Literatura, ensino e formação em tempos de Teoria (com T maiúsculo)
 9788547345228

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LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

Editora Appris Ltda. 1.ª Edição - Copyright© 2020 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870

Cechinel, André C387l Literatura, ensino e formação em tempos de teoria (com “T” maiúsculo) / André 2020 Cechinel. - 1. ed. – Curitiba : Appris, 2020. 207 p. ; 23 cm. – (Linguagem e literatura). Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-4522-8 1. Literatura – Estudo e ensino. I. Título. II. Série. CDD – 807

Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel. (41) 3156 - 4731 www.editoraappris.com.br Printed in Brazil Impresso no Brasil

André Cechinel

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

FICHA TÉCNICA EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP Marilda Aparecida Behrens - PUCPR ASSESSORIA EDITORIAL Evelin Kolb REVISÃO Pâmela Isabel Oliveira PRODUÇÃO EDITORIAL Lucas Andrade DIAGRAMAÇÃO Bruno Ferreira Nascimento CAPA Fernando COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira Débora Nazário Karla Pipolo Olegário LIVRARIAS E EVENTOS Estevão Misael GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle

COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA DIREÇÃO CIENTÍFICA Maria Aparecida Barbosa (USP) Erineu Foerste (UFES) CONSULTORES Alessandra Paola Caramori (UFBA)

Leda Cecília Szabo (Univ. Metodista)

Alice Maria Ferreira de Araújo (UnB)

Letícia Queiroz de Carvalho (IFES)

Célia Maria Barbosa da Silva (UnP)

Lidia Almeida Barros (UNESP-Rio Preto)

Cleo A. Altenhofen (UFRGS)

Maria Margarida de Andrade (UMACK)

Darcília Marindir Pinto Simões (UERJ)

Maria Luisa Ortiz Alvares (UnB)

Edenize Ponzo Peres (UFES)

Maria do Socorro Silva de Aragão (UFPB)

Eliana Meneses de Melo (UBC/UMC)

Maria de Fátima Mesquita Batista (UFPB)

Gerda Margit Schütz-Foerste (UFES)

Maurizio Babini (UNESP-Rio Preto)

Guiomar Fanganiello Calçada (USP)

Mônica Maria Guimarães Savedra (UFF)

Ieda Maria Alves (USP)

Nelly Carvalho (UFPE)

Ismael Tressmann (Povo Tradicional Rainer Enrique Hamel (Universidad do Pomerano) México) Joachim Born (Universidade de Giessen/ Alemanha)

AGRADECIMENTOS Se é verdade que as preocupações em relação à dinâmica de aplicação de pressupostos teóricos aos artefatos literários caminham comigo há bastante tempo, as formulações que tomam corpo neste livro só me foram possíveis a partir da leitura, nos últimos anos, dos ensaios do Prof. Dr. Fabio A. Durão (Unicamp), em particular do livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica, publicado em 2011. A minha dívida para com o volume em questão e demais textos de Durão revela-se nas constantes menções à sua obra ao longo de todos os capítulos que compõem o presente volume. Agradeço ao Prof. Fabio, pois, tanto pela interlocução aqui evidenciada quanto pelas recentes contribuições para os volumes que organizei sobre o tema. Devo agradecer, ainda, a amigos e parceiros intelectuais cuja presença se faz direta ou indiretamente sensível nos ensaios aqui reunidos. Além dos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Letras da Unesc, bem como de seus respectivos alunos, gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Rafael Rodrigo Mueller, coautor de dois dos capítulos deste livro e interlocutor constante; ao Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros, para sempre il miglior fabbro; ao Prof. Dr. Fábio Luiz Lopes da Silva, amigo, mestre e máquina conceitual; à Prof.a Imaculada Kangussu, companheira de leituras, textos e viagens; ao Prof. Dr. Eduardo Subirats, eterno defensor da literatura, do ensaio e de um circuit circus para as humanidades; ao Prof. Dr. Victor Luiz da Rosa, leitor criterioso e crítico certeiro; e ao Prof. Dr. Cristiano de Sales, poeta, ensaísta e amigo. Agradeço, ainda, o convívio diário e as conversas sempre produtivas com os amigos Prof. Dr. Ismael Gonçalves Alves, Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral e Prof.ª Dr.ª Ângela Cristina Di Palma Back. Sem a presença e o diálogo com todas essas pessoas, o presente volume não teria acontecido. Por fim, agradeço à Michelle Maria Stakonski Cechinel, minha leitora mais rigorosa e gentil, ponto de convergência de todos os meus textos e de todo o resto: “Love is most nearly itself/When here and now cease to matter”. O autor

PREFÁCIO Uma adolescente brilhante que ama os livros, mas não consegue dedicar-se tanto quanto queria a eles em meio às obrigações escolares e às pressões decorrentes da relativa pobreza em que sua família se encontra. Um jovem, atormentado por um trauma terrível, que decide deixar tudo para trás, inclusive a carreira promissora como estudioso da literatura. Um sessentão nova-iorquino às voltas com a falência iminente da editora que dirige há quatro décadas. Um autor famoso acossado pelo fantasma de uma paralisia criativa permanente. Uma aluna de doutorado que, à noite, depois do trabalho, tenta terminar sua tese no cenário sombrio da casa abandonada que ocupa irregularmente. Em Sunset Park, romance de Paul Auster (2012), a literatura está por toda parte, mas em condições invariavelmente precárias, abrindo caminho com dificuldade na rotina das pessoas ou sendo continuamente emparedada pelas incertezas da vida. Essas incertezas, em certa medida, são as de sempre, fruto do simples fato de existirmos e de seus riscos inerentes. “Viver é muito perigoso”, já disse alguém (só não exageremos no recurso autocomplacente a tal citação: esse alguém, não custa lembrar, era um jagunço, enquanto nós...). Mas as incertezas que rondam os personagens de Auster são também as de um tempo e um lugar específicos: o ano de 2008 nos Estados Unidos, quando, como se sabe, a maior economia nacional do planeta conheceu um abalo de proporções catastróficas, com consequências dramáticas para o mundo inteiro. Como bem aponta o ensaísta Thomas Frank, os blue collars americanos até hoje não saíram da situação encalacrada em que os grandes especuladores os meteram. É verdade que, de acordo com as estatísticas oficiais, o país voltou a crescer. Só que a transferência dos lucros para o andar de baixo simplesmente não acontece: “os salários não aumentam; a renda média no país permanece bem abaixo do ponto em que estava em 2007; a parcela representada pelos ganhos dos trabalhadores no produto interno bruto bateu o recorde negativo em 2011 e desde então não se recuperou” (FRANK, 2016, p. 1). Em favor de seu argumento, Frank menciona uma esclarecedora pesquisa de acordo com a qual, em 2014, quase três quartos dos americanos ainda pensavam que os Estados Unidos continuavam em recessão. “Porque, para eles, estava mesmo”, arremata Frank (2016, p. 2).

Timothy Snyder, professor de História em Yale, vai ainda mais longe. A seu juízo, a crise de 2008 é um divisor de águas. Sob seus efeitos disruptivos, os americanos finalmente ligaram os pontos (o 11 de setembro, o desastre da segunda guerra no Iraque, a perda ininterrupta de direitos, o ocaso dos sindicatos etc.) e concluíram que o futuro de paz e prosperidade prometido pelas democracias liberais estava cada vez mais irremediavelmente distante deles. Nasceu daí um novo tempo, marcado por descrença e desesperança, à mercê de projetos autoritários. Ou mais que isso: para Snyder, a mais recente recessão é, para muitos americanos, o ano zero de uma outra concepção de tempo, um modo radicalmente novo de as pessoas compreenderem a História, uma maneira de enquadrar a vida em cujos termos o futuro simplesmente desaparece do horizonte, sendo substituído pela ideia de que tudo o que há, no fim das contas, é a repetição infatigável de um único e mesmo ciclo, no qual “nós”, supostos inocentes, seríamos perpetuamente atacados por algum inimigo externo ou interno (os chineses, os comunistas, os negros, os mexicanos, os corruptos etc.) (cf. SNYDER, 2018). Ainda segundo Snyder, o que acontece nos Estados Unidos é, na verdade, só um exemplo, entre muitos outros, de um fenômeno global. Com pequenas diferenças cronológicas e sob a influência de diferentes acontecimentos além da crise de 2008, a humanidade toda está rendendo-se a essa percepção de que estamos presos a um ciclo em que seríamos perpetuamente atacados justamente porque somos puros, e o destino da pureza é ser violada pelos homens maus. Ora, em circunstâncias dominadas por uma narrativa geral tão medíocre e deprimente, como esperar que a literatura seja valorizada? No livro que o leitor agora tem nas mãos, André Cechinel revela imensa clareza de que a literatura existe hoje exatamente como é capturada no romance de Auster: aos pedaços e sempre prestes a desaparecer. O autor, além disso, mostra total consciência de que esse despedaçamento foi produzido por e faz sistema com os circuitos do capital e a sucessão de dramas políticos e tensões socioeconômicas que marcaram o século XX e se prolongam pelo século XXI. Cechinel não cita Snyder, mas converge para a mesma conclusão de que o cortejo de crises nos últimos 100 anos foi matando a ideia de progresso, até nos submeter a uma nova temporalidade, alheia à noção de futuro. Uma temporalidade decerto não apenas esteticamente deplorável, mas, a rigor, incompatível com as lentidões que a opacidade do literário solicita para ser interpretada e assimilada às nossas vidas. Basta pensar no que hoje, nas redes sociais, é chamado de “textão”: algo que, no seu suposto excesso e exigência

cognitiva, não encheria, contudo, meia página de Guerra e Paz. Quem pode ler Tolstói quando passa, como no caso do brasileiro médio, quase 10 horas por dia conectado à internet, na maior parte desse período sendo bombardeado por postagens que, como certas drogas, felicitam-nos ou ultrajam de modo miseravelmente solitário e de uma maneira tal que imediatamente demanda um novo choque, uma nova felicitação ou ultraje? Cechinel bem sabe, de resto, que, embora não seja necessariamente eterno e inexpugnável, o conjunto atordoante de condições a que estamos hoje submetidos tem uma força opressiva e acachapante o suficiente para nos impedir de sonhar, mesmo no longo prazo, com um destino para a literatura que não seja o de uma existência parasitária, menor, residual. São esses restos literários que Cechinel recolhe, e é a partir deles que ele tenta pensar – nos termos de uma posição próxima à que Nietzsche chamou de pessimismo de força – o ensino da literatura. Um apóstolo do pessimismo de força. Assim é André Cechinel. Afinal, apesar de estar convencido de que a literatura cedo ou tarde se extinguirá, ele reitera o compromisso de lutar para que ela ao menos possa seguir operando como “lembrança anacrônica de um significado mais verdadeiro da palavra formação”. Para Cechinel, a literatura humaniza não por seus conteúdos específicos, por mensagens que venha a carregar, mas pelo simples fato de que, com sua dificuldade, sua resistência à digestão imediata, lança-nos em outra temporalidade e rasga a bolha do eterno presente em que vivemos. A literatura humaniza porque inventa a possibilidade do futuro, esse outro nome para a humanidade. Em uma época em que mesmo os teóricos da área parecem não mais nutrir um sentimento profundo pela literatura, Cechinel continua a amá-la incondicionalmente. Neste livro – que é, no fundo, a sua profissão de fé –, ele reitera a certeza de que há coisas que só a literatura é capaz de fazer (mesmo que ela quase já não consiga de fato fazê-las; mesmo que, para que ela pudesse fazê-las, precisasse contar com uma abertura e uma disponibilidade dos leitores que se apresentam cada vez menos). Cechinel, nesse sentido, é parecido com Pilar, a adolescente bibliófila de Sunset Park mencionada na frase de abertura desta apresentação. Com os parcos recursos aprendidos nas aulas de Inglês na escola, ela se demora sobre o que lê e está de tal modo atenta a isso que é capaz de perceber algo tão sutil e sublime como a força que uma simples mudança de foco narrativo pode ter: “ela começou a argumentar”, escreve Auster (2012, p. 14) sobre a garota,

[...] que o personagem mais importante [de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald] não era Daisy, nem Tom [Buchanan, o marido dela], nem mesmo Gatsby, mas Nick Carraway [primo de Daisy e narrador do romance]. [...] É porque é ele que conta a história, disse Pilar. Ele é o único personagem que tem os pés no chão, o único personagem capaz de olhar para fora de si mesmo. Todos os outros são pessoas perdidas, rasas, e sem a compaixão e a compreensão de Nick, não seríamos capazes de sentir nada por eles. O livro depende de Nick. Se a história fosse contada por um narrador onisciente, não seria nem a metade do que é.

Não por acaso, O Grande Gatsby é uma das obras preferidas de André Cechinel. Com Nick Carraway (e alguns outros), ele certamente aprendeu o ofício tão bem compreendido – e exercido – por Pilar: o de olhar para cada um de nós com compreensão. Este livro – que, ao insistir na literatura, não desiste do futuro, isto é, de nós – é a prova disso. Fábio Lopes da Silva Professor titular da UFSC Florianópolis, 7 de maio de 2019

REFERÊNCIAS AUSTER, Paul. Sunset Park. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. FRANK, Thomas. Listen, Liberal: Or What ever happened to the Party of the People? Nova York: Metropolitan Books, 2016. SNYDER, Timothy. The Road to Unfreedom. Nova York: Tim Duggan Books, 2018.

SUMÁRIO PRÓLOGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

USOS DA LITERATURA 1

LITERATURA E FORMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Da dificuldade de dizer “literatura” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Da necessidade de dizer “literatura” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

2

SEMIFORMAÇÃO LITERÁRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 A nova BNCC e a semiformação literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Literatura e formação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

3

O IMPÉRIO DAS FAKE NEWS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 As fake news e o paradigma da sensação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 A literatura e o paradigma da supressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

4

LITERATURA E NEGATIVIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 A literatura e a sociedade excitada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 A literatura e a ética espetacular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76

5

UM NOVO REGIME DE PERCEPÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 Mutações sensoriais e os usos da atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Pluralidade midiática, literatura e atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

USOS DA TEORIA (LITERÁRIA) 6

A LITERATURA AUSENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 Da literatura como objeto ausente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Da “crítica prática” ao desaparecimento do objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 O desaparecimento do objeto e o espaço de trabalho acadêmico . . . . . . . . . . . . . . . 108 Teoria – com “t” minúsculo – e a restituição dos objetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

7

RASTROS AUTORAIS DA TEORIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 A fórmula como potência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 A fórmula como fórmula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

8

O CARÁTER DESTRUTIVO DA LITERATURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127 Literatura, alteridade e a “virada ética” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 Literatura e destruição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 O outro da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

9

A PERSISTÊNCIA DA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147

EDUCAÇÃO E OUTROS USOS 10

UM BRINQUEDO IMPROFANÁVEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 A brincadeira como profanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Câmara Mirim e o mundo adulto improfanável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170

11

A EDUCAÇÃO COMO FALSO NEGATIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Educação para além do espetáculo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 Educação como falso negativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186

REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

PRÓLOGO Os ensaios reunidos neste livro, sob o título Literatura, ensino e formação em tempos de Teoria (com “T” maiúsculo), buscam discutir, em linhas gerais, alguns dos impasses que atravessam o lugar da literatura nas instituições e nos processos formativos, seja na educação básica ou mesmo no ensino superior. Em poucas palavras, pode-se dizer que os capítulos constituem diferentes formas de responder à seguinte pergunta: o que de fato significa dizer, ainda hoje, que o ensino de Literatura “humaniza” os sujeitos, principalmente em um contexto de claro encolhimento das humanidades e de reformas educacionais que estrangulam qualquer possibilidade formativa alheia à lógica da aplicação imediata ou à dinâmica de meios e fins? Nesse sentido, de certa forma, o livro não deixa de ser uma reafirmação radical da defesa do literário feita por Antonio Candido em seu célebre ensaio “O direito à literatura”, mas, ao mesmo tempo, uma tentativa de indicar que esse mesmo literário – que arrasta consigo toda a positividade atribuída a seu suposto conteúdo formativo –, destituído de uma predicação mais clara ou desvinculado dos processos específicos aqui discutidos, permanece sem rumo, à deriva, podendo ser, inclusive, prontamente apropriado pelo seu inverso. O exemplo mais claro disso, isto é, de um conceito de literatura que, mesmo sob o propósito de reafirmar a importância da imaginação, da interatividade e da construção de significados na e com a linguagem – “humanizando”, pois, o ser humano –, acaba por neutralizar o que lhe é singular em relação às demais formas de escrita, mergulhando todos os gêneros em um mar de objetos indistintos e potencialmente equivalentes, pode ser visto nas formulações dos Parâmetros curriculares nacionais (PCN), de 2000: como tudo não passa de texto, ou de textos muitas vezes acolhidos por uma noção genérica de “gêneros textuais”, a ideia de um artefato propriamente literário torna-se problemática. A consequência dessa linha argumentativa é a própria destruição da área, mesmo sob ares pretensamente democráticos e elogiosos à literatura: já não há mais diferenças relevantes, por exemplo, entre Paulo Coelho e Machado de Assis, e Drummond não é de todo distante de Zé Ramalho – isso para nos limitarmos aos casos debatidos pelo próprio documento, restando-nos imaginar até onde as equivalências podem ir. Mais recentemente, a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) 13

ANDRÉ CECHINEL

brasileira, de 2018, sem a mesma virulência dos PCNs, reduziu a literatura fundamentalmente a um jogo de mídias e dispositivos tecnológicos: se o nome de autores, obras e movimentos artísticos, por um lado, praticamente desaparece do documento, as assim chamadas “culturas juvenis contemporâneas”, por outro, parecem bem representadas por meio do vínculo entre o literário e o midiático na profunda democracia da web. Para a BNCC, mais que o desafio reflexivo imposto pelas obras, o importante é eventualmente “produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines” ou tornar-se “um booktuber”, sempre, é claro, “reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura” (BRASIL, 2018, p. 87). Seja como for, os itálicos da citação podem desde já indicar de onde vem essa concepção de literatura e ensino. Como pano de fundo para toda essa discussão, assombra o campo da Literatura uma noção fantasmática de Teoria (literária), com “T” maiúsculo e sem delimitação de campo de atuação, ou melhor, sem objetos específicos. Conforme a definição de Fabio A. Durão (2011b), a Teoria pode ser caracterizada tanto pela multiplicação dos princípios e procedimentos, escolas e movimentos interpretativos quanto pela desvinculação desse mesmo quadro teórico plural e abundante de qualquer delimitação de área de estudo. A Teoria, portanto, é marcada pelo signo do paradoxo: de um lado, as possibilidades teóricas multiplicam-se indefinidamente, em uma política do excesso que alarga ou rompe quaisquer fronteiras entre as disciplinas e campos; de outro, em decorrência disso, a Teoria resulta não raro em procedimentos de análise apriorísticos ou mecanizados, que sem se preocupar com a singularidade dos objetos dirige-se a eles em uma dinâmica de mera aplicação ou testagem fadada a sempre funcionar. Nas palavras de Durão (2011b, p. 3), a influência da Teoria “se dá primordialmente por meio por meio de uma dissociação cada vez maior entre texto literário e código interpretativo”. Logicamente, a desvinculação entre “texto literário e código interpretativo” muitas vezes reduz a literatura a um campo estritamente temático, a que se podem colar as questões teórico-políticas mais amplas discutidas pelos grandes Teóricos. Não resta dúvida de que esse quadro intelectual precariza a noção de obra ou artefato literário ou artístico, cuja organicidade anterior agora se desfaz para acomodar os conceitos que habitam o universo dos diferentes Studies ou da Teoria. Para discutir essas questões, o presente volume encontra-se dividido em três seções fundamentais. A primeira seção, intitulada “Usos da litera14

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

tura”, reúne cinco capítulos que abordam assuntos que vão desde a relação entre literatura e a ideia de formação humana, até temas como as chamadas fake news e um conceito de “negatividade” para os estudos literários, tudo isso vinculado ao debate acerca de um regime de atenção específico solicitado pela área. A segunda seção, “Usos da Teoria (literária)”, volta-se mais particularmente para a discussão sobre o modus operandi da Teoria e as possibilidades de surgimento de uma política de restituição da singularidade dos objetos para a Teoria Literária, dessa vez sem parênteses e com uma delimitação clara do âmbito de atuação do teórico. Por fim, uma vez que os problemas debatidos nas duas primeiras seções não dizem respeito somente à literatura tomada isoladamente, mas também à educação e seus processos formativos como um todo, a última seção do volume, intitulada “Educação e outros usos”, debate os laços entre a educação e o neoliberalismo contemporâneo, de modo a indicar, na contramão da formação para o espetáculo e das instituições educacionais como meras empresas, um conceito de educação verdadeiramente crítico, capaz de ressignificar e potencializar os resíduos daquilo que ainda chamamos de emancipação e esclarecimento. Os dois capítulos da última seção foram redigidos com o professor Rafael Rodrigo Mueller, a quem agradeço o diálogo intelectual permanente. Se é verdade que as humanidades e a literatura estão em crise na estrutura universitária e escolar, a saída para essa crise, se possível, encontra-se não na mera positivação de seus processos – ou em uma politização suspeita, muitas vezes importada, que se dá na contramão das áreas e de seus objetos, como costuma ser o caso nos procedimentos da Teoria contemporânea –, mas sim na revisitação teórica e crítica de toda uma tradição que nos fez e nos faz falhar, bem como de um conceito de educação e formação há muito distante de si mesmo. É em nome do direito de tentar mais uma vez, e possivelmente falhar, que agora falamos.

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Usos da literatura

1 LITERATURA E FORMAÇÃO “Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância” (GOETHE, 2006, p. 284). O projeto de formação (Bildung) vislumbrado por Wilhelm Meister e explicitado naquelas que talvez sejam as páginas mais famosas do livro de Goethe, Os anos de formação de Wilhelm Meister (17951796), jamais poderia ser pensado sem o diálogo com a literatura e as demais artes. Com efeito, ao longo de suas mais de 600 páginas, o célebre Bildungsroman (“romance de formação”) goethiano faz desfilar diante do leitor uma imensa trupe de artistas apaixonados pela arte e pela literatura, artistas cuja tragicomicidade de suas vidas confunde-se com aquela das várias peças que encenam em seu percurso errante. Em Wilhelm Meister, a formação apresenta-se atrelada a certo abandono de si em meio a uma trajetória incerta que, diferentemente do ideal de vida burguês retratado no romance, não prevê meios e fins específicos garantidores da acomodação do sujeito em um mundo de negócios, bens, dinheiro e lucro. Nesse sentido, “autonomia” e “liberdade”, elementos mínimos da imagem de formação aqui em pauta, significam, em última instância, a abertura ao risco e a uma intransitividade artística sem a qual a razão instrumentaliza-se de tal modo a negar-se a si mesma. Ora, que a aliança entre formação, arte e intelectualidade não possa ser hoje simplesmente convocada nesses mesmos termos é algo desde há muito anunciado.1 No célebre texto de 1915 intitulado “A vida dos estudantes”, Walter Benjamin já apontava a melancolia resultante de um processo formativo estritamente escolarizado e submetido a uma lógica enrijecida de meios e fins e a uma concepção linear e progressista de tempo: Na medida em que se direciona para a profissão, a universidade desencontra-se forçosamente da criação imediata como forma de comunidade. A estranheza hostil, a incompreensão da escola perante a vida exigida pela arte pode ser realmente Sobre o tema, cf. “Sobre a relevância dos estudos literários hoje”, de Fabio A. Durão, disponível em: http:// www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao02/02e_fad.php. 1 

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interpretada como recusa da criação imediata, não relacionada com o cargo (BENJAMIN, 2002, p. 40).

A formação, dissociada das artes e voltada para o mercado de trabalho a partir de um mundo de títulos, qualificações, ranqueamentos e muita competição, afasta o indivíduo do espírito comunitário e degrada a própria ciência. Se a vida do estudante deve pressupor a produção de um atrito mínimo com o mundo estabelecido, o império das profissões converte o estudantado em um corpo passivo à espera de um lugar ao sol, ou melhor, um corpo disposto a adaptar-se justamente às demandas sociais que deveriam ser o objeto de suas críticas. Publicado há mais de 100 anos, o texto de Benjamin está condenado a ver o seu diagnóstico diariamente reafirmado e naturalizado nos mais variados espaços de ensino, a ponto de constituir um retrato verdadeiro, talvez quase que idílico, de uma realidade agora convertida na mais violenta regra. Se o ensaio de 1915 lamentava o abandono das artes ou mesmo de Eros em nome de uma formação mais estreita dirigida para a vida profissional, hoje podemos lamentar, então, o abandono da própria ideia de educação e, paralelamente a isso, a mera sobrevivência do artístico-literário como ilhas-simulacro de intransitividade em meio a uma formação utilitária e pragmática. A literatura é precisamente uma dessas ilhas-simulacro que habitam o centro desse impasse. Não raro destina-se a ela um papel grandioso no âmbito da educação formal, porém a grandiloquência com que é anunciada sua suposta tarefa contrasta vivamente com as condições e contradições concretas para a sua realização. Assim lemos, por exemplo, nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, documento de 2006 publicado pelo MEC que estabelece as diretrizes gerais para o ensino de Literatura no Brasil: “o ensino de Literatura (e das outras artes) visa, sobretudo, ao cumprimento do Inciso III dos objetivos estabelecidos para o ensino médio [...]”, que diz respeito ao “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 2006, p. 53). São citadas, a seguir, as conhecidas palavras de Antonio Candido sobre o aspecto “humanizador” do texto literário: “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (apud BRASIL, 2006, p. 54). Para além do desconforto que de pronto provoca a tese de um “aprimoramento” do educando como pessoa “humana”, as condições objetivas para o ensino de Literatura não são nada animadoras e desnudam, em muitos casos, não a emancipação do “sujeito 20

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humano”, mas sim a sua captura quase que integral à dinâmica mais agressiva daquele mesmo mundo das mercadorias de que ele haveria de se libertar se bem formado: ali onde a literatura, por ser “difícil”, não é substituída por resumos, versões adaptadas dos clássicos ou mesmo textos e gêneros mais palatáveis, ela então se vê submetida ao mundo dos vestibulares e avaliações, cujo intento, cabe insistir, não é a promoção da liberdade e da autonomia dos sujeitos, mas sim a divisão e distribuição dos espaços que cada um pode pleitear na vida social produtiva. Nesse último caso, em particular, o contato com o literário inscreve-se em uma lógica de competição mais ampla que domestica a potência supostamente disruptiva atribuída à literatura nos documentos oficiais. Encarar de frente esse quadro embaraçoso constitui, antes de mais nada, um gesto de coragem e honestidade. O presente capítulo intenta discutir justamente o cenário de profunda precariedade que regula o (não) lugar dos estudos literários hoje nas instituições de ensino. Para tanto, o argumento divide-se em dois momentos fundamentais: primeiramente, busca-se rememorar de modo sucinto – e sob o risco de certa superficialidade – alguns dos golpes desferidos contra o espaço formativo ocupado pela literatura ao longo do século XX e que demandam uma reconfiguração discursiva capaz de justificar o porquê de sua presença nas escolas e, por que não dizer, nas universidades. Refiro-me aqui, entre outros, à crise do discurso de nação, à insuficiência do conceito de literariedade, ao império da ideia de texto e gêneros textuais e, por consequência, à crise do objeto nos estudos literários. A seguir, atravessado esse “balanço” inicial, o texto debate brevemente a necessidade de uma conceituação forte para as noções de “obra”, “leitor” e “tradição”, operadores mínimos que, implícita ou explicitamente, conduzem o ensino de Literatura e que se apresentam uma vez mais como desafios teóricos urgentes para a teoria literária. Longe desses desafios, os objetos e a própria área aqui em pauta, ao menos tal como encarnados sob a forma de disciplinas curriculares, tendem a entrar em sintonia com o fluxo infinito e desgovernado de estímulos e trocas do tempo presente e, dessa forma, a se traduzir em práticas distantes da tão propalada “formação humana”. Da dificuldade de dizer “literatura” É sob a sombra do discurso de nação ou a partir de seus destroços que se dá muito do que ainda hoje ocorre no domínio do ensino de Literatura, 21

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isso tanto no nível médio quanto universitário. Como se sabe, “no século XIX, quando ela [a literatura] se tornou disciplina autônoma (sob a forma de história literária), seu estudo servia como cimento das nacionalidades” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 76). Decorre desse instinto de nação do século XIX, portanto, a forma como os currículos organizam e estruturam o estudo do literário a partir das literaturas nacionais, distribuindo os “conteúdos”, autores e obras ao longo de uma faixa temporal que segue linearmente desde o “surgimento” de determinada tradição local até o balanço contemporâneo de sua situação, em constante contraste com o fundo histórico e estético do desenvolvimento literário de outras nações, principalmente as europeias, como França, Inglaterra e Alemanha. A noção de tempo subjacente a esse encarceramento classificatório, aliás, encontra-se em profunda sintonia com o próprio espírito positivista do século XIX, um tempo que segue cumulativa e progressivamente até culminar no momento presente. Seja por meio dos períodos literários ou estilos de época no ensino médio – “Quinhentismo” (ou Renascimento), “Barroco”, “Arcadismo” (ou Classicismo), “Romantismo” etc. –, seja por meio da conhecida grade curricular que tece cortes geográfico-temporais relativamente estáveis e harmônicos nessa mesma sequência histórica e estética – “Literatura brasileira I, II, III etc.”, “Literatura portuguesa I, II, III etc.” –, o fator de organização é no fim o mesmo, a expressão do caráter tipicamente nacional de certas obras e o papel decisivo por elas desempenhado na formulação e consolidação das conquistas literárias de um dado povo. É como tal, em sua aliança com a história da literatura e sob a égide de impulsos nacionalistas e patrióticos, que os estudos literários firmam-se como disciplina. São inúmeras as críticas tecidas a esse modelo orientador que, no entanto, sobrevive institucionalmente sob um funcionamento autômato, como algo incapaz de, mesmo desfeito, simplesmente desaparecer. Em primeiro lugar, realizar a leitura dos textos literários a partir de escolas e estilos de época, por via de regra, é obedecer a uma agenda conceitual prévia e enrijecida que impede o imprevisto de surgir no contato efetivo com os artefatos artísticos. Em outras palavras, lê-se José de Alencar como um escritor romântico, Machado de Assis como um escritor realista, quando sabemos perfeitamente que, em muitos casos, o que há de mais potente em um autor é aquilo que ele escreve contra o seu tempo, surpreendendo e confundindo a própria temporalidade que busca controlar sua produção. Nesse esquema, a leitura da obra na sua integralidade pode ser, inclusive, substituída por excertos capazes de ilustrar a acomodação de um autor em 22

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um determinado período e em suas respectivas características dominantes – no caso do Romantismo, por exemplo, os autores costumam ser lidos nas escolas a partir de noções prêt-à-porter como “subjetivismo”, “escapismo”, “individualismo”, entre outras, termos que servem ao propósito da categorização, mas dificilmente à formação do leitor crítico. É por isso que as OCEM alertam: “não se deve sobrecarregar o aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc., como até hoje tem ocorrido” (BRASIL, 2006, p. 54). O alerta, contudo, não se transfere de pronto para o âmbito da prática, como provam os diferentes livros didáticos e vestibulares que enclausuram as obras justamente nesse cenário de listas e classificações. Em segundo lugar, com as experiências totalitárias do século XX, a crise do modelo iluminista e centralizador de Estado-Nação, as frequentes críticas voltadas à noção excludente de “origem” nas ciências humanas, o descentramento do sujeito cartesiano, a “morte” do autor como figura reguladora da crítica literária, a globalização, a circulação de mercadorias e a suposta porosidade das fronteiras nacionais, o bombardeio de denúncias dirigidas à parcialidade de um cânone branco, masculino, elitista e eurocêntrico, entre outros, torna-se muito difícil insistir ainda hoje na validade da defesa do nacional ou nas versões teleológicas da história da literatura como princípios legítimos para a organização curricular do ensino de Literatura na educação básica ou no ensino superior. Seja qual for o motivo elencado na lista apresentada, o fato é que um dos mecanismos mais importantes e comumente acionados para conferir coesão e um fio condutor ao tratamento do literário viu sua estrutura interna corroer até desmoronar, restando apenas os destroços ou restos que, contudo, na falta de um outro princípio articulador mais forte, estamos condenados a revisitar mecanicamente em meio aos vários alertas dos perigos de, ao fazê-lo, reproduzir no âmbito formativo os autoritarismos totalizantes de um passado recente. Enfim, o discurso de nação e a história da literatura, além de por vezes contornarem ou prescindirem do contato direto com as obras, projetam as sombras de uma falsa e perigosa totalidade que apaga a arbitrariedade de seu centro de operação, fazendo passar por neutro aquilo que na verdade resulta de violentas disputas ideológicas. ***

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Ora, uma alternativa a esses modelos extrínsecos de entrada no literário seria a possibilidade de atuar a partir de elementos balizadores do que é propriamente constitutivo da literatura, os artifícios ou componentes de sua maquinaria interna que a singularizariam em relação ao demais gêneros textuais ou à linguagem cotidiana. O “formalismo russo”, como sabemos, foi precisamente uma tentativa de afastar a literatura da “fala prosaica”, ou melhor, de enfrentar a “[...] má compreensão da diferença que opõe as leis da linguagem cotidiana às da linguagem poética” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 89). A chamada “literariedade”, isto é, o traço definidor do literário como literário, estaria posta, pois, no processo de “desautomatização” do uso da linguagem e de singularização dos objetos, procedimento que “consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 91). Em outras palavras, literatura é “estranhamento” (ostranenie), um modo organizado de agredir ou violar o caminho automatizante que a vida cotidiana impõe à nossa relação com as formas linguísticas. Se, por um lado, a nossa tendência no dia a dia é lidar com os objetos de maneira habitual, inconsciente ou mesmo acelerada, a forma literária é aquela que nos faz frear e olhar para as coisas como se pela primeira vez, estranhando o que se nos apresentava até então como familiar: “a arte é um meio de experimentar o vir a ser do objeto, o que já ‘veio a ser’ não importa para a arte” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 89). A arte como um procedimento, nesse sentido, recorre a ferramentas próprias dela e das quais deve se ocupar o crítico literário para apreender o seu funcionamento. A sucessão de períodos literários é substituída agora por uma “gramática” específica da literatura e por formas – versos, sons, ritmos, imagens, rimas, esquemas métricos, tipos narrativos etc. – que surgem, deformam ou “desautomatizam” a fala cotidiana, convertendo-se elas também paulatinamente em funções dominantes e solicitando, por sua vez, desvios posteriores. Nas palavras de Jakobson (2002, p. 517), “desvios contínuos no sistema de valores artísticos levam a desvios contínuos na avaliação de diferentes fenômenos artísticos”, ou seja, formas antes tomadas como imperfeitas, diletantes ou simplesmente equivocadas podem ressurgir em um outro momento, sob um novo registro, como capazes de alterar ou transformar as funções então dominantes e de, nesse caso, demandar avaliações críticas antes imprevistas. Em resumo, portanto, a literatura opera historicamente por meio de um processo dialético de diálogo com a tradição e crítica dela: “manter a tradição e fugir dela compõem a essência de todo novo trabalho artístico” ( JAKOBSON, 2002, p. 518, grifo do 24

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autor). Logicamente, ao contrário da simples sucessão de períodos literários organizados desde princípios históricos e estéticos “externos” às obras, o formalismo russo insiste na internalidade de sua base analítica, partindo de um corpo teórico capaz de permitir o enfrentamento com o “fato literário” em sua suposta imanência. A renúncia à tese de literariedade nos estudos literários, isto é, à tentativa de depreender as características internas definidoras da literatura na sua relação de diferença para com a fala cotidiana, parece hoje um ponto pacífico ou um dado autoevidente, conforme atesta o próprio tom casual com que as OCEM descartam o assunto em apenas três linhas do documento: “Houve diversas tentativas de estabelecimento das marcas da literariedade de um texto, principalmente pelos formalistas e depois pelos estruturalistas, mas essas não lograram muito sucesso, dada a diversidade de discursos envolvidos no texto literário” (BRASIL, 2006, p. 55). Curiosamente, entretanto, algumas linhas depois, o documento vai recorrer justamente ao “estranhamento”, possivelmente a partir de um uso pré-conceitual do termo, para estabelecer o traço definidor da experiência estética: Qualquer texto escrito, seja ele popular ou erudito, seja expressão de grupos majoritários ou de minorias, contenha denúncias ou reafirme o status quo, deve passar pelo mesmo crivo que se utiliza para os escritos canônicos: Há ou não intencionalidade artística? [...] Proporciona ele o estranhamento, o prazer estético? (BRASIL, 2006, p. 55, grifo do autor).

Como no caso do periodismo e da defesa da tradição nacional como narrativas plausíveis para os estudos literários, as noções formalistas, descartadas ou consideradas insuficientes em suas implicações conceituais, sobrevivem nos manuais de literatura destituídas do substrato que lhes adensaria em um uso verdadeiramente crítico, circulando na condição de resíduos de um passado teórico distante. Afinal de contas, o que significa “proporcionar estranhamento” no contexto do documento? A tentativa de responder à pergunta nos faria retornar aos impasses que as OCEM não enfrentam até as últimas consequências e que pediriam uma teorização mais contundente. Em linhas gerais, as várias críticas lançadas contra o “formalismo russo” e a ideia de literariedade podem ser aqui resumidas, para fins didáticos, em dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, as premissas formalistas em torno da arte como “estranhamento” da realidade parecem funcionar 25

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melhor quando coladas aos movimentos de vanguarda ou ao gênero poético, em particular, do que quando dirigidas a formas narrativas como o conto e o romance. Prova disso é o fato de que as principais teses, exercícios críticos ou argumentos apresentados por nomes como Iuri Tynianov, Osip Brik e o próprio Roman Jakobson decorrem, na verdade, do contato com o verso. Muito embora de modo apressado, essa é a crítica que Terry Eagleton tece aos formalistas russos na introdução de sua conhecida obra Teoria da literatura: uma introdução: “pensar na literatura como os formalistas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia. De fato, quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as técnicas que haviam utilizado para a poesia” (EAGLETON, 2006, p. 9). Nesse sentido, a sensação de estranhamento ou de desvio da norma resultaria muito mais de uma maneira de se relacionar com os objetos do que exatamente de artifícios literários que os fariam produzir diferença em relação aos usos comuns ou cotidianos da linguagem. Em outras palavras, a literatura depende de dispositivos exteriores à dimensão da forma para ser tomada como tal – o que sugere, em suma, que o critério da internalidade não apenas não se sustenta por si só, como parece insinuar-se de modo mais convincente quando sob a forma do verso, cuja associação histórica com a imagem da literatura ocorre de imediato. A perspectiva da recepção ou do leitor, deixada de lado pelos formalistas em seus estudos, aqui surge em cena. Em segundo lugar, como no caso de outras experiências formalistas posteriores, que se concentraram antes nos aspectos linguísticos do que na dimensão mais imediatamente temático-política da experiência literária – insistindo na internalidade do funcionamento da maquinaria artística e assim preterindo aspectos contextuais até então considerados indispensáveis para a compreensão da literatura –, o formalismo russo produziu uma “gramática” imanente para a crítica que, se em um primeiro momento abriu novos caminhos e afastou as análises extrínsecas silenciadoras das especificidades dos objetos com que se deparavam, em um segundo momento passou a apresentar sinais de esgotamento, girando em falso em torno da forma literária e fechando-se para o conjunto vivo de problemas que essa mesma forma evoca a todo momento. Essa crítica aos excessos “instrumentalizadores” de certas teorizações formalistas encontra-se formulada mais recentemente no livro A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov, ele próprio um teórico com produção fortemente voltada para a questão da forma e estrutura literária: “não apenas estudamos mal o sentido de um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita [...]. É preciso também que 26

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nos questionemos sobre a finalidade última das obras que julgamos dignas de serem estudadas” (TODOROV, 2009, p. 32). Atentos somente a aspectos formais, reduzimos a literatura “ao absurdo”, isto é, a um conjunto artificial de técnicas e procedimentos que perdem inteiramente a razão de ser se dissociados do ser humano e do mundo por eles invocados ou fabricados. *** Eis a nova tarefa da crítica literária: libertar o leitor das amarras de um formalismo que, a essa altura, passa a estar ele também vinculado ao autoritarismo do sentido único ou de uma maquinaria analítica para a qual devemos sempre convergir. Fenômenos complexos, o novo “império do leitor” e a abertura a uma “interpretação plural” poderiam ser aqui lidos, a título de exemplo, a partir de dois célebres ensaios de Roland Barthes: “A morte do autor” e “Da obra ao texto”.2 O primeiro, datado sintomaticamente de 1968, anuncia já em suas linhas iniciais a distância mantida em relação ao fechamento do sentido resultante da materialidade imediata da obra ou mesmo do seu lugar de origem: “[...] a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 2004, p. 57). A literatura caracteriza-se, fundamentalmente, não pelos procedimentos formais que a organizam em sua singularidade ou pela relação de tensão que mantém com o real, mas pela radicalidade de uma condição intransitiva capaz de fazê-la desligar-se de qualquer função ou uso específico. Embora o ensaio refira-se ao império da figura autoral como exemplo maior do significado único, esse Autor-Deus alude, na realidade, não apenas a uma figura biográfica de “carne e osso”, mas sim a qualquer obstáculo que impeça o leitor de exercer livremente a sua tarefa: [...] o leitor é o espaço onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia (BARTHES, 2004, p. 64). A discussão que segue mantém um diálogo implícito e explícito com o texto de Fabio A. Durão intitulado “Do texto à obra”. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2011000100005. 2 

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Em resumo, a linguagem (literária) e os sentidos que ela libera no contato com o leitor são abertos, plurais, livres, infinitos, desierarquizados e produzidos sob o signo do prazer que impulsiona a atividade de um receptor “sem história, sem biografia, sem psicologia”, ou seja, de um receptor ele próprio livre de demandas teleológicas ou teologizantes. É claro, para emancipar verdadeiramente o leitor faz-se necessário desobstruir o fluxo de sua atividade de qualquer materialidade imediata que se apresente como obstáculo, e isso significa, em última instância, dissolver a concretude ou totalidade inscrita na própria ideia de obra. É exatamente isso que Barthes empreende no ensaio de 1975 intitulado, não por acaso, “Da obra ao texto”: “Diante da obra – noção tradicional, concebida durante muito tempo, e ainda hoje, de maneira por assim dizer newtoniana –, produz-se a exigência de um objeto novo, obtido por deslizamento ou inversão das categorias anteriores. Esse objeto é o Texto” (BARTHES, 2004, p. 66, grifo do autor). Ao contrário da obra, cujo autocentramento encerra um problema imediato para o livre exercício interpretativo do leitor, o texto caracteriza-se pelo fluxo, pelo deslizamento contínuo e por um conceito de interdisciplinaridade que varre do mapa qualquer resquício de origem ou fim específicos que estabeleçam limites definitivos para o horizonte da recepção. Se a obra, de um lado, associa-se a termos como “estrutura”, “centro”, “monismo”, “fechamento”, “significado”, “simbolismo”, “consumo”, “metáfora” etc., o texto, de outro, vincula-se a categorias como “pluralidade”, “paradoxo”, “descentramento”, “jogo”, “significante”, “travessia”, “abertura”, “gozo”, “metonímia”, entre outros. É essa a estrutura binária (cf. DURÃO, 2011a) que dita a celebração da multiplicidade interpretativa defendida por Barthes no ensaio-manifesto em pauta. Em seu procedimento desierarquizante, o texto infinito vislumbrado pelo ensaísta termina por desierarquizar, enfim, os traços que deveriam singularizar a literatura entre os demais usos da linguagem: “o Texto participa a seu modo de uma utopia social; [...] ele é o espaço em que nenhuma linguagem leva vantagem sobre outra, em que as linguagens circulam (conservando o sentido circular do termo)” (BARTHES, 2004, p. 75). Ora, para o lugar institucional ocupado pela literatura, os perigos que rondam esse uso genérico do conceito de texto começam não por acaso justamente aí, na profunda equivalência estabelecida entre todos os tipos de linguagem. No volume dos Parâmetros curriculares nacionais que se intitula sintomaticamente Linguagens, códigos e suas tecnologias – observe-se que não há referência alguma à literatura no título –, o “gênero literário” não só é 28

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visto como apenas um entre os vários “gêneros do discurso”, como a literatura apresenta-se destituída de qualquer traço básico dela definidor, o que conduz a considerações, por assim dizer, embaraçosas ao longo do documento: “O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno” (BRASIL, 2000, p. 16). Segundo esse cálculo, a dificuldade de definir o que é literatura deve levar-nos à improvável conclusão de que todos os textos são potencialmente literários e em certa medida se equivalem, de modo que em sala de aula não deveria haver nenhuma preferência a priori entre Machado de Assis e... Paulo Coelho. O fiel da balança aqui é o leitor, figura silenciada em virtude de escolhas ou obras impositivas e inacessíveis: “Quando deixamos o aluno falar, a surpresa é grande, as respostas quase sempre surpreendentes. Assim pode ser caracterizado, em geral, o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio: aula de expressão em que os alunos não podem se expressar” (BRASIL, 2000, p. 16). A potência da literatura não está no desafio que lança aos alunos por meio de sua construção específica e complexa de sentidos, mas sim no convite que lhes faz para que se “expressem”. Evidentemente, se o objetivo é a “expressão”, é certo que os alunos podem se “expressar” a partir da literatura, mas também por meio de qualquer outro objeto ou gênero do discurso, ou melhor, por meio de qualquer outro “texto”, uma vez que, em sua conduta democrática, o texto não aceita que linguagem alguma leve vantagem sobre outra, como Barthes nos ensina. Seja como for, ainda que as OCEM tenham posteriormente corrigido a vagueza e permissividade com que os PCNs encerram essas questões, os riscos que a noção de texto reserva para o desenvolvimento dos estudos literários são inúmeros, conforme Fabio A. Durão comenta em um ensaio que propõe a mudança de direção na travessia conceitual sinalizada por Barthes, defendendo a passagem ou retorno “Do texto à obra”. Vale a pena recuperar aqui o argumento ou crítica central que Durão tece contra a fluidez da ideia de texto formulada pelo francês, e que diz respeito, em síntese, à incapacidade do conceito de gerar objetos. Em outras palavras, o texto não permite a valoração de diferentes artefatos, o que também “[...] aponta para o problema de se lidar com o conceito de verdade na prática textual” (DURÃO, 2011a, p. 71). O deslizamento incessante de uma escritura a outra e o fato de que o texto “não deve ser entendido como um objeto computável” (BARTHES, 2004, p. 67) ou como uma materialidade específica ou determinável impedem o estabelecimento de um limite que possibilite a diferenciação dos objetos; nesse caso, como algo que não pode 29

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ser interrompido em seu deslocamento incessante, pode-se dizer que “a realização mais plena do Texto é a de um fluxo linguístico/semiótico” (DURÃO, 2011a, p. 75), um fluxo que, como tal, não se diferencia de outras textualidades nem se apresenta para o escrutínio sem de saída desviar-se de si mesmo. Emblema, pois, de uma abundância linguística, o conceito perde sua força política e literária e acaba por se aproximar “[...] da superprodução que caracteriza o capitalismo atual” (DURÃO, 2011a, p. 75). A liberdade do leitor converte-se, ao fim da jornada, em sua prisão maior: a liberdade para o consumo de fragmentos descartáveis. *** O vasto alcance do conceito de texto e o subsequente abandono parcial da ideia de literatura como um conjunto relativamente estável de obras que partilham de traços comuns e dialogam com determinada tradição histórica, acompanhados das frequentes críticas a um cânone conservador e excludente, dos avanços acelerados dos meios de comunicação e das mídias digitais, da abrangência de uma indústria da cultura que oferece ao público itens fabricados sob demanda, da redução dos vários usos da linguagem a uma concepção vaga de “gêneros discursivos”, entre tantos outros fenômenos que aqui não haveria espaço suficiente para investigar, tudo isso converteu a área dos estudos literários em um campo ao mesmo tempo profundamente amplo e aberto, porém sem fronteiras mínimas visíveis e, dessa forma, destituído de um objeto imediato que justifique ou especifique o seu lugar institucional. Diante desse quadro de incertezas e indefinições, o professor de Literatura, por sua vez, percebe tão somente um mar de textualidades indiferenciadas, e como lhe é insistentemente dito, afinal de contas, que tudo é texto e que “não há nada fora do texto”, tudo pode ser potencialmente abordado em suas aulas. O desfecho melancólico da seção “Conhecimentos de Língua Portuguesa” dos PCNs é por si só suficientemente elucidativo desse cenário: “Ao ler este texto, muitos educadores poderão perguntar onde está a literatura, a gramática, a produção do texto escrito, as normas. Os conteúdos tradicionais forma incorporados por uma perspectiva maior, que é a linguagem [...]” (BRASIL, 2000, p. 23). Conforme Leyla Perrone-Moisés (2000, p. 347) assinala, “a única maneira de aderir a essa nova situação é abandonar de vez tudo o que justificava o ensino anterior da literatura, desde o mais elementar: o livro, a leitura solitária, seletiva e reflexiva”. Cabe aqui 30

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ressaltar que esse abandono não é precisamente uma impossibilidade ou mesmo uma novidade: para além do evidente fato de que a literatura vem sendo gradativamente excluída dos currículos escolares, a própria teoria literária já não parece muito convencida de que possui de fato um objeto, e assim, de “teoria literária” passa a se chamar simplesmente Teoria, com “T” maiúsculo.3 Nas palavras de Durão (2016a, p. 14): A Teoria (com “T” maiúsculo) representa o resultado de um processo de autonomização, de separação vis-à-vis a teoria literária, que, como o próprio nome atesta, ainda guardava alguma espécie de vínculo necessário, por mais tênue que fosse, com a literatura. Embora a Teoria hoje ainda ocasionalmente lide com obras ficcionais, isso já não é mais imprescindível: seu escopo de atuação confunde-se com o das práticas significantes e suas metodologias são variadas, o que faz com que não mais respeite as divisões disciplinares usuais das ciências humanas.

Com efeito, um dos sintomas característicos dessa renúncia ao literário por parte da Teoria decorre da redução das obras poéticas e ficcionais, por exemplo, a aspectos estritamente Teóricos ou mesmo temáticos que poderiam ser perfeitamente encarados a partir de outros artefatos quaisquer. A Norton Anthology of Theory and Criticism (2001) – célebre antologia de ensaios teóricos frequentemente utilizada em cursos de introdução à teoria (literária) nos Estados Unidos – mantém, desde o título, que sequestra a palavra Literary ali diretamente implicada, uma relação problemática com a literatura. Suas mais de 2.500 páginas4 debruçam-se sobre um objeto que vai gradativamente evaporando ao longo das seções, até ser tomado em sua dimensão estritamente temática, como prova a lista final do “índice alternativo” que o volume oferece aos leitores: na seção IV, intitulada “Problemas e temas” [Issues and Topics], convivem lado a lado questões linguísticas e estéticas que desde sempre marcaram os estudos literários até temas contemporâneos como “O corpo” [The Body], “Gênero e sexualidade” [Gender and Sexuality], “O pós-moderno” [The Postmodern], “Subjetividade e identidade” [Subjectivity and Identity], entre outros que incidem apenas lateral ou acidentalmente Sobre o tema, cf. o livro de Durão (2011) intitulado Teoria (literária) americana: uma introdução. Como Peter Barry (2016) comenta, há nessas “medidas elefantinas” dos manuais da Teoria um sintoma evidente de sua falência, uma vez que esse número desproporcional de páginas indica, em certa medida, o recuo de um objeto que, ao se tornar ausente, desregula o próprio dispositivo da sua teorização, que passa a girar intransitivamente em torno de si mesmo. 3  4 

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sobre a literatura. Outros manuais não menos famosos, como Literary Theory: an anthology (2004), da Blackwell, e Literary Theory and Criticism (2006), da Oxford, são igualmente claros ao indicar a acomodação da literatura no âmbito temático: embora preservem o “Literário” no título, os volumes mostram-se em sintonia com as atualizações mais recentes da Teoria, listando vários ensaios que passam à margem da literatura, embora ofereçam temas decisivos e debates políticos que estão na ordem do dia. De todo modo, vale esclarecer de uma vez por todas: desdobramentos recentes da Teoria (literária) tais como a “ecocrítica” [Ecocriticism], os “estudos da deficiência” [Disability Studies], os “estudos urbanos” [Urban Studies], os “estudos animais” [Animal Studies], os “estudos transnacionais” [Transnational Studies], os “estudos pós-humanos” [Posthuman Studies], os “estudos do meio-ambiente” [Environmental Studies], os “estudos oceânicos” [Oceanic Studies] etc., além de estabelecer uma dinâmica de dependência intelectual em relação à “Teoria de ponta” produzida, por via de regra, nos Estados Unidos, como evidencia o dispositivo dos Studies a que se colam as “novas” áreas de estudo recém-fundadas, reduzem o fenômeno literário a um campo textual em que se testam ou a que se aplicam as demandas teóricas mais recentes. Mais uma vez, o que testemunhamos nessas operações é a lógica do consumo e uma dinâmica de produção semelhante àquela que conhecemos no mercado internacional: os textos literários funcionam como matéria-prima (cf. DURÃO, 2011b, 2015) submetida ao funcionamento complexo de uma maquinaria importada sob altos custos, entre os quais o de terceirizar os compromissos intelectuais diante dos desafios lançados pela literatura e o de, ainda que sob pressupostos políticos, reproduzir sem nenhum tensionamento, no campo teórico, os mesmos laços de dependência que a própria Teoria por vezes denuncia. De resto, do ponto de vista da formação intelectual dos futuros professores, o quadro também não é muito animador: os alunos dedicam-se fielmente a um desses Studies – áreas muitas vezes fadadas a um desaparecimento precoce, haja vista as constantes atualizações de seus modelos temáticos ou a flutuação de determinados nomes no mercado de valores da Teoria – para, como no caso da formação tecnicista ou da educação para o trabalho, encontrar um posto futuro na condição de especialista – não especialista em literatura, vale lembrar, mas sim em um dos domínios da Teoria aplicada.

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Da necessidade de dizer “literatura” Habitando incoerentemente os destroços de argumentos que já não mais lhe oferecem uma sustentação ou estrutura elementar sobre a qual se organizar, o ensino de Literatura mantém-se à deriva. Sem um rumo claro ou uma regra forte, a presença do literário tende a se reduzir aos princípios do consumo rápido e descartável que imperam na “sociedade do espetáculo”, uma “sociedade excitada” que é também a sociedade da fadiga: resumos, teorias explicativas ou aplicadas, versões adaptadas, filmes, fichas de leitura, entre outras formas de desvios que evitem o embate direto com as obras em sua integralidade, confronto que demanda tempo e reflexão que poderiam ser destinados a formas mais “produtivas” ou menos intransitivas, com indícios de resultados posteriores mais rápidos ou “lucrativos”. Nessas condições, em que a literatura, para não desaparecer, mimetiza a expectativa de utilidade – uma utilidade por vezes “política”, como no caso dos Studies – a que se veem submetidos os mais diversos conteúdos que habitam a escola ou universidade como empresa, torna-se um exercício improvável insistir no argumento da “formação humana” a que aludem os documentos oficiais. A “formação humana” – se é que a expressão ainda tem lugar nas instituições supracitadas ou caso queiramos ressignificá-la e defendê-la – tem de resultar de um processo, não de acomodação, mas de tensão contínua com a realidade. Como no exemplo de Wilhelm Meister, “formar-se” significa submeter-se ao risco contínuo do desamparo, do abandono, da improdutividade, da intransitividade, enfim, submeter-se ao risco de um mundo artístico-literário que já não reserva grandes promessas, mas que exige muito. Diante desse quadro, difícil permanecer no terreno das metodologias para o ensino de Literatura. Necessária, antes de mais nada, é uma teorização capaz de oferecer conceitos consistentes e firmes de “obra”, “leitor” e “tradição” que estejam em dissintonia com as exigências do tempo presente e sejam capazes de produzir um tensionamento de fato formativo. Esses conceitos poderiam recomeçar a partir de preceitos ou pressupostos básicos, porém não raro deixados de lado. Para a noção de “obra”, por exemplo, em confronto com a ideia de uma textualidade deslizante, cabe lembrar ou acentuar a singularidade irredutível sob a qual ela se apresenta, ou seja, cabe lembrar que a obra só funciona como tal se vinculada a um determinado modo específico de apresentação, em que o “o quê” do artefato confunde-se simultaneamente com o seu “como”, sem que um possa 33

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ser acionado sem ativar também o outro. Em outras palavras, afastada de sua construção particular, isto é, de sua singularidade ou especificidade, a literatura tende a migrar para o campo apenas temático ou então para formas mais toleráveis como aquelas citadas anteriormente. Preservados em sua apresentação singular, os artefatos literários resistem ao mero processo de predicação ou aplicação que caracteriza as operações da Teoria, girando uma vez mais e produzindo novos ruídos somente se lidos sob o signo da atenção e da abertura à sua alteridade imediata. Como afirma Durão (2011a, p. 80): “A obra [...] não pode ser submetida a um modelo, ou ser usada para exemplificar o que quer que seja. Há algo de irredutivelmente antididático em si”. É nesse “antididatismo” da obra que se encontra a possibilidade de formação para o leitor. Sobre o “leitor”, em vez de figura que dita livremente e a partir de si mesmo os sentidos dos textos ou suas relações intertextuais infinitas, faz-se importante, ao contrário, defender a sua desconstrução parcial diante da concretude de uma obra que, quanto mais potente, mais resiste ao seu intuito de colar-se a ela por meio da interpretação. No lugar de um diálogo em que, a rigor, nem texto nem leitor conversam, a leitura potente decorre antes de um embate, de uma disputa violenta e irreconciliável, em que o leitor quer calar a obra por meio de uma análise precisa, “definitiva”, e a obra desvia-se de si mesma e termina por invocar o leitor uma vez mais, provando ser mais complexa do que a interpretação sobre ela projetada. Ali onde imperava a explicação, a clareza, a identidade, o reconhecimento e a decodificação, surge agora uma imagem estilhaçada, uma obra que se despedaça e obscurece a forma, retirando-se silenciosamente e expondo uma ausência de saber, um vazio profundo que habita o centro de nossos dispositivos interpretativos reconciliadores. Na escola ou universidade como empresa, a “gestão de si”, assegurada pelo contato apriorístico com os textos, é substituída, então, pela “desconstrução de si”, resultado de um gesto de entrega e atenção à singularidade do artefato intimidante que ali se apresenta à leitura sem nunca se esgotar. Ora, para ser de fato ameaçadora, para poder eventualmente retirar o leitor do lugar por ele ocupado quando do instante da recepção, a obra não pode originar-se diretamente das demandas desse leitor ou se limitar a satisfazê-las. Nesse sentido, fica parcialmente respondida a questão volta e meia lançada quanto à escolha de materiais a partir dos quais trabalhar com os alunos: cânone ou anticânone, a seleção tem de desafiar o leitor e desarmar seus desejos de consumo iniciais. O critério da facilidade, quando um fim em si mesmo, gera consumidores, não leitores críticos. 34

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Por fim, para evitar o risco de terceirizar a tarefa de tecer um fio argumentativo ou narrativo coerente e produtivo para o diálogo entre as várias obras – terceirização que ocorre via vestibulares, livros didáticos ou recortes meramente temáticos –, seria importante restituir a ideia de “tradição” ao lugar que lhe cabe. Ora, isso certamente não quer dizer fazer o elogio da “grande tradição”, da genialidade do cânone, ou recorrer a uma esteticidade fixa e imobilizadora, mas sim pensar o conceito de tradição muito mais como um operador narrativo inicial e, dessa forma, para sempre incompleto, porém capaz de conferir tanto um sentido histórico e político para os estudos literários quanto de negar-se a si mesmo interna e externamente. Para dizer de outra maneira, o cânone desestabiliza-se internamente, quando uma obra do passado, velha conhecida nossa, é submetida a um exercício interpretativo capaz de lhe conferir nova mobilidade, e externamente, quando novas obras, vozes silenciadas do passado ou não e do presente, violentam a suposta completude dessa tradição, abrindo uma ferida em seu seio capaz de fazer com que tudo que era até então familiar vibre novamente de modo a produzir atritos criativos e potentes. Diferentemente da mera negação do cânone, o conceito de “tradição negativa” reconhece que o passado nunca se nos apresenta de forma integral, exigindo, pois, uma postura ativa de revisitação, confronto e convívio com as suas ruínas. Se a formação tem que ver menos com adequação, instrumentalização, e mais com a produção de algum dissenso mobilizador – “Onde cargo e profissão constituem, na vida dos estudantes, a ideia dominante, esta não pode ser a ciência” (BENJAMIN, 2002, p. 40) –, e se o fluxo contínuo de estímulos caracteriza o paradigma central da “sociedade da sensação”, então trabalhar com as noções de “obra”, “leitor” e “tradição” nos termos mínimos concebidos significa viabilizar um espaço de interrupção e atenção aos objetos que pode assumir tonalidades de fato formativas nos espaços de ensino. Que os conceitos de “literatura”, “autor”, “leitor”, “obra”, “interpretação” etc. são infinitamente mais complexos do que faz parecer o tratamento que aqui lhes foi brevemente conferido, não resta dúvida. De todo modo, abrir mão desses operadores, no momento, é não apenas abandonar a literatura à própria sorte – gesto que, a longo prazo, pode conduzir ao seu próprio desaparecimento institucional –, mas colocá-la a serviço de um utilitarismo que não sustenta relação alguma com ela. Restabelecer um contato “improdutivo” com a literatura é a única forma de restituí-la minimamente ao âmbito da formação e à temporalidade que lhe cabe e que ela solicita. 35

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*** O estrangulamento gradual da literatura nos espaços formativos é um fenômeno complexo, que em grande parte escapa ao funcionamento interno da disciplina e que, portanto, conforme indicado anteriormente, deve ser teorizado para além do que ocorre de imediato no âmbito das metodologias ou dos conceitos que pairam sobre a área. O caso da escola, em particular, é emblemático: de instituição que deveria promover o espírito crítico, a autonomia dos sujeitos, a emancipação por meio da apropriação dos conhecimentos historicamente acumulados, a “humanização” como resultado do convívio com o outro e da abertura à alteridade etc., a escola passa a ser lida como estabelecimento responsável por assegurar a sobrevivência e inclusão posterior dos alunos no mercado de trabalho e na vida produtiva. Quando deixa de cumprir a tarefa de destinar a cada um a parte que lhe cabe no universo adulto, ela vê sua legitimidade questionada de todos os lados, sofrendo intervenções e constantes reformas educacionais que vislumbram, então, restituí-la a esse lugar antecipador do mundo de postos, ofícios, profissões e competição. Conforme Christian Laval (2004, p. xi) resume a questão, “a escola neoliberal designa um certo modelo escolar que considera a educação como um bem essencialmente privado e cujo valor é, antes de tudo, econômico”. Segundo esse modelo privado e competitivo, a escola deve, em primeiro lugar, instrumentalizar os alunos, prepará-los para a entrada no mercado de trabalho, algo que a literatura não só não faz, como por vezes coloca-se até mesmo como um obstáculo para esse fim. Em resumo, a literatura solicita um tempo “improdutivo” já indisponível ou não mais viável, e assim, no mundo da utilidade e aplicabilidade, ela é simplesmente “inútil”. Diante desse cenário instrumentalizante e em busca de uma sobrevida no campo da formação, a literatura por vezes ressurge colada àquelas mesmas forças utilitárias e produtivas que estimulam a natureza mercadológica a que a escola hoje se vê reduzida. Em poucas palavras, sem uma reflexão consistente a respeito de seus (não) lugares, a literatura coloca-se como mercadoria à disposição de uma apropriação mais pragmática, abrindo mão da sua capacidade de obstruir o curso normal do funcionamento escolar – atributo que poderia lhe conferir uma potência realmente formativa, o que significa, nesse esquema, uma potência negativa – para se apresentar como espetáculo. Com efeito, talvez a literatura só possa sobreviver institucionalmente, em uma cultura de mercado, a partir de certa “espetacularização de si”, ou melhor, oferecendo-se também como produto por meio de promessas 36

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redentoras ou autoelogiosas que em muitos casos beiram lições extraídas diretamente de manuais de autoajuda: “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV, 2009, p. 76). De todo modo, uma coisa é certa: quando não alienada de si mesma, quando desacompanhada de frases de efeito ou mesmo de um utilitarismo ainda mais vulgar, a literatura tende ao desaparecimento institucional, pois sua “inutilidade” é flagrante e incontornável. A literatura não nos ajuda a achar um emprego nem nos capacita para um trabalho ou profissão; a literatura não nos torna “melhores” nem nos “humaniza”, pelo menos não no sentido pragmático costumeiramente associado a esses termos; por fim, a literatura certamente não nos ensina a viver; talvez possamos, inclusive, dizer o contrário, isto é, que a literatura muitas vezes confunde ou nos faz estranhar o nosso modo de viver, colocando dúvidas ali onde havia convicção, muito embora nem mesmo isso seja um traço dela constitutivo. Em suma, a literatura não se oferece a uma apropriação pedagógica ou didatizante muito clara, e o espectro de sua força formativa só se apresenta, sempre de maneira precária ou inesperada, por meio dessa rebeldia primeira. Assim, as categorias de “obra”, “leitor” e “tradição”, tal como aqui rapidamente tratadas, não intentam conferir uma utilidade específica à literatura ou uma função formativa que a faça sobreviver em meio a outras mercadorias, mas buscam, antes, retirá-la de vez da esfera do uso ou da circulação fluida a que se vê submetida e que facilita a sua instrumentalização, mergulhando ainda mais profundamente na mesma intransitividade ou inutilidade radical que ameaça fazê-la desaparecer. A temporalidade a partir da qual esses conceitos foram aqui concebidos contrasta frontalmente com o tempo produtivo e econômico que controla a passagem das instituições de ensino e da própria literatura para a lógica do mercado. Há nisso tudo, é claro, uma grande contradição, uma conduta como que suicida: pode-se argumentar que esse tratamento conduzirá a um desaparecimento ainda mais precoce e integral da literatura dos espaços de formação, e isso parece ser verdade. Por outro lado, resta lançar a inevitável pergunta: em sua versão espetacularizada, sob a forma de resumos, fichas de leitura, questões de vestibular, adaptações, filmes etc., não é verdade que a literatura ali já desapareceu? Seja como for, no presente momento, a literatura ainda é o “inútil” habitando o coração das instituições; cabe lutar por esse espaço, ou seja, cabe lutar para que ela ali surja como tal e que, com isso, constitua 37

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sempre a lembrança anacrônica de um significado mais verdadeiro da palavra formação, até que ela enfim simplesmente desapareça, junto às demais “inutilidades” fundamentais à nossa existência.

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2 SEMIFORMAÇÃO LITERÁRIA O entendido e experimentado medianamente – semi-entendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da formação, e sim seu inimigo mortal. Elementos que penetram na consciência sem fundir-se em sua continuidade, se transformam em substâncias tóxicas e, tendencialmente, em superstições, até mesmo quando as criticam [...] (ADORNO, 2005, p. 13).

As discussões em torno de regras, orientações, diretrizes e parâmetros para o trabalho com a literatura são sempre atravessadas por um mal-estar inevitável. Seja pela impossibilidade de uma distinção apriorística, estável e imanente do que chamamos de “literatura”, seus gêneros e formas, seja pelo entendimento de que o literário institui um pensamento do exterior em relação ao discurso, um devir que instaura zonas de indiscernibilidade ou indiferenciação, ou mesmo uma escritura infinita, um texto que remete a outros textos em uma travessia intertextual permanente, o certo é que essas posições teóricas parecem pouco convidativas à fixação de fronteiras, limites, seleções, juízos e normas, como o fazem, por exemplo, os documentos oficiais que estabelecem o que deve ou não ser realizado em sala de aula com o espaço destinado à área. Aliás, talvez seja justamente por isso que os Departamentos de Literatura mostrem-se tão refratários aos debates teóricos e/ou metodológicos sobre o vínculo entre literatura e ensino. Em poucas palavras, torna-se difícil atribuir concretude e estabilidade “pedagógica” a um conceito que, em vez de comunicar a materialidade de seus objetos, é antes continuamente informado e alterado por eles, sem integrar um corpo específico a cuja presença se possa conferir um determinado tratamento. No campo das bases, diretrizes, planos e parâmetros curriculares, entretanto, a linguagem da discussão é outra, por vezes meramente pragmática, e o problema é debatido também em outros termos: ali a literatura, essa “conversa infinita”, plural e desconstrutora, está submetida ao mesmo regime político de divisão, partilha, distribuição e ocupação de lugares a que estão sujeitos os demais objetos, assuntos e disciplinas, sob o risco, portanto, de uma eventual redução a conteúdo palatável, simulacro inofensivo, ou 39

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mesmo de desaparecimento caso a sua frequentação curricular não busque preservar e abrir campos de atenção e aprendizagem àquilo que lhe cabe. Como já se viu, por exemplo, no caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2000), em que, a partir de uma escrita apressada, pré-teórica e fragmentária, o literário é subsumido por uma noção vaga e precariamente bakhtiniana de “gêneros textuais” – que elimina qualquer diferença ou singularidade colocada na objetividade dos artefatos ou obras por meio de uma noção genérica e improdutiva de “texto” –, a permanência ou resistência curricular dos estudos literários depende tanto de uma postura política ativa, capaz de fortalecer e cavar espaços para uma ideia de formação não instrumentalizante ou mercadológica, uma Bildung produzida hoje negativamente e no contrafluxo, quanto de uma conceituação consistente do que pode ser e o que verdadeiramente representa a literatura em termos de formação humana ou integral. Ora, sabe-se que, conforme explica Adorno (2005), reformas pedagógicas ou curriculares conduzidas isoladamente, sem uma reflexão aprofundada sobre a realidade extrapedagógica e as condições sociais que as motivam, não apenas pouco contribuem para alterar significativamente o horizonte cultural e formativo que se apresenta aos sujeitos, como também podem funcionar para enfraquecer as instituições ou reforçar a dimensão da crise que se pretendia a princípio combater. O presente capítulo propõe-se a debater essa questão no que diz respeito ao texto sobre o ensino e papel da literatura formulado na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC, 2018) para o ensino médio. A fim de defender o argumento de que a BNCC não oferece um olhar precisamente teórico, conceitual ou “formativo” para o literário, instrumentalizando seu lugar no mesmo âmbito das competências e habilidades que regulam as demais áreas do conhecimento, a análise divide-se em dois pontos principais: primeiro, busca-se demonstrar como o discurso de formação humana integral que consta do documento vincula-se a uma nomenclatura utilitária que controla a literatura e a singularidade de sua experiência intransitiva; a seguir, discute-se aquele que de fato seria o papel verdadeiramente crítico da literatura, associado não a um conteúdo, habilidade, competência, tema ou prática específica, mas sim a uma negatividade que, quando desfeita, coloca-nos no campo daquilo que poderíamos chamar de semiformação literária, ou seja, uma presença-ausente da literatura que nada mais faz do que neutralizar sua potência a fim de formar semiformando. 40

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A nova BNCC e a semiformação literária A primeira questão que cabe destacar acerca da BNCC – e isso não se vincula somente ao literário, muito embora o afete diretamente e de forma bastante particular, como veremos a seguir – diz respeito ao modo como toda a concepção conceitual e curricular do documento estrutura-se sobre uma noção problemática de “competência”, definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho (BRASIL, 2018, p. 8).

A partir das “dez competências gerais da Educação Básica” listadas na introdução, surgem, então, as “competências específicas” de cada uma das quatro áreas do conhecimento que compõem o ensino médio: Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. São as competências específicas de cada área, por sua vez, que definem as “habilidades” que serão desenvolvidas ao longo do ensino médio. No caso que aqui nos interessa, Língua Portuguesa (Linguagens e suas Tecnologias), são sete competências específicas e 53 habilidades que devem ser organizadas e promovidas em sua relação com cinco “campos de atuação social”: Campo da vida pessoal, Campo artístico-literário, Campo das práticas de estudo e pesquisa, Campo jornalístico-midiático e Campo de atuação na vida pública. A literatura encontra-se situada, pois, fundamentalmente no Campo artístico-literário, que inclui nove habilidades específicas. Quatro das habilidades, a título de exemplo, dizem o seguinte: (EM13LP45) Compartilhar sentidos construídos na leitura/ escuta de textos literários, percebendo diferenças e eventuais tensões entre as formas pessoais e as coletivas de apreensão desses textos, para exercitar o diálogo cultural e aguçar a perspectiva crítica (Competência específica 6). (EM13LP46) Participar de eventos (saraus, competições orais, audições, mostras, festivais, feiras culturais e literárias, rodas e clubes de leitura, cooperativas culturais, jograis, repentes, slams etc.), inclusive para socializar obras da própria autoria (poemas, contos e suas variedades, roteiros e microrroteiros, videominutos, playlists comentadas de música etc.) e/ou 41

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interpretar obras de outros, inserindo-se nas diferentes práticas culturais de seu tempo (Competências específicas 3, 6). (EM13LP52) Produzir apresentações e comentários apreciativos e críticos sobre livros, filmes, discos, canções, espetáculos de teatro e dança, exposições etc. (resenhas, vlogs e podcasts literários e artísticos, playlists comentadas, fanzines, e-zines etc.) (Competências específicas 1, 3). (EM13LP53) Criar obras autorais, em diferentes gêneros e mídias – mediante seleção e apropriação de recursos textuais e expressivos do repertório artístico –, e/ou produções derivadas (paródias, estilizações, fanfics, fanclipes etc.), como forma de dialogar crítica e/ou subjetivamente com o texto literário (Competências específicas 1, 3).

Além do problema de localizar todo o percurso formativo em torno de códigos alfanuméricos e de uma mecânica fechada de meios e fins que estimula um procedimento adaptativo, por meio de uma estrutura conceitual que em muito se aproxima da linguagem do empreendedorismo de si que caracteriza a “nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016) – os alunos devem desenvolver competências e habilidades vinculadas a campos específicos que, na verdade, em sua maioria, flertam de perto com os espaços de atuação profissional, evidenciando a aversão da BNCC a processos intransitivos ou mesmo “inúteis”, em um utilitarismo em profunda sintonia com o espírito do nosso tempo –, essa política do uso ou da aplicação imediata significa, para a literatura, em particular, a sua própria negação. Como já se disse repetidas vezes, a literatura encerra uma experiência que não pode ser operacionalizada, e “[...] qualquer saber que se busque em uma obra específica pode ser mais proficuamente obtido em uma disciplina particular” (DURÃO, 2017, p. 19). Nesse sentido, não se trata apenas de afirmar que não há qualquer vínculo direto entre a literatura e a promoção de competências e habilidades, mas sim de lembrar que o caráter formativo da literatura apresenta-se na utilidade de sua inutilidade, que “[...] funciona como crítica a uma realidade que não consegue conceber que as coisas possam existir por si sós, na qual tudo tem que servir para alguma coisa” (DURÃO, 2017, p. 19-20). Na BNCC, tudo serve para alguma coisa, a alguma coisa, não havendo lugar para restos, resíduos, negatividade, dispêndio etc.; em razão disso, o literário emerge controlado pela necessidade de promover um determinado fim ou uso não raro exterior a ele.

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Além disso, chama a atenção, nas breves passagens do documento sobre o ensino de Literatura, a nova partilha realizada em relação aos objetos de que deveria se ocupar o ensino médio: se antes o intuito fundamental era o de promover o encontro com a alteridade radical do texto literário, com o desafio analítico e interpretativo que a singularidade das obras impõe ao gesto da leitura, agora essa tarefa divide o espaço com a comunicação e expressão de si. Em outras palavras, “está em jogo, também, nesta etapa, um trabalho mais sistemático com a escrita literária, o fazer poético [...]. Com isso, tais escolhas podem funcionar como processo de autoconhecimento, ao mobilizar ideias, sentimentos e emoções” (BRASIL, 2018, p. 513-514). Uma vez mais, se a importância da literatura reside antes em uma espécie de “saída de si”, em um contato com uma linguagem “estrangeira” que desfamiliariza os sentidos e a experiência prévia de mundo, a proposta parece localizar-se dessa vez no encontro consigo mesmo – no “processo de autoconhecimento”, na possibilidade de “questionar e descobrir-se”, na “elaboração da subjetividade e das inter-relações pessoais”, na “exploração de emoções, sentimentos e ideias”, na seleção de obras “significativas para si”, na “apropriação para si”, na socialização de “obras da própria autoria”, na “criação de obras autorais” etc. Prevalece nesse léxico a escolha individual, a expressão de sentimentos e uma prática terapêutica talvez em sintonia com os demais capítulos da BNCC, mas certamente problemática no que tange aos estudos literários como um campo crítico constituído de objetos particulares e recorrentes, que não podem nem devem, portanto, resultar da simples motivação criativa individual, principalmente em uma fase em que o contato com a literatura necessita da escola para passar por um amadurecimento analítico e criativo. Sem o enfrentamento desde cedo com as dificuldades que a escrita e a leitura literária impõem, é a própria literatura que sai perdendo, pois, além de não formar um público leitor específico, exigente e atento às particularidades das obras, ela permanece reduzida a uma imediatez irrefletida que alimenta um imenso clube de escritores cujas produções apenas se assemelham a diários íntimos repletos de anotações e sentimentos intercambiáveis entre si e que, com isso, oferecem testemunho concreto da irrelevância do campo para a vida escolar. Aliás, a escrita criativa (creative writing), que passa a ocupar boa parte das competências e habilidades no Campo artístico-literário da BNCC, além de situar a literatura na dimensão do indivíduo e da revelação de si, reduz ainda mais o espaço curricular, já bastante exíguo, hoje disponível para o contato com os artefatos literários e o exercício de verificação dos seus 43

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mecanismos de produção de sentidos. Na verdade, a insistência na escrita criativa, durante o ensino médio, corre o risco de apenas fazer com que o adolescente replique no ambiente escolar uma experiência confessional que em nada lhe é estranha em sua vida cotidiana de Twitter, Facebook, Tumblr, Instagram, Snapchat, WhatsApp, Skype, blogs, vlogs, youtubers e de uma cultura que pode, sim, criar autores capazes de se expressar literariamente e de produzir relatos ou narrativas pessoais, mas que terá dificuldade de formar leitores de obras literárias. Com isso, temos a concretização de um regime de contato sondado e estável com a literatura, em que esta, contudo, potencialmente se equivale a formas espetaculares de exposição e circulação de si que se inserem “nas diferentes práticas culturais de seu tempo”, impedindo que os sujeitos desnaturalizem ou problematizem essas mesmas “práticas culturais”. Em vez de uma leitura negativa do seu tempo, a literatura na escola acaba oferecendo uma extensão consensual da sociedade da transparência que força os indivíduos a um constante revelar-se para si e para os demais. Como se sabe, a nova BNCC resulta, em parte, da gradativa adesão do governo brasileiro às políticas educacionais incentivadas pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por meio de entidades sociais privadas como, entre outros, o Instituto Ayrton Senna (IAS), que defende o ensino para a promoção das tão propaladas “competências socioemocionais”: “Pesquisas realizadas em diversas áreas do conhecimento – como educação, psicologia, neurociências e economia – revelam que o desempenho cognitivo dos alunos é beneficiado quando esse grupo decisivo de competências é acionado e desenvolvido de forma intencional” (IAS, 2013, p. 6). Que competências cognitivas e socioemocionais são essas? “Responsabilidade”, “colaboração”, “comunicação”, “criatividade”, “autocontrole”, “pensamento crítico”, “resolução de problemas”, “abertura”, ou seja, todo um conjunto de atributos em profunda sintonia, na verdade, não com uma perspectiva crítica de educação, mas com uma linguagem empresarial voltada para a adesão tranquila de jovens obedientes e ajustados a um mercado de trabalho cada vez menos disposto a ceder ou capaz de acolher e abrigar todas as pessoas. Nesse sentido, a partilha da literatura com a escrita criativa pode ser compreendida exatamente como parte da proposta de promover uma disposição “criativa”, “comunicativa” e participativa em adolescentes e jovens que, do contrário, terão maiores dificuldades de adaptação àquele 44

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mesmo mundo naturalizado de empregados e patrões que a literatura não cessa de problematizar. Seja como for, não bastasse o amplo espaço concedido à escrita criativa e à suposta tarefa de “propiciar a exploração de emoções, sentimentos e ideias, que não encontram lugar em outros gêneros” (BRASIL, 2018, p. 496) – projetando, assim, uma imagem comunicativo-confessional da literatura –, a BNCC é tudo menos clara quanto aos demais objetos literários de que deveriam se ocupar os professores no tempo que lhes resta. Assombra a posição pretensamente conciliatória que o documento assume em relação à disputa entre o lugar do cânone literário diante dos demais objetos culturais; para a BNCC, tudo é importante e tudo deve ser ensinado, desde os clássicos da literatura aos objetos oriundos das mais diferentes práticas culturais. Logicamente, nesse esquema, que pressupõe um tempo infinito para um trabalho infinito, não deixam de aparecer afirmações mutuamente excludentes dispostas no breve intervalo de algumas linhas: de um lado, afirma-se a leitura e análise das principais obras do cânone ocidental ou da tradição literária e critica-se o fato de que “as biografias de autores, as características de épocas, os resumos e outros gêneros artísticos substitutivos, como o cinema e as HQs, têm relegado o texto literário a um plano secundário do ensino”; de outro, defende-se a ampliação do repertório cultural do aluno a partir de diferentes formas de expressão – “literatura juvenil, literatura periférico-marginal, o culto, o clássico, o popular, cultura de massa, cultura das mídias, culturas juvenis etc., [...] em processos que envolvem adaptações, remidiações, estilizações, paródias, HQs, minisséries, filmes, videominutos, games etc.” (BRASIL, 2018, p. 492). O resultado é a formulação de orientações genéricas cuja vagueza pode passar por generosidade teórica para com os diferentes objetos literários e culturais, mas que oculta os verdadeiros debates e impasses da área de Letras, os mesmos debates e impasses de que em alguma medida deveria se ocupar o documento e sobre os quais ele pouco tem a dizer, precarizando a sua declarada condição normativa e estruturante. Apenas para citar um exemplo ainda mais evidente, o que está sendo indicado ou o que exatamente fica excluído de uma recomendação abrangente como esta? Segundo a BNCC, deve-se levar em conta “[...] a inclusão de obras da tradição literária brasileira e de suas referências ocidentais – em especial da literatura portuguesa –, assim como obras mais complexas da literatura contemporânea e das literaturas indígena, africana e latino-americana” (BRASIL, 2018, p. 492). Mais uma vez, o que vemos ocultadas por detrás dessa conduta pré-teórica são as disputas e formulações mais caras à área, pois, longe de defender, atacar ou harmonizar teoricamente 45

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questões como o ensino do cânone e o lugar dos demais artefatos culturais, o documento apenas silencia sobre elas, propondo uma reconciliação improvável que, sem o devido debate, tão somente desnuda a indiferença conceitual da BNCC. O resultado, pois, é um contato impressionista, especulativo e tateante com a literatura, além de um processo formativo controlado pela necessidade de produzir determinados efeitos previstos por um mecanismo de competências e habilidades que permanece não esclarecido do ponto de vista da teorização feita pela área dos estudos literários. Literatura e formação Mesmo valendo-se heteronomicamente da literatura, ou seja, atuando a partir de uma lógica enrijecida de meios e fins, competências e habilidades, cálculos e metas, a BNCC supostamente o faz para enriquecer a “nossa percepção e nossa visão de mundo”, para ajudar-nos “não só a ver mais, mas a colocar em questão muito do que estamos vendo/vivenciando”, isto é, para promover a “formação humana integral” anunciada em suas páginas. Ora, talvez fosse o caso de lembrar que, ao longo do século XX, o discurso humanista que se deu em nome de metas, habilidades, eficácia, responsabilidade, colaboração, autocontrole, resiliência, resolução de problemas, entre outras das competências socioemocionais valorizadas e preconizadas não só pela BNCC, mas por agentes como o IAS, o movimento Todos pela Educação (TPE), a Fundação Lemann e demais proponentes “do novo (velho) paradigma educacional para o século XXI” (cf. MUELLER, 2017), resultou exatamente na razão instrumental que acarretou as maiores atrocidades do passado recente. Nas palavras de Frédéric Gros (2018, p. 32, grifo do autor), “a experiência totalitária do século XX evidenciou uma monstruosidade inédita: a do funcionário zeloso, do executor implacável. Monstros da obediência” – o Eichmann descrito por Hannah Arendt em seu estudo sobre a “banalidade do mal” constituindo um caso emblemático, porém longe de único ou isolado. Talvez fosse o caso de denunciar a formação que se dá nesses termos e de demonstrar que a literatura é incompatível com a produção do bom funcionário adaptado ao cotidiano de suas tarefas; talvez fosse o caso, inclusive, de concluir que a literatura elabora um posicionamento crítico em relação às várias leis injustas, à desigualdade social, à destruição do meio ambiente, às guerras iminentes, aos campos de refugiados, à violência de gênero, entre tantos outros problemas urgentes 46

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que hoje nos tocam e que solicitam uma desnaturalização do mundo para serem encarados eticamente. Mas se a literatura não apresenta um conteúdo específico, um modo de ser particular, reconhecível e replicável, se a literatura por vezes nos surpreende com formas e temas violentos, provocativos, contraintuitivos ou mesmo “antiéticos” – poderíamos citar não apenas a vida biográfica de inúmeros autores, vidas que jamais poderiam ser tomadas como exemplares de qualquer coisa que seja, mas também os casos de enredos que beiram a “imoralidade”, mesmo que para depois redefinir os seus contornos –, a ideia de que ela humaniza o ser humano é algo que carece e sempre carecerá de uma predicação específica ou pelo menos de um detalhamento que esclareça o que isso quer dizer. Conforme Fabio Durão (2008b, s/p) explica, não se trata de somente evidenciar que autores hoje canônicos apresentam um código moral no mínimo questionável. [...] O problema aqui é que considerações morais, de qualquer espécie que sejam, levam a uma personificação, a uma antropologização da leitura, enquanto que a própria antropologização é um dos inimigos principais da literatura moderna.

Em outras palavras, se a literatura humaniza, ela certamente não o faz pela via temática, por um código ético-moral rígido, por uma defesa das minorias ou da natureza, por nos ensinar a desafiar ou resistir às leis, muito embora tudo isso possa eventual e lateralmente decorrer de suas operações. Seja como for, o certo é que a literatura não atende a uma agenda específica, e talvez resida aí, paradoxalmente, parte do seu caráter formativo e, ao mesmo tempo, o lugar desconfortável por ela ocupado nas instituições de ensino e na escola em particular. Em suma, na contramão das afirmações mais corriqueiras sobre o direito à literatura e o aspecto “humanizador” dos estudos literários, que, por via de regra, essencializam ou antropologizam seus conteúdos, valeria a pena, antes de mais nada, ressaltar o fato de que a literatura só emerge como tal e só pode exercer sua atividade singular dadas algumas condições particulares e mínimas que se apresentam negadas ou deformadas na atual formulação da BNCC para o ensino médio. Que condições seriam essas? Cabe citar aqui pelo menos duas delas. Os documentos oficiais que versam sobre o ensino de Literatura são, de modo geral, obcecados pela ideia de seleção, recorte e escolha dos materiais que devem ou não ser incorporados nas práticas docentes. Segue 47

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disso, aliás, as intermináveis disputas sobre o uso ou não dos best-sellers nas aulas de Língua Portuguesa, muitas vezes sob o pretexto subjacente, um tanto cínico, de que não devemos ignorar “as culturas juvenis” (best-seller, vale lembrar, é uma categoria estritamente econômica, e não literária ou cultural). Embora esse seja um elemento caro ao debate sobre os conhecimentos de literatura indispensáveis ao ensino médio, a vitalidade do impasse pode ser relativizada quando passamos a observar determinadas relações de fundo que provam ser, no frigir dos ovos, muito mais importantes e decisivas para o trabalho a ser empreendido, como o caso da dimensão do tempo. No lugar da escolha – categoria que se apresenta em sintonia com a abundância capitalista de opções e mercadorias de que podemos livremente dispor, selecionar, usar e descartar –, vale a pena averiguar a noção de tempo que hoje opera nos estudos literários durante o ensino médio. Para não nos limitarmos aqui ao caso mais evidente dos vestibulares, que se colocam como ponto de chegada para boa parte das experiências literárias dos alunos e estabelecem um uso do tempo vinculado a rendimento, competição, memorização, acertos e erros etc. – e que culminam nos conhecidos resumos das obras, que são a própria negação da literatura –, a BNCC parece pouco inclinada a debater a temporalidade específica que a leitura literária demanda, mergulhando o leitor em uma profusão ininterrupta de textos, gêneros, produções, repertórios, formas, temas, lugares, imagens, tradições, práticas etc. que contrastam vivamente com o pouco tempo hoje disponível para a área. Enfim, paralelamente ou no lugar das questões de seleção, escolha e recorte, caberia empreender uma discussão acerca de noções como tempo, atenção, forma, dificuldade, leitura e releitura, que muito provavelmente dariam conta de deslocar alguns dos clichês que pairam sobre a suposta tarefa formativa e humanizadora da literatura. A literatura “humaniza” ao impor uma relação de confronto não instrumental com a alteridade radical da linguagem, gesto que precisa ser testado, exercitado e comprovado, jamais estando simplesmente garantido de antemão. Assim, falar de literatura é, sobretudo, falar de uma relação específica com o tempo, ou melhor, operar uma mudança no modo como nos entregamos temporalmente aos objetos. Chegamos aqui ao segundo ponto ou condição indispensável para que a literatura não surja destituída de si mesma em meio a um império planejador que demanda que todas as coisas indiquem sua significação e eficácia. Em outras palavras, a literatura apenas se mantém “literária” se sua experiência permanecer exterior ao utilitarismo que domina o nosso mundo e, não 48

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por acaso, também a BNCC. A literatura não tem uma função específica: ela não nos torna melhores, não interfere direta ou pragmaticamente no mundo, não tem um conteúdo específico e não é nem mesmo um conceito definitivo ou definido aprioristicamente. Nesse sentido, a sua atuação será sempre “negativa”, ou seja, sua tarefa pode ser a de desarmar o pensamento, para ela ilegítimo, de que as coisas têm de ser úteis, têm de servir para algo, têm de produzir um efeito específico para além do que decorre da leitura. A literatura introduz, com isso, uma outra ideia de formação, segundo a qual se formar significa desvincular-se parcialmente das exigências que o mundo coloca de modo naturalizado, na contramão, portanto, do que faz a BNCC com suas competências e habilidades. Para a literatura, a formação terá sempre que ver com um resíduo “deformativo”, ou melhor, a formação também ocorre ali onde o encadeamento entre meios e fins se parte, e é somente por isso que ela é capaz de instituir um outro regime de tempo. Ora, sugerir a presença de um determinado objeto nas instituições de ensino por meio da defesa de seu caráter “deformador” não é uma estratégia muito sedutora quando nossos interlocutores estão tão somente interessados em “saberes”, “fundamentos”, “práticas”, “objetivos”, “resultados”, para não falar na recente obsessão por “empreender” e “inovar”, o que geralmente quer dizer “usar”, “substituir” e “descartar” ainda mais rapidamente. De todo modo, eis a tarefa nada intuitiva que cabe aos professores de literatura (e educadores em geral) no instante em que o parafuso do utilitarismo e do pragmatismo dá um novo giro, apertando e sufocando ainda mais o que há de resquício intelectual nos processos formativos: preservar e abrir espaço para objetos e ações que reinsiram a experiência literária no lugar aberto e imprevisível que lhe é devido. *** Em publicação de 2016, que tem por objetivo expor “as lições úteis da implementação, ora em curso, dos padrões curriculares norte-americanos (Common Core State Standards - CCSS)”, a fim de esclarecer o que se pode esperar de positivo da nova BNCC brasileira, David Plank – consultor de organizações nacionais e internacionais como o Banco Mundial, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, a Fundação Ford, além de parceiro constante do Ministério da Educação (MEC) quando o 49

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assunto é reforma educacional – não hesita em afirmar que a escolha de uma base comum passa por controvérsias políticas complexas, que suscitam desgastes para o governo. O que foi feito no caso estadunidense para contornar as polêmicas? Os criadores dos CCSS procuraram evitar disciplinas que pudessem gerar controvérsia política e se ativeram a ‘disciplinas fundamentais’ [Linguagem e Matemática], onde os padrões de aprendizagem são, em princípio, indiferentes a um conteúdo curricular específico (PLANK, 2016, p. 3).

O mais revelador no depoimento de Plank, para além das diretrizes pedagógicas imediatas e de sua semelhança com o caso brasileiro, é a compreensão de que Matemática e Linguagem, as “disciplinas fundamentais”, são áreas estáveis ou imparciais que não alimentam debates políticos e dispensam formulações singulares. Que imagem de formação ou de educação decorre de um tratamento instrumental avesso àquilo que produz atrito e que toma o âmbito da linguagem – e, por consequência, do literário – como não problemático? Para que “serve” a literatura quando lida nesses termos? Há um livro de 1930, de Siegfried Kracauer, queimado em 1933 durante o Terceiro Reich, que retrata um tipo de formação muito semelhante ao que vemos proposto na BNCC. Durante entrevista realizada com o gerente de uma conhecida loja de departamento berlinense, Kracauer percebe o papel decisivo por ele atribuído à aparência e ao comportamento de seus funcionários: “‘compreendemos que é de grande importância manter uma aparência agradável’” (KRACAUER, 1998, p. 38), afirma o gerente. Ao lhe perguntar o que precisamente ele compreende por “agradável”, se seria algo como uma aparência “atrevida” ou “bonita”, o escritor ouve, então, a seguinte resposta, ao mesmo tempo sombria e esclarecedora: “‘não, não é bem ‘bonito’. Trata-se de algo muito mais importante... algo como, bem, você sabe, um aspecto moralmente cor-de-rosa’” (KRACAUER, 1998, p. 38). Um aspecto moralmente cor-de-rosa, é claro, diante de uma vida que é tudo menos cor-de-rosa, conforme o autor não deixa de nos lembrar: “É isso que as pessoas responsáveis pela contratação querem. Elas gostariam de cobrir a vida com um verniz, escondendo uma realidade muito longe de cor-de-rosa” (KRACAUER, 1998, p. 38). Uma vida impossível, porém parcialmente reconciliada por meio de um verniz que indica o caminho da sobrevivência: um aspecto moralmente cor-de-rosa, sinônimo de “responsabilidade”, “colaboração”, “comunicação”, “criatividade”, “autocontrole”, “pensamento crítico”, “resolução de problemas”, “proatividade”, “liberdade 50

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individual”, “abertura” e um uso de si e do corpo que jamais criará impasses aos empregadores e às formas legitimadas de estar no mundo. Talvez a literatura desempenhe aí, presa à obrigação de promover competências e habilidades e a um convívio pacificado por meio de um espetáculo coletivo e integrador, um papel decisivo: cobrir com o verniz de uma suposta “formação integral” ou “humana” – uma tez moralmente cor-de-rosa – a sensibilidade de sujeitos que de outra forma poderiam eventualmente recusar um processo meramente adaptativo e demandar para si e para os demais uma outra vida. Em outras palavras, a literatura pode, sim, se controlada para tanto, ter uma função específica, uma utilidade clara e em harmonia com a preocupação constante da BNCC em torno da “construção intencional de processos educativos que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as possibilidades e os interesses dos estudantes e, também, com os desafios da sociedade contemporânea” (BRASIL, 2018, p. 14). Mas é justamente isso que poderíamos chamar de “semiformação literária”; não uma formação “pela metade”, mas sim uma experimentação mediana que situa a literatura em um espaço em que suas operações intransitivas são neutralizadas e capturadas por um dispositivo espetacular de usos e funções, meios e fins, competências e habilidades. Nesse sentido, não é preciso aguardar para saber se a nova BNCC vai falhar, pois ela já falhou, e falhou repetidas vezes. Basta olhar para os momentos decisivos de século XX a fim de conhecer os efeitos produzidos por uma racionalidade reduzida ao signo do produtivismo, da técnica, da competição e, portanto, da violência do “salve-se quem puder”.

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3 O IMPÉRIO DAS FAKE NEWS E de fato: seres humanos não estão em condições de manobrar ou manejar máquinas, sem com elas se identificar em certo grau. (TÜRCKE, 2016, p. 28)

As eleições brasileiras de 2018 para presidente da república, governadores, senadores e deputados, repetindo o que se passou durante a eleição presidencial nos Estados Unidos em 2016, notabilizaram-se pela difusão ampla e irrestrita das chamadas fake news, notícias que, como o nome indica, fabricam uma versão parcial, precária ou mesmo incorreta dos acontecimentos políticos a fim de capturar a sensibilidade de sujeitos mais afeitos, de modo geral, a formas condensadas de informação. De acordo com os dados do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), por seu caráter sensacionalista e espetacular, estima-se que as fake news têm até 70% mais chance de “viralizar” do que as demais notícias (CASTRO, 2018). Se a disseminação de “notícias falsas” corresponde a um modo relativamente barato e eficiente de alcançar visibilidade pública e atrair a atenção das pessoas, os efeitos provocados pela manipulação em massa de conteúdos voluntariamente fragmentários são desastrosos e de difícil controle: desinformação, erro, manipulação, falsificação, ódio, violência, entre outros. Ou, para sermos mais precisos, as “notícias falsas” devastam “os valores fundamentais que sustentam a forma como uma nação define e opera sua democracia” (PETERS et al., 2018, p. v), precarizando a complexidade da linguagem política e as noções de factualidade e verdade. O império das fake news corresponde, nesse sentido, à impossibilidade do debate público e, portanto, em certa medida, à negação ou neutralização da própria vida política. Não por acaso, como uma tentativa de acompanhar e teorizar o nascimento e crescimento irrefreável de um fenômeno político-midiático que reconfigura o sentido até então associado ao curso da informação na esfera pública, diferentes intelectuais têm se lançado à tarefa de discutir as consequências de um procedimento que tem como horizonte de atuação a 53

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propagação voluntária e autoconsciente do erro e a mistificação do mundo por meio do consumo de imagens e fatos já interpretados de antemão. Com efeito, não são poucos os volumes publicados nos últimos anos sobre o tema, como se estivéssemos diante da ameaça de surgimento de uma nova modalidade radicalmente diferente de acontecimento político: A verdadeira história das fake news: como a mídia tradicional manipula milhões, de Mark Dice (2017); A verdade importa: um guia do cidadão para separar os fatos das mentiras e interromper as fake news em seus rastros, de Bruce Bartlett (2017); Fake news, propaganda e velhas mentiras: como encontrar informações confiáveis na era digital, de Donald A. Barclay (2017); Em desvantagem: do Facebook e Google a fake news e bolhas de filtro, de David Sumpter (2018); Pós-verdade e fake news: modernidade viral e ensino superior (2018), organizado por Michael A. Peters, Sharon Rider e‎ Mats Hyvönen, entre tantos e tantos outros. No Brasil, preocupação semelhante revela-se presente no livro intitulado Ética e pós-verdade, datado de 2018 e que conta com textos de Christian Dunker, Cristovão Tezza, Julián Fuks, Marcia Tiburi e Vladimir Safatle. Anterior, contudo, às eleições de 2018, o livro não chega a debater diretamente a quase individualização da categoria de verdade promovida pelas fake news. Ora, grande parte desses livros – em particular aqueles associados a uma discussão voltada para o campo da comunicação e das mídias digitais – insistem no modo como as fake news exercem o controle da opinião pública e moldam a sensibilidade média quanto a quem deve ser respeitado ou execrado, invertendo os acontecimentos e falsificando a verdade; estaríamos em meio a uma guerra “de fatos versus ficção, de percepção versus realidade, de pessoas comuns bem-intencionadas e trabalhadoras versus corporações internacionais multibilionárias que querem controlar o que você vê, ouve e pensa” (DICE, 2017, n.p., grifo do autor); ou ainda, tudo diria respeito a uma questão de informação, de “literacia informacional”, de saber onde buscar e de como ler e interpretar os fatos, uma vez que “as informações não confiáveis têm estado conosco muito antes do nascimento das plataformas digitais, e provavelmente estarão conosco muito tempo depois de superadas e esquecidas essas plataformas” (BARCLAY, 2018, p. xii). Se as fake news comprometem a verdade, para enfrentá-las seria necessário recolocar as coisas no lugar, defender o verdadeiro, a objetividade, a transparência etc. em oposição ao império da desinformação calculada e do niilismo político alçado a artifício formal dominante. Filiando-se a essas preocupações, o presente texto busca, contudo, dirigir a sua atenção ao vínculo entre as fake news e aquilo que Christoph 54

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Türcke (2016) nomeia como uma cultura da sensação e do deficit de atenção, caracterizada pela lógica da produção contínua de estímulos e pela espetacularização de si. Em outras palavras, tão inquietante quanto o que temos entendido como uma “falsificação da verdade”, uma “inversão dos fatos”, é aquilo que poderíamos chamar, por sua vez, de uma “política da excitação”, isto é, uma forma de conduzir a vida política por meio de um paradigma da visibilidade ou do excesso, paradigma segundo o qual, como desde há muito anunciado, “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (DEBORD, 2017, p. 41). Para tanto, o argumento divide-se em dois momentos principais: primeiramente, abordam-se alguns episódios e fenômenos relacionados à política em sua forma espetacular atual, associada à dinâmica de produção de estímulos e ao controle da sensação que vimos tomar conta de plataformas como Facebook, Twitter, Youtube, WhatsApp, entre outras; a seguir, o texto busca formular aquela que poderia ser uma tarefa contemporânea para a literatura, ou para o ensino de Literatura, diante do fluxo contínuo de informações, imagens e estímulos que não se deixam estacionar para o devido escrutínio. O que se espera mostrar, enfim, é que a temporalidade, a ficcionalidade e a complexidade da literatura e dos artefatos literários sustentam-se nos antípodas da aceleração e da inverdade de que se investem as fake news para o seu devido funcionamento. As fake news e o paradigma da sensação Em seu livro sintomaticamente intitulado A morte da verdade, datado de 2018, a crítica literária do New York Times Michiko Kakutani destaca que as fake news promovem o “descaso pelos fatos”, a “substituição da razão pela emoção” e a “corrosão da linguagem”, motivando um relativismo cultural que compromete a verdade ao reduzi-la a uma categoria como que individual ou de fácil remodelagem e manipulação personalizada. Curiosamente, esse relativismo resultaria em grande medida, para a autora, de discursos pós-modernos que alimentam a tese de que não existem “verdades universais, apenas pequenas verdades pessoais – percepções moldadas pelas forças sociais e culturais de um indivíduo” (KAKUTANI, 2018, p. 17). Esse mesmo relativismo pós-moderno, alvo de constantes ataques ao longo de todo o volume, seria responsável pelo narcisismo do tempo presente, pela redução da política às expectativas do “eu”, pelo apelo recorrente à emoção e pela “retórica polarizante” que hoje domina o debate político. Se, como afirma a autora, “a verdade é um dos pilares da democracia” (KAKUTANI, 55

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2018, p. 19), o debate acadêmico, filosófico e artístico-cultural dirigido contra uma noção estável de linguagem ou verdade conferiria à política a justificativa perfeita para a disseminação de toda e qualquer forma de discurso irresponsável. Conforme a caracterização de Kakutani, [...] os argumentos Pós-modernistas negam a existência de uma realidade objetiva independente da percepção humana, argumentando que o conhecimento é filtrado pelos prismas de classe, raça, gênero e outras variáveis. Ao rejeitar a possibilidade de uma realidade objetiva e substituir as noções de perspectiva e posicionamento pela ideia de verdade, o Pós-modernismo consagrou o princípio da subjetividade. A linguagem é vista como não confiável e instável [...]; e mesmo a noção de pessoas que agem como indivíduos totalmente racionais e autônomos é descartada, pois cada um de nós é moldado, conscientemente ou não, por um tempo e uma cultura específicos (KAKUTANI, 2018, p. 56).

Talvez não seja o caso aqui de defender que há, na exposição da autora, uma leitura relativamente apressada do chamado Pós-modernismo e dos autores e fenômenos por ela listados, como se de fato se tratasse de um todo coerente e totalizante de nomes e teses.5 Mais importante que isso é demonstrar como a oposição objetividade/subjetividade, enrijecida e veiculada nesses termos, constitui de saída uma facilitação político-linguística característica do próprio modo de ser das chamadas fake news, ou melhor, uma mirada dicotômica que recai nos mesmos artifícios reducionistas que intenta desconstruir, uma vez que as fake news são, antes de mais nada, não apenas mentiras imediatamente verificáveis e de fácil diagnóstico, mas também simplificações sedutoras e versões ou apresentações insuficientes dos fatos.6 Em outras palavras, é como se Kakutani, para defender a verdade e Entre os responsáveis por fornecer as bases para “a constelação de ideias que se enquadram no amplo cenário do Pós-modernismo” (KAKUTANI, 2018, p. 55), estão os suspeitos habituais da suposta epistemologia relativista, Foucault e Derrida, leitores de Heidegger e Nietzsche. 6  Durante as eleições de 2018 no Brasil, vários veículos de imprensa impuseram-se o desafio de desnudar ou diferenciar as fake news da verdade, recorrendo a etiquetas como “verdade” ou “fake”, “fato” ou “fake”. Vale ressaltar que, nessa tarefa, a etiqueta em certa medida converte-se em um mecanismo apenas parcial para um texto mais longo, responsável, aí sim, por explicar o problema da informação em questão. Além disso, em muitos casos, “fato”, “verdade” ou “fake” aparecem complementados por uma terceira categoria, “não é bem assim”, prova de que, mais que uma verdade definitiva oculta “por detrás” do falso, as fake news não raro apontam para uma precariedade argumentativa, uma falta que precisa ser suplementada. No caso do jornal O Estadão, por exemplo, as categorias são “Troféu Gepeto – verdade”, “Pinóquio – majoritariamente verdade”, “Pinóquios – meia verdade”, “Pinóquios – majoritariamente falso” e “Pinóquios – mentira”. A mera separação entre verdadeiro e falso, na maioria dos casos, resta insuficiente para desfazer a confusão. Cf., entre outros, https://g1.globo.com/fato-ou-fake/;https:// politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/estadao-verifica-vai-checar-fatos-e-desmontar-boatos/. 5 

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o discurso racional, precisasse desconstruir uma noção de linguagem que, no fim das contas, não deixa de problematizar os procedimentos binários, polarizantes, sensacionalistas, parciais e fragmentários que caracterizam boa parte das atuações das “notícias falsas” em sua adulteração da objetividade e dos fatos. A rigor, não seria possível sustentar que o que falta a quem assume as fake news como verdade definitiva é precisamente certa percepção de que a linguagem não é de todo confiável, estável ou mesmo transparente? Seja como for, o apelo que a autora faz à categoria de verdade, nesses termos, converte a própria verdade em um dado simples e sempre disponível para a verificação. Se assim fosse, provavelmente as fake news teriam uma atuação muito menos certeira, pois parte de seu artifício tem mais que ver com a sedução e a rapidez de sua agitação do que com a mera adulteração das informações. Talvez a eficácia das fake news esteja em outro lugar, não tanto no uso de um discurso irônico pós-moderno que, como indicam as linhas finais do livro de Kakutani (2018, p. 203), “se tornou nosso ambiente”, mas em um dispositivo mais complexo e abrangente de excitação que promete estímulos contínuos mesmo sob o risco de fazer evaporar o comum e a política em meio a um espetáculo tornado regra.7 Nesse sentido, cabe assinalar que o inverso imediato das fake news não é necessariamente uma noção clara e cristalina de verdade, um real ali enfim acessível por detrás das operações mentirosas e manipuladores dos oportunistas pós-modernos de plantão. Antes, o contrário do funcionamento característico das “notícias falsas” estaria na interpretação, na leitura lenta, no rigor analítico, na precisão argumentativa, no detalhamento dos fatos, na investigação profunda, na releitura, no debate público, no sentimento de pertença, na valorização da comunidade e do comum e, por fim, na possibilidade de retirar a política do território espetacular das informações e imagens que não se submetem ao escrutínio e que hoje realizam a mediação entre as pessoas e o mundo. Isso significa dizer, é claro, que as fake news não são um fenômeno isolado: a elas se associam diversos outros sinais críticos do tempo presente, outras formas espetaculares de atuação da palavra e da imagem, como a consolidação de uma nova racionalidade empresarial e competitiva que lança os indivíduos na disputa e violência A expressão fake news não deixa de ser, ela mesma, diagnóstico e sintoma do impasse aqui em pauta. Sob o intuito de denunciar as inverdades, ela introduz e consolida uma percepção política precária, dicotômica, como se a tarefa fundamental do espírito crítico fosse única e exclusivamente sustentar a verdade “em si”, restituir um dado não problemático ali disponível. Em suma, as fake news dão conta exatamente de explicitar o problema que as origina, isto é, a política em sua forma espetacular, imagética e “excitante”. 7 

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diária de todos contra todos; o culto da performance e do rendimento, que converte os sujeitos em microagências empreendedoras em busca de visibilidade comercial; o fluxo contínuo de imagens-mercadorias e a aceleração constante da produção,8 que promovem a alteração da percepção do tempo e a fragmentação do contato com os objetos; por fim, isso que estamos chamando de “política da excitação”, isto é, a redução do campo político à mesma indústria da cultura e do espetáculo que tomou conta de integrar e conciliar as mais diferentes dimensões da existência humana, desde as artes, os esportes, a educação, a justiça, as ciências até, como dito, as formas de organização e reflexão sobre a vida em comum. As fake news, tomadas como um caso em si, jamais dariam conta de explicar, por exemplo, o recente sucesso midiático de youtubers que, sem necessariamente possuir uma formação ou experiência anterior a lhes conferir a autoridade de comentaristas ou debatedores políticos – ou mesmo sem conseguir alçar os objetos à sua devida complexidade –, põem-se a discutir diária e incansavelmente os assuntos da ordem do dia em busca de likes ou deslikes, “curtidas” ou “descurtidas”, capazes de lhes render não só retorno financeiro imediato, a depender do número de reações do público, mas também um eventual ingresso no mundo físico da “verdadeira” política, como foi o caso nas eleições brasileiras de 2018. Da mesma forma, ao separá-las de seus congêneres, a análise das “notícias falsas” perderia a capacidade de elucidar aquilo que não é necessariamente uma “mentira”, mas sim uma política do excesso, uma política hiperbólica cujo entendimento é o de que o debate público não se situa no confronto de ideias, mas sim na humilhação, na recusa, na violência, na desqualificação e no xingamento dirigido contra os adversários. Abundam na internet vídeos muitíssimo frequentados desse tipo de guinada espetacularizante que faz evaporarem os substantivos e cede espaço para adjetivos desmedidos e distribuídos sem qualquer parcimônia. Assim dizem suas legendas: “x detona/destrói/humilha/desmascara os argumentos de y”; “a verdade sobre x”; “x mita no debate sobre y” etc. Esse aspecto formal da nova política, Tal como as mercadorias que não cessam de se insinuar, as mídias sociais, como Facebook e Twitter, e plataformas de vídeos, como Youtube e Netflix, dependem diretamente da promessa de navegação ilimitada e irrestrita para capturar e manter a atenção de seus usuários. Prova disso, nos dois primeiros, é a barra de rolagem contínua, que jamais atinge um limite ou chega a um fim preestabelecido, podendo ser indefinidamente operada, e, nos dois últimos, a reprodução automática de novos vídeos, que tampouco permite alongar ou aprofundar o convívio desconfortável com a sensação de que algo simplesmente acabou, foi visitado por completo e já não pode ser reintegrado ao fluxo. Para uma problematização relevante da noção de fluxo em sua relação com o conceito de “texto”, ler o ensaio “Do texto à obra”, de F. Durão (2011). 8 

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aliado próximo das fake news, é prova clara de que o problema não reside apenas na ameaça de uma linguagem pós-moderna relativista, mas sim em uma pobreza muito mais ampla e complexa, agora elevada à categoria de elemento público decisivo, embora sob as bases precárias da propaganda individual ou do desejo empreendedor de determinados grupos. Em suma, insistir na simples restituição da verdade que morreu, vítima de discursos que se concentram exclusivamente nas “possíveis contradições e ambiguidades de um texto” (KAKUTANI, 2018, p. 66), é permanecer na superfície do problema, sem arranhá-lo, conferindo a ele um tratamento que se não lhe é exterior, tampouco toca o seu centro. O ataque à verdade não resulta de uma concepção de linguagem, ou mesmo da mentira tornada verdade; o ataque à verdade vem, antes, da radicalização daquela mesma sociedade do espetáculo anunciada há décadas atrás e que agora ganha um novo giro com os novos dispositivos tecnológicos de manipulação da imagem e com o poder de revitalização perene do próprio capitalismo. Dessa forma, menos que um controle da linguagem ou o resgate da verdade, a ação política efetiva contra o império das fake news encontra-se muito mais na interrupção do fluxo das imagens-mercadorias que aceleram o consumo desatento e ditam a dinâmica do uso fugaz e descarte constante. O desafio para essa política, entretanto, não é pequeno. Conforme Christoph Türcke (2010, 2016) tem observado, as inúmeras “doenças” supostamente neuronais do tempo presente – entre as quais destaca-se o Transtorno de Deficit de Atenção por Hiperatividade (TDAH), convertido em sintoma incontornável para qualquer criança nascida no século XXI – habitam exatamente o seio da nossa cultura da propaganda desenfreada, da circulação contínua de mercadorias, do desperdício irrefletido, da indústria cultural e, vale lembrar, também do cansaço e do tédio (cf. HAN, 2015). Em outras palavras, o regime de atenção e estímulo instituído pelas fake news não é de todo distante das mesmas rotinas de sobrecarga informativa que encontram no Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp etc. um correlato imediato para o seu modus operandi. Sobre o efeito de choque e o fascínio provocado pelas telas, as mesmas telas que difundem as “notícias falsas”, Türcke (2016, p. 32-33) nos diz o seguinte: [...] cada fotograma age como impulso óptico, a irradiar sobre o observador um “alto lá”, “preste atenção”, “olhe para cá”, a administrar-lhe uma pequena nova injeção de atenção, uma descarga mínima de adrenalina – e a desgastar-lhe a atenção por meio de uma estimulação ininterrupta. O choque da 59

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imagem exerce poder fisiológico; o olho é magneticamente atraído pela abrupta alteração luminosa, e dela só consegue se afastar através de um grande esforço de vontade. O choque da imagem exerce fascinação estética; constantemente ele promete novas imagens, ainda não vistas. Ele se exercita na onipresença do mercado [...].

Estamos falando de uma atenção que, para poder ser administrava, deve receber estímulos capazes de manter o interesse e de se renovar continuamente. Mais que um fascínio estético pela imagem, trata-se de um controle exercido por meio do intercâmbio constante de novidades que não se deixam capturar e analisar e que, por isso mesmo, não geram nem alimentam possibilidade significativa alguma de introspecção, mas tão somente consumo e descarte. Atenção e desatenção, portanto, caminham juntas: o olhar mantém-se concentrado, é bem verdade, mas mantém-se concentrado em um regime contínuo de substituições, trocas e equivalências; uma vez paralisado esse esquema, a reação não poderia ser outra senão a apatia, o desconforto, o tédio ou a irritação, que permanecem ali até que um novo objeto roube uma vez mais a atenção, reinaugurando o ciclo anestesiante. Como era de se esperar, o difícil, o lento, o trabalhoso, o desacelerado, o complexo etc., por um lado, perdem espaço por desativar ou obstruir o circuito das sensações; já o chamativo, o ruidoso, o espetacular, o rápido, o integrado, por outro lado, colonizam e capturam a atenção independentemente de seu conteúdo específico, reavivando o bombardeio de estímulos e satisfazendo o olhar excitado. Ora, há um nome para o sujeito que já não controla mais a sua vontade ou seus impulsos, tornando-se dependente de uma torrente de excitações que, no entanto, violenta o seu aparelho perceptivo e nervoso, fragiliza a leitura e reconhecimento de sua própria autoimagem e compromete a capacidade de controlar ou compreender suas escolhas: “adicto”, addicted, aquele que é concedido a outrem, que se entrega a outra coisa e deixa de pertencer a si mesmo.9 A luta pela manutenção da irradiação é, ao mesmo tempo, resultado de um vício que se sobrepõe ao sujeito, passando a controlá-lo, e do desejo de sentir algo, de recobrar a dimensão de si, de se reconhecer como alguém vivo e visto. Segundo Christoph Türcke, esse movimento é chamado A palavra “adicto” vem do latim addictus, que originalmente significava “‘adjudicado ao seu credor, como devedor insolvável, p.ext. submisso, escravizado’, part.pas. de addicere, ‘dar o seu assentimento, aprovar, adjudicar (em lanço), vender, adjudicar a pessoa do devedor ao credor, para que este use daquele como seu escravo’” (HOUAISS, 2001, p. 84). Vale ressaltar, pois, que o vínculo jurídico entre a figura do adicto e a dimensão econômica que o “submete”, “escraviza”, fica evidenciado já a partir da própria etimologia da palavra. 9 

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de sensation seeking, uma “busca pela sensação”, ou melhor, “a vontade de sentir a si próprio, de se certificar que se existe, para sair do vácuo da falta de percepção, de sensação e de sentimento” (TÜRCKE, 2010, p. 67). Paradoxalmente, essa busca ou vício pela sensação e percepção, nesse esquema, produz justamente o efeito contrário, isto é, uma violência crescente contra o próprio corpo que tem como resultado o esgotamento progressivo e a impressão de insuficiência que alimenta a depressão, o tédio e o cansaço. A sociedade multitarefa e high-tech é também a sociedade da não introspecção, da exterioridade e da transparência, jamais uma sociedade capaz de se voltar reflexivamente para si mesma e de reordenar seus fluxos. Sob o intuito de sentir mais, de sentir melhor, de sentir diferente, o adicto recorre à aceleração das mesmas substâncias para fugir delas e de seus conhecidos efeitos, o que o faz retornar ao terreno de uma profunda semelhança desgastada. Mais uma vez, nas palavras de Türcke: O vício é sempre algo profundamente ambivalente. Os viciados anseiam tanto pela substância viciadora porque eles cobiçam dela algo diferente daquilo que recebem. O vício não se pode acalmar de si mesmo. Ele consiste na fuga de si próprio. Ele impele para o aumento da dose ingerida, pois ele deseja parar de ser vício. Em termos de sensação, isso significa: a exigência de mais choques, despertada pelos choques audiovisuais, demanda de doses cada vez maiores, na forma de um reality show mais intenso, de mais live câmeras, de cenários tridimensionais com mais plasticidade é, ao mesmo tempo, a necessidade de algo mais plástico e real do que qualquer cenário tridimensional, ou seja, a exigência da explosão de todo um mundo de sucedâneos audiovisuais e do gozo daquilo que tais sucedâneos prometem mas não cumprem (TÜRCKE, 2012, p. 10).

O vício perceptivo que controla o adicto pela exigência de mais e o reinsere na lógica perpétua da repetição do mesmo – as bolhas de filtro on-line permitem que apenas cheguem até mim as opiniões, imagens, pessoas, produtos e afetos que já me interessam de antemão, reafirmando cotidianamente aquilo que penso e uma realidade parcial que se me apresenta sob a forma de mundo ampliado – concretiza uma visão narcísica de mundo. Em seu livro mais recente, intitulado A sociedade autofágica, Anselm Jappe vincula o narcisismo do sujeito contemporâneo a um impulso autodestrutivo mais abrangente, uma autofagia ou um “alimentar-se de si mesmo” que, ao eliminar o sujeito por meio de um autocentramento incurável e violento, 61

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impede qualquer manifestação orgânica da alteridade e da diferença. Na verdade, “o mundo exterior é lido sob o modo da projeção: objetos e pessoas não são percebidos pelo que são, mas como extensões do mundo interior do sujeito” (JAPPE, 2017, p. 39, grifo do autor). Compreender o fenômeno das fake news significa, em última instância, observar também o que se passa com os impulsos autofágicos atuais, em que o desejo de sentir e fazer sentir atrela-se a uma mecânica do fluxo e a uma “política da excitação” negadora da construção e si e da alteridade do outro. A literatura e o paradigma da supressão A proposta de discutir neste momento a experiência literária como situada na contramão da “política da excitação” do tempo presente está muito longe de significar qualquer intuito ingênuo de propor, a partir dela, um contraponto curativo para a sociedade autofágica. A rigor, seria pouco produtivo ignorar a evidente queda vertiginosa do prestígio público de que goza o literário hoje, a menos que alargado o conceito de “literatura” de modo a incluir, sob a vaga etiqueta de “ficção”, o vasto número de volumes que habitam as prateleiras das grandes livrarias. Da mesma forma, em termos de ensino de Literatura, tampouco se pode falar de uma grande missão a cumprir: sem um propósito formativo claro, destituída dos discursos que a justificavam há décadas e rivalizando com gêneros mais “estimulantes” como o cinema, os quadrinhos, a internet, os videogames, os celulares e inúmeros outros dispositivos que se atualizam diariamente, a literatura caminha para o desaparecimento institucional ou para uma mera presença como simulacro, separada de qualquer valor que não o do uso e o da aplicação. No entanto, é essa mesma cultura – responsável por volatilizar o seu conceito ou por preservá-lo apenas se travestido de outra coisa – que fornece o seu sentido mais claro e bem-acabado: a literatura que importa, aquela mesma que segue para as margens, relaciona-se crítica e negativamente com essa cultura, restando colada, pois, à introspecção, ao silêncio, à lentidão, à memória, ao difícil, à negação e à concentração, ou seja, aos mesmos elementos que a excitação e o fluxo contínuo não deixam de marginalizar como algo menor. Eis o sentido de literatura que, cada vez mais ausente das escolas, permanece atado a um fio de fato formativo. Não por acaso, Christoph Türcke, imediatamente após diagnosticar os principais sintomas da “cultura do deficit de atenção”, vale-se – aí sim em 62

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uma chave pedagógica ou terapêutica, tentando esboçar uma nova disciplina na contramão da sociedade excitada, a ser incluída no currículo escolar das crianças – precisamente dos contos de fadas como “aparelhos de ginástica da liberdade” (TÜRCKE, 2016, p. 96). Para o autor, esses aparelhos têm que ver, na formação das crianças, com a importância das estruturas de repetição hoje eliminadas do cotidiano, “estruturas rituais” estáveis capazes de cultivar a familiaridade com as narrativas já recontadas muitas e muitas vezes e sedimentadas na sensibilidade coletiva, apontando para o processo histórico de sua materialização de modo a organizar a compreensão da vida em comum, do passado e da tarefa da memória. A literatura – e os contos de fada em particular – poderia, segundo Türcke, proporcionar uma experiência qualitativamente diferente daquela que hoje se oferece nas escolas e que alimenta a cultura do deficit de atenção, essa mesma cultura que, para o autor, “está apenas em seus primórdios; seu verdadeiro ímpeto ainda está por vir. Pode-se observar claramente com que velocidade ela se apressa” (TÜRCKE, 2016, p. 130). Como dito, o que se pretende aqui não é realizar um exercício semelhante ao de Türcke – concretizar um programa de oposição à cultura do deficit de atenção, que é a mesma cultura das fake news –, mas tão somente indicar uma possibilidade formativa, muito embora com cada vez menos abrigo institucional, para a literatura e a leitura literária. Primeiramente, cabe ressaltar que qualquer proposta de essencializar um gesto supostamente humanizador presente no conteúdo das obras literárias parece de saída fadado ao fracasso. Como se sabe, há uma longa tradição crítica que buscou e busca formular a importância da literatura, seu caráter emancipador, em termos de uma ética das alteridades, ou melhor, de um contato com o outro potencializado pela obra literária e pelo acesso privilegiado que ela ofereceria a personagens que são como os nossos semelhantes.10 Em suas atualizações mais recentes, essa tradição agora inclui as chamadas “alteridade radicais”: por meio da literatura, passaríamos a respeitar mais não só os seres humanos, mas também os animais, as plantas, os oceanos e o que quer que a sensibilidade corrente determine como objeto de atenção. Esse procedimento de análise do literário parece falhar, principalmente O ensaio mais emblemático dessa tradição intitula-se “O direito à literatura”, de Antonio Candido, citado diversas vezes em diferentes documentos oficiais brasileiros a fim de atestar o caráter “humanizador” dos estudos literários. Como crítica à sua apropriação mais frequente, vale ressaltar que a discussão em torno da literatura como direito inalienável de todo educando, presente no argumento de Candido, por vezes fica em segundo plano em relação ao debate sobre o que a literatura ensina eticamente. Cf., por exemplo, as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006). 10 

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em sua disposição de reconfigurar-se institucionalmente, por inúmeros motivos: além de ditar um conteúdo positivado ou ético que está muito longe de ver-se realmente presente nos mais diferentes autores e obras; além de compreender e encarar a substância da literatura muito mais a partir da recepção de certas identidades culturais representadas no enredo do que investigando aspectos ou encarnações da sua forma; além de muitas vezes fazer “evaporar” a singularidade dos artefatos artísticos para neles situar uma tese construída de antemão por um dos nomes da “Teoria” (cf. DURÃO, 2011b); além de tudo isso, corre-se o risco de mergulhar o literário em um mar infinito de textos e gêneros textuais indistintos que apagarão qualquer especificidade sua e farão encolher o seu espaço de transmissão institucional, pois, a bem da verdade, nos termos ético-morais formulados, como defender a particularidade da literatura diante do cinema, dos quadrinhos, da televisão, dos videogames, dos celulares, da internet, dos blogs, do Facebook aos quadrinhos, à televisão, aos videogames, aos celulares, à internet, aos blogs, ao Facebook etc.? Não haveria neles justamente a mesma possibilidade de abertura às alteridades radicais que a crítica identifica nas operações da literatura? Não seria o cinema, por exemplo, também capaz de nos tornar eventualmente mais sensíveis aos demais seres humanos, aos animais, à natureza? Vale a pena, então, lançar uma vez mais a inevitável pergunta: o que se quer de fato dizer, ainda hoje, com a afirmação de que a literatura “humaniza” o ser humano? Ora, se a alteridade ética não é um traço exclusivo do literário e pode ser encontrada em outros lugares, então o caráter “humanizador” da literatura deve ser vislumbrado, antes, na alteridade da sua forma, isto é, no modo como os artefatos literários, em seu sentido forte, encarnam na forma elementos que não se reconciliam de pronto com a política da excitação contemporânea. Não se trata aqui de reativar as noções de “estranhamento” ou de “desautomatização” conforme propostas pelo Formalismo Russo, que essencializam a diferença ou o descompasso entre linguagem cotidiana e linguagem literária como o traço constitutivo da “literariedade”. Trata-se única e exclusivamente de projetar um espaço institucional consistente para a literatura, não como repositório de alteridades, mas sim efetivando ela própria um experimento de alteridade a partir de sua forma, um gesto que demanda contato intenso com a construção específica dos artefatos. Conforme Fabio Durão (2017, p. 20) comenta, “a literatura só merece esse nome enquanto for capaz de suscitar questões relevantes para o nosso presente”. É por isso que cabe pensar em um conceito de literatura que 64

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somente ocorre a posteriori (cf. DURÃO, 2017), ou seja, uma vez provada a sua capacidade de lançar desafios relevantes ao nosso instante histórico e de despertar o espírito crítico dos leitores. Vale a pena reproduzir aqui o recente depoimento de João Adolfo Hansen no livro O que significa ensinar literatura?, em reavaliação do seu percurso como professor: Como professor brasileiro, ensinei literatura brasileira como crítica do horror, como desnaturalização da naturalidade do horror, como estranhamento do horror, como teorização do horror, como produção de instrumentos de destruição do horror [...]. Ensinei literatura sugerindo aos estudantes que a equação da boa literatura é supressiva: dissolve a chamada “realidade”, afirmando a liberdade de um possível paralelo a ela, possível que nega e elimina a linguagem dominante atingindo impossivelmente uma suposta substância do real. Suposta, ensinei sempre (HANSEN, 2017, p. 162).

Mais adiante no mesmo texto, Hansen (2017) declara que os bons escritores são os que negam a ordem existente, aqueles que dizem não. O teor “humanizador” da literatura, lido sob a ótica de uma forma específica que diz não aos imperativos do nosso tempo e firma uma recusa radical do “horror”, poderia manifestar-se na escola de diversas maneiras e sob diferentes critérios. O aspecto formativo da literatura poderia decorrer, por exemplo, de uma crítica severa dirigida aos fluxos modistas e comerciais de romances best-sellers, livros de autoajuda e demais formas mercadológicas de aconselhamento rápido, inclusive em suas expressões digitais – que naturalizam o estabelecido e seus fundamentos econômicos –, crítica essa implicada na releitura dos clássicos ou de uma determinada tradição literária consolidada; esse exercício de recepção permanente do passado, movido pelo rigor, pelo cuidado e sem jamais fetichizar a tradição como “boa em si”, produziria um abalo temporal e revelaria a profunda novidade de autores há muito conhecidos, reiterando a leitura agambeniana do conceito de “contemporâneo”: o contemporâneo resulta “não apenas do nosso século e do ‘agora’, mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado” (AGAMBEN, 2009. p. 73), da possibilidade de manter uma relação singular e não coincidente com o próprio tempo. No lugar do “novo” como abundância de produtos que se substituem uns aos outros continuamente, o contemporâneo como relação com os objetos do passado e do presente capazes de tomar uma distância singular em relação ao “agora”, agredindo a linearidade do tempo e o império da intercambialidade. 65

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Da mesma forma, a formação literária poderia resultar de um trabalho prolongado de aprofundamento da leitura de determinada obra, de suas camadas de sentido, de tal modo que a revelação surja gradativamente de um ato de atenção e revisitação do artefato artístico. No lugar do uso imediato do objeto com o intuito de desvelar características do período histórico ou de reiterar um pressuposto teórico – ou mesmo de sugerir condutas ético-morais a partir da literatura –, assumir a leitura como um risco (cf. BERARDINELLI, 2016), como algo que requer introversão e concentração e que permite, admitidos os seus perigos, conhecer a linguagem de outra maneira e, por meio dela, introduzir uma dinâmica de análise e interpretação de fôlego voltada para a materialidade particular dos textos estudados. Importa assinalar que a obra é sempre singular, que resta ao crítico identificar e investigar essa singularidade, mas, ao mesmo tempo, que há algo nessa singularidade que é da ordem do diferencial, que difere de si mesmo, que não se submete a uma simples decodificação ou consumo. O propósito não é celebrar a pluralidade interpretativa, o infinito do texto, a multiplicidade de significados, argumentos que volta e meia ressurgem como clichês da área (cf. DURÃO, 2011a) girando intransitivamente em torno de si mesmos; o desejo, na verdade, é mostrar ali onde, diante da literatura, mesmo a análise apurada frustra e faz falhar, mesmo a hipótese bem testada demonstra sua insuficiência e precariedade, indicando como pueril a linguagem que se mantém por demasiado tempo orgulhosa de si mesma, a linguagem fácil, dicotômica, sensacionalista. A dificuldade da obra literária, um dos critérios decisivos para a sua valoração, funciona como “antídoto” para as facilitações constrangedoras de uma linguagem que apenas deseja fazer consumir, concordar, discordar, estimular, perder, ganhar, circular etc. A luta pela conquista impossível da literatura converte-se, paralelamente, na crescente desconfiança diante da promessa de revelação definitiva de verdade oculta por detrás dos fenômenos sociais. Penetra-se sempre um pouco mais nas camadas da obra, mas nunca o bastante. Se suficiente ou definitivamente habitada e conhecida, a obra converte-se em outra coisa, “documento histórico ou testemunho social, objeto de outra disciplina ou curiosidade anedótica” (DURÃO, 2017, p. 20). Além disso, a experiência radicalmente intransitiva da literatura, em oposição aos processos educativos reduzidos à dimensão econômica e à expectativa de lucro posterior, poderia demonstrar a relevância formativa das humanidades em geral e daquilo que não tem aplicação ou utilidade imediata. Como Martha Nussbaum (2015, p. 4) constata no livro Sem fins 66

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lucrativos, “tanto no ensino fundamental e médio como no ensino superior, as humanidades e as artes estão sendo eliminadas em quase todos os países do mundo”. Isso se deve principalmente à convicção cada vez maior de que a educação serve e deve se voltar para as dinâmicas competitivas de um mercado cada vez menos disposto a sorrir para todos, e que, com isso, relega tudo aquilo que não contribui para as competências lucrativas ou habilidades competitivas a segundo ou terceiro plano. Se a escola e a universidade realizam a tarefa de preparar as crianças e jovens para um mundo individualista cujas liberdades são pensadas como apenas pessoais – sintoma disso são os crescentes movimentos nacionalistas e xenófobos no coração das principais “democracias” ocidentais –, é certo que as humanidades e as artes tendem a ser expelidas do currículo como excesso ou mesmo obstáculo indesejado. Aqui não há concessões a fazer: a literatura, menos que lutar desesperadamente em nome também de uma ideia de uso ou aplicação, deve acentuar a radicalidade de sua formação intransitiva, sem a qual tampouco se pode falar de formação integral ou humana sem mutilar o conceito. As tentativas de conciliar literatura e utilidade não raro geram efeitos risíveis e eliminam o que há de mais valioso nas obras, como ocorre na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) publicada em 2018 no Brasil, que apazigua a presença “inútil” do literário por meio de um vínculo forçado com as mídias digitais e diferentes gêneros textuais, estes, sim, considerados prioritários. Evidentemente, entretanto, a aposta na importância do caráter não instrumentalizável do conhecimento oferecido pela literatura significa, em última instância, um impasse para a sua permanência nas escolas e universidades e um catalisador para a sua exclusão curricular. Ser professor de literatura significa, hoje, lidar com as consequências desse impasse. Por fim, apenas para concluir essa lista provisória, se a sociedade autofágica, por um lado, define-se por uma ideia de autoconsumo ou consumo destrutivo de si mesmo, em um ato, ao mesmo tempo, narcísico e irrefletido, a leitura literária, por outro lado, poderia produzir uma espécie de “saída de si” paradoxalmente introspectiva e autoconsciente. Os atributos básicos desse movimento seriam o silêncio e a lentidão da leitura, o retorno com diferença ao “mesmo” da releitura, a reconstrução e desaceleração do estímulo pela lógica da (re)visitação da palavra escrita, o curto-circuitamento do tempo linear e do fluxo contínuo pelo gesto de suspensão da leitura, a “paralisia” da linguagem individual por meio dos sentidos entrevistos da obra, entre outros – tudo isso a partir da recepção atenta a uma forma que não se deixa apropriar em definitivo ou rapidamente e que, com isso, impõe obstácu67

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los de difícil resolução. Como dito, um dos traços constitutivos do nosso tempo, tempo do “eu espetacular”, diz respeito ao convite permanente a uma apressada “exteriorização de si”, realizado a todo instante por dispositivos de excitação como Facebook e seus semelhantes; a literatura, nos termos propostos, estabelece um movimento inverso, isto é, convida a um lance de reconhecimento da precariedade e contingência do “eu”. Trata-se de um experimento de alteridade e diferença que, no caso específico da literatura, deixa de sê-lo se dissociado da especificidade da forma literária. Longe de produzir um efeito curativo ao mesmo mundo da “política da excitação”, oferece, pelo menos, um contraponto produtivo a partir do qual repensar a chamada “formação humana”. *** Ao folhear rapidamente as páginas do livro A sociedade do espetáculo, de Guy Debord ([1967] 2017), percebemos de imediato a recorrência de diversos termos que associam o império das imagens ao “falso”, ao “ilusório”, à “mentira”: “A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio” (DEBORD, 2017, p. 37); “No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso” (DEBORD, 2017, p. 40); “Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da sua mentira precedente” (DEBORD, 2017, p. 71). Esse jogo opositivo entre verdade/mentira, realidade/ilusão, verdadeiro/falso foi muitas vezes responsável por conduzir a crítica de Debord às imagens ao mero campo do espetáculo midiático, denunciado à exaustão por toda uma teoria da comunicação voltada à exposição dos abusos das propagandas e demais formas de manipulação de que se valem as grandes redes e empresas de difusão de informações. Restaria, por meio dessa mesma crítica da imagem, a tarefa política de restabelecer a verdade e encerrar o espetáculo produzido pela circulação do ilusório em um campo de excessos midiáticos, restituindo o “original” corrompido ao seu devido lugar. O espetáculo nada mais seria, nesse esquema, do que a veiculação do falso facilitada pelo amplo alcance das imagens e de seus simulacros. Conforme Anselm Jappe, um dos principais críticos de Guy Debord, já observou, em diferentes ocasiões, a leitura de A sociedade do espetáculo, que concebe o seu termo central, o conceito de “espetáculo”, como se referindo única e exclusivamente ao uso manipulador da imagem, está fadada a uma interpretação insuficiente do livro de 1967. Nas palavras do próprio Debord 68

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(2017, p. 38), “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Assim, a estrutura fundamental do espetáculo, como uma relação social mediada por imagens, permanece sendo, para Debord, a estrutura do trânsito permanente de mercadorias, agora acelerada pelo fluxo de imagens no capitalismo contemporâneo; “o problema não é a ‘imagem’ nem a ‘representação’ enquanto tais, como afirmam tantas filosofias do século XX, mas a sociedade que precisa dessas imagens” ( JAPPE, 2008, p. 19). A sociedade que necessita cada vez mais dessas imagens é a sociedade das mercadorias, das trocas, da abstração e da equivalência, aquela mesmo sociedade que produz, como resultado dessas operações, a ilusão, a separação, a alienação, o fetichismo – em suma, o espetáculo convertido em realidade última: O princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por “coisas suprassensíveis embora sensíveis”, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o sensível por excelência (DEBORD, 2017, p. 52).

É em virtude das bases materiais e mercadológicas das imagens que regulam a nossa existência que não se pode, de certo modo, tomar as fake news como um acontecimento inteiramente inédito e desconhecido. É algo “novo”, por um lado, por recorrer aos dispositivos tecnológicos mais recentes – principalmente WhatsApp, Twitter, Facebook e Youtube –, que alçaram a uma outra condição – uma condição imprevista e sem paralelos anteriores evidentes – a possibilidade de acelerar a emissão em massa de imagens que fazem passar por fatos eventos interpretados de modo parcial e a partir de interesses raramente explicitados; é um dado “conhecido”, por outro lado, se levarmos em conta o seu mecanismo estruturante ou sua motivação maior, que não é o da mera inversão da verdade por meio de imagens, mas sim o da produção de uma “política da excitação” cujas bases vinculam-se ao consumo rápido, à resposta imediata, a uma sensibilidade empreendedora e narcisista, à precarização da linguagem, ao vínculo produtivo da atenção/ desatenção, mas também às “doenças” como, entre outras, a depressão e o Transtorno de Deficit de Atenção por Hiperatividade (TDAH), não menos capitalizáveis que outras mercadorias. Qualquer ideia de restituir as fake news à verdade passaria, inevitavelmente, não pelo mero esclarecimento de uma mentira pontual, mas sim pela elucidação do espetáculo que organiza 69

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e solicita continuamente a falsificação ou mistificação do mundo por meio de imagens que não interrompem a sua circulação. Assim como o sono, que, segundo o argumento de Jonathan Crary (2014), coloca-se como um obstáculo para o impulso homogeneizador do capitalismo, a literatura permanece uma experiência cultural significativa, ao menos do ponto de visto da chamada “formação integral” ou “humana”, por constituir um contraponto intransitivo – ou uma “inutilidade” imprescindível – para as demandas produtivas e utilitárias da contemporaneidade. As fake news, formas condensadas de veiculação de “notícias-estímulos”, encontram no exercício rigoroso e criativo da leitura literária um polo oposto desconfortável, uma vez que, diferentemente delas, a literatura exige silêncio, autocentramento, esforço, rigor e dedicação para acionar o seu mecanismo de funcionamento, tudo isso sem prometer um “produto” final em troca. Eis o perigo que ronda a literatura no presente momento: como justificar a sua presença em instituições educacionais cada vez mais alinhadas à necessidade de ser produtivo e de formar-se em conformidade com os signos básicos do tempo presente, a aplicação, a novidade, a diversão, o lucro etc.? Estaria a sobrevida institucional da literatura condicionada à sua captura pelos mesmos dispositivos que alimentam a vida das fake news?

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4 LITERATURA E NEGATIVIDADE Não são poucos os traços particulares ou de superfície que, como sintomas vivos de um fenômeno muito mais amplo, podem esclarecer a própria dificuldade de tomar a literatura hoje como objeto de ensino ou estudo consequente em instituições instrumentalizantes: “colégio promove teatro sobre livros do vestibular”.11 O vestibular, vale destacar, sustenta-se como uma instância bastante ambígua em relação à presença do literário nas escolas: se, por um lado, determina em grande parte o trabalho que será realizado nos últimos anos do ensino médio, é bem verdade que, por outro lado, parece ser aquilo que salva a literatura do seu inevitável desaparecimento, ainda que pela via do espetáculo – resumos, vídeos, teatros, qualquer coisa, menos a obra em si, pois esta requer tempo e, dessa forma, deve manifestar-se apenas como simulacro. Voltando ao espetáculo aqui em pauta, a proposta é fornecer um resumo dos oito livros que integram a lista de um dos vestibulares da região, tudo isso a partir de uma peça de teatro. Poupa-se um tempo precioso que poderá ser destinado ao estudo das matérias de fato importantes e responsáveis por decidir o jogo do vestibular, jogo esse que, a rigor, apenas antecipa e expressa a futura luta pela sobrevivência no mercado de trabalho. Diante desse quadro, como pensar o ensino de Literatura? Que tipo de reflexão se faz necessária acerca da presença do literário, por exemplo, nas escolas? As Orientações Curriculares para o Ensino Médio, corrigindo a formulação anterior dos PCNs, que situava a literatura como tão somente um gênero textual qualquer entre tantos outros, realizam a discussão em termos familiares: por que estudar Literatura? Qual o lugar do cânone literário? Qual o papel das informações contextuais em relação à obra em si? Com efeito, a necessidade de constantemente retornar a esses pontos de partida expressa claramente a condição precária do literário hoje nos espaços institucionais de ensino. Livros como Como e por que ler? (2000), de Harold Bloom, A literatura em perigo (2007), de Tzvetan Todorov, Literatura Disponível em: http://www.engeplus.com.br/noticia/teatro/2016/colegio -leme- promove -teatro -sobre- livros-do-vestibular/. 11 

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para quê (2009), de Antoine Compagnon, entre tantos outros que buscam reafirmar a importância da literatura na formação escolar e humana, são também sintomas da necessidade de justificar continuamente a validade daquilo que não se apresenta como conteúdo e que não se submete à rotina escolarizada dos saberes úteis à sociedade. A literatura resiste à apropriação definitiva e ao uso, e, por isso, não tem lugar institucional assegurado; segue disso a constante reafirmação do lugar positivo de um corpo de textos que não se deixa conquistar em definitivo e que se traduz em “perda de tempo”. Ora, parece não haver espaço para a Literatura nas escolas, ao menos tal como estas se estruturam hoje: talvez seja esse o consenso implícito ou explícito que paira sobre as recorrentes análises voltadas para a relação entre o literário e a sua posição como objeto de ensino. Inúmeros livros publicados nos últimos anos deixam isso muito claro: “em todos os países ocidentais a disciplina ‘literatura’ sofreu uma perda de importância, até desaparecer, pura e simplesmente” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 75); “a literatura, fragilizada pela perda da parceria com a Retórica do passado e a da História da Literatura até poucas décadas atrás, permanece à deriva” (ZILBERMAN, 2016, p. 415). Se é verdade que, diante desse quadro, as discussões metodológicas sobre o ensino de Literatura nas escolas carecem de sentido, não tocam o cerne do problema e se veem obrigadas a formular uma atuação mínima possível diante de um quadro maior absolutamente desfavorável, também é certo que a teoria literária precisaria voltar a sua atenção para o impasse que hoje regula a presença/ausência da literatura nas instituições de ensino, sob o risco de, ao deixar de fazê-lo, caminhar para o seu próprio desaparecimento posterior. Curiosamente, neste exato momento, no Brasil, circula uma Medida Provisória que retira a obrigatoriedade do ensino de Artes, Educação Física, Sociologia e Filosofia dos currículos escolares do ensino médio. Pelo visto, corpo e pensamento são dimensões prescindíveis para o profissional do futuro. Em suma, a escola de hoje dispensa a literatura; a literatura, por sua vez, solicita uma outra escola. Gostaria, no presente capítulo, de sinalizar dois movimentos resultantes do contato efetivo com a literatura, movimentos que, de um lado, comprovam a fragilidade da presença dos artefatos literários nas escolas de hoje, mas que, de outro lado, podem perfeitamente nos ajudar a refletir sobre a escola que realmente queremos e a ética de leitura e formação humana que lhe seria particular. Em outras palavras, este texto defende, em primeiro lugar, que a leitura de textos literários, para se concretizar, 72

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requer o estabelecimento de uma temporalidade absolutamente distinta e desviante da temporalidade produtiva que hoje conduz as atividades nas instituições escolares. Em segundo lugar, o capítulo argumenta que a literatura, em vez de inaugurar a formação de um sujeito mais “humano”, limita-se a tão somente celebrar a intransitividade radical de um discurso desconstrutivo que desregula o “eu” anterior à leitura. Para uma atividade negativa ou intransitiva, que é a leitura de textos literários, faz-se necessário, portanto, a existência de uma escola que abra espaço para o “improdutivo” e para o território da própria negatividade, uma escola com “tempo a perder”, voltada para a singularidade dos objetos, e não para aquele mesmo fluxo incessante de estímulos que regula a sociedade do espetáculo. A literatura e a sociedade excitada Publicado em 2002 na Alemanha e traduzido para o português em 2010, o livro de Christoph Türcke intitulado Sociedade excitada, mesmo sem se referir diretamente ao que se passa hoje nas escolas, realiza uma leitura do paradigma da sensação que controla nossas sensibilidades e aquelas do mercado e que, sem dúvida alguma, incide diretamente sobre as possibilidades reais de sobrevivência da literatura ou de qualquer outra atividade “improdutiva” ou “negativa” nos espaços de ensino. As linhas iniciais do prefácio redigido para o volume não nos deixam enganar: “originalmente, sensação significou nada mais do que percepção. Nos dias atuais, entende-se principalmente como sensação aquilo que, magneticamente, atrai a percepção: o espetacular, o chamativo” (TÜRCKE, 2010, p. 9). Nesse sentido, nos dias atuais, tem vida assegurada somente aquilo que excita a percepção continuamente; deixar de excitar a percepção significa, nesse esquema, perder pontos na bolsa de valores dos olhares apenas parcialmente atentos, e é por isso que só o espetacular pode sobreviver. Com efeito, a própria existência ou não dos sujeitos é gerida pelo paradigma da exposição: ser alguém significa, antes de mais nada, ser visto, ou melhor, produzir estímulos: Emitir quer dizer tornar-se percebido: ser. Não emitir é equivalente a não ser – não apenas sentir o horror vacui da ociosidade, mas ser tomado da sensação de simplesmente não existir. Não mais apenas: “há um vácuo em mim”, porém “sou um vácuo” – de forma alguma “aí”. Quando a linguagem dos jovens se refere a alguém dormindo até tarde e ainda sonhando como “ainda não conectado”, ela expressa bem 73

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mais do que se imagina, a saber, a lei básica de uma nova ontologia: quem não transmite não está “aí”. Não irradia nada (TÜRCKE, 2010, p. 45).

Ser, portanto, é ser visto, é irradiar energia, estimular, afirmar, emitir, excitar, acelerar, conectar, atrair a percepção. Não por acaso – e não há contradição alguma nisso –, a sociedade excitada é, ao mesmo tempo, a sociedade do cansaço. Conforme Byung-Chul Han observa em seu livro nomeado justamente Sociedade do cansaço, o século XXI testemunha a passagem, no campo das enfermidades, do paradigma imunológico para o paradigma neuronal, caracterizado pela proliferação incessante de positividades: o que caracteriza as doenças do nosso tempo “não são as infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade de algo imunologicamente diverso, mas pelo excesso de positividade” (HAN, 2015, p. 8). A sociedade excitada, ao produzir estímulos continuamente, concretizando tão somente a existência daquilo que é visto e que entra na dinâmica do espetáculo infinito, produz as doenças neuronais a que nos habituamos nesse início de milênio: “[...] depressão, transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout” (HAN, 2015, p. 7), fora tantas outras que surgem diariamente, alimentam a indústria de medicamentos e estabelecem os padrões de normalidade para um tempo em que somos todos considerados doentes em potencial. Seja como for, é o excesso de estímulos, e não a negatividade de uma diferença que nos invade de fora, o que caracteriza a violência exercida hoje contra os nossos corpos: “a violência neuronal não parte mais de uma negatividade estranha ao sistema. É antes uma violência sistêmica, isto é, uma violência imanente ao sistema” (HAN, 2015, p. 20). Logicamente, o excesso de estímulos nos deixa cansados e à beira do tédio; diminuir a frequência de estímulos, contudo, corresponde a correr o risco de sair de cena, frustrando os corpos em busca de excitação. A chamada “crise da escola”, frequentemente lida sob a ótica de uma instituição ou estrutura moderna que já não corresponde mais às sensibilidades ou subjetividades do nosso tempo (cf. SIBILIA, 2012), poderia ser compreendida justamente nos termos antes formulados: diante de um mundo espetacularizado e que não cessa de estimular a percepção – “ser é ser visto” –, a escola só pode sobreviver pela via da espetacularização de si, cedendo os espaços negativos que ainda a constituem aos mesmos dispositivos de excitação que dialogam diretamente com as doenças neuronais típicas desse paradigma positivo. Celulares, tablets, data-shows e outros recursos imagéticos preen74

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chem os espaços vazios da sala de aula a fim de que a vida escolar entre as quatro paredes se torne suportável ou pelo menos parecida com o que se passa fora delas. Em vez de tensionar ou interromper momentaneamente o fluxo de estímulos e mercadorias, a escola entrega-se a ele em uma tentativa última de ganhar tempo de sobrevida. A literatura, entretanto, não emite, não conecta, não irradia, não estimula e não excita, pelos menos não nos mesmos termos. A literatura é uma atividade negativa, que demanda um tempo incompatível com aquele da sociedade excitada, da sociedade do cansaço. Para que a literatura possa de fato existir em sua singularidade, e não como simulacro, faz-se necessário aquilo que Fabio Durão chama de “estratégia de desaceleração” dos objetos: “Tornar o pensamento e a interpretação mais lentos é precondição para que os objetos possam surgir como eles mesmos. [...] Fazer parar um romance significa lê-lo várias vezes [...]” (DURÃO, 2011b, p. 119). Não por acaso, os círculos hermenêuticos formalistas da primeira metade do século XX – formalismo russo, new criticism, estruturalismo, entre outros –, apesar da recusa contextual que lhes rendeu tantas críticas, apresentavam um ponto de partida comum em torno da literatura, uma posição mínima, digamos, acerca do que significa ler um artefato literário: a literatura demanda tempo de atenção à especificidade das obras. Sem atenção à obra em si, a literatura vira cochicho: “a crítica honesta e a avaliação sensível dirigem-se, não ao poeta, mas à poesia”, ou melhor, à literatura (ELIOT, 1989, p. 42). Buscar as respostas sem acessar a obra nada mais é do que “ouvir os confusos clamores vindos dos críticos de jornais e os cochichos de reiteração popular que se seguem” (ELIOT, 1989, p. 42). Corretas ou não, essas falas expressam uma convicção profunda acerca do fato, aparentemente óbvio, mas hoje sob suspeita, de que a experiência literária jamais prescinde do contato direto com as obras literárias, lidas em sua singularidade, e não a partir de pressupostos enrijecidos, sejam estes teóricos, biográficos, contextuais ou quaisquer outros. Restituir esse princípio mínimo ao centro dos debates sobre o lugar do literário nas instituições de ensino constitui o primeiro passo para a reavaliação geral da relação entre literatura e educação. Nas palavras de Dominique Rabaté, em texto intitulado sintomaticamente “O tempo da releitura”, ler um texto literário significa, em última instância, estabelecer como regra o tempo da releitura: ler é “lutar despretensiosamente por um outro regime de tempo, um tempo de deiscência, pode-se dizer, um tempo de intervalos e de retornos, 75

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em que a leitura suspenda e perturbe o curso linear das coisas” (RABATÉ, 2013, p. 190). Se a leitura literária demanda um “tempo da releitura”, um tempo da pausa, da lentidão e do retorno ao já lido, como pensar a presença da literatura nas instituições se é o próprio tempo da leitura primeira que se encontra comprometido? Como refletir sobre a releitura indispensável à compreensão do texto se este se revela resumido, cortado, explicado, representado, espetacularizado? Efetivar a presença da literatura na escola significa, então, antes de qualquer outra coisa, empreender uma violência contra o fluxo contínuo das coisas, ou melhor, mudar a nossa relação com o tempo, estabelecer uma atenção aos objetos capaz de desacelerar a passagem homogeneizante de conteúdos e imagens que, na temporalidade a que estão submetidos, têm sua atuação neutralizada e se veem reduzidos a uma caricatura de si mesmos. O tempo que a leitura literária demanda abriga, ao mesmo tempo, sua verdadeira potência, mas também sua fragilidade maior: inserida em uma instituição supostamente em crise graças ao mundo fraturado que adentrou as suas portas, a literatura, por um lado, pode fundar uma temporalidade crítica para esse mundo, permitindo uma outra forma de relação com os objetos; por outro lado, destituída da lentidão que lhe é particular, a literatura desfaz-se de imediato, cedendo espaço aos dispositivos que convertem todas as coisas em mercadoria; nesse caso, o literário apresenta-se sob a forma da gramática a que nos acostumamos, um quadro de fácil absorção e pronto para ser testado em vestibulares e afins, tão indispensável quanto o mais recente produto que se oferece aos nossos olhos nas prateleiras das lojas, comprado, consumido e logo descartado. A literatura e a ética espetacular Diante do império das positividades, diante de um mundo medido segundo a utilidade, aplicabilidade ou valor de exposição das mercadorias, a teoria literária, em vez de abraçar e teorizar a intransitividade radical da literatura, lugar de sua verdadeira força crítica – uma potência negativa que acontece desavisadamente e que, portanto, não pode ser capturada, canalizada ou ensinada como conteúdo –, acaba por veiculá-la, uma vez mais, sob o rótulo de um saber positivo, como algo sem o qual o indivíduo se torna menos humano, menos completo, menos formado, em suma, menor, tudo isso a partir de uma noção de totalidade ou formação que a própria 76

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fragilidade do literário parece repetidamente desconstruir. Em outras palavras, em vez de adentrar a intransitividade ou “inutilidade” da atividade literária por meio de uma atenção cuidadosa dirigida ao jogo específico tecido pelas obras, um jogo que não assegura modelo algum de conduta ética ou moral diante do mundo,12 o espaço da literatura é justificado a partir do intuito de promover o “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (apud BRASIL, 2006, p. 53). Destituída de sua negatividade inconveniente, a literatura apresenta-se sob a forma daquilo que ela tem a oferecer aos alunos: mais humanidade, mais ética, mais autonomia intelectual, mais pensamento crítico. Ora, cabe aqui a inevitável pergunta: a literatura de fato ocupa, nesse âmbito, um posto privilegiado em relação às demais áreas? Matemática, História, Educação Física, Geografia, Física, Química, Biologia, Filosofia, Sociologia etc. atuam (ou deveriam atuar) menos que a literatura no sentido de promover esse mesmo “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (apud BRASIL, 2006, p. 53)? Será que tal pressuposto ético não desloca a literatura precisamente da forma que a distingue e a torna particular em relação a esse conjunto de disciplinas? Em outras palavras, será que a defesa do literário a partir da sua dimensão moral ou ética não revela, ao mesmo tempo, certa prepotência em relação aos demais saberes e, curiosamente, uma compreensão parcial embora totalizante do que a própria literatura faz? De resto, preterida a forma singular da literatura e instituído no lugar o discurso de sua natureza ética ou moral, como pleitear um posto específico para os objetos literários em detrimento de outras expressões artísticas que claramente elaboram as mesmas questões éticas ou morais, como o fazem, entre outros, filmes, quadrinhos, desenhos animados, jogos, revistas etc.? Com efeito, se são questões éticas, morais ou mesmo políticas que nos interessam, por que não as enfrentar diretamente a partir de outros lugares discursivos que conduzem com mais densidade tais discussões? Ora, por mais que a definição de literatura nos escape, prova mais uma vez de seu caráter disruptivo, é certo que a chamada “literariedade” sempre se nos insinua sob a forma singular dos artefatos literários; separada da arquitetura particular por meio da qual se oferece, o literário em muito pouco se diferencia da lista antes citada. A leitura de biografias, malgré tout, talvez seja útil no sentido de desfazer o suposto vínculo entre a literatura e o respeito às alteridades.

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Aceitamos como evidentes, entretanto, formulações redentoras segundo as quais “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2011, p. 182); a literatura, “pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo [...] nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza” (CANDIDO, 2011, p. 188); “sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano” (TODOROV, 2009, p. 93); “A literatura deve [...] ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir a experiência dos outros [...]” (COMPAGNON, 2009, p. 47). Não se trata de desqualificar ou descartar tais afirmações, muito embora seja possível fazer semelhante defesa acerca de inúmeros outros objetos não literários, bem como questionar se é de fato algo constitutivo da literatura o gesto de abrir-nos ao outro. Seja como for, o discurso da alteridade só se concretiza como resultado do encontro com determinadas formas, desfazendo justamente tais formas se exibido como pressuposto teórico. A bem da verdade, os autores citados sabiam disso, e suas análises e ensaios mais instigantes resultam não de certezas teóricas em torno do papel ético ou político da literatura, mas sim do contato efetivo com a construção dos artefatos literários tomados em suas especificidades. Paradoxalmente, no presente momento, a crítica literária, a teoria literária e, como consequência, a própria literatura se veem ofuscadas exatamente em decorrência da profusão de novos pressupostos éticos a serem tão somente rastreados nos artefatos literários. Estes, por sua vez, são reduzidos a uma espécie de depósito de teses em torno de um mundo por vir mais sensível às diferenças. A sobrevivência da teorização sobre a literatura se dá, quando nesses termos, por meio da potencialização dos pressupostos éticos ou morais antes citados. Um caso emblemático disso que tem sido chamado de “virada ética” [ethical turn] nos estudos literários é, por exemplo, a “ecocrítica” [ecocriticism], cujo intuito, em linhas gerais, é o de estabelecer “[...] um modo declaradamente político de análise. [...] Os ecocríticos em geral amarram suas análises culturais explicitamente a agendas morais e políticas mais ‘verdes’” (GARRARD, 2004, p. 3). Ora, não é preciso ir muito longe para perceber que o enrijecimento prévio de uma “agenda moral ou política” promove encontros artificiais com as obras, que se veem desligadas daquela negatividade capaz de mobilizar o leitor, de desconstruir suas certezas anteriores à leitura. A “ecocrítica”, no entanto, é 78

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apenas um indício da proliferação dos discursos que reduzem a literatura à discussão de temas éticos ou políticos preestabelecidos. No âmbito da crítica literária, vale mencionar, como casos semelhantes, os “estudos animais” [animal studies], os “estudos pós-humanos” [posthuman studies], os “estudos do holocausto” [holocaust studies], os “estudos da deficiência” [disability studies], os “estudos ambientais” [environmental studies], entre tantos outros de uma lista provavelmente infinita. De resto, é importante enfatizar que todos esses “estudos” compõem exclusivamente um conjunto de temas para aplicação à leitura de obras literárias, sem muito a dizer, a princípio, sobre as formas constitutivas dos artefatos, ou melhor, sobre o modo específico por meio do qual esses mesmos temas manifestam-se ou são construídos. Colocado de outro modo, eis o paradoxo com que aqui nos defrontamos: o discurso das alteridades nos estudos literários, seja pela via do “humanismo” ou dos estudos “pós-humanos”, por partir de teses que se antecipam ao efeito potencialmente disruptivo da leitura, acaba por neutralizar a alteridade que é a obra em si, fazendo-a migrar rumo ao “eu” do leitor-crítico-teórico. Nesse caso, temos uma versão espetacularizada da própria defesa do discurso ético e político em torno das alteridades literárias, uma vez que esse discurso não raro afirma-se por meio do silenciamento da singularidade dos artefatos, suprimindo-lhes aquelas mesmas diferenças que, por outro lado, alega-se defender. A única alteridade que jamais se apaga, que se faz sempre presente nas obras literárias, não é aquela dos animais, da natureza ou dos demais seres humanos, mas sim a da singularidade da construção formal que particulariza determinada obra em relação às demais. Se a elaboração teórica anterior ao contato com os objetos é mais atuante que o contato em si, estabelecemos diante da literatura conduta semelhante àquela do mercado, cujo valor dos produtos pouco tem que ver com a ideia de uso ou de singularidade, mas sim com os símbolos que pairam sobre aquilo que é comprado. Consumir a literatura nada mais é do que fazê-la girar em torno de algo mais forte que ela mesma, de modo que seus elementos constitutivos migrem em direção a formulações que, mesmo sendo exteriores ou estranhas a ela, buscam explicá-la. Se a literatura não nos garante necessariamente o acesso ao outro tal como nos prometem os pressupostos humanistas registrados nos documentos oficiais ou a chamada “virada ética” nos estudos literários, isso não significa ela não nos faça apelo ético algum quando do contato com as obras em si. Esse apelo ético, no entanto, assume aqui menos a forma de 79

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um compromisso anterior à leitura do que uma atenção profunda ao objeto, um olhar capaz de desorganizar aquilo que trazemos de antemão conosco para o instante em que encontro com o objeto acontece. Eis uma tarefa ética indispensável para o tempo presente: no lugar da “gestão de si”, da redução das diferenças ao “eu” que lê a obra e reafirma aquilo que já sabia, a literatura expõe a precariedade dos sentidos que trazemos conosco para o instante da leitura, produzindo um curto-circuito na forma como interpretamos as coisas. Em suma, menos que um espaço de afirmação das alteridades, a literatura é sempre um convite para a saída de si, um convite à perda (de tempo, de linguagem), ao abandono, ao desencontro, ao desentendimento, à incompreensão, à releitura, à improdutividade, tudo isso, como afirmado anteriormente, sem promessa alguma de satisfação do consumidor ou de reencontro posterior consigo mesmo ou com o outro. A radicalidade da literatura não está nos encontros que promove, mas antes nos desencontros ou desvios que nos impedem de chegar a ela em definitivo.13 *** O que significa “ensinar” literatura? O que de fato “ensinamos” por meio do contato com as obras literárias? Se, por um lado, compreendemos que a literatura “humaniza”, faz-nos melhores, permite um acesso mais integral aos outros seres humanos, aos animais, à natureza, às alteridades de modo geral, o ensino de Literatura deve passar necessariamente por um crivo ético ou moral responsável por apontar as obras que realmente fazem tudo isso, o que nos leva a problemas teóricos autoevidentes. Aliás, os constantes impasses dos documentos oficiais acerca da centralidade ou não do cânone literário no ensino de Literatura talvez decorra do fácil deslocamento que esse conteúdo ético assume no presente momento: dos discursos fechados acerca do ideário de nação, passamos a uma ética de rápida mobilidade, que muda de direção segundo os impulsos fluidos de uma Teoria (com “T” maiúsculo) sem agenda clara.14 Se, por outro lado, em vez de um determinado conteúdo ou corpo de obras, o que está em questão é um modo de se relacionar com os objetos – “o aluno aprende menos um conteúdo específico, do que uma postura em relação ao saber” (DURÃO, Pode-se afirmar, nesse caso, que o cânone só existe teoricamente, ou seja, como um constructo teórico. Quando do contato com as obras em si, se o literário é de fato aquilo que retira do sujeito parte do que ele traz consigo para o instante da leitura, então o cânone ganha uma organicidade que não nos permite conhecê-lo em definitivo ou como sentido já dado. 14  Cf. DURÃO, 2011b. 13 

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2015a, p. 109) –, então o ensino de Literatura tem menos que ver com a transmissão de um determinado conjunto de nomes em particular e mais com uma conduta mínima que os artefatos literários exigem do leitor para que funcionem. Nesse caso, a seleção das obras poderia passar por uma espécie de critério de “demanda de atenção” e de entrega aos objetos. O presente capítulo debruçou-se sobre duas posturas que a literatura solicita para exercer a sua atividade. Em primeiro lugar, a literatura invoca uma “economia da atenção” (cf. HAN, 2015, p. 31) que se mantém em profundo desacordo com o paradigma da positividade que regula o tempo presente. Em outras palavras, ler ou reler uma obra literária significa insistir em um gesto de “autocentramento” avesso à própria ideia de dispersão a que repetidamente nos referimos para caracterizar as subjetividades contemporâneas. Se as “novas subjetividades” estão acostumadas (ou se submetem) à realização de diversas atividades ao mesmo tempo, recebendo e produzindo continuamente positividades ou estímulos que não param de transitar e demandam processamento e retorno como gestos simultâneos, a literatura está muito longe de funcionar nesses termos. Para o bem ou para o mal, quando não alienada de si mesma por dispositivos publicitários, como resumos, filmes, explicações, performances etc. que se propõem a facilitar o acesso às obras, a literatura desacelera a nossa relação com os objetos, fundando uma outra percepção do tempo. Nesse caso, a potência da literatura estaria também diretamente relacionada à complexidade dos artefatos e ao modo como estes nos interpelam quanto à atenção exigida. Logicamente, como dito anteriormente, a quebra do fluxo contínuo das coisas representa, do ponto de vista da presença da literatura nas instituições de ensino, tanto sua verdadeira potência quanto prova da sua fragilidade maior, o que a faz caminhar para o seu desaparecimento. Em segundo lugar, muito embora a literatura eventualmente nos abra às diferentes alteridades “humanas” ou “pós-humanas” – algo que está longe de constituir uma experiência particular sua ou dela constitutiva –, é o gesto de entrega ao artefato literário e à atenção por ele exigida que inaugura no sujeito um processo de “saída de si”. Nesse sentido, cabe aqui observar duas posições fundamentais diante das obras: de um lado, o discurso das diferenças, estabelecido como pressuposto teórico de fundo, delimita o campo de atuação possível para a leitura dos textos, não raro fazendo com que o leitor retorne a si mesmo ao fim de sua travessia; de outro lado, suavizada a rigidez teórica e instituída, no lugar, a passagem ao 81

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objeto e a leitura atenta ao jogo singular por ele tecido, a literatura então passa a concretizar um perigoso experimento, do qual por vezes saímos sem mais sabermos ao certo ou da mesma forma quem de fato somos. Isso não torna ninguém necessariamente melhor, mas efetiva uma ação política capaz de desarticular a “gestão de si” que fundamenta o tempo presente, inclusive no âmbito dos discursos sobre a literatura. A ética da literatura corresponderia, por fim, a uma ética de “saída de si” rumo ao outro primeiro que é a própria singularidade da obra. O lugar da literatura nas instituições de ensino encontra-se ameaçado, principalmente porque a literatura resiste à ideia de uso e produção que hoje controla o valor atribuído aos conteúdos escolares. No entanto a luta por afirmar um uso ou positividade qualquer para a literatura, nesse contexto, significa destituí-la de seu potencial crítico maior, que diz respeito, entre outros, ao estabelecimento de uma temporalidade capaz de intervir sobre o fluxo perpétuo de sons, imagens, opiniões e “acontecimentos” em nome de uma atenção mais profunda voltada a um objeto em particular. A literatura não forma um sujeito “melhor”, mais humano ou preparado para o mercado; pelo contrário, por meio da entrega ao objeto literário, é possível que o leitor mobilize a sua relação com a linguagem e, dessa forma, coloque em xeque as suas próprias crenças anteriores à leitura, inaugurando um processo de “saída de si” que jamais é de todo confortável. De resto, quando a literatura não se manifesta nesses termos, podemos dizer que ali paira somente a sua sombra, resíduo de um nome agora sem predicados.

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5 UM NOVO REGIME DE PERCEPÇÃO Qualquer reflexão consequente sobre o declínio do prestígio do ensino de Literatura há de se deparar, inevitavelmente, com os impasses hoje constitutivos da área, como a crise do discurso de nação ou do paradigma nacionalista como fio condutor e explicativo para a experiência literária; a perda de centralidade ou da objetividade imediata conferida por um cânone antes autocentrado e agora associado a um processo histórico tanto ideológico quanto estetizante, responsável por excluir do campo das letras diferentes grupos minoritários, como negros e mulheres; a insuficiência e parcialidade das tentativas de definir a literariedade ou literaturidade da literatura a partir de explicações internas, imanentes ou formais, a exemplo daquelas buscadas por círculos hermenêuticos como o formalismo russo, a nova crítica, o estruturalismo, entre outros; a “evaporação” da literatura e de seus artefatos – ao menos tal como concebidos por determinada tradição – como resultado do alargamento conceitual do literário, promovido tanto pelos estudos culturais quanto por uma noção vaga de textualidade, ou, ainda, pela passagem da teoria literária para algo chamado simplesmente de Teoria, com “t” maiúsculo e sem objetos específicos (cf. DURÃO, 2011b); por fim, o fato mais óbvio de que no Brasil lê-se muito pouco, constatação que certamente se intensifica uma vez eliminados do horizonte da leitura contatos mais fugazes ou fragmentários como aqueles proporcionados por Facebook, Twitter e tutti quanti.15 A lista, Segundo os dados da quarta edição da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, realizada pelo instituto Pró-Livro e divulgada em 2016, 44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. A média de leitura dos brasileiros é de 4,96 livros por ano, e entre os volumes mais citados pelos participantes da pesquisa estavam a Bíblia, Diário de um banana, Casamento blindado, A Culpa é das estrelas, Cinquenta tons de cinza, Ágape, Esperança, O monge e o executivo, Ninguém é de ninguém, Cidades de papel, O código da inteligência, Livro de culinária, Livro dos espíritos, A maldição do titã, A menina que roubava livros, Muito mais que cinco minutos, Philia e A única esperança. Já os autores mais citados são os seguintes: Augusto Cury, João Ferreira de Almeida, Zibia Gasparetto, Padre Marcelo Rossi, Cristiane Cardoso/Cristiane e Renato Cardoso, Paulo Coelho, Allan Kardec, John Green, Chico Xavier, Ellen G. White, Machado de Assis, Padre Fábio de Melo, Maurício de Souza, Bispo Edir Macedo e Kéfera Buchmann. Quanto ao uso e destinação do tempo livre, a leitura fica em 10º lugar, atrás de: 1) assistir à televisão; 2) ouvir música; 3) usar a internet; 4) reunir-se com amigos ou família ou sair com amigos; 5) assistir vídeos ou filmes em casa; 6) usar WhatsApp; 7) escrever; 8) usar Facebook, Twitter ou Instagram; 9) ler jornais, revistas ou notícias. Disponível em: http://prolivro.org.br/home/images/2016/Pesquisa_Retratos_da_Leitura_no_Brasil_-_2015.pdf. Acesso em: 5 out. 2018. 15 

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que certamente poderia ser ampliada, sinaliza, enfim, que a crise do ensino de Literatura, ou da própria literatura e dos estudos literários, é um fenômeno complexo, decorrente de múltiplos vetores que se atravessam e que não se revelam integralmente se analisados como casos isolados. Ora, para além dos desdobramentos internos da área, conforme brevemente listados, um outro elemento que contribui para agravar a dimensão e alcance dessa crise diz respeito a algo que poderíamos chamar de problema da atenção ou percepção. Em outras palavras, se a leitura literária, por um lado, costuma estar vinculada a um exercício principalmente individual, autocentrado e solitário, que demanda atenção, esforço e concentração, aquilo que conhecemos como modernidade tardia ou pós-modernidade, por outro lado, é caracterizado exatamente pela imagem da dispersão, do consumo rápido, do descarte e do fluxo, de tal forma que o conhecimento de fôlego a ser incentivado e praticado na escola se vê cada vez mais inviabilizado por uma nova dinâmica leitora, repleta de estímulos em profunda sintonia com a “sociedade excitada” do tempo presente. Ao mesmo tempo que as subjetividades formadas nesse contexto são incentivadas, a todo instante, a produzir discursos de si alinhados à lógica da inovação e do empreendedorismo individual (cf. DARDOT; LAVAL, 2016), essa construção subjetiva, urdida nesses termos, é muito mais provisória do que aquela solicitada e fabricada pela temporalidade literária, o que resulta em um impasse perceptivo de modo geral pouco produtivo ou auspicioso para a literatura. O presente capítulo, motivado pela publicação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino médio, cujas formulações sobre o ensino de Literatura vinculam-se significativamente a “processos que envolvem adaptações, remidiações, estilizações, paródias, HQs, minisséries, filmes, videominutos, games etc.” (BRASIL, 2018, p. 492), propõe-se a debater a relação entre a pluralidade e abundância de mídias, gêneros, plataformas e produções citadas aqui e ali pelo documento e o problema específico da vivência sensorial e perceptiva fundamental para o contato com a complexidade e singularidade das obras literárias. Cabe explicar: se a BNCC, talvez pela primeira vez em um documento oficial do MEC, alarga o conceito de literatura para incluir no escopo de suas atividades, por exemplo, “resenhas, vlogs e podcasts literários, culturais etc.”, “remidiações, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc.” (BRASIL, 2018, p. 495), é certo que essa multiplicidade de manifestações artístico-literárias, bem como seus respectivos gêneros e mídias, ativa um mecanismo complexo de adaptações 84

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e deslocamentos contínuos dos quais a sensibilidade sensorial dos alunos dificilmente sairá inalterada. Assim, a aula de Literatura contorna o cenário de sua crise ao mesmo tempo que, ao fazê-lo, amplia o domínio de atuação dos seus sintomas. Para tanto, a fim de analisar esse impasse, o argumento divide-se em dois momentos principais: primeiro, volta-se tanto para o problema da atenção na modernidade, principalmente a partir de pontos-chaves das reflexões de Jonathan Crary (2013, 2014), quanto para o surgimento da “sociedade excitada” e do paradigma da sensação na contemporaneidade (cf. TÜRCKE, 2010); a seguir, o texto investiga os diferentes dispositivos sensoriais e fluxos adaptativos acionados pela BNCC e de que modo eles se aproximam, distanciam e, acima de tudo, afetam a leitura propriamente literária conforme antes descrita. O que se espera demonstrar, em suma, é que os encaminhamentos práticos expostos na BNCC, ao oferecer alternativas plurimidiáticas e intercambiáveis entre si para o ensino de Literatura, evitam os debates mais caros aos estudos literários e mergulham de vez a tradição e o cânone na própria crise da leitura que os teóricos não cansam de anunciar e denunciar. Mutações sensoriais e os usos da atenção Em texto de 1926 intitulado “Culto da distração”, presente no livro O ornamento das massas, Siegfried Kracauer investiga o que compreende como um crescente “culto da distração” a partir de um sintoma ou fenômeno, a princípio, bastante corriqueiro, a ascensão dos grandes “cineteatros” na Alemanha da década de 1920, espaços marcados por um “esplendor da superfície”, um “bombardeio de impressões” que substitui a mera projeção de um filme após o outro. O signo essencial dos cineteatros é o da abundância, formando uma “obra de arte total dos efeitos [que] se desencadeia com todos os meios diante de todos os sentidos” (KRACAUER, 2009, p. 344). Ao filme, antes presente como unidade autossuficiente, acrescentam-se várias outras dimensões artísticas e sensoriais, a exemplo dos refletores, que lançam luzes em determinados pontos do ambiente, da orquestra, que tem uma vida como que autônoma no espaço, da música, das cores, da pantomima, do balé etc., e assim, com essa política do excesso de “magia” visual e sonora, as antigas salas de cinemas convertem-se em recintos, quando não obsoletos, pelo menos antiquados ou mesmo desestimulantes, entediantes. A consequência diagnosticada por Kracauer, no entanto, não é precisamente elogiosa para os cineteatros: como resultado de um espaço 85

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que promove a agitação contínua dos sentidos, metralhando a percepção de excitações audiovisuais, a reflexão e o entendimento saem prejudicados, uma vez que já não há mais tempo para a interrupção que corta o fluxo e antecipa o pensamento. O que Kracauer define como um “culto da distração”, em suma, tem que ver não com uma falta ou ausência, mas sim com o seu contrário, um acúmulo ou profusão de produções cujo prazer promovido associa-se de imediato a uma apatia anestesiante que mutila a posição crítica do espectador diante daquilo que vê. Embora discorde em parte da tradição filosófica que passa por Georg Simmel, Walter Benjamin, pelo próprio Siegfried Kracauer, por Theodor Adorno e demais autores que “presumiam que a percepção distraída era fundamental para qualquer explicação da subjetividade moderna” (CRARY, 2013, p. 72) – nomes que descreviam a modernidade fundamentalmente como um processo de fragmentação, destruição, regressão, perda, decadência e atrofia da percepção, naturalizando, assim, formas anteriores supostamente imbuídas de “valores existentes durante séculos” –, Jonathan Crary compreende que a atenção constitui uma categoria decisiva para se pensar a experiência sensorial na modernidade capitalista, tendo o tema se tornado um problema objetivo a ser cientificamente administrado já no final do século XIX. Em linhas gerais, segundo o argumento de Crary, a relação entre atenção e distração deve ser compreendida a partir de um continuum que se movimenta de um lado para o outro de acordo com “a introdução ininterrupta de novos produtos, novas fontes de estímulo e fluxos de informação”, que, por sua vez, introduzem “novos métodos para administrar e regular a percepção” (CRARY, 2013, p. 36). Em outras palavras, a inclusão de diferentes formas ou modos de difusão da informação ou de produtos vai gerar respostas específicas do ponto de vista do controle da atenção, respostas que podem, inclusive, em muitos casos, não dar conta de adequar as subjetividades formadas às novas demandas perceptivas. O capitalismo, com suas trocas cada vez mais rápidas, torna-se “um regime de atenção e distração recíprocas”, em que as sobrecargas sensoriais produzem um curto-circuito na percepção e fazem com que o continuum desloque-se permanentemente de um lado para outro. Menos que distração apenas, caberia falar em exaustão ou “errância da atenção”: Nos últimos cem anos, as modalidades perceptivas têm se encontrado – e assim continuam – num estado constante de transformação, ou, como diriam alguns, num estado de crise. Se é possível dizer que a visão teve alguma característica 86

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constante ao longo do século XX, esta seria precisamente a falta de características constantes. Ao contrário, a visão está imersa em um padrão de adaptabilidade a novas relações tecnológicas, configurações sociais e imperativos econômicos. Aquilo que, por exemplo, costumamos chamar de cinema, fotografia e televisão são elementos transitórios em uma sequência acelerada de deslocamentos e obsolescências que são parte das operações delirantes da modernização (CRARY, 2013, p. 35, grifo nosso).

Pode-se dizer que a palavra central aqui é “adaptabilidade”, isto é, a capacidade de manter a atenção estimulada e o sujeito condicionado a um lance contínuo de substituições, adaptações, equivalências, trocas e ciclos cada vez mais acelerados e instáveis. Esse regime de deslocamento constante da atenção de um lugar para outro produz uma sobrecarga perceptiva prejudicial à atenção, que depois de certo tempo volta a ser assombrada pela distração e pela necessidade de um novo giro no mecanismo da velocidade e das novidades para se sentir uma vez mais excitada. Eis o paradoxo ou dano inevitável desse jogo: para ativar o consumo, é preciso despertar ou dirigir a atenção a um determinado objeto; no entanto, como a atenção por muito tempo retida sobre um único objeto significa a desaceleração do consumo e prejuízo econômico para a dinâmica do capital, resta, depois de certo intervalo, deslocá-la para um segundo artefato, em um esquema que inevitavelmente conduz a uma “pane da atenção” à medida que progride a sua aceleração. A transitoriedade dos estímulos estabelece um funcionamento espontâneo da maquinaria, um fluxo contínuo, porém imprevisível, que tem por correlato objetivo a perda gradativa da concentração, a impossibilidade de interiorizar a experiência e, em seu ponto mais alto, o sonambulismo, o automatismo, a separação, o isolamento, a apatia, ou, então, aquilo que leva o nome de tédio, um tédio que para se desfazer solicita novos deslocamentos perceptivos e sensoriais, reinaugurando essa mesma cadeia de eventos. Importante aqui ressaltar que o fenômeno que Guy Debord nomeou em 1967 como “sociedade do espetáculo” dirige-se justamente ao império da circulação de produtos e a uma “baixa tendencial do valor de uso”, ou seja, à precarização da noção de uso e da capacidade de mobilizar os objetos em sua singularidade e vinculação ao cotidiano, resultado do império das trocas e da equivalência e intercambialidade das mercadorias. As últimas décadas do século XX e, pode-se dizer sem medo de errar, as duas primeiras décadas do século XXI apenas consolidaram esse quadro de “renúncia à pretensão de que o tempo possa estar acoplado a quaisquer 87

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tarefas de longo prazo” (CRARY, 2014, p. 19). Os discursos neoliberais de criatividade, gestão empresarial, inovação, empreendedorismo, coaching, mentoring etc. – termos antes dirigidos a corporações, mas hoje entranhados na própria subjetividade dos sujeitos, ou já introjetados em seu código genético, materializando a ideia de um “eu” empresa ou “eu” empresarial – apenas consolidam a tese de que a estabilidade, a lentidão, a inatividade, a intransitividade, o silêncio, o uso, o descanso, o sono, a solidão e o pensamento são obstáculos indesejáveis para o ritmo acelerado do consumo e do descarte segundo os termos antes descritos. Na bolsa de valores da sensibilidade contemporânea, estão em baixa todas as práticas e hábitos que não se convertem tão facilmente em mercadoria, como é o caso do sono segundo o argumento de Crary. Ao contrário da fome, da sede, do desejo sexual e da amizade, entre outras necessidades básicas capitalizadas pelo utilitarismo contemporâneo, o sono permaneceria “um hiato incontornável no roubo do tempo” (CRARY, 2014, p. 20). Valeria a pena, contudo, submeter a tese de Crary à apreciação das grandes redes hoteleiras espalhadas ao redor do mundo, que fazem do sono e do “conforto” parte decisiva de seu negócio. Seja como for, nas palavras do autor, “a experiência e a percepção estão sendo reconfiguradas pelos ritmos, velocidades e formas de consumo acelerado e intensificado” (CRARY, 2014, p. 48), e o que quer que o impeça é retirado imediatamente da paisagem social. Chamemos isso de “sociedade do cansaço”, como o filósofo sul-coreano Byung Chul Han (2015) o faz, de “novo espírito do capitalismo”, na concepção de Boltanski e Chiapello (2009), de “nova razão do mundo”, nos termos de Dardot e Laval (2016), ou então simplesmente de “sociedade excitada”, conforme a nomenclatura de Christoph Türcke (2010), o certo é que é o próprio estatuto ontológico do sujeito que parece ter-se alterado com os atuais ritmos, redes e dispositivos de exposição de mercadorias e formas de consumo. São as pessoas que agora, em certa medida, convertem-se elas mesmas em campos de produção de excitações e estímulos sensoriais, tendo sua existência publicamente afirmada, confirmada ou negada de acordo com o seu “índice de irradiação” particular, medido e verificado, entre outros, por ferramentas como Facebook e Twitter, voluntariamente preenchidas pelos usuários que gerenciam e atualizam de modo obediente suas zonas privadas de emissão que são também microempresas de si. Nas palavras de Türcke (2010, p. 48), “fala-se muito da falta de dinheiro, mas da falta de ‘aí’, quase nada. No entanto, ela é demonstrada em grande escala: da maneira como uma sociedade inteira se sente compelida a aparecer em emissões, a 88

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exigir atenção, a criar uma sensação”. É da mais profunda falta de “aí”, isto é, de uma existência que não se vê comprovada em sua condição emissora, em suma, que sofrem os diferentes “desalentados”16 ou excluídos de hoje, sujeitos incapazes de aparecer como produtivos, úteis e irradiadores de luminosidade nos campos de visibilidade social. O desdobramento final desse quadro não nos é estranho: lado a lado com a conquista absoluta de todos os âmbitos da existência humana por um capitalismo desenfreado e autônomo, incapaz de cumprir as promessas que não deixa de diariamente renovar, caminham a desigualdade cada vez mais escandalosa, a devastação ambiental, as guerras, as inúmeras doenças e violências neuronais, a obediência acrítica e antecipada, a mutilação dos conceitos de democracia e comunidade, a competição generalizada, a indiferença, a conversão do indivíduo em empresa e tantas outras conhecidas formas de precarização da vida. Tudo isso faz com que o filósofo francês Frédéric Gros lance as inevitáveis perguntas: [...] por que, diante da iminência da catástrofe, ainda ficamos hoje de braços cruzados e com os olhos, nem digo resignados, mas tentando desviá-los para outro lado? Por que deixamos a coisa correr, por que nos comportamos como espectadores do desastre? (GROS, 2018, p. 15-16).

Ora, se a literatura parece algo muito pequeno diante de tudo isso – e ela de fato o é –, é certo que o seu posicionamento em meio a um mundo de artefatos, formas e artifícios intercambiáveis entre si representa um alinhamento à lógica do capital, da equivalência e das trocas constantes e, com isso, uma distância definitiva tomada em relação a sua suposta singularidade, a mesma singularidade até recentemente julgada imprescindível para a tão propalada “formação humana”. Pluralidade midiática, literatura e atenção Para evidenciar a distância que a BNCC toma de processos intransitivos ou dimensões formativas que não se conectam de imediato ao utilitarismo do mundo produtivo anteriormente vislumbrado, talvez bastasse Nos dados referentes ao crescente número de desempregados no Brasil, a categoria dos chamados “desalentados”, que hoje (outubro de 2018) soma cerca de 4,8 milhões de pessoas sem vínculo empregatício algum, não entra na contagem oficial. Os “desalentados” são aqueles que desistiram de procurar emprego e que, dessa forma, saem da estatística dos desempregados. Em outras palavras, para constituir parte dos desempregados, faz-se necessário um quantum mínimo de irradicação que, sem ser produzido, atesta a inexistência social dos “desalentados”. 16 

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observar que o documento se estrutura, todo ele, sobre uma lógica enrijecida de meios e fins, ou melhor, sobre um mecanismo de promoção de “competências e habilidades” que têm por intuito “resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” (BRASIL, 2018, p. 8). Talvez coubesse, inclusive, indicar que, já na própria formulação inicial do texto, o “pleno exercício da cidadania” surge sintomaticamente comprimido entre as “demandas complexas da vida cotidiana” e aquelas “do mundo do trabalho”. Por fim, talvez fosse necessário assinalar que “competência” é um dos termos incontornáveis ditados pelo Instituto Ayrton Senna (IAS) e pela OCDE em documentos sobre a educação e seu vínculo com as “competências cognitivas e socioemocionais” que crianças e adolescentes precisam dominar “para ser bem-sucedidos na vida moderna” (OCDE, 2015, p. 3). No entanto o objetivo aqui é outro. Não é o de analisar a BNCC como um todo, mas sim e tão somente o de entender como o documento insere a literatura em redes plurimidiáticas e pluriespaciais que não recebem singularização alguma quanto ao seu papel ou funcionamento específico, operando aparentemente como meros vetores de trocas e deslocamentos sem um “objeto” ou “conteúdo” particular em vista. As menções à literatura na BNCC não chegam a ser muitas ou excessivas – mesmo com todas as modificações realizadas em relação ao texto das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006), não há, por exemplo, qualquer tentativa mínima que seja de particularização de uma área de estudos, talvez por conta da dimensão interdisciplinar ali adotada –, o que não impede o documento de fazer desfilar diante do leitor uma série de gêneros, mídias, produções e processos, entre os quais aparecem: “adaptações, remidiações, estilizações, paródias, HQs, minisséries, filmes, videominutos, games” (BRASIL, 2018, p. 492); obras artísticas e produções culturais (resenhas, vlogs e podcasts literários, culturais etc.) ou formas de apropriação do texto literário, de produções cinematográficas e teatrais e de outras manifestações artísticas (remidiações, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc.) (BRASIL, 2018, p. 495);

“perfis, apresentações pessoais, relatos autobiográficos, mapas (e outras formas de registro) comentados e dinâmicos, almanaques, playlists comentadas de produções culturais diversas, fanzines, e-zines” (BRASIL, 2018, p. 501);

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slams, vídeos de diferentes tipos, playlists comentadas, raps e outros gêneros musicais etc., minicontos, nanocontos, best-sellers, literatura juvenil brasileira e estrangeira, incluindo entre elas a literatura africana de língua portuguesa, a afro-brasileira, a latino-americana etc., obras da tradição popular (versos, cordéis, cirandas, canções em geral, contos folclóricos de matrizes europeias, africanas, indígenas etc.) (BRASIL, 2018, p. 514);

“saraus, competições orais, audições, mostras, festivais, feiras culturais e literárias, rodas e clubes de leitura, cooperativas culturais, jograis, repentes, slams etc. [...] poemas, contos e suas variedades, roteiros e microrroteiros, videominutos, playlists comentadas de música etc.” (BRASIL, 2018, p. 515). Muito embora por vezes constituam desdobramentos possíveis a partir do contato com o literário, essa pirotecnia midiática contrasta significativamente com qualquer caracterização ou concepção da aula de Literatura ou da leitura como atividades vinculadas à introspecção, à concentração ou a uma “forma de sair de si mesmo e do ambiente que nos rodeia, mas também de conhecer-se melhor e ser mais consciente de nossa ordem e desordem” (BERARDINELLI, 2016, p. 21). De um deslocamento subjetivo e arriscado, passa-se, pois, a uma desierarquização completa dos objetos e espaços, bem como a um deslocamento antes de mais nada físico, seja do olhar ou do próprio corpo. Se o estudo é aquilo que detém, “é o dom ambíguo, fascinante e perigoso, do estupor que produz a suprema interrupção” (LARROSA, 2015, p. 200), o excesso de mídias que surgem como unidades autorreferenciais canaliza os esforços dos alunos e professores, como dito, para o âmbito dos vetores em si, e não para o que concretizam como experiência literária da suspensão. Para citar um exemplo evidente disso, a BNCC dirige-se repetidas vezes ao domínio da crítica literária, à leitura que os alunos fazem de seu contato com os artefatos artísticos, recomendando, para fins de veiculação da apreciação, apropriação ou recriação dessa experiência, o uso de resenhas, vlogs, podcasts, remidiações, paródias, estilizações, videominutos, fanfics etc. A variedade de alternativas, entretanto, faz saltar ainda mais aos olhos a absoluta ausência de discussões conceituais sobre a tarefa intelectual ou a função social da crítica literária, sobre como compreender o funcionamento de um texto, suas regras, seus laços intertextuais, suas implicações sociais, a relação entre autor, obra e leitor, isso para citar apenas algumas das discussões caras à teoria literária. Sem uma reflexão mais apurada nessa direção, isto é, sem um aprofundamento do fato de que a crítica e a interpretação tendem “a 91

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implicar algum espaço concreto de veiculação e a consequente existência de um público leitor, de uma esfera pública na qual se inserirá” (DURÃO, 2016b, p. 11, grifos do autor), fixamo-nos, então, no campo subjetivo da expressão do gosto individual e de sua comunicação descompromissada, por via de regra desvinculada de uma apreciação ou valoração minimamente objetiva, imanente e criteriosa da experiência estética, cujo ensino e aprendizagem são ou deveriam ser tarefas da escola. Resta, assim, a desconfortável sensação de que, nesse exercício, importa menos a densidade do que será dito do que a ocupação efetiva de um diferente número de mídias, tomadas como entidades autossuficientes e importantes em si mesmas, independentemente de um modo específico de afetar o literário. Ainda que a princípio no campo da literatura, já não estamos tão longe da esfera confessional há muito familiar aos alunos e cultivada pelas mídias sociais. Em seu estudo intitulado Uma teoria da adaptação, Linda Hutcheon insiste repetidamente no fato de que “a arte deriva de outra arte; as histórias nascem de outras histórias” (HUTCHEON, 2011, p. 22), e que, dessa forma, estamos sempre deslizando de um espaço para outro, pois “nas operações da imaginação humana, a adaptação é a norma, não a exceção” (HUTCHEON, 2011, p. 235). O que particulariza a adaptação como adaptação, entretanto, para além da passagem de uma narrativa a outra, é o fato de que cada encarnação midiática arrasta consigo especificidades de gênero e de mídia, ou seja, estudar a adaptação é, inevitavelmente, compreender as implicações teóricas decorrentes dos diferentes tipos de engajamento e modos de interagir solicitados do leitor segundo as funções constitutivas de cada “remidiação”. É exatamente por isso que a autora divide a sua investigação em três “modos de engajamento”, o “contar”, o “mostrar” e o “interagir”: “quando uma mudança de mídia, de fato, ocorre numa adaptação, ela inevitavelmente invoca a longa história de debates em torno da especificidade formal das artes – e, assim, das mídias” (HUTCHEON, 2011, p. 62). O movimento entre as mídias institui um debate imprescindível sobre o que se acrescenta e o que se “perde” com cada uma delas – do “contar” para o “mostrar”, por exemplo, passamos geralmente do impresso para o performativo e, com isso, do silêncio das palavras da página para a performance, os gestos, as imagens, os tons de voz, a música etc.; da mesma forma, do “contar” ou “mostrar” para o “interagir”, deixamos o campo da página impressa ou da performance para uma participação mais imediata ou deliberada do usuário, tal como ocorre nos jogos computadorizados, videogames, narrativas interativas etc. Modificada a mídia, em suma, modificam-se também as 92

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regras do jogo. Diante desse quadro, se a compreensão é a de que o literário não se conecta a uma plataforma de leitura específica – tal como a BNCC parece indicar –, o desafio seria então debater as mudanças provocadas pelas particularidades de mídia e contexto, empresa que o documento está longe de assumir. Um dos aspectos frequentemente enfatizados no discurso sobre “formação humana” por meio do contato com os artefatos literários diz respeito a um suposto “autodescobrimento” “em termos de elaboração da subjetividade e das inter-relações pessoais” (BRASIL, 2018, p. 496). Nesse sentido, a literatura possibilitaria “a autonomia intelectual e o pensamento crítico” (BRASIL, 2006, p. 53), o que corresponde à “humanização” do ser humano na formulação, entre outros, de Antonio Candido (2011), crítico não raro citado nos documentos aqui em pauta. Apesar de as teses sobre a “humanização” decorrente da leitura literária carecerem elas próprias de uma discussão teórica mais aprofundada, principalmente por pressupor um conteúdo “positivado” que as obras em si não deixam de contestar ou violentar, essa autonomia ou “formação humana” estaria associada, acima de tudo, à imaginação, à reflexão, à interiorização, à introspecção, à abstração, à fruição estética etc. Contudo uma das coisas que Jonathan Crary destaca acerca da velocidade, da aceleração, do acúmulo, da multiplicidade de estímulos sensoriais, do constante deslizamento de uma tecnologia para outra e da “sucessão irregular de instantes de concentração e de atenção passageira” (CRARY, 2014, p. 136) é, sintomaticamente, a impossibilidade de interiorização ou de elaboração da subjetividade, ou seja, o mergulho do sujeito em um regime de fluxos em que, menos que se “formar”, a individualidade se vê “virada do avesso, invertida para uma condição de exteriorização” (CRARY, 2013, p. 105). Esses trânsitos contextuais e intermidiáticos, quando automatizados, tomados como um fim em si mesmos e destituídos de qualquer reflexão mais cuidadosa, convertem-se em ferramentas de exteriorização e de eliminação da intimidade, permitindo o conhecimento das plataformas, vetores e dispositivos tecnológicos, mas desestimulando a percepção e a formulação mais aprofundada de si, essenciais a qualquer noção consequente de formação. *** Em seu livro de 1977 chamado Velocidade e política, Paul Virilio anuncia a chegada daquilo que ele nomeia como uma “revolução dromocrática”, 93

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isto é, o domínio cada vez mais integral do “país da velocidade” sobre as categorias de lugar e espaço. Em outras palavras, como resultado do império da velocidade e do deslocamento – vetores diretamente associados ao poder tecnológico e à força bélica –, o meio atravessado passa a ser menos relevante do que a produção do movimento em si, fazendo com que a centralidade da noção de lugar ceda terreno para a afirmação do seu contrário, o não-lugar, caracterizado pela recusa da imobilidade, pelo deslocamento contínuo e o fluxo incessante. Nas palavras do autor, “o estreitamento das distâncias transformou-se numa realidade estratégica com consequências econômicas e políticas incalculáveis pois equivale à negação do espaço” (VIRILIO, 1996, p. 123). O espaço, agora atrelado à dormência, à falta de motricidade e à inação, deve também encolher com a diminuição das distâncias; já o seu inverso, a rapidez ilimitada, revela-se o teste decisivo para as grandes potências: quanto mais desenvolvidas tecnicamente, quanto mais capazes de sofisticar seus dispositivos “dromológicos” de aceleração da vida e de celebração do progresso, tanto mais revelam sua verdadeira força econômica e militar. Nas palavras finais do autor, “a violência da velocidade tornou-se, simultaneamente, o lugar e a lei, o destino e a destinação do mundo” (VIRILIO, 1996, p. 137). Logicamente, o frágil corpo humano não passa impunemente pela negação sistemática do tempo “inútil” ou “improdutivo”, da desaceleração e do descanso. Cerca de uma década depois de Velocidade e política, agora em 1988, Paul Virilio publica o livro intitulado Estética da desaparição, em que analisa justamente o impacto da recusa do repouso e dos períodos de desconexão e ausência sobre a constituição psíquica dos sujeitos. Resumidamente, o autor parte do exemplo da pausa perceptiva provocada pela “picnolepsia” – um estado de interrupção da atenção que se assemelha a um pequeno ataque epilético, comum em crianças, causando uma sensação de “ausência de mundo” e de catatonia – a fim de demonstrar como a “sociedade dromológica” não consegue reconciliar-se com a suspensão da vigília e com uma temporalidade disruptiva: o pequeno picnoléptico é forçado “a atestar acontecimentos que ele não viu, ainda que de fato tenham-se desenrolado em sua presença. Quando ele não consegue, é tratado como retardado e acusado de dissimulação e mentira” (VIRILIO, 2015, p. 19). A exigência de uma narrativa linear, capaz de restituir a ausência ao seu devido lugar no regime discursivo e comunicativo – que é também o regime da razão e da velocidade –, representa, no fundo, a mais profunda incapacidade de atribuir qualquer valor social àquilo que não tem uma utilidade ou aplicabilidade 94

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imediata e que, assim, passa a ser visto como mero obstáculo para as reivindicações capitalistas de disseminação e funcionamento pleno. O caso do uso de automóveis, para Virilio, é emblemático do desejo de movimento introjetado na sensibilidade e na subjetividade do sujeito cuja percepção atende às dinâmicas “dromológicas” do tempo presente: Não ir a parte alguma, ou rodar em círculos num bairro deserto, ou numa autoestrada engarrafada, parecem naturais para o espectador-viajante. Ao contrário, parar e estacionar são operações desagradáveis. O motorista chega até a detestar ir a algum lugar ou procurar alguém; visitar uma pessoa ou ir a algum espetáculo parecem-lhe um esforço sobre-humano. Podendo atingir os locais mais distantes, ele só fica à vontade na célula estreita de seu veículo, cindido em seu assento (VIRILIO, 2015, p. 72).

Mais que um lugar, um trajeto, uma pessoa, basta o vetor em si, a identificação com o vetor – nesse caso, o automóvel. Ora, se a literatura, por sua vez, exige concentração e lentidão, leitura atenta e reflexiva – se ela constitui, tal como o sono, tão somente uma pequena ilha ou parcela de intransitividade em um cenário muito mais amplo e complexo de utilitarismo e aplicabilidade –, é certo que sua potência de fazer cessar o movimento e inaugurar uma temporalidade mais lenta representa um impasse, por menor que seja, às exigências de aceleração e produtividade constitutivas daquele mesmo capitalismo que não cansa de converter a escola em uma pequena empresa, estimulando-a a mimetizar a sua linguagem corporativa. A BNCC, como visto, é parte de uma tentativa de “atualizar” a literatura e de conferir a ela um aspecto prático, materializando usos que, entretanto, acabam por destituir-lhe de sua negatividade e rebeldia constitutiva. A pluralidade e a circularidade midiática que organiza o documento, e que deixa transparecer a ideia de que “quanto mais, melhor”, correspondem a um projeto de fazer acelerar, mover, veicular; as “competências e habilidades”, que posicionam a ação política e intelectual no âmbito dos mesmos imperativos incontornáveis do tempo presente – “atuar de forma fundamentada, ética e crítica na produção e no compartilhamento de comentários, textos noticiosos e de opinião, memes, gifs, remixes variados etc. em redes sociais ou outros ambientes digitais” (BRASIL, 2018, p. 522) – reduzem o campo do possível à reafirmação conformada do espetáculo integrado em que vivemos. Alinhada a esse circuito infinito de devices – dispositivos cuja sacralidade não deixa de contrastar com sua ciclicidade –, a literatura já não faz nada 95

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na escola senão anunciar a presença-ausente de um conceito que deverá acelerar o seu curso e condição heteronômica até simplesmente evaporar e desaparecer como ideia.

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Usos da Teoria (literária)

6 A LITERATURA AUSENTE Editado por Daphne Patai e Will H. Corrall, e publicado em 2005, o livro Theory’s Empire [O império da Teoria] apresenta o intuito de constituir, conforme seu subtítulo indica, uma “antologia do dissenso”. Mas de que os autores dos 47 capítulos que compõem o livro afirmam dissentir? Nas palavras dos organizadores, “a antologia surge num momento em que não apenas as discussões teóricas sobre literatura tornaram-se estagnantes, como livros e artigos são publicados em defesa dos próprios impasses teóricos que conduziram a essa imobilidade” (PATAI; CORRALL, 2005, p. 1). Haveria nas operações da Teoria – com “T” maiúsculo –, portanto, um gesto circular e autorregulador, capaz tão somente de reafirmar, de um ponto de vista teórico, as condições produtoras de determinados impasses. Assim, por trás de um labor intelectual a princípio intenso, evidenciado pela velocidade com que as produções se “atualizam”, a Teoria ocultaria a presença e repetição sistemática de fórmulas estruturantes ou esquemas interpretativos que permanecem intocados. O propósito de Theory’s Empire, então, seria o de “mostrar como a Teoria e os teóricos ascenderam à sua presente eminência e submeter seus argumentos à investigação” (PATAI; CORRALL, 2005, p. 2). E o volume de fato não esconde seu tom por vezes tribunalesco: Nas últimas décadas, [...] fortes objeções críticas foram dirigidas à Teoria tal como esta veio a ser rotineiramente praticada e ensinada. Essas objeções são tão numerosas que é impossível representar num único volume todas as visões incisivas e sensíveis dela divergentes [...]. Contudo, essa dissidência tem exercido tão pouco impacto que os compêndios celebrando a Teoria continuam sendo publicados, funcionando como veículos importantes para transmitir às novas gerações de leitores as ideias reinantes sobre o que é literatura e como ela deveria ser estudada (PATAI; CORRALL, 2005, p. 1).

Os capítulos reunidos por Patai e Corrall, em sua grande maioria, foram publicados pela primeira vez entre as décadas de 1980 e 2000 – concentram-se na década de 1990, para ser mais exato – e se apresentam articulados no livro em torno de oito partes/eixos fundamentais: 1 – “Theory Rising” 99

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[“A ascensão da Teoria”]; 2 – “Linguistic Turns” [“Viradas linguísticas”]; 3 – “Empire Building” [“A construção do império”]; 4 – “Theory as a Profession” [“Teoria como profissão”]; 5 – “Identities” [“Identidades”]; 6 – “Theory as Surrogate Politics” [“Teoria como substituto político”]; 7 – “Restoring Reason” [“Restaurando a razão”]; 8 – “Still Reading After All These Theories...” [“Ainda lendo depois de todas essas teorias...”]. Se as seções do livro de saída declaram seu aspecto oposicionista, há capítulos que são ainda mais diretos no enfrentamento que fazem à Teoria, dentre os quais podemos destacar: “Destroying Literary Studies” [“Destruindo os estudos literários”], de René Wellek; “Theorrhea and Kulturkritik” [“Teorreia e Kulturkritik”], de J. G. Merquior; “Bad Writing” [“Escrita precária”], de D. G. Myers; “The Cant of Identity” [“O jargão da identidade”], de Todd Gitlin; “Feminism’s Perverse Effects” [“Os efeitos perversos do feminismo”], de Elaine Marks; e, como um último exemplo, “Queer Theory, Literature, and the Sexualization of Everything: the Gay Science” [“Teoria queer, literatura e a sexualização de tudo: a ciência gay”], de Lee Siegel. Por fim, para concluir sem amenizar o teor dos golpes, o capítulo que encerra o livro nada mais é do que uma espécie de termo de compromisso, ou juramento ético, que o “pluralista” deveria assinar antes de proceder à sua atividade teórica: “A Hippocratic Oath for the Pluralist” [“Juramento hipocrático para o pluralista”], de Wayne C. Booth: I. Não publicarei nada, favorável ou desfavorável, sobre livros ou artigos que não li na íntegra ao menos uma vez [...]; II. Não tentarei publicar nada sobre qualquer livro ou artigo até que os tenha compreendido [...]; III. Não aceitarei a palavra de um crítico, quando discute outros críticos, a menos que ele possa me convencer de que tenha agido em conformidade com os dois primeiros decretos [...]; IV. Não assumirei nenhum projeto que, por sua própria natureza, obrigue-me a violar os decretos I-III; V. Não julgarei as minhas próprias violações inevitáveis dos primeiros quatro preceitos de modo mais leniente do que aquelas que encontro em outros críticos (BOOTH, 2005, p. 689).

Como se pode observar a partir dos títulos das seções e de alguns dos capítulos mencionados, Theory’s Empire não se ocupa exclusivamente das discussões sobre literatura ou teoria literária. No entanto é certo que a literatura atravessa os vários debates travados no livro, principalmente 100

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

devido a um diagnóstico repetido à exaustão e que anuncia, ao mesmo tempo, a glória e o declínio do discurso literário na universidade: se, por um lado, as categorias de “texto”, “ficção”, alegoria” e “narração” agora ultrapassam o campo estrito dos estudos literários, vazando para as demais áreas – não só das humanidades, como das chamadas “ciências duras” [hard sciences] –, também é verdade que, por outro lado, o movimento responsável por universalizar essas categorias impede qualquer apropriação da literatura como uma textualidade singular (cf. O’CONNOR, 2005, p. 298). Em outras palavras, a literatura deixa de ser um objeto específico de estudo e passa a atuar como um tipo de “metodologia investigativa”, ou seja, produz-se uma posição teórico-metodológica totalizante que, em última instância, prescinde de objetos de análise. É neste sentido que o título do livro de Patai e Corrall torna-se autoevidente: o “império da Teoria” é justamente o império de uma atividade teórica que abriu mão da singularidade de suas disciplinas – por isso “Teoria” apenas, sem complemento algum e com “T” maiúsculo. Em linhas gerais, este capítulo debruça-se sobre o modo como Theory’s Empire debate as consequências do “império Teórico” e do “desaparecimento” do objeto de análise para o campo da literatura e da crítica literária. Para tanto, depois de observar algumas das teses centrais do volume, o texto concentra-se nos argumentos expostos em dois capítulos em particular: “The Rise and Fall of ‘Practical’ Criticism: from I. A. Richards to Barthes and Derrida” [“A ascensão e queda da crítica ‘prática’: de I. A. Richards a Barthes e Derrida”], de Morris Dickstein, e “Social Constructionism: Philosophy for the Academic Workplace” [“Construcionismo social: filosofia para o espaço de trabalho acadêmico”], de Mark Bauerlein. A partir da leitura dos capítulos em questão, torna-se possível vislumbrar aquelas que seriam, segundo os autores, as tarefas incompletas da teoria, a saber, a restituição de um objeto ausente e a instituição de uma outra temporalidade acadêmica, gestos que não devem ser confundidos com a passagem a uma condição pré ou pós-teórica supostamente livre das amarras da teoria. A seção final do texto destina-se à discussão desses pontos. Da literatura como objeto ausente No artigo intitulado “Giros em falso no debate da Teoria”, datado de 2008 e publicado novamente, em meio a um argumento mais amplo, como parte do livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica (2011b), 101

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Fabio Durão realiza o importante trabalho de listar aqueles que seriam os principais argumentos dirigidos contra a Teoria em Theory’s Empire. Ao todo, o autor enumera 26 pontos que aparecem, por vezes de modo recorrente, no livro de Patai e Corrall; como nem todas as críticas envolvem diretamente a discussão sobre literatura, vale aqui resgatar os principais pontos que cabem ao literário: 2. A Teoria está destruindo os estudos literários; ela não distingue tipos de escrita (incluindo a diferença entre obra ficcional e discurso crítico); ela é incapaz de lidar com questões de valor e verdade, potencialmente igualando pornografia e Goethe (René Wellek); 3. A desconstrução põe fim ao chamado practical criticism, a leitura atenta aos textos em si, porque meramente os usa para corroborar posições já dadas de antemão; 4. A Teoria não realiza a leitura cerrada, o close reading, que alimentava o practical criticism. Quando se atém ao detalhe, não respeita a integridade da obra como uma totalidade que determina suas partes. Os fragmentos de textos são retirados de seus contextos e podem querer dizer quase qualquer coisa; 8. Ao perder sua transitividade, por não ser mais teoria de alguma coisa, a Teoria converteu-se em pura instituição [...]; 20. Embora as novas abordagens de análise literária sejam diretamente motivadas por questões que estão no cerne do debate político, as leituras que decorrem dessas abordagens não estimulam uma discussão produtiva das ideias, suposições e desejos por detrás delas. A crítica literária, na realidade, não é uma arena adequada para o debate político; ela o desvia para longe do seu alvo; 21. A teoria pós-colonial não respeita a integridade das obras que critica [...] (DURÃO, 2011b, p. 42-48).

Ora, reduzidos aqui a alguns itens básicos, os argumentos oferecidos por Theory’s Empire, tal como listados por Durão, parecem girar em torno de uma constante, que diz respeito à submissão do literário a posições advindas dos próprios pressupostos da Teoria. As leituras do livro que se dedicam a analisar em particular os desdobramentos do império Teórico nos mais diversos “ismos” – “feminismo”, “pós-colonialismo”, “pós-modernismo”, “pós-estruturalismo”, sendo esse último alvo preferido de grande parte dos ataques –, quando relacionadas ao discurso literário, acabam por reafirmar exatamente a seguinte conclusão: diante das operações da Teoria, reserva-se 102

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à literatura um espaço diminuto, correspondente ao papel que agora lhe cabe como repositório de teses. Valentine Cunningham nomeia o procedimento de “suck-it-and-see” approach, algo como “método ‘joga e vê se cola’”, em português. Nesse sentido, se há um denominador comum em Theory’s Empire quanto aos usos Teóricos da literatura, esse denominador pode ser expresso pela ideia de um objeto indeterminado e, portanto, intercambiável. A frase de Frank Lentricchia citada pelos editores na introdução do volume estabelece o próprio tom dos demais capítulos: “Diga-me a sua teoria e eu lhe direi de antemão o que você afirmará sobre qualquer obra de literatura, especialmente aquelas que você não leu” (apud PATAI; CORRALL, 2005, p. 6). Já as falas a seguir, retiradas quase que ao acaso, dada a sua constância ao longo do livro, dão mostras exatamente do entendimento partilhado de que a literatura tem sido anulada em sua singularidade textual: A avaliação parece especialmente irrelevante a esses construtores de sistemas, que procuram por exemplos de estruturas para incorporar em seus esquemas científicos ou imaginativos (René WELLEK, 2005, p. 47); Esse aspecto dogmático é sem dúvida o que explica o seu sucesso extraordinário nas instituições acadêmicas: a fórmula apenas precisa ser aplicada a um novo assunto para oferecer uma exegese “original” (Tzvetan TODOROV, 2005, p. 55); A teoria hoje [...] não permite a participação [feedback] da própria literatura, pois isso mostraria que há mais na literatura do que essa teoria em particular pode permitir (John M. ELLIS, 2005, p. 93); [...] O pensamento genuíno requer mais que a aprendizagem mecânica e a manipulação engenhosa de um vocabulário especializado (John M. ELLIS, 2005, p. 105); O método funciona, pois não pode senão funcionar; trata-se de uma empresa infalível; não há passagem complexa de verso ou prosa que possa servir de exemplo contrário para testar sua validade ou seus limites (M. H. ABRAMS, 2005, p. 208); O problema básico da crítica hoje [...] é o de que vários críticos não conseguem vivenciar – ou, em todo caso, discutir profissionalmente – um romance ou peça de teatro de modo “direto”, em “si” (Brian VICKERS, 2005, p. 258).

Em suma, em sua análise deste ou daquele “ismo”, os autores citados sinalizam o comum acordo acerca do parecer final de Theory’s Empire: o domínio Teórico dá-se a partir de uma atividade analítica conduzida “aprioristicamente”, e o resultado disso é a redução da literatura, ou dos demais 103

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objetos, à fórmula ou ao jargão. Assim, o encontro com o texto literário ocorreria no sentido de confirmar posições teóricas anteriores, cujo conteúdo declaradamente político, por exemplo, transcenderia a relevância de um estudo exaustivo das especificidades constitutivas dos objetos. Seja como for, se a tese geral é partilhada pelos diversos autores do livro, é certo que cada capítulo observa desdobramentos pontuais do “império Teórico”. Gostaria, neste momento, de voltar a atenção aos argumentos específicos desenvolvidos, em primeiro lugar, pelo capítulo de Morris Dickstein, que investiga a ascensão e a queda da chamada “crítica prática” [practical criticism], ou, para manter a sintonia com a tradução de um dos livros de I. A. Richards para o português, da “prática da crítica”. A seguir, atravessado o capítulo de Dickstein, passo a comentar o texto de Mark Bauerlein, que, por sua vez, discute a dimensão mercadológica da produção acadêmica regulamentada pelos procedimentos característicos da Teoria. Da “crítica prática” ao desaparecimento do objeto Como dito, o texto de Morris Dickstein, datado de 1992, volta-se para a análise da ascensão e queda da “crítica prática” [practical criticism] ao longo do século XX, entendida como instância analítica em que a teoria baixa as suas armas, ou melhor as empunha, para promover o contato efetivo com o texto literário. A expressão tornou-se célebre com o livro de I. A. Richards intitulado precisamente Practical Criticism ([1929] 2004); para Richards, a crítica pode ser definida como “o esforço no sentido de diferenciar as experiências e classificá-las”, algo que não seria possível “sem algum entendimento da natureza da experiência, ou sem teorias de avaliação e de comunicação” (RICHARDS [1929], 2004, p. viii). Ora, segundo o cálculo do autor, a teoria estaria a serviço de um encontro posterior com o texto, capaz de diferenciá-lo das demais produções e de, portanto, classificá-lo apropriadamente. Alinhado até certo ponto a Richards no que diz respeito à relação entre teoria e crítica, Dickstein não tarda a anunciar aquela que será a medida de avaliação para o sucesso de uma e de outra em seu capítulo: “o teste de um crítico não está em suas ideias sobre arte, e certamente não em suas ideias sobre crítica, mas sim na profundidade e intimidade do seu encontro com a própria obra” (DICKSTEIN, 2005, p. 64). Ora, se o teste da teoria e da crítica está, não nos preceitos gerais, mas na riqueza do contato com o texto literário – “não a obra isolada, mas a obra em sua abundância referencial, riqueza de textura, complexidade de pensamento e sentimento” 104

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(DICKSTEIN, 2005, p. 64) –, é certo que o império autossuficiente da Teoria significa também seu fracasso. Se antes do século XX, conforme Dickstein observa, raras eram as ocasiões de embate efetivo entre passagens específicas de um autor ou obra e o trabalho de análise do crítico, ou melhor, se as leituras em muitos casos não passavam de apreciações abstratas da genialidade do indivíduo criador, a primeira metade do último século alçou a crítica literária ao momento de sua maior especialização. Nos Estados Unidos, principalmente com a chamada “nova crítica” [new criticism], termos como “forma orgânica”, “falácia intencional”, “ambiguidade”, entre tantos outros, conferiram ares de objetividade a um exercício antes tomado como impressionista. O império dessa nova prática, no entanto, não tardou a vivenciar o momento de sua mecanização: à medida que a crítica literária se tornava acadêmica, o trabalho intelectual aprendeu a permanecer dentro dos parâmetros do ‘campo’; os textos existentes, com suas categorias e metodologias dominantes, [...] tornavam-se um fardo para os pesquisadores (DICKSTEIN, 2005, p. 61).

Da experiência da “nova crítica”, Dickstein retira a seguinte conclusão: o sucesso de uma determinada teoria ou atividade crítica coincide, paradoxalmente, com o instante do seu esgotamento, que decorre da passagem do uso criativo para a conversão em opção metodológica. O esgotamento da “nova crítica” deu-se, pois, nesses termos, uma vez exploradas à exaustão suas rotinas de contato com o texto literário. Dickstein cita como exemplo desse desgaste os próprios casos expostos no experimento realizado por Richards em Practical Criticism: convidados a comentar livremente “folhas avulsas – de natureza que variava desde um poema de Shakespeare até outro de Ella Wheeler Wilcox” (RICHARDS, 1997, p. 3), os estudantes de Richards, por um lado, mostravam conhecimento pleno de toda a maquinaria crítica posta em funcionamento por seus mestres – entre outras, informações precisas sobre metro, rima e tipos de versos –, porém, por outro lado, “revelavam muito mais que ignorância ou incapacidade de ler [...]; demonstravam a interferência drástica exercida pela teoria na prática da crítica literária” (DICKSTEIN, 2005, p. 68). A longo prazo, a consolidação da “nova crítica” na universidade produziu, por parte dos alunos, respostas programáticas cujo laconismo apenas silenciava a distância cada vez maior

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entre o estudante de literatura e a literatura em si. A crítica prática – ou, se quisermos, a prática da crítica – havia se burocratizado. Em linhas gerais, pode-se dizer que o domínio da “nova crítica”, bem como a intransitividade de análises literárias que apenas respondiam ao intuito de exibir a sofisticação de seus procedimentos, acentuou cada vez mais o desejo de ultrapassar o academicismo e o formalismo que então davam o tom do contato entre leitor e texto literário. Como Dickstein assinala, “foi apenas com a chegada do estruturalismo e da desconstrução, no fim dos anos 1960 e nos anos 1970, que uma saída para o impasse formalista [...] pareceu possível” (DICKSTEIN, 2005, p. 63). Em outras palavras, o estruturalismo e a desconstrução prometiam oferecer à crítica literária ferramentas novas capazes de reconectar a obra às suas “esferas mais amplas”, como a História, a Política e a Psicologia. Se é bem verdade que a obra de autores como Lévi-Strauss, Foucault, Lacan, Barthes e Derrida trouxe novos ares aos departamentos de literatura, Dickstein volta ao seu ponto de partida, isto é, ao encontro entre teoria e crítica efetivado na leitura desses autores e de seus seguidores, para concluir que “a utopia crítica outrora prometida pelas novas teorias não conseguiu se materializar” (DICKSTEIN, 2005, p. 63). Partindo da tese de que a literatura é, antes de tudo, um modo discursivo autorreferencial, capaz apenas de simular uma conexão, sempre “ficcional”, entre linguagem e mundo, a desconstrução, por exemplo, longe de possibilitar um método de análise para a crítica literária, ofereceu apenas um estilo a ser imitado: A desconstrução, [...] especialmente entre os imitadores de Derrida, deu início a um estilo intensamente literário, um estilo artefato, que imita as involuções autorreferenciais acerca da relação da arte consigo mesma. As frases percorrem um caminho longo e sinuoso antes de recaírem sobre si mesmas novamente, os trocadilhos pedantes acumulam-se uns sobre os outros e os hífens separam as sílabas para acentuar etimologias duvidosas (DICKSTEIN, 2005, p. 64).

Como um estilo a ser imitado, então, a desconstrução trilha seu rápido caminho em direção ao jargão acadêmico e, como jargão, aproxima-se em muito do destino metodológico – uma metodologia às avessas, é claro – reservado à “nova crítica”. Cabe explicar: assim como os seguidores dos new critics passaram a adotar uma rotina como que automatizada de encontros com os textos literários, os derridianos, a despeito de uma nomenclatura avessa à ideia de método – haja vista as singularidades supostamente sempre 106

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preservadas pelo termo différance –, acabaram por revelar ante a literatura uma aposta recorrente em argumentos anteriores aos próprios textos: [...] o que realmente prejudica a crítica desconstrucionista não são as idéias que ela levanta sobre o estatuto dos textos e as possibilidades de interpretação, mas sim a distância que mantém dos textos, o uso que deles faz como ocasiões intercambiáveis para uma trajetória teórica que sempre retorna aos mesmos pontos de origem (DICKSTEIN, 2005, p. 76).

O que compromete a desconstrução em suas leituras do literário, em suma, não são suas posições teóricas, mas sim o modo como estas se sobrepõem aos objetos investigados. Dessa forma, enquanto a “nova crítica” tornara o contato com a literatura um processo mecânico e autossuficiente, a desconstrução simplesmente acentuou a artificialidade desse contato a partir de um estilo impositivo e de conceitos também mecanizados, muito embora operando em nome da diferença, da singularidade e de uma posição política mais ativa diante dos objetos. Debatido o que ocorreu à “nova crítica” e à desconstrução no momento de sua maior assimilação acadêmica, o texto de Dickstein nos passa a sensação de que a teoria literária (ou a Teoria) é justamente aquilo que ruma para o seu instante de crise, ou melhor, as práticas teóricas são sempre assombradas pelo inevitável momento de sua aplicação acadêmica instrumentalizada. Seja como for, há no percurso atravessado pelo autor duas amostras de um gesto teórico, digamos, “desviante”: o próprio livro Practical Criticism, de Richards, e a proposta de prática crítica empreendida por Barthes em S/Z. O que os dois livros possuem em comum? Segundo Dickstein, tanto o livro de Richards quanto o de Barthes desviam-se das demandas geradas pelas “escolas” que eles mesmos ajudaram a consolidar; são, nesse sentido, obras capazes de corromper a trajetória da teoria e da crítica em direção ao uso prescritivo que lhes é posterior: Seria tentador concluir a nossa excursão pela prática da crítica afirmando que o livro desconcertante de Roland Barthes S/Z mantém a mesma relação com o estruturalismo (e a “narratologia” pós-estruturalista) que o livro de Richards sustenta com a “nova crítica”. Ambas são obras idiossincráticas, que surpreendentemente têm mais em comum entre si do que com as obras produzidas pelos críticos que partilham da sua abordagem (DICKSTEIN, 2005, p. 71).

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Além de obras voltadas para o encontro entre teoria e texto literário, Practical Criticism e S/Z ocupam um lugar desconfortável em relação às práticas instituídas no momento de sua publicação. Nesse sentido, por meio de uma atividade dissonante, Richards e Barthes, nos livros em questão, foram capazes também de frear o dispositivo acadêmico responsável pela conversão da teoria em “programa”, cumprindo aquela que seria, em última instância, uma das principais tarefas da própria teoria: habitar a singularidade dos textos (literários) a partir de leituras corruptoras de demandas instrumentalizantes que, para acelerar seu funcionamento, fazem evaporar justamente aquilo que particulariza os objetos de análise. O desaparecimento do objeto e o espaço de trabalho acadêmico O texto de Mark Bauerlein, “Social Constructionism: Philosophy for the Academic Workplace”, publicado pela primeira vez em 2001, parece retomar a discussão sobre o uso instrumental da crítica exatamente ali onde Morris Dickstein a deixara: as consequências do apagamento das singularidades dos objetos de análise para o espaço de trabalho acadêmico. Os termos mudam, mas o diagnóstico é semelhante: se a crítica desconstrucionista impõe um estilo impregnante aos seus leitores, isso se deve às posições agora axiomáticas que dela decorrem. Bauerlein atribui essa inclinação ao axioma àquilo que ele chama de “construcionismo social” – “um sistema simples de crenças, fundado sobre a proposição básica de que o conhecimento nunca é verdadeiro em si, mas verdadeiro em relação a uma cultura, uma situação, uma língua, uma ideologia ou qualquer outra condição social” (BAUERLEIN, 2005, p. 341). Independentemente da precisão do diagnóstico do autor, ou do local de origem que ele confere ao construcionismo social, o importante aqui é perceber as consequências da tomada de posições axiomáticas para a atividade intelectual. Nos termos que nos cabem, o desaparecimento do texto literário dá-se a partir de um discurso teórico impositivo que se quer, pois, como pressuposto de trabalho, e não como resultado do contato com os objetos investigados. Segundo Bauerlein, o reinado do construcionismo social nas humanidades revela uma natureza menos epistemológica que institucional. Em outras palavras, o estabelecimento de truísmos como “o conhecimento é construído”, “não há um fora do texto” e “não há como escapar da contingência” permite que os pesquisadores assumam pontos de partida que, como 108

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dados irrefutáveis, autorizam um esforço investigativo menos intenso. Ou seja, para o autor, o construcionismo “economiza tempo”: [...] é a epistemologia do acadêmico com pressa, de professores com a arma apontada para a cabeça. Assim que as humanidades abraçaram um modelo de mérito produtivista, o empirismo e a erudição tornaram-se, do ponto de vista institucional, “becos sem saída”, e o construcionismo apresentou-se como o método dos mais aptos (BAUERLEIN, 2005, p. 353).

Mais uma vez, a conversão da teoria em pressuposto metodológico, aqui expresso na ideia de axiomas incontornáveis, facilitou a aceleração dos procedimentos de pesquisa, aceleração necessária, cabe dizer, às próprias condições institucionais hoje impostas às humanidades: [...] o que surgiu a partir do construcionismo não foi uma escola filosófica ou uma posição política, mas sim um produto institucional, especificamente, uma torrente de publicações de pesquisas, palestras e apresentações por parte daqueles que a ele aderem. Para vários daqueles que entraram nas humanidades como professores e pesquisadores, o construcionismo social tem sido um modo liberador e prestativo de executar trabalhos, um ponto de vista que tem aumentado a produtividade dos professores (BAUERLEIN, 2005, p. 15).

O esvaziamento do objeto, acompanhado de um estilo rebuscado que dispensa o detalhamento daquilo que afirma, oferece uma saída à temporalidade instalada na universidade em seu sistema meritocrático-produtivista: se a tarefa é publicar, mais fácil fazê-lo afastando-se de exigências individualizantes. É por isso que o slogan “não há um fora do texto”, por exemplo, reduz qualquer traço particular de época, autor ou obra a um funcionamento textual/linguístico que, por sua vez, já se mostra suficientemente compreendido sob um ponto de vista teórico. Nas palavras de Bauerlein, [...] as noções construcionistas estão tão arraigadas na mentalidade das humanidades que ninguém mais se ocupa minimamente de fundamentá-las. Salvo alguns filósofos humanistas prestes a se aposentar e os redutos de filósofos realistas, os professores abraçam as premissas construcionistas como um ato de fé (BAUERLEIN, 2005, p. 342).

Cabe evidenciar o paradoxo que, a bem da verdade, salta aos olhos: as posições antiessencialistas se veem convertidas em ferramentas de um trabalho, por assim dizer, bastante simplório, que apenas cumpre a rotina 109

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de dizer sobre um texto qualquer tudo aquilo que já foi ou poderia ser dito sobre outro texto qualquer. Dessa forma, o antiessencialismo é de pronto apropriado pelo seu contrário, restando apenas os efeitos de um marca discursiva cujo modus operandi, mesmo se em defesa da différance, apresenta-se como ponto de chegada comum a todos. Como dito, se o objetivo de Bauerlein é atacar algumas das premissas do construcionismo social, contestando, inclusive, a forma como se dá a sua defesa dogmática na universidade, vale aqui assinalar que esse modo de proceder Teórico ultrapassa as posições particulares deste ou daquele grupo de autores; trata-se, antes, de um problema de proporção, dependência ou distribuição das partes, ou melhor, trata-se do modo como nos colocamos teoricamente diante de um objeto a ponto de, gradativamente, torná-lo indistinto dos demais, ativando e acelerando a máquina acadêmica de artigos e teses. Aliás, esse é um programa produtivista em constante atualização e que, como tal, não resulta de posições teóricas específicas, mas de uma mecânica de produção e do esquema temporal-interpretativo dela oriundo. Nos trópicos, o retrato delineado por Bauerlein não deixa de assumir contornos coloniais. Por aqui, aguardamos ansiosamente a publicação das traduções, muitas vezes tardias, dos autores responsáveis por estabelecer o quadro conceitual a partir do qual deve se dar o contato do crítico com a literatura. (No presente momento – podemos afirmar sem medo de errar –, Giorgio Agamben, Jean-Luc Nancy, Slavoj Žižek, entre outros, cumprem uma tal função em vários departamentos de Literatura. A rigor, um estudo cuidadoso do modo como esses autores são apropriados por um uso instrumental da Teoria daria uma dimensão mais precisa daquilo que poderíamos chamar, valendo-se também das teses do filósofo italiano, de “vida nua acadêmica”.) Dessa maneira, por trás de uma prática crítica que se oferece como profundamente política, resta apenas o perfil do professor em busca da sua sobrevivência institucional e que, para respeitar as demandas de publicações, elabora para si um esquema interpretativo em fina sintonia com o pouco tempo que lhe resta para os seus estudos. Aquela desconfortável sensação de um déjà vu prolongado, que toma conta de muitos de nós já na leitura da primeira linha de determinados textos, advém justamente disto, dos esquemas interpretativos que pagam os devidos tributos aos termos impostos pela Teoria sob a promessa da contrapartida institucional, que pode vir, por exemplo, por meio das agências de fomento à pesquisa. O efeito circular desse regime de trabalho dispensa maiores comentários. 110

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Ainda sobre o funcionamento da Teoria nos trópicos, se é verdade que as polêmicas antologizadas por Patai e Corrall referem-se, de modo geral, ao cenário norte-americano – muito embora os capítulos assinados por pesquisadores europeus já sinalizem a globalidade da questão –, pensar os debates de Theory’s Empire em relação ao espaço da crítica brasileira revela-se um exercício importante, principalmente devido ao inegável fato de que, conforme indicado, as teorias, por via de regra, migram dos grandes centros acadêmicos para as demais instituições, como não raro tem sido o caso em departamentos de Literatura brasileiros. Nesse sentido, cabe citar a divisão internacional do trabalho teórico observada por Fábio Durão no livro Teoria (literária) americana: [...] os países desenvolvidos criam códigos de leitura e os periféricos aplicam-nos às tradições locais. É assim possível escrever ensaios, dissertações e teses sobre Machado de Assis se utilizando de Bachelard, Bakhtin, Barthes, Baudrillard, Beauvoir, Benjamin, Bhabha, Bloom, Bourdieu ou Butler [...] (DURÃO, 2011b, p. 112).

Ora, se essa não fosse a regra, ou seja, se a literatura brasileira não passasse anualmente por uma “revitalização” teórica de matriz americana ou europeia, o depoimento de Durão causaria surpresa. A título de exemplo, pode-se citar a recente “atualização” do cânone por meio dos chamados Animal Studies ou Human-Animal Studies, ou, simplesmente, “estudos da animalidade”, em sua nomenclatura local. Um dos principais nomes aqui é o de Donna Haraway, cujas publicações incluem o livro When Species Meet (2008), Quando as espécies se encontram. Ali lemos que “Derrida acertou: não há nenhuma linha divisória racional ou natural capaz de definir as relações de vida e morte entre animais humanos e não humanos”; ou, ainda, “animais humanos e não humanos pertencem a espécies companheiras [...]” (HARAWAY, 2008, p. 301). Como quem recebe um comando, a crítica vai ao zoológico literário, e nomes como Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, entre tantos outros, passam a empreender a mais nova agressão a um dos binarismos da metafísica ocidental, a oposição humano x animal. E o mesmo ocorre ou ocorrerá com os demais fluxos teóricos, isso enquanto a Teoria continuar a informar de modo irrestrito os procedimentos da crítica literária. Enfim, para além de seus alvos imediatos ou do contexto específico que debate, o texto “Social Constructionism: Philosophy for the Academic 111

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Workplace” chama a atenção para o modo como as humanidades respondem ao tempo de produção acadêmico a partir de esquemas Teóricos que lhe são correspondentes. E assim, a percepção do vínculo entre o que se faz da teoria (literária) e as próprias exigências institucionais que impõem um determinado “tempo acadêmico” nos permite compreender uma outra tarefa da teoria, a saber, a necessidade de estabelecer uma temporalidade desviante, operando por meio daquilo que Fábio Durão (2011b) chama de “estratégia de desaceleração” do fluxo acadêmico de produção. Para finalizar, falemos agora, então, das tarefas incompletas da teoria tal como indicadas pelo livro Theory’s Empire e pelos capítulos aqui explorados. Teoria – com “t” minúsculo – e a restituição dos objetos [...] [Q]uando mal sucedida, a Teoria simplesmente abole a existência de um objeto diante de si; este torna-se um simulacro, transformando-se em nada mais do que um pretexto para as elucubrações teóricas. A indistinção entre mecanismo de análise e coisa analisada leva a um infrutífero desaparecimento de ambos (DURÃO, 2011b, p. 118).

A sugestão de um retorno à literatura “em si”, por vezes implicada em alguns dos argumentos defendidos em Theory’s Empire, parece-nos não só um desejo de retomar uma condição que, na realidade, jamais existiu, como também uma proposta que precariza as possibilidades de encontro entre o crítico literário e os diferentes objetos de investigação (o mesmo é verdade para os vários gêneros sobre os quais o livro de Patai e Corrall pouco tem a dizer, como filmes, cartoons etc.). Para evitar respostas simplistas aos problemas identificados pelos autores da “antologia do dissenso”, vale a pena declarar com todas as letras: a teoria enriquece – ou deveria enriquecer – o nosso contato com os objetos. Ora, ela deixa de cumprir essa função justamente no momento em que é apropriada por um uso institucionalizado que, como tal, não pode senão automatizar ou burocratizar seus procedimentos. Em outras palavras, o que precisa ser enfrentado, nesse momento, é a passagem – a princípio inevitável – da teoria à Teoria, ou melhor, a conversão da teoria em Teoria aplicada. É contra o uso instrumental dos pressupostos teóricos – a teoria como um “modo de usar”, uma gramática ou conteúdo programático –, portanto, que devemos situar as leituras aqui expostas. Dessa forma, não basta afirmar o lugar da crítica “de objeto com objeto”, pois esta, a bem da verdade, tampouco assegura uma outra mecânica 112

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

de trabalho ou está livre de um uso conceitual cristalizante. Mais uma vez, o que está em questão é o manejo instrumental de uma Teoria que, em vez de informada ou tocada por seus objetos, prefere antes suprimi-los para melhor alojar suas premissas. Como visto, essa instrumentalização teórica não só assegura um tempo de produção viável para as condições hoje impostas às humanidades, como também garante um ponto de partida estável e supostamente político para os encontros com o literário. Em última instância, além de poupar tempo de leitura e escrita – as gramáticas Teóricas oferecem um jargão de fácil uso e reprodução, que pode ser adquirido por meio dos vários readers ou antologias –, os pressupostos da Teoria permitem que, por trás de um formalismo silencioso e, portanto, de difícil identificação, os pesquisadores sustentem um discurso político sobre sua própria prática. Trata-se de um formalismo perigoso, pois se apresenta como seu contrário por meio de conceitos situados para além do bem e do mal – afinal de contas, quem vai se opor ao “jogo das diferenças”? De resto, essa instrumentalização teórica impede que os textos literários desestabilizem a atividade analítica, ou seja, munidos de um aparato conceitual cuja celebração da diferença não esconde certo fechamento identitário, os críticos dirigem-se ao literário sabendo perfeitamente o que querem e vão encontrar. Nessa distribuição dos trabalhos, a literatura já não produz verdades singulares ou um campo conceitual particular; se antes a teoria era uma espécie de cúmplice das verdades abertas pela arte, a equação agora se inverteu, e resta à arte parodiar, no campo de testes que constitui, as verdades inauguradas pela Teoria. Adentrar a literatura para se perder já não é uma experiência possível diante da maquinaria argumentativa que, sem tempo disponível, coloca-se como ponto de convergência para o contato com outros textos. É por isso que desativar o dispositivo que regula a travessia da teoria à Teoria significa, necessariamente, adotar uma postura política ativa de restituição ou preservação das singularidades dos objetos. Essa operação só se torna viável a partir de usos teóricos imprevistos, cujo fluxo, capaz de profanar qualquer referencialidade rígida, não se deixa capturar pela máquina acadêmica e tampouco mantém uma relação de fidelidade ou submissão para com os conceitos com que dialoga. Não por acaso, embora se distancie da posição central do volume de Patai e Corrall, segundo a qual a Teoria seria a principal responsável pelos males que assolam a área das humanidades na universidade, o livro de Fabio Durão (2011b) antes citado, Teoria (literária) 113

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americana, finaliza com um texto nomeado precisamente “Conclusão: por uma recuperação dos objetos”. O capítulo de Morris Dickstein, por sua vez, concentra-se em I. A. Richards e Roland Barthes para mostrar como esse uso não prescritivo da teoria resulta em práticas críticas potentes, capazes de colocar os objetos de análise em novo movimento e de explicar o seu funcionamento, tudo isso sem lhes apagar a rebeldia constitutiva que sempre acaba por transcender o teórico. É evidente que esse trabalho exige tempo, um novo “tempo acadêmico”, diferente daquele imposto pelas demandas institucionais de produtividade. Essa necessidade de desacelerar os mecanismos de produção de artigos, livros, dissertações e teses, também observada por Fabio Durão em sua leitura de Theory’s Empire e dos impasses da Teoria, se nos impõe como uma das tarefas teóricas verdadeiramente políticas das humanidades. A importância do capítulo de Mark Bauerlein está exatamente nessa constatação: o desaparecimento dos objetos de análise, seu alinhamento perfeito em relação ao ponto de partida teórico, é nada mais, nada menos, que uma mecânica de produção que responde com obediência exemplar a pressões institucionais. Não importa quão políticos os pressupostos Teóricos demonstrem ser, a “comunidade que vem” simplesmente não virá se não for desativada a aplicação esquemática de modelos Teóricos preconcebidos que, em suas operações pouco sutis diante do literário, contrastam vivamente com a sofisticação estilística que assegura seu alcance e poder de sedução na universidade.

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7 RASTROS AUTORAIS DA TEORIA Como um exemplo dos sucessivos ataques à passagem da teoria ou da crítica literária para aquilo que se convencionou chamar simplesmente de Teoria, com “T” maiúsculo, o livro Theory’s Empire: An Anthology of Dissent, organizado por Daphne Patai e Will H. Corral (2005), inclui, em meio aos seus 47 capítulos, o texto de Clara Claiborne Park intitulado “Author! Author! Reconstructing Roland Barthes”, publicado pela primeira vez em 1990. Em linhas gerais, a autora sustenta a curiosa tese de que, para ser capaz de associar a figura do autor àquela de um Deus que controla os sentidos do texto, tal como Barthes o faz, você precisa ser francês. Segundo ela, no contexto do uso da língua inglesa, nenhuma criança é ensinada a pensar no Autor como Deus, ou mesmo como uma Autoridade: “para nós, como para Shakespeare, a linguagem tem sido um produto não de Autores, mas de pessoas que a utilizam” (PARK, 2005, p. 321). Na França, por outro lado, o laço entre Autores e Autoridade, entre linguagem e poder, ela nos informa, já estava posto bem antes das formulações teóricas de Barthes, Derrida, Foucault e seus pares; esse seria, portanto, um problema específico da formação intelectual francesa, longe de apresentar qualquer correspondente imediato em um outro contexto. Resulta desse cenário o assombro principal da autora: Por isso, é curioso observar que não foi na França que a obra de Barthes adquiriu o seu maior poder. Lá, libertar o texto das estruturas do decoro, da consistência e da lógica poderia ser visto como um dever estimulante. [...] O que precisa ser investigado é por que essas preocupações linguísticas essencialmente francesas encontraram uma acolhida tão calorosa em uma cultura educacional tão diferente, ou mesmo antitética, se comparada àquela da França (PARK, 2005, p. 324).

A resposta para a questão lançada por Park envolveria, entre outras coisas, o conhecido argumento segundo o qual, exatamente naquele espaço aberto devido à suposta morte ou dissolução da função autoral, oculta-se agora a figura da Teoria, exercendo um controle textual semelhante àquele 115

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criticado por Barthes em seus ensaios. A rigor, o próprio Barthes não deixaria de se colocar como um Autor, um “eu” totalizante, em livros posteriores como O prazer do texto, Roland Barthes por Roland Barthes e Fragmentos de um discurso amoroso: “nada de impessoal nesses últimos livros, exceto o uso da terceira pessoa; eles estão repletos das sensibilidades altamente individuais do autor, seus gostos e desgostos”. E assim, como quem resolve o impasse, a autora anuncia: “ele desejava o autor. E nós também” (PARK, 2005, p. 328). De resto, embora o problema do Autor seja, de saída, especificamente francês, mesmo um crítico como Barthes por fim cede aos encantos do lugar autoral. Por que haveríamos nós, então, de lhe oferecer resistência? O texto “Author! Author! Reconstructing Roland Barthes” constitui, em muitas de suas hipóteses e conclusões, um bom ponto de partida para compreendermos não só o tom de incredulidade que rege o livro Theory’s Empire, mas também aquilo que por vezes ocorre em críticas que se voltam para a chamada Teoria: ao responsabilizar alguns poucos nomes pelo aparente fracasso do novo “império teórico” – os culpados são, por via de regra, Barthes, Foucault, Derrida, Paul de Man e J. Hillis Miller –, as análises acabam por projetar leituras reducionistas dos fenômenos que buscam apreender. Conforme Fabio Akcelrud Durão demonstra no texto “Giros em falso no debate da Teoria”, algumas das críticas expostas no livro de Patai e Corral são difíceis de refutar; “por outro lado, várias outras projetam uma imagem estereotipada e errônea da Teoria, avessa àquilo que ela possui de melhor” (DURÃO, 2008a, p. 65). No que tange ao texto de Clara Claiborne Park, em particular, as posições de Barthes são reduzidas a uma gramática mínima para acomodar a conclusão de que o Autor precisa ser reconstruído, sinalizando, pois, o retorno a um passado idílico em que teoria e crítica ainda eram potentes. Entre os elementos dessa gramática imprecisa que o texto em pauta formula, cabe destacar tanto a leitura insuficiente do significado da função autoral em Barthes quanto a sugestão apressada de que a discussão em torno do controle interpretativo exercido pelo Autor nunca foi uma preocupação maior entre os críticos de língua inglesa. Sobre o primeiro ponto, se Park estabelece uma equivalência absoluta entre Autor e indivíduo biográfico, Barthes, por sua vez, esclarece que dar ao texto um Autor, para além de qualquer leitura meramente biográfica, é lhe impor “um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura” (BARTHES, 2004, p. 63). Dessa forma, o papel de Autor como ponto de convergência interpreta116

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tivo pode ser desempenhado não só pela imposição de sentidos advindos da “pessoa” autoral, mas também daquilo que o ensaísta francês classifica como suas hipóstases, sua “substância”: “a sociedade, a história, a psiquê, a liberdade” (BARTHES, 2004, p. 63). Com efeito, a própria crítica literária pode ocupar uma posição Autoral, segundo esse cálculo. Embora pareça evidente, cabe repeti-lo: para Barthes, destronar o Autor não significa deixar de lado apenas a interpretação de ordem biográfica, mas sim restituir o texto a uma linguagem verdadeiramente sua, livre de estruturas de controle preconcebidas – “indivíduo autor”, “gêneros literários”, “escolas literárias” etc. – que detêm o seu movimento constitutivo. Quanto ao comentário de que o Autor nunca se pôs como obstáculo interpretativo para os críticos de língua inglesa, bastaria citar passagens de ensaios célebres sobre o tema para indicar sua vagueza: “a crítica honesta e a avaliação sensível dirigem-se, não ao poeta, mas à poesia” (ELIOT, 1989, p. 42); ou então “não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares de sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante” (ELIOT, 1989, p. 46) – “Tradição e talento individual” (1919); “argumentamos que o desígnio ou a intenção do autor não é nem acessível nem desejável como padrão para julgar-se o êxito de uma obra de arte literária” (WIMSATT; BEARDSLEY, 2002, p. 641); ou, ainda, “há [...] o risco de se confundirem os estudos biográficos e os poéticos, havendo o perigo de tomar-se o biográfico pelo poético” (WIMSATT; BEARDSLEY, 2002, p. 647) – “A falácia intencional” (1946). O interessante é que o capítulo de Park de fato alude aos ensaios de Eliot e de Wimsatt e Beardsley, porém, ao fazê-lo, abandona o seu ponto de partida para lançar uma disputa em termos de precedência temporal, ou melhor, de “origem”: “Barthes questiona a intencionalidade do Autor; ‘a falácia intencional’ atingiu a crítica americana em 1946. Os new critics nos afastaram do poeta em direção ao Poema Em Si? Em 1963, Barthes também o fez” (PARK, 2005, p. 325). Se antes o Autor não estava presente na pauta de preocupações dos críticos de língua inglesa, agora não só parece estar como parece ter estado já há muito tempo, sem que Barthes os tenha reconhecido como seus verdadeiros antecessores. Ora, tudo isso significa, então, que o texto de Clara Claiborne Park em nada acrescenta à questão proposta por Theory’s Empire acerca das supostas contradições da Teoria? Muito embora a autora repetidas vezes erre o alvo em suas críticas, há algo no texto “Author! Author! Reconstructing Roland 117

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Barthes” que, mais uma vez, pode ser visto como sintoma das demais leituras presentes no livro de Patai e Corral, a saber, a sensação de que, nas operações da Teoria, não raro vemos circular um conteúdo que se apresenta, por assim dizer, “fora de lugar”. Logicamente, não se trata aqui de um “fora de lugar” capaz de atuar no campo das diferenças, tal como deseja a Teoria, mas sim um desvio contextual que, reencenado como tal, engendra um novo formalismo, ou melhor, uma gramática teórica mais perniciosa que as anteriores, pois oculta por detrás de si uma faceta pretensamente política. Partindo dessa intuição primeira, que resulta da leitura do texto de Park e ronda os demais ensaios de Theory’s Empire, este capítulo explora um caso particular em que as contribuições da Teoria mostram-se a serviço de um emprego crítico gramaticalizante e avesso às próprias construções que a princípio lhe servem de base. Chamemos o exemplo de “caso Bartleby”, e seus efeitos, de “rastros Autorais da Teoria”, indícios tanto da atualidade do problema formulado por Barthes quanto da permanente reconfiguração ou “reconstrução” dos esquemas Autorais de controle do texto. A fórmula como potência Se quando de sua publicação, “Bartleby, o escrivão” (1853), de Herman Melville, não chamou a atenção da crítica, é bem verdade que, nas últimas décadas, as marcas do conto passaram a se confundir com aquelas da sua recepção por parte de muitos dos epígonos da Teoria. O enredo, portanto, já não nos é estranho; pelo contrário, o desafio consiste em reportar-se a ele sem correr o risco de tomar como seu o campo conceitual a partir do qual tem sido tratado. Em poucas palavras, a história de Melville concentra-se nos acontecimentos decorrentes da chegada de Bartleby ao escritório de um advogado de Wall Street – narrador do conto cujo nome não nos é revelado – que decide contratá-lo para desempenhar, entre outros pequenos ofícios, a atividade de copista. De um empregado exemplar, Bartleby passa gradativamente a “achar melhor não” mais realizar as suas tarefas, resguardado justamente pelo efeito desregulador de sua frase [“I would prefer not to”].17 A posição do copista desestabiliza as regras do escritório, e o poder de contágio de suas palavras é observado, inclusive, pelo advogado: “Não Esse efeito desconcertante apresenta-se, inclusive, como um problema de tradução. A frase-fórmula “I would prefer not to”, quando traduzida para o português como “acho melhor não” ou “preferiria não”, perde parte da gramaticalidade excessiva que traz inscrita em si, pois a ocorrência mais usual e provável da formulação seria, em inglês, “I had rather not” (cf. DELEUZE, 1997, p. 80). 17 

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sei por que, eu também tinha adquirido o hábito de usar a expressão ‘acho melhor’, mesmo nas ocasiões menos adequadas” (MELVILLE, 2005, p. 20). Enfim, a eficácia do “preferir não”, ou “achar melhor não”, estaria na capacidade (linguística) de deslocar os papéis que cabem a cada um na relação patrão-empregado, ou, ainda, de provocar uma reapropriação desconfortável da própria expressão, um uso deslocado, fora de lugar. E não se pode negar: apesar de sua recepção inicial, o conto é de fato impregnante. Para além das paredes que organizam a divisão do trabalho no escritório do advogado, a frase de Bartleby parece ter contaminado também a atividade intelectual de autores como Maurice Blanchot, Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Jacques Rancière e Giorgio Agamben, apenas para citar os nomes mais célebres. Dessa forma, como prova posterior do caráter penetrante das palavras do copista, e como uma sorte de reescrita não literária daquilo que se passa no conto, ao abordar os episódios recontados pelo advogado, a Teoria reencena paralelamente o dilema de encontrar-se sob um efeito como que hipnótico do “achar melhor não”, deslocando para si a constatação consternada do narrador: “Então você também adotou a expressão”. Mas por onde caminham as análises desses autores? Afora seu evidente poder de contágio, o que há em Bartleby, o escrivão, afinal de contas, que faz do conto um objeto como que incontornável para as manobras da Teoria? No texto “Bartleby, ou a fórmula”, que integra o livro Crítica e clínica, Deleuze sugere que, embora seja gramaticalmente correta, há na frase de Bartleby uma extravagância e um término abrupto (not to) que, aliados à sua constante “reiteração e insistência”, conferem a ela “a mesma força, o mesmo papel que uma fórmula agramatical” (DELEUZE, 1997, p. 80). Essa “agramaticalidade”, produzida em excesso pela própria literatura – o autor cita, entre outros, Cummings, Carroll e Kafka –, “é arrasadora, devastadora, e nada deixa subsistir atrás de si” (DELEUZE, 1997, p. 82). Na verdade, o que a fórmula arrasa são as convenções da linguagem, a lógica de pressupostos e referências que a estrutura: “a fórmula ‘desconecta’ as palavras e as coisas, as palavras e as ações, mas também os atos e as palavras: ela corta a linguagem de qualquer referência, em conformidade com a vocação absoluta de Bartleby, ser um homem sem referências” (DELEUZE, 1997, p. 86, grifo do autor). Liberta de seu procedimento referencial, a linguagem já não mais captura seus objetos; opera, antes, no sentido de produzir singularidades, dessemelhanças e desidentificações. A fórmula de Bartleby, ao fazer desmo119

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ronar diante de si o funcionamento lógico da linguagem, institui um jogo que não pode ser absorvido por regras estáveis, que não se manifesta, em última instância, como experiência apreensível ou replicável. Talvez seja por isso que Deleuze inicia seu texto observando que “Bartleby não é uma metáfora do escritor, nem símbolo de coisa alguma” (DELEUZE, 1997, p. 80). Para funcionar, a fórmula precisa retirar-se do campo dos símbolos, metáforas ou referências, entregando-se, quando encerrada sua atividade corruptora, ao próprio silêncio, ao desaparecimento, seu destino inevitável: O efeito é o mesmo: cavar na língua uma espécie de língua estrangeira e confrontar toda a linguagem com o silêncio, fazê-la cair no silêncio. [...] O próprio Bartleby só tinha como saída calar-se e retirar-se para trás de seu biombo cada vez que pronunciava a fórmula, até seu silêncio final na prisão. Depois da fórmula não há mais nada a dizer: ela equivale a um procedimento, supera a sua aparência de particularidade (DELEUZE, 1997, p. 85).

Agamben, por sua vez, lê Bartleby como alguém que cessa de desempenhar sua atividade para se colocar como “uma figura extrema do nada de onde procede toda a criação”, alguém que reivindica o “nada como pura, absoluta potência” (AGAMBEN, 2008, p. 25). No texto intitulado “Bartleby, ou da contingência” (2008), o filósofo italiano comenta que a fórmula de Bartleby, para ser potência como tal, deve revelar-se também como uma potência de não pensar ou fazer algo. Em outras palavras, a reivindicação da potência tem de significar, ao mesmo tempo, a possibilidade de fazer e não fazer algo, de pensar e não pensar alguma coisa, ou seja, não é como força ativa que a potência absoluta se apresenta, mas sim como “aquilo que se mostra no limiar entre ser e não ser, entre sensível e inteligível, entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas o raio luminoso do possível” (AGAMBEN, 2008, p. 30). A frase de Bartleby não se deixa apreender pelas operações da ciência ou da razão por atuar em uma zona limítrofe, por não ser nem uma coisa nem outra, mas a potência de concretização ou não de ambas; desse modo, o valor de verdade da fórmula não pode ser verificado, pois é justamente o regime de verdade que é por ela posto em questão. Tal como no texto de Deleuze, Bartleby aparece, para Agamben, como uma espécie de homem sem referências, situado no campo das potencialidades: À experiência de uma tautologia, isto é, de uma proposição que é impenetrável às condições de verdade, porque é sempre verdadeira (“o céu é azul ou não azul”), corresponde, em 120

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Bartleby, a experiência do poder ser verdade e, ao mesmo tempo, não verdade de alguma coisa. Se ninguém sequer se sonha a verificar a fórmula do escrivão, é porque o experimento sem verdade não diz respeito ao ser em acto o que quer que seja, mas exclusivamente ao seu ser em potência. E a potência, enquanto pode ser ou não ser, é por definição subtraída às condições de verdade (AGAMBEN, 2008, p. 34-35, grifo do autor).

É também como uma “fórmula que se opõe à história, à intriga aristotélica, [...] ao símbolo e à ideia de um sentido oculto por detrás do texto” (RANCIÈRE, 1998, p. 179) que Rancière entende o conto de Melville. No texto “Deleuze, Bartleby et la formule littéraire” [“Deleuze, Bartleby e a fórmula literária”], presente em La chair des mots: politiques de l’éscriture [A carne das palavras: políticas da escrita] (1998), o autor vale-se da leitura deleuziana de “Bartleby”18 para afirmar a sua conhecida tese sobre a relação entre literatura e representação: “a fórmula conduz à catástrofe a ordem causal do mundo que chamaremos de ‘mundo da representação’. A fórmula de Bartleby realiza, assim, em cinco palavras, um programa que poderia resumir a própria novidade da literatura” (RANCIÈRE, 1998, p. 180, grifo do autor). Ao contrário da arquitetura classificatória do modelo aristotélico, a literatura – e, do mesmo modo, a fórmula de Bartleby – desestrutura a distribuição estável dos papéis que caberiam a cada personagem no chamado “mundo da representação”. Segundo Rancière, com o surgimento da literatura, o célebre princípio de Flaubert por fim se efetiva: já “não há temas bons nem temas ruins”, pois a escrita literária opõe às leis da mimesis personagens sem traços individualizantes. Segue disso a necessidade que Rancière demonstra de reafirmar que Bartleby não é símbolo da condição humana ou de coisa alguma; se entendido como tal, a potência de sua fórmula desfaz-se para inaugurar novas regras literárias, um novo “mundo da representação”, digamos. Em suma, Bartleby é apenas “uma fórmula, uma performance” (RANCIÈRE, 1998, p. 179, grifo do autor), e, nesse sentido, a potência de suas palavras depende diretamente de seu apagamento posterior. Ora, não é essa mesma indeterminação que compromete a arquitetura classificatória dos gêneros literários, a ideia de um homem sem referências que rejeita o estatuto de símbolo e se posiciona como potência também Com efeito, a leitura de Rancière busca tensionar o texto de Deleuze principalmente no sentido de alertar que “não se passa da encantação multitudinária do ser em direção a uma justiça política. A literatura não abre passagem alguma em direção a uma política dionisíaca ou deleuziana” (RANCIÈRE, 1998, p. 202). 18 

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de não, o aspecto que Derrida e Blanchot ressaltam no conto de Melville? Ou, pelo menos, algo semelhante a isso? O “acho melhor não” de Bartleby [...] evoca o futuro sem prometer algo ou predizê-lo; não profere nada fixo, determinável, positivo ou negativo. [...] Mas ao não dizer nada geral ou determinável, Bartleby não está simplesmente dizendo nada. [...] Sua indeterminação cria uma tensão, abre-se para uma espécie de reserva de incompletude (DERRIDA, 1995, p. 75).

Para Derrida, portanto, Bartleby constitui uma visão do futuro cuja natureza específica não pode ser determinada, devendo-se a essa incompletude fundamental – eis o seu paradoxo constitutivo – a potência de sua linguagem. Para Blanchot, por sua vez, a frase de Bartleby é eficaz em razão de um conteúdo que não pode ser medido e de um movimento de recusa que não é simplesmente deliberado: “a recusa, digamos, é o primeiro grau da passividade; mas se ela é deliberada ou voluntária, se ela exprime uma decisão, mesmo que seja negativa, ainda não permite cortar o poder da consciência, restando no máximo um eu que recusa” (BLANCHOT, 1980, p. 33). Em outras palavras, a fórmula de Bartleby perde de imediato sua capacidade de resistência se o personagem for convertido em um sujeito que age de modo deliberado, ou melhor, se suas ações forem tomadas como parte de um programa coerente proposto por um “eu” sensível. Cabe ressaltar aqui, novamente, que é com o abandono de traços individuais que a fórmula de Bartleby assume seu caráter singular; o escrivão situa-se para além de qualquer possibilidade de tornar-se símbolo ou referência para um projeto político autoconsciente. Embora a partir de um gesto a princípio paradoxal, pois a constante reapropriação do conto de Melville realizada pela Teoria não deixa de convertê-lo em uma espécie de pressuposto partilhado ou, no mínimo, em um tipo de obsessão referencial a que ela se volta, os ensaios citados provam estar de acordo em um ponto fundamental: a potência da fórmula – sua capacidade de apagar referências, de estabelecer deslocamentos, de desierarquizar, de redistribuir papéis, enfim, de resistir – depende de um abandono posterior. Como performance, Bartleby não se torna jamais um exemplo possível; pelo contrário, revertido em exemplo, sua fórmula perde a potência para a seguir reapresentar-se apenas como um projeto formulaico. Se há uma “lição” em “Bartleby, o escrivão”, é uma lição às avessas: só é possível realizar uma experiência “bartlebiana” traindo a sua terminologia inicial. 122

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A fórmula como fórmula Ora, se já é um desafio acreditar que as leituras de “Bartleby” por parte da Teoria habitam exclusivamente o campo das singularidades, dada a sua obsessão também referencial – “Bartleby”, de novo –, o sonho de compor uma comunidade literária de Bartlebies, uma galeria de copistas que corrompem as normas por meio de fórmulas linguísticas agramaticais, nada mais é que uma contradição conceitual pouco produtiva. Longe de operar a partir do singular, produz-se apenas uma fórmula normativa, um outro formalismo em que o “qualquer” é de pronto apropriado por um olhar habituado àquilo que procura. O texto de Agamben que integra o livro A comunidade que vem (2013) é claro nesse aspecto: o ser que vem é o ser “qualquer”, ou seja, o ser tomado em sua singularidade enquanto tal, “pois o amor não se dirige jamais a esta ou aquela propriedade do amado, mas tampouco prescinde dela em nome da insípida generalidade [...]: ele quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é” (AGAMBEN, 2013, p. 11, grifo do autor). O que vincula o ser a uma comunidade qualquer, o que o une ao universal, digamos, não é uma “fórmula” partilhada ou um traço seu pertencente também a outros, mas sim o seu ser tal qual que, assim tomado, não se desliga nem do particular nem do geral. Compor uma comunidade de “Bartlebies” significaria, em última instância, particularizar os traços identitários do personagem que fariam dele um ser para a comunidade, ou melhor, dirigir-se justamente para esta ou aquela propriedade sua. Uma verdadeira comunidade “bartlebiana”, por outro lado, só seria possível se preservada a potência de não do personagem, a potência de não ser aquele por quem a Teoria agora o toma. Sob o ponto de vista da literatura, adentrar o texto com pressupostos claros, sejam estes os de localizar homens sem pressupostos ou não, significa necessariamente subtrair o literário da esfera de suas singularidades, isto é, da constituição específica que resulta de todos os seus predicados, e não apenas daqueles que o aproximariam de uma experiência de leitura anterior. As marcas de um tal procedimento são visíveis: em nome de deslocamentos, hecceidades, diferenças, singularidades, linhas de fuga, agramaticalidades, enfim, de uma “comunidade por vir” composta de “Bartlebies” ou do “qualquer”, as análises do literário giram em torno de pressupostos anteriores à vivência do texto, partindo de conceitos que, intocados por seu 123

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objeto, constituem também seu próprio ponto de chegada. Ao contrário de Bartleby, cuja resistência atinge o ápice no momento em que o silêncio final, a sua morte, inaugura o desejo narrativo do advogado do conto, a crítica encontra-se protegida pela gramaticalização de seus conceitos, pela empresa supostamente política que o diálogo com determinados termos parece sempre assegurar. Não há como se perder no meio do caminho. Aliás, já estamos aqui longe dos riscos que cercam a atividade, entre outros, dos poetas, a quem Bartleby certamente se associa: Na floresta encantada da Linguagem, os poetas entram expressamente para se perder, se embriagar de extravio, buscando as encruzilhadas de significação, os ecos imprevistos, os encontros estranhos; não temem os desvios, nem as surpresas, nem as trevas – mas o visitante que se afana em perseguir a “verdade”, em seguir uma via única e contínua, onde cada elemento é o único que deve tomar para não perder a pista nem anular a distância percorrida, está exposto a não capturar, afinal, senão sua própria sombra. Gigantesca, às vezes; mas sempre sombra (VALÉRY, 2002, p. 22, grifo do autor).

A comunidade de Bartlebies vislumbrada em ensaios, artigos, livros, dissertações e teses – e também em romances – não passa, em suma, de um encontro seguro e constante promovido com as sombras da Teoria. Esse encontro pode até alimentar o produtivismo acadêmico – “eis aqui mais um Bartleby para a nossa galeria” –, mas situa-se muito longe do campo de singularidades que Agamben, Deleuze e seus pares descortinaram no conto de Melville e na fórmula do escrivão. Curiosamente, a saída desse impasse é sinalizada a todo o momento pelos próprios textos antes citados: a verdadeira potência da Teoria – a “lição” que ela não deixa de repetir – está no fato de que só é possível atuar sob seus auspícios de maneira singular traindo parcialmente seus próprios conceitos. O que a Teoria nos ensina, em última instância, é que suas próprias operações “profanatórias” precisam de uma “profanação” posterior que impeça uma rápida reabsorção sua por parte dos dispositivos sacralizadores. Profanar, dessacralizar a Teoria: talvez essa seja uma resposta viável para alguns dos dilemas expostos no livro Theory’s Empire. Isso não representaria um simples retorno ao texto literário em si ou uma posição avessa às contribuições da Teoria, tampouco uma condição pré-Teórica; significaria, antes, um contato aberto e novo com a literatura, capaz de liberar “fórmulas” ou sentidos imprevistos até então. 124

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Logicamente, o “caso Bartleby” constitui apenas uma amostra da eficiência com que os esquemas de controle Autorais do texto se atualizam. De modo paradoxal, uma vez convertida a Teoria em um modus operandi – ou seja, convertida naquilo que ela a todo o instante confronta –, o texto literário, por exemplo, passa a ser lido a partir de uma perspectiva homogeneizante, ainda que sob o emblema das singularidades e da diferença. Nesse caso, para atingir o “qualquer” vislumbrado pela Teoria, seria necessário trair seus procedimentos, propor um campo conceitual advindo também dos objetos investigados e que não estabeleça com clareza e de antemão os limites da atividade crítica. Como se sabe, a chamada crise da Teoria decorre do lugar consensual que ela agora ocupa; conferir nova mobilidade à Teoria significa, nesse momento, valer-se dela mais uma vez para profanar seus termos.

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8 O CARÁTER DESTRUTIVO DA LITERATURA O caráter destrutivo não tem ideais. Tem poucas necessidades, e muito menos a de saber o que ocupará o lugar da coisa destruída. Primeiro, pelo menos por alguns instantes, o espaço vazio, o lugar onde a coisa esteve, onde a vítima viveu. Haverá sempre alguém que precise dele sem o ocupar. (Walter Benjamin, “O caráter destrutivo”)

Em texto recém-publicado no Brasil, Peter Barry, autor do conhecido livro Beginning Theory: An Introduction to Literary and Cultural Theory, constata um fenômeno teórico-editorial no mínimo curioso, particular do contexto estadunidense e inglês, mas com consequências evidentes também nos trópicos: os manuais ou antologias da Teoria (literária) – “Teoria” com “T” maiúsculo e “literária” entre parênteses – estão aumentando de tamanho. Sem um propósito pedagógico evidente, mas valendo-se claramente das benesses editoriais decorrentes de um sistema de estrelato acadêmico que atualiza os últimos nomes da Teoria com a mesma rapidez com que zapeamos os canais da televisão,19 as antologias multiplicam o número de assuntos, autores e páginas na mesma medida em que volatilizam qualquer ideia de um objeto específico de análise – no caso, a literatura. A travessia da “teoria literária” para algo que leva o nome de “Teoria”, sem um objeto particular e com a promessa, portanto, de ampla aplicação, facilita precisamente esse processo expansão inflacionária dos readers, uma vez que a singularidade dos artefatos representa um obstáculo para a livre circulação do teórico. Eis o diagnóstico na formulação de Peter Barry (2016, p. 67): A primeira dessas antologias foi Debating Texts, de Rick Rylance, publicado pela Open University em 1987 e que continha razoáveis 288 páginas. A palavra “debatendo” no título também era razoável, pois sugeria que nem tudo havia sido estabelecido de antemão pelos figurões da teoria. O Para uma discussão mais aprofundada em torno dos impasses que pairam sobre os estudos literários nos Estados Unidos hoje, ver Durão (2011b). 19 

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livro Modern Criticism and Theory: A Reader, de David Lodge, publicado pela Longman em 1988, com 480 páginas, seguia o mesmo modo humanamente viável – tamanho razoável, boa organização e um material escolhido por ser acessível. Depois disso, o problema do aumento de volume pareceu fugir ao controle: a primeira edição de Literary Theory: An Anthology, de Rivkin e Ryan, em 1997, tinha 1100 páginas, já a segunda, em 2004, passou a ter 1300. Esse número total de páginas, já bastante absurdo, foi duplicado pela Norton Anthology of Criticism and Theory, de 2001, que tem cerca de 2700 páginas.

Barry associa isso que chama de “tendências elefantinas” dos manuais ao seu argumento maior acerca do declínio ou morte da própria Teoria: “quanto à morte da teoria, não há necessidade de se preocupar com isso. Ela já aconteceu e a vida continuou. Todos aqueles rumores milenares sobre a sua morte estavam longe de ser exagerados; antes, eles subestimavam a situação” (BARRY, 2016, p. 58). A suposta morte da Teoria não significa, para o autor, o fim da teorização; pelo contrário, seria condição indispensável para um exercício intelectual voltado também para a especificidade dos objetos e capaz de deles abstrair posições teóricas não menos complexas do que aquelas hoje oferecidas pela Teoria e impostas ao literário. Ora, talvez seja difícil subscrever o parecer de Barry em torno do fim da Teoria; a rigor, o amplo alcance dos desdobramentos da chamada “virada ética” nos estudos literários, resultante de uma metafísica ocidental espremida até a última gota, demonstra a capacidade de atualização permanente desse esquema. Assim, seguindo na trilha de Fabio Durão (2016a, p. 17), seria mais viável aceitar a condição “zumbi” da Teoria: “a tarefa de pensar a Teoria hoje é refletir sobre aquilo que fez dela um morto-vivo, um ente que não consegue verdadeiramente morrer”. Ao que tudo indica, como expressão final dessa condição “zumbi”, os manuais da Teoria continuarão a aumentar de volume, mas sem muita luz a projetar sobre a literatura. Seja como for, se Peter Barry atribui, por um lado, o aumento de tamanho das antologias à falência da Teoria, não seria possível, por outro lado, inverter a equação e pensar esse mesmo fenômeno a partir de uma força disruptiva constitutiva da própria literatura? Em outras palavras, poderíamos compreender a literatura como uma construção singular que impossibilita qualquer apreensão definitiva e que desregula o dispositivo teórico-crítico, conduzindo-o inevitavelmente ao momento de sua insuficiência ou crise. Uma rápida passagem pela história da teoria literária produzida ao longo 128

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do século passado não deixa de testemunhar semelhante efeito destrutivo: de um discurso inicial potente e revelador acerca do literário, os círculos hermenêuticos parecem necessariamente migrar para um uso posterior prescritivo, automatizado e mecânico, que acaba por contrastar profundamente com a permanente atualidade ou contemporaneidade, por exemplo, do cânone literário.20 Nesse caso, admitida a força disruptiva da literatura, a passagem da teoria para a Teoria e o teor esquizoide dos readers seriam menos tentativas de controlar ou submeter o literário ao exercício teórico do que um reconhecimento final da incapacidade de encarar esse objeto de frente, fazendo com que a Teoria recolha-se em si mesma em um gesto narcísico circular e autorreferencial. Os inúmeros capítulos que compõem as antologias ofereceriam, em última instância, táticas diversas para a fuga do encontro com o literário. *** Este capítulo busca pensar a literatura e seu ensino justamente a partir de uma via negativa associada à sua força disruptiva, ou seja, não como um gênero discursivo capaz de sensibilizar ou edificar, de promover o melhoramento do sujeito, de sua conduta ética no mundo, ou de “nos tornar mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam” (TODOROV, 2009, p. 76) – pressupostos que ainda hoje ancoram muito do discurso sobre o lugar do literário nas instituições de ensino. (Aliás, os mais maliciosos diriam que uma breve visita a um departamento de Literatura seria suficiente para comprometer tais argumentos...). É certo que todas essas coisas podem decorrer do encontro com o texto literário – a abertura ao outro, a sensibilidade diante das diferenças –, mas não correspondem a traços constitutivos da literatura ou particulares dela. Em vez disso, constitutivo da literatura parece ser, isso sim, o impulso destrutivo, o esvaziamento que ela provoca por meio de uma linguagem intransitiva, o efeito desregulador, a capacidade de colocar em crise, de desestabilizar, de abrir espaços, de comprometer os sentidos anteriores ao momento da leitura, sem a obrigação de preencher nada no lugar. Em vista disso, sustenta-se aqui o argumento de que, embora por vezes a literatura de fato possibilite o choque com o outro, abrindo o Sobre o caráter restritivo e também canonizante da própria teoria, ver Durão (2015, p. 133): “é um fenômeno curioso que, se por um lado, a crítica vem questionando o cânone literário, desafiando seu fechamento e reivindicando a inserção de novas vozes, por outro, a teoria vem testemunhando a formação de um cânone próprio, um rol de autores que se tornaram referência obrigatória [...], cujos conceitos podem, sim, ser problematizados, mas não sua posição a priori como grandes nomes”. 20 

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“eu” à alteridade e ampliando a leitura de mundo e a sensibilidade, o outro da teoria não é uma personagem, um comportamento, ou mesmo uma visão de mundo dissonante; o outro da teoria é a obra, a singularidade da obra. A fim de desenvolver essa via negativa em torno dos artefatos literários e de seu lugar nas instituições de ensino, o presente capítulo divide-se em três partes: em um primeiro momento, atravessa o vínculo entre literatura e alteridade conforme as recentes formulações de teóricos como Bloom, Todorov e Compagnon, mas também levando em conta as implicações daquilo que Culler (2016) chama de “virada ética” nos estudos literários; a seguir, o texto analisa o que podemos chamar de “epistemologia da destruição” em Wallace Stevens a partir de dois de seus poemas, “The course of a particular” [“O percurso de um pormenor”] e “The Snow Man” [“O homem de neve”], com o intuito de assinalar a diferença entre os dois tipos de ouvintes/leitores ali retratados e o processo de dissolução do sujeito que decorre de um contato integral com os objetos; por fim, após a discussão dos versos de Stevens, a atenção volta-se, em particular, para a obra como o verdadeiro outro da teoria e o que isso representa em termos de ensino e leitura literária. Em poucas palavras, liberar a potência destrutiva da literatura significa saber olhar a alteridade irreconciliável da obra e dos objetos, entregando-se a essa alteridade em um gesto generoso de saída de si, sem a promessa de reencontro algum. Literatura, alteridade e a “virada ética” Publicado pela primeira vez no ano 2000 e traduzido para o português em 2001 – datas emblemáticas não só da virada de milênio, mas de um novo e recorrente desejo por parte da crítica de “iniciar do zero”, de reavaliar lugares, de decretar crises, fins e recomeços –, o livro Como e por que ler?, de Harold Bloom, sintomático desse “espírito do tempo”, abre com um prólogo que, repetindo o título do volume, propõe-se a responder à questão “Por que ler?” em menos de 10 páginas. A bem da verdade, o autor arremata o problema já nas três primeiras linhas do texto: “caso pretenda desenvolver a capacidade de formar opiniões críticas e chegar a avaliações pessoais, o ser humano precisará continuar a ler por iniciativa própria” (BLOOM, 2001, p. 17). Para Bloom, a leitura – que parece equivaler à leitura de textos literários – é um hábito pessoal capaz de fortalecer o ego e desenvolver um “eu” autônomo: “não devemos recear o fato de nosso crescimento como leitores 130

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parecer por demais autocentrado, pois, se nos tornamos leitores autênticos, os resultados dos nossos esforços nos afirmarão como portadores de luz a outras pessoas” (BLOOM, 2001, p. 20-21). Sujeitos autônomos, autênticos, autoconfiantes, conhecedores de si mesmos e portadores de luz às demais pessoas – eis o que segue do contato com a leitura literária. Respondida a pergunta inicial, Bloom parte para os habituais ataques às questões de gênero e sexualidade, ao multiculturalismo e aos demais detratores da literatura. (Vale ressaltar que, como de praxe, já no índice do livro, Bloom oferece munição suficiente para que os alvos de suas críticas lhe devolvam comentários não menos mordazes e pertinentes: para o autor, a leitura do romance, por exemplo, corresponde fundamentalmente à leitura de Cervantes, Stendhal, Austen, Dickens, Dostoiévski, James, Proust, Mann, Melville, Faulkner, West, Pynchon, McCarthy, Ellison e Morrison. As recomendações de nomes e obras para os demais gêneros seguem semelhante esquema, e o clamor pela diferença parece ser voluntariamente ignorado. No livro Gênio [publicado em 2002 e traduzido para o português em 2003], cujo título reitera elogiosamente a categoria mais bombardeada pela teoria literária nas últimas décadas – “reduzir literatura, espiritualidade ou ideias a um historicismo tendencioso é algo que não me interessa” (BLOOM, 2003b, p. 12) –, Bloom celebra a mesma tradição anglófona, agora com alusões passageiras a genialidades imprevistas, quase que “desviantes”: Machado de Assis é citado em um dos capítulos.) Para Bloom, portanto, a leitura/literatura permite uma construção firme de si por meio da genialidade específica de alguns autores. No livro A literatura em perigo (datado de 2007 e publicado em português em 2009), sem a mesma truculência do estadunidense, mas também preocupado com a “redução da literatura ao absurdo”, ou melhor, com o apagamento da centralidade da obra literária, que cederia cada vez mais o seu espaço às discussões teóricas, mesmo na escola, Todorov defende um princípio ético para a presença da literatura nas instituições de ensino: “somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente” (TODOROV, 2009, p. 24). Em outras palavras, a literatura seria lócus particular para um acesso mais integral ao outro, proporcionando “sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. [...] Ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano” (TODOROV, 131

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2009, p. 24). Mais uma vez, sem a mesma virulência e por uma via argumentativa visivelmente distinta, Todorov não raro retorna a conclusões semelhantes às de Bloom a respeito da construção mais “humana” do sujeito por meio do contato com o outro aberto pela literatura: “Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença que podemos descobri-las interiormente de imediato” (TODOROV, 2009, p. 80). Se o diagnóstico da crise é novo (o livro, como dito, data de 2007) e encontra caracterização singular no autor, a saída oferecida para os impasses elencados retoma argumentos há muito conhecidos sobre o aspecto “humanizador” do literário. Não é de assombrar a semelhança com a seguinte formulação, bastante familiar em nosso contexto: [...] enquanto só conhecemos o nosso próximo do exterior, o romancista nos leva para dentro da personagem [...]. Neste ponto tocamos uma das funções capitais da ficção, que é a de nos dar conhecimento mais completo, mais coerente do que o conhecimento decepcionante e fragmentário que temos dos seres. Mais ainda: de poder comunicar-nos este conhecimento (CANDIDO, 2009, p. 64).

Também em 2009, ano da tradução brasileira de A literatura em perigo, de Todorov, um outro livreto passa a circular em nosso contexto com o mesmo propósito de responder à pergunta que não quer calar: Literatura para quê?. Antoine Compagnon, seu autor, após lembrar “três ou quatro explicações familiares do poder da literatura”, refirma, a partir de Kundera, a ideia de um pensamento que nela encontraria espaço privilegiado de expressão: a leitura literária é um “exercício de pensamento”, uma “experimentação dos possíveis”: “nunca nada me fez melhor perceber a angústia da culpa que as páginas febris de Crime e castigo onde Raskolnikov reflete sobre um crime que não aconteceu e que cada um de nós cometeu” (TODOROV, 2009, p. 52). Embora não deixe de enfatizar o processo de desconstrução de si por meio do contato com a literatura – ela “inventa uma reflexão indissociável da ficção, visando menos a enunciar verdades que a introduzir em nossas certezas a dúvida, a ambiguidade e a interrogação” (TODOROV, 2009, p. 52) –, Compagnon o faz a partir do mesmo pressuposto ético já visto em Bloom e Todorov: a literatura promove um encontro privilegiado e mais integral com o outro. Vale assinalar, entretanto, que o autor finaliza a fala fazendo uma concessão importante ao universo extraliterário: Um único ponto me atormenta na réplica que lhes apresento: devo manter a ideia de que a literatura nos inicia ao mundo 132

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de maneira exclusiva? Posso eu também sustentar que ela nos desvela uma parte da experiência humana que nos ficaria inacessível sem ela? [...] É verossímil que só a literatura, só a leitura, só o romance me deem o que os outros discursos, as imagens e os sons seriam incapazes de oferecer? [...] É exato dizer que a ficção seja o único gênero que me fale de certos aspectos da vida com plenitude? Na verdade, essa exigência me parece exorbitante (TODOROV, 2009, p. 54, grifos do autor).

Logicamente, essas premissas teóricas e éticas em defesa de um lugar institucional para a experiência literária alinham-se aos próprios documentos oficiais que organizam a presença da literatura na escola, como no caso, no Brasil, das Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Documento de 2006 que complementa os PCNs do ensino médio e norteia o ensino literário nas escolas brasileiras, as OCEM buscam, segundo suas páginas iniciais, resguardar a especificidade do literário e a importância de sua posição no currículo escolar. Para fazê-lo, os autores do texto explicam que a literatura constitui um meio “de humanização do homem coisificado” (BRASIL, 2006, p. 53). Mais especificamente, o ensino de Literatura incidiria sobre o inciso III do artigo 35 da LDBEN nº 9.394/96, visando ao “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (apud BRASIL, 2006, p. 53). A fim de reafirmar a literatura como fator indispensável para a “humanização” do ser humano, as OCEM citam as palavras de Antonio Candido no célebre texto intitulado “O direito à literatura”: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (apud BRASIL, 2006, p. 54). Fica fácil perceber que, uma vez mais, a defesa da literatura nas instituições de ensino dá-se por meio da ênfase colocada no caráter ético e “humanizador” decorrente da abertura a uma alteridade que nos escaparia na vida cotidiana. Por meio da literatura, conhecemos o outro melhor e assim nos “humanizamos”. *** Em sua recente caracterização do estado atual da teoria literária, Jonathan Culler fala de uma “virada ética” “que diz respeito à contestação das oposições hierárquicas que marginalizaram certos grupos para criar normas: masculino versus feminino, branco versus negro, heterossexual 133

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versus homossexual – o primeiro termo sempre tomado como normativo e o segundo como inferior” (CULLER, 2016, p. 89, grifo do autor). Como se sabe, a possibilidade de deslocar ou mobilizar tais binarismos decorre de um movimento teórico mais amplo “que tem contestado o modelo tradicional de ser humano como sujeito autônomo, racional, autoconsciente e dotado de livre-arbítrio” (CULLER, 2016, p. 93). Em outras palavras, a “virada ética” é diretamente tributária da desconstrução do sujeito tal como empreendida por toda uma tradição teórica que inclui desde Nietzsche até os conhecidos nomes do chamado pós-estruturalismo (Lyotard, Foucault, Deleuze, Derrida etc.). Se comparada, por exemplo, à noção de uma genialidade inexplicável, autocentrada, esclarecida, “portadora de luz” e a-histórica – uma genialidade, portanto, perene –, esses teóricos insistiriam em um sujeito fragmentado, paradoxal, descontínuo, desierarquizado e, principalmente, que não se apresenta como ponto de convergência para todas as experiências sensíveis. Ora, diante do literário, em vez de uma entrada que se limite a expor o brilhantismo da construção estética, prova irrefutável do brilhantismo do próprio homem, não seria o caso de abrir-se aos objetos preteridos justamente por essa centralidade anterior do humano? E se o outro da literatura não for necessariamente o homem, mas aquilo que o ser humano sacrificou para erguer-se como centro do sensível? Nesse caso, a alteridade radical da literatura – já não mais o humano “inacessível” da experiência cotidiana – despertar-nos-ia para aquilo que de fato nos escapou em nossa história: os animais, a natureza, os oceanos, elementos cuja nova visibilidade seria resultado de uma sensibilidade e ética verdadeiramente “pós-humanas”. Em suma, uma vez mais, a literatura seria lócus singular no sentido de nos oferecer um acesso mais completo à alteridade, uma alteridade que agora abriga aquilo que foi historicamente excluído para que a norma, o ser humano como centro, pudesse ser estabelecida. Sobre os “estudos animais”, dimensão mais consolidada da “virada ética” nos estudos literários, Culler observa que a oposição humano/animal ajudou a definir não só o nosso entendimento do que é o “humano”, mas também a tratar os animais segundo nossa própria conveniência. Segundo o autor, os “estudos animais” oferecem “perspectivas incomuns sobre questões de hierarquia, diversidade e diferença. Poemas que retratam os animais podem ser tentativas extraordinariamente criativas para pensar com solidariedade a questão da singularidade dos animais” (CULLER, 2016, p. 91). Vale ressaltar a aderência que o campo tem tido no contexto dos estudos literários no Brasil; prova disso são, entre outros, livros como Pensar/escre134

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ver o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica, organizado por Maria Esther Maciel (2011) e que inclui nomes importantes da crítica brasileira, como Evando Nascimento, Márcio Seligmann-Silva, Eneida Maria de Souza, Raúl Antelo (entre outros), e Literatura e animalidade (2016), também de Maria Esther Maciel. Nas palavras da autora, Seja através do pacto, da aliança e da compaixão, seja pela via dos devires e metamorfoses, seja pela intrusão no espaço do outro, seja pela tentativa ilusória de figuração ou de incorporação de um outro e uma subjetividade alheios, o registro poético, estético, ficcional sobre animais se faz sempre como um desafio à imaginação. E essa abertura criativa acaba estimulando, por extensão, a produção de um pensamento crítico-teórico também aberto e transversal sobre as práticas zoopoéticas (MACIEL, 2011, p. 8).

Nos antípodas de uma tradição humanista que viu na literatura apenas a expressão do homem, as zoopoéticas abrem o literário a um outro que ali sempre esteve presente: “feras enjauladas nos zoológicos do mundo, animais domésticos e rurais, bichos de estimação, seres vivos classificados pela biologia, cobaias de laboratórios, animais confinados e abatidos em fazendas industriais, espécies em extinção” (MACIEL, 2011, p. 8) – eis os “outros” de que agora se ocupa a crítica literária. Na mesma linha, também resultado de uma metafísica ocidental colocada contra a parede, a “ecocrítica” participa de “um movimento ecológico mais abrangente que confronta o antropocentrismo dos seres humanos (fazemos de nós mesmos o centro de todas as coisas) e busca promover o respeito pelo meio ambiente e por todos os outros seres não humanos” (CULLER, 2016, p. 91). Mais uma vez, o texto literário configuraria um espaço importante para a reflexão sobre como o ser humano submeteu a natureza a um tratamento instrumental e utilitário, reduzindo-a à condição de recurso e, dessa forma, desrespeitando a sua verdadeira “outridade”. Culler cita aqui ainda a chamada “virada oceânica”, um novo olhar voltado para o papel, outrora em muito ignorado, que os oceanos desempenham em nossas vidas. Não por acaso, como o próprio autor explica, “a ecocrítica não apresenta um método particular de leitura, mas sim uma questão dominante, uma mudança de escala” (CULLER, 2016, p. 92), ou seja, menos que um procedimento de análise ou de encontro com a literatura, a “ecocrítica” oferece, na verdade, novos temas para os estudos literários.

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Por fim, como um último exemplo da “virada ética”, e como que abarcando os casos anteriormente citados, os “estudos pós-humanos” também se inserem e inserem o literário nessa mesma arena de embates entre uma concepção tradicional de sujeito e as alteridades apagadas em decorrência dos binarismos antropocêntricos. Entre outras questões, os estudos pós-humanos voltam-se para uma dimensão maquínica do ser humano que não pode ser dominada: [...] os computadores e outros equipamentos apenas tornaram evidente o que sempre foi verdadeiro: a psique, com suas pulsões, por exemplo, nunca foi um dispositivo por nós controlado, e nossos corpos são mecanismos extremamente complexos que sempre encontraram diversas formas de escapar ao entendimento da ciência (CULLER, 2016, p. 93).

Em lugar de um sujeito que utiliza as máquinas, os estudos pós-humanos insistem não apenas na “máquina que logo somos”, mas também no próprio controle que as máquinas exercem sobre aquilo que somos, sobre nossos corpos, pensamentos e formas de atuação no mundo; “de fato, é a estrutura do controlador e do controlado que a noção de pós-humano põe em xeque” (CULLER, 2016, p. 93). Ao comprometer ou mobilizar os vários dualismos que estruturaram a metafísica ocidental, os estudos pós-humanos, bem como os estudos animais e a ecocrítica, ampliam o leque de objetos para os quais a crítica literária pode agora voltar o seu olhar: funda-se, assim, uma ética pós-humanista para os estudos literários, na contramão dos discursos recorrentes que definem a alteridade da literatura como abarcando fundamentalmente o próprio ser humano. *** Como dito, a “virada ética” opera como contraponto para as noções tradicionais de sujeito que, logicamente, podem ser de pronto identificadas também em uma série de discursos sobre o que a literatura faz e para que ela serve. Com efeito, vemo-nos aqui diante de duas posturas fundamentais: de um lado, a literatura “humaniza” o ser humano – torna mais autônomo e crítico (Bloom), faz responder à “vocação de ser humano” (Todorov), abre outros mundos possíveis (Compagnon) – por meio do convívio com uma alteridade humana que se nos manifesta apenas fragmentariamente em nosso dia a dia; de outro lado, a literatura “desumaniza” o ser humano – inaugura uma ética “pós-humana” mais sensível às diferenças – por meio 136

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do contato com as alteridades verdadeiramente outras, pois não humanas: os animais, a natureza, os oceanos etc. Ora, apesar de serem discursos a princípio irreconciliáveis, ambos sustentam em comum a aparente certeza de que a literatura, talvez mais que o próprio espaço não ficcional, reserva um lugar indispensável para o pensamento do outro, seja esse outro o ser humano, os animais, a natureza ou outra alteridade qualquer. Ou seja, muito embora a ideia de que a literatura “humaniza o homem” contraste frontalmente com as abordagens teóricas “pós-humanas”, responsáveis por alargar ainda mais as noções de alteridade e diferença, ambas as posições partilham de uma convicção profunda diante do literário, a saber, a convicção de que a literatura constitui um repositório de condutas éticas e morais urgentes que podem nos ensinar direta ou indiretamente sobre a vida em comunidade. Quando potente, essa convicção inaugura exercícios analíticos e interpretativos capazes de colocar os artefatos literários em novo movimento, conferindo-lhes sentidos antes imprevistos; quando tão somente convicção, gera um discurso ético-teórico apriorístico que se vale da literatura apenas para promover um encontro consigo mesmo, apagando os objetos e exaltando os feitos da teoria. Literatura e destruição One must have a mind of winter.21 (Wallace Stevens, “The Snow Man”)

Os poemas e ensaios do poeta estadunidense Wallace Stevens (18791955) exploram obsessivamente o vínculo entre realidade e interpretação, entre a linguagem e o real, a ponto de constituírem um repertório importante, mesmo que por vezes involuntário, para a reflexão em torno do gesto interpretativo relacionado à própria leitura de textos literários. Quando interpretamos, o que de fato pertence ao objeto interpretado e o que constitui apenas traços de uma autoanálise silenciosa? Quais os limites entre a coisa em si e aquilo que trazemos conosco e sobre ela projetamos? É possível, enfim, uma entrega total à realidade e aos objetos, uma percepção pura, ou estaríamos então fadados à autoprojeção disfarçada de acesso imediato? A resposta do poeta a todas essas questões é clara, tanto em seus poemas quanto nos textos em prosa: “Não se trata somente de dizer 21 

“É preciso ter uma mente de inverno.” 137

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que a imaginação adere à realidade, mas, também, que a realidade adere à imaginação, e que essa interdependência é essencial” (STEVENS, 1997, p. 663). Em outras palavras, antes que polos antitéticos, imaginação e realidade prendem-se dinamicamente, e um termo não pode ser dissociado dos impulsos do outro. É exatamente a imagem desse laço dialético que vemos retratada, entre outros, no poema “The man with the blue guitar” [“O homem do violão azul”], de 1937. Diante do pedido de maior aderência às coisas “tais como são”, sem adereços, o homem do violão azul esclarece que tão logo inicia o seu canto, as coisas são postas em movimento e mudam de natureza, o que impede uma apreensão pura. Não há neutralidade possível em seu violão azul: The man bent over his guitar, A shearsman of sorts. The day was green. They said, “You have a blue guitar, You do not play things as they are.” The man replied, “Things as they are Are changed upon the blue guitar.” And they said then, “But play, you must, A tune beyond us, yet ourselves, A tune upon the blue guitar Of things exactly as they are.”22

A solicitação de que as coisas sejam representadas ou tratadas “tais como são” corresponde a um convite impossível de atender na medida em que a interpretação fabrica a realidade das coisas, e essa realidade, por sua vez, atua criativamente sobre o nosso ímpeto interpretativo. Aliás, sem esse afetar-se mutuamente ambos os termos do par realidade/interpretação dissolver-se-iam em um nada nulificante; a imaginação e a interpretação, ao mesmo tempo que impedem o acesso ao real destituído de traços humanos, constituem a única via de entrada para esse mesmo real e, portanto, são condição para a sua própria existência. Se o poeta-músico não pode cantar as coisas como elas são, resta a ele, então, explorar as variações do seu canto, as diferentes interpretações que, embora não encerrem “um mundo bem redondo” e definitivo, buscam remendá-lo de diversas maneiras possíveis: “Homem curvado sobre violão,/Como se fosse foice. Dia verde.//Disseram: ‘É azul teu violão,/Não tocas as coisas tais como são’.//E o homem disse: ‘As coisas tais como são/Se modificam sobre o violão’.//E eles disseram: ‘Toca uma canção/Que esteja além de nós, mas seja nós,//No violão azul, toca a canção/Das coisas justamente como são’” (STEVENS, 1987, p. 62-63). 22 

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“I cannot bring a world quite round,/Although I patch it as I can”.23 A essa altura, deve estar claro que estamos falando aqui de um “metapoema, um poema sobre o próprio poema, [...] sobre o conceito contingente das coisas tais como são” (FILREIS, 2007, p. 45). Estamos falando da contingência do ato interpretativo e da representação de mundo; mais que isso, estamos falando de um poema sobre a construção poética da realidade e sobre a interpretação dessa mesma realidade capturada ou produzida pela literatura. Imaginar é recriar, e interpretar é corromper, alterar, mudar as coisas de lugar, produzir deslocamentos, necessariamente. A entrega total ao objeto, portanto, é impossível. Mas Stevens, obcecado pela relação entre imaginação e realidade, não deixou de também conceber esse momento impossível de esvaziamento total do sujeito e de identificação plena com as coisas em si, tais como são. Em “The course of a particular” [“O percurso de um pormenor”] (1950), por exemplo, o espectador retira-se de cena, com seus adjetivos e interpretações de mundo – suas “teorias” pré-concebidas, digamos, acerca da paisagem –, para ouvir o som das folhas, até que o próprio poema e sua descrição parecem converter-se em ausência de qualquer elemento que não seja a singularidade plena do “particular”, do objeto delineado: “The leaves cry... One holds off and merely hears the cry”.24 Afastar-se, conter-se para apenas ouvir o som das folhas, sem que esse som seja revelador de coisa alguma humana, um gesto de autossacrifício que não promete nada senão o risco de aniquilar-se por completo na confusão com o próprio cenário e a sua indiferente especificidade. Em suma, o reconhecimento da singularidade do objeto não reserva promessa de conforto posterior; pelo contrário, a travessia ao outro, sem a proteção dos adjetivos ou sentidos que trazemos de antemão conosco, é sempre perigosa: Today the leaves cry, hanging on branches swept by wind, Yet the nothingness of winter becomes a little less. It is still full of icy shades and shapen snow. The leaves cry . . . One holds off and merely hears the cry. It is a busy cry, concerning someone else. And though one says that one is part of everything, There is a conflict, there is a resistance involved; And being part is an exertion that declines: One feels the life of that which gives life as it is. 23  24 

“Não sei fechar um mundo bem redondo,/Ainda que o remende como sei”. “As folhas gritam... Nos contemos, e ouvimos, apenas”. 139

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The leaves cry. It is not a cry of divine attention, Nor the smoke-drift of puffed-out heroes, nor human cry. It is the cry of leaves that do not transcend themselves, In the absence of fantasia, without meaning more Than they are in the final finding of the ear, in the thing Itself, until, at last, the cry concerns no one at all.25

“O som de folhas que não transcendem a si mesmas”, ouvidas “na ausência de fantasia”, ou melhor, ouvidas sem o poder domesticador e explicador da mente humana. O vazio é tamanho e a resistência da paisagem a se deixar integrar é tão potente que “ser parte é um esforço que declina”; não, esse vazio não pode ser humanizado, capturado e integrado pela leitura humana. O esboço desse “tentar ser parte” nada mais é do que “uma caricatura poética do esforço humanista em criar um mundo harmônico no qual o humano e o natural se complementam e interagem reciprocamente” (SANTOS, 2013, p. 41). Em vez de fundar um ponto de estabilidade, um lugar de conciliação e de reencontro para um ser humano abandonado em um mundo hostil, o som das folhas e a imagem da natureza coberta pela neve revelam uma indiferença profunda e devastadora: à possibilidade de antropomorfização do espaço, o poema responde, na verdade, com a aniquilação do sujeito, reduzido a espectador irrelevante e impotente diante de uma cena que “não diz nada a ninguém”, “concerns no one at all”. O risco extremo de entregar-se ao objeto está justamente nesse apagamento irremediável de si diante de uma alteridade radical que nem mesmo reconhece aquele que a observa. O som das folhas, por incrível que pareça, não se ocupa de nós. Interpretar esse cenário é simplesmente perdê-lo de vista. Ouvir o som das folhas com um ouvido apurado para “a coisa em si”, por outro lado, pode inaugurar um estado de profundo isolamento e alienação capaz de provocar a própria dissolução do sujeito espectador. Em um poema anterior, intitulado “The snow man” [“O homem de neve”] e publicado no livro Harmonium, de 1923, Stevens reencena a sua “epistemologia da destruição” a partir de uma entrega gradativa do espectador ao cenário contemplado. Em linhas gerais, o poema inicia com uma “Hoje as folhas gritam, em galhos que vento varre,/Porém o nada do inverno atenua um pouco,/Ainda pleno de sombras frias, neve moldada.//As folhas gritam... Nos contemos, e ouvimos, apenas./É um grito prático, que diz algo a outro alguém./E embora nos julguemos parte do todo,//Há um conflito, uma resistência aqui,/E ser parte é um esforço que declina:/Sentimos a vida do que gera a vida tal qual é.//As folhas gritam. Não é grito de atenção divina,/Nem fumaça de herói que se apagou, nem grito humano./É grito de folhas que não se transcendem,//Na ausência da fantasia, que só quer dizer/Que estão na descoberta do ouvido, coisa em si,/Até que o grito, enfim, não diz nada a ninguém” (STEVENS, 1987, p. 194-195). 25 

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apreciação adjetivada e, nesse sentido, humanizada da paisagem para, a seguir, esvaziar-se de juízos em uma redução quase que completa ao som puro, ou simples “ouvir” que torna clara a condição passiva e impotente daquele que se abandona a uma alteridade indiferente e irreconciliável: One must have a mind of winter  To regard the frost and the boughs  Of the pine-trees crusted with snow;  And have been cold a long time  To behold the junipers shagged with ice,  The spruces rough in the distant glitter  Of the January sun; and not to think  Of any misery in the sound of the wind,  In the sound of a few leaves,  Which is the sound of the land  Full of the same wind  That is blowing in the same bare place  For the listener, who listens in the snow,  And, nothing himself, beholds  Nothing that is not there and the nothing that is.26

Se os adjetivos, por um lado, sinalizam a dimensão humana da cena e, diante do outro, fazem retornar ao mesmo – a “miséria” do vento é a miséria humana, e não a do vento em si, pois nele não há qualquer miséria, há apenas som –, “ter uma mente de inverno”, por outro lado, significa identificar-se tão plenamente com o “som do vento” que identificação nada mais é do que perda de si, desidentificação e ausência. A “mente de inverno” que “é preciso ter” requer percepção aguda, apurada, até que percepção converta-se em perda daquilo que o espectador traz consigo para a cena, tornando-se “nada “É preciso ter uma mente de inverno/Para contemplar a geada e os ramos/Dos pinheiros recobertos pela neve;//E ter estado frio muito tempo/Para olhar o zimbro espessado pelo gelo/E os abetos ásperos na luz distante// Do sol de janeiro; e para não pensar/Em qualquer miséria ao som do vento,/Ao som de umas poucas folhas,// Que é o som da terra/Cheio do mesmo vento/Que sopra no mesmo espaço desnudo.//Pois o ouvinte, que escuta na neve/Sendo nada ele mesmo, contempla/Nada que não está lá e nada que está” (STEVENS, 1992, p. 82-83). 26 

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ele mesmo”, “nothing himself”. Em outras palavras, uma “mente de inverno” exige, nas palavras de Harold Bloom, um olho com paciência e a habilidade de ver apenas o que é revelado (os mínimos detalhes, nada mais), bem como o nada, o espaço negativo que existe entre tais detalhes. No contexto do inverno, [...] tempo de solidão e reflexão, o ‘nada’ torna-se indefinido, um potencial e um vazio (BLOOM, 2003a, p. 133).

A “mente de inverno” mostra-se aberta a sentidos imprevistos que só se revelam à custa da redução de sua presença e atuação. Ao apagar-se e converter-se em uma “mente de inverno”, em um “boneco de neve”, ou seja, em uma “não-mente”, o espectador transforma-se em algo abstrato e inumano, cedendo o espaço que anteriormente ocupava, com a sua apreciação da cena, ao som do vento que não significa “nada que não está lá”, mas apenas “o nada que está”. A repetição do som sibilante nos versos – “For the listener, who listens in the snow” – não nos deixa enganar: o poema limita-se agora à atuação do vento, ao som de um vento impessoal que suspende a ação interpretativa humana. O que o observador “contempla” (beholds) é a “coisa em si”, e permanecer nessa entrega completa ao objeto por muito tempo pode significar a impossibilidade de retorno; em outras palavras, ter uma “mente de inverno” é arriscado na medida em que a passagem ao outro, quando completa, inviabiliza o retorno. Seguindo essa lógica, a interpretação inicia na tentativa de restituição do sujeito. A “epistemologia da destruição” em Stevens revela um perigoso exercício de leitura: só é possível compreender o objeto entregando-se completamente a ele e ali permanecendo, a ponto de confundir-se com ele, de fundir-se nele; permanecer por tempo demais no objeto significa converter-se em uma “mente de neve” que já não mais imagina e que tampouco pode atribuir sentido às coisas. Segurança completa só por meio dos adjetivos e sentidos prévios que trazemos conosco à cena, o que não deixa de ser uma espécie de solipsismo de discreta atuação. O outro da teoria Aquilo que podemos ler como uma “epistemologia da destruição” em Stevens revela-nos algo significativo sobre a leitura de textos literários: se, por um lado, a entrega completa ao objeto não só é um gesto impossível, como também, se possível fosse, aniquilaria o sujeito, destituindo-o de sua 142

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dimensão interpretativa e criadora – o que o transformaria, com isso, em um “boneco de neve”, em uma “mente de inverno” –, por outro lado, é possível dizer que só há contato efetivo com a literatura ali onde há também uma parcela de perda de si e destruição. Por paradoxal que possa parecer, a tese de que a literatura constitui uma sorte de repositório de alteridades, sejam essas alteridades “humanas” ou “pós-humanas”, quando anterior à leitura aprofundada dos artefatos literários em sua especificidade – e não como campo de testes para pressupostos teóricos –, acaba por proteger o leitor do processo de desconstrução de si que a leitura literária pode inaugurar. Seja como for, do ponto de vista da crítica literária, essa conduta fortemente apriorística diante da literatura conduz a muitos dos impasses que Fabio Durão, entre outros críticos, identifica em alguns de seus textos, como no caso do volume intitulado O que é crítica literária?, datado de 2016: […] lê-se determinada obra não para descobrir o que ela tem de interessante a dizer por si mesma, mas como uma oportunidade de exibição da teoria. Em outras palavras, o texto converte-se em uma desculpa para o exercício teórico: ele transforma-se em um exemplo da teoria. O processo interpretativo fica assim extremamente comprometido, porque o que de fato ocorre neste caso é tão somente uma dinâmica de reconhecimento na obra de conteúdos que já estão na teoria. Se a interpretação pode ser vista como fazendo uma pergunta ao texto, a das teorias seria monótona, repetindo sempre “o que você tem a dizer dos meus conceitos?” (DURÃO, 2016b, p. 106, grifo do autor).

Ao trabalhar com temas predefinidos e tão somente “rastreáveis” no literário – o “homem”, o “animal”, a “natureza” etc. –, o discurso teórico-ético acerca das alteridades presentes nas obras suprime ou silencia justamente aquele que seria o outro inequívoco da teoria: a singularidade da obra e seu poder de desestabilizar o sujeito. De todo modo, tomar a textualidade imediata da obra como o outro da teoria não significa esvaziar os artefatos literários de qualquer dimensão ética. Na verdade, essa travessia de uma ética das alteridades marginalizadas para uma outra ética, a ética da singularidade das obras – não menos urgente que as posições políticas que consideram a literatura um espaço privilegiado para debates visivelmente mais amplos e complexos, muitas vezes situados em âmbitos que, de resto, parecem ignorar o que a literatura poderia ter a lhes dizer –, é capaz de, por meio de uma via negativa, lançar questões centrais para a teoria literária e 143

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para as humanidades de modo geral. Caberia aqui citar pelo menos duas dessas questões. Em primeiro lugar, se é verdade que a teoria literária tem hoje de responder criticamente a uma sociedade produtora de estímulos espetacularizantes e contínuos, que se substituem uns aos outros em um fluxo incessante de pseudoacontecimentos dirigidos a subjetividades ao mesmo tempo excitadas, porém sempre à beira do tédio, é certo que essa resposta não pode dar-se nos termos de uma mesma excitação teórica perpétua, a partir de um aparato acadêmico que lança produtos teóricos e campos de estudos tão globalmente consumidos quanto fugazes, em uma tentativa não menos mercadológica de se manter na vitrine. Em um campo supostamente crítico, repete-se com isso a mesma estratégia de sobrevivência que regula a lógica da propaganda. Nesse sentido, a atenção aos artefatos em sua especificidade poderia estabelecer uma outra temporalidade, uma temporalidade literária situada na contramão da pirotecnia visual que converte os objetos em objetos de consumo, cuja aquisição antecede de imediato o descarte. Se “uma autêntica revolução não é jamais simplesmente ‘mudar o mundo’, mas também e antes de mais nada ‘mudar o tempo’” (AGAMBEN, 2005, p. 111), então a atenção detalhada aos objetos estabelece uma temporalidade de fato crítica e urgente para as humanidades. Nas palavras de Fabio Durão (2011b, p. 119), “diante da produção cada vez mais rápida de coisas mais rápidas, a literatura converte-se em um meio privilegiado de reflexão crítica”. De resto, esse tempo das singularidades também incidiria sobre a dinâmica de circulação de artigos e teses que se encontra hoje igualmente submetida à semelhante esquema de aceleração e produção contínua de estímulos, objetos e imagens. Em segundo lugar, se também é verdade que a sociedade dos estímulos e do fluxo incessante de imagens suscita o surgimento de um “eu” espetacular, que responde à lógica da substituição indiferente de sujeitos com a exposição ininterrupta de si no mercado volátil das pseudoindividualidades (os reality shows são a expressão final desse fenômeno), então o caráter destrutivo da literatura desempenha um papel importante no movimento de saída de si em direção ao outro. Cabe ressaltar, entretanto, que, conforme Benjamin indica na epígrafe deste capítulo, o caráter destrutivo não tem ideais, e esse outro não se traduz em lições sobre a diferença: ser desconstruído pela obra, em vez de desconstruí-la, não é uma experiência precisamente recompensadora, e você pode sair da leitura “de mãos 144

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abanando”, sem artigos, conselhos, condutas morais ou éticas a oferecer aos demais: “primeiro, pelo menos por alguns instantes, o espaço vazio, o lugar onde a coisa esteve, onde a vítima viveu. Haverá sempre alguém que precise dele sem o ocupar” (BENJAMIN, 2013a, p. 98). Em vez de autor, coautor ou leitor ocupando o texto, o “eu” converte-se em vítima do texto, esvaziando-se de si mesmo e de suas teorias e crenças. Por fim, é preciso confessar que a dimensão desconcertante da literatura, capaz de fundar uma outra temporalidade e de colocar o sujeito em crise, não tem lugar seguro nas instituições instrumentalizantes de ensino, que não raro ocupam-se de preparar o indivíduo para a vida produtiva e para o espetáculo do “eu”. Nesse sentido, quando não converte também o literário em produto a ser consumido, o professor de literatura luta, sempre no contrafluxo, para preservar o lugar daquilo que não tem lugar e que, desse modo, tende ao desaparecimento. A potência literária parece localizar-se naquilo que não encontra abrigo institucional, e é por isso que o caráter destrutivo da literatura, prova de sua verdadeira força, é também sintoma de sua fragilidade maior.

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9 A PERSISTÊNCIA DA FORMA Time that is intolerante Of the brave and innocent And indifferent in a week To a beautiful physique, Worships language and forgives Everyone by whom it lives; Pardons cowardice, conceit, Lays its honors at their feet. (W. H. Auden)27

Em seu poema intitulado “À memória de William Butler Yeats”, datado de 1939, W. H. Auden anuncia aquilo que os escritores parecem desde sempre saber, isto é, que a linguagem poética busca e por vezes consegue “parar” o tempo, interromper a cronologia, suspender a sucessão inevitável das coisas. A escrita literária funda também, nesse sentido, um gesto de reorientação temporal, uma experiência de singularização da vida. Nas palavras de Auden, o tempo, intolerante e implacável, “venera a linguagem e perdoa/Todos graças aos quais ela vive”, deitando honrarias a quem se ocupa da literatura. Mais adiante, na mesma seção (terceira e última) do poema, ficamos sabendo que o “Tempo que com essa estranha desculpa/ Perdoou Kipling e suas posições,/Perdoará também Paul Claudel,/Só pelo que ele pôs no papel”.28 Ao contrário do que ocorre em “Ozymandias”, de P. B. Shelley, poema sobre um antigo e poderoso “rei dos reis” de cuja magnificente estátua restam apenas resíduos – “Nada subsiste ali. Em torno à derrocada/Da ruína colossal, a areia ilimitada/Se estende ao longe, rasa, nua,

“O tempo que é intolerante/Com o bravo e o inocente/E indiferente numa semana/A um belo físico,//Venera a linguagem e perdoa/Todos graças aos quais ela vive;/Perdoa a covardia, a vaidade,/E põe as suas honrarias a seus pés” (AUDEN, 1979, p. 82, tradução nossa). 28  “Time that with his strange excuse/Pardoned Kipling and his views,/And will pardon Paul Claudel,/Pardons him for writing well” (AUDEN, 1979, p. 82). 27 

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abandonada”29 –, os poetas fazem tremular o tempo e estão desde sempre por ele perdoados, devido ao ato criativo, ao exercício da imaginação. Essa torção temporal inscreve-se também nos experimentos formais da escrita, no modo como a manipulação da forma, por exemplo, particulariza a obra e impõe desafios analítico-interpretativos – um novo “regime de leitura”, que demanda também um outro “regime de tempo” – àqueles que com ela se deparam e ali percebem a suspensão, a hesitação ou a resistência ao sentido – “O poema – essa hesitação prolongada entre o som e o sentido”.30 É justamente esse processo de desidentificação, de perda do nome por meio da separação entre o som e os sentidos a ele imputáveis, que Giorgio Agamben debate em seu ensaio sobre o enjambement intitulado “O fim do poema”: “O que é o enjambement senão a oposição entre um limite métrico e um limite sintático, uma pausa prosódica e uma pausa semântica?” (AGAMBEN, 2014, p. 179). O enjambement seria a concretização formal de um sentido interrompido, adiado, que constitui um ponto indecidível no poema, lócus de promessa e angústia. (Ao obstruir o jogo entre som e sentido não coincidentes, o verso final revelaria um problema para a própria caracterização do poema, “comprometendo” a sua arquitetura). Da mesma forma, é o desvio, a viagem da “estrofe que dá voltas mas nunca reconduz ao discurso, nem a si”, que Jacques Derrida vislumbra ao tentar responder à pergunta “Che cos’è la poesia?”: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas que não abra ferida também” (DERRIDA, 2001, p. 115). Uma marca particular que se insinua mas não se deixa apreender; como um ouriço, o poema é “vulnerável e perigoso, calculista e inadaptado”. Não é por acaso que Agamben, mais uma vez, em sua discussão sobre “O que é o contemporâneo?”, recorre à poesia, ao poema “O século”, de Osip Mandel’štam, para explicar o vínculo ambíguo do contemporâneo com o presente: “a contemporaneidade [...] é uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo” (AGAMBEN, 2009, p. 59, grifos do autor). A literatura manifesta a sua contemporaneidade na medida em que, mantendo os olhos firmes e fixos no seu tempo, revela-se capaz de dele distanciar-se, “Nothing besides remains. Round the decay/Of that colossal wreck, boundless and bare/The lone and level sands stretch far away” (SHELLEY, 2009, p. 40-41). 30  “Le poème – cette hésitation prolongée entre le son et le sens” (VALÉRY, 1941/43, p. 265). 29 

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tanto para receber “em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 64) quanto para, nesse escuro do presente, perceber “a luz que procura nos alcançar e não consegue” (AGAMBEN, 2009, p. 65). A atualidade da literatura decorre, paradoxalmente, de um procedimento anacrônico, de uma distância tomada em relação ao tempo em que ela se insere; quando essa distância se desfaz, quando coincide confortavelmente com o agora, abrindo mão de seu caráter intempestivo, é então que a literatura, mesmo circulando amplamente no tempo presente, falha na tarefa de atestar a sua contemporaneidade. Considerando que a potência da literatura reside, como visto, na capacidade de dobrar ou torcer o tempo, de violentar o império cronológico, de manifestar a crítica do agora por meio de uma “inatualidade” intempestiva, de propor uma releitura imprevista e desnaturalizadora dos signos básicos da época, este texto busca debater a relevância de dois ensaios que, publicados há cerca de 100 anos, não só mantém inalterada a sua contemporaneidade, o impulso deformador daquilo preserva a sua discronia ou não coincidência com o que está posto, como também formulam para a literatura exatamente a mesma tarefa profana, ou seja, a de manter um elo problemático com o seu tempo: “A arte como procedimento” (1917), de Victor Chklóvski, e “Tradição e talento individual” (1919), de T. S. Eliot. Deseja-se enfatizar que, passados 100 anos desde sua publicação e apesar das críticas que receberam e ainda recebem, os dois ensaios em questão preservam e alimentam um saber não coincidente com a gramática literária do nosso tempo: o primeiro, por compreender a literatura como algo que se configura sempre a posteriori e a partir de seu caráter diferencial; o segundo, por propor que o contato com os artefatos artísticos envolva, ao mesmo tempo, um exercício de singularização e de comparação retrospectiva. É para a (in)atualidade dessas formulações, nos termos antes concebidos, que este capítulo volta a sua atenção. *** Em 1983, valendo-se do mesmo título do célebre volume de 1925, Viktor Chklóvski publica a coletânea de ensaios Sobre a teoria da prosa [O teorii proxy],31 cujo intuito prova ser, pode-se dizer, no mínimo, ambíguo: por um lado, o autor busca suprimir aspectos decisivos de seu trabalho Não há tradução desse livro para o português. Em língua inglesa, há uma tradução de pequena parcela do volume, que no original tem quase 400 páginas, na antologia editada por Alexandra Berlina (cf. CHKLÓVSKI, 2017). 31 

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anterior, a ponto de negar premissas básicas do movimento formalista; por outro, em decorrência desse mesmo impulso, o crítico russo acaba por colocar em relevo alguns de seus textos e conceitos mais conhecidos, como no caso, por exemplo, do tratamento conferido ao termo ostranenie, “estranhamento”, desde há muito considerado a categoria fundamental da abordagem formal do procedimento poético. Ao contrário do que se passa no ensaio “A arte como procedimento”, de 1917, Chklóvski limita-se agora a formulações mais amplas sobre o conceito, já longe de querer desnudar a finalidade ou natureza da arte, mas tampouco disposto a abrir mão do seu ponto de partida. Em outras palavras, se em sua tese primeira ostranenie vinculava-se ao ato de percepção e ao procedimento de singularização dos objetos como traços inerentes ou constitutivos da arte, o termo reaparece dissociado da suposta tarefa essencialista ou teleológica prévia de desvendar as leis gerais da literatura; em vez do que esta faz ou é, o que pode ou deve desejar produzir como efeito de leitura: Ostranenie é ver o mundo com outros olhos. Jean-Jacques Rousseau, a seu modo, estranhou-se do mundo. Ele vivia separado do Estado. O mundo da poesia inclui o mundo da ostranenie. [...] Uma nova visão de mundo. Ostranenie é uma questão de tempo. Ostranenie não é apenas uma nova maneira de ver; é também o sonho de um novo mundo, ensolarado apenas porque é novo (CHKLÓVSKI, 2017, p. 334).

Se é verdade que o conceito surge aqui carregado de tonalidades terapêuticas, como se fosse um mantra curativo para o olhar automatizado, também é certo que já não se pode mais projetar contra o autor as conhecidas críticas dirigidas ao ensaio de 1917: “para os formalistas, que ignoram a avaliação social, a obra de arte é quebrada em elementos abstratos que eles estudam isoladamente, verificando a conexão entre eles a partir de um ponto de vista estreitamente técnico” (BAKHTIN; MEDVEDEV, 1994, p. 158); “toda vez que um pensador, seja ele crítico, artista ou teórico, supuser que entre intenção e resultado ou efeito no campo da arte a linha é reta e contínua há que, no mínimo, desconfiar se algum teleologismo não está aí implicado” (NASCIMENTO, 2004, p. 81). A par dos comentários que refutam o texto e o acusam de ser “teleológico”, “essencialista”, “tecnicista”, “subjetivista”, “estetizante”, “a-histórico” etc., Chklóvski declara agora que 150

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o “mundo da poesia inclui o mundo da ostranenie”, o que nos leva a crer que o “estranhamento”, menos que um traço forçoso seu, constitui antes “uma maneira de ver”, “o sonho de um novo mundo”. Distante da teleologia imanentista e da intencionalidade (metafísica) da forma, o crítico russo vê cair por terra parte decisiva da própria empresa formalista e de sua “ciência da literatura”. Surge, entretanto, como consequência dessa operação, a reafirmação tardia – e permanente – de dois gestos caros para a crítica literária em seu vínculo com os artefatos artísticos: 1) a literatura sempre acontece, não como algo dado de antemão, mas em decorrência do encontro produtivo entre a obra e o leitor; 2) a literatura só se apresenta como potência se investida, por meio do procedimento crítico, de seu caráter diferencial, isto é, de sua possibilidade de dizer “não”, de recusar as formas costumeiras de ver o mundo. Vale lembrar que, conforme Fabio A. Durão observa, embora os formalistas tenham discutido a “literariedade” ou “literaturidade” há mais de 100 anos, muitas de suas conclusões ainda são alvo de incompreensão. Segundo ele, o conceito não “visava alcançar uma essência recôndita ou constante transistórica do fenômeno literário, mas justamente o contrário: a literariedade responderia pela diferença entre a linguagem adotada pelas obras e a cotidiana ou comum” (DURÃO, 2015b, p. 381). Nesse sentido, ao afirmar que o objetivo da arte é “dar uma sensação do objeto como visão, e não reconhecimento”, ao concluir que o procedimento artístico consiste em “obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção”, Chklóvski (2013, p. 91) está paralelamente formulando uma tarefa “negativa” ou negadora para a literatura e para a crítica literária, a saber, a de arrastar fatalmente consigo a violência contra os dispositivos automatizantes do seu momento histórico; a de produzir desvio ou diferença quanto à atenção que não consegue deter-se por muito tempo sobre os objetos; por fim, a de encarnar na forma literária a possibilidade de oposição ao sentido pronto, imediato, disponível de antemão. A forma realizaria, assim, o trabalho de “formação humana” na literatura por meio de uma resistência imposta ao sentido estritamente reconhecedor, que consome e descarta de pronto os artefatos com que se depara. Se não temos desvendada a lei definitiva da literatura, resta-nos dos debates empreendidos por Chklóvski pelo menos a imagem de uma ética da atenção para os estudos literários em oposição ao risco da acomodação perceptiva. A literatura corresponderia, pois, à supressão, à resistência ao sentido, à afirmação da liberdade, à recusa da norma imobilizadora e à potência de dizer “não”. 151

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Ora, uma vez que o “estranhamento” resulta de uma relação de atrito com a realidade estabelecida no “aqui e agora”, sua atividade depende tanto dos regimes de verdade de um determinado período histórico quanto da capacidade do leitor de acionar a sua maquinaria corruptora. Com efeito, por mais que as prateleiras das grandes livrarias assegurem-nos que todos os livros podem ser confortavelmente acomodados sob as etiquetas de “literatura” e “ficção”, isso muito pouco diz sobre a disposição do artefato artístico de produzir ruídos dissonantes. É nesse sentido que a literatura, a partir dos termos expostos por Chklóvski no ensaio “A arte como procedimento”, pode apenas revelar-se merecedora do seu nome a posteriori: assim como uma obra antiga, um clássico, precisa continuar atestando a sua contemporaneidade a partir de leituras imprevistas que funcionem e provem ser produtivas no tempo presente, um volume recém-publicado por vezes adere tão completamente à sensibilidade média do seu contexto que acaba por confessar a ausência de qualquer negatividade ou de formas e sentidos imprevistos, sem os quais a própria contemporaneidade da literatura se vê comprometida. Nas palavras de Durão (2017, p. 20), A literatura só merece esse nome enquanto for capaz de suscitar questões relevantes para o nosso presente; se isso não ocorre, ela torna-se documento histórico ou testemunho social, objeto de outra disciplina ou curiosidade anedótica. Autor algum está imune aos efeitos do tempo. Em muitos casos, as décadas desvelam camadas de sentido totalmente ocultas para os contemporâneos, que hoje nos parecem como absolutamente constitutivas. [...] Em outros, no entanto, ocorrem modificações que dificultam o acesso à obra, podendo torná-la inapreensível.

Como proposta de ver o mundo com outros olhos, a ostranenie de Chklóvski é, como dito, um projeto literário de agressão contra o reconhecimento imobilizador, isto é, contra a postura “inconsciente e automática” a que tendem “as leis gerais da percepção” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 89). Aqui, mais uma vez, o ensaio de 1917 reserva uma tarefa não menos relevante e atual para a literatura. Se é de fato correto afirmar que convivemos hoje com uma cultura do “deficit de atenção” (cf. TÜRCKE, 2016), se os dispositivos de captura, controle e manipulação do olhar demonstram um funcionamento cada vez mais acelerado e sofisticado, destituindo o tempo da lentidão ou da espera – o tempo 24/7 causa “a atrofia da paciência e da deferência individual [...], da paciência de escutar os outros, de esperar a nossa vez de falar” (CRARY, 2014, p. 133) –, se a política vem valendo-se 152

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

cada vez mais do acúmulo utilitário de dados individuais que conduzem às fake news, à propaganda sob encomenda, ao jornalismo de efeito e a uma espetacularização contínua que corresponde à própria morte da democracia (cf. MOROZOV, 2018), então a torção do tempo e da linguagem operada pela literatura, tal como lida pelas lentes do crítico russo, indica que o literário está ou deveria estar, como parece ter sempre estado, do lado da atenção prolongada, da interrupção do fluxo que torna indistintas as particularidades dos objetos, da lentidão que dita uma outra temporalidade possível, bem como da concentração e do autocentramento introspectivo solicitados pelas dificuldades impostas por uma forma que parte o tempo e não se ajusta em definitivo a si mesma ou ao sentido. A atualidade de “A arte como procedimento” reside ainda, por fim, na urgência da teorização em torno do caráter diferencial e político da forma, capaz de conferir à leitura e formação literária um lugar intelectual específico e imprescindível. Como se sabe, o discurso da pluralidade interpretativa, da multiplicidade de sentidos, do texto infinito e inescapável etc. costuma não só resultar em exercícios críticos pouco criativos e repetidores de premissas teóricas celebradas em si mesmas (cf. DURÃO, 2011b) – não raro em fina sintonia com a política do excesso festejada pelo próprio capitalismo e seu fluxo inesgotável de mercadorias tão imprescindíveis quanto descartáveis –, como acaba assumindo um corpo institucional ainda mais precário, que já não consegue justificar a necessidade de um lugar próprio para a literatura. Talvez o caso mais emblemático disso esteja em um documento brasileiro do ano 2000 intitulado Parâmetros curriculares nacionais do Ensino Médio, segundo o qual “o conceito de texto literário é discutível”: como tudo é texto e tudo integra parte de algum gênero textual, “os conteúdos tradicionais [e.g., a literatura] foram incorporados por uma perspectiva maior, que é a linguagem” (BRASIL, 2000, p. 23, grifo nosso). Ou seja, não há necessidade de particularizar o estudo da literatura, basta examinar a linguagem em sua pluralidade de formas e gêneros. Um exemplo mais recente de como essas proposições ou clichês teóricos contribuem para o esfacelamento institucional dos artefatos ou estudos literários pode ser visto na nova Base Nacional Comum Curricular brasileira, aprovada em 2018, em que as obras e escritores surgem como mero pretexto para o contato do aluno com uma profusão sem fim de plataformas digitais, mídias sociais e gêneros textuais, sem que o documento proponha qualquer reflexão mínima sobre os conceitos e práticas fundantes da área. Em uma passagem ilustrativa disso, lemos que 153

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As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. [...] Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades (BRASIL, 2018, p. 68).

Na contramão da sensibilidade hiperestimulada e dos mecanismos hiperestimulantes que alimentam uma rotina de trocas constantes – em que o “multi”, o “hiper”, o “inter”, o “trans”, o “pluri” etc. decorrem, não de operações singulares ou específicas suas, conquistadas por meio de uma travessia analítica rigorosa, mas sim do mero excesso, da presença em abundância assegurada de saída e tomada como positiva em si mesma –, o “estranhamento” promovido pela forma encarna tanto um risco quanto uma saída possível para os impasses citados. O risco diz respeito ao desafio de sempre se situar “atrás” da literatura, em busca dela, em dívida para com ela, à procura da sua afirmação no presente por meio da reflexão crítica permanente e centrada nos artefatos artísticos, tarefa de fôlego que talvez não estejamos aptos a cumprir. A saída refere-se precisamente a uma noção de literatura e crítica cuja vida decorre do exercício de leitura e do contato efetivo com os objetos, o que pode fundar, portanto, um propósito formativo desviante – também ele diferencial – para os estudos literários. O “direito à literatura” ganharia, com isso, contornos mais claros: trata-se do direito/ dever de receber a forma literária e provar (ou não) a sua persistência hoje, o que passa pela leitura e contato com o que nela há de desidentificador, de diferencial ou, simplesmente, de “estranho” às normas que, em seu deslocamento histórico, pairam sobre ela. *** Não são raros os casos de desconstrução do chamado “cânone literário”, principalmente no contexto anglófono, que partem do célebre ensaio de T. S. Eliot, intitulado “Tradição e talento individual” (1919), a fim de denunciar o que seria a expressão mais completa do “ocidentalismo”, “eurocentrismo”, “elitismo”, “conservadorismo”, “machismo” e de outros dos conhecidos antagonistas das correntes críticas e teorias que se firmaram 154

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nos estudos literários nas últimas décadas do século XX. Conforme Gareth Reeves comenta em capítulo encarregado de apresentar Eliot e o conceito de “tradição” aos leitores do Oxford Guide to Literary Theory and Criticism, [...] até a metade do século passado, a ideia de tradição de Eliot era extraordinariamente influente. [...] O declínio do ensaio acompanhou o declínio do próprio Modernismo [...]. Como o seu autor, ele passou a ser visto como conservador, elitista, obcecado com a ordem e saudosista (REEVES, 2006, p. 107).

Ainda segundo o crítico, agora que a poeira da disputa entre Modernismo e Pós-modernismo parece ter finalmente baixado, já podemos voltar a Eliot e ao texto de 1919 “por sabermos viver confortavelmente com a pluralidade e a noção de literaturas, em vez de Literatura, e de cânones, no lugar de um Cânone” (REEVES, 2006, p. 107). O problema de um tal equilíbrio dos supostos extremos, nos termos formulados, é que ele insiste em uma imagem de tradição difícil de conciliar com inúmeras passagens desse e de outros ensaios de Eliot. De resto, nada melhor do que recorrer à pluralidade, agora tornada regra incontornável dos estudos literários e algo bom em si – pluralidade que rivaliza com uma noção esvaziada de obra, espantalho destinado a reunir em torno de si as mazelas (imaginárias) identificadas pela Teoria (cf. DURÃO, 2019) – para apaziguar os conflitos da área, ou melhor, para “viver confortavelmente” e neutralizar o que quer que cause desconforto. Em outros lugares, já foi sugerido que a noção de tradição em Eliot “está submetida a uma ideia de uso; trata-se, em poucas palavras, de um conceito fundamentalmente operacional, que traz em si o gérmen ou indício de sua própria negação” (CECHINEL, 2017, p. 294); já se declarou, ainda, que os ensaios filosóficos iniciais do autor – muitos dos quais editados em livro pela primeira vez apenas em 2014 e desconhecidos do grande público até recentemente –, bem como a sua tese de doutorado nunca defendida sobre o filósofo F. H. Bradley, publicada em 1964, apresentam um “jovem escritor que luta para acreditar em algo, e que, nesse embate consigo mesmo, detona qualquer projeto filosófico, poético, político ou religioso que se queira como definitivo”, a ponto de se valer, para tanto, de um “mecanismo de rejeição ou mesmo destruição de todo e qualquer sistema, beirando um relativismo desesperador” (CECHINEL, 2017, p. 294); já se mostrou, por fim, que em sua própria escrita poética, pelo menos em volumes iniciais como Prufrock and Other Observations (1917) e The Waste Land (1922), Eliot manipula um jogo referencial e alusivo cujo intuito, entre outros, é o de 155

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interpretar estando sempre assombrado pelo ridículo de toda interpretação: por trás de suas referências, Eliot parodia “o dispositivo acadêmico que as estrutura, revelando, enfim, que toda explicação ali proposta caminha lado a lado com uma autoironia descrente da pretensa neutralidade analítica” (CECHINEL, 2018, p. 44). Em vista desses argumentos, o conceito de tradição em Eliot ganha uma vida que os manuais de literatura, ou mesmo as disputas em torno do cânone, muitas vezes deixam de contemplar. Seja como for, para além de um conceito de tradição que permanece bastante ambíguo e que, com isso, solicita revisitação e reavaliação constantes, cabe aqui evidenciar outros dois pontos em que “Tradição e talento individual”, se confrontado com as questões (literárias) do nosso tempo, revela a sua muitas vezes imprevista atualidade ou contemporaneidade. Em outras palavras, o ensaio defende para a crítica, simultaneamente, dois procedimentos ou tarefas fundamentais: de um lado, o trabalho de singularização ou particularização dos artefatos artísticos, marcado, entretanto, não pela exaltação do indivíduo criador, mas por um suposto processo de despersonalização ou “saída de si”, esse sim de interesse para a crítica; de outro lado, o exercício retrospectivo de comparação e posicionamento dos novos escritores e de suas obras diante do passado, diante daquilo que veio antes e sem o qual a sua produção seria não só improvável como inorgânica, comprometendo qualquer sentido histórico para a literatura. Trata-se, em suma, de dois movimentos simultâneos e complementares, um de compressão e fechamento, que insiste na integralidade do artefato, e outro paralelo de expansão ou abertura, que o situa em relação ao passado e presente – afinal, é isso que “faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua própria contemporaneidade” (ELIOT, 1989, p. 39). Décadas antes dos debates travados pela Nova Crítica em torno da chamada “falácia intencional” (intentional fallacy) (WIMSATT; BEARDSLEY, 2002), da noção de “urna bem-urdida” (well wrought urn) (BROOKS, 1970), da “grande tradição” (great tradition) de Leavis, da prática da “leitura microscópica” (close reading) empreendida por I. A. Richards, John Crowe Ransom e Allen Tate, – antes, aliás, da discussão popularizada por Roland Barthes no conhecido ensaio “A morte do autor”, de 1968 –, T. S. Eliot já declarava, em 1919, que “a crítica honesta e a avaliação sensível dirigem-se, não ao poeta, mas à poesia”; segundo ele, contudo, “se procurarmos, não o conhecimento dos almanaques, mas o prazer da poesia, e perguntarmos 156

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por um poema, raramente o encontraremos” (ELIOT, 1989, p. 42). Um dos objetivos centrais de “Tradição e talento individual” é retirar do horizonte da experiência criativa e crítica a tese romântica de que a literatura resulta de emoções “recolhidas em tranquilidade” e, com isso, permitir o encontro intelectual do leitor com o artefato em si, com essa literatura que “raramente encontramos”. Para tanto, o ensaio insiste na poesia como “fuga da emoção”, “fuga da personalidade”, “impessoalidade”, “entrega de si mesmo”, “extinção da personalidade”, “autossacrifício”. A concretude da obra é conquistada em um ato paralelo de (auto)destruição do “eu”, da biografia, da individualidade, da novidade; a internalidade de um poema afasta-nos do elogio biográfico e arrasta consigo apenas a sombra irrecuperável e indesejável de um “eu” ausente. Chegamos a uma etapa central do trabalho da crítica para Eliot: uma vez apagada a figura do autor e suprimidas as imagens subjetivas associadas ao processo criativo, resta agora ao leitor, diante da particularidade inalienável do poema e do desafio por ela lançado, o exercício de análise ou interpretação, gestos fundamentais da crítica literária. Em suas palavras, “a ‘interpretação’ só é legitimada quando não se trata em absoluto de uma interpretação, mas apenas de proporcionar ao leitor a posse de fatos que, de outra forma, deixaria escapar” (ELIOT, 1989, p. 60). A crítica realizaria, portanto, o compromisso de conferir legibilidade aos objetos, de apresentar hipóteses de leitura ou sequências de “fatos” que estariam tão colados aos artefatos que se confundiriam com eles, deixando, de certo modo, de operar como interpretação. Ora, Eliot sabe perfeitamente – e isso fica claro em toda a sua trajetória ensaística inicial (cf. CECHINEL, 2017) – que um fato nunca é simplesmente um fato, que interpretação jamais se confunde com a coisa em si. Assim, pode-se falar de um movimento de análise que está fadado a percorrer, no mínimo, um caminho duplo: de um lado, a tentativa de ser o objeto, de confundir-se com a obra, quem sabe de até mesmo resolvê-la em definitivo, ditando aqueles que seriam os fatos ou regras básicas do seu procedimento; de outro lado, a impossibilidade de fazê-lo, o inevitável deslizamento para o mundo parcial dos -ismos, das tomadas de posições epistemológicas, das escolhas e cortes que nos afastam do artefato que buscamos conhecer. Paradoxalmente, nesse sentido, a singularização ou particularização do poema é um procedimento ininterrupto, ou melhor, a integralidade de qualquer obra literária é um dado, ao mesmo tempo, concreto e inalcançável, 157

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pois tão logo nos aproximamos do objeto a fim de conhecê-lo, de chegar “à posse dos fatos”, vemos a sua objetividade evaporar diante de nossos olhos. Como Eliot diria em outro lugar, “a descrição é sempre mais que descrição, [...] a explicação nunca realmente explica” (ELIOT, 2014, p. 122), e a própria ciência “projeta-se até certo ponto por meio do avanço da progressiva insatisfação” (ELIOT, 2014, p. 123). Trata-se, em poucas palavras, de um jogo contínuo de checagem do “fato” seguido da decepção resultante da corrupção desses mesmos fatos, da insuficiência do que foi dito, da distância tomada em relação ao ponto de partida, da resistência do objeto e da necessidade de retornar e tentar interpretá-lo mais uma vez. O que Eliot nos ensina é que a vida da literatura depende também do erro, das diferentes formas de errar, e que quando uma obra já coincide integralmente consigo mesma, quando ela já não mais resiste negativamente à etapa de verificação dos fatos ou atribuição de sentidos – quando a predicação converte-se na “coisa em si” –, isso se deve, possivelmente, à perda de sua organicidade no âmbito daquilo que ele chama de tradição, um campo sempre em oscilação e que “nada abandona en route” (ELIOT, 1989, p. 41). Aqui fica clara uma das diferenças entre o primeiro Eliot e sua recepção pela Nova Crítica, obcecada com a ideia de apreciação definitiva, capaz de realizar “julgamentos normativos” e “transcender as limitações de sua própria geração” (BROOKS, 1970, p. xi). Ora, para Eliot, os julgamentos que se pretendem normativos ou mesmo “científicos” são, desde sempre, interpretações sujeitas à reavaliação posterior – eis como a crítica imanente ou interna vê-se silenciosamente comprometida pelo “externo” que deseja eliminar, mas que não deixa de invadir o seu espaço para assombrá-la: “uma prova só pode ser uma prova em relação a certos pressupostos. [...] O que parecia ser um fato para uma geração é, para a próxima geração, apenas uma interpretação rejeitada” (ELIOT, 2014, p. 109). A tentativa de espremer os sentidos do poema até a última gota, tão cara a vários dos new critics, revela-se, para Eliot, ao mesmo tempo um procedimento fundamental, que consiste na recuperação dos “fatos”, porém impossível, pois os fatos deslizam para a interpretação continuamente. Essa tarefa infinita de revisitação do poema e dos poetas e artistas mortos é o teste de fogo para a consolidação de uma tradição literária: a tradição “não pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquistá-la através de um grande esforço” (ELIOT, 1989, p. 38). O passado nunca está conquistado ou garantido; é a releitura que define o destino dos artistas do passado e do presente. 158

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

Com isso, para além do exercício de singularização das obras – muito embora afetando-o diretamente –, Eliot insiste, como dito, em uma segunda tarefa da crítica, esta fundamentalmente histórico-estética, de localização da “novidade” que surge em seu vínculo com a atualidade do que a precede. Se as escolas formalistas foram não raro acusadas de conferir um significado estável ou definitivo – leis rígidas ou estruturas gerais – a uma noção de literatura que, no frigir dos ovos, prova ser profundamente contextual, o ensaio “Tradição e talento individual” não pode ser alvo da mesma censura; ali vemos abundar expressões como “sentido histórico”, “existência simultânea”, “harmonia entre o antigo e o novo”, o “presente do passado” etc. No ensaio, longe de ser tomado como objeto estático de erudição acadêmica ou como conteúdo acabado e autocentrado, o passado é provisório, instável, incompleto e eventualmente contemporâneo: “quem quer que haja aceito essa ideia de ordem, [...] não julgará absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente esteja orientado pelo passado” (ELIOT, 1989, p. 40). Qualquer escritor que atue no tempo presente invoca e afeta, a partir de suas obras, o todo incompleto e móvel da literatura, em um desenvolvimento que não se dá espontaneamente, mas que deve antes ser conquistado e que acarreta “grandes dificuldades e responsabilidades” (ELIOT, 1989, p. 40). Eliot oferece, com isso, uma saída possível tanto para o risco do formalismo, que certamente contaminou muitas das análises dos new critics, seus autoproclamados discípulos, quanto para o perigo da redução da literatura ao tema, ao elogio de si, ao personalismo, ao culto biográfico, à ausência de critérios avaliativos, à perda do sentido histórico, entre outros “caprichos pessoais” que deveriam ser disciplinados (ELIOT, 1989, p. 51). De um lado, contra o risco de converter o passado e a literatura em um “mingau indiscriminado” (ELIOT, 1989, p. 40) em que as obras, destituídas da forma que as individualiza, atravessam-se ininterruptamente em um elogio de temas, autores, datas e atributos previamente estabelecidos, Eliot insiste no que poderíamos chamar de particularização ou singularização “negativa” dos artefatos, isto é, na proposta de captura impossível de um “fato” literário que, quando o artefato atesta a sua força, acaba por sempre se desfazer e mostrar sua incompletude. De outro lado, atento aos perigos de um formalismo descontextualizador e a-histórico, o ensaísta sugere “a concepção da poesia como um conjunto vívido de toda a poesia já escrita até hoje” (ELIOT, 1989, p. 43), em uma “totalidade” orgânica também ela diferencial e “negativa” – assim como o presente altera o passado e o passado 159

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modifica o presente, a “totalidade” para se manter viva deve ser “alterada”, reajustada”, “modificada”. Para Eliot, em suma, a contemporaneidade do passado e do presente na literatura resulta da capacidade tanto de produzir sentidos quanto de se desviar dos sentidos que estabilizam a circulação das obras, o que converte o universo das obras em um espaço a ser permanentemente reconquistado. *** O crescente domínio da Teoria, com “t” maiúsculo e sem recorte específico de objeto, mais que uma simples relação de aplicação dos pressupostos teóricos à literatura – uma retórica da certeza que explica as obras prescindindo delas –, institui também uma temporalidade problemática para os estudos literários. Suas características fundamentais são a multiplicidade e o fluxo: como o que informa o artefato artístico é menos uma noção de obra ou de singularidade da construção formal e mais o desejo de funcionar discursivamente a partir de determinados nomes e conceitos que se renovam periodicamente, o resultado é o que Fabio Durão (2011b) chama de uma “tecnologia produtora de narrativas explicadoras”, narrativas que procedem sem que os objetos possam lhes oferecer muita resistência ou produzir qualquer atrito, destinados como estão a acolher teses vindas de fora e, portanto, a funcionar sem qualquer tensionamento. É possível observar, com isso, uma dinâmica de leitura muito mais veloz e acelerada, mas que, no entanto, apenas pode sê-lo com o relativo apagamento da concretude dos textos com que se depara, o que a coloca em sintonia com as demandas de produtividade do capitalismo contemporâneo e sua temporalidade particular, incapaz de tolerar a lentidão, a atenção prolongada, a leitura intransitiva ou que as coisas surjam “em si mesmas”. Eis o paradoxo dessa relação: o império da Teoria (literária) pode a longo prazo significar o próprio apagamento parcial dos estudos literários tal como a área historicamente se constituiu, ou seja, como um campo que busca compreender as diferentes formas de enfrentar analiticamente e interpretar teoricamente a singularidade e os procedimentos dos artefatos literários. Desse modo, a recuperação do “t” minúsculo para a teoria literária passa, inevitavelmente, por uma outra relação com as obras e pela retomada simultânea da condição de, por meio da forma, violar o fluxo contínuo das coisas e o domínio das trocas indiferenciadas, reconquistando a condição de, mesmo que por um breve momento apenas, dobrar o tempo, ditar-lhe 160

LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO)

o que é de fato contemporâneo, reter o olhar e desacelerar os processos analíticos e interpretativos. Ora, é justamente isto que o tratamento que Chklóvski e Eliot conferem à forma oferece: uma concepção de artefato literário que resulta da averiguação do seu caráter diferencial por meio do exercício de singularização dos procedimentos artísticos, de localização do seu lugar em meio a uma tradição movediça e de comparação e contraste com outras obras e artistas que o antecedem. “Estranhamento”, “tradição”, “impessoalidade” etc. nada mais são do que conceitos capazes de demonstrar que a relação complicada da literatura com o seu tempo não está dada de antemão e precisa ser, acima de tudo, fabricada, pois sem essa dimensão de tensionamento com a realidade o literário tende a coincidir confortavelmente com o presente, assumindo formas mais palatáveis e úteis. É em busca das pequenas luminosidades que por vezes não chegam até nós, e em meio às sombras do nosso tempo, que a literatura funciona. Como luminosidade apenas, tende a confundir-se com todo o resto que muito reluz. A defesa de uma dimensão formativa ou “humanizadora” para a literatura passa tanto pelo trabalho da forma quando por uma qualificação a posteriori de suas operações e averiguação contínua de seu funcionamento ou condição diferencial. Tomar a ética da literatura como algo assegurado de saída, como um tema a ser aplicado aos objetos ou, então, como atributo apriorístico de uma instituição enrijecida e transistórica significa apagar as inevitáveis contradições que caracterizam o percurso dos artistas e obras literárias. Como dito, o cânone move-se aberta e negativamente, e nada garante que aquilo que hoje consideramos “literário” continuará funcionando como tal amanhã. Quando a literatura perde a condição de partir o tempo e de ser perdoada por fazê-lo, a sua atualidade, a sua contemporaneidade, já não pode mais ser atestada ou reivindicada.

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Educação e outros usos

10 UM BRINQUEDO IMPROFANÁVEL32 Você conhece “KidzMondo”? “KidzMondo é mais do que um parque temático. É uma cidade completa, reduzida ao tamanho do mundo de uma criança”. Qual a finalidade de “KidzMondo”? No parque, “as crianças podem experimentar todos os detalhes da vida adulta em um ambiente educativo e divertido” (KIDZMONDO, 2014). Voltado para crianças de 2 a 14 anos e com franquias em países como Líbano, Emirados Árabes, Turquia, Arábia Saudita, Qatar, Jordânia, Azerbaijão, Egito, Marrocos e Kuwait – mas com contratos já assinados para abrir novos parques em mais de 20 lugares da Europa –, “KidzMondo” permite que seu filho brinque em bancos, aeroportos, postos de combustíveis, pistas de corrida, delegacias policiais, fábricas, entre várias outras das maravilhas do mundo adulto. E como no mundo adulto, é claro, as crianças podem escolher exercer uma entre as mais de 120 profissões à disposição, pois, a bem da verdade, cabe aprender desde cedo que nada é de graça e que trabalhar é preciso. Mas não se preocupe com a segurança do seu filho: o parque, além de possuir centenas de câmeras espalhadas para rastrear qualquer pessoa, firma parcerias apenas com empresas e marcas famosas, que asseguram o desenvolvimento e crescimento sustentável da cidade – Ford e Burger King estão entre os renomados parceiros. Ora, se muitas vezes vislumbramos uma agenda implícita ou mesmo secreta por detrás da lucrativa indústria do consumo voltada para as crianças – “quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar” (BENJAMIN, 2002, p. 93), aproximando-se, portanto, de outra coisa que não da brincadeira –, o intuito de “KidzMondo” é claro, visível a todos, e é justamente em razão dele que os pais levam suas crianças ao parque. Em outras palavras, o propósito do parque não é outro senão a antecipação da vida adulta, um processo de aclimatação que, quanto mais precoce, menos doloroso será. Se a realidade do trabalho e do consumo é incontornável, mais fácil apressá-la o máximo possível, salvaguardando as crianças de impasses que podem desacelerar a 32 

O presente capítulo foi redigido em coautoria com o Prof. Dr. Rafael Rodrigo Mueller (Unesc). 165

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processo de ajuste às leis da vida, ou melhor, às leis do mercado: conforme lemos no site, “em KidzMondo, as criançaz (Kidz) podem ser o que quiser! Nos diferentes estabelecimentos, as criançaz podem utilizar o estetoscópio para examinar os pacientes; podem ser policiais para manter a ordem; podem apagar incêndios e construir prédios!” (KIDZMONDO, 2014). De resto, elas podem de pronto aprender a conviver com os paradoxos da vida contemporânea: de um lado, constroem prédios; de outro, reciclam o lixo e plantam árvores, libertando a consciência da improdutividade da culpa. Líbano, Kuwait, Jordânia... “KidzMondo” pode parecer tão somente um fato longínquo, distante, um lugar de neutralização da infância que jamais baterá às nossas portas. Mas será mesmo? A rigor, se compreendermos “KidzMondo” exatamente como isso, ou seja, como um projeto de precarização da infância, de captura antecipada dos “seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua” (LARROSA, 2015, p. 183), que são as crianças, então “KidzMondo” já é uma realidade instituída nas várias praças por meio de propostas semelhantes de silenciamento dos “seres estranhos” que, como tais, representam uma alteridade radical e perigosa para a vida adulta. Em suma, diante da infância e de sua “absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso mundo, sua absoluta diferença” (LARROSA, 2015, p. 185), multiplicam-se os “KidzMondos”, isto é, as tentativas de impedir a entrada irruptiva da infância e do porvir. Eis um caso exemplar: em 2006, a Câmara dos Deputados do Brasil realizou, [...] pela primeira vez em sua história, uma sessão mirim para deliberação de projetos de lei elaborados por crianças. [...] Depois do sucesso dessa sessão em que o plenário foi ocupado por parlamentares mirins, o programa ganhou o nome de Câmara Mirim e passou a acontecer uma vez por ano sempre em outubro, em comemoração pelo mês das crianças (CÂMARA MIRIM, 2016).

Projeto que conta diretamente com a participação das escolas brasileiras, por meio da seleção de estudantes do ensino fundamental responsáveis por desempenhar o papel de deputados, a Câmara Mirim incentiva o envolvimento das crianças nas tomadas de decisões políticas na Câmara dos Deputados, como um suposto ato, ao mesmo tempo, de educação e cidadania. Discordando frontalmente desse pretexto, o presente capítulo defende justamente o argumento de que a chamada Câmara Mirim cons166

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titui uma forma silenciosa, porém não menos eficiente, de “infanticídio”, de enclausuramento da infância em uma lógica análoga à de “KidzMondo”. Para tanto, o texto divide-se em duas partes fundamentais: em um primeiro momento, tece considerações iniciais sobre a relação entre infância, brincadeira e profanação; a seguir, discute diretamente o vínculo entre as escolas e o projeto da Câmara Mirim como exemplo não só da precarização da ideia de infância, mas também da submissão do processo educativo infantil às demandas de mercado e do mundo adulto. A brincadeira como profanação Em célebre passagem do texto intitulado “Velhos brinquedos”, de 1928, Benjamin (2002, p. 87) observa que “jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos –, mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar”. Rindo de tudo – “[...] consideremos falsa toda verdade em que não houve ao menos uma risada!” (NIETZSCHE, 2011, p. 202) –, de modo a impedir que as coisas fixem-se em um determinado uso específico, para as crianças não há brinquedo quebrado, ou brinquedo que não possa ser adaptado, transformado: “uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças” (BENJAMIN, 2002, p. 87). Há na brincadeira das crianças, nesse sentido, um gesto de libertação dos usos prescritivos, capaz de desierarquizar e redimensionar, por meio da ressignificação, o campo das regras estabelecidas seja pela pedagogia ou pelos fabricantes de brinquedos – o universo dos códigos enrijecidos do mundo adulto. Logicamente, quanto mais industrializadas as formas, isto é, quanto mais detalhados os manuais de regras que instituem os modos “corretos” de manusear um determinado brinquedo, mais este se torna estranho ao jogo do imprevisto que caracteriza a relação entre a criança e o brincar. Seja como for, é evidente que tais regras, embora assim possam desejar, não conseguem impedir por completo os desvios criativos operados pela infância: “As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias” (AGAMBEN, 2007, p. 67). Nas mãos das crianças, por mais que o desejo de controle seja ditado por regras comple167

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xas estabelecidas em longos manuais, nada escaparia aos usos acidentais e criativos: até mesmo “um automóvel, uma arma de fogo, um contrato jurídico transformam-se improvisadamente em brinquedos” (AGAMBEN, 2007, p. 67). Brincar significa, em última instância, realizar uma operação profanatória, instituir um uso inesperado. Ora, mas o que significa “profanar” um brinquedo? O que é um gesto profanatório? Segundo Agamben, no ensaio intitulado “Elogio da profanação”, sagrado é tudo aquilo que pertence ao domínio dos deuses, e que, dessa forma, é subtraído da esfera do uso comum entre os homens. Profanar seria, nesse esquema, restituir ao domínio do uso humano aquilo que havia sido dele removido para o circuito do sagrado: “se consagrar (sacrare) era o termo que designava [para os juristas romanos] a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens” (AGAMBEN, 2007, p. 65). Em poucas palavras, se a religião, por um lado, é precisamente o domínio daquilo que “subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada”, o profano refere-se àquilo que, por meio do toque ou de uma manipulação dessacralizadora, “desencanta e devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado” (AGAMBEN, 2007, p. 65-66). Conforme Agamben declara, uma das formas mais comuns de efetivar a passagem do sagrado ao profano dá-se por meio de práticas que desregulam os ritos do sagrado, ou seja, que empreendem um desvio inesperado diante de acordos prévios. Em seu texto, Agamben (2007, p. 66) assinala que há um vínculo profundo entre as esferas do sagrado e do jogo: “a maioria dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sacras, de rituais e de práticas divinatórias que outrora pertenciam à esfera religiosa em sentido amplo”. Com o jogo, no entanto, quebra-se a unidade entre as práticas religiosas e o sagrado, uma vez que as ações do ritual são encenadas sem alusão direta, mas sim apenas implícita, ao domínio daquilo que se encontra separado. Em última análise, se é verdade que o jogo não abole completamente a esfera do sagrado, também é verdade que opera um desvio político importante na separação que ele profana. Assim, a brincadeira das crianças converte-se em profanação no exato momento em que incorpora o ritual, por exemplo, fazendo dele um novo uso que não responde integralmente às regras do religioso. A brincadeira é tão mais potente quanto maior for o potencial profanatório que nela estiver instituído.

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Contudo “o jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar” (AGAMBEN, 2007, p. 67), e isso se deve, em particular, segundo Agamben (2007, p. 71), ao fato de que o capitalismo “generaliza e absolutiza, em todo âmbito, a estrutura da separação que define a religião”. Se o ato de profanar implica restituir as coisas ao uso comum, o “capitalismo como religião” (BENJAMIN, 2013b) consiste fundamentalmente em executar a operação inversa, preservando intacta a estrutura religiosa de todas as atividades humanas ao mantê-las, portanto, distantes de qualquer ideia de uso. Em última instância, no capitalismo, o consumo impede o uso a partir de um sistema de substituição perpétua de mercadorias que, tão logo o proprietário as reconhece como suas, já precisam ser trocadas. (Não é preciso aludir ao fato de que a satisfação gerada pela aquisição de uma mercadoria por vezes se desfaz no exato momento em que o cartão de crédito assinala a compra como concluída). Para Benjamin (2013b), o paradoxo central do capitalismo, em sua constituição religiosa, estabelece-se do seguinte modo: se na religião o elemento da culpabilização regula a esperança tendo por base a possibilidade de redenção da alma, de salvação do ser, no capitalismo a esperança da salvação do ser transforma-se em seu próprio esfacelamento. Consequentemente o capitalismo demanda um processo de subjetivação no qual o consumo desmedido, desvinculado de uma materialidade pautada na supressão de necessidades básicas, estrutura-se em prol da realização de desejos individuais, criando a ideia de culpa – o sujeito escravo de seus desejos mundanos. O consumo é aquilo que nega o uso, e o consumismo, então, a figura definitiva de um mundo improfanável, porque sempre separado de nós: se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar (AGAMBEN, 2007, p. 71).

Já se disse que a criança constitui um outro radical, cujo nascimento, cuja presença enigmática nos coloca diante “de uma verdade que não aceita a medida do nosso saber, com uma demanda de iniciativa que não aceita a medida do nosso poder, e com uma exigência de hospitalidade que não aceita a medida de nossa casa” (LARROSA, 2015, p. 186). Desse modo, não cabendo em medidas preestabelecidas, a infância representa um risco para as estruturas enrijecidas do mundo adulto, que se apresentam como forçosas ou metafísicas, mas cuja historicidade o nascimento de uma criança acaba 169

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por sempre desvelar. É por isso que a infância se apresenta, inevitavelmente, como uma “palavra de risco”: “a entrada na infância reabre para a humanidade a dimensão do futuro, a partir da conexão com um passado que ainda persiste, que não termina como etapa concluída de um tempo sucessivo, que encaminha todas as coisas para um fim” (BINES, 2012, p. 214). Ao reabrir a humanidade para um outro mundo possível, a infância reinaugura o risco do uso em meio às mercadorias sagradas e improfanáveis do capitalismo, e por isso cabe a este a tarefa de neutralizá-la desde cedo. O mundo proposto por “KidzMondo” e parques afins, a rigor, projeta a infância como um campo que abriga potenciais consumidores, sem jamais admiti-la como “palavra de risco”, responsável por interpelar e historicizar, por meio de usos imprevistos, aquilo que se apresenta como inevitável. Em outras palavras, a ideia de infância é preservada se capaz de gerar consumo e eliminar o uso; para a dimensão profana dessa mesma infância, que alimenta o uso ali onde o sagrado se apresenta, por outro lado, reserva-se um brinquedo como que improfanável. Vale a pena assinalar uma vez mais a destruição da infância tal como operada em “KidzMondo”: Primeira etapa da visita: uma passagem pelo Audi – o maior banco do Líbano, parceiro do projeto. Ali, as crianças podem escolher: depositar em sua conta um cheque de boas-vindas de 50 kidlars (a moeda local) ou sacá-lo. Elas também dispõem de um cartão de crédito em seu nome [...]’.

E no parque elas aprendem que brincar pode custar muito caro: Às vezes, alguns querem pagar em dólares ou em libras libanesas, e então nós respondemos: ‘Não, se você quer este brinquedo, primeiro você precisa trabalhar’. É aí que nossa vocação educativa se torna evidente. Porque este é o objetivo do KidzMondo: ensinar às crianças ‘que dinheiro não dá em árvore’ (KIDZMONDO, 2014).

A perspectiva adultocêntrica de “KidzMondo” converte as crianças em seres alienados de si mesmos, submetidos a um futuro que se lhes apresenta como incontornável, repleto de bancos, dinheiro, profissões, profissionais, redes de fast-food, outdoors, câmeras de vigilância, famílias, delegacias, funcionários, patrocinadores, ares-condicionados, luzes artificiais – enfim, o mundo adulto, em miniatura e naturalizado.

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Câmara Mirim e o mundo adulto improfanável Assim, seguindo o argumento de Agamben, a agenda política da infância corresponde à possibilidade de restituir ao uso comum aquilo que se aloja na esfera do sagrado. Como dito, essa passagem só é possível a partir de uma manipulação profana e imprevista das coisas, contrária às regras que as preservam em um terreno separado e sacro. Em resumo, o que há de político na infância refere-se a algo que não se deixa capturar ou reproduzir, a um conteúdo incerto que “dissolve a solidez do nosso mundo e que suspende a clareza que nós temos de nós próprios” (LARROSA, 2015, p. 187). A infância é o descontínuo que rejeita o programa, a singularidade que ameaça a normatividade das regras; a infância é o surgimento do qualquer. Mas cabe aqui o alerta: “a singularidade qualquer, que quer se apropriar do próprio pertencimento [...] e recusa, por isso, toda identidade e toda condição de pertencimento, é o principal inimigo do Estado” (AGAMBEN, 2013, p. 79). O ser sem identidade, o ser qualquer, que não responde de modo previsível a uma agenda preconcebida, o ser que institui usos inesperados a coisas sacralizadas, dessacralizando-as, não corresponde exatamente ao que o Estado espera de seus sujeitos. É preciso atribuir identidades estáveis e neutralizar a irrupção enigmática da infância. Ainda nas palavras de Agamben (2013, p. 10, grifo do autor), o ser qualquer nos possibilita vislumbrar “a comunidade que vem”, pois “não toma, de fato, a singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum, mas apenas no seu ser tal qual é”. Cabe explicar: o ser qualquer, ao mesmo tempo que preserva o seu ser tal qual é, ou seja, ao mesmo tempo que consegue manter a sua singularidade livre das forças homogeneizantes da vida em comunidade, não é de todo indiferente ao pertencimento e à ideia do comum, mas apenas à sua imposição silenciadora. A criança, como um ser qualquer, interpela o mundo adulto a partir da sua singularidade e do seu ser tal qual é, mas o faz também sob a possibilidade do pertencimento. A tarefa política da infância ocorre nesse lugar fronteiriço em que o pertencimento jamais significa submissão integral, mas sim, em certa medida, também desajuste. Dessa forma, a criança situa-se, de uma só vez, dentro e fora da própria vida que lhe dá origem, sendo esse impasse condição indispensável para sua atuação política e profana. Se o consumo nega o uso, insistindo em uma troca perpétua de mercadorias, a criança é o qualquer irrastreável capaz de provocar o curto-circuito da separação religiosa. 171

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A incompletude da criança, como um “ainda-não-adulto”, é, simultaneamente, a promessa de perfeição e imperfeição atual. Nesse sentido, a representação da infância é socialmente determinada, pois expressa os desejos e as possibilidades vindouras bem como as recusas e a negação de atribuições da sociedade e dos adultos que nela vivem. Compreendemos que a relação entre o mundo adulto e a infância estabelece-se por meio da autoridade do adulto sobre a criança e que, necessariamente, nessa relação expressam-se as formas dominantes de autoridade de uma dada sociedade. A “adultização” da criança, a redução do tempo da infância e do brincar, em vistas de uma antecipação da vida adulta e de sua carga de responsabilidades, é a síntese de tais formas de dominação: uma biopolítica, nos termos de Foucault (2008), aplicada à infância. Para Charlot (2013, p. 171), a “criança é um ser socialmente rejeitado”. Ela é totalmente afastada das relações vinculadas à produção da existência e só passa a ser considerada em sua condição própria, de forma direta, como consumidora e, indiretamente, como filha de consumidor. A partir de uma racionalidade econômica pragmática, verificada em sua expressão mais desenvolvida no capitalismo contemporâneo, a criança e o processo de “adultização” dela se estabelece tendo em vista uma espécie de capitalização (CHARLOT, 2013). A educação da criança transforma-se, assim, em uma “poupança” ou “ações da bolsa de valores”, como um investimento a médio e longo prazo. Nesse caso, a antecipação da vida adulta e da carga de responsabilidades sobre si e sobre os outros, providenciada seja pelas relações sociais cotidianas (a ida a um “KidzMondo” ou a participação na Câmara Mirim) ou pela educação formal (o “acúmulo” de diplomas e certificados), insere a criança em uma lógica de produtividade futura, na qual a família pode beneficiar-se em termos futuros de um suposto “capital familiar” (CHARLOT, 2013, p. 196). Em sua condição dominada de “ainda-não-adulta”, a criança participa muito pouco das decisões nos diversos âmbitos da sociedade, inclusive daquelas que lhe dizem respeito diretamente. Consequentemente, “é apenas em caráter consultivo (na família), ou enquanto figurante (na escola), ou em simulações organizadas pelos adultos (“como é que as crianças votariam?”) que nos dirigimos a ela” (CHARLOT, 2013, p. 172). Ora, é justamente aí que a Câmara Mirim converte-se em projeto silenciador: a proposta de incluir as crianças na vida política da sociedade adulta não se dá a partir da aceitação da política que é própria à infância, 172

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irreprodutível, inapreensível e, em uma só palavra, profana, capaz, inclusive, de deixar entrever uma outra política possível. O convite faz-se a partir do adulto, com vistas a preservar de modo intacto – e, pode-se dizer, separado – um funcionamento político que não raro tem se revelado antidemocrático, excludente e corrompido; a bem da verdade, o convite que se faz à infância é o da estetização da política – aprender, desde cedo, a imitar os trejeitos e a linguagem daqueles que supostamente conduzem a sociedade –, e não o da politização da vida, gesto para o qual, aliás, a infância não precisa ser convidada, pois dele participa desde sempre ao ocupar a zona limítrofe e profana do dentro e do fora. Em “KidzMondo”, como já se observou, não há esfera política alguma, há tão somente trabalho-dinheiro-consumo, em uma articulação inescapável. Na Câmara Mirim, por outro lado, há apenas “política”, não a política da infância em seu impulso desregulador, mas a mesma política-simulacro, a política-espetáculo com a qual o mundo adulto acostumou-se a conviver. O sítio intitulado “plenarinho” define assim a Câmara Mirim: O Câmara Mirim acontece todos os anos, promovido pelo Plenarinho, portal infantil da Câmara dos Deputados. As crianças enviam projetos de lei sobre assuntos de seu interesse. Os autores dos três melhores projetos vêm à Brasília em outubro para defender sua proposta em comissão e no Plenário da Câmara dos Deputados. Cerca de 350 crianças e adolescentes, trazidos por suas escolas e câmaras mirins municipais, viram deputados e deputadas por dois dias, discutindo e votando os projetos na Câmara. No dia 20 de outubro, os projetos serão discutidos em três comissões. No dia seguinte, crianças e adolescentes tomarão conta do Plenário Ulysses Guimarães, ocupando a Mesa Diretora, a tribuna, tendo voz, vez e voto, igualzinho ao trabalho dos deputados. Não é muito legal? (CÂMARA MIRIM, 2016).

Com efeito, ao afirmar que as crianças têm “voz, vez e voto”, o que se diz, na verdade, é que elas serão ouvidas – a palavra lhes será concedida – contanto que atuem estritamente no campo da legalidade do mundo adulto. “Dar a palavra”, nesse sentido, não significa “fazer com que as palavras durem dizendo cada vez coisas diferentes, fazer com que uma eternidade sem consolo abra um intervalo entre cada um de seus passos, fazer com que o devenir do que é o mesmo seja, em sua repetição, de uma riqueza infinita”, ou “dar o que não se tem” (LARROSA, 2001, p. 291); significa, isso sim, impor um modo único e exclusivo de dizer e uma forma rígida e absoluta de validação 173

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do que é dito, tudo isso sob o pretexto da suposta abertura à alteridade das crianças. Não por acaso, logo a seguir, de modo sintomático, lemos que a participação na Câmara dá-se “igualzinho ao trabalho dos deputados”. Vale mais uma vez observar, no entanto, que, embora a Câmara Mirim deseje contar com a inserção das crianças sob o ponto de vista da semelhança, ou mesmo do mimetismo – imitar um destino como que irremediável e uma política estetizada –, a política da infância é da ordem das singularidades, da diferença, do inapreensível. A Câmara Mirim, em vez de dialogar com a infância, institui, antes, um retrato único e exclusivo de si mesma e da intolerância do Estado diante das políticas desviantes do ser qualquer. As leis já aprovadas na Câmara Mirim, por via de regra, confirmam uma sensibilidade adulta introjetada nas crianças, uma forma legalista e pré-conceitual de responder aos impasses da vida em sociedade. Sob a forma da atuação política, incentiva-se o olhar fiscalizador e punitivo, característico, por exemplo, de um biopoder autoritário e regulador: Lei: fumo perto das crianças. Artigo 1º Fica determinado que não é permitido o fumo de cigarros perto de menores de 18 anos. Parágrafo único – Define-se perto como até 12 (doze) metros de distância. [...] Artigo 3º O cidadão que desobedecer à lei será punido com multa de 1 (um) salário mínimo (CÂMARA MIRIM, 2016).

Independentemente do mérito das propostas, não resta dúvida de que por trás de grande parte das leis defendidas e/ou aprovadas na Câmara Mirim jaz o universo das regras e sensibilidades de um mundo adulto legalista, intolerante e excludente, que vê o outro como um potencial criminoso a ser controlado e eventualmente separado do convívio social. Se a Câmara Mirim realmente ensina algo às crianças, trata-se precisamente disso, de cultivar desde cedo um olhar incapaz de estranhar os regimes e dispositivos de identificação que estabelecem os binarismos excludentes do nosso convívio social. A sacralização das leis é o instrumento último para a preservação do rígido corte entre, por exemplo, “normal” e “anormal”. Se a educação institucionalizada por vezes imprime aos sujeitos “[...] toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira) [...]” (FOUCAULT, 1987, p. 149), a aliança entre as escolas e o poder legislativo, tal como operada 174

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pela Câmara Mirim, sofistica ainda mais a lógica disciplinar que estrutura o aparelho educativo do Estado. Assim, se de fato “uma criança alcança o verdadeiro no próprio instante em que aparece como alguém singular e irrepetível, como uma pura diferença irredutível a qualquer conceito [...], como um puro enigma que nos olha cara a cara” (LARROSA, 2015, p. 196), a escola não pode aliar-se a um projeto que obedece a um impulso contrário, isto é, que instrumentaliza a infância por meio da oficialidade que impõe gestos firmes, um olhar atento ao “impróprio”, uma fala convicta de si e uma conduta legalista homogeneizante e reprodutivista. Atuando no campo das leis, as crianças veem-se afastadas da própria política profana que lhes é particular, uma política que, em vez de produzir regras que separam, está associada a um gesto profanatório errante que, como tal, investe de uso aquilo que deste estava privado. A Câmara Mirim, por um lado, é um lugar de simulação; ela “simula a atividade legislativa, desde a elaboração do projeto até a votação em comissões da Câmara e no Plenário” (CÂMARA MIRIM, 2016). A infância, por outro lado, “não é o que está presente em nossas instituições, mas aquilo que permanece ausente e não abrangível, brilhando sempre fora de seus limites” (LARROSA, 2015, p. 185). Paralelamente, a escola, nesse esquema, vê-se diante de dois projetos irreconciliáveis: de um lado, uma política institucionalizante, que prevê como tarefa do sistema escolar introduzir as crianças em um mundo posterior, definitivo e improfanável (futuro, progresso etc. são suas bandeiras); de outro, uma infância parainstitucional, ou melhor, não institucional e desestruturante, a qual a escola acolheria sob o ponto de vista das singularidades plurais. Pensar a escola é pensar a sua tarefa diante desses projetos incompatíveis, para os quais a Câmara Mirim coloca-se como um caso simbólico, exemplo aqui submetido ao escrutínio. *** Ainda no livro Profanações, mas dessa vez no ensaio intitulado “Genius”, Agamben comenta que “as crianças sentem um prazer especial em se esconder. E não para serem descobertas no final” (AGAMBEN, 2007, p. 19). Hesitantes quanto à visibilidade que as sujeita a identificações fixas e a cumprir papéis específicos, as crianças encontram, “no próprio fato de ficarem escondidas, no ato de se refugiarem na cesta de roupa ou no fundo de um armário, [...] uma alegria incomparável, uma palpitação especial, a que não estão dispostas a renunciar por nenhum motivo” (AGAMBEN, 2007, p. 19). Ao contrário da 175

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sociedade do espetáculo, que tanto mais brilha quanto maior o seu poder de difusão e exposição, ou quanto mais estímulos gera, as crianças procedem por uma tática da invisibilidade, rejeitando de imediato qualquer identificação plena. A um esconderijo que pressupõe o reencontro posterior, elas preferem, em contrapartida, a suspensão da entrega, a alegria do não reconhecimento, do não pertencimento. Na brincadeira de esconde-esconde, cujo desfecho seria o esclarecimento de todos os lugares recônditos, como um ato ao mesmo tempo de rebeldia e fidelidade, as crianças não se oferecem à luz, evitando, assim, comprometer o espaço mágico do desaparecimento. É pensando nas crianças e em sua paixão pela invisibilidade que Benjamin (2013a, p. 99) redige o seu pequeno guia dos esconderijos, voltado, em particular, para a arte de esconder ovos de páscoa: “esconder significa: deixar rastro. Mas invisível. É a arte da mão leve”. Situada na zona limítrofe entre o visível e o secreto, a arte de esconder ovos é também um exercício de honestidade: “quanto mais arejado por um esconderijo, tanto mais engenhoso será. Quanto mais exposto aos olhares de todos os lados, tanto melhor” (BENJAMIN, 2013a, p. 99). Essa arte sutil é característica da política da infância, pois dirige-se ao outro em um jogo ambíguo de ocultamento e revelação, localizado no exato limite entre se deixar apreender e acabar por escapar por entre os dedos, desestabilizando aquele que quer identificar. À luminosidade que tudo esclarece e expõe, a arte de esconder propõe um jogo de sutilezas e provocações: “jogo honesto: esconder tudo de modo a que possa ser encontrado sem se ter de deslocar nenhum objeto. Mas também sem pôr nada a descoberto” (BENJAMIN, 2013a, p. 99). Brincar significa, para a criança, efetuar pequenos desvios. Em oposição aos esconderijos, à diferença, ao singular, ao imprevisível, ao furtivo, em resumo, ao inapreensível e profano da política da infância, “KidzMondo” e a Câmara Mirim realizam uma intervenção que encerra essa mesma infância no esquema da visibilidade absoluta e do controle efetivo do que se situa às margens da lei. Em outras palavras, reagindo à brincadeira que desloca as coisas da esfera do sagrado para o campo do uso comum, o convite que o adulto faz para que a criança participe integralmente do seu mundo dá-se a partir de um brinquedo como que improfanável, um jogo que não permite que suas regras sejam alteradas. O resultado efetivo é o alinhamento gradual do desviante à norma, alienando-o de si mesmo e sacralizando o mundo que se lhe apresenta como definitivo. O brinquedo improfanável é a estratégia final do capitalismo para neutralizar a possibi176

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lidade de resistência que a abertura do novo – no caso, a infância – sempre reserva. Mas cabe aqui lembrar as palavras finais de Agamben (2007, p. 79) naquele mesmo texto, “Elogio da profanação”: “a profanação do improfanável é a tarefa política da geração que vem”.

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11 A EDUCAÇÃO COMO FALSO NEGATIVO33 Que trilha é essa na qual, ao me procurar, acabo me perdendo? Que cortina é essa que me separa de mim mesmo sob o pretexto de me proteger? E como me reencontrar nesses fragmentos desintegrados que me compõem? Avanço a uma terrível incerteza de que um dia eu consiga me apoderar de mim. [...] E com esse salto inútil em direção a mim, só o que consigo é que o meu presente seja tirado de mim: a maior parte do tempo eu vivo afastado daquilo que sou, ao ritmo do tempo morto... (VANEIGEM, 2016, p. 122).

A educação sempre ocupou um lugar importante nos debates situacionistas, não por seu caráter emancipador, crítico, subversivo ou mesmo revolucionário, mas sim por constituir, por trás de um discurso institucional muitas vezes autoelogioso e supostamente politizado, um espaço privilegiado para a conquista e reintegração do substrato rebelde da juventude, principalmente por meio de promessas de emprego, conforto e estabilidade – promessas que, no fim das contas, não podem ser cumpridas devido aos próprios movimentos instáveis e imprevisíveis do capitalismo. Em poucas palavras, as instituições educacionais capturam os estudantes ao lhes prometer uma recompensa impossível: escapar do funcionamento da máquina. Talvez o texto que veicule isso de maneira mais clara seja o conhecido manifesto de 1966 intitulado “A miséria do meio estudantil”, cujo intuito central, lido retrospectivamente em prefácio datado de 1995, teria sido o de mostrar que a luta dos estudantes “não pode, de maneira alguma, passar pelas soluções que já foram, há muito, previstas pelo próprio sistema: ‘a integração’, ‘o trabalho para todos’, ‘a reforma da educação’ e outras garantias de seguridade social” (I. S., 2002, p. 29). Atuando nesses termos, professores, estudantes e instituições educacionais permanecem no âmbito daquilo que poderíamos chamar de uma educação espetacular, pois, conforme lemos no mesmo prefácio, “a potência do espetáculo atual reside no fato de que ele governa não apenas o mundo que ele produz, mas também o sonho que 33 

O presente capítulo foi redigido em coautoria com o Prof. Dr. Rafael Rodrigo Mueller (Unesc). 179

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as suas vítimas criam para escapar de seu reinado” (I. S., 2002, p. 29). Ou, nas palavras de Debord, o espetáculo “é uma Weltanschauung que se tornou efetiva, materialmente traduzida” (DEBORD, 2017, §5, p. 38). A educação espetacular administra, portanto, uma forma de relação entre, por exemplo, os sonhos dos estudantes e o mundo objetivo que gera e alimenta esses sonhos sem a obrigação ou possibilidade de satisfazê-los: “com ou sem estudantes, o sistema dominante continuará a se construir contra todos. Eles podem optar por se tornarem cúmplices de seu próprio infortúnio. Mas devem pelo menos saber que não receberão nenhuma recompensa” (I. S., 2002, p. 29). O cerne da crítica que os situacionistas dirigem às instituições educacionais e seus respectivos agentes reside justamente nisso, na constatação de que a educação permanece, no mais das vezes, em fina sintonia com a passividade generalizada, o funcionamento do sistema mercantil, a sociedade da abundância – que é a sociedade da miséria –, o elemento positivo e conservador, a má consciência social, a servidão de todos, a obediência antecipada etc., isso tudo sob o frágil verniz de um suposto espírito crítico que circula tão bem quanto as mercadorias que tanto condena. O texto não poupa acidez em relação à universidade e aos professores universitários em particular: “que a universidade tenha se tornado uma organização – institucional – da ignorância, que a própria ‘alta cultura’ se dissolva ao ritmo da produção em série dos professores – isso o estudante ignora” (I. S., 2002, p. 35). Não obstante esse cenário, que talvez sinalize o próprio “fim” da ideia de educação como emancipação intelectual e afetiva, o presente capítulo propõe-se, em primeiro lugar, a depreender – por meio de um percurso indireto ou mesmo negativo – aquilo que no livro A sociedade do espetáculo (1967), de Guy Debord, poderia ser vislumbrado como uma ideia formação humana a contrapelo, isto é, o tipo de formação ou educação necessário para a recusa do espetáculo e das imagens e procedimentos a ele associados. A seguir, atravessada a formulação do que seria uma formação verdadeiramente crítica e desviante em Debord, busca-se investigar os contornos daquilo que aqui chamamos de “educação como falso negativo”, ou seja, as principais características de um discurso que valoriza a educação sem conceituá-la ou predicá-la suficientemente, inaugurando um termo positivado mesmo em suas operações mercantis, fetichizadas e alienantes. O discurso segundo o qual “quanto mais educação, melhor”, mesmo em seu contorno aparentemente crítico, carece de um movimento fundamental para a saída 180

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do domínio espetacular: a caracterização do que exatamente entendemos por educação e formação humana. É disso que se ocupa o presente texto. Educação para além do espetáculo Apesar de um tempo em que as modernas condições de produção fazem da vida “uma imensa acumulação de espetáculos”, um tempo em que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (DEBORD, 2017, §1, p. 37), um tempo que prefere “a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser...” (FEUERBACH apud DEBORD, 2017, p. 37), apesar de tudo isso, é possível vislumbrar no livro A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, embora por uma via por vezes estritamente negativa ou invertida, uma ideia de educação ou formação humana tornada agora precária pelo desenvolvimento atual da sociedade capitalista. É bem verdade que, para Debord, não há formação intelectual possível em uma organização social totalmente dominada e regulada pela esfera da economia, pois “o espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo” (DEBORD, 2017, §14, p. 41), tornando a sua própria reprodução a única finalidade para o curso das coisas, seus meios sendo também seus fins. Ainda assim, como dito, pode-se depreender do volume de 1967 os indícios daquilo que integraria um conceito forte de educação ou formação e que permitiria, portanto, a formulação de uma crítica potente para o tempo presente. Vale citar, entre outros sinais mínimos para um percurso intelectual verdadeiramente formativo em Guy Debord, a recusa do paradigma da positividade do espetáculo, a violência contra a “produção circular do isolamento” e da separação, a instituição de outra temporalidade que não aquela do fluxo perpétuo do trabalho e das coisas e, por fim, a restituição da “inutilidade” radical da arte – seu peso real na vida em comum –, ou a apresentação da arte como uso desviado. Pensar a educação ou a formação para além da sociedade do espetáculo ou mesmo a partir dela significaria, nesse esquema, confrontar-se crítica e violentamente com esses elementos. Sem essa dimensão humana, permanecemos no domínio de uma educação como falsa negatividade ou da formação espetacular. No sexto fragmento do primeiro capítulo do livro, intitulado “A separação consumada”, Debord comenta que “o espetáculo se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível. Não diz nada além de “o que aparece é bom, o que é bom aparece’” (DEBORD, 2017, §12, p. 181

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40-41). Em outras palavras, a sociedade do espetáculo procede por meio de um paradigma da contínua exposição de mercadorias ou mesmo de pessoas – condição que apenas se agravou em nosso tempo de Twitter, Facebook, Tumblr, Instagram, Snapchat, WhatsApp, Skype, blogs, vlogs, youtubers etc. –, a ponto de negar a condição de existente àquilo que não consegue circular ou que pouco circula. Com isso, se, por um lado, as mercadorias podem apresentar-se como coisas imediatas, “sensíveis e suprassensíveis”, gerando a ilusão de nelas haver uma vida (por vezes até mesmo uma vida “espiritualizada”), as pessoas, por outro lado – e eis a dimensão mais perversa disso –, podem ter sua existência negada se incapazes de produzir estímulos e positividade. “Ser é ser percebido”, nos diz esse paradigma da excitação em sua formulação mais contemporânea (cf. TÜRCKE, 2010), e assim, aquilo que não consegue fazer ver ou ser visto tende ao desaparecimento ou à possibilidade de ter sua humanidade colocada em xeque. Conforme Anselm Jappe (2008, p. 17) explica, “a análise de Debord parte da experiência cotidiana do empobrecimento da vida vivida, de sua fragmentação em esferas cada vez mais separadas [...]. Tudo o que falta à vida acha-se no conjunto de representações independentes que é o espetáculo”. Desarticular o domínio do espetáculo significa, pois, alimentar uma disposição contrária àquela da aceitação passiva ou sem réplica da luta contínua por visibilidade no domínio desse mesmo espetáculo que apenas confere bases terrestres às ilusões religiosas. Diante de um novo estatuto ontológico em que a própria existência vê-se diretamente vinculada à capacidade de se apresentar como produtora de “imagens” ou positividades que mediarão as relações humanas, o gesto crítico encontra-se na saída ou recusa radical de uma posição estritamente contemplativa – “quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nunca age” (DEBORD, 2017, Com. §VIII, p. 207) –, em uma agressão cometida contra as principais bases do espetáculo, que são, entre outras, a “renovação tecnológica incessante” e a “mentira sem contestação”. Por meio da inovação tecnológica sem fim, “todos se veem inteiramente entregues ao corpo de especialistas, a seus cálculos e a seus juízos sempre satisfeitos com esses cálculos” (DEBORD, 2017, Com. §V, p. 199); já a mentira sem contestação diz respeito não só ao desaparecimento da opinião ou atuação pública, mas também a uma verdade que cessa de existir como elaboração e verificação política. Interromper o império da positividade ou elaborar uma crítica ao novo paradigma sensível imposto pelo espetáculo nada mais é do que violentar a contínua exposição de si e produção de estímulos que caracteriza a sociedade positiva – a sociedade do espetáculo. 182

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A dificuldade de simplesmente fazê-lo, contudo, relaciona-se justamente ao fato de que o espetáculo “domina os homens vivos quando a economia já os dominou totalmente” (DEBORD, 2017, §16, p. 41), ou seja, compreender a sua estrutura maior significa debruçar-se sobre o funcionamento da mercadoria e a separação fundamental dela resultante. Como Debord anuncia, “a separação é o alfa e o ômega do espetáculo” (DEBORD, 2017, §25, p. 45, grifo do autor): a unificação positiva produzida pelo conceito de espetáculo resulta da afirmação da aparência e da separação como verdades gerais, cujas bases residem, não por acaso, no funcionamento fetichizante da mercadoria. Aliás, conforme Anselm Jappe repetidamente observa, quando dissociada de sua crítica radical ao fetiche da mercadoria, a expressão “sociedade do espetáculo” simplesmente perde qualquer atualidade e efetividade, atuando como um mecanismo frouxo para a apreciação do funcionamento das imagens e das diferentes mídias na contemporaneidade ou no chamado mundo “pós-moderno”. Na verdade, a sociedade do espetáculo decorre menos do império das imagens que de um fetichismo que “constituiu-se ‘nas costas’ dos participantes, de maneira inconsciente e coletiva, e tomou toda a aparência de um fato natural e trans-histórico” (JAPPE, 2015, p. 17). Ao se apresentar de maneira imediata como um dado natural, apagando a ordem social e histórica a partir da qual ela surge, bem como as relações humanas que por meio dela se estabelecem, a mercadoria elabora uma narrativa ao mesmo tempo abstrata e não histórica – o que confere a ela seu caráter “fantasmagórico” e “religioso” –, mas capaz de produzir uma pseudoexperiência coletiva e unificadora para o convívio social. É exatamente essa unificação por meio da separação ou de uma incompreensão fundante que inaugura um isolamento circular, um individualismo em meio à multidão: “o isolamento fundamenta a técnica; reciprocamente, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das ‘multidões solitárias’” (DEBORD, 2017, §28, p. 47, grifo do autor). Nesse sentido, as operações da mercadoria alcançam seu paroxismo no circuito das imagens – televisivas, cinematográficas etc. –, inaugurando um mecanismo muito eficiente no sentido de plasmar uma narrativa tanto coletiva quanto separada, à parte, individual. Assim, a recusa do espetáculo é, antes de tudo, a negação do individualismo alienado resultante de um mundo ao mesmo tempo unido e dividido pela mercadoria e pela invocação sem fim de imagens alheias e abstratas, porém centralizadoras e que fazem a elas tudo convergir. A separação de 183

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que Debord fala abandona-nos em um mundo de competição, consumo, produtivismo etc., que é igualmente um mundo de fracasso, solidão, passividade e incompreensão, tudo isso alimentado pela circulação de imagens espetaculares e representações à parte. É na contramão desse processo generalizado de separação, veiculado por seu mecanismo fundamental, a mercadoria, que se encontra a possibilidade de uma formulação teórica potente contra o espetáculo: “por esse movimento essencial do espetáculo [...] é que reconhecemos nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem, à primeira vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo sendo tão complexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria” (DEBORD, 2017, §35, p. 51, grifo do autor). A centralidade da mercadoria pode ser percebida por meio do seu inverso proporcional, isto é, da redução da esfera do uso ou da passagem do uso para algo que Debord chama de pseudouso, pseudouso da vida: “o espetáculo é o dinheiro que apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a totalidade da representação abstrata” (DEBORD, 2017, §49, p. 58, grifo do autor). Ora, é justamente por isso que, como resposta à precarização da existência e à equivalência entre vida e mercadoria, encontramos tanto em Debord como nos demais textos situacionistas o elogio ao ócio, a recusa do trabalho, o princípio do prazer e inúmeros depoimentos de uma vida vivida não em nome de cargos, instituições ou do dinheiro, mas sim em nome de uma ideia de uso que agride a lógica produtiva e separada do mercado. Em um tempo como o nosso, de reformas que buscam submeter a escola e a universidade a necessidades estritamente mercadológicas, aproximando-as do funcionamento autocentrado de uma empresa – Reforma do Ensino Médio, Escola sem Partido etc. –, o relato de Debord soa como um escândalo verdadeiramente intelectual projetado contra as forças deformadoras do capitalismo e de suas instituições: Eu não podia sequer pensar em aprender uma única dessas sábias qualificações que conduzem a ocupar os empregos porque elas me pareciam completamente estranhas a minhas inclinações ou contrárias a minhas opiniões. As pessoas que eu admirava mais que ninguém no mundo eram Arthur Cravan e Lautréamont, e eu sabia perfeitamente que, se tivesse consentido em prosseguir estudos universitários, todos os seus amigos teriam me desprezado [...]. Doutor em nada, eu me mantive firmemente afastado de toda aparência de participação nos meios que então se passavam por intelectuais ou artísticos. Confesso que, nesse caso, meu mérito se encontrava bem temperado por minha soberba preguiça, como também 184

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por minhas escassas capacidades para enfrentar os trabalhos de semelhantes carreiras (DEBORD, 2002, p. 20-21).

Longe de revelar tão somente uma “incapacidade” para o trabalho ou mesmo uma “opção de vida”, tão ao gosto individual e consumista do tempo presente, os comentários dirigidos à vida em comum e a opção pelo uso são uma constante entre Debord e os demais situacionistas, atuando como uma forma de interrupção do fluxo de mercadorias e crítica da separação e adiamento contínuos que se dão em nome de um futuro que efetivamente nunca chega: “o que o espetáculo oferece como perpétuo é fundado na mudança, e deve mudar com sua base. Para ele, nada para [...]” (DEBORD, 2017, §71, p. 71). Se Debord (2002, p. 20) confessa jamais ter dado, quando jovem, a mínima atenção para questões pessoais abstratas, “relativas ao futuro”, os manifestos situacionistas são ainda mais diretos em seus ataques, por exemplo, à “miséria do meio estudantil” e às expectativas de futuro promissor e de entrega absoluta que ele gera: uma das vitórias do espetáculo foi ter feito “do direito ao trabalho, isto é, à escravidão assalariada, a reivindicação social central. Os estudantes, como de hábito, colocaram-se no centro desse movimento” (I. S., 2002, p. 28). Para Debord e os situacionistas, a recusa do trabalho e de uma lógica institucional que muito precocemente captura as novas gerações em um mesmo esquema de aclimatação social constitui, sobretudo, uma interrupção das formas de existência reguladas a partir da sobrevivência individual e separadas no mundo graças ao fluxo da produção e do consumo. Dentro dessa lógica, embora por vezes travestida de tonalidades críticas, a formação inicial ou universitária é, segundo os situacionistas, apenas um modo de antecipação da mediocridade conservadora e oportunista da vida adulta: o estudante “desempenha um papel provisório, que o prepara para o papel definitivo que irá assumir, como elemento positivo e conservador, dentro do funcionamento do sistema mercantil. É apenas uma iniciação, e nada mais que isso” (I. S., 2002, p. 32). Nesses termos, a vida do estudante é uma ilusão transitória que conduz gradativamente àquele mesmo futuro de cargos, posições, hierarquias, dinheiro e mercadorias que ele por vezes denuncia na criticidade passageira do espírito universitário. Surge da interrupção e da luta contra esse cenário de colonização do mundo estudantil, então, uma outra temporalidade, uma forma de modificar a relação com o tempo, submetendo-o ao domínio do uso. O percurso formativo tem que ver com a quebra do vínculo que as instituições impõem entre estudo e trabalho, educação e emprego, competição e sucesso; a rigor, 185

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“os situacionistas sempre manifestaram desprezo pelo humanismo das boas almas, que no fim das contas nada mais pedem do que um pequeno lugar no espetáculo” (JAPPE, 2008, p. 193). A oposição mais radical à busca por um lugar ao sol encontra-se no slogan situacionista Ne travaillez jamais, “Não trabalhe nunca”, ou então em outras formas coletivas de celebração do uso e recusa do trabalho alienado: “as revoluções proletárias serão festas ou não serão nada, pois a vida que anunciam será, ela própria, criada sob o signo da festa. O jogo é a última racionalidade dessa festa, viver sem tempo morto e gozar, sem impedimentos, são as únicas regras que ele poderá reconhecer” (I. S., 2002, p. 59). São antecipações formativas dessa festa e desse jogo a comunicação, a escrita sem pressa, o diálogo, a “insubmissão das palavras”, a vida cotidiana, o uso desviado ou imprevisto, o prazer, as ruas e, é claro, o domínio da literatura, da poesia e das artes. Sabe-se, entretanto, que a sociedade do espetáculo ocupa-se também dos espaços a princípio reservados ao jogo e à festa, como no caso das artes e sua conversão em mercadoria. Para Debord, a arte, em sua configuração espetacular e mercadológica, encontra-se morta ou irrealizável como tal: “Quando a arte tornada independente representa seu mundo com cores brilhantes, um momento da vida envelheceu e não se deixa rejuvenescer com cores brilhantes. Deixa-se apenas evocar na lembrança. A grandeza da arte só começa a aparecer no ocaso da vida” (DEBORD, 2017, §188. p. 146-147). Em outras palavras, uma vez convertida em produto e comercializada a preços escandalosos e irreais, a arte assume ela própria a contradição interna daquilo que nasce não para ser usado, mas sim para circular e ser consumido, e assim, quanto mais brilha como um valor abstrato e fetichizado – em museus, galerias e na mídia, por exemplo –, menos ela se aproxima do uso ou se apresenta como conhecimento histórico partilhado. Se o propósito e dever da arte é realizar-se como uso na vida comum, a sua circulação nas esferas das instituições culturais, absorvidas e controladas, por sua vez, pela necessidade de produzir visibilidade e dinheiro, representa o fim da arte e a impossibilidade da sua encarnação na vida quotidiana; conforme Jappe resume, “a arte devia ser ‘a linguagem da comunicação’, mas a perda progressiva de todas as condições de comunicação levou a linguagem – a da literatura e a das artes figurativas – a constatar justamente a impossibilidade de uma comunicação” (JAPPE, 2008, p. 92). E mesmo a arte vanguardista responsável por elaborar historicamente a consciência da destruição da arte viu-se incorporada pelo próprio dispositivo por ela denunciado. Eis o destino 186

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trágico das vanguardas: sem um mecanismo crítico de autodestruição ou de permanente autocrítica, acabam fadadas a um desaparecimento silencioso ou espetacular em meio às demais mercadorias artísticas. O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. [...] O dadaísmo e o surrealismo estão historicamente ligados e, ao mesmo tempo, em oposição. [...] O dadaísmo quis suprimir a arte sem realizá-la; o surrealismo quis realizar a arte sem suprimi-la. A posição crítica elaborada desde então pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte (DEBORD, 2017, §191, p. 149, grifo do autor).

Assim, a superação da arte, sua morte como presença e uso vivos na vida cotidiana, resulta tanto da tentativa de realizá-la sem suprimi-la quanto de suprimi-la sem realizá-la. O que resta, então, de conteúdo formativo e de presença realmente social depois da morte da arte e do fim das vanguardas? Ou, para repetir a pergunta que Jappe (2013) lança em um de seus ensaios, “será que existe arte depois do fim da arte?”. Qual a presente tarefa histórica da arte em um momento em que sua utilidade vincula-se fundamentalmente às expectativas da indústria da cultura e do consumo? Para Debord, a arte deve operar a partir de um “estilo da negação”, ou melhor, a partir de um uso desviado capaz de subverter “as conclusões críticas passadas que foram cristalizadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentira” (DEBORD, 2017, §206, p. 157). A negação e o uso desviado, ao contrário de uma oficialidade museificada que não pode tornar-se senão citação, constituem o inverso da autoridade artística que desfaz o uso e o converte em verdade impessoal e abstrata. Ora, é bem verdade que “a realização da arte – pelo menos tal qual os situacionistas imaginaram – não teve lugar” (JAPPE, 2013, p. 228). A pergunta, talvez por isso mesmo, permanece mais atual que nunca: o que resta da arte como uso desviado, como negação, como prática social, como violência e intervenção, como resistência ao sentido, ou seja, o que resta dela como contradição? Pensar a arte na escola, na universidade e na educação em geral significa deparar-se com esse quadro de redução e domesticação do artístico em esferas separadas e organizadas para a admiração contemplativa e passiva do público. Em suma, criticar o espetáculo, tarefa da verdadeira educação e formação crítica, é tanto diferente de fazer a apologia do espetáculo quanto de realizar a crítica espetacular do espetáculo, gesto de quem se ocupa de estudar 187

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“a separação com a ajuda apenas dos instrumentos conceituais e materiais outorgados pela separação” (DEBORD, 2017, §196, p. 152). Parece-nos que instituições como a escola e a universidade têm se ocupado cada vez mais da apologia ou da crítica espetacular do espetáculo, sem encarar eticamente as consequências institucionais ou mesmo biográficas e individuais decorrentes de determinados posicionamentos teóricos – eis por que Debord condena tantas vezes a frequente distância entre teorização e a vida vivida. Dessa posição resta o cinismo autoesclarecido, parceiro da mercadoria, da separação, do consumo e principalmente do sofrimento alheio. De todo modo, como dito, há, em A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, por vezes por uma via inversa, o espectro de uma ideia de formação, que passa pela recusa da positividade do espetáculo, pela violência contra a separação mercadológica, pela instituição de outra temporalidade e, por fim, pela arte como uso desviado. Educação ou formação caminham por aí. O resto é educação espetacular. Educação como falso negativo Regrediram – sob a aparência de uma maior educação escolar e de melhores condições de vida – a uma rudeza primitiva. (PASOLINI, 1990, p. 30)

Há uma crença instituída no seio da sociedade do espetáculo de que a educação seria o meio fundamental não só de mantenimento de uma cotidianidade possível, mas de superação de possíveis entraves e contradições inerentes a essa forma social; nesse sentido, a partir de um quantum acumulado de saberes e experiências no âmbito educacional se instituiria, individual e coletivamente, um conteúdo formativo que possibilitaria aos indivíduos, de forma contraditória, tanto permanecer na vida espetacular quanto dela se emancipar. Tal constatação institui um imperativo para a educação na sociedade espetacular: “quanto mais, melhor”. Em outras palavras, quando mais educação, independentemente de seus predicados específicos ou de uma conceituação mais clara, tanto melhor o convívio social dos sujeitos e de suas diferenças. Diante de tal positividade integradora vinculada à educação, Debord (2017, Com. §V, p. 200) anuncia nos Comentários sobre a sociedade do espetáculo: “O fato de já não ter contestação conferiu à mentira uma nova qualidade. Ao mesmo tempo, a verdade deixou de existir 188

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quase em toda parte, ou, no melhor caso, ficou reduzida a uma hipótese que nunca poderá ser demonstrada”. Sem demonstrar o que “educação” significa, estamos diante de uma hipótese que pode ser apropriada, como todas as outras, pela mentira. Seguindo os passos de Guy Debord, reivindicar “mais educação” na sociedade regida pelo espetáculo não é de modo algum sinônimo de emancipação ou libertação, ao mesmo tempo que reafirmar tal positividade à educação seria esvaziá-la de qualquer conteúdo objetivo em termos de formação humana e, consequentemente, compreendê-la como uma abstração, um conceito esvaziado de sentido formativo, uma hipótese sem possibilidade de constatação. Ou melhor, uma hipótese só constatável como espetáculo, quando a particularidade se torna universal em sentido mercadológico, nesse caso, pela via única da meritocracia – o ideal abstrato axiologicamente neutro em que todos devem se espelhar. No mesmo rastro de inversão do real deixado pelo fetichismo da mercadoria, a educação fetichizada está subsumida a uma lógica de autonomização das relações sociais concretas expressa por meio de sua entificação: “só a educação pode transformar a realidade miserável e degradante na qual grande parte da humanidade ainda permanece...”, reza o mantra falso-negativo espetacular. Impor à educação tais poderes supostamente emancipatórios é criar uma abstração desprovida de materialidade tanto quanto o é defender a possibilidade de “trabalho para todos” no capitalismo moderno, ou, como afirma categoricamente Jappe (2017, p. 9): a “abolição do trabalho e do dinheiro não é mais um programa utópico e extremista, mas é realizada dia após dia pela crise capitalista. Existe sempre menos trabalho e menos dinheiro ‘verdadeiro’”. Ou seja, “educar para o trabalho” na sociedade do espetáculo não possibilita o “sonho acordado” da emancipação humana, mas sim a materialização do pesadelo distópico, treinando e armando cada membro da sociedade com competências e habilidades para a guerra de todos contra todos. Ora, educação e trabalho não são categorias que se apresentam como naturalmente críticas ao capitalismo e que se instituem a partir de uma negatividade crítica, mas sim partes constituintes de um todo integrado no qual reina o espetáculo repleto de positividade; nesse caso, a falsa oposição de tais categorias à sociedade mercantil expressa as condições reais e concretas de uma vida não vivida no e pelo espetáculo integrado. “O fetichismo dos fatos mascara a categoria essencial e os detalhes fazem esquecer a totalidade. Diz-se de tudo dessa sociedade menos o que ela efetivamente 189

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é: mercantil e espetacular” (I. S., 2002, p. 28, grifo do autor). Mais uma vez, sem uma caracterização forte do que é educação e por meio de sua projeção meramente positivada, corre-se o risco de operar com um conceito vago que pode ser rapidamente apropriado e preenchido por um uso estritamente mercadológico e espetacular, porém ainda assim também positivado, uma vez que se serve das sombras ou resíduos daquilo que é necessariamente bom e deve ser celebrado. Projetar na educação capacidades sociais das quais a humanidade crê depender para se desenvolver e se emancipar na atual forma social é, simultaneamente, fetichizá-la, retirando-a de todo e qualquer contexto histórico em que ela se constitui – mascarando, portanto, sua função mercantil –, e projetá-la como uma abstração generalizada que expressaria o potencial previsto em uma essência humana a-histórica. Sendo o fim último de tal entidade sensível e suprassensível formar os seres humanos para que possam cada vez mais se integrar ao cotidiano espetacular, a educação tal como se apresenta não pressupõe qualquer possibilidade de vida para além de um tempo presente que se repõe continuamente e no qual o desenvolvimento é visto como conformação. Conforme os situacionistas esclarecem, a “instalação da reificação no espetáculo, sob o capitalismo moderno, impõe um papel a cada um dentro da passividade generalizada” (I. S., 2002, p. 30). Sob tal condição, invocar “mais educação” para todos na sociedade mercantil, pautando a formação humana no falso-negativo de uma “educação para a liberdade”, nada mais é do que demandar a reprodução das mesmas condições sociais que criam a desigualdade e a miséria, onde o futuro é projetado enquanto réplica do presente, em uma eternização do tempo espetacular; ou, como afirma Guy Debord (2017, §2, p. 37), o “espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não vivo”. Assim, ação, dinamismo e proatividade para uma vida plena de possibilidades, como pressupostos de um processo formativo orientado pela educação em sua versão espetacularizada, tornam-se imagens do real invertido no qual reinam a passividade, a conformidade e a resignação para uma vida não vivida: “O espetáculo é a conservação da inconsciência na mudança prática das condições de existência” (DEBORD, 2017, §25, p. 45). A reivindicação por parte de organismos internacionais, bem como por todo o sistema do capital, de uma educação “para toda a vida”, “de qualidade” e que “forme para a cidadania”, expressa o desejo de integração total de uma parcela ainda considerável de pessoas no sistema mercantil a partir da forma-mercadoria 190

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que o trabalho assume no capitalismo. Nesse caso, uma “educação para o trabalho” que desenvolva as capacidades necessárias em cada ser humano de reproduzir e perpetuar a vida cotidiana é a autoafirmação do espetáculo integrado à nossa existência. No aforismo cinco de A sociedade do espetáculo, Debord reitera sua crítica radical a essa forma social quando afirma que o espetáculo não seria somente o acúmulo de imagens que a partir de tecnologias de informação e comunicação em amplitude global estariam, de forma inversa, excitando nossos sentidos – principalmente a visão –, a ponto de instituir uma Weltanschauung distorcida. Ou seja, o espetáculo não é representado na sociedade apenas pelo excesso de imagens que estariam condicionando nossa visão de mundo, muito embora essa seja, segundo Jappe (2008), a forma hegemônica de apropriação de sua obra pela academia. Logo antes, no aforismo quatro (DEBORD, 2017, §4, p. 38), lemos com clareza: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Tal como Debord, que elimina qualquer possibilidade de crítica radical à forma social do capital se pautada única e exclusivamente na constatação isolada da estimulação excessiva dos sentidos por parte dos meios de comunicação de massa, a crítica à educação para o trabalho na sociedade do espetáculo não pode dar-se somente pela verificação de sua falta ou existência mínima. Em outras palavras, a crítica radical à educação espetacular não pode se dirigir apenas à sua dimensão quantitativa, reduzindo a análise a um quantum formativo necessário, expressão fenomênica da educação no capitalismo moderno, mas sim e antes de mais nada aos seus meios, isto é, aos processos formativos relacionados a determinadas concepções teóricas, bem como sua vinculação à forma-mercadoria do trabalho como fim último. A relação causal “mais educação = melhor vida” é tão falsa quanto “menos educação = pior vida”, principalmente quando se analisa o processo formativo espetacular em relação à totalidade social e suas contradições inerentes; nesse caso, seria possível inclusive afirmar, de um ponto de vista existencial, que por vezes “mais educação = pior vida”. A métrica positivada vinculada permanentemente à educação pelo capital impõe à sociedade espetacular a gestão da existência a partir de uma abstração, a qual não se sustenta nem mesmo com a brisa leve das contradições que o próprio espetáculo institui, ou, de forma mais objetiva: “engenheiro = motorista de Uber”, ou “advogada = representante comercial”, assim como “camelô = 191

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palestrante motivacional de sucesso”, ou “jogador de futebol = fenômeno midiático multimilionário”. Pelas contradições inerentes ao movimento do real espetacular, cria-se uma série de disrupções formativas sob o ponto de vista profissional em que o possível produtivo estabelece-se a partir de empregos (jobs) momentâneos que criam o efeito dinâmico para uma vida não vivida. Sob esse viés, “ser empregável”, “ter empregabilidade” torna-se tão importante quanto ter uma profissão, até porque na sociedade do espetáculo, a forma como cada um participa da integração espetacular é absolutamente irrelevante tendo em vista a reprodução ininterrupta da produção, circulação e consumo de mercadorias. Sob tais condições, disrupções formativas conforme as descritas anteriormente não são consideradas em sua existência desviante da linearidade lógica normativa espetacular, mas como manifestações possíveis de uma “educação para o trabalho” integrada ao mercado. A marca de tal processo formativo é a unidimensionalidade da atividade humana, sendo tal atividade cindida e organizada a partir da mobilização previamente limitada de nossas potencialidades. Uma forma de existência que tão somente nos permite “o ensaio, mas não o emprego de nossa força” (DEBORD, 2010, p. 87). A crítica à educação pautada pela métrica positivada demarca seu próprio limite, ou seja, o centro dessa crítica, na sociedade do espetáculo, dá-se pelo acirramento das contradições que desestabilizam a normalidade do sistema – nesse caso, a crise em suas diversas dimensões (moral, social, econômica etc.) seria consequência da falta de educação por parte da população embrutecida. O falso-negativo de tal crítica é passível de plena incorporação pelo capitalismo moderno, gerando desde investimentos massivos em educação nos países “subdesenvolvidos” e “em desenvolvimento” – o perfeito alinhamento de métricas positivadas expresso pela fórmula “mais educação = mais desenvolvimento!” –, até a orientação de políticas educacionais em âmbito global. As respostas a essas e outras reivindicações – como a ampliação de liberdades culturais e sexuais ou de políticas de reconhecimento e identitárias para determinadas minorias, por exemplo – expressam o movimento autorregulatório no qual o falso-negativo transmuta-se em verdadeiro-afirmativo (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009). Pela lógica formal do espetáculo, as distorções provenientes do capitalismo moderno (negativo) e suas críticas (negativo), limitadas por sua própria normalidade perimetral, supostamente instituem uma existência melhor (positivo). Porém a crítica radical ao falso-negativo da crítica à educação 192

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demanda a compreensão dessa mesma estrutura lógica-normativa à luz do espetáculo, em que o resultado-síntese de tal abstração não é um estágio qualitativamente superior de existência, mas tão somente a falsa representação de uma dinâmica – a falsa mudança no real invertido – do tempo espetacular pseudocíclico resultante na recomposição do presente perpétuo. Aparentemente, teríamos “mais do mesmo”, porém, de fato, concretamente temos “mais” (quantitativamente) “do mesmo” (qualitativamente) “pior”, em que o plus resultante é a “mais-educação espetacular” – a valorização do valor integrada à educação –, que cada vez mais expressa cumulativamente menos as possibilidades de uma formação humana integral objetivada no plano do cotidiano. O resultado desse acúmulo dinâmico e constante de mais espetáculo é a “realização técnica do exílio, para o além, das potencialidades do homem; a cisão consumada no interior do homem” (DEBORD, 2017, §20, p. 43). O exílio, nesse sentido, não seria somente aquele das potencialidades humanas, mas também do próprio futuro, pois reproduzir na consciência a apropriação de uma realidade cotidiana organizada no e pelo tempo pseudocíclico e a partir de processos formativos orientados pela métrica positivada da educação espetacular é minar de antemão a possibilidade de projetar um cotidiano radicalmente distinto do presente. A mudança possível em termos de vida cotidiana estaria contida nos limites da ação orientada para o mercado no qual os indivíduos assumem papéis distintos não necessariamente estabelecidos de antemão, pois mesmo que se considere – contrário à sua lógica formal causal – a impossibilidade de garantir a todos funções fixadas pelo seu processo formativo (educação para o trabalho) na esfera economicamente ativa, é permitido aos atuais e futuros trabalhadores que contribuam para a manutenção e permanência da sociedade espetacular a partir de dinâmicos papéis que podem assumir de acordo com o quantum de habilidades e competências a eles fornecido. Uma formação humana omnilateral que crie a possibilidade real de integrar a essência humana – idêntica ao processo histórico e entendida como autocriação do homem no tempo (DEBORD, 2017) – e a existência humana não reificada são representadas no real invertido por uma educação que institui a impossibilidade de acesso à cultura humana historicamente constituída por meio de um processo formativo unilateral centrado na forma-mercadoria do trabalho assalariado. O resultado prático dessa condição providenciada pela educação espetacular em termos de sociabilidade possível é expresso por Debord (2010, p. 21) da seguinte forma: 193

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[...] separados entre si pela perda geral de toda linguagem adequada à ação, perda que lhes interdita o mínimo diálogo; separados por sua incessante concorrência, sempre pressionados pelo chicote, na consumação ostentatória do nada, e assim separados pela cobiça o menos justificada e minimamente capaz de fornecer qualquer satisfação [...].

Separados pela vida, integrados pelo espetáculo, eis o pressuposto formativo instituído pela sociedade espetacular. Movido por um pessimismo realista, Pier Paolo Pasolini (1990, p. 30), em sua obra Jovens infelizes, ao se referir tanto aos filhos da burguesia europeia quanto àqueles oriundos do proletariado, constata que tais jovens supostamente mais educados – tanto em termos de tempo escolar quanto de acesso aos bens culturais – não estariam constituindo um cotidiano menos alienante ou uma vida mais emancipada; pelo contrário, estariam cada vez mais dependentes objetiva e subjetivamente da irracionalidade mercantil. Tal qual os supostos “selvagens” que regiam suas relações sociais a partir de objetos inanimados, os seres humanos formados na e pela educação espetacular acreditam depender desta para se desenvolver em um mundo orientado pela abstração fantasmagórica da mercadoria, a qual, por sua própria natureza, nada tem a oferecer em termos de formação humana além da “consumação ostentatória do nada” (DEBORD, 2010). *** [...] uma vida única, digna de ser lembrada um dia. É exatamente o que o espetáculo nega e já nem sequer permite às minorias. (JAPPE, 2014, p. 129)

No conto “A história de Helbling” (1914), de Robert Walser, um retrato autobiográfico do personagem citado, encontramos uma descrição perfeita da produção da existência na sociedade do espetáculo: um sujeito que, apesar da juventude, parte da constatação de sua condição absolutamente vazia de sentido, sendo apenas mais um na “massa de muitos”. Um sujeito movido e orientado pelo tempo pseudocíclico da vida cotidiana – “[...] quando o relógio bate doze horas, saio do banco onde trabalho e corro pra casa, eles todos correm também” (WALSER, 2014, p. 41) –, autocentrado – “[...] só penso em mim e estou preocupado apenas em passar tão bem quanto possível” (WALSER, 2014, p. 42) – e absolutamente imerso no vazio cotidiano 194

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alienante – “Nunca julguei apropriada a paixão pelos grandes ideais que concernem à humanidade, uma vez que, por natureza, sou uma pessoa dada antes à crítica que ao entusiasmo, o que considero um elogio a mim mesmo” (WALSER, 2014, p. 48). Helbling encarna o doppelgänger espetacular, o ideal operativo em que a dinâmica esquizofrênica do duplo (o tempo pseudocíclico, a vida não vivida, a formação deformativa) é normalizada pela produção mobilizante e pelo consumo passivo. A forma como o personagem do conto de Walser estabelece a sua vida cotidiana sob os princípios de uma dualidade integrada em que a “consumação ostentatória do nada” institui-se por um processo educacional torna-se cada vez mais evidente no decorrer do conto: “[...] já sou educado o bastante para portar uma bengala com certo estilo, atar uma gravata em torno do colarinho da camisa, apanhar a colher com a mão direita e, se perguntado, responder: ‘Obrigado, foi muito agradável ontem à noite!’”. (WALSER, 2014, p. 48). Para a educação espetacular, tal qual a indicada por Helbling, mais importante do que uma formação humana integral é a constituição de uma personalidade adequada ao consumo produtivo do capital, em que o fetiche da mercadoria naturaliza a esquizofrenia socialmente constituída que nos impulsiona ao eterno tempo presente irracional. A inversão das relações na sociedade do espetáculo, em que os seres humanos são meramente suportes para a livre circulação de imagens espetaculares – a abstração suprema que organiza e integra nossa vida –, expressa tão somente o fim último posto para a educação nessa forma social: produzir e reproduzir a falsa sensação, individual e coletiva, de protagonismo diante da vida. A passividade atomizada, a mobilização imobilizante e a dinâmica 24/7 do sono acordado (CRARY, 2014) constituem, sim, as marcas fundamentais de tal sociedade, como tão bem explicita Helbling: É possível que isso seja uma vida humana, uma vida que a gente não sente ir adiante, avançar em direção ao fim? Até este momento, minha vida parece ter sido bastante vazia de conteúdo, e a certeza de que ela permanecerá assim resulta em algo infindo, algo que nos ordena a adormecer e a só fazer o absolutamente indispensável (WALSER, 2014, p. 46).

Em sua obra “Os empregados” (1930), Siegfried Kracauer analisa as condições objetivas de uma nova classe que se constituía nos grandes centros urbanos da Alemanha no período entre guerras: os empregados. Estes, a 195

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quem não era reservado o controle dos meios de produção, mas que também não se reconheciam como membros do proletariado, enxergavam-se – e necessariamente assim deveriam ser enxergados pelo mercado – a partir de uma tez moralmente cor-de-rosa. Tal maquiagem social deveria produzir sujeitos em que tal “vida colorida” fosse sinônimo de amabilidade, gentileza e cordialidade; nesse sentido, mais importante que a formação intelectual e profissional, era a conformação moral a uma realidade tudo menos cor-de-rosa (KRACAUER, 2015). Essa é a cor oficial do espetáculo integrado da vida não vivida: nem capitalista, nem proletário; nem tresloucadamente alegre, nem catatonicamente triste; nem excessivamente formado, nem totalmente imbecil. Na sociedade do espetáculo, em que a formação humana deixou de ser um horizonte colocado para a educação, toda e qualquer crítica supostamente radical permite tão somente acrescentar mais uma camada de maquiagem cor-de-rosa na face da grande massa de muitos. E mesmo uma camada tão grossa de cinismo já não permite mais disfarçar a rudeza das condições objetivas que tal massa disforme estampa no rosto. Talvez Helbling seja ainda o melhor modelo formativo de uma educação espetacular na qual o produto-mercadoria rejeita o próprio meio-produtor: “O que mais a educação pode fazer de mim? Sinceramente: acredito que ela estaria se metendo com a pessoa errada. O que almejo é dinheiro e uma dignidade confortável, esse é meu impulso educativo!” (WALSER, 2014, p. 48-49).

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Sobre os textos Uma versão anterior do texto “Literatura e formação” foi publicada no vol. 48, n. 167, 2018, da revista Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas. O ensaio “Literatura e semiformação” foi publicado no vol. 44, no. 4, da revista Educação & Realidade, de 2020. O capítulo intitulado “Literatura e negatividade” foi primeiramente publicado no vol. 29, n. 2, 2018, da revista Pro-Posições, vinculada à Faculdade de Educação da Unicamp. O capítulo “Um novo regime de percepção” foi publicado no vol. 24 da Revista Brasileira de Educação, em 2019. O ensaio “A literatura ausente” foi publicado pela primeira vez no n. 92 da Revista Letras, de Curitiba, em 2015. O capítulo “Rastros Autorais da Teoria” pertence ao livro que organizei em 2016 intitulado O lugar da teoria literária (Ediunesc; Edufsc). O capítulo “O caráter destrutivo da literatura” foi inicialmente publicado no livro que organizei junto com o Prof. Cristiano de Sales (UTFPR), intitulado O que significa ensinar literatura? (Ediunesc; Edufsc), de 2017. O ensaio chamado “Um brinquedo improfanável” foi redigido com o Prof. Rafael Rodrigo Mueller (Unesc) e publicado no vol. 35, n. 4, 2017, da revista Perspectiva, do Centro de Ciências da Educação da UFSC. O capítulo “A educação como falso negativo” também foi redigido com o Prof. Rafael Rodrigo Mueller e primeiramente publicado em Formação humana na sociedade do espetáculo (Ediunesc; Argos), volume de nossa organização, datado de 2019.

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