Língua Portuguesa na Europa Central: estudos e perspetivas
 9788024631479, 8024631474

Table of contents :
Capa do livro
Índice
Apresentação
Agradecimentos
I. Conferências Plenárias
Questões de semântica do tempo em português: relações temporais em frases simples e algumas frases complexas (Fátima Oliveira)
Uma possível topografia da narrativa brasileira contemporânea (A problematização da violência, o questionamento da identidade e a hibridação da escrita (Alva Martínez Teixeiro)
II. Literatura e estudos de tradução
Requiem para uma Europa em ruínas. As crónicas jugoslavas de Álvaro Guerra (Magda Barbeita)
As duas faces de D. Teresa (cca 1080–1130): do anti-exemplo à mulher exemplar (Anna Działak)
Rasto checo e cumplicidade ibero-eslava na mistificação fradiquiana (Vlasta Dufková)
Conto fantástico regionalista no Brasil? (Šárka Grauová)
Como traduzir o calão e manter-se fresco como uma alface? Considerações à margem da tradução para polaco do novo dicionário do calão de afonso praça (Jakub Jankowski)
Os elementos da “terceira cultura” na tradução do português para o polaco (Agnieszka Kruk)
O panorama das traduções literárias da literatura portuguesa na Eslovénia (1991–2013) (Mojca Medvedšek)
A imagem da Atlântida no conto A revolução de Aquilino Ribeiro (Silvie Špánková)
O mito de Camões em As naus de António Lobo Antunes: a poética e a política da profanação (Bálint Urbán)
Residência da dinastia – um tema na literatura portuguesa (Karolina Válová)
III. Pedagogia e didática / estudos culturais e civilizacionais
A tradução na didática de PLE como veículo de interculturalidade: estudo de caso (Nuno Carlos de Almeida)
A globalização do ensino / aprendizagem da língua portuguesa: lusofonia e internacionalização (Soraia Lourenço)
A literatura tradicional lusófona como instrumento pedagógico no ensino/aprendizagem do PLE (Gabriela Tavares Sándor)
Ensino da tradução no nível universitário (Tatiana S. Sharupich)
IV. Linguística
Contribuição para a história da eliminação da concordância do particípio nos tempos compostos do português (Tibor Berta)
“O autor deve ser poliglota em sua própria língua”. Luuanda de José Luandino Vieira como exemplo da desconstrução do sistema morfossintático do português padrão (Natalia Czopek)
Prolegómenos ao léxico filosófico português (Tomás N. Castro)
Perífrases verbais de incoatividade. Estudo contrastivo português-polaco (Joanna Drzazgowska)
Texto, textualidade e sentido: a língua portuguesa para além da gramática (Graziela Zanin Kronka)
Frantuguês: o falar da emigração portuguesa em França (Petra Laufková)
Valores de incerteza e irrealidade: usos deslocados em português e espanhol (Blažka Müller Pograjc)
Testamento de d. afonso ii: 800 anos do primeiro documento escrito em português (Olga Saprykina)
Tradução de expressões idiomáticas portuguesas para a língua checa (Anna Veverková)
A oposição no âmbito dos prefixos portugueses sub-/so(b)- vs sobre-, supra- e romenos sub- vs supra- (Claudia Vlad, Irina Lupu)
A situação atual dos crioulos de base lexical portuguesa na região da Alta Guiné (Barbara Hlibowicka-Węglarz)
Verbos e formas verbais irregulares em português e espanhol (Ildikó Szijj)

Citation preview

LÍNGUA PORTUGUESA NA EUROPA CENTRAL: ESTUDOS E PERSPETIVAS capa do livro

JOAQUIM COELHO RAMOS ŠÁRKA GRAUOVÁ JAROSLAVA JINDROVÁ (EDS.) KA R OL INUM

Língua portuguesa na Europa central: estudos e perspetivas Joaquim Coelho Ramos Šárka Grauová Jaroslava Jindrová (eds.)

Reviewed by: Mgr. Iva Svobodová, Ph.D. Mgr. Petra Svobodová, Ph.D. Published by Charles University in Prague Karolinum Press Prague 2016 Layout by Jan Šerých Typeset by DTP Karolinum Press First edition © Charles University in Prague, 2016 © Joaquim Coelho Ramos, Šárka Grauová, Jaroslava Jindrová (eds.), 2016 ISBN 978-80-246-3147-9 ISBN 978-80-246-3169-1 (online : pdf)

Esta publicação teve o apoio de:

Univerzita Karlova v Praze Nakladatelství Karolinum 2016 www.karolinum.cz [email protected]

índice

Índice –––– 5 Apresentação –––– 7 Agradecimentos –––– 9 i. conferências plenárias –––– 11 Questões de semântica do tempo em português: relações temporais em frases simples e algumas frases complexas (Fátima Oliveira) –––– 12 Uma possível topografia da narrativa brasileira contemporânea (A problematização da violência, o questionamento da identidade e a hibridação da escrita) (Alva Martínez Teixeiro) –––– 26 ii. literatura e estudos de tradução –––– 43  Requiem para uma Europa em ruínas. As Crónicas jugoslavas de Álvaro Guerra (Magda Barbeita) –––– 44 As duas faces de D. Teresa (cca 1080–1130): do anti-exemplo à mulher exemplar (Anna Działak) –––– 51 Rasto checo e cumplicidade ibero-eslava na mistificação fradiquiana (Vlasta Dufková) –––– 61 Conto fantástico regionalista no Brasil? (Šárka Grauová) –––– 67 Como traduzir o calão e manter-se fresco como uma alface? Considerações à margem da tradução para polaco do Novo dicionário do calão de Afonso Praça (Jakub Jankowski) –––– 74 Os elementos da “terceira cultura” na tradução do português para o polaco (Agnieszka Kruk) –––– 88 O panorama das traduções literárias da literatura portuguesa na Eslovénia (1991–2013) (Mojca Medvedšek) –––– 94 A imagem da Atlântida no conto A revolução de Aquilino Ribeiro (Silvie Špánková) –––– 100 O mito de Camões em As naus de António Lobo Antunes: a poética e a política da profanação (Bálint Urbán) –––– 110 Residência da dinastia – um tema na literatura portuguesa (Karolina Válová) –––– 119 iii. pedagogia e didática / estudos culturais e civilizacionais –––– 127 A tradução na didática de PLE como veículo de interculturalidade: estudo de caso (Nuno Carlos de Almeida, Davor Gvozdić) –––– 128 A globalização do ensino / aprendizagem da língua portuguesa: lusofonia e internacionalização (Soraia Lourenço) –––– 143

A literatura tradicional lusófona como instrumento pedagógico no ensino/aprendizagem do PLE (Gabriela Tavares Sándor) –––– 156 Ensino da tradução no nível universitário (Tatiana S. Sharupich) –––– 167 iv. linguística –––– 173 Contribuição para a história da eliminação da concordância do particípio nos tempos compostos do português (Tibor Berta) –––– 174 “O autor deve ser poliglota em sua própria língua”. Luuanda de José Luandino Vieira como exemplo da desconstrução do sistema morfossintático do português padrão (Natalia Czopek) –––– 184 Prolegómenos ao léxico filosófico português (Tomás N. Castro) –––– 202 Perífrases verbais de incoatividade. Estudo contrastivo português-polaco (Joanna Drzazgowska) –––– 212 Texto, textualidade e sentido: a língua portuguesa para além da gramática (Graziela Zanin Kronka) –––– 223 Frantuguês: o falar da emigração portuguesa em França (Petra Laufková) –––– 232 Valores de incerteza e irrealidade: usos deslocados em português e espanhol (Blažka Müller Pograjc) –––– 239 Testamento de D. Afonso II: 800 anos do primeiro documento escrito em português (Olga Saprykina) –––– 245 Tradução de expressões idiomáticas portuguesas para a língua checa (Anna Veverková) –––– 251 A oposição no âmbito dos prefixos portugueses sub-/so(b)- vs sobre-, supra- e romenos sub- vs supra (Claudia Vlad, Irina Lupu) –––– 261 A situação atual dos crioulos de base lexical portuguesa na região da Alta Guiné (Barbara Hlibowicka-Węglarz) –––– 274 Verbos e formas verbais irregulares em português e espanhol (Ildikó Szijj) –––– 284



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apresentação

A coletânea Língua portuguesa na Europa central: estudos e perspetivas, que agora se publica, reúne alguns dos trabalhos apresentados durante a IV edição das Jornadas de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas da Europa Central e de Leste. Este colóquio internacional, pela primeira vez realizado na Faculdade de Letras da Universidade Carolina, em Praga, durante os dias 25, 26 e 27 de setembro de 2014, contou com a presença de 41 especialistas internacionais nas áreas de língua portuguesa, pedagogia e didática de PLE/L2, e literaturas e culturas dos países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. As comunicações aqui contidas traduzem os resultados dos projetos de pesquisa realizados por professores e investigadores de 11 países, mas representam também a perceção e as experiências destes profissionais da língua portuguesa nos países onde desenvolvem a sua atividade. Realizadas a cada dois anos, em regime de rotatividade, num país da Europa Central, estas Jornadas são já um evento de referência no panorama da divulgação da língua portuguesa e das culturas que em Português se materializam, considerando a enorme variedade das suas representações. Todavia, não são apenas os debates inter pares e as reflexões aprofundadas sobre os temas em análise que motivam a presença dos especialistas: é também a possibilidade de conhecer a evolução da língua portuguesa em contextos diversificados, a oportunidade de criar parcerias e grupos de trabalho internacionais e o potencial de divulgação que enforma este tipo de eventos, enquanto dinâmicas de partilha científica além fronteiras. Depois de Brno, Sófia e Budapeste, as IV Jornadas vieram consolidar a metodologia de trabalho adotada desde o início e que visa privilegiar o contacto de docentes e investigadores séniores com aqueles que agora se iniciam nestes campos do saber; o resultado é uma maior perceção do estado da arte, mas também uma dinâmica de aprendizagem fluida que se gera a par do debate científico entre todos os participantes. Justamente por ter também este objetivo formativo, a quarta edição deste colóquio internacional abriu as suas portas com duas sessões plenárias, uma na área geral da linguística, apresentada pela Professora Doutora Fátima Oliveira, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, outra na área geral da literatura, apresentada pela Professora Doutora Alva Teixeiro, professora auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

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A presente obra encontra-se dividida em quatro capítulos: o primeiro acolhe as duas conferências plenárias a que acima nos referimos; o segundo capítulo engloba as comunicações relativas a “Literaturas e Estudos de Tradução”; o terceiro capítulo inclui as comunicações integradas nos grupos temáticos de “Estudos Culturais e Civilizacionais” e de “Pedagogia e Didática”; o quarto e último grupo incorpora os trabalhos de “Linguística”. Cada comunicação reflete a visão livre e pessoal do seu autor ou autores. Dadas as caraterísticas transversais de alguns dos contributos, houve, naturalmente, dificuldades em proceder à sua adequada classificação. Isto aconteceu, nomeadamente, em estudos que tratam, simultaneamente, temas de literatura e didática, ou de literatura e cultura. Sempre que possível, a opção seguida foi a de respeitar o desejo do autor que acabaria por atribuir ao trabalho apresentado um caráter dominante mais voltado para um ou para outro grupo, aceitando-se esta classificação pessoal como base definitiva para a identificação temática do trabalho apresentado. Esperamos que esta coletânea contribua para prolongar o debate iniciado durante as IV Jornadas de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas da Europa Central e de Leste em torno das disciplinas que orbitam a língua portuguesa e do seu imenso potencial de preservação da memória coletiva, mas também do seu potencial técnico, comunicativo, formativo, empreendedor e de intervenção geopolítica e social, na certeza de que tais disciplinas são hoje um recurso importantíssimo para quem se encontra ativo, num mundo em que 250 000 000 de pessoas possuem o Português como língua nativa e muitos outros a usam como língua de trabalho, de negócios, de recreio ou de afetos. Joaquim Coelho Ramos1

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Camões, Instituto da Cooperação e da Língua, I. P.; Centro de Linguística da Universidade do Porto; Universidade Carolina de Praga.



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agradecimentos

Em abono da justiça, importa dizer que nem os trabalhos das Jornadas nem esta sua sistematização escrita teriam sido possíveis sem o empenho pessoal e profissional de uma série de pessoas concretas e entidades institucionais. Permito-me dirigir os primeiros agradecimentos à equipa do Centro de Língua Portuguesa/ Camões I. P. em Praga, designadamente ao Lic. Guilherme Figueiredo e às Mestres Kristýna Borecká e Barbora Kraftová, bolseiros do Programa Fernão Mendes Pinto em funções na República Checa, bem como à Mestre Věra Matysíková, que conseguiram manter um apoio técnico e administrativo de alto nível ao longo de toda a sequência dos trabalhos. Agradecimentos também ao Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I. P./ serviços centrais, sob cujo patrocínio se desenvolveu o Colóquio, pelo apoio material e científico prestado, desde o início, à organização. Também importa agradecer ao Instituto de Estudos Românicos, nas pessoas do seu Diretor, Doutor Petr Čermák, e do seu Secretário e lusitanista, Doutor Jan Hricsina, bem como ao Departamento de Estudos Luso-brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade Carolina em Praga, nas pessoas da sua Chefe de Departamento, Doutora Šárka Grauová, na especialidade de literaturas em língua portuguesa, e da Doutora Jaroslava Jindrová, na especialidade de linguística, a que se juntam as Doutoras Iva Svobodová, da Universidade de Masaryk, em Brno e Petra Svobodová, da Universidade de Palacký, em Olomouc, bem como a Mestre Nicole Kolbach, pelo acompanhamento científico dos trabalhos e da presente edição. Finalmente, uma palavra especial de agradecimento à Fundação Calouste Gulbenkian, instituição que muito contribuiu para o sucesso desta iniciativa, e às Embaixadas da República Portuguesa e da República Federativa do Brasil, nas pessoas dos seus Chefes de Missão: S.E. o Embaixador José Júlio Pereira Gomes e S.E. o Embaixador George Monteiro Prata, respetivamente. 

Praga, 10 de junho de 2015.

i. conferências plenárias

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questões de semântica do tempo em português: relações temporais em frases simples e algumas frases complexas

Fátima Oliveira Faculdade de Letras da Universidade do Porto Centro de Linguística da Universidade do Porto2 Portugal Resumo: Neste texto analisam-se algumas questões temporais em frases completivas finitas no Indicativo e em frases temporais introduzidas por quando. O Tempo tem um papel relevante na interpretação das frases simples, permitindo a localização das situações em diferentes esferas temporais: presente, passado ou futuro. No entanto, quando se trata de frases complexas, as relações temporais que se podem estabelecer entre as frases revelam ainda uma maior variedade e complexidade, tendo em conta os tempos verbais que se podem combinar3. Palavras-chave: tempo; frases complexas; relações temporais Nas línguas românicas e em particular no português, os tempos gramaticais veiculam, de um modo geral, informações não só temporais como também aspetuais e, assim, de formas diversas, sobre a localização e também sobre o tipo de duração da predicação relativamente à entidade referenciada pelo sujeito da frase. Deste modo, se alguns tempos verbais podem fazer apenas localização temporal de uma situação descrita por uma frase simples (o Rui saiu), já outros tempos verbais como seja o Presente do Indicativo, podem alterar o valor aspetual do predicado, transformando uma situação eventiva como fumar numa situação estativa habitual (o Rui fuma), sem haver de facto uma localização temporal. Mas as possibilidades de combinação de tempos verbais em frases

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CLUP é apoiado pela FCT, PEst-OE/LIN/UI0022/2014 Alguns aspetos do trabalho aqui apresentado foram desenvolvidos em colaboração com Purificação Silvano e Luís Filipe Cunha.

i. conferências plenárias

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complexas são restritas, dependendo de vários fatores entre os quais o tipo de frase complexa ou até a predicado que a seleciona. A complexidade desta interação entre as informações temporais e aspetuais veiculadas pelos tempos verbais justifica que em primeiro lugar se abordem algumas questões gerais sobre o tempo linguístico em frases simples e só numa segunda parte se abordem algumas questões relacionadas com as possibilidades combinatórias de alguns tempos em frases complexas como sejam algumas completivas e algumas temporais.

1. o tempo linguístico: algumas considerações Em termos gerais, podemos dizer que o tempo linguístico serve para localizar no tempo cronológico as situações (eventos ou estados) expressas nas línguas em diferentes tipos de enunciados. Essa localização temporal é relativa ou ao tempo da enunciação (ou fala) e dizemos assim que se está perante uma relação dêitica, ou então é relativa a outro tempo marcado de diversas formas na frase ou em sequências de frases e nesse caso considera-se que a relação é anafórica. A forma mais comum de se marcar essa localização é através dos tempos verbais, mas também o pode ser através de advérbios ou expressões adverbiais de tempo e certas construções temporais. Por outro lado, o tempo é também entendido como uma ordenação linear de unidades temporais orientada do passado em direção ao futuro e esta conceção tem como consequência considerar-se que o tempo linguístico se articula em três domínios: passado, presente e futuro, permitindo falar de relações de anterioridade, simultaneidade ou posterioridade do tempo relativamente a um momento escolhido como o de referência. O tempo linguístico envolve assim não só localização mas também orientação no eixo do tempo a que devemos ainda associar a noção de intervalo de tempo, concebido como um conjunto ordenado e linear de instantes ou de momentos, porque associamos ao tempo a dimensão de duração. Por último, convém ter presente que o tempo é uma categoria gramatical que opera sobre predicações e o recurso às diferentes formas de o assinalar permite estabelecer relações entre unidades temporais que são predicações ou entre predicações e outros elementos linguísticos (antes de sair, o Rui telefonou à Ana) e extralinguísticos que comportam informação temporal, como seja, neste último caso, o tempo da enunciação. Quanto à localização temporal das situações, como é relativa, há três momentos fundamentais a ter em conta4: o intervalo de tempo em que decorre a situação, o momento da enunciação e o ponto de perspetiva temporal (doravante PPT), entendido como o intervalo de tempo em que o falante se posiciona para descrever a situação que pretende representar, podendo ser tanto o momento da enunciação como outro intervalo de tempo. Vejam-se os seguintes exemplos:

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Veja-se a este respeito, Reinchenbach, 1947, Kamp e Reyle, 1993, Oliveira, 2003, Oliveira, 2013, entre outros.

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(1) A Ana almoçou com os amigos. (2) O Pedro tinha saído quando a Rita telefonou. Enquanto em (1) o tempo da situação é passado em relação ao momento da enunciação e ao PPT, que coincide com o da enunciação, em (2) a interpretação temporal da frase matriz (o Pedro tinha saído) tem como PPT o tempo marcado pela frase temporal e esta é interpretada relativamente ao tempo da enunciação que coincide com o PPT, havendo, neste exemplo um momento de enunciação mas dois pontos de perspetiva temporal. Assim, no primeiro exemplo estamos perante um caso em que a relação temporal é dêitica e no segundo exemplo verificamos que a interpretação temporal da frase matriz é anafórica, pois está dependente do tempo da frase temporal (quando a Rita telefonou). As relações temporais envolvidas em frases simples e complexas ou numa sequência de frases estão geralmente associadas a relações de anterioridade, em que um intervalo se situa antes de um outro (cf. (1) e (2)) e relações de posterioridade, em que um intervalo se situa depois de outro como em (3). Neste caso a situação é apresentada como posterior ao tempo da enunciação, que coincide com o PPT, mas em (4) o PPT da frase temporal coincide com o momento da enunciação e o PPT da frase matriz é marcado pela frase temporal. (3) A Ana vai dar aulas em Praga. (4) Quando a Maria voltar da viagem, vamos fazer uma festa. Por último, temos ainda os casos de sobreposição temporal que envolve três possibilidades. Esta relação pode ser de inclusão, em que um dos intervalos se inclui noutro de maior extensão como em (5). Neste exemplo, espirrar está incluído no intervalo mais vasto de estar ao telefone. (5)

A Ana espirrou quando estava ao telefone.

Mas também há casos de sobreposição parcial, como em (6), em que um intervalo coincide parcialmente com outro, ou de sobreposição total em que os dois intervalos coincidem totalmente como em (7). Em (6) visitar o castelo sobrepõe-se parcialmente ao tempo de viver em Praga enquanto em (7) ler a notícia se sobrepõe totalmente a tomar o pequeno-almoço. (6) Quando viveu em Praga, a Ana visitou o castelo. (7) A Rita leu a notícia no jornal enquanto tomou o pequeno-almoço. Como se pode ver por estes exemplos, as relações temporais em frases simples e em frases complexas são diferentes, havendo inclusivamente tempos verbais que dificilmente podem ocorrer em frases simples. Vejam-se os seguintes exemplos:

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(8) *A Ana tinha saído. (9) *A Ana procurava um livro sobre fotografia. Em ambos os casos as frases simples são agramaticais em virtude dos tempos verbais utilizados, o Pretérito mais que Perfeito Composto e o Imperfeito. Estes tempos verbais necessitam, na maior parte das construções, de um outro tempo que lhes sirva de PPT diferente do momento da enunciação. Tal restrição aplica-se sempre ao Pretérito mais que Perfeito e na maior parte dos casos ao Imperfeito, podendo este último apenas ocorrer em frases simples com certos predicados estativos (o Rui era simpático) ou nos casos em que se opera uma mudança aspetual para estado habitual (a Maria fumava) (cf. Oliveira, 2004). No entanto, se estas frases forem parte de uma frase complexa, como em (10)–(13), verifica-se que não há problemas quanto à sua aceitabilidade. (10) (11) (12) (13)

Quando o Pedro chegou a casa, a Ana tinha saído. A Rita disse que a Ana tinha saído. Quando entrei na biblioteca, a Ana procurava um livro sobre fotografia. A Rita disse que a Ana procurava um livro sobre fotografia.

Com efeito, em (10) e em (12), as situações representadas pelas frases principais têm como PPT os intervalos de tempo em que se localizam as situações das subordinadas. Em (11) e em (13) a situação das frases subordinadas tem como PPT o intervalo de tempo em que se localiza a situação “A Rita disse”. Nos dois primeiros exemplos ((10)– (11)), a situação a ‘Ana ter saído’ estabelece com o seu ponto de perspetiva temporal uma relação de anterioridade e nos dois últimos exemplos uma relação de sobreposição. Podemos assim dizer que há tempos verbais que são tipicamente anafóricos na medida em que não são interpretáveis relativamente ao momento de enunciação mas a um outro tempo que será o seu PPT. No entanto, se uma estrutura sintática complexa viabiliza, como vimos, a ocorrência de certos tempos gramaticais, impõe também algumas restrições no que diz respeito às combinações possíveis de tempos gramaticais e desencadeia outros problemas quanto à forma como interagem temporalmente as situações por ela representadas.

2. sequência de tempos em frases complexas Dado que uma frase complexa é constituída por, pelo menos, duas predicações, haverá assim, pelo menos duas situações que são marcadas temporalmente. Um dos casos a considerar é o das completivas de verbo finitas5. Estas frases podem ser selecionadas 5

Como se sabe, as completivas podem ser selecionadas por verbos, nomes e adjetivos. As completivas podem ainda ser finitas e não finitas, isto é, apresentarem o verbo num tempo finito ou no Infinitivo.

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por verbos de natureza semântica diferente, o que acarreta consequências quanto às possibilidades combinatórias dos tempos verbais (cf. Silvano, 2002). No entanto, se utilizarmos um critério baseado na influência que esses verbos podem ter na localização temporal da situação descrita pela frase subordinada, é possível distinguir duas grandes classes: a classe dos verbos relativamente neutros e a classes dos verbos não neutros (cf. Silvano, 2002 e Cunha e Silvano, 2008). Do primeiro grupo fazem parte verbos como dizer, afirmar, considerar, jurar, entre outros, e do segundo grupo verbos como prometer, decidir e provar, entre outros. Vejamos em primeiro lugar os tempos verbais em completivas com verbos relativamente neutros: (14) Rui disse que a Ana estava na faculdade. (15) O Rui disse que a Ana ia escrever um livro. (16) O Rui disse que a Ana tinha visto o filme. Os exemplos anteriores mostram que o verbo dizer não determina a localização temporal da situação representada pela subordinada, na medida em que esta pode localizar-se no mesmo intervalo de tempo como em (14), no intervalo de tempo posterior como em (15) ou num intervalo de tempo anterior como em (16). Exemplos deste tipo encontram-se com facilidade num corpus como o cetempublico: (17) Foi o produtor francês que lhe falou da praia do Meco e que lhe disse que este era realmente o local de que precisava. par=ext934996-clt-97b-3 (18) O major falou comigo, disse que me ia ajudar, mas depois pediu 100 mil dólares por um jogador de 30 anos. par=ext613714-des-94a-2 (19) Bob Dole, líder dos republicanos no Senado, disse que não tinha visto suficientes cortes nos gastos […] par=ext893415-pol-93a-2 Contudo, se observarmos dados com verbos que pertencem ao segundo grupo, os não neutros, como prometer e provar, por exemplo, verificaremos que o papel que desempenham na localização temporal da situação da frase subordinada é diferente6. (20) (21) (22) (23) (24) (25)

#A Ana prometeu que estava na Faculdade. A Ana prometeu que ia estudar mais. *A Ana prometeu que tinha feito os trabalhos de casa. Poirot provou que o mordomo estava na biblioteca. *Poirot provou que o mordomo vai assassinar o patrão. Poirot provou que o mordomo tinha assassinado o patrão.

Nas frases com o verbo prometer verifica-se que este só é compatível com situações na frase subordinada que sejam representadas como ocorrendo num intervalo 6

O sinal ‘*’ associado a frases assinala que não são aceitáveis e o sinal ‘#’ assinala que são aceitáveis mas não têm a leitura relevante.

i. conferências plenárias

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de tempo posterior à situação que ele representa. Por isso, a representação de situações na subordinada como ocorrendo no mesmo intervalo de tempo (cf. (20)) ou num intervalo de tempo anterior (cf. (22)) à situação “a Ana prometer” geram resultados agramaticais. Quanto aos exemplos com o verbo provar, este também determina a localização temporal das situações com as quais se combina, como se pode deduzir pela observação dos exemplos em (23)–(25). O verbo provar potencia uma leitura da situação da frase subordinada preferencialmente localizada num intervalo de tempo anterior ao da situação “Poirot provou” (cf. (25)), podendo eventualmente ter uma leitura de sobreposição como em (23). Os exemplos seguintes mostram que se encontram casos semelhantes a (21) para o verbo prometer e semelhantes a (23) e (25) para o verbo provar. (26) Falando num almoço com elementos da imprensa que lhe perguntaram que questões abordaria o filme, ele apenas prometeu, meio a brincar, que ia “assustar muitos miúdos”. par=ext17505-clt-93b-2 (27) Esta equipa provou que estava à altura par=ext534219-des-98a-1 (28) Um inquérito feito em 1990 provou que a condenação se fizera com base em omissão de provas par=ext90756-soc-94a-3

2.1 mecanismos de ligação temporal das situações Como observámos anteriormente, as completivas selecionadas por verbos relativamente neutros admitem relações de anterioridade, simultaneidade e de posterioridade. No entanto, tais relações podem ser explicitadas por tempos verbais diferentes, o que acarreta implicações na caracterização temporal das situações e, em última instância, representam mecanismos diferentes de ligação temporal. Vejam-se os exemplos seguintes: (29) (30) (31)

a) A Ana disse que a Maria está em casa. b) A Ana disse que a Maria estava em casa. a) A Maria disse que comprou um carro novo. b) A Maria disse que tinha comprado um carro novo. a) A Ana disse que vai/irá à festa. b) A Ana disse que ia/iria à festa.

Em (29), a relação temporal entre as situações representadas pelas frases subordinadas e a situação “A Ana disse” é de simultaneidade (ou de sobreposição), apesar de a situação em (29a) ser descrita no Presente e em (29b) no Imperfeito. Em (30), a situação “comprar um carro novo” estabelece em ambos os casos uma relação de anterioridade com a situação “O Maria disse”, apesar de os tempos gramaticais diferentes, Pretérito Perfeito em (30a) e Pretérito-mais-que-Perfeito em (30b). Quanto a (31), a relação entre as duas situações é de posterioridade, embora os tempos gramaticais sejam uma

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vez mais diferentes, pois em (31a.) é usado o Presente (com leitura de futuro) e o Futuro e em (31b) o Imperfeito com leitura de futuro do passado e o Condicional (com uma leitura temporal). Em todos os exemplos, a situação descrita pela frase matriz recebe a mesma caracterização temporal, ou seja, o PPT é o momento de enunciação e a situação estabelece com ele uma relação de anterioridade. No entanto, a caracterização temporal de cada uma das situações representadas pela oração subordinada apresenta caraterísticas distintas. Assim, Em (29a), a situação “está em casa” tem de selecionar como PPT um intervalo de tempo que inclua não só o momento de enunciação como o intervalo de tempo em que se localiza a situação “a Ana disse”. Se o PPT fosse apenas o momento de enunciação, o estado (estar em casa) iria sobrepor-se somente a esse intervalo de tempo, e não se verificaria no momento de enunciação original, ou seja, no intervalo de tempo em que a Ana proferiu aquele enunciado. Por outro lado, se o estado não se verificasse na altura em que a Ana o comunicou, a frase seria falsa. Deste modo, ao selecionarmos como PPT o momento de enunciação e o intervalo de tempo em que se localiza “a Ana disse”, podemos caracterizar a situação da frase subordinada como sobrepondo-se temporalmente aos dois intervalos de tempos. Dados como os apresentados em (29a), em que uma situação estativa no Presente surge encaixada numa completiva selecionada por um verbo no Pretérito Perfeito, são considerados na literatura como frases de duplo acesso por permitirem exatamente o acesso aos dois momentos de enunciação, o original e o do relato (cf. Oghiara (1996), Abusch (1997), Oliveira (1998) e.o.). No entanto, em (29b) o intervalo de tempo a partir do qual nos posicionamos para interpretar a situação da subordinada é apenas o intervalo de tempo em que se localiza a situação “a Ana disse”. Neste caso, a relação temporal que se estabelece entre o estado “estar em casa” e o seu PPT, isto é, o intervalo de tempo em que ocorre a primeira situação, é de sobreposição. Quanto às frases em (30a), a situação “comprou um carro novo” é perspetivada a partir do momento de enunciação, sendo a relação temporal entre a situação e o respetivo ponto de perspetiva temporal de anterioridade. Note-se que neste caso as duas frases estão no Pretérito Perfeito e têm como PPT o momento da enunciação, colocando-se a questão, que será abordada mais à frente, de como analisar a intuição dos falantes quanto a uma situação ser anterior à outra. Mas em (30b), a situação “tinha comprado um carro novo” tem como PPT o intervalo de tempo em que se localiza a situação “A Maria disse”, e estabelece com ele uma relação de anterioridade. Por fim, em (31a), a situação da subordinada tem como PPT o momento de enunciação e localiza-se depois desse intervalo de tempo. Como a situação “a Ana disse” é anterior ao momento de enunciação, então podemos inferir que a relação temporal entre as duas situações é de posterioridade. Já em (31b), o uso do Imperfeito com leitura de futuro do passado ou do Condicional com uma leitura temporal indica que o PPT é o intervalo de tempo em que se localiza a situação “a Ana disse” e que a relação entre a subordinada e a frase matriz é de posterioridade daquela em relação a esta. A confirmar que é possível encontrar frases com estas relações, vejam-se os seguintes exemplos retirados de um corpus:

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(32) […] o diretor-geral da Função Pública, Higino Cardoso disse que a greve dos perto de 500 trabalhadores municipais é absolutamente legal. par=ext759355-pol-92b-1 (33) No seu caso, disse há pouco que tinha uma relação diferente com a música... par=ext201035-clt-94b-2 (34)  Suwali disse que 22 edifícios e seis veículos ficaram destruídos na cidade de Parepare. par=ext696364-soc-97b-2 (35)  Bob Dole, líder dos republicanos no Senado, disse que não tinha visto suficientes cortes nos gastos […] par=ext893415-pol-93a-2 (36)  Uma fonte consular disse que Lisboa estará representada pelo embaixador António Monteiro […] par=ext161802-pol-93a-1 (37)  […] Carlos Sanchez, ministro do Interior, disse que o programa vai prolongar-se até ao fim do ano, a uma média de 600 há. par=ext615108-soc-95a-1 (38)  O major falou comigo, disse que me ia ajudar, mas depois pediu 100 mil dólares por um jogador de 30 anos par=ext613714-des-94a-2 Partindo da análise das relações temporais que se estabelecem nestas frases, tendo em conta os tempos verbais, podemos observar regularidades que nos permitem distinguir dois mecanismos principais de ligação temporal entre situações: subordinação temporal e criação de um novo domínio temporal (cf. Declerck (1991), Silvano (2002), Silvano (2011)). No primeiro, subordinação temporal, em frases completivas como as analisadas, o PPT da situação da subordinada é sempre o intervalo de tempo em que se localiza a situação da frase matriz, como se pode verificar em (29b), (30b) e (31b). Quando não há subordinação temporal, como se pode verificar nos exemplos (29a), (30a) e (31a), estamos perante a criação de um novo domínio temporal. Nestes exemplos, o PPT ou é o momento de enunciação ou um intervalo de tempo que inclui o momento de enunciação e o intervalo de tempo em que se localiza a situação “a Ana disse”.

2.2 relações temporais em frases com “quando” As frases temporais introduzidas por quando podem adquirir diferentes valores7, mas abordaremos aqui apenas alguns casos em que as relações temporais são evidentes. Estas estruturas diferem, em alguns aspetos, daquelas que observámos nas completivas, pois, de um modo geral, numa sequência do tipo “frase com quando + frase principal”, a frase introduzida por quando estabelece o tempo de localização para a frase principal (cf. (39)), o que acaba por condicionar as possibilidades de ocorrência dos tempos verbais nestas construções. Como foi observado anteriormente, nas completivas em que 7

Não serão abordados casos em que temos frases genéricas como em (i) ou uso de ‘quando’ com valor contrastivo como em (ii): (i) É o sítio onde os pescadores se juntam a conversar, quando chegam do mar. par=ext617581-soc-93b-1 (ii) Mas “há um crescendo anual de produtores: no fim de 1996 eram 250, quando em 1992 eram 100”, diz Ana Soeiro. par=ext1430977-clt-97b-1

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há subordinação temporal é a frase matriz que constitui o PPT da subordinada. Veja-se o seguinte exemplo ilustrativo: (39) Eram exatamente 11h16 TMG quando o diretor de lançamento, Bob Sieck, informou os controladores da decisão par=ext362005-nd-91a-1 Uma das restrições relevantes nas construções com quando em análise é que as duas frases têm de pertencer à mesma Esfera Temporal, tal como o contraste de aceitabilidade pode comprovar nos seguintes exemplos: (40) (41) (42) (43) (44)

Quando o Rui entrou em casa, a Ana acendeu a luz. Quando o Rui entrou em casa, a Ana tinha acendido a luz. Quando concluíres o relatório, vamos ao cinema. *Quando o Rui entrou em casa, a Maria acende a luz. *Quando o Rui entrar em casa, a Maria acendeu a luz.

Os exemplos (40)–(42) são bem formados na medida em que os tempos verbais envolvidos pertencem todos à mesma esfera temporal quer do passado nos dois primeiros casos, quer do futuro no terceiro, embora neste último exemplo, (42), surja o tempo verbal Presente na frase matriz que, no entanto, apresenta uma leitura obrigatória de futuro. Quanto às frases seguintes, (43)–(44), são semanticamente anómalas, pois combinam tempos gramaticais pertencentes a Esferas Temporais distintas: em (43) um tempo da Esfera do Passado combina-se com um tempo da Esfera do Presente e em (44) um tempo da Esfera do Futuro combina-se com um tempo da Esfera do Passado. Uma outra restrição a ter em conta nas temporais introduzidas por quando são as características aspetuais das situações envolvidas, pois condicionam o  tipo de interpretação obtida, tal como se pode ver nos exemplos seguintes: (45) (46) (47) (48)

Quando a avó esteve no hospital, a Ana visitou-a. Quando morou em Praga, a Ana conheceu o Jan. Quando abri a porta de casa, o meu cão ladrou. Quando o meu cão ladrou, abri a porta de casa.

No primeiro par de exemplos, em que quando introduz predicações estativas, a leitura preferencial parece ser a de inclusão do evento da frase matriz no intervalo ocupado pelo referido estado. Mas nos casos em que a temporal introduz eventos, como acontece em (47) e (48), a leitura de sucessividade parece ser preferencial. Por fim, o nosso conhecimento do mundo parece ter alguma influência na forma como processamos a interpretação temporal das frases com quando. Conforme Moens e Steedman (1988) notaram, sequências envolvendo exatamente os mesmos tempos gramaticais podem apresentar leituras temporais distintas, pois podemos ter uma leitura de posterioridade em (49), de sobreposição em (50) e de anterioridade em (51):

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(49) Quando o presidente construiu a biblioteca, convidou a população para a inauguração. (50) Quando o presidente construiu a biblioteca, usou materiais de boa qualidade. (51) Quando o presidente construiu a biblioteca, contratou Siza Vieira. Com efeito, embora a frase introduzida por quando mantenha constante a classe aspetual da predicação (o processo culminado “construir a biblioteca”) e o tempo verbal, cada uma das frases matriz parece ter uma interpretação preferencial diferente quanto à sua localização temporal, como mencionado acima. Isto significa que, embora a frase introduzida por quando tenha um papel fundamental quanto à localização temporal das frases com que se combina, não impõe, por si só, um único tipo de ordenação entre as situações envolvidas (cf. Carecho, 1996, Cunha, 2000, Cunha e Silvano, 2009 e Silvano, 2011, 2012) Por último, vamos ver até que ponto a questão da subordinação temporal é ou não relevante neste tipo de construções. Tal como observámos para as completivas, também nas frases temporais com quando a subordinação temporal é possível, mas não é obrigatória. Assim, em frases como (52) e (53), em que existe subordinação temporal, a frase introduzida por quando fornece o PPT para a frase matriz e as relações temporais são marcadas pelos tempos gramaticais envolvidos: no caso do Imperfeito, obtém-se uma relação de sobreposição enquanto no caso do Mais-que-Perfeito, a relação é de anterioridade. (52) Quando o Rui telefonou, a Ana via um filme na televisão. (53) Quando o Rui telefonou, a Rita tinha terminado o relatório. Nos casos em que não se verifica subordinação temporal, como em (54)–(55), a frase introduzida por quando e a frase matriz partilham o mesmo PPT (no caso, o momento da enunciação), estabelecendo-se entre elas uma relação temporal “por defeito” em que a relação de sucessividade parece ser a privilegiada, em parte devido ao facto de nas duas frases as classes aspetuais serem eventos. (54) Quando o Rui telefonou, a Ana viu um filme na televisão. (55) Quando o Rui telefonou, a Rita terminou o relatório.

2.3 frases com completivas e com temporais com quando As frases que até agora nos ocuparam podem também combinar-se entre si, sendo possível associar completivas com temporais introduzidas por quando. Vejam-se os seguintes exemplos, manipulados a partir de um exemplo de corpus8: 8

O exemplo é o seguinte: e disse que, quando regressou a Lisboa, entregou esse documento e ainda o dinheiro dos títulos vendidos “à secretária Luísa” par=ext960350-des-95b-2

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(56) Ele disse que, quando regressou a Lisboa, esse documento estava em ordem. (57) Ele disse que esse documento estava em ordem quando regressou a Lisboa. No primeiro exemplo, a frase “o documento estava em ordem” tem como PPT o intervalo de tempo representado pela temporal “quando regressou a Lisboa” e sobrepõe-se a ele. Por sua vez, a situação representada por esta frase temporal tem como PPT o momento de enunciação e estabelece com a situação “ele disse” uma relação de anterioridade. No segundo exemplo, apesar da ordem linear diferente, as relações temporais são as mesmas. Neste caso, a situação da frase “o documento estava em ordem” só pode ser interpretada depois de processada a temporal. Em geral, a posição inicial ou final da temporal não altera fundamentalmente as relações temporais, mas quando se trata de uma combinatória de completiva e temporal, podem observar-se algumas diferenças. Com efeito, se o exemplo for como em (58), o PPT da situação “o documento estava em ordem” é o intervalo de tempo representado pela frase “ele disse” e sobrepõe-se a ele, enquanto o PPT desta última frase é o momento da enunciação, havendo uma relação de anterioridade entre o PPT e a situação. Por fim, entre a temporal e “ele disse” há uma relação de anterioridade. Podemos dizer que numa frase como (58), a temporal estabelece o enquadramento em que as outras frases vão ser interpretadas. (58) Quando regressou a Lisboa, ele disse que esse documento estava em ordem. Assim, apesar de as temporais com ‘quando’ marcarem apenas localização temporal, sem atribuírem ordenação das situações e poderem surgir em posição inicial ou final, diferentemente das completivas, apresentam diferenças nas relações entre si, apesar da restrição de ambas as frases deverem pertencer à mesma esfera temporal. Algumas dessas relações podem ser apenas explicadas através de relações retóricas ou discursivas (cf. Asher e Lascarides, 2003, Silvano, 2011, Mann e Thompson, 1988, e.o.). Para ilustrar o que acaba de ser dito, vejam-se as seguintes frases em que os tempos verbais pouco se alteram, mas em que as relações são diferentes: (59) (60) (61) (62) (63) (64)

Quando a Ana se debruçou na janela, apoiou os braços no parapeito. Quando chocou com o poste, a Ana partiu a cabeça. Quando o acidente ocorreu, o condutor ia a falar ao telefone. Quando a Ana foi ao congresso, ouviu algumas comunicações interessantes. Quando começou a chover, a Ana estava no jardim. Quando os miúdos foram para o cinema, os pais foram a jantar com amigos.

De forma a compreender-se um pouco melhor o que está em causa, vejamos brevemente em que consistem algumas Relações Retóricas ou discursivas (Asher e Lascarides 2003) que são relevantes para a interpretação das frases. A relação retórica Narração surge quando os argumentos expressam situações que ocorrem na sequência em que são descritas e apresentam Restrição de tópico da Narra-

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ção: α e β partilham um tópico comum. Para além disso, há uma Consequência espáciotemporal da Narração definida da seguinte forma: onde as coisas estão no espaço e no tempo no fim de eα é onde estão no início de eβ. Esta definição tem como consequência que a subordinada expressa uma situação que ocorre depois da situação da frase matriz. Por seu turno, a relação de Enquadramento mantém-se quando um dos argumentos fornece informação sobre o estado de coisas circundante em que a situação mencionada no outro constituinte ocorre. Consequentemente, a situação da frase matriz fornece informação acerca da situação envolvente em que a situação descrita pela subordinada ocorre. Uma outra relação retórica a ter em conta é a de Continuação, semelhante à de Narração mas sem as consequências espácio-temporais desta. Neste caso a frase matriz continua a desenvolver o tópico iniciado pela subordinada. A relação de Elaboração, por seu turno, mantém-se quando um dos argumentos é uma parte mereológica da situação expressa no primeiro argumento e apresenta como Consequência temporal eβ estar temporalmente incluído em eα. Neste caso a situação da frase matriz desenvolve a situação descrita pela subordinada. Por fim, consideremos a relação Resultado, em que a subordinada descreve a causa e a frase matriz descreve o efeito, e a relação de Explicação em que a frase matriz descreve a causa e a subordinada descreve o efeito. Deste modo, as diferentes ordenações temporais dos exemplos (59)–(64) podem ser explicadas pelas relações retóricas: em (59) temos uma relação de Narração enquanto em (60) a relação é de Resultado. Em (61) temos uma relação de Explicação e em (62) de Elaboração. Finalmente, em (63) a relação é de Enquadramento e em (64) temos uma relação de Continuação. Quanto ao exemplo (58), podemos dizer que estamos perante uma relação em que a temporal estabelece um cenário em que a situação da frase matriz vai ser interpretada, tendo esta relação (frame) sido proposta por Silvano (2011) para relações a nível macroestrutural. Algumas destas relações encontram-se, com frequência diversa, em corpora, como os exemplos que a seguir se apresentam: (65) Posteriormente, quando os alemães assinaram o armistício, passei para a vida civil. par=ext365795-soc-94a-2 (66) O ator norte-americano Harrison Ford ficou ferido nesta quinta-feira quando o pequeno avião que pilotava se despenhou num campo de golfe nos arredores de Los Angeles, nos EUA. http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/harrison-ford-ferido-em-queda -de-avioneta-em-los-angeles-1688240 (67) O objetivo do grupo é obter vantagens de natureza sobretudo fiscal quando coloca o seu património imobiliário num fundo de investimento deste tipo. par=ext532318-eco-91b-1 (68) […] quando voltámos a Lisboa, fomos convidados pela Casa da Imprensa […] a ir tocar ao Pavilhão José Alvalade, onde recebemos uma placa de agradecimento dos jornalistas portugueses. par=ext1526472-clt-95a-2 (69) Fontes oficiais afirmaram que o acidente ocorreu quando se procedia à decantação de amoníaco de um camião para uma cisterna. par=ext306426-nd-92a-1

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(70) […] quando as construtoras sobem, o mercado sobe, quando descem o mercado acompanha. par=ext294119-eco-92b-1

3. considerações finais Neste trabalho abordaram-se alguns aspetos da semântica dos tempos com particular incidência nas relações temporais que se podem estabelecer em algumas frases complexas, como alguns tipos de completivas e temporais com quando. Tendo em conta a análise feita, podemos chegar às seguintes conclusões. Em primeiro lugar, é de salientar que as frases complexas com completivas e as temporais com quando permitem, em geral, relações temporais de anterioridade, sobreposição e posterioridade. Para além disso, as duas construções admitem presença ou ausência de subordinação temporal, criando neste último caso, um novo domínio temporal. Mas estas construções também divergem entre si. Nas completivas, a natureza lexical do verbo introdutor parece desempenhar um papel muito relevante em termos das relações temporais que se estabelecem nestas estruturas, na medida em que parecem ser elas que, em última análise, condicionam as possibilidades de localização das orações subordinadas. Com efeito, verbos como dizer e afirmar admitem a localização da subordinada em qualquer intervalo de tempo, mas verbos como prometer impõem uma leitura de posterioridade e verbos como provar determinam preferencialmente a localização temporal da situação encaixada num intervalo de tempo anterior. Quanto às temporais, são de salientar alguns aspetos tais como as características aspetuais das situações envolvidas determinarem relações temporais diferentes e as situações terem de pertencer à mesma esfera temporal, contrariamente ao que acontece com as completivas. No que diz respeito ao estabelecimento de relações temporais e às possibilidades combinatórias de tempos verbais, as restrições parecem ser mais evidentes, devido, muito provavelmente, à função localizadora desempenhada por este tipo de construções.

bibliografia Abusch, Dorit. Sequence of Tense and Temporal De Re. Linguistics and Philosophy 20, 1997, No. 1, 1–50. Carecho, Judite. Sobre a semântica das construções com quando. Dissertação de mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1996. Cunha, Luís Filipe. Valores temporais das orações com quando. Cadernos de Linguística. N.o 8, Centro de Linguística da Universidade do Porto, 2000. Cunha, Luís Filipe – Silvano, Purificação. Algumas evidências em favor da existência de temporalidade no infinitivo simples. Textos Selecionados do XXIII Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, 2008, 179–192.

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Cunha, Luís Filipe e Silvano, Purificação. O papel das restrições aspectuais nas relações retóricas: o caso das frases complexas com quando. Textos Selecionados do XXIV Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística. Lisboa: Associação Portuguesa de Linguística, 2009, 239–250. Declerck, Rennat. Tense in English: Its Structure and Use in Discourse. London – New York: Routledge, 1991. Kamp, Hans – Reyle, Uwe. From Discourse to Logic. Introduction to Model – theoretic Semantics of Natural Language, Formal Logic and Discourse Representation Theory. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1993. Mann, William C. – Sandra A. Thompson. Rhetorical Structure Theory: A Theory of Text Organization. Text 8, 1988, 243–281. Moens, Marc – Marc Steedman. Temporal Ontology and Temporal Reference. Computational Linguistics 14, No. 2, 1988, 15–28. Ogihara, Toshiyuki. Tense, Attitudes and Scope. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1996. Oliveira, Fátima. Tempo e Aspeto. In: Mateus, Maria Helena et al. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 5.ª edição, revista e aumentada, cap. 6, 2003, 127–178. Oliveira, Fátima. O Imperfeito e o Tempo dos Indivíduos. In: Da Língua e do Discurso. Oliveira, Fátima – Duarte, Isabel Margarida (eds.). Porto: Campo das Letras, col. Campo da Linguística, 2004, 505–528. Oliveira, Fátima. Tempo Verbal. In: Raposo, E. P. – Nascimento, M. F. B. – Mota, M. A. – Segura, L. – Mendes, A. (eds.). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, vol. I. 2013, 509–556. Oliveira, Fátima – Cunha, Luís Filipe – Silvano, Purificação. Relações retóricas em textos: a contribuição do Aspeto. Linguistic Studies No. 5, 2010, 277–292. Reinchenbach, Hans. Elements of Symbolic Logic. London: Macmillan, 1947. Silvano, Purificação. Sobre a semântica da sequência de tempos em Português Europeu. Análise das relações temporais em frases complexas com completivas. Tese de Mestrado, Braga: Universidade do Minho, 2002. Silvano, Purificação. Temporal and Rhetorical Relations: the Semantics of Sentences with Adverbial Subordination in European Portuguese. Dissertação de Doutoramento. Universidade do Porto, 2011. Silvano, Purificação. The Rhetorical Relations in Complex Sentences with Quando (‘When’) in European Portuguese. In: Defrancq, B. – Rawoens, G. – Tobback, E. (eds.). Information Structure, Discourse Structure and Grammatical Structure, Belgian Journal of Linguistics No. 26, 2012. Corpus CETEMPúblico 1.7 anotado 2.0. Disponível em: http://www.linguateca.pt.

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uma possível topografia da narrativa brasileira contemporânea (a problematização da violência, o questionamento da identidade e a hibridação da escrita) Alva Martínez Teixeiro Universidade de Lisboa Portugal

Resumo: Esta comunicação pretende analisar três novas orientações da narrativa brasileira atual. Assim, em primeiro lugar, tem por objetivo refletir sobre a instigante visão ficcional da violência presente na sociedade do Brasil contemporâneo. Em segundo lugar, este breve trabalho visa examinar criticamente o interessante fenómeno da problematização literária dos processos identitários derivados da imigração. Por último, procura apresentar um breve quadro sobre uma nova literatura reflexiva e caraterizada pela hibridação da escrita. Palavras-chave: narrativa; brasileira; contemporânea Alone together. (Sherry Turkle) Je ne veux penser que de façon non générique, non générale. (Pascal Quignard)

Hoje, uma das perceções convencionais a respeito da literatura é, como sabemos, a do império de uma nova desordem ou crise literária, dominada por um funesto hiperindividualismo e uma não menos sinistra atomização das consciências. Perante esta lúgubre interpretação da pós-modernidade, condenada a  ser lida à luz uniformizadora do crepúsculo – pensemos, neste sentido, que o pós-modernismo é uma etiqueta que, frequentemente, não quer dizer nada –, pretendemos, na medida das nossas possibilidades, clarificar a situação e a condição da referida, de maneira paradoxal, singular/plural literatura brasileira, através do contraste de três tendên-

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cias ficcionais especialmente exemplares a respeito das possíveis e relevantes direções contemporâneas das letras verde-amarelas. É assim que, partindo de “exercícios de admiração”, à Cioran, de maneira propositada gostaríamos de desenhar algumas abcissas e ordenadas da geografia literária que nos ocupa, cartografando-a, com coordenadas subjetivas que também podem (e devem) ser entendidas como um conjunto de exempla, de dicas de leitura honestas e pessoais. Com este propósito, pretendemos enfatizar um ponto central de grande parte da lógica cultural e literária brasileira dos nossos dias. Enquanto a maioria da arte valoriza apenas o indivíduo que se afasta da sociedade, o sujeito livre, o ceticismo ou, mesmo, o niilismo mais radical, a Literatura Brasileira acrescenta um elemento suplementar: o questionamento da coletividade. E é provavelmente isto que torna menos “problemático” o corpus artístico do Brasil presente, pois apesar daquilo que tinha sido afirmado pela vanguarda, a sociedade brasileira pode reconhecer-se ainda em grande parte da arte que gera. Em segundo lugar, procuraremos sublinhar uma das marcas mais interessantes da arte do nosso tempo: a legitimação total dos revolucionários da cultura moderna, de Joyce a Stravinski, e salientar a função particular que no Brasil apresenta este culto da transgressão. Particular porque, como sabemos, a História da Literatura Brasileira é uma história dominada por uma certa “tradição da antitradição”, isto é, presidida por autores criadores de grandes escritas – e não de grandes escolas – e isto faz com que a ficção brasileira mais recente possa ser entendida, de certo modo, como continuidade dessa heterodoxia e não como rutura radical. Pensemos, por exemplo, na França. Em 1996 morria André Breton, o último chefe da última brigada literária francesa, e, apesar da decadência prévia do Surrealismo no país, esta morte significou que esta prestigiosa escola tinha fechado as suas portas. Pensemos agora no Brasil, na morte, por exemplo, de Jorge Amado, escritor insigne – líder mesmo – da literatura do Nordeste com obras como Cacau (1933) ou Suor (1934), mas autor ainda mais conceituado e consagrado graças a ficções como Capitães da areia (1937) ou Gabriela, cravo e canela (1958), obras revolucionárias, mas agora não apenas em termos políticos. A escola do neorrealismo brasileiro fechou as suas portas tempo atrás, mas a lição do equilíbrio entre denúncia, realismo e “carnalidade” na construção das personagens continua vigente. Enfim, partindo desse modelo de renovação das fronteiras do realismo, vamos tratar, em primeiro lugar, de um outro realismo que transborda os limites de escola, o “brutalismo”, um dos últimos movimentos rotulados no Brasil, mas que nunca correspondeu verdadeiramente a uma tendência estruturada, senão a um rótulo de circunstância que permite, hoje também no estrangeiro, dar visibilidade a uma literatura contemporânea por vezes vítima dos próprios estereótipos nacionais. Assim, em primeiro lugar, pretendemos realizar uma radiografia de uma das realidades mais candentes da vida literária brasileira: a diversificação e heterogeneidade do frondoso espaço da violência que se propõe, literariamente e com diferente sucesso, como uma leitura ontológica da angústia nacional.

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Neste âmbito do violento, as diversas tendências escriturais que hoje se sobrepõem não podem ser reduzidas ao peso de uma tradição, mas sim a uma certa genealogia a  partir da qual começaremos o  nosso percurso. Se todos os autores que cultivam esta vertente ficcional proporcionaram à literatura brasileira “una modernità aggressiva e antiretorica”, como afirmara a professora Luciana Stegagno Picchio (Stegagno Picchio, 1997: 598), tal facto se deve ao sucesso de uma nova matriz literária, criada por Rubem Fonseca na década de 1960, quando se destacou como profeta brasileiro da literatura do caos, adaptando uma definição utilizada para James Ellroy, graças à criação desse “brutalismo”, de base experimentalista e hiper-realista. O autor mineiro soube fixar com extrema originalidade, nas suas crónicas urbanas, os diversos terrores sociais do Rio. Nas diversas narrativas de Rubem Fonseca, como O cobrador (1979), A grande arte (1983) ou Bufo & Spallanzani (1986), ele movimenta, com técnica cinematográfica, investigadores, policiais, escritores, representantes de uma burguesia depravada e uma outra série de personagens complementares, construindo um enorme e terrível fresco do Rio de Janeiro atual, da “cidade miseravilhosa” de que falava Jean Canesi, que continua a manter com soberba o seu boato de luxo sobre um fundo de miséria (Canesi, 1990: 19). A partir deste molde matricial, nos últimos anos, tem surgido uma das mais significativas declinações que, entre as suas propriedades distintivas, apresenta um espaço que é a antítese da cidade costumbrista do romance burguês. Trata-se, com frequência, de urbes distópicas que excedem ainda os mais perturbadores desencontros literários do ser humano com o mundo moderno, como, entre outras, as memoráveis errâncias urbanas da escrita beckettiana ou as estampas da cidade infernal presentes em Le città invisibili de Italo Calvino, pois agora o mundo descentrado é identificado, de modo imediato, ao real. Sem qualquer filtro onírico ou de estranhamento, esse orbe distorcido, resultado da miséria e do subdesenvolvimento, é associado a certos fenómenos urbanos. A produção ficcional de autores tardo-realistas, favelados em origem, como Paulo Lins ou Ferréz, que tornam em matéria romanesca a sua experiência de exclusão radical neste espaço, exprime mais do que uma perspetiva pessimista sobre a realidade. Como já acontecia na escrita fonsequiana, nestas obras, a crueldade é também uma experiência icónica, pois com as flagelações, mutilações e outros episódios sádicos é subministrada uma leitura ontológica a partir do trauma moral coletivo. Esta escrita integra entre seus temas o novo espaço resultante do capitalismo altamente desenvolvido: a favela, que condensa uma implacável e terrível dialética entre riqueza e pobreza. Nela, curiosamente, a miséria – material e moral – revela-se um poderoso motor económico, como demonstra a expressiva estilística da representação destas ficções através de mecanismos como a invasão do território burguês – materializada em roubos, assaltos e sequestros – e a fuga – debandada depois de um crime, fugida da polícia ou de algum bandido rival –, entendidos como as modalidades possíveis de relacionamento espacial e social, e como expressão da agilidade narrativa que carateriza a nova perceção da urbe.

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À perspetiva adotada pelos narradores sobre a cidade, parece subjazer a revolta contra uma realidade semelhante à simbolizada por Alberto Pimenta a partir de uma “cena do lixo”, que lhe permitira comprovar que as cidades utópicas e os imaginários urbanos, de modo geral, são minuciosamente concebidos até ao último pormenor de funcionamento, “inclusive o desaparecimento do lixo” (Pimenta, 1989: 404). O microcosmos da favela tem agora interesse como reivindicação distópica desse valor excedente. Este olhar permite uma mais profunda problematização das relações entre capitalismo, progresso e subdesenvolvimento, pois a favela é encarada como vítima exemplar de uma sociedade dramaticamente distanciada da moralidade e, ao mesmo tempo, como uma mutação radical da sociedade, que aproveitou a amoralidade do capitalismo como álibi e exemplo num distorcido culto ao dinheiro. Este novo textualizar da cidade cria um modo abissal de ver a urbe, em que o espetáculo consumível e grotesco dos pobres, matando-se entre si, é rearticulado para provocar um questionamento moral. Trata-se de um miserabilismo que procura traumatismos para denunciar traumatismos, servindo-se de uma perturbadora obscenidade social que contesta o nosso olhar estandardizado pelos estereótipos. Para muitos dos protagonistas destes novos discursos ficcionais, em vez da condenação radical ou do reino prometido, isto é, o acesso rápido ao capitalismo presente em favelas como Cidade de Deus, os autores escolhem frequentemente o final aberto, o castigo ao purgatório da favela e o precipício insondável no qual esta se situa, e ao qual se abandona a humanidade depois de a possibilidade de redenção ter deixado de existir, só ficando a contingência e a necessidade, isto é, o nada. Nelas, a pobreza já não é simples paisagem, e a favela está problematizada como mapa intersticial de histórias e identidades: Essas obras distanciam-nos dos espaços de alto risco e da persistente incerteza criada pelos niilismos contemporâneos, mas deixam manifesto algo mais do que uma perspectiva pessimista e purgativa sobre a realidade, pois aproximam uma nova visão artística do sofrimento e da miséria através da aguda sensibilidade para o terror e o espanto (Martínez Teixeiro, 2013b: 62).

Aquele vazio e essa sensibilidade podem ser a chave interpretativa desses retratos da trágica violência no Brasil contemporâneo. E podem ser chave privilegiada por serem muito mais poderosas do que qualquer radiografia mimética, já que, perante o vazio, podemos acompanhar o retórico questionamento do filósofo Emil Cioran, quando se questionava se um vazio que outorga a plenitude, neste caso um entendimento abissal, não contém mais realidade do que possui toda a história no seu conjunto (Cioran, 1981: 162). Compreendemos, então, a forte oposição ao elitista ambiente urbano através da concentração na imagem da favela, favela que constitui uma realidade tão forte “que le mot brésilien est passé dans le vocabulaire international” (Montenegro, 1990: 41) como um dos elementos míticos da urbe brasileira atual. No entanto, provavelmente pelo facto de que a sociedade pode reconhecer-se na arte que gera – ao contrário de outros pós-modernismos e com a conseguinte ampliação

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potencial do público –, este brutalismo está a ser progressivamente banalizado. E isto porque algumas obras hoje defrontam o público com uma certa “favelofilia” maniqueísta ou patética, como acontece no romance Capão pecado (2001) de Ferréz, best-seller no Brasil, ou com o excesso, cada vez mais presente, não apenas na literatura, mas principalmente nos discursos audiovisuais. De facto, este fenómeno fora já adiantado e ironizado por Chico Buarque na novela Estorvo (1991), constituída como uma grande metáfora desse Brasil atual, tantas vezes distorcido e espectacularizado: [...] de manhã cedo convocou sete auxiliares para a incursão numa favela [...]. Inspeccionou o interior do barraco, apreendendo alguma quantidade de tóxico e um arsenal: granadas de mão, metralhadoras com carregadores, pistolas, escopetas, fuzis de uso exclusivo das forças armadas. As armas e as drogas foram exibidas pelo delegado em entrevista colectiva no distrito de que é titular, provocando azia no delegado adjunto, mais antigo na carreira e de carapinha grisalha, que abomina as luzes dos cinegrafistas e o rabo-de-cavalo do seu superior (Buarque, 1992: 123).

Perante esta decadência parcial, a obra do próprio Fonseca ou de autores mais ou menos novel no sombrio espaço da violência, como Luiz Alfredo Garcia-Roza, Álvaro Cardoso Gomes ou Tony Bellotto, representam uma das alternativas possíveis a essa forma mais precária do realismo, que consiste numa sofisticação do discurso, atingida através de uma interpretação elítica – mas nunca eclítica – do tema da angústia do tempo presente. Para tanto, estes autores gestaram uma particular “tropicalização” do género “negro” e policial, partindo de uma escolha muito significativa: o privilégio de um dos ambientes propícios para uma trama policial, oposto ao espaço favelado e que se corresponde melhor a um modo de vida baseado na segurança, como é o do ambiente burguês carioca ou paulistano. O mecanismo narrativo básico será o da invasão de que antes falávamos e que nestes romances provocará o desenho de um outro espaço simbólico: trata-se do mapa ficcionalizado do medo, um espaço urbano sem configuração geográfica, mas de grande presença metafórica – pensemos, para citar apenas alguns exemplos, no isolamento simbolizado pelos carros, as grades dos prédios ou as alturas dos penthouses, lentes dos medos destes burgueses, mas que também constituem “la toile de fond expressioniste de la mauvaise conscience de la Zona Sul” (Canesi, 1990: 27). Este novo mapa enquadra um lugar de liberdade condicionada por ser para a burguesia um potencial lugar de encontro físico e ontológico com o Outro, pois nesse cenário social das pessoas “respeitáveis”, os dominadores são intimidados ou agredidos. No entanto, a vocação perturbadora das narrativas implicará modificações a respeito do esquematismo da “ameaça ao capital”. E isto porque, em paralelo a esta ameaça, assistimos à crítica da variante local do hiperindividualismo pós-moderno, em que, a “normalidade social” pode ocultar o caráter predatório de muitos políticos e homens de negócios ou, pelo menos, a imagem do poderoso inoculando nos desfavorecidos com os seus abusos e ostentação, o desejo doentio daquilo que lhes falta. Neste sentido, as obras destes autores servem-se dos condicionantes genéricos do policial – como acontecia no âmbito italiano nos romances de Leonardo Sciacia e na

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sua crítica da máfia – como instrumento de crítica a um poder anárquico, como o poder arbitrário das forças da ordem no Brasil – não é por acaso que muitos dos protagonistas são detetives privados, mais fiáveis do que o estereotipado tira corrupto –, a terrível influência e prestígio dos bandidos na favela ou a não menos implacável autoridade de certos membros da classe alta. Retomando a ideia do abismo, esta conceção fica, então, reduzida a um certo niilismo ético revelador do vazio social. Não se trata de um niilismo estrito nem filosófico, senão próprio da realidade ficcionalmente adaptada, em que o habitante da urbe brasileira dos nossos dias, no final, é sempre condenado à violência, tanto pela circunstância social, quanto pelas exigências do género. É assim que, em dilatados parâmetros “negros”, centrando-se também nos “marginais”, a impactante escrita de Ana Paula Maia atrai e repele porque, afinal, com o feliz precedente da mais policial e dostoievskiana visão polifónica do extraordinário romance social A guerra dos bastardos (2007), leva os (proto)agonistas homens-besta – isto é, alguns dos “muitos brutos para admirarmos” –, que sustêm a sua ficção, a um espantoso paroxismo amoral, em especial no romance Carvão animal (2011) que encerra a sua crua trilogia da “Saga dos brutos”. De facto, como dissera recentemente a crítica e professora Leila Lehnen no “Ilustríssima” da Folha de São Paulo (2014), os textos de Ana Paula Maia “lidam com o lado escuro da globalização, os efeitos do neoliberalismo por exemplo”. Estes admiráveis exercícios ficcionais veiculam, assim, uma outra atitude escritural: o desejo de entender que aqui muda também a conceção da realidade e de um mal entendido realismo. Esta rearticulação da realidade e do realismo permeia outra das metamorfoses mais significativas da ficção brasileira. Trata-se de uma literatura derivada, de modo indireto, da emigração para o Brasil, pois hoje, alguns dos seus descendentes se devotam a uma sugestiva recriação ficcional da identidade partindo do princípio da miscigenação. Cada um desenha, à sua maneira, as linhas de uma narração diversa – por heterogénea, complexa e exuberante – da dos países de origem e também de outras linhas de força dominantes nas letras brasileiras, despertando o interesse não apenas no Brasil, senão também nas comunidades e culturas dos seus ancestrais. Assim, para referir apenas alguns exemplos concretos de que falaremos, o romance de Michel Laub, Diário da queda (2011), encontra-se, na sua tradução para alemão, à venda na exígua seleção de livros da loja do Museu do Judaísmo de Berlim, o romance O enigma de Qaf será em breve traduzido para árabe e publicado no Egipto e Milton Hatoum lembrava numa entrevista a respeito do seu romance Relato de um certo Oriente (1989), que a maior satisfação que essa obra lhe proporcionou foi a alegria do seu pai ao ler um artigo num jornal de Beirute, em que se mencionava a obra, afirmando que o filho de um emigrante que morava no Brasil retornava ao Líbano através de um livro (Scramin, 2000: 1). Este interesse deve-se à visão que oferecem do património cultural, diferente – sublinhada, por exemplo no título de Hatoum e no seu relato de um certo Oriente –, mas, por distante e amalgamada, também rica e problemática. Visões que, reescrevendo um

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paradoxalmente próprio e alheio Oriente e tratando da umana cosa bocacciana, “en diferentes proporciones, contribuyen a salvar los espejismos de las distancias culturales y ayudan a construir un no menos paradójico espacio literario singular plural” (Martínez Teixeiro, 2013a: 89). Entre estes escritores, destacam-se inicialmente Raduan Nassar e o seu romance Lavoura arcaica (1975) que, face às obras memorialistas que, ao modo de Dostoievski se servem de lembranças como pontos de luz na escuridão, representou uma mutação excecional na sensibilidade literária. Romance, aliás, que constitui para nós um dos mais representativos exemplos da relação entre a retórica e a literatura do panorama literário brasileiro contemporâneo numa valiosíssima re-descoberta adaptadora da tradição da preceptiva clássica, posta, agora, ao serviço da necessidade de espelhar com maior exactidão a autêntica realidade, não só formada por coisas e acções exteriores (Martínez Teixeiro, 2006: 107).

Em Lavoura arcaica o peso da herança libanesa é depurado graças a uma terrível lucidez em relação à condição humana e a uma linguagem poética e colérica que transporta um tom de tragédia bíblica, misturado com evocações islâmicas, ao espaço de uma opressiva fazenda familiar do interior de São Paulo. A sua conceção da existência como falta e dor, mas também como vivência de uma problemática identidade coletiva – neste caso de natureza puritana –, será reconduzida por Milton Hatoum em romances como Relato de um certo Oriente ou Dois irmãos (2000). Os três romances entrecruzam nas suas páginas diversas morais e religiões em convívio, falam de resignação e respeito, mas fervilham de personagens revoltados. Enquanto todo o Ocidente fala do arrependimento, estes romancistas – sobretudo, Nassar – propõem uma revelação perturbadora: a destruição final dessa ilusão materializada na decadência de famílias que confiam irracionalmente num perdão impossível e encenada, principalmente, através de André, protagonista de Lavoura arcaica, filho incestuoso que representa a inversão fatal da parábola do filho pródigo, com a sua clarividente insistência na revolta. Assim, as obras destes autores representam uma nova literatura que, por anelo de permanência, renuncia ao inovador, sem abdicar por isso de certo experimentalismo e de uma notável audácia narrativa. São ficções que atualizam os grandes temas literários, como os da tradição bíblica, corânica e oriental, para questionar as ficções identitárias mantidas, por vezes agonizantemente, por emigrantes que pretendem cadaverizar no Brasil os souvenirs de um passado mais ou menos condenado ao esquecimento e/ou à miscigenação. De qualquer modo, se não deixamos de maravilhar-nos, por exemplo, com a austeridade da cor oriental de Lavoura arcaica, o réservoir de arabidade oferecido em O enigma de Qaf (2005) é igualmente inovador a respeito de certos topoi clássicos. O motor ficcional deste romance de Alberto Mussa, neto de emigrantes libaneses e palestinos, é idêntico, em vários sentidos, ao de Lavoura arcaica, Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, mas o resultado é radicalmente diferente. A coincidência fundamental reside no facto de o narrador ser também descendente de emigrantes árabes,

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por sua vez descendentes dos beduínos, e, portanto, responsável por perpetuar as lembranças familiares na América. No entanto, neste caso, o protagonista não é um falido filho pródigo, senão um arabista, alter ego literário do próprio Mussa, tradutor no Brasil de dez dos poemas suspensos, escritos pelos antigos beduínos. O erudito devotará as páginas da obra que está a escrever a realizar uma reabilitação inesperada e mítica do passado beduíno, por esta improvável ligação com a emigração árabe, através da tradução e reconstrução em prosa de um poema, um suposto texto perdido de entre os poemas suspensos – denominados desta forma porque mereceram ser pendurados na Pedra Negra da Meca –, considerado pelos especialistas “a maior das falsificações académicas forjadas nas letras semíticas” (Mussa, 2006: 11). Assim, segundo a ordem mítica que rege a narração, fala-se-nos das peripécias do povo e dos poetas beduínos, sempre com uma forte aparência de veracidade, capaz de provocar a suspensão das certezas da visão ocidental, em favor da condição pioneira atribuída à literatura e ao pensamento pré-islâmico. A título de exemplo, podemos citar a observação introduzida pelo narrador, numa nota de rodapé, a respeito do poeta Imru al-Qays, cujo espírito “recebeu e guiou o profeta Mujammad em sua visita aos círculos do Inferno” (ibidem, 21), porque nela nos esclarece: “Já se disse que o plagiário florentino Dante Alighieri estudou profundamente a escatologia muçulmana antes de escrever a Comédia, e que deu a Imru al-Qays o nome latino de Virgílio” (ibidem, 21). Como pode ver-se, este transbordar da memória poética beduína, inscrita através do fantástico na cultura universal, é impulsionada por uma memória inspirada por um cruzamento entre a imaginação de Borges e das Mil e uma noites. E no entanto, a par deste radical distanciamento do visceral filtro da memória, presente no romance de Mussa, o questionamento da identidade através do “intimismo” perturbador de Nassar e Hatoum será rearticulado noutros romances contemporâneos. Autores como Tatiana Salem Levy e Michel Laub, partindo da memória coletiva, mas principalmente da pessoal, demonstram novamente que os clivages nacionais, religiosos ou identitários são notáveis na conformação de cada indivíduo. Revelando uma fé pós-moderna na incerteza, Levy e Laub avançam na negação de qualquer pretensão absurda de olhar para as verdades gastas de um imaginário coletivo através de uma certa escrita do eu, entendida não como memória essencialista ou linear, senão como um género em plena mutação, em que a autobiografia analítica deixa espaço à construção de uma personagem. Não se trata apenas do quem sou eu, mas do que há no eu de matéria romanesca. No Diário da queda de Laub e, especialmente, em A chave da casa (2007), de Salem Levy, as pistas da narração do eu devem muito ao pretenso “Madame Bovary, c’est moi” flaubertiano. Em Diário da queda, Laub recupera as perturbadoras possibilidades ficcionais do grande tema da culpa a partir novamente do mito da Queda, mais uma vez encarnado, não por acaso, num adolescente – pensemos no protagonista de Lavoura arcaica ou nalgumas das personagens de Hatoum, situadas também nesse período fundador da vida – que, como descendente de uma dessas sagas de emigrantes – neste caso, judia e proveniente do Leste da Europa e, item mais, sobrevivente de Auschwitz – confronta pela primeira vez o mundo exterior e, ao descobrir as suas tentações, cai nelas.

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Assim, o protagonista, é um filho pródigo da abastada burguesia judia brasileira, mas um filho pródigo distante de qualquer triunfalismo, perturbado, que, com o passar do tempo, decide dissecar uma falta passada, aparentemente banal, mas fatal para uma trágica visão do mundo que se baseia na premissa de que é necessário sobreviver para testemunhar o sofrimento do seu povo. Este filho pródigo é criado no torpor materialista de uma burguesia ansiosa por paliar as misérias e horrores passados. E, consequentemente, nessa dialética entre memória e progresso, entre identidade e assimiliação, o protagonista acaba por descuidar o seu tácito compromisso a respeito da História. Assim, todo o romance se articula à volta da traição desse dever de memória de que falava Vladimir Jankélévitch na obra L’Imprescriptible, da necessidade de evocar o aniquilamento e a suspensão da História e cuidar constantemente por aquilo que recomeçou a partir desse fim. E isto porque, na história da família, o descuido do protagonista evoca um convite a um terrível paralelismo. Trata-se de uma queda profundamente simbólica, cujo motor é a queda real de um dos alunos não judeus do exclusivo liceu em que estudava: um menino pobre e diferente, excluído entre os excluídos, maltratado diariamente até ao dia em que é lançado no ar pelos colegas/torturadores – incluído o protagonista – para depois deixá-lo cair. Desta perspetiva, poderíamos considerar que Michel Laub concebe agora um verdadeiro filho pródigo, outro, que, já adulto e com um medido equilíbrio de sóbrio senso trágico, lucidez e ironia, consagra os seus pensamentos e dúvidas à culpa e à reflexão sobre a maldade individual e coletiva, entrecruzada com a terrível memória familiar. Mas nem tudo é mau. A par desta terrível leitura da “assimilação”, a ficção contemporânea brasileira transborda as grandes vicissitudes da História também de modos menos problemáticos. Neste sentido e para citar apenas um exemplo, Tatiana Salem Levy, autora de origem turca e judia, organizou, juntamente com a também escritora Adriana Armony, a obra Primos – História da herança árabe e judaica (2010), que reúne vinte contos sobre a identidade de autores brasileiros de origem árabe e hebreia, ultrapassando os abismos histórico-políticos que separam árabes e judeus, nas terras de um Oriente Próximo “reescrito” por alguns destes autores, como Salim Miguel, Moacyr Scliar, Alberto Mussa, Fabrício Carpinejar, Cíntia Moscovich ou Julián Fuks. Enfim, retornando ao âmbito puramente ficcional, o romance de Levy A chave de casa também se cobre de interesse para as questões de que estamos a tratar, pois a sua narradora apresenta, como acontecia nas obras de Hatoum, os objetos e souvenirs do passado transportados para terras brasileiras como via de preservação e de questionamento de uma identidade precária. Alguns dos personagens adolescentes do Relato de um certo Oriente e Dois irmãos, na sua tarefa de reconstruir os cacos do passado familiar, interessam-se pelos objetos dos pais, procuram profanar os seus segredos e transformar em imagens uma massa efervescente de nostalgias e faltas antigas. Através de objetos-símbolo, como um relógio antigo, reconstroem certas partes escuras da história familiar e, neste mesmo sentido, em A chave da casa, receber a da casa do avô em Esmirna torna-se um desafio para a protagonista, porque, como afirma: “me parecia lógico que se refizesse, no sentido inverso, o trajeto dos meus antepassados, ficaria livre para encontrar o meu” (Levy, 2007: 30).

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Trata-se, portanto, de uma narração de filiação diversa, onde a autobiografia ficcional narra a vida de um dos descendentes, como acontecia na narração de Laub, deslocando a anterioridade face à interioridade. Trata-se agora da necessidade de encontrar-se, de encontrar o caminho da identidade entre a experiência imediata, isto é, a brasilidade, e uma identidade de segunda mão, a turca. À vista disso, o turning point deste romance reside numa escrita onde a protagonista, e não a família, é o elemento central. Através de uma escrita do eu mais íntima, impudica e, também, mais imoderadamente dramática, Levy articula o seu romance à volta do grande tema literário da viagem. Com curiosidade e, principalmente, com estranhamento, a narradora introduz o deslocamento geográfico e mental que experimenta na sua jornada pela Turquia. E isto porque a viagem, neste romance, é entendida como aquilo que transfigura o nosso estar no mundo, pois, afinal, contra as convenções romanescas mais padronizadas, essa jornada conduz a protagonista, essencialmente, ao sentimento de alteridade, à sensação, como ela própria afirma, de ser uma espécie de turista. Em síntese, estas obras são exemplo de como, contra a morte teorizada do autor, um conjunto significativo de ficções optam pela projeção do eu do mesmo na obra, como acontece também frequentemente na última das tendências de que pretendo falar aqui. Trata-se do cross genre que, apesar da sua recente classificação como género, não é um tipo de escrita desconhecido nas letras brasileiras, habituadas ao interartístico e ao convívio de vários discursos no percurso dos seus criadores. Desta perspetiva, a novidade reside, realmente, no culto ao estranhamento e na maior sobreposição discursiva de que esta diversiforme escrita se serve. Contra o existencialismo Blade Runner, se me permitem a expressão, de grande parte da literatura mais comercial, escritores como Juliano Garcia Pessanha, Nuno Ramos ou Laura Erber edificam as suas narrativas sobre uma leitura da pós-modernidade mais essencial e, também, diga-se de passagem, menos profético-apocalítica. Apesar disto, estes livros não deixam de ser algo já vagamente conhecido noutras obras – de que, muito provavelmente, esquecemos autor e assunto – e, paradoxalmente, não deixam de ser também algo que só poderiam ter escrito os seus autores. Autores como Pessanha ou Ramos edificam textos seus, pessoais e particulares, textos que problematizam axiomas como os de Montaigne ou Simone de Beauvoir, que afirmavam que é falando do mais singular que se conquista o mais geral. E isto porque a partir da “arte de pensar contra”, olhando-se a um próprio como a um outro, estes autores revelam, em maior ou menor medida, modos desafiadores e, mesmo, extremos de dissecar a condição humana. A lição mais radical deste novo modo de olhar o mundo encontramo-la na trilogia de Juliano Garcia Pessanha, formada pelas obras Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do sempre (2000) e Certeza do agora (2002). Nelas deparamos com um estilo ensaístico absolutamente livre, caraterizado pelo entrecruzamento genérico de exercícios reflexivos, relatos ou poemas, e, presidindo a isto tudo, uma espécie de autobiografia abissal, sempre a beirar as fronteiras do filosófico através de uma perturbadora clarividência, que faz com que às vezes o eu presente nas obras pareça uma das criaturas extraordinárias de Clarice Lispector.

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Trata-se de um sujeito que perante a ameaça de uma consciência excessiva, praticou na infância um ritual quase clariceano, através de cujas regras procurava, como as personagens da autora de Perto do coração selvagem, um sentimento de “normalidade” aliado à repressão do desassossego individual: Atravessei o colégio decorando tudo, copiando absolutamente tudo. Me enrijeci militarmente e entronizei a ordem totalitária do real e todos os seus procedimentos. Arrumava minhas roupas geometricamente sobre uma mesa de bilhar, dispunha as bolas simetricamente em todas as caçapas e rezava para algum deus a fim de que os procedimentos que eu colocara dentro da minha cabeça não desaparecessem durante o sono. Sempre acordei alguns segundos antes do relógio despertar (às 6: 40), sempre fiz o meu Toddy no eterno da solidão e sempre pus a mão na maçaneta no instante exato em que aquele ônibus escolar mugia sua voz medonha. Dentro do ônibus eu recapitulava meu arsenal de sobrevivência em sabatina (Pessanha, 2007: 42–43).

Para este narrador, tão distante dos memorialistas que revisitam os anos de formação ao abrigo das certezas retrospetivas, a questão da essência e da aparência, como em Clarice e, em modo diverso, também em toda a literatura existencialista, será a chave do pensamento. No entanto, Garcia Pessanha cultiva uma escrita que não se pretende projeção direta de nenhuma noção filosófica ou literária, pois os contornos da sua obra configuram um modo próprio do desconcerto e do inconformismo. E isto porque o eu se mostra – com notável impotência metafísica e não menor potência poética – à margem do quotidiano, acossado pela vertigem de tudo, uma vez que ultrapassou os limites do pensamento convencional. Contra a apatia de que falava Sade, contra a visão do espírito como repouso, os textos de Pessanha confinam com o incongnoscível. No entanto, como descendente do pensamento ocidental, não escapa ao pecado original da modernidade, ser um modelo perfeito de antropocentrismo, mas, apesar disso, será um outro problemático filho pródigo, pois, como tal, encarará a sombra do todo-poderoso cartesianismo. Assim, Pessanha, para quem a dúvida não é uma mera intelectualização, acomete os alicerces fixados pela dúvida metódica para o pensamento moderno, dúvida que funcionou durante séculos, segundo a crítica radical do filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser, como “uma espécie de truque homeopático que, no limite, deseja acabar com a dúvida para chegar à certeza final, assim como na política, mais tarde, se pensou a sério na guerra (e na bomba) que terminaria com todas as guerras” (Bernardo, 2012: 11–12). Face a isto, o autor abraça na sua trilogia um pensamento que se excede, que duvida da dúvida, mas sem adotar o niilismo, muito criticado pelo filósofo de Praga: a sua é uma escrita do sentido ausente, não da ausência de sentido. Tendo-se esgotado o poder de negação e a potência de afirmação da resposta, Pessanha opta pela resposta provisória que intensifica a pergunta, a faz durar e a aguça, isto é, pela resposta interrogativa de que falava Maurice Blanchot (1990: 33). E o questionamento pode ter uma conotação especialmente sombria numa cultura, como a brasileira, que por via de regra valoriza a energia e a força. É por isto que os livros que não constroem ou afirmam, senão apenas apresentam figuras de possibilidade, são livros

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particularmente perturbadores, revelando todo o poder de uma fértil tradição da anti-tradição brasileira, rica e perspicaz perante o desastre ou o desconcerto do mundo. Ainda nesta prosa, dominada por um desejo de rutura que parece querer sancionar a premissa de Mallarmé de que só um livro é explosão, deparamo-nos com uma outra voz em que impera uma lucidez, ainda crepuscular, mas menos radical. Com modos diferentes de tratar a temporalidade, as leituras e os estratos do público e do íntimo, a obra Ó (2008) do escritor e artista plástico Nuno Ramos, emerge levemente da radicalidade presente na antes referida trilogia. Ramos restitui a consciência coletiva pelo prisma da consciência individual, graças a uma enunciação original – anunciada pela surpresa avançada no título: um Ó extasiado ou, provavelmente, desconcertado. Um Ó que é expressão paradigmática da atitude do narrador, que entrelaça uma fascinante reflexão ensaística e para-filosófica, um notável pendor plástico e uma incomum escrita do eu. Uma consciência individual que, como a do narrador de Pessanha, se distancia da monotonia mecânica do mundo, numa série de variações sobre o tema da pesquisa da realidade profunda e, agora também, sobre o leit-motiv tragicómico do império e da passagem do tempo, como demonstra a ponderação de atividades tão humanas quanto perder e ganhar tempo, presente no quinto capítulo da obra: Entre o que podemos de melhor e mais generoso, entre todas as chamadas virtudes, que tanta tinta (e tanto sangue) já fizeram derramar, nenhuma se equipara à capacidade de perder tempo. Só humanos perdem tempo, já que dispõem também da possibilidade de ganhá-lo, e se nos diferenciamos claramente dos animais talvez seja pelo exercício desta escolha. Animais cumprem apenas, em linha razoavelmente reta, a lista de suas alternativas, sem diferenciá-las demais. Mas em nós um pequeno demônio grita alto e o tempo todo: Aproveite o dia!, ou Concentre-se!, ou Estude!, ou Ganhe dinheiro!, ou Seja feliz!, ou Agradeça o pão!, ou Obedeça o chefe!, ou Mergulhe!, ou Ame o seu semelhante! Quaisquer que sejam os valores em jogo, é sempre a uma produtividade difusa, escondida debaixo de tudo, que este papagaio nervoso se refere, e um Casanova ou um Ford são, neste sentido, funcionários de um mesmo patrão. É a constância de propósitos e a fuga a qualquer dissipação que estes sistemas, por mais variados, almejam: é o horror à continuidade anônima de nossa respiração, da queda ou do crescimento dos nossos cabelos […] (Ramos, 2010: 47).

Ramos conhece a linguagem comum da tragédia e também conhece as nuances infinitas das sensações mais estandardizadas, mas face a estas convenções, prefere questionar de modo despojado o tempo, lançando um olhar crítico à condição humana e à cegueira da sociedade moderna para perceber os verdadeiros problemas do homem satisfeito com a sua superficialidade. Assim, dominado pela compreensão dissonante da crise, este notório artista plástico denuncia o uniformizador individualismo contemporâneo que, perante os grandes temas pascalianos do Tempo e da Morte, prefere cadaverizar-se num novo ritual, semelhante aos rituais de Clarice e Pessanha: sob o exercício – à partida insignificante – de “ganhar tempo”, Ramos revela o tenso jogo com a caducidade e a degenerescência que domina as sociedades modernas, aquelas sociedades que preferem criar um outro tempo irreal, alienado e pretensamente objetivo, isto é, que escolhem optar pela cegueira ou pelo “passatempo” como atitude vital.

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O autor paulistano alarga, assim, a via dos rumos autobiográficos contemporâneos e da escrita heterodoxa, pois através de pequenos fragmentos da mitologia pessoal, como anedotas, recorrências, obsessões e variações sobre a relação do eu com os outros, cria uma possível autobiografia coletiva. No entanto, em domínios onde a biografia clássica se limita a mostrar aquilo que de universal existe na sua história singular, Ó mostra que o escritor procura também nos outros a revelação do eu – dos lugarescomuns e do sentido comum que confinam a vida – e das possíveis vias de superá-lo ou, pelo menos, transgredi-lo. Assim, a partir de uma invulgar inclinação natural para a escrita íntima e a radiografia humana, num grau mais de hibridação, o autor procura apagar os limites entre o discurso literário e exercício plástico, funcionando a página como espaço de confluência. Perante a crise do sujeito, que anuncia com uma mistura de sarcasmo e desassossego, Ramos proclama na sua obra heterodoxa o triunfo do pequeno. Através de uma escrita fragmentária, próxima dos texticules de Queneau, são-nos apresentadas pequenas alegrias, dramas minúsculos e também humildes – mas significativas – revoltas, como a do mundo às avessas que nos é proposto nas páginas do livro. Segundo a voz que narra, se nós somos “feitos pela mão direita, sobrepostos todos com a mesma eficiência” (Ramos, 2010: 47), o automatismo das nossas vidas poderia ser subvertido pelo culto à mão esquerda, pois esta mão representa a falta de controle, preservando a capacidade de nos admirarmos e nos inquietarmos. Como prova disso, o autor desenha numa escrita ecfrástica e fragmentária, a divisão do incessante que caraterizaria o viver, à rebours, com a mão esquerda: Imagino o mundo à feição desta metade, as casas semi-desabadas em ângulos imperfeitos, cidades sem verticais nem empenas, sem microengenheria ou detalhes incrustados no granito. A vida inteira, rascunho de uma outra, iria se espalhando, sonsa e bêbada, em avenidas tão estreitas que nem sempre um passo nosso caberia, e toda linha de contorno seria interrompida e torta, descontínua (Ramos, 2010: 86).

Na mesma direção do culto da raridade através de uma escrita interartística que ultrapassa – embora em menor medida do que as duas anteriores – as classificações convencionais da narrativa, podemos citar ainda o atípico “romance de artista” e/ou “romance de formação” Esquilos de Pavlov (2013) da carioca e também original artista plástica Laura Erber. Trata-se de um romance irónico, sofisticado e melancólico. E também de um romance dotado de uma admirável liberdade de tom e de allure, e de uma compreensão profunda dos desafios romanescos, postas ao serviço de um pensamento em movimento. E isto porque Erber, como Ramos, pertence ao clã dos artistas escritores, mas também pertence àquela geração que inaugurou uma relação com a viagem generalizada e, consequentemente, uma multiplicação das formas literárias com que esta se liga. Uma geração de que faz parte Salem Levy e também outros afamados autores como Bernardo Carvalho, cujo romance O sol se põe em São Paulo (2007) nos oferece um magnífico

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retrato do desconcerto artístico e identitário através da viagem do protagonista, um escritor nikkei – descendente de emigrantes japoneses –, ao país dos seus ancestrais para reconstruir uma obscura história acontecida no passado entre o Japão e o Brasil. Trata-se de uma experiência de estranhamento identitário mas, agora também, artístico, experimentado igualmente por outros personagens da literatura brasileira contemporânea, cujo trabalho os leva a atravessar o Atlântico, como o protagonista de Budapeste (2004), o conhecido romance de Chico Buarque ou, a título de curiosidade, como o escritor protagonista do, embora premiado, a nosso ver, irregular O livro de Praga (2011) de Sérgio Sant’Anna. Pois bem, retomando o romance de Laura Erber e o paralelismo iniciado, nestas obras, o olhar sensível do artista distancia a viagem do simples turismo – presente, por exemplo, no beletrismo da louvança da capital checa presente no livro de Sérgio Sant’Anna. Erber nega esta modalidade e, em Esquilos de Pavlov, opta por construir um périplo, como Bernardo Carvalho ou Chico Buarque, à volta do deslocamento, da descoberta, do choque e/ou da aflição. Erber situa retrospetivamente o início do seu romance na infância taciturna do protagonista, Ciprian Momolescu, um menino inadaptado aos estreitos limites da Romênia de Ceauşescu e que conseguirá já adulto enquadrar a sua visão do mundo numa moldura mais abrangente. À saída de Roménia começa o momento de abertura do olhar, integrado na formação como artista do protagonista, que substitui a tradicional e passadista viagem a Itália ou ao Oriente por um longo périplo pela Europa. Neste romance que entrelaça dois olhares, o da existência e o da criação, Ciprian transita por paisagens sociais e artísticas diversas, como Moldávia, Polónia e Eslovénia, países onde realiza as primeiras intervenções em bibliotecas – nisso consiste a sua proposta artística – ou Alemanha e Suécia, onde mora graças a diversos programas de artistas em residência. Nesses lugares, o protagonista conhece génios e operários da arte que familiarizam progressivamente o leitor com o lugar-comum da crise da arte contemporânea, agora focada desde a perspetiva não do público, mas, de modo inovador, dos artistas, curadores e intelectuais desencantados com que Ciprian coabita e trabalha. No romance ecoa o ditado de Baudelaire, o primeiro a dizer que cada vez é mais difícil ser um artista sem ser um crítico, e, destarte, os diversos artistas que vamos conhecendo falam da atualidade artística. Neste sentido, o romance apresenta uma erudição ostentosa e atualizadíssima, e mesmo assim o tom não é nunca pomposo ou grandiloquente, por causa do escasso conformismo. A melancolia e o ceticismo do seu protagonista impedem que a narrativa se concretize num romance redondo, à maneira clássica do romance burguês de formação, favorecendo uma narração de imperfeição deslumbrante. Tudo neste romance está, de certo modo, desarraigado, devido à organização material e à disposição “espiritual” – entendida esta disposição como reflexo renovado do élan decadentista –, e para esta desarticulação contribui, aliás, também o duplo entendimento da “ficção” que a interventora artista plástica e escritora Laura Erber apresenta. Nesta obra híbrida, a influência da artista bifronte não se materializa apenas na escrita sobre as artes visuais, senão no entrecruzamento da ficção narrativa e a ficção

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fotográfica. Erber privilegia a fotografia como expressão da metafísica moderna e, partindo da conceção de Barthes da mesma como “análogo da realidade”, elabora múltiplas estratégias de interação, do mais convencional suplemento plástico e espacial oferecido pelas artes visuais à literatura, para a descontinuidade transgressora instaurada dentro das páginas do livro graças a certas fotografias selecionadas aleatoriamente como parte da obra, pois lembremos, esta autora é mais uma cultivadora da estranheza. Enfim, finalizámos já este breve, parcial e variegado percurso pela literatura contemporânea brasileira, privilegiando certos moldes e modos narrativos a título de significativos exempla. Panorama variado, mas, espero, não excessivo e – diga-se também – que procurou desanuviar esse crepúsculo prescrito à modernidade, iluminando obras e autores à maneira de uma velha galeria de arte: um quadro após outro, quase sem espaço entre eles, pois afinal, nestas obras há pintura e fotografia, mas também muitos outros retratos, fragmentos e miniaturas do Brasil dos nossos dias. E isto porque acreditamos na crença de Valéry de que toda beleza é de detalhe, do pormenor e do tão contemporâneo fragmento, e porque a atenção à particularidade invalida as generalidades dos juízos críticos e estéticos. Assim, num movimento que parte da individualidade de cada proposta literária, mas tem como horizonte uma arte de conjunto, pretendemos ressaltar a harmonia – contra o tópico da atomização –, os possíveis diálogos e variações, presentes nas obras de alguns autores brasileiros, de modo a salientar três tendências distintivas das letras verde-amarelas. Além disso, esta “exposição” procurou demonstrar que, se é verdade que tudo começa a acontecer um bocado antes do seu início e não se extingue totalmente com o seu fim, a pós-modernidade no Brasil começou com os modelos matriciais imediatamente anteriores aos nossos dias, como Fonseca ou Nassar, mas também, num sentido mais lato, com a lição de liberdade de certa literatura brasileira: liberdade de reinventar o realismo, como fez o próprio Jorge Amado ou o magnífico Graciliano Ramos, liberdade de questionar a identidade nacional, como já fizeram os Modernistas ou liberdade de engrandecer os caminhos da literatura ao entrecruzá-la com outros discursos, plásticos ou para-filosóficos, como na poesia concreta ou nas ficções claricianas. Lição de liberdade e, como vemos, também de filiação a respeito de um cânone heterodoxo, de que estes autores retomaram a capacidade anabólica de deglutir – como queria Oswald de Andrade – o próprio e o alheio, para, como novos antropófagos ou modernos canibais, construir uma literatura mais viva e enérgica. Uma literatura aliás que, como procurámos mostrar, em vez da atomização imputada, oferece não uma, mas várias respostas possíveis à grande questão de onde pode ir a ficção depois do romance realista.

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requiem para uma europa em ruínas. as crónicas jugoslavas de álvaro guerra

Magda Barbeita Universidade de Belgrado Sérvia Resumo: A obra do escritor Álvaro Guerra, caracterizada por uma multiplicidade de tempos e registos, aborda questões centrais da história portuguesa, mas também mundial. Marcado pela experiência diplomática, o autor deixou-nos um testemunho da sua passagem pela Jugoslávia. Neste trabalho iremos debruçar-nos sobre a forma como a Jugoslávia é representada nas suas Crónicas jugoslavas (1996), obra vencedora do Grande Prémio da Crónica da APE, evidenciando a diluição de um território real-efabulado nas várias camadas do tempo, da história e da memória. Palavras-chave: Jugoslávia; memória; utopias/distopias Álvaro Guerra nasceu em Vila Franca de Xira em 1936, onde viria a falecer, aos 65 anos, em 2002. Foi combatente na Guiné entre 1961 e 1963, de onde voltou após ter sido ferido em combate; perseguido pela PIDE, exilou-se em França, durante cerca de cinco anos, onde estudou publicidade na École des Hautes Études da Sorbonne; regressou depois a Portugal em 1969. Após o seu regresso, colaborou no jornal República, jornal opositor do regime, a partir do qual participou de forma ativa na preparação do golpe militar levado a cabo pelos Capitães de Abril. No período que se seguiu à Revolução dos Cravos, integrou a equipa redatorial do Jornal do Caso República, tendo também participado na fundação do vespertino A Luta. Colaborou igualmente, entre outros, no Artes & Letras, Critério, Jornal de Letras, A Capital e Diário de Notícias. Desempenhou, mais tarde, funções de Diretor de Informação da RTP e foi assessor do Presidente da República Ramalho Eanes. Iniciou, depois, uma carreira diplomática que o levaria à antiga Jugoslávia, a Nova Deli, Kinshasa, Estrasburgo e Estocolmo. Álvaro Guerra viveu, portanto, e intensamente, os períodos conturbados da história portuguesa (e mundial) da segunda metade do século XX. Desde cedo se manifestou

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contra o salazarismo e a guerra colonial, tópicos que marcaram a sua produção literária até ao período da Revolução. Estreou-se na cena literária em 1967 com Os mastins, prefaciado por Alves Redol, romance sobre o imobilismo social e político do período de Salazar, seguido de O disfarce (1968), A lebre (1969), Memória (1971) e O capitão Nemo e eu (1973) que tematizam, todos eles, a guerra colonial e uma geração à deriva dentro do próprio país, Nação-jangada. Álvaro Guerra foi, aliás, um dos primeiros escritores que se debruçaram sobre esta temática9. No entanto, foi com a sua “trilogia dos cafés” que ficou sobretudo conhecido. Subintitulada Folhetim do mundo vivido em Vila velha, a trilogia composta por Café República (1982), Café Central (1984) e Café 25 de Abril (1987) abarca praticamente todo o século XX, de 1914 à época pós-Revolução. Nela, assistimos ao desenrolar dos principais acontecimentos nacionais e internacionais do século através do eco que encontram em Vila Velha, onde a história individual ganha contornos coletivos e as micro-histórias se transmutam em história. No âmbito da sua produção literária gostaríamos de destacar ainda, entre outras obras, Reflexões sobre a China (1976), sobre as consequências do desaparecimento de Mao Tsé-Tung, Razões do coração (1991), onde se evoca a Guerra Peninsular com base no diário de Frei Pedro Taveira, um monge do Convento de Mafra fugido às tropas de Junot, e A guerra civil (1993), que se centra no período atribulado que opôs os defensores dos ideais liberais de D. Pedro aos absolutistas de D. Miguel. A obra de Álvaro Guerra, multifacetada e caracterizada por uma multiplicidade de tempos e registos, aborda, portanto, questões centrais da História portuguesa, mas também mundial. Neste trabalho, debruçar-nos-emos sobre as suas Crónicas jugoslavas, vencedor do Grande Prémio da Crónica da APE.

requiem para uma europa em ruínas A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento10. (Milan Kundera) É preciso imaginar Sísifo feliz. (Albert Camus)

Publicadas no ano de 1996, no rescaldo do conflito de dissolução, às Crónicas jugoslavas subjaz a premência de guardar a memória dessa Jugoslávia que desaparecia de forma sangrenta nos anos 90, ao mesmo tempo que apontavam a tragédia e a loucura que haviam então assolado esse canto da Europa. O próprio título dado ao conjunto das crónicas parece resgatar esse pedaço de uma história que já não o é – não deixando de   9 10

Note-se que os seus primeiros dois romances, Os mastins e O disfarce, foram, inclusive, publicados em 1969 pela editora francesa Gallimard, numa edição conjunta. Epígrafe a Café 25 de Abril (as ruínas) de 1987.

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o ser, todavia –, não como provocação, mas antes como resistência, de que a memória é o “centro dinamizador da escrita” (Guerra, 2000: 428), como apontou Raul Lourenço na sua recensão crítica à obra. E, poderíamos acrescentar, de uma certa catarse que se traduz numa tentativa de compreender a realidade horrenda que vai seguindo através da televisão, de que adiante falaremos. Na declaração prévia às crónicas, diz-nos o autor: A minha Jugoslávia não mudou de nome. Ao ver ao longe o corpo ensanguentado e esquartejado deste país, não me atrevo a alterar-lhe o título na galeria das minhas vivências. Não partilharei o estigma de assinalar a sua morte com um epitáfio que lhe renegue o nome. […] Agora, que as tribos voltam a marcar os seus territórios […], agora, no difícil exercício de exorcizar os mais sinistros fantasmas, agora, na hora da morte da Jugoslávia, mesmo que os seus herdeiros e os seus coveiros não saibam muito bem o que fazer com esse cadáver, respeitemos ao menos a sua memória (ibidem, 1996: 11–13).

Por outro lado, e de forma similar, não deixa de ser curioso que estes pequenos textos se apresentem como crónicas, numa posição ambivalente que ora reflete uma conjetura atual à época e, portanto, crónica, ora pretende perpetuar uma memória num tempo posterior à fragmentação que é do domínio do a-crónico ou do intemporal. São onze as crónicas – antecedidas por uma declaração prévia e seguidas de um post scriptum – que percorrem tempos e espaços físicos e humanos diversos ancorados num tempo e num espaço mais vasto que é o da memória, recuperando fragmentos de imagens dos anos passados, na qualidade de diplomata, nesse lugar chamado Jugoslávia, entre junho de 1977 e fevereiro de 1984. Escritas mais de uma década depois, são também um lugar de afetos, onde se evocam os amigos, a gastronomia e pequenos episódios de vida: os petiscos balcânicos pelas mãos de Gorjiana, em casa de Ratko Ilić, na Rua Drinćićeva, ou os do mestre Ivo do Clube dos Escritores de Belgrado, sempre regados com vinho branco da Dalmácia, tinto do Montenegro ou rakija e debates acesos e apaixonados; a babilónia de línguas do Festival Internacional de Poesia de Struga, nas margens do Lago Ohrid, que numa ocasião se transformou igualmente numa babilónia poética; uma caçada invernal na Sérvia profunda, hospedado na aldeia de Miroš, perto dos desfiladeiros das Portas de Ferro; o comboio azul de Tito que anualmente os transportava à reserva de Karadžorževo, a norte de Fruška Gora, para uma batida; uma viagem ao longo da costa, seguindo o Adriático desde a Ístria aos fiordes do Montenegro; uma jornada a Ljubljana com o corpo diplomático; uma passagem por Donji Milanovac e Kladovo, lugar onde se cruzaram, ao longo dos séculos, romanos, eslavos e turcos; ou as pontes atravessadas sobre o Danúbio, o Sava, o Drina, o Neretva. Traça-se, assim, de forma pessoal e indireta, uma geografia de um país desaparecido e fragmentado, diluído nas várias camadas do tempo e da memória. O carácter fragmentário deste país revivido e reconstruído através da memória, expressa-se, aliás, no próprio livro também ele fragmentário, quer através do mosaico que constitui a própria Jugoslávia, quer através das múltiplas dimensões que as crónicas adquirem, entre o registo memorialista, autobiográfico, testemunhal ou mesmo ensaístico.

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Todavia, o fragmento é aqui também, e sobretudo, estilhaço. Ao mesmo tempo que recuperam esse passado e esse mosaico, as crónicas de Álvaro Guerra acentuam igualmente a perda desse mundo revolvido e devolvido pela memória, sublinhando a ausência que se sobrepõe à presença. É neste ponto que as fotografias – enquanto spectrum, nas palavras de Roland Barthes, ou mesmo tanatografia, nas de Philippe Dubois, embora num contexto diferente – têm um papel preponderante, assinalando, em tons de revolta e melancolia, desencanto, angústia e inconformismo, uma Jugoslávia que não existe mais, desmembrada e mutilada, morta. Vejamos duas passagens ilustrativas dessa perda: Ao rever álbuns de fotografias com quinze anos e mais, descubro-me como figurante de antes do caos, plantado na neve da Bijelasnica, por cima de Sarajevo, tendo ao fundo um moderno hotel hoje esventrado pelos canhões, ou em pose turística na velha ponte de Mostar agora derrubada pelo ódio fratricida. O conhecimento dos lugares do crime provoca-me um sentimento em que se misturam melancolia e revolta. Perdidos de vista aqueles que os habitaram e partilharam comigo um pouco do seu quotidiano […] sobra-me o inconformismo, perante o que foi trucidado pelas rodas da história dirigidas por incontáveis equívocos e indizíveis perversidades (ibidem: 20). Vejo-me pousado noutra ponte de pedra, quinhentista, a mão direita no parapeito e a esquerda no ombro de Helena, ao fundo o minarete de uma das dezoito mesquitas da cidade, a sépia a insinuar-se já na prova fotográfica com dezena e meia de anos – ontem ou noutra vida? O que não se vê surge, muito nítido, na memória – a bulha do bazar, o cheiro dos bolos fritos, o sabor amargo do café à turca cortado pelos cubos de pasta doce com travos de menta e canela. Revejo a fotografia – lá continuo imóvel, arrimado à Helena e ao parapeito da história, na velha ponte de Mostar sobre o Neretva. Novembro ou Dezembro de 1993: a televisão exibe as ruínas da ponte de Mostar, desmantelada pelos morteiros e obuses croatas. O sangue tingia os rios plácidos da minha memória, cumprindo as profecias do hodja de Ivo Andrić. Então, já os muçulmanos haviam atentado contra o monumento a Andrić e já os sérvios tinham destruído a Biblioteca de Sarajevo – o ódio não se saciava com o sangue dos inimigos e dos inocentes, precisava também de assassinar a memória e a inteligência (ibidem: 32–33).

Contudo, não há ingenuidade da parte do escritor e diplomata que conheceu de perto a realidade que viveu. Álvaro Guerra tem consciência de que durante o período que aí viveu, viveu, nas suas palavras, numa “Jugoslávia também já defunta” (ibidem: 19). Ao longo das suas crónicas, que ganham, como sublinhou Raul Lourenço, um teor ensaístico (cf. Lourenço, 2000: 428), Álvaro Guerra vai-nos dando igualmente conta de vários indícios e sintomas que culminariam no conflito que assolou a Jugoslávia e a desintegrou11. Nelas, perpassa, pois, a consciência de que os fantasmas da história dos Balcãs pulsavam, ainda que temporariamente silenciosos e numa acalmia aparente, em cada pedra que contava essa mesma história. Assim acontecia no mosteiro orto11

Recordemos que a crónica nasce enquanto género embrionário da historiografia. A este propósito, refira-se igualmente a crónica “Catodoluminescência” que reflete sobre a interferência da televisão na guerra como “nova arma”, como muito bem notou Raul Lourenço, a que não nos dedicaremos neste trabalho.

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doxo de Sveti Naum, de pedra avermelhada, “um testemunho mudo dos medonhos partos duma história de batalhas sangrentas e migrações trágicas” (Guerra, 1996: 26), no famoso mosteiro de Studenica que “invocava contradições de devoção mística e de escaramuças bélicas” (ibidem), ou ainda nas pedras da igreja de Santa Maria de Budva, “erguida no século IX, quando os educadores do Oriente vieram, com a língua eslava, transplantar os ensinamentos da cristandade na alma dos bárbaros recém-chegados” (ibidem: 95), e onde “a agonia do passado [se] eternizava” (ibidem). E se estes são testemunhos de pedra, também os encontramos de carne e de sangue. Sublinhem-se, a título de exemplo, dois trechos: A sacralização das fronteiras causou, praticamente desde o século VII até aos nossos dias, com breves interrupções, um estado de esquizofrenia colectiva, na região balcânica. Oscilando entre extremos de fluidez e de rigidez das suas fronteiras, os Balcãs têm uma história incontornável de constantes violências e ódios, sobretudo por se encontrarem num ponto de fractura, entre duas civilizações, três religiões, dois impérios (ibidem: 100). Aquela Jugoslávia do comunismo desalinhado e da autogestão era – todas as contas feitas com a história – uma pausa relativamente amena, em que saravam lentamente as feridas da última guerra e das outras. É certo que, de quando em quando, havia recaídas, nas rivalidades servo-croatas, nas relutâncias da Eslovénia à solidariedade federal, nas erupções albanesas do Kosovo. […] O certo é que eram raríssimos os que se atreviam a encarar as ameaças do futuro. Nunca vi povos tão empenhados em limitar o tempo ao dia seguinte, gente tão ávida do presente sob o qual borbulhavam, nas horas dos desabafos, as erupções dos vulcões malditos do passado (ibidem: 28).

Esta avidez de presente e a necessidade iminente de esconjurar e expurgar os fantasmas do passado, traduzia-se, assim, na crença otimista nessa Jugoslávia que lentamente morria, símbolo de uma nação multicultural e multiétnica, representada no Festival Internacional de Poesia de Struga, babilónia de línguas, nações, etnias e religiões, e, especialmente, pela cidade de Sarajevo: A Sarajevo que conheci era um exemplo de convivência, um espaço onde as horas […] soavam quase simultaneamente nos relógios dos templos de religiões diversas. Com a desordem calorosa do bairro antigo, de traça turca e comércio a condizer, confinavam os edifícios imperiais do tempo dos arquiduques de Viena, à beira rio, e mais além os monumentais blocos de betão da era titista. E em tudo isto havia uma harmonia negligente, uma condescendência recíproca, que não se explicavam apenas com a vigilância da secreta ou o culto oficial do presidencialismo de Belgrado. […] Então, todos os sinais de violência cíclica, emboscados no nosso caminho, eram coisas do passado. Assim queríamos, assim críamos. A nossa esperança imprudente parava o tempo, num optimismo amável que triunfava sobre as fragilidades do mosaico díspar dos eslavos do Sul. O marulhar dos rios […] embalava-nos e abafava as dissonâncias surdas, que nos chegavam aos ouvidos como incidentes menores, com o grasnar dos corvos planando sobre as terras endurecidas pelos gelos. Era isto no tempo em que, no centro de Sarajevo, havia, separados por menos de cem metros, quatro templos de outros tantos cultos, muçulmano, católico, ortodoxo e judaico (ibidem: 33–34).

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Mas tratava-se também de um otimismo ingénuo e ilusório, imprudente, como se lhe refere o escritor. Não é por acaso que Álvaro de Guerra menciona por diversas vezes a pintura naïf ao longo das suas crónicas ou vai contando cenas de quase delírio, como em “Aparição”, onde evoca visões da Virgem na aldeia de Medžugorže, em Herzegovina, ao mesmo tempo que recorda, numa esplanada em Zemun debruçado sobre o Danúbio, uma banda de músicos ciganos num episódio de desvario. Numa outra crónica, A Mona Lisa de Hlebine, cujo título alude a uma pintura de Ivan Generalić, o autor debruça-se sobre a sua própria alucinação na aldeia de Miroš, na margem direita do Danúbio, junto aos Cárpatos. Esta cartografia de alucinações, visões e delírios, pontuados por um estado de histeria coletiva e dissonâncias surdas, leva-nos, no entanto, a questionar se esse lugar chamado Jugoslávia não seria, ele próprio, efabulação, ou se não estaria condenado, à nascença, a um país por vir. Os espectros do passado vão ganhando, desta forma, uma convivência cada vez mais frequente com todos aqueles que habitam os Balcãs, qual magma que silenciosamente vai borbulhando no ventre de um vulcão, como se lhes refere numa das passagens acima reproduzida, agudizando-se no período que se seguiu à morte de Tito. Recordando a sua última viagem no comboio azul, a 5 de maio de 1980, Álvaro Guerra dá-nos conta da aflição e angústia dos jugoslavos e da sua orfandade: “Que fazer?”... Mas a pergunta já não era a de um começo, não interrogava o futuro, mas o passado. O comboio azul, atravessando a Eslovénia, a Croácia, a Sérvia, rolava por dentro das pessoas sem resposta, numa pouca-terra-pouca-terra de angústia, de choros espontâneos e sem soluços, sem idade, rolava sobre os carris do medo (ibidem: 71–72).

Já na era pós-titista, no Clube dos Escritores de Belgrado, “quando as memórias se debatiam entre fantasmagorias de massacres e êxodos que a própria persistência da cidade de Belgrado – vinte vezes destruída e construída – lembrava” (ibidem: 79), a elite jugoslava “iniciava abertamente o seu percurso pela terra de ninguém – banira a iconografia, a do punho fechado e a das mãos postas” (ibidem: 77) e “fazia tudo quanto era humanamente possível para exorcizar o futuro” (ibidem: 78). Todavia, como sublinha o autor, o peso do passado, minado por fantasmas e massacres sinistros, antigos e recentes, seria inevitável, estava inscrito em cada esquina, em cada memória, em cada coração. Em breve, a terra de ninguém transformar-se-ia na terra que cada um reclamaria como exclusivamente sua e o multiculturalismo seria suplantado pelos nacionalismos: Ainda não caíra o muro de Berlim já começavam os nacionalismos a erguer os seus próprios muros. […] Na Jugoslávia, ficavam expostas as fracturas do passado e, no cadinho das paixões modernas, rosnava, a ressuscitar, o monstro das três cabeças – o rei Tomislav surgia dos nevoeiros para redimir os croatas, o sultão Murad, com o alfange a pingar sangue sérvio, repunha o Islão nos antigos feudos, e o tzar Lazar erguia-se no campo de batalha de Kosovo Polje, percorrendo seis séculos para construir a Grande Sérvia (ibidem: 79).

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Desta forma, e apesar das esperanças e otimismo vãos, “[n]as profundas do inferno, Hitler e Estaline contorciam-se de riso” (ibidem: 80), e os ódios, rancores e raivas guardados ao longo de séculos acabariam por destruir a Jugoslávia, tal como a si próprios, numa guerra fratricida. É com uma enorme angústia e desencanto perante o horror e o absurdo da guerra que nos confidencia o autor, “[d]uzentos mil mortos depois” (ibidem: 114), em “A sentinela cega”: é bem difícil reconhecer a mais rudimentar das sendas do progresso humano no percurso da Jugoslávia para o suicídio, adubado de milhares de crimes de sangue. E a multidão compacta das vítimas impede-me a identificação dos algozes. Esgotei a lotação do bestiário humano e coloquei à porta desse cárcere imenso uma sentinela cega chamada esperança. As valas comuns dos massacrados e as longas colunas das famílias sem homens, serpenteando pelas estradas cobertas de neve, desafiam o futuro. Tudo parece sugerir que o passado não tem remédio e que nenhuma lobotomia colectiva será capaz de extirpar o mal da memória, cujas metástases alastraram ao mais recôndito das aldeias e ao mais íntimo dos clãs. […] A sentinela cega chamada esperança está de guarda às ruínas, nos lugares ocupados pela morte, vigiando o nada que precede o reinício (ibidem: 103–104).

Como podemos compreender, nestas crónicas, a perda da Jugoslávia não se limita a ser apenas uma perda pessoal, mas evidencia igualmente uma perda para a Europa e para a humanidade. Com a sua capa a reproduzir O enterro da pintora naïf Sofija Doklean, as Crónicas jugoslavas de Álvaro Guerra são também e sobretudo um requiem para uma Europa em ruínas. E o reinício teria ainda de esperar… Cumprindo as profecias do hodža de A ponte sobre o Drina, terminamos com as palavras finais da declaração prévia: “Talvez tivesse sido possível chegar à liberdade por outros caminhos. Mas nem o homem nem a lenda mudaram. Sísifo é um servocroata sobrevivente” (ibidem: 13).

bibliografia Cordeiro, Cristina Robalo. Guerra, Álvaro. In: Biblos – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa. Vol. 2. Lisboa – São Paulo: Verbo, 1997, 910–911. Guerra, Álvaro. Crónicas jugoslavas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996. Lourenço, Raul. Álvaro Guerra. Crónicas jugoslavas. Revista Colóquio/Letras. N.o 155/156, janeiro, 2000, 428–429. Data de acesso: 11/08/2014. Disponível em: . Santana, Maria Helena – Elia, Sílvio. Crónica. In: Biblos – Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Vol. 1. Lisboa – São Paulo: Verbo, 1995, 1386–1397. Santos, Maria Nazaré Gomes dos. Guerra, Álvaro. In: Machado, Álvaro Manuel (org. e dir.). Dicionário de literatura portuguesa. Lisboa: Editorial Presença, 1996, 232–233.

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as duas faces de d. teresa (cca 1080–1130): do anti-exemplo à mulher exemplar12

Anna Działak Universidade de Varsóvia Polónia Resumo: O estudo apresenta duas faces (i.e. a face negativa, anti-exemplar e a face positiva, exemplar) de D. Teresa (cca 1080–1130), mãe de D. Afonso Henriques (cca 1109–1185). Pretende-se ver como a imagem de D. Teresa muda na historiografia portuguesa. O estudo tem como base duas obras, nomeadamente a Crónica del Rei D. Affonso Henriques de Duarte Galvão (cca 1445–1517) e o tratado Flores de España, excelencias de Portugal... da autoria de António de Sousa de Macedo (1606–1682). Palavras-chave: D. Teresa; Crónica del Rei D. Affonso Henriques de Duarte Galvão; Flores de España, excelencias de Portugal de António de Sousa de Macedo

Em cada país há figuras de ambígua memória histórica. D. Teresa (cca 1080–1130) – a condessa-rainha de Portugal – filha de Afonso VI (1047–1109), esposa de D. Henrique (1066–1112) e mãe de D. Afonso Henriques (cca 1109–1185) é, sem dúvida, uma destas personagens. Esta mulher, cuja importância nos primórdios da independência de Portugal não pode ser negada, não teve a mesma sorte historiográfica do seu marido e do seu filho. Contrariamente a estes homens – tradicionalmente vistos como fundadores de Portugal, foi representada nas fontes medievais como uma mulher má e pecadora. A visão negativa de D. Teresa infelizmente continua presente no legado da memória coletiva apesar do labor dos historiadores contemporâneos e da existência de fontes modernas interessantes em que ela é tida como uma mulher exemplar. Relembremos que, como consta da tradição lendária, Portugal constitui um dote dado com obrigações vassálicas a D. Teresa e a D. Henrique. Após a morte do marido 12

Vários materiais para este estudo foram reunidos no âmbito de uma bolsa de investigação do Camões, I. P.

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D. Teresa casa em segundas núpcias com um dos filhos de Pedro Froilaz de Trava – de acordo com algumas fontes com Fernando, noutras primeiro com o seu irmão – Bermudo e depois com Fernando. Uma vez casada, D. Teresa deserda D. Afonso Henriques, o filho do primeiro casamento, o que dá início à luta entre a mãe, o padrasto e o filho. D. Teresa fica presa na sequência da batalha de S. Mamede (1128) e lança uma maldição que se cumpre durante o cerco de Badajoz (1169), quando D. Afonso Henriques perde a capacidade de andar. Ainda presa, D. Teresa pede auxílio ao seu sobrinho, D. Afonso VII (1105–1157), oferecendo-lhe as terras de Portugal. Como destaca Pedro Calafate “[o]s vários aspectos desta lenda de Afonso Henriques, que nos finais do século XVI Duarte Nunes de Leão viria a qualificar de meras ‘fábulasʼ, constituem uma unidade com pequenas variações de autor para autor [...]” (Calafate, 2006: 132). Efetivamente, há vários textos que aproveitam o esquema supracitado. Não quero discutir a relevância histórica dos referidos episódios, já que eles podem ser facilmente contrastados com interpretações e análises contemporâneas (vide p.ex. Cassotti, 2008, Barroca, 2014). No meu curto estudo vou fazer a releitura da figura tradicional de D. Teresa. Mostrarei como no âmbito do discurso historiográfico ela deixa o seu papel do anti-exemplo para ser retratada como uma mulher exemplar, e como passa a ocupar um lugar relevante nas narrativas sobre os primórdios de Portugal. Em poucas palavras verei as duas faces de D. Teresa – a face negativa e a face positiva13. O retrato anti-exemplar vai ser analisado com base na obra quinhentista de Duarte Galvão (cca 1445–1517) – Crónica del Rei D. Affonso Henriques (escrita provavelmente cca 1505, como indica o próprio autor no primeiro capítulo da sua obra, mas publicada apenas em 1726) – que reúne todos os episódios míticos e lendários presentes noutras narrativas medievais14. O retrato exemplar vai ser visto com base no tratado seiscentista de António de Sousa de Macedo (1606–1682) – Flores de España, excelencias de Portugal, en que brevemente se trata lo mejor de sus historias, y de todas las del mundo desde su principio hasta nuestros tiempos, y se descubren muchas cosas nuevas del provecho y curiosidad15 (publicado pela primeira vez em 1631 com a segunda edição em 1737), já que este texto constitui um exemplo plausível da reinterpretação da figura de D. Teresa vista pelo prisma da exemplaridade. Ao analisar estas obras obviamente terei em conta o seu lado funcional – a obra de Duarte Galvão inscreve-se pois na atividade legitimadora de D. Manuel I (1469–1521)16, ao passo que o tratado de António de Sousa de Macedo

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Aludo aqui ao estudo de José Mattoso e as suas famosas três faces de D. Afonso Henriques. Neste estudo o reconhecido historiador português apresenta diferentes retratos medievais do primeiro rei de Portugal, nomeadamente “o instrumento de Deus” presente nos anais crúzios, “o chefe do bando guerreiro” presente nas perdidas Gesta de Afonso Henriques e “o rival dos senhores feudais” das narrativas presentes nos Livros de linhagens (Mattoso, 2009: 455–471). As discutidas duas faces de D. Teresa consistem numa aproximação diferente, já que se trata de dois retratos opostos e provenientes doutras épocas, nomeadamente da idade média e da idade moderna. Note-se que embora se trate de um texto quinhentista escrito por uma pessoa culta e conhecedora do humanismo, a obra deve ser vista como medieval. Como demonstra Pedro Calafate, muitos episódios foram claramente inspirados na Crónica de Portugal de 1419 (Calafate, 2006: 131–159). Vou referir esta obra só como Flores de España, excelencias de Portugal. Sobre este assunto veja-se Serrão, 1972: 129–136.

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faz parte da chamada “literatura autonomista”17 e surge na fase final da União Ibérica (1580–1640). No entanto, a minha aproximação metodológica basear-se-á sobretudo na decifração de padrões de conduta exemplar e, dentro deles, o tópico do bom governante na linha do pensamento de Ernst Robert Curtius (cf. Curtius, 1997). Antes de passar à análise das fontes apresentarei uma breve definição funcional dos padrões de conduta exemplar que acabei de mencionar. Parto do princípio que o dito modelo ou padrão é um “ideal personificado de caráter normativo”. Dito doutra maneira, é uma imagem literária de um indivíduo (ou vários) que através do seu comportamento e valores, tanto individuais como sociais, constitui(em) um modelo a seguir para um estamento ou como representante(s) de um ofício, i.e. exemplifica(m) certos comportamentos e valores que estão ao alcance dos representantes do dito grupo e servem de lição de moral (Pilichowska, 2007: 11–15; Dziechcińska, 1990: 1060–1066; Pelc, 1978: 8–10; Nowicka, 1969: 265)18. Como indica Janusz Pelc existem igualmente anti-modelos, i.e. tipos literários que exemplificam os comportamentos reprováveis (Pelc, ibidem: 10). Acresce que todos os padrões funcionam dentro do sistema parenético que é diferente para cada época e sociedade (Dziechcińska, ibidem: 1062–1066; Pelc, ibidem: 13). Igualmente dependem do público-alvo. Os padrões podem ser veiculados, além de géneros focados exclusivamente na didática, por textos de teor historiográfico. É também relevante dizer que os modelos não são universais, no sentido de existirem tipos complementares – diferentes para homens e mulheres. Nomeadamente, um bom rei tem frequentemente ao seu lado uma boa e dedicada rainha, um nobre exemplar é acompanhado por uma mulher de nobre estirpe dedicada ao lar, etc. (Pilichowska, 2007: 41ss.). Ainda, a exemplaridade feminina encontra-se frequentemente associada ao lar e a do homem ao espaço público. Os modelos são, portanto, forjados de acordo com a estereotipia sexual e com base nas oposições binárias. Por outro lado, há também exceções: caso do modelo bíblico de mulier fortis elogiado e promovido pela Igreja postridentina. No caso das duas faces de D. Teresa podemos observar todos os evocados elementos. Vejamo-los. Na crónica escrita por Duarte Galvão descreve-se cronologicamente todo o reinado de D. Afonso Henriques. Incluem-se também episódios que o precedem, nomeadamente a vinda de D. Henrique para a Península, o seu casamento com D. Teresa, o nascimento de D. Afonso Henriques, a cura milagrosa da doença nos pés do jovem infante, a morte do Conde e a subsequente luta entre a mãe e o filho. Neste texto D. Afonso Henriques surge como o sucessor legítimo de D. Henrique e um soberano valente, justo, cristão que usufrui do amor e ajuda divinas. Desta maneira, a figura do primeiro rei português torna-se num exemplo moral para os seus sucessores e num espelho em que se pode mirar D. Manuel I (cf. Serrão, ibidem: 131–133). Acresce que esta linha do pensamento orienta já o prólogo dirigido a D. Manuel I em que Duarte Galvão fala da exemplaridade e das virtudes nos monarcas. Como consta do prólogo, o rei constitui 17 18

Termo de Hernâni Cidade. Trata-se de obras de cunho patriótico surgidas durante o período da monarquia dual, com um destaque especial para os últimos vinte anos da mesma. Vide Cidade, 1950. A definição foi feita com base nas observações e terminologia presentes nas obras enumeradas.

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um modelo de conduta para os seus súbditos. De acordo com Duarte Galvão “o homem tendo a vida, em dias breve, com a virtude que obra, a faz longa, e durar mais des que morre, vivendo depois de morto no outro mundo, por gloria, e neste por exemplo assi, que para nós necessario nos é nossa virtuosa vida, e para os outros nossa virtuosa fama; esto como quer que convem a todos, muito mais cabe em os Principes, e Reis faze-lo, cuja maior excellencia de seu nome traz logo maior obrigação de seu carrego, que é serem Reis postos por Deos, para regedores principaes na terra sobre os outros homens para execução, e exemplo de toda perfeita virtude [...]” (Galvão, 1906: 26–27). No prólogo, com base nas observações de caráter geral e no retrato de D. Manuel I, traça-se portanto o ideal do monarca tido como um exemplo. O mesmo ideal do monarca incorpora-se igualmente num dos episódios presentes na maioria dos textos medievais sobre as origens de Portugal, incluindo a crónica de Galvão, nomeadamente na conversa de D. Henrique com o filho. Neste diálogo D. Henrique dá a D. Afonso Henriques dicas referentes à imagem e ao comportamento de um bom soberano. No testamento19 aparecem tanto conselhos de teor ético – ser virtuoso, piedoso e religioso, como dicas referentes à potestas de um soberano, nomeadamente o comportamento para com os súbditos e para com a terra, i.e. a justiça, a defesa do território e das gentes, etc. (cf. Calafate, ibidem: 137; Barradas – Nabais, 1996: 62). Os conselhos reúnem, portanto, valores individuais e sociais e correspondem às normas ibéricas medievais. Note-se que esta conversa aproxima-se da didática de príncipes – é, portanto, uma espécie do specula principum. Toda a obra de Galvão confirma que D. Afonso Henriques cumpre com este modelo moral e virtuoso de conduta. Ele acumula caraterísticas do retrato moral de um santo, um guerreiro e um rei. A sua exemplaridade ética – que faz com que no último capítulo a sua alma seja “levada nas mãos dos Anjos, à glória do Paraíso” (Galvão, ibidem: 169) – coexiste com a exemplaridade guerreira (vide episódios da reconquista, com um destaque especial para a batalha de Ourique que constitui uma das balizas cronológicas importantes) e monárquica (cf. aclamação antes da batalha de Ourique, diversos episódios do reinado, exemplaridade moral, proteção Divina). A sua imagem age, portanto, consoante a tópica do bom rei (cf. Curtius, ibidem: 175–190, especialmente 184–186) e exemplifica as dicas paternas e o conteúdo do prólogo20. D. Afonso Henriques é sábio, valente, justiceiro, belo, devoto, temente a Deus, como convém. A exemplaridade do primeiro rei português que pode ser observada nos planos ético, guerreiro e monárquico contrasta com o comportamento da sua mãe, cuja falta de moral também pode ser observada nestes três campos. Em primeiro lugar ela vive no pecado – casa em segundas e terceiras núpcias logo após a morte de D. Henrique. Depois do casamento com D. Fernando, D. Teresa deserda o seu filho de quem, como nota o cronista, “pouco curava” (Galvão, ibidem: 51). Como sublinha o próprio Galvão, 19 20

Termo usado em Barradas – Nabais, 1996; Calafate, 2005. Apesar da presença no episódio do bispo negro em que D. Afonso Henriques aparece como herege, o rei surge como bom cristão que usufrui do amor Divino.

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“segundo mal peccado muitas vezes vemos as mãis com novos esposos se tornarem madrastas” (ibidem) – o comportamento da condessa-rainha é portanto comparado ao de uma madrasta. Esta clara anti-exemplaridade ética está relacionada com o binómio que opõe a vida pública à vida privada. D. Teresa não consegue cumprir com o papel de boa mãe e esposa, mas sai do espaço fechado do lar para desempenhar o papel que não lhe pertence, i.e. o papel de soberana autónoma. Apesar de o seu filho, de acordo com a crónica, ser já maior de idade, ela, como se observou, usurpa o governo do Condado21. Na realidade a culpa da condessa-rainha consiste nem tanto em ela se ter apoderado do governo, mas em ter usurpado o direito do filho capaz de tomar o destino de Portugal nas suas mãos. Uma mulher, como prova o caso da rainha Urraca, meia-irmã de Teresa, podia ser rainha titular em reinos ibéricos22. Mesmo assim a atitude de D. Teresa perante o desempenho de poder, tal como o seu comportamento moral, não é exemplar. D. Teresa gera o caos da guerra e trai Portugal e D. Afonso Henriques ao chamar o seu sobrinho – D. Afonso VII – para que este, na sequência da sua captura, não só a tire da prisão, como também ocupe o território português. Por conseguinte, D. Teresa provoca uma guerra em vez de se ocupar de leis e justiça e ser garante da paz, i.e., age contra o testamento de D. Henrique e não é uma boa soberana. Portanto, o seu comportamento é reprovável também em termos guerreiros: ela provoca a guerra contra o direito do filho, trai Portugal e ainda quer que o seu novo esposo prenda D. Afonso Henriques no campo da batalha. Portanto, o modelo de conduta representado por D. Teresa é anti-exemplar a vários níveis. Em primeiro lugar contraria o padrão de exemplaridade feminina, de uma rainha-modelo. Como se pode comprovar nos retratos cronísticos de mulheres exemplares (por exemplo D. Isabel em Rui de Pina, D. Filipina em Gomes Eanes de Zurara e Fernão Lopes), as rainhas normalmente deviam desempenhar o seu papel de mães e esposas, ou seja comportar-se consoante o interesse da linhagem, ser exemplo de virtudes cristãs, ser honestas e modestas, dar bons conselhos ao marido e filhos, avogar a favor da paz, entrar na esfera do poder caso fossem viúvas, mas no devido momento devolver o poder aos filhos23. Em segundo lugar, D. Teresa também quebra com as regras de conduta aplicáveis a um monarca exemplar e, como de demonstrou, representadas por D. Afonso Henriques, D. Henrique e D. Manuel I. Ora, D. Teresa surge como um anti-modelo comportamental – ao mesmo tempo mostra o que não deve fazer um rei e o que não deve fazer uma rainha seja reinante, seja consorte. Como destaca Isabel de Barros Dias no contexto das obras derivadas da historiografia de matriz afonsina, a imagem da condessa-rainha (e igualmente de Urraca) tem “os traços tradicionais habitualmente utilizados na criação de tipos femininos literários de cariz 21 22

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Na realidade, como se sabe, em 1112 – o ano da morte de D. Henrique – Afonso Henriques ainda era criança. A restrita cronologia não fica acentuada no caso da obra de Galvão, embora ele efetivamente sublinhe algumas discrepâncias em referência às datas. Ao mesmo tempo a imagem de Urraca veiculada por textos medievais, também é negativa. Nomeadamente, por exemplo, no caso da Historia compostelana criada pelos meios próximos do arcebispo de Santiago de Compostela – Diego Gelmires (cca 1069–cca 1149). Sobre o retrato de Urraca cf. por exemplo Barros Dias, 2004: 129–132; Martin, 2006: 1–29. Sobre o papel da mulher na idade média no contexto da imagética presente em crónicas da época, veja-se por exemplo de Barros Dias, ibidem: 125–127.

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negativo, mais precisamente como figurações do protótipo da rainha má e excessiva que alia a ambição, o desregramento sexual e uma grande falta de escrúpulos” (Dias, 2003: 184). Isabel de Barros Dias, ao analisar as mencionadas obras patrocinadas por D. Afonso X o Sábio, observou uma clara anti-exemplaridade de D. Teresa que identificou como realização do paradigma da feminidade negativa (associada aos conflitos, sede de poder, traição, violência, sexualidade devassa, etc.) e a um anti-exemplo funcional tanto no plano moral, como no plano político (ibidem: 183–193). Estas observações igualmente podem ser aplicadas ao retrato criado por Galvão, embora o contexto político em que surge a sua crónica seja diferente. Por outro lado, note-se que apesar de Galvão sublinhar a maldade de D. Teresa, refazer o retrato negativo presente em tantas outras obras, ele não nega o facto de ela ser o tronco de Portugal. Nas palavras do cronista é dela e do seu marido que “descendem todolos Reis de Portugal, que até agora foram” (Galvão, ibidem: 43). A alta linhagem de D. Teresa e a sua ascendência real, a despeito das suas inúmeras transgressões, dignificam e enaltecem Portugal. Ao passo que D. Afonso Henriques é sempre tratado como uma fonte contínua de exemplos e um monarca exemplar, o papel anti-exemplar da mãe do primeiro monarca muda aos poucos no decurso da idade moderna. Esta mudança deve-se a transformações do próprio pensamento historiográfico. Como já se indicou, vários autores da idade moderna qualificam as narrativas medievais referentes às origens de Portugal de meras fábulas e contestam alguns dos seus mais famosos episódios (cf. Calafate, ibidem: 132). Fazem-se pesquisas e descobrem-se fontes diplomáticas que mudam o panorama da época. Por outro lado, o retrato exemplar de D. Teresa surge também das necessidades políticas de momento e, no caso das obras surgidas no contexto da crise de sucessão a e da subsequente União Ibérica, inscreve-se nas conjeturas ideológicas da chamada literatura autonomista que visa objetivos patrióticos. Muitas obras historiográficas do período da monarquia dual remetem para biografias perfeitas e retratos ideais de personagens históricas. O mesmo acontece no caso de Flores de España excelencias de Portugal. Flores de España excelencias de Portugal... consta de vinte e quatro capítulos que louvam vinte e quatro caraterísticas portuguesas. Estes, a sua vez, subdividem-se em excelências que exemplificam as ditas caraterísticas. Note-se que não se trata apenas de matéria histórica. António de Sousa de Macedo enaltece a natureza, as personagens históricas, os acontecimentos do passado, a língua portuguesa, mas também certos grupos sociais24. O passado constitui apenas um dos elementos deste retrato perfeito do país. O caráter da obra é completamente diferente do da crónica de Galvão. António de Sousa de Macedo elogia todo Portugal e não só um dos seus reis. Este facto, além dos objetivos da obra, obviamente resulta do caráter literário da época. O próprio autor descreve claramente os seus propósitos encomiásticos e totalizantes nos três prólogos. Estes são: o prólogo dirigido a Filipe IV [III], o prólogo dirigido ao reino de Portugal e o prólogo dirigido ao leitor. Neste último prólogo, António de Sousa

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Sobre a construção da obra, veja-se Sousa de Macedo, 2003: XXIII e ss.

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de Macedo sublinha – com uma dose de falsa modéstia (que aliás constitui um tópico literário) – que as belezas de Portugal “son tan claras, que no las podrá escurecer el más nublado estylo” (Sousa de Macedo, 1737: s.p.). Ainda, no prólogo dirigido a Portugal, sublinha que as excelências portuguesas são tantas e tão grandes que não precisam de grande pluma para serem descritas. Como diz António de Sousa de Macedo “ay escritor que haze la materia, y materia que dá lustre al que la escrive” (ibidem: s.p.). As excelências de Portugal inserem-se obviamente neste segundo campo. O autor pretende criar uma imagem perfeita de Portugal e elogiar a pátria, mas igualmente dar uma lição de moral. É por isso que a imagem negativa de D. Teresa é eliminada e substituída por uma imagem positiva. No seu labor histórico-encomiástico António de Sousa de Macedo muda a imagem tradicional de D. Teresa. Desparecem os episódios negativos, como sejam, a luta entre a mãe e o filho, a usurpação do governo, o segundo (e o terceiro) casamento com o(s) conde(s)galegos, etc. D. Teresa, contrariamente ao texto da crónica de Galvão e outras narrativas medievais, surge como um modelo de virtudes femininas. O seu retrato faz parte, entre outros, da excelência dedicada às mulheres nobres portuguesas no capítulo consagrado à fortaleza da nação portuguesa. Efetivamente, no tratado escrito por António de Sousa de Macedo D. Teresa defende Portugal com “la grandeza de su animo” (Sousa de Macedo, ibidem: 227–228), vive numa harmonia perfeita com o seu filho e torna-se num dos garantes da independência e da grandeza de Portugal. Portanto, de uma mulher que se opõe à independência do Condado, transforma-se numa mulher que defende a sua pátria25. Assim a sua perfeição pode ser observada nos campos ético (incluindo a vida privada), monárquico e guerreiro. Não se trata de um retrato feminino estereotipado. Ela aproxima-se do modelo de mulier fortis. Trata-se de uma mulher valente, boa, guerreira, defensora da pátria, mas igualmente obediente, tal como as bíblicas Judite, Débora ou Ester. D. Teresa junta-se assim a estas personagens, mas igualmente a outras mulheres que António de Sousa de Macedo faz desfilar nas cartas do seu tratado. Estas são: as mulheres exemplares da história universal – Semiramis, Fúlvia, Zenóbia; da mitologia grega – Atalanta, Hipólita, Helena; da História de Portugal – as filhas de D. Sancho I, D. Isabel, Ana Fernandes e outras26. D. Teresa torna-se num exemplo a seguir. Curiosamente, a exemplaridade de D. Teresa, filha bastarda de D. Afonso VI, é também sublinhada pela releitura da sua proveniência. Segundo António de Sousa de Macedo, D. Teresa é “hija legitima, que tuvo Doña Ximena de Gusman su muger [mulher de Afonso VI], con quien fué casado” (ibidem: 58). É interessante observar que o autor do tratado não dá nenhuma prova documental. Ele pura e simplesmente diz que “Duarte 25 26

Termo anacrónico no contexto da idade média, mas usado propositadamente, posto que a obra de António de Sousa de Macedo se inscreve na época do advento das nações modernas. Note-se que nem todas as mulheres citadas constituem uma clara referência exemplar. É por exemplo o caso de Semiramis. No universo da cronística polaca ela funciona como uma boa rainha (cf. por exemplo a crónica de Wincenty Kadłubek, 1996: livro I, capítulo 8, p. 19), ao passo que, como demonstra Isabel de Barros Dias, na historiografia de matriz afonsina é tida como uma rainha má (ibidem: 187, nota 133). Posto que na obra de António de Sousa de Macedo ela é enumerada ao lado das mulheres exemplares, parece que esta questão merece ser estudada neste contexto, sobretudo, dado que o percurso de Semiramis é parecido ao percurso político de D. Teresa.

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Nuñes [de Leão], a quien siguieron otros, concluye con buenos fundamentos, que era hija legitima” (ibidem: 58). Também noutros casos ele procede da mesma maneira, ou seja, limita-se a evocar autores reconhecidos e apelar à sua autoridade (argumentum ad verecundiam). Posto que no tratado Flores de España, excelencias de Portugal... D. Afonso Henriques aparece igualmente como um soberano exemplar (talvez ainda mais perfeito do que noutras obras), é válido afirmar que D. Teresa e seu filho desempenham um papel de modelo de virtudes tipicamente portuguesas – inscrevem-se no cânone de comportamentos ideais, tais como, a heroicidade, a perícia, a honestidade, a magnanimidade, a fortaleza, a clemência, etc. descritas nos respetivos capítulos. No tratado de António de Sousa de Macedo as imagens de D. Teresa, D. Afonso Henriques e muitas outras figuras da História de Portugal complementam-se e servem para criar uma imagem perfeita de Portugal consoante os objetivos traçados no prólogo. A mesma orientação com pequenas variações aparece noutros textos do autor criados após 1640. As figuras de D. Teresa e de D. Afonso Henriques constituem uma clara referência moral e/ ou legitimadora por exemplo na Genealogia Regum Lusitaniae ou na Falla que fez o D. Antonio de Sousa de Macedo do Conselho da Fazenda de Sua Magestade, no iuramento de Rey do Muito Alto e Muito Poderoso Dom Affonso VI. Nosso Senhor. Em Quarta Feira 15. de Novembro de 1656 Neste primeiro texto dignifica-se a linhagem de que descendem os reis de Portugal (Macedo, 1643: 8–10). No segundo faz-se uma linha de continuidade entre D. Afonso Henriques, D. João IV (1604–1656) e D. Afonso VI (1643–1683) e compara-se a Restauração, e a subsequente guerra, ao labor guerreiro do primeiro monarca português. Do mesmo modo, associa-se a ação política de D. João IV à (re)fundação do Reino (idem, 1656). Convém destacar que António de Sousa de Macedo usa, como ele próprio refere no prólogo ao leitor, muitas obras. “Para hazer esta obra he visto los más Autores, que me fué possible, y todo lo que digo es fundado en sus autoridades” (Sousa de Macedo, ibidem: s.p.) – escreve. No entanto, a maioria das fontes consultadas é da idade moderna. Na realidade António de Sousa de Macedo não se aproxima da “verdade” (será que ela existe?), mas observa os propósitos apologéticos, políticos e didáticos – afinal exempla docent. Portanto, como no caso doutras obras autonomistas, criam-se as “verdades apoiadas de mentiras” (Cidade, ibidem: 105). Note-se ainda que António de Sousa de Macedo não é o primeiro a sublinhar e recuperar a importância da figura da mãe do primeiro rei de Portugal. Esta linha reinterpretativa orienta vários textos da época. A “depuração” e idealização da História de Portugal no contexto da crise de sucessão e da União Ibérica, incluindo a “purificação” da figura de D. Teresa, foi observada e estudada por José Eduardo Franco na obra de Fernando Oliveira (Franco, ibidem: 126–130)27. Muitas observações deste historiador português podem ser aplicadas ao tratado de António de Sousa de Macedo. Por outro lado, destaque-se que nem todas as obras da idade moderna projetam um retrato plenamente positivo de D. Teresa. Na segunda parte da Monarchia

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Termos empregados e propostos para definir este fenómeno por José Eduardo Franco.

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Lusitana ela é tida como uma rainha má e o próprio António de Sousa de Macedo na Lusitania Liberata ab injusto Castellanorum dominio dignifica a ascendência da rainha D. Teresa, mas volta a relatar os seus atritos com o filho (Sousa de Macedo, 1645: 69–80, 94–93) Em jeito de resumo, vale a pena dizer que a imagem de D. Teresa muda na História de Portugal consoante as necessidades políticas e/ou ideológicas do país e as mudanças do próprio pensamento histórico. Note-se que, como sublinha Janusz Pelc, muitos textos que falam do passado dão a antigos heróis traços herdados da tradição histórica e traços da realidade em que surge o retrato (Pelc, ibidem: 5). Desta maneira D. Teresa – uma mulher anti-exemplar dos textos medievais – torna-se uma figura plenamente positiva. Acresce que a figura da condessa-rainha raramente aparece sozinha. O modelo por ela veiculado é visível sobretudo quer em oposição, quer em consonância com o modelo representado pelos homens que estão à sua volta. Nem a primeira, nem a segunda fonte analisadas observam a veracidade histórica, mas criam padrões de conduta – D. Teresa continua, portanto, a ser uma figura imaginada e empregada com certas finalidades, mormente, entre outras, didáticas, moralizantes, encomiásticas e/ ou políticas. Destaque-se ainda que as ditas duas faces de D. Teresa podem ser observadas também no caso doutras fontes medievais e modernas. Como já sublinhei, Crónica Del Rei D. Affonso Henriques de Duarte Galvão e Flores de España, excelencias de Portugal de António de Sousa de Macedo, brevemente apresentados e analisados neste estudo preliminar, constituem bons exemplos da anti-exemplaridade e exemplaridade de D. Teresa ao mostrarem as duas faces da mãe do primeiro monarca português.

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rasto checo e cumplicidade ibero-eslava na mistificação fradiquiana28

Vlasta Dufková Universidade Carolina em Praga República Checa Resumo: Partindo da personagem de Libuska da Correspondência de Fradique Mendes eciana, o artigo propõe-se, por um lado, a demonstrar ter “a velha epopéia bárbara”, citada no texto, o fundo real duma célebre mistificação do romantismo checo; por outro, a colocar a inclinação declarada do protagonista para o mundo eslavo num contexto mais amplo, que vai das mistificações ibérica e eslava do escritor francês Prosper Mérimée à presumida cumplicidade de “marginais” da cultura europeia da época. Palavras-chave: Eça de Queirós; Fradique Mendes; mistificação romântica; Julgamento de Libuše / Libušin soud; Prosper Mérimée

libuska, a bárbara Aproveitando a oportunidade da iminente primeira publicação checa da Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós, na tradução de Zuzana Turková, propus-me a acrescentar mais um pedaço ao mosaico intertextual fradiquiano. Com efeito, o texto do famoso “gênio com escritos” eciano, sempre disposto a alojar ideias de outrem, mais e mais parece-me ser um engenhoso agregado de escritos alheios bem digeridos e formar, assim, um anti-plágio monumental onde é impossível atribuir autoria, uma vez que o plagiador potencial já é criação do seu autor, nem traçar uma fronteira nítida entre ficção pura e mimese que abrange a imitação da realidade literária.

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Este artigo faz parte do projeto GAČR 14-01821S Pokus o renesanci Západu. Literární a duchovní východiska na přelomu 19. a 20. století.

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A minha contribuição às palavras cruzadas, por Eça, intenta seguir o rasto checo e, em sentido mais largo, eslavo, bem lisível a partir da personagem de Libuska: a importância daquela amiga de Fradique Mendes é enorme porque foi a sua propriedade perto de Starobelsk, no “governo de Karkoff”, que acabou por servir de depósito – virtual, é óbvio – do cofre não menos virtual com os “escritos”, mais virtuais ainda do que o próprio Fradique, da invenção de Eça. Comecemos por lembrar a situação, crucial para a nossa reflexão, em que o nome Libuska é dado à amiga russa de Fradique: Madame Varia Lobrinska. O que, à primeira vista, pode parecer um episódio anedótico e um tanto rocambolesco, tem de fato um fundamento na história da literatura checa: Fradique […], enlevado então no culto das Literaturas eslavas, se ocupava com paixão do mais antigo e nobre dos seus poemas, o Julgamento de Libuska, casualmente encontrado em 1818 nos arquivos do castelo de Zelene-Hora. Madame Lobrinska era parenta dos senhores de Zelene-Hora, condes de Coloredo – e possuía justamente uma reprodução das duas folhas de pergaminho que contém a velha epopeia bárbara. Ambos leram esse texto heroico – até que o doce instante veio em que, como os dois amorosos de Dante, “não leram mais no dia todo”. Fradique dera a Madame Lobrinska o nome de Libuska, a rainha que no Julgamento aparece “vestida de branco e resplandecente de sapiência” (Queirós, 2014: 181).

Pois “o mais antigo e nobre” dos poemas eslavos, mencionado pelo prefaciador da Correspondência e conhecido, nas letras checas, como parte do Manuscrito de Zelená Hora (Rukopis zelenohorský), existe realmente apesar da precariedade ossiânica do seu estatuto declarado. As famosas “duas folhas de pergaminho”, junto com outro par de folhas, foram encontradas em 1817 no castelo de Zelená Hora, propriedade dos príncipes de Colloredo-Mansfeld na Boêmia, então parte do Império Austríaco. Visto que só em 1818 o achado ficou conhecido sem ainda ser publicado, o escritor português pode ter-se por muito bem informado. O poema que aparece no pergaminho contém efetivamente o episódio do Julgamento de L ibuše, lendária princesa reinante da Boêmia, “vestida de branco” e, se no original o verso referido pelo prefaciador português não continua palavra por palavra como citado, pelo menos “a sapiência” de Libuše resplandece por todo o texto, tido, na época, por trecho dum presumido poema épico mais longo, escrito em velho checo e datado dos séculos VIII a IX. O suposto descobrimento daquele manuscrito, assim como o achamento dum outro no mesmo ano, no campanário da igreja de Dvůr Králové, valeram muitíssimo ao despertar nacional dos checos no século XIX. Ambos alimentaram a mitologia nacional, inspirando várias obras-primas literárias, plásticas e musicais que deram novo fôlego à existência da nação, sob ameaça secular de germanização. Contudo, desde o princípio, houve eruditos – até entre os checos – que hesitaram em aceitar aquela prova da precoce maturidade literária da pátria. A um deles – o fundador da filologia eslava Josef Dobrovský – o fato de ter-se pronunciado contra a sua autenticidade valeu ser tratado de “estrangeirado e apatriota, caluniando fria e insensivelmente a glória dos antepassados” (cf. HŠ, 1908: 529–534).

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Em todo o caso, nos últimos anos da vida de Fradique Mendes, morto em 1888, e nas vésperas da publicação, em periódicos lusófonos, das suas primeiras cartas e do prefácio biográfico, naquele momento culminava, na longínqua Boêmia, a fervente Questão dos Manuscritos. Afinal, foram os argumentos científicos a favor da sua falsidade que prevaleceram na longa polémica, ainda que existam até hoje defensores da autenticidade de ambos os manuscritos palimpsésticos. Seria interessante não só conhecer a fonte das informações detalhadas e bastante exatas que Eça tinha colhido mas ainda saber se ele estava ciente da provável mistificação romântica. A eventualidade daquele conhecimento teria o poder duma mise en abyme, no livro de Eça, do caráter mistificador do próprio projeto fradiquiano. Todavia, também a alternativa “autêntica” tinha um potencial incontestável, especialmente no contexto eslavo mais amplo e um tanto vago, já que de checos nem se falava: a forma do sobrenome Lobrinska da Libuska parecia, aliás, mais ukraniana que russa e as propriedades da viúva nobre ficavam no território da Ucrânia atual29, enquanto que a Boêmia da descoberta, que fazia parte da Áustria da época, era pátria dum povo eslavo do grupo ocidental. Apesar disso, convém determo-nos um momento sobre a linhagem checa do nome dado a Madame Lobrinska: Libuska corresponde à transcrição portuguesa mais ou menos fonética (e próxima da pronúncia russa, pelo acento tônico) da forma diminutiva Libuška do nome da princesa lendária. Com o seu caráter familiar, ela funciona bem como apelido amável da amante, enquanto produz um efeito cómico, ligado à solenidade do mítico julgamento. Por outro lado, mesmo que por acaso, condiz muito bem com outro diminutivo, russo na ocasião, apesar da engraçada transcrição “latina” Varia: derivado de Várvara, equivalente russo de Bárbara, o nome ajusta-se perfeitamente à “velha epopeia bárbara” cuja leitura resultou, para Fradique e a sua amiga, em experiência amorosa à maneira de Paolo e Francesca, no Inferno de Dante. Em suma: ainda que temporário, o “culto das literaturas eslavas” e a paixão de Fradique pelo “texto heróico” fizeram-no bastante perito na matéria para escolher esse manuscrito, nada fácil de decifrar. É bem provável que a sua amiga russa não tenha tido nenhum problema com os supostos russismos, pouco lógicos no velho checo, nem com as hipotéticas afinidades com A gesta do príncipe Igor30: com efeito, foram estes, entre outros, os argumentos contra a autenticidade dos Manuscritos checos.

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Para não falar dos interesses russos que perduram da época tsarista até hoje. A propósito, a cidade de Starobelsk viria ser tristemente conhecida no século XX por ser, em 1940, um dos lugares do massacre de Katyń onde pereceram milhares de membros da elite polaca. Célebre epopeia russa cujo manuscrito acabou queimado sem ser devidamente examinado, em 1812, no incêndio de Moscovo durante a invasão napoleónica.

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cumplicidade ibero-eslava Portanto, se se encontra hoje provado que o projeto fradiquiano teve, por um lado, afinidades contemporâneas – p.ex. com Mélanges et Lettres de Ximénès Doudan ou com Notes sur Paris, de Hippolyte Taine (cf. Piwnik, 2014: 11) – e que, por outro, numa perspetiva de futuro, ele possui várias características proto-heteronímicas, o exemplo citado da “epopeia bárbara”, além de várias alusões ossiânicas no texto, mostra bem que a ligação com os antecedentes românticos não é menos importante. De fato, Fradique Mendes entra na linhagem dos manuscritos encontrados, ficções traducionais e editoriais, e outras mistificações que abundaram nas letras europeias31 desde a época pré-romântica, sem falar das cartas de Mariana Alcoforado, já do século XVII. No contexto ibero-eslavo que nos interessa, convém aqui citar um dos habituais do Cenáculo parisiense animado por Victor Hugo, Prosper Mérimée, apesar de não ter sido nomeado no texto eciano. O escritor francês, aliás um dos tradutores de cantos do bardo escocês, tinha utilizado por duas vezes a estratégia mistificadora com nuança paródica, no princípio da sua carreira literária: a primeira, em 1825, quando publicou o Teatro de Clara Gazul, atriz espanhola (Théâtre de Clara Gazul, comédienne espagnole) na suposta “tradução“ de Joseph Lestrange, “estranho” já pelo seu nome falante; e a segunda, em 1827, publicando outra tradução sob o nome A Guzla ou seleta de poemas ilíricos recolhidos em Dalmácia, Bósnia, Croácia e Herzegóvina (La Guzla ou choix de poésies illyriques recueillies dans la Dalmatie, la Bosnie, la Croatie et l’Herzégovine). O jogo mistificador era bastante sofisticado, já que Guzla era anagrama de Gazul, enquanto o próprio termo Guzla, na pronúncia espanhola, é homônimo da gusla que acompanha (pelo menos, na versão búlgara; na língua croata: gusle)32 o canto épico do bardo dos Balcãs, lá chamado guslar. Depois de idear o presumido retrato da atriz espanhola, com os seus próprios traços, Mérimée tinha inventado o nome “ilírico” do seu guslar, Hyacinthe Maglanovich, e descrito, numa notícia biográfica do tradutor e editor, o seu encontro com ele. Até a escolha do epíteto illyriques fazia parte da mistificação, pois em francês não era comum chamar assim os habitantes da Ilíria “resuscitada” durante a ocupação napoleónica: de fato, o seu nome apropriado era Illyriens e foi também essa a palavra utilizada33 para nomear uma língua eslava geral e inexistente, pois nos países em pauta falava-se croata e esloveno. No entanto, o epíteto ilírico podia significar outra coisa: o contrário de poemas líricos. E efetivamente, o épico das presumidas “traduções” francesas dos cantos do guslar era realçado pela sua forma prosaica. Seria exagerado ver algum nexo entre o título “ilírico” mérimeano e A lírica de João Mínimo, mistificação portuguesa de Almeida Garrett, publicada dois anos mais tarde, em 1829, em Londres. Contudo, é bem legítimo pressupor Eça ter conhecido todo aquele leque de ficções editoriais dos anos 20. Da última, de proveniência portuguesa, ele 31 32 33

Até o brasileiro Gonçalves Dias confessa, em 1848, haver tencionado mistificar com Sextilhas de Frei Antão. Instrumento tradicional balcânico de uma ou duas cordas, tipo de violino primitivo. P.ex. por Charles Nodier.

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manteve até, além do prefácio do editor, o motivo da “arca” com manuscritos inéditos. É verdade que a “arca afonsinha” garrettiana veio a ser, na obra de Eça de Queirós, um “cofre espanhol do século XIV”, enquanto a “arca de Noé” de João Mínimo, salvadora de bichos-escritos, ficou “vala comum”, na fala de Fradique Mendes. Em contrapartida, o impulso eslavo parece vir forçosamente por via de Paris. Além de Prosper Mérimée que fora buscar a inspiração romântica nas duas periferias do espaço europeu, aproximando-as na área da ficção literária apresentada como realidade, outro escritor francês, admirado tanto por Eça como por Fradique, Honoré de Balzac, acabaria, em 1850, por desposar a sua amante epistolar – uma ucraniana de nacionalidade polonesa, Madame Hańska. O casamento, realizado cinco meses antes de ele morrer e após dezoito anos de correspondência amorosa, dá a impressão duma tentativa de enfim encarnar o ideal do amor romântico, construído literariamente à base da vida... O matrimónio desejado veio, à maneira do Candide voltairiano, perto de cinquenta anos um tanto cunegondescos da noiva-viúva, já longe da Étrangère que tinha mandado a primeira carta admirativa ao ilustre romancista. Pois, no texto abismado do Eça tardio, este vaivém vertiginoso entre ficção e realidade, assim como entre plágio e  intertextualidade, faz-se puro jogo de espelhos: o amor – como o texto – sublimes, inalcançáveis no centro civilizacional chamado Paris e cobiçado durante longos anos pela sua geração portuguesa e realista, atingem a perfeição no jeito virtual da obra cuidadosamente guardada nas proximidades de Starobelsk, numa cumplicidade risonha de periferia – obra invisível e assumida no seu papel de cópia produtiva, de tradução criativa, de mito fazedor de mundos. Se calhar, a intimidade de Fradique e Libuska, que sobreviveu à própria morte do protagonista, pelo seu caráter genuinamente ficcional do simulacro produtor de realidade pode também ser lida como outra prova de previdência do escritor português: naquela simbólica aproximação ibero-eslava, de cunho descentralizador embora de base romântica e provável inspiração francesa, podemos ver uma oposição ao ditado absolutista do centro detentor duma única e ilusória verdade universal ou, pelo menos, duma ótica privilegiada. Nas vésperas do modernismo e seus labirintos abissais, Fradique Mendes entrevê já o feitio pós-moderno do espaço europeu. O centro está em toda a parte, inclusive em Praga.

bibliografia Baschet, Robert. Du Romantisme au Second Empire: Mérimée. Paris: Nouvelles Éditions Latines, 1958. Garrett, Almeida. Lyrica de João Mínimo. London: Sustenance e Stretch, 1829. Disponível em: . Acesso em: 30-01-2013. HŠ (= Hanuš, Josef). Zelenohorský rukopis. In: Ottův slovník naučný. Vol. XXVII. Praha: Jan Otto, 1908, 529–534. Libušin soud. In: Rukopis královédvorský. Primeira edição ilustrada. Josef Kořínek (ed.). Praha: I. L. Kober, 1873, 71–75. Piwnik, Marie-Hélène. Introduction. In: Eça de Queiroz. La Correspondance de Fradique Mendes. Paris: Éditions de la Différence, 2014, 7–14.

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Queirós, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes (Memórias e Notas). Carlos Reis, Irene Fialho e Maria João Simões (eds). Lisboa: Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 2014. Queiroz, Eça de. La Correspondance de Fradique Mendes (traduzido do português e apresentado por Marie-Hélène Piwnik). Paris: Éditions de la Différence, 2014.

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conto fantástico regionalista no brasil? 34

Šárka Grauová Universidade Carolina em Praga República Checa Resumo: O artigo trata da suposta ausência do conto fantástico na literatura brasileira, especialmente quando comparada com as literaturas hispano-americanas. Depois de procurar as razões possíveis dessa lacuna, chama a atenção para o fantástico no conto regionalista da virada do século XIX para o XX. Por fim, defende a hipótese de esse fantástico ter surgido como uma reação à modernização rápida, constituindo, assim, uma interface entre o mundo cosmopolita e o mundo arcaico do Brasil. Palavras-chave: conto fantástico; regionalismo; fin de siècle Há quase vinte anos, a italiana Luciana Stegagno Picchio, eminente brasilianista, definiu a originalidade do Brasil no mapa cultural da América Latina como uma singularidade que reside na diferença: ser brasileiro na América quer dizer não ser hispano-americano (Stegagno Picchio, 2004: 20). No âmbito das Letras, um dos elementos marcantes dessa identidade pela negativa tem sido a suposta falta de uma narrativa fantástica brasileira precedente ao surgimento, em meados do século XX, dos autores do assim chamado “fantástico moderno” – sendo Murilo Rubião seu primeiro arauto35. Em 1959, Jeronymo Monteiro, um dos primeiros antologistas do gênero, escreveu em um curto prefácio do livro O conto fantástico: “Entre nós parece que […] há muitas lendas, superstições e assombrações por esse sertão, e há pouco quem se aproveite do tema 34 35

Este artigo faz parte do projeto GAČR 14-01821S Pokus o renesanci Západu. Literární a duchovní východiska na přelomu 19. a 20. století. O traço principal desse “neo-fantástico” é a construção de um mundo ficcional paralelo com leis próprias, pelo qual o mundo e o texto ganham um “estatuto de equivalência”, sendo anulado o “postulado da anterioridade e subordinação do mundo e do texto” (Paes, 1985: 16).

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para escrever” (Monteiro, 1959: 1). E Jacob Penteado, seu sucessor imediato, constatou, em 1961, que, “nas antologias dos contos fantásticos, os brasileiros primam pela ausência” (Penteado, 1961). Enquanto a  literatura hispano-americana estaria mais inclinada a  indagações universais de teor existencial e metafísico, a literatura brasileira primaria pelo mapeamento do país de modo mimético, ou seja, realista-naturalista. No dizer de Lúcia Miguel Pereira, uma constante da literatura brasileira é “a predominância da observação sobre a invenção” (Miguel Pereira, 1988: 175). No Brasil, o fraco governo colonial não conseguiu imprimir um sentido de unidade ao território administrado, impedindo, assim, a possibilidade da formação de uma consciência nacional que incluísse o próprio conhecimento do país. Ainda em Recordações de Escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto, doutor Loberant, jornalista carioca e encarnação literária do poder da imprensa, perde-se, de maneira simbólica, numa excursão à Ilha do Governador, na própria Baía de Guanabara onde vive. A independência tardia – declarada em vez de conquistada de arma na mão –, ao conservar no poder um filho da dinastia real do país colonizador, alentou a ânsia por uma convincente autonomia cultural. O relato de Jean-Baptiste Debret, pintor francês que residiu no Brasil entre 1816 e 1831, mostra a importância ideológica de cada pormenor na elaboração da representação do Brasil, tropical e civilizado, no pano-de-boca desenhado para os festejos da Independência e da coroação de Pedro I, primeiro imperador do Brasil. E, finalmente, a autonomia política coincidiu com o período do romantismo, para o qual a ideia de nação era uma pedra de toque de toda existência coletiva, fornecendo ao escritor brasileiro uma razão intrínseca do fazer literário para se empenhar na “construção” de uma nação brasileira, imposta de cima a uma comunidade sem voz articulada. Daí o fazer literário regionalista sempre abordar também a complicada relação entre a escrita e os excluídos. Ao escritor romântico, imbuído de um sentimento de missão, impunha-se o mandamento de Ferdinand Denis, segundo o qual o escritor brasileiro deveria procurar inspiração literária na “fonte que verdadeiramente lhe pertencia” (Denis, 1968: 30) – ou seja, na realidade brasileira, ainda mal conhecida. Apesar da ênfase original no maravilhoso indígena, esse preceito resultou, a longo prazo, no realce do documental e do descritivo, assim como no conceito da literatura brasileira como um ramo de “estudos pátrios”, levando as belas-letras nacionais a excluir o que se mostrava “indiferente ou avesso, não tanto à realidade do país, como ao propósito de a exprimir” (Baptista, 2005: 58). Ao lado das motivações históricas, sentiu-se a necessidade de outras explicações para a ausência do fantástico brasileiro, a mais recente delas apresentada por Murilo Garcia Gabrielli. Para ele, o maior empecilho do desenvolvimento da literatura fantástica consistiria no caráter “cordial” do homem brasileiro e no culto da familiaridade, apontados respectivamente por Sérgio Buarque de Holanda – em seu livro Raízes do Brasil (1936) – e por Gilberto Freyre – em Casa-Grande & Senzala (1933). Dessa forma, além da hegemonia do projeto alencariano – que preferia o romantismo da paisagem, humana e natural, ao romantismo dos segredos de alma –, a causa da escassez do fantástico na literatura brasileira residiria também na mentalidade brasileira, especifica-

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mente em “um horror à estranheza” que levaria à supressão das distâncias, vedando o estranho ficcionalizado (Gabrielli, 2002: 25)36. Terá sido, porém, o Homo Brasilicus realmente substancialmente incapaz de conceber o fantástico? Depois de uma onda de interesse pelo gênero do conto nos anos 1950 e 1960, atesta-se no Brasil, recentemente, uma retomada pós-moderna de interesse pelos gêneros até então considerados menores e de cunho popular, entre eles a narrativa (seja curta ou longa) denominada fantástica, do sobrenatural, de mistério, do insólito, do crime e do horror em sentido geral. Não se trata apenas de um novo gosto do público leitor, alvo de várias antologias do conto fantástico37, mas também de um fenômeno da academia, evidenciado pela proliferação de grupos de pesquisa, congressos, encontros nacionais, artigos acadêmicos e sites especializados38. Em consequência desse quadro, o mapa da literatura brasileira vem sofrendo alterações. A pesquisa sistemática, auxiliada pela crescente acessibilidade virtual de livros publicados no século XIX e sem edições novas, vem chegando a levantamentos surpreendentes, os quais mostram que há, sim, uma literatura fantástica no Brasil39. Embora persista, tanto no plano quantitativo quanto no qualitativo, a diferença entre o fantástico hispano-americano e o brasileiro, a ressureição da modalidade fantástica do conto comprova que a ideia da ausência dos contos fantásticos no panorama literário do país, possivelmente, não tenha sido apenas um resultado da criação literária comprometida com os usos e costumes do Brasil, mas também de um certo conceito da historiografia e da crítica brasileiras, as quais, no afã de demonstrar o abrasileiramento de uma tradição literária que “veio pronta de fora” (Antonio Candido), realçavam obras de aporte sociológico, etnográfico e geográfico. A literatura fantástica foi talvez negligenciada menos por escritores voltados para a “construção da nação” do que pela crítica e historiografia literárias, as quais lhe atribuíram pouco valor desde os tempos de Sílvio Romero e José Veríssimo. Se, hoje em dia, existe um consenso de que a partir das primeiras adaptações portuguesas dos contos fantásticos europeus – das quais a primeira parece ter sido a versão de Le peau de chagrin, de Balzac, publicada por Justiniano José da Rocha em O Chronista no verão de 1836 (Lopes, 1997: 269) – há uma linha ininterrupta de incursões brasileiras ao fantástico urbano, outro filão de textos fantásticos brasileiros parece ter uma recepção muito mais hesitante. Entre as novas antologias de contos fantásticos, foi apenas na

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Esse artigo do autor foi o ponto de partida de sua tese de doutorado intitulada A obstrução ao fantástico como proscrição da incerteza na literatura brasileira (Instituto de Letras, UERJ, 2004), a qual, infelizmente, não tivemos possibilidade de consultar. Para nos atermos apenas ao fantástico, mencionemos Bráulio Tavares (org.): Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003; Flávio Moreira da Costa (org.): Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006; Maria Cristina Batalha (org.): O fantástico brasileiro: contos esquecidos. Rio de Janeiro: Caetés, 2011. Sites: http://www.vertentesdofantastico.com.br/; https://sobreomedo.wordpress.com; http://oinsolitonaliteratura .wordpress.com/; http://malefantastico.blogspot.cz/. Grupos de estudos: O Fantástico e suas Vertentes; O Medo como Prazer Estético. Para a relação mais completa ver Batalha, 2013.

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seleta dos “contos esquecidos” de Maria Cristina Batalha que essa variante do fantástico – o conto fantástico regionalista – recebeu um espaço maior. Curiosamente, o conto regionalista da virada do século XIX para o XX produz justamente um tipo de texto que cumpre com os ideais das duas linhas literárias mencionadas, dando conta de um problema propriamente brasileiro e, ao mesmo tempo, avançando para o imaginativo e o universal. Entre seus autores figuram vultos de importância: Inglês de Sousa, Manuel de Oliveira Paiva, Coelho Netto, Simões Lopes Neto, Afonso Arinos, Valdomiro Silveira, Alcides Maia, Monteiro Lobato ou Hugo de Carvalho Ramos (listados aqui por ordem da data de nascimento). Incluídos o insólito e o maravilhoso, chegaríamos a uma lista ainda mais longa. Corolário da racionalidade das Luzes, o fantástico do século XVIII e XIX é uma reação à tentativa iluminista de suprimir “a parte mais arcaica do homem, cuja origem se confunde com a origem da própria espécie” (Chelebourg, 2006: 12 apud Batalha, 2009: 71). Dividido entre o natural e o sobrenatural, o conto fantástico aparece frequentemente nas épocas limítrofes em que o imperativo da razão, tornada instrumental, não permite dúvidas sobre o caráter material de toda realidade. Não obstante, o homem continua a sentir-se imerso no mistério da vida e confrontado com o mistério da morte. Também o maior surto do conto regionalista se dá em uma época em que, graças à economia do café e da borracha, não só as regiões Sudeste e Sul do Brasil, mas também o Norte, passam por um processo de transformação social de largas proporções, que vai da abolição da escravidão, passando pela expansão dos meios de transporte e pela consolidação de espaço urbano como o palco do moderno, até a divulgação de doutrinas modernas de pensamento, tais como o liberalismo e o positivismo. Como mostrou Lígia Chiappini, o passadismo regionalista pode ter uma função compensatória relativamente ao grande impacto da modernização (Chiappini, 1994). “O Rio civiliza-se”, rezava o slogan da modernização, lançado em 1904. E, apesar disso – ou exatamente por causa disso –, há uma certa nostalgia em relação aos torrões, onde, no dizer de Olavo Bilac, “as almas são rudes e as paixões são sinceras” (O Diabo Vesgo [Bilac, Olavo], “Crônica”, A Bruxa, 12. 03. 1897. Apud Pereira, 2012: 86). E o fantástico? Durante o século XIX, o mundo das ciências e do pensamento por elas inspirado conseguiu separar-se do mundo da vida e do horizonte de experiência do indivíduo pré-moderno. Esta velha ordem, na qual o homem fazia parte do universo, parece especialmente desejável em momentos de um acontecimento inesperado ou de perigo, sendo a fragilidade da vida colocada em evidência. É exatamente dessas situações que o conto fantástico regionalista parte para a exploração das terras inacessíveis à razão científica: “será a morte um estado definitivo?”, “existem seres sobrenaturais que se podem intrometer na nossa vida?”, “o que será um pressentimento?”, e assim por diante. Mas não é só isso. O fantástico pode ser também uma via real para a representação da alteridade, um problema que acompanha a literatura brasileira desde seus primórdios: seu atestado do nascimento retrata os índios da costa brasileira, tão diferentes dos navegadores portugueses quanto um ser humano pode ser do outro; a poesia de Gregório de Matos luta por uma maneira de inclusão do mundo americano, encontrando

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uma solução no antigo topos do “mundo ao revés;” José de Alencar dá expressão literária à ideia de uma conciliação com o outro “civilizável” (Peri, o Guarani), enquanto os bárbaros renitentes (os Aimorés) estão tacitamente erradicados – uma receita, aliás, encontrada já no velho P. José de Anchieta; e assim ad libitum. Portanto, o conto fantástico regionalista brasileiro é um fenômeno curiosamente híbrido. Por um lado, ele nasce do interesse pela cultura popular do Brasil rural, sendo assim um rebento do folclorismo romântico europeu que traz em seu bojo o fascínio pela literatura oral. Mas, ao contrário do que se passa na Europa, esse não é um sentimento de colecionador de antiguidades e os autores do gênero não se limitam a florilégios reverentes, considerando-se, antes, herdeiros ativos do folclore nacional: pensemos apenas em Bernardo Guimarães, um exímio contador de causos – escritos, falados e encenados. Por outro, enquanto o romantismo europeu redescobriu a literatura e a cultura populares como instrumentos da libertação das algemas da razão iluminista, apreendendo as lendas, fábulas e contos maravilhosos como indícios inestimáveis dos aspectos negros e irracionais do ser humano, o estudo das tradições populares no Brasil difundiu-se plenamente apenas nos anos 70, ou seja, no período pós-romântico. Desta forma, o maravilhoso e o fantástico popular surgem paradoxalmente ligados ao interesse erudito pelos usos e costumes do homem rural (cf. Schneider, 2005, esp. Cap. II, “O século XIX: o sentido cultural do nacionalismo”, 45–69). O típico autor do conto regionalista nasce na província, mantendo duradouros vínculos afetivos com a região natal. Ao mesmo tempo, sendo um requintado homem de letras, encontra-se plenamente integrado ao grande mundo da cidade, nomeadamente ao Rio de Janeiro – omphalos do mapa-múndi do Brasil –, e parece que, apesar de toda a saudade, dificilmente pode ser suspeito de nutrir um desejo de identificação com o pensamento anacrônico rural. Pelo contrário: a crítica fartou-se de reprovar a visão condescendente do turista literário da Capital que se deixa prender pelo pitoresco do lugar e recua diante da empresa de “pôr em cena os sertanejos tal qual eram” (Miguel Pereira, ibidem: 185), embora não se saiba muito bem o que esse “tal qual” exatamente significa. Ou, a partir de uma perspectiva mais formal, censura o distanciamento complacente com o qual o homem da cidade ostenta seu “requinte gramatical e acadêmico”, confinando seus personagens “por meio de um ridículo patuá pseudo-realista no nível infra-humano dos objetos pitorescos” (Candido, 2002 /1975/: 89–90). Antonio Candido aponta para uma dualidade de propósitos do escritor regionalista culto da virada do século. Conscientemente, esse se apresenta como um humanista instigado pelo desejo de trazer à literatura alta o homem rústico e o curioso mundo por ele habitado. Por outro lado, ele, inconscientemente, confirma-se na sua superioridade, aumentando a distância erudita entre o autor e seu objeto humano pitoresco, transformado em autêntico “pobre diabo” (cf. Paes, 1988: 38) – em todos os aspectos inferior ao escritor e a seus leitores. Ora, se há um gênero capaz de apreender as relações ambíguas entre o mundo da razão moderna e o mundo da crendice arcaica, é o conto fantástico. Nesse caso, poderíamos pensar na possibilidade de os elementos fantásticos e maravilhosos, com algu-

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ma frequência presentes no conto regionalista, não serem um defeito do realismo ainda incipiente nem uma falta de idoneidade do escritor-turista, mas, muito pelo contrário, um expediente que proporciona captar a ambivalência do estatuto do autor culto perante os seus personagens ignorantes. Desde “A Dança dos Ossos”, de Bernardo Guimarães, a perspectiva do narrador, na maioria dos casos ancorada fora do mundo rústico, é de uma importância crucial. O narrador é um forasteiro, um intruso – um fato em alguns casos materializado na presença do narratário, um emissário do espírito moderno. Aqui o conto regionalista fantástico apropria-se de uma fórmula antiga, de acordo com a qual à intrepidez do senhor corresponde a covardia do servo. De forma parecida, o erudito deve, à moda do cavaleiro antigo, introduzir na escuridão das superstições a luz da razão e do conhecimento científico, o qual um dia levará a modernidade ao pedestal de “um tempo livre de toda a matéria de que são feitos os medos” (Bauman, 2008: 8). Hoje em dia, quando a modernidade passa por uma revisão de fundo, sabe-se quanto contrabando anti-moderno atravessou incólume a fronteira da razão dita civilizada. “O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e em cada homem uma crença diversa. Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num país essencialmente católico, onde alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões”, escreve João do Rio, exímio cronista, em seu livro-reportagem sobre as religiões no Rio de Janeiro (Rio, 2006: 15). Notório é o caso de Henrique Maximiano Coelho Netto, um dos ícones da Belle Époque carioca, que se converteu ao espiritismo ao ouvir sua neta falecida falar pelo telefone com a mãe – um espírito aparentemente moderno não tem que ser necessariamente imune aos espíritos aparentemente do além. Justamente na época em que os escritores brasileiros escreviam seus contos da raia de dois mundos, a antropologia (Marcel Mauss) e a psicanálise (Sigmund Freud) modernas revelaram a existência de um filão arcaico no homem moderno – uma estrutura psíquica arcaica. George Devereux, um etnopsiquiatra famoso, averigua que mesmo o homem moderno pensa e age de maneira pré-lógica, especialmente quando se encontra em situações graves, desorientado ou sob stress afetivo (Devereux, 1971: 234). Dito isso, não surpreende que haja uma incerteza existencial por baixo de uma camada epidérmica da modernidade brasileira, cuja chegada vários escritores da época retrataram como uma simples mudança de bastidores. Será a vida humana mesmo uma questão de bioquímica? Se o autor do conto fantástico regionalista é, de certa forma, um homem de duas culturas – a rústica, com a qual entrou em contato quando jovem; e a elevada, adquirida mediante seus estudos, uma vida de cidade grande e, muitas vezes, viagens à Europa –, podemos supor que o fantástico, na sua indeterminação entre o supernatural, preternatural e o “natural”, corresponda na sua maneira de ver e pensar a uma interface entre essas duas culturas vividas e sentidas. É uma hipótese que resta provar.

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como traduzir o calão e manter-se fresco como uma alface? considerações à margem da tradução para polaco do novo dicionário do calão de afonso praça Jakub Jankowski Universidade de Varsóvia Polónia

Resumo: No presente texto pretendemos partilhar a experiência de um exercício criativo de tradução do Novo dicionário do calão (NDdC) de Afonso Praça para polaco. Pretendemos descrever tanto a situação dicionarística na Polónia que nos levou a tentar realizar esta tarefa (o nosso skopos), como comentar as nossas escolhas que fazem do referido dicionário não “texto de partida”, mas apenas “ponto de partida” para elaboração duma ferramenta linguística utilíssima na aprendizagem da língua portuguesa menos oficial. Metodologicamente, voltamos então ao período tradutológico empírico que antecede o aparecimento dos Estudos de Tradução (ET). Palavras-chave: dicionário; calão; tradução

palavras de aquecimento A Secção Luso-Brasileira do Instituto de Estudos Ibéricos e Iberoamericanos (ISIiI) da Universidade de Varsóvia oferece aos seus estudantes a possibilidade de escolherem no segundo grau (mestrado de dois anos) uma opção orientada para estudar os fenómenos da tradução e desenvolver pesquisas na área dos Estudos de Tradução (ET). Uma das cadeiras que compõe esta opção, completando o quadro dos ET no ISIiI, é a aula de Teoria e Prática de Tradução, ministrada com alguns sucessos pelo autor do presente artigo já há seis anos. O objectivo principal da aula é juntar a teoria e a prática, ou seja, mostrar como é que o modelo teórico, o ideal da tradução, não chega aos pés do desafio prático, que oferece sempre uma data de problemas cujas soluções não têm respostas ou estas não são suficientemente satisfatórias no vastíssimo ramo dos ET puros (cf. Holmes,

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1988). Portanto, é preciso continuar a inventar soluções de um ou mais problemas tradutológicos, ou seja, tentar desenrascar-se e safar-se. Os processos que ocorrem na caixa negra-preta dos tradutores-aprendizes são sempre activados de modo intuitivo, sendo a teoria sempre uma ferramenta posterior ao próprio acto tradutológico. A ideia do tradutor-mor (o professor, sempre como barra da turma) é questionar a eficácia dos modelos teóricos existentes. Propõe-se aos estudantes desenvolverem projectos muito práticos que posteriormente exigem sempre uma difusão do texto produzido (p.ex. publicado na revista do Instituto) e exigem também fornecer o conhecimento do contexto da tradução, ou seja, o contexto do processo inteiro de edição, incluindo as tarefas que normalmente o próprio tradutor não exerce (p.ex. a elaboração da legendagem para a gravação vídeo). Até agora os participantes da cadeira conseguiram preparar amostras de tradução da literatura brasileira contemporânea que era suposto serem apresentadas num evento parecido com “Przeczytane w tłumaczeniu” (“Lido na tradução”)40, compreendendo a leitura do trecho de um texto traduzido com a exibição paralela do original na tela do projector e a discussão com o tradutor sobre aspectos textuais controversos, interessantes, bem e mal conseguidos, sejam quais forem. A ideia que já tem barbas (pois a aula foi realizada no ano académico 2010/2011 em cooperação com a professora Magda Walczuk, leitora da variante brasileira de português no ISIiI) ainda não foi realizada. O motivo para criar este conjunto de amostras tradutológicas foi o programa brasileiro de apoio à edição do Ministério da Cultura/Fundação Biblitoeca Nacional, ao qual os tradutores jovens podiam concorrer com as suas propostas. No entanto, o devido nunca aconteceu, mas que a ideia teria pernas para andar comprova-o a recém-publicada tradução do livro Estação Carandiru de Drauzio Varella, na Polónia, que aproveitou a oportunidade criada pelo programa acima-referido. Relativamente aos outros projetos, a publicação de poesias de Florbela Espanca e Maria Pawlikowska-Jasnorzewska está prevista para 2016. As traduções polaco-português e português-polaco foram concebidas para ajudar na fase final do projeto relacionado com a VII Conferência Internacional da série: Culturas Ibéricas e Eslavas em Contacto e Comparação, sob o título Interfaces em Estudos de Género (FLUL, Universidade de Lisboa, 7–9 de maio de 2013). Na onda poética, existe ainda o exercício de traduzir de novo o livro Mensagem de Fernando Pessoa. Esta tarefa pretende propor novas versões dos poemas, mas tendo como o ponto de partida as traduções existentes efectuadas por H. Siewierski e Agostinho da Silva (2006/2014). Trata-se de activar as capacidades da leitura crítica do aluno e, a partir desses pressupostos, da produção artística. O espaço da publicação está sempre garantido na revista “¿?” do ISIiI41, liderada por José Carlos Dias, leitor do Camões, I. P., in situ. Conseguimos também traduzir canções portuguesas para o concurso Le Tradução (veja: http://portugalistyka.wordpress.com/2013/09/18/wyniki-konkursu-przekla40 41

Evento organizado por EUNIC – European Union National Institutes for Culture. Cf. https://iberystyka-uw.home.pl/content/view/131/114/lang.pl. Acessado 31-10-2014.

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dowego-letraducao/, acesso em 31 de Outubro de 2014) onde uma das participantes da nossa cadeira ganhou (Joanna Filipkowska) e outras duas foram distinguidas com uma menção honorosa (Aleksandra Wilkos e Antonia Łaguna). Conseguimos também traduzir a gravação da peça teatral Sorteio da literatura portuguesa, uma peça do nosso grupo teatral Pisca-pisca, e preparar uma versão em DVD com legendagem (por enquanto só numa edição caseira DIY). Conseguimos ainda traduzir artigos sobre vários aspectos da cultura, vida, história e arte portuguesas no contexto do 25 de Abril, que foram publicados no site dedicado às comemorações dos 40 anos da Revolução dos Cravos (veja: http://www.rewolucjagozdzikow.pl/?page_id=103; acesso em 31 de Outubro de 2014). Também já cá canta o filme traduzido A Cancão de Lisboa. Pela frente temos ainda traduções de alguns trechos de Bestiariusz Słowiański (Bestiário eslavo; será o nosso bicho-de-sete-cabeças?), mais “mensagens” de Pessoa e algumas surpresas pelo caminho (cuidado, aqui há Gato Fedorento). De todas as ideias, a mais ambiciosa é o projecto de traduzir o Novo dicionário do calão composto por Afonso Praça, trabalho no qual provavelmente participarão várias turmas de estudantes42.

pontapé de saída A ideia de traduzir NDdC de Afonso Praça para polaco nasceu devido ao facto de que há pouquíssimas fontes linguísticas em polaco no que diz respeito à aprendizagem da língua portuguesa corrente, menos oficial e menos elegante. Há quem diga que falar bem uma língua estrangeira significa saber ofender nessa língua. Por isso tomamos como a fonte o dicionário do registo linguístico que é por natureza efémero, livre e muitas vezes pouco decente. Daí que o trabalho tradutológico logo se tenha tornado também um trabalho de adaptação e edição, fazendo com que a versão que nascerá seja uma mistura de tradução técnica e literária. Veremos, ao longo do nosso vôo tradutológico, o que condiciona as escolhas e como é preciso editar verbetes para a versão na língua alvo

42

Por enquanto, durante quase três anos de esforços tradutológicos, conseguimos rever e dar um jeitinho nas traduções da letra “A” (pp. 13–35; em total 22 páginas do dicionário que equivalem a mais de 230 entradas) e a “B” quase na totalidade (pp. 37–56; em total 19 páginas). Se fizermos um cálculo simplificado, ou seja, se contarmos que faltam ainda 21 letras, e cada letra ocupará dois anos de trabalho apenas no período da disciplina, teremos 42 anos do trabalho. O tradutor-mor tem agora 34 anos, então não conseguirá fechar o projeto antes da sua reforma. Quando acabarmos, ele terá 78 anos. O cálculo é obviamente simplificado, pois algumas letras têm poucas entradas – p.ex. “H” tem 29, “I” tem 67 ou “J” tem 52 ou ainda “X” tem 19 verbetes. Alguns verbetes terão de ser cortados (p.ex. por falta de equivalentes satisfatórios; eventualmente podem funcionar como explicações sem tradução funcional no registo calão), outros repetem-se, etc. Mas, por outro lado, uma vez que a primeira tradução esteja acabada, será preciso verificar as nossas escolhas e iniciar todo o duro processo de edição (p.ex., conceber/elaborar os índices; consultar as escolhas com os nativos da língua portuguesa, etc.). Pode também acontecer que um ou outro ano a disciplina não se realize por falta de estudantes interessados, mas também se pode acelerar o trabalho, prescindindo de outros exercícios tradicionalmente propostos aos estudantes no âmbito da cadeira. Ajudará também o facto de ter sido “contratada” para o projecto a leitora de português da Universidade de Poznań, Grażyna Jadwiszczak.

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fazer sentido. Antes, é preciso ainda definir e deixar bem clara a situação quanto aos dicionários disponíveis na Polónia que define e justifica o nosso skopos tradutológico. A “LusoSituação dicionarística na Polónia” está longe de ter contornos ideais para quem aprenda a língua em vários níveis. Existem alguns dicionários bilingues básicos que possibilitam a aprendizagem desde o “zero”, mas a aprendizagem num nível avançado já se torna um bocadinho complicada devido à escassez de fontes, tanto dicionários, como manuais. Dicionários bilingues avançados, sejam estes técnicos ou temáticos, quase não existem, e os que existem, falham a diferentes níveis. Ora vejamos, então, alguns exemplos. Mały słownik portugalsko-polski/Pequeno dicionário português-polonês é caracterizado no prefácio assim: O presente pequeno dicionário português-polonês contem cérca de 20 000 palavras, um número consideravelmente maior de sentidos, bem como numerosas locuções e expressões idiomáticas de uso corrente, sobretudo brasileirismos. Destina-se o dicionário às pessoas que estudam a língua portuguêsa, aos leitores da imprensa portuguêsa e sobretudo brasileira e aos poloneses radicados no Brasil. Em princípio, o dicionário não inclue palavras e sentidos especializados, exceto os de uso geral. Uma sinopse de gramática portuguesa foi incluida como apêndice (Sachs e Sachs, 1969/1999: VII)43.

Vejamos bem que locuções e expressões de uso corrente são referidas como “brasileirismos”e que algumas delas provavalmente já caíram em desuso. Por exemplo a expressão “chove a cantaros” (p. 101) que aparece neste dicionário foi assim classificada por Maria Franca Zuccarello, segundo ela “preferindo-se dizer ‘Chove pra caramba’, ou ‘Chove muito’” (2010: 29)44. Deixemos também bem claro um pormenor importantíssimo – o nosso alvo é a variante europeia da língua portuguesa, e contenha o que contiver, este dicionário não será de todo uma fonte de referência obrigatória no nosso caso. Mesmo assim, analisando melhor este dicionário, veremos que na parte “Abreviaturas e sinais” existe uma legenda onde encontramos os seguintes registos referidos que nos podem interessar quanto ao nível da língua aqui procurado: arcaísmos (arch.), brasileiro (braz.), português (port.), irônico (iron.), familiar (pot.), em senso figurado (przen.) ou vulgar (wulg.) (cf. XI–XIV). Por exemplo o verbete “calão” é traduzido como “gwara” (falar regional ou de algum meio específico) e na extensão lemos “palavra de baixo calão” – “wyrażenie brukowe” (linguagem da rua) (cf. p. 80). Como palavras vulgares aparecem p.ex. “merda” [“gówno”; p. 342; o nosso NDdC na p. 173 explica “Merda! – saudação que os actores se dirigem uns aos outros antes da estreia de um espectáculo, a desejar boa sorte (...); (drog.) haxixe]”, “puta” [“kurwa”; p. 432; no NDdC na p. 213: “puta – mulher que se faz pagar pelos contatos sexuais que tem com homens; mulher de má nota, que leva um vida dissoluta; meretriz; rameira; prostituta” e logo se segue toda a família putanesca: Puta de merda!, Puta de vida!, Putanheiro, 43 44

Deixamos nesta citação a ortografia original que contém alguns erros. No entanto, a dita expressão aparece sem nenhum aviso de antiguidade no recém-editado Dicionário português-polonês (variante brasileira), 2014, redigido por Mariano Kawka (p. 81).

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Puta que o pariu!, Putaria/putedo, Putéfia (prostituta sem nível)]; em senso figurado “cabra” [vários significados: animal, pejorativo sobre mulher, jogo de cabra cega, etc.; p. 77; no NDdC na p. 58: 4 entradas diferentes: (1, cri) “forma de alerta combinado entre os elementos do gang ou quadrilha, ser cabra = ser mau para os companheiros da prisão ou para os cúmplices de qualquer acto condenável”; (2) “prostituta”; (3) “nome dado ao sino da torre da Universidade de Coimbra” com a explicação; (4, mil. e des.) “mochila”] ou “cabrão”[kozioł; rogacz; no NDdC na p. 59: “cabrão” – marido enganado pela mulher; (cri.) denunciante]. Não existem “caralho” [no NDdC, p. 68: “caralho – termo chulo para designar o pénis; usa-se também como expressão de irritação ou revolta”], “cona”, “foder” etc. Do outro registo p.ex.: “ter lata como ter coragem/ousadia”, “mandar um telegrama = defecar” não aparecem. Esta revisão rápida e forçosamente aleatória já nos deixa alguma ideia sobre a insuficiência deste dicionário e prova como o NDdC podia preencher a lacuna lexicográfica existente. É curioso ver ainda neste contexto como foi traduzido o termo “caralho” (teremos ainda em conta que palavrões são apenas uma manifestação do calão, talvez a mais procurada e mais facilmente visível) na versão polaca do livro As naus de António Lobo Antunes: Original em português

Tradução polaca

Perto do candeeiro, mais nu sem o boné do que se estivesse despido, o cabo, a limpar as unhas com um fósforo, aparentava-se aos pescadores de limos da vazante, embora de polainas e cartucheira à cinta a fim de assassinar as enguias do rio. Ou os morcegos. Ou os comboios. Ou a Torre de combater os castelhanos. Ou o pai que engolira o seu chumbo em Loanda e se tornava devagarinho num lodaçal de tripas. – Caralho, disse um dos guardas, enjoado, a tapar o nariz com a manga de cotim. Espreite-me só este radiozinho japonês, nosso cabo. Uma locomotiva atravessou de cambulhada o posto de socorros a náufragos, tombando ficheiros e cadeiras, e agora olhavam-me os três, escondidos por uma ponta do lençol, numa surpresa de virgens, de modo que cresci um passo num sorrisinho humilde de desculpa: – Se os senhores pregassem o caixão agradecia: é que não há nada para me sentar no cais enquanto o barco não chega.

Pod lampą, bez czapki, trochę bardziej nagi, niż gdyby się całkiem rozebrał, naczelnik czyścił sobie paznokcie zapałką, upodabniając się do wieśniaków gmerających w błocie podczas odpływu, choć miał na sobie getry i skórzany pas na naboje, bo zamierzał wybić co do jednego węgorze w rzece. Lub nietoperze. Lub pociągi. Mógł też sposobić się do zwalenia Wieży, skąd namierzano kastylijskich terrorystów. Lub trafić mojego ojca, który najadł się ołowiu w Luandzie i powolutku zamieniał się w trzęsawisko flaków. – Chuj – rzekł jeden ze strażników, bliski wymiotów, zatykając nos rękawem szynela. – Przyfiluj mi tylko to japońskie radyjko, drogi kapralu [...] – Będę wdzięczny, jeśli panowie zakręcicie wieko trumny, bo nie mam na czym siedzieć w tym porcie, zanim przypłynie mój statek.

(p. 14)

(p. 30)

Neste trecho obviamente o “caralho” não quer referir o termo chulo usado para designar “pénis”, mas funciona como comentário que, traduzido para o polaco, devia ter a forma funcional, e não literal, então devia ter sido traduzido como “Kurwa mać” ou “Ja pierdolę”. Eventualmente com a ênfase interjectiva “O [Ó] chuj [caralho]!” Se

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calhar, se o tradutor tivesse tido à mão um bom dicionário português–polaco do calão, não tinha cometido este erro situacional. Por sua vez, Słownik polsko-portugalski/ portugalsko-polski// Dicionário de polaco-português/ português-polaco (Długosz, 2006) tem cerca de 50 000 entradas, clara distinção das diferentes acepções e exemplos de uso e frases idiomáticas. A parte abreviaturas (cf. p. 5) contém registos: coloquial (coloq.), figurado (fig.), irónico (irón.), pejorativo (pej.), regionalismo (reg.). A entrada “calão” é traduzida como “slang, żargon” (p. 490) (falar de algum meio específico). De resto, p.ex. “merda” e “puta” não aparecem; “cabra” aparece apenas como animal (p. 487), “cabrão” (p. 487: kozioł; (pej.) rogacz). Também não existem “caralho”, “cona” ou “foder” etc. Do outro registo, p.ex.: “ter lata como ter coragem/ousadia”, “mandar um telegrama = defecar” não aparecem. Słownik polsko-portugalski/portugalsko-polski// Dicionário polaco-português/ Português-Polaco (Błaż), nas 444 páginas, contém cerca de 14 000 verbetes onde encontramos alguns termos especializados e coloquiais. No entanto este dicionário deve ser considerado a maior vergonha luso-polaco-dicionarística, pois vejamos: uma palavra equivale sempre um significado (sic!) e a transcrição fonética continua simplificada, ou seja, não se recorre ao símbolos do Alfabeto Fonético Internacional (AFI), mas antes, usa-se a transcrição somente com caráteres polacos. No dicionário não há distinção entre “matizes” das palavras e acepções. A entrada “calão”, “merda”, “puta”, “caralho”, “cona”, “cabrão” ou “foder” não existem. “Cabra” aparece apenas como animal (p. 261). Não existem provérbios, expressões idiomáticas, etc.45 Podíamos ir mencionando e  analisando ainda mais dicionários “gerais” como Kieszonkowy słownik portugalsko-polski/ polsko-portugalski// Dicionário de bolso português-polaco/ polaco português (Bogutyn e Papis, 2007; 50 000 entradas), Słownik portugalsko-polski (wariant brazylisjki)// Dicionário português-polonês (variante brasileira) (Kawka, 2014) ou Słownik polsko-portugalski/Dicionário polonês-português (Śliwiński e Tyszkiewicz-Śliwińska, 1983/1997)46 ou “especializados” como Dicionário idiomático português-polaco/ Portugalsko-polski słownik frazeologiczny (Pleciński, 1999), Dicionário idiomático polaco-português/ Polsko-portugalsko słownik frazeologiczny (Pleciński, 2014), Słownik techniczny polsko-portugalski/Dicionário técnico polaco-português (Bloch, 1967) ou Słownik tematyczny polsko-portugalski/ Dicionário temático polaco-português (Hlibowicka-Węglarz, 2008)47. 45 46

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Para maior clareza, no anexo (Fig. 1) apresentamos Quadro comparativo de expressões entre dicionários escolhidos referente às entradas referidas no corpo do texto. Prefácio do dicionário em questão: “O dicionário polonês-português contém mais de 40 000 verbetes e expressões idiomáticas polonesas de uso corrente, traduzidas para português. Além da terminologia essencial estão compilados os mais importantes termos especializados de diversos domínios. Muitas das mais importantes palavras foram ilustradas com exemplos do uso (...) Visto que o português falado no Brasil difere da língua falada em Portugal, no presente dicionário foram levadas em consideração as mais importantes diferenças, e os princípios gerais que as reger estão expostos na ‘Breve informação acerca das diferenças entre o português falado em Portugal e no Brasil’” (Śliwiński e Tyszkiewicz Śliwińska –na ocorrência anterior com traço, 1989/1997: 5). Este dicionário compreende as seguintes secções: ambiente natural; plantas e animais; corpo e carácter do ser humano; vestuário e higiene individual; habitação; vida familiar e profissional; escola; computador, telecomunicações, material de escritório; comidas e bebidas; assistência médica, hospitais; viagens e hotelaria; desporto; tempos livres; cidade e aldeia; vida religiosa; economia; elementos do vocabulário jurídico e policial; número de

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Podíamos fazê-lo para convencer-nos ainda mais da necessidade de uma edição cuidadosa do “nosso” dicionário, que deverá compreender muita e pormenorizada pesquisa linguística para evitar erros fáceis do tipo da tradução do verbete “nêspera” como “nektarynka = nectarina” (ibidem, 155), enquanto se tratar de uma variedade de pêssego, lisa, livre de caroço (em polaco “nieszpułka”), é então o fruto de nespereira (em polaco “Nieśplik japoński”), uma fruta conhecida no Brasil por ameixa-amarela. Ou ainda incongruências gastronómico-culturais, como p.ex. a tradução de “francesinha” como “zapiekanka48 z serem, szynką i mięsem drobiowym” (ibidem, 144; “o assado/o cozido com queijo, fiambre e carne de frango”; correcto: CULINÁRIA prato composto por uma sande feita com duas fatias de pão de forma, bife, fiambre, linguiça e mortadela ou salsicha, coberta por fatias de queijo e por um molho picante francesinha (veja: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/francesinha, acesso em 31 de Outubro de 2014). No Słownik tematyczny polsko-portugalski/ Dicionário temático polaco-português, pelo menos na primeira edição deste, sente-se também a falta dos índices. No caso dos verbetes em polaco, o problema é facilmente resolvido, porque podemos procurar as palavras pelos temas por ordem alfabética. No caso dos verbetes portugueses a procura é dificultada. Conseguimos definir com facilidade a área temática onde o verbete português procurado se encontra, já para localizar o termo procurado temos de percorrer todo o tema numa busca várias vezes irritante. Do ponto de vista pragmático, a falta de índice dificulta as nossas buscas. É obviamente uma dica para os tradutroes do NDdC – o índice parece imprescindível para tornar o trabalho com o dicionário fácil, rápido e frutífero.

passes certos Tendo em conta a descrição feita acima e os exemplos fornecidos, compreendemos, p.ex., no caso da “francesinha” traduzida como “zapiekanka”, que um pormenor importantíssimo na elaboração do dicionário será “sentir” matizes das expressões traduzidas. A imagem das expressões e das palavras deverá ligar-se à origem destas. Se tivermos de traduzir, por exemplo, a palavra “bacamarte” no sentido de “pénis” (NDdC, p. 37), procuraremos primeiro a definição literal de “bacamarte” (dos 4 significados interessa-nos o primeiro) – “antiga arma de fogo individual de cano curto e calibre grosso, de escorva inflamada por pederneira e de carregar pela boca, sendo esta geralmente em forma de sino” (em linha http://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/ bacamarte, acesso em 31 de Outubro de 2014). Literalmente em polaco será “garłacz”,

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páginas 308; vocabulário coloquial (potoczny = pot.), bras. (v. brasileira) e port. (v. portuguesa europeia); falta do índice dos verbetes portugueses; cerca de 11 mil verbetes polacos. A palavra “zapiekanka” (Fig. 2) em polaco tem conotações bem diferentes. A imagem duma “zapiekanka” que se produz na cabeça de um polaco que ouve esta palavra não coincide com traços físicos de uma francesinha (Fig. 3). Veja ainda Fig. 2 e Fig. 3 no Anexo.

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então um tipo de arma de fogo que pela forma física relembra a forma do órgão sexual masculino. Esta curiosidade linguística pode ser, no entanto, acrescentada à entrada “bacamarte” antes de propor o equivalente funcional do termo. A palavra “garłacz” não é uma palavra comum pois descreve um tipo de arma que jamais se usa, então deixar de lado esta definição “tem pés e cabeça”. O equivalente funcional podia ser por exemplo “lufa” (“cano”) ou eventualmente “armata” (“canhão”) que são duas palavras que provêm do registo militar e em polaco podem designar figurativamente “pénis”. Analogicamente traduziríamos, ou tentaríamos traduzir, termos existentes em português, por exemplo, no registo marinho, que visem a sua alusão e possam designar em calão os mais variadíssimos objetos. É o caso de “bacalhau” (órgão sexual feminino ou aperto de mão) ou “berbigão” (clítoris). Os dois termos, em primeiro lugar exigiriam o nosso esforço de forma a encontrar equivalentes também marinhos. Se não conseguirmos, optaríamos pela alusão ao mundo animal, e assim em diante. Estamos conscientes de que ao ouvir uma designação de um objeto, a nossa cabeça produz sempre uma imagem que pode ser diferente de uma pessoa para a outra, pois nem todos, ouvindo a mesma palavra, imaginam o mesmo objeto. Segundo Saussure o signo linguístico é “uma entidade psíquica com duas faces indissociáveis, ligando um significante (os sons) a um significado (o conceito)” (apud Joly 1994: 33) e este significante produz na superfície mental várias imagens do mesmo objeto. A ligação entre os sons e a imagem sempre será arbitrária. O mesmo acontecerá, também, no caso das palavras feias ou de registo diferente do padrão linguístico. Para quem aprende uma língua estrangeira num nível avançado, é essencial discernir entre os vários registos, daí a necessidade de recorrer aos dicionários específicos (ou monolingues) e daí que o nosso skopos (alvo) da tradução fique definido. Reiss e Vermeer (1984; apud Bukowski e Heydel 2009: 175–176) definiram a tradução como uma atividade intencional sendo a correta definição do alvo da tradução o fator mais importante para uma realização bem conseguida. O nosso alvo é criar uma ferramenta útil na aprendizagem da língua portuguesa para os níveis mais avançados, bem como na atividade tradutológica. Mas o nosso exercício ultrapassa este objetivo, inscrevendo-se também na didática da tradução (exercício empírico e pragmático) e tendo em conta também a possibilidade de divertir o público-leitor da obra, uma vez acabada. Para percebermos o divertimento que um dicionário pode fornecer, recorremos à ideia dos autores do Dicionário de futebolês (tomo 1) – Luís Miguel Pereira (texto) e Ricardo Galvão (ilustrador) onde, no prefácio, João Gobern explica: É por isso que este Dicionário – que ajuda a perceber como a linguagem do Futebol se espraia já por todos os universos, da Economia à Arquitéctura, da Meteorologia à Geometria, da Matemática à Alimentação (nem que seja para “comer a relva”), da Psiciologia ao Oculto – consegue, sem pretensões, juntar um humor fino, a deixar de adivinhar um observador atento e perspicaz, a um alcance didáctico que talvez não se imaginasse possível numa obra que, em primeira instância, pretende divertir (2008: 6).

A ideia deste dicionário é divertir procurando ironias e nonsense na tensão entre o significado da expressão e a leitura desta ao pé da letra. Esta é uma boa dica para tra-

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dução do calão – explicar literalmente o significado das palavras para dar a perceber ao leitor onde nasceu o novo significado, metáfora ou quiça um circunlóquio. O mesmo, no caso da nossa tradução, é apresentar as palavras com história e explicar algumas curiosidades linguísticas soterradas debaixo de séculos de uso (que várias vezes apaga a memória sobre a origem de uma dada expressão), ou seja, explicar onde e quando for preciso de onde vem o significado de uma expressão (p.ex. tirar os três (vinténs), à qual voltaremos num abrir e fechar dos olhos, ou seja, enquanto o diabo esfregar o olho). A ideia deste tipo de explicações foi-nos fornecida pelo exímio porgrama televisivo Cuidado com a língua! (RTP) e as secções referidas no único livro editado e baseado no conteúdo deste programa: “Palavras com história”, “Regionalismos” e “Em português nos (des)entendemos?” (veja: Matos Rocha e Costa, 2008). Por exemplo, tal como os autores deste programa e livro explicam a origem das expressões “Pior a emenda que o soneto” ou “amigos de Peniche”, fornecendo respectivamente explicação literária e histórica, nós podemos evocar a história e explicação do que encontramos no NDdC aqunado o termo “boche” (alemão durante a Primeira Guerra Mundial) ou expressão “tirar os três (vinténs)” (desvirginizar; vem da moeda antiga que tinha um pequeno buraco e era usada pelas mães para fazer um colar às suas filhas nascidas; o colar era a marca da virginidade pois era tirado só depois do casamento que antes significava normalmente o início das relações sexuais). No entanto, o maior problema tradutológico no caso do calão é que este representa uma língua híper-vivíssima o que cria o perigo de desatualização de algumas expressões49. É uma perda inevitável que talvez faça com que o dicionário final seja apenas um documento de registo menos oficial no momento histórico de criação e não um calão actual. A elaboração da versão polaca do dicionário do calão terá de passar por algumas atualizações tal como aconteceu com o trabalho de Afonso Praça, como o autor o explica no prefácio à terceira edição: Quando se trabalha num Dicionário de Calão, esta simples designação chega a parecer um contradição em termos, um paradoxo. “Dicionário” aponta para um registo perene, sistemático, exaustivo. “Calão” remete para o lado mais livre e efémero da história de uma língua. Enquanto as mudanças na língua oficial, conónica, chegam ao ritmo de décadas, séculos, no calão, falada diariamente nas ruas, tudo acontece em meses, anos. Por vezes, um termo ou uma expressão tão depressa como aparece esfuma-se em novos quotidianos. O calão é a espuma de uma língua (2005: 7).

Assim, o calão uma vez traduzido e fechado sob a forma de um dicionário ajudará de certeza a perceber uma data de textos da época e a língua em geral, pois, com a passagem de tempo, muitos dos termos do calão ficam aceites no registo padrão da língua. Afonso Praça escreve sobre este aspeto no início do seu dicionário: Este dicionário, como de resto qualquer outro, está muito incompleto. Acrescentarei a minha sincera convicção de que está ainda mais incompleto do que os outros, não apenas devido a naturais 49

Lembremos que o cálculo feito na nota de rodapé do início visa acabar o trabalho deste projecto de tradução aos quase 80 anos do tradutor-mor...

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deficiências do autor, mas também à própria matéria do trabalho. O calão reflecte sobremaneira a mobilidade da linguagem e todos conhecemos palavras de calão de existência muito efémera. Por outro lado, o calão acompanha muitas vezes os movimentos sociais e integra-se a pouco a pouco na linguagem comum, muitas vezes quase sem darmos conta. Um exemplo: quem se atrevia, há quinze anos (talvez a menos), a utilizar “gajo” ou “gaja”, que fazem parte da linguagem corrente de todas as classes sociais, embora por vezes ainda choque em certos meios mais elevados ou em certos lábios mais finos? (ibidem: 10–11).

E o que pode chocar, ou como fazer para algo chocar e ser bem entendido? Vejamos três exemplos traduzidos com a proposta de como reflectir alguns ou todos os aspectos necessários na tradução das palavras escolhidas. O verbo “arrombar” no NDdC tem o sentido de “desvirginar uma mulher [o m.q. tirar os três]”. Se procurarmos mais, existe também a expressão “ter os três – ser/estar virgem” que pode ser acrescentada (acréscimo bermaneano) à entrada polaca. A tradução literal do verbo não é difícil, pois podemos escolher por entre seis significados que a Infopedia sugere: Arrombar: 1. fazer rombo em; romper; quebrar 2. forçar (o que está fechado) 3. provocar estragos em; dar cabo de; desfazer 4. figurado deitar abaixo; desanimar 5. figurado reduzir ao silêncio 6. figurado humilhar (em linha http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/arrombar, acesso em 19 de setembro de 2014). O verbo então tem de ser traduzido literalmente no seu significado violento – em polaco talvez “przebić”, “przedziurawić” ou “rozwalić” e funcionalmente como “nadziać” (“espetar”). A definição de “desvirginar uma mulher” não traz problemas – “rozdziewiczyć kobietę” é uma perfeita explicação. Já “tirar os três”, traduzido literalmente não diria nada, por isso, o verbete deverá ser primeiro explicado (a explicação apareceu no nosso texto bem acima) e depois traduzido funcionalmente, por exemplo como “zdjąć simlocka” (“tirar simlock” → “desbloquear (telefone)”). Só com todos esses elementos é que o leitor do dicionário terá a visão completa da matiz do verbo e também uma proposta do seu equivalente dinâmico (obrigado pelo termo ao excelentíssimo senhor Eugene Nida). A expressão “A assapar – andar muito depressa; a grande velocidade” encontra os seus equivalentes sem grandes problemas, mas o interessante seria explicar de onde vem este verbo. O dicionário Infopedia não ajuda, mas talvez o verbo tenha nascido do inglês ASAP (as soon as possible). Seria provável pois as palavras inglesas dão jeitinho às neologizações linguísticas. Basta comparar com o caso do verbo downloadar (descarregar) de download, e muitos outros possibilitados pela criatividade das línguas.

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Encontramos um caso engraçadíssimo quando traduzirmos a expressão “Armas de São Francisco” que compreende “gesto que é mais conhecido por manguito” e o “manguito”, num dos significados é “gesto ofensivo que consiste em dobrar um braço com o punho fechado e segurar na dobra interior do cotovelo desse braço com a outra mão”. Em polaco o mais popular seria dizer “wał” (“cilindro”), mas existe também o tal chamado “Gest Kozakiewicza” (“gesto de Kozakiewicz”) que seria um equivalente dinâmico perfeito. O nome do gesto é associado a um atleta polaco, saltador à vara Władysław Kozakiewicz que, em 1980 durante os Jogos Olímpicos, em Moscovo, recorreu a este gesto como a reação perante o público soviético que o assobiava. Kozakiewicz bateu na sua competição todos os concorrentes, ganhando o ouro na prova.

apito final O porquê de traduzir o NDdC já explicámos no início, mas à luz de considerações expostas ao longo do presente artigo, resumamos que a nossa tarefa se realizará porque é um exercício criativo de tradução que junta áreas técnicas, literárias e enciclopédicas, com exemplos e uma abordagem teórica sobre a tradução no âmbito pragmático. Ou seja, é uma tradução multifacetada que exige uma dura disciplina e boa organização, mas também exige um elevado grau de criatividade. O porquê de traduzir explica-se também pela falta de fontes linguísticas em polaco no que diz respeito à aprendizagem da língua portuguesa corrente, menos oficial e menos elegante. Neste caso, não se colocará à tradução o velho dilema de traduzir sentido por sentido ou palavra por palavra, traduzir funcionalmente ou literalmente? Sim, abarca este velho problema, já conhecido pelos Romanos, os primeiros tradutores reconhecidos, e responde-se assim: primeiro literalmente, depois funcionalmente; primeiro filologicamante, depois artisticamente, à procura da equivalência dinâmica de Nida. Traduzir recorrendo várias vezes às deformações bermaneanas (acréscimos e cortes) que serão sempre justificadas. Traduzir elaborando a versão polaca via adaptação, ou seja, tratar o NDdC como ponto de partida em vez de ser o único texto de partida para o único texto de chegada. Traduzir abrindo o texto de partida e traduzir para divertir ao contar a origem das expressões tanto portuguesas, como polacas, propostas como equivalentes dinâmicos. Eis a estratégia de manter o calão fresco como uma alface. Coisas vistas assim, o traduzir do calão não será somente uma viagem pela língua, mas também pela longuíssima tradição histórica no âmbito dos estudos de tradução.

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anexo Tab. 1 Quadro comparístico de expressões entre dicionários escolhidos merda Peq.Dic. PTGówno PL (1969/1999) (wulg.)

puta

cabra

cabrão

Kurwa (wulg.)

Koza; pej. sobre mulher (fig.)

kozioł; (fig.) rogacz







koza

kozioł; (pej.) rogacz















marido enganado pela mulher; (cri.) denunciante





termo chulo para o pénis; expressão de irritação ou revolta

Dic. Porto Editora PL-PT /PT-PL (2006)





Dic. PT-PL/ PL-PT (Błaż)





Dic. Calão

Saudação a desejar boa sorte; (drog.) haxixe



Prostituta 4 usos (+ toda diferentes a família de vocábulos)

cona foder

caralho

Fig. 1 Uma variedade de “zapiekanka” polaca [em linha http://moyastacja.pl/zapiekanki.html acesso em 1 de Novembro de 2014]

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Fig. 2 Uma francesinha [em linha http://atreve-te-a-sonhar.blogspot.com/2012/09/festival-da-francesinha. html acesso em 1 de Novembro de 2014]

Fig. 3 “Gest Kozakiewicza” (manguito) [em linha http://inprl.pl/kategoria/6/1/ acesso em 1 de Novembro de 2014]

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os elementos da “terceira cultura” na tradução do português para o polaco

Agnieszka Kruk Universidade Maria Curie-Skłodowska, Lublin Polónia Resumo: Esta comunicação tem por objetivo expor e analisar as estratégias de tradução dos elementos da “terceira cultura”. O material analisado é o conto Nhô Chic’Ana do escritor cabo-verdiano Baltasar Lopes e a sua tradução para o polaco. Os elementos da “terceira cultura”, neste caso, serão palavras, expressões, tradições etc. que não pertencem à cultura portuguesa mas fazem parte da cultura africana, descrita no conto mediante a língua portuguesa. Palavras-chave: tradução; cultura; o estranho Esta comunicação tem por objetivo expor e analisar as estratégias de tradução dos elementos da “terceira cultura” no conto Nhô Chic’Ana do escritor cabo-verdiano Baltasar Lopes. O termo “terceira cultura” aparece num trabalho de Anna Bednarczyk (2006: 199–201) onde é compreendido como uma cultura que não é a cultura da língua destino (a primeira cultura para os leitores da tradução) nem da língua origem (a segunda cultura para os leitores), mas são elementos estranhos mesmo para os leitores do original. No nosso caso, serão elementos da cultura africana presentes no original do conto analisado e na sua tradução para o polaco. Sem dúvida, podemos dizer que uma tradução não consiste só em apresentar aos leitores da língua destino apenas uma história composta por palavras e frases traduzidas, mas trata-se também de mostrar-lhes uma cultura diferente com toda a sua riqueza. Segundo Roman Lewicki (2002: 47–8), a maneira como os leitores concebem os elementos estranhos na tradução depende da sua sensibilidade à categoria de diferença cultural. Para os leitores que aceitam estas diferenças os elementos estranhos na tradução são uma mais-valia, e para os que as rejeitam estes elementos são irritantes e dificultam a compreensão do texto.

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Destas atitudes dos leitores advêm duas tendências na tradução: uma consiste em manter o maior número de elementos estranhos na tradução e a outra tem por objetivo domesticar o texto. Ambas têm os seus lados positivos, mas tendo em conta que na discussão sobre a tradução se fala sobre a fidelidade ao texto e a fidelidade ao autor (Fornelski, 1995: 23–24), no caso da tradução das literaturas africanas de expressão portuguesa ser fiel ao autor implica manter o maior número de elementos estranhos possível. Baltasar Lopes não só conta uma história, mas também mostra que há muitas diferenças entre a cultura africana e a cultura portuguesa cuja língua usa para escrever. Fá-lo mediante: a linguagem do texto, o seu estilo, a oralidade, o uso de termos e expressões típicas de Cabo Verde, a descrição de tradições e o modo de ver o mundo. Será possível manter todos estes elementos na tradução e indicar aos leitores que são questões muitas vezes alheias mesmo aos leitores portugueses? O  exemplo mais óbvio da presença dos elementos da terceira cultura em Nhô Chic’Ana são as palavras e expressões que aparecem no original mas não vêm do português, ou não são típicas da língua portuguesa. Língua origem

Língua destino

1

Nhô ChicʼAna tinha morrido

Właśnie zmarło się nho* Chic’Anie *Skrót od senhor – pan (przyp. red.)

2

Nhor não.

Nhor não! Nie synku!

3

Nhanha Bonga

Nhanga/Nhanha Bonga

4

um resmungo de guisa

Przystąpiła do mamrotania wypominków

5

nem deu as boas horas

Nawet nie powiedziawszy dzień dobry.

Nos primeiros dois exemplos, aparecem formas de tratamento que segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora são típicas de Cabo Verde. As palavras nhô e nhor são formas curtas de “senhor” neste país. Na versão polaca no primeiro caso o tradutor mantém a palavra original escrita em itálico, adaptando a ortografia ao polaco. O redator acrescentou uma anotação com explicação do seu significado. No segundo caso, o tradutor também escreve a forma original em itálico e repete o seu significado em polaco na frase seguinte, evitando a anotação. Graças a isso o leitor vê que no texto há elementos estranhos e ao mesmo tempo compreende o seu significado. No entanto, não obtém a informação de que são elementos da cultura cabo-verdiana, para ele podem parecer simplesmente palavras portuguesas. O exemplo (3) no original é muito parecido: nhanha em português de Cabo Verde quer dizer “senhora”. Desta vez, esta palavra na tradução é tratada como um nome próprio: não aparece em itálico e não é explicada. É escrita de duas maneiras diferentes Nhanga e Nhanha, o que deve ser uma gralha ou falta de atenção da parte do tradutor. No exemplo (4) aparece a palavra guisa que é relacionada com as tradições funerárias e a religião. Segundo o dicionário, em Cabo Verde é uma “cerimónia evocativa de um falecimento que se faz com uma refeição ao fim de um mês ou um ano” mas no

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texto aparece num contexto um pouco diferente, porque a guisa acontece entre a morte e o funerário. Na tradução polaca temos a palavra wypominki que são “orações pelos mortos rezadas na igreja mencionando os seus nomes”. Uma palavra mais adequada seria czuwanie que é uma “reunião na casa do morto para rezar”, mas esta tradução também perderia o carácter original deste costume cabo-verdiano. No último fragmento temos uma expressão boas horas que é uma “saudação que se usa em Cabo Verde entre as 10 e as 13 horas”. Na tradução temos uma generalização que significa simplesmente “sem dizer bom dia”. Nhô ChicʼAna conta a morte e enterro dum amigo do protagonista; assim, surge, no texto um outro grupo de palavras relacionadas com a cultura que são termos que têm a ver com a religião. Algumas expressões e alguns costumes têm os seus equivalentes em línguas diferentes mas há também elementos característicos especialmente da cultura descrita por Baltasar Lopes: Língua origem

Língua destino

6

rezar pelos passos que o Santo Filho de Deus andou na Rua da Amargura

Modlitwy do Pana naszego Jezusa

7

a cama-de-chão

mogilne łoże

8

O velho não seria encomendado com cantigas sacras

Staruszek nie dostąpił łaski nabożeństwa za zmarłych

9

Aproximei-me da cama

Podszedłem do mar

No fragmento (6) temos um exemplo de uma oração que pode ser típica daquela região ou pode ser uma oração universal por exemplo o Terço da Divina Misericórdia ou Via Crúcis, mas que tem um nome diferente naquela região. O tradutor polaco não define que oração é, só generaliza que são modlitwy do Pana Naszego Jezusa – “orações a Jesus Nosso Senhor”, perdendo assim a sua originalidade. No exemplo seguinte, o autor designa o túmulo como uma cama-de-chão. O tradutor polaco conseguiu inventar uma metáfora semelhante em polaco: mogilne łoże – “cama sepulcral”, uma expressão que não é usada em polaco mas pode ser facilmente compreendida. O exemplo (8) refere um costume de cantar cantigas sacras durante o funeral. Neste caso o tradutor adapta o texto à nomenclatura polaca porque nabożeństwo za zmarłych é a “missa do funeral”. É uma designação formal que não leva a pensar em costumes tradicionais. A tradução do último fragmento deste grupo mostra a mesma tendência: no original o morto era uma pessoa pobre, por isso o seu corpo estava simplesmente deitado na cama. O tradutor usa a palavra mary que significa “catafalco” e também pertence a um registo mais formal e elaborado. Como podemos observar, quanto à tradução dos termos relacionados com os costumes religiosos o tradutor na maioria dos casos generaliza os elementos da terceira cultura ou adapta-os às tradições polacas.

91

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O que diferencia uma cultura é também a sua mentalidade e a sua visão do mundo. Nos fragmentos seguintes podemos ver alguns elementos que definem os protagonistas do conto: Língua origem

Língua destino

10

Morro Morial Campo Casilhas Jalunga Caleijão etc.

Morro Morial Campo Casilhas Jalunga Caleijão etc.

11

filho-das-ilhas

syn wysp

12

Os crioulos levá-lo-iam como num andor, com respeito

Kreole, swojaki, poniosą go jakby w nosidełkach, z szacunkiem.

13

Nhô ChicʼAna foi posto na porta da Igreja.

Złożono ciało u wrót kościelnych.

O saimento de nhô ChicʼAna

Wyprowadzenie zwłok.

para que todos ouvissem. Nhô ChicʼAna morreu de fome.

by wszyscy usłyszeli: nho Chic´Ana umarł z głodu!

Adeus, nhô ChicʼAna.

Żegnaj, nho Chic’Ana!

Não lhe pediria mais lume para acender o cachimbo

Nie poprosi córeczki o ogienek do fajki

a sua última história, antes de ir fumar cachimbo

ostatnią bajeczkę, zanim odejdzie, by pykać ze swej fajeczki

14

15

No exemplo (10) há alguns topónimos que aparecem na mesma forma na tradução. Não são lugares bem conhecidos mas os seus nomes mostram que se trata de lugares estranhos, mesmo exóticos. A designação do fragmento seguinte: filho-das-ilhas é traduzido literalmente mas sem os hífens e também deixa imaginar qual é o lugar da ação. Encontramos mais uma indicação no fragmento (12) que menciona os crioulos. O tradutor faz um inciso swojaki para mostrar que pertencem ao mesmo grupo, que são afins. Todas estas indicações servem para mostrar qual é o lugar da ação, mas um leitor de um país de língua portuguesa obtém alusões mais claras, porque compreende também onde são usadas as expressões dos exemplos (1–5). As frases dos exemplos (13–15) mostram uma atitude diferente perante a morte no original e na tradução. No original, o morto é sempre pessoa, é designado pelo seu nome, de certa maneira ainda está presente. Na tradução em vez do nome da personagem há palavras como ciało – “corpo”, zwłoki – “cadáver”. Há também mais exclamações que tornam a morte mais dramática. Finalmente, nas frases do exemplo (15) aparecem diminutivos córeczka, ogienek, bajeczka, fajeczka que sublinham o sentimento de tristeza ou nostalgia. Tudo isso reflete a maneira como os europeus pensam sobre a morte, e perde-se a visão do mundo tão característica do texto original.

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Outra característica da literatura dos países africanos de expressão portuguesa é a oralidade do discurso (Łukaszyk, 2002: 100). Ao escrever e compor as frases, o autor tenta manter os elementos das histórias que tradicionalmente eram contadas. Língua origem

Língua destino

16

Com Chiquinho, então, era uma cegueira.

A już poza Chiquinhem świata nie widział.

17

Você conte um caso…

Powiedzcie, jak…

18

Tudo seco. Secas as bananeiras. Secos os plenos de cana.

Dokoła wszystko było zeschnięte. Bananowce stały wysuszone, takiż los przypadł trzcinie cukrowej

19

…aos ombros dos crioulos. Era um crioulo que ia a enterrar. Os crioulos iam dar terra a um irmão.

…na ramionach Kreolów. Jeden z nich miał być pochowany. Grzebać go będą jego bracia.

No exemplo (16) a oralidade é manifestada pelo uso do ditado com Chiquinho era uma cegueira e também pelo uso do advérbio então. No texto polaco o tradutor usa o ditado poza Chiquinhem świata nie widział que tem o mesmo significado e vem do registo popular. Sublinha a oralidade começando a frase pela expressão popular a już que habitualmente não é usada nos textos literários. O pronome pessoal você do fragmento (17) não tem equivalente polaco. O tradutor usa a forma verbal na segunda pessoa do plural powiedzcie que no passado era usada como forma de cortesia e ainda existe em alguns dialetos ou no campo. É então um elemento um pouco estranho mas compreensível e adequado à situação. O seu uso aumenta a oralidade do texto. Nos exemplos (18) e (19) o autor repete três vezes as mesmas palavras: seco e crioulos. Não seria difícil repetir estas palavras em polaco, mas o tradutor decide evitar a repetição mediante o uso de sinónimos e a modificação da sintaxe. Com isso as frases tornam-se mais elaboradas e mais literárias. O tradutor não tem problemas em encontrar expressões populares ou formas equivalentes para manter a oralidade do texto na língua polaca. Por outro lado, decide não usar as repetições para adaptar o texto às normas literárias polacas, perdendo assim um dos elementos de estilo típicos da literatura africana. Podia-se enumerar mais um grupo composto de elementos de estilo, mas estes não serão analisados no trabalho presente porque seria difícil definir se dado elemento original tem a ver com a cultura africana ou se é próprio do autor. A análise da tradução dos elementos culturais do português de Cabo Verde mostra que o tradutor criou um texto compreensível para o leitor polaco e manteve alguns elementos estranhos. Para um destinatário falante de português as alusões culturais são mais claras porque é capaz de observar as diferenças entre a variante que ele fala e a variante cabo-verdiana presente no texto. O leitor polaco vê que há elementos estranhos no texto, mas não consegue definir de que cultura vêm sem procurar informações sobre o autor. Para o destinatário “não é importante apenas que o texto seja bem escrito do

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ponto de vista linguístico e estilístico mas deve também mostrar algo novo, um mundo distinto, uma cultura estranha” (Kucała, 2009: 174–175). Contudo, no conto analisado seria muito difícil introduzir mais elementos estranhos e explicar melhor a sua proveniência sem uma ingerência forte no texto mediante anotações ou numerosos incisos que poderiam perturbar a fluidez da leitura. Podemos concluir que, para expor os elementos estranhos, o tradutor mantém os nomes próprios, a toponímia e algumas formas de tratamento, cria ditados e metáforas equivalentes, sublinha também a oralidade do discurso. Ao mesmo tempo, domestica o texto quando perde a originalidade de alguns costumes típicos de Cabo Verde, alterna também um pouco a visão do mundo dos protagonistas, a sua atitude perante a morte. O estilo da tradução é mais elaborado, não mostra a simplicidade do texto original manifestada, por exemplo, nas suas repetições. Quer isto dizer que, para o tradutor, o objetivo principal foi contar a história do original de uma maneira bem clara para o destinatário polaco, mesmo que seja à custa de certa domesticação do texto.

bibliografia Bednarczyk, Anna. Kultura przez kulturę. In: Filipowicz-Rudek, Maria – Konieczna-Twardzikowa, Jadwiga (eds.): Między oryginałem a przekładem XI: Nieznane w przekładzie. Kraków: Księgarnia Akademicka, 2006, 197–211. Fornelski, Piotr. Kontekstualizacja przekładu. Między mitem wierności a zdradą. In: Konieczna-Twardzikowa, Jadwiga – Kropiwiec, Urszula (eds.): Między oryginałem a przekładem I: Czy istnieje teoria przekładu? Kraków: TAiWPN, 1995, 21–29. Kucała, Danuta. Czy zachowanie obcych elementów w przekładzie może być korzystne? In: Brzozowski, Jerzy – Filipowicz-Rudek, Maria (eds.): Między oryginałem a przekładem XV: obcość kulturowa jako wyzwanie dla tłumacza. Kraków: Księgarnia Akademicka, 2009, 173–183. Lewicki, Roman. Obcość w przekładzie a obcość w kulturze. In: Lewicki, Roman (ed.): Przekład, język, kultura III. Lublin: Wydawnictwo UMCS, 2002, 43–51. Lopes, Baltasar. Nho ChicʼAna. In: Chabasińscy, Krystyna – Wojciech – Klave, Janina. Opowiadania Portugalskie XIX i XX w. Kraków: Wydawnictwo Literackie Kraków, 1978, 222–226. Lopes, Baltasar. Chiquinho. Capítulo 18. Disponível em: . Acessado 17-06-2014. Łukaszyk, Ewa. Rzeczywistości egzotyczne w literaturze afrykańskiej tłumaczonej z języka portugalskiego. Strategie tłumacza wobec obcości radykalnej. In: Filipowicz-Rudek, Maria – KoniecznaTwardzikowa, Jadwiga (eds.): Między oryginałem a przekładem VII: Radość tłumaczenia. Kraków: Księgarnia Akademicka, 2002, 99–105.

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o panorama das traduções literárias da literatura portuguesa na eslovénia (1991–2013)

Mojca Medvedšek Universidade de Liubliana Eslovénia Resumo: As primeiras traduções da literatura portuguesa para o esloveno apareceram no século XX. A maioria das traduções foi publicada após da segunda guerra mundial, quando a Eslovénia ainda fazia parte da República Federativa Socialista da Jugoslávia e era parte de um território cultural muito maior e linguisticamente diverso. O artigo apresentará o panorama histórico das traduções eslovenas da literatura portuguesa para a língua eslovena, destacando a história dos últimos vinte anos após a independência da Eslovénia, ou seja, a partir de 1991. Palavras-chave: tradução da literatura; língua eslovena; história da tradução

1. introdução O presente artigo tem por objetivo apresentar os resultados de uma primeira pesquisa, realizada entre janeiro e março de 2014, que dará a conhecer uma imagem da atividade da tradução de português para o esloveno na Eslovénia atual. Os resultados vão incorporar-se numa investigação mais exaustiva que terá por objetivo descrever a história da tradução das línguas românicas no território da Eslovénia no século XX. Este projeto é fruto da colaboração de vários tradutores e investigadores, e é apoiado pela Associação de tradutores literários da Eslovénia e pela Revista da Tradução Hieronymus (Journal for Translation).

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2. história da tradução até 1991 A Eslovénia (independente desde 1991) não tem uma longa nem produtiva tradição na tradução de literatura de língua portuguesa para o esloveno. Podemos facilmente constatar que a literatura portuguesa no século XX era pouco conhecida e pouco publicada na Eslovénia – a prova é que são poucos os documentos e matérias em forma de críticas, quase inexistentes as resenhas nas revistas especializadas ou as investigações ao nível universitário. Os eslovenos obtiveram a primeira tradução de português em 1925. Curiosamente, o primeiro autor traduzido foi Afonso Lopes Vieira (poeta português, 1878–1946), mas a primeira obra traduzida para o esloveno não foi uma coletânea de poesia desse escritor; o tradutor A. Debeljak (1887–1946) escolheu O romance de Amadis (1923). Os motivos dessa decisão não são muito claros. Debeljak, professor, tradutor de francês e espanhol, poeta interessado pelas literaturas em línguas românicas, terá escolhido a obra de Lopes Viera por algum motivo pessoal. Aliás a nota na primeira página do livro indica claramente que o livro foi traduzido com a autorização de Lopes Viera. O silencio que seguiu esta primeira publicação foi extenso. Depois da Segunda Guerra Mundial, as traduções da literatura em língua portuguesa para o esloveno começaram a despontar. A Eslovénia naquela época fazia parte da República Popular Federal Socialista da Jugoslávia, e entre 1945 e 1991 publicaram-se 5 obras de literatura portuguesa e 9 obras de autores brasileiros, ou de outros países lusófonos. Até à independência da Eslovénia em 1991, sobretudo nas décadas dos anos 60 e 70, o leitor esloveno pôde descobrir os seguintes autores e as obras portuguesas: Eça de Queiroz (O primo Basílio, 1966), Alves Redol (A barca dos sete lemes, 1966), António Lobo Antunes (Os cus de Judas, 1976) e Aquilino Ribeiro (Quando os lobos uivam, 1978). A obra-prima de tradução da década dos anos 70 foi a publicação d’Os Lusíadas em 1976, despertando muito interesse tanto da crítica, quanto do público. Nessa primeira versão, feita pelo tradutor Andrej Capuder (1962), apresentou-se ao público uma versão resumida, na qual o tradutor Capuder fez apenas a tradução parcial de alguns cantos selecionados. Quanto às traduções de literatura brasileira nas mesmas décadas, o autor mais traduzido e publicado foi Jorge Amado com cinco obras: Terras do sem fim (1956), Os subterrâneos da liberdade (1962), Gabriela, cravo e canela (1965), Os pastores da noite (1968) e Tereza Batista cansada de guerra (1979). Outras obras publicadas e traduzidas na mesma época foram: José Veiga (A hora dos ruminantes, 1981), João Ubaldo Ribeiro (Sargento Getúlio, 1984), uma obra de teatro de Lygia Fagundes Telles (1990) e uma coletânea de contos populares brasileiros (1977). A tradução de Baltazar Lopes (Chiquinho) é a única representante da literatura lusófona fora do Brasil. O que podemos constatar, examinando os livros publicados entre 1945 e 1991, é que a grande maioria dessas traduções de português para esloveno são indiretas, feitas através de italiano (José J. Veiga, por exemplo), espanhol e servo-croata.

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Podemos citar dois nomes que aparecem sistematicamente tanto como tradutores quanto como autores de prefácios ou posfácios das obras traduzidas para o esloveno: Janko Moder (1914–2006) e Ilse Pollack. As razões para esta situação são pelo menos duas; sendo a primeira a inexistência do Departamento de Língua e Literatura Portuguesa (embora o Departamento de Língua e Literatura Espanhola em Liubliana fosse inaugurado em 1981). O segundo facto importante é o de que o conhecimento de outras línguas faladas na zona da antiga Jugoslávia (croata, sérvio) permitiu a um leitor educado esloveno conhecer a literatura portuguesa (lusófona) através das traduções principalmente croatas ou sérvias.

3. história da tradução após 1991 O nosso breve resumo da história da tradução na Eslovénia terá como objetivo avaliar o desenvolvimento e a dinâmica da tradução literária da literatura portuguesa entre 1991–2013, tomando em conta exclusivamente as traduções dos livros de literaturas lusófonas, não sendo incluídos artigos, poemas, ou contos publicados nas revistas literárias. Após a independência em 1991, a política de apoios financeiros para traduções na Eslovénia foi alterada. O Programa Nacional de Cultura estabeleceu uma lista de obras literárias selecionadas como preferenciais; assim, apareceu uma lista básica prioritária do cânone da literatura portuguesa que deveria ser traduzida para o esloveno. O apoio financeiro para estas traduções destinou-se às editoras e foi distribuído pela Agência Nacional do Livro; estes apoios programados aumentaram significativamente o número de livros traduzidos e mostram um esforço consciente e pedagógico dos tradutores e das editoras de dar ao leitor educado um conhecimento e uma compreensão da chamada alta literatura portuguesa. Outra grande mudança, ocorrida depois da Independência da Eslovénia na política da tradução, foi a decisão das editoras optarem por traduções diretas de português para o esloveno. Esta decisão coincidiu com a formação de uma nova geração de tradutores que, na maioria dos casos, terminaram os estudos de português fora do país.

3.1. obras em números Examinando a base nacional eslovena de dados bibliográficos Cobiss, o número total de obras traduzidas de língua portuguesa é de 127. Esse número é enganador porque inclui também todas as reimpressões dos mesmos títulos. Entre 1991–2013 a Eslovénia obteve 90 títulos traduzidos de língua portuguesa; 40 obras são traduções de autores portugueses para o esloveno, 50 obras são traduções de autores de língua portuguesa. Há uma diferença importante comparando esses dados com o Index Translationum de UNESCO, que regista apenas 44 títulos.

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A proporção entre autores portugueses traduzidos para o esloveno e autores que escrevem e publicam em português é razoavelmente equilibrada: 55 % representam autores que escrevem em Português e 45 % apresentam traduções de autores portugueses. A maior parte dos títulos (50) representa os autores que escrevem em português (brasileiros e africanos): em 50 títulos, são 10, ou seja 18 %, obras literárias, a maioria pertencente ao grupo dos livros esotéricos, religiosos ou literatura popular. Relativamente à publicação das obras dos autores portugueses, podemos observar que em 40 obras, 25, ou seja 62 %, dos títulos pertencem à chamada “alta literatura”; os restantes (15) são livros de cozinha ou livros religiosos. A distribuição das traduções por géneros literários é a seguinte: a maioria das obras traduzidas são obras de ficção – romances, novelas, contos – (90 %), as publicações de poesia representam uma percentagem menor (16 %) e há só uma obra de teatro traduzida e publicada (4 %).

3.2. autores e obras traduzidas Na história da tradução da literatura portuguesa para o esloveno, as traduções de obras de Fernando Pessoa representam um capítulo especial, já que é o autor mais presente e mais traduzido entre todos os autores portugueses. As primeiras traduções de Pessoa foram publicadas nas revistas literárias no início dos anos 90. Entre 1997 e 2013, publicaram-se seis títulos por seis editoras diferentes, traduzidos por quatros tradutores distintos. Em 2007, cinco anos depois da primeira publicação em forma de livro de Fernando Pessoa, a primeira obra de teatro traduzida do português foi encenada em 2007 pelo Teatro Nacional em Ljubljana; foi O marinheiro de Fernando Pessoa; esta obra, apresentada no palco nacional, incrementou visivelmente o interesse pela literatura portuguesa. O autor que pela presença e importância se segue à obra de Fernando Pessoa é José Saramago, considerado como o clássico moderno. Quatro romances foram publicados na Eslovénia entre 1998 e 2011. O terceiro autor mais publicado pertence a uma geração mais jovem de autores: Gonçalo M. Tavares; entre 2008–2009 publicaram-se três dos seus romances. As antologias poéticas dizem respeito a 12 %, ou seja, 3 títulos da totalidade das obras publicadas; geralmente tentam cobrir uma falta da visão mais geral da história da poesia portuguesa, assim como colmatar a necessidade de criar laços entre os dois países e as duas culturas. A primeira antologia, 13 vozes portuguesas, é uma antologia da poesia portuguesa contemporânea (2009) que dá a conhecer as principais vozes da poesia do século XX, e a segunda, Poetas eslovenos e portugueses, é uma continuação bilingue que pretende

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dar uma visão panorâmica da poesia portuguesa do século XX ao público esloveno interessado. Acreditamos que a presença dos autores clássicos, apresentações públicas e uma boa resposta da crítica tenham despertado o interesse geral pela literatura portuguesa. Não existe nenhuma pesquisa em relação à receção das traduções da literatura portuguesa nas revistas literárias eslovenas. Esta parte da investigação ainda está a decorrer. O que podemos observar dentro da estrutura dos géneros literários é uma quase ausência de obras de ciências humanas – sociologia, filosofia, linguística, história, sendo a exceção alguns textos incluídos na obra seleta de Fernando Pessoa, e a existência mínima de textos dramáticos.

4. conclusão A publicação das traduções das obras literárias portuguesas aumentou substancialmente na Eslovénia depois de 1991. O percurso que aqui fizemos – para entender as dinâmicas de contraste, sobretudo no período entre 1945 e 1991 – deve ser entendido como um esboço básico para criarmos uma imagem da atividade da tradução do português para o esloveno na Eslovénia atual.

5. apêndice: lista das obras de literatura portuguesa traduzidas para o esloveno Antologija. 13 portugalskih glasov. Ljubljana: Center za slovensko književnost, 2009. Antologija. Zgodbe iz Portugalske. Ljubljana: Sodobnost International, 2009. Antologija. Slovenski in portugalski pesniki. Gumarães: Capital Europeia da Cultura, 2012. Antunes, António Lobo. Spodbujanje krokodilov. Ljubljana: Cankarjeva založba, 2003. Brito, Casimiro. Opus affettuoso. Ljubljana: Center za slovensko književnost. 2002. Brito, Casimiro. Na mojstrovi poti. Ljubljana: Center za slovensko književnost, 2013. Brandão, Raul. Húmus. Ljubljana: Beletrina, 2013. Carneiro, Mário de Sá. Lucijeva izpoved. Ljubljana: Modrijan, 2011. Jorge, Lidia. Dolina strasti. Ljubljana: Mladinska knjiga, 2007. Jorge, Lidia. Mož in druge zgodbe. Ljubljana: Pristopi-Literatura, 2013. Melo, Filipa. To je moje telo. Ljubljana: Učila, 2010. Pessoa, Fernando. Zadnja čarovnija (izbrano delo). Ljubljana: Nova revija, 1997. Pessoa, Fernando. Knjiga nespokoja. Ljubljana: Cankarejeva založba, 1999. Pessoa, Fernando. Pomorska oda. Ljubljana: Aleph, 2002. Pessoa, Fernando. Bankir anarhist. Ljubljana: LUD Šerpa, 2003. Pessoa, Fernando. Psihotipija (izbrano delo). Ljubljana: Mladinska knjiga, Kondor, 2007. Fernando Pessoa/Baron de Teive. O nemožnosti ustvarjanja. Ljubljana: LUD Šerpa, 2008.

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Tavares, Gonçalo M. Gospodje. Ljubljana: Študentska založba, 2008. Tavares, Gonçalo M. Jeruzlem: črne knjige. Ljubljana: Modrijan, 2008. Tavares, Gonçalo M. Naučiti se moliti v dobi tehnike. Ljubljana: Modrijan, 2009. Tavares, Miguel Sousa. V tvoji puščavi. Ljubljana: Modrijan, 2013. Saramago, José. Esej o slepoti. Ljubljana: Cankarjeva založba, 1997. Saramago, José. Zapis o samostanu. Radovljica: Didakta, 1999. Saramago, José. Evangelij po Jezusu Kristusu. Ljubljana: Cankarjeva založba, 2005. Saramago, José. Kajn. Ljubljana: Modrijan, 2011.

bibliografia Fontes da pesquisa: Biblioteca da Faculdade de Letras, Liubliana (Universidade de Liubliana). Biblioteca do Departamento de línguas e literaturas românicas da Faculdade de Letras em Liubliana. Cobiss. A base nacional eslovena dos dados bibliográficos (o catálogo coletivo das bibliotecas eslovenas). Disponível em: . Data de acesso: 15-09-2014. Index Translationum. Disponível em: . Data de acesso: 15–09–2014. Livros: Bajt, Drago. “Svetovna poezija na pragu novega stoletja”. Hieronymus. Vol. 2, N.o 1–2, 2008, 113–121. Grum, Mitja. Slovenski prevajalski leksikon 1550–1945. Ljubljana: ZRC SAZU, 2007. Moder, Janko. Slovenski leksikon novejšega prevajanja. Ljubljana: Obzorja, 1985. Kernc, Elizabeta. Slovenski biografski leksikon. Ljubljana: Jugoslovanska tiskarna, 1925–32.

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a imagem da atlântida no conto a revolução de aquilino ribeiro50

Silvie Špánková Universidade de Masaryk em Brno República Checa Resumo: A comunicação apresenta a imagem da Atlântida no conto A revolução (Jardim das tormentas, 1913) de Aquilino Ribeiro, dentro do contexto literário da época. Demonstramse os traços correspondentes ao tratamento comum deste mito em dada época, mas também as especificidades da abordagem aquiliniana, motivada pela sua pessoalíssima visão da cultura e civilização ibérica/europeia. Palavras-chave: conto português; o mito da Atlântida; o mito da cidade morta A cada passo lhes surgia, a rastos, pelas artérias das cidades mortas tudo o que eram despojos ilustres, desde carcaças dos homens e de animais a troféus de paz e de guerra. (Aquilino Ribeiro: A revolução)

No ensaio Las Atlántidas de 1924, José Ortega y Gassett escreve: En los últimos veinticinco años se ha ampliado gigantescamente el horizonte histórico. El aumento del área tradicional en que se movía la historia se ha producido casi a la par en cuatro dimensiones distintas, que han tallado otras tantas facetas de sensibilidad en el espíritu europeo: una es la antedicha prehistoria; otra, la penetración en las civilizaciones del Extremo Oriente; otra, la etnografía de los pueblos salvajes; otra, en fin, el descubrimiento de las Atlántidas (Ortega y Gasset, 2006: 747).

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Este artigo faz parte do projeto GAČR 14-01821S Pokus o renesanci Západu. Literární a duchovní východiska na přelomu 19. a 20. století.

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De acordo com Ortega y Gassett, o interesse pelas Atlântidas, as culturas submersas ou evaporadas, na viragem dos séculos XIX e XX, deve-se em parte à ambição de explorar as culturas e civilizações até então desconhecidas e/ou desvanecidas, podendo ser este interesse explicado também por um crescente gosto viageiro, como aliás atestam duas grandes figuras portuguesas desse período, Raul Brandão (1867–1930) e Manuel Teixeira-Gomes (1860–1941). Estes, nos seus escritos, registaram o forte impacto que lhes foi proporcionado pela visita a Pompeia51. Raul Brandão, inclusive, foi claramente inspirado por esta cidade soterrada na criação da sua vila anónima de Húmus (1917). O meu objetivo neste ensaio, contudo, não consiste numa ampla abordagem do interesse pelas Atlântidas ressuscitadas, mas muito restritamente no tratamento deste assunto na literatura da viragem dos séculos XIX e XX e, mais concretamente, num conto de estreia de Aquilino Ribeiro (1885–1963). É exatamente nesta época que o mito da Atlântida se cristaliza num tópico de caráter especial: ancorando-se na tradição clássica, pois, sintoniza perfeitamente com a atmosfera e sensibilidade do fin de siècle, com a sua face crepuscular, melancólica, depressiva e decadente. Numa possível leitura, o tópico literário da Atlântida pode ser perspetivado propriamente com base na estética finissecular, assente no fascínio pela decadência dos antigos impérios e pelo topos da urbe morta. Convém relembrar, a título de exemplo, que precisamente na viragem dos séculos XIX e XX o topos da urbe morta foi especialmente cultivado na literatura narrativa e dramática, sendo ligado a cidades como Bruges, Veneza, Toledo ou Peterburgo, nas quais a água se casa com a pedra, muitas vezes numa atmosfera voluptuosa de agonia, de decomposição e miasma simultaneamente repelente e (fatalmente) atraente52. Noutras obras, ainda, retratam-se nos mesmos tons crepusculares as cidades antigas, testemunhas de glórias passadas, como Micenas53, ou então as cidades decadentes, esquecidas, paradas, herdeiras de um passado colonial que, enfim, provam a transmissão do topos finissecular ao solo sul-americano54. Também na produção poética da segunda metade do século XIX encontram-se dispersos os semas da cidade morta, recorrendo ao tema de passeio pela cidade (nalguns casos – como nos poemas de Baudelaire, de flânerie) que ativa uma específica poética e mitologia urbana. Podemos mencionar, a título de exemplo, um poema de Christina Rossetti, de inspiração romântica (Dead City, 1847), em que o sujeito lírico passa por um rico banquete, sopesado de fruta, cujos comensais, devido a um luxo desmedido, se revelam petrificados. Ou então, um exemplo, sem dúvida importante, é o poema The City of Dreadful Night (1874) de James Thomson, em que os leitores reconheceram uma ima-

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M. Teixeira-Gomes escreve sobre as suas impressões da visita às ruínas de Pompeia num relato de viagem ficcionado, intitulado Agripina e inserido na coletânea Inventário de Junho. R. Brandão visitou Pompeia em 1906 na companhia da sua mulher, a qual deixou um testemunho escrito sobre esta viagem no seu livro Um coração e uma vontade (sobre este assunto vede Viçoso, 1999: 251–252). P.ex. Georges Rodenbach: Bruges-la-Morte, 1892, Thomas Mann: A morte em Veneza, 1912, Maurice Barrès: La Mort de Venise, 1903, Greco ou le secret de Tolède, 1911, Andrei Béli: Petersburgo, 1916, etc. P.ex. DʼAnnunzio: La città morta, 1899. P.ex. Monteiro Lobato: Cidades mortas, 1919 ou Abraham Valdelomar: La ciudad muerta, 1911.

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gem distópica de Londres, símbolo da humanidade no seu aspeto horrífico (Crawford, 1990: 41), que serviu de inspiração ao famosíssimo poema modernista The Waste Land de T.S. Eliot (1922). Um paralelo interessante desenha-se igualmente entre este poema (e também The Waste Land) e O Sentimento de um Ocidental (1880) de Cesário Verde: as duas imagens urbanas, de Londres e Lisboa, respetivamente, acusam a inspiração dantesca, a sua passagem pelas esferas infernais (Reckert, 1989: 18). O topos da cidade morta penetrou igualmente na obra dos melhores autores portugueses. Encontra-se no já citado romance Húmus de Raul Brandão, provavelmente a mais representativa figuração deste topos na prosa portuguesa, em que se conjugam os atributos da cidade parada (morta) e submersa. Não pode ser também omitida a sua narrativa anterior, Os pobres (1906), que apresenta um cenário noturno e lúgubre do submundo urbano, assim como as várias prosas de Fialho de Almeida (1857–1911), nas quais o espaço lisboeta, em pinceladas impressionistas com tons expressionistas, ganha um carácter especialmente escuro e moribundo (p.ex. na crónica Madrugada de Inverno de Lisboa galante, 1890, que em alguns aspetos faz lembrar os poemas de Cesário Verde). O mito da Atlântida nasceu com Platão (Timeu e Crítias) que a descreve como uma ilha localizada atrás das Colunas de Heraclo, próspera, invulgarmente rica em depósitos naturais e bem organizada do ponto de vista de administração social. Um dia, porém, como apura Platão, a ilha entrou em decadência, os seus habitantes começaram a perder a sua parte “divina”, tornando-se cada vez mais “humanos” e dominados pela cobiça e poder. Em seguida, devido a um terrível terramoto, a ilha foi engolida pelo mar. Desde então o mito não para de se multiplicar nas páginas de livros ficcionais, ensaísticos ou puramente sensacionais, fixando-se, naturalmente, também noutras artes, nas belas-artes ou (sub)artes audiovisuais. Não vale a pena referir títulos concretos, cuja mera exposição elucidasse apenas a popularidade do tema em questão (uma breve ilustração desta questão aparece, p.ex., em Umberto Eco). Gostaria de mencionar apenas as mais conhecidas obras literárias do século XIX que podiam ter sido inspiradoras para Aquilino Ribeiro: o romance Vinte mil léguas submarinas (1869–70) de Jules Verne, o poema City in the Sea (1845) de Edgar Allan Poe e, eventualmente, o poema narrativo do catalão Jacinto Verdaguer (Atlántida, 1878). As imagens verneana e a poeana concentram-se na ilustração de uma cidade já morta, submersa. No romance de Verne, a Atlântida ganha a imagem de uma cidade perdida no fundo do Atlântico e descoberta pela expedição de capitão Nemo. A descrição do espaço é conscientemente pitoresca. Para captar atenção e atingir a suspense, o narrador autodiegético menciona os fenómenos que só posteriormente elucida: as pedras, cobertas pela fauna e flora marítima, acabam por ser vistas como distribuídas com regularidade, debaixo das solas de chumbo parecem ranger os ossos, surgem as árvores sem folhas, mortas e mineralizadas ou as ruínas, logo percebidas como sendo templos e palácios que testemunham a obra humana, aparece uma montanha (um vulcão) e, por fim, abre-se uma vista sobre a cidade submersa com templos destruídos, arcos partidos e colunas derrubadas, revelando as proporções da arquitetura de Toscana. O poema de Edgar Allan Poe não ganha tanto em descrição pormenorizada, acentuando

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antes um tom elegíaco a atmosfera sombria que envolve a cidade para sempre morta e perdida. Por outro lado, o poema narrativo de Verdaguer concentra-se em especial na representação do espaço antes da catástrofe. Na época finissecular, porém, o tema da Atlântida pode ser detetado também na obra de autores menos conhecidos, como é o caso do autor belga Hubert Stiernet, hoje em dia lembrado sobretudo como um regionalista (retratador da sua região natal de Waremme) e autor de contos fantásticos (Histoires hantées, 1906). Numa das suas coletâneas (Contes au perron, 1893) inclui-se o conto fantástico Soléal, que apresenta o tema da ilha submersa, sendo esta retratada como uma ilha utópica, cuja destruição e submersão fatal não se deve a uma degradação moral, mas a uma ambição humana de se igualar aos deuses. O conto A Revolução de Aquilino Ribeiro foi escrito em França em 1912 e inserido na sua coletânea de contos de estreia, intitulada Jardim das tormentas (1913). Hoje em dia, tanto esta coletânea de contos, como o seu próprio autor, estão um tanto – e imerecidamente – esquecidos. Além do mais, Aquilino Ribeiro acaba por ser conhecido meramente pelas suas narrativas supostamente regionalistas (o que não era o projeto artístico do autor). Embora as histórias incluídas na coletânea de estreia apresentem assuntos bem diversos55, podemos encontrar aqui um tema obsessivo e repetitivo: o conflito entre religião (a moral tradicional) e liberdade pessoal (inclusive sexual e erótica) que pertence às constantes temáticas (e filosóficas) na obra aquiliniana56. No conto A Revolução, Aquilino Ribeiro enriquece o imaginário tradicional referente ao mito da Atlântida e, ao mesmo tempo, atualiza a tradição do topos da utopia. É curioso que o ano da sua escrita coincida com o anúncio da descoberta da Atlântida, empreendida por Paul Schliemann e publicada em New York American (20 de outubro de 1912), a qual se revelou ser falsa. Esta divertida coincidência, na verdade, confirma a obsessão pelas civilizações submersas de que falou José Ortega y Gassett. Suponho, no entanto, que algo mais urgente e profundo se tenha travado no pensamento de Aquilino ao conceber este tema então em voga, algo que revela os próprios ideais do autor, moldados pelo seu pensamento e atividade político-social. Nesta ordem de ideias, o mito da Atlântida, concebido por Aquilino Ribeiro, oferece-se a vários tipos de leitura desde a filiação mítico-literária até à leitura sócio-política. O conto opta por uma inovação quanto à abordagem do tema clássico: ao contrário do tratamento tradicional, no rasto de Platão, Aquilino apresenta uma ilha após um cataclismo que destruiu parte substancial da terra. E esta ilha, a parte serrana da terra submersa que como única conseguiu escapar à catástrofe natural, atualiza, por sua vez, 55

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N. Novaes Coelho divide os contos desta coletânea em duas áreas temáticas principais: relações homem-mulher (cinco contos) e relações homem-natureza-grupo social (quatro contos), excluindo-se destas áreas dois contos de tema independente (Os Senhores de Montalvo e A Revolução) que são também excluídos da atenção da ensaísta (Coelho, 1973). Sobre este assunto ver o ensaio Aquilino ou Eros e Cristo de Eduardo Lourenço (Lourenço, 1994). O que se calhar surpreende neste conto aquiliniano, é o seu tom moralista, um tanto divergente dos outros contos da coletânea mas, de facto, correspondente pela tradição ao tema tratado.

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a tradição do género utópico, oferecendo um retrato de uma comunidade harmoniosa e fraternal: E, sem necessidade de jurisprudência ali como por toda a parte, os homens eram fraternais uns para com os outros. Haviam-se lavado na grande tormenta e na indomável vaga que quase submergira a civilização; e as suas almas tornaram-se tão puras como os seus corpos saudáveis (Ribeiro, 1985: 219).

Embora não fosse o interesse de Aquilino fornecer uma imagem detalhada da sua ilha perfeita, vê-se a partir destas ou outras alusões disseminadas no texto que a sua ideia não corresponde aos tratados inaugurais de visão utópica, escritos no período renascentista, como era Utopia de Thomas More ou Cidade do Sol de Tommaso Campanella, mas assenta bem no contexto dos projetos de um socialismo utópico que se expandiram a partir do século XVIII57. É também na viragem dos séculos XIX e XX que, ao lado do tema da Atlântida, a ficcionalização das utopias provoca um interesse especial. Basta lembrar que em 1888 um escritor americano, Edward Bellamy, publicou um romance de imaginação utópica que se tornou um best-seller e um título procurado nas duas margens do Atlântico: refiro-me ao romance Looking Backward 2000–1887, que já não atribui à utopia as coordenadas espaciais, como era costume, mas concebe-a em termos cronológicos (um dia, o protagonista desaparece de Boston e, após um sono catalético, acorda em 2000)58. Não se sabe se Aquilino Ribeiro conheceu este romance, no entanto, deve ter sido sem dúvida influenciado pela difusão e popularidade do tema em França, onde viveu aquando da escrita do conto. Como recorda André Daspre, o tema da sociedade utópica era nessa altura tratado em França por vários autores, inclusive Émile Zola e Anatole France, por quem, aliás, Aquilino Ribeiro desde cedo nutriu uma profunda admiração59. A comunidade descrita no conto aquiliniano não precisa de leis nem de hierarquia social para manter uma harmonia intrínseca: Se o cataclismo, porém, deixara os homens na posse do património inteiro da humanidade, as consciências haviam sido revolvidas até os fundamentos. Insensivelmente tinham renunciado a manter de pé o edifício social que mergulhava os alicerces no

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Como precursor deste tipo de utopias, pode ser mencionado Étienne Gabriel Morelly, autor de tratados publicados anonimamente, nos quais retratava uma comunidade surgida após um terramoto que vitimou quase todos os habitantes da terra, dominados pela inveja e egoísmo. Tal comunidade utópica, como elucida Patrik Ouředník, não estabeleceu um novo pacto social, deixou-se levar pela anarquia, baseada no postulado rousseauano da bondade natural do homem. Obediente às leis da natureza, o homem não pode cometer um mal (Ouředník, 2010: 121–123). Sobre este assunto cf. Beaumont, 2012. Daspre menciona, p.ex., as obras Fécondité (1899), Travail (1901) ou Verité (1903) de Zola que, numa atitude visionária e um tanto afastada de um realismo científico, retratam uma sociedade ideal, inspirada por Fourier. Quanto a A. France, Daspre refere-se, entre outros, a Monsieur Bergeret à Paris (1901), ou, ao romance LʼIle des pingouins (1908) que, no entanto, já anuncia um ceticismo propriamente anatoliano (Daspre, 1998: 45–57). Não é sem interesse que na última parte deste romance se fala da necessidade de um cataclismo que finalmente instaurasse um novo período de prosperidade. É possível que esta ideia tivesse sido inspiradora para Aquilino Ribeiro.

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limbo mesmo da barbárie. A dor, recrudescida pela impotência, fizera-lhes sentir a garra impiedosa e curara-os da sua estupidez tradicional organizada. Ensinara-lhes que eram bem mais iguais do que não pareciam, que as distinções entre eles eram poeira ociosa em face dos grandes problemas da existência, e que era ilusão cruel supor que na rivalidade dos indivíduos residia o melhor agente do progresso (Ribeiro, 1985: 218). Os preceitos da comunidade aquiliniana parecem então sustentar uma vaga ideia de socialismo (fraternidade, igualdade) e de anarquia (renúncia ao edifício social e à jurisprudência)60. A comunidade irmanada quanto à sua condição, deixa-se orientar por um instinto que, no ideário aquiliniano, adquire atributos de vitalismo neorromântico. Para além disso, os habitantes da comunidade são bons, porque purificados por um sofrer excessivo. Consequentemente, gera-se uma nova consciência humana, uma nova moral que instaura um novo ciclo civilizacional. Em contraste, a imagem da civilização pré-catastrófica mostra-se distópica: fundada nas leis e tiranias, era uma sociedade de opressores e de escravos, cheia de inveja, ódio, fome, mentira, dinheiro, sangue e – curiosamente – de sensualidade (neste aspeto, o discurso aquiliniano impercetivelmente segue rumo de um discurso tradicional, religioso). Como os únicos pontos positivos dessa sociedade extinta apresenta-se o progresso científico e técnico, obras de arte e o amor. O tópico da Atlântida surge logo após a descrição das sociedades ante e pós-cataclismo, pois as cidades submersas começam a ser paulatinamente descobertas e reconstruídas pelos habitantes da ilha utópica: levantam-se das águas os palácios, fábricas, laboratórios ou museus. O registo descritivo, contudo, predomina também no início deste segmento do conto: descreve-se detalhadamente o espaço submarino que para além dos tesouros – testemunhos da atividade humana – oferece à vista dos mergulhadores um espetáculo macabro, um memento mori de sabor barroco-maneirista e decadentista: O chão parecia calcetado de ossos. O pânico arrebanhara para ali os homens como em enxurrada, e seus esqueletos descreviam, na desordem e no montão, a instantaneidade do cataclismo. Jóias e oiro faiscavam sobre o ossário. Caveiras beijavam-se e caveiras mordiam-se. Tíbias cravavamse contra o tórax como lanças. Num capacete de couraceiro viam-se entalados os quatro ossos do crânio. A morte arreganhava ali os seus variados rictos de cómica hediondez (Ribeiro, 1985: 226).

O motivo dos ossos que cobrem o chão remete ao motivo verneano61, embora o tratamento do escritor francês tivesse sido bastante mais sóbrio e, naturalmente, afastado dessa sensibilidade ibérica barroquizante, reanimada no decadentismo, em que tão visceralmente se conjugam os princípios de Eros e Thanatos. Ao mesmo tempo, o retrato aquiliniano, aliado a uma sensação agónica, enquadra-se bem na tradição portuguesa 60 61

Neste contexto, naturalmente, oferece-se o paralelismo com a experiência do autor empírico, um militante “jacobino”, partidário de um anarquismo pré-republicano. “Il me semblait que mes lourdes semelles de plomb écrasaient une litière d’ossements que craquaient avec un bruit sec” (Verne, 1990: 408).

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da literatura de viagens, em especial na tradição dos relatos de naufrágios e de Peregrinação de Fernão Mendes Pinto62. Há outros motivos descritivos no conto aquiliniano que também parecem como inspirados no romance verneano: na passagem pelo espaço submarino, oferecem-se à vista os navios naufragados (“Já voltavam, sem terror a correr o oceano em que apodreciam amarrados aos cais, se não eram vagantes fantasmas de latitude em latitude, transatlânticos e petroleiros desmantelados”, Ribeiro, 1985: 218), as árvores metamorfoseadas, mais terríficas e espetaculares do que na descrição verneana (“Num esquare erguiam-se ainda esqueletos de árvores lívidas e imóveis numa altitude espectral de zinco”, ibidem: 225)63 ou uma fauna assustadora, monstruosa e gigantesca, assentando seus olhos de espera nos invasores que ousaram penetrar no seu reino (“lobrigaram uma bateria inteira de olhos, vidrados e chatos como almofias mourescas, assestada para eles”, ibidem: 226)64. Ao contrário de uma ação um tanto estática de Verne, o conto aquiliniano precipita-se nos últimos segmentos da narração, apresentando a surpresa final. Os mergulhadores sondam as ruínas de uma “das cidades mais faustosas que haviam existido no passado” (ibidem: 224). Sem ser esta cidade indicada pelo nome, as alusões aos seus parques, avenidas e tesouros de arte e sabedoria levam o leitor a intuir tratar-se de Paris. Tal ideia é, de facto, corroborada pelas seguintes referências à descoberta de um grande palácio, dentro do qual, na sala Daru do pavilhão Denon se ergue a estátua da Vitória de Samotrácia. Mais um troféu espera os homens nas galerias dum Louvre submerso. O abrigo das obras de arte serve, pois, também, de toca a um monstro marinho, definido à maneira verneana como um cefalópode, o qual, pelo aspeto horroroso e atitude agressiva, representa um Kraken mítico: Dos lados, porém, dois monstros marinhos surgiram fendendo a água e vomitando baba e fogo. Tinham cabeça e crinas de cavalo e barbatanas largas como asas de avião Junker. E, desenrolandose de anéis duma grossura de robles, não tinha fim a cauda que espadanava entre os mármores (Ribeiro, 1985: 227).

Alimentado pela imaginação dos marinheiros, o Kraken tem sido geralmente ilustrado e descrito (inclusive na versão verneana) como um polvo gigantesco. É claro que

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Maria Alzira Seixo indica, entre outros, a famosa “pintura da morte” na Peregrinação que, “em termos excessivos, distorcidos e fragmentários, que não só no desconjuntamento físico como na dimensão moral e religiosa se integra no modo de expressão típico do Barroco” (Seixo, 1998: 63). Seixo cita o seguinte fragmento da Peregrinação: “partimos caminho da praia a buscar alguma roupa com que nos repairássemos, a qual achámos toda coberta de corpos mortos, com tão feios e disformes gestos que davam bem evidentes mostras das penosas mortes que tiveram, jazendo uns por riba, outros por baixo daqueles penedos, e muitos dos que não apareciam mais que os braços, pernas ou cabeças; e os rostos estavam cobertos de areia ou de caixas ou de outras diversas cousas” (Ibidem). Convém adicionar que Aquilino Ribeiro conhecia muito bem a Peregrinação, o que é provado entre outros pela sua adaptação da obra de Mendes Pinto. “Oui! Un taillis d’arbres morts, sans feuilles, sans sève, arbres mineralisés sous l’action des eaux, et que dominaient çà et là des pins gigantesques” (Verne, 1990: 410). “Des milliers de points lumineux brillaient au milieu des ténèbres. C’étaient les yeux de crustacés gigantesques, tapis dans leur tanière…” (Verne, 1990: 412).

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a imagem aquiliniana, mais fantástica e, ao mesmo tempo, paródico-lúdica (a comparação das barbatanas às asas do avião Junker) atribui ao conto o aspeto um tanto irreverente, acentuado pela distância com que o narrador heterodiegético relata os acontecimentos. Não é, pois, intenção do conto criar uma ilusão da verdade, mas antes instruir pelo exemplo. Não se procura emocionar o leitor, mas pretende-se levá-lo a compreender a alegoria. Num estudo sobre Vinte mil léguas submarinas, Christian Chelebourg elucida a dimensão mítica a que se alça a narrativa verneana: o capitão Nemo aparece como um novo Argonauta à procura do Velo de Ouro (Chelebourg, 1990: 14–15). O conto de Aquilino também adquire tal dimensão épico-mítica: o povo deve mais uma vez empreender a viagem ao desconhecido e vencer um novo Adamastor. Os heróis desta empresa apresentam-se como um coletivo que desce às profundidades do mundo dos mortos para ganharem o troféu: a estátua alada, o símbolo da vitória final de um povo que apesar de muitas perdas humanas consegue vencer o monstro (quiçá o símbolo das obstruções colocadas no agir dos homens) e garantir a vida. É exatamente a importância da vida, assumida como o supremo valor, que se anuncia neste conto aquiliniano. Para percebermos este valor, é preciso considerar ainda a atmosfera que reinava no Portugal de então, bem como as várias correntes de opinião que corriam pela Europa. Como aponta N. Novaes Coelho, Aquilino Ribeiro parece ser nesta sua fase de criação inspirado pelas ideias de Nietzsche, pelo seu imperativo de vida e pela crença na vontade do homem (Coelho, 1973: 23–28). Não esqueçamos também que a segunda metade do século XIX em Portugal é marcada por um profundo sentimento de crise e decadência nacional, que se instalou na auto-imagem do país após o século XVI e conheceu o seu clímax de negativismo com a Geração de 70. O choque do Ultimatum inglês em 1890, por sua vez, provocou uma forte reação patriótica, nacionalista, agravando-se simultaneamente a imagem da Monarquia como um sistema obsoleto, incapaz de gerir o país. O cenário decadente e patológico vai paulatinamente ceder lugar à expressão da esperança de que a Pátria pudesse ser expiada em vias de uma renovação espiritual e física. Não falta quem indique que a Pátria deveria ser primeiro aniquilada para poder renascer. Basta lembrar, a este respeito, a obra de Eça de Queirós (por exemplo, no conto A catástrofe, publicado postumamente, fala-se de uma imaginada invasão de Portugal, percebida na lógica do conto como necessária para a futura ressurreição). O cúmulo simbólico das tentativas de arrasar um velho Portugal e, nos seus escombros, construir um novo país, pode ser visto no regicídio de 1908. Efetivamente, no seu livro de memórias, Aquilino Ribeiro refere-se ao regicídio como a um “plano de demolição, intentado contra o Portugal obsoleto pelos espíritos livres e esclarecidos” (Ribeiro, 2008: 274). Postumamente sai também um romance de Eça de Queirós (A cidade e as serras, 1901), em que um personagem, Jacinto, abafado pelo excesso de civilização, representada pela sua ícone urbana – Paris –, procura uma nova vida nas serras, ao abrigo da natureza, onde pudesse “renascer”. Na sequência do estabelecimento da República em 1910, de facto, surge o movimento da “Renascença Portuguesa” (desde 1912) que pretendia renovar a sociedade portuguesa.

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Tal atmosfera deve ter naturalmente influído no jovem Aquilino e na criação do seu imaginário utópico, em que uma comunidade, por sinal a das serras, renasce moralmente após uma tremenda catástrofe que deitou abaixo, submergindo, a civilização anterior, representada também pelo espaço parisiense como um símbolo maior da sociedade requintada e civilizada. Não deve ser também esquecido que Aquilino Ribeiro escreveu o conto em Paris, no exílio, aonde se refugiou após a fuga da prisão, à qual fora condenado pela sua atividade política. Como se sabe, Aquilino pertencia aos círculos republicanos envolvidos na queda da Monarquia que, nos inícios do século XX, parecia aos intelectuais portugueses completamente desacreditada. Neste ângulo de perceção, a revolução a que se refere o conto poderia também aludir, pelo menos sub-repticiamente, à revolução republicana de 1910 em Portugal. Resumindo, no conto A Revolução de Aquilino Ribeiro podemos detetar vários filões do imaginário e ideário epocal. Por um lado, o tema de Atlântida insere-se perfeitamente no imaginário decadente e distópico, embora esteja patente no conto uma vontade humana, vital e eufórica de conhecer, descobrindo. A volúpia do estertor, presente no topos da urbe morta finissecular, pressente-se ainda aqui na estesia da ambiência sepulcral, erótico-mórbida, se bem que o tom nostálgico do declínio seja substituído pela ironia e paródia lúdica. Por outro lado, a dimensão alegórico-mítica revela a procura de um ideal, da vida e de uma sociedade justa e harmoniosa. Neste sentido, o conto A Revolução deve ser compreendido como uma das pedras basilares de toda a obra aquiliniana, sempre empenhada na luta pela liberdade e dignidade humana.

bibliografia Beaumont, Matthew. The Spectre of Utopia: Utopian and Science Fiction at the Fin de Siècle. Bern, New York: Peter Lang, 2011. Chelebourg, Christian. Préface. In: Verne, Jules. Vingt mille lieues sous les mers. Paris: Librairie génerale française, 1990. Coelho, Nelly Novaes. Aquilino Ribeiro: Jardim das tormentas. Génese da ficção aquiliniana. São Paulo: Edições Quíron, 1973. Crawford, Robert. The Savage and the City in the Work of T.S. Eliot. Oxford: Clarendon Press, 1990. Daspre, André. Vers les temps meilleurs, dʼaprès Émile Zola, Anatole France et Jean Jaurès. Le romanesque français dʼune fin de siècle à lʼautre. Katowice: Wydawnictvo Uniwersytetu Śląskiego, 1998. Eco, Umberto. Dějiny legendárních zemí a míst. Trad. Jindřich Vacek et al. Praha: Argo, 2013. Lysøe, Éric (ed.). Littératures fantastiques: Belgique, terre de lʼetrange. Tome II, 1887–1914. Bruxelas: Éditions Labor, 2003. Lourenço, Eduardo. Aquilino ou Eros e Cristo. O Canto do signo. Existência e literatura (1957–1993). Lisboa: Editorial Presença, 1994. Ortega y Gassett, José. Las Atlántidas. In: Obras completas. Tomo III, (1917–1925). Madrid: Taurus, 2006. Ouředník, Patrik. Utopus to byl, kdo učinil mě ostrovem. Praha: Torst, 2010. Platón. Timaios. Kritias. Trad. František Novotný. Praha: OIKOYMENH, 2008. Reckert, Stephen. O signo da cidade. In: O imaginário da cidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. Ribeiro, Aquilino. Jardim das tormentas. Lisboa: Bertrand Editora, 1985.

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Ribeiro, Aquilino. Um escritor confessa-se. Lisboa: Bertrand Editora, 2008. Seixo, Maria Alzira. Maneirismo e Barroco na literatura de viagens. O relato de naufrágios e a noção de modelo, a Peregrinação e a noção de aventura. In: Poéticas da viagem na literatura. Lisboa: Edições Cosmos, 1998. Verne, Jules. Vingt mille lieues sous les mers. Paris: Librairie génerale française, 1990. Viçoso, Vítor. A máscara e o sonho. Vozes, imagens e símbolos na ficção de Raul Brandão. Lisboa: Edições Cosmos, 1999.

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o mito de camões em as naus de antónio lobo antunes: a poética e a política da profanação

Bálint Urbán Universidade E. Lorand, Budapeste Hungria

Resumo: O presente estudo pretende analisar e interpretar o papel central da figura mítica do maior poeta nacional, Luís Vaz de Camões, em As naus de António Lobo Antunes. O romance antuniano insere-se numa série de obras mitocríticas do paradigma pós-moderno da literatura pós-25 de Abril que tenciona acabar com as grande metanarrativas nacionais, incorporadas numa forma fundamental dos mitos nacionais. Com a ajuda da noção da profanação do filósofo italiano Giorgio Agamben, o presente texto visa demonstrar como é que o romance trata a figura emblemática de Camões e aquela rede mítica que se desenvolveu em torno dele, tendo em conta a intenção político-ideológica dessa abordagem profana. Palavras-chave: António Lobo Antunes; literatura pós-25 de Abril; Giorgio Agamben; As naus; profanação; Luís Vaz de Camões

As naus de António Lobo Antunes é, sem qualquer dúvida, um dos textos mais paradigmáticos e enigmáticos da literatura pós-25 de Abril que sintetiza em si, numa forma germinal, não só as inovações estéticas da poética do romance, mas também aquelas considerações culturais e políticas que preocuparam a literatura depois da revolução de 74, nomeadamente, as questões da identidade nacional, da herança cultural, da construção do discurso da História, da relação entre o presente e o passado e da problemática da representação, tal qual, e naturalmente dos eixos acima mencionados (Remédios, 2002: 38–39). A presente comunicação pretende interpretar o papel da figura mítica de Camões no texto antuniano usando como quadro conceitual a teoria de profanação do filósofo italiano Giorgio Agamben, tendo em conta o desenvolvimento e a importância simbólica do discurso mítico que se ia criando em torno da personagem do maior poeta

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português e da sua epopeia nacional, Os Lusíadas. Depois de mostrar como é que o mito de Camões se desenvolve e se inscreve na engrenagem mitocrítica do romance, tenciono analisar a poética e a política do processo da profanação mítica ao qual a figura do poeta está sujeito e que na minha leitura pode ser visto como a alegoria tanto da poética como da política do romance inteiro, e talvez numa abordagem alargada, das obras mitocríticas da literatura pós-25 de Abril65. O livro de Lobo Antunes insere-se na série daquelas obras que tematizam e questionam a tradição e a (im)possibilidade dum modelo de identidade imperial baseada na narrativa gloriosa e hegeliana de um país como sujeito autêntico da história das descobertas, da colonização e, consequentemente, de um certo modelo de modernidade. Com a queda do sistema ditatorial, que trouxe consigo o fim do império ultramarino e uma descolonização rápida e forçada, verifica-se o colapso desta metanarrativa identitária que com a entrada na União Europeia levou o país ao reconhecimento que Eduardo Lourenço sintetizou na sua frase mais famosa: “pela primeira vez, Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o que é como destino” (Lourenço, 1999: 68; itálicos do autor). Como Gérard Bouchard formulou no seu livro recentemente publicado, a identidade das nações modernas apoia-se em certas narrativas míticas. Os mitos nacionais sustentam a identidade porque são os alicerces daquela fundação simbólica em que a comunidade se baseia, e se legitima como entidade autêntica. Os mitos alimentam a memória da nação e criam um nexo entre o passado e o presente, dando assim à comunidade a ilusão de uma continuidade e linearidade históricas (Bouchard, 2013: 2–3, 277–278). A  literatura pós-25 de Abril aparentemente afasta-se daquele modelo de identidade que constituiu a base tanto de uma autolegitimação secular como do longo aggiornamento salazarista, e vira-se contra aquelas narrativas nacionais em que esse modelo se baseia. A ficção pósrevolucionária numa série de obras enigmáticas desconstrói os grandes mitos portugueses: o mito de D. Sebastião e do Quinto Império, o mito de Inês de Castro e D. Pedro, o mito dos Descobrimentos e da Expansão Marítima, e o próprio mito de Camões com o seu texto mítico Os Lusíadas. O conquistador de Almeida Faria, e Jornada de África de Manuel Alegre, Adivinhas de Pedro e Inês de Agustina Bessa-Luís, Memórias breves de Vasco Pereira da Costa e Além do maar de Miguel Medina são só alguns textos que usam e apresentam grosso modo essa lógica mitocrítica. A meu ver, o romance de Lobo Antunes revela o apogeu desta tendência por ser uma obra essencialmente iconoclasta em que quase todos os mitos importantes da portugalidade sofrem um forte ataque e uma subversão irónica e grotesca. As naus liga e mistura dois momentos paradigmáticos da história de Portugal, o da partida das caravelas, ou seja o início da expansão e da narrativa gloriosa do Império, e o do regresso destas caravelas, o fim da aventura imperial. Justapõe-se à época de ouro da história de Portugal, “a época de dor” (Antunes, 1988: 200), ao passado ilustre, o presente amargo

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Uso os termos “poética” e “política” no sentido em que Linda Hutcheon os elaborou nas obras respectivas A Poetics of Postmodernism: History, Theory, Fiction e Politics of Postmodernism, partindo da premissa fundamental da estudiosa canadiana de que a textualidade pós-moderna, além de propor um certo formalismo, ou seja, uma poética, oferece sempre uma visão político-ideológica, que não é outra coisa senão a política inerente do texto.

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que depois da euforia da revolução tem que enfrentar o problema irresoluto dos retornados, consequência óbvia da perda do império, e da abrupta descolonização. Na organização paratática das camadas temporais detecta-se aquela diferença ontológica entre symbolic history e spectral history que Slavoj Žižek assinala (Žižek, 2008: 58). Atrás do discurso oficial e simbólico da história como empresa gloriosa e emancipatória em que o sujeito e a comunidade se expressam e se desenvolvem, existe um outro discurso caracterizado pela perda, pela privação, pela negatividade e pelo grotesco, uma versão obscena e caótica da história simbólica. Lobo Antunes, dando voz e visibilidade a este spectral history, desestabiliza a narrativa totalizante da história imperial. Como se o romance encenasse a máxima de Hegel reformulada por Marx, segundo a qual a história, os grandes acontecimentos e personagens históricas se repetem, mas na forma da paródia (Marx – Engels, 1972: 115)66. Os protagonistas do livro são as figuras míticas da história de Portugal, os heróis gloriosos da história que regressam para a metrópole logo depois da Revolução de Abril. Lobo Antunes apresenta essas figuras míticas como sujeitos retornados que, com o colapso do Império, têm que voltar forçadamente para o ponto de partida. Como Adriana Alves Paula Martins observa, Portugal já não é um cais de partida senão um cais de regresso, facto que obriga o país a redefinir a história e a identidade (Martins, 2003: 114). As personagens que retornam nas naus, apesar dos nomes míticos que carregam, são pessoas comuns, seres frágeis e desorientados à procura de uma nova pátria e de uma nova identidade depois do naufrágio simbólico do grande Império. A figura mítica de Camões aparece no romance como um desses retornados que tentam orientar-se em Lisboa na era pós-revolucionária, pós-colonial e pós-imperial. Mas a relação entre o maior poeta português e o romance de Lobo Antunes parece muito mais complexa e íntima. Maria Alzira Seixo ressalta que podemos ler o livro como “uma reescrita livre e parcial de Os Lusíadas” (Seixo, 2002: 176), enquanto Maria das Graças Moreira de Sá designa-o uma antiepopeia camoniana (Sá, 2004: 197) e Erich Kalwa sugere uma leitura em que o romance não seria outra coisa senão a continuação contemporânea do grande poema épico em forma de prosa (Kalwa, 1995: 630). Como Camões é a encarnação máxima do espírito nacional, a sua epopeia é aquela narrativa simbólica e gloriosa que funciona como a base da identidade portuguesa. Camões, ao transformar a história de Portugal numa epopeia, conferiu-lhe uma dimensão de tal modo transcendente que fez com que ele próprio e o seu poema sejam exemplares do mito (Soares, 2005: 582).

Observa Maria Luísa Castro Soares. Camões tornou-se em símbolo de portugalidade por ter criado uma narrativa mítica da história portuguesa, e torná-la numa matéria essencialmente épica e grandiosa. Na verdade, aquela imagem mítica que encobre a figura referencial do poeta nasceu só com o Romantismo, da sensibilidade epistemoló66

“Hegel bemerkte irgendwo, daß alle großen weltgeschichtlichen Tatsachen und Personen sich sozusagen zweimal ereignen. Er hat vergessen, hinzuzufügen: das eine Mal als Tragödie, das andere Mal als Farce.”

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gica e kantiana perante a figura do génio e da exaltação da nacionalidade. Camões vem a ser um mito complexo no século XIX graças à sua biografia lacunar e aventurosa, cheia de enigmas e incertezas e por ser o poeta nacional por excelência que conseguiu elevar a história de Portugal a um estatuto heroico, glorioso e universal. Para o Romantismo o autor de Os Lusíadas é um autêntico génio literário por ter escrito a primeira epopeia moderna no mundo ocidental (Medeiros, 2002: 144–145) que na sua grandeza representa não só a emancipação de uma nação mas também o triunfo universal do sujeito europeu. Nota-se que até o filósofo alemão Friedrich Schlegel, um dos responsáveis pela elaboração da estética da era romântica, considerou Os Lusíadas uma autêntica obra-prima da moderna literatura europeia (Cochran, 2001: 122). Verifica-se portanto uma dupla mitificação e torna-se lícito falar por um lado do mito do poeta, de teor individual, e do mito patriótico de dimensões coletivas (Soares, ibidem: 589). Desta forma, Camões, a partir do século XIX, não é só o grande herói nacional e patriota mas também o maior Poeta de Portugal, o arqui-poeta, o strong poet de quem toda a literatura posteriora, tem medo e quer superar ao mesmo tempo, se aplicarmos o conceito de Harold Bloom. Como Sellier observa a maioria dos mitos que estão ligados à nossa modernidade nasceu da literatura. O mito literário provém de um texto literário. Certas personagens da literatura podem adquirir um estatuto mítico, como é o caso de Don Juan e de Fausto (Sellier, 1984: 115). Quanto aʼOs Lusíadas, primeiro é um sujeito coletivo, o povo português que passa a ser alvo duma mitificação, depois a obra literária eleva-se a um estatuto absolutamente mítico e sacrossanto, finalmente o próprio autor, como génio criador, também se torna um mito. Assim, Camões como autor da narrativa mítica da legitimação nacional transforma-se também ele num autêntico mito nacional que, inseparavelmente da sua epopeia, é o símbolo máximo da história e da identidade portuguesas. Como o questionamento do antigo modelo de identidade é a preocupação central da literatura pós-25 de Abril, obviamente uma produção textual que tem em conta tais considerações vira-se contra a figura de Camões e contra o seu texto mítico. Eduardo Lourenço, num ensaio menos conhecido, ressalta que no campo cultural português pós-revolucionário aparece a  tentativa de desviar o  sentido da aventura cultural, enquanto aventura imperial, daquela pessoa e obra que encarnam em si a herança e a tradição dessa narrativa: de Camões e de Os Lusíadas (Lourenço, 1986: 31). Por isso a contra-epopeia, a antiepopeia, ou a não-epopeia são os modelos paradigmáticos desta nova produção cultural que quer acabar com a tradição da mitologia nacional. Dado que Camões e a sua epopeia são os símbolos máximos dessa mitologia, nascem várias tentativas de destruir essa aura mítica. Manuel da Silva Ramos no fim da década de 70 publica uma obra essencialmente pós-moderna com o título os lusíadas, onde o simples ato de escolher este título sacrossanto e de escrevê-lo com letras minúsculas parece uma subversão radical. Almeida Faria na sua tetralogia Lusitânia inverte a lógica glorificadora do grande poema épico, inscrevendo-o na realidade portuguesa dos anos 70. Mas, a meu ver a obra mais mitocrítica e iconoclasta que, não só reescreve subversivamente a maior obra literária de Portugal, mas também põe no centro o seu autor lendário,

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a personagem mítica de Camões, é, sem qualquer dúvida, As naus de Lobo Antunes. Na minha leitura, a estratégia através da qual o texto antuniano se aproxima à figura e ao texto sacrossanto é a da profanação. O filósofo italiano Giorgio Agamben elabora a noção da profanação no ensaio central do livro Profanazioni, intitulado Elogio della profanazione. Mas o conceito do profano está constantemente presente na sua obra a partir das divagações heideggerianas do Il linguaggio e la morte, ao longo do projeto elucidativo dos livros sobre a questão do Homo Sacer. Para Agamben a profanação é o contraponto da sacralização. No processo da sacralização o objeto ou a pessoa é tirado da realidade profana e é elevado a um estatuto especial de santidade. A profanação quebra e viola esse círculo sacrossanto e remete o objeto ou a pessoa na sua existência original (Agamben, 2005: 84–85). De facto, a profanação é um ato de libertação cuja intenção é resgatar uma entidade e devolvê-la ao uso libero, ou seja, ao uso livre e comunitário da humanidade. A profanação agambeniana, apesar das conotações negativas da palavra, é um processo positivo e criativo que restitui o lugar e o estado original da entidade suspendendo e eliminando a santidade que a protegeu e a tornou numa existência inquestionável e intocável. O santo envolve o objeto ou a pessoa no círculo do uso restrito e especial, enquanto a profanação ao destruir as restrições liberta-o e torna possível o uso livre. “The goal of profanation is to repeal this ungrounded legislation and to find new uses for structures that are to be deprived of their divisive force” (Durantave, 2008: 35). A figura de Camões e o texto de Os Lusíadas ao serem mitificados foram elevados ao estatuto sacrossanto, isto é, não podiam ser questionados ou livremente usados, tinham um lugar absolutamente privilegiado na cultura portuguesa. O que As naus faz a reescrever duma forma irónica e grotesca a epopeia e a inserir na diegese o maior poeta português como uma das personagens, é uma profanação autêntica. Não se pode, contudo, esquecer que a profanação tem sempre uma poética e uma política inerentes. Uma poética, ou seja, aquela forma estética sob a égide da qual a profanação se realiza, e uma política, isto é, um certo objetivo ideológico e cultural que motiva e guia o processo. A meu ver a poética da profanação no caso de As naus é claramente a abordagem paródica. O romance trata a figura de Camões e Os Lusíadas com uma forte retórica paródica. O discurso paródico oferece uma visão do passado, dá-lhe novo contexto, […] irónico, e exige do leitor uma competência cognitiva que apela á memória. Ao proceder-se á transcontextualização irónica, a imitação transforma-se numa repetição, com distância crítica, o que permite realçar a diferença e não a semelhança (Lima, 1996: 65).

A figura de Camões, na minha interpretação, é a personagem central do romance que aliás põe em jogo várias figuras de Os Lusíadas, como por exemplo Vasco da Gama, D. Sebastião, Nuno Álvares Pereira, Diogo Cão e Manuel de Sousa Sepúlveda. O livro que de capítulo em capítulo altera a personagem através da qual narra e focaliza a diegese, tem só uma figura que do início até ao fim está presente: a de Camões. Além disso é a personagem com mais capítulos consagrados – nomeadamente quatro. Provavelmente Camões é a figura mais parodiada do romance e consequentemente ele é o alvo

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da maior desmitificação. O poeta mítico é introduzido no mundo ficcional com a frase seguinte: “Era uma vez um homem de nome Luís a quem faltava a vista esquerda” (Antunes, 1988: 19). O símbolo da portugalidade é introduzido no texto como num conto infantil com a expressão típica “era uma vez”. Além disso o grande poeta reduz-se a uma simples perífrase e é privado do seu apelido glorioso que aliás nunca se inscreve no romance. Um homem de nome Luís é um homem qualquer, é um dos retornados que divagam pelas ruas de Lisboa. É desta forma que o texto põe a funcionar a profanação, reconduz a entidade mítica entre o mundo dos seres iguais. Em As naus não há lugar para entidades mitificadas, há só uma realidade cruel, caracterizada pela perda e da negatividade. Esse homem de nome Luís regressa de Angola com o cadáver do seu pai, morto na guerra civil ainda em África. E durante muito tempo recusa “separar-se da urna” (ibidem: 19). O cadáver do pai, a apodrecer num caixão roubado em Luanda, é a metáfora complexa do Império morto. O homem de nome Luís carrega consigo este peso, a urna em que está fechado o fantasma da ideia e do ideal imperial, a memória da história gloriosa. O segundo capítulo do livro relata a viagem de regresso para Lisboa desse homem de nome de Luís. Já o facto de se tratar de uma viagem de regresso e não de partida expansionista sugere que estamos a enfrentar Os Lusíadas numa forma inversa e perversa que em vez de relatar o heroísmo do processo histórico enquanto empresa colonial, propaga o fracasso desta metanarrativa. No fundo do barco flutua a urna do pai, no vómito dos retornados, e serve como uma mesa para o jogo de cartas com que o homem de nome Luís, Miguel de Cervantes e Vasco da Gama passam o tempo. A cena grotesca e paródica sintetiza numa imagem profana a impossibilidade da narrativa imperial. A metáfora paternal do império é banhado no vómito das pessoas que voltam para a metrópole, e não nas águas do mar que constitua o espaço primordial dessa expansão colonial. No mundo diegético de As naus não há mar. A desconstrução do sentido da nossa História começa por esta anulação do mar: omiti-lo é omitir os alicerces de um imaginário cultural onde se funda a própria imagem da identidade nacional (Sá, 2004: 188).

O enorme mar aberto reduz-se a uma garrafa de água das pedras, ao lado da qual o homem de nome Luís começa a escrever as oitavas heroicas do seu poema numa mesa suja da Estação de Santa Apolónia. A estação ferroviária, como lugar simbólico da escrita da nova antiepopeia, que num horizonte metatextual evidentemente se refere ao próprio romance antuniano, também enfatiza essa aniquilação do mar como horizonte cultural. Portugal pós-imperial limita-se ao território continental, as caravelas dos descobrimentos são substituídas por outros meios de transporte continentais. Numa outra leitura, a estação é o lugar da transição, e não é por acaso que a nova epopeia está a ser escrita no lugar da transição, dado a própria cultura estar num complexo estado de transição de uma identidade colonial para um novo modelo (pós-moderno). O homem de nome Luís depois de esperar três semanas pela sua bagagem nas docas de Alcântara começa a divagar em Lisboa, com a sua única pertença, a urna com os restos podres do

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pai. No processo deambulatório, que revela o perfil dum flaneur pós-moderno a deixar atrás de si o Terreiro do Paço, espaço simbólico da representação do poder imperial, mistura-se “com os ressuscitados que povoam as trevas de Lisboa” (Antunes, 1988: 92), isto é, como o nome já indica passa a ser uma pessoa profana qualquer. O grande poeta nacional é privado de toda a sua aura mítica quando a sua realidade corporal se inscreve no texto. Luís “coceia as crostas de herpes da orelha” (ibidem: 25) e tem minhocas no sovaco malcheiroso (ibidem: 93). Se Fernando Pessoa visionou o aparecimento de um Supra-Camões que conseguisse superar a obra e a pessoa do poeta fundador, As naus, a libertar o poeta do peso do mito, confronta-nos com um Sub-Camões. O homem de nome Luís não é mais do que um autêntico Sub-Camões, uma versão profanizada do grande herói mítico inscrito na realidade portuguesa pós-revolucionária. O SubCamões profano conhece ainda na Estação de Santa Apolónia um empregado de mesa, chamado Garcia da Orta, “fulano amargo de meia-idade, radioamador” (ibidem: 157). Faz amizades com ele e vende-lhe os restos do pai em troca de alojamento e comida. Assim Luís instala-se no apartamento de Orta que além de ser radioamador tem uma outra paixão, a botânica, e o corpo já líquido do pai passa a ser usado como adubo para as plantas cultivadas no apartamento e a experiência grotesca resulta tão bem que as flores nutridas pelos restos corporais devoram toda a família do botânico e apoderamse da casa inteira. A amizade lendária entre as figuras referenciais de Camões e Garcia de Orta, médico português que passou a maior parte da sua vida em Índia a observar a flora do subcontinente, recebe um forte twist paródico na sequência dos acontecimentos. Nessas imagens absurdas podemos ver bem a poética paródica da profanação que sempre parte de um elemento da tradição mítica e o coloca num outro contexto, criando assim uma certa diferença epistemológica na repetição. Lobo Antunes não poupa o tom paródico do próprio ato da escrita da epopeia, que parece ser a preocupação central de Luís depois de se ter livrado do cadáver do pai. Como já mencionei começa a escrever as oitavas na estação num bloco de faturas que pede emprestado do café. Mais tarde continua o poema numa pastelariazita tranquila do Príncipe Real, em que viúvos calvos, impregnados de nostalgia de castas, sorviam aos golinhos o chá de limão das constipações perpétuas, enquanto eu, distraído das suas tosses e da teimosia das varejeiras nos pastéis de feijão, redigia tempestades e concílios de deuses com um cálice de martini ao alcance da barba (ibidem: 161).

O nascimento do manuscrito da epopeia é um dos temas preferidos do mito camoniano. Na versão mítica, o poeta compôs a maior parte da obra numa gruta, perto de Macau num isolamento total. Esse mitema reflete mais uma vez aquela sensibilidade romântica que mitificou a figura, vendo nele um autêntico génio poético, um alterDeus, isolado na sua genialidade. Além disso não podemos esquecer a imagem mítica do poeta que depois do naufrágio salva a sua obra, erguendo-a na sua mão direita no meio das ondas e da tempestade: a imagem mais emblemática da iconografia do mito. Em As naus, nada resta das ideias românticas associadas ao manuscrito. Luís escreve em lugares profanos da cidade como a estação, uma pastelaria ou uma tasca qualquer,

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e escreve em matérias profanas como um bloco de faturas ou uma toalha suja (ibidem: 163), rodeado por pessoas mesquinhas, grotescas e doentes. Doentes – porque o profano contamina segundo Agamben. Não é por acaso que no coda amargo do romance o homem de nome Luís se encontra num sanatório de tuberculosos, onde o governo hospedou os retornados doentes. O grupo de tísicos alimenta fantasias messiânicas e espera a vinda de D. Sebastião. O livro encerra-se com esta imagem densa de uma multidão de patriotas doentes, a esperar o regresso do adolescente loiro, “vindo de Alcácer-Quibir com pulseiras de cobre trabalhado dos ciganos de Carcavelos, […] num cavalo impossível” (ibidem: 247). Mas a salvação mítica do jovem rei não chega, é tão impossível como o cavalo o que nos reconduz à política da profanação. Confrontando o leitor com um Sub-Camões, o livro quer acabar com aquele discurso político do ancien régime que exaltava o patriotismo e o colonialismo, a ideologia do symbolic history evocado por Žižek. Como Daniel Pageux observa, o livro de Lobo Antunes não oferece só novas visões estéticas, mas tem também fortes conotações ideológicas. O passado produziu, ao largo dos séculos, na mentalidade portuguesa (como em qualquer outra nação), um lastro, por assim dizer, de glória, que se fragmentou em estereótipos retidos pela instituição sociocultural (a escola, sobretudo). Produziu um certo número de clichés que Lobo Antunes reinstala no seu romance. E Lobo Antunes pretende exorcizá-los definitivamente pelo riso. A prosa cómica tem a pretensão, parece-me, de operar uma catarse original. À tragédia colonial sucede aquilo a que poderíamos chamar uma libertação pelo riso, uma maneira, talvez de conjurar a angústia: o romance é um mergulho no que já não é de todo trágico mas, no pior dos casos tragicómico (Pageaux, 1997: 39).

Por outro lado, a política da profanação antuniana é a inscrição do excêntrico no discurso, a justapor e relacionar figuras heroicas da história de Portugal com pessoas simples, retornados desorientados, indivíduos doentes, Lobo Antunes inscreve a voz dessa massa oprimida no campo estético. Citando mais uma vez Agamben, a história da humanidade só começa quando a História se acaba.

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residência da dinastia – um tema na literatura portuguesa

Karolina Válová Universidade Carolina em Praga República Checa

Resumo: Na literatura portuguesa o tema da casa aparece com frequência, especialmente no século XX e a residência da dinastia representa uma das categorias do tema. Na maioria dos casos os romances dessa categoria contam a história trágica do último herdeiro de uma família excecional cuja antiga glória é testemunhada pela casa, geralmente em ruínas. Neste artigo queria mostrar três tipos de relação entre a personagem principal (o herdeiro da casa) e a residência da família: “Os aristocratas ligados à história”, “Os patriarcas medievais” e “Guardiã da memória”, analisando os romances de Eça de Queirós, de Carlos de Oliveira, de José Cardoso Pires e de Lídia Jorge. Palavras-chave: casa; dinastia; herdeiro

Analisar o espaço é uma das possibilidades de interpretação dos romances. A casa tem um estatuto especial nos romances, funcionando como um contraste estático das personagens. Pode refletir o carácter do indivíduo ou enfatizar as contradições entre o espaço e a personagem que o habita. A casa é sinónimo de abrigo e proteção do mundo, de refúgio provisório, mas pode ser, pelo contrário, também uma prisão ou um lugar odioso. Em português, a palavra “casa” é polissémica e pode também significar a dinastia ou a raça. Na literatura portuguesa, o tema da casa aparece com frequência, especialmente no século XX. Nos primeiros anos, ligadas ao fim do Realismo, aparecem analogias entre o destino das personagens principais e a história portuguesa incluindo as turbulências políticas. No período da censura e opressão do regime salazarista, a representação da casa espelha a situação desfavorável do País. Nos anos após a Revolução dos Cravos, a casa surge como modelo da convivência problemática das gerações “antes e pós

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Abril”. Os autores desta época democrática tendem a mostrar a casa como um lugar impessoal onde falta a comunicação verdadeira. A residência da dinastia é a casa que tem, tematicamente, o estatuto especial na literatura portuguesa, podendo funcionar como metonímia da sociedade, do país ou do mundo. Na maioria dos casos os romances com esta temática contam a história trágica do último herdeiro de uma família excecional; da antiga glória e riqueza da família, resta a casa, geralmente em ruínas, onde aparecem os fantasmas (metafóricos ou reais) dos antepassados; os últimos membros da família testemunham a morte ou decadência dos seus descendentes, simbolizam o esfacelamento de uma época ultrapassada, fim do antigo sistema socioeconómico. O intento deste artigo é mostrar três tipos de relação entre a personagem principal e a residência da família: “Os aristocratas ligados à história”, “Os patriarcas medievais” e “Guardiã da memória”.

os aristocratas ligados à história Procurando os primeiros herdeiros das dinastias na literatura portuguesa que têm uma relação extraordinária com a residência da sua família, tenho que mencionar os romances de Eça de Queirós, especialmente os da última fase da sua obra, nomeadamente Os Maias, A casa ilustre de Ramires e A cidade e as serras.

os maias Os Maias (1888) é um romance-análise que retrata a decadência de uma família da alta sociedade. Os momentos principais do destino da família Maia representam, entre outros, os momentos principais da história de Portugal. Os Maias é um romance sobre a decadência, a história simbólica da ruína de uma família que, a seu modo, na sucessão das suas gerações desde o antigo regime até ao Portugal contemporâneo de Eça, representa o destino e até os períodos da história de um país… (Medina, 1980: 73).

A crítica da situação do protagonista é ao mesmo tempo uma crítica da situação de uma parte importantíssima da sociedade portuguesa, das castas dirigentes da aristocracia e da burguesia que não conseguem aproveitar o seu talento. Carlos, a personagem principal, é o último descendente dos Maias, a antiga família nobre de Beira. Como médico recém-formado chega a Lisboa para lá abrir um consultório. Instala-se numa casa chamada Ramalhete. No passado, o Ramalhete esteve desabitado durante vários anos e servia apenas para guardar as mobílias de outros edifícios vendidos, funcionando como uma espécie

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de museu desarrumado. Carlos decidiu proceder a uma remodelação completa da casa. Com a ajuda de um famoso arquiteto-decorador de Londres quis criar “um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio” (Queirós, 2012: 9). Carlos precisava de uma casa que suscitasse uma boa impressão e correspondesse ao seu pretendido estilo de vida: de uma personagem de grande êxito e respeitada na sociedade lisboeta. O Ramalhete tinha a função de um acessório admirado e correspondia bem ao início de uma carreira promissora. O fracasso pessoal e profissional de Carlos que se segue é associado à degradação da casa. Depois de dez anos de viagens, Carlos visita outra vez o Ramalhete. A descrição do interior mais uma vez espelha a alma de Carlos e, de modo figurado, a situação de Portugal da época. Antiga residência torna-se novamente um museu de coisas inúteis, e está quase inabitável. Para Carlos essa visita é uma oportunidade de prestar contas da sua vida, ele percebe que falhou completamente nos seus planos. Carlos não tem filhos e é o último membro da família. A sua ligação com Portugal é para sempre interrompida porque quer viver em Paris. O fim da dinastia Maia corresponde ao fim da casa, Ramalhete, a qual, observada da rua, parece um “sombrio casarão, […] mudo, para sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína” (ibidem: 714).

a ilustre casa de ramires O romance, publicado em 1900, foi escrito na época da instabilidade da monarquia, sobretudo depois do Ultimato britânico, para melhorar a autoestima nacional portuguesa. Uma solução para o poder decadente do País podia ser o renascimento da aristocracia culta e consciente. Com ironia fina, Eça de Queirós demonstra o caráter frágil da aristocracia da época, incapaz de dar continuidade à grandeza do passado português. Gonçalo Mendes Ramires, último descendente da família aristocrática do século X, retorna, após a conclusão do curso de Direito em Coimbra, para as suas terras, para uma aldeia no interior de Portugal. Aí reencontra a mesma monotonia provinciana de anos atrás e a sua família nobre falida moral e financeiramente. Tem ambição de tornar-se político. É convidado a publicar um romance numa revista o que vê como uma boa oportunidade de ficar conhecido na sociedade. Começa a escrever uma novela chamada A Torre de D. Ramires sobre as glórias de seus antepassados; especialmente sobre o Tructesindo Ramires, chamado “fiel cavalheiro do rei D. Sancho I”. À medida que a narrativa corre, Gonçalo altera a sua trajetória pessoal e recebe as qualidades dos seus antepassados. No meio de todos estes acontecimentos, uma noite Gonçalo tem um pesadelo no qual os seus ilustres antepassados lhe depositam no colo suas armas e o incitam a seguir o caminho da bravura deles. Ambas as épocas, Portugal do século XIX e XIII, decorrem vividas na aldeia de Santa Irineia e são analisadas a partir da Torre dos Ramires, nobre mansão medieval que serve de ligação entre esses dois tempos. Gonçalo consegue recuperar a Torre e entrar na política, começando a ser chamado “Fidalgo da Torre”.

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“E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre, agora mais sua, e que uma finidade nova fundada em glória e força o tornava mais senhor da sua Torre!” (Queirós, 1999: 298) Em certos momentos, Gonçalo Ramires representa Portugal, e recontando a história de sua casa, conta a do seu País, sabendo que do glorioso passado português resta apenas uma recordação.

a cidade e as serras O romance A cidade e as serras foi publicado em 1901, um ano após a morte de Eça de Queirós. Jacinto, o protagonista do romance, é o último membro de uma “velha família agrícola que já entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei D. Dinis” (Queirós, 2010: 5). O  destino de Jacinto está associado a  duas casas, prédios completamente opostos, o palacete parisiense n.º 202 e o solar rural português. Através das duas casas é marcante a dicotomia entre a cidade e o campo, entre a civilização e a barbárie. O romance inicia-se com um enorme entusiasmo pelas teorias do positivismo, e termina com uma crítica ao falso pressuposto de que a civilização europeia é superior àquelas do resto do mundo. No “palacete do sofisticado luxo” (Reis, 2009: 118), o de n.º 202, Jacinto queria concentrar toda a civilização sofisticada debaixo de um telhado, e diminuir a influência da natureza no ser humano. Na maioria dos casos, os objetos supracivilizados não funcionam de forma adequada. A imensidade de coisas deveria melhorar a vida dos seus utentes mas, pelo contrário, torna-a mais difícil. Uma pessoa “civilizada” torna-se cada vez mais incompetente. Jacinto está cada vez mais cansado da vida, está desgostoso de Paris e tão aborrecido da “civilização” que quase adoece. Durante a viagem para Portugal, onde quer pagar a construção de um novo túmulo dos antepassados, visita o solar de Tormes – uma casa antiga da sua família em ruínas. Para Jacinto, trata-se de uma simbólica viagem “para trás”, para procurar as raízes e para voltar à vida simples em harmonia com a Natureza. Jacinto decide ficar em Tormes, num edifício de pedra do século XV, e viver lá sem inventos modernos. A estadia aí é uma boa oportunidade para recomeçar a sua vida do “zero”. Tormes é a segunda “casa-projeto” para Jacinto. O primeiro projeto, o do palacete n.º 202 fracassou, a casa tornou-se desagradável para viver e quase expulsou os seus habitantes. O solar próspero de Tormes abriga a nova família de Jacinto e recebe o nome de “castelo da grã-ventura”67.

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A cidade e as serras é o único romance da temática das residências com um fim positivo, onde a dinastia continua.

ii. literatura e estudos de tradução

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os patriarcas medievais “O patriarcalismo dominou a sociedade portuguesa rural até a primeira metade do século XX” (Correia, 2009: 64). A época salazarista apoiava a desigualdade entre homens e mulheres em todos os meios sociais com regras de comportamento ditadas para os dois gêneros. Mesmo dentro do espaço da casa, numa situação matrimonial, havia os espaços de domínio do pai e os lugares de utilização da mãe. Na ficção de A casa na duna e Uma abelha na chuva de Carlos de Oliveira e de O delfim de José Cardoso Pires, destacam-se as manifestações de poder nas relações entre diferentes classes sociais e também entre homens e mulheres. Há muitos traços semelhantes na caracterização dos protagonistas destes romances. Os patriarcas são cabeças dos núcleos familiares e representantes das típicas organizações socioeconómicas portuguesas do pós-Segunda Guerra Mundial. Todos temem a perda do poder e dos bens. Todos saem do mesmo ambiente português, caraterizado pela solidão e silêncio. “A Quinta continuaria silenciosa, sem o barulho dos motores. Os homens continuariam a semear e a colher, como há mil anos” (Oliveira, 1944: 44). Portugal desta época seria um país onde os habitantes se comportariam ainda como se estivessem a viver no passado, numa estrutura feudal. Sofriam as consequências de não terem conseguido acompanhar o correr dos tempos e as modificações modernas pelas quais passava o mundo industrializado.

a casa na duna Um bom exemplo da casa percebida como verdadeiro castelo medieval é a quinta dos Paulos em A casa na duna (1943) que está descrita como um ponto dominante da aldeia, estendido “sobre o dorso duma duna” (ibidem: 51), e é caracterizada como “uma mansão senhorial a cuja sombra se distribuem os casebres dos servos” (ibidem: 45). O trabalho dos exploradores da mão-de-obra, os quais serviam os Paulos como vassalos, “era feito com enxadas, a uva esmagada sem prensas, o milho escarolado à mão” (ibidem: 43). O caráter medieval dos agrupamentos humanos é percetível em várias outras situações. Além da economia de subsistência defendida por Mariano Paulo, é importante a ideia de casamento cujo fim é assegurar a sucessão das terras e a sua governação. Mariano Paulo precisaria de um herdeiro conveniente (que o seu filho Mariano frágil não é), necessário para perpetuar a herança dos Paulos. A quinta dos Paulos é a metonímia da região rural e pobre de Gândara. A destruição da casa (o único filho suicida-se e Mariano Paulo no momento de loucura incendia o prédio) e o fim da dinastia corresponde outra vez à queda económica da região.

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uma abelha na chuva A casa, o espaço que deveria ser ocupado pelo amor e proteção em Uma abelha na chuva (1953), como nos outros romances escolhidos nesta categoria, preenche-se, porém, de desamor e de sentimentos negativos como ódio, raiva e sobretudo isolamento e desprezo. A casa dos Silvestres serve como ringue para um casal desequilibrado cujos sentimentos se revestem de uma orientação mercantil. O casamento dos Silvestres, comerciantes, com os Alvas, fidalgos, foi só um expediente para salvar a propriedade e o poder económico. O casal, assim como todos os casais existentes em novela, não tem filhos – este fato metaforiza que as castas dirigentes causam a própria extinção. E também mostra a necessidade de interromper o antigo sistema feudal e patriarcal com os seus valores ultrapassados. O “cabeça” do casal, Álvaro Silvestre, comporta-se como um pseudo-patriarca (Correia, 2009: 244) e o pseudo-macho, é dependente da sua mulher que é a verdadeira chefe da família, desde a sua tentativa de editar uma carta-confissão num jornal, na qual responsabiliza a mulher por seus atos. No momento em que se sente ameaçado pelo povo local, que invade a propriedade para lhe cobrar a responsabilidade pelas mortes de um casal jovem e fértil, Álvaro mostra uma dependência completa da esposa pedindo-lhe proteção. Uma invasão temporária da população local ao pátio dos Silvestres e uma janela da casa quebrada surge como um momento da rutura do antigo sistema, um verdadeiro ato revolucionário. É uma queda definitiva da casa intocável, do homem como macho, e mostra o poder do povo, especialmente da classe trabalhadora.

o delfim Romance O Delfim (1968) é tematicamente muito parecido com a novela Uma abelha na chuva. Termina também com o fim do sistema patriarcal e feudal na região de Gafeira, com a “vitória” do povo local que pode utilizar a lagoa para a pesca e a caça de patos livremente, sem a permissão dos Palma Bravos. Depois do desaparecimento do último descendente da família poderosa, Tomás Manuel da Palma Bravo, e depois da morte trágica da sua esposa, a lagoa, que está ao lado da casa deles, fica sem dono. A dinastia dos Palma Bravos terminou, Tomás Manuel não conseguiu ter filhos, tenha sido por esterilidade, ou por homossexualidade, os quais são temas tabu para um macho da época. Durante a vida ele viveu com o luxo de todos os inventos modernos, mas no ambiente da Idade Média, com um servo, como o undécimo de uma série de fidalgos que se repetem no tempo. A residência dos Palma Bravos situada à beira da lagoa parada no tempo e mergulhada no silêncio omnipresente representa Portugal sob o regime salazarista. Retrata o país que não vê o tempo passar e que permanece estagnado.

ii. literatura e estudos de tradução

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guardiã da memória Paulo Medeiros, num estudo sobre os romances de Lídia Jorge, defende que a imagem da casa funciona como um dos principais traços estruturantes das suas prosas. Segundo o crítico, as casas dos romances de Lídia Jorge são sempre “lugares de memória” e, por isso, “não por acaso em todos os romances da autora a memória tem uma importância fundamental” (Medeiros, 2003: 61). Uma das primeiras “guardiãs da memória” dos livros de Lídia Jorge é a menina anónima, a personagem principal do romance O vale da paixão (1998), ela procura as suas raízes durante a inscrição da casa paternal no diário. Guardar a memória através da conservação da casa é um tema no romance O vento assobiando nas gruas (2002).

o vento assobiando nas gruas Em O vento assobiando nas gruas, Milene pertence à família rica e numerosa Leandro. Entre os parentes conservadores e tradicionais tem um estatuto especial por causa da sua doença psíquica, da sua origem (filha ilegítima, órfã de pai e rejeitada desde o nascimento pela mãe) e da posição económica privilegiada porque ela é a herdeira da residência da dinastia, Villa Regina. Milene recebe o papel da guardiã do legado familiar e cultural, quer dizer do legado da sua avó Regina Leandro que se materializa nas mobílias da casa. Depois da morte da avó, Milene tenta manter a Villa Regina exatamente no estado original que a casa tinha durante a vida da sua habitante. É uma tentativa de anular o vazio emocional causado pelo desaparecimento desta e evocar a sua presença fantasmática. A casa de Regina evidenciava um tempo histórico ultrapassado que a matriarca Leandro insistia em preservar. Milene agarrada pelas tias, fincada nas pontas dos pés, com os calcanhares afastados e os joelhos unidos, disse-lhe – “Salte já desse cadeirão...” “O cadeirão é da avó Regina. Percebe?” (Jorge, 2002: 147).

Conservar a casa representa também uma possibilidade do apagamento dos vestígios dos tios e tias quem tornam a vida de Milene mais difícil. Os filhos de Regina começam a livrar-se do passado decadente da família percetível em cada canto da casa. Esse passado arruinado e materializado nos objetos da casa torna-se, então, o alvo do interesse pecuniário dos herdeiros. A delapidação da casa pelos legítimos herdeiros é, de certo modo, a oficialização da destruição de uma família que parece ignorar que a casa é o bem da família. Ela é encarregada de manter a família. Os sucessores de Regina demonstram estar a verberar a consumação das suas ruínas, ou seja, ratificando a morte não só de Regina, mas de toda a geração que ela representa e da qual todos os Leandro são inférteis frutos. “Cabe destacar que o mobiliário que desaparece guarda a memória não só da glória familiar, mas, antes e principalmente, as marcas imperiais de um Portugal também desaparecido“ (Papoula, 2009: 65).

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Sob o pretexto de proteção, Milene e a Villa Regina estão sob o olhar atento dos parentes. A família Leandro fica aflita ao saber da sua relação amorosa com um emigrante cabo-verdiano. A tia de Milene tenta impedir a mistura de raça e de propriedade, submetendo-a traiçoeiramente a uma esterilização numa clínica.

bibliografia Correia, Márcio. Estranhamento, desencontros e solidão: a representação da família na ficção de Carlos de Oliveira (tese da pós-graduação). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2009. Jorge, Lídia. O vento assobiando nas gruas. Lisboa: Dom Quixote, 2002. Medeiros, Paulo de. Casas assombradas. In: Ferreira, Ana Paula – Ribeiro, Margarida (eds.). Fantasmas e fantasias imperiais no imaginário português contemporâneo. Porto: Campo das Letras, 2003. Medina, João. Eça de Queiroz e a geração de 70. Lisboa: Moraes Editores, 1980. Oliveira, Carlos de. Casa na duna. Coimbra: Coimbra Editora, 1944. Queirós, Eça de. A cidade e as serras. Alfragide: Leya, 2010. Queirós, Eça de. A ilustre casa de Ramires. Lisboa: Livros do Brasil, 1999. Queirós, Eça de. Os Maias. Porto: Porto Editora, 2012. Papoula, Talita da Rocha. Espaços em trânsito. Uma leitura de O vento assobiando nas gruas de Lídia Jorge (Dissertação de Mestrado). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Reis, Carlos. Eça de Queirós, Lisboa: Edições 70, 2009.

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a tradução na didática de ple como veículo de interculturalidade: estudo de caso

Nuno Carlos de Almeida68 Davor Gvozdić69 Universidade de Zadar, Croácia Resumo: Neste trabalho, apresentamos as linhas gerais que enquadraram uma tarefa concreta de tradução, realizada por alguns aprendentes de português. Apesar de, na didática de línguas estrangeiras, a tradução nem sempre ser bem aceite, sustentamos que esta é uma atividade válida, com benefícios para o desenvolvimento pleno das competências gerais e comunicativas, de natureza linguística, pragmática e sociolinguística, entre as quais a competência intercultural, aqui em destaque pelo modo como contribuiu para a resolução dos aspetos mais problemáticos na referida tarefa de tradução. Palavras-chave: tradução; didática de PLE; competência intercultural

0. introdução Tendo sido convidados a participar nas IV Jornadas de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas da Europa Central e de Leste, decidimos partilhar com os colegas uma experiência francamente positiva que tivemos durante o ano letivo anterior, em que trabalhámos com mestrandos em tradução que simultaneamente eram ainda aprendentes de português como língua estrangeira (PLE). Segundo pudemos constatar, os trabalhos 68 69

Docente do Camões I. P. na Universidade de Zadar, Croácia. Licenciado em Linguística, mestre em LCP – Metodologia do Ensino do Português (LE/L2) e doutorando em Língua e Cultura Portuguesa (Língua Estrangeira / Língua Segunda). E-mail: [email protected]. Bolseiro Fernão Mendes Pinto, docente do Camões I. P. na Universidade de Zadar, Croácia. Licenciado em Estudos Pedagógicos e Língua e Literatura Portuguesas, mestre em Estudos Portugueses Multidisciplinares, especialização em Linguística Portuguesa. E-mail: [email protected].

iii. pedagogia e didática estudos culturais e civilizacionais

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de tradução que foram fazendo resultaram numa melhoria visível do seu desempenho comunicativo em PLE, para além de que reforçaram particularmente a sua competência enquanto mediadores interculturais, papel de que não estavam até então verdadeiramente conscientes. Surpreendentemente, ao contrário do que seria expectável, tendo em conta a nossa satisfação com os resultados positivos que havíamos constatado, depois de alguma pesquisa bibliográfica sobre o assunto, verificámos que o lugar da tradução no ensino de LE nem sempre tem sido consensual. A ideia geral que transparece é a de que o conceito de tradução, assumida durante séculos como técnica fundamental na aprendizagem de LE, não acompanhou a evolução operada na área da didática de LE, acabando por dar azo a uma tendência para o seu afastamento das aulas de LE, sobretudo a partir do surgimento da abordagem comunicativa. Felizmente, no entanto, multiplicam-se os trabalhos em defesa das virtudes e das potencialidades da tradução, numa lógica de redefinição / atualização do conceito de tradução como estratégia de aprendizagem de uma LE. Sobre o tema da tradução no ensino-aprendizagem de línguas, recomendamos a consulta dos trabalhos de Ridd (2009), que compila uma extensa bibliografia de referência neste âmbito, e de Balboni (2011), por ter sido aquele que primeiramente nos chamou a atenção. Num trabalho tão breve como este, o que pretendemos não é repetir argumentos ou fazer uma revisão da literatura de referência mas somente acrescentar algumas notas para o esclarecimento do lugar da tradução na aula de LE (portanto, de PLE), partindo de uma experiência positiva, numa perspetiva de ensino-aprendizagem voltada para a ação e destacando a importância da competência intercultural nas atividades linguísticas de mediação.

1. tradução na aula de ple: sim ou não? Segundo Bravo (2008: 4–5), o lugar da tradução no ensino-aprendizagem de LE tem sido um assunto bastante controverso devido ao facto de haver um entendimento frequentemente errado da natureza desta atividade, para além de que a sua função no processo de aprendizagem não tem sido adequadamente explicada. Pelo que nos foi dado a perceber ao longo desta brevíssima investigação, não poderíamos estar mais de acordo com as afirmações da autora, que cita o trabalho de Vinary & Darbelnet (1958: 24–25) para distinguir três grandes áreas na prática da tradução, como uma competência específica: a área educacional, a área profissional e a da investigação linguística. Se, enquanto atividade pedagógica, a tradução é uma ferramenta de aprendizagem e, frequentemente, também de testagem, por exemplo, da compreensão em LE, como atividade profissional, ela transforma-se dado que o tradutor não traduz para compreender mas para fazer com que outros compreendam. Quanto à dimensão de investigação, esta baseia-se na noção de tradução como instrumento de análise linguística, através do estudo comparativo de duas línguas.

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No entanto, na lógica de uma didática de LE, o mais natural é que esta distinção tripartida não seja assumida como estanque ou verdadeiramente compartimentada. Na verdade, as três referidas dimensões sobrepõem-se e complementam-se, sugerindo, numa abordagem mais atual, voltada para a ação, a convocação de outras noções pertinentes para uma correta avaliação do papel da tradução no processo de ensino-aprendizagem de LE. Comecemos por nos referir à tradução enquanto atividade profissional, dimensão que à partida seria menos relevante numa reflexão sobre o lugar da tradução na didática de uma LE, como a que apresentamos nestas páginas. Sobre isto, apontamos desde já que, ao pensar-se que o objetivo do tradutor não é propriamente compreender mas fazer com que os outros compreendam, coloca-se em evidência quer a funcionalidade da tradução enquanto atividade linguística de mediação quer o papel do tradutor enquanto mediador. No âmbito das políticas educativas europeias para o ensino das línguas, as atividades de mediação “ocupam um lugar importante no funcionamento linguístico normal das nossas sociedades” (Conselho da Europa, 2001: 36). A mediação não é neste contexto considerada apenas como um exclusivo dos tradutores profissionais, sendo antes perspetivada como mais uma das atividades linguísticas envolvidas na ativação da competência comunicativa de qualquer aprendente / utilizador da língua, a par de outras: a receção, a produção e a interação (ibidem: 35). Note-se que nesta abordagem, orientada para a ação, os utilizadores e os aprendentes de uma língua são vistos como “atores sociais, que têm de cumprir tarefas em circunstâncias e ambientes determinados, num domínio de atuação específico” (ibidem: 29). Quer isto dizer que, enquanto utilizador / aprendente de uma língua, a dado momento, um indivíduo poderá ter de realizar, na vida real, tarefas que envolvam a mediação enquanto atividade linguística, ainda que não faça da tradução a sua atividade profissional. Logo, se numa aula de LE o que se pretende é preparar os aprendentes para agir em diferentes circunstâncias e em diversos domínios, seria contraproducente ignorar a validade das atividades de tradução enquanto potenciadoras de uma preparação necessariamente mais completa. Todavia, uma intervenção adequada exige que um ensinante de LE esteja consciente de que “atividades linguísticas” e “tarefas”, termos usados no parágrafo anterior, são conceitos importantes e têm um significado particular, à luz das atuais tendências europeias. Vale a pena, por isso, ver de que modo estes dois conceitos são definidos no QECR70, o referencial europeu para o ensino das línguas: As atividades linguísticas abrangem o exercício da própria competência comunicativa em língua num domínio específico no processamento (receção e/ou produção) de um ou mais textos, com vista à realização de uma tarefa. Uma tarefa é definida como qualquer ação com uma finalidade considerada necessária pelo indivíduo para atingir um dado resultado no contexto da resolução de um problema, do cumprimento de uma obrigação ou da realização de um objetivo. Esta definição pode abranger um vasto leque de ações tais como deslocar um armário, escrever um livro, obter certas condições

70 Qecr: Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (Conselho da Europa, 2001).

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ao negociar um contrato, jogar às cartas, pedir uma refeição num restaurante, traduzir um texto escrito em língua estrangeira ou preparar a realização de um jornal de turma em grupo (Conselho da Europa, 2001: 30).

Parece-nos importante sublinhar dois aspetos nas definições apresentadas: o primeiro é a particularidade de as atividades linguísticas serem associadas à realização de uma tarefa; o segundo tem a ver com o facto de uma tarefa ser uma ação considerada necessária pelo indivíduo. Para além disto, é pertinente acrescentar que no QECR as tarefas são consideradas em duas dimensões distintas, como “tarefas comunicativas” e/ou como “tarefas de aprendizagem”, estando a dimensão comunicativa ligada à ativação estratégica de competências específicas em resposta às necessidades do indivíduo enquanto utilizador da língua, ao passo que a dimensão de aprendizagem tem mais a ver com as necessidades do indivíduo como aprendente. Também não podemos deixar de salientar que a pertinência de uma tarefa para as necessidades comunicativas reais do aprendente tem implicações ao nível da motivação intrínseca para a sua realização e que, por isso, uma tarefa será tanto mais produtiva quanto mais fizer coincidir a dimensão de aprendizagem com a dimensão comunicativa. Paralelamente, com a exceção de situações particulares, o mais provável é que na tradução, enquanto atividade que exige o estudo comparativo de duas línguas, tal comparação se faça entre a língua materna (LM) e uma língua não materna (LNM). Tal probabilidade obriga-nos a fazer aqui um apontamento quanto ao papel inegável que a LM tem na aprendizagem de uma LNM, para dizer que, quanto a nós, o conhecimento e o domínio de uma LNM (e também da LM) sai reforçado sempre que o aprendente tem a necessidade / oportunidade de estabelecer associações ou dissociações concretas entre o funcionamento desta e da sua LM71. Assim sendo, uma tarefa que envolva atividades linguísticas de mediação acaba por, inevitavelmente, por contribuir para reforçar também a sua dimensão de aprendizagem. De acordo com Hinojosa e Lima (2008: 2), um outro aspeto enfatizado pela prática da tradução é o da relação língua-cultura dado que o aprendente é levado a refletir sobre as relações da LE com a sua LM e demais línguas, numa dimensão sincrónica e cultural. Para além disso, tendo como pano de fundo o modo como é perspetivada no QECR a construção do repertório linguístico-cultural, assume-se que o aprendente de uma língua e cultura estrangeiras não guarda essa nova competência à parte do conhecimento linguístico-cultural anterior (da sua LM ou de outras LNM). O que acontece é que, à medida que o aprendente se torna plurilingue e consequentemente desenvolve a interculturalidade, não só “as competências linguísticas e culturais respeitantes a uma língua são alteradas pelo conhecimento de outra”, como também os aprendentes se tornam “mediadores, pela interpretação e tradução, entre falantes de línguas que não conseguem comunicar diretamente” (Conselho da Europa, 2001: 73).

71

O papel da LM no ensino-aprendizagem de LNM não é um tema consensual. Uma consulta de trabalhos como os de Atkinson (1987), Jovanovic (1992), Pereira (2001), Butzkamm (2003) ou Bernabé (2008), entre outros, será um bom ponto de partida para aprofundar o assunto, conhecendo diferentes perspetivas.

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Mantendo presente o binómio língua-cultura72, recorrente no QECR, e retomando a dinâmica de mediação, subjacente à atividade da tradução e ao papel do tradutor, não poderíamos passar ao lado da ideia de mediação intercultural, por ser um dos aspetos centrais neste breve trabalho, seja devido à importância que teve na resolução das situações mais problemáticas surgidas no caso que aqui relatamos, como veremos mais à frente, seja pelo facto de ser um assunto recorrente em trabalhos nas áreas da tradução e do ensino de LE. Segundo o QECR, as capacidades interculturais incluem a capacidade para estabelecer uma relação entre a cultura de origem e a cultura estrangeira, bem como a capacidade para desempenhar o papel de intermediário cultural entre a sua própria cultura e a cultura estrangeira, gerindo com eficácia as situações de mal-entendidos e de conflitos interculturais (ibidem: 151). Ao mesmo tempo, em trabalhos da área específica da tradução, embora sob uma perspetiva diferente, a mediação intercultural também não é, de todo, ignorada. Nessa linha, Katan (2009), por exemplo, observa a tradução como um exercício de comunicação cultural em que o tradutor, enquanto mediador intercultural, aplica ao texto em LE um filtro cultural, negociando significados tendo em vista o leitor do texto de chegada73. De facto, este é um dos aspetos frequentemente tidos em conta na descrição da missão do tradutor, que ilustramos com as palavras de Martins: Será então missão ou meta do tradutor, como comunicador, ter em conta esta diversidade para com ela criar um trabalho que estabeleça não só um ato de comunicação entre o autor da Cultura de Partida e o leitor real na Cultura de Chegada mas também, consequentemente, uma ponte eficaz entre Cultura de Partida e Cultura de Chegada (Martins, 2009: 23).

Acrescentaríamos ainda, de passagem, a referência a dois autores cujos trabalhos consideramos assaz relevantes para completar o enquadramento da tradução enquanto reflexão intercultural. Galisson (1991) desenvolve o conceito de lexicultura, que evidencia o facto de as palavras serem recetores de conteúdos culturais, fazendo com que a língua se confunda com a cultura dos seus falantes. Em resposta à pergunta “o que significa traduzir?”, Eco (2003) reúne uma série de trabalhos seus mostrando que traduzir é negociar significados e que, por isso, o texto de chegada apenas pode dizer quase a mesma coisa. Nesta compilação, a ideia transversalmente presente é a de que a impossibilidade de uma tradução plenamente equivalente se deve mais a questões culturais do que exclusivamente linguísticas. Por tudo isto, a resposta à pergunta tradução na aula de PLE: sim ou não? é, logicamente, sim. Porém, o uso da tradução como ferramenta de ensino-aprendizagem requer o devido enquadramento, que implica algumas condicionantes. Desde logo, não pode ser abordada como a resolução de meras questões linguísticas, como a equivalência morfossintática e semântica. Depois, de modo a que o contributo da tradução 72 O termo cultura é aqui usado no sentido que é assumido, em geral, nos estudos sobre ensino-aprendizagem de LE e que se confunde com a vida dos homens, tal como referido por Diaz (2005: 840). 73 Ao longo do texto original, em inglês, os termos exatos usados são “intercultural communication”, “cultural mediator” e “culture / cultural filtre”, respetivamente.

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para o desenvolvimento das competências comunicativas do aprendente seja potenciado e aproveitado, a atividade da tradução deve ser incluída em tarefas significativas revestidas de uma dimensão comunicativa, ou seja, com aplicação na vida real, fora da aula, e não apenas pensadas como tarefas de aprendizagem, dentro da aula. Só assim, a tradução exigirá a ativação de um leque mais diversificado de competências gerais e comunicativas, de natureza linguística, pragmática e sociolinguística, entre as quais a competência intercultural, que aqui pretendíamos destacar. Quer isto dizer que, na verdade, somos obrigados a reformular a resposta que demos no início do parágrafo, esclarecendo que o nosso sim não vai para a tradução na aula mas para a tradução a partir da aula.

2. particularidades do exercício da tradução (para legendagem) A bem da coerência deste nosso breve trabalho, é devida uma referência a alguns aspetos particulares não só da atividade de tradução em geral, como também, especificamente, da tradução para legendagem. Mais do que definir, explicar ou desenvolver conceitos, apenas nos cabe aqui chamar a atenção para alguns dos fatores que inevitavelmente provocam a existência de um espaço de tensão, no qual se processa a mediação através da tradução. Para o tradutor, a tensão traduz-se na necessidade de tomar decisões que, na tradução de qualquer texto, independentemente do tipo de texto ou da modalidade da tradução, implicarão sempre uma aproximação ou um afastamento do texto de chegada relativamente ao texto de partida. Temos, portanto, o mediador entre o autor, o texto de partida e a cultura de partida, por um lado, e o leitor, o texto de chegada e a cultura de chegada, por outro. Depois, se uma tradução em adequação convoca conceitos como os de exotização ou estrangeirização, que tendem para uma especificação ao nível do significado, uma tradução em aceitabilidade comunga de uma lógica de naturalização ou domesticação, associada a um estilo mais vago, de generalização, favorecendo a compreensão na cultura de chegada (cf. Martins, 2009). Adicionalmente, a uma correspondência formal opõe-se uma equivalência funcional, para as quais concorrem as estratégias usadas pelo tradutor, entre as quais se encontram o empréstimo, o decalque, a tradução literal, a transposição, a modulação, a equivalência ou a adaptação, entre outras (cf. Newmark, 2009)74. Quando o objetivo da tradução é especificamente a legendagem de um texto oral/ visual, para além dos focos de tensão referidos no parágrafo anterior, o tradutor terá de lidar ainda com outro tipo de restrições, que resultam de condicionalismos de tempo e de espaço, na passagem de um texto de partida oral para um texto de chegada escrito.

74

Para uma consulta destes e de muitos outros conceitos relevantes no domínio da tradução, veja-se AAVV (2009).

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Vale a pena lembrar que na legendagem não há lugar para notas de rodapé com informações do tradutor para ajudar a descodificar vocabulário ou referentes culturais do texto de partida, como acontece na tradução de um romance ou de um poema escrito, por exemplo. Através da consulta do trabalho de Xavier (2010), percebe-se que, por um lado, é exigido que a legenda não contamine a imagem, o que leva a que habitualmente a legenda não tenha mais de duas linhas, geralmente na parte inferior do ecrã, onde existe um menor grau de informação visual. Por outro lado, é fundamental encontrar um equilíbrio entre a velocidade do texto de partida, o tempo da legenda e a velocidade de leitura do espetador, sendo a sincronização entre o início de uma sequência oral e a respetiva legenda também, neste contexto, um aspeto de grande relevância. Acentua-se, portanto, a importância do público-leitor como condicionador do processo, já que a velocidade de leitura esperada é um elemento-chave na legendagem (pensemos, por exemplo, na diferença entre crianças e adultos a este nível). Em resultado disto, ainda de acordo com Xavier (2010), a tradução para legendagem resulta numa redução vocabular de cerca de 30 % relativamente ao texto de partida. Adicionalmente, deve ter-se em conta que a leitura e descodificação das legendas não acontece como um exercício isolado já que o leitor, simultaneamente, tem de observar o fluir da imagem, decifrando a informação visual e relacionando-a com a história do filme, ouvindo os sons naturais, as músicas e os diálogos, e pensando ainda no que se vai passar a seguir, sem deixar de ter presente o que já se passou. Assim, para que o recetor não seja privado dos aspetos fulcrais do texto de partida audiovisual, exige-se que o texto de chegada seja de fácil leitura, o que, tendo em conta o espaço e o tempo disponíveis, acaba por implicar uma simplificação do discurso, com o uso de vocabulário transparente, de acordo com aquilo que se julga ser mais familiar para o público-leitor. Tendo em conta as particularidades da atividade de tradução especificamente para legendagem, parece-nos importante referir que também ela apresenta virtudes no que se refere à aprendizagem de uma língua estrangeira75. Vale a pena, por isso, nessa perspetiva, observar a passagem abaixo, em que a autora cujo trabalho temos vindo a citar descreve os problemas que se colocam ao tradutor num trabalho para legendagem, bem como o tipo de competências que lhe são exigidas: [O] tradutor deparar-se-á com os problemas característicos da tradução para legendagem, de teor linguístico-cultural. A competência linguística de redução e condensação de informação ocupa um lugar primordial neste estádio, em que é exigido que um TP extenso seja compactado em duas linhas no ecrã. Os vocábulos culturalmente restritos, como os referentes culturais, o humor, a variação linguística ou a linguagem tabu, colocarão problemas ao tradutor dada a necessidade de transferência extralinguística e adaptação ao contexto de chegada (Xavier, 2010: 43).

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O trabalho de Bavo (2008) é bastante elucidativo relativamente aos efeitos das legendas e da legendagem na aprendizagem de uma língua estrangeira.

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3. a tarefa A tarefa que realizámos consistiu em traduzir de português para croata os diálogos do filme Capitães de Abril, realizado por Maria de Medeiros em 2000, com o intuito de o legendar. Esta atividade foi realizada por quatro estudantes de português, sob a supervisão de um professor, no âmbito da disciplina Práticas de Tradução HR-PT, disciplina do Mestrado em Tradução, oferecido pela Universidade de Zadar, na Croácia, com momentos de trabalho individual e em grupo. Os referidos mestrandos eram simultaneamente aprendentes de português, inscritos no sexto e último semestre do curso de Língua Portuguesa na mesma universidade, facto que assinala a dimensão de aprendizagem da tarefa realizada. Enquanto tarefa comunicativa e significativa, a tradução e legendagem eram uma necessidade para a projeção do dito filme, no contexto da comemoração dos 40 anos do 25 de Abril de 74. O que se pretendia não era que esta atividade fosse direcionada apenas para os alunos de português mas que pudesse ser também aberta à comunidade de Zadar, que obviamente não fala português e que desconhece muitos dos aspetos culturais específicos presentes no filme, evidenciando-se neste ponto a dimensão cultural da tarefa. Portanto, as exigências do texto de chegada passavam por conseguir um texto de fácil leitura, que permitisse uma descodificação tão completa quanto possível, desejavelmente enquadrada por referentes da cultura de chegada.

4. situações problemáticas e o filtro de equivalência Durante a realização da tarefa acima descrita, surgiram alguns casos mais difíceis de resolver, que corresponderam grosso modo ao tipo de aspetos linguísticos, pragmáticos e culturais que frequentemente são referenciados como problemáticos neste tipo de atividade – veja-se o tipo de problemas elencados por Chiaro (2009). De facto, os idiomatismos (expressões idiomáticas e de uso metafórico), as formas de tratamento e interjeições, a linguagem tabu, as siglas e outras designações oficiais, o efeito prosódico de algumas sequências (ritmo, rima), bem como o humor, particularmente o resultante de cómico de linguagem, suscitaram bastantes dúvidas e exigiram opções de tradução mais criteriosas. Para facilitar e regular a tomada de decisões, foram então definidos alguns critérios, que constituíram aquilo que aqui apelidamos de filtro de equivalência. Pelo facto de encararmos a tradução como uma atividade linguística de mediação que exige a ativação da competência comunicativa, tal como explicámos na parte inicial do presente texto, na linha do que é assumido pelo QECR, fazia todo o sentido servirmo-nos deste mesmo referencial para a definição do nosso filtro de equivalência, concebendo-o à imagem da competência comunicativa, com as respetivas componentes. De acordo com o QECR, a competência comunicativa engloba três tipos de competências: as linguísticas, as sociolinguísticas e as pragmáticas. A competência linguística

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é definida como “o conhecimento de recursos formais a partir dos quais se podem elaborar e formular mensagens corretas e significativas, bem como a capacidade para os usar”, englobando parâmetros de natureza lexical, gramatical, semântica, fonológica, ortográfica e ortoépica (Conselho da Europa, 2001: 157). A competência sociolinguística refere-se “ao conhecimento e às capacidades exigidas para lidar com a dimensão social do uso da língua” e confunde-se em larga medida com a competência sociocultural (ibidem: 169). As competências pragmáticas permitem lidar com a mensagem, com a sua estrutura, com a realização de funções comunicativas (como relatar, pedir, responder, exprimir satisfação ou desagrado, persuadir, entre diversas outras), incluindo a capacidade para usar esquemas interacionais e transacionais, que subjazem à comunicação (ibidem: 174–182). Nesta linha de raciocínio, o filtro de equivalência deveria englobar três componentes: equivalência linguística, equivalência sociocultural e equivalência pragmática. Desde logo, tendo em conta os condicionalismos inerentes à modalidade de tradução (para legendagem), ficou claro que, salvo casos muito específicos, sempre que não fosse possível conseguir uma equivalência plena entre o texto de partida e o texto de chegada, a equivalência linguística seria a menos relevante das três, sendo preferível conseguir-se uma equivalência pragmática. Porém, era importante não perder de vista nem as características do público recetor nem os objetivos da tarefa, tal como foram descritos anteriormente, pelo que a equivalência sociocultural era altamente desejável. Assim, o critério cultura foi em muitos casos decisivo para as opções de tradução, facto que não é de todo surpreendente, a julgar pelas palavras de Xavier (2010) quando diz que se exige ao tradutor “que ultrapasse os limites das barreiras linguísticas e faça equivaler unidades com a mesma conotação extralinguística” (ibidem: 76) ou quando sustenta que “a tradução só atinge o seu propósito comunicativo havendo partilha de significação pelos membros da Cultura de Chegada” (ibidem: 54).

5. exemplos de aplicação do filtro de equivalência Não sendo este um trabalho especificamente sobre tradução, muito menos sobre a  tradução de Os capitães de abril, de Maria de Medeiros, não faria muito sentido elencarmos todas as situações problemáticas ou as opções tomadas para as resolver, até por motivos relacionados com a extensão do texto. O nosso propósito é apenas apresentar alguns exemplos ilustrativos da aplicação do filtro de equivalência que definimos, suficientes para, pelo menos, constatar a importância da competência intercultural para a resolução das questões mais problemáticas. Abaixo, encontram-se 2 exemplos de tradução de idiomatismos, 2 exemplos de tradução de linguagem tabu, 2 exemplos de situações em que o efeito prosódico é preponderante e, por questões de espaço, apenas um exemplo de cómico de linguagem. Cada um dos exemplos numerados, para além da sua localização no texto de partida, em minutos e segundos, é acompanhado de informação sobre a aplicação do filtro de equivalência, linguística

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(EL), pragmática (EP) e sociocultural (ES), assinalando se ela é nula (-N), parcial (-P) ou total (-T). Antes de apresentarmos os exemplos, porém, uma rápida referência ao tratamento das interjeições e das siglas ou designações oficiais. Em relação ao primeiro tipo de unidades linguísticas (como “pá”, “hã”, entre outras), o critério usado tendeu para a sua eliminação no texto de chegada, devido sobretudo aos condicionalismos de espaço e de tempo da legendagem. Muito embora estivéssemos conscientes de que transportam uma carga sociocultural complementar que não deve ser ignorada (em situações ideais, sem qualquer tipo de condicionalismos), entendemos que a sua tradução não seria decisiva para o sucesso na transmissão da mensagem. Relativamente ao segundo tipo de casos, a palavra PIDE surge diversas vezes ao longo do filme, seja como designação oficial da instituição Polícia Internacional e de Defesa do Estado, seja com o significado metonímico de agente dessa mesma instituição. Na legendagem, a opção foi usar o termo tajna policija (polícia secreta), que de certo modo parafraseia o conceito e que, por feliz coincidência, para além de servir para designar tanto uma instituição como um indivíduo pertencente à instituição, em croata, transporta uma carga sociocultural associada a um regime ditatorial na história recente do país, tal como acontece com PIDE, na sociedade portuguesa. No caso de Ultramar, designação oficial portuguesa para o território colonial ultramarino, a estratégia foi fundamentalmente a mesma, explicitando-se o conceito através da paráfrase prekomorske kolonije (colónias ultramarinas) já que, sem a presença da palavra colónias, a leitura seria mais que provavelmente incompleta. Feito o apontamento que pretendíamos e que, de resto, evidencia a importância do conhecimento simultâneo da cultura de partida e da cultura de chegada, passamos então à breve apresentação dos exemplos que havíamos referido. 1 (CA: 65m46s) (EL-N) (EP-T) (ES-P) PT- Isto agora, os novos políticos… os gajos vão cantar o fadinho ao povo, pá. HR- Ovo sad, ovi novi političari... pričat će bajke narodu. A expressão cantar o fadinho surge num registo oral informal e, no contexto em que está inserida, significa enganar, mentir, ludibriar, sugerindo a ideia de alguma ingenuidade do povo. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar a carga sociocultural que o conceito de fado transporta na cultura portuguesa, ainda que não contribua decisivamente para a interpretação da expressão. Em croata, a expressão que mais naturalmente surgiria num contexto socioculturalmente equivalente, com o mesmo valor pragmático, seria pričati bajke, em que pričati é contar e bajke é o nome dado ao tipo de histórias que se contam às crianças, em português, as histórias da carochinha ou os contos de fadas. Neste caso, não foi conseguida uma equivalência linguística mas a equivalência em termos pragmáticos é evidente. Devido ao conceito especificamente português de fado, a equivalência sociocultural é apenas parcial, mantendo-se porém a ideia principal, aceite em ambas as culturas, de que o povo é ingénuo relativamente aos artifícios dos políticos.

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2 (CA: 80m36s) (EL-P) (EP-T) (ES-T) PT- Parece uma mosquinha-morta, hã? e afinal… HR- Izgleda ko’ mrtvo puhalo. A na kraju… Tal como no caso anterior, temos uma expressão idiomática de registo informal. O idiomatismo mosquinha-morta aplica-se a uma pessoa apática, pouco dinâmica, sem iniciativa, surgindo frequentemente também com o significado de sonso, dissimulado em relação à intimidade com pessoas do sexo oposto, sobretudo quando é usado o verbo parecer. Em croata, a expressão achada como equivalente foi mrtvo puhalo, em que mrtvo significa morto e puhalo significa soprador. Como se verifica, em termos puramente linguísticos, a equivalência é parcial, pela coincidência da utilização do adjetivo participial do verbo morrer. Porém, os valores pragmático e sociocultural da expressão do texto de partida são mantidos de modo a permitir uma leitura equivalente no texto de chegada. 3 (CA: 9m18s) (EL-P) (EP-T) (ES-P) PT- Se fossem à merda!... São mesmo uma cambada de veteranos! HR- Ma idite k vragu!... Vi ste jedna obična veteranska hrpa govana! Neste primeiro exemplo do tratamento de linguagem tabu, temos a expressão ir à merda, que no texto de partida é usada por alguém que, numa conversa entre amigos, militares e veteranos de guerra, já está farto de que os outros falem sobre experiências de guerra e quer que mudem de assunto. Este é precisamente o valor pragmático da expressão, ou seja, mostrar desagrado / desinteresse pelo assunto da conversa e, ao mesmo tempo, fazer com que os interlocutores falem de outras coisas. Em termos pragmáticos, a estrutura de conjuntivo adquire o valor de imperativo, sendo equivalente a vão à merda. Apesar de ser uma expressão rude e potencialmente ofensiva, no contexto específico em que surge não chega a ter um caráter verdadeiramente ofensivo pois, culturalmente, corresponde ao tipo de linguagem esperado de alguém que é duro quando fala com outros semelhantes, também eles pouco suscetíveis de serem ofendidos pelo uso de linguagem tabu, o que acontece tanto na cultura associada ao texto de partida como na cultura associada ao texto de chegada. Ainda numa dimensão sociocultural, quer a palavra merda, em português, quer o seu correspondente croata, sranje, têm vindo a perder o estatuto de linguagem tabu, principalmente no registo oral e informal, assistindo-se a uma equivalência quanto ao grau de aceitação manifestado em ambas as culturas. Porém, como observa Xavier (2009: 77), no texto escrito, este tipo de expressões provocam um efeito mais forte do que na oralidade, o que leva a que se verifique uma tendência para a sua suavização na legendagem. Então, apesar de haver um possível equivalente perfeito em termos linguísticos, pragmáticos e socioculturais, o que aconteceu na passagem do discurso oral, em português, para o texto escrito, em croata, foi a opção por uma suavização, usando-se a expressão imperativa idite k vragu, ou seja, vão para o diabo, em português.

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4 (CA: 55m11s) (EL-T) (EP-T) (ES-T) PT- Filho da puta! HR- Kurvin sine! Esta é uma expressão usada para ofender alguém, especialmente quando é dirigida diretamente a outra pessoa, que é precisamente o que se verifica no caso exemplificado. Paralelamente, a mesma expressão torna-se mais suave quando é empregue para expressar inveja pelo facto de alguém ter conseguido algo difícil, seja por mérito ou por sorte. O equivalente em croata kurvin sin, é perfeito: basicamente, em termos linguísticos a tradução é literal, o valor pragmático de ofensa mantém-se e o grau de aceitação na cultura de chegada é semelhante. Ao contrário do que sucedeu no exemplo anterior, em que a opção foi substituir por uma expressão mais suave, até porque não se tratava de uma verdadeira ofensa, neste caso isso não aconteceu para que a carga ofensiva contida no texto de partida se mantivesse explícita no texto de chegada. 5 (CA: 112m36s) (EL-P) (EP-T) (ES-P) PT- O POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO! HR- ZAJEDNO JAČI, NIKO NAS NE TLAČI! 6 (CA: 113m22s) (EL-P) (EP-T) (ES-P) PT- O POVO ESTÁ COM O MFA! HR- MI SMO UZ VAS, NOSITE NAM SPAS! Estes são dois exemplos em que a prosódia assume um papel de destaque, desde logo porque é habitual que as palavras de ordem ou slogans, usados em coro pelos participantes em manifestações públicas, recorram à rima, o que cria um efeito prosódico específico e que, ao mesmo tempo, facilita quer a articulação coordenada do mesmo slogan por muitas pessoas, em simultâneo, quer a compreensão do que é dito. Em termos socioculturais, verifica-se que tanto o primeiro como o segundo slogans têm, na cultura de partida, uma conotação histórica, política e social particularmente ligada ao 25 de Abril de 1974. Sendo impossível uma equivalência perfeita na tradução de português para croata, era importante manter o efeito prosódico da rima, objetivo que foi conseguido e que acaba por assegurar uma equivalência linguística parcial, tentando não perder de vista a equivalência pragmática. Assim, a tradução encontrada para O povo unido jamais será vencido foi Zajedno jači, niko nas ne tlači, que significa Unidos mais fortes, ninguém nos pisa e que, em termos pragmáticos, se mantém como uma expressão que celebra a invencibilidade do povo quando unido. O segundo exemplo, O povo está com o MFA, foi traduzido por Mi smo uz vas, nosite nam spas, ou seja, Nós estamos convosco, trazem-nos a salvação, mantendo-se, na leitura do texto de chegada, um valor pragmático muito próximo do original, que é o de manifestação de apoio àqueles que puseram um ponto final na ditadura. Pelo facto de os slogans no texto de chegada não terem qualquer conotação histórica, política ou social (não são reais), a equivalência sociocultural nunca seria possível. No entanto, se pensarmos que numa hipotética si-

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tuação de manifestação pública na cultura de chegada seriam esperadas palavras de ordem gritadas pelos manifestantes, e que seria esperado que tais slogans apresentassem o mesmo efeito prosódico de rima, podemos admitir que foi conseguida aqui, pelo menos, uma equivalência parcial. 7 (CA: 20m34s) (EL-P) (EP-T) (ES-T) PT- Todos nós sabemos… que existem diversos tipos de Estado. Os estados liberais… os estados social-democratas… os estados socialistas… et cetera. Mas nenhum deles… é pior do que o estado a que isto chegou. HR- Svi znamo... da postoje različita državna uređenja. Liberalno državno uređenje... socialno-demokratsko državno uređenje... socialističko državno uređenje... itd. Ali nijedna država... nije se toliko uneredila kao naša. Este excerto surge num discurso proferido pausadamente e com um ar solene pelo protagonista do filme, o Capitão Maia, aos seus subordinados, que, dispostos em formatura militar à sua frente, seguem atentamente as suas palavras. O efeito cómico provocado pela última frase do excerto é visível através da reação das personagens, que riem. Isto fez com que fosse indispensável na tradução, não só manter esse efeito cómico, como também conseguir que a reação dos leitores do texto de chegada fosse coincidente com a reação das personagens, no filme. Digamos que a reação da audiência do filme legendado em croata seria o teste a superar no que se refere à adequação da tradução, testando neste caso específico a equivalência pragmática. Depois, há que ter em conta que se trata de um cómico de linguagem, conseguido através de um trocadilho entre o termo Estado enquanto equivalente a Nação e a palavra estado na aceção de estado de coisas. Dado que a palavra correspondente a Estado na língua croata é država, que não permite o mesmo tipo de trocadilho linguístico, uma outra solução teve de ser encontrada. Para tal, partiu-se da expressão državna uređenja, traduzível como organização estatal e que inclui uređenja (organização, sistema), nome associado ao verbo urediti (organizar, arranjar), cujo antónimo é unerediti. Ambos os verbos podem ser usados com o pronome reflexo se mas a expressão verbal reflexa na negativa unerediti se (desorganizar-se, desarranjar-se) tem um duplo sentido, podendo ser interpretada, em contexto informal, como borrar-se, uma interpretação possível, aliás, também em português, se pensarmos que a palavra desarranjo pode ser facilmente interpretada como na expressão desarranjo intestinal, em que significa, basicamente, diarreia. Com esta solução, traduzindo mais ou menos literalmente para português o texto de chegada, o resultado foi o seguinte: Todos nós sabemos… que existem diversos tipos de organização estatal. As organizações estatais liberais… as organizações estatais social-democratas… as organizações estatais socialistas… etc. Mas nenhum Estado… se desorganizou [se desarranjou, se borrou] tanto como o nosso. Verifica-se, então, que a equivalência pragmática foi conseguida, já que o efeito cómico foi mantido (e validado pelos risos da audiência aquando da exibição do filme legendado). Para tal, recorreu-se a um trocadilho, que parte da proximidade entre o nome uređenja e o verbo urediti se para tirar partido da polissemia da expressão contrária unerediti se, o que significa que, em termos linguísticos há pelo menos uma

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equivalência parcial. No que se refere à equivalência sociocultural, consideramos ter sido total pois, não só a sátira política é frequente, como também a ridicularização das instituições de poder é uma estratégia recorrente em textos cómicos, seja na cultura associada ao texto de partida seja na de chegada. Para além disto, mantém-se a mesma lógica de evolução do discurso, que começa com um registo aparentemente mais formal para introduzir inesperadamente uma expressão de uso mais popular, que provoca o riso devido à sua polissemia.

6. em jeito de conclusão A terminar, salientamos alguns dos aspetos referidos ao longo do texto, os que entendemos serem essenciais, tendo em mente o nosso objetivo inicial, que, lembramos, era o de contribuir para o esclarecimento do lugar da tradução na aula de LE (logo, de PLE), partindo de uma experiência positiva, numa perspetiva de ensino-aprendizagem voltada para a ação e destacando a importância da competência intercultural nas atividades linguísticas de mediação. Assim, parece-nos pertinente e adequado afirmar que: i) a tradução tem de facto um lugar a preencher na aula de LE, desde que não seja centrada em questões meramente intralinguísticas, como a equivalência morfossintática e semântica; ii) perspetivada como uma tarefa comunicativa, a tradução não deixa de ser uma tarefa de aprendizagem de LE, ao passo que o inverso não é verdade, isto é, perspetivada apenas como uma tarefa de aprendizagem de LE, a tradução perde força enquanto tarefa comunicativa; iii) a dimensão comunicativa da tarefa e o facto de ser significativa (uma tarefa realmente necessária, de mediação entre a língua e a cultura de partida e a língua e a cultura de chegada, tendo em vista um público real e definido) são determinantes para que todas as competências gerais e comunicativas, de natureza linguística, pragmática e sociolinguística, sejam plenamente ativadas; iv) a competência intercultural é um dado relevante na capacidade para comunicar e revela-se decisiva na resolução dos aspetos mais problemáticos da tradução, enquanto atividade linguística de mediação. Por último, retomando o título do texto, no caso estudado, verificámos que a tradução é de facto um veículo de interculturalidade na didática de PLE, todavia não deve acontecer apenas na aula – ela deve fazer-se a partir da aula.

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a globalização do ensino / aprendizagem da língua portuguesa: lusofonia e internacionalização

Soraia Lourenço76 Camões, I. P. Universidade de Zagreb Croácia Resumo: Neste artigo, propomo-nos refletir acerca da dimensão lusófona da língua portuguesa e da sua abordagem intercultural nas aulas de PLE. As estratégias de internacionalização da língua portuguesa que têm vindo a ser desenvolvidas levam-nos também a problematizar o binómio língua-cultura, na medida em que o português representa diversas culturas e, consequentemente, diferentes realidades linguísticas, levando-nos, por isso, a questionar o papel da Didática de PLE no processo de ensino-aprendizagem de português língua estrangeira numa perspetiva pluricultural. Palavras-chave: PLE; lusofonia; internacionalização

considerações iniciais As políticas e estratégias que na presente era de globalização têm conduzido ao processo de internacionalização da língua portuguesa levam a uma reflexão sobre as práticas e necessidades de alguns dos seus principais agentes (ensinantes, aprendentes e materiais didáticos) no ensino de português no estrangeiro (EPE) – na sua vertente de português língua estrangeira (PLE), assim como aos desafios que tais estratégias e políticas se lhes colocam. Nomeadamente, no que respeita à capacidade de adaptação

76

Leitora do Camões, I. P. na Faculdade de Letras da Universidade de Zagreb, Departamento de Estudos Românicos, Ivana Lucica 3, 10000, Zagreb, Croácia. Doutoranda em Língua e Cultura Portuguesa (PLE/PL2) na Faculdade de Letras da UL. E-mail: [email protected].

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e adequação desses agentes à fase de crescimento que o português77 atravessa, rentabilizando cada vez mais esse interesse, principalmente em contextos geográficos, nos quais a sua relevância económica, política e linguística é percebida como menor, como seja o do continente Europeu. Neste âmbito, acreditamos que a crescente procura do PLE na Europa, não se justifica apenas pelo seu valor enquanto sistema de comunicação, mas pelo capital cultural que transporta e pelo potencial económico que revela, podendo efetivamente equilibrar a sua posição a nível europeu, estimulando o interesse daquele que não é falante nativo, mas que vê no português uma ponte para outros espaços culturalmente atraentes e economicamente mais promissores. A Didática das Línguas assume um papel preponderante neste contexto de globalização não apenas económica, mas também cultural, pelo facto de ter de responder aos desafios que se têm imposto em termos sociais, principalmente na Europa, face à livre mobilidade, à emergência de novos públicos aprendentes e à promoção do plurilinguismo como desenvolvimento de valores humanos e sociais de respeito pela diversidade linguística e cultural que contemplam forçosamente uma educação intercultural.

aprender português hoje. porquê? para quê? O principal argumento para atrair público para a aprendizagem da LP em contexto europeu (e não só) passa pelo içar da bandeira da lusofonia78, a qual concentra parte da sua influência em dados estatísticos – números, que visam conferir à língua portuguesa destaque a nível global. O estudo Potencial Económico da Língua Portuguesa79 e a exposição homónima, mais recentemente divulgada pelo Camões, Instituto da Cooperação e da Língua (Camões, I. P.) são um excelente testemunho das dinâmicas de valorização económica e cultural da LP que têm servido de estratégia à angariação de candidatos para o seu ensino e aprendizagem ( Figura 1). Entre alguns desses dados destacam-se pela sua relevância e atualidade os seguintes: – 4.ª língua mais falada do mundo com cerca de 244 milhões de falantes80; – 5.ª língua mais utilizada na internet com cerca de 83 milhões de utilizadores81; 77 78

79 80 81

De entre alguns dos estudos onde podemos constatar este facto, destaca-se o relatório do British Council (2013), Languages for the future. Site: http://www.britishcouncil.org/sites/britishcouncil.uk2/files/languages-for-thefuture-report.pdf Dado que o conceito surge, normalmente, associado a uma pluralidade de significados, que por sua vez remetem para complexas discussões ideológicas, alerta-se para o facto de que no presente artigo, o termo é utilizado para caracterizar o universo comunicacional da LP, enquanto bloco linguístico, cultural, e económico, tendo como elo de ligação o português como LO. Estudo coordenado por Luís Reto e apoiado pelo Camões, I. P. Site: www.observatorio-lp.sapo.pt. Site: www.internetworldstats.com.

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3.ª língua mais utilizada na rede social virtual facebook com cerca de 59 milhões de utilizadores82; – 6.ª língua mais utilizada em negócios83; ● é considerado um dos 10 idiomas mais importantes nas próximas décadas84. No entanto, sabemos que o valor de uma língua não é um dado fixo, havendo variáveis como a ciência, a tecnologia, a economia ou a cultura que determinam o seu prestígio e o seu poder de atração (Lourenço, 2014). Refira-se a propósito a expansão económica de países como o Brasil, a Índia e a China que abrem à cultura lusófona e à língua portuguesa na sua dimensão transcontinental novas perspetivas de futuro e de investimento – a LP está na moda85 (Figura 2).

Inevitavelmente, o marketing à volta da lusofonia acaba por dar frutos, levando o potencial público aprendente a perspetivar na LP um futuro profissional promissor, a reconhecer-lhe importância e em última instância procurar aprendê-la como língua estrangeira.

Fig. 1. Exposição do Potencial Económico da Língua Portuguesa, Camões, I. P./ISCTE-UL, 2014

82 Site: www.internetworldstats.com. 83 Dados recolhidos da revista Bloomberg Languages for Business, 2011. O ranking não inclui o inglês. 84 Relatório Languages for the Future, British Council, 2013. 85 Entrevista de Carlos Reis ao Jornal Expresso: Aprender português está na moda, 5 de julho de 2008.

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Fig. 2 Capa da Revista Monocle “Geração Lusofonia”, n.º 57, vol. 06, outubro 2012

internacionalização do português A noção de internacionalização da língua portuguesa reporta-se a um processo eminentemente político de afirmação, de consolidação e de diversificação funcional da língua na cena internacional, enquanto idioma utilizado em países estrangeiros e não lusófonos, em funções convencionalmente culturais e académicas, mas também noutras utilizações que podem garantir e reforçar o prestígio de uma grande língua de cultura: ciência, internet, tradução e interpretação, negócios. Um tal processo convoca, para além dos agentes políticos, muitos outros atores e entidades; nele intervêm agentes, ações e instrumentos muito distintos, indo do ensino da língua à formação de professores [...] de luso-descendentes às medidas que visam públicos universitários não portugueses [...] (AAVV, 2010).

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A  internacionalização da LP faz-se sobretudo num contexto de ensino de PLE e neste âmbito tem enfrentado diversos obstáculos, entre os quais, a coexistência de duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, que tem sido o principal cavalo de batalha entre portugueses e brasileiros e que de certa forma se reflete nos diferentes contextos de ensino de português no estrangeiro, acabando por enfraquecer a dinâmica da própria língua. A coexistência de duas normas não contribui para o investimento em serviços linguísticos de e para português, não facilita a sua internacionalização e não é funcional no que respeita ao EPE, apresentando-se também como barreira em todos os planos em que a forma escrita é utilizada – difusão cultural, relações comerciais, entre outros. A aplicação da Nova Norma Ortográfica (NNO) viria reforçar o papel da LP como comunicação internacional, como suporte do discurso científico, como expressão literária, cultural e artística, considerando-se ainda fundamental para que o crescente número de pessoas que quer aprender português o possa fazer utilizando uma grafia comum. Acredita-se que a aplicação da NNO aconteça após a divulgação do Vocabulário Ortográfico Comum (VOC)86 – expressão de uma normatização convergente do português, que se aguarda estar concluída até ao fim de 2014, no qual constam vocábulos de todos os países de LO portuguesa, traduzindo-se numa excelente ferramenta para o ensino de PLE. Como vimos anteriormente, os média são aqueles que, por vezes, mais contribuem para a construção e destruição de realidades, sendo o poder de uma língua ou de uma cultura muitas vezes produto das novas tecnologias, muitas vezes virtual, portanto, influenciando os indivíduos nas suas escolhas profissionais, linguísticas, musicais. Neste âmbito, é inegável que a internet se tenha revelado uma importante aliada na internacionalização da LP na sua dimensão lusófona, fomentando a necessidade de aprender português para ter acesso às manifestações culturais dos países de língua oficial portuguesa (Lourenço, 2014) e que sem esse conhecimento, a riqueza do património lusófono estaria apenas reservada a alguns. A Didática de PLE pode potenciar esse alargamento socorrendo-se dos recursos digitais disponíveis e conferir à LP o papel de intermediária no acesso às manifestações culturais dos povos que partilham a mesma língua e nunca numa posição de intérprete. Cumpre-nos interrogar se a língua portuguesa, através dos seus agentes no EPE, tem efetivamente condições para oferecer tudo o que promete? O português terá na realidade a relevância que lhe é atribuída por dados que, apesar de factuais, são igualmente falaciosos? Será o poder da língua portuguesa real ou virtual?

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Desenvolvido pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa.

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dimensão lusófona da língua portuguesa Língua e cultura A noção de internacionalização da língua portuguesa passa também pela articulação da língua e da cultura (AAVV, 2010: 17). Ao afirmarmos que a língua é um fator de identificação cultural, dificilmente apreendemos imediatamente o seu sentido, num quadro em que a mesma língua cobre espaços com diversas culturas, como acontece com o português. O português não é apenas uma das línguas mais faladas do mundo, mas representa uma ligação cultural entre povos de espaços geográficos diversos e dispersos entre si. Quando se discutem as relações entre língua e cultura, ressaltam imediatamente preocupações com as questões da variação linguística, pertinentes no caso do português, principalmente no que se refere às duas principais variedades, a brasileira e a europeia, em que as diferenças fonéticas, morfológicas, sintáticas e nas formas de tratamento, não passam despercebidas entre portugueses, brasileiros e estrangeiros e são justificáveis pelo contacto do português com as línguas dos nativos, com os crioulos dos africanos e também com outros grupos de emigrantes que se foram fixando no Brasil, o que de certo modo não se traduz apenas em variedades linguísticas, mas também na diversidade cultural entre Portugal e o Brasil (Mateus, 2001). O que foi dito sobre a influência das línguas que estiveram em contacto com o português na constituição da variedade brasileira tem como corolário a interpenetração das referências culturais dos povos que as falavam na constituição do povo brasileiro. Igual caminho de inter-influências culturais percorreram os portugueses (Mateus, 2001).

Deste modo, estamos na presença de duas formas de comportamento – a linguística e a cultural. A atividade linguística tem uma só natureza – realiza-se pela fala – e tem um nome: “língua portuguesa” [...]. Mas esse nome cobre uma abstração se não o concretizarmos na produção linguística de cada indivíduo. E é porque cobre uma abstração que a língua pode servir uma opção política e sócio-económica. De igual modo, o termo “cultura” cobre uma abstração, mas a sua concretizaçao distribui-se por diversas formas de comportamento cujas fronteiras são menos definidas (Mateus, 2001).

Na medida em que a concretização da ‘língua’ se faz através da produção linguística individual, também a identificação cultural é a realização, para cada pessoa, de uma determinada cultura abstratamente considerada. Não é fácil definir o conceito de cultura, uma vez que contempla diversos aspetos da complexidade comportamental e intelectual humana de um indivíduo, do património de um povo e de uma organização específica do mundo, que na atual era global em que vivemos, se encontra em constante mutação. Como simplifica Mateus, a identificação cultural está intimamente ligada aos hábitos, crenças, atividades artísticas, relações sociais do meio restrito em que o indivíduo está inserido, não podendo afirmar-se que

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a identificação cultural tenha, como referentes, as formas variantes que assumem esses aspetos culturais em todo o espaço onde se falam as diferentes variedades de uma mesma língua. Mateus conclui dizendo que a língua materna de cada indivíduo contribui poderosamente para se reconhecer a si próprio e para ser reconhecido pelo outro, sendo por isso um fator de identificação cultural, mas no uso, e pelo uso, que dela faz o indivíduo no contexto em que está inserido e não apenas por pertencer a uma das várias comunidades que utilizam a mesma língua (Mateus, 2001).

Bizarro afirma que sendo ambas pensamento e ação, Cultura e Língua afirmam-se como partes de um todo, não podendo agir de modo independente e influenciando-se reciprocamente. O comunicativo não se “esgota” no linguístico; o “acional” não prescinde do cultural nem do comunicativo. Deste modo, aprender uma Língua não se esvai no seu estudo; aprender uma Cultura, também não. A aprendizagem de ambas pode (deve) permitir a comunicação interculural (Benett, 1998; Abdallah-Pretceille & Porcher, 1999 in Bizarro, 2012).

Os estrangeiros que procuram aprender português como LE sentem-se muitas vezes atraídos pela sua variedade brasileira, não só por ser mais fácil de compreender oralmente, e pelas singularidades culturais, mas pela posição de destaque económico que o Brasil ocupa atualmente no panorama mundial, tornando-se por isso mais atrativo. Neste âmbito, importa também notar que a estratégia política e económica de “internacionalização do português” passa precisamente por escamotear as diferenças particulares das suas variedades nacionais, evidenciando a sua dimensão de comunicação global, mas demarcando as diferenças culturais existentes entre os povos que falam a língua portuguesa. A dificuldade que atualmente se coloca à DPLE é precisamente a de dar resposta às necessidades globais do ensino de PLE, na sua dimensão lusófona e, simultaneamente, às necessidades particulares de quem quer aprender português no mundo. Estarão os professores nativos e não nativos preparados para ensinar português língua estrangeira na sua dimensão lusófona, hoje? Os manuais de PLE correspondem a este duplo desafio? Os aprendentes de PLE estão preparados para compreender a língua portuguesa na sua dimensão lusófona?

didática de ple Que perspetivas de abordagem? A Didática das línguas estrangeiras tem tido como principal aliado na tarefa de ensinar línguas estrangeiras na Europa (com as necessárias adaptações, também noutras partes do mundo) o referencial “Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas” (QECR) que, de certo modo, “revolucionou” o ensino de línguas estrangeiras, procurando uma adequação às transformações sociais que a Europa atravessa(va), face à crescente mobilidade e cada vez maior diluição de fronteiras físicas, defendendo o de-

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senvolvimento de uma competência comunicativa – pressupondo uma abordagem do ensino centrada no aprendente e nas necessidades comunicativas deste. Este contacto e influência entre indivíduos, culturas e línguas que se tem intensificado cada vez mais, tornou-se parte do nosso quotidiano profissional e pessoal, exigindo que a comunicação aconteça. É neste contexto que surge o conceito de competência intercultural. O  conhecimento, a  consciência e  a  compreensão da relação entre o  “mundo de onde se vem” e o “mundo da comunidade-alvo” produzem uma tomada de consciência intercultural. [...] É enriquecida também, pela consciência de que existe uma grande variedade de culturas para além das que são veiculadas pelas L1 e L2 do aprendente. Esta consciência alargada ajuda a colocar ambas as culturas em contexto. Para além do conhecimento objetivo, a consciência intercultural engloba uma consciência do modo como cada comunidade aparece na perspetiva do outro, muitas vezes na forma de estereótipos nacionais (QECR, 2001: 150).

Deste modo, aprender uma língua estrangeira passa a incorporar um conhecimento sociocultural de uma determinada sociedade e da cultura da(s) comunidade(s) onde a língua é falada, pressupondo a exploração de manifestações culturais diversas, como as sugeridas pelo QECR: – vida quotidiana, – condições de vida, – relações interpessoais, – valores, crenças e atitudes, – linguagem corporal, – convenções sociais, – comportamentos rituais (QECR, 2001: 148–150). No entanto, na maioria das vezes, esse conhecimento sociocultural por não ser adquirido em situação de imersão linguística, fica fora da experiência prévia do aprendente e acaba por ser distorcido por estereótipos, como se prevê que aconteça aquando do ensino de PLE na sua dimensão lusófona. No entanto, é também sabido que os aprendentes, antes de começarem a aprender português (ou qualquer outra língua estrangeira), já possuem ideias, representações mais ou menos fixas sobre as manifestações culturais e características linguísticas do “mundo” para onde vão entrar. Muitos destes conhecimentos são construídos com base na distância/proximidade da sua cultura face à cultura da comunidade-alvo e acabam por resultar em preconceitos que, por um lado, ou refletem um exotismo ou indiferença face ao Outro, ou, por outro, se revestem de sentimentos de ameaça à sua identidade87 (na existência de conflitos no passado) ou ainda, pelo contrário, de ilusão de uma continuidade cultural (Fava, 2012). Perante a problemática que tem vindo a ser discutida, no que se refere ao ensino de PLE numa perspetiva lusófona, coloca-se a questão: 87

Como é o caso da Croácia, relativamente à Sérvia. São muitos os aprendentes de português que revelam sentimentos negativos face aos sérvios em consequência do período da guerra da independência.

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Que cultura(s) ensinar quando se ensina português língua estrangeira? A resposta é complexa, pois está dependente de muitos e diversos fatores, nomeadamente as características (de vária ordem) do ensinante, necessidades comunicativas do público aprendente, especificidades dos contextos de ensino-aprendizagem, experiências vivenciadas/partilhadas, motivações, recursos disponíveis, entre outros. Partindo de uma multiplicidade de fatores, o professor de PLE deve tomar opções, em função de todas as variáveis de que dispõe, e deverá ele próprio ser portador de conhecimentos declarativos, existenciais e processuais que lhe permitam desenvolver atividades que promovam a interação cultural entre a cultura de origem dos aprendentes e as culturas da língua-alvo, explorando quer os valores universais de um grupo linguístico-cultural, quer das singularidades de uma comunidade. Na seleção de conteúdos culturais, Bizarro (2012) considera que tanto ou mais importante do que optar por ensinar literatura, outras artes, figuras principais da história de um povo, tradições, festas, rituais ou a vida no quotidiano, os modos de viver, de trabalhar, de aprender... de SER, de se relacionar, interessará levar o aprendente a compreender e comprovar que o estudo de uma língua serve para o conhecimento dos Outros [aqueles que falam a mesma língua], mas também para a construção da própria identidade (necessariamente plural).

Nesta abordagem intercultural, os estereótipos não devem ser marginalizados, pois podem revelar-se uma excelente matéria prima, através da sua desconstrução e questionamento, objetivando o alargamento dos próprios horizontes, no sentido de conhecer o Outro de um modo mais profundo, complexo e diversificado (Fava, 2012).

que recursos didáticos? O ensino de PLE na sua dimensão lusófona tem-se revestido de alguma complexidade, como temos visto, não só no que se refere às especificidades que uma abordagem intercultural exige, mas também pela insegurança manifestada por muitos ensinantes (nativos e não nativos) perante a falta de recursos adequados ou simplesmente inexistentes, que possam preencher lacunas de formação ou compensar, por exemplo, a falta de experiências em situação de imersão linguística e cultural em países de língua oficial portuguesa. Uma análise dos recursos disponíveis para o ensino de PLE, numa perspetiva lusófona, poderia dar-nos pistas para perceber o que poderia ser melhorado ou concebido de raiz, principalmente no que se refere a material audiovisual. Relativamente aos manuais, por ser a ferramenta pedagógica mais utilizada entre os professores de PLE, sugere-se uma análise comparativa com os manuais de espanhol LE ou de inglês LE, o que pode também revelar-se útil para ajudar o professor a conceber os seus próprios

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materiais, visando o desenvolvimento de determinados aspetos interculturais para o seu caso em particular. O ensino de PLE numa perspetiva lusófona tem trazido algumas dificuldades aos professores / ensinantes, não no que respeita aos conteúdos linguísticos e comunicativos, mas na exploração da questão da lusofonia numa perspetiva intercultural e linguística, relativamente ao que transmitir, ou seja, o que é ou não relevante no ensino de PLE para adquirir conhecimento sociocultural. Deste modo, a divisão realizada entre conteúdos comunicativos, linguísticos e culturais é já por si um reflexo das dificuldades manifestadas, mas sem uma real consciência das mesmas. Carballido (2014) salienta o tratamento do conteúdo lusófono por alguns manuais de PLE analisados. Alguns colocam os países lusófonos como ex colónias de Portugal e, portanto, continuadores da cultura portuguesa, outros apresentam muitos conteúdos estereotipados, textos informativos de teor político, destaque para conteúdos históricos, descobertas, outros evidenciam uma perpetuação do espaço simbólico, enquanto identificação e promoção do espaço geográfico. Um outro aspeto para o qual Carballido chama a atenção é o facto de o conteúdo áudio produzido por falantes da variedade europeia do português ser uma incoerência absoluta e uma falta de rigor total, substituir as vozes lusófonas por vozes portuguesas. Repare-se na contradição: o português é oferecido no estrangeiro como uma língua que pode servir para comunicar com pessoas de diferentes países além de Portugal, mas depois essa língua, esses sotaques, essas realidades diversas são homogeneizadas.

Mas os manuais didáticos mais recentes tendem a trabalhar a dimensão lusófona da língua de modo mais amplo e complexo, evitando o olhar redutor e simplista, contudo, ainda sem se revelarem uma mais-valia para o ensino de PLE e para os seus aprendentes. O manual “Ponto de Encontro” é apresentado como um exemplo de boas práticas, por contrastar as principais variedades de LP numa perspetiva pragmática potenciando o conhecimento sociocultural (Carballido, 2014). Além dos manuais de PLE, podemos ainda encontrar outros recursos didáticos que podem auxiliar o ensinante de PLE na sua complexa tarefa, nomeadamente orientações programáticas, tais como o documento concebido pelo Camões I. P. para o EPE, que contempla 5 níveis de proficiência (A1 a C1), descrevendo os conteúdos a abordar em cada um dos níveis. Este documento não é específico para um determinado contexto, podendo adaptar-se a diferentes contextos de ensino-aprendizagem de PLE. O Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE), é composto por orientações programáticas e por materiais de apoio exemplificativos para alguns dos níveis de aprendizagem, de acordo com as características e necessidades do público aprendente. E, por último, os recursos digitais, que talvez sejam atualmente o melhor aliado do ensinante, uma vez que se pode aceder a conteúdos autênticos representativos das diferentes culturas dos países de LP e das suas variedades linguísticas, apesar de não existirem em variedade, quantidade e qualidade suficientes. Destaca-se o “Portal do

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Professor de PLE88” (PPPLE) desenvolvido pelo Instituto Internacional de Língua Portuguesa (IILP), com o objetivo de ser um espaço virtual de partilha de materiais, no sentido de auxiliar os professores de PLE/PLNM nas suas tarefas de ensino da LP em diferentes contextos. O PPPLE é apresentado aqui como um recurso para que os professores que ensinam português no estrangeiro possam ter acesso a materiais didáticos originários dos diferentes países de língua oficial portuguesa e pensados para diferentes níveis de proficiência.

que experiências didáticas? Na falta de uma investigação mais alargada e aprofundada a ensinantes de PLE, relativamente às suas práticas, no que concerne ao ensino do PLE na sua dimensão lusófona, destaca-se a realizada por Carballido (2014), sustentando que nas aulas de PLE podemos encontrar duas posições de ensinantes face ao tratamento do conteúdo lusófono, em virtude da suas carências de formação intercultural: i) tudo o que se trabalha é conteúdo lusófono; ii) o conteúdo lusófono surge como “especiaria exótica” no bloco central de conteúdos (Carballido, 2014). Quando uma língua abrange espaços geográficos diversos, como é o caso do português, o professor/ensinante faz uma escolha sobre o padrão da LP que vai ensinar (no caso de professores não nativos), no caso de professores nativos, cada um ensinará a sua variedade, naturalmente complementada com a sua bagagem cultural (que nem sempre está livre de preconceitos). Deste modo, como se espera que o professor atue perante as expetativas do público aprendente quando a motivação para a aprendizagem da língua portuguesa vem em função de outras realidades que não aquela que o professor escolheu? Evidentemente que em situações desta natureza, os alunos seguirão as opções do professor (Carballido, 2014), mas este facto coloca-nos perante situações extremamente redutoras de uma realidade tão complexa como o ensino-aprendizagem de PLE na sua dimensão lusófona, pois desta forma não se está a formar falantes interculturalmente competentes para interagirem no “mundo lusófono”, mas a perpetuar práticas que não se coadunam com as novas estratégias de internacionalização da língua portuguesa vistas anteriormente.

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O PPPLE não tem reunido opiniões satisfatórias entre a comunidade científica relativamente aos seus objetivos no ensino de PLE, revelando algumas lacunas e incoerências processuais no que se refere aos descritores de níveis de proficiência, no entanto, é de congratular a sua criação.

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considerações finais Este artigo não pretende apresentar soluções, mas antes contribuir para uma reflexão que consideramos fundamental na atual era de globalização que vivemos e em que as estratégias políticas de internacionalização da língua portuguesa se têm intensificado. Para corresponder às exigências de um mercado economicista, beneficiando os falantes de português no mundo, é necessário atentar na complexidade da tarefa de ensinar PLE hoje, principalmente em contexto europeu. Como sabemos, Portugal nem sempre se apresenta como a principal atração para um futuro profissional associado à língua portuguesa, na maior parte das vezes não é a variedade europeia do português que apela para a sua aprendizagem, no entanto cremos que é Portugal o principal beneficiário das políticas de promoção, divulgação e prestígio do português em contexto europeu. Deste modo, facilmente depreendemos algumas incoerências relativamente às políticas de promoção da LP no exterior, as quais, apesar de sustentadas no potencial lusófono, têm uma presença real nas salas de aula ou nos recursos didáticos, principalmente nos manuais de PLE, ou até mesmo na disponibilidade de recursos virtuais e audiovisuais para ensinar a língua portuguesa na sua perspetiva lusófona, praticamente nulas. Sendo a lusofonia o principal estandarte para apelar à aprendizagem do português, é inconcebível que na aula de PLE seja precisamente a dimensão lusófona da LP que acabe por ficar reduzida ou até mesmo excluída, frustrando em muitos casos as expetativas dos aprendentes de PLE em contexto europeu. Conclui-se que no contexto de internacionalização da LP ainda não existe efetivamente uma política de língua concertada que vise o desenvolvimento de uma competência intercultural para o ensino da dimensão lusófona da LP nas aulas de PLE (EPE). O ensino de PLE sob uma perspetiva lusófona é uma questão bastante sensível para ser deixada ao critério dos professores / ensinantes de PLE no estrangeiro – já que interfere em todas as estratégias de internacionalização da língua portuguesa, pondo em causa, em última instância, o verdadeiro potencial económico da língua portuguesa.

bibliografia AAVV. Quadro de Referência para o Ensino Português no Estrangeiro (QuaREPE) – Documento orientador, Direção Geral de Inovação e de Desenvolvimento Curricular (DGIDC), Lisboa, Ministério da Educação, 2011. AAVV. A internacionalização da língua portuguesa – para uma política articulada de difusão e promoção, Carlos Reis (ed.), Ana Paula Laborinho, Isabel Leiria, Mário Filipe, Fátima Pinheiro. Lisboa, GEPE, 2010. BIZARRO, R. Língua e cultura no ensino de PLE/PLS: reflexões e exemplos Linguarum Arena. Vol. 3, 2012, 1. Carballido, Xurxo. F. A presença da lusofonia nos manuais de PLE. In: Martins, L. M. – Cabecinhas, R. – Macedo, L. – Macedo, I. (eds.). Interfaces da lusofonia. Braga: Universidade do Minho, CECS, 2014, 21–40.

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Conselho da Europa. Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas – Aprendizagem, ensino, avaliação, Lisboa, Edições ASA, 2001. DSLC (Dir. Serv. Língua e Cultura), Programas EPE Camões, Lisboa, 2012. Fava, Filipa D. Mendonça. A lusofonia e a competência intercultural na aula de português língua estrangeira. Dissertação de Mestrado, Porto, Universidade do Porto, 2012. Lourenço, Soraia. Lusofonia(s) Hoje: Timor-Leste e a idealização de um espaço lusófono. In: Martins, L. M. – Cabecinhas, R. – Macedo, L. – Macedo, I. (eds.). Interfaces da lusofonia. Braga: Universidade do Minho, CECS, 2014, 41–60. Mateus, M. – Helena M. Se a língua é um fator de identificação cultural, como se compreenda que uma língua viva em diferentes culturas? Rio de Janeiro, 2001. Reto, Luís (ed.). Potencial económico da língua portuguesa. Lisboa: Texto Editores, 2012.

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a literatura tradicional lusófona como instrumento pedagógico no ensino/aprendizagem do ple

Gabriela Tavares Sándor Universidade Corvinus de Budapeste Hungria Resumo: A presente comunicação tem por objetivo demonstrar as potencialidades da inclusão da Literatura tradicional lusófona no ensino do PLE. Num primeiro momento, mencionarei a questão da lusofonia, seguida de uma abordagem à literatura tradicional, descrevendo alguns dos aspetos mais importantes que caracterizam esta forma de expressão. Em seguida, falarei do valor pedagógico e das potencialidades da Literatura tradicional como instrumento didático, exemplificando com dois casos experimentais. Finalizarei a comunicação com uma conclusão onde exponho algumas considerações finais. Palavras-chave: literatura tradicional lusófona; didática; PLE

a questão da lusofonia Os debates sobre a adesão da Guiné Equatorial à CPLP, como membro de pleno direito, e a ainda viva discussão sobre o Acordo Ortográfico, são claras evidências da atualidade da questão da Lusofonia. Esta questão, pela sua importância e conteúdo, entra diretamente para a sala de aula de PLE; infelizmente, o professor depara-se com várias dificuldades no modo como lidar como este tema, começando pela própria falta de conhecimento da realidade dos países de expressão portuguesa, e passando pelas falhas ao nível de apoio didático. Nos manuais, por exemplo, está ausente uma abordagem realmente inclusiva do tema, sendo normalmente apresentadas apenas breves referências a esses países ou, no máximo, um ou outro capítulo dedicado aos mesmos. Apesar destes problemas, o docente de PLE tem de lidar com a questão da Lusofonia, incluindo-a na sua aula de forma confiante e positiva.

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Abordar a literatura tradicional lusófona num plano educativo não é, em absoluto, a única solução possível, mas trata-se de uma possibilidade com muito potencial; afinal, uma das “riquezas” da língua portuguesa é justamente conceder-nos acesso às diferentes culturas do universo lusófono. Através de contos tradicionais lusófonos, por exemplo, não só temos acesso à língua portuguesa em toda a sua variedade, como a lugares, faunas e floras que para muitos alunos são desconhecidos, senão mesmo “exóticos”.

o conto tradicional A abundância e diversidade de manifestações da literatura tradicional89 – da fábula ao mito, da lengalenga às adivinhas, das orações às cantigas de embalar, passando também pelo teatro popular – tornam problemáticas e pouco consensuais a classificação e identificação das suas diversas formas, não só das características distintivas, como mesmo do termo adequado a cada uma delas. Considerando apenas as narrativas, basta comparar, mencionando exemplos “maiores”, a proposta de Vladimir Propp (na sua Morfologia do conto) com a presente no Motif-Index of Folk Litterature: enquanto Propp distingue narrativas míticas sobre animais das sobre costumes, Aarne e Thompson propõem três grandes grupos de narrativas: Animal Tales, Tales of Supernatural e Ordinary Tales. Já Consiglieri Pedroso, na sua coletânea de Contos populares portugueses, mantémse fiel à divisão feita pelo “povo”, mencionando “histórias da carochinha”, contos de fadas, histórias morais, fábulas e anedotas. Mas quer falemos de composições líricas, narrativas ou dramáticas, (ou de formas híbridas), existem certas características textuais que todas estas formas partilham, e que diferenciam a literatura tradicional da dita “literatura-instituição”. Tais características provêm sobretudo da sua “oralidade”: a economia do texto, a não procura de originalidade, o seu estilo repetitivo, a frequente interação com outras formas de discurso (musical, gestual), e as demais qualidades fazem deste tipo de expressão uma área disciplinar por si só. Do conjunto de expressões tradicionais destaca-se, pela sua importância e popularidade, o conto tradicional. Parente de outras formas narrativas tradicionais, como o mito, a lenda e a fábula, o conto afasta-se destas por veicular valores da comunidade onde é partilhado, sendo por isso mesmo marcado pelas características espaciais e temporais dessa mesma comunidade – fauna e flora, costumes, aspetos sociais e económicos, medos e crenças, entre outras. Esta “adaptabilidade” ao contexto da narração, que resulta na enorme diversidade de “versões” de um mesmo conto, leva a um importante conceito na análise de contos 89

A discussão sobre as possíveis designações das formas literárias ligadas à oralidade, apesar de interessante e útil, não é objetivo desta comunicação. Assim, ainda que consciente dos problemas e limitações da escolha da designação Literatura tradicional, optei por este termo por ser dos mais consensuais.

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tradicionais, o da variação; esta, por seu lado, é contraposta por uma outra característica fundamental destas narrativas, a universalidade.

universalidade e variação Apesar das limitações da análise formalista, é obrigatório conceder a Propp o mérito de ter estabelecido conceitos fundamentais para a análise do conto tradicional (e não só). Entre os mais importantes, distinguem-se função e transformação. As funções dos personagens, denominadas por Propp de grandezas constantes dos contos, são identificadas como sendo ações imutáveis ativadas por diferentes personagens; elas existem em número limitado, repetem-se nos diversos contos e a sua sequência é sempre idêntica. Por seu lado, as grandezas variáveis surgem através do processo de transformação; muito simplificadamente, uma transformação consiste na operação de adaptação da “narrativa-modelo”, articulando-a ao meio social e histórico em que ela é narrada; as transformações, sobretudo as ditas internas ou paradigmáticas, são as responsáveis, por exemplo, pela caracterização de lugares, nomes e características das personagens, etc., ou seja, são as indicadoras do universo preciso de determinada comunidade. Estabelece-se assim um paralelo entre a dualidade funções/transformações e universalidade/variação. Propp, ao afirmar que “todos os contos são monotípicos quanto à construção” (Propp, 2000: 18), imagina uma narrativa- -modelo, uma matriz universal, a partir da qual derivariam todas as outras narrativas tradicionais. Propp conclui ainda que estas narrativas evoluem no sentido único e irreversível do universal para o derivado. Para além de estabelecer os conceitos de funções e transformações, Propp identificou ainda uma outra característica universal das narrativas tradicionais: a existência de duas situações estáticas, um ponto de partida – a situação inicial –, e um ponto de chegada – a situação final. Ao contrário da situação final, mais uniforme (caracterizada normalmente pelo sucesso ou derrota do herói), as situações iniciais são mais variadas e relacionam-se sempre com uma situação de carência (na maior parte dos casos, fome e/ou pobreza), que impele o herói à partida para a aventura. No entanto, mesmo esta diversidade de situações pode ser universalizada, como se apresenta nas palavras de Lourenço do Rosário (1989: 56), as inúmeras situações iniciais particularizadas de carência que possamos encontrar nas diferentes narrativas, não passam de variantes de um modelo geral de situação inicial: a aspiração que o homem tem de querer melhorar continuamente a sua condição de vida actual que considera de carência, qualquer que seja o seu momento histórico. Voltando à questão da variação, temos que a mutabilidade e adaptação ao contexto em que é narrada, ou ao objetivo, é uma das marcas mais reconhecíveis da LT. Para mencionar apenas um exemplo dos mais conhecidos, quantos de nós não nos teremos

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cruzado com diferentes versões do conto “Capuchinho Vermelho”? A atualização do conto tradicional a um contexto específico responde normalmente a duas necessidades: uma comunicativa e outra relacionada com os valores morais a transmitir. No primeiro caso, temos por exemplo a utilização de marcos reconhecíveis pelo ouvinte (um caminho ou distância reconhecível, como “daqui até à aldeia vizinha”); no segundo caso, a utilização de códigos sociais e morais que se pretende transmitir – a título exemplar, veja-se a diferença entre as versões do conto acima mencionado, de Charles Perrault (narrada no rigoroso meio moral da corte de Versalhes) e a dos irmãos Grimm (nascida no romantismo e ligada aos valores da burguesia de então). Esta atualização está, portanto, intimamente ligada não apenas às necessidades comunicativas (o narrador oral está mais pressionado pelo seu público do que o escritor), mas também à função pedagógica do conto tradicional. A este respeito, Lourenço do Rosário resume: o fenómeno de transformação não passará de uma adequação de cada narrativa a novas condições sociais, onde deve poder continuar a cumprir o seu papel de educar, entreter, conservar e veicular os valores da colectividade… No fundo, é este fenómeno de constante actualização que demonstra a natureza viva que as narrativas possuem na oralidade (Rosário, 1989: 11).

o caráter pedagógico dos contos tradicionais A principal marca distintiva da literatura tradicional relativamente à “outra literatura” é, provavelmente, a sua função pedagógica – educativa e, simultaneamente, lúdica. Configurando uma das melhores formas de transmissão da nossa herança cultural, as expressões de literatura tradicional funcionam a dois níveis: a um nível explícito, uma vez que as suas características textuais proporcionam uma fácil memorização e compreensão, para além de curiosidade e prazer, e a um nível implícito, contendo a exemplaridade que se pretende transmitir. A ideia de que o conto tradicional é apenas para os mais novos, apesar de poder parecer limitativa, tem o seu fundamento, uma vez que a formação moral se processa sobretudo em idades mais jovens. O conto tradicional, e sobretudo o conto de fadas, comunica com os mais pequenos através de uma linguagem simbólica, que os mais velhos já perderam capacidade de entender, e que, de certa maneira, negam. Nesta idade, os contos funcionam por um processo de identificação inconsciente, por parte da criança, quando colocada diante do dilema existencial incluído no mesmo90. Mas embora a ação pedagógica da literatura tradicional seja talvez mais eficaz na criança, a universalidade do conto tradicional – entendendo “universalidade”, neste sentido, como sendo este dirigido a qualquer idade e universo cultural – deve-se ao 90

“Não é o facto de a virtude ganhar no fim, que promove a moralidade, mas sim o facto de que o herói é extremamente simpático para a criança, a qual se identifica com ele em todas as suas lutas” (Bettelheim, 1995: 18).

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facto de aquele tocar em problemas que nos afetam a todos intimamente, relacionados com o nosso dia-a-dia (procura de um objeto cobiçado, de riqueza, de uma vida melhor), com aspirações morais (tentando alcançar a exemplaridade dos heróis míticos) ou ainda com os nossos medos interiores (a morte, por exemplo): Cada indivíduo que ouve a narrativa está apto a compreender que os conflitos apresentados na intriga podem perfeitamente ter lugar no próprio universo do grupo de que faz parte. Daí o carácter universal das narrativas de tradição oral porque são ao mesmo tempo e em qualquer lugar, um grande ponto de interrogação sobre os problemas com que o indivíduo se defronta no dia-a-dia, na sua sociedade (Rosário, 1989: 41).

A este propósito, o psicanalista Bruno Bettelheim explica que, embora os contos tenham sido criados muito antes da moderna sociedade de massas, os problemas interiores do ser humano não mudaram, mantendo-se muito para além da idade da infância: Ao longo dos séculos (senão milénios) contados e recontados, os contos de fadas foram-se refinando cada vez mais e acabaram por transmitir, ao mesmo tempo, significações manifestas e latentes – dirigindo-se simultaneamente a todos os níveis da personalidade humana e comunicando de uma forma, que chega ao espírito inculto da criança, assim como ao do adulto sofisticado (Bettelheim, 1995: 13).

A intemporalidade dos contos tradicionais transparece, pois, na manutenção de um universo primordial, como relembra Lourenço do Rosário91, a alusão directa ao sistema de produção contemporâneo é praticamente inexistente como motivo temático. Mesmo em sociedades modernas e industrializadas, o universo privilegiado das narrativas continua sendo a caça, a agricultura e outras actividades a elas ligadas (Rosário, 1989: 59).

Ao falar de problemas ao mesmo tempo pessoais e universais, e sobretudo ao fazê-lo através de uma linguagem acessível e lúdica, as narrativas tradicionais são instrumentos pedagógicos ímpares.

o conto tradicional como instrumento didático em diferentes contextos educativos Sendo claro que é sobretudo nos mais novos que a literatura tradicional opera na formação moral, o mesmo não se pode dizer sobre a função lúdica. Por essa razão, seja na língua materna ou num contexto de aprendizagem de uma língua não materna, a audi91

As lendas urbanas configuram uma exceção a esta “primordialidade” da literatura tradicional.

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ção ou leitura de contos tradicionais é sempre um momento de prazer. Na sala de aula de PLE, o conto tradicional lusófono revela-se um precioso instrumento didático e a sua popularidade poderá ser explicada com diferentes razões. Não entrando na discussão de se a linguagem precede o conhecimento ou o conhecimento precede a linguagem, a verdade é que os dois se encontram intimamente ligados, e um professor de PLE terá decerto notado que a limitação na capacidade de usar a língua estrangeira parece interferir nos conhecimentos gerais que o aluno mostra no momento: o aluno tende a dizer o que sabe dizer, o que conhece na língua estrangeira, e não o que sabe na sua língua92. A receção positiva do aluno adolescente ou adulto a contos mais destinados a crianças poderá estar ligada a este facto: essa “regressão cognitiva”, se assim se puder chamar, torna os materiais infantis, que serão os mais compreensíveis, mais atraentes. Pensemos, por exemplo, na dificuldade do aprendente de uma língua estrangeira em construir frases mais longas e complexas: o aluno não consegue relacionar ideias mais simples, utilizando, por isso, frases mais curtas. Ora as narrativas utilizam exatamente frases curtas, contendo ideias simples. Uma outra explicação poderá residir no fator memória: o aluno vai relembrar contos, mais ou menos semelhantes aos que conheceu em criança, revivendo também os sentimentos associados à vivência desses contos. Uma terceira razão poderá ser o facto de os contos tradicionais configurarem uma espécie de conhecimento prévio: do mesmo modo que em território estrangeiro procuramos algo que nos lembre a nossa casa ou que não nos seja estranho, um “porto de partida seguro”, numa língua estrangeira o conto tradicional pode ser também considerado com um ponto seguro, conhecido, a partir do qual o aluno será capaz de partir à descoberta. Independente da explicação para a receção positiva no trabalho com contos tradicionais na sala de aula, o facto é que os alunos adolescentes ou adultos de PLE demonstram tanta satisfação aquando da abordagem da literatura tradicional como uma criança, e o lúdico é uma vantagem em qualquer área de aprendizagem.

o conto tradicional em diferentes objetivos educativos A potencialidade da utilização dos contos tradicionais reside também na possibilidade de estes serem usados em diferentes tipos de cursos – tanto podendo ser utilizados numa área de estudo complexa e aprofundada, como parte de um curso de Estudos Portugueses, ou configurar um curso livre ou um projeto educativo, ou ainda serem apenas meios de trabalho em exercícios pontuais.

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Exceto quando o aluno tenta comunicar na língua estrangeira através de um processo de “tradução”.

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Num curso mais aprofundado de PLE (uma licenciatura em Estudos Portugueses), o conteúdo das aulas serve não apenas para estudar a língua mas também para abordar certas matérias através da língua que se estuda. A discussão da designação das formas de expressão literárias na oralidade – literatura de expressão oral, literatura tradicional, literatura popular, oratura, entre outras –, pode ser importante e interessante, não somente por ser feita na língua estrangeira, mas por levantar uma discussão importante na própria língua materna. De facto, a análise e debate sobre o termo poderão levar à discussão da definição do conceito de “literatura”, discussão importante para um aluno desta área. Abordar diversas formas de literatura tradicional, analisar as diferenças entre conto tradicional, mito, fábula, estudar os recursos estilísticos e retóricos das narrativas tradicionais, contribuirá, sem dúvida, para o desenvolvimento de importantes competências de análise literária e textual. No caso de um contexto educativo em que a análise literária não seja o objetivo, o  conto tradicional não deixa de poder ser um interessante instrumento didático, e a mensagem cultural transmitida por aquele pode ser aproveitada, pelo seu conteúdo ou pela sua forma, ou ambos. Como em qualquer ato educativo, a escolha da inclusão ou não deste tema na aula, e da metodologia a seguir depende sobretudo de uma boa análise ao contexto e necessidades educativas, assim como de delinear objetivos e um plano de trabalho exequíveis. Na minha experiência como docente de PLE utilizei diversas vezes a literatura tradicional lusófona, umas vezes com mais sucesso do que outras, umas vezes com maior aprofundamento e outras apenas em situações pontuais, como descrevo seguidamente em “O julgamento do Coelho” e “Do conto tradicional ao artigo de jornal”. O facto de mesmo as experiências menos conseguidas terem sido momentos de aprendizagem lúdicos e terem despertado interesse nos alunos, leva-me a continuar a explorar este tema, dentro e fora da sala de aula.

o julgamento do coelho Na primavera de 2013 levei a cabo um projeto com alunos do 12º ano da Escola Secundária Tamási Áron, de Budapeste93, com o tema da literatura popular lusófona. O projeto foi dividido em diversas etapas, começando por uma “troca”: um conto tradicional húngaro trazido por cada aluno, por um conto tradicional lusófono selecionado por mim. Em primeiro lugar, centrámo-nos nos contos húngaros – os alunos tiveram de narrar “oralmente”, em português, os contos escolhidos, e depois houve perguntas e um pequeno debate sobre os mesmos. Curiosamente, os alunos trouxeram apenas contos de cariz etiológico relacionados com episódios da história húngara, mais lendas do que 93

Tamási Áron Általános Iskola és Német Két Tannyelvű Nemzetiségi Gimnázium: Escola Primária e Escola Secundária Bilingue Alemã/Húngara Tamási Áron.

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contos tradicionais, o que pessoalmente constituiu uma surpresa, pois tinha previsto que os alunos trariam contos mais “universais”, com os quais poderíamos estabelecer posteriormente paralelismos com alguns dos contos lusófonos. No entanto, este imprevisto acabou por ser bem aproveitado, surgindo um debate interessante sobre a simbologia húngara presente nesses contos. Após este momento, pedi aos alunos que escolhessem pelo menos um conto tradicional, ao que os alunos responderam selecionando A sopa de pedra94. Foi bastante interessante perceber que todos os alunos estavam sinceramente convencidos de que este conto era um conto original húngaro. Na segunda etapa, cada aluno escolheu um dos contos tradicionais de diferentes países de expressão portuguesa (que eu tinha levado para a aula), leu e interpretou, e em seguida narrou, em húngaro, aos seus colegas. Esta etapa foi mais centrada na língua portuguesa, na compreensão de texto e aumento do vocabulário, embora tenhamos falado também sobre a mensagem de cada conto. A terceira etapa consistiu na eleição de um dos contos tradicionais lusófonos de entre os narrados pelos alunos. Incluiu um pequeno debate sobre a “originalidade” e “exotismo” de cada conto. A escolha, que recaiu no conto O julgamento do Coelho95, foi unânime e deveu-se sobretudo às personagens – “o coelho” e “o canguru”. Por razões óbvias, o canguru é absolutamente ausente dos contos tradicionais conhecidos na Hungria; já a figura do “coelho” é conhecida, mas não no papel do animal matreiro, que na Hungria, tal como em Portugal, é normalmente encarnado pela “raposa”. Nesta etapa analisámos essencialmente personagens, enredo e mensagem do conto. Finalmente, a última etapa foi a da realização de uma pequena animação, como materialização do trabalho96. Nesta etapa a turma foi dividida em grupos de trabalho – realização, fotografia, legendagem, cenário e vozes –, de acordo com as preferências de aprendizagem e níveis de conhecimento de cada aluno. Apesar da componente forte desta etapa ter sido centrada na aprendizagem e utilização das novas TIC (foi a primeira animação feita por estes alunos), o trabalho permitiu desenvolver outras competências, desde organizativas a comunicativas, passando mesmo por um trabalho específico de tradução, no caso da legendagem97.

do conto tradicional ao artigo de jornal Como afirmado, o conto tradicional pode ser utilizado apenas como exercício pontual, e por vezes, no contexto educativo mais improvável. No curso de Português Linguagem 94 95 96 97

Uma das “versões” húngaras do conto pode ser visualizada na seguinte animação (em húngaro): https://www. youtube.com/watch?v=Al4DpKBL8o4. Conto retirado do livro A Narrativa Africana de Expressão Oral (Rosário, 1989: 146–147). Esta animação pode ser vista em http://youtu.be/owEMxqe2QYA. Embora a questão da tradução não seja abordada aqui, os contos tradicionais podem ser uma excelente base de trabalho nesta área, pois permitem abordar certas fórmulas textuais próprias daquela forma de expressão, como por exemplo, “era uma vez”.

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Económica, com alunos da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Corvinus de Budapeste, propus um exercício, que consistia em transformar um conto tradicional, numa notícia de jornal. O objetivo era trabalhar a linguagem formal, dificuldade sentida pela maior parte dos alunos98. A vantagem da utilização de um conto tradicional foi logo visível: por um lado, os contos eram uma base conhecida, o tal “porto de partida seguro”; por outro lado, o reencontro com contos não ouvidos há algum tempo transformou desde o início o exercício numa tarefa lúdica. Durante os exercícios, que ocuparam ao todo três aulas, os alunos trabalharam sobretudo no discurso formal e jornalístico, estruturas frásicas e verbais mais usadas neste tipo de discurso, assim como fórmulas próprias do mesmo. O resultado positivo deveu-se sem dúvida tanto à distância entre a linguagem dos contos tradicionais e a linguagem formal, que permitiu uma melhor perceção das diferenças entre discurso formal e informal, e por outro lado, ao aspeto lúdico que a tarefa incluiu. Uma última observação importante sobre as razões do sucesso: mesmo em níveis de aprendizagem mais avançados, como foi o caso destes alunos, construir um texto de raiz é sempre mais difícil do que partir de um texto dado, seja para o comentar ou traduzir, por exemplo. Por esta razão, penso que o facto de os alunos terem trabalhado com uma base já existente foi uma vantagem; no fundo, poderíamos dizer que o exercício foi, de certo modo, um trabalho de “tradução”.

uma última referência à oralidade Sendo facto assente que a oralidade precede a escrita, a verdade é que, mesmo com a crescente influência das TIC na evolução das línguas vivas, é ainda a oralidade que “dita” a maioria das regras dessa mesma evolução. A “oralidade” é, por isso, elemento primário e essencial na aquisição e aprendizagem de uma língua – e o Quadro Europeu Comum de Referência para Línguas prova justamente esta afirmação. No caso da aprendizagem de uma língua estrangeira, a prática da oralidade é, no entanto, um pouco mais complexa – existe uma visível (e comprovada) maior dificuldade na expressão oral do que na expressão escrita. Esta dificuldade deve-se ao facto de as áreas cerebrais ativadas no ato da oralidade serem mais numerosas e complexas relativamente às ativadas em momentos de leitura ou escrita99. No caso da compreensão oral, a complexidade não é tão grande como no caso da expressão oral; no entanto, estabelece-se um ato comunicativo mais completo do que na leitura ou produção de textos escritos, uma vez que o aprendente também tem de “ler” as intenções do orador. 98 99

A ideia para este exercício veio do conto Uma questão de marketing, de Alice Vieira, incluído no livro Bica Escaldada (Uma crónica de costumes da sociedade portuguesa actual) (Casa das Letras, 2009). Não se pretende fazer uma crítica aos exercícios escritos ou de leitura – estes têm uma função muito importante na aprendizagem da língua (materna ou não materna).

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O contributo da narração de contos tradicionais poderá ser bastante positivo na aprendizagem, sobretudo tendo em conta as características retóricas das formas orais da literatura: a economia de texto e condensação de pormenores descritivos, assim como o estilo repetitivo da linguagem, a utilização abundante de metáforas, comparações e ainda a hiperbolização. Para além das características mencionadas, a audição de um conto tradicional é, por si só, um ato comunicativo único, em que é gerada uma cumplicidade entre narrador e ouvinte, e não só pela comunicação ser em presença; se, por um lado, o contador é o dinamizador do momento comunicativo, para que este seja eficaz é necessário que o recetor ative os conhecimentos que tem de contos tradicionais. Por exemplo, se o contador mencionar a existência de “3 irmãos”, o aprendente saberá logo que o irmão mais novo será aquele que vai conseguir superar a dificuldade. A ativação de um conhecimento prévio no aprendente (a imprevisibilidade não é de todo característica dos contos tradicionais) fará com que este possa, em contexto, compreender palavras até àquele momento desconhecidas. A importância da narração de contos tradicionais, (que deve ter sempre lugar, mesmo em casos de análise literária), é bem explicada na seguinte afirmação de Lourenço do Rosário (1989: 43–44): enquanto na situação de oralidade elas [as narrativas] são simultaneamente actos de cultura e instrumentos de transmissão de conhecimento, na situação de escrita, porém, o acto narrativo tende cada vez mais a ser empurrado para a esfera meramente criativa e estática isolando-se assim da prática educativa.

Evidentemente que a narração oral de contos tradicionais tem as suas limitações – não se desenvolvem competências comunicativas mais complexas, por exemplo – mas, pelas características mencionadas acima, é um potencial momento de input auditivo, adequado a aprendentes de níveis não avançados. Uma referência deve ainda ser feita a formas de expressão oral cuja finalidade explícita é a aprendizagem da língua, tais como lengalengas e trava-línguas. Estas formas podem ser muito úteis para que os alunos se familiarizem com a fonética e a fonologia portuguesas e comecem a criar uma “memória auditiva”.

considerações finais Atualmente, pouco ou mesmo nenhum lugar se tem dado ao estudo da literatura tradicional lusófona no contexto do ensino de PLE. No entanto, as formas de literatura de expressão oral encerram dentro de si uma riqueza de conteúdo e forma que não deveria ser negligenciada, sem o que se corre o risco de se perder uma oportunidade de preservar e promover um importante património cultural. Se é verdade que a cultura de massas contemporânea vai muitas vezes no sentido contrário ao da diversidade, mostrando-se desinteressada do que dela se afasta (e como

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vimos anteriormente, as formas de literatura tradicional só muito raramente incluem marcas específicas da sociedade contemporânea), este facto deveria obrigar-nos ainda mais a valorizar as diversas expressões da literatura tradicional. No caso específico da língua portuguesa, a valorização da literatura popular lusófona é ainda mais urgente, sobretudo tendo em conta o questionamento atual sobre os significados da lusofonia – pois sem dúvida que qualquer tipo de relacionamento possível passará pela diversidade de expressões do português.

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ensino da tradução no nível universitário

Tatiana S. Sharupich Universidade Estatal da Bielorrússia, Minsk Bielorrúsia

No contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada, em que tendem a ser eliminadas as barreiras geográficas, culturais e políticas, a necessidade de preparar profissionais capazes de responder aos novos desafios do mercado internacional torna-se inevitável. Neste contexto, os estudos de tradução e de interpretação respondem às novas exigências da sociedade moderna de duas maneiras: – permitem aos alunos adquirir competências e habilidades indispensáveis numa sociedade intercultural cada vez mais globalizada; – respondem a uma forte demanda social em profissionais com o conhecimento de diversas línguas, capazes de desempenhar um papel fundamental como mediadores interculturais. Os estudos de tradução e de interpretação foram consolidados na universidade bielorrussa depois da Segunda Guerra Mundial, desde a criação, em 1947, do Instituto de Línguas Estrangeiras de Minsk (hoje a Universidade Linguística de Minsk), em que estes estudos foram ensinados. Este facto significou a criação de uma área específica do conhecimento para uma disciplina que até então tinha sido associada à Filologia. Na década de noventa, depois da desintegração da União Soviética e com a proclamação da independência, os estudos de tradução e de interpretação na Bielorrússia passaram por um período de “boom” notável, sem dúvida, motivado pela demanda crescente em profissionais na área da diplomacia, economia e negócios, capazes de lidar com a enorme quantidade de documentação gerada nestas áreas, em resposta ao cada vez mais rápido processo de internacionalização e globalização da informação. Além disso, o crescimento do intercâmbio comercial faz com que seja necessário ter pessoas que possam superar eficazmente as barreiras linguísticas que muitas vezes dificultam o fluxo de informações. Esta necessidade é particularmente pertinente para a língua portuguesa, porque o país tem uma crescente necessidade de intérpretes e especialistas que possam tradu-

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zir textos, servir como intérpretes em conferências e reuniões internacionais, entrar em contacto com os parceiros estrangeiros etc. A inserção da Bielorrússia na vida política e económica internacional serviram de base para a criação, em 1995, da Faculdade de Relações Internacionais na Universidade Estatal da Bielorrússia. A crescente demanda social desses estudos foi tão evidente que permitiu criar os Departamentos de Relações Internacionais, de Direito Internacional, de Economia Mundial, de Turismo Internacional, de Serviço Alfandegário e de Estudos Orientais. Os cursos, com a oferta de duas línguas – primeira e segunda língua estrangeiras – são tão procurados e prestigiados, que nos últimos anos o número de novos alunos matriculados se manteve sempre acima de quatrocentos. A experiência destes anos permitiu-nos consolidar, entre outras, a Cátedra das Línguas Românicas, capaz de satisfazer a maioria dos desafios na formação dos profissionais com o conhecimento de espanhol, italiano, francês e português. Na Bielorrússia, a tradução no nível superior é, hoje em dia, ensinada na Universidade Linguística, na Faculdade de Letras e na Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Estatal da Bielorrússia, bem como na Faculdade das Relações Económicas Internacionais da Universidade Estatal de Economia da Bielorrússia. Quanto ao português, é ensinado como primeira e segunda língua estrangeira apenas na Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Estatal da Bielorrússia. Como temos vários departamentos, para facilitar a minha tarefa vou referir-me ao curso de português primeira língua estrangeira no Departamento de Relações Internacionais. A escolha do tema deste estudo foi condicionada pelos seguintes fatores: – a necessidade de preparar um especialista para a mediação intercultural no âmbito das suas atividades profissionais; – a necessidade de desenvolver e melhorar os métodos de ensino de tradução e de interpretação, visando a formação da identidade cultural e linguística do tradutor; – a  falta de eficácia dos métodos tradicionais de ensino de tradução na escola superior. O curso de português na instituição de ensino acima referida está vinculado ao português para fins específicos, nomeadamente, ao português de negócios. A qualificação atribuída aos estudantes pelo diploma de licenciatura é especialista na área das relações internacionais, tradutor-intérprete. O exame final inclui a leitura de um texto de caráter sócio-político em russo com a sua posterior exposição em português. Não é propriamente uma tradução, mas na prática resulta numa tradução. A segunda pergunta do exame é a leitura do texto da mesma temática em português com a sua posterior exposição em russo muito próxima do original. E só a terceira pergunta é a exposição da opinião pessoal sobre algum assunto da política internacional. Como vemos, para ser bem-sucedido no exame o aluno tem de possuir boas competências na área da tradução. Até hoje a licenciatura foi feita em 5 anos, com a carga horária total de 1 500 horas para a primeira língua estrangeira e de 800 horas para a segunda. Atualmente (a partir de 2013) fazemos a licenciatura em 4 anos, com a redução subsequente da carga horária.

iii. pedagogia e didática estudos culturais e civilizacionais

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Enquanto na Faculdade ainda não houve promoção de licenciados que estão a fazer a licenciatura em 4 anos (de facto o ano 2017 será o primeiro), portanto, não pode ser conhecido o impacto provocado pela reestruturação. As disciplinas que visam subsidiar a formação de um tradutor são de natureza teórico-prática. Na formação de tradutores, alguns afirmam valorizar o conhecimento teórico, outros ainda não consideram a teoria importante dando a prevalecência à prática da tradução. Nas respostas à pergunta “qual é a função da teoria da tradução na formação do tradutor?” muitos alunos afirmam valorizar o conhecimento teórico; alguns parecem confundir a teoria com conhecimento da língua ou o método de tradução, porém, há quem não considere a teoria importante. Os alunos explicam a sua falta de interesse nas aulas de teoria da tradução pelo facto de não encontrarem no mercado receptividade para o que estudam nas aulas. Em termos da teoria da tradução, o currículo inclui um curso teórico de 16 horas e 26 horas da prática de tradução no quarto ano, o que não permite oferecer um curso muito produtivo e sólido, em termos de conteúdo. Quem são os professores que dão aulas de teoria da tradução? No nosso caso são doutores em filologia, professores catedráticos que não tem exercido atividade de tradutor/intérprete e só conhecem a parte teórica do assunto (através do estudo dos livros dos peritos na área da tradução, principalmente cientistas russos como L. S.Barkhudarov, V. N. Komissarov, R. K. Minhar-Beloruchev). Além de ser breve, o curso abrange uma pauta reduzida de questões teóricas muito gerais e é dado em russo, com os exemplos em inglês, às vezes em alemão, francês ou espanhol, em conformidade com as competências do leitor. Na minha opinião, a aprendizagem da língua juntamente com o ensino da tradução torna-se mais eficaz do que o ensino da tradução como uma disciplina independente. Introduzimos a prática da tradução já na primeira etapa do ensino. Um dos objetivos por que recorremos à tradução na etapa inicial da aprendizagem da língua estrangeira é que a tradução é uma das formas mais eficientes para controlar a precisão de compreensão do texto. Porém, o ensino da tradução para a futura atividade profissional convém começar na fase avançada, quando os alunos já possuem conhecimentos amplos do léxico, da fraseologia, da gramática e da estilística. O ensino da tradução realiza-se não só na aula de teoria e de prática da tradução, mas também no processo de aprendizagem da língua estrangeira em geral. No terceiro ano ensinamos principalmente a tradução da língua estrangeira para a língua natal. O material utilizado para a tradução é constituído por textos com orientação para a futura atividade profissional, em particular, os textos da área sócio-política dos média (sites de jornais e portais de notícias). No quarto ano começamos a ensinar a traduzir de russo para português. Existem muitos tipos de tradução, dos quais os mais comuns são a interpretação oral e a tradução escrita. A interpretação oral pode ser consecutiva e simultânea. A nossa tarefa é ensinar aos alunos a tradução escrita dos textos de temática sócio-política de russo para português e de português para russo, assim como ensinar a interpretação consecutiva. Não for-

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mamos intérpretes para a tradução simultânea devido à carga horária limitada e a falta de respetivos especialistas. O programa do terceiro ano inclui o que chamamos de prática académica linguística que na realidade é um trabalho anual escrito. É constituído por uma coletânea de textos em português sobre um determinado tema escolhido pelo aluno e aprovado pelo orientador com a sua posterior tradução escrita para russo, e a elaboração de um vocabulário temático. No quarto ano os alunos fazem um trabalho anual em tradução cujo conteúdo é muito similar à prática académica linguística acima mencionada. No ensino da tradução também podemos contar com a disciplina Correspondência Oficial e Diplomática que visa a tradução oral ou escrita de documentos oficiais e diplomáticos de português para russo e de russo para português (56 horas no segundo semestre do quarto ano) e também inclui um trabalho anual no nono semestre. Hoje em dia, há uma necessidade urgente de rever os métodos já existentes e de desenvolver novos conceitos de ensino da tradução com o objetivo de criar um manual de tradução conceitualmente novo com base na interação qualitativa das disposições teóricas e metodologias avançadas que vise a introdução do aluno no mundo das competências e das habilidades do tradutor. Nesta parte do meu trabalho queria fazer uma breve análise dos erros típicos dos alunos na tradução, mesmo que este aspeto não constitua o assunto deste artigo. a) Na tradução de português para russo: – incompreensão ou falsa interpretação de um fragmento devido à ignorância de alguns aspetos da realidade do país de origem. Por exemplo, a tradução das siglas referentes, entre outras, aos partidos políticos, os nomes das repartições públicas (Ministério Público – прокуратура, Junta Comercial do Estado – финансовое управление штата, Receita Federal do Brasil – Федеральное налоговое управление Бразилии); – tradução de expressões (locuções) idiomáticas (fraseológicas). Por exemplo, meter a viola no saco – calar-se, dar água pela barba – ser difícil de resolver, ir aos arames – irritar-se. – o que chamamos de literalidade, ou seja, a tradução exata de todas as palavras e de todos os fenómenos gramaticais; – falsos amigos do tradutor: livraria (que é  compreendida como biblioteca), jornal (compreendido como revista), autosserviço (compreendido como reparação de automóveis), ignorar (compreendido como não fazer caso), bufete (compreendido como um móvel); – composição sintática da frase, particularmente, a tradução das orações reduzidas de infinitivo, de gerúndio e de particípio. b) Na tradução de russo para português: – composição sintática da frase, particularmente, a tradução das orações reduzidas de particípio, a ordem das palavras na frase; – tradução de expressões (locuções) idiomáticas russas que abundam nos textos dos média bielorrussos (нас не наклонишь  – literalmente não se pode inclinar-nos, o que significa não se pode obrigar-nos a fazer o que não queremos;

iii. pedagogia e didática estudos culturais e civilizacionais

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мало не покажется – não o acharás insuficiente, o que significa serás duramente punido; пустой звук – o som vazio, o que significa promessas falsas; выход из тупика – a saída do beco fechado, o que significa a saída de uma situação difícil; вывернуться наизнанку – virar-se ao avesso, o que significa fazer o impossível; море по колено – o mar até o joelho, o que significa um problema aparentemente fácil de ser resolvido; моя хата с краю – a minha casa fica no ponto extremo da povoação, o que significa não quero intervir no assunto); – pouco ou quase nenhum uso do Conjuntivo. Por exemplo, em vez de “Não acho que seja uma boa ideia” os alunos traduzem como “Acho que não é uma boa ideia”. – uso exagerado do substantivo em vez do verbo. Exemplo: Os objetivos da ONU são: manutenção da paz, proteção dos direitos humanos, promoção do desenvolvimento económico e social das nações. Em relação aos erros cometidos por ignorância, parece não haver muito o que discutir – erramos porque ignoramos. O facto de não suscitar muita discussão não implica, entretanto, que o erro por ignorância seja um assunto pouco relevante para se tratar com os alunos. Pelo contrário, parece-me importantíssimo, em qualquer curso introdutório de tradução, logo de início desmistificar possíveis idealizações de que o bom tradutor sabe tudo. Cabe mostrar aos alunos como são frequentes as ocasiões de dúvida e de incompreensão. O último problema que deve ser abordado durante a formação de um tradutor/ intérprete é a capacidade do aluno para trabalhar com os instrumentos de automatização do processo de tradução. Tais instrumentos de automatização incluem recursos eletrónicos (dicionários, vocabulários temáticos, outros meios lexicográficos eletrónicos), programas de controle de qualidade e módulos utilizados para a verificação do estilo, da gramática e da ortografia, da terminologia, os programas de apoio da tradução etc. O objetivo dos programas de apoio da tradução é facilitar o trabalho dos tradutores e melhorar a qualidade das traduções. Quando traduzimos, usando o tal programa armazenamos os textos traduzidos na forma de frases independentes num banco de dados especial, que é chamado de “memória de tradução”. Se no processo de tradução encontramos uma frase que corresponde ou coincide minimamente com a frase já disponível na memória, o programa exibe a oferta para a tela, e o tradutor pode usar a frase integralmente ou alterá-la parcialmente. O programa permite elaborar vocabulários temáticos e usá-los na tradução de termos: o programa localiza automaticamente as palavras disponíveis no vocabulário temático e permite colocá-las no texto. Através do uso da memória de tradução pode-se traduzir rapidamente os textos com frases e trechos repetidos ou similares. Tais programas melhoram a qualidade da tradução, porque na memória de tradução são armazenadas também as correções dos redatores. O papel da Internet no trabalho e na formação de tradutores/intérpretes é indiscutível, pois hoje a Internet é um espaço de informação comum, capaz de fornecer aos tradutores um leque muito amplo de recursos e ferramentas de trabalho.

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As competências do tradutor na área da tecnologia de informação é um dos fatores relevantes para o sucesso profissional e para a competitividade no mercado de trabalho de jovens especialistas. O curso de Tradução e Interpretação deve proporcionar aos alunos uma educação abrangente que permite a adaptação flexível às situações profissionais diferentes. Os estudos realizados sobre a inserção dos ex-alunos no mercado de trabalho mostram que um número significativo deles encontram o trabalho em áreas diretamente relacionadas com a tradução, seja como diplomata ou como tradutor freelance. Outros perfis profissionais onde encontram o trabalho são: relações públicas, administração pública, empresas de comércio externo, empresas estrangeiras, entre outros. A inserção dos alunos no mercado de trabalho da tradução ou afins significa para nós que estamos no caminho certo.

iv. linguística

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contribuição para a história da eliminação da concordância do particípio nos tempos compostos do português

Tibor Berta Universidade de Szeged Hungria Resumo: No nosso trabalho examinamos a questão da formação dos tempos compostos do português desde o ponto de vista da concordância do particípio com o complemento directo nas estruturas do tipo epistulam scriptam habeo/teneo. Hoje o português, tal como o castelhano, não concorda o particípio dos tempos compostos, mas, como testemunham textos antigos, no século XV o português e o catalão, que mantinham a concordância, contrastavam com aquela língua. Comparando a situação no castelhano, no catalão e no português, defenderemos a ideia de o processo da eliminação da concordância no português poder ter sido acelerado pelo facto de esta língua utilizar o mesmo verbo auxiliar – ter – nos tempos compostos e nas construções resultativas (cfr. “tinha escrito a carta” e “tinha escrita a carta”). Palavras-chave: morfossintaxe histórica; história da língua portuguesa; tempos compostos; construções resultativas; concordância do particípio

O objetivo deste trabalho é oferecer aportações à história da eliminação da concordância do particípio com o complemento nos tempos verbais compostos do tipo esp. he escrito la carta ou ptg. tinha escrito a carta etc., que são resultado da gramaticalização das construções latinas do tipo epistulam scriptam habeo, equivalente a ‘tenho uma carta escrita’. Segundo vários autores, um dos indícios morfossintáticos da formação da categoria do tempo composto é que o particípio, originariamente concordado com o complemento directo – como nos exemplos em (1) –, também começou a não mostrar concordância nas línguas peninsulares medievais – como em (2) –.

iv. linguística

(1)

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a) esp. Despues que el conde don sancho ouo vengada la muerte de su padre (SieteInfantes, 46r)100. b) ptg. Quando o conde ouve acabada sua razon (CGE, 119d). c) cat. que’ls hòmens de Figueras havien desamparada la vila (Desclot, 5)101.

(2) a) esp. non aujendo avn olujdado su mala costunbre (SieteInfantes, fol. 47v). b) ptg. E o conde e os seus de grande manh[ãã] avyam ja ouvydo missa (CGE, fol. 125b). c) cat. que nós levarem d’assò nostra deuta que dit havets (Desclot, 13). Depois de um período de alternância em que ambas as construções coexistiam, a inovação de não concordar chegou a converter-se em norma gramatical, que as variantes atuais de todas estas línguas seguem. Os exemplos aduzidos em (3a–e) ilustram que o particípio aparece quase sempre na mesma forma invariável – esp. e ptg. escrito, cat. escrit –, sem concordar em género e número com o complemento direto. Apenas o catalão atual mantém a alternância das duas estruturas, permitindo a concordância quando o complemento direto é um pronome clítico: assim, em (3c) o particípio tem a forma escrit mas em (3f) aparece como escrita. (3)

a) esp. María ha escrito cartas. b) ptg. A Maria tem escrito cartas. c) cat. La Maria ha escrit cartes. d) esp. Esta carta la ha escrito María. e) ptg. Esta carta tem-na escrito a Maria. f) cat. Aquesta carta l’ha escrita la Maria.

Segundo os dados bibliográficos, o espanhol foi o primeiro idioma a atingir o estado atual; no século XV, em espanhol, era praticamente obrigatório não concordar o particípio102, enquanto em português e em catalão a difusão da sintaxe não concordante apenas começou a avançar no século seguinte103. É interessante, porém, que enquanto

100 SieteInfantes=Leyenda de los Siete Infantes de Lara, versão prosificada da Crónica de Veinte Reyes. Archivo Digital de Manuscritos y Textos Españoles, Madrid, Micronet S. A., 1995. 101 Desclot=Desclot, Bernat: Crònica (vol. V, Barcelona, Barcino, “Els Nostres Clàssics”, 1951). Joan Torruella (dir.). Corpus Informatitzat del Català Antic (CICA). http//seneca.uab.es/sfi/cica. 2006. 102 Segundo Andres-Suárez (1994: 64) “la concordancia del participio conoció su momento de mayor apogeo en el siglo XIII”, enquanto Lapesa (2000: 783) acha que “la concordancia ya es minoritaria en el siglo XIII”. Penny (2006: 193–194) pensa que a concordância foi abandonada gradualmente entre os séculos XIII e XV. Também Hanssen (1966: 230) observa a ausência total da concordância nos textos literários espanhóis do século XV, a qual é confirmada por Romani (2006: 284). 103 No caso do português, Mattos e Silva (1997: 275) acha que na “prosa literária dos séculos XIV e XV (Mattos e Silva: 1981) sempre encontramos ter/haver+PP de verbo transitivo concordado com o PP com o seu objeto direto; mas já na primeira metade do século XV, começam a aparecer exemplos de variação na concordância do PP”. Costa (2010: 64–65) crê que a eliminação da concordância do particípio começou a difundir-se a partir da primeira metade de século XV, enquanto Bechara (1985: 53) situa esta data na segunda metade do século. Sobre o catalão, Moll (1952: 486) afirma que “la falta de concordancia se encuentra ya en catalán antiguo, si bien en una propor-

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a norma literária do catalão mantém até hoje uma concordância sintaticamente restringida (vid. supra), o português chegou a eliminá-la completamente como faz o espanhol desde o século XV. Neste trabalho quisemos examinar qual teria sido o motivo que provocou que a difusão da estrutura não concordante se acelerasse no português a partir do século XVI. Gostaríamos de defender a hipótese de que este processo pode ter estado relacionado com a mudança, produzida nesta língua, de seleccionar o verbo ter em vez de haver como verbo auxiliar. Esta mudança ameaçava a distinção formal de duas construções procedentes das construções latinas mencionadas, pelo que a presença ou ausência da concordância converteu-se num traço morfossintático diferenciador entre elas. Primeiramente, vamos apresentar as características morfossintáticas e lexicais das duas construções, isto é, as construções possessivo-resultativas (CPR) e os tempos verbais compostos (TVC) nas línguas românicas atuais da Península Ibérica. Depois examinaremos a situação delas em três textos portugueses de períodos diferentes (séculos XIV, XV e XVI) e, finalmente, formularemos as primeiras conclusões. Entre as línguas românicas, as da Península Ibérica destacam-se por conservarem dois verbos possessivos – habere e tenere – e por conhecerem duas construções verbais deriváveis das construções latinas de tipo epistulam scriptam habeo. A primeira – a que chamaremos construção possessivo-resultativa (CPR) – conserva basicamente a semântica e a sintaxe latina: o verbo flexionado mantém o valor de posse, e o complemento direto e o particípio formam uma frase pequena ou predicação secundária que se refere ao resultado de uma ação. Na segunda – o tempo verbal composto (TVC) – perde-se o significado antigo de posse e são os dois verbos que formam uma unidade sintática (certo tipo de perífrase), referente a um acontecimento geralmente perfetivo, anterior a uma outra. Segundo Colaço e Gonçalves (1995: 124–125) podemos diferenciá-las com alguns traços morfossintáticos. Na CPR é obrigatória a concordância do particípio com o complemento direto, como se pode ver nos exemplos que se aduzem em (4). Como se pode observar ao comparar os exemplos em (4) e (5), neste tipo de construções do espanhol e do catalão o complemento direto pode situar-se à direita do particípio ou pode estar interpolado entre o verbo flexionado e o particípio, mas no português apenas a interpolação do complemento direto é correta – cfr. (4c) e (5c) –. (4) a) esp. tengo la carta escrita / *tengo la carta escrito b) cat. tinc la carta escrita / *tinc la carta escrit c) ptg. tenho a carta escrita / *tenho a carta escrito (5)

a) esp. tengo escrita la carta b) cat. tinc escrita la carta c) ptg. *tenho escrita a carta ción muy baja”. Par (1923) observa uma frequência maior de não concordância no século XIV, mas segundo dados do mesmo Par (1928) e de Berta (2013), ainda no século XV a concordância parece ser praticamente obrigatória.

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iv. linguística

No TVC, porém, a concordância está geralmente proibida, como se pode ver nos exemplos que se aduzem em (6); o catalão é a única língua que permite a concordância quando o complemento direto é um pronome clítico – vid. (6b) –. O complemento direto deve estar situado obrigatoriamente à direita do conjunto verbal (sem interpolação), tal como se vê nos exemplos de (6d-f). (6)

a) esp. he escrito la carta / *he escrita la carta / *la he escrita b) cat. he escrit la carta / *he escrita la carta / l’he escrita c) ptg. tenho escrito a carta / *tenho escrita a carta / *tenho-a escrita d) esp. he escrito la carta / *he la carta escrito e) cat. he escrit la carta / *he la carta escrito f) ptg. tenho escrito a carta / *tenho a carta escrito

Além das características morfossintáticas acima descritas, é preciso destacar que o espanhol e o catalão selecionam verbos distintos para as duas construções: usa-se tener/tenir na CPR e haber/haver no TVC. Esta seleção lexical de verbos especializados torna possível que a CPR e o TVC sejam diferenciáveis também quando isso não é possível a nível morfossintático, como ocorre em (7–9), onde (7a), (8a) e (9a) correspondem à estrutura da CPR, enquanto (7b), (8b) e (9b) à do TVC . Assim, a importância dos traços morfossintácticos mencionados é relativizada nestas línguas. (7) a) esp. b) esp.

Juan tiene leído el libro. Juan ha leído el libro.

(8) a) cat. b) cat.

En Joan té llegit el llibre. En Joan ha llegit el llibre.

(9) a) cat. b) cat.

En Joan els té llegits / *llegit. En Joan els ha llegits / *llegit.

No português atual comum, porém, em ambas as construções usa-se o mesmo verbo, ter, pelo que a distinção lexical não é possível; deste modo, os traços morfossintáticos, a posição do complemento direto e a concordância têm função distintiva em frases como as que se aduzem em (10). Aqui a CPR de (10a) e o TVC de (10b) são diferenciados pela posição do complemento direto, a CPR de (10c) e o TVC de (10d) distinguem-se pela concordância do particípio. (10) a) ptg. b) ptg. c) ptg. d) ptg.

O João tem o livro lido. O João tem lido o livro. O João não os tem lidos. O João não os tem lido.

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Segundo a nossa hipótese, a extensão diacrónica do verbo ter a todas as construções pôde contribuir para a rápida difusão da inovação de não concordar o particípio nos TVC, para poder diferenciar os dois tipos de construção em português. Para apoiar esta afirmação examinámos as construções transitivas haver+particípio e ter+particípio em textos portugueses antigos procedentes de distintas épocas, tendo em conta como parâmetros a selecção de verbos (haver ou ter), a estrutura morfossintática – concordância ou não-concordância – e o contexto aspetual-temporal em que apareciam. Com a ajuda dos critérios morfossintáticos e aspetuais-temporais, quisemos examinar se haver+particípio e ter+particípio tinham uso especializado na função de CPR ou TVC em determinados períodos da história da língua. Supusemos que, se inicialmente houve especialização funcional entre as duas construções, ao estender-se o uso de ter+particípio, esta devia ser expressa mais estritamente na morfossintaxe. A nível morfossintático interpretámos a falta de concordância como indicador evidente da função de TVC. Para os casos de concordância, compatíveis, nestes períodos, tanto com a função de CPR como com a de TVC104, aceitando a proposta de Cardoso e Pereira (2003), utilizámos a análise do contexto aspetual-temporal, baseado na presença de diversos conetores e advérbios. Aplicando os critérios do estudo citado, supusemos que os conetores e advérbios (?) referentes a anterioridade, assim como o uso de um tempo verbal perfetivo – houve ou teve – indicam o valor de TVC, enquanto os conetores e advérbios (?) referentes a simultaneidade e o uso de um tempo verbal imperfetivo – havia ou tinha – indicavam a função de CPR. Os textos utilizados para a análise foram um fragmento da Crónica geral de Espanha de 1344 (CGE, séc. XIV), a História do mui nombre Vespasiano Imperador de Roma (VIR, 1496) e um fragmento da Crónica dos Reis de Bisnaga (CRB, séc. XVI). Os dados do corpus analisado podem-se ver no seguinte quadro. Dados do corpus analisado Textos

Abreviação

Século

Extensão

Exemplos

Crónica geral de Espanha

CGE

séc. XIV

18.000 palavras

48

História do mui Nobre Vespasiano Imperador de Roma

VIR

séc XV

20.000 palavras

41

Crónica dos Reis de Bisnaga

CRB

séc. XVI

11.000 palavras

40

104 Segundo alguns trabalhos, a concordância de particípio com o complemento direto indica que a construção tem a função de CPR. Assim, para Mendonça Cohen (1988: 48) “[e]ssa concordância nominal (em gênero e número) é evidência de que Particípio Passado+Objecto Direto constituíam um sintagma nominal nesta fase da língua” – isto é, o verbo flexionado e o particípio não formavam TVC –, e também segundo Costa (2010: 65), “[e]nquanto há elementos intercalados e se verifica a concordância, não temos consolidada a formação dos tempos compostos em português”. Cardoso e Pereira (2003: 167), porém, afirmam que “os critérios morfo-sintácticos não podem ser usados per se para o estabelecimento do contraste construção de tempo composto/construção resultativa, nomeadamente, porque parece não existir nenhum conflito entre a construção de tempo composto e o acordo participial”. É certo que nalgumas línguas, por exemplo no francês, no italiano e, como vimos, no catalão, o particípio pode concordar com o complemento directo.

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iv. linguística

Quanto à frequência dos dois verbos, que se podem ver no quadro seguinte, observámos uma evolução a favor de ter: na CGE ainda predomina o uso de haver com 75 %, no VIR já domina o uso de ter com 71 % e, finalmente, na CRB, dos 40 exemplos de tempos compostos apenas um contém o verbo haver (2,5 %), sendo que nos restantes 39 aparece ter (97,5 %). Isto pode indicar que, se houve alguma distribuição funcional entre as construções com haver e ter, esta desapareceu com o tempo e a distinção lexical entre estes valores tornou-se impossível. Proporção de haver e ter nos textos examinados 100 90

25

Percentagem

80 70

71

60 50 40

97,5 75

haver ter

30 20

29

10 0

2,5 CGE

VIR Textos

CRB

Quanto à relação com o comportamento sintático e o valor temporal/aspetual das construções, podemos observar o seguinte, segundo os dados de cada um dos textos analisados. Na CGE, haver e ter têm um comportamento sintático praticamente idêntico, mas do ponto de vista aspetual/temporal mostram uma tendência para estarem especializados em funções diferentes. Sintaticamente, só com uma exceção sem concordância – (11a) –, ambos os verbos coabitam com particípios concordados com o complemento direto –como em (11b–d) – e aceitam a interpolação deste – como em (11d–e) –. (11) a) e  o  conde e  os seus de grande manh[ãã] avyam ja ouvydo missa (CGE, fol. 125b105). b) Quando o conde ouve acabada sua razom, todollos seus, que estavã desacordados, cobrarom os corações (CGE, fol. 123d). 105 É preciso mencionarmos que, por causa das características dos três textos, nas citações das fontes a numeração nem sempre se refere à mesma categoria. No caso da CGE a numeração refere-se ao fólio, no caso da VIR ao capítulo e no caso da CRB ao título.

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c) El rey dom Ramiro, logo que o soube, foisse pera Leom com aquella hoste que tiinha ajuntada (CGE, fol. 114a). d) Ca Almançor tẽ ora o moor poder ajuntado que elle nũca teve (CGE, fol. 123b). e) O conde, depois que ouve os seus todos ajuntados, pediolhes consselho.(CGE, fol. 118b). f) Andado aquelle primeiro ãno do reynado deste rey dom Ramiro, ẽ mentre que elle tiinha cercado em Leom seu irmãão dõ Afonsso, o Mõge, ouverõ seu consselho os ricos homẽẽs e cavalleiros de Castella de alçarem por conde Fernam Gonçalvez (CGE, fol. 114b).

No contexto aspetual-temporal, porém, pode-se observar uma certa especialização dos dois verbos: haver+particípio aparece frequentemente com forma verbal perfetiva – como em (11b) –, acompanhada às vezes de conetores ou advérbios referentes a anterioridade – como em (11e) –, enquanto ter+particípio documenta-se com maior frequência em forma imperfetiva – como em (11c) –, a qual muitas vezes é completada com conetores ou advérbios referentes a simultaneidade – como em (11d) e (11f) –. Isto indica que haver+particípio se usava frequentemente com valor de TVC e ter+particípio com valor de CPR. Apesar disso, quando a frase não contém elementos contextuais,nem sempre é possível diferenciar os dois valores. Isto ocorre nos exemplos de (12), onde haver e ter aparecem nas mesmas formas imperfetivas, mas o aspecto verbal dos verbos receber, fazer e dizer sugerem perfetividade. (12) a) E, pero que avyã recebidas muytas feridas, começarõ a feryr pellas outras aazes. (CGE, fol. 124d) b) e diziã que tiinhã grande torto recebudo dos Castellããos (CGE, fol. 121c) c) E, se eu per ventuira a elle posso chegar, eu me cuydo a vyngar do torto que nos tem feito e das sobervhas que ha ditas contra nos (CGE, 120d) Em VIR, tanto haver+particípio como ter+particípio documentam-se sem concordância – como em (13) – e com concordância – como em (14). O primeiro caso é indicador evidente de TVC, enquanto o segundo pode ser associado tanto a CPR como a TVC. (13) a) o emperador avia ajuntado suas cortes de todos os nobres de seu emperio (VIR, ix) b) e perguntou lhe se avya achado algua cousa com que ouuesse saude e fosse saao de sua doença e enfermida (VIR, ix). c) e esta molher vos ey trazido (VIR, ix). d) De todas estas cousas q me auees dito creo eu firmemete (VIR, x). e) Depois q tem reçebido os trinta dinheiros que arrepedeo da treiça e do mal que finha feito (VIR, 4). f) Senhores, bem vedes vos q nos no nos podemos teer ao emperador q ds nos tee esqueeçido (VIR, xxii).

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g) e os senadores em huu dissero q be o tinham entendido as suas pallauras (VIR, xxvi).

(14) a) e qua do Pilatus soube q ta grandes vallas e ta asinha avia feytas o emperador e tam estreitamete os tinha aptados chegou seu coselho … (VIR, xix). b) O emperador esteue pensando toda anoite nas pallauras que oseu mestresalla lha tinha ditas. (VIR, xi). c) no quis adorar os ydollos como soya por quanto nom tinha em elles firme creença pollas que oseu mestresalla lhe tinha ditas (VIR, xiii). As proporções de frequência, porém, são muito diferentes: haver+particípio mostra só 9 % de concordância (1 caso em 11) e ter+particípio 18 % de não-concordância (3 em 17); deste modo, haver+particípio parece estar especializado na função de TVC, enquanto ter+particípio na de CPR – como no caso concordante de (14a) – e também na de TVC – como nos casos não concordantes de (13e-g) e os concordantes de (14b-c). Estas duas funções, porém, nem sempre são claramente diferenciáveis quando se produz a concordância e não há elementos aspetuais-temporais diferenciadores evidentes, como ocorre em (15). (15) a) Sehor, poys ds vos tem feyta tata merçee que soees saao muy bem. (VIR, xv). b) Sehor pois Jhesu Cto vos te feita tata graça q tomastes vingaça da sua morte e soues saao com toda vossa gente rogamos q lhe mantenhas todo q lhe pmetestes (VIR, xxiv). c) Tenho grade menecoria das pallauras q me tees ditas (VIR, xvi). Na CRB, como vimos, praticamente só se usa a construção ter+particípio, que, a nível morfossintático, mostra tanto a falta –em (16) – como a presença da concordância –em (17) –, embora a frequência da não-concordância só atinja 8 %. No primeiro caso é evidente a função de TVC, mas no segundo só o contexto aspetual-temporal pode clarificar a situação. Assim, em (17a-c) o subordinante depois de indica anterioridade, isto é, TVC, enquanto em (17d) o advérbio novamente indica simultaneidade, isto é, CPR. (16) a) pomdo lhe diante a destroyção que el rey dos de Dely em seus reynos feito tinha (CRB, 1). b) lhe disse elrey que elle desejava de comprir em todo ho testamento d elrey Narsynga, que era tomar lhe Rachol, que era hũa cidade muito forte, e das primcipaes do ydallcão, que elle tinha tomado aos reys d antepassados (CRB, 7). c) Despois de ter elrey feito suas ofertas e sacreficios a seus ydollos, partio da cidade de Bisnaga con toda a sua gente (CRB, 7).

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(17) a) Depois de Crisnarao ter feitas as pazes e casamento com hũa filha d elrey d Orya (CRB, 6) b) e despois d elrey ter a terra asentada, se veyo a Bisnaga (CRB, 6) c) e  despois de terem seus bramenes acabados suas serimonias e  sacreficios (CRB, 7) d) passou as terras que novamente tinha ganhadas entramdo per as d el rey de Bisnaga (CRB, 1) Às vezes, por falta de outros elementos referenciais, apenas nos podemos basear no contexto discursivo ou em conhecimentos extra-linguísticos. Em (18a) o sintagma de reys passados sugere que tinhão perdidas se refere a anterioridade, isto é, TVC. Em (18b) o contexto descritivo e em (18c) o lugar comum dos ‘tesouros soterrados’ parecem indicar que se trata de possuir alguma coisa num estado, isto é, CPR, mas estas não são intrepretações únicas. Em (18d-e) o verbo ter aparece em gerúndio, o qual pode referir-se tanto a simultaneidade como a anterioridade, sendo que, por falta de outros elementos, só o parâmetro de [±concordância] poderia clarificar o valor preciso. (18) a) todas as terras que hos reys passados tinhão perdidas forão ganhadas por elle (CRB, 4) b) avia na cidade mantimentos pera cimco anos, […] tinha trinta trabucos, […], e hũu a outro tinha asentada sua artelharya (CRB, 7) c) e os mais erão hoficiaes dante elle aos quaes foy pedido por el rey conta dos thesouros d el rey de Bisnaga, os quoaes por elle forão entregues que dentro na fortaleza soterrados tinha (CRB, 1) d) e temdo lhe tomada sua molher e as terras d allem do rio, como atras conta, fez muita gente prestes, e detreminou de hir sobre Catuir (CRB, 6) e) e, temdo suas gentes todas espalhadas lhe vierão novas como toda a terra por elle primeiro ganhada era allevantada. (CRB, 2) Com base nos dados que acabámos de apresentar podemos concluir o seguinte. No CGE, segundo o contexto aspetual em que aparece, ter+particípio usa-se com o valor de CPR e haver+particípio parece predominar na função de TVC; no VIR, ter+particípio já aparece tanto com a função de CPR como com a de TVC, sendo haver+particípio só uma alternativa estilística nesta última função; na CRB, ter+particípio é praticamente a única estrutura e domina em ambas as funções. Com o desaparecimento gradual de haver+particípio e a proporção ainda baixa da falta de concordância, só o contexto aspetual ou discursivo podia ajudar a distinção de CPR e TVC. Quando também não era possível a diferenciação pelo contexto, a ambiguidade semântica só podia ser reforçada a nível morfossintático, isto é, mediante a concordância ou não concordância do particípio ou a ordem dos elementos. Cremos, portanto, que a extensão das funções do verbo ter historicamente contribuiu para que a estrutura não concordante se estabelecesse como indicador de TVC no português.

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“o autor deve ser poliglota em sua própria língua106”. luuanda de josé luandino vieira como exemplo da desconstrução do sistema morfossintático do português padrão Natalia Czopek Universidade Jaguelónica de Cracóvia Polónia Resumo: No nosso trabalho temos por objetivo apresentar um estudo linguístico de Luuanda de José Luandino Vieira, concentrando-nos nas caraterísticas morfossintáticas como marcas de supressão da norma do português metropolitano da qual resultam combinatórias exemplares de hibridismo linguístico. Na parte prática, dentro do enquadramento teórico da lexicologia e da morfossintaxe de línguas em contacto, analisar-se-ão, entre outros, alguns exemplos de mudança dos padrões da morfologia flexional nominal e verbal, casos de code-switching e code-mixing e vocábulos provenientes das línguas nativas. Palavras-chave: Luuanda; desconstrução; morfossintaxe A realidade linguística de Angola, um país plurilingue, é constituída pelas línguas de origem não banta (khoisan, vatwa), de origem banta (cokwe, kikongo, kimbundu, umbundo, etc.) e de origem neolatina (português), criando, em muitos casos, uma situação de bilinguismo afro-europeu. No entanto, a língua portuguesa não conseguiu implantar-se em todo o território, tendo permanecido vivas as línguas nacionais, sobretudo nas zonas rurais, como línguas maternas da maioria da sociedade angolana. A sua importância confirma-se na sua presença nos média, na criação de caráter cultural, como letras de músicas, e em algumas manifestações políticas. O português, como língua oficial do país, é um fator de unificação social, encontrando-se em permanente transformação resultante do seu contacto com as línguas nativas. Obviamente, no caso de um país tão grande não se pode falar da uniformidade do português, existem casos

106 Ferreira, M. “Oralidade em Luuanda.” [in:] http://marianaft.wordpress.com/literatura/ oralidade-em-luuanda [data de acesso 02.06.2014].

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de muita proximidade (sobretudo nas grandes cidades) e de desvios à norma padrão (Cristóvão, 2007: 608–609). Publicado em 1964, Luuanda inaugura a segunda fase da criação literária de José Luandino Vieira que se carateriza pela disseminação das marcas de angolanização na língua portuguesa “adotando gírias, neologizações, tipicismos e outros recursos, também sintáticos, orais e tradicionais africanos, para construir uma língua literária propícia ao imediato reconhecimento da sua diferença” (Laranjeira, 1995: 121). O próprio autor utiliza o termo “estória” para as suas narrativas, definida como mais longa que o conto e menos desenvolvida que a novela ou o romance, com elementos de fábula moral africana de tradição oral107 e pequena epopeia popular, na qual a língua literária surge na intersecção da língua natural portuguesa com a língua natural quimbunda, fornecendo aquela sobretudo o espaço lexical e a estrutura básica, interferindo esta nalguns pontos da sintaxe, introduzindo-se vocábulos crioulizados, aquimbundados [...] ou mesmo neologismos [...] (Ribeiro, s.d: 122–124)108. A personalidade africana permanece viva graças ao uso do português com permanente recorrência a construções sintáticas e lexicais do quimbundo na ironia da adaptação da língua do colonizador à língua do colonizado. A principal preocupação do autor era criar uma linguagem literária, de uma certa forma simbólica, a partir dos processos resultantes do contacto entre línguas no território angolano, refletindo a linguagem popular e sublinhando a diferença cultural e o papel da oralidade na tradição angolana109. O leitor, imergindo no mundo dos bairros angolanos, sente-se como se estivesse sentado à fogueira, ouvindo as histórias contadas pelos mais velhos da aldeia. A análise dos vestígios que a língua portuguesa deixou em África permite apreciar a sua vasta difusão no espaço e a forte permanência no tempo. É evidente que o portu107 Cf. Ferreira (s.d.: s.p.): Nestes casos nota-se uma certa mistura do género literário com as histórias contadas, com toque fantástico e uma moral, chamadas de missosso. Pode-se evocar aqui o papagaio Jacó cujo riso é parecido ao riso de uma pessoa, comportamentos metaforicamente animalescos dos personagens da história sobre a galinha e o ovo ou a atribuição de certos traços humanos à própria galinha, traduzindo as “palavras” dela. Cf. também Ribeiro (s.d.: 123): “Estórias designam narrativas de cunho tradicional e popular. A ligação com a oralidade africana é feita através de um modo de narrar que se processa espontaneamente e que remete para a tradição oral e para as histórias contadas à volta da fogueira”. 108 Esta estilização linguística tem como objetivo também refletir os traços caraterísticos dos personagens e fazer com que sejam mais verídicos, credíveis e representativos para o seu entorno, como no caso de Lomelino dos Reis, cabo-verdiano, que “fala uma língua muito sua, em que o português, o quimbundo e o crioulo cabo-verdiano convivem sem restrições que não sejam as constringências sintáticas”. Deste modo, os personagens ficam definidos pela sua linguagem que destaca a sua autonomia cultural. 109 Cf. excerto de uma entrevista dada por J. Luandino Vieira a Pires Laranjeira, em 1994, para a Universidade Aberta, citado na capa do livro Luuanda, Lisboa: Caminho, 2004: “A questão da linguagem já não é tão inocente assim... Muito embora não pretendesse fazer uma cópia fiel da linguagem utilizada pelas camadas populares luandenses. Tenho que reconhecer – para o caso do Luuanda – que em certa altura eu achei até que teria um significado político: demonstrar que, na própria língua do colonizador, a nossa diferença cultural nos permitia escrever de modo que era difícil, ao próprio colonizador, entender o nosso código linguístico. Mas essa parte deliberada na criação de uma linguagem é apenas uma excrescência. Porque o meu intuito era [...] criar uma linguagem ao nível literário a partir dos mesmos processos e das estruturas linguísticas bantas da região de Luanda. Que fosse homóloga da linguagem popular e não a sua cópia ou a sua reprodução [...]”.

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guês adquirido pelos africanos varia de um país para outro. Não obstante, os linguistas distinguem algumas tendências gerais que parecem ser adequadas à situação da língua de Camões em mais do que um país lusófono, como acontece no caso de Angola e Moçambique. Vejamos alguns exemplos das tendências morfossintáticas mais notáveis, resultantes provavelmente da influência das línguas bantas110: I. Eliminação de elementos da frase: omissão do artigo (músculos começaram doer); falta das preposições em construções perifrásticas (estavam sair); uso de um elemento negativo (está a falar nada); omissão do pronome reflexivo e da partícula apassivante se (os olhos encheram de água); omissão dos verbos ser e haver nas construções de realce (muito tempo que não vejo a rapaziada); omissão da conjunção completiva e do pronome relativo que (fingiu queria comprar o relógio; vai ser trovoada parece canhão); omissão da conjunção e nos numerais (trinta cinco anos); II. Alterações na flexão:

1. Flexão de pessoa e número: uso quase exclusivo da terceira pessoa do singular (eu esperou; eles já morreu; os outros está; as pessoas paga renda); emprego de uma só marca do plural no sintagma nominal (os caderno; os meu primo); emprego do pronome pessoal ele ou das formas do complemento indireto (lheização) em vez do pronome pessoal do objeto direto (é só educar ele; fui eu que lhe apanhei primeiro); falta da diferença entre a segunda e a terceira pessoa do singular: (para que você queres saber; você tens raiva);



2. Flexão de modo: eliminação do conjuntivo (Porque se você eras uma bisneta, talvez as coisas iam de outra maneira); uso do indicativo em vez do imperativo (vais perguntar o teu filho; fazem depressa para irmos);



3. Alterações sintáticas: alteração da ordem das palavras (você me dá encontro; já tinha-lhe prometido); emprego especial da preposição de, o chamado dequeísmo, (mudaram daquela professora; começaram de chegar); uso dos verbos ter e passar em vez de haver (mas agora tem escola de noite; passou barulho grande); repetição de um elemento com função enfática (muito muito grande); pronomes pessoais pleonásticos (me acordou-me; lhe apanhou-lhe); emprego específico da preposição em (chego na casa; telefono na polícia) (Hlibowicka-Węglarz, 2003: 36–38).

Na literatura africana, ainda durante o tempo colonial, mostraram-se várias maneiras de supressão da norma do português metropolitano, designada também como 110 Cf. o exemplo do quimbundo em Angola analisado em Guerra Marques (1985: 218–223). O quimbundo é uma língua prefixal, aglutinante e tonal, que dá realce ao aspeto (ao ponto de vista de quem enuncia), com a ausência de alguns tempos e modos. É comum a troca de pronomes; os prefixos indicam o número e a classe da palavra; os possessivos não têm flexão de género; não há flexão verbal (os pronomes pessoais prefixos determinam o sujeito e ligam-se ao verbo como prefixos concordantes do sujeito).

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mulatismo, desestabilização, reinvenção, fragmentação ou canibalização, de que resultaram combinatórias exemplares de hibridismo linguístico (Leite, 2003: 15–20) 111. José Luandino Vieira em numerosas entrevistas justifica as escolhas linguísticas que tinha tomado escrevendo as suas estórias. A primeira razão dada pelo autor tem a ver com a política, com o questionamento ao regime colonial e com o começo da luta pela independência no âmbito da qual os escritores angolanos decidiram dar voz aos representantes das camadas sociais que não tinham tido a possibilidade de falarem da sua situação, marcando a sua “angolanidade”. Até esse momento, costumava-se apresentar o ponto de vista do homem europeu culto, cristão, superior e mais civilizado. Graças à nova perspetiva, pela primeira vez o leitor teve oportunidade de se identificar com o universo dos excluídos e conhecer, em nível linguístico real, os problemas e o sofrimento do estrato mais desfavorecido da sociedade angolana da própria boca dos seus membros112. A outra razão mencionada nas entrevistas é a tentativa de criar uma linguagem expressivamente marcada, de certa forma secreta, que una os membros do mesmo grupo e, ao mesmo tempo, dificulte a perceção da mensagem às pessoas de fora,

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Cf. também Simões Marques (s.d.: 136): O conceito de hibridismo foi desenvolvido por M. Bakhtin como um dos conceitos-chave da sua teoria sobre a linguagem no romance. A literatura não é um sistema homogéneo. “A heteroglossia, ou seja a coexistência, numa dada sociedade num dado momento, de uma multiplicidade de dialetos sociais e profissionais, estilos e géneros de retórica, constitui a realidade e a vida da linguagem. O romance é o lugar por excelência de uma polifonia que explora a heteroglossia da sociedade. Na verdade, qualquer romance cria um diálogo entre diferentes dialetos, integrando-os num projeto artístico”. O processo de canibalização ou mestiçagem linguística é típico também de outros países, nem só africanos. Como exemplo, citemos as palavras de Octavio Paz (Manana de Sousa, 2009: 129): “[...] a primeira preocupação do escritor (mexicano) é procurar a ‘alma nacional’. Não havendo outra possibilidade para além de escrever em espanhol, é necessário desconstruí-lo e recriá-lo para que se torne mexicano sem deixar de ser espanhol”. Adicionem-se informações sobre o inglês encontradas em Webb, Kembo-Sure (2000: 39): “English in South Africa has, naturally, become ‘indigenized’, at least in the sense of becoming the ‘property’ of many non-native speakers, and of developing distinctive structural and semantic features. [...] However, this indigenization has also led to conflict between what the ‘custodians’ of the language regard as ‘proper’, which is the ‘British’ or the so-called ‘international’ form of English, and the way in which it is typically spoken by most black South Africans and also by certain white South Africans”. However, the language “[...] ‘belongs’ firstly to the indigenous people, and they therefore have the right to decide what is appropriate, and cannot be dictated to by people who historically come from elsewhere”. A situação em Angola pode ser ainda comparada com a chamada ‘nativização’ do português de Moçambique descrita em Gonçalves (2005: 229): “A moçambicanização é a forma de nos apriopriarmos do Português. [...] O Português falado em Moçambique há-de necessariamente transformar-se e distanciar-se do Português de Portugal porque a realidade moçambicana, à partida diferente da de Portugal, tem o seu próprio curso de desenvolvimento. [...] Compreender essa transformação do Português significa admitir que o Português falado em Moçambique se venha a transformar na sua estrutura, no seu léxico, na sua pronúncia, no seu ritmo, na sua musicalidade, à medida que se afeiçoar ao que será a expressão da nossa ‘moçambicanidade’”. No entanto, a Autora critica a atitude das elites que aceitavam algumas marcas de nativização como legítimas (como as inovações lexicais) e outras como erradas (inovações gramaticais). Curiosamente, entre as gerações mais jovens nota-se a tendência para o abandono quase total das inovações lexicais surgidas no pós-independência, antes tão valorizadas. 112 Cf. Um escritor confessa-se.... (1989: s.p.): “[…] penso que o primeiro elemento da cultura angolana que interferiu com a escrita, segundo a norma portuguesa, foi a introdução da oralidade luandense no meio do discurso da norma portuguesa... mas depois, quando entramos na luta política pela independência do país, que foi feita em nome das camadas que não tinham voz – e se tivessem não podiam falar, e se falassem não falariam muito tempo... –, foi aí que os escritores angolanos resolveram dar voz àqueles que não tinham voz e, portanto, escrever para que se soubesse o que era o nosso país, se soubesse qual era a situação do país e, desse modo, interferirem de maneira a modificarem essa situação...”. Cf. também Simões Marques (s.d.: 141): Muitas vezes, as interferências linguísticas passam por incompetência e essas variações são consideradas como minoritárias.

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neste caso ao colonizador113. Estamos, então, perante duas funções principais deste tipo de linguagem: função integrativa e separativa. Os membros do mesmo grupo social usam linguagem própria com vocabulário correspondente à realidade na qual vivem, neste caso palavras provenientes das línguas nativas e uma gíria específica. A linguagem integra os seus usuários e identifica representantes do grupo, distinguindo-os, ao mesmo tempo, das pessoas alheias. Caracteriza-se normalmente por um número considerável de empréstimos, tanto externos como internos, neologismos, neossemantismos e novos fraseologismos (Markowski, 2012: 151–155)114. Deste modo, a linguagem torna-se uma das personagens das estórias115. Como o próprio autor constatou, as suas estórias foram enriquecidas pelos elementos da oralidade luandense, ou seja, “oralizadas”. É bem sabido que a tradição oral tem desempenhado um papel muito importante na cultura dos povos africanos, sendo a fonte primordial da sua história e refletindo os aspetos relevantes da sua vida116. A ideia de “continuidade” entre a natureza cultural e a herança oral, radicada nos mestres da palavra, os chamados griots, e a literatura africana foi defendida já

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Cf. Martin (2013: s.p.): “E como estávamos numa fase de alta contestação política – e um dos elementos dessa contestação política do colonialismo era afirmar a nossa diferença cultural, mesmo na língua, um bichinho qualquer soprou-me a dizer-me: Por que é que tu não escreves em língua portuguesa de tal maneira que nenhum português perceba! Foi desta maneira que escrevi essas três estórias do Luuanda, de tal maneira que se um português de Portugal lesse, percebesse todas – ou quase todas – as palavras e dissesse que era português e, depois, dissesse ao mesmo tempo: Não percebo nada disto! Foi alguma coisa de deliberado, de provocatório […]”. No entanto, há certos limites na marcação dessa diversidade. Como afirma P. Teyssier (Manana de Sousa, 2009: 132–133), “[...] há dentro da diversidade um limiar que não deve ser ultrapassado: é o ponto além do qual a intercomunicação desaparece”. 114 Cf. também Webb, Kembo-Sure (2000: 2): “Language can also be used as an instrument which people use to group themselves together or to separate themselves from others. This is called the binding or separating function of language. Finally, language can be an instrument that allows people to participate in activities and enjoy certain privileges. This is called the participatory function of language. Language can also have a symbolic function. Usually, language symbolizes its speakers’ social and cultural identity [...]. In this sense, language functions like the national flag or the national anthem of a state”. 115 Cf. excerto de uma entrevista dada por J. Luandino Vieira a Joelma G. dos Santos (2007: s.p.): “A ideia surgiu quando eu me dei conta que [...] o português padrão não chegava, não servia, e eu tinha que incorporar entre aspas ou em itálico muito material linguístico que era próprio do que eu queria narrar, e daqueles personagens, que não era qualquer coisa que estivesse no dicionário que eu pudesse utilizar [...]. Eu não podia dar aquelas estórias àquelas pessoas sem essa linguagem. Foi quando eu percebi que a língua popular falada em Luanda era também personagem. Então, eu tive que a ter como personagem e aí veio o problema de como conciliar essa personagem – língua popular, linguagem popular – com a outra personagem que estava ali desde o início que era o português no texto”. Cf. também Lise Gauvin (Simões Marques, s.d.: 132): “[...] o escritor depara-se com a reinvenção da língua para criar a sua própria língua de escrita de acordo com o seu público ou a imagem do ou dos destinatário(s) e existe uma superconsciência linguística do escritor que é levado a pensar a língua”. Escrever torna-se, desta forma, um verdadeiro ato de fala, visto que a escolha de uma língua em particular é reveladora de um “processo literário [...]. A língua literária é construída a partir da língua comum e participa nela de maneira fundamental”. 116 Cf. Postioma (1968: s.p.): “A palavra no meio africano goza de uma tarefa privilegiada; a palavra que foi pronunciada e produzida pelos antepassados encontra-se hoje como norma doutrinal e moral; ela continua ainda a operar, a instruir, a exortar e a guiar. Em África não falam somente os sábios e os poetas; todos gostam de falar. [...] A palavra é vida, é a expressão da alma, do ser mais profundo, do íntimo do coração. Um homem que não fala é doente ou falecido; falar é mostrar aos outros a própria vida: ‘Eu falo logo existo’. [...] A palavra africana é poderosa, dinâmica, porque é um símbolo que permite a uma força entrar em contacto com outro ser”. Cf. também uma citação do A varanda do frangipani de Mia Couto (Manana de Sousa, 2009: 140): “Neste asilo o senhor se aumente de muita orelha. É que nós aqui vivemos muito oralmente”.

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pelo grande representante da Negritude, Leopold Senghor117. O griot é um especialista escolhido ou por linhagem, ou por profissão, e só ele detém o conhecimento dos textos mais longos e especiais, como a epopeia, as genealogias ou a crónica histórica (Leite, 1998: 14–39)118. Uma das maneiras de reintegração do intertexto oral na literatura escrita é a transformação linguística, isto é, uso de instrumentos infra-estruturais na criação da chamada “oralidade fingida” (Leite, 1998: 29). Trata-se aqui precisamente de refletir na linguagem escrita a contaminação e a mestiçagem presentes na linguagem oral das sociedades culturalmente hibridas “através da recriação sintática e lexical e de recombinações linguísticas, provenientes, por vezes, mas nem sempre, de mais do que uma língua”, criando um “amálgama” de vozes119. Como exemplo deste processo, pode-se comentar o caso da sintaxe normativa modal e temporal portuguesa que se torna semelhante à oralidade africana com, por exemplo, marcas do discurso indireto livre. O narrador assume o papel do velho contador de histórias, aproveitando o modo de narrar solto, circunloquial, simulando a espontaneidade popular e produzindo uma aceleração discursiva (Laranjeira, 1995: 121–123). É comum começar e acabar as estórias com as fórmulas mais típicas da tradição oral, por exemplo: 1. A estória da galinha e do ovo. Estes casos passaram no musseque Sambizanga, nesta nossa terra de Luanda (125)120; Minha estória. Se é bonita, se é feia, vocês é que sabem. Eu só juro não falei mentira e estes casos passaram nesta nossa terra de Luanda (152)

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Cf. Leite (1998 : 14–39): vejam-se, por exemplo, as considerações de Leopold Senghor acerca da poesia: “Le Nègre singulièrement, qui est d’un monde où la parole se fait spontanément rythme dès que l’homme est ému, rendu à lui même à son authenticité. Oui la parole se fait poème [...]”. Alioune Tine afirma que “La littérature africaine se définit comme une littérature située entre l’oralité et l’ecriture. Cette idée a permis la réalisation d’un vaste consensus qui va des critiques africanistes aux écrivains” e A. Irele que “[...] the tradition of orality remains predominant, serving as a central paradigm for various kinds of expression on the continent [...]. In this primary sense, orality functions as the matrix of an African mode of discourse, and where literature is concerned, the griot is its embodiment in every sense of the word. Oral literature thus represents the basic intertext of the African imagination”. No entanto, podem-se também encontrar opiniões que a predominância da oralidade em África é resultante de condições materiais e históricas e não da “natureza” africana. Além disso, citam-se duas atitudes extremadas para com a oralidade: a primeira considera as sociedades orais primitivas, não sujeitas a trabalho reflexivo; a segunda considera-as exemplares. 118 Estes factos contrariam a teoria de as tradições orais serem acessíveis a todos e igualitárias enquanto a escrita é mais seletiva. Cf. também Leite (2003: 89): “A arte de narrar oral é um dos aspectos do quotidiano africano. A história é uma espécie de medium à conversa e funciona como exemplum”. Sublinhando a importância das gerações mais velhas na transmissão e conservação da memória do povo, Amadou Hampâté Bâ (Ribeiro, s/d: 119) afirmou que “Na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”. Infelizmente, como constatou Pepetela numa das entrevistas, “as populações saem do interior, perdemos laços tradicionais e a figura daquele mais velho contador de histórias, o griot, desapareceu praticamente. Isto em termos de campo. Encontramos apenas alguns griots suburbanos, mas é uma coisa que está desaparecendo” (Ribeiro, s.d.: 121). 119 Cf. Leite (1998: 33–43): O fenómeno ganhou também o nome de oralização ou tematização linguística, um processo transformativo e nativizante da língua do colonizador no qual “se desvelam as ‘tradições’ traídas, e reformuladas, e se recuperam os traços genealógicos de variadas ‘formas’ ou ‘géneros’ orais africanos, e outros géneros provenientes da literatura escrita”. Para esta modelação linguística aplica-se também o termo “fala”, seguindo a distinção saussuriana entre langue e parole. 120 Os números das páginas que se dão ao lado dos exemplos dizem respeito à edição do Luuanda de 2004, em Lisboa, pela editora Caminho.

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criando, pelo meio, um ambiente de um encontro à fogueira durante o qual um griot transmite a herança cultural do povo: 2. Sentem perto do fogo da fogueira ou na mesa de tabua de caixote, em frente do candeeiro; deixem cair a cabeça no balcão da quitanda, cheia do peso do vinho, ou encham o peito de sal do mar que vem no vento; pensem só uma vez, um momento, um pequeno bocado, no cajueiro (71)

Outra marca da oralidade é a recuperação de estratégias como provérbios, sentenças, frases feitas e portadoras de significação didático-filosófica (Leite, 1998: 44–49). O uso de provérbios e sentenças, formas alegóricas de didatismo e filosofia é muito importante para as culturas africanas, sendo pontes entre a sabedoria dos mais velhos e o mundo moderno121. Na obra analisada, os provérbios introduzem-se em quimbundo, fomentando a pluralidade literária122 e enquadrando culturalmente os seus usuários, pelo que fica bem marcada a sua ligação com a tradição oral nativa. Neste caso, a língua do colonizador revela-se obviamente insuficiente aos olhos do escritor para transmitir os conteúdos exatos num contexto cultural bem definido: 3. M’bika a mundele, mundele uê (O escravo de un branco também é branco) (120) 4. Mu muhatu mu ’mbia! Mu tunda uazele, mu tunda uaxikelela, mu tunda uakusuka... (A mulher é como a panela! Dela sai o que é branco, o que é negro, o que é vermelho!) (30)

A introdução de provérbios em língua nativa é um bom exemplo do processo de code-switching, isto é, “the alternating use of two or more languages within the same conversation, [...] across sentence boundaries [...], as a  hallmark of the linguistic behaviour of bilingual speakers [...]” (Kamwangamalu, 2000: 91–92). Neste caso, os 121 Cf. Leite (2003: 53): Os zulus dizem que sem provérbios “a linguagem é como um esqueleto sem carne ou um corpo sem alma” e os Yoruba que “o provérbio é o cavalo do discurso; se o discurso se perde, usa-se o provérbio para o procurar”. Cf. também Ndoleriire (2000: 274): “[...] individual people learn the values, norms, beliefs, views, and behavioural patterns (in other words, the culture) of the group or groups of which they are members through linguistic interaction”. A importância dos provérbios fica também confirmada em Postioma (1968: s.p.): “A palavra é o tabernáculo, o cofre da sabedoria africana, cuja principal manifestação são os provérbios frequentemente estudados pelos etnólogos. Os provérbios contêm um real fundamento filosófico sobre os principais problemas humanos; são lições de vida prática; são um quadro onde se encontram escritas as regras e as relações sociais”. Não se pode ignorar vozes que defendem que não é possível introduzir o texto oral para a escrita mantendo a mesma força da tradição oral. Citemos as palavras de Manuel Rui (Chaves, 2000: 249): “E agora? Vou passar o meu texto oral para a escrita? Não. É que a partir do momento em que eu o transferir para o espaço da folha branca, ele quase morre. Não tem árvores. Não tem ritual. [...] Não tem som. Não tem dança. Não tem braços. Não tem olhos. [...] Como escrever a história, o poema, o provérbio sobre a folha branca? Saltando pura e simplesmente da fala para a escrita e submetendo-me ao rigor do código que a escrita já comporta? Isso não. No texto oral já disse não toco e não o deixo minar pela escrita, arma que eu conquistei ao outro. Não posso matar o meu texto com a arma do outro”. 122 Cf. as palavras de Arnaldo Saraiva (Simões Marques, s.d.: 131–132): “[...] o plurilinguismo torna mais complexas e flexíveis as manifestações de pensamento e de emoção e, como tal, confere uma profundidade mais precisa aos conceitos que geralmente são concebidos de uma forma mais abstrata e expressos de uma forma mais vaga”. Cf. também Dominique Combe (Simões Marques, s.d.: 133): “[...] cada língua transmite uma ‘visão de mundo’ própria a cada cultura, o facto de mudar de língua leva a ver e a pensar o mundo de forma diferente”. O escritor pode distribuir as suas línguas de acordo com a sua própria economia, a alteridade linguística é um ato literário e político.

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elementos introduzidos não preenchem lacunas lexicais (a não ser as “lacunas semânticas” ou “enfáticas”, aos olhos do autor), não são limitados a um certo grupo de vocábulos, nem têm que ser necessariamente assimilados fonológica ou morfologicamente ao português. A função deles é, como já foi dito, marcar a identidade cultural e a ligação com a tradição. Uma função parecida é desempenhada pelo seguinte exemplo que ilustra o processo de code-mixing, isto é, introdução de elementos de uma língua diferente dentro da frase: 5. Nem uazekele kié-uazeka kiambote, nem nada [...] (Nem como dormiu – dormiu bem, nem nada) (60)

O falante, criticando o comportamento de uma pessoa, cita uma fórmula típica de saudar que se costuma usar na língua nativa. Assim, o hibridismo reflete de forma mais natural a interação entre duas pessoas. No exemplo (6), por sua vez, uma frase em quimbundo intercalada no discurso em português tem uma função fortemente enfática: 6. Katul’o maku, sungadibengu... (Tira as mãos, mulato ordinário...) (73)

Precisamos de mencionar ainda o caso da grafia assimilada à pronúncia e à maneira rápida de falar dos personagens. Os seguintes exemplos contêm modificações fonológicas típicas do estilo informal: 7. Dinheiro ’cabou, Fal’então!? Pr’a quê eu lembrei agora? (26), Bem, ’brigada, Não quero t’aldrabar! (38)/ [...] gosta peixe d’ontem? (49)/ Praquê então, se insultar assim? (129)/ Vai’mbora, güeta da tuji! (134), [...] ele m’ensinou! (135)/ – Me dá’ mbora cinco tostões! – Cinco tostões, vavô Lino! P’ra quiquerra! (140)/ Vai’mbora, hom’é! (142), Seus ganjésteres! (146)/ ’tá quieta! (150)/ Não precisa m’intrujar [...] (58)/ O qu’é eu ia fazer? (60)/ É os piolhos do fidamãe! (87)/ Qu’até meia-noite o homem espera. (97)/ Não m’insulta só, João! (99)/ [...] e disseram tá-andar. (114)

Outro fenómeno que concerne ao vocabulário são as modificações semânticas e contextuais de certas palavras. Vejamos alguns dos exemplos mais interessantes: 8. Na confusão, as mulheres adiantavam fechar janelas e portas [...]. (16) / [...] esse barulho que adiantou tapar os falares das pessoas [...] (16)/ Tinha adiantado na cubata e encontrou tudo parecia era mar [...] (17)/ Uma grande ternura [...] adiantou entrar no coração dela [...] (22)/ [...] rebocando miúdo Beto e avisando para não adiantar falar mentira, senão ia-lhe pôr mesmo jundungo na língua. (126) 9. Cadavez se você ia lhe ajudar, ia nos fiar outra vez, cadavez quem sabe... (19)/ O melhor é mesmo aproveitar hoje, cadavez, quem sabe? (32)/ Cadavez pode ter razão, por acaso, nesses casos. (115) 10. [...] vavó Xíxi começou explorar o neto, pôr perguntas pareciam à toa [...] (21) 11. [...] como é essa árvore ainda tinha coragem para [...] crescer suas folhas verdes [...] (36)

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12. [...] sentia as cigarras a cantar nos troncos [...] (40)/ Sente ainda, Zeca?! (48)/ Sente, menino! (50)/ Nga Zefa sentiu a zanga estava-lhe fugir [...] (129) 13. [...] conhecia papagaio da Baixa era diferente [...] (76)/ [...] ele era monandengue, não sabia a vida [...] (104)/ [...] não queriam perguntar saber quem ia lhe comprar os patos [...] (64) 14. Você pode me pôr um beijo, se você quer te deixo [...] (88)/ [...] as pessoas põem logo tiro [...] (93) 15. [...] Zefa vigiava embora sua galinha, via-lhe avançar pela areia [...] (127)/ [...] vou vestir os vestidos minha senhora me dá embora [..] (81) 16. [...] para descobrir se ele falava mentira [...] (21)/ [...] as palavras que adiantara pensar para dizer a vontade do trabalho [...] (34)/ [...] e fala-me mesmo para casar comigo ... (40)/ Falava verdade com todas as vizinhas viram bem [...] (126)/ [...] Beto veio lhe chamar e falou a Cabíri estava presa [...] (127)/ Fala então tua conversa, Bina! – disse a velha na rapariga [...] (130)/ É a galinha, está falar conversa dela! (134)/ [...] até falava ia lhe mandar estudar mais em Roma. (136)/ [...] a procurar [...] esse cantar [...] que lhe dizia o companheiro tinha encontrado bicho de comer [...] (151)/ O Zuzé falou lhe agarraram com um saco [...] (61)/ [...] mas só lhe disse estas palavras [...] (93) 17. [...] ela ficava parecia era gato assanhado (143)/ Sempre tratava o Kam’tuta parecia ele tinha só dez anos [....] (118)/ [...] ficava parecia era cara de gato quando anda brincar com o rato (41)/ [...] uma caneca de café parecia era água, mais nada (19)/ [...] a falar com voz rouca, a repetir parecia era maluco [...] (23)/ Ri os dentes brancos dela, parece são conchas [...] (25)/ [...] e braços pareciam eram troncos de pau [...] (38)/ A Cabíri estava tapada pelo cesto grande mas lhe deixava ver parecia era um preso no meio das grades (127).

Como se pode observar, ao verbo ‘adiantar’ adiciona-se uma sensação mais forte do movimento; o neologismo ortográfico ‘cadavez’ equivale a ‘talvez’; ‘explorar’ usa-se com o significado de ‘questionar’; o verbo ‘crescer’ torna-se transitivo; ‘sentir’ adquire o significado adicional de ‘ouvir’; confundem-se os contextos nos quais se empregam os verbos ‘saber’ e ‘conhecer’; a expressão ‘pôr um beijo’ substitui ‘dar um beijo’, ‘embora’ enfatiza o significado de vários verbos, o verbo ‘falar’ substitui em muitos contextos o ‘dizer’ e o verbo ‘parecer’ usa-se ora em vez do simples ‘como’ ou ‘como se’ ora acompanhado do verbo ‘ser’ na construção comparativa. No entanto, o fenómeno mais notável quanto ao vocabulário usado são se calhar numerosos vocábulos provenientes das línguas nativas, sobretudo do quimbundo. Decidimos distinguir as seguintes categorias que representam áreas semanticamente insuficientes em português e, por conseguinte, enriquecidas com palavras nativas: 18. Casa (musseque, cubata, pau-a-pique, massuíca, luando, cacimba, muringue, quinda); vida quotidiana (imbamba, maximbombo, xaxualhar, cambular, cassumbular, macuta, mutopa, cafucambular); comunicação (muxoxar, quissemo, quissende, sukuama!, tuji!, maca, xuculular, bassula, xingar, muximar, uatobar); comidas e bebidas (matete, maquezo, quitande, jindungo, jinguba, massambala, quimbombo, candingolo); fauna e flora africana (mulemba, piápia, jinguna, plim-plau, rabo-de-junco, marimbondo, gumbatete, salalé, maboque, sape-sape, quinjongo, matacanha, bitacaia, mauindo); designações das pessoas (monandengue, vavó, nga, monangamba, man-

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gonheiro, cassanda, ngüeta, cariengue, cafofo, mona, camuelo, quitata, sungaribengo, cap’verde, cambuta, capianguista, quileba, cagufas); mar e vida naútica (fimbar, ximbicar), música (ngoma), partes do corpo (mataco), crenças (cazumbi, xinguilar)

Confirmando a teoria de as línguas refletirem no seu léxico o mundo no qual vivem os seus usuários, no exemplo 18 estamos perante numerosas importações de termos provenientes de línguas bantas, isto é, empréstimos com diversas modificações. Os vocábulos foram aportuguesados ortograficamente, por exemplo pelo uso da letra q inexistente nas línguas bantas. Há também vários exemplos de derivação sufixal, sobretudo de verbalização denominal e nominalização denominal, que levou à formação de neologismos hibridizados como: muxoxar (muxoxo – chio de boca, em sinal de desprezo), fimbar (mergulhar; fimba – mergulho), muximar (lisonjear; muxima-coração), cassumbular (levar, conquistar; kusumbula – conquista), capianguista (capiango – roubo, delinquência), mangonheiro (mangonha – preguiça). Alguns dos vocábulos têm origem onomatopaica, ou seja, o significante procura imitar os sons da natureza, como no caso do verbo xuaxalhar (rumorejar, do ruído do vento nas árvores). No entanto, o problema principal do nosso trabalho é a transferência de normas gramaticais das línguas bantas para o português e a resultante desconstrução do sistema morfossintático do português padrão, incluindo as corruptelas próprias da fala popular. Vejamos os exemplos mais notáveis deste processo encontrados no nosso corpus: Uso do verbo ter em vez de haver, construções sem haver, o que parcialmente assemelha a linguagem dos personagens à versão brasileira. O verbo ter substitui o haver tanto nas construções temporais como nas espaciais. Em poucos casos, o verbo haver é substituído pelo ser: 19. Tinha mais de dois meses a chuva não caía. (15)/ Se não aceita tem aí quem me dá mesmo metade [...] (39)/ [...] começava apanhar, grão a grão, sem depressa, parecia sabia mesmo não tinha mais bicho ali no quintal [...] (127)/ [...] na quitanda já tinha barulho de homens a gastar o dinheiro [...] (87)/ [...] comida era montes, roupa era montes [...] (27)/ Já mais de uma semana que estou procurar trabalho [...] (32)/ [...] os pintinhos já saíram muito tempo, chovia pequeno ainda [...] (27)/ [...] a mulher de Miguel João falou que muito tempo já estava ver a galinha entrar [...] no quintal [...] (129)/ Por isso é que três horas só Maneco veio para almoçar (30).

Falta dos pronomes reflexos que, no entanto, não se omitem em todos os contextos: 20. Vavó levantou com depressa e passou as mãos velhas [...] nas costas novas do neto [...] (19)/ [...] as vizinhas espantaram, já muito tempo não passava confusão ali [...] (142)/ [...] o medo de ele deitar com as mulheres [...] (74)/ e se eu deixo ele andar dentro do vestido, você zanga, Gágá? (87)

Mudanças no padrão de ordem dos pronomes pessoais átonos. Observa-se uma forte falta de consequência e hesitação quanto à posição do pronome, encontramos casos de próclise (21), de ênclise nos contextos tipicamente proclíticos no português pa-

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drão (22), casos que obedecem as regras do português padrão (23) e muitos exemplos de colocação do pronome entre o verbo auxiliar e o verbo principal nas construções perifrásticas ou com verbos modais (24). O hífen nem sempre se emprega onde o exige a gramática: 21. Ontem não te disse dinheiro ‘cabou? (18)/ Então você me dá encontro e não dizes nada? (40)/ Te roubar a Cabíri e o ovo dela? (129)/ Pecadoras! Queriam me tentar! (138)/ Me liga só um bocado! (78) 22. [...] essa camisa que tinha-lhe custado o último dinheiro [...] (19)/ Só tinha-lhe pedido para trabalhar na bomba [...] (20)/ [...] muitas vezes era isso que tinha-lhe feito mal (26)/ Chamava-lhe sempre de miúdo quando ia-lhe ajudar [...] (33)/ [...] dizia João Rosa já tinha-lhe prometido falar no patrão [...] que, depois, queria se casar com ela [...] (40)/ [...] até já tinha-se esquecido [...] (48)/ [...] toda a alegria que tinha-lhe posto o pensamento de Delfina passando ali na cubata. (50)/ Vavó já tinha se encostado na parede [...] (45)/ [...] só porque deu-lhe encontro com a faquinha... (59)/ Mas quando olhou-lhe outra vez [...] (133)/ [...] deixou fugir alguns riscos que a preocupação do caso tinha-lhe posto na cara. (136)/ [...] não pode-se saber a justiça, senhora! (146)/ [...] que não tinham-lhe largado com as piadas. (146) 23. Delfina sempre lhe falava esses casos do trabalho [...] (40)/ [...] as folhas de muitas cores [...] que o sol lhes põe [...] (125)/ A minha galinha é que lhe pôs! Pois é mas pôs-lhe no meu quintal! (129) 24. [...] o resto não podia se ouvir mesmo, não era nada. (27)/ [...] Delfina não ia lhe perdoar [...] (47)/ [...] sempre a vida dela lhe conheceu todos os anos [...] (28)/ [...] a barriga estava lhe doer [...] (28)/ Não vão me aceitar. (32)/ Quem podia lhe contar? (49)/ [...] mas como ia-lhe contar então o que tinha sucedido [...] (40)/ Pecadoras! Queriam me tentar! (138)

Falta dos pronomes do complemento direto (pronome pessoal acusativo). A distinção entre o objeto direto e indireto não existe nas línguas bantas que, nos dois casos, usam a mesma forma do pronome que se antepõe ao verbo (kikongo: yandi – a ele, a ela, o, a, lhe; bau – a eles, a elas, os, as, lhes; Kwa bau lun’disi mbongo zame – Eu lhes dei o meu dinheiro a guardar) (Guerra Marques, 1985: 217). Se calhar por não existir a variação de género, é mais fácil usar apenas as formas com distinção de número lhe/ lhes em vez de o/a/os/as. Nos contextos do complemento indireto, às vezes aparecem preposições inusuais (26): 25. [...] se você ia lhe ajudar [...] (19)/ [...] empurrou-lhe devagar [...] (20)/ Sô Souto receberalhe bem [...] (20)/ [...] aquelas mandiocas pequenas [...] queria lhes cozer [...] (23)/ [...] cozinhou aquelas batatas, comeu-lhes todas [...] (26)/ Mas essas ideias [...] não querem lhe deixar, agarram na cabeça [...] (26)/ [...] deixaram os pés levarem-lhes no cais de cabotagem, na muralha [...] (32)/ [...] obrigava-lhe andar depressa [...] (33)/ [...] o rapaz andava perseguir a garota, queria-lhe para ele [...] (36)/ [...] passou-lhe uma bassula nas costas, mergulhou-lhe em cima da areia. (37)/ [...] ia lhe trocar por João Rosa e isso punha-lhe triste. (47)/ parecia estavam-lhe queimar alli (47)/ Vi-lhe bem, mamã, é a Cabíri! (126)/ Galinha é de Zefa, não lhe quero. (130)/ Apalpem-lhe! (130)/ A galinha gorda com o meu milho e o ovo você é que lhe comia?! (131)/ Nga Bina arreganhou-lhe chegando bem no velho, encostando a barriga gorda parecia queria-lhe empurrar [...] (141)/ enganava-lhe com toda a gente [...] (143)/ [...] levo-lhe no juiz meu amigo e ele fala a sentença (146)/

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[...] agarrou a galinha pelas asas, trazendo-lhe assim para entregar ao sargento (149)/ Lhe conheço bem... Mas não deve lhe refilar... (60) 26. [...] via bem a vizinha a dar comida na Cabíri [...] (129)/ Perguntou para menino Luís [...] (92)

Elipse dos artigos definidos que não existem nos sistemas gramaticais das línguas bantas. O dito processo, no entanto, não se realiza de forma consequente. Assim, temos casos de falta (27) e de uso do artigo (28), também nos mesmos contextos, ou nos contextos nos quais não se usam no português padrão: 27. [...] adiantar cozinhar almoço [...] (17)/ [...] com suas mãos secas [...] (23)/ [...] as pessoas passam para suas casas [...] (25)/ [...] jurei mesmo meu homem não é terrorista [...] (28)/ Toda coragem tinha fugido nessa hora [...] (34)/ [...] contar todas coisas da vida dele [...] (40)/ [...] Zeca Santos esperava Delfina [...] (36)/ [...] a figura de Delfina, com seu sorriso e seu olhar [...] (37) 28. Os meus respeitos! (25)/ A barriga de Zeca [...] (33)/ [...] diante da espera de toda gente [...] (149)/ e ela estava ver todos os dias eu dava milho na galinha [...] (131)/ Padre Domingos perguntou o menino [...] (46)/ [...] ouvindo assim a sua igual a falar [...] (135)/ [...] foi a sua mão que pôs a roda [...] (96)/ [...] uma grande alegria bocado má mordia-lhe na boca toda. (109)/ [...] imitando mesmo a Cabíri [...] (135)/ [...] queria fazer umas horas na vez de um amigo (30)

Supressão das formas do conjuntivo, inexistentes nas línguas bantas, que ficam substituídas pelas formas do indicativo (29). Por conseguinte, estamos também perante uma simplificação do paradigma do imperativo (30). Além disso, como nos casos anteriormente analisados, encontramos também exemplos que contrariam a regra, isto é, exemplos de uso do conjuntivo em contextos iguais, tanto por parte do narrador como por parte dos personagens (31): 29. Mas ninguém mesmo que me diz quando vai sair [...] (28)/ Mas, mesmo que na peleja Zeca tinha ganhado, o mulato continuou vir buscar Delfina em seu carro [...] (37)/ [...] mesmo que a barriga da vizinha já se via com o mona lá dentro [...] (126)/ [...] se ela não lhe conhecia bem na sua amiga Domingas, podia ficar pensar muitas vezes um branco tinha-se enganado na porta da cubata ... (29)/ [...] queria mesmo ela sabia todas coisas da vida dele [...] (40)/ [...] já ninguém que sabe como nasceram, onde começaram [...] (125)/ [...] e jurava se a atrevida tocava na galinha ia passar luta. (127)/ [...] parecia tinha medo a mulher ia lhe tocar com aquela parte do corpo (136)/ [...] nada que a gente pode fazer (131)/ [...], na hora de falar sério, tanto faz é latim, tanto faz é matemática [...] ninguém que duvidava: Azulinho sabia (136)/ Ninguém no musseque que não sabe a Cabíri é minha [...] (145)/ e nada que perdoava, mesmo que dava encontro o homem da casa deitado na esteira [...] (138) Agora se você volta la na justiça, fala tudo é mentira [...] (68)/ Mas se eu ia-lhe aceitar, como é as pessoas iam falar? (79)/ Mas chove a chuva [...] e um dia de manhã, quando vocês passam no caminho do cajueiro, uns verdes pequenos [...] estão espreitar em todos os lados [...] (71)/ [...] sentia já no peito o medo ela ia se zangar. (79)/ A não ser o rapaz tinha sonhado outra vez os casos antigos [...] (94)/ Não pensei falavam as pessoas nas costas [...] (98)/ Não admito mais ninguém me faz pouco (100)/ [...] e eu não quero vocês vão-se insultar. (117) 30. Não deixa ele ir embora! (136)/ Não perde teu tempo, sô Vitalino! (141)/ Deixa-lhe só, mano! Não dá-lhe corrida (61)/ Não goza-me, senhor! Tem pena um velho como eu, sô Zuzé... (65)/ Não

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olha-me assim (77)/ Quando eu vou com a minha senhora, você nem me cumprimenta, ouviste? ’tás perceber? nem que t’atreves a cumprimentar! Senão t’insulto mesmo aí no meio da rua! (81)/ [...] o Garrido não queria lhe responder, mandou-lhe embora, deixassem-lhe sozinho [...] (115) 31. E isto é verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado (121)/ [...] qualquer serviço mesmo que quisessem lhe dar, não fazia mal [...] (33)/ [...] só queria que seu homem estivesse aí [...] (139)/ [...] estava mesmo a pensar a cara de banzado do rapaz quando lhe agarrassem e lhe trouxessem na esquadra [...] (67)/ [...] ficou de polícia para avisar as patrulhas se viessem [...] (68)/ [...] talvez se as pessoas fizessem o que ele queria, cadavez ia sair bem [...] (82)/ Porque ia ser pena se perdiam essa noite [...]. Mas lucro certo também só se o Lomelino ajudasse [...] (93)/ Não que a pequena tivesse-lhe marcado encontro, nada disso [...] (73)/ [...] ia se casar mas era com um branco, não ia assim atrasar a raça com mulato qualquer, não pensasse (74)/ [...] não esperava ela ia dizer sim [...] (88)/ [...] deitado à toa, esperando por acaso passasse qualquer coisa (106)/ [...] ela não gostava o rapaz atravessava dentro de casa [...] (110)

Elipse das preposições em contextos diversificados, o que muda a regência verbal (32). No entanto, em casos muito menos numerosos o uso das preposições segue as regras do português padrão (33): 32. [...] e as pessoas, para escapar morrer, estavam na rua [...] (17)/ [...] as canas começavam aparecer [...] (17)/ a chuva tinha começado cair (22)/ começou atacar vavó (22)/ Lá fora, a chuva estava cair outra vez com força [...] (17)/ [...] a barriga mordia, estava doer muito (28)/ [...] falou fingindo não estava dar importância [...] (31)/ Para quê você está se zangar? (41)/ andava lhe roubar dinheiro [...] (21)/ gato quando anda brincar com o rato (41)/ Agora, recolhida no canto, continuava soprar o fogo [...] (19)/ Delfina continuava falar [...] (40)/ Diz ela não precisa ter vergonha ... (20)/ O caminho conhecia-lhe bem, não precisava lua [...] (111)/ [...] ficou-me gritar ia pôr queixa no Posto [...] (21)/ Verdade eu fiquei dormir, não fui na missa [...] (47)/ João não acabou falar [...] (99)/ [...] não queria acreditar essas coisas estava a ouvir [...] (21)/ [...] pensando essa vida assim, sem comida, trabalho nada [...] (22)/ [...] não pensar mais o corpo velho e curvado de vavó (23)/ Se calhar é por causa as mandiocas eu comi... (26)/ [...] o rapaz tem vergonha de dormir com as mulheres por causa a perna [...] (63)/ [...] a peleja que tinha passado por causa a Delfina [...] (30)/ [...] e só nasceu assim da precisão de estarem junto por causa beber juntos [...] (91)/ [...] ele tinha raiva essas orelhas, todas as pequenas gostavam lhe gozar [...] (30)/ [...] não parava de falar as pequenas, os bailes, a motorizada cadavez ia lhe comprar mesmo lá no serviço [...] (31)/ falou também as miúdas, a Delfina, os bailes (32)/ Delfina sempre lhe falava esses casos do trabalho [...] (40)/ [...] gostava andar a pé no fim da chuva [...] (32)/ [...] sorte não tinha, gostava a pequena [...] (41)/ Se não vai ter mais juízo, não vou te gostar mais ... (42)/ [...] obrigava-lhe andar depressa [...] (33)/ Por isso ninguém que deu conta a chegada da patrulha (147)/ O vento veio soprar devagar as folhas [...] (151)/ [...] ninguém que podia fazer pouco o homem dela (143)/ Um aço assim pode se matar uma pessoa? (56)/ [...] aproveitava acender cigarro na beata do outro (58)/ Você lembra esse gajo, não é? (62)/ [...] não lhe ligavam muito e riam as manias do coxo. (72)/ [...] sempre queria lhe morder e desatava insultar. (75)/ [...] nem deu conta a Inácia já estava lá [...] (76)/ Juro a alma da minha mãe! (89)/ [...] para lhe dar encontro oito e meia no Amaral. (92)/ [...] e o Kam’tuta repetia devagar, cada palavra sua vez [...] (99)/ [...] deitar de noite para descansar o trabalho dos dias [...] (104)/ Eu é que sei a minha vida! (115)/ [...] Jacó, coitado papagaio de musseque [...] (121) 33. [...] vendo as pessoas nos passeios começarem a parar e perguntar saber os casos [...] (35)/ [...] a cabeça começava também a doer muito (47)/ [...] a mulher nova começou a rir [...] (133)/ [...]

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o Coqueiros está a se cobrir com uma poeira [...] (24)/ Pensou a tarde já estava a ser boa com esse encontro [...] (41)/ ninguém que podia mesmo continuar ali a ser gozado [..] (87)/ Gostava muito de Delfina [...] (40)/ [...] ia-lhe convencer de vez para viver com ele, gostar dele, deitar na cama dele [...] (75)/ [...] mas depois até desatou a rir (107).

Uso das preposições e alterações na regência de complementos de algumas classes verbais (sobretudo verbos agentivos e locativos, e verbos superiores de orações completivas). Na linguagem popular, normalmente as preposições ignoram-se, trocam-se ou acrescentam-se nas posições nas quais não se usam no português padrão. As línguas bantas utilizam os mesmos prefixos locativos para definir o lugar onde, para onde e aonde (quimbundo: mwene wamuia ku bata – ele vai para casa; mwene wala ku bata – ele está em casa) (Guerra Marques, 1985: 218–223). Em consequência, é vulgar ouvir: ele está na cidade e ele vai na cidade, etc., ainda que os movimentos sejam contrários: sair em/ chegar em (34). Encontramos também alguns casos de uso de preposições diferentes no mesmo contexto (36): 34. Saiu embora na loja do Kabulu [...] (94)/ [...] algumas mulheres saíram embora nas suas cubatas falando se calhar vavó não ia poder resolver os casos [...] (138)/ Emília saiu embora na casa do amigo dela... (141)/ Mas na sopa de Maneco saía um cheiro bom [...] (31)/ na cabeça não saía mas é Delfina [...] (46)/ [...] ir no sô Souto? (19)/ [...] empurrou-lhe devagar para ir no caixote dela [...] (20)/ Vai longe? Em casa do sô Cristiano, vavó. (29)/ [...] para amanhã ir no cimento... (33)/ [...] ele devia mas é ir mesmo na escola [...] (40)/ Não lhe avisei para ir na missa [...] (46)/ [...] deixaram os pés levarem-lhes no cais de cabotagem, na muralha [...] (32)/ Se aí não consegues, passa na oficina (33)/ [...] esteve passar ali na cubata, seis horas quase, adiantou perguntar o neto Zeca [...] (48)/ [...] o Garrido chegou na esquadra [...] (113)/ [...] com as ideias estavam nascer, chegavam-lhe na cabeça [...] (137)/ [...] uma lua grande e azul estava subir no céu (50)/ [...] quando vieram no quintal de mamã Bina [...] (126)/ [...] a galinha volta sempre na nossa capoeira e os ovos você é que apanha... (126)/ Vieste na minha casa [...] (129)/ [...] ainda não voltou no Lucala [...] (138)/ [...] virou outra vez nas pessoas e falou [...] (129)/ [...] virou nas outras mulheres [...] (131)/ [...] ficou a ver a pequena atravessar no quintal [...] (77) 35. [...] já não cumprimenta nos mais-velhos... (17)/ [...] não têm mais respeito nos mais-velhos (47)/ [...] como é ele ia ainda bater de chicote no menino [...] (21)/ [...] falar no patrão para lhe mudarem no escritório [...] (40)/ [...] a vontade de falar só a verdade na menina [...] (43)/ [...] o homem falou com voz grossa em Zeca Santos [...] (37)/ Então não disse na vavó, o branco sô Souto ... (48)/ [...] as coisas que tinha aprendido para falar nos animais (137)/ [...] as raízes que queria lhe dar no almoço [...] (30)/ Zeca Santos tinha dado encontro no amigo dele [...] (30)/ [...] o que custou em Zeca foi aquela mentira que saiu logo-logo [...] (31)/ Sentados na frente do mar escuro [...] (32)/ Você vai roubar serviço num desses homens! (38)/ O papagaio Jacó [...] foi roubado num mulato coxo [...] (70)/ Querem-te roubar o ovo na sua mãe e você ri, não é? (134)/ [...] não tinha mesmo confiança com vavó [...] (49)/ [...] o coração [...] bateu mais com depressa e os olhos procuravam para ver bem [...] (49)/ Vamos, Beto! Com depressa! (150)/ [...] os grilos faziam acompanhamento nas rãs das cacimbas [...] (50)/ [...] as palavras da mãe queixando no pai quando, sete horas, estava voltar do serviço (126)/ [...] metia raiva em nga Zefa. (128)/ Por acaso tenho! e raiva no Jacó! (87)/ e então Xico [...] juntou no amigo e os dois começaram cantar [...] (135)/ [...] veio mesmo dar berrida no Beto [...] (135)/ [...] dar a notícia em vavó Bebeca [...] (135)/ [...] volto na semana, mas pense com a cabeça [...] (139)/ [...] vavó mais nga Bina vieram mesmo empurrar-lhe na rua [...] (141)/ [...]

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olhou no sítio onde que saía uma voz de mulher [...] (142)/ Chamou Xico, riu nas vizinhas [...] (152)/ Esse trabalho não estava igual de limpar o chão, era melhor. (61)/ É igual dos outros, João (96)/ [...] não lhe acusa assim à toa, no rapaz... (63)/ [...] e explicou a alcunha que estavam lhe chamar nos miúdos era o Kam’tuta [...] (63)/ [...] como é um caso começou, aonde começou, porquê, praquê, quem? (69)/ Nas pessoas, ele desculpava [...] (75)/ Não liga nas pessoas! (79)/ [...] quando prenderam no Lomelino era de noite, chegou passou logo maca com o Zuzé [...] (115) 36. A sorte ficou do lado dele, azar no lado de João [...] (37)/ Saiu, nas escondidas, [...] tentando esquivar nos olhos do velho (138)/ [...] nos monas, esquivava as pedradas; nos mais-velhos, falava eles tinham coração de jacaré [...] (75)

Uso dos tempos verbais. Ocorrências frequentes do pretérito mais-que-perfeito simples do indicativo e falta do infinitivo pessoal: 37. [...] como ainda essa manhã: Maneco tinha querido dar meia-sandes, voltara-lhe (23)/ Lembra depois os pensamentos, quase estivera a sonhar [...] (26)/ [...] pensou já falara tinha vindo a pé [...] (32)/ Só tinha lembrança do saco dos patos [...] nem chegara-lhes a ver (58)/ Tinha de ser mesmo o Garrido que lhe queixara, não podia ser outro ainda, para lhe agarrarem logo-logo, nem que chegara no Rangel [...] (59)/ Era ainda o seu amigo que estava lhe falar ali, nascia dentro do Kam’tuta com aquelas frases corajosas que sempre soubera [...] (100)/ e também Dosreis, seu amigo de mais muito tempo, [...] nem lhe ligara nem lhe defendera, só pôs umas palavras fracas [...] (106)/ [...] não tinha-lhe deixado ir por causa era aleijado (67)/ Mas o homem de confiança era o cap’verde Lomelino dos Reis por causa só ele que falava no Kabulu [...] (91)

Moldes sintáticos inusuais, elipse, manutenção ou introdução desnecessária da conjunção que (38), troca da posição das palavras ou construções pouco frequentes (39), anteposição do objeto ao sujeito (40): 38. Você pensa que eu não lhe conheço, enh? (18)/ [...] parecia as palavras punham-lhe mais força [...] (18)/ [...] nessa vez parece ele tinha razão [...] (22)/ [...] parece quer dar sua desculpa em alguém [...] (27)/ Diz ela não precisa ter vergonha ... (20)/ [...] dizia que homem não anda nas costas de outro homem (24)/ Mal que cheguei, nem esperou nem nada [...] (60)/ [...] esses são gostos vavó conhece mesmo, mas não aceita lembrar outra vez as palavras do neto saindo [...] (26)/ [...] pensou já falara tinha vindo a pé [...] (32)/ [...] parecia tinha ficado maluco [...] (35)/ [...] a verdade agora estava ver tudo com mais confiança [...] (37)/ [...] foi avisando o trabalho era pesado [...] (38)/ [...] mostravam vavó já sabia Delfina tinha-lhe posto aquela chapada na cara (49)/ [...] assim ninguém que ia falar depois a mais-velha tinha feito batota [...] (132)/ Juro não fiz de propósito... (133)/ Nga Emília fingia não estava ouvir [...] (139)/ Xico Futa quis falar era amigo do Lomelino e que sabia os casos [...] (114)/ [...] como é essa árvore ainda tinha coragem [...] (36)/ [...] nem percebeu mesmo como é saiu tão depressa [...] (35)/ [...] parece só ele mesmo é que fingia não estava perceber [...] (142)/ e estava-me gritar eu era filho de terrorista [...] (21)/ [...] o pacote ela tinha trazido da Baixa (23)/ Parece estas coisas é mandioca pequena, vou lhes cozer (23)/ Verdade a barriga está lhe doer (26)/ [...] dormia comigo sempre na cama, como é estava andar em confusões [...] (28)/ [...] mirava só os dentes do amigo [...] e nem que falava [...] (31)/ [...] tinha um céu muito azul, nem uma nuvem que se via [...] (33)/ Delfina continuava falar, sentia-se mesmo na voz dela era só para fazer raiva [...] (40)/ Nada que arranjei ainda, vavó (46)/ Entrou meia-noite e meia já passava, o saco tinha ficado no piquete, os patos lá dentro a mexerem, cuacavam, cadavez estavam perceber tinham-lhes salvado o pescoço. (55)/ Garrido, era um soco cada vez ele fazia isso (86)/ Era ainda porque pensava

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isso estava doer mas era na Inácia, fazerem-lhe pouco assim na frente dela (73)/ [...] toda manhã nada que dormiu, só pensando essas conversas para falar na Inácia [...] (75)/ Até ando a desconfiar ele vai ser é bufo [...] (98)/ [...] adiantou mostrar todos os sítios da cubata para verem nada ali que era roubado [...] (113)/ [...] via-se ela estava procurar ainda uma desculpa [...] (18) 39. É dezembro, calor muito [...] (23) e esse do jornal, já foste? Ainda. (32) Foi na hora das quatro horas (125) O mona na barriga anda reclamar ovo. Que é eu podia fazer, me digam só?! (131) [...] e a claridade pouca trazia sono com ela (59) [...] e o rapaz sempre aceita... (98). 40. [...] porque para falar bem-bem português não podia, o exame da terceira é que estava lhe tirar agora [...] (60)/ No Zeca Burro conhecia-lhe bem [...] (93).

Morfologia: reduplicação com função enfática, ex. longe-longe significa muito longe (41), locuções adverbiais ampliadas (42), variação pronominal e flexional tu/você na mesma oração (43), estilização do discurso religioso com recurso ao pronome vós (44), objeto e pronome possessivo pleonástico (45), modificação no padrão do grau do adjetivo (46), expressões temporais frequentativas inusuais (47), confusão no uso dos pronomes demonstrativos (48), uso de categorias gramaticais inesperadas no contexto dado (49), falta de concordância entre a forma do verbo e o objeto (50): 41. Depois, pouco-pouco, os pingos da chuva começaram a cair [...] (16)/ [...] a preocupação enchialhe pouco-pouco [...] (93)/ [...] muito tempo que tinha se passado desde a saída de nga Mília na casa dela, longe, longe (119). 42. [...] abanou a cabeça com devagar (18)/ Vavó levantou com depressa [...] (19). 43. [...] você, menino, não tens mas é vergonha? (18)/ O menino foste no branco sô Souto, foste? Te avisei ainda para ir lá, se você trabalha lá, [...]. Foste? (18)/ [...] dinheiro que você ganhaste foi na camisa [...] (19)/ Como é que o menino arranjaste? (19)/ Vavó me disseste para eu ir lá [...] (19)/ Você não lhe tiraste nada? (21)/ Você falaste que ias ainda ajudar o teu amigo [...] (33)/ Então, como você mesmo quer, te levo no Sebastião [...] (33)/ e você, rapaz, és fraco! (38)/ Então você me dá encontro e não dizes nada? (40)/ Você pensas eu sou da tua família, pensas? (44)/ [...] homem dela preso e você ainda quer pelejar! Não tens razão! (127)/ Você pensa eu não te conheço, Bina? Pensas? (128)/ O senhor, faz favor, ouve ainda estes casos e depois ponha sua opinião. (132)/ Vê ainda, sô Vitalino! A cubata é do senhor [...]. Mas sempre que as pessoas paga renda [...] pronto já! (141)/ Não, você ficas! (150)/ Você pensas podes abusar autoridade, pensas? (57)/ Você é bicho burro, vais ser enforcado (110). 44. Eu vos digo, senhora! (137)/ Vós tentais-me com a lisonja! E, como Jesus Cristo aos escribas, eu vos digo: não me tenteis! e peço-vos que me mostrem o ovo, como Ele pediu a moeda... (137)/ [...] tinha-lhe agarrado na capanga dele [...] (83) 45. ... me arreou-me não sei porquê então [...] (21)/ O rapaz trabalha, tem seu carro dele [...] (40)/ [...] chicote te apanhou-te! (48)/ [...] a galinha me nasceu-me doutra galinha [...] (145) 46. [...] mais pior que fogo... (46)/ [...] esses barulhos da vida lá fora faziam mais grande [...] (50)/ não aceitava falar um português de toda a gente, só queria falar o mais superior. (60)/ Um cigarro assim sabia bem, mais melhor que muitos [...] (62)

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47. [...] seu homem [...] saiu já dois quinze dias para negociar no mato [...] (24)/ [...] o sono estava vir tapar os corpos ajuntados três-três cada tábua da cama [...] (59) 48. [...] gozando a felicidade de pensar Delfina tinha passado ali (de acordo com o contexto devia ser ‘aqui’) (49)/ [...] mas era aí mesmo [...] que a rapariga trabalhava. Garrido Fernandes gostava de ir lá de tarde [...] (73) 49. [...] procurar ganhar coragem para falar o gostar que tinha, a vontade de dizer as coisas bonitas, ficava-lhes inventando de noite [...] (73)/ [...] Inácia queria lhe fazer má, mas, até xingando, era bom sentir-lhe (73)/ [...] o cheiro pesado de muita gente num sítio pouco [...] (61) 50. Nem Kam’tuta mesmo que sabia como é tinha-lhe saído essas palavras na garganta [...] (88)

Obviamente, as alterações que acabamos de analisar não são produzidas regularmente por todos os falantes. Existe um continuum poliletal que oscila entre um extremo próximo ao padrão europeu e outro basiletal, com traços linguísticos mais “angolanizados”. Nem todos os falantes partilham as mesmas regras gramaticais. Além disso, os desvios à norma europeia não têm carácter sistemático. Observamos divergências entre o discurso dos personagens e do narrador (por exemplo, uso mais frequente das formas do conjuntivo) que, muitas vezes, tenta não perder conexão com o português padrão criando uma mistura do português metropolitano com a oralidade praticada pelos personagens. A dita situação é exemplo da chamada diglossia interna. As pessoas operam com mais do que uma gramática, o que pode resultar em falta de coerência entre produções linguísticas espontâneas (Gonçalves, 2005: 237), contribuindo, no entanto, para a criação de um material linguístico rico e interessante.

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prolegómenos ao léxico filosófico português

Tomás N. Castro Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa123 Portugal Resumo: Esta comunicação procura descrever criticamente o panorama português no que toca à sua cultura de edição e de tradução, ensaiando linhas de orientação para o empreendimento de traduções de carácter filosófico, no contexto das línguas clássicas. A partir de noções como sentido, equivalência ou coerência, ou do problema do uso de instrumenta, esta discussão será exemplificada com a abordagem de certos elementos lexicais (idem e ipse; ὑπέρ; ἐπέκεινα; οἰκεῖος) e com propostas de soluções para estes problemas. Palavras-chave: estudos de tradução; tradução filosófica; lexicografia greco-latina

1. o panorama português Apresentar, numas jornadas de culturas lusófonas na República Checa, um ensaístico subsídio teórico ao problema do léxico filosófico em língua portuguesa levanta, à partida, um problema que se desenha numa perspetiva dúplice. Por um lado, a prolixa cultura de tradução na Europa Central e de Leste, onde se assinala um franco desenvolvimento e uma valorização do património das línguas nacionais. Numa situação diametralmente oposta a este cenário, encontramos as práticas portuguesas e as evidentes insuficiências que se registam na história da tradução em Portugal. Para que isto não pareça apenas uma provocação gratuita, basta recordar que só nos anos 2000 foi empreendida a primeira tradução integral de Homero a partir do grego (um opus magistral de Frederico Lourenço), ou que ainda decorre a única tradução das obras completas de 123 Endereço electrónico: [email protected].

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Aristóteles. A suma teológica de Tomás de Aquino nunca teve uma versão completa em Portugal, assim como a maioria dos autores antigos e medievais. A primeira tradução de Lucrécio aparecerá no mercado em 2015. O único dicionário grego antigo-português (europeu) que existe é manifestamente deficitário, continuando-se à espera de um projeto de escrita de uma obra competente que seja levado a bom termo. Nesta comunicação iremos abordar o estado da arte da prática de tradução das línguas clássicas, cuja importância na história da cultura ocidental fala por si, e com uma relevância notória na constituição de uma linguagem comum na filosofia e na história das ideias. Toda esta desolação tem explicações mais ou menos evidentes: o parco número de académicos com estudos de filologia clássica satisfatórios; a insuficiente valorização do substrato clássico da cultura europeia em Portugal, quiçá ainda com uma presença meramente paisagística; um mercado editorial no qual imperam as obras de grande divulgação ou bestsellers; a falta de políticas que permitam responder a todos estes problemas. Considerando o futuro próximo de 2014, a situação não só promete manter-se, como também agravar-se, tendo em conta o corte massivo nos financiamentos da ciência portuguesa que foi anunciado para os próximos anos – aliás, esta mesma comunicação seria materialmente inviável se fosse proferida em 2015. Contudo, não querendo adotar uma posição pessimista, gostaríamos de ensaiar um conjunto de reflexões, mormente teóricas, versando orientações e problemas para trabalhos, esperando que, no futuro, se venham a desenvolver.

2. considerandos teóricos É célebre a tensão que, desde Platão até aos nossos dias, tem pautado a ardilosa relação entre filosofia e literatura, e que percorreu as suas histórias respetivas. No entanto, poucos filósofos contemporâneos conseguiram aliar a clareza e distinção do pensamento a um simultâneo domínio da expressão literária, como aconteceu com o filósofo da Academia ou com (o já aludido) Lucrécio, para não falar de tantos outros autores da Antiguidade, à qual, nos dias que correm, chamamos “clássica”. Ainda hoje parece não ter sido satisfatoriamente superado o dilema entre espírito e letra que todos os tradutores sofrem, ossos do ofício especialmente sentidos quando se trata da tradução de textos de natureza filosófica. Por exemplo, se o estudante de retórica identificará prontamente uma sinonímia quando se confrontar com três vocábulos com um (aparente) mesmo referente, e por isso traduzirá conservando as subtilezas próprias do estilo e a devida correção gramatical, como mandam os manuais de figuras retóricas, logo o estudante de filosofia colocará hipóteses: (i) ou estará perante três conceitos diferentes, os quais requerem uma precisão maior na tradução e correspondentes diferentes na língua de chegada; (ii) ou serão estes diferentes vocábulos um único conceito, devendo ser traduzidos pela mesma palavra, perdendo o estilo do texto mas conservando o seu rigor especulativo. Seja como for, idilicamente pede-se um tradutor versado tanto no domínio do corpus

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filosófico, como no idioma que se encontra a verter, ou seja, alguém que experienciará este impasse até às suas últimas consequências. I. O antagonismo previamente desenhado é, portanto, a conciliação das respetivas teorias linguísticas e lexicográficas a adotar. No que diz respeito à utilização das línguas de partida e de chegada, cabe apurar qual a herança a valorizar. No caso dos textos greco-latinos, a serem vertidos para português, poderá o tradutor optar por privilegiar a presença habitualmente esquecida destas línguas clássicas que ainda se descobre no idioma, ou então procurar utilizar a língua de chegada de um modo que dê conta da sua versatilidade e plasticidade. Poderíamos classificar a primeira posição como sendo eminentemente classicizante, presença assídua nas tradições dos países de línguas românicas, sempre que há utilizadores destes mesmos idiomas suficientemente cultos em filologia para poderem tomar consciência do legado linguístico e transpô-lo. A segunda tendência é frequente no contexto dos idiomas germânicos, quando não é possível verter os vocábulos com uma certa literalidade, levando à procura de correspondentes que veiculem o sentido interpretado e que, ao mesmo tempo, sejam perfeitamente inteligíveis no contexto dos idiomas nacionais, como advogaram autores como F. Schleiermacher. Esta questão levanta um outro problema, que facilmente se adivinha. Tendo de optar, o que devemos privilegiar: o sentido ou a literalidade? A primeira opção ameaça traduções excessivamente criativas e o risco de serem simplesmente literárias, enquanto a segunda oferece um texto árido e pouco inteligível, até mesmo para um nativo – neste momento, parece vigorar esta última tendência no panorama internacional, depois de célebres traduções que foram instrumentalizadas em favor de diversas ideologias, em nome de um alegado “sentido originário”. A noção de tradução filosófica distancia-se, assim, de todas as outras práticas e estratégias tradutológicas, consequência da inescapável querela hermenêutica que pauta o exercício filosófico – a própria filosofia da linguagem que se dá na linguagem da filosofia. A qualquer teoria linguístico-lexicográfica opõe-se a própria possibilidade de uma linguagem qua exercício de expressão do pensamento – basta pensar em célebres filósofos, como muitos dos pré-socráticos, ou Sócrates e tantos outros, que rejeitaram expor as suas posições através da escrita, em favor da expressão oral. II. O conceito que aqui emerge com particular proeminência é, na nossa opinião, o de equivalência. Por isto não queremos significar uma relação de igualdade numérica, muito menos de mesmidade – pelo contrário, visamos uma utópica adequação (os escolásticos diriam uma relação de adæquatio), nos seus sentidos linguístico e metalinguístico. Num primeiro momento, a identificação, por parte do leitor, da codificação em causa; depois, as suas possíveis descodificações; finalmente, a recodificação na língua de chegada. A possibilidade de equivalência varia: nula; parcial ou equívoca; total ou completa – por exemplo, para uma e mesma palavra: gr. ἀνθολογία > pt. antologia; lat. florilegium > pt. florilégio; gr. ἀνθολογία =

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lat. florilegium; pt. antologia = pt. florilégio (vd. infra nota 124). Além do acesso direto a equivalentes, há ainda que considerar, no decorrer destas orientações, os contextos e registos de fala em que ocorre um vocábulo, as diferentes denotações e conotações que pode ter, a extensão e as possibilidades mesmas da compreensão. A equivalência é, pois, intrinsecamente imperfeita, condicionada pelas características e idiossincrasias das línguas e das suas palavras. Espelho disto são os diferentes sistemas verbais – nomeadamente características como a possível existência de aspetos, tempos e composições participiais –, expressões idiomáticas, ou problemas cuja tipologia tem consequências muito mais graves. Estamos a pensar sobretudo na problemática da descrição, circunscrição e definição de conceitos: a verdade é que depressa se constata que cada língua é o pináculo de uma mundividência (ou cosmovisão?) – e se, na língua de chegada, não temos um código de humor semelhante, ou um campo lexical tão vasto para certos aspetos do real, estaremos condenados a empreender um conjunto de substituições (por equivalentes apenas aplicáveis no nosso contexto) ou de paráfrases (que descrevam sucintamente o intraduzível). Como traduzir “it’s raining cats and dogs”, “piove a catinelle” ou “il pleut des cordes”, senão por “chove a cântaros”?! III. Acresce ao problema da equivalência a questão ainda mais aguda da coerência. Como já expusemos, nem sempre ao tradutor com maior sensibilidade filosófica se afigura possível a conservação de uma estrita precisão gramatical que acompanhe as desejadas literalidade e fidelidade textuais. Mais inquietante se torna quando os próprios autores e a tradição evidenciam inconsistências. Não é caso raro assistir-se a evoluções nas posições de um pensador, patentes na construção e nos usos linguísticos, quando percorremos o conjunto das suas obras. Frequentemente, a mesma palavra regista aceções diferentes em obras de juventude e em obras de maturidade, quando não acontece que este tipo de hesitações se constata numa mesma obra – por exemplo, quando consideramos a Metafísica de Aristóteles, um caso agudo de scholarship, obra que, em rigor, não é uma só obra, nem apenas um produto directo da pena do Estagirita. Como se isto não fosse já problemático, soma-se ainda a “traição” levada a cabo pela tradição textual e interpretativa. Será o νοῦς dos gregos o intellectus latino, ou antes pensamento? O mesmo poder-se-ia dizer de λόγος e verbum, ou de οὐσία e substantia. De repente, instrumenta fundamentais – como sejam dicionários, léxicos, concordâncias e glossários – tornam-se suspeitos e pouco úteis, à medida que a incessante procura pelo rigor na terminologia filosófica semeia a dúvida. Não é exagero dizer que cada dicionário ou léxico é fruto de uma ideologia particular. Defendemos que a utilização destes recursos deve depender da satisfação de duas condições: (i) um cuidado etimológico na abordagem dos lemmata, assim como uma descrição (fenomenológica) das suas diferentes semânticas, aceções e ocorrências; (ii) oferecer uma abordagem heterogénea nos verbetes, que potencie a procura e a descoberta de consensos e possibilidades que sejam passíveis de garantir uma possível coerência no produto final. Que-

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remos com isto dizer que a prioridade do tradutor filosófico deve ser a procura de uma fidelidade – intelectual (fruto de uma interpretação conscienciosa e irredutivelmente pessoal) e gramatical –, manifesta na letra, mas sobretudo na preservação do espírito da obra, tanto quanto possível. Com isto aceita-se que cada produto desta orientação seja único e discutível, um alvo passível de duras críticas. Cremos, contudo, que é preferível constituir-se uma disparidade entre diferentes traduções, fruto de leituras diversas às quais as obras se prestam, ao invés de uma correcção artificial – só o original é “fiel”. Compreende-se que a tradução procure uma certa literalidade, que conserve aparentes semelhanças com o original. O acesso à fonte não só nunca deve ser condicionado, pelo contrário, deve ser incentivado. Uma confusão destes dois movimentos é aquilo a que chamaríamos de uma falácia ou “tentação bilingue” – a tradução deve assumir a sua natureza, mas nunca pretender substituir a sua fonte. Uma mesma obra tem diferentes tipos de utilizadores: há um público leigo (ou de divulgação), assim como também há um público mais ou menos erudito. O primeiro é constituído, grosso modo, pelos utilizadores de traduções enquanto meio de acesso primário à obra, tomando o produto da tradução como tendo o valor do próprio “original”. No lado oposto, encontram-se os leitores com competência para fazer uma leitura no idioma primitivo, para os quais as diferentes traduções são objecto de confronto com os resultados que eles próprios obtiveram, sobretudo instrumentos interpretativos. Parece-nos contraproducente e de pouca utilidade empreender traduções excessivamente próximas da língua de origem, uma vez que, para um acesso a todo o momento às fontes, existe a possibilidade de levar a cabo uma edição bilingue. Esta agradaria a gregos e a troianos, edição essa cuja bi-funcionalidade auxiliasse e legitimasse a própria tradução apresentada, e onde, lado a lado, se oferecesse o original, que é sempre – e para quem disso se possa aperceber – um questionamento, às claras, das opções do tradutor. Uma orientação de edição bilingue que é, ao fim e ao cabo, uma tradição pontual e ainda desconhecida da cultura editorial em Portugal.

3. por alguns elementos lexicais Até agora temos vindo a falar de casos de tradução tout court. Uma questão que também é pertinente prende-se com a possibilidade de expressar um pensamento através do seu desdobramento numa sua tradução em outros idiomas. Face às insuficiências de uma língua, justifica-se recorrer a outra? Paul Ricœur, quando decide abordar um ponto decisivo da sua filosofia, como é o problema da identidade pessoal, apercebe-se de um problema hermenêutico decisivo na compreensão deste conceito. Acontece que o termo genérico identidade regista, na linguagem quotidiana, duas aceções fortes: (i) identidade enquanto mesmidade; (ii) identidade entendida como um virar-se para o ipse. Pela primeira, entende aquilo a que nos referimos quando consideramos a permanência substancial num decurso temporal, no qual o “mesmo” acaba por se reduzir

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a uma entidade abstracta e impessoal; pelo segundo significado, Ricœur pretende relevar o sentimento de si, a experiência pessoal do próprio, uma dimensão do indivíduo que o apresenta como um outro ao si-mesmo. Ora, embora possam coincidir, “a ipseidade, diria eu, não é a mesmidade”, como afirmará Ricœur (1988: 296). Estas noções simples tornam-se muito mais claras se as tentarmos traduzir para outras línguas. Esta *ipseidade, como facilmente se adivinha, vem do latino ipse, que em francês se diz soi (en. self; de. selbst), e que não tem nenhum equivalente disponível em português; por mesmidade o autor francês referia-se ao derivado do fr. même (pt. mesmo; en. same; de. gleich), ou seja, aparentado do latino idem. Conceptualmente, esta dupla aceção é facilmente compreensível, embora não haja equivalentes evidentes em nenhuma língua. Ou se opta por manter a ambiguidade que a palavra “identidade” comporta ou se parafraseia a cada ocorrência, o que resultaria num conjunto de redundâncias que tornariam o texto obsoleto. A nossa proposta, a partir deste caso de estudo, é que, sempre que seja necessário efectuar uma desambiguação, apenas e só no âmbito da discussão de especialidade de conceitos fulcrais, se recorra aos étimos latinos (ou de outras línguas) para escalpelizar aquilo acerca do qual estamos a falar quando utilizamos uma palavra, como seja identidade: se de uma *idemtidade (identidade como idem), se de uma ipseidade (identidade enquanto ipse). A língua portuguesa oferece uma plasticidade suficiente para que se possam introduzir neologismos técnicos como estes, muito embora os mesmos tenham a desvantagem de requerer um conhecimento prévio da língua-mãe para poder descortinar o seu sentido pleno. Caso semelhante é o que se segue.

3.2. ΥπΕρ Uma questão fundamental no âmbito da tradução de lexemas com relevância filosófica é a frequente transposição da composição na formação de palavras. Prática recorrente nos autores de expressão helénica, regista-se o recurso à prefixação e à sufixação para a alteração de âmbitos e aceções dos sentidos primeiros dos vocábulos. Um dos casos onde esta questão é expressiva pode encontrar-se na utilização do vocábulo grego ὑπέρ, sobretudo na tradição do chamado neoplatonismo médio-tardio e da sua receção na síntese filosófica ensaiada pela patrística cristã. A filosofia de autores como Pseudo-Dionísio Areopagita recorre com abundância a esta preposição – quer sob a forma de prefixo nominal, quer em ocorrências verbais – na tentativa de apontar para o inefável, neste caso identificado com Deus, intraduzível e inatingível. A busca desta superação ficará consagrada no método “apofático” que, como o nome deixa transparecer, visa as objecções cognoscitivas que se seguem do próprio uso da linguagem. Os considerandos que justificam estas teses filosóficas prendem-se com o próprio desvelar da carga denotativa e conotativa deste elemento gramatical. De facto, num autor anterior a este contexto neoplatónico (aliás, um dos seus eixos) como seja Platão, depressa se encontram definições que apontam para transposição, excesso, superiori-

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dade, ultrapassagem ou enormidade, disseminadas pelos diversos verbetes compósitos da família desta semântica (cf. des Places, 2003: 520–521). A procura de um equivalente em língua portuguesa poderá sentir-se tentada a fazer uma mediação por via latina. As possibilidades que o idioma do Lácio nos oferece são, prima facie, super e supra, o que obrigaria a desambiguar uma tensão que o vocábulo grego comporta: em cada ocorrência seria necessário diferenciar as diferentes aceções da superação, excesso ou mesmo superlatividade do Primeiro Princípio, de acordo com os caracteres (i) intensivo ou (ii) locativo que este registasse (vd. Xavier, 2006). Segundo o princípio do tradutor-intérprete já advogado, esta seria uma prática a autorizar, até porque há uma grande tradição latina do corpus dionysiacum, surpreendente num tempo em que a prática de tradução não era abundante. Uma outra hipótese seria recorrer ao latino ultra (cf. infra 3.3.), o qual se afigura como o equivalente mais rigoroso, uma vez que também nele se encontra presente a tensão dos dois sentidos já enunciados. Traduções mais livres ou paráfrases poderiam propor “mais do que”, “acima de” ou “para lá de”. No entanto, a nosso ver, há ainda uma outra opção de tradução, ainda que mais arriscada (vd. Castro, 2014: 42–49). Trata-se de recorrer à herança grega que, embora um pouco esquecida pelos séculos, existe na língua de Camões. “Hiper” é um prefixo que surpreendentemente se encontra em palavras corriqueiras como “hipermercado” ou “hipertensão”. Mais, nos autores gregos em que encontramos uma proliferação deste elemento, nem um nativo do idioma helénico consideraria este uso pleonástico no campo do ordinário ou expectável, visto que uma repetição tal causa um estranhamento e desconforto estilístico. Assim sendo, propomos que, em casos como os de Proclo ou Pseudo-Dionísio Areopagita, se verta literalmente, espelhando um sentido que não é desconhecido do leitor, mas que lhe causa o ambicionado estranhamento – como acontece quando forjamos *hiperbeleza, *hiperessencialidade ou *hiperbondade124. Tal como pensamos que estes autores o desejavam, os nativos compreendem e, ao mesmo tempo, são surpreendidos. Ao invés do caso do estudo anterior, onde a interpretação filosófica procurava desdobrar algo que estava inicialmente oculto, aqui o próprio exercício hermenêutico clama a necessidade de se esconder e conservar as tensões que se lêem no original.

3.3. ΕπΕκεινα Este advérbio do grego clássico comporta uma grande carga filosófica, sobretudo depois de uma passagem célebre da República, onde Platão discute os problemas de um objecto 124 A bem da coerência dos critérios, parece-nos necessário fazer uma nota sobre as prioridades do tradutor. Como se tem visto, em certos casos é possível escolher qual a língua (clássica) a privilegiar. Partindo de um caso já aludido, encontrando florilegium no original, o tradutor pode optar por uma transposição praticamente literal, adotando um equivalente com pouco uso na língua portuguesa quotidiana (florilégio), ou efetuar uma mediação por via grega (ἀνθολογία), aceitando um uso já consagrado (antologia). O mesmo se diga da opção por ultra ou por hiper, cuja única diferença é a sensibilidade do tradutor no momento e contextos da escolha.

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que esteja para lá do ser125. Regida por genitivo, como neste caso, a ocorrência significa habitualmente uma transposição espacial, seguindo-se-lhe a ilação de uma metáfora apontando para o absolutamente inatingível, algo completamente inacessível. Substantivado, por meio de um artigo, τὸ ou τὰ ἐπέκεινα visam os loci, partes ou lugares suficientemente afastados ou remotos. Com menos frequência, e em contextos que já não nos interessam tanto, pode também ter uma aceção temporal, quer passada, quer futura. No grego tardio, e depois na patrística cristã, o sentido de algo que se encontra acima ou para lá daquilo ao qual se pode chegar é sublinhado – isto explica-se facilmente com a necessidade de os autores cristãos tratarem a distância entre Deus e os homens, sinal de um modelo de relacionalidade diferente dos modelos dos cultos greco-latinos, onde a proximidade e a inteligibilidade dos deuses se davam segundo moldes menos rígidos. Isto é dizer que autores como Clemente, Dídimo, Eusébio ou Gregório de Nissa, a partir das suas leituras da tradição (neo)platónica, recorrerão a este recurso para enfatizar a transcendência do seu Deus. No seguimento do que foi afirmado no ponto anterior, um composto com ultra seria perfeitamente justificável, apoiado não só por uma tradição de tradução latina (vd. s.v. Fontanier, 2012), como por uma significação forte que não se perde. No caso de não se considerar pertinente uma solução que comporte alguma erudição, como esta última, diríamos, em português, que o objecto visado está *para-lá de toda a nossa compreensão e possibilidade de cognoscibilidade. Talvez se justifique – quando as ocorrências forem próximas e se o recurso linguístico para o mesmo conceito for sempre este advérbio grego – hifenizar ou colocar em itálico esta tradução de origem forjada, de modo a revelar que o artifício empregue é sempre o mesmo: neste caso, uma significação inicial de espácio-temporalidade, cujo sentido de eminência e excelência (desta transcendência, muitas vezes fontal) foi acrescentado posteriormente.

3.4. οiκεiος Uma questão cara aos sistemas antigos – e que para nós se constitui como uma barreira dificilmente transponível – é um característico sentido de ordem que organiza o real, em todas as suas manifestações. Assim, quer homens, quer deuses, todos são compreendidos de acordo com um sistema, condição última de inteligibilidade. Uma destas manifestações encontra-se na percepção de aquilo que é “próprio” ou “conforme” à natureza ou ao lugar de cada um. Com este sentido, encontramos a palavra οἰκεῖος, utilizada tanto como adjectivo, quanto como substantivo. Como facilmente se pode perceber, a origem desta noção vem de οἶκος – cujos vestígios ainda podemos descortinar em palavras como economia –, que verteríamos por “casa”, “lar” ou “lugar familiar”, uma aceção próxima do francês “chez” ou do inglês “house”. A palavra comporta também um sentido de propriedade – pessoal e familiar, ou vida privada – que se estende a assuntos, bens ou património desta natureza. 125 “[...] ἀλλ’ ἔτι ἐπέκεινα τῆς οὐσίας πρεσβείᾳ καὶ δυνάμει ὑπερέχοντος.” Pl. Resp. 509 b 8–9 Slings.

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É a partir desta perspectiva de intimidade e situação de um sujeito que, posteriormente, se regista a ampliação do âmbito lexical da palavra. Por meio da extensão descrita, chegamos finalmente à significação mais filosófica desta palavra, que chega a sentir a necessidade de um advérbio de modo como seja οἰκείως para caracterizar a ocorrência no espácio-temporal, no sendo, na aperceção da essência de cada qual. Como consagrará uma célebre fórmula dos autores neoplatónicos, “οἰκείως ἑκάστῳ”, isto é, “a cada qual no seu lugar próprio”. Este lugar próprio é o ponto no cosmos, o degrau na escada hierárquica onde se situa cada ser, uma posição determinada num todo (que é completamente abrangente), onde qualquer e cada um intelige em conformidade com a sua constituição onto-noética. Aquilo que faz o particular (ser aquilo que é) é, essencialmente, este seu encerramento e circunscrição nos limites deste aqui visado lugar próprio. A nossa proposta de tradução, como foi sendo antecipado, passa por valorizar a ideia de lugar, ensaiando uma paráfrase que veicule simultaneamente a propriedade e a situação de cada ser. Tudo aquilo que aqui foi ensaiado nasce de uma experiência de contacto e diálogo permanente com as fontes que, em última análise, se querem disponibilizar. Discutir a problemática da tradução – neste caso, aliada à expressão de pensamentos filosóficos – só faz sentido quando parte do empírico, e para ele quer sempre tornar. Em detrimento de discussões áridas sobre teorias do sentido, o tradutor procura dar sentido à excelência da teoria.

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126 N. B. – Esta bibliografia não pretende ser um estudo exaustivo desta problemática, mas antes um roteiro de obras que consideramos de particular utilidade para o desenvolvimento de posteriores estudos.

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perífrases verbais de incoatividade. estudo contrastivo português-polaco

Joanna Drzazgowska Universidade de Gdańsk Polónia Resumo: O objetivo do artigo é apresentar as perífrases aspetuais de incoatividade no português europeu (PE) e as possibilidades da sua tradução para o polaco. Palavras-chave: perífrase; incoatividade; estudo contrastivo português-polaco O objetivo do presente artigo é o de analisar as perífrases verbais que exprimem o valor aspetual incoativo no PE. Simultaneamente, a nossa intenção é apresentar os problemas que surgem na hora de traduzir as construções perifrásticas mencionadas para polaco e mostrar as estratégias que são utilizadas (ou podem ser utilizadas) pelos tradutores. Contudo, o nosso estudo não tem carácter exaustivo, são, de facto, algumas observações acerca da problemática em causa que precisam de ser aprofundadas. Antes de passarmos à nossa análise, parece-nos imprescindível apresentar o quadro teórico, ou seja, as definições mais importantes que serviram de referência à nossa pesquisa. Assumimos que a construção perifrástica é formada por um verbo auxiliar127 (chamado também verbo morfemático, verbo de ligação ou verbo copulativo) que está ligado a uma forma nominal do verbo principal (também designado verbo nocional ou auxiliado). A incidência do verbo auxiliar é direta (por exemplo: vamos indo) ou indireta, quer dizer, por meio de um conetivo, ou seja, uma preposição (por exemplo: comecei a trabalhar). No entanto, este critério formal parece insuficiente quando tentamos classificar uma construção como perífrase verbal. É preciso sublinharmos que a perífra-

127 Temos que sublinhar que o fenómeno da auxiliação se limita somente a um certo números de verbos, ou seja, nem todos os verbos têm a tendência para se transformarem em auxiliares.

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se verbal se opõe a uma simples sequência verbal e, por consequência, nem todas as conjunções de duas formas verbais podem ser consideradas construções perifrásticas. Como se pode verificar no caso do sintagma trabalha cantando, não basta a reunião de duas formas verbais para falar de uma perífrase. Esta construção pode equivaler a canta enquanto trabalha. Por outro lado, quando analisamos a construção anda a trabalhar, podemos observar que não significa anda e trabalha e que, realmente, constitui uma perífrase. Portanto, o valor, ou seja, o significado das perífrases não deriva da soma dos significados das duas partes constituintes, mas, antes, da conjunção dos dois, considerados globalmente. O facto de o auxiliar assumir sempre os morfemas de tempo, modo, pessoa e número do outro verbo, tem uma contribuição mais morfemática128. A contribuição do auxiliado é fundamentalmente semântica. Portanto, a perífrase deve ser encarada no seu conjunto, porque só no conjunto estão as manifestações morfo-semânticas completas. O valor global da perífrase é sempre a combinação de valores dos seus dois constituintes, então, o auxiliar e o auxiliado devem ser analisados como um conjunto. Visto que as perífrases incoativas são perífrases aspetuais, achamos necessário apresentar a definição de aspeto que é fundamental para o nosso trabalho. Segundo Bernard Comrie (1976: 3), o aspeto é different ways of viewing the internal temporal constituency of a situation129. O linguista refere depois que aspect is not concerned with relating the time of the situation to any other timepoint, but rather with the internal constituency of the one situation; one could state the difference as one between situation – internal time (aspect) and the situation – external time (tense) (Comrie, op. cit.: 5).

Portanto, podemos constatar que o aspeto é uma categoria gramatical do verbo que permite abordar de maneiras diferentes a constituição temporal interna da situação analisada, ou seja, o tempo localiza a situação no tempo exterior e o aspeto especifica a estrutura temporal interna da situação analisada. O valor aspetual incoativo (chamado também ingressivo) é um dos valores aspetuais pontuais130 que marca a passagem de um dado estado para outro estado131. Vale a pena apontar que o valor incoativo difere do valor aspetual inceptivo que, por seu turno, marca um estado de coisas localizado num dado intervalo de tempo que é diferente do que ocorreu no intervalo de tempo anterior adjacente, e é apresentado como começando a ocorrer nesse intervalo de tempo132. No entanto, existem autores que não

128 Visto que alguns dos auxiliares incoativos (deitar, desatar, entrar, lançar, rebentar, romper) são sinónimos de começar/iniciar/dar começo a (Dicionário da língua portuguesa, 2009), na nossa análise, supomos que o auxiliar nem sempre perde, ou nem sempre perde do mesmo modo, o seu significado. 129 Comrie (1976: 3). 130 A situação pontual, ao contrário da durativa que se prolonga no tempo, é instantânea. As situações pontuais representam uma mudança de ou uma transição sofrida por uma mudança de situação. As situações durativas devido ao seu traço /+durativo/ descrevem a continuidade dum acontecimento descrito ou a repetição deste acontecimento num dado intervalo de tempo. 131 Dicionário de termos linguísticos, vol. II, p. 55. 132 Ibidem.

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fazem distinção entre a inceptividade e a incoatividade. João de Almeida (1980: 42) só distingue a inceptividade que parte do próprio auxiliar (começar, principiar, recomeçar) e a inceptividade que parte do conjunto auxiliar + preposição + infinitivo (entrar, sair, passar, pôr-se, meter-se, correr, desatar, romper, desandar, pegar, deitar + infinitivo). O termo incoativo aparece na hora de o autor analisar o valor inceptivo, como um subtipo deste. Entre as perífrases verbais de incoatividade, podemos enumerar: atirar-se a, deitar a, desatar a, disparar a, entrar a, lançar a, largar a, meter-se a, passar a, pôr-se a, rebentar a, romper a + infinitivo. Todas essas perífrases pressupõem a não existência anterior da situação descrita pelo verbo principal e uma implicação positiva da mesma situação. Vejamos, em primeiro lugar, as referências relativas às perífrases mencionadas e aos valores que podem exprimir. Devido ao grande número de perífrases incoativas, queremos verificar se, segundo alguns dicionários e prontuários de regime preposicional da língua portuguesa, as perífrases diferem entre si e se existem nuances entre os valores expressos por elas. Segundo Guia prático de verbos com preposições (1998), as perífrases deitar a, desatar a, pôr-se a + infinitivo são equivalentes à perífrase começar a + infinitivo. Na mesma fonte, verificámos que meter-se a equivale a iniciar uma ação. Dicionário Lello Popular (1996), por seu turno, apresenta os auxiliares incoativos com determinados verbos principais e aponta que estas construções indicam início de uma ação: deitar a correr, romper a andar, romper a chorar. No entanto, algumas fontes sublinham o carácter específico do começo da ação expressa pelas perífrases incoativas: 1. ação que começa de repente (desatar a – Dicionário Porto Editora (2009) e Prontuário de verbos com preposições (2008); disparar a – Dicionário Porto Editora, (2009)) 2. ação que começa com ímpeto (desatar a – Dicionário de língua portuguesa (1999)) 3. ação que começa finalmente (passar a  – Guia prático de verbos com preposições (1998)) 4. ação que começa inesperadamente (desatar a – Dicionário Lello popular (1996)) Em Dicionário estrutural estilístico e sintáctico da língua portuguesa (s.d.), como uma das entradas, aparece entrar a matar com a explicação de que a ação começa com ímpeto, muita força, rapidez. A mesma fonte apresenta desatar a rir e explica que a perífrase mencionada significa rir às gargalhadas. Segundo Dicionário de língua portuguesa (1999), é a construção rebentar a rir que significa rir às gargalhadas, rir sem se poder conter. Em muitas fontes, os autores apresentam os sinónimos de algumas construções perifrásticas de incoatividade: 1. atirar-se a como sinónimo de lançar-se a (Dicionário Lello popular (1996); Dicionário de língua portuguesa (1999); Vocabulário – regime preposicional de verbos (1999); Dicionário Porto Editora (2009))

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2. deitar a como sinónimo de atirar-se a, lançar-se a (Prontuário de verbos com preposições (2008); sinónimo de lançar-se a (Vocabulário – regime preposicional de verbos (1999)); deitar a correr como sinónimo de pôr-se a correr (Dicionário estrutural estilístico e sintáctico da língua portuguesa (s.d.)) 3. desatar a como sinónimo de deitar-se a (Prontuário de verbos com preposições (2008)); desatar a correr como sinónimo de largar a correr (Dicionário estrutural estilístico e sintáctico da língua portuguesa (s.d.)); desatar a rir como sinónimo de romper a rir (ibidem) 4. meter-se a como sinónimo de pôr-se a (Guia prático de verbos com preposições (1998)) 5. pôr-se a chorar como sinónimo de desatar a chorar; pôs-se a correr como sinónimo de desatar a correr; pôr-se a gritar como sinónimo de desatar a gritar (Dicionário estrutural estilístico e sintáctico da língua portuguesa (s.d.)) Devido ao facto de a construção pôr-se a + infinitivo ser bastante frequente na língua portuguesa, queríamos fazer uma referência especial a esta construção. Na análise do infinitivo pôr, alguns dicionários apresentam pôr-se a andar com significado de ir-se embora (Dicionário Porto Editora /2009/; Dicionário de língua portuguesa /1999/). No entanto, conforme Dicionário estrutural estilístico e sintáctico da língua portuguesa (s.d.), pôr-se a andar tem sentido diferente, ou seja, equivale a safar-se, retirar-se. O mesmo dicionário apresenta também diferentes combinações do auxiliar pôr com vários verbos principais e explica o seu valor, por exemplo: pôr-se a admirar – ficar a admirar; pôr-se a conversar – começar a conversar, a falar uns com os outros; pôr-se a dizer – começar a dizer, dizer a uns e outros, a quem quiser ouvir. Como verificámos, em muitos casos, o valor das perífrase de incoatividade não difere do valor expresso pela perífrase começar + infinitivo. Desta forma, segundo vários dicionários, as perífrases incoativas são sinónimos da perífrase que exprime o valor inceptivo. No entanto, algumas fontes indicam o começo específico da ação expressa pelo verbo principal. De igual modo, é preciso notarmos que algumas perífrases incoativas são consideradas construções sinonímicas de outras perífrases de incoatividade. Passemos agora à análise detalhada de diferentes perífrases de incoatividade na língua portuguesa tomando em conta a classe semântica do predicado verbal, quer dizer, do verbo principal. A classificação de predicados verbais apresentada por Zeno Vendler (1967) é ponto de referência de muitos trabalhos. O linguista distinguiu quatro classes aspetuais: states (estados), activities (atividades), accomplishments (eventos prolongados) e achievements (eventos instantâneos). Tendo em consideração três traços semânticos, que são inerentes aos predicados, tais como: (+/− estativo), (+/− durativo), (+/− télico) podemos fazer a seguinte caracterização das categorias de Vendler: estados (+ estativo), (+ durativo), (− télico); atividades (− estativo), (+ durativo), (− télico); eventos prolongados (− estativo), (+ durativo), (+ télico); eventos instantâneos (− estativo), (− durativo)133.

133 O traço (+/– télico) não pode ser aplicado às situações não durativas.

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Vamos, agora, verificar as possibilidades combinatórias dos verbos auxiliares com diferentes tipos de predicado verbal. O nosso corpus de análise é formado por textos literários portugueses da segunda metade do século XIX e do século XX. Em primeiro lugar, vejamos os exemplos:   1. (...) e como o poderia saber, um homem que se respeite não se vai pôr a falar de assuntos íntimos à primeira pessoa que lhe apareça... (JSE: 92).   2. (...) Baltasar gritou (...), abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar... (JSM: 138).   3. Lá ao fundo um canário rompera a cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha (EQMII: 5).   4. A formiga parou, tenteou com as antenas o estorvo (...), examinou-o de todos os lados, depois (...) deu-lhe para desprezar o alimento e deitou a fugir (JDP: 140).   5. O cónego largou a rir, com gosto (EQC: 289).   6. Ai, se pegas a contar histórias, não chegas a casa à meia-noite (JDP: 191).   7. e é para rebentar a rir (EQMII: 98).   8. Eu aposto – berrava um político – que, se os aliados se meteram a dar o assunto a Sebastopol, não fica um só vivo (JDF: 40).   9. Estava-se mesmo a ver, a grande esperteza, como têm menos gente convinha-lhes, passavam a comer mais do que nós, que temos a camarata completa (JSE: 103). 10. Baltasar pôs-se a olhar para Manuel insistentemente... (JSM: 180). 11. No meio de um estreito e alargado caminho, que seguia tortuosamente por entre dois campos de centeio, parou e entrou a reflectir (JDP: 15). 12. Para benefício destes é que o Rádio Clube Português passou a ter, desde há dias, uma locutora espanhola... (JSA: 379). 13. Joaquim Taranta pusera-se a limpar o suor do animal, não lhe desse alguma pneumonia, e ficara logo a perceber que havia naquilo negócios de saias (ARBC: 114). 14. Sim, pelos modos que... agora neste instante passou ele a correr para o lado dos açudes (JDP: 15). 15. Quando a epidemia terminou, já iam rareando os casos mortais e de repente passara-se a morrer doutra coisa, havia, bem contados, duas mil vontades nos frascos (JSM: 129). Como mostraram os exemplos acima, os auxiliares incoativos combinam-se facilmente com as atividades (1)–(9). A ocorrência com os estados (10)–(12) e com os eventos prolongados (13) e (14) é menos comum. Quanto à combinação com os eventos instantâneos, verificámos somente uma ocorrência. Devido ao facto de os eventos instantâneos se caracterizarem pelo tempo inerente de curta duração, quase nunca se pode distinguir nem a fase inicial nem a fase terminal. Contudo, o exemplo (15) mostra que essa combinação é possível, só que a classe do predicado verbal pode influenciar o valor da perífrase. Neste caso, estamos perante uma série de acontecimentos que se desenvolvem sucessivamente. Portanto, trata-se do valor iterativo e não do valor incoativo da construção – passara-se a morrer significa que várias pessoas passaram a morrer.

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Embora o nosso estudo não tenha tido carácter estatístico, observámos que a frequência de ocorrência de várias perífrases de incoatividade é bem diferente. Pôr-se a e passar a + infinitivo têm a maior frequência e, por contraste, o uso de entrar a, atirar-se a, largar a, lançar a + infinitivo mostra-se bastante reduzido. Contudo, não se estranha que algumas perífrases verbais sejam mais representativas no uso da língua do que outras – o uso de certas perífrases incoativas depende do estilo próprio do escritor. Na nossa análise, tentámos verificar se as perífrases de incoatividade mostram algumas diferenças. No caso da perífrase passar a + infinitivo, é possível observar a noção de mudança de atitude e de transformação134. Desatar a e romper a + infinitivo referemse à atitude de espírito do sujeito que ocorre em contraste com atitude anterior, e há também noções do inesperado, do repentismo, do incontrolável, a ação chega a causar surpresa135 (as perífrases muitas vezes servem para expressar o riso e o choro). Deitar a, por seu turno, tem conotação do súbito136. No caso da perífrase pôr-se a + infinitivo, notámos que o sujeito (ou o falante) exprime a voluntariedade da sua decisão ou esforço. Neste caso, o início da ação é também mais enérgico. Apresentamos, de seguida, as estratégias de tradução das construções perifrásticas de incoatividade para polaco. Devido à quase-sinonímia das perífrases incoativas e à imposssibilidade de mostrar todas as subtilezas no significado de cada uma, decidimos reunir as nossas propostas de tradução para polaco. Em primeiro lugar, sublinhamos que a língua polaca não dispõe dos equivalentes das perífrases portuguesas de incoatividade, portanto, as técnicas de tradução somente permitem aproximar-se do valor incoativo. A estratégia mais frequentemente utilizada pelos tradutores é o uso da perífrase começar a + infinitivo. Vejam-se os exemplos: 16a) (...) uma mulher gritou, Ai que é uma revolução, e largou a correr, calçada acima, na direcção do jardim (JSA: 401). 16b) (...) jakaś kobieta krzyknęła, Rewolucja, i zaczęła biec, w górę ulicy, w kierunku ogrodu (JSAP: 379). 17a) (...) depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãozinha, e martelou-lhe furiosamente a cabeça com o guizo (EQMI: 35). 17b) (...) potem zaczęło wyrywać się z  obejmujących go ramion, uniosło rączkę i dzwonkiem wyrżnęło dziadka w głowę (EQMP: 35). Nos exemplos (16b) e (17b), em vez do auxiliar, respetivamente, largar e romper, ocorrem as formas zaczęła e zaczęło do verbo zacząć (começar) seguidas do infinitivo do verbo principal: biec (correr) e wyrywać się (libertar-se). Em ambos os casos, os tradutores serviram-se do equivalente da perífrase começar a + infinitivo que exprime o valor 134 Almeida (1980: 57). 135 Almeida (op. cit.: 63–64). 136 Almeida (op. cit.: 66).

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inceptivo. Desta forma, a ideia do inesperado, do repentismo, do incontrolável e da surpresa que pode causar a ação não foi expressa. 18a) Não está ninguém, disse a rapariga dos óculos escuros, e desatou a chorar encostada à porta, a cabeça sobre os antebraços cruzados, como se com todo o corpo estivesse a implorar uma desesperada piedade... (JSEC: 235). 18b) Nie ma ich, wyszeptała dziewczyna w ciemnych okularach, oparła splecione ramiona o drewniana framugę, ukryła w nich głowę i wybuchnęła płaczem, wyglądała, jakby całym, zastygłym w tej pozie ciałem wołała o litość (JSMŚ: 239). 19a) Aos moiros! aos moiros! – desatou a gritar (ARBC: 435). 19b) Na Maurów! na Maurów! – zaniósł się krzykiem (AROŚ: 368). 20a) e deitou a correr, tapando as barbas, perseguido por uma manada de cavalos-homens, furiosos todos, a repetirem-lhe o nome numa voz sincopada e sinistra (ARBC: 425). 20b) Puścił się więc biegiem, zakrywając brodę, ścigany przez tabun konioludzi, rozwścieczonych i skandujących jego imię ponurymi głosami (AROŚ: 358). Os exemplos acima são aceitáveis. No exemplo (18b) ocorre a expressão wybuchnęła płaczem (rebentou a chorar). Devido ao conteúdo semântico do verbo wybuchnąć (expressar os seus sentimentos de forma inesperada e incontrolável), o valor incoativo manteve-se. Em (19b), aparece a construção zaniósł się krzykiem (desatou a gritar). Zaniósł się é uma forma do verbo perfetivo zanieść się que combinado com um substantivo traz a seguinte informação semântica – ficar obcecado com uma coisa, concentrar-se numa coisa sem poder dominá-la. Deste modo, parece-nos que, devido ao grande empenho por parte do sujeito, é possível interpretarmos zaniósł się krzykiem como algo incontrolável. Além disso, a forma perfetiva zaniósł się, por ser pontual, marca o início da ação de gritar e portanto a tradução é aceitável. Repare-se ainda que deitou a correr de (20b) foi traduzido como puścił się biegiem (começou a correr muito depressa). Devido à subitaneidade da ação de correr e a forma perfetiva puścił się, foi mantido o valor incoativo. Vejamos o exemplo com a perífrase passar a + infinitivo: 21a) Mobilada com a indigência dos haveres de um pobre, a torre passara a ser o refúgio do chefe da família, a que ele próprio deveria garantir a limpeza, em sinal de humildade e orgulho também (ARBC: 53). 21b) Wieża, umeblowana z ubóstwem stanu posiadania biedaka, stała się schronieniem przywódcy rodu i do niego również – znak dumy i pokory – należało utrzymanie jej w czystości (AROŚ: 40). Em (21b) passara a ser está traduzido como stała się. O verbo stać się (passar gradualmente ao outro estado, tornar-se em alguém ou em alguma coisa), pelo seu conteúdo semântico, permite exprimir o valor incoativo.

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Vejamos, agora, alguns exemplos com pôr-se a + infinitivo: 22a) (...) e pôs-se a ler, começando outra vez na primeira página... (JSA: 233). 22b) (...) i zagłębił się w lekturze, zaczynając ponownie od pierwszej strony… (JSAP:  223) 23a) e não havendo mais que dizer depois desta sentença, puseram-se todos a dormir (JSM: 33). 23b) Po tej sentencji nikt już nie miał nic do powiedzenia, więc wszyscy ułożyli się do snu (JSMP: 36). 24a) (...) despiu de golpe a bata molhada, e, nua, recebendo no corpo, umas vezes a carícia, outras vezes a vergastada da chuva, pôs-se a lavar as roupas, ao mesmo tempo que a si própria (JSEC: 265). 24b) (...) zrzuciła z siebie mokry fartuch i wystawiwszy nagie ciało na czułe głaskanie, to znów na bezlitosne smaganie deszczu, zabrała się do prania (JSMŚ: 276). O que se pode observar nos enunciados (22b) e (23b) é que o começo da ação expresso no texto original pela perífrase pôr-se a + infinitivo é exprimido pelas construções zagłębić się w lekturze (ler mostrando grande interesse na leitura), ułożyć się do snu (deitar-se para dormir). O exemplo (24b) apresenta o uso da construção zabrać się do + substantivo. O verbo perfetivo zabrać się significa, neste contexto, começar e portanto as traduções zabrała się do prania são aceitáveis. Não surpreende a presença do substantivo que segue o verbo zabrać porque as línguas eslavas, ao contrário das línguas românicas, se caracterizam pelo uso menos frequente das formas verbais. 25a) E, de repente, o Zé Segeiro pusera-se a chorar, convulsivamente, sobre a mesa onde tinham arranchado para comerem um bocado de lombo assado e beberem uns copos (ARBC: 154). 25b) I Zé Segeiro zaniósł się nagle konwulsyjnym płaczem, schylony nad stołem, przy którym się rozsiedli, żeby zjeść kawał polędwicy z rożna i wypić parę szklanek (AROŚ: 128). 26a) Ah, fez o cego, e pôs-se a chorar outra vez (JSEC: 13). 26b) Aha, westchnął ślepiec i znowu się rozpłakał (JSMŚ: 10). 27a) (...) um dos cegos pôs-se a rir, Pois se está espetado aproveita... (JSEC: 219). 27b) Jeden ze stojących ślepców roześmiał się, No to wykorzystaj okazję, jak twarde, trzeba ssać (JSMŚ: 222). 28a) Tem, porém, a palavra comida poderes mágicos, mormente quando o apetite aperta, até o cão das lágrimas, que não conhece linguagem, se pôs a abanar o rabo... (JSEC: 227)

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28b) Jednak magiczne słowo „jedzenie” poruszyło nawet psa pocieszyciela, który choć nie znał ludzkiej mowy, radośnie zamerdał ogonem… (JSMŚ: 231) Em (25b), aparece o verbo zaniósł się combinado com o substantivo płacz (zaniósł się płaczem). A ideia do inesperado que se associa ao valor incoativo está ainda sublinhada pelo advérbio nagle (de repente). No exemplo seguinte, quer dizer em (26b), ocorre o verbo rozpłakał się (do infinitivo rozpłakać się). O lexema verbal, por ser perfetivo, marca o início da ação que, devido ao conteúdo semântico de rozpłkać się, começa de uma maneira repentina e pressupõe a sua duração. O último exemplo é também aceitável. Assim como nos exemplos que acabamos de analisar, em (28b) ocorre a forma zamerdał (do verbo perfetivo zamerdać) que pelo seu semanticismo não aponta somente o começo da ação mas também indica a sua iteratividade – zamerdał quer dizer que zamachał kilka/wiele razy (abanou umas/várias vezes). Para acabar as nossas análises, é preciso constatarmos que a língua polaca dispõe de alguns recursos que permitem expressar o valor aspetual incoativo ou, pelo menos, aproximar-se dele. Neste contexto, verificámos a utilização de: perífrase começar a + infinitivo (acompanhada, ou não, de advérbio), verbos inceptivos e construções de verbo + substantivo. Contudo, tanto o uso dos verbos inceptivos como o das construções compostas por verbo seguido do substantivo têm os seus limites. O problema está relacionado, por um lado, com o número limitado de verbos incoativos e, por outro lado, com as possibilidades combinatórias bastante reduzidas dos verbos com os substantivos. Na nossa opinião, o polaco carece de estratégias eficientes que possam ser utilizadas pelos tradutores para mostrar todas as nuances e subtilezas que existem em português quanto à expressão do valor incoativo veiculado pelas perífrases. Em forma de conclusão, apresentamos uma lista de estratégias linguísticas que poderá ser aproveitada para traduzir as perífrases incoativas para polaco. Para marcar o começo rápido e inesperado da ação: – > rzucić się (p.)/rzucać się (imp.) do/w + substantivo no genitivo/ substantivo no acusativo (kupna, pracy, ucieczki, wyjścia/ bitwę, bój, pogoń, zabawy) – > wybuchnąć (p.)/wybuchać (imp.) + substantivo no instumentalis (gniewem, płaczem, śmiechem, wrzaskiem) – > wziąć się (p.)/brać się (imp.) do + substantivo no genitivo (jedzenia, nauki) – > zacząć (p.)/zaczynać (imp.) + infinitivo do verbo principal + advérbio (gwałtownie, nagle, naraz, ni stąd ni zowąd, ni z tego ni z owego, nieoczekiwanie, niespodziewanie, raptem, raptownie, wtem, znienacka) – > zanieść się (p.)/zanosić się (imp.) + substantivo no instumentalis (kaszlem, łkaniem, płaczem, szlochem, śmiechem) – > outras expressões: deitar a correr- ruszyć (p.)/ruszać (imp.) pędem deitar a chorar- zanieść się (p)/zanosić się (imp.) płaczem

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Para marcar a passagem: – > przejść (p.)/ przechodzić (imp.) do + substantivo no genitivo (analizy/analizowania, lektury/czytania) – > outras expressões passar a ser – stać się

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texto, textualidade e sentido: a língua portuguesa para além da gramática

Graziela Zanin Kronka137 Leitora do Governo do Brasil Universidade Carolina em Praga República Checa Resumo: Este artigo reflete sobre a construção de sentidos textuais levando em consideração conceitos como texto (em especial, Maingueneau, 2005) e textualidade (Costa Val, 1991) e privilegiando – a partir da observação de um conjunto de textos do português do Brasil (literários, jornalísticos, publicitários, artísticos) – a reflexão dos mecanismos de coesão e de coerência. Trata-se de oferecer propostas de abordagens da língua portuguesa que considerem também elementos fundamentais para a construção dos sentidos além das questões gramaticais da norma culta da escrita. Palavras-chave: texto; textualidade; sentido

repensar os mecanismos de construção de sentido Para aqueles que esperam deste artigo um texto analítico complexo e repleto de inserções teóricas, desculpo-me desde já por frustrá-los e peço licença para deixar aqui mais um relato do que um ensaio (e agradeço aos que insistirem em chegar até o fim). As reflexões aqui presentes fazem parte de um projeto de pesquisa – cujo título coincide com o do artigo – que teve início em 2014 a partir da dinâmica das aulas – e da preparação dos materiais– referentes a um seminário por mim ministrado no ano letivo 2013/2014 dentro do âmbito de minhas atividades como leitora oficial do governo

137 Doutora em Linguística – leitora de língua portuguesa do governo brasileiro na Universidade Carolina de Praga. E-mail: [email protected].

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brasileiro na Universidade Carolina de Praga. Algumas discussões preliminares do respectivo projeto (como as presentes neste texto) já foram esboçadas e discutidas em eventos acadêmicos. A pesquisa encontra-se em fase de constituição de um corpus. No primeiro dia de aula desse seminário – e também em outras oportunidades que tive de conversar sobre o assunto com estudantes138 -, aos meus primeiros questionamentos – como: “O que é um texto?”, ou ainda: “O que é um bom texto? O que é um texto ruim?” –, as respostas iniciais apontavam, quase sempre, para a necessidade do estabelecimento de sentido, e para o cumprimento (no caso dos bons textos) ou o descumprimento (no caso dos textos ruins) das normas gramaticais. E, na maior parte dos casos, os aspectos gramaticais por eles considerados mais importantes referiam-se à concordância, à regência, à colocação pronominal e ao uso de termos não coloquiais e não vulgares. Em seguida, ainda antes da introdução às questões teóricas referentes ao sentido, os alunos foram apresentados a diferentes conjuntos de textos – a exemplo do conjunto de (1) a (4) apresentado mais adiante. Solicitados a apontarem possíveis problemas nesses textos, a tendência dos estudantes era de tentar detectar falhas ligadas ao emprego das questões gramaticais. Ainda nessa fase introdutória, apresentei aos alunos uma série de imagens (e também músicas e vídeos), algumas das quais não apresentavam nenhuma palavra impressa, como por exemplo139:

Meu intuito era de oferecer a eles imagens e símbolos, nos quais puderam imediatamente reconhecer o um sentido conhecido. Em seguida, apresentei exemplos menos óbvios, e, assim, propus que refletissem sobre a importância excessiva – às vezes exclusiva – dada às regras gramaticais na avaliação da qualidade de textos. Pretendia, so138 Por exemplo, em uma aula ministrada no âmbito do programa ERASMUS de mobilidade de professores – em maio de 2014 para os alunos de língua portuguesa da Universidade de Sofia, na Bulgária. 139 Imagens extraídas, respectivamente, de http://negocios.maiadigital.pt/hst/sinalizacao_seguranca/sinalizacao_ proibicao e http://www.lojastamoyo.com.br/loja/produtos/list/13000-13384/seguranca-epis/placa-sinalizacao/ pag-3.

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bretudo, que se dessem conta de que essas regras se aplicam somente a textos escritos cultos e/ou formais – os quais, por sua vez, constituem apenas uma parcela dos textos produzidos e difundidos a cada dia. O contato com textos não verbais, e, mais do que isso, o reconhecimento de seus sentidos, foi o mote que encontrei para, finalmente, propor-lhes novas acepções da noção de texto e, consequentemente, novas formas de reflexão sobre a linguagem.

texto e textualidade: reflexões sobre a atividade de linguagem Para Costa Val (1991: 3): texto é uma ocorrência linguística falada ou escrita, de qualquer extensão, dotada de unidade sociocomunicativa, semântica e formal. Tal definição parece bastante razoável, mas, para meus propósitos, ainda insuficiente, pois considera apenas as manifestações verbais da linguagem. Segundo as discussões preliminares sobre o contato dos estudantes com imagens enquanto unidades de sentido – assim como meu percurso de pesquisa acerca da linguagem –, acredito que é preciso ter em mente que a visão envolve algo mais do que o mero fato de ver ou de que algo seja mostrado (Dondis, 1997: 13). Para além de acionar o sistema físico das percepções visuais, olhar para imagens ativa o exercício de reconhecimento de uma série de elementos e de técnicas visuais que dão sentido a determinadas mensagens visuais. O que significa que as coisas visuais não são simplesmente algo que está ali por acaso. São acontecimentos visuais (...) (idem: 31), mais ainda, eu diria, são acontecimentos de linguagem140. É por esse motivo que, de acordo com minhas filiações teóricas na área da linguística, me parece mais apropriada a definição de Maingueneau (2005), para quem o texto é toda e qualquer manifestação verbal (textos impressos, textos falados) ou não verbal (recursos pictóricos ou audiovisuais, como, por exemplo, um quadro, uma escultura, uma foto, uma música, uma imagem) dotada de sentido. Partindo desta acepção, minha proposta aos alunos é que avaliem os textos não mais somente pela obediência (ou não) às regras gramaticais, mas pela sua textualidade, conceito que diz respeito ao conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto (ou seja, uma unidade dotada de sentido) e não apenas uma mera sequência de frases (Costa Val, op. cit.) – ou de sons, de imagens etc. A questão primordial passa a ser “Este texto tem sentido?” no lugar de: “Este texto respeita as regras gramaticais?”. É importante ressaltar aqui que não pretendo, com essa discussão, desprezar a importância da gramática e nem fazer apologia à inutilidade de suas regras. O meu objetivo é que, ao lado da gramática, outros aspectos da língua sejam considerados no que diz respeito à construção textual.

140 E poderíamos estender a discussão para as mensagens sonoras.

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Para tal, considero bastante pertinentes os fatores de textualidade apontados por Beaugrande & Dressler e retomados por Costa Val (op. cit.): – Coerência – refere-se ao sentido ligado às relações subjacentes à superfície textual e resulta da compatibilidade entre a rede conceitual de uma lógica interna, ligada ao mundo textual, e o conhecimento de mundo de quem processa o discurso (idem: 6). – Coesão – trata-se a manifestação linguística da coerência, sendo o fator responsável pela unidade formal do texto (idem, ibidem). – Intencionalidade – corresponde ao empenho do produtor em construir um texto coerente e coeso e capaz de satisfazer os objetivos que tem em mente numa determinada situação comunicativa (idem: 10). – Aceitabilidade – diz respeito à expectativa do recebedor de que o texto com que se defronta seja coerente, coeso, útil e relevante (idem: 11). – Situacionalidade – concerne aos elementos responsáveis pela pertinência e relevância do texto quanto ao contexto em que ocorre (idem: 12). Em outras palavras, corresponde à adequação do texto à situação sociocomunicativa. – Informatividade – é o fator que diz respeito à medida na qual as ocorrências de um texto são esperadas ou não, conhecidas ou não (idem, ibidem) – tanto no plano conceitual quanto no plano formal. Um discurso menos previsível tem mais chance de ser mais informativo. Mas um texto completamente inusitado pode ser rejeitado pela dificuldade em processar suas informações (assim como um texto totalmente previsível nada tem de atrativo). Para Costa Val, esse fator está relacionado à suficiência de dados. – Intertextualidade – trata-se do estabelecimento de sentido de um texto a partir do reconhecimento nele da presença de um (ou mais) texto(s) pré-existente(s). A esses fatores, eu acrescentaria muitos outros. Para o momento, ressalto três conceitos: – Contexto – Para Koch, não se trata apenas do co-texto, ou o entorno textual material, mas também: (...) a situação de interação imediata, a situação mediata (entorno sociopolíticocultural) e também o contexto sociocognitivo dos interlocutores (...). Ele engloba todos os tipos de conhecimentos arquivados na memória dos actantes sociais, que necessitam ser mobilizados por ocasião do intercâmbio verbal (...): o conhecimento linguístico propriamente dito, o conhecimento enciclopédico (...), o conhecimento da situação comunicativa e de suas regras (...), o conhecimento superestrutural (tipos textuais), o conhecimento estilístico (...), o conhecimento sobre os variados gêneros adequados às diversas práticas sociais, bem como o conhecimento de outros textos que permeiam a nossa cultura (Koch, 2002: 24). –

Conhecimento de mundo – corresponde, segundo Koch & Travaglia (2004: 72), ao conhecimento que adquirimos à medida que vivemos, tomamos contato com o mundo que nos cerca e experienciamos uma série de fatos. Mas não se trata ape-

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nas do conhecimento acumulado com a vivência do dia-a-dia. Os autores apontam também para o conhecimento científico, adquirido nas escolas e nos livros. – Condições de produção – segundo Maingueneau (2006) designa não somente o meio ambiente material e institucional do discurso, mas ainda as representações imaginárias que os interactantes fazem de sua própria identidade, assim como do referente de seus discursos. (...) Essas representações imaginárias se constituem através do que já foi dito e do que já foi ouvido (op. cit.: 30).

– –



Convém chamar a atenção para três observações: não é possível considerar esses fatores isoladamente. Todos funcionam juntos no estabelecimento de sentido e um não precede o outro. nem sempre a aparente falta de sentido de um texto é um problema de textualidade. O problema pode se localizar, por exemplo, na falta conhecimento de mundo do leitor no que se refere aos discursos mobilizados pelo autor em sua atividade de linguagem. Segundo Koch & Travaglia (op cit: 76), podemos, por exemplo, criar problemas de coerência se procurarmos interpretar um texto científico com base em nosso conhecimento comum (ou vice-versa). é obvio que esses fatores apresentam limitações e refletir sobre tais limitações é também parte importante do processo de construção de conhecimento nas aulas.

breve reflexão sobre os fatores de textualidade na construção de sentidos Proponho agora discutir as questões apresentadas anteriormente a partir de um conjunto de textos extraídos – alguns adaptados – de jornais, de textos literários, de ensaios, para, assim, observar como os fatores da textualidade estão ligados a textos com que nos deparamos nas diferentes situações do quotidiano. Para tal, selecionei os textos abaixo, enumerados de (1) a (4), aos quais seguem breves análises. 1) A penetração intensa da televisão no Brasil está inscrita na paisagem urbana e rural nas páginas de revista na profusão de aparelhos nos interiores das casas nas mansões de alto luxo nos barracos das favelas das cidades grandes nas casas modestas e nas praças púbicas de cidades pequenas os recordes nas vendas de televisores se explicam pela presença de diversos aparelhos por domicílio cuidadosamente dispostos em vários cômodos das residências às vezes em meio a altares domésticos as inúmeras antenas parabólicas com seus imensos discos redondos voltados para o céu instaladas em muitos telhados de residências em favelas como a Rocinha no Rio de Janeiro em distantes sítios nas zonas rurais em vilarejos da selva amazônica no alto dos edifícios urbanos são emblemáticas, quase falam por si só esse aparato tecnológico dissemina por todo o território nacional imagens acuradas emitidas por uma variedade de canais eliminando nesse contexto algumas barreiras sociais

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e geográficas a presença maciça da televisão em um país situado na periferia do mundo ocidental poderia ser descrita como mais um paradoxo de uma nação que ao longo de sua história foi representada reiteradamente como uma sociedade de contrastes riqueza e pobreza modernidade e arcaísmo sul e norte litoral e interior etc. E de fato a televisão está implicada na reprodução de representações que perpetuam diversos matizes na desigualdade e discriminação a super-representação de brancos em relação a negros e mulatos consiste em um exemplo gritante da maneira como por omissão os mais diversos programas televisivos contribuíram para a reprodução da discriminação racial. (Extraído e adaptado de: Ester Hamburger: Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no cotidiano. In: História da vida privada no Brasil. Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.)

Este texto encontra-se entre aqueles de reconhecimento imediato de perturbações textuais. Trata-se de um problema coesivo de pontuação incorreta – ou ausente –, que não deixa de ser um erro gramatical, mas diferente daqueles apontados pelos alunos como essenciais para a configuração de um bom texto. Mas, a meu ver, configura-se como um erro mais “grave”, pois afeta a coerência, de modo que, mesmo que o léxico nos ajude a reconhecer o tema abordado, fica praticamente impossível estabelecer o fluxo do raciocínio e da argumentação. Diante desse tipo de texto, os alunos – unanimemente, poderia dizer – imediatamente reconhecem a falha na textualidade. 2) “Ela me parecia normal”, diz Marcos Pontes sobre astronauta presa O astronauta brasileiro Marcos Cesar Pontes disse ter achado “estranho” o comportamento de Lisa Nowak. Ela e Bill Oefelein foram colegas de Pontes no curso de formação de astronautas do Centro Johnson, da Nasa. “Ela é da turma de 1996, e eu sou da turma de 1998, a mesma do Billy O. [Oefelein]”, disse Pontes à Folha. Ele descreveu Nowak como “completamente normal”. “É como se o comportamento não se encaixasse à pessoa que conheci.” Os astronautas passam por uma triagem psicológica rigorosa na seleção, e depois por um treinamento para lidar com situações de estresse, mas não há como prever atitudes no plano afetivo. “O comportamento para vida social só é enfatizado no aspecto de trabalho em equipe, não no sentido de relacionamento amoroso”, disse. “As linhas do amor fogem do normal” (extraído de http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u15975. shtml, em 7.2.07). Diante deste texto, os alunos mostram, ao mesmo tempo, certo desconforto quanto a sua coerência e certa dificuldade em detectar a perturbação. Ele não apresenta nenhum erro gramatical explícito e não é com tranquilidade que se detecta o problema na passagem “o comportamento de Lisa Nowak”. Esse deslize no uso do artigo definido provoca falha no grau de informatividade – uma vez que o leitor não consegue, pelo texto em si – esclarecer qual foi o tal comportamento da astronauta. E essa informação

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não depende de conhecimento do mundo (o que acontece, por exemplo, no texto 4). É claro que os textos jornalísticos recorrem hoje a recursos como os links do tipo “saiba o que aconteceu” ou “entenda o caso”. Mas o fato da necessidade de se recorrer a esses links para se informar sobre o que o texto em questão aborda é diferente de buscar informações complementares, pois essa é a função para a qual esses links deveriam existir, sobretudo quando se trata de um texto informativo, o qual, por sua vez, deve se explicar e ser compreendido por si só141. Recorrer a esses links ou fazer uma pesquisa para recuperar o conteúdo do texto exige um cálculo, um esforço, maior e, portanto, pode prejudicar a fluência do sentido. 3) – Maria ponha isso lá fora em qualquer parte. – Junto com as outras? – Não ponha junto com as outras, não. Senão pode vir alguém e querer fazer coisa com elas. Ponha no lugar do outro dia. – Sim senhora. Olha, o homem está aí. – Aquele de quando choveu? – Não, o que a senhora foi lá e falou com ele no domingo. – Que é que você disse a ele? – Eu disse pra ele continuar. – Ele já começou? – Acho que já. Eu disse que podia principiar por onde quisesse. – É bom? – Mais ou menos. O outro parece mais capaz. – Você trouxe tudo pra cima? – Não senhora, só trouxe as coisas. O resto não trouxe porque a senhora recomendou para deixar até a véspera. – Mas traga, traga. Na ocasião nós descemos tudo de novo. É melhor, senão atravanca a entrada e ele reclama como na outra noite. – Está bem, vou ver como. (extraído e adaptado de: http://www.lainsignia.org/2005/febrero/cul_028. htm) Esse texto, cuja análise se inspira em Koch & Travaglia (2004), à primeira vista, apresenta um problema coesivo explícito, mais precisamente ligado à retomada de referentes. Para introduzir informações inéditas no texto, as personagens do diálogo utilizam certos pronomes (isso, aquele, o lugar, o homem, ele) e palavras “vazias” (coisas) que geralmente retomam elementos já mencionados no texto, e que, portanto, são conhecidos dos leitores – ou, ao menos, facilmente recuperáveis por eles. De um modo geral, o texto cria um estranhamento que coincide com um efeito cômico entre os estudantes, que, na sua maioria, reconhecem a ausência de menção anterior dos referentes. 141

É claro que não me refiro aqui ao fenômeno da intertextualidade, o qual se refere também ao conhecimento de mundo. Infelizmente, esta questão não será abordada neste artigo.

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Uma análise equivocada, que levaria à conclusão de que estamos diante de um texto com problemas de textualidade e, portanto, com perturbações no estabelecimento de sentido, é evitada quando revelo aos alunos que informações importantes foram extraídas do texto, a saber: – o título: A vaguidão específica – o nome do autor: Millôr Fernandes – a epígrafe: “As mulheres têm uma maneira de falar que eu chamo de vago-específica.” – Richard Gehman Koch & Travaglia (op. cit.) apontam para o fato de que há, nesse texto, no mínimo, duas situações de interlocução: – entre o escritor e os leitores – entre as duas mulheres personagens do texto As duas mulheres se entendem, enquanto os leitores não reconhecem todos referentes por elas mencionados. Seria, por esse motivo, um texto com problemas de textualidade? Não. Essa falta de compreensão do leitor – que não se configura entre as personagens – é essencial para mostrar aquilo que o autor sugere no título e reforça na epígrafe: as mulheres têm uma forma de se exprimirem que, apesar de aparentemente vaga, não as impede de se entenderem. É claro que para compreender o sentido do texto (ou, ainda, que seu sentido – e, portanto, seu efeito cômico – se encontra justamente na aparente falta de sentido) é importante o conhecimento de mundo do leitor: ele deve saber, por exemplo, que Millôr Fernandes é um escritor de textos humorísticos. Deve saber também que a tal “vaguidão” reflete um dos estereótipos que circulam a respeito das mulheres na sociedade brasileira. Convém ressaltar, também, que o fato de terem sido extraídas informações primordiais para o sentido do texto comprova, mais uma vez, que é impossivel pensar na atividade de linguagem separada do seu contexto. Ou seja, a descontextualização pode provocar problemas coesivos ou mesmo interpretações equivocadas142. 4) A frente da casa da minha avó é voltada para o leste e tem uma enorme varanda. Quando vou visitá-la, gostamos de sentar nessa varanda no fim da tarde para apreciar o pôr-do-sol (extraído e adaptado de Koch & Travaglia, 2004). Esse enunciado faz parte do conjunto de textos em relação aos quais os alunos apresentam mais dificuldade para detectar desvios na textualidade, uma vez que não apresenta nenhum erro gramatical nem perturbações coesivas. O problema aqui é de coerência externa, ou melhor, de incoerência externa: a  posição da frente da casa e o fato de apreciar o pôr-do-sol são informações contraditórias – pois o sol não se põe a leste, mas sim a oeste... Apesar de ser uma informação básica que todos recebemos

142 Acompanhamos com frequência nos meios de comunicações personalidades famosas envolvidas em polêmicas que se queixam de mal entendidos provocados por edições de entrevistas que oferecem ao leitor suas declarações descontextualizadas.

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nos primórdios de nossa educação, é preciso ativar esse conhecimento de mundo para reconhecer a incoerência.

esboços para futuras reflexões Não se trata, de minha parte, em hipótese alguma, de negar a importância do conhecimento das regras da gramática normativa. Trata-se, antes, de chamar a atenção para o fato de que: – a gramática normativa (especialmente no que se refere às regras da escrita em situações formais) é apenas uma parte (e não necessariamente, ou ao menos nem sempre, a mais importante) da língua; – o uso correto das regras gramaticais não é suficiente para a produção de um bom texto (como mostram, por exemplo, os enunciados 2 e 4). Os alunos – e todos os estudiosos da linguagem – deveriam ter em mente que um texto (verbal ou não verbal): – é uma unidade de linguagem em uso (cujo sentido, portanto, pode estar sujeito a mudanças); – é o resultado de uma ATIVIDADE COGNITIVA (porque ativa conhecimentos) INTERATIVA (porque depende da relação) – está vinculado a um CONTEXTO e a determinadas CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO A respeito da experiência mencionada na introdução deste artigo, em um primeiro momento, parecia mais confortável para os alunos trabalhar com os textos com problemas gramaticais e/ou estruturais explícitos. A constatação do julgamento dos textos por suas características gramaticais me alertou para a possibilidade – necessidade, eu diria – de oferecer aos estudantes novas abordagens referentes ao estabelecimento de sentido do texto. Ao trabalhar em sala noções de textualidade, e ao oferecer aos alunos novas concepções de “texto”, constatei um notável progresso tanto nas atividades de interpretação quanto de produção textuais.

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frantuguês: o falar da emigração portuguesa em frança

Petra Laufková Universidade Carolina em Praga República Checa Resumo: Embora o português pertença ao conjunto das línguas mais faladas no mundo, nas suas classificações falta uma variante que nasceu do contacto entre o português e o francês, utilizada pelos emigrantes portugueses em França e seus descendentes. Do ponto de vista linguístico, o frantuguês consiste na justaposição ou alternância de vários códigos linguísticos numa única comunicação. Sobretudo o vocabulário, que contém muitos empréstimos lexicais e semânticos da língua francesa, mas a gramática também foi afetada. Palavras-chave: frantuguês; emigração portuguesa em França; variação do português padrão O português pertence ao conjunto das línguas mais faladas no mundo. Existe o português europeu (de Portugal), o português do Brasil e muitos crioulos da base portuguesa, e o próprio português europeu conhece vários dialetos. Portanto, nas classificações falta uma variante da língua portuguesa falada por muitas pessoas, talvez mesmo por mais pessoas do que nalgumas das outras variantes: o frantuguês, i.e., o português afrancesado, utilizado pelos emigrantes portugueses em França e pelos seus descendentes.

criação do frantuguês O frantuguês nasceu do contacto entre o português e o francês. Os emigrantes portugueses que partiram em massa após a Segunda Guerra Mundial criaram, de uma forma involuntária, um modo de expressão único que transforma e integra certas palavras,

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expressões e construções gramaticais francesas. O dialeto corresponde à adaptação necessária a um ambiente diferente e a uma vida nova. Segundo os autores do primeiro dicionário de frantuguês143, “a inserção na sociedade francesa e a alteração dos modos de vida que lhe é directamente relacionada, apresentam duas vertentes principais: uma deslocação transfronteiriça, que significa mudança de língua, de usos e costumes, de funcionamentos diversos (administrativos, culturais, etc.); uma evolução que leva o emigrante a deixar um modo de vida rural e agrícola, baseado em estruturas sociais e tecnológicas arcaicas (o Portugal rural daquelas décadas) para adquirir um modo de vida urbano, mais moderno (a França das “Trente Glorieuses”).” O frantuguês é usado nas famílias diariamente, não só durante as férias em Portugal, e já conta com Portugueses ditos de terceira geração (lusodescendentes), dos quais muitos até nem dominam o português padrão.

um dialeto? Apesar de ser muito falado, o frantuguês não é um dialeto reconhecido. O processo da sua evolução é, porém, semelhante ao português do Brasil, ao inglês dos Estados Unidos da América ou ao francês do Canadá; no mundo hispanofalante existe o “spanglish”. O fenómeno tem sido estudado desde há muitos anos144, e desde 2007 está disponível o dicionário acima mencionado. O caráter do frantuguês é ambíguo: o sentido original é a tradução/adaptação de francês para o português, mas pode ocorrer o contrário quando os lusofalantes utilizam palavras derivadas do português e a pronúncia portuguesa em francês. Esta tendência de misturar línguas acontece também, e muito frequentemente, aos estudantes de línguas estrangeiras (em Praga verifica-se um número elevado de estudantes que falam frantuguês ou ainda portunhol, um português misturado com o espanhol). Há quem possa dizer que poucas são as palavras afetadas por este fenómeno, afirmamos, no entanto, que se trata das palavras e expressões mais correntes cuja base lexical ainda está a ser recolhida. Surge então outra questão: será que todos os falantes falam da mesma maneira, ou há tantos falares quantas famílias ou falantes individuais de frantuguês? Um outro problema possível é a classifição: dialeto de português europeu, variante autónoma do português (como a do Brasil), crioulo de base franco-portuguesa ou variante franco-portuguesa do “emigrantês”? Esta questão só é, portanto, exigida para satisfazer as vontades de sistematizar a realidade e não deveria impedir o reconheci143 Miguel Padeiro, Eduardo Pereira: Dicionário dos portugueses de França Ou como se transforma uma língua numa gargalhada. Portugolo Editora, 2007. Site: http://frantugues.free.fr/Dicionario_frantugues_v1.pdf. Esta obra de quase 300 palavras recolhidas continua a ser aumentada no site http://www.frantugues.com/ e atualmente conta mais de 1100 palavras. 144 Por exemplo em Problèmes de bilinguisme et d’interférence chez les travailleurs portugais immigrés en France de Santos Pereira Bendina U. M. (1981). Para outras obras de referência consultar www.frantugues.com.

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mento do frantuguês. Um outro aspeto é o nome (não sendo oficialmente reconhecido, o frantuguês é designado por diferentes pessoas de maneira diferente), o termo “frantuguês” (“frantugais” ou “frantuguesh” em francês) parece-nos adequado.

manifestações e divulgação do frantuguês O site www.frantugues.com apresenta um excerto de uma conversa em frantuguês: – ah, pois é, ele é alguém de honesto … – ah ba uí, ça pour être quelqu’un d’honeste, sim, ele é honeste! – não é como o outro, que só diz grandes môs [nb : palavrões]... – e que ainda por cima bate na mulher... – pois, isto é ser muito lache, bater assim numa pessoa mais feble que nós... – pois... Segundo os autores do site, esta maneira de falar tem sido mal percebida em Portugal – como se os francoportugueses quisessem provocar ou mostrar-se superiores e não tivessem vontade de ensinar o português aos seus filhos. O desgosto pode ser encontrado na internet: “Mas isto até nem seria de estranhar, pelo contrário, seria de louvar… se eles, a acompanhar todo este patriotismo quase fanático e ridículo que vêm para cá mostrar… se esforçassem minimamente para, enquanto cá estão falarem PORTUGUÊS! A língua do seu tãoooooooooooo amado país… e não françúguês… que é aquele dialécto típico dos “avecs”… nem é Português, nem é Francês… como se costuma dizer: “nem é carne nem é peixe”… é uma merda qualquer ali pelo meio…145”

Ao lado das emoções negativas, o frantuguês pode simplesmente fazer rir. Os próprios autores do dicionário efetuaram a primeira recolha só para se divertirem; mais tarde deram-se conta de que este falar representa uma forma de riqueza cultural. O site www.frantugues.com foi criado não só com o objetivo de produzir um banco de dados linguísticos, mas também para chamar a atenção dos especialistas (com o reconhecimento do frantuguês como finalidade) e sobretudo para agradecer os seus pais e avós.

características linguísticas Do ponto de vista linguístico, o frantuguês é sobretudo um “code-switching”: consiste na justaposição ou alternância, por falta de competência linguística, de vários códigos

145 Para ler o artigo integral, publicado num blog privado, e as reações sucesivas, consultar http://zonaribeirinha. wordpress.com/2009/08/18/os-avecs-e-o-francugues/.

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linguísticos numa única comunicação. Este fenómeno é tanto mais provável quando se trata de línguas da mesma família com muitas semelhanças porque os falantes já não conseguem discernir falhas e erros. Sobretudo no vocabulário, o frantuguês contém muitos empréstimos da língua francesa. Seria interessante analisar a realização dos fonemas e da prosódia do frantuguês em comparação com o português. Entretanto, podemos salientar algumas modificações que sofrem as palavras francesas “aportuguesadas”: – –

Pronúncia do schwa em situações onde este cai em francês (recomendamos consultar no youtube as parodias dos francoportugueses por “Ro et Cut“) Dificuldade dos emigrantes em pronunciarem os fonemas [œ] e [ø] e o schwa [ə] (que portanto existe em português numa forma um pouco mais fechada e menos central):

Carta blô, blú (carte bleue) – cartão de crédito Duor, duhor (dehors) – fora Futói (fauteuil) – sofá –

Reduções vocálicas, sobretudo [o] > [u]:

Curnichõ, curnichons (cornichons) – pepino(s) Cutõ (coton) – algodão Futói (fauteuil) – sofá –

Adaptação de sufixos e desinências ao sistema português, frequentemente em relação às desinências infinitivas ou ao número/género nominal (mesmo que a palavra francesa possa conter um sufixo de feminino):

Qualque chose (quelque chose) – qualquer coisa Chomage/chomagem (chômage) – desemprego Ratar (rater) – falhar Onhões (oignons) – cebolas Brossa (brosse) – escova Chiena (chienne) – cadela Coneria/cuneria (connerie) – estupidez Dinda (dinde) – perú Ducha (douche) – duche Huítras (huîtres) – ostras –

A realização das sibilantes: o chiamento dos /s/ e /z/ em posição implosiva à maneira portuguesa e, às vezes, uma pronúncia diferente segundo o dialeto português de origem:

fr. chauffage – chofage/chofágio / sofage/sofágio

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Confusão entre /b/ e /v/ (segundo a região portuguesa de origem, pode tratar-se, em português, de dois alofones posicionais de um fonema)

Ó lá baixo! (oh la vache !) (confusão de vache e baixo) Belô/velô (vélo) – bicicleta Rendibú (rendez-vous) – encontro Quanto ao léxico, há uma quantidade de empréstimos lexicais e semânticos. O vocabulário reflete o dia-a-dia, o convívio, o trabalho (mais particularmente as obras e outros trabalhos manuais) e as dificuldades administrativas. Em certos casos, trata-se de palavras que os locutores desconheciam em português (realidades desconhecidas ou novamente criadas, que os falantes conheceram em França). Alguns exemplos de palavras e frases frantuguesas: Bala/balão (balle) – bola Basquetes (baskets) – sapatilhas Bilhete [de vinte euros] (billet, euros) – nota Canapé/canapê (canapé) – sofá Champinhonzes/champinhões (champignons) – cogumelos Jolí/julí (joli) – bonito Lessa/leça (laisse) – trela Nulo (nul) – fraco, mau Pana (panne) – avaria (→ estar em pana) Polonês (polonais) – polaco Pirroquê (perroquet) – papagaio Racalha(s) (racaille) – escumalha Ajutar (ajouter) – adicionar Arretar (arrêter) – parar Brular (brûler) – queimar → brular o fogo ruge – passar o sinal vermelho Montar (monter) – subir Partajar (partager) – partilhar Tornar (tourner) – virar Duas tranchas de jambom se faz favor!

– Duas fatias de fiambre se faz favor!

Hoje fui ao marchê comprar charcuteria!

– Hoje fui ao supermercado comprar carne/fiambre!

Despacha-te, temos que ir às cursas!

– Despacha-te, temos de ir fazer compras!

Ele já está na retrete há 2 anos.

– Ele já está na reforma há 2 anos.

Olha a tua cupina ao telefone !

– Olha a tua namorada ao telefone!

Arreta o carro tussuite !

– Pára já o carro!

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Ó pá, isto é só coneria !

– Ó pá, isto é só disparates!

Ontem tombei em panas com o teu carro!

– Ontem empanei / fiquei empanado com o teu carro!

Mete as pantuflas !

– Calça as pantufas!

Mete isso na pobela!

– Deita isso para o lixo!

Vira aqui, tens que atrapar a auto-ruta!

– Vira aqui, tens de apanhar a auto-estrada!

Desengaja daqui depressa/tussuite!

– Sai daqui depressa / sai já daqui!

Também aparecem amálgamas de expressões e coloquialismos como dar o bom júr (dar os bons dias + dire bonjour), fazer pipi (fazer chichi + faire pipi). O francês penetrou até nos advérbios e nas partículas: Bem seguro (bien sûr) – claro, pois Davantagem (davantage) – mais De acordo (d’accord) – ok, está bem De toda maneira (de toute manière) – de qualquer maneira De toda fação (de toute façon) – de qualquer modo Ecute (écoute) – ouve Faz-me prazer (fais-moi plaisir) – faz-me um favor Por azar (par hasard) – por acaso Tussuíte/tudessuíte (tout de suite) – imediatamente Vá lá (voilà) – é tudo, e foi assim As interjeições e os palavrões constituem, igualmente, um grupo numeroso: Amundadiú (Nom de Dieu) – Valha-me Deus Conar / cunar (connard) – cabrão Conassa / cunassa / cunasse (connasse) – cabra Desimerdar-se (se démerder) – desenrascar-se Futar-se / fotar-se (se foutre) – desinteressar-se, estar-se nas tintas Mafú! (je m’en fous) – Estou-me completamente nas tintas Pitã! / Pitom! / Putana! (putain) – Mas que bordel! A gramática portuguesa também foi afetada, mas sem um número suficiente de materiais autênticos é difícil analisar as mudanças. O dicionário de frantuguês reflete possíveis alterações no uso de algumas preposições e construções verbais: Apré/aprés (après) – depois Em face (en face) – em frente A causa de (à cause de) – por causa de Permitir de (permettre de + inf.) – permitir que + subj. Estar em trem de (être en train de) – estar a

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conclusão Em vez de conclusão vamos citar Miguel Padeiro cujo artigo „Frantuguês : arte de dar nas vistas ou processo involuntário?“ diz tudo: “O frantuguês acabou por conquistar um certo peso na comunidade portuguesa, até ao ponto de os próprios filhos, criados em França, adoptarem este falar de várias maneiras : caem na armadilha (quantos deles, na verdade, sabem que o andaime é a palavra correcta que designa a chafodage frantuguesa ?), usam as palavras na brincadeira (quem, desses filhos, nunca deitou coisas na pobela, sabendo perfeitamente que a palavra não é correcta ?), corrigem os pais (quem nunca o fez, nunca declarou : “ó mãe, mas já sabes que isto não é machina, é máquina !”), e ainda – cúmulo dos cúmulos ! – andam a suspeitar palavras, julgando-as frantuguesas quando de português correcto se trata (tinhas razão, pai, “fritar” existe mesmo…).”

bibliografia Frantuguês.com. Disponível em: http://www.frantugues.com. Humourous: “Blagues sur les Portugais”. Disponível em: http://humourous.free.fr/blagues/blagues. php?id=35&label=blagues-sur-les-portugais. Padeiro, Miguel: Frantuguês : arte de dar nas vistas ou processo involuntário? 2009. Disponível em: http:// www.frantugues.com. Padeiro, Miguel – Pereira, Eduardo: Dicionário dos portugueses de França Ou como se transforma uma língua numa gargalhada. Portugolo Editora, 2007. Disponível em: http://frantugues.free.fr/Dicionario_frantugues_v1.pdf. Ro et Cut: videos disponíveis em: https://www.youtube.com/user/RoetCutTV/videos. Teyssier, Paul: História da língua portuguesa. Tradução Celso Cunha. 2.a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Tretas sem importância: Os “avecs” e o Françúguês!!! Disponível em: http://zonaribeirinha.wordpress. com/2009/08/18/os-avecs-e-o-francugues/.

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valores de incerteza e irrealidade: usos deslocados em português e espanhol

Blažka Müller Pograjc Universidade de Liubljana Eslovénia

Resumo: No artigo contrasta-se o futuro verbal e o condicional no espanhol (ES) e no português (PT) europeu, assim como os usos retos e deslocados destas formas verbais nas duas línguas. Verifica-se que para a descrição destes fenómenos linguísticos em ambas as línguas pode ser adequado o modelo do sistema vetorial que para a língua espanhola foi desenvolvido e proposto pelos linguistas espanhóis Rojo e Veiga. Confirma-se que tanto em ES como em PT podemos observar dois casos de deslocações, o primeiro conducente ao matiz modal de incerteza e o segundo ao matiz modal de irrealidade. Palavras chave: referenciação futura; sistema vetorial; relações temporais

introdução Esta comunicação visa contribuir para a descrição do conceito da futuridade e para uma reflexão aprofundada sobre o funcionamento das formas de marcação de valores de tempo futuro em português europeu contemporâneo (PT) e em espanhol (ES). Nela pretendemos discernir como funcionam as formas portuguesas cantarei e cantaria nos seus usos deslocados em contraste com as formas espanholas cantaré e cantaría, com o objetivo de contribuir para a descrição contrastiva dos valores temporais e modais que as respetivas formas evidenciam nas duas línguas. O ponto de partida para a presente comunicação é a hipótese de a proposta do sistema vetorial dos linguistas espanhóis Rojo e Veiga (1999), explicando e simbolizando o panorama temporal do espanhol com as fórmulas vetoriais, poder ser adequada para descrever os processos de deslocação que ocorrem no sistema temporal do português.

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Uma das considerações iniciais seria que as formas linguísticas interpretáveis como marcadoras de posterioridade em PE e em ES são, sobretudo, marcas modais. Quanto a esta consideração, recorde-se que a evolução diacrónica das formas de futuro passa por fases precisas, caracterizadas por valores de diferente natureza (Bybee et al., 1994). Assim, as diferenças no uso das várias formas são explicadas justamente em termos do seu grau de retenção de antigos usos modais ou aspetuais e de especialização no uso do “simple future or prediction” e da existência de usos modais que derivam de um desenvolvimento semântico tardio deste valor temporal. Deste ponto de vista, a propriedade mais saliente do futuro românico é a sua disponibilidade para expressar valores modais que coexistem com a função temporal. Um destes usos, denotador do valor modal, é o uso epistémico que expressa uma predição sobre uma situação presente, que é interpretada como uma expressão de probabilidade.

1. relações temporais Apresentamos a seguir, embora sem pormenorizar todos os seus fundamentos teóricos, a proposta de Rojo e Veiga (1999). Para estes autores o tempo linguístico é bidirecional e, portanto, um acontecimento linguístico pode ser considerado anterior, simultâneo ou posterior a outro. Seguindo a linha de Bull (1960), Klum (1961) e Rojo (1999: 2876), podemos contemplar estas relações temporais como vetores (V) e convir que –V simboliza a anterioridade, oV a simultaneidade, e +V a posterioridade. O ponto central de todas as relações chama-se O (de ‘origem’). Assim, as três relações inicialmente possíveis de um acontecimento com um ponto zero são representáveis mediante as fórmulas O – V para o anterior à origem (vetor negativo = anterioridade), OoV para o simultâneo à origem (vetor zero = simultaneidade), e O + V para o posterior à origem (vetor positivo = posterioridade). A aparente existência de relações temporais mais complexas não procede do aumento dessas possibilidades iniciais, mas da sua encadeação numa série teoricamente ilimitada de escalões (conjuntos). Dito de outra forma, qualquer ponto, orientado com respeito à origem, pode-se tornar uma referência em relação à qual se situa um acontecimento que é, assim, orientado diretamente para a referência e, apenas indiretamente, relativamente à origem. Assim, Rojo e Veiga apresentam as fórmulas (O−V) −V, (O−V) oV y (O−V) + V, que correspondem aos acontecimentos que são, respetivamente, anterior, simultâneo e posterior a outro acontecimento que por sua vez é anterior à origem.

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1.1 realização básica de conteúdo temporal cantaré (es)/ cantarei (pt) – valores retos Vejam-se os seguintes exemplos: (1) Mi hija tocará harpa en el concierto mañana. (2) A minha filha tocará harpa no concerto amanhã. Tanto em ES como em PT as expressões verbais que correspondem à realização de um dos conteúdos temporais mais simples, que é uma orientação simples medida diretamente desde o ponto origem (O), são as formas cantaré e cantarei; tendo em vista a orientação temporal primária, diretamente enfocada a partir do centro de referências do sistema, expressam as relações de posterioridade. A fórmula para as duas formas, tanto em ES e em PT, seria (O + V).

1.2 realização básica de conteúdo temporal cantaría (es)/ cantaria (pt) – valores retos Falaremos agora sobre a posterioridade dentro do vetor original negativo. As formas cantaría e cantaria expressam relações temporais bivetoriais que incluem sempre um vetor originário negativo. Em ambas as línguas em questão podemos observar, como propõem Rojo e Veiga (1999: 2884), o que ocorre entre cantaré y cantaría e cantarei e cantaria: todas estas formas são paradigmas que expressam primariamente posterioridade; a diferença entre elas consiste em que a primeira (cantaré, cantarei) o faz em relação à origem e a segunda, porém, relativamente a um ponto anterior à origem. Vejamos os seguintes exemplos: (3) (4) (5) (6)

Dice que su hija tocará harpa en el concierto mañana. Dijo que tocaría harpa en el concierto del día siguiente. Diz que a sua filha tocará harpa no concerto amanhã. Disse que a sua filha tocaria harpa no concerto amanhã.

O + V (O − V) + V O + V (O − V) + V

Em (3) e (5) trata-se da realização básica de conteúdo temporal, representável pela fórmula O + V. É óbvio que no caso da forma cantaría/cantaria, que se apresentam nos exemplos (4) e (6), o elemento decisivo que estabelece o lugar desta forma verbal no sistema do espanhol, tal como no sistema do português, é a expressão de uma situação posterior a uma referência anterior à origem e não a orientação dessa situação relativamente à origem.

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2. usos deslocados A deslocação pode ser concebida como uma reorganização dos conteúdos temporais que aporta uma reorganização paralela dos conteúdos modais. Assim, explicam Rojo e Veiga (1999: 2894) que a ‘deslocação temporal’ das formas verbais pode ser vista como um mecanismo mediante o qual, por exemplo, as formas adquirem valores adicionais. Defendem estes autores que é necessário diferenciar, para todas as formas, entre um ‘valor reto’, que é o valor que responde às fórmulas que lhes fornecemos até agora, e uns ‘valores deslocados’ que aparecem sistematicamente como consequência da expressão de um valor temporal distinto do reto.

2.1 primeiro e segundo casos de deslocação Veja-se os seguintes exemplos: (7) Ahora estará encantado en la playa. (8) Iría encantado a la playa, pero no creo que puedo (9) Agora andará pelas praias portuguesas. (10) Andaria pelas praias portuguesas (se pudesse). 2.1.1 aquisição de um valor modal de incerteza A definição do primeiro caso geral de deslocação seria: é a aquisição de um valor modal de incerteza por parte das formas em cujo valor reto intervém um vetor de posterioridade. Assim, no sentido temporal, em espanhol, – cantaré pode expressar a relação ‘presente’ e – cantaría pode expressar as relações ‘pretérito’ e ‘co- pretérito’. Os valores modais adquiridos são o valor de incerteza. O exemplo (7) é o exemplo do uso do futuro pelo presente e neste exemplo observase que o vetor de posterioridade é substituído por outro de simultaneidade, acrescentando o valor modal de incerteza ou suposição no presente. Neste exemplo existe um desajuste entre o valor central (posterioridade) e a relação temporal expressa (simultaneidade), como consequência deste desajuste aparece um valor modal adicional de probabilidade, de incerteza no passado. Em PT (9) encontramos o mesmo fenómento de deslocação e detetamos os mesmos efeitos: o vetor de posterioridade é substituído por outro de simultaneidade, observa-se o valor modal de incerteza ou suposição adquirido.

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2.1.2 aquisição de um valor modal de irrealidade A definição do segundo caso geral de deslocação seria: é a aquisição de um valor modal de irrealidade por parte das formas verbais em cujo valor reto intervém algum vetor de anterioridade unido a algum vetor de posterioridade. Assim, a forma cantaría pode ser utilizada para expressar a mesma relação temporal que constitui o uso reto de canto. O processo paralelo experimenta a correspondente forma composta. O valor modal adquirido é o valor modal de irrealidade. Em (8), o exemplo espanhol, iría implica no voy, e, (10), o exemplo português, andaria implica não ando: a relação temporal efetivamente expressa neste caso é ‘presente’. Ficam suprimidos os vetores originários de anterioridade e os primários de posterioridade, criando, o processo de deslocação, o conteúdo modal de irrealidade.

3. notas conclusivas Realizada a análise, podemos verificar que a resposta à nossa hipótese inicial é positiva. Tanto em ES como em PT encontramos os dois casos de deslocação com as respetivas consequências, como proposto na teoria de Rojo e Veiga. Verificamos, com Rojo e Veiga (1999: 2895), que o primeiro caso de deslocação, conducente a matizes modais de incerteza, é exclusivo, tanto em ES como em PT, daquelas formas verbais de indicativo em cujo valor temporal reto intervém obrigatoriamente algum vetor de posterioridade e que aquelas são cantaré, cantaria / cantarei, cantaria e as suas correspondentes formas compostas. Quanto ao segundo caso, conducente a matizes modais de irrealidade, este pode aparecer em certas formas indicativas em cujo valor temporal reto intervém obrigatoriamente algum vetor originário de anterioridade, em concreto, nas formas indicativas cantaría / cantaria. As conexões entre canto e cantaré / canto e cantarei ou entre cantaba e cantaría / cantava e cantaría, em relação ao ponto de referência (o presente e o futuro coincidem no facto de o seu valor temporal se estabelecer diretamente sobre o ponto de origem; o imperfeito e o condicional coincidem no facto de a sua relação temporal se medir em relação a um ponto anterior à origem), permitem-nos justificar tais usos deslocados. Estas mudanças não são aleatórias, e, de acordo com Rojo y Veiga (1999: 2896), nem todas as formas verbais do espanhol e do português atuais admitem a possibilidade de experimentar uma deslocação. Para isso, existe uma razão dentro do sistema. O facto de as formas de futuro, com o vetor temporal de posterioridade, tanto em ES como em PT, tendo suprimido a marca temporal, passarem a ter o valor de incerteza, é concordante com o valor de probabilidade, eventualidade, não factualidade que toda a forma de futuro expressa. Que seja precisamente o futuro, e não outro tempo verbal, o recurso verbal que expresse probabilidade no presente, tampouco surpreende, dado que os tempos verbais, o futuro e o presente, têm em comum, em ambas as línguas em questão, o ponto de origem.

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bibliografia Bello, Andrés. Gramática de la lengua castellana destinada al uso de los americanos, I, II con las notas de Rufino José Cuervo. Estudio y edición de Ramón Trujillo. Madrid: Arco Libros, 1847/1988. Briz Gómez, Antonio. Notas sobre los llamados usos temporales “dislocados” en la conversación coloquial. In: Estudios de lingüística (Ejemplar dedicado a: el verbo). Alicante: Publicacions de la Universitat d’Alacant, 2004, 43–54. Bull, Wiliam E. Time, Tense and the Verb. A Study in Theoretical and Applied Linguistics, with Particular Attention to Spanish. Berkeley: University of California Press, 1968. Bybee, Joan et al. The Evolution of Grammar. Tense, Aspect, and Modality in the Languages of the World. Chicago: University of Chicago Press, 1994. Campos, M. Henriqueta Costa. Tempo, aspecto e modalidade. Estudos de linguística portuguesa. Porto: Porto Editora, 1997. Cunha, Celso – Lindley Cintra, L. Nova gramática do português contemporâneo. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1984. Markič, Jasmina – Correia, Clara Nunes (eds.). Descrições e contrastes – tópicos de gramática portuguesa com exemplos contrastivos eslovenos/Opisi in primerjave. Poglavja iz slovnice portugalskega jezika s kontrastivnimi ponazoritvami v slovenščini. Ljubljana: Znanstvena založba Filozofske fakultete, 2013. Oliveira, Fátima. Tempo e aspecto. In: Mateus, M. Helena et al. Gramática da língua portuguesa (5.ª ed.). Lisboa, Caminho, 2003, 129–178. Rojo, Guillermo – Veiga, Alexandre. El tiempo verbal. Los tiempos simples. In: Bosque, Ignacio – Demonte, Violeta (eds.). Gramática descriptiva de la lengua española. Madrid: Espasa, 1999, 2867–2934.

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testamento de d. afonso ii: 800 anos do primeiro documento escrito em português

Olga Saprykina Universidade Estatal Lomonossov de Moscovo Rússia Resumo: O testamento de D. Afonso II (1214) é o primeiro documento escrito em português. Na tradição jurídica em Portugal até ao séc. XIII usou-se o testamento romano. O Testamento afonsino pode ser considerado como um extraordinário exemplo da linguagem literária e como uma forma nova da cultura escrita da nobreza medieval. Palavras-chave: testamento; diploma; grupos semântico-lexicais; toponímia; arcaísmos; frases estereotipadas O Testamento de D. Afonso II (1214) é o primeiro documento escrito em português e foi elaborado em Coimbra em junho de 1252 pelo calendário espanhol, i.e. no dia 27 de junho de 1214 pelo calendário europeu. A formação do primeiro testamento na língua materna (o português) é um evento do caracter histórico. Ao compor o testamento, Afonso II iniciou o grande processo da evolução da cultura escrita portuguesa que durou 800 anos. O Testamento já foi objecto da análise histórico-filológica [L.F. Lindley Cintra, 1963; Costa A., 1979; Martins A., 1985; Castro, 1991;]. Os pesquisadores analisaram os manuscritos do ponto de vista paleográfico, cronológico e local. Foram estudados os modelos ortográficos escolhidos por tabeliões. Com base na ortografia analizou-se a fonética da época. Há muitos trabalhos que foram dedicados ao vocabulário do Testamento, nomeadamente, às relações paradigmáticas nos grupos semántico-lexicais. Porém, os problemas do diploma medieval na perspetiva linguístico-cultural ainda não foram analisados detalhadamente. Sendo um homem de fraca saúde, Afonso II (1185–1223) tinha medo da morte prematura e fez o seu testamento aos 28 anos, no começo do quarto ano do seu reinado, dando ordens referentes aos seus bens e ao procedimento da transferência do poder.

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Afonso II nasceu na família do rei português D. Sancho I e da rainha D. Dulce de Aragão. Na história, o terceiro monarca português D. Afonso, ficou conhecido com três alcunhas O Gordo, O Gafo e O Crasso. De acordo com algumas hipóteses, o rei sofreu de uma doença incurável, a lepra, e, por isso, estava predestinado à morte prematura. O famoso cronista do século XV Rui de Pina dedicou a D. Afonso a sua grande obra Chrónica do muito alto e muito esclarecido príncipe D. Afonso II, terceiro rey de Portugal. Na crónica conta-se das dignidades do monarca, dos feitos dele, das complicadas relações na família e da dura doença. Logo depois de subir ao trono Afonso II começou um grande litígio com as irmãs Mafalda, Teresa e Sancha que, pelo Testamento do pai, teriam herdado castelos nas cidades de Montemor-o-Velho, Ceia e Alenquer com as terras adjacentes, e também títulos de rainhas. Afonso II, considerando o fracionamento feudal uma causa principal da fraqueza estatal, e não sendo defensor desta modalidade, tentou centralizar o poder. Depois da intervenção do Papa Inocêncio III as infantas foram privadas das terras, e nos respetivos castelos aquartelaram-se guarnições dos cavaleiros templários. As ordens religioso–militares exerciam na época do Afonso II um papel muito importante na vida política e cultural do país. Em 1211 Afonso promulgou, em Portugal, o primeiro códice das Leis Gerais e convocou em Coimbra as primeiras Cortes portuguesas, o parlamento medieval composto pelos nobres e clérigos. No ano de 1220 o rei começou o recenseamento – as Inquirições das terras e das outras mercês doadas aos nobres portugueses pelos reis de Portugal. O direito à propriedade foi confirmado nas Confirmações. A política externa e a diplomacia de Afonso visaram o reforço de soberania e do poderio em Portugal. O rei, prudente, evitou as ações decisivas; guardou a integridade das fronteiras com a Galiza e Leão. Na época de Afonso a reconquista continuou; as cidades de Alcácer do Sal, Borba, Vila Viçosa e Veiros foram definitivamente reconquistadas aos mouros. O exército português enviado por Afonso II combateu ao lado de castelhanos, franceses e aragoneses na batalha de Las Navas de Tolosa. Afonso foi casado com Urraca de Castela, filha do rei castelhano Alfonso VIII e de Leonor de Inglaterra, que era filha de Henrique II de Inglaterra e de Leonor de Aquitánia. Da sua avó materna, Urraca herdou a elegância, a inteligência e vários talentos. O casal tinha filhos, Sancho II e Afonso III, que, sucessivamente, reinaram em Portugal. O Testamento recebeu o estatuto de primeiro documento em português depois de acesas polémicas. Até ao ano de 1957 entre os primeiros diplomas em português figuraram Auto de partilhas (1192) e Testamento de Elvira Sanches (1193). Porém, Padre Avelino de Jesus da Costa [Costa, 1979] deu provas da prévia incorrecta datação dos dois diplomas, e sugeriu que os documentos fossem datados como feitos nos séculos XIII-XIV. A opinião do letrado logo foi compartilhada por outros pesquisadores. Dos 13 manuscritos do Testamento restam hoje apenas dois. Um manuscrito está guardado em Portugal, em Lisboa, e o outro em Espanha, em Toledo. O documento composto por D. Afonso chama-se (no original) carta, e é reproduzido em 13 cópias que deviam ser arquivadas em várias cidades da Península Ibérica:

iv. linguística

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E mandei fazer treze cartas cu aquesta tal una come outra, q(ue) p(er) elas toda mia mãda segia (con)p(ri)da, das quaes ten una o arcebispo d(e) Bragaa, a out(ra) o arcebispo de Santiago, a t(er)ceira o arcebispo de Toledo, a q(ua)rta o bispo do Portu, a q(ui)nta o de Lixbona, a sexta o de Coĩb(ri)a, a septima o d Evora, a octaua o de Uiseu, a nouea o maestre do Tẽplo, a dezima o p(ri)or do Espital, a undezima o p(r)ior de Santa Cruz, a duodecima o abade d Alcobaza, a t(er)cia dezima facer guarda en mia reposte. Até hoje não ficou bem claro, se o Testamento de 1214 foi redigido em latim e depois traduzido para português. Supõe-se, porém, que primitivamente teria sido preparada a minuta do Testamento e depois, segundo o rascunho, o conteúdo foi exibido em português e transmitido em varias cópias. O conteúdo do diploma elaborado pelo Rei é definido como mãda i.e., ordem, disposição. Pela composição morfológica mãda (ant.) legado, deixa (o substantivo derivado do verbo mandar) se correlaciona com o mandamento. A estrutura morfo-fonológica da palavra-chave faz supôr que Afonso II considerasse o documento como um diploma de preceitos semelhantes aos que constituem o Decálogo. Na tradição jurídica em Portugal até ao séc. XIII usou-se o testamento romano no qual se nomeavam os herdeiros do testador que apresentava disposições acerca dos seus bens ou de parte deles depois da sua morte. Além da nomeação dos herdeiros, D. Afonso II incluiu no Testamento as disposições do caráter não patrimonial: mandou oferecer dízimas por sua alma nos mosteiros, soltar todas as dívidas que tinha, pedir ao Papa, como padre e senhor, que defendesse a rainha, os filhos e o reino, celebrar os aniversários dele nas igrejas e nos mosteiros. Assim o rei – testador declarou: –

disposições referentes ao reino e à nomeação de testamenteiros e de tutores: e ssi eu for morto, rogo o apostoligo come padre e senior e beigio a t(er)ra ante seus pees q(ue) el recebia en sa comẽda e so seu difindemẽto a raina e me(us) filios e o rein. E ssi eu e a raina formos mortos, rogoli e pregoli que os meus filios e o reino segia en sa comẽda; – disposições referentes às doações nos mosteiros: e mãdo que a raina dona Orraca agia a meiadade de todas aquelias cousas mouils que eu ouuer a mia morte, exetes aquestas dezimas que mãdo dar mia alma e as outras que tenio en uoontade por dar por mia alma e non as uiier a dar; – disposições relativas ao pagamento das dívidas: Da outra meiadade solten ende primeiramente todas mias devidas e do que remaser fazam en tres parte e as duas partes agia meus filios e mias filias e departiase entre eles igualmente – disposições referentes ao enterro e  celebração da missa das almas: e mado que den a meu senior o papa III morauidiis, a Alcobaza II morauidiis por meu aniuersario, a Santa Maria de Rocamador II morauidiis por meu aniuersario, a Santiago de Galicia II CCC morauidiis por meu aniuersario, ao moesteiro de San Gurge D morauidiis por meu aniuersario, ao moesteiro de San Uicete de Lixbona D morauidiis por meu aniuersario, aos caonigos de Tui mille morauidiis por meu aniuersario. E rogo que cada un destes aniuersarios fazam sepre no dia de mia morte e fazam tres comemoraziones en tres partes do ano e cada dia fazam cantar una missa por mia alma por sepre.

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O vocabulário do Testamento é muito rico, contém vários grupos léxico-semânticos, a saber: nomes da família, nomes de instituições e autoridades eclesiásticas, numerais e nomes de várias unidades de medida, nomes toponímicos e designações do espaço e antropónimos, designações de datas de rituais, acontecimentos e celebrações, documentos, benefícios, etc. No Testamento dá-se uma atenção especial às instituições da igreja. Nota-se que o papel da igreja católica é superior à força e à influência das autoridades profanas. Entre os nomes de instituições e autoridades eclesiásticas encontram-se apostoligo, papa, arcebispo, bispo, abade, cabidoo, caonigos, maestre, feires, prior, espitaleiros, tẽpleiros. Sendo o testador, D. Afonso II encarrega o Papa (o Sumo Pontífice) de vigiar o cumprimento do seu testamento. No texto do Testamento o testamenteiro principal tem duas referências: como apostoligo e como Papa. Apostoligo é o primeiro nome da suprema autoridade eclesiástica, referida no Testamento. Apostoligo < lat. apostolicus, < gr. ἀπόστολος missionário, propagador, um dos doze discípulos de Jesus, < de ἀποστέλλω mando, envio. No texto do Testamento o termo apostoligo tem o significado o chefe da Igreja Católica-romana eleito por um conclave, Santíssimo Padre: e ssi eu for morto, rogo o apostoligo come padre e senior e beigio a t(er)ra ante seus pees q(ue) el recebia en sa comẽda e so seu difindemẽto a raina e me(us) filios e o reino. Actualmente o termo apostoligo caiu em desuso.Os títulos modernos do Papa são os seguintes: Episcopus Romanus, Vicarius Christi, Successor principis apostolorum, Caput universalis ecclesiae, Pontifex Maximus, Primatus Italiae, Archiepiscopus ac metropolitanus provinciae ecclesiasticae Romanae, Princeps sui iuris civitatis Vaticanae, Servus Servorum Dei. Ao lado do apostoligo fica outro termo – papa (< lat. pappa, < gr. pappas). Na opinião de Joan Coromines, este termo usa-se na igreja católica a partir do século III, e desde o séc. V emprega-se ao referir o primaz da Igreja. O papa-testamentiro é Inocencio III (1198–1216): [E mado que den a meu senior o papa III morauidiis ]. Arcebispo < lat archi.piscopus, < от греч. ἀρχή – começo и ἐπίσκοπος – velador, vigia – prelado que tem bispos sufraganeos. Arcebispo exerce as suas funções em arcebispado. D. Afonso menciona dois arcebispos dos arcebispados de Braga e de Santiago de Compostela: [(...) a q(ui)nta den por mia alma o arcebispo de Bragaa e o arcebispo de Santiago]. Bispos são prelados, padres, chefes de dioceses. D. Afonso confere as atribuições aos bispos do Porto, de Lisboa, de Coimbra, de Viseu, de Lamego, de Idanha, de Évora e de Tui. A topografia afonsina no Testamento inclui, assim, cidades de Portugal (do norte ao sul) e da Galiza. Outros nomes das autoridades eclesiásticas abade, cabidoo, caonigos, maestre, freires são relacionados com a descrição da vida monástica. Há alguns mosteiros que desempenham um papel muito importante na vida do rei: o mosteiro de Alcobaça, ao qual Afonso II ordena enviar o seu corpo [u mando geitar meu corpo], os mosteiros de São Jorge e de São Vicente em Lisboa [ e mãdo que den... ao moesteiro de San Gurge

iv. linguística

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D m(o)r(auidiis) por meu aniu(er)sario, ao moesteiro de San Uicete de Lixbona D m(o)r(auidiis) por meu aniu(er)sario], os mosteiros de Évora e de Santa Cruz [E mãdo q(ue) den ao maestre e aos freires d’Euora D m(o)r(auidiis) por mia alma (...); e o q(ue) remaser daq(ue) sta mia t(er)cia mãdo que segia partido igualmẽte en cinq(ue) partes... A outra ao moesteiro de Santa Cruz...]. D. Afonso indica várias ordens militares – a de Tẽpleiros (Templários) e a de Espitaleiros (Hospitaleiros) – como aos seus herdeiros [e o q(ue) remaser daq(ue)sta mia t(er)cia mãdo que segia partido igualmẽte en cinq(ue) partes... a terceira aos Tẽpleiros, a quarta aos espitaleiros...]. O testador fala também dos freires de Palmela, onde residia a Ordem de Santiago da Espada (Espatários) que recebeu Palmela como doação de Afonso Henriques [ao comendador e aos freires de Palmela D m(o)r(auidiis)]. Fiel católico, D. Afonso II pede para celebrar o seu aniverário em Santa Maria de Rocamador: e mãdo que den... a Santa Maria de Rocamador II m(o)r(auidiis) por meu añiu(er)sario. Segundo uma crónica da peregrinação de Henrique II, o Plantageneta, avô de Urraca, a esposa de Afonso II, no santuário de Santa Maria de Rocamador que serviaa Nossa Senhora representada como Virgem Negra (Madona Negra) desde tempos imemoriais, foi encontrado o corpo incorrupto de Amador. Supostamente, Amador (Amadour) era Zaqueu, um dos discípulos de Cristo. No século XII, S. Bernardo ofereceu a imagem de Nossa Senhora de Rocamador ao templo primitivo de Santa Maria de Marvila (ou de Santarém). Segundo a crença da época, Nossa Senhora de Rocamador operou muitos milagres, um dos quais foi descrito na Cantiga CCCXXXI das “Cantigas de Nossa Senhora” de Alfonso X, o Sábio. São muito importantes no Testamento os termos que nomeiam autoridades administrativas, que indicam o estatuto social da pessoa ou apresentam laços familiares: rei, raina, infante, don, dona, comendador, caualeiros, riquos omees, leigos, mia molier, filio barõ, maior filio, maior filia, sa madre, meu padre. No Testamento ganham muita relevância os termos económicos e financeiros, proporcionando espaços de economia medieval: dizimas, luctuosas, mouil,morauidiis (maravedi-moramitino). A maioria destes termos são, hoje, arcaísmos. Conforme o “Elucidário das palavras” de J. de Santa Rosa de Viterbo, loitosa (luctuosa, luytosa), por exemplo, era peça ou pensão que se pagava pela morte de alguma pessoa, que por direito ou costume a deve, e só entre o luto e o funeral se liquidava: e outrossi mãdo das dezimas das luctosas e das armas e dout(ra)s dezimas q(ue) eu tenio apartadas en tesouros per meu reino, que eles as departiã assi como uirẽ por derecto. Na perspectiva retórica o texto do Testamento tem fórmulas estereotipadas e repetições que são típicas para o discurso de chancelaria. Têm origens na cultura escrita latina. Os bordões marcam – o inicio do texto (iniciais): En o nome de Deus. Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temete o dia de mia morte, a saude de mia alma e a proe de mia molier raina dona Orraca e de meus filios e de meus uassalos e de todo meu reino fiz mada per que depos mia morte mia molier e meus filios e meus uassalos e todas aquelas cousas que Deus mi deu en poder sten en paz e en folgacia – nexos dentro do texto: assi como suso é nomeado; como suso é dito

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espaços temporais: ata en mia morte e depos mia morte; e ssi no tẽpo de mia morte meu filio ou mia filia que no meu logar que deuier a reinar nõ ouuer reuora, segia en poder da raina sa madre e de meus uassalos ata quando agia reuora – invocação: rei Don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal – o final do texto: e forũ feitas en Coimbria IIII. dias por andar de Junio, E(ra) M.CC.L.II. O Testamento de D. Afonso II, sendo o primeiro documento escrito em português, pode ser considerado como um extraordinário exemplo da linguagem literária e uma forma nova da cultura escrita da nobreza medieval.

bibliografia Castro, Ivo. Curso de história da língua portuguesa. Lisboa: Universidade Aberta, 1991. Cintra, Luis Filipe Lindley. Les anciens textes portugais non littéraires. Classment et bibliographie. Revue de Linguistique romane. Vol. XXVII, 40–58. Costa, Avelino de Jesus da. Os mais antigos documentos escritos em português. Disponível em: http:// cvc.instituto-camoes.pt/hlp/biblioteca/estudos_de_cronologia.pdf.

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tradução de expressões idiomáticas portuguesas para a língua checa

Anna Veverková Universidade Carolina em Praga República Checa Resumo: As expressões idiomáticas são unidades complexas que trazem um sentido composicional, e normalmente, não é fácil traduzi-las para outras línguas. Às vezes, são até definidas como unidades intraduzíveis em termos de preservação de todas as suas qualidades, mas a prática mostra que, numa grande parte dos casos, existe um tipo de equivalente na língua de destino. O artigo seguinte introduz uma pesquisa básica ao problema. Palavras-chave: expressão idiomática; tradução; corpus paralelo

introdução As expressões idiomáticas (EI) pertencem à área da língua chamada discurso repetido; ao contrário do discurso livre, onde as palavras são escolhidas e compostas numa frase no momento da fala (normalmente segundo as correspondentes regras combinatórias gramaticais e semânticas), no caso do discurso repetido, trata-se de conjuntos estáveis de palavras com uma função determinada pelo uso146. Estes conjuntos são indivisíveis e entram numa frase como unidades prontas com uma certa função sintática e uma estável combinação de valores semânticos. Em comparação com as unidades do discurso livre e regular, as EI possuem certas qualidades específicas. Usualmente, representam uma quebra das regras combinató-

146 Vilela, Mário. As expressões idiomáticas na língua e no discurso. In: Actas do Encontro Comemorativo dos 25 anos do Centro de Linguística da Universidade do Porto, vol. 2, 2002, p. 159–160.

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rias tanto formais como semânticas, o que lhes dá uma expressividade elevada. Essa expressividade faz com que os falantes da língua utilizem as expressões idiomáticas sobretudo na língua falada, no jargão jornalístico e em obras literárias, aparecendo mais raramente na linguagem oficial, em textos científicos, etc. Ao usar uma EI em vez dos meios da língua regular, o falante enriquece o seu discurso do ponto de vista formal e ao mesmo tempo põe uma maior ênfase nas suas atitudes, expressa mais facilmente as emoções. O significado de uma EI não é a soma dos significados dos seus componentes, e, por isso, os componentes não costumam ser tidos em conta nos casos de análises comuns: Here it is fairly safe to adhere to one of the most favoured semantic approaches to idioms, based on the fact that their meaning is not amenable to analysis, decomposition; the meaning of their component parts is not additive (that is, the sum of their meanings is not amenable to analysis because these meanings do not add up to the semantic total of the idioms as a whole) (Čermák, 2007: 177).

Contudo, logo que a expressão faça parte de um texto mais complexo, a situação muda consideravelmente. O falante escolhe com frequência a expressão não só por causa do seu significado e expressividade, mas também por razões formais, as qualidades fonéticas da expressão, e às vezes por causa das conotações ligadas, por exemplo, a um dos componentes da expressão, que podem ser especialmente convenientes na situação e enriquecer o texto. Podemos observar isso mesmo, particularmente, em textos literários e jornalísticos, cujos autores usam frequentemente vários trocadilhos como um instrumento estilístico muito eficaz. Dos factos supramencionados percebe-se que as EI são unidades muito complexas e difíceis de ser traduzidas para outras línguas. Por isso, decidi fazer uma pesquisa prática do problema da tradução das EI nos textos literários portugueses para a língua checa, com a questão principal – “Em que proporção de casos é que os tradutores conseguem encontrar uma EI apropriada e como procedem quando não a encontram?” Antes de apresentar os resultados da pesquisa, vou começar com uma breve introdução teórica ao problema.

aspetos tradutológicos Segundo Jiří Levý147, a importância de diversos aspetos do texto pode ser mais ou menos forte devido ao tipo do texto, e isso também influencia os requisitos da tradução do texto. Em cada comunicação distinguem-se elementos invariáveis (i) que devem manter-se na tradução, e variáveis (v), que podem ser alterados ou até omitidos em interesse dos primeiros. 147 Levý, Jiří. Umění překladu. Praha: Ivo Železný, 1998, p. 24.

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iv. linguística

O autor distingue no esquema vários estilos de texto, incluindo por exemplo também poesia (verso livre e regular), libretos musicais ou dobragem. O esquema mostra que a importância da preservação de vários aspetos do texto na tradução difere consideravelmente dependendo dos estilos. Num extremo, encontramos o estilo informativo com o significado denotativo sempre em primeiro lugar. No outro extremo, fica a dobragem em que a qualidade e a quantidade, bem como o modo de articulação, têm a maior importância e a exatidão de interpretação do significado denotativo até pode ser sacrificada em favor delas.

estilo informativo

prosa publicística e retórica

prosa artística e drama

verso livre

verso regular

texto musical (libreto)

dobragem

Esquema de elementos variáveis e invariáveis em vários tipos de texto. LEVÝ, Jiří, Umění překladu (A arte de tradução), 1998

significado denotativo

i

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significado conotativo

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valor estilístico da palavra

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composição sintática

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repetição de qualidades fonêticas (ritmo, rima)

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quantidade e qualidade de vogais

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modo de articulação

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i

O objeto da minha pesquisa foi o estilo literário prosaico, em que as qualidades acústicas não são completamente insignificantes, mas a sua importância é secundária. Do esquema, bem como da experiência geral, podemos concluir que na tradução de prosa literária é muito importante que o tradutor mantenha, na medida do possível, não só o significado denotativo, mas também as conotações ligadas à expressão do texto original e, por último, mas não menos importante, o nível estilístico das expressões usadas e do texto como uma unidade complexa. As EI são, na maioria de casos, nominações alternativas a construções do discurso livre148, o que quer dizer que podem exprimir os mesmos, ou idênticos, valores semânticos. Presume-se que quando um escritor usa uma EI na sua obra, faz isso com a intenção de não só exprimir o sentido, mas também de colocar o texto num certo nível estilístico. E por isso, para a tradução ficar o mais fiel possível à obra original, o tradutor tem que tentar traduzir as EI com adequadas expressões muito semelhantes da língua de destino. Por outro lado, não é desejável usar uma EI a todo custo. Apesar de esta parecer um equivalente, pode ter um diferente valor expressivo, nível estilístico, ou por exemplo uma diferente função sintática, e caso seja enxertada na tradução, pode causar mais danos que benefícios.

148 Vilela, Mário. Op. cit., p. 161.

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Quanto a situações na tradução, podem-se distinguir três tipos principais149: 1) Equivalentes absolutos, que têm em dada situação comunicativa a mesma função em todos os aspetos importantes: – formal, – denotativo, – conotativo, – pragmático, – estilístico. Ex.: a cereja no topo / em cima do bolo agulha num palheiro brincar com o fogo

třešnička na dortu jehla v kupce sena zahrávat si s ohněm

2) Equivalentes parciais, que diferem parcialmente da expressão na língua original num ou mais dos aspetos mencionados – em termos de fraseologia são especialmente estas as EI que têm um correspondente sentido denotativo e valor expressivo, mas diferem quanto aos componentes e à estrutura sintática. Ex.: capar o gato que bicho te mordeu? fazer a vista grossa

prásknout do bot co tě to popadlo? přimhouřit obě oči

3) equivalentes zero, ou seja, uma situação em que não é encontrada uma EI adequada na língua de destino. Caso não exista um equivalente idiomático, o tradutor pode exprimir, e em regra exprime, os significados condensados na EI através dos meios do discurso livre. Contudo, isso resulta frequentemente num considerável crescimento quantitativo da frase, em especial se a situação se repetir regularmente ao longo do texto. Às vezes, o tradutor pode, pelo contrário, recorrer a uma omissão, isso, porém, só poderá suceder em situações raras, quando o conjunto dos valores semânticos da expressão não é indispensável para uma boa compreensão do texto. A missão do tradutor é encontrar o equilíbrio entre as várias soluções para criar um texto com carácter idêntico ou muito semelhante ao da obra original. Em casos específicos é possível usar um calco linguístico – traduzir a EI palavra por palavra, apesar de a expressão resultante não se encontrar fixa na língua de destino. Em geral, é possível traduzir uma expressão com um calco quando o significado da expressão é bastante transparente, ou quando o contexto ajuda ao leitor a percebê-lo. O uso de calcos é um dos fenómenos que têm a ver com a difusão das expressões entre 149 Knittlová, Dagmar et al. Překlad a překládání. Olomouc: Univerzita Palackého v Olomouci, Filozofická fakulta, 2010: 39–42. Uma tipologia geral adaptada ao problema da EI.

iv. linguística

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línguas; um exemplo para todos é a domesticação de expressões inglesas em várias línguas do mundo (ex.: This is not my cup of tea. – Não é a minha chávena de chá. – Tohle není můj šálek čaje.). Numa das partes seguintes deste artigo vou dedicar atenção a alguns exemplos de tradução por calco que encontrei durante a pesquisa.

pesquisa prática O objetivo da pesquisa foi saber qual é a proporção de ocorrência das supramencionadas situações nas traduções checas de obras literárias escritas em português. A pesquisa consta de duas partes. A primeira parte é baseada no InterCorp, um corpus paralelo do Instituto do Corpus Nacional Checo150, que recolhe livros escritos na língua portuguesa e as suas traduções checas. O corpus contém livros brasileiros e portugueses, escritos e traduzidos em vários períodos, e os resultados refletem, portanto, a situação numa perspetiva bastante ampla. A pesquisa das EI no corpus tem as suas especificidades. É necessário ter em conta que apesar de serem unidades fixas, ao entrar num contexto podem sofrer várias alterações, por exemplo por razões de flexão nominal e verbal, ou mudanças de ordem das palavras. Procurei cerca de trezentas EI portuguesas frequentes e comparei-as com as correspondentes partes das traduções checas. Muitas das expressões não se encontravam no corpus, outras repetiam-se, e o resultado final é uma lista de cento e doze ocorrências de várias expressões. Avaliando o tipo de equivalente usado pelo tradutor em cada caso particular, tive em conta também o contexto das expressões. Entre os casos de EI equivalentes (EI ≈ EI) são incluídas não só as expressões completamente idênticas, mas também aquelas que são muito semelhantes no significado, nos componentes e na construção sintática. Em 40 casos, o tradutor usou uma EI equivalente ou muito semelhante, em 52 casos uma outra EI, e só em 18 casos teve que descrever a situação por meio do discurso livre. Duas das expressões foram traduzidas por um calco – elas vão ser tratadas separadamente, junto com as outras ocorrências dessa situação . No quadro seguinte mostram-se os exemplos de vários tipos de situações escolhidos.

150 InterCorp, projeto de corpora paralelos [online]. Disponível em: . Data de acesso: 20. 8. 2014.

známý svět by se rozpadl v prach a vstoupili bychom do jiného Máte v tom zelenou

PdN PdN S

quando um homem teme morrer sozinho como um cão

Ela retomou o fio de sua narrativa.

o mundo conhecido cairia por terra e entrar se-ia noutro

CdPA

HD

Diz me cá, de coração nas mãos

sentira desaparecer o negrume que lhe tapava o Céu; agora via tudo azul

Očividně kvete!

PdN

tendo metido a vaidade no rabo e o rabo entre as pernas, voltou à presença do meretíssimo Presidente do Tribunal de Justiça PB

PB

vai te indo p’ro olho da rua

D

HD

fique parado, à espera que o fruto lhe caía na boca

Prospera a olhos vistos!

PdN

Necessitava, para isso, trazê-lo de rédea curta

Gastaram se rios de saliva a discutir

Poslyš, řekni mi upřímně

GS

valiam o que pulga pula

cítila, jak mizí černé mraky, které jí zakrývají nebesa. Nyní viděla všechno modře.

Vyplýtvaly se potoky slin v dohadech

když musil odložit svou domýšlivost a schlíple se vrátil k nejctihodnějšímu prezidentu Nejvyššího soudu

koukej, ať už jsi venku

stojí a čeká, až mu budou lítat do huby pečení holubi

Proto mu potřebovala přitáhnout opratě

nestojí za zlámanou grešli

přichází s těmi řečičkami, aby se vlk nažral

PdN PdN

Você tem carta branca

vinha com essa conversa para boi dormir

Navázala nit svého vyprávění

když se muž bojí, že umře sám jako pes

Uvědomte si jen, že člověk v Lisaboně je jako jehla v kupě sena

CdPA

Olhe que um homem em Lisboa é agulha em palheiro

Tradução checa

Fonte

EI portuguesa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

x

x

x

EI equivalente

 

 

 

 

 

 

x

x

x

x

x

x

 

 

 

Outra EI

 

 

x

x

x

x

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Descrição não idiomática

x

x

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Calco linguístico

256

257

iv. linguística

PdN Os pastores da noite CdPA O crime do padre Amaro GS Grande sertão HD O homem disfarçado PB Primo Basílio D O delfim S  O silêncio

EI ≈ EI EI ≠ EI EI ↔ X EI ≈ X

- traduzido com EI equivalente - traduzido com outra EI - traduzido por meio do discurso livre - traduzido com calco linguístico

Como as EI são uma área imensa da língua, nunca será possível fazer uma lista de todas, por mais que extensiva seja, e também é praticamente impossível fazer uma escala das expressões mais frequentes. Portanto, as 300 EI escolhidas não são as expressões mais frequentes – somente um conjunto daquelas que ocorrem bastante frequentemente, escolhidas de uma maneira mais ou menos arbitrária. Tomando em conta essa limitação, decidi adicionar uma outra parte à pesquisa, e tentei encontrar todas as EI no livro O que diz Molero, que foi recentemente traduzido para checo151. Neste caso a procura tive um único limite; não sendo uma falante nativa de português, existia um certo risco de eu não ser capaz de reconhecer todas as expressões. Ainda assim, excluindo as numerosas expressões não estáveis inventadas pelo autor do livro, encontrei 45 EI na versão portuguesa, das quais 10 são traduzidas para checo com uma expressão equivalente, 19 com uma outra EI, 13 com uma descrição não idiomática e 3 com um calco. A classificação foi um pouco difícil em dois dos casos que se encontram marcados com um asterisco no quadro seguinte – vou mencioná-los a seguir juntamente com os calcos. EI português

Tradução checa

magro que nem um palito

hubený jako párátko

x

 

 

 

não há dinheiro que os pague

jsou k nezaplacení

x

 

 

 

muda de tom

mění tón

x

 

 

 

não percebia patavina do que estavam a dizer

nerozumí ani za mák tomu, o čem mluví

 

x

 

 

despedindo-se à francesa

zmizel po anglicku

 

x

 

 

cai redondo

natáhne se jak dlouhý tak široký

 

x

 

 

vê-se à rasquinha

je v úzkých

 

x

 

 

bêbado que nem um cacho

opilý pod obraz

 

x

 

 

151

EI equivalente

Outra Descrição não EI idiomática

Machado, Dinis. Co tvrdí Molero. Traducão de Vlastimil Váně. Praha: Dauphin, 2011.

Calco linguístico

258

corria tudo à vassourada

všechno to hnal ranami koštěte pryč

 

 

x

 

bronquite levada da breca

příšernou bronchitidu

 

 

x

 

gosto de dar dois dedos de conversa

rád si drobet poklábosím

 

 

x

 

levou uma bofetada

dostal facku

 

 

x

 

encharcado que nem zmáčený jako kuře um pinto

*

 

 

*

dá saltos de canguru

skáče jako klokan

*

 

 

*

berrava como um vitelo desmamado

řval jako telátko odstavené od struku

 

 

 

x

Os calcos são casos especiais que merecem uma atenção elevada. Os dois primeiros provém do corpus, os três seguintes foram encontrados no livro de Dinis Machado. 1) Gastaram-se rios de saliva a discutir – Vyplýtvaly se potoky slin v dohadech A tradução checa não é transparente nem conota qualquer EI checa. Na língua checa existe uma expressão sinónima, plýtvat dechem (≈ gastar ar), mas a imagem conotada ao calco da versão portuguesa é muito esquisita para os falantes checos, enquanto os Portugueses provavelmente já nem realizam o seu significado literal. No entanto, dentro do contexto não é difícil imaginar a situação descrita, e a tradução, apesar de atrair atenção a si, cumpre o seu objetivo. 2) sentira desaparecer o negrume que lhe tapava o Céu; agora via tudo azul – cítila, jak mizí černé mraky, které jí zakrývají nebesa. Nyní viděla všechno modře. O equivalente checo de (ver) tudo azul é normalmente vidět všechno růžově (cor-de-rosa). Porém, como no original português essa expressão é introduzida com uma imagem da menina a olhar o céu subitamente livre de nuvens escuras, o tradutor supostamente não quis quebrar essa imagem com uma expressão que contém uma outra cor – e decidiu usar um calco. 3) berrava como um vitelo desmamado – řval jako telátko odstavené od struku Um caso de natureza semelhante ao prévio; apesar de na língua checa existirem comparações estáveis para “chorar, berrar”, nenhuma delas tem uma força suficientemente expressiva e a imagem complexa que a EI portuguesa evoca, o que motivou o tradutor a recorrer ao calco que funciona muito bem dentro do texto. 4) dá saltos de canguru – skáče jako klokan Essa comparação não costumava ser uma EI checa em termos de estabilidade, mas os falantes checos já a aceitaram, de tal maneira que se tornou bastante frequente e portanto também estável, e pode ser tratada como uma parte da fraseologia checa

iv. linguística

259

e jamais como um calco; o caso mostra bem as dificuldades que surgem ao tentar encontrar a fronteira entre os discursos livre e repetido. 5) encharcado que nem um pinto – zmáčený jako kuře A expressão checa zmáčený jako kuře é uma tradução palavra por palavra da EI portuguesa, mas é difícil decidir se realmente se trata de um calco. A expressão, nessa forma, não é fixa na língua checa, mas é, obviamente, uma variação da EI zmáčený/ zmoklý jako slepice (galinha), e podia ser classificada como uma EI equivalente.

conclusão Como foi constatado, o processo de traduzir é muito complexo e a tarefa do tradutor não é focar-se em expressões particulares, mas mediar uma imagem fiel da obra como um todo. O objetivo da pesquisa, portanto, não foi avaliar a qualidade das traduções, mas saber quais são os meios que os tradutores usam para essa mediação. É também importante ter em conta o enorme aumento da acessibilidade de informações através das novas tecnologias ao longo dos últimos vinte anos. Os tradutores do tempo antes da “revolução da Internet” tinham mesmo que conhecer muito profundamente a língua e a cultura do país da obra original para reconhecerem as referências à realidade cultural e as várias figuras e trocadilhos linguísticos, o que levava, inevitavelmente, a um maior risco de más interpretações de partes particulares do texto original. Esse risco naturalmente não desapareceu e é provável que nunca desaparecerá; os tradutores precisam sempre de ter conhecimentos amplos. Mas o desenvolvimento das últimas duas décadas tem facilitado o processo de procura de informações, e em caso de dúvidas, existem incomparavelmente mais oportunidades para procurar e verificar, entre outros, também as expressões idiomáticas. Os resultados mostram que na maioria de casos o tradutor conseguiu encontrar uma EI equivalente, ou com uma função adequada. Nos casos em que não foi encontrada uma EI correspondente e adequada e o tradutor teve que recorrer aos meios do discurso livre, acabou por usar uma palavra ou expressão do léxico coloquial, ou até do calão, e, deste modo, atingiu uma expressividade semelhante à da expressão original. Não foi encontrado um único caso de omissão, o que confirma as opiniões teóricas que falam sobre omissão como uma solução extrema usada somente em casos muito específicos.

260

bibliografia Čermák, František. Frazeologie a idiomatika česká a obecná (Czech and general phraseology). Praha: Karolinum, 2007. Knittlová, Dagmar et al. Překlad a překládání. Olomouc: Univerzita Palackého v Olomouci, Filozofická fakulta, 2010. Levý, Jiří. Umění překladu. Praha: Ivo Železný, 1998. Machado, Dinis. Co tvrdí Molero. Traducão de Vlastimil Váně. Praga: Dauphin, 2011. Neves, Orlando. Dicionário de expressões correntes. Lisboa: Not cias Editorial, 1999. Santos, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas: português. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 2000. Vilela, Mário. As expressões idiomáticas na língua e no discurso. Actas do Encontro Comemorativo dos 25 anos do Centro de Linguística da Universidade do Porto. Vol. 2, 2002, 159–189. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/. Data de acesso: 15–09–2014. InterCorp, projeto de corpora paralelos. Disponível em: http://ucnk.ff.cuni.cz/intercorp/. Data de acesso: 20–08–2014.

iv. linguística

261

a oposição no âmbito dos prefixos portugueses sub-/so(b)- vs sobre-, supra- e romenos sub- vs supra-

Claudia Vlad, Irina Lupu Universidade de Bucareste Roménia Resumo: Situado dentro da área da morfologia derivacional, o presente trabalho pretende analisar, a partir de uma perspetiva românica, como é que os processos morfológicos influenciam as relações semânticas, criando pares opositivos a partir de palavras independentes e palavras delas derivadas com os prefixos provenientes das preposições latinas sub e supra/super em Português e em Romeno. A análise circunscreve-se ao modelo generativo, em sincronia, associativo e estratificado de Danielle Corbin, que pressupõe uma permanente interdependência entre a forma e o conteúdo das palavras derivadas. Palavras-chave: morfologia derivacional; semântica; oposição

1. enquadramento teórico 1.1 palavras construídas A formação de palavras com pt. sub-/so(b)- vs sobre-, supra- e ro. sub- vs supra- pressupõe diversos tipos de fenómenos morfológicos e semânticos correlacionados, que nos propomos salientar e esclarecer no presente trabalho. Tendo em conta que se trata de palavras derivadas (construídas), explicitaremos a seguir a direção de análise escolhida. O termo palavra construída, usado neste trabalho, é ligado ao modelo sincrónico, associativo e estratificado152 proposto por Danielle Corbin em 1987 (e aperfeiçoado durante muitos anos). O modelo baseia-se nas seguintes ideias: 152 O modelo estratificado pressupõe uma hierarquia entre regularidades, irregularidades e idiossincrasias. Segundo Corbin o papel da morfologia é identificar os processos regulares (a regularidade é fundamental). Ao mesmo

262

a) Na formação de uma palavra, o sentido da palavra é construído em simultâneo com a sua estrutura morfológica, sendo o sentido sempre previsível a partir da sua estrutura morfológica. Também se afirma que a forma de uma palavra construída é transparente a partir do seu sentido. A ideia central deste modelo é a relação obrigatória entre os fenómenos morfológicos e semânticos. Por isso, trata-se de um modelo associativo e não dissociativo153. Le sens d’un mot construit est construit en même temps que sa structure morphologique, et compositionnellement par rapport à celle-ci. La représentation grammaticale doit refléter cette construction simultanée de la structure et du sens (Corbin, 1991a: 9).

b) Cada afixo tem associado um sentido. Um sentido pode corresponder a um ou mais afixos, mas existe uma única relação categorial entre a base e a palavra construída, e um único sentido (composicional) da palavra construída em relação à base ou associado a um paradigma de operações morfológicas. C’est l’instruction sémantique des affixes qui détermine leur instruction catégorielle, laquelle s’adapte aux propriétés des bases auxquelles elle s’applique (Corbin, 1999: 66).

c) Corbin descreve a operação derivacional (OD), efetuada por uma regra de formação de palavras, como: OD = 1 OS + 1 RC + n OM. Assim, uma operação derivacional reúne várias noções para poder definir todas as propriedades previsíveis, não idiossincráticas, da palavra que ela constrói. Segundo esta definição, a OD (operação derivacional) implica uma OS (operação semântica = uma (única) relação de sentido que, praticamente, combina o sentido da palavra base com o sentido do afixo, surgindo, assim, o sentido da palavra construída composicional) associada à uma única RC (relação categorial) às quais correspondem várias OM (operações morfológicas).“n OM” no esquema proposto indica que algumas operações morfológicas diferentes podem ser reunidas e vistas como equivalentes porque a base e o derivado cumprem a mesma relação categorial e a mesma relação de sentido. Por exemplo, uma operação derivacional poderia reunir os nomes sufixados em -mente e em -agem (dois sufixos, duas operações morfológicas) pelo facto de serem derivados de verbos (única relação categorial V→N) e de denominar a ação correspondente ao verbo. Um paradigma de operações morfológicas é associado a uma regra de formação de palavras (RFP). Por exemplo, em português, a sufixação com -agem e a conversão criam palavras de tipo: acostagem, centragem, compra e indicam ‘ação de V’ (ato ou efeito de acostar, centrar, comprar), enquanto a sufixação com -al

153

tempo é preciso criar uma teoria relativa às excepções: L’hypothèse fondamentale est que les opérations s’appliquent de façon hiérarchisée en fonction de leur caractère plus ou moins prédictible et plus ou moins régulier, les moins réguliers étant toujours subordonnées aux plus réguliers (Corbin, 1990: 55). Nos modelos dissociativos o sentido é visto separadamente da estrutura morfológica (em segundo lugar), resultado da ação das regras interpretativas. Ex.: Jackendoff (1975), Aronoff (1976).

iv. linguística

263

cria palavras como: comercial, artesanal, cerebral, dental, parafraseáveis como ‘relativo a N’ (relativo ao comércio, artesanato, cérebro, dentes). Une règle de construction de mots (RCM) associe une structure morphologique mettant en jeu un rapport catégoriel (orienté) entre deux et seulement deux catégories lexicales semblables ou différentes, une opération sémantique et un ensemble d’opérations morphologiques non combinables entre elles en nombre supérieur ou égal à 1 (Corbin, 1987: 257).

d) Para Corbin a operação derivacional tem pouvoir prédictif. Para estabelecer uma OD é preciso identificar uma RC e uma OS (isto é procurar os pares base-derivado que esta RC e esta OS podem ligar), deduzindo as várias OM que acionam a OD. Uma OS supõe uma única RC, mas uma RC pode acompanhar diferentes OS. Cada OS determina uma OD e associa-se a um número de OM. Isto significaria que a forma do produto derivado é previsível a partir do seu sentido e o derivado, uma vez construído formalmente, tem necessariamente o sentido previsto. No que diz respeito aos prefixos portugueses sub-/so(b)- vs sobre-, supra- e romenos sub- vs supra-, acreditamos que há uma certa regularidade observável nos dois idiomas românicos, embora possam apresentar várias leituras, devido às divervas combinatórias morfológicas, semânticas e sintáticas.

1.2 a oposição O domínio da oposição será estabelecido a partir dos trabalhos de Lyons (1977), Cruse (1986) e Croft & Cruse (2004). Lyons faz uma classificação das relações de oposição, utilizando como termo genérico a palavra contraste154. Dentro da área do contraste evidenciam-se duas categorias: a oposição, que se refere ao contraste binário, e o contraste não binário, que é representado pelos conjuntos ordenados em série ou ciclicamente (Lyons, 1977). Como as palavras construídas com os prefixos pt. sub-/so(b)- e sobre-/ supra- e ro.: sub-/supra-, podem constituir pares binários, o que nos interessa neste estudo é delimitar os tipos de oposição que se podem estabelecer entre as palavras. Croft & Cruse (2004: 166–167) identificaram quatro fatores essenciais da oposição: o caráter binário intrínseco, a pureza da oposição155, a simetria entre os dois membros156, o registo e a expresividade157. Com base nas condições mencionadas, o contraste

154 “Contrast will be taken as the most general term, carrying no implications as to the number of elements in the set of paradigmatically contrasting elements” (Lyons, 1977). 155 O par opositivo macho:fêmea entra numa relação de oposição mais relevante do que o par homem:mulher, que, por seu turno, entra numa relação contrastiva mais relevante do que o par tio:tia. 156 As palavras gigante:pequeno, mesmo se fizerem parte do mesmo paradigma, não são dispostas simetricamente, a partir do mesmo ponto de referência, ao passo que grande:pequeno têm esta propriedade. 157 Cruse utiliza como exemplo a palavra mucky, que, mesmo se for em oposição com a palavra clean, é restringido a certos registos, ao passo que a oposição entre clean:dirty é adequada, indiferentemente do contexto.

264

binário corresponde às categorias seguintes: complementaridade, antonímia, oposição direcional, reciprocidade e reversão158. A complementaridade torna-se visível em pares de palavras como os seguintes: pt. verdadeiro:falso, vivo:morto, homem:mulher / ro. adevărat:fals, viu:mort, bărbat:femeie. Do ponto de vista da lógica tradicional, estes pares entram numa relação de contradição. Os dois elementos dos pares não podem ser simultaneamente verdadeiros, nem simultaneamente falsos. Portanto, os enunciados (1) e (2) não podem coexistir. O mesmo se aplica às orações (3) e (4). (1) pt. A Maria é mulher. / ro. Maria este femeie. (2) pt. A Maria é homem. / ro. Maria este bărbat. (3) pt. A Maria não é mulher. / ro. Maria nu este femeie. (4) pt. A Maria não é homem. / ro. Maria nu este bărbat. As palavras que se encontram em relação de complementaridade dividem de maneira exclusiva e exaustiva um domínio em dois subdomínios autónomos. Como consequência, não são graduais e não implicam elementos intermediários. Aplica-se o princípio “tertium non datur”. Contudo, pode haver uma variação contextual ou uma occorência excepcional que altere a dicotomia dos complementares. O hermafrodita representa uma tal variação pelo par homem:mulher (Lyons, 1977). Cruse (2004: 168) menciona também a possível instabilidade da dicotomia dos complementares dependente do contexto. As palavras dead:alive, podem ser utilizadas na linguagem quotidiana com um sentido que se afasta da significação inicial das palavras. Uma frase do tipo John is dead, nem sempre significa que John seja realmente morto, mas, dependendendo do contexto, pode significar que John fica numa situação incerta. É por isso que a comparação – normalmente não admitida – é possível neste caso (5). (5)

A: Is John dead? B: No, he’s very much alive.

O segundo tipo de oposição é representado pela antonímia. Da categoria dos antónimos fazem parte palavras como pt. longo:curto, grande:pequeno / ro. lung:scurt, mare:mic. São palavras que pertencem ao mesmo domínio conceitual, como os adjetivos graduais e os verbos de estado, que denotam certos valores de uma propriedade numa escala, entre dois pólos. Do ponto de vista da lógica tradicional, este tipo de oposição situa-se no âmbito da contrariedade. Duas entidades não podem ser simultaneamente verdadeiras, mas podem ser simultaneamente falsas. Um outro tipo de contraste binário é a oposição direcional (Lyons, 1977 e Cruse, 1986), que pode ser exemplificada por pares como os seguintes pt. em cima:em baixo, ir:vir, partir:chegar / ro. sus:jos, a pleca:a sosi. Todas estas palavras se relacionam com 158 A complementaridade e a antonímia aparecem em Lyons (1977), Cruse (1986) e Croft & Cruse (2004), ao passo que a reciprocidade e a oposição direcional aparece em Lyons (1977) e Cruse (1986) e a reversão aparece só em Croft & Cruse: 2004.

265

iv. linguística

realidades extralinguísticas que pressupõem a locação ou a locomoção dos objetos. Há dois tipos de oposições direcionais: a oposição ortogonal (perpendicular) – pt. norte:oeste, leste / ro. nord:vest,est e a oposição antipodal (diametral oposta) – pt. norte:sul, leste:oeste / ro. nord:sud, est:vest. A reciprocidade representa também um tipo de contraste binário (Cruse, 1986 e Lyons, 1977), sendo uma oposição relacional e podendo ser exemplificada por pares de palavras como pt. vender:comprar, pai:criança / ro. a vinde:a cumpăra, părinte:copil. Este tipo de relação já não aparece no trabalho de Croft & Cruse (2004). Os linguistas argumentam o facto de não terem escolhido a reciprocidade como uma das relações básicas da oposição da seguinte maneira: Many are good opposites, but the position taken here is that their oppositeness is not a necessary consequence of their being converses, but arises from other factors (for instance, the oppositeness of the direction of transfer of goods and money in buy and sell) (Croft & Cruse, 2004: 166).

Os dois linguistas optaram, em vez disso, por um outro tipo de oposição: a reversão. Os pares que Croft & Cruse (2004) identificam como reversos, pt. subir:descer, vestir:despir / ro. a urca: a coborî, a îmbrăca: a dezbrăca. Todos estes verbos descrevem mudanças de estado, tendo o mesmo ponto de referência, mas observa-se uma relação de contrariedade dentro dos pares.

2. as palavras construídas com os prefixos pt. sub-/so(b)- e sobre-/supra- e ro.: sub-/supraAinda que o estudo comparativo proposto para os prefixos indicados se centre numa visão sincrónica, temos de ter em conta a origem preposicional comum, dado que a relação semântica de oposição que se estabelece ao nível dos derivados foi herdada do latim. Partimos da observação de Amiot 2004, segundo a qual as preposições latinas sub, super, supra têm correspondentes nas línguas românicas, tanto os elementos autónomos (preposições), como os elementos não autónomos (prefixos). No que diz respeito ao português e ao romeno, este tipo de informação pode ser incluída no quadro seguinte: Latim SUB SUPER SUPRA

Português

Romeno

SUB-, SUPER-, SUPRA(elementos não autónomos, prefixos)

SUB-, SUPER-, SUPRA(elementos não autónomos)

SO(B)(-), SOBRE(-) (elementos não autónomos, prefixos) (elementos autónomos, preposições)

(SUB: elemento autónomo)

Nos dois idiomas analisados, há elementos que funcionam somente como prefixos: ro. pt. sub-, super-, supra-, e elementos que funcionam quer como prefixos, quer como

266

preposições: pt. so(b)(-), sobre(-) e ro. sub(-). Como Costa Nunes (2011: 223) observa (usando as palavras de Rodrigues Ponce, 2002), trata-se de alomorfes cultos: pt. sub-, super- e de alomorfes de evolução patrimonial: pt. so(b)(-), sobre(-) oriundos das preposições sub, super. Em romeno, não há formas de evolução patrimonial, somente formas cultas. Apoiando-nos nas palavras e observações de Costa Nunes, podemos dizer que, atualmente, em português, na criação de novas palavras deste tipo, os mais frequentes, dos prefixos mencionados, são o alomorfe culto sub- e o alomorfe de evolução patrimonial sobre: De facto, atualmente, apenas a prefixação por sub- se afigura como um processo de formação de palavras ativo, contrapondo-se àprefixação por so(b)-, prefixo incluído sobretudo em formas fortemente lexicalizadas (Costa Nunes, 2011: 223). O facto de, na generalidade, estes prefixos apresentarem as mesmas tendências de acoplagem, leva-nos a incidir a nossa análise sobre o alomorfo atualmente mais produtivo, sub-, estabelecendo a comparação entre este e o seu antónimo sobre-, prefixos que se inserem, de entre os prefixos em análise, no grupodos que detêm maior representatividade dicionarística (Costa Nunes, 2011: 224).

As preposições latinas sub e super/supra, das quais originam os prefixos pt. so(b)159-/ sub- e sobre-/supra-160e ro. sub-/supra-, estabelecem, do ponto de vista semântico, uma relação de inferioridade – superioridade espacial. Contudo, as palavras construídas com os prefixos provindos delas desenvolveram outros sentidos, fora do âmbito da espacialidade. Mas se assim for, será que o sentido de oposição se mantem? Susana Margarida da Costa Nunes (2011: 226) propõe uma classificação dos derivados com os prefixos de origem preposicional sub-/so(b)-, sobre-, supra- em português. Os prefixos podem ter um sentido espacial, sentido herdado das preposições latinas de que são oriundos, ou outros sentidos não espaciais: o sentido avaliativo, o sentido de inferioridade / superioridade hierárquica, o sentido da ordenação taxonómica e o sentido temporal. A seguir, veremos se os sentidos desenvolvidos pelas palavras construídas com os prefixos pt. sub-/so(b)- e sobre-/supra- e ro. sub-/supra- são os mesmos em romeno e se se pode falar de uma relação de oposição em todos os casos.

2.1 os prefixos pt. sub-/so(b)- e ro. subAnalisaremos separadamente os prefixos que exprimem a ideia de inferioridade e depois os que expressam a superioridade. Começaremos portanto com alguns exemplos 159 O prefixo so(b)- é pouco produtivo em português, e, por isso, a análise será feita com enfoque no prefixo sub-: “Atualmente, apenas a prefixação por sub- se afigura como um processo de formação de palavras ativo, contrapondose à prefixação por so(b)-, prefixo incluído sobretudo em formas fortemente lexicalizadas” (Costa Nunes 2011: 223). 160 Supra-encontra-se na mesma situação que so(b)-, sendo pouco produtivo em português. O nosso corupus mostra só duas occorências:supra-axilar – situado acima da axila das folhas (v. sobreaxilar), supra-sumo (o ponto ou grau mais elevado). Portanto a análise será feita com enfoque no prefixo sobre-.

267

iv. linguística

retirados do nosso inventário161 com os prefixos pt. sub-/so(b)- e ro. sub-, para depois continuarmos com algumas observações: pt. sub- / so(b)Inferioridade Inferioridade Ordenação espacial – hierárquica taxonómica posição[+material]

Inferioridade avaliativa

Sentido temporal

N

sublinha subtítulo subcorrente subenvasamento

subcomissário subdiretor subdelegado subdelegação subprefeitura subprefeito subinspetor

subafluente subcategoria subclasse subdialecto subgénero subseção subtipo

subalimentação subsequência subconsumo subdesenvolvimento subnutrição subpovoamento subprodução

A

subabdominal subclavicular subcostal subalpino subaquático sublunar subpolar

subdelegável subdelegado

subarbustivo subatómico subconsciente subcontratado subdivisível

subácido subsónico subagudo subgloboso subpovoado subhumano

subsequente

V

sublinhar

subdelegar subalugar subdirigir subarrendar subsecretariar subcontratar

subalimentar subaproveitar subestimar

subseguir

Inferioridade espacial – posição [+material]

Inferioridade Ordenação hierárquica taxonómica

Inferioridade avaliativa

Sentido temporal

N

subetaj subtitlu subtraversare subgrindă

subarendaş subdirector subfurnizor subinginer subcontractor

subansamblu subarboret substructură subcapitol subclasă subconcesionare

subliteratură subalimentare subapreciere subdezvoltare subestimare subevaluare

subexpunere

A

subacvatic subalpin subclavicular subcutanat subecuatorial subsaharian

subatomic subcelular subdivizat

subalimentat subdezvoltat subapreciat subponderal subfebril submarginal

subexpus

V

subtraversa

subdivide subîmpărți

subestima subfinanța subevalua

subexpune

ro. sub-

subcontracta

161 O inventário de palavras foi construído a partir dos dicionários DLPC e Priberam para português e DEX e DCR para romeno.

268

Como pode ser observado nas tabelas, os prefixos analisados não alteram a categoria da base. Tanto em romeno, como em português, sub- combina-se com bases diversas, simples e derivadas, sejam estas nominais (N), ou adjetivais (A), ou verbais (V). Faremos a seguir algumas observações sobre cada uma das categorias. I. Inferioridade espacial Tanto em romeno, como em português, sub- manifesta a tendência de se acoplar a bases adjetivais derivadas (bases que denominam partes do corpo humano, termos geográficos, etc.). As palavras derivadas expressam entidades situadas numa posição de inferioridade ao designado pela base nominal (N) – pt. subtítulo / ro. subtitlu –, a qualidade de algo situado numa posição de inferioridade ao designado pela base, no caso dos adjetivos (A) – pt. subaquático / ro. subacvatic – ou uma atividade que occore por baixo do denotado pela base verbal (V) – pt. subterrar / ro. subtraversa. II. Inferioridade hierárquica Sub- adiciona-se sobretudo a bases nominais162, com o valor [+humano]. As palavras bases e os derivados remetem para a ideia de cargo, função, departamento. As palavras derivadas expressam o grau inferior numa hierarquia social pt. subchefe, ro. subşef e entram em relação de hiponímia com as bases (o subdiretor é um tipo de diretor). III. Ordenação taxonómica O prefixo sub- manifesta a tendência de se acoplar a bases nominais. Também neste caso aparece a relação de hiponímia entre o que é designado pela base e o que é designado pela palavra construída pt. subafluente, ro. subafluent (o subafluente é um tipo de afluente). IV. Inferioridade avaliativa Observa-se uma preferência pelos verbos e derivados verbais. Os derivados exprimem a deficiência/insuficiência do expresso pela base, qualidade inferior (valor negativo): pt. subdesenvolvido, ro. subdezvoltat. V. Sentido temporal O sentido temporal constitui um valor pouco produtivo, tanto em romeno, como em português e relaciona-se com domínios técnicos.

2.2 os prefixos pt. sobre-/supra- e ro.: supraComo já foi mencionado acima, o português mantém o alomorfe de evolução patrimonial sobre- juntamente com o alomorfe culto supra-, enquanto, no romeno, só supra162 Nesta categoria sub- pode adicionar-se também a bases verbais ou adjetivais, derivadas de nomes que se referem a pessoas com um certo cargo ou função.

269

iv. linguística

é utilizado na criação de novas palavras. Ao analisar as ocorrências nos dicionários, observamos que há poucas entradas de palavras derivadas com supra- em português: supra-axilar – situado acima da axila das folhas (v. sobreaxilar), supra-sumo (o ponto ou grau mais elevado), supracitado – citado acima. Segundo a classificação de Costa Nunes (2011), os derivados podem orgarnizar-se de acordo com o que mostram os quadros seguintes: pt. sobreSuperioridade espacial – posição [+material]

Ordenação taxonómica

Superioridade hierárquica

Superioridade avaliativa

Sentido temporal

N

sobrearco sobressaia sobrecâmara sobrecapa sobreposição

sobrealcunha sobreapelido sobreaviso sobrecarta sobretaxa

sobrejuiz sobreárbitro

sobrecarga sobredosagem sobreconsumo sobrealimentação sobre-exploração

sobremanhã sobretarde sobre-estadia sobreexposição

A

sobreterrestre

V

sobrepor sobrevestir sobrevoar

sobreagudo sobre-eminente sobre-excelente sobreceleste sobrerrondar sobrenomear

sobre-explorar sobre-exaltar sobressaturar

sobre-expor

ro. supraSuperioridade espacial – posição [+material]

Ordenação taxonómica

Superioridade avaliativa

Sentido temporal

N

supracopertă supratipar supraetajare suprafaţare

supraproblemă suprastructură supratemă supraordinar suprainfécţie supralicitaţie supranume supraofertă

supradoză suprapopulaţie suprapreţ supratensiune supraevaluare supraîncălzire

supraexpunere supradevelopare

A

suprarenal supraadăugat supraetajat

supramolecular suprastructural supraordonat suprainfectat supranumit

supranatural supranormativ supracalificat

supraexpus supradevelopat

V

supraintitula suprapune supratraversa

supraordona supranumi

supraasalta supraestima supraevalua

supraexpune supradevelopa

O pt. sobre- e o ro. supra- combinam-se com bases diversas, simples e derivadas: N, A, V (sem modificar a categoria da base). Observámos que funcionam como sub-, sem

270

alterar a categoria da base. Em romeno aparecem séries do tipo: supra- + V/supra- + N (infinitivo longo)/supra- + A (particípio): supraevalua/supraevaluare/supraevaluat, supradimensiona/-are/-at, supraetaja/-are/-at, supraîncălzi/-ire/-it, supraîncărca/-are/-at, suprapune/-ere/us. I. Superioridade espacial Sobre esta categoria podemos dizer que os prefixos manifestam a tendência de se combinarem com bases nominais. As palavras derivadas expressam uma entidade situada numa posição de superioridade ao designado pela base (N) pt. sobrecapa, ro. supracopertă, a qualidade de algo situado numa posição de superioridade ao designado pela base (A) pt. sobreterrestre, ro. supraterestru, uma atividade que occore por cima do denotado pela base (V) pt. sobrepor, ro. suprapune. II.Superioridade hierárquica A categoria é pouco representada em português e não tem equivalente no romeno. As palavras incluídas nesta categoria apresentam o traço [+humano]: pt. sobrejuíz, sobreárbitro. III. Ordenação taxonómica Os derivados que entram nesta categoria são geralmente formados a partir de bases nominais. Identificámos um outro tipo de relação semântica entre a base e a palavra construída. Destacam-se neste sentido os exemplos do tipo: pt. aviso – sobreaviso, carta – sobrecarta; ro. infecţie – suprainfecţie, licitaţie – supralicitaţie que fazem referência a uma entidade suplementar (um sobreaviso pode ser interpretado como um aviso suplementar, uma sobrecarta como uma carta que vem após uma carta, tal como em romeno, suprainfecție é ao mesmo tempo um tipo de infeção e uma infeção suplementar e supralicitație é uma licitație, leilão adicional. IV. Superioridade avaliativa Observa-se uma preferência pelos verbos e derivados verbais. As palavras que entram nesta categoria referem-se à qualidade superior do que a expressa pela base pt. sobre-emintente, ro. supradotat. Mencionamos que sobre- , supra- podem adquirir valor avaliativo negativo. Nunes Costa assinala também este valor em português: Já o prefixo sobre-, porque denota, na sua base etimológica, superioridade, veicula, genericamente, uma avaliação positiva, podendo contudo, e frequentemente, ativar também uma avaliação de teor negativo, instanciada pela noção de excesso veiculada quer pela acoplagem do prefixo quer pela semântica da base (Costa Nunes, 2011: 230).

Neste sentido, os exemplos seguintes seriam relevantes: pt. sobrepopulação, sobrealimentação, sobrecarregar, sobreazedar, ro. supraaglomera, suprapopulare, supraconsum.Veja-se os seguintes contextos de utilização que extraímos dos corpora:

iv. linguística

271

(1) À frente desta estratégia, que recebeu o aval de Pequim, a braços com um grave problema da sobrepopulação, parece vir a ficar Ferro Ribeiro, por indicação do BPA (Cetem Público). (2) Simţeam că dacă mai aduceam un prieten, aş fi adus oraşul în pragul colapsului provocat de suprapopulare (Liternet, 31. 01. 2011).

3. a oposição nas palavras construídas com os prefixos pt. sub-/so(b)- e sobre-/supra- e ro.: sub-/supraTendo em conta as categorias analisadas, tentaremos ver a seguir quando se pode falar de reais relações de oposição e em que situações encontramos outras relações de sentido. No que diz respeito à superioridade/inferioridade hierárquica, as palavras analisadas ilustram uma relação de complementaridade. Exemplos como os seguintes mostram este tipo de relação de oposição: pt. subaxilar:sobreaxilar, supra-axilar / ro. subtraversa:supratraversa, subdominanta:supradominanta, subintitula:supraintitula, subteran :suprateran:. Os dois elementos dos pares não podem ser simultaneamente verdadeiros, nem simultaneamente falsos – os exemplos (1) e (2), e (3) e (4) a seguir não podem, portanto, coocorrer. (1) pt. O menino tem uma inflamação na zona subaxilar. / ro. Copilul are o inflamaţie în zona subaxilară. (2) pt. O menino tem uma inflamação na zona sobreaxilar. / ro. Copilul are o inflamaţie în zona supraaxilară. (3) pt. O menino não tem uma inflamação na zona subaxilar. / ro. Copilul nu are o inflamaţie în zona subaxilară. (4) pt. O menino não tem uma inflamação na zona sobreaxilar. / ro. Copilul nu are o inflamaţie în zona supraaxilară. Como é possível constatar pelos exemplos analisados, não podemos falar de uma relação de complementaridade em todos os casos. Nem sempre há pares a partir da mesma base para verificar a oposição. Às vezes as fontes lexicográficas atestam só uma das formas. Em romeno esta situação aparece frequentemente, como podemos ver nos seguintes exemplos: pt. subabdominal:*supra-abdominal, subepiderme:*supraepiderme, subtítulo:*subretítulo ro. subetaj: *supraetaj,supraetaja: *subetaja,sublingual: *supralingual, subecuatorial: *supraecuatorial. No que respeita à categoria de inferioridade/superioridade hierárquica, podemos dizer que contém poucos derivados com pt. sobre-, ro. supra-. Os derivados do tipo pt. subdiretor, ro. subdirector não tem correspondentes opositivos com supra-. Em portu-

272

guês, nestas categorias foram identificados derivados de tipo: sobreárbitro, sobrejuiz, mas eles não têm correspondentes antonímicos com sub-, *subárbitro, *subjuiz163. Quanto à ordenação taxonómica, em romeno existem pares que se integrariam neste grupo, como substructură/suprastructură. Mesmo assim, não se trata de uma relação de oposição, mas de hiperonímia/hiponímia entre o que é designado pela base e o que é designado pela palavra construída. Às vezes, os derivados com sub- criam pares opositivos com derivados com super-164. No caso da inferioridade / superioridade avaliativa, há exemplos que mostram uma relação de oposição, tais como pt. subalimentação:sobrealimentação, subavaliar:sobreavaliar, subestimar:sobrestimar / ro.subaprecia:supraaprecia, subevalua:supraevalua. Neste caso pode-se falar de uma relação de antonímia, tendo a palavra base um valor intermédio numa escala entre os pólos representados pelos derivados com sub- e supra-. As duas entidades, com sub- e supa-, não podem ser simultaneamente verdadeiras, conforme os exemplos (5),(6), mas podem ser simultaneamente falsas, como nos exemplos (7), (8). (5) pt. O professor sobrestima o aluno. / ro. Profesorul îl supraapreciază pe elev. (6) pt. O professor subestima o aluno. / ro. Profesorul îl supraapreciază pe elev. (7) pt. O professor não sobrestima o aluno. / ro. Profesorul nu îl supraapreciază pe elev. (8) pt. O professor não subestima o aluno. / ro. Profesorul nu îl supraapreciază pe elev. Em alguns casos, o semantismo da base tem um papel importante na inclusão dos derivados em certas categorias, como, por exemplo, nos casos dos derivados que apresentam o valor temporal: pt. subsequência, sobreexposição, ro. subexpunere, supraexpunere. Portanto, podemos concluir que há oposição no domínio das palavras construídas com com os prefixos pt. sub-/so(b)- e sobre-/supra- e ro.: sub-/supra-, mas também outras relações semânticas. É assim que se pode falar de relações de complementaridade – no caso da inferioridade / superioridade espacial – e antonímia – inferioridade / superioridade avaliativa –mas também de outras relações semânticas, como a hiponímia, no caso da superioridade / inferioridade hierárquica ou da ordenação taxonómica.

163 Isto acontece porque nestas categorias entram termos “a veicular uma informação taxonómica de subordinação denotacional, contribuindo assim para o estabelecimento de uma relação de hiperonímia/ hiponímia entre o que é designado pela base e o que é designado pelo produto. De facto, o denotado pelo derivado representa um subtipo ou um termo subordenado relativamente ao expresso pela base” (Nunes Costa 2011: 233). 164 “Note-se que, com esta aceção, sub- estabelece uma relação de antonímia direta com super-, variante prefixal correspondente à preposição latina super. De facto, com este sentido, “super- (em super- -estrutura ideológica) e sub- (em sub-espécie) são usados como denotadores de ordenação taxonómica de termos superordenados e subordinados, e não como avaliativos (super-herói e sub-facturar)” (Nunes Costa 2011: 233).

iv. linguística

273

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a situação atual dos crioulos de base lexical portuguesa na região da alta guiné

Barbara Hlibowicka-Węglarz Universidade Marie Curie Skłodowska, Lublin Polónia

Resumo: O presente estudo tem como objetivo apresentar a situação atual dos crioulos da região da Alta Guiné. Como não é possível separar os acontecimentos históricos das suas consequências linguísticas, propomos partir de uma curta apresentação das divergências e das convergências no processo de formação dos dois crioulos em questão, para evidenciar que a situação linguística que caracteriza a região da Alta Guiné hoje em dia é um reflexo de uma sociedade multilingue formada nas condições específicas que esta zona viveu nos séculos passados. Palavras chaves: língua crioula; o cabo-verdiano; o guineense

1. introdução A região da Alta Guiné tem a sua rica história relacionada com a história de Portugal a partir do século XV, tendo influência na formação de uma sociedade nova em que participaram os portugueses e os africanos. Do contacto entre europeus e escravos africanos, nos finais do século XV e no século XVI, resultou uma mestiçagem muito profunda. As condições sócio-históricas novas eram favoráveis a uma crioulização rápida que, em resultado, levaram à formação e, posteriormente, à estabilização de várias línguas crioulas. Os crioulos da região (o cabo-verdiano e o guineense) apresentam muitas afinidades entre si. São os mais antigos que se conhecem, formando a família dos crioulos portugueses de África, que deriva de um antepassado comum – o chamado proto-crioulo da África do Oeste.

iv. linguística

275

O presente estudo tem como objetivo apresentar a situação atual dos crioulos da região da Alta Guiné, tendo em conta que a situação linguística de uma dada região é sempre consequência de diversos processos históricos e sociais dos tempos passados. Como não é possível separar os acontecimentos históricos das suas consequências linguísticas, propomos partir de uma curta apresentação das divergências e das convergências no processo de formação dos dois crioulos em questão, para evidenciar que a situação linguística que caracteriza a região de Alta Guiné hoje em dia é um reflexo de uma sociedade multilingue formada nas condições específicas que esta zona viveu nos séculos passados.

2. condições sócio-históricas da formação dos crioulos da alta guiné Comecemos por analisar o processo de formação do guineense na região dos “Rios de Guiné”, quer dizer no território que nos séculos XV–XVII abrangia a Costa Africana desde Rio Senegal até à Serra Leoa. Essa região costeira era habitada por vários grupos étnicos africanos que falavam 25 línguas diferentes e pertenciam a duas das sete subfamílias da familia Niger-Kongo: subfamília Oeste-Atlântica e Mandé.

2.1 A Guiné foi descoberta em 1446 pelos navegadores portugueses, 16 anos antes da

descoberta das ilhas de Cabo Verde. Após a descoberta, os portugueses começaram a comercializar na costa africana, a bordo de navios, porque a ocupação mais efetiva da região era dificultada pela grande resistência à presença dos colonizadores. Com o tempo os portugueses começaram a construir os interpostos comerciais ao longo da costa ou à beira dos Rios para facilitar as atividades comerciais. As primeiras organizações administrativas na Guiné eram as praças e os presídios. As praças eram povoações fortificadas e armadas, enquanto os presídios eram praças de pequenas dimensões que tinham escassos meios defensivos. Por razões de segurança os interpostos comerciais e as praças foram construídos fora das aldeias dos povos africanos. Já no século XV funcionavam a Praça de Cacheu no Rio de Cacheu e o interposto de Santa Cruz de Guínala no Rio Grande. As praças de Ziguinchor, Farim, Fá, Geba e Bissau foram fundadas meio século depois. Por razão de escassez de recursos humanos e materiais, a Coroa Portuguesa não conseguia manter sob controle oficial todas as terras descobertas. Por isso, além das praças em que vivia uma sociedade portuguesa formada por descobridores, soldados, navegantes, comerciais e  missionários, foram construídos interpostos comerciais à margem da lei, fora do controle da administração central metropolitana, onde operavam agentes clandestinos, chamados lançados e grumetes. Os lançados serviram de intermediários entre os africanos e os comerciantes europeus. Viviam no meio dos africanos, adaptaram-se aos costumes locais, casavam-se com mulheres africanas, chama-

276

das tangomas, e da união destas com os lançados nasceram os filhos da terra, também conhecidos como mestiços, mulatos ou crioulos. Os lançados que constituíram a classe dominante nos primeiros núcleos de colonização, tinham auxiliares locais que receberam o nome de grumetes e que funcionavam como elemento de ligação entre os lançados e os africanos. Hildo Honório do Couto (1992: 109), crioulista brasileiro, nos seus numerosos trabalhos, defende a tese de que os verdadeiros agentes na formação do crioulo português na costa ocidental africana foram os lançados no seu contacto com os grumetes e os filhos da terra. O autor mencionado supõe até que o papel dos colonizadores europeus oficiais, assim como o dos escravos negros que viviam na periferia dos núcleos de colonização, foi apenas secundário.

2.2 Passemos à  análise das condições sócio-históricas que levaram à  formação do

crioulo de Cabo Verde, chamado cabo-verdiano. Nestas considerações temos de dar-nos conta de que enquanto a Guiné é um país costeiro continental, Cabo Verde é um país insular. As ilhas de Cabo Verde foram descobertas em 1462, no regresso a Lisboa das caravelas portuguesas vindas da região da Guiné. Como as ilhas se encontravam desabitadas, os portugueses começaram a povoar a ilha maior do arquipélago, Santiago, com os escravos das mais diversas etnias e línguas trazidos da costa ocidental de África, sobretudo da Guiné. Com o tempo a ilha de Santiago, particularmente a Cidade da Ribeira Grande, começou a funcionar como centro do tráfico escravocrata e entreposto dos escravos. Os negros eram capturados em grandes quantidades na costa ocidental de África, trazidos para a Ribeira Grande onde eram ladinizados, isto é, aculturados: instruídos e batizados, e depois reexportados para a Europa e para a América do Sul. Com o tempo, em Cabo Verde formou-se uma sociedade crioula: heterogénea e multilingue. Nesta sociedade nova em que o número de escravos negros era sempre mais elevado em relação ao número dos colonizadores brancos, o português tinha de ser a língua dominante como língua dos senhores. Os escravos falavam todas as línguas maternas deles, línguas de diversas origens das quais é preciso enumerar: o Mandinga, o Wolof e o Timené, línguas faladas na costa ocidental africana, e também na Guiné. Os negros pertenciam a várias etnias, mas nenhuma delas possuía a força suficiente para impor o seu próprio código linguístico. Além disso, os escravos negros encontraram-se dispersos (nas zonas urbanas, ou nas fazendas do interior), e tiveram poucas oportunidades de comunicar entre si. Nessas circunstâncias, os primeiros cabo-verdianos negros tiveram de forjar rapidamente uma nova língua para se entenderem. Nas condições acima apresentadas surgiu o crioulo que era fruto do encontro de diferentes culturas africanas com a cultura europeia dos colonizadores portugueses.

iv. linguística

277

3. situação atual dos crioulos da alta guiné Formadas no século XVI, as línguas crioulas de base lexical portuguesa na região da Alta Guiné caracterizam-se, atualmente, por uma grande vivacidade. Veremos qual é a situação atual dos crioulos acima mencionados na região da Alta Guiné, qual é o estatuto social deles, quais são as línguas com as quais concorrem. É interessante analisar também qual é a situação das línguas crioulas em relação ao português, que funciona nos países em análise como língua oficial. Vale a pena acrescentar ainda que as situações dos dois crioulos em questão (o guineense e o cabo-verdiano) são muito diferentes uma da outra, tomando em consideração o número de falantes de cada um dos crioulos, assim como o estatuto linguístico dos mesmos. Enquanto nas ilhas de Cabo Verde o crioulo está em contacto apenas com a língua portuguesa, o crioulo da Guiné-Bissau coexiste não só com o português mas também com uma grande variedade das línguas africanas autóctones. Vejamos primeiro, com mais pormenor, a situação linguística da Guiné-Bissau.

3.1 O facto de a língua portuguesa, língua oficial da Guiné-Bissau, língua da adminis-

tração e do ensino, ser falada apenas por 11,1 % da população, é muito significativo. Por sua vez, o crioulo, o guineense, tornou-se uma verdadeira língua nacional, falada por 44,3 % da população de cerca 1,7 milhões de habitantes. Além das línguas mencionadas, os habitantes do país usam mais de 25 línguas africanas, todas elas pertencentes a duas grandes famílias linguísticas: família Oeste-atlântica e família Mandé. Como se vê, a diversidade linguística da Guiné-Bissau é impressionante o que permitiu chamar este país de Babel Negra (SIMÕES, 1935). Scantamburlo (1999: 56) supõe que as línguas africanas faladas na atual Guiné-Bissau funcionaram no oeste africano antes de os Europeus terem chegado. No século XIII com a expansão do império do Mali o território da Guiné-Bissau estava sob a ocupação de vários grupos étnicos que se serviam de diferentes línguas africanas. Na altura era uma região muito rica, tendo participado no comércio de arroz, de sal e de vários produtos feitos à base de palmeira. Assim, esta grande diversidade linguística e cultural do país resulta de factos históricos: das invasões dos grandes impérios (Mali) e conquistadores africanos (Koli Tenguela), assim como das grandes migrações dos povos africanos que buscaram um lugar seguro para viver. Das línguas autóctones que desempenham um papel muito importante no panorama linguístico do país, sendo instrumento de comunicação da maioria da população, destacam-se as seguintes línguas: Balanta (24,5 %), Fula (20,3 %), Mandinga (10,1 %), Manjaco (8,1 %), Papel (7,2 %), Beafada (2 %), Bijagó (2 %), Mancanha (1,9 %), Felupe (1,5 %) e Nalu (0,3 %). As restantes línguas africanas faladas no país representam os grupos minoritários e integram entre algumas centenas e poucos milhares de locutores. A este grupo pertencem outras quinze línguas (por ordem alfabética): Baga, Baiote, Bambara, Banhuns, Cassanga, Cobiana (Coboiana), Jancanca, Jalofo (Wolof), Landumã, Mansonca, Padjadinca (Badjaranca), Saracolé (Soninké), Serere (Nhomincas), Sossos

278

(Jaloncas), Tandas, Timenés. Algumas delas, com o número de falantes muito reduzido, estão em via de extinção (p.ex.: Cassanga, Tanda, Sosso). É preciso acrescentar ainda que a grande maioria das línguas citadas pertence a uma família Oeste-atlântica, com exceção de: Bambaras, Mandinga, Saracolés (Jacancas) e Sosso (Jaloncas), pertencentes à familia Mandé. Intumbo (2007: 2) chama a atenção de que viajando pelo país, a cada 50 km entramos noutra zona cultural e linguística. Esta diversidade cultural encontra a sua explicação também na religião praticada nas diferentes regiões. É interessante notar que 50 % da população guineense pratica numerosas crenças africanas, 45 % da população são muçulmanos e apenas 5 % são cristãos. Os grupos étnicos do norte e do sul ocupamse da agricultura e são na sua grande maioria animistas. Os grupos do este são constituídos por muçulmanos que se ocupam de negócios e do pastoreio. Assim, tudo o que se disse confirma que a situação linguística da Guiné-Bissau é muito complexa e que constitui um exemplo de um verdadeiro mosaico de povos e culturas. Quando a independência da Guiné-Bissau foi reconhecida em 1974, começaram grandes migrações dos guineenses das pequenas aldeias para as cidades, assim como migrações do litoral para o interior do país em busca de melhores condições de vida. Neste contexto, a língua crioula – o guineense – voltou a desempenhar um papel muito importante como língua unificadora entre os grupos de diferentes etnias. Tornou-se uma verdadeira língua franca, língua veicular da região. O contacto do guineense com as diversas línguas africanas nas diversas regiões do país despoletou vários processos de relexificação. Em consequência formaram-se diferentes variedades do guineense, marcadas, em cada um dos casos, pelos elementos característicos das línguas africanas em contacto. Não se estranha, portanto, que o número de variedades atuais do guineense seja tão grande. Carolyn Benson (1994: 162) nas suas pesquisas demonstra que a maior parte dos guineenses, sobretudo os jovens, é bilingue, usa a língua crioula como segunda língua, juntamente com as suas línguas maternas africanas. Este bilinguismo ou até multilinguismo resulta da situação linguística que os alunos encontram no caminho de casa para a escola. Outros dados apresentados pela autora já citada informam que a língua crioula é usada sobretudo nos meios urbanos (p.ex.: Bissau 86 %, Baloma 79 %, Quinara 57 %)165, o que confirma uma grande mobilidade dos guineenses e as migrações das aldeias para as cidades. Assim, o crioulo integra cada vez mais diferentes grupos étnicos, funcionando como uma verdadeira língua nacional de comunicação. Tentemos, agora, perceber qual é a situação da língua portuguesa, língua oficial do país neste contexto. O português, usado na vida pública, na imprensa, na televisão e no ensino não ganhou uma grande expansão, sendo falado, como já foi referido, apenas por 11 % da população. Dos guineenses que se servem da língua portuguesa, só 1 % usa o português como primeira língua (L1), 3 % como segunda língua (L2) e 5 % como

165 Cf. Santos (1989: 298).

iv. linguística

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terceira língua (L3). Assim, os prognósticos para o futuro do português nesse país não são nada favoráveis. A principal diferença entre o crioulo e o português reside no estatuto dessas duas línguas. Enquanto o guineense, como já foi dito, funciona como língua veicular, língua usada na vida quotidiana, ganhando o estatuto de primeira ou de segunda língua dos guineenses (L1 ou L2), o português não tem acesso à vida familiar, da maior parte dos habitantes de Guiné-Bissau. Assim, as duas línguas em questão desempenham funções completamente diferentes na sociedade guineense. A situação descrita provoca numerosas discussões, sendo acompanhada muitas vezes da análise do sistema de ensino no país. As crianças guineenses que se servem em casa das suas línguas maternas africanas são obrigadas a usar na escola a língua portuguesa, língua que a maior parte dos alunos quase não compreende. Neste contexto, a pergunta que se impõe é a da possibilidade de substituir a língua portuguesa pelo crioulo, língua muito mais conhecida, e de ensinar o português como “língua estrangeira de um estatuto especial166” para ser usada nos contactos entre os países africanos e nas relações internacionais. Eis a voz de ministros dos países africanos de expressão portuguesa que discutiram o problema e constataram em Bissau: Atualmente a preocupação de grande número de africanos é a integração das suas línguas no desenvolvimento dos seus países, de modo que sejam um fator que nele participe. Mas nem por isso deixamos de ter necessidade das línguas europeias nas relações interafricanas, nas relações com o exterior em geral, e como meio de acesso a um certo tipo de conhecimento que as nossas línguas não escritas não podem transmitir.

Como se vê, os políticos não apresentam alguma intenção de eliminar a língua portuguesa das escolas, mas procuram para ela um estatuto especial na política de línguas. No entanto, é preciso mencionar que nem todos os políticos partilham a mesma ideia. Alguns deles consideram a língua portuguesa absolutamente indispensável no ensino, tomando em conta o facto de o crioulo ser uma língua sem tradição escrita, que não permite transmitir alguns conceitos abstratos. Os adeptos dessa teoria até propagam a ideia de inferioridade das línguas crioulas em relação a outras línguas naturais. Por consequência, a discussão dos últimos anos continua sem grandes alterações no sistema de ensino. A língua portuguesa continua a funcionar como um instrumento de ensino, como língua oficial, sendo necessária, como diz Quadé (1990: 8), “nas relações com o mundo exterior”. A situação descrita explica, de modo muito resumido, as razões que levam ao nível muito baixo do ensino na Guiné-Bissau. Para alterar esta situação desfavorável, seria necessário mudar de ideias acerca da importância do crioulo na sociedade e considerá-lo uma língua natural igual às outras. Mas estas alterações na mentalidade de muitas pessoas precisam de muito tempo ainda para se concretizarem. 166 Cf. Scantamburlo (1999: 64).

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3.2 Se nós compararmos a situação linguística na Guiné-Bissau com a situação que caracteriza Cabo Verde, constatamos que esta segunda é muito menos complexa. Na República de Cabo Verde funcionam apenas duas línguas: o português e o crioulo de base lexical portuguesa, isto é, o cabo-verdiano. A língua portuguesa tem o estatuto da língua oficial do país, é língua de ensino, usada em todos os contextos oficiais. É interessante reparar que 80 % da população cabo-verdiana fala português, o que constitui uma grande diferença em relação ao Guineense, falado apenas por 11 % da população do seu país. Uma outra diferença muito importante a notar é que 65 % da população dos cabo-verdianos se confirmam católicos e só 35 % representam as diferentes crenças africanas. A língua crioula do país, o cabo-verdiano, tem um grande prestígio na sociedade, é falado por todos os habitantes das ilhas, usado na comunicação quotidiana: em casa, no trabalho, em todos os contextos sociais. Quint-Abrial (2000: 167) caracteriza a coexistência das duas línguas mencionadas da seguinte maneira: Em Cabo Verde, o Português é a língua da escola e da administração e também a língua que escritores como Baltasar Lopes, Germano Almeida, e muitos outros, escolheram para falar da sua terra, e da gente que nela vive. No entanto, na sua vida quotidiana, o cabo-verdianos falam, pensam, amam, têm expectativas e experimentam emoções em crioulo.

Vale a pena acrescentar ainda que enquanto a língua portuguesa é usada sobretudo na versão escrita, o crioulo, na versão oral. Assim, em Cabo Verde estamos perante uma situação de diglossia que se baseia na presença do português e do crioulo de base lexical portuguesa. Embora o cabo-verdiano seja bem diferenciado, de lugar para lugar, é considerado uma língua crioula única. Manuel Veiga (1995: 29), um crioulista conhecido, declara sobre este assunto: Em Cabo Verde não há nove crioulos como alguns ingenuamente afirmam, mas um único crioulo, o qual atualiza-se em variantes dialetais.

Tomando em consideração o critério geográfico, podem-se distinguir em Cabo Verde dois grupos de variantes dialetais: variantes de Sotavento e variantes de Barlavento. Os crioulos de Sotavento abrangem as ilhas de Santiago, Maio, Fogo e Brava; os de Barlavento abrangem as ilhas de Boavista, Sal, São Nicolau, São Vicente e Santo Antão. O Santiaguense, um crioulo da ilha de Santiago, a mais antiga, é o mais representativo dos crioulos do primeiro grupo e é falado por 65 % dos habitantes do arquipélago. É um dos crioulos mais antigos que se formou no nosso planeta, crioulo que se caracteriza por influências africanas mais fortes em relação a outras variedades cabo-verdianas. Das variedades de Barlavento destaca-se a variedade de São Vicente, falada por 35 % da população. Relativamente ao critério social, reparamos também numa grande diferenciação das variedades dialetais faladas nas cidades e nas localidades mais pequenas, resultante do estatuto social dos seus locutores. Na mesma ilha, dependendo do lugar de habita-

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ção, pode-se ouvir as versões bem diferenciadas do crioulo. Lopes da Costa (2005: 37) cita alguns exemplos para evidenciar algumas das diferenças em questão: LP167: Na semana passada fui ao interior CCV (cidade de Praia): Simana passadu N ba fora. CCV (comundade rural): Sumana pasadu N ba fora.

O exemplo citado ilustra apenas uma diferença lexical no uso da palavra semana (simana, sumana). O exemplo seguinte demonstra as diferenças na estrutura do enunciado: LP: Estou a ir para Assomada. CCV (cidade de Praia): N sa ta ba Somada. CCV (comundade rural): N ai-a ta (ba) Somada.

O emprego do morfema ai que substitui o morfema sa é típico como a marca do aspeto progressivo. Os crioulistas falam ainda de outro critério de diferenciação das variedades dialetais do cabo-verdiano, que se baseia no grau de proximidade do crioulo da língua de prestígio, isto é, do português. Assim os linguistas distinguem: variedade de basileto (crioulo fundo), mesoleto e acroleto (crioulo leve). O crioulo na variedade de basileto encontra-se na ilha de Santiago, com as influências africanas mais profundas. É uma variedade menos influenciada por uma língua de contacto. A variedade de mesoleto é mais próxima do português e é falada nas grandes cidades em que o contacto com a língua portuguesa é mais intensa. A variedade de acroleto, a mais próxima da língua de prestígio, é falado pelos caboverdianos mais educados que não só conhecem a língua portuguesa mas também a usam na vida profissional. Como se vê, as variedades vão gradualmente do basileto ao acroleto, passando pelo mesoleto, e envolvem uma reestruturação da gramática e do léxico no sentido da apropriação dos padrões da língua dominante, isto é, do português168. Depois de ter apresentado a grande variedade do crioulo cabo-verdiano, é interessante chamar a atenção ainda para a diferença entre o estatuto do português e do crioulo. Como já foi mencionado, nas ilhas de Cabo Verde 80 % dos habitantes falam português. O português está presente na vida dos cabo-verdianos de todos os dias, embora não seja usado nos contextos familiares. Uma criança que começa a frequentar a escola na idade dos seis anos e é educada em português, já reconhece esta língua. É por isso que Lopes da Costa (2005: 43) propõe chamar a língua portuguesa de “língua estrangeira familiar oficial”. Como demonstram os dados citados, o estatuto do português em Cabo Verde é muito distante do da Guiné-Bissau. A língua portuguesa coexiste com o crioulo o que descreve Ramos (1983: 230), citando uma opinião do ministro da educação e da cultura: 167 LP – língua portuguesa, CCV – crioulo cabo-verdiano. 168 Cf. Műlhaűsler, 1986.

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... Estamos conscientes de que teremos de continuar a esforçar-nos por aprender o português com a maior correção possível. Por mais que estudemos o crioulo e procuremos dar-lhe um novo estatuto linguístico não podemos perder de vista que teremos necessidade de ser bilingues, dado que precisamos do português como língua de grande difusão internacional.

Como repara o ministro, é necessário compreender a importância do português neste país africano e, por isso, manter o bilinguismo nele existente. A língua portuguesa é pois indispensável nas relações internacionais e nos contactos com outros países africanos. Vale a pena acrescentar que a partir de 1998 o Ministério de Educação de Portugal fez esforços para manter a língua portuguesa nas escolas cabo-verdianas e garantir um certo nível de ensino, enviando professores de português para as ilhas, assim como equipando as bibliotecas das escolas com o material didático necessário. Mesmo com este apoio por parte dos portugueses, ainda há muito para fazer.

4. observações finais A análise dos dados que apresentámos no presente trabalho permitiu-nos chegar à conclusão de que o estatuto das línguas crioulas em análise, assim como as funções que elas desempenham na sociedade contemporânea em relação à língua oficial portuguesa são diferentes. Na Guiné-Bissau, o guineense integra a sociedade de numerosas etnias diferentes que se serve quotidianamente de mais de 25 línguas africanas. O português ocupa nesta sociedade apenas a terceira posição após as línguas étnicas e o crioulo. Vale a pena lembrar que o crioulo é falado apenas pelos habitantes de centros urbanos, não tendo usuários nas pequenas localidades e aldeias. Em Cabo Verde, a situação linguística é muito menos complicada tendo em conta que os habitantes falam apenas duas línguas que se completam: o crioulo e o português. A língua crioula, gozando de grande prestígio na sociedade, é falada em todos os contextos da vida familiar, o português, nos contextos oficiais. O cabo-verdiano que tem muitas variedades é disseminado no território de todo o país. A percentagem de população que se serve do crioulo e do português nos dois países em análise é também significativa. O cabo-verdiano é falado quase por todos os habitantes da sociedade cabo-verdiana (100 %), enquanto o guineense apenas por 44 % da população. A língua portuguesa é falada por 80 % de cabo-verdianos e apenas por 11 % de guineenses. A situação da Guiné Bissau, em que só 11 % fala português e 44 % fala crioulo, sugere a maior complexidade linguística deste país. De acordo com o que já foi dito, podemos concluir que a situação atual dos dois crioulos na região da Alta Guiné (o guineense e o cabo-verdiano) é consequência de diferentes processos históricos e sociais dos tempos passados.

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verbos e formas verbais irregulares em português e espanhol

Ildikó Szijj Universidade Eötvös Loránd de Budapeste Hungria Resumo: O objetivo da minha comunicação é apresentar certas irregularidades verbais do português, em comparação com o espanhol. Vou considerar o inventário dos verbos irregulares, bem como as irregularidades concretas. Apresento as irregularidades segundo os grupos de tempos que aparecem em várias gramáticas. Nalguns casos vou fazer também referência a factos diacrónicos, para explicar certas evoluções, em primeiro lugar no caso das formas portuguesas. Palavras-chave: morfologia verbal do português; comparação com o espanhol; perspetiva sincrónica e diacrónica

1. introdução O meu objetivo é apresentar certas irregularidades verbais do português, em comparação com o espanhol. Nalguns casos vou fazer também referência a factos diacrónicos, para explicar certas evoluções, em primeiro lugar no caso das formas portuguesas. A apresentação não pretende ser exaustiva, falando em primeiro lugar dos fenómenos em que podemos estabelecer certo paralelismo entre as duas línguas. Vou considerar o inventário dos verbos irregulares, bem como as irregularidades concretas. Entre estas considero em primeiro lugar os casos que apresentam uma qualquer coerência, ou porque a mesma irregularidade se repete em vários verbos, ou porque há uma qualquer relação entre diferentes formas verbais do paradigma dum mesmo verbo, isto é, trato as “regularidades” dos verbos irregulares. No que diz respeito ao inventário, em geral os verbos irregulares costumam ser os mais frequentes da língua, ou então têm uma qualquer particularidade fonética na

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forma, que faz com que um grupo mais ou menos numeroso de verbos tenha a mesma conjugação. Vamos ver se estas generalidades se cumprem nos casos que vamos examinar. Temos que definir também o que consideramos serem verbos irregulares. Há certos tipos de verbos que por causa da sua forma fonológica são irregulares, mas esta irregularidade é previsível, p. ex. os verbos com hiato, como passear. São irregulares porque, se segmentamos a forma, os elementos não são exatamente os que aparecem na maioria dos verbos, p. ex. passe-ar deveria ser na 1ª pessoa do presente do indicativo passe-o, como fal-o, mas a forma é passeio. Esta irregularidade caracteriza todos os verbos acabados em ear. (Segundo certas teorias, a forma subjacente é passeo e por uma regra fonológica de epêntese introduz-se a semivogal i.) Por outro lado, existem os verbos “muito irregulares” (Teyssier 1989: 219), não previsíveis, como ser, ter, etc. e outros que têm muito poucas formas irregulares imprevisíveis, como medir, cobrir, etc. Apresento as irregularidades segundo os grupos de tempos que aparecem em várias gramáticas (p. ex. Teyssier 1989: 189–190, Cunha – Cintra 1999: 411).

2. grupo do presente 2.1. desinência da 1ª pessoa do presente do indicativo No presente do indicativo, a 1ª pessoa em quase todos os verbos irregulares, como nos regulares, tem a desinência o. Uma exceção são as formas dou, estou, sou, vou. Justamente nos verbos correspondentes o espanhol tem também formas com desinências irregulares: doy, estoy, soy, voy. Vejamos o que dizem as gramáticas históricas. No caso do português encontramos que a evolução de vou é VADO > *vao > vou (Williams 1975: 230), e esta forma exerceu analogia sobre as outras três, isto é dou, estou e sou evoluíram segundo o modelo de vou (Williams 1975: 225, 227, 242). Para a forma espanhola soy, Menéndez Pidal diz que é “de origen oscuro” (1980: 302), doy e estoy vêm das formas vulgares *DAO, *STAO, voy de *VAO, sendo substituídas mais tarde pelas formas acabadas em y (304), sem dar uma explicação mais concreta. Penny (1998: 182) também afirma que a origem destas formas “no ha sido explicada satisfactoriamente”. Alude à hipótese de tratar-se do advérbio medieval y, mas segundo ele esta explicação parece pouco verosímil. Em todo o caso, o que podemos dizer é que são justamente as mesmas quatro formas que sofrem a irregularidade respetiva nas duas línguas e observamos logo que as quatro são formas monossilábicas (estou / estoy historicamente é também monossilábica, com uma vogal protética) e com a irregularidade a forma fica mais longa. O outro caso em que na 1ª pessoa não aparece a desinência o são as formas hei e sei. No espanhol as formas correspondem foneticamente às portuguesas: he, sé (cf. outras palavras, p. ex. port. primeiro, esp. primero, port. falei, esp. hablé). Na evolução das formas teve lugar a mesma erosão fonética: HABEO > aio > ai > port. ei.

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2.2. formas apocopadas na 3ª pessoa Em português os verbos acabados em zer, zir (exceto cozer) na 3ª pessoa do presente do indicativo têm formas apocopadas, que nasceram por evolução fonética regular: faz, conduz, etc. No espanhol, pelo contrário, as formas são regulares: hace, conduce, etc. De uma perspetiva diacrónica, por evolução fonética regular nascem as formas portuguesas, por apócope da vogal final, p. ex. FACIT > faz (cf. VOCEM > voz). Por analogia, o espanhol restituiu a vogal e, que aparece nos verbos regulares. Comparemos estas formas com as do imperativo singular. Em espanhol há uma série de verbos com forma apocopada: sal, ven, ten, pon, haz. Estas formas espanholas são, portanto, diferentes das do indicativo: p. ex. indicativo sale, imperativo sal. Nos outros verbos aparece a vogal final, como no presente do indicativo, p. ex. conduce. Em português as formas do imperativo são também apocopadas, por conseguinte não há diferença entre as formas do indicativo e do imperativo (p. ex. faz). Na verdade, segundo algumas gramáticas (p. ex. Cunha – Cintra; Ali 1931: 157) a forma do imperativo é ou pode ser completa (p. ex. faze), mas a língua moderna prefere a apocopada. Contudo, se temos em conta que numa fase mais antiga da língua a forma do imperativo era a forma completa, podemos constatar que a relação entre a forma do indicativo e de imperativo é a inversa da relação que encontramos no espanhol (esp. ind. hace, imp. haz; port. ind. faz, imp. faze).

2.3. radical Consideremos agora o radical das formas do presente. As duas línguas apresentam a mesma irregularidade na forma digo, mas encontramos bastantes formas irregulares diferentes. Nos casos normais, se a 1ª pessoa tem um radical irregular, este aparece também no presente do conjuntivo, p. ex. port. tenho – tenha, venho – venha, ponho – ponha, caibo – caiba, perco – perca. Esta correspondência não se realiza em português nos casos em que a 1ª pessoa do presente do indicativo acaba em ou ou ei, do mesmo modo que nas formas espanholas correspondentes. Em português há mais um verbo em que não há correspondência entre as duas formas: quero – queira. Em espanhol as formas do verbo correspondente são paralelas e regulares: quiero – quiera. Vejamos alguns radicais irregulares que só aparecem no presente do conjuntivo: saiba / sepa, vá / vaya, seja / sea, esteja / esté, haja / haya (a forma esté pode ser considerada regular, se pensarmos que o verbo é monossilábico). Do ponto de vista diacrónico, nas formas portuguesas saiba e caiba os ditongos correspondem de modo regular às vogais do espanhol, e a consoante espanhola não se sonorizou porque a sua posição não é propriamente intervocálica. Em português, as formas seja, esteja, haja são semelhantes por terem a mesma consoante, no espanhol não. A forma portuguesa esteja nasceu por analogia de seja (Williams). No espanhol há verbos (além de digo, que já vimos) cujo radical tem uma consoante g: hago, vengo, tengo, pongo, salgo, valgo. O g é etimológico nas formas digo e hago, nos

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outros verbos é analógico. Entre estes verbos, quando a consoante velar aparece depois de consoante nasal, em português o verbo irregular correspondente tem consoante nasal palatal: venho, tenho, ponho. A forma portuguesa correspondente a valgo apresenta também uma consoante palatal: valho. A forma espanhola hago vem de FACO (Menéndez Pidal 1980: 291), enquanto a forma faço do português procede de FACIO. Também aparece uma consoante velar nos verbos espanhóis acabados em cer, cir: conozco, produzco, traduzco, etc. (exceto cocer); as formas portuguesas correspondentes são regulares: conheço, produzo, etc. A consoante c é etimológica na forma conozco (COGNOSCO), enquanto é analógica nas outras formas (producir, traducir, etc. são verbos procedentes de DUCERE, cuja 1ª pessoa do presente do indicativo era DUCO). Certos verbos são irregulares na consoante radical em português, mas regulares em espanhol: posso, perco, peço, meço (esp. puedo, pierdo, pido, mido). Em síntese, no radical do grupo do presente há muitas diferenças entre as duas línguas, ou porque a origem das formas é diferente (p. ex. faço – hago), ou porque se produziram diferentes evoluções fonéticas (p. ex. a consoante de saiba – sepa), ou porque a analogia atuou de forma diferente nas duas línguas ou só teve lugar numa das línguas (p. ex. venho – vengo). Como exemplo, para o último caso devem-se salientar os verbos espanhóis com radical acabado em consoante velar (p. ex. vengo, produzco).

2.4. verbos com hiato Podemos considerar ainda o caso dos verbos com hiato, cujo radical acaba em vogal. Em português, nos verbos acabados em oer, uir, air produz-se ditongação na 2ª e 3ª pessoas do presente do indicativo e no imperativo singular: móis, mói, atribuis, atribui, sais, sai. No caso dos verbos acabados em ear e numa parte dos verbos acabados em iar nas formas rizotónicas aparece uma semivogal: passeio, passeias, passeia, passeiam, odeio, etc. Na 1ª pessoa do presente do indicativo e no presente do conjuntivo dos verbos acabados em air e em crer e ler, aparece uma semivogal semelhante, p. ex. saio, saia, creio, creia. Resumindo: quando o primeiro elemento é tónico, as combinações vocálicas oe, ue, ae tornam-se ditongos (mói, atribui, sai, exceto no presente do conjuntivo dos verbos: voe, sue); nas combinações eo, ea, ee, ao, aa entra uma semivogal epentética (passeio, passeia, passeie, saio, saia). As combinações oo, uo, oa, ua ficam inalteradas: moo, atribuo, moa, atribua. No espanhol há menos tipos de verbos com hiato: podem ter a terminação uir, eer e aer, p. ex. atribuir, leer, traer. (Verbos como roer são muito raros.) Contrariamente ao português, nunca se produz ditongação. Há casos de epêntese, mas não nas mesmas condições que em português: na combinação ue entra um elemento anti-hiático: atribuye (em português produz-se ditongação: atribui); acontece o mesmo na combinação -uo, -ua: atribuyo, atribuya (em português fica o hiato: atribuo, atribua). As sequências eo e ee ficam inalteradas: leo, lees (em português produz-se epêntese: leio, passeies).

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2.5. verbos “curtos” Em português são ainda especiais os verbos ler, crer, por serem muito curtos, já que o radical parece constar de uma única consoante. Naturalmente esta característica manifesta-se em toda a conjugação, mas é sobretudo visível no presente do indicativo, por as formas não terem sufixo modo-temporal, e por este motivo serem de tamanho mais reduzido. Vejamos a 2ª e 3ª pessoas do singular, bem como a 1ª do plural: crês, crê, cremos. (Não falamos aqui da 2ª pessoa do plural, credes, por ter mais uma irregularidade.) Contudo, a 1ª pessoa do singular e a 3ª pessoa do plural não parecem ser formas dum verbo monossilábico, pelo que são irregulares (creio, crêem). Nestas duas formas vemos que estes verbos estão relacionados com os verbos com hiato, que vimos no ponto anterior. é também parecido o caso do verbo ver, embora a 1ª pessoa seja vejo. No espanhol o verbo que corresponde a crer é creer e todas as pessoas do presente do indicativo têm hiato: creo, crees, cree, creemos, creéis, creen. O verbo ver, no entanto, tem formas curtas, como o português: ves, ve, vemos, veis, ven (exceto veo). No que diz respeito à evolução diacrónica, as formas portuguesas antigas também tinham hiato: creo, crees, cree, creemos, creedes, creen. Na 2ª e 3ª pessoas do singular, bem como na1ª pessoa do plural, as duas vogais iguais sofreram crase (p. ex. crês). Na 1ª pessoa, na combinação vocálica, entrou uma semivogal epentética, como já vimos. As vogais também não eram iguais na 3ª pessoa do plural, já que a segunda era uma vogal nasal, por isso conservou-se o hiato. Era parecido o paradigma do verbo ver (menos na 1ª pessoa do singular). Nas formas deste verbo produziu-se crase tanto em português como em espanhol. O verbo “curto” português mais particular é rir. Como nos outros verbos “curtos”, a 1ª pessoa do singular e a 3ª pessoa do plural são irregulares: rio, riem. Além disso, as formas da 2ª e da 3ª pessoas do singular são também especiais: ris, ri. A explicação diacrónica é aqui também que na forma antiga do verbo havia um hiato: RIDERE > riir (mudou o tipo de conjugação); o paradima era rio, riis, rii, riimos, riides, rien. Com a crase das vogais nascem as formas ris, ri, rimos, rides; as formas rio e rien conservamse. O verbo espanhol é reír; se tivermos em conta a segmentação ( re-ír), as formas rí-o, rí-es, rí-e, re-ímos, re-ís, rí-en são regulares, pois são paralelas às formas pid-o, pid-es, pid-e, ped-imos, ped-ís, pid-en.

2.6. imperfeito do indicativo Em português existem quatro verbos irregulares, com as formas era, punha, tinha, vinha. Em espanhol são os verbos ser e ir: era, iba. Há portanto em português três verbos irregulares, cuja caraterística comum é que provêm de verbos latinos com N intervocálico: PONERE, TENERE, VENIRE, sendo que depois da queda da consoante a evolução teve como resultado a consoante nh. Os mesmos três verbos têm outras caraterísticas comuns, p. ex. a 1ª pessoa do presente do indicativo: ponho, tenho, venho.

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2.7. inventário dos verbos irregulares no grupo do presente Vejamos o inventário dos verbos com desinência ou radical irregular. Aqui não vou ter em conta os verbos irregulares previsíveis, como os verbos com hiato. Parecem não obedecer ao critério da frequência os verbos perder, pedir e medir, que entre as duas línguas têm consoante radical irregular em português. Parece ainda menos frequente o verbo caber, que é irregular nas duas línguas. O verbo tem semelhança formal com o verbo saber, o que pode justificar a sua irregularidade. A única forma diferente nos dois verbos é a 1ª pessoa do presente do indicativo: caibo – sei (esp. quepo – sé), onde caber tem a correspondência entre caibo – caiba, enquanto no verbo mais frequente, saber, esta relação não se cumpre: sei – saiba. Os verbos espanhóis producir, traducir, producir, etc., também irregulares, formam um grupo compacto, por terem a mesma terminação -cir. Também formam um grupo homogéneo do ponto de vista da forma os verbos crer, ler, ter, vir, etc., que têm a consoante d na 2ª pessoa do plural (vindes, vinde; vedes, vede, etc.): são os verbos monossilábicos da 2ª ou 3ª conjugações. Ao mesmo tempo, alguns destes verbos são também extremamente frequentes: ter, vir, pôr, ver; outros menos, como ler, crer. O único verbo que tem a mesma caraterística formal, ou seja, é monossilábico da 2ª conjugação, não tendo a consoante d, é ser (sois), mas trata-se do verbo mais irregular, que se substrai a esta caraterística comum do grupo de verbos. Por outro lado, entre os verbos monossilábicos da 2ª conjugação, é o único que não tem a combinação vocálica e-e.

3. grupo do perfeito Nas duas línguas, as desinências são regulares nos quatro tempos verbais deste grupo. O radical é sistemático no sentido de que se repete em vários tempos verbais nas duas línguas: port. fiz, fizera, fizesse, fizer (em espanhol hice, hiciera, hiciese, sendo as duas últimas formas ambas pretérito imperfeito do conjuntivo ea forma hiciere do futuro do conjuntivo inusitada na língua moderna). Algumas formas são paralelas nas duas línguas (pus / puse, pude, fiz / hice, fui).

3.1. 1ª e 3ª pessoas do pretérito perfeito simples do indicativo Nos verbos irregulares das duas línguas, a 1ª e a 3ª pessoas são fortes, isto é, rizotónicas, p. ex. port. fiz, fez; soube, soube. Em português, estas duas pessoas nalguns verbos acabam em consoante (pus, pôs; fiz, fez), noutros em vogal e. Do ponto de vista diacrónico é foneticamente regular a apócope depois de certas consoantes (p. ex. FECI > fiz),

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enquanto a vogal final fica depois doutras consoantes (p. ex. SAPUI > soube). De uma perspetiva sincrónica, formas como soube, tive, etc. precisam de uma vogal de apoio por razões fonotáticas, porque acabariam numa consoante que não pode ficar em posição final. Em espanhol (exceto o verbo ser/ir), em todos os verbos a 1ª pessoa acaba em e, a 3ª em o: hice, hizo; puse, puso, etc. A vogal e aparece por analogia dos verbos em que está presente por razões fonotáticas (p. ex. traje) ea vogal o surgiu por analogia com os verbos regulares (p. ex. comió) (Menéndez Pidal 1980: 314). Vamos observar a vogal radical da 1ª e da 3ª pessoas do pretérito perfeito do indicativo dos verbos. No espanhol a vogal é uniforme (p. ex. hice, hizo), e no português ora pode ser uniforme (p. ex. trouxe), ora a 3ª pessoa pode ter uma vogal mais aberta do que a 1ª (fiz, fez). A alternância entre as duas pessoas pode ser i-e (fiz-fez, tive-teve, estive-esteve) ou u-o (pus-pôs, pude-pôde, fui-foi).

3.2. vogal radical do grupo do perfeito Em português, nos três outros tempos verbais do grupo do perfeito aparece a mesma vogal radical que na 1ª pessoa do pretérito perfeito simples do indicativo. A única forma diferente só pode ser a 3ª pessoa do pretérito perfeito do indicativo: fiz, fizesse, fizera, fizer (cf. fez). Há verbos em que a vogal radical (mais concretamente a 3ª pessoa) corresponde à vogal característica do verbo: ter: teve, dizer: disse, poder: pôde, pôr: pôs, ao passo que noutros a vogal é diferente da vogal radical própria do verbo, p. ex. fazer: fez, saber: soube. Em resumo, a vogal radical da 3ª pessoa pode ser e (fez), o (pôde) ou ainda ou (trouxe). Se é e, todas as outras formas do grupo do perfeito têm i como vogal radical, se é o, todas as outras formas têm u. No espanhol atual a vogal é uniforme em todo o paradigma (p. ex. hice, hiciera, hiciese). Há formas com u (puse, pude, fui, tuve, estuve, supe, cupe, hube), i (hice, dije) e a (traje), pelo que de forma simplificada pode-se dizer que há dois casos paralelos com o português (com a vogal geral, não a 3ª pessoa do pretérito perfeito do indicativo), a saber, o da vogal radical i e o da vogal radical u: fiz-hice, pus-puse. Mas a distribuição é diferente: no espanhol a maioria dos verbos tem vogal radical u, também em verbos cuja vogal radical própria é diferente, p. ex. tener, estar, saber. A principal diferença entre as duas línguas encontra-se nas formas tive (teve), estive (esteve), soube, coube, houve, cuja forma correspondente em espanhol é tuve, estuve, supe, cupe, hube. Voltaremos aos aspetos diacrónicos mais tarde, porque vamos tratar conjuntamente do caso das vogais e das consoantes radicais.

3.3. consoante final do radical A consoante final do radical é uniforme nas seis pessoas. Há verbos que nas formas do grupo do pretérito conservam a consoante original (port. poder: pude, fazer: fiz, saber: soube, haver: houve; esp. poder: pude, hacer: hice, etc.) e outros que a modificam ou onde

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aparece uma consoante que não está presente no radical (p. ex. port. trazer: trouxe, ter: tive; esp. traer: traje, estar: estuve, saber: supe). Estes últimos são os mais interessantes. Parece pertinente observar que certos verbos apresentam semelhança na consoante modificada em cada uma das línguas. Em português encontramos as seguintes similitudes: tive-estive, disse-trouxe, soube-coube, em espanhol: tuve-estuve-anduve, dije-traje, supe-cupe (a forma hube pertence ao primeiro grupo de verbos e tem a mesma pronúncia, sendo que na língua antiga a consoante era ainda v, mas por causa da etimologia fixou-se a consoante b).

3.4. aspetos diacrónicos As formas disse e trouxe tiveram uma evolução regular (de DIXI, TRAXUI, Williams 1975: 96). Da mesma forma, a forma espanhola traje formou-se de forma regular a partir de TRAXI (Menéndez Pidal 1980: 317). (Devemos observar que a evolução é difícil de explicar, cf. AXEM > eje.) A vogal é diferente em trouxe e traje, o que se explica com a diferente origem: TRAXUI vs. TRAXI. Em português produz-se metátese e nasce o ditongo ou, e o espanhol conserva a vogal a da forma de origem. A consoante é diferente nas duas línguas: em português no grupo ks produz-se assimilação, em espanhol palatalização. As formas portuguesas soube e coube tiveram também uma evolução regular, a partir de SAPUI, CAPUI. Em português produz-se sonorização, enquanto que em espanhol a consoante conserva-se surda (como no presente do conjuntivo). Menéndez Pidal (1980: 141) observa que o ditongo secundário (SAUPI) impede a sonorização, mas acrescenta que estes exemplos procedem da conjugação, onde há muitas influências analógicas. As vogais radicais das formas portuguesas não apresentam correspondência com as espanholas (soube / supe). Enquanto a evolução fonética foi regular em português, nas formas espanholas antigas sope, cope a vogal mudou por uniformização com as formas pude, puse, etc. Aconteceu o mesmo com outras formas, como ove, que passou a ser uve (Menéndez Pidal 1980: 316–317). Vejamos outras evoluções analógicas. Segundo Williams (1975: 228, 244), as formas tive/teve e estive/esteve evoluíram por analogia de sive, do verbo ser. (No presente do conjuntivo também vimos que a forma esteja evoluiu por analogia de seja.) As formas espanholas tuve, estuve, anduve nasceram por analogia de uve (Menéndez Pidal 1980: 316–317). Nas duas línguas discrepa, assim, o verbo que influiu na forma dos verbos ter e estar: ser em português, haber em espanhol, embora nas duas línguas os dois verbos apresentem as mesmas formas, por terem sofrido a analogia do mesmo verbo. Em resumo, no grupo do perfeito encontramos bastantes diferenças entre as duas línguas, devido à origem, à evolução fonética ou ao efeito analógico.

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3.5. verbos “curtos” e verbos com hiato Entre os verbos “curtos” observemos que em português a conjugação de crer, ler, rir é regular (cr-i, cr-este, cr-eu, cr-emos, cr-estes, cr-eram; cr-esse, etc.; r-i, r-iste, r-iu, r-imos, r-istes, r-iram; r-isse, r-ira, etc.). Os verbos com hiato do português conjugam-se também de forma regular (p. ex. sair, incluir, etc.). No espanhol, a conjugação de ver e reír é também regular (v-i, v-iste, v-io, v-imos, v-isteis, v-ieron; v-iese, etc.; re-í, re-íste, ri-ó, re-ímos, re-isteis, ri-eron; r-iese, etc.). É irregular a conjugação de ver em português, por causa da voga temática (v-iste, v-iu, v-imos, v-istes, v-iram; v-isse, etc. cf. com-este, com-eu, com-emos, com-estes, com-eram; com-esse, etc.). Nos verbos creer e leer do espanhol produz-se epêntese nas 3ªs pessoas do singular e plural do pretérito perfeito do indicativo e em todas as formas das duas variantes do pretérito imperfeito do conjuntivo: creyó, creyeron, creyera, creyese, etc.

3.6. inventário dos verbos irregulares O inventário dos verbos irregulares é parecido em português e espanhol. A principal diferença é que em espanhol o grupo dos verbos acabados em cir tem radical irregular: traduje, tradujera, etc. Também é irregular a forma anduve, de andar. Os verbos irregulares são elementos muito frequentes da língua, exceto andar no espanhol. Os verbos acabados em cir do espanhol formam um grupo com uma característica formal comum. Outro verbo pouco frequente é caber, irregular nas duas línguas. Como já dissemos, este verbo apresenta paralelismo formal com saber.

4. grupo do infinitivo Aqui devemos ter em conta o futuro e o condicional, formados a partir do infinitivo. Em português há só três verbos que têm uma forma irregular curta: farei, direi, trarei. No entanto, em espanhol, além das formas semelhantesharé e diré, há outros verbos cuja forma perde a vogal temática e no grupo consonântico pode aparecer uma consonate epentética: poder: podré, haber: habré, saber: sabré, caber: cabré, querer: querré, poner: pondré, salir: saldré, venir: vendré. Nestes verbos o português é regular: poderei, haverei, saberei, etc. A diferença entre as duas línguas provavelmente tem a ver com o facto de que em português a vogal temática nestas formas tem um papel importante quando na forma aparece um pronome mezoclítico (p. ex. sabê-lo-ei). Outro motivo é que o português conservou melhor a vogal pretónica interna do que o espanhol, cf. p. ex. SEMINARE > semear / sembrar, NOMINARE > nomear / nombrar, etc.

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5. grupo do particípio Há formas parelalas nas duas línguas: aberto, coberto, morto, posto, visto, escrito, dito, feito. Em português é irregular ainda a forma vindo (esp. venido). São assimétricas as formas portuguesas tido e vindo, enquanto que no espanhol as duas formas são semelhantes: tenido, venido. O espanhol tem ainda as formas irregulares vuelto, resuelto (port. volvido, resolvido). Em português são especiais os duplos particípios. Os casos em que a forma curta se usa só como adjetivo são menos interessantes, porque são parecidos em espanhol e também nas outras línguas românicas (p. ex. confundido – confuso, nas duas línguas). Mas o português tem outros verbos com duplo particípio, em que a forma curta se usa, de uma forma geral, também na estrutura passiva. A distribuição da forma curta e a forma longa é, porém, complicada, pois em certos verbos a forma curta é a que aparece normalmente em todas as funções. A forma curta portuguesa geralmente não tem correspondente em espanhol: pago, gasto, ganho, entregue, etc. (A forma pago documenta-se em espanhol dialetal, com função de adjetivo, Menéndez Pidal 1980: 320, Asociación 2010: 525.) Ao mesmo tempo, entre os particípios duplos históricos do português há também duas formas longas especiais, morrido e rompido, nestes casos o particípio etimológico é o irregular, curto (morto, roto). No espanhol os verbos correspondentes só têm forma irregular (muerto, roto). Em português estas duas formas curtas são consideradas adjetivos (Cunha – Cintra 1999: 442).

6. resumo O inventário dos verbos irregulares é parecido nas duas línguas. Os verbos irregulares são os mais frequentes da língua, por outro lado também há grupos de verbos com certa característica formal comum que também apresentam irregularidades (p. ex. verbos espanhóis acabados em cir). No que diz respeito às irregularidades concretas, as principais diferenças detetamse no radical, tanto no grupo do presente, como no grupo do perfeito. Do ponto de vista diacrónico, podemos explicar certas diferenças com a origem, a evolução fonética ou as evoluções analógicas das formas. No espanhol há mais formas analógicas (p. ex. radical com consoante g ou c no grupo do presente, vogal radical u no grupo do perfeito). Outras diferenças estão relacionadas com factos morfossintáticos (saberei, sabê-lo-ei). Não tratámos irregularidades verbais importantes, p. ex. a alternância da vogal radical no grupo do presente ou a vogal temática aberta do grupo do perfeito do português, por não apresentar paralelismo com o espanhol (port. devo, deves, a primeira forma com vogal fechada, a segunda com vogal aberta, cf. esp. debo, debes; port. comêssemos – fizéssemos cf. esp. comiésemos – hiciésemos).

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bibliografia Ali, Manuel Said. Gramática histórica da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1931. Asociación de Academias de la Lengua Española. Nueva gramática de la lengua española, Manual. Madrid: Espasa libros, 2010. Cunha, Celso – Cintra, Luís F. Lindley. 15a edição. Nova gramática do português contemporâneo. Lisboa: Sá da Costa, 1999. Menéndez Pidal, Ramón. Manual de gramática histórica española. 16a edição. Madrid: Espasa-Calpe, 1980. Penny, Ralph. Gramática histórica del español. Barcelona: Ariel, 1998. Teyssier, Paul. Manual de língua portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 1989. Williams, Edwin B. Do latim ao português. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.