isso. Procuram os vestígios do ato dentro de si e não conseguem encontrá-los. Causa surpresa ver que eles conseguiram ficar tão intactos. A vida que levam mais tarde realmente é outra e de maneira alguma está manchada pelo ato. Eles não se sentem culpados e de nada se arrependem. O ato simplesmente não penetrou neles. São homens que, sob outros aspectos, estão muito bem capacitados para avaliar suas ações. O que fazem por iniciativa própria deixa neles os vestígios que são de se esperar. Eles se envergonhariam de matar uma criatura desconhecida e indefesa que não os tivesse provocado. Sentiriam nojo de torturar qualquer pessoa. Eles não são melhores, mas também não são piores do que as pessoas em cujo meio convivem. Muitos que os conhecem no cotidiano estariam dispostos a jurar que eles estão sendo acusados injustamente. Quando depois desfila o longo cortejo das testemunhas, das vítimas que sabem muito bem do que estão falando, quando essas vítimas, uma após outra, reconhecem o autor e fazem com que cada detalhe do seu comportamento lhe volte à me369

mória, todas as dúvidas se tornam absurdas, e nós nos deparamos com um enigma para o qual não existe solução. Para nós isto já não é mais um enigma, uma vez que conhecemos a natureza da ordem. Para cada ordem que o autor executou, restou dentro dele um aguilhão. Mas este é tão estranho como era a própria ordem no momento em que ela lhe foi dada. Por mais tempo que um aguilhão permaneça aderente ao homem, ele nunca é assimilado; ele continua sendo um corpo estranho. Embora seja possível, conforme foi dito em outra passagem, que vários aguilhões se reúnam e continuem crescendo até dar lugar a uma nova formação monstruosa no afetado, eles sempre permanecem nitidamente diferenciados do que os circunda. O aguilhão é um intruso, um forasteiro que jamais se naturaliza. É algo indesejável e seu portador quer desfazer-se dele. O aguilhão é exatamente o que se praticou; como se sabe, ele tem a aparência exata da ordem. Como instância estranha ele continua vivendo dentro do destinatário e lhe tira todo e qualquer sentimento de culpa. O autor não se acusa a si mesmo mas sim o aguilhão, a instância estranha, o verdadeiro autor, por assim dizer, que ele sempre carrega consigo. Quanto mais estranha tiver sido a ordem, tanto menor é a culpa que se sente por causa dela, tanto mais nitidamente separada ela continua existindo como aguilhão. Ele passa a ser a testemunha perpétua de que não se cometeu isto ou aquilo. A pessoa se sente vítima, ela própria, do aguilhão e não consegue ter qualquer sentimento pela vítima verdadeira. É certo pois que os homens que agiram sob ordens se consideram completamente inocentes. Caso estejam em condições de enfrentar sua situação, podem sentir uma espécie de surpresa por terem estado alguma vez tão completamente sob o regime de violência das ordens. Mas mesmo este impulso esclarecedor carece de valor, uma vez que se torna presente apenas demasiado tarde, quando tudo já passou. O que aconteceu pode voltar a acontecer, e nenhuma defesa contra situações novas que se assemelhem á anterior como um cabelo a outro chega a se desenvolver neles. Eles continuam entregues indefesos ã ordem, apenas vagamente conscientes de sua periculosidade. No caso mais claro, que felizmente é pouco freqüente, eles transformam a ordem numa fatalidade e passam a sentir-se orgulhosos de que esta fatalidade se tenha utilizado cegamente deles, como se fosse necessário um caráter especialmente varonil para entregar-se a esse tipo de cegueira. De qualquer ângulo que possa ser contemplada, a ordem, na forma compacta e completa que apresenta atualmente de370

pois de uma longa história, é o elemento singular mais perigoso da convivência entre os homens. É preciso ter a coragem de se opor a ela e de abalar seu poder. É preciso encontrar para manter-se livre dela a maior parte do meios e Não se deve permitir que ela produza mais do e ser humano. que pequenos arranhões na pele. Seus aguilhões devem transformar-se em meros espinhos que possam ser eliminados com um simples gesto.

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A METANIORFOSE

Pressentimento e metamorfose entre os bosquímanos

A capacidade do homem para a metamorfose, que tanto poder lhe conferiu sobre as demais criaturas, praticamente ainda não foi abordada e compreendida. Ela faz parte dos maiores enigmas; todos têm esta capacidade, todos a aplicam, todos a consideram muito natural. Mas poucos se dão conta de que devem a ela o que existe de melhor neles mesmos. É extremamente difícil sondar a essência da metamorfose e é preciso aproximarse dela pelos mais diversos lados. Numa obra sobre o folclore dos bosquímanos — que eu considero como o documento mais precioso da humanidade primitiva e que ainda não foi superada, apesar de ter sido escrita há mais de cem anos por Bleek e de ter sido impressa há quase cinqüenta anos — encontra-se um capítulo sobre os pressentimentos dos bosquímanos, do qual é possível extrair importantes explicações. Trata-se nestes pressentimentos, como se mostrará, de princípios de metamorfose numa forma extremamente simples. Os bosquímanos sentem a chegada de pessoas que ainda não podem ver ou ouvir. Eles também são capazes de sentir que animais de caça estão se aproximando e descrevem em seu próprio corpo os sinais pelos quais percebem esta aproximação. Alguns exemplos disto são dados em seguida, textualmente. "Um homem díz aos seus filhos que prestem atenção à chegada do avô: Prestem atenção, me parece que o avô está chegando, pois sinto o lugar da antiga ferida no corpo dele'. As crianças ficam atentas. Percebem um homem à distância. E dizem ao pai: 'Lá vem um homem'. E o pai lhes responde: `Aquele que lá vem é o avô de vocês. Eu sabia que ele vinha. Eu senti sua vinda no lugar da antiga ferida dele. Eu queria que vocês mesmos vissem: ele realmente está vindo. Vocês não acreditam no meu pressentimento. Mas ele diz a verdade'." O que aconteceu é de uma simplicidade grandiosa. O velho, que é o avô destas crianças, aparentemente estava muito longe. Num determinado lugar do seu corpo ele possui uma antiga ferida. Este lugar é conhecido com exatidão por seu filho adulto, o pai das crianças. É uma daquelas feridas que sempre voltam a se fazer sentir. Ele freqüentemente ouviu o 375

velho referir-se a ela. Trata-se daquilo que nós chamaríamos de "característico" nele. Quando o filho pensa no pai, pensa nesta ferida. Mas é mais do que um simples pensamento. Ele não apenas imagina a ferida, o lugar exato do corpo onde ela se encontra; percebe-a no lugar correspondente em seu próprio corpo. Assim que ele a sente supõe que o pai, a quem não vê há algum tempo, esteja se aproximando. Ele sente que o pai se aproxima porque sente a ferida dele. Diz isto a seus filhos, mas parece que estes não estão muito dispostos a acreditar. Talvez ainda não tenham aprendido a acreditar na veracidade de tais pressentimentos. O pai faz com que eles prestem atenção, e realmente aproxima-se um homem. Só pode ser o avô; é ele. O pai tinha razão. A sensação no seu corpo não o enganou. Uma mulher sai de casa; leva seu filho preso a uma correia que lhe pende do ombro. O homem ficou tranqüilamente sentado. A mulher foi a algum lugar e se ausenta durante certo tempo. Repentinamente o homem sente a correia dela em seu próprio ombro. "Tem a sensação" de estar ele mesmo carregando a criança. Assim que sente a correia, sabe que a mulher está voltando com a criança. Os mesmos pressentimentos se referem também a animais. Os animais são tão importantes para os bosquímanos quanto seus parentes mais próximos; são os seus animais mais próximos, por assim dizer, que ele caça e dos quais se alimenta. Um avestruz passeia ao sol. Um inseto negro, que os bosquímanos chamam de "piolho de avestruz", pica-o. O avestruz se coça com a pata na parte posterior do pescoço. O bosquímano sente algo na própria nuca, no local equivalente à região onde o avestruz se coça. É uma sensação como a provocada por pequenos golpes. Esta sensação diz ao bosquímano que existe um avestruz nas proximidades. Um animal especialmente importante para o bosquímano é a gazela. Muitos pressentimentos se referem a todos os movimentos e características possíveis da gazela. "Temos uma sensação nos pés, percebemos o ruído das suas patas no mato". Esta sensação nos pés significa que as gazelas se aproximam. Não que o ruído tenha sido escutado. Elas ainda estão longe demais para isso. Mas os pés dos próprios bosquímanos fazem o ruído, porque as gazelas fazem o ruído com suas patas à distância. Mas isto não é tudo; é muito mais do que o movimento das patas que passa das gazelas para os bosquímanos. "Temos uma sensação no rosto, por causa da faixa preta que existe na cara da gazela". Esta faixa preta 376

meio da testa e estende-se até a ponta do nariz. O bosquímano sente como se tivesse esta faixa preta sobre seu próprio rosto. "Temos uma sensação nos olhos, por causa arcas negras sobre os olhos da gazela." das m Outro sente golpes nas costelas e diz a seus filhos: "Parece que vem uma gazela, eu sinto seus pêlos negros. Subam a e olhem para todos os lados. Estou com a sensação a colin gazela". A gazela tem pêlos negros nos flancos. Para o bos da ímano, os golpes que sente nas costelas significam os pêlos qu egros do animal. n Outro que está presente enquanto se fala a respeito destes fenômenos concorda com ele. Ele também tem um pressentimento que se refere às gazelas, mas não é o mesmo: ele sente o sangue do animal abatido. "Tenho uma sensação na barriga das pernas quando o sangue da gazela vai escorrer sobre elas. Eu sempre sinto o sangue quando vou matar uma gazela. Eu fico sentado e tenho uma sensação nas costas, onde o sangue escorre quando carrego uma gazela. Os pêlos da gazela ficam sobre minhas costas." Em outro trecho dizem: "Nós sentimos em nossas cabeças quando estamos arrancando os chifres da gazela". Outro trecho: "As corças, que são numerosas, costumam chegar no momento em que estamos deitados à sombra de nossas palhoças. Elas acreditam que possivelmente estamos fazendo a sesta. Normalmente nós nos deitamos para a sesta. Mas não fazemos sesta quando as corças andam e movimentam suas patas. Nós sentimos alguma coisa na parte posterior dos joelhos, onde o sangue goteja quando carregamos os animais". Destas declarações dos bosquímanos percebe-se que importância eles atribuem a estes pressentimentos ou suspeitas. Eles sentem em seus próprios corpos quando determinados acontecimentos são iminentes. Uma espécie de golpes sentidos na carne fala com eles e lhes comunica algo. Suas letras, como eles mesmos dizem, estão dentro do seu corpo. Estas letras falam e se movimentam, induzindo ao movimento. Um homem impõe silêncio aos demais e se mantém bem quieto quando percebe estes golpes no seu corpo. O pressentimento diz a verdade. Os estúpidos não entendem estes ensinamentos e caem em desgraça; são mortos por um leão ou lhes acontece alguma outra coisa grave. Os sinais por golpes dizem aos que os entendem que caminhos não devem pisar, que flechas não devem empregar. Eles os avisam quando muitas pessoas se aproximam pela estrada. Quando se está à procura de alguém, os 377

pequenos golpes informam que caminho se deve usar para encontrar quem se quer. Não nos importa aqui verificar se os pressentimentos dos bosquímanos são certos ou errados. É possível que eles tenham desenvolvido e que exercitem em sua vida diária capacidades que nós já perdemos. É possível que eles tenham motivos para continuar acreditando em seus pressentimentos, apesar de algumas vezes terem sido enganados por eles. Seja como for, suas declarações a respeito da maneira como os pressentimentos se anunciam pertencem aos documentos mais precisos quanto à essência da metamorfose. Não existe nada comparável a isso. Em relação a tudo o que se pode extrair dos mitos e contos sob esse ponto de vista, é válida a objeção de que tudo foi inventado. Aqui porém somos informados do modo como se sente o bosquímano em sua vida real, quando pensa num avestruz ou numa gazela distantes; do que acontece com ele nessa ocasião; do significado que tem para ele pensar numa criatura que não é ele próprio. Os sinais pelos quais eles reconhecem a aproximação de um animal, ou também de algum outro homem, são sinais em seu próprio corpo. Estes sinais são, como já disse, princípios para a metamorfose. Se quisermos preservar o valor dos sinais para um exame da metamorfose, devemos ter o cuidado de não incluir nada que seja estranho ao mundo dos bosquímanós. É preciso manter estes sinais tão simples e concretos como realmente são. Vamos extraí-los do contexto das declarações citadas e enumerá-los um após outro: 1 — Um filho percebe a antiga ferida do pai exatamente no mesmo lugar do corpo onde o pai foi ferido. 2 — Um homem sente a correia que sua mulher usa para carregar o filho no seu próprio ombro. 3 — Um avestruz coça o próprio pescoço com a pata, no lugar onde está sendo picado por um "piolho". O bosquímano experimenta uma idêntica sensação na própria nuca, na região correspondente àquela onde o avestruz se coça. 4 — Um homem sente nos próprios pés o ruído que as gazelas fazem no mato. A faixa negra da gazela, da testa à ponta do nariz, ele a sente no próprio rosto. Sente em seus próprios olhos as marcas negras existentes sobre os olhos da gazela. Os pêlos negros que a gazela tem nos flancos são sentidos por ele na região das costelas. 378

5 — Um bosquímano sente sangue na barriga da perna e nas costas. É o sangue da gazela a ser abatida, que ele carregará nas costas, onde também sente os pêlos do animal. Sente na própria cabeça a amputação dos chifres da gazela. Sente o sangue na parte posterior dos joelhos, onde costuma gotejar o sangue do animal abatido ao ser carregado. Tudo o que foi incluído no item 5 refere-se ao animal morto. A ânsia pelo seu sangue determina o caráter da metamorfose. O problema é menos simples aqui do que nos quatro casos anteriores; por este motivo é melhor analisar por enquanto apenas esses quatro casos. O mais elementar em todos eles é que um corpo é identificado com outro. O corpo do filho com o corpo do pai; desta forma a ferida antiga se faz sentir no mesmo lugar. O corpo do homem com o da mulher: a correia, com a qual ela transporta o filho, o aperta em seu próprio ombro. O corpo do bosquímano é o corpo do avestruz: o "piolho" pica-o em idêntica região do pescoço e ele se coça aí. Nestes três casos é sempre por uma característica isolada que se manifesta a identificação dos corpos. São características muito diferentes: no caso da ferida, é uma antiga peculiaridade do corpo que se faz sentir de tempos em tempos; no caso da correia, é uma determinada pressão permanente; no terceiro caso, o da coceira, trata-se de um movimento isolado. O mais interessante é o caso da gazela. Neste caso são quatro ou cinco as características que se juntam e dão à identificação de um corpo com outro um sentido muito integral. Fala-se em primeiro lugar do movimento dos pés, dos pêlos negros nos flancos, da faixa negra na testa, das marcas negras sobre os olhos; depois da cabeça, de onde se arrancam os cornos, como se o próprio bosquímano tivesse chifres. Ao movimento que aqui, em vez do coçar, é dos pés, se soma portanto o que se assemelha a uma máscara completa. O que mais chama a atenção na cabeça do animal, os chifres e tudo o que existe de negro, ou seja, a faixa e as marcas sobre os olhos, se reúne formando uma máscara reduzida ao nível mais simples. Esta máscara é usada como se fosse a própria cabeça, e ao mesmo tempo como sendo a cabeça do animal. Os pêlos negros dos flancos são sentidos como se a pessoa tivesse vestido uma pele do animal; mas trata-se da própria pele. O corpo de um mesmo bosquímano se transforma no corpo de seu pai, de sua mulher, de um avestruz, de uma gazela. 379

O fato de poder ser todos eles em momentos distintos, voltando depois a ser novamente ele próprio, é de tremenda importância. As metamorfoses que se sucedem variam segundo as ocasiões exteriores. São transformações limpas: cada criatura, cuja aproximação ele sente, continua sendo o que é. Ele as mantém separadas, caso contrário não teriam significado. O pai com a ferida não é a mulher com a correia. O avestruz não é a gazela. A própria identidade, que o bosquímano pode abandonar, se conserva na metamorfose. Ele pode ser isto ou aquilo, mas isto ou aquilo permanecem separados entre si, porque, entre uma coisa e outra, ele sempre volta a ser ele mesmo. Poder-se-ia afirmar que as características isoladas e simples que determinam a transformação são seus pontos nodais. A ferida antiga do pai, a correia da mulher, a faixa preta da gazela são esses pontos nodais. São as características mais proeminentes da outra criatura, das quais se fala freqüentemente e que sempre são percebidas com nitidez. São as características nas quais a pessoa se fixa quando espera por esta criatura. O animal que se caça, no entanto, é um caso especial. O que realmente se deseja é sua carne e seu sangue. O estado no qual a pessoa se encontra, depois de ter abatido o animal, enquanto o carrega para casa, é especialmente feliz. O corpo do animal morto, carregado nas costas como presa, é ainda mais importante do que o seu corpo vivo. Sente-se o sangue do animal morto escorrendo pela barriga da perna, gotejando atrás dos joelhos; sente-se o sangue nas costas, onde também se sentem os pêlos do animal. Este corpo morto que se carrega não é o próprio corpo; não pode ser o próprio corpo, uma vez que se quer comê-lo. Os pressentimentos do bosquímano que se referem à gazela têm portanto fases diferentes. Da maneira como foi descrita, ele sente o animal vivo; seu próprio corpo chega a ser o corpo do animal que se movimenta e que ele procura. Mas ele também sente o animal morto como um corpo diferente, estranho, próximo do seu, num estado do qual já não pode escapar. Estas duas fases são intercambiáveis. Um homem pode acreditar estar primeiro na fase anterior, ao passo que outro se acredita na fase posterior. Elas podem suceder-se uma à outra. Podem aparecer uma imediatamente após a outra. Juntas, as duas fases contêm a sua relação inteira para com o animal, o processo completo da caça, desde os ruídos provocados pelas patas até o escorrer do sangue. 380

Metal?:orfose de fuga. Histeria, mania e melancolia As metamorfoses para fugir, para escapar de um inimigo, são generalizadas. Elas são encontradas em mitos e contos difundidos por toda a Terra. A seguir daremos quatro exemplos com os quais se podem esclarecer as diversas formas que as metamorfoses de fuga assumem. Como formas principais distinguimos a metamorfose de fuga linear e a metamorfose de fuga circular. A forma linear é a fuga muito comum da caça. Uma criatura persegue outra, a distância entre elas diminui; no momento em que a criatura perseguida vai ser agarrada, ela se transforma em alguma outra coisa e escapa. A caça continua, ou melhor, recomeça. O perigo aumenta de novo. O agressor se aproxima cada vez mais; talvez até consiga agarrar sua presa. Esta se transforma então em outra coisa e escapa novamente no último instante. O mesmo processo pode ser repetido inúmeras vezes, dependendo apenas de se encontrar sempre novas metamorfoses. Elas devem ser inesperadas para surpreender o perseguidor. Este, como caçador, está atrás de uma presa bastante determinada que lhe é bem familiar. Ele conhece sua maneira de fugir, conhece sua figura e sabe como e onde pode agarrá-la. O instante da metamorfose o deixa desconcertado. Ele é obrigado a adotar um novo gênero de caça. A presa modificada exige uma caça modificada O caçador é obrigado a transformar-se também, Teoricamente não é possível prever um fim para essa série de metamorfoses. Nos contos ela costuma ser longamente elaborada. Na maior parte das vezes o narrador toma o partido do perseguido e gosta de encerrar o texto com a derrota ou o aniquilamento do perseguidor. Um caso aparentemente simples de metamorfose de fuga linear é encontrado no mito australiano dos lorityas. Os "eter nos e não-criados" tukutitas, que são os ancestrais dos totens, surgem da terra em figura humana. Permanecem homens até que um dia aparece um monstruoso cão preto e branco, decidido a agarrá-los e que se lança contra eles. Então eles fogem, mas temem não ser suficientemente rápidos. Para poderem fugir melhor, transformam-se em todos os tipos de animais: cangurus, emas e águias são mencionados. Cabe observar, porém, que aqui cada qual se transforma em um determinado animal, mantendo esta figura enquanto se encontra em fuga. Aparecem dois outros ancestrais semelhantes a eles, que obviamente são mais fortes ou mais valentes. Estes colocam o cão em fuga e o matam. Então a maioria dos tukutitas volta a 381

adotar sua figura humana; o perigo passou e eles já não têm mais nada a temer. Todavia conservam a faculdade de transformar-se quando quiserem nos animais cujos nomes carregam, ou seja, nos animais que eles foram durante a fuga. A limitação a uma única metamorfose animal mostra a essência destes ancestrais dos totens. Em outro contexto fala-se detalhadamente a respeito destas figuras duplas. Aqui basta enfatizar que a metamorfose a que eles se submetem e cuja execução lhes é possível para sempre, produziu-se inicialmente pela fuga. Um caso linear muito rico em conteúdo é o conto georgiano intitulado O Mestre e Seu Discípulo. O mestre malvado, que é o próprio diabo, recebeu o rapaz como aprendiz e lhe ensinou todos os tipos de bruxarias. Mas não quer mais deixá-lo em liberdade, servindo-se dele para seus serviços. O rapaz escapa, mas volta a ser agarrado e é preso num estábulo escuro pelo mestre. Lá ele reflete sobre a libertação e nada lhe ocorre; o tempo passa e ele fica cada vez mais triste. Um dia percebe um raio de sol no estábulo. Investigando, encontra uma fenda na porta pela qual penetrava o raio de sol. Rapidamente ele se transforma num rato e escapa através da abertura. O mestre percebe que ele escapou; transforma-se num gato e corre atrás do fugitivo. Tem início agora uma louca série de metamorfoses. O gato já está abrindo a boca para matar o rato, quando este se transforma num peixe e salta na água. O mestre se transforma imediatamente numa rede e persegue o peixe. Quando está quase conseguindo pegá-lo, o peixe se transforma num faisão. O mestre, agora como falcão, dá prosseguimento à caça. O faisão já está quase sentindo as garras do seu antagonista quando, transformado em maçã vermelha, se deixa cair no colo do rei. O mestre se transforma em faca, e o rei repentinamente a tem na mão. O rei faz menção de usar a faca para cortar a maçã, mas esta já não está mais lá, tendo sido substituída por um punhado de milho. Diante deste milho está agora uma galinha com seus pintinhos — é o mestre. Os pintinhos comem os grãos até restar um só. Este, no último instante, se transforma numa agulha. A galinha e os pintinhos se transformam então num fio de linha enfiado no fundo da agulha. Então a agulha se inflama e o fio queima. O mestre está morto. A agulha se transforma outra vez no rapaz, que então retorna para casa onde fica vivendo com seu pai. A série de metamorfoses duplas neste caso é a seguinte: rato e gato, peixe e rede, faisão e falcão, maçã e faca, milho 382

pintinhos, agulha e linha. Nestes pares cada tá adaptada à outra, sejam animais ou objetos. Sempre e es p e ar gta as partes, que representa o mestre, persegue a outra, que uma dsenta o rapaz; este sempre se salva no último instante r epre ma caçada louca e atribulada, pela metamorfoisdeo. rantaat-userezdae daa metamorfose. Os locais vaiedvamente quanto as figuras. riam Passando à metamorfose de fuga circular, lembramos da ritaaeonetelráaspdsica de Proteu, que é mencionada na Odisséia. jussttóam fú Proteu, um sábio ancião do mar, é o senhor das focas e, como elas, sobe à terra uma vez por dia. Primeiro vão as focas, depois ele. Ele conta todas elas com cuidado, e logo em seguida se deita entre elas. Menelau, voltando de Tróia, foi jogado por ventos adversos contra o litoral do Egito onde vive Proteu, e não consegue sair dali com seus companheiros. Passaram-se já alguns anos e ele está desesperado. Então a filha de Proteu se compadece dele e lhe diz o que deve fazer para apoderar-se de seu pai, que é capaz de prever o futuro, e obrigá-lo a falar. Ela fornece peles de focas a Menelau e a dois dos seus companheiros, cava buracos na praia para escondê-los, e os cobre com as peles de focas. Com paciência, apesar do mau cheiro, eles esperam ali até que chegue o bando de focas, entre as quais permanecem depois deitados com o inofensivo disfarce. Proteu sai do mar, conta o seu bando e, tranqüilizado, deita-se para dormir no meio dele. Chegou para Menelau e seus companheiros o momento esperado; eles agarram o velho enquanto dorme e não o soltam mais. Este procura livrar-se de todas as maneiras, transformando-se numa porção de coisas; primeiro num leão com uma juba imensa, depois numa cobra; mas eles o seguram. Transforma-se num leopardo e num poderoso javali, mas eles o seguram. Transforma-se em água e depois numa árvore frondosa, mas eles não o soltam. Ele tenta todas as transformações, mas continua firmemente preso por eles. Finalmente ele se cansa. Volta a tomar sua própria figura, a de Proteu, velho do mar, e lhes pergunta o que querem e lhes dá as explicações desejadas. Vê-se por que este tipo de metamorfose de fuga pode ser denominado circular. Tudo acontece num único lugar. Cada metamorfose é uma tentativa para evadir-se em outra figura ou, por assim dizer, em outra direção. Todas essas tentativas são inúteis e Proteu continua preso por Menelau e seus companheiros. Não se pode falar de uma caça: ela já terminou; a presa está segura e as transformações são uma série de tentativas sempre frustradas de fuga do prisioneiro. Este, finallinhacom

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mente, é obrigado a resignar-se a seu destino e a fazer o que dele se espera. Por fim, eu gostaria de recordar aqui a história de Peleu e Tétis que, como pais de Aquiles, alcançaram uma grand e celebridade. Peleu é mortal; Tétis é uma deusa que resiste a uma relação com ele, já que ele não parece ser digno dela. Ele a surpreende dormindo numa caverna, agarra-a e não a solta mais. Ela tenta, como Proteu, todos os tipos de metamorfose. Transforma-se em fogo e em água, em leão e em cobra. Mas ele não a solta. Ela se transforma num monstruoso e viscoso polvo e o salpica com sua tinta. De nada lhe serve. É forçada a se entregar e posteriormente, após algumas tentativas para se desfazer da descendência dele, torna-se mãe de Aquiles. Neste caso, as metamorfoses tentadas por Tétis são muito parecidas com as de Proteu; a semelhança reside também na situação: uma captura e um agressor que a agarra e não a solta. Cada uma dessas metamorfoses é uma tentativa de escapar numa nova direção. Por assim dizer, ela dá voltas para encontrar um lugar por onde possa fugir. Mas em ponto algum consegue abrir uma brecha; permanece prisioneira, e finalmente se entrega no centro de todas as metamorfoses, já na figura da própria deusa. No fundo, portanto, a história de Tétis nada acrescenta à de Proteu. Ela foi citada pelas suas nuanças eróticas. Ela lembra os ataques de um tipo de enfermidade que é freqüente e universalmente conhecida: a histeria. Os grandes ataques desta enfermidade nada mais são do que uma série de violentas metamorfoses de fuga. A mulher atingida se sente presa por uma potência superior que não a solta mais. Pode ser um homem, do qual queira escapar, um homem que a amou e possuiu, ou um homem como Peleu, que irá logo possuí-la. Pode ser um sacerdote que mantém a doente presa em nome de um deus; pode ser um espírito ou o próprio deus. Em todos os casos, é importante que a vítima sinta a proximidade física de um poder superior, sua apreensão imediata por ele. Tudo o que ela faz, principalmente cada transformação que empreende, está calculada para conseguir vencer esta apreensão. A riqueza das metamorfoses que tenta a todo momento, das quais muitas apenas se manifestam em seus começos, é surpreendente. Uma das mais freqüentes é a transformação em morto; trata-se de uma metamorfose comprovada há muito tempo e que é conhecida em muitos animais. Tem-se a esperança de ser considerado morto. O indivíduo se finge de morto e o inimigo se afasta. Esta transformação é a mais central de todas; a pessoa 384

se convertecentro a tal ponto que já não se movimenta e in mão de todo e qualquer movimento, como se r_se ata. Abre tivesse ocorrido, e a outra pessoa se almente a morte já •m É fácil compreender como teria sido útil para Tétis e afasta, de se fazerem passar por mortos, para Proteu este Tétis não teria sido amada e Proteu u esre caso inão Fossem sido obrigado a revelar o futuro. Mas ambos eram não teria sido como tais, imortais. Por mais perfeita que tivesse e, deuses sido a simulação, sua morte teria sido a única coisa na qual nguém jamais teria acreditado. ni A forma circular da metamorfose de fuga é portanto a que dá sua coloração característica à histeria. Ela também explica a riqueza das metamorfoses de fenômenos de natureza fenômenos de natureza religiosa tão patentes nesta idade. a em Qualquer forma de apreensão pode incitar à fuga enrófetircm a intenção da fuga pode ser impossível, se quem aprisiona a e outra pessoa tem forças suficientes para não soltá-la, Uma imagem oposta à transformação de fuga ocorre nos ataques dos xamãs. Também eles se mantêm fixos no mesmo lugar durante a sessão toda. Estão rodeados por um círculo de homens que os observam. O que quer que aconteça ao espírito de cada um deles, seu corpo visível permanecerá onde está. Às vezes eles se fazem amarrar, com medo de que seu corpo se afaste juntamente com o espírito. O elemento circular está portanto muito acentuado, tanto pela necessidade de permanecer aderente ao seu centro terreno, centro de ação, como pela presença de um círculo de adeptos. As metamorfoses sucedem-se rapidamente e alcançam uma grande intensidade e freqüência. No entanto — e esta é a diferença essencial em relação ao ataque histérico usual — elas não devem servir à fuga. O xamã, por meio de suas transformações, procura espíritos auxiliares que lhe obedeçam. Ele mesmo os agarra e os obriga a ajudá-lo nos seus empreendimentos. O xamã é ativo, suas metamorfoses servem para o aumento do próprio poder e não para a fuga diante de outros que sejam mais poderosos do que ele. Nas viagens que seu espírito empreende enquanto seu corpo aparentemente jaz inconsciente, ele visita os mundos mais distantes do céu e dos infernos. Voa e sobe tão alto quanto quiser; bate as asas como um pássaro. Mergulha e afunda até as profundidades que quiser, chegando ao fundo do mar, e força a entrada na casa de uma deusa a quem deseje formular uma súplica urgente que lhe vem do coração. Ele sempre regressa ao centro, onde seus adeptos aguardam temerosos sua mensagem. Pode acontecer também que alguma vez, em algum lugar, 385

ele seja colocado em fuga e se veja obrigado a escapar mediante uma transformação; de maneira geral, sua ação tende à ampli tude e ao domínio e o parentesco com os casos de Proteu e de Tétis reside apenas na natureza circular de suas metamor foses acumuladas. Vale a pena voltarmos agora à forma linear, tal como a conhecemos no conto georgiano do mestre e do seu discípulo Lembramos que o mestre se transformou em gato para agarrar o discípulo que conseguira escapar como rato. Mais tarde o mestre se transforma em rede, falcão, faca e galinha com pintinhos. Cada uma de suas metamorfoses serve para um novo gênero de caça. Do ponto de vista do mestre, trata-se de uma rápida sucessão de metamorfoses agressivas, de uma mudança não apenas de gênero, mas também dos espaços da caça. O caráter descontínuo e amplo dos acontecimentos, em combinação com a intenção perigosa que os origina, tem um parentesco patente com os fenômenos de uma outra enfermidade psíquica: a mania. As metamorfoses do maníaco têm uma enorme versatilidade. Elas têm o que existe de linear e de vago no caçador, bem como o que existe de descontínuo em suas metas mutantes quando não conseguiu o que desejava, mas não abandona sua caça. Têm o que existe de exaltado e alegre em seu estado de ânimo, que — aonde quer que ele vá parar — permanece sempre tenso e orientado. O discípulo do conto representa a presa mutante, que pode ser tudo, mas que no fundo é sempre a mesma coisa, ou seja, a presa. A mania é um paroxismo do "conseguir uma presa". O que lhe importa é descobrir, caçar e agarrar. A ingestão da presa não é tão importante na mania. A caça do mestre assume seu caráter completo somente a partir do momento em que o discípulo escapa do estábulo escuro. Ela estaria terminada e com ela também, por assim dizer, a crise maníaca teria passado, assim que o mestre o tivesse outra vez bem seguro dentro do seu estábulo. Foi no estábulo que encontramos pela primeira vez o discípulo. "Meditava sobre sua libertação e nada lhe ocorria, o tempo passava e ele ficava cada vez mais triste". Aqui deparamos com o começo do estado que é o oposto da mania, ou seja, a melancolia. Pode ser oportuno, já que falamos mui to a respeito da mania, dizer também algumas coisas a respeito do estado de melancolia. Ela tem início quando as metamorfoses de fuga chegaram ao fim e se dá conta de que todas elas foram inúteis. Na melancolia, a pessoa é que foi alcançada e agarrada. Já não pode mais escapar. Já não se transforma em outra coisa. Tudo 386

tentou fazer foi inútil. Ela está entregue a seu destino tentou o que corno presa. Encontra-se numa fase descendente: presa, vê carniça ou excremento. Os processos de depreciação, e se rebaixam cada vez mais a própria pessoa, se expressam na que transferida de sentimento de culpa. Uma culpa, origiforma ,significava que se estava em poder de outra pesnariamente uma pessoa se sinta culpada, quer se sinta presa, no soa. Quer fundo é a mesma coisa. O melancólico não quer comer, e como motivo para esta negativa ele pode afirmar que não merece Na verdade ele não quer comer porque acredita que comer. ele mesmo está sendo comido. Quando nós o obrigamos a comer, estamos fazendo com que ele se lembre disso: sua boca se volta contra ele próprio; é como se colocássemos um espelho na sua frente. Neste espelho, ele vê uma boca e vê que ela está comendo. Mas o que está sendo comido é ele mesmo. O terrível castigo por se ter sempre comido está presente e é inescapável. No fundo trata-se aqui da última metamorfose, daquela que está no final de todas as fugas: a metamorfose naquilo que é comido. E, para evitar esta metamorfose, todo ser vivo foge, de qualquer forma que lhe seja possível.

Automultiplícação e auto-ingestão. A figura dupla do totem Dos mitos que o jovem Strehlow recolheu entre os arandas setentrionais da Austrália central, há dois que chamam nossa atenção de forma especial. O primeiro, o mito bandicoot ou dos ratos marsupiais, diz o seguinte: "No começo, tudo jazia em eterna escuridão. A noite pesava sobre a Terra como uma espessura impenetrável. O ancestral — seu nome era Karora — dormia na noite perpétua na parte mais baixa do charco de Ilbalintja. Mas ainda não havia água dentro dele; tudo era apenas solo seco. A terra sobre ele estava vermelha de tantas flores e todos os tipos de grama formavam uma espécie de tapete; uma grande haste balançava sobre ele no alto. Essa haste tinha brotado no meio do campo de flores cor de púrpura que cresciam no charco de Ilbalintja. junto à sua base descansava a cabeça do próprio Karora. A partir deste ponto a haste se levantava contra o céu, como se fosse tocar sua abóbada. Essa haste era uma criatura viva, recoberta de uma pele lisa como a pele de um homem. " Acabza deKa ror ajazia junto à base da grande haste; assim jazia i deo come . ço 387

"Karora pensava e vontades e desejos lhe passavam pela cabeça. Repentinamente os bandicoots lhe saíram do umbigo e das axilas. Romperam a crosta que o cobria e saltaram para a vida. "Então começou a clarear. De todos os lados, os homen s viam como aparecia uma nova luz: o sol mesmo começou a levantar-se e inundou tudo com sua luz. Então o ancestral pensou em levantar-se, agora que o sol subia mais alto. Rompeu a crosta que o recobria e o buraco aberto que deixou atrás de si se converteu no charco Ilbalintja e se encheu com o sumo escuro e doce dos botões de madressilva. O ancestral se levantou e sentiu fome, já que forças mágicas tinham emanado do seu corpo. "Ele ainda se sentia aturdido; lentamente suas pálpebras começaram a se mover; depois ele as abriu um pouco. Em seu atordoamento tateia em volta de si. Por todos os lados, à sua volta, percebe uma massa de bandicoots que se movimenta, Agora ele já está mais firme sobre seus pés. Pensa, sente desejos. Em sua grande fome, agarra dois filhotes de bandicoots e os cozinha a pouca distância, perto do lugar onde está o sol, no calcinante solo ardente que foi aquecido pelo sol. Somente os dedos do sol lhe fornecem o fogo e a cinza quente. "Assim que fica saciado, seus pensamentos se dirigem a alguém que possa ajudá-lo. Mas agora a noite se aproxima; o sol esconde seu rosto com um véu de cordas de cabelos, cobre seu corpo com pendentes de corda de cabelos e desaparece diante dos olhos dos homens. Karora adormece, os braços esticados de ambos os lados. "Enquanto dorme, debaixo de sua axila surge algo com forma de um bumerangue. Toma a forma de um homem e cresce numa noite até ser um jovem adulto: é o seu filho primogênito. Nesta noite Karora acorda, por sentir algo pesado pressionando seu braço: vê então seu filho primogênito a seu lado, com a cabeça repousando sobre seu ombro. "Clareia. Karora se levanta. Solta um grito sonoro, vibrante; o filho, por causa disso, desperta para a vida. Levanta-se; dança a dança cerimonial em torno do pai que está sentado, enfeitado com todas as insígnias de sangue e de plumas. O filho tropeça, ele ainda não está bem desperto. O pai começa a tremer violentamente com o tronco e com o peito. Então o filho coloca suas mãos sobre ele. A primeira cerimônia chegou ao fim. "O filho é então enviado pelo pai para matar alguns bandicoots. Estes brincam pacificamente nas sombras das pro388

ximidades. O filho os traz de volta ao pai, que os cozinha no do pelo sol como já tinha feito antes e divide a solo ealcia com o filho. A noite se aproxima e ambos não carne cozidaadormecer. Nesta noite mais dois filhos nascem das ta rdam em ai Estes, manhã seguinte, são chamados à vida axilas do p • m grito sonoro e vibrante, como já acontecera antes. 1-1m mediante "Este processo se repete por muitos dias e noites. Os fincarregam da caça e o pai, todas as noites, traz ao lhos se em número crescente de filhos — em algumas noites mundo ua nascer até cinqüenta. Mas o final não se faz esperar chegam uito. Não demora muito tempo para que pai e filhos tenham m devorado todos os bandicoots que originariamente tinham saído do corpo de Karora. Apertado pela fome, o pai envia seus filhos a uma caça de três dias. Eles atravessam a grande planície. Durante longas horas procuram as presas no meio do pasto alto e branco, na penumbra dos bosques quase ilimitados. Mas em nenhum lugar existem bandicoots e eles são obrigados a voltar. "É o terceiro dia. Os filhos estão a caminho de volta, esfomeados e cansados, em grande silêncio. De repente, um ruído atinge-lhes os ouvidos; um som como que de um bumerangue girando no ar. Escutam; começam a procurar o homem que o está usando. Procuram, procuram e procuram. Com seus cajados espetam todos os ninhos e refúgios dos bandicoots. De repente, salta algo escuro e peludo e desaparece. Um grito ecoa: 'Ali corre um wallaby das colinas de areia'. Eles lançam seus bastões naquela direção e lhe quebram uma perna. E então ouvem as palavras de uma canção que vem do animal ferido: `Eu, Tjenterama, agora estou coxo. Sim, coxo, e a púrpura eterna escorre de mim. Eu sou um homem como vocês. Não sou um bandicoot.' "Com estas palavras o coxo Tjenterama se afasta mancando.. "Os estupefatos irmãos prosseguem seu caminho em direção ao pai. Logo vêem que ele se aproxima. Ele os conduz de volta ao charco. Estão sentados ao redor dele em círculos, um círculo em torno do outro, como ondas na água que foi posta em movimento. E então chega a grande maré do doce mel dos botões de madressilva do leste e os inunda; ela os carrega de volta ao charco Ilbalintja. O velhoKarora permanece ali. Seus filhos, porém, são levados ‘ mais além pela corrente, por debaixo da terra, até um lugar na espessura. Lá encontram Tjenterama, ao qual, sem sabe, r ueb m a perna com seus bastões. Ele se transforma 389

num grande chefe. Karora continua dormindo seu sono eterno no fundo do charco Ilbalintja." O segundo é o mito Lukara: "No muito famoso Lukara, às margens do grande olho d'água, nos primeiros começos, um velho jazia em sono profundo ao pé de um arbusto de larvas witchetty. Eternidades tinham passado sobre ele; ele tinha permanecido imperturbado como um homem num interminável estado de semi-sono. Desde o começo ele não se havia movido, não fizera um único movimento; tinha permanecido sempre reclinado sobre seu braço direito. Eternidades tinham passado sobre ele em seu sono perpétuo. "Quando balançou a cabeça em seu sono eterno, as larvas brancas se arrastaram sobre ele. Elas sempre tinham estado sobre seu corpo. O velho não se movia e também não acordava. Ele jazia ali em sono profundo. As larvas se moviam sobre todo o seu corpo como um enxame de formigas, e de vez em quando o velho afastava suavemente algumas delas, sem despertar do sono. Mas elas voltavam arrastando-se sobre o corpo dele; elas penetraram nele. Mas ele não acordava. Eternidades continuaram passando. "Então, certa noite, enquanto o velho dormia reclinado sobre seu braço direito, alguma coisa caiu de sua axila direita, alguma coisa que tinha a forma de uma larva witchetty. Caiu no solo, tomou forma humana e cresceu rapidamente. Quando a manhã chegou, o velho abriu os olhos e olhou atônito para seu filho primogênito." O mito continua relatando como um grande enxame de filhos varões "nasceram" de maneira idêntica. O pai não se movimentava. O único sinal de vida que dava era abrir os olhos às vezes. Até mesmo recusava todos os alimentos que seus filhos lhe ofereciam. Os filhos, entretanto, se dedicaram com afinco à tarefa de desenterrar as larvas witchetty das raízes dos arbustos vizinhos. Eles as assavam e comiam. Às vezes eles mesmos sentiam o desejo de voltar a transformar-se em larvas. Então cantavam uma fórmula mágica, se transformavam em larvas e voltavam a entrar nas raízes dos arbustos. De lá voltavam a sair à superfície e retomavam novamente a forma humana. "Então chega um forasteiro, um homem como eles, mas vindo do distante Mboringka. Ele vê as larvas gordas dos irmãos Lukara e sente vontade de comê-las. Em troca ele lhes oferece suas próprias larvas que eram compridas, magras e miseráveis. Os irmãos Lukara empurraram o pacote dessas larvas com seus 390

bastões num gesto de desprezo e nada disseram. O forasteiro então ficou ofendido. Num gesto de grande audácia, agarrou o pacote dos irmãos Lukara e saiu correndo com ele, antes que 1 ±.os irmãos o pudessem impedir. • "Horrorizados, eles retornaram até onde se encontrava u pai. Antes mesmo que chegassem, ele já tinha sentido a se perda do pacote das larvas. No momento em que o ladrão roubou as larvas, o pai tinha sentido uma dor aguda no corpo. Então, lentamente, ele se ergueu e com passos vacilantes seguiu o ladrão. Mas como não lhe foi possível diminuir a distância entre eles, o ladrão levou as larvas para a distante Mboringka. O pai então caiu por terra e seu corpo se transformou numa churinga viva, uma pedra comemorativa sagrada. Os filhos também se transformaram todos em churingas; e o pacote com as larvas roubadas também se transformou numa churinga." Estes dois mitos tratam de dois ancestrais bem diferentes: um é o do pai dos bandicoots ou ratos marsupiais, o outro é o do pai das larvas witchetty. Ambos são importantes totens para os arandas. Até o dia em que estas lendas foram recolhidas, estes totens existiam e suas cerimônias eram celebradas. Eu gostaria de destacar algumas características que chamam a atenção e que são comuns a ambos os mitos. Karora, o pai dos bandicoots, passa primeiro um longo tempo sozinho. Ele jaz em eterna escuridão e dorme sob unia crosta no fundo do charco. Não está consciente e ainda não fez coisa alguma. De repente, gera-se a partir do seu corpo uma verdadeira multidão de ratos marsupiais. Eles saem do seu umbigo e de suas axilas. O sol aparece e sua luz o incita a romper a crosta. Ele sente fome, mas está atordoado. Neste estado de atordoamento, ele tateia em seu redor e a primeira coisa que sente é uma massa viva de ratos marsupiais que o rodeia por todos afi lados. No outro mito, o pai das larvas, cujo nome não é referido, jaz ao pé de um arbusto e dorme. Ele dorme há uma eternidade. Sobre seu corpo arrastam-se as larvas brancas. Elas se encontram por todas as partes como formigas. Aqui e ali, sem acordar, ele suavemente afasta algumas de si. Elas se arrastam novamente e penetram no seu corpo. Ele continua dormindo no meio deste monte em ebulição. Ambos os mitos principiam com o sono. Em ambos a primeira relação com outras criaturas tem o caráter de um sentimento de massa. É o sentimento de massa mais denso e imediato: o da pele. Um deles percebe os ratos marsupiais 391

quando, em estado semidesperto, tateia pela primeira vez em torno de si. O outro sente as larvas sobre a pele ainda em estado de sono e as afasta, mas sem desfazer-se delas. Elas regressam e penetram no seu corpo. Esta sensação de estar coberto por enxames descomunais de pequenos insetos, que são sentidos em todas as partes do corpo, naturalmente é conhecida por todos Não se trata de uma sensação agradável. Ela aparece freqüentemente em alucinações, por exemplo no delirium tremens. Quando não são insetos, são ratos ou ratazanas. O formigamento ou o roer da pele são atribuídos à atividade de insetos ou de pequenos roedores. No próximo capítulo trataremos disto com maiores detalhes: a expressão "sentimento de massa da pele" será explicada e justificada então. Mas resta chamar a atenção para uma importante diferença entre estes e aqueles casos. Nos mitos dos arandas esta sensação é agradável. O que o ancestral sente aqui é algo que se origina a partir dele mesmo, não alguma coisa hostil que o ataca de fora para dentro. No primeiro mito narra-se como os ratos marsupiais ou bandicoots saem do umbigo ou das axilas do ancestral. Antes eles estavam contidos dentro dele próprio. Este pai é um ser extremamente curioso: seria possível designá-lo como mãe de massas. Inúmeras coisas brotam simultaneamente do seu corpo, de partes que não são habitualmente destinadas ao nascimento. Ele se assemelha a uma rainha de térmitas; porém a uma rainha que extrai seus ovos de partes muito diferentes do seu corpo. No segundo mito, é dito que as larvas sempre estiveram sobre ele. Não se menciona — por enquanto — que elas tenham saído do corpo do próprio ancestral; apenas estão sobre ele ou penetram nele. Entretanto no transcorrer do mito aparecem características que nos levam a supor que as larvas primitivamente se tenham originado dele; que ele próprio é inteiramente formado por elas. Os nascimentos dos quais se fala aqui não são apenas notáveis por ocorrerem a partir de um pai e por se tratar de grandes massas, mas também porque o que nasce é algo bastante distinto do original. Depois de Karora, o pai dos ratos marsupiais, ter saciado sua fome, cai a noite e ele volta a dormir. Debaixo de sua axila surge um bumerangue. Ele toma a forma de um homem e cresce; no decorrer de uma só noite torna-se um jovem. Karora sente a carga de algo pesado sobre seu braço. Desperta: a seu lado está deitado seu filho primogênito. Na noite seguinte, nascem-lhe dois filhos das axilas. Esta situação con392

rirmo repetindo-se durante muitas noites. Cada vez são mais filhos que nascem; em algumas noites o pai chega a ter cinqüenta novos filhos. Todo este processo também pode ser designado no sentido mais restrito da palavra, como sendo a „,,tomultipheaçao de Karora. — Algo muito semelhante ocorre no segundo mito. O velho continua dormindo, reclinado sobre seu braço direito; repeninamente, certa noite, cai de sua axila direita algo que tem a rma de uma larva witchetty. Cai no solo, assume a forma tf o humana e cresce rapidamente. Quando amanhece, o velho abre os olhos e vê, assombrado, seu filho primogênito. O processo torna a se repetir e um grande número de "homens-larvas" nasce de maneira idêntica. É importante assinalar desde já que estes homens podem transformar-se quando quiserem numa determinada espécie de larvas e depois retornar ao seu estado de homens. Em ambos os mitos trata-se portanto da automultiplicação e em ambos trata-se também de um nascimento duplo. Duas espécies distintas de criaturas se originam a partir de um mesmo ancestral. O pai dos ratos marsupiais dá origem primeiro aos bandicoots, e logo em seguida a um grande número de homens. Ambos se originam da mesma maneira. Eles devem considerar-se como parentes muito próximos, uma vez que têm o mesmo paí. Têm o mesmo nome: bandicoot. Como nome de um totem significa que todo homem que pertence a esse grupo é um irmão mais jovem dos ratos marsupiais que nasceram antes dele, Exatamente o mesmo vale para o ancestral das larvas witchetty. Por um lado, ele é pai das larvas e, por outro, também dos homens, Os homens são os irmãos mais jovens das larvas. Todos juntos são a encarnação visível da fertilidade do grande ancestral do respectivo totem. Strehlow, a quem se deve um grande reconhecimento por ter recolhido estes importantes mitos, encontrou uma expressão feliz para isso. "O ancestral", diz ele, "representa a soma total da essência viva das larvas witchetty, tanto das larvas animais como das humanas, contempladas como um todo. Cada célula, poder-se-ia dizer, do corpo do ancestral original é um animal vivo ou um ser humano vivo. Se o ancestral é um 'homem-larvas witchetty', então cada célula do seu corpo é potencialmente ou uma larva witchet ty viva s9arada, ou um ser humano separado do totemlarvas witehett y Este aspecto duplo do totem manifesta-se com clareza especial no fato de os filhos humanos às vezes terem o desejo 393

de voltar a ser larvas. Então eles recitam uma fórmula mágica, transformam-se em larvas e rastejam de volta às raízes dos arbustos onde comumente vivem estas larvas. De lá, elas podem voltar a sair e retomar, se quiserem, a figura humana. As figuras separadas permanecem perfeitamente claras, são larvas ou homens, mas podem transformar-se umas nos outros e viceversa. A restrição a esta determinada metamorfose, pois em si seriam possíveis infinitas outras, é o que define a natureza do totem. O ancestral que as gerou somente tem a ver com estas duas espécies de criaturas e não com qualquer outra coisa. Ele representa seu parentesco remoto com exclusão de qualquer outro que possa existir no mundo. Seus filhos sentem o desejo de optar ora por uma ora por outra figura. Pela aplicação da fórmula mágica, eles podem ceder a este desejo e praticar esta metamorfose que lhes é inata. Não se pode enfatizar suficientemente o significado desta figura dupla do totem. A própria metamorfose, mas uma metamorfose muito determinada, é fixada na figura do totem e transferida aos descendentes. Em cerimônias importantes que servem para a multiplicação do totem, isso é representado de forma dramática. Isto significa que sempre se representa também a metamorfose que este totem encarna em si. O desejo das larvas de transformar-se em homens — e o dos homens, em larvas — foi sendo transmitido pelos ancestrais aos membros vivos do clã-totem, que consideram um dever sagrado entregar-se a esse desejo em suas cerimônias dramáticas. Porém, para que o rito de multiplicação dê certo, é necessário que essa determinada metamorfose seja representada de forma correta, sempre da mesma maneira. Cada participante sabe quem tem diante de si ou quem essa pessoa está representando quando são representados acontecimentos da vida das larvas. Ele tem o nome dessas larvas, mas também pode transformar-se nelas. Enquanto tiver o nome delas, estará praticando a antiga metamorfose. Seu valor para ele é imensamente grande: a multiplicação das larvas depende dele, mas também sua própria multiplicação, porque uma é inseparável da outra; a vida do seu clã está determinada em todas as direções pela manutenção desta transformação. Outro aspecto muito importante destas lendas refere-se ao que poderia ser chamado de auto-ingestão. O ancestral dos ratos marsupiais e seus filhos alimentam-se dos ratos marsupiais, os filhos do ancestral-larva alimentam-se de larvas É como se não existisse nenhum outro alimento, ou pelo menos como se eles não estivessem interessados em nenhuma outra 394

alimentação. O processo da incorporação de alimentos se encontra predeterminado pelo da metamorfose. A direção dos dois processos é a mesma, eles coincidem inteiramente. Para é como se ele se alimentasse de si mesmo. o antepassado, Vamos observar estes fatos com uma atenção maior. Depois que Karora trouxe os bandicoots ao mundo e o sol começou a brilhar, ele rompe a crosta que o recobre, ergue-se e sente fome. Por causa desta fome ele tateia em torno de si, apesar de ainda estar meio atordoado; é justamente neste momento que sente por todos os lados a massa viva dos ratos marsupiais. Agora ele fica mais firme sobre suas pernas. Ele pensa e tem desejos. Na sua enorme fome, agarra dois ratos marsupiais e os cozinha um pouco mais além, lá onde o sol esquentou o chão até deixá-lo incandescente. Depois disso, e somente depois disso, ele pensa em alguém que possa ajudá-lo. Os ratos marsupiais que ele sente como massa em torno de si saíram dele próprio, são partes do seu corpo, carne de sua carne. Por causa da fome, ele os sente como alimento. Agarra dois deles, que aliás são designados como filhotes, e os cozinha. É como se tivesse devorado, ainda jovens, dois dos seus próprios filhos. Na noite seguinte ele traz ao mundo o seu filho primogênito humano. De madrugada ele lhe instila vida através daquele grito sonoro e vibrante e faz com que ele se levante. Eles celebram uma cerimônia em conjunto, na qual se estabelece sua relação de pai e filho. Imediatamente o pai o envia para matar ratos marsupiais. São seus outros filhos, nascidos antes, e estão brincando pacificamente à sombra nas proximidades. O filho leva o rato que matou para onde se encontra o pai. Este o cozinha ao sol como no dia anterior e divide a carne cozida com o filho. O que o filho come agora é a carne dos seus irmãos e, na verdade, também a de seu pai. O próprio pai lhe ensina a matar os ratos e lhe mostra como eles devem ser cozidos. É o primeiro alimento do filho, como também foi o primeiro alimento do pai. Não se fala de qualquer outra alimentação na lenda toda. Durante a noite seguinte, Karora traz ao mundo dois novos filhos humanos. Ao amanhecer eles são chamados à vida, e agora os três juntos são enviados à caça dos ratos marsupiais. Trazem o botim de volta, o pai cozinha a carne e a divide com eles. O número dos filhos aumenta; todas as noites chegam ao mundo mais filhos humanos; em uma única noite nascem Cinqüenta deles. Todos são enviados à caça. Mas, enquanto os filhos humanos aumentam cada vez mais, Karora não produz 395

mais ratos marsupiais. Estes apareceram apenas no começo, t todos de uma só vez. Finalmente, todos foram devorados; o pai e seus filhos, em conjunto, os comeram todos. Agora eles têm fome. O pai envia os filhos para longe, para uma caçada de três dias. Por onde quer que andem, procuram pacientemente apenas ratos marsupiais, mas não conseguem encontrá-los. No caminho de retorno ferem na perna uma criatura que eles tomaram por um animal. Imediatamente ouvem esta criatura cantando: "Sou um homem como vocês. Não sou um bandicoot". Depois, mancando, a criatura se afasta. Os irmãos (que agora já devem ser muitos) retornam ao lugar onde se encontrava o pai. A caçada chegou ao fim. O pai, portanto, primeiro trouxe ao mundo um determinado alimento para si e para seus filhos posteriores; esse alimento são justamente os ratos marsupiais. Trata-se de um ato único, que não se repete no decorrer da lenda. Depois chegam paulatinamente ao mundo todos os filhos humanos que, junto com o pai, comem esse alimento até não restar mais nada. O pai não lhes ensinou caçar outra coisa, ele não lhes indica qualquer outra coisa. Tem-se a impressão de que ele quer alimentá-los apenas com sua própria carne, com os ratos marsupiais que saíram dele próprio. Em seu modo de agir omitindo todo o resto, ele parece querer isolar seus filhos e colocá-los contra todos os demais; nisto existe algo semelhante ao ciúme. Não aparece qualquer outro ser na lenda, a não ser no final a criatura cuja perna eles ferem, um homem como eles, aliás ele próprio um grande ancestral, ao qual mais tarde rendem homenagem. Na segunda história, que trata do pai das larvas, a relação entre descendência e alimento é parecida, mas não é inteiramente idêntica. O primeiro filho cai como larva da axila paterna e assume a forma humana assim que toca o solo. O pai não se move, permanece totalmente quieto. Ele nada exige do filho e nada lhe ensina. Muitos filhos continuam nascendo de maneira idêntica; a única coisa que o pai faz é abrir os olhos e contemplar seus filhos. Nega-se a aceitar alimento deles. Estes entretanto, se dedicam com interesse a desenterrar as larvas das raízes dos arbustos próximos; eles as assam e comem. O curioso é que eles às vezes sentem o desejo de transformar-se na mesma espécie de larva da qual se alimentam. Quando isto acontece, arrastam-se de volta às raízes dos arbustos e vivem lá como as larvas. Eles são ora uma coisa, ora outra; ora são homens, ora são larvas; mas, quando homens, 396

dessas larvas e nenhum outro alimento é menalimentam-se cionado. a auto-ingestão é própria dos filhos. O velho Neste caso,r as larvas, sentindo-se pai delas, sua própria se nega a commais fácil esta auto-ingestão é para os filhos. mau to carne. Muito impressão de que neles a metamorfose e a alimentaTem-se estreitamente ligadas. É como se o seu desejo de ção do fato de comê-las com tanto converter em larvas nascesse assam e comem; depois eles as do Eles agrado. Eles as procuram, arrasesmos se transformam em larvas. Após algum tempo arrasm tam-se para a superfície, onde reassumem a forma humana. Então, quando comem as larvas, é como se estivessem comendo a si próprios. Aos dois casos de auto-ingestão, o do pai bandicoot e o dos filhos-larvas, agrega-se um terceiro, que se afasta um pouco dos dois primeiros. Ele pertence a uma terceira lenda que é apresentada de forma muito resumida por Strehlow. Trata-se da história de outro ancestral-larva, o de Mboringka. Ele sai regularmente para roubar e matar homens-larvas, que são seus próprios filhos. A respeito destes, diz-se expressamente que têm forma humana. Ele os assa e come com deleite; ele gosta de sua carne doce. Um dia, a carne de suas entranhas se transforma em larvas. Estas consomem o pai de dentro para fora e assim, no final, o pai acaba sendo devorado pelos filhos que ele mesmo matou. Este caso de auto-ingestão conduz assim a um curioso acréscimo. O comido come por sua vez. O paí come seus filhos e estes mesmos filhos o comem, quando ele já os está digerindo. O canibalismo é duplo e recíproco. Mas o mais surpreendente é que a resposta venha a partir de dentro, a partir das entranhas do pai. Para que isto seja possível é necessária uma metamorfose dos filhos comidos. Ele os come como homens; eles comem o pai como larvas ou vermes. Trata-se de um caso extremo e, à sua maneira, muito completo. Canibalismo e metamorfose celebram aqui sua mais estreita aliança. O alimento permanece vivo até o final, e ele mesmo come COT/1 prazer. Sua metamorfose em larvas no estômago do pai é uma espécie de reanimação. Esta porém serve para satisfazer o desejo pela carne do pai. As metamorfoses que unem o homem com os animais que ele come são fortes como correntes. Sem transformar-se em animais, o homem jamais teria aprendido a comê-los. Cada um destes mitos contém urna experiência essencial: a obtenção de determinada espécie animal que serve de alimento; sua gê397

nese pela metamorfose; sua ingestão e a transformação de seus restos em nova vida. A recordação de como se obteve o alimento, ou seja, precisamente por metamorfose, está contida ainda em comunhões sacras posteriores. A carne, que se desfruta em conjunto, não é o que representa; ela está em lugar de outra carne e se converte nela no momento em que é comida. É importante observar que a auto-ingestão da qual se fala aqui, apesar de ser comum nas lendas a respeito da origem dos arandas, não o é em suas vidas diárias. O comportamento real dos membros de um clã-totem em relação ao animal do qual têm o nome é completamente diferente do que aparece nas lendas de suas origens. Na verdade os membros de um clã nunca se alimentam do seu totem. Estão proibidos de matar ou de comer esse animal; devem considerá-lo como seu irmão mais velho. Somente durante as cerimônias que servem para a multiplicação do totem, durante as quais se representam os antigos mitos e certos membros do clã aparecem como sendo seus próprios ancestrais, é-lhes feita a solene entrega de um pedaço da carne do seu totem. Eles são informados de que devem servir-se apenas de um pouco dessa carne. Ela lhes está proibida como alimento habitual; e, se um desses animais cair em suas mãos, eles não devem derramar seu sangue. Devem entregá-lo aos membros de sua família, ou a bandos que pertençam a outros totens; estes podem comê-lo. No período que se segue ao tempo mítico dos ancestrais, que do ponto de vista dos arandas pode ser considerado como a era presente, a auto-ingestão foi substituída portanto por um outro princípio: o da proibição. Não se comem os próprios parentes mais próximos entre os animais, da mesma forma que não se comem outros seres humanos. O período do canibalismo-totem — pois assim poderia ser designado o ato de ingerir a carne dos próprios totens — passou. Permite-se que os membros de um outro clã comam os parentes mais próximos que um indivíduo tem entre os animais; os membros desse outro clã, por sua vez, devem aceitar que seus parentes animais sejam devorados por outras pessoas. É muito mais do que uma simples concessão. Mediante esta autorização, permite-se que o próprio animal-totem se multiplique. Os ritos desta multiplicação foram transmitidos e confiados a uma pessoa; seu dever é colocá-los em prática. Os animais muito caçados têm tendência a emigrar ou a se tornarem mais escassos. Basta lembrar a primeira lenda, na qual todos os bandicoots dos arredores desapareceram; os incontáveis filhos de Karora os 398

perseguiraim e caçaram de forma tão eficiente que não se podia „ruutrar mais nenhum bandicoot a uma distância de três dias 5;-carninhada. Nestes momentos de fome teria sido necessário produzir novos bandicoots. A auto-ingestão tinha ido demasiadamente longe; todos os irmãos mais velhos, os primeiros de Karora, tinham sido devorados. Nesse momento teria f ilhos importante que a auto-ingestão voltasse a ser substituída auto multiplicação com que tudo tinha começado. i aiu n S pela É exatamente esta transformação que ocorre hoje em dia nos atuais ritos para a multiplicação dos animais totêmicos. Está-se tão estreitamente aparentado com o animal totêmico que já não se consegue separar muito bem a sua multiplicação da própria. Uma parte essencial e repetida sempre nos ritos é a representação dos ancestrais que foram ambas as coisas, ora homens ora animais. Por sua própria vontade eles se transformam um no outro; e somente será possível representá-los se se dominar esta metamorfose. Os ancestrais aparecem como as figuras duplas das quais falamos acima. A metamorfose é a parte essencial da representação. Desde que ela seja efetuada corretamente, o parentesco 'continua bem fundamentado e pode-se assim forçar o animal, que se é, à multiplicação.

Massa e metamorfose no delirium tremens As alucinações dos alcoólatras oferecem uma oportunidade para estudarmos a massa tal como ela se apresenta na imaginação do indivíduo. Certamente trata-se aqui de sintomas de intoxicação, mas esses sintomas são acessíveis a qualquer um; dentro de certos limites, eles podem ser provocados de forma experimental. Seu caráter geral é inegável: homens de origens e predisposições muito diferentes têm, em suas alucinações, características elementares comuns. Seus pontos máximos em termos de acúmulo e de intensidade são alcançados no delirium tremens. Seu exame é frutífero em dois sentidos. Os fenômenos -de metamorfose e de massa estão entrelaçados de maneira peculiar no delírio; em nenhum outro caso é mais difícil separá-los do que neste. No delírio aprende-se tanto sobre a metamorfose como sobre a massa; e ficamos — depois de muitas — com a convicção de que seria mais correto não estabelecer separação alguma ou apenas o menor número possív e l, entre ambas as coisas., oisas: Para dar uma idéia da natureza destas alucinações, começaremos reproduzindo a descrição de Krãpelin, e logo em se399

guida a de Bleuler. O enfoque de ambos não é exatamente o mesmo; o que coincide em ambos terá um valor tanto maior de demonstração para as nossas finalidades. "Entre as percepções enganadoras do delirium tremens", diz Krãpelin, "costumam predominar as da visão. As ilusões são na maior parte das vezes de grande nitidez sensorial, mais raramente crepusculares, indeterminadas; com freqüência são amedrontadoras e têm conteúdo desagradável. São consideradas pelos enfermos às vezes como realidades, às vezes como simulacros artificiais — lanterna mágica, cinema — que servem para diverti-los ou para assustá-los. Com freqüência, são vistos em massa objetos menores e maiores: pó, copos, moedas, flocos, garrafas, barras. Quase sempre as imagens da visão mostram uma mobilidade mais ou menos vivaz; também ocorrem casos de visão dupla. Esta instabilidade das percepções enganosas serve, talvez, para explicar a freqüência com que são vistos animais que deslizam ou se movem furtivamente. Eles se amontoam entre as pernas, zunem pelo ar, recobrem a comida; tudo está repleto de aranhas "de asas douradas", bichinhos, percevejos, cobras, vermes com longos espinhos, ratos, cães, feras... Grandes quantidades de pessoas se precipitam sobre os enfermos, cavaleiros hostis, até mesmo `sobre pernas de pau', policiais; ou então passam desfilando em grandes formações, fantasticamente agrupadas, diante dos doentes; ameaçadoras figuras fantasmagóricas isoladas, aleijados, anõezinhos, diabos, 'rufiões de fogo', fantasmas enfiam a cabeça pela porta, arrastam-se por debaixo dos móveis, sobem pelas escadas até os pontos mais elevados. Mais raras são as moças sorridentes e bem-arrumadas ou os acontecimentos escabrosos, brincadeiras carnavalescas, representações de teatro... " ...Diversas e estranhas sensações sobre a pele provocam no enfermo a idéia de que formigas, sapos, aranhas caminham sobre ele. O doente se sente envolto por fios delgados, salpicado de água, mordido, picado, alvejado. Ele recolhe dinheiro que vê jogado em torno de si e o sente nitidamente na mão, mas logo em seguida esse dinheiro escorre entre seus dedos como se fosse mercúrio. Tudo o que ele toca desaparece, contrai-se ou cresce até se tornar monstruoso, para logo em seguida voltar a diminuir, para rolar para a distância, para escorrer... "Os pequenos nós e as irregularidades do tecido são considerados como pulgas nos lençóis da cama; os riscos existentes sobre a mesa se transformam em agulhas; nas paredes abrem-se portas secretas... 400

c) enfermo está totalmente incapacitado para qualquer ,, mente ocupação realmente ordeda; ele passa a ficar completa ele as fado pelas suas ilusões. São raras as vezes que perpassar simplesmente diante dos seus olhos; na maioria das vezes, elas lhe provocam reações veementes. Ele não fica ç a, força o caminho até a porta, pois o momento de sua nacarn- está iminente e todos já se encontram à espera dele. 1e se diverte com os animais curiosos, retrocede tremendo E diante dos pássaros em vôo, procura afastar os vermes do chão, pisotear os animais; enlouquecido persegue as pulgas, recolhe o dinheiro esparramado por todos os lados, procura omper os fios que o envolvem; salta com esforço penoso sobre r osfios de arame estendidos acima do solo. "No delírio do alcoólatra", diz Krâpelin em outra passagem resumindo o assunto, "chama a atenção o caráter de massa das alucinações de igual espécie e sua movimentação múltipla e vivaz, sua emergência, sua diminuição e seu desapareci m ento . A descrição do delirium tremens feita por Bleuler não é menos impressionante. "Em primeiro plano destacam-se alucinações de matizes particulares: afetam primordialmente a visão e o tato. As visões são múltiplas, móveis, na maior parte das vezes incolores e tendem à redução. As alucinações visuais e tácteis têm além disso, freqüentemente, a aparência de arames, fios, jorros de água e de outros objetos grandes e finos. Visões elementares, como faíscas e sombras, são freqüentes. Nas alucinações auditivas, o que o doente ouve na maior parte das vezes é música — freqüentemente de ritmo marcado e vigoroso —, o que é muito raro em outras psicoses. No decorrer da enfermidade, os pacientes podem estabelecer relações com centenas de pessoas imaginárias, todas mudas... "Os objetos pequenos, móveis e múltiplos aparecem normalmente sob a forma de pequenos animais, como camundongos ou insetos. Estas são também as alucinações mais freqüentes dos bêbados; mesmo assim, porém, não são raras as visões de animais das mais variadas espécies: porcos, cavalos, leões, camelos podem surgir reduzidos ou em tamanho natural; às vezes aparecem também animais completamente inexistentes, em combinações inteiramente fantásticas. Com bastante freqüência ouvi a descrição de todos os tipos de casais de animais, normalmente de grandes dimensões, mas reduzidos então ao tamanho de gatos e desfilando sobre uma tábua pregada à parede — uma tábua imaginária —, o que proporciona grande 401

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do efeito Liliput; só que aqui Gulliver não cresceu, apenas foi transportado para um mundo muito mais denso e repleto, mas também muito mais fluido. Esta mudança de proporções não é tão surpreendente como parece ser à primeira vista. Basta pensar no tamanho reduzido e na enorme quantidade das células que constituem o corpo humano. São células de espécie muito distinta e estão em contato permanente entre si. São atacadas por bacilos e por outras criaturas minúsculas que se estabelecem em massa dentro delas. Estes bacilos estão sempre ativos à sua maneira, pois estão vivos. Não se pode rechaçar a suspeita de que um obscuro sentimento destas relações primitivas do corpo encontre expressão nas alucinações dos alcoólatras. Durante o delírio eles estão desvinculados em grande parte do seu ambiente, entregues por inteiro a si próprios ou tomados pelas mais estranhas sensações. Os sentimentos dissociativos do corpo são conhecidos com exatidão a partir de outras enfermidades. A tendência tenaz do delírio,para o que é concreto e pequeno, que no delírio da cocaína se transforma em "microscopicamente" pequeno, tem alguma coisa da dissociação do corpo em suas células. O aspecto cinematográfico das alucinações, como vemos, acentua-se freqüentemente. Gostaríamos de acrescentar alguma coisa sobre o conteúdo destas projeções: são as relações e os acontecimentos do seu corpo, traduzidos para o mundo imaginativo familiar, que o alcoólatra contempla em seu delírio, e entre eles principalmente os que estão em relação com o que existe de massa em sua própria estrutura corporal. Trata-se apenas de uma suposição. No entanto não será ocioso recordar que em determinados períodos toda a vida do homem "gigante", com suas características, com toda a sua massa hereditária, está concentrada em células individuais que aparecem em massa: a fauna seminal do esperma. Porém, independentemente do crédito que se dê a esta interpretação, a situação básica do delírio como tal, a situação do grande solitário que se vê diante de um número incalculável de agressores muito pequenos, existe e foi exacerbada de maneira altamente significativa na história da humanidade. Ela começa com um sentimento peculiar em relação aos insetos, pelos quais todos os mamíferos, para falar apenas destes, são torturados. Sejam eles mosquitos ou piolhos, gafanhotos ou formigas, a imaginação do homem sempre se preocupou com eles. Sua periculosidade consistiu sempre na sua massa e na maneira repentina com a qual essas massas aparecem. Em gran404

de parte eles se transformaram em símbolos de massa. É muito possível que tenham sido eles que levaram o homem a pensar grandes; seus primeiros "milhares" e