Sobre a autora: Romancista, filóloga e historiadora da literatura portuguesa, nascida em 1851, em Berlim, e falecida em
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Portuguese Pages 442 [443] Year 1956
Table of contents :
Falsa folha de rosto
Folha de rosto
Discurso de apresentação
Parte I
Lição I - Generalidades: Recapitulação do programa. Línguas românicas. O português — transformação orgânica do latim vulgar
Lição II - Generalidades: Períodos e características do português arcaico
Lição III - Generalidades: Palavras populares, eruditas e semi-eruditas
Lição IV - Generalidades: Formas divergentes ou alotrópicas. O problema ortográfico
Lição V - Derivação e composição: noções gerais, preliminares, teóricas
Lição VI - Derivação. Raízes (Radicais, temas ou Bases) e afixos. Sufixos mortos e sufixos vivos
Lição VII - Derivação. Excurso prosódico. Sufixos átonos e esdrúxulos: Explicação da sua actividade na linguagem popular
Lição VIII - Derivação. Sufixo -udo; Infixos -z- e -r-; aria — eria. Sufixos de proveniência não-latina. Outros processos de sufixação expressivos ou pitorescos
Lição IX - Resenha dos principais processos populares de sufixação. Derivação imprópria. Derivação verbal
Lição X - Prefixação. Excurso: névoas de antano. Prefixos nominais e verbais. Notas diversas
Apêndice: A ortografia nacional
I
I - Existe, ou não, ortografia portuguesa, oficial e uniforme?
II — Seria conveniente que a ortografia fosse oficialmente regularizada e simplificada?
III — Qual é a causa das anomalias da escrita portuguesa?
II
IV — A quem compete reformar a ortografia?
III
V — Há quanto tempo me ocupo de problemas ortográficos?
VI — Qual a forma de ortografia que eu prefiro? A «sónica» ou a etimolójica?
VII — Deverá repudiar-se em absoluto a etimolójica?
VIII — A adopção da forma sónica é aconselhada, ou não, pelo estudo das fontes vernáculas da língua?
IV
IX — Quaes são as modificações mais importantes que deverão ser introduzidas?
X — A reforma removerá, ou não, todas as dificuldades da escrita portuguesa?
XI — QUAL SERÁ A MANEIRA MAIS PRÁTICA DE PROPAGAR A REFORNMA?
Parte II
Lição I - Filologia: Noções etimológicas e semasiológicas
Lição II - História da Filologia
Lição III - Glotologia
Lição IV - Classificação das línguas
Lição V - Línguas indo-germânicas
Lição VI - A escrita. Os ramos itálicos do tronco indo-germânico
Lição VII - Línguas românicas ou neo-latinas
Lição VIII - O documento românico mais antigo (Juramento de Estrasburgo de 842) — Variantes ultramarinas das línguas românicas e dialectos crioulos
Lição IX - Cronologia dos falares romanços
Lição X - Latim falado e latim escrito
Lição XI - Latim vulgar — As suas tendências fonéticas, morfológicas e sintácticas
Lição XI - Latim vulgar. O acento, alma da palavra
Parte III - Lexicologia
Lição I (XIII) - Introdução
Lição II (XIV) - Fontes do léxico português
Lição III (XV) - Fontes do léxico português: Os elementos árabes
Lição IV (XVI) - Fontes do léxico português: Vocábulos provenientes das línguas faladas na Europa, na Idade-média
Lição V (XVII) - Fontes do léxico português: Estranjeirismos recentes
Parte IV - Lições práticas de português arcaico
Lição I - Transcrição crítica e análise vocabular do fac-símile 1, da crónica geral de 1404
Lição II - Transcrição do fac-símile II: Outra versão galego-portuguesa da crónica general
Notas suplementares, a respeito dos fac-símiles 1.º E 2º
Lição III - Transcrição do fac-símile III: Uma página das leis de partida
Lição IV - Transcrição do fac-símile IV, da crónica troiana escrita em galego-português
Lição V - Reprodução do fac-símile V, do Cancioneiro da ajuda (f. 4)
Lição VI - Transcrição do fac-símile VI, poesias do Cancioneiro da vaticana
Lição VII - Uma página do Cancioneiro Colocci-Brancuti
Índice alfabético de vocábulos
Índice geral
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
CAROLINA
MICHAÉLIS
DE
VASCONCELOS
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA SEGUNDO
CURSOS
AS
DE
PRELECÇÕES
1911,12
Seguidas
LIÇÕES
NOVA
PRÁTICAS
DE
E
FEITAS
DE
AOS
1912(,13
das
PORTUGUÊS
ARCAICO
EDIÇÃO DA 'REVISTA DE PORTUGAL —SÉRIE LINGUA PORTUGUESA — LISBOA
A—
DISCURSO
DE lido
NA
SALA
APRESENTAÇÃO
pela
Autora
DOS
CAPELOS
V. Ex.”, senhor Reitor, e ao sr. Dr. António de Vascon-
celos, Director da Faculdade de Letras, que juntos me abriram as portas desta Universidade, aos outros professores da Faculdade que, em congregação, em mim votaram e se reiiniram hoje para me dar as boas vindas, emfim à mocidade académica que me honrou com o seu espontâneo aplauso, a todos desejo agradecer e agradeço sinceramente a forma cativante, fizeram
a deferência, e a cordialidade do acolhimento que me na minha chegada a Coimbra, na Porta Férrea, na
Sala da Reitoria, e agora nesta histórica Sala dos Capelos.
Receando contudo que o fizesse mal num improviso, neste momento de profunda comoção que previa, tracei de antemão algumas linhas, liberdade que seguramente não me estranharão,
sabedores de que tenho andado sempre afastada de manifestações públicas. Falta-me em absoluto a fluência, a facilidade de palavra que à Natureza, tão pródiga com este país, concedeu a tantos dos seus filhos. Falta-me também a prática que até certo ponto pode suprir os dons naturais. Nunca subi a uma tribuna; nunca entrei em aulas académicas, a não ser como visitante. No tempo da minha juventude a entrada das Universidades ainda estava rigorosamente vedada às estudiosas do sexo feminino, mesmo em Berlim, minha cidade natal, a metrópole da inteligência, como é costume chamá-la.
A fôrça tive de ser autodidacta, tendo por mestres apenas livros. E os livros, elogiientes embora na sua mudez, não nos ensinam a discursar. Além disso, luto com o idioma, tão delicado e tão difícil, desta minha muito querida pátria adoptiva, sobretudo quando tento versá-lo, falando, como se fôsse o meu natural. Confesso
até que tão inclinada sou à língua de Kant e de Goethe —
o
sumo Júpiter no Olimpo poético moderno — que de preferência a uso no trato familiar com os meus. Se as palmas com que me receberam se destinavam anteCipadamente a um discurso brilhante que de mim esperavam, devia recusá-las envergonhada.
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LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Entendo todavia que elas são o prémio e consagração de alguma coisa que tenho feito em benefício de Portugal. Sinal de reconhecimento pelo profundo amor que me inspiram os feitos gloriosos dêste povo. Reconhecimento pelo meu esfôrço de compreender a alma portuguesa e de tornar melhor conhecidas, dentro das fronteiras e fora delas, as suas manifestações literárias mais perfeitas. Reconhecimento talvez também do interêsse especial que dedico à Lusa Atenas — esta terra cheia de magia, cercada de naturais encantos que fazem dela um paraíso para os poetas e um abrigo delicioso para o estudo — terra cercada também do prestígio de recordações históricas que venero. Neste sentido aceito-as; e agradeço-as com íntima satisfação. No lugar honroso em que o Govêrno houve por bem colocar-me em Lisboa, cedendo depois generosamente ao meu pedido de transferência (bem aceite e apoiado pelo Reitor e Faculdade), terei ocasião de continuar e aprofundar a missão literária que há longos anos venho desempenhando, muito embora nunca possa realizar as esperanças suscitadas pela extrema benevolência do meu elogiador. Para o bom desempenho das minhas novas funções careço mesmo da indulgência, do conselho e da cooperação efectiva e constante dos meus dignos colegas. Com ela conto; e também com a boa vontade e o zêlo instigador dos estudantes — visto que docendo discimus. Solicito-o, e encerro esta expressão singela do meu agradecimento e regozijo, fazendo votos pela prosperiídade da Alma Mater Conimbricensis. Pôrto — Coimbra,
19-1-12 (*).
(1) «19 de JANEIRO DE 1912. Esta data comemora a apresentação oficial Srº Dr.º D. Carolina Michaélis de Vasconcelos na Universidade de Coimbra. Às
da três horas da tarde daquele dia foi S. Ex.º recebida na Sala Grande dos Actos, onde se pronunciaram discursos festivos, alusivos à circunstância», Revista da Universidade de Coimbra. T. 191.
PARTE
[
LIÇÃO ! GENERALIDADES: [RECAPITULAÇÃO DO PROGRAMA. LÍNGUAS ROMÂNICAS. O PORTUGUÊS — TRANSFORMAÇÃO ORGÂNICA DO LATIM VULGAR.]
ONTINUANDO no caminho traçado pelo Ex.”º Sr. Dr. Vasconcelos, prosseguiremos na exposição das matérias que hão-de constituir o curso
de filologia portuguesa. O ilustre lente, depois de considerações gerais, e explicação sucinta do vocábulo filologia, assim como dos sinónimos glotologia e glótica, na acepção lata e na restrita, — passou à classificação das línguas e, em especial, das aríanas ou indo-europeias. Destacou o grupo itálico e nêle o ramo do Lácio — a língua dos Latinos que pelo seu vigor viril e pelas vicissitudes da história chegou a dominar no orbe antigo, cstendendo-se pouco a pouco pela Itália inteira, pelas ilhas do Mediterrâneo — e pelas províncias de que Roma se avassalou no Oriente e no Ocidente, no Norte e no Sul, realizando
o Império do mundo no tempo de
Augusto e de César. Em seguida explicou as diferenças entre latim literário, latim bárbaro e latim vulgar, para finalmente caracterizar as línguas neo-latinas ou novi-latinas, que dêle saíram em conseqiiência da desmembração do Império romano e das invasões dos bárbaros germáânicos. Passando ao assunto particular do curso, esbocou a etnografia e a história da Lusitânia, antes e depois da conquista latina ; e a sua transformação em condado e reino de Portugal. Expôs o nascimento e crescimento da sua língua, referindo-se ao período pré-histórico não documentado, só conhecido por dedução; — ao proto-histórico que transparece dos documentos medievais em latim-bárbaro ; — ao arcaico de que exis-
tem documentos numerosos, e valiosos; ao clássico ; e ao moderno. Tratou da expansão da língua e nação portuguesa, e dos dialectos que existem quer no continente, quer nas ilhas, quer nas colónias da África e da Asia
e na América.
O estudo das fontes do léxico, e das vias por que entraram novas palavras de origem estranjeira no fundo latino, mereceu-lhe depois es-
pecial atenção. Falou
das primitivas
pré-romanas,
ibéricas e célticas, que se en
corporaram na primeira camada Jatina ; das germânicas e arábicas mediévicas, das provençalescas e francesas dos séculos XII e XIII ; das castelhanas e italianas dos séculos XV e XVI; das greco-romanas com que
no tempo do Renascimento os humanistas enriqueceram a língua pátria;
B
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
das que vieram das colónias extra-europeias ; e finalmente dos elementos
modernos com que constantemente vai avultando o Dicionário. Nas prelecções que dedicou a êsse assunto, caracterizou os processos etimológicos antigos de puramente fantasiosos, — mas infelizmente ainda do agrado dos diletantes que não téem clara noção da vida das línguas — e os modernos, de rigorosamente científicos. De aqui em diante queria S. Ex.º tratar dos processos pelos quais a própria língua aumentou o seu pecúlio, sem recorrer a auxílios estranjeiros; da derívação e composição, como partes importantes da morfolo-
gia. Em seguida tencionava o Sr. Dr. Vasconcelos dedicar algum tempo à semântica ou semasiologia — isto é, ao estudo das transformações de sentido, por que passou grande parte do vocabulário latino na fase portuguesa. Depois planeava expor a fonética: as leis orgânicas pelas quais os sons do latim vulgar e dos elementos germânicos, arábicos, franceses, etc., se modificaram na bôca dos Lusitanos e seus herdeiros. E só depois de brevemente ter apresentado os elementos construtivos, necessários para a base sólida de investigações lingilísticas, contava principiar com a leitura e análise de textos arcaicos, exemplificando e esmiiiçando as noções anteriormente expostas. *
A língua portuguesa pertence à família românica. Esta tese está a tal ponto provada que só fátuos incorrigíveis a não aceitam. É irmã gémea da espanhola ( por hispaniona com dissimilação dos dois nn [*], ou seja da castelhana ). É costume dar-lhe êste nome por vários motivos concordantes : Castela, o centro da península, teve cedo literatura mais importante e mais genuinamente nacional do que as outras regiões ( basta lembrar o Poema del Cid e a Cronica General, — aquêle dos meados do século XII e esta de meados do século XITI). Por isso mesmo o castelhano absorveu em si outros dois romances a princípio paralelos: o leonês-asturiano e o navarro-aragonês. E, realizando um plano histórico vasto e expansivo, absorveu também politicamente não só Leão c as Astúrias, Navarra e Aragão, mas também, além do sul reconquistado, a Cata-
lunha e a Galiza, que dispunham ambas de idiomas prôpriamente seus. O da Galiza era e é o próprio português, com divergências muito pequenas nos primeiros séculos, mas que pela anexação a Cnstela avultaram depois. O da Catalunha està intimamente aparentado com o da Provemnça francesa. Repetindo: a língua portuguesa era gémea do castelhano e do italiano, e também irmã das duas línguas faladas nas Gálias antigas: o (*) [Reproduz-se a frase em parêntese tal como vem no impresso primitivo — apenas com a emenda de dissimulação para dissimilação].
PARTE
1— LÍNGUAS
ROMÂNICAS
9
provençal, e o francês do Norte; Franca, Itália, Espanha c Portugal tiveram, com breve intervalo, história e literatura própria, ininterrupta ; a Provença e a Catalunha sômente na idade média ; conheceram porém no século passado um renascimento literário brilhante. que continua. Vários outros idiomas merecem também o nome de línguas românicas e são de grande importância para os estudos comparativos. embora, com a graude variedade de dialectos, só de há pouco para cá tendam a crinr uma língua unitária, e literatura escrita. Vem em primeiro lugar por causa da sua independência política e eultura crescente o romeno
(rvalâáquio ou daco-romeno ) falado na bacia inferior do Danúbio e em territórios isolados da IHungria, Macedónia, Albânia e Rússia — isto é, na
antiga província romana chamada Dácia; e em segundo lugar o ladino (rético ou reto-romano, da província romana chamada Raetia) falada em cantões orientais da Suíça (Granbiirdten ou Cantão dos Grisões) e em partes limítrofes da Itália e da Áustria (Tirol: No «Grundriss» de Groeber há excelentes mapas lingitísticos ). Modernamente alguns investigadores juntam ainda a êsses sete membros da família românica o idioma sardo falado na Sardenha e na Córsega— importantes porque foram romanizadas muito cedo. Romáânico deriva de romanicus. Romanço (como também se chamava a língua vulgar dos países mencionados), representa *romancium. Romance vem do advérbio romanice: Romanice loqui. O sinónimo neo-latino (ou novi-latino)
é têrmo ainda mais apropriado, porque indica
que as línguas românicas nada mais são do que fases evolutivas do latim. tal como êle foi trazido para as diversas províncias conquistadas pelos romunos, e nelas modificado paulatinamente no decurso dos séculos — um
milénio— na bôca dos habitantes de então, e dos que vieram depois. Quanto a Portugal, às tribos indígenas e emigradas que habitaram à Lusitânia no tempo de Viriato, é costume chamar-lhes celtibéricas
porque das diversas raços que já se haviam sobreposto às primitivas, eruzando-se com elas, Fenícios, Lígures, Gregos, Cartagineses, Celtas —
eram êstes últimos (indo-europeus), que mais profundamente haviam actuado na têmpera nacional, e também, segundo o testemunho de autores gregos e romanos, na sua língua, — líingua que perderam nos embates com os Romanos — e de que só alguns apelativos, acolhidos por éles, subsistem — como nomes de lugar e de divindades. As invasões posteriores, primeiro dos Germanos e depois dos Árabes. Berberes e Mouros (da Mauritânia africana). e. desde o século XV, relações constantes com os povos de além-mar na África, Ásia
e América
(o verdadeiro Ultramar), enriqueceram a língua portuguesa de vocábulos — sem todavia lhe alterar as feições pronunciadamente latinas. Na opinião dos humanistas e dos poetas — que no tempo da Renascença se esforçaram por dar relêvo ainda maior a êsse latinismo nativo, introduzindo novos têrmos às centenas, (só Luís de Camões contribuíu
LIÇÕES
10
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
com mais de um cento). e reduzindo formas populares muito gastas à plenitude original — essa semelhança era tal que o autor de «Os Lusiadas » a fêz apregoar pelos próprios deuses do Olimpo. ( Aludimos — bem se vê — ao dito de Vénus, no primeiro Canto do Poema (1, 33) «e na — com pouca corrupção, crê que é a língua, na qual quando imagina latina»). E com respeito a obras de alto coturno — no século áureo da literatura essa semelhança era realmente notável. De outro modo, mas também hoje na bôca de saloios, aldeões —
de modo latino soava então, e sõa minhotos, transmontanos c pastores
da Beira. Se os humanistas
imitam conscientemente os clássicos latinos, o povo cterniza, inconscientemente, o falar rústico dos soldados, colonos, comerciantes,
magistrados
inferiores,
com
que
estiveram
em
contacto
constante e íntimo os sceus antecessores, do século II ou I11I em diante. Não fala com absoluto rigor quem diz que o português provém do latim. Rigoroso é dizer que o latim continuava a existir no português, modificado evolutivamente segundo leis orgânicas que sofrem excepções apenas quando onutras leis de maior fôrça actuam nelas. A linha de um a outro idioma — linha que abrange um milénio, ou mais (muito de propósito o repetimos), é ininterrupta. É impossível assinalar o ponto em que um
termina e o outro principia:
tantos são as transformações que
nêles se realizam e em tão diversas as épocas, nos sons, nas formas, no sentido dos vocábulos e na construção sintáctica. Mas a expressão o português provém do latim é tão usada que mal a poderemos evitar; nem tão-pouco a figura retórica que faz do latim a miie da Románia inteira. Mais rigorosos ainda seríamos se, pelo menos, logo juntássemos a latim o qualificativo vulgar. Não é da língua cultíssima de Cícero e de César, os deuses maiores da prosa clássica, que as línguas românicas procedem e muito menos da lingnagem poética, sublimada, de Horácio, Catulo, Vergílio. É do latim falado por tôdas as classes, mas sobretudo pelo verdadeiro povo ; do latim de conversação despreocupada, com fins meramente práticos, sociais, como instrumento de comércio, de pessoa a pessoa, que elas procedem indubitavelmente. *
Os conquistadores romanos, vindos ao extremo ocidente no século III antes da era de Cristo (os mais antigos testemunhos da luta dos Romanos com os Lusitanos são do ano 193), desdlenharam aprender as
Ilínguas variadíssimas dos vencidos. Impunham a todos a sua, imperiosamente.
Lembremo-nos contudo de que o Império romano não latinizou todos os territórios conquistados. Ficaram de fora as parcelas extra-eu-
PARTE
I —
LATIM
11
VULGAR
ropeias — e mesmo a ilha britânica e a ilha de Malta. Nas Gálias, a Bretanha francesa; na Hispânia, as províncias vascongadas, de ambos os lados dos Pirenéus; a maior parte do Balcã, sem falarmos da Germânia
prôpriamente dita. Conquanto saibamos pouquiíssimo da civilização rudimentar das tribos celtibéricas da Hispânia e Lusitânia e menos ainda das suas línguas, não há que duvidar de que essas seriam pobres e insuficientes para as exigências completas da civilização nova. Nem tão-potco se pode duvidar que o latim falado pelos conquistadores no intercurso com os conquistados seria no primeiro tempo muito chão c simples, tomando só pouco a pouco um feitio mais culto e compli-
cado, sobretudo no trato com as camadas superiores da sociedade. Bastantes ingénios peninsulares chegaram a cultivar as letras latinas com esmêro — hbasta citar os Iberos dontos : Séncea, Lucano, Marcial.
é Que sabemos nós dêsse latim falado? Quási nada, porque não há obras propositadamente néle escritas. Em teoria é certo contudo que uma linguagem mais comezinha, relativa a coisas e sucessos vulgares existiu sempre em Roma, a par da literária. E mesmo antes dela, mais ou menos dela divorciada, mas igual na essência. Diversa nos sons, nos vocábulos empregados, nas locuções. na coustrução sintáctica ; diversa também na colocação das palavras. tão complicada na linguagem literária latina, — e tão singela nas línguas românicas. Práticamente, temos amostras positivas de passos do latim vulgar em passos de autores clássicos que ocasionalmente mencionam um outro têrmo, usado pelo vulgo.
Outras há nas obras dos gramáticos, que por dever de ofício combatem o qué para êles era um falar vicioso. Ainda outras em inscrições epigráficas. Em regra clas estto bem estilizadas ; mas como muitas vêzes eram
esculpidas por artífices pouco ou nada letrados, êstes substituíam formas e grafias cultas por outras menos graves. Algumas amostras há também em poetas cómicos (como Plauto) que introduzem nas suas representações gente ínfima, com dizeres rústicos. Finalmente
formas e palavras
menos correctas encontram-se nos autores da época da decadência do Império romano. Por êsses testemunhos sabia-se de há muito que a par do alto latim, houve um baixo latim, a que se deu nomes diversos, segundo o
ponto de vista de quem falava : sermo quotidianus, rusticus, plebeius, proletarius, militaris, vulgaris. Mas não se lhe ligava a importância devida. Sômente desde que Friedrich Diez lançou os fundamentos da Romaniística com a sua Grammatik (1836-42, 3 vol.) c o Dicionário Etimológico, é que se reconheceu o seu alto valor coino mãe ou antiga representante dos idiomas neo-latinos.
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LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Nos oitos decénios que decorreram desde então, o próprio Diez e seus discípulos coligiram os materiais dispersos, agruparam sistemâticamente os fenómenos néêles manifestados, aplicando os resultados à filologia clássica e à romanística. — Para esta era conditio sine qua non. Para aquela, também de grande valia. A obra principal relativa ao latim vulgar é de Hugo
Schuchardt,
professor eminente de Graz (na Morávia), aposentado há bastante tempo. O título é «Der YVokalismus des Vulgârlateins» (3 vol. 1866-69). Os resultados muito positivos por êle colhidos, levaram depois a completá-los com hipóteses bem fundamentadas. Sempre que em tôdas as línguas românicas—ou quási tôdas-—há consenso a respeito de quaisquer formas, não registadas nos léxicos latinos, é lícito deduzir delas o tipo vulgar de que saíram e que perpetuam, tipos que costumamos marcar com asterisco, afim de indicar que são conjecturais. Se p. ex. em lugar do clássico acuere encontramos em português aguçar, em cast. a mesma forma escrita com z, em provençal agusar (com s)., em francês aiguiser, em italiano aguzszare (com z reforçado), é lógico concluir que no latim vulgar de todos êsses países, ou por outra em todo o orbce romano se dizia *acutiare, derivado de acutus, particípio do clás-
sico acuere (*) Sôbre o tempo que a latinização da Lusitânia levou, e sôbre os pormenores do processo, estamos naturalmente mal informados. Se em quási tóôdas as línguas neo-latinas temos artigos definidos, provenientes do demonstrativo latino ille, illu—(el padre, il padre, o pai — em port. antigamente lo pae — le pêre), forçoso é estabelecer que assim o ernpregavam os populares antes da desmembração do Império. Éste trabalho fecundo de reconstituíição do latim vulgar foi feito, em grande parte, por Gustavo Groeber, professor de Strassburg — director do Grundriss der Romanischen Philologie, Enciclopédia muito útil, colaborada pelos melhores especialistas. O processo da sistematização e o da reconstituíção (a que se costuma dar o nome de paleontologia lingitística) mostrou claramente que o latim vulgar — em evolução constante como tôdas as línguas vivas e não conservativo e estacionário, como o latim literário — era todavia idêntico nas suas tendências e directrizes principais na época da conquista ; e ainda quando o Império se desagregou. O seu característico principal era o empenho instintivo de expressar, de modo claro e compreensível, relações que o latim clássico exprimia muito econcisamente por sínteses gramaticais. De aí as perífrases que se notam nas línguas românicas. O artigo, a que já nos referimos, descendente do demonstrativo ille e as preposições (de, a, por, ) substi() Coclho
[Cf. R. M. Pidal, Manual de Gramática Histórica Espaíiola, $ 2. Já F. Adolfo
se servira do mesmo
ex. em
À
Língua
Portuguesal.
PARTE
1— LATIM
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VULGAR
tuíram as terminações dos casos. — Em lugar de mensarum diziam illas mensas (ou mesas). Em lugar de Petri domus, casa de Pedro. Em vez do comparativo sintético grandiores, usavam magis grandes e também plus grandes. Amabo é o futuro clássico. O povo servia-se de preferência da forma perifrástica amare habeo, donde vem o português amar-ei, o castelhano amaré, o italiano ameró, o francês j'aimerai e o provençal amarai. O passivo amantur caíu em desuso. Para simbolizar a idéia passiva, dizia o povo suntamati, sunt amatos. Aos temas eurtos preferiam vocábulos alongados por meio de sufixos. À árvore ilex, ilice, chamavam-na *ilicina, de onde saíu o caste-
lhano encina, e o português asinha, substituído posteriormente por azinheira, azinheiro, por analogia com oliveira, pereira, macieira, etc. AÀ spes preferiam *sperantia; à cor, *coracione; a calcaneum, *eal-
caneare. De longarno, tripa e chouriço, fizeram longanicia, que subsiste no castelhano longaniza, catalanesco Honganissa, português arcaico longatnça, de que posteriormente saíu linguiça por influxo de língua. Em lugar de apis, ovis, auris, empregavam os diminuítivos apicula, ovicula, aurícula;
em
lugar de mina,
miínacia, ameaça.
Além
disso, o
povo emnpregava substantivos vulgares para denominar pessoas, animais, plantas e coisas de uso familiar. Já citámos casa em
lugar de domus.
Juntemos cattus (gato ) em vez de felis. Dos fenómenos fonéticos, grande parte é comum a tôda a România ; por ex. a queda de vogais átonas postónicas, como em macla, veclu, de macula, vetulus.
Mas apesar dessa unidade evidente, ela já não cra então completa. Muitos vulgarismos fonéticos e lexicográficos são meramente peninsulares; outros há em que o castelhano concorda com o provençal, francês e italiano, ao passo que o português se afasta dêles. E isso é naturalíssimo Porque as épocas de colonização foram diversas ; diversos eram os colonos:
diversos os povos colonizados, as raças, os climas ; diversos talvez
ns aparelhos fónicos. À diferenciação pronunciada veio todavia muito mais tarde. Sôbre o tempo que a latinização da Lusitânia levou, e sôbre os Pormenores do processo, estamos naturalmente mal informados. Sabe-se apenas que cla se efectuou com relativa rapidez. em quatro ou einco gerações. O geógrafo grego Estrabão já declarava no século I da era de Cristo, com respeito a um povo peninsular, os Turdelanos, que êles, e mormente os ribeirinhos do Betis (Guadalquivir) haviam adoptado de todo os costumes romanos, e até nem já se lembravam
da própria língua — passo significativo, muito citado. Provas direetas são as inscrições, coligidas, como já dissemos, pelo professor Emílio Huebner com auxílio de muitos sábios peninsulares, tiradas de lápides, estátuas, placas metálicas, ete. Em geral pode supPor-se que a diferenciação pronunciada das línguas românicas, quanto
LIÇÕES
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DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
à fonética e também quanto ao vocabulário. deu um passo grande quando o Império se desagregou; e também que no tempo da dominação germânica, no contacto com ê&sses invasores de bárbara juvenilidade, o latim deixou de ser latim e começou ( perto de 600) a tomar feições romãnicas. — Paulatinamente, pois só do século IX em diante transparecem formas portuguesas nos documentos de latim bárbaro que emanaram dos cartórios de tabeliães ignorantes. Se nesses documentos há palavras como abelia, ovelia e também conelium — coelho (em grafia alatinada equiva-
lente ao futuro lh que veio da Provença no século XT ou XIII e não desbancou senão tarde as grafias anteriores li, y, ll
e mero 1) é lícito ver
nelas formas nitidamente portuguesas — do uso dos escrivães que já não conheciam o latim apiícula, ovicula, cuniculum. Considero os vocábulos que constituem o léxico primitivo dos latino-lusitanos. ou Juso-romanos, como parte principal, verdadeiramente nacional e modelar da língua, sem excelusão, bem se vê, dos vocábulos pré-romanos. célticos, e ibéricos que nela entraram oralmente ; os céltiecos são, em geral, património tam-
bém das outras línguas românicas; os ibéricos pelo menos do eastelhano e catalão. Ibéricos são : esquerdo, nava, veiga, paramo, arroio e talvez mina. Célticos são: braga, camisa, peça (*). légua, truão, vassalo, lo-
na, soga. Durante o século V a península foi invadida por povos Vândalos fixaram-se na Galiza e na Béltica (409). Passaram breve à África (429) sob o comando de Genserico, não sem à última das províncias hispânicas o nome de YVandalicia — Os Alanos, cíticos, passaram num
germânicos. todavia em haver dado Andalucia.
turbilhão. Os suevos fundaram
outro
reino na Galiza, derruído pelo Visigodo Teodorico 1 (456) (*), cuja gente fortíssima instituíu um império florescente, com Toledo por capital, que cedeu apenas ao impulso esmagador dos Árabes, em 711. Nenhum dêsses povos germânicos impôs a sua língua aos vencidos, por não a terem unitária, por serem poucos, e porque a sua civilização
era inferior à dos Romanos. Deixaram todavia sinais da sua estada na Península no Dicionário : não só nomes próprios de pessoas e de lugar, de singular brilho, como Freamunde, Ermezinde, Recarei, Afonso, Rodrigo, Arnaldo, Reinaldo, Gonçalo, Hermenegildo, mas também nomes de coi-
sas, que pela quantidade e pela qualidade, mostram bem qual o influxo (*) [À origem céltica de peça (picee), sugerida, salvo êrro, por Diez — é assaz duvidosa. O têrmo provém do latim medieval pecia (Cf. J. Destrez, La Pecia dans les manuscritsa untiversitaires du treiziême et du quatorziême sítele, ed. J. Vautrain). Pecia, também escrita petia e pessia, deriva quási certamente de pecus]. () [O derrwimento do reino dos Suevos costuma datar-se de 585 (Leovigildo); a invasão de Teodorico IT marca, no entanto, a chegada ao declive — segundo a Chronica de Hidácio, SS 174, 175 — e a devastação do território].
NÃO-LATINOS
15
em certas artes e indústrias. Embora
seja difícil distin-
PARTE
que exerceram
I — VOCÁBULOS
guir em diversos casos se uma palavra é céltica ou germânica (pelo parentesco indo-curopeu), ou se houve influxo mútuo ; se em vários casos ainda se hesita quanto ao ramo gótico de que porventura saíram;
e se
bastantes já faziam parte do Jatim, em conseqilência das relações comerciais antes das invasões — vale a pena notar que do Norte vieram guerra
e trégua, elmo, estribo e espora; sítio e também fato e gasalho, feltro, coifa e harpa. Compraz-nos em especial notar que os peninsulares devem à mulher germânica (m1muito caseira), o verbo bordar, a roca e o banco de que se precisa nos misteres domésticos. Os Árabes não só avançaram até aos Pirenéus, transpuscram-nos. A conquista foi rápida; a reconquista levou mais de sete séculos (711
a 1:192).
Em Portugal, o Algarve, último reparo dêles, já era do domínio de Afonso HI em 1260. Ainda assim há no Sul mais vestígios árabes do que no Norte. Os eristãos que se haviam refugiado nos montes cantábricos, conservaram o seu idioma, então flutuante entre latino e neo-latino.
Os que viviam no meio dos mouros, ora eom mais, ora com menos difieuldades, conforme
a tolerância ou intolerância dos invasores,
(matri-
moniando-se freqilentemente com lindas mouras) chamavam-se Moçarabes ou Mozarabes. Uns guardavam a sua língua, outros esqueceram-na. Como
havia
mouros
bilingues, latinados ou ladinos, —
assim ha-
via cristãos algaraviados ou renegados. Pela sua civilização brilhante acluaram profundamente nos povos peninsulares. Das centenas de vocábulos que deixaram aqui, em geral nomes de coisas, mas também a interjeição oxalá, muitos se referem à guerra e à administração — atalaia, zaga, algarada, — alcaide, almoxarife ; outros ao comércio — como alfândega, armazém, arrôba, alqueire; outros a misteres como alfaiate, alfageme, albarda; — muitíssimos à agricultura e horticultura — alcacatrnuz,
nora,
azeite,
azenha,
al[ace,'
numerosos
à arquiteclura.
*
Paramos aqui. — O que ao português se encorporou depois da sua constituíção — de elementos provençais e franceses primeiro, na época trovadoresca, depois no tempo de D. João IV, (auxiliado por soldados franceses na guerra contra a Espanha) ; e ainda no séc. XVIIT e no XIX; de itnliano na era do Renascimento ; de ultramarino desde os descobri-
mentos ; de eastelhano nos séc. XV e XVIII — não deixa de modo algum de ter importância, — mas é fácil de destrinçar. Iá
também
vocábulos
greco-latinos
que, acolhidos
pelos árabes,
16
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
foram por êles modificados, e depois entraram nesse travesti nas línguas peninsulares : têrmos relativos à matemática, astronomia, inedicina veterinária, botânica. Sirvam de exemplos hippiatros que deu alveitar, alcazar, de castrum, pronunciado casr (com metátese do st ) ; almoeda, almu-
de (o modium dos latinos), alperche. *
Preferimos indicar brevemente que a magna questio, o problema dos problemas, que tem ocupado e preocupado muitos espíritos: por que motivo o latim, uniforme em todo o orbe romano no tempo de Augusto, se desmembrou e produziu cinco a oito idiomas distintos ; e também por
que há tantas e tão profundas divergências dialectais na Itália e na França e tão poucas na Península Ibérica — ainda está por resolver. A explicação vaga de que a raça, o clima, diferenças no aparelho fónico, ou inaptidão dos órgãos bárbaros para os sons latinos, condições sociais diversas, e o grau diverso da intensidade da vida histórica dos povos que habitavam as três penínsulas ocidentais, originaram umas
e outras, já não é plausível, desde que se apurou que as línguas dos Galos, dos Lusitanos, dos Iberos estavam extintas de há séculos quando do latim vulgar saíram os idiomas românicos e os seus dialectos, com infi-
nitas variedades fonéticas. Os eruditos inclinam-se hoje a procurar a explicação na fusão diversa dos povos romanizados com povos germânicos, e nesta península com Árabes e Berberes. As relativamente pequenas divergências que há em Espanha e Portugal, atribuem-nas à tardia reconquista do Sul pela gente do Norte. Mas tudo está por provar. O estudo dos dialectos crioulos, isto é — a implantação do português e do castelhano na África e na América, onde povos indígenas, de pouca eultura, foram forçados a aprender línguas novas, e também
estudos psicológicos sôbre a linguagem infantil, esclareceram o problema
5
um pouco — muito pouco.
LIÇÃO II [PERÍODOS E CARACTERÍSTICAS GENERALIDADES: DO PORTUGUÊS ARCAICO]
CONTINUANDO
na breve recapitulação, que ontem começámos, repetimos
que do português pré-histórico que despontava, dos primeiros séculos dn era cristá em diante, nos dois lados do rio Minho, de modo substancialmente uniforme, não há documentação, a não ser a do Jlatim vulgar nas inscrições peninsulares.
Nos autores gregos e romanos, há apenas curtos trechos em que se afirma quer a persistência das línguas pré-latinas da Hispânia, quer o seu completo desaparecimento. Do século IX em diante há documentos públicos, contratos de compra e venda, doações, testamentos, etc., exarados por tabeliães, ou escrivães, bem como documentos jurídicos de maior alcance: cartas, diplomas, leis, forais, inquirições sôbre propricdades. Dêstes documentos os mais antigos provéem de cartórios conventuais, sobretudo do Minho e Beira. O primeiro com data, é do reinado de Ordonho (850-866). A linguagem em que cstão escritos merece bem o nome de latim bárbaro. Muito ao contrário do lutim vulgar e português arcaico, que são línguas perfeitamente regulares, êsse latim bárbaro que nunca teve vida
e nunca foi falado, é inorgânico ; obra artificial dos referidos tabeliães que sendo obrigados a servir-se da língua latina, a ignoravam
todavia,
cometendo por isso as maiores irregularidades. Ignorando o latim, dles misturavam parcelas mal aprendidas do idioma do Lácio com fórmulas tradicionais, colhidas nos formulários do cartório, E onde essa ciência espúria falhava, acudiam com locuções e
vocábulos do romanço primeiras
que no trato comum
gramaticalinente,
e deturpando
usavam;
mesmo
estropiando as
as últimas
porque
lhes davam grafia c flexão pseudo-latinas. Num livro de «Textos «Íreaicos» coligidos e explicados por L. de Vasconcelos, há excelentes exemplos. AÀs palavras sôltas e expressões em romanço que se encontram nesses textos deveras bárbaros, dá-se o nome de português proto«histórico. Assinalando-lhe o período de quatro séculos, do IX ao XII, não querem os que se servem do têrmo, significar que nos imediatos os escrivães deixassem
de redigir numerosos
documentos
incorrectos naquele
estilo
rudimentar já caracterizado, que contrasta singularmente com o dizer
18
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
disciplinado das poesias trovadorescas realmente portuguesas, elaboradas nas côrtes peninsulares. Mas do fim do século XIT em
diante começam
a aparecer junta-
mente com éêsses, trechos em prosa, que marcam o fim do reinado do Jatim bárbaro. A colecção mais importante em que se encontram documentos medievais, em latim bárbaro, latim correcto e em português, é a edição a Portugaliae Monumenta IHistorica», em quatro volumes. Todos êsses quatro volumes são importantes para o estudo tanto da história, como da administração pública e da língua. O vol. Scriptores, principalmente, também para o estudo da literatura, visto haver nêle obras como os Livros de Linhagens, cheios de contos e de histórias; e diversas crónicas. Outros documentos tirados dos diferentes arquivos, téem sido es-
tudados e publicados. Depois do português proto-histórico vem o verdadeiramente histórico ou arcaico, no reinado de Sancho 1, de 1185 a 1211, que tinha jograis franceses em seus paços, enviava estudantes a Paris e Montpellier, mandava vir de França colonos, monges, prelados e versificava pessoalmente em português. Claro que essa língua arcaica já se falava tal qual, ou com
pequenas diferenças, um
ou mais séculos antes.
Mas só do último quartel do século X
em diante há documentos
extensos. Raríssimos ainda. Só quatro em prosa até 1250. Um, sem data. mas com certeza do reinado de Sancho 1, e outros de 1192. ambos im-
pressos nas «Dissertações Cronológicas e Críticas» de João beiro, e reproduzidos A. Coelho, ete.
desde
então
Pedro Ri-
por L. de Vasconcelos, G. Viana,
Outros dois foram descobertos e publicados há pouco, um de 1193 por L. de Vasconcelos ; o último de 1214, por Pedro de Azevedo.
E o testamento de Afonso II é de grande valor, superior aos precedentes em correcção e estilo. À linguagem em que êstes quatro documentos estão escritos é a portuguesa,
bem
caracterizada
pelas suas feições
especiais, embora haja nêles ainda um certo número de formas de latim bárbaro. AÀ partir de 1250 há muitos documentos em puro romanço. Das pocsias que até hoje conhecemos, a mais antiga, que se conseguiu datar com alguma probabilidade, é de 1189; várias outras são ainda do reinado de D. Sancho I e Afonso HH. Bastantes do tempo de Sanceho 1, auteriores portanto a 1250. A língua empregada nelas, mais unitária e mais escolhida do que
a empregada na prosa dos documentos, e na fala de todos os dias, apresenta-se com uma notável perfeição e é adaptada com arte às formas métricas então usadas. É costume bem fundamentado, chamarmos galego«portuguesa a essa língua dos cancioneiros, cultivada não só por trovadores portugueses, mas com igual fervor pelos jograis do outro lado do
PARTE
1—
PERÍODOS
DO
PORTUGUÊS
ARCAICO
19
Minho, e por outros engenhos, incluíndo-se entre êles um rei de Leão [*] e dois de Leão e Castela. Todos os poetas líricos da península (com excepção da Catalunha) se serviram dela até 1350, e isoladamente até 1450. *
O período arcaico prolonga-se até 1500 ou mesmo ainda mais além dessa data. A língua não fica de modo algum inalterada. Bastantes dos fenómenos que a distinguem desapareceram depois de 1350, outros perduram ainda um século; vários subsistem até ao século XVI. À pronúncia úa de lita, p. ex.: com ressonância nasal do u conserva-se em livros que são
geralmente considerados clássicos e modelares; nos próprios Lusíadas, cuja linguagem ninguém se lembra de tratar de arcaica. Em geral pode. contudo, dizer-se que o português moderno começa no tempo do Renascimento, depois de alguns humanistas, — guiando-se pelos gramáticos Intinos, — haverem comparado sistemâticamente as formas portuguesas
com as latinas, escolhendo entre as variantes da mesma palavra que eram usuais, as mais consentâneas com o génio da lingua pátria. Não se cifra só nisso a actividade de Fernão de Oliveira e João de Barros; e a par dela há a dos poetas que enriqueceram o vocabulário com neologismos e com ressurreição greco-latinas. Claro que os limites entre os dois períodos são vagos, e que houve uma época de transição. O que já dissemos do latim vulgar c do neo-latim, tem aplicação também aqui. «Uma linLgua não nasce em dia e hora certa», nem evoluciona num mornento de um
estado à outro. Algumas transformações realizam-se muito devagar ; outras muito depressa. Pessonlmente achamos extenso demais o tempo que se assinala ao período areaico. ; Quatro séculos e séculos fecundos em feitos históricos e obras literárias, de Sancho 1 até D. Manuel ! ; Das cantigas trovadorescas ao Cancionciro Geral, com versos de Bernardim Ribeiro e Sá de Mi-
randa! ; Do sirventês aos que deram os cnstelos no Bolonhês como não deviam, à Exortação da Guerra e à Barca do Inferno de Gil Vicente! i Dos primeiros documentos públicos em prosa, tão cheios de irregularidades
e mesmo
de barbarísmos, às Crónicas de Rui de Pina e ao Clari-
mundo de João de Barros!
Dividimo-lo por isso em dois: o período trovadoresco até 1350; e o da prosa histórica verdadeiramente nacional : o das Crónicas de Fernão eem
[Cf. Cancionciro da Ajuda, II, p. 585; n.: «Inclino-me a crêr que temos ahi () Poesias de Sancho, no verso da fôlha algumas de Afonso EX de Leão, seguindo depois as do Sabio de Castella, de n.º 465 em deante». E a p. 616: «Quanto a Afonso IX o Leonês,
até hoje não chegruei n convicção algumas»].
zo
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Lopes, da ingênuamente linda Crónica do Condestável D. Nunálvares Pereira e da do Infante Santo, o sacrificado de Tânger. Durante os reinados de D. Pedro, o eruel Justiceiro, D. Fernando
o Formoso, e parte ainda do de D. João 1, as musas emudeceram. O provençalismo morrera de inanição, após século e meio de grande cflorescência. Pelas lutas com Castela, depois da vitória de Aljubarrota, que excitaram febrilmente a actividade nacional, a língua também experimentou notáveis alterações. Disciplinou-se um pouco mais ; progrediu na fixação da morfologia ; sobretudo quanto às flexões de nomes e verbos. Principiando a concentrar-se e avigorar-se, contraíu também vogais idênticas numa só, pronunciando por ex. : ver, ser, crer, só, dó, má, em lugar de veer, seer, creer, soo, doo, maa, formas que só de longe em longe apon-
tavam nas poesias trovadorescas, como licenças poéticas de que os autores se servem a méêdo, envergonhados talvez de ncolher tais modos de dizer familiares ou vulgares. Abreviaram também a 2.º pessoa do plural, deixando de dizer: amades, queredes, partides. Ambas estas transformações, e muitas outras, eram factos consumados na primeira metade do século XV. *
Na época trovadoresca a língua fôra galego-portuguesa, isto é, substancialmente igual (se abstraírmos de algumas particularidades dialectais), à que se desenvolvera paralelamente do outro lado do Minho. Na época da prosa nacional, afastou-se dela mais e mais, ao passo que o galego ou galiziano se ia aproximando mais e mais, do castelhano, por causa das vicissitudes históricas que fizeram castelhano o que fôra hispânico ou espanhol. Repetiremos agora brevemente quais as principais caracteristicas do português arcaico na fase galego-portuguesa.
Em geral tõdas as formas estão mais próximas do latim vulgar. São mero reflexo delas. Mesmo na conjugação cada forma provém isoladamente, como vocábulo distinto e independente, do tipo modéêlo, ao passo que na língua moderna a analogia, a tendência de igualar na construção o que é igual nas suas funções, sistematizou e regularizou bastante as flexões dos verbos. Se os galego-portugueses diziam, por ex.:
moiro, cômio, e coimo,
dôrmio, arço, perço, menço, senço, — porque tais são os representantes fonêticamente exactos mentio, sentio — os comer, dormir, arder, morro, como, durmo,
de morio — ( por morior) comedo, ardeo, perdeo, pósteros preferiram tirar dos infinitivos morrer, mentir, sentir, os presentes regulares ou analógicos ardo, minto, sinto.
Do mesmo modo temos imperativos c 3.”* pessoas do singular do presente do indicativo
e mesmo do subjuntivo que terminam em r, 1, n,
PARTE
1—
CARACTERÍSTICAS
DO
PORTUGUÊS
ARCAICO
21
s, z, e não em -e, como na fase moderna : Fer de ferir (cuja 1.º pessoa era feiro) ; sal, dol, sol, de sair, doer, soer, man de manere, pon de po-
nere; perdon na fórmula «Deus me perdon» e pês na expressão em me pês como equivalente de custe o que custar ; faz, diz. luz, ete. Assim mesmo se dizia paresco, gradesco, nasca, jazca, e não reço, gradeço, naça, jaça (ou jaza) que resultaram da influência infinito e de mais formas em que o c se acha antes de e ou t. O pretérito dos verbos chamados irregulares acaba em ( na
que pado
1º
pessoa do singular e em o na 3.º ; pugi, quigi, dixi representam posui,
quaesii, dixi; puso, quiso, são galego-castelhanos mais primitivamente comuns também aos povos do Minho. Ilavia as já citadas formas em -des na 2.º pessoa do plural — amades, queredes, partides — terminações agora conscrvadas apenas quando o d está precedido de nasal como em tendes, vindes, pondes e em ídes (*). O particípio da 2. * conjugação era em -«udo, vendudo, temudo, sabudo. Os substantivos e adjectivos em
-ór, em
-ês,
e em
-ante eram
uni-
formes para os dois géneros ; por ex. : senhor, português. O trovador chamava à amada a cada passo miá senhor. Distinguia-se entre alguns pronomes possessivos átonos (conjuntos)
e tónicos (absolutos). À par de ma senhor havia senhor mia, e já de longe em longe senhor minha; ta fé c a fé tua; sa vinda e a vinda sua. Na sintaxe havia 2 variabilidade do particípio como em francês e castelhano antigo, em frases como a fé que me havia jurada; o partitivo beber do vinho, semear das favas; pleconasmo na negação pre-verbal: nenhun (por ninguém) non o disse. No estilo é curioso o abuso da copulativa e em proposições subordinadas. Fonêticamente há alguns traços importantes: Distinção absoluta & rigorosa na pronúncia (e conseqiientemente na grafia que tenta repro-
duzir aquela veridicamente e o consegue menos mal ) entre ss (forte) inícial e medial e ç que se pronunciava ts : paaço “ palatium, hoje paço
e passo À“ passus.
Igualmente entre s (brando) intervocálico e z pronunciado provãvelmente ds : cozer “ coquere e coser “ consuere.
Finalmente entre ch pronunciado !sch e x pronunciado sch. AÀs três terminações nasais -om, -am e -ão, pronunciado ã-o e con-
tado sempre por duas sílabas, não se confundem. -Om (escrito -õ, -on, -om) corresponde às formas latinas da 3.º
declinação em one — oraçon, defenson, razom, prijom, leijom ( prisione, D
()
[No texto —
índe, que talvez esteja pelo pop. índes)].
te
te
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
laesione ), e a -unt em formas verbais como ouverom “« habuerunt, quigeram (quiseram ) “X quaesi-erunt. -An (escrito -&, -an, -am ) provém de -ane por ex.: em pan, e de
-ant em dam (hoje pão, dão). -Ão — deriva exclusivamente da terminação -nu por ex.: em mã-o, grã-o, vilã-o.
Nos vocábulos em que por síncope de consoantes, em geral sonoras como &, d e (mediais e intervocálicas ) ficam em contacto imediato duas vogais idênticas ou semelhantes, elas não se fundem em uma só. Hoje dizemos dor, côr, má, Sá, só, crer, ler, ver — de dolor, color, mala, sala, solo, credere, legere, videre, e também cai, doi, com ditongo. No pri-
meiro período histórico da língua pronunciava-se pelo contrário, com absoluta clareza — door, coor, maa, saa, soo, creer, leer, veer, contan-
do-os por duas sílabas. A nasalidade que -n- intervocálico comunicara
à primeira vogal,
manteve-se sempre, e até muito tarde. Ão moderno sã, vã, ter, vir, corres-
pondiam portanto sã-a, vã-a, tê-er, vr-ir; a vinho vi-co; a uma, alguma,
ú-a e algã-a. Além dêstes traços, há naturalmente muitos outros, que estudaremos quando se tratar da Fonética. *
O léxico era riquíssimo. Conservava numerosas palavras simples que depois se perderam, ou ficaram circunscritas à língua popular; ou foram substituídas por derivados mais amplos; ou reconduzidas pelos humanistas à sua amplitude primitiva. É êrro grosso imaginar que o português arcaico é uma língua imperfeita, rude, hesitante, infantil, como imaginaram os impostores do sé-
culo XVII, que, por patriotismo mal entendido, forjaram Relíquias antigas como aquêle poema épico do Rouço da Cava — e as Cartas de Egas Moniz, a que aludimos na lição anterior, inventando formas lingitísticas, absolutamente fantasiosas e bárbaras, que nunca existiram ; e ao mesmo
tempo formas métricns requintadas para idéias e sentimentos muito modernos que em nada correspondem aos dos verdadeiros trovadores e jograis. Não menor êéêrro é também supor que a linguagem dêsses, evidentemente mais unitária c escolhida que a falada, era artificial. Três quartas partes talvez, dos vocábulos antigos, são idênticas aos modernos, ou pelo menos semelhantes ; ex. : Rosa, mesa, mês, mar, jurar, falar, levar,
querer, poder. Não vale a pena citar mais exemplos porque são infinitos. Mais adiante veremos como a linguagem de Sancho I é na essência a mesma
que a de Fernão
Lopes, Luís de Camões,
Garrett e João de Deus (*). ()
[CL C.da A
, p. XVIII-XIX].
Hereulano,
Almeida
LIÇÃO III GENERALIDADES:
[PALAVRAS POPULARES, E SEMI-ERUDITAS]
ERUDITAS
NA
PRELECÇÃO passada falámos dos períodos da língua portuguesa. Dissemos que do falar dos Lusitano-romanos, nos mil anos que decorreram dos princípios da conquista até ao século IX, não há documentação, a não ser em inscrições peninsulares ( reiinidas pelo benemérito epigrafista Emílio Huebner, e impressas no grande Corpus Inscriptionum Latinarum da Academia de Ciências de Berlim)). Curtos trechos de autores gregos e romanos que se referem à Hispânia, testemunham apenas, Uns, à persistência das linguas pré-romanas, outros, a sua completa perda, — sem pormenores nem amostras. Do século IX ao XII há documentos em latim bárbaro, em que transparecem palavras que são portuguesas pela sua formação (ovelia, abelia, conelium, representam ovelha, abelha e coelho, na pronúncia ar-
caica cõelho ). Estas constituem o português proto-histórico. À colecção mais importante de tais documentos é a chamada Portugaliae Monumenta Ilistorica, publicada pela Academia das Ciências de Lishoa. O período histórico-arcaico começa com o reinado de Sancho , no último quartel do século XII. Os documentos em prosa são ainda raríssimos, e rudes; os primeiros ainda contéem vestígios do latim-bárbaro. Por ora conhecem-se apenas alguns anteriores a 1250.
Quanto a composições poéticas palacianas, nascidas sob impulsos vindos de França, das quais, ainda assim, transparece a existência de uma poêsia popular florescente, é certo terem sido já numerosas antes dêsse têrmo. Embora não seja fácil marcar data segura a pálidos versos de amor, conseguiu-se colocar no ano
1189 uma
das cantigas, —
por se
reconhecer na dama chamada pelo trovador «filha de Dom Paay Moniz» uma das amantes do rei, a afamada Ribeirinha; outra, a cla dirigida pelo próprio monarca, deve ser de 1194 a 1199; ainda outra de um
filho dos dois, de perto de 1213. À lingua empregada nessas cantigas, muito mais unitária e escolhida que a da prosa familiar, merece o nome de galego-portuguesa, por ser a mesma (com pequenas variações dialectais) que se falava da outra handa do Minho. Ela cra tão apta para a expressão lírica dos sentimentos ternos que todos os namorados da Península, quer fôssem portugueses ou galegos, quer leoneses ou castelhanos, quer da Andaluzia, mesmo alguns da Catalunha e das províncias vascongadas, sc serviram dêsse idioma trova-
24
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
doresco até 1350, e isoladamente até 14450. O período arcaico prolonga-se até 1500. Alguns fenómenos duram mais tempo, em obras literárias, até fins do século XVLI. Outros continuam em dialectos populares. Há todavia alterações importantes que, principiando no século XIV, vingam no imediato. Eles nos levam a dividi-lo em duas metades: a própriamente arcaica, trovadoresca, ou galego-portuguesa até 1350, e a da prosa nacional, com as Crónicas de Fernão Lopes, a Crónica do Condestável,
a Crónica do Infante Santo. No
séc.
XV
as
formas
vão-se
contraindo;
a
morfologia
disci-
plina-se. Há afastamento da fonética galega, e naturalmente dos tipos latinos. À analogia assimila formas verbais, irregulares, às regulares. Em seguida caracterizámos a língua arcaica, indicando os fenómenos que, desembrenhando-se do vulgar, conduzem ao português moderno. Para concluir combatemos a idéia, hoje antiquada, de que o português arcaico fôsse uma giíria bárbara como a latina dos tabeliães e escrivães, — idéia que havia levado os impostores patrióticos do séc. XVIT[ a forjarem as célebres Cinco Relíquias — acatadas infelizmente ainda por alguns poctas, aliás portuguesíssimos, como se fôssem ... autênticas jóias preciosas. Começamos insistindo de novo no facto capital, que o português provém do latim vulgar, rústico, quotidiano, falado despreocupadamente; a princípio com a maior singeleza possível, como exige o trato com estranjeiros ; e só depois com o desembaraço e a fluência natural. Repetimos que o latim vulgar foi trazido à ocidental praia lusitana pelos conquistadores, colonos, soldados, comerciantes e magistrados romanos, vin-
dos do séc. 1J em diante, (antes da era de Cristo). À língua que falamos é a transformação
orgânica
dêsse latim, efectuada
vagarosamente
num
milénio ; adaptada aos órgãos e costumes fónicos dos Lusitano-romanos. Nela entraram ainda no período pré-histórico — alguns vocábulos das línguas pré-romanas, sobretudo ibéricas e célticas, e posteriormente centenas de vocábulos germânicos e arábicos, mas ainda assim continuou a ser latina, neo-lntina, ou românica:
a sintaxe e a morfologia, a flexão
dos verbos e dos nomes, a derivação, e também o emprêgo das preposições e conjunções, são as determinantes que estabelecem o carácter da língua. Não o vocabulário. Por depender morfolôógicamente da língua latina, é irmã gêmea do espanhol (ou castelhano) ; irmã também do provençal e do catalanesco, do francês, do italiano e dos mais idiomnas a quê se dá o nome indicado (o romeno, o ladino, o sardo). Ao Ex” Sr. Dr. Vasconcelos ouviram tratar o modo e por que vias entraram, no decorrer dos séculos. palavras novas no vocabulário português. depois de constituído em língua literária. Poalavras novas, vin-
PARTE
Y — PALAVRAS
POPULARES,
PALAVRAS
CULTAS
20
das de fora parte, assimiladas bem ou mal, e que permaneceram ou desaparcceram de novo. Já vos foi dada idéia clara — à vol d'oiseau embora— da entrada de celementos provençalescos no primeiro período da fíngua portuguesa; da de galicismos ou francesismos, nesse mesmo tempo, mas também anteriormente e posteriormente ; quási sempre com
tal abundância que um antigo filólogo português denominonun. despeitado e cheio de ironia, a Portugal — Porto dos Galos — Franceses, bem se vê. — Sabemos igualmente que em épocas diversas, letrados nacionais. eruditos humanistas, homens de ciência, e poetas cultos, cientes das ori-
gens da língua portuguesa — ou pelo menos das suas feições latinas, à enriqueceram greco-latinos.
e enobreceram com numerosissimos tirados directamente, sem alteração
vocábulos latinos e maior, dos autores
elássicos ou do dicionário latino. É sôbre êste tema, também capital, que chamamos a atenção. Para quem estuda a história da língua portuguesa, é indispensável saber que embora provenha do latim vulgar, há nela (e há nas outras três línguas românicas que possuem literatura ininterrupta), larguíssimas camadas de palavras que, longe de serem populares, vulgares, herdadas, transmitidas oralmente, de bôca em bôca — desde os tempos pré-históricos — são latino-literárias introduzidas artificiosumente. Nessa classe não entram as nunmnerosas palavras que, pelo sentido universal, eram comuns tanto do latim do vulgo como
do latim culto, falado nas classes supe-
riores da nação, e empregado pelos escritores clássicos, mas que não sofreram grandes alterações fonéticas nem alterações semânticas por causa da sua construção singela e aplicação fixa. Já atrás citámos
exemplos
como
rosa, uva, casa,
mesa,
lar, mar,
dar, amar, mês, três, sol, sal, haver. Acrescentaremos agora que a lista das que assim passaram ao português não está feita. Eis um trabalho interessante para uma dissertação final dos estudos romanísticos. Palavras
literárias, cultas, eruditas,
são apenas
as que
foram
ti-
radas directamente de autores clássicos ou do dicionário latino, muitas vêzes com acepção imaterial, e que apesar da sua construção complicada não sofreram as alterações fonéticas a que estavam sujeitas. se entrassem cedo na bôca do vulgo. Elas são muitas. Posteriormente, quando
mais familiarizados com o assunto, seria interessante darmo-nos ao traba-
lho de estabelecer uma páúgina (de dimensão eerta) de qualquer obra de autor moderno nacional, acreditado como portuguesíssimo — modernos como AÀ. Garrett, Camilo de Castelo Branco, clássicos como J. de Barros, Francisco de Morais, Frei Luís de Sousa — quantas palavras são populares e quantas eruditas. Por ora só se fêz uma tentativa, em França, com uma página de Zolta (da novela L'Argent, p. 10). De cinqiienta e dois substantivos, trinta e dois eram do núcleo primitivo, herdado ; dezóito, meros latinismos. Em Portugal a proporção seria mais desvantajosa ain-
LIÇÕES
26
PORTUGUESA
DE FILOLOGIA
da, se em lugar de substantivos se contassem adjectivos. Podemos contudo enganar-nos. Em todo o caso o dito de Camões sôbre o latinismo (entenda-se classicismo ) da língua portuguesa que já atrás alegámos, deve aplicar-se exclusivamente à língua literária dos quinhentistas e seus sucessores ; isto é, a obras de alto coturno, e não aos monumentos do período arcaico. À língua dos antigos trovadores é, como a do povo, realmente derivada do latim vulgar, apesar dos influxos provençalescos e franceses que a caracterizam. À língua dos escritores clássicos é o mesmo, bem se vê, mas corrigido, disciplinado, enriquecido e nobilitado pela introdução de centenas de palavras que são puro latim clássico. é Como
se realizou ou antes como
se realizaria, visto que se trata
de meras conjecturas, a entrada de vocábulos literários na vida nacional ? Não se deve imaginar que o latim vulgar vivia em completo divórcio com o literário. Em tôdas as línguas vivas observamos que há distinção entre o falar do vulgo, e o das classes cultas. O destas cinge-se mais de perto ao neo-literário, não só quanto aos têrmos, e às expressões
figuradas, mas também
quanto à sintaxe e ao estilo. Também
se nota
que, devido ao trato inevitável entre as diversas camadas sociais, palavras vulgares, relativas a coisas materiais, familiares ou mesmo baixas, entram no falar comum ; e, vice-versa, palavras relativas a coisas imateriais, no falar do povo. Assim seria entre os Lusitano-romanos, cuja lin-
gua era viva, em transformação constante. tino era mesmo
comum
À maior parte do léxico la-
a tódas as classes.
Seria um êrro considerar como meramente literários todos aquéles vocábulos que em português não sofreram fortes alterações. O significado e o confronto com outras línguas românicas elucida êsse ponto. Às classes superiores em gôsto e saber influíram naturalmente nas menos cultas. As pessoas que liam textos de clássicos latinos, porque não havia outra coisa, tirariam
das suas leituras palavras e formas,
transmitindo-as
aos
outros.
Mas as palavras e formas literárias introduzidas muito cedo, em tempos antigos — durante os séculos de adaptação — passavam forçosamente pelas mesmas evoluções que as vozes populares. Não se distinguem delas fonêticamente, como não sc distinguem as de origem céltica, ibérica, germânica e arábica, que entraram antes do primeiro período histórico, pois evolucionaram exactamente como as latinas. Mesmo depois das línguas neo-latinas terem literatura, as classes cultas continuaram provâvelmente a recorrer ao latim literário. Sobretudo os cclesiásticos, que tinham ao seu dispor as bibliotecas conventuais. No período areaico, a língua, (tanto mais parecida às outras românicas quanto mais
retrogradamos), é verdadeiro representante do latim vulgar. Houve todavia diversas interferências estranjeiras, tanto por contacto directo, como por via indirecta da transmissão escrita. Mas só quanto ao vocabulário —
não o esqueçamos.
Mercadores
I —
PARTE
de Flandres —
PALAVRAS
E FORMAS
27
LITERÁRIAS
traziam por ex. juntamente com os artefactos franceses
de Coutray, de Cambray,
Ruão, Bruges, Chartres, Lille, as respectivas
denominações, importavam panos de grande fama que trocavam por produtos nossos — principalmente vinhos e azeites. Os Genoveses foram mestres
dos
Espanhóis
e Portugueses
na
arte
de
navegar,
e trouxeram
com os primeiros almirantes ( Pezzagno, hoje Pessanha), alguns têrmos náuticos, e a dignidade de Podestá. Relativamente é pouco o que assim
entrou na lingua portuguesa.
E menos ainda o que se conservou: de in-
fluxo mais intenso e durável foram as traduções de obras relativamente
cultas. Na Idade-Média houve bastantes de origem latina (Yidas de Santos) ; tratados biblicos
e místicos ; mas também
obras técnicas, relativas
às ciências, artes c entretenimentos desportivos, como a cetraria ou falcoaria ; houve outras de textos castelhanos (como a Cronica General).
As mais belas e expressivas provêem de textos franceses, das formosas novelas do círculo bretónico, relativas a Trístam, Galaaz, Lancelote, Mer-
lim,
e a Demanda do Santo Graal. Elas são importantes porque minis-
traram aos portugueses modelos para a sintaxe e estilística ; para muitos
ramos, a terminologia internacional. À nacionalização de versos estranJeiros foi muito rara. Ainda assim temos no Cancioneiro galego-português uns cinco Lais de Bretanha, relativos a Tristam, Lancelote, e ao Minotauro da Irlanda, os quais seguramente serviam de intermezzo lírico
às novelas em prosa que acabamos de mencionar. Se já estivéssemos integrados nos estudos dêsses trechos, seria fácil mostrar exemplos curio-
sos de palavras que entraram em Portugal pela via trovadoresca, ela desapareceram,
após século e meio
e com
de vida áulica, brilhantíssima,
sem nunca entrarem no domínio geral. Umas são de origem latina, outras de origem germânica, mas essas também formalmente latinizadas, como todos os elementos arcaicos da língua. 1) Cousir, cousecer, cousidor, cousimento, —
censurar, acusador,
acusação — do latim causere por causare de causari (mudado de depoente em activo) e passado da 2.º conjugação à 1.º, como clarere, de elaro, passou a ser clarar (vide aclarar, etc.). De causa, no sentido de
processo jurídico (*).
2) Coustir, cousimento, —
ver, discernir, escolher, preferir, —
do
pProv. causir, causir, a que corresponde o frane. choisir, choix; do gótico Kkausjan, mod. al. erkiesen, erkiiren, correspondente à raiz GVS que aparece no lat. gusto, port. gosto. S
() [A Autora parece haver pôsto de parte a ideia desta espécie de convergência — à que já não alude no Glossário do C. da A. (&. v: cousccer, cousidor, cousimento, cousir). Por isso não se procurou esclarecer o sentido dêste parágrafo, algo confuso. É possível que tanto êle como o seguinte, numerado também — fôssem notas, incorporadas no texto original].
28
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Ainda não foi destrinçado e coleccionado o que porventura há de formações do latim literário nos documentos. será pouco.
Seguramente
se algo fôr,
Na segunda metade do período arcaico — a da prosa nacional — começam a surgir traduções dos textos latinos clássicos (Cícero, Séncea, Suctónio, Vegécio, Júlio César), quer para português, quer para castelhano, aragonês, para italiano ou para francês. De todos êsses textos romanços existem exemplares na Biblioteca dos reis de Portugal da 2.º dinastia: D. João 1, seus filhos e netos. Através de tôdas essas adaptações — perdidas, infelizmente — actuariam por igual os originais latinos. Muito inclinado a letras e livros foi el-rei D. Duarte. À seu im-
pulso foi traduzida por um ilustre letrado castelhano a Retórica de Marco Túlio — afim de êle conhecer a doutrina dos antigos para fermoso fablar, como ingênuamente diz (*). Ésse monarca escritor reprovava em geral a introdução de palavras latinadas, sinal certo para nós de que já antes de 1430 ela era freqiuente.
No seu Leal Conselheiro há um capítulo especial (Cap. 99) — Da maneira para bem tornar alguma leitura em nossa linguagem. Nêle diz: « Prymeiro : conhecer bem a ssentença do que ha de tornar, e poella enteiramente, nom mudando, acrecentando, nem mynguando algãa cousa do que está seripto. —- O ssegundo : que nom ponha pallavras latinadas ou de outra lynguagem; mas todo em nossa lynguagem seripto, mais achegadamente geeral ao bom custume de nosso fallar que se poder fazer.» Outros passos mostram quanto êle se preocupava com o assunto. Uma vcz diz: «Da yra, seu próprio nome em nossa linguagem he sanha, que vem de huum arrevatado fervor de coraçon, por desprazer que sente, com desejo de vyngança» (cap. 16). — Noutra parte: «Primeiro do odio, ou segundo nossa linguagem malquerença, que he huum contynuado desejo de mal, perda, abatymento de bem doutrem per qualquer guisa que viir possa» (cap. 17). — E ainda: «Da ociosidade, em nossa linguagem seu nome apropriado he priguyça» (cap. 26). Apesar disso, há nos seus escritos c há na Virtuosa Bemfeitoria do regente D. Pedro, seu irmão, assim como em outros tratados coevos, numerosos vocábulos literários, latinismos, dignos de serem registados e analisados.
AÀ época em que a introdução de têrmos completamente novos, de origem latina e grega, tirados consciente e directamente dos autores clássicos (sobretudo de Vergílio), chegou ao seu auge — foi todavia a do -(º [Afonso de Cartagena, bispo de Burgos — o «adayam de Sanctiago» do Leal Consclheiro. V. a êste respeito Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, VIL,
p. 130).
PARTE
1—
PALAVRAS
E FORMAS
LITERÁRIAS
20
Renascimento. Todos os Quinhentistas e Seiscentistas — de B. Ribeiro e Cristóvão Falcão em diante, precedidos já dos poetas do Cancioneiro Geral, — foram impulsionados pelo louvável empenho de enriquecer e
enobrecer a língua nacional, e de altear o nível da ceultura pátria com elementos da civilização da antiguidade. Mas nenhum contribuíu para essa emprêsa com o fervor, a arte, a audícia, de Luís de Camões. Foi censurado por muitos, coevos e pósteros, pela sua fúria divina nos Lusíadas e no seu Parnaso (Eglogas, Canções, Odes, Elegias, Oitavas). Cremos já haver dito que êle introduziu mais de um cento de palavras cultas, poéticas, altissonantes — verbos e adjectivos ; os principais são adjectivos simples, derivados e compostos. As listas de palavras novas introduzidas por Camões foram elaboradas no século XVII pelo laboriosíssimo Faria e Sousa (benemérito trabalhador, apesar da sua absoluta falta de critério e probidade literária ). Acham-se reproduzidas pelo Visconde de Juromenha na sua edição monumental das Obras de Luiz de Camões, em 6 vols. (* ). Mas elas estão muito longe da perfeição. Incompletas, mal ordenadas,
não
documentadas,
merecem
ser
refeitas
sistematicamente,
acompanhadas de breve ou extensa historiação de cada um dos têrmos.
Todos sabem que não possuímos nenhum Dicionário ITistórico, em que para cada vocábulo sejam registados, tanto o seu aparecimento inicial, como as evoluções de forma e sentido por que cronolôgicamente passou. Eis algumas das novidades que o Pocta introduziu, e que, em regra, ainda não haviam sido empregadas em textos impressos, quando em 1572, saíram os Lusíadas. Substantivos : tuba, procela, dea, divicias (por riquezas ), estridor. Verbos : vibrar, fluctuar, superar, immolar, devastar,
vaciferar. Adjectivos : lúcido, rúbido, nítido, túmido, rútilo, salso, argénteo, plúmbeo, sulfúreo, flavo, ovante, fulgente, trémulo, canoro, pressago, imbele, pudibundo, truculento, intonso, diáfano, hirsuto, lácteo, etéreo,
aurífero, horríssono, quadrupedante, equóreo, fatídico, grandíloquo, cornigero, malévolo, belígero, etc. É uma magra amostra, apenas. Quanto a reconduções de têrmos arcaicos nuos modelos primitivos, notemos, além de menos, pena, feno, que já mencionámos: cauda (por coa), martírio ( por marteiro), silêncio ( por seenço), século ( por segre), flor (por frol, fror ; chor com chorão e chorente em tempos anteriores à Aorescência trovadoresca) ; glória (por groria), vitória ( por vitoira), ete. AÀ linguagem moderna, do Renascimento para cá, enriquecida e
enobrecida com inúmeros têrmos elegantes, nobres, poéticos, é evidentemente muito diversa da arcaica, que chamamos
transformação orgânica
do latim vulgar. Embora
de um
ponto de vista elevado, devemos
sempre
acentuar
que há unidade entre o idioma de D. Dinis e o de Fernão Lopes; que o de F. Lopes é o mesmo de João de Barros e L. de Camões; e o de Ca()
[Vol. V, pág. 448 a 450].
LIÇÕES DE FILOLOGIA
30
PORTUGUESA
mões o mesmo de J . de Deus, Afonso L. Vieira e António C. de Oliveira,
relativamente mesmo muito pouco modificado. E é preciso distinguirmos com rigor entre as camadas diversas —
os stratos sucessivos —
que se
sobrepuseram e fundiram no vocabulário português. *
São pois de duas espécies os vocábulos Jatinos, ou latinizados da língua portuguesa : populares e literários — também chamados cultos ou eruditos : mots populaires
et mots savants, como
dizem
os franceses. Na
Alemanha chamam aos primeiros bens herdados (Erbgut ) ; e aos segundos bens de empréstimo ( Lehngut ). Nesse têrmo não há menosprêzo algum, pois todos sabemos
quão precisos são os empréstimos a qualquer
comunidade, c as línguas neo-latinas seriam pobres e descoloridas sem os enfeites clássicos. São populares todos os têrmos do léxico primitivo, provenientes do latim vulgar. Já dissemos que o latim vulgar não consta apenas de palavras ante-clássicas e post-clássicas, evitadas na boa lati-
nidade : mas também utilizava grande parte dos vocábulos que eonstituíam o latim literário. São populares todos os têrmos do léxico primitivo., provenientes do latim vulgar, isto é, os que entraram na língua dos Lusitano-romanos por contacto directo, e foram
transmitidos oralmente
de geração em geração, sofrendo sucessivas modificações, com grandes intervalos de tempo, segundo leis então vigentes. Exemplos são todos os de que nos servimos quando conversamos sem pretensão : ólho, ovelha, cabeça, mão, pé, banco, braço, dedo, ete., ete. Outros sofreram apenas
leves alterações por causa da sua estrutura singela (mar, lar, sol, sal, mesa, etc.). São populares também todos quantos vocábulos procedem dêles pelo processo da derivação e composição. — Populares igualmente os latinizados de origem ibérica, céltica, germânica e arábica que, acolhidos antes do período histórico, passaram pelas mesmas transformações que actuaram no latim vulgar. Sirvam de exemplos: lousa, do lusitano lausia, banco, guerra, guisa, de origem germânica, mesquinho, alface, azeite, de origem arábica. Todos êles têem derivados perfeitamente nacionais. De lonusa ou loisa, temos loisão, loiseira; de banco, bancal, bancada, banqueiro;
de
guerra, guerreiro; de guisa, guisar, guisado ; de mesquinho, mesquinhice; de alface, alfacinha ; de azeite, azeiteiro. Eruditos, literários, cultos, de origem
artificial, são, pelo contrá-
rio. os vocábulos de proveniência latina (e grega) que entraram no Jléxico português,
por intervenção
de escritores, que os tiraram directa-
mente de obras elássicas ou do dicionário ; quási inalterados foram acomodados apenas à pronúncia portuguesa no timbre das vogais. Nunca ficam contudo completamente intactos. Nas terminações é que sofreram leves modificações, indispensáveis para não destoarem do carácter da lín-
PARTE
I — FORMAS
a1l
SEMI-POPULARES
gua. Os verbos, p. ex., em -ére, passam quer à 2.º conjugação, como reger, recorrer ; quer à 3.º, como fingir, constituir; os substantivos em -tatem adoptamn -dade como os representantes populares (v. g. amabilidade). Quanto aos significados, pode dizer-se em geral que os vocábulos
populares têem sentido mais concreto e material ; os ceultos acepções mais elevadas e imateriais. Mas esta regra tem inúmeras excepções. *
Entre a camada popular e a erudita fica outra que participa das qualidades de ambas. Merecem a designação de semi-populares ou semi-«eruditas, palavras de origem latina que introduzidas bastante cedo (no período arcaico), ainda assim não sofreram as transformações impostas por leis fonéticas, ou as sofreram apenas parcialmente. Olhando de perto para as modificações a que foram sujeitas, para o tempo e as obras em que surgem, e em especial para o significado, e as funções que exercem, reconhece-se que entraram por via eclesiástica e jurídica. É pois lícito supor que foram tão pouco modificadas ou ficaram estacionárias, exactamente por pertencerem a instituíções sociais de carácter conservador.
Às pessoas que us usavam a miúde, acostumadas a servir-se da língua latina, a êsses repugnavam inovações de pronúncia e grafia. Por isso man-
tinham tenazmente, mesmo na língua vulgar, formas mais eruditas que populares. Notemos: espírito, diaboo, angeo, virgem, família. Vejamos alguns exemplos. De articulo, diminutivo de artus, articulação, viera regularmente do 1.º período de formação do romance português artelho, segundo as mesmas leis que transformaram ovicula, auriícula, apicula, em ovelha,
orelha, abelha. Artelho significa materialmente tornozêlo, e em outras línguas designa o dedo maior do pé. Mais tarde os legistas, os gramáticos e os teólogos, tiraram novamente articulo do tesouro latino, com o sentido gramatical e outros sentidos que lhe conhecemos.
Ainda assim êle adquiriu hábitos semi-populares: à queda do -l- intervocálico, à redução
Foi submetido
da gutural surda em
sonora, e
Posteriormente à contracção dos dois 00 finais. Não provécm evidentemente da época romana. Mas distingue-se bem da forma erudita articulo, que existe em enstelhano (fr. article). Cabido,
antigamente
cabidoo
de capítulo,
está nas
mesmas
con-
dições. Também não provém da época romana. Tem origem eclesiástica Mais recente, como o prova o i breve, conservado que na bôca do vulgo teria dado ê, como artelho, ovelha, abelha. Ainda assim êste vocábulo º*.'OIucionou bastante : p e t foram descendo a b, d', e os dois 00 finais fun-
lll.ram-se num só. Patre, matre passavam na sua aplicação humana na bôca das crianças primeiro a pade, made, com queda do r ; depois a pa-e
C mMa-e ; ulteriormente por união de a-e no ditongo ai a paí, mai.
32
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Mai continuou ainda a transformar-se, sendo nasalizado, como muim, de muy : muinto em vez de muito; mim por mi. Em sentido ecle-
siástico ficaram, pelo contrário, estacionários depois do abrandamento do t : Padre, madre.
Tôdas as formações semi-eruditas dão margem à dúvidas; são difíceis de classificar. As diversas línguas românicas não concordam no seu tratamento. Escapa-nos a razão por que uns foram modificados mais que outros ; nem se sabe em geral como e quando foram incorporados no léxico, à falta de documentação histórica. Vale a pena coligir os têrmos pertencentes a êsse grupo —
nos monumentos
arcaicos. Se p. ex. encon-
trarmos nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso o Sábio séries inteiras de vocábulos como perigoo, bestigoo, pascigoo, ficaremos sabendo por que influxo artigoo seguiu êsse mesmo caminho.
noe
LIÇÃO IV GENERALIDADES: [FORMAS DIVERGENTES OU ALOTRÓPICAS,. O PROBLEMA ORTOGRÁFICO] IMOS na última lição que há no vocabulário português três camadas diversas, sobrepostas e opostas, na sua maior parte de origem latina — entre as quais é preciso distinguir com rigor, nos estudos de filologia românica: uma antiga — de palavras que são do domínio comum,
democráticas,
outra mais moderna,
aristocrática, peculiar de le-
trados ; finalmente outra intermédia, de origem eclesiástica e jurídica. Os vocábulos da primeira classe, populares ou herdados, foram transmitidos de bôca em bôca, oralmente — desde a época romana, ou pré-histórica, e adaptados ao sistema fonético ou às tendências fónicas dos Lusitano-romanos, por meio de alterações sucessivas, realizadas com grande intervalo de tempo. — De solu, por ex., saíra soo, que apenas no século XV se condensou em só. Os vocábulos eruditos, cultos ou literários, são, pelo contrário, tira-
dos directamente do dicionário latino, propositadamente. Por letrados e poetas, afim de com éêles enfeitarem as suas obras; ou para denominar coisas novas e expressar novas idéias. Pouco alterados, foram todavia acomodados à promnúncia nacional, sobretudo nas terminações, e no tim-
bre das vogais.
Os vocábulos semi-eruditos e semi-populares foram menos alterados do que os populares; mas apesar disso sofreram também alterações. Se elas são menos fundas é por os vocábulos respectivos serem, desde o princípio, do domínio de pessoas cultas acostumadas a servir-se da língua latina, e pertencentes a instituíções sociais de carácter conservador. AÀ introdução de uns e outros, longe de ser desvantagem para à
língua, nobilitou-a e enriqueceu-a. Os literários são iguais ou muito semelhantes em tôdas as línguas românicas., Os semi-eruditos também
se parecem
bastante. Ambos
téem
Portanto carácter internacional, sendo de alto valor para a terminologia científica. Sômente os vocábulos populares são representantes legítimos do latim vulgar, rústico. São êles que constituem a parte principal, verdadeiramente nacional e peculiar da língua portuguesa. *
Na exposição de regras fonéticas e morfológicas é sempre no pecúlio popular que teremos de escolher os exemplos — não sem citar constantemente outros semi-eruditos e ernditos, para efeito de contraste. Ar-
s4
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
telho e artigo ; padre e paíi ; madre e mãe; cabido e capítulo, são representantes diversos de um mesmo modêlo latino. Entre os vocábulos introduzidos por Luís de Camões, que já mencionámos, vimos rúbido comao forma nobre de ruivo; nítido por nédio; superar que já existia na linguagem comum na forma sobrar. Como éêsses pares há muitíssimos outros. À existência de numerosas palavras em duas formas diversas, ou mais, é em geral resultante
da introdução de latinismos poéticos e eruditos, realizada em épocas diversas, mas sobretudo na época áurea da língua e da literatura portuguesa.
Freqiientemente aconteceu que um vocábulo, introduzido por qual. quer letrado na acepção ou nas acepções que tivera nos autores clássicos
latinos, já existia no núcleo primitivo herdado, transformado orgânicamente quanto à forma e também quanto ao sentido. Um tipo latino ficava dêsse modo desdobrado em dois — diferenciado ou dissimilado. Legitimus, passando pelas formas de transição lídimo, lidemo, limdo — dera, por ex.; em lindo, de boa casta, castiço, puro, estreme, bonito. Depois
tornou a entrar na forina primitiva legitimus ( pronunciado legítimo, à portuguesa ) no sentido também primitivo determinado pela lei ou conforme á lei. Macula entrara na língua vulgar com duas formas distintas, diferençadas já em Roma, como malha (de rêde) e como mancha (nódoa). Temo-lo, além disso, na formação semi-erudita — mágua, como dor moral ; finalmente na pouco usada fórmula erudita mácula, como
defeito moral. Os Latinos possuíam o adjectivo planus (acompanhado naturalmente do advérbio plane, da locução adverbial de plano, de numerosas derivações e composições de que vamos abstraindo, e do adjectivo substantivado planum equivalente de planiície). Planum e planus — com a acepçião material de liso, igual, espalmado e a figurada de claro, manifesto, evidente, certo, vivem no português chão ; de duas sílabas chã-o na
época arcaica, que possuía também o advérbio de pram, perdido posteriormente. Depois planus foi importado de Castela, na forma lhano com a significação de afável. De Roma tornou a vir na forma crudita, inalterada — plano, na acepção de projecto e planta, — tirada do Dicionário. Finalmente entrou pela quarta ou quinta vez — importado da Itália na forma piano (e pianissimo ) como adjectivo musical, significando com pouca fórça, de vagar, de leve ; e como nome de instrumento de música, com
teclas e cordas, que é o encanto e às vêzes o tormento
de to-
dos nós. Éste mesmo processo, fértil, de desdobramento, realizou-se em castelhano, em italiano e sobretudo em francês, actuando muitas vêzes
nos inesmos étimos latinos. No provençal e no catalanesco, não teve grande importância, porque mudos no tempo do Renascimento, só possuiram
literaturas medievais. Ainda assim acolheram bastantes neologismos ou latinismos na sua moderna ressurreição ( por ex. no lindo poema Mireio
PARTE
1 — FORMAS
DIVERGENTES
OU
ALOTRÓPICAS
35
de Mistral). E quási não existe no romeno e no ladino, por terem vivido afastados da cultura literária. Às tais formas duplas, triplas ou quádruplas, diferenciadas ou dissimiladas, dá-se em português o nome de formas divergentes. Quem primeiro tratou delas foi F. Adolfo Coelho, num artigo publicado em 1873 na Romania (revista francesa ) fundada por Gaston Paris (vol. II); quási no princípio dos seus fecundos estudos lingiiísticos. Ésse nome é a tradução do alemão Scheideformen, que lhes fôra dado por Diez, o exemplar patriarea dos Romanistas. Os franceses dizem doubles formes ou doublets. Os italianos servem-se da designação grega allotropi (de allos — outro ; e tropos — mudança, variante). E esta, mudada em alotropia, com o adjectivo alotrópico — formas alotrópicas, já entrou em Portugal — onde é usada por Leite de Vasconcelos e Gonçalves Viana. Mas nenhum dos estudos já feitos está à altura do saber romanístico de hoje. Será preciso refazê-los, todos, atendendo aos múltiplos e
finíssimos trinta
estudos
a quarenta
etimológicos, anos. É mais um
fonéticos e de semântica dos últimos tema que recomendamos
como
muito
àpropriado a futuras dissertações. Para fazermos idéia dos vocábulos que formam pares ou grupos cindindo-se em dois (ou mais) por causa das significações diversas que téem e das funções distintas que exercem, juntei um pequeno ramalhete — à toa — (sem os distribuir em séries, conforme os fenómenos fonéticos, morfológicos e semânticos — como seria preciso num trabalho sistemático). Temos de um lado formações populares, e do ontro lado formas eruditas em olho e óculo ; orelha e aurícula ; lindo e legítimo ; agosto e augusto ; cepo e cipo; foz e fauce; comprar e comparar ; falar e fabular ; lealdade e legalidade ; logro — lucro ; caldo — cálido ; solda — sólida; coalhar — coagular; adro — átrio; cónego — canónico; feito — facto ; sêlo — sigilo; limpo — límpido; lembrar — memorar; atrever
— atribuir ; eira — área ; sanha — insânia; paço — palácio ; cadeira — cátedra ; delgado — delicado; ladino — latino; redondo — rotundo; sé —
sede; cheio —
pleno;
colheita —
colecta; entrudo —
intróito.
Temos duas formações populares, dissimiladas em virtude de tendência natural de distinguir pelo som o que é diverso no sentido e na aplicação. em tenro e terno ; bodega e adega (de apotheca, pronunciado apteca, talvez pelos vinhateiros romanos ) ; em iírmão e mano (forma fa-
miliar)
— sem falar de formas gramaticalmente diferenciadas — segun-
do as suas funcões —
como grande, muito, cento, santo —
reduzidas à
&gram, muií, cem, sam, quando em próclise perdem o acento tónico. Te-
mos uma forma popular ao lado de ontra semi-erudita em artelho e artigo; ilha e insoa; chaga c praga; chegar e pregar (ambas de plicare). Temos uma forma portuguesa a-par de outra francesa — ambas elas populares — em cabo e chefe (de caput ) em gaiola e jaula, (de caveola bPor cavéola) ; em chapéu e capelo.
LIÇÕES
36
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Temos uma italiana ao lado de outra nacional, em maestro, ópera, basso, tenor — musicais — e mestre, obra, baixo, teor.
Como —
malha,
grupos de quatro, já mencionei mancha,
mágua,
mácula.
Éste
plano, lhano, piano, chão
último
exemplo
é de impor-
tância particular — porque nos mostra que já em Roma se usava o mesmo processo de desdobramento. De lá vieram aàs três formas macula, macla e mancla.
A literária e a sincopada téêem documentação abundante ; mancla é hipotética, mas segura ; porque se o acrescento do n em sílaba que principia por m, como no caso manzana por inaçàã ( poma matiana, matjana
ou matzana em latim, e em português em muim, muinto, mim, mãe, etc. ) fosse românico,
a cvolução
teria sido outra.
À forma
sincopada
macla
era usada nas classes baixas, por exemplo entre os pescadores que falavam das suas rêdes. Os tintureiros diziam manchas quando se referiam a nódoas ou pintas que afeavam os produtos da sua arte. As classes superiores, essas continuavam a pronunciar macula sempre que falavam dum defeito moral ou de uma dor intelectual, ao passo que se serviam das formas populares, diferenciadas sempre que tratavam de verdadeiras malhas, ou de verdadeiras manchas.
Provas de que havia, em Roma, mais
exemplos de formas divergentes, não faltam, de resto. Eram particularmente vocábulos de origem helénica, que o povo alterava. Ão lado de pyxis, pyxidis — existe por ex. buxis, buxídis, e comquanto não o possamos provar, julgamos que o povo aplicaria essa forma vulgar a caixinhas de usos domésticos, menos nobres.
Voltemos aos exemplos portugueses. O facto de que há numerosos derivados de formação erudita, nao lado de temas de evolução popular, como por ex. mediano ao lado de meio; antiquário, de antigo ; Coimbra, de Conimbricense, embora pertença & morfologia — deveria ser tratado também aqui. Mas não pode ser dito em poucas palavras, e para ficarmos entendendo o que são formas divergentes, deve chegar o que dissemos. Claro que, de todos os grupos, os mais importantes e mais densos, são os que se compõem de formações populares de um lado, e de formações eruditas, cultas, literárias, do outro. *
Aos vocábulos eruditos., latinos e helénicos. liga-se um problema muito discutido o ano passado: O problema ortográfico. Como êle não deva ser indiferente a estudantes de filologia portuguesa — ou romanística em geral — vamos dedicar-lhe alguns momentos. AÀ introdução
de
vocábulos
eruditos,
romanos
c sobretudo
helé-
nicos, é uma das causadoras das anomalias que deturpam a escrita portuguesa — caótica e incorente em extremo. A principal mesmo, se abstraírmos das dificuldades resultantes da
PARTE
1— O PROBLEMA
ORTOGRÁFICO
37
complicada fonologia da língua, com seus sons nasais. as sibilantes engrossadas em fim de sílaba, os ditongos puros e nasais, três (ou mais) ce, aa, 00, de valor ora aberto, ora fechado, ora ensurdecido. Foram êsses vocábulos eruditos que deram à escrita nacional — ou por outra às grafias nacionais, porque elas são infinitas — a tendência etimológica, erudita, artificial, conservadora — em oposição aberta à popular e progressiva tendência fonética que é a análise de tódas as ortografias — pois o ideal é a transcrição dos sons realmente proferidos na pronúncia normal das classes cultas. Nas palavras populares, herdadas, de origem evolutiva, houve, nos princípios da língua, ortografia sensatamente fonética,
quer clas se afastem sensivelmente dos padrões originais, quer se não afastem nada ou quási nada, em virtude da sua estrutura singela. Escreviam o que proferiam — tão perfeita ou imperfeitamente como o admitem os vinte e cinco caracteres do alfabeto também herdado — insuficiente para simbolizar bem os sons novos adquiridos no território lusitano : j, x, lh, nh,
e as ressonâncias nasais.
No códice membranáceo da Ajuda não há — como brevemente veremos — senio grafias fonéticas: oje, ome (como então se dizia), aver, onra sem h, sono, dano (sem m) ; santo, pronto (sem c e p) ; meter,
falar,
calar,
(sem
duplicação);
nacer, crecer, decer
(em
regra
sem s). Por que motivo? Simplesmente porque na linguagem arcaica dos trovadores não havia vocábulos eruditos. Apenas alguns provençalismos, francesismos e galeguismos. Quanto à grafia, certos espanholismos, apenas porque a grafia dos sons palatais lh, nh, ainda não estava fixada; oscilava entre Hl, nn ; ly, ny ou yn, e [ — n simples. Assim se continuou no século XIV (do qual subsistem pouquíssimos originais). No imediato, no período da prosa nacional, já houve enorme con-
fusão. Havia já palavras eruditas, extraídas do dicionário latino ou helénico, não alteradas na bôca do vulgo. E essas entravam em geral com tôdas
as letras originais,
tanto
na
prosa
de notários,
eclesiásticos,
ar-
queólogos, historiadores, como nos versos dos poetas antigos do século XV — até com letras que em Portugal nunca tiveram função privativamente sua, e com grupos de letras que se não encontram em dicções herdadas, a não ser abusivamente. Falo dos sinais exóticos: y, gn, th, ph, rh, gh
(— muitos hh, quer
etimológicos, mas já perdidos por completo no latim vulgar. quer anti-etimológicos) ; os grupos mn, gm, gn, cl, pl, eo, pç; e também consoantes dobradas supérfluas. Mesmo em bastantes das semi-eruditas que já haviam descido ao domínio do vulgo, e foram assimiladas às de feições populares — por ex. pela eliminação de c antes de consoante — a grafia foi refeita. Em lugar de vítima, vitória, tratar, prática, satisfação, tornaram a escrever victi-
ma, victória, tractar, practica, satisfacção.
38
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
AÀ par deêsses têrmos de introdução artificial mas relativamente antiga — há muitos outros mais modernos de significado mais erudito, em que a pronúncia alfabética dos grupos de consoantes, não tolerados no património verdadeiramente nacional, se tornou facultativa ; por ex.:
em significado, consignar, diccionário, occidente, espectáculo, respectivo, técnica, facto, secção, tranquilo, equidade, equivaler, bilingue. Finalmente há uma última camada de vocábulos, de introdução e sentido científico tão restrito, que nunca serão familiares à maioria dos que falam — em que por ora é praxe proferir tôdas as letras, consoantes e vogais, com os seus valores alfabéticos. Por ex.: aerhemotoxia, glipto-
gnosia, etc, Pois bem — o costume de encontrar símbolos exóticos — 3y, ph, rh — e letras supérfluas em dicções relativas a artes e ciências empregadas de preferência pelos mais ilustres da nação, levou todos quantos tinham pretensões de cultos — ; e onde há escritor que não as tenha? — não só a conservar cuidadosamente êsses vestígios de origens nobres, mas também a re-introduzir símbolos exóticos e letras supérfluas em palavras vulgares de onde estiveram banidas, durante séculos de vida literária. Por ex.:
somno
e damno
com
mn;
signal com
g; dicto, pincto,
sancto, poncto com c; prompto com p; ceysne e lágryma com y grego; golphinho com ph ; exgotar, exforço, extrangeiro com x. Por falsa analogia, letras mudas entraram mesmo em palavras onde elas não têem razão de figurar, por ex.: em thesoura (com th por causa de thesouro ) ; ensignar (com g por causa do alatinado signal, significar ), etc. ; Occeano, com dois cc como se tivesse relações de parentesco com occaso, occidente! Ássim eivaram a parte vernácula do idiorna com formas fantasiosas como theudo, mantheudo, Themudo, Santhiago, com
th; e a parte alatinada e helenizada com barbarismos :: ethymologia, lithographia, photographia, physiognomia, phylosophia, phylharmonica, dymnastia, dymnástica — por causa de gymnástica. Em tôdas elas, quantos mais 3y gregos, th, ph, gn, mn seja possível incorporar-lhes. Tudo isto com o pretexto de conservar vestígios visíveis de ilustres prosápias ou sugerir etimologias. Por mera ostentação, por pedantismo, por espírito de reaceção. Ou em virtude da preocupação, mórbida de que a queda de um h, a substituição de um y por à, possa dissimular a origem de uma
palavra;
e a sua conservação
incutir ciência etimoló-
gica aos iletrados. Quanto a erros e irregularidades gráficas nos textos que possuímos, provéem em grande parte, evidentemente, da poueca sabedoria filológica dos seus autores, que não
tinham
meios
de se informar
a cada
passo. Em parte da ignorância só de copistas e escribas. Os medievais estavam acostumados a trasladar e redigir documentos em latim mais ou menos bárbaro e os do tempo
dos humanistas,
a
PARTE
1— O PROBLEMA
copiar epistolas ciceronianas,
ORTOGRÁFICO
39
e poemas vergilianos —
realmente antigos
au de autores portugueses.
Depois da invenção civilizadora de Gutenberg, muita grafia arcaica e pedântica, resultou da intervenção de oficiais de tipografias. e de correctores, que, julgando-se habilitados pela experiência, e não podendo alterar a bel prazer o estilo dos textos que compunham e corrigiam, Ihes retocavam pelo menos a ortografia — nem sempre boa, já o dissemos. Poucas imprensas dispunham de pessoal superior habilitado; e os preceitos da Mesa-Censória não permitiam (salvo êrro ) que, fora da Imprensa, o próprio autor lêsse provas e alterasse os dizeres de manuscritos aprovados. Quanto à introdução de vocábulos cultos, literários, poéticos e eruditos, têmo-la em conta de obra meritória. Só com respeito à grafia, lamentamos que os humanistas não se resolvessem logo, decididamente, a
tirar aos neologismos que patrocinavam as caudas roçagantes e os enfeites excessivos, assemelhando-os o mais possível, aos vocábulos antigos
verdadeiramente nacionais. Ainda assim não vamos tão longe como outros reformadores — por ex. como Gonçalves Viana — que condena em
absotuto as grafias clássicas como mera superstição, mero alarde de cultismo ( ou galicismo, visto que os Franceses serviram de modêlo aos portugueses. também nesse ponto, segundo a opinião dele) — porque me lembro de que, ocupando um lugar à parte na economia da linguagem, não era de estranhar que lho quisessem dar também quanto à escrita. E compreender equivale a perdoar, também no campo filológico. De mais a mais não esquecemos que houve, da parte dos escritores e impressores quinhentistas, numerosas tentativas de nacionalizar gráficamente os latinismos e grecismos.
Nas duas edições primeiras dos « Lusíadas», (1572) temos, por ex., hemispherio à latina com h e ph; mas também sem hh (emispherio — emisperio) e mesmo o vulgarismo emisfério (por analogia com esfera, espera) ; as nymphas aparccem em quatro trajes, à grega e à portuguesa
ou fundindo as duas maneiras; phantasia, fantasia, fantesia, de três modos ; e estylo, estillo e estilo. E de mistura com despautérios como
mas
perfeitamente
aportuguesadas
sem
occeano com dois ce, há for-
yy e ph
como
linfa, diáfano,
sulfureo e grandiloco. Hesitavam. Os pósteros é que deveriam ter escolhido e entronizado as grafias mais sensatas, como fizeram em Espanha e na Itália, já há séculos. Como ainda não estava feito, fizemo-lo nós. — NMais vale tarde do
que nunca. Compete agora à nova geração utilizar a Ortografia simplificada — e melhorá-la porque ainda não está perfeita. O que aqui disse, já fazendo propaganda, o disse antes da reforma estar realizada, numa série de artigos, publicados em Março de 1911 no Primeiro de Janeiro (jornal do Pôrto).
LIÇÃO V [DERIVAÇÃO E COMPOSIÇÃO NOÇÕES GERAIS, PRELIMINARES, TEÓRICAS]
J.«'x FALAiMOS
dos vocábulos literários ou livrescos, poéticos e eruditos,
que foram tirados directamente do dicionário latino ou helénico, por escritores portugueses ; sobretudo desde que no tempo do Renascimento, do século XV em diante, as obras clássicas da antiguidade começaram a ser lidas e traduzidas. Ou, por outra: desde que os escritores cultos sentiram a necessidade de regularizar e disciplinar por um lado, e de enriquecer e enobrecer pelo outro lado, o idioma nacional. Em seguida explicámos, como da introdução de tais têrmos ceultos (na plena forma latina e com o mesmo sentido que tiveram na língua-mãe)
resultou
a coexistência
de muitos, em
duas
ou mais formações
distintas. Mostrámos que freqiientes vêzes os novamente acolhidos já pertenciam ao núcleo primitivo, popular, onde haviam entrado por contacto oral, directo, evolucionando pouco a pouco, quanto à forma, quanto ao si-
gnificado e, em casos não raros também, quanto às funções que exerciam. Dissemos que estas formas duplas, triplas ou quádruplas se denominam divergentes, ou à moda da Itália — alotrópicas. Para os senhores se lembrarem dos tópicos principais, bastará que repitamos dois ou três dos exemplos que citei : entrudo e intróito; eira e área; chão, plano, lhano, piano — sem dar explicações acêrca das transformações fonéticas por que passaram, visto ainda não termos tratado ésse assunto fundamental. A par do tradicional entrudo está o clássico intróito: exórdio de um discurso, preâmbulo de um drama, ou oração primeira da missa. À eira onde o lavrador malha trigo e centeio ou cesfolha milho, fica a par (mas bem distante ainda assim ) da área quer de um círeulo, quer de um polígono, ou (em astronomia) do espaço que os raios vectores percorrem em determinado espaço de tempo. A par do chão que pisamos, temos o plano dos estudos que delineamos para o futuro ; o modo lhano com que os benevolentes conversam afávelmente — com os seus inferiores; e também os pianos de Bechstein e Steinway em que Viana da Mota ou Óscar da Silva tocam composições próprias ou alheias, deixando esvaccer-se suavemente os pianos e pianís-
simos da sua execução. O último exemplo mostrou-nos como, além de latinismos, opostos
PARTE
1—
DERIVAÇÃO
E COMPOSIÇÃO
41
às formas do falar comum, há entre as formas divergentes, estranjeirismos vindos de fora-parte : lhano, de Espanha; piano, da Itália. Muitos de França e de outros países. Quanto a formas semi-eruditas, diferençadas de ountras herdadas, citámos (salvo êrro ) senha e sina, ambos de signa. *
Embora a introdução de estranjeirismos e de latinismos e a cisão de um vocábulo em dois, três ou quatro, contribuíssem poderosamente
para aumentar o vocabulário português, restituíndo-lhe o equivalente dos numerosos elementos da língua-mãe que se perderam, quer por os objectos ou costumes que designaram se haverem extinguido, quer por serem muito pouco encorpados fonêticamente, quer por serem homónimos de outros, elas não são as principais fontes da sua riqueza crescente.
Em parêntese diremos aqui que alguns romanólogos afirmam que as línguas neo-latinas são mais pobres em palavras primitivas (raízes, radicais ou temas) do que a latina. Mas essa base ainda não está cabalmente demonstrada. Certo é em todo o caso (e nisso todos concordam) que as filhas são mais produtivas quanto às maneiras de multiplicar o seu pecúlio. O principal processo, empregado pela língua portuguesa, em harmonia com os outros idiomas irmãos, não é, repetimos, n introdução de estranjeirismos e latinismos. Das suas próprias fôrças vivas emana a
faculdade de produzir a cada momento palavras novas. Não
temos
em
mente
onomatos — nome, e poiéo sons e de ruídos diversos da presentem o pulsar agitado tiquetaque ) ou a queda de canto de aves (como pipiar,
ceriações onomatopaicas.
(Do grego onoma,
— fazer). Ésse nome dá-se a imitações de grande orquestra da natureza, quer elas rede um coração humano (como tefetefe ou um objecto pesado (como tumba), quer o pipitar), o zunir de abelhas (zsum-sum) c
rom-rom ou renhaunhau do gato, o ciciar do vento, o ribombo do trovão
ou os diversos fonemas mal articulados que o homem enuncia bichanando, cochichando ou gaguejando (tátaro). Dessas euriosas mas limitadas manifestações da inventiva de cada nação, não faltará ocasião de falarmos. Refiro-me à derivação e composição, isto é — à formação de palavras novas (derivadas e compostas) quer pela junção de sufixos a temas, palavyras primitivas, ou a palavras já derivadas, de antemão existentes no tesouro da língua, quer pela junção de prefixos, ou pela união
de duas ou mais palavras em uma única. As combinações que por êsses três processos — o da sufixação, o da prefixação e o da juxtaposição ou fusão, se realizam. são múltiplas. E dizem respeito não só às palavras herdadas latinas, pré-romanas. gerMânicas e arábicas, mas também às que foram e são importadas poste-
LIÇÕES
12
DE YILOLOGIA
FORTUGUESA
riormente do estranjeiro e das que como empréstimo indispensável foram e são pelos eruditos extraídas sucessivamente das obras primas da anti-
guidade clássica.
i
Dêsses fecundíssimos recursos lingúísticos por meio dos quais o Vocabulário portusuês vai avoltando cada vez mais, passamos a dizer alguma coisa. Se quiséssemos entrar em todos os pormenores, dando listas e comentários completos, teríamos de eserever um livro. Necessariamente
devemos restringir-nos aqui a noções gerais, preliminares, teóricas, ilus-
trando-as apenas com alguns exemplos, tirados, em regra, do núcleo popular da língua. *
A sufixação, prefixação e composição não são privativas das líinguas românicas. São processos comuns a tôda a família indo-germânica, muito embora em alguns idiomas prevaleçam as derivações e em outros (como no alemão e no grego) as composições. Os protótipos das formações novi-latinas, são, como de costume, latinos e helénicos.
A derivação e a composição constituem um capítulo, bipartido, da Morfologia, da parte dos estudos lingúísticos em que se trata da estrutura dos vocábulos, em oposição à que trata dos clementos primários, os sous ( Fonética), e àquela que trata da estrutura das proposições : Syntaxe. Se numa das prelecções anteriores deixámos dito que muito mais do que o Vacabulário é a Morfologia que determina o carácter das líinguas,
nós
tinhamos
em
mente,
sobretudo,
o capítulo
que
versa
sóbre
a flexão dos nomes, pronomes e verbos: a Flexiologia. A Tematologia não é todavia de menos importância. É a parte mais movimentada da vida das línguas, aquela em que a arbitrariedade cria mais vêzes excepções às leis. O povo colabora nela constante e cficazmente, quer como colectividade, quer por mceio de indivíduos superiormente dotados. Muitas vêzes com tanto tino e gôsto que nos sentimos levados a repetir o ditado: «O povo é mestre». Certas tendências e preferências da sua alma manifestam-se na derivação, às elaras (**). AÀ grande liberdade e sem-cerimónia com que o vulgo aproveita ail libitum os elementos construtivos, os mesmos de que os doutos se servem discreta e acauteladamente, tendo em mira leis e regras extraídas
dos modelos antigos; — o modo como o povo transforma o que lhe não agrada, e também certo pendor para acumulações, se dum lado lembra a indisciplina que, no campo sociológico, é costume criticar como «bran()
[No texto —
manifestam-se na derivação, às classes).
1 — ETIMOLOGIA
PARTE
413
POPULAR
dura de costumes», encanta, do outro lado, pela espontaneidade e graça pitoresca e pelo individualismo extremo das suas criações e invenções. Desrespeitando imposições legislativas e dogmáticas, indiferente contra evoluções orgânicas, purezas de estilo e rigores de lógica, a gente-povo desobriga-se bastantes vêzes, soberanamente ou caprichosamente, de peias e empecilhos que se lhe tornem incómodos, sobretudo no campo de que tratamos. E, preciso é lembrá-lo. há gente-povo em tôdas
as camadas da sociedade. Adoptando processos fáceis mas significativos, para exprimir não só com clareza mas também com ênfase o que pensa e sente, claro que não inventa processos absolutamente novos nem modifica os velhos com deliberação. Irreflectidamente, sem deduzir regras de factos observados, modifica por analogia ou assimilação associativa, em virtude do mecanismo psicológico que constitui a memória, palavras preexistentes — aproximando-as no som e no sentido de outras que, pela sua freqiiência ou plasticidade, se fixaram na sua mente. Tal qual crianças que dizem fazi e fazido, em lugar de fiz e feito, lembrados de bebi, bebido, comi, comido, corri, corrido, o povo
trans-
forma, p. ex., por interpretação pseudo-etimológica, palavras cujos elementos lhe sejam estranhos.
Eis alguns exemplos dessas metamorfoses que é praxe chamar etimologias populares, muito frequentes também nas línguas doutras nações. Tintura de ódio por tintura de iodo; mal-feio por morfeia, transformadas em ambas as partes constituíntes, são bem
conhecidas. Talvez
o seja menos Espanta leão como interpretação do nome próprio Panta-
lião? Cremos que sejam inéditos mal trasto de mentastro; mal de Olanda (de Holanda) por lândoas ( glândolas—ínguas engorgitadas) ; mancipais ( municipais) por mince-pies e mólho-correio por môlho de curry (caril). Mancipais são certos pastéis de carne picada, envolvidos em massa folhada que os inglêses chamam assim, porque o verbo to mince, parente do português esmiuçar, (minutiare, do comparativo de míinutus) significa pícar, traçar em parcelas minúsculas. Móôlho correio é um môlho de carne, temperado com a mistura de espécies fortes, mas saborosas, da Índia,
a que na Inglaterra se dá
o nome
de curry-potwder, môlho que, por sinal, diz muito bem com arroz de rins é arroz de frango. : Outro exemplo: A um lavrador de andar muito pesado, proporcionado ao seu corpanzil alto e carnudo, que um dia nos visitou, foi aposto logo por uma criadinha esperta, vinda havia pouco de Trás-osMontes, a aleunha de Calca-terra. Mas esta
ão capítulo da composição. Quanto
à derivação,
vamos
e o môlho-correio pertencem
citar vários casos, respeitantes
ao su-
Perlativo absoluto ou elativo. Começamos com alguns em que o povo jun-
4s
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
ta o sufixo literário -íssimo (introduzido no século XV) a substantivos. Éles podem ser descendentes de formas isoladas gregas e latinas; mas também criações livres, independentes. Os gregos tiraram esporâdicamente e arbitrâriamente do nome
basileus —
rei, do adjectivo attikos,
e do nome próprio Homero, os comparativos e superlativos basiléuteros, basiléutatos : attikásteros; homerikásteros, homerikastatos. No poeta cómico Plauto, o Gil Vicente dos latinos, há homo oculissimus — um ho-
mem
todo ôlho; e patrue mi patruíssime — como se disséssemos meu
titio queridinho. Os sucessores empregavam plautinissimo para designar um imitador do poeta. Os italianos empregam maestrissimo, padronissimo. fratellissimo; e rossinissimo passou a designar um compositor mu-
sical melodioso como o inspirado autor do Barbeiro de Sevilha. Mas é improvável que o povo português conhecesse tais formas e as imitasse.
Em geral não emprega muito o -íssimo, que os letrados juntam exclusivamente a adjectivos ; e hesita e atrapalha-se em regra quando quer servir-se de algtum exemplo.
Consideramos
por isso como criação livre o
substantivo-superlativado coisíssima nenhuma, de que todos nos utilizamos uma vez por outra. E também outros, que colhemos da bôca do povo: burro, suno.
burríssimo;
nariz, narizíssimo;
pão, pãozissimo;
a cada passis-
É de crer que cada uma dessas formações (e com certeza haverá mais ) seja de origem puramente individual. Pouco a pouco virão a estender-se a uma comunidade maior, em resultado da imitação, quer de indivíduo., quer por influxo de artigos de jornais, peças de teatro, cantigas e contos.
Foi o que aconteceu com outros superlativos, reforçados por duplicação da síilaba característica como grand-es-íssimo, mal-s-issimo (se por acaso a silaba escrita ora com s, ora com z, não fôr o infixo -z- de
ave-z-inha, pá-s-ada, de que falaremos ainda. Ambos são ceomparáveis ao castelhano
much-is-íssimo,
familiar e jocosério como
êles, —
razão
por que damos a preferência à primeira explicação. Em todo o caso não devemos esquecer que, conquanto raro, houve em latim ipsimus e ipsissimus que sobrevive em metipsimus, isto é, no pronome mesmo (antigamente meesmo; cast. mismo, fr. même; ital. medesimo). Dêle há tam-
bém um superlativo — mesmissimo. Ainda outra mancira de superlativar consiste na repetição de qualquer positivo por inteiro ( muito-muito ) — ou abreviando-se a primeira parecla (mui-muito). É hoje pouco usado, e tem o seu prótotipo em passos bíblicos como Santo santo é o Senhor Sebaoth. — um cantor velho diz que dos muimuitos amores nace muimuita door. Com os prefixos re- e per- formavam-se igualmente, e ainda se formam
hoje. superlativos populares : bonito e re-bonito ; não e renão;
contente, recontente ; per contente. Éste último como grau supremo.
O advérbio per, por sua vez, foi ainda ultrapassado pelo numeral
PARTE
I —
SUFIXOS
45
mil, na acepção de vêzes não contadas. Sirva de exemplo o nome vulgar da erva de S. João — o hypericum perfuratum, por causa das fôlhas verdes que vistas contra a luz parecem com efeito, picadas por mil picadelas. Em vez de perfurado chama-se hoje mil furado, mil furada (*'). *
A história da sufixação, prefixação e composição portuguesa está por escrever. ITá, isso sim, em cada gramática portuguesa destinada ao ensino secundário oficial, um capítulo sôbre derivações e composição, com listas dos sufixos e prefixos que servem actualmente para a formação de substantivos, adjectivos e verbos, ordenados ora alfabêticamente, ora se-
gundo as funções que éles exercem. Mas os fins práticos e restritos dessas obras não admitern que a matéria seja tratada exaustivamente, neni mes-
mo com certa extensão e intensidade. É justíssimo que nelas só se registem os sufixos mais produtivos, com breve indiceação das suas funções regulares e das classes gramaticais a que se costumam juntar. Arcaísmos, vulgarismos, formações isoladas e irregulares e sufixos extintos ou petrificados, não téem que fazer em livros escolares. Não se pode falar nêles das evoluções de forma e de sentido por que passaram, nem das suas relações de parentesco com os sufixos das
línguas irmãs (embora alguns portugueses derivem delas ou sejam influenciados por elas, como -agem, que veio de França, e -oila, que é o castelhano -uela) ; nem tão-pouco se pode tratar das origens, embora sem o seu conhecimento seja difícil dar definições satisfatórias. O que se podia e devia fazer é ensinar algo sôbre o grau da popularidade e produtividade de cada sufixo. Não nos parece, por ex., conveniente registar um sufixo adjectival como -il com dois exemplos, febril, senhoril — sufixo que existirá, quando muito, em duas dúzias de derirados ; e com outros tantos, sem comentário algum, o sufixo nominal -ção,
educação, punição — representante do latino -tione, que é o mais feeundo (infelizmente) da língua portuguesa, com muitas centenas de exemplos.
Eles são tantos quantos os verbos da 1.º conjugação. Mais ainda, pois há bastantes provenientes de verbos da 2.º e 3.º, e muitos sem vogal de ligação, (tenção, função, moção) em palavras herdadas. Sem falar dos seis tipos variados diferençados fonêticamente, segundo os fonemas precedentes, que provãem do mesmo latim -tione, -sione, e -ssione. Ésses tipos
são questão, paixão, cachão, diversão, procissão, razão.
O que também se podia fazer é a distinção entre sufixos de forma Popular como
-eiro, -«deiro, -doiro e os correspondentes literários -ário,
«tário, -tório. Não nos parece bom confundirem-se vocábulos realmente ()
[CL, Rev. Lus., XIII, 345 — Mestre Giraldo]:
46
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
nacionnis, criados em Portugal, com os herdados que entraram prontos e feitos, no idioma ; nem com formações eruditas e tardias. Quanto a nomes derivados de verbos, procede-se em geral de modo diverso. Estabelece-se, isso sim, que o Stamm, a raiz, o tema, o radical, a base é am-, vend-, pun-, de amare, vendere, punire e fica-se fiel a essa concepção eom relação a verbos derivados como dorm-itar, a-dorm-entar,
a-dorm-ecer. Mas nos derivados nominais, a vogal a ec 1, que caracteriza a conjungação e liga os sufixos no tema verbal, é considerada como pertencente ao tema. Por isso separain arma-da, arma-dor, arma-dura arma-do, arma-mento,
arma-dilha, arma-doiro.
Eu não aprovo. Não acho lógico pôr num livro escolar lado a lado os derivados citados de dormir, e logo ao pé, formar palavras como dormi-da, dormi-nte, dormi-tório, pôsto que bem saiba que elas se podem
justificar. 2 Será plausivel um do modo seguinte : AÇO NÇA ÇÃO dor a
parágrafo que patenteia derivados de verbos,
cesnaccoarcaaraço.. ee cn .n cececrecrerececaracneo..
ilho .a MENto ..c doiro ..lerreaançano.
— — — —
CANSAÇO mudança ndoração Ccaçador
— COrreria
—andarilho — acabamento — bebedoiro?
Derivações realizadas sem sufixação, creio que não são mencionadas em nenhuma Gramática, apesar de os substantivos verbais (como
entrega, castigo, enfeite), tirados do tema puro, serem de alto valor na economia vocabular. *
Nas Gramáticas comparadas do fundador da lingilística românica, Friedrich Diez, e do seu renovador Meyer-Liibke, há naturalmente uma parte extensa elaborada com vasto saber, arte e engenho, sôbre a estrutura das palavras (Wort-bildung), dividida em derivação ou sufixação (Ableitung) e em Prefixação ( Práfix-bildung) e Composição (Zusam. ...
mensetzung ).
'
Escusamos dizer que em ambas as obras ela está bem feita, quanto às linhas gerais, que deverá servir de base a todos quantos se ocupam do assunto e que em todos os parágrafos há idéias úteis e materiais preciosos para todos os investigadores. Distingindo entre derivados nominais e verbais, partem sempre das formas modelares latinas (misturadas com gregas, zermânicas, ará-
PARTE
1 —
SUFIXOS
47
bicas e ibéricas por tôdas elas terem entrado latinizadas no cabedal dos idiomas neo-latinos) e agrupam-nas segundo o seu vocalismo e consonantismo (simples ou composto). Principiando com -ans, -eis, -eus, -nus, etc., passam a -bilis («abilis, -ebilis, -ibilis ) — seguido de -aceus — ordenando cada um dos grupos alfabeticamente. A exemplificação, embora relativamente abundante, não é todavia senão uma resenha muito resumida de formas vindas do latim e de imitações, criadas nas cinco línguas principais
neo-latinas.
Quanto
ao la-
dino, êle era mal conhecido no tempo de Dicz. Hoje liga-se-lhe grande atencão. E Mevyer-Liibke não o descuida. O italiano e o francês, seguido do provençal. marcham em geral à frente com exemplos típicos. O castelhano vem depois. O português segue-se-lhe, por motivos óbvios. Contudo, não é tratado com o devido cuidado. À dispersão dos materiais dificulta a síntese. E em geral a escolha dos casos não satisfaz nem pela quantidade nem pela qualidade. Um livro especial é uma necessidade. Dois breves exemplos podem servir-nos de amostra : os sufixos nonminanis -aster e «ista (Meyer-Liibke, $$ 522 e 523, Diez, p. 397 ). Outros serviriam igualmente bem ou melhor ainda. Por ex.,
$ 513, -ondus.
-Ísta é de proveniência grega, designa aquêle que pratica amiúde ou tem grande tendência a praticar a acção indicada no tema verbal ou aquêle que se ocupa do objecto que o tema nominal designa. Todos sabem que é muito usado em Portugal, onde temos, entre dúzias, demandista, chupista, fumista, bromista (castelhanismo). Dicz citava três formas,
arbitrista, feudista, camarista.
Só
a última
é boa.
Às outras
são
raríssimas, nada populares. Cremos que nenhum português as teria mencionado, nem mesmo figuram em dicionários modernos. Meyer-Liibke cortaou o camarista e conservou os outros em lugar de os substituir. Amhos os romanistas desconheciam portanto a mais popular das formações portuguesas : o fadista (que já originou os derivados fadistagem e fadistona). Antigamente denominava o que toca e canta a canção popular do
fado (fatum ) alusiva às mágoas e aos trabalhos da vida. Hoje descai noutro significudo mais baixo, em virtude da transformaáção que o géncero, os seus cultores e os costumes populares em geral, padeceram em Lisboa. No melhor dos quadros de Malhoa, o tipo repugnante do fadista de Lisboa está tratado com realismo rudemente empolgante, à la Yelasquesz. Com relação a -aster, que designa o que é não castiço, ilegítimo.
dle é hoje sufixo inactivo que o catedrático de Viena de Áustria talvez não quisesse indicar pcla falta de exemplos. Ainda assim conserva-se em Ppadrasto, madrasta (com queda da vibrante por ela existir no tema), em
mentastro (mudado em mal-trasto, conforme contámos exactamente por
0 povo desconhecer o sufixo -astro) e em Trás-os-Montes em filhastro (afilhastro ). Na Gramática
de Jules Cornu.
o melhor conhecedor da nossa Iin-
48
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
gua no estranjeiro, publicada no Grundriss de Groeber, — os sufixos figuram apenas como material comprovativo de regras fonéticas. Nas obras de glotólogos portugueses, sobretudo nas de F. A. Coclho, Leite de Vasconcelos e de Júlio Moreira, mas também nas contribuíções etimológicas em que nós elucidámos as origens e as evoluções de vocábulos peninsulares, há bastantes informações acêrca de processos de de-
rivação e composição. Mas só pormenores sôltos. mático, como o exige a colheita abundante que se arcaicos, dos dialectos, do idioma galego e seus Astúrias : e em especial da linguagem portuguesa variadíssimos
modos
de
acumular
sufixos,
ora
Nenhum estudo sistepode extrair dos textos congéneres em Leão e familiar, com os seus segundo
normas
tradi-
cionais, ora sem se importar com padrões preexistentes (**). Não dizemos que alguém possa desde já fazer um trabalho completo, definitivo. Há múuito que coleceionar e apurar ainda. Também nenhuma das línguas românicas o possui por ora. Apenas trabalhos especiais sôbre um ou outro sufixo, mais interessante. Os títulos principais estão registados e os resultados essenciais foram aproveitados nos respectivos parágrafos do catedrático de Viena de Áustria.
Os trabalhos mais largos e profundos, sobretudo no que diz respeito à França, são dois de Darmesteter : Traité de la Formation des mots composés (1875), De la création actuelle de mots nouveaux, (1877) e o de J. Rothenbuse, De suffixarum mutatione (1880). Além dêles, há nurnerosas dissertações de bacharéis alemães, como p. ex.: R. Mirisch, Geschichte der Suffixer in den romanischen Sprachen
(1882).
G. Cohn, Suffixwandlungen (Leip. 1891). N. Nathan, Das lateinische Suffix -alis im Franzôsischen (Strassburg, 1886). R. Fisch, Die lateinisch Nomina personalia auf. -o -onis (1890). Podiam servir de modelos aos portugueses que quisessem tratar de qualquer sufixo, ainda não estudado, muito embora se restringissem às línguas peninsulares, ou sômente ao seu idioma, incluindo, com respeito às outras, apenas os materiais mais acessíveis contidos em Diez e
Mevyer-Liibke. cujas Gramáticas existem em tradução francesa. Não perderia o seu tempo quem reiinisse p. ex. e explorasse os muateriais acumulados nos treze volumes da Revista Lusitana. Nem tão-pouco quem tivesse paciência e tenacidade suficiente para examinar com o mesmo fim algum bom dicionário português: o Manual Etimológico de F. AÀ. Coelho (muito rico, pôsto que nas definições e sobretudo nas etimologias haja naturalmente que emendar) ou o Vocabulário Ortográfico e Ortoépico de Gonçalves Viana, que talvez seja mais abundante ainda, mas não define nem comenta nenhum dos têrmos registados. (º)
ENo texto —
padrões
que excelentes].
PARTE
Mais
valiosa, mas
também
1 — SUFIXOS
muito
49
mais laboriosa, seria a explora-
ção dos Cancioneiros galego-portugueses. Os estudantes desta cadeira muito embora não queiram ser filólogos romanistas,
aprenderiam
prâticamente
algo de metodologia, se na
sua carteira assentassem, não direi dia a dia, mas oportunamente, as for-
mações familiares espontâncas, bem ou mal inventadas, que lêêm, ouvem ou enunciam, e que lhes pareçam ser neologismos ou vulgarismos. Coleccionações e análises morfológicas são relativamente fáceis, interessantes e compensadoras. E eu teria prazer e orgulho em ter dis-
cípulos que nos ajudassem a resolver problemas ainda pendentes. Terminarei repetindo o que, há pouco, imprimi num artigo etimológico relativo aos adjectivos friurento de friura (friorento em textos clássicos), gordurento de gordura, farturento de fartura e o hipotético
suura (por suor) (*) (“*). «Ãos
povo,
que
incumbe,
falam
português
tratar, com
e vivem
ampla
em
contacto
documentação
constante
com
o
histórica e dialectal,
dos sufixos que téêem vitalidade, distinguindo cuidadosamente entre palavras de papel, registadas nos grandes inventários lexicográficos e os que realmente são empregados pelo povo, quer em sentido real, quer em figuras e locuções pitorescas... Os parágrafos curtos, dedicados pelos mestres, nas suas obras gerais nos sufixos, são naturalmente insuficientes».
——
(*)
Revista Lusitana, XIII, pág. 265. — No $ 353 Meyer-Liibke fala de sedorento
(Por sedento) que ainda não encontrámos em parte alguma.
()
[Sedorento
ocorre no Leal Conselheiro, cap. RIIJ. p. 145 da edição
Rolandiana — e não sabemos doutro exemplo. É estranho que êle haja escapado à atenção da douta Prof., que também o não menciona em Mestre Giraldo. A explicação de Meyer-Liibke (engano resultante de se olharem como fazendo parte do sufixo sons pertencentes a um radical: o padrão, neste caso, seria fedorento) — parcece-nos aceitável].
LIÇÃO VI [ DERIVAÇÃO. RAÍZES (RADICAIS, TEMAS OU BASES) E AFIXOS. SUFIXOS MORTOS E SUFIXOS VIVOS] EVIDENTE que os coleceionadores não devem novos que
faltam nos dicionários comuns,
desprezar vocábulos
mesmo
se duvidarem
e
hesitarem a respeito da sua construção. Parece que esta honra de figurar nos léxicos não é concedida, às vêzes, senão ao cabo de séculos.
Não encontramos, por exemplo, em nenhum dos que costumamos consultar o têrmo gerico, sinónimo de jumento no Norte do país, onde tem o derivado gericada. E apesar disso já se usava no tempo de Gil Vicente. No Auto da Barca do Inferno há pelo menos gerícocins, derivado de gerico (deminutivo como camarim, mandarim, etc.), e por tanto equivalente de gericozinhos, a não ser que seja mero êrro de imprensa por gericos. O verso diz na mais antiga impressão
que gericocins salvanor, em reimpressões também antigas que gericocins salvonor
de sorte que temos uma sílaba a mais. Consultada por Afonso Lopes Vicira. aproximámos o têrmo de gericos (depois de havermos divagado em outro sentido menos plausível). O gentil poeta substituíu por isso o têrmo por asnos, na sua bela modernização, dizendo
Mas que asnos salvanor! cuidam cá que sou eu grou? (*)
Quem enuncia os versos é o típico fidalgo., em caricatura bem se vê, levando à ribeira triste do Tártaro o seu orgulho nobiliárquico ; chega acompanhado de um pagem que lhe leva a cauda roçagante (um rabo muy comprido, no dizer de Mestre Gil ) e uma cadeira de espaldas. Indignadíssimo por não lhe responderem da Barca do Paraíso, depois do arrais do Inferno já o haver demorado
com os seus ditos e risos, obri-
gando-o a eonservar-se em pé, durante algum tempo resmunga. E no 2.º 1)
[Cf A Campanha
Vicentina, por À. L. Vieira, pág. 50-51]:
PARTE
1—
RAÍZES
E AFIXOS
51
verso compara-se à ave grou, que era símbolo da vigilância nos Fabulários e Bestiários mediévicos, por dormir em pé com um perna dobrada debaixo da asa, segurando, salvo êrro, uma pedra nas unhas. Confessamos desconhecer por completo a origem de gerico. Seguramente seria voz de uso comum, mas grosseira, visto que o fidalgo the junta a forma salvanor ou salvonor (salva hkonore ou salvo honore), que equivale ao moderno com sua licença, empregado pelos populares quando se vêem obrigados a usar de um têrmo que não é do protocolo. Em uma edição sôlta da Barca, substituíram-no por bribante (bubante). O mangerico, único vocábulo que, (segundo nos lembramos ) poderia ter dado gerico, fonêticamente, pela queda da sílaba inicial (assaz violenta), está a tal distância de jumento semasiolôgicamente, que, por
ora. não vemos como se haviam de aproximar um do ontro. ; Seria pelo cheiro bom da planta e o cheiro mau do burro? *
Aos estudiosos, que
preferem
textos literários, recomendamos
colher materiais
como
minas muito
morfológicos
valiosas, ainda
em insu-
ficientemente exploradas, os Áutos todos, de Gil Vicente e seus imitadores; as três comédias em prosa de Jorge Ferreira de Vasconcelos; as
obras vernáculas de D. Francisco Manuel de Melo (Cartas Familiares; Dialogos Apologais; Feira de Anexins ). Dos modernos, as obras de Camilo Castelo Branco e as de Trindade Coclho — ambos éles grandes conhecedores da linguagem popular. *
Continuamos a falar de derivação, transmitindo algumas noções teóricas, que se vão ilustrando com exemplos colhidos de preferência no núcleo popular do vocabulário nacional. Na análise de derivados portugueses alguns filólogos empregam o vocíábulo primitivas (entendendo palavras primitivas) para indicar a parte que numa família inteira se repete inalterada, representando sempre a mesma idéia fundamental. Outros falam de radícais ; outros de raízes ; ainda outros de temas ou bases. é Qual dêsses têrmos servirá melhor para caracterizar, p. ex., a função de AM na família cujo chefe ancestral essa sílaba é? A família é constituída por amar, amante, amador, amável, amabilidade. amigo, amigável, amigalhote, amigalhaço; amizade; amicíssi-
mo ; amor (com a locução por amor de, na bôca do vulgo, por môr de), amoraárvel, amorinhos, amorios, amoroso, amorudo ; namorado ; namorar, namoradeira, namoradiço, namorador, namoricar, namoriscar ; desamor, desamigar. Em todos êles se repete am. Sômente em inimigo (não-amigo, o oposto de amigo) antigamente também nemigo, nemiga com inimiza-
LIÇÕES
o
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
de, o prefixo privativo in- perdeu a sua vogal e rebaixou a do tema. Mas ésses fenómenos não se realizaram em Portugal. Analisando e agrupando cssas palavras, vemos que há nelas pelo menos três simples, vindas directamente de Roma — amar, amor, amtgo — três que não se tiram de outras, existentes em português. Essas são
primitivas, muito embora se componham também de duas partes construtivas: — a raiz AM — e um sufixo : -icus em amigo ; -or em amor; c em amar a desinência verbal da primeira conjugação. Além dos simples, há na família derivados e compostos. rivados, uns vieram do latim vulgar tradicionalmente, como
Dos deamável,
amador ; outros foram formados em Portugal sôbre modelos freqiientes : são criações do espírito popular (sobretudo amigalhote, amigalhaço, amorudo). Dos compostos ( desamor, namorar ) vale o mesmo, muito embora namorar por enamorar e nemigo, nemiga, talvez viessem de Espanha. Nesse caso a raiz latina, ou o que parece ser raiz, subsiste inalterado em
português, e não erra quem
a trata como
tal.
* Antes
de
consoantes, —
dizer
mais
alguma
coisa
dos
monossílabos,
grupos
de
ou mesino da única consoante que em línguas primitivas
é raiz ou símbolo da idéia principal, notemos que quanto aos outros elementos construtivos das palavras — todos concordam em chamá-los afixos. Tanto em línguas primitivas como nas derivadas (indo-germânicas e românicas, porque só dessas nos ocupamos), afixos são elementos que exprimein idéias secundárias. Soldados às raízes — aos radicais, aos temas — ou às palavras primitivas — êles particularizam-lhes e deter-
minam-lhes a significação em diversíssimos sentidos. Ora designam o que pratica a acção, ou o que tem tendência ou facilidade a praticá-la ; ora o instrumento com que o acto se realiza, a localidade onde isso sucede, ou onde coisas concretas se encontram em multidão, ora uma qualidade abstracta;
uma
vez
diminuem,
outra
vez
aumentam;
negam
c
trocam
pelo oposto o sentido do elemento primário essencial. Sendo antepostos às raízes, aos radicais, nos temas ou às palavras primitivas — como
em des-amor, en-amorar,
in-imigo, chamam-se
fixos (Vor-silben em alemão); — sufixos, (Nachsilben ); — infixos, quando têem o seu fixo, processo freqiilente em português de que depois. : Os sufixos (die Ableitungssilben ) são a a mais importante ; os prefixos, vêem
a seguir;
pre-
quando se lhes seguem lugar entre a raiz e o sufalaremos ainda hoje, ou classe mais numerosa os infixos,
e
a menos nu-
merosa e importante, conquanto originem formações curiosas. Originâriamente os afixos foram também raízes (Wurzeln ). Nos
PARTE
1 — ORIGEM
E SIGNIFICAÇÃO
DOS AFIXOS
53
seus primeiros estádios as línguas não possuem senão sílabas curtas e únicas, meros grupos de consoantes, ou mesmo uma só consoante ou uma só vogal para simbolizar coisas concretas, qualidades abstractas, actos e fenómenos naturais que mais profundamente impressionaram os nossos antecessores — o homem primitivo. Raízes nominais e verbais. Mas também raízes pronomínais. À êsse grupo pertenciam os afixos. Emprega-
dos como completadores e meros modificadores da idéia essencial (Grund.bedeutung) reduziram-se pouco a pouco a elementos só de relação, de valor abstracto. Perderam a sua independência. Só por excepção a readquirem de longe em longe, momentâneamente, em línguas modernas: Como veremos, mais tarde, quando falarmos do emprêgo que o português pode fazer dos sufixos, substantivando alguns, como — -ões, -inhos, -avos. Verdade é que só para alguns sufixos indogermânicos a demonstração de que eles foram realmente raízes está feita com rigor. Admite-se porém que todos éêJles se originariam do mesmo modo, pelo que se sabe das línguas primitivas e pelo que se vê nas derivadas. Mesmo em português há um exemplo típico (comum às línguas neo-latinas) e que por isso mesmo é apontado por todos os filólogos nacionais c estranjeiros. É o sufixo adverbial -mente. Mente, do tlatim mens, mentis, era substantivo nessa língua e continua a sê-lo em português, espanhol e italiano, sinónimo de entendimento, espírito, disposição espiritual, intenção. À fórmula adverbial bona mente (ablativo) significava entre os romanos com boa intenção, de bom grado., Em Portugal ainda hoje se diz talqual de boa mente e de má mente. Ligando-lhe a idéa geral deduzida de modo ou maneira, o vulgo uniu mente a quantos adjectivos quis, criando assim o advérbio neo-latino. Em francês, -ment já não tem outra função senão a adverbial. Quanto a prefixos, êles são. em regra, advérbios ou preposições e
portanto também palavras distintas, com relativa independência. Nas línguas românicas só figuram no capítulo da composição, ao passo que nas línguas germânicas
muitos entram
no da derivação, por
não terem valores ou funções independentes. Be- Ent- Ver-, ete. ; são bem diversos de menos, mal, bem, bis, ante, contra, entre, sôbre
e mesmo de
Per e re ou arre em menosprezar, malquisto, bemquerença, biscoito. an-
tolho, contrasenso, entrecosto, sobrecopa, perfeição, rematar, arrematar. Já dissemos que re e per, hoje inseparáveis na linguagem culta, exerciam antigamente,
isolados, funções de advérbios;
re nas formas populares
er, ar e arre (reduplicado ) indicava a repetição de um acto; per, deno-
tava intensidade ou o máximo grau de alguma qualidade ou de algum estado ; e ainda hoje exerce a mesma função nos dialectos hispânicos, intimamente aparentados com o português. Não no galego, mas no leonês (berciano. savagiiês) c asturiano.
54
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Voltemos às raízes. — Raízes puras — com funções de palavra — não existem em nenhuma língua viva indogermânica. Nem mesmo nas fases históricas mais antigas, a que podemos remontar. Apenas subsistem como elementos fundamentais, primários ou primitivos, de palavras feitas. As raízes que às centenas foram muito engenhosamente deduzidas da comparação de formas mais ou menos antigas das línguas primitivas, por ilustres glotólogos (alemães, bem se vê) como Bopp, Schleicher, Fick, Pott, Curtius são meras abstracções. Outra coisa não é possível apurar. Está fora do alcance da ciência demonstrar o que se passou nos tempos em que o homem primitivo começou a pensar e a falar. Alargadas pela adjunção e fusão de afixos — elementos secundários — as rnízes transformam-se em palavras. O último sufixo, em geral bem reconhecível, embora reduzido (a uma só letra) é desinência gramatical, terminação
flexiva que serve para exprimir as relações de
casos, génceros e números (em nomes e pronomes ; e as de pessoa e tempos nos verbos). Por isso o têrmo
raiz, quási sempre
conjectural, deve reservar-se
só para as línguas primitivas (*). Nas derivadas, como as da família a que pertence
o português,
que receberam tarde, por contacto directo, oral e tradicionalmente, for-
mações integrais, com muitos séculos de vida histórica
e após numerosas
evoluções de forma c de sentido, em que as raízes se fusionaram muita
vez com afixos, como logo veremos, não se pode em regra falar de raízes. Só excepceionalmente, em casos como
AM,
em
que uma
sílaba radical,
curta e singela, se conservou inalterada e reconhecível. É todavia preciso lembrar que exactamente essa raiz latina — abstracta — não tem paralelos nas outras línguas indogermânicas. De origem incerta, mal pode servir para demonstrações elaras. O que fica se separarmos de qualquer palavra portuguesa todos
(*)
Vid.
Bopp,
Glossarium
Comparativum
Linguae
Sanscritac
(3.º ed. Berl.
1867). Id.
Vergleiscehendo
Grammatik
der
indogermanischen
Sprachen
(2.º
ed,
Berl.
1857).
Scheleicher, Compendium der Vergleichenden Grammatik der indorgermanischen Sprachen (Weimar, 1866). : Pott, Etymologische Forschungen auf dem Gebiete der Indogermanischen Sprachen (2.º cd. 1859). Id. Wurzelwôrterbuch der Indogermanischen Sprachen (1867). A. Fick. Wóôrterbuch der indogermanischen Grundsprache (Gottingen, 1868). Curtius, Gricchische Etymologie (Berl. 1870). Quanto à língua latina, há também um Dicionário das raízes de Vanicess, mas por desgraça êle não se recomenda tão incondicionalmente como os outros.
PARTE
1 —
RAIZ E TEMA
55
os elementos de relação — os sufixos, os prefixos e os infixos e as desinências gramaticais que indicam a classe de palavras a que pertence — merece o nomte de tema ou de radical. De vivo, viver, vivaz, vivacidade,
vivenda — deduzimos o tema ou radical — viv — sem que nos importemos com as relações que viv tem ou teve em latim com vida, vita, vita-
lis, vitalidade, etc. Preferimos a denominação tema, e a de tematologia para a parte da morfologia que estuda a construção das palavras. Radical como derivado
de raiís, servia muito
bem
quanto
ao sentido, visto que os temas
encerram de facto as raízes e provéem delas — mas por ser mero adjectivo substantivado e ter outro significado na terminologia da fonética — não se presta tão bem a definições claras e sucintas como o grego tema.
MBases é vago também. Resumindo — entendemos que é preciso distinguir: Só consideramos eomo sinónimos os têrmos tema e radical, dando todavia a preferên-
cia a tema.
Raiz é, nas línguas primitivas, a parte irredutível a que se chega, separando das palavras, cuidadosamente, todos os elementos secundários. O nome de primitivo ou primitiva reservamo-lo para palavras inteiras portuguesas, que não tirem a sua origem de nenhuma outra palavra portuguesa, servindo elas, pelo contrário, de temas a outras derivações novas. Se bem nos lembramos foi Epifânio Dias quem primeiro a utilizou, na sua Gramática, neste mesmo sentido.
Estes vocábulos primitivos podem ser simples, curtos, monossilábicos, sem letra flexiva, como os que terminam em [, r, z, ou nasal : sol, sal, mel, fel, lar, par, luz, cruz, mão, cão, parecidos a raízes, sem o ser;
os dissilábicos com letra flexiva como rosa, mesa, ou constituídos de raiz e sufixo, quer verdadeiramente, quer só aparentemente como amor, papel (com papelada, papeleta, papelucho). Dizemos aparentemente porque não se conhece nenhuma raiz pap. Papyrus ou papyrius — vem do grego pápyrus, mas mesmo aí está isolado. Talvez viesse com a planta ciperácea de fibras filamentosas — do Egito, das bordas do Nilo, onde ela se dá tão bem. *
Para exemplificar melhor a diferença entre raiz e tema daremos dois exemplos típicos, já tratados exemplarmente por F. A. Coelho no livro escolar sôbre ÀA Língua Portuguesa (**). Pater e consuo, Padre e coso.
«No latim pater, pa é ou parece ser a raiz, significando proteger, guardar, levar a pastar, alimentar ( raiz que também deu pa-scere, pastar ) ; ()
[Cf. pág. 29-30 da 2.º Edição emendada e aumentada)].
LIÇÕES
56
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
ter é um sufixo que indica o agente, o que faz a acção designada pela raiz; em pa-tre-m o m indica a relação objectiva, isto é, que pater se torna proposição objecto da acção indicada pelo verbo; em pa-tre-s o s indica a relação de pluralidade, e relação de sujeito ou objecto (o acusativo coincidindo na terceira declinação Jatina com o nominativo) ». Em português o representante de pater, patris é padre (tratado como de costume no acus., que perdeu o seu m em latim vulgar). Com pouquíssima alteração, mera redução da explosiva continua a d. — O de pascere era pacer (antiquado), substituído hoje pelos derivados, mais sonoros e encorpados : apacentar e pastar (o primeiro com significado
factitivo : fazer pastar, levar a pastar). Padre,
embora
o dividamos
na escrita,
à moda
nacional,
nas sí-
labas pa e dre (sem ligar à 1.º a idéia de raiz) é considerado. quanto às derivações que dêle se tiram, como constituído do tema padr e da terminação -e, a qual perde, logo que se lhe ligue qualquer sufixo que comece por vogal. Na bôca das crianças padre transformou-se (como lembrámos já) em pade pela dificuldade que para elas há na pronúncia do grupo consonântico dr, e mesmo na de r simples, um dos fonemas últimos que, em geral, aprendem a balbuciar. Pade passou depois a pá-e pela queda de d intervocálico — seguramente na bôca de párvulos nas suas primeiras tentativas de falar; e pa-e ditongou-se. Do século XVI em diante a forma pai passou, dos círculos familiares à literatura — ao passo que padre se conservou em linguagem eclesiástica. Já sabemos que assim se fixou o par divergente pai e padre. De pai saíu paizinho, deminutivo com o infixo . Quanto aos derivados, alguns vieram (como na família AM) directamente do latim, como palavras feitas. Por ex. padrasto, padrom a par do literário patrão com patronagem (hoje padrão com padroado), etc. Em território português se formaram padrinho com apadrinhar ; padroeiro ; padrear com padreação, padreado, o composto compadre acompanhado de compadrio e, na bôca do vulgo, uma extensa série de termos
chulos como despadrar-se, padr-alhada, padr-aria, padr-eca, padr-esco, padr-ice. Nas preleeções do Dr. Leite de Vasconcelos a filiação dos principais é representada em uma tabela genealógica ; boa demonstração grá-
fica do que é uma família de palavras, de origem latina com descendentes : parte alatinados e parte castiçamente portugueses (com exclusão todaviá dos joco-sérios). Outra tabela relativa à palavra forma encontra-se
no eapítulo Tematologia, da Gramática Portuguesa do Sr. Dr. António de Vasconcelos. Mas nem sempre as relações estão tão claras e óbvias como em amar, padre (e forma). E mesmo nesses vocábulos nenhum leigo pensa em raízes — como PA — e no seu valor original. À conservação de PA,
PARTE
I — RAIZ
E TEMA
57
como a de AM, é todavia boa prova da relativa persistência das raízes — ou de certas raízes — comparada com a variabilidade dos sufixos e prefixos, muito expostos a netamorfoses violentas. *
Lm coso “ consuo —
os elementos estão, p. ex.. muito mais apa-
gados. O verbo latino é uma palavra composta. Composta da preposição con e do verbo su-o da raiz SU que subsiste em sutor (o sapateiro). Ne sutor supra crepidam, provérbio que se liga à anedota muito repetida de Apelles. Tendo exposto um seu quadro afim de ouvir as críticas do público, o grande pintor acrescentou um ilhó a um sapato — censurado por um sapateiro. Não se cingiu todavia a outros conselhos que, envaidecido, o mesmo se atreven a dar. Con está por cum; e em cum distinguem os glotólogos o tema pronominal (secundário) cu, e m elemento formativo do acusativo, como vimos em patrem — dado que essa proposição se originon dum caso pronominal (como muitas outras). No representante português coso desapareceram o n do prefixo, c o u da raiz, de sorte que os dois elementos — o primário e o secundário — estão completamente fundidos. Quem, sem ser filólogo, examinar coso, coser, cosido, cosedor, cose-
dura, descoser e também costura, costureira, costurar e separar os elementos de relação, chega a uma raiz hipotética COS a que poderia atribuir a significação geral de unir, ligar. Mas visto tal raiz, não ser de modo algum raiz—isto é, parte irredutível, o bom-senso exige que se fale apenas de tema. Hoje o povo já prefere o verho costurar ao simples coser — seguramnente para distinguir coser com agulha (com s) de cozer ao lume (com z, representante de cocere por coquere ) —
verbos que se tor-
naram homónimos desde que s e z deixaram de ser distintos na pronúncia. *
Como êsse caso há muitos — muitíssimos. Passando por sucessivas c incisivas evoluções fonéticas, as palavras herdadas da língua-mãe obscureceram-se quanto à sua construção original. Prefixos e sufixos fundiram-se de tal modo com raízes ou com temas que só o etimologista as
pode distinguir. Mesmo em latim já se tinham dado fusões semelhantes à que se deu em coso. Quanto a prefixos, temos p. ex. nemo (ninguém) de ne - homo (homem algum) ; niíhil (nada) de ne hilum (nem fio) : bimus (dois anos) de bi hiems (dois invernos). O verbo sugere fôra originalmente sub regere. Quanto a sufixos, benignus e malignus são contracções de beni
s
LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA
* genus (bem-nado) e maligenus (mal nado ou nado para o mal)). Escolhemos êsses de propósito porque mostram como mesmo em latim raízes nominais, de sentido claro e transparente, ficaram reduzidos a meros sufixos exactamente como no caso neo-latino do advérbio em mente. *
Com nemo, nihil, bimus, e especialmente o verbo surgere podemos conferir
bastantes
portugueses.
Con!ar,
rezar,
começar,
cangar,
em
que
o leigo não reconhece computare, recitare, cum initare, conjugare. Com benignus, malignus, podemos comparar numerosíssimos nomes
portugueses, em que os sufixos também se fundiram com o tema, ou por outra : em que os sufixos passaram às línguas românicas sem serem sentidos e percebidos como tais.
Telha representa tegula, isto -ula. — Velho é veclo por vetulus, mesmo sufixo -ulus. — Rólha está dêles há muitos outros, cujo tema
é, o tema (ou radical) teg e o sufixo do tema vet que vive em vetusto e do por rotula. Malha por macula. Além ou cuja raiz acabava em 4, trocado
contra k em latim rústico. Em tábua, névoa, póvoa, mágoa —
de tabula,
nebula, popula, macula, os vestígios dos sufixos estão menos apagados por razões fonéticas que não podemos expor agora. Funcho representa foenuculum (por foeniculum); piolho, peduculum (por pediculum); brunho (abrunho), vem de pruneus, adj. de prunus ( prune, fr.). Em pego temos pelagum. Em vinha temos vinea. Rosto, rasto representam rostro, rastro em que a verdadeira raiz era ros, ras, acompanhada
do sufixo instrumental,
-tro. Pardo, limpo,
rijo, frio, procedem de pallidus, limpidus, rigidus, frigidus. À vista dessas formas pode-se dizer que em palavras populares -ulus, -idus, -agus, já não existem como sufixos; e se há algumas formações novas, modernas e irregulares como dúlcido, mélido (de mel), glácido, tábula, elas são invenções de poetas cultos que se cingiram a modelos literários reintroduzidos pelos eruditos, como limpido, pálido, rígido, frígido, e outros a que nos referimos ao falar das formas divergentes. Com relação a -ula só nos lembramos de alguns vulgarismos vivos, como beterrábulas por beterrabas ; ameixulas, estátulas, trégulas, trévolas, por
ameixas, estátuas, tréguas, trévoas ( que é deturpação de trévas, tenebras ) em que o [ entrou por nefas ; não nos atrevemos a afirmar, mas suspeitamos, que isso aconteceu sob o influxo também de latinismos como na-
tula, válvula, tábula (em tabula rasa), mácula, rábula (a que os estudantes responderam, rimando, com cábula, de origem desconhecida, se não
fôr a livre formação analógica, que aqui indicamos) (*). -Ulus, -idus, -agus (e muitos outros sufixos como -uus de arduus, (“) lógicas
[Cf Rev. Lus., XX, 318 — Etymologische Einfâlle — na separata]l.
Trovas
Etimo-
PARTE
SUFIXOS
1 —
MORTOS
E SUFIXOS VIVOS
59
carduus, continuus, ete., -eus de igneus), são sufixos mortos, petrificados
e improdutivos. *
Se examinarmos outras séries de derivações que se tiram de verbos concretos da 1.º conjugação, p. ex. de armar (mas também das outras duas, p. ex. de perder, punir), o resultado é diverso. Basta citar novamente armação, armada, armável, armadoiro, para se notarem duas coisas.
Em primeiro lugar: o tema e os sufixos oferecem a quem fala e a quem escuta idéias claramente separáveis: de um lado a idéia principal, contida no tema do verbo; e por outro lado nos sufixos as idéias secundárias que a modificam. Em armador o agente, em arinamento a acção, em armadoiro (ant. talvez o lugar onde se arma alguma coisa); em armação o acto, ou efeito de armar ; em armadura êésse mesmo acto, mas também um conjunto de armas; em armável aquele que é digno de ser armado, ou exposto a ser armado. Igualmente claros são os derivados do nome arma, p. ex. armeiro, — aquêle que faz armas ; armaria — lugar onde se fazem, guardam, depositam, coleccionam armas.
Em segundo lugar reconhece-se pela comparação com exemplos parecidos que os mesmos sufixos serviram e servem para constantemente se eriarem derivações novas, de funções e significados iguais. quanto à parte sufixada. Os sufixos -ção (-ação, -ição) com variantes já alegadas nos exemplos
típicos razão, paixão,
cachão,
questão,
divisão, procissão;
-mento
(-amento, -imento) ; -dor (-ador, -edor, -idor ) ; -«dura (-adura, -idura) ; -doiro
(-adoiro,
-edoiro,
-idoiro) ; -vel,
(-úvel, -ivel) : -eiro e -ario, e
nmuitos outros como -adiío, -adiço, «ura, são fecundos, móveis, produtivos, activos.
A diferença entre os mortos e os ros eram átonos e de pouco corpo, não gua-mãe, sobretudo no latim vulgar, que os do segundo grupo são tónicos, nas línguas românicas em numerosos sua construção incitavam a imitá-los.
vivos consiste em que os primeiservindo por isso mesmo na línpara formações novas; ao passo sonoros, encorpados. e entraram exemplares que pela clareza da
LIÇÃO VII [DERIVAÇÃO.,. EXCURSO PROSÓDICO. SUFIXOS ATONOS ESDRÚXULOS: EXPLICAÇÃO DA SUA ACTIVIDADE NA LINGUAGEM POPULAR] ONTINUAREMOS
ainda
a falar da derivação,
dando
noções
E
gerais,
e
apontando casos anormais, que demonstram a independência c a vivacidade da musa lingiística popular. Como a prosódia dos vocábulos e a dos sufixos influa muito no seu destino, começaremos, contudo, por lembrar os factos essenciais e a terminologia usual, de origem grega, como quási tôda a que diz respeito à gramática. *
Quanto ao número de sílabas há em português duas classes de palavros, como em tôdas as línguas indo-germânicas: as que constam de uma só síilaba: monossilábicas ou monossilabos; e as que constam de mais de uma sílaba: polissilábicas ou polissilabos. (De muitas, segundo reza o nome). De duas a onze, ou mais, em português : creio que o exemplo típico para as muito extensas é inconstitucionalissimamente.
Quanto à acentuação, que é a alma da palavra, há quatro grupos diversos: palavras sem acento próprio ; palavras que o téem na última sílanba ; palavras que o téem na penúltima; e palavras que o têem na ante-penúltima. Só excepcionalmente, por junção acidental de monossilabos a verbos, é que o acento pode recair na sílaba que precede a ante-penúltima. Em casos como dávamos-lhe, dávamo-vo-lo. Vocábulos sem acento próprio são : artigos, pronomes, preposições ou outras partículas, que por causa do seu reduzido corpo, e sobretudo por causa do seu valor relativamente diminuto, se encostam e agregam às palavras principais que os precedem ou que se lhes seguem. No pri-
meiro caso são proclíticas. Estão em próclise. Exemplos:
o homem ; os homens;
não quero;
no jardim; o pai e
a mãe: meu tlio; teu paí. No segundo caso são enclíticas como:
vai-tle,
vê-se, chamei-o ; dê-me ; vamo-nos. Em geral são monossílabos. Entre aàs
preposições e os pronomes possessivos há todavia alguns de duas silabas (para
“ per-ad, contra, sôbre, minha, êsse).
As palavras acentuadas na última sílaba tanto podem ser monossilábicas como polissilábicas. Os monossílabos podem acabar em vogal, quer simples, quer composta (dá, fé, vi, sou, dei, vai) ou em consoante: sol, sal ; mar, dar, ser, ir; mês, três; luz, cruz; mão, pão; contando-se as vogais nasaladas como consoantes. Dos polissíilabos vale o mesmo,
PARTE 1— EXCURSO
como
PROSÓDICO
se vê de pachá, café, javali, avoó, avó, bijú;
61
e de paixão,
anzol,
amar, português, veloz. São oxí-tonos : de tom agudo. Em terceiro lugar temos palavras acentuadas na penúltima. Terminaim em regra em vogal : ama, ame, amo, mas também em [L, r, s, , ou nasal : amável, fútil, mártir; ames, perdes ; Mendez, Gonçalvez, que em boa ortografia deviam ter z, amem, amam, amavam. Estas chamam-se
par-oxíi-tonas, o que equivale a não-agudas. Os nomes nacionais são graves ou inteiras. — Metricamente elas são trocaicas : longa-breve ; macron e bráquia (— u). Ulteriormente,
quando
lermos
textos arcaicos, cantigas
de
trova-
dores, veremos que com relação às rimas, os antigos hesitavam sôbre se deviam considerar as graves como breves; e como longas as agudas ; ou ao contrário — vice-versa. Em quarto lugar temos palavras acentuadas na ante-penúltima. Estas terminam sempre em vogal : Exemplos: tépido, vírgula, película, minúsculo, amicíssimo, catedrático. Chamam-se pro-par-oxí-tonas.
Isto é ante-par-oxí-tonas : com acento na que precede a penúltima. Mais usado é o nome românico esdrúxulo. Em métrica são: dactílicos, (o dáctilo compõe-se de longa, breve, breve ou arse, tese, tese, ) denominações cujo valor tem variado, como o de breve e longa. Esdrúxulo veio de Itália, onde os vocábulos proparoxitónicos são muito numerosos e muito usados : aproveitados a sério não só por poetas nobres, como remate de versos em poesias inteiras (p. ex. em certas
bucólicas de Arcadia imitada por Jorge de bém na fala comum. península. Da França
de Sannazzaro, novela pastoril em prosa e verso, Montemor e Fernão Álvares do Oriente) mas tamMuito mais numerosos e corriqueiros do que nesta nem sequer falamos porque, como sabem, ela dá
ritmo oxitónico ou paroxitónico
a todos os vocábulos das proposições.
Ainda assim o sentido originário da palavra sdrúceiolo indica ou faz suspeitar que mesmo
na Itália acharam
outrora um
quid estranho,
estrambótico, aos proparoxítonos, esbarrando e escorregando quando os enunciavam — traco curioso que porventura provenha dos invasores germánicos. Em todo o caso é significativo que sdrúceiolo derive dum verbo que tem o sentido de tropeçar: do germânico struhhôn subsistente no derivado moderno straucheln. . Em português passou-se mesmo a dar a esdrúxulo a acepção figurada
de esquisito,
excêntrico, extravagante.
O motivo é óbvio. Nas palavras herdadas que perfazem o núcleo primitivo do vocabulário nacional, há e houve vocábulos de tôdas as espécies prosódicas. O ruímero das graves prevalece todavia, e de muito,
sóbre as agudas e as esdrúxulas. Nas evoluções por que passou o latim vulgar e o romanço de Portugal manifesta-se claramente a tendência de transformar proparoxítonas latinas em paroxítonas.
2
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Os exemplos que citámos já são bem eloqiientes. Lembramos novamente telha, velho, rólha, malha, de tegula, vetulus, rotula, macula ;
pégo por pélago ; funcho de foeniculum ; piolho de peduculum ; abelha, orelha. ovelha, de apicula, aurícula, ovicula;
vinha e pinha de vinea e
pinea ; pardo, limpo, rijo, frio de pallidus, limpidus, rigidus, frigidus; cardo, morto, contino, de carduus, mortuus, continuus. Lembramos
que
os sufixos -ario, -orio, -urio, -tario, -torio, -turio, -aculo. -ículo, -ucula, deram -eiro, -oiro, -uiro, -deiro, -doiro ; -alho, -êlho, -olho, -ulho (na-
valha “ novacula, lentilha “ lenticula, agulha “ acucula); que -iolo, -fola, passando por iólo, ióla, deu 6ô e ó (como em avô, Paçô, Mosteirô; avó, Paçoó, Grijó) ; ali deu alha (battualia batalha) ; -anea deu anha (como
-ume;
em
estranha)
-amine,
-imine,
-umine
produziram
-ame,
-ime,
-agine, -igine, -ugine, deram -age (m ), -uge (m ), (imagem, ori-
gem, ferrugem ) ; -odine, -udine, deram em -idão através de -idõe (servidão antigamente servidõe ) ; -aceus deu -aço, (chumaço “ plumaceus ); -icius deu -iço (feitiço “ factiíciu), etc.. ete. O
povo, pronunciando fosfo, liro, ciro, Emila, famila, Antoino, paito, em lugar de pátio, António, família, Emília, círio, líirio, fósfor ou fósforo, continua na mesma via. Cambra, numbro, combro, por câmara, número, cômoro, ; que são senão efeitos dessa mesma tendência?
'A tendência oposta é imicamente própria de semi-letrados que gostam de disparates como erúdito, e que impuseram erros como rúbrica, púdico e outros semelhantes. Caleula-se que dois têrços do vocabulário português serão graves. Do último têrço a metade maior será aguda. Nela a quarta parte mais numerosa e valiosa é constituída pelos verbos ; e depois dêles pelos derivados diversos em -ão -ção e suas variantes.
O conselho que já demos a respeito da estatística de vocábulos populares e vocábulos literários — repetimo-lo aqui com relação a átonos, agudos, graves e esdrúxulos. Quem examinar, extrair e comparar algumas páginas de livros verdadeiramente nacionais — antigos e modernos — e os analisar bem, há-de chegar no mesmo resultado, salvo êrro, con-
firmando-o com algarismos positivos. Nas prosas arcaicas há-de encontrar forçosamente -eruditas — eclesiásticas, jurídicas, medicinais, ete. —
palavras semique conservaram
a prosódia e a ácentuação latina — verbigratia, os nomes de contribuições como hospedâdego, eirádega, montádega. Mas, relativamente poucas; e nos cancioneiros, pouquissimas. Apenas algumas que se popularizaram verdadeiramente ; com os sufixos -ara, -aro, -«alo, -«ado. -ago, -ego, -igo, «amo.
A época dos esdrúxulos principia com o Renascimento. Éles constituem a parte principal das palavras cultas, poéticas e eruditas reintroduzidas do século XV em diante. Ao falar da reforma da ortografia, e tambéin nas notas relativas ao superlativo em -ísstmo, já estabeleci o
PARTE
1 — EXCURSO
PROSÓDICO
63
que acabo de dizer: que êsses elementos faltam quási por completo na linguagem arcaica. Infelizmente o meu Glossário do Cancioneiro da Ajuda ainda não está concluído. de sorte que não posso dar indicações numéricas exactas.
Só fixei um dos fenómenos reflexos que resultam da prosódia da língua portuguesa, isto é, da proporção que há nela entre palavras graves, agudas e esdrúxulas : o aparceimento de cada um dêsses grupos nas consonâncias dos versos. Na introdução às Poesias de Sá de Miranda, que empregava bastantes rimas agudas, mostrei que nisso o Reformador e introdutor do cstilo italiano seguia a moda antiga da escola velha (*). Desvendei então o caso imprevisto que no primeiro período da literatura nacional, essas
rimas agudas prevalecem de modo surpreendente. De seis mil e tantos versos do Cancioneiro da Ajuda mais de cinco mil téêem rimas oxitonas! Mas isso não corresponde de maneira alguma ao organismo verdadeiro do idioma. É devido apenas à falta de experiência, à estética rudimentar dos trovadores que, restringindo-se a um pequenino vocabulário seleccionado de sabor áulico, repetem ad infinitum os mesmos consoantes fáceis d, é, à, al, el, eu, ou, iu; ar er ir (verbos e substantivos verbais) ; am em im om ; al el; az es; e se cingem na técnica aos mo-
delos franceses e provençais: Onde se afastam dêles, nos géneros populares, portanto, nas lindas cantigas de amigo, nas bailadas — no típico cantar paralelístico del rei D. Denis: Ay flores! ay flores do verde pino,
Se sabedes novas do meu amigo? Ay Deus! e u é (et ubi est).
temos logo rimas graves.
E também em cantares de escárnio e mal dizer:
Nas cantigas áulicas, as poucas consonâncias graves que ocorrem, são em regra ada, ado, asse; edes, esse; ia. Horrenda monotonia. Rimas graves são as únicas que se usam, em regra, da idade áurea
em diante, — em harmonia com o carácter da língua, e já se usavam de preferência no segundo período (luso-bispânico) da poesia (Cancioneiro de Resende). *
Vocábulos outrora graves passaram a ser agudos. Soo, doo, maa, sã-a, mã-o foram contraídas em só, dó, ma, sã, mão, como sabemos;
es-
drúxulos antigos como perígoo, bágoo, párvoo ( parvulus) passaram a graves, como perigo, bago, parvo. Verdade é que de 1200 a 1500 houve evoluções na prosódia. Mas elas não alteraram sensivelmente o estado anterior. (*)
Vid. Sá de Miranda, p. CXXIV.
LIÇÕES DE FILOLOGIA
o
PORTUGUESA
AÀ única diferença notável é a tantas vêzes citada introdução de termos cultos, metade dos quais, pelo menos, são proparoxítonos, esdrú-
xulos. Desde então para cá, os legisladores poéticos admitem, e os poectas realizam uma acertada mistura dos três tipos de rima, tal qual todos a usam na prosa e no interior dos versos. Estabelecem porém correctamente que uma série de versos esdrúxulos, sem interrupção, ou com pouca interrupção, tem um ar desnatural, afectado, exótico, que fàcil-
mente degenera em ridículo. Não negam contudo que em verso sôlto — tanto palavras oxítonas como proparoxitonas se empregam com facilidade ( principalmente as proparoxitónicas) dando-lhe peregrino realce e certa majestade. E a prática confirma a verdade dessa doutrina e a oportunidade dessa tolerância. As consonâncias mais usadas são todavia graves. Mas há poesias em esdrúxulos, em estilo nobre e sério, sem exceptuarmos alguinas imita-
ções das bucólicas contidas na Árcadia de Sannazzaro — p. ex. as de Fernão Álvares do Oriente na sua Lusitânia Transformada. Tlá-as sim burlescas, em latim macarrónico, e em português humoriístico ; em regra curtas. Entre elas é notória a décima altissounte de Bocage: Quando os povos da Dalmácia quiseram entrar na Grécia saíu muita gente sécia de casa do rei da Trácia. Estes temendo a falácia dalguns pimpões da Fenícia, e receando a malícia,
de gente tão pouco sócia se foram para Beócia para se curar da ictrícia.
Mera brincadeira ocasional em que um repentista mostrou apostadamente como se vencem obstáculos. Ela e outro correm parelhas com certas seguidilhas populares na Andaluzia, em cujos remates se intercalam sílabas sem significação que os tornam esdrúxulos de graves que eram. P. ex.: Digale usté á ese mó (bo)ço (em lugar de mozo) que está en lá esqui(bi )Ina (em lugar de esquina) que si tiene terciá(ba )nas (em lugar de tercianas, febres tercãs) que tome qui(bi )na. (em lugar de quina)
Esta
e
várias
outras
com
intercalação das letras d, o, g, com a
competente vogal, encontram-se num tratado do excelente filólogo castelhano D. Ramon Menéndez Pidal (cujo nome e cujas obras magníficas temos de conhecer). Aquela que aqui apontamos trata de sufixos átonos
PARTE
em espanhol —
I—
TÓNICOS
SUFIXOS
INACTIVOS
65
isto é, sóbre o próprio assunto que nos induziu a fazer
êste excurso. *
É muito possível que o processo tenha correspondentes em Por. tugal. Temos vaga lembrança de ter lido alguns em artigos filológicos (de AÀ. Coclho ou Leite de Vasconcelos) ; mas não temos nota ou pelo menos não a encontramos quando traçamos estas linhas. Apenas nos recordamos de um tipo parecido — embora lhe falte o característico principal, o de transformar graves em esdrúxulos — tipo em que se introduzem depois da tónica outras silabas que repetem a mesma vogal com substituíção da consoante por outra vogal (D, d, g.) à vontade do cantador: P. ex.: Lá no céu vai uma «nubúvem»; todos dizem bem a «vibir; todos imurmuram dos «oubóutros»
ninguém olha para «sibi».
Nubúvem
ou nudúvem
ou nugúvem;
e assim por diante.
Crianças mancomunadas costumam criar assim linguagens artificiais, cabalísticas, para intrigarem outras companheiras, — À linguagem do bi, por exemplo. *
Fechando êste exeurso prosódico, voltemos aos sufíixos, primeiro aos átonos e esdrúxulos, pois foram êstes que nos serviram de ponto de partida. Sufixos mortos ou inactivos — por serem átonos (não acentuados). Sufixos vivos ou fecundos — por serem tónicos (acentuados). Foi esta a equação com que terminámos a última prelecção. Claro que estas regras não são sempre válidas, téêem excepções. Há sufixos tónicos que se não conservam com actividade produtiva,
por terem entrado em exemplares não bastante numerosos ; ou em exenrplares sem fôrca sugestiva, e por isso pouco usados. Sirvam de exemplo -estre, -«ustre, -oz, -el. Todos êles são tónicos, sonoros e suficientemente
encorpados. Mas ainda assim campestre, terrestre, não suscitaram imitações, a não ser o antiquado celestre, que contudo é mera modificação fonética de celeste, caeleste, de origem erudita de mais a mais, pois con-
servou o -L- intervocálico c não se usa hoje em língua culta. Palustre, lacustre, também ficaram isolados. Feroz, veloz, atroz, nilo tiveram sequazes. Fiel, cruel (substituído até por cruevel, em tex-
tos antigos), são hoje tão poucos como foram em latim.
66
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Pelo contrário, há sufixos átonos que subsistem e são de grande produtividade. Não na linguagem culta, mas na bôca do vulgo. Éste serve-se seguramente de processos ancestrais, mas por serem il-literários, não podem ser documentados com textos. Por meio de sufixos átonos ligados a palavras primitivas originâriamente graves, êle produz esdrúxulos, do feitio dos que costuma evitar e transformar em graves, quando lhe são transmitidos do latim; porque lhes achou aquelte quid extravagante, exótico, esquisito. excêntrico. a que nos referimos. é Quais são e como se explicam? Ilá vocábulos que em latim clássico, ou pelo menos em Jatim vulgar, findavam em -ara;
-aro; em
-ago, -alo, -ano, -ado, vocábulos que
técm como vogal postónica interna, a mais sonora e elara de tôdas. Dêsses tipos conservam-se alguns pelo motivo fonético indicado. E êsses exemplares populares e semi-eruditos, tradicionais ou tornados tradicionais pelo muito uso que devem ao seu signifieado, são tantos que promoveram outros análogos. Nos casos mais notáveis trata-se do adicionamento dos sufixos citados a palavras que o vulgo desejava tornar mais encorpadas, mais sonoras, mais enfáticas, comunicando-thes de pro-
pósito o som estrambótico, humorístico, burlesco, que para êle possuem
os esdrúxulos. Em outros casos trata-se apenas de modificações de sufixos parccidos. As formações tradicionais ou etimológicas que originaram as extravagantes, são : câmara, cântaro, pássaro (de passare, como já se dizia
em Roma, em lugar de passer) ; cammaro (de cammarus), que hoje só subsiste no aumentativo camarão. Em asturiano há todavia cambaro, c em castelhano gâámbaro. Além dêles, há rábão, ourégão, órgão, órfão, cóvão ; há plátano, ébano, timpano, pántano, abrótano; há búufalo, escân-
dalo, sábado ; há pélago, espárrago (de asparagus ) ; há sábado, c fígado, relámpago e relámpado, relacionado intimamente com lâámpada há bálsamo, álamo e outros.
O vulgo que fêz? Encostando-se a todos êsses, substituíu o sufixo menos sonoro -ero de algumas palavras por -aro; p. ex. em númaro, misaro ; e também -oro de fósforo, que deu fósfaro (a par de fosfo, forfo, forfro). Em várias trata-se apenas da ampliação de -ar, -er, -or, pelo acrescentamento de -o ou -a. Além de pássaro, pássara, há sôvaro, variante de sóbro, sobreiro (latim suber) ; chícharo de cicer; ânsaro, an-
sarinho de anser ( patinho) ; túbaras da terra (de tuber) ; Césaro de César! Vítaro de Vítor; Fúcaro de Fugger (nome dos grandes banqueiros de Ausgsburg que tantas vêzes auxiliaram Carlos Quinto e D. João III); esguíçaro de Schwitzer, habitante da Suíça; pífaro do alemão phifer, Pfeifer; Transtâmara de Tras-tamar (em cast. Tambre, nome dum rio e condado na Galiza).
PARTE
Em
I—
SUFIXOS
67
POPULARES
ÁTONOS
muitas formações -a- foi introduzido apenas para separar a
muda da liquida (ou vibrante), já existente nos modelos, p. ex. em cân-
caro por canero ; mitara por mitra; fêvara por fevra (fibra); bêbara a par de bêbera, de bifra, bifera, figueira que dá duas vêzes por ano. Diversas
vêzes
temos
troca
de
sufixos:
-aro
por
-alu,
-ilu, -ulu,
por r ser mais resistente do que muito exposto a cair entre vogais. Ésse
caso deu-se tanto em búfaro, variante de búfalo ; lúparo, variante de lúpulo, em cômaro (variante de cômoro e combro ) por cumulus, como em alguns vulgarismos usados do outro lado do Minho. Pelo menos só conhecemos como galego túmaro ( variante de túmalo, túmulo). Trêmaro (trémulo ); necaro de bonecro, pertence a êsse grupo.
boneco.
Mas
o púcaro
português
também
Temos finalmente acrescento de -aro, -ara a bastantes palavras graves na linguagem culta. Éste é o caso que mais nos deve interessar. Colhemos na bôca do povo sapo-côncharo (de concho ou sapo de concha ) no sentido de tartaruga ; pólvaro, de polvo (polypus, de muitos pés):; pússaras em uvas pássaras (por influxo de passarinhar, passarinhos) : cáscaras em vez de cascas;
láscaras em
vez de lascas. Temos
mílharas
por milhas — - milia — nome das ovas de peixe que só se avistam às milhuradas, como dizem as peixeiras ; vêsperas ou abespras a par de vespa (insecto) por influxo de véspera (dia antecedente) ; láparas e laparões como designação de conchas, lapas, univalves e comestíveis ; lânchara, mártara, nêsparo, de lancha, marta, nispo (carne de boi da barriga da
perna : de etimologia desconhecida) ; níjaro de nijo (nínhego, ave implume que ainda está no níinho) ; Vítaro por Vito, em dança de S. Vítaro; por confusão entre Vito e Victor. Nos dialectos de Trás-os-Montes temos ainda nêngaro, de nêgaro por boneco (como na Galiza) ; bólhara (terra mole) ; búsara (pança); nos do Alentejo púcharas (panela) ; na Galiza treitaras de treitas; gálharas de galhas (bugalhos) ; páparo, o que papa ; xílgaro o pintassilgo; mômaro de momus, o pantomimeiro ou pantomineciro, como é uso dizer. Em condições iguais, embora com menos vitalidade criadora, estão -ado, que entrou em cóôvado, de cubitus ; ímpado, soluço de onomato-
paico hipo (gal.) por analogia com ímpetu ; cágado (inexplicado por ora). Em Cávado (rio) houve metátese, visto a forma antiga ser Cadavus. Formas em -ano, -ão, (átono e bissilábico) foram muitas vêzes reduzidas a graves. À par de Cristóvão, de Cristófano (em vez de Cristóforo, o santo que levou o menino Jesus às eostas, sucumbindo ao pêso enorme do Salvador do mundo), diz-se Cristovo ; como de Estêvam fize-
ram Estevo, donde viria o patronímico Esteves. À par de órfão, órgão, ourégão e dos nomes topográficos Pedrógão, Nábão, Sádão, existem orfo, orgo, ourégo, Pedrógo, Nabo, Sado.
Atrás dessas formas duplas, em que se manifesta a tendência de substituir esdrúxulos por graves, surgem, por analogia, outras moldadas
LIÇÕES
68
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
ao invés, em que o modéêlo latino era paroxítono ; sendo esdrúxulas as
imitações portuguesas [ actualmente graves] feto (filictus) que se prolongou na bôca do vulgo em fétão, com acento na primeira síilaba; a árvore lódo dá em lódão (de onde lodloeiro), sendo em latim apenas lotus ; golfo, o lindo nenufar, também se chama golfão; a par de pinto há pintão donde provém o diminnuitivo pintaínho ; com frango concorre frangalo, nome de nação gão com franganito, franganinho, talvez de franco e nome da ave doméstica. Bem sabemos que o galo (Chanteclair ) é simbolo da nação que habitava na Gália, perdendo todavia o nome antigo, depois de ter sido conquistada pelos Francos germânicos. *
com
Passando a outro sufixo, átono também, fixemos que -icus, -ica, i breve, conservado nessa forma em bastantes adjectivos cultos
(como cívico, áulico, profético), é pronunciado -ego, logo que qualquer dêles passe no vulgo. Depois de polítego, rústego, prátega, tísego, étego (hecticus ) trôpego (hydrópicus ) terem sido popularizados, logo vieram inovações como
hírtego, de hRirtus,
e substantivos numerosos, como
lón-
trega por lontra ; cóbrega por cobra ; salamântega por salamandra ; limáchega por limacha, limaça nome de lesma. De Lbeterrábulas, ameixulas, de dúlcido, mélido glácido (que são semi-eruditos ) também já falámos outro dia. Para continuarmos ainda por mais tempo. preciso é lembrarmos que o vulgo de aquém e além Minho, acrescenta muita vez à postónico a palavras graves, pronunciando murio, ôndia, múndio, íria, blúsia, clúbio,
piterábias, em oposição directa ao fenómeno reduzir constantemente ciro, liro.
Emília,
famiília,
primordial que fêz e faz
cirio,
lírio,
a Emila,
famila,
*
Para demonstração da actividade e fecundidade exercida por alguns sufixos átonos, e da criação vulgar de esdrúxulos, apesar do povo evitar e transformar em regra os que lhe foram transinitidos tradicionalmente, creio que chegam os exemplos alegados. Quem desejar mais amplas informações pode recorrer a um estudo [ nosso ] que trata de Pucarinhos, de barro de Estremoz e de barros de outras regiões argilosas de Portugal, antigamente muito apreciados no país vizinho. Intitula-se: Algumas palavras a respeito de Púcaros de Portugal: e foi publicado no Bulletin Hispanique de 1905 (Paris,
Bordeaux). (**) () E[Rceeditado em Subsídios bra, 1921. Cfr. pág. 76 sg.].
para
a História
da
Arte
Portuguesa,
11, Coim-
PARTE
1— SUFIXOS
ÁTONOS
69
Há outro estudo especial castelhano a que aludimos acima, de D. Ramon Menéndez Pidal, Sufijos útonos en espafol (*). O facit que de ambos combinados se deduz é que o prolongamento de palavras graves em esdrúxulos, pelo acrescento de sufixos átonos é um traço peculiar das línguas faladas no ocidente da Península: — do português vulgar, dos dialectos da Galiza, e dos de Léon e das Astúrias.
Il-literários, os produtos que resultam dessa tendência, téem certo valor humorístico ou burlesco. Os sufixos adicionados não téecm significação própria. São meros adornos morfológicos com que o povo enfeita e encorpa vocábulos do seu uso, nomes de plantas e de animais, que êle observa com particular interêsse e carinho (”**). O procedimento popular concorda com o que os poetas cultos adoptavam a respeito de rimas esdrúxulas. Só servem de realce ; de excepção. —
Variatio delectat.
(*) Publicado em uma das eruditas Miscelâncas que os romanistas costumam dedicar a professores beneméritos, na ocasião do seu Jubilecu — centenário semestral da sua actividade como lentes; septuagósimo aniversário, ete.: Bausteine sur Roma-
nischen Philologie (1905). [Festgabe fir Adolfo Mussafia, págs. 386-400]. () EMenéóndez Pidal refere-se por sua vez aos dois estudos no seu Manual de Gramática Histórica Espaiola, $ 83, n.º 2. O que saíra no Bulletin Hispanique foi largamente aproveitado nesta lição: em ordenação diversa, acomodada ao fim didáctico em vista. À primitiva redacção recomenda-se no entanto pela maior cópia de exemplos c de anotações eruditas, que
nem tôdas passaram ao novo texto. É evidente que um excurso sôbre sufixos átonos não podia inserir-se em trabalho «A Respeito de Púcaros de Portugal», do mesmo modo que em preleceções tratando expressamente de derivação. cação da etimologia proposta pela Autora para o têrmo púcaro ramento difícil pela concorrência de vários étimos plausíveis.
Serve ali à justifi(poculo) — de apu-
M. Pidal modificou posteriormente a sua maneira de ver quanto à origem de nlguns dêsses sufixos — como -aru, -anu, -alu, -agu — passando a considerá-los pré-latinos. Veja-se Origenes del Espaiiol (2º ed.), $ 61 bis, de que se transerevem alguns passos: «Hallamos muy estendido el sufijo atono, con múltiples variantes: -aru, -alu, -anu; o bien -olu; o bien -acu, -icu. És uno recurso morfológico para dar sonora amplitude a las palabras sin que en su aplicación intervenga para nada el deseo de robustecer una voz desgastada por la evolución fonética...
En otra ocasión traté de buscar para cada uno de estos sufijos modelos latínos, e insisto en esta idea para vários de ellos... En los otros casos la derivación latina cs menos clara, porque no hay en latin sufijos correspondientes... Unas pocas voces latinas en que -aru no tiene valor de sufijo, y conservadas en romance, asarum, cantharus, barbarus, cammarus, camara, como comaros (port. cômaro, documentado en 1059 y 1065, Portug. Monum. 416.º, 450.º) pudieron atraer a otras, como passere pújaro (en vários romances con a) ciceru chfecharo, lam pada lámpara; pero ya no es tan claro que sugirieran el empleo de esa terminación -aro como sufijo para agállara de agalla, cáscara de casca, guácharo paramus, el vicjo de guacha, alicántara de alicante, gárgara, etc.... La voz ibérica nombre toponímico Bracara y otros análogos, como Capara, Naiara, nos sugieren que habría sufijos prelatinos -amo, -aro; Ledisama Uxama, y con cllos -alo, -ano, en que la a intertonica dominaba.]
LIÇÃO VIII [DERIVAÇÃO. SUFIXO -UDO; INFIXOS -Z. E -R-; ARIA— ERIA. SUFIXOS DE PROVENIÊNCIA NÃO-LATINA. OUTROS PROCESSOS DE SUFIXAÇÃO EXPRESSIVOS OU PITORESCOS] PARMIOS.
depois de haver demonstrado, com excessiva minuciosidade
e exemplos sobejos, que o povo contraria às vêzes a tendência natural da língua portuguesa de transformar em graves ( paroxítonos ) os vo-
cábulos proparoxítonos (esdrúxulos), que recebeu das línguas clássicas, tendência que se manifesta na mancira como tratou os sufixos.
Tornámos provável que o impulso para êsse processo era o propósito instintivo de dar realce, ênfase e às vêzes um aspecto humoriístico, joco-sério, a vocábulos da predilecção do povo. Disse que a escolha de sufixos que transformam a prosódia, provém do facto que o ouvido português, acostumado ao andamento suave e regular de palavras graves, encontra nos esdrúxulos algo de pitoresco, audacioso, extravagante. Mostrei que o vulgo tira de alguns vocábulos que lhe são familiares, embora lhe não agradem — como câmara, número, cómaro, pássaro,
cântaro — o sufixo -aro ; e desprende -ego de adjectivos abstractos como cismátego, polítego, rústego, prátego — c junta êsses sufixos átonos a numerosos têrmos do seu uso. Dos exemplos apresentados repitamos apenas, como amostra, sapo côncharo, em lugar de concho, nome de tartaruga ou do cágado — e lôntrega em vez de lontra. Ésses e outros casos de formações aparentemente arbitrárias, são consideradas em geral como corrupções, e por isso condenadas ao desprêzo. Para o filólogo têem todavia grande valor, como
todos os factos
biológicos — vivos, pois que nos esclarecem a respeito de outros, paleontológicos, de tempos passados. Entre os sufixos tónicos que se distinguem pela sua fecundidade, escolhemos um que serve para derivar adjectivos de substantivos; por êle ser bom exemplo da tese que de uma única forma ou de um número insignificante de formas, pode saír um número maior ou muito grande de imitações, sc ela fôr sonora, eufónica, e ao mesmo tempo de significado claro e característico. m É o que aconteceu com o sufixo -utus (-udo em castelhano e português, -utfo, em italiano, -u em francês, para também nessas eomparações nos restringirmos ao essencial). -Udo designa em português, e designa nas línguas irmãs, a posse de uma coisa de grandes ou mesmo extravagantes dimensões, ou de grande soma de objetos; ou então, (em sentido
PARTE
I —
SUFIXO
-UDO
71
abstracto) a posse de qualidades muito intensivas. Em geral refere-se a partes ou parcelas do corpo humano ou do corpo de qualquer animal; e figuradamente ao espírito e temperamento das pessoas. Basta citar meia dúzia de exemplos como narigudo, barrigudo, peludo, cabeludo, beiçudo, bochechudo, papudo, para todos saberem acudir Jogo com outros, quer de sentido real, quer de sentido arbitrário, como sanhudo, abelhudo, campanudo, carrancudo, sesudo.
Passam de um cento as formações que cada um dos idiomas meridionais produziu — a França é menos rica, mas também tem bastantes. Procurando
as origens, cvidentemente latinas, não as encontramos
nos poucos particípios em -utus que a língua mãe possuía.
Ésses— acutus,
argutus, minutus, de acuere, arguere, míinuere — originavam apenas os particípios regulares dos verbos românicos em -er, vendudo, sabudo, usados aqui na Idade-Média, mas substituídos mais tarde por -ido, pelo mo-
tivo de já haver igualdade grande entre os verbos da 2.º e da 3.º conjugação ; e para que cla fôsse ainda maior. Nem tão-pouco elas estão nos denominativos
astutus,
hirsutus,
cinctutus,
versutus,
verutus,
porque
t&les
não sobrevivem nas línguas românicas. — Estão apenas em três formações que pelo sentido são antecessoras directas de cabeçudo, orethudo, dentudo. Essas três são nasutus, canutus,
(de cabelos brancos) ; e cornu-
tus, (de pontas grandes ) — único que passou inalterado aos idiomas românicos e que portanto pode passar por chefe ancestral da família inteira. Se de uma forma ou de três sairam cento e tantas, bem temos razão de falar de fecundidade, e de designar o processo da derivação como a fonte mais abundante e eficaz do enriquecimento das línguas românicas. *
Entre os adjectivos portugueses em -udo há naturalmente vários que dão margem a observações especiais — e a que se ligam problemas ainda não reconhecidos como tais — por resolver, portanto. Há por ex. alguns dêstes adjectivos que são reforçados interiormente, em boa linguagem, pela sílaba ar. Linguarudo, p. ex., em lugar de linguudo. Há outros, vulgares também, reforçados pelo infixo -z- : (escrito z em regra, mas às vêzes s) máão-z-udo, de mãos grandes:; ou lanzudo, a par de lanudo — os poetas clássicos diriam lanígero — ambos com tendência humorística. E há ainda outros como espadaúdo (de omoplatas largas) e sedeúdo (cerdoso), como vogal de ligação entre o tema e o sufixo. Seguramente por se querer evitar a reduplicação final — dudo. Espadudo ficaria, além disso, ambíguo. Parecia um derivado de espada. Reduplicação intencional, é um processo muito usado ; mas onde é fortuita, meramente fonética, como nesses casos, sem idéia portanto, o povo evita-a.
T2
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
É por isso que substantivos em -ade ou -«dade como piedade, bon-
dade, vaidade, idade, e de cuidado, o povo derivou os adjectivos piedoso, bondoso,
vaidoso,
idoso, cuidoso,
suprimindo
a sílaba
átona
da,
pro-
cesso que ainda se manifesta em outras formações, eomo p. ex. nos compostos joco-sério por jocoso-sério, tragicocómico por trágico-cómico, e a
que é praxe dar o nome grego de haplologia, simplificação (de haplos, só uma vcz, simples, e logos, discurso). *
Quanto ao infixo -z- frequentiíssimo em deminutivos e aumentativos. a sua origem é latina. Sabemos que no empenho de substituir sufixos átonos por outros tónicos, os latinos preferiam a anulus, anellus; a vitulus, vitellus; a rotula, rotella; a fibula, fibella; a subula, subella,
e que
êles entraram em Portugal como anel, vitela, rodela, fivela, sovela. Do mesmo
modo
havia a par de naviícula, navicella;
a par de avicula, avi-
cella, Em castelhano avecilla ; em português avizela, avezela — nome que subsiste no rio Vizela, pequeno Ave (com À maiúsculo ) por ser afluente do Ave : um pequeno Ave. De dominicula vem dominicella, donzela, com o masc. donzel. Daí se passou a dizer avezinha, avezita, adicionando o s de avizela, donzela aos deminutivos inha, ita, muito usados entre nós. De máãáozinha, mãozita, aos têrmos galhofeiros máãozada e mãozudo
e de lá a lanzudo há só um passo. E outro
passo
leva-nos
aos aumentativos
homenzarrão,
canzarrão
e (por meio de canzon, hoje perdido, mas seguramente arcaico) a canzõada, canzoada, com queda da nasal de canzon. Coleccionando ou agrupando alguns dos vocábulos, comuns ou vulgares, em que «e encontra o infixo -2- chegamos a reconhecer que êle liga sufixos que principiam com vogal, a temas que terminam quer em nasal,
quer em ditongo, quer em duas vogais consceutivas ou wuma só acentuada ; e que a nação se serve do processo de infixzação não só para dar maior corpo aos derivados e torná-los mais reconhecíveis nos seus elementos, mas também e principalmente para preencher o hiato entre os sons indi-
cendos e a vogal ou nasal dos respectivos sufixos. Temos radicais ou temas com nasal nos derivados manhãázinha, mamizinha, pãozinho (pl. pãezinhos) — o s do plural funde-se com o infixo -z- ; em roinâzeira, maçâzeira ; nos aumentativos já citados homenzarrão, canzarrão; em canzoada, mãozada; no deminutivo galhofeiro bananzola, que denomina um homem mole e pachorrento, e no verbo
igualmente chulo refranzear (repontar ou contar lengalengas) ; e nos adjectivos intensivos lansudo, mãozudo. Temos ditongo em paizinho, vogal acentuada em mâzinha, mâàzona, sôzinho, marêzia, pazada, espezinhar, châzada, châzeiro, duas vogais em
tiozinho ( que ficava muito obscurccido sem êsse prolongamento), boazi-
PARTE nha, que
se encostou
naturalmente
1 —
78
INFIXOS
a mà:inha,
mas
que
também
existe na
formação correcta boínha. Ainda há outras formas com z ou s aparentemente injustificado. P. ex. comesinho, comesaina, (seguido de papasaína). Mas cremos que temos aí um derivado de comes, da fórmula comes e bebes. *
O infixo -r- que notámos em linguarudo, por linguudo, e que lá entrou para evitar dois uu sucessivos — não é menos usado. Em português é precedido em regra da vogal a, de sorte que forma a sílaba ar; em italiano por e (p. ex. osserello, coserella, acquerella, sonetterello). Temos em português -arada para designação de uma multidão de coisas em casos eomo bicharada, moscarada, filharada, uvarada, laçarada, chama-
rada, fumarada, milharada, pretarada, gatarada, bafarada — uns mais usados
que
outros.
reulo,
suarento.
Temos
Temos
adjcclivos
aumentativos
como
sumarento,
como
casarão;
sonarento,
formas
fuma-
isoladas
como gabarola, pasmarote. Temos alguns antiquados em -areu como bataréu, nome
de um
batel grande,
botaréu, mastaréu;
e -aroco, -arouco
em bicharoco. Temos sobretudo muitíssimos em -aria, -eria, que já originaram polémicas. Os substantivos com o sufixo -arada, não se devem confundir com alguns em que a sílaba ar pertence à palavra primitiva — como em camar-ada, lagar-ada.
O mesmo vale de adjectivos em -oso como pesar-oso. *
As origens dêsse ar não são bem claras. — Por isso não entramos em mais pormenores. Apenns diremos algumas palavras àcêrca de -aria, -eria. É costume dos filólogos portugueses condenar em absoluto a escrita e a pronúncia -eria; dizer que -eria é um sufixo falso ; e afirmar ainda que -aria não
tem nada com os nomes de agentes em -eiro porque nesse caso devíamos ter -etria. P. ex. de livreiro, livreiria.
Achamos que nessas censuras e críticas se vai longe demais. Em muito bons autores antigos há formas em -eria. P. ex. no Palmeirim de Inglaterra de Francisco de Morais — vozeria, estriberia. Das outras linguas românicas, o italiano e o castelhano
tõôem sem-
pre — eria — v. g. em libreria, cavalleria, artigleria, tesoreria — e essa terminação entrou no alemão, transformada em -erei (p. ex. Scheweinerei, porcaria). Os Franceses téêem -erie (com e) e -aírie (com aí) (librairie). Só os Provençais e os Romenos favoreceram a vogal a: os primeiros técm -«aria como nós: os últimos -arie.
LIÇÕES
74
Muitas vêzes, até ticos, -aria corresponde (ou -dário). Senão
vejamos:
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
nos exemplares mais numerosos e caracteríspositivamente a nomes de agentes em -eiro
ltvreiro
e
livraria;
marceneiro
e
carpinteiro e carpintaria; cavaletro e cavalaria; monteiro
estribeiro e estribaria ; lisonjeiro e lisonjaria. Verdade é apenas que há muitas formações em
marcenaria;
e montaria ;
que não há tal
correspondência, como por exemplo em infante, infantaria; galante, ga-
lantaria: mouro, mouraria; judeu. judia, judiaria; lote, lotaria, etc. Verdade é em segundo lugar que em derivações de palavras primitivas com a desinência a (como de escada), -aria é formação regular. Escadaria e de modo algum escaderia. Verdade que em latim não havia -aria, que a forma neo-latina é nova, c híbrida. visto que o segundo elemento ia é de origem grega, como diremos. Verdade ainda que há em português a tendência de substituír -eria por -aria, porque a vibrante r atrai, requere. favorece e prefere em inúmeras palavras antes de si a vogal a.
Por isso achamos bom ensinar que em linguagem culta é melhor uniformizarmos as palavras em que os antigos pronunciavam -eria: infanteria, loteria, parceria, sem todavia as condenar como falsas.
A par de -arão, há p. ex. -eirão em boqueirão, vozeirão, toleirão. E ei tornado e surdo, logo que perde o acento, não seria easo inaudito numa língua como n portuguesa, que distingue com tanta insistência tónicas e átonas. Em
aria,
arada,
arão.
eirão, há acumulação
de dois sufixos.
Íste processo é muito usado na derivação portuguesa. *
Ao falarmos no latim vulgar mencionámos
a sua predilecção
por
formas extensas, sonoras, enfáticas. Não é preciso repetir mais uma vez as substituícões diversas de sufixos átonos por tónicos como -ulus por -elus, -icula por -icella (vitulus, vitellus; avicula, avicella). Quanto ao português, também conhecemos a sua tendência de prolongar palavras encurtadas pelas evoluções fonéticas por que passaram. Aludimos repetidas vêzes à queda de certas consoantes mediais (, n, d, & ), que reduziu muitas palavras a uma única sílaba como só, pó, dó. pé, má; e à queda das vogais postónicas, como em telha, abelha, de tegula,
apicula. Conhecemos igualmente o seu pendor para efeitos fortes, criações pitorescas. As raízes, os temas, os radicais, uma vcz fixados, não se modificam
mais, Só os sufixos são aptos a variações significativas. As combinações usadas são muitas, ora aumentativas, ora deminutivas e carinhosas: ora irónicas e pejorativas. :
PARTE
I — SUFIXOS
CAPRICIIOSOS
75
Eis um punhado delas que cada um poderá multiplicar à vontade. Acidentalmente já mencionámos em prelecções anteriores e nesta, os vocábulos amigalhote, amigalhaço ; bicharoco. Juntamos dorminhoco, corpansil, feanchão, pedinchão, pequerruchinho, pertuchinho, gatarrão, ramalhão, santarrão, fracalhão, fradalhão, espadalhão, espadachim, espadarrão, cachoparrão. Nos
cancioneiros
antigos
ocorrem
como
deminutivos
mocelinha,
formado sôbre donzelinha, garridelinha e manselinho. Na Galiza há paseninho por passo a passo (muito de vagar, muito de leve). E geiteninho por jeitozinho (com muito jeito). *
Os exemplos que citámos até aqui, embora sejam formações complicadas, compõem-se de elementos reconhecíveis. Outros há em que o tema é igualmente claro, no passo que os elementos acessórios, secundários variáveis — os sufixos — são formados a capricho. Guloseima, toleima, boleima, de guloso, tolo, bolo ; cavalicoque, chapelicoque e outros parecidos de cavalo e de chapéu (ou chapel, à antiga); comesaina e papasaina; cebolório, alegrório, canalhória;
labrústico por labrego. i Todos êles (e muitos mais que suprimimos)
precisam
de expli-
Ccações.
É possível que labrústico seja um composto burlesco de labrego e rústico. É possível que os que terminam em -ório, -ória, derivem da solene fórmula celesiástica in secula seculorum. Pelo menos ela já apareceu encurtada e estropiada em escritos antigos — em cantares de escarnho galego-portugueses del Rei Afonso X de Castela — e nós já ouvimos aplicar uma parte da fórmula — sécula (ou sécula récula) — na acepção de lenga-lenga, na frase êle faz cada sécula, isto é, cada discurso! Mas um exame sistemático de todos êles talvez conduzisse a resultados diversos. *
Há como êsses muitos outros sufixos, empregados em poucas formações
—
isolados
e extravagantes
—
que
os autores,
tanto
de gramá-
ticas destinadas ao ensino secundário, como de gramáticas comparadas, científicas, excluem naturalmente das suas obras, por ainda não estarem celassificados. Bles só tratam dos mais usados. daqueles cuja origem é conhecida. *
Quanto a êsses, claro que a maior parte dos latinos têem correspondentes nas outras línguas românicas.
76
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Alguns são todavia de proveniência estrangeira., Mas como
todos
passaram pelo latim vulgar, antes de serem romanço moderno, figuram
em todas as gramáticas entre os verdadeiramente latinos sem inconveniente algum. Da Grécia vieram, nos primeiros séculos do cristianismo, três nominais e um verbal. Os nominais — todos éles muito fecundos — são
-ista (em que já tocámos numa das prelecções, falando do fadista) -ismo (de cristianismo, latinismo, calvinismo ) e -ia, que
é o mais importante.
Astrologia, astronomia, filosofia, monarquia, democracia, mania, etc., entraram na língua do Lácio ; foram imitadas e suplantaram o sufixo
átono -ia. Ão passo que êsse, meramente vocáílico, se fundiu com o tema
em vocábulos como tinvidia, gratia, que deram inveja, graça — o sufixo grego conservou-se. Adicionado a numerosos adjectivos para denominar qualidades abstractas, temo-lo em alegria, cortesia, burguesz:a, etce.
O sufixo verbal -izare, (-izein ) biflurcou-se em latim e em romanço numa forma culta, inalterada —
helenizar, colonizar, organizar, ete. —
e na popular -idiare de que resultou -ejar em português, com numerosas e lindas palavras novas como almejar, adejar, doidejar, gotejar, espace-
jar, arejar, etc.
Fiéis ao nosso programa de propagandistas da ortografia regularizada e simplificada, devemos notar aqui que os verbos portugueses em -izar, devem ser esceritos com z (como em castelhano, italiano, latim e grego), mesmo quando aparecem em vocábulos de tema popular (como fertilizar. amenizar). Apenas analisar faz excepção,
por não pertencer
ao mestno grupo. Vem de anaálise (com s) que se compõe do prefixo anae do tema lise (Iysis — solução, decomposição ) que faz parte também de electrólise, electrolisar, e do desinfectante chamado Lysol. Os Germanos deixaram-nos -aldo, (de wald), -ardo (de hart) em numerosos nomes próprios (como Romualdo, Ricardo, Bernardo ) e em alguns apelativos (ribaldo). Basta nomear o derivado popular felizardo. Mais produtivos foram -engo, -lengo (de ing e ling) em mulherengo, mostrengo, realengo e camarlengo (substituído hoje por camarista). Em -isco (marisco, mourisco) parece que o sufixo germânico (-isk hoje -isch) convergiu com o grego -isco. Dos Iberos ficaram -arro (de bizarro), -erro (de bezerro) — muito produtivos, usndos especialmente em casos onde há acumulação enfática como nos exemplos já citados, homenzarrão, canzarrão, gatarrão, pequerrucho, e em beberricas.
Dos Celtas restou apenas -ego de galego, Lamego, Mondego, com imitações como labrego e borrego. Éle é muito fecundo, sobretudo em territórios hispânicos. Dos Árabes só temos o sufixo -í de javalíi empregado sobretudo em nomes gentílicos como ceutí, marroqui, turqui, que foram nacionali-
zados em parte por nasalação como em marroquim, de sorte que converge
PARTE
I — SUFIXOS
NÃO
LATINOS
77
com outro, -im, abreviado de -ino, em camarim, espadim, espadachim ;
em parte por aerescento da desinência flexiva -o, como em algarvio, de Algarve. Os sufixos
-iccus e -ittus, ambos
de
função
deminutiva
e ambos
muito usados na Península, são de origem incerta. Apenas se sabe que não são latinos. De íceus provém
o -ico de amoricos,
e também
-eco, de
boneco, caneco, folheco. De -ittus temos o -ito de cabrito. Alguns sufixos vieram, depois da constituição da língua, de outras províncias
românicas,
-oila, de moaçoila,
p. ex. de Castela,
(onde
soa
uela ). Mas ésse é pouco produtivo. Distinto pela sua grande fecundidade é apenas -age, representante francês do latim -aticum, que entrou nos séculos XI, XTT e XIIT com mercadores de além dos Pirinéus, os quais, ao passar dos Portos aces-
síveis daquelas montanhas, tinham de pagar uma contribuição, chamada entre os Peninsulares portádego c entre os franceses portage. Ésse nome, e mais alguns como lignage e homenage — (linhage e menage em português antigo ) — popularizaram-se a ponto tal que produziram imitações numerosas — mais de um cento — entre elas viagem, linguagem. Em francês eram c são masculinos, e não téem nasal. O facto de se terem tornudo femininos em português e de serem nasalados (-agem ) provém da influência exercida por outro sufixo homónimo, -agem de imagem (imago, imaginis). AÀ história do sufixo latino -atico, em português antigo -údego (em castelhano azgo) cujo representante francês é o -age de que estamos a falar, é outro exemplo curioso da actividade que um pequeno número de formas pode exercer, levando por si muitos owutros e enriquecendo o cabedal da língua. Não são sômente os livros que têem seus fadares. Também os vocábulos e os sufixos : Habent sua fata suffixa. A respeito de -age, -agem há um estudo notável de F. À. Coclho, intitulado Casos de «Analogia, rico de idéias e de factos (*).
*
Tanto os sufixos verdadeiramente latinos como os gregos, germãnicos, ibéricos, célticos e arábicos, são aplicados. a temas de qualquer das línguas que contribuíram para o vocabulário português. *
Um modo especial de multiplicar os sufixos herdados consiste na tendência de alterar a sua vogal tónica criando gamas vocálicas, perfeitas ou imperfeitas. Procedendo assim os portugueses completam apenas o que os latinos haviam começado. (*)
Revue
Hispantique,
1907.
LIÇÕES
78
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Éles já possuíam séries de sufixos diferençados apenas pela vogal acentuada : P. ex. -aceus, -iíceus, -oceus, -uceus ; -aclo, -iclo, -uclo ; -agine, igine, -ugine ; -amen, -imen, -umen ; a êsses correspondem em português
-aço (palhaço), -iço (cortiço), -oça ( palhoça), -uça (dentuça ); -alha, .ilha, -ulha (canalha, vencilho, marulho ) ; -agem (imagem ), -igem (fuligem ), -ugem (ferrugem). Que maravilha que, aplicando o processo a outros sufixos os portugueses possuam hoje -ato, -eto, -ito, -oto, «uto, ( mulato, lebrato, coreto, rapazito, perdigoto, cucuruto ) ; -alho, -elho, -ilho, -olho, -ulho, (ramalho, folhelho, tomilho, trambolho, bandulho ) ; -acho, -echo, -icho, -ocho, -ucho, (fogacho, ventrecho, rabicho, carocha, gorducho ); -aco, -eco, -ico, -oco, -uco, (velhaco, boneco, amorico, pardoca, bichoco, abelha-
ruco ) ; que à par de -arro -erro, criassem -orro ( grandorro ), -urro (casmurro ). E assim por diante. Nestas
gamas
parece
que
instintivamente
se chegou
a dar certo
valor às diversas vogais. (Sem rigor, bem se vê) : i, e diminuem: pedrita, beberete; o aumenta: rapagote; u desfeia e menospreza : papelucho, velhusco. Sômente a, a vogal mais clara sonora, primitiva, menos exposta a alterar-se, é definida nas suas fun-
ções. Apenas serve para embelezamento eufónico. *
No acto da sufixação os temas são às vêzes modificados. Quando as formas populares e modernas nito se prestam a receber certos sufixos (já vimos exemplos ao tratar do infixo -z- ) recorre-se quer aos modelos latinos, quer aos estádios antigos das formações portuguesas. Móvel, amável, sensível, são substituídos por formas com -Dbil, logo
que se lhes ligar qualquer sufixo: como se vê de mobilizar, mobiliário, mobilar; amabilidade, sensibilidade, etec. De melão, limão, cordão, botão, algodão, bordão, afeição, cte., tira-se, meloal, limoeiro, cordoaria, abotoar, algodoeiro, bordoada, afeiçoado, porque as formas arcaicas tiveram ô — melô, limô, etc. Os derivados antigos, absolutamente correctos, eram melõ-al, limô-eiro, cordô-aria. Mas a nasal caíu como em lua, de lit-a, luna, e centenas de palavras com n intervocálico. *
Com relação às camadas Jingilísticas de que os sufixos sairam, êles são naturalmente (como os vocíábulos inteiros) em parte populares, em parte cultos. Entraram ou por via oral, ou pela escrita. Há mesmo alguns semi-eruditos como -údego, de -aticum, nas antigas denominações de contribuíções (como o hospedádego, ou a eirádega, que já citámos). Bastantes existem em duas formas:
uma que evolucionou, e outra
que ficou inalterada ou se modificou pouco.
PARTE
1 — DIVERGENTES
79
E SUBSTANTIVADOS
Ao lado de -eiro há -ário : primeiro e primário, herdeiro e hereditário ; temos -deiro e -tário : mnoedeiro e monetário ; -doiro e -tório: lavadoiro ec lavatório; -elha e -ícula: orelha e aurícula; -ês e ense: bra-
guês e bracarense; -agem e -útico: viagem e viático; selvagem e selvático; -ença e -ência : influença e influência. Nem de todos os que existem em pares divergentes há assim duas formas ligadas aos mesmos temas. Sem essa cireunstância concorrem -ejar com -«isar ; «ada com -ata, e várias outras.
Em geral o sufixo de forma popular determina um tema popular; e o de forma culta um tema literário. Mas esta regra tem muitas excepções. Além de fadista, do tema popular fado e sufixo grego -ista; boticário, do semi-erudito botica e o erudito -ário, há adjectivos e substantivos vulgares como bobo, asno, alargados por -ático, sufixo erudito e esdrúxulo : bobático, asnático, freirático. *
Tudo
quanto
dissemos àcêrca dos processos de derivação não é
senão uma pequeníssima parte do que há a dizer dêles. Não tocámos ainda na derivação sem sufixo. Nem fatámos de verbos derivados. Ape-
nas de nomes. Pouco a pouco iremos completando essas noçoes. Lembramos mais uma prova de que o povo tem consciência das funções dos sufixos — além das que já demos ao falar da lôntrega e do sapo côncharo. Há alguns casos, poucos, em que pessoas que falam, separam os sufixos dos temas, substantivando-os.
Os Ttalianos servem-se da frnse essere agli anta — o que, literalmente traduzido, quere dizer estar nos enta, Írase com que designamos os que contam entre quarenta e noventa anos: os velhuscos. Entre éêles accio, sufixo aumentativo e pejorativo, é abstraído de formas como cor-
paccio, grandaceio, e equivale a feio (brutto ). Os portugueses falam de avos para denominar bagatelas insignificantes, somas pequenas, mas avo é também (salvo érro) uma moeda que corre em Timor e Macau. Tirado de dozavo significava originâriamente [uma das partes ] em que se divide um todo (*). Nem falta entre nós quem empregue inhos e ões para simbolizar coisas pequenas e coisas muito grandes. Alguns exemplos dêsse uso há nas Cartas Familiares de D. Francisco Manuel de Melo. (”*) [Este período está incompleto e porventura deturpado. Não parece provável que a Autora pretendesse tirar avo de dozavo, sem aludir à explicação por octavus, assaz antign e conhecida. Cfr, A. Coelho, Dic. Etim., s. v.; J. L. de Vasconcelos,
Opusc.,
1, 499-500;
Hist. (2.º ed.), p. 2221
M.
Pidal,
Gram.
Hist.,
$
91,
2;
J. J.
Nunes,
Gram,
LIÇÃO IX [RESENHA DOS PRINCIPAIS PROCESSOS POPULARES DE SU. FIXAÇÃO. DERIVAÇÃO IMPRÓPRIA. DERIVAÇÃO VERBAL)]
Ao tratarmos da derivação por meio de sufixos e infixos mostrámos
que o povo é imuito produtivo nesse campo e emprega
processos pi-
toresecos, expressivos, ora cingindo-se às leis e regras por que se rege a
língua culta, — leis e regras determinadas pelo organismo da língua-mãe c das falas neo-latinas — trariando-as
mas alargando o seu campo de aceção ; ora con-
instintivamente,
para
provocar
certos
efeitos
de
contraste.
Os principais processos de que demos exemplos, às vêzes poucos, às vêzes numerosos, e que tentámos explicar sumáriamente, são os seguintes :
1.º) O prolongamento regular de vocábulos pelo acrescento de sufixos sonoros (como costumeira por costume) — processo muito usado na Galiza
moderna,
onde
até preferem
adjecetivos como
tristeiro, boni-
teiro, fidalgueiro, a triste, bonito, fidalgo, e já predilecto dos antigos trovadores, que preferiam mineira a mina; cerveira a cebo; azinheira a azinha, azinho ; vidreira a vidro, no sentido de vidraça; escaeira a escaada, escada (escalada, de scala), e usavam e abusavam de adjeetivos como tertudeiro, dereitureiro, justíiceiro, torticeiro, ete.
2º)
AÀ substituíção, já cfectuada
no latim
vulgar, de vocábulos
curtos com sufixos átonos, por meio de outros tónicos, pelo tipo de vitulus, vitellus, rotula, rotella, subula, subella (vitelo, rodela, sovela). 3.º) O acrescento anormal de sufixos átonos como -aro, -ego, em sapo-côncharo, por sapo de concha ; lôntrega, por lontra; ou de sufixos esdrúxulos, como em asnático, bobático.
4.º) O prolongamento por meio do infixo -z- (avezinha, avezita, máãozita, mãozada, mâàzona, magrizela por magricela, de magriço, ete.) ; ou de -ar, -er em casarão, chamarada, mastaréu, sumarento, gabarola, linguarudo, montaraz, lambaraz. 5.º) À criação de gamas vocálicas; p. ex. -aco, -eco, -0co, -uco, —
a par de «ico (em velhaco, folheco, amoricos, dorminhoco, abelharuco), — escolhendo-se em regra e, 1, para diminuir, o para aumentar, u para desfear ; ao passo que a ficou reservado para efeitos indeterminados ou mero embelezamento eunfónico. Além disso. apontamos o aproveitamento de sufixos não latinos: de origem helénica como -ia, -ismo, -ista, -izar; germânicos como -aldo, -ardo, -engo, -lengo e -isco ; célticos como -êgo ( galego, labrego), ibéricos como -«arro, -erro, ( bizarro, bezerro), imitados em -orro, -urro, -ilo, -ico,
PARTE
I — DERIVAÇÃO
IMPRÓPRIA
81
de origem desconhecida ; e alguns franceses, como -agem, e castelhanos, como -oila. O nosso propósito era estabelecer que todos contribuíram largamente para multiplicar as possibilidades de derivação por sufixos — a qual, alimentada por tantos afluentes, veio a ser fonte abundantíssima e perene de formações novas. Ocupámo-nos todavia quási exclusivamente da sufixação de nomes como partes es«enciais do discurso, pondo de reserva a parte que se refere aos verbos. Antes de passarmos a éles diremos alguma coisa da derivação nominal sem sufixos que, sem ser tão abundante, aumenta ainda assim o vocabulário consideràávelmente. *
A derivação sem sufixos, a que é costume chamar imprópria, realiza-se de duas maneiras. A primeira consiste na habilitação de palavras de uma classe a exercer o ofício de outra classe.
AÀ segunda consiste na extracção de temas dos verbos, dando-se-lhes apenas uma desinência gramatical : -q, -o, -e.
Quanto ao processo de habilitação, é digno de nota como de nomes próprios se formam apelativos. O nome Pelayo, frequente nos primeiros tempos da Reconquista entre lavradores, em geral robustos e rechonchudos, passou a designar o chouriço. Pelayo deu peayo pela queda do -l- intervocálico ;panyo por assimilação das vogais; e finalmente paio por contracção. Na aplicação do nome Simão ao macaco o procedimento é diverso: foi o nome latino símius que a provocou. Não podemos documentar que os velhos portugueses dissessem simo, passando o t átono do sufixo me-
ramente vocálico para o tónico do tema (como fizeram em ciro, liro por círio, lírio). Mas a existência de jimia em castelhano, scimia em italiano, simia em provençal, singe em francês, torna a hipótese muito plausível. Vicente como nome
de corvo, a ave agoureira do santo padroeiro
de Lisboa, não precisa de outra explicação. Aqui poderíamos tratar tanbém da masculinização de vocábulos femininos na sua acepção comum, como por exemplo, um Maricas, um banana, um toupeira (ou com masculinização também da desinência, um
ninfo). Entendemos todavia que tais formações pertencem à Gramática (cap. dos géneros). Adjectivos são substantivados pela mera junção do artigo. De alvo ( branco ) vem alva, nonice da primeira claridade matutina ; de uma vestimenta celesiástica ; e da esclerótica do ôlho; maçã matiana e avelã «
abellana, são adjectivos provenientes dos nomes topográficos Matia e AÁbella; sirgo vem de serícus; pêssego, de persicus; tempus hibernum, deu-nos irverno, inverno;
tempus estivum
(de cestus, calor). deu estio;
LIÇÕES
82
veranum
tempus
ver,
(de
PORTUGUESA
DE FILOLOGIA
deu
primavera)
verão; meias são medias
calceas. Vice-versa porco,
ratão,
muitos
perro,
que
substantivos
adjectivados,
são
nião precisam
de
interpretação;
côres como castanho, vermelho, de vermiculus:
por
exemplo,
ou nomes
de
(o bichinho da grã);
azêdo de acetum (vinagre). Dos verbos provêem bastantes. Cada infinitivo pode ser substantivado. O comer e o coçar está no começar. Formam mesmo plurais como teres e haveres, dares e tomares;
deminutivos como
saberete, beberete.
Cada particípio regular pode servir de nome, como se vê em feríida, comida ; traçado, ditado. Sobretudo prestam-se a isso os particípios
fortes (ou irregulares), por sua classe gramatical não estar logo denunciada pelo sufixo. Sirvam de amostras curso (cursus), esposo (sponsus, de spondere), trecho (de tractus), junta, dívida. Em muitos concorrem ainda hoje ambos os empregos : posto, feito, dito, escrito, ora são parti-
cípios, ora substantivos.
O particípio presente que hoje só serve de adjectivo — presente, ouvinte
(e servia antigamente
amante,
de preposição), substantiva-se
numerosas vêzes. Temos: a enchernte, à corrente, o levante, o poente. O gerúndio deu alguns como : lenda (legenda ), fazenda, moenda, oferenda, merenda, (todos éles plurais neutros). De formas pessoais saíram relativamente poucos. Ainda assim registentos — além dos latinos que se empregam em linguagem eulta (como recipe, facit, habitat, defícit) — o recibo (1.º p. s. do pres. do ind. de receber) : o refirvo, de referver, têrmo enológico ; o bato, o firo, o mordo ; o entretém (3.º p. s.). Os vivas do entusiasmo ; os morras do ódio, as vaias, que equivalem
a apupos, motejos, assuadas
(em
dar vaias), são
conjuntivos de viver, morrer, ir. Ouças e meças (em pedir ouças, dar ouças ; e pedir meças ) são 2.” p. do subjuntivo ou optativo. Os têrmos compostos, péêsames, prazmes, prolfaças, pertencem ao capítulo da composição. : Mesmo advérbios substantivados como o bem, os bens, os longes, não são inauditos. Não nos lembra quais os três treses, de uma reza
ou de um jôgo infantil que conhecemos. Passageira e ocasionalmente, cada palavra, cada partícula, pode ser substantivada. Os Porquês de Setubal, é o título de uns versos interrogativos do Cancioneiro de Resende. Dos ais que alguém dá, dos contras, dos prós, dos senões de qualquer assunto, fala-se de longe em longe. Mesmo os sufixos substantivados avos, ões, inhos, a que nos reflerimos ( para demonstrarmos que os sufixos são
partes construtivas bem reconhecíveis), têem seu lugar aqui. As formações do segundo processo de derivação sem sufixo, cha-
mam-se substantivos verbais (* ). (*)
O modêlo existia em Roma. Ao verbo
Vid. Leite de Vasconcelos, Respigos
Camoncanos.
PARTE
1 -— DERIVAÇÃO
VERBAL
83
sonare, soar correspondia o substantivo sonus (som ) : a serrare, serra; a saltare, saltus; a plantare, planta ; a cantare, cantus. À semelhança dêstes exemplos (que não são absolutamente iguais mas parccem sê-lo aos leigos), criaram-se em português numerosos substantivos, em regra de verbos da 1.º conjugação que prepondera em tudo. Em a temos por exemplo afronta, ajuda, apanha, busca, burla, compra, custa, conta, en-
comenda, entrega, esfrega, estima, fala, monda, monta, poda, sega, rega. Em o temos por exemplo abraço, acêrto, adôrno, agravo, arremêdo, castigo, chõôro,
brado, grito, encontro,
êrro, estrago,
mando,
rôgo.
ataque, deporte, descarte, engace, enlace, encaixe, destaque, informe, realce, resgate. E muitas dúzias mais. Cremos que êles vêem do tema verbal puro, e não da do pres. do conj. (que subsiste por exemplo em escolha). Há ferença quanto ao timbre da vogal, pois dizemos eu choro, éle
Em
e,
desfalque, 1.º c 3.º p. mesmo dichora, que
eu chore, que êle chore, mas o chôro (com ô fechado), eu erro, e o êrro
(com e fechado). Renda, venda, fenda, tenda, perda, não são substantivos verbais, (como se diz em algumas gramáticas), mas antes particípios contraídos: representantes de reddita, vendita, fendita, tendita, perdita. Coita é
cocta, part. de coquere. Mas, repetimos, em lugar dêsses que riscamos, podiam-se reiinir outros exemplos. Escol, se realmente
vier de escolher,
como
pensamos,
tem
lugar
à parte por não ter desinência e provir de um verbo da 2.º conjugação. * Na formação de verbos novos, diversos dos latinos, não há nem de longe a riqueza que distingue a derivação nominal. Dos quatro processos de derivação:
a imediata, sem auxílio de afixos,
a mediata
por
sufixação ; a mediata por prefixação ; e a composição — apenas a que se efectua por meio de prefixos, combinada muita vez com sufixação, é realmente produtiva e dá margem a algumas observações de pêso. Dela falaremos depois. Por ora, estabeleçamos que todos são verbos em -ar. Há uma só excepçito. À dos verbos incoativos -«escere. Essa é de grande vitalidade. Verbos em -ecer tos verbos simples antigos em -ir; ou emparelham guarnir, guarir, florir, aborrir, havia
os derivados verbais em -ecer, do latim substituíiram a muicom éêles. À par de
e há guarnecer, guarecer, florecer,
aborrecer. Raras vêzes com divergência de significado como em falir, suspender
pagamentos,
morrer. Além
Em
faltar
geral à forma
a compromissos,
incoativa
e falecer, faltar, escassear,
não corresponde
a significação.
dêles: estabelecer, alvorecer, favorecer, obscurecer, fortalecer; e
com prefixos, muitíssimos, tirados ora de verbos como a-dormecer, esmnorecer, esquecer, de escaecer (ex-cadescere ), ou de substantivos como
LIÇÕES
84
anoitecer,
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
amanhecer ; ora de adjectivos
como
envelhecer,
ensandecer,
endoidecer, em-magrecer, amadurecer, enriquecer. Tôdas
as outras classes de derivados
terminam
em
-ar. Nisso
se-
guem uma tendência já manifesta no latim vulgar, que substituía, por exemplo, fidere por fidare; fiar, e studere por studare, estudar. AÀ derivação imediata, abundante entre os Latinos, que podiam derivar de qualquer nome, verbos das quatro conjugações em -are, -ere, -ire, restringin-se muito entre os povos neo-latinos. Ainda assim temos em português bastantes provenientes de palavras primitivas — v. g. datar, dourar, futurar, invejar, perigar, efectivar, alegrar-se, contentar, lacrar, melhorar, piorar, estremar. À maior parte associa-se o prefixo a
(ad), como em abeirar, acercar, achatar, adiantar, adoçar, afadigar, ajardinar, apunhalar, arredondar, avizinhar, etc. O mesmo vale dos verbos que em latim se tiravam de adjectivos e particípios, por meio da semi-vogal , como de altus, altiare, em portu-
guês alçar ; de bassus, bassiare, em português baixar ; de captus, captiare —
Ccaçar ; de acutus, acutiare —
aguçar ; de coctus, coctiare —
coçar ; de
mollis, molliare — molhar. Como houve fusão com a consoante precedente, êles têm cara de serem derivados imediatos. -Icare, muito usado em latim vulgar, fundiu-se também com o tema, por queda do ( postónico, sempre que éle terminava em consoante
simples. Basta lembrar os verbos salgar, amargar, cavalgar, madrugar, jul-
gar, vingar, outorgar, folgar. Só quando havio consoantes duplas, subsiste na forma -egar, v. g. em carregar “« carricare, sossegar “ sessicare. O deminutivo -icar, de adocicar, beberricar, vem do deminutivo -icco, de origem desconhecida, como -inhar, de escotcinhar, do deminutivo -inho; e -ilhar de dedilhar, de .ilho. -Iscar denota pouca intensidade em chuviscar, mordiscar, beliscar
e mais alguns provincialismos eomo bebiscar, comiscar; -itar, obscurecido em ceuidar À cogitare, e andar 4 ambitare, é deminutivo em saltitar, dormitar, e factitivo em facilitar, debilitar, etc. Mais fecundo é -antar, -entar, causativo e factitivo, tirado do par-
ticípio presente.. À língua clássica conhecia apenas preesentare, a vulgar empregava expaventare, espantar, em lugar do simples pavere (expavere ), sedentare, sentar por sedere, e várias outras, como se deduz da
harmonia entre as formações neo-latinas. Os antigos portugueses favoreciam essas derivações, prefixando-as com a ou em; diziam acalantar, acalentar, uma criança, fazê-la calar e adormentar-se ao som de cantigas de berço ; amamentar, adoentar, afugentar, aferventar, arrefentar, acrescentar, apascentar, aquentar ; e tirados de adjectivos, amolentar, endu-
rentar, enriquentar, apodrentar, avelhentar, apouquentar, apousentar, npviventar, embranquentar, escurentar (em que o es não é prefixo), en-
PARTE
1— DERIVAÇÃO
grossentar, enfraquentar, afremosentar,
VERBAL
e muitas
85
mais que em
grande
parte ainda se usam ; e podem suscitar a criação de outros nomes. Em antar, só havia (e há além de acalantar) levantar, quebrantar e avantar,
do advérbio composto avante! Os mais
férteis de todos os sufixos verbais, são -ear, -ejar, -izar.
Dos dois últimos já sabemos que provéem do grego -izein. Quanto ao primeiro, ainda não se lhe achou outra etimologia do que essa mesma. Talvez viesse a Portugal de Espanha. -Far une-se tanto a verbos como a substantivos e adjectivos. Sem ter significado bem característico, deu e dá muitos verbos novos como::
barbear, bronzear, pratear, passear, on-
dear, saborear, sapatear, vozear, jornadear, branquear,
baratear, ban-
dare. -Ejar, com sentido iterativo, deu almejar, adejar, arejar, gotejar,
mercadejar,
branquejar,
cacarejar,
bracejar.
-Izar com
z, embora
de
forma e origem literária, é produtivo: latinizar, helenizar, organizar, colonizar, suavizar, fertilizar, amenizar, realizar, autorizar, ete., ser-
vem de modélo. Ainda há mais alguns sufixos isolados, por exemplo, -açar, de espteaçar, escorraçar, adelgaçar ; -ilar em lucilar, que se encosta a vacilar ;
«ujar, em manuujar. i Dos substantivos em -do, derivam-se verbos em -oar, cachoar, abotoar, amontoar, acolchoar. Mais exacto seria dizer que se derivaram, quando ainda se pronunciava cachon, boton, monton, colchon, e servem
de padrão a imitações modernas. Nessas formações há às vêzes confusão entre -ão como substituto de -on, e -ão, substituto correcto de -ano, por
exemplo em seroar de serão “ seranus, quási inevitável, desde que -om, -am, e -ão se fundiram num
só tipo.
$
Juntando essas notas sôltas às que daremos quando falarmos da prefixação e da composição, ainda assim o quadro da derivação verbal, fica pobre, comparado com o da derivação nominal.
LIÇÃO X [PREFIXAÇÃO. EXCURSO: NÉVOAS DE ANTANO. PREFIXOS NOMINAIS E VERBAIS. NOTAS DIVERSAS.]
A prefixação tem o seu lugar entre e a sufixação e a composição. Parece-se
a certos respeitos com
uma,
e a outros
respeitos com
a outra.
Parece-se com a composição por unir duas ou mais palavras independentes, afim de representar uma idéia nova. A independência das palavras que costumam servir de prefixos, não é todavia absoluta. Maior e positiva nos advérbios (bem, mal, não, mil), c em adjectivos com funções de advérbios (bom, mau, reduzido a má, gran, sant, recem, etc.) ela é menor e quási nula nas preposições.
Por isso mesmo, por éêsses elementos serem apenas secundários, acessórios, e em parte terem perdido, como aconteceu por exemplo com o prefixo
negativo
in, o iterativo
re,
e em
alemão
com
os antepostos
(Vorsilben ), Be, Ent, Ver, Er, Ge, ete., ela parece-se com a sufixação.
A prefixação ainda não foi estudada em obra alguma especial de romanistas
nacionais;
e os mestres estranjeiros dão apenas
traços ge-
rais comparados, sem se ocuparem dos peculiarmente portugueses. Pode ser que ela guarde algumas surprêsas para os que a investiguem cuidadosamente. Parece todavia que não serão muitas. O povo exerce a sua actividade transformadora e às vêzes tresvairadora apenas em dois ou três elementos construtivos, a que se dã o
nome de prefixos por serem antepostos nos temas. Em es-, des-, tras- e nos numerais (res, ter, tris, que ocorre em nomes e ao terceiro neto.
dados ao terceiro avô
Os prefixos são poucos em latim — ab, ad, ante, circum, contra, cum, de, dis, e, ex, foris, in, infra, inter, ne, ob, per, prae, pro, post, re, retro, sub, subtus, super, trans (tras), bis, bene, male, minus, o subs. vice, os advérbios numerais tri- e bi- (tris e bis). Menos numerosos ainda
são nas línguas derivadas, das quais cada uma perdeu diversos. O português por exemplo perdeu infra e foris, ob e retro, embora êsse subsista obscurecido em redemoinho, redopio, (rodopio). Vários outros perderam pelo menos a sua produtividade, subsistindo
apenas
em
vocábulos
literários,
tirados directamente
do Léxico.
Outros obscureceram-se em algumas palavras cono mostrámos no falar de contar X computare; comprar “ comparare; rezar “« recitare; coser “ consuere. De fora-parte não veio nada de novo. Tentaram-se,
palavra.
Queremos
isso, sim,
algumas
dizer que alguns
inovações,
no
sentido
advérbios e algwmas
restrito da
preposições,
PARTE
1— ALGUMAS
INOVAÇÕES
87
que não tinham exercido o ofício de prefixos em latim, foram aprovcitados como tais nos idiomas neo-latinos. Sine, por exemplo, conservava na língua-mãe o seu carácter primordial, como imperativo do verbo sinere (consentir, deixar fazer, per-
mitir, não impedir). O seu verdadeiro significado era deixa! larga! não te importes com... Só nas línguas derivadas, onde não havia reminiscências dêsse valor, sine (sem, em port.; sin em cast. ; sans em frane. ; senza
em ital.), passou a ser equiparado em tôdas as suas funções a in, de, e mais preposições. Dando em francês palavras como sans-gêne, sans-cullotes, deu-nos a nós sem-cerimónia,
sen-razão, e sensabor.
ÉÊste último
está tão popularizado que forma plural (sensabores ), o aumentativo ( sensaborão ), e deu o subst. (sensaboria ). Bastantes outros há nos textos arcaicos que não vingaram porque os escritores modernos preferem
em geral dizeres analítieos. Mas ainda assim usam-se fórmulas justa-postas como sem-fim, sem-número, sem-par. Nos dicionários figuram sem-barba, sem-justiça, sem-luz, sem-sal, sem-segundo, sem-têrmo.
Entendemos que se devem citar ainda como acrescentos à lista dos prefixos latinos, mais alguns nacionais: não como substituínte de in, negativo, em formações literárias como não-consoante, não-cumprimento, não-pagamento, não-existência, ete.; além c aquém em além-mar e aquém-mar ; além-Minho c aquém-Minho; alêém-túâmulo; Alentejo,
Além-Douro, Além-Minho. Mas mesmo &êstes são de origem latina, pelo menos aquém por aquende de eccu-inde, à medida do qual se formou depois além de ali e inde. Há dúvidas quanto à proveniência, apenas a respeito de um suposto prefixo ca, do qual F. A. Coelho se ocupou num opúsculo cujo título exacto não podemos agora indicar por não o termos presente. Se bem nos recordamos, os vocábulos que êle analisa, são todos de origens escu-
ras, e precisam de esclarecimentos etimológicos mais amplos e seguros, para darmos fé a uma excepção tão surpreendente de um facto que se deu em todos os idiomas neo-latinos. *
Todos os prefixos são átonos. Em latim e grego podiam ser tónicos em verbos, como tornaremos a lembrar citando mais uma vecz récipe, cóm paratl, récital, consuit, ete.
Há
todavia uma
excepção
em
português:
o adjectivo
ímpar.
Fa-
miliar aos colegiais e à crianças de famílias cultas desde o dia em que jogam com confeitos par ou ímpar, éle é substituído na bôca do vulgo por pernão, em vez de não-par, como se dizia antigamente, mas que é difícil de pronunciar com os seus dois acentos (oxítonos). Quási todos os prefixos são comuns a verbos e nomes. Nenhum é privativo de nomes, a não ser a preposição sem, que não se liga a verbos
(salvo êrro).
B8
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Ainda assim é costume de Diez, Meyer-Liibke, e os autores de gra-
máticas históricas de qualquer língua românica, repartí-los, como os sufixos, em
nominais e verbais, separando
ainda por cima
os que entram
na derivação nominal em preposicionais e adverbiais, segundo as funções que exercem. É excelente prineípio de ordem, mas quanto no português, não tem grandes vantagens, visto que os limites entre preposições e advérbios idênticos, como
ante, contra, entre, sôbre, sob, ultra, são às vezes bem
vagos. Se re e per eram outrora advérbios separáveis, são hoje prefixos inseparáveis, apesar de em algum dialeto conservarem a sua actividade antiga. Trans
(tras, tra, tres, tre), é preposição em
trasperna, traspé,
traslar, inseparável também nos verbos transpor, trasladar, tressuar, tresler; em francês é o advérbio separável e usadíssimo três. AÀ diferença de sentido originada pela antiga relação gramatical entre a preposição e o nome,
não tem grande
importância
para línguas em que não há casos.
Para os leigos pelo menos. Onde se trata de apurar verdades históricas é todavia preciso distinguir entre uns e outros. Vejamos alguns exemplos : Contra-veneno e contra peçonha, é evidentemente uma substância, um medicamento que frusta a acção do vcneno, ou antídoto. Contra-venenum, contra-potionem. O acento principal, a idéia essencial está em contra. Um contra-mestre, uma contra-mestra,
pelo contrário não é positivamente destinada a ir contra o mestre ou à mestra (embora na realidade isso aconteça às vêzes! ) é imediata à mestra, substitui-a. É o seu contraforte. Outro exemplo. Ponhamos do lado preposicional antolhos, antifaz e antano — ante oculos, ante faciem, ante annum. Antolhos, em sentido real é a pala
com que se resguardam da luz os olhos doentes ; e as palas dos cabrestos ( que o povo chama antrolhos, entre-olhos, interpretando mal a palavra
composta ) ; em sentido figurado designa apetites, caprichos, desejos de coisas que queiramos ter à vista.
Antifaz (antigamente contraído às vezes em anfaz e rebaixado mesmo a enfaz ) é uma máscara posta diante da cara. AÁntano é o ano passado. Do outro lado ponhamos enteado de anteado
« antenatus e ante-
braço. Antenatus, o filho cuja mãe ou pai tornou a casar, é o que nasceu
anteriormente ao tal casamento. Antebraço é a parte do braço que está na dianteira de outra parte, não nomeada. É advérbio local portanto. A dificuldade para o leigo de qualificar e definir ésses vocábulos e outros como
arnteontem, antemanhã,
(mlegôzo, anlcgôs!o, provém
a meu
ver de que ante já não existe como preposição (a não ser em perante), nem como advérbio por ter evolucionado para antes, por adição do s paragógico, por analogia com outros advérbios latinos e neo-latinos como
menos, mais, e os arcaicos cras e chus, ( plus ).
PARTE
I—
NÉVOAS
ANTANO
DE
89
*
A respeito de antano vamos fazer um
pequeno excurso, afim de
amenizar um pouco esta árida exposição. AÁntano é bom português, usado por D. Dinis em uma das suas cantigas de escamho. Encontra-se no verso 2588 da edicção de Henry R.
Lang (*), professor da Universidade de New Haven, Connecticut, muito abalizado romanista,
guesa. Lamentando
e bom conhecedor da língua e da literatura portu-
duas meninas por andarem mal vestidas, pelo des-
cuido do seu amo, o rei trovador diz: ca llWas vej'eu trajer bem des antano ambas vestidas de mui mao pano.
(CXXIX ; CCB, 406). O oposto é hogano (hoc anno ), neste ano, que o mesmo autor emprega em outro sítio (cant. CXXXI, v. 2627) — também na fórmula desogano, desde o princípio do ano que corre. Não há pois razão alguma para escritores modernos darem a preferência à forma castelhana antaiio — única contida no aliás excelente Dicionário Prático de Cândido de Figueiredo. Em francês corresponde-lhe antan, com os derivados antanier, antanaire, antenois.
Mais oà sont les neiges d'antan? é um ditado poético muito citado por nrtistas que desejam dar forma graciosa, de sabor medieval, ao bíiblico YVanitas, vanitatum vanitas do Ecclesiastes; ou ao adágio popular Tout passe, tout casse, tout lasse, isto é,
a queixas melancólicas sôbre a
pouca dura e constância de tudo quanto é belo. O verso repetido quatro vêzes como refrain, faz parte de uma composição lírica (Ballade ) de Maistre François Villon — o Paul Verlaine do século XV — poeta que após poucos lustros de aventuras e estroinices, foi condenado à morte pela corda, mas indultado e banido da capital por causa de erimes que lhe imputaram, infelizmente não sem motivo (**). Entre as obras dêste chefe da Boémia literária de Paris há uma famigerada Ballade des Pendus (dos Enforcados) e um Grand Testament (1461), com revelações pessoais sombrias da sua alma atormentada e do seu coração agitado por paixões e remorsos. Intercalada nêle está a Balla-
de des dames du temps jadis que encerra o verso citado, único que dêle resta com asas de voar através do mundo. A neve do inverno passado, — les neiges d'antan, têem todavia um
precedente português da 1.º metade do século XIV. E é por causa dêle (*) Das Liederbuch des Kônigs Denis von Portugal, Halle, 1894. Sabe-se que, agredido por um clérigo embriagado, teve a infelicidade (**) o matar; os outros crimes de que àêle se acusa estão envolvidos de mistério.
de
90
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
que fazemos êste pequeno excurso. Com leve variação falavam os Galego-portugueses das nevoas d'antano — variante mais própria desta linda e boa terra meridional, do que a neve gelada dos Alpes e das regiões do Norte. Menos poética por ser aplicada a coisas muito positivas, essa fórnuula retórica encontra-se numa cantiga de escarnho ou de folgar. Motejando dum cavaleiro ou rico homem mentiroso que lhe prometera panos e haveres, e armas e cavalo, e depois se esquecera do prometido, o trovador diz, cheio de ironia, que provávelmente aquilo que afinal receberia, seria enpa e calça de nevoas d'antano.
O trovador chama-se Martim Anes Marinho. À cantiga é a nómero 1154 do Cancionetiro da Vaticana. Ela cestá tão deturpada que não sei se poderemos tentar lê-la. Notem ainda que se os franceses citam hoje Mais ou sont les neiges d'antan, estão lembrados perfeitamente do genial mas malogrado poecta a cujas poesias é costume antepor como Moto as palavras Je ris en pleurs,
tiradas de outra composição dêle. Mas quando mais corriqueiramente dizem, em conversa familiar, je ne m'en soucie guere plus que des neiges d'antan, empregam evidentemente uma figura retórica popular, ou popularizada. Se existisse só em França podíamos derivá-la do verso de Villon. Em vista da variante portuguesa anterior de um século, é mais provável que os neo-latinos a herdassem dos antepassados. Não só nos cumes dos Alpes havia neves e névoas. Também nos Apeninos. Seguramente nós não esquecemos ainda o monte Soracte ou de S. Silvestre, cantado por Ho-
rácio naquele carme que principia: Yides ut alta stet nive candidum Soracte. Horácio, que tanta vez fala gemebundo dos rigores do inverno romano, tanta vez encantado das delícias do verão. Com outra citação que aqui vem a pêlo, o Níkil sub sole novum, também do Ecclesiastes, fechamos o parêntese. *
Acabemos com os prefixos. Os preposicionais, com auxílio dos quais se formam menos nomes novos em português — substantivos quási sempre. — são:
a do lat. al — Exemplo adeus. ante —
Ex. antecâmara,
ante-rosto.
contra — Ex. contra-veneno. entre do lat. inter — Ex. entrelinhas, entrecosto. em (escrito com m ou n conforme o som imediato)
do lat. in —
Ex. embuço, ensalmo.
por ( per ) do lat. per — Ex. porvir, por-cento, pormenor, percentagem.
PARTE
I — PREFIXOS
sôbre de super, supra —
NOMINAIS
E VERBAIS
Ex. sobremesa,
9
sobretudo,
sobreveste,
sobrolho, sobrehumano.
so (de sub) — Ex. socapa, socalco. sota, soto, de subtus —
Ex. sotamestre, sotapiloto.
tras, tra, de trans, tra — Ex. trasmontano, trafogueiro. ultra — Ex. ultramar, ultra-ridículo.
AÀ única formação nova é para, de per ad, por exemplo em parapeito.
Os prefixos adverbiais que servem para o mesmo fim são o mesmo ante (em antepassados), contra (em contrafé, contra-ordem, contra-mestre, contra-regra) ; com (em compadre, comadre, reduzido a co em coherdeiro, etc.) ; des- (deshora, desamparo, desgôsto) ; entre (entreaberto) ; sobre (sobrescrito, sobrenome) ; so (sorriso, socorro) ; re (em renome, ressaibo, rebem) ; bis (biscoito, bisavô, bisneto) ; bem (bem-
-aventurado) : mal (malcriado) ; menos (menosprêzo); vice (vice-rei, visconde ). O único realmente vivaz e fecundo é des. Os outros não desenvolvem actividade notável. Os que servem para modificar o sentido dos verbos são em parte os mesmos:: ante (antepor ) ; contra (contrapor ) ; com (combater, comprazer, confiar, conduzir, coexistir ) : entre (entreter ) ; so (sobraçar, sonegar, soluçar ) ; sobre (sobrecarregar, sobressair, sobrevir ) ; des (desdizer, descrer ) ; menos (menosprezar, menoscabar ). Os principais são todavia a, em, es (do lat. ev — pronunciado ora es, is ora eis) escolher, estirar, esfregar, esmorecer, estremecer. Ésses três, com re e de, que é puramente verbal, são de grande fecundidade. O povo, consciente do seu valor,
cóntinuva
a formar
com
êles constantemente
novas
palavras:
a[u-
guentar, amimalhar ; encadernar, embravecer ; defamar, debulhar ; requerer, retribuir. Todos aquéles enja forma evolucionou fonêticamente, subsistem
tanibém em forma alatinada, em palavras que entraram por via literária : ad, admitir ; inter, interferir ; in, intervir; per, permutar;
super ou su-
pra; subtratar, transferir. Mas se êles já são pouco fecundos em regra, nas formas populares, muito menos o são nas formas de origem literária, conquanto de longe em longe, lá se construa um novo adjectivo ou substantivo como ultra-radical, ultra-liberal, ou com supra como suprahomem a par de sobrehomem ou com in negativo como in-vulgar. Vários prefixos ocorrem exelusivamente
em vocábulos eruditos: por exemplo antí (antídoto) ; circum (circunspecto — ou meio-cruditos como circunnavegação, circunferência) ; extra (extraordinário, enja forma vulgar, se existisse, seria extraordeiro), ob, obs. de óbvio, obsecrar,
obsequiar; pro ( proconsul) ; per, de perene, pérfido. São os inertes ou mortos.
Excluímos
da lista dos prefixos
nominais
um
que
é muito
fre-
92
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
qiiente. Fizemo-lo por êle não ser verdadeiramente elemento de composição ; visto que não tem significação alguma nem serve em regra para
formações novas. É o artigo arábico al, de alfaiate, alfageme, alfazema, alferez, alvíçaras, reduzido a mero a diante de certas consoantes assimiladoras como r, &, 5, x, por exemplo em arrais, arrabalde ; ataúde, atabaque; azeite, azenha ; axaqueca, axadrez, modificados modernamente em enrxaqueca, enxadres.
Só excepcionalmente êste al (e êste a) entrou em vocábulos de origem latina ou grega, que provávelmente passaram pela bôca dos àárabes antes de se popularizarem na Península. Já citámos, ao falar das fontes do léxico, alperche, açucar, e alcáçar de castrum, transformado em calsro pela metátese de st em ts, que é muito frequente entre os Árabes.
A redução dêste al a mero a em palavras do mesmo grupo, por motivos fonéticos, pode ter favorecido o acrescento inútil, despropositado do mesmo al, ou do a de origem latina, tão fecundo na derivação verbal, a nomes
como
e a muitos
alâámpada, alanterna,
outros cujo
tema
não
principia com [. Em geral são considerados vulgarismos e evitados em boa linguagem. Tal a, protético, seja de que origem fôr, subsiste todavia em alguns têrmos da língua comum; seguramente para lhes aumentar o corpo e a eufonia:
em
por exemplo
atum,
amora,
abutre, abrunho,
ameaça. 2 Scrá preciso lembrar que nem tódas as palavras que principiam com al, são de origem arábica? Cremos que não; e restringimo-nos a mencionar — alto, altitude, alçar, altar.
*
Certos prefixos que eram já raros em latim e entraram na língua em formas isoladas, por tradição oral, foram confundidos com outros mais usados; e finalmente substituídos por êles. Ex — pronunciado és, eis, e (s — entrou por ser freqiientíssimo na derivação verbal, em escutar, por auscultare ; em esconder por abscondere ; em escuro por obscuro. Em entrou por mal-entendido nos vocábulos empola (ampulla) e embigo (umbilicus ou umbilículus). Outros foram rebaixados quanto ao som sem que nisso influíssem quaisquer clementos analógicos — simplesmente porque o povo não se dava conta do seu sentido, das suas funções e da sua origem. Às formas enteado por anteado, de antenatus e enfaz de anfaz por antefaz (máscara ) a que já nos referimos,
podemos
juntar o verbo
arcaico entolhar,
de
antºolho, anteoculum, de que igualmente falámos. — Entolha-se-me riso (ou mais exactamente entolha-xe-me riso ) — estou para rir — é expressão usada por um coevo de D. Dinis. Em pescoço há post obscurecido — coço de cocius, era nome de uma
rvasilha.,
Junta-se
portanto
a outros
têrmos
vulgares
em
que
o povo
PARTE
PREFIXO
1—
IN-
93
compara a cabeça e partes da cabeça com vasilhame diverso ; como testa que designava origináriamente um caco de barro.
Em bébera e em baforeira — nomes de figueira que produz duas vêzes por ano e do Íruto que ela produz — ninguém reconhece o prefixo numneral bi de bifera. Como êste há outros. *
ÀA perda do prefixo negativo in- merece atenção. A língua latina possuía dois prefixos in-, im-. Um era advérbio negativo ou privativo. Designava o oposto do vocábulo simples — v. g. in-dignus, de dignus, de probabilis, im-probabilis. O outro era preposição de sentido local e indicava a entrada ou o movimento para dentro de alguma coisa. Essa convergência
não era vantajosa, evidentemente.
Às
vêzes os dois prefixos concorriam em certos derivados. Inclinis, p. ex., significava não-inclinado mas também inclinado; a primeira vez com n negativo, a segunda com o locativo. Era fatal que uma das duas partículas desaparecesse nas línguas derivadas. É o que aconteceu ao in- negativo por êsse não ter a indepen-
dência, (relativa embora da preposição em ) que era e é indispensável nessa função como factor de palavras novas. O prefixo negativo in- entrou por via directa, tradicionalmente, em português em pouquíssimas palavras populares como enfêrmo de infermus, por infirmus, não-firmo. Reduzido a 1, subsiste em imigo por itmigo de T-imigo — in-imicus não-amigo — forma genuina, a par da qual bavia nemigo com queda do t inicial (aférese). AÀ forma culta inimigo prevaleceu desde o temnpo do Renascimento. Como
cla e com
ela entraram
por via literária, no século XVI
e
anteriormente, numerosíssimos vocábulos com in- tm-, negativo, sobre-
tudo adjectivos como indigno, ingrato, inhabil, incómodo, inepto, imenso, impossível (em ignorar, etc., está reduzido a 1). Muitos já haviam entrado nos primeiros períodos da língua por via eclesiástica, jurídica e medicinal. Os literatos utilizam ainda hoje o in negativo em formações como tn-sciência ; foram transmitidos em grande parte ao vulgo mas não são criações populares. i Para negar e «tornar ao oposto» — o povo utiliza o prefixo des — de que logo diremos duas palavras. Por ora voltamos ainda ao prefixo negativo in- e ao locativo em.
AÀ queda do negativo in- em palavras como sanha de insania por insanies (qualidade do que não é são) ; salobre por insalubris; sonso de insulsus, não salgado, e em mais alguns têrmos parecidos, é realmente
estranhável. Parece indicar que os que os introduziram e utilizaram não tinham
NE
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
consciência do valor de in- suspeita que é confirmada pelo uso que o povo faz de des- em alguns compostos triviais como desinfeliz, desinquieto. Quanto ao locativo em- de -in, empregado a cada passo como preposição e como prefixo de muitíssimos verbos de sentido transparente — embarcar, encastelar, enbuçar — claro que soava é mesmo junto a temas começados por vogal. Os antigos possuíam formas como eé-ader. adicionar ; é-alhear, alienare, que depois se perderam, substituídos por outros, quando a nasal intervocálica foi abandonada em l&a. abotõar, como já tivemos ocasião de dizer repetidas vêzes. Há uns dois casos em que todavia o n do prefixo locativo in subsiste — namorado de in-amoratus, antiga formação popular desta península, e nojo, que provém de in odium habere — ter nojo de alguma coisa. Três casos, se incluirmos nemigo de inimicus, em que o in é negativo. O Sr. Dr. Leite de Vasconcelos, que se ocupou
de namorado,
sem
ter em vista os outros dois casos, opina que essa forma seja de origem
espanhola, entendendo que a queda do à ou e inicial só se podia realizar onde não houvesse a pronúncia nasal. Nós cremos que essa alérese é muito antiga e se realizou em Portugal antes mesmo que o n fôsse nasalado. Apoiamo-nos em que em Castela sempre disseram e ainda dizem enamorado. E também na grande popularidade da palavra namorado em Portugal, pois foi sempre usada desde os primeiros monumentos da literatura, até hoje. Seria curioso que ela viesse de fora-parte exactamente aos ocidentais «cujo natural é entre as mais nações conhecido por amoroso» ou no dizer de Cervantes — a um país onde era costume manterem-se de amor e mesmo morrerem de amor. Passemos
aos prefixos es- e des-. Origináriamente, es-, eis-, is-, de
ex, denota procedência, separação, expansibilidade, ou mudança de estado ; no passo que des- é distributivo. Mas o povo confunde os dois a cada pouco, por causa da sun semelhança fónica. Ao lado de despir, despedaçar, desterrar, destruir, desforço, houve
e há espir, espedaçar, esterrar, estroir, esfôórço. Um homem do povo, a que falámos de exagéro nos preços que pedia por uns lindos jugos à moda do Minho, replicou logo que a obra de talha levava muito tempo, que à madeira de lódão de certa largura era cara e rara, finalmente que não havia desagêro nenhum no preço. Desfolhar e esfolhar são variantes usadas mesmo em linguagem culta. E como êsse par há muitos outros. Em geral des- passou a ser negativo e a mudar no oposto o vocábulo simples. Éle é o verdadeiro substituto nacional do in- negativo dos
Latinos. Em parte alguma, nem mesmo em Espanha, há tantas e tão características formações em des- como neste país. Se há ordem e desordem, acertos e desacertos, acordo e desacordos, respeito e desrespeito, honra
e deshonra, confiança e desconfiança, primores e desprimores, amor e desamor, carinho e descarinho, gôsto e desgóôsto, serviços e des-serviços,
afectos e desafectos — também há verbos, de sentido muito positivo ou
PARTE
I — PREFIXO
DES-
95
abstracto, como fazer e desfazer, confiar e desconfiar, honrar e deshonrar, coser e descoser, selar e des-selar, abotoar e desabotoar, acompanhar
e desacompanhar. A pronúncia des-selar, des-serviço, é difícil. Nessas formas e em geral em tôdas aquelas em que des precede dumas que principiam com s, pareee-nos que se diz instintivamente dis, como em dis-sabor, dissentir e
dissimular, (que é literário). Regressa-se, assim, pela transformação do e surdo em t, à forma latina de que saíra des, por assimilação parcial dos sons. Essa identidade de des e dis, que sustentamos, foi negada durante algum tempo por filólogos distintos. Eles tendiam a sustentar outra identidade, que nós negamos, a do prefixo des- com a preposição antiga dês, que vimos nas fórmulas de D. Dinis dês ogano e dês antano. Hoje, e de 1500 em diante, ela tem a forma alargada desde, alargamento por acrescento da preposição de (por analogia como atrás de, antes de). Essa é contracção de de ex — diversa portanto do des, dis, sempre átono como prefixo. Ioje prevalece a idéia que des e dis são uma e a mesma coisa; e des e dês, desde, duas, diversas, pela origem e pelas funções. Em dispor, disposto, disposição — formações populares — e em mais algumas, deu-se a preferência à grafia
e pronúncia erudita, sem que
haja as razões que determinam a grafia e pronúncia dis-sabor. Ienoramos
os motivos. *
Agora duas palavras a respeito do emprêgo curioso que o povo indouto dá a des-, juntando êsse prefixo nacional a formas já modificadas pelo prefixo negativo in — o desinfeliz e desinquieto que já citamos. Um homem desinfeliz é para o vulgo um homem muito infeliz; uma ceriança muito inquieta é desinquieta. Às rêdes muito finas para o cabelo que é costume chamar invisíveis recebem pela bôca das criadas de sala, o nome de desinvisíveis. Um rapaz muito teimoso é um desaustinado ( por obstinado). Parece realmente que des- exerce nessas forimações função de superlativo. Mas, não devemos esquecer que em todos êsses casos (menos no último) a qualidade é negativa.
Segundo a lógica, des-obstinado, seria o oposto de obstinado, — há portanto êrro na construção. Em des-infeliz, etc., podia-se imaginar, pelo contrário, que o povo se cingia ao costume latino de afirmar, negando uma negação, como por exemplo em non nihil — alguma coisa. Não cremos todavia que essa explicação seja a verdadeira. Nem cremos que o povo junte des a in, por desconhecer o valor negativo de in. Só para reforçar o sentido é que a meu ver êle emprega a acumulação de dois prefixos de sentido idêntico.
LIÇÕES
96
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Quanto a efeitos superlativos e a acumulações de prefixos: Já deixámos dito e repetimos mesmo que antigamente se dava em Roma, e que se continuou a dar nesta península valor superlativo ao advérbio per — que podia ser prefixo em verbos como perfícere, perfectus, peragrare, peregrinus ou advérbio diante de adjectivos como em per-illustris, per«imbecillis,
muito
imbecil
ou
imbécil,
muito
ilustre, per-durabilis
de
grande duração. Os gregos também o possuíam, com faculdades iguais na forma peri kallos, que quere dizer muito lindo, ou Perilkles, o muito afamado. Nas Cantigas de Santa Maria de Afonso o Sábio, per é sempre separado gráficamente dos verhos; e por excesso ainda se lhe acrescenta muito ou mui bem — Mui ben per entendeu o que nos mandaste — diz um criado falando de outro, ao seu amo. Mui ben ll'o per galardõa — diz o pocta da Virgem que recompensa acções virtuosas. Muito per é gran dereito — principia outra proposição complicada. No dialecto leonês, ésse modo de dizer era usual ainda no século
XVI — sobretudo na linguagem pastoril, empregada por Juan del Encina
e Lucas Fernandez, predecessores e coevos de Gil Vicente. Oriundos
de Salamanca, êles fixaram como tipo da elocução bucolicamente rústica o dialecto de Sayago — região próxima daquela Universidade, que bem conheciam. Nas Astúrias per goza ainda de grande vitalilade. Um homem muito doido chama-se lá per-Ilocu; um grande toleirão per-bobu ; pessoa muito alegre, per-contenta. Por um singular acaso, ou mais correctamente pela sina poética dos vocábulos, até voltam às vêzes à forma grega, pronunciando perí, em certas condições. *
Acumulação de prefixos já existia em Roma
mas em proporções
muito modestas. Citemos in-com-men-dare, cum-in-itiare (começar), im-
-per-territus. Em romanço (onde alguns dêsses casos persistem inalterados como encomendar ) e outros se obscurecem como em começar, cela é mais freqiiente. Já conhecemos derivados como des-con-fiar, des-a-botoar, des-a-
-companhar, des-in-feliz. De ex e in saíu o prefixo enx-, p. ex. em enxame, enxaguar, enxadres, enxaqueca, e ensaio (exagium ). Muito freqiiente e característico é o acrescento de a (ou de ar) a verbos (e também a alguns nomes ) já compostos com re. De dezenas de formas com arre que coleccionámos, citaremos algumas :: arrebentar, arrecadar, arregaçar, arreganhar, arremedar, arremessar, arrenegar, arrepender-se, arremeter. Há quem veja nessas formas mero acrescento de a (ad) ao prefixo re, cuja inicial exigia que a pronúncia forte do r fôsse graficamente expressa por duplicação. Mas há também quem creia em reduplicação do
PARTE
I—
PREFIXOS
TRAS-
E EXTRA-;
MAL-
E MÁ-
97
prefixo re- por ar — forma divergente (vírada) de re, er, que, separável e muitas vêzes separada, teve p. ex. nas Obras de Gil Vicente, funções de advérbio, com o sentido de novamente, mais uma vez. *
O prefixo tra-, tras — reduzido àa tres em tressuar, tresler, tresvairado e a tre em trejurar (de tra- em traducere, ete.) — mais usado
como prefixo verbal do que como elemento construtivo de nomes, é, a nosso ver, confundido pelo povo com extra, pronunciado estra, stra, nas poucas
palavras
que
o povo
conhece,
como
stravagante
e talvez extraor-
dinário. Confundido e identificado. Transparente transforma-se, na bôca das lavadeiras de Paranhos, em estramparente, Dos trafogueiros de Trás«os-Montes fazem estrafogueiros. Nos rebuços dos paletós há estrapasses ou estrepasses. Traspor, trasbordar, trasmalhado, transvasar, trasmudar, trasviar, tresnoitar, são estrapor, estrabordar, estramalhado, estravasar, estramudar, estraviar, estrenoitar. Os próprios Transmontanos são Es-
tramontanos. Ficn-se sem saber se é preferível escrever extraviar, extramalhar — com x — como é costume dos ortodoxos — ou com s acceitando a derivação popular de tras. Na Itália há a mesma confusão. Extra e trans, fundem-se num só prefixo: stra. *
Quanto aos prefixos numerais ter, tres, tri e o grego tetra (que também se eruzam e se confundem com tras em tresavoô, tetravô, tataravô e várias outras designações do terceiro e quarto avô e dos respectivos ne-
tos) haveria muito que dizer. Mas não é possível elucidar êsses casos bastante complicados sem grandes delongas. À coleceionação das formas empregadas pelo povo, também ainda está muito incompleta. *
Mal, como prefixo, era muito vulgar na linguagem antiga. Malpecado (mas também maupecado ) maldia, eram exclamações freqiientes na acepção de infelizmente ! por desgraça ! Adjectivos como maltreito (maltratado ), malferido, mal-aconselhado, encontram-se a cada passo. O vulgo
reduzia mal e mau em próclise à única forma que acompanhava substantivos masc. e fem. indiferentemente. Má-mes, má-bicho, má-fadairo, ma-pesar, são formas ainda hoje vivas em certas províncias e que já se encontram nos AÁutos de Mestre Gil. Há mesmo uma palavra usada também
na sociedade culta em que mal está reduzido a ma (malogrado) que só os puristas pronunciam com dois ll e separam na escrita. É esta redução que nos autoriza a colocar mal (e com êle os advérbios bem e menos) no Capítulo da Derivação. Sem isso o seu lugar cra no da Composição.
98
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
* A respeito
dos principais
prefixos verbais —
a, de, em, es —
há
muito que dizer. À, por ex., usadíssimo, como em nenhuma outra lingua românica, é continuação de ad em verbos que designam aproximação.
quer real. como como
em abeirar-se, achegar-se, acercar-se, quer abstracta,
em avermelhar, adoçar, alisar, abrasar. Outras vêzes substitui o e
latino : Elargare veio a ser alargar (por troca, bem se vê) ; ematurare,
amadurar ; elocare, alugar; eruncare, arrancar. Em numerosíssimos casos não tem outro significado senão o de derivar verbos de nomes: p. ex. acabar, acertar, adiantar, agradar, agravar, adivinhar, amimmar.
Não
desenvolvemos
êsses pontos.
Oportunamente
completaremos
o que aqui só fica ligeiramente esboçado.
*
Digno de nota é apenas o seguinte, para o filólogo: Os latinos antigos, quando modificavam o sentido de algum verbo pelo nerescento, dos prefixos, modificavam-lhe também a forma. Faziam recair o acento nesses elementos novos, sempre que a vogal temática fôsse breve. E nesse caso rebaixavam-na ostensivamente. A breve e ae vinham à dar e, à. De facio provém perficio, perfectus; sacrare, deu consecrare: placeo, compliceo; quaerere, conquirere, ete.;
au era reduzido a u, como se vê em claudere, recludere, excludere ;
e passava a 1, p. ex. specio, respicio. Bem entendido, êles pronunciavam primeiro pérfacio e depois pérficio ; réclaudo, récludo ; réspecio, respicio — a pronúncia esdrúxula deu em resultado a redução da vogal — processo que se repete em Portugal eonstantemente, não quanto a prosódia, mas quanto à redução de vogais
logo que sejam átonas. De fáca, facáda, de porta, porteiro, etc. Posteriormente
houve
todavia,
mesmo
em
latim,
a tendência
de
manter os temas, como parte principal das palavras, inalterados. A diferenciação vocálica em temas de cuja identidade se tinha consciência, não
agradava nem ao povo nem aos cultos. Houve por isso recomposição da plena forma
de tais verbos. Tornou-se a dizer consacrare, conquaerere,
complacere. O latim vulgar e as línguas românicas seguiram a mesma tendência. Em lugar de reficere, que não admitiram, dizem refazer ; em lugar de retinere, reter de re-tenere. Quanto
ao acento, só o deixaram
recaír
em prefixos quando os não reconheciam como tais. Exemplos, os mesmos que já citámos e repetimos de propósito —
rezo, de recito, compro, de
comparo (ou compero reduzido ) coso, de consuo. — Rénego, rénovo tornaram a ser renego, renovo —
e também essa deslocação se dera já em
PARTE
1 — PARASSINTÉTICOS
99
latim vulgar, devido à tendência de acentuar o tema, como elemento prin-
cipal, que joga com a outra. Mesmo em formas cultas, tiradas do Dicionário, acentua-se sempre analógicamente em português recito, computo, colóco — apesar de rezo, conto, colgo (de colgar, que é mais castelhano que português). *
Para findar lembramos à sufixação.
que a prefixação se associa muitas vêzes
É até a êsse processo combinado que as línguas peninsulares — e também a italiana: as línguas meridionais, portanto — devem grande parte da originalidade e novidade do seu tesouro verbal. Verbos singelos, primitivos, como amar, crer, dormir, são internacionais. Sômente os derivados namoricar, namoriscar, acreditar, ador-
mecer, adormentar, têem feitio e carácter nacional. Quanto mais longe do simples tema, tanto mais original. Espicaçar, escorraçar, espezinhar, escoicinhar, acontecer, estremecer, indicam apenas alguns dos tipos populares. Pode-se mesmo dizer que a função principal dos prefixos não é a de se unir a verbos e nomes latinos simples para modificar-lhes o sentido, e encorpar-lhes a forma. À sua acção mais fecunda exerce-se em verbos já alterados nas línguas românicas pelo processo da sufixação. Vocábulos assim compostos ao mesmo tempo de prefixo e sufixo, ou de prefixos e sufixos, chamam-se parassintéticos — têrmo grego, bem se vê, dé para, que indica justaposição, e de synthétikos, que indica a junção de vários elementos afim de formar um têrmo novo. Alguns rigoristas reservam êsse nome excelusivamente
para
vocá-
bulos derivados — compostos de elementos que não existiam isolados — criados de um jacto por um acto espontâneo, de três ou mais elementos, que ainda não haviam sido combinados dois a dois. Desalmado ou embolado, p. ex. Não há nem almado nem desalma ; não há bolado nem embola. Ou se quisermos elementos latinos: subterraneus porque não há terraneus nem subterra ; ou antesignanus (nome do soldado que combate à Írente da bandeira) porque nem havia antesigna nem signanus. Por isso tanto os port. como os lat. são verdadeiros parassintéticos.
A maior parte dos filólogos dá todavia êsse nome a todos os vocábulos
constituídos de prefixo, tema e sufixo (ou sufixos) (*). [Termina com esta Lição X o 1º volume de «Lições DE () PortTUGUESA — Segundo as prelecções feitas ão curso de 1911-1912 pela D. Carolina Michaélis de Vasconcelos» saído em Coimbra (1912) da Lit. e reia Cardoso. Houve, além destas, mais oito Lições no mesmo curso (XI que segundo informação deixada pela Autora «os alunos não chegaram a
FiLoLOCIA Ex.”* Srº Tip. Cora XVIII), imprimir»
— e que provàvelmente se perderam., Na falta delas — recolhem-se a seguir, em Apêndice, os artigos sóbre «A Ortografia Nacional» cuja leitura recomendava aos alunos, ao tratar do problecma ortográfico].
a
ilustre
Professora
APENDICE
A ORTOGRAFIA
NACIONAL (Carta ao Dr. Joaquism CosrtTa)
Cumpro afinal a minha promessa de ha semanas, Nas páginas seguintes tento responder sumáriamente àás perguntas que V. Ex formulou a respeito da ortografia portuguesa, de cuja reforma foi há pouco incumbida uma comissão de letrados, entre os quaes fíguro eu.
Repito
o que oralmente
lhe expliquei: que tinha em muito apréço a honrosa
distinção, mas que aínda não recebêra convite para tomar parte nos trabalhos. Nem sabia se, acaso me viesse, poderia tr a Lisboa, porque compromissos em que entrei, e numcrosos trabalhos literários que desejo concluir, me prendem aqui, e não permitem que me dedique àá util missão ortográfica tam desveladamente como era para desejar. Consola-me a certeza de que não faço falta, porque entendo que dois dos ilustres consócios são muito suficientes para realizar a reforma: Aniceto dos Reis Gonçáúlvez Viana, que se ocupa do assunto ha muito tempo, com vasto e profundo saber e perseverante enerjia; e Cándido de Figueiredo, que tem posto ao serviço da causa o seu inegável talento de vulgarização. E para desenmpate em casos duvidosos lá tem o eminente educador F. A. Coelho, benemérito introdutor da ciência romanística em Portugal,
J. Leite de Vasconcelos, o mais activo e fecundo de todos nós, filólogo e arqueólogo, redactor de duas Revistas de grande alcance, bibliotecário, professor de cursos lingiísticos, o director do Museu Etnográfico, que criou, escusava de gastar tempo e forças numa empresa que, salvo erro, não o entusíiasma muito. É pelo menos o que me parcce, porque vejo que, embora dê aos colaboradores da REVISTA LUSTTANA e do ARCHEÓLOGO plena liberdade quanto àá ortografia dos seus artigos, pessoalmente não alterou ainda o traje habitual da sua própria escrita (que é a tradicional, expurgada de todos o8 erros que em regra a deturpam, até ser rigorosahistórica e verdadeiramente etimolójica). Eu estou, pelo contrário, persuadido da necessidide de uma reforma, por amor aos hunmildes e pequeninos que vi e vejo lutar árduamente (c quantas vezes sem resultado!) com as dificuldades, incongruências, e contradições da ortografia reinante, por demais erudita, complicada e desconcesa. Reforma regularizadora e sim-
mente
plificadora, bem se vê, como a de ções, ha já bastante tempo. E não paganda, no «Primeiro de Janeiro» e simplificações) para preparar
Gonçálvez Viana, a qual adoptei, com leves alterame neguei a expor as minhas idéias e a fazer pro(que sempre se manifestou partidário de reformas o terreno, ajudando assim, de lonje, a comissão
nomeada, porque acho vantajoso que a convicção da necessidade da reforma arraigue no espírito de muitos, antes que cla se promulgue por lei (*).
.
(7)
[Cfr. O Primeiro
de Janciro
de 14 a 18 de Março
de 1911; e Rev. Lus.
XIV, 200, ss., onde o artigo foi reproduzido com leves alterações — e acrescido-de um comentário aos trabalhos da Comissão. Por oferecer interêsse — manteve-se na presente reprodução a ortografia que a Autora usava antes da promulgação da Re forma. O acrescento é que já vem pela ortografia reformada, que D. Carolina Michaélis disciplinadamente adoptou logo, a despeito das suas divergências].
1 — EXISTE,
OU NÃO, OFICIAL
ORTOGRAFIA PORTUGUESA, E UNIFORME?
Em Portugal não há, nem houve nunca, ortografia oficial, uniforme. Só ortografias variadas, mais ou menos sensatamente regradas pelo costume e exemplo de bons autores, ou mais ou menos inçadas de erros, contradições, dislates, caprichos e idiosincrasias pessoaes. Esse estado anormal foi tomando proporções de verdadeira calamidade nos últimos decénios do século passado : desde que os romanistas que ex-officio estudaram cientificamente a literatura e a língua nacional — glotólogos, gramáticos, lecsicógrafos, etimolojistas como F. A. Coelho, J. Leite de Vasconcelos, o já falecido Vasconcelos Abreu, Aniceto dos Reis Gonçálvez Viana, Julio Moreira, Epifánio Diaz, Cándido de Figuceiredo, J.
J. Núnez
— começaram a expurgar a escrita de defeitos inveterados, regularizando-a e simplificando-a pouco a pouco metódicamente, processo que levou uns a adoptar algumas das emendas e inovações, rejeitando aquelas que menos lhe agradavam; e outros a complicar a sua, cada vez mais, por espírito de oposição ou tendências conservadoras. com exajeros pretensamente etimolójicos. Houve e ha escritores que na mesma estrofe de um poema, na mesma pájina de uma novela nos apresentam formas híbridas e contraditórias, não
reformadas,
meio
reformadas
ou
inteiramente
reformadas,
como mytho e rythmo; melancólico e eccho; aflito e fructo; próximo e proprio; seria (isto é séria) e Maria; quiz e mês ; allucinante e captivante; outomnal e insónia. Uma
confusão
magna.
1— SERIA CONVENIENTE QUE A OFICIALMENTE REGULARIZADA Conveniente
e urjente,
ORTOGRAFIA FOSSE E SIMPLIFICADA?
tanto sob o aspecto
científico, como
sob o
estético, e sobretudo pedagójico. Num
país, atrasadiíssimo
quanto
á instrução
e educação,
em
que
quatro milhões estão á espera dos benefícios da luz espiritual, o que importa é facilitar o ensino da leitura e escrita; acabar com todas as complicações desncecessárias ; eliminar todos os artifícios eruditos: abreviar a aprendizajem, de sorte que os mestre-escolas ganhem tempo para real-
mente fertilizarem as almas com noções sólidas de saber e com as boas doutrinas cívicas da solidariedade social, do pacifismo e do altruismo.
102
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Porque (será preciso lembrá-lo? ) o ensino elementar da leitura e escrita nio é fim, mas
apenas
meio, indispensável
para
o desenvolvimento
faculdade de pensar, raciocinar, julgar, protestar
da
e emendar o que en-
contramos de imperfeito e obnócsio no nosso caminho : faculdades, sem
as quaes não pode haver verdadeira liberdade. Quanto aos estranjeiros, também lucrarão com a reforma. À enfadonha anarquia ortográfica tornou até hoje pouco apetecido o estudo do português, já em si muito mais espinhoso do que o das outras linguas neo-latinas, por causa das delicadezas ou mesmo subtilezas da sua pronúncia e da sua morfolojia. De ciência certa sei, por quanto tempo à falta de regras seguras sobre recta pronúncia e escrita correcta, e a falta de boas edições de textos impediu por completo, ou embaraçou inútilmente, a publicação de manuscritos importantes e de estudos aliás notáveis, relativos á admirável língua de Camões. Com relação à estética e à ética, bastará preguntar, se a ordem e a disciplina é, ou não, mais bela do que a desordem e a anarquia? À coe-
rência, preferível á incoerência?
À simplicidade, superior a enfeites e
arrebiques supérfluos? Se é verdade, ou não, que as deficiências gráficas
do português lhe dão ares de inculto ; em especial, se o compararmos com outras línguas? À ortografia francesa é incomparávelmente mais complicada e mais defeituosa do que a portuguesa ; mas pelo menos está (como a inglesa e a alemã) fiesada com rigor; tem sistema, pelo qual todos se regulam. A castelhana e a italiana, pelo contrário, — os idiomas portanto que são mais intimamente aparentados com o português
possuem, ha
mais de um século, ortografias excelentes, simplificadas racionalmente pelas respectivas Academias. Equiparar a nossa a essas duas, seguindo mutatis mutandis os mesmos princeípios que nelas deram ótimo resultado, regularizar e, simplificar, baseando-nos na história científicamente estudada do vocabulário nacional — eis o que convém fazer.
II-—
QUAL
É AÀ CAUSA DAS ANOMALIAS PORTUGUESA ?
DA
ESCRITA
Causadora das anomalias que deturpam a escrita portuguesa é (se abstraírmos das dificuldades resultantes da complicada fonolojia da língua, com seus sons nasaes, ditongos puros e nasaes, cinco ce, quatro aa, tres 00, de valor ora aberto, ora fechado, ora ensurdecido ) a tendência etimolójica, erudita, artificial, conservadora — em oposição aberta á natural, popular e progressiva tendência fonética das verdadeiras ortografias, como transcrição dos sons realmente proferidos na pronúncia
normal das classes cultas. Tentarei explicar em
camente,
poucas palavras, de onde provêm, históri-
PARTE
1— APÊNDICE — AÀ ORTOGRAFIA
NACIONAL
103
AÀ principal fonte da língua portuguesa é o latim, como todos sabem. Não o latim literário. O latim vulgar, tal como o pronunciavam no território lusitano, já alijado de certas demasias atávicas ou aristocráticas. Os numerosíssimos vocábulos que constituíam o lécsico primitivo dos Luso-romanos passaram por evoluções sucessivas que, quanto à forma, os modificaram mais ou menos, segundo leis naturaes, uma das quais é a do mínimo esforco. Sobrepostas a esta larga e espessa caninda popular, que constitue a parte principal, verdadeiramente nacional e modelar da língua, há (alêm de vocábulos de orijem jermânica e arábica, etc.), diversas camadas de palavras, tiradas pouco a pouco por especialistas doutos, conscientes
e directamente
do lécsieo literário greco-latino, em
pelo menos tres épocas diversas : idade-média, época do Renascimento, e tempos modernos. Termos técnicos, científicos, e termos poéticos altissoantes ; mas também termos triviaes; novos, em muitíssimos casos, e em
outros casos idênticos aos que já existiam, alterados, no núcleo popular ; p. ex. palácio a-par de paço ; lejítimo, a-par de lindo. Fórmas diverjentes, ou alotrópicas, na terminolojia dos Romanistas. Nas palavras populares, herdadas, de origem evolutiva, houve sem-
pre, e ha em regra ortografia fonética, quer elas se afastem sensívelmente dos padrões orijinacs, quer não se afastem nada ou quási nada, em virtude da sua estrutura sinjela (rosa, casa; mesa, mês). Escreve-se
o que se profere, tam perfeita ou imperfeitamente como o admitem os vinte e cinco caracteres do alfabeto também herdado. Naos primeiros monumentos artísticos da literatura —
nas cantigas
de amor e de escarnho dos trovadores (de 1200 a 1350) — em que mal ha vocábulos eruditos
(apenas
alguns provençalismos
e galeguismos),
não ha, por isso mesmo (no códice menibranáceo da Ajuda) senão grafias fonéticas como ome oge aver sono dano santo pronto meter falar calar decer. Quanto a sc medial de nascer crescer, nacer crecer, etc. ha todavia
oscilações, provávelmente por haver oscilações na promúncia. As
palavras
eruditas,
extraídas
do
dicionário
latino
e helénico,
nio-alteradas na boca do vulgo, nem quanto ao sentido, nem quanto á forma, ou apenas levemente aportuguesadas, de indole conservativa, essas entraram, quasi estacionárias, com todas as letras dos orijinaes na prosa de notários, eclesiásticos, arqueólogos, historiadores e especialistas (do
tempo de D. Denis em diante), e tambem nos versos dos poetas áulicos do século XV, até com letras que em Portugal nunca tiveram função privativamente sua, e com grupos de letras que não se encontram em dições herdadas, a não ser abusivamente.
Nelas é que figuram os sinais exóticos: y th ph rh gh; muitos hh; os grupos mn gm ct pt ce pç se; pp bb gg eq e outras consoantes dobradas, supérfluas. Mesmo em bastantes das que desceram ao domínio do vulgo, e foram
assimiladas ás feições populares na pronúncia
(p. ex.
104
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
pela eliminação de c, antes de consoante e ensurdecimento das vogaes átonas), a grafia conservou-se inalterada; p. ex. em víctima, victória, tractar, práctica, satisfacção. A par d'esses termos, de introdução artifícial, mas antiga, hbá mui-
tos outros mais modernos, de significado mais erudito em que p. ex. à pronúncia alfabética dos grupos de consoantes, não toleradas no património verdadeiramente nacional, se tornou facultativa. V. g. em significado, consignar, diccionario, occidente, espectáculo, respectivo, técnica, facto, secção ; tranquilo, equidade, equivaler, bilingie.
Finalmente há uma última camado de vocábulos, de introdução recente e sentido científico tam restrito, que nunea serão familiares á maioria dos que falam, — em que por ora é praxe jeral proferir todas as letras, consoantes e vogaes com os seus valores alfabéticos: aerhemotoxia glyptognosia, etc., ete. Pois bem: o costume de encontrar símbolos exóticos (ph rh y) e letras supéríluas em dições relativas a ciências e artes, empregadas de
preferência pelos mais ilustres da nação, levou todos quantos tinham pretensões de cultos — e onde está escritor que não as tenha? — não só n conservar cuidadosamente esses vestíjios de origens nobres, mas tambem a reintroduzir símbolos exóticos e letras supérfluas em dições vulgares, de onde sempre estiveram banidos, durante séculos de vida literária. P. ex. somno damno;
signal ; dicto saneto poncto fructo ; escri-
pto prompto ; eysne lagryma ; golphinho ; exgottar exforço sexto extrangeiro ; sciente.
Em
algumas
palavras alteraram
tipo latino : ora sensatamente
como
em
mesmo menos
a pronúncia,
segundo
menor feno pena
(em
o vez
de mêos méêor fêo pêa), magno (para evitar confusão com mano) ; ora inútilmente, como em digno.
Por falsa analogia, letras mudas entraram mesmo em palavras onde elas não tem razão alguma de figurar, v. g. em thesoura (por causa de thesouro ) ensignar (por causa do alatinado signal) ; occeano, como se tivesse relações de parentesco com occaso occidente, civando-se assim a parte vernácula do idioma com formas fantasiosas, como theudo mantheudo, Santhiago, c a parte alatinada e helezinada com barbarismos, como ethymologia lIythographia photographia physyognomia phylosophia phylharmonica, dymnastia dymnastica (por causa de gymnastica). Caturrices como cognoscer por conhecer, quomo por como, oclilos
por olhos, hacte por até, haghora por agora, ipso por isso — obras do benemérito antiquário André de Résende! — não vingaram felizmente. Nem tam pouco a proposta de se substituir é aberto por &e, ao modo latino. Tudo isto — repito — com o pretexto de conservar vestíjios visíveis de ilustres prosápias ou, conforme é uso dizer «para sujerir etimologias». Por mera ostentação, por pedantismo, por espírito de reacção.
PARTE
I — APENDICE-—— A ORTOGRAFIA
NACIONAL
105
Ou em virtude da preocupação mórbida que a queda de um h. a substituição de um yº por é possa dissimular a orijem de uma palavra, e a sua conservação incutir ciência etimolójica aos iletrados. Como se o escasso milhão de Portugueses que lêem e escrevem fosse capaz de analisar, interpretar e historiar as evolucões e orijens de homem, hoje, hontem
(1) bocea, melhor do que as de ora, onra, fa-
lar, filosofia. Quanto a erros e irregularidades provêm em grande parte, evidentemente, da pouca sabedoria filológica dos próprios autores, que não tinham (até há muito pouco) meios de se informar râpidamente. Em parte, da ignorância dos escribas. Os medievaes estavam acostumados a trasladar e redijir documentos em latim bárbaro; e os do tempo dos Humanistas
a copiar
epístolas ciceronianas,
e poemas
virjilianos, em
estilo clássico. Depois da invenção civilisadora de Guttenberg muitos arcaismos e pedantismos provieram da intervenção de oficiais de tipografias e de correctores que, julgando-se habilitados, e não podendo alterar a bel-prazer o estilo dos textos que compunham e corrijiam, lhes retocavam pelo menos a ortografia, nem sempre exemplar, já o disse,
e piamente
O creio. Poucas imprensas dispunham de artistas habilitados, e os preceitos da Mesa Censória não permitiam (salvo erro) que o próprio autor lesse provas c alterasse os dizeres de manuscritos aprovados. Lembro que logo nos alvores da arte de imprimir, o Conde de Alcoutim advertia o impressor Valentim de Morávia de que as obras saídas dos seus prelos seriam melhores se não confiasse tanto nos seus oficiaes — sentença que confirmará quem leu na edição-príncipe a Historia de Vespasíano ou qualquer outra das obras que devemos a êsse impressor. Quanto à introdução de vocábulos correctamente alatinados e helenizados, tenho-a, em si, em conta de obra meritória : obra de poetas c escritores exíinios, impulsionados pelo louvável empenho de enriquecer e enobrecer a língua e altear o nível da cultura pátria com elementos da civilização da antiguidade: — só Luís de Camões contribuiu com mais de um cento. Com
respeito
á grafia, lamento,
isso sim, que
os Humanistas
não
se resolvessem logo, decididamente, a tirar aos neolojismos que patrocinavam as caudas roçagantes e os enfeites excessivos, assemelhando-os, o mais possível, aos vocábulos antigos, verdadeiramente nacionaes. Ainda assim, não vou tão lonje como Gonçálvez Viana, que con-
dena em absoluto as grafias eruditas d'eles como mera superstição, mero alardo de cultismo, ou galicismo, porque me lembro de que, ocupando um lugar àparte na economia da linguajem, não era de estranhar que lho quisessem dar também
quanto à escrita.
E compreender equivale a
106
LIÇÕES
perdoar, também da
parte
dos
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
no campo filolójico. De mais a mais sei que houve,
escritores
e impressores
quinhentistas,
numerosas
tenta-
tivas de nacionalizar os latinismos e grecismos. Nas duas edições primeiras dos Lusiadas (de 1572)
temos p. ex. hemispherio, emispherio, emisperio e emisferio; nymphas, níimphas, nimfas e ninfas; phantasia e fantasia (com fantesia) ; estylo, estillo e estilo ; e de mistura com despautérios, como occeano, formas bem aportuguesadas como linfa, vítima, diáfano, sulfúreo, grandiloco. Hesitavam. Os pósteros é que deveriam ter escolhido e entronizado as grafias mais sensatas. como fizeram em Espanha e na Ttália. Como ainda não o fizeram, façamo-lo nós. — Mais vale tarde do que nunca.
n IV —
A QUEM
COMPETE
REFORMAR
A ORTOGRAFIA?
Evidentemente aos profissionaes que se ocupam cientificamente de línguas, sobretudo das neo-latinas, e em especial do idioma pátrio — quer pertençam á Academia. quer não. Particularmente a quem, sem se descuidar de investigações históricas e etimolójicas. estudon a fundo a ortoépia — (nome técnico, grego. da recta pronúncia) — e a fonolojia portuguesa, e deu provas de que é mestre nesse ramo, em valiosos trabalhos que já frutificaram lá fora: Aniceto dos Reis Gonçálvez Viana, que é consultado como autoridade por todos os especialistas, e citado
com altos louvores (*). Já o expus a V. Ex.º neste meu gabinente, onde, indignada por ele ser tam pouco conhecido dentro do país, em especial no Norte, lhe mostrei os livros principaes com que, de 1883 em diante, êle brindou os estudiosos. Aqui restrinjir-me-ei naturalmente aos que dizem respeito directamente á questão ortográfica, excluindo os dialectolójicos e etimo-
lójicos (*). ()
Pode-se dizer que êle foi de 1883 em diante c é ainda colaborador de todos os romanistas estranjeiros que se ocupam do nosso idioma: do exímio Jules Cornu (outr'ora de Prag, hoje de Gratz, mas infelizmente só até fim do semestre), autor da primeira fonolojin portuguesa destinada aos discípulos de Diez; seu continuador, Gustavo Rolin, que acaba de publicar no Archfv (CXXV, p. 373), um estudo minucioso sobre a pronúncia das átonas em português: e an benemérita lusófila D. Luisa Ey, cujo Dicionario Manual (Taschenwocrterbuch, Berlin, 1904) e cuja Gramatica de Conversação (Heidelberg, 1908 e 1910) será em breve completada por outra Epistolar (Unterrichts-Briefe), segundo o sistema Langenscheidt. O Air)da assim mencionarei Apostilas nos Diccionarios Portugueses (1906) Palestras filolójicas (1910).
PARTE.
1 — APENDICE— A ORTOGRAFIA
NACIONAL
107
Só depois de haver fixado com rigor e argúcia e exposto minuciosamente a pronúncia normal das classes educadas (tocando de passagem em corrutelas vulgares) em opúsculos eruditos, acolhidos com aplausos e gratidão pelos entendedores (*), tratou de lançar as Bases da Ortografia Portuguesa (sic) (1885) (“), no mesmo ano portanto em que Cándido de Figueiredo, outro amador da sua terra, da sua jente e da sua língua, sem ser filólogo encartado, propunha á Academia das Ciências, encarregasse uma comissão da reforma (ou revisão) da ortografia, antes que se começasse o famijerado Diceionário (in-spe ), de que cra director Latino Coelho. De balde. Ninguem fez caso do opúsculo (14 pág.). Sem
desanimar,
Gonçálvez
Viana,
que
logo
fizera
tentativas
de
propaganda prática, imprimindo o Werther de Goethe na nova ortografia (*), ampliou e aperfeiçoou o trabalho inicial, elaborando um Questionário (de 115 parágrafos), afim de facilitar a discussão e decisão aos
Académicos (1900) (*). Sem resultado. Em seguida publicou com o título de Ortografias Portuguesas (1902) as suas próprias respostas, que equivalem a uma análise complecsa das anomalias da escrita usual e dos meios de Ilhes obstar. Novamente sem ajitar a mole. Alargando então a parte histórica deu-lhe, ao cabo de dois anos, forma muito mais desenvolvida e documentada, num volume de 454 pájinas, ortografadas segundo os princípios expostos : Ortografia Nacional. Simplifícação e unificação sistemática das Ortografias Portuguesas
(1904) (*).
Desde então algumas vozes comecaram a responder-lhe. Vários escritores e alguns periódicos como a Educação Nacional puseram em prática aàs correceções e simplificações principaes por ele defendidas — abstendo-se todavia das que julgaram inoportunas ou dispensáveis, ou ultrapassando ainda as suas propostas. ()
1883,
Essai
(Paris). 1892, Exposição
de
Phonétique
et
de
Phonologie
de
la
Langue
Portugaise,
da Pronúncia Normal Portuguesa (Lisboa). 1903, Portugais, phonologie, morphologie, textes (Leipzig). () Auxiliado por Guilherme de Vasconcelos Abreu. (*) Vasconcelos Abreu imprimia pela sua parte um estudo a respeito da Literatura e Religião dos Árias na India (Lisb., Aillaud & C*). (*) Com o mesmo fim redigiu ainda outro tratado: Basecs da transcrição portuguesa de nomes estranjeiros (1900) que não foi exposto ao público. C) No meio-tempo saíra em Coimbra um opúsculo importante, de A. L. Gonçálvez Guimarães: Algumas Reflecsões sobre a Ortografia Portuguesa (1903), mo qual ha ideias muito sensatas, quási sempre em harmonia com as ideias de Gonçálvez Viana. Creio todavia que ele vai lonje demais. P, ex. a proposta de distinguir com novos sinais convencionais, dincríticos, subpostos aos diversos aa 00 ce do português, não encontrou, nem encontrará, a meu ver, maior número de amigos do que a acentuação gráfica (com agudos, circunflecsos e graves).
108
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Alêm d'isso houve adesões parciaes, só a essa ou aqueloutra medida: um escritor suprimia apóstrofos c tremas; outro as consoantes jeminadas ; outro os yy, outro os th ph, etc.; muitos aceitaram a acen-
tuação gráfica, embora sem rigor. De alén-mar é que vieram ha pouco os ecos mais fortes, em grande parte concordantes ; discordantes em pormenores de peso — ccos
que merccem séria atenção, porque importa naturalmente que não se verifique o cisma ortográfico, de que estamos ameaçados, chegando-se. pelo contrário, sem tardança, a um acordo.
Importa
que Portugal e o Brasil realizem simultáncamente
e de
modo
idéntico a reforma planeada, escrevendo de aqui em diante da
mesma
maneira, racionalmente simplificada, todos os vocábulos da sua
língua comum (*), apesar do timbre diverso com que cá e lá se pronunciam as vogais tónicas e as átonas. O caso é este. Em Abril de 1907 foi apresentado á recentíssima Academia Brasileira de Letras o plano de uma ampla remodelação ortográfica (*), plano que logo foi alterado num anti-projecto substitutivo (**). Ambos foram discutidos calorosamente em sessões consceutivas, sendo finalmente aprovado o inicial, e adoptado sem grande demora nas publicações da douta corporação. Com surpreendente rapidez (*'). Nos seus lineamentos jeraes a nova ortografia côincide com a de Gonçálvez Viana. Afasta-se todavia em diversos pontos, entre os quaes os mais importantes são: a acentuação gráfica, moderada; a regularização dos vocábulos eruditos que contenham cç ct pç pt; e sobretudo a substituição de s intervocálico ( Brasil-rosa-casa ) e s final de vocábulos agudos ( quis, pôs, após, atrás, português ) por z. Os
dois
pontos
primeiros
admitem
discussão.
À última
medida,
comtudo, recomendável apenas sob o ponto de vista prático, já empregada de resto pelos escritores do século XVIITI, que ainda têm numerosos imitadores, é inaceitável do ponto de vista científico (histórico e etimolójico). Urje portanto que em discussão serena, comquanto enérjica, se dirima esta contenda entre os Reformadores de Portugal e os do Brasil,
podendo ser por mútua condescendência. — Se cá cedessem quanto aos (*) Com exclusão talvez do famoso si brasileiro? se não o quiserem proscrever heróicamente. () O projecto é assinado por Medeiros c Albuquerque, personagem, que (claro) tinha atrás de si um grupo pequeno, mas valente, de partidários, que depois o secundaram. Sobretudo José Veríssimo. R () Êste anti-projecto é de Ruy Barbosa, Salvador de Mendonça c Sílvio omero. ()
Os
dois
projectos,
discursos
de
João
KRibeiro,
José
Veríssimo
e
outros,
assim como as resoluções da Academia e mais documentos, publicados primeiro em jornaes fluminenses, já saíram na Revista da Academia Brazileira (com z1 hélas!) de Letras
(1911
p. 77 a 133).
PARTE
I — APENDICE— A ORTOGRAFIA
NACIONAL
109
dois primeiros pontos, deviam conseguir que lá, criteriosamente, se conformassem em relação ao s, aplaudidos de todo o mundo científico. José Verissimo, João Ribeiro, Medeiros
e Albuquerque
devem con-
vencer-se de que, atendendo sempre ás exijências práticas da grande massa que importa instruir e educar, nem por isso devem desatender, em caso algum, a unidade e continuidade do idioma comum,
como ver-
náculo literário. Todas as simplificações e regularizações devem assentar na base sólida de factos históricos, evoluções reaes, orijens verdadeiras.
— Eliminando-se tudo quanto é errónceo e supérfluo, conservar-se-hão todos os distintivos que expliquem estádios antigos da língua, muita vez perpetuados em arceaísmos dialectaes. A ortografia simplificada ha de servir não só para obras modernas de ambas as nações, mas tambem para a vulgarização de quanto ha de belo e de útil e de bom na literatura antiga. S e z como ss e g foram outr'ora em toda a península símbolos de sons diversos, e ainda o são hoje
em algumas províncias, sobretudo na de Trás-os-Montes (sem falar do reino vizinho). É pois de boa lei mantermos a diferenciação e não confundir formas que, tendo orijens diversas, têm também
significados di-
versos; p. ex. paço e passo; poço e posso; coser e cozer. Alterações
arbitrárias,
não
fundadas
em
factos lingúísticos,
afas-
tariam o português, sem proveito, da tradição sete vezes secular, e das línguas-irmans, e provocariam necessáriamente críticas azedas, — como
em tempos aconteceu aos radicalismos exajerados da Ortografia Sónica, de Barbosa Leão (1878), que não vingou por causa d'esses e de outros defeitos.' AÀ campanha elucidativa e conciliadora foi imediatamente começada. Gonçálvez Viana continuou nos trabalhos preparatórios da reforma, com um Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa (1910; 943 pp.); e na Advertência Preliminar em que resume as leis fundamentaes da reforma, combate com argumentos decisivos as objec-
ções dos Brasileiros — AÁdvertência que, segundo se diz, foi publicada em separata. Actunlmente trabalha em outro Vocabulário Brasileiro-Português ; e nele ha de instar, sem dúvida, de novo, na necessidade de uma acção lójicamente combinada das duas nações, para que se vença em toda a linha. Cándido de Figueiredo, pela sua vez, que igualmente combate de 1885 em diante, conforme já deixci dicto, a favor de simplificação dentro dó actual sistema misto, fazendo no seu popular Consultório Prático de Enfermidades da Língua propaganda activíssima (**), adiantou-se mesmo a Gonçálvez Viana com um volume interessante, entitulado () Nas centenas de artigos soltos, subordinados no Diário de Notícias 4 epígrafe Falar e Escrever, e que posteriormente costuma publicar em volume, ha muitos que se referem a problemas ortográficos e sua solução. Vejam: Lições Praticas (3 vol.): Falar e Escrever (3.º vol.) — Problemas da linguagem.
110
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
(2.º vol.) Ortografia do Brasil (1908), que seguramente ha de contribuir a harmonizar as opiniões. Resumindo : a reforma compete aos profissionaes que estudaram a
língua históricamente. Em particular a Gonçálvez Viana, autoridade reconhecida dentro e fóra do país, e que já lançou as suas bases e ergueu o edifício ao qual só falta a corõa do reconhecimento jeral ; em segundo lugar a Cándido de Figueiredo como vulgarizador excelente ; e para dirimir contendas segundo as exijências pedagójicas, ao eminente educador F. À. Coelho. Leite de Vasconcelos e eu, se não quiserem dispensar os nossos serviços, contribuiremos ( penso eu) ficsando a etimolojia e traçando a história de vocábulos obscuros.
M V — HÁ QUANTO Como
TEMPO ME OCUPO ORTOGRÁFICOS?
DE PROBLEMAS
ao espírito disciplinado de Prussianos e Prussianas repu-
gnem naturalmente todas as incoerências, desordens e caprichos ilójicos. sofri com as contradições e incertezas na maneira de ortografar dos Por-
tugueses, e com a falta de livros que me ensinassem a recta pronúncia, desde que comecei a aprender a língua de Camões, autoditácticamente ; sobretudo desde que, para exercitar-me, corrijia provas das obras de Herculano, Júlio Dinís, Gonçálvez Diaz, Camões, publicadas na Collecção
de Áutores Portuguezes de Brockhaus, tendo ao mesmo tempo de traduzir documentos modernos e antigos como intérprete ajuramentada nos Tribunaes e Ministérios de Berlim. E sofri mais quando textos vernáculos.
principiei
a escrever
português
e a editar
Convencida de que uma reforma simplificadora, em sentido fonético, como a do país vizinho e da Itália, havia de realizar-se mais cedo
ou mais tarde, esforcei-me a purificar pouco a pouco a minha escrita, de erros e incongriências, elucidando também em pesquisas cetimolójicas as origens e a história de bastantes termos mal-explicados até então v. g. sossegar, pêssego, assaimar, pintassilgo. Declaradamente tratei de assuntos ortográficos, de passagem, em artigos relativos á nunca assaz louvada Cartilha Maternal de João de Deus ; na Introdução (infantil ) que precede as Poesias do primeiro poeta clássico da nação,
o homem
de alto e heróico entendimento que se cha-
mava Sá de Miranda. Passei a empregar a grafia simplificada de Goncálvez Viana, — não sem hesitações diversas — no Prólogo do vol. 1 do
PARTE
I — APÊNDICE — A ORTOGRAFIA
NACIONAL
1112
Cancioneiro da Ajuda (1904) ; no Ensaio com que ilustrei a minha edição dos Lusíadas; no Preambulo das Cem Melhores Poesias de Poetas Portugueses ( Mortos ) 1910; no Ensaio sobre Trindade Cocelho, de saudosíssima niemória (1910) () c em tudo o mais que publiquei poste-
riormente (**). Do propósito de escrever a história documentada das ortografias portuguesas, e de a acompanhar de um plano de reforma, desistíra logo que vi surjir Gonçálvez Viana na arena, armado de pied en cap, propu-
gnador de ideias que julguei aptas para nos valerem na guerra santa contra a praga do analfabetismo.
VI — QUAL VII
A
FORMA DE ORTOGRAFIA QUE EU PREFIRO? A «SÓNICA» OU A ETIMOLÓJICA? — DEVERÁ REPUDIAR-SE EM ABSOLUTO A ETIMOLÓJICA?
Do que deixei dito e das grafias que emprego
aqui, bem se vê,
que a que prefiro e defendo, não é a erudita, que é costume só até certo
ponto justificado, chamar etimolójica, corrijida dos erros que usualmente a desfiguram. Nem é, de modo algum, a sónica no sentido que Barbosa Leão deu a este qualificativo da sua mal-lograda tentativa, pondo o arbítrio pessoal acima dos factos históricos e deturpando as feições tradicionaes do idioma com radicalismos exajerados, a ponto de escrever noça, eçe, açim, Xina.
A que emprego é a comum, regularizada e simplificada segundo normas e princípios ficesos, fundados na história da língua, estudada com critério, por mim pessoalmente, e pelos ilustres sábios que nomeeci. É, mais uma vez o declaro, a de Gonçálvez Viana. Isto é, a tradicional, livre de elementos etimolójicos inúteis, quer sejam mero dis-
farce (como y th ph rh, ete.), quer sejam nutos, mudos, mortos. Mas só d'estes. Tudo quanto se justifica à face da ciência, tudo quanto está vivo e de acordo com a pronúncia normal da sociedade culta, e mesmo tudo quanto só evolucionou com relação ao timbre, conservemo-lo afim
de não desformarmos nem interrompermos a sete séculos de vida literária; ou por outra idioma de Camões o lugar honroso que lhe ruaas-irmans. ns Transcrições como roza Brasil não são (*) Poetas larizar
Confessarei
agora
que
aínda
não
imprimi
Vivos por não haver solicitado, na circular de leve as ortografias variadas de Guerra
unidade e continuidade de para vindicarmos para o pertence, ao lado das linmelhores do que noça eçe, as
Cem
Melhores
Pocesias
de
que distribuí, licença para reguJunqueiro, Afonso López Vieira,
Antonio Correia de Oliveira, e os restantesg deuses menores. De leve, já se vê, tirando-lhes apenas erros inveterados, como portuguez, n'tum, amat-o, ete.! () Romances Velhos — Mestre Giraldo — Soncetos c Sonetistas — Contridbuições aos Diccionários etimológicos peninsulares.
112
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
e dar-lhe-iam feições de dialecto inculto. Nunca poderemos ir tam lonje como os Galizianos, que procedem com soberana liberdade a respeito de neolojismos, dizendo e escrevendo coleutividade ispeicion deceucion es-
ceucion ete. (colectividade, inspecção, decepção, excepção ) (“*). VIII — AÀ ADOPÇÃO DA FORMA SÓNICA É ACONSELHADA, OU NÃO, PELO ESTUDO DAS FONTES VERNÁCULAS DA LÍNGUA? Ponhamos: a adopção da ortografia simplificada, pois este é o nome que teremos de lhe dar. Eu ia responder que as fontes mais vernáculas da língua são os próprios vocábulos, estudados nas suas orijens e nas evoluções por que passaram : os vocábulos realmente nacionaes, de arijem popular, que tiveram sempre, segundo estabeleci, ortografia fonética, desde D. Sancho [, não a tendo hoje em alguns casos por aberração. Mas como V. Ex.* tem na mente, com certeza, obras-primas da Jite-
ratura (do século áureo e do resurjimento de 1820), repletas de vozes eruditas com a sua apregoada ortografia greco-latina, responderei completando o que indiquei nos capítulos anteriores. Não ha autor algum, clássico ou neo-clássico, que nos possa servir de modelo quanto a questões ortográficas. Nem mesmo enjenhos privilejiados como Luis de Camões, Herculano e Almeida-Garrett, porque eram leigos no assunto. Se acertaram em muitos pontos, desacertaram em
outros.
Acresce
que do autor dos Lusíadas,
nem
mesmo
possuimos
autó-
grafo alguin. Nas poucas poesias, impressas em sua vida, incluindo a epopeia (da qual, a meu ver, não leu provas), ha oscilações constantes entre a escrita fonética e a erudita (já dei exemplos). Às mesmas oscilações, que caracterizam em jeral os impressos da época do Renascimento, encontro-as,
embora
em
muito
menor
escala, num
precioso
autógrafo
de Sá de Miranda, descoberto ha pouco na Biblioteca Nacional. Às poesias nele contidas sairão breve, com um estudo meu, no Boletim da 2º Classe da Academia das Ciéncias. — Sóbrio, disciplinado e reflectido em
todos os seus actos, o poeta emprega aí grafias muito superiores às desordenadas que lhe são atribuídas nas impressões de 1595 e 1614, e nos apógrafos que tive o gosto de utilizar: mais sinjelas, mais próssimas da
fonética (**). Sem ser modelar todavia. Isto confirma o que já apontei : a influência nefasta exercida pelos copistas e pelos compositores das tipografias, culpados (como alguns antiquários ferrenhos ) na corrente reaccionária nímiamente conservadora da ortografia. Modelares eram apenas (em teoria, porque na prática (*)
de barreira
AÀA
raridade
impeditiva
das
reformas
contra
nas
tendências
escrita as mais leves evoluções fonéticas. () AÀA das poesias castelhanas é do idioma.
ortografias
tem
revolucionárias, excelente
por
valido
e
val
ás
línguas
destinadaos a introduzir na
causa
da
sinjeleza
fonética
PARTE
1 — APÊNDICE— A ORTOGRAFIA
NACIONAL
113
dependiam tambem dos impressores) (*) os profissionacs de então: João de Barros e Fernam de Oliveira, os primeiros que se ocuparam de problemas ortográficos. Ouçam como o grande historiador da Ásia define a ortografia: como «ciencia de escerever direitamente todalas dições, com tantas letras (ele dizia: leteras) com quantas as pronunciamos, sem pôr consoantes ociosas. Mesmo dado que a dição seja latina, logo que a derivamos a nós, c cla perder sua pureza, logo a devemos escrever no mesmo modo» (**). Fernam de Oliveira pela sua vez havia decretado pouco antes a mesma regra : «AÀs dições que trazemos d'outras línguas, escrevelas-hemos com as nossas letras que nelas soam, como ditongo, filósofo. gramatica, porque todo o mais é empedimento aos que não sabem essas linguas donde elas vieram» (**). Não se pode dizer melhor. Decéónios depois Francisco Rodríguez Lobo queixava-se de que o erudito «por levar o português arrastro até o fazer latim, falla por septe, docto, scripto, benigno»r (*”*). Falta damno. E em lugar de falla creio que deveria estar escreve? Com
relação
ao mais
antigo
manuscrito
artístico que
possuimos,
repito que (apesar dos senões da escrita, na qual ainda não distinguiam entre i e , ve u e utilizavam numerosíssimas abreviaturas) a sua ortografia é decididamente fonética. Mas por estar isenta de palavras doutas,
não pode. servir de guia e modelo (*'). Bem
examinadas
reforma simplificadora
e avaliadas, as fontes vernáculas aconselham e uniformizadora.
Umas,
a
directamente ; outras,
pela caótica anarquia que nelas reina.
IV IX — QUAES SÃO AS MODIFICAÇÕES MAIS IMPORTANTES QUE DEVERÃO SER INTRODUZIDAS? Sem tratar de miudezas e de excepções a altumas das regras, eis a lista a) das principaes simplificações; b) das regularizações. () Claro que tambem erraram por sua própria conta nos seus estudos da língua patria. : (º) Ele exemplifica com ortografia. Mas o impressor pôs ortographia, e pouco depois orthographia (NB na edição de 1785, que consultei; é todavia muito possível que na de 1540 fizessem o mesmo). (”) Claro que o Gramático ensinava tambem a inutilidade de letras dobradas: «duas letras de uma mesma natureza em uma sílaba, juntas ambas em uma parte, não são necessárias na nossa lingua»; e exemplifiea com officio e peceado.
() Obras, p. 124. () ÀAs mais antigas
novelas— a Demanda do Graal e o Josep ab Arimatia — parece que se cinjiram á ortografia dos trovadores, Nos apógrafos do século XV e XVI, que subsistem, ha todavia muitas modernizações morfolójicas e ortográficas.
Com
relação
ao Vespasiano,
impresso
em
1496, vale a mesma
observação.
111
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
1 — Proscrição incondicional dos grupos exóticos th ph rh, e ch com valor de fi, que tanto incomodam e perturbam a pequenada. Eles serão substituidos por ! f r c (respectivamente qu) como já o foram no latim vulgar, em castelhano, em italtano e no português dos filólogos de 1500 : tanto em palavras onde entraram abusivamente (categoria, sistema, autor, sacristão, tesoura, teor, teudo, conteudo e os nomes-próprios Santiago, Tomar, Temudo, Ataíde ), como em todos os termos doutos que na Grécia, sua pátria, eram
proferidas e por isso escritos com os ditongos
consonantados theta, phi, chi, rho (para os quacs havia naturalmente caracteres
especiais),
ditongos
que
faltavam
aos
Latinos
eles transeritos imperfeitamente com th, ph, ch, rh. —
e
foram
por
V. g. telégrafo,
telefone, teolojia, teatro, filosofia, fantasia, reumatismo, retórica, arras, trono, éco, época, pároco, cólera, monarca, máquina, mecanismo, me-
cánico. II — Proscrição do y-grego, com valor da vogal i. V. g. lagrima, císne, tipo, ninfa, cristal. físico, fisiolojia, tipografia; (Iynfa, sylva, são escritas latinas erradas), assim como de & e w em palavras portuguesas.
— Talvez com excepção de Ktlo. II — Redução das consoantes jeminadas a sinjelas. V. g. abade boca adido difícil agravar falar goma chama pano aparecer sete meter. Exceptuam-se naturalmente rr ss, porque tem valores peculiares. Vid. Caro e carro, casa e cassa, presente e pressente. Lójicamente duplicaremos r e s, depois dos preficsos a, de, pre, re, pro. V. g. assisado derrogar pressentir prosseguir ressaltar prorrogar. (a não ser que se esereva pre-sentir, ete.) e compostos como monossi-
labo hendecassílabo. IV — Eliminação das consoantes nulas m g nos grupos mn gm gn gd. V. g. em dano sono aluno aumentar Inês Madalena. V — Eliminação de s no grupo sc quando inicial, como em ciencia. No interior das palavras — p. ex. em consciencia nascimento, ete. — não
se suprime s, por ser uso de Lisboa pronunciar ambos os sons. VI — Eliminação de c p nos grupos cç cl pç pt, precedidos ou não de nasal como em santo pronto distinto, sempre que na pronúncia nor-
mal sejam efectivamente nulas, o que em regra acontece depois de é u (dito escrito discrição produto escultura ) ; ou quando (depois de a o 1) não tenham influído no valor d'essas vogaecs, abrindo-as : Conservam-se, pelo contrário, nos numerosíssimos casos em que c p, não-proferidos, influíram na vogal átona precedente abrindo-a, como
em afcejção abstrafe)ção reda(c)ção; exce(pição direfe)ção; exa(ce)to refe)to corre(e)to; direfe)tor; prece(p)tor; adó( p)ção adó( p )tar, e tambem nos casos, igualmente numerosos, em que a pro-
núncia de c é facultativa, como em efectivo respectivo facto pacto (**). () Nem se suprimem em Ejifíp)to por é numa dição evidentemente aparentada).
ser
uso
proferir
o p em
ejípeio
(isto
PARTE
1— APEÊNDICE-— AÀ ORTOGRAFIA
NACIONAL
115
VII — H, sempre nulo, deveria suprimir-se em todos os casos, tanto no meio de palavras, onde na escrita comum servia para desunir vo-
gaes que em regra formam ditongo (sahímento cahir ) como no princípio de palavra, e depois de preficsos (aderir desonesto coerente ), sobretudo depois de n (inerente inibir inábil ). Onde for etimolójico (historia homem hospede haver ) será todavia mantído provisóriamente. As regularizações resumem-se no seguinte: VIII — Simbolização do som j por essa mesma letra, banindo-se o g diante de e e 1, de sorte que g exerceria unicamente as funções que tem em
galo golpe
gula
guerra
da-se contemporização
com
guita.
—
Mas
o uso vijente
tambem
neste
(sobretudo
em
caso
recomen-
princípio
de
palavras). IX — X fica com dois valores: o que tem em eaixa, e o vário que tem no preficso exr- (pronunciado ora eis-, ora 1s-).
* Em
todos os restantes casos é suprido pelas letras que a pronún-
cia normal perplecso, X — crescentes,
exije: s em misto: ss em próssimo aussílio; e cs em ficso ete. Normalização dos ditongos de sorte que nos verdadeiros deo segundo elemento seja semivogal : í ou u (ai ei oi ui; au
eu iu ou ). Nunca e o. Nenhuma alteração se fará naturalmente nas palavras em que do não constitue ditongo, como em fio rio tio, cte. XI —
Nasaes internas, antes de consoante, serão simbolizadas por
n; por m apenas antes de b p. do (ãos ães ) e á (ans ) no fim de palavras (amanhã maçans), servirão em sílabas tónicas (como em pavão, amarão (fut.), reservando-se am para as átonas: amam amáram (perf.) e monossílabos átonos como tam quam sam gram. (Por excepção escrever-se-ha sótão órgão orfão orégão por causa dos pluracs em ãos).
XII — Com respeito á acentuação gráfica, Gonçálvez Viana quer que seja completa de sorte que nunca fique dúvida com relação à síilaba tónica de um vocábulo, nem tampouco a respeito do valor aberto ou fechado da tónica ou de átonas não-enfraquecidas. Isto consegue-se tácitamente, sem 'acentuação expressa na maioria dos casos, pelas duas leis fundamentaes conhecidissimas (*), e quanto a esdrúxulos por meio de acentos gráficos. Sc até aqui era praxe marcar com
agudo ou circunfleceso só ocsí-
tonos ( pá fé só será sofá) e alauns graves para os distinguir de homógrafos (fóra fôra; sede sêde; côrte gôsto ), d'oravante serão acentuados tambem os esdrúxulos, ( pêssego, plácido ). O acento grave, pouco usado, servirá para átonas abertas (paâdeiro pôveiro sêgeiro) e tambem para marcar diérese de vogaes que usualmente formam ditongo (rêunir arLuir; proibir, coerente ). XIII — O trema desaparece, substituido pelo acento grave () em
Vocábulos
consoante
que
terminam
em
vogal
são agudos, exceptuando-se m e s.
são
graves;
vocábulos
que
(freacabam
316
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
quente ) ; o apóstrofo quási sempre : não só onde era costume empregá-lo
erróneamente (como em num neste naquele) mas tambem onde realmente se elide a vogal da preposição de (dêste dêsse daí, por analogia com do da dos das ). *
Segui estes preceitos aqui e alhures. Desejaria comtudo afastas-me d'eles em alguns pontos. À nímia acentuação gráfica é incómoda e um luxo. Leva tempo e embaraça o trabalho de quem escreve. Absolutamente indispensável em livros escolares e livros de consulta — ( Dicionários, Cartilhas, Gramáticas e Compéndios ) — parece-me dispensável em obras literárias. Bastaria distinguir, como até aqui, alêm dos ocsítonos, os homógrafos, incluindo vária varia; solícito solíicito; dúvida duvída. Os Tta-
lianos, cuja língua não é menos rica em esdrúxulos do que a portuguesa, seguem o sistema que recomendo. As simplificações propostas, aceito-as todnas, votando mesmo pela supressão de h e substituição de ge gi por je ji. Sómente hesito a respeito dos grupos ct pt c pç. Aparentemente a regra que se eliminem e p onde a maioria culta os não profere, (marcando-se, ou não se marcando,
o valor aberto que comunicaram àás vogaes a e 0) — regra que a Academia Brasileira adoptou (adôtou ou adotou) tambem para os casos de pronúncia facultativa—é mais lógica do que a conservação recomendada por Gonçálvez Viana.
Este ponto precisa ainda de exame maduro. Com relação aos ditongos aehava melhor mantivessemos ae oe ue, onde são flécsionaes, isto é na 2.º e 3.º pessoa singular dos verbos; e nos pluraes de nomes, por analojia com as formas regulares (vae doe conclue ; saes soes azues, por causa de vende vezes funções mães, etc.). Em palavras compostas e que todo o mundo reconhece como taes —
Alemtejo
comtudo
comtanto
emquanto
emtanto
—
eu conservo
Não suprimo o apóstrofo após d. D'esse d'este agrada-me que dêsse dêste. Mas sujeitar-me-hei, se a comissão quiser bani-lo.
m.
mais
Reconhecendo a necessidade teórica de separar i-nad-ver-tên-cia, i-ne-ficcaz, práticamente não a realizarei ensinando sempre que evitem
taes despropósitos anti-etimolójicos), como nunca direi quáse em lugar de quási ; nem quere, em vez de quer. Prefiro conservar inalterados nomes-próprios estranjeiros, tanto pessoaes como jeográficos. Mas isto já não é questão ortográfica. Das letras & e tw mal vale a pena falar. Não é o vocábulo Kkilo, nem o nome Wagner que dificultam a aprendizajem da arte de ler e escrever. Quanto a h e y, desejei muita vez aproveitá-los:y como segundo
PARTE
I — APEÊNDICE— AÀ ORTOGRAFIA
117
NACIONAL
elemento de ditongos decrescentes. D'esse modo saya distinguia-se de saía sem que fosse preciso o acento. E h para desunir vogaes nunca me pareceu feio. Os antigos usavam d'este processo ; e os críticos estranjeiros costumam elojiá-lo e empregá-lo. Mas de lá á substituição de s por z não seria longe. Por isso desisti e desisto.
X— A REFORMA REMOVERÁ, OU NÃO, TODAS AS DADES DA ESCRITA PORTUGUESA?
DIFICUL-
Anulará as principacs. Mas não removerá todas. Nem é preciso que as remova. Todas as ortografias têm algumas; mesmo na italiana ha regras que, não sendo óbvias, exijem estudo ; e essas regras têm excepções. Com os meios disponíveis, servindo-nos apenas do alfabeto latino, completado com as figurações ç ch lh nh, sem invenção de símbolos novos, nem emprego -de sinaes diacríticos, não é possível atinjir o ideal absoluto de que cada som seja sempre representado pela mesma letra e cada letra represente sempre o mesmo som. As dificuldades que continuarito a existir na escrita portuguesa, depois de simplificada e regularizada, serão mesmo mais numerosas do que as que existem
na italiana e na castelhana,
porque
resultam
(torno
a dizê-lo) da fonolojia finíssima da língua, com as suas vogaes abertas, fechadas e reduzidas, puras e nasaes, com os ditongos, o enfraquecimento das átonas, a metafonia dos nomes e verbos (ô6vo, óvos ; dêvo, déves; sinto, sentes.; receio, receamos ; odiar, odeio ), a variedade dos pluraes, pro-
duzida em parte pela forma abreviada de muitos termos, em razão da queda de [, n entre vogaes, — particularidades com as quaes temos de conformar-nos. Dificuldades comuns ás principacs linguas románicas são o duplo valor de c g's; (só em Espanha é que s é sempre forte), a escrita que qui gue gui; a distinção de ss eç, s e z. Peculiar ao português é a distinção de x e ch; além d'isso a necessidade de não confundirmos es (s impuro) e ex ; des e dis; emeim (enein); per e por; pre e pro; ou cCÓóseicê; assim como as átonas
o
eu, eex
Temos, como todas as línguas, homónimos: vocábulos diferençados quanto á origem e ao significado, mas apesar d'isso homógrafos e homofónicos (fiar de filare e de fidare; teia de tela e taeda.) À simplificação da escrita aumentará mesmo um tanto o seu número (vale representará vallis c valet; pena poena e penna: puspus e possui), A par de taes formas converjentes, que empobrecem a língua, mas não causam dificuldades gráficas, ha bastantes que, comquanto sejam homofónicas, se eserevem diferentemente em razão das oríjens díversas e evoluções distintas por que passaram. P.'ex. passo e paço; osso e ouço; cinto e sinto; coser e cozer; cela e sela; bucho e buxo: feixe e feche; soar e suar; paz e pús. E ha o terceiro grupo de termos. aparentados pela
118
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
orijem e pelo significado, mas diversos na pronúncia e que eram iguaes na escrita comum, mas serião d'oravante diferençados por meio de acentos gráficos, p. ex. vária e varía ; fábrica e fabrica ; ánimo e animo; cópia
e copia; contínuo e continio; princípio e principio; dúvida e duvída (duvida é da 7.º lição da Cartilha Maternal ; e, sem acento, perturba logo
os párvulos). Todas
estas dificuldades, e outras que não
menciono,
serão natu-
ralmente definidas no Manual ortográfico e registadas em sumários práticos, e no Vocabulário. Nas aulas de instrução primária os professores terão de ensinar
as crianças
a reflectirem,
resolvendo
sósinhas
muitos
problemas por analojias. Bem ensinadas elas acharão (como até aqui) graça em distinguir, mesmo na cescrita, o coser das costureiras do cozer das cozinheiras; a sela do cavaleiro da cela do monje, etc., ete. Comparadas com as incertezas, anomalias e incoerências da ortografia usada até agora, poderemos chamar mínimas as da reformada.
XI—
QUAL SERÁ A MANEIRA MAIS PRÁTICA DE PROPAGAR AÀ REFORNMA?
Ficsada em todos os pormenores, a reforma será aprovada pela Direcção de Instrução Pública, promulgada por lei como oficial, e empregada em todos os documentos que emanem quer do governo, quer de cámaras municipaes. Ensinada nas aulas, cujas Cartilhas, Livros de Leitura e mais livros de instrução terão de ser, quanto antes, emendados em
novas edições (e providos de ampla acentuação gráfica, para que se evitem silabadas), a ortografia simplificada será exijida, ao cabo de certo
pPrazo, em exames e concursos. Nas tipografias do Estado, e nas particulares. haverá correctores habilitados, incumbidos da revisão de todos os impressos. Habilitados (como os professores) pelo Yocabulário a que se refere a portaria de 15 de fevereiro, publicada no Diario do Governo de 17, contendo todas
as palavras que oferecem dificuldades quanto á maneira como devem ser escritas. Claro que, de fácil consulta, este opúsculo, obra do Reformador
principal, aussiliado por todos os membros
da comissão, será acompa-
nhado de regras concisas e claras (**). Conforme digo na carta que particularmente diriji a V. Ex.º, bom seria que no meio-tempo todos estes fizessem propaganda em Revistas e jornaes, angariando adesões persuasivamente, visto que NÃO VALEM LEIS NEM COSTUMES, VALEM COSTUMES SEM LEIS,.
como dizia o eremita da Tapada. () Os Sumários relativos à ortografia alemã constam sempre de regras, ilustradas com exemplos, e de um Vocabulano nlfabetlco, por junto 50 pájinas, que se vendem pelo preço Íínfimo de quarenta reis.
PARTE
I — APÊNDICE-— A ORTOGRAFIA
119
NACIONAL
Quanto ao público, sei perfeitamente que a muitos, tanto do secso forte como do fraco, repugna modificar a sua cscrita, muito embora não lhes repugne alterar dócilmente o penteado e o traje, segundo os mandamentos caprichosos da Moda. Acham ridícnlo o tornarem-se a ocupar de coisas elementares, cstudadas quando eram párvulos em aulas de instrução primária. Custalhes ponderar os argumentos que opomos á inércia do hábito. E imajinam que para pertencer á sociedade eunlta, devem afastar-se do vulgo, mesmo na manecira de ortografar. Como se a prosa artística dos realmente cultos, que têm o condão do estilo, — o académico sublimado de um Sousa-Monteiro ou o popular sublimado de Trindade-Coelho — não se distanciasse do falar chão e simples dos leigos, tanto pela escolha de termos
e locuções
e pela
sintasse
artisticamente
complecsa
como
pelo
ritmo musical dos períodos; e sobretudo pela nobreza e orijinalidade dos pensamentos. Por amor não só a seus filhos e netos, mas a todas as crianças portuguesas (tam pouco favorecidas pela sorte quanto aos meios de se instruirem), deveriam Jlargar esse preconceito, e tomar parte na santa cruzada contra o analfabetismo, vencendo a superficial repugnáncia (como eu a venci), euste o que custar. Pôrto, 12 de Março
de 1911.
* *
*
O artigo precedente foi já publicado nO Primeiro de Janeiro, de 14 a 18 de Março de 1911. Com leves alterações aqui o reproduzo, o que
faço a pedido do director da Revista Lusitana e de alguns Iusitanófilos estrangeiros, — e junto-lhe mais o seguinte. Pouco depois da publicação no periódico portuense, a comissão teve por bem
agregar a si vários filólogos de Lisboa, de Coimbra, e do
Porto, de competência largamente provada e geralmente reconhecida (*), assim como um jornalista e professor de instrução secundária (**). Em sessões semanaes, só por vezes interrompidas por causa dos múltiplos afazeres oficiais de alguns dos membros, houve — de 15 de
Março em diante — ampla, ponderada e escrupulosa discussão de todos os 115 parágrafos do Questionário de Gonçálves Viana, que judiciosamente fôra escolhido para base da reforma. Os membros ausentes eram consultados quando não havia unanimidade, ou pelo menos grande maioria na votação das propostas. . () Os Ex” Snrs. Dr. António Garcia Ribeiro de Vasconcellos; Dr. A. J. Gonçálves Guimarães; A. Epifânio da Silva Dias (que declinou o encargo); J. J. Nunes; Júlio Moreira. (*) Manuel Borges Graínha.
120
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
A 23 de Agosto o Relatório estava assinado ; aprovado pelo Ministério do Interior a 1 de Setembro ; e publicado no Diário do Govêrno no dia 12 (*). Em seguida saíu em opúsculo, cuja parte essencial, o Formulário Ortográfico conforme o plano de Regularização e Simplificação da Escrita Portuguesa (*), é precedido dos Documentos oficiais
e de uma
Introdução relativa ás Bases da reforma; e seguido de um Prontuário, ou seja Súmula das principais regras que se hão de observar na es-
erita (*). Embora, na justa esperança de finalmente verem debelada por uma disciplina racional a anarquia gráfica que dava ares de bárbara á lingua portuguesa, os impacientes desejassem ainda maior rapidez, não se pode negar que para um país, em que todas as coisas são vagarosas, salvo os desgostos da vida, a Comissão trabalhou com zelo muito louvável. Oxalá que todas as reformas de que carecemos, se realizem assim! Para os que gostam de se informar do indispensável, com dispêndio diminuto de forças e de tempo, sem a ambição de assimilarem motivações eruditas, real ou aparentemente complicadas, os preceitos do Formulário fôram por um dos reformadores condensados em meia dúzia de palavras, isto é, em Dez Mandamentos, dispostos numa folha,
de mapa
a modo
(*). Os interessados, mas inexpertos, quer professores, quer
estudantes, quer jornalistas, ou tipógrafos, revisores, etc. poderão con-
sultá-lo com proveito, pregado na parede, á altura dos olhos, ou colado na pasta sobre a qual costumam escrever (*'). Os párvulos que principiam a aprender o 4 B C, tambem já fôram contemplados com uma
Cartilha sensata e atraente, refeita em concor-
dância com a Reforma (**). Breve hão de seguir, seguramente, as outras que amo (de João de Deus e Trindade Coelho), remodeladas no mesmo sentido ; Livros de Lei() No 213. (*) Exposto em 46 artigos. (”*) Bases para a Unificação da Ortografia que deve ser adoptada nas Escolas e Publicações Oficiais, Lisboa, 1911. — Preço 50 reis. — Reimpresso no Porto, em elegante folheto de cerca de 70 págs. custa 60 rs. (Livraria de Clavel). Claro que a emprego aqui mesmo, () A Reforma Ortográfica em meia-dúzia de palavras, — Lisboa, Guimarães & C, 1911 — Preço 20 reis, pelo correio 25. -— Obra de popularização de Candido de Figueiredo. (”*) Para esse fim aconselharei a reimpressão em cartões. — PS. Ésse descejo já está realizado. O Sr. António Barradas fêz imprimir cartões, em forma de bilhetes postais com um resumo da Ortografia portuguesa ofícial. É pena que a matéria não fosse limitada a uma só pagina. O mesmo autor publicou um Pequeno Vocabulário Ortografico (Porto, 1911). Contendo apenas os exemplos contidos no Formulário, é insuficiente. . (º) M. Borges Graínha, — Método iíntuitivo legográfico e mecânico para ensinar a lcr, escrever e contar. — 2.º ed. acomodada á nova ortografia oficial. —
O sistema de ensinar an princípio apenas nomes vulgares de coisas concretas que possam ser representadas em gravura é evidentemente muito bom, c agrada ás crianças. Quanto
á combinação
do ensino
da leitura e da escrita, nunca
me
conformei
com
ela.
Na prática não dá os resultados ambicionados, porque a ordem que racionalmente se deve seguir em
ambas
as artes é muito diversa, e tambem o tempo que nisso se gasta.
PARTE
I — APÊNDICE — A ORTOGRAFIA
NACIONAL
121
tura como os excelentes do mesmo benemérito. e Compéêndios de todas
as espécies (**). Já se prepara e anuncia a reedição, alterada segundo aàas resoluções da Comissão, do Vocabulário ortográfico e ortoépico de Gonçálvez Viana, e do Novo Dicionário de Cândido de Figueiredo, o benemérito popularizador, que tem continuado a fazer propaganda cficaz a favor das simplificações nas Nótulas sobre Falar e Escrever. Dos diários e periódicos (que poderiam prestar serviços inestimúáveis, se a revisão não fosse neles em regra deficientíssima) muitos vão entrando no bom caminho, embora com hesitações. Do estrangeiro chegam aplausos e adesões entusiásticas. Às vindas de alêm-mar, tendentes á unificação da linguagem literária dos dois paises, tem importância particular. Independentemente dos trabalhos de cá, fôram apresentadas em Maio á Academia Brasileira umas propostas de emenda da reforma por ela iniciada no ano passado— pautada pela de Gonçálvez Viana, mas com divergência lastimável em alguns pontos capitaes, conforme indiquei (**). Da sua discussão resultou aderirem ás regras portuguêsas, relativas a consoantes e geminadas e aos símbolos s e z, ss
e g (**), de sorte que no
futuro só haverá divergências de poucn monta (**), se ela vingar. Para facilitar a introdução da ortografia simplificada, cá como Jlá, dentro do triênio de tolerância concedido pelo Govêrno, eu advogo ainda a publicação de um Livrinho barato que seja Sumário e Vocabulário ao mesmo tempo. O Sumário conterá regras, muito singela e claramente expostas,
das
acompanhadas
(em
comum, usados,
grupos)
de
de
extensas
listas,
exemplos,
bem
tirados
da
ordena-
língua
com inclusão dos termos scientíficos mais tanto mais abundantes quanto menos intuitivas essas regras
sejam para os leigos : isto é para os que não sabem latim nem castelhano, e por isso não se podem importar de etimologias. Tenho em mente sobre tudo os problemas do se z; sseç; che x; des e dis; ese (h )is;oeu; ô e ou, e dos grupos ct pt e ps, com c e p ara pronunciados, ora facultativos, ora mudos e meros indicadores da influência que exerceram nas
vogaes precedentes. O Vocabulário,
alfabético, queria-o
constituido
apenas
por essas
() Emquanto se imprimiu este artigo, sairam diversos, conforme vejo na Educação Nacional de 18 de Novembro e em vários números do Diário de Notícius.
mas
(*) As do Snr. Mario de Alencar fôram retiradas por motivos que ignoro, renovadas, após curto prazo, por outros Académicos. () Creio que nos espíritos dos contendores actuaram palavras enunciadas
por
Gonçálves
Viana
na
nova
Academia
das
Sciências
ilustre historiador o Snr. Lúcio de Azevedo. América hespanhola, a não ser individualmente pronúncia a mínima distinção entre os sons s a ninguém ocorreu uniformizar as respectivas () Vid. Jornal do Comércio, de Rio de
Dissera ou por e z (ss letras. Janeiro,
de Lisboa,
e transmitidas
pelo
ela que em nenhuma parte da artífiício, se faz hoje em dia na e c), e, não obstante esse facto,
de 9 de Julho de 1911.
122
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
mesmas dições (**) com exclusão das numerosíssimas que não oferecem dificuldades.
Um
tal
livrinho,
manuscado
constantemente
por
todos
quantos escrevem, e que aos professores dos estabelecimentos de Instrução primária e secundária servisse de matéria-prima para exercícios variadíssimos, prestava seguramente bons serviços, e seria bem aceite pelo público.
O público! Qual foi o acolhimento que fez á Reforma? Naturalmente as opiniões estão divididas. Houve c ha entusiastas ; críticos ; indiferentes ; e adversários. Reaccionários rombos, avessos a todo e qualquer progresso, aos quais as quarenta
e tantas regras mostraram,
pela primeira
vez, quantas
e quais são as dificuldades da ortografia nacional, entendem que fômos nós que as inventamos, baralhando e complicando tudo. Constou mesmo
que esses descontentes iam angariar assinaturas afim de reclamar a revogação da portaria de 1 de Setembro. Outros, veteranos, aprovando benévolamente que para as gerações novas se facilite e democratize a arte de ler e eserever, exigem comtudo tolerância para si próprios, porque não lhes vale a pena mudar hábitos profundamente radicados. Aínda outros decretam que bastava banir os simbolos gregos y k ph th rh, e as inúteis consoantes duplas, pretendendo que a comissão excedeu os limites que uma evolução razoável impunha.
Á
esquerda
figuram
avançados
que
descjariam
ir muito
mais
longe do que nós, fonetizando á outrance sem consideração para com a
história e as origens dos vocábulos. Comodistas, que aceitando as simplificações se insurgem contra as complicações da acentuação. Aceitando, a custo, o acento agudo para vocábulos esdrúxulos declaram perfeitamente dispensável o cireunflexo e o grave, e têm horror sobretudo a dois sinais diacríticos no mesmo vocábulo (**). Certos estetas encaram as modificações segundo as suas ideias personalistas de beleza;
tremem
de indignação, e velam a cara ao ver
despidos das suas roçagantes ronpagens os hymnos helénicos, reduzidos, coitadinhos. á nudez plebeia de ino ou hino (*). Não se lembram que a (”*)
Na
Alemanha,
recorre em casos dê dúvida
onde
também
a um
houve
Manualzinho
reformas
Ortográficas,
toda
a gente
publicado por ordem do Ministério de
Instrução: Regeln fiir die deutsche Rechtschretbung nebst Wóôrterverzelchnis, — Preis 15 Tfeunig. — Eu possuo a edição de 1902 (Berlín, Weidmannche Buchhandlung). (*) Lingitístico! seqhência! exeqiível! dé')Sõ os Franceses teem coisas parecidas créé — rélévé — légireté — âpreté —
déjà.
Mas o francês é... francês! Às línguas estrangeiras muita gente dedica esforços afectuosos, que nega ao português. (”) Será contraveneno eficaz a informação que poctas excelsos como Guerra Junqueiro, Afonso Lopes Vicira e Correia de Oliveira, escreveram numerosas vczes hino, muito antes da reforma? E a outra: que os ingleses pronunciam him! — os Franceses aristocráticos imn! — os Castelhanos ímno! — e que os Italianos, mais coerentes do que todos os outros, porque dispensam h, dizem tnno e eserevem inno— sem que os seus olhos e ouvidos, saturados de beleza clássica e romântica, se sintam ofendidos? —
Talvez!
PARTE
Y — APEÊNDICE-— A ORTOGRAFIA
NACIONAL
128
verdadeira culpada, se culpas ha nessas evoluções é a pronmúíncia nacional e que o remédio seria enunciarem todas as cinco letras à grega como fazem os Alemães, irmãos gêmeos de Platão c Píndaro, ou usarem de qualquer sinónimo ou circunlóquio. Os peritos, familiarizados com a origem e a história d'esta bela lingua ocidental, fonética e morfológicamente a mais curiosa e delicada d'entre as románicas, reconhecem o alto valor da obra realizada, com-
quanto lhe notem algumas falhas que no futuro deverão ser sanadas: incoerências
e condescendências
com
usos
maus,
só
por
serem
muito
radicadas. Sabedores de que a acentuação complicada é consequência fatal das subtilezas da fonologia portuguesa, não a censuram, sujeitando-se a ela. Lamentam que se conservasse a combinação sc (“*); ge gi a par de je ji; h no princípio de palavras, sendo êle banido do interior, de onde resulta hábil ao lado de inabil, humano
e desumano,
honra e desonra,
heleno e fileleno. Lamentam principalmente a conscervação do x com todas as cinco funções que exercia na escrita condenada, de sorte que, contra a regra fundamental de todos os vocábulos que se diferençam na fala terem de ser diferençados na escrita, não se distingue na nova ortografia entre fixe que eu escrevo ficse (subjuntivo de ficsar) e o adjectivo popular e substantivo técnico fixe (fiche ) nem tão pouco entre axe (acse, axis,
eixo ) e o doe-doe infantil. Alêm disso podiam apontar pequeninas inconsequências: emtanto emquanto
emque
a par de conquanto
contanto
ete.;
mãe
a par de pai;
doi a par de põe dispõe etc.; a acentuação de é ó fechados quando puras, e a de él éu ói abertos, quando nasaes ; ã ao lado de em im om um. Mi-
núcias, mas só em parte defeitos inevitáveis. Eu pertenço a este número. Acho todavia que, em suma, devemos congratular-nos por possuirmos agora ortografia muito simplificada, que respeitando a história da
lingua e o seu desenvolvimento gradual, dá à grande maioria das palavras exteriorização gráfica adequada, e irmana em mérito com a castelhana c italiana. Pôrto, Novembro
de 1911.
(“*) Idealistas, de pura agua, pretendem que seria bom transformarmos todos os digramas do alfabeto português em caracteres simples: tanto qu gu (com valor de k e g gutural) como lh nh ch, e que além disso seria valiosíssima a transformação incondicional de c sibilante em ç&, apesar de as outras línguas românicas ainda não haverem utilizado esse expediente. — Mas, se em letra redonda a transformação por meio de íntima ligação das duas letras, seria fácil (menos em !h), não acontece o mesmo com a letra manuscrita. Os calígrafos e tipógrafos deveriam examinar e resolver o problema. Em futuros anos.
PARTE
HHH
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Prelecções feitas
ao curso
de 1912(1915
LIÇÃO [ FILOLOGIA:
NOÇÕES
ETIMOLÓGICAS
E SEMASIOLÓGICAS
Vejamos hoje a significação de filologia. A significação ou as significações, porque embora a palavra filologia seja, pelo sentido e pela forma (como nome de uma ciência espiritual e como nome artisticamente composto de dois elementos preexistentes ) de origem culta e tardia — criação individual de algçum homem superior, acostumado a abstracções filosóficas, segundo a minha opinião — ela passou por algumas evoluções, durante os vinte e quatro séculos de existência documentada que já conta — o que passo a explicar em duas palavras (*). Estas evoluções da palavra filologia não são incisivas, como as que (!) Vinte e quatro séculos de existência! todos servimo-nos em gera!l de tais dados
Deixem-me abrir aqui um parêntese. cronológicos sumários, sem ponderar
Nós bem o seu significado, Filólogos, naturalistas, historiadores futuros como os senhores, deveriam, contudo, acostumar-se a não emitir idéia alguma irreflectidamente, sem medir bem o seu aleance. Deveriam ter consciência do que foram as transformações capitais por que o mundo passou, do século quarto antes da era eristã em que Platão e Aristóteles filosofaram e filologaram, até os dias de Edison, Roentgen, Koch e Marconi, Deveriam ter consciência do que significam os seis mil anos pre-históricos que precederam os quatro mil históricos — iluminados apenas por ténues raios de luz que irradiam de petrefactos, ossagens, kjokkenmôoddinger, instrumentos primitivos; — consciência do que foram os milénios que as épocas geológicas acusam, antes de que no pliocénto, último estádio da idade terciária, surgisse o homem — homo primigenius — e os miTlénios sucessivos que levaria a criação da linguagem, porque o homo primigenius não a tinha. Era alalus, segundo Hacckel, em euvjo sistema (hipotético) éle é transição do antropóide no Homo sapiens. Nem deviam esquecer que a idade chamada terciária é apenas a quinquagésima parte do tempo que já decorreu desde que a vida orgânica começou no globo terráqueo — essa vida orgânica que era a conditio sine qua non da vida humana, mas que, conferida com a anorgânica, é tão dimínuta que um naturalista moderno a comparou àquela penugenzinha ou antes âquêle nevoeiro fino que cobre uma ameixa muito madura e que o nosso dedo desfaz com um leve movimento — num momento. (Movimento e momento são a mesma coisa). Diante dessas enormidades os problemas filológicos parecem minúsculos. Mas não o são. A criação da linguagem é o maior fenómeno e problema social de tôda an humanidade. Sem ela não havia história, nem civilização. Fecho aqui o parêntese com as vastas perspectivas que abre. — Mas tornarei ao assunto, ulteriormente.
126
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
se deram em numerosíssimas denominações populares e antigas de coisas concretas, familiares a tôdas as classes sociais. Só se referem ao sentido,
e mesmo quanto a êle, consistem apenas em que filologia teve acepção ora mais lata ora mais restrita, e às vezes acepção pejorativa.
Ainda assim o nosso dever é examiná-las tódas. O filólogo deve sempre historiar e. comparando, retroceder até chegar às origens, aos elementos primários — já o disse outro dia nas breves considerações gerais com que foi aberto o curso dêste ano lectivo (*). Ésses elementos primários — as partes irredutíveis n que os investigadores chegam, descarnando as palavras de elementos secundários como prefixos, sufixos, infixos, desinências gramaticais, vogais de ligação — são RAIZES — quási sempre monossilábicas tanto nas línguas indo-europeias, históricas, como naquela língua árica, primitiva, hipotética, que quatro gerações de eruditos internacionais, na sua maior parte germânicos, tentaram e tentam abstrair das formas comparadas de tôdas quantas subsistem — sempre à procura da resolução do enigma que a grande esfinge humana nos propõe quanto às primeiras origens
da linguagem: o Milagre do verbo. Mas como a ciência da linguagem c a ciência prehistórica (ambas relativamente novas) nem de longe chegassem ao fim almejado, e nem mesmo reconduzissem a URSPRACHE, ambas aàas sílabas radicais — ou raíses — que existem em filologia— fil e log— teremos de parar a meio do caminho: em Roma e Átenas, as verdadeiras estações de partida para quisi todos os fenómenos da filologia românica. Não poderemos continuar hoje na marcha, passando á Ásia: à peninsula cis-gangética onde, entre os rios Indo e Bramaputra e as serras do Himalaia c do Víndia, se desenvolveu a língua sagrada da Índia — o Sânscrito, que representa em admiráveis monumentos traçados com complicadas letras, de que breve lhes hei de trazer amostras, a fose mais
arcaica conservada daquela presuntiva língua árica primitiva que é fonte capital do grego e do latim — e dos mais grupos lingiiísticos indo-europeios ou indo-germãânicos. Em outra ponto final.
ocasião
prosseguiremos
no
nosso
caminho
até
êsse
*
Filólogo e filologia, com os derivados filológico (adjectivo) e o verbo pouco usado filologar, são vocábulos de origem grega. E vocábulos compostos.
Gregos que
e
compostos,
nos servimos: (*)
tanto
como
quási todos os têrmos científicos de
os relativos à gramática,
[Houve, antes desta, uma
retórica,
dialéctica,
Lição Inaugural que não chegou a ser impressa.]
PARTE
1l — VOCÁBULOS
DE ORIGEM
GREGA
127
lógica, poética, como os que dizem respeito à filosofia, fisiologia. psicologia — à zoologia e botânica, à física e anatomia, à matemática e mais ramos do saber humano (*); e tanto os antigos como os modernos. Ambas as camadas são enormes. É enorme o peceúlio antigo dos grecismos que vicram directamente de Atenas e Alexandria e Roma e de Roma a tôdas as partes do Império, quási sempre juntamente com as coisas, os objectos, as idéias. as ciências e artes que designavam, embora muita vez os fundamentos delas já fôssem lançados em civilizações mais antigas como a dos Fenícios, a do Egito e a do reino babilónico de Chammurabi — como os senhores talvez já saibam e se não o sabem hão de aprender — dos seus estudos de história, geografia e matemática. Enorme é também o pecúlio das dições novas arquitectadas no nosso tempo, de matérias-primas exclusivamente gregas e às vezes greco-latinas, (no sentido de meio-latinas e meio-gregas) formadas ad hoc, segundo as exigências sempre crescentes das inúmeras novidades científicas, artísticas e principalmente técnicas e industriais, cuja invenção
caracteriza a segunda metade do século transacto e também os princípios
do século actual (*). Para me restringir a meia dúzia de exemplos de criações modernas, nomeio apenas os aeróstatos, os gramofones e a radiografia, a hidroterapêutica c... os nefelibatas. Os dois elementos de que o vocábulo filologia se compõe, são a raiz do verbo ov:ts amar, e o substantivo 3:7a (logia), que pela sua vez é derivado de )3i7o; — verbo, discurso, fala, linguagem, raciocínio. A raiz &). é puramente helénica. Não tem parentesco nas outras linguas áricas. Logos pelo contrário, provém de uma raiz leg ():y) que é muito produtiva e subsiste, por exemplo, em lex — (legs), em legere (ler ) e talvez em religio. Unidas pela vogal de ligação o, segundo o sistema grego, espantosamente
fértil, ambos
os elementos
se fundiram
tão intimamente
que à
palavra filologia, ritmicamente bela, como quási todos os vocábulos gregos, não é apenas a soma das duas — mas mais alguma coisa (*): Uma idéia nova. () A terminologia de tôdas essas ciências é muito complexa. Só de filosofia há por isso, para uso dos estudantes, numerosos dicionários que na verdade não se restringem a registar e definir vocábulos — explicando também a construção dos sistemas. Eis os principais: Franek, Dictionnaire des sciences philosophiques, Paris, 1885. James M. Baidwin, Dictionary of Philosophy and Psychology. New York,
1901-1906. R. Eisler, Wôrterbuch der philosophischen Begriffe und Ausdricke. Berlim, 1909 R. Odebrecht, Klines philosophisches Wôrterbuch, Schoencberg, 1908, (*) Há muitos dicionários técnicos, tanto poliglotos como de uma só língua. () Em Roma a vogal de ligação era d; por exemplo em anniversarius, tergiversare, longimanus, pelicano, multiforme.
128
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Em compostos cujo último elemento principiava com vogal. havia e há sempre a mera raiz fil em lugar de filo, como se vê nos reflexos portugueses : fil-eleno, fil-carmónica, fil-atelista. Fil e filo são componentes de numerosíssimas criações gregas. No dicionário de que me sirvo (de Pape) contei por alto perto de mil! Nos dicionários latinos — na língua latina portanto — a pobreza é extrema, pelo contrário. Avessos à tendência helénica de enriquecer constantemente o vocabulário com derivados e compostos, os romanos não acolheram senão muito poucas dessas jóias do vasto tesouro que exploraram. Os têrmos mais usados em Roma entraram no vocabulário português. E não só no português. Éles são comuns a todo o mundo civilizado. São têrmos verdadeiramente internacionais. Além de filologia temos filosofia, filantropia, filáucia (o amor proóprio exagerado, o egoismo) filadélfia (o amor dos irmãos ou humanitarismo) ; alguns têrmos botânicos como filodendron e os três que já citei: fileleno, filarmónica e filatelista. Éste último vocábulo, com filatelismo, filatelia e filatélico, é o mais moderno de todos, um pouco mais que os próprios selos de franquiar cartlas, que formam
o seu assunto.
Como segundo elemento, filo figura em alguns compostos, cujos protótipos elaro que também são helénicos: Teófilo, bibliófilo, conduzemn a lusófilo, hispanoófilo, germanófilo, musófilo, ete. Suponho que essa transposição seja resultante de considerações eufónicas conscientes ou inconscientes. Mas nunca examinei detidamente o problema. O oposto de sual» é pitty odiar. De todo e qualquer têrmo ceujo primeiro elemento seja filo, pode-se, em teoria, formar o oposto como miso. De facto, poucos são usados todavia. O mais conhecido é misantropo — o que odeia o seu próximo — têrmo e tipo que todos conhecem da obra-prima de Motiêre. Os filósofos antigos chamavam misósofos aos que eram adversos à sabedoria e misólogos àâquêles que eram adversos à ideologia, ao pensamento racional, ao culto da palavra. Mas cessas palavras não têem histó-
ria. Foram pouco usadas (*). (*) Para que os senhores se acostumem a nunca empregar têrmos cuja nificação exacta ignorem, direi que a-tel-ísta se compõe do prefixo negativo a-(an tes de vogais c, nessa forma, correspondente ao in latino e un germânico), da raíz (1) — contribuíção, imposto, porte de correios, e do sufixo ista. — Ateleia
portanto,
o não
de franquia. E para
fórmula
pagamento que
não
de porte —
a franquia.
da
significação
se esqueçam
poética que os atenienses
aplicavam
Filatelista de à e àn
irônicamente
é o amador lhes
sigan. telera,
de selos
ensinarei
uma
nos pedantes que tinham
aversão às musas: à música, a2o eterno feminino, e ano vinho: àáuzuass (sem Musas); dvagesõizo; (sem Vénus); dscosdivoaos (sem Baco). Provérbio n que em alemão cor-
PARTE
11—
SIGNIFICADO
DE
129
FILOLOGIA
*
O segundo elemento de filologia — logia, de logos, não teve vida independente (*). Só existe em têrmos compostos em que invariàávelmente significa doutrina, ciência, erudição, conhecimento ou estudo científico; em alemão Lehre, Kunde, Wissenschaft, Gelehrsambeit.
Ésses têrmos compostos são bastantes; na maior parte, porém, mo-
dernos (neologias ou neologismos), e cada dia se podem inventar outros. Alguns já cram usados na Grécia. Entre eles teologia e mitologia. Citarei ainda antropo-, arqueo-, biblio-, bio-, craneo-, demo-, demono-, dialecto-, etno-, etimo-, fenómeno-, fisio-, fono-, freno-, geo-, gloto-, haplo-, hino-, morfo-, neo-, odonto-, onomasio-, onomasto-, pa-
leonto-, psico-, semato- ou semasio-, tematologia — e cada um poderá fáâcilmente aumentar essa lista (*). Em termino-, socio-, patrologia o primeiro elemento é latino. Quási sempre logia (sujeito) é precedido de outro substantivo
também grego que lhe serve de complemento, no genitivo, embora sem sinal exterior dêsse caso. Teologia é ciência de Deus ; morfologia, ciência das formas ; mitologia, ciência de mitos, lendas, fábulas relativas a deuses
e semi-deuses ; glotologia, ciência da linguagem. E assim por diante. Algumas vêzes há em lugar do substantivo um adjectivo, p. ex. em arqueologia (ciência do que é velho), neo-, haplo-, braquilogia ; sem modificação de sentido, porém. Só em filologia a composição é diversa, pois consta, como vimos, de uma raiz verbal e do substantivo que lhe serve de complemento — processo que mais tarde verão seguido em compostos portugueses do tipo beija-flor, louva-a-deus, salva-vidas, conta-gotas. Com alguma diferença, visto que beija, louva, salva, conta são imperativos ou terceiras pessoas do sg. do pres. do ind., emquanto fil- é mera raiz verbal (*). Em filologia, logia não é portanto sujeito. À palavra não significa ciência ou arte de amar ; não emparelha com teologia, Ciência de Deus, nem com os outros exemplos que aleguei. Pelo contrário, logia é o objecto do amor. Filologia é portanto etimolôgicamente : amor da ciência; o culto da erudição ou da sabedoria em geral. E em especial : o amor e culto das ciências do espírito (Geistes-wissenschaften) — sobretudo da ciência da linguagem, do verbo ou do logos que é distintivo do homem — expressão responde
o que
diz
Wer
nicht
licbt
Wein,
Weib,
Gesang,
der
bleibt
eim Narr
scin
Lebelang.
ódio à mulher. () Em alemão há a mais Misogyne— (!) De logos provõem numerosos derivados como: lógico e lógica e compostos, logogrifo, logomaquia, logografia. Às vezes logos designava a prosa erudita, em
como: oposição à pocsia. (*) Com êstes têrmos em logia não se podem comparar, quanto no número do casos, os grecismos que terminam em -mania, -metria, -cracia, -grafia, -patia, -scopia.
130
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
do pensamento, manifestação da alma nacional, órgão da literatura trumento de nós todos, mas principalmente e sublimadamente dos dos que, apesar de tudo quanto contra êles se tenha dito e se possa são poderosos obreiros de Deus. Sem éêles, se ninguém assentasse
e insletradizer, o que
presenciou, pensou e viu, não havia progresso nem civilização, torno a
dizê-lo. Filologia era o amor da ciência, tal qual filosofia era o amor, o culto da sapiência, ou virtude intelectual.
Concluo que filologia foi moldada sôbre filosofia (*); e que filósofos foram os que iniciaram a filologia — isto é, os primeiros filólogos. E com efeito, os dois maiores pensadores da antiguidade, Platão e Aristóteles — ambos êles grandes no manejo da linguagem pátria, c excelentes definidores e construtores de palavras — são os que nos ministram os passos mais antigos relativos à filologia, são os primeiros que documentam a palavra. Ignoro se Platão, o mais velho dos dois, discípulo genial de Sócrates, a criou; ou se já lhe fôra transmitida pelo mestre, cuja doutrina e eujos processos êle expõe, verdadeiro lampadóforo que religiosamente entregou à posteridade os fachos de Juz que lhe haviam sido confiados. Em todo o caso, o grande Idealista, ou Ideólogo, serviu-se do têrmo nos seus incomparáveis Diálogos, por exemplo no Phaedros ; no Kratylos ; no Theetetos; mas também na República. Seu
sucessor,
completador,
e em
certo sentido
seu
antagonista,
o
sapientíssimo Estagirita também fala de filologia em vários dos seus escritos, relativos à Lógica, Dialéctica e à Poética. Acrescentarei salvo érro, pois, se em Platão eu podia apontar, sem
grande trabalho, passos documentais, não o posso fazer desde já com respeito a Aristóteles. Só nos Dicionários é que vi citado o seu nome, no artigo filologia. Platão e Sócrates, bem o sabem, viveram no século IV antes da era cristã. No II, já houve um grego erudito que aplicou a si próprio o título distintivo de filólogo, orgulhando-se de o ser. Creio que o conhecerão, pelo menos de nome, pois é o descobridor dos números primos (indivisiveis) que juntos constituem a tabela que é uso denominar cribrum Eratósthenes. Ésse afamadíssimo
polihistor, de
poderosas faculdades de trabalho, fôra durante longos anos chefe da Biblioteca de Alexandria ( por nomeação de Ptolomeu Evérgeta), Biblioteca de riqueza pasmosa, na qual, entre cem mil volumes, se guardavam as
obras mais preciosas de Aristóteles, autógrafas e apógrafas, que infeliz-
(*) Se partíssemos da forma filólogo, considerando filologia, como derivada, seria lícito dar como étimo o substantivo filo (filos) — amigo. — Subsistiam ainda assim as diferenças de função e formação que apontei no texto.
PARTE
II — FILOLOGIA
E
181
FILOSOFIA
mente arderam no pavoroso incêndio ateado quando César se apoderou da Cidade.
Entre
as obras,
tôdas
fragmentárias,
de Eratóstenes
(**), que
subsistem, há além de três livros de geografia, vários de matemática, astronomia, alguns de gramática, e mesmo pocemas cultos, todos tão bem feitos, que os eoevos não só lhe deram o sobrenome de Philologos, escolhido por êle, mas também o de Segundo Platão e o de Beta. Com isto queriam dizer que, como Beta era a segunda letra do A B C grego (o bê moderno), assim Eratóstenes era segundo em todos os ramos do saber (**). Em Roma, o primeiro escritor que recebeu o sobrenome de Filólogo, foi eerto Áteius Praetextatus, autor de segunda ou terceira grandeza, de
que se não trata nos Liceus. Éle viveu relativamente tarde, no tempo áureo de Augusto, quando a magia da cultura helénica subjugava tôda a parte ilustrada da nação latina. Ésse AÁteio, grande amigo de Salústio, distinguia-se, segundo informa Suctónio, pela variedade dos conhecimentos científicos que adquirira: quia multiplici et varia doctrina censebatur (**). Essa nótula singela, relativa ao nobre gramático Latino, e que podia reforçar com os aludidos trechos de Platão e outros de Plutarco e Cícero, contém in nuce a indicação certa do que eram os filólogos (e por-
tanto a filologia) em Roma e Atenas (”*).
tia — amigo
() E depois de filologia mais alguns dos compostos com filo — como filomadesejo de aprender, amor do estudo — em alemão Lernbegierde; filómusas —
das musas. (Em português musófilo, conforme deixei dito). Assim (filómusas) se chamam os membros de uma Sociednde literária de Atenas, fundada em 1812. () As obras de Eratóstenes foram publicadas em edição crítica por um alemão (Bernahrdy, Berlim, 1822). () Beta subsiste em português, como em quási tôdas as línguas modernas, no nome culto do A B C. Dizemos alfa-beto com o, em lugar de Alpha-Beta, por serem em regra femininos os nomes em a, e masculinos os que terminam em o. Alfa, claro,
que é a primeira
letra. A última
é O- grande,
o- duplo, o- largo:
omega.
Às
duas
letras juntas figuram na fórmula alfa e omegaa--o, para designar o que é princípio c fim aão mesmo tempo: a eternidade portanto. Em sentido figurado designa o ponto principal, o âmago de qualquer assunto. Não sci se os senhores todos, sem excepção, conhecem e lêem correntemente, letras gregas? Entendo que pelo menos deviam estar familiarizados com o alfabeto, para procurarem sem dificuldade nos dicionários as palavras cujo valor ignorassem: — Cicchi ma non tnimici della luce, no dizer — cegos talvez, mas não inimigos da luz.
de Dante. () Também a respeito de Ateius Praetextatus há um trabalho germânico. de H. Grafíf, De Ateio Philologo nobili Grammatico latino, (Leipz. 1860).
É
Aproveito o ensejo para lembrar que os filólogos latinos, sobretudo os prati— tinham na vida comum o nome de gramáticos, porcantes, —isto é, os professores que a gramática era antigamente a parte principal, e ainda é hoje uma das partes principais, do ensino das línguas.
132
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Digamo-lo mais uma vez: Filologia era o culto das ciências em geral ; em especial o culto da ciência da linguagem ; ou de todas as ciências em que o logos, o milagre do verbo, a arte de definir e discursar, é cultivada. É o culto da gramática, dialéctica, retórica e lógica, assim como
das belas letras. Para os latinos, filologia era o culto da língua, literatura e cultura helénica. Filólogos cram os homens que se distinguiram quer pela vastidão, multiplicidade e profundeza dos seus conhecimentos gerais, quer pelo culto especial das ciências da linguagem. Homens que formavam uma espécie particular do género dos filósofos, os quais, amando igualmente a sabedoria e a linguagem como maravilhosa instituíção social, amavam e cultivavam sobretudo a sapiência ou virtude intelectual.
Os filósofos precederam os filólogos de mais de um século : Segundo Cícero, foi Pitágoras o formador da palavra filosofia (século VI A. C.) Até êsse tempo, o grego que reflectia sôbre os enigmas mundiais, e principalmente sôbre simples problemas éticos, chamava-se Sábio. Os cehamados
sete sábios tradicionais
da Grécia,
são
anteriores
a
Pitágoras (**). (Sábio em grego é sophos; sabedoria é sophia, nomes que ainda subsistem independentes). Pitágoras
(cujas
teses
geométricas,
aritméticas
e
matemáticas,
incluindo a principal, chamada magister matheseos e ceuja tabula os senhores devem conhecer melhor do que eu) foi o primeiro que com nobre isenção e modéstia, se chamou
em lugar de Sábio, mero amador e pro-
curador da sapiência — não sophos, mas apenas philosophos (*). *
Na Idade-Média, depois da criação das Universidades, a filologia continuou a ser parte integrante da filosofia, embora se não dessem sempre a ambas as ciênciaos êsses nomes. À faculdade de filosofia cra chamada em geral Ártes ou AÁrtes Liberais, em oposição às faculdades de Leis, Medicina e Teologia, e dividia-se, mais aristotélica que platónicamente, em duas partes: o quadrívio matemático ( geometria, aritmética, astronomia e música) e o trívio filológico: gramática, retórica e dialéctica. Tudo em latim e relativo à cultura romana. Só no tempo do Renascimento — de 1300 em diante — mas sobretudo quando depois da tomada de Constantinopla pelos Turcos (1453) () Quem pronunciasse, erradamente, filólogo, errava-lhe também Pois filológo seria: o que diz (enuncia) a palavra filo (amar). (*) Memoremos os seus nomes: Bias, Quilon, Tales, Sólon, e Cleobulo.
o sentido. Periandro
PARTE
11— FILOLOGIA
E FILOSOFIA
133
numerosos Gregos se refugiaram na Itália, e reacenderam o fogo sagrado do helenismo, é que houve novamente filologia: filologia greco-latina, ou filologia clássica (”). E até fins do século XVIII não houve outra filologia senão esta clássica. Só depois de investigadores alemães haverem descoberto espiritualmente, por assim dizer, a Índia, que os Portugueses haviam descoberto materialmente no século áureo da sua história;
isto é, depois de os ir-
mãos Schlegel haverem estudado os livros clássicos e arcaicos da Índia (**) e depois de Franz Bopp ter reconhecido e demonstrado o parentesco do sânscrito com os principais idiomas cultos da Europa, é que houve filo-
logia indo-germânica (*). Quási simultânceamente foram lançados os fundamentos da filodlogia germânica por Jakob Grimm, e os da filologia românica (neo-latina) por Friedrich Diez. As obras principais dêste sábio professor de Bonn (uma gramática comparada e um Dicionário etimológico, igualmente comparado, das principais línguas românicas) imprimiram-se de
1838 a 1853 (”*). Mais tarde veio a filologia céltica e a eslávica, assim como, fora do campo indo-germânico, a semítica; e veio a inglêsa (*), a portuguesa, etc.
À medida que a investigação se ia aprofundando, sentia-se não sômente a necessidade de estudar cada língua àparte, mas também a de separar o estudo das línguas do das literaturas de cada uma delas. Bopp, Grimm, Diez e todos os sucessores abstraíram da literatura (”) Desde então a arqueologia (o estudo de todos os objectos materiais antigos, sobretudo dos que têem valor artístico) anda de mãos dadas com a filologia. — Cultivada de 1453 em diante, ela só foi transformada em ciência perto de 1800 por um erudito alemão, Winckelmann de nome. A princípio meramente clássica, ela ramificou-so no século XIX em arqueologia oricental, egípceia, cristã e bíblica. E modernamente: arqueologia pré-histórica e histórica de cada um dos povos indo-germânicos, cada dia mais florescente. () Friedrich von Schlegel publicou em 1806 a obra fundamental sôbre a língua e a literatura (ou filosofia) dos Índios: Úbcr dic Sprache und Weisheit der Indier. August Wilhelm foi desde 1818 professor de sânscrito na Universidade de Bonn. (”) Bopp começou a publicar trabalhos lingúísticos acêrca do sânscrito em 1816 (sôbre as conjugações). O Glossarium e a gramática comparada saíram de 1833 em diante. Entre os seus sucessores, são os mais notáveis Pott, Fick, Schleicher, Curtius. () Diez não se serviu da designação filologia románica. O primeiro que a empregou piblicamente — depois da aparição das obras basilares que citei — foi um grande poliglota, nrguto etimologista, e conhecedor abalizado da língua e da literatura provençal: F. Mahn, de Berlim, num opúsculo que trata das origens, da importância
e dos fins da filologia
()
românica
(Berlim,
1863).
Tenho em mente uma obra de Johan Storm, prof. da Univ. de Cristiânia, de 1884 (ITcilbronn). Ao título Enplische Philologie, &le junta o sub-título: Anleitung sum wissenschaftlichen Studínum der englischen Sprache.
133
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
prôpriamente dita — só trataram de línguas: para êsse fim, claro que utilizaram textos arcaicos, mas apenas para documentação das formas que explicavam. A divisão fês-se porque em tôdas as nações eultas a literatura é campo tão vasto e fecundo que exige uma cultura independente. Só em obras enciclopédicas, divididas entre muitos obreiros, é que se reúnem línguas e literaturas (*). Pelo motivo indicado começou-se a dar ao estudo científico das línguas, e à ciência da linguagem nomes especiais, como glotologia, glótica (**) ambos do grego glotta (língua e linguagem — órgão e seu pro-
duto) (*) mas também lingiiística — ao modo latino. *
Deixando êsse tema para outro dia, direi ainda duas palavras sôbre a terceira acepção de filólogo e filologia, a qual é derivada e pejorativa. Ela é sobretudo latina. É sabido que os Romanos gostavam do estilo lapidar, muito conciso, e preferiam acções às palavras.
Típico, modelar para êsses dois característicos é a frase Res non verba — frase proverbial muito citada, à qual os habitantes da Gália, os futuros Franceses, contrapunham an outra: Verba apud nos plurimum valent. Todos aquêles letrados ou iletrados que em Roma cultivam excessivamente o verbo, os que eram muito amigos de falar, muito propensos a discursar, eram apodados de filólogos : De palradores. Quando o uso bom e moderado da palavra se tornara em abuso (o que acontece muita vez em artes, ciências e costumes sociais) filologia ()
A grande Enciclopédia Românica de G. Grocber,
Grundiss .der romanischen
Philologic, abrange as gramáticas (sobretudo fonológicas) de sete línguas românicas; o latim vulgar; a literatura latina medicval de 550 a 1350; estudos sôbre línguas préromanas (as célticas e o basco), outros sôbre assuntos limítrofes como a história polf-
tica das nações, a da cultura, da arte e das ciências; e também sôbre paleografia, mevodologia; além disso a história da filologia nos diversos países. (P) Glotologia é preferível porque glótica tem outra significação, anatómica. Os povos germânicos, e mesmo os Franceses, preferem traduzir êsses têrmos dizendo: Sprachwissenschaft — Sceience of Language ou Linguistie Science — Science du Langage, sobretudo quando falam da ciência em geral, sem aplicação a uma determinada língua. (*) Em grego havia glossa e glotta. À primeira forma é ática. A segunda iónica. Os letrados latinos só aceitaram glossa (de onde provém Glossário). — Os semi-eruditos e os leigos pronunciavam glosa (com o breve e um só s). — Esta forma designava na Idade-Média a explicação ou interpretação de uma palavra antiquada. — Listas de glosas são muito importantes para a lexicografia românica. — Ambas as pronunciações subsistem nas línguas neo-latinas. Em português temos glossário (têrmo erudito) e temos glosa, com o verbo glosar grosar (têrmos semi-eruditos): a forma verdadeiramente popular seria chosa e glosar tem o sentido
PARTE
11 — FILÓLOGO
E FILOLOGIA
135
desceu portanto da acepção primitiva de arte e ciência, culto e amor da linguagem, à de vício de falar, verbomania ou mesmo verborreia, como já ouvi dizer a um eminente escritor português que adora o laconismo e a simplicidade expressiva, a respeito de outro que é palavroso e improvisador impulsivo. É todavia preciso não confundir culto e abuso, a eloqilência com a loquacidade. * *
*
Agora outra nota, etimológica e ortográfica. Em grego havia três raízes diversas, mas de som quási igual na pronúncia dos Neo-latinos, que não distinguem t e y (i-grego) nem entre f e ph (a aspirata). A par de s) de que tratarei até aqui, havia çsc —tronco geneofôlha lógico, géncero, espécie (em alemão Sippe, Geschlecht) e a
(com dois 1!) (*). Em português tôdas têêm a mesma pronúncia. E têem na ortografia simplificada (igual nesse ponto e em muitos outros à castelhana e
à italiana), também a mesma grafia. Haveria perigo de confusão se o segundo elemento dos compostos não ajudasse a distinguí-los. Ainda assim talvez êsse perigo subsista em alguns têrmos como filodendro, filoxera.
Quanto a phyl, tronco, apenas me recordo de haver lido filogênese em autores portugueses (na Alemanha dizemos Plylogenie), têrmo usado pelos antropólogos, quando falam da evolução dos organismos. Com relação a phyIl, fôlha, há exemplos botânicos e zoológicos. P. ex. phyllanto (filanto) é uma flor que é tôda fôlha ; phillophagos (filófagos ) são inscctos que comem fôlhas ; phylloxera é (se me não engano) sequidão das fôlhas.
figurado de fazer observações críticas a qualquer respeito, em geral sôóbre o nosso próximo, Mas glosa, grosa, denomina também um género poéticô, de origem peninsular, em que se parafraseia uma letra ou cantiguinha, chamada Mote. () Phyl e fol (abstraído de folium, folia) -são etimolôgicamente a mesma coisa. À forma grega era usada em Roma em nomes botânicos que o vulgo popularizou. Por isso ela subsiste, mas muito modificada, em alguns vocábulos peninsulares. P, ex. em trevo e azevo (ilex; com o der, Asevedo). Eu, pelo menos, derivo êsses dois vocábulos de phyll (zaiQu22os ) acífilo: e não de trifolivm, acifolium, porque cssa derivação é materialmente impossível, por causa da diferença no acento, que é, como sabem, a alma da palavra, e não se muda a não ser em circunstâncias muito especiais.
LIÇÃO U HISTÓRIA
DA
FILOLOGIA
Expliquei o que é filologia etimolôgicamente, isto é: o que foi nas suas origens.
Disse em duas palavras (*) qual era o sentido lato do amor do logos (do verbo ) em que há vinte e quatro séculos Sócrates e Platão filologaram, expondo com suprema arte dialéctica (*) aos seus apóstolos, a sua nobilíssima ideologia, em diálogos em prosa mais bela que a poe-
sia (**), diálogos em que podem deleitar o seu espírito todos quantos amam discussões filosóficas sôbre problemas éticos e estéticos (**). Expus o sentido mais restrito, mas ainda assim bem largo, em que Eratóstenes e Áteius Praetextatus e todos os eruditos enciclopédicos de
Atenas, Alexandria e Roma se chamavam filólogos : conhecedores de muitas e diversas noções científicas.
Nem deixei de mencionar qual é a acepção derivada, irónica om pejorativa (de pejor pejus, comparativo de male), que o espíritos cáus(*) Não caf no absurdo de realmente querer condensar em duas palavras as doutrinas socráticas e platónicasó!. — Definindo-as como «ensino da virtudos, apenas quis despertar o interêsse dos meus ouvintes. (”) A dialéctica — ou arte de raciocinar lôgicamente e de argumentar com método e justeza — foi ensinada pelos dois filósofos gregos dialogisticamente, Ainda hoje se chama socrático o sistema de ensinar interrogando os discípulos com engenho e arte, e de tirar das suas respostas, lacónicas embora, matéria para continuar a discussão e dirígi-la no sentido preestabelecido pelo Mestre. O oposto chama-se acroamático: 6 o das prelecções, conferências ou lições magistrais, em que a actividade dos discípulos é de mera audição. Actividade que às vêzes parcece ser, mas nem sempre o é — passividade. (*) Esses diálogos são as próprias conversas idealizadas e sistematizadas que foram a sobremesa, realmente sublime, das celas dos Atenienses cultos. AÀAs casas dos menos cultos contentavam-se, também em Atenas, de música, dança e bacanais. ' () O mais perfeito, mais sugestivo daqueles Diálogos de Platão em que Sócrates é duca, signore e macstro é o Phaedon ou Sôbre a Imortalidade da Alma —
reprodução
idealizada,
porventura,
da
última
palestra
daquele
Justo
ou
Sábio-
-Mártir, sustentada na prisão até o momento de, no pôr do Sol, lhe trazerem o cális de cicuta que esvaziou com placidez suprema, lembrando com o último alento aos amigos «não esquecessem de sacrifiear um galo a Asklépias, que o livrara da doença da vida». Esse Diálogo (seja dito de passagem) era lido em Portugal, no brevíssimo tempo áureo dos estudos humanísticos. Um filho do próprio D. João III, isto 6, do Monarca que havia instaurado e depois aniquilado êsses estudos — citou o Phaedon. Igualmente belo é o Symposion (nome clássico dos festins ou banquetes atenienses) Sôbre o Amor, celebrado em casa de Agathon. Encantador é também o Symposion de Kalias, redigido não por Platão, mas
PARTE
11 — FILOLOGIA
E LINGUÍSTICA
1387
ticos deram às vêzes (**) no significado amador do verbo, empregando-o para censurar qualquer verbómano, ou qualquer pedante. Indiquei como assuntos do ensino filológico, escolásticamente e monâsticamente ou teolôgicamente circunserito, nas Universidades europeias medievais, do século XTI em diante, as três disciplinas da gramática. retórica e dialéctica. Toquei na transformaçião dêsse trívio das Artes Liberais em ciência da antiguidade clássica, no tempo glorioso do Renascimento — a qual perdurou até o século XTX. Mas não explanei ainda que todo o Renascimento (no século XV ) dos estudos profanos, pagãos, greco-romanos, preparado de 1300 em diante, não é na essência senão o ressurgimento da verdadeira filologia:. Nem defini suficientemente filologia no sentido de lingiiística : como conhecimento das línguas clássicas em tôda a sua amplitude, forma
e essência (*). Para preencher essa lacuna vou historiar em rápido escôrço as evoluções da filologia como ciência ensinada, indicando quais as disciplinas que foram cultivadas pelos representantes antigos, pelos medievais, pelos do Renascimento e pelos modernos; e quais as que se lhe juntaram desde que a glotologia ou a ciência da linguagem em si, a filologia indogermânica, a românica, a etnologia, a prehistória e últimamente a ciência da enxada, conduziram a resultados imprevistos.
*
Primeiro a Grécia. Quando a assombrosa fôrça inventiva do génio helénico, que criara quinhentos anos antes de Cristo tôdas as ciências e artes, a prosa artística por Xenofonte, o historiador que ilustre, já se vê. Aos que não sabendo grego, tar) excelentes traduções.
igualmente entendam
fôra alemão,
discípulo posso
de
Sócrates:
recomendar
menos
(e empres-
() Modernamente, filólogo tornou a tomar, ocasionalmente, significação um tanto injuriosa, pelo menos na Alemanha: a de pedante. O motivo está em que numerosos filólogos, praticantes em ginásios e liceus, restringiam naturalmente o ensino clássico a sêcas regras gramaticais e a explicações de vocúbulos e palavras,
coisas fúteis que o vento leva, e opostas às ídéias, ao entender de muitos. (*) Para que vejam como avaliam a filologia lá fora — apesar do que eu disse na nota antecedente — vou citar uma Jlinda sentença: ÀAs chaves do templo da pocsia estão na mão dos fiólogos. Assim o diz um dos mais abalizados Ilelenistas vivos, Ulrich von Wila movwitz-Móllendorf, Grega, em que se
tudo de um
sob aspectos coração
genro de Mommsen, na sua admirável JHistória da Litcratura abstém por completo de apreciações convencionais, examinando
novos —
ardente,
do alto de um
saber
estranhamente
vasto,
e do fundo
138
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
e todos os géneros poéticos cultivados nas literaturas — a cepopeia, a tragédia, a comédia, o idílio, a ode, o epigrama, a elegia, a epístola, a ora-
ção, a fúbula, a historiografia, a novela — interrompo-me aqui para não fazer o relato mais longo — quando essa assombrosa fôrça inventiva ia declinando, os descendentes começaram a sistematizar as ciências (como Aristóteles ) e a alimentar-se e inspirar-se nos tesouros nacionais disper-
sos pelo país fora. Coleccionaram,
trasladaram,
interpretaram
e restauraram
então
os monumentos antigos — deturpados ao passarem tradicionalmente, ou em sucessivas cópias, de geração em geração, de dialecto de uma paiíisagem no dialeto de outra paisagem. Intérpretes
naturais
dos autores eram
os que costumavam
ensinar
língua c literatura pátria: os gramáticos e os pedagogos. Principiando com comentários meramente vocabulares, métricos e etimológicos, passaram breve da crítica dos textos à hermenêutica, isto é, à explicação de idéias, factos, alusões e coisas reais, ( Realia, como se diz em latim, Realien em alemão, hoje Sachen ).
Para bem comentar qualquer autor arcaico, em tôda a amplitude do têrmo — proporcionando naos leitores o conhecimento da vida íntima da nação no tempo dêle, sobretudo para bem explicar cabalmente Homero, o mais antigo, mais lido e famigerado dos autores helénicos — para tratar condignamente as lendas históricas e mitológicas e tôda a cultura de que há manifestações na TIlíada e Odisseia, era preciso um saber enciclopédico. Os fundamentos (é bom acentuá-lo sempre de novo), eram contudo estudos aprofundados da linguagem : do valor primiítivo dos vocábulos, da fonologia, da morfologia, dos dialectos variegados, assim co-
mo das evoluções da linguagem literária da Grécia e das suas colónias. da
Em Alexandria, fundação de Alexandre Magno, entre os eruditos admirável Biblioteca, coleccionada por Ptolomeu Evérgeta — a
quem já me referi na lição passada — essa tal actividade reprodutiva, restauradora e interpretadora, estribada em conhecimentos extensos e variados,
teve um
enorme
incremento.
Além de Eratóstenes, chamado Philologos e N.º 2 (Beta ) teem fama geral dois sagacíssimos intérpretes de Homero: Zenódoto, que coordenou os livros das duas epopeias e fixou uma redaceção dos textos homéricos com glossário e notas; e -Íristarco, que redigiu, se a tradição não exagera, oitocentos comentários poéticos, tão rigorosamente críticos que
o seu nome-próprio passou a denominar qualquer censor severo. A primeira gramática elementar grega de fonética e morfologia foi redigida por Dionysios Trax (cem anos À. C.). Só cento e trinta anos depois do nascimento de Jesus Cristo é que Apollonios Dyskolos estabeleceu as regras da sintaxe.
PARTE
H — FILÓLOGOS
HUMANISTAS
139
*
Os Latinos aprenderam dêsses e doutros Gregos os métodos da exegese e restauração dos textos, e a importância das análises etimológicas ; numa palavra — a verdadeira filologia. Na prática foram em
regra libertos gregos os que instruíram
os
vencedores, escravos ilustrados que serviam de mestres em casa dos seus amos. Depois de Áteio Pretextato veio Marco Terêncio Varro. Dêste subsistem
livros curiosos, mas indigestos e desordenados, sobretudo
de
antigualhas ; notáveis todavia pelo espírito patriótico que o impulsionava. Os sucessores, êsses compilavam trabalhos mais antigos, prestando com isso bons serviços. — P. ex. Marciano Capela (400 P. C.) e Prisciano (500). *
Quanto à Idade-Média, em lugar de progresso houve retrocesso. De greco-latina a filologia desceu a latina. E que Intim! Tôdas as ciências eram um mixto desconsolador de noções exactas e de lendas ou fábulas. Havia absoluta falta tanto de compreensão da história como de senso crítico. À interpretação dos textos era essencialmente alegórica. Tudo era relacionado com as doutrinas da Igreja Cristã. Passos que se não prestavam a isso eram arbritrâriamente refeitos ou eliminados.
O estudo do direito romano (na Universidade de Bolonha), o da medicina grega (em Salerno) através de versões arábicas e com intervenção dos Ilebreus, — as relações políticas e celesiásticas com Bizâncio,
e o costume de ensinar e eserever em latim, sustentavam todavia até certo ponto a tradição clássica. O ensino da gramática, retórica e dialéctica continuou, conservando-se porém estacionário. Nu
essência
êéle era igual em
Pádua,
Paris,
Salamanca,
Lisboa
e
Coimbra: as Institutiones Grammaticae de Prisciano e n Enciclopédia de Marciano Capela, poêticamente intitulada De Nuptiis Philologiae et Mercuril, eram aprovceitadas em tôda a parte. Nos escritórios de alguns conventos (Montecassino, S. Gallen ) sobretudo de Benedictinos, conservavam-se euidadosamente tesouros de antiguidade, de que se tiravam cópias para reis, prelados c frades eruditos de outros mosteiros (**). O latim medieval, língua da missa e das orações, língua do púlpito e dos documentos, acorrentada embora por peias teológicas, evolucionara ainda assim, afastando-se cada vez mais dos tipos modelares. De 1300 em diante foi reconduzido pouco a pouco à pureza nativa (pelo menos quanto à intenção) por Italianos ilustres: poetas como Pe() Na Biblioteca Nacional de Lisboa subsistem os trabalhos gramaticais e lexicológicos que serviram aos Monges de Alcobaça. Entre êles há um Prisciano.
140
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
trarca e Boccacio, que se entusiasmaram por Vergílio, e verdadeiros filólogos (latinistas) como Laurentius Valla, Aldus Manutius. Em França floresceu Despauterius. No país vizinho António de Nebrixa, mestre em
Alcalá de Portugueses como André de Resende, o antiquário c epigrafista notável. Foi de aí em diante, nos séculos XV e XVI, era do Renas-
cimento, que a Filologia (levantada de novo a greco-latina desde que — já o disse — Gregos refugiados na Itália depois da tomada de Constantinopla pelos Turcos reacenderam o fogo sagrado) recebeu o nome de Humanidades — Iumbanitates — Studia Humaniora — ou simplesmente Humaniora (*).
IHumanitas já designava, no tempo de Cícero, (*') a cultura harmónica
— intelectual, afectiva
c moral —
do homem,
aquela
cultura
superior que só se conseguia pelo estudo dos poetas e filósofos helénicos. Agora tornava a designar novamente essa mesma cultura superior, profanna, emanada dos autores pagãos, helénicos e seus imitadores romanos, em
oposição aberta, consciente, ao acanhado
espírito escolástico
e mo-
nástico da Idade-Média. A actividade dos filólogos humanistas foi notabilíssima: Houve edições críticas e comentadas. traduções, imitações de todos quantos géneros poéticos devemos à Grécia — incluindo poemas épicos, tragédias e comédias — propagadas abundantemente desde a invenção de Gutenberg. Houve em seguida evolução clássica das literaturas e artes nacionais. O interêsse por tôdas as antigualhas romanas, pré-romanas e pós-romanas criou a disciplina da Arqueologia. Não me compete falar disso
detidamente. Só lembrarei que há uma obra fundamental sôbre o IHumanismo em geral (**), outra sôbre a Renascença italiana (*), ambas de investigadores alemães. Mas falta ainda a que se ocupe do Humanismo c da Renascença peninsular. Ou meramente da Renascença portuguesa. *
Portugal teve excelentes latinistas, sobretudo bons poetas latinos, como poderá verifiear quem quiser nos oito volumes do Corpus Tllustrium Poetarum Lusitanorum ; e excelentes prossadores também, que es(*) Os nomes dos Gregos Chrysoloras, Gaza, Bessarion, creio que serão menos conhecidos ainda em Portugal do que os dos Grecistas Poggio, Pomponio Leto, Marsílio Ficino, seus discipulos. (*) Foi em Cícero que os homens do Renascimento encontraram homines humani — no sentido de literâriamente cultos.
(*) Voigt, Die Wiederbelcbung des kKklassichen lim, 1880-81). (”) Jakob Burckardt, Die Kultur der Renaissance 1877-78). — Já há
4º.
Altertums in Ftalien
(2
vol,
Ber-
(3.º ed. Leipzig,
PARTE
11 — FILOLOGOS
HUMANISTAS
141
colheram a entito língua internacional dos eruditos para que o estranjeiro soubesse das façanhas lusitanas. Em outro país já existiria de há muito uma Biblioteca Latino-Portuguesa, destinada a vulgarizar, por meio de traduções, pelo menos aquelas obras de Damião de Góis, André de Resende, Diogo de Teive,
etc., que dizem respeito a Portugal. Mas ; quando virá ela, se nem dos principais autores vernáculos temos edições bastantes? Muitos dêsses Latinistas estudaram no estrangeiro, alguns cram es-
trangeiros transplantados a êste reino, para onde D. Manuel ou D.
João TT
os chamaram.
O português Ermígio Caiado, p. ex., discípulo de Ángelo Poliziano, iniciara em Florença, na Academia dos Médicis, o bucolismo português, em 1500, antes de Bernardim Ribeiro e de Sá de Miranda, com imitações
Iatinas das Eclogas de Vergílio. Em
1537,
Mestre
Nicolau
Clenardo,
filólogo flamengo,
chamado
para instruir os filhos de el-rei D. Manuel, antecipava em Braga o ensino directo das Berlitz-Schools, adestrando (com ajuda dos seus três escravos prêtos: Dentudo, Nigrino, Carvão, que já foram seus discípulos em Évora) a mocidade bracarense na arte de falar latim, com tanto entusiasmo e êxito que as eriadas nas cozinhas, os almocreves nas estradas,
os sapateiros nas suas lojas, cantavam trechos de diálogos latinos, sôbre coisas corriqueiras, ideadas por élec.
Nesse mesmo tempo, Mestre Fabrício explicava Homero em grego, aqui em Coimbra. Na côrte havia damas eruditas : Resende, ao referir-se a elas, dizia
que cum omne venustate certant eruditione ; festejando-as non tantum in sexus honorem. Basta nomear Joana Vaz, oriunda desta cidade, e Luísa Sigea — as duas mestras latinas da Infanta D. Maria. Em Évora, Hortênsia de Castro perorava em público. No estranjeiro brilhavam, p. ex., primeiro D. Miguel da Silva, e posteriormente Áquiles Estaço como arguto editor de Cícero, Catulo, Tibulo. Mas êsse período brilhante foi de curta duração — fugacíssimo. Em Coimbra não chegou a um decénio. À transferência definitiva da Universidade para as margens do Mondego c a grande Reforma clássica vieram tarde de mais. Coincidiram, em 1537, quási com o Concílio Tri-
dentino, a introdução da Censura e da Inquisição, e com o triunfo da Companhia de Jesus, à qual os Colégios foram entregues em 1546. Ainda assim houve no século seguinte dois filósofos portugueses que se distinguiram lá fora como pensadores sagazes — apesar de os peninsulares em geral terem sido avessos tanto a lucubrações metafísicas como à crítica da Razão Pura. Tomem nota dos nomes Francisco Sanches e Uriel da Costa. O primeiro foi um precursor de Descartes, autor do Cogito, ergo sum, o poderoso adversário do ensino escolástico ; o se-
142
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
gundo é precursor de Espinosa, o grande Panteísta, e como êle de estirpe judaica. O tratado de Sanches Quod nihil scitur (*), já analisado por um
douto alemão (**) ainda não foi nacionalizado (*). As idéias céptieas e epicureias de Uriel da Costa sôbre a Imortalidade da Alma (de que há fragmentos no tratado do seu adversário Samuel da Silva) precisam de
transcricão e de um comentário (*). *
Regressando à filologia, frisemos de novo que em tôda a parte só havia filologia clássica — ciência da antiguidade clássica — Altertums Wissenschaft. Ciência mal cimentada a muitos respeitos — sem sólida base. Parecida nos países cultos, não era igual em todos. Pode
dizer-se que
os povos
neo-latinos,
sobretudo
os italianos e
os peninsulares, ligavam importância só ao lado formal dos estudos clás.sicos: a retórica e poética. Falar e escrever latim com
elegância
ciceroniana
cra a ambição
principal (“*), conquanto naturalmente o estudo dos vocábulos obrigasse também ao estudo das coisas e conduzisse a conhecimentos variegados, enciclopédicos, como na antiguidade. Os Gernanos, pelo contrário,
e também os Franceses, como nação
germano-latina, favoreceram a parte ideológica, pagã, fomentando assim a luta contra os escolásticos medievais, e o surdo e secular antagonismo do Norte contra o Sul, cujo produto inevitável foi a Reforma da Igreja. AÀ ciência livre, a crítica livre, a investigação desimpedida, eis o
lema de Erasmo, Melancehton, Reuehlin. Spiritus flat ubi vult. Ao estudo das duas linguas clássicas juntaram êles o do hebraico. AÃo da gramática, retórica, métrica, o da arqueologia, incluindo a
história antiga. Mas só no século XVIII, o estudo da arte antiga chegou
(*) Lugduni, apud Ant. Gryphum (58). (”) Dr. Ludwig Gerkrath, Franz Sanchez, ein Beitrag philosophischen Bewegungen in Anfange der Neueren Zeit, Wien,
zsur Geschichte der 1860. * [Quod Nihil Scítur começou a ser publicado em tradução portuguesa no ano seguinto (1913), pelo professor Basílio de Vasconcelos, na Revista de Ilistória do Sr. F. de Figueiredo, Vol. IT e ss.]) () Amesterdam, 1623. No livro do Sr. Dr. Mendes dos Remédios Os Judeus Portugueses em Amsterdam, Coimbra, 1911, há muitos clementos novos, AÀ autobiografia de Uriel da Costa — Exemplar humanace Víitae — foi traduzida muito bem por Epifânio Dias, com o título Espelho da Vída Humana. Lisboa, 1901. (*) Os melhores estilistas íam para secretários dos Pontífices. Exemplos: Bembo
e Sadoleto.
Ambos
dles venerados
pelos poetas portugueses.
PARTE
11 — SÉCULO
XIX
143
a ser constituído em ciência (* ). E só nessse mesmo século se conseguíu que os ensinadores lingilísticos da juventude, nos gimnásios, fôssem não teólogos, mas filólogos independentes. Na Alemanha e na França. Entre êsses houve escolas diversas: formalistas que, como os Meridionais, consideravam o estudo da linguagem como parte principal da filologia e queriam traduzir filólogo por glotólogo (Sprachforscher, Sprachgelehrter ) ; materialistas que opunham a êsse modo de ver a superior valia dos estudos históricos, incluindo as ciências limítrofes (a política, a ciência das religiões, a da cultura e a arqueologia). Foram êstes que deram à filologia clássica o nome de Ciência da antiguidade —
Altertums-wissenschaft (“). Materialistas ou realistas porque partiram das coisas, não dos vocábulos. Já então não faltava, porém, quem reconhecesse que nunca se devem separar coisas e vocábulos no bom ensino das línguas. O costume de os filólogos e muitos filósofos (“*) escreverem em latim, perdurou. Até 1870 todos os doutorandos alemães tinham de reduzir as suas dissertações ao idioma morto, fôsse qual fôsse o assunto. E mesmo as prelecções dos professores de medicina tinham sido Jatinas até 1850. *
No século XIX o campo de acção dos filólogos alargou sensivelmente, desde que se descobriu de um lado a Índia — e pelo outro lado se descobriu o latim vulgar, familiar ou falado e seus descendentes moder-
nos: as línguas românicas. Impossível explicar-lhes hoje, em poucos minutos, a importância que teve.
O estudo das línguas indo-germânicas levou pouco a pouco ao exame e à classificação genealógica, não só das línguas que, não sendo indo-curopeias, pertencem ainda assim a povos da caucásica (semitas, hamitas, drávidas); mas também a novas investigações sóbre as línguas da raça mongólica, as americanas, africanas e da Oceania: ao todo mais de duas mil linguagens diversas. E êsse estudo transformou por completo as idéias antigas sôbre as origens da fala. À idéia bíblica da monogénese divina do homem (e da fala como dom também divino) num ponto paradisíaco do globo terrestre, foi abandonada ; e também
madificada a lenda tão significativa da Tôrre de Babel: a dispersão dos povos no espaço onde as línguas se dividiram. (“) Por Winkelman que víveu de 1717 a 1768. (“) Quem desejar instruir-se n êste respeito leia A. Bockh, Vorlesungen ucber Encyclopacdie der Philologic, 1874. (º) Depois de Espinosa, ainda Leibnitz e mesmo Kant serviram-se ocasional. mente do latim.
144
LIÇÕES
Começou-se
DE
a considerá-la
FILOLOGIA
como
PORTUGUESA
fenómeno,
instituíção
ou activi-
dade social, psico-fisiológica — criação lentíssima, humana... Da geologia e paleontologia saíu depois a pré-história. A ciência da enxada, ainda mal principiada, já trouxe c traz constantemente
à flor da
terra, por meio
de escavações
sistemáticas,
sur-
prêsas e novidades: pré-históricas e também históricas, incluindo textos egípcios, assírios e babilónicos, gregos e latinos. Em
1899
achou-se,
p. ex., no Fóro
romano,
uma
inscrição
que
constítui o texto mais antigo latino até hoje conhecido. Iei-de me referir a cla, no futuro, mais de uma vez. Os resultados novos são tantos e tais
que afoitadamente se pode dizer que estamos nos umbrais de um período novo das ciências espirituais e da filologia — em que ela abrangerá êsses ramos recentes.
Criaram-se
como
disciplinas novas e ciências auxiliares, além
da
pré-história e da arqueologia, a antropologia, a paleografia e a epigrafia; o folclore (ou seja o estudo das literaturas populares, orais: Tradições, lendas, costumes, crenças, superstições ) ; a etrnografia e a etnologia, que tratam das manifestações materiais da actividade popular, e da formação e do carácter físico dos povos. Tôdas clas são ensinadas em cadeiras especiais, nas Universidades da Alemanha e da Áustria e também nas mais desenvolvidas dos outros países.
As antigas disciplinas aprofundaram-se e tiveram de desdobrar-se. Em tôdas elas surgiram problemas novos — e os velhos são encarados sob novos aspectos. Os lntinistas especializaram a língua de Roma em Alto-Latim (Iochlatein ) ou latim clássico, e em Baixo-latim ou Latim pós-clássico, Latim pré-clássico ou Latim arcaico. Distingue-se entre La-
tim escrito e Latim falado. Aos Filólogos clássicos ou antigos (Alt-philologen ) juntaram-se os das línguas e literaturas modernas (Neu-philologen ) e os Indo-germanistas, Orientalistas, Celtistas, Bascófilos.
Nas magnas reúniões periódicas em que os filólogos alemães têéem o costume de conferenciar, em diversas cidades universitárias, no tempo
das férias (Setembro), já de 1837 em diante (**) — há hoje dez secções diversas : Filologia clássica — Romanística — Germanística — Filologia Inglêsa — Indo-germanística — Orientalista — Arqueologia — IHistória e epigrafia — Pedagogia — Matemática e Ciências Naturais (“*). tôdas elas se trabalha activamente.
E em
Basta abrir um Anuário (Jahresbericht ) ou uma das grandes Revistas como Zeitschrift fiir Klassiches Altertum para ver que não há
(“) (*)
Os Neu-Philologen reúnem-se também quási todos os Os relatórios são publicados em Leipzigr (desde 1861).
anos,
desde
1886.
PARTE
11 — SÉCULO
XIX
145
um só tema, um só autor, quer grego, quer latino, que não dê que fazer
a diversos especialistas. A Germania de Tácito, p. ex., é examinada capítulo por capítulo, à vista dos resultados que a ciência da enxada, a glotologia e a pré-história da Europa revelaram. Se nuns trechos dos autores clássicos se apontam erros, inexactidões, exageros, em outros encontram confirmações, ilustrações, explicações de teses modernas. O próprio Homero, que foi explicado nas escolas da mocidade durante vinte e quatro séculos (com larga interrupção, embora) suscita ainda hoje controvérsias. E quantas! As viagens de Odysseus, p. exemplo! Há mesmo em Portugal quem se interesse por elas. Ainda outro dia José Pereira de Sampaio ( Bruno) quis provar (sem razão a meu vcr ) que as expedições marítimas dos Gregos atingiram o alto Norte. é Porque? porque na descrição dos horrores que cireundam o estreito entre Cila e Caríbdes (o estreito siciliano na opinião dos leigos) se fala de monstros marinhos — ou de um monstro marinho — maior que o golfinho, o atum e o foca, o qual aos milhares, pastava nos prados de Anfitrite. Ésse cetáceo (meizon ketos ) só pode ser, segundo êle, a baleia. E baleias em barda só as há na Berings-Strasse ! Parece que o erudito citado não admite «exageros poéticos». Mas, embora errado, o facto em si prova que há aqui quem siga com atenção as evoluções novas da ciência filológica.
LIÇÃO III GLOTOLOGIA A
prelecção de hoje é continuação das duas anteriores, relativas à filologia, como palavra e como ciência : a última que dedicarei ao
assunto.
Terminei, tanto a segunda como a primeira, se não me engano (*),
dizendo que as ciências modernas como a antropologia, e etnologia (com o folclore), a arqueologia (com a paleontologia e a pré-história — a Urgeschichte der Menschheit — mas sobretudo a glotologia indo-germãnica e a romanística, haviam, no século XIX, alargado prodigiosamente a área dos estudos filológicos, afinando os seus processos, e apontando ao longe os derradeiros fins de que os investigadores anteriores mal haviam sonhado. Indiquei que essas transformações obrigaram a desdobrar as disciplinas — e conduziram a alterações da terminologia, sobretudo à introdução do vocábulo glotologia para designar a moderna ciência da linguagem. A êsse respeito direi mais alguma coisa. Um erudito português quis restringir demasiadamente o campo da filologia nacional, reduzindo-a no estudo de textos literários, e separando dêle o exame da língua. Só a êste quis aplicar essa nobre designação, que outros investigadores reservam para o conjunto das línguas indo-germânicas, ou de tôdas as línguas, — para uma ciência tornada independente e não para indagações relativas a uma única língua moderna, como a portuguesa. Os assuntos da filologia deviam ser hoje, segundo êle, os mesmos que foram no tempo de Eratóstenes e de Aristarco, de Filelfo e Poliziano, de Erasmo e Melanehton, de ITerrmann, Lachmann e Madvig: isto é, um
conjunto de conhecimentos multíplices e variados (podendo ser mesmo a totalidade dos conhecimentos) que se referem à literatura de um povo, à sua língua, exclusivamente como órgiio dessa literatura. Ou também às literaturas, e às respectivas línguas de dois povos irmãos, de culturas tão íntimamente ligadas como a grega e a latina. Ao Alt-philologue — o filólogo clássico — incumbe portanto examinar hoje (como outrora aos antigos exegetas ; depois aos Humanistas ; e mais tarde aos Enciclopedistas do século XVIII), os monumentos literarios da Grécia, de importância universal como tipos artísticos; e os dos Latinos que, embora imitassem, nacionalizaram o alheio pelo seu gé(“) Como ceu entregasse os afim de se servir dêles — a bem expliquei.
meus apontamentos a um dos meus ouvintes de todos — é-me impossível averiguar o que
PARTE
1l —
FILOLOGIA
E GLOTOLOGIA
147
nio avassalador, dando-lhe um cunho inconfundível, e actuaram dirccta-
mente em tôdas as nações cultas curopeias. Examinando-os sob todos os aspectos, o Alt-philologue buscará restituí-los a uma forma tão próxima quanto possível daquela em que êles saíram das mãos dos seus autores, e que as cópias e impressões alteraram ;
explicará tôdas as particularídades de linguagem, de estilo, as alusões históricas, as tradições, os mitos, os costumes que nos aparecem nesses monumentos ; determinará as influências diversas que êles revelam, a
génese das idéias, o desenvolvimento dos tipos literários. O fim capital da filologia é estabelecer qual é o valor dum monumento literário, dum lado sob o ponto de vista partíicular da história do povo que o produziu, doutro sob o ponto de vista geral humano». Do mesmo modo, ou quási do mesmo modo, há-de proceder o Veu-
-philologue, o Neov-filólogo (p. ex. o filólogo português, pois é naturalmente com êsse que exemplifica, o autor nacional a que me refiro). Diz êle textualmente : «Por filologia portuguesa deve, pois, enten-
der-se o estudo dos monumentos literários da língua portuguesa sob todos os pontos de vista. O estudo filológico dos Cancioneiros da Ajuda, do Vaticano, Branceuti, que nos conservam
composições dos poetas portugueses
do séc. XIIT e XIV, tem de compreender principalmente as seguintes partes ::
1.º) o estudo da língua, sem o qual é impossível compreender essas coniposições e que só se pode fazer bem com a comparação dos outros monunientos e documentos portugueses do mesmo período, com a composição do latim, das outras línguas neo-latinas, e ainda de outras línguas
de que havia elementos então no português (como a céltica) ; 2.º) o estudo da métrica, que exige também
uma
base comparativa
importante
(formas métricas populares latinas e de outras línguas neo-latinas e especialmente das provençais) ; 3.º) estudo das alusões históricas, etc.; 4.º) estudos dos autores das composições, das particularidades biográficas que sôbre êles podemos colher, já'nos Cancioneiros, já nos documentos diversos do mesmo período ou posteriores; 5.º) estudo das relações dos Cancioneiros com a poesia popular portuguesa, com a poesia provençal,
ete; 6.º) história dos manuscritos ; 7.º) determinação da autenticidade das composições, que poderiam ser atribuídas a autores da época dos Cancioneiros, sendo aliás obra de falsários mais recentes (como, acrescento eu, aconteceu com as famosas cinco Relíquias —
Poema da Cava,
Cartas de Egas Moniz, etc., de que falaremos qualquer dia, depois de conhecermos textos líricos autênticos ) ; 8.º) restituíção dos textos a uma forma tão próxima quanto possível da original, tendo por base principalmente os faetos da língua e a métrica ; 9.º) Determinação do valor-hiterário e histórico dêsses monumentos». Estas definições ou êsses dois sumários dos assuntos principais e dos processos da filologia clássica e da portuguesa são bons (embora
148
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
naturalmente sujeitos a aperfeiçoamentos)
mas incompletos
porque di-
zem respeito apenas à publicação de textos. Tendem a marcar — como assunto verdadeiro — a literatura. Não a língua. Esta apenas como veículo, órgão, instrumento daquela. Numa nota suplementar acentua-se mesmo que filolagia não é o estudo da lingua. Evidentemente, o autor fixa aos cultores dessa ciência limites muito
apertados. Debalde, porque ainda assim, o estudo da língua figura, como terião notado, no primeiro lugar, na exposição do que é filologia portuguesa.
— E também nuwuina nota suplementar, relativa à filologia clássica, éle é apontado como ciência auxiliar — tão indispensável como o estudo da arqueologia, mitologia, cpigrafia, história e outras disciplinas que os antigos desconheciam. O estudo da língua, uma vez mero auxiliar, outra vez base do estudo filológico, é considerado em tese como independente dêle, constituindo disciplina ou ciência àparte, a que, já o sabemos — dá o nome de glotologia. Os trechos e àas idéias que acabo de expor, foram proclamados, faz
já trinta anos, pelo benemérito inaugurador da ciência da linguagem em si, e da filologia românica em Portugal, Francisco Adolfo Coelho, doutor honoris causa pela Universidade de Goettingen, que assim galardoou espontâneamente (em 1887 ) os magnos serviços por êle prestado à ciência, como lente, desde 1880 (salvo érro) do Curso Superior de Letras, hoje Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e autor de numerosos
e valiosos escritos filológicos, glotológicos, etnológicos, folclóricos, pedagógicos, e psico-fisiológicos (à maneira de Wundt). Os passos que citei não se encontram no primeiro (hoje raro) livrinho sobre À Língua Portugueza ( 1868 ) com que êle iniciara, aqui em Coimbra, a sua carreira, nem nos imediatos sôbre a Teoria da Conjugação (1871) e Questões de Líingua Portugueza (1874), mas sim no-primeiro trabalho maior que com o mesmo título de À Língua Portugueza, escreveu, como professor (em 1880 ) para uso dos Liceus Centrais, cujo ensino da língua pátria, e da latina. ambicionava reformar e actualizar
cientificamente, transformando-o em filológico (e glotológico! ). Nessa obra (destinada a fazer parte de uma série inteira um verdadeiro Curso de Filologia Nacional — êle diz Curso de Literatura Nacional, mas como na sua opinião a Filologia é Literatura e como principiasse exactamente
com
a líugua como
basce, podemos
substituir uma
palavra por outra ) ; nessa obra, digo, que infelizmente não chegou a completar-se (“), Coclho pretendia mostrar e mostrou efectivamente, embora () As Noções de Literatura Antiga e Mediéval (vol. 1l do Curso) chegaram a publicar-se; mas já não as Noções de Literatura Portuguesa -— porque outros problemas atraíram o seu espírito.
PARTE
11 —
FILOLOGIA
E GLOTOLOGIA
149
em curto resumo, a quais alturas a nova ciência da linguagem que bro-
tara das deseobertas indo-germânicas e neo-latinas, chegara no jeiro: a glotologia geral, em virtude da actividade sucessiva de como Bopp e Schleicher, Zeuss, Grimm. Dicfenbach. Friedrich e Herrmann Paul na Alemanha (“*) — Max Miiller na Inglaterra Pictet, Ilovelacque,
Renan,
D'Arbois
de Jubainville
em
estrancorifeus Múllcr ; Bréal,
França;
—
a
filologia românica sobretudo pelos trabalhos de Diez e Schuchardt (“*). Muito de propósito, o ilustre sábio, que de facto se havia ocupado freqitentes vêzes da Língua Portuguesa, por ela mesma, sem fins práticos, e sem a tratar como órgio da literatura — deu à obra aludida o subtítulo de Noções de Glotologia Geral e Especial Portuguesa. Muito de propósito chamou a si próprio professor de Glotologia (em outras ocasiões disse de Ciência da Linguagem). De propósito fêz preceder os capítulos relativos à língua nacional de uma secção (IT: indispensável ) relativa ao Latim
literário e vulgar, à extensão do seu domiínio e à ro-
manização da Península Ibérica, mas também de uma Secção 1, de Noções Gerais, relativa às teorias de gramática
histórica
e comparativa, à
classificação das línguas e mais tópicos gerais realmente
glotológicos,
nos quais figuram as definições que transcrevi.
De propósito, porque a sua cadeira era nominalmente de ciência da linguagem, embora na prática viesse a ser, pelas exigências do meio. de filologia românica, ou só de língua portuguesa. Um livro especial só sôbre a ciência da linguagem era inoportuno ainda ; não tinha probabilidades de vingar; e muito menos de ser introduzido nos Liceus! Mesmo
tal como o ideou e realizou, meio glotológico, meio filoló-
gico, creio que levaria bastante tempo a penetrar, se penetrou em alguns. Da combinação das duas coisas, o glotologia geral e o estudo filológico-gramatical da língua portuguesa, a que quis dar, pelos motivos indicados, a nova denominação científica de glotologia portuguesa, resultou todavia, a meu ver, certa confusão a respeito de ambas, e das suas mútuas relações. Mesmo nas indicações por êle dadas. Já ouviram as definições de filologia como estudo da literatura, embora acompanhado de noções de língua como órgito dessa literatura — como assunto portanto secundário e meramente auxiliar. Ouviram também, pelo sumário do que é filologia portuguesa, que o estudo da língua ainda assim é base do estudo dos textos arcaicos. Viram que num curso chamado de Literatura (ou Filologia) Nacional, o próprio autor principia com a língua. Ficaram cientes de que Adolfo Coelho desaprova o emprêgo da palavra filologia para indicar o estudo (*) Os nomes que aponto são os que êle cita e recomenda na Bibliografia final. Mas claro que são apenas alguns, de muitos. (*) Citando os de Fuchs e Joret, livros úteis mas não fundamentais, omite os da Gaston Paris e Ascoli.
150
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
da língua (ou de línguas), mas também que éle entende que convém dar à filologia o sentido mais largo de conhecimentos relativos à literatura de um povo e à língua, considerando-se ambas como a manifestação mais completa do espírito dêsse povo — o que significa igualdade. E ficaram inteirados também de que para caracterizar o moderno estudo das línguas, como científico — histórico e comparado — lhe quis dar o nome, científico igualmente, de glotológico, de recente ceriação mas já de valia internacional — aplicado embora por quási todos os corifeus estranjeiTos à vasta ciência indo-germânica — e não à especialidade neo-latina. Acho compreensível e justificável que, sendo lente de glotologia geral, mas obrigado a ensinar filologia românica e em especial a língua portuguesa, escolhesse para ela o título de «glotologia portuguesa». Mas não aplaudo nem imito. Nem me admira que outros fizessem oposição, independentemente, persuadidos como eu de que a base de um edifício
faz parte integrante dêle, ou é mesmo a parte principal e que portanto o estudo de uma língua, por mais científico que seja, é filologia. O Dr. Leite de Vasconcelos, depois de 1880 o mais activo dos cultores da filologia portuguesa, creio que visou e combateu de caso pensado as definições e o procedimento de Coelho, chamando sempre e resolutamente filologia ao estudo científico da língua e não glotologia (**). Não sempre. Só quási sempre. Às vêzes exagera mesmo o seu eredo. Vindicando o primeiro lugar no ensino filológico, à língua, à gramática histórica e comparativa, cultivando em particular a dialectologia, dando a textos literários apenas, ou quási exclusivamente, a função de documentar e ilustrar fenómenos lingúísticos — caíu na demasia de estabelecer que filologia é o estudo e conhecimento das Jeis (eu diria das normas ou tendências ) fonéticas, morfológicas, sintácticas, que caracterizam a lin-
gua — com exclusão da literatura! Nessa definição manifesta-se a sua pouca afeição ou inclinação natural para investigações literárias, generalidades, filosofias, valores estéticos e éticos. IIloje, no entanto, e já há
muito — creio que desde a descoberta e edição de um texto provençal (Sancta Fides, 1902) e de outro português — o Livro de Fábulas de Esopo (1904), êle cultiva também, como professor e escritor, o campo literário, de preferência (mas não exclusivamente) os períodos arcaicos, anteriores a 1500, em que a língua ainda não estava constituída, ainda
não havia atingido a perfeição clássica (**). As Prelecções (**) feitas por éle na Biblioteca Nacional de Lis() Às vezes também se serve do têrmo glotologia onde «estudo da língua»s ou chistória da língua» seria preferível, Mas cometermos, na prática, erros que em teoria desaprovamos — acontece a todos nós. () No catálogo das suas obras há mais de uma relativa a Camões e, como talvez saibam, há dêle diversos volumes de poesias próprias. (*) Terei muita ocasião de citar e de gabar cssas Lições e os Textos Arcaicos de Leite — assim como as Questões e os estudos de Língua Portuguesa
PARTE
11 — FILOLOGIA
151
E GLOTOLOGIA
boa, de 1903 a 1909, publicadas em 1911, e que são sobretudo lingiiísticas, mas também literárias, deu, como sabem, o título de Lições de Fi-
lologta Portuguesa, no passo que F. A. Coelho, pela sua vez, continuou sempre a pôr aos seus variadíssimos estudos científicos o qualificativo de glotológicos. Com suma razão, p. ex. aos que têem por assunto os Ciganos, os dialectos crioulos, os vestígios das antigas línguas pré-romanas na Península Ibérica — ou às questões de etnogenia (Lusitanos, Lígures e Celtas ). Com menos, às gramáticas elementares com que brindou o país, e ao Manual Etimológico, pois ambos têem fins práticos.
Nos últimos tempos tratou pouco de filologia, a não ser nos seus cursos, e em alguns artigos de Revista (belíssimos, em geral psico-filológicos, como um sôbre Casos de analogia). Que eu saiba nunea editou textos, nunca
aplicou por isso as re-
gras formuladas em 1880, que abstraíra das obras de filólogos estranJeiros, quer clássicos, quer romanistas.
Mas fizemo-lo nós. E sempre incluimos nos nossos trabalhos filológicos o estudo histórico e comparado da língua com investigações etimológicas, dialectológicas, semasiológicas, etc., muito
embora
para
êle
fôssem privilégio ou alçada exclusiva da glotologia. Nós, isto é, Leite de Vasconcelos na Sancta Fides, no Esopo, nos Textos AÁrcaicos e em algumas das suas Lições; eu, na Prática dos Tres Pastores, no Mestre Giraldo, nas Poesias de Sa de Miranda, nas de Pe-
dro de Andrade Caminha (*), nos meus estudos camonianos e no Cancioneiro da Ájuda (cujo terceiro volume, relativo exclusivamente à língua e à versificação ainda está inédito). Do mesmo modo procedeu Epifânio Dias na sua admirável edição dos Lusíadas, José Joaquim Nunes
na sua Crestomatia Árcaica, e lá fora Henry Lang no Cancioneiro de D. Denis e Oscar Nobiling na sua edição das Cantigas de João de Guilhade. E também superiormente, modelarmente, magistralmente, no país vizinho, D. Ramon Menendez Pidal, com relação ao Poema ou Can-
c o Manual Etimológico de F. À. Coelho. Mas aqui aconsclho desde já em globo a aquisição e o estudo das obras de ambos, assim como a Crestomatia Arcaica doe José Joaquim Nunes, porque se houver falta de fac-símiles dos Cancionciros, como receio, teremos de recorrer às colecções impressas de textos, Quanto à história da Ciência da linguagem, veja-se Coelho, Questões, p. 13-23. (*) [«Publicadas pelo Dr. J. Priebsch (Halle, 1898), que a pág. XL da Introdução declara: «Muito mais devo todavia à Sr.º D. Carolina Michaúlis de Vasconcellos que acompanhou êste meu trabalho com incansável interêsse, sempre dis posta n responder às minhas preguntas, resolver dúvidas, promover traslados, juntar matérias, ete. — facultando-me, com pouco vulgar liberalidade, os resultados dos scus vastos estudos. Nem mesmo desdenhou verter para português as notas e introdução que tracei em allemão.» Embora só o nome do Dr. Priebsch figure no rosto — esta odição das Pocstas Inéditas de P, de A. Caminha deveria ser mencionada na bibliografia de D, C. M.].
152
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
tar de Mio Cid. Emfim, é o que fazem todos os filólogos nacionais ou estranjeiros, quando obras literárias são objecto dos seus desvelos. Para todos a lingua é base. Isto é, parte interrante, fundamental, muito embora a Literatura seja o verdadeiro edifício. A glotologia geral com os seus vastos, longínquos e derradeiros fins, essa constitui um parque circundante, ao qual é bom, proveitoso e
muito agradável fazer de vez em quando incursões e excursões, mas que não pertence ao conjunto.
Em
trabalhos
lexicográficos,
ctimológicos,
gramaticais,
semasio-
lógicos e dialectológicos, é só a lingua que nos ocupa por ela meama e não como órgião e instrumento de artistas literários, como ocupon e preo-
cupou o próprio F. A. Coelho no Manual Etimológico, nas Questões, nas Gramáticas Elementares. Mesmo nas Secções 11 e IV do Curso em que adoptou a nova terminologia (Formação do Léxico Portuguez — Noções da História da Língua Portugueza Escripta ) não há um só assunto que não seja filológico, ou por outra, em que não tenhamos de tocar no nosso Curso de filologia portuguesa. * No fundo, na essência, creio que, apesar da aparente divergência,
estamos todos de acôrdo. À discussão é apenas de nomes, de palavras. À causa reside nas transformações por que a velha filologia — o estudo e culto, o amor e a ciência da linguagem — passou necessàâriamente, associando-se com ciências modernas, alargando quanto à língua o seu campo de investigações, obrigando práticamente ao desdobramento de disciplinas, como já deixei dito, por a totalidade do saber filológico não ser acessível a ninguém, ou sômente a entidades muito privilegiadas. *
Para avaliar a enorme diferença entre o saber filológico dos antigos exegetas e o dos modernos, bastará chamar-lhes a atenção para dois pontos: o monoglotismo dos antigos e o poliglotismo dos modernos. Apesar da mentalidade superior dos clássicos antigos, nem um só dêles se ocupou de línguas estranjeiras. Para os Gregos todo o estranjeiro era bárbaro e não valia n pena ocupar-se de bárbaros. Para os Romanos também só eram gente aquêles que gozavam dos direitos de cidadãos. Os outros eram escravos. Do mesmo modo para os Israclitas todos os que não pertenciam ao povo eleito eram plebe (goi, pl. goijm) — gentalha, infiéis, descrentes (ta ethne) na tradução grega do Velho Testamento. Os Índios designam todos os não Brâmanes com um vocábulo — mlécchãs — que significa incompreensíveis.
Para
os Árabes,
os forasteiros são também
incomprceensí-
PARTE
11— FILOLOGIA
E GLOTOLOGIA
153
veis: adscham. Mesmo entre os povos selvagens há vários que só a si próprio dão o nome de homens, de gente. Em
tôda
a parte
um
exclusivismo.
um
cegoísmo,
um
nacionalismo
crasso que só o bom Europeu evita —
mas que em tempos de guerra
torna a manifestar-se com
fereza animal e abjecta.
rudeza, com
O Cristianismo foi quem proclamou a igualdade dos homens : igualdade perante Deus, mas também na terra — sem distinção de raça, nacionalidade, camadas
sociais.
Um dos dons mais fecundos atribuídos ao Espírito Santo foi o de os seus inspirados falarem línguas estranjeiras. O Novo Testamento foi vertido em numerosos idiomas (modernamente é a Sociedade Bíblica in-
glêsa que exerce essa utilíssima actividade). Dos IHumanistas que estudavam grego e latim e muita vez também hebraico (só excepcionalmente o arábico), nada digo agora. Apenas quero mencionar que Portugal teve parte importante no poliglotismo sempre maior dos eruditos. Pelos descobrimentos marítimos
tornaram-se conhecidos numerosíssimos povos e idiormnas (africanos, asiáticos, americanos e da Oceania ) cuja existência era ignorada até então. De 1500 em diante houve eruditos (em geral missionários ) que estudaram essas línguas extra-curopeias. Mas ciência da linguagem e poliglotismo científico só existe desde 1800 — depois de os irmãos Schlegel e Bopp haverem descoberto espiritualmente a Índia, conforme já disse outro dia. No tempo de Eratóstenes e de Aristarco, os escritores mais sábios
só conheciam uma lingua — quando muito duas. Hoje sabemos da existência de duas mil. E há quem saiba classificar êsses dois mil idiomas e constatar que em muitos casos êles estão por ora isolados, sem parentesco reconhecível com outras línguas. Eis a primeira reflexão. O segundo ponto resume-se no seguinte: Embora o tempo fragmentasse e destruísse muitos dos textos lliterários a que os intérpretes da Antiguidade se referiram, e de que citaram parcelas, e pôsto que os encontrados, nos últimos decénios, em túmulos egípcios e outros monumentos, não sejam seu equivalente nem em tamanho nem em valor, podemos ainda assim abranger, após cinco séculos de laboriosidade da imprensa, um horizonte muito mais vasto, descortinar, do alto dos conhecimentos modernos acumulados — rela-
ções, contactos, influxos, evoluções, que era impossível prever. Numerosíssimas revelações de coisas são contidas, p. ex., nas etimologias ela-
boradas desde que há glotologia, ciência de linguagem comparada e histórica —
estudos indo-germânicos —
arqueologia —
pré-história.
154
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Não vou mais longe porque ainda devo voltar ao livro e às definições de F. À. Coelho, ao estado da filologia e glotologia em 1880, e aos progressos feitos desde então — e o tempo disponível é já pouco. Para a semana precisamos impreterivelmente de começar com a classificação das linguas indo-germânicas e românicas. Direi por isso apenas que, à meu ver, tanto são filólogos os historiadores e investigadores de literaturas, como os historiadores e inves-
tigadores de línguas que procuram resolver cientificamente problemas positivos. historiando e comparando, quer fonéticos, morfológicos, sintácticos — gramaticais, portanto — quer etimológicos, semasiológicos, onomasiológicos (lexicográficos) ou dialectológicos — isto é, de origens.
E também são filólogos os glotólogos pelo assunto que êles cultivam, qual é a linguagem em si, sem fins práticos nem literários, só por ela mesma, como suprema das instituíções humanas, de natureza psico-
-fisiológica — tendo em vista os fins longínquos a que já aludi. Ésses fins são duplos. Trata-se de desvendar de um lado, a origem primeira da linguagem, a transformação do homo primigenius, do homo alalus, sem fala ainda, mas de cérebro e órgãos físicos já libertados pelo andar erecto, em homo sapiens, em homem
«que fala». Por outro lado
trata-se de explicar as enormes e multíplices diferenças lingiiísticas como resultantes das particularidades constitutivas, físicas e psíquicas, das nações que as falam. Derradeiros fins, e problemas talvez insolúveis, a que teremos de aplicar o desconsolador Ignorabimus, enunciado por Du Bois-Reymond a respeito de outros enigmas mundiais. Talvez? Não, scguramente! porque será sempre imposstvel saber ao certo o que se passou há centenas de milhares de anos. Só por conjecturas, abstracções, especulações podemos imaginá-lo. Mas exactamente por isso, por serem tão difíceis êsses problemas, êles atraem e
sugestionam os espíritos cultos sempre de novo. E não são infecundos, de modo algum, visto que se baseijam em análises minuciosas — em tentativas engenhosas e laboriosas de aprender e classificar as línguas tôdas, hoje existentes, e em reduzir a enorme multidão a menos tipos primordiais, afim de chegar pela recondução de palavras a raízes, aos elementos primários (células primárias) : e porventura a uma única linguagem, desabrochada numa localidade também única, onde nasceu a humanidade, então também unitária. Outra monogénese, portanto, num paraíso terreal, mas diversa da
biblica que fôra divina. O glotólogo, embora seu assunto seja a língua, deve, como vêem,
ser poliglota, conhecer todos os tipos de línguas, investigar a construção e o vocabulário de todos êsses tipos, desde os mais adiantados, com lite-
PARTE
1I — FILOLOGIA
155
E GLOTOLOGIA
raturas como a índica, a helénica, a latina, a germânica, até aos falares
mais rudes, infantis e pobres, de tribus selvagens que não sabem contar senio até dez, ou apenas até cinco, não distinguem as côres senão rudi-
mentarmente, e só conhecem uma única classe de palavras. AÀ ciência da linguagem ou glotologia, nssim conhecida, que uns consideram como coroa do edifício filológico, mas que eu prefiro figurar-me, conforme já disse, como um vasto parque, é ciência tornada independente, desagregada da filologia. Ciência que por um fenómeno curioso volta a ser o que fôra n princípio, há dois mil e quatrocentos anos: ideologia, filosofia: culto e amor e ciência da linguagem, tentativa de explicar o milagre do verbo (**). * Melhor seria pôr têrmo aqui. Suprimindo minúcias e repetições, resta-me todavia acrescentar ainda que o livro de F. AÀ. Coclho e os cseritos dos autores por êle recomendados, quási todos de primeira ordem, que lhe serviram de fontes, têeêm ainda hoje, e sempre terão grande va-
lor. Quem os estudar não perderá o seu tempo. Mas como a ciência não parasse, progredindo, pelo contrário, pro-
digiosamente nos últimos decénios, claro que muitos dos resultados e das concepções então vigentes já se antiquaram. Especialmente as relativas
à elassificação das línguas, ao berço provável e às migrações dos Indo«germanos e à idade e originalidade da sua cultura na Europa, de cuja dependência absoluta da civilização oriental ainda há pouco não se duvidava. Os materiais glotológicos e filológicos combinados com os antropológicos e arqueológicos ( pré-históricos), são insuficientes para decisões definitivas. As opiniões flutuam. Mas os factos novos apurados são ainda assim tantos e tão importantes que, em lugar dos trabalhos fundamentais (mas, repito, em parte antiquados ) de Grimm, Schleicher, Miiller, teri de chamar a atenção para outros da nova geração de autores, quási todos vivos ainda e muito activos. Brugmann e Ostwald, Schrader e Much, Finck e Feist, Vossler e Hirt, A. Meillet, Raoul de la Grasserie,
S. Reinach. Em lugar de Diez e Fuchs, hei-de remetê-los às obras de Mevyer-Liibke, Mohl e Dr. Elise Richter. Mesmo
quanto
ao latim, tão estudado,
o seu ensino modificou-se
desde que o sermo quotidianus foi reconhecido como valor não desprezível. Antigamente os editores julgavam do seu dever emendar tudo
quanto se afastava dos modelos elássicos. Hoje conservam os vulgaris(º) No frontispício da impressão desta Sebenta de Lições, figuro — conforme hoje vi, — como Doutora em Filologia. Sorrindo lhes digo que tal título ainda não
como
existe.
Sou
Dr.º
em
filosofia,
honoris
causa,
F. A. Coelho o é pela Univ. de Gocettingen.
pela
Universidade
de
Friburgo
—
156
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
mos e os arcaísmos como preciosidades. E desde que se sabe ver reconheceu-se que poucos são isentos dêéles. Nem mesmo Horácio. Para estar ao corrente da variedade e novidade dêsses e de inúmeros outros temas seria preciso ler regularmente a grande Zeitschrift fiir Klassiches Altertum, que sai desde 1886, as Actas e Memórias relativas às reiiniões periódicas dos Alt-Philologen, da Alemanha; o Archiv fiir lateinische Lexicographie; os Anuários de Vollmôóller (Jahresbericht ), que registam tudo quanto pode interessar os romanistas ; as Revistas Glotta, Wôrter und Sachen (Palavras e Coisas), assim como as publicações da Biblioteca de Textos Vulgares (ceditores Heraeus e Morf) e a excelente Geschichte der Klassichen Philologie, de Krolt (1908). AÀ melhor maneira de avaliar os progressos feitos seria porém talvez a comparação do Dicionário Etimológico da Língua Latina de Alois
Vanicek de 1874 (Leip.) com o de Alois Walde (FHeidelberg, 1906, 2º ed.). Dos progressos realizados no domínio neo-latino não posso tratar agora em poucos minutos. Éles irão surgindo pouco a pouco nestas prelecções. *
Depois do que deixei dito é quási supérfluo assentar ainda em resumo que para mim filologia portuguesa é o estudo científico, histórico e comparado da língua nacional em tôda a sua amplitude, não só quanto à gramática (fonética, morfologia, sintaxe ) e quanto à etimologia, semasiologia, etc., mas também como órgão da literatura e como manifestação do espírito nacional. Nem preciso afirmar que nos exercícios práticos darei sempre as indicações literárias relativas aos textos arcaicos, em prosa e em verso, anteriores a 1500, que iremos lendo e examinando.
Para a história da literatura própriamente dita haverá no futuro, na secção de filologia românica, se me não engano, outra cadeira especial, para quem já muito proficientemente se tem ocupado da mesma disciplina.
LIÇÃO IV CLASSIFICAÇÃO
DAS
LÍNGUAS
Durante a preleceção de hoje e a de amanhã, em que vou explicar à vol d'oiseau o que são línguas indo-germânicas, deveríamos ter diante de nós mapas grandes geográficos e etnográficos — de raças e de línguas — assim como tabelas com amostras de textos como o Padre-Nosso ou alguma parábola bíblica nas línguas e escritas dos povos que nos ocuparão — tôdas com transcrição fonética — de sorte que pudéssemos inteirar-nos do som (audível ) e do aspecto (ocular) de cada um dos tipos principais, pelo menos. Pedi os que porventura houvesse nas colecções da nossa Faculdade. Mas sem prevenir com antecedência. E como agora não veja cá nenhum (só os históricos, relativos à antiguidade e Idade-Média que costumam estar na parede da nossa aula), restrinjo-me a colocar nesta mesa uns espécimes minúsculos que trouxe comigo, em parte tirados de
boas Enciclopédias ilustradas, como as de Brockhaus e Meyer, em parte pertencentes a um AÁtlas francês estatístico (**), muito prático e útil, conquanto nem sempre seja exacto nos pormenores explicativos (**). Para a especialidade não possuo todavia melhores. Nem mesmo conheço outros, mais recentes e mais completos, que estejam em harmo-
nia com os resultados da glotologia, tal como se acham expostos nos tratados modernos em que me bascio : sobretudo em duas obras de um lente ( Privat-dozent,
salvo êrro)
da Universidade
de Berlim,
a que já me
referi nas semanas passadas. Infelizmente há nesses materiais ilustrados só exposição pragmática ; mas essa é excelente. Tanto na que se intitula Às famílias lingiisticas do Orbe terráqueo (Die Sprachstimme des Erdkreises) como na outra — Os tipos principais das construções lingilisticas humanas (Die Haupttypen des menschlichen Sprachbaues ) em que Fink caracteriza o modo particular como é dada expressão a pensamentos, idéias, sensa(*) Atlas Paris, 1908.
(*)
Universel:
Politique,
Statistique,
Commerce.
De
A.
L.
Hickmann,
No texto relativo às línguas indo-germânicas se diz, p. ex., a pág, 16, que
«a origem de tôdas remonta mais ou menos ao sânscrito — o que é falso. Há em sãnserito, como logo direi — monumentos literários muito antigos. Afuitas formas gramaticais arcaicas conservam-se nêle; mas apesar disso o sânscrito não é a fonte de onde
provêem as outras línguas indo-germânicas. É a irmã mais velha apenas. A fonte comum — a Ursprache — o arquétipo — é desconhecida. Só é deduzida hipotêticamente das formas históricas e comparadas dos diversos ramos do mesmo tronco.
LIÇÕES
158
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
ções, por representantes de oito famílias diversas:
em primeiro
lugar
por três representantes etnológica e lingiisticamente diferençados da raça branca: um Neo-Grego (indo-germânico portanto); um Geórgio (de tronco caucásico também, mas não indo-germânico); um Árabe (semita) ; em segundo lugar por um Chinês (mongolóide) ; um Turco (uralo-altaico) ; um Groenlandês, das regiões árceticas, — como representantes, também etnológica e lingiisticamente diferençados da raça
amarela ; e finalmente por um Subija (negro da África); e um habitante de Samoa (negro da Polinésia). À razão por que faltam representantes das linguagens da América — do reino dos Incas, do dos Áztecas de Montezuma, do dos Árancos, do dos Tupis e Guaranis, etc. — talvez resida em que, apesar de
estudadas de longa data (de 1500 em diante) ainda se não conseguiu chegar, quanto
a elas, a resultados científicos que satisfaçam, ou satis-
fizessem pelo menos o investigador de que trato. Na obra que citei em primeiro lugar, Franz Nikolaus Finck condensou com saber assombroso e uma habilidade sem par, em 143 páginas pequenas, a classificação de dois mil idiomas de tôdas as partes do mundo (incluíndo a América) segundo as diferenças que os distinguem C os caracteres que os unem. Em centenas de casos há, todavia, em lugar
de classificação, a declaração da impossibilidade de por ora os classificar, isto é, de os relacionar ou dividir e agrupar em famílias ou em tron-
cos: em Sprachstâmme, como é uso dizer em alemão. No Adtlas francês a que aludi,
e em
numerosos
trabalhos glotoló-
gicos anteriores, fala-se de mil idiomas. Quando eu era pequena, ensinavam-nos que havia novecentos. — Embora na contagem e na avaliação do que é língua e do que é mero dialecto, haja naturalmente divergências, reconhece-se, pela duplicação do número, e pela abundância de nomes etnológicos estranhos, que se lêêm nos textos e no Índice de Fineck,
que os conhecimentos lingitísticos fizeram progressos notabílissimos nos últimos decénios—desde que F. A. Coelho deixou exposto o que Schlegel e Bopp, Pott, Steinthal e Lazarus, e sobretudo Friedrich Miiller, haviam estabelecido nos seus tratados, relativos à ciência da linguagem e à classificação dos idiomas. Dos dois resumos de 1909 de Finck (sem aparato erudito, sem mesmo uma única anotação, pois fazem parte de uma
colecção relativa a «Ciências naturais e do espírito» destinada a vulgarizar em forma chã os resultados da ciência, pondo-os ao alcance de tôdas as pessoas cultas (**), dos dois resumos, digo, vê-se com quanta energia e quanto êxito se vão estudando as falas de povos e de tribos, às vêzes reduzidíssimas em número e próximas a extinguir-se, — selvagens da América, África, Occeania, sem escrita, e sem outra literatura do que () Aus Natur Geisteswerk: Sammlung awissenschaftlich strandlicher Darstellungen. Verlar von B. G. Teubner, in Leipzig.
—
gemetinver-
PARTE
11 — CLASSIFICAÇÃO
159
MORFOLÓGICA
a tradicional, ponular, mas falas ainda assim de valor imenso para investigações sôbre a fisiologia do distintivo humano. Mas vê-se também quanto resta ainda por fazer. A última palavra da ciência da linguagem só poderá ser dita por futuros glotólogos, quando fôr possível abranger, num só quadro comparativo, as línguas tódas dêste nosso mundo sublunar, estudar tanto gramaticalmente como quanto aos processos de exteriorizar idéias, pro-
cessos dos quais muitos saem fora dos limites das categorias vocabulares e sintácticas a que estamos acostumados.
Dêsse estado ideal ainda estamos afastadíssimos. Se muitas línguas são terra incógnita, conforme disse, de grande parte das extra-europeias não há nem textos nem gramáticas:
só vocabulários, e êsses
insuficientes. Isso vale sobretudo para os idiomas árcticos, os da África,
os da Oceania (uns duzentos) e os americanos (uns cento e cinquenta). *
Quanto à classificação dos idiomas bem estudados, a morfológica, que cra uma
das mais valiosas e interessantes entre as que foram
ten-
tadas no século passado, está hoje abandonada. Bascada na estrutura das palavras, ela distinguia entre línguas de vozes isoladas (línguas isoladoras : em alemão — isolierende Sprachen)), línguas aglutinantes, e línguas flexivas. Isoladoras são (segundo Schleicher, Steinthal, F. Miilller, que desenvolveram idéias de W. von Humboldt), as línguas monossilábicas,
como a chinesa ou em geral, as indochinas. Nelas as palavras são simples raízes ou radicais invariáveis, mas de significado e de funções diversas, segundo a sua posição na frasc. Esta faz dêles ora substantivos, ora adjectivos, ora verbos, ora advérbios, ou antes: aquilo que nós em nossas línguas exprimimos por essas várias categorias gramaticais. Quanto ao sentido, êle também pode ser alterado por meio de outra raiz, posposta; mas cada uma fica sempre independente, isolada. Não há nessas línguas, portanto, elementos que, precedendo as raiízes, seguindo-as
ou
incluídos
nelas,
exprimam
idéias
secundárias:
relações (de tempo, géncero, número) — Beziehungen. Aglutinantes chamavam-se aquelas línguas em que as raízes se aglomeram, sem se fundirem completamente ; línguas em que à raiz, indicadora da idéia principal, se juntam outras, indicadoras de idéias secundárias,
reduzidas
mais
ou menos
no seu som:
prefixos,
sufixos,
infixos. A êsse grupo pertencem as línguas chamadas uralo-altaicas (o fínico, o turco, o húngaro) e o basco; certas línguas africanas, e muitas (talvez tôdas) as americanas. Numêricamente, a maiór parte dos idiomas.
160
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Flexivas são aquelas em que, além dos elementos primários e secundários (raízes c afixos), há modificação das próprias raízes, na sua parte vocálica, por meio de apofonia (Ablaut) como em facio, feci; cado, cecidi;
mas também
da consonântica
(bringen, brachte;
graben,
Gruft, ete.), isto é, aquelas em que há verdadeira composição. derivação, declinação, conjugação, comparação, tôdas elas cfectuadas por alterações fonéticas c morfológicas e não por perífrase. São as linguas semíticas e indo-germânicas : as consideradas como
superiores a tôdas as restantes. Imaginou-se, c ainda hoje muitos eruditos pensam, que essas línguas indo-germânicas e semíticas passaram sucessivamente, mente, pelos três estádios : da isolação. aglutinação e flexão.
gradativa-
* Para
simplificação
serve em
regra como
modêlo
a pequeníssima
raiz 1, síimbolo da idéia andar, que subsiste em português no infinitivo ir, nos particípios ido, ida, indo, no presente imos, ides, e no imperfeito ia. i Representante da concepção eu (1.º pessoa que fala, pensa, existe ) era na Ursprache dos Indo-germanos a raiz ma ( — me). Emquanto essa era língua isoladora diziam portanto i-ma, para significar eu vou. Isto é: ir eu. Serviam-se portanto de duas palavras isoladas, com acento próprio cada uma, tal qual procedem hoje crianças inexpertas, prêtos da Guiné, ou cstranjeiros que balbuciam ainda. No segundo cstádio à e ma seriam aglutinados numa só palavra, com um único acento. Dizia-se fma, ou com redução da vogal a — timi. No terceiro estádio a própria raíz í era alterada, sempre que se queria restringir a acção
a um só momento,
ao tempo
presente. Ássim
nasceu, de IMI o eimi dos Gregos (eu vou, eu sou). Contra essa tripartição morfológica e contra a idéia da evolução gradativa, já se tinham levantado, mesmo antes de 1880, objecções de pêso, expostas por F. À. Coelho, na obra À Lingua Portugueza (pãág. 15 a 17). Hoje, a mais importante objecção é que nesses limites, apertados, não cabem
os idiomas da Polinésia, Austrália, África, América
e Ásia,
de construções curiosamente complicadas em parte. A elassificação que prepondera é a genealógica de Friedrich Múuller (*) baseada nas investigações antropológicas de Ernest Haeckel, o
grande daruinista. Geral
() ÀAs obras mais importantes de Friedrich Múller — Allgemeine Ethnographie, 1873 e 1879, e Introdução
gem — tologia —
Einleitung
in die Sprachwissensehaft.
Como
Parte
Grundriss der Sprachwissenschaft, Wien, 1876.
são uma à Ciência
Y de um
Etnrnografia da Lingua-
Manual
de Glo-
PARTE
1l —
CLASSIFICAÇÃO
161
GENEALÓGICA
Ela ordena as línguas em grupos, famílias ou troncos, com ramos e sub-ramos que por evoluções sucessivas, produzidas por migrações — isto é, ligndas ao afastamento local e ao influxo dos novos meios — saíram
de
um
só
e
mesmo
tronco
mais
antigo:
o
tipo
primitivo,
a
Ursprache. Éste têrmo Ursprachen — línguas originárias, línguas primitivas ( arqui-línguas), não quere dizer que antes delas não houvesse nenhumas. Elas saíram seguramente também de outras preexistentes. Mas como as desconhecemos e desconheceremos sempre — Ursprache designa apenas o estádio mais afastado a que podemos regressar, historiando, ou construindo conjecturas por dedução. IHistoriando, se a Ursprache
foi conservada, como
acontece com
o
latim a respeito das filhas neo-latinas. Conjecturando, se ela está perdida e apenas pudermos reconstruí-la tedricamente, pela comparação das derivadas que subsistem. É o que acontece com as línguas indo-germânicas. Aceitando o princípio da classificação gencalógica (**), Finck não se cinge contudo à fixação dos tipos. Os sete que formam o assunto do seu tratado sôbre os principais tipos lingiísticos, (ovito, se quisermos considerar os idiomas americanos como saídos de um só e mesmo tronco, o que é muito duvidoso) não esgotam a matéria nem de longe.
No livro relativo aos dois mil idiomas (**), éle toma por ponto de partida a divisão da humanidade em quatro raças, fisiolôgicamente diferenciadas pela tez e pelo cabelo. (segundo o sistema hacekliano) cingindo-se às linhas gerais traçadas pelo etnólogo inglês. A. H. Keane nos livros O Homem no passado e na actualidade (Man Past and Present )
(*) e Etnologia (Ethnology) (*). Quatro
(e não
cinco
como
os continentes ) porque
a Oceania
ou
Austrália depende antropolôgicamente da África, ao pnsso que a Polinésia e Melanésia se ligam em parte à Indochina. Essas quatro raças são as conhecidas: a caucásia (branca); a mongólica (amarela) ; a americana (vermelha) ; a africana (preta). Embora a designação raça seja vaga e móvel, visto que algumas se estenderam fora do continente que a princípio ocuparam, Finck acei-
grupo derivam ou tipo.
(”) Eis como êle define de idiomas que por meio de um
único
unitário,
Sprachstimm: Uma família é constituída por um de evoluções sucessivas, mais ou menos numerosas, o que quere
dizer que
se formaram
pelo
mesmo
molde
() Antes dos dois tratados glotológicos, já aparecera outro de Fineck, roelativo aos fins e aos métodos da Ciência da linguagem: Die Aufgabo und Glicderung der Sprachwissenchaft, Halle, 1905, cheio de novidades, mal recebidas por uns e entusiâsticamente louvadas por outros. (º) Cambridge, 1909. (º) Tb.. 1901.
162
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
tou-a por ser práticamente a mais aproveitável, e também
a mais sus-
ceptível de se harmonizar com a idéia haeckeliana da monogénese do humano, unitário a princípio, mas diferenciado fisicamente e lingiisticamente depois de se haver espalhado pelos continentes (“). Migrações,
conquistas, o contacto
com
outros
povos,
isto é, factos
históricos, relativamente tardios, alteraram o estado primitivo. Línguas mongólicas são faladas por povos de raça branca (na Turquia, por ex.). No continente negro há, de longa data, povos caucásicos, em volta do
Mediterrâneo.
O domínio da língua (e da escrita) arábica estendeu-se
muito na África e na Ásia. Às línguas indo-germânicas dominam hoje tanto na América como em grandes e sempre crescentes extensões da Ásia, África e Austrália.
Mas na classificação das línguas vai-se abstraindo dêsses factos modernos, geralmente sabidos, tendo-se em conta apenas as condições primordiais. Levar-me-ia muito longe a exposição de tudo quanto há de novo na fixação dos troncos, ramos e sub-ramos das línguas americanas e das etiópicas, estubelecida por Finck, e até que ponto ela se afasta das classifieações outrora propostas por Friedrich Miúller (“*). Apenas direi o que êle estabelece a respeito da Ásia e da Europa. A raça mongólica, de enorme expansão, divide-se lingilisticamente em cinco troncos:
1) Ao primeiro dá o nome de áustrico, têrmo de recente eriação, por êle ocupar o sul (austrum ) da Ásia ocidental: os países transgangéticos, com Málaca e a Polinésia — as ilhas de Java, Samatra, Borneo,
ete. Ésse tronco áúustrico, divide-o ainda em austro-asiático (continental) e austro-nésico ( oceânico), do grego nesos — ilha. O ramo austronésico
subdivide-o em indonésico, melanésico e polinésico. Até há pouco as línguas dêsses grupos eram consideradas como tronco àâparte — malaio - --
(º) À idéia da monogénese não se coaduna bem, aparentemente, com a abundância das línguas existentes, nem com o facto de vermos desaparecer línguas, ao passo quo ainda não vemos nascer nenhuma. AÀ isto responde-se com o facto, já alegado outro dia, que a criação da linguagem, .a evolução do homo primigenius alalus a homo sapicns, e antes dêle o desabrochar da vida orgânica, primeiro botânica, depois zoológica, levou milénios, comparados com os quais os milénios históricos não são nada. E também servo de argumento que, uma vez feita, a criação não se repete — origina apenas evoluções e ramificações. Mas nada cstá decidido, bem se vê — sub judice lis cst — ainda hoje se diseute e talvez se diseuta eternamente êsse grande
problema
mundial
(Weltrátsel, como
diz ITacekel).
(º) A bibliografia lingiística, já muito extensa, que documenta postas de Friedrich Múller, claro que precisa também ser completada com
obras
publicadas
por ora —
posteriormente.
Nos
mas é de esperar que aà dê em
seus
resumos
concentrados
publicações futuras.
Finck
as protóôdas as
não
a deu
PARTE
1— TRONCOS
LINGUIÍSTICOS
163
por ainda se não haver até então demonstrado o seu parentesco com o austro-asiático. 2) O segundo troneo é o indo-chinês. 3)
O terceiro o uralo-altaico, constituído pelo fino-úgrico. o estó-
nico, o turco, pela Hlíngua dos Lapões (na Laplândia), e pela dos Magiares, que predominam na Hungria e na Transilvânia (Siebenbiirgen). 4) O quarto é o tronco nórdico, polar, ou árctico (de arctos-ursa, porque os povos que vivem nas regiões polares vêem sempre as constelações das Ursas). Também se chama dos Iiperbóreos (dos que moram além do Bórceas ) ou proto-asiáticos, porque representam habitantes muito antigos da Ásia, impelidos para o Norte por ondas de emigrantes novos. São os Esquimóos e Aleutas os habitantes do Jenissei ; os de Camtchatea, e os Áinos (da ilha de Jesso, das ilhas Curilas e da Sacalina ).
5) O quinto é o ramo Sumérico ou súmero-acádico : de Sumer, nome geográfico que designa a Babilónia do Sul distinta da Babilónia acádica, do Nortc. Isto é, dos povos indígenas da Mesopotâmia, anteriores à ocupação semítica.
Para Finck essa questão importante está decidida:
a civilização
semítica foi precedida de outra mongólica (“). *
À raça caucásica, a que pertencemos, é constituída, segundo &le, por quatro troncos: 1) a família indo-germânica; 2) a hamitica-semiítica —— pois Hamitas e Semitas já se não põem em antítese ; considera-se, pelo
contrário, como geminada a civilização do Egipto e a dos Semitas; 3) a caucásica própriamente dita, ainda insuficientemente estudada e aquela-.a que pertencem povos que vivem em volta das serras do Cáucaso, como os Cherquesses ou circássios, e os Geórgios (com literatura) ; 4) a dravídica, composta de raças indígenas da Índia, impelidas ao Sul da península cisgangética, incluindo a ilha de Ceilão (milénios antes da nossa era) pelas ondas das migrações indo-germânicas, mas em parte também
ao norte, p. ex. ao Beluchistão:
setenta e cinco milhões ainda
hoje, com dialectos importantes, como os malabáricos, ou malajalymicos (**), em parte sem literatura, em parte com ela. IHá alguns idiomas
(“) para
O têrmo etnográfico turaniano, derivado formar grupo com Sem, Ham, Japhet —
do semítico Tur, e que designava,
filho de Ferina opinião do
dun, grande orientalista Oppert e ainda na de Lepsius, os povos sitimero-acadicos — é banido dos livros de Finck. (“) Da passagem seja dito que são malajalámicos os vocábulos do pequenino glossário que acompanha o Roteiro de Vasco da Gama, publicado por Kopke de Carvalho e Alexandre YHerculano. E também que breve há-de aparecer, na douta Alemanha, um estudo especial sobre êles,
164
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
não classificados : vários são da Ásia Menor, como o cárico, o mísico, o
lídico. Dentro
da própria Europa os mais enigmáticos e isolados são o
bausco e o etrusco : êste último, morto; o primeiro, vivo.
O etrusco, aniquilado pelos Latinos, como terei de narrar na prelecção seguinte, é-nos conhecido por mais de oito mil inscrições, do séeulo VI A. C. em diante, e por um texto extenso, inscrito na faixa que
envolvia uma múmia. Também o conhecemos de nomes próprios, mencionados por autores gregos e latinos. Tódas as tentativas de o explxcar e classificar falharam por ora. O basco ou vasconço é continuação do ibérico, conhecido por inscrições de moedas, nomes próprios e citações de autores da antiguidade. Antes : deve-se dizer que é continuação daquele dos idiomas ibéricos que fôra falado pelos Vascones. Hoje, êles se chamam a si próprios Escaldunak. Escaldunak, palavra cuja primeira sílaba é aparentada com vasc-base — mas também com os Áuscos da Áquitânia.
LIÇÃO V LÍNGUAS
INDO-GERMÂNICAS
Às duas primeiras famílias caucásicas, à indo-germânica c à hamíitico-semílica, mais ou menos intimamente aparentadas, pertencem as grandes civilizações da antiguidade, de que as dos modernos povos curopeus são continuações naturais, e cuja influência atinge o mundo todo. Aos Iamito-Semitas devemos, por exemplo, a escrita — invenção importantíssima, visto que ela é
a
«memória universal», conforme direi
ao falar das escritas dos povos indo-germânicos. Devemos-lhe também o Livro dos Livros, a Bíblia; mais exactamente Índia, a da Pérsia e a dos Judeus e Cristãos.
—
as Biíblias:
a da
Com relação aos Indo-germanos, êles são 800 dos 1.600 milhões de habitantes do globo. Ocupam quási tôda a Europa e as partes limítrofes da Ásia ocidental e meridional desde tempos antiqitíssimos (mais de dois mil anos — provàávelmente mesmo três ou quatro mil anos A. C.) — ec da era dos descobrimentos em diante foram-se estendendo através de todos os outros continentes. Todos sabem quanto lhes deve o mundo. Sem falar das artes plásticas e pictóricas, nem da arte das artes, a muúsica, lembrarei apenas algumas das obras-primas em que o Verbo, a Voz, o Logos ou o Espírito Santo — se manifestaram nas principais
literaturas. Na mente de todos está o nonte, e deveria estar a essência do Cán-
tico dos Santos, a que na Alemanha damos o nome de (fragmento da cepopeia colossal do Mahabâhrata) eujos sos duplos ainda hoje, após mais de quatro milénios de recitados cada dia com profunda devoção pelos Brâmanes Todos conhecem ou deviam conhecer também os
Bhagavadgita setecentos verexistência, são da Índian (“). delicadíssimos
dramas de Calidasa : Sacuntala e Urvasi ; as doutrinas de Buda e as de
Zoroastro ou Zaratustra ; as epopeias de Homero ; as tragédias de Ésquilo, Sófocles, Eurípides ; os Diálogos de Platão;
as poesias de Vergílio,
Horício, Catulo ; as Canções dos Trovadores ; as criações de Dante e de Petrarca ; as de Shakespeare, Schiller e Goethe; à novela imortal de Cervantes; a epopeia nacional de Luís de Camões; as lendas bretónicas
de T'rristão e do Santo Graal, vulgarizadas pelos Franceses. E tantas, tan(*)
Deêsso
tica de S. W,
dos
Cântico
Schlegel
(de
Santos,
1818),
chamado
acompanhada
Bhagavadgita,
de uma
há
tradução
uma
edição
magistral
em
erf-
la-
tim, que o vulgarizou êntre os doutos. Nova e bela versão, e essa em alemão, é a de Paulo Deussen (Leipzig, Brockhaus, 1912). Já W. von Humboldt havia demonstrado que nesse poema se ensinara, milhares de anos antes do Imperativo Categórico de Kant, que o cumprimento do dever, mesmo sem «inclinação», deve ser a directiva do homem.
LIÇÕES
166
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
tas obras de engenho e arte, que são e serão sempre, enquanto houver mundo, a delícia, o «manjar de alma» de espíritos cultos e de corações
sensíveis (“). *
É natural que as línguas da família que crion tantas maravilhas sejam as mais bem estudadas de tôdas, e que a unidade delas esteja demonstrada cientificamente do modo mais completo, pela comparação das formas arcaicas. As da Ursprache continuam todavia nas trevas do subsolo pré-histórico e só estão reconstruídas, hipotêticamente, nas suas
(“). Mas mesmo
feições essenciais, de raízes primárias e secundárias assim, essas abstracções são preciosns e fecundas. (“). Antes
de enumerar
mais
as oito ramas
fortes que saíiram do
tronco
comum (*) vou expor depressa as diversas denominações gerais que é costume dar-lhes. Tôdas elas, ideadas por pensadores eruditos, são relativamente boas. Mas nenhuma é isenta de defeitos. Isso vale tanto de indo-germânico — como de indo-europeio, e indo-céltico. Vale também de árico e teut-árico; de mediterrâneo; e de jafético. 1)
Fim
e destino do têrmo
indo-germánico
é indicar, não, como
Julgam os leigos, as nações mais importantes, mas sim, geogrãficamente,
os pontos extremos dos territórios onde as respeetivas línguas foram faladas outrora. Com relação à antiguidade e princípio da Idade-Média, o têrmo indo-germânico é todavia inexacto, visto que os Celtas da Irlanda, da Bretanha francesa, e mesmo da Gália, viviam em territórios mais ociden-
tais do que os Tornou-se e povoada por dade, visto que
2)
Germanos. exacto, contudo, desde que n fIslândia foi conquistada Noruegos (870). E é exactíssimo com relação à actualia América do Norte é essencialmente germânica.
A designação indo-europeio é igualmente geográfica e etnoló-
(º*) As leis de Hammurabi da Babilónia e tudo quanto à raça mongólica produziu de valores ideais, por exemplo nas obras de Lao-Tsé e Confúcio, é muito digno também de atenção e venceração; as antigas civilizações americanas, do México e do Peru são notáveis — mas nada se pode comparar com o conjunto das criações
da raça caucásica. (*) Outra coisa não é possível apurar. Repito que está fora do alcance da Ciência demonstrar o que de espiritual se passou nos tempos em que o homem coa falar. (º*) Nas Questões de dos estudos indo-germânicos. () Algumas outras, vale a pena mencioná-las.
meçou
F,
A.
Coelho
diminutas,
há
têem
algumas
páginas
documentação
tão
àcêrca
da
escassa,
História que
não
PARTE
H—
LÍINGUAS
INDO-GERMÂNICAS
167
gica. Salvo êrro, ela foi criada por Bopp (emquanto indo-germánico fôra criação de Schlegel). Hoje é usada sobretudo pelos Anglo-Saxónios, mas também em F'rança e entre nós. É defeituosa porque há na Europa vários povos com línguas que não são da mesma família (lapões, finos, turcos, húngaros, bascos) e também porque indo (ou hindu) é apenas um dos dois ramos que vivem na Ásia, e porque na própria Índia Cisgangética há povos e línguas dravídicas —
caucásicas, isso sim, mas não indo-germáânicas.
Indo-céltico, substituíção reflectida de indo-germânico (proposta pelo celtista Zeuss, se me não engano), não vingou. Árico não serve bem para denominar a família inteira, por ser em regra designação comum só dos dois ramos asiáticos: o índico e o eraniano (ou iraniano). À palavra provém de arya, Herr, Senhor e não é aplicada na Índia senão às três castas superiores ( Bralhkmanes, Chatrias e Waisijas ), mas não aos Sudras; e muito menos aos Párias, restos pro-
vavelmente de indígenas expulsos. Nem tio-pouco serve teut-árico ou ari-teutónico, porque de mais a mais tem o inconveniente de substituir o nome geral do grosso ramo ger-
mánico pelo de uma só tribu antiga: a dos Teutões — Teutones — ven-
cidos em 101 na batalha de Áquae Sextiae (*'). Mediterrâneo
parcce-nos menos
conereto ainda;
ambíguo
mesmo,
porque nem todos os ramos indo-germânicos vivem em volta dêsse mar, — nas únicas regiões do mundo que a antiguidade conhecia bem ; nem são indo-germanos os que as povoam na Ásia Menor, e no Norte da
África. Jafético tem a vantagem de formar grupo com a denominação universalmente aceite para o duplo ramo importante da raça enucásica que se chama hamito-semítico. Todos os três derivam da tabela genealógica contida na Bíblia, das tribos ou raças que, depois do dilúvio, povoaram a terra, segundo as concepções registadas no Génesis. O Cap. X princiípia : « Estas, pois, são as gerações dos filhos de Noé: Sem, Cham e Japhet e nasceram-lhes filhos depois do dilúvio». O XI continua : « E era tôda a terra de uma mesma língua e de umas mesmas palavras». Mas logo em seguida lá vem a narração significativa da edificação da Tôrre de Babel, com a difusão e confusão das
línguas (**). (“*) Do vocíábulo teutía) — povo, abstraído do gótico thixtiscus, donde procede deutsch e tedesco, já falei no nosso Curso de alemão, explicando ao mesmo tempo os vocábulos germano e alemão. (*) Já disse outro dia que essa cena do Velho Testamento tem o seu complemento (contraposto) na outra dos Actos dos Apóstolos, Cap. 2, em que o Espírito Santo, derramado em línguas como de fogo, ensina a levar o Evangelho a tôdas as nações: «cada um os ouvia falar em sua própria língua. E todos pasmavam e se
168
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Na actualidade, o vocábulo mais usado, sobretudo na Alemanha, é
indo-germânico. Vejamos agora os oito ramos. Além do duplo tronco asiático — o índico ou hindu da península cisgangética, e o irânico ou iraniano da Pérsia, há seis na Europa, que são, do Oriente no Ocidente:
o arménio
em volta do Mar Cáúspio e do Mar Negro; o grego ou helénico, e o albanês na península dos Baleãs; o itálico nos Apeninos; o germânico no Centro e Norte da Europa; o eslávo-lético ou eslavo-báltico no Norte oriental : o céltico no Ocidente e Noroeste (*). 1.º a — O índico teve, como quási tôõdas as línguas indo-germânicas, três fases : uma arcaica, uma média,
e uma moderna.
À arcaica tem o nome de Sãoscrito ou sânscrito. Sânscrito quere dizer «arreglado, modelar, sagrado». No sentido de: falar próprio dos actos puros, sacerdotais, exercidos pelos Brâmanes. É todavia costume distinguir dois períodos sucessivos, o do sânscrito arcaico própriamente dito e o posterior, do sânscrito clássico.
O primeiro é a linguagem dos monutncentos literários sagrados da Índia bramânica : isto é, dos Vedas e dos livros exegéticos que se ligam nos Vedas. Veda é ciência, saber religioso, saber por excelência. Os Vedas são um livro volumoso como um Dicionário (**), com fórmulas de sacrifício e de bênção, de feitiçarias, ladainhas, salmos, ora-
ções e hinos, venerado como revelação divina. Uma verdadeira Bíblia. Quanto à sua idade, muito discutida, há quem acredite que grandes partes, p. ex. os hinos do Rigveda — vinte dos quais são apóstrofes à Aurora — já estavam feitas quando os AÁryas entraram na Índia, vindos de regiões mais discutidas ainda, três mil anos antes da nossa era (**). maravilhavam, dizendo uns nos outros: vêdes aqui! Não são todos êstes que fnlando estão, Galileus? Como pois os ouvimos cada um em nossa própria língua em que nascidos somos? Partos e Medos e Elamitas? e os que habitamos em Mesopotâmia e Judeia e Capadócia, e Ponto e Ásia? E Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, que está junto a Cirene, e Romanos estranjeiros, assi Judeus como Prosélitos, Cretenses e Arábios, os ouvimos, em nossas proprias línguas, falar em grandezas de Deus?» (*) [Não deve ser estranhada a falta de referência ao tocariano, descoberto em data pouco anterior (1908) à desta lição (17-XI1I-1912); muito menos à omissão do hitita, encontrado posteriormente (1915).] (*) As diversas partes são: Rig-Veda (Hinos); Sama-Veda (Cânticos) Jadschur-Veda (fórmulas, em prosa); Atharva-Veda (fórmulas de bênção e feitiçarias).
Não há edição total. Só edições de cada parte, em geral com tradução e comentário, Do Rigveda, de Max Múller (Lond., 1890-92, 4 vol.); trad. alemã de Grassmann (Leipzig, 1876-77, 2 vol.); francesa, de Langlois, (Paris, 1872); inglesa, de Griffith (Benares, 1896). Do Samaveda de Benfey (Leipz., 1848) com tradução. Do Jadschurvcda de A. Weber (Berlin, 1849-59, 3 vol.). Do Atharvaveda, de Roth e Whitney Berlin, 1856). Cfr. H. Oldenberg, Vedaforschung, Stuttg., 1905. — Macdonell, History of Sanskrit Literature (Lond., 1905). () Estas datas e interpretações são de data recente, como direi no fim
PARTE
11—
LÍNGUAS
INDO-GERMÂNICAS
169
Transmitidos oralmente de geração em geração, êsses textos sagrados que pelo estilo não téem nada de populares, como os leigos costumam supor, e bastante de artificioso e de ritual, conservaram-se lingiiis-
ticamente intactos, no estado de arcaísmo gramatical das redacções primitivas — em contraste cada vez maior com os falares do povo. Mesmo depois da introdução da escrita (de origem semítica, fenício-aramaica, mas muito transformada ) no terceiro século, antes da nossa
era, a propagação tradicional bramânica continuou. Finalmente, foi, todavia, preciso assentar os Vedas e os outros livros religiosos e rituais, assim como comentários em prosa pocótica, me-
ditações de ascetas e eremitas, aforismos, ete. (Brâáhmanas ; Aragankas ;
Upanishadas ; Sútras)
(*)
porque pelas dificuldades da inteligência
tornaram-se indecoráveis. Os monumentos profanos, não-sagrados, da literatura índica são escritos em sânserito clássico, menos arcaico, convencional e artificioso
do que o dos Vedas. Sobretudo as grandes epopeias do Mahabhárata e Ramayana, os dramas de Calidosa ; a Vasantasena de Cudraka ; as fábu-
las e novelas cíclicas do Pantschatantra e Hitopadesa (**). Como língua da parte mais ilustrada da nação êsse sânscrito literário ficou vivo até o século VIT AÀA. C. Depois ficou sendo o Latim da Índia, linguagem dos eruditos, até o século XVI e XVII. Notem ainda que o rei dos filólogos, Pânini, cesereveu a sua Gramática no século IV
A. C. (”)) três séculos antes de Dionísio Trax. A-par do sânscrito havia línguas índicas vivas, algumas das quais desta preleeção. Em geral ainda se acredita que ou mil e quinhentos anos antes da nossa era.
os Vedas
foram
compostos
dois mil
Em Portugal é essa a idade proclamada pelo melhor sanscritista nacional: Guilhermo de Vasconcelos Abreu, já falecido, autor de livros importantes sôbre a fndia, como p. ex. Investigações sóbre o carácter da Civilização Arya-hindi (1878); Gramática da Língua Sãoscrita (1879); À Literatura e a Religião dos Aryas ma fndia (1883); Manual para o Estudo do 'Sãoscrito Clássico, 2 vol. (1898 e 1891); Chand-Bibi, Lenda Indiana (1898). Hoje temos em Lisboa outro Sanscritista afamado: AMonsenhor Sebastião Rodolifo Dalgado. Posso mostrar-lhes uma versão portuguesa de um Hino do Rigveda (o 125.º) do Livro X intitulado Vách VYVoz, publicado há poucas semanas na Revista O Mundo Legal e Judiciário, XXI, (n.º* 17 e 18) e comentado af mesmo concisa, mas judiciosamente, por Alfredo Ansur. (*) Vid. Eggeling, Sacred Books of the Fast (Oxford, 1882-1900). — Foi, com relação às Upanishadas, que Schopenhauer diria que foram a consolação da sua vida e haviam de ser a da sua morte, () Os melhores livros relativos à Lit. da Índia que conheço são: AÀ. Weber, Vorlesungen iiber indische Literaturgeschichte (Berl., 1876 e 1878); Oldenberg, Die Literatur des alten Indien, Stutg., 1898; Pischel em Kultur der Gegentwart, Leipzig, 1906. —— Os senhores poderão Jer, além dos escritos já citados de Vasconcelos Abreu, a History
()
of Sanskrit
Literature,
de Macdonell,
Ed. por Boóhtlingk, Leipzig, 1887.
Lond.,
1905.
170
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
tiveram também literatura. Por exemplo o Prácrito e o Pali. Éste último é o dialecto dos Budistas de Ceilão, Birma e Sião. Por ter sido a língua dos seus livros santos foi também conservado intacto. Entre os dialectos modernos como o pendjabi, sindi, guzarate, ma-
rata (falado na Índia portuguesa), o industani é a língua comum, falada por quarenta milhões. Pelas vicissitudes históricas por que passou, acolheu muitos elementos estranjeiros, sobretudo arábicos. De um dos dialectos empregados na literatura para caracterizar as camadas baixas da nação — o paitscha do Indo-Cuche —-- derivam os
dialectos dos Ciganos (menos o dos Ciganos da Arménia, que é diver-
so) (*”). 1º 0 — O segundo ramo asiático, o irânico, compreende duas línguas. À primeira é a dos antigos Persas, empregadas nas inscrições dos Aqueménidas. Ciro, Dario, Xerxes, Artaxerxes (521 A. C. — 338) (*”) insculpidas em pedra, em caracteres cuneiformes, cuja forma talvez se deva à do punção com que os canteiros abriam 'traços (na intenção, rectilíncos). A outra língua é o báctrico ou médico (da Média), isto é, a linguagem dos livros sagrados dos Parses ou adeptos de Zoroastro, sobre-
tudo do Ávesta, o código religioso, a Bíblia dos Parses (**). rvesta, significa base, texto basilar, em oposição a Zend, Send, Sand, que é o comentário posterior, medieval, e de modo algum nome
da linguagem. : Mas como a linguagem dos comentários diverge, sendo outra fase posterior, Zendavesta (isto é, o texto do Átvesta acompanhado do comentário ) foi mal entendido, como se fôsse designação dessa linguagem (*). (*) Vejam Os Ciganos, de F. A. Coelho. (”) Conhecem, certamente, o estilo magníloquo dessas inscrições? Eis o princípio de uma, relativa a Dario (ou Darayavus): — «cEu sou Dario, o grande rei, o rei dos reis; rei da Pérsia; rei das províncias, filho de Vistagpa, neto de Arsania, o Acheménida, — ...Oito da minha família foram reis antes de mim; eu sou o nono; há muito tempo que somos reis... Diz Dario o rei — pela fôrça de Auramazda (Ormuzd, j. é., pela graça de Deus) sou rei; Auramazda mo entregou o reino», ete., ete. (Vid. Esteves Pereira, Inscrição de Dario, Bol. da Acad. 1913). ' (”*) O Zendavesta (660) é semelhante ao Talmud dos Hebreus e ao Alcorão dos Árabes, Contém minuciosas prescrições relativas ao modo de vida de Persas e Medos. Foi o Francês Anquetil-Duperron que o descobriu, e o traduziu em 1771.
Em 1778 foi transladado por Kleuker e aproveitado por Herder. AÀs idéias que levaram o pensador Nietzsche a idealizar o tipo Zarathustra são as do Bem e do Mal, personificadas em Ahriman (Aura Mainjid) e Ormuzd (Auramazda). * [A célebre Gramática de Bopp ainda se intitula Vergleichende Gramatik des Sanskrit, Zend, Armenischen, Grichischen, Lateinischen, Litanischen, Altstavischen, Gotischen und Deutseh . 10 u a aa n Ana ano u0 nuo n00 0 a00 u0 enA S0m nnA na nea A língua do Avesta é hoje designada geraimente pelo nome de Avésticol.
PARTE
11— LÍNGUAS
171
INDO-GERMÂNICAS
Também a do AÁvesta foi artificialmente conservada, como o Sânscrito dos Brâmanes, o Hebraico dos Rabinos, o Latim dos eruditos medievais.
2.º — A língua arménia (transição dos ramos asiáticos para os europceus) aparentada com o idioma frígio (da Frígia) de que há vestígios muito escassos, só é conhecida desde o século V P. C., por um dos seus dialectos (ocidentais), cultivado literâriamente, chamado Grabar, e conservado até agora, como linguagem da Igreja e dos eruditos. Viva até o século XT. De então até o século XV prevaleceu o dialecto da Cilícia. Posteriormente foram eultivados tanto o dialecto ocidentaI como o oriental. São perto de cinco milhões que o falam, politicamente pertencentes parte à Rússia, parte à Turquia. Em ambos os Estados os Arménios são perseguidos por causa da sua religião, cristã, mas diversa da grego-católica.
3.º — Da língua de Tlellas, a cuja literatura constantemente me vou referindo com a carinhosa veneração que a Alemanha tributa à Grécia antiga, apenas direi que desde os tempos proto-históricos esteve dividida em muitos dialectos, entre os quais o dórico, o iónico e o ático
eram os preponderantes. A linguagem literária era poética como em tôda a parte, sublimada, um tanto artificiosa — composta do melhor que os dialectos possufam. Maãs não se conservou estável e arcaica como na Índia, evolucionou
sempre. A: quotidiana, ou de conservação era gramaticalmente ática, mas iónica quanto ao vocabulário. É dela (chamada Koiné geral, pelos próprios Gregos — grego vulgar, se assim quisermos, por analogia com o latim) que deriva o neo-grego. Os numerosos dialectos modernos são evoluções recentes e não continuação dos antigos. 4.º — O ramo albanês, da Albânia, a antiga Ilíria, aparentado com
o messápio que se falava no canto sudoeste da península itálica, tem literatura, escassa, só desde o século XVIL. Éle está de tal modo entreverado de elementos
eslávicos,
turcos
e sobretudo de elementos latinos e neo-latinos que pode servir de modêlo de Hlíngua mixta, e costuma assim figurar nos Apêndices das Enciclopédias, e dos Anuários românicos e indo-germáânicos. 5.º — Ao ramo itálico, precisamos dedicar uma prelecção especial, e talvez ainda parte da dedicada às línguas românicas.
172
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
6.º — O ramo céltico foi outrora muito importante. No século III antes da nossa era estendia-se por quási tõda a Europa, sobretudo a meridional e ocidental : da Ásia Menor até no Cabo de Finisterra, e da
Escócia até à nossa península. Por isso deixou vestígios no Onomástico da Franca, Inglaterra, Alemanha, Áustria, Itália e Espanha (*). Mas não resistiu aos conquistadores romanos e germanos. Hoje dialectos célticos são falados apenas por três milhões, escas-
sos, dos quais só um milhão é monoglota — isto é, não fala nem percebe a língua comum dos países a que politicamente pertence (inglês e francês). É curioso observar como os Celtas que emigram para a América do Norte — sobretudo Irlandeses — conservam melhor a lingua materna, sendo protestantes do que sendo católicos. No caso primeiro sa-
bem de cor e levam consigo, mesmo sendo analfabetos, numerosos cânticos, orações e a sua Bíblia.
Os católicos não, visto que
o latim, que
não entendem, continua a ser a língua do seu culto. Os dialectos neo-célticos são três: a) o gaélico ou gadélico; D) o cimrico ou câmbrico; e o bretónico. O gaélico ou gadélico é falado, com diferenças dialectais, na maior parte da Irlanda; nas ilhas Hébridas; nas regiões montanhosas da Escócia, e nas cabanas dos pescadores da Tlha de Man. Aí, todavia, está próximo a extinguir-se. :
O címrico ou câmbrico fala-se no país de Gales ou Wales (”), a antiga Câmbria. O bretónico fala-se na Bretanha francesa (Armórica). Ela foi povoada por Celtas que fugiram da Bretanha inglesa diante das ondas dos invasores anglo-saxónicos, vindos da Dinamarca (do Schleswig-ITolstein ) entre 400 e 500. Tentativas liberais e eruditas de conservar vivos êsses ramos quási secos de um tronco antigamente viçoso, não dão grande resultado. Os textos lingútísticos antigos são poucos, mesmo na Gália. 7.º —
O ramo germânico dividia-se antigamente em três sub-ra-
mos,
geográficamente separados em oriental, setentrional e ocidental. O oriental constava do gótico (visigótico, e ostrogótico, da Crimeia), com o vandálico e burgúndico, ambos êsses escassamente documentados. (”) Há trabalhos que já citei as Questões
importantes de F. A. Coelho a respeito dos Celtas. Creio Ethnogénicas (1888) e Vestígios das Antigas Línguas da
Península Ibérica (1886). (*) De Wales deriva
o adjectivo Walisch que deu 1wadlsch, welsch em alemão o foi aplicado pelos conquistadores Francos aos Celtas Gálicos — e depois pelos Germanos em geral aos Romanos da IJtália e França, no sentido pejorativo de untreu, falsch, desleal e manhoso (welsche List und welscher Trug). Censuras a que êles respondem tratando os Alemães de «bárbaros, rudes e ETOSSCiross. '
PARTE
II—
LINGUAS
INDO-GERMÂNICAS
173
O
gótico, representado pela tradução da Bíblia, realizada pelo bispo Ulfilas (310-383), da qual restam fragmentos no afamado Códice argênteo de Upsala, não teve descendência. Só a tiveram e valentíssima o ramo nórdico e o do centro e ocidental. O nórdico primitivo (urnordisch), de que se conservam amostras valiosas, em caracteres privativos, chamados runas (**), era a língua unitária da Escandinávia, das Ilhas de Faroer, da Islândia e da Groen-
lândia. No fim da época acidentada dos Wikinger ou corsários normãnicos (700-1050) já estava dividida em dialectos regionais que juntos coústituíam o nórdico arcaico (alt-nordisch ). Ésses dialectos eram o norueguês e islandês, o dinamarquês e o sueco, todos com monumentos literários : epopeias heróicas e mitológicas, entre as quais avulta a Edda (séc. IX-XII). Do islandês antigo deriva o moderno norueguês; do dinamarquês e sueco antigo, o sueco e o dinamarquês moderno, de que o norveguês é mera ramificação. O ramo ocidental abrange o inglês, o frísio, e o verdadeiro thiutisco, teodisco, tedesco, deutsch.
O inglês, ou anglo-saxónio, tem as três fases usuais: a arcnica, do sec. VITI ao sec. XII; a média até 1500; e a moderna, cuja parte preponderante está no dinlecto de Londres. O frísio, é falado nas ilhas de Wangeroog, Soterland, Helgoland, Sylt,
Amrun,
na
província
holandesa que se chama
Friesland;
e em
Sehleswig-Holstcin. O baixo-alemão, o neerlandês (com quatro dialectos principais: o holandês, o flamengo, o brabantino e o limburguês) ; as línguas da baixa Francónia
e as da Saxónia, com
três fases literárias:
a antiga
(com
a
epopeia bíblica do Ileliand, composta no século IX) ; a média de 1500 em diante, e a moderna (o verdadeiro platt-diitsch). O alto-alemão (hochdeutsch), no Sul do país igualmente com as três fases consagradas,
(alt, 700-1000 ; mittel,
1000-1500 ; neu-hoch-
deutsch ), de 1500 em diante, com numerosos dialectos, entre os quais sobressaem
os da Alemanha,
Baviera, Francónia, Francónia
renana;
no
princípio todos de igual valor literário, até que pela tradução da Bíblia de Martim Luther, veio a prevalecer a língua da chancelaria imperial. AÀ escrita moderna, chamada gótica, com tão pouca razão com a arquitectura gótica, é mera modificação da letra latina, esquinada. 8.º — O ramo eslavo-lético ou eslavo-báltico é também muito vivaz. O eslavico própriamente dito compreende algumas línguas mortas (co() ÀAs runas, muitos, contravertida
mixto de escrita grega por alguns), usada nos
e latina modificada, (na opinião séculos HI a VII, eram inscritas
de em
pranchinhas
de
deriva
—
e ripas
Buech-StubeStab
faia,
Dêsse
von Buchenhol:s.
costume
o nome
alemão
das
letras
174
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
mo o eslavão litúrgico ou búlgaro arcaico e o polábico) e bastantes vivas: o russo, falado por 93 milhões, o polaco, o boémio ou eheco, o búlgaro, o sérvio, o sérvio-croata, o esloveno, o sorbo, servo ou vêndico
(wendisch ) da Lusácia (Lausitz, nas margens florestais do rio Spre). O lético abrange o antigo prússico (morto), o lituano, o lético prôpriamente dito, falado nas províncias russas, limítrofes da Prússia.
O mais antigo monumento literário da família eslava é uma tradução da Bíblia dos irmãos Cyrillus e Methodius, apóstolos dos Eslavos, e inventores dos caracteres cirílicos (e dos glagolíticos) — de que derivam diversos alfabetos. Hoje algumas das línguas eslávicas preferem o alfabeto romano. Nos mapas que ceu trouxe, iremos examinando rapidamente os principais sistemas de escrita a partir dos hieróglifos do Egito. *
Quanto à Ursprache indo-germânica — fonte comum dos oito ramos citados — à Urheimat, o país que lhes foi berço comum, e donde saíram,
não
de uma
só vez, mas
em
migrações
sucessivas,
e quanto
à
época em que essas migrações começaram, as opiniões fluctuam.
Até 1880 todos os investigadores procuravam o Eden indo-germãnico na Ásia central : na bacia turquestánica, no planalto do Pamir, em volta do Mar Cáspio, indicando como têrmo cronológico a quo o ano 2000 A. C. Desde então a «ciência da enxada», die Wissenschaft vom Spaten,
como dizem os alemães e conforme já expliquei, trouxe à luz do dia numerosos achados pre-históricos, transformou por completo as idéias vigentes a respeito do homem primitivo, das raças, das migrações dos povos e sua cultura, e a respeito da cronologia. No centro da Europa — a-par de Potsdam, perto de Berlim — encontraram-se p. ex. vestígios de culturas humanas que acusam quatro mil anos de idade. Na Inglaterra ( Kent, Sussex), na França e no norte da Península Ibérica, na Dinamarca e na Escandinávia (encontraram-se restos importantíssimos : instrumentos, desenhos de animais pre-históricos e históricos, cete., que provam a estada do homem aí em tempos remotos,
com
certa
cultura,
primitiva,
embora.
Sucessivamente se tem indicado por isso como berço originário dos Indo-germanos a Europa oriental (as charnecas do sul da Rússia), certas regiões da França, as regiões bálticas (sul da Suécia, Dinamareca, norte da Alemanha). AÀ teoria de que a eultura do centro e norte da Europa não depende do Oriente (que começou a actuar no Ocidente relativamente tarde) (**), ganha ()
constantemente
terreno.
A êsse respeito leiam o Miroir Oricental de Salomão
Reinach.
PARTE
II-— LÍNGUAS
INDO-GERMÂNICAS
175
Há investigadores que reconhecem ares nórdicos em certas cenas da Odisseia. Outros apontam vestígios de migrações de povos germânicos, milénios antes de Cristo, nas margens do Eufrates e do Tigre.
Há mesmo quem coloque o paraiso árico... — nas regiões polares, postulando que lá viviam Indo-germanos primitivos, numa época em que
nem nas margens do Nilo, nem nas do Ião-Sequião, nem na Mesopotãmia havia centros de civilização. Com esta nota sensacional termino a preleeção de hoje. Está provado pela geologia e paleontologia que sucessivamente, por três vêzes, gelos acumulados nas serras curopeias, desceram
às pla-
nícies, em avalanches formidáveis, sepultando o que havia nelas de vida orgânica. Outras tantas vêzes éles se derreteram de novo, ao sôpro de ventos vindos de climas mais amenos.
Houve portanto épocas interglaciárias. Petrefactos, encontrados na própria zona polar, tanto botânicos como zoológicos, provaram
a exis-
tência aí de vida orgânica — e do homem. Mas a idéia de nessas épocas relativamente quentes haverem lá residido os nossos ascendentes, donde veio ela? Ela deriva do facto de nos hinos do Rig-Veda índico, e nos do sÁvesta irânico, a que há pouco me referi, se haverem descoberto reminiscências poéticas de crepúsculos prolongados que duram dias, meses, um ano inteiro de luz contínua. Além disso há nêles um culto da Aurora (vinte hinos inteiros lhe são consagrados) que é inexplicável no Sul e no Oriente, onde, como sabem, a transição do dia para a noite, e vice-versa, é repentina.
A essas considerações se liga uma terceira. À astronomia dos Egípcios e Babilónios pode ou deverá ser fruto de obscervações prolongadas, feitas muito anteriormente nos seis meses de cerepúsculo nocturno das regiões árcticas. Tôdas juntas levaram Tilak, um
ilustrado índio, a escrever um
li-
vro àcêrca das reminiscências do Berço árctico no Veda, (The arctic home in the Veda, Lond., 1905), e um investigador alemão. Dr. Georg Bidenkopp à redigir outro, também sôbre O Polo Norte, berço dos povos («Der Nordpol as Volkerheimat», 1906) ; depois de um Americano, Warren, e o Inglês De Rhys terem enunciado idéias parecidas, basenndo-se em factos de mitologia comparada,
Iipóteses, evidentemente. Mas hipóteses sugestivas. Se nos colocarmos nesse ponto de vista, a idéia de José Pereira Sampaio. que vê nos monstros marinhos (meizon Ketos), colocados por Homero no estreito entre Cila e Caríbdes, baleias do estreito de Behrinrg,
idéia que eu quis refutar, apelando ao jus fabulandi dos poetas, recebe luz inesperada, pois as baleias podem ser também, nas épocas helénicas, reminiscência do berço árcetico dos Indo-germanos.
176
LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA
*
Junto alguns títulos de livros modernos sôbre os Indo-germanos: Mathaeus Much, Die Heimat der Indo-germanen im Lichte der Urgeschichte (1902). Otto Schrader, Aelteste Zeitteilung des Indo-germanischen Volkes,
( Berlin, 1878). Id. Sprachvergleichung und Urgeschichte, (Jena, 1883, 1890) —
3.º ed. 1911). Id. Kulturgeschichte der Indogermanen (1887). Id. Die Indogermanen (1911). Hirt, Die Indogermanen (1904), Siegmund Feist, Europa im Lichte der Urgeschichte u. die Ergebnisse der vergleichenden Sprachwissenschaft, Berlin, 1910. Guido von List, Sprache und Religion der Urarier (Wien, 190?). A. Meillet, Introduction à la Grammaire Comparée des langues indogermaniques, Paris, 1903.
LIÇÃO VI [A
Ao
ESCRITA.]
Íalar, antes
OS RAMOS ITÁLICOS INDO-GERMÂNICO das férias do Natal,
da
DO
TRONCO
classificação
das línguas
em geral. e em especial das línguas indo-germânicas, referi-me, de passagem, aos caracteres cuneiformes, usados primeiro na Babilónia e Assíria e depois em Persépolis — nas inscerições magniloqiientes da dinastia dos Aqueménidas. Ciro. Dario, Xerxes e Artaxerxes — mas também na Arménia antiga. Toquei na escrita dos Hindus. em que os Hinos do Rigveda foram fixados no sécnulo TT A. C.. após muitas centenas de anos de transmissão oral.
Mencionei aàs runas da antiga escandinávia, indicando que êsses síimbolos gráficos e tôdas as restantes escritas indo-germânicas, sobretudo as gregas e latinas, derivaram dos bhieróglifos do Egito. directa ou indirectamente. Aos estudiosos que estavam presentes mostrei depois, no fim da prelecção. uns quadros comparativos que trouxera, dando explicações sucintas. Deixei contudo de ler o breve escôrço em que tratava do assunto, por já ter dado a hora. Como as páginas que hoje elaborei àâcêrca dos ramos itálicos do tronco indo-europeio, e particularmente sôbre a língua latina, não sejam muito extensas, posso preceder a sua leitura da do meu resumo sôbre a escrija.
Nele me refiro aos principais sistemas gráficos que serviram e servem aos povos para comunicação ocular dos seus pensamentos e dos seus actos, importantíssimos porque são a melhor parte da universal memória humana, através do tempo e do espaço. Se é certo que sem fala não haveria escrita, é igualmente certo que
sem
escrita
o verbo.
a voz,
o logos. não
perduraria
senão
muito
diminuído. A escrita, claro que não
É invenção humana
muitíssimo
nasce com
a língua;
ou com
as línguas.
posterior.
Ainda hoje há numerosos povos e tribos sem escrita. O sistema que é invenção de um povo. passa freqlientemente a ser adoptado por outros, mesmo sendo de raça diversa.
Portanto essa grandiosa invenção não pode ser indício genealógico. Realizou-se em poucos pontos centrais — quatro, três, dois (se abstrairmos de tentativas engenhosas, mas rudimentares, e estacionárias,
de povos americanos): na China, na Mesopotâmia, antes de ela ser ocupada pelos Semitas. e talvez e principalmente no Egito e na Feniícia.
178
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Dêsses centros ou dêsse centro, porque só o egípceio, do qual o fenício depende, foi verdadeiramente fecundo, a escrita irradiou, modificando-se mais ou menos, às vêzes muitíssimo, segundo as necessidades
dos idiomas, e a inventiva dos povos que a adoptaram. Em
geral, mas não sempre, ela passou de uma
Ê técnica primitiva-
mente complicada, difícil e vagarosa, para outra mais simples, fácil e rápida ; de monumental a cursivo; de vago a exacto; de ideográfica a vocabular;
de vocabular a silábica;
de silábica a literal, ou fonética.
Nio sempre, porque na China a evolução foi diversa. Quási não houve nenhuma. Nessas evoluções influíram bastante os materiais em que se escrevia ou com que se insculpia ou pintava: de um lado pedras diversas ; barro cozido ; tejolos, madeira ; papiro ; pergaminho, peles de animais ; papel ; tabuínhas de cêra ; fólhas de palmeira ; pelo outro lado punções, estiletes, canas agucadas, pincéis, penas de ganso talhadas, bicos de aço; côres compactas, tintas líquidas. Ésses materiais influíram também na direcção em que as figuras gráficas se sucediam.
Elas se seguiam de cima para baixo na escrita chinesa e nos monumentos do Egito — templos e pirâmides. Iam e vão da direita à esquerda nos textos hebraicos e em todos os restantes alfabetos dos Semitas. Provavelmente também assim seria na cescrita primitiva da Grécia.
Da esquerda para a direita vão modernamente, nas línguas indo-germânicas, desde que havia cursivo, e se empregavam nesse cursivo tintas de escrever ou aguarelas, porque na ordem oposta a mão apagava freqiientemente o que acabava de traçar. Quanto ao conteúdo da escrita, ou sistema representativo da fala, a
ideografia ou pictografia era pintura de objectos reais, conceretos : homens, mulheres, partes do corpo humano,
animais, plantas, armas, ins-
trumentos. Conforme a acção simbolizala — p. ex. um homem que levava alimentos à bôca, ou bebia — ela tinha o valor de uma proposição inteira, ou só vocabular.
Da desitnação bica, ou, em
muitos
vocabular determinativa casos, meio-silábica,
passou-se
à escrita silá-
isto é, meramente
consonân-
tica, sem indicação das vogais, ou só com indicação por meio de sinais distintivos, diacríticos, sobrcpostos ou subpostos. Da escrita silábica deriva finalmente a alfabética: por letras. Isto é: a representação dos sons (ou fonemas) como últimos elementos irredutíveis da fala humana. AÀ mais perfeita, o ideal das escritas, seria naturalmente aquela em
que cada símbolo gráfico representasse um único som, e cada som fôsse representado por um símbolo independente, único, especial ; uma escrita em que não se escrevesse, p. ex., com
a mesma
letra ó aberto e à
179
PARTE II — A ESCRITA
fechado, é aberto e ê fechado, nem se dessem cinco valores ao x, só por
piedoso apêgo a tradição secular. Mas isso já pertence ao capítulo da ortografia — não da mera grafia. *
As cscritas europeias em geral, não só as indo-germânicas mas mesmo as pre-áricas ou proto-áricas, como a etrusca e talvez a ibérica, derivam, conforme já se disse, dos hieróglifos do Egito propagados e aperfeiçoados pelos Semitas que, geográfica e politicamente, estavam em contacto directo com os Hamitas das margens do Nilo; mas sobretudo pelos Fenícios, segundo a tradição greco-romana. Dos hieróglifos derivam também as diversas escritas usadas pelos rias nsiáticos ou Asiatas áricos, os da Pérsia e os da Índia. Esta última
seguramente ; a cuneiforme só provávelmente, visto que muitos investigadores acreditam
na sua independência e originalidade, isto é, na in-
ventiva dos povos súmero-acádicos da Mesopotâmia. Quanto
à China,
cuja literatura
principia,
como
sabem,
mais
de
dois mil e sciscentos anos antes da nossa era (com o livro de filosofia chamado
Jihking), ela foi, seguramente,
centro independente
também
quanto à escrita : a tal ponto essa difere do sistema egípeio. Também pictografia, a princípio, a que se usa hoje e já se usava vinte e seis séculos AÀ. C., era ideográfica — figurativa de palavras (sempre monossilábicas). Mas sendo verbal, vocabular, é-o num sentido muito especial. Os sinais gráficos vocabulares da China não são letras; não representam os sons que no respectivo vocábulo dão expressão à idéia. Representam a própria idéia em si ; tal qual um algarismo (quer arábico, quer romano ) representa em tôda a parte do mundo civilizado a mesma idéia, embora em cada idioma o vocábulo respectivo seja outro. Assim como o sinal ou IY é lido quatro em português, mas four em
inglês,
vier em
alemio,
tessare
ou feltares em
grego,
assim
mesmo
o sinal , um dos mais simples, talvez o mais simples da escrita chinesa, designa o homem para todos quantos conhecem qualquer dialecto ehinês, muito embora na província de Cantão leiam jan ( jon); no dialecto de TIakk njin; no de Pequim shan; no de Fucheu nông, ete. (**). Formados de traços diversos, de um único até dezassete, sempre ligados, dispostos de modos muito divergentes, os símbolos gráficos chi-
neses equivalem portanto a algarismos. E desses tais algarismos há cinquenta mil. Embora nem de longe todos sejam indispensáveis a quem estude
chinês,
ainda
assim
língua! (*)
Vid.
Finck, pág. 58.
não
é fácil aprender
a ler e eserever essa
180
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
No Egito os símbolos da escrita ideográfica, chamados hieróglifos (de hierossagrado e glyphein gravar, insculpir, esculpir), inscrições sagradas, portanto, verdadeiras pinturas de objectos positivos, nem de longe são tão numerosos. Conhecem-se dois a três mil. De uso freqiiente apenas há quinhentos, muitos dos quais são secundários, meras determinações que representam sons, fonemas, e acompanhando os hieróglifos distinguem homónimos, de significação e origem diversa. A-par
dessas
figuras
monumentais,
mides, obeliscos, havia outras cursivas —
insculpidas
em
templos,
pirã-
de livros e faixas de múmias,
ete., — em que as figuras eram abreviadas, reduzidas aos traços principais; e mais abreviadas ainda, em documentos de somenos valor: papiros eontendo cartas, contas, etce. É a chamada escrita hierática. Dêsses ideogramas saíu outra terceira forma, popular ou demoótica (de demos povo ) mais singela ainda. E saíram, pelo outro lado, os sistemas dos Semitas e dos Indo-germanos.
Essas três escritas ficaram em uso no Egito até o século H da nossa era. O cristianismo substituíu-as então pelo alfabeto mais cómodo e mais claro dos greco-romanos que dominavam no Egito, aumentando-o todavia com seis ou sete símbolos hieráticos. Os egípceios cristianizados (jacobitas quanto à seita), descendentes dos velhos Egípcios, chamavam-se Coptas; a nova escrita era Cóptica. Copt com Kk-o-p, ou qobt com qe b é a pronúncia arábica, deformada de qibt, por gypt — (gyptios — aigyptios). Desde então, ninguém se ocupou dos hicróglifos. Éles eram e ficaram enigmas insolúveis durante tôóda a Idade-Média e a era do Renascimento. No século XVII, houve um arqueólogo erudito, alemão e da Companhia
de
Jesus,
que
tentou
esclarecê-los;
Athanasíius
Kircher,
coleccionador de um Muscu curiosíssimo que ainda existe em Roma (Muscu Kircheriano ) e inventor da lanterna mágica. À obra, em quatro volumes. em que trata do assunto é o Oedipus Aegyptiacus (Roma, 1652 -56). Escreveu também uma China Ilustrada (Amsterdão 1167) e uma Poligrafia. Para o seu tempo foi de uma erudição pasmosa, mas não eonseguiu esclarecer a escrita dos Egípcios. Só no tempo de Napoleão e da sua expedição ao Egito, um francês começou a decifrá-los efectivamente — de 1779 a 1802. Champolion (é o seu nome) descobriu uma pedra — a pedra de Rosctte, hoje no Museu Britânico — que continha um único c mesmno texto em três redacções e escerituras: verdadeiros hieróglifos, transcrição demótica e outra em caracteres gregos. Éste foi o ponto de partida da egiptologia. Os mais afamados egiptólogos são os Alemães:
Lepsius, Brugsch,
PARTE
Hl — AÀ ESCRITA
181
Os arábicos (meio-silábicos ainda, porque as vogais só são indicadas por traços diacríticos) propagaram-se para o Oriente até Malaca, e ao Norte da Ásia, sendo adoptados também pelos Turcos. Dominam em tôda a parte onde chegou o credo maometano: o islamisno (*). AÀ cescrita fenício-aramaica passou também à Ásia. Entrou na Índia no século III A. C., muito transformada pelo engenho de algum artista desconhecido. Aperfeiçoada quanto às vogais, ainda assim era insuficiente. Quanto à Grécia, a lenda conta que foi Cadmo, um Oriental, que lá levou o alfabeto. Éste (alpha, beta, gamma, delta, ete.) concorda com o fenício tanto na ordem dos caracteres como no seu valor numérico. Não há todavia monumento arcaico grego em que a escrita seguisse tôda da direita para a esquerda. Apenas monumentos em que a primeira linha, e tôdas as mais linhas ímpares, vão da esquerda para a direita, ao passo que as linhas pares seguem o caminho oposto. Assim se estabelecera, como estado de transição, uma continuídade perfeita — que tinha as suas vantagens mas que exigia grande habilidade manual. Do século VINI A. C. em diante usow-se
Da
letra grega
proveio
Italiotas. Oscos, Úmbricos —
o método actual, moderno.
a dos Etruscos um
pouco
que a transmitiram
aos
antes que os Latinos, pela sua
vez, à aprendessem (no século VI A. C.) dos colonos helénicos de Cumae, na Campânia. A
letra
alemã,
chamada
gótica,
com
tão
pouco
acêrto
como
se
qualifica de gótica a arquitectura ogival — não é, repito-o, senão uma modificação esquinuda da letra arredondada latina. Os alfabetos eslávicos (o cirílico, o glagolítico, ete.), as runas da velha Escandinávia, os caracteres empregados pelo bispo Ulfilas, na sua tradução da Bíblia, tudo deriva dos símbolos hieráticos do Esgipto. Mas as modificações caprichosas téêem sido profundas. Quem vê diante de si os pontos de chegada, custa-lhe às vezes adivinhar os rastos da transição. Para
transcerição de idiomas que nião possuem escrita, foi ideado um Standard Alphabet pelo egiptólogo Lepsius, a pedido dos missionários ingleses. Eu trouxe-lhes um exemplar do livro assim intitulado, em que os senhores poderão examinar trechos das cescritas a que me referi e de muitas outras que deixei de mencionar. Livros fundamentais para o estudo da escrita são a História da Escrita— Geschichte der Schrift, de Wuttke (1872) e o Livro da Escrita
— Das Buch der Schrift de Karl Faulmann (Wien, 1872, 2.º ed. 1880). Éste foi analisado admirâvelmente por Gonçalves Viana na revista o () Alexandre Ierculano «engaços de passas».
embirrava
com
os
caracteres
arábicos.
Chamava-os
182
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Positivismo (vol. IV), em quatro artigos muito instrutivos. Do mesmo erudito austríaco há Novas Investigações acêrca das evoluções da escrita alfabética — Neue Untersuchungen, ilber die Entstehung der Buch-
stabenschrift e vários outros tratados. Quanto aos símbolos cuneiformes, os melhores livros que conheço são: Delitzsch, Die Entstehung der ãàltesten Schriftsysteme (1897 e 1898 ) ; Messerschmid, Die Entzifferung der Keilschrift, (1903) ; F. H. Weisbach Die Sumeriísche Frage (1898) e E. Mayer, Sumerier und Semiten in Babylonien (1906). *
Dos principais sistemas estenográficos ou taquigráficos, a começar com as notas tironianas de Tiro, um antigo secretário e escravo de Cícero — e também das pasilínguas do nosso tempo : o Volapiik (Worlds-spealk de Sehreyer), Esperanto de Zamenhof, Novi-latim e Ido, descejava dizer-
-Jhes alguma coisa. mas vejo que não há tempo. Fica para outro ensejo. *
Passemos aos ramos itálicos do tronco indo-germânico ou indo-europeu. Não há meio de estabelecer com segurança quando os Árins penetraram na península apenínica. Calcula-se que fôsse mil anos antes da nossa era. E passa por certo que, vindo do Norte, os Árias transpuseram os Alpes. Em todo o caso foram tão caudalosos que destruíram quási todos os vestígios das povoações anteriores, e das suas línguas. Ficaram Lígures em volta do golfo de Génova que, a concluir do onoimúástico topográfico ocuparam as regiões até ao Vetlin ( Valle Tellina), no rio Ada e no lngo de Como. Mas o que dêles se sabe é tão pouco que nem mesmo se apurou a que grupo de povos pertenciam : se eram proto-árias ou Turanianos (sumero-acádicos). Fiearam
sobretudo
os Etruscos
(ou Tuscos, donde
vem
Toscana),
no centro da península, de orizem também ignota e de língua inexplicada, apesar de milhares de inscrições ( 7-8000) que subsistem, e textos extensos, inscritos na faixa de uma múmia, terem sido estudados por numero-
sos eruditos (**). De 800 a 400 os Etruscos alargaram o seu domínio até à Campânia; dominaram mesmo em Roma, dando-lhe a dinastia dos Tarquínios; e
actuaram com a sua civilização, influída já poderosamente pelos Helenos, (º*) Há um Corpus Inscriptionum Etruscarum editado por Pauli (Leipz, 1809-1902). O de Inghiram, Monunmenti Etruscí, é muito mais antigo (1821-26, 10 vol.)
Corssen
escereveu
um
livro
a respeito
da língua:
Uecber
die Sprache
der Etrusker
(1874-76), obra que levantou brado, mas cujos resultados hoje ninguém aceita. Para Romanos é mais acessível outra: Desvergers, L'Étruric ct les Etruriecns (Paris, 1862-64,
3 vol.)
e a de Dennies
The
Cities
and
Cemiteries
of Etruria
(Lond..
1878. 2 vol.).
PARTE
I1IIl— RAMOS
183
ITÁLICOS
na dos latinos — sobretudo quanto aos ritos religiosos, com os áugures, os arúspices, os sacrifícios. Mas apertados em seguida no Norte pelos Celtas Gálicos, que transpuseram os Alpes cêrca de 500, ocupando a planície do Pó, e no Sul pelos Samnitas, sucumbiram finalmente nos Latinos. Além dos Lígures, dos Etruscos e dos Celtas, vindos tarde, — havia
Vénetos no Nordeste e Messápios no Sudeste (Apúlia e Calábria) ramos indo-germânicos aparentados com os Ilíricos, dos quais descendem os Albaneses, imigrados provàvelmente antes dos verdadeiros Italiotas. Na Sicília e em tôda a Itália do Sul havia, aléóm disso, colónias
helénicas importantes, que constituíam a Magna Graecia. Uma das mais importantes era a colónia de Cumae, que deu aos Latinos a sua escrita.
De origem indo-germânica, irmãos portanto, eram 1.º) o osco, com o subdinlecto sabélico. 2.º) o úmbrico, com o subdialecto volsco, e 3.º) o lati-
no com os subdialectos de Preneste, Lanúvio e Falerii (o falisco). Ésses dialectos intimamente aparentados formam juntos o ramo itálico. O osco cra falado no Sul da península, na Campânia. Lucânia e no Bruttium, mas também no Samnium. Conhecemo-lo de inscrições, de um cipo (de Abella) e de uma tábula (de Bantia). O úmbrico falava-se no Nordeste (Rimini) contíguo à Etrúria. Éle é conhecido sobretudo de sete tábulas de bronze, de Tguvium
(hoje
Gubbio : Tabulae Eugubinae) com textos sagrados (**). O latino (de latinus), o dialecto do Lácio (Latium ) era falado no centro. Abrangia a princípio apenas umas cinqiienta léguas quadradas, limitadas ao norte pelo rio Tihre, ao oriente pelas montanhas da Sabínia,
ao ocidente pelo mar. ao sudoeste pelos picos dos Volscos. Era dialecto como os outros : sem qualidades intrínsecas que o distinguissem ; dialecto pobre. rude. sêeêo — de pastores e agricultores. Se tomou a dianteira e ficou vencedor absoluto na Itália, estendendo-se depois através do Orbis antiquus, deve-o exclusivamente ao carácter prático e utilitário do povo que o falava e às virtudes bélicas e administrativas, políticas e jurídicas que o distinguiam. Em meados do século HH os irmãos italiotas já estavam vencidos e assimilados. Do mesmo modo os Lígures e Etruscos, que abandonaram a sua cultura e a sua língua, e também os Gregos, os Messápios, Vénetos e Celtas. Os últimos documentos escritos em dialectos provêem do fim da guerra social. Há. por exemplo. moedas do ano 90 À. C. com inscricões oscas e com a figura do touro ( que simboliza a Itália), em Juta contra a loba de Roma. Como
línguas faladas.
tódas
talvez perdurassem
1mais;
até à era
de Cristo. Eis o que F. A. Coelho diz a êsse respeito : «Ã guerra social, último esforço dos povos umbro-sabellicos para (”)
Nolivro de AÀ. Coelho sôbre a língua portuguesa há mais pormenores.
164
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
fundarem uma tardia unidade, uma república modelada pela de Roma. é a data, não diremos da morte, mas sim do estertor dos dialectos particulares desses povos. Desde essa data não foram mais empregados como linguas escriptas. Como lingua faladn deviam ainda subsistir durante um período, cuja duração não foi muito provavelmente considerável, mas só como linguas populares, como linguas de alguns pontos onde a assimilação romana não foi tão rápida ou tão intensa no começo, até que pouco e pouco, reduzidos a lingua de um cantão. duma família e por fim dum só indivíduo, cederam inteiramente o lugar ao latim. «Nas partes meridionais da península itálica e na Sicília. onde as colónias helénicas tinham implantado a lingua grega. fazendo desaparecer provavelmente além do messapio outros idiomas de pequenas fracções de perdidas nacionalidades., que tiveram assento naquelas partes. o grego perdeu toda a importância. cedeu lugar ao latim pouco e pouco. depois da conversão da Grécia em província romana (146). «Na epocha da guerra social e das luctas de Mario e Sulla, com a perda definitiva da nacionalidade etrusca, desapareceu a literatura etrusca., e conquanto a lingua desse povo, sem afinidade com o latim. oferecesse maior resistência á implantação deste que os outros dialectos italicos. essa lingua desapareceu também sem que possamos indicar a data da sua completa ruina. O sul da Etruria latinisou-se mais rapidamente que o norte, já pela maior proximidade de Roma. já porque nessa parte havia um assaz forte elemento umbro, que, quando os Etruscos repeliram os Umbros da região do Pó na direcção de sueste. não poude refugiar-se nas montanhas. «Na Gallia Cisalpina o parentesco do Gallo. dialecto celtico. com o Jatim, facilitava tambem a implantação da lingua dos conquistadores. Vergitio e Livio (Tito). um dos maiores poctas e um dos maiores historiadores de Roma. eram celtas da Cisalpina». *
Com relação às conquistas romanas fora da península apenínica, basta fixarmos aqui que levaram mais de três séculos: de 240 A. C. até 100 da nossa era. Dos seus cursos de história e de latim, os senhores devem conhecê-las perfeitamente. Das primeiras vítórias sôbre os Punos ou Cartagineses resultou a ocupação da Sicília (241). Pouco depois veio a da Sardenha e da Córsega (238) ; c sucessivamente as primeiras vitórias na Gália Cisalpina. a ocupação da costa ilírica e da Macedónia. a sujeição da Grécia inteira, transformada em província com o nome de Acaia; no mesmo ano de 146 a aniquilação definitiva de Cartago ; a rapidíssima conquista da peninsula ibérica : a do Norte de África e da Gália Narbonense ; incursões no Oriente e a tomada de regiões extensas nas margens do Ponto, na Ásia Menor,
PARTE
II-—- ROMÁNIA
ORIENTAL
E OCIDENTAL
185
na Síria, no Egipto; a sujeição da Gália por Júlio César, com invasões na Inglaterra, continuadas depois do nascimento de Cristo. Finalmente as guerras contra os germanos — a construção do limes no reinado de Domiciano ; a ocupação da Récia, do Nórico e da Panónia;
e, no tempo de Trajano, a colonização da Dácia. *
Os conquistadores romanos levaram naturalmente a sua língua consigo. Mas em parte alguma a impuseram por leis. Apenas impuseram a sua administração com habilidade sem-par. Em tôdas as províncias instalaram sistemâticamente veteranos. Colocaram
magistrados
romanos
colónias de
tanto nos tribunais como
nas
alfândegas. Fundaram escolas, em que se ensinava a língua literária. Facilitaram o comércio pela construção de estradas e pontes. Tudo
isso
junto
ao
ascendente
natural
dos
conquistadores,
e à
superioridade da civilização romana sôbre a do Ocidente e do Norte, mas sobretudo o facto de as línguas dos Iberos, Celtiberos, Lusitanos, Celtas
gálicos já não corresponderam às necessidades criadas pela cultura nova, fêz que Iberos, Celtiberas, Celtas, Dacos e Dalmatas, e os habitantes da
Récia abandonassem as suas próprias línguas e adoptassem a dos Conquistadores. Essa adopção foi tão completa. profunda e cficaz, que ainda hoje, mil e quinhentos anos depois da queda do Império Romano, a origem comum dos idiomas falados na Ttália, Hispânia, Roménia e Récia é óbvia, mesmo para os olhos dos leigos. O cristianismo, que alterou profundamente
acabou
o que
o
império
comecçara.
Mas
o carácter
do
Jatino,
ceste tema fica para outro
capítulo. *
*
A Románia
de hoje,
o Império
*
neo-latino,
não
é Hteralmente
o
Orbis Romanus Ántiquus. O conglomerado caótico de povos conquistados. que o constituíam, artificialmente unidos pelas leis de Caracala, que concedia o direito de cidadão romano a todos os libertos das províncias, nunca chegou a ter unidade lingilística. E algumas daquelas partes onde o latim penetrara, desagregaram-se de novo do colosso. É preciso distinguir entre a Románia oriental (grega) c a ocidental (latina). A oriental estava em condições muito diversas da ocidental. À cultura helénica era superior à latina. Os latinos haviam encontrado nela, mais uma vez o digo. não só os germes da máxima
beleza e da suprema
186
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
perfeição moral, mas também
PORTUGUESA
modelos para tôdas as manifestações das
artes.
Os latinos reconheciam,
às vezes com
íntimo
rancor, a suserania
espiritual dos vencidos, e nunca tentaram a sério predominar na Grécia, quanto à língua. O latim nem mesmo venceu na Macedónin. Só nas partes setentrionais da península baleânica, entre o Adriático, o Danúbio e os Alpes, na Dálcia e Dalmácia, éle chegou a dominar. Mas nem lá mesmo por completo. A TIlíria nunca foi bem romanizada; da antiga linguagem ilírica ( indo-germânica ) ficou no albanês, seu representante moderno,um fundo importante que pelas vicissitudes da história, acolheu em si numerosos elementos eslávicos, turcos, neo-latinos, e latinos.
Entre êstes há palavras de tal necessidade como pai e filho, e conjunções como et e aut. Mas não chegaram a fazer do albanês uma língua românica. À própria Dácia, colonizada por Trajano, subtraíu-se ao Império no reinado de Aureliano (a. 274). Os colonos foram transplantados para a Mésia. Só na margem esquerda do Danúbio, na actual Roménia, é que a România oriental subsiste. AÀ costa dalmática e a Ístria foram eslavizadas pouco a pouco. Mesmo o Trieste e o Friúl, partes mais orientais da Récia — estão muito ameaçados. No próprio Ocidente também, nem tôdas as parcelas do Império foram romanizadas fundamentalmente. Os colonos da Bretanha inglesa, dificilmente acessível e demasiadamente afastada da metrópole, sucumbiram aos ataques dos Anglos e Saxónios, vindos da Dinamareca (do Schleswig-Holstein), de 450 a 350 — não sem que deixassem vestígios, menos profundos que os da posterior invasão românica de Guilherme o Conquistador. A África do Norte, romanizada cedo, e cedo cristianizada, tão pro-
fundamente como se vê nos monumentos importantes com que contribuíu
para a literatura latina, estava perdida também — já antes de ser inundada pelos sectários de Maomé. No nosso século é que essas regiões são reconquistadas pouco a pouco por nações nceo-latinas. À cruzada africana teve antecedentes nas
conquistas dos Portugueses. Grandes partes da Helvécia (Suíça) subtraíram-se igualmente ao Império. durante aàs invasões dos bárbaros. À parte oriental, na margem direita do Reno, germaniza-se cada vez mais. Em compensação a Romãnia estendeu-se nos tempos modernos magníificamente, tomando posse de grandes partes dos continentes que constituem o Novo Mundo : territórios portanto que nunca tinham sido parte do Orbe romano.
PARTE
II1I--O 1DIOMA
LATINO
187
Quanto no francês, êle fêz e faz progressos na Flandres., na Bélgica, e também na Suíça ocidental. E é falado na Argélia e no Canadá (*). O espanhol domina no México, em Cuba, e em grande parte da ' América do Sul. O português, no Brasil, nas colónias, c ainda em Ceilão. O italiano, em Tunes e em Tripoli. *
Mas
isso tudo,
assim
*
*
como
noções
àcêrca
dos dialectos crioulos,
que são descendentes bastardos do idioma latino, pertence ao capítulo relativo às línguas neo-latinas, como filhas da língua do Lácio : sua continuação e fase moderna. E eu ainda não disse quási nada a respeito dela própria. Só mencionei que o latim fôra a princípio um dialecto como os outros. Dialecto rude, pobre, sêco — de pastores e agricultores. No contacto com os co-dialectos itálicos enriqueceu um pouco o seu vocabulário ; mas pouco, apenas com palavras também rústicas. de esfera prática e utilitária. Acolheu por exemplo do fundo osco vocábulos como bos (boi); scrofa (porca) ; rufus (ruivo); popiíina (bodega), que pela formaçião não são latinos. Do etrusco ficaram principalmente nomes próprios (como Tarquinio) alguns filólogos consideram também como etrusco o sufixo — itta. Os Celtas contribuíram com alguns têrmos relativos ao seu vestuário (como braga) e ontros relativos ao transporte de mercadorias (carro, caminho ). Os Germanos, mais tarde, com outros.
Mas influxo profundo, influxo estético. influxo poético, tanto vocabular como morífológico. e sintáctico e métrico, só foi exercido pela Grécia. Do latim primitivo os restos são pouquíssimos. Por isso foi um acontecimento quando, em 1899, no foro romano, por baixo de um pavi-
mento prêto que passava tradicionalmente por ser a lousa do sepulero de Rómulo, se encontrou um fragmento de coluna com parcelas de uma inscrição tão arcaica que os peritos a colocaram no século VI A. C. Em
lugar de iumenta
há nela iouxmenta;
em
lugar de iusto, há
iovestod; em lugar de sacer, salros. Como fenómeno importante para a distinção entre latim literário e latim de conversação vulgar, que forma a base das línguas românicas, deve-se notar que há em monumentos arcaicos, na sintaxe ou colocação das palavras ( p. ex. na insericão de uma ftbula de Preneste)— um traço (”) Temporàáriamente a Inglaterra, invadida pelos Normandos romanizados em França, tornou a ser latina, parcialmente, Mas ao terreno assim ganho, corresponde em França a perda da Bretanha, ocupada no séc. V pelos Celtas vindos de além Canal.
188
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
francamente românico : colocação de circunstâncias adverbiais depois do verhbo, o qual, em latim clássico, ocupa quási sempre o último lugar, como sabem (**). Os mais antigos monumentos literários são fórmulas religiosas, Jeis, eânticos sacros, como o dos Sálios e o Carmen fratrum arvalium (de um colégio de pontífices). inscrições funerárias, p. ex. as dos támulos dos Cipiões (de 273 em diante).
Os mais antigos poetas verdadeiros começaram logo a imitar os Gregos: p. cex. o autor dramático Lívio Andronico. É costume dividir os scis séculos da literatura latina em um período ante-liviano (até 249 A. C.) ; um período arcaico, de iniciação, até César e Cícero:; o período áureo até Tibério, com Vergílio e Lívio, Horaá-
cio, Catulo, Tibulo, Propércio, numa palavra — os clássicos ; um periodo meio argênteo, meio áureo até 192 P. C.; outro arcaizante, em que a
divergência entre o cstilo dos letrados e o dos leigos atinge o seu auge. Depois o férreo, da decadência. O último abrange quatro séculos de transição em que o helenismo, por meio de traduções, e o cristianismo, alteraram o mundo, antes que a fôrça juvenil dos «Bárbaros» do Norte O renovasse. Nêle há prosadores e poetas das províncias, sobretudo da africana, mas também da Ttália, Espanha e França — há Santo Agostinho, Santo Ambrósio,
S. Jerónimo.
Santo
Isidoro. Gregório
de Tours,
Tertuliano
Latâncio (”**). *
Depois da invasão dos Bárbaros e dissolução do Império Romano, o latim é língua morta. Continuou,
todavia, a ser veículo da cultura
mundial,
não só du-
rante tôda a Idade-Média, mas também posteriormente, quási até aos nossos dias. Funcionou então como pasilíngua, indispensável emquanto as línguas modernas — romãânicas, germânicas, ceslávicas — ainda não estavam bem constituídas, careciam de unidade e do grau de cultura preciso para darem expressão a tôdas as idéias. Foi língua da Igreja, língua da Ciência, língua da Diplomacia, língua do comércio epistolar dos eru-
ditos. Nesse estado de língua morta, mas internacional, o latim divide-se em dois períodos. O primeiro, medieval, é anterior ao Renascimento
e
Humanismo. O segundo é posterior a êsses dois fecundos fenómenos de restauração. No primeiro o latim era menos correcto, mas mais original (*) Vid. Dr. Elise Riehter, Der innere Zusammenhang in der Entwicklung der romanischen Sprachen (Halle, 1911). () Na Kultur der Gegenwart (L. 8, 3.º cd., 1913) há um trabalho sôbre a Literatura Latina da Antiguidade para a Idade-Média, de Ed. Norden; geral sôbre Língua Latína, de Franz Skutsch. Todos êles notabilíssimos.
e um
estudo
PARTE
11— O IDIOMA
LATINO
189
porque os que então escreviam latim, tratavam-no conio língua viva. Sem se cingirem a modelos, acolhiam de tôda a parte, da fala quotidiana,
vocábulos. frascs, construções familiares. No segundo, pelo contrário, os melhores génios das diversas nações, rivalizavam em imitar os modelos clássicos. E não só no século XVI, mas ainda nos imediatos, não só a teolo-
gia e a filologia mas também a filosofia, a astronomia, a matemática, a jurisprudência, as ciências naturais, empregam a língua lntina amíiúde, afim de criarem obras que fôssem universais. cosmopotitas, inteligíveis para todos os doutos. Espinosa e Leibniz. Newton e Kant, escreveram obras em latim. Tloje êle já não é indispensável. Francês. inglês, alemão são estudados onde quer. À diplomacia serve-se do francês. O latim só domina ainda na Cúria, romana, na Civitas Dei, na Igreja Católica. * Mas. apesar disso, o seu valor não diminuíu. Quem sabe latim, tem
na mão a chave que abre os tesouros da antiguidade e os da cultura modemn, pois cla deriva da greco-romana. e do cristianismo. É prcclºo respeitarmo-lo como vaso sagrado do pensamento humano durante mais de dois mil anos. Sobretudo as nações românicas, que lhe
devem o instrumento admirável da sua fala. precisam de estudá-la com
amor. Termino com dizeres de um grande pensador alemão. que foi admirável cultor da sua língua pátria. Segundo êle, o homem que não sabe latim semelha-se a um viandante que em época de chuva e nevoeiro, atravessa uma paisagem formosa. O seu horizonte é extrenamente acanhado. Só vê bem o que lhe fica perto, a poucos passos de distância não distingue nada. Mal reconhece vagos contornos. O horizonte do Latinista, pelo contrário, é amplo. Abrange, além dos tempos modernos, a Idade-Média e a Antiguidade. (*).
(*)
Schopenhauer, Parcrga e Paralipomena
1, $ 299.
LIÇÃO VI LÍNGUAS
ROMÂNICAS
OU
NEO-LATINAS
TEMA de hoje é a Romáânia. É este o nome dado ao conjunto das línguas que são filhas da latina ; ou continuação da latina : novi-latinas, neo-latinas, ou línguas românicas. E também ao conjunto das nações que as falam, dos países onde se falam. 0
Liínguas românicas. Quem enuncia ou ouve essa guesa e à castelhana, à provençal ruménica) (**'), assim como aos tras variedades como o sardo e
fórmula, que se refere à c à francesa, à italiana, dialectos reto-românicos, o dalmata, fórmula que
lingua portuà rumena (ou e ainda a ouas caracteriza
como irmãs, como pertencentes a uma única família e ao mesmo tempo como descendentes directas da mesma mãe — Roma, Regina Orbis —
imagina em regra que cla é antiga e comum, usada em tôda a Europa, ou todo o mundo culto, desde muitos séculos. Tão natural é empregarmos um derivado do vocábulo romano para qualificar coisas, fenómenos, econcepções, instituíções que, de facto, derivam de criações e manifestacões da alma romana. Mas, na realidade, a fórmula nem é antiga nem é comum. Romanicus existia em latim. Basta abrirmos qualquer Léxico para estabelecermos essa verdade. Nos que tenho à mão (o latino-alemão de Klotz e o latino-português de Ferreira), romanicus figura com o significado do feito em Roma ou ao modo romano, ou trazido de Roma; rômisch, in Rom gemacht. Mas o único exemplo documental alegado (só no dicionário alemão), é tirado da obra De Re Rustica de Cntão, e refere-se a jugos e arados. Romanicus era portanto pouco usado na literatura. Mesmo da sua existência na parladura vulgar e no latim medieval, não há demonstração.
No grande Glossário do baixo-latim e latim medieval de Du-Cange (Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis ), apenas se regista o advérbio romanice, de que logo falarei, mas não o adjectivo romanicus. Nem com relação a objectos nem com relação à língua. AÀ sua aplicação à família neo-latina é recente. E é alemã, como
tantas outras idéias filológicas. Data da Grammatik der Romanischen Sprachen e do Etymologisches Wirterbuch der Romanischen Sprachen (”)
Eu
prefiro
à
ortografia
fonética
com
m,
embora
Cocelho
e
Gonçalves
Viana prefiram romeno, Roménia, porque combina com a francesa roumain, Roumanic, e com a alemã rumáânisch, Rumanien. M. Pidal escreve rumano.
191
PARTE II — LÍNGUAS ROMÂNICAS
de Friedrich Diez, o qual de 1836 a 1853 fundou a nova ciência lingiística colocando-a logo a-par da filologia germanística e da indo-germãnica (conforme expliquei em prelecções anteriores). Se antes dêle houve quem se servisse da designação Línguas Romãnicas (Romanische Sprachen ) foi seguramente êle quem lhe deu base sólida e aceitação geral. é Geral? De modo algum. Só na Alemanha é que prevaleceu romanisch, formado de romano com o auxílio de um sufixo nacional (isch - isk ). E só para Portugal é que êle foi transplantado, com nacio.
s..
nalização necessária do sufixo. Como já tinhamos romanesco ( que, quanto à formação, corresponde ao germânico
romanisch,
tendo contudo significado muito diverso e
origem também muito diversa — foi preciso dar a preferência a outro derivado (**). F. A. Coelho escolheu romáânico. Nas suas Questões da Lingua Portuguesa, que são de 1874, o parágrafo inícial intitula-se: Origem das linguas romanicas. Na 7.º edição do Dicionário de Morais, de 1874, revista e aumentada pelo próprio introdutor da glotologia em Portugal, o vocábulo romanico tem asterisco. E nsterisco é sinal de que um têrmo fôra aco-
lhido de novo, era neologismo. Nos restantes países em que se falam idiomas neo-latinos, êsses idiomas e os respectivos povos são caracterizados quer com auxílio de outros derivados de Roma e de Romanos, quer somente com a designação de romanos em contraposição ao latim, quer com o vocábulo ladino, ladinho, de latinus, sem que scja sempre fácil dizer por quais motivos históricos, lingitísticos ou estéticos foram escolhidos' uns e desprezados
outros (**). Só os Rumenos chamam à sua própria língua simplesmente limba romina (mas também limba romiínesca, rumineasco ) donde provém de um lado roumain, rumeno, e do outro rumanisch, ruménico.
Os Franceses dão à família inteira o nome de langues romanes. Quem o quiser verificar, e instruir-se a fundo sôbre filologia romãnica, pode recorrer à tradução da obra fundamental de Friedrich Dicz, que foi realizada por Gaston Paris (de 1864 a 1876) — o mais fecundo () Romanesco quere dizer: com carácter de romance, novelesco, apaixonado, devaneador; é sinónimo, portanto, de romaântico, e, como êste, é formação francesa. Os ingleses referem-no à arquitectura (ao cstilo romano). (”) Na Alemanha distinguimos entro Rômer e Romane, e entre rôómisch e — o Civis romanus, Romano de Roma, da romanisch. Rômer é o verdadeiro Romano Cidade eterna. Em Rómer há o sufixo -cr: -acre no alto alemão da Idade-Média, -ari no antigo alemão, que provém claramente de -arius, Corresponde, portanto, quanto à formação, ao português romceiro, mas em sentido bem diverso. Em romanisch há sufixo germânico. Rómer é germanização muito antiga, por isso tem carácter de formação popular, a0 passo que romanisch tem feições eruditas.
192
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
dos discípulos franceses directos do catedrático de Bonn, mestre de todos os romanistas. Claro que ela se intitula Grammaire des Langues
Romanes. Melhor será todavia estudarem a versão da obra mais moderna de Meyer-Libke, que hoje vai substituindo Diez, visto que ela se bascia nos trabalhos de duas gerações, que aperfeiçoaram os resultados primitivos (Paris, 1890-1906). Entendo,
porém,
original
que o melhor de tudo seria utilizar um
francês: um Manual escrito há muito pouco e que acho excelente : científico mas conciso, claro mas elegante, ceurto e barato. É um volume pequeno, que encadernado custa seis francos; ao passo que as Gramáticas de Diez e Meyer-Liibke (a primeira em três volumes e a última em quatro) são muito dispendiosas. O
título do
Sumário,
que
lhes
recomendo
calorosamente,
é Élé-
ments de Linguistique Romane (Paris, L. Klincksieck, 1910). Pertencee à Nouvelle Collection à VUsage des Classes, mas é digníssimo de servir nas Universidades. O autor, E. Bourcicz. é professor da Universidade de Bordéus. LEstou certo que êsses Elementos, baseados nas obras fundamentais que citel.
e em
outras de Mever-Liibke
que vou citar, embora
Bourciez
se afaste às vêzes das idéias germânicas, servirão muito melhor para despertar a curiosidade dos principiantes e para orientá-los como bom guia, do que as exposições compactas dos romanistas alemies.
Melhor mesmo do que um resumo do ilustre professor de Viena de Áustria, que Bourcicz imita: Einfithrung in das Studium der romanischen Sprachwissenschaft — Introdução ao estudo da lingiiística romáânica, porque êste pressupõe conhecimentos assaz vastos: e quási que exige que o leitor esteja no corrente dos prolilemas todos, mesmo dos mais intrincados: à altura do próprio autor. Reconhecendo isso, Mever-Liibke esereveu ontra Introdução para leigos, de admirável Jucidez, condensando em 24 páginas o que mais im-
porta saber a respeito da história e das particularidades das línguas neo-latinas. Faz parte da Enciclopédia A Cultura do presente, que já mencionci por causa dos admiráveis estudos que contém a respeito das Línguas e Literaturas Grega, Latina, Céltica, Egípeia (Parte 1, Seceção IX, 1909) (*). Mas nenhum dos dois resumos existe por ora (que eu saíba) em tradução francesa. Só servem o quem ler correntemente alemão. Em langues romanes o adjectivo é formação erudita, diferenciada da popular, que é romaine. Esta corresponde a rômisch em alemão; a outra a romanisch. (”) No mesmo volume há um estudo sucinto a respeito das nicas. de H. Morf. sucessor de Tobler na Universidade de Berlim.
literaturas
romãâ-
PARTE
11— LÍNGUAS
193
ROMÁNICAS
Os Italianos, em eujo idioma não há essa diferenciação, preferem
falar de lingue neo-latine (*). No
país vizinho, onde
há a mesma
impossibilidade
de dar duas
formas divergentes ao sufixo -ano (em português podíamos distinguir entre romão e romano ) os eruditos procederam de outro modo. Romãnico não vingou por motivos que não deslindo. O autor do melhor Manual Elementar
de
Gramática
Ilistórica
Espanhola,
D.
Ramon
Menéndez
Pidal, cujo nome já citei repetidas vêzes, emprega nêle, e nas outras publicações que se lhe devem, ora o erudito têrmo neo-latino, ora o popular linguas romances (*). Notemos desde já que também na Ttália há quem diga lingue romanze, usando essa designação antiga de que logo direi mais alguma coisa. * O parentesco
das principais línguas românicas,
isto é, das cinco
representantes da România Ocidental que tiveram literatura pouco mais ou menos desde o ano mil, e continuaram a tê-la durante tôda a Idade-
-Média e os tempos modernos (com excepção do provençal e do catalanesco, que depois de larga e precoz florescência tiveram séculos de mutismo e não são eultivados hoje senão por uma seita patriótica), mas sobretudo a derivação de cada uma delas da língua latina, é de tal evidência para tôdas as pessoas medianamente cultas, que sempre foi reconhecida e aceitada como facto provado. A România Oriental (e o grupo rético ) só entrou muito mais tarde no campo dos estudos. Os testemunhos antigos sôbre êsse ponto nião são todavia freqiientes (antigo, com relação a línguas românicas, claro que significa medieval). A êsse respeito há reflexões e indicações valiosas na Introdução à Gramá-
(”) Para que os senhores se convencessem disso trouxe uns Manuais pequenos de Introdução aos Estudos Neo-Latinos -— Manualetti dIntroduzione agli Studi Neo-Latine para estudantes da Faculdade de Letras, escritos por dois romanistas insignes: Francesco d'Ovidio, da Universidade de Nápoles, Ernesto Monaci, de Roma. A êsse último deve Portugal a publicação dos dois Cancioneiros arcaicos, galego-portugueses, que se conservaram na Itália, um na Biblioteca do Vaticano, outro (hoje propriedade do próprio Alonaci) na de um grande humanista, Ângelo Colocci (di Iesi) que juntamente com o cardeal Bembo se dedicara ao estudo comparado de línguas e literaturas românicas. Logo que nas lições práticas passarmos a ler Cantigas dêsses Cancionciros, e do da Biblioteca da Ajuda, tornarei a falar dos dois beneméritos. Os pequenos Manuais são: uma gramática e crestomatia castelhana (1879) e outra portuguesa
(*) o título
(1881).
[Américo Castro deu à sua tradução da de Introducción al Estudio de la Lingúística
Einfilhrung de Meyer-Liibke Romance (1914); modificou-o
porém na edição de 1926 para Introducción a la Lingitstica Romântca)l.
194
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
tien de Diez, c, mais explícitas no Prefácio com que Gaston Paris pre-
cedeu a sua tradução. (**). Quanto a Espanha e Portugal, só os posso dar ao tempo dos humanistas e do Renascimento do mundo clássico — desde que Fernão de Oliveira e João de Barros escreveram as primeiras gramáticas da língua portuguesa, quási meio século depois de António Lebrija, ( Nebrissensis), haver dedicado a Isabel a Católica a sua notável gramática castelhana (**). Nebrija, latinista de mérito, expõe
na sua obra como
ao declinar
do Império Romano, começou justamente a caducar a língua latina até vir «ao estado em que nós a recebemos de nossos pais». Compreendeu também que o romance (romano ou romântico) principiou com a invasão dos Bárbaros, pois assenta que «foram os Go-
dos que acabaram de corromper o latim». João de Barros, êsse emprega positivamente, ao falar da língua dos Latinos, a fórmula «cujos filhos nós somos»; e remete constantemente o estudioso aos modelos latinos, aconselhando e exigindo mesmo, nas
suas tentativas judiciosas de reformar a ortografia, o uso do e ligado afim de simbolizar o som aberto do é. Mas a demonstração sistemática verdadeiramente científica, só vceio
no século XIX, depois de o estudo do sânscrito haver patenteado o parentesco das línguas indo-germânicas, e dado bnses seguras à glotologia. De passagem recordaremos que, depois de Diez haver demonstrado cientificamente, pelo método comparativo, nas suas duas obras-primas, a tese, em si indubitável, de que as línguas hoje faladas na România Ocidental e numa parte da Oriental que até conservou êsse nome genérico de România — são filhas da Jatina, ainda surge de vcez em quando algum curioso que fantasiosamente queira derivar o francês do grego ou o português da linguagem dos Lusitanos (turânia, ligúrica, etc.). Sc cá João Bonança defende as suas teorias com enorme dispêndio de saber na História da Luzitania e da Ibéria, há em França um Abbé Espagnolle que também vai construindo castelos no ar.
Os nomes nacionais que hoje damos às línguas dos diversos povos românicos — francês à lingua da França do Norte, provençal à da França do Sul, italiano à da península apenínica, português e castelhano às da península pirenaica, rumeno à da bacia danúbica da península bal(”) Essa Introdução, escrita e publicada em 1863, não entrou na tradução integral de 1874. — V. Frédérie Diez: Introduction à la grammaire des Langues Romanecs traduite de PAllemand por Gaston Paris (1863). (*) Ela é de 1492, TTá impressão moderna fac-similada (Halle, 1909). AÀ de
F. do Oliveira é de 1536, n de João de Barros, de 1539, A de Oliveira foi reeditada em 1871 por Tito de Noronha (Pôrto). À de Barros, mal reimpressa em 1785, precisa, exire ser fac-similada.
H —
PARTE
LÍNGUAS
195
ROMÂNICAS
cânica, não podiam existir no princípio. Em nenhum dêsses países houve logo uma única linguagem literária. Havia em todos êles mais ou menos dialectos, com numerosas varicdades — sobretudo na Itália e na França. Cada autor servia-se da sua parladura natural, isto é, da do lugar ou da paisagem em que nascera e se criara.
Havia, isso sim — ou antes, estabeleceu-se pouco a pouco uma desiguação geral, comum, não sômente para os dialectos de cada país, mas para os de tôda a România. Ésse nome, indicador de que havia consciência da origem comum — era, pelo menos do século XII ao século XV, o substantivo romance, ou com desinência modificada : romanço. Ambos denominavam a língua vulgar, falada, familiar, em contra-
posição, à língua latina, que continuava a ser o instrumento, mal ou bem manecjado, dos eruditos (padres, juízes, tabeliães, poetas). AÀ fórmula latine loqui (falar à moda dos Latinos) opunha-se romanice loqui (falar à moda dos habitantes das províncias). Também quanto à língua havia portanto diferença entre Urbs — a Mãe ou Matriz, e Orbis — as províncias submetidas. Nio sabemos ao certo de que século em diante se dizia falar romance; parlar romanz. Mas com certeza a fórmula nasceu entre o tempo da invasão dos Bárbaros no século V, e aquêle de que possuímos documentos
cescritos em
romance:
antes de 842, portanto.
Romance vem de romanice. Romanice é advérbio de romanicus: a existência dêsse ajectivo estaria por conseguinte provada ainda que não constasse de unia obra de Catão. Romanço (com ç em castelhano e em português, com z em italiano, com s,em provençal e francês) é forma substantivada do advérbio romancium, que no baixo latim e Jatim medieval fôra latinização bárbara da formacção românica. Da idéia — «lingua derivada da que falavam os Romanos das províncias», língua divergente da urbana ou latina, culta, — romanço (c romance que tainbém exercia funções de nome) passou a significar tõda a língua vulgar, vernácula, de qualquer país que fôsse ou de qualquer tronco lingilístico. Especialmente em português. Nos Lusíadas,
para
não citar senão o exemplo: mais conhecido,
o
Poeta ao referir-se a um rio africano (da Abissínia) diz que o romance da terra o chama Obi ( X, 96). Em Espanha, sobretudo em Castela, berço da poesia épica e de pequenos
poemas
receberam gem (*”).
narrativos,
épico-líricos,
o título de romance
dela
na acepção
derivados,
êstes últimos
de cantilenas em
lingua-
() Em linguagem ainda servia no séc. XV como equivalente de romanço nacional. No Catálogo da Livraria de D. Duarte e nos do outras livrarias quatrocentistas, os livros portugueses, e, em geral, neo-latinos, estão sob a rubrica — em linguagem.
196
LIÇÕES
Em
França
romanz,
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
romans foi considerada, errôncamente,
eomo
forma que emparelhasse com amanz, amans e mais particípios presentes em -ans -antis. Nesses, o s do fim, era sinal do nominativo, e como êles
tivessem t no acusativo (e mais casos oblíquos), — amant de amante, os
semi-eruditos diziam também romanz romant (**). Da falsa forma romant procede de um lado roman (sem t pois emudecera ) nome de fieções em prosa ou novelas, com romanesque, ete.; e pelo
outro
lado
romantique,
etc., que
são desde
muito
internacionais.
Em compensação dêsses vocábulos que comunicaram aos estranjeiros, os franceses receberam de Espanha o já citado romance, na acepção
de poesia épico-lirica, em metro de oito sílabas com assonâncias ( rima meramente vocálica) nos versos pares. Deram-lhe todavia género feminino (la romance ) por causa do e muet final — e assim o transmitiram pela sua vez aos Alemães (Die romanze). Adoptarmos hoje em Portugal essa formação, chamando romanças aos lindos cantares que constituem o Romanceiro popular, como fizeram há pouco alguns coleccionadores de variantes, e alguns autores de imitações modernas, era inútil e daninho. Bem sc escusam tais galieismos, que só teriam desculpa se se tra-
tasse de poesias do género das romances françaises — isto é, composições
líricas amorosas, acompanhadas de música sentimental (**). Os Italianos usaram também, (c usam ainda hoje) do têrmo língua romanza e comune romanzo. Deve-se notar porém que ésses herdeiros mais directos e imediatos da língua latina distinguiram muito cedo a forma em que ela lhes foi transmitida com o nome de volgare ou volgare latino. Sobretudo desde que o Dante escreveu a respeito da língua italiana a obra incompleta que intitulou De vulgare eloquentia. Volgare illustre era a mesma língua literâriamente estilizada. De romanice provém igualmente romansch, roumanche, reimonsch, nomes que os povos que falam reto-romáânico dão à sua língua, chamada também cur-válica (al. kurwelsch) ou ladino. De romanice provém ainda rumáânisch (al.) rumânsk, rumineasco, nome dado à língua falada pelos habitantes da Roménia; e fora dela, em regiões contíguas, pertencentes politicamente à Rússia e à Áustria. Os vocábulos
derivados
de Roma
e Romanus
que citei,
e muitos
() O antigo francês tinha casos como talvez saibam e ulteriormente verão — e muitas consoantes finais, hoje mudas, eram pronunciadas, Outro exemplo que é bom fixar, é a dupla forma trobaire (que designa os troveiros do Norte da França) e trobador, o poeta provençalesco: o primeiro de trobátor (nominativo), o segundo de trobatorem (acus.). À
(*) Os ingleses dizem romance (com ce); romance languages, romance peoples ou nations, romance scholar, ete. Também empregam o têrmo como sinónimo de story, tale, fiction, novel;
(p. ex.)
—
'tis quite a romance.
PARTE
I1IIl— LÍNGUAS
ROMÁÂNICAS
OU
NOVI-LATINAS
197
outros que deixei de mencionar, por não estarem directamente relacionados com o nosso assunto, davam matéria a um extenso Excurso ou tra-
tado etimológico e semasiológico. Os que já existem, apesar de muito importantes, ainda não são exaustivos.
Há em primeiro lugar um com que Gaston Paris inaugurou a grande revista filológica parisiense, chamada Romanta, por éle fundada em
1870.
Seu título é Romant Romania Romance Língua Romana (Vol. , pág. 1). Saíu todavia apenas a parte relativa a Romani e Romania. Na Zeitschrift fuir Romanische Philologie, órgão dos romanistas germânicos, há outro estudo, relativo sobretudo ao Roman, como título
genérico de novelas em prosa vulgar: Die Bedentungsentwikelung des Wortes Roman, de P. Voelker (Vol. X, pág. 485 ss.). Para quem, como os senhores, tenha de restringir por ora os seus estudos à filologia portuguesa, seria suficiente a leitura reflectida de três notícias sumárias, redigidas em português : uma de Leite de Vasconcelos, publicada nas Lições (pág. 15); outra, minha, em que ocupo de duas formas privativamente nacionais, rimance e rimanço, saídas de romance
e romanço por etimologia popular (***). À terceira é de Gonçalves Viana. Está nas suas Apostilas aos Dicionários Portugueses (Lisboa, 1906, Vol. II, pág. 375-380)
e trata não só de Roma, romano, românico, Ro-
máânia (com romanizar) romance, romanço (com romancear), romanche, romeno e roménico, Romenia, isto é, dos têrmos de que tive de falar, mas além disso de romaico, Romélia, Rumes; e de romaria, rometro, romeira, romani e romenho. *
Quanto
às línguas
romanas,
românicas,
romanças
ou neo-latinas,
irmãs em cujas fisionomias se reconhecem claramente as feições maternas (conquanto sejam individualizadas) a ponto tal que os filólogos gostam de Ilhes aplicar o verso do Poeta:
Facies non omnibus una
nec-diversa tamen, qualem decet esse sororum (**). não as devo caracterizar por ora.
Só darei notas positivas indispensáveis. () Faz parte dos meus Estudos sóbre o Romanceiro Peninsular, S $ 123 e 124, (Madride, 1907-1909). (*) Ovídio aplicava êsses versos, na Fábula de Factonte, a um côro de Ninfas que êle finge ter visto, plâsticamente representado, nas paredes do paço régio do Héálios Sol, pai do atrevido patriarca dos voadores e nefelíbatas (talvez já o contasse uma vez, quer na preleeção inaugural, quer nas Lições Práticas).
198
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
No mapa lingilístico que en trouxe, extraído da Enciclopédia de Filologia Românica de Groeber, podem ver bem a distribuição geográfica que, de resto,
é menos conhecida só quanto à língua rumena e aos
dialectos reto-românicos que, ocupando a região alpina ao norte da Lombardia e de Veneza, das nascentes do Reno até ao Adriático, pertencem
parte à França, parte à Suíça, parte à Itália c parte ao Império Austro-Húngaro. *
Comecemos no Oriente com a Ruménia (capital Bucareste) — resto único da Romíânia Oriental, separada hoje topográficamente da România Ocidental.
O reino de Carlos I ( Hohenzollern) e de Elisabeth de Neu-wied (***) — reino desde 1881 — fica na margem esquerda do Danúbio, onde na Antiguidade estivera a Dácia, e na Idade-Média o principado da Valáquia com o da Moldávia. Os Rumenos não são todavia descendentes dos colenos da Dácia: Éstes foram em grande parte deslocados para o Sul do Danúbio (Mésia e Dalmácia). Invasões dos Ostrogodos, Eslavos, Húngaros, Búlgaros, Turcos, oca-
sionaram outras deslocações e eruzamentos muito complexos dentro dos limites do Império Bizantino. Dos seis milhões de habitantes que povoam a Ruménia, perto de cinco e meio falam a língua rumena ou ruménica. Fora do reino há mais três a quatro inilhões que pertencem politicamente à Ifungria, onde ocupam o Banato (capital Temesvar), e a Transilvânia (Siebenbiirgen, capital Klausenburg) ; ou à Rússia, na Bessarábia e na Bucovina (capital Czernowitz). Ê Além disso, há ilhas lingiísticas na Macedónia e na Ístria. Os principais ramos ou dialectos da língua rumena são três: O dia-
lecto daco-ruménico ou valáquio
(**) falado na Ruménia própriamente
dita e na Transilvânia; o macedo-ruménico, na Macedónia; ménico, na Ístria; e ainda o meglénio ao pé de Salonica.
o istro-ru-
O daco-ruménico serviu de base à Jlíngua literária de que há monumentos, a princípio só hagiográficos (religiosos), desde a segunda metade do século XVI. O macedo-ruménico conservou mais traços arcaicos, por causa do seu isolamento. Em geral as diferenças não são muito grandes. Em todos há numerosíssimos
elementos
eslávicos, mas
também
húngaros,
turcos,
(*) Essa admirável mulher, que bencficiou imensamente a sua segunda pátria, é, como sabem, uma escritora e pintora (iluminadora) de grande talento. Com o pseudónimo de Carmen Sylva publicou poesias e novelas de grande valor e coleccionou contos e cantigas. () Diez dava-lhe ainda o nome de tealachisch.
PARTE
1l —
OU
ROMÂNICAS
LÍNGUAS
199
NOVI-LATINAS
gregos. Pode-se mesmo dizer que os elementos não-latinos preponderam, ao passo que em tõôódas as outras línguas românicas predominam os latinos. Morfolôgicamente, quanto à flexão de nomes e verbos e quanto ao emprêgo de preposições e conjunções, o rumeno mantém todavia o carácter latino. Traço particular de origem estranjeira é ainda assim a colocação do artigo depois do substantivo (como no albanês e no búlgaro ). On — homem, omul —
o homem ; lup — lôbo, lupul —
o lôbo;
nume — nome, numele — o nome. * Outro traço particular é a formação do futuro com o verbo que significa querer (rtwollen, volere) como em grego. Na sintaxe é notável a substituíição de infinitivos subordinados a outros verbos por frases complementares. Em lugar de quero ir embora, p. ex., dizem — quero que me vá embora. Antigamente os rumenos serviam-se dos caracteres eslávicos, cha-
mados cirílicos, por terem sido introduzidos pelos Apóstolos Cirilo e Metodo, no século IX. Em 1860 substituíram-nos pelos caracteres latinos. Aludi a êsses fnetos ao falar da escrita. Se a literatura não é de grande importância, é contudo curiosa como a língua, e objecto de estudos sérios, tanto da parte de nacionais como de estranjeiros. As obras mais importantes de consulta são uma IHistória da Língua rumena, em francês, de O. Densusianu ( Paris, outra de Tiktin, no Grundriss de Groeber, completada com um sôbre os elementos não-latinos, de Sanfeld Jensen. Há duas da literatura de M. Gaster, uma no Grundriss e outra fora dêle
1901); excurso histórias — Dar-
stellung der rumânischen Literatur (Halle, 1904). Há também uma Crestomatia (1891), do mesmo e dois dicionários etimológicos: um, monumental, de Cihac — Dictionnaire d'Etymologie Dacoromane (Paris, 1869
c 1870,
2 vol.);
outro
moderno,
de Puscarin,
também
em
francês (Heidelberg, 1905). O país prospera, a civilização cresce râápidamente. Nos grandes centros de eultura europeia, onde há trinta anos não se via senão raras vêzes um
Rumeno,
encontram-se
hoje
bastantes,
ocupados
de estudos
científicos ou de emprêsas industriais. * Na mesma
península, na costa da Dalmácia, conservavam-se ainda
há pouco restos de um dialecto particular, com documentos guardados em
Ragusa,
Veneza
e na
Scrbo-Croácia.
Bastante
arcaico,
conscrvava
por exemplo a pronúncia do & latino antes de e i (v. g. em Kairacera). Um habitante da ilha de Veglia — Vegliote, portanto, (chamado Udi*
origem
[ÀA posposição do art. romeno é hoje de preferência latina, representando construções como homo íllc].
considerada
traço
do
Z00
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
na) — falecido em 1899, foi o último que soube o dalmata, dalmatino ou dalmácio. É por conseguinte um dialecto morto. V. Bartoli, Das Dalmatische, Viena.
1906. *
Do albanês já deixei dito que, embora contenha numerosos elementos latinos naturalmente aparentados com os do rumeno, não deriva do latim. mas sim do antigo ilírico, ramo indo-germânico independente.
*
Nos territórios alpinos da antiga Récia, e fora dêles, de Maloia (onde viveu e morreu o grande pintor dos Alpes, Segantini), no Engadino, até no Adriático, há, como já disse, dialectos chamados réticos ou reto-românicos pelos eruditos modernos; mas também curvaálicos ou
ladinos. Territórios sem unidade política e dialectos bastante diferençados. Éles são aparentados com os do Norte da Ttália ou galo-itálicos, por terem também
muitos traços de comum
com os falares da França,
sobretudo com os contíguos ao rio Ródano. Têem todavia bastante originalidade vocabular e fonética. Falndos outrora em territórios mais extensos da França, Suíça, Itália, Áustria, c até na Ístrin, formam hoje três grupos isolados que, do Oriente
no Ocidente,
são:
o do Friul, perto de
Veneza,
reiinido com a poderosa república (com 400.000 almas);
antigamente
o do Tirol
(com onze mil ) : e o de Granbiindten ou do Vale dos Grisões, (com qua-
renta mil). Os ladinos vão todavia diminuindo constantemente, à medida que vai crescendo a influência da Itália e da Alemanha. Sem unidade política possuem certa unidade de pensamento e de sentimento, talvez proveniente do seu carácter de Alpinos (ou Serranos), em oposição inata aos habitantes das planícies. O primeiro dos grupos que teve literatura (regional, bem se vê) foi o dos Grisões. Uma tradução do Novo Testamento foi impressa em 1560. Há gramática de T. Gartner, no Grundriss : Die rãtoromanischen Mundarten ; c uma FHistória da Literatura, de C. Decurtins (aí mesmo). Quem quis vindicar honras de língua a éêsses dialectos foi o seu melhor investigador : o eminente glotólogo italiano G. Ascoli. Éle publi-
cou em 1879 um volume intitulado Saggi ladini, de grande valor (**). Dicz negara-lhes terminantemente êsse nome e o de irmã legítima
dos seis idiomas principais, que realmente téem originalidade e individualidade bem definidas, embora de valor desigual. () EÊsse nome não vingou por ser em regra aplicado privativamente ao falar dos Engadinos e a mais alguns. O primeiro lingúiista que se ocupara do grupo — A. Schneller — adoptara a designação composta friáulico-ladino-curválico.
PARTE
1 -— LÍNGUAS
ROMANICAS
OU
NOVI-LATINAS
201
Posso trazer jornais, revistas e publicações tanto rumenas como reto-românicas. Receio todavia que a leitura seja difícil, infrutífera, e nos roube demasiado tempo, de que precisamos para o português. *
Passando à ITtália, mencionarei em primeiro lugar aquêle dos seus dialectos que alguns especialistas tratam também de língua: o da Sardenha (e da Córsega), o sardo. Isolada no Mediterrâneo, conquistada muito cedo, com a Córscga,
logo depois da primeira guerra púnica, essa ilha conservou uma linguagem bastante arcaica. Nela há também o & Iatino diante de e à, por exemplo, em Felu, kentu (caelum, centum). De passagem seja dito que a pronúncia latina da letra c como T é indubitável. Além das provas dalmáticas e sardas, há provas germãnicas. Se temos Keller, Kiste, Kaiser, claro que os modelos latinos soavam kellarius e não cellarius; Kkista e não cista, Kaesar e não Caesar : outras provas se tiram das inserições Jatinas escritas com letras gregas
em que no c latino corresponde sempre o k helénico. *
O italiano, falado em tôda a península apenínica e na Sicília — instrumento de uma literatura riquíssima e muito valiosa — é notável pela abundância de dialectos em que já estava dividido no ano mil. É costume distinguir três grupos: o do Sul, que abrange o siciliano, o napolitano e o calabrês; o do Centro, em que preponderam o romano, o úmbrico e o toscano
(ou florentino) ; o do Norte, com
o emiliano, o
lombardo, o piemontês, o ligúrico, o veneziano, todos êles com numerosos subdialectos. A palavra seta, a que em português corresponde séda (e soie em francês), tem em italiano pelo menos oito formas diversas : sita, na Sicília; sete, em Nápoles; sait nos Abruzzos; seta em Roma ; seda em Veneza e na Lombardia; saída na Emiliana; saía em Génova; seia no Piemonte.
O dialecto que preponderou finalmente por se haver afastado menos do latim, ostentando feições singularmente nobres, foi o da Toscana:
o de Florença, a cidade de Dante Alighieri. O volgare illustre, que êle preconizou, nito era no fundo outra coisa do que o toscano artisticamente estilizado por ingénios superiores, como o seu próprio, o de Petrarca e o de Bocaceio. Os outros dialectos foram cultivados não só no primeiro
período da literatura, mas timbém posteriormente, e ainda o são hoje em dia. O mais antigo documento
é de 964, mas vestígios isolados em do-
cumentos latinos. há-os de datas anteriores.
to E— to
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
É possível que na extraordinária cisão dialectal da Ttália baja reminiscências do estado antigo pré-latino, em que Oscos, Umbros, Etruscos, Messápios, Vénetos, Lígures falavam idiomas diversos. Possível. Mas incerto. Possível também que a cisão política que manteve o país dividido em Estados pequeninos até o século passado, influísse na divisão dialectal. *
Agora a França. Os habitantes da Gália, os Galos, cujo nome o próprio Júlio César
identificou a sério com o que a ave galo (le Coq français)
tinha em
Roma, documentaram muito cedo a tendência de se separarem em duas
metades lingiísticas — aquém e além do rio Dordogne. O distintivo principal consiste em que os Franceses do Norte substituem o a livre, acentuado, das palavras latinas, por e, ao passo que os Franceses do Sul o conservam inalterado. Onde êstes dizem cantar, tal
qual Ttalianos, Espanhóis e Portugueses, os do Norte dizem chanter (a evolução do & até dar ch é outro traço característico). Aos povos do Norte, abundantissimamente cruzados com os invasores germânicos, dava-se, em regra, na Idade-Média, o nome de Francigenas, mas também se dizia Francos Romanos ou Latinos Francos para
os distinguir daqueles Francos que viviam nãio-romanizados do outro lado do Reno. Para os povos do Sul, onde os Burgundos substituíram os Francos, faltou durante muito tempo um nome comum: O de Provençais (Provinciales), nome que originàiriamente designava apenas os habitantes da Província Narbonensis, começou a prevalecer quando a pocsia trovadoresca, enltivada sobretudo na Côrte dos Condes da Provença, atingiu o
seu auge nos séculos XIT e XIII. Mais tarde deu-se o nome de langue d'oil à língua da França c o de Jangue d'oc ao provençal. Uma das províncias meridionais por excelência recebeu êsse mesmo nome. Oil, (hoje oui) e oc são representantes diversos do latim hoc que
servia de advérbio afirmativo (***), correspondente ao si da Espanha e da Ftália — il paese dove il si suona — e ao sim português (de sic). Do mesmo hoc deriva ocitánico, outro nome dado pelos eruditos ao provençal. ' A langue d'oil é a primeira das línguas românicas de que há documentos literários: São os juramentos prestados em 842 em Estrasburg, por Carlos o Calvo e seu irmão Luís, netos de Carlos Magno. Os seus soldados, que não sabiam alemão (ou franco) — falavam uma língua de origem latina mas que também já não era latina. Ésses (**)
Oil representa
hoce íllie (ou illc).
PARTE
juramentos,
11l — LÍNGUAS
ROMÂNICAS
OU
importantes pela sua idade, como
NOVI-LATINAS
texto românico
203
mais an-
tigo, havemos de lê-los para a semana. No século IX essa língua românica dos Franceses do Norte começou a ter o nome de francisca em contraposição a theodisca (deutsch): francisca, em forma latinizada ; françoise, française em vulgar. Também na França todos os dialectos eram a princípio empregados literaâriamente : tanto o da Normandia (que foi levado à Inglaterra e lá se conservou vivo até o século XIV), como o da Picardia, o valónico
(na fronteira da Flandres), o da Champagne, o da Borgonha e o de Ángers. O do Centro, da Tsle de France, foi porém o que prevaleceu na literatura, na forma especial em que o pronunciavam em Paris ( Lutetia Parisiorum). Os outros dialectos só desapareceram do século XV em diante. Literáâriamente, bem se vê. Como línguas faladas familiarmente todos subsistem, com infinitos subdialectos, como na Ttália.
De perto de 900 é uma curta Cantilena de Santa Eulália. Do século X, há já composições mais extensas. (La Passion du Christ; Vie de Saint Léger ). A Chanson de Roland, o epos carolíngio, é, na redacção que subsiste, do fim do século XT. Essa foi o ponto de partida da abundantíssima pocsia épica narrativa dos Franceses, que actuou poderosamente em tôda a Europa culta. Mas, segundo opiniões modernas, muito bem defendidas, ela deriva dos cantos históricos dos Germanos, já mencionados
por Tá-
cito, e de que há vestígios numa História dos Godos (de certo Jordanes, do século XI) : De origine actibusque Getarum, publicada por Mommen, na Colecção académica Monumenta Germanice Histórica. Terei ainda ocasião de contar-lhes que os Visigodos, que reinaram na península durante dois séculos gloriosos — romanizados quanto à língua — contribuíram provàvelmente para essa poesia com o Waltarilied, lindíssimo pocema épico que subsiste em versão latina. Nêle já entra uma
figura feminina do nosso Portugal. *
Na IFrança do Sul excelência, e foi essa poética, esplendorosa. o Quercy e o Limousin
é que se falava uma língua chamada romana por que mais depressa chegou a uma cflorescência Ela abrangia a verdadeira Provença, a Auvergne, (a região de Limoges). Desta última região saí-
ram,
alguns
perto
de
1200,
dos
trovadores
mais
brilhantes:
Guiraut
(Geraldo ) de Bornelh, Bertran de Ventadorn e Bertran de Born (o seu castelo de Autafort ou Iautefort — de que falei no curso de alemão, pertencia à paisagem limítrofe do Perigord). Por isso houve então, no primeiro quartel do século XIII, um erudito escritor, Raimon
Vidal (de Besalú, na Catalunha), que no escrever
204
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
um Doutrinal de poética, para os letrados da côrte del rei D. Pedro 1T de Aragão, grande protector dos Minnesinger (1196-1213), deu à língua clássica dos trovadores o nome de limosim, muito usado posterior-
mente (*”). *
Na bacia central do rio Ródano, onde se tocam o Lyonnais, a Sabóia, c a Suíca românica, falam-se dialectos de transição, intermediá-
rios entre o provençal e o francês. Conservando o a dizendo portanto cantar, êsse dialecto transformava-o de consoantes palatais (p. ex. em jugier). Deu-se-lhe «provençal e não falta quem o queira erguer também
livre como no Sul, em e ou ie depois o nome de francoa lingua.
*
Nas duas vertentes dos Pirenéus orientais, no Rossilhão e no Con-
dado de Barcelona, cujos dinastas foram temporàâriamente senhores da Provença, falava-se o catalão ou catalanesco, dialecto intimamente apa-
rentado com o provençal. Os catalães tiveram parte importante na literatura trovadoresca; mas as evoluções ulteriores da língua, que se estendeu pela costa adiante pela região de Valença, foram diversas, desde que a unidade política desaparecera. Quanto à literatura, o catalanesco tem muito mais direito a ser considerado como língua, sobretudo desde o seu Renascimento moderno, do que o dalmata, o sardo, e o franco-provençal. Mas não quanto
à originalidade lingilística. *
Quanto ao resto da península ibérica, há nela a mesma divisão em duas línguas que se efectuou na França. O idioma da costa ocidental — o galego-português — corresponde ao provençal-catalanesco : foi no princípio o idioma lírico de todos os IHispanos, quer nascessem em Portugal ou na Galiza, quer em Leão, Castela, Andaluzia ou nas províncias vascongadas. O espanhol, a que muito cedo se deu o nome de castelhano, pela importância
geral do centro, que foi a Isle de France da península, e
por haver absorvido em si o navarro-aragonês e o leonês, era o idioma épico de tôda ela. pouco, vença prova trovar cia ao
(*) H. Morf, sucessor de Tobler na Universidade de Berlim, publicou, há um estudo académico a respeito da Origem da linguagem literária da Pro— Vom Ursprung der provenzalischen Schrifstsprache (Berlim, 1912) em que que os dizeres redigidos a êsse respeito por Raimon Vidal na sua Razão de afirmam apenas que no tempo dêle a hegemonia, o primado literário, pertenLimousin; mas de modo algum que de lá saíra a língua que foi empregada
pelos trovadores,
como
se pensava
até hoje.
PARTE
II — LÍNGUAS
Os romances, a que teira ainda no século XV
ROMÁNICAS
OU
205
NOVI-LATINAS
me referi, entraram em Portugal pela frone no XVI, com muitos ressaibos castelhanos,
e mesmo hoje os conservam. Ão mesmo
tempo, essa sonora e vigorosa língua épica era o órgão
dos prosadores. Já sabem, das explicações que costumo dar, que as prosas galego-portuguesas do primeiro período, arcaico, da nossa literatura, são em regra traduções do castelhano, que pela sua vez provéêem em parte da
França, quando são ficções ou novelas históricas romanceadas, como a Estoria de Troia; mas belos originais quando são história ou legislação pátria.
E sabem também quem foi o fundador da enérgica e robusta prosa castelhana : e ao mesmo tempo o maior e mais fecundo trovador galego-português — autor de mais de quatrocentas Cantigas de Santa Maria: Íhinos muito belos e populares (como o que tem o estribilho Bem venhas, Maio), e narrativas de milagres de grande ingenuidade. Em nenhum país houve, na Idade-Média, reinante que se possa comparar a Afonso X, o Sábio, bibliófilo coroado, verdadeiro amador de livros e de literatura, de artes e de ciências, autor de obras tamanhas como a Crónica Geral, a Crónica de Espanha, as Sete Partiídas, ete., e
promovedor de traduções de textos hebraicos e arábicos. O mais antigo documento castelhano que subsiste é de 1145. Qs dialectos principais são (sc abstrairmos do galego, como pertencendo ao português, e do catalão e valenciano com o malhorquino, como pertencendo à língua de oc) ; o asturiano (ou bable), o leonês (com o dialecto pastoril de Sayago e o berciano) ; e o andaluz.
A
bibliografia
é bastante
vasta.
Falta
todavia
uma
obra
geral
relativa nos dialetos espanhóis. O mais antigo documento galego-português é de 1190, Creio todavia que nessa data, e talvez de 1175 em diante, já se poctava na côrte de Sancho 1, trovador, conforme eu tive o gôsto de demonstrar no Cancio-
neiro da ÁAjuda e em estudos especiais. Os dialectos principais são, no Norte, o minhoto ou interamnense,
intimamente aparentado com os dialectos da Galiza, o transmontano, o beirão; e no Sul o alentejano, o estremenho e o algarvio; e os dialectos ilhéus: madeirenses e açorianos.
Dialectos de transição entre o português e o leonês, é o falar mi-
randês, que Leite de Vasconcelos entendeu dever erguer a língua (**). *
Sem entrar em mais pormenores a respeito de Portugal, pois os vou dando nas Lições Práticas, repito em resumo apenas, que àas línguas () V. Leite de Vasconcelos, Esquisse Pune Dialecetologie 1910. — Estudos de Philologia Mirandesa, Lisboa, 1900. 2 vol.
Portugaise,
Paris,
206
LICOES
DE
FILOLOGIA
românicas mais importantes são seis —
PORTUGUESA
segundo Diez : rumeno, italiano,
provençal, francês, espanhol, português. Cinco, se excluirmos o rumeno, olhando 1mais para o valor universal das literaturas, cujo instrumento
foram e são, do que para a originalidade e individualidade glotológica. Sete, se por causa dêsse valor glotológico considerarmos como língua unitária os variadíssimos dialectos reto-românicos, falados em territórios política e topogrificamente desunidos, e em conformidade com o procedimento dos Romanistas posteriores a Diez, dos quais prevalece, quanto a êsse problema, o Ftaliano Ascoli.
Oito se, com Meyer-Lúiibke, dermos lugar privilegiado ao sardo ou sardo-córsego. Em nenhuma das obras fundamentais que tratam da família inteira figuram como línguas o dialecto (morto) da Dalmácia, e o franco-provençal. Nem
na Gramática
de Diez, nem
na de Meyer-Liibke, nem
na grande Enciclopédia de Groeber. Figuram apenas como dialectos no estudo especial que aquele catedrático de Estrasburgo dedicou no mesmo Grundriss às Línguas Románicas em geral, sua repartição e história externa (Die Romanischen Sprachen, ihre Einteilung und ãáussere Geschichte ). E também no Manual de Bourciez. No Grundriss estabeleceram todavia excepção para a Catalunha, historiando àparte tanto a sua língua como a sua literatura. *
A evolução das literaturas é cronolôgicamente a que já indiquei. A hegemonia literária pertenceu durante a Idade-Média à Provença e à França, que começara
a escrever fancês em
842;
pertenceu
à Itália (cujo primeiro documento foi de 964) no tempo da Renascença ; passou à Espanha de Carlos V c dos Filipes na segunda metade dos séceulos XVI e no XVII. Depois reverteu à França. Só nos finsdo século XVIII veio a Germánia (que iníluíra nos destinos do mundo pela invasão dos Bárbaros, especialmente na formação das línguas que nos ocupam, e no tempo da Reforma). Ela libertou a Europa da supremacia formal da França, colocando-se literáriamente a par da Romáânia, para de aí em diante repartir com cla o domínio intelectual. AÀ sucessão de Lessing, Schiller, Herder, Gocethe — os nossos incomparáveis clássicos alemães — conduziu ao Romanticismo, e o Romanticismo
conduziu
ao Nacionalismo
idealista, ora realista — como
Ibsen,
Bjúrnson,
ou mesmo
Regionalismo
de hoje, ora
em que téêem magna parte homens do Norte Strindberg,
Wilde,
Shaw;
em
outros
campos
Wagner e Nitzsche, Hacekel e Wundt e também os glotólogos cujos nomes citei em prelecções anteriores.
LIÇÃO VII O DOCUMENTO ROMÂNICO MAIS ANTIGO (JURAMENTO DE ESTRASBURGO DE 842) — VARIANTES ULTRAMARINAS DAS LÍNGUAS ROMÂNICAS E DIALECTOS CRIOULOS Prometi ou anunciei três coisas. Em primeiro lugar trazer hoje os juramentos de Estrasburgo, em francês arcaico, que constituem o muais antigo monumento que possuímos
das línguas românicas — ou da língua romana — como nêle se diz, para os lermos e interpretarmos.
Em segundo lugar : juntar à exposição da semana passada mais um parágrafo, relativo aos falares românicos que se desenvolveram longe da Europa, no ultramar, quer com leves divergências dialectais, na bôca dos descendentes dos conquistadores e colonos europeios, quer completamente abastardados na bôca dos indígenas e mestiços, sem cultura, da África, Ásia, América. Em terceiro lugar deixei para hoje dados estatísticos, relativos à România
em geral, e em particular n cada uma
das línguas neo-latinas.
Em seguida hei-de falar do latim vulgar, como fonte principal da língua romana. Depois começaremos com a exposição sistemática da fonéti-
ca, morfologia, sintaxe, lexicologia, ctimologia e semasiologia
portuguesa.
* Quanto ao venerando
texto, bi-partido, de 842, não é o fac-símile
que vamos ler; nem trataremos de todos os problemas que dêle derivam — poíque isso nos levaria longe demais. Muito embora os senhores já conheçam, das nossas lições práticas, tôdas as abreviaturas nêle empregadas, e conquanto as uniões e separações irracionais de palavras que se usavam no 1.º período das literaturas modernas, já lhes sejam familiares, preferi traçar os textos aí na lousa, na transcrição criteriosamente facilitada, em que é uso apresentá-
-los aos estudantes franceses (**). Assim todos podem acompanhar melhor — auditiva e ocularmente —— a leitura e a tradução e também as parcas explicações com que as vou
acompanhar (*”). ()
Tireias
ecles) à Tusage
des
' de
Constans,
Classes de Seconde
des Séminaires de Philologie Romane, ()
Quem
quiser
pode
de
Chrestomathie
des Candidats
PÁncien
Français
au Baccealauréat
(X-XV
sid-
ct à la Licence
Paris, 1906.
comparar
cssa
transcrição
crítica .com
o
fac-símile
208
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Conforme já contei, os dois juramentos que constituem o primeiro monumento escrito das línguas românicas, que possuímos — curto mas
prccioso — foram enunciados em Estrasburgo, ponto central do império Carolíngio, por dois netos de Carlos Magno, Emperaire à la barbe fleurie, que desde o seu entêrro em Aix-la-Chapelle — (zsu Aachen in seiner Kaiserpracht ) e já em vida, fôra objecto da veneração geral, na Germânia e România, tanto da parte da Igreja como dos povos — e assunto por
isso de inúmeras lendas poéticas, que persistem (***). Por meio dêsses juramentos, Carlos, o Calvo, digno descendente do herói, e Luís, o Germáânico, aliaram-se contra o irmão mais velho Lo-
tário (I), antes de todos juntos dividirem definitivamente entre si o Império (nas partilhas de Verdun, em 873). Carlos Magno falecera em 814, depois de haver coroado o único dos filhos varões que lhe sobreviveu : Ludavicus Pius (Ludwig der From-
me ). O cognome diz-nos que êste preferia ao arnês o froque, e o silêncio do claustro e da cela ao clangor do campo de batalha — como posteriormente em Portugal, Sancho o Capelo, segundo a lenda. Por isso dividiu cedo os seus imensos Estados, entre os filhos, dando a Itália a Lotário,
seu co-regente desde 817 ; a Pepino, a Aquitânia; a Luís, últimamente
a Alemanha
e Borgonha, a Carlos,
a Baviera, e
o mais novo dos filhos
de um segundo matrimónio. De aí Jutas, dissenções e rebeldias. Luís combateu Pepino e Lotário. Pouco depois, todos se eoligaram contra o pai. Em seguida Luís e Pepino fizeram guerra a Lotário, porque encerrara o progenitor num convento. Finalmente, depois de êsse ter falecido em 840, precedido já de Pepino, houve novas dissenções entre os três restantes
herdeiros.
Lotário,
como
o mais
velho,
quis
todo
o
Império para si. Mas Luís e Carlos venceram-no a par de Fontenoy (841). Antes de em Verdun repartirem definitivamente o Império em três partes, concedendo a coroa imperial e a Itália a Lotário ; a França ocidental
(ou Nêustria a Carlos, o Calvo; a França oriental — as regiões de além Reno (ou Áustria) — a Luís, o Germânico, êles encontraram-se em Estrasburgo, onde, a 14 de Fevereiro de 842, se juraram lealdade mútua,
em presença dos seus povos ou exércitos, que tiveram de roborar as juras dos seus senhores. Luís falou em
francês:
romana
lingua;
Carlos, teu-
disca lingua, os povos cada um na sua lingua ( propria lingua). Conhecem-se êsses juramentos bilingues pela obra de um coevo e parente dos príncipes: outro neto de Carlos Magno, o historiador dos autográfico que trouxe, tal-qual êle foi publicado por dois nprofessores, para uso dos estudantes alemães. Vid, Foerster e Koschwitz, Altfranzôstiches Ubungsbuch (4* ed., Leipzig, 1911). (”) Entre ns obras que se ocupam do ciclo Carolíngio, a mais completa e perfeita é a Histoire Poétique de Charlemagne (Paris, 1866) de Gaston Paris.
PARTE
11— O JURAMENTO
DE
209
ESTRASBURGO
Francos, Nitardo (790-843 ) que, por ordem de Carlos, o Calvo, escreveu
De dissensionibus filiorum Ludovicii Pil annum usque DCCCXLIHI (**). Mas não subsiste o original autógrafo. Só um apógrafo que, segundo os cálculos dos paleógrafos, é de fins do século ou princípios do século XI. Entre as fotografias que se tiraram, nomeio a que faz parte do Album de la Société des Anciens Textes Français (Paris, 1875), e a que figura nos Fac-simili di antichi Manoscritti, publicados por Ernesto Monaci (Roma, 1888). Desde 1836 — desde os inícios, portanto, da ciência romanística — o texto foi descrito e transerito, impresso, interpretado e comentado nu-
merosas vêzes. Cada palavra foi discutida, analisada letra por letra (*). A pronúncia, a forma e o sentido ocuparam os sábios mais distintos: Dicz, Gaston Paris, Stengel, Cornu, Meyer-Liibke, Grocber e muitos
outros (**). Mas ao cabo de setenta e tantos anos ainda não há plena concordância a respeito de todos os pontos. Tão dificultoso é apurar, não o sentido geral dos Juramentos
(vocabularmente
são muito singelos. e a
dupla forma em que os possuimos ajuda a compreensão ) mas o valor fónico das grafias. O primeiro Franco romanizado que assentou formas da nova lingua, ainda não consolidada — ou por outra, cada um dos Francos romanizados da primeira geração que a isso se abalançou, claro que hesitava quanto às letras com que havia de simbolizar sons diversos dos do latim,
mais ou menos bárbaro, que êle estava habituado a enunciar e a escrever. Aquêles entre os senhores que já tentassem assentar textos colhidos na bôca do vulgo, em formas dialectais desconhecidas, compreenderão cssas dificuldades. Naturalmente, nesses ceasos, cada um escolhe símbolos que lhe são familiares. Assim fêz Nitardo (ou seu copista). Éle deu a preferência à figuração latina, quando e onde a transcrição dos sons romanos o embaraçava, pondo, p. ex., pro em lugar de por, pour ; quid por qui, que; nunquam em lugar de nunque, nonque; jurat, conserval, durat, embora o & já emudecesse e o a átono já caminhasse para e surdo ; in damno sit por en dam seit. Como em sit, hesitava também quanto à representação de outras
Nithardo era filho de Berta c Anguilberto, AÀ obra faz parte da grande () publicação académica Monumenta Germaniae Historica: Scriptores 1I. — AÀ tradução alemã de Jasmund já teve três edições (3.º 1889, Leipzig). () AÀ respeito do vocábulo dift, como leram alguns editores, ou diff, segundo outros, há, p. ex., dois artigos na Romania: um de Paul Meyer (IIT, 371), outro de
Coran
(1V, 454). () A 1º cedição erítica
intitulada
ltromanische
e comentada
Sprachdenkmalcr
é do próprio
(Paris,
1846).
Diez.
Faz
parte da obra
210
LIÇÕES
vogais, trocando o exemplos isolados Conforme já tivos pedagógicos.
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
e ou, ee í, oi e ui. Mas em lugar de lhes apresentar que mal compreendem, vamos a ler os juramentos. disse, cingi-me na transcrição à de Constans, por moNela, as abreviaturas estão resolvidas; as palavras
repartidas segundo as normas usuais; os nomes próprios principiam com maiúsculas; a pontuação é moderna (eu vou. quanto a cla. sempre um
pouco mais longe que os demais. porque entendo que uma boa pontuação é meio comentário). Quanto à pronúncia. muito duvidosa, sigo os preceitos dados por Gaston Paris (**), mas sem o rigor preciso, porque. tendo lido e estudado
tudo
quanto
se escreveu
a êsse
respeito.
nuncea
ouvi
ler
os jura-
mentos por especialistas franeeses.
Também, minúcias subtis seriam intempestivas e improdutivas neste lugar e tempo. O primeiro juramento é precedido das palavras Ludovicus quum maior natu erat, prior haec deinde se servaturum testatus est — Luís, como mais velho foi o primeiro que prometeu ou jurou cumprir o que se segue :
Pro deo amur et pro christian poblo et nostro commun salvament, d'ist di in avant, in quant Deus savir et podir me dunat, si salvarai eo cist meon fradre Karlo et in aiudha et in cadhuna cosa, si cum om per
dreit son fradra salvar dift; in o quid il mi altresi fazet ; et ab Ludher nul plaid nunquam prindraíi qui, meon vol, cist meon fradre Karle in damno sit.
Depois de Luís, jurou Carlos. Éste em língua alemã, já disse: teudisca lingua. Quod cum Lodhuvicus explesset, Karolus teudisca lingua sie hec eadem
verba testatus est : In Godes minna, etc.
Essa versão textual, em que há apenas substituíção de nomes próprios, tem para o alemão a mesma importância, quási, que a redacção Írancesa tem para os nacionais e para a România inteira.
Em seguida juraram os povos ou representantes dos dois povos, servindo-se da 1º p. do sing. Cada uma pessoa jurava portanto por si, quer falassem porventura em côro, quer pela bôca de um só : Primeiro os franco-latinos de Carlos o Calvo, em língua romana, como Nitardo indica expressamente :
Sacramentum autem, lingua sic se habet :
quod
utrorumque
populus
quique
romana
Si Lodhuvigs sagrament, que son fradre Karlo jurat, conservat, et Karlus, meos sendra, de sue part lo snon fraint, si io returnar non () Os seus Extractos da Chanson de Roland bom resumo relativo à pronunciação dêsse texto, que todavia muito posterior à dos Juramentos.
(1893) são precedidos de um na forma em que subsiste é
PARTE
11— O JURAMENTO
DE
ESTRASBURGO
211
Pint pois ne io ne neuls, cui eo returnar int pois, in nulla aiudha contra Ludhuwig nun li iu er. Os últimos a jurar, textualmente o mesmo, mas em teudisca língua, foram os soldados de Loduvicus Germanieus, com substituição dos nomes
próprios, bem se vê: Oba Karl then Eid er sinen bruodher Ludhuwig gestwor, etc. Traduzindo, temos o seguinte : 1) Pro deo amurpor amor de Deus pour l'amour de Diew. —— Vários editores substituem pro pela forma por, pour. — deo é má egrafia por deu, forma ant. de Dieu (caso obl., sem s portanto) ; como nominativo
temos
logo
deus,
com
s.
2) e pro christian pobloe pelo povo cristão et pour le peuple chrétien. 3) et nostro commun salvamente nossa comum salvaçãoe!t notre comun salut. 4) dist di in avant (ou en avant. No ms. está en com e traçado, e um ponto por baixo, o que significa a necessidade de o revisor raspar e alterar a letra errada) dêste dia em diantesde ce jour en avant. 5) in quant Deus savir et podir me dunat enquanto Deus me dá (doa ou der) saber e poder autant que Dieu nven donne Vintelligence et le pouvoir. Com relação aos infinitivos savir et podir, discutiu-se se -ir seria grafia imperfeita por -eir (o histórico saveir, podeir precedeu savoir, pouvoir, ou se realmente houve infinitivos em -ir, o que é possível, em vista da desordem verificada nos tempos pre- e proto-históricos entre os verbos em -cre, -ére, -ire, embora em tôdas as línguas românicas sapere e potere (em lugar de posse) pertençam à segunda conjugação. Tenere, p. ex., deu também em fr. ant. tenir e tenoir.
Quando eu falar dos dialectos crioulos e da língua franca dos levantinos, que é outra espécie de crioulo, verão que a forma sabir, savir, existe, apesar do que os comentadores dos Juramentos afirmam. 6) si salvarai co cist meon fradre Karlo — assim (ou então) salvarei (sustentarei, auxiliarei ) eu êste meu irmão Carlos (aqui presente ) je soutiendrai mon frêre Charles ici présent. O demonstrativo cist (eiceist), indica presença, como o intensivo aqueste em português antigo (eceu-iste).
7) as coisas 8) direito a
et in aiudha et in cadhuna cosazcm sua ajuda e em tôdas (em cada coisa) par mon aide et en chaque chose. si cum om per dreit son fradra salvar dift assim como por seu irmão ajudar deve ainsi quon doit par droit soutenir son
frêre; — om nominativo, de homo, já no sentido do fr. on, que na Idade«Média era comumn a todas as línguas românicas.
212
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Os primeiros editores leram dist com ( longo e entenderam decet convém ; outros reconheceram no ms. o tracinho que distingue f de . Lendo dift entenderam debet, conquanto se não saiba de outro exemplo dessa forma. Em alemão há todavia paralelos: Gift de geben; Schrift de schreiben; Trift de treiben; Ilaft de haben. E fórmulas convencionais de outros juramentos confirmam a hipótese. P., ex. — promitto ego quod ab ista die in antea fidelis sum sicut per drictum debet esse homo domino suo. (Capitular de 802). 9) in o quid il mi altresi fazet eno que (à moda antiga) êle me faça outro tanto fout autant qwil fera de même pour moi ; — ou talvez melhor: pourvu quwil fasse tout autant pour moi. 10) et ab Ludher nul plaid nunquam prindraize com Lotário nunca em pleito algum (preitesia alguma ) entrarei — et je ne prendrai jamais avec Lothaire aucun arrangement. 11) qui, meon vol, cist meon fradre Karle in damno sit que segundo a minha vontade, seja em prejuízo (dano) dêste meu irmão Carlos qui de mon gré soit au detriment de mon frêre Charles, ici présent. Em meon vol, meon fradre, o possessivo, como no 2.º juramento suon suum, meon, meum, era empregado na forma absoluta, para intensificar o sentido; a forma conjunta é mon, son. Vol (ou vuel, veuil), é nome verbal, tirado de voleir — vouloir. Cfr. dol, duel, deuil.
12) Si Loduvigs Sce LuisSi Lounis. 13) sagrament que sont fradre Karlo jurat, conserval cumpre o juramento que jura a seu irmão Carlostient le serment qu'il jure à son frêre Charles. Serment representa sagrament : mon fradre Karlo é caso oblíquo — o nom. tem s. como já viram e se vê também no passo que segue. 14)
et
Karlos,
meos
sendraze
se
Carlos,
meu
senhore!
si
Charles mon seigneur. — Serdra está por sendre (com acento na primeira sílaba, como fradra por fradre) ; dessa forma antiquada, ou antes de senre (sem d, de senior, com queda do nº medial, provém sire).
15) de sue part seu (ou sou, à antiga) bem. O copista errou, por não compreender. modo
cumpre
lo suon fraintda sua parte quebra (frange) o —de son côté le viole. Aqui o original não está pois escreveu desuo parti lostanit, por lapso ou Os editores leram e interpretaram as letras de
muito diverso : entendendo non lo tanit, por
tenct
não
tem, não
o seu; non s'obstanit, por obstinet, se obstina ; ou finalmente.
em conformidade com a redaeção alemã (forbrichit), assim como traduzi, lo suon franit, por frangit. 16) si io returnar non Vlint poisse eu desviar (dissuadir) non o posso ( possa) dissoau cas oit je ne l'en pourrais détourner. — Int ende ; pois, hoje puis (1.º p. do pres. do Ind.) de pocsum por potsum, forma vulgar e arcaica de possum. 17) ne ào ne neuls cui eo returnar int pois —é o princípio da
PARTE
11— O JURAMENTO
213
DE ESTRASBURGO
frase final — nem eu, nem ninguém que eu ende possa deterni moi ni personne que j'en puiísse détourner. — Neulsne ullus, nullus. 18) in nulla aítudha contra Ludhuwig nun li iu ernão lhe serci eu de nenhuma ajuda contra Luísje ne lui serai d'aucun secours contre Louis. —
As últimas, quatro letras íuer, unidas no original, suscita-
ram controvérsias. Uns entenderam iu er: ego ero, outros ibi ero; e ainda outros lui serai : li iu er. Er é em todo o caso o futuro latino ero, eris, perdido nas líinguas
modernas, ou alterado quanto ao sentido. (Em Castela temos, p. ex., eres como 2.º p. do sing. do presente : soy, eres, es, por eausa da identidade da 2.º latina es com est da 3º). *
Não
sei o que mais
lerá impressionado
os senhores
nesses textos
primitivos, de linguagem informe e hesitante, falada seguramente desde o século VIT (como se prova por vestígios isolados em documentos Tatinos)
mas ainda não escrita: ;as oscilações na notação dos novos sons,
sobretudo na das vogais já alteradas, em parte reduzidas, em parte ditongadas? a grafia (, onde seguramente devemos pronunciar e como em cist, prindraí, int, in? o onde se espera 1, como em deo, deu, dieu, e em co? a falta do e surdo, indevidamente chamado e muet, no fim das pala-
vras : em cosachose; em poblo ( peuple) ; em nostro (notre), nas formas verbais dunat, jurat, conservat, de plenitude latina ; e mesmo
erro-
nemente em fradra, sendra, por fradre e sendre? ou antes a curiosa escrita dh destinada a marcar que a dental forte latina, medial, já estava
enfraquecida, tendo talvez o som do th inglês, mas ainda não chegara em tôdas as condições a ser d, como em fradre (frade) ? Ou repararam sobretudo em que nos Juramentos ainda não há a evolução do a livre, tónico. para e, que denunciei outro dia como característico principal que
diferença a langue d'oil da langue d'oc? ; Estranharam que se leia salvar, returnar, christian? ;estranharam também que a passagem do é inicial a ch não estava realizada, visto termos cosa e não chose? ; fixariam vocábulos arcaicos como di (o di de lundi, mardi, midi), substituído depois
em fÍrancês por jour (diurnu)? como al —
;Notaram
certos fonemas
inalterados
em salvament, salvar, altresi, hoje sauver, autrement?
;ou
apenas tiveram a vaga sensação de que há grande distância entre essa língua romana primitiva e o francês moderno, distância que é muito maior que a que existe entre ela e as demais línguas românicas? ; Pareceu-lhes ouvir, e mais ainda ver, nas letras empregadas pelo inexperiente escriba, a representação de um idioma meridional? Se usando ende, sou por seu, salvamento, etc.. transpuséssemos as formas tôdas em português arcaico, as semelhanças com as línguas do Sul seriam ainda maiores.
21
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
A expressão língua romana, usada por Nitardo., condiz bem com o estado, quási unitário, em que as línguas se encontravam ainda no tempo de Carlos Magno. Língua romana e ainda não língua francisca. Com csta impressão devemos ficar por ora. * *
Passemos
agora
*
às variantes das línguas neo-latinas que
mais se
afaostaram, topográficamente e lingijisticamente da língua-mãe, às que são faladas na América, Ásia, África, Polinésia e Melanésia. para só de relance dizer quantas e quais elas são, e em que sentido o seu estudo tem valor para o glotólogo em geral, e em especial para o Romanista. Talvez haja tempo, no fim do curso, para eu completar, numa prelecção especial sôbre dialectologia portuguesa, as indicações gerais que hoje darei. É preciso
distinguirmos
entre variantes de línguas românicas
no
Ultramar, que se afastam das próprias línguas das metrópoles curopeias apenas em peculiaridades, numerosas sim, mas de importância secundária, e dialectos críoulos, que são essas mesmas línguas românicas, mas
muitíssimo abastardadas, na bôca de indígenas sem cultura. pois êsses simplificaram sumàriamente, para fins imediatos, materiais, tanto a gramúática como o vocabulário, reduzindo éêste último ao estrictamente ne-
cessário para as relações de escravos para com seus amos e senhores, simplificaram também cada vocábulo arbitrâriamente, pela supressão ou modificação dos símbolos morfológicos e dos sons que desconheciam ou achavam
difíceis. Nhó
e nhá ou nhónhoó, nhánhá
em
vez de senhor e
senhora são exemplos típicos dessas simplificações infantis. Em ambos os grupos, o das variantes das línguas, e o dos dialectos dos crioulos, entram os mesmos três países europeus: A França, a Espanha e Portugal. À Itália não tem colónias antigas no Ultramar, só modernas na África; na América apenas núcleos de emigrantes. Por isso não há por ora dialectos italo-crioulos. Temos importantes variedades do espanhol na América do Sul — no Peru, no Chile, em Quito, em Bogotá (C. da Colúmbia), em Venezuela. no México, em Nicarágua, em Honduras, em Buenos Aires e Montevideo, em Cuba, ete., em Maracaibo, todos êles com literatura regio-
nal, mais ou menos abundante c valiosa. Temos o francês no Canadá. Temos o portumuês no Brasil. Na África, apesar da idade e da extensão das possessões portuguesas, não se desenvolveu um
idioma diferenciado, mas unitário, até certo
ponto, como o brasileiro. Na
América,
tanto o francês como
o espanhol e o português evo-
PARTE
11 —
LÍNGUAS
ROMÂNICAS
NO
215
ULTRAMAR
lucionaram de modo partieular (**), sobretudo os dois idiomas hispãánicos, que já contam quatro séculos de vida no Ultramar. E seguramente teriam
evolucionado
novos
emigrantes, não
Os letrados —
muito tivesse
mais, se a vinda sucessiva e constante paralisado
e no século XIX
o movimento
de
evolutivo.
houve muitos —
esforçaram-se e
esforçam-se em conservar a língua brasileira à altura da língua-mãe europeia. a ponto tal que é preciso hoje distinguir entre a linguagem literária do Brasil e a falada nas províncias, quanto mais a do povo e da plebe. e dos matutos do sertão.
. Em tódas as línguas literárias do Ultramar há diferenças que as separam das europeias. Subsistem nelas têrmos arcaicos e dialectais que desapareceram na Europa. Existem neologismos. que são. como em tôdas as línguas, quer derivados
e compostos.
formados
de elementos
comuns,
—
quer
estranjei-
rismos, tirados dos idiomas não caucásicos dos indígenas dos países ultramarinos: estranhos por isso pelo fundo c pela forma. No Brasil. p. ex.. é considerável o número de têrmos provenientes do tupi e do gnarani : no Chile. o das vozes provenientes da língua mal chamada -uca e melhor dos Arauúucas ; no Peru e na Bolívia, as que provêem dos Quichuas e Aimaras : em Nicarágua os do idioma nauatle; e no México as que derivam -da língua dos AÁztecas ou Nauatlas (como p. ex. chocolate e cacau). Além dessa modificação do vocabulário, há em geral alterações fonéticas, pronúncia diversa.
Todos. nós sabemos que a pronúncia brasileira é muito individualizada. curiosa pela entoação ao mesmo tempo mais clara e mais arrastada, que torna abertas as vogais ensurdecidas, átonas. do português moderno — traço talvez arcaico que aproximava o português antigo do
castelhâno: Tanto o francês do Canadá. como as diversas línguas espanholas da. América do Sul, mas também o brasileiro, foram objecto de estudos especiais, antes e depois de a filologia românica existir. Os relativos à América espanhola são. sem eontestação, os mais importantes. Lembrem-se de quatro nomes partienularmente distintos: Andrés
Bello
(**), Rufino
Cuervo
(***), Julius Plotamann
(**)
e Rodolfo
(”) Bem sabem que o mesmo aconteceu com o anglo-saxónico. — Não com a língua alemã, pois a Alemanha veio muito tarde, como a Itália, igual ao poeta na balada de Schiller. () Autor de uma Gramtica (Caracas, 1850) que já conta seis edições; a última que coheço é de 1898. () Apuntaciones eríticas sobre el lenguaje bogotano (3.º ed., 1881) obra notabilíssima; e Dicetonario de Construceion e Regimen de la Lengua Castelhana (1887-1891). ' (*) Dediquei-lhe um artigo na Revista da Socicdade do Instrução, do Pôrto (Vol. 11, p. 3-8), 1891.
216
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Lenz (**) (êstes dois de origem alemã) ; mas evitem, se qualquer dia se quiserem ocupar do assunto, as obras superfíciais do francês Raúl de
la Grasserie (**). Quanto ao Brasil lingúístico, há trabalhos numerosos, mas nenhum
completo. De F. A. Coclho e do Dr. Leite de Vasconcelos. temos contribuições preciosas, embora curtas e acidentais. As do primeiro são parcelas da obra com que iniciou em Portugal as investigações científicas sôbre dialectos cerioulos, de que passo a falar, e foram publicadas no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa (1881, 1882 c 1886). : As de Leite de Vasconcelos são um folheto de 1883, extraído da Revista dos Estudos Livres e um capítulo da sua Dialectologie Portugaise (Paris, 1901). Em ambas se aproveitam os materiais publicados no Brasil mesmo. É todavia, principalmente, no estudo do Introdutor da Glotologia e filologia românica em Portugal que há valiosas idéias gerais. Também nesse campo êle foi um benemnérito iniciador. *
O título da obra a que aludo é Os Dialectos Romanicos ou Neo-lattnos na África, Ásia e América. Como se vê, nêle não se faz separação, a meu ver indispensável. entre
as variantes
das
línguas
românicas,
com
literatura,
faladas
nos
continentes ultramarinos de que até aqui tratei — e os romanços criowulos, quási sempre ilhéus, de que agora vou dizer alguma coisa. Éles são fruto do contacto de descobridores, conquistadores e colonos portugueses, espanhóis e franceses com negros africanos, Drávidas do Malabar. Singaleses de Ceilão, Malaios ásio-australianos, Chineses de Macau, ha-
bitantes diversos do arquipélago das Antilhas e de povoações do Mississipi
e da Guiana
—
fruto de estufa, nado
repentinamente,
ao calor
das necessidades absolutas do intercurso entre escravos e senhores — e não o resultado de uma
transformação lenta., gradual, tendo por ponto
() Há dêle uma extensa série de opúsculos relativos à língua, no folelore e aos costumes do Chile. O mais importante é o Diceionário Etimologico de las Voces Chilenas derivadas de lenguas tndigenas .americanas (2 vol. Santiago de Chile, 1904-1910). () Vid. Lenz Kritik der «Langue Auca» des Herrn Dr. Jur. Raoul de la Grasseric. Eme YWarnung fiir Amerikanisten. (Valparaiso, 1898). Posteriormente o lingliista francês aprofundou os seus estudos. Os relativos nos Indo-germanos, que citei outro dia, são recomendados pela erítica alemã. Quanto à literatura, há duas obras gerais notáveis: Historia de la Poesia Ilispano-tmericana, de Menendez Pelayo (1895 e 1911) e Antologia de Poetas Hispano-A mericanos
(4 vol., 1895).
PARTE
11 — DIALECTOS CRIOULOS
217
de partida alterações fonéticas, como as que se operaram nas línguas neo-latinas ao saírem do latim quotidiano. em quatro a seis séculos de movimento evolutivo. A distinção também se não faz no contexto. O brasileiro. o francês do Canadá, o castelhano de Bogotá, figuram na obra de Coelho no
meio dos romanços crioulos que, quando muito. merecem o nome de sermo-rusticus,
vulgaris,
plebeius,
e serão
passageiros.
se
a civilização
avançar. No Esbôço (Esquisse) do Dr. Leite de Vasconcelos. relativo só aos falares portugueses. o brasileiro ocupa a Seceção E do Capítulo IIL. dedicado aos Dialectos Ultramarinos. E como nos vastos Estados do Brasil haja naturalmente grande número de gradações no falar dos habitantes, desde a linguagem seleeta de entHtíssimos representantes de ciências e artes, que se esforçam
a falar puro,
até a dos rudes matutos
do
sertão, cuja bôca enuncia orações simplificadas, quási crioulas, a incor-
poração se compreende e se desculpa, embora uma exposição completa dêsse estado de coisas fôsse vantajosa. Além das publicações dêsses eruditos nacionais, e de mais algumas, publicadas no Boletim da Sociedade de Geografia, há onutras momentosas em alemão, feitas pela Academia das Ciências de Viena de Áustria, intituladas Kreolische Studien, em que o eminente glotólogo e romuanista Hugo Schuchardt (*) examina os principais dialectos crioulos (neo-latinos mas também ingleses) falados nas Ilhas do Atlântico, do Mar
Índico e do Grande
Oceano
Pacífico,
e excepeionalmente
tanr-
bém em recantos isolados, por diversos motivos, nos continentes extra-europeus como p. ex. o Írancês na Guiana (Cavyenne) e na Luisiana. Mas só e exclusivamente dialectos verdadeiramente crioulos. Os falares do Brasil estão excluídos, judiciosamente. Os insulares, dos Açores e da Hha
da Madeira,
também
não figu-
ram uos respectivas secções de Leite e Coelho. São europeus, sem nada de crioulo. Descobertas e povoadas muito cedo, essas ilhas, sem indígenas negros, estiveram
sempre
em
relações íntimas, materiais e intelectuais.
com o reino continental. Distinguem-se todavia por partieularidades arcaicas, como a conservação do artigo e pronome lo, la, los, las. ()
Kreolische Studien, Wien, Gerolds'Sohn. 1—
Das Negerportugiesische
von T. Thomé,
1882?.
II1 — Das Indoportugiesische von Cochin, 1883. 111 — Das Indoportugiesische von Diu, 1883. IV — Das Malaio-spanische der Philippinen, 1883. V — Das
Melaneso-englische,
1883.
VI — Das Indoportugiesische von Mangalore, 1881. VII — Das Negerportugiesische von Annobom, 1888. VII — Das Annamito-franzôsische, 1888. IX — Das Malaio-portugiesische von Batavia
und Tugu,
1891.
218
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Os principais dialectos são os seguintes: Portugueses : O WNegro-português das ilhas de Cabo Verde: o de S. Tomé; o da Ilha do Príncipe; o de Anobom (hoje domínio espanhol); o da Senegâmbia (ou da Guiné) e costas africanas. O Indo-português
de Diu,
Damão,
Goa,
Mangalor
Tugu,
Timor,
e Cochim
c o
de Ceilão. O
Malaio-português
de
Batávia,
Java, Malaca
e
Singapura. O Português de Macau. Quanto à Espanha, há Malaio-espanhol nas Filipinas; negro-espanhol em Curaçau e em S. Domingos e Trindade. Quanto à França, há no Oceano Índico o crioulo falado em Maurício (Isle de France) e Reunião (Bourbon); no Mar das Antilhas, o da Martinica, S. Domingos e Trindade ; negro-francês no Senegal ; e na América o dialecto da Luisiania e da Guiana (Cayenne) ; e o de Annam (na Indochina). Em obras portuguesas dos séculos XVI a XIX, relativas aos descobrimentos e às conquistas, há naturalmente numerosas referências às línguas dos indígenas e ao modo de êles se entenderem com os Portugueses. Logo no Roteiro de Vasco da Gama, ou anexo a éle, há no manuscrito conservado na Biblioteca do Pôrto, impresso por Kopke de Carvalho, Paiva e IHerculano, um glossário bilingue, assaz curioso, como já tive ensejo de dizer nas notas relativas às línguas indo-germânicas. Em autores do século XVII diz-se amiúde que os Portugueses da Índia e do Brasil téém muitos têrmos de línguas bárbaras e muitos vocábulos do português antigo. João de Barros teve a intitição histórica de dizer no seu Diálogo em louvor da nossa língua : «Às armas e padrões portugueses postos em África c em Ásia e em tantas mil ilhas fora da repartiçam das tres partes da terra, materiais são e pode-as o tempo gastar. Pero não gastará doutrina, costumes, linguagem que os Portugueses nessas terras leixarem» (**). No mesmo autor, outro passo mostra claramente que já em 1540 havia dialectos crioulos, pois diz: Bem como os Gregos e Roma haviam por barbaras todalas outras nações estranhas a eles, por não poderem formar sua linguagem (i. é. falar bem e correctamente a língua dêles),
assi nós podemos dizer que as nações de África, Guiné, Ásia, Brasil, barbarizam quando querem imitar a nossa» (**).
(*) (*)
Compilação, p. 229. Tb. 162-8.
PARTE
11 — DIALECTOS
219
CRIOULOS
E Fernam de Oliveira alude também à diferença da língua portu-
guesa tal como ela se ouvia em África, Guiné, Brasil e Índia (**). Camões
ironiza, também,
numa
das suas Cartas da Índia, joco-sé-
rias. a linguagem das damas de Goa, por ser, como pitorescamente diz, meada (ou entremeada) de ervilhaca, isto é, de coisas espúrias (**). Nas Obras de Gil Vicente, em que há autos poliglotas, como sabem (cujo francês e italiano — valha a verdade — talvez seja pior ainda do que as geringonças crioulas e o Pidgi-English dos Chineses) há não só imitação curiosa da pronúncia dos Ciganos peninsulares, mas também do falar dos Mouriscos e da Guiné (no Clérigo da Beira, vol. UII.
243 ss). Outras
amostras
anteriores
ainda,
hbá no Cancioneiro
de Resende
(1, 172). Amostras que são fiéis, fidedignas, pelo menos em alguns traços, como emprêgo do infinitivo em lugar de tempos finitos — o que não escapou aos eruditos nacionais que se ocuparam do assunto. *
Infelizmente. não há todavia autor algum, quinhentista, que empregasse o vocabulo criôlo, crioulo, crioilo ou o castelhano criollo (**).
Por isso os etimologistas estranjeiros dão-nos como de cida, e os próprios Peninsulares não sabem decidir. se formou, ou que o aplicon a negros, ou aos falares de guês ou Espanhol. Eu creio, estou mesmo persuadida que crioulo ou criar e já existia na bôca do povo português
origem desconheo primeiro que o negros. foi Portucrioilo provém de
antes da descoberta
do
Brasil, e mesmo antes do contacto dos Europeios com os Negros da Guiné. Faltam-me todavia provas documentais para tornar aceitável essa etimoólogia. O sentido em que ainda hoje se usa em Portugal favorece-a. Crioulo é, na bôca dos durienses,
o animal que nasce em nosso po-
der — o frango, o capão, o pato, o báeoro. o poldro, o novilho, a vitela: a cria nada e criada ao nosso pé: não comprada ; as trutas que pescamos nos nossos viveiros ou açudes. De aí passou a denominar, também no século XV, o escravo nado e criado em casa do senhor; e depois de 1500 — o nascido nas Colónias, não proveniente do tráfico, não comprado — nascido nos continentes
para onde haviam levado seus pais africanos. () Gramática, p. 16 [da 2.º ed., Pôrto, 1871]. () Obras, ed. Juromenha, vol. V, p. 220. (*) Frei Luís de Sousa (S. Domtngos, 1F 6-B) é por ora o mais antigo autor português em cujas obras encontrei n palavra. Quanto à Espanha, é nas Comédias de Tirso de Molina (1571-1648) que há: criollo soy de Mexico, que es nombre que dan las Indias al que en ellas nasce.
220
LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA
Éste sentido derivado talvez lho dessem no Brasil, de onde passaria às regiões limitrofes espanholas. Nelas aplicam-no hoje de preferência a los nascidos de esparíoles en Índia, isto é, a brancos, originários das colónias, nascidos longe das terras que costumam ser berço da raça caucásica, como os crioulos prêtos do Brasil nascem longe da África. No Dicionário da Academia só se registam dois significados: o de filho de país europeios, nascidos em qualquer outra parte do mundo: c o de negro nascido na América, por oposição ao que foi trazido da
África. Quanto à formação, ela também tem indícios de ser portuguesa. Em primeiro lugar é só em Portugal que há derivados que ostentam o sufixo -oilo -oila, correspondente no castelhano -uelo (ou simples
pronúncia nacional do cast. -nelo) ital. «uolo, lat. -iolo (**): p. ex. moçoila, caçoila, lentejoila, papoila, tejoila, ferragoilo ( ital. ferrajuolo, gabão de capuz, sem mangas). E só em Portugal há derivados populares de criar como cria, criança, criadeira, crianço, criancelho, criação, criado, crtatura, criaturo. A substititição de crioilo por criollo, em regiões espanholas, talvez
se realizasse por analogia com pimpollo (pini-pullus). A aplicação de crioulo aos dialectos românicos, abastardados da África, Ásia e América, é recente. Só se registou nos Dicionários em que colaborou Cândido de Figueiredo. Se a etimologia por mim ideada, fôr exacta, será preciso todavia alterar a ordem que êle costuma dar às diversas acepções de crioulo (com crioulada). *
Os característicos essenciais dos dialectos crioulos são por tôda a parte os mesmos, apesar das diferenças de raça, de clima e as distâncias geográficas que os separam da língua-mãe. Parece, portanto, que as línguas dos indígenas influírain pouco na sua constituição.
Dos processos de simplificação e de perífrase que nêles actuam, alguns semelham-se aos que o latim vulgar utilizou na sua evolução para romarnce. Semelham-se também aos que na própria Europa ainda hoje servem na aprendizagem, sempre um tanto infantil, de um idioma novo, pelo método directo — mesmo se são pessoas relativamente cultas que a fazem.
(”) E só em Portugal há outros sufixos -oico, -ouÇo, -Ooiça, -ouça; -oiro, -ONro, -0ira, -oura.
em
que
a par
de
ox
surge
oi —
PARTE
11 — DIALECTOS
CRIOULOS
221
Em todos os dialectos crioulos há uma grande redução tanto do sistema morfológico eomo da sintaxe das línguas curopeias que lhes servem de base. Há, p. ex., supressão das desinências que simbolizam
nú-
meros, tempos, modos, géneros. Essas relações são indicadas por meio de palavras auxiliares. O mero infinitivo ou qualquer forma do presente, tornada invariável, exprime o presente : eu respondê significa eu respondo : como já exprime o passado : eu já respondê já respondi.
Com logo, o futuro : eu logo respondê. Os pronomes regimes ocupam o lugar dos pronomes sujeitos: mim comer significa eu como ou eu quero comer. á Quem se não lembra da fruse típica mim no falá portuguese, empregada pelos Ingleses que ainda se não apossaram da língua de Camões? Na formação de nomes hipocoriísticos, acariciadores, como nhónho, Lulu, Tintim (Valentim) Quimqguim (Joaquim), Fonfon ( Afonso), e na de palavrões muito intensivos, há também fenómenos psicológicos que aproximam os crioulos da linguagem infantil e popular dos romanços curopeios. Não posso ir mais longe, porém. *
Só uerescentarei que é quási crioulo.
ainda
que
também
na
Europa
há um
dialecto
É a língua franca, falada pelos marítimos da Ásia Menor, da Sírin, do Egito, nas partes orientais do mar Mediterrâneo, ou, por outra, no
Levante
(oposto a Poente):
jargon méêlé d'italien, d'espagnol, etc., à
VPusage des Franes de VOrient, isto é, dos Europeus, no seun comércio com
Turcos e Árabes. À preponderância dos elementos italianos provém do tempo do explendor das repúblicas de Génova e de Veneza. Menciono-o, principalmente para lhes participar que o infinitivo sabir, saber existe nessa geringonça e até lhe deu o nome. Sabir ou língua sabir é outro nome da língua franca, como podem verificar no Dicionário
de Littré e na obra de Coelho (***). Certamente porque os argelinos e levantinos tiveram de responder inúmeras vêzes às preguntas que lhes dirigiam frase franca ou crioula — mi no sabir.
os Estrangeiros com
a
*
Serei breve quanto à estatística proporcional das línguas românicas. Bastante correcta quanto à Europa (como podem verificar no ()
F. A. Coelho, Dialectos romanicos,
(pág. 58).
222
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Grundriss de Groeber ou nas tabelas geográfico-estatísticas de Hiibner), a parte que diz respeito aos países extra-europeus não é de absoluta
confiança (**). Falam castelhano na Europa, 14 de 18 milhões e meio de habitantes de Espanha (os restantes falam catalanesco — 5.600; galego — 1.900 ; basco 440 ) e na América 40 milhões. Por junto, 56 a 60 milhões.
São, portanto, os mais bem partilhados. Os que falam francês são 50 (40 na Europa) ; os que falam italiano 33 ; português 22, se nos escassos seis milhões do continente (5.428.659,
segundo a contagem de 1903) e das ilhas, e aos 2 milhões das colónias, juntarmos os 14 do Brasil. Os Rumenos são 8 milhões e meio. Os Reto-romanos, meio milhão.
Ão todo 105 a 106 milhões, metade dos 212 em que é costume avaliar os povos de tronco germânico. Voltando a Portugal, notemos que dos cinco a seis milhões que o habitam,
4.250.000
ainda não sabem
ler nem
escrever!
E deixem-me
enunciar a esperança que cada um dos senhores combaterá, durante tôda a sua vida, êste horrível mal negro, ensinando a ler todos os analfabetos com que o acaso os ponha em contacto mais ou menos Íntimo, e propor-
cionando-lhes em seguida leituras sãs, com que se deleitem e instruam.
() Geographisch-statistiche tabellen aller Lânder der Erde. [É claro que todos êstes números, referidos ao princípio do século, se encontram hoje profundamente alterados].
LIÇÃO IX — CRONOLOGIA
DOS
FALARES
ROMANÇOS
1 — z Desde quando há língua romana, diversa da latina? n ;Quando nasceram, e como se desenvolveram as línguas romáânicas diferençadas? 6
No
sentido
D
histórico,
como
línguas
literariamente
documentadas,
devemos datar a5 que derivam do latim do primeiro documento escrito que possuímos : daqueles juramentos preciôsos mas informes, nada artísticos ( que outro dia tivemos ocasião de Jer), enunciados em 842, e seguidos de outros monumentos já com pretensões a obras de arte, só do ano mil em diante, na França e Proença, c nos outros países mais tarde ainda. No sentido glotológico, analisadas, quer como línguas faladas muito tempo antes de serem escritas, quer conto organismos vivos e fenómenos
psico-fisiológicos, ou como filhas do latim, claro que as neo-latinas não surgiram tão tarde, nem se lhes pode fixar o nascimento em qualquer momento dado. Téem pré-história e longa. Da germinação até ao primeiro ensaio oficial, já houvera séculos de evolucção. De evoluçião lenta e gradativa, porque de uma geração à imediata, não pode haver divergências lingitísticas profundas. Aliás, pais e filhos não compreenderiam. Evoluções há, como séculos a realizar-se.
às do ritmo
frásico ou sintáctico. que
levam
*
No empenho de estabelecer os estádios principais do caminho percorrido, retrocedendo sempre, até chegar aos primeiros vestígios de ceada uma
das
evoluções
fonéticas
e prosódicas,
morfológicas,
sintácticas
e
semânticas, por que o latim passou na sua transição à fase actual neo«latina, ou à fase do ano mil, há hoje entre os romanistas mais avançados,
da escola de Meyer-Liibke, a tendência de identificar línguas românicas e sermo rusticus, vulgaris, quotidianus, até o ponto de dizer que as filhas (romanas) já existiam in nuce ou implicite, antes que a mãe (latina) tivesse tomado o vôo literário (**). Algumas vêzes recorrem mesmo à fase pré-latina : indo-germânica. Contei que uma discípula distinta do catedrático de Viena de Austria, apontou em dois dos mais arcaicos documentos da língua latina (do século VI À. C.) um dos fenómenos que distinguem o Neo-latim do Alto«latim. São curtíssimas inscrições em fíbulas (fivelas ), que dizem, uma : Pareco-se essa minha figura retóriea com a adivinha () e fumo: cAinda o pai não é nado, e já o filho anda no telhado».
infantil
do
fogo
224
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
outra:
Duenos med fefaked Numasiot; Fulano me fêz em Numasia F. me fêz com sua própria mão Duenos med feced em manon.
Ambas colocam, como vêem. a circunstância adverbial depois do verbo, o que cestá em harmonia com as línguas românicas, mas se afasta
do uso clássico. que exigia o verbo no fim (**). Essa investigadora sagaz, Dr. Elise Richter.
expõe
mesmo
no
estudo, finíssimo e eruditíssimo., a que aludo, à antiguidade das transformações por que passou a acentuação latina, sobretudo o ritmo frásico,
que ela considera como ponto de partida de tôdas as alterações fonéticas !
e sintácticas.
É no capítulo sobrescritado Was ist Vulgarlatein — Wann beginnt das Romanische? e em que portanto trata do assunto que hoje nos ocupa — que retrocede até ao primitivo árico, à época anterior á diferenciação das línguas indo-germânicas. *
Em regra não se vai tão longe. E nós, como principiantes, obrigados a chegar depressa ao português, não o podemos nem devemos fazer. A história do latim vulgar ou seja da língua romana, se assim quisermos chamar ao Jatim unitário falado nas províncias que constituíam a România Ocidental, como pré-história das línguas românicas, dos romanços derivados, começa para os estudos universitários no primeiro
século da nossa era, no século em que havia províncias romanizadas. Jsto é, na época imperial, de Tibério a Marco Aurélio, a qual, com relação à estilística latina. é argêntea. Continua avultando na época imediata (séc.
la IV), em que a acção demoerática do Cristianismo dá voz e língua às províncias, e às eamadas sociais baixas, mudas até então. Conduz assim
ao momento histórico da derrocada do Império: à desagregação das províncias em que surgem as nações neo-latinas. com novas línguas diferençadas. *
Tornemos a lembrar rápidamente os fnctos históricos, para perreber a razão dêsse ponto de vista cronológico. A Itália, por excelência, isto é, o Sul da Península apenínica, ainda não estava bem submnetida, nem tão-pouco o Norte céltico e o Centro
Etrusco, quando a Sardenha e a Córsega foram conquistadas, logo depois (*)
O ensaio Der innere Zusammenhang
tn der Entwicklung
der Romanischen
Sprachen faz parte de um volume Prinsipien-Fragen der Romanischen Sprachwissenschajft, dedicado a Meyer-Liibke, no quinquagésimo semestre do seu professorado, que, por acaso, coincidia com o scu quinquagéósimo aniversário natalício (Beihef Nº 27 aur Zeitschrift fur Romanische Philologic, 1911). [Da mesma autora há também Zur Entwickelung der romanischen Wortstellung aus der lateinischen, Halle, 19031.
PARTE
11l —
CRONOLOGIA
DOS
FALARES
RKOMANÇOS
225
de a Sicília haver sido o prémio da primeira guerra púnica : 238 A. C. A Espanha ficou subjugada depois da segunda guerra púnica : em 197, embora guerras no Sul continvassem até o tempo de Augusto. A Proviíncia Narbonensis (ou Gália meridional ) em 120. A França do Norte, no ano 50. A Dácia Foi encorporada muito mais tarde, em 106 P. C. E a Récia também. Dessas duas podemos abstrair aqui. Com as conquistas na Britânia e Germânia, o Império chegou ao auge da posição territorial durante o reinado de Septimo Severo (193.-
211) estendendo-se da Escócia até o Egipto, de Portugal até o Mar Negro e a Mesopotâmia. No centro acabava com o Limes, a fronteira fortificada que atravessava a Germânia, do Reno quási até à foz do Danúbio.
Em 212 Caracola uniu artificialmente êsse colossal conglomerado caótico de povos, concedendo o direito de cidadãos a todos os libertos. Nesse período de quási quatro séculos o latim modificara-se, evidentemente. Fôra portanto um latim diverso que se implantara nos diversos países conquistados. O que a Hispânia adoptara, era mais arcaico do que o introduzido na Gália. E mais arcaico ainda o que fôra levado à Sardenha. A demora que houve na romanização completa (apesar da grande habilidade colonizadora dos Latinos, a que já aludi, ela levou umas poucas de gerações mesmo na Espanha), mas sobretudo as sucessivas renovações do pessoal administrativo e militar, o contacto constante com a
metrópole, e o ensino da língua literária em escolas práticas, paralisa-
ram todavia o natural movimento scparatista. E embora o Cristianismo alterasse profundamente a cultura da antiguidade e tôdas as suas manifestações, incluindo a língua, tanto a literária como a familiar, ela era unitária na esséncia ainda nos séculos Y
e TII, e continuou a sê-lo até 400 : vésperas da queda do Império. Mesmo os numerosos estranjeirismos que se haviam infiltrado pouco a pouco em ambas elas (célticos, ibéricos, germânicos, helénicos) e também os vulgarismos e neologismos, eram em parte comuns a tôdas as províncias. Ninguém já falava de Galos, ou Celtas, de Etruscos, de
Iberos, de Récios, de Afros ou de Poenos (**). Omnes Romant facti sunt et omnes Romani dicuntur. (”) cristã)
Quanto à dizia, com
Península tbérica, já o historiógrafo Strabão (do século I da relação a uma das tribos que a povoaram, (os Turdetanos por
era sinal) que nem já se lemnbravam da própria língua. — Tácito fala de restos do ídioma púnico. — Os harúspices romanos ainda se serviam dos livros sagrados dos Etruscos, no tempo de Julião, Apóstata (361-63), Provàâvelmente do mesmo modo como os Judeus se servem de textos hebraicos nas Sinagogas. — Outros restos de idiomas mortos ficariam na Gália.— Mas em geral a romanização da România Ocidental estava consumada no século I da era cristã,
226
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
Ainda assim devia haver necessáâriamente divergências: na pronúncia sobretudo — conquanto essas mal se reflitam na lingua escrita. Na Patrologia podem-se respigar algumas indicações a êsse respeito. S. Jerónimo, p. ex., afirma que a própria latinidade se ia modificando, segundo os tempos e às regiões : ipsa latinitas et regionibus cotidie mutetur et tempore. À verdadeira independência e individualização da língua falada na Gália e Provença, em Espanha e Portugal e na Itália, começou todavia depois da desmembração do Orbe Latino, com a invasão dos Bárbaros. No século V, portanto. *
Paremos aqui um instante, para dizer duas palavras gerais, àcêrca dessa individualização regional. Antigamente c até há pouco, julgava-se que as diferenças que distinguem o português e castelhano do catalão e provençal, êste do francês, e do italiano, c todos êles do latim, se explicavam pelo fundo étnico indígena diverso: céltico na Gália, ibérico na Hispânia, italiota na península apenínica, isto é, pelo carácter peculiar das línguas que os habi-
tantes falavam antes de aprenderem o latim; pelo adestramento diverso dos seus órgãos fónicos. E realmente essa explicação era e é sedutora. (Na Ruménia, p. ex., os influxos étnicos eslávicos, gregos, turcos, etc., são bem reconhecíveis).
Ela combina com a tendência de vermos ou procurarmos na língua e na literatura a manifestação suprema e privativa da nacionalidade. Nem há outro meio de compreendermos certas particularidades, como p. ex. o ti e o ritmo ascendente francês. Além disso, ela coaduna-se perfeitamente com a persuasão (a que todos nós chegamos por experiência própria de que não é o vocabulário nem
a gramática, mas sim a pronúncia, o som, o ritino musical das lín-
guas cstranjeiras, o que mais custa a adquirir; o facto de que, sempre ou quási sempre, ficam reminiscências da nossa lingua materna na pro-
núncia das que aprendemos posteriormente. Estudos cada vez mais minuciosos da história do latim. literário e vulgar, e sobretudo de cada um dos complicados fenómenos da fonologia românica, levaram todavia alguns investigadores a negar essa continuídade étnico-fonética, e a atribuir as alterações características que distinguem as línguas neo-latinas à acção dos povos germânicos que se
sobrepuseram aos indígenas romanizados, exactamente nos séculos de transição que vão da queda do Império romano à divisão do Império franco de Carlos Mamno.
PARTE
11 — CRONOLOGIA
Fundanm-se êles em serem
ticas das deveriam primeira Na
DOS
FALARES
ROMANÇOS
227
tardias e sucessivas as alterações foné-
línguas românicas. E opinam que, a serem realmente étnicas, ter-se manifestado imediatamente e na sua totalidade logo na geração latinizada, e não séculos depois. península ibérica acresce ainda, de 711 em diante, o influxo
dos Árabes. *
No meio é que provávelmente estará a verdade: influxo étnico primitivo dos povos pré-romanos, de que ficaram vestígios positivos através dos tempos (como no ii e no ritmo ascendente dos franceses) ; e influxo
posterior dos Germanos,
pois foi, repito, exactamente
durante
o seu império que a lingua romana se desdobrou em linguas românicas. Infelizmente não há comprovação documental com testemunhos formais. Sabemos pouquíssimo das línguas pré-romanas. E os séculos VI, VII, VITT e IX, em que a transformação do latim, em bôca dos invadidos e dos invasores germanos, e a individualização das línguas, românicas se realizou —
êsses são quási mudos. Por isso a decisão é tão difícil,
capítulo sôbre a acção mútua de Germanos
e o
e Romanos ainda se encontra
pouco adiantado (**). Reatemos o fio interrompido. Da invasão dos Bárbaros no século V (ou Volkerwanderung migrações dos povos medievais) resultou a desmembração do. Império Romano; a quebra do contacto constante e direito do Ocidente com a metrópole ; a decadência de Roma e da cultura clássica ; o encerramento das escolas latinas nas províncias; a extinção nelas do sentimento nacionalista ; a formação de reinos novos, nações modernas, línguas modernas.
Os Bárbaros, já o sahemos, eram quási todos Teutones, povos aos quais os Celtas haviam dado o nome de VizinhosGermanos
(**), adoptado
em breve pelos Romanos. Descobertos para a antiguidade, por via marítima, pelo navegador grego Píteas de Marselha que, saindo do estreito de Gibraltar, ladeara
a costa portuguesa, francesa e inglesa, chegando até às embocaduras do Reno, e. de 330 A. C.; debelados pelos Romanos do século 1T em diante,
vencidos por Júlio César; vencedores de Varus, o legado de Octaviano Augusto, na floresta de Teutoburgo (no ano 9 da era cristã) pela mão de Armiínio «libertador da Germânia e Nationalheld da Alemanha»; êsses Bárbaros, descritos por Tácito com idealização intencional (em 98 ) mas tratados com menos simpatia por outros historiadores, por serem ()
Há
contudo
no
Grundriss
de
Grocber
um
estudo
de
Friedrich
Kluge,
sôbre as relações mútuas: Romanen und Germanen in ihren Wechselbezichungen; há numerosas contribuições nas obras de Meyer-Liibke; artigos sôltos de Gottfried Baist,
cte., ete. Esta )
eimoloriia, hoje geralmente
aceite, é do celtista Zeuss.
228
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
eversores ( — arruinadores) numerosíssimas
vêzes,
PORTUGUESA
do Império, haviam
infiltrando-se,
como
atravessado os Alpes
guerreiros
fortíssimos,
va-
lentes e leais, na própria guarda dos Césares desde o século III, embora
em núcleos pequenos (***). Impelidos por tribos eslávicas e hordas nómadas da Ásia (Mongóis e Hunos), êles precipitavam-se agora sôbre o Sul e Ocidente da Europa. Ainda não tinham nome comum prôópriamente seu, nem língua unitária, nem consciência da unidade étnica, pois estavam divididos em
centenas de povos. Francos e Burgundos -renano ; Hérulos e Longobardos,
apossaram-se
etc., invadiram
do país trans-
a Itálin;
Ostrogodos,
o norte da península balcânica; Vândalos, Alanos (êsses eram Citas ou Sármatas) Sucvos c Visigodos, a pirenaica, passándo em parte à
África (**).
i
Dentro da România todos êles abandonaram pouco a pouco os seus idiomas, todos adoptaram o latim, tal qual o ouviam falar. Conhecendo
o resultado, só podemos todavia adivinhar os processos. Quanto
às causas, Eles estavam
na minoria, em
todos os países de
que se assenhoraram. Para governarem precisavam de uma língua unitária e dles não a tinham. E a civilização romana cera superior à sua. Talvez também os Germanos fôssem mais aptos a aprenderem um idioma estranjeiro que os Latinos, que sempre desprezaram tal assimilação.
Motivos religiosos favoreceram
a fusão. Parte dos vencedores já
estavanm cristanizados ; parte eram herejes : Arianos (**) como Vúlfilas e Teodorico, êsses dois Bárbaros geniais. Mns todos aderiram ao credo católico ortodoxo : os Francos perto de 500 ; os Suevos em 560, os Visigodos (sob Recaredo) em 589, os Longobardos cêrca de 600. *
Em parêntese, recordemos aqui que de então até à Reforma houve unidade religiosa, perturbada embora por mais de uma tentativa de libertação das consciências. De capital política do mundo, Roma tinha-se transformado em capital do Catolicismo, cidade dos Papas, Civitas Dei. (P) Dêsses prelúdios da grande invasão, alguma coisa ficou na língua Milch, nome de um prato culinário, preparado com leite, latina. O têrmo melea é do século II. (*) O reino que os Vândalos fundaram na África foi destruído depois de 650 pelos Muhamedanos, que arruinaram juntamente o Romanismo e o Cristianismo do Continente Negro.
() condenada Deus-pai
O arianismo, a doutrina do bispo Arius, combatida por Atanásio e no Concílio de Nicea (825), não acreditava na homousia — identidade de e Deus-filho.
Os que
se interessarem
Espaiioles, de Menendez
pelo assunto
Pelayo.
devem
ler a Historia de los IHeterodoxos
PARTE
Na
grande
11 — CRONOLOGIA
cisão
de
1517,
DOS
FALARES
a Romáânia
ROMANÇOS
ou a raça
2290
latina, como
é
costume dizer, conservou-se católica, quási integralmente. Os dois têrmos identificaram-se. E a parte latina e católica da Europa é. em regra, considerada e designada como «Sul da Europa», apesar de a França ser nada ou pouco mais meridional do que a Alemanha. Essa, sendo na realidade o centro, passa por ser o Norte. Schiller e Goethe siãto des hommes du Nord. Em ambos os casos a maiori, portanto: porque, se de um lado Italianos e Espanhóis
são realmente
meridionais,
Suecos,
Noruegueses,
Dinamarqueses, e Inglêses são, pelo outro lado, realmente setentrionais. Mais curioso ainda é que um poeta francês, Victor Hugo, descrevesse, em 1834, o Reno, como «grande fôsso que separa o Norte do Sul», aplicando êsses termos à Alemanha e França. Curioso também é que o Germano em geral seja ainda aos olhos dos Romanos, capitanenados, como de costume, pela França, «o filho inculto de um país inospitaleiro e nebuloso, de seriedade pesadonha».
Nos artigos-de-fundo dos melhores jornais, tanto franceses como peninsulares (**), nunca se fala de Bismarck sem que lhe aponham o distintivo «êsse Bárbaro de génio». Bárbaro, por ser de estatura gigantescea, e haver tido olhos azuis ferozes. À cabeleira ruiva, ondeada, que era o tereciro distintivo dos Invasores medievais, essa faltava-lhe, des-
graçadamente. Só tinha três cabelos, segundo a lenda propagada pelos caricaturistas. Mas fechemos o parêntese. Em outra ocasião contarei como os Germanos dão a réplica aos Romanos, com o adjectivo waãlsch welsch, com Walschland, verwaâlsclu, ete. (**). Não devemos queixar-nos : Shakespeare também era um « Bárbaro» para Voltaire e sucessores. * Voltemos à língua romana em bôca germana, e aos séculos V a IX.
Os idiomas germânicos deixaram vestígios duradoiros nas línguas românicas. Sobretudo no francês. Éles são numerosos no Onomástico peninsular (nomes de pessoas como Afonso e Ramiro, que já encontrámos nos textos arcaicos, lidos no curso prático, e nomes de lugares e da família, derivados dêles, como ('*) Notemos de passagem que a significação injuriosa, em que se emprega proverbialmente o nome étnico Vândalo (com vandalismo, vandalizar), não tem razão
alguma de ser. Já houve quem sunvidade dos seus costumes.
reabilitasse
() Em Espanha nos. coniuntamente.
muito
gostam
êsse
de opor
povo,
descrevendo
os «Teutones
poêticamente
y Eslavos*
aos
a
Roma-
230
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Recarei, Ermesinde,
Freamunde, Tagilde, Guilhomil ), mas também
vocabulário
Basta
comum.
no
lembrar por ora os têrmos explicados nas
Lições Práticas, guardar, guarir ou guarecer, guarnir ou guarnecer, ga-
nhar, antigamente guadanhar, farido ( — hardi), guisa, guerra e orgulho, essa qualidade essencial dos Árias vencedores, que introduziram na Romãânia
o feudalismo;
mas também
direito, como
tradução de Recht
(jus) ; cum-pan-io, como tradução de ga-hlaibs, a par do cumbibo, latino. De
muitíssimos
outros
teremos
de falar em
prelecções
futuras,
e
também dos vestígios que deixaram no sistema fonético, sobretudo do francês (onde h e w transformado em gu, reentraram por influxo ger-
mãânico ) mas também na pocsia épica (**). Na Península, onde o reino visigótico teve dois séculos de esplendor, seguidos da derrocada tremenda de Xeres de la Fronteira (711), a última palavra da língua latina viva, ou antes Hochlatein, são as Leges Barbarorum : as leis essencialmente brandas e sábias dos Visigodos, de 506. Estão publicadas na colecção Portugaliae Monumenta Ilistorica. Quanto
ao espírito e ao influxo
literário dos Germanos,
éle cul-
minou talvez no poema épico de Waltharius Manufortis (Waltarilied ) que um afeiçoado trata de «Ilíada dos Visigodos». Infelizmente,
só subsiste em
redacção
latina:
nos hexâmetros
de
um alemão de Sankt Gallen, Ekkehard I (c. de 930) (**). À redacção original gótica está perdida (se existiu). Depois de 900, não subsistem línguas germânicas em parte alguma
da România (**). *
Carlos Magno falava althochdeutsch ; mas o neto que herdou a parte francesa do Império, servia-se, como ouviram, da língua romana, informe ainda, mas já diferenciada, afrancesada, bastante distanciada do latim
vulgar de que saíra durante a época de transição. so
() nos,
Em
português e castelhano temos o mesmo
gu aplicado a vocábulos
lati-
p.
ex. em guay (e Cantares guayados) do lat. vac, na pronúncia dos Godos. () Colegial ainda quando fêz a tradução pará seu mestre Geraldo, que a emendou. ('*) No primeiro Apêndice da e«História da Literatura Castelhana», de Ticknor, dedicado à história da língua, há considerações sôbre os Godos que ainda hojo têem valor. Fitimaurice-Kelly, pelo contrário, restringe-se a dizer dêles, em
meia página, que Espanha não lhes deve senão trevas e desolação. — D. Ramon Menendez Pidal nos seus estudos relativos nao Cid Campeador, reconhece os seus méritos («L'Épopée Castillane», Paris, 1910).
LIÇÃO X LATIM
FALADO
E LATIM
ESCRITO
é Que sabemos nós do Sermo Vulgaris como base das linguas românicas? NTES DE TUDO sabemos que os escritores latinos mencionam algumas vêzes um sermo rusticus, plebeius. Excepeionalmente falam de subrusticus, subrusticanus, afrestis, subagrestis, ou de militaris; e tambêm de trivialis, sordidus, proletarius. Mas sobretudo de quotidianus. Do conjunto dos respectivos passos de Cícero, Séóneca, Varro, Quin-
tiliano, Gélio, Suetónio, Petrónio (**) resulta com evidência que sermo vulgaris era efectivamente a linguagem de todos os dias; a Alltags-sprache a linguagem falada comummente, em contraposição à escrita, sempre estilizada ou vestida de trajo domingueiro — Feiertags-sprache : Aquela era falada não sômente por lavradores (rústicos) soldados (militares) (***) e pela plebe (plebeus e proletários) mas em tôdas as camadas soçinis, altas e baixas, e sobretudo nas medianas, em conversa despretensiosa relativa às mil e uma coisas casciras, corriqueiras, íntimas, mas tam-
bêm a assuntos públicos de interêsse geral, superior, que ocupam a humanidade, em tôda a parte e em tódas as épocas, muito embora haja naturalmente infinitas variantes de expressão, segundo a idade, a profissão, o saber, o gôsto e o génio dos indivíduos. Ouçamos pelo menos dois dêsses passos, alusivos à linguagem falada : Um, de Cícero ; outro de Quintiliano.
Em uma das suas cartas familiares o grande orador diz ao amigo Paetus: — ge«Então que te parece destas minhas epístolas? Não emprego nelas (lindamente) a linguagem plebeia»? Quid tibi ego videor in epistolis? nonne plebeio sermone agere tecum? (**)
Os passos
documentais
Vulgar, que se deve a Hugo 1866-69).
Estão
no
vol.
encontram-se
Schuchardt:
I, págs.
102
na obra
fundamenta!l
sôbre o Latim
Der Vokalismus des Vulgárlateins
ss. Também
entraram
na
não
menos
(3 vols,,
importante
obra de Hermann-Runsch, com relação aos elementos populares das primitivas traduções cristãs da Bíblia, anteriores à Vulgata dos Setenta, revista e sancionada por S. Jerôónimo (Itala und Vulgata, Marburg, 1875). (**) Considerando que durante longo tempo a classe principal que entrava nas províncias romanas era a militar, e que as legiões eram compostas de variadíssimos elementos, localmente diversos, e supondo que entre êsses se havia de necessàriamente desenvolver uma língua franca castrensis (Lager-Sprache) é que alguns investigadores chamaram de preferência lingua castrensis no sermo vulgaris. Assim fizera o eminente Pott (1802-1887) na obra Romanische Elemente in
den longobardischen Gesetzen reliquiae, Leipzig, 1901.
(1859).
Cf.
Kempf,
Romanorum
sermonis
Castrensis
232
LIÇÕES Depois
acrescenta
DE FILOLOGIA
que
era
PORTUGUESA
uso
entretecer
no
discurso
cepistolar
vocábulos de cotio; e motiva e desculpa o costume, alegando que nem sempre a gente deve falar de modo idêntico, visto haver diferença tamanha entre uma carta particular, e uma peroração pública, oficial, num tribunal ou numa
assembléin : Nec sempre eodem
modo;
quid enim si-
mile habet epistola aut iudicio, aut concioni? Epistolas vero quotidianis verbis texere solemus (**). O Enciclopedista, ésse também louva, nas suas Instituíções Oratórias, o estilo chão, familiar, asseverando conhecer quem tinha em conta
de clocução boa apenas aquela que se aproximava da empregada entre amigos, casados, crianças, servos;
aquela que exteriorizava, sem artifi-
ciosa elaboração, sensações c afectos simples. Ádhoc quidam nullam esse naturalem putant eloquentiam nisi quae sit cotidiano sermone simillima quo cum amicis, contugibus, liberis, servis loquamur, contento promere animi voluntatem, nihulque arcessiti et elaborati requirente... Mihi aliam quandam
videtur habere naturam sermo vulgaris, aliam viri eloquentis
oratio (***). * Teôricamente
era
certo,
mesmo
sem
tais
amostras,
que
a-par
do
Schriftlatein houve Sprechlatein, a-par da Feiertags-sprache, Alltags«sprache, isto é, Alto Latim e Baixo Latim : Hochlatein und Plattla-
tein (**). Prâticamente,
a demonstração
foi contudo
tardia
e demorada,
e
ainda se trabalha activamente nela (***). Os princípios, sobretudo,
foram
difíceis. Levou
muitos decénios
até que os latinistas se familiarizassem com a ciência romanística, e dei-
xassem de corrigir nos textos clássicos o que lhes parecin anormal, reconhecendo que tínhamos aní vestígios do desprezado sermo vulgaris — em cuja existência e direito à vida se negavam a acreditar. Vejamos primeiro a teoria. Em tôda a parte — na Índia, na China, no Egito, na Grécia, na Itália — houve sempre as mesmas duas correntes opostas que há modernamente nas línguas: a da linguagem escrita e a da linguagem falada. Rede e Schreibe, como em vez do usual Schrift, diz analôgicamente, com ()
Livro IX, Carta 21. $ 1. Ed. Teubner, p. 286.
() Inst. Orat. XII, 10, 40. Ed. Teubner, II, p. 268. () Vid. Friedrich Pott, Plattlatein und Romanisch (1852). (*) Às obras já citadas de Schuchardt, Rônsch, Pott, há que juntar muitas outras. Tantas que no Jahresbericht, de Vollmíller, já costuma haver um capítulo especial relativo tinguir).
ão
Latim-Vulgar,
e
Baixo-Latim
(entre
os
quais
é
costume
dis-
No Archiv fiir lateisnische Lexicoyraphie und Grammatik, publicado por Wolffin, de 1881 a 1908, há contribuições importantes, do fundador e de outros, Desde a sua morte foi substituído pela revista Glotta, que já nomeci.
11l— LATIM
PARTE
alguma
ironia,
um
ilustre
FALADO
filósofo
E LATIM
alemão —
233
ESCRITO
muito
individualista
e
adversário de convenções (***). Em tóda a parte a linguagem falada precede a escrita. Em tôda a parte, esta é cópia do natural. Mas cópia estilizada, com tendências de selecção. Aquela é simples e comodista, fácil e sem cerimónia : natural, vivaz, inventiva, realística.
A vocábulos sancionados, convencionais, gastos, prefere outros mais novos e pitorescos, que caracterizam com rigor, ou mesmo rudeza, o lado
baixo das coisas. (Tête, em francês, do vulgarismo testa, designava originariamente um caco ou testo velho). Serve-se de derivados e .compostos, de diminutivos, aumentativos,
superlativos, formados ad hoc. É evolucionista, progressiva, muito embora a-par de neologismos conserve arcaísmos que correspondam às suas tendências. Os escritores, pelo contrário, escolhem vocábulos nobres, figuras retóricas sublimadas ; usam de sinónimos para se não repetirem ; encadeiam palavras e proposições de modo complicado, subordinando umas às outras, lógica e artisticamente.
Os escritores são conservadores, em regra. Felizmente ! porque sem essa tendência salutar, ;como haveria continuídade e unidade literária no: espaço e no tempo? Escusado é demonstrar que, ainda assim, não podia haver unifor.
midade em nenhum dos campos. Uma regateira não fala como uma dama do paço. Um simples agrimensor ou veterinário não escreve como um douto orador profissional. À sua linguagem aproxima-se involuntàriamente 'da fala comum.
E, vice-versa, há nas camadas sociais superiores
muitas pessoas que falam como um livro. A diferença entre escrita e fala é todavia grande, em regra, onde
quer que a examinemos. Em Roma havia entre elas verdadeira divergência. Com algum exagêro foi dito por um dos melhores conhecedores vivos de ambas as modalidades, que um abismo as separava: ein
abgrundtiefer Riss (** ). Tal era o carácter artificial da língua literária dos Latinos. Os senhores sabem muito bem que desde os alvores da Jiteratura — qdesde Lívio Andronico — os Romanos imitaram modelos estranjeiros : modelos gregos de forma fixa e de períeição ideal (**). O mesmo Vischer (Fricdrich Theodor) costumava dizer: Eine Rede ist () keine Schreibe; cine Sehreibe ist keine Rede. Franz Skutsch, na Cultura do Prescnte, no estudo Die lateinische Sprache. () (**) Li hoje mesmo, na viagem para cá, no Dionysos (Fasc. V), as páginas que Manuel da Silva Gaio cscreveu sôbre a história romana, explicando muito bem a tardia aparição, no sentido de produto erudito, da literatura. De novo as recomendo, prestando assim homenagem à concisa lucidez da exposição.
234
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Da poecsia nada direil, porque, pela sua natureza, ela se cinge sempre a regras, estreitas, embora vse de licença onde convém. AÀ prosa, essa ficou sendo essencialmente oratória, destinada a ser recitada em voz alta. Era portanto representativa, teatral. Por análises minuciosas está hoje provado que a oração pública cra ritmizada, e que poucos prosadores se subtraíram a êsse preceito.
Os períodos findavam musicalmente com uma série de quatro ou cinco compassos, não somente lá onde se faz ponto e pausa, mas mesmo onde basta uma vírgula, um breve intervalo. A língua latina, falada origináriamente, como expliquei, num pequeníssimo território em volta da cidade do Tibre, era pobre, sêca, rude — já ouviram algumas amostras: linguagem de pastores e agricultores —— pela terceira vez o lembro. Lavradores costumam falar pouco. Os trabalhos pesados do amanho da terra paralisam o espírito, obrigam a cconomizar fôrças e meios. Quando os músculos e os tendões estão ocupados, o cérebro e a língua descansam. Assim, os adscripti glebae se acostumam a não dizer senão o indispensável. Há uma anedota que visa o monossilabismo agrário: Dois lavradores, pai e filho, encaminhavam-se para a Igreja num domingo de primavera. Ão passarem junto a uns campos de cereais em flor, o pai diz: o trigo promete. Ouvem missa. Quando, no regresso, passam pelo mesmo sítio, o rapaz abre a bôca e diz: o centeio também. Tanto tempo fôra preciso para que a contestação aflorasse nos seus lábios. AÀ anedota é aplicável sobretudo ao lnvrador do Norte. Mas não sou
a primeira pessoa que a aplica também ao Lácio — à nação de génio eminentemente prático, utilitário, que tão esplêndidamente se manifestou nas ciências e instituíções políticas, jurídicas, administrativas. Em vista dessas qualidades não pode surpreender que mesmo a linguagem literária fôsse sóbria a princeípio e que os artistas posteriores aproveitassem e aperfeiçoassem essa qualidade nacional. O estilo latino — com as devidas excepções na idade de ouro e
argêntea — é lacónico, lapidar. Ciclópico às vezes. Pelo menos na primeira fase da literatura, até Cícero. As juntas das pedras, duras, mas bem aparelhadas, p. ex. das sentenças catonianas, não eram preenchidas com argamassa.
Em geral só constam de palavras objectivas, lexicográficas : nomes e verbos. De mais a mais essas palavras objectivas (substantivos, adjectivos, advérbios e verbos)
são numerosas vêzes meros radicais, sem pre-
fixos niem sufixos. Faltam aos aforismos, tantas vêzes imperativos, as palavrinhas subjectivas, chamadas diminutivamente partículas, e com elas os clemen-
tos individuais que dão ao discurso ligeireza e graça, côr e perfume. ; Exemplos?
Éles são infinitos. Res, non verba —
Rem
tene, verba
H —
sequentur — Factum,
LATIM
non
FALADO
E LATIM
fabula — Summum
ESCRITO
ius,
w e &
PARTE
summa
iniuria—
Dura lex, sed lex — Àrs longa, vita brevis— Volenti non fit iníiuria. O vent vidi vici de Júlio César. O epitáfio de Cláudia. como típica mulher romana : Casta vixit, lanam fecit, domum servavit. O princípio da Encida — Arma virumque cano — que nos Lusíadas ficou sendo Às armas e os barões com acrescento dos dois artigos, indispensáveis em português, como em tôdas as línguas neo-latinas. Com um provérbio muito citado, Fortes fortuna adiuvat, abriu o Dr. Leite de Vasconcelos as suas Lições de Filologia Portuguesa, demonstrando muito hàábilmente, por meio dêle, o que é análise gramatical, semasiologia, aliteração, etc.
Só esqueceu dizer o que êsse provérbio é estêticamente : exemplo de breviloquência latina, da linguagem estilizada, escrita. *
Se essa concisão, por meio da qual Roma transubstanciou idéias e formas, recebidas de fora-parte, dando-lhes cunho nacional inconfundível, é flor e fruto de qualidades ingénitas da psique latino-romana ; se ela provinha realmente do carácter agrário da célula primitiva, geradora, de que saíu o idioma ainda hoje mundial, ; parece que deveria manifestar-se com mais fôrça ainda no sermo vulgaris? Nem tanto assim. À linguagem familiar, influída por Oscos, Umbros, Etruscos, etc., dulcificada pela vida urbana, não podia, pelos seus fins práticos e familiares, ser de modo algum tão breve e solene, tão re-
flectida e complicadamente concisa. Mais rápida, mais explícita, havia de empregar seguramente palavras
ora
leves,
ora
mais
intensas,
e, quanto
à sintaxe,
ora celipses, ora
perífrases. Havia de ter, numa palavra, forçosamente, aquelas facilidades usadas em conversas populares que, principiando com uns «bons dias, i como passou?» continuam em improvisados diálogos àcêrca de futilidades ou intimidades, sem pretensões a elegânceias ou monumentalidades, e sem grande respeito pelas regras gramaticais ou estilísticas. Não sei se aos senhores aconteceu o que me sucedeu a mim quando estudava latim, sem saber coisa alguma da história das línguas em geral, e em especial das línguas românicas, ignorando portanto a existência do sermo vulgaris, e o contraste que há entre língua eserita e lingua falada. Eu não era capaz de imaginar uma miãe que acariciasse um filho,
crianças a brincarem com as suas bonecas, garotos na rua entretidos com jogos dramáticos como o de Troia; amigos em convívio alegre, camponesas em
conversa
com
o amado,
na
linguagem
de
Vergilio,
Lucano,
p.
autor
Ilorácio, Tácito ou Tito Lívio (**). (*) O mesmo ocorreu a poetas Ahnirau, Franz Grillparzer. Vid. Skutsch,
germânicos p. 537.
ilustres:
ex.
nao
da
236
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Só depois de conhecer melhor a história da língua latina em tôdas as suas fases, assim como o mundo neo-latino, é que cheguei a perceber que atrás da rígida máscara teatral do sermo classicus, com o seu belo patos patriótico, se escondiam rostos e corações, movimentados por pai-
xões, afeições e aflições humanas. *
Agora a prática. Se o sermo vulgaris era linguagem só falada e não escrita, ;como é que a conhecemos? Além das alusões à sua existência — importantes mas naturalmente vagas, de que lhes comuniquei duas — há numerosas amostras de formações e pronúncias. Há vocábulos vulgares e locuções familiares que se podem respigar através da literatura. Há mesmo trechos relativamente extensos. E há obras inteiras que são minas de informação. Umas, do período arcaico, ante-clássico ; outras, mais numerosas, dos séculos de decadência e transição. Cronolôgicamente,
as primeiras e ao mesmo
tempo as mais abun-
dantes, são os Autos do Gil Vicente latino: de Tito Maceio Plauto (ou Marco Áccio Plauto). Nas vinte e tantas peças que subsistem dêsse hábi! comediógrafo latino, cujas figuras e intrigas ou entrechos foram imitados por poetas de fama como Machiavelli, Camões, Moliêre, Shakespeare, Lessing e Holberg (***), há diálogos inteiros de conversação familiar e vulgar — conquanto um pouco estilizada pelas exigências do metro — entre soldados,
burgueses,
lavradores, escravos,
de mais
a mais entre-
meados de cânticos. Mas um autor que poctava de 254 AÀ. C. a 184, falava ipso facto de modo um tanto arcaico. O seu sermo não é o que foi levado às províncias romanas por colonos, funcionários, merceadores, operários e engenheiros de pontes, estradas, aquedutos, e sobretudo por soldados. Plauto não teve sucessores. Mesmo em Terêncio não há cenas inteiras familiares. Só elementos dispersos. «Debaixo da camada de gêlo da literatura artística desaparece a torrente caudalosa do falar comum. Só de longe em longe se abre aqui e acolá um buraquinho nessa crusta, perto do qual ouvimos o marulhar
das águas vivas.» ()
Penso
na
Clizia,
de
Machiavelli,
que
é imitação
da
Casina,
de
Plauto;
nos Anftitriões, de Luís de Camões, que descendem do Amphitruo, do mesmo; no Avarento, de Moliêre, tirado da Aulularia; nos Menacehmes, que inspiraram a Comedy of Errors, de Shakespeare, cujo Falstaff também é sucessor de um tipo greco-latino, o Bramarbas, ou Miles Gloriosus . Penso também no Schatz (— Tesouro), de Lessing, derivado do Trinummus, e no Hausgespenst,
do dinamarquês
Holberg, o qual aproveitou o tema
da Mostellaria.
PARTE
11 — LATIM
FALADO
E LATIM
ESCRITO
237
Um dêles é o afamado Banquete de Trimálcio (Coena Trimalchionis ), êsse fragmento de novela satírica, de grande valor cultur-histórico, em que Petrónio, ÁArbiter Elegantiae ou Elegantiarum de Nero, brindou
a posteridade. Creio que já o citei, ao falar da porca de Tróia
(**).
A obra contém provincialismos do sul da Itália (Campânia) e do norte da África, mas também vulgarismos comuns a tôda a península (**). *
Pela acção democrática do Cristianismo a camada de gêlo começou a adelgaçar-se, derretendo pouco a pouco. Nas primitivas traduções latinas da Bíblia, sobretudo nos fragmentos a que é de uso dar o nome de Ítala (**) — mas também na Vulgata de S. Jerónimo (fal. em 420), há numerosíssimas formações novas, des-
conhecidas dos autores clássicos, ou por êles desprezadas. Umas são têrmos gregos, relativos à igreja, que râpidamente
se
haviam vulgarizado, como Christus, Evangelium, ecclesia, diabolus, pro-
pheta, psalmus, baptizare, elemosyna, pentecostes. Outras são traduções do grego, também eclesiásticas, ou gramaticais, bem formadas, como Salvator ( soter), ou mal formadas como testamento (por diatheke
— aliança) e acusativo (*)
O
Banquete
de Jlatim vulgar.
é um
Lle forma
(em dos
lugar de causativo textos
o vol. 2.º
mais
(1909)
lidos
nas
da coleeção
de aitiatikos) Universidades,
publicada
nos
(**). cursos
por Heraeus
e
Morf: Sammlung Yulgaârlateinischer Texte, Há, pelo menos, já duas dissertações modernas sôbre o assunto: ÀA. von Guericke: De Petronii Sermone Plebeio (Leipzig, 1870) e E. Ludwig, De Linguae vulgaris reliquis apud Petronium et in inseriptionibus parietariis Pompeitanis (Gumbinnen, 1875). (*) Os outros dois fnascículos até hoje publicados contêem-—1) Síilvao vel potius Aetheriae Peregrinatio ad Loca Santa (1908) c 3) Mulomedicina Chironis
(1910). () A denominação, muito discutida, talvez indíque a linguagem popular comum no sul da península apenínica (a verdadeira Itália) e à África. Ela provém das obras de Santo Agostinho. Vid. De Doctrina Christiana, II, cap. 16. Segundo éêle, n tradução velha, que em especial tinha o nome de TJtala, distingue-se pela propriedade dos têrmos: verborum tenacitate ct perspicuitate sententiae. Os posteriores Padres da Igreja chamam-na simplesmente vetus translatio. () Diatheke tinha três acepções em grego: a de ordem e qualidade; a de testamento;
e a de contrato:
pactum,
foedus
(focderis).
Só esta última
corresponde
ao sentido bíblico que deriva do capítulo do Génesis, em que se expõe o contrato novo feito pelo Criador com Noé, depois do Dilúvio (Gen., 9, 11, 12 e 17). Quanto veram muito,
ao acusativo, os Gregos que, se não criaram a Gramática, a desenvoldesignavam o caso correspondente com o nome aitiatikos, do subst.
aitia — Causa. Com isso querinm dizer que o quarto caso era o do que é causado, motivado, efectuado, produzido pelo sujeito: o verdadeiro caso complemento, Mas os Latino-romanos, levados pela sua paixião legislativa, deram-lhe a designação jurídica, disparatada
e feia, de acusativo, confundindo
processo, ou motivo de uma acusação jurídica.
causa,
no sentido de motivo,
com
causa,
238
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
AÀ maior parte consiste em derivados e compostos de elementos Jatinos precexistentes : provincialismos e vulgarismos (**). A Vox Dei era apregoada pela Vox populi. Cristãos leigos começcaram a pegar na pena, servindo-se do seu singelo falar quotidiano, em prosa ingénua. Ê O mais curioso dêsses textos vulgares é uma Peregrinação aos lugares santos, de certa Sílvia ou Aetheria
ou Eucheria,
talvez da Galiza,
do século IV ou do VI: ainda sc está a discutir a êsse respeito (*“*). Se
tivéssemos
de
estudar
textos
em
latim vulgar, seria êste que eu
escolheria. Na Patrologia — isto é, nas obras dos Patriarcas da Igreja, Santo Ambrósio, Lactâncio, Tertuliano, Agostinho, Jerónimo e Gregório — há
elementos de grande valor. *
Fontes
diversas,
mas
igualmente
importantes,
pois
ministram
noções a respeito de fenómenos gramaticais, fonéticos e sintácticos que eram considerados c condenados como viciosos (solecismos e barbarismos), são : 1.º) O Corpus Inscriptionum Latinarum ; 2.º ) Obras lingúiísticas como gramaticais e enciclopédias ; 3.º) Glossários do tempo da decadência e da Tdade-Média; 4.º) Diplomas e Chartas antigas, relativas
aos novos reinos fundados pelos Bárbaros (***). Digo «antigas», porque nas dos séculos IX a XIIT (isto é, dos tempos em que já se falava romanço e se eserevia em romanço) a linguagem é bárbara: linguagem de escrivães ignorantes que estropiavam o latim e o mesclavam de palavras e expressões neo-latinas. Essas já não ensinam nada a respeito do latim vulgar. º *
As inscrições epigráficas são, em geral, estilizadas. São até verdadeiros modelos da breviloquiência latina. Entre os muitos milhares, centenas de milhares, espalhados pelo orbe latino, que constituem o Corpus (dez volumes infólio) há todavia numerosas que foram redigidas e insculpidas em pedra e bronze, por pessoas sem preocupações literárias. Sobretudo nas da era cristãhá muitos vulgarismos. *
('º) A obra de Rônsch (Itala und Vulgata) conta 592 páginas. Os autores doe quo extraífu formas vulgares são cinqienta, a começar com Apuleio, Ammiano Marecelino, ctc. (º) AÀA melhor cedição é a que constitui o vol. 1 da Samminung Vulgárilateinischer Texte acima citada. V. Jahresbericht XI1LI, p. 63, ss. () Vid. M. Niedermann, Uber cinige Quellen unserer Kenntniss des spáteren Vulgáriateins, (Leipzig, 1912), e Alfons Hilka, Sammlung mittellateinischer
Texte
(Heidelberg, 1912), 2 vols. até amora.
PARTE
1l— LATIM
As da Península foram
FALADO
publicadas numa
239
ESCRITO
E LATIM
obra especial por Emi-
lio Hiibner (**) e estudadas filolôgicamente por L. Carnoy (*“*). conforme julgo haver explicado. No ano passado mencionei
uma, lusitana, do século VIT ou VIII,
em que se notam dois ou três fenómenos muito freqiientes em português. Todos no mesmo vocábulo: expectara, plural do neutro spectrum, no sentido de espectros. Temos nêle: x em lugar de s (ou x) impurum; a vogal átona a introduzida entre t e r (muta cum liquida ). O mesmo se dá, de um lado, nos vulgaríssimos escôparo, por escopro; câncaro por cancro, ete. (**), e, pelo outro lado, em formas como explendor por esplendor,
escritas
errôóneamente
com
x.
Outras espécies de inscrições mais familiares subsistem pintadas ou rabiscadas nas paredes : anúncios de coisas perdidas, reclamos, convocações para eleições de magistrados, ou avisos particulares de pessoa a pessoa, em parte idênticas às com que ainda hoje viajantes. ingénuos e alegres, ornamentam muros, vidraças, ete. (**).
Há muitos, curiosíssimos (dipinti e graffiti), em Pompeia, essa cidade que tão especiosamente enriqueceu o nosso saber arqueológico
(**) : enterrada por uma erupção do Vesúvio em 79 P. C. e desenterrada pouco a pouco, de 1748 em diante.
Ão
mesmo
género
pertencem
palavras
e fórmulas
inscritas em
bocados de chumbo, encontrados no subsolo de circos e hipódromos. Tais
chapinhas serviam para os espectadores de corridas de carros e cavalos riscarem nelas palavras de bênçião para os amigos concorrentes, ou de objurgação para os adversários. Verdadeiras pragas rogadas que, para serem eficazes, haviam de ser enterradas, não sci se com o caleanhar do pé esquerdo, ou quais outras cerimónias supersticiosas. Entre os autores de trabalhos gramaticais e estilísticos, que encer-
ram
muitíssimas observações úteis, cito apenas
() Inscriptiones Ilispaniae Christianae Christianarum Supplementum (Berl., 1900).
(*) ('º)
V. Le latin TEspagne daprês les Falci dos proparoxítonos em -aro
respceito dos púcaros de Portugal
(1871)
Aulo Gélio e aàas suas e
Inscriptionum
Fnscriptions, (Bruxelas, no opúsculo: Algumas
IHispaniae
1902-1903). palavras a
(Paris, 1905).
() No curso de alemão travámos outro dia conhecimento com inscrições gónero, cortadas à tesoura ou canivete, em relvados escandinavos perto de
dêsse Upsala, no norte de Estocolmo. (*) As inscrições de Pompeia e Herceulano estão no vol. IV do Corpus, Ed. Zangemeister (1871). Schuchardt dedicou-lhes um artigo interessante; vid. Romanisches und Keltisches, (Berl., 1886). No vol. IT da Sammlung, de Heraeus e Morf, há uma escolha criteriosa, — Vid. Ernst Diehl, Pompeianische Wandinschriften und Verwandteas (Bonn, 1910). Já citei mais acima uma obra de E. Ludwig. E para aquêles que se ocupam de arte e de arqueologia citarei ainda a obra ricamente ilustrada de Overboeck, Pompeji in seinen Gebáude Altertimern und Kunstwerken, fiir Kunst- und Alterstumsfreunde, (Leipzig, 2.º ed., 2 vols). Há nela um capítulo relativo às inscrições,
para o qual aproveitou
comunicações
de Zangemeister.
240
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Noites Áticas; e dos tardios a Santo Isidoro, bispo de Sevilha, com as
suas Etimologias (s. VT e VID) (”). Especializo os Glossários. Éles costumam indicar, em duas colunas correspondentes, à esquerda aquilo que se deve dizer e à direita o que se não deve dizer. Um, sobretudo, do século VI, conhecido como Appendixz Probi, é precioso, porque nos transmite nessa forma concisíssima, duzentos-e-
-vinte-e-sete vulgarismos (**). Nêle se 1lê, p. ex.: socrus nurus
non socra non nura
fax
non facla
auris catulus nobiscum vetulus
non non non non
oricla catellus noscum veclus
Assim aprendemos a conhecer as formas do sermo vulgaris de que sairam em português sogra e nora (esta com o por u, por influxo de sogra), facho, orelha, cadela, nosco e velho.
Tôdas elas exemplificam tendências do latim vulgar amplamente confirmadas pelas outras fontes de que falei e que, juntas, nos proporcionam um capital abundante de informações. *
Apesar disso, não possuímos, nem de longe, depoimentos c testemunhos a respeito de todos os vocábulos herdados do latim vulgar. Grande parte dos protótipos não-documentados podem ser reconstituídos todavia, e em geral já o foram, com inteira segurança, sôbre os moldes abstraídos dos exemplos históricos. É obvio, p. ex., que mesmo se a forma veclus por vetulus não fôsse comprovada, podíamos e devíamos deduzi-la das formas românicas correspondentes,
uma
vez que
há consenso
absoluto
entre
elas, isto é
entre o — italiano vecechio (e veglio); rumeno vechio; reto-românico vegl ; provençal vielh ; catalão velh ; francês vieil ; português velho ; castelhano viejo (que antigamente se pronunciava com j português, podendo rimar com vejo, Tejo), etc. () Vid. Leite, Lições, p. 128. Pidal, Manual, p. 6. Êsse Glossário foi comentado por K. Ullmann e W. Fôrster em Roma() nische Forschungen (1892)., Cfr. Loewe, Prodromus Corporis Glossariorum (1876). G. Gôtz, Corpus Glossariorum latinorum, (1888-1903). Dos glossários medievais que nos transmitem formas românicas, os mais valiosos são as chamadas Glosas de Cassel, e as de Reichenau, interpretadas, p. ex., por F. Diez.
PARTE
1 —
LATIM
FALADO
E LATIM
ESCRITO
241
É igualmente óbvio que o latim popular possuía o infiniítivo potere (tirado de potes, potest, potens, potuí, ete) visto que há : o espanhol, português, provençal — poder; o francês antigo podeir, transformado reto-românico
depois em pouvoir (através de poeir, pooir, ponoir); pudair ; italiano potere, rumeno putere e puteá.
Sc em lugar do clássico acuere encontramos em português aguçar, em castelhano aguzar, em prov. agusar, em francês atguiser, em italiano aguzzare, ete., é lógico coneluir que no latim falado em todos êsses países se dizia *acutiare (**) derivado de acutus, particípio passado de acuere. A respeito desta reconstituição sistemática (a que se costuma dar
o nome de paleontologia lingitística ) há trabalhos importantes (**). *
Coordenando e analisando os materiais colhidos pouco a pouco nas fontes indicadas (”*) é que se chegou a reconhecer que o sermo vulgaris do tempo de Plauto e dos séculos Post Christum (que são os que nos importam em particular, por serem os da latinização das províncias) têem no fundo as mesmas tendências. *
em
Recapitulemos rápidamente quais clas são. Só em tese, e sem tocar problemas cronológicos — êsses e outros pormenores ficam para
lições futuras. Para cvitar mal-entendidos é todavia preciso que eu acentue prêviamente dois pontos de que ainda não tratei. ()
Já
ficou
explicado
nas
nossas
Lições
Práticas
que
é
uso,
entre
os
romanistas, acompanhar as formas reconstruídas, hipotéticas, portanto, de asterisco (*). Quando se trata de formações derivadas, que são propriedade de uma s&ó língua (como p. ex. o português aconchêgo), as reconstruções, sempre possíveis, (ncsse caso ad eum plico), não têem utilidade, porque é certo que n formação é posterior aos tempos em que se falava latim em Portugal. «Dio Ansetzung latcinischer Formon fúir Bildungen dio sicher nicht mehr in lateinischer Lautform geprãyt wurden, solle vermiceden werdeno (Meyer- Libke).
(”) É fundamental o trobalho de G. Grocber, Vulgãriateinische Substrato romanischer Woôrter, publicado infelizmente só em fascículos sucessivos do Archiv fúr lateinischo Lexicographie (1884, vol. 1). Do mesmo autor há Sprachequellen und Wortquellen des lateinisehen Worterbuchs
(”)
Os materiais
vão
avultando
(ibl).
constantemente,
Quanto
melhor
se conheco
o sermo vulgaris, quanto mais se abandona o costume secular de emendar em autores clássicos todos os desvios da norma gramatical, tanto mais fácilmente e seguramente se descobrem têrmos rústicos e familiares em textos onde até há pouco ninguém os
suspeitava, P. ex. em Horácio, Nomeio êsso por ter na minha banca um opúsculo intitulado Archaismen und Vulgarismen des Iloraz. É de Fr. Rucksdeschel (Erlangen, 1910).
242
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Se é facto incontestável que as línguas neo-latinas são a fase moderna do latim, talqual êle cera falado no tempo do Império Romano — das gesprochene Latein der Kaiserzeit ; das Reichslatein — sobretudo nas províncias; se é facto igualmente incontestável que entre êsse latim pronunciado por Romanos, vindos de diversiíssimas regiões, e por estran-
jeiros, afastadíssimos da metrópole, e o clássico, escrito pela camada mais culta da nação, havia aquela funda fenda a que aludi — o tal abgrundtiefer Riss — não é menos verdade que o Cristianismo fôra lançando através dela numerosíssimos pontões. Nem é menos verdade que o JTatim literário era ensinado nas províncias em escolas práticas, do século É ao V. tão perfeitamente que a Hispânia, p. ex., deu
a Roma
autores como os Séncecas. Lucano,
Marcial, Quintiliano, Mela e Columela. E no tempo da decadência, um enciclopedista como Isidoro de Sevilha. para não mencionar senão os mais afamados. Verdade é também que se deve ter em conta que, mesmo como língua morta, o latim continuou a ser cultivado literáriamente e n servir
de instrumento internacional à Igreja, à ciência, à diplomacia, influindo sempre poderosamente na evolução das línguas românicas, sobretudo na era do Renascimento, enriquecendo-as e nobilitando-as (**). A segunda noção em que se deve insistir é que. admitindo a existência do tal «abismo» que separa o latim escrito do falado, não devemos exagerar-lhe a largura e a profundeza. Na essência, latim escrito e latim falado são iguais. P. ex., no sis-
tema das conjunções, que sofreu alterações numerosas. mas só superficiais. O mesmo vale do vocabulário. Muitíssimas palavras eram idênticas em ambos, e contimuam assim, alteradas embora quanto à fonética, nas línguas neo-latínas. Substantivos de primeira necessidade, como deus e homo;
pater e
mater ; filius e filia; terra e coelum ; aqua e panis; vita e mors; aurum e ferrum ; dies (ou dia) e nocte — eram comuns ao latim literário e ao latim vulgar, e são propriedade comum das línguas românicas. O mesmo vale de adjectivos como bonus e malus: calidus e frigidus ; novus e vetulos (veclus). E também de verbos como amare, facere, dicere, dormire, mori, videre, credere, bibere e currere.
vivere,
(*) Só nos Lusfadas há mais de um cento de têrmos poéticos, altissonantes, introduzidos de novo. À mesma palavra entrou, como sabem, freqilentes vêzes pri-
meiro pela bôca do vulgo, alterada depois a entrar de novo, inalterada, letrados Já temos falado de algumas, palavra e parabola; fala e fabula;
quanto à forma e quanto ao sentido; e tornou quanto ao sentido e à forma, pelo influxo dos assim desdobradas em duas (como feito e facto; pesar e pensar); ou em mais que duas, como
planus, que deu chão e plano, piano, lhano, pram
e porão.
LIÇÃO XI LATIM
VULGAR. — AS SUAS TENDÊNCIAS FONÉTICAS, MORFOLÓGICAS E SINTÁCTICAS
ENDÊNCIAS PRINCIPAIS do sermo vulgaris (do qual tratei na última prelecção), continuadas e sistematizadas nas línguas neo-latinas, são aquelas mesmas que já mencionei como características de tôdas as línguas faladas familiarmente: facilidade, comodidade e rapidez, de um lado, sobretudo quanto ao sistema fonético e à construção das orações; elareza e cfeitos de intensidade, pelo outro lado, quanto à expressão das idéias por vocábulos. Afim de ser claro, o sermo vulgaris expressava analiticamente e por perífrases o que o latim clássico exprimia por sínteses gramaticais, lacônicamente, consisamente.
Para
economizar
csforços,
unificar
pela
analogia
formas
que
tinham as mesmas funções, dentro do sistema das conjugações e declinações, na graduação e na formação de advérbios. Para ser expressivo, reforçava formalmente os vocábulos objectivos, lexicográficos, por meio de sufixos, prefixos e outros processos de conmposição, e servia-se para denominação de coisas, pessoas e actos, de figuras realísticas, bem encorpadas. Escolhendo entre vários sinónimos empregados pelos poctas, para se não repetirem, só um — o mais usual, às vêzes dois — o vulgo abandonava os têrmos mais nobres e poéticos. De tellus e terra, aequor e mare, sidus e stella, letum e mors, vulnus'e plaga, cruor e sanguis — de flere, lugere, lacrimare, plangere, plorare — de cernere, aspicere, intueri, videre, só emprega terra, mar,
estrêla, morte, chaga, sangue, ver, chorar (e em algumas partes changer, com chanto e pranto, formas galego-portuguesas, arcaicas). Já vimos (nas lições práticas) que nesta península prevaleceu formosus sôbre pulcher, mas que a-par déêle ficou ainda bellus — cuja
persistência () causou a perda do substantivo bellum, substituído pelo germânico guerra. Vimos que magnus foi substituído por grandis; domus por casa ( — cabana ) ; validus por forte; equus por caballus; os oris por bucca : rostrum por cara; gladium e ensis por spatha (em França há glaive « gladium ) ; saxus e lapis cederam o passo a petra (na Itália ficou sasso e seixo entre nós) ; funis foi substituído por chorda (os Italianos () Bellus até deu o derivado bellido, velido — particípio de um verbo hoje perdido Dbellire (francês embellir); em fr. deu também belette — doninha — e em tôdas as línguas um substantivo correspondente a bellitate (respectivamente beillitute).
244
'
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
têem fune, e nós fueiro por funarius) ; ictus por colaphus (golpe) que em França produziu a curiosa locução beaucoup por multum. Só na Sardenha, isolada como tenho explicado várias vezes, ficaram domus (domo ) e magnus (manno). Caballus designava origináriamente, na língua rústica, o sendeiro, em francês rosse (Klepper em alemão). Era têrmo baixo, depreciativo. Tais similes grotescos prevaleceram numerosas vêzes, sobretudo com respeito ao corpo humano e a funções humanas. Já mencionci festa em vez de caput, bucea, bochecha, em vez de Os, oris. Outro exemplo é manducare, que deu aos Italianos mangiare, aos
Franceses manger (donde veio o nosso manjar, na fórmula culinária manjar branco blanc-manger ). Manducare substituíu edere, comedere (embora êsse composto se conservasse na nossa península na forma redw-
zida comer) (*”). Manducare
—
derivado
de mando,
mandi,
mansum,
mandere
—
mastigar mexendo as mandibulas — era popular. Manducus até era o nome de uma personagem da comédia baixa, com máscara de bôca enorme, escanearada.
Os exemplos dados por Leite de Vasconcelos, na Lição sôbre Origem e Evolução da Língua Portuguesa (p. 12) são parca, minae, felis, da língua apurada, substituídos na bôca do vulgo por fata, pl. de fatum ; por minaciae (ameaças). e por cattus (gato), nome cujas origens são de resto desconhecidas, como as de rattus por mure- (rato), conquanto ambos estejam arreigados entre Romanos e Germanos. Tais reduções empobreciam a língua. Elas eram compensadas todavia pela introdução de neologismos, e também pela conservação de alguns arcaísmos tradicionais, banidos do vocabulário clássico. Os neologismos eram em grande parte estranjeirismos — célticos, ibéricos, púnicos, germânicos — mas sobretudo helénicos, e através do grego também hebraicos e egípeios. Mesmo entre os exemplos que acabo de citar, alguns são gregos (casa, spatha, petra, colaphus, chorda). Anteriormente aleguei já vários, eelesiásticos ou bíblicos (baptizare, ecelesia, ete.). Também não é novidade que já antes da invasão dos Bárbaros, os Germanos
tinham
estado
em
contacto
com
os Romanos
durante
dois
séculos, na Dácia e na Mésia, na Gália e na própria Itália, comunicando-Thes exactamente aquêles têrmos que são comuns a tôdas as línguas neo-latinas, o que prova que passaram pelo sermo vulgaris. Dêles c de todos os estranjeirismos tornarei a falar em breve nas Lições sôbre as Fontes do léxico português. () AÀ raiz cddesinência verbal -ere.
desapareceu.
Só
ficou
acompanhada
do
prefixo
cum-
e a
PARTE
11 — NEOLOGISMOS
DO LATIM
VULGAR
245
*
Em parte, em grandíssima parte, os neologismos populares são todavia formacões derivadas com auxílio de prefixos e sufixos nacionais e estranjeiros. Sobretudo gregos como -ia, -issa, -izare, de que já falei, mas posteriormente também germânicos como -iscus, -ardus, -engus, -lengus: e ibéricos (nesta península ) como -arrus, -errus, -orrus, -urrus.
Ésses elementos derivativos serviam também, na bôca do vulgo, para simplesmente reforçarem nomes eurtos, inexpressivos, sem lhes alterar o sentido, dando-lhes ao mesmo tempo maior sonoridade e aparência mais familiar. Isso vale sobretudo dos sufixos diminutivos. Íuris, ovis, apis, acus, genu, transformados em aurícula, ovicula, apicula, acucula, genuculum, ou em pronúncia menos euidada oricla, ovicla, apicla, acucla, genuclu, são, como sabem, os protótipos de ore-
lha, ovelha, abelha, agulha, joelho, outrora geolho. Outros exemplos, com reflexos entre nós, silo p. ex. o protótipo de manhã, amanhã mane, alargado por meio de -ana, e em outros países que não perdiam o -n intervocálico como o latim lusitânico, só pela preposiçião de (ital. dimani, domani, fr. demain ) ; sperantia em vez de spes; coracione em lugar de cor ou a par de cor; caleaneum ou calcaneare,
em
vez
de calx;
em
lugar
de
longanontripa
e chouriço
—
longanicia, que subsiste tuguês arcaico longainça fluxo de língua). À árvore ilex, ilice saíu o castelhano encina
(o azevinho de cá) chamavam-na ilicina, donde e o port. azinha, alargado posteriormente ainda
pelo
por
sufixo
-eira,
-eiro
no castelhano longaniza, cat. Ilonganissa, por(de que posteriormente saíu lingiiiça, por in-
analogia
com
oliveira,
pereira,
macieira,
vimieiro, vidoeiro, ete., até dar azinheira.
É sobretudo nos textos bíblicos, nas obras de exegese cristã e na Patrologia que o fenómeno de derivação é abundantissimamente documentado,
com sufixos como
-amentum
-amen, -monia, -«arium, -orium
-aculum, «-ura, -ella -«antia, -entia -itale -ado, -ido, cete. *
Com relação aos verhbos empregavam-se os mesmos processos. Há numerosas formações vulgares em que um prefixo precede, ou vários prefixos (muita vez inexpressivos) precedem o radical, soômente para lhe dar mais vulto e sonoridade. P. ex. in-com-mendare, ex-com-initiare ou in-com-initiare (encomendar, escomeçar, encomeçar).
Há outras, alargadas por meio dos sufixos -ulare, -icare, -itare, -escere. P. ex. misculare em vez de miscere (em por. are. mesclar, mescrar) : ambitare em lugar de ambire (por. andar) ; carricare. follicare,
246
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
patescere (por patire, em vez de pati) que nos deram carregar, folgar, padecer.
E há outros, reforçados de ambas as manciras, p. ex. de-ex-perg“-itare, despertar, em Ingar de expergere; im-pallid-escere, empaltidecer, como agradecer, anoitecer e muitos mais. Além
disso, houve derivação verbal por meio de í semi-consoante,
de adjectivos e particípios: P. ex. altiare, bassiare, acutiare. captiare alçar, baixar, aguçar, caçar. Há derivações do particípio presente, como crepantar, levantare ( quebrantar, levantar) ; ésses mesmos com prefixo, como ad-cresc-entare, ex-pav-entare (acrescentar, espantar). Outros infinitivos foram tirados dos particípios passados : Adjutare ( ajudar, francês aider) por adjuvare deriva do tema participal adjutum ; ausare (ousar, fr. oser) por audere veio de ausus; cantare, vem de can-
tus, particípio de canere; Os
infinitivos
bolvitare, de volvitus, part. de volvere, etc.
anormais
velle,
posse,
esse,
ferre,
com
subferre,
transformaram-se em volere, potere, essere, ferrere (ou ferrire) com subferrere ou subferrire (sofrer, fr. souffrir). E como as formas depoentes fôssem substituídas tôdas por formas activas, sequi,
pati, mori,
etce., passaram
a ser sequere,
patire,
morire
ou morere. Só após longas vacilações, e só em algumas partes da România as quatro conjugações regulares foram reduzidas a três: -ar, -er, -ir em Espanha e Portugal. À Ttália conserva infinitivos proparoxitónicos. mórdere, pérdere, a que em França e Proença correspondem mordre, perdre, e na Catalunha
mordrer, perdrer, do arcaico
mordre,
perdre.
O sermo vulgaris já tinha começado essa obra de nivelação, dizendo p. ex. sapére, cadére, capére, depois de a própria linguagem literária haver hesitado entre férvere, strídere e fervére, stridére, ete. Aos sufixos participais -atus, -itus, usados regularmente nos verbos
em -are -re juntara o povo -ulus ( para os verbos em -ere) abstraído, por analogia, do tipo tributus, consutus, minutus, acutus, onde o u pertencia ao radical tribuere, consuere, minuere, acuere. Junto a êsses ficou vivo
em Portugal até ao século XV, como já viram nos textos que lemos (sabudo, movudo, teúdo, etc.), desaparecendo então, ou antes passando
a exercer a função que tivera em nasutus, cornutus. Ainda há muitas outras alterações no sistema das conjugações, que são resultantes da tendência de simplificar e unificar. Vê-las-emos ao tratar da morfologia portuguesa. Aqui só direi das principais formas perifrásticas de que o vulgo se servia conversando. Em
lugar do
amabantur,
passivo
enmpregava
sintético
erant
amati.,
amatur, Em
vez
usava de
de amatus
camabo,
dizia
est;
por
cantare
habeo (ou abreviadamente cantar aio. de que saín o nosso cantarei ) : e
PARTE
11l — ALTERAÇÕES
MORFOLÓGICAS
E SINTÁCTICAS
247
respectivamente cantare, habebam, com funções que se aproximam do condicional neo-latino. Em vez do pretérito simples scripsit encontra-se habet scriptum;
isto é. o composto há escrito, il a écrit.
Em Ingar do comparativo sintético longiores, o vulgo empregava o perifrástico magis longos ou plus longos. Os advérbios sintéticos eram substituídos por adjectivos seguidos do substantivo mente, na acepção de modo. Mesmo autores como Quintiliano. não desprezavam, com relação ao espírito, bona mente factum. As declinações eram também simplificadas na bôca do vulgo. À quarta e a quinta. numêricamente fracas, fundiram-se com a segunda e a primeira. À terminação -ies passou a ser -«ia, p. ex. em dia por dies,
rabia por rabies. Fructus era equiparado a lupus. Quanto aos géneros. o neutro foi abandonado pouco a pouco. O singular em «-um foi substituído pelo masculino em -us: monumentus por monumentuin,.
O plural em -a foi considerado como feminino do singular. De fata, pl. de fatum, fêz-se o singular feminino fata, com o pl. fatae, fatas (em português fada, fadas). i Dos casos da declinação clássica só subsistiram duas formas, um recto (nominativo) outro oblíquo (em geral acusativo). Mas nem em tôdas as regiões nem para tôdas as palavras. Nos plurais hispânicos era p. ex. o acusativo que fazia as vêzes do nominativo (rosas, mesas : lôbos de lupos, ete.) : factos que precisam de explicações ulteriores. Desaparecendo
os casos, eram substituídos por preposições e arti-
gos. Em vcz do genitivo plural sintético mrensarum, a língua falada familiarmente empregava de illas mensas (on mesas). Em vez de Petri liber encontra-se liber Petri (na Vulgata) e depois liber de Petro ou mesmo ille liber de Petro. Em vez de Petri domus, illa casa de Petro. Nas comédias de Plauto — duzentos anos A. C. — já há não a substituíção. mas pelo menos o refôrço dos casos clássicos pelas preposições de e ad:
ad matrem,
em lugar do dativo
matri;
e de matre em
vez do genitivo matris. Quanto no .artigo, a língua literária desprezava-o, embora o conhecesse do grego. Noster sermo artículos non desiderat (*). O sermo vulgaris também já o utilizava no tempo de Plauto. Empregava tanto o nmumeral unus, como os demonstrativos iste, ipse e sobretudo ille (illa,
illud)). Isto é. os protótipos das formas românicas em português arcaico : um, uma, e ele, ela, elo, reduzidos depois a la, lo, donde saíram a o. Em
regra proclíticos, mas às vêzes enclíticos; e com tendências oxitónicas. No Amplhutruo do comediógrafo, há no verso 441 a acentuação illum, em outra parte in fundo sto, com afércse da inicial. No século III
um gramático reprova como bárbara essa acentuação, da qual devem ter ()
Quintiliano, Inst. Orat. 1, 4, 19.
248
LIÇÕES DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
saído as formas le, la, lo (artigo e pronome), com perda da primeira sílaba. Nuima palavra, e para repetir o ponto essencial: O sermo vulgaris já se servia dos meamos processos analíticos e das mesmas perifrases, que diferençam as línguas românicas do latim clássico, que gostava de expressar as idéias sintêtieamente por meio de uma única palavra. Isoladamente, bem se vê. À generalização veio mais tarde. na época de transição. Isto é : nos séculos V a IX. Como dêsses haja infelizmente escassa documentação, faltam-nos em regra, como já expliquei. provas elucidativas das diferenciações regionais, das particularidades idiomáticas que caracterizam cada uma das línguas neo-latinas. *
Do Jlatim lusitânico sabemos pouquíssimo. Para êste e o hispânico em geral, a verdadeira fonte de informação é o confrouto das formas mais antigas com o latim clássico e com o romanço dos outros países. O pouco que se pode apurar das Etimologias de Santo Isidoro de Sevilha, e das inscrições peninsulares está no livro já citado de L. Carnoy e em algumas Lições de Leite de Vasconcelos (pág. 117 e 123) (*). No breve elenco que dei de alguns dos fenómenos que distinguem o Sermo Vulgaris, no tempo do Império e anteriormente, deixei de falar da sintaxe, e da colocação das partes do discurso. por êles não serem (**)
Novamente
devo
único até hoje em Portugal
recomendar
agora
a
aquisição
e
o
estudo
em que se trata dos tópicos expostos até aqui,
désse
livro,
e dos me-
ramente portugueses que nos hão-de ocupar daqui em diante, embora cdle não seja um corpo completo de doutrina, apresentando-a, pelo contrário, de modo assaz dis-
perso e às vêzes só de relance. Para o português antigo são obras indispensáveis de consulta também os Textos Arcaicos o a Dialectologia, do mesmo, assim como a Introdução à Crestomatia Areaica, de J. J. Nunes. Êste autor consciencioso já publicara em 1895, na Re. vista Lusitana, um bom exposé da Fonética histórica portuguesa (vol. ITI), em que se cingiu 2 um oxcelento livrinho francês (Bourciez, Précis de Phonétique Françatse, 16894). Ainda vale a pena recorrer a éle. E se os senhores quisessem estudar aí a matéria, expondo-n depois, sôzinhos, num breve exercício escrito, creio que aproveitariam bastante. Claro que eu emendaria onde errassem, completando-o onde fôsse deficiente. Quanto à ortografia e ortoepia, e também com relação a muitos problemas da
fonologia
do
português,
como
mais
delicado
o diferenciado
dos
romanços,
p. ex.,
quanto à metafonta morfológica, (dvo, óvos — cômo, cómes — formôso, formósa), as obras de À. dos Reis Gonçalves Viana são fontes abundantes (sobretudo a Erxposição da Pronúncia Normal Portuguesa, Lisboa, 1892). Dos trabalhos fundamentais de F. A. Coclho, escuso de falar novamente. Em ocasião oportuna terei do citar alguns opúsculos modernos dêle. O mais pormenorizado estudo, completo quanto à fonética e morfologia, embora muito condensado, é a gramática com que. Jules Cornu contribuíu para o Grun-
PARTE
11 — NOÇÕES
249
DE FONOLOGIA
susceptíveis de recapitulação sucinta. Ficam para a ocasião em que nos ocuparinos dêsses assuntos. Para amostra prévia notem apenas que mesino frases pequenas, construídas inteiramente à maneira popular como suus caballus est bellus divergem da mancira clássica que nesse caso seria : equus eius pulcher est. Deixei também de falar da evolução dos sons e da acentuação das palavras: pelo mesmo motivo. O acento, como alma da palavra, e os sons, como elementos materiais, primários e irredutíveis, exigem algum desenvolvimento. Com êles começarei a exposição dos modos como dentro do latim lusitânico ou latim-português actuaram as tendências do sermo vulgaris. *
A fonologia ou fisiologia dos sons é uma ciência moderna, cultivada com grande esmêro, sobretudo por investigndores alemães. inglêses,
suecos e franceses. Em Portugal tem um representante, cujo nome ainda agora citei. Construíram-se aparelhos finíssimos para experiências, que
prestam excelentes servicos tanto de análise como de reprodução (**). Entrar em pormenores, nem quero nem posso. Mesmo descrições da construção anatómica do aparelho fonador, e das diversas articulações não teriam valor sem demonstração em corpos plásticos, ou pelo menos em bons desenhos. driss de Groeber, gunda. Apesar de
já muito bom na primeira edição, mas muito melhorado na seestar escrito em alemão, pode servir, mesmo aos que infelizmente
não sabem essa língua, pelas listas de exemplos que ilustram os teoremas. Quanto aão Sermo Vulgaris, como fase primeira de todos os idiomas neo-latinos, devo chamar a sua atenção ainda para algumas obras estranjeiras, dedicadas especialmente no assunto. À mais notável é 2 que Meyer-Liúiibke elaborou para o Grundriss: História do Sermo Vulgaris ou ÀA língua latina nos países românicoas. Mas como ainda não fôsse traduzida c essa leitura pressuponha assaz vastos conhecimentos, torno a remeter os meus ouvintes ão resumo de Bourciez, Eléments de Linguistique Romane (1910) com capítulos sôbre As Condições Históricas; Os Sons do
Latim;
O
Vocabulário;
As
Formas
e A Sintaxe
do latim
falado
—
que
se distin-
guem por aquela clareza de exposição que parece ser apanágio dos Franceses. O outro, intitulado Introduction à la Chronologie du Latin Vulgaire, de F. Mohl (Paris, 1899) é igualmente digno de nota, conquanto não lograsse louvores incondicionais da parte dos corifeus alemães. () Livros fundamentais são: —E. Briecke, Grundzsiige der Physiologie und Systematilk: der Sprachlante (1876). — E, Sievers, Grundziige der Lautphysiologie (1876). — H. Sweet, Ilandbook of Phonectics (1877). — Rousselot, Principes de Phonétique Expérimentale, 2 vol., Paris, 1897. — P. Passy, Étude aur les ehangements phonétiques et leurs caractéres géneraux, (Paris., 1891)..
250
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Todos sabem que o órgão principal da formação é a laringe (der Kehlkopf ), como continuação da traqueia, que, por seu turno, comunica eom os pulmões, e também que a corrente de ar expirado passa pelo orifício da glote (Stimmritze ) fazendo vibrar as cordas vocais (Stimmbánder ), produzindo os sons diferenciados da fola humana dentro do tubo bucal e em parte também das fossas nasais, pela actividade da língua, que manobra contra o palato, os dentes, e pela acção dos lábios. Sabem
igualmente
que
sons assim
produzidos
por expiração
são
fonemas quando proferidos, e letras quando representados para a vista, pela escrita. Sabem que os fonemas se dividem em vogais e em consoantes ; e que há dois (1, u) que participam da natureza de ambos, chamando-se por isso semi-vogais ou semt-consoantes.
Sabem que as vogais são produzidas por expiração, sem contacto nem fricção com os outros órgãos activos da fala ; isto-é, sem encontrar
obstáculo algum. Verdadeiros sons musicais, de acuídade e gravidade muito diversa. Consoantes,
pelo
contrário, são ruídos, acompanhados
ou não
de
vibrações das cordas vocais. Delas e da sua classificação não posso falar hoje Nem sei se o tempo chegará para dizer o indispensável a respeito das vogais. As vogais do alfabeto são cinco:
a, e, 1, o,
u —
seis, se fizermos
entrar em conta o y grego, equivalente do i francês e alemão. Podem ser acompanhadas de ressonância nasal. Duas vogais juxtapostas, pronunciadas com wuma só emissão de voz, chlamam-se ditongos. Numerosos em teoria, crescentes ou decrescentes,
segundo o lugar que nêles ocupam as semi-vogais, quer [, quer u, como subjuntiva ou prepositiva indispensável, menos, nos diversos idiomas.
êles são na
Das cinco vogais, três são primárias — dárias — e, o, t.
À é a vogal fundamental —
prática
mais-ou
a, (, u; as outras três secun-
a mais freqiiente nos idiomas indo-
«germânicos primitivos, como podem memorar nos vocábulos do sânscrito
Mahabarata e Ramayana, que conhecem. É produzida com a bôca bem aberta, tendo o ponto de articulação tão distanciado quanto possível dos lábios, estando êstes e n língua em perfeito repouso. 1,
e o secundário
e, são pronunciados
com
a metade
anterior da
língua levantada contra o palato (efeito para o qual é indispensável abaixar a metade posterior). São mais agudas que a. E pelo motivo indi-
cado são chamadas anteriores ou palatais. U e o secundário o, são pronunciados com a metade posterior da língua levantada (cfeito para o qual é indispensável abaixar a metade anterior, e ajudar com os lábios que se aproximam, mas se não cerram). Elas são graves e chamam-se posteriores, ou guturais; ou velares (de velum
vela, nome do palato mole).
DE FONOLOGIA
e n
1 — NOÇÕES
[)
PARTE
Podemos representar a escala das vogais por um triâneulo, em eujo vértice fique a, sendo a base formada por 6, u; isto é, pelas duas mais distintas entre si e mais afastadas do «. O efeito acústico de i é agudo (discante), como já disse, o de u grave (baixo) — o de a neuntro (barítono). Entre a e i fica e, que realmente é fusão de a [ (e nascee. na evolução das línguas, inúmeras vêzes do contacto delas). Entre a e u fica ô, que está nas mesmas condições. Da fusão das duas resulta, efectivamente, na evolução das línguas, ó simples, ou o di-
tongo ou (no nosso português). Entre à e u fica y grego ou ii francês, Os timbres diversos de e o ii, que é costume ehamar abertos ou fechados (da posição que a bôca tem quando pronuncia), são resultantes da maior ou menor preponderância que nêles tem o a (e quanto ao ú o
i ). Fóme, p. ex., com o aberto. vem de fame, sendo influído de mais a mais pelas dnas labiais que cireundam a, e indirectamente, espiritualmente, pela palavra come, com que forma rima, e quando ao sentido se lhe une naturalmente. Come quem tem fome. a
a
-.
u
ê
Õ u
uú
u
Se atendermios a todas as cambiantes diversas que as vogais primárias téêem nos diversos idiomas, a pirâmide das vogais complica-se muito. À construída por Gonçalves Viana eompõe-se de quarenta parcelas! Notem ainda que o triângulo das vogais admite comparação com o das côres.
As
primárias
também
são
três.
Vermelho
fica no
vértice;
amarelo e azul ficam na base. Da fusão de vermelho e amarelo nasce a cor de laranja: da de vermelho e azul a côr de violeta (roxo); a verde nasce da de amarelo e azul. Além das três secundárias (nas sete do arco-íris ou no spectrum faz-se distinção entre azul-claro e azul-escuro ) há côres terciárias — castanho (que resulta de cinco partes de vermelho e oito de verde); cinzento ( que resulta de três partes de amarelo e cinco de violeta) : côr
de azeitona. que resulta de cinco de laranja e oito de azul. E além dessas côres, infinitas nuances.
Quem gostar de conhecer os elementos da Cromatologia e Cromatografia (Farbenlehre) pode recorrer a dois livrinhos de que costumo
servir-me:
Redgrave. Manual of Colours,
Farbenlehre (1882). Mas deixemos isso.
e J. Haúiselmann, Populãre
LIÇÃO XII LATIM
VULGAR.
O
ALMA
ACENTO.
DA
PALAVRA
IVE DE PARAR, na última prelecção, quando começava a dar-lhe algumas noções gerais sôbre a acentuação latina — tanto clássica como do sermo vulgaris — e como elas prendam com o que na lição prática terei de dizer da versificação dos trovadores galego-portugueses, vou continuar e terminar hoje com êsse tema e passar logo depois a ultimar
as explicações relativas ao fac-simile do Cancioneiro da Ajuda. As noções que darei da acentuação são gerais. Aplicá-las-ci todavia principalmente ao português e. onde fôr preciso. ao latim vulgar. *
No conjunto de diversos vocábulos, unidos numa proposição, a voz humana dá realce de som àquêle ou àquêles que têeêm maior importância de sentido, na economia acento frásico.
comum
da língua, e no caso particular. É o
Sendo curta a frase, basta um só acento. P. ex. em : diz-me se vens!
é a última palavra, vens, que é pronunciada com intensidade. Em proposições mais extensas há vários acentos. dois, três, quatro ou cinco ; p. ex.
em: Bem queria saber quando é que tu me acabarás com essa tarefa, tão pouco árdua. No conjunto das sílabas que constituem palavras lexicográficas, objectivas, há também sempre uma que se faz ouvir mais forte e distin-
tamente. É o acento vocabular. A sílaba destacada
por intensidade
é a sílaba tónica, em relação
com a qual tôdas as mais se chamam átortas. É o acento tónico que dá à palavra a sua unidade, sendo como que a sua alma. Mas também aqui é preciso distinguir. Há cambiantes: além dos acentos primários, há acentos secundários. E há vocábulos sem acento próprio.
Não pode haver senão um acento quando o vocábulo é monossilábico e, quanto ao seu conteúdo, palavra objectiva, lexicográfica : substantivo, adjectivo, advérbio, pronome pessoal absoluto, demonstrativo ou possessivo, ou então forma verbal : vens, bem, diz, é (nos dois exemplos que dei) ; vi, só, pé, ir, mar, sol. Em
latim, vocábulos como res, pes,
sal, sol. Não há acento quando as palavras são subjectivas, gramaticais, meras partículas: preposições, conjunções ou pronomes conjuntos, palavras que, pela sua pouca importância, são em regra também
material-
PARTE
2583
1l — ACENTUAÇÃO
mente curtas, e téêem vogal surda (u ou e). Por ambos os motivos elas se agregam e encostam a outra principal. com a qual formam grupo, precedendo-as — (estando em próclise, sendo proclíticas) como me, em me-acabarás ; ou seguindo-a
(estando em ênclise, enclíticas), como
me
em dizer-me ; que em que ter ; com em com essa tarefa ; tão em tão árdua. Há um só acento, também, quando as respectivas palavras, lexicográficas ou gramaticais, constam de duas silabas (como quando, saber, pouco), ou de três (como tarefa, árdua ) ou mesmo quatro (como acabarás ). Isto é: quando elas são polissilábicas — de muitas silabas — ou polissílabos. O acento pode incidir, neste caso, na última, (como em sa-
ber, acabarás ) ; ou na penúltima (como em pouco, tarefa) ; ou na antepenúltima (como em aárdua). Acabarás,
saber,
são,
como
todos
sabemos,
palavras
oxitónicas
(oxítonos ), de acentuação aguda e ritmo ascendente. Pouco, tarefa, são paroxitónicos ( paroxítonos ) de acentuação grave e ritmo descendente. Árdua é pro-paroxitónica, de acentuação circumílexa, quebrada ; de ritmo lábil, escorregadio ou esdrúxulo — palavra esta que veio da Ttália quando Sá de Miranda introduziu a arte nova em Portugal: o Soneto, o Terceto,
a Oitava— e o verso de onze sílabas. o hendecassiílabo.
É raro que o acento caia em sílaba anterior à antepenúltima. Em português jsso acontece somente quando a uma forma verbal, esdrúxula
em si (e essas são pouquíssimas ) se ligam átonas enclíticas: p. ex. dávamos-lhe, louvávamo-la. Em geral evitam-se tais acumulações, que são avessas ao ritmo natural da língua. Quanto a acentos secundários, há-os em palavras graves, de mais de
três ou
quatro
sílabas.
Nesse
caso
é eostume
destacar
a primeira,
p. ex. em advérbios como râpidamente, lindamente ; em compostos como porta-machado, mas também em vocábulos não-compostos como Guimarães, constitucional.
Um acento tónico não subordina portanto, em regra, senão de três a quatro síilabas. Os compassos da música lingitística são curtos, de pouca duração (e de duração média iígual ) muito embora na língua falada, sem síilabas contadas e medidas. se possam acumular às vezes sílabas átonas, precipitando o tempo (ex. que tu me acabarás). Os pés prosádicos da versifieação não só das línguas que musicalmente medem vogais ou síilabas — por quantidade — como a latina, a grega, a alemã, mas também das que não sabem senão de sílabas contadas, como as neo-latinas —
os pés constam sempre de duas, três, ma-
xime de quatro silabas. AÀs acentuadas chamam-se longas. São arses entre os Gregos e Latinos ; Hebungen na Alemanha. As átonas são breves; bráquias. Teses, moras, ou Senkungen. À tese dura metade do tempo da arse. Ou por outra: a emissão de uma longa leva o dôbro do tempo gnsto na breve.
254
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Um compasso composto de longa e breve como amo (—- u) é um troqueu (Trochãus ). O significado da palavra é Láufer, Tânzer — andarilho, corredor : tempo de marcha ou dança.
Um compasso composto de breve e longa (u — ), como amor é um iambo ( Schleuderer, arremessador). Ambos podem, de longe em longe, ser substituídas por duas longas (-—— — ) um espondeu — para interrom-
per a monotonia das cadências, e o mesmo espondeu pode também substituir os pés trissilábicos. Éstes são: o dáctilo (dedo ou dígito) e o anapesto (dedo virado). O dáctilo consta, como o próprio vocábulo, de uma longa e duas breves (— uu) e perfaz, seis vêzes repetido, o verso dos poetas épicos — Homero, Vergílio, Lucano, Ovídio e Goethe. Conhecem seguramente o hexâmetro inicial da Odisseia, da Híada, da Eneida, da Farsália de Lucano, do Epos filosófico de Lucrécio — De Rerum Natura, das Meta-
morfoses, de Ilermann e Dorotea. O anapesto consta de duas breves e uma longa (u
u —).
Sendo de quatro síilabas, como o coriambo, o pé tem infalivelmente
duas arses (— u u — ), maáravedí. Verbos compostos de íambos e anapestos têem ritmo ascendente. Versos compostos de iambos e anapestos téem ritmo descendente. Como se podem meter espondeus no meio de todos êles, assim também pode haver inversão parcial do ritmo em sítios certos do verso. Tudo isso haveremos de repetir quando chegarmos a ler versos arcaicos. nas Lições Práticas. *
Desde já seja dito que o português é língua essencialmente trocaica, ou grave — de ritmo descendente. Isso, apesar de êle possuir numerosos proparoxítonos — e mais oxítonos ainda. Oxítonos, agudos, são quási todos os vocábulos terminados em consoante ([, r, m, s, z, x) inclusive todos os infinitivos: per-
tencentes, ou não, ao núcleo capital das palavras populares, herdadas do latim vulgar. Os proparoxítonos êsses sãto, na sua maior parte. vocábulos cultos, eruditos. Quando são populares, realmente usados pelo vulgo, costumam ter
a como
vogal postónica, isto é, a vogal mais persistente, menos-ex-
posta a alterações, conforme já se disse. Seguem o tipo de púcaro, sábado, relâmpago. — — Outros, e mesmo alguns dêsse tipo. o povo transforma-os em graves, dizendo p. ex., arve, arvre, em vez de árvore; cambra, em lugar de cômoro, número, câmara.
e combro, numbro,
A distância entre tónicas e átonas. isto é, a diferença de intensidade
entre umas
e outras, é relativamente
grande
em
português.
Não
tamanha como em alemiio, onde
é máxima
e
LATINA
&
II — ACENTUAÇÃO
te
PARTE
(como sempre de novo mostro
práticamente aos meus ouvintes do curso de alemão, ) ; mas maior do que em Espanha, onde tôdas as vogais são emitidas com grande energia, de sorte que para os ouvidos novatos de estranjeiros não há senão cinco vogais sempre fortemente ressonantes : d, é, í, ó, ú.
Quanto à duração (a absoluta é naturalmente relativa), ela depende da ênfase momentânea dos indivíduos que falam. Quanto à proporcional, Gonçalves Viana estabeleceu para o português um esquema que me parece racional. Dividindo o tempo por unidades, êle admite sílabas brevíssimas breves
de de
1 2
só unidade (tão,tal)
ambíguas longas prolatas
de de de
3 4 5
(ser, ver) (chegar, chegou, citel, curs-o, cont-o)
TInfelizmente não exemplifica.
(me, te, se)
(Os exemplos que citei são da minha
responsabilidade). Ninguném em Portugal se serviu até hoje do aparelho enregistreur de Rousselot, para chegar a resultados seguros. Para dar idéia dessas prolatas, e. por meio delas, de tõdas as restantes, pode seguir o conto popular da Lebre adormecida que já contei outro dia (creio que no curso de alemão), ao falar das origens orientais de Contos e Fábulas. Temos nêle o nome de Diogo tão prolongado — que seria preciso aaa
escrevê-lo com, pelo menos, sete 666s. *
O latim, tanto o clássico como o vulgar, dispunha, como o português, o espanhol e o italiano (os idiomas meridionais, seus filhos mais fiéis) de vocábulos oxítonos, paroxítonos e proparoxítonos. E êstes últimos não eram apenas de origem grega : A-par de res, spes, pax, cor, dic, sol, sal, havia mensa, rosa, pulcher, magnus, ; macula, pallidus, dominica.
Mas com a noção fundamental até aqui expendida de que o acento tecala: sempre na antepenúltima, na penúltima ou na última (somente nos monossílabos) — o capítulo da quantidade prosódica e da acentuação latina não está de modo algum esgotado. É mesmo um dos mais complicados da língua latina. pelo motivo de serem essencialmente conjeceturais e teóricas ns nossas idéias a êsse respeito: visto que ninguém pode ouvir a viva voz de Cícero e Vergílio. Os problemas que lhe são inerentes ocuparam muitos gramáticos antigos e continuam a ocupar latinistas e romanistas modernos. Além de um livro inteiro, dedicado à pronúncia do latim, Die Aussprache des
256
LIÇÕES
Latein, de E. Scelmann
DE FILOLOGIA
(Heilbronn,
PORTUGUESA
1885)
há numerosos estudos espe-
ciais (dos quais já citei um dos mais modernos, de Elise Richter). Entre as observações dos gramáticos antigos a respeito da significação de acentus merece atenção especial a muito repetida de Diomedes, que o chamou alma da palavra — «est accentus velut anima vocis» (*) ; a de Varro que distingue entre três dimensões diversas das vogais : longitude, altitude e crassitude ; e as notas de Marciano Capella, que compara o acento com um seminário musical e define o vocábulo, com etimologia rigorosamente exacta, como ad-cantus : modulação melódica. Dessas e de outras considerações concluíram os investigadores modernos
que o latim tinha utilizado, na sua fase arcaica pelo menos,
todos os três modos de dissimilação sónica de que dispõe a voz humana:: acuídade ou Tonhõhe (altura do som), intensidade ou Tonstárk (energia do som), duração ou Tondauer (prolongamento do som). Todos os três variam. São individuais. A
acuídade,
a
respectiva
qualidade
de
alteza
e
baixeza,
varia
segundo a idade e o sexo dos que cantain e falam, produzindo sons de baixo, ou de tenor, ou os intermédios de barítono por um lado, e pelo outro sons de alto e de soprano, conforme o diapasão, a escala natural ou artisticamente adquirida por cada um. Intensidade, como produto da força muscular empregada na expressão da coluna de ar que faz vibrar as cordas vocais, varia segundo o afecto das pessoas. O elevarmos ou abaixarmos a voz, o falarmos alto ou baixo, com violência ou suavemente, depende do nosso arbítrio (o português carece de designação clara para laut e leise). Duração ou quantidade é a maior ou menor prolongação temporal do som, o tempo durante o qual os órgãos produtores permanecem imó-
veis na emissão de um mesmo som: a pareela de tempo que cantores, retores ou meros falantes querem gastar na emissão das vozes. Pelos seus estudos de latim os senhores sabem que a quantidade era outra coisa do que o acento de intensidade, embora êste dependesse
daquela e muita vez coincidisse com ela. E sabem também que na prosódia clássica se distinguiam sílabas longas por natureza e longas por posição. Se a penúltima era longa, como em avena, maritum amatum, guber-
nare, era ela que tinha o acento de acuídade. Se a penúltima era breve, não podia ter acento de acuiídade e era eutão a antepenúltima que a recebia:
rápidu mácula, tábula, aurícula. Nessas condições o acento recaía
mesmo
em prefixos, em formas verbais como
rénegat, récipit, implicat,
cóllocat, séparat. Se todavia a vogal da penúltima,
breve por nntureza, cra seguida
de duas consoantes, como em arista, sagitta, a silaba tornava-se longa por posição. Sômente no caso de consoantes oclusivas agrupadas com a ()
V. Keil, Granmmatici
Latini,
1, 438.
257
PARTE 11l — O ACENTO NO LATIM VULGAR
líquida r (muta cum liquida — menos consoante que as oclusivas) a sílaba continuava a ser curta : p. ex. em tenebrae, cathedra, integru, tonitru, colubra.
Sabendo tudo isso, talvez não tenham presente que no latim arcaico havia o costume de dar às palavras polissilábicas, além do acento de acuidade, outro de intensidade na sílaba inicial, acento correspondente àquele que ehamei secundário, ao falar da acentuação portuguesa (*). Em avena o acento secundário (de intensidade ) incidia no a breve do princípio, mas o principal ou primário (de acuidade) recaía no e quantitativamente longo de ve (àvêna ). O mesmo sucedia com máritum, gibernaculum. Em palavras dissilábicas como tela, todos os três acentos incidiam na mesma sílaba. Pouco a pouco éêsse acento de intensidade inicial se foi perdendo. Fundiu-se com o de acuidade quantitativa num só acento melódico que, já está dito, recaía na penúltima (longa) ou na antepenúltima (se a penúltima era breve) das palavras polissilábicas. Ésse acento de intensidade era tão forte que causava redução natural das silabas átonas e, em certas condições, supressão completa. Da
tante:
antiga
É o som
distinção
ou timbre
quantitativa
diverso que
ficou
todavia
um
resto
as vogais, sobretudo
impor-
e, o, mas
também a, têem no português (e igualmente no castelhano, italiano, etc.), conforme haviam sido longas ou breves na língua mãe. É quási certo que êsse som diversamente timbrado já cxistia no sermo vulgaris. São desconhecidas as fases da evolução, mas no séc. IV, p. ex.,
o novo
estado já vigorava. Às vogais longas acentuadas estavam transformadas em fechadas, com som agudo; das breves acentuadas tinham resultado abertas, com som grave. Ésse capítulo é o primeiro da Fonologia portuguesa, que nos há-de ocupar'oportunamente.
*
É sobretudo no sermo vulgaris
e nas suas continuações neo-latinas
que se nota a tendência de transformar os esdrúxulos em graves, de unificar e simplificar a língua também prosodicamente. AÀ síncope freqiientíssima de vogais breves, átonas, postónicas, (comao em oric'la, apic'la, vír'de, cal'du, col'pus); a jotização de i, e breve em hiato, de sorte que fakto, vinea (de três sil.) saíssem fakyo, vinya (de duas: faço, vinha ); a mutação de u vogal em consoante, da
qual resultou quando, qual, quam
(pronunciados com v), em lugar de
qu-ando, qu-al, qu-am ; a queda total dêsse u em hiato, como em morto, (*) [A teoria do acento de intensidado inícial, que aceitação, está hoje posta de lado. Proposta por L. Havet, por Vendryês, foi discutida por ÀA. C. Juret, que demonstrou & autor — Manuel de Phonétique Latine, pág. 298 e sgs. da ed.
chegou a obter geral desenvolvida sobretudo aua inanidade, V. dêsto do 1921].
[)
e
tw
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
bato, antigo, caso, contino, por mortuu, battuo, antiquu, co(n)suo, continuu, são documentações da tendência paroxitónica.
Com cla se harmoniza o costume vulgar de generalizar a regra da largueza das vogais por posição., quando esta é débil: isto é, de tratar tenebrae, cathedra, integru, etc., como arista, sagitta, pronunciando tenébras, cathédra, intégru — vocábulos que nos deram tecebra e (com
muior redução e metátese do r) trevas, cadeira, inteiro. Harmoniza-se timbém com cla a pronúncia filiólu, pariéte, muliére, em vez de filíolu, paríete, muliére, isto é, a transformação de um
grupo de vogais que na língua clássica estavam em hiato, sendo breve a última, em ditongos crescentes. AÀssim mesmo há harmonia no uso de retirar o acento dos prefixos, re-, in-, cum, se-, dis-, ad-, per-, de renegat, implicat, collocat, separat, displicet, advenit, attingit, pertinet, obligat,
e de pronunciar renéga, implica, colóca, sepára, atínge, recébe, obriga, desprãáz, avém, pertém, (hoje pertence). Espécie de recomposição etimológica, sempre que a consciência da composição persistia. Onde essa consciência desapareceu não há recomposição como em coso, de conso, por consuo, colga, de collocat, reza, de recitat, cuída, de cogitat, conta,
de computat. Nem desdiz da tendência paroxitónica de aliviar síilabas demasiadamente carregadas de elementos consonânticos, distribuindo-os por duas. Dela resultou, na minha opinião, o costume de pronunciar ispina, ispatha, em vez de spina, spatha, primeiramente
só quando
a palavra
antecedente findava em consoante : cum ispatha, sub ispina. Depois, essn prótese de e, i surdo generalizou-se. Com ela se podem comparar ainda vários outros processos análo-
gos do português vulgar: em primeiro lugar a transformação do prefixo trans- tras- em estra-. O povo diz, e mesmo os eultos dizem hoje: estraviar, em
lugar
de tras-viar;
assim
como
estravasar,
estramontano,
es-
tramparente, etce. Em segundo lugar a introdução (a que é uso dar-se a designação sanscrítica de suarabacti) de vogais entre consoantes agrupadas, como em calaveira, de calvaria; caranguejo, câncaro, de cancro. carapinteiro, ete. *
Essa tendência do latim vulgar de reduzir a graves os vocábulos esdrúxulos, por qualquer dos processos indicados, não prevaleceu todavia em todos os países neo-latinos. As línguas românicas centrais e orientais (os dialectos italianos e o romeno) são francamente proparoxitónicas. Basta lembrar alguns têrmos italianos como dódici, piédica, frássino, sémita, péttine, graves em castelhano e em português, onde lhes correspondem doze, pejo, freixo; senda, peine e pente. A todos os fenómenos que se prendem com o sistema da acentuação
PARTE
Il— O ACENTO,
ALMA
DA PALAVRA
259
do sermo vulgaris (síncopes, contracções, aféreses, etc.) tornarei ulteriormente.
Por ora basta fixarmos duas das noções que estive a expor: Primeira : o ponto de partida de muitíssimas alterações que transformaram o latim em neo-latim e êste em português, foi a maneira de acentuar em conversa, vivazmente ; não pausadamente,
dando-se valor
quási igual a tôdas as sílabas, mas antes distanciando por especial energia da expiração a sílanba principal das outras de menor importância. Segunda : por maiores que sejam as transformações por que passaram os vocábulos latinos em bôca lusitana, o acento tónico, alma da palavra, manteve-se inalterado desde o tempo de Plauto até aos nossos
dias (*). Éle é o melhor dos testemunhos da identidade de palavras Jlatinas e neo-latinas, e grande auxiliar, por isso, em
investigações cti-
mológicas (*).
(*) Quindecim, p. ex., deu quinze; pópulu, pôvo; cómite, conde. Quarcesma vem de quadragesima; conta, de cómputat; reza de récitat; sete, de sagitta; lindo, de legítimu, eiró, de arióla (em pronúncia popular). (*) [Esta Lição XII é a última do volume Filologia Portuguesa ( Prelceções feitas nela Ex.”* Srº D. Carolina Michaélis de Vasconcelos, doutora em Filologia, ao eurso do 1.º ano da Faculdade de Letras de ( 1912-1913 ( Coimbra ( Tipografia ' Comercial ( 1912. Segue-se outro volume de lições, intitulado também Fíilologia Portuguesa — mas que na página do rosto se diz constituído pelas «Preleeções feitas... ao curso do 1º ano da Faculdade de Letras de ( 1913-1914.» (Coimbra ( Tipografia Neves e Vicira ( 1913). Não é exacta à indicação do curso a que esta série de lições pertence: destinaram-se elas ainda 2o de 1912-1913 — como pode verificar-se não só pela nota que fecha o volume, mas também pelo exemplar anotado e emendado pela mão da Autora, há pouco tempo descoberto, e que já cestá sendo aproveitado na reimpressiio. Por êle se verifica ter a Lição XII sido feita em 3 de Março de 1913, o a primeira da nova séórie (prôpriamente a XIII) em 31 do mesmo mês e ano — depois das férias da Páscoa. A preleeção de abertura da segunda parte do curso teve duas redacções diferentes, que ambas chegaram a ser impressas: houve primeiro quatro páginas subordinadas ao título de Lexicologia, que depois foram substituídas por dose — três inumeradas, compreendendo o rosto e a 1.º do texto, e mais cinco marcadas D, E, F, G, H; o quatro numeradas de 1 n 4, Aproveita-se naturalmente a versão mais desenvolvida, transcrevendo-se em nota a parte não comum — que corresponde exactamente às duas primeiras páginas, das quatro primitivamente impressas)].
FILOLOGIA
PORTUGUESA
PARTE Ill — LEXICOLOGIA LIÇÃO 1 (XIII) &s INTRODUÇÃO
ENDO DE FALAR — — Lexicologia, principio, como é meu costume, com a explicação do têrmo. Serei um tanto extensa, por ser a primeira vez que analisamos qualquer vocábulo. Como
a maior parte dos têrmos eruditos, científicos, não sômente
da língua portuguesa, mas de tôdas as línguas cultas, Lexicologia é têrmo grego, composto de dois vocábulos: Logia e lexico, forma latinizada de lexicon (o primeiro elemento, de compostos, sempre menos acentuado
do que o segundo nas línguas românicas, perde em regra o último som). $ 1. Lexicon designou originâriamente, e designa ainda hoje em sentido
restrito,
o conjunto
das palavras, das formas e dos modismos
peculiares de um autor, sobretudo grego, como Homero e Platão. Em sentido lato e moderno designa o conjunto das palavras de uma língua — coleccionadas e ordenadas alfabêticamente. É sinónimode Vocabulário e Dicionaário, têrmos cultos e livrescos, de origem latina). Ainda que em rigor exprimam coisas um tanto diversas, Léxico, Vocabulário e Dicionário são hoje usados quási indiferentemente. (*) LEXICOLOGIA. — Entramos hoje, depois das férias da Páscoa, na parte 2.º do programa que esbocei na lição inaugural, Éle é, na verdade, vasto do mais para num só ano ser realizado desenvolvidamente, e portanto satisfatôriamente. Hei-de Yazer contudo o possível para tocar, de modo concentrado embora, nos temas principais. No 1.º semestro dei, conforme prometera, noções sumárias de filologia e glotologia. Tratei da linguagem em geral, das línguas até hoje conhecidas do globo terráqueo, assim como da sua classificação. Falei em especial das línguas que é costume chamar áricas ou indo-germánicas. Sobretudo do ramo itálico, e seu representante mais vigoroso: o latim. Ocupei-me em seguida das filhas do latim: as línguas românicas ou nco-latinas, a que pertence o português. Expus que foi essencialmente do latim falado, despreocupadamente, nos primeiros séculos da Era Cristã e após a desagregação do Império — que essas fases modernas da língua do Lácio saíram, já diferençadas desde as origens nas diversas províncias, mas sobretudo desde que estas foram invadidas pelas tribos germânicas, também diversas. Disso que quebrando violentamente a unidade artificial, mais aparente do que real, do mundo latino, essas invasões deram livre expansão à natural tendência separatista de cada uma das línguas românicas, como manifestação suprema do gênio privativo do cada nação. Terminei enumerando os traços mais importantes do sermo vulgaris: comuns a todos os seus reflexos no Ocidente e Oriente. Passo agora ao português e sua história particular, que, de resto, já foi
te o to
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Formalmente to lexicon é o neutro substantivado do adjectivo lexicos, que pela sun vez deriva de lexis modo de dizer, vocábulo; da raiz lego (infinitivo legein) que existe tal-qual na lIíngua latina em legere com numerosos derivados como legio, elegans, eligere colligere, collectio ; e existe igualmente em todos os idiomas derivados do latim, e em diversos outros, em reflexos mais ou menos alterados quanto ao som,
e quanto ao significado. A raiz lego, greco-latina, existe também e frutificou em outros ramos do tronco indo-germânico, p. ex. nas línguas teutónicas. Mas como
filólogos principiantes, nós teremos de parar sempre em Roma e Atenas. Mesmo com relação a formas românicas não portuguesas, devo ser breve por falta de tempo. Lexicós, adjectivo, é portanto o que se refere a vocábulos como elementos do discurso, da fala. Claro que neste adjectivo substantivado ( como em todos os mais) há omissão (elipse) de um substantivo que êle determinava. No nosso caso o substantivo omitido é biblion — livro (neutro). Lexícon substantivo é um livro dedicado à coleceionação de vocábulos, de nomes de ciências internacionais; não existe separado, só como segundo elemento. Logia, como filologia, glotologia, e muitos outros, familiares mesmo a alunos de aulas primárias, como p. ex. zoologia. Quanto ao sentido, significa: doutrina, conhecimento, estudo, ciência. Como derivado de logos, verbo, raciocínio, razão, provém da mesma raiz lego, que se es-
conde em lexicon. assunto das prelecções práticas, tôdas. Lendo e analisando prosas e poesias do 1.º período da literatura, galego-português, já temos falado da origem de muitos vocábulos, das evoluções de forma e sentido por que passaram, preparando assim a exposição sistemática da lexicografia, fonética, morfologia, sintaxe, semasiologia, prosódia, como partes obrigadas de um curso de filologia portuguesa. Começo hoje com a lexicologia: Para explicar histôricamente as origens — as fontes do léxico — deveria dar a súmula da história, da geografia e das condições etnogénicas da Galiza e da Lusitánia, como partes da Fbéria, com tudo quanto ela possa sugerir de glotolôgicamente interessante. Suprimo-a, todavia, porque julgo que, como ouvintes de cursos tanto de geografia antiga como de história peninsular medieval, e história da civilização, os senhores terão de se familiarizar com o assunto. Só recomendarei aos que desejarem aprofundar os seus conhecimentos arqueo-
lógicos e pré-históricos, o estudo das Religiõoes da Lusitânia, de Leite de Vasconcelos (três volumes), visto que essa obra se nas ilustrações os restos arqueológicos foi reúnida por &le, e constitui o Museu Apenas tocarei de leve naqueles a história da língua. Desde os tempos mais antigos...
baseia em amplíssimos materiais, e reproduz que existem no país, grande parte dos quais Etnológico de Belém. pontos que téêem importância essencial para [V. adiante,
p. 262,
onde
prossegue
o texto
primitivo. Como sc disse em nota anterior, êste comêço da Lição XIII (I da 2.º parte) foi substituído pela versão mais desenvolvida que se reproduz—e que talvez fôsso redigida para que as fôlhas servissem ao curso do ano seguíntel.
PARTE
263
HI — LEXICOLOGIA
No fundo temos portanto em lexicologia, além dos elementos secundários que há nos sufixos, icon, e ia, duas vêzes a mesma raiz, emhora em forma e com sentido variado: legein, no de enunciar palavras
de onde lexiconrelativo a palavras; e logos, logia, no de estudo, conhecimento de palavras.
É êste um facto ilustrativo daquilo que na seninna passada eu disse àcêrca do arquitipo hipotético da Ursprache, família indo-germânica, ou do arquitipo da fala em geral. Segundo tôdas as probabilidades, ela era composta só de raízes singelas e nada numerosas, que pouco a pouco evolucionaram e ramificaram, produzindo frutos diversíssimos.
i Quem diria à primeira vista que de legein, legere, temos em português vozes tão desiguais como leto, lido, li, ler, do arcaico leer, lenda
(legenda), leitura, lição, eleito, elegante, legião, selecta, selecção, e de
logos, lógica, catálogo, égloga! Só o reconhece o verdadeiro Lexicólogo — que é ao mesmo tempo etimólogo e semasiólogo ; numa palavra o perfeito filólogo. $ 2. Lexicologia (com lexicólogo e lexicológico) é, segundo fica exposto, a ciência que se ocupa dos vocábulos que constituem uma lingua ; das suas origens ou fontes, defere o seu valor ou os seus valores,
cronolôgicamente dispostos, e de tudo quanto é preciso saber para compor um Léxico, se não ideal, pelo menos do valor digamos da obra afa-
mada do francês Littré, que talvez conheçam de nome (4 vol infólio); ou o Worterbuch de Jakob Grimm.
i
Teôricamente os vocábulos como elementos da língua são a matéria da glotologia : die Lehre vom Stoffe der Sprachwissenschaft (não da matéria prima porque essa é constituída pelos sons). Por isso é costume tratar-se dêles, antes de sc falar de sons, formas e frases.
O fundador da Romanística e seu primeiro grio-mestre Friedrich Diez, catedrático de Bonn (em 1876) procedeu assim. O estudo das Fontes do Léxico geral romanístico, e a História de cada uma das principais línguas neo-latinas constitui a Introdução ou o Pródromo da sua Gramútica,
repartida,
como
já sabem
e ainda
agora
notei, em
Fonética,
Morfologia e Sintaxc. Assim
mesmo
procederam
os seus sucessores,
sobretudo
o actual
grio-mestre da Ordem Romanística : Wilhelm Meyer-Lubke (catedrático de Viena de Áustria) — nas obras-primas, em que substituíu a Gramática Comparada de Dicz (de 1836) e o Dicionário Etimológico comparado do mesmo (de 1856), obras para o saber de hoje incompletas, visto que no aperfeiçoamento e na completação da matéria trabalharam três gerações de Romanistas, sobretudo alemães. Na península êsse exemplo foi seguido, por ex., por D. Ramón Menéndez Pidal, no seu excelente Manual Elementar de Gramática Iistórica.
264
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
$ 3. AÀAs noções fundamentais, basilares, que capacitam para a compreensio do Léxico português, são gerais, ou especiais. Tratei das gerais no ano passado. Agora repito apenas o essencial, num breve resumo. Em primeiro lugar é preciso compenetrarmo-nos do facto aniplamente provado que a língua portuguesa é filha da latina, uma das fases modernas daquele dialecto, itálico, que falado na peninsula apenínica a princípio apenas numa região, 50 léguas quadradas, chegou a ser uma espécie de língua universal ou pasilíngua, em virtude das qualidades bélicas c administrativas, políticas e jurídicas, e do carácter político c utilitário dos Romanos. Pertencendo
à família
neo-latina,
ou novi-latina,
a lingua
portu-
guesa é irmã não só do espanhol ou castelhano, sua gémea, mas também do provençal, falado no Sul da França e especializado do lado de cá dos Pirenéus no Catalão ou catalanesco ; irmã do francês; e do italiano, isto
é, das cinco línguas principais, com literatura abundante e de importância mundial, de que se ocupon Fr. Diez. Irmã também do rumeno, falado no Oriente, na península balcânica do lado esquerdo do Danúbio, em parcelas da antiga Dacia — língua a que o fundador só se referiu ocasionalmente, de longe em longe, mas que hoje figura lado a lado com as irmãs mais ricas. Irmã ainda de outras duas que, sem lTiteratura de
vulto, técm caracteres glotológicos que lhes dão individualidade, e já não são por isso considerados hoje como de antes como meros dialectos do italiano. Uma delas é o ladino, romansch, rético, reto-românico ou cur-valico, que se fala na região alpina, ao Norte da Lombardia, das nascentes do Reno até ao Adriático, em tratos de terrenos duas vêzes interrom-
pidos. Pertencem parte à Suíça, parte à Áustria, parte outra no Vale dos Grisões — Graubiindten ; no Tirol; Veneza, mas formavam outrora uma úniea província A última., a que se deu carácter de língua, é o
à Itália — ou por e no Friúl apar de romana: a Récia. sardo, o conjunto
dos dialectos falados nas ilhas de Córsega e Sardenha. Como estas ilhas fôssem as primeiras conquistas de Roma — fora da península itálica e por
estarem
isoladas
no
Mediterrâneo, conservaram
traços fonéticos
muito arcaicos da língua-mãe, por ex., a pronúncia de e como k, mesmo
antes de e i em kelu (céu) Kkentu (cento), ete.; e conservaram também vocábulos arcaicos, por ex., mannu (magnus ) substituídos em todos outros idiomas pelo popular grandis (grande).
$ 4. Em segundo lugar é importante a noção que, conquanto nas fisionomias de tôdas as cinco, seis, sete ou oito línguas românicas,
se
reconheçam claramente as feições maternas, cada uma está individualizada. Semelham-se apenas como irmãs. Os filólogos gostam de lhes aplicar dois hexâmetros incompletos que parcem feitos ad hoc:
HI — LEXICOLOGIA
to Q S
PARTE
facies non omnibus una nec diversa tamen,
qualem decet esse sororum. Em verso francês:
Leur figure diffêre et pourtant se ressemble; Elle sied à des soeurs. ou, em prosa portuguesa : Às feições de tódas diferem, mas ainda assim são parecidas, conforme convém a irmãs, ou conforme é natural entre irmãs (Ovidio, Metaform., 1T 13-14). Complemento dessa segunda tese e explicação das divergências é a consideração que em tôdas as províncias romanas o fundo étnico era diverso. Falavam-se línguas diversas, de normas e tendências peculiares ; os indígenas (e os colonizadores e invasores que tinham entrado na Itália, Franca, Espanha antes dos Romanos ) tinham adestramento diverso dos seus órgãos fonadores : céltico na Gália; italiota na península apenínica ; ibérico na Espanha com variantes nas tribos lusitanas e galaicas ; eslávico, turco e grego na Ruménia ; germânico e eéltico entre os Latinos reto-românicos. Pelo outro lado, a explicação está também nas vicissitudes históricas posteriores à romanização. Quanto à invasão dos Bárharos, é importante a diferença entre Suevos, Godos, Francos, Burgun-
dos e Longobardos. Na península acresce ainda o elemento arábico e mourisco, como
veremos ulteriormente.
$ 5. Em terceiro lugar cumpre sabermos que as línguas românicas não procedem do latim clúássico — o de Vergílio e Cícero, Horácio e Oví-
dio, que se ensina nos Liceus. Longe disso, elas são continuação directa do sermo vulgaris, rusticus, quotidianus ; do latim falado despreocupadamente por militares, funcionários, colonos agrícolas., negociantes, engenheiros, dentro dos países conquistados. Derivam sobretudo da fase em que êsse latim vulgar, de conversação cascira, se achava nos séculos do Império, e depois da sua queda, durante a desagregação das províncias,
quando a acção demoecrática do Cristianismo deu voz e língua a elas tôdas, e dentro de eada uma a camadas sociais até então mudas e baixas. Ainda assim o Intim escrito, livresco, literário, morto embora, era ensinado nas cscolas durante a Idade-Média e nos tempos modernos,
sobretudo na era do Humanismo ou do Renascimento. Foi e é cultivado até aos nossos dias, como língua da Igreja, do Tribunal — língua internacional dos eruditos de todos os países. Por isso e porque os povos romanos
se sentiam
como
sucessores de Roma,
teve máxima
influência
no desenvolvimento dos cinco idiomas principais (especialmente também no estilo literário dos Peninsulares). Pode-se dizer que a história da língua e da literatura portuguesa
266
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
foi e é uma luta constante entre tendências populares e vulgares, c tendências clássicas ou académicas, opostas.
$ 6. Em quarto lugar notemos que nenhuma das filhas e herdeiras da língua latina arrecadou a herança materna integralmente, cuidadosamente, conscienciosamente.
Nenhuma conservou mesmo tôdas as partes de que se servira a princípios (os arcaísmos são em regra bons latinismos). As perdas sofridas, quer porque certos vocábulos designavam produtos naturais, objectos de arte ou de indústria, instituições, fenómenos,
conceitos que os Portugueses, Espanhóis, Provençais, Franceses e Ttalianos modernos não conheciam ou não adoptaram, quer porque certos outros não correspondiam formalmente às suas normas musicais, muita vez sem motivos patentes, tôdas compensaram-nas por aquisições e criações novas ; ora desdobrando um só étimo latino de várias maneiras, ora
formando derivados e compostos ; acolhendo de fora parte dições estranjeiras (em regra juntamente com produtos e objectos, idéias e institurções de nações estranjeiras), durante dezanove séculos sucessivos. Tal intercâmbio, é indispensável. A faculdade genial, que criou, há dezenas de milhares de anos, a
líingua primitiva ou as línguas primitivas, conforme rapidamente indiquei na Lição Inaugural, extinguiu-se quási por completo. São raríssimas aàs palavras modernas livremente inventadas (como gás). Mas não se extinguiu a faculdade de aproveitarmos várias raízes primárias e secundárias. Nem acabou tão-pouco a inteligência perceptiva e investigadora do homem. Pelo contrário, cada vez se apura mais: inventa objectos, descobre factos, explica fenómenos, tenta resolver enigmas — e multiplicando assim coisas e idéias, obriga todos os povos cultos a constanternente reforçarem o seu pecúlio vocabular. *
$ 7. Passemos às noções especiais relativas a Portugal, ou à antiga Lusitânia. Quanto às suas condições geográficas e etnográficas como parte da península ibérica, — é evidente que só muito concisamente posso tocar aqui em pontos de importância maior para as questões lexicológicas. Nos seus cursos de geografia e história antiga e medieval, os senhores hão-de completar seguramente essas noções. E também por leituras não obrigatórias, por ex., das Religiões da Lusitânia, de Leite de Vasconcelos. Desde os tempos mais antigos as belas condições climatéricas e as riquezas mineiros da península (sobretudo a prata e o cobre, indispensáveis para o bronze), tinham atraído povos estranhos. Aos povos indígenas (de misteriosa origem), apesar de tôdas as
267
PARTE I1IY — LEXICOLOGIA
tentativas de provar o seu parentesco com Berberes da África ou com
povos da Ásia, tinham-se sobreposto no decorrer dos tempos, colonizadores diversos : fenícios (doze ou mais séculos antes de Cristo), Gregos, Lígures, Celtas (nos séculos 7, 6 e 5), Cartagineses no 3.º e finalmente os Romanos. Os que mais influência exerceram nos Iberos lusitanos foram os Celtas. O nome
de Celtiberos, conservado nos historiadores antigos, o ono-
mástico topográfico, monumentos arqueológicos como dolmens, menhirs,
antes bem atestam. Mas êles nito actuaram por igual em tôda a península. Em geral pode-se dizer que no norte, na região pirenaica e na faixa mediterrânea,
os Iberos se conservaram
mais puros:
Os Bascos,
como descendentes directos de uma ou algumas das tribos ibéricas, ainda hoje subsistentes de ambos os lados dos Pirenéus (França e Espanha), são prova viva disso. Já o sabem. Na foz do Guadiana
e tôda a orla oceânica, na Galiza e na Lusi-
tânia, os Celtas chegaram a preponderar. No centro parece que houve mistura proporcionada. Essa diferença etnográfica talvez explique n existência das três línguas diversas neo-latinas na península, de que já tratei: o catalão, intimamente aparentado com o provençal da Aquitânia ; o castelhano do centro, que absorveu
tanto o navarro
aragonês
(transição para o catala-
nesco), como o asturo-leonês, transição para o terceiro idioma peninsular: o da faixa ocidental da Ibéria, o galego-português da última Tule. $ 8. A conquista da Lusitânia pelos Romanos (***), começada em 193 A. C., consumada no ano 25 antes da Era de Cristo, conseqiiência fa-
tal das conquistas já cfectuadas na Espanha, no decurso de conduziu ao desaparccimento completo das línguas então nínsula (com excepção da tribo euscara ou vascongada). recimento das línguas ibéricas, fenícias, ligúricas, gregas,
nove decênios, faladas na peIsto é, desapacélticas, púnt-
cas, pois tôdas clas se falavam então na península (**). No século 1T P. C., mal havia restos delas, como se vê das obser-
vações de autores grego-latinos, por ex., de Estrabão. A cultura e com ela a língua do povo-rei vencera em tôda a linha. Vencera por ser imensamente superior aos falares relativamente rudes e desarmoniosos, talvez difíceis de pronunciar, dos indígenas e dos coloni-
zadores imigrados (os Gregos não penctraram no interior). (*) Todos sabem como esta principiou. Cartago determinara que o Ebro fôsse o limite os Romanos à Península, a Sagunto, () Na Gália, o céltico gaulês ainda se isoladamente, Nos Digestos há um parágrafo de mentos fôssem escritos non solum latina vel gallicana vel alterius ceutusquoeo gentis.
Um tratado (de 226) entre Roma e dos Cartagineses, À rotura dêle levou
falava no século 3.º; e mesmo no 5.º, Ulpiano em que se admite que testagracea lingua sed etiam punica vel
268
LIÇÕES
Conhecem,
DE FILOLOGIA
por certo, o verso
PORTUGUESA
muito
citado
relativo
aos cânticos
entoados pela juventude galaica, quando corria impetuosa ao combate. Ésses cânticos cram meros uivos bárbaros, para quem, como poeta romano, apreciava sobretudo a urbanitas. O verso aludido: barbara nunc patriis ululantem carmina lin-
guis () está na epopeia sôbre a 2.º guerra púnica, de Sílio Itálico, que no século I ainda tivera ocasião de os ouvir. Falando latim os Lusitanos e Galaicos tinham seguramente o seu sotaque peculiar, diverso do dos Celtas Gauleses puros. Mais pronunciado porventura. Nunca devemos esquecer que os habitantes da França e os da JItália (excepção feita dos Etruscos, dos Messápios, Vénetos, ete.) eram Indo-germanos como os Latinos, ao passo que os Iberos-bascos não pertenciam provàavelmente à mesma raça.
Como prova de pronúncias idiomáticas da Hispânia, em si provável e geralmente admitida Romanistas, costuma-se alegar uma anedota, con-
tada nos Scriptores Historiae Augustae, (no Capítulo III, dedicado a Adriano). Ésse, filho de uma mulher gaditana (de Gades Cadix, colónia fundada pelos Fenícios) excitou a hilaridade do Senado quando, na sua qualidade de questor, teve de ler um discurso. Novamente digo que tais pronúncias provinciais foram precursoras dos fenómenos que transformaram posteriormente o latim en romanços
diversos. Quanto ao neo-latim de Portugal, torno a lembrar o exemplo epigráfico citado várias vêzes, a escrita expéctara por spectra, numa inscri-
ção do século VI ou VII com três idiotismos de pronúncia, todos êles francamente ocidentais. Outras formas (anteriores e posteriores, mas menos características ) já foram apontadas por investigadores do latim ibérico (Carnoy e Leite de Vasconcelos). Ão todo, a documentação é muito escassa. *
$ 9. Certo é que a evolução do latim para o neo-latim, começou ou continuou durante o império de Suevos e Visigodos que (pelas razões expostas: a sua minoria, menor cultura, e falta de língua unitária) aceitaram a língua dos vencidos. O domínio dos Árabes tão-pouco a estorvou. Mas talvez a retardasse. Na França há os juramentos de Estrasburgo, de 842. Em Portugal não há documento romanço anterior a 1192. Durante os primeiros séculos da reconquista (VIII a XIII) foi que as três línguas neo-latinas se consolidaram na península. )
Punica III 348.
269
PARTE YII — LEXICOLOGIA
Naturalmente no Norte. De Covadonga das Astúrias, para onde Pelaio, o Montesinho, se refugiara, com apenas mil guerreiros, é que partiu a reconquista de Leão e Castela-a-Velha. A Galiza, no canto noroeste, nunca completamente
avassalado
(e
por isso refúgio dos restos da aristocracia goda), sacudiu o jugo maometano ao cabo de 40 anos. Era lá que sob a tutela de condes galizianos se criavam os novos dinastas. Verdade é que Almançor, o Vitorioso, hasteou de novo o crescente em Santiago de Compostela. Mas por pouco tempo. Depois do ano mil, os Mouros não mais transpuscram a linha do Douro. À queda do Califato de Cordova (1031) foi sinal para esforços inauditos da parte dos Cristãos. Fernando 1, o Magno, arrancou aos Mouros as cidades de Lamego,
Viseu e Coimbra, ajudado pelo Cid Campeador. O sucessor, D. Afonso VI, deu, como sabem, o condado da Galiza,
que fôra reino durante pouco tempo, com a mão de sua fillha Urraca ao Conde D. Raimundo, e o contíguo de Portugal, que então se estendia do Minho ao Mondego, com a mão de D. Teresa ao primo dêsse, o Conde D. Henrique : príincipes borgonheses que o haviam auxiliado na tomada de Toledo (1085). Escuso de ir mais longe. Temos pouco depois Ourique (em 1139). Portugal é reino independente. No tempo do Bolonhês, a área completa-se pela conquista do Algarve. $ 10. Nesse meio tempo a língua galego-portuguesa formara-se, e fizera-se líingua literária; língua da côrte de Afonso Henriques e de Sancho I que poetava nela ; e língua de tôda a poesia lírica trovadoresca, não só dos trovadores que nasciam na Galiza
e em Portugal, mas mesmo
dos que eram de Burgos, de Valhadolide, de Bearn ou de Aragão. No Cancioneiro da Ajuda e em outros escritos meus, mostrei como
e quando a Galiza se fizera centro de civilização. Lá mostrei também explicitamente a grande parte que a França teve nos séculos XII e XIII na remodelação da vida peninsular, por meio de guerreiros e colonos, prelados e monges escrivães, trovadores e jograis. Com relação à língua, um dos pontos mais importantes é o que acabo de expor: a Galiza libertou-se cedo do jugo sarraceno, e atraíu cedo ao Santuário de Compostela romeiros notáveis, sobretudo de França.
$ 11. E ao sul do Douro?
nas Beiros reconquistadas pouco
a
pouco, de 1000 a 1100? no Alentejo e na Estremadura, onde os cristãos
tinham vivido durante três a quatro séculos sujeitos aos muçulmanos, no meio dêles?
270
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Só de passagem posso aludir ao problema moçarábico : Muitíssimos cristãos tornaram-se
tomaram
efectivamente
as aparência
Árabes,
de Árabes,
nas crenças ; ou pelo
no vestuário,
na maneira
menos
de viver,
e na língua. Eram Moçárabes. À palavra provém de muztarabe (assim num documento de 1101, muzarabe já em 1118), e não de mixti arabes, como julgaram bastantes escritores, antigos e modernos. Outros
conservavam
tanto
a
língua
neo-latina
como
a
reli-
gião
cristã. Quer por necessidade, quer por inclinação natural, os Árabes, vulgarmente denominados Mouros, (de Mauros, porque numerosos Berberes da Mauritánia vieram da África com os verdadeiros Árabes) eram tolerantes. Cultivando esmeradamente a sua própria língua e literatura, e propagando ambas, sem violência, não hostilizavam em regra nem o culto nem o falar neo-latino dos vencidos. Faziam traduzir até, para uso daqueles Cristãos que haviam esquecido a sua língua, tanto Bíblia como livros de culto. Bastantes Árabes sabiam latim c neo-latim: eram mouros latinados ou ladinos. Os Latinos que sc serviam da escrita e da língua arábica, ehamavam-se algaraviados. O seu modo de falar era algaravia. Ao romanço dêles, pelo contrário, chamavam-no os Árabes aljamia
(de aljam
bárbaro, estranho) (**).
Enaciados, anaciados (anaçoados por corrutela ou etimologia popular)
eram
mouros
ou cristãos bilingues que
prestavain
serviços como
mensageiros, correios, intérpretes, espiões, a quem melhor os pagava (***). Por isso anaciado tomou o sentido de apóstata. Talvez saibam que na tomada de Toledo (1085) os reconquistadores encontraram ainda uma população cristã, e nada menos de seis igrejas católicas. Não aconteceu assim século e meio depois na de Córdova e Sevilha (1236 e 1248) : o sul estava completamente arabizado, e assim se conservou, pelo menos em Granada, até 1492
*
$ 12. À conservação
ou não conscrvação do neo-latim incipiente
em bôca dos Moçárabes, é questão que foi muito discutida. Hoje está .decidida a favor da conservação e evolução contínua; contra Herculano e Oliveira Martins. O melhor conhecedor vivo, nacional, da língua, da cultura e da ()
É
mais
um
exemplo
do
sentido
de
bárbaro
V. David Lopes, Textos de Aljamia. (”*) Vide C. M. de Vasconcelos, Mestre Giraldo
aplicado
no
estranjeiro.
(Lisb., 1911), p. 109.
PARTE
III
— LEXICOLOGIA
271
história dos Árabes em Espanha é David Lopes, em cujas obras conscienciosas há muito que aprender.
Publicou, por ex., Textos em Aljamia portuguesa, isto é textos neo-latinos, escritos com letra arábica (1897). Esereveu um estudo sôbre Toponymia arabe em Portugal (1902) e outro, muito importante, sôbre Os AÁrabes nas obras de Alexandre Herculano (1911). *
$ 13. Outra questão, e essa também difícil de resolver, é se o romanço primitivo que se falava na zona moçarábica diferia ou não do galego-português. Documentos faltam por completo. Os do Norte, em latim háúrbaro, bem se vê, entremeado de algumas palavras vulgares, isoladas, datam do século IX. Os do Sul são posteriores a 1250. Ápenas o onomástico e os elementos latinos nêle contidos (por ex., nomes de plantas como lorandro, oleandro em Alandroal), assim como palavras neo-latinas em obras arábicas dão alguns indícios. Dos primeiros ocuparam-se proficientemente, F. À. Coelho (num artigo publicado na Revista Serões : n.º 46 de 1909)
e Leite de Vasconcelos, numa das suas
Liçõoes de Filologia (p. 474). David Lopes tratou dos têrmos portugueses, continuados em textos arábicos, todos êles de grande valor documental. Mas não foi possível estabelecer se eram privativos do Sul. Formas
como
janair,
sapatair
devem
ter sido
comuns
ao
Sul
c
ao Norte. Provável é todavia que o romanço moçarábico diferisse pouco do romanço galego-português. Conforme a reconquista ia avançando c a côrte se ia deslocando de Guimarães a Coimbra, de Coimbra a Lisboa e Santarém, o romanço
nela falado, o galego-português, portanto, propagou-se ao sul, necessàriamente. Nos traços peculiares que distinguem os falares modernos do Alentejo, da Estremadura e do Algarve é que teremos de reconhecer reminiscências dos que distinguiriam os falares antigos. *
$ 14. Qunanto à Galiza, também
tenho a restringir-me a poucas
palavras, tendentes imicamente a explicar com que direito chamo galego-
-portuguesa a língua e a literatura do 1.º período (arcaico), da civilização neo-latina de Portugal. No capítulo do Cancioneiro da AÁjuda a que já aludi, relativo à cultura do canto noroeste na Idnade-Média mostrei que a Galiza antiga, pré-romana, romana e pos-romana não ocupava apenas a área restrita
272
:
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
que ocupou desde que, pela eriação do condado e futuro reino de Portugal,
a parte Além-Minho foi politicamente separada da de Aquém-Minho (**). Aqui baste lembrar o papel importante que ainda depois da cisão, teve no Condado portucalense o conde galiziano Fernão Perez de Trava, que viveu maritalmente com a viúva do conde D. Henrique. Nos
historiadores
arábicos
dos séculos
X
a XIYl o nome
Galiza,
não designa apenas o canto noroeste; Galegos não são apenas os habitantes déle.
Para êles Galego era nome
comum
de
todos
os Cristãos
recon-
quistadores, tanto verdadeiros Galegos, no sentido restrito da palavra, como Portucalenses, Asturianos, Leoneses e Castelhanos. O mesmo acon-
teceu com os historiadores e pocetas do Norte da Europa. Galitzenland — país dos Galegos — era tôda a Hispânia cristã desde que os Normandos ( homens do Norte) ou Escandinávios como marinheiros audacíssimos iam fazendo repetidas expedições marítimas ao sul, pirateando nas costas atlânticas da península. A Hispânia pagã ou maometana, essn era Morland ( país dos mouros, mouraria).
Com isso não quero dizer que o nome Portugal fôsse completamente desconhecido á fora. Pelo contrário! Algharbien e Portugal figuram nas epopeias germiáânicas. Portugal tem formas não muito incorrectas (como Portegal, Portigal) mas também outras curiosamente metamorfoseadas (como Partingal, Pertingal, Partrigal, Patrigalt). Até há nessas epopeias figuras femininas como a princesa Hilde von Portugal na Gudrun.
Lá o digo também,
numas
notas do Cancio-
neiro da Ajuda (**). *
$ 15. O nome Portu cale, meio latino, meio pré-romano, já se documenta no século V. Os dois elementos, o apelativo pôrto e o nome próprio topográfico Cale, fusionaram intimamente antes do século VII, Portugale, com a explosiva R reduzida à sonora g, encontra-se em Cronicões da fdade-Média. Com aplicação, bem se vê, apenas, lá à leal cidade, donde origem, como é fama, o nome eterno de Portugal.
teve
Quanto ao tríplice pôrto de mar, na foz do Douro, (Durius, ao qual se ligam lendas poéticas contadas nos Livros de Linhagem) Foz e Pôrto são apelativos latinos, bem transparentes. () Cancioneiro da Ajuda, II, p. 768 a 836: ÀA Galiza, centro de cultura pentinsular de 800 a 1155. () Vid. Vol. II, p. 695 e 770 e ecfr. Archeologo Português, XIII, 359 c Leite, Licções 333.
PARTE
Mas
o nome
IIY —
LEXICOLOGIA
278
antiqitíssimo Cale, pelo contrário, de onde provém
Gaia, (talvez por Calia, plural de Cale), não está explicado. Ignora-se ainda se é ibérico, fenício, ligúrio ou céltico. Com o andar do tempo a aplicação restrita passou a território mais extenso até designar o país inteiro desde o Minho até no Guadiana, com exclusão, infelizmente, daquele lindo canto noroeste que se chama Galiza. Tais alargamentos de sentido são freqguentes. Já ouviram que Ibéria denominava a princípio apenas as terras que cireundam o Ibero ou Ebro. De Portucale (com k) deriva o adjectivo topográfico portucalense. —bDe Portugale
(com g) vem portugalense, que deu portugueês
(com
queda do [ intervocalico e assimilação da vogal pretónica à tónica). Português, finalmente, vem de portugueês, por contracção das duas vogais idênticas numa só. Dessa forma se servem tanto os Franceses (escrevendo portugais, por analogia com français, de fançois, franciscus) como os Inglêses que a receberam dêles. Da pronúncia inglêta (com 1) provém a alemã Portugiese, Portugiesisch. Os espanhois também se servem hoje da forma de cá: português; mas antigamente diziam sempre portogalenses e Portogal (com o). Assim,
o vocábulo
passou
à Grécia
e à Itália, onde
em
Atenas e
Nápoles as laranjas, introduzidas na Europa em 1548 por éles. são apregoadas ainda hoje pelo grito Portogallo! Portugalli! Portokalli! Em Londres são Saint Michels! da ilha de S. Miguel (Açores). Em ocasião oportuna hei-de-lhes contar quantos e quais são os vacábulos portugueses que se tornaram internacionais, sobretudo quais se usam na Alemanha. Portugalenses aparecem sempre juntos aos Galizianos. Os condes de uma
região, a-par dos condes da outra, em
todos os textos arcenicos
em romanço. Sobretudo nos que dizem respeito ao Cid — herói nacional, comum, da península inteira, conquistador de Coimbra, de Toledo e de
Valença, embora depois o esquecessem cá, por razões naturais de política ou de patriotismo. Refiro-me ao Cantar de Mio Cid (v. 2978), à Crónica General e à Crónica Rimada (v. 696, 700 e 773, etc.) onde o nosso país é chamado essa tierra jensor (672). Jensor é o latim gentior, comparativo de gens no sentido de gentil. Na
Alemanha
também
há um
reflexo
histórico
da forma
arcaica
portugalês. Em Hamburgo chamavam, e talvez ainda chamem hoje, Portugaliser às grandes moedas de ouro que era uso dar de presente, em baptizados, aos neófitos e às comadres.
te -l *o
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
*
$ 16. O sufixo -ês, forma popular do latim -ense, que se aplica, assim alatinado, não só a nomes também alatinados, como em Ulysiponense, Conimbricense, Vimarense mas também a formas nacionalizadas,
populares como Portuense, Bejense — o sufixo -ês, digo, era naturalmente uniforme para os dois géneros, na linguagem medieval. (Já disse o mesmo do sufixo -or, senhor, entendedor, ctc.).
Ainda no século XVI muitos livros se dizem impressos e redigidos em língua portugués, por ex., um de Garcia de Resende e outro de João de Barros, dos anos 1543 e 1553. Mesino hoje há um vestígio do estado arcaico no advérbio portuguêsmente (como em cortêsmente). *
$ 17. Galego, representa galaico, calaico, vocábulo em que tanto o radical como
designava
o sufixo são provávelmente
um
país de
densas
célticos. Gallaecia, Callaecia,
florestas, sempre
verdes,
florestas
que
também circundavam o Pôrto até às margens do Douro (***). Resumindo, Galego-português é portanto designação históricamente exacta daquele romanço ou língua neo-latina, que se desenvolvera vagarosamente (durante o império romano o dos Suevos e Visigodos, e durante o domínio árabe, mas sobretudo nos séculos da reconquista) do latim vulgar dos primeiros séculos da era cristã, em tôda a fnaixa ocidental da península ibérica, desde o Guadiana até ao mar Cantábrico. Originariamente,
nas
regiões setentrionais,
nas
duas
margens
do
rio Minho, do mar até ao Douro, no condado (temporâriamente reino ) da Galiza e no condado e futuro reino de Portugal. Pormenores sôbre a reconquista há-os em Dozy, Herculano e também no excelente estudo de A. Sampaio, ÀAs villas do Norte de Portugal, (1909) publicado na Revista Portugalia. Apesar da desunião polítiea, houve unidade lingiiística. Unidade completa, ou quási completa, quanto à linguagem culta, empregada com admirável destreza por todos os poetas líricos da península, que fôssem realmente Galegos e Portugueses, quer nascessem no centro, no oriente ou no sul da península, ou poetassem em Jaen ou Sevilha no período trovadoresco. Unidade também quanto a textos em
() Leite de Vasconcelos emprega de preferência a forma hídrica Galeco-português, upesar de em regra ter antipatia contra tudo quanto é mal formado, como
por ex., o substantivo analógico Portungalia. Seguramente emprega êsse têôrmo meio erudito e meio popular, para evitar galego, lembrado de que tanto em Portugal como em Castela houve épocas em que
o empregavam
deprecintivamente.
PARTE
prosa, elaborados no mesmo
275
111 — LEXICOLOGIA
período, mas êsses somente, se eram redi-
gidos por verdadeiros Galizianos ou Portugalenses. Priticamente
os senhores já o experimentaram,
nas amostras que
temos lido até agora. Nos dialectos vulgares, regionais e locais, é possível, teôricamente é certo immesmo, ter havido divergências. Dessas divergências, algumas se reflectem mesmo em textos literários. Por terem desaparecido da língua portuguesa ao passo que elas se conservaram nos falares galizianos (e em parte também na língua castelhana) a designação de galeguismos pode passar, pôsto que arcaísmos seria melhor. Mas sômente nesse ponto de vista, e tendo-se sempre em conta que êsses gnaleguismos são do período que em tudo era galego-português. Penso,
por ex., nas formas
xe, xi por se, sizsibi;
em
cho,
cha
por tó, tá ou ti-o, tica (tibi illum ; tibi illam ) ; em certa confusão entre oeu,oieui (v. g. foy, fuy; moy, muyto). Penso também no pretérito simples dos verbos fortes: ceuja 1.º acabava em i átono, e cuja 3.º terminava em o. Isto é, em formas como
pudi, podo, de potui, potuit; pusi, poso, de posui, posuit ; soubi, soubo de sapuí, sapuit; prougui, prougo, de placui, placuit; sevi, seco, de sedui,
seduit;
oubi,
oubo;
ouvo,
de
habui,
habuit;
e, por
analogia,
quigi, quiso ; figi e fezo, ete., ete. Ocupei-me delas em diversos escritos meus e tornarei a elas oportunamente. Por ora basta dizer que. comuns ao galego-português e aos castelhanos, já eram raros no Ocidente no tempo de D. Denis e seus Íilhos. i Privativos dos Galegos sujeitos a Castela já eram no século XIV (e raros no XIII) vários castelhanismos. Há, por ex., traícion, oracion (por traiçon, oraçon) reina (por reinha, reia raínha), trecho por treito, tanto em documentos públicos como em textos literários — traduções da Crónica General e Crónica Troyana. Os castelhanismos foram avultando à medida que a comunhão intelectual entre a Galiza e Portugal terminou, e a Galiza como província cnstelhana se encostou literâriamente mais e mais ao centro.
Nos nossos Cancioneiros galego-portugueses, tanto nos três profanos como no sacro, já há alguns. Mas ainda não se apurou num estudo especial se ocorrem sômente em textos redigidos por Não-portugueses. *
$ 18. AÀ comunhão intelectual terminou com a subida ao trono da 2.º dinastia, depois das Jutas com
Aljubarrota.
Castela, assinaladas pela vitória de
j
PORTUGUESA
LIÇÕES DE FILOLOGIA
276
Verdade é que exnctamente durante essas lutas houve novas emigrações de Galegos para Portugal, e emigrações de Portugueses para a Galiza, Leão e Castela.
Entre os que vieram de Além-Minho para cá, contam-se, por ex., os ascendentes de Luís de Camões. Mas êsses factos não influíram nas mútuas relações. À separação era definitiva, as evoluções posteriormente foram diversas. Aljubarrota excitara febrilmente a actividade nacional dos Portugueses que, já não ocupados com guerras contra o Mouro, nem com lutas a respeito das fronteiras terrestres, iniciaram a sua missão oceânica.
Nos paços entrou gente nova, com a nova dinastia. O provençalismo morrera de inanição após século-e-meio de eflorescência. Às musas emudeceram. Começou a prosa histórica, verdadeira e exclusivamente portuguesa. Uma Vida de Santa Isabel, (ainda meio hagiográfica. no estilo das Vidas de Santos, traduzidas do latim e do francês no 1.º período) foi seguida da Crónica do Infante D. Fernando, o sacrificado de Tânger. Veio a ingênuamente linda Crónica do Condestável, e vieram as Crónicas
dos Reis, de Fernão Lopes. Tôdas clas ligadas à época anterior pelo entusiasmo que o Santo Graal e as lendas bretónicas, profundamente poéticas,
inspiraram
ao
Condestável,
ao
próprio
D.
João
paladinos. Mas os assuntos eram nacionais. E a linguagem também
L. e seus
se nacio-
nalizava cada vez mais. *
$ 19. Na Galiza, abandonada agora a si própria, o idioina decaíu sensivelmente. Houve uma segunda eflorescência lírica, de 1350 a 1450 em que Portugal
não
tem
parte:
continuação
imediata
da
primeira,
c áulica
como ela. Mas não foi muito produtiva ; e embora em muitas particularidades técnicas e estéticas, se bascie nas obras provençalescas e no Doutrinal areaico da Gaia Ciência, de que só possuímos um fragmento no Cancioneiro Colocci Brancuti (*), gravita, com relação às formas métricas, para Castela. Mais ainda pelos assuntos. À eusto foram reiinidas 74 composições de 17 poetas num Cancioneiro chamado judiciosamente Galego-Castelhano pelo seu editor crítico
Henry R. Lang (“*) (de New-Haven). o mesmo erudito no qual devemos a primeira edição crítica das poesias del-Rei D. Denis. () (*)
Nova-lorque, 1902. 1.º Edição integral em publicação
pela
«Revista de Portugal»— Lisboa.
PARTE
Éle
277
111 — LEXICOLOGIA
tirou os textos do Cancioneiro
de Juan
Alfonso
de Baena
(impresso em 1851, Madride; e 1860 Leipzig); e de vários outros, manuscritos, da Biblioteca Nacional de Madride. Os mais conhecidos dos vates de então são Macias, com o sobrenome o Namoraádo, e Alfonso Alvares de Villasandino. Bacna. o coleceio-
nador coevo, principia a sua Antologia com as obras de Villasandino:
Áqui se começam las Cantigas muy escandidas (**) e graciosamente asonadas, las preguntas e rrespuestas sotiles e bien ordenadas e los desires muy limados e bien fechos de infinitas invenciones que fizo e ordenó en su tiempo el muy sabio e discreto varon e muy singular componedor en esta muy graciosa arte de la poetria e gaya ciencia A. A. de V . el qual por gracia infusa que Dios en el puso fue esmalte e luz e espejo e corona e monarca de todos los poetas e trovadores que hasta oy fueron en toda Espaía. E realmente os seus versos são superiores nos dos coevos e predeCessores. Em prosa galega ainda se redigiram numerosos documentos públicos até fim do século XV.
Prosa
pouco
cuidada,
cheia de formas
espúrias, castelhanas. Depois, perante a acção centralizadora cada vez maior de Castela, mesmo êsse emprêgo da língua galega parou.
Em todos os séculos posteriores só houve de longe em longe um e outro patriota que cultivasse a língua materna ou antes o dialecto da terra em que nascera, porque já não havia uma só língua., mas existem
numerosos dialectos locais. Se houver tempo, poderemos ler textos galegos do 2.º período lírico. Com relação à língua veremos então que as divergências, outrora minímas, são hoje relativamente grandes — conseqiiência natural da evolução independente, e diversa de um Jado da língua portuguesa, cultivada por humanistas e clássicos de primeira ordem e pelo outro lado das evoluções vulgares dos dialectos galegos. sem cultura consciente durante séculos. *
$ 20. Viremo-nos de novo para Portugal. É costume dividir a história da literatura e da língua em só dois períodos principais : um, arcaico: desde os primeiros monumentos literários até 1500 ; outro; moderno : do século XVI até hoje. Com subdivisões, bem
se vê.
() Escandir significa ves. tónicas ou átonas.
medir
bem, com
alternação correcta
entre longas
e bre-
[)
-l
to
LIÇÕES DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Eu acho absolutamente necessária a divisão do primeiro período nas duas metades, a que aludi numerosas vêzes: 1.º) a frase trovadoresca, que vai do último têrço do século XII até 1350, ou até 1385, se nos quisermos regular por datas históricas.
É a galego-portuguesa. 2.º) a fase da prosa histórica, verdadeira e exclusivamente portuguesa, de 1385 em diante. Depois da batalha de Alfarrobeira houve nova eflorescência lírica. Pelo estilo e espírito é também comum à península inteira, como fôra na fase provençalesca ; quanto aos assuntos, é exclusivamente portuguesa. Mas quanto à língua, infelizmente essa é meio castelhana. O primeiro que se serviu da linguagem dos vizinhos foi o filho do Regente D. Pedro, o Condestável, seu homónimo.
Exilado da pátria,
depois de Alfarrobeira, êle traduziu para o idioma da nova pátria um Poema que já escrevera em português. Tudo quanto nos resta dêsse 2.º período da lírica portuguesa, ligado cronolôgicamente à fase intermédia galego-castelhana, está no Cancioneiro Geral, coleccionado por Garcia de Resende. Éle abrange seis decénios, de 1450 a 1516.
Depois principia a idade clássieca, com a Reforma de Sá de Miranda. Sem entrar em promenores, (que já dei no ano passado ) direi que há notáveis divergências entre a língua da 1.º e da 2.º fase do período arcaico. Há, por ex., contracções de vogais idênticas em palavras como veer, creer, leer, seer, riir, soo, doo, maa, bissilábicas na primeira, mas já às vêzes reduzidas na economia dos versos a ver, crer, ler, ser, vir, só, dó, má. Além disso, houve alguma disciplinação c regularização das
flexões por processos de analogia, sobretudo da conjugação (***). Acrescentarei que o período arcaico da literatura fôra precedido, quanto à língua, de dois pré-literários : o pró-histórico e o proto-histórico. Ao pré-histórico pertencem os primeiros e raríssimos vestígios da líingua nascente
(como
Portugale
nos
Cronicões
e
expectara
na
inscrição
citada) (**). A data 1500 como limite entre a época medieval e a moderna tem excelentes razões de ser. Mas claro que não se deve entender literalmente. Muitos fenómenos arcaicos perduram durante todo o século da (”) Na Galiza ainda continuam a usar dessas formas arcaicas: usam, por ex.; aa, tanto para designar adillam (port. à) como para designar ala (em port. substituído por asa). Todavia há princípios de contracção. Muitos já pronunciam à, dó, mó, mór, só e bô (por boo — bõo — bono). () Vid. Leite, Lições p. 16 e 181. O proto-histórico vai do século IX ao XII e abrange documentos latino-bárbaros, nos quais há numerosas formas neo-latinas como abelia, ovelia — em egrafia de transicão.
279
LEXICOLOGIA
111 —
PARTE
Renascença, não só em Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão e Sá de Miranda, mas mesmo na linguagem dos clássicos mais bem cotados, sem excelusão de Luís de Camões.
Nos próprios Lusíadas há arcaísmos vocabulares, fonéticos, morfológicos e sintácticos : por ex., tta, lita, algia ; enxuito, Íruito.
E bastantes subsistem ainda nos dinlectos provinciais. Ulteriormente
o veremos.
Mas apesar disso os factos históricos, oceorridos em fins do século XV c princípios do imediato, são importantes não só para a vida social mas também para a língua, a ponto tal que justificam plenamente a escolha da data 1500. Só depois da cireunnavegação da África, o descobrimento do caminho
marítimo
das
Índias
orientais,
o descobrimento
das
Índias
ocidentais por Colombo, c o Brasil por Pedro Álvares Cabral de um lado, e pelo outro lado depois do renascimento dos estudos clássicos, a língua foi enriquecida por numerosíssimas palavras novas, latinas e exóticas. E foi disciplinada por gramáticos como João de Barros e Fernão de Oliveira, e lexicógrafos como Jerónimo Cardoso (1570). Mas sobretudo por poetas e prossadores, de grande cultura intelectual e de raro talento artístico: os Quinhentistas. *
$ 21. Depois dêsses prelimiínares, em que eu só disse generalidades, mas generalidades que são idéias e dão dirceetivas para a análise do Léxico nacionaol, podemos
tratar dos elementos
de que éêle consta. Das Fontes
do léxico, riquíssimas sobretudo com relação à vocábulos orientais. Não é difícil indicar essas Fontes por grosso. O
que
custa
é recomendar
obras
de consulta,
onde
exóticos,
os senhores
possanm procurar portmnenores exactos, fidedignos e suficientes a respeito dos vocábulos mais usados com que primeiro Roma e por intermédio dela a Grécia e posteriormente a Germânia,
a Arábia, a África, a Ásia
e à América, assim como outros povos europeus eontribuíram ao vocabulário português. Quási tudo está por fazer. Não há por ora nenhum Diciondrio Etimológico da língua portuguesa, explícito e documentado. O de F. A. Coelho é só um Manual, em que a forma reduzida das explicações é necessáriamente incompleta. As excelentes A postilas de Gonçalves Viana não abrangem a língua inteira. Faz
língua
imensa
portnguesa,
falta
em
também,
que
um
Dicionário
se registem
só do
1.º período
e se documentem,
ampla
da
e
280
LIÇÕES
cuidadosamente,
todos
DE FILOLOGIA
os têrmos
FORTUGUESA
contidos
nos
textos
arcaicos,
tanto
os
que estão antiquados como os que continuam vivos. O Elucidário de Santa Rosa de Viterbo é
uma contribuíção preciosa, insubstituível pelas citações, tiradas de documentos públicos,
em parte perdidos. Mas ainda assim é muito pobre, porque êle não podia no seu tempo (**) aproveitar nenhum dos principais monumentos literários da época galego-portuguesa. Os defeitos das grafias antigas também induziram o autor em numerosos erros ; (a 2.º edição de Lisboa, 1865, deve
estur na Biblioteca). Há,
isso
sim,
numerosos
trabalhos
especiais;
quási
todos
dos
mesmos, poucos, filólogos portugueses, que costumo citar : Coelho, Leite, Nunes, Gonçalves Viíana, Júlio Moreira e Pedro de Azevedo (da Tôrre do Tombo). Sobretudo na Revista Lusitana há bastantes vocábulos dialectais, e Glossários de textos arcaicos (como, por ex., o que Leite de Vasconcelos juntou às Fábulas de Esopo). Há o grosso volume de Etimologias de Gonçalves Viana : Apostilas aos Dicionários Portugueses (Lisboa, 1906; mais de mil páginas) a que já aludi. E há acrescentos muito úteis ao Dicionário Latino-Romáânico de Kórting, publicados no ÁArchiv de Herrig (Vol. 126 e 127) por Oskar Nobiling, de São Paulo. — Os Subsídios de Cortesão também são valiosos. — Onde convier irei citando uns e outros, assim como as obras gerais e magistrais de Diez até Meyer-Lúbke. Quanto ao pecúlio latino e todos os elementos estranhos, acolhidos pelos Romanos e por êles transmitidos aos Neo-latinos, é indispensável recorrer constantemente ao Dicionário Etimológico Latino de AÁlois Walde. Nêle há. em cada artigo, a bibliografia que lhe diz respeito. Ela é enorme, Mas ainda assim, ficam em aberto numerosos problemas. Os estudiosos que não lêem alemão podem servir-se do Dictionnaire Etymologique Latin de Bréal et Bailly.
()
Lisboa,
1798-1799:
Elucidário
das
palavras,
têrmos
e frases,
que
antiga-
mente em Portugal se usaram e que hoje regularmente se ignoram., Obra indispensável para entender sem érro os documentos mais raros, e preciosos que entre nós se conservam, Publicado em benefício da literatura portuguesa e dedicado no príncipe nosso senhor por Fr. Joaquín de Santa Rosa de Víterbo, dos Menores Observantes reformados da real províincia da Conceição.
LIÇÃO II (XIV) FONTES
VOCABULÁRIO
DO
PORTUGUÉS
LÉXICO
PORTUGUÉÊS
compóõe-se de vozes latinas e vozes não-
«Jatinas — como o de tôdas as demais línguas românicas. Um
terceiro e importantíssimo grupo abrange aquêles termos que
não entraram prontos e feitos na língua, mas foram formados, pelo contrário, dentro de Portugal, pela reiinião de elementos de proveniência diversa. Elementos que são raízes (ou palavras inteiras) e sufixos e prefixos de variadas origens. Um quarto grupo se pode constituir, das criações completamente novas, em regra onomatopnaicas. Por ora deixo de lado êste último, relativamente pequeno, como o penúltimo, muito abundante, dos derivados e compostos. Começo com as palavras que entraram prontas e feitas no Vocabulário português (embora não sem evolucionarem) : as que representam formas lnatinas constituem naturalmente a maioria. Temos de distinguir diversas camadas.
A primitiva abrange o pecúlio que foi comunicado aos Celtiberos lusitânicos, no tempo do Império, por meio de transmissão directa, oral, popular ; isto é, o tesouro dos têrmos indispensáveis, comuns a tôda a
família neo-latina, com alguns que só se conservam na península, ou mesmo exclusivamente em Portugal. O fundo pan-românico: popular. As camadas posteriores abrangem o pecúlio, timbém vasto dos têrmos ceultos, científicos e poéticos, que foram tirados propositadamente da linguagem escrita latina, em épocas sucessivas de mais ou menos vivaz vida literária. Por exemplo: no tempo de Carlos Magno, cuja actividade se reflectiu em tôda a Europa ocidental; nos reinados de D. João I e D. Duarte, que se aplicaram a dar impulso novo à nação: na era do Renascimento : e nos nossos dias. De ambas as espécies — vocábulos
herdados
e nacionalizados,
e
vocíbulos livrescos menos alterados — ocupar-nos-emos. demonstrando então que bastantes vozes latinas tiveram na língua portuguesa três e mais ecos, conforme já expliquei de passagem em lições anteriores. Por motivos práticos principio com os elementos estrangeiros, não-latinos. Sucintamente, porque não há tempo para mais. Seria interessante agrupá-los em elementos de origem árica ou indo-germânica, e elementos de origem não-árica : semítica, mongólica, etiópica, americana, oceânica.
282
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Assim não perderíamos de vista a classificação dos idiomas de que os entretive há pouco. E frisaríamos bem o facto que a península, cujos habitantes, indígenas, eram de raça não-caucásica ( provavelmente), quer aparentada com Berberes, quer com povos asiáticos, foi invadida por três vêzes por povos semíticos: Fenícios, Cartagineses, e Árabes, mas que, ainda assim, nem mesmo o último domínio estrangeiro. que durou sete a oito séculos, alterou o carácter da fonética e da morfologia da
língua que fôra comunicada aos Peninsulares pelo povo-rei. Só actuou no vocabulário. Para maior clareza adopto todavia a divisão cronológica, geral-
mente usada, fazendo subdivisões por línguas (*). Temos de distinguir einco ordens sucessivas de vocábulos não-latinos: I— A primeira abrange os elementos estranhos que tinham já sido acolhidos pelos próprios Romanos (cuja pobreza lingiiística originária é sabida), e foram por êles passados ao português ; quer proviessem de línguas realmente faladas na península ibérica antes da sua romanização e durante a sua romanização, quer proviessem de povos orientais
que os haviam transmitido aos Gregos, que por sua vez os comunicaram aos Romanos. FIiomas falados na península podem ser fenícitos, gregos, célticos, púnicos. Elementos orientais acolhidos pelos Latinos são egípcios, pérsicos
e hebraicos. Formam categoria especial, a primeira de tódas. os elementos ibéricos ou ibero-lusitanos : poucos e muito difíceis de destrinçar. 11— AÀ segunda ordem consta de elementos provenientes de línguas faladas pelos conquistadores da península, posteriores ao domínio romano : Germanos e Árabes. Ambos actuaram no português exactamente nos séculos em que êle se ia formando : (V a XII). III — A terceira ordem abrange elementos provenientes de línguas faladas na Europa durante a Idade-Média, depois da constituíção dos diversos romanços : de 1200 a 1500, por povos que então estavam em relações directas (sobretudo comercinis mas também literárias) com Portugal : (Espanhóis, Provençais e Franceses, Italianos, sobretudo Genoveses e Pisanos) e homens do norte (Escandinavos, Holandeses, Engleses). IV— A quarta ordem abrange elementos exóticos que entraram (”) No livro de F. A. Coelho sôbre a Língua Portuguesa há uma Seeção III que trata da Formação do Léxico Português. Claro que desde 1881 os estudos glotológicos conduziram a resultados novos, os quais terei de registar aqui, afastando-me
às vêzes dêle.
PARTE
11l — FONTES
DO
LÉXICO
PORTUGUÊS
283
me Portugal durante a era dos descobrimentos e das conquistas, realizadas na África, Ásia, América e Polinésia.
V— A quinta finalmente abrange elementos de introdução moderna, vindos de países tanto curopeios como extra-europeios. Fruto das múltiplas relações comerciais e literárias ( jornalísticas em grande parte ) que pouco a pouco se estabeleceram no mundo inteiro, pelo desenvolvimento
das comunicações
rápidas,
marítimas,
terrestres
e aéreas,
quási
ilimitadas. Em
parte
êsses
elementos
modernos
são
também
de
contactos
directos, dentro de Portugal, com indivíduos que falam línguas estrangeiras (colónias inglêsas e alemãs). À
esta
classe
pertencem
numerosos
têrmos
científicos,
interna-
cionais, formados, em regra, lá fora, com elementos gregos (telefone, gramofone, aerostato, radiografia, etc.). Com Espanha houve sempre relações mais ou menos íntimas, ora hostis, ora pacíficas. Como houvesse mesmo sessenta anos de união, centenas
de
autores
portugueses
lembrá-lo. Mas as palavras mente
e se
conservaram
poetaram
castelhanas no
falar
que
em
castelhano
entraram
comum,
não
são
pela
—
torno
fronteira
tantas
como
a
oralera
de
esperar. Ainda assim são mais do que deve supor quem ler os passos que F. À. Coelho lhes dedica. Parece-me certa a razão por éle indicada: O vocabulário das duas nações cra quási igual, por conseguinte o português não carecia de ir lá buscar o que possuía. Ainda assim, êsse capítulo (ainda não escrito) talvez reserve algumas surprêsas ao futuro investigador. * Em
geral
os elementos
não-latinos,
anteriores
a 1200.
estão
per-
feitamente popularizados e nacionalizados, tão perfeitamente que nenhum leigo reconhece ns suas origens. Isto vale tanto dos que entraram logo nos primeiros séculos da era cristã, juntamente com a língua de Lácio, como dos germânicos e àúrabes. é Quem diria à primeira vista que abarca é ibero-basco? que lousa é vocábulo celtibérico? que braga é céltico? que pedra veio do grego? que fulano é árabe? Ninguém. Para o provar foi preciso o trabalho acumulado de dezenas de outros investigadores que guiando-se pelos resultados da cultura, pelas análises fonéticas, e pelos passos documentais, os rceonduziram às fontes. Evidentemente os exemplos citados (que podia centuplicar) se nacionalizaram e popularizaram porque denominavam produtos e objectos e canceitos do domínio comum.
284
LIÇÕES
Todos
evolucionaram
DE FILOLOGIA
em
PORTUGUESA
conformidade
com
as
mesmas
leis,
normas e tendências que fizeram do português uma língua independente, nacional, diversa da irmã gêmea, o castelhano.
Do ponto de vista filológico, seria portanto justificado juntarmos em um só grupo os elementos estranhos herdados e adaptados à língua nacional. Ou por outra os das ordens 1, IT e III. Ainda assim os elementos arábicos téem certas qualidades fonéticas que os destacam dos restantes e dão ao português (como aos outros
dois idiomas peninsulares) o seu carácter peculiar, bastante diverso do italiano, do francês, do reto-românico e do romeno. Além deêles, são os ibero-bascos com os sufixos -arro, -erro, orro, urro ( bizarro, bezerro, cachorro, casmurro), etc., e os brasileirismos que
distinguem a nossa língua. Muitos elementos estranhos modernos da ordem V entraram, pelo contrário, inalterados. São verdadeiros estranjeirismos. Talvez passem de moda, como já aconteceu a bastantes, anteriores,
que só vivem em livros históricos, por dizerem respeito a instituíções e costumes hoje antiquados. Ou então nacionalizar-se-ão no futuro — se não cederem o lugar a outras formas. *
Quanto à utilidade dos elementos estrunhos, ou ao prejuízo que causam, é certo que nenhuma nação civilizada passa sem êles. À faculdade genial que criou as línguas humanas, em milhares de séculos, extinguiu-se, mas não se extinguiu a que constantemente produz objectos novos. e descobre factos e fenómenos desconhecidos. E por mais fértil que seja a faculdade de formar derivados e compostos, cla tem os seus limites. Por isso os povos trocam entre si não só produtos mas também Os seus nomes. Do mesmo modo literatura alguma pode passar sem têrmos livrescos, poéticos, sublimados, que em estilo elevado substituam
os já
gastos pelo uso diário. Éles
embelezam
a expressão
das
idéias,
e facilitam
o estudo
de
línguas estranjeiras e das ciências. Combater os Lehne Fremdwôrter é quixotesco. imaginem que dificuldade seria, se cada língua, em lugar de se servir da terminologia científica internacional (greco-latina), inventasse para denominar a electricidade, o telefone, o telegrama, a radiografia, palavras exclusivamente suas, diferençadas.
É bom. formados. É
proeciso
útil, justo,
combater
acompanharmos
e
estranjeirismos auxiliarmos
supérfluos
puristas
e mal
beneméritos
PARTE
111 — FONTES DO
LÉXICO
285
PORTUGUÊS
como Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos. Cândido de Figueiredo. na
sua campanha contra galicismos descabidos. Modismos como costume (na acepção de traje, vestido) ; costume tailleur ou tailor-made, em lugar de vestido rueiro; habitat, em vez de vivendo ; clivage, por vieiro ; filão por veio ; viável por exeqiível, realisárvel ; usina, em lugar de oficina, são evidentemente dispensáveis. Mas não se deve ir longe demais. Acho excessivo guerrear, por ex., ligeiro (adjectivo antiqilíssimo, e perfeito representante de leviarius); fundo, como contraste de forma ; interesse e interessante ; mais tarde, no
sentido de ulteriormente e posteriormente, visto que a-par dessas formações eruditas e internacionais não há outra popular, meramente portuguesa* * Voltemos às cinco ordens estabelecidas, e às subdivisões.
A
classificação
parece
boa
e clara; mas na prática falha, ainda
assim.
Os caminhos percorridos por certos vocábulos são muita vez rodeios. Antes de serem portugueses, bastantes passaram por países diversos, alterando-se pouco a pouco, distanciando-se cada vez mais da sua origem. Pela
bôca
de
Franceses,
Italianos,
Espanhóis
entraram
às vêzes
latinismos em travesti que os torna quási irreconhecíveis. Idéias e formações gregas passaram pela Arábia, antes de se localizarem na península. Idéias e formações greco-arábicas espalharam-se no Oriente, na Pérsia, na Índia e no arquipélago malaio antes que de lá fôssem transmitidos às nações curopeias.
Como os livros e mais do que êles, os vocábulos téem fadários curiosos: Habent sua fata vocabula. Vejamos alguns exemplos. Mais uma vez lembro os numerosos rebentos do latim planus no nosso português: o adjectivo e substantivo popular chão; o erudito plano; o castelhano lhano usado só com acepção abstracta de despretencioso, sincero, Íranco; o piano da Itália; o advérbio pram ou de pram, tirado de plane, muito usado na época galego-portuguesa ; ésse mesmo elevado a substantivo em linguagem náutica vulgar na forma porão; e também os nomes de Iugar Alporão, Alplan, arabizado pelo artigo (ll
(lll).
-
Frei, abreviatura de freire, veio da Provença, onde se desenvolvera
de fradre, fratre (**) têrmos.
David
— morto na Península, por motivo difícil de explicar. Lopes
e
Gonçalves
Viana
já
chamaram
a
atenção
para
éêsses
286
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Monge veio igualmente da Provença, sendo grego de origem (monachos), conforme expliquei na Lição prática. Avaria foi transmitido a todo o Ocidente pelos marinheiros de Génova, mas as suas raízes estão na Arábia.
Yacht, navio de recreio e de aparato, foi introduzido por Inglêses, que o receberam da Holanda, mas no fundo é alemão : Jagd (de jagen). Chefe,
vindo
de
França,
é representante
directo
do
substantivo
latino caputi, que já cá tínhamos na forma cabo. Jaula (de leão) é caveola, diminutivo de cava, que já nos dera a gaiola (de pássaros). Sorvete com sorveteira, de introduçião recente, é evidentemente o francês sorbet, sorbetiêre, muito embora em Paris se dê ésse nome ao
que nós chamamos carapinhada e não ao gelado pastoso que os bons portugueses chamam rneve. Para França viera da Itália, que recebera dos Turcos sorbetto, ou pelo menos a raiz sorb, transposição de xurb, derivado do verbo árabe xarab, beber. Verbo que com as suas três con-
soantes radicais (três em tôdas as vozes arábicas) x, r, b, talvez seja parente do latim sorb, se efectivamente houver parentesco ou mesmo unidade primitiva entre línguas indo-germânicas e semíticas, como pen-
sam alguns glotólogos muito avançados (*”*). Em
todo o caso xarab, já nos dera xarope, antigamente axarave.
Ésse, latinizado, dera aos Franceses, sirop (alemão Syrup). Tremôço, em castelhano atramuz, representa o árabe
altermôs, mas êste não é nada mais do lupina, aparentado ou não com thermós, Triaga, em castelhano atriaga, tem passara à Arábia. Barca, vocábulo hoje internacional,
attarmôs,
que grego thermos (nome da calor). as mesmas origens: da Grécia empregado cedo em Portugal
(numa inscrição latina de Tavira, do Algarve, do século I ou II). passou longos tempos por ser fenício ou cartaginês, simplesmente porque os
Fenícios foram grandes navegadores, e colonizaram sobretudo a costa sul da península. Talvez também porque o pai de Hannibal (ITfamilcar) tivera o sobrenome de Barkas. Mas em cartaginês ou púnico Barkas significa relâmpago. Bareca, embarcação, entrou no sermo vulgaris da Itália por intermédio dos Gregos na forma baris, de que êles fizeram barica; e depois barca. Baris, por sua vez, é um dos empréstimos que a Grécia levantara no Egito. Entre os Egípceios modernos (os Coptos) bárias ainda hoje se emprecga. () Gonçalves Viana já citou o famigerado L'unità dorigine del linguaggio (Bologmna, 1905).
Alfredo
Trombetti
e sua
obra
PARTE
I11
— FONTES
DO
LÉXICO
PORTUGUÊS
287
De resto essa proveniência não era desconhecida. Só esquecida. O próprio Herodoto já a indicara. É costume geral, justificado, englobar vocábulos dêsses sempre com os da última língua que foi a intermediária directa. AÁssim, diz-se simplesmente que barca vem do latim vulgar ; chefe. Juula, sorvete, são Íranceses; yacht é inglês, avaria, italiano; frei e monge são provençais ; tremóço e triaga são árabes, com o que não quero
dizer que não seja bom retroceder, à procura das verdadeiras origens. até onde possamos. *
Expondo agora — brevi manu — o que há de ibérico e de céltico, de fenício e de cartaginês, de grego e de hebraico, de germânico e de árabe, no vocabulário português, terei de dizer mais de uma vez que certa palavra que ontem passava por ibérica ou hispânica, passa hoje por ser céltica; por grega ou greco-germânica a que se julgava mera-
mente germânica (por ex., burgo) ; por céltica a que tinha sido dada por germâniea
(rico);
ou por germânica
a que se passava por céltica
(camisa). Outras vêzes terei de indicar que a respectiva origem é ainda desconhecida. (ontem mesino assim me aconteceu com tomar) ou que à respeito de várias se continua em dúvida (por ex.. a respeito de cavalo, veiga, nava). Tais hesitações e confissões de ignorância, que podem surpreender leigos e principiantes, apenas provam as enormes dificuldades com que lutam os glotólogos nas suas investigações comparadas sôbre a expressão verbal de objectos, conceitos, instituíções. Como já mais de uma vecz lhes tenho dito, essas investigações baseijam-se por um lado em análises dos sons, como elementos irredutíveis das palavras, e pelo outro lado na
história dos próprios objectos, e instituíções. Histórias de Coisas e Nomes não se improvisam. Levam muito tempo, e em regra só se podem realizar com respeito a objectos positivos. Egiptólogos, Celtistas, Helenistas, Germanistas, Arabistas, Tberistas.
téêem de acarretar pouco à pouco os materiais.
* A hesitação entre origens gregas, germânicas, célticas, é conseqiiencia do parentesco entre essas línguas indo-germânicas, tão íntimo que há às vêzes coincidência, quási identidade de vocábulos. AÀ ignorância, a respeito das línguas hispânicas ou ibéricas, é con-
seqitência do isolamento fundamental delas, das nenhumas relações que téem com outros idiomas do mundo, e também da sua escassa documentação. Como não haja monumentos literários ibéricos, conhecemo-las apenas: a ) pelo onomástico, antigo e moderno ; b ) por inscrições lapi-
288
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
dares e de moedas: c) por palavras diversas citadas por autores gregoJatinos; d) last not least, pelo ramo que escapou à sobreposição do latino, aquêle que subsiste no canto noroeste dos Pirenéus — único representante das tribos que outrora ocuparam não sômente a Hispânia inteira, mas também a Aquitânia francesa : o vasconço. A hesitação entre origens ibéricas e célticas, em terceiro lugar — provém de que os habitantes que os Romanos encontraram nas Espanhas já não eram os primitivos indígenas:
Eberos puros (**).
Além de línguas de colonos fenícios, púnicos, ligúricos, gregos ( pouco arraizados e espalhados, e que por isso desapareceram depressa ) éles ouviram línguas ibéricas, línguas célticas mas sobretudo línguas celtibéricas, — uma fusão das duas, cujos elementos nem todos seriam capazes de destrinçar. Os escritores . greco-latinos que registaram amostras, Estrabão, Plínio, Varro, Columella, Quintiliano, Santo Isidoro de Sevilha — do
século I ao século VII da Era C. — classificam-se por isso ora de célticas, ora de celtibéricas, ora simplesmente
de hispânicas, seguindo evidente-
mente a tradição — mas sem verdadeiras investigações. Que maravilha, se a análise do que é céltico e do que é ibérico, resulta difícil? se há investigadores modernos prudentes que preferem designar vagamente de pré-romanas tôdas essas palavras avulsas? Em regra téêem probabilidades de serem célticas as palavras que existem também fora da península, e ibéricas as que não técm paralelos em nenhum idioma neo-latino, a não ser em dialectos do sul da França (na Aquitânia e na Gasconha onde, a concluir do onomástico topográfico, houve também Iberos).
O vocábulo YViriato, por ex., que escolho por ser de todos os nomes próprios lusitânicos pré-romanos o mais conhecido, deriva de um substantivo viriae ( pl.), acolhido pelo Romanos, e que significava bracelete, torques. Viriato é portanto sinónimo de Torcato: Plínio, classifica-o de celtibérico e o derivado viriolae de céltico (Viriolae celticae dicuntur; viriae celtibericae, Hist. Nat. 33 e 40), o que podia fazer admitir origens ibéricas, mas deixava margem para dúvidas. Elas só se desvaneceram desde que Celtistas de polpa provaram a existência de vocábulos paralelos em dialectos célticos, e outros aparentados nas línguas ger.-
mânicas (**).
i
(**) O nome de Iberos, é bom repeti-lo, fôra dado por estranjeiros, Gregos de Massilia (Marseille) aos povos que viviam em volta do Ebro-lber; mas posteriormente foi aplicado a todos os povos da península, dando-se-lhe a ela o nome de ITbéria.
() Vid. Holder, Altkeltischer Sprach-Sehatz — Thurneysen, Keltoromanisches, Halle, 1884,— Dr. Alois Walde, Lateinisches Etymologisches Woôrterbuch, Heidelberg, 1910. Repito que é preciso consultarmos empregados por escritores latinos.
essa obra
com
relação
a todos os vocábulos
PARTE
111 — ELEMENTOS
289
IBÉRICOS
*
a) Elementos ibéricos. — Os mais importantes e numerosos, c quási os únicos persistentes são nomes próprios, tanto topográficos, de rios, montes, lugares, como de pessoas e sobretudo de divindades. Divindades (como o Bormanico, de Vizela, o Endovelico, de Terena.
a Trebaruna, de Fundão), nomes de pessoas mencionados em inscrições votivas como Camalus, Bovius, Tongius, Coronerus, Docquivicius (roma-
nizados pelo menos na terminação). Nomes
de rios como Tagus, Ánas,
Lima e de serras como Tlerminius.
É campo vasto e curioso. Mas dificultoso para principiantes (**). Dos apelativos registadopor s Gregos e Romanos, parte não passou às línguas neo-latinas. Desapareceram, por ex., celia, nome de uma espécie de cerveja feita de trigo; caetra, escudo de coiro; ballux ou baluca, areia aurífera. Se estão em alguns Dicionários castelhanos, é por nefas: os lexicógrafos acolheram tais palavras latinas, empenhados em constatar a existência de vocábulos ibéricos. Dos que realmente ficaram vivos, os mais seguros referem-se a as-
pectos geográficos e à riqueza mineira da península (**). Lousa, originàriamente ardósia e depois qualquer lâmina de pedra, ocorre na forma lausiae numa das tábuas de bronze das minas de Aljustrel, que são do século IIT. Existe exclusivamente em português, castelhano e provençal.
Arroyo
ribeiro, regato, e nome de família, vem de arrugia, galeria
(**) Quanto ao método de análise que o investigador deve aplicar a elementos celtibéóricos, sobretudo nos nomes próprios, há observações preciosas de F. A. Coclho, provocatas pelo que se escreveu a respeito da Citânia de Briteiros, num artigo intitulado Ensaios do onomatologia celto-ibérica — Lisboa, 1880, na Revista PEthnologia c do Glottologia. Do mesmo autor temos: Nomes de Deuses Lusitanos, — Antigos nomes hispânicos. — Vestígios das antigas línguas da Península Ibérica — publicados na Revista de Archeologia (111, 1889) e na Revista de Guimarães (I1II, 1886). Já citei várias vêzes as Religiões da Lusitánia, de Leite de Vasconcelos. Quanto aos nomes topográficos, há o Mapa de Kiepert e o Beitrag sur alten Ethonographie der iberischen FHalbinsel, do mesmo. (*) O primeiro trabalho moderno, científico, dedicado ex-professo nos problemas ibéricos ou proto-bascos é do grande glotólogo alemão Guilherme de Humboldt. Priifung der Untersuchungen túiber dio Urbewohner EHispaniens vermittelst der baskischen Spracho (Berlim, 1820), ainda hoje digníssimo de ser lido, apesar dos progressos notáveis que a filologia fêz. E.
PHillips,
da
Academia
Vienense,
rectificou
em
oito
tratados,
relativos
a
1beros e Celtas, muita etimologia errónea do predecessor. Grande passo àvante foi a publicação das inscrições lapidares e de moedas, realizada por Hucbner: Monumenta linguac ibericac (1893). Em francês podem ler a obra de Luchaire, Les Origines linguistiques de PÁquitaine (1877). Quem souber alemão, tem no Grundriss, um excelente resumo dos resultados, apurados até hoje no estudo de G. Gerland, Die Basken
und die ITberer.
290
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
em minas metálicas, segundo Plinio (Hist., Nat., 33, 70). Só existe em
castelhano e português (**). Designações geográficas subsistem em páramo, parameira, em nava e veiga : tôdas elas exclusivamente do domiínio hispânico. Páramo é uma planície inculta, um campo raso e solitário, uma campina êrma, como tantas há, no Alentejo, e também em Castela. Ésse
vocíábulo ocorre pela primeira vez numa
inscrição votiva, latina já se
vê, de um altar de Diana, encontrado em Leão. Nela, certo Túlio oferece
à deusa os galhos dos veados que caçara in parami aequore: — em planície tão plana como a superífície do oceano ou no mar da planície tão
plana como lençol de água (Corp. Inscr., H 2660) (**). Veiga,
afamadíssima -portuguesas.
pelo contrário,
Vega
de
é uma
planície fértil, uma
Granada, —
várzea, como
a
teatro de vários cantigas galego-
Nava, palavra que figura nos Dic. port., como desusada. mas que é familiar aos senhores pelo menos pela grande vitória ganha sôbre o
Islamisnio em 1212 pelas fôrças reiinidas de Espanha e Portugal, auxiliados por mimerosos guerreiros de França, nava é uma declinação côncava de terreno, espécie de concha, cireundada de montanhas. Não tem nada com nau e nave. Em Navarra há evidentemente a mesma
palavra;
e a mais o sufixo também ibérico arra (**). Também são exclusivamente peninsulares sarna, palavra transmitida por Isidoro, doença provavelmente freqiiente entre os Iberos, mas desconhecida aos Romanos (?) ou pelo menos sem nome especial; e cama, também transmitida por Isidoro, mas considerado por alguns de origem grega. Outros têrmos acolhidos pelos Latinos foram transmitidos a mais alguns idiomas romanos, por ex., o adjectivo gurdus, cuniculus (coelho). Goiva (gubia), manta (mantum), cabana, capa, são duvidosos. Não mencionados por autores antigos, mas autenticados como ibéricos ou proto-bascos, pela sua existência e sienificação no vasconço moderno, são: bezerro, morro, modorra, samarra, carrasco, abarca; e
os adjectivos, bizarro, esquerdo. Talvez tambén manteiga e taipa. Em castelhano há outros como urraca ( pêga), perro (cão), zorro
(raposa), guijarro, pizarra (**). (*”*) Meyer-Lúbke, 1, 521, tem escrúpulos demasiados, arrvio “ arrugia, por causa do género e substituição de « por o.
(*) (*)
a
Nas Lições de Leite, pág. 127, há transcrições e tradução. AÀ respeito de nava, veiga há estudos importantes, com
despeito
de
argumentos contra e pro a origem ibérica, de Hugo Schuchardt, na Zeitsehrift, vol. XXXIII, (cap. XXIII) de Gottfricd Baist, também na Zeitschrift, no Grundriss, no Kritischer Jahresbericht, VI e numa KHomenagem a Volmóller, pág. 25. Eu sou a favor. () Se perro não fôr o nome próprio Pero, de Pedro, com pronúncia enfática do r, usadíssima entre os Bascos e também freqiiente em tôda a Península (Sarracenos). Há quem derive do ibero-basco ainda outros nomes de animais (corça, gardunha,
podengo,
tordo).
PARTE
I1l — ELEMENTOS
291
CÉLTICOS
Ão todo uns cinqiienta. De introdução recente em Portugal são: gorro, gorra, gorrião e boina, que passaram naturalmente por Espanha antes de nos chegarem. Como elementos morfológicos, temos os sufixos produtivos já citados. -arra, -erro, -orro, -urro.
E porventura, a terminação átona -ez dos patronímicos, Alvarez, Sanchez,
Rodriguez,
Menendez,
etc. Mas
também
a respeito
dela
as
opiniões estão divididas. Cornu e Leite de Vasconcelos supõem origens latinas. Procuram latinos medievais,
em -es, -ez, escritos -iz, izi e “ici, nos documentos o genitivo do sufixo -icus. — Martin Didaci seria
Martim de Diaz: entenda-se M. filho de Didacus; Nuno Roderici — Nuno, filho de Rodrigo, ete. (**). Antigamente — nas obras de Diez e seus sucessores imediatos — a lista ibérica, cuscara ou vasconça, era mais extensa. Consideravam-se como verdadeiros iberismos, vocábulos introduzidos no falar dos Bascos
pelos Latinos, ou mais vêzes pelos vizinhos neo-latinos. Por ex., acicate, sarracina, que vêem ambos do árabe, e grisol que é greco-latino (Cruciolum) ; em português crisol com acrisolado. *
b ) Elementos célticos. — Passo directamente aos elementos célticos. embora a cronologia exigisse que tratasse primeiro de fenícios e lígures, porque centre todos os povos que se sobrepuseram às tribus indígenas e se cruzaram com clas, nenhum influíu mais profundamente nos Lusitanos e Galegos do que os Celtas, tanto no carácter étnico, na alma nacional, como nas suas manifestações supremas: a língua e a literatura. Nenhum outro conduziu a uma verdadeira fusão. — Só quanto aos Celtas temos a prova na designação celtiberos —
e em numerosos têrmos, do onomás-
tico, — reconhecidos hoje como bilingues. O celtibérico já foi assunto de numerosos trabalhos, e continua a ocupar eruditos nacionais e estranjeiros, mas os problemas ainda não
resolvidos são tantos e tão complicados que não nos podemos ocupar
dêles aqui (**). Apenas direi que a antigos nomes de lugares, provàávelmente ibéricos, juntaram os Celtas freqiientemente apelativos como dunum e briga, — castelo — formando assim compostos bilingues — como Conimbriga, Setóbriga, Lacóbriga, Langóbriga, Miróbriga, Arcóbriga. É êsse costume (**) Cornu, Gram. $ 222; vid. Leite, Lições págs. 17 e 355; e Revista Lusitana, TX, 395, Cfr. Menéndez Pidal, Cid. HI, pág. 2t4; Carnoy, pág. 234, (**) Nas Lições de Leite, há vários capítulos relativos a nomes. Exposições muito mais explícitas há naturalmente nas Religiões (Vol. 1I). O mesmo autor publicou na Rervue Celtique em estudo dedicado aos Celtas: Les Celtes de la Lusitanio portugaise
(Vol. XXIII).
292
LIÇÕES
no
continuou
tempo
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
originando
dos Romanos,
nomes
latinos
célticos
como Augustóbriga, Caesaróbriga, Brutóbriga. Mesmo quanto a nomes de pessoas e divindades, há muitos em que os eruditos apontam celtismos nos segundos elementos, por ex., brigus em Tameobrigus. O primeiro elemento, fica em regra por explicar. Seguramente anterior,
é provavelmente
ibérico.
Não foram só os Iberos que acolheram elementos célticos por contacto directo. Os latinos também lhes devem muito. E os celtismos por êles aceites, são os verdadeiramente perduráveis e férteis, propagados pelo mundo fora. Há latina.
pelo
menos
duas
de
camadas
vocábulos
célticos
na
lingua
A primeira, anterior às conquistas, entrou directamente em Roma, vindo do Norte da Itália, da Gália Cisalpina, desde o sécnlo IV antes
da E. C. A segunda provém da conquista da Gália por César. É a mais abundante. Ambas nacionalizaram-se e popularizaram-se tão completamente que entraram no património comum das línguas românicas como se fôssem verdadeiramente latinas. A primeira camada deu-nos têrmos relativos ao vestuário dos Celtas: saío e sata (sagum), bragas (braccas) espécie de calças compridas na antiguidade, posteriormente curtas e largas; cogula (cuculla); e talvez a camisa. Carpinteiro de carpentum ; o cavalo e beijo, beijar, de basium, Dasiare. Quanto ao cavalo já disse que os Celtas talvez fôssem só intermediários. À segunda camada pertencem, mina, duna, roca (com rocha); carro e caminho, cambo com cambaio ; combo comba (côncavo) ; peçae bico (beceus); cerveja (cerevisia); savão (sapo-saponis); a árvore betula (vidoo-vidociro); gamba, gâmbia (em francês jambe) que só subsiste entre nós em locuções chulas de gíria como dar às gâmbias; palafrem com palafreneiro, outro substituto de equus: (paravere-
:
dus) (**).
Comuns nos idiomas ocidentais e a Itália são ainda legua (leuca), gavela, e brio, trado (verruma grande, de talatrum) ; grenha (cabelo desalinhado ) ; e o verbo cambiar.
Peculiar de Portugal e da Provença é eiva (defeito) eivado (aib): Peculiar de Portugal e Espanha o substantivo soga. O único
(*º) Cavalo alemão Pferd.
de
gala
para
nobres
e donas;
do mesmo
nome
céltico
deriva
o
PARTE
H
— FENÍCIOS,
CARTAGINESES
E LÍGURES
293
celtismo exelusivamente português é tona com destonar (descascar) do químrico ton. À França, céltica deu-nos posteriormente vassalo. truão, cais e embaixada. Embaixada, claro que não tem nada de comum
com
Bbaixo,
a não ser o som; vem de ambactus (Amt em alemão). O mesmo vale de druída, sacerdote céltico (gaulês e britânico); bardo, vate, poceta sobretudo épico que exaltava o valor dos heróis; rota, o instrumento de cordas em que os poetas líricos acompanhavam os seus cânticos. *
c ) Voltemos para trás aos Fenícios, Cartagineses e Lígures. Os Lígures, mais conhecidos, parece que não deixaram vestígios nas línguas peninsulares, nem directos nem indirectos ( apesar de Martins Sarmento e T. Braga). Os Fenícios transmitiram aos Iberos uma coisa preciosa: o alfabeto, — talvez só por intermédio dos Gregos (**). As opiniões a êsse respeito estão divididas. Quanto a vocábulos ou meros elementos vocabulares, há pouquissimos. Quási nada é seguramente fenício. Notem, o elemento ippo de Ulysippo e Colippo (antigo nome de Leiria). E o vocábulo saco, que, entrando na Grécia, passou a Roma, e de lá caminhou pelo mundo
fora
sem alterações fonéticas. Ésse caso raro, único talvez, deu muito cedo na vista, mesmo
dos
leigos, e provocou anedotas. Abraão de Santa Cruz, — frade Agostinho e prêgador alemão, — afamado pelo seu espírito vivaz e engraçado (1644-1709), conta em um dos seus sermões: que saco fôra a última palavra que todos os povos, dispersos depois da construção da Tôrre de Babel, ouviram e levaram consigo, porque o sumo arquítecto, ao ver a sua obra destruída, pedira em altos gritos o seu saco de viagem, no momento da partida involuntária (!). Barca (já o contei) foi eliminado pelos investigadores modernos e restituído aos Esgípcios. Ainda se discute àcêrca das galeras, das galeotas, e congéneres, que talvez sejam realmente de origem fenícia (**). Dos Cartagineses vieram mappa (alemão Mappe) e matta. O sentido primordial de Mappa, foi toalha, que depois evolucionon (segundo () Havia de resto vários alfobetos, embora com divergências pequenas. Muitas inscrições ibéricas estão todavia escritas com caracteres romanos. Vid. Phillips, Uber das iberische Alphabet, Viena-de-Austria, 1870. ()) A respeito da língua dos Fenícios, só posso indicar um livro alemão Schróder Die phônisische Sprache, Halle, 1869. Quanto à cultura e história, há, além de Múóvers, Die Phônizier, Berlim, 1841-56, 3 vol. e Pietschmann, Geschichte der Phônizicr (Berlim, 1889), — uma obra de E. Renan, Mission de Phénteie (Paris, 1865-1874) e outra de Rawlinson, History of Phenicia, Lond., 1889).
291
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Quintiliano 1, 567). Matta não subsiste em português na acepção primitiva de esteira, mas sim, alterado quanto
a consoante
inicial,
e com
a significação derivada, de nata de Teite (capa, toalha de gordura). Os Espanhóis possuem mais algumas recordações púnicas. Por ex., o nome de lugar Cartagena (*”*). *
d ) Elementos gregos. que Roma
Não posso expor em poucas palavras o
recebeu dos Helenos e o que lhes deve
relação a ciências e artes,
o mundo
inteiro, ecom
e com relação à expressão de idéias (**).
Na península ibérica a influência grega directa, data do século VII antes da era cristã, muito embora as lendas etnogénicas a recuem mais, fazendo vir Hércules a Gibraltar, aos campos do Mondego e a Corunha,
e o próprio Olysseus ou Ulisses à praia ocidental, onde, segundo elas, fundou Lisboa: Ulyssippo ou Ulyssipolis. Ociosas fantasias, inspiradas nos elaustros medievais a monjes torturados pela natural curiosidade de saber de onde viemos, e para onde caminhamos. Essas
relações
continuaram,
mais
ou
menos
intensas.
até
o fim
do Império godo (com Bizantinos, bem se vê). Mas apesar disso nenhum influxo directo sôbre a língua dos Iberos está provado.
Todos os grecismos que possuímos vieram para Portugal durante o domínio romano — sobretudo desde a introdução do cristianismo, com os textos bíblicos (nas traduções chamadas Itala e Vulgata) e pelos actos cultuais da Igreja. Isso vale não sômente da nomenclatura científica e artística, mas também da que diz respeito à instrução geral. A-par de filosofia e filologia, teatro, história, museu, academia, liceu, escola, alfabeto, pergaminho (fabricado na cidade de Pérgamo), papel, carta, hora, relógio,
época, período, temos igreja, clero, clérigo, leigo, baptizar, pároco, cemitério, bíblia, evangelho, o diabo e os anjos, a esmola, órfão, etc.
Além disso, numerosíssimos têrmos vulgares. Já conhecem pedra, cara, golpe, corda, espada, e a preposição cata, a que se deu sentido distributivo em cada um (antigamente com plural: cada uns). () Com relação à península-—-onde escavações arqueológicas revelaram objectos importantes, expostos num Museu especial,— leiam Bonsor Les Colonies agricoles pré-romaines de la vallée du Bêtis, Paris, 1899.. () Ao falar do latim vulgar referi-me também aos vocábulos oscos, sabinos e úmbricos ou sabélicos que entraram nêle e por intermédio dêle em alguns idiomas
românicos. Por isso e sobretudo por não português não volto ao assunto.
ter
importância
particular
para
o vocabulário
PARTE
HI — ELEMENTOS
ORIENTAIS
295
De muitos outros — cima, giro, cisne, buxo, zona, gêsso, gruta, murta, chusma c celeuma, bôlsa, calma, êrmo, madeixa. esfera, feijão, polvo, sanfona, tinasa, govêrno, assim como dos sufixos -ia, -essa, -ismo,
-ejar, «izar (de -idiare) terei de falar últeriormente. Mesmo tio, tia (theios, theia) que em Portugal têem sido alegados como de transmissão directa, existem
zia). Portanto embora
na
faziam
França
parte
também
do sermo
prevalecessem
tante,
na Itália (na forma zio,
vulgaris, de
amita,
dos Latinos que
deu
(muito
arnte,
com
reduplicação infantil do t, e oncle, de avunculus) (**). Quanto a queimar, dado por etimologistas antigos como derivado de kaima, por kauma (calor do sol), é mais provável fôsse vocábulo latino : Pronúncia vulgar de cremare — *qermare, *gelmare. Só com relação a cajado, bordão de pastor, que deve ser antiqiiíssino na terra das serranilhas», onde sempre se cultivou o género pastoril, não sei idear outra cetimologia senão derivação de Kkatos. que teve a mesma significação na Grécia. Vários têrmos gregos, outrora populares nos territórios galego-portugueses, desaparcceram. Por ex., domaa “ hebdomada, substitnído pelo semi-erudito semana. Alguns entraram, depois de se haverem popularizado,. em outras línguas românicas: pageím) (de paidionrapazinho); cofre (de cophinos ), assim como talento, vieram do francês. Golfo e cola tulvez de Espanha. Ainda outros foram introduzidos eá pelos Árabes, em forma alterada, como já disse e tornarei a dizer. Infelizmente não há por ora nenhum livro especial dedicado nos elementos gregos nas línguas românicars. *
*
e) Elementos orientais. — Por intermédio do grego e do Jatim passaram ao português alguns vocábulos hebraicos, internacionalizados pelo cristianismo — pela Bíblia: Amen assim seja! — Hosannah! — Halleluyah ! — Messias — Satanás — os Cherubins e os Serafins — os Jubileus. O mais usado é sábado. Depois dêle a Páscoa, o Pachá dos Hebreus, —
que significa passagem e que se celebrava em memória da
saída do EgitoEm França há outro mais popular ainda, e de curiosa evolucão: gêne (com gêné, ete.) apoquentação, tormento. que procede da Gelhenna bíblica : o inferno, onde há ranger de dentes c gritos angustiosos. Cabala e talmude são um pouco posteriores. Na
ITdade-Média,
É) Houve o irmiio do avô.
desde
evidentemente
o domínio alteração
dos Árabes
de sentido:
até ao reinado, cá,
avunculus,
de avuzs,
designava
296
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
de D. Manuel. c em Espanha, dos Reis Católicos, houve muitos Israelitas
em Portugal, financeiros, médicos, poetas ilustres. Do contacto com &Gles se desprenderam vários hebraísmos. Tanto no Cancioneiro galego-castelhano de Baena, como no Castelhano-português de Garcia de Resende ;
poderíamos respigar baostantes ; caíram todavia em desuso (**). Como lembrança das relações de inimizade aberta e da inimizade secreta que reinava nos tempos de perseguição entre Cristãos e Judeus
ou Cristãos-Novos, de que a Consolação de Israel, de Samuel Usque, é testemunho eloqúente, ficou-nos o substantivo malsim denunciante e caluniador, com diversos derivados como malsinar, que, infelizmente, estão hoje muito em moda. Entre os nomes de baptismo, usados em Portugal, claro que há muitos de origem hebraica. Por ex., Daniel, Abraão, Aarão, Samuel, Gabriel, Rafael, Miguel, Uriel, Jacob ou Tiago, José, Susana, Maria, Mariana, eto., etc. Do que nos veio do verdadeiro Oriente, da Pérsia e da Índia, de-
pois de 1500, por ora nada digo. Do
Egito
veio. além
de barca, por ex., ebur com
eboreo,
em
fr.
ivoire: O substantivo desapareceu na Península. Foi substituído pela formação árabe marfim — de nabfil — ou nab-al-fil — dente de elefante; o mesmo fil que existe em arfil, nome de uma das figuras do jôgo do xadrez. *
f) Elementos germânicos. — Éles são numerosos e valiosos — merecedores de estudo detido. Como os célticos, entraram por vias diversas e em épocas sucessivas. Primeiro por intermédio do latim vulgar que havia acolhido alguns, poucos, têrmos, logo nos primeiros encontros eom Godos c Hérulos. Depois do século VI, por contacto directo com os invasores. Poste-
riormente, por influxo da França, que naturalmente dispunha de muitos mais elementos germânicos do que o Extremo Ocidente. Nos tempos modernos, finalmente, pelo influxo internacional da ciência. e da indústria alemã. Ao todo seriio trezentos os têrmos que subsistem no português. Mas o cáleulo é vago. S Investigadores notabilíssimos trabalharam de 1890 para cá na solução dos problemas que os germanismos das línguas românicas suscitam. esforçando-se sobretudo por fixar a parte que coubera aos diver-
(**) Conhecem certamente o livro do Prof. Mendes dos Remédios sôbre os Judeus em Portugal e talvez ns obras de Kayserling sóbre a Literatura dos Judeus peninsulares.
PARTE
11 — ELEMENTOS
297
GERMÂNICOS
sos povos invasores: godos, suevos, francos, normandos —
e ao paleo-
-germânico, anterior às línguas diferençadas. Mas o processo não está concluído. À península ibérica não teve a melhor parte. O único autor que se ocupou dela não estava muito bem preparado. Ainda assim há contribuíções de pêso, especialmente sôbre os elementos visigóticos nos
nomes portugueses medievais de pessoas de Portugal.
e nomes de Iugares do Norte
Nomes como Freamunde, Recarei, Tagilde, Novogilde, Guilhomil, Esmoriz, Ardegães, Ermesinde, Gondomar, Bertiandos, Baltar, Ramalde,
Adosinda, Hermenegildo, Ataúlfe, atraem naturalmente a atenção dos Germanos, tanto mais que do tempo das invasões e mesmo da época do Império Visigótico e séculos imediatos há pouquíssimos outros vestígios lingilísticos. Somente alguns nas leis dos bárbaros, em escrituras públicas, — e em glossários bilingues, conforme já contei. Mas vamos por ordem. Nos escritores clássicos não se encontram senão raros têrmos, designados como germanismos — melca (um prato culinário feito de leite, milk) ; ganta (ganso) ; e burgus, citado por Vegécio — castellum parvulum quem burgum vocant. Já ficou dito que burgo coincidia e colidia com o grego pyrgos. Além disso, taxus (o teixugo), a harpa, o arenque. É todavia certo, embora não haja documentação, que a soldadesca latina e neo-latina aceitou dos Germanos mais têrmos, relativos à sua profissão : todos aquêles que por terem entrado ainda no latim vulgar são património comum da România inteira : guerra (werra) que substituíu bellum — trégua, guarda, espora, estribo, elmo, roubar, albergo ( hariberga, hoje ITerberge), bandeira (de bandum). Têrmos relativos à divisão territorial como marca e à habitação, como loja (laubja). Designações de estofos, e de peças de vestuário como coifa, feltro, toalha, arreio. Objectos caseiros e de industria doméstica como banco, roca, aspa, nastro, frasco, toalha, e o verbo bordar.
Adjectivos como rico (originâriamente céltico) fresco, branco. Abstractos como orgulho (que substituíu soberba), ufano, guisa, e talvez loução. Verbos importantes como guarir ( guarecer), guarnir, escarnir, ganir, ganhar, dançar.
Repito que à época suévica e gótica pertencem os nomes de pessoa a que já aludi, c os de Iugares, que em regra eram o genitivo de nomes de pessoas: Villa Recaredi — hoje Recarei. Dêles -«tldo, ete.
se abstrairam
sufixos
fecundos,
-engo,
-lengo,
-ardo,
-asco,
Os visigodos deixaram-nos igualmente o têrmo agasalho, talvez fato, e a luva, têrmo que só subsiste na península (cf. o inglês glove). Guante (fr. gant) luva de ferro da armadura, também germânico, mas veio provavelmente de França.
298
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Também a interjeição guai ! (com guaiado ) deve datar. de tão longe. Hurrah ! Hollah! são muito mais modernos. A França transmitiu-nos bastantes nos séculos XI e XII. Por ex., jardim, arauto, bruno, girueta.
Da época trovadoresca são drudo (amigo e amado ) com drudaria (cfr. traut) mas não sobreviveram à poesia galego-portuguesa. Páro aqui. Dos verdadeiros estranjeirismos modernos, que não evolucionaram,
conservando
a
forma
original,
como
quartz,
talweg,
Íraque, tornarei a folar. Um só germanismo moderno há que se popularizou em Portugal, o passarinho Dompfaffe, de que a etimologia popular fêz Dom Fafe; de domus dei — catedral e pfaffe, de papas (grego), padre — cardeal, por ter o pêlo vermelho.
LIÇÃO IM (XV) FONTES OS
DO LÉXICO ELEMENTOS
PORTUGUÊS: ÁRABES
&) Elementos árabes. — Não só numericamente, mas também quanto à sua importância «cultur- histórica», os elementos árabes são os mais notáveis entre os não latinos da língua portuguesa. Escusado é acrescentar que o mesmo vale dos outros dois idiomas românicos peninsulares, apenas com a diferença de que o castelhano passa, com razão, por ser mais rico em arabismos que o português e o catalão. Ésses factos compreendem-se bem: Séculos de convivência, forçada muito embora e em regra bélica, com homens sagazes, de civilização superior brilhantíssima, e que exerceram nos domínios conquistados uma actividade
fecunda,
tanto
agrária
como
artística
e científica,
deviam
actuar na evolução não só da cultura mas também de línguas neo-latinas ainda mal constituídas, ou antes a bem dizer nascentes, quando Musa e Tárique transpuseram, em 711, as colunas de Hércules, e deram nome
novo e uma delas: Gibraltar Djebel-Taril: — Monte-Taárique. Por outro lado deviam actuar mais profundamente do que a Oecste e Noroeste, nas
prolongou:
partes
sobretudo
das
Espanhas
na Andaluzia,
onde
o domínio
dos
Árabes
libertada completamente
se
só em
1492, e onde as artes, letras e ciências floresceram em três universidades (Córdova, Sevilha, Granada ) ; menos intensivamente no Ocidente, onde êsse domiínio acabava em 1260; e pouco no Norte, onde mal se
arraigara.
Actuaram todavia em tôdas as partes apenas no Vocabulário (e talvez na pronúncia). Não na Gramática. Tal era a resistência do latim ; tal a divergência fundamental entre a morfologia das línguas indo-germânicas
e das semíticas, com
as suas raizes de três consoantes
sistema de mutações verbais. Quanto a Portugal, passam
de mil os vocábulos infiltraram na camada latina primitiva (**).
e o seu
árabes
que se
Mil que, juntamente com as palavras exóticas, entradas depois de 1500, da África, Ásia, América e Polinésia, dão ao português, e aos dois idiomas gêmeos, o seu carácter peculiar; lugar à parte entre os
falares neo-latinos, conforme já disse outro dia. () Mil-e-tantos, se metermos em conta os têrmos antiquados. — Bascando-me nos trabalhos lexicográficos « ectimológicos melhores, e em investigações próprias, não acho alto de mais êste cáleulo, com o qual, de resto, concorda Gonçalves
Viana (nas mais baixo:
Apostilas). — F. A. apenas em 8300.
Coelho
avaliava
os
arabismos
do
português
muito
300
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Há arabismos não sômente nas obras mais antigas literárias de Portugal, mas mesmo nos documentos públicos medicvais, redigidos em
latim bárbaro (**). Até fora da península, vários se tinham aclimatado antes do ano mil (*”). Os
que
subsisteêm
em
França,
tinham
passado,
em
regra,
por
Espanha (*). Os arabismos da língua italiana, pelo contrário, entraram dirccta-
mente pela Sicília, sujeita também aos Sarracenos, e irradiaram de aí, influindo
no francês
e mesmo
nos falares hispânicos,
como
logo mos-
trarei (**). Mas em ambos os países, foram e são poucos os que influíram no falar comum. Em regra só ocorrem nos livros de erudição. São estranjeirismos, ao passo que entre nós grande parte dos arabismos designam objectos
de uso diário,
afazeres vulgares, e já estavam
perfeitamente
nacionalizados quando se começou a escrever vernáculo : foram nacionalizados pelos mesmos processos fonéticos e morfológicos que transformaram
em
neo-latim
português
os elementos
latinos —
e os outros
estranhos, anteriores no ano 1200 (**). Certo é que na península
tão-pouco faltam
arabismos
eruditos,
de emprêgo meramente histórico, relativos quer a instituíções militares
e administrativas,
quer
ao sistema
de contribuíções
e cobranças
dos
Muçulmanos (**). E há têrmos outrora do falar comum,
mas hoje desusados
(**):
(*) Basta revermos, por ex., o fnudice alfabético que acompanha na colecção académica Portugaliae Monumenta Ilistórica, o5 documentos públicos, para nos convencermos disso. Leges et Consuetudines. () Alfaraz cavalo, ocorre numa carta do Papa João VIII a Alfonso da Galiza, de 880; aldea numa Charta de Ordonho II (a. 915); mesquinho está nas Glosas de Reichenau (1, 20): Saraceni mischinum mendteum vocant. () No Dictionnaire Etymologique de S. Marcel Devie (Paris, 1876) hã
setecentos artigos. — É preciso notar contudo que essa obra
abrange todos os vocá-
bulos franceses de origem oriental. Não sômente os oriundos do árabe, mas também os hebraicos, turcos, pérsicos e malaios, — procedimento racional que é o de quási todos os investigadores modernos, ineluindo Dozy. (*) Ocupei-me de alguns arabismos italianos em 1872, na Romania, vol. H.—
ÀA bastantes, portugueses, dediquei artigos especiais na Revista Lusitana e em outras publicações. (*?) Relativo
aos
clementos
árabes
nos
idiomas
românicos
em
geral,
há
um
estudo excelente de Christ. Seybold no Grundriss de Groeber, I: Dite arabische Sprache in den romanischen Lândern. () Em grande parte êsses estão no Elucidário de Santa Rosa de Viterbo. () Muitos dos que conheço e que faltam nas listas claboradas por Dozy e Eguilaz, procedem dos nossos Cancioneiros galego-portugueses e das prosas beletrísticas coevas. sobretudo da Demanda do Graal.
PARTE
111 — ELEMENTOS
301
ÁRABES
*
Abstraindo de todos êsses — arcaísmos e têrmos técnicos pouco usados — o que fica de vocábulos vivos é ainda assim abundante e nota-
bilíssimo (**). Subsistem no onomástico topográfico nomes numerosos; há apelativos respeitantes à geografia e agricultura, à guerra e à administração, ao comércio e à indústria, à arquitectura e à música, à astronomia, matemática, química, botânica, medicina, mas também a coisas comezinhas: no vestuário, a misteres populares e a ocupações domésticas.
Em geral todos são substantivos. Quanto à geografia, começo com unma breve alusão —
aos nomes dos rios que, nas regiões outrora mozarábicas, principiam com Guad ou Od — que significa rio. — Guad, em Espanha, e na linguagem culta de Portugal, Od na bôca do vulgo ( de Aud por Uad). Guadalquebir, Guadalaviar, Guadalete pertencem ao reino vizinho. Igualmente Guadelupe que, como sítio de romaria, fronteiro, muito freqiientado, se transformou,
aqui, em Aguadelupe, por etimologia popular. Guadiana é português em parte. Por isso mesmo ficou com a variante Odiana ou Diana—(O Diana com queda ou separação do ô, reduzido n o surdo, e considerado como artigo. — Odeleite, Odeaxere, Odesseixe Odemira, Odivelas, são de cá).
Entre êstes nomes Gual-al-quebir, — antigamente o Betis — antes de a Bética ter passado a ser Andaluzia—é completamente árabe. Quebir é grande, como em Alcacer-quebir Castro Magno (o oposto Alcacer-ceguir significa pequeno). Portanto Guad-al-quebir é o rio grande. Guadiana,
pelo
contrário,
-romano). O mesmo (*)
O
mais
é bilingue;
domina
1789)
— 2.º
Vestígios
antigo
ed.
da
revista
(pré-
vale provávelmente dos demais que citei, embora tratado,
relativo
aos
clementos
árabes
sulares, especialmente no castelhano, é o Vocabulista aravigo do Pedro de Alcalá, claborado depois da conquista de Granada Os
o rio Ánas
Língua
por
Arábica
Moura,
em
Portugal,
18350—são
de
também
naturalmente, de modo algum isentos de êrro. O estudo mais científico e mais rico de todos, baseado
nas
línguas
en letra (1503).
João
muito
de
Castelhana,
Sousa
úteis,
penin-
(Lisboa,
conquanto,
em bastos conhecimentos
da literatura hispano-árabe, é o Glossaire des Mots Espagnols et Portugais de PArabe, de Dozy, professor da Universidade de Leyde, já falecido; 2.º ed. de outro, pequeno, de Engelmann (1869). Aluitos elementos estão também no Dictionnaire des vétements do mesmo autor, e em Memórias históricas relativas à península (sobretudo ao Cid Campeador, mas também ao 2.º cêrco de Santarém) que publicou com o título de Recherches sur PHistoire des Musulmana en Espagne (2 vol. Leyde, 1881). Mais
moderno ainda 6 o Glosario Etimológico de las palabras espaiíiolas de origem oriental, de Eguilaz y Yanguas (18860). Quanto a Portugal, falta-nos ainda um dicionário dos têrmos árnabes em português, segundo os métodos modernos, com ampla documentação, por meio do trechos literários, locuções populares, provérbios, anexins, etc. David Lopes c Gonçalves Viana prestariam um grande serviço à ciência se fizessem a 3.º ed. do livro de Dozy, erguendo-o à altura do saber actual.
302
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
o 2º clemento não seja claro. (Vejam as Lições de Leite de Vusconcelos, pág. 27 e 337).
Nomes de lugar de origem arábica são freqiientíssimos na metade sul de Portugal. Sobretudo na única província cujo nome é igualmente árabe, repito : Algarve
ocidente, poente.
Lembro mais algumas, cuja significação é clara: Al-cantara ( — ponte) ; Almada, de Almádana ( mina); Al-bufeira ( lago); Algezira ( ilha) ; Alcácer ( castro) e ÁAlfama, Aljustrel, Almacave, Alcabideque. No Norte já sabem que são raros. Contudo há alguns, como Mafamude, Mossâmedes, Soeima. Creio que já não será preciso, repetir que no Norte prevalecem elementos germânicos; no Sul, elementos arábicos. Nomes de personagens, de origem arábica, não faltam nos documentos públicos. — Mas nomes de baptismo dessa origem não existem. — Por motivos óbvios. Cid (cujo sentido é Senhor). Zalama, Salema, Soleima (salvador — salvação) — são conhecidos. Mas eram meras alcunhas. Na agricultura, em que os Árabes introduziram o seu admirável sistema de irrigação, há muito têrmo dêles.
Temos não sômente as leziras ou lezírias (ilhas como algeziras) e os alfobres ; açudes, e azenhas, atafonas e noras ; ceifas, zagais e alga-
names ou ganhões, e o gado de leites ou alabão, do Alentejo, mas também muitas plantas úteis e produtos vegetais, como alcachofas, alface, almeirão, alfarroba, açafrão, acelgas, tâmaras, espinafres, beringelas, bolotas, arroz, algodão. Ázeite, azeitonas, o azambujeiro. — Flores como a açucena, o alecrim, a alfazema, o alelí.
Animais poucos. Lembremo-nos todavia do javali, (suf. i, e raiz javal, que é
o mesmo
dschebel de Gibraltar —
monte;
o montezinho,
portanto). Também do alacrau (escorpião) ; da gineta, e da girafa. À princípio dizia-se azorafa. Ainda em tempo de Alfonso, o Sábio, que recebeu do sultão do Egipto, como presente, o primeiro exemplar dêsse curioso animal pescoçudo que entrou na Europa (salvo êrro) ; e juntamente um elefante, (a que então chamavam marfil, nome que nos tempos posteriores chegou apenas a denominar os dentes do grande paquiderme trombudo. Vid. Cronicas de los Reyes de Castilla, cap. IX, pág. 8). O zebra, que servia de cavalo de montar aos incomparáveis cavaleiros que cram Árabes e Berberes, deve ser nome africano (etiópico?) mas foram naturalmente os Árabes ou os Berberes que o introduziram na Europa. Das guerras fronteiriças entre Mouros e Cristãos falam as atalaias, do alto das quais se vigiava o terreno inimigo, tanta vez assaltado pelos reconquistadores, o adail, guia de hostes que iam em algarada — ad secandum panes sarracenorum ; o alferes ou porta-bandeira ;
UN —
PARTE
ELEMENTOS
308
ÁRABES
os refens ou arrefens, entregues ao inimigo como penhor vivo; as alcáçovas;
os alcáceres;
os adarves,
as azagaias,
as adargas,
os alfanges;
o acicale do cavaleiro, o ginete montado em alfaraz corredor ou num alazão de puro sangue árabe. Além disso, dúzias de peças relativas no cavalo e seus arreios ou jaezes, têem nomes evidentemente arábicos. Reflexos populares de instituíções medievais, jurídicas e sociais, são o alcaide e o almoxarife. Alcavalas e tarifas são um resto do antigo sistema de contribuíções Com o comércio implicam as alfândegas, os armazéns ; azémolas e almocreves ; albardas e atafais. Mas também medidas e pesos — como alqueires, arrôbas, fangas, almudes, arráteis, teigas ou taleigas e a tara. Até a maquia do moleiro e o celemim, com que se mede o alpiste para os canários, tem essas mesmas origens orientais. Quanto
às vivendas dos homens, temos aldeias e arrabaldes ; casas
feitas de adobes, no sul sobretudo, com adufas que resguardam os inquilinos contra o sol e contra a curiosidade dos transeuntes; e dentro dos púlios, os frescos chafarizes; para dormir, alcovas escuras. Tanto os alicerces como os tabiques, as janelas geminadas, ou de axímesz, os aliza-
res, o zaguão, a aldrava das portas e até certo ponto também os azulejos, são provas da habilidade e do bom gôsto dos arquitectos e alvenéis mouriscos. Outros ofícios com nomes arábicos exercem o alfageme, o alfaiate, o adeleiro, o arrais, o leiloeiro, o algibebe e o curioso arrieiro, que rece-
beu &ésse nome do grito arre, gutural a princípio, com que os Sarracenos incitam as bêstas a caminhar. Dentro de casa quantas alfaias e quantos tarecos denunciam ainda hoje o domínio estranjeiro : alcatifas, sanefas, almofadas, açafates, jarras, alearrazas e albarradas.
Na dispensa e no almofarizes, almotolias. Na
cozinha
celeiro
preparamos
temos
arrobes,
alguidares, almôndegas,
taças,
alambiíques,
açorda,
escabeche,
aletria e mais acepipes, que no sentido literal são uvas-passas. No vestuário, ou, se assim quisermos, no enxoval, temos (não! tivemos — porque vestimentas mouriscas antiquaram-se e só aparecem no teatro) o albornoz, a almexia, o alquicel, o bedem, o zurame. Entre os atavios e arrebiques que se não antiquaram, há arrecadas,
fios do aljófar, avelórios, e alamares. Ninguém pode dispensar alfinêtes. Sem
ordem
citarei
ainda
alcatrão,
nácar, açougue (de sogmercado)
almíbar,
almíscar,
marfim,
sofaá, fardo, ataúde, cetim, (que não
tem nada com a sêda, mas muito com o pôrto zeitun da China, de onde
era exportado). E podia continuar com outros nomes de coisas, ceuja história muito gostava de eshboçar — se houvesse abundância de tempo e o estudo da filologia portuguesa abrangesse não um ano lectivo, mas pelo menos dois.
304
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Tudo coisas positivas, de cultura material. Mas essas não esgotam o'que Portugal, e o mundo, devem aos Árabes. Nas ciências há muito que respigar. Na matemática,por ex., álgebra, os algarismos, cifra, o zero. Na astronomia o auge, o zénite, o nadir, e lindos nomes de estrêlas. Mas com
êsses pouco se importa, na verdade, não só o vulgo, mas mesmo o mundo culto de Portugal. Eu conheço pelo menos na constelação do Orionte, para mim a mais bela do firmamento, a estrêla Rigel e Betelgeuze. Além disso, a Vega, o Algol, Altair, Aldebaran.
No campo da medicina notemos, além de achaques e enxecos em geral,
as enfadonhas
enxaquecas ; no
da
farmacêutica
o alvaiade
e o
paparraás ( —estafisagria). Na arte medieval desportiva da falcoaria ou cetraria figurava nas alcandoras ora falcão nebrí, (de nibulus latino com sufixo árabe) ora falcão, borni.
Na veterinária ou alveitaria, há tumores anafafes, como remédio azarnafe e... nas doenças e curas de cavalos e os remédios aplicados não têem interêsse geral. São especialidades de somenos importância. Já disse que, de propósito, os punha de banda. Dos instrumentos de música mourisca permanece o melhor de todos, a rebeca ou rabeca, e também o ruidoso tambor, o alaúde, o adufe
(pandeiro de forma quadrada, com guisos), a matraca. Atabaques, anafis, atabais, albogues e o arrabil saíram da moda. Na literatura popular só ficou um género, o anexim (ou anaxir). Mas ainda no tempo Gil Vicente, e posteriormente, o bôca do vulgo, ou as troupes mouriscas da córte de D. Manuel, conservavam vivas algumas cantigas (e danças) com letra arábica. Por ex., o que começava Calvi arabi: Têrmos ideológicos, abstractos, com aplicação geral à vida pública e particular, são alvíssaras, tarefa, azáfama, algazarrra, alarido, alcunha.
Com relação a jogos notemos snficientemente elucidadas.
naipe,
embora
suas origens não sejam
Adjectivos há poucos. Os mais usados talvez sejam: refece e já citado mesquinho. Safaro (usado antigamente para denominar esquivez de falcões, ainda não domesticados ) e sáfio (rústico, grosseiro) cadimo na acepção de destro, ardiloso, são pouco vulgares. É este motivo
que me
faz duvidar da etimologia
vàádio, de baladí
o a ; o
(rústico),
Verbos
ta
proposta e defendida por Gonçalves Viana. Ainda outra objecção minha, é que dos restantes adjectivos que correspondem a modelos arábicos em -i— nenhum o transformou em -io. « ívus. Prefiro a derivação vagalivus. são também raridades. Um dêles é recamar, bordar. Outro,
importantíssimo,
matar, com
rematar e arrematar, se matar proccde real-
mente. como julgo. da fórmula mate ! Mate ao rei! xá-mate! xaquemate!
PARTE
11l —
305
ÁRABES
ELEMENTOS
ou xeque-mate ! — do jôgo de xadrez, do qual logo direi mais alguma coisa. — São fórmulas pronunciadas, como sabem, por ensejo do lance supremo — fFinal — que termina a partida, pela captura ou morte do rei. — Mate, é morto. À derivação do latim mactare não tem valor, por mais convidativa que seja, porque em bôca do povo dava meitar ou me-
char, — Occidere desapareceu. O francês tuer é enigma tão difícil como o matar peninsular. Fora dêsses dois há apenas derivados de substantivos., como ceifar, de ceifa; açacalar, alcatifar, algemar, almofazar. Claro
que.,
além
de
verbos
derivados,
há
bastantes
substantivos
derivados., que, quanto aos sufixos, não se distinguem dos que provéem de elementos latinos, por ex. : algibeira, al javeira e aljava — coldre, saco para pistolas. Quanto a palavras gramaticais. não há quási nenhumas. Já conhecem a preposição atá, da Crónica Geral do tempo de D. João I; anterior-
mente fata, em castelhano moderno hasta, mas que, entre nós teve de ceder o passo o mais usado até, atées (do latim hac) ténus por hactenus. Interjeições há três: oxalá — se Deus quiser — resto significativo (repito-o ) do fatalismo dos Árabes; o arre dos almocreves e arrieiros ; (e rua que não téêem nada de comum com o substantivo conhecido (do latim ruga) a não ser a homofonia casual). Isso, segundo alguns arabistas.
À mim
no emprêgo
me parece que essa homofonia
fortuita influíu, pelo menos,
freqiiente da exclamação árabe, exnactamente e exclusiva-
mente em momentos em que temos vontade ou o firme propósito de pôr
alguém na rua, no meio da rua ou no ôlho da rua, na expressão pitoresca do vulgo. *
Exteriormente grande parte dos têrmos árabes bém dos muitos que deixei de citar), tem fisionomia possuem x inicial, como por ex., xá ou xeque, xeique, sia, xadrez, xarope, xarofe, xaroco, ou então enx — enxadrez, enxoval, enxaravia, grupo que influíu nos bastantes têrmos latinos, que principiam com ex —
que citei (e tamperegrina. Alguns soberano da Pércomo enxaqueca, representantes de
não só em enxame,
enxuto, enxugar, enxada, enxó, enxaguar, enxúndia —
mas também
no
arcaico enxemplo, enxempro e em enxôfre, de sulfur, já o disse na Lição Prática passada. Outros terminam em é acentuado, como alfaqui, maravedí, javalí. Ésse sufixo é transformado às vêzes em im ou il, como em
ceitil, alecrim, marfim, alfenim, borzeguim, benjoim. Ou mesmo em inho, por ex. Afonsinho (no tempo dos afonsinhos) do antigo afonsi. Outros ainda têem sílabas finais não usadas em vocábulos latinos — como afe, afre, éfé e aque, por ex., alifafe, espinafre, tabefe, alarefe, almadraque. Muitos, imuitíssimos principiain, como todo o mundo sabe, com a silaba al, isto é., com o artigo árabe único, para géneros e números e por
306
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
isso mesmo bastas vêzes repetido. Éle funde-se com o próprio nome, sendo reduzido a mero a-, antes de certas consoantes, que costumam assimilar-se à líquida ! em árabe, e alhures. Essa consoante é sibilante em a-cepipe, a-zeite, a-xorca ; nasal em a-nexim ; vibrante em arros; dental em a-dail, a-taúde. Al fica diante de D k f g m inicial, como em albarra-
da, alcanfor, alfândega, algarroba, almíscar. Mas nem mesmo ésse sinal é infalível. Há, no vocabulário português, também vozes latinas e germânicas que principiam com al. Latinas como altar, alteza e todos os mais derivados eultos de alto, (os verdadeiramente populares como outeiro « altarius têem ou por au, com vocalização normal do !). — Germãânicas são, por ex., alabarda ( elmbarte ) e albergo (Herberge, Ilariberga). Verdade é que Meyer-Liibke considera alabarda como arabismo, e a palavra germânica como Íruto de etimologia popular tardia. Outras palavras há que, sendo de origem latina, passaram antes de ser acolhidas no Dicionário nacional evidentemente pela bôca dos Mouros que lhes alteraram a pronúncia, quanto à inicial. c às vêzes também quanto ao corpo da palavra. A essa classe, pouco povoada, pertencem almóço (antigamente almorço, em castelhano almuerzo) de admorsus (em alemão Imnbiss Anbiss ) ; a árvore alerce, de larice ; a fruta alberche alberchigo, a-par de alperce, espécie de pêssego, e portanto representante do adjectivo etnográfico persicus; a planta axedreia, de satureia, era cheirosa, culinária
(segurelha, por singular transformação popular); e que é indubitâvelmente sacchar... arabizado. O mesmo caso deu-se com vocábulos puramente com têrmos relativos à história natural, conforme já dos elementos gregos nas palavras que serviram de capítulo da Lexicologia.
sobretudo açúúcar, gregos, sobretudo indiquei ao falar introdução a êste
'Traduzindo obras científicas — de Aristóteles, Dioscórides e outros Helenos — os Árabes tinham adoptado, natural e necessiriamente, bastantes grecismos, por ex., nomes de plantas e minerais que desconheciam,
os quais depois transmitiam, mais ou menos transformados. aos povos ocidentais. AÀ csta categoria pertencem, como lhes comuniquei outro dia. alquimia, de chemeia;
môço
lupina
elixir, de xeron;
de thermós.
Acrescento
sêco, triaga, de theriaca;
agora
mais alguns:
the-
anfião, de
opium ; alcatruz, de cádos, balde hidráulico ; arroz, de oryza e alveitar,
de hipp-iatros, médico de cavalos — de hipp — cavalo que conhecem de hippodromo — ec de iatrós, médico, que subsiste no moderno pediatria — por mais inverosímil que isso pareça à primeira vista, porque albeitar tem aparências de verdadeiramente árabe. Mais incisivas foram todavia as evoluções por que passou íalros até ser AÁrz! em alemão.
PARTE
Formas
intermédias
111 — ELEMENTOS
entre
ÁRABES
ipi-átr' e al aveitar
307
devem
ter sido
metaátese de ia para aí, e abaitar.
ipaitar, com
*
Além de elementos prôpriamente seus, e de elementos greco-latinos, os Árabes transmitiram aos Portugueses — ainda outros estranhos, — africanos como a já citada Zebra (e talvez girafa ) — ou verdadeiramente orientais, provenientes da Pérsia e da Índia. Os mais importantes dêstes são azul, xadrez, limão, laranja, vocábulos
nacionalizados
a ponto
tal
que nenhum leigo pensa hoje nas suas origens longínquas. Azur (como nós dizemos na Alemanha), azul como hoje se diz em Portugal, onde ceriou o derivado azulejo, vem da Pérsia.
Quanto a êste país, êle já havia comunicado a todo o mundo culto o vocábulo paraiso ( Paradies) por intervenção dos Helenos, em substituíção do hebraico, Eden, que outro dia deixei de mencionar, por descuido. Modernamente deu-nos, ou antes deu aos fumadores o eachimbo narguile. Voltando
a azul,
esta
pedra valiosa da Arménia marina,
que
lapis-lazuli, Parcce Oriente no Limão Xadrez,
desde
forma
representa
lazuard,
nome
de
uma
e de várias regiões asiáticas, de côr ultra-
a Fdade-Média se chama, com adaptação fonética,
entre os doutos. que foram os peregrinos ou cruzados que a trouxeram do século X ou XI. (nil é árabe). é também pérsico. (com as variantes arcaicas axadrez, enxadrez, acedrenche,
com derivados como axadrezado, xadrezinho, ete.) e a laranja, que muito boa gente considera como a raínha das frutas, vem do sânscrito, de onde
ambos os têrmos passaram à Pérsia, antes de atingirem os Árabes, que finalmente os levaram ao Ocidente, nos Francos, como no Oriente ehamam a todos os Europeus. A história de ambas essas palavras e das coisas que denominam, é muito
curiosa, mais ainda
do que
a da barca e do saco, que esbocei
numa das Lições anteriores. Mas não há tempo para as delinear sequer. Só direi, sem tocar no problema da contagem ao galarim, com relação ao xadrez, que também a terminologia dos movimentos e das figuras é muito interessante.
A que hoje é raínha ou dama ou virgem, fôra a princípio ministro ou generalíssimo. Em árabe alferce. Levados pelo som os Franceses transformaram alferce em vierge. Depois transformaram-na, por escrúpulos religiosos, em dama e afinal em raínha. O melhor livro, àcêrca do xadrés, que eu conheço, é de M. Bland, Persian Chess illustrated from oriental sources.
308
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Os Castelhanos já tinham no século XVI um tratado extenso sôbre o assunto (de 306 páginas ) Libro de la Invencion Liberal y Árte del juego de Axedrez muy util y provechoso, de Ruy Lopez de Sigura. (Alcalá, 1561) dedicado ao duque de Alba. Da laranja já falei. Contei que em Nápoles e Atenas a apregoavam com o grito Portogallo-Portogalli, e em Londres como Saint-Michels, e indiquei sucintamente que a forma originária do Sânscrito, nágaranja significava amores do elefante, fruto predilecto do elefante. Além disso, mencionei que os pomos das Hespéridas, colhidos por Hércules no Norte da África, foram evidentemente outro género citrus,
visto que a espécie doce, agora cultivada nos países da Europa, só foi introduzida pelos Portugueses, em 1548. Agora
acrescentarei
que
a primeira
laranjeira,
árvore-mãe
por-
tanto de tódas quantas perfumam hoje o país — Ffloresceu e frutificou na casa dos condes de S. Lourenço (Sabugosa) em Lisboa. E lembrarei também que algumas espécies ácidas do géncro citrus, que é originário da Ásia, Índia, China, Malaca, eram conhecidas e culti-
vadas na Europa desde as expedições de Alexandre Magno. Quem quiser saber mais pormenores, consulte a obra de Lassen, Indischen Altertums Rund (Antiguidades da India), ou o de Bonavia, The cultivated oranges and lemons of India and Ceylon. Quanto à forma portuguesa laranja, ela está por naranja, do pérsico naranja, que é redução do sânscrito ná( ga )ranja. Houve dissimilação dos dois nn. Os Franceses transformaram naranja mais incisiva e significativamente, substituindo a primeira sílaba na, pelo substantivo or : orange. Etimologia popular. Os alemães gostam de se servir dessa forma. Goethe
reforça ainda
a primeira
síilaba —
or ouro, traduzindo-a
por Gokd, pois chama Gold-orange à raínha das írutas na Canção de Mignon (ou da Saúdade). Kennst Du das Land wo die Zitronen bliihn im dunkeln Laub die Gold-orangen glitlhn? A designação popular Apfel maçã, SineChina, 1681.
da deliciosa fruta é todavia Apfelsine: maçã da China. Está documentada desde *
Até aqui falei de dições verdadeiramente arábicas, e em seguida de dições arabizadas, conquanto de origem estranjeira, mas mais oriental ainda do que a Arábia. Outra, terceira, série entrou em Portugal indirectamente, depois da reconquista e por intervenção de nações modernas, ceuropeias.
I11 — ELEMENTOS
PARTE
309
ÁRABES
Os peregrinos que iam visitar a Terra Santa, e também os combatentes que, assinalados com o emblema da cruz, tentaram reaver o Santo Sepulcro, trouxeram de lá coisas e nomes orientais.
Além do citrus, limão, (leimún), que já mencionei, trouxeram aàs obras de tauxia, isto é, embutidos de metal em aço e ferro, como a que se faz em Toledo desde séculos.
Mas também as tafurarias ou tafularias, casas em os tafures ou tafuis (cfr. azur, azul). Os Italianos receberam
que jogavam
dos Árabes da Sicília, sobretudo,
diversos
têrmos náuticos. E como fôssem, quanto à navegação e construção de navios, superiores aos restantes Neo-latinos, transmitiram-lhes parcelas dessa terminologia. Além de avaria, (de que já falei) deram-nos o título do comandante do mar: almirante. Éles possuiam três formas : almiraglio, ammi-
ragglio, e almirante. Os Provençais adoptaram a segunda e diziam amiralh, admiral (em inglês hoje admiral, como se tivesse relações de parentesco com admnirar ). Os Galego-Portugueses antigos servem-se da primeira e terceira, dizendo : almiralho, almiral ou armiral e almirante. Esta forma é a única que sobrevive. Às outras, antiquadas,
estão
nas Cantigas de Santa Maria. Em tôdas permaneceu o primeiro elemento do têrmo composto arúbico, isto é, amir emir — al — bahr, ou amir — al — maa, que era duque ou comandante do mar, ou da água. Amir foi alterado todavia pelo influxo do artigo al, passando a almir. O segundo substantivo al-balr ou al maa, pelo contrário. considerado como sufixo, foi substituído ora por ante, ora omitido de todo,
de sorte que hoje a palavra termina no artigo al, considerado igualmente como sufixo. Repito que os Ttalianos, como navegadores, foram mestres dos Portugueses e Galegos, e também dos Espanhóis. Lembrem-se de que o poderoso Arcebispo de Santiago, Diego Gelmirez, chamou
por duas
vêzes gente de Pisa afim
barcas fortes contra os corsários, entre Árabes infestavam a costa da Galiza.
de lhe construirem
e Normandos, que então
Primeiro em 1115; e pouco depois de 1120. O primeiro almirante português, das armadas portuguesas (que de resto já existiam no tempo de Sancho [1), êsse foi de Génova, como
sabem : Micer Pezszagno. Deêle descendem os Pessanhas (ainda hoje com o título nobiliárquico Dom) como, por ex., D. José Pessanha, professor e escritor de arte, Lisboa.
Com um almirante de Afonso o Sábio e seu pai S. Fernando, hito-de os senhores travar conhecimento quando chegarmos a ler Cantigas do Cancioneiro da Vaticana e do da Ajuda.
310
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Chamava-se Pai Gomes Charinho; era de Pontevedra c poetava com muita gentileza, a respeito do mar. Coevo dêle era ontro Italiano: Micer Ramon Bomfaz, afazendado em Burgos (1246). No reinado de Fernando IV houve outro: Micer Benedetto Zacarias (1284). Da Itália vieram também as moedas chamadas sequinos (do árabe sikk). Os Franceses passaram-nos, modernamente,
a voz minarete
(tôrre
de mesquita). Depois de 1500 os próprios Portugueses foram buscar à Índia ainda diversos vocábulos genuinamente árabes. E talvez já tivessem recolhido, de 1415 em diante, bastantes no Norte da África. Ceitil, de Ceita, por Ceuta, que nasceria pouco depois de 1415, não é todavia de proveniência puramente semítica. É apenas pronúncia mourisca do latim Saepta, particípio de saepio ou sepio, sepsi, septum, sepire, entrincheirar, guarnecer com sebe “sepes, fortalecer.
LIÇÃO
IV (XVI)
FONTES DO LÉXICO PORTUGUÊS: VOCÁBULOS
STAMOS
PROVENIENTES NA EUROPA, NA
CHEGADOS,
DAS LÍNGUAS IDADE-MÉDIA
FALADAS
no exame lexicológico, àquêles tempos medievais
em que a língua portuguesa começa
a ser tratada literâriamente, —
e recebe por isso novos elementos não sômente por contacto directo secular de povo a povo, como no tempo das invasões germânicas e arábicas,
mas também e sobretudo indirectamente, pelo influxo de obras literárias de nações estranjeiras, — europeias tódas e de origem indo-germânica, e portanto aparentadas, quanto à raça,
e mais ainda quanto à língua, com
os Portugueses. Lembro râpidamente que temos dividido o Vocabulário nacional em três partes: que
começámos,
a latina, e não-latina, por
motivos
práticos,
e a peculiarmente portuguesa, e com
os elementos
estranjeiros.
Ésses, subdividi-os em cinco classes.
AÀ primeira abrange aquéles elementos estranjeiros que os próprios Romtanos admitiam na sua fala: quer de origem oriental (egípeio, pérsico, hebraico, fenício), quer ocidental
(grega, cartaginesa, céltica,
ibérica). Éles são anteriores ao ano 500 ou à queda do Império. AÀ segunda classe consta de elementos, de línguas faladas
pelos
conquistadores da península, posteriores ao domínio romanoao, isto é. por
Germanos e Árabes. Abrange os séculos V até XIT (500 a 1200). De ambas já deixei dito o indispensável. A terceira compõe-se de vocábulos provenientes de línguas faladas na Europa na Idade-Média, depois da constituíção das diversas nações germânicas e dos idiomas neo-latinos, por povos que estavam então em relações comerciais e literárias, com Portugal: isto é, por verdadeiros irmãos como povo novo, Espanhóis, Provençais, Franceses, Italianos — mas também por homens do Norte ( Escandinavos, Holandeses, Inglêses).
De 1209 a 1500. Desta classe nos ocuparemos hoje. E se puder ser. como espero, também da Quarta Classe, que abrange os elementos exóticos, que entraram em Portugal dnrante a era dos descobrimentos e das conquistas
realizadas no África, Ásia, América e Polinésia.
E da Quinta Classe, que
abrange elementos de introdução moderna (séc. XIX e XX) países, tanto europeios como extra-ceuropeios.
Durante em
que
todo o período
Galizianos,
vindos de
iniícial arcaico da literatura portuguesa,
Portugueses,
Castelhanos.
Catalães
e Aragoneses
312
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
escreveram as suas poesias de arte em estilo provençalesco ou trovadoresco e imitaram nos seus cantares de gesta o gôsto épico dos Franceses do Norte, foram naturalmente as duas respectivas línguas, a lengua-doc c a lengua-doil — (muito menos diferençadas então do que são hoje) — que influíram na linguagem lírica e na épica e prosaica dos Peninsulares. A influência civilizadora, que a França exerceu nos séculos XI, XII e XIH e novamente, embora de outro modo, no XIV e XV, foi real-
mente grande. Já sahem que a França precedeu os outros países românicos em todos os campos de cultura e que o seu mais antigo documento lingiúlístico é de 842. Quanto às suas relações especiais com Portugal e o resto da Peniínsula, ocupei-me delas num Capítulo do Cancioneiro da Ajuda ( Vol. II, Cap. VIII, pág. 684-768).
AÍ falei dos enlaces de príncipes, dos guerreiros que ajudaram na reconquista, dos colonos que, chamados por Afonso Henriques e Sancho o Velho, povoaram terrenos incultos, dos prelados que governaram bispados novamente criados, das ordens monástieas de S. Bernardo, Cluny, Cister e Rocamador, que tiveram aqui filiais nobilíssimas. Aludi aos
escolares que Sancho I enviava a Paris, e aos jograis, provávelmente franceses, que tinha na sua côrte, em Guimarães. Expus sobretudo como alguns trovadores da Provença e troveiros do Norte, vindos de além dos Pirinéus acompanhados de jograis, foram iniciadores dos cortesãos peninsulares no culto galante da mulher e nas demais artes de cortesania ; como todos os géneros áulicos cultivados no
primeiro período da poesia nacional —
as gestas, as canções, as pasto-
relas, as tenções, os sirventeses, os prantos, os lais, derivam de modelos
franceses. Também l indiquei como a caligrafia e a ortografia nacional (com o seu nh, lh, ete.) e a arte de iluminar manuscritos se modificaram segundo o gôsto francês, no tempo do Bolonhês c seu filho D. Denis. Provei mesmo que os Lais relativos à matiêre de Bretagne, a Tristão e Lancelote, com que principia um dos três cancionciros galego-portugueses (o de Colocei-Branceuti) eram traduções de originais franceses. Indiquei que entre as prosas, as fieções em prosa, a mais bela, a Demanda do Santo Graal era igunlmente reprodução de um romance transpirenaico, e que provàávelmente houve também um Merlim, um Lancelote, um Tristão.
Do influxo das artes industriais
e do comércio não tive de dizer
nas Investigações sôbre a literatura. Mas em outras publicações minhas,
lingilísticas, já me referi à terminologia em grande parte francesa da arte de faleoaria ou cetraria ( cetreiro — accipitrarius, de accipiter, nome
latino do açor. À ela pertence, por exemplo, o verbo treinar (adestrar por exercícios graduados). hoje tanto em moda com respeito a outros
PARTE
HI — ELEMENTOS
FRANCESES
313
géneros desportivos. E tratei também da importação de panos franceses. flamengos é ingleses, no século de Afonso 1II, o Bolonhês. Nos Cancioneiros há referências a calças de Ruão, a capas-cera-
mes de Chartes (Chartres), a véus de Cambray ( cambraias). Em outros textos figuram panos de Coutray, Bruges, Ipli, Grisay, Abovila, Londres.
—
Sobretudo
numa
Lei-tarifa
do
monarca
citado.
de
1253,
impressa no volume Leges. et Consuetudines da colecção académica Portugaliae Monumenta Histórica (1,129) — documento de grande valor cultur-histórico e lingúístico, que merecia tradução e comentário. no qual deveriam ocupar largo espaço, trechos elucidativos extraídos das prosas históricas e beletrísticas, dos Cancioneiros profanos e das Cantigas de S. Maria. Nessas produções, em parte pessoais, de Afonso o Sábio, em parte só inspiradas por ôêle, mas realizadas por seus letrados, há, salvo êrro — maior número de galicismos — pelo simples motivo de grande parte dos Milagres,
de assunto
internacional,
serem
tirados
da
obra
de um
Francês, Gautier de Coincy. À
coleccionação
dêsses
francesismos,
relativamente
fácil,
seria
assunta bonito para a dissertação final de algum estudante de filologia. Senhér, — representante de seigneur ; volonter — vianda ( Víveres,
provisões e carnme) — mege (médico) são exemplos de que me recordo neste instante. Nos Cancioneiros profanos avultam os têrmos relativos à arte poética e aos géneros poéticos. Já citei lais, serventês, pastorela, gesta. Ajuntemos refrã, do francês, refrain, jogral ( jongleur) de joculatore — segrel, segrer (provençal segrier(s), de seculare, derivado de segre, segle, saeculum ) — e sobretudo, trobador (trovador) com trova, trovar, trobar. No período trovadoresco serviam-se de trobador, trobar — mas às composições deram o nome de cantiga e cantar por tôdas clas serem cantadas. No segundo período trova, (subst. verbal tirado de trovar) passou
a designar
tôdas ns composições
artísticas contidas no Cancio-
neiro de Resende. Posteriormente desceu às quadras ou coplas populares (coplas à cast., cobras em port. arcaico, desprezado pelo homem culto por convergir com cobra «colubra, serpente). Trovar, trobar do francês trouver, achar, encontrar, inventar, que.
pela sua vez, provém provàvelmente do Jlat. turbare perturbar. Os pescadores tnrvavam e envenenavam a água (em Portugal com trovisco) afim de encontrarem e apanharem com maior facilidade os peixes per. turbados, entontecidos. Essa etimologia, do grande glotólogo Hugo Schuchardt, não é todavia geralmente reconhecida. Em França preferem tirar trouver do hipotético verbo *tropare, de tropos, figura retórica, considerando como primitivo
o sentido:
faire
des
rvariations
sur
un
thême
liturgique,
314
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
As ordens monásticas implantaram, conforme os senhores já sabem, os nomes fraire, freire; prestre (fr. prêtre), hoje preste, de presbyter, monje, mas também froque (forma divergente de froco «floccus);
mestre,
de
maistre
“ magister,
embora
me
pareça
muais
natural
entrada directa, cuja evolução normal dava o mesmo resultado.
O mesmo digo de cadeira, do vulgar cathédra, por (caáthedra) apesar do irregular ei. Francês é clocher (de cloche, Glocke, de origem muito discutida), que posteriormente se transformou em cornchéu Francês é o arcaico maison “«mansione, casa de ordem religiosa que não subsiste, ou só subsiste com significado alterado, no país vizinho, onde meson é casa de hóspedes, e em Portugal, onde mejão e meijoado denomina a cabana em que pernoita o pastor ou o caçador de coelho. Francês é mesnada “ mansionata, em fr. mesnée — gente de guerra que vive junta no domínio de um Senhor (derivado de manstone, portanto). Francês é linhage, vantage, selvage, vorage, portage, mensage, menage por hkomenage, — hoje linhagem, vantagem, mensagem, selvagem, viagem, portagem, menagem (tôrre de menagem ) por analogia com agem “agine, por exemplo em imagem, protótipo para numerosas formações derivados com o sufixo age — agem de aticum, que na península já tinha dado derivados com — ádego, (como padroadego, achadego ), adgo, algo, azgo e mesmo com ático, inalterado (freirático, ceremoniático, sorumbático). Alguns desapareceram de todo, por exemplo jalne, substituídos por sinónimos já existentes, quer cultos, quer populares. Mege teve de ceder a médico, senher a senhor; jalne (fr. jaune) “galbinus perante amarelo. Outros nacionalizaram-sce, alterando a desinência, como frane; tornei, mudados em franco, torneio, ou argem, argente, transposto em
argento ; talan, talante, transposto em talento ; se fol desapareceu ficou folia, foliar e folião. Ainda outros nem precisavam de modificações. Notemos monje (até deu monjia) ; manjar (tem o significado reduzido por exemplo em manjar branco), solaz, vergel (viridiariu), lebrel, (lepora-
riu ), broca “ boucle “buccúla com broquel. Leu, provençalismo de leve (a-par de greu “greve em vez de grave, por analogia) popularizou-se, se eu tiver razão em reconhecer êsse mesmo vocábulo na fórmula vulgar: estar ao léu, estar sem
roupa, sem
chapéu, desnusyo,
antigos; e ter léu, isto é, ter ensejo ou facilidade alguma coisa.
como
(leveza)
dizem
os
de fazer
*
Nos séculos XIV e XV — era da maior eflorescência de torneios e justas cavaleirescas e da nova organização ( borgonhesa ) da vida áulica, veio para a península nova camada de vocábulos franceses.
Como portuguesa
tôda
a România,
adoptou
a nova
e grande
parte da Germânia,
administração
e etiquêta
a côrte
palaciana.
que
PARTE 1W — ELEMENTOS
FRANCESES
315
substituíu em 1885 a que fôra introduzida no século anterior por Afonso, o Bolonhês. Francesas ambas, embora com numerosos elementos germânicos, como a própria etiquêta (hoje protocolo). Estão no mesmo caso os títulos de marquês (Markgraf) marechal, senechal, escanção, forriel, arauto, além de adubar e baldreu.
De raiz latina são chanceler, dama, camarlengo (germ. quanto ao sufixo), poursuivant, transformado em Portugal em passavante, por etimologia popular, corsel (coursier), e muitas outras. De passagem lembremo-nos que dêsse mesmo tempo, dos gloriosos reinados da segunda dinastia borgonhesa, data a moda dos Motes ou Mottos, isto é, das divisas cavalheirescas dos reinantes e dos palacianos.
Mote é o francês mot, (palavra do Jlatim vulgar muttum, nec-muttum nem um pio). Motto a forma correspondente italiana e peninsular. AÀ prineípio tôdas eram redigidas em francês. Só de Afonso V em diante passaram a ser portuguesas e latinas. O Jamais dêste monarca pode ler-se à portuguesa e à francesa. Creio que na intenção a divisa é francesa. Seguramente todos conhecem os nobres exemplos inscritos na Capela do fundador da Batalha, D. João 1, c mais recantos dêsse mos-
teiro mais belo que o templo de Snalomão, segundo o dizer de um viajante do século XV? Mas repetitio est mater studiorum. Pensando no bem fazer ou na virtuosa bemfeitoria, como tôda a família, D. João I escolhera 1l me plaít. D. Filipe, Pour bien (por bem). O Infante D. João, J'ai bien raíson.
D. Fernando, o sacrificado de Tânger, Le bien me plaít. D. Pedro, o Regente, Désir — desejo certamente de ser justo, segundo os preceitos do Evangelho, conforme indica o corpo da sua divisa: as balanças de S. Miguel. Talant de bien faire: Henrique o Navegador. Tant que serai leauté ferai, D. Duarte, o sucessor. Esta, na entrada
das Capelas Imperfeitas, por éle começadas. Quási todos de forma propositadamente enigmáticas ou misteriosas. Paine pour joie — mágoas em lugar de alegria — inscrito na roda da Fortuna é o lema do Condestável D. Pedro, filho do regente. como breve poderão ver nas Lições Práticas, no frontispício de um manuscrito da sua livraria e da sua lavra. Oublie! Oublie! e L'Adrdant désir lê-se nas sepulturas de dois valentes da casa dos Silvas, que tem o seu Pantheon em S. Marcos de Tentúgal. belo monumento
dante deverá visitar.
dos arrcedores desta cidade, que todo o estur-
316
LIÇÕES
Sem examinar a tar ainda mais alguns Começo com os tituição fonética : por
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
idade exacta da introdução de cada têrmo. vou cifrancesismos. Basta serem seguramente medicvais. que denunciam a sua proveniência pela sua consjota como representante de g ou outras consoantes,
acompanhadas da semi-vogal i, em desarmonia com as tendências normais do português ou com ch como representante de « Tatino. Com j, por ex., em jóia “ gaudia plural de gaudium, que nos deu o arcaico goio e goivo, granja, de granea (que em português dava granha) ; forja e forjar, de fabrica, fabricare (que nos deram frágua e fraguar) ; franja de fímbria; sergente (hoje sargento) de serviente; estranja e estranjeiro de extraneus (étrange). Jorna, jornal, ete., que alguns filólogos consideram também como provenientes da França, estão em harmonia com juso “ deuso (de deorsum) ; com jeira “ diária; com ensejar « insidjare; hoje “ hodie; pojar “ podjare, de podium; vejo “ vidjo, etc.: por isso tenho-os em conta de nacionais, tanto mais assim porque jorna « diurna é têrmo popular.
Em jardim, loja, arranjar e o arcaico gage há têrmos germânicos, modificados em bôca francesa. Com ch temos chapéu de capellum (que em português deu capélo), chapeirão, chapeleta, charrua, chaminé, chaçonela, chanceler.
Ainda outros téem oi francês, pronunciado oe, em toesa (toise), framboesa “ framboise, do germânico (gótico) brambesi ; boeta, bueta ( boite). Outros terminam
em é, como livré, maré.
Há, como viram, entre os francesismos antigos não poucos de origem germânica. Entre os Romanistas vigora menos a tendência de considerar como introduzidos pelos Franceses do século XI e XITE quási todos aquêles germanismos das línguas peninsulares, que não são pan-romanos. Talvez haja nisso algum exagêro. Se há germanismos, privativamente peninsulares, como luva, atavio, aleive, britar, brincar, e ascuna
( se êsse nome de lanças curtas provier realmente de ask
Esche (Íreixo)
e não do basco), não vcejo por que não haveria outros, comuns à penín-
sula e a mais algum país neo-latino. Visto que ainda faltam estudos especiais suficientemente documentados a respeito tanto dos francesismos mais antigos como dos germanismos hispânicos, é cedo demais para decisões. Em
todo o caso foi por intervenção dos Franceses. Normandos
e
Flamengos, Neerlandeses, em regra, que entraram em Portugal bastantes vozes germânicas de marinharia — campo curioso êste em que já temos
encontrado dicções antiquíssimas muito variadas (como o egípcio barca); fenícias, como galera, galeola, gregos, como drumão, durmão, arábicos, como faleia, fateixa, italiano-arábicos, como almirante, avaria). Germãnicos mas transmitidos pela França, são: frota. frete, flecha, flanco,
PARTE
317
ITALIANOS
111— ELEMENTOS
lastro, mastro, dique, escora, guindar, guindaste, singrar, amarrar, chalupa, carraca, quilha, baborda, estribordo, etc. Importantes são os nomes anglo-saxónicos dos quatro pontos cardiais: norte, sul, oeste, este, ou leste.
*
Passemos aos Italianos. Torno a lembrar que se os Normandos e Neerlandeses foram mestres dos Portugueses para a navegação no Ocenno Atlântico, os Italianos o foram para o Mediterrâneo. Éles transmitiram-lhes, além dos têrmos citados, por ex.: pilôto, amainar, proa, que-
rena, mesena, escolho. Também nos deram bastantes vocábulos relativos à arte militar. Por ex.: punhal, pistola, sentinela, escaramuça (de origem germânica) e esquadrão, infanteria, cavaleria, artilheria.
Por causa dessa origem estranjeira e da igual de loteria,
e mais
alguns derivados em eria, como tapiceria, os escritores antigos, e mesmo os clássicos, escreveram-nos sempre ou pelo menos de preferência com
eriaaria. Com essa observação, claro que não quero negar que houvesse e haja em Portugal a tendência de pronunciar aria, isto é, de acomparihar a consoante r da vogal a, tendência, mas de modo algum lei sem excepção. AÃo grupo italiano (mas neste caso italiano-germânico pertence ainda brinde, brindes, do italiano brindisi) — que é o alemão bring dir's: ich bring dir'slo porto a te, fórmula de cumprimento ou cerimónia usada pelos Landsknechte, soldados alemies que nos séculos XV mas sobretudo no tenmipo de Carlos V batalhavam na Ttália. À vogal é acrescento
natural
em
italiano,
onde
quási
não
há vocábulos
que
ter-
minem em consoante. Bring dir's dizia o Landslk.necht, quando, tocando no copásio, bcbia à saúde de alguma pessoa presente, convidando-a por êsse acto a também
esvaziar o seu copo. Costume germânico ainda hoje válido na melhor sociedade, dulcificada embora. Hoje dizem : ich kKomm der eins. Só
em
português
é, de
resto,
que
brinde
evolucionou,
tomando,
além de acto de beber à saúde de alguém com dizeres mais on menos eloqiientes, ou de mimo, presente, de qualquer sorte. Só aqui deu nascença no verbo brindar. Quanto ao Lands Knecht — lansquené em português, do francês lansquenet, lanzi cenecche à italiana, vamos estabecer que a tradução fante di lancia peão de lança infanteria, é erronea. Lands não é lança. É genitivo de Land — país, terra. O composto significa portanto filhote da terra. Ainda não mencionci os italianismos que fazem parte da linguagem trovadoresca vindos — salvo êrro — por intermédio da Provença e
318
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Catalunha e de alguns poctas que da corte aragonesa passaram à de Portugal (como, por cex., um meio irmão da Raínha S. Isabel). Neste caso estão mençonhamenzogna « mentionea, por mentira, usado Cantiga 1154 do Canc. da Vaticana; besonha, bisonha no sentido
na de
mister, lida, necessidade ; niente por nada (amnbos êstes discutidos quanto à formação); potestade como título administrativo; e afan de afanno, de origem ignota. AÃos numerosos têrmos italianos, relativos quer à arte poética: Soneto, Terceto, Oitava rima, Canção, quer à música, como alegro, adagio, andante, scherzo, piano, terei de aludir mais tarde, pois entraram
depois de 1500. *
Quanto a vocábulos castelhanos, os que surgem nos textos galego«portugueses, são muito poucos. Em parte são de introdução fortuita, instantânea mesmo : meros lapsos de escrivães. Em parte são idiotismos, lapsos também,
de poetas, oriundos de Espanha.
Não vale a pena ocupar-nos de traícion, oracion, por traição, oração ; almena, arena, por ameia, areia, ete., visto que só ocorrem uma ou outra vez nos Cancioneiros arcaicos, em textos de autores de ÁAlém
-Minho. Hispanismos antigos que se repetem e permaneceram, são aire, com airoso,
desaire,
desairoso,
donaire,
lozano;
prenda
e
prendar
(de
pignerare) por pignorare. Nos séculos XIV e XV entraram mais alguns, como naipe e tafur ( que já mencionei ao falar dos elementos árabes) sarracina, carabina, clavina, tilde, hoje til, rebelde, humilde,
tablado, tasca, ete.
Os elementos vasconços (excepção feita dos iberismos antigos como lousa, arroio, veiga), vieram em geral de Espanha a Portugal. O mesmo vale de grande parte dos americanismos a que terei de referir-me na próxima Lição. Também os castelhanismos do português e os galeguismos e portuguesismos do castelhano ainda não foram examinados detalhadamente por nenhum hispanófilo. Seriam um tema bom para alguma dissertação final. *
Os têrmos não-latinos
(ou greco-latinos), do vocabulário
portu-
guês, que entraram nêle depois de 1500, são numerosos, mas não têem
a importância dos elementos acolhidos durante a Idade-Média. Há entre uns e outros uma diferença notável. Os medievais arraigaram. Estão inteiramente nacionalizados. São em regra produtivos. Conquanto nem todos sejam realmente populares, foram acolhidos e tra-
tados como se nascessem em Portugal. São Lehngut, Lehnwôrter, dicções pedidas de empréstimo a outras nações estranjeiras, mas consideradas
PARTE
e empregadas,
111 — ELEMENTOS
AFRICANOS
E AMERICANOS
319
(como acontece com quási todos os empréstimos)
como
se fôssem capital indígena, propriedade plena dos Portugueses. Os vocábulos modernos, posteriores a 1500, pedidos de empréstimo. conservam, pelo contrário, em regra, seu feitio original. Costumam a ser estranjeirismos
verdadeiros:
Fremdwôrter,
palavras
não
assimiladas
fonêticamente às antigas herdades do latim vulgar, e por isso mesmo estéreis, ou pelo menos pouco fecundas. Será bom fixarmos a noção de que a diferença principal entre as duas categorias é portanto cronológica. O Lehnwort é um estranjeirismo muito antigo, nacionalizado. O Fremdwort é um estranjeirismo relativamente moderno, que ainda não teve tempo de arraigar. Bem
sei que
há
têrnmos exóticos
—
africanos,
asiáticos,
america-
nos — que não permaneceram em isolamento absoluto. Banana,
e papagaios, dos sabem o tugal passou confirmam a
fruta
originária
da
Guiné
(fruta
de préêtos, de macacos
diz o povo a rir), — emprega-se em sentido figurado. Toque é um bartana, ou bananzola, ou abananado. De Portuao resto da Europa. Como êste há mais. Mas as excepções regra.
Claro que com
respeito a tais elementos exóticos, que constituem
a 4.º classe dos têrmos não-latinos da língua portuguesa
também
não
posso dar senão amostras, sem explicações pormenorizadas ; uma cescolha
apenas dos mais conhecidos, empregados positivamente na linguagem conum dos cultos e do vulgo. Deixo de lado têrmos trazidos de longe por um ou outro descobridor, de aplicação meramente
erudita, relativos a aspectos da cultura
de indígenas africanos, asiáticos ou americanos e por isso engastados apenas em descrições de viagens, para lhes dar côr local, em Crónicas, nas Décadas da Ásia, nas Lendas da Índia, nas Peregrinações de F. M. Pinto ou em estudos de história natural, como os Colóquios do médico e
botânico Dr. Garcia da Orta. A respeito de muitas das vozes que vou citar como das que de propósito
omito,
há
materiais
e explicações preciosas nas Apostilas aos
Dicionários Portugueses, de Gonçalves Viana. Da África veio, além de zebra, da girafa, lazorafa e da banana, o ananás, o macaco, o batuque, o banjo, o muleque, a banza, a cacimba,
a macuta (moeda de 50 réis que originou a locução tuta-e-meia, como indicadora da barateza de alguma coisa). Do Novo-Mundo sc infiltraram numerosas denominações de produtos naturais e de artefactos importantes. As mais antigas vieram das primeiras ilhas americanas descobertas por Colombo — do caraíba, do caribe falado nas Antilhas. plo, canoa, cacique, furacão (o deus da tempestade), maca ; o colibrií (a enjas variedades brasileiras os portugueses deram o nome poético de betja-flor). E — last, not least — o tabaco
Por exempassarinho mais tarde : Ilavannas
LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA
320
braune Blume a flor acastanhada da ITavana, la brune fleur de
' Havana,
que entusiasmou o poeta do Cid francês, Picerre Corneille, a ponto tal que disse dêle, gracejando, bem se vê: Quoi qu'en dise Aristote et sa docte cabale, Le tabac est divin — il n'est rien qui Pégale. O México enriqueceu-nos com tomates, batatas, chila, cacau, chocolate e a respectiva chícara. Aqui me lembro que entre os produtos da Arábia não mencionei o café,
Certe liqueur si chere, Qui manquait à Virgile et quadorait Voltaire. O mógomo — malogani veio tarde, de 1700 em diante, das Índias Ocidentais. Ao Peru devemos a alpaca, à vicunha (vigogne), o lama, o guanaco, o jaguar, o cuguar, o puma, o condor, as pampas. Quanto à ave peru (ou píirum, com as peruas), parece que ela recebeu o nome do reino dos Incas. por qualquer érro ou mal-entendido, visto que é originária do México, e os espanhóis, mesmo os do Peru, desconhecem essa designação
portuguesa. Éles dizem pavo, pava C pavu, pavão, os franceses dizem dinde
(d'Inde),
os italianos, tacchino, em
imitação da voz dessas aves
que aos nossos ouvidos parece ser glugiu. Do Brasil provéem o acaju, a goiaba, o abacaxi, tapioca, mandioca, mingau, porão; o jacaré ou caimão, a gibóia, o tatu, os caipiras c garim-
peiros, o caboco ou caboclo;
o cipó, as chácaras, e centenas de coisas
peculiares do grande país do futuro. Aqui é preeiso dizer que essas centenas de brasileirismos, a que aludo, registados em dicionários portugueses modernos, por êles estarem destinados aos dois países, não são empregados vulgarmente em Portugal. É fácil verificar isso abrindo à toa, por exemplo, o Léxico de Cândido de Figueiredo, ou o Prático Ilustrado, de Jaime de Seguier (o
Larousse português), e percorrendo algumas páginas. Na letra j, por exemplo, encontra-se logo a princípio uma verdadeira aluvião de brasileirismos:
jaaraboa, jaba, jabebireta, jaborandí,
jaboril, jabótá, jabotimata, jabuti, jabuticaba, jubutipé, jacá, jacacal, jacaiol, jacamim, jacamar, jacapani, jacapa, jaçapé, jacapu, jacarácia, jacarandá. Creio
que ninguém
de nós os conhece.
Eu, pelo menos,
confesso
a minha completa ignorância àcêrca de todos êsses bichos c produtos brasileiros. Dos diversos vocabulários especiais, relativos ao Brasil, citarei o do Visconde de Beaurepaire
Rohan, Dicctonario de Vocabulos Brazileiros
PARTE
(Rio,
1878).
1859)
I1Il— ELEMENTOS
e o de R. de Mondoya,
321
ASIÁTICOS
Tesoro
Tupi-castelhano
(Paris,
*
Viremo-nos para a Ásia. Os vice-reis e governadores da Índia trouxeram de lá a ominosa veniaga, do sânscrito wanigaka mercadoria, mercancia, tranquibernia ou traficância (pronunciada barniyága pelos Malaios); os pagodes, que no extremo Oriente eram templos e ídolos c entre nós ficaram sendo pândegas ou bambochatas (ital. esta); os Nababos ; as cacatuas ; a substância vegetal cairo, de que se fazem cordas. Não devo esquecer a agradável e saúiidável canja. As
verandas
não são índicas, como
muita
gente
afirma.
Elas são
de formação portuguesa. À raiz é vara ou antes o verbo varar. O sufixo anda, não muito usado embora, encontra-se em vianda por vivanda, de viver ; em ciranda, giranda, parlanda, em andas c bolandas, cte.
Da Pérsia, que já temos visitado râpidamente (ao falar da ordem I de vocábulos não-latinos, como
criadora do têrmo paraíso, e ao falar
da II, como terra do lápis-lazuli ou azul e do limão), recebemos ainda a túlipa e o turbante (e ambos da mesma raiz), os bazares, as rosas de
Xiraz, os julepes (de gul — rosa e ab — água chimbo narguilé: e as bachuchas ou babuchas.
águas de rosas), o cau-
À Turquia, quer asiática, quer europeia, devemos as embarcações chamadas caíques, os quiosques, as odaliscas, ou camareiras escravas do harém ; o harém, como habitação só de mulheres, e o punhal recurvo
chamado yataghan. Do
contacto
com
os Malaios
receberam
os portugueses,
tras coisas, o bule, o pires, as jangadas e pirogas,
entre
ou-
o bambu, o orango-
tango.
Da China veio o chá e a chávena, o nome do cetim raso, de zeituní,
originâriamente zeitum, adjectivo derívado de Zeitun, grande empório chinês de sêdas. Além
disso,
o Mandarim,
tirado com engraçada etimo-
logia popular, de mantri. Do Japão vieram-nos no século XVI o leque, chamado originàriamente abano-léque (léquio). Lequio é adjectivo topográfico, relativo às Ilhas Liuquias, ao sul do Japão, berço dêsse produto industrial. Assim o registou Fernão Mendes Pinto, o dns Peregrinações, injustamente difamado pela fórmula humorística Fernão Mentes? Minto! mas hoje plenamente reabilitado pelas indagações de viajantes modernos. Vid. Gonçalves Viana, Apostilas s. o leque. Quanto à Austrália, citarei apenas o nome, internacional, do maior
dos hichos marsupiais, de bôlsa ventral, que distinguem a sua fauna tão curiosa.
Ésse nome
é não
sômente
criação
muito
tardia
mas
também
completamente arhbitrária e fortuita, se a anedota apregoada pela Fama fôr verdadeira :
322
LIÇÕES DE FILOLOGIA PORTUGUESA
Conta ela que Cook, o grande navegador inglês que inaugurou a era das viagens científicas, (James, e não Thomas, o das Viagens modernas societários, ou dos Reisebureaus ) descobriu em 1770 o respectivo
animal — e Ihe deu o nome Kangaru — (Kãânguruh) porque a tôdas as suas preguntas, os indígenas, que não o compreendiam, replicavam: Kangaru, fórmula que na linguagem dêles significa : «Não compreendo». Exactamente assim acontecera na Holanda ao herói de um conto conhecido : viajante que, preguntando em Amesterdão, sucessivamente, a quem pertencia o mais rico dos palácios que visitara; de quem eram os navios de que vira descarregar riquíssimas mercadorias, e finalmente: a quem se fazia um entêrro suntuoso a que assistiu, — recebeu sempre a mesma resposta : Kannitverstan ! de sorte que exelamou : Pobre Senhor Kannitverstan!
LIÇÃO
V (XVII)
FONTES DO LÉXICO PORTUGUÊS: ESTRANJEIRISMOS
RECENTES
V — Os últimos três séculos trouxeram aos Portugueses, como a tôdas as nações, um acréscimo notável de elementos estranjeiros de origem diversíssima : europeia e extra-europeia. Em primeiro lugar entraram, no século XVII, numerosos castelhanismos, devidos aos quarenta anos de união, e sobretudo ao predomíinio da comédia de capa y espada, com músicas e bailados hispânicos, e das Novelas picarescas e cavalheirescas a que o D. Quixote não dera
de modo algum o golpe de graça nesta última Tule. Donquixote, donquixotismo, quixotesco, picaresco, figaro, sarabanda, fandango, tango, chacona, bolero, seguidilha, zarzuela, tertulia, salero, sainete, camarote
atestam êsse influxo. Em outros campos cresceram têrmos como moçoila, lentejotla, tijoilo (hoje tejolo), trecho, tejadilho, eldorado, garrotilho, ventana, tronera, lhano, lhana, manilha. Todos êles são fonêticamente caracterizados como castelhanismos: uns pelo sufixo oila, oilo, que é
uelo, outros por ch em lugar do t portusuês; ainda outros pelo sufixo ilho; a inicial lh; — n conservado entre vogais.
Em segundo lugar adoptaram-se novos italianismos, sobretudo relativos às belas artes. Já citei alguns dos têrmos, que entraram em consequência da reforma da poética peninsular, iniciada por Sá de Miranda. Após os Sone-
tos e os Tercetos e as Oitavas Rimas, vieram as Baladas e as Madrigais, rimas esdrúxulas, coisas estrambóticas e grotescas. A introdução da Ópera trouxe a nomenclatura moderna musical, fixada na Itália, de clementos em parte latinos e em parte germânicos: piano ; bravo ; da capo; fiasco; basso; soprano; tenor; contralto ; con-
trabasso ; bufo ; adagio ; andante ; allegro ; crescendo ; cavatina ; cantata ; violoncelo ; dilettante. Além delas, o charlatão e charlatanas ; o cicishbeo : o cicerone; o arlequim ; o polichinelo; as girandolas ; a pintura a pastel e guache ; os lazzaroni ; os bandidos ; a bancarrota ; concurso, etc.
Terceira camada é constituída por uma aluvião de galicismos. Têrmos militares como bivac (de origem germânicea), palizada, recruta e recrutar entraram quando tropas francesas ajudaram D, João IV nas suas lutas contra Espanha, acontecimento político a que devemos, como
sabem, as Cartas da Religiosa Portuguesa (Soror Mariana) que contribuiíram tão poderosamente a confirmar lá fora a fama de apaixonados de que gozam os que morrem de amor, e inspiraram na Inglaterra os admiráveis sonetos à portuguesa
de Elizabeth Browning.
Têrmos
abs-
324
LIÇÕES
DE
tractos, literários, invadiram
FILOLOGIA
PORTUGUESA
o país, primeiro
no século de Luís NIV,
em que as tragédias francesas eram representadas nos teatros portugueses, em
traduções
medíocres ; depois, no tempo
dos Enciclopedistas,
e
quando os acontecimentos de 1790 revolucionaram a sociedade, dando direitos políticos ao tiers état : à burguesia. Finalmente veio o influxo da moda, que afrancesou não só a toilette mas também o trem (train) caseiro, e infinitas particularidades da vida pública e particular. Para esta faixa ocidental sobretudo., muito mais aberta a influxos
estranjeiros do que o país vizinho, a França foi (e continua ainda hoje a ser) a mestra dilecta e gloriosa: mestra em artes, ciências, letras, e instituições sociais —
com
muita
razãio —
mas infelizmente
também
quanto à literatura e linguagem que nunca deveriam abdicar a sua individualidade nacional. *
Os galícismos lingúísticos já foram de 1600, para cá. E mesmo
antes dessa data, bons
assunto de diversos tratados,
patriotas,
de
critério
elevado,
combateram a excessiva galomania, a adopção sobretudo de têrmos inúteis
e malformados, contrários ao génio idiomático da língua de Luís de
Camões.
Ao falar da formação e do significado restrito e largo do nome Portugal, já lhes contei que ainda no século XVI, André de Resende, o benemérito antiquário eborense, se insurgira contra os cetimologistas que definiam Portugalia como Portus Galliae, isto é, pôrto aberto a tôda a
mercadoria francesa! O primeiro erudito nacional que se ocupou em particular do assunto, foi Duarte Nunes de Leão, cujos estudos sôbre a Ortografia e a Origem da língua portuguesa (1606) são notabilíssimos para o seu tempo.
D. Francisco Manuel de Melo, «o grande em tudo», tocou no tema
tanto nos espirituosos Apologos Dialogais como nas suas Cartas liares.
Fami-
'
Francisco José Freire tratou de galicismos nas suas Reflexões sôbre a língua portuguesa (impressas em 1842). Sobretudo foi todavia o Cardeal Saraiva D. Francisco quem lhes dedicou um ensaio extenso que com certeza não é o pior, talvez seja mesmo o melhor dos seus numerosos escritos filológicos. Importante é o destinado aos Sinónimos. Os restantes são recomendáveis só com grandes restrições. O ponto de partida do erudito autor era falso. Éle era celtómano encarniçado. Escreveu, por exemplo, uma Memória em que pretende mostrar que a líntua portueuesa não é filha da latina.
PARTE
11l — ESTRANJEIRISMOS
RECENTES
320
A obra relativa aos galicismos a que aludi, é um «Glossário não só das palavras mas também das frases da língua francesa que por descuido, ignorância ou necessidade se téêem introduzido na locução portuguesa (1817)». *
Palavras acolhidas do francês e frases que pecam
contra o bom
uso português e desvios de sentido de vocábulos aliás bons, notam-se so-
bretudo em obras traduzidas servilmente do francês por meros escrevedores mercenários, sem conhecimentos lingilísticos, pois imaginam que
para tôda a expressião estranjeira deve haver e há correspondência literal portuguesa — o que é gravíssimo êrro. E vice-versa. Lembro-me de um aliás excelente actor português, que fêz arre-
galar os olhos dos colegas franceses — quando, referindo-se a uma representação do Iamlet, dizia do grande actor Sully — Il a três bien fait son papier! Em Iugar de — il a joné três bien son rôle — il a fait três bien sa part. E também de uma senhora luso-britânica que dizia, dando pêsames a uma amiga, com lágrimas nos olhos: tenho muita pluma! tenho muita pluma! A galicismos dessa força, que às vêzes são verdadeiras monstruosidades, ópuseram-se também Filinto e Castilho. Entre Palestras,
os vivos, sobretudo
Gonçalves
Leite de Vasconcelos
nas Lições
Viana, (p.
nas sApostilas e nas
365-366),
Cândido
de
Figueiredo em vários dos seus livros popularizadores, por exemplo no volume O que se não deve dizer, e nas Lições Práticas subordinadas ao título Falar e Escrever. Mas sobretudo no que chamou Estranjeirismos ou HRessenha e Comentário de Centenas de vocábulos e locuções estranhas à língua portuguesa. Notem todavia que apenas metade do livro trata de galicismos condenáveis. À outra metade é um Dicionário, útil
e ameno, de sentenças
proverbiais latinas, em regra metrificadas, que é costume alegar em conversa culta: palavras aladas, geflitgelte Worte, como dizemos na Alemanha, onde tôdas as pessoas medianamente cultas mas também sumidades intelectuais gostam de respeitosamente abonar as suas próprias idéias com a autoridade de espiíritos antigos, maiores. Bismarck e Biúlow citavam textualmente. Niezehe transforma propositadamente, enchendo
a forma sancionada com espírito novo, sobre-
tudo dizeres bíblicos. Os meus alunos de alemão sabem quanta alusão aos verbos do Evangelho, há, por exemplo, no Werther de Geethe. Quanto a Cândido de Figueiredo, recomendo sempre os escritos de propaganda, portuguesíssima, dêsse escritor, avisando, todavia. de que. quanto a etimologias, éle erra numerosas vêzes, por conhecer insuficientemente o período areaico da língua pátria e sobretudo por não ter
326
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
idéias precisas a respeito do latim vulgar e do bárbaro medieval, dando
a ambos o nome de baixo latim. IHá exemplos curiosos. Citarei o último em que reparei. Quanto ao francesismo purée, já nacionalizado pelo povo, que pronuncia pureia, Cândido de Figueiredo diz, como de costume : baixo latim! Esquece portanto que o baixo latim pureya não é outra coisa senão transerição ala-
tinada da forma froncesa, e que provávelmente o latim piperata (de piper pimenta ) deu pevrée ; depois peurée, e, finalmente, purée; a não ser que pevrée, purée, esteja por porroé — de porro ou alho porro, planta muito empregada antigamente contra pesadelos. Em dialectos franceses há porée e poirée. Verdade é que Cândido de Figueiredo segue Littré, e em geral vai muito bem quem se encosta ao grande lexicógrafo. Todos os puristas que citei, e os que deixei de citar, claro que lutaram e lutam debalde contra estranjeirismos em geral e em especial contra galicismos. Nunca os poderão extirpar de todo. Ainda assim, a sua campanha,
inspirada por vecemente amor-pátrio é muito simpática,
útil, sempre que expliquem bem as razões por que condenam certos galicismos e proponham boas formas e fórmulas nacionais (ou pelo menos peninsulares, como, por exemulo, o castelhano alude, em vez de avalanche, Lawine) com que seria possível substituí-los, dando expressão idiomática à idéia nova c indispensável que se deseje introduzir. Útil também,
quando
em
certos casos, reconhecendo
a impossibi-
lidade desta emprêsa, exigem que pelo menos se nacionalize formalmente, fonética e morfolôgicamente o têrmo enmpregado, escrevendo-se e pronunciando-se, por exemplo, pureia em vez de purée, visto que a língua nacional desconhece o ii francês. A terceira recomendação que fazem é que quando tal adaptação seja impossível, se sublinhem ou grifem na cescrita os estranjeirismos não aclimatados, denunciando-os como tais. Assim procede Gonçalves Viana, que não acolheu nenhum no seu Vocabulário Ortográfico e Ortoépico, a não ser em forma aportuguesada. Faz êle bem em condenar, com Leite e Figueiredo, como supérfluos, enveloppe, rendez-vous, parti-pris, cachenez, quête, coterie, escroc, vitrail, rêverie, bouquet, bal-masque, délivrance, montre, debut, comité,
boudoir, parvenu, lever de rideau, por julgar que há têrmos nacionais equivalentes como: sobrescrito, entrevista, preconceito, lenço do pescoço, peditório, contuio, cavalheiro de indústria, vitrais, devaneios, ramalhete, baile de máscaras, parto, mostruário, esbôço. Para boudotir,
parvenu, lever de rideau não indica tradução que satisfaça. Faz bem em exigir que se esereva e pronuncie à portuguesa restaurante e não restaurant ; plastrão, e não plastron ; edredão (e não édredon —
Eiderdune)
reclamo, ducha, compota, percalina, e não reclame,
douche, compote, percaline, em harmonia com muitas dúzias de galicismos mais antigos que arreigaram neste país.
PARTE
Por exemplo, cheque (de chec);
11l
— ESTRANJEIRISMOS
combóio
(de convoi);
327
RECENTES
chefe e chefre
chique (de chic — Schick);
(de chef);
cupé, boné, chalé, par-
quê, craehá, bajá, (abat-jour), pundonor, ( point d'honneur), assembléia (assemblée). Os que desejem pormenores podem recorrer às obras já citadas ou às Questões de Língua Portuguesa, de F. A. Coelho (1879) ou à Língua Portuguesa, do mesmo (1880) visto que em ambas há transcrição dos passos principais dos antigos filólogos, a-par, já se vê, de observações novas e de exemplos escolhidos. Acrescentarei ainda que galicismos, realmente dispensáveis, estão em inoda, quási sempre, só durante decénios (uma geração)), desaparecendo depois novamente do uso. Nas listas do Duarte Nunes de Leão, Francisco Manuel de Melo, e
mesmo nas do Cardeal Saraiva, há muito têrmo francês hoje completamente abandonado. Quem diz ainda reproche, por censura? resurce? cadet ? dessert? quem se serve de afares desde que o traduziram, e hem,
por afazeres? Termino êste capítulo observando que entre os estranjeirismos que entraram
em
Portugal
por intermédio
de livros franceses.
há natural-
mente muitos vocábulos de origem latina ou greco-latina, quer de origem germânica, não só aceitáveis e já aceites por todo o mundo culto, mas que realmente sãto acréscimos preciosos do Vocabulário internacional. Basta
citar carácter,
pedante,
intriga,
interêsse,
interessante,
sus-
ceptível, responsável, abandonar, garantir (alemão wihren gewaãhren). O mesmo vale de formações verdadeiramente francesas como bom-gôsto, bom-senso, que são conceitos novos.
Considero como zêlo excessivo o empenho de banir o que se arreigou, é internacional e não peca contra as normas do falar portugnês.
*
Além de galicismos notam-se na língua de hoje inglesismos vindos em parte por via directa, em parte por via indirecta. Com éles ncontece o mesmo que sucede aos francesismos. Os indispensáveis ficam e nacionalizam-se. Os indispensáveis (as ingresías) não se alteram. Popularizados, empréstimos sancionados pelo aplauso do vulgo são, por exemplo, bife (em sentido positivo e figurado) com rosbife, ambos acolhidos por Gonçalves Viana, que despreza como inútil, bifesteque); lanche ( que substitui luncheon )), vagão, buldogue, breque, guiga, queque
(cake), pudim, coke, club (clúbio na bôca dos inenltos), túnel,
Júri, joquei, chelim, chulipas
(sleepers), crupe, ponche, grogue, ron
(rhum), piquenique, jarda, tranvia, (boa tradução de tramway).
328
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Outros cestão em evolução e tendem a nacionalizar-se, como por exemplo. mitim, miíldio (transposto em mildiabos por deturpação facêta
que é etimologia verdadeiramente popular). Também alguns têrmos culinários são alterados, embora inconscientemente, de modo humorístico. Costumo citar dois : mince-pies (certo pastel muito fino;
—
to mince, significa esmiliçar, picar, do fr. mince,
pequeno, do lat. minutiare ), é transformado invariavelmente pelos cozinheiros do Pôrto em mancipais (municipais)! E eurry-powder, certa mistura de especiarias da Índia, empregada para temperar móôlhos e arroz, ou espetadinhas de rins de porco, etc., deu-nos o nome pitoresco de molho-correio. Outros inglesismos resistem ainda, por ex., highlife (hailaife). strike (estraíque), groom (grume), five o'clock, draw-back, interview, reporter, spleen, pope, trust, truck (truque), King Charles, Keepsake,
shocking, whist, bridge, dogeart, breakfast, skating, boykott. Ninguém sabe, se para sempre ou só por mais um decénio. O mais moderno deéles, Boykott, é nome próprio — de um capitão irlandês, falecido três anos antes do fim do século passado, chefe da Land-Liga dos agricultores, que enscenou as práticas de exclusivismo que caracterizam as vindicações de Socialistas, Nacionalistas, Anti-semitas e outros partidos extremos.
Sport, que ainda não citei, é vocábulo de origem latina, e já existia antigamente entre nós nas formas desporte (e desporto). Essa foi reintroduzida há pouco, pelos puristas: e está destinada, evidentemente, a vencer. A Alemanha moderna deu-nos relativamente pouca coisa. Alguns vocábulos
relativos
à
indústria
mineira.
Quartz,
Gneiss,
Feld-spath,
Cobalt, Talweg, já aportuguesados gráficamente no Vocabulário de Gonçalves Viana, que regista quarzo, gneísse, feldspato (com feldspático e feldspatóide),
cobalto,
talvegue.
E também
BblocausseBlockhaus:;
obus Haubitze; colza (Kohlsaat) ; krach de derrocadas financeiras; donfafe (nome de uma ave cantora de peito vermelho que bera na Alemanha o nome de cónego-da-sé do grego papas). O ilustre lingúista admitiu também
ou kraque, como designação de um passarinho, ou antes por êsse característico rece: (Dom domus dei ; pfaffe,
grifo). mas
Kiimmel,
não
Bitter, nem
Kirsch,
nem
LHinterland,
sertão
nem
(só em
Kaiser, nem
Kreutzer, nem Pfennig, nem Alpenstock, nem Eisberg, nem Frâulein. Nem o burlesco quemenére dos garotos de Lisboa, que é deturpação curiosa de Ja mein Ilerr. Têrmos germânicos traduzidos são o Além substantivado das Jenseits e Ubermensch, iibermenschlich, têrmos criados e empregados por Gethe no Fansto ; mas tornados gerais do mundo culto só pelo poeta-filósofo do Zaratustra.
Da Tlolanda veio n Kkermess (palavra origináriamente lkirch-messe — festa de igreja, feira ou missa de igreja).
alemã
PARTE
111 — ESTRANJEIRISMOS
RECENTES
329
Da Escandinávia, nickel, fjóerd, Geyser e recentemente o ski ( —schi ) nome dos sapatos-ripas de marcliar e saltar no gêlo. Da Dinamareca receberam os arqueólogos os kjoelkkenmâddinger montes de lixo de cozinha, pré-históricos.
Da Rússia, o Czar (tzar), que no fundo não é senão o Caesar, Kaiser eslavizado, com a cezarina e o czarevitz; o manuite pré-histórico ; o samovar, essa chaleira de sala tão confortável ; o rublo e os kopekes, o kwas e o kefir (?) proveniente dos tártaros, leite fermentado ; mas também
o knut, êsse terível azorrague;
(assembléia), judeus). Da
e os vilíssimos pogromes
FHungria
os cóches,
o boné,
os ukases
(decretos);
(perseguições
tsehako,
a duma
criminosas
e a dança
dos
tschardasech ;
da Boémia os caleches. Da Turquia os chabraques (espécie de xairel ). Da Pérsia o sátrapa, o derviche, o giaur,
o cachimbo,
o narguilé.
Da Índia o khaki ( lama, sujo. côr de poeira), nome moderno do pano cinzento ou acastanhado das tropas coloniais dos inglêses. Do Japão, o kimono, que já eá existia na forma antiga queimão, o jiujitlsu (combate sem arma, apenas com a força e manhas físicas, adquiridas num training metódico) ; harakiri (suícídio por brio, tão nobremente realizado ainda há pouco pelo admirado Nogi); e, salvo êérro, os Gymkkhanas, Todos estes estranjeirismos
entraram
em
regra
por
intervenção
de jornais franceses. Ainda devo dizer que da linguagem dos Ciganos ou Gitanos (à espanhola ) de gypanos, por aegyptianos, com aférese da vogal inicial, e da gíria dos gatunos, ou scja algaravia dos malandros, em parte cosmopolita, também passaram ao português popular e familiar diversas locnuções, em regra pitorescas e bastantes vêzes desbragadas, Só menciono o próprio nome dessas gírias: o calão. A respeito dêle recomendo a obra científica de F. ÀA. Coelho, Os Ciganos em Portugal (1892). Há também um Glossário prático de Alberto Bessa, - gíria portuguesa (Lisboa, 1910). *
Enfileirados e enumerados assim, os elementos não-latinos ou não greco-latinos do Vocabulário português parecem nutmerosos. Em proporção ao capital latino e às derivações nacionais constituem todavia uma percentagem muito razoável, inferior seguramente a dez por cento. E de modo nenhum superior à que há em todas as línguas modernas de nações cultas. Pegando em qualquer texto, em prosa ou verso, sobretudo de autores
antigos,
mas
mesmo
de
autores
clássicos
ou
modernos,
muito
330
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
acreditados (como Herculano, Garrett, Castilho, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Trindade Coelho, Carlos Malheiro Dias) e lendo meia
dúzia de páginas, com o fim expresso de destrinçar os elementos do tesouro vocabular, cada um de nós chega infalivelmente a reconhecer até que ponto subidíssimo preponderam os elementos latinos (ou greco-Jatinos: eu prefiro êsse composto, tantos são os helénicos que Roma acolhera). Seguramente todos os meus ouvintes ficaram convencidos do predomínio do latim pelas rápidas análises lexicográficas de textos arcaicos que fazemos nas Lições Práticas, redizendo em latim, bárbaro, bem se vê, o que historiadores-tradutores contaram em português.
E apesar de a linguagem dos autores imodernos ser incomparãvelmente mais rica do que a de Afonso o Sábio e os seus continuadores e tradutores medievais, a diferença, não é, nesse ponto, tamanha como se
podia supor. *
Sôbre a base do que até aqui ensinei a respeito da lexicografia portuguesa, já o disse na lição passada, queria que os senhores escrevessem agora uma dissertação pequena sôbre os clementos da língua portuguesa, sobretudo os não-latinos. Dos latinos ocupar-se-ão mais tarde em outro exercício, quando já souberem distinguir entre elementos herdados, realmente populares, elementos livrescos, e criações prôpriamente portuguesas, realizadas, quer com elementos preexistentes, ou novamente formados pelos processos da derivação, tanto simples como polissintética, e da composição — quer por livre invenção, em regra onomatopaica (**).
() Termina [NVYota do texto].
aqui
a
matéria
Falta a Parte 111 da Lexicologia.
expendida
Não
na
aula
a imprimiram.
ao
curso
de
1912-1913.
[Nota ms. da Autoral.
DE
LIÇÕES PRÁTICAS PORTUGUÊS ARCAICO «Nossa antigua e nobre lingua» F. de O., 1V
LEITURA E EXPLICAÇÃO DE TEXTOS DOS SEÉCULOS XIII E XIV (EM FAC-SÍMILES DE MANUSCRITOS ANTIGOS)
LIÇÃO [ TRANSCRIÇÃO CRÍTICA E ANÁLISE VOCABULAR DO FAC-SÍMILE 1, DA CRÓNICA GERAL DE 1404 Depoys da mort[e] del rrey do[n] sancho de nauarra rregnou el rrey don G[ arcia], o que dissero[n] temeroso. Este nom[e] temeroso lle dis[ s Jeron, seg[ undo ] as estorias co[ n ]taf n ], por esta rrazo[n] que aqui diremos: porque quando oya dizer algúa cousa de feito darmas ou dalgun peligro de mouros que vies[s]e ou que ouves[s]e dentrar en batalha tremia todo no começo, mays depoys que ena batalla entraua dizen que moy esforçado et moy forte era. Este rrey don Garcia era bõo, segundo a-estoria conta, et piadoso et franco. Et moy atrebudo. Et quanto auer podia, todo o dava a cavalleyros; et nas vezes andaua à pee, suas abarcas calçadas, lidando et guerreando asy como fazia seu padre. Et aas vezes de cauallo. Et porque usaua moytas vezes en guerra en auarcas dis[s ]eron Me por ende Garcia Abarca como dis[s]eron a seu padre Sancho Abarca por cesta rrazon meesma. Et en este estado et en este boliço acabou o mundo este rrey don Garcia. Et morreu. Como el Rei don Sancho o mayor de Nauarra casou con dona eluira filla do conde don sancho de castella. Morto el rrey don Garcia abarca rreynou enpus el seu fillo conde don Sancho de Castella et ouvo en ella estes dous fillos don garcia et don fernando. Et en dias deste rrey... *
O fae-símile 1.º de que fizemos transcerição crítica e vamos fazer a análise vocabular, consta de um capítulo de uma versão galego-portuguesa de uma das diversas refundições da grandiosa enciclopédia histórica de Afonso X, o Sábio, de Castela, a que é costume dar o título de Crónica
General (de Espanha ) mas que &le próprio chamou Estoria de Espanna— obra de grande erudição, admirâvelmente estilizada. Escrita antes de 1282 ( provávelmente de 1260 a 68), continuada em 1289, ela foi copiada e remodelada
posteriormente,
sucessivas
vêzes, durante
mais
de dois sé-
culos de actividade historiográfica, sendo transposta por alguns dos remo-
332
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
deladores e acrescentadores em galego-português, e em navarro-aragonês. Talvez também em catalanesco. À única impressão antiga foi realizada em 1541 em Samora por Florião do Campo, Cronista de Carlos V, sem o critério moderno, bem se vê. Ela não contém um texto puro e autêntico. A verdadeira Primera Crónica General, o texto original, foi tirado
à luz há pouco por Ramón Menéndez Pidal — no Vol. 5.º da Nueva Biblioteca de AÁutores Espanoles (Madride,1906). Peçam os senhores na Biblioteca que se adquira um exemplar, e depois lelam nela sempre que lhes seja preciso memorar qualquer facto de história peninsular anterior a 1252, para bem conhecerem o espírito da época. À obra ideada pelo erudito bibliógrafo coroado, que a meu ver deu ao texto a sua perfeita e definida forma, embora para o acarretamento dos materiais se servisse de colaboradores, termina com a morte de S. Fernando, seu
pai, o glorioso reconquistador da Andaluzia.
Das diversas refundições ocupou-se o próprio Pidal (Crónicas Generales de Esparia, Madride 1898). Das versões, ou compilações em outras línguas peninsulares, está impressa só uma em navarro-aragonês que logo citarei); só parcialmente outra portuguesa, muito tardia, de 1457., mas ainda assim importantíssima. (Ed. Nunes Carvalho Ms. 4 da Bibl. Nac. de Paris). À galego-portuguesa a que pertence o nosso fac-símile talvez se publique em breve. Ela foi acabada de escrever em 1404. Desde já seja dito que quem acaba uma obra logo depois de 1400 e assistiu a muitos
dos acontecimentos
que
narra,
fala evidentemente
a língua do século anterior (XIV). Essa crónica de 1404 compõe-se de troços diversos de crónicas castelhanas, e de um acrescento original, que
abrange os sucessores de S. em
Fernando (1254) até Henrique ITI (falecido
1406). À primeira parte, do comêço até Ramiro , está escrita em
castelhano, como a já mencionada continuação, e contém uma interpolação relativa à Conquista de Ultramar (isto é, de Jerusalem). É mero traslado, provávelmente.
À segunda, de Ramiro
a
S.
Fernando,
está
escrita em galego-português. O manuscrito de que o fac-símile representa uma página (o verso da fôlha 177 ) foi descoberto há poucos anos em Madride. Anunciado no Catalogo ilustrado de la libreria de P. Vindel, Vol. III. N.º 3.476 (Mno-
dride, 1903 ) foi examinado com vivo interêsse pelo mais ilustre filólogo castelhano, o já citado investigador das Cronicas Generales, num opúsculo intitulado Cronica General de 1404 (Madride, 1903, Separata da Revista de Árchivos de Julho de 1903, Vol. IX). Leite de Vasconcelos dedicou-Jhe também um valioso escrito: Uma Crónica de 1404 : Observações Filológicas. Ele desejou adquirí-lo, para o publicar evidenternente, mas não o conseguiu — porque as ofertas de um hispanófilo americano, o benemérito fundador da Hispanic Society of América, foram tão vantajosas que teve de ceder. Encontra-se portanto hoje em Nova-Iorque. em posse do milionário Huntington.
PARTE III — LIÇÕES PRÁTICAS DE PORTUGUÊS ARCAICO
383
A língua em que está escrita a segunda metade do volume é português, segundo Pidal; galego, segundo Leite. Eu chamo-a galego-portuguesa, como já viram, porque dou esta designação a todos os textos escritos na linguagem comum falada e escrita nos séculos XIIT e XIV na faixa ocidental da península, aquém e além Minho, — com divergências muito pequenas, tão pequenas que não con-
vém estabelecer divisões. Do facto de parte do texto ser castelhano, e da cireunstância de o autor empregar na portuguesa algumas formas peculiares da verdadeira Galiza (como moy, moyto, froyto (em vez de muy, muyto, Íruyto Je outras castelhanas, como treycion, iglesia, espacioso, obispo, arçobispo, Elves (em lugar de Elvas ), também usadas só além Minho, concluíu Leite de Vasconcelos que o autor seria oriundo da Galiza. De modo algum o contesto.
«Éle começaria a trasladar um texto espanhol (quer para si, quer para outrém), mas como o espanhol não fosse a sua língua materna, cansou-se de o empregar, e passou para a que o era». Embora mostre interésse pela história de Portugal, não a continuou como a de Espanha. — Por isso não é provável fôsse dos Galegos que, no tempo de Nun'Álvares, imigraram em Portugal. Caso contrário deu-se na versão realmente portuguesa, de que já falei. Ela foi continuada até 1457. Outras redacções galego-portuguesas, intimamente aparentadas, que existem na Bibl. Real de Madride (2-I1-3) e na Nacional, ainda se conservam inéditas. D.
Duarte
possuía
uma
Estoria
Geral,
na
sua
livraria,
c duas
cronicas de Espanha, talvez relíquias do tempo de D. Dinis. Éste, pela sua parte, mandara verter a Crónica do Mouro Rasis, que se encontrou intercalada em vários manuscritos da Crónica General, inclusive na portuguesa de 1457. Para que vejam as relações entre o texto fac-similado galego-português, o original castelhano e algumas refundições, vamos ler — 1) o cap. 785 da ed. de Pidal. 2) um trecho correspondente do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro de Barcelos, e 3) o da compilação
navarresa : 1.º) Despues de la muerte del rey don Sancho de Nauarra regno su fijo dan Garcia al que Naramon Trembloso. Et este nombre Trembloso le dixieron, segund las cstorias cuentan, por esta razon que aqui diremos : Porque quando oye dezir alguna cosa de fecho de armas o de algum periglo de moros que viniesse o quando auie a entrar en batalla, tremie todo al comienço; mas despues que en ta fazienda entraua, dizen que muy esforçado et muy fuerte era. Este rey don Garcia cra bueno, segundo la estoria cuenta, et piadoso et muy franque et muy atreuudo, et quanto cll auer podie todo lo daua a cavalleros. Et a las uezes andaua a pie, sus auarcas calçadas, lidiando et guerreando assi como fiziera su padre, et a las vezes yua
331
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
de caualo. Et porque en guerra usaua muchas uezes de las auarcas, dixieronle por ende Garcia Áuarca, como dixieron a su padre Sancho Auarca por essa razon misma. Et en est estado et en este bollicio acaba el mundo esse rey don Garcia et murio. O texto português é tradução literal, como vêem.
2º) Livro de Linhagens, Titulo V Dos Reys Portugaliae Monumenta Ilistorica, Scriptores, p. 251.
de
Navarra.
—
«De rrey dom Garcia, filho de rrey dom Sancho Auarca e como per sua morte reynou seu filho dom Sancho etc. Reynou empõôõs cl]l seu filho dom Garcia e foy muy boo rrey e muy leall e franco e muy esforçado e fez muytas batalhas com mouros e vemçeos. Mas quando viia gram coyta ou nouas [ de mouros ] chorava com doo. E quando lhe matavam a camdea de noyte avia medo, e por esto lhe poserom nome dom Garcia— o choroso. Reynou dom Garcia XXX annos e morreo na era de CCCLVIHL». — Érro evidente por 958. Resurmo
pitoresco,
mas
incompleto,
tirado, a meu
ver, da refun-
dição de 1344 da Crónica General. 3.º) A ela recorreu provávelmente também o Bispo de Baiona, Frei Garcia de Eugui (1384), autor de uma redaeção, subsistente num códice do Escorial,
( X-IL-22), do século XV, e em outro da Bibl. Nacio-
nal (F.113).— Vid. Cronica General de Esparia por Frey Eugui, Obispo Bayona. Transcricion hecha del Manuscrito del Escorial por G. Eyzaguirra Rouse — Santiago de Chile 1909 (p. 288). aDel Rey Don Garcia el Tembloso fijo del Rey Dom Sancho Abarqua. Muerto el rey don Sancho Auarca regno su fijo don Garcia que quoando oya nuebas de partes de moros logo tremia, pero era buen barragan et muy esforçado y el que antes cometia e feria en la fazienda las mas vezes ; et fue mucho buen rey e leal e franquo et mucho esforçado, et fizo muchas batalas com moros et vincio las mas. Quoando acaescia en grant afruenta temblava todo, et quoando se mataba la candela de noche prendia gran miedo. Este seguia la manera de su padre por andar en la querra de los moros... e cdlamaba se el rey Garcia Abarca ; et murio en el aynno que andaba Ja era en IXC-LXVIII, etc. Dnata segura do reinado do pai do Tembloso — Sancho I Garcia — terceiro rei de Navarra, é 905. Vid. Revue Hispanique VII, onde há um estudo sôbre: Les origines du royaume de Navarre. *
O confronto dos textos é elucidativo também quanto à linguagem e leva-nos a emendar, por ex., viese, pondo viêsse (venisset ). — Vamos por partes.
PARTE
I1! — LIÇÕES PRÁTICAS DE PORTUGUÊS
ARCAICO
385
1.º) Depoys de. Logo a primeira fórmula, aparentemente simples.
ofercce dificuldades sérias (**). AÀ partícula ou preposição latina que indica posterioridade local e temporal, cra post. O sermo vulgaris não se pejava todavia de preceder post e de o combinar com a preposição de: dizendo de post illum. Gramáticos do tempo do Império romano censuram êste modo de dizer. — Exemplos paralelos de preposições compostas, em que entra de como primeiro elemento, são dentro «de intro; diante de Y in ante (como se vê do castelhano delante adelante ) ; detrás ; de mais.
Pois, como representante de post, perdeu a dental do fim e ditongou a vogal. À queda de t final deu-se regularmente, a princípio só diante consoante ( pos [1] tempus). Estava a partícula em próclise; era átona portanto. — Outros exemplos da mesma queda são e « e!, ou À“ aut,
cabo “ caput, ama “ amat. Se o latim est deu é em português, e não es, como em castelhano, devemos reconhecer nisso um caso de analogia. O povo português regulou sou, és, sé, sôbre ei, às àá; stou, stás, stá, no
empenho instintivo, não reflectido, de diferenciar a 2.º pesson do singular da 3.º. Pós subsiste em após. Usava-se também nas fórmulas em pós e depós. Antigamente essas não eram seguidas da preposição de: após a sua morte, depós a sua morte, em pós ele. Hoje dizemos, e já no séceulo XIV se dizia, depois de. A ditongação de õ breve latino deu-se em tôdas as línguas romãnicas: Em castelhano há pues, despues; em catalão puix; em provençal pueis ; em francês puiís, depuis ; em italiano poi, depoi ; em rumeno apoit.
Mas não se conhece o motivo, a não ser em castelhano. Em português. oi de 5 é único. Haveria influxo castelhano? Éle só explicaria a forma portuguesa e a catalanesca; mas não as outras. ; Deveremos admitir a existência dum advérbio *postius? Confesso ignorá-lo. Despois, muito usado no século XVI, equivale a de-ex-post. À confusão entre de e des,
é tão freqiiente, como a que equipara des (de ex) e es (ex). Em castelhano continua-se a dizer despues. O povo emprega nos contos a fórmula ao depois.
2.º ) Dom, está por dono “ dom'no (domino). É substantivo, rebaixado a mera partícula, com acepção nobiliárquica. Perdeu o acento próprio
()
por estar em
[A
Ex”*
Sr'
próclise, agregado
D.
Carolina
M,
a outra
Vasconcelos
palavra
explicou
principal, a
eclementarmente
o texto palavra por palavra; mas nós tomámos nota apenas das explicações mais complexas e interessantes. Por isso mesmo, e como nos enganássemos no exerceício
escrito, com respeito suplementares)].
a algumas
ctimologias,
ela viu-se
obrigada
a dar
explicações
336
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA «
cujo acento se submete. E perdeu por isso mesmo também a vogal final. Outros exemplos são : frei, frai de freire fraire (fradre, fratre) em Frei João (cfr. ital. Frá Angelico) ; fidalgo por filho de algo; Fonseca por Fonte seca: Monforte Monteforte; YValverdeYale verde; Castel Rodrigo Castelo Rodrigo; Peresteves Pero ou Pedro Esteves; Pai Gomes Paio ; NunalvaresNuno; Ruy Soares Rodrigo; Mem Soares
Mendo;
Martim
Anes
Martinho;
Fernam
Fernando,
cete.: gran
por grande em grão-duque, grã-cruz, grá-besta, grão-mestre. San por santo ; mui por muito; cem por cento em cem mul réis, ete.; bom por bõo ; bel por belo (a bel-prazer, belverde), ete., ete., De outras fórmulas como em cas de por em
3.º) Temeroso
casa de, falarei em
outro ensejo.
« timoroso, de timore. Tembloso
tremulosou de
tremulare (derivado de tremere por tremére) que deu em cast. e prov. temblar (francês trembler), e a-par dêle a forma dissimilada temblar (criada para cvitar a repetição da líquida r-l na mesma palavra) sob influxo de temer. — De aí vem Tembloso, como se Jê em algumas redacções da Cronica General. Choroso “ plorosus é substituição ou tradução arbitrária, que bem pode ser da responsabilidade do autor português. 1.º) Segundo “ secundum (de sequiseguir). À significação originária é ao longe de; conforme a. (Secundum Caesaris decreta). No francês selon, houve cruzamento
de seon “ secundum
gum.
com
long
« lon-
:
5.º) Peligro, forma castelhana ; perígoo, perigo “4 perículu (semi-crudita como artigo). 6.º) Viese. Falta o til sôbre o 1, conforme se vê do castelhano viniese
« venisset.
7.º) Piadoso está por piedoso. É alteração eufónica.
O Português
não simpatizava com o ditongo te, muito freqiiente no reino vizinho. Por
isso dizia também piadade, apiadar-se. Os letrados do século XVI reintroduziram todavia a forma culta piedade por ser mais próxima do étimo pietate. Nos derivados piadoso, apiadar-se, houve queda da síilaba medial pretónica, por ela se semelhar demasiadamente à tónica. Essa abreviação ou simplificação, evitação instintiva de uma reduplicação não intencional, tem o nome científico de braquiologia, de
braqui
curto;
e logia,
( maneira de dizer) ou de haplologia (de haplos simples). Outros casos portugueses são: bondoso (em lugar de bondad — oso ) ; vaiídoso, idoso, caridoso, maldoso, saiidoso, habilidoso.
O fenóme-
no, que de modo algum se restringe às formas citadas, não é privativamente português. Baste dizer por-ora que já havia exemplos Jlatinos. Áestas está por aes[ ti Jtas, honestas por hones[ti)tas.
PARTE
1V
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
337
ARCAICO
8.º Franco. — Em castelhano havia franque. Evidentemente do francês franc — nome da grande tribo germânica medieval que os povos romanos costumam chamar da Invasão dos Bárbaros, se apoderaram da Gália, e a avassalaram, a ponto tal que ela mudou de nome, chamando-se hoje França. — Français está por François — donde vem o alemão Franzose, franzôsisch, de france-iscus (o sufixo também
é germânico) ; —
os
peninsulares substituíram oís por ês Xensis, ete., ete. No sentido figurado
que lhe deram na própria França — homenagem.
o de livre e liberal —
há uma
9.º Atrebudo, hoje atrevido, é particíipio adjectivado do verbo atrever-se. Dos particípios em udo, formados para os verbos em — éêr, sóbre modelos latinos poucos numerosos, afim de completar o esquema das conjugações
(ar com ado, ir com ido) terci ocasiões numerosas de
falar. Hoje digo apenas que alrever-se (com trever-se, estrever-se) significava antigamente atribuir-se a si próprio alguma qualidade, algum direito, algum
privilégio;
arrogar-se alguma coisa, ser arrogante, con-
fiado, valente. E representa positivamente
10.º) . Abarcas, avarcas —
tribuere.
nome de algum cnlçado; e alcunha de
pessoas que no século X usavam dêsse calçado. — Essas pessoas eram reis de Navarra: dos primitivos. Bascos, portanto, caracterizados com nomes próprios de origem basca ou ibérica. Nas lições teóricas terei de falar necessâriamente de Bascos e Iberos, e da língua basca, euscara ou
vasconça como único resto duma das tribos que foram habitantes primitivos da Hispânia, assim como dos elementos ibero-bascos que passaram aos três idiomas neo-latinos da península. Agora lembro apenas que êles vivem, na região pirenaica (parte na França, parte na Península), nos
senhorios de Biscaia, Guipuzeoa e Álava e em parcelas do antigo reino de Navarra ; que todos êsses nomes topográficos são ibero-bascos: e que também o são os nomes dos primeiros reis, de Navarra : a ) Yennego-líiigo (Tóigo e Basco era Inúcio Loiola ; Basco era também seu sucessor Santo Xavier); D) Garcia Yenneguez ou Inniguez casado com uma Urraca, (também ibero-basca) ; c) Sancho Garcia Abarca, pai do nosso Trembloso-Abarca. Quanto a êste nome, fixem primeiro que, apesar da identidade dos sons, abarca não é de modo algum, uma barca acrescentada pelo artigo feminino, ou pelo prefixo a, muito embora com figura humorística chamemos às vêzes barcas a calçados muito amplos. À sereia da homofonia engana etimologistas sem experiência. É preciso estar sempre de prevenção contra ela. Abarca existe exclusivamente na península hispânica. Sobretudo no reino vizinho, de onde passou inalterado para Portugal. Na fronteira
338
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
do Norte. em Bragança, por exemplo. ainda se emprega hoje. Designando um objecto de uso comum, entrou, segundo tôdas as probabilidades, com
êsse mesmo objecto. O que éêle era (e é, —
um
calçado rústico de couro de boi, não
curtido, atado com correias — sabêmo-lo da própria Crónica General. No Capítulo 784, que precede o que estamos a analisar, dedicado ao primeiro rei de Navarra apelidado Abarca, conta-se como na sua ausência, exactamente
por êle estar além dos Pirenéus, ou dos Portos de Ronces-
valles, 05 mouros puseram sítio a Pamplano. Isso na fôrca do inverno, quando a neve cobria os pincaros da serra : «...et quando aquello oyo pesol muy de coraçon; et cou el grand pesar que ouo del maltraymento de la tierra et de los cristianos metiose a grande periglo de pnssar los puertos que yazien llenos de muy grandes nicues por yr a los moros ; et quando uio que non podrie passar en otra guiza, fizo auarcas de cueros crudos para si et para todas sus compannas. et passo los puertos de noche por medio de Ja nieue sin todo danno pero con lazerio et por aquellas auarcas le dixieron despues los omnes el rey don Sancho Auarca et aun a algunos del su linnage que vinieron del despues ouieron nombre de Auarca.»
AÀ agilidade dos Bascos é ainda hoje proverbial. Os Franceses dizem courir comme un Basque. E ;o sentido originário de auarca? Os Bascólogos consideram abarquia como nome composto de abarraramo de árvore, e de quia coisa, objecto. Coisa de madeira, portanto. Sc essa explicação fôr boa, devemos admitir que antes de 905 o calçado dos Bascos fôra de madeira, totalmente ou em parte : com sola alta de pau. Outras espécies de calçado peninsular (de que há fábrica aqui mesmo em Coimbra), fresco, cómodo e veranil, alparcas, alparcatas,
alpercatas, creio que não se relacionam etimolôgicamente com as abarcas. As solas cosidas de tranças, faziam-se das fibras duma planta, que, salvo êrro, se chama espargatt ? ou também das fibras do esparto?
11.º) Guerrear, de guerra., palavra germânica (cfr. ingl. war, alemiio Werre. WW germânico dá gu em português). 12.º) Meesmo, hoje contraído em mesmo, provém de met ipsimus,
derivado vulgar (superlativo)
de ipse —
Italianos téêem medesimo, os provençais de mesme, os Castelhanos mismo.
para indicar identidade. Os medesme,
os Franceses
même,
Do positivo metipse proveio a forma antiga medês, às vêzes nasalada em mendês (Cantigas de S. Maria, 313).
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÉS
ARCAICO
339
Curiosa é a forma menesmo usada na Galiza. Nas Cantigas de Afonso o Sábio encontro tanto menesmo (355) como meesmo (50). Se essa forma fôsse meramente erudita podíamos imaginar influxo dos Menechmos (Irmãos Gémeos) de Plauto. Sendo popular, houve influxo da inicial m sôbre o final da sílaba, como mim, de mt; mãe, de mae.
em muim,
13.º)
Boliço, em castelhano Dolicio, de bullire.
14.º)
Elvira, antigamente Gelvira, nome germânico.
de mui,
Resumindo : quási todos os vocábulos são de origem latina. À maior parte representa formações que já existiam na antiguidade — são dições gerais, comuns a todos quantos falam português, e de sentido próprio, nunca mudado. Várias pertencem ao sermo rusticus (cavalo, mesmo, batalha) . Há todavia formações criadas pelos Neo-latinos ( por exemplo ac-capare de capu, caput que nos deu acabar) ou apenas pelos Peninsulares ( boliço, bolliço, com boliçoso de bulire; esforçado, de *fortia — derivado de fortis como graça de gratis). Alguns são germânicos ( guerra, Elvira, franco). Outros ibero-bascos (avarca, Garcia, Navarra).
noe
LIÇÃO U TRANSCRIÇÃO DO FAC-SÍMILE I1: OUTRA VERSÃO GALEGO-PORTUGUESA DA CRÓNICA GENERAL
Como rreinou dom rramiro o monje yrmãao del rey dom Pedro e del rrey dom Afom[so]. Povys que foy perdudo el rey dom Pedro e dom Afonso que reinava em pus el rey dom Pedro, non ficou delles fillo que reinas[s]e saluo o Infante dom Ramiro que era monje. E por esta razom entrou entre os Arangoeses moy gram discordia, ca diziam que dom Ramiro (que dis[ s Jonus) que era monje et clerigo de mis[sJa. E que nom podia fazer batallas nem justiça as[s]i como convina [leia-se conviria— convinha ] a ser, nen cnsar com moller aa beiçon, as[s]i como era direito. Et por esta razom acordarom de alçar por rei a húu nobre omen que auia nome dom Pedro de Tares. Mays es[s]Je dom Pedro, non se guardnndo nen parando mentes
em seu feito nem a onrra em que o queriam siso a despreçar os omeens onrrados e altos e dose que rei e sennor era, já ante que fos[ se ] quando virom aquelles [leia-se aquelo ] dous
poer, começou com pouco téc-los em pouco, cuydane confirmado em elo ; mays altos omes que eran muy
poderosos (e ho húu auia nome dom Pedro Tiçon de Caterica e o outro dom Pedrogin [leia-se Peregrin] de Casteloa ziam), querendo elles fazer lealdade contra seu sennor natural, destoruarom que non fos[s]e rei uaquel dom Pedro Tares. Et traballaronse, quanto celles poderon, de fazer sacar do mõecsteiro aquel dom Ramiro monje, fillo del rrey don Pedro a alçado rey ; as[s]i foy; c os Arangoeses seendo húu dia ajuntados ena ciodade de Boyra em suas cortes que fazian y pera alçar rey aquel dom Pedro que dis[ s Jenus, algúrus dos altos omes que y vieran de Navarra outros[s]i áquelas cortes, quando viron que os no[n ] saya nihúiu a receber, ouucron ende gran pesar. Mays dom Pedro Tiçon. aquel alto ome que dis[s Jemus, quando soubo que viinhan sayo a elles e recebeos bem e onrradamente. E porque dom Pedro Tares entrava em vaão [ leia-se em vanno ba-
nho] e estava folgando a sabor de si em sua casa, leuou aquelles altos omes de Navarra por veer se os mandaria entrar a el. Et quando chegaron aas portas do paaço des[s]e dom Pedro mandou el aos porteyros que He abris[s Jem (leia se que lle non abrissem) as portas. *
Outro trecho de uma versão galego-portuguesa da Crónica General de Afonso o Sábio: da qual. conforme contei, existe um exemplar na Bibl. Régia de Madride (com a marcação 2 — H — 3). É do século XIV
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
311
f. 130 v.) — anterior portanto ao que já lemos. Quanto ao assunto, aragones. êle é um tanto posterior ao que constitui o cap. 785. O filho de Garcia o Trembloso, Sancho cl Mayor de Navarra herdou Castela (condado ainda então) pela sua mulher D. Elvira. O filho dêle c seu sucessor em Navarra, D. Ramiro, como era «cavalheiro muy esforçado»
[êz-se chamar rei de Aragão. AÀ êle sucedeu D. Sancho. Tereeiro rei foi seu primogénito D. Pedro. — Éste tinha dois irmãos: D. Alfonso I o Batalhador, e D. Ramiro o Monge, que sucessivamente ocuparam o trono de Aragião, porque D. Pedro morreu sem filhos. Ésse D. Alfonso I é o segundo espôso de D. Urraca — depois de ela ter envilivado do Conde D. Raimundo de Borgonha (1109): a irmã impetuosa de D. Teresa de Portugal que, se não casou segunda vez depois da morte de D. Henrique, viveu maritalmente com o maior dos Condes
da Galiza de então. Vencido na sanguinolenta batalha de Fraga (1134) éle retirou-se, segundo a lenda, em segrêdo a um mosteiro, onde falecen ——- (Herculano, livro 1, p. 209, 222, 224 e seg.). Eis o teor do texto original castelhano. Cap. 795: El capitulo del desacuerdo de los Aragoneses et de como regno don Ramiro el Monje. Pues que fueron muertos el rey don Pedro et don Alfonso su hermano, que regnara empos el, non finco dellos fijo ninguno que regnasse et por esta razon entro entre los aragonezes muy grand discordia, ca dizien que este rev dom Ramiro, de quien dezimos que era monge et clerigo de missa que nin podie fazer batallas nin iusticia assi como convinie a rev, nin casar con mugier a bendícion como era derecho. Et por esta razon acordaron de alçar por rey a um noble omne que auie nombre
don Pedro Thares. Mas esse don Pedro non se guardando nin parando mientes en su fecho nin en la onrra quel querien poner, començo con poco seso, cuedando-se que rey et sennor era ya ante que fuesse firmado en ello. Mas quando aquello vieron dos altos omnes que eran muy poderosos — et ell uno auic nombre don Pero Tizon de Catherita, et el otro don Peregrin de Castiell Áciol — queriendo ellos fazer lealtat contra su sennor natural. estoruaron que non fuesse rey aquel don Pedro Thares et trabaia-
ronse quanto ellos mas pudieron de fazer sacar del monesterio a aquel) dom Ramiro el Monge, fijo del rey don Sancho. et alçarle rey ; et assi fuc. Et Ios aragoneses seyendo un dia Hegados en la ciodad de Boria en sus cortes que fazien y pera alçar rey-a aquel don Pedro que dixiemos, algunos de los altos omnes de Nauarra que uinieran y otrossi a aquellas cortes, quando uieron que los non salie ninguno a recebir, ouieron ende grand pesar. Mas don Pero Tizon, aquell alto omne de quien dexiemos quando sopo que uinien, salio a ellos cet resibiolos bien et onrradamiente. Et porque sabie que don Pedro Tares entrara en banno, et estava folgando et a sabor de si en su casa, leuo a aquellos altos omnes de Nauarra
342
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
por uecer si les mandarie que entrassem a ell. Et quando legaron a Tas puertas del palacio desse don Pedro, mando cl a los porteros que les non abriessen la puerta. Cfr. Eugui, p. 294. Éle diz de P. Pedro Tares que fue mal conselhado que se tem7yesse en caro. Entendo e leio : que se teviesse en caro. Como “quomo, representante vulgar da clássica fórmula quomodo quo modo. Na península houve (e ainda há na bôca do vulgo) outra forma, mais reduzida, come, empregada (encliticamente ) em comparações
abreviadas,
por ex., come
religioso —
come
boi. A-par
dela
temos coma ( como a) em determinadas circunstâncias. De ambas torunarei a falar oportunamente.
Ramiro é um dos nomes góticos a que já aludi, citando exemplos como Tagilde Atanagildi; Manrique Amalariqui ; Ermelinda; Adosinda; Ermesinde, e explicando que exactamente por serem distintivos dos nobres, de sangue azul — (isto é, de tez branca, através da qual se vêem as veias azuladas), êsses nomes foram e são predilectos de tôdas as camadas sociais. Monge é francesismo. Mais exactamente provençalismo. Os Provençais diziam monge[s]; fr. moine; alemão Mônch. Do grego monachus, monacus, *monicus, de monos, só, único. Por intermédio dos Lati-
nos, bem se vê. — A-par dessa forma houve em galego-português outra, representante directo do têrmo greco-latino : mógo, de móogo por moago, mõago, com nasalacão e queda regular do n intervocálico e assimilação
da vogal átona à tónica. Essas formas ocorrem nos Cancioneiros galego-portugueses, como hão-de ver, ulteriormente, como sinónomo de monje,
mas também como nome próprio. O francesismo entrou no século XII, com a ordem de Cluny, fundada por S. Bernardo. Os peninsulares usaram também do derivado monjia (convento, mosteiro). Irmão
«germanu,
filho dos mesmos
pais. Em
cast. hermano.
Em
portugunês houve queda de & inícial antes de e) como em Elvira, de Gelvira, e ensurdecimento da átona inícial, que também se nota na pronún-
cia moderna vulgar de irdar “ hered[it ]Jare,
irrar Cerrare. Às outras
línguas românicas serveni-se da palavra latina frater: fr. frêre, it. fratello, À forma divergente mano, mana, familiar e acarinhadora, dada a pessoas estranhas por cortesia, pelo menos desde o tempo de Gil Vicente, talvez seja castelhanismo. À queda de sílabas iniciais dá-se o nome de aférese. O latim — germanus (da raiz germ — ) não é o nome etnógénico do povo que habita o centro da Europa e mais povos nórdicos. Ésse é céltico, e significa vizinho. El-rei — el é a forma espanhola do artigo; a meu ver o mais antizo dos espanholismos da língua portuguesa : curioso resto da primitiva dependência dêste reino das dinastias de Castela e Leão. Discordo de Leite de Vasconcelos, que tentou explicar fonêticamente &sse el como verdadeiramente nacional. Da sua proveniência de ille, já falei.
PARTE
1V
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
318
Pedro. “ Petru[s ], nome grego, bíblico. como sabem. Petra é um dos grecismos que se vulgarizaram no latim do Império, substituinte de saxus (— que subsiste no português seixo, com significação alterada — ) e de lapis, lapidis. Afom Afonso — forma abreviada. usada só antes de patronímicos:
outro nome
gótico, composto
(como
Ramiro)
de dois elementos.
Em Castelhano dizia-se Alfonso. — Formas anteriores são Adefonso; Ildefonso ; Adalfonsus; Adelfonsus; Aldifonsus. O segundo elemento fonsos, significa pronto. Quanto ao primeiro, parece que é hild — luta — guerra, Kampf ; mas a êsse respeito há dúvidas. Foerstemann, o mais notável dos germanistas que se ocuparam de nomes próprios, pen-
sou em Ádel (nobre). Nas lições teóricas citarei as obras nacionais e estranjeiras, relativas a nomes próprios. Poys que depois que. Perdudo — Vid. atrebudo, vençudo, metudo, sabudo, etc.
Ficar “figicare, derivado de figere. Outra terior é fincar (fincar os geolhos) ; cfr. afincar, Arangoeses, por Áragoneses, com metátese Moy — grafia e talvez pronúncia galega.
forma. divergente, posetc. do n. Em português arcaico
havia foz, fuy, 1.º e 3.º pessoa, fuí, fuit, sem distinção ; Roy, Ruy, formas
abreviadas de Rodrigo (outro nome gótico). Disemus dissemos — Notem a redução da átona o a u. Clórigo,
palavra
eclesiástica, semi-erudita,
com
rigo Xclericu. O vulgo dizia e diz crego (na Galiza
a
variante
cre-
e no Minho). Deri-
vados são clerizia (crerezia, crerizia), clerizonte (cast.). Do grego clerus.
— Ésse significava:
1) certa porção de terra. que constituía a propric-
dade de pequenos agricultores; bíblico os eclesiásticos eram
2) herança, parte herdada. Em estilo
herdeiros de Deus,
beneficiados de Deus.
Como os clérigos fôssem, durante tôda a Idade-Média, os principais cultores da arte de escrever, clerc passou a designar (em França e na Inglaterra) os escrivões e tabeliães. Missa. — À proveniência dêsse substantivo, da fórmula final (de despedida) do ofício divino: ite missa est, deve scr-lhes familiar. — — Missa, fem. do part. perf. de mittere, é forma erudita portanto (cfr. promessa). Beiçon. Eu emendo : bê-i-çon « benedictione. Cfr. bê-e-ito — benediíctus; à princípio de quatro sílahas; como em latim, e com acento no é; depois de três, porque as duas vogais se fundiram num ditongo, recaindo o acento na mais sonora das duas (é) : finalmente de só duas; bento ou bieito, com mudança da nasalação na primeira das formas, e
queda total dela na segunda. Do mesmo modo Bbê-e-l-çon deu bê-ei-çon, e finalmente benção ; na Galiza beizon. Na forma usual portuguesa, houve ainda, na bôca do vulgo, mudança de acento. Em oxitónico, éle gosta de dizer bênção e mesmo bença.
lugar de benção,
344
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Benedicere, transformado em benedicere, segundo as leis normais do português
(que só conhece três conjugações em -ar, -er, -ir, e assi-
milou as latinas em 6re, parte a -êr, parte a -ir) deu be-e-i-zêr, bê-ei-zer — beenzer, benzser — com metátese da nasal e contracção de e-e-i em
wma só vogal. Nem «rnec, com queda da consoante final, e nasalação de e (cfr. sim «sic, assim «aeque sic), frequente em vocábulos cuja inicial seja m ( muim,
mãe,
nuvem).
Asi, asst aeque sic*. — O reforço enfático e demonstrativo do simples advérbio de afirmação (sic) por meio de outro, anteposto. deve, provir do latim vulgar, visto que éle se deu em tôdas as línguas romãnicas. O italiano com o seu cosi (por analogia com cotesto eceu, istu: costui
eceu,
istuíi, ete., cotale, cotanto)
mostrou
o caminho
aos Roma-
nistas. Em prov. houve acsi a-par de formas assimiladas como aissi ; fr. ainsi ; cast. antigo ansi ; port. ant. assi, modernamente assim.
Desde já notem que atal é aequetalis e atam e atanto respectivamente
aeque tam, aeque
tantus.
Convyna, grafia deficiente de convinna convinha. Direito «directus, part. perf. de dirigere ; substantivado. Por motivos especiais
vejo a substituir em
tôdas as línguas românicas
o Jlat.
jus, juris. Quanto à forma, c, seguido de consoante, foi vocalizada como em
peito
«pectus;
leito lectus;
Íruito fructu; dito dictu; outubro “4 octubris.
eigreja
fito fictus —
Acordar, derivado de cor, cordis —
Secelesia;
noite
Xnocte;
por diito, fiito; ontubre,
(coração), conservado em por-
tuguês moderno só na locução adverbial de cor. A memória está no coração, segundo o entendimento e a experiência do povo. Dis-cord-ta é palavra culta inalterada. Se fôsse popular, o d, seguido da semi-consoante i, dava j (ou y). Alçar qaltiare;
cfr. caçar
)captiare,
ete. O francês
Rausser,
com
a aspirata, que antigamente se pronunciava, acusa influxo do germãnico hoch. O português alçapão, é um sing. abstraído mal do plur. alçapões. Na realidade põe é imperativo de põer “ ponere: Levanta e torna a pousar ! Don Pedro de Tares — Leia-se Tarés, e entenda-se Atarés. Lugar da província de Huesca, levantado a condado. Entre os vários nobres
aragoneses que tiveram aquêéle título ou apelido, o mais importante é o D. Pedro do nosso Fac-símile. Foi senhor de Borja. Era aparentado com a família régia, como descendente de um filho natural de Ramiro 1, e realmente pretendente à coroa de Aragão em 1134. Navarros e Aragoneses estavam dispostos a obedecer-lhe. À sua altivez dessgostou-os toda(*)
[Assi
4 ad sic, em GLl, do Canc. da Ajuda, s. v.l.
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
315
via. À maioria votou contra éle nas Córtes de Monzon, pouco depois das de Borja. de que reza o nosso Capítulo. Morreu em 1152,. Mais magis era, nos princípios da língua, advérbio e conjunção adversativa ; essa foi posteriormente reduzida a mas (com a surdo).
Guardar, do germânico warten — cfr. guerra, guerrear. Parar mentes em alg. — O verbo é o latim parare, que subsiste nos compostos preparar, comparar, amparar, (comprar é popular), reparar, ete. — o substantivo é plural de mente “ mens, mentis, espiírito. intelecto, mentalidade. É portanto a mesma palavra que serve a formar advérbios, rebaixada ao significado geral de modo, maneira, que já tomara em latim vulgar. — Parar mentes é reparar. prestar atenção a. — Outras
locuções
em
que
entra
o mesmo
substantivo,
alguma coisa; vir em mente a alg.; meter Feito «« factu. — Cfr. leite lacte. antes de consoante, que já conhecemos ; se deu regularmente em eiro, por airo, reiro, etc. Onrra;
é um
substantivo,
abstraído
são
ter em
mente
mentes em alg. c.. pensar nela. — Houve a vocalização de c depois redução de aí a ei, que de arius, em janeiro, fevedo
verbo
onrar “«honorare;
subst. verbal, portanto, cujo sentido primordial é o acto de honrar alguém, e só posteriormente
também
o resultado dêsse acto.
Poer. Leiamos põer “« ponere. À derradeira evolução reduziu o infinitivo a pór, mas o seu pertence à 2.º conjugação (irregular) é atestado ainda hoje pelas formas pões, põe, poem. Pouco « paucu. — Já vimos a redução de au clássico a ou — àô na conjunção alternativa; em Mouro “Maurus; cousa “causa. — Outros exemplos, que fâcilmente saberão multiplicar são: ouro “ aurum,. tonro «turus, louro laurus. Siso «sensu. Em castelhano seso. À redução popular de ns a s já se havia cfectuado em latim vulgar. Cfr. pesar pensare; coser “consuere ; defesa, devesa
defensa;
mesa
mensa;
mês
mense;
asa an-
sa. À vogal [ talvez substituísse e por influxo de juízo “ judíciu. Despreçar «dispretiare. —
Desprezar, prezar, com
z —
isto é, a
substituíção da sibilante surda ou forte pela sonora ou branda — pertence n um dos capítulos mais difíceis da fonologia portuguesa, que reservo para o futuro. Cuydar “cogitare, cugitare, é de proveniência vulgar, com queda
do i medial átono. e vocalização do g ante vogal. Significa imaginar, julgar. Em latim era reflectir. reflexionar. pensar — acepção que se conserva na tese de Descartes (Cartesius) : Cogito, ergo sum. Elo illu, antigo neutro do pronome pessoal absoluto, hoje perdido. Conservam-se esto, esso, aquelo alterados por enfonia ou apofonia (isto é, por influxo da vogal postónica) em isto, isso, aquilo. Tiçon « titione, acha de lenha acesa ou meia queimada — sinónimo do germânico
brandão;
figuradamente espada ardente, aparentado
em
346
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
grego-latim com o nome de Deus do fogo e do sol — Titon. — Meunha a princípio, passou a nome de pesson. Lembremo-nos de que uma das espadas históricas do Cid Campeador ganha ao rei Bucar, de Marrocos, se ehamava Tizon (tizona só posteriormente, por analogia com Colada, outra espada do herói, de finíssimo aceiro coado). De Aragão, onde se conservou em poder da casa real, passou à câmara régia de Castela. Da armaria de Isabel a Católica é que desapareceu. Pode ser que uma fôlha antiga, sem cabo, conservada na Armada Real de Madride, seja a Tizona. — Vid. Pidal, Cantar de Mio Cid, II, pág. 665.
Peregrin, não se lê bem no nosso fac-símile. O apelido de castelaasiam, que não sei identificar, é Castell Aciol na Primera Cronica Gene-
ral. — Apenas Asiain. — Mas Lealdade amigável. Destorvar
direi que em Navarra há um lugar, AÁzuelo, e também nenhum Caterica. “«legalitate. É curioso o emprêgo de contra, em sentido
exturbare, com substituíição do prefixo ex por dis — de função parceida, visto que ambos denotam separação, embora primitivamente ex denotasse procedência. Ela é frequente tanto em português arcaico
como
Tcmos,
por
em ex.,
português espertar,
vulgar e não
desperlar;
esterrar,
clássico.
português
rara em
desterrar ; cspir,
despir;
esmaiar, desmaiar ; espedaçar, despedaçar ; esquecer, desquecer ; esfofolhar, desfolhar ; esfôrço, desfôrço, com divergência leve de sentido. — Pelo ontro lado o povo confunde des “dis com des Xde ex, por causa da semelhança fónica, e ideológica. Trabalhar
*tripaliare,
tura ; de atormentar
o sentido
de
tripalium,
passaria
instrumento
certo
a esforçar-se
(que
de
tor-
no nosso
tem
texto) e finalmente a exercer certa actividade. — Outros etimologistas tentaram derivar trabalho de trabstrave (trabaculum). — Outros preferem dizer : de origem desconhecida. Sacar «* saccare, que o vulgo tirou de saco “saceus. Dêsse subst. greco-romano mas de origem semítica (hebraico- púnica) terei de falar, quando
nos
tivermos
de
ocupar,
teôóricamente,
das
Fontes
do
Léxico
português. Móôesteiro, — mõesteiro
monesteriu;
por monasteriu, de monacus.
Lugar onde se vive isoladamente. Aquel, por aquêle, nabreviado por estar em próclise. Seendo “«sedendo. Ser, estar sentado ou assentado. Xad — sed — ent — alum, serviu de auxiliar em galego-português (a-par de estar,
Jazer, andar, ir), e chegou a completar o verbo esse latino, do qual muitas formas se perderam por serem muito curtas. Breve nos encontraremos com sejo, sees, see; seja
ete.
( que subsiste) ; siia, sia “ sedebam ; sevi, seve,
* seduií.
Dia do vulgarismo latino dia, por dies, da 5.º declinação latina, pouco usada e povoada, pela 1.º. Cfr. barbaria, rabia, raiva, insania
PARTE
(sanha),
madeira
IV
— LIÇÕES
(matéria),
PRÁTICAS
DE
PORTUGUES
ARCAICO
317
por barbaries, rabies, insanies, materies.
Os Italianos conservam di ; Provençais e Peninsulares dia. Os Franceses substituíram-no por um derivado : Jour “diurnu, que deu em Ttaliano giorno e aos Peninsulares jorna, jornal, jornada, etc. Di subsiste todavia em tandis e nos nomes dos dias: dimanche, lundi, mardi, mercredi, jeudi, vendredi, samedi. — Mais reduzido está nas formas corres-
pondentes galego-portuguesas : liães (gal. mod. lus) ; martes, mercores, joves,
vernes. —
Todos
êles conservaram
o s do nominativo
dies, que
também ficou em alguns nomes próprios (Carlos, Marcos, Lucas), etc. Ciodade, cibdade “Xcivitate, em cas. ciudad. Como os Portugueses suprimissem tôda a síilaba medial, dizendo cidade, teremos de considerar
ciodade como forma castelhana em bôca galega. Boyra Boira de Boria Borja. É povoação (cidade desde 1438) entre o rio Ebro e o Moncayo, perto da fronteira que divide Navarra de Castela Velha. Antigamente, antes da Reconquista, chamava-se Bursada ou Bursao. — Reconquistador foi Afonso I o Batalhador, do qual tratei nos Preliminares ao Fac-símile. Éle entregou-a a D. Pedro de Atarés. E êste é o progenitor da ilustre família Borja; Borgia na Ttália, para onde passaram, saindo de Valença. Só recordo centre os Ttalianos o Papa Alexandre; seu filho César; João, fundador da casa dos Duques de Gândia; Lucrécia, cuja vida inspirou numerosos poetas como Vítor Hugo — músicos como Donizetti — historiadores como Gregorovius. Entre os Espanhóis: 1) S. Francisco de Borja; D. João de Borja, 1.º Conde de Ficalho, filho de D. Francisca de Aragão, inspiradora de Ca-
mãões e de seu admirador e discípulo D. Manuel de Portugal ; 2)
o filho
dêsses dois: D. Francisco, príncipe de Esquilache, poeta lírico e épico,
que prestou homenagem a Camões, traduzindo e glosando o famigerado soneto de Lia e Raquel, Sete anos de pastor Jacó servia. Vid. Sanchez Moguel, Reparaciones IHistoricas, 1894 (págs. 207-242), El Primero Conde de Ficalho. Côrtes, plural de córte Xcohorte, que designa, só na Peninsula, a reiinião do séquito del-rcei e dignatários do seu paço, geralmente convocados para prazo certo (dentro em
30 dias), afim de tratarem algum
assunto importante de ordem política, judicial e económica. Nas Côrtes de Borgia, e nas imediatas de Monzon tratava-se da eleição do Sucessor de Afonso I o Batalhador, 2.º espôso de Urraca, a Castelhana.
Outrosi alteru-sic; advérbio modal que significa também. igualmente.
Os Franceses fizeram
aussi de altsi, isto é, da forma
abreviada
de alid por aliud, e do advérbio de afirmação. Sair ou salire: passar de dentro para fora. Niun ou ni-hun (em grafia deficiente) necunus. Da variante nen (nasalada ) saíu o moderno nenhum ; em cast. ningun. Receber «recipere; com troca do sufixo verbal. Pesar, substantivado significa dor, agravo, mágua. O infinitivo de
318
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
que deriva pensare é intensivo de pendere. Êste pansar (de pensum, part. perf. de pendere) tomar o seu pêso. o pêso a objectos é que pensamos. adoptada todavia É um easo curioso ao acto de pesar
Cada
uma
significava origináriamente pendurar alg. coisa para — Pendurando-os na balança romana é que se tomava positivos. Pesando, ponderando idéias mentalmente, Pensar, reflexionar. é palavra culta, semi-erudita, muito cedo pelo vulgo de todos os países neo-latinos. de semântica. Quem comparou e equiparou a reflexão foi seguramente um espírito superior — um filósofo.
dessas formas,
diferençadas,
téêêém em
português
dois
sentidos, um positivo e um abstracto, figurado. metafórico.
Pesar designa, como já disse, fisicamente o acto de avaliar o pêso de qualquer coisa e moralmente, sentir e causar dor e mágoa. Pensar significa : considerar, reflectir, examinar mentalmente
alguma coisa; e positivamente cuidar: tratar quer do gado, sobretudo de cavalos, quer também de uma ferída, dar-lhe o penso. Lembro o provérbio antigo : Al pensa o baio e al quem cuida dele, para sugerir a idéia que originàâriamente se diria Al pensa o baio e al quen o pensa ou quem
pensa dele. Em
francês distinguem gráficamente o pensar abstrato do
material : penser, panser (e peser). A respeito da conjugação de pesar e do pésa-me que, proveniente do acto de contrição, chegou a designar condolências, ainda haveria muito
que dizer. Deixo-o para outro ensejo. Apenas observarei ainda que ponderare, de pondus — peso (aparentado com a raiz pend-) chegou a ter os mestmos dois significados de pensare : 1) tomar o pêso; 2) julgar, examinar com a mente. Soubo “sapuit; bela forma normal arcaica, que subsiste na Galiza e distingue bem a 3.º pessoa da 1.º, ao passo que desapareceu em Portugal. onde foi substituída por soube. Vaão é grafia errónea por vafio banho, de balneu. Folgar « follicare (do subst. concreto folleuntensílio vulgar para produzir vento ou para conter vento : balão, odre, bola) significa respirar
à
vonlade;
fazer
movimentos
de
recreio
ou
dcsporto;
entreter-se.
Adjectivado, folle, significa materialmente mole, elástico, podre, por ex., em pera, fole, figuradamente doido (francês fol, fou, que nos deu folia e folon). — Cfr. follego, ter follego vivo; ter sete fôlegos, ete. Sabor «sápore; na acepção de gôsto. Casa, latim vulgar, por domus. Levar, do adjectivo leve. Veer «videre. Chegar « plicare, dobrar caminhos; pl dá ch em português, conforme se vê de chaga « plaga ; chão e plano; changer « plangere; chantar “ plantare ; chus “ plus, etc. Paaço palatiu; hoje paço. Abrisem ; leia-se nom abrissem, de aperire.
NOTAS Quanto
à
SUPLEMENTARES, AÀ RESPEITO FAC-SÍMILES 1.º E 2º transcrição,
os
senhores
serviram-se
DOS bem
dos
sinais
simbólicos que lhes indiquei : asterisco * para formas hipotéticas do latim vulgar abstraídas das neo-latinas; )para indicar proveniência. Todavia será bom estabelecermos desde já mais alguns princípios que o bom editor de textos arcaicos deve seguir: Não deixa subsistir as abreviaturas dos escrivães antigos, nem moderniza forma alguma. Regra filológica é: 1.º) resolver as primeiras; 2.º) conservar as segundas. Resolvemos as abreviaturas, pondo no papel o que enunciamos falando; distinguimos com maiúsculas (capitais) os nomes próprios. Indicamos pela pontuação o modo como entendemos dever separar e ligar as diversas proposições. Indicamos também o que, a nosso ver, se deve riscar e o que porventura se deva acrescentar nos textos —
1)
Resolvemos
as abreviaturas. —
Não escrevemos
por símbolos.
mort', fort',
nonv', dô rrazõ, cotá, vezs, seg.º, qundo, Gia, mas sim, morte, forte, nome,
dom, rrazom, contam, vezes, segundo, quando, Garcia. 2) LEscrevemos Garcia, Sancho, Borja, Ramiro, Pedro de Tares, etc., como em parte já fizeram os eseribas dos trechos que lemos. 3) Poremos vírgula, por ex., depois de coméêço (linha 6) ; ponto depois de era (Yinha 7), principiando a proposição imediata : Este rrey, com letra maiúscula. 4 ec5) As letras que entendemos dever acrescentar pomo-las entre parênteses esquinados [ ] ; as que entendermos dever riscar, entre parênteses arredondados ( ). Onde no nosso fac-símile vemos repetidas palavras como'andava, andava a pee, incluímos o segundo andava em ( ). Onde o copista diz diserão ou diserom, pondo um só s (sempre forte em castelhano) acrescentaremos um segundo, entre parênteses dis[s]eron. — Em impressões modernas usa-se distinguir por tipo diverso as letras acrescentadas. Assim procedeu, por ex., o Sr. Dr. Ribeiro de Vasconcelos na Revista da Universidade ( Fasc.1.º). 6) As formas antigas não se alteram. Escreveremos, portanto pee, boliço, moesteiro, algita, ena. Nem tão-pouco alteramos as variantes fonéticas (como: auarca, abarca). Deixaremos subsistir os latinismos rregnon, el ; os galcguismos,
moy,
moytos,
ouvo, soubo e castelhanismos
como aire, naturais em textos galegos. 7) Quanto às grafias antiquadas, a melhor regra (e, afinal, o procedimento mais cómodo ) é conservá-las tódas, embora sejam inúteis, como ç antes de e, 1, ou inexactas e condenáveis, como s simples por s forte (dobrado), e y grego em lugar de 1. Bom método seria, a meu ver, reservar y grego para segundo elemento de ditongos, escrevendo ay, oy e empregar i onde há vogais puras; distinguindo, por ex.. oi (audivt hodie). Com respeito a êsse ponto há todavia diversos procedimentos.
350
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
O mais rigoroso reproduz até rr, ss longos e curtos, tal qual estão nos textos ; põe pontos sôbre os yy ; e não altera um ápice. É costume empre-
gá-lo a respeito de textos fundamentais, primordiais. — Mas não a res-
peito de textos tão tardios como os que lemos, e que lingiilisticamente são de somenos importância. — Nesses é costume distinguir entre [ vogal e i consoante (Borja Borgia) ; u vogal e consoante: aver, dava, andava, cavalo. Como notaram, já havia v, empregado sobretudo no início de palavras (viesse, vezes e errôneamente em vsaua) mas o emprêgo ainda
não estava bem fixado. É também costume separar vocábulos que o copista ligou, segundo o sentido, aestoria, acavaleiros,
omundo;
conservar
todavia
as separa-
ções justificadas, como de poys, em pus (ou em pos), onde clas estão : mas não introduzir nenhuma nova. 8) Variantes vocabulares ( pus e pos; moy e muy), conscrvamo-Jas; igualmente variantes meramente gráficas, como depoys, depois. Quanto aos comentários, nem todos explicaram tudo bem; em parte porque
o tempo
era pouco,
e em
parte
por eu não
me
ter detido
bastante nas explicações dadas de antemão. Por ex., não satisfaz o que disseram a respeito dos nomes próprios Sancho,
Navarra,
Garcia,
Pedro,
Afonso,
Ramiro,
Elvira,
Fernando,
Borgia... Os nomes próprios foram a princípio apelativos, e têêm portanto significação. Como, além disso, em regra êles não se alteram muito
no decorrer dos tempos, são fontes etimológicas muito importantes. Há nos nomes próprios portugueses e castelhanos, tanto de pessoas como de lugares, elementos importantes de línguas pré-romanas, sobretudo nos nomes de rios, montes: elementos ibéricos (hascos), célticos, gregos, hebraicos, talvez também fenícios, ou púnicos (como, por ex., Cartagena ). Muitos ainda estão em discussão : adhuc sub judice lis est. Ibéricos — bascos — são dois dos que ocorrem nos nossos textos: três, se contarmos como nome próprio o cognome, ou sobrenome, (a alcunha ) Abarecea. Além
dêle
o são:
Navarra,
Garcia.
Em
Navarra
temos
a raiz
nava, que subsiste em eastelhano com o significado planície: conhecida pela batalha das Navas de Tolosa ; -Arra, -arro é sufixo basco, como -erro
em bezerro, e também -orro e -arro. À raiz nava não tem parentesco com nave. Garcia é nome de pessoa exelusivamente peninsular. Os Iberos diziam IHarcia e AÁrcêa (com pronúncia aspirada ) Urso. Abarcar,
não
provém
do basco
Abarca,
mas
sim de barca,
barco
— que passava outrora por fenício — mas hoje sabe-se que o nome fenício de Hamilcar Bareas significa relânpago e que barca — em latim vulgar barica — é de origem grega, ou antes egípcia. Quanto a Pedro, todos os que transcreveram um trecho do segundo fas-símile, disseram, e bem, que a origem era grega. Deveriam ter acrescentado
contudo
que, como
todos os elementos
gregos do vocabulário
PARTE
IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
351
popular, vieram por via latina. Citaram pedra e numerosos derivados cono pedreiro, pedraria, pedregoso, pedregulho, e a forma familiar Pero, Per em compostos ( Per-afonso, Peranes), com o patronímico Peres, Pires
Também poderiam ter citado como prova de que Pedro e pedra são o mesmo vocábulo, o verso do Evangelho : «Tu és Pedro e sôbre esta pedra edificarei a minha Igreja». De passagem direi que Símon Petrus tinha o apelido Bar-jonas, creio que por Ban-jonas, filho de Jonas, e que Ban — Ben — Ibn significa filho em hebraico e em árabe, e ocorre em numerosos nomes próprios. O versículo está sômente no Evangelho de S. Mateus (XVI — 18) e êsse é o mais rico de todos em acrescentos tardios. Segundo os exegetas protestantes, foi interpolado, quando já existia a Igreja cristã, separada da sinagoga. Quem se interessar pela história das religiões, leia Samuel Reinach, Orpheus, Histoire Générale des Religions, resumo feito com aquela arte e clareza que distingue os Franceses. O vocábulo Petra já cra usado em Roma no tempo de Ennio, a-par de saxum e produzin diversos derivados., além de nomes próprios como Petrejus, Petronius, Petrullus, ete. ÀAs relações do vocábulo grego petra como o numeral quator, orig. Katoar — em osco petora, em umbro petur — e o significado primiítivo de quadrado canto, pedra de canto. são muito curiosas, mas não convém passarmos do campo estrietamente românico ao indo-germânico.
Passemos antes ao nome Sancho. Quási todos disseram que cle cera grego, outros que era germânico, e ainda outros que era basco. Mas eu nio posso ter dito tal coisa. À formação é claramente latina. Sancho representa
Sancetins,
comparativo
de
SanctusSanto.
Tanto
Sanctus
como' Sanctius eram prenomes romanos, pouco usados embora. Sei de um
Sanctus mencionado
por Tácito
nos -Ánais,
e de uma
Sancia men-
cionada pelo mesmo historiador. Sanctius conserva-se na Itália, pátria do grande pintor Rafael Sanzio, e na península, na forma Sancho. Ela existe hoje apenas como nome próprio, mas existiu tambem como nome comunm. Ántigamente era adjectivo. Talvez conheçam o provérbio espa-
nhol Al buen callar !laman sancho. Em português A bom calar chamam sancho. À bem, ete. É santamente prudente quem se cala onde convier. O Refraneiro constitui, como sabem, a sabedoria do povo, a sua filosofia. É antiqilíssima e contém muitos vacábulos arcaicos que se perderam na língua comum, por ex., bragas, ete. Há uma imitação ou paródia burlesca. Al buen huir Ilaman sancho. Modernamente, por já não perceberem o sentido de sancho, alteraram o texto. IHá, e houve de 1500 em diante,
quem escrevesse al buen callar Ilaman sage — sage sábio (de sapiens, francesismo, também arcaico, mas ainda usado no século XVI). E houve eruditos que escreveram : Al bruten callar llaman Sancho com maiúscula, e fundamentaram essa variante, referindo o provérbio a D. Sancho de Castela — um dos filhos de Fernando o Mugno. Quando éste, que devem
352
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
conhecer da história e também da literatura (dos textos relativos ao Cid Campeador), repartiu o seu reino entre os seus filhos, deixando Zamora à romântica D. Urraca, D. Sancho declarou não se conformar, ou, segun-
do outros: calou-se. Num romance correspondente há um verso em que se emprega a palavra calla. Vários filólogos românicos ocuparam-se do assunto—por ex., Morel Fatio na Romania ( XI). Creio que eu também. — O Sancho peninsular mais popular é Sancho Panza — o cescudeiro de D. Quixote. E na bôca de um dos dois — provàâvelmente do representante do realismo ou materialismo — é que se encontra o provérbio citado. Ramiro e Afonso são nomes germânicos compostos nobiliárquico.
Ramiro era antigamente Ranimiro, Ranumiro.
c
de
sentido
( Assim está em de-
zenas de documentos medievais). Compõe-se de ragn conselho e mere grande — grande conselheiro portanto. O mesmo ragn há em Ramon, Raimundo ; o mesmo
mero em Belmiro, Guilhomil, etc.
Aqui «eceu(m)hic. O a dêste advérbio não pode ser a preposição ad, anteposta a hic, como disseram alguns dos senhores seguindo por
ventura idéias de Cândido de Figueiredo. Nem a preposição tinha aqui razão de ser. Se assim fôsse como se explicava a gutural q? Adhic, com queda do d intervocálico e do ec final, só podia dar aí,
escrito ahi segundo a antiga ortografia e deu-o positivamente, mente como ad illãe deu alá; ad* illic deu ali.
exacta-
Em aqui, acá, aquemí(de), aquele, aquesse, aqueste e em aque de áque del rei! áqui del rei temos como primeiro elemento o advérbio demonstrativo eccu(m). Aqui “ eccuthic; cá e acá “ eccurhac; acó “ eccut hoc; aquemde “eccut inde; aquele, etc. Xeceu FYille; aquesse, ete. Xeceu
tipse;
aqueste,
ete. XecenHFiste;
elr.
ital.
quá,
qui,
quoi,
quendi,
quello, questo, colui, colei, coloro, costui, cortei, cortoro. etc.
Morrer, querer, viver, entender. Nas observações que fizeram a respeito dêsses infinitivos, quási todos disseram que houve alteração do
acento. — Isso é inexacto. É impossível que ére se transformasse mecãânicamente em re. O que houve é substituíção de sufixos. Os PeninsuJares, simplificando por comodidade o sistema das conjugações latinas, aceitaram
e conservaram
apernas três, em
-ar, -êr, -ir. Todos
os infini-
tivos, em óre foram substituídos parte por &re, parte por ire., À êsse respeito há oscilações, como verão no futuro, tanto entre aàs três línguas peninsulares ( galego-português, castelhano, catalão) como entre o galego«português arcaico e
o moderno.
É um
processo analógico. Das formas
finitas dos verbos tirou-se o infinitivo. Quanto a morrer, o processo é mais complicado. Em latim o verbho era um depoente como sabem : morior, mortuus sum, mori. O latim vulgar e seus sucessores, as línguas neo-latinas substituíram todos os infini-
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
353
tivos anormais, por formas normais, regulares. Mori — veio a ser morire — em português morrer (com moiro, moira, imorior, moriar, como posteriormente veremos ) com duplicação do r, de que darei ns razões c os paralelos em outra ocasião; — sequi deu sequére e sequire — seguir — ; velle foi substituído por volêre, abstraído do presente volo; — posse deu potere, abstraído de po(t)sum potes podêr — esse deu essere (fr. étre), perdido em português, substituído por sedere (seer, ser) — ferre deu ferir e ferere, — nos compostos sufferre, oferre sofrir, ofrir (ofrecer). Com relação a oferta um dos senhores disse «oferta vem de oblata». Deveria ter dito : oferta substituíu oblata ; foi formado por analogia com coberto “co-opertus; aberto 4*aperitus. Et. — Est. São latinismos. — Bastante usados pelos poetas galego-portugueses ; mas também pelos prosadores; sobretudo por escrivães acostumados a se servirem, na redacção de documentos, da língua latina,
em
geral bârbaramente
estropiada.
sempre em fim de vocábulo. pos 4post.
Temos
Em
portugnuês a dental perdeu-se
e Xet;
ou “aut;
cabo caput;
No verbo est, desaparecen também o . Ficou es (c assim subsiste em castelhano). — Esta forma é também a da 2.º p. do sg. (em castelhano substituiram-na por eres, do futuro). À necessidade de distinguir as duas, levou os Portugueses a dizerem sou, és, é, por analogia com ei, ds, d ; estou, estás, está; dou, das, da.
Est conservou-se todavia em ligações sintácticas, em que o verbo se seguia a uma palavra com vogal no início. Na poesia temos est assi — est o prazo saido —
essa est a mia senhor —
Santa Maria est a melhor,
etc. — Houve mesmo quem empregasse est antes de consoante. pronunciando, escrevendo, e contando este. Em verso, bem se vê.
Qunnto à conjunção ef, a dental conservou-se também antes de vogal tanto em italiano e francês, como em cast. e português arcaico (abrandado na pronúncia em ed). Morto “mortuus. Bato “battuo (com batalha “ battualia). Os dois uu fundiram-se num só u postónico que desapareceu também em contino de continuus; coso Xconsuo; em janela de janua, janeiro de januarius; fevereiro de februarius, etc.
LIÇÃO III TRANSCRIÇÃO UMA
PÁGINA
DO FAC-SÍMILE
III:
DAS LEIS DE PARTIDA
«que fazen simonia, et os clerigos que rreceben igreja de mão de leygo, se o non fazen polas rrazões que diz no titulo que falla do dereyto do padrõôadigo que an os omêes enas igrejas et os que sse aconpannan
assabendas con los que son escumungados da mayor escomayon de nenhum destes sobredictos, non deueu os clerigos a rreçeber suas offerendas se manifestamente ouueren feyto taes erros ou desguysados concelleyrmncnlc,
et
esto
sse
deve
a entender
en
quanto
uiueré
en
taes
pecados et non quiseren fazer peédenza delles. Titulo XX.º dos dezemos que an a dar os Xpiãos a sancta igreja. Abraam fuy o primeyro dos proffetas et fuy muy sancto ome e tan amigo de deus que disso por el que eno seu linnagen seerian bécytas todalas gentes, et este connoscendo que era pouco aquello que dauan os que faron ante que ele, n deus, segundo os beens que del rreçebian, co-
mezou el a dar o dezemo de mays das primiçias e das offerendas que elles dauan, et doulo primeiramente a Melchisedec que era sacerdote, et sennaladamente dou o que gaannou dos rreys que uencio quando les tollio a Loch sou sobrinho que leuauan cativo. Onde enas duas maneyras de siruíçio de primiçias et de offerendas, que son ditas eno tiítulo ante deste, et en esta terceira, que e dos dezemos, husaron os omeens de siruir a deus ata que dou ley sceripta a Moysen, que fuy sancto ome et tan seu amigo que disseron que falaua con el assi como hun amigo falla com outro, et mandoulle que todas estas cousas que el quiso teer pera si en sinal de rreconnoscemento de sennorio
et de ben feyto que fossen sacrifiçio a deus segundo a uella ley et aos levitas que seruen, et esto foy sempre gardado et depoys quando nêo nostro sennor Ihu Xpo confirmoo dizendo aos Judeos que macar dezemauan as cousas meudas que non deuen leyxar de o fazer das graaudas, et esta paraula lles disse por que ten que o deuian dezemar de todo, et por ende os Xpiãos gardaron esto sempre et os sanctos que faliaron desto mostraron por quaes rrazões deueu os omêes dar a dezema parte por dezemo, mays que outro conto nehun, et disseron que nostro sennor deus criou duas ordens dangios et porque a una dellas cayo per soberua quiso que de linnagen dos omes fosse complida, et ontrossi pelos X mandamentos que dou nostro sennor deus seriptos a Moysem que mandou gardar porque los omes uiuissem ben, et se soubessen gardar de fazer tal erro de que pesasse a deos, por que elles rreçebessem mal, et aynda sen esto, y a outra rrazon por que os omes o deven dar, et esto, por que X sintidos que deus Hes deu con que fezessen todos seus feytos que llos
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
355
garden et los enderesçen por que obren com celles bem, et mantengan bem e conplidamente os dous (sic) mandamentos (et ) da sua ley en tal . segundo a humildade de nosso sennor Ilhu Xpo merescan maneyra que herdar aquel lugar que a dezena orden dos angios perderon per sua soberuia. Et poys que eno titulo ante deste falla das primicias et das offerendas de que sse ajudan muyto os clerogos, conuen de dizer en este dos dezemos que e una cousa apartada de que sse ayuda aynda mays toda a igreja, tanhem os prellados mayores como os outros clerigos, et demostrar primeiramente que cousa e dezemo, et quantas maneyras son del, et quen o deue dar, et de quaes cousas, et a que, et en que maneyra deue secr dado, et como o deuen partir, et que bêes ueen aos omes por dezemar ben, et que maes se o mal fazen cet de todalas outras cousas que perteescen o dezemo. Lee: prim[eir]a: que cousa he o dezemo. Dezemo e a dezema parte de todos los beens que os omees gaanan dereytamente, et esta manda sancta igreja que seja dada a deus porque el nos da todolos bêes con que uiuimos en este mundo, et deste dezemo son duas maneyras. À primeyra e aquella que chaman en latim predícial (sic) que e dos fruytos que collen das terras, et das arbores.
ct a .outra e chamada persõal aquella que dan os omes por rrazon de suas pessõas cadaun segundo aquello qve gaan [ n]an por seu siruiço ou
por
seu mester.
Lee segunda que todolos Xãos deuwen dar Xº. Teudos son todolos omes do mundo de dar dezemo a deus (adeus), et mayormente os Xpiãos por que elles teenen a ley verdadeyra, cet son mays achegados a deus que todalas outras gentes, et por ende non see poden escusar todolos empeyradores nem los reys nem nehun ome poderoso nen de qual maneyra quer que seja que o non dexa quanto mays poderosos et mays onrrados foren, tanto mays teudos son de os dar connosçendo aquella onrra, et o poder que an, que todollos uen de deos
esso meesmo e dos clerigos, ca atan ben os deuen elles a dar como os leygos de todo o que ouueren, foras ende daquellas herdades que an (daquellas herdades que an) que siruen, ct non sse poden escusar por rrazon de clerizia que o non den.» *
O Fac-símile tem na margem do fundo uma nota que diz ser éêle a redução de uma página das Leis de Partida, escrita em galego em fins do século XIIT. Trata-se, portanto, também desta vez de uma tradução galego-portuguesa de um original castelhano, que é, como nos primeiros dois casos, obra do grande Sábio de Castela — fundador e mestre da prosa peninsular.
356
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Com Leis de Partida designou o descobridor ou primeiro publicador do fragmento reproduzido o grande Código Judicial, começado pelo filho de S. Fernando em 1256 — Código por êle dividido em sete livros, Partes ou Partidas ao qual deu o nome de Setenario. À posteridade preferiu todavia o título de «As Sete Partidas». E isso muito cedo. No Livro de Linhagens do Conde de Barcelos (pág. 250), por ex., nomeiam-se « s Sete Partidas das Leys e outros livros, (muitos) del rey D. Afonso.» No Prólogo êsse rei explica-nos por que escolheu cssa divisão : pela grande importância dada ao número sete desde tempos imemoriais na astronomia e astrologia e Afonso X ecupou-se também tão incisivamente dessas duas ciências publicando acêrca delas vários e diversos tratados,
que houve quem em Portugal o chamasse «Estrologo». (D. Dunrte). Lembrando que Nosso Senhor criou criaturas de 7 espécies, 7 céus, 7 climas,
7 planetas,
e que há sete idades do homem,
7 artes, refere
ainda que Sete anos de pastor Jacob servia — Labão, pai de Raquel — e mais outros sete porque só lhe deram Lia. Alude aos 7 anos de carestia,
e 7 de fartura de que José sonhara, aos 7 braços do candeeiro das
Sinagogas; 7 dons do Espírito Santo; 7 sacramentos; 7 prazeres da Virgem. Nós que sabemos que êsse respeito pelo «Senhor Sete» continuou tradiceionalmente entre as nações modernas poderiamos acrescentar uma
infinidade de coisas mais profanas e em parte vulgares mas também sagradas, às sublimes que o douto escritor régio mencionou: os sete dias da semana;
sete côres do arco-iris;
sete Sábios da Grécia, sete mara-
vilhas mundiais; duas vêzes 7 obras de misericórdia (7 corporais e 7 espirituais) ; 7 dôres da Virgem; 7 palmos de terra da nossa última morada terrestre. E quanto a coisas familiares temos homens de 7 ofícios ; outros que levam 7 pedras na mão, outros que saltam 7 quintais;
às vêzes escutam com 7 ouvidos e olham com 7 olhos ou fecham tudo a 7 chaves. Temos gatos de 7 folêgos; 7 cães a um ôsso; 7 alfaiates para matar uma aranha, cobardes que vêem em tudo um bicho de 7 cabeças.
E assim por diante. É muito provável que na magna
emprêsa
não exclusivamente político mas também
de redigir um
Código
moral unificando as numero-
sas leis consuetudinárias porque as terras hispânicas reconquistadas se governaram
incluindo
o Fuero
Juzgo
e Livro de Leon,
o monarca
foi
ajudado pelos legistas mais afamados do seu tempo (Mestre Jacome das Leis e Fernam Martinez de Zamora) ; mas a superior inteligência do reinante iniciara e dirigiu aparentemente tudo, como na Cronica General, Conforme já disse um historiador inglês da literatura castelhana é quási certo que «com a sua própria pena deu ao texto a sua perfeição e definitiva forma»
(Fitzmaurice
Kelly, pág.
105).
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
357
O Capítulo com cujo trecho final principia o nosso Fac-símile é o XIX.º do Livro 1. — Trata das Primicias e Oferendas. Todo êsse Livro I é dedicado às coisas que dizem respeito à Santa Fé Católica. Claro que também essa obra foi traduzida para golego-português, quer ainda nos dias do Bolonhês, quer nos de D. Denis; completamente ou Partida por Partida. Um exemplar da Primeira andava na livraria dos Monges de Alcobaça (N.º 324) ; outra na de D. Duarte que ao falar de D, Afonso diz que dêle fêz multidões de leituras (Leal Conselheiro, Cnp. 27). Outros há na Biblioteca do Escorial. Cinco fragmentos, de outros tantos exemplares já foram publicados na Colecção Diplomática da nova Galícia Ilistórica (1901) por Oviedo Arce (*). O nosso froagmento que representa a face de uma fôlha de pergaminho descoberta há pouco, foi editado por Andre Martinez Salazar no Boletin da Real Academia Galega, em Dezembro
de 1909 e Janeiro
de 1910. No verso da [ólha há o final da Lei 2º, assim como
a 3.º e 4.º,
e parte da 5.º. Não junto o texto do original. Podem recorrer a éle na Biblioteeca. O confronto mostra que a tradução é literal. O tradutor, ou com
mais probabilidade
o escrivão que
trasladava
o texto já vertido, enganou-se todavia diversas vêzes, talvez na resolução de abreviaturas. Transformou o patriarca Abraão num profeta; reduziu os dez
mandámentos
do Decálogo, por lapso, a dous;
predial por predícial. Repetiu omitiu e).
e substituíu a décima
as palavras daquellas herdades que
(e
Nas partes inscritas no verso das fôlhas há aruores em lugar de lauores: maesteyraes em lugar de meesteyraes; siencia; e omissão da palavra lenna (lenha). Além disso escreveu graandas em vez de granadas ou grãadas. Foi incorrecto no emprêgo de !l, visto que ora equivale, à maneira antiga, a lh (concelleyramente; uella, velha, ete.) ora a 1 (fallafala; aquella ; elles; prelado, ete.). Galeguisinos, não os há. Apenas, teenen por teen — uma só vez — de sorte que é impossível dizer se é mero lapso de pena. ou vulgarismo. As formas dou
davit a par de deu ; sou Xsuus por seu; fuy, 3.º pessoa
do singular e os perfeitos são comuns à linguagem princípios do XIV a que A data errónea do (*) Agora -castelhano.
(1916)
fortes em o (quiso disso tuou a par de toue) dos trovadores e prosadores do século XITI e o ms. pertence seguramente. Concílio do Laterão, convocado por Inocên-
apareceu
outro
fragmento
do
século
XIII
mas
é
galego-
358
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
cio TIT (Era 1350, em vez de 1215) leva-me a colocar o ms. no último tempo do reinado de D. Denis: Entre 1312 e 1325.
Os castelhanos (los por os; vencio tollio una; e talvez merescan ) acusam todavia proveniência galega. Com relação à grafia começam a surgir alguns hh, inúteis bem se vê. Em husaron, hun. O til falta muitas vêzes, como em geral em traslados não cuidados, por ex., em bees beeytas teudos ; outras vêzes está traçado de sorte que recai quer em duas vogais, quer em vogais não nasaladas. As abreviaturas são numerosas e variadas. Havemos de coorde-
ná-las na lousa. O escrivão apertou as letras muitíssimo afim de poupar pergaminho. Por isso as curvas finais das letras confundem-se com as iniciais das imediatas e dificultam um tanto a leitura. Quanto a transcrições só dá margem a dúvidas a das abreviaturos diversas dos representantes galego-portugueses de homo hominis pl. homines: ome e omes oms omees. Entendo que devemos ler omen e omens, colocando o til no e (ou nos ce). Assim é que se escreve em textos coevos ou pouco posteriores.
NOTAS
LEXICOGRÁFICAS
AO
FAC-SÍMILE
IIT
Simonia — com o derivado simoniaco — tráfico de coisas santas ou sagradas ; venda de bens espirituais. Deriva do nome próprio Simon, Simão com o sobrenome Mago, o qual indica a sua profissão, era feiticeiro ou encantador samaritano (da Samaria). Baptizado pelo Apóstolo Filipe, fêz a S. Pedro a proposta de lhe comprar por dinheiro o segrêdo da arte milagrosa de comunicar a outrem os dons do Espírito Santo, por imposição das mãos. É o que se lê nos Actos dos Apóstolos VIH, 18.º. Note-se que se fala dêle no Livro de Linhagens. Simon, por Simeon, Simião,
é um nome hebraico, usado no Velho
Testamento, do verho schama, ouvir. Significa erhôórung ex-auditione. Em geral diz-se que comprou por dinheiro o condão de fazer milagres. De passagem lembremos que Simão é nome do macaco em Portugal pela simples razão da homofonia do nome próprio e do apelativo simão, aumentativo hipotético de simo, simio, que deu aos castelhanos simio, jimio; aos franceses, singe; aos italianos, simia. Outros exemplos de
nomes próprios rebaixados a apelativos, são, por ex., VicenteZ0 corvo, por causa dos corvos que, segundo a lenda, acompanharam o corpo do Mártir, quando de Valência de Aragão, onde fôra sepultado, veio por mar ao promontório de Snagres; e depois: na trasladação do Cabo de S. Vicente à Sé de Lisboa em 1176. Sabem muito bem que aí se sustentam ou pelo menos se sustentavam, até há muito pouco, alguns corvos de S. Vicente e tammbém que dois figuram no brazão de Lisboa, um na pôpa, outro na proa da caravela. Pato Paaio Palaio Pelágio o aldeão grosso, gordo e baixote. O bíblico Lázaro que nos deu lazareto e lazarento. E mais alguns modernos. De clérigo já faláúmos por ocasião de Ramiro o Monge. Igreja )eigreja “ececlésja. Houve vocalização do 1.º c que temos por exemplo em Inês por EinesAgnes; com rel. a redução de et a à veja-se também iró por eiróareola; vulg. Itor por Heitor, Hektor. Depois houve abrandamento do 2.º c e substituíção de ! por r; Ttal. chiesa (com aférese do e) fr. église gal. eirexa, airexa. Leigo «laicus — têrmo grego que designa o não pertencente à casta eclesiástica ; aquilo que não tem ordens sacras (alemão Laie). Em acepção fig. é : ignorante, inculto — evolução de sentido muito natural, visto que a igreja foi durante séculos a principal conservadora e propagadora da cultura erudita. Direito «directus, formalmente, é o part. perf. de dirigo ; directu, já o dissemos. Quanto à idéia é equivalente do lat. jus-juris. Jus-juris, da raiz ju ligar, contida também em jugo, jungo, etc. Dêsse modo jus era um laço social (concepção profunda que estava de acôrdo com o carácter e papel histórico do direito romano). — O que se conformava com o direito era justo; o que não se conformava com o direito, injusto.
860
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Derivados são : Justiça, justíceiro, injustiça, etc.. jurar. jurisprudência, jurisconsulto.
Hoje pensa-se em outra raiz que designa salvação (THeil). Eu favoreço a 1.º etimologia. : Falta dizer por que razão jus não foi conservada pelos povos neo-latinos, cujo direito consuetudinário c escrito se formou em grande parte com materiais romanos: ; Perdeu-se por ser vocábulo muito curto? N. B. — Vocábulo muito curto monossilábico que perdendo s final, segundo a regra, ficava ju. Pelo mesmo motivo se perderam rus, res, Spes, vis, os, sus, aes, fas, mus, sendo substituídos por outras palavras diversas como campo e campanha, causa, fôrça, bôca, porco. Dos casos oblíquos ( jurí-jure) teria saído jur que não vingou. O plural jura teria dado ensejo a colisão com o substantivo verbal de jurare. Houve por isso substituíição de jus juris pela palavra direito, cast. derecho, fr. droit, ital. diritto. Essa é obra gótica. Na língua dos conquistadores germáânicos jus era Recht, aquilo que é recto (oposto a torto), vocábulo que proveio da mesma raiz rak que está no verbo latino rego, rexi, rectum, regere com dirigo, erigo, ete., e mais derivados. Direito é portanto
tradução literal (neo-latina) do germano recht ; feita pelos conquistadores, foi aceita pela parte romana da população. Já vêêm portanto os senhores que não são apenas palavras concretas mas também idéias abstractas que os Germanos transmitiram aos Romanos (como guerra, guardar, guisa). Título é forma
erudita, tirada directamente
do latim, como
se vê
do acento proparoxitónico ou exdrúxulo, da conservação tanto da átona medial., eomo do t medial inalterado que deveria ter-se abrandado em d. Se título fôsse palavra popular deveria haver na forma vulgar, forçosamente queda da átona medial e transformação do el. Provávelmente teria sido substituída
por Kl e depois êsse cl dava Ih, como
aconteceu
em rolha de rotula, (roda) selha Xsitula (sclha), serralha “ serratula, velho «vetulus (pronunciados rocla, secla, veclu, serracla, rocla). Mas tilho, telho não existe. Temos todavia til, como representação popular
de título. Os Castelhanos dizem tilde com inversão de tl e abrandamento simultâneo de t em
d como em molde de moldulum, roldana de rotulana.
(Em português êsses vocábulos devern ser castelhanismos). Tilde vem a meu ver, do francês antigo title (hoje titre). Em Catalão havia também title à francesa. E da Catalunha passaria a Castela de onde a forma franco-espanhola passaria a Portugal, como têrmo paleográfico, introduzido pelos frades de Cluny. Escrivies, amanuenses e notários substituíram,
conforme
contei,
nos
seus
escritórios,
nos
dos
conventos
e
nos
paços régios a letra visigótica cursiva muito enlaçada pela letra gótica«francesa. clara e bela, mas com profusão de abreviaturas. N. B. — Em alguns documentos antigos da Galiza há titoo-tidoo. Em Portugal tilde perdeu a sílaba final, ficando apenas til. Todos
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
361
sabem que tilde, til denomina o sinal ortográfico que indica nasalação de vogais por influxo de n, em forma de onda
horizontal (— ) ou de mente havia também &é, apresentei. Em sentido vem o derivado atilado
()
ou de mero
traço
ponto quadrado. Hoje só usamos &, ô: antiga1, & como já viram nos dois fac-símiles que Ihes figurado significa coisa mínima, bagatela. De til (exceuntado com enidado, pondo os pontos nos it
e todos os tis nas vogais). À princípio atilado só dizia respeito a manuseritos, hipótese minha que ainda não posso documentar. Creio mesmo que temos til na fórmula tintim por tintim: — Dizer tudo, com minuciosidade, soletrando tudo, sílaba por sílaba, til por tl, tintim por tintim.
Titulo e til são formas divergentes. Uma, popular, embora viesse a nós de fora-parte por nações românicas (Castela e França), outra erudita de legistas letrados. Já conhecem vários exemplos como paí, padre ; mãe, madre.
Falar provém de fabulare. Isso vê-se do cnstelhano hablar, tem faula; ital. fola em lugar fabula : Quanto ao sentido, êle dizer, significar idéias por meio deve ter tido um certo ressaibo
Forma intermédia deve ter sido favlar. antigamente fablar (fr. fabler). Os prov. de faula por fabla que é pron. vulg. de é diverso. Na Península hablar significa de palavras. Bem se vê que a princípio de censura, não à velocidade nem à de-
mora, mas à pouca exactidão e muita fantosia dos habitantes. Nos outros
países significa razoar mal, diízer coisas sem sentido, falar demasiadamente ou com excessiva velocidade, como fazem os Meridionais. O vocábulo clássico — loquor, locutus sum, loqui, foi abandonado
pelo vulgo — eomo muitos outros, dos verbos chamados irregulares — e dos depoentes — por o vulgo preferir formações singelas, regulares, analógicas. — Apenas subsistem derivados eruditos e semi-eruditos como locução, loqiiela, loquaz, loquacidade, elocução, eloqiiente, eloqiiência. É curioso ver como as diversas nações substituíram loqui — no sentido comum e no pejorativo. Fabulare deu aos Peninsulares o verbo usnal. Mas lá fora êste mesmo fabulare tomou acção pejorativa. O sentido comum, franceses e italianos exprimem-no com parler, parlare, de parabola, que lhes deu tanto a êles como a nós o substituto do clássico verbum logos — palavra esta que ficou santificada desde que no Evangelho de S. João se ensinava a doutrina mística: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verho era Deus, porque dêle resultava que Deus Filho era o Verbo. Ésse substituto é paraula, de parabla, em prov., cast. c ital. antigo. Em Ttália evolucionou para parola ; Írancês parole: palavra em cast. (com inversão de 1, r), palavra em português.
A-par de forma erudita parabola e da pop. palavra que tem muitos derivados como palavr — ada, palavr — ão, palavr — eado ou palavr — iado, palavr — eador, palavr — eiro, palavr — inha, palavr — ório e palavr — oso, palanfrório, temos mais três formas: o
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LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
francês; 1) parola (com parôlo, contar um parólo a alguém e com paroleiro, parolice, etc.) ; 2) Parla de parlar, também com vários derivados sérios e chulos (como parlapatão, parlapatice) ; e 3) parávoa, nome regional (duriense) da dobadoira que provem de parabola em sentido geométrico. Parlar ou palrar por inversão de r 1, a qual o povo aplica também a Calros por Carlos, a pérola, dizendo pelra; a pírulas, pequena pera, bilro e pilriteiro. E em palrar (com palrear, etc.) tem em português o sentido irónico que hablar, habler tem em França: falar demasiadamente, com excessiva velocidade, sem dizer coisas que tenham sentido ou jeito.
Falta dizer que parabola representa o grego bíblico parabole nome das formosíssimas historietas alegóricas dos Evangelhos em que figuradamente se ensinam verdades de pêso. AÀ concepção de cada palavra é apenas o símbolo de idéias, afectos, pensamentos; coisas, é profunda e bela e verdadeira. Ao lado da parole a França tem como sabem mot, da forma vulgar latina muttum. Palavra — parabola, parola, parla e paravoa são vocábulos divergentes que, tendo a mesma origem tem forma diversa e sentido também. O que eu disse a respeito do significado de direito, de título e agora de fala e parola pertence à disciplina que nas prelecções anteriores chamei sematologia, semasiologia ou também semáântica, isto é, à ciência das alterações do sentido. Todos os três têmas, téêem como elemento principal o substantivo
sêma (gen. sematos ) ; grego, bem se vê, que significa sinal. Os senhores conhecem-no do composto técnico semáforo, semafórico (ou semafóro, como é costume pronunciar à francesa, mal, portanto ; aparelho de telégrafo pelo qual se transmitem sinais ópticos por via aérea).
Padrõadigo patronaticus. Acompanhar — verbo derivado dos subst. companha cúm-Fpintia ou com — pan — io companho; companheiro, companhão é aquêle que comnosco partilha o pão, vívendo em geral na mesma casa. Ácompanha-se com alguém, ter companhia, relações com. O verho cum — panicare ainda deu outra formação : acompangar, compengar usada na Ga-
liza e nas Astúrias (c creio que também no Minho) no sentido de comer pão com outra comidacomo conduto de outra comida; o substantivo verbal compango é êsse mesmo conduto, o alimento que se toma alter-
nado com pão ou broa, mas também o conduto que se toma com o pão, por ex., paio, toucinho, salpicão. Há na Galiza uma frase proverbial que diz: Comer mucho pan com poco compango. Assabendas — loc. adv. ant., mas muito usada outrora, formada do gerúndio, sabendo. Cfr. andar ou ir em bolandas, às claras. às escuras;
PARTE
às certas;
IV
— LIÇÕES
lendalegenda,
PRÁTICAS
oferenda,
DE
PORTUGUÊS
merenda,
ARCAICO
moenda,
vivenda.
363
etc., vianda
i
Escumungados — egrafia fonética por escomungados “ex-communicatos. Escomayon — talvez mero êrro de escrita por escomoyorn “ex-communione (ou variante, comparável com devaçon por devoçon). Desguysado prefixo dis, que indica oposição, negação, e o substantivo guisa que é germânico (wiseJVeise, ingl. wise). Concelheiramente — significa abertamente, publicamente, paladinamente, como diziam os trovadores, adv. do adj. concelheiro com c, não
com s, de concilium que deu concelho, município — câmara ( Prov. Qual concelho, tal campana). Peedenza — ortografia defeituosa z em lugar de ç e sóbre o 1.º e falta til : pêedença “ poenitentia ou melhor paenitentia mudado depois em peendença, pendença. Por colidir com pendença « pendentia (de pendere) conflito a que se deu a preferência a arrependimento, da mesma raiz. Christãos é como devemos ler a abreviatura Xpidãos, com til sôbre o p. — XP O (também com til ) claro que se lê Christo — 1 H V é Jesu (mais usado em português arcaico do que Jesus, sobretudo na combinação Jesu-Christo). — A-par da abreviatura X P O só com três Jetras houve na Idade-Média outra com quatro caracteres X P T O. É esta que originou a expressão chula Chispêtêó ou Xis-pê-tê-ó, que designa excelência. Imagino que cla se baseia em qualquer anedota de caloiros. Algum inexperto, ignorando que as quatro maiusculas eram gregas: Xi — Rho (r) — Tau (t) — Omikron (o), tendo-as por romanas, soletrou provivelmente Xis Pê Tê O. Mais usado do que X POe X PT O era todavia o monograma combinado X com P e o símbolo do peixe. Peixe é ilchlthlyls em grego. — Essas cinco letras são as do lema Jesus Christos Theou Hyios SoterJesus Christus Dei Filius, Salvator. — Jesus escrevia-se em regra 1 H S, isto é como Jota Etha Sigma grego, e lia-se ou traduzia-se : fesus Hominum Salvator. Christianos deu cristãos ; posteriormente o i do suf. fundiu-se com a da raiz, caso freqiiente em português, como se vê em alvidro arbitrium, vindima
«vindemia, Cidra )citria, Cintra Cintria, Commbra
Conim-
brica, Lima «Limia. Ou então houve substituíção de fano por ano, por analogia com Romanos “ Romãos. Dezemo “cdecimus (*) é têrmo semi-erudito, de origem eclesiástica ; mas popularizado muitíssimo. Se fôsse popular devia ser desmo. E assim dizem na Galiza ; em castelhano diesmo.
Fuy, foy, fui, fuit não cram diferençados no 1.º período da língua. Secrian sedere (hab Jebant ; bêeytas deu primeiro beeitas depois (*) Hoje diz-se dízimo, dízsima (com derivados populares usam quási sempre da forma erudita.
como
dizimar),
mas
mesmo
os
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LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
beéitas por ditongação, pela qual o acento recaíu na mais forte das duas vogais. Formas posteriores são bento com acento no 1.º elemento ; bieito. Todalas com assimilação do s final ao [ inicial do artigo. Connoscer “cognoscere. Dou davit; forma analógiea (regular) por dedit deu. Gaanhar por guaanhar “ guadanhar ital. guadagnare germânico waidanjan, de waide pasto; w germânico deu gu em guardar, guerra, guisa, guarnecer, guarecer. Sou “ suus, cast. so; leu — seu por analogia com meu. Sobrinho «consobrinus, com aférese da 1.º síilaba ; filho de irmão
ou irmã da mãe. ! Ata árabe chatta. Macar maguer em castelhano : partícula concessiva; equivalente de ainda que, pôsto que, apesar de, embora;
aventurado. Primeiro tomara o Granada «grãada (hoje além disso graúdo. Essa forma que colide com grado “ gratus. Levitas ministros do culto Maes,
do grego makarie —
bem
significado de oxalá. grada) derivado de granu que nos deu enfática é hoje mais usada do que grado, da tribo de Levi.
males ; plural correcto que na pronúncia
todavia não vin-
gou por coincidir com mais “ magis. *
Vou ligar mais algumas observações aos Fac-símiles 3.º e 4.º. ou antes ao Exercício escrito n.º 2 que a êles se ligava. Li todos com atenção, alguns com satisfação. Evidentemente nem tudo está bem. Há erros na reprodução das explicações por mim dadas, e tumbém nas partes que os senhores acrescentaram da sua próprio lavra. Estimo
muito
que
completem
o que
digo
e estudem
os assuntos
em livros que tenham no seu dispôr. Os que recomendei e torno a recomendar especialmente são tôdas as publicações de F. ÀA. Coelho, inclusivé o Dicionário Etimológico, conquanto às vêzes divirja das opiniões nêle expendidas ; tôdas ns do Dr. Leite de Vasconcelos, sobretudo os Textos AÁrcaicos e as Lições; tôdas as de Gonçalves Viana, em especial Apostilas e Palestras, as de Júlio Moreira, e a Chrestomathia Árcaica de J. J. Nunes, em que há uma boa exposição da fonética do galego-português. Também nas publicações de Cândido de Figueiredo há muitíssimas noções úteis, conquanto êle as destine ao grande público e não a estudantes de filologia, e conheça melhor a linguagem clássica e moderna do que a arcaica.
A respeito de certos vocábulos citaram os senhores um Dicionário de Brandão. Desconheço-o. Mas, pelas amostras, não é livro de confiança. Acumula
derivações erradas, arbitrárias, em lugar de indicar apenas a
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IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
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verdadeira. Julga possível coisas impossíveis. Acredita que cada som possa ser substituído por qualquer outro. Tira directamente ajudar de juvare;
ousar de audere;
cantar de canere;
êrro de errore;
honra de
honore, cete., ete. Visto que o alegam, obrigam-me a repetir que tôdas às alterações e substituições de sons (i. é da parte material da língua) sc realizam segundo leis, regras, normas, tendências. E embora essas leis sejam relativas e não absolutas, nem se realizem por igual em todas as Iínguas neo-latinas, nem mesmo os dialetos de uma só delas, são constantes.
em todos
«Os mesmos sons transformam-se de modo idêntico nas mesmas condições, dentro de um território mais ou menos extenso, unido geogrãficamente e socialmente por instituições e costumes.» Palavras de construção igual, transmitidas oralmente, evolucionam
do mesmo modo. Já vimos que, por ex., p simples, intervocálico, é reduzido a b em cabo
caput ; saber “sapere; sabor “sapore; sobervia, soberva
“super-
bia; cobiiça 4cupiditia ; que t se transforma nas mesmas condições em d « lado latus;
ledo laetus;
amado “amatus;
partido
partitus;
c que
o mesmo abrandamento se dá quanto a k, por ex., em chegar “ plicare; agora “«hac (h)ora; ogano “hoc anno. Vimos que no grupo ct há sempre vocalização do c, tanto em peito “ pectu; feito “ factu (por faito), noite «nocte; fruito 4fructu; dito Xdicto, conquanto nesse átono se fundisse naturalmente com é tónico da raiz. Ete., ete.
último
É
AÀs regras seriam absolutas, em palavras herdadas, se elas não fôssem contrariadas pela acção de outras tendências, de ordem psicológica ; por ex., pela tendência de associar formalmente, pela analogia o que está associado intelectualmente, pelo sentido ou pela função.
Também já dei vários exemplos. Repetirei um só. O representante fonético do latim est seria es em português ; o t final caíu necessâriamente como em e 4et; ou íaut; cabo Xcaput; ama Xamat. Se ainda assim
temos é (para evitar confusão com a 2.º p. sg. que também é es) isso aconteceu
por analogia
com
há Xhat
por habet;
está 4stat;
dá dat.
*
Também tenho de repetir que não basta dizerem vagamente: avia de habere ; é preciso indicar a forma correspondente avia “ habebam, ou, respectivamente, habebart. « Simonia, do latim ou derivado do latim simonia» não é suficiente.
Pelo menos deveriam acrescentar que não se trata do latim clássico., mas sim do latim da Igreja. Em Dicionário algum o encontram. Só no Glossário do Latim medieval de Du Cange. E êsse remete-nos às Actas de Conceílios dos séculos IV e V. Simonia de Simon entrou na língua do Império pela expansão do Cristianismo. Nem a língua latina não possuia o sufixo
podia ser formação antiga porque ía, sômente ja átona como em
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LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
modestia, prudêntia, angustia, injurta. O sufixo -ta é grego. Entrou com palavras eruditas como sophia, philosophia, philologia. Segundo êsse tipo, é que se formou Simonia. Os que citaram outros exemplos da aplicação de nomes próprios a objectos, idéias e instituíções poderiam ter acrescentado a Vicente, Paio (Palaio Pelagiu) ainda o Lázaro do Evangelho, que nos deu lazareto, lazarento, lazarilho (guia de cegos) ; o Malco, da mesma fonte que nos deu mouco; e alguns modernismos lisboetas como tancredo (coluna branca que indica paragens do eléctrico) e restelo (influente político). Menos correto ainda é dizer que onra vem de honore, êrro de errore (de mais a mais com queda do sufixo re! ). Ambos são substantivos verbais, abstraídos de honrar “ honorare e errar “errare. Honore, errore
só podiam dar onôr, errôr com queda normal da átona final -e (fr. honneur, erreur). Não há sufixo -re. Em errore, honore as raizes são err — hon — o sufixo é -or, que não podia cair por evolução fonética, por ser tónico ;
conserva-se em todos os nomes paralelos senhor, amor, melhor, pior e às vêzes funde-se com a raiz como em cor “coor “colore,dor “door “«dolore.
A respeito de companha, companhia, companheiro, companhão, acompanhar, parece que não ficnram convencidos da etmologia cum pane, com os diversos sufixos, que lhes indiquei, como amplamente documentada e geralmente aceite por todos os Romanistas, citando como paralelos camarada (de câmara) e matalote de matelas, Matratze. Mais de um
dos senhores citou três ou quatro etimologias, célticas e não sei
que mais, fantásticas. A verdade é que os latinos possuíam um têrmo que designava o companheiro casual de festejos e excessos báquicos : cum-bibo, gen. cumbibonis, e possuiam a forma paralela: com-tedo — gen. comedonis (do verbo edere que no peninsular comer “ comedere se confundiu com a terminação). Mas ela não designava o companheiro de comesainas : só o comilão. Talvez porque não havia reiiniões em que se comesse sem libações. A idéia da boa camaradagem e amizade íntima entre pessoas que vivendo juntos comiam juntos o pão de cada dia é germânica, com o que não quero dizer que os velhos Germanos (e os modernos ) não gostassem de beber em convívio alegre. Muito pelo contrário. O verdadeiro Germano trinkt immer noch eins. À palavra gótica de que com-panho é tradução é ga-lhlaiba. Compõe-se do prefixo ga (hoje ge — ), que corresponde a cum, e do substantivo hlaib, hlaif, que significa pão. Ésse subsiste no alemão Laib, Latb —
Brot forma de pão prêto, e também em Leb, de Leb — Kuchen (espécie de bôlo fino do Natal ; pain d'épice). Quando os Germanos se viram obrigados a falar latim bárbaro (ou neo-latim primitivo ) nos páíses conquistados, traduziram o seu têrmo nacional pelo equivalente latino cum-pane (em alemão dizemos ainda hoje Kumpan, diverso de Kompagnon) ou em formação aumentativa cum —
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IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
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pan — ione. (Já falamos de outro caso parecido em que a uma idéia germânica corresponde uma palavra latina : direito). De passagem notemos que a raiz gótica hlaib, hlaif existia também nas línguas eslavas (chlébu), e tinha em inglês arcaico a forma hlaf. Esta subsiste, reduzida a uma só letra, onde nenhum leigo a procuraria:
em lord e lady. Lord é redução do buidor do pão (Laib— o pão às suas mesnadas, Lady é redução de
anglo-saxónio Ahlaf — weard guarda e distriwart, Brot — wart) : aquêle que dá e reparte aos seus criados. hlaf — digedistribuídora do pão. *
Para concluir vou dizer duas palavras àcêrca dos X sentidos de que fala Afonso o Sábio, que outro dia nos surpreenderam. Verifiquei que também surpreenderam o editor André Martinez Salazar, visto que os acompanhou de um sic! Constatei que a divisão em cinco (dois mecânicos e três químicos ) é meramente popular. Os homens de ciência distinguem mais. Não . sôomente os psico-fisiólogos ou fisio-psicólogos modernos da escola de Wundt, mas também os investigadores medievais, notavam que
se localizamos o ver no órgão da vista,
o ouvir no aparelho acústico,
o cheirar no nariz (ou nas narizes como era costume dizer) o gostar na bôca, não é possível proceder assim com relação ao sentir. É, pois. o sen-
tir que subdividiam e subdividem. Além do simples tacto (do apalpar)
que reside sobretudo na ponta dos dedos há o sentido das temperaturas (calor e frio) que reside na pele ; a do cansaço e sono, que ataca sobre-
tudo a cabeça (o cérebro) ; o da fome e sêde, no estômago, e na bôca; a do pêso e da pressão e outras dôres físicas, nos músculos ; do prazer e da dor espiritual, que excita o coração.
o
LIÇÃO IV TRANSCRIÇÃO DO FAC-SÍMILE IV, DA CRÓNICA TROIANA ESCRITA EM GALEGO-PORTUGUÊS SÉCULO
FOLIO
27
DO
CÓDICE
T.i67
DA
NIV
BIBLIOTECA
NACIONAL
DE
MADRIDE
(*)
e leixauasse amar a todos. Das ffeyturas de Achiles : Achiles foy moyto aposto e moy fremoso en façe, e ouuo os peytos fortes e grossos e anchos, e ouuo os ossos grossos e grandes e [os nenbros] moy compridos, e os ollos del eran brancos e cheos de ardimento. Et auia os cabelos crespos e ruiuos e a ssua cara era sempre leda. Pero que era brauva nos imiigos, mays el non foy escaso nen coydador nen triste. Ante foy feramente grãado c costuso (sic) e amado dos fillos dalgo. Et ouno tan gran prez de armas que a duro poderia home achar nebun tan bon caualleiro, que este era moy orgulloso e moy cobiiçoso. Das ffeyturas de Patrucolus: Potrucolos auia moy bon corpo e era longo e dereito e fremaso e cortes e moy sisudo e auia os ollos moy verdes e dezia senpre uerdade e non era nuncea sannudo, mays ra senpre alegre todauia e era moy uergonçoso e non queria faleçer en-no que prometia. Das ffeyturas de Ajas: Aaias ouvo peytos grossos e brancos e moy espaduudo (sic) e de bon grande e de grandes nembros. Et en todo [tempo ] se uestia moyto apostament e era moy duro e nunca home foy certo se parauoa que lle el dissesse que 1lo teuesse, ante era liuão e mentido e sempre sse tiinna viçoso cada que podia. Das ffeyturas de Ajas Talamon : Ajas Talamon valia moyto e sabia moy ben cantar e tanger todos los estormentos, e ferament trobaua ben,
e auia os seus cabelos moy negros e era moy mansso e moy mesurado pero que cra moyto ardido e moy orgulloso contra seus imíigos en tal maneira que a nehun non faria amor en batalla. Et so o çeo non auia seu par pera en caualaria ct já tanto non se trabalhasse home por que sse a el podesse igalar en armas. Das ffeyturas de Ulixas: Ulixas venceu a todos de beldade e non era moy grande de corpo nen (de) pequeno mays era moy sisudo e falaua moy ben, e entre dez mill non poderia omen achar tan rreuoluedor de preytesya nen tan gran bulrrador, que ele nunea deria uerdade hãõa ora, mays enpero era moy entendudo e moy cortes. (*) Só por engano.
estão
resolvidas
as
abreviaturas
e
introduzidas
palavras
omitidas
PARTE
IV—
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
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Das ffeyturas de Dyomedes : Dyomedes foi moy ualent e era grande e grosso e quadrado e auia o rosto moy brauo e moy felon, e prometia moy ben seu auer e era moy ardido e orgulloso e moy temudo en armas. Et grave seeria de achar quen con el quisesse auer conpanna. Ca cra tan mao de seruir que o non podian sofrer os que con ele veuian. Pero que lle sofrian por ualer mays. Ca os homes sofren grandes coytas por chegar a grandes estados. Et depoys foy este Diomedes moy coytado de amor assy como
a estoria
adeant
contara.
Das ffeyturas de Nastor:
Nastor era longo e ancha
(sic) e deuia
seer moy ualent segundo suas feyturas e auia o nariz curuo e era tn benrrazoado e falaua tan ben que Mlle non acharian seu igual..Et cra home que consellaua ben a qual quer home que lle demandasse seu consello. Et era home moy sannudo e quando se assannaua non Hes gardaua cousa que mal lles estouesse. Et era moy fremoso e moy... *
O novo fac-símile é encimado do título Crónica Troiana, escrita em galego (siglo XIV). Fac-Simile del folio XXYVIHI del Codice Fi-67 de la Bibl. Nac. de Madrid. O original é um in-fólio grande. Grande e grósso, como podem ver no meu exemplar ; cada parágrafo principia com letra muaiúscula pintada ora de azul, ora de vermelho. Os títulos são vermelhos. Ao todo consta de 185 fôlhas. Há impressão realizada em 1900, em Corunha, e que se deve aos cuidados do mesmo erudito (André Martinez Salazár) que publieou o Fac-símile 3.º, das Sete Partidas. À Crónica Troiana ( por êle repartida em dois volumes ) preenche além de 600 páginas' de texto (366 no vol. 1.º e mais 266 páginas no 2.º), com umas vinte de Apêndices. É depois da Demanda do Graal, das Cantigas de San-
ta Maria e dos Cancioneiros profanos, o texto beletrístico mais importante e mais
volumoso
da época
galego-portuguesa.
No princípio está incompleto. Faltam-lhe 24 capítulos. Conhecemos todavia o seu conteúdo pelo original castelhano de que é tradução: (não pela fonte francesa de que êste provém, nem doutras traduções que dessa derivam, nem também dos textos latinos. em que o francês sc inspirara, porque êsses divergem). Está bem escrito, conquanto de modo algum careça de lapsos, como logo verão. Trabalharam nêle diversos copistas: provàvelmente subordinados, de Fernão Martins, como chefe
do escritório do magnate galiziano Fernão Peres de Andrade, que a meu ver são os próprios tradutores, visto que se distinguem não só pela letra, mas sobretudo pelas formas dialceetais de que se serviram. O principal escrivão, a quem se devem as primeiras 100 fôlhas e mais outro caderno
(de fôlhas 119 a 128) transmitiu o seu nome à posteridade. Na fôlha C (on 93 v.) diz: «Sarbam quantos estes livros virem que eu Fernam Martins., cleriso e capelan de Fernam Perez de Andrade, escrevi este livro
370
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
desde onde se começa esta estoria até aqui ; et escrevi ainda mais outro
quaderno em que ha dez follas que vay (sic) aão adeant et escrevi-o por mandado do dito Fernam Perez». Os outros amanuenses e tradutores não se nomeiam. O manuscrito pertenceu outrora à Biblioteca do marquês de Santilhana, depois à dos duques de Osuna, dos quais o Estado o comprou. À nota já citada de Fernão Martins seguem-se apontamentos históricos do mesmo,
a respeito do senhor para o qual escrevia. Termina-
ram com a data seguinte: « Este livro foi acabado 20 (vynte) dias andados do mês de janciro. Era de mill et quatrocentos e onze anos». Essa nótula é ainda seguida de fórmulas consagradas, em que o escrivão pede um Padre Nosso e Ave-Maria pela sua alma. À era 1411 corresponde o ano de 1373 (sabem que para reduzir a era de César à era cristá temos de abater sempre 38 anos). Em contradição aparente com essa data está a rubrica final do volume, pois diz : « Este livro mandou
fazer o muito alto
et muy noble et muy eiselent Rey Don Alfonso, filho do muy noble Rey Don Fernando ct da Reyna Dona Costança... Et fui dado descrivir (dado talvez seja êrro por acabado) — et destoreer (isto é de iluminar com miniaturas) eno tempo que o muy noble Rey Don Pedro rreynou»... (o justiceiro)... Depois de vários pormenores continua: «Feyto o
livro e acabado no primeyro dia de Dezembro era de mil et 388 anos. Nicolau Gonzalvez serivan dos seus livros sereveu por seu mandado». (1388 menos 38 vem a ser 1350, isto é. vinte e três anos antes que Fer-
não Martins trabalhasse na versão). Conferindo êsses dizeres suspeita-se logo que a última nota pertencesse no original, e que êsse original fôra feito por ordem do rei de Castela Afonso XI. Ésse é chamado em vários textos o muy castelhano, e é autor duma pocsia do Cancioneiro do YVaticano, que é 2 única (com apenas uma só excepção ) do Cancioneiro galego-português, que tem teor castelhano ; a única, e cronoloógicamente o último texto que êle contém. — AÀ existência de um original castelhano é confirmada por um códice guardado na Biblioteca do Escorial, tão bela-
mente escrito e iluminado por um Nicolau Gonzalez que assina, que pode ser o próprio que o monarca mandou fazer, tanto mais que dle entrou no tesonro de preciosidades, pelos cuidados de Filipe II, seu fundador, bibliófilo-coroado — como o fôra Afonso X, o Sábio —, e como foram vá-
rios outros reinantes peninsulares. É possível que o códice fôsse que estivera na livraria de Isabel a Católica.
o mesmo
Ainda há outros exemplares de textos castelhanos da Crónica Troiana, tanto na Biblioteca Nacional, como na do Escorial. Dois dêles, de fins
do século XIV, são alterados quanto à redacção; e distinguem-se pela circunstâneia
de conterem
versos intercalados, muito
curiosos c muito
importantes para a história da pocsia peninsular. (Ignoramos ainda se êles se baseiam em redacção anterior a 1350). Não entro em pormenores, mas se alguém quiser ocupar-se mais tarde do assunto, ainda não suficientemente escelarecido, de boamente
o auxiliarei. Apenas direi que o
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
371
insigne historiador da literatura castelhana Marcelino Menendez Pelayo, falecido em Outubro do ano passado, possuia na sua esplêndida biblioteca de Santander, que doou à sua terra, um manuscrito incompleto. Era escrito em duas línguas: é meio galego-português e meio castelhano, tal qual a Crónica Geral de 1404 de que já lêmos um fragmento. O texto está bastante deturpado., mas ainda assim parece ser precioso. *
Crónica Troyana — História Troyana — História de Tróia — menos vêzes Conquista de Tróia — são títulos que figuram nos catálogos de quiisi tõdas as Bibliotecas famigeradas da Idade-Média, tanto portuguesas como castelhanas, aragonesas, francesas e italianas. Em Portugal subsiste
cópia de verbetes correspondentes, por exemplo
na lista dos volumes
manuscritos que constituíam em 1430 a livraria de El-Rei D. Duarte; nos relativos ao seu neto, o Condestável D. Pedro de Portugal, filho do
Regente ; e ainda em notas sóbre a biblioteca de El-Rei D. Manuel, o Venturoso, cuja publicação devemos a Sousa Viterbo. — Anteriores a todos êles — ainda do tempo da 1.º dinastia é uma alusão à História de
Tróia, contida no livro de Linhagens, atribuído ao conde D. Pedro, de Barcelos (filho bastardo de D. Denis). — Nos curtos parágrafos em que o Genealogista se refere aos Troianos fala de Dardano, como pai de Tros, primeiro fundador do Castelo de Tróia e portanto ascendente dos Romanos pela linhagem do rico homem Eneas e seu filho Júlio Ascânio. Conta exactamente como a crónica, 1.º) a lenda dos Argonautas e do 1.º cêreo de Tróia, e depois o rapto de Helena que motivon a guerra dos dez anos. E diz: «E ouve i grandes fazendas e mortes, e grandes cavalarias assim como fala na sua estoria». Quem quiser, vá à Biblioteca. peça a Colecção Port. Mon. Hist., Seríiptores e estude o título 1, à pág. 236.
Durante tôda a TIdade-Média e ainda nos tempos modernos a história romântica da guerra de Tróia, ou guerra dos 10 anos, movida pelos gregos sob o comando de Agamemnon contra Príamo de Tróia, por causa do rapto de Helena por Páris, foi
o encanto dos que amam
lendas histó-
ricas ou romances históricos. A história de Tróia não cedia o passo às novelas do ciclo bretónico (de
Artur,
Tristão,
Merlim
e o Santo
Graal)
nem
às do ciclo Caro-
Iíngio. Das que provêem da Antiguidade, só podia emparelhar com ela a história de Alexandre Magno. O Amadis — talvez de origem portuguesa —
o Palmeirim
e os restantes livros de cavalarias não per-
tenciam aos ciclos que citei. É facto conhecido que em tôda a Idade-Média foi
a França que teve a hegemonia
literária, sobretudo
no que diz
respeito a fabliaux, chansons de geste, e pocmas novelescos. Não inventavam tudo. Parafraseavam e modernizavam com arte e entgenho, as histó-
3712
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
rias e lendas transmitidas por historiadores e poetas, em gera] de origem grega, mas traduzidos para o latim. Com a história de Tróia aconteceu o mesmo. Foi no século XIT perto de 1160, que um troveiro do nordeste da França (da Touraine) se lembrou de escrever na fáeil e elegante elocução palaciana de que dispunha, um Roman de Troie para entretenimento da brilhantíssima côrte afrancesada ou antes francesa de Aliénor de Poitou, a gentil protectora das musas trovadorescas, casada em segundas núpeias com Henrique 1I de Inglaterra (Plantageneta). Um Poema de Alexandre, bascado em originais grego-latinos, tinha tido pouco antes um sucesso enorme (*). O troveiro francês chamava-se Bento de Santa Moura ou Maura: Beneit (Benedictus, hoje Benoiít ) de Sainte More, clérigo, segundo as aparências, mas clérigo muito mundano. ÉEle não redigiu o seu Roman de Troie, ou IHistoire de Troie (***) nos versos longos da epopeia nacional. Ésses versos de 12 sílabas têêem, como
sabem, o nome
de Alexandrinos,
pelo motivo de um dos refazimentos do poema de Alexandre ter popularizado êsse metro. Bento de Maura preferiu os versos curtos, octonários, pareados, que já então eram usados em tais narrativas profanas, quer
históricas. quer novelescas, quer didácticas. Mas de onde tirou êle os materiais para a obra? Não da Hiada e da Odysseia que a Idade-média desconhecia por completo. Às epopeias gregas (que ninguém entendia então ) preferiam os eruditos duas ficções em prosa, tardias e mediocres, que provávelmente foram redigidas no 1.º ou 2.º século da nossa era,
por sofistas alexandrinos. Em grego chegaram a ser propagados no Oriente e no Ocidente ( primeiro na România oriental ), do século IV em diante (segundo ontros mais tarde, só no V e VI) em versões latinas. Ambos
pretendem
ser cocevos da guerra de Tróia, anteriores portanto
a ITomero: obra de dois autores que nos dois campos opostos tomaram parte no cêrco famigerado. À 1.º está dividida em vários livros (scis ou nove). Ela bascia-se em conhecimentos regulares dos historiadores e poetas helénicos e é regularmente estilizada. Seu autor é Dictys de Creta (Cretense ) ou de Cândia (Candiotto como dizem na Ttália). Como se vê, pertencia ao exército grego. O título é Dictys Cretensis Ephemeridis belli Troiani Libri VI (Ed. Menter, Leipz. 1872). Essa efeméride, escrita segundo contam os Prólogos do texto latinizado, em caracteres fenícios conservara-se milagrosamente num esconderijo, e fôra descoberta por ocasião dum tremor de terra no templo de Nero. Ésse mandou transcrevê-la para grego e traduzir para latim. (*) Dêsse poecma de Albert de Besançou só subsiste um curto fragmento. Há todavia uma imitação alemã do clérigo Lamprecht (Vid. Paul Meyer, êllcx]andrc) te Grand, dans la littérature françaíse du Moyen Ape, Paris, 1886,
volumes). (**) da História
É a primeira de Tróia.
que
foi
poctizada
por
poetas
neo-latinos,
ainda
antes
PARTE
IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
373
A outra ficção é um mero epítome descarnado em latim muito mediocre. Ela pretende ser um Diário (acta diurna), escrita durante o
cêrco de Tróia, dentro da própria fortaleza de Príamo pelo Frígio Dares. (Os cálceulos dos historiadores antigos colocam a guerra de Tróin nos anos de 1193-1184). O título é Daretis Phrygii De excidio Troi«e Epitome (Ed. Menter,1873). Segundo a Carta-Prólogo que acompanha êsse texto latino, o autógrafo do Frígio foi traduzido por Cornelius Nepos e dedicado a Salústio! Não diz em que caracteres estava traçado. A Tdade-Média aceitou e acatou essas fábulas, considerou os textos como autênticos e fidedignos, e entenden que ambos, coevos dos sucessos, supriam
lacunas de Homero
corrigiam
erros dêle, e acrescentavam
cir-
cunstâncias, ignoradas do patriarca da poesia grega. Deu-lhes larga popularidade. Nonve numerosos manuscritos e ainda há vários. E, de 1490 em diante, numerosas impressões do Dictys Cretensis e Dares Phrygio são reiimnidas num só volume. Podem ver aqui uma das que possuo ( Amst. 1631 ) e admirar no frontispício, o cavalo de Tróia. Encas levando o velho pai Anchises às cavaleiras e conduzindo o pequeno Ascânio; —
a cidade incendiada ; Príamo, Agamemnon e Aquiles que a
incendeia. Tenho outra italiana do século XVIII (*). Ficaram pois em voga ainda séculos depois da era do Renascimento e da Ressurreição de Homero. Só no princípio do século XVIII surgiu um filólogo de são critério (Holandês, e chamndo Perizonius ) que tirou a máscara aos falsificadores. À crítica moderna discutiu vivamente os textos latinos. Houve investigadores que afirmaram, outros que negaram a origem grega de ambos os textos. Hoje essa origem está provada,
quanto ao Dictys. Em 1906 encontrou-se um fragmento duma relação grega da Ephemeris num papiro egípcio., do ano 250 P C.: já foi publicado por eruditos ingleses. Benoit de Sainte More aproveitou ambos os livros e juntou-lhes conio introdução a história dos Argonautas e do 1.º cêrco de Tróia ( porque antes do de dez anos houve outro, como talvez saibam). Encos-
tou-se de preferência ao Dares. Ao Dictys só do verso 24.330 em diante, dos 30.000 e tantos de que consta o seu enorme e palavroso poema ! Como todos os povos da România ocidental, êle favorecia os troianos. Porquê? Porque Eneas fôra tronco dos Latinos, segundo as lendas etnogénicas,
propagadas por Virgílio. De Encas viera Bruto, filho ou neto de Ascânio; e êsse Bruto era tronco tanto dos Bretões como dos Francos e dos Espanhóis! Nos Livros de Linhagens todos os Silvas peninsulares descendem do 1.º Sylvius (Rhea SyIvia). Na România Oriental, no Oriente, entre Gregos e Bizantinos pelo contrário, davam a preferência a Dictys, enja Efeméride foi refeita por três Bizantinos (Matala — Johanes AntioLisboa, na Biblioteca (*) Em verífiquei se há alguns na de Coimbra.
Nacional,
há
vários
exemplares.
não
Ainda
'
374
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
chenus — Georgius Kedrenos). Para a prosa latina dos dois pseudo«historiadores dar 30.000 versos, claro que o poeta francês teve de ser bastante palavroso. Fraoses que cabiam num verso, êle as diluía muitas vêzes em dez ou mesmo num cento. Embora em geral seguisse os modelos quanto exemplo,
aos acontecimentos o dos amores
parece
que
inventou
alguns episódios.
de Briseida, Crisseída, Cressida,
primeiro
Por com
Troilo, um dos filhos de Príamo, e depois com o rei de Argos, Diomedes ; episódio elegante e gracioso — que inspirou poetas de fama geral como Bocceacio, Chaucer e Shakespeare, para só mencionar os principais.
— — Havemos de lê-lo inteiro na impressão de Corunha para fazermos idéia do que eram os romances antigos com euja leitura se deleitavam os portugueses de 1350-1500. O poema francês, êsse foi imitado em tôda a Europa: na Alemanha por Konrad von Wiirzsburg Trojanerkrieg, de 50.000 versos — na Escandinávia na Trojamanna-Saga ; foi transposto novamente em prosa latina no século XIIT (é de 1280) por um jurisconsulto italiano — o juiz Guido delle Colonne (de Messina). Ésse tentou tornar o assunto mais interessante
e mais fidedigno, acrescentando-
-Jhe pedantescamente muitos ingredientes eruditos. Éste juiz teve por bem não nomear a sua fonte. Por isso passou durante séculos por ser verdadeiro autor da História destructionis Troice,
que foi lida, copiada, traduzida e impressa em tôda a parte. Quanto à península ibérica, houve primeiro adaptação do poema de Benoit de Sainte More, provávelmente já prosificado por algum anónimo francês. Foi esta prosificação que Afonso XI de Castela nacionalizou, visto que o nome dao autor Beneito de Santa Maria aparece diversas vêzes no seu texto embora deturpado. No texto chamam-no ora de Santa Maura, ora de Santa Maria. No galego-português Maria transformou-se em Marta : Beneyto de Santa Marta. Adolfo Mussafia, catedrático de Viena
(já falecido), resolveu êsse
problema num opúseulo especial, relativo à Crónica Troiana em que rectificou Amador de los Rios que dera como fontes directas os textos de Dictys e o de Dares. Todavia o problema ainda está longe de ser completamente elucidado. No manuscrito castelhano de Menendez e Pelayo há por exemplo trechos que derivam evidentemente da Grande e geral Estoria do Mundo de Alfonso o Sábio. Ésse, mal podia ter aproveitado Guido delle Colonne. O mesmo vale de Gonzalo de Berceo, clérigo leonês, ou quem fôsse autor do Poema de Alexandre castelhano, em
que as estâncias 299-216 se referem a Tróia. Ainda assim é costume derivar ambas
essas
redacções
do
texto
de Guido delle Colonne e de uma Híada de um Pseudo-Pindaro tebano. Quanto
a
outras
impressas, há uma
crónicas
troianas,
em
castelhano,
ainda
não
do Chanceler de Pedro o Cruel de Castela, Pero
Lopez de Ayala, ontra de um Aragonês,
outra de Pedro Chinchilla
Jaime Corresa (de 1367), ainda
(1443). Ninmuém
as examinon
minuciosa-
PARTE
mente até hoje. É prensa, emquanto refazer os textos, estilo e quanto à cada redactor.
IV—
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
bowm fixar logo o facto que emquanto não houve Imos livros se propagavam só em manuscritos era uso modificá-los segundo os gostos do tempo, quanto ao linguagem, ora mais, ora menos, conforme entendia
Mesmo as crónicas troianas que foram impressas com de Pedro Nunez Delgado, não estão ainda bem classificadas.
Quem
* 376
quiser ocupar-se de Tróia em
Portugal
o nome
e Espanha,
ainda
encontra muito que fazer.
Todos os investigadores ignoram por exemplo que certos romances castelhanos do século XVI trazem nota expressa de terem sido extraídos de Dictys Cretense e Dares Frígio. Quanto a Tróia, como capital da região Írígia chamada Troada, situada na Ásia-Menor, no Helesponto, sabem seguramente que os restos
da cidade e da fortaleza Pergamos, foram encontrados por Schliemann e Dorpfeld nas cercanias de Hissarlika. E que os objectos arqueológicos encontrados em Tróia se conservam no museu etnográfico ( Museum fiir Vôlkerlkunde) de Berlim. Sabem tamhbém que houve em outras partes povoações com o nome de Tróia. Em Portugal temos uma em frente de Setúbal, importante estação arqueológica romana. Nem ignoram que a guerra dos dez anos com os seus episódios bélicos e românticos inspirou não somente as epopeias homéricas. mas também numerosas obras líricas
modernas. (Sonetos relativos a Policena e Aquiles, etc.). Berlioz, por exemplo, escreveu uma ópera em 5 actos, Les Troyens, continuação de outra obra musical que chamara Prise de Troie, e que à ópera é notável pela ciência de orquestração e pelo sentimento dramático. Talvez saibam também alguma coisa das vicissitudes por que passou o vocábulo Tróia em latim e nas línguas românicas, reconduzido a apelativo. Com alusão humorística ao gigantesco cavalo de Tróia citado na Eneida (II, 237 ) dentro do qual os gregos se esconderam afim de entrarem na cidade sitiada, os gastrónomos e os cozinheiros latinos deram o nome de porcus troianus a um dos petiscos de que gostavam : Um bácoro assado, com recheio de aves — quasi aliis inclusis animalibus gravidum. Os neo-latinos diziam primeiro porco de Troia e depois chamaram simplesmente tróia à porca por ela costumar dar vida dum acto só a muitos bacorinhos. Em italiano. temos Troja; prov. trueia: cast. truja ;
fr. truie. Em sardo passou a ser adjectivo, sinónimo de sujo. Em Portugal teve outra cevolução que se relaciona com factos curiosos. As locuções: aqui foi Tróia e ardeu Tróia são literárias. AÀ primeira empregavam-na os clássicos castelhanos c portugueses com relação a coisas arruínadas, positiva ou figuradamenté — marcar indiferença pela destruíção de qualquer projecto.
a segunda a
376
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Há vários jogos a que se dá o nome de Tróia, por ex., o jôógo do homem em Portugal. No Norte da Europa, na Escandinávia e na Inglaterra, chamavam Troja — Trojaburg — Troytoron — a uns labirintos arcaicos de relvado. guarnecidos de pedras do tamanho da cabeça de um homem. Serviam de cenário, provivelmente, a jogos e danças dramáticas em que se represen-
tava o rapto de uma donzela. ( V. Krause, Die Trojaburgen Nordeuropas, Glogau, 1893). Em Portugal chamava-se Tróia ou Jôgo de Tróia no jôgo de Canas, se nos pudermos fiar em Vieira (X, 253) único autor meu conhecido que refere o facto. Em outros países chamam Trojaspiel ao jôgo de rapazes em que se impele com o pé, coxeando, uma pedra a certo ponto, não de um labirinto mas sim de um desenho geométrico, traçado a giz ou carvão nas
lages da rua. *
O trecho fac-similado que vamos ler contém alguns dos «retratos» de Gregos c Troianos que Dares o Daires que non mente — como se repete muitas vêzes na prosa esboçou no seu diário. Compará-lo-emos, depois da leitura com o texto latino para formarem a idéia da maneira como o poueta francês se cingiu ao seu modêlo. Claro que também recorreremos ao original eastelhano (*).
(*) Também desta vez tivemos de explicar o texto, palavra por palavra— tanto os que já conhecíamos como os que eram novídade para nós. — Suprimimos essa parte por ser muito extensa. EN. do coordenador]
LIÇÃO
V
REPRODUÇÃO DO FAC-SÍMILE V, DO CANCIONEIRO DA AJUDA (F. 4) Nº
—
14
A—
Quero-vus eu ora rogar por deus que vus fez, mia senhor,
non catedes o desamor que m'avedes nen o pesar que vus eu faç(o) en vus querer ben, e devede-l'o sofrer, por deus e por me non matar. Ca nunca vos eu rogarei por outra ren mentr'eu viver Se non que vus jac'en praçer por deus, senhor, esto que sei
que vus agora é pesar, ca vus pesa de vus amar e eu non poss(o) end'al fazer. Ca se eu ouvess'o poder de qual dona quisess'amar, atal senhor fora filhar onde cuidasse ben aver. mais de vos nunca o cuidei aver, senhor ; mais avê-l'ei
mentr'eu viver a desejar. E sabedes desque vus vi, mia senhor, sempr'eu desejei
o vosso ben e vus neguei meu cor dest'e volencobri ;
mais agora ja per morrer, se vus pesa, ou per viver
se vus prouguer, vo”-lo direi.
—B— De quant'eu sempre desejei de mia senhor, non end'ei ren;
e o que muito receei de mi aviir. todo mi aven
378
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
ca sempr'eu desejei mais d'al [de viver con ela e, mal ] que me pes, a partir m'ei en. E ja que m'end'a partir ei esto pod'ela vecer ben que muita guerra lhe farei porque me faz partir d'aquen ond'eu
sõo
mui
natural;
e sei lhWeu un seu ome atal que Ih'averá [a] morrer por en E non o pode defender de morte, se mi mal fezer,
ca a morte ei eu d'aver Ee pois eu a morrer ouver todavia penhor quer frJei filhar por mi, e tolher-lh'ei est'ome por que me mal quer ; E pois lheu est'ome tolher [ faça-n'ela mal, se poder', e non o poderá fazer ;
mais pod'entender, se quiser”, que logueu guardado serei d'ela, e non a temerei
des que Illeu esto feil'ouver'. ] Vamos hoje examinar o último fac-síínile que distribuí. Éle apresenta uma página do monumento beletrístico mais antigo da literatura portuguesa que possuímos. Podemos mesmo dizer afoitamente: uma
página do primeiro monunmento literário arquitectado por artistas em terras portuguesas. Materialmente, o códice a que pertence — (membranáceo, de pergaminho) — é de fins do século XIII, ou de princípios do século XIV. — Verdade é que o cstilo da letra e das pinturas perdurou em Portugal até quási fins dêsse século : até o entronamento da segunda
dinastia. Fortes motivos intrínsecos e extrinsecos levam todavia a colocar o códice no espaço de tempo indicado : entre 1280 quanto à composição das cantigas que contém, éle AÀ época trovadoresca já durava um século quando tuguês se lembrou de perpetuar os produtos dos antologia. Principiara no reinado de Sancho 1: em menos,
e durou
até à ascensão
Mas de facto, o Cancioneiro representa as primeiras duas a Sancho IIl e a imediata, Afonso ITE (1245 — 1279),
e 1350. Idealmente é mais antigo ainda. algum reinante porseus cortesãos numa 1175, pouco mais ou
ao trono de Pedro,
o ceruel Justiíceiro.
de que a fôlha fac-similada faz parte, só fases da arte poética : a que vai de Sancho I que coincide com o reinado do Bolonhês, e em Castela com o de Afonso X, (1252 até
PARTE
IV—
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
379
1282), o Sábio:.a fase alfonsina e a pre-alfonsina, como costumo chamá-las. Isto é, abrange cantigas só de trovadores anteriores a 1280. Quanto à redacção, êle deve ser, de duas uma : cópia de outra antologia, igual na essência, completa e terminada, que se perdeu ; ou o primeiro ensaio de coleccionação: cópia dos rois, rótulos ou rolos de pergaminho, em que os trovadores tinham inscrito pessoalmente (ou mais provàávelmente feito inserever por seus jograis, seus amanuenses),
a letra e a música
das suas composições. Letra e música porque ua primeira época da pocsia moderna, só havia versos cantados. O próprio nome de cantiga, cantar, canção que
se dava às poesias, indica-o. — Todos os poetas tinham de ser ao mesmo tenipo : compositores e instrumentistas. Em teoria, pelo menos. Na prática. mais de um, sabendo metrificar, não entendia nada de composição
musical, nem tinha voz, havia de ter ao seu soldo quem o substituísse nesse mister. É costume moderno chamar Cancioneiro da Ajuda ao grosso in-fólio, infelizmente
fragmentário
e truncadíssimo,
que em
Portugal
é
o único resto da época provençalesca, porque êle se guarda na Biblioteca da vila da Ajuda, a-par de Lisboa (vila que tem o nome de uma igreja antiga de Vossa Senhora da Ajuda). Digo costume moderno porque só nasceu depois do códice ter sido levado para lá em 1832 — após seis séculos de abandono. Primeiro entrou num edifício. no largo hoje ajardinado, fronteiro aos paços dos reis — edifício que servia de biblioteca, e também
de morada a Alexandre Herculano, chefe primeiro
da livraria partieular de D. Fernando ( Necessidades), e depois da chamada 'trégia, de D. Luís, —
composta de um fundo de livros da casa do
Infantado e de manuscritos e livros provenientes de diversos conventos da capital. Depois do terremoto os dinastas (a casa real) viveram durante algum tempo na vila. Nos aposentos do grande historiador morei eu com meu marido em 1878 durante meses, servida por um antigo casal
de criados dêle. Em 1880 o edifício foi deitado abaixo. — Então a biblioteca passou para o rés-do-chão do próprio Paço da Ajuda. Antes
disso,
o códice
estivera
em
Lisboa
no Colégio
de Nobres,
instalado depois da expulsão da Companhia de Jesus pelo Marquês de Pombal (em 1761) no ex-Seminário dos Noviços. Por ainda se achar aí — exposto aos maus tratos dos rapazes que ignoravam o valor da velha relíquia, quando um nobre e erudito diplomata inglês Lord Stuart Rothesay se lembrou de imprimi-lo (diplomâticamente), letra por letra — (em só 25 exemplares) — é que lhe foi dado o título de Códice do Colésio de Nobres (ou dos Nobres) em 1823. Ignora-se, quando e como &éle fôra entrar nesse depósito de livros. É possível que viesse de Évora. Mas não é certo. Nem parece muito provável, porque muitos manuscritos e impressos que saíram do Quartel
380
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Geral que a Companhia tivera na Capital do Alentejo, desde os tempos do Cardeal e Rei D. Henrique, entraram na Biblioteca Pública Eborenese. A favor da conjectura aleguei na minha edição o facto que exactamente em Évora houvera no século XVI eruditos investigadores que coleccionavam antiguidades artísticas e principalmente literárias — por ex.: M.” Severim de Faria, e André de Resende. Ainbos sabiam que a poesia trovadoresca florescera na era de D. Denis. Sabiam da actividade poética pessoal do Rei trovador. — Possuíam livros que éle mandara nacionalizar, como a Crónica do Mouro Rasis — a Crónica General — àas
Sete Partidas — o Ltvro de Linhagens. Pois bem: um fragmento dêsse Nobiliário antiquissimo está encadernado juntamente com o Cancioneiro : — 40 fôlhas do Nobiliário precedem as 88 do Cancioneiro. Encadernado, e já não encadernado. Quer no Colégio de Nobres, quer no Seminário
de Noviços, quer em
Évora, mãos
impiedosas
reta-
lharam o volume em várias parcelas (sceis, se bem me recordo) roubando-lhe ão mesmo tempo muitas fôlhas. Umas onze, assim desmembradas,
tornaram-se a encontrar posteriormente — (em Évora! ) c foram reintegradas no volume nos sítios que eu indiquei. À encadernação cortada nas costas é antiga : do século XVI. O bezerro castanho escuro, que cobre sólidas
tábuas de carvalho, é de estilo Renascença.
Palmetas
alternam
com medalhões, dispostos em faixas longitudinais. Nesses vê-se uma eabeça (sempre a mesma) de guerreiro barbudo, cabeça que se assemelha a outras de pedra, inerustadas em edifícios cá de Coimbra (por ex., do
palácio de Sub-ripas) e creio também nas sepulturas de Santa Cruz. Quem reiúiniu num volume o Livro de Linhagens e o Códice julgava evidentemente
possuir nos dois, obras não só da mesma
época mas do
mesmo autor. Agora, autor medieval português ao qual a fama, apoiada em documentos, atribuía um Livro de Linhagens e ao mesmo tempo um Livro de Trovas, só há um : o Conde de Barcelos, D. Pedro, filho bastardo
de D. Denis. — Por isso o segundo publicador do Cancioneiro — o Brasileiro Varnhagen Ihe deu (em 1849) o título de Livro de Trovas ou das Cantigas do Conde de Barcelos. O título é falso. Mas o êrro é desculpávecl — visto que no original não há título, nem nome algum de autor — numa época em que os apógrafos italianos, o Cancioneiro da Biblioteca do Vaticano e o C. Colocci-Brancuti, eram desconhecidos.
A fama do próprio Rei D. Denis, como Mecenas e como poeta, era todavia superior à do filho ou dos filhos — porque ainda há outro seu bastardo que poetou: D. Afonso Sanches o fundador de Santa Clara de Vila do Conde. De ambos há versos no Cancioneiro Geral galego«português. Temos provas da fama de D. Denis como poeta em dizeres vários de Quinhentistas, como o Dr. António Ferreira e Luís de Camões, e em assentos de historiadores como Duarte Nunes de Leão. O antor do drama Inés de Castro, dedicou-lhe o epitáfio seguinte :
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
381
Quem he este de insignias diferentes: Cetro e picão e livro e espada e arado? Este foi pae dos reys e amor das gentes grande Diniz, rey nunca assaz louvado. Outros foram núa só causa excelentes, este com
todas nobreceu
o estado.
Regeu, edificou, lavrou, venceu, honrou as musas, poetou c leu.
O autor «Os
Lusiadas» só fala da protecção dispensada pelo mo-
narca às musas e também às artes, nos conhecidos versos da sua epopeia :
Fez primeiro em Coimbra exercitar-se o valeroso oficio de Minerva e de Helicona as musas fez passar-se a pisar do Mondego a fertil herva
(, 17).
Dao século XV
há, no Cancioneiro
de Resende, uma
vaga alusão à
actividade poética de D. Dinis e uma evocação do seu nome com licença de Aretusa-— ninfa que o respectivo poeta parece ter confundido com as da fonte Castalia. No Catálogo da Livraria de El-Rei D. Duarte há a notícia de lá terem existido três diversos Livros de Trovas antigas: provàávelmente dois eram
portugueses
e outro castelhano,
notícia
positiva
mas
ainda
assim muito vaga. Mas como nos apógrafos italianos se encontrassem 138 poesias de D. Denis (impressas em 1847 e posteriormente em 1882) e nenhuma fôsse igual a qualquer das do Cancioneiro da Ajuda, não houve editor algum que desse ao Códice membranáceo o título de Cancioneiro de D. Denis. — Reconheceu-se, pelo contrário, pelo confronto dos apógrafos com o Cancioneiro da Ajuda. que dle encerrava poemas de diversos poetas. O exemplar que está na Biblioteca da Ajuda não pode de modo algum ser um dos três que se conservavam na livraria de D. Duarte em 1438, e hoje estão perdidos. Ésses deviam ser Juxuosos ou pelo menos completos. E o que se guarda na Biblioteca da Ajuda, além de ser hoje truncadíssimo e de já ter sido fragmento truncado quando o encadernaram no século XVI, nunca fôra acabado nunca fôra digno de figurar em bibliotecas régias. Só o primeiro escrevente, encarregado de copiar com tinta prêta os textos originais, quer soltos, quer já coleccionados, talvez acabasse o seu trabalho. Talvez! Nem temos a certeza disso, que só possuímos retalhos da cópia. — E pelos indícios parece que mesmo êsse teve de interromper o seu trabalho.
882
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
O segundo artista que em conformidade com o costume medieval havia de colaborar no códice — o pintor — mal começara a sua tarcfa. Éle havia de pintar em azul e vermelho, ou com mais côres as maiúsculas de tamanhos diversos: (5 pelo menos; (a) no princípio de cada Cancioneirito: (b) no de ceada cantiga: (c) no de cada estrofe: (d) no refram e (e) no remate, na fiinda). Havia de pintar uma miniatura para cada Cancioneiro. — E um frontispício geral, c outros parciais,
que contivessem os nomes dos poetas. Mas não se desincumbiu de nenhuma dessas tarefas. Apenas delineou algumas letras e algumas Vinhetas. Em vários há princípios de coloração, mas só princípios. Na página que fiz fac-similar e que escolhi por ser uma das mais completas, há princípios de coloração. As sombras nas Vinhetas bem o indicam. E bem o indicam as maiúsculas das Cantigas. — Quatro das capitais menores ficaram em branco. Só na margem é que o escrevente deixou indicações das que haviam de ser introduzidas pelo sucessor. O terceiro artista, a quem competia colaborar no M. S., o músico que
havia de inscrever as melodias,
os sons,
nas
linhas
deixadas
em
branco para êsse fiin, não chegou a traçar uma única nota. Infelizmente. Ficamos assim sem conhecer a música profana dos trovadores galego-portugueses. Só conhecemos desenhos dos intrumentos de que êles se serviam. Quanto à música sacra, temos numerosos exemplos nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso o Sábio. Temos, isso sim reconstituíções de
um compositor alemão Wagner (mas Paulo, e não Richard. o Grande). O trabalho no Canc. da Ajuda foi portanto interrompido. Os motivos são desconhecidos. Caleulo que o principal seria que o 1.º escrevente não contentou o rei ou príncipe que mandara reiinir num volume (ou antes em volumes) as obras dos poctas da sua côrte e da dos anteriores, deixando porventura espaço para acrescentos futuros. Não contentou, porque se enganara muitas vezes. Já o vimos na leitura. As emendas eram fáceis, quando se tratava só da omissão de letras, ou de palavras sôltas. Bastava então que a raspadeira manobrasse e o revisor introduzisse as
lições correctas, inseritas à margem. Mas a emenda já era custosa — mal realizável com asseio numa obra destinada a presentes — quando o êrro abrangia versos inteiros. Sobretudo
se êles faziam
parte da
1.º estrofe, visto que ela havia
de sempre ir acompanhada de música. Um caso dêstes deu-se na nossa Cantiga 2.º. Nela falta, conforme expliquei na semana passada, depois do vocábulo dal, o verso de viver com ela,
e mal
Talvez o êrro principal consistisse todavia em outra coisa. Como se vê no fac-símile, o escrevente deixou três linhas em branco para a notação musical, três e não cinco. O caso em si não é de modo algum inaudito.
PARTE
IV — LIÇÕES PRÁTICAS DE PORTUGUÉS
ARCAICO
383
Há muita música medieval, escrita em 3, em 4. como no canto-chão, em
2 linhas, ou mesmo numa só linha. Num livro do Ingles Rianho (que conto trazer-lhes para a semana ) podem verificar êsse facto. — Mas no nosso caso é possível, provável mesmo, que a ordem dada fôra : deixar sempre 5 linhas em branco, quer as houvesse nos originais, como é de crer. quer não. Tôdas as músicas trovadorescas da peniínsula, isto é tôdas
as composições (*) de Alfonso X téêem pentagrama, e o mesmo vale das Cantigas ou Canções da Provença, da França do Norte, e da Alemanha.
Podem vêr na minha mesa um fac-símile de uma música de Adam de ta Halle. troveiro de Arras. que (em 1278 ) escreveu as lindas operetas pastoris Jeus de Robin et Marion e de La Feuillée. Em Portugal, onde imitavam Espanha e França. não se haviam de afastar evidentemente da regru geral. Creio por isso que o exemplar do Códice da Ajuda que subsiste, é de refugo. Foi rejeitado como insuficiente pelo rei ou príncipe que o mandou fazer, e substituído por outro ou outros muais perfeitos. Ficou meio-feito na posse do encarregado, ou foi cedido, vendido talvez. a qualquer amador e coleceionador — qualquer dos trovadores representados, que o legaria aos seus descendentes. Na livraria do já citado antiquário e humanista André de Resende houve no século XVI uma fôlha — (um rol de pergaminho ) com uma poesia trovadoresca de certo Vasco Martins de Resende, do qual êle julgava ou fingia ser bisneto. É uma tenção de amor entre aquêle trovador e D. Afonso Sanches — do tempo de D. Dinis portanto. A fôlha não pode ter pertencido por isso ao C. da Ajuda. Mas mostra-nos' que cópias das poesias trovadorescas saíram do estreito recinto
da córte. Qual foi o rei ou príncipe que mandou fazer o C. da AÀ., não é difícil
dizê-lo, se realmente foi escrito no último quartel do s. XITT ou na 1.ºº metade do XIV. Só entram em litígio três personagens: D. Afonso IlI, o
Bolonhês (falecido em 1279); D. Dinis, seu filho e sucessor, (falecido em 1325) ; e o filho dêste: D. Pedro conde de Barcelos (falecido em 1350). D. Afonso Sanches morreu muito novo
(em 1329).
AÀ letra do
Códice coloca-o no espaço de tempo indicado. Quanto ao conteúdo é mais difícil fixar datas exactas por não possuirmos o volume inteiro. Averiguei todavia que êle contém hoje, e pela analogia com as partes correspondentes dos apografos italianos parece ter contido, nas folhas arrancadas, pocsias muito antigas.
O Cancioneiro contém no seu estado actual poesias da época afonsina e pre-afonsina, conforme já disse. Nenhumas de D. Dinis nem de seus filhos e cortesãos. Por isso. e por outros motivos, creio que a reiinião em volume foi começada em fins do reinado do Bolonhês — entre 1275 e 1279 — e por sua ordem, sob a égide de seu herdeiro e sucessor D, Di(*)
Destinadas
a serem
cantadas
nas festas da Virgem.
384
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
nis. É o núcleo de uma das três partes do Cancioneiro Geral Galego-Português : isto é do Cancioneiro de Amor, destinado a conter as cantigas dedicadas por reis, príncipes, magnates, cavaleiros e prelados a damas da côrte. Nião subsistem exemplares
membranáceos das outras duas partes. Nem do Cancioneiro de amigo, destinado a conter as cantigas em estilo popular, em que os mesmos trovadores, ou seus jograis falavam como se fôssem meninas e moças namoradas. Nem do Cancioneiro de escarnho e maldizer, em que há, a par de coisas rudes, coisas engraçadas e muita nota histórica importante, como o vigoroso sirventês satírico sôbre aquêles que deram os castelos ao Bolonhês como não deviam. — Mas é probabilíssimo que também fôssem já então coleccionadas e só aumentadas posteriormente, no fim do reinado de D. Dinis ou no de D. Afonso IV o Bravo, pelo conde D. Pedro de Barcelos. O Livro de Trovas que êste conde legou no seu testamento (1330) a Afonso XI de Castela e Leão era, a meu ver,
pletado, integral,
o Cancioneiro assim com-
e não um volume de Cantigas só dêle —
porque êle
tinha fraquíssima veia, como se vê das amostras contidas no Cancioneiro
da Vaticana. Um exemplar do Cancioneiro da Ajuda ficaria em Portugal, no Reposto ou na Repostaria dos reis. Outro, esmeradamente caligrafado e iluminado, seria destinado, a meu ver, a ser entregue por D. Dinis a seu avô de Castela. À mãe, D. Beatriz, era, como sabem, filha do Sábio —
boa alma que depois de ter envilivado foi fazer companhia carinhosa ao pai atribulado pela rebeldia dos nobres, e de seu próprio filho Sancho o Bravo (IV). Ésse — o Sábio — havia seguramente obsequindo os amigos de Portugal com exemplares das suas obras, tanto com as Sete Partidas como com a Crónica General, e logo com a 1.º edição. para assim
dizer, das Cantigas de Santa Maria. Chamo ção manuscrita delas —
1.º edição à primeira colec-
contida no Códice de Toledo, hoje na Bibl. Na-
cional de Madride — que foi escrito entre 1257 e 1276. São posteriores os que contécm 400 e tantas, e existem no Escorial, para onde Felipe TI os trouxe, da Catedral de Sevilha, á qual
ram sem sens duca
o Monarca os havia legado. Fo-
escritos entre 1275 e 128:4. — Ésses magníficos brindes, talvez desao Bolonhês o impulso para êle coleccionar os versos profanos dos cortesãos e, como já disse, de oferecer um exemplar ao sogro poeta, signore e maestro de todos quantos na Península se ocupavam então
de ciências e artes literárias.
O confronto do C. À. com Maria mostra claramente que à portuguesa. O tamanho e o disposição dos versos em duas notação musical — as siglas
os três exemplares das Cantigas de Santa as obras castelhanas serviam de modêto preparo do pergaminho avitelado — a colunas e com espaços rescrvados para a (abreviaturas) empregadas, a ortografia,
mas principalmente o ductus e as proporções das letras — o desenho das
PARTE
IV-—
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
385
capitais ornamentadas e o estilo das vinhetas — tudo indica que os artistas do Cancioneiro da Ajuda se regularam pelo códices afonsinos. Sem servilismo. Imitavam livremente.
Já disse que a letra do Cancioneiro da Ajuda é minúsculo gótico Írancês. À pintura também. Ambas acusam o gôósto fino e novo que se fôra desenvolvendo na córte francesa de S. Luís — onde a arte nova dominava desde meados do século XIII. E o Sábio de Castela conhecia-a por presentes sumptuosos do monarca francês, os quais estimava a ponto
tal que legou a Santa Maria de Sevilha los quatro livros que llaman Espejo Istorial que mandó fazer el Rey Luis de Francia — e no seu herdeiro las dos Biblias et tres livros de letra gruesa que nos dio el rey Luis de Francia. O Bolonhês ainda tivera tempo de conhecer em Paris a nova arte.
É muito possível que mandasse posteriormente vir de França não só mestres para o filho como Aimeric d'Ebrard, bispo de Cahors, mas também o pessoal preciso para introduzir na sua chancelaria o estilo gráfico novo. Possível também que êsse fôsse inaugurado em Portugal exactamente por meio de uma obra beletrística de vulto — e o Cancioneiro da Ajuda é a única que a literatura tenha produzido até então. Para os senhores se convencerem do íntimo parentesco entre a letra portuguesa e a castelhana de um lado e a francesa do outro — coloquei no quadro prêto alguns fac-símiles que podem examinar, querendo Já conhecem o gótico minúsculo francês dos ountros fac-símiles que temos lido : Cronica de 1H404, Sete Partidas, Cronica General e Cronica
Troyana. — Mas nenhum dos três contém letras historiadas c vinhetas. Letras historiadas — góticas — compõem-se de arabescos, entre os quais
surgem todavia às vêzes caras e figuras de gente e de animais fantásticos, como fôra uso no estilo romano. Mais dignos ainda de atenção são os quadrozinhos que se encontram de longe em longe, sempre depois de uma página em branco, ou de pelo menos algum espaço em branco — o que indica fim de algum Cancioneirito e princípio de outro novo. É costume chamá-las Vinhetas. Vinhetas claro que é diminuítivo de vinha. Corresponde ao fr. vignette. Já era costume na Idade Média guarnecer o princípio e fim de manuscritos inteiros ou de capítulos de livros com pequenos ornamentos. Sem dúvida alguma, os mais antigos e usados representavam fôlhas e ramos entrelaçados de videiras. Em sentido lato vinheta é de há muito nome internacional, dado a tôda e qualquer gravura pequena ou ilustração intercalada com que se ornamentam c ilustram livros. No C. A,, isto é no estado actual do C. A. há restos de 38 Cancioneirinhos parciais. Inteirado e completado com as outras duas partes — o Cane. Geral Galego-Português contou ou contaria uns 250 Cancioneiritos, com perto de 2.000 cantigas — trezentas além das que realmente subsistem. porque há lacunas também nos dois apógrafos ita-
386
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
lianos. (*) No C. A. há 286 pocsias completas e mais 27 fragmentadas de 38 trovadores. Mas nem todos os 38 Cancioneiritos abrem com Yinheta semelhante àquela que se vê no nosso fac-símile, e é reprodução da 1º do Vol. destroçado. Às 16 só delineadas, podem vê-las tôdas nas reproducões do original que eu fiz em 1878. Mas com a acção do tempo, o papel pergaminho quebrou-se muito: 13 vêzes só há espaço em branco reservado para a Vinheta. Nos restantes casos nem êsse vestígio denunciador possuímos, porque as respectivas fôlhas foram arrancadas por algum amador de figurinhas sem ciência nem consciência. Acabada não foi nenhuma. Em algumas o pintor começou a colorir as roupagens; em outras
as molduras
arquitectónicas,
mas
sem
as sombrear,
e de modo
muito incerto, como se ensaiasse apenas as tintas. Podem relêr na minha edição do Cancioneiro da Ajuda o que digo a respeito delas (págs.
160-163).
*
Na descrição das Viínhetas absolvi outro dia apenas a parte relativa à moldura arquitectónica, que cehamei de transição por contér arcos
ogivais, e colunas esguias com capitéis de folhagem ampla. Tive de parar quando estava para fazer um pequeno Excurso a respeito do estilo chamado vulgarmente gótico — designação que apesar de ser ambiígua perdura e não cede à melhor de ogival, porque êsse têrmo só se pode aplicar
à arquitectura (e às artes derivadas dela como a ourivesaria), mas não à escultura e pintura. — Em todo o caso é bom saber definir correctamente ambos os termos. Ogival é palavra francesa, adjectivo tirado do substantivo ogive com ogivette; em forma arcaica, com au: augive. Sec-
gundo o benemérito lexicógrafo francês Littré, augive ogive não deriva do alemão -Áuge (oculusôlho) como alguns fantasistas supuseram. Ésse Auge — ôlho — oeil denomina coisas na terminologia arquitectónica, mas coisas que não tem nada com abóbadas nem arcos ogivais. Auge é mera abertura circular, elíptica ou oval, num muro qualquer, em regra no frontito, na fachada de construções romanas, mas também no estilo gótico, transformada em linda rosa, rosácea ou rosceta. Às vêzes acrescenta-se a oeil um atributo que o especializa. Todos conhecem oeil de boenf. De passagem poderio tomar nota de que o português clara-bóia não tem nada a fazer com
boi ou boeuf,
(nem
tão pouco com a bóta ancorada,
flutuante dos rios). Clara-bóia é nacionalização (*)
Afonso' o
AÀs
Sábio.
1.700
E
Cantigas
às
pobres
profanas
Vinhetas
devemos
do
ajuntar
Cancionciro
do
composto
as 400
da
e tantas
Ajuda,
ns
francês sacras
de
riquíssimas
1.257 miniaturas de um só dos três códices castelhanos: o chamado de Toledo, e centenas dos outros dois códices. Verdadeiras ilustrações dos AMilagres narrados nos textos. Mas em parte, como logo direi, quadrozinhos parecidos aos que enfeitam o Cancioneiro da Ajuda. De umas e outras estão aqui na mesa amostras muito curiosas. Na Biblioteca poderão o3s senhores ir ver an edição de Madride (1891), ricamente ilustrada — das Cantiras de Santa Maria. '
PARTE
IV— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
387
claire-voie. Éste representa clara-via (clear-story em inglês, Oberlicht em alemão). Via deu regularmente voie. AÁinda assim, pode ser que, quanto ao sentido, influisse nêle o verbho voir — videre. (Nota:
Os dicionários
explicam : découpures à jour qui ornent les clefs de voútes dans les monuments de la fin du XV* et du commencement du XVIº siécle). Augive, ogive, ogival, derivam simplesmente do verbo latino augere — sinónimo do derivado augmentare. São formados da raiz aug — e do sufixo ivus, que indica aquêle ou aquilo que exerce, pratica, realiza a acção designada pelo verbo. Também hãá ogtis “ ogivus no sentido de apoio, estribo. Ogiva é portanto aquilo, aquêle ou aquela que augmenta. Mas augmenta o quê? Evidentemente a altura de arcos e abóbadas. Essa interpretação é aceitável visto que a característica principal do estilo gótico é a tendência vertical, ascencional. Do ano mil em diante tendia-se a
aumentar, a exaltar, a sublimar o arco redondo — (à plein cintre) — transformado em arco agudo (Spitzbogen) — arc-â-tiers-point. Mais tarde sublimou-se e exaltou-se principalmente a abóbada pelo
cruzamento de arcos assim alterados. Sublimaram-se c alteraram-se colunas e tôrres. Reforçaram-se da banda de fora por arcos-botantes ou contrafortes as paredes, recortadas por janelas altas e estreitas. E aumentaram-se os elementos de ornamentação, haurindo-os já não na tradição, mas na própria natureza, sobretudo na vegetação. Entre o estilo romano
de arco redondo
que dominou
na Europa
central e ocidental,
desde os dias de Carlos Magno e o gótico que preenche os três séculos anteriores ao ano 1500 — há dois de transição (até 1200 ) em que apenas o arco ogival começa a substituir o redondo. Só na Itália o Renascimento do estilo clássico-romano começou antes de 1500. À Grécia artística,
esso só foi descoberta no século XVITI por Winckelmann — já o contei quando, falando dos Indo-germanos, dei um esboceto do que a Grécia foi
para a ceultura mundial. Foram
artistas italianos —
como
o biógrafo
Vasari e Cesare Cesariano, comentador de Vitrúvio — os que, no século XVI, deram ao estilo ogival, êsse nome de gótico. Também o chamaram
alemão, em sentido depreciativo, como puros apóstolos do gôsto clássico. No mesmo sentido depreciativo, em que desde os dias de Tácito, mas sobretudo
desde as invasões germânicas,
os Romanos
se tinham
servido
do têrmo de Bárbaros para os caracterizar. Assim como Ostrogodos e Visigodos. Suevos, Lombardos, Francos haviam esfacelado o Império romano, assim o estilo ogival havia destruído a arte romana, não só a arquitectura, mas também a pintura, pois com a denominação gótica ou alemii
também se visava a pintura de Flandres. Bárbaro,
fantástico,
arbitrário.
cheio
de
colifichets ( bugiarias)
tais são os qualificativos com que o censuram. Em Portugal foi Francisco de Holanda quem pela bôca de Miguel Ângelo chamou aos pintores de Flandres «desmúsicos da boa harmonia», e disse que verdadeira pintura era sômente a boa italiana. Queam a respeito do gótico, a sentença de um
388
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Francês moderno cujo espírito sagaz lhes deve ser familiar pelas prelecções do Sr. Dr. Mesquita. É em uma das suas pouco importantes poesias menores que Moliere fala
Du fade goút des ornements gothiques, ces monstres odieux des siêcles ignorants que de la barbarie ont produit les torrents quand leur cours, inondant presque toute la terre fit à la polítesse une mortelle guerre et de la grande Rome, abattant les remparts, vint avec son empire étouffer les beaux arts (*).
O passo é típico, com as suas últimas expressões de desprêzo — e com a sua crassíssima ignorância a respeito da história da arte. Como se 'o0s Godos do século V tivessem qualquer coisa de comum com o estilo ogival dos séculos XIII, XIV, XV. Só na acepção que eu lhe dei como contraposição do génio románico ao germânico — é que se pode aceitar o nome de gótico — tendo em consideração todavia que a parte germãnica da nação francesa é grande (sobretudo na e de France) ; e também quão poderosamente a Alemanha contribuíu, na obra começada além Reno com edifícios civis
e numerosíssimas e belíssimas catedrais, entre as
quais se destacam como hors ligne a de Estrasburgo e a de Colónia. Desde 1866 está provado que o estilo ogival principiou em França, mais exactamente na He de France — e que um dos primeiros que resolveram o problema de cobrir com uma abóbada de arestas. pelo cruzamento de arcos quebrados ou agudos um espaço não-quebrado, oblongo, rectangular, — mais Jlargo que ponto portanto — foi o abade Suger de St. Denis (c. de 1140) — depois de o arco agudo em si já se haver vulgarizado durante meio século. Arco agudo — arco crescido — ou arco ogivo, ogival, com faculdades de crescer, conforme as proporções dos elementos
constitutivos.
Quemse
interessar
pelo
assunto
encontra
indicações fidedignas no Manuel de Phistoire de UÁrchitecture de Daniel Raméc (1865) e no seu Dictionnaire Général des Termes d' Árchitecture (1869) — eno mais moderno Manuel mille Enlart ( Paris, 1902).
(*)
O
Poema
d'onde
extraio
o
passo
d' Archéologie Française de Ca'
citado — Poésies
Diverses
em
Oeuvres
111 1195 — intitula-se La Gloire du Dôme de Val de Grace. 1669. É um panegírico de uma Gloria ou Gloriola, isto é6, de um céu aberto em que se vê a Trindade cireundada de coros de anjos e bem-aventurados, pintada al fresco por Mignard igreja de Val de Grace.— Essa foi fundada pela Rainha de Fraonça Áustria em acção de graças pelo nascimento de Luís XIV.
na indicada D. Ana de
PARTE
IV— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
s89
Verdade é que a igreja gótica forma realmente contraste com a nobre simplicidade do templo grego — e mesmo com as bem proporcionadas obras arquitectónicas dos Romanos. Tem evidentemente outro género de beleza. Em geral, às obras desse estilo são tão complicadas e trabalhosas, os enfeites são tantos, tantos, que muitas ficam incompletas.
AÀ Notre Dame de Paris faltam ambos os coruchéus. À Catedral de Estrasburgo falta uma torre. À de Colónia principiada em 1248, foi terminada em 1880 com donativos da Alemanha inteira — unificada. Em Portugal temos as Capelas Imperfeitas da Batalha, ideadas c talvez principiadas por D. Duarte, interrompidas em 1535. — A florescência do estilo durou de 1225 e 1300. Depois houve exuberância de ornamentação. De rayonnante (até 1380) cla começou a ser flamboyante (até 1500). Em Portugal começou tarde. Todas as auroras raiam tarde neste extremo Ocidente. As nossas Vinhetas devem ser de 1280. — Em Santa Clara a Velha, construída no reinado de D. Dinis, ainda há estilo de transição. À mais bela obra que cle nos deu, é o já citado Mosteiro da Batalha. Em Espanha, é notável entre muitas a Catedral de Burgos. Na Galiza, o Pórtico da Glória, de Santiago de Compostela, do s. XIT (1168-1188). Na Alemanha o estilo gótico teve no século XIX uma notável revivescência. Os críticos de arte apreciam-no hoje com justeza. O francês Enlart ao tratar dele, na obra que citei, como evolução do estilo romano, diz que é seu aboutissement « puisqu'il apporte la solution des recherches qui préoccupaient les maitres d'oeuvre romans.» «Seul il a permis d'élever des édifices légers, clairs, spacieux, et solides quoique vôutes.» E acaba estabelecendo : «on n'a pas encore dépassé la science des maitres d'oeuvres gothiques, et toutes les solutions trouvées depuis, sont inféerieures. Le siyle gothique a porté á leur plus haut point la logique du raisonnement, le principe d'équilibre, par opposition des forces et la prédominance des vides sur les pleins.» Isto basta creio para que olhem com algum interesse para a nossa vinheta. Voltemos a ela. Os instrumentos principais, desenhados no C. da Ajuda, são os únicos restos das músicas antigas dos trovadores galego«portugueses
que
possuimos.
No
C.
da
Ajuda
temos
instrumentos
de
corda e de pereussão. Nenhum de sopro ou de vento. De corda são as violas de arco, os saltérios de David, às arpas de Tristão: as guitarras latinas e mouriscas. tocadas com um plectron de marfim, ou à portugue-
sa, com uma pennula, penola, pendola (isto é com o cano duma pluma de ganso ou de cisne ). À essas guitarras de 4 ou de 5 cordas dava-se então o nome cítola, (citara). De pereussão há o pandeiro de guisos, e as cas-
tanholas rectangulares, aparentemente construidas de tres taboinhas movedicas, unidas por delgadas correias ou por carneira: e não de duas como certas do Minho de que aleguns dos senhores me falaram, esboçan-
390
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
do-mas no papel. Nas cantigas fala-se além disso do adufe (pandeiro quadrangular), de trompas, de atabaes e de atambores e anafis que, geralmente,
eram
instrumentos
bélicos. Nem
o pandeiro
nem
as casta-
nholas aparecem nas miniaturas das Cantigas de Santa Maria. Mas há nelas, e em
algumas
esculturas
de
templos,
outros
tipos coevos
—
por
junto meio-cento. De quase todos há reproduções na obra inglesa de Riaíão, Early Spanish Music (London 1887) que eu trouxe para o examinarem. Literariamente há mais pormenores na obra castelhana do Maestro Felipe Peddrell, Organografia musical antigua espariola (Barcelona 1901), que posso mostrar ou emprestar aos que se interessem pela
história da música. Nos tipos humanos desenhados
nas
vinhetas
há
aquela
esbeltez
extraordinária que caracteriza a escultura e pintura gótica. Os trajes são iguais no códice português e nos castelhanos — mas estes são coloridos. À esse respeito é preciso consultar a Indumentaria Esparola de AÁsnar, obra ilustrada que faz parte dos Monumentos arquitectonicos de Espaía (creio que está na Biblioteca) e as Leis Sumptuárias medievais deste país. Além disso, a Historia del Luxo de J. Sámpere y Guarinos (1788). assim como as gravuras e o Glossario do Cantar de Mio Cid, na edição comentada de Menéndez Pidal. Em português Gama Barros, na Historia da Administração Publica em Portugal no capítulo relativo às Leis Sumptuárias,
ete. Na IHistoria Geral dos Trajes do alemão
Weiss
(em 5 Vol.: — Vid. Vol. T1T 401 ; 546 ; 857-70) verifica-se que o traje
peninsular da corte não se afastava dos modelos franceses já então interuacionais. Os trajes populares, esses distinguiam-se — mas deles não há senão exemplos muito escassos em manuscritos ilustrados do século XIIT.
Quanto naos trajes dos Arabes é importante o Dictionnaire des vêtements arabes do belga Dozy. Em regra o vestuário compunha-se de quatro peças sobrepostas: camisa, saio ou pelote;
brial ou almexia,
e manto.
À terceira camada
podia faltar. AÀ cessas peças juntava-se o ealçado : meias e sapatos. Às meias eram compridas. Subiam até à coxa. Eram propriamente calças ou meias-calças. Dessa palavra sairam as diversas denominações neo-latinas da meia moderna. Meia em Portugal. media cm Espanha, onde também dizem calceta e calcetin, para designar as píugas ( peducas ) portuguesas. — Em francês há chausson, caleçon (mas também bas). Em italiano calzone. As bragas curtas pertenciam ao vestuário dos pescadores (de trutas ) scgundo o provérbio. Verdadeiras calças eram vestimenta só dos cavalei-
ros ; serviam apenas aos que montavam. Em geral as meias eram de côr. Os sapatos eram bicudos e revirados ( Schnabelschuhe ) — invenção dum reinante que tinha pés mal feitos, segundo a anedota. — Pelas pragináticas e tabelas de preços, de que algumas subsistem, sabemos que os janotas da Corte usavam sapatos dourados. À mais importante é do Bolo-
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
PORTUGUÊS
DE
nhês. [P. M. H. Leges p. 192 (a. 1253).]
391
ARCAICO
À camisa, de seda ou de
linho, sempre branca, pelo que se vê dela por entre as cordas ou baraças
da saia ou do guardacós — era uma túnica sem abertura. Sobre ela se vestia uma peça franzida mas não ampla, de mangas compridas muito justas, chamada saio (ou saía) ; posteriormente pelote ( just'au corps). Os menos ricos não usavam de mais peças em casa ; só punham às vezes um mantelete, uma capinha chamada redondel. No mestre trovador da nossa Vinheta o que parece ser redondel é apenas a parte superior dum manto. Por cima, os ricos vestiam uma
espécie de sobreveste ampla
de
seda, chamada brial — ( bliaut em francês, de origem desconhecida) — apertada na cinta com cordas de sirgo de modo a formar uma espécie de blusa — com abas, ou sem elas. — Saindo de casa, toda a gente, masculina ou feminina, rica ou pobre, cobria-se de um manto — ou de capa,
de nomes e feitios variados — forrado e guarnecido de peles e panos de diversa
espécie, no inverno, e de
seda
no
verão:
tabardo,
capeirão,
cerame, capa aguadeira, sobrepeliça, etc., ete. Em geral vestes apertadas e curtas eram sinal de pobreza; vestes e sobrevestes de amplidão supérflua, rocagantes, eram sinal de riqueza. Arminho e pena-veira eram reservados nos reinantes ; pena-gris era menos estimada. O pano costumava ser de duas cores. Uma delas era talhada em feitio de casaquinho ou de peitilho e aplicada sobre o pano doutra cor do pelote. Será o guardacós ( just'au corps, gard-corps, por gardacós) de que falam os antigos documentos c os versos dos jograis. Neste caso era sobreposta ao saio para apertar e guardar o corpo. Às duas cores eram para funcionários de maior ou menor graduação, as cores heráldicas do Senhar. Uma espécie de farda (livrée). O .jogral estava nesse número. No tempo do Bolonhês o Regimento da sua casa preserevia que o rei não tivesse além de dois jograis — e que não desse aos adventícios que acorriam de terras estrangeiras, mais do que cem mnaravedis,. *
Vamos agora analisar novamente a primeira das cantigas do nosso fac-símile. — Quanto à forma e quanto ao conteúdo. Para esse fim, e a bem dos que ainda as não ouviram, vamos le-las e explicá-las de novo. Pausadamente, para que todos possam seguir e tomar as suas notas, e também porque o nosso 3.º exerceício eserito (que peço façam nas férias da Páscon em casa) pode consistir na transcrição e explicação da 2.º Cantiga. Queria que fizesseêm uma espécie de edição crítica dela. Sem alterar a linguagem arcaica, deverão os senhores sistematizar a ortografia, pondo à consoante (j) e u consoante (v) onde a pronunceia exige tal gralia:; lh e nh em lugar do antiquado I! nn, para cvitar mal-entendidos; pontuar segundo o sentido; dividir a cantiga em estrofes, e as
392
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
estrofes em versos; juntar uma diluíção em prosa que elucide sobre as
ideias do trovador ; e finalmente condensar em notas explicativas o que saibam dizer a respeito da prosódia e gramática, assim como de etimologias. Quanto mais completas, tanto melhor. *
Já sabemos que o Cancioneiro Geral Gal.-Port. se compõe de 3 partes: À 1.º é o Cancionciro de Amor. À 2.º contém cantigas femininas, chamadas Cantigas de Amigo porque no primeiro verso há sempre um apelo ao amigo e amado. À 3.º contém cantigas de escarneo e maldizer e mais algumas espécies diversas, paródias de cantares de gesta. narrativas históricas: tenções jocosas, injuriosas, etc. Sabem também que o C. A. é o primeiro núcleo primitivo do Cancioneiro de Amor e que portanto as composições do novo fac-símile são Cantigas de amor. Na primeira das duas cantigas do nosso fac-símile o poeta dirige-se à mulher amada, sempre dama da corte e sempre solteira. Se ela chega a casar e é levada da terra do esposo — o trovador exnla suspiros e depois cala-se ou dá outra directiva às suas Canções. Nesse caso os companheiros motejam muita vez do que jurara morrer d'amor e ressuscitava ao cabo de três ou quatro dias. Em ambas, o trovador emprega logo no princípio, na 2.º e terceira linha, a fórmula mia Senhor minha senhora. Por meio dela declara-se homem — ou com expressão franeesa home-lige, isto é vassalo, da que considera e venera como uma suzerana. Ilome-lige (*) é termo usual do sistema feudal, equivalente a vassalo. Um trovador da corte do Bolonhês meteu esse termo num dístico em idioma francês ou provençal que introduziu num seu refrã: Or sachiez veroyamen ( vraiment ) que je soy votr' ome-lige (em rima com quije) A
formula
mia
senhor,
ou
simplesmente
senhor,
ou senhor
fre-
mosa, é obrigatória em poecsias áulicas. Às vcezes o poela acrescentava outras expressões Inudntórias e carinhosas, mas sempre muito comedidas como
a rem do mundo que eu mais amava Ay mia senhory mais fremosa de quantas donas vi ay meu lume e meu bem — lume dos olhos meus
Mas
não
saía
dní. Se um
deles
diz que
a amada
resplandece
: (O 'Líge (ital. fegio; prov. litge), é termo da língua alemã signífica livre et quitte — e designava todos os vassalos como não-servos.
lédig,
que
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
393
«convantr as pedras bom rubi», tal ficura surpreende pela novidade. Segundo as leis da cortezania, nunca diz como ela se chama. Cuidadosamente encobre o seu nome. Ninguém deve advinhar sequer quem é á inspiradora. A regra tem algumas poucas excepções. Um, mais atrevido do que os outros, finge por ex. que louco de amor já não pode resistir mais à tentação de enunciar o nome da amada. Di-lo ; mas assustado pela própria ousadia, emenda logo a mão. Depois de ter cantado : Direi-a já, ca já ensandeci (C. À. 89; cf. 104 — 105), acrescenta : Joana est ou Sancha... ou Maria. Em
nova composição, continua :
Joana dix'eu Sancha e Maria em
meu
cantar,
com
gran
coita
d'amor;
e peró non dixe por qual morria de todas tres, nen qual quero melhor; nen qual me faz por si o sen perder, nen qual me faoz ora por si morrer, de Joana, de Sancha, de Maria. E outra vez confessa :
Ora vej'eu que fiz mui gran folia e que perdi ali todo o meu sen porque dixe ca queria gran ben Joan' ou Sancha, que dix', ou Maria.
E pela quarta vez: Que muitos que mi andam perguntando qual est a dona que quero gran ben? se é Joana? se Sancha? se quen? se Maria? mais eu tan coitad* ando cuidando en úa destas tres que vi pelo meu mal, que sol non lhes torn'i,
nen lhes falo se non de quand'en quando Mas tais expansões são raras. Quanto ao autor das nossas cantigas
direi desde já que ele é de todos o mais humilde, modesto e submisso, e também o mais insípido de todos, de monotonia e frieza convencional enervadora. *
Quanto
à forma,
todas as cantigas
quer artisticamente, quer popularmente.
trovadorescas
são estilizadas
394
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
As artísticas chamam-se eantigas de mestria — Meisterlieder. As popularmente estilizadas são cantigas de refrã ( Kehr-reim-Lieder ). Refrã, e não refrem, como se lê em alguns tratados de poética. Refrã, é o estribilho, o Kehrreim : Ora exclamação essencialmente musical, como ailarilaré, ora um provérbio, ora um dístico substancioso, ora um vilancete de três versos, ora uma quadra.
Em todos os casos, o Kehrreim se repete, quer no fim, quer no princípio de cada estrofe de uma poesia. Às vezes tem metro diverso do corpo da canção. Refrã (de onde vem Refraneiro ) foi deturpado no século XV em rifão, e referido peculiarmente a adágios populares. Mas o vocábulo vem de refrangere quebrar, requebrar, como também o sinónimo francês refrait “ refractus. Significa portanto: quebrado, interrompido — virado, revirado, repetido — e denominava sobretudo a principio a frase musical a que se tornava ou voltava, sempre de novo. Teremos de ler vários exemplos. Hoje vão ouvir apenas para exemplo um do Cancioneiro de Amor. Como as de mestria do nosso fac-símile sejam das mais ensossas — a de refrã ha-de ser em compensação uma das mais saborosas do C. AÀ. (Nº 35 do C. A.). Talvez a lessem já na Lisboa de Julio de Castilho, ou nas Lições de
Leite de Vasconcellos porque ambos a reproduziram com elogios. Nenhum dos dois sube dizer contudo que esse grito de desespero é de um coevo de Sancho I — obra de Paay Soares de Taveirós (na Galiza). Isto é um dos mais antigos trovadores portanto — no qual eu descobri um admirador da bela D. Maria Pais, Ribeirinha, sua parenta, celebrada e amada pelo próprio Sancho [.
35 (Tr. 154). Como morreu quen nunca ben ouve da ren que mais amou, e quen viu quanto reccou d'ela, e foi morto por én: l Ay mia senhor, assim moir' eu!
895
Como morreu quen foi amar quen lhe nunca quis ben-fazer e de quê lhe fez deus veer de que foi morto con pesar: Ay mi asenhor, assim moir' eu!
900
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
395
Com' ome que ensandeceu, senhor, con gran pesar que vio, e non foi ledo nen dormiu depois, mia senhor,
e morreu:
Ay mia senhor, assi moir' eu!
905
Como morreu quen amou tal dona que lhe nunca fez ben, e quen a viu levar a quen a non valia nen a val: Ay mia senhor, assi moir' eu!
910
Quem a levou, claro que foi o rival do trovador, o verdadeiro pretendente. com o qual ela se desposara, e não o venerador platónico. Levar é termo consagrado, empregado no sentido de casar por vários trovadores.
Todas as cantigas de Refrã têm assim estrofes curtas, ligeiras — e [rascologia desempenada e graciosa. Para o nosso sentir são em regra superiores às cantigas de mestria, embora a ideia lírica, variada só formalmente em todas as estrofes, seja
muito simples e não exigisse grande dispêndio de intelecto. Parecem ter mais espontaneidade, mais ternura. — Os antigos não pensavam todavia assim. Estimavam sobretudo que o poeta vencesse dificuldades e usasse de artíficios. Um dos processos mais estimados consistia ele concatenar gramaticalmente mal ou bem todos os versos da cantiga, de modo tal que só no fim fosse possível pôr ponto. — Só no fim terminava a proposição do início ; até lá versos e estrofes eram liga-
das por meio de conjunções, quer relativas, quer casuais, quer explicativas, ou correlativas, quer adversativas ou circunstanciais. Cantigas assim
construidas chamavam-se de ata-fiinda. Eu julgo reconhecer nesse composto dois imperativos que mandam : liga e termina! — liga tudo até chegar ao fim! Nobiling pensa em atá fiinda ( até o fim). A
nossa
Cantiga
não
é das
mais
rigorosamente
eonstruidas;
há
nela pequenas pausas e paragens. Sendo assim, a 2.º e 3.º estrofe principiam com a partícula ca, e a 4.º com a conjunção e. — (Não há somente
o que os Franceses chamam enjambement — de verso a verso — mas mesmo de estrofe em estrofe. Ela consta de 4 estrofes (coblas, como se diz muita vez nos textos), e também no Doutrinal poético em prosa, fragmentado e muito deturpado pelo copista, que precede o Cancioneiro Colloci-Brancuti. Qualquer dia podemos tentar juntos a reconstrução de um trecho. Cada cobla tem sete versos (ou palavras, como era uso dizer). Cada verso tem oito síilabas métricas. E quase sempre essas oito são outras tantas síilabas gramaticais. Não explico por extenso a diferença entre a medição ou contagem prosódica e a gramatical. Bsta dizer que meêtricamente se contam as sílabas. —
depois de feita a elisão, crase ou sina-
396
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
lefa de átonas em hiato; mas só se contam até à última acentuada, en-
quanto gramaticalmente se contam todas, desde a primeira até à última, sem elisão, fusão, nem ditongação ou qualquer outro modo de supressão. tem
Mal! de al molres.não tem]jeura
gramaticalmente
nove
sílabas:
mas ritimicamente só vale sete. De a formam só uma sílaba, e a final ra de cura não se conta. Nos actonários da nossa cantiga (iguais aos que na Provença e na França se utilizavam em poemas narrativos) é sempre a
última silaba que rima, a última portanto que tem o acento principal. Outro acento, secundário, recai na síloba 4.º. Algumas vezes há acentos na 2.º, 4.º, 6º e B. por deusje porme
nãojmatar
por oujtra renmentr'eulviver e poiísieu ajimorrérlouvér',
Nesses casos há quatro pés, regulares, iguais, dos quais cada um consta de breve e longa. — Mesmo quando não há alteração tão regular, quando o ritmo é invertido, às vezes num pé, ou mesmo em dois desses pés, como no primeiro verso da cantiga. Quéroivos éulóralrogár o ritmo é ascendente : iâmbico. A poesia arcaica palaciana está pois em oposição aberta com a mo-
derna popular que sempre tem ritmo descendente, trocaico. Às vezes lá o ritmo é regularmente
na
1.º, 3º,
repartido
5.º e 7.º como
em
quatro
vezes longa
breve:
acentos
em:
Silvalvérdejnãáo melprénde Lógo oimaál seleúralbem
Mesmo tendo acentos irregulares, cles estão dispostos de modo tal que o muais forte incida na 7.º silaba. Esse ritmo, naturalíssimo, não era
desconhecido aos antigos. D. Dinis serviu-se dele em 19 pocsias. Mas exactamente o iâmbico, avesso ao génio prosódico da língua portuguesa, ( grave como expliquei na lição teórica de ontem) — é que
era o metro predilecto dos artistas antigos. Escuso dizer que nem nas pocsias de ritmo descendente nem nas de ritmo ascendente há quantidade ou medição de sílabas: — as longas não são tão longas, as breves não são tão breves como por ex. na poesia
alemã os iambos de Goethe: Das Wasser rauscht.das Wasser selnvolt. Em português apenas há contagem. — Quanto à duração de cada sílaba não há em regra grande diferença
entre
tónicas
teimarmos
em
e
átonos. À medição
mecânica ainda não foi
tentada. Se
acentuar
ritmicamente
nando entre tese e arse (IHebung und Senkung por ex.:
os versos
arcaicos,
alter-
braquia c icto) lendo
PARTE
IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
397
queróvos éuiordárogar por déusigue vúsfez midjsenhor non caltedeslo destamor se poísleu a'morrer ouver por deus'e porjme então
os
acentos
recaem
muita
vez,
nãomatar como
vêem,
em
sílabas
átonas.
em
desinências verbais, em partículas proclíticas e enclíticas — em palavras em que o sentido nos não deixa parar e insistir— defeito que os bons metrificadores de hoje evitam, mas que são frequentes na poesia popular. Na pocsia alemã os acentos estão exelusivamente em elementos que pelo
seu valor espiritual devem ter a proeminência : em raízes. O necento frásico está em alemão em harmonia com o acento vocabular — visto que é à raiz, sempre a raiíz, como representante da ideia que tem o acento. Nós dizemos lôó-ben, ster-ben e não dizemos
vivéêr, morrêr ; lebte,
gelebt e não vivia, vivido, morrido. Se possuíssemos a notação das cantigas galego-portuguesas podíamos averiguar se no canto não se colocaria acento
popularmente
em
átonas,
como
no
romance
são chegados os tres reis. Mas visto não possuirmos música profana alguma, e como também nos faltam ainda transcrições para notação moderna das músicas de Afonso o Sábio, não temos para base de cáleulos conjecturais senão os próprios textos. — Eu pelo menos só conheço uma única tentativa de um músico
castelhano : Hilarion Eslava (D. Hilarion Eslava, Cantiga 14.º del Rey D. Afonso cle Sabio, parafrascada con coros y orquestra. [É um Milagre que principia Par deus, muit' é gran razon )). A antiga contagem das sílabas não se distingue da moderna senão em alguns pormenores. Todos eles são relativos ao hiato : isto é ao encontro de vogais, quer dentro do mesmo vocábulo. quer de vocábulo a vocábulo. Regra geral era então, como o é hoje: que vogal antes de vogal se absorve (no estilo épico castelhano é vogal após vogal) — a não ser que uma delas seja ditongo. ou vogal fortemente acentuada, ou que haja pausa entre as duas. Na nossa cantiga temos eu ora L 1; agora é 12; e eu 14; se eu ouvesse 15 — et eu 1T 17 — m'ei ên 117 ; lheu un 1E13; lheu esto 28.
Regra especial é: que não há elisão, quando aàs duas vogais conscecutivas são idênticas, nem quando elas são das que costumam formar ditongo erescente. No 1.º caso há fusão: em lugar de elisão. crase. De 2 vogais idênticas. nasce uma prolongada, como em averá [a] morrer 1T 14. — No 2.º cnso há sinalefa : ditongação, por ex.: na fórmula mi-aven, mi-avier 1I 4 — também em ome-atal (que eu pronuncio omia tal ). Em regra é uma
398
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA ....
das semi-vogais 1 u, que precede a ou o e dá o ditongo iá iú. Apesar disso, o hiato era permitido ; e é frequente nas composições arcaicas. Por causa da grande prevalência de vogais na língua portuguesa,
e das numerosas partículas que constam apenas de uma vogal (conjunções como
e ou, os artigos o a, os antigas advérbios
1, u (ibi, ubi), o
verbo é, os pronomes o a eu ) ela ocupa prosôdicamente um lugar à parte, e admite liberdades que em Espanha e na Itália passam por licenças inadmissíveis. Se mesmo poetas clássicos como o Dr. António Ferreira não evitavam
endecassílabos como: moveste-ine a alma e os olhos
não admira que no tempo de Sancho I se pudesse metrificar — se o eu a vos não disser — seu mandado oi e a non vi — non mi praz de o oir.
Nas duas cantigas do nosso fac-símile os exemplos de elisão são mais frequentes do que os do hiato. Na Cantiga 1T temos quant'eu 1; end'ei 3; semp'reu 5; mei 7; m'end'a 8; pod'ela 9; d'aquen 11; ond'eu 12; lleu 13; d'aver, 17; tolher-llei 20 ; estrome 21 e 22; llW'eu 22; nela 23; pod'entender 25:
logweu 26; d'ela 27. Temos hiato nos exemplos que citei, justificados porque uma das vogais é acentuada, ou ditongo, ou mesmo ambas são ditongos: eu orá I 1
agora é 12; e eu 14; se en ouvesse
15;
mei eu IL T; ei en 17; eua
mim 18 ; lheu un 13; lheu esto 27. Além disso em nunca o cuídei E 1, e o que IT 3, dela e 1T 27. Temos elisão no verso 4 da 1.º Cantiga mavedes, no 9.º mentreu no 23 sempreu; 25 deste. Temos supressão de e surdo final em palavrinhas de pouco corpo como de me lhe este ende onde, mas também em pode ome sempre mentre. Também há elisão de o átono que, se não se pronunciava completamente como hoje, de certo se aproximava bastante da pronúncia reduzida u;
[ 20 avelei;
25
vol en cobri;
1l quanteu;
25 logueu;
28 fei-
touver. À supressão de a é muito menos vulgar. Só a temos no verso 10 em jaç (a) en prazer. Nos casos citados o trovador, unindo num só complexo as duas ou três palavras que haviam de ser enunciadas, (cantadas. com um só acento frásico), ou seu representante profissional, não escrevia a vogal absorvida, omitia-a. Só por descuído creio a deixou subsistir em faço eu (5) posso end (14) visto que o ditongo ue, em que pudéssemos fundir o e, não é português. Seguramente em ca ta morte ei eu dauer (1I 17). Em edição crítica temos de incluir tal vogal supérílua, que não conta, entre parênteses redondos — mort(e). Já disse outro dia que os acrescentos necessários como
por ex.:
todo o verso da Cantiga, devem
ir entre
parênteses esquinados [ ]. E contei que sempre que o copista se enganara, ele riscava a vogal supérflua ou punha um ponto por baixo, para dcpox— se servir da raspadelra. Os antigos não evitavam o hiato dentro do mesmo vocábulo. se as
PARTE
IV
— LIÇÕES
duas vogais concorrentes
procediam
PORTUGUÊS
DE
PRÁTICAS
de
outras
399
ARCAICO
tantas
síilabas.
mesmo
quando eram idênticas, ou pela sua natureza podiam formar ditongo. Seer de sedere ; leer de legere ; veer de videre ; soo de solo ; cae de cadit ; soedade de soledade; mão de manu; são de sano. Só os mais modernos como D. Dinis já faziam contracção métrica em seeredes veerei veeran;
e às vezes mesmo gráfica, por ex.: em vedes. Vejamos agora as rimas. — Em textos arcaicos elas são sempre de grande importância, pois nos elucidam não só a respeito da construção das estrofes mas também a respeito da pronúncia. Temos na copla 1.º ar er or êr ér ar; na 2º ei êr êr ei ar ar êr: na 3.º erar ar érei evtar; ena 1. ieteiiéêr êr et. Nove vezes ér ; 8 vezes ar; 7 vezes ei; 2 vezes ôr, e 2 vezes 1. Só cineo rimas diferentes em 28
versos ; diferentes, mas ainda assim muito parecidas. Só seis vogais variadas. Cinco simples e um ditongo ; um terço da escala inteira que o por-
tuguês possui. Essa é assaz grande, de resto, por causa dos -numerosos ditongos da língua (ai, ei, oi, ui, au, eu, ou) e da diversidade do timbre fechado e aberto de 6 é ô é — (ão era de duas silabas no período arcaico). Uma monotonia enorme — talvez propositada — como deve ser propositada
a escolha
de rimas sômente
oxítonas,
masculinas,
agudas.
Na terminologia dos trovadores as rimas agudas eram longas em oposição portanto à moderna : d é é; aí ei ou ut eu; am om em im; ar êr ér ir ôr; al el ; az es repetem-se constantemente. Raras vezes essas ri-
mas são interrompidas por graves em ta ura ado ada ades edes, ava, elha, aia ira — asse, esse. Apesar da vulgaridade dessas desinências, elas são
oases no deserto. Dos 6.131 versos de que consta o Cancioneiro da Ajuda, 5.509 são agudos. Só 622 são graves: proporção que deverá causar o espanto dos puristas, e que provavelmente se explica pelo influxo dos modelos franceses. Só numas 40 cantigas, os versos agudos alternam com graves. Exclusivamente graves há-os apenas em 5 composições, de feitio popular. (C. À. 62 — 142 — 210 — 278 — 281 ; de refri, bem se vê ). Por isso mesmo
a proporcionalidade
modifíca-se nas outras duas
partes do Cancioneiro Geral. No Cancioneiro de amigo e no de escarnho e maldizer,
as consonâncias
femininas
são muito
mais
numerosas,
sem
exelusão todavia das masculinas. Ilá quase igualdade de direitos — tal qunl acontece no Cancioneiro
popular moderno
que é mnanifestação tanto
mais fiel quanto mais inconsciente da alma nacional. À esse respeito o estilo popular nião se alterou desde os dias de Sancho I e D. Dinis. No cstilo popular nunca houve o desprezo das rimas agudas que os poetas de arte e os eríticos de arte manifestaram, de 1525 em diante,
em Portugal e em Espanha : desde a reforma italianizante de Garcilaso de la Vega e de Sá de Miranda. À ideia que clas são inadmissíveis em Sonetos, Tercetos, Oitavas, Canções e todas as mais combinações do endecassílabo. é todavia posterior a Sá de Miranda, que tem (como o pró-
400
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
prio Camões ) Sonetos inteiros em agudos. Antes dele, no Cancioneiro do século XV (1450 —
1516), recolhido por Garcia de Resende, em que só
há metros privativamente peninsulares (a Redondilha e o verso de arte maior ) houve não absoluta igualdade de direitos — igualdade que o Vocabulário nacional não reclama — mas bon proporção : de um para três. Boa, segundo o meu gosto. Mas cle talvez se ressinta da minha origem germânica. Na lirica alemã — sem contestação a mais rica e formosa de todas quantas existem, — tal alternação bem equilibrada de graves e agudos é regra de arte, e produz belíssimos efeitos. Quanto à poecsia popular portuguesa estabeleci de propósito (na semana passada) a proporcionalidade das rimas agudas c graves. Na colecção de Mil Trovas
Campos)
contei 444
(feita por Alberto de Oliveira e Agostinho de
quadras com
rima masculina. —
Quase metade
portanto.
Nas 50 de que eu fiz um Ramilhete para a minha Antologia («As cem melhores Poesias da Literatura Portuguesa» ) são 24 as que terminam em ar, or, er, ir, ês, 1, el, eu, em, ão ( que de bissilábico passou a monossilábico no século XVI, desde que chegou a substituir as terminações monossilábicas om, am ). Sobretudo substantivos em ão e infinitivos em
ar — vulgarismos, bem o sei, que os Parnassianos rejeitariam. Essas rimas oxitónicas não aparecem de modo algum só nas quadras satíricoas e picarescas como
.
Cuidavas que em me deixares eu por ti deitava doó! Muito fraco é o navio que tem uma amarra só Empregam-se também nas coplas tristes, sérias e sentimentais como
O cantar é para os tristes; quem o pode duvidar? Quantas vezes já cantei com vontade de chorar! Creio todavia que, num exame mais minucioso, se apuraria que o som agudo predomina nas quadras maliciosas. *
Voltando ao Cancioneiro da e concatenação das rimas. Ela não se vê no esquema inscrito na lousa. portanto rimas singulares ; mas as
Ajuda, temos de considerar a ligação é igual em todas as estrofes, conforme Muda pelo contrário em todas. Temos repetições são tantas, que para o efeito
acústico e estético são quase equi-consoantes, isto é de rimas iguais em
todas a) ar b) —0or c) er d) ei e) i. Sendo abbacca na 1.º estrofe. temos abbaccb na 2.º. 3.º e 4.º.
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
401
ARCAICO
Para ser regular deveria o 7.º verso (último da 1.º estrofe) terminar em ôr. Se em vez de examinarmos cada estrofe por si considerássemos o
poema todo como uma sequência de versos, terlamos a ordem seguinte: abbaccaldecdaacieaachbheddecad;
azar;
bor;
eer;
deei;
et.
Ordem ou antes desordem, sem graça, elegância e clareza. Resumindo
repito que na poesia artística dos trovadores a cantiga
de mestria contrastava e se distinguia propositadamente do estilo popular. O povo gostava e gosta do ritmo trocaico — descendente — de marcha ou de dança saltada. Por isso o poeta da corte preferia o ritmo jâmbico, ascendente. O
povo gostava de rimas graves (inteiras) sem desprezar as agudas. Os úulicos preferiam as agudas. O povo gostava de estribilhos, entoados ao ar livre pelo coro. Os áulicos evitavam-no por isso, nos géneros mais cultos, pelo menos. Na cantiga popular, cada verso era uma proposição: e muita vez uma sentença. Na canção aristoerática, todos são ligados e concatenados enidadosamente. Quanto aos temas e ao espírito a poesia popular é alegre; a palaciana,
lacrimosa.
Os poetas
áulicos nunca
falam
de favores
recebidos,
queixam-se sempre do rigor da amada. Mas essas queixas não são ásperas, são brandas e submissas. À nota característica da cantiga áulica de amor é a mesura. À moderação como ideal daqueles rudes tempos, bárbaros em muitos sentidos, levou os poetas a artificialmente evitarem todas as notas fortes. Sem serem Ífrias são enervantes, por isso, de convencionalismo e
de monotonia. Falhos de plasticidade, simbolismo, imagens
e mesmo de
sensualismo, deixam todavia transparecer o sentimentalismo fundamental da saudosa alma portuguesa que tanta vez «morria de amor» já no i 1.º período da arte. *
O autor das nossas cantigas fere esta nota. — Ele chamava-se João Soaires Somesso. João é prenome vulgar. Soaires é patronímico. Designa o filho de algum Suairo
forma arcaica de Sueiro, Soeiro —
único no
Cancioneiro, apesar de lá haver diversos do nome Soares, e alguns bem antigos. Somesso, é palavra lexicográfica. Deve ser aleunha. Somesso é submissus. Particípio que os clássicos latinos (Cícero, Ovídio, Petrónio, Quintiliano, Júlio César) empregaram muita vez no sentido manso, brando, abafado. E realmente ninguém como J. &. para cantar em estilo (absolutamente desprovido de ornatos), com voz baixa — vra — modesta e humildemente, com verdadeira submissão da amada. No meu Cancioneiro da Ajuda tornei provável que J.
figurado de
muito chão, numa palaàs vontades
S. pertença
4102
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
à linhagem dos de Valadares e seja o próprio trovador de quem o Nobiliário, chamado Livro Velho (P. M. H. Scriptores p. 166), diz que foi bom trovador — filho de D. Soeiro Aires. Provei também, baseando-me em alusões suas a personagens históricas, numa sua poesia jocosaumente
satírica, que cle floresceu de 1210 a 1230 — pertencendo portanto ao grupo pre-alfonsino (C. A. N.º 375). Os seus desejos restringeni-se ao minimo. Quer morar onde vive a sua senhora. Quer dirigir-lhe a palavra de longe em longe. Quer que nessas conversas distanciadas, ela não lhe mostre desagrado. E que mesmo se o ressente, o engane com aparências brandas. Às queixas culminam no seguinte : Bem quer encobrir a sua paixão. NMas cla é tamanha que o arrasta. Não pode tirar os olhos da Amada. Assim descobre o seu amor. Por causa deste crime, ela quer afastá-lo, hani-lo da terra onde reside. Com este receio ele perde o sem. Tem ciumes de outro ome-lige da mesma dama. Ameaça-o de morte. Se o desterrar, ela matá-lo-á também,
portanto dá-lhe o direito
de vingar-se de ante-mão. Vai tirar-lhe aquele seu home. Depois, ela que veja, que novo protector arranja. Mas tudo são ameaças vãs, como
se vê nas outras cantigas de João
Soares. Um leitor e amador do velho códice. impacientado com tanta lamúria, acrescentou na margem a Nota: «Ora pois fazêlho!» e mais algummas outras, satíricas.
LIÇÃO VI TRANSCRIÇÃO
DO FAC-SÍMILE VI, POESIAS DO CANCIONEIRO DA VATICANA PAAY
GOMES
CHARINHO
C V 400
[Oi eu sempre, mha senhor, dizer
que peyor é de sofrer o gran ben ] que o gran mal, e maravilho-m'en e non-o, púdi nen posso creer, ca sofre'eu mal por vos, qual mal senhor[ me quer matar, e guarria melhor]
se mi vos ben quises[ se Jdes fazer. E se eu ben de vos podess' aver,
ficass' o mal que per vos ey a quen aquesto diz. E o que assi ten o mal en pouco, faça-o viver deus con mal sempr'e e con coita d'amor! e podesse veer qual é peyor d'o mui gra ben ou d'o gram mal sofrer'! C V a4ol
ÀAs frores do meu amigo briosas van no navio
E van-s'as frores daqui ben con meus amores! Tdas son as frores daqui ben con meus amores!
As frores do meu amado briosas van [e]no barco ete.
Briosas van no navio
pera chegar ao ferido ete.
404
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Briosas van eno barco
para chegar ao fossado etc.
Pera chegar ao ferido servir mi, corpo velido! etc.
Pera chegar ao fossado servir mi, corpo loado! etc. C V 402
Por deus, senhor, de grado quer[ r]ia, se deus quisesse, de vos ua ren: que non desejas [s]' eu o vosso ben com' o desej' a noit' e o dia por muit' afan que eu sofr' e sofri por vos, senhor;
et oimais des aqui
poss' entender que faç'i folia. E pois non quer a ventura mia
que vos doades do mal que min ven por vos, senhor, e maravilho m'en como non moir' e morrer devia;
poren rog' a deus que me valha i que sab' a coita que por vos sofri. Se non, mia morte mais me valrria. C V 403 FERNAM
VELHO
Vedes, amigo [o] que 0j' oí dizer de vos, assi deus mi perdon,
que amades ja outrao, e mi non! mais se verdad' é, vingar m'ei assim:
Punharei ja de vus non querer ben e pesar-mh'á én mais que outra ren. Oií dizer, por ine fazer pesar amades vos outra, meu traedor, e se verdad' é, par nostro senhor,
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
405
direi-vus como me cuvd' a vingar: Punharei ja de vus non querer ben c pesar-mh*-á én mais que outra ren.
E se eu esto por verdade sei que mi dizen, meu amigo, par deus chorarei muito destes olhos meus, e direi-vus como me vingarei :
Punharei ja de vus non querer ben e pesar-mh'á én mais que outra ren. A folha que contém essas quatro poesias faz parte do Cancioneiro da Vaticana. Cancioneiro da Vaticana é título abreviado de Códice galego-português que se conserva na Biblioteca dos Papas. Ao alto do fac-símile, no canto esquerdo, lemos — Tav. 1 — Dal Cod. Vat. 1803. É o número de ordem que o Códice tem na riquíssima Livraria do Vaticano, franqueada aos estudiosos desde o último quartel do século passado. É um volume de papel de linho, formato in-fólio (30 X 20), de 210 folhas numeradas e várias não-numeradas (em branco). O texto eserito, ora em uma só coluna, ora em duas, acusa duas
mãos: ambas do fim do século XV ou princiípio do imediato. Uma, que é evidentemente letra de um amanuense
italiano, escreveu os textos. —
Outra é dum benemérito erudito italiano que mandou realizar a cópia, escrevetui nomes de autores — como Pay Gomes Charinho e Fernam Velho —, diversas notas, algumas chamadas, a numeração das cantigas, e a das páginas. Sempre houvera em Portugal notícia vaga do talento de D. Dinis e de seus filhos. conforme já cantei. Conheciam-se nomes de alguns poctas áulicos pelos Livros de Linhagens, pelo título de trovadores aposto a certos nomes. Houve até um escritor português que se referiu directamente a um Cancionciro de trovas antigas, sobretudo de D. Dinis, acha-
do em Roma no tempo de D. João III. É Duarte Nunes de Leão, o jurista e Cronista do tempo dos Filipes. Essa indicação foi tirada à luz em princípios do século passado por um douto alemão que, estando em Portugal de 1818 a 25, se havia ocupado da literatura mediévica portuguesa, a respeito da qual escreveu um tratado. — Chamava-se Christ. Fried. Bellermann. — Outro, esse de Viena d'Áustria (príncipe dos Hispanistas de 1840 a 1880, Ferd. Wolf, ao qual Portugal deve muito ) chamou num compte-rendu da obra de Bellermann, a atenção do mundo europeu para
o assunto, pedindo com insistência que se fizessem pesquisas na Biblioteca do Vaticano. — Isso foi em 1843. O apelo foi ouvido. — O embaixador português ( Visconde de Carreira ) obrigou os custodes da Livraria papal
a fazerem
investigações. Essas conduziram
à descoberta
do cod.
406
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
4803. Outro Português (Caet. Lopes de Moura) extraíu dele o Cancioneiro de D. Dinis. Varnhagen e E. Monaci publicaram outras amostras, sobretudo do género popular — baladas femininas — para aguçarem o apetite dos entusiastas. Mas só em 1872 Ernesto Monaci — o primeiro filólogo neo-latino da Universidade de Roma —, nos deu a impressão integral : isto é, reprodução literal do texto, em edição diplomática. — T. Braga tentou torná-la legível em edição crítica. — Empresa meritória, mas precipitada e por isso imperíeita. O manuscrito de Roma é, como disse, traslado feito perto de 1500,
hoje muito deteriorado. O original, de que foi copiado, era, a meu vêr, um exemplar do Livro das Cantigas do Conde de Barcelos. Também estava aparentemente em estado muito mau, a ponto tal que o dono (o grande Humanista Angelo Collocci, de Jesi, que juntamente com seu amigo, o Cardeal Bembo, coleccionava e estudava Cancioneiros neo-latinos, sobretudo Cancioneiros provençais) julgou necessário substituí-lo pela cópia que mandou fazer. Ignora-se onde o original ficou. Manu-propria juntou os nomes
dos autores e as mais notas marginais a que
me referi. E como no Vaticano haja outras obras autógrafas dele — sobretudo um Índice dos autores do nosso Cancioneiro (n.º 3218) — não foi difíeil identificar, reconhecer a sua letra. — AÀ bela livraria que Colocci juntara, foi vandolizada por ocasião do Saque de Roma, isto é, da ocupação da Cidade Eterna pelas tropas do Condestável de Bourbon
ao soldo de Carlos V (1527). O que ficou dessa livraria (500 volumes manuscritos e impressos) foi comprado aos herdeiros (em 1549) por Fulvio Orsini. E depois da morte desse, em 1600, passou para o Vaticano.
Na folha fac-similada temos a letra de Angelo Colaocei apenas nos dois nomes Paay Gomes Charinho e Fernam Vegl — (Velho). Primeiro começara por escrever Veglio, em ortografia italiana, mas reconhecendo
o lapso, riscou as quatro letras e escreveu Yelho. Também é dele a numeração da página 64. Para dar ideia do estado de fragmentação a que o volume original chegara, basta dizer que a nossa folha tivera a numeração f. 156 e é agora a 64! As 4 cantigas incompletas que a f. 64 contém, são na reprodução de Monaci n.º 400, 401, 1402, 403, mas tinham sido no original n.º 816-819, conforme se vê pelo Ín-
dice de Colocei. Desapareceram portanto mais de quatrocentas, no primeiro terço do volume! Do n.º 200 faltam os primeiros dois versos
Oy eu sempre mha senhor dizer que peyor é de sofrer o gram ben.
Mas sómente por estarem na folha anterior. O que falta realmente por lapso é o verso seis, e no fim de duas
PARTE
1V — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
407
estrofes com três, versos de remate : ou porque faltassem no original, ou por lapso do copista, não reconhecido e emendado por Angelo Colocei. A primeira eventualidade talvez seja a verdadeira. Felizmente a Cantiga, que é obra de trovador afonsino (isto é, do tempo de Afonso X de Castela, e de Sancho 1J de Portugal e seu irmão o Bolonhês, Afonso IHHI) está no Cancioneiro da Ajuda. Podemos portanto completá-la. Escrevi na lousa o que nos falta, para que o juntem no avesso do seu fac-simile — tanto o princípio e o verso omitido, como
as duas cestrofes com
final da poesia (*).
o remate
' *
A ortografia do C. V. diverge em algumas cousas do Cancioneiro da Ajuda. É menos arcaica. Há nele, p. ex.. muito h supérfluo, como em he por é; lii por i; hu por u; hum húa por um úa. Há m em vez de n, em fim de vocábulo como símbolo da nasalação. Há sobretudo a grafia nh,
lh, em vez de nn, Ul, antiga designação dos dois sons molhados. Desta direi logo mais alguma coisa. Há também no C. V. muitos yy a par de ii, ambos com a mesma dupla função de vogal e de consoante palatal (substituída por g antes de e i). Na nossa folha, y vale i no adv. y (ibi.) em folya, deuya, sofry, assy, o);
i vale
j em
deseiasse, desei, ( — desej'), ia.
Teria sido tão fácil de dar a y a função exelusiva de semi-consoante em ditongos, que realmente exerce em peyor, ey, noyte, muyt, mays, oymays, coyta, punhare e reservar para i a de vogal tónica. Então oy significava hodie; e 0i — audivi, ao passo que na 2.º coluna, no verso 1.º da última cantiga, há no nosso fac-símile oi oy com a significação oy oí (hodie audivi ). Absoluta confusão, conforme se vê. Em edição crítica seria bom adoptarmos o sistema que indiquei. *
Passando aos textos, devo repetir que à Cantiga 400 (p. 150) do Cancioneiro da YVaticana corresponde o n.º 248 (p. 485) do Cancioneiro da Ajuda. No original membranáceo até repetiram o texto depois da 251.º. É mais um dos lapsos do antigo copista a que já me relferi. Ao principiar Oí eu sempre mia senhor, dizer, claro que o poeta tinha em mente algum provérbio popular. Mas qual seria ele? Confesso que não eonheço nenhum em qque se dê expressão à sentença filosófica que não há cousa mais difícil de aturar, mais perigosa para a fraqueza humana do que uma série de dias felizes, ou por outra que o benm-estar
prolongado nos corrompec. No Adagiário alemão posso apontar o que diz: Alles in der Welt lásst sich ertragen, nur-nicht eine Reihe von guten Tagen. Nas poesiías dos trovadores há bastantes provérbios e anexins. (*)
Reproduzidas
adiante,
párg. 406.
P
408
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Todos eles são importantes, visto que são certidões de idade desse género em que está condensada a sabedoria do povo. Em geral encontram-se em Cantigas de escarnho. Coleccionei os seguintes (segundo podem verificar na Revista Lusitana, vol. 1, p. 72 e no opúsculo Tausend Sprichwôrter, p. 9-10): A boi velho non lhi busques abrigo, (1162). Aqueles son ricos que tem amigos, (1174). Cada casa favas lavam, (376). Castanhas exidas, e velhas ao souto, (375). Como
te cantarem, assim has de bailar, (997).
De longas vias, longas mentiras, (979). Dos escarmentados se fazem os arteiros, (1055). Guardado é quem Deus guarda, (566). Longe dos olhos, longe do coração, (909).
Milho nom semeia quem passarinhos receia, (284). O mal e o bem, à face vem, (2219). O que perdeu nos alhos, quer cobrar nas cebolas, (1155). Qual cha fezer o compadre, outro tal Ihi faz, (996). Qual ricomem, tal vassalo; qual concelho, tal campana, (1082). Quem ama Deus, ama a verdade, (1022). Quem bem serve, bem pede, (223). Quem leva o baio, não deixa a sela, (368). Quem
leve vai, leve volta, (713).
Quem muito jura, muito mente, (778). Quem muito quer, a pouco devém, (705). Quem pregunta, não erra, (1120).
É muito curioso observar a maneira como os trovadores empregam esses ditos do sengo antigo, ou em frase mais moderna, da sabedoria an-
tiga. Sengo-representa o moralista estóico romano, ou, com maior probabilidade, o adj. senicus de senex, ancião. O nosso diz : Oí eu sempre dizer.
outro principia Ouç' eu sempre dizer un verv' aguisado, tro Sempr' oí dizer (225). — Verbo designava então, hoje, sobretudo a sabedoria bíblica, sentenças quer do de Salomão. Por isso mesmo classificavam já então os
(21 ). Ainda oue ainda designa Evangelho, quer dizeres do povo
de antigos e de verdadeiros. Temos diz o verbo nas Cantigas 284, .; 219, 33 219, 74 145 21 m3 verbo antigo ocorre em outras três (C. V. 997,
713
e 1162) : verbo antigo e verdadeiro em C. Y. 979. Os latinos também precediam citações de provérbios, da fórmula Saepe fertur (diz-se muita vez). Todos os provérbios portugueses que citei são rítmicos. E a todos encontrei paralelos modernos. Só me faltam para o da nossa cantiga. Talvez a forma vulgar fosse: peor é de sofrer o gran ben que o gran mal.
PARTE
IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
409
Mas a essa, falta tanto o rítmo como a rima popular. Oxalá algum dos senhores me possa comunicar redacções modernas colhidas na boca do vulao! *
Quanto aos vocábulos, serei breve. Oy audivi. Repito que é preferível a grafia oi, isto é6, o emprego
de é sempre que sceja vogal, e faça sílaba, sendo y apenas elemento átono de um ditongo. Oi (de oir ouir— audire), audit por audivi — Mha em lugar de mia (como se lê no C. A.) é grafia provençalesca —. Nos grupos mh, bh, vh (por exemplo : em cambho, sabham, Segovha, Nevha) h vale [ átono ou i semi-consoante, exactamente como nos símbolos lh, nh. Lh foi o ponto de partida, modelo. Não sei se já lhes disse como nasceu esse símbolo, que falta nas outras línguas neo-latinas, com excepção do provençal ? Símbolo que também ainda se não usava quando sc escreveu o Cancioneiro da Ajuda.
O novo som molhado (palatizado), que resultou de Ili, era simbolizado pelos neo-latinos ora por [ (ainda hoje o é em castelhano), ora por ill, lli, 311, Ily, grafias usadas sobretudo em Catalunha. Os Provençais começaram a escrever Ili, ligando o é a [ por um pequeno traço horizontal, a fim de o diferençar de If. Indicavam assim que as duas letras designavam um só som. Esse grupo [i era gráficamente muito semelhante a um ht. Foi por isso que os copistas o substituiram por h1. Portanto, na ortografia dos
apógrafos italianos, que são traslados de um manuscrito de 1350, pouco mais ou nmenos, conforme expliquei, isto é, no Cancioneiro Geral comple-
tados nos dias do Conde de Barcelos e de Alfonso XT de Castela, (depois de 1349) — sabian ou sabiam lê-se sabíam ( sapiebant) e sabhan é equivalente de sapiant, hoje saibam. Quanto ao possessivo mha mho eu já expliquei que era proclítico, tinha acento na última vogal e que os Castelhanos também pronunciavam miá, mió, sempre monossilábicos. Segundo as leis da ditongação antiga, o acento recaía na vogal mais forte e sonora, e não na semi-vogal i, Existia todavia a forma absoluta mía bissilábica, colocada depois do substantivo.
A prineípio mhá senhor mas senhor miía. É a rima (com folia, etce.) que autentica essa pronúncia. De mia saíu mi-a, por influxo de mim. Em Portugal a inicial m provoca muita vez nasalação da final em palavras monos-
silábicas. Temos mãe em vez de mae; muim em vez de muy, mas também muinto
em
vez de muito;
nuve
por nuve
» nube, ctc.
De mia se fez minha, por ser mais fácil de pronunciar. Por analogia dizem minho na Galiza. E todos os poetas castelhanos que no século XVII, de 1580 a 1640, se serviram do português, sobretudo em poesias líricas cantadas, intercaladas em dramas, utilizavam essa forma analógica.
Peyor. — No Cancioneiro da Ajuda os comparativos peôr, melhôr, moor, de maor, com assimilicão da voral pretónica à tónica, rimam senrt-
410
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
pre com a terminação ór de senhôr, ete., e nunca com ór. Segue-se que o o era fechado, o que condiz com o õ latino e o castelhano das palavras
correspondentes. Todavia os dois 0o de moor contraíram-se em mór: c este influíu com
o seu o aberto
nos outros comparativos
portugueses,
no
século XVI, (menor, peor, melhor ) certamente por ser o mais vusado de todos eles. Sofrer — parece ser sofrir à enstelhana, mas deve dizer-se sofrer à portuguesa, como se vê na estrofe 2.º, onde rima com viver. Os galegos, como ocidentais influenciados por Castela, usam de ambas as formas.
Ca — Quam. — Gram é outra divergência ortográfica que denota a menor antiguidade do traslado italiano. Depois de senhor falta o verso me quer matar — e guarria melhor. Guarria é futuro contraído de um verbo cuja raíz acaba em r. (Cfr. querria,
morria e terria, ferria, verria e valrria. Já sabem
que provém
do germânico tarjan guarir guérir). Hoje usa-se guarecer — cÍfr. guarnir, guarnecer. Guarirá, ferirá são formas annlógicas recompostas. — Maravilhar-se, de maravilha mirabilia neut. pl. do adj. mirabile, de mirare, que subsiste no estado simples e em admirar. Púdi cra muito usado ao lado de pude [1 sg. pretérito perfeito potui (no Cancioneiro da Ajuda temos pude). Já disse ontem que no Cancioneiro a forma reduzida já se usou a par de mais antiga em i. Cfr. dixi quiji e ouvi ; 3.º pôdo e pôde. Posso — possum (pot-sum) ; o pot é a raiz que subsiste em pot-(es) pot-(est). Por analogia com posso há possa. Quises[ se Jdes. — Facer c fazer. Há vacilação entre a grafia ç z em geral z está no fim da palavra; no princípio e meio ç; esse é surdo. z é sonoro. O uso moderno ainda não estava bem fixado. À pronúncia de c era (s e a pronúncia de z era «ds. As duas estrofes que o Cancioneiro da Ajuda possui a mais dizem : E o que esto diz, non sal” amar
neija cousa tan de coraçon com' eu, senhor amo vos. De mais non ereo que sabe que x'é desejar tal ben qual eu desegei des que vi o vosso bon parecer, que des i
me faz por vos muitas coitas levar. E de qual é senhor, ouço contar que o ben est ; e faz gran traicion o que ben á, se o seu coraçon en al pon nunca se non en guardar sempr' aquel ben. Mais eu, que mal soffri sempre por vos — e non ben — des aqui terriades por ben de vos nembrar.
PRÁTICAS
IV — LIÇÕES
PARTE
DE
411
ARCAICO
PORTUGUÊES
Se o fezerdes, faredes ben à ; se non, sen ben viverei sempr' assi, ca non ei eu outro ben de buscar!
( Cancioneiro da Ajuda, 248 ; a fl. 67, e repetido a fl. 69 do Códice membranãcco).
No verso primeiro da quarta e última estrofe há no ms. qualeu. Às duas palavras ligadas podiam ser qua ( por quan, com omissão de til sobre a) e leu de leve; ou qual eu. Assim imprimi na minha edição, traduzindo todavia como se preferisse quan leu. Hoje avento outra interpretação : eu pode ser lapso de escrita por simples e, e então deveríamos ler qual é. Lexicoloógicamente, há algumas formações na Cantiga 400, que será útil analisarmos, râpidamente embora : Sofrer, em castelhano sufrir, forma de que os Galegos se serviam e servem muita vez; souffrir em francês; sofferire em ital., do lat. sufferrere e suferire, que na boca do vulgo substituíám a forma clássica sufferre (sub-ferre), por analogia com os verbos em ere, ire. É sempre a maioria que vence. Já temos falado de casos paralelos : oferre que, passando por offerrere offerrire, deu offrir em francês, mas foi substituído em port. pelo incoativo ofrecer : — essere em vez de esse (fr. être, ital. essere) ; — sequire morrer).
por sequi
(seguir); — morire
por morir
(mourir
Quanto a gran ben por grande bem, com abreviação do adjectivo, tão intimamente ligzado ao substantivo que os dois juntos formam um termo só, com apenas um acento, de sorte que gran é proclítico — notcmos mais uma vcz algumas formações paralelas: granduque, granbesta, grancruz,
frei
João;
sanjoão,
cetce.;
bonvedro,
bonduque,
donjoão ; donquixote, etc.; a belprazer; mui grande; santo, Montalegre; Fonseca; YValverde; Portalegre; Mem, Ruy Fernão Martins, etc., etc.
Ca, da linguagem
arcaica, representa
bon-nome;
Monforte: MonPai Rodrigues;
três modelos
diversos. Em
primeiro lugar era conjunção comparativa, equivalente de do que moderno (por exemplo val mais ca tu) : o quam latino. Em segundo lugar era conjunção equivalente de porque, poiís que: o quia latino. Em ter-
ceiro lugar cra forma abreviada de acá, advérbio portanto. Só esta, tónica sempre,
persiste
ainda
hoje.
Aeá
e eceu
hac.
Cfr.
acó Xeceu
hoc;
aqui «eceu hic (fr. ici). Já temos encontrado outras formas compostas, enjo primeiro elemento é o advérbio demonstrativo eccu (vg. aquello, aquesto, aquele, aquende). O segundo ca substituíu nos tempos arcaicos
infindas vezes a conjunção que (quid). Ficar, reforçado em finear é figicare, derivado de figere, fixar. Nas
duas estrofes que
a Cantigza
tem
a mais
no
Cancioneiro
da
412
LIÇÕES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Ajuda notemos a pronúncia vulgar do pronome se, si, com s palatizado ao contacto da vogal palatal, assim como o seu emprego como dativo ético, meramente expletivo, demais non creo que sabe que x'é desejar. Comparemos a pronúncia vulgar de vocábulos como sangurxuga (por sanguesuga ) e bexiga. Ouço representa audio ; como goço (cast.) gaudio. Est é latinismo usado pelos poetas antes de vogal. Às vezes tomavam a liberdade de pronunciarem este, contando-o por duas sílabas. Traicion, castelhanismo do autor, que era da Galiza. Nembrar
por
membrar
qmem'rare,
de
memorare,
dissimi-
com
lação. Hoje dizemos lembrar, levando mais longe a dissimilação. Buscar, procurar para caçar “Xcaptiare. Tendo em vista o verbo composto em boscar ( imboscare em ital.) e que era uso considerar os dois verbos como
termos de caça, derivados de bosco, do lat. buxus, pronun-
ciado buscus pelo vulgo (?), com metátese de cs em sc. O nome de um só arbusto, que em regra não forma bosques extenSos, feria nesse caso passado a ter em latim a acepção lata de bosque (bosco em ital., bois em fr., Busch em alemão, bush em ingl.). Segundo outros, busco seria arbuscum por arbustum, influído por arbusculum. Meyer-Liibke
mente
acha
insuficientes
e semasiolôgicamente,
e propõe
ambas
como
as etimologias.
étimo
fonêtica-
conjectural
busca,
acha de lenhas, de origem desconhecida. ( Vid. N.º 1.420 do Romanisches Etymologisches Wirterbuch, Heidelberg, 1911). *
O nome do autor é, já o sabem, Pay Gomes Charinho, Paay (posteriormente Paí, de onde proveio o patronímico ainda hoje muito usado de País por Páiz é prenome de baptismo, ou de pia, como se costuma dizer. Gomez é nome de família, de origem germânica. Charinho é, a meu
ver, aleunha ; sobrenome que, como muitos outros, se transformou em apelido. Mas que significaria? Em outros textos há Chorinho, que tanto pode ser derivado de plorare e sinónimo de Chorão, como aumentativo de chor, flor. À esse respeito tenho uma ideia que enunciei no falar da Cantiga imediata, mas que para ser provável exige documentação pelo brasão dos Chorinhos, Cherinhos, Chirinhos, Charinhos,
(ou em forma
castelhana, dos Chirinos). Paay está em próclise, por isso perdeu a silaba final. AÀA forma plena é Paayo, por Peayo, com a mesma assimilação da vogal pretónica à tónica que temos em mór de moôr por maôr “ majore. E Peayo é Pelaio, Pelagius. Do grego pelagos-mar. Portanto originâriamente homem do mar. No nosso caso aconteceu realmente assim : nomen fuit omen. Da curiosa evolução que fez do nome próprio Pelaio, muito usado
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÉS
ARCAICO
413
entre os Asturianos, que são em regra entroncados, um apelativo com o sentido de roliço, chouriço,
escuso de tornar a falar, visto que já tive
ocasião, repetida até, de explicar casos paralelos (Simão, Vicente, Lázaro, Tancredo e Restelo). Pai Gomes Charinho é figura histórica, mencionada não sômente nos antigos livros de linhagens, mas também nas Crónicas castelhanas relativas ao século XIII. Ele era de Galiza. No lugarejo de Rianho é que estava o solar dos Chirinos. Rianyo fica a par de Pontevedra, onde Pay Gomes está sepultado na igreja de S. Francisco e tem um epitáfio curioso. Como vassalo do conquistador da Andaluzia, San Fernando, pai de
Alfonso V, ele tomara parte nas expedições bélicas desse contra os Mouros. Serviu também aos sucessores até Fernando IV. Na turbulenta menoridade desse rei, em que dois partidos se disputavam a tutoria do rei
nifo, ele foi assassinado nos campos de Ciudad Rodrigo, por Rui Peres Tenorio, seu próximo
parente, em
1304
ou
1308.
De passagem tomem nota de que há em Coimbra a pedra sepulecral de im trovador que, por um singular acaso, se não chegou a ser almirante do mar como Gomes Charinho, foi pai do comandante da frota de D. Dinis. AÀ pedra está em Santa Cruz, embebida na parede ; o trovador é Fernão Fernandes Cogominho. O almirante chama-se Nune Fernandes Cogominho. Pai Gomes esteve na tomada de Jaen (Geen, Giennium), em 1246, como ele mesmo
revela em uma das suas cantigas, em que a amada
im-
plora Santiago, rezando em companhia da mãe, e enuncia a esperança de ser conduzida pelo amado á herdade que ele recebera em Jaen. E' embora não haja escritura que documente a sua nomeação para
almirante do mar, devemos dar fé ao que ele diz a esse respeito nas suas Cantigas. Vamos ler todas quantas dizem respeito ao mar. Estão no Cancioneiro da Ajuda, I, N.º 251 c 256 (p. 490, 500 e 501). — Na Biblioteca podem reler no Vol. 1F da minha edição as páginas 423 — 424 com a Barcarola de Jaen. Cfr. também J. J. Nunes (Chrestomathia Archaica, págs. 334-345). *
Com relação à métrica e prosódia vamos analisar mais esta cantiga e a imediata por miúdo, para que saibam elaborar em casa um resumo como exercício.
AÀ que temos lido não tem estribilho ou refrã. Isto é: não tem no fim de cada estrofe um verso ou uns versos iguais que se destaquem mêtrica e musicalmente do corpo principal. Por isso é de maestria. Compõe-se de quatro coblas, de sete versos cada uma, e de um remate de três.
414
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
A fórmula aritmética é, portanto: 4X73-— quatro vezes sete mais três. Cada verso tem dez síilabas métricas. É decassíilabo. Tem ritmo ascendente, iâmbico, por ter o acento principal na 10., e acento secun)
dário em geral na 4.º silaba. Depois dessa há pausa: cesura. Às vezes depois da 5.º ou 6.º. As rimas são agudas ou longas. Elas são simêtricamente iguais e ligam a estrofe 1.º à 2º; e a 3º à 4.º. À 4.º está ligndo o remate. À ordem das rimas é a seguinte: ér ên ên êr ér ôr ôr nas cstrofes 1º c 2º;arononariiar nas estrofes 3.º e 4.º Remate 1 í ar. Temos portanto dois pares de estrofes. Ou por outra, as estrofes são pareadas. Designando êr com a letra a; ên com a letra b; ôr com a letra e; e assim mesmo ar on 1, temos a fórmula alfabética abbacea.
Falta dizer que os trovadores davam ao remate o nome técnico de jida (finida finda). Ele ainda se usava no segundo período da lírica galega, na forma castelhana fínida, mas tamnbém na forma fim. Podem verificar isso no Cancioneiro Galego-Castelhano publicado por Lang (nos N.” 32, 46, 47, 50 e 51) e no Cancionero de Baena. Os KFranceses e Ingleses chamavam envoi, envoy a esses remates. Os Italianos diziam congedo. À explicação é que Troveiros e Trovadores costumavam endereçar, nesses versos finais, que são uma espécie de Post-scriptum, a Cantiga quer à mulher à qual a dedicavam, quer ao personagem masculino visado nela. Em português serve apenas para o poeta concluir, findar, arrematar a argumentação que preenehe a poesia toda.
2)
CV
401
Vejamos a segunda das cantigas, contidas no nosso fac-símile. O trovador, homem do mar como sabemos, finge que a amada está na praia a seguir com a vista a nau em que ele, o futuro almirante, se afasta da pátria galiziana, para combater o Sarraceno, na Andaluzia, à chamada do rei de Castela e de Leão, que fa pôr sítio a Jaecn, ajudado pelo mestre de Ucles, D. Pai Correa, que devem
conhecer como herói da conquista
do Algarve. A respeito da tomada de Jaen podem consultar na Crónica General os Capítulos 1068, 1069, 1070 e 1071, embora sejam muito lacónicos:
E la manera en commo se los fechos y acaescieron non diremos, ca se alongaria mucho la estoria. Ainda assim há na descrição da vila uma referência às suas muchas et muy fuertes torres. Seguramente Pai Gomes era então um rapaz novo. À sua juventude, ou à flor da sua idade alude ele talvez com a fórmula inicial um tanto estranhável.
PARTE
IV
— LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
415
ÀAs flores do meu amigo briosas vão no navio
A esse respeito, vá lá a idéia a que já aludi! Melhor do que o sentido metafórico, e melhor do que a inaceitável idéia de que a nau de combnate partisse carregada de verdadeiras flores, parece-nos a idéia que na bandeira da nau de um Chorinho houvesse as flores do brasão (falante) dele: talvez uma espécie determinada a que se desse na Galiza o nome Chorinho, Em português Chorão é uma crassulácea muito frequente. na beira-mar. Quanto
à forma estrófica e métrica, e ao género literário, a Can-
tiga é de amigo. Isto é : ideada como expansão feminina. Espécie de bailada paralelística de refra. A repetição da mesma idéia, que já temos notado nas cantigas de macstria, e que é um processo de origem musical muito empregado na poesia popular, tem aqui forma nova, diversa, sistematizada.
O texto consiste de duas redacções paralelas, cantadas provávelmente por dois coros (duas vozes : típle e alto). À segunda difere da primeira nas últimas palavras de cada verso que têm rimas diferentes, e as rimas são, quase sempre, meras assoantes (não consoantes) como navio, amigo ; barco, amado — maneira popular que só se encontra na espécie de que tratamos. Uma das recordações tem assonâncias em io : navio. amigo, rio, velido, sabido, ferido ; outra tem rimas em do : barco, amado, alto, loado,
provado; fossado, que são sinónimas das primeiras (navio barco; amigo
amado ; rio e alto-mar) ; velido (belo) e loado; sabido e provado: ferido e fossado. As duas versões são, além disso, concatenadas. O segundo verso da primeira redaeção repete-se como primeiro da terceira estrofe (que é mero dístico, a forma estrófica mais singela que existe) : briosas
van
no
navio
O segundo verso da segunda redaeção c estrofe, vem a ser o primeiro do quarto dístico : briosas
van
eno
barco
E assim por diante. Se designarmos a primeira redacção com a letra - e a segunda com a letra B, teremos o esquema seguinte :
A1
Asflores do meu amigo briosas van no navio
4116
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
3
Briosas van no navio
5
para chegar ao ferido. Para chegar no ferido servir-mi, corpo velido.
B2 4 6
Asflores do briosas van Briosas van para chegar
meu amado eno barco. eno barco ao fossado.
Para chegar ao fossado servir-mi, corpo loado.
O Refrã de todos os scis dísticos, por ambas as vozes entoadas em coro, diz:
Van-se as flores d'aqui ben con meus amores. Idas son as flores d'aqui ben con meus amores. Quatro versos de refrã para apenas dois do texto é muito ; é desproporcionado.
E como
os versos três e quatro
sejam
mera
variante de
um e dois, podiamos imaginar que se tratasse de variantes destinadas a serem cantadas em ocasião diversa. À primeira no momento da partida ; a outra durante a ausência do trovador. Rudimentos dramáticos. Com
respeito a vocábulos, temos uma
vez froles,
2 par da forma
flores, que se repete oito vezes em rima com amores. É pois assim que devemos ler. Verdade é que no singular se encontra frol em outros textos arcaicos, por fror, com dissimilação, e a par da forma culta flor. Quanto á dissimilação, comparemos priol por prior ; clamol por clamor ; rol por ror, de ros roris
orvalho (
rorualium ), lindo vocábulo arcaico
usado nos arredores do Porto. Mas o plural froles evolucionava necessãàriamente para froes. E tal forma só a conheço como nome-próprio, patronímico, filho de algum Frola ou Froila (Frucla), antigo nome gótico. E mesmo com esse valor foi substituído posteriormente por Flores e Froiasz. Essa forma antiga fror, frores, é semi- ou pseudo-erudita — o grupo inicial [ foi pronunciado fror, como em froco, fraco, ete. Nas verdadeiramente populares evolucionou sempre para ch. Como flagrare deu chairar, cheirar ; flamma se fez chama ; e Flavias, Chaves, assim flor deu
chôr — formação cedo suplantada pelas outras já mencionadas. Ficaram todavia alguns derivados : — Chorente, nome próprio de lugar e de pesson : o verbo areaico chorecer : e os substantivos chorão e chorume. Cho-
PARTE
IV —
LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
rume é o suco de plantas e de acepipes culinários como
417
aves gordas.
Chorão, já o disse, é nome de uma flor crassulácea que cobre os areais das dunas da beira-mar do Norte de Portugal, produzindo belas flores, parecidas com as dos cactos — cor de palha e de rosa. Verdadeiros florões. (O chorão-salgueiro é outra palavra. Deriva de chorar « plorare). Com relação à frase As flores do meu amigo devo dizer ainda que Pai Gomes diz em outro seu cantar de amigo: sobre mar ven quen «frores damor» ten. (CV 1429)
Pode-se entender:
aquele que está na primavera
do amor ou a
quem dei as primícias do meu amor. Mas é possível que também aqui se
trate de florões no brasão e estandarte dos Chorinhos. * Briosas,
de
brio
vocábulo
céltico
que
significa
garbo,
conforme já disse nas Lições Teóricas. Navio navigium. Cfr. fastio “ fastigium. Navigium
valor,
provém
de
navigare, 1. é, navem agere, conduzir, governar uma nau.
Vão « vaunt « vadunt. Já falei. e oportunamente tornarei a falar, da maneira como as línguas românicas completaram o verhbo tir. De Barco, barca, também já temos falado. Recordemos que é vocá-
bulo comum a todas as línguas neo-latinas, e não só a clas. Provém portanto do latim vulgar. Este recebera-o do grego. Juntara todavia a baris o sufixo deminutivo ica. Barica deu barca. Mas os próprios Gregos, ceujos navegantes chegaram à última Tule, receberam-no dos Egípeios. — Até há pouco era costume tirá-lo do fenício. Mas em púnico Barkas significa relâmpago. Há Germanistas que consideram o alemão Barke como palavra indígena, não recebida dos
Latinos,
e
relacionam-na
com
Borke
(bórkr) cortiça, explicando que os barcos primitivos eram troncos de árvores escavados. Julgam mesmo que foram os Normandos que o transmitiram aos povos romanos. A história da navegação deve decidir. Apenas lembrarei que, quanto a Portugal, barca ocorre numa inscrição epigráfica do Algarve, do século 1T ou III. Ferido e Fossado. Fossado do latim fossa, cava, designava na Idade-Média
uma expedicção militar, terrestre ou marítima, contra uma
praça, um castelo, uma cidade ; o sítio, portanto : mas também o serviço militar, a que os vassalos estavam obrigados. Fossadeira era o tributo que
pagavam os que, tendo obrigação de acudir ao fossado, não iam, por qualquer motivo. Vid. Elucidário de Santa Rosa de Viterbo.
418
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Ferido, como sinónimo de fossado. deve ser nome também de expedição militar, talvez só para ferir o inimigo, talando e estragando os seus campos. Falta-me todavia documentação. Conhecemos todos o subst. ferida. Além de chaga produzida com arma cortante, significava tanbém o próprio golpe de espada. Dizia-se pedir a primeira ferida, mesclar as feridas, e ferir uma fazenda — bater um combate. Pera “per ad, preposição composta, portanto. Mas como a consoante r requeira a vogal a, evolucionou e deu para. No primeiro período
encontra-se às vezes pora, coim alteração natural desde que per e por (de pro) se haviam confundido. Só em França distinguem ainda hoje per, transformado em par, de por, pro, que deu pour e indica finalidade. Chegar representa plicare, que mais tarde deu ainda a forma semi-erudita pregar fazer pregas ou plicas.
Corpo velido, corpo loado. —
usado
sobretudo
como
— Yelido, em castelhano vellido, bellido
qualificativo
do
corpo,
da
face,
dos
olhos,
da barba (o Cid é barba vellida), mas também como nome próprio, por exemplo do traidor que matou Sancho 1T em face de Zamora — é derivado de bellus. Particípio
de um
verbo
bellir, que subsiste no francês
embellir, italiano imbellire, castelhano embellecer. O comparativo bellitiore entrou no provençal como bellezour bellissour. Em dialectos italianos há o superlativo belledissimo (nap.), beletissimo (venez.). As fórmulas descritivas corpo velido, corpo frolido, corpo garrido, delgado, lozano, galano, destinadas a idealizarem
namoradas
e na-
morados, foram transmitidas de geração em geração. Ainda se usam hoje na Dança prima das Astúrias, como nas Mutnheiras galegas. Lá cantam:
Ay Juana, cuerpo garrido, ÀAy Juana, cuerpo galano e cá, Juanica, corpo garrido. (Vid. Cancioneiro da Ajuda, , púgs. 901 c 922.) Claro que mi não é pronome possessivo. É o pronome usado no acusativo
e na forma
absoluta,
servir, indo acompanhado
tão usada
pelos antigos, e depende
de
de nposição:
servir mi, corpo velido.
3) CYV 402 Por
deus,
senhor,
de
grado
que([r]ria.
Foi impresso por Teófilo Braga na sua Anthologia Cantiga de amor, quanto
ao conteúdo, e, quanto
(N.º 34). É
à forma, cantiga de
PARTE
maestria; constam
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
talvez incompleta, como de
apenas
duas
estrofes
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
419
o N.º 400. Oi eu sempre. Às que são
quase
sempre
fragmentos.
O que a distingue das que temos lido até agora é a combinação de rimas graves e agudas, que alternam simêtricamente, e alteram o metro. É provnvcl que os trovadores considerassem esse processo como de arte maior, mais difícil que o comum. A fórmula é abbacca. ( Para indicar simbôlicamente essa espécie invulgar, adoptei o costume de marcar as Timas graves com um asterisco). Os versos são iâmbicos, como de costume, e de dez síilabas métricas,
e gramaticais. P. ex. que sábla coiltaquelpor vóslsofri. Os poetas que modernamente misturam versos graves e agudos, dão aos graves mais uma sílaba do que aos agudos ; ou antes, segundo a concepção prevalecente que considera as femininas como regra e as masculinas como excepção, dão aos agudos uma silaba a menos. AÀ átona final não conta, como sabem. Versos como : por málres nunlca danltes nalvegádos não úlsou élla tanlto deslta lei,
ambos de Camões, eram de medida igual. No período arcaico já havia versos construídos e:-contados assim. NMas os de Pai Gomes não pertencem a essa categoria. Os.versos graves como poss énttendérl que fazl y folia valem também dez sílabas. Mas, visto que o acento principal recai na penúltima (nona), equivalem a Nonários: são (à grega) enea-ssilabos, na terminologia clássica e moderna. Principiando como os agudos com ritmo ascendente, iâmbico, alteram-no
depois da pausa ou cesura;
ou mais exactamente,
só no último
compasso ou pé.
Vejamos os primeiros compassos ou pés de cada verso. No 1.º, 4.º e 7.º temos correctamente: por déuslsenhor,! com'o deseje; — posscnl tendêrl! e póisl non quer; — comolnon moir'. Só no verso final a pausa está depois da quinta síilaba (átona) : se noni mha morte. A segunda metade principia tamhbém com rítmo ascendente, mas, repito, no último pé há cadência inversa descendente : De gráldo quelria — noitle o dia — que fásl i follia — e morlrer delvial e maisl me vallria. É mais uma prova de quanta importância os trovadores ligavam à contagem das síilabas. Os versos agudos e graves deles são material e aritmêticamente iguais; mas ritmicamente, musicalmente, são desiguais.
Nas cantigas satíricas, lançadas de um
trovador contra outro, há
420
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
muita vez censuras acerbas do seu trovar e rimar desigual. Suspeito que tinham em mente cantigas como as de Pai Gomes, em que há rimas graves a par de rimas agudas. Mas não o posso provar. Uma edição crítica do
Doutrinário
poético,
unteposto
no
Cancioneiro
Colocci-Braneuti,
acompanhada de ampla exemplificação, deverá no futuro espalhar luz sobre este ponto escuro, luz que, à falta das músicas, nunca pode ser muito clara. Os que souberem alemão podem recorrer a um estudo, Sulla metrica portoghese, de AÀ. Mussafia, Viena, 1896; e a um artigo meu, impresso no Literaturblatt, 1896, e outro de Tobler, no AÁrchiv 94, p. 471. Com relação ao Vocabulário, nós temos a fórmula de juramento Pardeus ! Par, em lugar de per, é galicismo evidente. Só se usa na fórmula citada e outras paralelas, como par nostro senhor! par Santa Maria! Nas Cantigas do Sábio há também Par san Denis! (o padroeiro dos franceses de Paris) e Passan Denis com assimilação galego-portuguesa deras. Na linguagem familiar, outrora, dizia-se pardés, pardez, pardelhas. Em Castela corresponde pardiobre; em França parbleu e parsambleu por ( par sang de Dieu) com sapristi (sang Christi). São alterações propositadas do nome de Deus e de Jesus Cristo, inventadas por pessoas medievais impetuosas que, usando de imprecações, ainda assim não queriam pecar contra o segundo mandamento do Decálogo. São eulogismos ou eufemismos — modos de dizer bem ( pensando mal), na terminologia dos filólogos. Depois de pardeus devemos inceluir senhor entre vírgulas. Deus senhor no sentido de senhor deus seria possível. Mas como nas cantigas de amor era uso, com força de lei, que o pocta empregasse a alocução senhor, dirigindo-se à amada, logo no primeiro ou segundo verso, interpreto Par deus, senhora minha. Folia, no sentido de loucura. doidice, é galicismo, (folie), que se popularizou e permanece. conquanto em sentido um tanto diverso. Derivado do adjec. francês fol, folle (fou), que não subsiste em português. Este vem do subst. folle de follis, instramento conhecido de soprar, fazer vento. De um homem soprado, inchado. cheio de vento, vaidoso, tolo,
ocupado só de coisas de vento, dizia-se a princípio, é um fole e depois é fole, é fol. Querria (no texto falta um r) valrria guarria (na Cant. C. V. 400) são condicionais contraídos de verbos cujo tema acaba em r ou . Cfr. ferria morria falrria e verria (de viir) terria, com tema em n. Quereria valeria guariria feriria moreria viria teria são formas analógicas, feitas ou refeitas na era do Renascimento por letrados beneméritos. Desejo, desejar — em castelhano des(s)eo des(s)ear — em francês désir desirer — em italiano desiderio desiderar. mas também. disio.
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊES
ARCAICO
421
são vocábulos ainda hoje problemáticos, apesar de muitos Romanistas se haverem ocupado com celes. Quanto ao sentido, desejar corresponde perfeitamente ao latim desiderare e aos seus reflexos italianos e franceses (em que caiu a sílaba pretónica). Mas não quanto à forma. O grupo consonântico dr nunca dava j; e se caísse a sílaba inteira -de-, teríamos desirar, exactamente como considerar deu conssirar e consirar na boca do
vulgo, não na dos cultos de hoje, visto que os Humanistas preferiram o latinismo constiderar. Amunbos, considerare e desiderare, são derivados do mesmo tema:: sidus sideris. São termos rústicos, agrários, fundamental-
mente Jatinos. O agricultor dispõe os seus trabalhos todos em harmonia com
os astros ou, por outra, com
o tempo :: considera-o.
E deseja
tempo
propício ; receia o tempo mau que lhe acarreta desastres. Mas como nasceram as formas escurecidas e discordantes peninsulares ? O vulgo peninsular parece que confundiu desiderare, pronunciado dessiderare, com outros dois termos que principiam com diss-dess-.
Sobretudo com dissidiare dissidium, que significava separação, apartamento, ausência e portanto saudade e desejo de alguma coisa ou pessoa. Pelo outro lado confundiu quanto à forma dissidare com desidiare desediare de desidia desedia, preguiça, moleza.
Somente de consoante, seguida da semi-vogal i, é -que podia resultar o j português. Já falámos de enveja Xinvidia ; sejo “scedeo, pronunciado sedjo : vejo Xvideo.
Para reforçar o meu modo de ver, devo dizer-lhes que os antigos diziam e esereviam frequentemente dessejo, dessejar, a par de desejo, desejar. Consulte quem puder o Die. Etim. de Meyer Liibke, N.º 2590. Ele considera o hipotético vulgurismo desédium, Wunsch, Selnsucht, ou o verho desediare, como étimo do italiano disio, prov. desieg; cat. desig; east. deseo;
port. desejo.
Mia, forma absoluta, tónica, de mea, a princípio usada só depois do substantivo, conforme já sabem. Moiro “morio por morior. Um depoente clássico transformado em aclivo pelo vulgo. Quanto à fonética, confira-se coimo (hoje como) de cômio por comedo, que é edo, de edere, com o prefixo cum. Ventura, fem. de venturus; aventura, fem. do particípio do futuro ad-vent-urusaquilo que há-de vir. À princípio designava o acaso, a sorte, de modo geral, e podia receber epítetos opostos. Dizia-se boa ventura e má ventura. Hoje toma-se principalmente em acepção benéfica. Cfr. fortuna. O trovador pensa na sua sorte triste, 4)
C. V. 403
422
LIÇÓES
DE
FILOLOGIA
PORTUGUESA
Vedes, amig' o que ojlel oí
Cantiga de Amigo, quanto ao género e de refrã quanto à forma: 3 X42: Rimas singulares ( — diversas em cada estrofe) sempre agudas : abbacc. Vedes «videtis. O emprego do presente do indicativo em lugar do imperativo é frequentíssimo na poesia areaica e na popular de hoje. Vejam por exemplo treydes trahitis nas Cantigas 343 e 878 do Cancioneiro da Vaticana. Vedes no Cancioneiro da Ajuda, 2:40, 3:41, 360, 361 ;
C V, 288, 403, 627, 804, 1021, etc. Deus mi perdon « perdonet, subjuntivo ou optativo. À par de perdon há ampar; pes, na fórmula em que me pes, mal que me pes, conquanto
me
cause
pesar;
e as três
p.
s.
do
pres.
ind.
man
manet;
pon “ ponet ; fin 4finit sol dol val sal cal; quer fer; faz traz noz nuz cos. Todas clas são perfeitamente regulares, tão regulares como os substantivos mar mal cal sol sal fin,
e outros que acabam
em n, 1, r, s, ,
visto ser normal a queda de e final depois de consoantes que possam formar sílaba com a vogal anterior. Quere, que alguns puristas querem introduzir, é forma tardia e analógica, pouco usada.
A razão que é costume alegar, que não assimilamos o r final a l imediato, isto é, que não dizemos qué-lo, só diz respeito à linguagem culta e moderna. Os antigos não tinham pejo algum em escrever qué-lo. E o vulgo gosta tão pouco de pronunciar -e final depois de ! e r, que diz até peis como
pl. de pele;
vais, como
Vingar vindicare;
pl. de vale.
punhare « pugnare.
Ao muito que já disse de pesar e pensar, [formas divergentes. popular uma e culta a outra, do latim pensare, de pensum, part. de pendere,
com o sentido de tomar o peso e ponderar, acrescento agora que, entbora pensar entrasse por via literária nas línguas românicas antes do ano mil,
o povo continuou a favorccer durante séculos cuidar “cogitare e esmar (asmar, osmar) “aestimare. Quanto à evolução do sentido, é instrutiva a frase de Curtius (III,
145): stat $ 11.).
pensata
diu
belli
sententia
(Meyer-Liibke,
Einfithrung,
A fórmula em que me pes, já a mencionei na nota anterior. Nostro (em par nostro senhor ) é forma enfática, solene, da Igreja
e dos Tribunais, de orações c juramentos. Acho curioso que no Padre nosso se conservasse a forma culta do substantivo, mas a popular do possessivo.
LIÇÃO VII UMA
PÁGINA
DO
CANCIONEIRO
COLOCCI-BRANCUTI
Esta página é do Cancioneiro Colocci-Brancuti. Ele chama-se de Coloccei porque pertenceu ao grande Humanista italiano, ao qual devemos a conservação tanto dos textos desta colecção como dos do Cancioneiro da Vaticana. O nome Brancutt foi-lhe adicionado porque o códice se achava, no acto do descobrimento, em 1878, na posse do Conde Paolo
Antonio Brancuti, residente em Cagli. Pertenceu depois a Ernesto Monaci, a cujos herdeiros foi comprado Biblioteca Nacional. Colocci
insereveu
nele nome
pelo Governo
português
para
a
de autores e várias notas marginais,
relativas à métrica e a certos vocábulos. O precioso volume é evidentemente cópia (de fins do século XV, ou princípios do imediato ) mandada fazer pelo henemérito erudito — cópia daquele grande Cancioneiro de que ele extraira o Índice, ou seja a Távola Coloceiana ( Ms. 3217 da livraria dos Papas), com nomes de autores e numeração das obras deles, de que falei nas lições dedicadas ao Cancioneiro da Vaticana.
No seu estado actual, o Cancioneiro não contém todavia tudo quanto se registou no Índice. Nele há referência a 1675 composições, e no C. C. Br. subsistem apenas 1567. Por mutilação, faltam as restantes (cento e oito). Notam-se lacunas em várias partes. Subsistem 355 folhas. O for-
mato é um pouco mais pequeno do que o do Cancioneiro da Vaticana. *
Um discípulo de Ernesto Monaci transcreveu as partes inéditas: isto é, as que não estão no C. V.: umas 442 composições. Morren todavia antes de haver concluído a Introdução e as Notas com que tencionava acompanhar os textos. Por isso foi seu mestre e amigo, e não o próprio Enrico Molteni, quem afinal os publicou, acompanhados de breve Prefácio. As variantes das partes comuns aos dois Cancioneiros estão por
publicar. Só as que se referem às poesias de D. Dinis foram gentilmente cedidas a Henry R. Lang, para a edição das poesias del rei. *
A nossa página contém três composições incompletas. À elas correspondem os N.” 362, 364 e 365 do Cancioneiro da Vaticana. Além de pequenas variantes, que talvez sejam meros erros de leitura dos respectivos amanuenses, há nesse a mais uma estrofe que faz parte da composição do meio.
424
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
I C C Br. 779C
V 362
« À voss amig'. amiga, qual prol tem servir vos sempr e muy de coraçom sem bem que aja de vós, se mal non?» «E com', amiga, nom
tem el por bem
Entender de mi[m] que lhi conssent* eu de me servir, c se chamar por meu?» « Que prol tem el, ou que talam Ilhe dá de vos servir e amar amais que al, sem bem que aja de vós, se nom mal ? « E nom tem el, amiga, que bem ha Entender de mim que 1hi conssent*º eu de me servir e se chamar por meu? » « À deus, amiga, que nos ceos sé, pero sei bem que me tem em poder, non-o servirei se nom por bem fazer! « E com', amiga, e tem el que pouqwé Entender de mim que conssent* eu de me servir e se chamar por meu? »
Pela pontuação que lhe dei, na lousa, os senhores vêem que inter-
preto a cantiga como diálogo. As interlocutoras são duas amigas. À que fala em primeiro lugar admira-se de que o amigo da outra continue a ser servidor dela, leal e terno, apesar de nunca ter sido favorcecido por ela. Em resposta ouve que essa tem em conta de grandíssimo favor o seu consentir nas homenagens prestadns pelo adorador. AÀ mesma ideia repete-se nas estrofes todas. Só na terceira há uma alteração. À interrogadora exemplifica, perguntando a si própria: para que sirvo eu a Deus, a não ser para que ele me faça bem, e me recompense do meu. bom comportamento ? No verso 15.º há uma sílaba a mais em ambos os treslados. Proponho servho, isto é, o presente, em lugar do futuro.
Cada estrofe consta de seis decassílabos masculinos. Os primeiros três são perguntas ; os últimos três, respostas. Da resposta, os derradeiros dois versos repetem-se inalterados em todas as estrofes. São refrãá. Mesmo o primeiro verso da resposta é, quanto ao sentido e quanto à forma, quase sempre o mesmo,. Só pela rima está ligado à pergunta.
PARTE
IV — LIÇÕES
PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
425
ARCAICO
O esquema é, portanto : Cantiga de refrã e de amigo. — Decassilabos: 3X43. Rimas agudas, singulares (isto é, diversas em cada estrofe ) : abbace: om em Eu V á al Eu Vl é ér Eu. *
T. Braga restaurou o texto do C. V. num improviso feliz, mas que tem ainda assim erros. No verso 1.º Monaci imprimiu q ( — que) prol rem, o que não dá sentido ; que está também na 2.º estrofe do C. C. B. *
O autor Estevam da Guarda é personagem histórico. Era valido de D. Dinis e continuou nas boas graças do sucessor Afonso IV. Luso-aragonês, tinha vindo a Portugal com Santa Isabel, em 1281. Ainda estava
vivo em
1347. É portanto um dos trovadores mais tardios. Possível é
que ajudasse o Conde de Barcelos na coleccionação do Livro de Trovas. Como trovador escreveu sobretudo versos de escarnho, que podem ler no Cancioneiro do Vaticano, N.º 904 a 932. Entre clas há uma : a um mestre
de leis que era manco duma perna e sopegava (manquejava) dela muito. Outra: a um juíz que não ouvia bem. Ainda outras: a um doutor que meteu por seu messageiro pera justar seu casamento a um
home
leigo
e casado que antes fora frade pregador, e joga com a palavra apostata ; a um galego que se prezava de trovar e non sabia ben; a un jograr que
se prezava de astrologo. Consegui datar a cantiga que dirigiu a um apaniguado de outro Inuso-aragonês : D. Miguel Vivas, eleito para o bispado de Viseu no ano de 1333.
Ocupei-me dele no Cancioneiro da Ájuda, vol. II, p. 217,221,249, 282, 378, 586, 588 e 596. *
11 C C Br 780C
V 363 e 364
Avedes vós, amiga, guisado de falar vose' 0)j'o meu amigo
que vem aqui, e bem vo-lo [digo] por falar vosqu', [e] traz vos rrecado de rrog', amigo, do voss' amigo que façades o meu falar migo?
426
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
E hu eu moro ja el nom mora, ca lhe defendi que nom moraslsle hi; e porem catou que rogasse e rrecado sey que vos traz ora de rrog', amiga, do voss' amigo
que façades o meu falar migo.
[ Gram e e c
sazom ha que meu bem demanda nunca pode ca migo falar vem agora vos, amiga, rogar, con rrecado sey que vos anda
de rrog, amiga, do voss amigo
que façades
o meu falar migo. ]
Foi preciso emendar bastantes erros da cópia feita para Colocci: no verso 2.º há amiga ; no 3.º falta digo; no 4.º há gazs e ffecado; no 2.º há repetição de facades o meu (sem cedilha). A terceira estrofe encontra-se sômente no C V. Monaci quis reconhecer nessa, uma composição nova, (que numerou 364). Teófilo Braga reconheceu nas primeiras sílabas do refrã, que ela é continuação de 363. Tanto na transcrição de Monaci como na restauração de Teófilo Braga há vários erros. No verso 15.º substitui voss amigo por vos, amiga. *
O assunto é um tanto complicado. Uma namorada comunica a que o seu próprio amigo (o da que fala) virá pedir-lhe, em nome encargo do amigo daquela a quem fala, o favor de combinar uma vista, para o par alheio. Já ele não mora na vizinhança; por isso tem de falar assim
outra e por entre-
indi-
rectamente.
Quanto à forma é Cantiga de refrã e de amigo — em decassílabos com acento principal na sílaba nona: 3X42. Rimas graves, singulares: abba B B na 1.º estrofe; abba CC na 2.º e 3º. Do autor Pero d'Ornelas não -sabemos nada. É provável estivesse
relacionado com Estêvão da Guarda e D. Afonso Sanches. Há dele no C. V. uma cantiga de Amor N.º 226, que principia : Nostro senhor! e ora que será daquel que sempre coitado viveu? *
Amigo antiga.
é equivalente
de
amante,
amador,
namorado,
na
poesia
PARTE
IV — LIÇÕES PRÁTICAS DE PORTUGUÊS ARCAICO
427
Guisar, aguisar, significa dispôr, aviar, preparar, combinar. Derivado de guisa “wisa, hoje Weise, ingl. wise (otherwise, correspondente ao nosso mente) : modo, maneira de ser. Podíamos ler e interpretar tambem amig'aguisado. Vosco é contracção de vobiscum. Hoje dizemos con-vosco, por se haver perdido a consciência de que a preposição cum já estava representada em co. Recado, do verbo antigo recabdar, recapitare, de caput ; cast. recau-
dar, ital. recapitare. Quanto ao sentido houve influxo do verbo germãnico rekken (reichen und recken), trazer um recado (ital. recare). Morasseli. Quando o sentido não fica completo dentro de um verso, carecendo, para ficar inteiro, de mais uma palavra, ou de várias, que se-
guem no verso imediato, há quebra de verso, (enjambement). Em geral os trovadores galego-portugueses só a empregam em eantares de maestria. D. Dinis e Afonso o Sábio tomavam às vezes a liberdade de dividir uma palavra no meio, servindo-se por exemplo de men te. Sazon “satione era o tempo em que se semeia ; depois : tempo favorável; finalmente: tempo em geral. No verso 14.º há co migo no C. V. Eu pus ca migo, por comigo ainda não ser usado no primeiro período da língua. Traz vem de trazer 4tracere por trahere; infinitivo deduzido do perfeito traxi, por analogia com duxi duzere; dixi dicere.
III C. C. Br. 781C.
V. 365
Hum rricome, a que hum trobador trobou ogan aqui em cas del rreã, asscentando-me
tras mim
catey ;
vy-o seer em hum logar peyor; ergim, e dixi: «vind' acá pousar» c dis[s]e-m'el: «seed* em vosso logar! bem sej' acá, nom quero seer melhor.» — Quando mh' alslsentey, assi veja prazer nom me guardava eu de tal acayom E quando o vy ergitm'e logwenton « passad' acá» lhe fui logo dizer, que ss'ergesse d'antre os cochões seus. E disse-m'el: «gradesca-vo”-lo deus nom me comprira de melhor seer.»
428
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
Texto estragadíssimo em ambos os Cancioneiros. Vê-se bem que o copista não compreendia o texto e confundia por isso letras semelhantes como t e c. No verso 1.º lê-se aqgi ; no 3.º mutras e caey no C. V., ca cey no C. C. Br. No 5-ºº, ersime dixi uydaca ; no 10.º, oy codt des sseos (no
C. V.): no último, aí mesmo, demolhor sseci. — Julgo que está incompleto. No C. C. Br. pelo menos ficou espaço em branco para mais duas estrofes. O copista até chegou a traçar a primeira letra, parando em seguida, talvez por achar o original ilegível. Na restituição de T. Braga há muitas inexactidões : erros contra o metro, a língua e o sentido. É cantiga de escarnho. Ironiza-se um ricome sem brio, que, por falta de carácter, não sabia ocupar o seu lugar condignamente — ricome de que já outro trovador havia chasqueado. Como se vê, ele não se envergonhava de figurar entre vilões; cometia portanto actos de vilão. Seer tem dois sentidos, como sabem : estar sentado e ser.
Por isso a declaração «não quero ser melhor» é ambígua. Quanto à forma, é Cantiga de maestria. Decassilabos agudos : 2X7. Rimas singulares abbacca. O autor é D. Afonso Sanches. No Fac-símile esse nome encima a cantiga. No C. V. está sobre o fragmento imediato. D. Afonso Sanches era um dos bastardos de D. Dinis, seu primogénito, nascido antes de 1285 (talvez em 1283). e seu predilecto. À mãe chamava-se Aldonça Rodrigues Telha. Há alusões a cela, ou a seu pai, em
outra cantiga de escarnho. Em 1318 Afonso Sanches era mordomo
de D. Dinis. Casara em
1308 com D. Teresa Martins, 2.º filha do rico homem D. João Afonso, Conde de Barcelos e Senhor de Albuquerque e de D. Teresa Sanches, bastarda de Sancho IV de Castela, o sucessor de Afonso o Sábio.
Certamente os senhores estão lembrados de que D. Dinis gostava desse filho tanto, que o legitimo sucessor o temia e odiava, receando que
o pai lhe destinasse o trono. Conseguiu que fôsse desterrado. ao trono confiscou os seus bens. Em
E mal subiu
1329 D. Afonso Sanches armou-se
contra o rei seu irmião. Venceu-o a par de Ouguela. E foi restituído em seus territórios. Jaz em sua mulher.
Vila do Conde, sumptuosa
fundação sua e de
Da sua actividade poética havia vaga tradição. Possuímos dele quinze composições. Ocupei-me de uma, que é Tenção com Vasco Martins de Resende, num estudo especial : Randglosse XV, e no Cancioneiro da Ajuda. vol. II, p. 188 e 250.
* Um ricome é complemento, como se vê do sentido. O feminino é ricadona. Os castelhanos diziam rica-hembra. Trobar, trobador : com v. só do século XVI em diante. Do francês
PARTE
IV — LIÇÕES PRÁTICAS
DE PORTUGUÊS
ARCAICO
429
trouver, encontrar, achar. Provávelmente representa o latim turbare. Era
a princípio termo de pescadores, que turvam as águas com trovisco! e outros preparos, para mais fácilmente encontrarem
e apanharem
peixes,
perturbados c entontecidos. Ogano
“hoc anno. Cfr. antano, no ano anterior, em francês antan.
No ano passado falei da balada de François Villon, cujo refrã afamado diz: Mais ou sont les neiges d'antan? Em cas del rei é locução adverbial, enunciada com um só acento frásico. Reduzido à função de preposição, casa perdeu a desinência final. Em todo o reino vizinho se diz familiarmente cá. Assim mesimmo em mirandês (Leite 1, 444). Confiram o francês chez. Na Galiza omitem a mais a preposição de, dizendo em cas teu paiíi. No Cancioneiro temos igualmente em cas Dona Constança. Asseentar, de ad-sed-entare. Cfr. levantar, guebrantar. Catar )captare, buscar, procurar com a vista, e às vezes com os dedos. Logar Xlocalis, com dissimilação do ! final.
Peyôr, com o fechado.
:
Ergi de erger Xerigere. Cfr. merger, tanger, pranger. Erguer é res-
tituíção culta. Acá Xececu hac. Pousar « pausare.
Sejo .sedeo. Assi (adsic) veja prazer é fórmula de jura ou conjuração, equivalente de asst deus me valha. Acayom, erro à meu ver, por acajon “ occasione. Enton 4ex tunc ou ecce tunc; entonces Yin-tunce-ce;
eston-
ces )ex-lunce-ce com a conhecida acumulação de partículas. Cochões, plural de cochon, galicismo bastante usado no Cancioneiro com designação injuriosa dos vilões e peões, e em geral de gente de baixa extracção, arraia miúda, no dizer de Fernão Lopes.
Na península há cochino. T. Braga, desconhecendo o termo, substituíu cochões por criados, na sua restauração. Gradesca é subjuntivo de gradecer, incoativo de gradir “grat Yire, de gratus (gracir é provençal ). Um dos poucos verbos da 3.º conjugação, derivados de adjectivos. Comprir de complere, com substituição do sufixo verbal.
ÍNDICE
ALFABÉTICO alacrau, 302 Alandroal, 271
a-, 81 Aarão, 296 abarca, 283, 290 abarcar, 350 abarcos, 337 abelharuco, 78
alaúde, 304 alazão, 303 albarda, 15 albergo, 297, 306 alcachofa, 302 alcáçovas, 303 aleaíde, 15 alçapão, 344 alçar, 246, 344 * alcoatruz, 15, 306 alcova, 303 aldeias, 303
Abraão, 296 acaá, 429 acaçalar, 305 academia, 2914 acajon, 429 acayon, 429 AÁAcento, 252
acepipes, 303, 306
achaque, 304
-aldo,
acicate, 291, 303 aclarar., 27
aldrava, 303 alecrim, 303 Alceluia, 295 aletria, 302 alfabeto, 131, 29 alface, 15, 302 alfacinha, 30
acompanhar, 362 açor, 312 acordar, 341 açougue, 303 acrisolado, 291 açucar, 306 aquceno, 302
alfaiate, 15 alfândega, 15
alfanges, 303
-«ada, 79 Adaágios, 408 adail, 302, 306 adarves, 303 «ade, 72
adega, 35 «ádego. 78 «ado, 67 adobes, 303 Adosinda, .297, 312
-agem, 77, 78, 79, 81, 314 aguçar, 12, 241, 246
AÁguilas (Palavraos -) agusar (provençal), 12 aguzar (castelhano), 12, 241 aguzzare (italiano), 12 AI » EI, 345 aiguiser (francés), 12, 241 Ajuda (Cancioneiro da -) al- (árabe), 302, 305, 306 alabão, 302 alobarda. 306
(castelhano), 14
Andaluzia, 301 anexim, 301, 306 anjos, 291
antan
(francês),
aqui, 352
Aquitânia, 164
-«ar, 76, 80, 83, 84
Árabe (Influência -), 299
arauto, 298, 315 Ardegaes, 297 -ardo, 76, 80, 297 área, 35 arenque, 297 arfil, 296 -«aria, 70, 74, 317 «ário, 74, 79
«aro, 66, 67, 70, «arra, 290, 291
altar, 306 alva, 81 alvidro, 363 alvorccer, 83 sm (-ã, «an), 22 amabilidade, 78 amainar, 317 amar, 51 amarelo, 311 amarrar, 317 amen, 295 sAmericana (Influência -), 319 amigo, 426 amarico, 78 anaciado, 270
89
-ante, 21 ante-, 88 antiquário, 36 -ão, 24, 67, 79, 85 aperire (latim), 318 apóstata, 270 «aque, 305 aqueste, 211
«alha, 78 alizares, 303
Alplan, 285 Alporão, 285 alqueire, 15 alquimia, 306
-nge, 77, 314
Andalucia
armazém, 15, 303 Arnaldo, 14
alperce, 306
ver-
«anda, 321
algarada, 15, 302 algaraviado, 270
alpaca, 320
agasalho, 297
bal, 20 ananás, 319
nrmação,
almeirão, 302 almirante, 309, 316 almoço, 306 almotolia, 303 almoxarife, 15 Alótropos, ver: Formas divergentes
-), 319
Analogia, 38 Analogia na conjugação
alfaraz, 300, 303 alfazema, 302 alferes, 302 alfobre, 302 alganame, 302
aljamia, 270 almadraque, 305
adro, 35 adubar, 315 adnfas, 303 adufe, 304 acrostato, 283 afan, 318 afazeres, 327 -afe, 305 Afixos, 52 Afonso, 14, 313 -afíre, 305
(influência
76, 80
alfageme, 15
açude, 302 acuere (latim), 12 acutiare (latim) Vid.: acutus (latim) acutus (latim), 12
Africana
DE VOCÁBULOS
59
80
arrabalde, 303 arrais, 92 arranjar, 316 arreio, 297 -arro, 76, 281 arroba, 15 arroio, 14, 289, 290, 318 arroz, 302, 306 Arte militar, 317 Árte poética, 318 artigo, 31, 34, 35 Asiática (Influência -), 321 assabendas, 362 «asco, 297 asi, 311 asseentar, 429 assi, 311, 429 -«astro, 47 ata, 361 «ata, 79
atafona, 302 atalaia, 15 Ataúlfe, 297 atavio, 316 «ático, 79, 80
atramuz (eastelhano), 286 atrebudo, 337 atrever, 35 atriaga (castelhano), 286
AU
OU. 315
132
LIÇÕES DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
auge, 304 augusto, 35 avarcas, 337 avaria, 286, 287, 309, 316 avelórios, 303
Braquiologia ver: WHaplologia
avos,
hrio, 292 briosa, 417 britar, 316 broca, 314 bruno, 298 bule, 321
79
axarave, 286 azagaias,
303
azambujciro, 302 azeite, 15, 302, 306 azeiteiro, 30 azenha, 15, 302
barco, 417 bardo, 293 bazar, 321 beaucoup (francés), bêbera, 67, 93 beberete, 78
bêiçon, 343
beiçon, 343 beija-flor, 319 beijo, 292 belo, 243 belverde, 336
(latim),
Nucional
cepo, 35
cabana,
-cer, 84 cerveja, 292 cetim, 303, 321
290
cabo, 286, 335 cacau, 215, 321 cacimba, 319 cada, 294 vradeira, 35, 259, 314 cadela, 240
cetreiro, 312 Ch- « PL-, 348 chá, 321 chafarizes, 303 chaga, 35
café, 320
chalupa,
cais, 293
chão, 40 chapéu, 316 chefe, 35, 286, 287 chegar, 348, 418 «cho, 78 chocolate, 215, 320
cajado, 295 caldo, 35 cale, 273 culma, 295
canção, 318 câncaro, 67
(Cancio-
bos (latim), 187 braga, 14, 187, 283, 292
do
317
choisir (francês), 27 choix (francês), 27
cambaio, 292 cambiar, 292 ceaminho, 187, 292 camisa, 14, 287, 292
cho
290
branco, 297
cabala, 295
Cancioneiro
neiro da -) bicharada, 73 bicharoco, 73 hichoco, 78 bico, 292 bimus (latim), 57 bhlúsia, 68 boa, 73 bobo, 79 hoiínha, 73 bolandas, 362 boliço, 339 bolota, 302 bolsa, 295 boneco, 78 bonito, 80 bordar, 15, 297 Borja, 347
ca, 410, 411
camarada, 73
Bertiandos, 297 besonha, 318 betula, 292 bezerro, 290 bíblia, 294
Céltica (Influência -), 291 cem, 35 cemitério, 294
cama, 290 câmara, 70
344
429 27
cavalo, 243, 287, 292 cebo, 80 ceifa, 302, 305 celemim, 303 celeuma, 295
cabido, 31, 34
244
92
Caralheirescas (Divisas -)
C (Vocalização do -), 344, 345
barca, 286, 287, 293, 296, 316
bizarro,
catar, causa,
burgo, 287 buscar, 412 buxo, 295
banana, 81, 319 banco, 15 bandeira, 297 banho, 351 banqueiro, 30 haptizar, 294
Biblioteca
323 Castelhano, 204 castrum (lotim), catálogo, 263
bullire (latim), 339
azinha, 245 azinho, 80 azorafa, 302 azulejo, 303 baixo, 36 bhaldreu, 315 Baltar, 297
benedicere
brial, 391 «briga, 291 brincar, 316 brinde, 317
casmurro, 78 Castelhana (Influência -), 318,
da Ájuda
-), 377
(Tre-
Cancioneiro da Biblioteca Narional (Trecho do -), 423 canja, 321 canoa, 319 cantar, 313
cântaro, 70 cantiga, 313 -«ção, 45, 59 capa, 290 capelo, 35 cara, 243, 294 carabina, 318 caranguejo, 258
rarapinhada, 286 earocha, 78 carpinteiro, 292 carraca, 317 carrosco, 290 carro, 187,1292 earta, 294 Cartagena, 294 casa, 318 casarão, 73 cas del rei, 429
chusma, 295 cifra, 304 cima, 295 ciodade, 347 cirio, 81 cismátego, 70 cisne, 295 citara, 389 citola, 389 clarar, 27 elavina, 318 clérigo, 343 elero, 294 clocher (francês), 314 clúbio, 68 -co, 78, 80
“ço, 78 coagular, 35 cobra, 313 cochões,
429
coclho, 290 cofre, 295
cogula, 292
coifa, 15, 297 Coimbra, 36 coisissima, 44 coita, 83 cola, 295 coldre, 303
colibri, 319 cómaro, 70 comba, 292
ÍNDICE ALFABÉTICO comer, 244 como, 392 comparar, 35 Composição, 40 compota, 326 comprir, 429
-di (francês), dia,
247,
DE VOCÁBULOS
317
346
diabo, 291 Dialectos crioulos, 216
dique, 317
direito, 344, 359
Ditongação,
257
conceclheiramente, 363 côncharo, 79, 80 conduto, 362 cónego, 35
Divergentes (Formas -) Divisaos cavalheirescas, 315 «doiro, 59, 79
connoscer, 364 constituir, 31 conta, 259
domaa, 295 Dom Fafe, 298 donaire, 318 -dor, 59
Conjugação verbal (Analogia na -) Conjugação verbal, 20, 21
contra.,
88,
316
Contracção de vogais, 20, 22, 27 roplas (castelhano), 313 corça, 290 corda, 244, 294 cordoaria, 78 eoreio, 78 corsel, 315 corte 347 crortiço, 78
coruchêu, 314
coser, 21, 57 costume, 80 costura, 57 cousimento, 27 cousir, 27 vozer, 21, 57 eria, 219
droit (francês), 360
druida, 293 duna, 292 dura, 59 durmão, 316 -ear, 85 cbur, 296 -crer, 83 eden, 307 edredão, 3º6 -efe, 305 esloga, 263 -ego, 68, 70, 76, 80 Ei» Ai, 345 «ceima, 75 eira, 40 -eira, 2145
criollo (castelhano), 219 eriolo, 219 erisol, 291 Cristão, 363
Crônica General (Trecho de uma versão galego-portuguesa da-), 340
Crónica Geral de 1104 (Trecho da -), 331 Crónica Troiana (Trecho da -) 368 eucuruto, 78 cuidar, 345
curry-powder
dol (francês), 212 dom, 335
(inglês), 43
«dade, 31, 72 dama, 307, 315 Daniel, 296 «deiro, 45, 79 delicado, 35 dentuça, 78
«ciro, 45, 59, 74, 79, 80, 245 eiva, 292 -ejar, 76, 79, 85, 295 el (castelhano), 12 el, 312 -el, 65 elefante, 302 -elha, 79 clixir, 306 -«ellus (latim), 72, 74, 80 elmo, 15, 297 Elvira, 339, 312 em-., 90 embaixada, 293 ennciado, 270 -ença, 79
Ênclise, 60, 253 enfermo, 93 «engo, 76, 80, 297 «ense, 79, 274
ensejar, 316 «enta, 79
depoys de, 335
enteado, 88
Derivação, 41, S1, 60, 70, 80 Derivação imprópria, 81 Derivação verbal, 83 des., 3416 desde, 95 desejo, 420
entrudo, 35, 40
desguisado, 363 desporte, 328 despreçar, 345 destorvar, 346 dezemo. 363
«ento, 49 enton, 429 entretém, 82 enx-, 305 enxuito, 27
época, 2914 .er, 80 erguer, 429 -eria, 70, 317 Ermesinde, 14, 230, 297. 312
433
ernio, 295 -trro, 76, 2864, 291 -ces, 291, 335
.ês, 21, 79, 274, 337 es-, 316 esenbeche, 303 escada, 80 escarnir, 297 escaramuça, 317 escol, 83 cescola, 294 escolho, 317
escomungados, 363 escora, 317 Escrita, 177 esfera, 295 esmola, 294 Esmoriz, 297 espada, 243, 241, 294 espinafre, 302, 305 espora, 15, 297 esquadrão, 317 esquerdo, 14, 290 .essa, 295 estabelecer, 83 este, 317 -este, 65 esteira, 294 estio, 81
estranja, 316 Estrasburgo (Juramento de -) estraviar, 258 «estre, 653 estrever-se, 337 estribo, 15, 297 estribordo, 317 Etimologia popular, 43 etiqueta, 315 evangelho, 294
exequivel, 285 -ex, 291
fábula, 242 fabular, 35 fada, 247 fadista, 79 falar, 361 falcoaria, 305, 312 faleia, 316 fangas, 303 fnateixa, 316 fato, 11, 297 fauce, 35 favorccer, 83 feijão, 295 feito, 35, 242, 345 feltro, 15, 297 ferido, 418 feto, 68 ficar, 343, 411 fidalgo, 80 filatelista, 128 filo., 135
filologia, 2125, 1146, 294 Filologia (Wistória da -), 136 filosofia, 294 fingir, 31 flanco, 316
134
LIÇÕES
flecha, 316 flores, 416 fogacho, 78 fol (frances), 348
folgar, 348 folhelho, 78 folia, 348, 420 folião, 314
fome, 251 forja, 316 Formas divergentes, 33 fossado, 417 frágua, 316 rancês, 203 Francesa (Influência -), 311, 323 franco, 33º franja, 316 fraque, 296 frasco, 297
Freamunde,
14, 230, 297
frei, 285, 287, 336
DE FILOLOGIA
girafa, 302, 307, 319 giro, 295 glossário, 134 glotologia, 146 glove (inglês), 297 goiva, 290
«iare (latim), 84 Ibéria, 288 «icare (latim), 84 «iceus tatim), 77 «ico, 68 «ícula, 79
goivo, 316
«igem, 78
gollo, 295
igreja, 294, 359
Gondomar,
«it, 45, 305 «ildo, 297
golpe, 244, 294 297
gordo, 290 gorducho, 78 gorro, 291 gosto, 27 gótico, 387
governo, 295 grada, 364
grodecer, 429
Indo (Ramos itálicos do tronco - -germânico) infanteria, 317 insânia, 35 iínsoa, 35 inteiro, 258 interesse, 285 r, 83 irmão, 3142
78
guaiado, 298 guante,
iró, 359 -isco, 76, 80
“ismo, 76, 80, 295 «Íssimo, 44 «ista, 47, 76
Italiana
297
guarda, 297
(Enfluência
Italiano, 201 liálicos (Ramos - do tronco indo-germânico)
guardar, 345 guarccer, 297 guarir, 230, 297, 410 guarnir, 230, 297
«itar, 81
guerrear, 338 guerreiro, 30
Attus (lotim), 77 ivoire (francês), 296
guijarro (castelhano), 290 Guilhomil,
230, 297
ttaa (latim), 187 «zar, 76, 79 80, 85, 295
Jacob, 296
guindar, 317
jaguar, 320
jambe
ganso, 297 gant (francês), 297 Garcia, 350
guisa, 363 guisado, 30 guisar, 427 IHaplologia, 72, 336 harém, 321
gasalho, 15
harpa, 15, 297 hermano (castelhano), 342
jeira, 316
ganhão, 302
ganhar, 230, 297
gás, 266
gato, 244 gavela, 292 gêne (francês), 295
Hermenegildo, 14, 297
Hiato, 257 Iliato (Queda do U em -) história, 294 Iistória (- da Filologia), ver: Filologia hoje, 316
GCeneral (Crónica -) Génrero neutro, 345 geólho, 245
Geral (Crónica -) Gericada, 50 (Influência Germânica
-), 317,
323
guerra, 15, 230, 243, 297
gêâmbia, 292
Impónpria (Derivação -) Indo (Linguas . -germânicas)
grande, 35 grandis (atim), 264 Graves (Palavras -) Grega (Influência -), 294 grenha, 292 greu, 314 eruta, 295 Guad-, 301
galera, 293, 316 Galego-português, 204
«im, 305
Inglesa (Influência -) -«“inho, 79
granja, 316
galego, 283 gateota, 293, 316
«ilha, 78 ille (latim), 12
gradir, 429 gramofone, 283 grandorro,
freire, 79, 314 freixo, 258 fresco, 297 frete, 316 frota, 316 fruito, 279 fulano, 283 funcho, 58 fundo, 285 furacão, 319 gaanhar, 364 gabarola, 73 Gabricl, 296 Gaíia, 273 gaiola, 286
PORTUGUESA
(francês), 292
êarçlim. 298, 316 Jarra, 303
jaula, 35. 286, 287 javali, 302 jogral, 313
jóia, 316
jorna, 316 Joseé, 296
jour (francês), 213, 347
jubileu, 295
Juramento de Estrasburgo, 207
hora, 291
juso, 316 labrústico., 75 tadino, 35, 191 laranja. 273, 307, 308
humilde, 318 hurrah!, 298
gesso, 295 Gibraltar, 299, 302
, 76, 305 I (Pretérito simples em -), 275 1 Pretérito terminando em -)
Tastro, 317 Latim, 187, 231
gineta, 302
.ia, 76, 80, 295
Latim lusitânico, 248 Latim vulgar, 7, 231, 212, 252 Latino (Vocabulário não -) lealdade, 316 Tlebrel, 314
-),
' 296, 328
Germánicas (Línguas indo- -)
Germânico (Ramos itálicos do tronco indo- -) germano, 227
hollah!, 298 honorare (latin), 345
ÍNDICE legalidade, 35 legere (latim), 262 légua, 14, 292 leigo, 359 leitociro, 303 Leiria, 293
morro, 290 morto, 353 Mossâmedes,
trecho
leque, 321 leste, 317 Téu, 314 levar, 348, 395
lexicologia, 262 léxicon, 261 Léxico — Português ( Fontes do -), 281, 296, 311, 323 lezíria, 302 lhano, 40 “lho, 78 líceu, 294 ligeiro, 285 limão, 307, 309 tímpido, 35 lindo, 34, 35 linguagem, 195
linguarudo, 71, 73 Linguas (Classificação das -), 157 Linguas indo-germânicas, 165 Línguos românicas, 7, 190,223
(- no Ul-
linguiça, 245 lírio, 81 livre, 337
lo, 12, 217, 247, 248
lódão, 68
logar, 429 «logia, 129, 262 loiscira, 30 loja, 297, 316 tona, 14 lôntrega, 79, 80
loquaz, 361 torandro, 271 297
lousa, 283, 289, 3168 lua, 78 lucro, 35
lundi (francés), 213 lup (romeno), 199 Lusitânico (Latim -) luva, 297, 316 M (Acção do - inícial), 409
mano, 35 manselinho, 75 manta, 290 manteiga, 290 máãozudo, 71 mar, 213 maravilhar-se, 410 marca, 297 mardi (francês), 213 maré, 316 marcchal, 315 marífil, 302 marfim, 296, 303 Maria, 296 Maricas,
muito,
museu, 294 música, 318
-N- (Acção do -), 22
Nacional (Biblioteca -) nadir, 304 naipe, 318
namorado, 94 nastro,
315
marroquim, 76 mastro, 317
nave,
matar, 301, 305 mate, 301, 305 matraca,
301
meada, 219 médico, 314 meesmo, 338 mege, 313, meias, 82
meio,
314
36
mejão, 314 melca (latim), 228, 297 meloal, 78 mençonha, 318 «mente, 53, 274, 318 mentes (parar - em) mesena, 317 mesnada, 314 mesnée (francês), 314
mesquinhice, 30 mesquinho, 300, 304 messias, 295 mestre, 36
Metafonia morfológica, 248 midi (francês), 213 Miguel, 296 milfurado, 44 Militar (Arte -) mim, 32 mina, 14, 80, 292
mismo
(castelhano),
missa, 3143 mobilizar, 78
macar, 361
modorra, 290 móôcsteiro, 316 mogo, 312 mógono, 320 moine (francês), 342 monge, 285 a 287, 314, momento, 125
maestro, 36 Mafomude, 30º
inagnue, (latim), 264 315
Morfológica (Metafonia -) morrer,
352
290
navio, 417 nédio, 34 Negação, 21 nem, 344 nembrar, 412 nemo (latim), 57 nenhum. 347 Newutro (Géncro -) nhónhó, 314, 221 niente, 318 nihil (latim), 54 nora, 11, 240, 302 norte, 314 Novogilde, 297 Ns «S, 345 nume (romeno), 199 número, 70 o, 12, 247 G (Pretérito simples 275 obra, 36 obscurecer, 83 oc (francés), 202 od-, 301 neste, 317 oficina, 285 ogano,
429
ogival, 386 oi (ditongo), 220 «oila, 77, 81 olho, 35 -om (-õ, -on), 21 on (francés), 211 on (romeno), 199 oncle (francês), 295 Onomatopeias, 41
338
moçárabes, 270 mocelinha, 75
mácula, 34 macuta, 319 madeixa, 295 madre, 31, 34
297
nata, 294 nava, 14, 287, 290 Navarra, 290, 339
81
marqueês,
32, 35
mulato, 78 múrio, 68 maurta, 295
maçã, 36 macaco, 319, 359
mais,
302 mot (francês), 315 mote, 315 movimento, 125 moy — muy, 343 mozârabes, 15
manducare (latim), 244 manger (francês), 214
Tlembrar, 35 «lengo, 80, 297
loução,
DE VOCÁBULOS
mal, 3614 malha, 36, 58 malsinar, 296 mancha, 36
Leis de Partida (Um das-), 354, 359
Linguas românicas tramar), 214
ALFABÉTICO
.or,
342
21,
274
orange (francês), 308 orangotango, 321 orelha, 35, 240, 245 órfão, 294 ório, 75 Orionte. 304
em
-),
4836
LIÇÕES DE FILOLOGIA
-oro, 66 -orro, 281, 291 Ortografia, 36, 100, 101. 10º,
106, 110. 111, 112, 117, 118 OU « AU, 345 ou (ditongo), 220 oui (francês), 202
113,
nusar, 246 outrosi, 347 ouvir,
409
oxalaá, 15, 305 -oz, 65
paço, 21, 35, 348 padre, 31, 33 padrôadigo, 362 Pagem, 295 pagode, 321 pai, 55
Pais, 412 palafrém, 292 palavra,
Palavras Palavras Palarras Palavras Palavras Palavroas palhaço, palhoça,
242, 361
agudas, 63 eruditas, 23 graves, 61 parassintéticas, 99 populares, 23 semi-eruditos, 93 78 78
pampa, 320 paparraz, 304
PORTUGUESA quercr, 352 querubim, 293 quilha, 317 -R- (infixo), 70 rabeca, 304 rabicho, 78
perfurado, 44 pergaminho, 294
periodo, 294 perigo, 336 Pero, 290, 336
perro (castelhano), 290 Pertucinho, 75
radiografia, 283
peru, 321 pesar, 242, 347 pesaroso, 73 piano, 40 piedoso, 336 piloto, 317
Rafacl, 296 Raiz,
pilríteiro, 362 pimpollo (castelhano), 220
pleno, 35 podengo, 290
Poética (Arte -) pois, 335
pois que — depois que, 313 pojar, 316 polítego, 70 polvo, 295 ponere (latim), 345 popina (latim), 187
-)
Portugal, 272 portugalês, 273 Português, 7 Português (Galego- -) Português (Léxico -) Português aurcaico, 17, 331, 340, 351, 368, 377, 403, 423 Possessivos (Pronomes -) potestade, 317
Partida (Leis de -) Partitivo, 21 pássaro, 70 pároco, 294 Páscoa, 295 passo, 21 pátios, 303
peça, 14, 292
pedistria, 306 pedra, 244, 283, 294 pedrita, 78 Pedro, 343, 350 pego, 58 Pelaio, 81
peligro (castelhano), 336 pendença, 363 pente, 258 per-, 44, 53 pera, 418
perdigoto, 78
pouco, 345 pousar, 429 pouvoir (francês), 211, 241
Prefixação, 86 Prefixos, 53 FPrefixos (Repetição de -), 96 pregar, 35 prenda, 319 preste, 314 Pretérito
(- simples
em
1)
Pretérito (- simples em 0) Pretérito terminado em 1, 21 proa, 317 Próclise, 60, 253, 335 promessa, 343 Pronomes possessivos, 21
Prótese,
92
punhal, 317
punhar, 422 purecia, 326 quaresmna, 259 queimão, 329 queimar, 295 querena, 317
refece, 304 refens, 303 refra, 313, 394 reger, 31 Reinaldo, 14 relógio, 294 rico, 287, 297 ricome, 428 rimance, 197 roca, 15, 297 rocha, 292
par, 87 Paragoge, 88 paraiso, 307, 321 parameira, 290 paramo, 14 parar (- mentes em) parar mentes em, 3145
Particípio (Variabilidade do -) Particípio terminado em «udo, 21, 246, 337
78
recorrer, 31
porão, 242, 285 portádego, 77
pardeus, 420
rapagote,
rebelde, 318 recado, 427 Recarci, 14, 230, 297 receber, 347
papel, 294 papelucho, 78
Parassintéticas (Palavras -)
do-germânico, 177
re-, 41, 53
PL-. » CH., 318 plano, 34, 36 planus (Ilatim), 285
(Etimologia
Raízes, 50 Râmalde, 297 Ramiro, 312, 352 Ramos itálicos do tronco
rapazito, 78
pinto, 68 pires, 321 pizarra (castelhano), 290
Popular
55
Rodrigo, 14 rolha, 58 Roma, 197 romance, 9, 195 romanço, 9, 195 romanesco, 191 Tomânia, 195, 190
Românicas (Línguas -) românico, 9, 191 romant (francês), 196
romanz (Írancês), 196
romeiro, 191 Romeno, 198 rota, 293 rotundo, 35 roubar, 297 -rtro, 78, 80 rua, 305 rueiro, 285 rufus, latim, 187 ruivo, 34 rústego, 70 S NS, 315 sábado, 295 saber, 3148 snbor, 348 socar, 346 saco, 293 saia, 292 sair, 347
Salema, 302 samarra, 290 Samuel, 296 sanefas, 303
in.
ÍNDICE ALFABÉTICO tabaco, 319
sanfona, 295 sangue, 243 são, 35 Sardo, 201 sargento, 316 sarna, 290 sarracina, 291, 318 Satanás, 295
tabiques, 303 tafur. 318
Tagilde, 230, 297, 342 taipa, 290 taleiga, 303 talento, 295 talmude, 295 tambor, 301 tante (francês), 295 tara, 303 tarecos, 303 tarela, 301 tarifas, 303 «tário, 79
sauver (francês), 213 savão, 292
savoir (francês), 211 sazon, 427
serofa (latim), 187
se, 31 sécula, 75 seda, 201
Tarquinius (latim), 18º
segrel, 313
tasca, 318
segundo, 336
teatro, 29t
segurelha, 306 selecta, 263 selha, 360 selo, 35 semana, 295 sengo, 408, senther, 313 senhor, 2314, 314, 392 scntinela, 317 ser, 346 Serafim, 295 seroor, 85
seta (latim), 201
seta, 259 sete, 356 si (castelhano). 202
si (italiono), 202 sic (latim), 202 Silaba tónica, 60 sim, 202
Simão, 81, 359 simoniaço, 359 sina, 41 Sincope de vogais breves, 257 singrar, 317 sire (francês), 212 sirgo, 81 siso, 315 sítio, 15
so (castelhano), 364 soberba, 297 sobrar, 34 sobrinho, 361 socrático, 136 Soeima, 302 sofrer, 410, 411 suga, 14, 292 soldo, 35 soncto, 319 sorvele, 286, 287 sou (possessivo ). 364
soufírir (francês), 216
Suarabacti, Substantivos Su(l'xo:, 1, sul, 317 sumarento, Susana, 296
258 verbais, 82 50, 60 ' 73
sitor (latim), 57
teiga, 303 teixugo, 297 telefone, 283 '
telha,
58
Tema,
55
tenmeroso,
336
tenir (francês), 211 tenoir (francés), 211 teor, 36 terno, 35
terra, 243
tête (francês), 233 Tingo, 296 tição, 345 til, 319. 360
«udo, Udo em ufano,
70 (Particípio -) 297
-ugem,
78
«ula. 58 -ulha, 78 ulteriormente, 285 Ultramar (Liínguas cas no -) «ulus
terminado
(latim).
Români-
72, 74, 80
urraca (castelhano), 290 -«urro, 284, 291 -ustre, 65 Variabilidade do participio, 21 vassalo, 14, 299 Vaticana (Cancioneiro da -) veiga, 14, 287, 290, 318 veio, 285 -«vel, 59 velhaco, 78 velhusco, 78, 79 velido, 243, 418 veniaga, 321 ventrecho, 578 ventura, 421 ver, 318 verão, 82 Verbais (Substantivos -)
Verbal (Conjugação -) Verbal (Derivação -)
tio, 295 titulo, 360 -to, 78 toalha, 297 tomar, 287 tomnte, 320 tomilho, 78 tona, 292 Tónica (Sílabo -) Torcato, 288 tordo, 290 «tório, 45, 79 toupeira, 81 trabalhar, 346 trado, 292 traje, 285 trambolho, 78 trazer, 427 trégua, 15, 297 treinar, 312 treito, 273 tremoço, 286, 287, 306 trevas, 258 trevo, 135 triaga, 286, 287. 306 triste, 80 trobar, 428
Troia, 375 Troiana (Crónica
437
DE VOCÁBULOS
-)
trouver (Íranceês), 313 truão, 14, 293 túlipa, 321 U (Queda do - em hiato), 258 ta, 279
verho, 408 Vicente, 81, 359 videira, 385 vidro, 80 viciro, 285 vindima, 363 vingar, 422 vinha, 58, 385 vinheta, 385 Viriato, 288
vivenda, 285 Vocabulário não latino, & Vocalização, ver: C Vogais (Contracção de -) Vogais breves (Síncope de -) vosco, 427 vol (francés), 212 vouloir (francês), 212 vozeria, 73 xadrez, 305, 307 xaquemate, 301 xarope, 286 xe, 275 xeque-mate, 305 xi., 275
-Z- (infixo), 70, 80
zaga, 15 zagal, 302 zaguião, 303 zcbra, 307, 319
zénite, 301 zero, 301 zona, 295
zorro (costelhano) zurame,
303
ÍNDICE DISCURSO
DE
GERAL
APRESENTAÇÃO LIDO NA SALA DOS CAPELOS
PELA AUTORA .......JllllllÂÁÀlo
I Prelecções Liçãto
feitas ao Curso
1. — GENERALIDADES:
de
1911l1912
[Recapitulação
do
Pro-
grama. Linguas românicas. O português — transformação orgânica do latim vulgar.] ......... »
11. — GENERALIDADES: [ Períodos e características do português arcaico.] ..liiirariassaraaiaaos IIT.
— GENERALIDADES: [Palavras populares, eruditas e semi-eruditas. ] .ececicenmacasraaaços.
IV.—;GENERALIDADES:
»
[Formas
divergentes
ou
alotrópicas. O problema ortográfico.] ........l.0..
33
V.— [DERIVAÇÃO E COMPOSIÇÃO. Noções gerais, preliminares, teóricas] .n
40
VI. — [DERIVAÇÃO.
Raízes (radicais, temas ou ba-
ses) e afixos. Sufixos mortos e sufixos vivos ......
50
VII. — [DERIVAÇÃO. Excurso prosódico. Sufixos áto-
”
»
nos e esdrúxulos: Explicação da sua actividade na linguagem popular] .a
60
VIII. — [DERIVAÇÃO. Sufixo -udo; infixos -z- e -r-; -aria — eria. Sufixos de proveniência não-latina. Outros processos de prefixação expressivos ou pitorescos] ..iiisacararacaaceracaaaaaaos
70
IX.— [ Resenha dos principais processos populares de sufixação. Derivação imprópria. Derivação verDal] Jn eeeracecaraaeess
80
X. — [PREFIXAÇÃO. Excurso: Névoas de antano. Prefixos nominais e verbais. Notas diversas] ...
86
APÊNDICE:
A ORTOGRAFIA
NACIONAL
...
100
440
LIÇÕES
DE FILOLOGIA
PORTUGUESA
II FILOLOGIA
Prelecções
PORTUGUESA
feitas ao Curso de
(1)
1912!1913
L. — FILOLOGIA : Noções etimológicas e semasioló-
Lição
BICAS .s eec aac acceoeoresaçaeno:
11. — História
da Filologia
..l
aaan
»
IIT. — GLOTOLOGIA
..s
»
IV. — Classificação das línguas ..s V. — Línguas indo-germânicas
»
125
136
146 157
...l
165
VI. — [AÀ escrita.] Os ramos itálicos do tronco indo-
:)
BCrMânico
VII. — Linguas
..l eacoecava sac
românicas
ou neo-latinas
177
.......l.10.000eo
190
VIII. — O documento românico mais antigo ( Juramento de Estrasburgo, de 842). Variantes ultramarinas das linguas românicas e dialectos crioulos ......
207
IX. — Cronologia dos falares romanços : L. Desde quando há língua romana, diversa da latina? 1. — Quando nasceram, e como se desenvolveram aàas
línguas românicas diferenciadas
...llllllleiaao.
223
X. — Latim falado e latim escrito. Que sabemos nós do
»
Sermo
Vulgaris,
Nicas?
Lsc eec saacaaÇaos
231
XI. — LATIM VULGAR. — As suas tendências fonéticas, morfológicas e sintácticas ..lllliicaaaneoo,
243
X1IIl. — LATIM
como
VULGAR.
O
base
acento,
das
línguas
alma
da
romã-
palavra
— 252
..ieceercrraraaracaaaos
261
III FILOLOGIA I
Lição »
H
PORTUGUESA
(XIII). — Introdução
(XIV) — FONTES
DO
LÉXICO
(II)
PORTUGUÊÉS
281
441
ÍNDICE GERAL
Lição HI »
— (XV).—
IV
»
V
FONTES
DO
LÉXICO
PORTUGUÊS:
Os elementos árabes ..llcececcaaaaçer.
299
(XVI). — FONTES DO LÉXICO PORTUGUÊS: Vocábulos provenientes das línguas faladas na Europa, na Idade-Média .........
311
(XVII).—ú á FONTES DO LÉXICO PORTUGUÊS: Estrangeirismos recentes ....lillicnaaioo,
323
IV LIÇÕES
PRÁTICAS
DE
PORTUGUÊS
ARCAICO
Leitura e Explicação de Textos dos Séculos XIII e XIV (em Fac-símiles de Manuscritos antigos) Lição
IT. — Transcrição,
crítica
e
anúlise
vocabular
fnc-símile 1, da Crónica Geral, de 1404
»
II.
” n
» »
.........
.
331
— Transcrição do fac-símile IT: Outra versão galego-portuguesa da Crónica Geral. Notas suplementares, a respeito dos fac-símiles 1.º
»
do
e 2.º ...
— 340
— Transcriçõão do fac-símile 1: Uma página das Leis de Partida Jn
354
— Transcrição do fac-símile IV, da Crónica Troiana, escrita em galego-português ......1111..o
368
V. — Reprodução do fac-símile V, do Cancioneiro da Ajuda. O Cancioneiro. À métrican trovadoresca
— 377
VI. — Transcrição do fac-síinile VI, pocesias do Cancioneiro da Vaticana .l
4103
Colocci-Brancuti
423
111. IV.
VIl—
Uma
página
ÍNDICE ALFABÉTICO
do
Cancioneiro
DE VOCÁBULOS
......isiaaaaoo
431
ACABOU DE IMPRIMIR-SE PARA AS EDIÇÕES DA «REVISTA DE PORTUGAL», NA TIPOGRAFIA DA NEOGRAVURA, LIMITADA, AOS 31 DE MAIO DE 1956