Linhas de Escrita

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traço linhas, linhas de escrita, e a vida passa entre as linhas

(Deleuze e Guattari)

Tomaz Tadeu Sandra Corazza Paola Zordan

Linhas de escrita

Copyright © 2004, by Tomaz Tadeu, Sandra Corazza, Paola Zordan Capa Jairo Alvarenga Fonseca (Sobre desenhos de Franz Kafka) As vinhetas que abrem os capítulos também são desenhos de Franz Kafka: © Archiv Klaus Wagenbach)

Revisão Rosemara Dias

2004 Todos os direitos no Brasil reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica sem a autorização prévia da editora. Autêntica Editora Belo Horizonte Rua São Bartolomeu, 160 – Nova Floresta – 31140-290 – Belo Horizonte – MG Tel: (55 31) 3423 3022 – TELEVENDAS: 0800 2831322 – www.autenticaeditora.com.br e-mail: [email protected] São Paulo Rua Visconde de Ouro Preto, 227 – Consolação 01.303.600 – São Paulo/SP - Tel.: (55 11) 3151 2272 Tadeu, Tomaz T121l Linhas de escrita / Tomaz Tadeu, Sandra Corazza, Paola Zordan. – Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 208 p. ISBN 85-7526-125-8 1.Educação. 2.Filosofia. I.Corazza, Sandra. II.Zordan, Paola. III.Título. CDU 37 1

7 Geo-educação: arte e paisagens virtuais

55 Um plano de imanência para o currículo

135 Pesquisar o Acontecimento: estudo em XII exemplos

Geo-educação: arte e paisagens virtuais

Geo-educação: educar na Terra, educar da Terra, educar para a Terra, junto a seus devires e seus povos. Não se trata de pensar uma educação para os filhos dos homens, mas sim de pensar uma educação para todos os filhos e frutos da Terra. Géia, Gaia, não apenas como ecossistema vivo ou planeta dentro do sistema solar, mas Terra como comunhão de forças em um só corpo. Corpo da Terra, do qual fazemos parte, nós, seres que movimentam esse imenso agenciamento chamado Educação, que dão aulas, movem máquinas e burocracias e escrevem trabalhos acadêmicos. Mais do que nosso “lar”, chão por onde perambulamos em consonância com a volição dos astros vizinhos, a Terra é o lugar onde passamos uma vida, uma paisagem onde encontramos vários tipos de vida. Aliás, não conhecemos nada da vida, a não ser perscrutando esse vasto corpo e sua imensidão de superfícies, mil e

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tantos platôs em constante desterritorialização, junto aos quais se desenrolam multiplicidades de existências, orgânicas e inorgânicas, voláteis e densas. Essas multiplicidades existenciais exprimem-se nas variações desses platôs e nos infinitos acontecimentos que criam e recriam as paisagens apresentadas pela Terra. As paisagens existenciais são traçadas numa profusão de forças que se compõem entre si, estabelecendo uma variedade de performances, jogos e regras que não cabe enumerar. A melhor composição de uma paisagem, mesmo a pequena e “insignificante” paisagem a nosso alcance, o mundinho restrito que cabe nos poucos pontos de vista que cada um ocupa, é o propósito da geo-educação. A geo-educação aparece como arte de compor paisagens existenciais, por menores que sejam. A tarefa é pequena, mas seu alcance pode ser infinito, visto que as composições mais potentes e vitalícias contagiam e se espalham no pulsar dos corpos e seus incertos corações. Potencializar as forças que compõem a vida, nossa própria vida e daqueles que amamos, obviamente não é prerrogativa de professores, educadores ou profissionais da Educação. Parte da idéia grega, adotada por Nietzsche e trazida até nós pelos estudos de Foucault, que trata de fazer da vida uma obra de arte, ou seja, extrair da própria existência uma virtuose. Isso não quer dizer dominar “virtuosismos”, ser um artista publicamente reconhecido, um “ás” em alguma coisa. Essa arte não tem nada a ver com aprimoramento e anseios individuais ou realizações subjetivas; muito pelo contrário, é, antes de tudo, impessoal, de modo que tem a

ver com a qualidade dos instantes e a singularidade de cada perspectiva. Educar para uma existência artista implica o sacrifício dos posicionamentos autocentrados em prol da paisagem, tanto em sua extensão concreta como nas intensidades que a atravessam. GEO-EDUCAÇÃO: ARTE E PAISAGENS VIRTUAIS

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Criar virtuoses numa paisagem existencial é gozar dos blocos de sensações que a compõem, escolhendo afectos que potencializam os elementos que estão em jogo. Tais gozos e escolhas estão implicados em condutas éticas e estéticas, cuja única finalidade é intensificar os perceptos e abrir o corpo a experiências peculiares da matéria e do pensamento. Pensada junto ao plano de imanência geo-filosófico – o pensamento esquizoanalítico de Deleuze e Guattari – a geo-educação é uma prática artística, embora não restrita ao plano de composição da arte. Mesmo que parta de uma perspectiva que privilegie as artes e tenha como solo a disciplina quase marginal legada ao que os currículos oficiais chamam Educação Artística, a geo-educação extrapola os espaços escolares. Não há, mesmo na mais acirrada cultura acadêmica, um local absoluto para a aprendizagem de uma arte, um espaço único que seja legítimo. Expropriada, possuída, a arte é um transe sem dono; não possui nada, mas pode tudo. As artes fiam as tessituras culturais, os traços mutáveis que definem a vida de um povo e seu devir sobre a superfície da Terra. Manifestação de práticas, expressão de uma composição divergente daquela ordenada pela Natureza, a arte cria modos de vida, mostra os afectos de grandes e pequenas multidões e expressa os devires da Terra.

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Dimensões moleculares Quando falamos Terra, a tendência é pensar na grande massa esférica, suas múltiplas camadas, oceanos e continentes, enfim, na dimensão de um planeta. Sem dúvida, a Terra é nosso ponto de referência no cosmos, visto que nos situamos sobre sua pele ou casca planetária e sob sua atmosfera de gases, lócus essencial para todos os tipos de vida que a povoam. No entanto, mesmo que o desenvolvimento tecnológico tenha diminuído as distâncias entre os seus vastos territórios, a Terra só pode ser apreendida pela captura de perspectivas e horizontes singulares, individuados. As sensações que aprendemos com a Terra, nas perspectivas que temos da Terra, mesmo que alcem vôo em pensamentos que se estendam às suas vastidões, são sempre ínfimas, parciais, particulares. Para complicar ainda mais, as paisagens capturadas são também instáveis, dissociam-se de si mesmas conforme as forças que as atravessam. Os pontos individuados, que determinam as relações topológicas intrínsecas às perspectivas, também são inconstantes, mutáveis, suscetíveis a uma série de afectos que os desloca, fazendo com que se tornem outro ponto, outro topos, outra individuação. Não há um ponto de referência; nem mesmo a Terra pode ser um ponto de referência, pois nem mesmo a Terra que tomamos como chão e sustentáculo pára. Qualquer referência é apenas um artifício para possibilitar o estudo, a explicação das complicadas forças que colocam as paisagens em devir.

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O molecular tem a capacidade de fazer comunicar o elementar e o cósmico: precisamente

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Tais forças são complicadas porque não há como situá-las em uma dimensão, capturá-las na perspectiva molar da paisagem percebida pela aparelhagem cerebral. O movimento do devir é imperceptível e molecular, acontece no tempo ínfimo em que as partículas mínimas de matéria (que a física quântica presume serem pura energia) se deslocam. Esse deslocamento, essa eterna linha de fuga, é a única regra para a Filosofia da Diferença, cujo trabalho é mapear os agenciamentos entre forças em devir. Os mapeamentos geo-filosóficos também adentram-se na ciência a fim de explicar o comportamento imperceptível das partículas no interior da matéria. Além do desenvolvimento da tecnologia, dominar o funcionamento molecular possibilita uma perspectiva panorâmica das estruturas maquínicas que compõem as múltiplas dimensões caósmicas. A própria Terra, os sistemas estelares e as galáxias podem ser pensados como moléculas. Bandos de elementos químicos, as moléculas são agrupamentos maiores ou menores de corpúsculos atômicos que agem e reagem aos movimentos das partículas subatômicas. Essas partículas, além de apresentarem uma natureza psicótica, pois não se definem nem como substância nem como onda, são compostas, por sua vez, por partículas ainda menores. Não entro aqui no plano quântico, embora tenha que considerar as microdimensões, possivelmente entronizáveis ao infinito, junto às quais a matéria é pensada.

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porque ele opera uma dissolução da forma que coloca em relação as longitudes e latitudes as mais diversas, as velocidades e lentidões as mais variadas, e que assegura um continuum estendendo a variação muito além dos limites formais. (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 112)

Para Deleuze e Guattari, o molecular é o próprio ritmo do cosmos, a onda infinita que faz tudo pulsar. Por tratar dessa força imperceptível, indiscernível e impessoal, muitas vezes a filosofia de Deleuze é acusada de “esotérica” ou “hermética”. Entretanto, ao longo de toda sua obra, Deleuze mostra as mais diversas imagens de pensamento que as ciências, as artes e a filosofia criaram para explicar a vida e o que nela está envolvido. Traçar um plano é, de alguma maneira, traduzir as sensações e as forças de seus devires em imagens de pensamento. Tais imagens são abstrações formais, códigos criados para exprimir o indizível das forças, junto aos quais o plano é colocado em funcionamento. Para a Educação, o que interessa são os modos de codificação, pelos quais conseguimos aprender as forças intrínsecas à matéria. A matéria, composta por trocas imperceptíveis de energia, quando não recortada por imagens de pensamento, torna-se força caótica, completamente indiscernível, impossível de abarcar, letal para o intelecto, fora do racional. No entanto, é papel da Razão conduzir as forças para a imagem, para seu número de expressão, forma ou palavra que, ao explicar o caos por meio de uma ciência ou de uma arte, introduzem as

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Pensar sob dimensões moleculares não é se referir ao invisível, microscópico. Moleculares são agrupamentos, arranjos entre elementos que tanto podem divergir como convergir, mas que permutam suas partículas e contagiam moléculas vizinhas. Moleculares são as linhas de fuga, as linhas “menores”, que escapam às imagens homogêneas que, porventura, venham habitar um plano. Disjunções do próprio plano, as linhas de fuga operam desterritorializações e abrem vias para a passagem dos devires. Quando Deleuze e Guattari analisam Kafka como “literatura menor”, pensam o menor como aquele que está abaixo da palavra de ordem, como aquilo que escapa à Lei, ao Significante e ao Édipo.

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Uma educação menor

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forças da matéria em algum tipo de ordem. O problema é que esse ordenamento não compreende uma organização ou organismo e sim estruturas abertas, séries de imagens que permutam seus códigos, composições entre elementos aleatórios, similares ou distintos, envolvidos numa espécie de lógica criadora de superfícies, ou melhor, de planos de consistência. Mesmo que disponham de imagens, os planos não constituem organismos ou formas molares; são sempre estruturas moleculares mesmo quando estendidas ao infinito sideral, pois tanto as galáxias como as mínimas partículas na interioridade da matéria fazem parte de um imensurável corpo sem órgãos, onde caos e cosmos se compõem.

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O menor é o que está do lado de fora. Não é necessariamente excluído, mas localizado fora das imagens das quais se valem as maiorias. Tais imagens são dogmatismos constituídos em linhas molares, de padrões segmentares traçados de um ponto ao outro, que evitam um terceiro termo e temem a mobilidade dos elementos. Esse tipo de linha opera como máquina binária, comprometida com o estabelecimento de valores que se opõem entre si para afirmar uma imagem como verdade. Tal imagem, implicada numa máquina de captura estatal, constrói uma paisagem existencial molar que identifica uma nação. Um aparelho binário, segmentado, comporta multiplicidades, forças moleculares que desmentem sua organização molar e afirmam a efervescência e a ebulição que acontecem na interioridade das linhas traçadas por suas cartografias. Deleuze afirma que a principal característica de uma sociedade são suas linhas de fuga e demonstra isso, em seu livro sobre Foucault, tratando as linhas de um território como traços diagramáticos maleáveis, que se dobram e se desdobram, fazendo com que o fora passe para o lado de dentro e vice-versa. O fora é o molecular dentro da própria paisagem, o movimento que não se percebe no horizonte, puro ser da sensação. A sensação acontece na singularidade da paisagem, nas intensidades moleculares junto às quais as paisagens se compõem. Uma nação-estado extrapola a pátria natal porque é feita sobre paisagens que presumem povos, mas os povos antes pertencem às paisagens do que às nações. A paisagem subsiste ao povo; ela cria os povos e produz

Bastaria fazer um panorama dos currículos escolares ao longo dos dois últimos séculos para constatar a preponderância das ciências. Tanto a filosofia quanto a arte foram relegadas a segundo plano no projeto educacional moderno da Ilustração, cunhado pelo espírito positivista e científico. O plano de referência traçado pela ciência foi instituído como o conhecimento legítimo, que não apenas se estabelece como modo de se acercar do mundo material como também vai incidir sobre os corpos, coletivos e individuais. Sob a lógica da conservação

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Ao invés de estabelecer imagens dogmáticas ou procurar paisagens estereotipadas para criticar, uma educação menor lida com o paroxismo das imagens e a incongruência dos devires da multidão. O molecular, a minoria, o “menor” implicam suscetibilidades e variações inerentes ao funcionamento maquínico de todo território. O menor se exprime na multidão e funciona como força subterrânea, cheia de fluxos contraditórios e divergentes, que proliferam e desafiam a imposição de um só dogma, de uma só imagem para a verdade, de uma ciência magna1 funcionando dentro de regimentos

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suas multidões. Mesmo decalcada na imagem molar de uma nação, a paisagem é um bloco de sensações, um agrupamento molecular e o devir de um povo. Não um conjunto de cidadãos, mas a expressão de um povo indefinido, anterior à sociedade e suas organizações, “sem mitos nem modelos, nem histórias ‘majoritárias’, ainda por inventar” (RAJCHMAN, 2002, p. 37), por vir. A paisagem é uma composição de mínimas congruências entre povos cujos fluxos divergem, as forças se estranham e criam imagens anômalas, misturas de saberes e toda a sorte de distorções na linguagem e nos estilos.

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fechados, organismos ou instituições. Feita com a multidão, uma educação menor se dá nas permutas entre as diversas minorias que a constituem. Essa educação pressupõe saberes ambulantes que possibilitam a absorção e oferecimento de experiências, exposição de manejos, mostras de material, variações de matéria. A educação menor é uma prática desterritorializadora, algo em vias de se fazer, nunca sobre aquilo que já está dado, mas sempre com o que está para chegar. Por isso, envolve um certo mistério, uma complicação que é seu charme, pois beira o impossível, ao se constituir junto a um saber que ainda não é, mesmo que, para entrar em uma imagem do pensamento, de algum jeito já tenha sido.

Imagens de pensamento pop A geo-educação se faz junto ao pensamento micropolítico que coloca os problemas das minorias, considerando as explicações e complicações do devir da multidão. A multiplicidade de devires na multidão são as forças geo-políticas moleculares que constituem a pop’filosofia deleuziana. Uma filosofia que se ocupa com as imagens de pensamento dos povos faz perguntar como foi possível o projeto educacional moderno sobreviver até o século XXI ignorando saberes marginais que rondam de indivíduos e espécies, a vida, pensada a partir de concepção de bio-poder, passa a ser a moeda máxima da própria Ciência, seja esta Natural, Exata ou Humana.

Deleuze e Guattari apresentam as ciências ambulantes nas proposições que tratam da epistemologia e da noologia das máquinas de guerra. Cf. Mil Platôs 5. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 24-62.

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O perigo das imagens de pensamento não se deve ao fato de serem encontradas “na boca do povo” ou de servirem como estandartes para suas crenças. Não é a natureza das imagens nem seus graus de incidências sobre os territórios que estereotipam os devires, transformando blocos de sensação em clichês representacionais, mas sim o tipo de uso a que se prestam. O problema dos

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as multidões. Como evita pensar a antropofagia que envolve os acontecimentos de aprender e ensinar, a educação moderna parece não levar a sério movimentos como o dadaísmo, a pop-art e permanece quase alheia ao hippie, ao punk, ao dark, aos panteísmos, às bruxarias e tudo mais que possa desestabilizar a soberania do cogito. Sem desestabilizar as crenças que fundamentam o senso comum e suas miríades de paradigmas espiritualistas, esse projeto preserva as carcaças do que resta da sociedade disciplinar e de seu ranço enciclopédico. Tal sociedade cunhou as instituições escolares modernas sobre imagens dogmáticas de pensamento e erradicou as prestidigitações das ciências sem métodos, os saberes nômades que se afirmam em imagens de pensamento vagas, confusas e distorcidas. Essas imagens pertencem às “ciências ambulantes”,2 confundidas com artes vagabundas, cujos resultados são tidos como obscuros e duvidosos, mesmo quando incorporados aos territórios e estampados na paisagem cotidiana.

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clichês, imagens estratificadas, não são as formas-forças-conteúdos que estão em jogo nas imagens e sim sua serventia ao senso comum. As imagens pop abrem-se ou não aos devires, de acordo com os modos como são usadas. As complicações da filosofia popular, inerentes à problemática da geo-educação, devem-se à maneira como as imagens funcionam. O que aniquila o devir da imagem é a produção de um saber consensual, legitimado pelos poderes majoritários, que acabam impondo a imagem como uma matéria, uma disciplina do conhecimento. Enquanto a imagem pertencer a um povo, os clichês que a preenchem podem virar matéria para devir, pois, mesmo quando o consenso mais estratificado vira popular, surgem margens para desterritorializações. Sobre zonas marginais é que podemos situar a pedagogia do conceito, idéia que incita o campo educacional a partir de uma breve passagem no início de O que é filosofia?, na qual Deleuze e Guattari situam as três idades das imagens de pensamento: a enciclopédica, a mercadológica e a pedagógica, esta em vias de ser feita. As imagens de pensamento corporificam a intensidade dos conceitos no traçado do plano de imanência, expressam o que se pensa, mostram o que se cria. Quase no final de suas vidas, Deleuze e Guattari lamentam a vergonha de assistir uma idéia de conceito tomada pelo mercado para servir como estratagema vendável. Ao explicar a filosofia como criação de conceitos, a dupla trava lutas contra o marketing e o enciclopedismo que comprometem o criar e impedem o pensar. O plano geopolítico cartografado por Deleuze faz insurgir uma

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Ao contrário do Estado, que precisa reterritorializar os saberes em compartimentos que sustentem seus organismos disciplinares, “todo pensamento já é uma tribo” (DELEUZE e GUATTARI, p. 47), uma multiplicidade de potências virtuais, intensas, que animam os povos e que criam modos de vida heterogêneos e singulares. A perspectiva tribal, privilegiada pela esquizoanálise, não reconhece organismos, não vê células isoladas, somente conjuntos que subsistem em tecidos ou colônias. Mesmo que um organismo se forme, jamais consegue ser uma organização fechada, pois sua sobrevivência depende de suas ligações com os fluxos desterritorializadores da Terra. Na medida em que os organismos são mantidos nas conexões com o habitat – ataque e alimentação, defesa, fuga e proteção –, uma

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Funcionamento esquizo e propagação rizomática

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pedagogia do conceito “contra um novo treino informacional-comunicacional do pensamento e da imagem que, como ele temia, estava a ocupar o lugar do velho ideal enciclopédico” (RAJCHMAN, p. 32), idade do conceito que estancou o nomadismo das ciências e perseguiu a sabedoria popular, sincrética e ambulante. Tal pedagogia, uma prática que trabalha desterritorializando imagens estratificadas, implica a constituição de um plano de imanência geo-educacional que opera nos dissensos da multidão, na multiplicidade de povos e variedades de matéria.

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auto-sustentação é impossível. Frente ao potencial desterritorializador dos próprios organismos e suas organizações, os termos da esquizo-análise se dão a partir de multiplicidades de elementos, de corpos que se compõem e criam afectos entre si, numa profusão de fluxos que se encontram e divergem. As multiplicidades compõem superfícies de passagem que, antes de criar órgãos esparsos, seguem a vaga do sentido. A superfície, planômetro, é o corpo sem órgãos, CsO, e suas linhas de variações, que efetivam divisões territoriais e zonas desterritorializantes. A imagem de um corpo sem órgãos cria projeções, mapas, dispositivos, aparelhos, máquinas que estruturam o topos para a passagem do desejo. A maneira pela qual o desejo corre em uma vida se expressa nos tipos de plano que um CsO compõe. Todas as ligações que constroem um CsO são agenciamentos, práticas micropolíticas que dão consistência a tipos de vida. Corpo de desejo, a superfície plena funciona nas disjunções esquizóides de fluxos que se espalham, se bifurcam, avançam em linhas de devir. O caráter esquizo do desejo é a força intrínseca que o movimenta. Na positividade dessa força, nesses fluxos esquizofrênicos, descentrados e divergentes, os planos são traçados, as paisagens são compostas e as máquinas desejantes, criadas. As superfícies procedem como rizomas, tal qual a grama que cobre a terra bruta ou uma rede maquínica que imanta de virtualidades a casca planetária, atualizando imagens maquínicas no estado de coisas a que são imanentes. Mapear o desejo é seguir as linhas do devir e sobrevoar o plano, alçar vôo para obter uma visão panorâmica das vias e dos territórios produzidos

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O fato do desejo não possuir uma imagem de pensamento estabelecida faz com que os corpos sem órgãos que ele fabrica estejam sempre sob ou sobre os códigos, nunca dentro daquilo que designam, manifestam ou significam as proposições. Matéria do sentido, o desejo funciona como a expressão inapreensível das proposições. Inapreensíveis, os fluxos descodificados do desejo são revoluções moleculares, acontecimentos. Os potenciais micropolíticos do desejo são aquilo

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pelas máquinas que sua força criou. A cartografia das máquinas desejantes mostra que o desejo percorre linhas que estão sempre em vias de se fazer, projetando-se em espaços lisos ainda não territorializados, aparelhados. No entanto, os fluxos desejantes também projetam máquinas, capturam e estriam os espaços. O desejo não se mede, mas engendra-se. A medida do desejo é uma estranha agrimensura do plano, uma análise dos graus intensivos dos afectos virtuais. Tais afectos se dão na profusão de matérias que envolvem o desejo, imagens de pensamento que o complicam. Mesmo enredado, o desejo apresenta uma natureza excêntrica, pois corre para fora e atira-se no indeterminado. Essa tendência do desejo ao caos, ao informado, não é exatamente um instinto de morte e sim a afirmação de sua vontade de potência, a força de vida que lhe é intrínseca. Na vaga deixada pela ausência de imagens experimentadas no caos, espaço liso de matéria in-formada, o desejo se determina. Ao crivar o caos com sua linha maquínica, o desejo institui seus territórios, cria suas superfícies de devir e compõe as paisagens que expressam seus afectos.

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que não pode ser convertido, traduzido, transformado em moeda ou representação, mesmo quando a tendência seja reterritorializar, mesmo quando o desejo produz estados de coisas ou tenta se estratificar na paisagem. Isso porque a potência do desejo sempre dissolve a paisagem para recriar a perspectiva de acordo com seus afectos. Apesar de não pararmos de nos “reterritorializar num ponto de vista, num domínio, segundo um número de relações constantes” (DELEUZE e GUATTARI, p. 40), há nesse número variações, séries divergentes, progressões que desterritorializam os domínios perspectivados. A geo-educação e sua política de superfícies funcionam junto às esquizofrenias do desejo, aos seus revezamentos de tendências e sínteses disjuntivas. Fora do modelo arborescente de conhecimento, a geo-educação confunde ordens, altera classificações, transmuta propriedades e apropriações, criando metamorfoses nas imagens de pensamento. É uma educação esquizo, que, antes de destruir as torres do edifício da Razão,3 segue as trilhas dos bruxos, mestres de efeitos especiais, prestidigitadores, andarilhos, artífices, aqueles que entram nos 3

A idéia de uma esquizo-educação é colocada por Sylvio de Sousa Gadelha Costa, que a pensa sobre as possíveis aberturas no aparelho educacional molar. O autor salienta que essa outra educação só pode acontecer se investir contra seus inimigos: os fascistas, os burocratas, os funcionários da verdade, os técnicos do desejo e as imagens dogmáticas, como se só pudesse existir explodindo com os binarismos clássicos e os organogramas estratificados do edifício educacional. Sylvio Costa descreve o estado da Educação como um imenso “condomínio”, no qual são administrados e condicionados os

Sentido trágico

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corpos e os saberes, de modo a moldá-los numa lógica em que “civilizar, humanizar, esclarecer, são objetos conquistados pela via do conhecimento”. Ao invés de se engajar à civilização e à promoção de valores “superiores”, a Educação precisaria criar linhas de fuga que abram o “condomínio” a inúmeros devires. O problema da esquizo-educação é colocado na medida em que o funcionamento maquínico do educacional resiste às desterritorializações, manifesta na dificuldade em se experimentar transformações, na insuportável falta de estabilidade quando se vive sem coordenadas e direções, “sem imagens definidas, representações claras, objetivas e duradouras”. Por outro lado, perder a capacidade de viver a diferença é perder a possibilidade de inventar, de criar, de engendrar o novo. Quando Sylvio Costa separa “uma sala de aula, com todos os códigos, significações, práticas e marcações espaço-temporais que a habitam”, da vida do lado de fora “em toda a sua exuberância, complexidade, fugacidade e estranheza”, deixa escapar todo o potencial micropolítico que anima os edifícios construídos no campo educacional. Cf. COSTA. Esquizo ou da educação: Deleuze educador virtual. In: LINS; COSTA e VERAS (Orgs.). Nietzsche e Deleuze: intensidade e paixão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000.

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Escapar do Julgamento de Deus não é estar aquém ou além da Lei Suprema ou Verdade Divina. “Ilusões

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palácios, cidadelas e comunidades aprendendo e ensinando sua arte. Traçado nas perambulações errantes das artes ou ciências menores, um plano educacional geofilosófico ou esquizo-analítico é composto por multiplicidades intensivas que transmutam e invertem aquilo que a Razão e seus juízos reconhecem.

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que foram esquecidas como tais” (MACHADO , 2002, p. 101), as verdades se afirmam sobre imagens de pensamento dogmáticas que formam o pano de fundo para os panoramas da Razão. Para acabar com o Juízo da Razão Soberana é necessário problematizar as verdades em que esse se firma, perseguindo as linhas de fuga de suas convenções, contratos, instituições. Seguir sempre linhas menores que permitem que as imagens de pensamento sejam tomadas como miragens voláteis, paisagens transitórias, efeitos de pontos de vista que implicam deslocamentos incessantes. O móbil se deslocando eternamente é o sentido, sempre outro, diferente da proposição que se apreende; perpetuum mobile que se arrasta na amplitude de um movimento excêntrico, “um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante: sempre mais e menos ao mesmo tempo, mas nunca igual” (DELEUZE, 2000, p. 264). A dissimilabilidade é a essência do simulacro, plena imagem sem semelhanças, em que qualquer semelhança é produto de sua diferença interna complicada no caos. Esse desvio essencial é o que Deleuze chama caráter demoníaco da existência estética absoluta, vida do corpo pleno, sem órgãos, trágico. Nem falsa e nem verdadeira, a força abissal do simulacro em que a Filosofia da Diferença se debruça não é simplesmente uma “falsa cópia” que “põe em questão as próprias noções de cópia...e de modelo” (DELEUZE, 2000, p. 161). Paisagem de sombras, os simulacros são as transgressões da arte com seu

mundo de fantasmas,4 ídolos crepusculares, subterrâneos e sobrevôos. Sem chão ou fundamentos, o simulacro abisma as continuidades das superfícies e afirma as potências do falso, desmembrando os modelos e as cópias, tornando-os diferentes de si mesmos.

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Literalmente “deus trazido pela máquina”, alusão ao efeito cênico criado por um sistema de roldanas, inventado na tragédia grega, que fazia surgir o ator que representa um deus suspendido no alto da cena.

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Quando a diferença é a potência primeira, “o mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão serem simulados”, de modo que a seleção e o juízo não sejam possíveis frente a “um condensado de coexistências, um simultâneo de acontecimentos”. Cf. DELEUZE. Lógica do sentido, p. 268.

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A diferença é potencialidade virtual, nunca está dada, pronta, atualizada, mas sempre em vias de se fazer. Criar é produzir a diferença essencial que afirma os simulacros e faz a vontade de verdade virar vontade de potência. A imagem de pensamento acabada, fechada em suas normas e leis pode, então, se metamorfosear num plano informe, aberto e suscetível ao acontecimento. Afirmar os efeitos da arte e seu sentido trágico, expresso na diferença intrínseca entre as forças que potencializam suas criações, é o projeto de mudança de valores pensado por Nietzsche. Proclamar a morte de Deus é aniquilar o valor absoluto das crenças submetidas a uma idéia de Verdade. Deus ex machina,5 algo que surge como artifício dramático para expor os embates entre as forças díspares da existência. No lugar do Deus Dogma instituído pela civilização, a geo-educação faz pulular no

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seu plano os mais diversificados panteões, multiplicidade de deuses menores que atravessam os povos e fulguram em suas paisagens. Simulacros como qualquer outra coisa, os deuses designam nomes para zonas intensas onde os povos alucinam. Cada deus, assim como qualquer outro tipo de entidade mágica, é um campo de potências que não precisa ser identificado a qualquer crença ou religiosidade, mesmo quando situado nas malhas culturais em que estas se entrelaçam. Criações virtuais da multidão, os domínios desses seres incorpóreos são inconclusos, permeáveis, suscetíveis a toda sorte de metamorfoses, conflitos e sincretismos que constituem a matéria dilacerada e aberta produzida pela máquina trágica. Assinaturas de superfícies maquínicas mais ou menos determinadas por certos jogos de forças, os deuses só vivem na medida em que não se constituem como prontos. Não são ídolos ou imagens, mas matérias de devir, blocos de sensação que povoam planos de composição, máquinas artísticas que engendram as diferenças e o retorno das potências que os campos de intensidades apresentam. A arte compõe a paisagem trágica da vida. Em o O nascimento da tragédia (NIETZSCHE, 1992), Nietzsche mostra que o sentido da arte oscila entre o gosto por regozijos e belas formas, cânones que determinam regras específicas para se obter harmonia ou resultados precisos e entre a suscetibilidade a experiências rítmicas, ditirâmbicas, que expressam as paixões do corpo e as sensações impressas na paisagem. Esses dois lados do sentido tomaram de deuses gregos os nomes para suas

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Efeito da arte, na medida em que se deixa atravessar pela estranheza de um elemento extrínseco que o leva a experimentar o caos, o transe implica numa espécie de afirmação da morte. Trata-se da configuração do niilismo produtivo que provoca a ultrapassagem de limiares e cujo propósito é aumentar a vontade de potência. Sem essa passagem, prova de caos, a transvaloração não tem como se efetivar. Deleuze demonstra isso

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forças: Apolo, deus celeste e solar, dominador de serpentes, aquele que engendra as Belas Artes, a Música Orfeônica e a Medicina; e Dioniso, deus telúrico do vinho, da percussão, das danças e das aglomerações. Os termos “apolíneo” e “dionisíaco” figuram o embate de forças intrínsecas à arte, sentidos paradoxais que tanto se distinguem como se compõem. Em uma só prática tais sentidos criam acontecimentos, como a tragédia grega analisada na primeira obra de Nietzsche, junto à qual o funcionamento da tragédia é mostrado como o encontro entre as construções apolíneas, ocupadas com a aparência, as medições e a ordem das transposições entre os elementos formais: as catarses dionisíacas, criadoras de afectos que dão margem às transfigurações e toda a sorte de dissolução das referências experimentada junto à estranheza selvagem das forças. Dois tipos de transe, sonho e embriaguez, dão vazão ao sentido trágico da arte. Longe de uma prática mística, o transe é um estado de passagem que envolve a criação de um corpo sem órgãos, topos para o tráfego de intensidades. Provocase o transe com artifícios, que são as matérias mesmas das artes, onde o transe não passa de efeito.

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na sua imagem do encontro com o fora, choque que impele o pensamento e o obriga a criar. Pitônico, teratológico, os paradoxos do sentido trágico da arte, sens bête, subsistem nos territórios fronteiriços, praias e bordas abissais onde domínios diferentes se encontram e criam zonas indiscerníveis, nas quais elementos distintos se abraçam para criar a singularidade de uma paisagem. Palco onde se desenrola uma vida, a paisagem é determinada por recortes, seleções de pontos de vista, distâncias, definições da incidência de luz, sons, acelerações, disposição de figuras: imagens de sonho, espetaculares, apresentadas segundo um princípio apolíneo de criação. Porém, menos do que um espaço de espetáculo, a paisagem é matéria vulgar que nos induz às paixões, afectos desmedidos e incertos produzidos por fluxos dionisíacos, velocidades e ritmos que retumbam em largas margens de indefinição, sem nenhuma imagem formada. Nessa matéria rechaçada, efeito do transe embriagado, é que se insurgem os problemas do campo educacional: impulsividade animalesca, descargas escatológicas, suscetibilidade de humores, dissonância nos tempos de aprendizagem, encontro de corpos, misturas de matérias, deglutições, gritarias, risadas, aglomerações, modos desmesurados e desmantelamentos. O transe, prática envolvida na liberação de devires estranhos, avizinha a arte da loucura. Paradoxalmente, também concentra as potências curadoras desencadeadas pelas artes dos deuses que manifestam. Mais do que manifestar a vontade dos deuses e imprimir suas intensidades, o transe desorganiza as ordens dos organismos e das estratificações. Entrar em transe é partir

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Entretanto, a força do desejo, positividade plena, é inexterminável. Os destroços desejantes são indestrutíveis e se acoplam a novos elementos, constituindo agenciamentos compostos por forças heteróclitas. O desejo faz corpos até mesmo com fragmentos díspares, peças que não se agrupam, matérias que não se colam, linhas que se diluem em massas informes. Antes de burlar a Ordem, o desejo escapa de suas determinações nas fugas trágicas pelas quais se dispõe. Em consonância com a natureza do desejo, a geo-educação segue a linha esquizo-analítica, que não comporta nem um Partido,

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para outro plano, mudar de paisagem, viajar. Trata-se de uma abertura a variações microfísicas que propiciam a passagem dos devires e incitam sensações moleculares imperceptíveis aos estados de vigília. Não restrito ao xamanismo, ao uso de drogas e rituais religiosos, entrar em transe é um acontecimento difundido também em práticas comuns, processos esquizóides do cotidiano que não cansam de deslocar as almas de seus órgãos, de modo que os espíritos não parem nunca de encher e esvaziar os corpos. Esse tipo de transe prosaico, agenciamento de desejo banal, cria pequenas linhas de fugas para entocar suas forças em nichos alucinatórios, vãos e dobras, minúsculos subterrâneos que escondem a matéria sobre a qual se delira. O desejo lança mão de camuflagens porque não quer ser facilmente encontrado, posto em evidência, colocado em lugares de onde não conseguirá mais sair e buscar territórios selvagens que o alimentarão quando as forças estiverem exauridas. Capturado, organizado, fechado, o desejo se extingue, quase sempre acompanhado por atrozes destruições dos organismos.

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uma Igreja ou uma Vanguarda, “nenhum método, nenhuma doutrina, nenhuma escola” (RAJCHMAN, p. 36). O projeto geo-educacional segue o devir louco e ilimitado dos “anômalos, outsiders, clandestinos”, forças infernais que “vivem sobre as bordas de uma multiplicidade, puxando linhas-entre possibilidades contemporâneas de pensar a Educação, tramando névoas, feitiços, angústias para o pensamento que se estabelecera e sossegara” (CORAZZA, 2002, p. 54). As práticas geo-educacionais são aquelas que seguem vias por onde as potências do desejo se fortalecem, mesmo que para isso tenham que experimentar aniquilações, mergulhos no caos, dissoluções das imagens junto às quais suas forças desejantes se compunham. Tais passagens niilistas são o sentido trágico da vontade, potencial que impele o desejo a criar toda uma arte e a inventar novos modos de vida.

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Plano monstruoso Para Nietzsche, afastar a Natureza devoradora e brutal da civilização, exílio de poderes titânicos do mundo olimpiano, é um equívoco de interpretação, o qual suas colocações sobre a tragédia grega tratam de reverter (NIETZSCHE, op.cit.). Seu louvor a Dioniso, deus olímpico cujas forças carregam potenciais selvagens parecidos com os dos exilados Titãs, é uma afronta à cultura alexandrina. Socrática, livresca e erudita, essa cultura instituiu o solo epistemológico do Ocidente, privilegiando os aspectos apolíneos do pensamento e de suas criações. O dionisíaco, sufocado, subsiste nas práticas populares, nas

Também profeta, músico, geômetra, arquiteto e médico, exatos atributos de Apolo. As máximas que encimavam o oráculo desse deus, em Delfos, “conhecer a si mesmo” e “nada em excesso”, ajudaram a imprimir o tom ascético do cristianismo e de toda a cultura alexandrina, marcada pela herança filosófica socrática e por crenças pitagóricas, que marcam até hoje o pensamento ocidental.

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Talvez fosse melhor dizer “vontade fraca” para designar o esvaziamento da vontade de potência. Nesse caso, “nada” é um termo que acompanha a idéia de vazio, nunca a de aniquilamento completo. Para um pensamento que afirma a positividade do desejo e a plenitude de suas criações, o “nada” como “não-ser” ou como indicador de

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Numa espécie de combate contra a sufocação titânica é que Nietzsche faz sua crítica aos valores e suas proposições de superação do niilismo ressentido, essa melancolia de Saturno deposto no Tártaro. Superar a tristeza da “vontade de nada”7 niilista e transformá-la

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festas, nas danças e delírios do sexo, nos jogos de azar, espetáculos ambulantes, cultivo de vinhedos, triturações, fermentações, bebidas que induzem ao transe. Apesar da ênfase apolínea, o Ocidente foi contaminado por devires dionisíacos que se valem das paixões de Cristo e das sublimações antropofágicas de seu culto, que se exprimem nos sacramentos do corpo: Deus feito carne que se deixa torturar e morre, sacrificando-se por amor, oferecendo-se numa completa comunhão no mistério eucarístico tomado como vida eterna. Sob os devires trágicos de Jesus, a Igreja impõe uma força apolínea paradoxalmente desmesurada que faz de seu Deus um matador de serpentes,6 imagem que esposa o plano educacional instituindo os dogmas do pensamento cristão.

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em força ativa, alegre, implica na afirmação ex nihil de potências que são a própria vontade transvalorada, livre do niilismo reativo que retira da vontade todo seu potencial para a ação. Há, nesse processo, uma atração abissal, uma vontade de cair no buraco, entrar na cova, deixar-se engolir por cavernas que devoram os que caem dentro delas. Penetrar no vazio, atravessar a imensidão do céu e conhecer profundezas obscuras são práticas mágicas para fortalecer potências. A fim de superar poderes, magos e xamãs se abrem para afectos extremos, privações, mutilações e exposições do corpo que os aproximam do aniquilamento; afectos experimentados por mortes e renascimentos dentro da própria vida (VITEBSKY, 2001). Com Zaratustra, o ímpio, “amigo dos malvados” (NIETZSCHE, 1998, p. 91), aprende-se a abrigar devires sinistros para aumentar a coragem. Vencer os temores implica acercar-se de tudo o que é terrível, obtendo confiança suficiente para acariciar os monstros (NIETZSCHE, 1998, p. 190). Correr riscos, mudar de um plano para outro, viajar para outros mundos, abrir tumbas secretas para desenterrar tesouros alguma negação não pode existir. No entanto, o Nada, nihil, é um conceito necessário para explicar a ausência de uma gênese e liberar o pensamento da lógica “causa-consequência” legada pelos aristotélicos. Como conceber o nada junto à afirmação do eterno retorno, movimento ex nihil que arrasta tudo e que não compreende nem um fim e nem um começo? No entanto, esse todo de coisas infinito envolve escassez de elementos, ausências, vácuos, vagas, buracosnegros e outros conceitos que cabem nas proposições dos falsos problemas colocados pelo Nada.

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Um plano de pensamento que envolve o sentido trágico da arte é traçado pela tensão de forças que não param de se desfazer, modificar a matéria, desafiar a gravidade, diferenciar, vir de novo mais forte. Pouco importa que a arte copie imagens, siga modelos; o que faz uma arte é a singularidade das sensações que subsistem na criação errante dos estilos, efeitos que mostram os jogos do pensamento. Antes de fixar um modelo (o que combinaria mais com um projeto arborescente), o traçado de um plano de imanência é orientado por um estilo, agenciamento para as matérias recortadas do caos. A geo-educação traça um plano pictórico, não mais feito por traços, mas por blocos, massas de luz e de sombra que se misturam, linhas que se esfumaçam, zonas definidas por limiares imprecisos. Tudo o que se consegue extrair de estrutura são pontos com mais ou menos intensidade de luz, mais ou menos densidades. Ao pictórico, sobrepõem-se formas grotescas cujas linhas combinam retângulos e ovais, serpentinatas que comportam acúmulos de decoração: motivos da vegetação como ramos, folhas, flores, frutas, gavinhas, animais, faunos, ninfas, sátiros, sereias, conchas, curvaturas e cartilagens dissolvidas. É um plano maneirista que combina o grotesco com o pictórico apresentando variedades de dobras,

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são passagens que alimentam a vontade vulnerabilizando sua potência. Louco, perseguido, refugiado no fundo do mar, desmembrado, cozido, devorado, renascido do próprio coração, o deus dançante de Nietzsche é multiplicidade intensa, metamorfose de Dioniso, deus duas vezes nascido e suas mil alegrias.

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bainhas, lamelas irregulares e serpenteados inconstantes, mas não dispostos simetricamente tal qual no estilo clássico. Dionisíaco é um plano onde os equilíbrios e as compensações contrabalanceadas do apolíneo comportam nítidas distorções, aberturas, variações. Esse estilo protobarroco, inspirado nas mínimas virtuoses de artistas que copiam uns aos outros passando de atelier em atelier, de cidade em cidade, coloca as riquezas da terra, as histórias de seu povo, com pequenos monstros e seres mágicos, nos espaços “menos importantes” das edificações. Aprender a ocupar esse tipo de espaço menor, diluir os cantos e criar cosmos dentro de tocas, é o devir estratégico da geo-educação. Essa imagem de plano nos dá a observar que toda a minuciosidade dos elementos e desenvolvimento dos estilos ocorre nos monumentos erguidos em estruturas acopladas ao Estado, edificações que afirmam e regularizam os usos do poder. Considerando a estrutura da Educação, calcada na assepsia e no poder disciplinar, projeto sem gosto e sem nenhuma preocupação com o jogo de estilos, a geo-educação almeja pequenas interferências nas interioridades desse edifício. A começar por espalhar uma complexidade de elementos, por suas linhas e ângulos em tensão, atenuar cantos, definir planos lisos, decorá-los, detalhar com dourado os elementos tridimensionais. Também abusar das portas camufladas em paredes, das passagens secretas e dos quartos intermediários. A geo-educação assume os devires barrocos como a logística de seu plano maquínico, que se distribui num continuum recortado, hiperbólico, elíptico,

hachurado e esparso. A estratégia é transmutar o retângulo asséptico, as formas regulares, o julgamento das maneiras, as matérias provadas e toda essa escassez de elementos sobre os quais se calca o edifício educacional moderno.

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Depois da “temporada no infernal” (T ERRÉ , 1994, p. 42-51), do engasgo da cobra, da dor do veneno, da desolação da morte, volta-se a crer no mundo. Passar pelos mais monstruosos espíritos, encontrar assombrações e aprender com elas é uma prática

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Além de colocar gosto em seus espaços e compor estilos sobre sua prática, a geo-educação pressupõe uma ética que nunca se separa da Terra e de seus devires. Essa ética não exclui as paixões dionisíacas, que intensificam a alegria e alimentam a alma do povo, mas também se alia a potências monstruosas, dilaceradoras e devorantes, forças da natureza selvagem que os fluxos instáveis da Terra colocam em jogo. Por isso o plano da geo-educação tem atmosferas cataclísmicas, caóticas, nas quais as passagens desterritorializadoras aumentam o gosto, ativam o desejo, criam um outro modo de vida no planeta, mais complexo, aberto a variações, estilos, devires artísticos. Rizomático, esse ethos popular é um estilo onde as divisões, compartimentalizações e linearidades se esvaecem. Corpo infinito, brincadeira de Dioniso. Bêbado, liso, devir-infernal, desorientado, excêntrico, segue o movimento progressivo do eterno retorno, náusea da serpente entocada na boca, que só vira alegria depois do uivo do cão e da intuição de Zaratustra: – Morde! (NIETZSCHE, p. 195).

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xamânica disseminada na religiosidade tribal e no próprio cristianismo. A geo-educação, pensada sobre os devires da Terra, segue suas forças de morte e renascimento, que envolvem a escuta de um uivo no silêncio da noite, o enfrentamento de perigos, descidas abissais que são experiências de superação. O regresso de volta do país dos mortos torna a força melhor, mais forte, curada, alegre e eterna. O que interessa para a geo-educação nessas descidas é o desenvolvimento de habilidades mercuriais: capacidade de sobrevôo, possibilidades de idas e vindas, ingressos e regressos no mundo profundo, mergulhos no caos, entradas em devires moleculares que colocam em jogo forças de mínimas particularidades da matéria. Determinação de forças indeterminadas, embate marcial entre as percepções do espaço e as maneiras como as forças se arranjam, a geo-educação traz à superfície a miscigenação de afecções submetidas entre os corpos. Tempestades, tufões, maremotos, terremotos, erosões, erupções, toda a instabilidade da Terra. A monstruosidade desse plano acontece por sua largura revirada, bainhas, serpenteamentos, mínimos espiralares nos quais a pele das coisas se dá. Máquinas que se movem por revezamentos de forças, paradoxos do desejo que propagam devires-loucos, que caçoam da vulnerabilidade dos corpos e disseminam um corpo imenso. Composto de sensações, o corpo é suscetível a todo tipo de contágio, ao atravessamento de alguma paixão, que o refoga vivo em picadinhos para que renasça recomposto, feito obra de arte.

Pedagogia dionisíaca

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A geo-educação comporta uma pedagogia do espaço liso, indeterminado, que se encontra fora das imagens de pensamento das quais a educação costuma dispor. Esse espaço, ainda não sobrecodificado, implica o devir excêntrico e divergente do plano das artes e seus compostos de sensações. Tal plano pressupõe uma prática

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O que está em jogo na geo-educação são os agenciamentos dos espaços, maneiras de trabalhar com as matérias, expressão de gostos e devires. A geo-educação nada mais é do que uma prática que cria agenciamentos para o campo educacional, agenciamentos que se dão junto ao plano da arte e seus devires pelos povos da Terra. A idéia é que funcione como coro dionisíaco, máquina cantante da tragédia, limiar entre a multidão e o desenrolar dos acontecimentos. Tais devires colocam em funcionamento máquinas que determinam modos de escavar a Terra, guerrear, nitrir, rosnar, latir, gritar e cantar, valendo-se de potências forjadas com forças que saem dos subterrâneos e moldam as superfícies. Esse “processo de desterritorialização que constitui e estende o próprio território” (DELEUZE e GUATTARI, p. 40) é próprio do modelo hidráulico e das ciências ambulantes que Deleuze e Guattari colocam como axiomas da máquina de guerra. A formação errante desenvolvida pelas artes, ofícios de vida, inspira o plano geo-educacional e a gênese de um ethos diferente daquele estabelecido para a educação pela sociedade disciplinar, na medida em que parte de dispositivos anteriores à racionalidade das Luzes.

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pedagógica desterritorializadora, que se dá junto ao que fervilha entre os povos e as paisagens onde se desenrolam as existências. Entretanto, é necessário levar em conta que as paisagens pertencem muito mais aos viajantes do que aos povos que as compõem. As paisagens são estrangeiras. Uma paisagem nunca é a mesma; o mundo real que dá a ver faz parte do mesmo simulador maquínico de experiências em jogo nas paisagens. A realidade experimentada é essa zona flutuante, indefinida que, mesmo nas mínimas variações, é sempre diferente. Os que habitam uma paisagem pertencem a ela, de modo que tendem a se alienar dos potenciais de diferença vividos intensamente por aqueles que apenas passam pela paisagem. O real não é a paisagem, mas o plano material de onde se desprendem as virtualidades, as quais, em processos moleculares de pensamento, efetivam dobras, hipérboles e espirais nas molecularidades da matéria. A pedagogia esquizo-analítica é uma prática que se ocupa em ver “como funcionam” agenciamentos maquínicos da realidade, sendo que essa é a própria máquina. O real se constitui nos agenciamentos entre processos, experiências, modos de condução, maneiras de agir, estilos, elementos de uma paisagem que repercutem na vida, no corpo e na Terra. Essa pedagogia toma as questões esquizo-analíticas (como estamos compondo nossa vida, que tipos de corpos compõem nosso corpo, que multidões nos atravessam), com o intuito de desfrutar do potencial de diferença desses agenciamentos, intensificar as paisagens, desterritorializar, desmanchar os estratos que engessam

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Pensar é deixar-se perder pelo deserto, uma aventura no espaço liso, selvagem, potencialmente letal. Sem uma relativa lisura, sem um espaço aberto que dê margem para as criações, o pensamento – expansão turbilhonar acelerada sobre um espaço liso, não submisso à gravidade que rege os corpos – não acontece. Devido a essas potências desterritorializadoras, Deleuze traz imagens apavorantes para as aventuras do pensamento: rajadas, abalos, choques, encontro com

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e aprisionam os fluxos desejantes. Isso implica uma cartografia dos planos de consistência geo-políticos estendidos sobre a Terra. Composta por uma variedade de povos, especificidades, a Terra é a superfície plena, heterogênea, sobre a qual se desenrola a vida, uma superfície de decisão política, definições e centralizações de poder sobre territórios, zonas especiais, potenciais de riqueza e abundância, assim como também terras de ninguém, desertos dos quais não se tira nada. Uma pedagogia do deserto abre-se à escassez e à privação, à superação de limites e táticas de sobrevivência. Ensina como se munir com provisões, a conhecer estrelas e posições astrais, a usar a bússola, dispor mapas. Mas também é uma pedagogia xamânica, que prepara o corpo para o pior: exposição a abalos e tempestades, falta de água, calores e frios, superação das próprias potências resistindo à dureza do organismo e ultrapassando linhas mortais de desterritorialização. Superar a carne, transpor o organismo: tesouro inestimável das zonas de ninguém, espaço liso, oceânico, sem propriedades, para onde correm os loucos, os visionários, os artistas e os ladrões.

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movimentos inesperados, forças radicais, velocidades vertiginosas, curvas dilacerantes. O pensamento acontece no preciso momento desse combate de forças, mistura de corpos e efeitos de superfície que os sobrevoam, desprendimentos espiralados da matéria que se virtualizam, abraçando o caos impensado. Para a esquizo-análise, os monstros não são engendrados pelo “sono da Razão”, idéia difundida pelo quadro de Goya, mas criados na vigília, na luta unilateral com o indeterminado (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 117). Para salvar o pastor, Zaratustra teve de escutar o uivo do cão na lua cheia “na mais silenciosa meia-noite, quando também os cães acreditam em fantasmas” (NIETZSCHE, p. 194). Linha de fuga, o refúgio no deserto ou em ilhas perdidas no meio do oceano imenso, pensar é a louca corrida da superação, não uma batalha, uma guerrilha ou uma briga a se comprar. A estratégia esquizo-analítica pressupõe um “experimentador” aberto a ajudar na formulação dos problemas e suas soluções, jamais um “guerreiro”, um matador de dragões metalizado, “armado com alguma teoria prévia” (TADEU, CORAZZA e ZORDAN, 2004, p. 135), que hasteia os estandartes dogmáticos de uma moral ou de uma religião. A prática geo-educativa é experimentação transcendental, não um “deixar fazer”, mas um contaminar-se do impensado, do que ainda não foi provado e que pode ser completamente improvável; caosmos do qual se extrai alguma determinação, mesmo que paradoxalmente indeterminada. Não há qualquer regra geo-educacional. Partir das linhas de fuga implica a impossibilidade de se

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Obra de Théodore Géricault (1818-1819) exposta no Museu do Louvre, que retrata a tragédia de traços antropofágicos, conseqüência das privações sofridas por náufragos à deriva sobre uma superfície de paus. Com estilo romântico, o quadro inaugura o realismo na pintura francesa, pois protesta contra o fato real acontecido alguns anos antes na costa africana, quando o capitão da fragata Medusa, um nobre, abandona mais de cem pessoas, consideradas da ralé, sobre uma jangada improvisada.

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Pensar em bando, construir um pensamento com alguém, como Deleuze fez com Guattari, é entrar numa Jangada de Medusa,8 partilhar da mesma prancha para enfrentar os perigos e as calamidades das superfícies a

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estabelecer idéias transcendentes, normas de conduta, parâmetros, modelos estáticos. O que encontramos numa educação sobre a Terra é o mapeamento de suas linhas, das riquezas e perigos de seus territórios, dos tipos de paisagens e populações. Educar é aprender e ensinar uma ética e uma estética de movimentação, ocupação e culto dos espaços. Geo-educação: uma prática de se orientar no espaço, cujas provas são transpor variadas superfícies, planos de experiência que o corpo da Terra compõe. Orientar-se no deserto, no oceano, nas campinas, nas florestas, selvas e cidades, não é apenas ter mapas, guiarse pelos ventos, pelos astros, pela sinalização imposta pela civilização e suas estradas, mas seguir as trilhas mais fechadas, os caminhos mais difíceis, perto de rios torrenciais, tempestades oceânicas, lava vulcânica, geleiras. Deixar-se acompanhar pelos afectos transversais, pelos devires das pequenas multidões desterritorializadoras, a quem somos impelidos a pensar.

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serem atravessadas. Aprender e ensinar algum tipo de arte é estar no mesmo barco, remar junto com os mestres e colegas de ofício. Todo mestre é uma espécie de guia que já experimentou as forças caósmicas e, de alguma maneira, as superou, de modo que encontrar um mestre é ter com quem aprender a enfrentar a morte, a passar pelo caos. Além de ensinar a posição dos astros, o traçado de coordenadas topológicas e fornecer mapas e bússolas, o mestre mostra as belezas, expõe problemas e alerta sobre a possibilidade dos perigos. É aquele que entrega alguns segredos e truques para que se possa seguir em frente, sem preocupar-se com o estabelecimento de uma verdade, mas incitando a abertura de passagens que levam para outros campos, superfícies que serão experimentadas pelo aprendiz. Quem impõe uma única perspectiva de verdade é o Professor Juízo de Deus, aquele que precisa manter o controle da matéria, que não entrega seus segredos e protege a si mesmo e seus alunos do caos. Ressentido com as forças caóticas, as quais toma como ameaça e contra as quais se arma, deixa seus alunos irem embora sozinhos, mesmo sabendo dos riscos que correm. Não está junto porque não sabe se ligar, não se conecta com a Terra e seu potencial caósmico. Vale-se do senso comum e das idéias dogmáticas para impor seu saber; portanto, esse professor não está aberto ao pensamento. Fechado a experimentações que possam sair de seu controle ou que possam perverter a sua disciplina, pode ter pânico de invenções e ignorar completamente as forças que estão em jogo na matéria que acredita estar ensinando. Por meio do mestre, uma perspectiva é vislumbrada; junto

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Educação para o encontro com o cristo nietzschiano, avesso ao cristianismo e à moral, que trazia a mensagem, a boa-nova que pregava a “supressão da idéia de pecado, a ausência de todo ressentimento e de todo o espírito de vingança, a recusa de toda guerra mesmo conseqüente, a revelação de um reino de Deus aqui embaixo como estado de coração e, sobretudo, a aceitação da morte como prova de sua doutrina” (DELEUZE, 1976, p. 129). Este é Cristo-Dioniso, deus do eterno retorno, sacrificado para afirmar a infinitude da vida e sua vontade de potência feita de carne, matéria da terra, superfície de desejos. Comer o pão como corpo e beber o vinho como sangue é pura devoração, devir canibal. Cristo

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do mestre, se aprende. Não se trata de repartir uma mesma perspectiva de verdade, mas de se precipitar junto com o mestre para um certo tipo de plano, operar com os mesmos conceitos, participar de um jogo onde todos os participantes aumentam sua potência. Experimentar o mesmo corpo sem órgãos, devorar os mesmos autores, sugar o sangue que vive na força de um pensamento. Antes de enfrentar os mesmos perigos, é brincar em conjunto, inventar ficções compostas, verter fluxos que se compõem em afetos alegres que aliam o riso aos mais desastrosos processos de aprendizagem. Não se trata de negar o horror das passagens desoladoras, dos desesperos que abatem mestres e neófitos em suas buscas, mas de afirmar a produção de uma alegria “que não é o mascaramento da dor, nem resignação, mas a expressão de uma resistência ao próprio sofrimento” (MACHADO, 2002, p. 25).

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serve de alimento, é o próprio combustível de vida, não a vida orgânica, mas aquela que está fora do organismo, que não se encontra nas organizações. Potência de desejo que corre na penetração dos corpos, o verdadeiro cristo é, para Nietzsche, a mistura, o deus que dança, o gozo e êxtase que desconhece a idéia de “eu”, qualquer tipo de designação, critérios, seleções, mesuras, classes.9 A alegria pura de estar vivo e celebrando é a graça do dionisíaco, que não esconde a loucura criadora que é o potencial curador de toda e qualquer arte. Diluir as imagens na embriaguez, experimentar “a terrível destruição do abismo, que nada mais é do que a experimentação da desmesura, do excesso, da transgressão” (DIAS. In: LINS; NETO e VERAS (ORGS.), 2000, p. 14), é um artifício que impele ao pensamento. A estratégia desse engenho, qualquer que seja seu dispositivo de experimento, vinho, alpinismo ou sexo, é sempre colocar em fuga as linhas maquínicas do desejo, assolar segmentos assombrados por dogmas inventando devires estranhos, satíricos, para suas imagens. Entrar no transe in-forme nem que seja se embriagando com água, como sugeriu Deleuze, para que possa acontecer um pensamento sem imagens. Porém, é impossível pensar dentro das indeterminações moleculares do caos, 9

“Dioniso é um deus humilde, um deus da vegetação, um deus dos campônios. Com seu êxtase e entusiasmo, o filho de Sêmele era uma séria ameaça à polis aristocrática, à polis dos Eupátridas, ao status quo vigente, cujo suporte religioso eram os aristocratas deuses olímpicos”. Cf. BRANDÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 117.

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de modo que, uma vez nele, o pensamento se esforça para explicar uma paisagem, situar pontos de vista, mesmo que desoladores. É em sua força apolínea que o pensamento funciona como um crivo, cujos cortes aplicam imagens na matéria caótica, estabelecendo territórios, traçando limites e linhas de orientação que criam os critérios para selecionar as imagens com as quais o pensamento vai traçar seu plano. Como a realidade é um efeito das imagens, não encontrar imagens ou não ter critérios para selecioná-las sustenta, mesmo que provisoriamente, uma sensação irreal que obriga o pensamento a criar sob novas determinações, que só podem ser retiradas daquilo que o pensamento dispõe. Um pensamento sem imagens só pode se compor com partículas imperceptíveis extraídas do caos. Essas partículas moleculares situam uma realidade de puras sensações, plano de consistência estético aberto aos dispositivos insondáveis que levam ao caos, ao fora que nos força a criar. Percorrer os limiares é o devir da arte cujo sentido é a insurreição dionisíaca, a transvaloração da própria matéria, carne feito espírito. Transmutada, a força sempre retorna mais forte, igual ao que era antes, contudo diferente, posto que imortal. É por isso que, em Lógica do sentido, Deleuze afirma o simulacro como dispositivo dionisíaco, cujo vetor excêntrico produz as forças do eterno retorno (DELEUZE, 2000). Sentido que sobrevoa os corpos com suas cargas vitalícias, suas fusões orgiásticas, sede e fome da vida que não tem fim. É o infinito que se abre, a serpente que, ao invés de engolir a própria cauda, tem a cabeça liberada na

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mordida. Dioniso é Iacos, o grande grito, reação ativa que decepa a serpente e cospe sua cabeça, ação que supera a náusea e libera um riso inumano no pastor ajudado por Zaratustra. Uma pedagogia dionisíaca pressupõe a superação do niilismo, do enjôo provocado pela própria existência. Trata-se de enxotar os medos e os maus presságios, convulsionar-se para não mais opor “o conhecimento à vida, para julgar a vida, para fazer dela algo culpado, responsável e errado” (DELEUZE, p. 29). Isso implica deixar de acreditar que a vontade, o desejo, os corpos sejam coisas ruins e sim compreender que tudo o que passa por eles é a pura expressão da vida. Estudar a perspectiva dos afetos, compor seus blocos de sensações, criar perceptos, conceitos, estender o pensamento num plano, eis a tarefa. A vida não deixa de ser brutal, não se vive sem sacrifícios, caçadas, fome, devoração. O conhecimento não pode ser aquilo que nos protege e que nos afasta da vida, mas sim aquilo que nos ajuda a atravessá-la, que nos incentiva a encarar seus perigos, a morder a cabeça da serpente. Tomar de revés o pensamento antropofágico, não como apologia do regurgito, mas como possibilidade de cortes, despedaçamento, prova. Certamente há incorporações, fagocitoses de forças que criam planos imiscuídos num continuum infindável, vertiginoso, expurgado, que a vontade sempre acaba por romper, abrir, criar mil descontinuidades. Essa pedagogia do vulnerável, potencializada pela vontade, abertura que torna uma força indestrutível, permite um vislumbre do campo limítrofe da geo-educação,

animado por um culto primitivo, tribal, jamais por uma religião de Estado, em cujas asas os fiéis podem se abrigar dos inimigos, dos terrores e de outras tantas coisas que paralisam.

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Seja na própria terra que geme, incendeia, trinca, se inunda, seja no laminar da pedra, no fio do metal forjado, a extrema vulnerabilidade dos seres vivos acaba sendo sentida. A impermanência da vida se mostra na crença da abundância da Terra, sua capacidade de recomposição, pois, após tempos de falta de alimento e escassez, as riquezas eram refeitas. A criação é concebida junto a seres que morrem e renascem, e cuja epifania é sair de dentro das profundezas ainda com mais forças. Géia, a Terra, é entregue a sua filha Réia, a Mãe Natureza, esposa de Saturno que ensinou o segredo do vinho a Dioniso (KERÉNYI, p. 51-52), o deus renascido. Somente depois do esmagamento, da trituração e da fermentação em recipientes obscuros, consegue-se o vinho, mágica beberagem que induz às gargalhadas, à descontração e ao transe. O sentido trágico compreende uma atração pelo horrível que beira o cômico e que faz com que a vulnerabilidade dos organismos e das organizações seja levada menos a sério. Não se trata de rir da desgraça, mas de extrair a graça e o regozijo mesmo nas aprendizagens mais dolorosas, na passagem por territórios estéreis, no corpo-a-corpo com o abismo e a intensa precipitação de paisagens que o pensamento dispõe. Criar, refazer é tornar a Terra mais leve gozando dos devires de suas paisagens, brincadeira gaiata de deus sempre menino e suas risadas no tempo do eterno retorno.

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Ovo caósmico: ponto zero Pensamento que não dispõe de imagem alguma: o impossível do pensamento. Pensamento cuja única imagem possível é a disposição impossível da matéria caótica, impensável. As imagens se precipitam no pensamento, definem seus territórios, as cores de seu povo, as luzes das paisagens, a nebulosidade de suas superfícies, que configuram um plano de atualização do virtual. Contudo, subsiste no pensamento o pulsar da vida, das forças intrínsecas, anteriores à forma, sem imagens, sem memória, apenas potências intensas, moleculares, partículas incorpóreas em devir. Esse pensamento só pode acontecer sobre proposições velozes e caóticas, não mais a partir de um conhecimento estável do mundo, legitimado por tradições ou pela permanência de uma verdade. Seu sentido é a-histórico, inatual (inactuel), potencializa a disjunção do recém-sintetizado, essa força que em O anti-Édipo é tratada como esquiza (PELBART. In: LINS; NETO; VERAS. (orgs.), 2000, p. 72), desejo divergente, sempre em fuga, escapando de determinações. Ao operar com uma espécie de topologia da vontade, situada nas margens desterritorializadoras dos planos de pensamento, a geo-educação põe-se num ponto vazio, ainda indeterminado, da linha de fuga do desejo, instante zero da criação, que Deleuze e Guattari chamaram corpo sem órgãos pleno, ovo caósmico, puro potencial. O ovo ainda não fecundado já é multiplicidade, pois mesmo as potências virtuais trazem suas determinações;

ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Disponível em Acesso em: 18 jun. 2002.

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Movimento excêntrico, aquele que sai do centro, que carrega para fora, é o devir que acaba com o Juízo de Deus, mostrando que o lado de dentro é o fora revirado,

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“só não há determinismos onde há mistério”, escreveu Oswald de Andrade no Manifesto antropófago10. Mas uma perspectiva molecular que minimiza a paisagem mostra que nem mesmo um ponto pode ser determinado, tamanha a complexidade de elementos em jogo na imensidão inimaginável comportada em sua superfície. Toda a problemática desse pensamento consiste nas maneiras de expressar o imperceptível, o indiscernível, informe, incógnito. Lócus esotérico, onde o ponto de vista não passa de ponto de intersecção, uma interioridade bifurcada cujas molecularidades não comportam pontos, mas fractais divididos ao infinito, passado e futuro juntos num mesmo instante, Aion, sentido extemporâneo, eterno, sempre em devir. Tempo de criança que brinca, lança dados, tira cartas, dá a vida. Vida que é multiplicidade, que acontece no interior dos espaços, nos agenciamentos territoriais, nas composições de paisagens, nas imagens de pensamento, no que vem pela frente e no que ficou para trás. Vida que também se encontra exatamente onde ela escapa, nas situações limites, na aniquilação do corpo, nos escoamentos do desejo, na morte, na impassibilidade do acaso que se desenvolve na largura e reviravoltas do plano.

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corpo sem órgãos que dança ao avesso. Dança sem pernas e sem braços, uma experimentação com o caos, uma prova feiticeira, dionisíaca que esquarteja os cânones sociais, antropomórficos, arborescentes, numéricos.11 Sob um modelo de educação, que é a agrimensura do caos, há que se pensar um plan-o indeterminado, cujo potencial imensurável perverte a geometria e faz delirar a astronomia, atividades sob os auspícios de Saturno, ocupadas em cortar paisagens, seccionar o espaço, identificar pontos. Embora o plano geo-filosófico prescinda das medições de terra, contagem das populações, censos territoriais, dados, precisa se ocupar com algumas imagens estruturadas para operar seus problemas. Tais imagens funcionam como mapas, mostrando a aglomeração de riquezas, a distribuição das fortunas, a lapidação das terras, a redução e ampliação de territórios, a compartimentalização do desejo e as ameaças de fome, guerra e miséria. Preparar cultivos, planejar o uso da terra, prever os humores de suas estações, canalizar águas, mapear os veios vitais, as possibilidades de poços e de fontes: agrimensuras e técnicas que ajudam a transpor a morte, vir com mais força, passar pelo outro lado do culto, a face louca da cultura. Arte que segue o sentido inexplorado do eterno retorno, as rotas nunca antes traçadas do devir. Correr o risco, se 11

“Na Cabala existe uma música dos números e esta música, que reduz o caos material a seus princípios, explica, por uma espécie de matemática grandiosa, como a natureza se organiza e dirige o nascimento das formas retiradas do caos”. Cf. ARTAUD. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: LP&M, 1986, p. 99.

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Antes de dispor de toda uma agrimensura para servir como referência para guiar a sua prática, a geoeducação se vale da estética atemporal, plano de perceptos e afectos que envolve incontáveis forças e outras inúmeras matérias de expressão. Matérias não cronológicas, não mensuráveis, apenas intensas, virtuais, potências para criação. Sob uma perspectiva esquizo-analítica, criar, potencializar o desejo, é não adoecer, sucumbir ao caos, sufocar de medo, evitar se deixar estrangular, picotar, cozinhar, comer, incorporar-se. “O pensamento é a invenção dessa Saúde, a criação de novas possibilidades de vida” (TERRÉ, p. 51), renascimentos e metamorfoses dionisíacas, criação de novos valores pensada por Nietzsche. Aprende-se a criar mergulhando no turbilhão caótico e extraindo dessa experiência forças para reinventar as imagens do plano, rir das pretensões de verdade com que as imagens se investem. Ensina-se a criar fugindo de ordens, desmantelando organismos e pervertendo organizações. Com Deleuze, a transvaloração implica pensar o impensável esposando o caos, sem a “necessidade de sair de agenciamentos territoriais” (TADEU, CORAZZA, ZORDAN, 2004, p. 55) para prová-lo.

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atirar no impensado, é um tipo de rito iniciático que envolve passagens, mortes, renascimentos, processos maquínicos que se repetem, mas nunca se reproduzem do mesmo modo. Ritmos da vida, aprendidos nos trânsitos extensos e transes intensos dos corpos; corpos que se combinam em máquinas que constroem planos de consistência intempestivos, frenéticos e desatinados.

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Prática de vida que se aprende fazendo, a geoeducação já existe, sempre existiu, é imanente aos devires da Terra. Mesmo que ainda esteja sempre em vias de se fazer, que talvez nunca seja feita, a geo-educação é um modo de orientar-se sobre os caóides, transpor planos de imanência filosóficos, lógicos, científicos e estéticos. Os últimos, planos fotográficos, pitorescos, grotescos, musicais, dramáticos, retóricos, cinéticos, esculturais, afectivos, que dão consistência aos perceptos criados no plano de composição das artes. Experimentação de paisagens, o devir desse plano prova as variedades das sensações, as indefinições intensivas que dão singularidades a estados de coisas contaminados pela arte, virtuose da matéria. Plano de imanência efetivado, não o virtuosismo da Grande Obra, mas a virtude humilde do corpo perfurado do artífice, atravessado por blocos de sensação e danças viscerais que colocam em prova a resistência da matéria. Acometido pelos furores passionais do pensamento, o artífice afirma o desejo no manejar das criações, na matéria curvada e forjada de acordo com uma vontade. Multiplicidades maquínicas ao invés da Criação divinizada, a vida criada, nomeada, ordenada. Trata-se do caos oceânico, “Grande Onda” (TERRÉ, p. 46), sempre em vias de se fazer, nunca pronta. Potencialidade do ovo, mistério indeterminado dos instantes prolongados ao infinito, sem imagem formada, nome, número ou qualquer designação, apenas beleza trágica, a graça de um devir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Oswald. Manifesto antropófago. Disponível em Acesso em: 18 jun. 2002.

BRANDÃO. Mitologia grega, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2001. CORAZZA. Para uma filosofia do inferno na educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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DELEUZE. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2000.

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TADEU, CORAZZA, ZORDAN. Um plano de imanência para o currículo. In: Linhas de Escrita. Belo Horizonte, Autêntica 2004. TERRÉ. Ojos rojos: tientos sobre algunas fórmulas deleuzianas. Archipiélago. Madrid, n. 17, jun. 1994. VITEBSKY. O xamã: viagens da alma, transe, êxtase e cura desde a Sibéria até o Amazonas. Evergreen/Taschen, 2001.

Um plano de imanência para o currículo

Mas elas lhe acenavam; folhas eram coisas vivas; árvores eram coisas vivas. E as folhas, por estarem ligadas por milhões de fibras com seu próprio corpo, ali no banco, faziam-no mexer-se; quando o galho balançava, ele fazia a mesma coisa. Virginia Woolf, Mrs. Dalloway

Queria uma obra nova, que apreendesse certos pontos orgânicos da vida. Uma obra na qual se sentisse todo o sistema nervoso.

que convidasse o homem a sair com seu corpo para seguir no céu essa nova, insólita e radiante epifania... Antonin Artaud

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Acesa como um braseiro, com vibrações, consonâncias,

15 Da afirmação – O discurso educacional, o nosso, tem um tom. Ele é, por excelência, crítico. No começo está a denúncia. Seu recurso estratégico é o de negar o estado atual do sistema educacional. O “sistema” é perverso. A escola é reprodutora. O currículo é machista, sexista, racista. É assim que ele começa. Quando vai se aproximando do final, ele se torna, em troca, moralista. Ele diz como fazer para reformar o currículo, a escola, a educação, o mundo. Sua ontologia é a de um mundo

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torto, julgado a partir de uma transcendência qualquer. Sua ética (ou sua moral?) é a de quem sabe, com toda certeza, para onde o mundo – o da escola, o da educação, o do currículo, em particular – deve caminhar. O discurso educacional é o Juízo de Deus. É o discurso da condenação e da negação. É o discurso da indicação do reto caminho. Negação. Negação da negação. No final, a solução, dialética, claro, tirada da manga do mágico crítico. O último parágrafo é revelador. A sentença final. Depois da condenação, a inevitável saída moral. Nada menos imoralista (Nietzsche, Nietzsche, onde estás?) do que o discurso educacional, o nosso. O discurso educacional é o domínio da palavra-de-ordem. O tom do discurso educacional é o do grito. O crítico educacional tem a garganta permanentemente irritada. O discurso educacional também tem a persistente mania de falar em nome do outro. A indignidade de falar em nome do outro (Michel, Michel, onde estás, quando mais precisamos de ti?). A escrita educacional é o Tribunal da Razão. (E, aqui, já ficamos com receio de estar introduzindo, nós mesmos, um novo Tribunal. Não nos deixem, por favor.) Chamar o discurso educacional de “pós-crítico” não muda nada disso. Crítico, ainda que “pós”, é o que ele continua. Direitos, leis e julgamentos. Foi aqui, nesse “anexato” ponto da curva, no meio desse caminho, que dois de nós, um odd couple, resolvemos tomar um desvio, um atalho, um jardim que se bifurca, pra ver no que ia dar. Só pelo agridoce prazer da experimentação, do inesperado e do imprevisível. Já estávamos pra lá de cheios do mesmo e da mesmice.

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Não arriscávamos, pois, nada, absolutamente nada, já que a única coisa que íamos deixar pra trás era o tédio e o aborrecimento do discurso crítico. O que vinha pela frente era uma questão de apostar para ver. Diante da bifurcação, olhamos para um lado, olhamos para o outro, hesitantes, talvez, mas, finalmente, decididos. Tomamos, afinal, a trilha que conduzia ao pensamento da diferença. Mal passado o forcado, cruzamos com um distinto e elegante senhor, outrora talvez um dândi, portando chapéu e bengala, um sorriso que parecia irônico, mas que era, na verdade, de puro gozo da vida. Foi aqui que nos perdemos para sempre, pois novas bifurcações iam surgindo à medida que já nos sentíamos seguros. Foi seguindo a linha de fuga sugerida por slogans como os seguintes que iniciamos nossa imóvel viagem, na aventura cruzada do pensamento da diferença e do pensamento do currículo: “Faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não seja uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto. Seja rápido, mesmo parado! Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia. Tenha idéias curtas” (MP, v. 1, p. 36, com supressões). Era sem nostalgia, mas também sem remorso, que deixávamos para trás o pensamento crítico.

1 Do sistema – O discurso pós-moderno, tal como, antes, o discurso crítico, nos acostumou a desprezar os sistemas. Os sistemas são, nesse raciocínio, sobretudo, totalitários e totalizantes. Os sistemas filosóficos, os

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sistemas de pensamento, são, sem nenhuma defesa, suspeitos. O que fazer, então, com um pensamento como o de Deleuze que, sobretudo num livro como Mil platôs, constrói, talvez, o mais completo e complexo sistema filosófico contemporâneo? Um sistema filosófico, tradicionalmente, envolve dizer de que o mundo é constituído, o que significa “ser” no mundo; implica descrever como se conhece esse mundo assim concebido; supõe o desenvolvimento de algum princípio de como se comportar nesse mundo; embora de forma menos óbvia, um sistema filosófico exige o traçado de algum plano de intervenção social no mundo. Uma ontologia. Uma epistemologia. Uma ética. Uma política. Tratase, claramente, de um sistema como nenhum outro na história do pensamento. Porque o sistema deleuziano é, ele próprio, um ente do sistema deleuziano, isto é, uma multiplicidade. Um pensamento, como o caracterizou Éric Alliez, ele próprio, virtual. Não se fecha nunca, permanentemente aberto a novos acréscimos, a novas adjunções, a novos elementos. Não é um sistema total, mas um sistema nunca totalizável. Um sistema assim é difícil de ser descrito, de ser apreendido. Foi justamente para poder, de alguma forma, descrevê-lo que Deleuze (sem esquecer Guattari, claro) inventou uma escrita própria, uma escrita, também ela, deslizante, inapreensível, impossível de ser fixada. Não poderíamos, para nossos próprios propósitos, os do ofício de curriculista que é o nosso, tentar, ainda que sob o risco de cair na mera interpretação, uma descrição sumária desse sistema? Só assim, talvez, pudéssemos começar a cruzar os dois pensamentos: o deleuziano e o curricular.

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13 Da ontologia – Como é o mundo visto por Deleuze? De que elementos é constituído? Como ele se forma? Sabemos como são os entes, as “criaturas”, do mundo tal como descrito pelo pensamento filosófico tradicional. Os “indivíduos” desse mundo são, desde já e para sempre, inteiramente, completamente formados. Olhamos para o mundo e vemos “coisas”, “estados”, “matéria formada”. O mundo da ontologia tradicional é o mundo da extensão, do espaço, de partes exteriores entre si. Um mundo completamente estático. Até pode haver transformação, metamorfose, devir, mas são sempre processos secundários relativamente aos seres formados que daí resultam. Uma tal ontologia exige um esquema que “organize” essa diversidade de coisas, de seres, de estados. Ela pede algum princípio que reúna o aparentemente diverso e diferente em classes, categorias, tipos, mais gerais, mais universais, mais abrangentes. Conhecemos algumas das soluções a esse problema. A solução, comumente associada a Platão, remete esse mundo vário e terreno das aparências a um outro mundo, transcendente, situado para além desse, um mundo unificado em torno de essências que condensariam, em uma forma ideal, justamente o “essencial” que se esconde na diversidade. A “idéia” de mesa, por exemplo, abstraída de todos os acidentes de sua encarnação terrena, seria única e imutável, em oposição à variedade e à variabilidade de suas contrapartes reais. Um mundo de sensíveis, da sensação e da aparência, que se opõe a um

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mundo de inteligíveis, da inteligência e da essência. Tem uma outra solução, que poderíamos chamar, talvez, de aristotélica, a qual provavelmente se ajusta mais ao nosso modo “normal” de pensar. Novamente, partimos da diversidade do mundo empírico, do mundo das coisas entre as quais nos movemos. Desta vez, entretanto, não recorremos a um mundo extra-sensível para colocar ordem no nosso. Limitamo-nos a uma operação intelectual: olhamos para o mundo sensível, para o mundo do vário e do diverso, comparamos as coisas entre si e delas extraímos, abstraímos, diferenças e semelhanças. Aquelas coisas que, abstraídas de seus acidentes, de suas aparentes diferenças, ainda se mostrarem suficientemente semelhantes para serem reunidas num único conjunto, se expressariam por meio de um “conceito” que representaria o essencial daquele conjunto aparentemente vário, sua essência. Um gênero, uma espécie, é uma reunião desse tipo, uma reunião puramente intelectual, abstrata, uma operação de generalização e de universalização. Numa ontologia assim, conhecer (ou pensar?) praticamente se reduz à elaboração de tipologias, de classificações, de taxonomias. Trata-se de um pensamento concentrado na identidade: o quê, no diverso, no diferente, permanece igual, idêntico? A ontologia de Deleuze é toda uma outra coisa. Pra começar, Deleuze não está preocupado com o verdadeiro e o falso, critérios que só fazem sentido numa ontologia calcada na noção de representação, de um pensamento que refletiria o mundo fielmente (a verdade) ou não (a falsidade). Deleuze está preocupado

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com outro critério: o do “do Interessante, do Notável ou do Importante” (DELEUZE E GUATTARI, 1997, p. 108). E o “notável”, para Deleuze, não é o mundo das coisas já formadas, já constituídas, mas o mundo daqueles elementos que estão na origem das coisas já-feitas. Há um mundo “subterrâneo”, um mundo “invisível”, mas não transcendental, feito de elementos cuja natureza não é a mesma das coisas e dos indivíduos já formados e constituídos. Esses elementos são forças, vetores, intensidades, diferenças de potencial, diferenças de energia. Não é um outro mundo, é o mesmo: trata-se tão-somente de tentar ressaltar o que a ontologia da identidade e da semelhança, a ontologia do conceito, do gênero e da espécie, não apenas não ressalta, mas sequer reconhece. Trata-se de colocar em foco aquela outra metade do mesmo mundo que é feita, essencialmente, de movimentos, de devires e de transformações. O que importa aqui não são os pontos “mortos”, os pontos de parada, os objetos que se posicionam, de forma simultânea, no espaço e na extensão – o final de linha do infinito movimento das forças das quais as coisas já-feitas não são mais do que a expressão. O que importa é o movimento mesmo, o fluxo, a corrente, a torrente de vida que, microscopicamente, molecularmente, mas de forma não menos real, não menos concreta, percorre e atravessa aquela outra metade que estamos acostumados a ver como o mundo “real”. Não há nenhuma correspondência ou semelhança entre os elementos dessas duas metades simplesmente porque suas naturezas são de ordem diferente: de um lado, forças, vetores, intensidades, diferenciais em movimento; de

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Da multiplicidade – A ontologia deleuziana não é nada sem a noção de multiplicidade. Ela é tão central à sua ontologia quanto a noção de “essência” (ou a noção de Uno-múltiplo, que é o correlato dessa última) à ontologia tradicional. “A filosofia é a teoria das multiplicidades”, escreveu Deleuze (1998, p. 173) em um de seus últimos textos. O termo provavelmente fez sua primeira aparição em Bergsonismo e a última em O que é a filosofia (DELANDA, 2002, p. 181). Ele recebe as mais diversas formulações, mas, de Bergsonismo e Diferença e repetição a Mil platôs, duas referências são constantes.

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outro, coisas, estados, indivíduos já formados. De um lado, devires; de outro, “seres”. Poderíamos, aqui, já introduzir uma distinção que é central em Deleuze: a distinção entre virtual e atual. E poderíamos traduzir o que dissemos até agora em termos dessa nomenclatura. A ontologia tradicional está interessada no atual, no mundo das coisas já-feitas. A ontologia deleuziana está interessada no que se passa entre o virtual e o atual, entre as duas metades de um mesmo mundo: o dos fluxos e movimentos da primeira metade que se atualizam, que se diferenciam, nas espécies e nas partes da segunda. Deleuze tem muito pouco interesse nas “coisas” e isso resume toda sua ontologia: “É verdade que eu passei meu tempo escrevendo sobre essa noção de acontecimento: é que eu não acredito nas coisas” (DELEUZE, 1992, p. 199). É apenas um resumo. Mas já é um começo e é daqui que vamos partir.

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De um lado, ele é remontado ao conceito matemático de “manifold ” (tradução para o inglês da palavra alem㠓Mannigfaltigkeit”) desenvolvido por George B. Riemann (1826-1866). De outro, ao de “duração”, amplamente desenvolvido por Henri Bergson (1859-1941) ao longo de toda sua obra. Mais importante do que caracterizar a noção de “multiplicidade”, seja talvez compreender para que ela serve. Sumariamente, pode-se dizer que serve para duas coisas: 1. colocar no centro da ontologia os processos de movimento e de devir, em vez das noções estáticas de essência e de “ser” já-e-para-sempre constituído; 2. permitir pensar a diversidade e a variedade do mundo sem recorrer às noções tradicionais de uno e de múltiplo. Em suma: não acontece muita coisa de interessante ou de novo num mundo feito de essências; não dá pra fazer muita coisa interessante ou nova num mundo feito de essências, a não ser, partindo das coisas, classificá-las de acordo com a essência que expressam ou, partindo das essências, perguntar-se como elas se “individualizam” nas coisas. Nada divertido! Já num mundo feito de multiplicidades, é um formigamento só, um torvelinho criativo em cada esquina. Desde Bergsonismo, em correspondência com a distinção que Bergson faz entre grandeza extensiva e intensidade (este último é o nome que Bergson prefere à denominação tradicional: “grandeza intensiva”), Deleuze distingue dois tipos de multiplicidade: de um lado, a multiplicidade intensiva; de outro, a multiplicidade extensiva. A multiplicidade extensiva é aquela à qual estamos “acostumados”, correspondendo ao mundo da extensão, do espaço, das “coisas” compostas de matéria e forma, na

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ontologia tradicional. Esta multiplicidade é numérica, espacial, quantitativa, descontínua, discreta, homogênea, cardinal, métrica, euclidiana, feita de partes exteriores umas às outras, composta de pontos posicionais. Ela pode ser dividida sem que as partes que resultam dessa divisão mudem de natureza. Para dar uma ilustração simples, se dividimos um conjunto de 20 laranjas em dois conjuntos (um de cinco laranjas, outro de quinze, por exemplo), obteremos em cada conjunto as mesmas laranjas de antes. Já a multiplicidade intensiva é que constitui a novidade tipicamente deleuziana: a multiplicidade intensiva é feita de forças, de vetores, de relações diferenciais. Ela é não-numérica, espaciotemporal, qualitativa, contínua, heterogênea, ordinal, não-métrica, riemanniana, feita de partes que se fundem, se interpenetram, composta de linhas de força. Por ser feita de elementos contínuos e heterogêneos, ao ser dividida, ficamos, necessariamente, com “conjuntos” cujos elementos são de natureza diferente dos elementos originais. Ou, nos termos negativos e mais sintéticos utilizados por Deleuze: uma multiplicidade intensiva é aquela que não se divide sem que mude de natureza. Isso é bem mais difícil de ser pensado. Em primeiro lugar, essa divisão não é uma divisão no sentido usual de “corte”, que é possível justamente no domínio da multiplicidade numérica. É melhor pensar na divisão, neste caso, como um desdobramento, como uma diferenciação, o que já implica a passagem de uma multiplicidade intensiva para uma multiplicidade extensiva. É dessa “mudança de natureza” que se trata. Ao se desdobrar, ao se desenvolver, ao se ex-plicar, ao

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se desenrolar, que é a maneira como uma multiplicidade intensiva se divide, ela se transforma em multiplicidade extensiva, ela se espacializa, ela se atualiza: seus elementos virtuais (forças, vetores, intensidades) dão lugar a elementos atuais (as “coisas” do mundo da extensão, do espaço, tais como as concebemos). Dividir significa, aqui, mudar de dimensão (MP, v. 4, p. 33). Assim, por exemplo, podemos conceber um embrião como uma multiplicidade intensiva, como um campo de forças, de intensidades, de relações diferenciais, de elementos indiferenciados, como um campo formado de elementos contínuos (não podem ser concebidos como exteriores uns aos outros, como separados espacialmente) e heterogêneos (uma força, por exemplo, não é equivalente à outra). Ao se dividir, o que significa “desenvolver-se”, “desdobrar-se”, “diferenciar-se”, dá origem a um indivíduo “formado”, “extendido” no espaço. Em suma, ao conceber dois tipos de multiplicidades (as intensivas e as extensivas), Deleuze não substitui o dualismo entre o “Uno” e o “múltiplo” da ontologia tradicional por outro, na medida em que as duas multiplicidades não pertencem a dois mundos separados, incomunicáveis, opostos, mas pertencem a um só e mesmo mundo. Há, entre as duas espécies de multiplicidade, uma “continuidade” tal que uma multiplicidade extensiva nada mais é que a expressão espacial de uma multiplicidade intensiva. Entre as duas multiplicidades não há hierarquia (a melhor e a pior), nem precedência cronológica, mas apenas uma assimetria: entre o naturante e o naturado, entre o estado mais livre, de maiores possibilidades, para o estado mais

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Da diferença – Sem multiplicidade (heterogênea) não haveria criação, invenção, produção do novo e do imprevisível. A multiplicidade é a “matéria-prima”, o spatium, contínuo, heterogêneo, intensivo, de onde salta o que ainda não existia. É da multiplicidade que salta uma outra coisa que não coincide com qualquer dos elementos de que ela é formada, que é uma outra coisa, que é diferente de qualquer dos elementos que a compõe. É esse diferenciar-se de si mesma que está no centro do processo de produção do novo. Sem diferenciação, não existe criação. Mas para que isso que salta salte sem o auxílio de uma intervenção externa, sem um elemento transcendental qualquer (um deus, um demiurgo, uma forma preexistente), para que haja diferenciação sem que haja um “diferenciador” externo, é preciso conceber algo que “comande” esse processo, por assim dizer, de “dentro”, de forma imanente. É justamente isso que, na rude e simplificada descrição aqui feita, Deleuze chama de “diferença”. (Além de outras

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fechado, de possibilidades finalizadas, da indeterminação para a determinação. Finalmente, a noção de multiplicidade não está feita para ser contemplada, nem para servir de instrumento de análise do “mundo”. Deleuze é, sobretudo, um pragmático. Experimentar é sua constante palavra de ordem. “Não basta dizer ‘Viva o múltiplo’. É preciso fazer o múltiplo” (MP, v. 1, p. 14). Mas aí já entramos no terreno da conduta e da política. E disso trataremos em outra seção.

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precisões, seria preciso dizer que a diferença age duplamente: no interior da multiplicidade e em direção ao seu exterior, naquilo que Deleuze resume, em Diferença e repetição, por meio da fórmula diferen(t/c)iação). Por outro lado, é preciso que o processo de diferenciação que está no cerne do processo de criação se renove constantemente, que comece sempre de novo. É preciso que o processo (e não a “coisa” criada, não o seu resultado, não o seu produto) se repita incessantemente. É preciso voltar, retornar (Nietzsche) sempre ao início do processo; é preciso que a diferença continue, renovadamente, sua ação produtora e produtiva. O ciclo da diferença deve retomar incessantemente, incansavelmente, seu trabalho, seu movimento. Em outras palavras, é preciso que ele se repita sem parar, é preciso que haja repetição. Sem o retorno, a repetição da primavera (considerada como processo), não há nova floração (diferenciação), não é acionado aquilo (a “diferença”) que faz com surja essa nova floração. Sem repetição, não há diferença. O que parece um paradoxo é, na verdade, um liame indissolúvel. É que a repetição não é, aqui, a repetição da mesma “coisa”, a repetição do já-feito, do já-formado. A repetição não é, aqui, cópia, duplicação, reprodução do mesmo. Não é morte, cessação do movimento. A repetição, nesse vínculo indissolúvel com a diferença, está, ao contrário, na “origem” mesma da renovação, do fluxo, da vida. Repetição e diferença: é a dupla que, juntamente com a noção de multiplicidade, caracteriza, de maneira singular, o pensamento de Deleuze no contexto do pensamento filosófico contemporâneo. A noção de diferença, entretanto, sobrepassa o território deleuziano,

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para definir um movimento mais amplo da reflexão filosófica desses tempos, caracterizado justamente como “filosofia da diferença” ou como “pensamento da diferença”. Sua genealogia recua até Nietzsche, passa por Heidegger, para incluir, entre os contemporâneos, de maneira mais evidente, o pensamento de Jacques Derrida, não deixando de fora até mesmo um “dialético” como Adorno ou um pensador que, sem desenvolver explicitamente um pensamento da diferença, foi, sem dúvida, alguém que o colocou em prática: Foucault. Entre outras coisas, e para além de suas diferenças, que estão longe de ser negligenciáveis, esses pensamentos da diferença partilham de dois paradoxos. Em primeiro lugar, embora rejeitem a negação e a contradição, eles se desenvolvem, em boa parte, explícita ou implicitamente, em oposição (como negação, portanto) ao pensamento dialético de Hegel. Em segundo lugar, é difícil (impossível?) dizer em que consiste a noção de diferença sem dar-lhe uma definição. E uma definição é a operação identitária por excelência (uma definição diz “o que é”, uma definição supõe uma essência, supõe diferenciá-la, mas como espécie no interior de um gênero) – aquela que, obviamente, o pensamento da diferença quer justamente evitar. É por isso que Derrida, que foi quem talvez mais se esforçou por exprimir essa dificuldade, essa impossibilidade, diz que “a diferença não é” (DERRIDA, s.d., p. 58). No que toca a Deleuze, no livro em que ele mais desenvolveu a noção de diferença, Diferença e repetição, essa dificuldade é contornada pelo recurso a uma variedade de estratégias não propriamente para definir a noção de diferença, mas,

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digamos, para se aproximar dessa noção por meio dela mesma: do cálculo diferencial às fórmulas poéticas, passando pela literatura e pela própria filosofia, a diferença é – continuamente, variadamente, variacionalmente, diferencialmente – bordejada, roçada, marginada, mas nunca representada, nomeada, definida, plenamente atingida. Por outro lado, a expressão “pensamento da diferença” ou “filosofia da diferença” é bastante problemática, na medida em que homogeneiza pensamentos que, para além de seu comum questionamento do pensamento identitário e da palavra “diferença”, divergem em uma variedade de aspectos. Para ficarmos na comparação mais evidente e para citar apenas um aspecto dessa comparação, a “diferença” de Derrida, por exemplo, se apóia, de forma central, numa variedade da teoria lingüística ou de uma teoria do signo que é sumariamente questionada por Deleuze.

10 Da imanência – A noção de imanência é inseparável, em Deleuze, de outras noções que formam o cerne de sua “ontologia”: multiplicidade, diferença, expressão, entre outras. As referências centrais são, aqui, Spinoza, com a concepção, em sua Ética, de um “mundo” ao qual Deus é imanente e não uma entidade que lhe é exterior, separada, transcendental, e Bergson, com sua ênfase na produção do novo e do imprevisível a partir de elementos que não saem da esfera deste mundo (duração, elã vital, intensidade). Mas os substantivos imanência, transcendência, e os adjetivos correspondentes,

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imanente, transcendente/transcendental, têm, no pensamento filosófico, uma história que não permite que se lhes atribua qualquer sentido unívoco. É, em parte, devido a essa equivocidade que Deleuze pode afirmar o princípio da imanência, ao mesmo tempo em que se declara praticante de um “empirismo transcendental” (a chave do aparente paradoxo está no fato de que a noção de imanência vem precisamente de uma tradição, a spinozista, que opõe causa imanente e causa transitiva), enquanto o adjetivo “transcendental” vem da tradição kantiana que se liga não à oposição imanente/ transcendente ou imanência/transcendência, mas que se refere simplesmente, fora de qualquer relação de oposição, às condições a priori do ato de conhecer. Assim, por exemplo, em Kant, as noções de tempo e espaço são transcendentais, na medida em que constituem as condições prévias e independentes da experiência empírica de qualquer outro tipo de conhecimento. Dada a importância, em Deleuze, tanto da noção de “imanência” quanto de “empirismo transcendental”, vale a pena percorrer, ainda que brevemente, a trajetória desses diversos termos. Para começar, as noções de imanência e imanente são inseparáveis da noção de causa. A sistematização do conceito de causa, por sua vez, nos remete a Aristóteles, que concebia quatro espécies de causa: material, formal, eficiente ou motriz, final. Sua concepção de causa, entretanto, difere consideravelmente da noção moderna de causa. Tal como a entendemos, sob a influência da física moderna, “causa” se refere a um fator que é considerado como estando na origem da transformação de um outro, visto, então, como “efeito”.

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A causa é, aqui, muito mais uma relação entre eventos ou ações do que uma relação entre coisas. Assim, acender um fogo é causa de haver calor. Como tal, a causa é sempre exterior relativamente ao efeito que ela desencadeia. Para Aristóteles e para a escolástica medieval, entretanto, a noção de causa tem um sentido mais amplo. Uma coisa é causa de outra coisa se tem algum papel na sua origem ou formação. Assim, Aristóteles pode dizer que a matéria de que é feito um objeto, na medida em que contribui para fazer com que esse objeto seja o que é, é causa desse objeto. De maneira similar, a forma de um objeto pode ser considerada como sua causa, já que sem a forma o objeto não seria o que é. Esses dois exemplos correspondem, respectivamente, a dois dos tipos de causa mencionados por Aristóteles: causa material e causa formal. O terceiro tipo de causa, na classificação aristotélica, aproxima-se mais da concepção moderna. A causa eficiente ou motriz é aquilo que faz com que uma coisa mude de posição ou, mais geralmente, que algo que antes não existia passe a existir ou que algo existente sofra algum tipo de transformação. Finalmente, a “causa final” refere-se à finalidade ou justificativa de alguma coisa ou algum ato. Assim, a saúde é a causa (o motivo) do exercício físico: faço exercício por causa da saúde. Vemos que, contrariamente ao que implica a noção moderna de causa, na perspectiva aristotélica, um mesmo objeto pode ter mais de uma causa, embora de tipos diferentes. Assim, esta escultura que tenho à minha frente tem a madeira como causa material, a forma que a distingue de outros pedaços de madeira como causa formal, o escultor como causa

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eficiente ou motriz, o prazer (ou a necessidade de ganhar dinheiro) do escultor como causa final. No exemplo do exercício e da saúde, a saúde é causa final do exercício, mas o exercício é causa eficiente ou motriz da saúde. A divisão aristotélica dos diversos tipos de causas já implica uma distinção entre causas externas e causas internas ou imanentes. Assim, a causa formal e a causa material seriam causas internas, enquanto a causa eficiente seria, por definição, o tipo por excelência de causa externa. É essa divisão, por sua vez, que está na origem da noção de causa imanente, amplamente utilizada pela escolástica e reaproveitada, de maneira notável, por Spinoza, na formulação de sua doutrina da substância única. Na tipologia escolástica, “causa imanente” opõe-se à “causa transitiva”. Causa imanente é aí definida como aquela que é inseparável de seu efeito; causa transitiva é aquela em que o efeito está dela separado. É justamente essa inseparabilidade que está implicada na origem latina de “imanente”: do verbo immanere = in + manere, “ficar em”, “permanecer em”, “residir em”. Portanto, “imanente” é aquilo que não se separa, que não sai, que continua onde estava. A oposição de “imanente” a “transitiva” permite contemplar a possibilidade de que até mesmo uma causa eficiente, contrariamente ao que poderíamos deduzir da formulação aristotélica, possa ser considerada imanente. Assim, por exemplo, o intelecto é causa eficiente e, ao mesmo tempo, imanente dos conceitos que ele elabora. Na formulação spinoziana, Deus é causa eficiente e, ao mesmo tempo, imanente das coisas do mundo. As idéias de “imanente” e de “imanência” estão, pois, estreitamente ligadas à idéia de

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causa. “Imanente” qualifica uma causa e “imanência” é uma qualidade que se atribui a uma causa. Dizer que “A é imanente a B” é uma maneira abreviada de dizer que “A é causa imanente de B”. A imanência é, pois, uma relação entre dois termos: uma causa, A; um efeito, B. Não se poderia, assim, falar simplesmente da “imanência de A”. “Imanência de A” relativamente a quê? Ou, mais precisamente, relativamente a qual efeito? Decorre da própria definição de “imanente” que a imanência, tal como a relação de igualdade, é uma relação comutativa. Isto é, se A (causa) é imanente a B (efeito), então B (efeito) é também imanente a A. Em outras palavras, é óbvio que se A não se separa de B, então B também não se separa de A. A noção de “imanente”, na medida em que está associada à de causa e apenas nessa medida, opõe-se, pois, à de “transitiva” e não à de “transcendente”. Num campo semântico um tanto distinto, entretanto, é na oposição imanente-transcendente que a noção de “imanente” adquire seu sentido. Etimologicamente, “transcendente” tem origem no verbo latino transcendere, que significa “ir além”, “transpor”, num movimento ascendente, como indica sua composição: trans + ascendere. De forma geral, aplica-se o adjetivo “transcendente” a tudo aquilo que estaria situado em um plano que se imagina como estando acima do plano ordinário das coisas, como sendo superior ao plano desta realidade. Assim, no esquema platônico, o inteligível (o plano das idéias ou das formas) é considerado transcendente relativamente ao sensível (o plano das coisas). Na perspectiva da teologia escolástica, tudo o

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que diz respeito a Deus é visto como transcendente relativamente ao plano das criaturas. Nesse contexto, a transcendência, substantivo, é o estado próprio daquilo que é transcendente. Nessa oposição, imanente é, pois, o plano no qual se está, o plano desta realidade. A imanência, conseqüentemente, é o estado daquilo que se situa no plano ordinário das coisas, daquilo que pertence a esta realidade. Para retomar os exemplos anteriores, no esquema platônico, o sensível seria o imanente e o plano das coisas sensíveis constituiria o plano da imanência. Para a teologia escolástica, o imanente é a qualidade própria das criaturas e a imanência seria o seu estado. A oposição imanente-transcendente não é meramente descritiva. Isto é, ela não descreve simplesmente dois planos de existência. Ela tem também uma conotação valorativa. Ao aceitar a oposição, está-se implicitamente aceitando a existência desses dois planos. Afirmar a imanência, ao contrário, significa rejeitar a existência de um plano transcendente (e não transcendental). Essas duas posições não são propriamente simétricas. Quem afirma a transcendência não nega a imanência: apenas supõe a existência de um plano superior àquele em que nos situamos. Quem afirma a imanência, em contraste, nega a transcendência. Na discussão teológica, por outro lado, a questão não se resume simplesmente a tomar partido em favor da transcendência. Trata-se, em vez disso, de determinar como Deus se situa relativamente à oposição transcendenteimanente. É Deus transcendente ou imanente a este mundo? As diferentes respostas a essas questões, desde

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a escolha pela pura transcendência ou pela pura imanência, passando por tentativas de conciliação entre as duas, irão definir as diferentes doutrinas teológicas, que vão, respectivamente, desde o deísmo até ao panteísmo. Comparando-se as duas oposições, imanente-transitiva e imanente-transcendente, deve-se observar que há uma distinção entre os seus respectivos pontos de referência. Na relação imanente-transitiva, considerada como relação entre causa e efeito, o ponto de referência é sempre o efeito. Isto é, a causa é imanente relativamente ao efeito em questão. O ponto de referência é, aqui, variável, pois, dada uma causa, é preciso saber a qual efeito ela é imanente. Falamos, aqui, da imanência da causa relativamente ao efeito. Já na relação imanente-transcendente, não se trata de efeito e causa, mas de dois planos distintos: um deles, o de imanência, é sempre este plano, o plano desta realidade, enquanto o outro é sempre o plano que está além desta realidade. Falamos, aqui, da imanência de um plano relativamente ao outro ou, contrariamente, da transcendência de um relativamente ao outro. Já o termo “transcendental” tem, no contexto da teologia escolástica, ainda um outro sentido. Trata-se, aqui, não de um adjetivo, mas de um substantivo e geralmente empregado no plural: os transcendentais. Os transcendentais seriam aquelas qualidades que podem ser afirmadas de todos os entes, independentemente de sua natureza. Na linguagem aristotélica, os transcendentais estariam para além (daí o “trans” da palavra) das dez categorias, percorrendo a extensão inteira dos gêneros. Assim, seriam transcendentais a XXX

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própria qualidade de Ser, bem como os atributos de Bom, Verdadeiro e Uno. Pode-se dizer de todos os entes – ainda que de forma diferenciada, pois essas qualidades não se aplicam, segundo a teologia medieval, ao criador e às criaturas exatamente da mesma forma – que são igualmente bons, verdadeiros e unos. Assim compreendida, a noção de “transcendental”, ao contrário da de “transcendente”, não faz, dessa forma, parte de nenhuma oposição. Os transcendentais são simplesmente uma categoria especial de atributos. Pode-se considerar “transcendental”, aqui, como sinônimo de mais geral ou de universal. É esse sentido de “transcendental”, de “mais geral” ou “mais abrangente”, que provavelmente está na origem do emprego do conceito de “transcendental” na filosofia crítica de Kant. Talvez se possa fazer, aqui, uma distinção entre os adjetivos “transcendente” e “transcendental”. Enquanto o primeiro está vinculado à oposição transcendente-imanente, o segundo simplesmente qualifica aquilo que é um “transcendental” (os transcendentais são transcendentais). Se aceitamos essa distinção, “transcendente” não é propriamente sinônimo de “transcendental”, na medida em que as duas palavras remetem a campos semânticos distintos. Finalmente, como já mencionado, em Kant aparecem os dois termos: transcendental e transcendente; o primeiro como adjetivo e o segundo como substantivo, de uma forma que dificilmente se pode ver qualquer relação entre os dois. Enquanto “transcendental” se aplica às condições a priori de todo tipo de conhecimento, não conservando, assim, nada do sentido

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teológico de “transcendental” (e é isso que, precisamente, permite que Deleuze caracterize seu “método” como “empirismo transcendental”), “transcendentes” são aqueles objetos que estão além do entendimento, que não podem ser mesmo humanamente conhecidos, aproximando-se, assim, da noção de “transcendentais” (o Ser, o Bom, o Verdadeiro, o Uno), de origem aristotélica. Para voltar a Deleuze, uma filosofia que não recorre a qualquer tipo de essência, mas, em vez disso, que recorre à noção de multiplicidade, só podia ser uma filosofia da imanência. Há invenção, há criação, há produção, há transformação, há devir. Mas nesses “atos de passagem” não intervém nenhum fator que seja exterior àquilo que passa por essas metamorfoses. Aquilo que devém, aquilo a partir do qual o que devém devém e o XXXX que faz com que o devém devenha pertencem, todos, a um só e mesmo plano. O mundo da imanência é um mundo achatado, sem hierarquias, sem uma dimensão extra (as “n” dimensões disso aqui embaixo, mais uma, a lá de cima). No mundo da imanência se olha para o lado, para os lados, nunca para cima. Conceber o mundo de forma imanente é uma grande aventura. Não há nenhum recurso externo ao qual recorrer. É por isso que Deleuze fala da necessidade de se traçar um plano de imanência. Não se trata de um plano feito de objetivos, finalidades, propósitos, que funcionem como uma outra espécie de transcendência. É um plano, geométrico, um corte na multiplicidade, um plano que corta um espaço multidimensional, mas não um corte que saia da multiplicidade. Um plano fixo, o que quer dizer a

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Do devir – Os antigos, tirando talvez Heráclito, tinham horror ao devir. Devir, em última análise, significa “deixar de ser” – deixar de ser alguma coisa para se tornar outra. E para deixar de ser é preciso passar por um estágio que eles consideravam inadmissível: não ser. Porque o “não ser”, o que não é, simplesmente não existe. É impensável. Na ontologia das essências, das formas

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mesma coisa que imanente, pois um plano de imanência não é parte de uma seqüência de esferas hierarquizadas, não há um extraplano: é só ele mesmo, fixado aqui. Um plano de imanência não organiza, não serve para organizar, não é um plano de organização. Um plano de imanência é para se orientar, é um plano de orientação. Num mundo que remete ao transcendente, é fácil. O transcendente é quem dá as coordenadas. Mas num mundo imanente, feito de multiplicidades, de movimentos e de velocidades, de fluxos e de intensidades, estamos entregues à nossa própria sorte. É por isso que precisamos de um plano de imanência. Para pensar, para se comportar, para experimentar, para intervir. Temos que nos virar sozinhos. Isto é, com a ajuda de um plano de imanência que, por ser imanente, precisa ser traçado. Todo mundo precisa de um plano de imanência. Não pra sempre. Nem um que seja único. Pois aí já viraria transcendental, estratificado. Mas não dá pra viver sem um. No pensamento, na vida, na política. A necessidade de traçar um plano de imanência é uma conseqüência da necessidade de ter que se virar sozinho.

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ideais, do hilemorfismo, da diferença específica, não tem lugar para o devir. O devir é, aí, uma dor-decabeça. Já para uma ontologia da multiplicidade, como a de Deleuze, é tudo o contrário. É o ser da concepção tradicional que é, aqui, impossível. Não há nada, absolutamente nada, que “seja”, no sentido de que esteja definitivamente formado, nem mesmo aquilo que, na ontologia deleuziana, poderia dar essa impressão, isto é, as entidades do domínio do atual (o virtual e o atual coexistem). É que a multiplicidade (intensiva, virtual) não é apenas feita de forças, vetores, intensidades. Na medida em que é feita de relações diferenciais, de infinitesimais, uma multiplicidade está aberta a toda espécie de combinações, de misturas, de adjunções. É uma grande sopa pré-biótica de onde tudo pode surgir. A multiplicidade não é apenas virtual, ela é também microscópica, molecular. O molecular, o microscópico, a unidade infinitesimal, é aquilo que ainda não se estratificou, que ainda não se solidificou, que ainda não se cristalizou, que ainda está aberto a todo tipo de possibilidades: o mundo do in-formado. Ele se opõe ao molar (um agregado de moléculas), ele se opõe àquilo que se grudou, se colou, se estratificou, às unidades macroscópicas que constituem o mundo do já formado. O molecular é gel, é fluido, é gasoso. O molar é sólido, é rochoso, é maciço. É, pois, no terreno das multiplicidades intensivas que todo devir é possível. Estamos falando do devir não como a operação de “deixar de ser uma coisa para ser outra”, mas da operação de “deixar o estado de ser uma coisa para voltar para o estado de ainda

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não ser uma”. O devir, mesmo que acabe terminando no atual, no espacial, na extensão, no molar, só pode começar no virtual, no espaciotemporal, na intensão, no molecular, e sempre tentando regressar a esse estado. Temos aí uma primeira pista de conduta. Para devir, é preciso remontar ao virtual, à multiplicidade intensiva. Para sair do ponto é preciso deixar-se conduzir pelas linhas fluidas e gasosas da multiplicidade. Não é dormindo no ponto que se faz um devir. Para fazer a multiplicidade, é preciso perder o ponto. É por isso que, para Deleuze, o devir é sempre um devir-minoritário. Não porque o minoritário seja o justo, o bom, o correto. Não há lugar, aqui, para idéias justas, nem para o politicamente correto. “Justo uma idéia”, o que significa que o elogio do devir-minoritário não se faz pela via moral, mas pela via ontológica. O devir-minoritário é desejável simplesmente porque é o minoritário que, correndo por fora, ainda é multiplicidade intensiva, ainda é molecular, ainda é pura fluidez e flexibilidade. É o devir-minoritário que é uma multiplicidade intensiva. É dali que pode surgir o novo e o imprevisível. Mas tão-somente na medida em que permanecer minoritário. Não há devir-majoritário, mas uma minoria pode facilmente se tornar uma maioria e perder sua capacidade de devir-minoritário. Como sempre, na ontologia deleuziana não há pólos fixos. E não há nenhum outro conceito que exprima mais a centralidade da passagem, do trânsito, da transitoriedade, na ontologia deleuziana, que o de devir. O devir é o princípio de conduta que é a conseqüência lógica da ontologia deleuziana.

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“Há uma figura universal da consciência minoritária, como devir de todo o mundo, e é esse devir que é criação. [...] Essa figura é precisamente a variação contínua, como uma amplitude que não cessa de transpor, por excesso e por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. [...] É a variação contínua que constitui o devir minoritário de todo o mundo” (MP, v. 2, p. 53). O devir vai sempre na direção inversa da tendência à estratificação, aos processos molares, à matéria-já-formada, às maiorias: “[...] não entramos num devir-Homem, uma vez que o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende impor-se a toda matéria, ao passo que mulher, animal ou molécula têm sempre um componente de fuga que se furta à sua própria formalização. [...] O devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio’[...]” (DELEUZE, 1997, p. 11).

8 Da conduta ou da vida não-fascista – A univocidade do ser: o princípio ontológico, que Deleuze deriva de Duns Scotus, e que é, juntamente com o de imanência, fundamental para o desenvolvimento da noção de “diferença em si”. Declarar-se a favor da univocidade significa romper com todo privilégio concedido às qualidades de um ser superior ao qual as qualidades dos seres inferiores estariam ligadas apenas por algum princípio de analogia ou de proporcionalidade. Sem univocidade, não há imanência. Sem as duas, não há a “diferença em si”. É pela univocidade que a ontologia deleuziana se aplica tanto ao reino animado quanto ao

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inanimado, tanto ao reino animal e vegetal quanto ao mineral, tanto ao “propriamente” animal quanto ao humano. Mas é um privilégio do humano escolher como se conduzir no mundo, escolher como intervir no mundo. A ética e a política são privilégios do humano. E é para uma ética e para uma política que se dirige grande parte do pensamento de Deleuze. Na medida em que, politicamente, a ontologia de Deleuze leva-o à descrença nas unidades sociais molares (instituições, estado, partido), boa parte de sua política está concentrada não no indivíduo (do contrário, ele não colocaria tanta ênfase nos agenciamentos), mas em formas de conduta pessoal (com todas as cautelas colocadas nesse adjetivo, dada, por outro lado, a ênfase de Deleuze na “impessoalidade” e na “despersonalização”). Será, talvez, estranho, num campo como o da educação, que se concentrou, sobretudo, na crítica sociológica da escola, numa análise social da educação (o que, fundamentalmente, significa descrever como a educação é, deixando sempre implícita a questão do que ela “deve ser” – o “dever ser” era, aí, simplesmente um resultado da remoção dos elementos espúrios que a tornavam capitalista, machista, sexista...), falar em conduta, em ética, em como se conduzir. Mais escandaloso ainda será falar em conduta individual, em conduta pessoal. Mas sempre ressaltando que esse “individual” e esse “pessoal” remetem, por outro lado, a um campo transcendental impessoal, é impossível deixar de observar, em um livro como Mil platôs, por exemplo, os constantes apelos a se levar um determinado tipo de vida. É que a ontologia e o pensamento não se separam,

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aqui, da conduta, da vida. Em Mil platôs, temos, logo no início, um slogan que ressoa por todo o livro: “É preciso fazer o múltiplo”. O pensamento de Deleuze é para a vida, é para levar para a vida, é para a vida que se leva, é para levar uma vida. É por isso que há aí tantos imperativos ou tantos infinitivos que funcionam como imperativos. (O platô 3, “Geologia da moral”, que traz, já no título, uma palavra que remete à conduta, abandona os imperativos para mostrar uma conduta exemplar, um exemplo de “boa” conduta: a do excêntrico Professor Challenger. Ser, fazer, como o Professor Challenger, poderia ser uma máxima deleuziana. Sua malsucedida conferência termina, curiosamente, por uma bem-sucedida operação de construção de um Corpo sem Órgãos!). Esses imperativos não são, entretanto, os de um juízo moral que separa o bem do mal, nem tampouco critérios de uma razão crítica que separa as proposições verdadeiras das falsas. Trata-se, sempre, em todas as variantes, de um apelo à imanência, de um apelo a se prestar atenção à multiplicidade, de um apelo a fazer o caminho de volta ao meio fluido do virtual. Liquifazer-se. Desmanchar-se. Desintegrar-se. Gelificar-se. Voltar ao estado de intensidade zero que caracteriza o campo absolutamente aberto de todas as possibilidades, o campo em que podemos, ainda, ser qualquer coisa. Tornar-se um corpo sem órgãos. Construir para si um corpo sem órgãos. É essa, no fundo, a única “regra” de conduta da ética deleuziana. Virar um corpo absolutamente desterritorializado, descodificado, desorganizado, des-hierarquizado.

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Poderíamos fazer uma coleção, sobretudo em Mil platôs, dos inúmeros slogans que se reduzem sempre a isso: remontar ao virtual, entregar-se à multiplicidade, deixar-se levar pela multiplicidade, contra-atualizar-se, contra-efetuar-se, envolver-se num processo de variação contínua. Por exemplo. “Seguir sempre o rizoma por ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar” (MP, v. 1, p. 20). “Conjugar os fluxos desterritorializados” (MP, v. 1, p. 20). “Partir do meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar” (MP, v. 1, p. 37). “Ninguém faz amor com amor sem constituir para si, sozinho, com outro ou com outros, um corpo sem órgãos” (MP, v. 1, p. 43). “Estar na periferia, manter-se ligado por uma mão ou um pé...” (MP, v. 1, p. 47). “O que quer dizer amar alguém? É sempre apreendê-lo numa massa, extraí-lo de um grupo [...]; e depois buscar suas próprias matilhas, as multiplicidades que ele encerra e que são talvez de natureza completamente diversa. Ligá-las às minhas, fazê-las penetrar nas minhas e penetrar as suas” (MP, v. 1, p. 49). Devir-minoritário, gaguejar na própria língua, construir para si um corpo sem órgãos: tudo se resume a fazer a multiplicidade. “Gaguejar é fácil, mas ser gago da própria linguagem é uma outra coisa, que coloca em variação todos os elementos lingüísticos, e mesmo os elementos não-lingüísticos [...]. É aí que o estilo cria a língua” (MP, v. 2, p. 42). “Desestratificar, se abrir para uma nova função, diagramática. [...] Fazer da consciência uma experimentação de vida, e da paixão um campo de intensidades contínuas, uma emissão de signos-

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partículas. Fazer o corpo sem órgãos da consciência e do amor. [...] Dessubjetivar a consciência e a paixão. [...] Ser gago de linguagem, estrangeiro em sua própria língua” (MP, v. 2, p. 90). “Experimente ao invés de significar e interpretar! Encontre você mesmo seus lugares, suas territorialidades, seu regime, sua linha de fuga!” (MP, v. 2, p. 96). “Trata-se de criar um corpo sem órgãos ali onde as intensidades passem e façam com que não haja mais nem eu nem outro” (MP, v. 3, p. 18). “Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade” (MP, v. 3, p. 22). Agenciamentos. É disso que, antes de chegar à política, precisamos tratar.

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7 Dos agenciamentos – “Agenciamento” é, em português, um neologismo cunhado, muito apropriadamente, pelos tradutores de Mil platôs para traduzir a palavra francesa “agencement”. Nessa passagem, ocorre, de forma infeliz, mas compreensível, como é comum na criação de palavras eruditas a partir de uma outra língua, que aquilo que era, na língua original, uma palavra ordinária, “concreta”, do uso cotidiano da língua (“metáfora” é, originalmente, em grego, apenas “meio de transporte”, no sentido mais ordinário do termo; “aporia” é, na mesma língua, um simples “beco sem saída”; “substância”, em seu sentido filosófico, é a tradução usual do grego “ousia”, designando, no uso cotidiano, um “bem

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de raiz”, como um terreno ou uma casa), vira um termo esotérico, misterioso, abstrato. Segundo o dicionário Petit Robert, “agencement” é “ação, maneira de agencer; arranjo resultante de uma combinação”. “Agencer”, por sua vez, quer dizer “arranjar, combinando elementos, organizar um conjunto por uma combinação de elementos”. Um dos exemplos de “agencement” fornecidos pelo Petit Robert não podia ser mais ordinário, concreto e cotidiano: o do arranjo de um apartamento. No léxico de Deleuze e Guattari, sobretudo no de Mil platôs, “agenciamento” não passa mesmo disso: o arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo surgir algo novo, que não se pode resumir a nenhum dos elementos isolados que o compõem. E o que é isso senão uma multiplicidade? Agenciamento poderia ser entendido, então, simplesmente como um outro nome para “multiplicidade”, com o acréscimo, talvez, de uma dose maior de atividade, de intervenção, de nossa parte. Os agenciamentos seriam, pois, a resposta ao constante apelo deleuziano para se “fazer multiplicidade”. Agenciar: fazer multiplicidade. É o pragmatismo de Deleuze no seu mais alto grau. Combinar. Conjugar. Misturar. Mesclar. Ajuntar. Reunir. Agrupar. Amontoar. Somar. Enxamear. Conectar. Ligar. Compor. Articular. As composições, as combinações, os agenciamentos se distinguem dos processos de organização, de estratificação, de solidificação, mas mantêm relações de parentesco com os planos de imanência, com os planos de consistência, com os corpos sem órgãos. Mas isso de fazer agenciamentos talvez não seja assim

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tão simples. Deleuze e Guattari falam de “agenciamentos” ao longo de todo o livro que mais estamos seguindo aqui, Mil platôs. Eles tentam até mesmo “defini-lo” algumas vezes: “Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões” (MP, v. 1, p. 17); “Denominaremos agenciamento todo conjunto de singularidades e de traços extraídos do fluxo – selecionados, organizados, estratificados – de maneira a convergir (consistência) artificialmente e naturalmente” (MP, v. 5, p. 88). Mas como ocorre com tantos outros conceitos, uma definição quase nunca coincide com a outra. Ou há sempre uma complicação adicional que nos obriga a repensar o que pensávamos haver compreendido. Uma primeira complicação: de que elementos, precisamente, é feito um agenciamento? De “coisas”, no sentido ontológico clássico, isto é, de matéria já formada (na terminologia deleuziana), ou de fluxos, intensidades, linhas? Em outras palavras, os agenciamentos se passam no domínio do atual ou no domínio do virtual? Ou, na terminologia equivalente e mais utilizada em Mil platôs, no nível dos estratos ou no nível dos planos de consistência, das máquinas abstratas e dos corpos sem órgãos? Ou, ainda, no interior de multiplicidades extensivas ou no interior de multiplicidades intensivas? Provavelmente, nem uma coisa nem outra. Talvez seja melhor pensar nos agenciamentos como uma tentativa de contra-efetuação, de contra-atualização, de contradiferenciação. E aí já não importa tanto saber de quais elementos um agenciamento é formado, mas se ele, ao

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se formar, vai na contracorrente da estabilização, da solidificação, da estratificação. Importa saber se ele libera os fluxos, as intensidades, as correntes de energia que são a matéria-prima das multiplicidades intensivas ou se, ao contrário, ele as prende, as captura, as congela. Num caso, os agenciamentos vão na direção do virtual, da multiplicidade intensiva, do plano de composição, do corpo sem órgãos; no outro, eles vão na direção do atual, da multiplicidade extensiva, dos estratos. Num caso, eles seguem o curso da variação contínua; no outro, o da fixação e da paralisia. “[...] o problema é o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazêlo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra face voltada para o plano de consistência ou para o corpo sem órgãos” (MP, v. 2, p. 90). Como em tudo o mais, nada é simples na ontologia deleuziana. Nem todo agenciamento é “bom”. Nenhum agenciamento é necessariamente desejável. Há até mesmo agenciamentos de poder: “[...] não há significância sem um agenciamento despótico, não há subjetivação sem um agenciamento autoritário, não há mixagem dos dois sem agenciamentos de poder [...]” (MP, v. 3, p. 49). São justamente aqueles que puxam para “baixo”, indo na direção dos estratos. Esses estancam o fluxo. Se você entrar num desses, você está perdido. Em Mil platôs, Deleuze e Guattari dão, em variados contextos, muitos exemplos de agenciamentos. Como sempre, os conceitos deleuzianos apenas parecem demasiadamente abstratos; eles se referem, na verdade, a situações e casos muito concretos. Podemos começar com o exemplo mais

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citado, aquele que aparece logo no primeiro platô: o agenciamento da vespa e da orquídea. Deleuze e Guattari não utilizam, aqui, o termo “agenciamento”. Eles falam de “rizoma”, mas é a mesma coisa: “A vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade” (MP, v. 1, p. 18). A descrição do agenciamento “vespa-orquídea”, nessa passagem do platô 1, é ilustrativa da precedência que Deleuze concede, em sua ontologia, aos elementos extra-subjetivos, aos elementos impessoais, aos elementos pré-individuais, em suma, às multiplicidades intensivas e aos agenciamentos. O agenciamento é, constitutivamente, sempre primeiro relativamente aos elementos de que é formado. Poder-se-ia dizer que não são os elementos que formam o agenciamento, mas que é o agenciamento que forma os elementos que nele entram. Nada sai de um agenciamento do jeito que entrou. O agenciamento faz devir. No caso da vespa e da orquídea: “A orquídea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea, transportando o pólen” (MP, v. 1, p. 18). Outro exemplo notável é o que se refere a agenciamentos em que entra a tecnologia. Neste caso, específico, Deleuze e Guattari estão falando de armas e ferramentas: “O primado muito geral do agenciamento maquínico e coletivo sobre o elemento técnico vale em toda parte, tanto para a ferramenta como para as armas. As armas e as ferramentas são conseqüências, nada além

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de conseqüências” (MP, v. 5, p. 77). O exemplo merece ser citado mais longamente: “Por toda parte é o agenciamento que constitui o sistema de armas. A lança e a espada só existiram desde a idade do bronze graças a um agenciamento homem-cavalo, que prolonga o punho e o venábulo, e que desqualifica as primeiras armas de infantaria, martelo e machado. O estribo impõe, por sua vez, uma nova figura do agenciamento-cavalo, conduzindo a um novo tipo de lança e novas armas [...]. Ora, a situação é exatamente a mesma para a ferramenta: também nesse caso tudo depende de uma organização do trabalho, e de agenciamentos variáveis entre homem, animal e coisa” (MP, v. 5, p 78). Mas, no fundo, os agenciamentos talvez só dêem “cola”, só ganhem consistência, só formem um plano de consistência, quando colocam em jogo não as “coisas” extendidas do domínio do atual, coisas tais como a vespa e a orquídea, o estribo e o pé do cavaleiro, mas as relações entre seus respectivos afectos e respectivas variações de velocidade, quando fazem interagir os fluxos e as correntes “invisíveis” das multiplicidades intensivas que pairam sobre o campo do atual como uma abertura para estratégias de contraefetuação e de contra-atualização. É aí que se produzem processos de individuação que não vêm de essências, nem remetem a essências, mas que secretam sua própria essência, irredutível a qualquer elemento transcendental: hecceidades, acontecimentos. Singulares. Únicos. Cada um deles não pertence a nenhuma espécie, cada um deles é sua própria espécie: “Ele [o cavalo do pequeno Hans] não é o membro de uma espécie,

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mas um elemento ou um indivíduo num agenciamento maquínico: cavalo de tração-diligência-rua. Ele é definido por uma lista de afectos, ativos e passivos, em função desse agenciamento individuado do qual ele faz parte [...]. Esses afectos circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que ‘pode’ um cavalo (MP, v. 4, p. 43)”. São esses agenciamentos que produzem verdadeiras fulgurações, surpreendentes instantâneos na monotonia cinza daquela metade-do-mundo da matéria-já-formada: “Uma estação, um inverno, um verão, uma hora, uma data têm uma individualidade perfeita, à qual não falta nada, embora ela não se confunda com a individualidade de uma coisa ou de um sujeito. São hecceidades, no sentido de que tudo aí é relação de movimento e repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado” (MP, v. 4, p. 43). É aqui que formigam os devires. Mas, de novo, cuidado! Isso ainda não nos garante nada. Ainda há a possibilidade de se entrar num agenciamento fascista, de se fazer um agenciamento despótico. O fascista em nós também agencia, o fascista em nós é, também ele, o resultado de um agenciamento. É preciso convocar Spinoza para estabelecer algum critério, imanente, por supuesto, para distinguir os agenciamentos desejáveis dos indesejáveis, os agenciamentos “bons” dos agenciamentos “ruins”. A questão toda está em determinar, nos ensina o Spinoza da Ética (III, P2, Escólio), “o que pode um corpo, [...] o que o corpo pode fazer e o que não pode”. No caso, perguntaríamos, pois: o que pode um agenciamento? Ele aumenta ou diminui nossa potência de agir?

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Do Corpo sem Órgãos – Nada parece mais esotérico, talvez, na escrita deleuziana, que essa expressão, tomada de empréstimo a Antonin Artaud (claro que não sem os manjados truques de mão que lhe dão direito, a Deleuze, de ingresso na corporação dos mágicos). Corpo sem Órgãos? Como pode ser uma coisa dessas? Parece um oximoro. É um oximoro. E é justamente dessa aparente impossibilidade que Deleuze extrai toda a eficácia de seu passe de mágica. É ao privá-lo daquelas que parecem ser suas partes essenciais que se obtém o máximo do corpo. Por outro lado, nada é menos esotérico que um corpo, ainda que sem órgãos. Aqui, de novo, Deleuze aposta é no concreto. Mil platôs pode ser lido, se quiserem, como um tratado esotérico, tantas são as palavras “estranhas” aí introduzidas ou retomadas. Mas bem sensíveis, bem concretas, bem palpáveis, bem materiais é o que elas todas são: rizoma, território, máquina (ainda que) abstrata, máquina de guerra, ritornelo, linha de fuga, estratos. Tudo é muito prático na pragmática de Deleuze. E a tarefa de construção de

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Tornamo-nos mais fortes ou mais fracos? Ele nos empurra em direção aos estratos, aos mecanismos de fixação e de paralisação, de solidificação e de espacialização, de repetição do mesmo e do idêntico ou, ao contrário, ele nos puxa para a zona das multiplicidades virtuais e das variações contínuas, para o plano de consistência e para o domínio dos devires, única zona onde tudo o que conta é a invenção, a criação e a construção?

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um Corpo sem Órgãos está no centro dessa pragmática: “A esquizo-análise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? quais são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? [...] Você racha? Você rachará? Você se desterritorializa?” (MP, v. 3, p. 77, grifos no original). O Corpo sem Órgãos é, pois, a desterritorialização absoluta. A despossessão, a despersonalização, a des-subjetivação absoluta. Nenhuma organização. Nenhuma hierarquia. Nenhuma estrutura. Pura multiplicidade: “Um corpo sem órgãos não é um corpo vazio e desprovido de órgãos, mas um corpo sobre o qual o que serve de órgãos [...] se distribui segundo movimentos de multidões, segundo movimentos brownóides, sob forma de multiplicidades moleculares” (MP, v. 1, p. 43). Começar do zero. Embora seja um campo de pura intensidade, ela é, aqui, zerada, para poder se tornar qualquer outra coisa. É aqui que tudo é ainda possível. É aqui que tudo deveria permanecer sempre possível. É aqui que se começa. É aqui que se deve terminar. O Corpo sem Órgãos é, nesse sentido, um ideal. De conduta. De política. É no Corpo sem Órgãos que a produtividade do desejo alcança o seu pico. “Um corpo glorioso”, adjetiva-o Deleuze (1998), no livro (Lógica do sentido), em que provavelmente utiliza a expressão pela primeira vez, “um organismo sem partes que faz tudo por insuflação, inspiração, evaporação, transmissão fluídica” (p. 91). Assinalada por Deleuze em nota de rodapé, nessa mesma passagem, é de Artaud a qualificação:

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“Nada de boca, de língua, de dentes, de laringe, de esôfago, de estômago, de ventre, de ânus. Eu reconstruirei o homem que sou” (p. 91). E Deleuze acrescenta, entre parênteses: “O corpo sem órgãos é feito só de osso e de sangue” (p. 91). O Corpo sem Órgãos coincide com a potência máxima, com a vitalidade máxima da vida. O Corpo sem Órgãos está no centro da valorização que Deleuze faz de uma “vida não orgânica” – “a prodigiosa idéia de uma Vida não orgânica” (MP, v. 5, p. 94). O que significa não uma vida sem vida, mas a vida de um Corpo sem Órgãos, uma vida virada não para os processos de estratificação, de territorialização e de organização, mas uma vida voltada para os processos de consistência, de desterritorialização e de desorganização. Corpos sem Órgãos são corpos “atravessados pela intensa vitalidade que desafia os órgãos e desfaz a organização” (DELEUZE, 1997, p. 149). O Corpo sem Órgãos é a “anarquia coroada” de Deleuze, a des-organização produtiva, afirmativa. Fazer para si um Corpo sem Órgãos implica, antes de mais nada, desfazer-se como matéria pronta, como multiplicidade numérica, para se abrir, a cada vez, de forma sempre renovada, para os riscos e os prazeres do ainda-por-se-fazer, do incessante devir, do eterno retorno, para se refazer, enfim, como multiplicidade intensiva. Quando se fala de “Corpo sem Órgãos” não se trata, nunca, de matéria e de forma, mas de composição de velocidades e de afectos: “O corpo não é questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais” (MP, v. 3, p. 36). A noção de “Corpo sem Órgãos” coloca em questão a idéia de “formação”

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que está no centro de quase todas as “filosofias” da educação (e do currículo!), que por sua vez é central para a idéia mais ampla de “desenvolvimento humano”. Talvez fosse melhor, para uma filosofia da educação e do currículo que levasse a sério a idéia de “Corpo sem Órgãos”, falar não em “formação, mas em “de-formação”. É nessa “de-formação”, aliás, que a pintura das Figuras de Bacon cruza com o teatro da crueldade de Artaud: “[...] Bacon encontra Artaud em muitos pontos: a Figura é precisamente o corpo sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do corpo, o rosto em favor da cabeça); o corpo sem órgãos é carne e nervo [...]” (DELEUZE, 2002, p. 48). Educar poderia ser isto: “de-formar”. Em vez de parâmetros curriculares, distribuir (des-organizadamente, por favor) kits com “instruções” sobre “como construir seu corpo sem órgãos”. O “Corpo sem Órgãos” tem tudo a ver com aquelas noções que, em Deleuze, expressam, igualmente, a idéia de multiplicidade: plano de consistência, plano de imanência, devir, máquina de guerra. Essas noções funcionam, muitas vezes, em Deleuze, de forma equivalente: “[...] a reconstrução do corpo como Corpo sem órgãos, o anorganismo do corpo, é inseparável de um devir-mulher ou da produção de uma mulher molecular” (MP, v. 4, p. 69); “O plano de consistência é o corpo sem órgãos” (MP, v. 4, p. 60). Entre os apelos para se “fazer o múltiplo” e as instruções sobre “como construir para si um corpo sem órgãos” só existe uma diferença de grau de abstração. Construir para si um corpo sem órgãos é fazer o múltiplo. (Mas existem, é claro, muitas outras maneiras de

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fazê-lo). Um “Corpo sem Órgãos”, por outro lado, não tem nada a ver com os estratos, as territorialidades, os aparelhos de Estado, com o Juízo, com os tribunais de qualquer natureza (DELEUZE, 1997, p. 150). O Juízo organiza o corpo. O Juízo fixa o corpo. O Juízo finaliza o corpo. O corpo como obra acabada. O que tem que se acabar é justamente com o Juízo de Deus, como berrava Artaud (1977) ao final de sua “malograda” peça radiofônica: “Podem me atar, se quiserem, /mas não há nada mais inútil que um órgão. Quando tiverem feito para si um corpo sem órgãos, /então vocês o terão livrado de todos os seus automatismos /e o terão devolvido à sua verdadeira liberdade. Então vocês o terão ensinado a dançar às avessas /como no delírio dos bailes populares /e esse avesso será sua casa verdadeira” (ARTAUD, 1986, p. 161-2; tradução ligeiramente modificada).

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Do estilo – Tradicionalmente, há uma oposição entre a estilística e a retórica. Enquanto a segunda se concentra nas “alterações” que se podem fazer no curso “normal” da língua para obter efeitos práticos (na oratória jurídica, por exemplo), a primeira se preocupa com as variações a que se pode submeter a língua para se obter efeitos estéticos (na poesia, principalmente, e na literatura em geral). Convencer, numa; provocar sentimentos estéticos, na outra. O estilo é, assim, já na concepção tradicional, uma ciência das “variações” tendo em vista objetivos estéticos. Variar a língua é torná-la mais “bela” para fazê-la comover. No centro da estilística está

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justamente o estudo dos tropos (ou figuras de linguagem) que, etimologicamente, pode-se traduzir com uma certa liberdade, como “desvio”. A estilística ocupa-se do estudo dos tropos de palavras, que seriam os tropos propriamente ditos (a metáfora, a metonímia, por exemplo), mas também dos tropos, num sentido mais amplo, de construção ou sintaxe (a elipse, a aliteração, por exemplo) e dos tropos de pensamento (a antítese, o eufemismo, a hipérbole, por exemplo). Estamos falando, talvez, de um outro sentido de estilo, entretanto, quando dizemos que alguém “tem estilo” ou que alguém “tem um estilo”. Aqui, estamos nos referindo à maneira peculiar, particular, pessoal, pela qual alguém utiliza a língua para obter os efeitos desejados (em geral, de ordem estética). Deleuze se preocupou muito com a questão do estilo. E, embora tenha revirado essas duas acepções tradicionais de “estilo” para seus próprios propósitos, ele conserva algo de ambas. Ao definir o estilo como o processo pelo qual se submete a língua a um processo de variação contínua, ele radicaliza a noção de “tropos” entendida como desvio da semântica, da sintaxe e da lógica “normais” da língua, sem se afastar totalmente, entretanto, da concepção tradicional de estilo. Por outro lado, a noção de estilo, por estar associada à de variação contínua e, portanto, à de multiplicidade, afasta-se totalmente de qualquer associação com a noção tradicional de estética, relacionada à obtenção do belo para efeitos de contemplação e fruição pessoal. O estilo não tem nada a ver, aqui, com beletrismo. Escrever com estilo não é a mesma coisa que

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escrever “bonitinho”. O estilo, na concepção deleuziana, está mais para desagradar que para agradar. Escreve-se, e escreve-se com estilo, para devir. O estilo está, em Deleuze, muito mais ligado à política do que à estética. Ele serve para submeter a língua a um processo de variação contínua com vistas a transformar quem escreve e quem lê. É a noção central de multiplicidade (expressa aqui por meio de um de seus aspectos, o de “variação contínua”) que liga, inseparavelmente, estilo, pensamento, política e... vida. É por isso que o estilo não é uma prerrogativa dos que escrevem literatura, embora Deleuze admire aqueles que, na literatura, escrevam com um estilo que faça as palavras ressoarem com as multiplicidades, que faça com que a escrita seja uma multiplicidade. A filosofia, concebida simplesmente como pensar, como criação de conceitos, tem necessariamente um estilo. É porque o “estilo em filosofia acompanha o movimento dos conceitos” que “os grandes filósofos são também grandes estilistas” (DELEUZE, 1992, p. 175; cf. p. 203). Como isso se aplica a Deleuze, como filósofo, como estilista? Podemos começar, talvez, por distinguir entre, de um lado, aquilo que Deleuze disse sobre estilo e, de outro, o estilo que o próprio Deleuze praticou. Sobre a primeira questão, vários dos diversos livros de Deleuze estendem-se longamente sobre a noção de estilo. Proust e os signos tem um capítulo inteiro, o 9, sobre estilo. A dobra é, em grande parte, um livro sobre um estilo particular, o barroco. Em Mil platôs, além de referências esparsas, há determinados platôs que desenvolvem longamente a

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noção de estilo. É o que ocorre, por exemplo, no platô 4, no platô 10 e no platô 11. Vejamos, pois, com o auxílio sobretudo desses platôs, mas também de referências retiradas de outros livros, o que constitui um estilo para Deleuze, para que serve o estilo na escrita e quais são as conexões entre estilo, de um lado, e pensamento, política e vida, de outro. De uma maneira bem geral, pode-se dizer que o estilo, para Deleuze, consiste em submeter constantemente a língua com que se escreve a uma tensão tal, a uma variação contínua tal, que ela acompanhe sempre o contínuo movimento das multiplicidades com as quais ela se conjuga. O estilo é, antes de tudo, aquilo que faz a língua fluir em ressonância com o fluxo da vida. Quais são os aspectos “formais” de um tal estilo? Embora encare o estilo como uma forma de experimentação, Deleuze recusa aquelas espécies de experimentação que lançam mão de recursos que se poderia chamar, talvez, de “extralinguísticos”, como a manipulação da disposição tipográfica de um texto, por exemplo. Deleuze não está totalmente isento desse tipo de prática. Como assinala Tom Conley (1999, p. 252), “Mil platôs adere a um estrutura do tipo ‘emblema’, na qual imagens inscritivas são colocadas abaixo dos títulos dos capítulos, em diálogo com títulos-rébus (sobrescritos) e enigmas (subscritos que, enganadoramente, tomam a forma de um argumento ou de uma discussão no espaço abaixo da imagem)”. Mas esses experimentos são certamente modestos se comparados com os realizados por Derrida, por exemplo, em livros como Glass. O certo é que essa não é a via tomada por Deleuze, e ele o

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declara explicitamente numa passagem em que não está falando de estilo e sim de método; mas, aqui, o método é claramente o estilo: “Para o múltiplo, é necessário um método que o faça efetivamente; nenhuma astúcia tipográfica, nenhuma habilidade lexical, mistura ou criação de palavras, nenhuma audácia sintática podem substituí-lo” (MP, v. 1, p. 34). De forma talvez paradoxal, o estilo que convém ao múltiplo é, ao contrário, o da sobriedade, o da minimalidade, o da sutileza. Reduzir-se a si e a escrita a uma linha abstrata: não é apenas uma questão de estilo ou de “estética”, mas de vida, de ética e de política. “Que a escrita seja como a linha do desenho-poema chinês, era o sonho de Kérouac, ou já o de Virginia Woolf. Ela diz que é preciso ‘saturar cada átomo’ e, para isso, eliminar, eliminar tudo o que é semelhança e analogia, mas também ‘tudo colocar’, eliminar tudo o que excede o momento, mas colocar tudo o que ele inclui [...]” (MP, v. 4, p. 73-4). A citação de Virginia Woolf é suficientemente importante para ser retomada, com mais detalhes, em O que é a filosofia: “Como tornar um momento do mundo durável ou fazê-lo existir por si? Virginia Woolf dá uma resposta que vale para a pintura ou a música tanto quanto para a escrita: ‘Saturar cada átomo’, ‘Eliminar tudo o que é resto, morte e superfluidade’, tudo o que gruda em nossas percepções correntes e vividas, tudo o que alimenta o romancista medíocre, só guardar a saturação que nos dá um percepto’, [...], ‘Colocar aí tudo e contudo saturar’” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 223). Mas o estilo, para Deleuze, consiste, sobretudo, em torcer a

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língua para fazê-la ressoar com o múltiplo, para voltarse para o lado do plano de consistência, do virtual, da multiplicidade intensiva, do Corpo sem Órgãos. E para, contrariamente, dar as costas aos estratos e a tudo aquilo que faz da língua palavra-de-ordem. É justamente porque a língua, no seu curso natural, é palavra-deordem que ela precisa ser torcida. É porque a língua é palavra-de-ordem que é preciso fazer gaguejá-la. É porque a língua é palavra-de-ordem que é preciso fazê-la entrar em um devir-minoritário. E é por tudo isso que o estilo é, fundamentalmente, uma questão de política. O primeiro dos dois platôs lingüísticos (o quatro e o cinco), de Mil platôs, começa, de forma decepcionante (oh!, Gilles, oh!, Félix), como qualquer bom tratado estruturalista sobre a linguagem, ainda que temperado pela pragmática de Austin, enfatizando o aspecto impositivo da língua. Para um filósofo que coloca as linhas de fuga antes do poder, é um mal começo. Não nos deve tampouco passar despercebido que o platô 4, logo na primeira frase, invoca precisamente a palavra da professora como o exemplo supremo da língua-comopalavra-de-ordem: “A professora não se questiona quando interroga um aluno, assim como não se questiona quando ensina uma regra de gramática ou de cálculo. Ela ‘ensigna’, dá ordens, comanda” (MP, v. 2, p. 11). E mais adiante, uma frase que resume a noção de linguagem desenvolvida nesse início de platô: “A linguagem não é mesmo feita para que se acredite nela, mas para obedecer e fazer obedecer” (MP, v. 2, p. 12). Mas não nos apressemos. A surpresa estava reservada para o final do platô. Aqui a linha de fuga retoma sua

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precedência: “Mas se considerarmos o outro aspecto da palavra de ordem, a fuga e não a morte, é evidente que as variáveis entram então em um novo estado, que é o da variação contínua” (MP, v. 2, p. 56). É quando se faz a língua gaguejar, quando ela entra num devir-minoritário, quando ela pega o máximo de conteúdo com um mínimo de matéria expressiva, que ela deixa de ser palavra de ordem para seguir o caminho da linha de fuga. E é para isso que serve um estilo. De novo, sem estilo não há política, sem estilo não se faz política. Sem estilo, ficamos sujeitos à face da língua voltada para a palavra de ordem. “Assiste-se”, aqui, “a uma transformação de substâncias e a uma dissolução das formas, passagem ao limite ou fuga dos contornos, em benefício das forças fluidas, dos fluxos, do ar, da matéria, que fazem com que um corpo ou uma palavra não se detenham em qualquer ponto preciso. Potência incorpórea dessa matéria imensa, potência material dessa língua. Uma matéria mais imediata, mais fluida e ardente do que os corpos e as palavras. [...] Os gestos e as coisas, as vozes e os sons, são envolvidos na mesma ‘ópera’, arrebatados nos efeitos cambiantes de gagueira, de vibrato, de trêmulo e de transbordamento” (MP, v. 2, p. 57). Isso anuncia, duplamente, um manifesto estilístico e um manifesto político: “Existem senhas sob as palavras de ordem. Palavras que seriam como que passagens, componentes de passagem, enquanto as palavras de ordem marcam paradas, composições estratificadas, organizadas. A mesma coisa, a mesma palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair uma da

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outra – transformar as composições de ordem em componentes de passagem” (MP, v. 2, p. 58-9). Que alívio reencontrar, aqui, no final desse platô, o Deleuze que afirma, uma e outra vez, que as linhas de fuga são primeiras relativamente ao poder. Mas, qual é a prática de estilo do próprio Deleuze, que tanto amou o estilo de gente como Virginia Woolf, Kleist, Hölderlin, Beckett, Kafka? A escrita de Deleuze gagueja? A escrita de Deleuze entra em devires-minoritários? A escrita de Deleuze tende para a linha abstrata da caligrafia chinesa? Se há um livro que se aproxima, na prática, daquilo que Deleuze fala sobre o estilo, é certamente Mil platôs, assinalando uma verdadeira ruptura com o estilo acadêmico e mais tradicional de seus livros anteriores. É verdade que o Anti-Édipo já prenuncia essa mudança de estilo. Impossível não ver uma radical mudança de estilo num livro que começa assim: “Isto funciona por toda parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto” (DELEUZE E GUATTARI, 1966, p. 7). É o próprio Deleuze quem “denuncia” o estilo mais tradicional de seus livros anteriores, embora já pressentindo aí que uma teoria da multiplicidade exigia uma escrita da multiplicidade: “Comecei então a fazer dois livros nesse sentido vagabundo, Diferença e repetição, Lógica do sentido. Não tenho ilusões: ainda estão cheios de um aparato universitário, são pesados, mas tento sacudir algo, fazer com que alguma coisa em mim se mexa, tratar a escrita como um fluxo, não como um código” (DELEUZE, 1992, p. 15). Mas é, certamente, em Mil platôs

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que a escrita de Deleuze tenta acompanhar o movimento da multiplicidade, como, outra vez, ele mesmo diz: “Em Lógica do sentido tentei uma espécie de composição serial. Mas Mil platôs é mais complexo: é que ‘platô’ não é uma metáfora; os platôs são zonas de variação contínua, são como torres que vigiam ou sobrevoam, cada uma, uma região, e que emitem signos umas às outras. É uma composição indiana ou genovesa. Parece-me que é aí que nos aproximamos mais de um estilo, isto é, de uma politonalidade”. É justamente essa multiplicidade sonora, em outro local traduzida em multiplicidade visual, expressa em termos de cromatismo (“Por uma lingüística cromática, que dê ao pragmatismo suas intensidades e valores” (MP, v. 2, p. 41), que caracteriza o estilo de Mil platôs, mas talvez fosse melhor dizer “os estilos de Mil platôs”. Deleuze e Guattari submetem a escrita de Mil platôs a essa variação contínua que eles dizem definir o estilo: “Talvez seja, aliás, uma característica das línguas secretas, das gírias, dos jargões, das linguagens profissionais, das fórmulas repetidas em jogos infantis, dos gritos dos vendedores, a de valerem menos por suas invenções lexicais ou por suas figuras de retórica do que pela maneira pela qual operam variações contínuas nos elementos da língua. São línguas cromáticas, próximas a uma notação musical. Uma língua secreta não tem apenas uma cifra ou um código escondido que funciona ainda por meio de constante e forma um subsistema; ela coloca em estado de variação o sistema das variáveis da língua pública” (MP, v. 2, p. 41, grifos no original). E Mil platôs é isso: a

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criação de uma língua secreta que nunca está onde pensamos que deveria estar, que nunca diz o que pensamos que deveria dizer. Em Mil platôs somos jogados pra lá e pra cá não apenas entre os diversos platôs, mas no interior mesmo de cada um deles. Não é apenas que, praticamente, cada platô tem um estilo diferente (que vai da alucinante paródia do platô 3, “A geologia da moral”, passando pelo estilo mais contido, mais convencional, dos platôs lingüísticos, 4 e 5, “Postulados da lingüística” e “Sobre alguns regimes de signo”, até o estilo “manifesto” do platô 1, “Rizoma”, e o estilo “crítica” do platô 2, “Um só ou vários lobos”), mas somos constantemente desestabilizados pelas diferentes perspectivas que cada conceito, cada noção, cada idéia assume, de um platô para outro. Não é secundário ao estilo praticado em Mil platôs, a utilização do léxico e da sintaxe dos mais diferentes campos do conhecimento: da literatura à ciência, da matemática às ciências biológicas, da filosofia à lingüística. Os estilos de Mil platôs praticam, sem dúvida, a multiplicidade que pregam. Ou melhor, eles seguem o phyllum da multiplicidade que descrevem, tal como o marceneiro segue, na madeira, a direção na qual ela a conduz. Podemos decifrar, agora, talvez, qual é o método para “fazer o múltiplo”, apenas sugerido no primeiro platô. O método é a escrita, é o estilo. Não há outro método. O pensamento da multiplicidade não é, definitivamente, uma ciência social. O pensamento da multiplicidade não busca relações entre variáveis, não busca as relações de causa e efeito que levam de um atual a outro atual. O pensamento da multiplicidade busca subir do atual ao virtual. E só há uma maneira de fazer isso: é por meio de

uma escrita, de um estilo, que simplesmente siga a senda, o sulco, da multiplicidade. Agora, como, precisamente, chegar a isso, é uma questão de arte. De experimentação. Não há nenhuma fórmula que possa substitui-la. UM 107

Do pensar e do aprender – Deleuze não tem muita paciência com as palavras “conhecimento”, “saber”, “conhecer”. Elas quase não aparecem na sua obra, a não ser para serem descartadas. Esses termos talvez estejam demasiadamente comprometidos com a noção de representação que ele tanto detesta. Em contraste, “pensar” e “pensamento” são peças essenciais do puzzle deleuziano. Para quem trabalha com educação e com currículo, o grande risco consiste em confundi-las com o tratamento psicológico que se dá aí à questão do pensamento. Evidentemente, o “pensar” de Deleuze, assim como o seu “aprender”, não remetem a qualquer noção psicológica. São termos estritamente filosóficos. Como sabemos, o desenvolvimento do que, para Deleuze, significa “pensar” está no centro de Diferença e repetição. No capítulo 3, “A imagem do pensamento”, Deleuze se dedica a desmontar o que ele chama de “imagem dogmática do pensamento”, aquela que se apóia na noção de representação. De acordo com essa imagem, pensar se resume a uma operação de reconhecimento. Há algo lá fora do qual faço uma imagem no meu pensamento, algo que represento em meu pensamento. Toda a questão se resume, nessa espécie de “pensar”, em determinar se há

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correspondência ou adequação entre esses dois entes: aquilo que é representado e a sua representação. A verdade corresponde à resposta afirmativa; a falsidade, à resposta negativa. Pensar é, pois, uma questão de verdade ou de falsidade. O que Deleuze questiona nessa “imagem do pensamento” é o fato de que o “fora” com que o pensamento parece estar envolvido, aquilo que seria o seu “outro”, não é, absolutamente, nenhum “fora”, mas é o próprio “pensamento” como reflexo do suposto fora. Essa imagem do pensamento está estreitamente ligada à noção de essência, à pergunta “o que é?”, àquela metade do mundo feita de matéria já formada. O pensamento, nessa visão, se resumiria a uma operação tipológica, taxonômica, a uma operação de classificação. Vejo uma coisa e exclamo: “ah, é isso!”. “[...] é uma mesa, é uma maçã, é o pedaço de cera, bom-dia Teeteto” (DELEUZE, 1988, p. 224). No pensamento como representação, não há disparidade, nem diferença, nem heterogeneidade. O suposto lado de fora do pensamento é, no final das contas, o seu lado de dentro. No pensamento como representação, o que conta é a identidade, a coincidência, a homogeneidade. “Isto é aquilo” – mas isto já era aquilo! O pensamento como representação é uma simples confirmação. No pensamento como representação, o mundo não se move, nada se cria, não há invenção. Nada difere, nem devém. Não há diferença nem devir. É pura identidade. A essa imagem dogmática do pensamento, Deleuze contrapõe uma outra, aquela que ele começa a desenvolver no capítulo 4 de Diferença e repetição. É a tentativa de Deleuze de desligar a

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imagem do pensamento da essência e da identidade, para concebê-la em conexão com as noções de diferença e multiplicidade. É, de novo, a mesma questão do “fora” do pensamento. Mas, aqui, o fora não está limitado a se disfarçar de “fora”, mas é o próprio fora, em toda sua estranheza, em toda sua heterogeneidade, em toda sua disparidade, relativamente ao pensamento. Aqui, não há mais correspondência, nem adequação. Aqui, há apenas encontro, e encontro supõe diferença, divergência, dissonância. É mais um choque, na verdade, do que um encontro. Ou um encontro, mas violento, um encontro que tira o pensamento de seus gonzos. Não há mais lugar para um simples reconhecimento de matéria já formada, mas para o surgimento do novo e do imprevisível. O pensamento é, neste caso, não mais a solução que surge do harmonioso casamento entre o pensamento e seu suposto fora, mas o imprevisto surgimento de um problema que o surpreende, que o coloca em um estado de perplexidade. Essa imagem do pensamento é inseparável do construtivismo de Deleuze, da filosofia concebida como atividade de criação de conceitos e da ontologia de Deleuze, do mundo concebido como feito de multiplicidades e não de essências. O pensamento é uma multiplicidade, o pensamento não representa a multiplicidade. Por outro lado, o pensamento faz multiplicidades, isto é, conceitos. Por isso pensar é criar conceitos. Um conceito, tal como o pensamento, não representa coisa alguma. E o que põe tudo isso em movimento é aquilo que Deleuze chama de “atrator”, um “precursor sombrio”, alguma coisa que põe

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a multiplicidade a formigar. É por isso que pensar é sempre uma violência. Há algo que vem de fora, um “signo”, na terminologia que Deleuze utiliza em Proust e os signos, que tira o pensamento do sério. “Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar, que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários” (DELEUZE, 2003, p. 14-5). “Signo” não tem, aqui, qualquer ressonância lingüística, não é aquilo que está no lugar de alguma outra coisa. “Signo” é, aqui, qualquer coisa que, de fora, nos afeta, nos atinge, que faz com que algo, em nós, se mexa. Utilizando a palavra “sinal” em vez de “signos” (mas se trata da mesma coisa), Deleuze dá, em Diálogos, uma esclarecedora descrição do que é, para ele, um “signo”: “Chama-se sinal o que desencadeia um afecto, o que vem efetuar um poder de ser afetado: a teia se agita, o crânio se dobra, um pouco de pele se desnuda. Nada a não ser signos, como estrelas em uma noite negra imensa” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 74). Há, em Deleuze, essa constante associação entre pensamento e violência. “[...] a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre pensamento” (DELEUZE, 2003, p. 15). “A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar [...]” (DELEUZE, 2003, p. 15); “O que nos violenta é mais rico do que os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é ‘aquilo que faz pensar’” (DELEUZE, 2003, p. 29); “Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o

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pensamento, este nada significa” (DELEUZE, 2003, p. 89). Mas não se trata de uma violência ligada à destruição, mas de uma violência que se limita a perturbar a paz do estabelecido, do seguro, do estático. Virar do avesso. Obrigar a pensar diferente. Torcer o pensamento. É essa toda a violência. E agora vem o mais interessante de todo esse esforço de Deleuze para construir uma outra imagem do pensamento, um pensamento sem imagem. O mais interessante é que pensar não está, em Deleuze, associado ao ensinar, mas, ao contrário, ao aprender. Constituiria um contra-senso, pois, pensar-se em uma pedagogia para “ensinar a pensar”. Mas isso tampouco significa colocar-se ao lado dos que repetem a litania do “ninguém ensina ninguém”, que remete, quase sempre, a alguma noção de diálogo que suprime justamente a violência que põe o pensamento para dançar. Aprender é, em Deleuze, o exato correlato do pensar. Há, em um primeiro momento, um encontro violento com o fora, com esse signo que, do exterior, nos faz rodopiar. E, depois, num segundo momento, uma ressonância, um “entrar em sintonia” da multiplicidade que é o meu pensamento com essa outra multiplicidade que vem de fora e que emite um signo que sou obrigado a decifrar. “Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja ‘egiptólogo’ de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença” (DELEUZE, 2003, p. 4). Deleuze reconhece, contrariamente

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às certezas da psicologia, que aprender sempre contém algo de mistério, mas que, não obstante, ao menos isso ele sabe, é num encontro intempestivo e sem finalidade com o heterogêneo de uma multiplicidade intensiva que se aprende: “Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos” (DELEUZE, 2003, p. 21). Talvez porque, como relata seu amigo Michel Tournier (1999), ele tivesse com as ondas uma relação de estranheza1, Deleuze adorava dar o exemplo do aprender a nadar como constituindo justamente esse encontro com o heterogêneo: “O movimento do nadador não se assemelha ao movimento da onda; e, precisamente, os movimentos do professor de natação, movimentos que reproduzimos na areia, nada são em relação aos movimentos da onda, movimentos que só aprendemos a prever quando os aprendemos praticamente como signos. Eis por que é tão difícil dizer como é que alguém aprende: há uma familiaridade prática, inata ou adquirida, como os signos, que faz de toda a educação algo de amoroso, mas também de mortal. Os nossos únicos mestres são aqueles que nos dizem ‘faça comigo’ e que, em vez de 1

É o que nos diz Michel Tournier, narrando um episódio da juventude de ambos: “Um certo verão, eu o levei a Villers-sur-Mer. Ele raramente se separava de sua echarpe e de seus sapatos urbanos. Mas ele entrou no mar uma vez. ‘Nado com a cabeça fora d’água para mostrar que não estou no meu elemento natural’, dizia ele” (Tournier, 1999, p. 344).

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Dos deslizamentos e das interpenetrações – Um leitmotiv percorre Mil platôs do começo ao fim: a inseparabilidade, a implicação mútua, a transitividade, a intercambialidade, a comunicabilidade, a mútua transformabilidade, o mútuo travestismo, entre os dois termos de qualquer dos aparentes dualismos que também povoam, aos montes, o livro dos platôs. É de Bergson, sobretudo o de Matéria e memória, que Deleuze provavelmente vampiriza esse contínuo movimento, esse incansável transformismo, essa circulação perpétua entre os dois pólos de um suposto binarismo. Esse movimento de sanfona está no cerne mesmo da noção bergsoniana de duração: entre memória e percepção, entre intensão e extensão, entre virtual e atual não há mais que uma diferença de tensão: no estado contraído, estamos na primeira extremidade; no estado distendido, estamos na outra. É por isso que se trata sempre de uma multiplicidade e não do canônico dualismo “Uno-múltiplo”. Não é, nunca, uma coisa e outra, uma coisa ou outra,

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nos proporem gestos para reproduzir, sabem emitir signos a serem desenvolvidos no heterogêneo” (DELEUZE, 1988, p. 54). A violência do encontro com o heterogêneo não impede que se entre em ressonância com ele. Muito pelo contrário. Como diz Deleuze, “apaixonar-se é individualizar alguém pelos signos que [esse alguém] traz consigo ou emite” (DELEUZE, 2003, p. 7). Ou seja, apaixonar-se é aprender. Mas, talvez pudéssemos inverter a fórmula e dizer também que aprender é apaixonar-se.

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mas sempre uma coisa em outra. Até mesmo as “duas” espécies de multiplicidades se resumem, no final das contas, a uma única. Em Mil platôs, quer se trate de rizomas e árvores (no platô 1), quer se trate de Aparelho de Estado e Máquina de Guerra (nos últimos platôs), nunca estamos seguros de que, num piscar de olhos, um dos termos da suposta polaridade não possa se transformar no outro. Eis aqui uma passagem típica, no platô 2, que se repetirá, sob outras formas, sob outros disfarces, ao longo de todo o livro: “Não se trata, no entanto, de opor os dois tipos de multiplicidades, as máquinas molares e moleculares, segundo um dualismo que não seria melhor que o do Uno e do múltiplo. Existem unicamente multiplicidades de multiplicidades que formam um mesmo agenciamento, que se exercem no mesmo agenciamento: as matilhas nas massas e inversamente. As árvores têm linhas rizomáticas, mas o rizoma tem pontos de arborescência. [...] Como é que linhas de desterritorialização seriam assinaláveis fora de circuitos de territorialidade? Como supor que o fluir abrupto do minúsculo riacho de uma intensidade nova se faça fora das grandes extensões e em relação com grandes transformações nestas extensões? [...] O devir-animal, o devir-molecular, o devir-inumano passam por uma extensão molar, uma hiper-concentração humana, ou as preparam” (MP, v. 1, p. 48). São evidentes as implicações éticas e políticas desse deslizamento constante entre os dois termos extremos de uma mesma multiplicidade. Não há pontos. Não há posições privilegiadas ou justas. Justo uma linha. Que percorre um

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mesmo continuum. Um passo pra lá e iremos para um ponto. Um passo pra cá e iremos para o outro. Mas nunca estamos parados em um ponto. Em certas passagens, Deleuze expressa essa noção de uma forma geral, como um princípio geral, mas, para cada um dos inúmeros dualismos que percorrem Mil platôs, ele não deixa de assinalar sua interpenetrabilidade. Aqui, por exemplo, Deleuze, falando de árvores e rizomas, denomina-o de “princípio de ruptura a-significante”: “[...] contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. [...] Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter umas às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau. Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito [...]. Os grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalizações. [...] Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem em perpétua ramificação,

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presos uns aos outros?” (MP, v. 1, p. 18). Para cada um dos dualismos que compõem Mil platôs, somos surpreendidos, a cada vez, com o mesmo movimento. Vejamos alguns casos. Ainda sobre árvores e rizomas: “Existem nós de arborescências nos rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes. Bem mais, existem formações despóticas, de imanência e de canalização, próprias aos rizomas. Há deformações anárquicas no sistema transcendente das árvores; raízes aéreas e hastes subterrâneas” (MP, v. 1, p. 31). Territorialidade e desterritorialização: “As territorialidades são, pois, atravessadas, de um lado a outro, por linhas de fuga que dão prova da presença, nelas, de movimentos de desterritorialização e reterritorialização. De certo modo, elas vêm em segundo lugar. Elas próprias nada seriam sem esses movimentos que as depositam” (MP, v. 1, p. 71). Observamos, aqui, como em outros lugares, que, embora transformáveis entre si, não há, na ontologia e na política deleuzianas, uma simetria valorativa entre dois quaisquer desses pares. Como vemos, a política – sobretudo a política – deleuziana apóia-se fortemente na precedência das linhas de fuga sobre os movimentos contrários, como os de estratificação. Mas a isso voltaremos mais adiante. Estratificação e linhas de fuga: “[...] os epistratos e os paraestratos não param de se mexer, deslizar, se deslocar, mudar, uns levados por linhas de fuga e movimentos de desterritorialização, outros por processos de descodificação ou deriva, uns com os outros se comunicando no cruzamento dos meios” (MP, v. 1, p. 71). Palavras de ordem e senhas: “Existem senhas

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sob as palavras de ordem. [...] A mesma coisa, a mesma palavra, tem sem dúvida essa dupla natureza: é preciso extrair uma da outra – transformar as composições de ordem em componentes de passagem” (MP, v. 2, p. 58-9). Máquinas abstratas e estratos: “Não podemos, entretanto, nos contentar com um dualismo entre o plano de consistência, seus diagramas ou suas máquinas abstratas e, por outro lado, os estratos, seus programas e seus agenciamentos. [...] Há, portanto, como que um duplo movimento: um, através do qual as máquinas abstratas trabalham os estratos, e não cessam de fazer aí fugir algo: o outro, através do qual elas são efetivamente estratificadas, capturadas pelos estratos” (MP, v. 2, p. 103). Buraco negro e muro branco: “[...] eles [o muro branco e o buraco negro] estão sempre juntos, mas sob os dois modos nos quais ora os buracos negros se repartem e se multiplicam no muro branco, ora, ao contrário, o muro, reduzido à sua crista ou ao seu fio de horizonte, se precipita em direção a um buraco negro que os aglutina todos” (MP, v. 3, p. 54). As coisas se complicam bastante quando, em vez de dois termos, temos três; quando, por exemplo, no platô 8, “Três novelas...”, Deleuze e Guattari falam de três espécies de linhas: as linhas de segmentaridade dura ou molar, as linhas de segmentação maleável ou molecular e as linhas de fuga. O número três já é uma complicação, mas, tal como ocorre nos binários, também aqui cada um dos termos do ternário pode facilmente se transformar no outro: “É certo que as duas linhas [as de segmentação molar e as de segmentação molecular] não

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param de interferir, de reagir uma sobre a outra, e de introduzir cada uma noutra uma corrente de maleabilidade ou mesmo um ponto de rigidez. [...] [há] uma terceira linha, uma espécie de linha de fuga, igualmente real [...]: linha que não mais admite qualquer segmento e que é, antes, como que a explosão das duas séries segmentares. [...] Entretanto, as três linhas não param de se misturar. [...] Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra” (MP, v. 3, p. 68-70, p. 77). Mas eis aqui uma passagem ainda mais esclarecedora: “[...] há a imanência mútua das linhas. Tampouco é fácil desenredá-las. Nenhuma tem transcendência, cada uma trabalha nas outras. Imanência por toda parte. As linhas de fuga são imanentes ao campo social. A segmentaridade maleável não pára de desfazer as concreções da dura, mas ela reconstitui em seu nível tudo aquilo que desfaz: micro-Édipos, microformações de poder, microfascismos. A linha de fuga faz explodir as duas séries segmentares, mas é capaz do pior: de ricochetear no muro, de recair em um buraco negro, de tomar o caminho da grande regressão, e de refazer os segmentos mais duros ao acaso de seus desvios” (MP, v. 3, p. 79-80, grifos no original). Mas observemos, para terminar, mais alguns exemplos da operação de “deslizamento” entre binários. Centralização e segmentaridade: “Não há oposição entre central e segmentário. O sistema político moderno é um todo global, unificado e unificante, mas porque implica um conjunto de subsistemas justapostos, imbricados, ordenados, de modo que a análise das decisões revela toda espécie de compartimentações

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e de processos parciais que não se prolongam uns nos outros sem defasagens ou deslocamentos” (MP, v. 3, p. 85). A mesma operação se repete num dos lados dessa última divisão, o da segmentaridade: “Mas tampouco basta opor duas segmentaridades, uma flexível e primitiva, a outra moderna e endurecida, pois as duas efetivamente se distinguem mas são inseparáveis, embaralhadas uma com a outra, uma na outra. As sociedades primitivas têm núcleos de dureza, de arborificação, que tanto antecipam o Estado quanto o conjuram. Inversamente, nossas sociedades continuam banhando num tecido flexível sem o qual os segmentos duros não vingariam. [...] Toda sociedade, mas também todo indivíduo, são pois atravessados pelas duas segmentaridades ao mesmo tempo: uma molar e outra molecular. Se elas se distinguem, é porque não têm os mesmos termos, nem as mesmas correlações, nem a mesma natureza, nem o mesmo tipo de multiplicidade. Mas, se são inseparáveis, é porque coexistem, passam uma para a outra, segundo diferentes figuras como nos primitivos ou em nós – mas sempre uma pressupondo a outra” (MP, v. 3, p. 90, grifo no original). Ou ainda, insistindo na linha de continuidade: “E o sistema duro não detém o outro: o fluxo continua sob a linha, perpetuamente mutante, enquanto a linha totaliza” (MP, v. 3, p. 101). O poder, considerado como “segmentaridade dura”, é questão de que trataremos em outra seção, mas já podemos ir nos adiantando: “Cada centro de poder é igualmente molecular, exercendo-se sobre um tecido micrológico onde ele só existe enquanto difuso, disperso,

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desacelerado, miniaturizado, incessantemente deslocado, agindo por segmentações finas, operando no detalhe e no detalhe do detalhe. A análise das ‘disciplinas’ ou micropoderes [...] atesta estes ‘focos de instabilidade’ onde se afrontam reagrupamentos e acumulações, mas também escapadas e fugas, e onde se produzem inversões” (MP, v. 3, p. 105-6). Nem mesmo as linhas de fuga, o foco talvez da “rebeldia” na política deleuziana, escapam à possibilidade de se transformar no seu inverso: “Por mais que se queira apresentar tais linhas como uma espécie de mutação, de criação, traçando-se não na imaginação mas no próprio tecido da realidade social, por mais que se queira lhes dar o movimento da flecha e a velocidade de um absoluto – seria muito simples acreditar que elas não temem nem afrontam outro risco senão o de se fazer recuperar apesar de tudo, de se fazer colmatar, atar, reatar, reterritorializar. [...] é que elas mesmas têm seus próprios perigos, que não se confundem com os precedentes. [...] Era já essa reversão da linha de fuga em linha de destruição que animava todos os focos moleculares e os fazia interagir numa máquina de guerra, em vez de ressoar num aparelho de Estado. Uma máquina de guerra que não tinha mais objeto a não ser a guerra, e que aceitava abolir seus próprios correligionários antes do que deter a destruição. Os perigos todos das outras linhas são irrelevantes comparados a esse perigo” (MP, v. 3, p. 111, p. 115, grifos no original). (Neste momento, neste país, isto soa como uma profecia realizada, mas só quem presta atenção aos movimentos moleculares que são próprios das multiplicidades tem

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direito a exigir o título de profeta). Ainda, uma vez mais, a constante passagem entre territorialidade e desterritorialização: “[...] é preciso constatar que o território não pára de ser percorrido por movimentos de desterritorialização relativa, inclusive no mesmo lugar, onde se passa do intra-agenciamento a interagenciamentos, sem que haja necessidade de deixar o território, nem de sair dos agenciamentos para esposar o Caos. Um território está sempre em vias de desterritorialização, ao menos potencial, em vias de passar a outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento opere uma reterritorialização [...]. É uma série de desengates” (MP, v. 4, p. 137). Um dos elementos sempre trabalha em sentido contrário, mas também sempre no outro: “E não se deve esquecer que é no plano de consistência que os estratos endurecem e se organizam, e que é nos estratos que o plano de consistência trabalha e se constrói, ambos peça por peça, passo a passo, de operação em operação” (MP, v. 4, p. 152). São esses movimentos de passagem que caracterizam a própria vida, ou seja, a multiplicidade em si: “E é verdade que a vida é ambos ao mesmo tempo: um sistema de estratificação particularmente complexo, e um conjunto de consistência que conturba as ordens, as formas e as substâncias” (MP, v. 4, p. 150). É a mesma transmutabilidade que se passa entre o aparelho de Estado e a máquina de guerra, nos últimos platôs, naquele em que o livro se torna mais explicitamente, mais diretamente, político: “Será possível que no momento em que já não existe, vencida pelo Estado, a máquina de guerra testemunhe ao máximo sua irrefutabilidade, enxameie em máquinas

de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vivas ou revolucionárias suscetíveis de colocar em questão o Estado triunfante? É no mesmo movimento que a máquina de guerra já está ultrapassada, condenada, apropriada, e que ela toma novas formas, se metamorfoseia, afirmando sua irredutibilidade, sua exterioridade [...]?” (MP, v. 5, p. 18). CQD.

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2 Da política – “Quando um anarqueonte como Deleuze encontra um arqueonte como Foucault o que é que eles conversam?” É a provocante pergunta que se faz Jean-Claude Dumoncel (1999, p. 9), no início de seu livro Le pendule du Docteur Deleuze. Um arqueonte é alguém que governa, enquanto que um anarqueonte é alguém que não governa. É claro que Dumoncel não está querendo com isso dizer que Foucault é a favor do poder e Deleuze não, mas que os dois têm visões praticamente opostas sobre a questão do poder. E foi exatamente essa diferença que Deleuze não se cansou de repetir uma e outra vez. De certa forma, essa diferença é paralela à preferência de Deleuze pelo termo “desejo” (que Foucault odiava) e à de Foucault pelo termo “prazer” (que Deleuze detestava). Ser arqueonte ou anarqueonte, pois, não significa, neste caso, ser a favor ou contra o poder, mas simplesmente conceder prioridade ou não, na análise do campo social, ao poder. Vimos, na seção “Dos deslizamentos”, como, para Deleuze, nenhum dos pólos, em uma dualidade, tal como, por exemplo, na dualidade poder/não-poder, pode contar

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com um resultado garantido. Um rizoma, por exemplo, pode facilmente se arborificar, assim como uma árvore pode, dadas as circunstâncias adequadas, formar rizomas. Um indivíduo, um grupo, pode percorrer todo o ciclo “territorialização – desterritorialização – reterritorialização – desterritorialização”. A estratificação está a um passo da desestratificação. Mas em cada um desses casos e em todos os processos semelhantes, abundantemente descritos em Mil platôs, há claramente uma tomada de posição em favor daqueles processos que apontam para a multiplicidade intensiva, para o plano de consistência, para o Corpo sem Órgãos, para o campo virtual das forças diferenciais onde tudo ainda é possível, onde os processos de estratificação, de territorialização, de codificação, de atualização, de diferenciação ainda não tomaram conta, ainda não estancaram a imprevisibilidade. Num mundo dinâmico, como o descrito pela ontologia das multiplicidades intensivas de Deleuze, tudo é possível, inclusive a queda em direção à estratificação, em direção aos espaços estriados do poder, em direção ao buraco negro de uma vida fascista. Mas o que vem primeiro é sempre o movimento selvagem, rebelde, anárquico, imprevisível, que caracteriza as multiplicidades intensivas; o que vem primeiro é sempre o fluxo, a corrrente, a linha de fuga que percorre, subterraneamente, virtualmente, a matéria da vida. São os movimentos contrários que, de certa forma, constituem a reação. Os fluxos não correm para se opor à estratificação. É a estratificação que ocorre para conter os fluxos. É da natureza dos fluxos correrem. É da natureza do poder tentar estancá-los. Mas eram os fluxos

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que estavam lá antes. A teoria de poder de Deleuze, se é que se pode dizer que Deleuze tinha uma, estava toda baseada numa hidráulica. É que, talvez, as multiplicidades intensivas, aquelas que não podem se dividir sem que mudem de natureza, têm tudo a ver com os fluidos, com o líquidos, com os gases. E foi na comparação de sua visão do poder com a de Foucault que Deleuze mais insistentemente utilizou essas imagens hidráulicas. “Linha de fuga” é, talvez, a mais forte, e a mais utilizada, dessas imagens. Deleuze aproveita-se, aqui, do fato de que “fuite” tem o duplo sentido de fuga e de vazamento. Talvez fosse melhor, para manter a ambigüidade em português, traduzir “ligne de fuite” por “linha de escapamento”. Provavelmente, a formulação mais elaborada da diferença que Deleuze dizia ter com Foucault sobre a questão do poder esteja numa nota de rodapé do platô 3: “Nossas únicas diferenças em relação a Foucault referir-se-iam aos seguintes pontos: 1º) os agenciamentos não nos parecem, antes de tudo, de poder, mas de desejo, sendo o desejo sempre agenciado, e o poder, uma dimensão estratificada do agenciamento; 2º) o diagrama ou a máquina abstrata têm linhas de fuga que são primeiras, e que não são, em um agenciamento, fenômenos de resistência ou de réplica, mas picos de criação e desterritorialização” (MP, v. 2, p. 99). Ainda mais esclarecedora dessa importante diferença de enfoque é a resposta que Deleuze deu numa entrevista à revista inglesa History of the present (1986, p. 20). À pergunta da revista, “Você parece ter uma visão muito mais fluida do social que Foucault. As pessoas

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têm enfatizado o uso que Foucault faz de metáforas arquiteturais, de forma diametralmente oposta à sua [de Deleuze] ‘fluidez’”, Deleuze responde: “Concordo inteiramente com você. Lembro-me de ter falado sobre isso quando Foucault publicou o primeiro volume de História da Sexualidade. Dei-me conta então de que não partilhávamos a mesma visão da sociedade. Para mim, uma sociedade é algo que não pára nunca de escapar. Assim, quando você diz que eu sou mais ‘fluido’, você está totalmente correto: não há palavra melhor. A sociedade é algo que vaza, financeiramente, ideologicamente – há pontos de vazamento em toda parte. Michel se admirava do fato de que, apesar de todos os seus poderes, de toda a dissimulação e hipocrisia dos poderes, nós ainda conseguimos resistir. Eu, ao contrário, admiro-me do fato de que tudo está vazando e o governo consegue estancar o vazamento. Em um certo sentido, Michel e eu nos dirigimos ao mesmo problema de lados opostos. Você está perfeitamente correto em dizer que para mim a sociedade é fluida. Ela é verdadeiramente fluida – ou melhor, ela é um gás. Para Michel ela é uma arquitetura” (cf. DELEUZE, 1992, p. 191, p. 212; DELEUZE, 1996, p. 19, p. 21; DELEUZE e PARNET, 1998, p. 49, p. 158; MP, v. 3, p. 79, p. 96). É por ser uma política dos fluxos que a política de Deleuze é sempre uma política molecular, é sempre uma micropolítica. O aparelho de Estado existe, as instituições existem, as classes existem, mas esses são apenas os aspectos molares de uma sociedade, o resultado de processos de fluxos que se estancaram, de partículas moleculares

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que se estratificaram. São as linhas de fuga que são um problema para o poder e não o contrário: “[...] os centros de poder se definem por aquilo que lhes escapa, pela sua impotência, muito mais do que por sua zona de potência” (MP, v. 3, p. 96). O novo e o imprevisível, entretanto, do qual dependem a renovação da sociedade e também da vida, não vêm daí, evidentemente, embora no interior mesmo desses estratos possam estar borbulhando imperceptíveis e sutis movimentos moleculares que podem acabar por miná-los, por assim dizer, a partir de seu próprio interior. O que Deleuze diz, em mais de um local, sobre a questão da revolução é revelador de sua política. Para Deleuze, uma revolução nunca fracassa, porque é sempre um ato único, um fulgor, um movimento imprevisível no campo virtual de uma sociedade. No dia seguinte, já não se trata mais da revolução, pelo menos não da mesma, porque uma outra começa a se gestar em outro local, com outras pessoas. A revolução dura apenas até o instante em que estala. Em uma conversa com Toni Negri, Deleuze (1992, p. 211) diz: “Diz-se que as revoluções têm um mau futuro. Mas não param de misturar duas coisas, o futuro das revoluções na história e o devir revolucionário das pessoas. Nem sequer são as mesmas pessoas nos dois casos. A única oportunidade dos homens está no devir revolucionário, o único que pode conjurar a vergonha ou responder ao intolerável.” Ou ainda, muito mais enfaticamente em O que é a filosofia: “Tudo seria vão porque o sofrimento é eterno, e as revoluções não sobrevivem à sua vitória? Mas o sucesso de uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas vibrações,

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nos enlaces, nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia, e que compõem em si um monumento sempre em devir [...]. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste nos novos liames que instaura entre os homens, mesmo se estes não duram mais que sua matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão, à traição” (p. 229). Essas são as grandes linhas da política deleuziana, assim resumida por ele próprio: “Mil platôs indica muitas direções, sendo estas as três principais: primeiro, uma sociedade nos parece definir-se menos por suas contradições que por suas linhas de fuga, ela foge por todos os lados, e é muito interessante tentar acompanhar em tal ou qual momento as linhas de fuga que se delineiam. [...] Há uma outra direção em Mil platôs, que já não consiste apenas em considerar as linhas de fuga mais do que as contradições, porém as minorias de preferência às classes. Enfim, uma terceira direção, que consiste em buscar um estatuto para as ‘máquinas de guerra’, que não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos: os movimentos revolucionários, [...] mas também os movimentos artísticos são máquinas de guerra” (DELEUZE, 1992, p. 212). Mil platôs é todo um programa de política, é todo um programa ético. A questão toda está em, pessoal e coletivamente, evitar os processos de estratificação e seguir o caminho das linhas de fuga. Esta é a política: “Os principais estratos que aprisionam o homem são o organismo, mas também a significância e a interpretação, a subjetivação e

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a sujeição. [...] Ora, a esse respeito, o problema é o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-lo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra face voltada para o plano de consistência ou para o corpo sem órgãos. [...] Fazer da consciência uma experimentação de vida, e da paixão um campo de intensidades contínuas, uma emissão de signos-partículas. Fazer o corpo sem órgãos da consciência e do amor. [...] Dessubjetivar a consciência e a paixão. [...] Ser gago de linguagem, estrangeiro em sua própria língua” (MP, v. 2, p. 90). Levar uma vida não-fascista.

1 Do currículo – Chegamos, finalmente, ao cerne da matéria, à penúltima casa. Àquilo que nos interessa, como curriculistas militantes que somos. Mas chegados a este ponto, já não há muito mais a dizer. Tudo parece, agora, tão claro. Ou, talvez, não. Por isso, de uma maneira ou de outra, sejamos sóbrios, aqui. Modestos. Minimalistas. Dizer o máximo com o mínimo. Com um traço só: como um calígrafo chinês. Fazer como Virginia Woolf. Saturar, mas concentradamente, elipticamente. Se possível, se formos capazes, com a elegância dos gestos comedidos, mas precisos, na medida, apenas na medida. Sem excessos, sem gritos, sem palavras-deordem, sem o fascismo daqueles para quem o outrem não é a “expressão de um mundo possível” (Deleuze, 1998, p. 318), mas o objeto de um mundo a ser imposto. Falar baixinho. Sussurrar. Imperceptivelmente. Indiscernivelmente. Impessoalmente. Dizer apenas, por

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exemplo: encarar o currículo, sua teoria, como uma multiplicidade. Prestar atenção às correntes subterrâneas, aos movimentos moleculares que aí se passam, aos fluxos que aí brotam, que aí correm, que aí jorram. Não fazer do currículo uma máquina abstrata dirigida à formação de sujeitos. Aos processos de significação, interpretação e de subjetivação. Em vez disso: experimentar. Agenciar, compor, promover encontros que produzam o máximo de potência. Não ensinar. Nem ensinar a pensar. Nem dialogar ou comunicar. Só pensar e só aprender. Escrever sobre currículo, ou escrever no currículo, ou escrever o currículo, sempre com estilo. O que significa escrever seguindo a linha da bruxa, dos devires minoritários, das linhas de fuga. Uma escrita que seja um agenciamento com a multiplicidade intensiva de que se compõe aquela metade do mundo que é puro movimento, puro devir, puro fluir. Não escrever sobre, mas escrever junto. Fazer como o esquizofrênico de Mrs. Dalloway: sentir-se ligado, por mil filamentos, com o movimento geral da vida. Mexer-se em ritmo com ele. Entrar em conjunção, como faz o nadador ou o surfista com as ondas do mar, com a multiplicidade e o fluir do mundo. Ir junto. Não teorizar um currículo nem praticar um currículo que seja o Juízo de Deus. O Juízo de Deus é a palavra-de-ordem suprema. Aquela que pára tudo, que congela tudo, que submete tudo a um critério transcendente. No lugar do Juízo de Deus, a imanência. Decidir, em cada caso, de acordo com as linhas de afecto e de velocidade que constituem as coordenadas daquele agenciamento ali, daquele encontro de corpos ali, daquela composição

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ali. Nenhuma regra abstrata. Nenhuma regra universal. Nenhuma moral. Apenas uma etologia: não se perguntar quais regras devem ser aplicadas, mas, antes, quais são os afectos e as velocidades envolvidas. O Juízo de Deus exige severidade e imparcialidade. A imanência, ao contrário, exige empatia e parcialidade. Dizer que “cada caso é um caso” pode ser um clichê, mas pode ser também uma boa e popular definição de imanência. Nada de idéias justas, justo uma idéia, Deleuze, correndo o risco de escandalizar, não se cansa de repetir. O que significa colocar o pensamento acima do Juízo de Deus. Pensar não em um currículo voltado para a subjetivação, para a formação de sujeitos, mas em um currículo voltado para a deformação, para a criação de um Corpo sem Órgãos. Nada desses objetivos molares de que estão cheios tanto os documentos oficiais dos governos de quaisquer matizes quanto os programas das esquerdas fascistas ou fascistizantes (nisso eles pouco se distinguem, o que talvez explique por que uma coisa tão facilmente se “transforma” na outra). Formar o cidadão. Desenvolver a consciência crítica. Afirmar as identidades todas. Nada desses organismos todos que puxam para os processos de estratificação e de reterritorialização. As instituições. As organizações. O aparelho de estado. O Partido que sempre acaba virando Partidão. Escolas de formação de fanáticos. Praticar, em vez disso, uma micropolítica. Não permitir que nossas máquinas de guerra se coloquem a serviço do aparelho de estado. Viver e praticar a política do molecular. Dissolver essas molaridades todas, verdadeiros ritos de iniciação para uma

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vida fascista. Existe aí, talvez, talvez, uma chance, ainda que mínima, de que as máquinas de guerra não se transformem tão facilmente, tão rapidamente, tão estupidamente, tão surpreendentemente, tão desavergonhadamente em aparelhos de estado. Existe aí, talvez, talvez, a chance de que as revoluções, ao contrário da profecia deleuziana, durem um momento a mais, apenas um momento a mais; não aspiramos a muito mais do que isso, do que aquele instante de sua fulguração. E aí um currículo poderá ser a desterritorialização absoluta, poderá deixar de ser estratificado, para virar um plano de consistência, um plano de imanência. E nós, nós teremos, então, talvez, talvez, a chance de viver uma vida não-fascista. Não se pode desejar muito mais do que isto.

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NOTA SOBRE AS EPÍGRAFES A epígrafe de Mrs. Dalloway é retirada de Virginia Woolf, 1996, p. 2021. A epígrafe de Artaud é um trecho de sua carta de protesto a Wladimir Porché pela censura à sua peça radiofônica Pour en finir avec le jugement de Dieu. Reproduzida por Paule Thévenin no “Dossier de Pour en finir avec le jugement de dieu”, no volume 13 das Obras Completas de Artaud, Paris: Gallimard, 1974, p. 130-132 (cf. WILLER, 1986, p. 145162).

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Da casa vazia – Se você veio parar nesta casa, você se danou. É a casa vazia. Ela só existe para abrigar o que ficou de fora nas outras: máquina abstrata, acontecimento, ritornelo, construtivismo, expressionismo, do-

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PLANO DE IMANÊNCIA PARA O CURRÍCULO

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UM

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Texto apresentado como Trabalho Encomendado no GT de Currículo, 26ª Reunião Anual da ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, Poços de Caldas, 5 a 8 de outubro de 2003.

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DUMONCEL, Jean-Claude. Le pendule du Docteur Deleuze. Une introduction à l’Anti-Œdipe. Paris: EPEL, 1999.

Pesquisar o Acontecimento: estudo em XII exemplos

Naquele final do terceiro ano do século XXI, Uhma Mvlier já não agüentava mais... Com a serenidade totalmente perdida, a professora-pesquisadora via cair por terra tudo o que já tinha pensado e escrito sobre pesquisa em educação: nada funcionava mais, tinha perdido toda a fecundidade. Mas não se tratava apenas disso; a catástrofe maior residia em que a pesquisadora não sabia bem em que ponto estava; havia tantas coisas em jogo, tantas distinções entre tipos de pesquisa que não paravam de proliferar, tantos ajustes de contas a fazer com imagens antigas do pensamento da pesquisa, pois ninguém é em nada inocente quando a deriva-pesquisadora acontece. Uhma só mantinha alguns pontos fixos por comodidade da linguagem de professora; o resto era crise, recessão, medo, pânico, angústia, embora soubesse

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que não podia permanecer nessa condição, pois tinha de orientar as pesquisas de estudantes de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado, mais turmas de Graduação e de Pós-Graduação. Como ela se viraria? Para onde se viraria? Qual viração viria daí? Chorar, não adiantava, era coisa lamurienta, queixosa, mortificadora, cheia de afectos tristes, que ela detestava acima de tudo; por outro lado, fazer de conta que nada estava acontecendo com o seu pensamento que vinha pensando a educação, a pedagogia, o currículo, a infância e suas respectivas pesquisas, era simplesmente dar uma de avestruz que, mais dia menos dia, ia ter de tirar a cabeça do buraco para ver que também a estavam vendo. Talvez fosse interessante pensar em termos de multiplicidades, pensar que se um código de pesquisa funcionava ou não era porque ela, uma das codificadoras, fazia parte de uma multidão, de uma matilha pesquisante, mesmo que esta habitasse uma associação nacional, um programa de pós, linha de pesquisa, grupo de currículo, poça d’água, ninho de passarinho, tubo de ensaio, líquido amniótico, intestino de boi, até um dedal. Não se tratava de imprecisão no seu pensar, disso Uhma Mvlier tinha certeza, mas de ecos, ressonâncias, reverberações de um mesmo núcleo do pensamento que pensava uma novidadeira pesquisa e que, por isto, deixava de ser núcleo e acometia a pesquisa por muitas bordas, superficializava-se e temperava a lidação pesquisadora, tornando-a diáfana, volátil, fluida, leve, lépida, porque já perdera toda perspicácia. Então, sofrendo as dores de uma diferente pesquisa em educação que se anunciava ao fazer-se, a

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Todos-os-nomes que dizem de uma pesquisa em educação, cuja natureza empirista transcendental condensa, nas ações correlatas de pensar e de escrever educação, que lhes são constitutivas, todo o sentido, uma vez que resulta de uma absorção dos sentidos outrora atribuídos às representações feitas por outras pesquisas. Uma pesquisa, portanto, que é despojada de qualquer significação, já que não se forma a não ser no processo de anulação dos referentes, dos doadores de sentido anteriores; cujos movimentos são expressivos, nunca miméticos, seja em relação ao “sujeito” seja ao “objeto”, já que ela não consiste num ato subjetivo decorrente de condições empíricas negativas, como a ignorância do sujeito pesquisante, nem trata de ultrapassar obstáculos contingentes de desconhecimento acerca de algum fenômeno educacional, como se pesquisar fosse uma

PESQUISAR

professora-pesquisadora – por não ter nada mais a ver, a espernear – resolveu agir de um modo filosófico, para ver se tudo melhorava, e passou a escrever as suas experimentações e as de seus orientandos e alunos com a dita-cuja Arte Bruta da Pesquisa, Pesquisa da Besteira, Gaia Pesquisa, Pesquisa da Multiplicidade, Empirista Transcendental, Experimental, Diagnóstica, Em fuga, Rizomática, Pragmática, Vital, Caótica, Artística, Impensável, Micropesquisa, Esquizopesquisa, Pesquisa a n-1, Pesquisa-de-mil-nomes, e outros tantos nomes a serem inventados, sonhados, delirados, mas que dizem, univocamente, de uma pesquisa educacional inspirada pelo pensamento deleuziano da diferença.

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passagem do não-saber ao saber; uma pesquisa, cuja energia provém do processo de desmontagem de todos os modelos já incorporados: à medida que são feitos vão sendo eliminados os movimentos expressivos da pesquisa, e a energia pesquisadora, antes reservada à representação, pode então ser canalizada para o movimento puro da pesquisa; enquanto o sentido de pesquisar não transcende o movimento da própria pesquisa e a professora-pesquisadora não pesquisa fora do plano de consistência da pesquisa, nem fora da sua própria ação, de maneira que só a pesquisa lhe dá o sentido do seu pesquisar e ela não encontra jamais O sentido da pesquisa que faz. Essa Pesquisa Empirista Transcendental utiliza-se de múltiplas linguagens – tais como pintura, música, literatura, ciência, cinema, poesia, imagens, figuras, emoções, gestos, corpos, séries de silêncio e de repouso, movimentos divergentes etc. –, que garantem a consistência da coexistência do heteróclito; põe essas linguagens em relação com o que está sendo pesquisado; o que está sendo pesquisado transforma-se assim numa unidade virtual, ou seja, numa unidade impossível, numa unidade monstruosa, porque esvaziada dos elementos representativos ou emocionais, desde que é criado um vazio na consciência atual; a partir dessa unidade virtual, engendram-se vários movimentos da pesquisa que, embora heterogêneos, se afectam uns aos outros. O que uma pesquisa dessas nunca pesquisa são estados de coisas, proposições, objetos, sujeitos, matérias, corpos e representações. Se pesquisasse tudo isso, seria um outro modo de pesquisar que estaria muito

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Por isso, pesquisar o Acontecimento requer operações que se movimentem: dos corpos e estados de coisas aos acontecimentos; das misturas às linhas puras; da profundidade à produção das superfícies; da libido narcísica à energia dessexualizada; da superfície corporal da sexualidade à cerebral ou metafísica do pensamento puro; do traçado da castração à fenda do pensamento; do figurativo ao abstrato; da castração ao pensamento; do “esposarei Albertine?” de Proust ao problema da obra de arte por fazer; da árvore e seu verde ao verdejar; dos alimentos ao comer; dos corpos e seus sexos a um acasalar-se; das ações e paixões dos corpos às verdades eternas; dos ruídos/qualidades/ações/ paixões dos corpos em profundidade à instância das alturas/voz/palavra; do visível ao invisível; dos sintomas à parte inefetuável do acontecimento puro; das ações cotidianas ao atributo noemático/acontecimento puro correspondente; da causa dos sintomas à quase-causa da obra; da regressão psíquica à afirmação do processo de dessexualização/investimento especulativo; do tabuleiro físico ao diagrama lógico; da superfície sensível à placa ultra-sensível; da boca ao cérebro; do infra-sentido

PESQUISAR

distante da filosofia da diferença, já que, para esta filosofia, pensar, assim como “pesquisar”, é um acontecimento fazendo-se, em choque com o já feito, uma experimentação dos conceitos e das imagens do pensamento que animam uma Pesquisa do Acontecimento, cuja principal pergunta é: mais do que historicizar, como acontecimentalizar a pesquisa da educação, da pedagogia, do currículo, da infância?

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(ou subsentido) da profundidade, do pré-sentido (Untersinn), da voz da altura ao não-senso, que se torna sentido, que toma um sentido na superfície; do ordenamento terciário da linguagem (mundo, ego, Deus) à organização secundária (verbo ou representação verbal), e, depois, até a ordem primária (conjunto das superfícies); do cosmo ao campo acósmico; do pessoal ao impessoal; do indivíduo ao pré-individual; do sentido ao não-senso... para potencializar as forças que ficam entre esses movimentos (cf. DELEUZE, 1998).

EXEMPLO I: Noologia Ao pesquisar as imagens do pensamento curricular, por exemplo, Uhma Mvlier cria condições para combater as ilusões desse pensamento, por meio de estudos noológicos, que afirmam que os seus conceitos não são encontrados num céu preexistente, mas que, ao contrário, respondem a problemas que, longe de serem definitivos, são constantemente reformulados ou dissolvidos por novas perspectivas curriculares, podendo-se dizer que os problemas persistem sempre nas soluções que lhes são atribuídas. Essa Pesquisa Noológica não tenta identificar o plano de imanência de todos os pensamentos curriculares em geral; antes, procura, em cada pensamento, não apenas determinar a sua imagem peculiar, como também afastar o nevoeiro de generalidade ou de universalidade que o rodeia e restabelecer o momento de originalidade das suas criações.

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Tal pesquisa encaminha à seguinte questão: o que implicaria iniciar um pensamento do currículo de forma não dogmática, ou com uma imagem que não segregasse nenhuma ilusão de transcendência? O que significaria pensar um currículo sem a necessidade de qualquer doxa? Pois, um pensamento do currículo, antes de estabelecer um método ou de procurar uma verdade, é sempre orientado – embora não logicamente determinado – por uma imagem que o abastece de suposições pragmáticas

PESQUISAR

Assim, se os professores de uma determinada escola criam o conceito “Perfis dos alunos”, para resolver o problema de não mais agrupar os alunos, determinar as etapas de seu desenvolvimento ou selecionar os conteúdos curriculares sob o determinante “idade”, essa criação singular supõe uma imagem do pensamento do currículo, pela qual os alunos são reunidos nas turmas por um novo tipo de problema, qual seja: como derivar todos os alunos de perfis puros, ou como imitar perfis originais, imutáveis e intactos? Ao analisar essa nova imagem do pensamento, a Pesquisa Noológica mostra que aquilo que pretendia ser uma generalidade ou universalidade curricular deriva apenas de uma certa imagem do pensamento específico daquele currículo, que cresceu em torno de um problema particular, ou seja, a “não-idade” como critério de organização das turmas, imagens dos alunos e distribuição dos conteúdos – para levar os alunos a disputarem entre si o título de “Rei/ Rainha do Perfil”.

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ou o ajuda a determinar os modos do seu discurso. É por isso que um certo pensamento do currículo opera sempre fora da intuição dos seus problemas, por meio de um drama característico, ou da invenção de personagens conceituais. Tratar-se-ia de começar a pensar um currículo sem pressupostos, de abdicar das presunções do senso comum, de jogar fora as bússolas representacionais, fenomenológicas, dialéticas, e transformar todas as opiniões curriculares nas idiossincrasias de um estilo de pensar-criar o currículo de outros modos. De aprender que se é livre nessa pesquisacriação, não quando toda a gente concorda ou joga com as mesmas regras, mas, pelo contrário, quando as regras e os jogadores não são dados de antemão e emergem a par dos novos conceitos criados e dos novos problemas que são colocados. O objetivo de uma noologia do currículo consiste, portanto, em indicar novas formas não dogmáticas de pensar o currículo. Como? A noologia curricular – ou o estudo das imagens do pensamento curricular – toma o lugar da história do currículo. O pensamento curricular não é uma narrativa histórica, dividida em épocas, nem ainda em círculos, sejam eles dialéticos ou hermenêuticos, nem nos confronta com um Destino Ocidental ou com uma História Universal; tampouco é uma longa discussão, em que uma das partes triunfa sobre a outra com o melhor argumento, ou uma longa conversação que converte novas idéias em acordos, de

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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Nessa Pesquisa Noológica, há sempre um momento de absoluta desterritorialização, quando é inventada uma nova imagem do pensamento curricular (quase uma ausência de imagem), que não pode ser compensada nem pela comunidade imaginada de uma dada nação (pensamento de um currículo nacional), e exige assim a invenção de outros e novos territórios. Não existe, aí, um império da verdade curricular, nem a necessidade de postular qualquer verdade; dessa forma, Uhma Mvlier, para poder pensar filosoficamente um currículo, deve reconhecer que houve muitos tipos de verdades no pensamento do currículo e muitas maneiras de as proclamar, mas, agora, ela precisa mostrar como o novo pensamento do currículo e aqueles curriculistas e professoras que o pensam são levados a fazer coisas diferentes e quais são essas coisas.

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O que é novo no pensamento de um currículo permanece sempre assim: ainda novo. Cabe ao estudo noológico dos pensamentos curriculares do passado demonstrar aquilo que ainda é novo neles, de modo que eles se vejam libertos de toda idéia de épocas e, portanto, de imagens magnas, como as da auto-realização do espírito humano, libertação dos oprimidos, cidadanização dos indivíduos, cotidianização da escola, multiculturalização das minorias etc.

PESQUISAR

modo que aquilo que é novo ou singular se transforma, imediatamente ou mais tarde, naquilo que é consensualmente aceito.

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A prioridade da noologia em relação à história do currículo, às narrativas cotidianas do currículo, e aos diferentes tipos de relações com a verdade que elas estabelecem, altera também os tipos de relações do currículo com a arte, a ciência, a filosofia. Pode-se, portanto, em cada estudo que for feito, extrair a sua imagem de pensamento, advinda dessas relações e que se reflete no currículo particular, ou no seu meio, de uma maneira original. Pode-se responder, então: qual a imagem de pensamento do currículo dos Governos Lula-FHC?; da Escola Cidadã do município de Porto Alegre?; do currículo da CUT?; do currículo de Educação Infantil do MST?; do currículo do Curso de Pedagogia da UFRGS? Uma Pesquisa Noológica, ou Pesquisa do Acontecimento, também pode ser chamada Pesquisa Experimental. Em que consiste esse experimentalismo? Primeiramente, que os professores-pesquisadores abandonem de vez sua volúpia de fazer pesquisas demasiado piedosas, messiânicas, redentoras, salvacionistas; em segundo lugar, que tais pesquisas suponham uma pura imanência, sem elementos primários ou transcendentes, que não sejam imanentes a algo de anterior, tanto subjetivo quanto objetivo. O propósito desse experimentalismo não consiste em redescobrir o eterno ou o universal, mas em encontrar as condições sob as quais algo de novo é produzido. Os professores pesquisam a sociedade, a cultura, a escola, a didática, o currículo, a pedagogia, a própria

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Essa pesquisa aponta para que os professores encarem a Arte bruta de pesquisadores outsiders, que lhes permitem entrar em relações externas com outras pesquisas feitas em outros domínios, já que existem diferentes pedaços conceituais nesse tipo de pesquisa, sendo cada um deles introduzido, inicialmente, por uma relação com um problema particular, e depois reintroduzido em novos problemas, vistos de novas perspectivas. Há diversos encontros com problemas que surgem nas artes, nas ciências, na própria filosofia, ou com acontecimentos que problematizam o modo como eles conduzem a pedagogia ou educam para a sociedade tecnológica,

PESQUISAR

infância, mais como experimentos (que verdadeiramente são) do que como leis, contratos, significações, significantes, significados, cujas relações não se dão como as das peças de um puzzle, a serem encaixadas, em lugares previamente definidos, mas como pedras de tamanhos dessemelhantes num muro ainda por cimentar. Por conseguinte, eles pesquisam os problemas introduzidos por um Fora, que chega antes de as coisas se assentarem em acordos e que persiste, subsiste e insiste no meio delas. Realizam a experiência de pesquisar numa zona anterior ao estabelecimento de um “nós”, intersubjetivo e estável, e transformam tal zona não na questão de um reconhecimento de si mesmos nas coisas do mundo, mas antes na de um encontro com aquilo que eles não podem ainda determinar, com aquilo que eles não podem ainda “descrever”, ou acerca do qual eles não podem ainda concordar, uma vez que não possuem sequer as palavras para tanto.

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DE ESCRITA

para o novo mercado de trabalho, introduzindo novas questões, que pedem para serem repensadas ou reinventadas. Pesquisa Rizomática, que faz os professores embarcarem numa viagem conceitual, para a qual não existe nenhum mapa prévio, e na qual eles são forçados a deixar para trás as pesquisas habituais, sem nunca ter certeza sobre o lugar onde irão aportar. Pode ser essa pesquisa a expressão de sua luta contra uma pesquisa midiática, informacional, comunicacional, opiniática da imagem do pensamento educacional dominante; e que, à medida que se desenvolve, torna-se mais complexa nos seus alcances, procede por variação contínua dos conceitos e dos problemas e espalha-se como um rizoma, no qual há intensos períodos de invenção.

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EXEMPLO II: Besteira Pesquisar uma determinada imagem do pensamento pedagógico supõe que ela seja entendida pela relação com o seu negativo, ou por aquilo contra o qual se dirige, seja o erro, a superstição, a ideologia etc. Só que, aqui, Uhma Mvlier entende que uma imagem pedagógica se liberta dos seus pressupostos dogmáticos (do tipo: Criança-Aprendiz, Professora-que-cometeu-suicídio-de-classe, Conhecimento-que-se-constrói, Ninguém-ensina-ninguémtodos-aprendem-em-comunhão), somente na medida em que tal imagem não tenha por negativo um erro que deva ser corrigido, ou uma superstição,

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Se existe alguma coisa de bestial num pensamento pedagógico sem imagem dogmática é porque ele não depende da boa fé do conhecimento e deve lidar com o choque de algo para o qual não existe nenhum saber anterior, nenhum fazer assegurado, nenhum método perfeito. Disso deriva, por

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Analisar a besteira na pedagogia implica ver tal besteira não como irracionalidade (mesmo que seja feita à custa de uma certa loucura da pesquisadora e a envolva numa relação com algo de inumano ou de intolerável); ao contrário, essa besteira implica que o pensamento pedagógico não começa por um desejo natural de saber-fazer, ou por um acordo com uma luz natural do entendimento humano, mas pelo encontro com alguma coisa que não se coaduna com os modos habituais de ver e de pensar o ato pedagógico, que abala o pensamento correlativo, e apresenta algo de novo para fazer e pensar.

PESQUISAR

ou ideologia, que devam ser superadas, mas, antes, uma besteira (bêtise), ou estupidez, que deve ser exposta ou atacada (cf. DELEUZE, 1988, p. 247250; DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 223). Assim, a professora defende que um verdadeiro pensamento pedagógico é aquele não dirigido contra erros ideacionais ou proposicionais, contra alguma superstição ou ilusão religiosas, contra uma ideologia conservadora etc., mas, sobretudo, aquele que enfrenta uma besteira anterior e mais inabordável, que suplanta esses problemas clássicos do erro, da superstição, da ideologia etc.

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conseguinte, que a professora tem de lidar com a resistência aos modos habituais de pensar que um tal choque provoca nela. Tornar problemático o que antes não era, problematizar, é o que conduz a Pedagoga da Besteira ao exterior da doxa, ao fora da opinião, sem que isso lhe conceda, necessariamente, as garantias de um conhecimento superior, já que pensar em termos de problematização é uma atividade terrivelmente perigosa. Atacar, por meio da pesquisa, uma besteira pedagógica não é o mesmo que corrigir um erro, afastar uma superstição ou criticar uma ideologia; não é uma desmistificação; e não supõe ciência mais elevada. O objetivo da operação pesquisante da besteira é o de dar nova visibilidade a novas forças, formulando os problemas que estas forças colocam e incitando uma atividade experimental da pesquisadora em torno delas, porque o oposto da besteira não é a inteligência, mas antes o próprio pensar. Com a besteira enquanto “negativo” do pensamento pedagógico sem imagem dogmática, a professora pode pensar em que implicaria depositar a confiança dos professores não em qualquer transcendência, mas no mundo de que o pensamento pedagógico deriva, e no qual ele se torna efetivo; além de o que significaria atacar a besteira, ou estupidez, também na vida de todos os professores e na de seus alunos. Assim, pesquisar contra a besteira pedagógica não é usar uma inteligência cognitiva, mas exercitar a

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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A pesquisadora também pode nomear a Pesquisa da Besteira, que vem experimentando, como uma Pesquisa en Fuite, pois ela supõe que a sociedade, a cultura, a mídia, a pedagogia, a infância, o currículo estão sempre en

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Para nos libertar do problema da besteira pedagógica, é necessário um choque, um efeito de alienação, conceber novas estratégias de combate contra ela, já que o ato de pensar é inseparável de uma violência que problematiza ou agita a doxa e apresenta algo de novo para ser pensado. Para que Uhma, como Pedagoga da Besteira, possa pensar, ela precisa estranhar, radicalmente, aquilo que ela ainda não pode dizer na linguagem comum. Por isso, amiúde, ela utiliza as palavras e escreve em modos não compreendidos por seus antepassados e contemporâneos, e não começa a pensar nunca com um desejo de verdade natural ou com uma inspiração divina, mas com uma crueldade – exigida pelo ato de pensar contra a besteira, este novo inimigo nas margens de sentido, que são dadas pelos afectos e pelos perceptos, irredutíveis à cognição.

PESQUISAR

perigosíssima atividade do próprio pensamento, o qual adquire, então, um novo adversário; e o seu objetivo é combatê-lo, já que este adversário consiste naquele triste estado dos pesquisadores e do campo educacional, em que já não podemos, já não fazemos, ou já não queremos mais pensar, apenas emitir opiniões.

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fuite e podem ser entendidos na forma como lidam com suas fuites. Ela sabe que toda determinação cria, ao mesmo tempo, zonas de indeterminação, no que respeita às individualizações como pessoas, sexos ou gêneros, classes ou estratos, até como membros da espécie humana; e que é, a partir dessas zonas, que composições originais poderão surgir – justamente aquelas que permitem os encontros a serem “descritos” no trabalho de pesquisa. Uma análise assim (também ela en fuite) introduz a questão das minorias e das zonas de indeterminação, em primeiro lugar, e procura os processos mais amplos que desterritorializam ou descodificam as relações com nós mesmos e com os outros. Por isso, afirmar algo, a partir dessa pesquisa, não é nunca declarar ou assumir, nem denunciar ou prescrever, mas sim soltar o ar fresco das outras possibilidades, combater a besteira e os clichês, potencializar aquilo que aumenta as forças da afirmação, não da negação, não do luto e da ausência, não das ironias cansadas e tristes, mas do humor e da vida. Pesquisa em Fuga, como uma grande máquina de maquinar ligações, não assentada no sacrifício ou na privação, mas maquinando contra o melancólico modelo da página em branco ou da tela vazia, que propõe uma visão em que a página ou a tela está sempre já coberta por demasiados clichês, demasiadas probabilidades, devendo todas ser afastadas até que a professora encontre algo de vital, fazendo da novidade e da originalidade uma grande arte da experimentação.

EXEMPLO III: Em fuga

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Em uma sala de aula a ser cartografada, Uhma não vê um espaço completamente segmentado, ou inteiramente estratificado, já que toda estratificação segrega a possibilidade de outras relações complicantes, capazes de se combinarem, num plano vago, liso e não segmentado, que permite entre-espaços, disparidades, devires. Por isso, a pesquisadora distingue entre multiplicidades segmentadas e nãosegmentadas, ainda que ambas devam ser encontradas no mesmo espaço escolar. O que se lhe afigura mais importante é que as segmentações disciplinares da sala de aula (tais como o espaço e o tempo, regras, normas, leis) possuem linhas de fuga, devires, toda uma micropolítica, que compõe, claro, uma individualização normalizante, mas que também inventa outras maneiras singulares de funcionar.

PESQUISAR

Como usuária pragmática da Pesquisa em Fuga, a professora pesquisa uma sala de aula como não se esgotando apenas em suas divisões distintivas; ao contrário, a vê como estando sempre em fuga e podendo ser analisada ou diagramatizada em termos de linhas de fuga (lignes de fuite). Sob suas divisões e unidades, uma sala de aula se presentifica como complicada ou complexa, em modos que não estão contidos nos seus conflitos mais reconhecidos e que dão origem a problematizações, para as quais não existe consenso prévio, nenhum “nós pensamos que...”.

DE ESCRITA

LINHAS 152

Ela traça, então, uma geometria das horizontais e das verticais, no seio da qual pode cartografar ou localizar todo movimento, e também das minorias e devires escolares que funcionam como diagonais ou transversais e que sugerem outros movimentos. Para Uhma, fazer esse diagrama consiste em expor as linhas diagonais e as possibilidades por elas inauguradas, elaborando uma carte que não é um calque – um mapa que não é um decalque – de algo de anterior, mas que serve para indicar as zonas de indistinção, a partir das quais surgem os devires, caso já não estejam presentes de forma imperceptível no próprio ato de cartografar. Em outras palavras: a professora sabe que nunca poderá desenhar, nos movimentos expressivos da pesquisa, um espaço escolar, como a sala de aula, completamente com coordenadas cartesianas, já que esse espaço envolve muitos infra-espaços, que introduzem distâncias e proximidades não quantificáveis. Por isso, ela não traçará apenas linhas que vão de um ponto fixo a outro, mas, também, linhas que se encontram em pontos situados na intersecção de muitas linhas emaranhadas. Os orientandos e alunos da professora pesquisarão, assim, um currículo, uma sala de aula ou uma escola, como uma “totalidade aberta” (no sentido bergsoniano), por imaginarem que, debaixo das suas histórias e divisões oficiais, existem outras potências, que são atualizadas por outros tipos de encontro e de invenção: minorias, diferenças

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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A estética de uma Pesquisa en Fuite tem a forma não de um juízo, mas antes de uma experimentação e de uma criação que desafiam todos os juízos. Talvez, o seu segredo resida aí: em fazer existir as coisas, os corpos, os estados e, também, as linhas de fuga, e nunca em julgar. Formular os problemas de pesquisa e resolver conceitos em entendimentos não-filosóficos constitui, em si mesma, a principal atividade dessa Pesquisafilosofia. Pesquisar, como uma atividade filosófica, implica produzir conceitos e não aplicar conceitos prévios ou extraídos de outros domínios (como acontece com a pedagogia quando se alia à psicologia ou à sociologia), exige a fabricação de conceitos em ressonância e em interferência com as artes, as ciências, a filosofia, o

PESQUISAR

moleculares, devires, processos de descodificação e de desterritorialização etc. Eles libertarão a imaginação da pesquisa de toda representação de algo dado, anterior, original. Eles farão com que a pesquisa se torne parte de uma “fabulação” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 218, ss.) escolar, ao traçarem percursos das minorias, com as quais experimentarão tudo o que está fora dos estados escolares, todas as espécies de fugas que escapam a estes estados ou de forças que estes tentam capturar. Nessa pesquisa, todos procedem por experimentação, apalpação, injeção, recuperação, avanço, retirada, vendo os pontos en fuite, que não são obstáculos a remover, mas em torno dos quais surgem novos devires e onde ganham formas novas maneiras de pensar.

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que implica que o pesquisador não seja aquele guerreiro armado com alguma teoria prévia e sim um experimentador que ajuda a formular novos problemas, ou que sugere novos conceitos. Há mesmo um lado pragmático da Pesquisa em Fuga que é contra a teoria, na medida em que os pesquisadores só podem realmente pesquisar onde aquilo que deve ser pesquisado não foi já dado; e embora uma pesquisa dessas possa despojar-se de muitos usos comuns nas artes ou na crítica, ela sempre resiste a ser erigida em nova teoria, a qual bastaria então aplicar. Porque a Pesquisa-filosofia não é uma teoria; é uma arte de mergulhar na zona peculiar do impensado, que desestabiliza as idéias feitas, na qual tanto a arte como o pensamento da pesquisa adquirem vida e descobrem as suas ressonâncias mútuas. Os conceitos produzidos a partir dessa pesquisa supõem, ou ajudam a resolver, a própria imagem do pensamento educacional. A estética da Pesquisa-filosofia está, portanto, envolvida numa luta intrapesquisa e adota o procedimento singular de recorrer, especialmente, à filosofia para mostrar à educação o modo de fugir da imagem dogmática do pensamento, sob a qual ela própria vinha operando.

EXEMPLO IV: Problema Para fugir da imagem dogmática do pensamento da pesquisa educacional, os pesquisadores têm

ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Essa pesquisa atua criticamente não por promover o jogo contraditório das opiniões, mas por

ACONTECIMENTO:

O conceito-solução forjado não anula o problema infância-roubada, por exemplo, mas faz parte desse problema, ou melhor, é o próprio problema na completa expressão das suas condições, ou levado até a sua última determinação. Tal problema é resolvido à medida que se determina, e a sua determinação é a gênese da sua solução; uma solução que não tem sentido, independentemente do problema a determinar, nas suas condições e incógnitas, enquanto estas também não têm sentido independentemente das soluções determináveis como conceitos.

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Ao pesquisar a infância contemporânea, por exemplo, os pesquisadores escolhem movimentos virtuais absolutos vividos no presente pelos infantis, os compõem como variações interdependentes, inventam os personagens conceituais mais produtivos para descrever tais variações, procuram traçar as melhores coordenadas sobre o plano de imanência do pensamento acerca da infância.

PESQUISAR

clareza de que pesquisar é criar e criar é problematizar. Para essa Pesquisa Problematizadora ou Crítica, problematizar não significa responder a “perguntas de pesquisa”, como era entendido por outras imagens de pesquisa, mas determinar os dados e as incógnitas do problema, desenvolver o máximo possível estes elementos em vias de determinação e encontrar os casos de solução correspondentes a esse desenvolvimento.

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LINHAS

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sua problematicidade, ou crise permanente. O problema da Pesquisa Crítica não é uma interrogação formulada por uma proposição, que possui outra proposição correspondente que lhe serve de resposta, a qual se supõe que lhe seja preexistente de direito, mesmo se não foi enunciada ainda de fato, ou se essa resposta não foi ainda encontrada. Também “o problema de pesquisa” não é uma “hipótese” (do tipo: a infância nunca existiu), tal como as outras pesquisas representacionais supunham, fosse positivista, fenomenológica ou dialética; e não pode ser hipotético, porque o problema não é afetado por um coeficiente de incerteza a ser superado no final, nas conclusões, nos resultados, mas persiste na solução e por meio dela. O problemático não pode ser confundido com o hipotético, já que determinar as condições de um problema nada tem a ver com algum caráter intervalar negativo, com simples limitações de fato. O problema fim-de-infância, neste exemplo, desfruta de uma absoluta positividade de direito, de uma afirmatividade não-subjetiva, de uma natureza própria, em tudo diferente de suas soluções, que o torna ineliminável por estas. O problemático não remete para qualquer psicologia do conhecimento ou epistemologia, mas designa a objetividade da Idéia e a realidade do virtual; é uma dimensão “objetiva” não atual, o horizonte imanente dos próprios seres, coisas, acontecimentos. “Problematicidade” pode ser outro nome para o

plano de imanência da realidade pesquisada, se remetida à sua estrutura caósmica.

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Problematizar, desse modo, corresponde a desenvolver a problematicidade imanente envolvida nos seres e nos seus acidentes, construindo as condições particulares a cada domínio (arte, ciência,

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Desse modo, o problemático subsiste nas soluções porque possui um estatuto positivo, uma idealidade “objetiva”, que o torna irredutível a um estado de incerteza subjetivo. Isso não encaminha os pesquisadores a estabelecer os problemas como dados ou preexistentes, contradizendo a prática da pesquisa como problematizante, criadora de problemas. O plano problemático ou complicado da realidade pesquisada, esse horizonte virtual absoluto, é o que, a cada vez, a Pesquisa Problematizadora tem de recortar, retraçar, restabelecer de acordo com uma nova imagem do pensamento, isto é, segundo novas determinações, cujas condições devem ser, também a cada vez, criadas sobre esse horizonte.

PESQUISAR

A natureza objetiva da instância-problema é definida exclusivamente por problemas, constituída por Idéias-problemas, por Idéias problemáticas; e problemáticas não porque sejam carentes de objeto ou de solução, mas porque o seu “objeto” é indeterminado, ou seja, não se trata de um objeto imperfeito, mas dele como duma dimensão “objetiva” da realidade, que só é representável sob forma problemática, embora já atuante na percepção como foco unificador (cf. DIAS, 1995, p. 79, ss.).

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DE ESCRITA

filosofia) dessa determinação explicativa. A problematização da Pesquisa Crítica é o processo de determinar as condições de consistência do plano problemático imanente, tomado na sua pura virtualidade, fora de todas as determinações atuais. O movimento do pensamento da pesquisa vai sempre do problemático, como estrutura “objetiva” da realidade, para os problemas como criação do espírito, circuito que é percorrido virtualmente, como movimento não de referência mas de consistência, de modo que o pensamento é estritamente extraproposicional, ou não encontra na forma das proposições uma solução possível. Os problemas designam, assim, estados não-subjetivos, objetividades ideais, de um modo que não se pode pensá-los em termos das categorias lógicas do verdadeiro e do falso. A análise lógica de outro pensamento da pesquisa distinguia problemas verdadeiros de pseudoproblemas, só que ela definia os problemas pela sua resolubilidade, ou seja, extrinsecamente, pela possibilidade que cada problema tinha de receber uma solução na forma de proposições verificáveis, na sua adequação às coisas ou a estados de coisas, que lhes serviam de referentes. Já o que interessa à Pesquisa Problematizadora não é a verdade dos problemas dependente de sua resolubilidade, mas é essa resolubilidade relativa ao processo de autodeterminação dos problemas. As soluções são engendradas ao mesmo tempo em que os problemas de pesquisa são determinados por

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

XII EXEMPLOS

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Os problemas práticos ou especulativos construídos pela Pesquisa Problematizadora não são sombra de soluções preexistentes, mas as suas soluções decorrem necessariamente das condições completas sob as quais os problemas foram determinados como problemas, dos meios e dos termos de que os pesquisadores dispõem para formulá-los.

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Os problemas de tal pesquisa caracterizam-se, então, como verdadeiros ou falsos independentemente de toda possibilidade de resolução e de toda forma, quer seja lógica, científica, transcendental etc. É apenas em si mesmos que os problemas encontram o critério de sua verdade ou falsidade (ou melhor, do seu sentido), segundo a boa ou má repartição das suas singularidades e a suficiência ou insuficiência de tematização decorrente de suas condições; em suma, segundo a medida da sua determinação, de maneira que os pesquisadores podem dizer que um problema completamente determinado é um problema resolvido. Assim, o verdadeiro e o falso concernem primeiramente aos problemas, antes do que às soluções; por isso, uma “solução tem sempre a verdade que merece de acordo com o problema a que ela corresponde; e o problema tem sempre a solução que merece de acordo com sua própria verdade ou falsidade, isto é, de acordo com seu sentido” (DELEUZE, 1988, p. 260).

PESQUISAR

suas condições, e são essas condições e o modo de determinação dos problemas que definem formas específicas de resolubilidade.

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Tanto é assim que as noções de sem-sentido, de falsos sentidos, de contra-sensos devem ser referidas aos próprios problemas. A verdade de um problema de pesquisa não preexiste a ele, não é uma verdade a ser descoberta, mas é objeto de uma criação, produto do sentidoacontecimento, quer dizer, “reformulação dos dados dos problemas, invenção de novas condições, suscitação de novos modos de ver, de sentir e de pensar. [...] A verdade depende sempre do sentido, não o inverso, e o sentido de uma coisa é a sua novidade, a sua singularidade, o seu interesse, a sua possibilidade de novas percepções, afecções ou ideações” (DIAS, 1995, p. 85). O mais elevado poder do pensamento dessa pesquisa é a criação, não a faculdade da verdade, digna do paradigma lógico-cognitivo ou racionalista, mas a do novo, a da criação de sentido, própria da filosofia. Desse modo, os “resultados” e os conceitos criados por ela são sempre verdadeiros, segundo a verdade que eles conseguem produzir, introduzir no mundo, atravessar, passar. Eles são sempre, portanto, “resultados” indiscutíveis, nãocriticáveis, já que a sua rejeição em favor de outros resultados-conceitos tem sempre por condição outros problemas de pesquisa e outras imagens do pensamento. Não há “resultados” ou conceitos melhores ou piores, apenas aqueles mais apropriados aos problemas daquela pesquisa, reativáveis ou não de acordo com novas necessidades de

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Pesquisar com estilo, ou criar um estilo em pesquisa, não é simplesmente adotar ou importar figuras sociais, políticas, epistemológicas de outros campos (como a Professora-construtivista da Epistemologia Genética, o Aluno-cidadão dos PCNs dos Governos FHCLula, o Professor Desejante da Psicanálise-Educação), mas o estilo é uma questão de vergar e transformar a linguagem da pesquisa, de modo a criar os personagens

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Nessa Pesquisa Estilística, definida por suas linhas de energia e de sentido, as pesquisadoras não tratam de convencer nem de vencer quem quer que seja, mas de produzir um sentido partilhável, interessante, que forneça algo para pensar. Assim, concluir uma pesquisa não é construir saber ou conhecimento, mas criar, por meio de conceitos, novas possibilidades de pensamento e de existência, longe das coações lógicas e epistemológicas: criação do novo, do notável, do importante, e nunca descoberta.

PESQUISAR

criação; e a crítica de uma pesquisa limita-se a assinalar a sua não pertinência, ou a insuficiência de sua composição, quando os conceitos são transpostos para um novo problema e para um novo plano. Criticar uma pesquisa assim só pode ser olhar de outro plano e a partir de outros problemas, e aqueles pesquisadores que criticam sem criar são os que confundem crítica com discussão, ou que agitam velhos conceitos inúteis, somente para inibir a criação (cf. DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 41-42).

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conceituais e o jogo para as idéias singulares, em relação às quais não existem palavras ou histórias preexistentes, mas que, entretanto, impressionam com uma obscura necessidade. As pesquisadoras, nesse caso, utilizam de modo peculiar os conceitos, podem compô-los em séries ou platôs, encorajar os seus usos conceituais, ao mesmo tempo que frustrar as aplicações, imprimir suavidade díspar à sua escrita e usar todo humor e riso disponíveis. Isso porque a escrita da pesquisa expressa uma condição em que as escritoras são tomadas em agenciamentos coletivos minoritários, que as levam a dar a palavra àqueles que não a possuem (cf. DELEUZE e GUATTARi, 1992, p. 141, ss.), encontrando-se com estes em um devir, sem o qual não haveria escritura da pesquisa. As pesquisadoras-escritoras são corpos prenhes de devires, e as suas escritas menores funcionam como expressão desses devires, desses encontros. Há, por outro lado, aquelas pesquisadoras que almejam ser majoritárias, mas o problema daquelas que realizam e escrevem uma Pesquisa Estética é como viver os devires-minoritários de uma mulher, de um animal, de um índio, de uma criança, o que não significa imitá-los, mas tornarse tudo isso. Elas escrevem de modo filosófico, ou seja, como ficção científica, ou história policial, com conceitos no lugar de personagens, os quais intervêm para resolver problemas específicos e se alterarem a si mesmos, à medida que novas questões emergem e novos dramas tomam forma.

EXEMPLO V: Gaia PESQUISAR O

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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Para realizar essa Gaia Pesquisa, Uhma Mvlier adota as seguintes orientações: 1) pratica a pesquisa sobre o currículo, de modo filosófico, como um jogo afirmativo de novidade e de experimentação conceitual; 2) intui que “o” currículo que ela “pega” para analisar não é uma linguagem, um código narrativo, ou um sistema proposicional, mas antes um material expressivo, anterior à “boa forma” e, portanto, à matéria e ao conteúdo, o qual ganha “forma” por meio de devires de imagens e signos; 3) tem claro que a idéia do devir-currículo a ser analisado não deriva de um determinismo histórico ou contextualista, que os estudos sobre o currículo consistem não numa história, mas na realização de uma cartografia das várias imagens curriculares, para responder à pergunta: que novos regimes de signos e imagens acerca do currículo podem ainda ser inventados? 4) tem presente que o “eu” e o “nós-pesquisador” não vêm antes de um devir-pesquisa, mas constituem, pelo contrário, parte da sua experimentação; que uma “vontade de pesquisa” não segue nenhum senso comum, não obedece a normas ou juízos intersubjetivos estabelecidos, não se reduz a definições sociológicas ou a exigências institucionais e não pode ser dirigida por qualquer vanguarda ou mentor: essa é sua força; 5) a professora pesquisa como quem se deixa arrastar e transformar-se por um devir-currículo, ou

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inventa maneiras de ver, dizer e escrever coisas novas sobre o currículo através dele e se deixa inventar pelo próprio processo de pesquisar. Se existe uma “vontade de pesquisa”, ela não pertence a um agenciamento conhecido ou identificável, mas, antes, vê novos caminhos, que interferem e ressoam uns com os outros, graças a um material de expressão ainda informe ou incodificado. Nessa pesquisa educacional, ao modo filosófico, as “questões”, o “problema”, o “objeto”, o “sujeito” não estão aí, nunca são dados, devem ser inventados de novo, ainda estão por vir, porque essa pesquisa surge numa condição particular: a condição em que algo de novo pode surgir. Uma vontade de pesquisa relaciona-se sempre com a emergência de algo de novo e de singular que precede o pesquisador e que exige que ele e os outros se inventem enquanto povo-pesquisador. Esse novo não é algo familiar e visível, mas algo que ainda não foi visto, que não se pôde ver, que está a acontecer, algo que os pesquisadores precisam tornar imperceptível, de modo a poder vê-lo. Por isso, eles pesquisam não para reproduzir aquilo que já podem ver, mas para tornar visível aquilo que não podem ainda ver (cf. DELEUZE, s/d, p. 39, ss.), porque existe em toda Pesquisa-filosofia uma violência daquilo que vem antes da formação dos códigos e dos sujeitos, a qual é condição para que as coisas sejam ditas e vistas em novos modos. Num reino de pesquisas, eivadas de definições, banalidades, rotinas, clichês, reprodução mecânica, automatismos,

ESTUDO EM

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A Pesquisa-que-põe-algum-Saara-no-cérebro tenta libertar o pesquisador do asfixiante sentido das possibilidades dadas e das idéias feitas; mesmo nos mais

ACONTECIMENTO:

Assim como o pintor não pinta nunca sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página em branco, porque tanto a tela como a página estão cobertas de clichês preestabelecidos, também os pesquisadores de currículo não pesquisam sobre um zero, sobre um nada, mas sobre a realidade do pensamento curricular repleta de clichês, que devem ser eliminados até que encontrem um espaço vital de possibilidades (vida enquanto poder nãoorgânico), que não é um vazio intocável, mas o que Deleuze chama um deserto, “Saara” (cf. DELEUZE, s/ d, p. 56): povoado de nômades, ou de uma espécie nômade de acaso e distribuição espacial – o tipo de acaso cheio de possibilidades, as quais não podem ser abolidas por qualquer lançamento de dados.

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EXEMPLO VI: Saara

PESQUISAR

o desafio dos pesquisadores é extrair uma imagem singular, um modo múltiplo de pensar e de dizer as coisas da educação. A grande questão dessa Pesquisa Caosmótica consiste em criar não um plano teológico ou teleológico, mas um plano de composição, que opera por séries e variações superficiais e introduz pequenas, porém vitais diferenças em todos os seus movimentos.

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antigos e conceituados pesquisadores seniores, ela trava uma luta contra o catatonismo da pesquisa, cujo esforço é extrair a possibilidade da probabilidade, a multiplicidade da unidade, a singularidade da generalidade. É uma pesquisa que, definitivamente, deixou o domínio da representação para se tornar experimento, “experiência, empirismo transcendental, ou ciência do sensível” (DELEUZE, 1988, p. 107). O que significa extrair a pesquisa da representação e fazer dela uma matéria de experimentação? Poderia ser como extrair da literatura um ser da linguagem, anterior aos arranjos epistêmicos ou discursivos das palavras e das imagens, atingindo o murmúrio anônimo do discurso, a partir do qual as epistemes surgem, ou no qual elas se afundam (cf. ALMEIDA, 2003). Extrair a pesquisa educacional da representação é descobrir nela algo de louco e de impessoal, anterior ao eu-penso, ao nósjulgamos; é extraí-la da relação entre sujeito e objeto, suposta na concepção de representação; é libertá-la da subordinação a um senso comum, a conceitos ou discursos prévios; é proceder a iluminações que tornam visível o que ainda não pode ser visto ou pensado, ou perspectivas múltiplas que coexistem; é esquecer ativamente o que já está aí e experimentar afirmativamente aquilo que ainda está por vir.

EXEMPLO VII: Arte A expressão de uma Pesquisa Artística, não determinada pela representação, alegoria, simbolismo,

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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A Pesquisa da Artistagem nada quer com os hábitos, percepção, memória, reconhecimento, acordos; ao contrário, ela obriga os pesquisadores a ver e a sentir a educação em modos imprevistos, sendo uma estranha construção habitada por eles, através da transmutação ou da auto-experimentação. Composta por sensações pré-lingüísticas e présubjetivas, tal Pesquisa Anorganizada clama pela mobilidade, não existe para salvar ou aperfeiçoar os pesquisadores, nem para os amaldiçoar ou corromper, mas para complicar as “coisas” da educação e, nos pesquisadores, para criar sistemas óticos mais complexos e não mais subservientes perante os efeitos debilitadores dos clichês e das opiniões.

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iconografia, realiza-se através de imagens e signos que fazem dela uma experimentação estética. Assim, operada como obra de arte, ela é um compósito de afectos e perceptos, que são os dois tipos básicos de sensação e que não devem ser confundidos com os estados subjetivos, nem com a sensibilidade (cf. DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 216, ss.), porque estão nas próprias coisas pesquisadas, não nos pesquisadores. Os afectos vão para além dos pesquisadores – os quais passam pelos afectos, e não são os afectos que passam pelos pesquisadores – e são impessoais, inumanos até; os perceptos não são modos de apresentar a ação pedagógica, por exemplo, perante um olho, mas paisagens pedagógicas, nas quais os pesquisadores-artistas devem se perder para que possam ver com novos olhos-artistas.

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Ela rearma o sistema nervoso e revitaliza o cérebro, libertando os pesquisadores, na mente e no corpo, do peso das identidades fundamentadas e das formas habituais de fazer pesquisa. No empirismo dessa Pesquisa Diagnóstica, os “resultados” não são mais uma matéria de previsão, mas uma questão de diagnóstico e de experimentação com o desconhecido. O jogo de seu pensamento não pertence ao cálculo das probabilidades, mas ao mundo do acaso e da indeterminação. A conversão empírica do pesquisador expressa-se pelo dizer “sim” ao que é estranho e singular na sua existência: “Será o bastante para fazer os loucos rirem [...] – todo o problema consiste em acreditar num mundo que os inclua” (RAJCHMAN, 2002, p. 150). O “objeto” da nova pesquisa em educação já não se define por uma forma essencial, mas atinge uma funcionalidade pura e passa, então, a ser chamado “objéctil” (cf. DELEUZE, 1991, p. 37, ss.). Diferencia-se do “objeto”, que comporta uma idéia de padrão, mantém uma feição de essência e impõe uma lei de constância. Com novo estatuto, esse objeto-projétil ocupa lugar em um contínuo por variação, não é mais reportado a um molde espacial, isto é, a uma relação forma-matéria, mas a uma modulação temporal que implica tanto a inserção da matéria em uma variação contínua como um desenvolvimento contínuo da forma. Enquanto o objeto está impregnado da idéia de molde, como modulação de maneira definitiva, o objéctil “modela-se”,

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O perspectivismo dessa pesquisa é certamente um relativismo, mas não o relativismo comum, já que se trata não de uma variação da verdade de acordo com um sujeito, mas da condição sob a qual a verdade de

ACONTECIMENTO:

Todo ponto de vista é um ponto de vista sobre uma variação, e não há simplesmente uma variação em razão da variedade dos pontos de vista (embora haja tal variação), mas, em primeiro lugar, porque não é o ponto de vista que varia com o sujeito; ao contrário, é o ponto de vista que é a condição sob a qual um eventual superjecto apreende uma variação.

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Se o objeto faz-se objéctil, mudando profundamente de estatuto, isso também acontece com o “sujeito” da pesquisa, que se transforma em “superjecto”. Este parte de um ramo da inflexão e determina um ponto, que não é exatamente um ponto, mas um lugar, uma posição, um sítio, um foco linear, linha saída de linhas. O lugar ocupado pelo superjecto é chamado “ponto de vista”, na medida em que representa variação ou inflexão. Ele expressa o perspectivismo do pesquisador, que não significa uma dependência em face de um sujeito definido previamente (daí o “sub-jecto”); ao contrário, é superjecto aquele que vem ao ponto de vista, ou sobretudo aquele que se instala no ponto de vista, que ocupa este ponto metafísico.

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modulando de maneira contínua e perpetuamente variável, não só temporal mas qualitativamente, visto que os sons, as cores são flexíveis e tomados nessa modulação: “É um objeto maneirista e não mais essencialista: torna-se acontecimento” (DELEUZE, p. 39).

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uma variação aparece ao superjecto; ele é também um pluralismo, mas, como tal, implica a distância e não a descontinuidade (não há vazio entre dois pontos de vista). O ponto de vista sobre uma variação vem substituir o centro de uma figura ou de uma configuração. É o objéctil de pesquisa que descreve um conjunto de curvas; ele é como uma desdobra, que não é o contrário das dobras, como tampouco o invariante é o contrário da variação: é um invariante de transformação, designado por um signo ambíguo. O objéctil está envolvido na variação, assim como a variação está envolvida no ponto de vista; ele não existe fora da variação, como a variação não existe fora do ponto de vista. Assim, o Pesquisador Superjecto pesquisa em um mundo infinito, que perdeu todo o centro, que foi substituído pelo ponto de vista, que repudia as noções táteis, em proveito de uma arquitetura da visão, que só tem objécteis existentes através das suas metamorfoses: mundo, para sempre perspectivado como verdade da relatividade, não mais como relatividade do verdadeiro. O ponto de vista, em cada Pesquisa Perspectivista, é potência de ordenar os casos, condição da manifestação do verdadeiro. Há necessidade de assinalar o ponto de vista, sem o qual não se pode encontrar a verdade, isto é, seriar a variação ou determinar os casos. A tarefa é encontrar sempre o bom ponto de vista, ou o melhor, aquele que determina o indeterminado por signos ambíguos, aquele que fornece as respostas e os casos, sem o qual só haveria o caos.

EXEMPLO VIII: Atenção

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Apaixonar-se por um problema de pesquisa é extrai-lo de um grupo de problemas, mesmo restrito, do qual ele participa, mesmo que por sua família teórica ou

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O grande desafio é manter-se atento a tudo o que acontece na escola ao mesmo tempo: “à maneira pela qual uma máquina social ou uma massa organizada tem um inconsciente molecular que não marca unicamente sua tendência à decomposição, mas componentes atuais de seu próprio exercício e de sua própria organização; à maneira pela qual um indivíduo tal ou qual, tomado numa massa, tem ele mesmo um inconsciente de matilha que não se assemelha necessariamente às matilhas da massa da qual ele faz parte; à maneira pela qual um indivíduo ou uma massa vão viver em seu inconsciente as massas e as matilhas de uma outra massa ou de um outro indivíduo” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b, p. 49).

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Pesquisar uma escola, desse modo, não é atribuir ao pré-consciente as multiplicidades escolares molares, reservando para o inconsciente o outro gênero de multiplicidades moleculares, porque o que pertence de todo modo ao inconsciente é o agenciamento das duas, a maneira pela qual as multiplicidades molares condicionam as moleculares e pela qual estas preparam as molares, ou delas escapam, ou a elas voltam.

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por sua imagem de pensamento, e, depois, buscar as multiplicidades que ele encerra e que são, talvez, de uma natureza completamente diversa: “Ligá-las às minhas, fazê-las penetrar nas minhas e penetrar as suas. Núpcias celestes, multiplicidades de multiplicidades” (DELEUZE e GUATTARI, 1995b, p. 49). Não existe paixão por um problema de pesquisa que não seja um exercício de problematização sobre um corpo sem órgãos a ser construído; e é no ponto mais alto dessa problematização que um problema pode adquirir a discernibilidade mais intensa na apreensão instantânea dos múltiplos que lhe pertencem e aos quais ele pertence.

EXEMPLO IX: Mapa O que acontece primeiramente naquilo que se está pesquisando é uma “desterritorialização absoluta, uma linha de fuga absoluta, por mais complexa e múltipla que seja, aquela do plano de consistência ou do corpo sem órgão (a Terra, a absolutamentedesterritorializada)”. E essa linha de fuga só se torna relativa por estratificação naquele plano, naquele corpo: os estratos são sempre resíduos, não o inverso. Por isso, na Pesquisa da Desterritorialização Absoluta, nunca perguntaremos como alguma coisa sai dos estratos, mas antes como as coisas aí entram. De modo que há continuamente imanência da desterritorialização absoluta na relativa e agenciamentos maquínicos entre estratos que regulam as relações diferenciais, assim como os movimentos re-

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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Ressituar os impasses sobre o mapa e por aí abrilos sobre linhas de fuga possíveis poderia fornecer os seguintes exemplos: 1) Para estudar um problema de pesquisa como o do pequeno Hans: mostrar como ele tenta constituir um rizoma com a casa da família, com a linha de fuga do prédio, da rua etc.; como essas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na família, fotografado sob o pai, decalcado sob a cama materna; como a intervenção de Freud assegura uma tomada de poder do significante como subjetivação dos afetos; como Hans não pode mais fugir senão sob a forma de um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado: “o devir-cavalo do pequeno Hans, verdadeira opção política”; 2) A mesma coisa para um mapa de grupo: mostrar até que ponto do rizoma formam-se fenômenos de massificação, de burocracia, de leadership, de fascistização etc.; mas, no entanto,

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A orientação geral para desenvolver esse tipo de pesquisa pode ser: “São os decalques que é preciso referir aos mapas e não o inverso” (DELEUZE e GUATTARI, p. 33); ou então: “Religar os decalques ao mapa, relacionar as raízes ou as árvores a um rizoma” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 23-24).

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lativos têm também picos de desterritorialização voltados para o absoluto: “Sempre imanência dos estratos e do plano de consistência, ou coexistência dos dois estados da máquina abstrata como a de dois estados diferentes de intensidades” (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 72-73).

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quais linhas, mesmo subterrâneas, subsistem e continuam a fazer rizoma, nem que seja obscuramente; 3) Para usar o método Deligny: mapear os gestos e os movimentos de uma criança autista, combinar vários mapas para a mesma criança, para várias crianças (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 24). Não podemos perder de vista que o mapa (ou o rizoma de uma pesquisa) tem entradas múltiplas; por isso, se pode entrar nelas pelo caminho dos decalques ou pela via das árvores-raízes, observando-se as precauções necessárias, como, a mais importante, de renunciar aos dualismos maniqueístas. Em algumas passagens da pesquisa, seremos obrigados a cair em impasses, passar por poderes significantes e afetos subjetivos, nos apoiar em formações edipianas, paranóicas ou piores do que isso, sobre territorialidades endurecidas; pode ser que até a Psicanálise nos sirva de ponto de apoio; em outras, aí sim, poderemos nos apoiar sobre uma ou mais linhas de fuga, que explodem os estratos, rompem as raízes e operam novas e inéditas conexões. Há, então, para serem pesquisados agenciamentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-raízes, com coeficientes variáveis de desterritorialização. Mas, existem também estruturas de árvore ou de raízes nos rizomas, assim como um galho de árvore ou uma divisão de raiz podem recomeçar a brotar em rizoma. O que faremos, como procederemos nas atividades de pesquisa não depende de análises teóricas que impliquem universais, e sim

ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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“Semióticas gestuais, mímicas, lúdicas, etc, retomam sua liberdade na criança e se liberam do ‘decalque’, quer dizer, da competência dominante da língua do mestre – um acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder local.” Exemplo: os conteúdos das “árvores-curriculares” poderiam abrir-se em todos os sentidos e fazer rizoma, de modo a produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a estranhos e inesperados usos: “Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em árvores, em raízes ou radículas, já sofremos muito” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 25).

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Por exemplo, os parâmetros e diretrizes curriculares procedem por decalques; eles podem, no entanto, começar a brotar, a lançar hastes de rizoma, como num livro de Foucault, de Carroll, de Proust, de Joyce. Um traço intensivo pode começar a trabalhar por sua conta; uma percepção alucinatória, uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de imagens podem destacar-se e a hegemonia do significante ser, definitivamente, colocada em questão.

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de uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades: “No coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar”. Ou, então, “é um elemento microscópico da árvore raiz, uma radícula, que incita a produção de um rizoma” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 24).

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Não podemos esquecer que, quando referimos os decalques aos mapas, e não os mapas aos decalques, estamos pesquisando contra “os sistemas centrados (e mesmo policentrados) de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas”, já que “o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados”. Lembramos que, no rizoma, o que está em questão é sempre “uma relação com a sexualidade, mas também com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação arborescente: todo tipo de ‘devires’” (DELEUZE e GUATTARI, 1995a, p. 33). É crucial para a Pesquisa Rizomática, desde o início, saber como as coisas entram nos estratos, mais do que como elas saem, deformam-se, dessegmentarizam-se, já que a ordem de passagem é a do absoluto (da matéria instável não-formada) para o relativo (formações, estratos etc.). Na pesquisa, vamos perguntar e responder: como se realiza esta passagem do desestratificado ao estrato? Para isso: “Temos que pensar a desterritorialização como uma potência perfeitamente positiva, que possui seus graus e seus limiares (epistratos) e que é sempre relativa, tendo um reverso, uma complementaridade na reterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 69).

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ACONTECIMENTO: ESTUDO EM

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Todo Pesquisador do Acontecimento vê-se em face do seguinte enigma: como é possível que alguma coisa de novo surja na educação? Ora, os estratos agem como buracos negros, com a atividade de formar as matérias do plano desestratificado, capturar fluxos e intensidades, fixar singularidades, e fazem isso através de duas operações: por codificação, modos de codificação, e por territorialização. Uma máquina abstrata compõe códigos e territorialidades, mas ela também os atravessa de pontos de descodificação e de pontos de desterritorialização, que fazem com que todo código comporte uma margem essencial de descodificação (suplementos capazes de variar livremente), da mesma maneira que territorialidades atravessam limiares de desterritorialização que correspondem a estados transitórios, valências, ligações mais ou menos localizáveis. Os estratos ocorrem quando populações se territorializam e se desterritorializam, se codificam e se descodificam e também se reterritorializam; quando linhas de fuga (desterritorialização absoluta) são barradas, bloqueadas pelas formações de poder produzidas no próprio agenciamento e que as fazem perder seu potencial criativo, sua mobilidade e flexibilidade.

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Toda Pesquisa do Acontecimento é intensiva e se faz em limiares de intensidade nos quais evolui ou, então, transpõe. É sempre por intensidade que se pesquisa, e os deslocamentos, as figuras no espaço dependem de limiares intensivos da desterritorialização nômade, por conseguinte, de relações diferenciais que fixam, ao mesmo tempo, as reterritorializações sedentárias e complementares (DELEUZE e GUATTARI, 1995c, p. 70, ss.).

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EXEMPLO X: Agenciamento Cada escola, como todo agenciamento social, tem duas faces: agenciamento técnico-maquínico (uma máquina-prisão, máquina-tribunal, máquina-confessionário) e agenciamento coletivo de enunciação (cf. DELEUZE; PARNET, 1998, p. 153, ss.); uma face voltada para os estratos, a outra para o corpo sem órgãos, ou plano de consistência, tanto que, no trabalho de pesquisa, cartografamos os seus blocos-segmentos (poderes e territórios) e os seus fluxos, pontos de desterritorialização (por onde uma escola foge e faz fugir). Pela teoria do agenciamento, as pesquisadoras não encontrarão numa escola apenas segmentos estanques, tais como campo da realidade, instância representativa da linguagem ou campo de subjetividade. Ao problematizá-la e descrevê-la, ressaltarão que os seus agenciamentos são sempre de desejos, desde que só há desejo agenciado e agenciando, desde que o desejo é revolucionário e experimentador. Mas, quando as pesquisadoras podem dizer que um agenciamento escolar é novo? Dado um conjunto de signos, o seu problema é saber qual agenciamento eles efetuam, de que regimes de signos participam, se são potências criativas e galopam em direção aos limites (desterritorialização) ou se formam blocos de captura (reterritorialização). Elas tratam da montagem e da desmontagem de agenciamentos, de linhas, blocos, forças, materiais,

ESTUDO EM

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A Pesquisa Aberta vai cartografar, nos agenciamentos de enunciação e nas multiplicidades linguageiras da

ACONTECIMENTO:

Uma escola, um currículo, uma disciplina, uma formação social, um quadro, um conto, uma subjetividade, um grupo compõem: 1) um sistema retilíneo, mas também 2) um sistema sempre aberto a um plano de consistência não formado (em toda forma alguma coisa sempre corre, escorre, foge). Todo agenciamento será, assim, cartografado nos seguintes elementos: 1) planos de estratificação que compõem quadros, segmentos e blocos; 2) plano de consistência que estica linhas segundo seu potencial de fuga e variação.

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As pesquisadoras ficam atentas para responder à seguinte questão: quando um enunciado pedagógico ou uma máquina técnica, como a escola, abrem campos de possibilidades? Ora, em cada agenciamento, separam as linhas que o atravessam em duas direções: 1) linhas que formam contornos, figuras, dentros, estrias, segmentos, blocos; 2) linhas de variação que atravessam o agenciamento de devires, metamorfoses, variações, intensidades, mudanças, novas relações.

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pois só estes podem dizer-lhes em que medida um fluxo escapa, cria, inventa ou, se por outro lado, um bloco se cristaliza. Se as pesquisadoras vão descrever, avaliar, pesar os agenciamentos escolares, é sempre em função de critérios imanentes, segundo seu teor em possibilidades, em liberdade, em criatividade (cf. DELEUZE, 1990).

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escola, as passagens mais desterritorializadas, os procedimentos variáveis que distribuem dinamismos, além das fugas nessas configurações. Vai entrever, multiplicar as linhas de fuga em todos os domínios, conectar-se nelas de modo que um agenciamento escolar, didático, metodológico, curricular, familiar, comunitário possa preparar as condições de enunciação coletiva que não seja comando e interdição. Vai falar de um dispositivo de forças passando em meio a todos os componentes do agenciamento. Vai descrever o plano de consistência e sua matéria aformal, as últimas partes infinitamente pequenas de um infinito atual, graus de intensidade, resistência, velocidade, traços de expressão desterritorializada ou tensores. Porque sabem que o estatuto da forma e do formado implica secundariedade em relação ao não-formado, as pesquisadoras têm como ponto de partida o transcendental definido como Fora, ou uma superfície intensiva e aformal, que se desdobra numa temporalidade aformal (Aion) e que não se confunde com o transcendente, na medida em que sua imanência é absoluta como idealidade, virtualidade. Uma Pesquisa Microfísica, que faça uma microfísica do poder, vê os poderes e as normatizações nas lutas; e, mais do que abordar a dominação social ou suas instâncias hegemônicas, ressalta, sobretudo, as lutas em suas múltiplas perspectivas. Logo, na visão microfísica, Uhma Mvlier não pode falar de maneira fundamentada

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Em segundo lugar, terá presente que o processo do devir é o de estar-entre, numa passagem entre os caminhos; é a diferenciação, o devir-outro, no interstício dos pontos de poder, dado que seria aquilo que é condição de novidade sem que a pesquisadora esteja na

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Como é possível, para a pesquisadora, detectar, aí, um devir? Primeiramente, ela deve ficar atenta para a distinção entre diferenciação e “alternativas”, já que o devir não consiste no reverso de uma mesma moeda: nas ditas práticas pedagógicas “alternativas”, por exemplo, não se tem de fato um devir, pois nelas se está assumindo uma forma de prática antecipadamente legitimável, que apenas produz uma ilusão de mudança, para logo se reterritorializar, para logo se exercer em outro ponto um mesmo domínio nos múltiplos lugares da rede de poder.

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de normalidade e desvio, mas de diferentes padrões de normalização e desviação. A pluralidade dos pontos de poder e campos de força acarreta o alargamento, senão afrouxamento, desses dualismos. Não cabe, na analítica do poder (ao menos de Foucault), qualquer maniqueísmo, porque ela trabalha com as lateralidades e os deslocamentos parciais, derivando daí a questão da possibilidade de saída da normalização, fora de um reagenciamento social global. Essa analítica passa de um ideal de revolução física, da transformação de uma ordem social por outra antecipadamente previsível ou tangível, para uma idéia de revolução química, da transformação da rede de poder pelo imponderável, que constituem os afloramentos inesperados dos campos de luta na configuração do seu jogo (cf. BRANCO, 1997).

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vontade de fazer novidade. A diferenciação não pode ser objeto de justificação, não visa à legitimidade, porque é uma paixão: paixão no sentido de que a pesquisadora é forçada a caminhar num outro pólo. A diferenciação dá-se quando uma inesperada ruptura acontece, quando algo incita a um começo, já que ela é heterogênea, da ordem do quase-vazio, da quase-causa, paixão que é marca da linha de fuga, expressão da virtualidade: devir-acontecimento. Diferenciação material e incorporal: é nesse nível material e incorporal que a diferenciação advém como produto involuntário de uma coação – é o pensamento. Mas, não se trata do pensamento na perspectiva cartesiana, entendido como bom senso ou inteligência. Pois, a inteligência aí, com boa vontade, quando busca algum fundamento, chega a uma solução teórica ou prática que já estava contida na forma de problematizar, e essa solução aparece como possibilidade natural. A inteligência relaciona o saber ao código e ao método, enquanto a aprendizagem dessas leva à calma possessão de uma regra de soluções. Assim, um aluno inteligente é designado pelo senso comum dos professores como sendo aquele que sabe fazer conforme o esperado, que estabelece soluções plausíveis para o mundo prático; e essa inteligência, com seus cálculos e medidas, é do domínio seja da normalização seja da alternativa. Para além do bom senso, tratase de analisar a diferenciação no e pelo pensamento, do que é da ordem da problematização, do que ocorre com o estranhamento no pensamento: “O ato de pensar não

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Descreve-se o pensamento como a instância por excelência da diferenciação, e que não tem nada a ver com a forma exterior e explícita da contestação ou da resistência. Ao contrário, sua característica maior é a discrição, já que alardear uma criação é quase impossível, e o pensamento não depende da fórmula do sucesso ou da marginalização, pois ele só pode ser uma

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Trata-se de descrever a diferenciação no pensamento, deslocado por algum constrangimento de seu caminho previsível, de um modo que o pensamento fica, por isso, tomado por questões diferenciais ao próprio ato de pensar. Nesse momento, capta-se a criação, isto é, o que vem à existência, pela criação, qual seja: uma nova intelecção e uma nova valoração, que operam como uma desaprendizagem, como uma deseducação, como uma saída dos roteiros ideais das pedagogias, didáticas, metodologias. A pesquisa, aqui, debruça-se sobre o pensamento a-pedagógico, a-didático, a-metodológico; sobre o pensamento como movimento da alma, variação contínua de paisagem, inquietação permanente, construção de novos mundos, fundação de novas taxionomias, não modelar, metamórfico, que cria na diferença, não está a serviço da boa intenção, é força terrível, da ordem da crueldade.

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decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas” (DELEUZE, 1987, p. 96).

singularidade delicada, quase imperceptível. Apesar disso, é pela criação que se dão todas as transformações radicais.

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EXEMPLO XI: Impessoal Para analisar algum aluno (ou professor), nos debruçamos sobre o impessoal deleuziano (cf. DELEUZE, 1997, 1998, 2002, 2003; SCHÉRER, 2000; SIMONDON, 2003; TADEU, 2003), que designa um modo de individuação que não é aquele que conhecemos, dos indivíduos, sujeitos e objetos, mas que compreende a individuação numa direção de superação do indivíduo, como realidade constituída e dada, a partir da qual o ser pode ser pensado. A pesquisa se volta, por conseguinte, à individuação do ser desde as operações pré-individuais que o constituem, em relação às quais o individual pode ser pensado como, simplesmente, uma das fases do ser. A individuação é entendida como devir do ser, isto é, surgimento de fases, sendo o indivíduo apenas uma dessas fases, sempre relativa à operação de individuação e à problemática inicial que ele jamais esgota. Por isso, um aluno é pensado enquanto ser como realidade pré-individual, partindo de uma operação de individuação que se processa como resolução de uma problemática préindividual – contra um modelo de pesquisa que pensa o princípio de individuação a partir de um indivíduo já constituído. Um aluno não resulta da

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O que importa descrever não são alunos como pontos-centros, mas aquilo que se passa entre eles, no que se passa entre os seus corpos, aquilo que sempre faz devir os seus corpos: um acontecimento impessoal. Seguimos, então, a arte que possui um tipo de olho que não pára nos indivíduos, mas vai aos acontecimentos puros e aos devires que estão em pauta nas coisas e nas pessoas. Pesquisa dos Encontros: reino das individuações sem sujeito, em devir, que comportam elementos materiais,

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Assim, nessa Pesquisa do Impessoal, é privilegiada a análise dos acontecimentos em detrimento das subjetividades (eu/tu) e das objetividades (ele), desde que não há subjetividades e objetividades que não sejam operadas pelo Acontecimento, enquanto fluxo de criação pré-individual. Reportar um aluno a acontecimentos leva-nos a pensar nos processos de individuação que se desdobram e os excedem, sempre desproporcionais à unidade, e nos conduz a uma realidade que não pode ser percebida enquanto nos deixávamos guiar pelos conceitos de indivíduo constituído e de identidade.

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bipolaridade forma-matéria, mas aparece como um sistema tenso, supersaturado, carregado de tensões pré-individuais, das quais a individuação é solução, sem jamais as esgotar. Ele não é pensado pelas categorias da unidade, da identidade, na medida em que elas não se aplicam a qualquer ontogênese, isto é, não se aplicam ao devir do aluno, como ser que se desdobra e se defasa ao individuar-se.

corpos que não são mais do que potências afectivas, poder de afectar e ser afectado, encontros: uma criança, um pátio, um muro, uma luz, o brilho de um olhar, intensidades de um rosto...

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Porém, não basta apreender um impessoal, enquanto oposto ou ao lado das individuações subjetivas: é cada aluno, os sentimentos, uma mulher, um animal, que são tornados potências de um impessoal, singularidades impessoais no mais alto grau. O que implica essa Pesquisa da Singularidade? Primeiramente, eliminar todo recurso ao geral, expresso pelo artigo definido: o aluno, o professor, a criança... A singularidade foge à generalidade, pois implica a emergência de traços absolutamente circunstanciais, que não são os mesmos que processos pessoais. A singularidade não é da ordem do indivíduo, mas dos acontecimentos e das atmosferas, e os traços singulares não-pessoais que a pesquisa é capaz de compor são os trajetos e devires. Definem-se, então, os trajetos, explora-se um meio, uma trajetória, uma viagem. Nessa dimensão em extensão, não basta considerar os traços singulares dos personagens implicados no trajeto; é preciso considerar a singularidade do meio que se reflete naquele que o percorre, seus materiais, barulhos, acontecimentos. Descrever uma trajetória é descrever a partida extensional de uma operação de individuação que se desdobra em personagem e meio. Pode-se tomar a vida escolar de um aluno, onde “formar-se” equivale ao processo

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Turbilhão de vidas, efervescência do caos: o que se pesquisa é colocado em planos pré-subjetivos, das potências afectivas, e efetuado o trânsito das intensidades mais radicais, de maneira que os conceitos de impessoal e de individuação sem sujeito introduzem na problemática de um aluno singularidades extensivas (trajeto e meio) e intensidades (afectos), fazendo com que ele não possa mais ser visto nem pensado sem os dinamismos de uma realidade complexa e diferenciada que o torna em si uma multiplicidade. Interconectividade ou

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Mas, não é suficiente cartografar esses trajetos sem mostrar os devires, sem mostrar como a singularidade extensiva é afectada por gradientes de intensidade, por afectos. Aqui, o pesquisador pensa um aluno que está pesquisando enquanto graus de potência ou diferenças intensivas, em que não há ainda subjetividade, pessoalidade, nem humanidade, na medida em que ele pode ser definido pelos afectos e intensidades de que é capaz, e se apresenta, neste plano de vida pré-subjetivo, como populações de afectos e de intensidades.

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de individuação-trajeto que individualiza esse personagem e o meio escolar. Um trajeto é assim uma individuação sem sujeito que conduz personagem e meio por uma via impessoal, e vê-se bem por que, numa pesquisa assim realizada, há muito pouco de memória, já que a seleção de um trajeto depende mesmo é de uma cartografia, feita com mapas, caminhos, planos de viagem e de encontros.

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entremultiplicidades: um aluno visto como um ser tenso, agitado por problemas, afectos e intensidades, que vive em uma rede de conexões fora da qual não há individuação; um ser que, ao individuar-se, integra necessariamente uma problemática mais vasta, participa de sistemas de individuação mais amplos e estabelece aí relações, de modo que a realidade pré-individual que nele se agita reúne-se à dos outros, participando de uma verdadeira operação de individuação coletiva. Os processos de individuação supõem assim o transindividual, com suas problemáticas e modos de resolução, com sua metaestabilidade, isto é, seus potenciais de transformação e de constituição de novas individuações. Com o conceito de “agenciamento coletivo de enunciação”, é possível superar noções eivadas de subjetividade lingüística, tais como sujeito de enunciação e sujeito de enunciado, não remetendo a uma simples operação de somatório de indivíduos. Esse conceito de agenciamento não aponta apenas a existência de dois termos 1+1, mas uma conexão de heterogêneos, onde há algo que acontece entre os termos, uma operação de individuação que os faz colidir, que os cerca e arrebata. O agenciamento coletivo de enunciação não é apenas numericamente superior ao sujeito, um coletivo; antes, ele é uma individuação coletiva. O impessoal, desdobrado em fazer-se vapor, e encontro de um vapor com outro, é abertura das subjetividades e dos objetos para uma virtualidade que

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Descreve-se um aluno que não coincide com o indivíduo individuado, senão que contém em si, sempre, uma certa proporção irredutível de realidade pré-individual, como um precipitado instável,

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Essa Pesquisa dos Signos, capazes de fomentar o impessoal, isto é, de manter a agitação, a nuvem e as conexões de um campo que só se individualiza relativa e secundariamente, encontra na indeterminação do se (fala-se) e no verbo impessoal (chove) as figuras contrárias ao tu, ponto de subjetivação, a partir do qual cada um constitui-se como sujeito; ao Eu, que designa o sujeito que enuncia e reflete-se no enunciado; ao eu, como sujeito do enunciado, passível de ser substituído por ele.

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os extrapola e conecta, para além dos limites do individual e do meramente coletivo. Mas, qual é a linguagem do impessoal? A forma verbal do infinitivo apreende as singularidades de sentido e de acontecimento, independentemente das coordenadas espaço-temporais (estudar, tornar, chegar, encontrar etc.), enuncia o tempo do acontecimento puro ou o devir. Os nomes próprios designam individuações por hecceidades, já que nomear um aluno (ou uma professora, uma briga, um assalto, uma doença) é sempre recolher na linguagem os traços individuantes que se encarnam no designado. Os artigos e os pronomes indefinidos introduzem hecceidades (Era uma vez... Uma criança brinca...) e encontram sua individuação no agenciamento do qual eles fazem parte.

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como algo composto, já que há nos seres individuados uma carga de indeterminado, de realidade pré-individual, que passou através da operação da individuação sem ser individuada; enquanto o préindividual é percebido, antes de tudo, como um tipo de passado não resolvido: a realidade do possível, de onde surge a singularidade bem definida, persiste ainda nos limites desta última – o pré-individual –, que é o tecido íntimo do sujeito, constitui o meio (milieu) do aluno individuado (cf. SIMONDON, 2003). Assim, não se assimila um aluno ao indivíduo, e a coexistência do pré-individual e do individuado no seio dele está mediada pelos afectos; emoções e paixões assinalam a integração provisória dos dois aspectos, mas também seu eventual desapego, embora não falte angústia quando não se consegue compor os aspectos pré-individuais de sua experiência com os aspectos individuados. A individuação de um aluno não está garantida de uma vez para sempre: pode regressar sobre seus passos, fragilizar-se. O pré-individual parece, às vezes, inundar a singularidade: esta é como aspirada no anonimato do “se”; outras vezes, de maneira oposta e simétrica, força a reduzir todos os aspectos pré-individuais de sua experiência à singularidade pontual – extremos de uma oscilação constante e não suprimível. Um outro perigo, na análise de um aluno, é considerar que este, desde o momento em que participa de um coletivo, deve suprimir algumas características

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Na Pesquisa Pática, abolimos o ser, em favor do acontecimento como entidade, a ontologia em prol de um evenemencialismo; privilegiamos uma orientação

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individuais, renunciar a certos signos distintivos que nele se mesclam e que são impenetráveis. Parece que, de acordo com um senso comum disforme, no coletivo a singularidade se dilui, que é regressão, o que, para Simondon (2003), é pura superstição: obtusa epistemologicamente e equívoca desde o ponto de vista da ética, alimentada por aqueles que acreditam que o indivíduo é um ponto de partida imediato. Se, ao contrário, admite-se que o indivíduo provém de seu oposto, isto é, do universal indiferenciado, o problema do coletivo toma outro caráter, qual seja, de que a vida do grupo é o momento de uma ulterior e mais complexa individuação. Longe de ser regressiva, a singularidade alcança seu apogeu no atuar conjuntamente, na pluralidade de vozes. O coletivo não prejudica a individuação, não atenua a individuação, mas a persegue, aumenta desmesuradamente sua potência. Essa continuação concerne à parte da realidade pré-individual que o primeiro processo de individuação não tinha resolvido, pois a instância do coletivo é ainda uma instância de individuação: o que está em jogo é dar uma forma contingente e impossível de confundir com o indeterminado, isto é, com “a realidade do possível” que precede a singularidade (cf. ALMEIDA, 2003, p. 115, ss.).

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pática do pensamento, estabelecendo de direito um pensamento-pathos capaz de elevar a faculdade de pensar à sua superior competência intrínseca, de criação ou inovação (cf. DIAS, 1995, p. 35-63). Para isso, exercitamos uma crítica fundamental, uma vertente “negativa”, que exige: emancipar o exercício pensante do modelo lógico da verdade; denunciar a matriz doxológica desse modelo, quer dizer, denunciar o decalque da forma limitativa do senso comum pelo pensamento determinado como racional. Em outras palavras, destituímos o ser e orientamos paticamente o pensamento, por meio da desarticulação da concepção tradicional predominante do pensamento, e tornamos evidente o seu funcionamento sobre a operação prática de pensar – funcionamento que decorre dos compromissos contraídos por essa imagem desde os seus pressupostos implícitos. A pertinência desse modo de pensar a pesquisa justifica-se por sua inventividade anárquica em sintonia, por contigüidade ou à distância, com elementos da política, da ciência, da arte, da filosofia. Para esse pensamento, não existe a falsa alternativa: função “cultural” mediadora ou comunicativa da pesquisa, ou o autismo do conceito (especulações visionárias avessas a procedimentos de validação, ou encerramento estéril na exegese da tradição educacional); e também nada há de salvamento da pesquisadora da pseudo-opção: protagonismo intelectual público ou solidão sem ecos, luzes da ribalta da moda ou gueto meditativo privado. Essa pesquisa não opera com idéias reguladoras de um senso comum “crítico”, nem por meio de consensos

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Quando esses dinamismos se traduziram já em processos em atos perceptíveis e, como tais, tratáveis como informação (A avaliação é um processo...) e, portanto, como matéria de opinião (Eu acho que a avaliação é...), ou existentes (Existem três tipos de avaliação...) no campo educacional, ainda aí, o que o pensamento ortodoxo

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É que os acontecimentos não são os “fatos” educacionais, como dados históricos ou vividos; e, embora os acontecimentos não existam fora das suas efetuações, também não se esgotam nelas, nem se encontram apenas no seu existir atual: “O acontecimento é imaterial, incorporal, invivível” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 202). A substituição da questão ontológica “o que é...?” (essência) pelas questões “o que é que se passou?”, ou “o que é que se vai passar?” (e: onde e quando?; em que casos e circunstâncias?) não é uma reconversão filosófica ao aqui-e-agora, não é uma troca do essencial pelo acidental. Os acontecimentos a serem pesquisados não são os acidentes, coletivos ou individuais, mas antes dinamismos criadores, perfeitamente insensíveis pelos canais da tradição.

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como opinião “razoável” da maioria, mas é inseparável de um caráter de inatualidade ou de intempestividade. Pesquisar os acontecimentos, via objectéis e superjectos, não tem a ver com ruidosos ou mais silenciosos (mas, nem por isso, menos atuantes) eventos, atualidades, senso comum ou bom senso do pensamento dogmático da educação. Aliás, esses elementos são totalmente inaptos para captar acontecimentos, ou só os capturam quando já se transformaram em fenômenos “atuais”.

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da tradição pode reter é apenas uma atualização particular do acontecimento, uma porção de sua existência sensível, já que o Acontecimento, em sua idealidade, é inesgotável por suas atualizações sempre diferentes; ele não é o que existe, mas o que subsiste fora de sua existência sensível, como auto-subsistente, não como uma noção geral, simplesmente inteligível, mas como singularidade real estritamente virtual: “Ele [o acontecimento] não é o que aconteceu nem o que está na iminência de acontecer, ele está entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o inatual entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocorreu já num tempo próprio, sem presente, num tempo infinitivo não-cronológico” (DIAS, 1995, p. 15). Pesquisar o Acontecimento, experimentá-lo e descrevê-lo como produção de acontecimentos e a ele próprio, de cada vez, como Acontecimento: essa é a principal prática pesquisadora, a qual troca o eterno pelo presente, embora esse presente não capture, conceitualmente, o “ser” do presente, como uma fenomenologia da atualidade, ou uma compreensão sintética da realidade histórica. Praticar, nessa pesquisa, a “ontologia do presente” (ao modo de FOUCAULT, 1991) leva as pesquisadoras a detectarem, no presente, não a parte do ser, mas a do devir, a parte inatual da realidade atual, visando, assim, conceitualizar as tendências que traçam, na face atual do presente, novas configurações não-atuais. Elas distinguem o presente e o atual, separam no presente a parte do atual e vinculam o pensamento da pesquisa a essa parte, que é o Novo, o outro lado virtual do presente, o devir-outro do presente: o presente como

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Por isso, quando, derivados da pesquisa, como sua expressão, como um de seus efeitos, as pesquisadoras escrevem livros, dissertação, tese, relatório, o fazem, pensando do fundo do não-saber, sobre o que não sabem nem podem saber; e também para resolver “casos”, quer dizer, situações problemáticas locais, e mudar com as próprias situações. Essa escrita pressupõe uma orientação eminentemente prática, e não representacionista, do pensamento, e o que resultar dela se caracterizará pela atividade inventiva de conceitos elaborados para os problemas que são propostos.

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Por esse motivo, os acontecimentos cartografados pela Pesquisa do Devir nunca se confundem com os “dados”: os acontecimentos encontram-se em produção, são alguma coisa a produzir, a construir na sua consistência específica, e só uma pesquisa dessas está apta para tal construção, porque só ela detém a capacidade de criar conceitos, visto ser uma pesquisa de ordem filosófica. Pesquisar a parte virtual ou não-histórica do Acontecimento implica, portanto, tratar os conceitos como acontecimentos e não como noções gerais, como singularidades e não como universais, não para determinar o que uma coisa é (essência), mas pelas circunstâncias de uma coisa: em que casos, onde e quando, como etc.?

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o que elas são, mas o atual como aquilo que no presente estão deixando de ser. Estabelecem a distinção não entre o presente e o passado (a história), mas entre duas co-dimensões ou partes do presente: a parte histórica ou do “ser” desse presente e a sua parte virtual ou nãohistórica de devir.

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É que a Pesquisa Inventiva restitui não apenas o pensamento, como também suas ações e escrita, à faculdade superior de livre criação, através da libertação do conceito de seu vínculo com a substância e o atributo e do “ser” dos acontecimentos, manifestando-se a favor dos encontros entre os seres, das suas não-relações, de sua exterioridade aos próprios seres, da sua irredutibilidade à ontologia. É uma pesquisa que procede a uma virada noológica: em vez do ser das coisas e dos estados de coisas, da interioridade da essência e do atributo, privilegia o extra-ser das relações e sua autonomia, a experiência das relações, como multiplicidades de natureza diferente dos elementos e dos conjuntos por si relacionados, ou como exteriores aos seus termos e independentes do respectivo número. Encontra-se, aqui, toda uma violência do pensamento que pensa a pesquisa sobre si própria, contra a sua apetência ontológica, a sua fixação no É: a Pesquisa Pluralista pensa os seres e as coisas em função das relações e não o inverso, pensa as relações como entre-seres que afetam os seres de um grau de devir, de variação correlativa, e as circunstâncias, as ações e paixões, como fatores de variações das próprias relações. O pensamento da pesquisa torna-se assim uma ficção ou uma experimentação, uma prática experimental e pluralista: a cada vez em que é exercido, experimenta novas relações entre os seres, constrói novas composições, uma geografia inédita, faz do pensamento um plano de composição onde os acontecimentos se tecem e destecem. Não há primeiros princípios, representações

privilegiadas, ou regras apriorísticas e normativas, nenhuma orientação natural do ato de pensar.

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A Pesquisa do Conceito tem o conceito como um operador, válido pela fecundidade de seus efeitos paradoxais, ou seja, por aquilo que ele faz pensar, ver e até sentir, e que sem ele continuaria impensado, invisível, insensível, porque o que por ele é revelado mostra-se incapturável no horizonte vivido das opiniões.

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O segredo do empirismo de tal pesquisa, que configura o predomínio do conceito-acontecimento sobre a ontologia, a insurreição do E contra o É, das conjunções contra o enfeudamento no verbo ser, é somente este: pensar com E, em vez de pensar com É, por É. E é esse empirismo que fornece a possibilidade da criação de conceitos e os trata como objetos de encontros, como um aqui-e-agora, de onde saem os aqui e os agora sempre inesgotáveis, novos, diferentemente distribuídos.

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Desse modo, a Pesquisadora da Diferença sofre de um desamparo radical dos princípios imutáveis, do conhecimento formal da verdade, de referenciais sobre como se orientar na pesquisa, de critérios a priori, coordenadas e diretrizes, de qualquer regulação prévia ou posterior, que forneça à sua ação algum norte garantido, como instância autolegitimadora. Ao agir, na incerteza e na obscuridade, voltada para a problematicidade, essa pesquisadora pensa a partir daí, exerce o pensamento como operação inventiva na ordem dos problemas e conceitos: o seu pensamento é criação, sendo que a grande questão, para ela, não é a da verdade, mas a da produção do sentido, ou do sentido como produção.

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Nesse pragmatismo intrínseco do conceito-paradoxo, que diz o Acontecimento, a Pesquisa-criadora-de-conceitos obriga-se a criar os conceitos porque não os encontra prontos para serem “aplicados” a não importa qual problema ou empiria; também porque, a cada passo seu, novas situações concretas, movimentos inovadores vindos de outros domínios, que não aqueles voluntariamente escolhidos pela pesquisa, relançam a sua função pesquisante, demandam conceitos originais, ou encontram conceitos já fabricados, solicitando-lhes recomposição, reinjetando-lhes uma necessidade, e deles extraindo uma força suplementar, que demanda desenvolvimento. Há, portanto, uma dimensão sensível dos conceitos criados durante a pesquisa, os quais, sem tal dimensão, tornam-se abstratos, deixam de realizar curtos-circuitos interfecundantes, cruzamentos, interferências com movimentos das artes, ciências e filosofia, de modo que, somente nessa contaminação, se lhes pode apreender o sentido. Para essa pesquisa, tudo são acontecimentos, mesmo as coisas, as pessoas, os sujeitos. Acontecimento que não designa os acidentes das coisas, os estados de ser, nem os fatos, ações exercidas e paixões sofridas pelos corpos, nem suas modificações corporais. Porque um acontecimento, o puro Acontecimento, é uma potencialidade inexistente fora das suas atualizações e todavia não limitável por elas, transbordante delas. Incorporal sem ser vago, o Acontecimento é um modo de individuação por intensidades, que já não é de uma coisa, de uma pessoa, de um sujeito, mas de uma hora,

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A Pesquisadora do Impensável tem consciência da dificuldade de pensar o não-pensável que provoca o pensamento, sabe que essa dificuldade não é apenas

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Assim, sujeito e objeto não constituem a relação fundamental do pensamento dessa pesquisa, e pensar “não é um fio estendido entre um sujeito e um objeto, nem uma revolução de um em torno do outro” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 113). Pensar não é representação de um objeto por um sujeito. Ao contrário, a Pesquisa-sem-sujeito-e-sem-objeto descobre um plano sub-representativo do pensamento (e da realidade), explora uma possibilidade superior do pensamento, pondo-o em relação não com um mundo da representação, com uma ontologia, onde a identidade e as formas reivindicam a primazia, mas com forças virtuais informes, com um caosmos impensável.

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região, clima, rio, luz, vento. Mesmo porque as coisas, as pessoas, os sujeitos são cada um deles individualidade de acontecimentos, seres individuados por linhas acontecimentais. Um acontecimento não se liga a um sujeito mas a outros acontecimentos, formando linhas, e o “sujeito” se constitui aí, entre as linhas, por acontecimentos. Um acontecimento pode ser coletivo ou particular, perceptível ou microscópico, mas é sempre impessoal, assubjetivo; são os seres que a pesquisa pensa em função dos acontecimentos e das suas linhas, a partir deles, como derivadas. Eu, tu, a gente: nada são, se não acontecimentos impessoais, ou subpessoais, cada um com sua duração própria variável, individuações não subjetivas, mas intensivas: afectos, paixões, sensações.

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exógena, causada por obstáculos externos à reta natureza do seu pensamento e resolúvel por um método adequado, mas que pensar se faz contra o próprio pensamento, contra o que, do interior, mantém o pensamento simplesmente possível. Ela pensa forças por si mesmas, desde a abstração feita da sua transcendência ontológica, da sua concreção em formas, em seres formados. Ela busca dar visibilidade a forças não visíveis, levar o ato “descritivo”, “demonstrativo”, “mostrativo” da pesquisa até uma faculdade pré-representativa de apreensão de forças caósmicas. Ela torna pensáveis entidades alógicas, acontecimentos, e pensa essas forças num puro plano imanente, num nexo originário com um impensável, dando pensamento a um impensado, tentando atingir um plano paradoxal que não pode ser pensado, e que é o que há para ela pensar. A Pesquisadora-daquilo-que-a-força-a-pensar encontra todo um pathos, tanto estético quanto filosófico, que a força a pensar as forças irrepresentáveis – sem mediações forma/matéria, do mundo ou do sujeito –, mas em sua absoluta imanência, sem pensá-las como imanentes a alguma coisa. Pensa em correlação com forças de um cosmos energético, informal e material; busca dar consistência ao caos, produzir uma consistência caósmica, já que pesquisa e pensa do caos ao cosmos, já que o caos é o dado primeiro – o caos e a necessidade vital da pesquisadora de tirar dele um pouco de ordem, de realidade sólida, subsistente. Aceito o desafio do caos, a Pesquisadora Caósmica mergulha nele para arrancar-lhe um mínimo de consistência,

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Não existe nenhum programa, nenhum método, nenhuma ordem ou lei para orientar firmemente sua

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Nessa Pesquisa Caótica, a pesquisadora afronta o caos, estende um plano sobre o caos, movimenta infinitamente o pensamento, reacessa o pensamento, e por contra-efetuação, um plano de imanência absoluto da realidade, plano tanto do pensamento quanto da natureza, caracterizado por movimentos virtuais ilimitados. Ela reinstala criativamente o pensamento nas velocidades infinitas do caos virtual, mas dando, pelos conceitos, às forças caóticas uma concreção caóide.

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estados caóides, em função de que o caos não designa um estado estacionário, uma mistura ao acaso, e caracteriza-se “menos por sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 153). Entende que o caos é um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e extraindo todas as formas possíveis que surgem para, de imediato, desaparecerem, sem consistência nem referência. Fundo virtual imanente sempre presente, coextensivo à realidade dada, onde todas as consistências atuais se precarizam e se desfazem, o caos é feito de movimentos infinitos em dissipação absoluta, não de ausência de determinações, mas da sua evanescência. Por isso, não possui apenas uma existência física, mas também mental: a infinita rapidez com que as idéias se sucedem, fogem, mal aparecem, testemunhando uma fenda interior, intracerebral, dificuldade imensa de pensar inscrita no mais profundo do pensamento (cf. DIAS, 1995, p. 40, ss.).

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pesquisa, porque esta se realiza num horizonte implícito, que solicita os conceitos e define a necessidade e o diagrama da criação, tanto quanto por eles é exigido como elemento próprio de inscrição, distribuição, articulação. Esse horizonte virtual da pesquisa é feito de movimentos infinitos, que os conceitos ocupam, nele selecionando acontecimentos, regiões, ordenadas intensivas e, com isso, consolidando toda a mobilidade ilimitada. Por isso, a Pesquisadora-sem-método-e-sem-programa considera redutor conceber a atividade pesquisante em termos de racionalidade, porque a razão é só um conceito fabricado, e muitíssimo pobre, para definir o plano de imanência da pesquisa e os movimentos infinitos que o percorrem; porque a razão não opera desde sempre com conceitos, já que implica uma experimentação tateante, e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis: há todo um pathos genital do seu pensamento da pesquisa, um fundo delirante, híbrido, experiências esotéricas, que não têm nada a ver com procedimentos “racionais”. Assim, a Pesquisadora Delirante pesquisa-epensa baseada nas vontades e paixões concretas que a forçam a pesquisar, que a arrancam de sua inércia natural e de sua má vontade de não pensar nada. EXEMPLO XII: Energia Como pesquisadora, Uhma Mvlier sabe que está no mesmo barco com muitos pesquisadores, que remamos todos juntos, que tentamos realizar uma nova escrita de uma nova pesquisa, com Nietzsche, inspirados,

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pode ser, em O pensamento nômade de Deleuze (1985, p. 60), para permanecermos juntos, em uma relação que não seja “nem legal, nem contratual, nem institucional. O único equivalente concebível seria talvez ‘estar no mesmo barco’. Embarcou-se: pessoas remam juntas, que não supõem que se amam, que se batem, que se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de qualquer instituição. Uma deriva, um movimento de deriva, ou de ‘desterritorialização’”. Então, juntos, maquinamos a nova estilística da nova pesquisa, sem nos preocupar com problemas de interpretação, apenas com problemas de maquinação; procuramos detectar “com qual força exterior atual” o texto da pesquisa “faz passar alguma coisa, uma corrente de energia” (DELEUZE, p. 62); verificamos com quais vetores e eixos, de acordo com cada caso, o pensamento da pesquisa é orientado para contemplações, ou para reflexões etc., dando a cada pensamento alguma coisa para contemplar, para refletir, para comunicar, ou, melhor, para construir, fazendo o pensamento subir, erguer coordenadas verticais sobre o horizonte especulativo, ou então escavar, afundar, abismar-se, procurar um sem-fundo incógnito, ou repudiar tanto a profundidade quanto a transcendência, toda a verticalidade, e estender-se sobre a superfície do horizonte, em pura imanência, fornecer diretrizes à criação de conceitos, e também uma finalidade, tal como a verdade, o consenso, a opinião razoável, ou o sentido e o novo, nos recusando a repetir ecolalicamente: É o aluno, É a sala de aula, É a escola, É o currículo –

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senso comum tornado pesquisa, caráter inofensivo da crítica, implicados em compromissos tácitos com o Estado, com a Moral dominante etc. –; operamos, experimentamos uma imagem do pensamento da pesquisa que recusa todas as opiniões, a veracidade do pensador ou a verdade do pensamento, o inatismo das idéias ou o apriorismo dos conceitos, todos os obstáculos exteriores ao pensamento – o corpo, paixões, interesses sensíveis – como forças que desviam o pensamento de sua reta natureza formal, a necessidade de um método como artifício conjurador do resultado negativo dessas forças e a garantia do reencontro do pensamento com sua vocação inata; sabemos que nada disso “salva” Uhma Mvlier e seus parceiros de barco de avançar às escuras, de inventar a cada vez a sua orientação, a sua desorientada experimentação – caminhos necessariamente paradoxais de uma Pesquisa do Acontecimento.

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