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Introdução à filosofia da natureza
 3170168142, 9788515034949

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Introdução à

|

FilosofiadaNatureza Hans-Dieter Mutschler

|

Edições Loyola

Será a natureza apenas aquilo que é prescrito pela ciência da natureza ou existem outros modos de acesso a ela? Uma filosofia da natureza autônoma deve aceitaros resultados da ciência positiva e de uma teoria da ciência que reflete sobre eles. Todavia, também deve perguntar por aquela natureza que nos vem ao encontro nos contextos técnicoprático e ético-prático, ou seja, a filosofia da natureza também apresenta a questão da natureza como um nexo conjuntural de sentido.

Hans-Dieter

Mutschler

é

livre-docente

e

professor

de

Filosofia da Natureza na F a c u l d a d e de Filosofia e Teologia Sankt G e o r g e n , e m Frankfurt a m Main. Organizou, W o l f g a n g K ö h l e r , Ist der

Geist

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Dialogs

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{Darmstadt, 2005).

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Introdução à

Filosofia da Natureza Hans-Dieter Mutschler

Tradução Enio Paulo Giachini

Edições Loyola

TiiuLo ORJGINAL:

Natur-philosophie

«5 2002 W. Kohlhammer Verlag GmbH. Stuttgart ISBN: 3-17-016814-2

Dayane C. Pai Ronaldo Hideo Inoue Renato da Rocha

PREPARAÇÃO:

PROJETO GRAFICO: REVISAO:

Edições Loyola Rua 1822 n° 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04218-970 São Paulo, SP @ (11) 6914-1922 ® (11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: [email protected] Vendas: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 978-85-15-03494-9 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2008

Sumário

7

Introdução

19

As diversas posições no espaço

Capítulo 1

22

de possibilidade da filosofia da natureza 1.1 A natureza como totalidade de tudo o que existe apreendida cientificamente (Nat ) 1.1.1 O erro da ciência ao buscar dimensionar o homem 1.1.2 0 fisicalismo dogmático: Steven Weinberg 1.1.3 Ofisicalismoda teoria da ciência: Wolfgang Stegmüller 1.2 Natureza como totalidade de tudo o que existe e que se abre a uma pluralidade de perspectivas irredutíveis (Nat ) 1.2.1 Ch. S. PeirceeA. N.Whitehead 1.2.2 Hans Jonas e Klaus Meyer-Abich 1.2.3 Ciência da natureza como ancilla philosophiae 1.3 Natureza como uma grandeza regional, mas com definição científica (Nat ) 1.3.1 Andreas Bartels, Friedrich Kambartel/Angelika Krebs 1.3.2 Hilary Putnam e afilosofiaanalítica 1.4 Natureza como uma grandeza regional, mas com determinação pluralista (Nat ) 1.4.1 O anticienüsmo: Henri Bergson, Hans Driesch 1.4.2 O "conceito fisiológico de natureza" em Lothar Schäfer 1.4.3 A "fenomenologia da natureza" de Gernot Böhme e a teoria da entelequia, reformulada por Christoph Rehmann-Sutter tol/cien

23 25 27 32

toI/plul

32 43 45 47

re2/ckn

49 52 54

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56 58 61

Capítulo 2 65 72 73 77 80 83 84 85 87

A tensão entre teoria e praxis 2.1 Os pós-modernos 2.1.1 H. R. Maturana/F. J. Varela 2.1.2 Gotthard Günter 2.1.3 Bruno Latour 2.2 A ciência popular 2.2.1 Erich Jantsch/Ilya Prigogine 2.2.2 Paul Davies , 2.2.3 Bernulf Kanitscheider

Capítulo 3 91 92 98 103 105 106 110

Natureza como correlato do teorético 3.1 O físico e o fisical 3.2 Essência e aparência — ontologia e precisão 3.3 Crítica do platonismo fisicalista 3.3.1 Roger Penrose 3.3.2 C. F. v. Weizsäcker 3.4 0 conceito de "matéria" Capítulo 4

119 123 128 132 137 155 165

Natureza como correlato do técnico-prático 4.1 A biônica 4.2 A metáfora do computador 4.3 A técnica üitificial-life 4.4 Natureza e técnica em Aristóteles 4.5 A cibernética 4.6 A legalidade do fortuito como conformidade a fins Capítulo 5

173 174 177 180

Natureza como correlato do ético-prático S. 1 A concepção prévia de uma natureza interiormente prenhe de valores na técnica, na biologia e na ecologia 5.2 Cientismo e autofinalidade. Hans Sachsse, James Lovelock e a síntese que não deu certo 5.3 O problema ontológico que ficou sem solução na ética ecológica Capítulo 6

187

Sobre a hermenêutica da natureza cientificizada

197

Referências

211

índice analítico

213

(ndi ce onomástico

Introdução

Na história da filosofia, a questão que pergunta sobre o que se deve compreender propriamente por "natureza" foi respondida de maneiras completamente diferentes. Para muitos, c o m o os estóicos, a natureza era tanto aquilo que nos engloba quanto aquilo que nos fornece as normas; tanto o que nos circunda fisicamente ("as coisas da natureza") c o m o o que concede ser e valor aos objetos ("a natureza das coisas"). Desde cedo, a essa possibilidade de conceber a natureza c o m o totalidade, ainda muito atrativa nos dias de hoje, se contrapôs u m conceito de "natureza" que ganhou definição na medida e m que estabeleceu sua demarcação e m relação a u m pólo oposto, c o m o por exemplo "natureza" e "técnica", "física" e "metafísica", ou c o m o se queiram chamar as contraposições. Essa estratégia de demarcação encontra representantes também na atualidade, m e s m o que hoje se prefira nomear essas contraposições c o m palavras c o m o "natureza" e "cultura" ou "natureza" e "história". O cristianismo, n o entanto, c o m sua distinção entre "natureza" e "sobrenatureza", doutrinou u m a contraposição que pertence a u m nível completamente diferente. Nesse m o d o de ver, também a técnica, a cultura e a história faziam parte da "natureza", separando-se da revelação, considerada "sobrenatural". Mesmo que, n o decorrer de sua história, as determinações da "natureza" possam ter-se modificado (e os exemplos citados são apenas u m pequeno recorte disso), foi n o c o m e ç o do século XVII que se deu uma cisão essencial e m nossa compreensão de natureza, quando se alcançou empregar na natureza experimentos passíveis de reprodução, métodos quantitativos e instrumentos da matemática. Segundo Galileu, o "livro da natureza" foi escrito c o m letras matemáticas (GALILEI, 1 9 8 7 , II, p. 2 7 5 ) . * Essa representação era tão sugestiva e fecunda que o físico inglês James Jeans expressou sua convicção — que pelo m e n o s subliminarmente alcançou ampla divulgação — de "que a totalidade do m u n d o parecia ter sido pensada por u m matemático puro" (JEANS, 1 9 5 5 , p. 1 3 0 ) . O "livro da natureza" é uma velha metáfora que na Idade Média designava a contraposição ao "livro da revelação", correspondendo àquela contraposição citada entre "natural" e "sobrenatural"; antes de Galileu, 7

porem, ninguém jamais imaginou que o "livro da natureza" pudesse ter sido escrito e m linguagem matemática. No entanto, depois que essa concepção se impôs, nos séculos XVIII e XIX, pareceu pelo menos tão clara c o m o o conceito de "natureza". "Natureza" designava simplesmente o substrato ontológico da ciência matemática da natureza; e, visto ser pelo menos tão transparente c o m o u m cálculo matemático, parecia estar esclarecido, e m princípio, t a m b é m o conceito de "natureza". Filósofos que buscaram desmascarar essa clareza c o m o aparência, chamando atenção para o procedimento hipotético da ciência da natureza e buscando dar u m fundamento qualitativo último à ciência da natureza, portanto pensadores c o m o Schelling ou Hegel, c o m o passar do tempo já não conseguiam ser convincentes, pois n o decorrer do século XIX mostrou-se que as especulações metafísicas do idealismo alemão eram exageradamente limitadas e m u i t o pretensiosas para poder servir de modelo à ciência empírica e sintetizar ou dar u m fundamento último a seus resultados. N o geral, desde então, a scientific community afastou-se da especulação filosófica e c o m e ç o u a cuidar de seu n e g ó c i o por conta própria. Até hoje impera a convicção geral de que, e m se tratando da natureza, única e exclusivamente as ciências da natureza são competentes, e de que toda e qualquer ciência que reivindique ultrapassar esse saber não passa de um retrocesso a uma metafísica já de há m u i t o superada. A partir desse ponto de vista, parecia, e m princípio, não haver qualquer problema com o c o n c e i t o de "natureza", o qual e m todas as épocas nada mais designava que substrato o n t o l ó g i c o das ciências da natureza; diante dos convincentes resultados dessas ciências, não se via mais necessidade de especulações ontológicas. Autores que, m e s m o assim, reivindicavam o direito a uma "filosofia da natureza" autônoma, autores c o m o Henri Bérgson ( 1 9 3 0 ) , Ludwig Klages ( 1 9 6 1 ) ou Teilhard de Chardin ( 1 9 6 9 ) , nada podiam modificar na convicção geral, que dizia que o conceito de natureza não comportava qualquer problema e que n o decorrer do progresso científico acabaria ficando cada vez mais claro. Uma ruptura nessa convicção evidente só foi provocada pela crise ecológica da segunda metade do século X X . Foi essa crise que, e m muitas pessoas capazes de reflexão, despertou a suspeita de que alguma coisa em nossa relação c o m a natureza não estava b e m e de que u m a das causas disso residia provavelmente n u m conceito de natureza cientificamente muito estreito, que, de m o d o ingênuo, pressupusemos c o m o válido duIntrodução à Filosofia da Natureza

rante séculos. Autores c o m o Georg Picht exigiam desde cedo "uma revisão dos conceitos fundamentais básicos e dos métodos da ciência que se estende até o presente" (PICHT, 1 9 7 9 , p. 2 7 ) . Segundo Picht, uma ciência carregada de conseqüências tão desoladoras c o m o é a ciência atual deve estar fundamentada numa "falsa consciência". De m o d o semelhante se expressam t a m b é m filósofos marxistas c o m o Ernst Bloch, os quais acreditavam que a "ciência burguesa" estava baseada num fundamento falso (BLOCH, 1 9 8 5 =

'1959).

Nesses casos, porém, não estava claro c o m o se deveria modificar a ciência e m curso, para não só impedir as conseqüências prejudiciais diante da ecologia, mas igualmente conservar as vantagens indiscutíveis possibilitadas pela ciência moderna e pela tecnologia nela fundamentada. Nesse sentido, porém, as sugestões de autores c o m o Ernst Bloch, Georg Picht ou Herbert Marcuse ( 1 9 6 7 ) trouxeram muito pouca clareza. De qualquer m o d o , a discussão foi aberta e desde então não se deteve. A questão a respeito do que seja propriamente a "natureza" voltou a estar agora no foco dos exames, sobre o que, c o m o era de esperar, há muita divergência entre os autores. Princípios ancorados numa nova metafísica da natureza, c o m o o de Hans Jonas ( 1 9 7 3 ) ou de Klaus MeyerAbich ( 1 9 7 9 ) , contrapõem-se àqueles que procuram minimizar u m conceito científico de natureza, c o m procedimentos estritos, pela introdução de ciências não-fisicalistas, mas m e s m o assim empíricas, a fim de evitar recorrer a uma tal metafísica da natureza, e m sentido forte. Nesse sentido, Günter Ropohl ( 1 9 7 9 ) pretendeu fundar uma teoria dos sistemas da técnica, de caráter cibernético, ou Lothar Schafer ( 1 9 9 9 ) reivindicou, antes ainda, a passagem de u m "conceito de natureza" fisicalístico para u m conceito "fisiológico". Esse conceito seria aquele para o qual a física humana e as vantagens ou desvantagens de nossa intervenção técnica na natureza estabeleceriam a medida que nos limita a não fazermos tudo que a técnica nos possibilita fazer. Essas sugestões devem ser particularmente discutidas. Em todo caso, deveríamos acolher nela m e s m a a provocação e o significado da crise ecológica para nossa relação c o m a natureza. Já se foi o t e m p o e m que acreditávamos saber c o m propriedade o que é "natureza". Agora está-se apresentando a tarefa de u m a nova definição desse conceito, c o m suporte argumentativo. A opinião do autor, todavia, é que, se aqui

fizermos

recurso apenas a correções cibernéticas ou fisiológicas, ainda assim não lograremos alcançar esse feito. O alcance dessa problemática é mais profundo, m e s m o que se deva dar razão a filósofos c o m o Ropohl ou Schafer, Introdução

9

iu medida em que eles qualificam c o m o u m retrocesso para além do iluminismo o apelo a uma "natura naturans", definida metafisicamente. De fato, i stihjelividade moderna só se constituiu e m seu pathos pela liberdade, pelo lato de ter-se desvinculado da natureza. Quem quiser fazê-la remontar ao "grande todo", segundo o paradigma da Stoa, terá de mostrar c o m o irá conservar o "projeto da modernidade", o que o predisporá a considerá-lo fracassado, ou então o que poderia ocupar seu lugar. Mesmo tendo conhecimento das dificuldades ligadas a esse fato, o autor reafirma o conceito de razão da modernidade e seu pathos iluminista, o que proíbe por si um retrocesso para modelos mais antigos de metafísica da natureza. Mesmo assim, há razões para não descartar totalmente uma metafísica da natureza. O que se deveria compreender por "metafísica", e m todo caso, já não é tão claro hoje e m dia. Autores c o m o Jürgen Habermas nomeiam três razões fundamentais para o pensar metafísico: "A razão da unidade da filosofia originária, a equiparação de ser e pensar, o significado salvífico da orientação teorética da vida", o que significa u m "pensar identitário, uma doutrina das idéias e u m forte conceito teorético" (HABERMAS, 1 9 9 2 , p. 3 6 ) . Se orquestramos a metafísica de m o d o tão grandioso, então, junto c o m Habermas, acabaremos chegando à conclusão de que historicamente ela teria capitulado. Filósofos analíticos c o m o Donald Davidson, ao contrário, defendem u m conceito de metafísica totalmente despretensioso. Segundo Davidson, "a única possibilidade de fazer metafísica consiste e m investigar a estrutura universal da linguagem" (DAVIDSON, 1 9 9 4 , p. 2 8 3 ) . Quando se defende u m conceito de metafísica tão despretensioso, fica igualmente difícil não fazer metafísica, c o m o afirma Habermas, dizendo que n o futuro isso se tornará impossível. Aqui não é o lugar de comparar diversos conceitos de metafísica, para então decidir-se por u m determinado conceito; na filosofia da natureza existe, porém, desde o século XVII, um critério relativamente claro a respeito do que se deve qualificar c o m o "metafísico", pelo menos nesse âmbito: é o emprego de categorias teleológicas, isto é, a suposição de que na natureza haja valores, objetivos e fins. E essa tal suposição que é considerada hoje em dia c o m o "metafísica", e habitualmente e m sentido pejorativo. Nesse caso, costuma-se chamar a atenção para o fato de que, desde Galileu (ialilei ou a fortiori desde Charles Darwin, a ciência moderna da natureza só pode alcançar resultados desconectando-se das causas últimas; isso significa to

Introdução à Filosofia da Natureza

que todo aquele que ensina teleología da natureza deve necessariamente retroceder a uma época anterior ao iluminismo científico. Temos muito poucos motivos para qualificar a teleología da natureza c o m o urna forma de "metafísica r u i m " , e isso se mostra claramente sobretudo a partir do âmbito ético-prático. C o m o se deverá mostrar mais e m detalhes n o quinto capítulo, todos os modelos dejítica ecológica, não antropocêntrica, sejam holistas, biocêntricas, pathocêntricas, ou seja lá o que forem, todos eles deverão remontar a u m telos presente na natureza, se quiserem declarar-se assim tão antimetafísicos, inclusive para fora. É assim, por exemplo, que a filósofa Úrsula W o l f sustenta que sua ética da compaixão, que se

apoia e m Arthur Schopenhauer, está livre da metafí-

sica; no entanto, se devemos ter compaixão c o m os animais dotados de sentimentos e paixões, então devemos supor neles u m interesse e m seu próprio viver b e m e u m interesse e m evitar a dor ( e m contraposição, por exemplo, às pedras, ervas e rios). A própria W o l f define, portanto, a dor, no caso de seres dotados de sentimento, c o m o "impedimento de seu querer" (WOLF in KREBS, 1 9 9 7 , p. 4 7 s s ) . Esse conceito é, todavia, inequivocamente teleológico. A investigação que se segue irá mostrar que, n o que diz respeito a nosso trato prático c o m a natureza, nós argumentamos muitas vezes de maneira teleológica, porque propriamente não conseguimos fazer diferente. Por isso, não podemos nos livrar da suspeita de que foi uma certa afeição antimetafísica, universalmente difundida, o que levou muitos autores a ignorar a teleología da natureza, m e s m o ali onde constantemente lançamos m ã o dela. O uso de categorias teleológicas e m seu emprego na natureza deve ser, portanto, legitimado, e junto c o m ele legitimar-se uma metafísica nele implícita. Mas uma tal metafísica de m o d o algum deve buscar pretensões de validez exageradas — criticadas c o m razão por Jürgen Habermas — , c o m o uma fundamentação última, identidade de ser e pensar etc. Também aqui se deve observar o princípio da economia metafísica, e sobretudo não se deverá qualificar a natureza c o m o uma instância norma-

!

! tizadora, pois na realidade isso significaria u m retrocesso da autonomia

'

i_dp sujeito, conquistada na modernidade. Muitos autores são tão alérgicos i a toda e qualquer teleología da natureza porque temem que c o m isso a natureza acabe-se tornando fonte de normatividade. Mas não é toda finalidade que se converte sem mais numa norma. E visto que por muito tempo imperou a convicção de que no fundo nós sabíamos exatamente o que é "natureza", convicção que só foi abalada pela crise ecológica, e que seria suficiente manejar a física, a química ou a biologia para ter clareza Introdução

11

sobre seus conceitos, mostrou-se então não haver mais nenhuma

filosofia

da natureza autônoma, se é que sob esse n o m e devamos compreender algo mais do que a compilação dos resultados mais genéricos das ciências positivas ou mais do que uma reflexão sobre seus métodos, no sentido da teoria da ciência. M e s m o assim, sempre houve filósofos (já foram mencionados Bergson, Bloch, Klages, Picht, Marcuse ou Teilhard) que individualmente tentaram desenvolver o u pelo menos postularam uma filosofia da natureza autônoma. Mas, fora dos escalões científicos, sempre de novo se perguntou se realmente sabemos c o m precisão o que seja "natureza". No entanto, c o m o essa pergunta, antes do final do século XX, não era aceita universalmente c o m o uma questão fundamental, também as respostas que se lhe ofereciam apresentavam algo de extremamente disparatado. Não acontecia c o m o se dá na teoria do conhecimento, na filosofia da linguagem, na ética filosófica ou na filosofia política, em que pensadores de diversas correntes se encontram previamente n u m terreno c o m u m para intercambiar seus argumentos. Quando, por exemplo, A. N. W h i t e head o u Bernulf Kanitscheider falam de " c o s m o l o g i a " , cada u m deles tem e m mente algo totalmente diverso, algo que não permite qualquer comparação imediata. Por causa dessa incomparabilidade dos princípios, uma reflexão sistemática sobre o conceito de natureza precisa, antes de tudo, procurar construir pela primeira vez uma certa comparabilidade desses princípios bastante disparatados, para depois poder fundamentar u m posicionamento racional. Se apenas passarmos em revista, uma vez que seja, alguns títulos aleatórios relacionados c o m o tema da "filosofia da natureza", surgidos nos últimos anos, então obteremos uma imagem que não poderia ser mais disparatada: Erich Brock ( 1 9 8 5 ) escreveu uma filosofia da natureza a partir de u m princípio existencialista, Reinhold Breil ( 1 9 9 3 ) , a partir de u m princípio kantiano, Bernulf Kanitscheider ( 1 9 9 6 ) , a partir de u m princípio científico, Raine? Koltermann ( 1 9 9 4 ) , a partir de u m princípio n e o escolástico, Maria Dürckheim ( 1 9 9 6 ) , a partir de u m princípio da mística da natureza, Klaus Meyer-Abich ( 1 9 9 7 ) , a partir de u m princípio da filosofia da identidade, Gernot B ö h m e ( 1 9 9 7 ) , a partir de u m princípio fenomenológico e assim por diante. Nenhum desses trabalhos concorda c o m qualquer outro nas premissas e, por isso, tampouco nos resultados. Fizemos referência ao trabalho da Senhora Dürckheim porque essas "filosofias espirituais da natureza" demarcam b e m os limites do que deve ser tratado aqui. Filosofia não pode ser substituída por mística, m e s m o 12

Introdução à Filosofia da Natureza

que, via de regra, esses autores reivindiquem tal coisa. A experiência mística é uma experiência carismática especial, que não serve de base para uma argumentação, compreendida de m o d o universal. Isso se torna claro também nos escritos de Ken Wilber. Wilber fala muitas vezes c o m o profeta, nesse caso tanto se pode crer nele c o m o não crer, mas muitas vezes ele argumenta de maneira b e m objetiva, e então sua argumentação está totalmente independente de sua espiritualidade (WILBER, 1 9 9 8 ) . Em todo caso, n o que segue não serão levadas e m consideração essas formas de espiritualidade da criação, c o m o podem ser encontradas t a m b é m e m Matthew Fox ( 1 9 9 3 ) e e m outros, visto não pertencerem à filosofia, o que não representa n e n h u m argumento contra seu significado existencial. Se estendermos nosso olhar para o passado, retrocedendo mais de dez anos, veremos que ali o conceito de "filosofia da natureza" é ainda mais diversificado. Nesse campo, n e m sequer se pode dizer que haja uma série de autores considerados canónicos, c o m o por exemplo Aristóteles, Kant, Schelling, Peirce, Quine, Carnap ou Popper, que deveriam ser levados e m consideração se quiséssemos estar legitimados n o assunto da "filosofia da natureza", c o m o , por outro lado, se dá c o m o filósofo político, que não pode ignorar Hobbes ou Rawls, e c o m o filósofo da linguagem, que não pode ignorar Wittgenstein ou Strawson. Na filosofia da natureza não existem filósofos canónicos, aos quais tenhamos obrigação de fazer referência. Isso significa: propriamente falando, a disciplina da "filosofia da natureza" de m o d o algum existe. É por isso que também esta investigação pode representar apenas u m primeiro impulso para a discussão do que deveremos compreender por "filosofia da natureza" n o futuro. Tal modéstia se torna evidente t a m b é m e m outra perspectiva: o autor está m u i t o mais familiarizado c o m a física do que c o m a biologia. Se fosse o contrário, este livro apresentaria outras debilidades, igualmente ocasionadas por lacunas de conhecimento. Mas jamais não teria n e n h u ma debilidade.

-

1. O andamento da investigação se desenrola de tal m o d o que apresenta, logo n o primeiro capítulo e pela primeira vez, uma panorâmica sobre os mais heterogêneos princípios. Esses princípios são divididos grosseiramente e m quatro tipos, a fim de fundamentar u m posicionamento próprio, argumentativamente fundamentado, n o exemplo de seus representantes mais significativos. O desenrolar-se desse posicionamento indica que sob ^ o ^ Q n ç e i t o d e " n a t u r e z a " não se deve compreender a to¿_ talidade de tudo que existe, mas u m âmbito que se destaca da cultura ou da história. Ademais, mostra-se não fazer sentido reconhecer a natureza Introdução

13

do nos estaria à m ã o n u m conceito monolítico, somos remetidos a uma pluralidade de perspectivas, à luz das quais o m u n d o nos aparece sempre como algo e jamais c o m o uma crua "coisa e m si". Metafísicos e fisicalistas tentaram igualmente desativar essa perspectiva do conhecimento humano através da perspectiva da unidade. Mas suas filosofias da identidade e fórmulas universais acabaram não sendo m u i t o convincentes. Todavia, para colocar uma o r d e m passível de ser realizada nas diversas perspectivas relacionadas à natureza, remontamos aqui, portanto, a uma classificação aristotélica ou kantiana. Nesse trabalho, Aristóteles torna-se importante porque sua filosofia da natureza continua desde sempre possuindo uma relevância sistemática que se opõe ao preconceito c o m u m reinante. Ela deverá ser fortalecida aqui c o m o a detentora do espaço do âmbito "físico" contra o "fisical", portanto do âmbito do m u n d o da vida contra o âmbito científico. Pelo conceito do "correlato", porém, deverá ficar claro que hoje precisamos ver Aristóteles através dos óculos kantianos; do contrário se perderia o pensamento constitutivo m o d e r n o , que liga a concepção kantiana c o m concepções modernas, concepções cunhadas pela analítica da linguagem. Segundo a opinião do autor, esse pensamento kantiano continua insuperável. 3. O capítulo sobre "natureza c o m o correlato do teorético", n o essencial, é polêmico. Ele refuta as exageradas pretensões de validade sobretudo do fisicalismo e aqui novamente o muito difundido platonismo fisicalista. Tal platonismo, muito divulgado também na teoria analítica da ciência, bloqueia toda e qualquer filosofia da natureza diferenciada. 4 . N o capítulo sobre a "natureza c o m o correlato do técnico-prático" mostra-se que, m e s m o hoje, ainda não conseguimos deixar de considerar a natureza sob o enfoque teleológico. Não é assim que, ao entregarmos a natureza à responsabilidade dos procedimentos experimentais da física ou da química, já saibamos tudo sobre "natureza", u m procedimento que continua absolutamente legítimo. Dando u m passo a mais, pela análise dos procedimentos práticos a partir da biônica, cibernética, informática etc. pode-se mostrar que esses procedimentos muitas vezes i m p õ e m u m t é l o ç para dentro da natureza, o qual fica inacessível ao método

fisical,

pois não foi criado para isso. Essa teleologia então é colocada e m relação c o m a concepção de Aristóteles. 5. O capítulo sobre "natureza c o m o correlato do ético-prático", n o essencial, trata de questões sobre a ética ecológica. Aqui se deve mostrar que e m todas as formas de ética não-antropocêntrica, ecológica impera 16

Introdução à Filosofia da Natureza

u m problema ontológico não resolvido — é de certo m o d o a transposição da antinomia kantiana da liberdade para o campo da natureza exterior. Essas formas de ética ecológica exigem uma ontologia não-reducionista, c o m o foi desenvolvida exatamente neste trabalho. 6. O capítulo "Sobre a hermenêutica da natureza cientificizada" procura cobrir uma lacuna que todo observador u m pouco mais atento e m matéria de filosofia irá sentir c o m o desejável: a cada novo ano produzimos uma infinidade de novos modos teoréticos de ver os nexos da natureza, mas quase ninguém se pergunta, uma vez sequer, sobre seu significado. Simplesmente não está direito que, c o m o supõe o positivista, nós simplesmente armazenemos e m manuais esses novos m o d o s de ver, disponibilizando-os para o uso da suplantação técnica do universo. Não existe sequer um único m o d o de ver esses nexos da natureza que não repercuta diretamente na autocompreensão humana, e isso não só no sentido trivial de que deveríamos dar u m basta a esse conhecimento quando a matéria é descontínua em vez de ser contínua, quando a totalidade do mundo se compara mais c o m uma b o m b a explosiva do que c o m u m cosmos estático, quando, à base da segunda lei fundamental da termodinâmica, as estruturas complexas têm a tendência de decompor-se etc. É imperativo que tomemos conhecimento desses nexos objetivos; porém, o que fica evidente também é que m e s m o u m cientista da natureza, de concepções positivistas, não pode deixar de avaliar esses nexos o b jetivos e integrá-los no círculo hermenêutico de sua autocompreensão. O que acontece ali é uma interpretarão, que jamais será u m efeito secundário dos nexos objetivos que lhe servem de base; antes, nessas interpretações são comunicados u m conhecimento objetivo neutro e uma situação epocal para a localização do h o m e m n o cosmos que nos circunda. Essas afirmações se dão hoje de m o d o crescente sob a forma de uma ciência popular que extrapola seus limites. E visto que não temos formas de discussão que sejam pautadas e m princípios e legitimadas para essa finalidade,

e que possam nos proporcionar a mediação entre ciência e

mundo da vida, ou entre teoria e práxis, o que se dá é u m mercado florescente e s o m b r i o de ofertas de visão de m u n d o que aparentam conter apenas implicações lógicas de teorias, a teoria de auto-organização, a teoria quântica, a biologia molecular, a teoria da informação e t c , mas que na verdade se encaminham na direção de especulações bastante arbitrárias e pseudometafísicas. O citado desarranjo teorético, que alcançou uma repercussão bastante geral, faz c o m que o problema da mediação entre teoria e prática não Introdução

17

mais seja considerado c o m o problema. Assim c o m o a tecnificação que cresce de maneira vertiginosa deixa atrás de si os detritos do lixo industrial, c o m o uma questão não resolvida, a cientificização da natureza gera montanhas de lixo cognitivo e m forma de teoremas compreendidos pela metade e não integrados na existência. A filosofia da natureza tem também a tarefa de desenvolver estratégias para superar essa poluição semântica do m e i o ambiente, que se instaura pelo fato de que estamos constantem e n t e produzindo novos conhecimentos, mas n e m de longe conseguim o s compreender o que sabemos ali. A "filosofia da natureza" pode assim ser definida c o m o aquele saber que faz a mediação entre teoria e prática n o âmbito da ciência e do m u n do da vida, sendo que o último detém o primado.

IH

Introdução à Filosofia da Natureza

Capítulo 1

As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

O que se deve compreender por "natureza" ou "filosofia da natureza" não parece ser muito claro, portanto. U m a olhada nos diversos ensaios sobre o tema nos fornece assim uma imagem bastante inconsistente. Diversos autores c o m p r e e n d e m c o m o "natureza" a totalidade de tudo que existe, seja n u m sentido metafísico ou materialístico, de tal m o d o que a "filosofia da natureza" seria, sem mais, idêntica à "filosofia", u m a vez que nada poderia escapar ao seu âmbito de competência. Outros ainda acreditam que o conceito de "natureza" poderia ser suficientemente determinado c o m o correlato da ciência da natureza, de m o d o que filosofia da natureza nada mais seria que u m campo sintetizador para disponibilizar didaticamente os resultados mais genéricos da ciência da natureza e assim divulgá-los c o m o u m a ciência popular ou então refletir sobre eles a partir de seus métodos. Visto que o empreendimento chamado "filosofia da natureza" se desenvolve de maneira totalmente diversa dependendo de qual posição vem referida nessas questões fundamentais, é necessário então, antes de tudo, abrir o espaço de possibilidades dentro do qual se pode definir tal empreendimento, para depois decidir qual a concepção de "filosofia da natureza" que se pode apoiar c o m os melhores argumentos. Isso porque, aqui, desde o princípio nada está claro. Não está claro que o conceito de "natureza" seja u m mero conceito regional n e m que seja u m conceito totalitário; não está claro que seja possível determiná-lo suficientemente c o m o correlato da ciência da natureza n e m que não tenhamos modos de acesso não-científicos e m relação à "natureza", c o m o quer que seja a constituição individual desses. De imediato então vamos introduzir duas distinções básicas, que não estão apoiadas sobre o m e s m o vértice lógico, podendo, portanto, ser combinadas aleatoriamente: A primeira distinção refere-se à concepção de uma natureza c o m o soma ou totalidade de tudo que existe ( N a t ) , de m o d o que nada haveria tot

que não fosse "natureza"; depois a concepção de uma natureza c o m o u m âmbito regionalmente determinado, que não abrange tudo que existe e m geral (Nat

) , portanto eventualmente deverá sofrer delimitação diante 19

do âmbito da "cultura" e da "história". A outra distinção, independente desta do ponto de vista lógico, refere-se à natureza c o m o m e r o correlato da ciência da natureza (Nat . ), ou à natureza c o m o u m dado que perck

n

mite diversos modos de acesso, modos não redutíveis entre si; portanto, natureza c o m o uma grandeza que deve ser compreendida de maneira pluralista (Nat , ), a qual não só pode ser calculada, mas sempre que posp

ur

sível também deve ser compreendida, ou que suas propriedades estéticas e morais talvez possam ser resgatadas pelo conhecimento. Desse m o d o , surgem dois pares de opostos:

Nat N

at

tot

a e n

— Nat —Nat

reg

p i u r

Na medida em que essas duas distinções podem ser combinadas, surgem quatro possibilidades de combinação, as quais realmente correspondem a posições defendidas de fato, e que devem ser discutidas e m seus detalhes, visto que u m posicionamento nesse espaço de possibilidade precisa ser sustentado argumentativamente, na medida e m que não é evidente por si mesmo, embora existam filósofos da natureza que prefiram considerar que seu posicionamento dentro desse espaço de possibilidade não tem a obrigação de apresentar fundamentação. Isso vale sobretudo para filósofos que pressupõem, de m o d o inquestionável, que a natureza seria precisamente "tudo que há" ( N a t ) , ou então para filósofos que, lot

sem questionar, partem do pressuposto de que as ciências da natureza já saberiam tudo o que há para dizer sobre natureza ( N a t

den

).

Baseados nessa combinatória, então, quatro são as posições a ser examinadas:

N

at,

o t / c i e n

^*^reg/cien at

N reg/plur

^Aposição N a t tica ou

tot/cien

é sustentada por muitos teóricos da ciência analí-

físicol7físiciIistãs,

c o m o por exemplo W v. O. Quine, C. G. H e m -

pel, Wolfgang Stegmüller ou Bernulf Kanitscheider. Para esses, a "natureza" designa a totalidade de tudo que existe, o que pode ser apreendido suficientemente c o m u m esquema fisicalista. 20

Introdução à Filosofia da Natureza

A posição Nat „, , é defendida muitas vezes por filósofos que vêem t

/r

vr

n o conceito de "natureza" uma última instância, a qual, todavia, só se revela para u m a pluralidade de m o d o s de acesso irredutíveis. Representantes clássicos de tal posição são Ch. S. Peirce, A. N. Whitehead, mas também autores c o m o Hans Jonas ou Klaus Meyer-Abich. Todavia, essa concepção não precisa necessariamente se mostrar na figura de uma metafísica assim tão cheia de pressupostos. C o m o exemplo, a própria filosofia da natureza de Ernst Bloch poderia ser compreendida sob esse enfoque, assim c o m o e m geral o marxismo possuiria u m conceito não reducionista de natureza, c o m o uma totalidade de tudo que existe. Na seqüência de nosso trabalho, não vamos expor n e m aprofundar a filosofia da natureza de Bloch, visto que seria preciso elaborar uma crítica mais detalhada da teoria da sociedade que lhe serve de fundamento, o que extrapola o alcance dessa investigação. Diante da posição Nat

tot/p]ui

, a posição N a t ^ ^ é muito mais divulgada

e, à primeira vista, muito mais plausível. Alimenta-se da reputação indiscutível que puderam alcançar as ciências da natureza e m relação a sua região de objetos, ligando a isso uma imagem não-reducionista do ser humano, para o que é possível apresentar igualmente bons argumentos. Quem costuma defender essa posição são os representantes da "Escola de Erlangen", portanto autores c o m o Paul Lorenzen, Jürgen MittelstraB, Friedrich Kambartel ou Peter Janich, mas também filósofos analíticos, que nada têm a ver c o m essa escola, c o m o por exemplo Donald Davidson ou Hilary Putnam. A posição que deve ser fortalecida aqui, a saber, a combinação N a t ^ ^ ^ é seguramente a posição de uma minoria, visto estar constrangida à necessidade de contestar a pretensão das ciências da natureza de querer tudo explicar, justamente onde essa pretensão festeja seu maior triunfo, a saber, n o domínio da natureza. A primeira vista, essa posição apresenta b e m poucos pontos a seu favor, razão pela qual também o cientismo c o mumente não é colocado em questão em relação à natureza, mas e m relação ao h o m e m , c o m o por exemplo na ampla discussão sobre a "relaçãocorpo-alma", sobre "a causação mental" e, b e m e m geral, na questão a respeito do "naturalismo" na filosofia analítica ou ainda na questão pela possibilidade de uma fisicalização do social e dos limites de u m "engeneering social", c o m o é o caso em K. O. Apel ou Jürgen Habermas. Todavia, sem querer colocar e m dúvida a dignidade de tais contextos de discussão, parece ser inconseqüente negar o ponto de vista reducionista em relação ao ser humano e aceitá-lo em relação à natureza. E isso é inconseqüente porque também o h o m e m é u m ser da natureza, e porque As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

21

I

não se pode ver facilmente a razão por que, n o todo da natureza, devêssemos abrir uma exceção, sem qualquer analogia, de tal m o d o que para a descrição do h o m e m seria necessário lançar m ã o de categorias completamente diferentes das categorias usadas para descrever o restante da natureza. Nessa posição N a t

reg/Cien

, que é muito difundida, parece estar atuando

ainda u m resto daquele dualismo que, desde Descartes até Kant, tende a não só distinguir os discursos sobre o aspecto mental e o físico, o que é necessário, mas separá-los de tal m o d o que acabam não mais podendo ser relacionados entre si. A discussão desenvolvida dentro deste capítulo introdutório deverá mostrar então que, numa análise mais aprofundada, a posição N a t

reg/plur

comporta muito menos pressupostos do que parece à primeira vista. Agora, então, devem-se discutir as quatro posições mencionadas, na ordem seqüencial e m que foram introduzidas: Nat

tot/den

N a t

to,/plur

N a t

reg/cien

N^reg/plur

1.1 A natureza como totalidade de tudo o que existe apreendida cientificamente (Nat Nat,

ot/cien

tot/cien

)

é de certo m o d o a posição mais "rígida". Pressupõe nada haver

neste m u n d o que possa se subtrair ao m o d o de explicitação da ciência da natureza, e m caso extremo inclusive a própria física teorética. O fisicalismo, todavia, se apresenta numa configuração totalmente diversa. Por um lado, naturalmente, c o m o a convicção dos físicos teoréticos — convicção que ainda não foi profundamente questionada — segundo a qual eles seriam competentes para responder a tudo. Tal convicção era defendida por exemplo por Max Planck, Albert Einstein e o é, ainda hoje, por físicos c o m o StevenWeinberg ou FrankTipler. No exemplo de Weinberg deve-se mostrar que esse fisicalismo repousa em absolutizações dogmáticas difíceis de ser justificadas. U m fisicalismo argumentativamente fundamentado existe de fato desde os anos vinte, no "círculo de Viena", portanto e m autores c o m o Rudolf Carnap, Moritz Schlick ou Otto Neurath. Essa tradição do fisicalismo foi levada avante por teóricos da ciência c o m o Ernest Nagel, C. G. 22

Introdução à Filosofia da Natureza

Hempel, W v. O. Quine, Wolfgang Stegmüller.W K. Essler etc. Mas, antes de tomar o caminho r u m o a essa corrente de pensamento, é preciso m e n cionar o problema central do fisicalismo: o h o m e m .

1.1.1

O erro d a ciência ao buscar dimensionar o homem

Se o fisicalismo é verdadeiro o u não, isso não se decide na natureza, mas no h o m e m . Na presente investigação devem-se apresentar razões que justifiquem por que o fisicalismo não é verdadeiro sequer para a natureza; a verdadeira demonstração de veracidade para o fisicalismo, n o entanto, deve ser buscada n o h o m e m . Visto que sobre esse tema existe uma vasta gama de escritos que não pertencem ao âmbito de competência da filosofia da natureza, não será possível repetir aqui os prós e os contras próprios do debate entre corpo e alma o u entre cérebro e espírito. O autor deste, todavia, é de opinião de que os naturalistas, isto é, aqueles que defendem que as ciências da natureza explicitam plenamente o ser humano, são os que possuem os mais fracos argumentos diante de seus adversários. Via de regra, o reducionista fisicalista se vê obrigado a apelar para pressuposições u m tanto exóticas, quando busca explicitar o ser h u m a n o em toda e qualquer perspectiva a partir das ciências da natureza, de tal m o d o que é de admirar que essa posição já não tenha sucumbido há muito tempo. Assim, por exemplo, o filósofo HolmTetens defende u m a imagem fisicalista do ser h u m a n o ; ele postula que não há qualquer diferença entre cibernética neurológica e física, considerando que basta essa "ciência" para "explicitar" o comportamento humano, na medida e m que investiga as normatividades correspondentes que ligam nossas cognições c o m nossas ações (TETENS, 1 9 9 4 ) . O autor imagina evidentemente que se pode colocar o ser h u m a n o sobre uma plataforma de testes e fazer experiências c o m ele c o m o se faz c o m u m automóvel, a fim de testar seus m o d o s de funcionamento internos. Sem dúvida, n u m tal "arranjo de ensaios", surgirão resultados de toda ordem, tanto para o automóvel quanto para o h o m e m . De fato, a "psicologia do c o n h e c i m e n t o " é muito bem-sucedida c o m esses métodos (cf., por exemplo, ANDERSON, 1 9 9 6 ) . E evidente que n o h o m e m , condicionado a evoluir, existem nexos neuronais firmemente interligados, passíveis de serem submetidos a uma tal intervenção nomológica. Todavia, há boas razões para colocar e m dúvida que, c o m esse tipo de procedimento, se possa obter u m conceito As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

23

satisfatório para o ser humano. U m exemplo é que esse "arranjo de ensaios" abstrai totalmente da inserção histórica, social e normativa do ser humano. Já para o automóvel, uma tal inserção é essencial. Conhecendo apenas os dados experimentais da plataforma de testes, ainda não se compreendeu c o m o isso se dá na realidade; é preciso saber, além disso, quais foram as condições históricas, sociais e normativas que nos levaram a solucionar nossos problemas de transporte por m e i o do automóvel, c o m o o fazemos hoje. U m princípio que já é tão fraco para o automóvel, por que deveria ser suficiente para o ser humano? O naturalismo, portanto a concepção de que podemos "explicar" suficientemente o ser humano c o m os recursos da ciência da natureza, sobrecarrega-se c o m problemas quase insolúveis. E , visto que não pode ser tarefa deste livro apresentar esses problemas de forma mais aprofundada, vamos acrescentar ainda apenas uma observação sintomática para a debilidade do naturalismo: Na coletânea sobre naturalismo, reunida e publicada recentemente n u m volume por Geert Keil e Herbert Schãdelbach, são apenas seis os autores que defendem u m assim chamado naturalismo "não-reducionista", d o tipo e m que se admitem categorias intencionais, a irredutibilidade da perspectiva da primeira pessoa, a amplidão de todas as ciências, portanto não só a física e a química, mas também a jurisprudência, a psicologia o u a ciência da literatura etc. Os autores chamam a isso tudo de "naturalismo" (KHL/SCHNÃDELBACH, 2 0 0 0 ; cf. t a m b é m KEIL, 1 9 9 3 ) .

É de se perguntar, todavia, se tais empréstimos não são apenas u m m o d o cortês de se afastar do programa c o m o u m todo. O conceito de "naturalismo" se define pela relação constitutiva c o m as ciências da natureza. Se agora, então, para descrever o ser humano, admitem-se todas as ciências d o espírito, o uso de categorias intencionais, a perspectiva insuperável da primeira pessoa e t c , então isso já não pode ser chamado de "naturalismo", pois, desse m o d o , o conceito de natureza já carece de definição. Correspondentemente, n o livro de Kail/Schnãdelbach já não se encontra nenhuma tentativa relevante, por parte dos naturalistas "não-reducionistas", de esclarecer seu conceito de natureza, o que naturalmente seria necessário, visto que querem renunciar às ciências da natureza c o m o o definiens de sua empreitada. Semelhantes objeções devem ser apresentadas contra as assim chamadas "ciências cognitivas", as quais apresentam uma mistura b e m c o n fusa de informática, semiótica, filosofia e antropologia (para isso: G O L D / ENGEL, 1 9 9 8 ) .

Agora, então, debrucemo-nos sobre o fisicalismo e m sentido estrito: 24

Introdução à Filosofia da Natureza

1.1.2

O fisicalismo dogmático: Steven Weinberg

É evidente que u m físico não deve ser u m fisicalista. Werner Heisenber, por exemplo, refutou decididamente o

fisicalismo

(assim, sobretudo

em: HEISENBERG, 1 9 8 9 ) . M e s m o assim, u m a construção fisicalista do universo carrega e m si algo de sugestivo, algo que aparenta ser desejável, ou seja, que tudo que existe poderia ser c o m p r i m i d o algoritmicamente para dentro de uma fórmula simples. Esse desejo aparece muitas vezes figurado

na crença e m uma "fórmula universal". A "fórmula universal"

é c o m u m e n t e identificada c o m uma "teoria unificada de c a m p o s " , portanto u m a teoria capaz de unificar n u m formalismo as quatro forças conhecidas, efeito recíproco fraco e forte, força eletromagnética e gravitacional. Stephen Hawking, que fez importantes contribuições para a cosmologia quântica, identifica por exemplo tal teoria unificada de c a m pos c o m o pensamento de Deus antes da criação do m u n d o (HAWKING, 1 9 8 8 , p. 2 1 8 ) , sem que fique evidente onde ele referencia sua pretensão de validade. Steven Weinberg, que recebeu o p r ê m i o Nobel pela unificação de efeitos recíprocos fracos e eletromagnéticos, vai ainda mais longe. Ele agrava u m a "teoria unificada de c a m p o s " c o m a reivindicação de ser "definitiva" e de ser "logicamente compulsória": " o m e l h o r a fazer é caracterizar a teoria definitiva c o m o algo tão rigoroso que toda e qualquer tentativa de modificação, m e s m o que insignificante, leva a absurdos l ó g i c o s " (WEINBERG, 1 9 9 2 , p.

24-25).

E claro que essas tais pretensões de validade não se apoiam numa ciência empírica, c o m o a física, pois não sabemos se as quatro forças fundamentais conhecidas até o presente são todas as forças que d o r m i tam nas profundidades da matéria, e conseqüentemente não teríamos n e n h u m processo para poder qualificar qualquer teoria c o m o "definitiva"; tal teoria t a m b é m não poderia mais ser falsificada, e, portanto, já por essa razão, não seria mais uma teoria empírica; sobre isso, para todas as teorias, existem formulações logicamente equivalentes,

fundamentadas

e m pressupostos ontológicos diversos ( c o m o por exemplo, ontologias das partículas de campo na teoria quântica), e, por fim, toda e qualquer teoria fisicalista é, empiricamente, indeterminada, isto é, sempre existe a possibilidade de se "esclarecer" u m certo rol de dados de medidas por teorias logicamente não-equivalentes, as quais então, ipso facto, não estão ancoradas nos mesmos pressupostos ontológicos fundamentais. Nesse contexto, vale a pena analisar mais de perto a concepção do físico Steven Weinberg, porque nele o mecanismo que leva a essas exageradas As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

25

I

pretensões de validade torna-se especialmente evidente. Esse mecanismo foi descrito por Kant há mais de duzentos anos, e m sua Crítico da razão pura. Consiste n o fato de que o h o m e m tem u m impulso insaciável por metafísica, o qual o seduz constantemente a elevar o condicionado até o incondicionado, a trocar as fórmulas categoriais da ciência pelas "idéias" transcendentais, e a transformar os fenômenos e m "coisa e m si" verdadeira. Precisamente esse último se torna bastante evidente e m Weinberg. Ele simplesmente não conta c o m o fato de que, n o experimento fisical, a natureza poderia aparecer meramente c o m o aquela natureza que se dá conforme os condicionamentos experimentais, mas diz enfaticamente: "Eu, porém, falo da natureza, ela m e s m a " (WEINBERG, 1 9 9 2 , p. 6 2 ) . O m e s m o se deu no Idealismo Alemão c o m Schelling: "O filósofo da natureza se coloca n o lugar da natureza" (SCHELLING, 1 /IV, p. 5 3 0 ) . Essas elevadas pretensões não podem ser resgatadas a partir de uma metafísica especulativa n e m de uma teoria de campo moderna. Kant, ao contrário, concedeu validade a essa "idéia" apenas e m seu caráter regulador, isto é, o incondicionado se manifesta ao cientista e m sua pretensão de encontrar a unidade dos princípios por trás da multiplicidade de manifestações. Kant comparou esse mecanismo a u m focus imaginarius (Crp, B , p. 6 7 2 ) , isto é, u m ponto de unidade meramente virtual. É interessante ver que Weinberg, que confessa abertamente não ler fundamentalmente n e n h u m filósofo, escolhe exatamente a mesma comparação: "Imagine que o espaço dos princípios científicos está tomado por setas que se dirigem cada uma para u m princípio, partindo de outros princípios, pelos quais esse princípio encetado recebe explicação. Nesse meio-tempo, essas setas esclarecedoras denunciam u m modelo reconhecível: elas não form a m amontoados separados, sem pertencimento mútuo, os quais estão representando ali as ciências singulares, n e m sequer perambulam sem finalidade,

mas têm todas u m mútuo pertencimento, e, quando as per-

seguimos e m seu caminho de retorno, parecem surgir, todas elas, de u m ponto de partida c o m u m . Esse ponto de partida, e m direção ao qual todas as explicações devem ser perseguidas e m seu retorno, é o que eu compreendo por teoria definitiva" (WEINBERG, 1 9 9 2 , p. 1 3 ) . Mas, diferentemente de Kant, Weinberg considera essa idéia passível de ser realizada. Na posse de uma "fórmula universal", ele acredita poder deduzir tudo que existe. Numa entrevista dada à revista Spiegel, u m redator faz mais ou menos a seguinte intervenção: "Não sabemos, n e m sequer, c o m o a vida surgiu na terra ou c o m o funciona a consciência h u m a n a " . E Weinberg responde: "Sim, mas isso não é n e n h u m mistério 26

Introdução à Filosofia da Natureza

fundamental, pois sabemos qual a forma de esclarecimento que e n c o n traremos u m dia: tudo o que acontece n o cérebro está ancorado nas leis da química e da física" (WEINBERG, 1 9 9 9 , p. 1 9 2 ) . Isso significa, portanto, que, se uma vez na vida detivermos a posse dessa "fórmula universal", m e s m o nos complexos não poderá mais haver nenhuma qualidade emergente. Quão improvável é tal coisa, demonstrou Hilary Putnam num exemplo simples e convincente: Se temos uma tábua c o m dois buracos, u m redondo e o outro quadrado ( o diâmetro e a medida dos lados são iguais), c o m o é possível explicar que u m a cavilha quadrada passe por u m buraco, mas não passe pelo outro? Para explicar isso não é preciso lançar m ã o de qualquer tipo de moléculas ou de microestruturas, pois um grego, c o m uma teoria dos quatro elementos totalmente falsa, poderia fornecer essa explicação de m o d o tão preciso quanto nós. Mas, se por outro lado se procura esclarecer essa questão pela via da microfísica, será preciso introduzir condicionamentos marginais nas leis da microfísica, que do ponto de vista dessas leis são totally accidental ("this atom is here, this carbón atom is there, and so forth"). E visto que "explicar" é = "deduzir a partir de leis", e que esses condicionamentos marginais são contingentes e m relação a tais leis, então m e s m o esse estado de coisas simples não pode ser deduzido a partir da física teorética. Mas se é esse o caso, então, pergunta Putnam, que razões teríamos para acreditar que, por exemplo, as leis da e c o n o m i a podem ser deduzidas das leis fisicais? (PUTNAM, 1 9 7 5 , p. 2 9 5 s s ) . Porque é possível fazer objeções tão fundamentais contra o fisicalismo,

esse acabou perdendo muito de sua atratividade. Mas na Alemanha

ele continua sendo sustentado por autores c o m o Bernulf Kanitscheider, que tanto quanto Schelling está convencido de poder olhar para dentro da " i m o da natureza" (KANITSCHEIDER, 1 9 9 6 ) .

1.1.3 O

O fisicalismo da teoria da ciência: Wolfgang Stegmüller

fisicalismo

dogmático defendido por alguns físicos praticantes foi

m e n c i o n a d o aqui porque continua influente, motivando concepções de mundo, e muitas vezes ainda c o m o pano de fundo da corrente de argumentos, c o m lavra refinada, dos teóricos da ciência analítica, e porque fornece a priori o esquema seguido por u m platonismo fisicalista bastante difundido; esse platonismo deverá ser exposto e criticado e m seus detalhes no ponto 3 . 3 . As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

27

Ademais, parece ser importante fazer referência não só aos teóricos da ciência, mas igualmente aos cientistas que trabalham empiricamente. Entre esses dois grupos existe u m a estranheza mútua que não poderia ser maior. Foi precisamente Steven Weinberg que se manifestou de m o d o bastante negativo e m relação a isso: a teoria da ciência nada mais seria que "uma glosa marginal e obsequiosa da história e das descobertas da ciênc i a . . . Eu não c o n h e ç o ninguém que tivesse tomado parte ativa no progresso da física, n o período pós-guerra, e cujo trabalho investigativo tivesse tido algum incentivo pela atuação de algum filósofo, de m o d o que merecesse ser m e n c i o n a d o " (WEINBERG, 1 9 9 2 , p. 1 7 4 - 1 7 5 ) . Mas

era isso que reivindicava para si a teoria da ciência desde o

começo. Segundo Rudolf Carnap, o emprego da lógica formal moderna não deveria apenas desempenhar o papel de post-festum, mas sim facilitar a criação de novos conceitos, a formulação de novas suposições ousadas" etc. (CARNAP, 1 9 8 6 = ' 1 9 6 6 , p.

Mas

287).

não foi o que aconteceu. O caminho que vai da ciência para

a teoria analítica da ciência ficou sendo uma via de m ã o única intraacadêmica. Na realidade, esse novo tipo de teoria da ciência não exerceu qualquer influência n o empreendimento científico, e se os novos projetos irão ter mais sucesso, isso ainda precisa ser mostrado. Ademais, visto que muitas vezes a teoria da ciência possui u m conceito de ciência bastante estreito, muitos físicos agenciam sua filosofia passando ao largo da teoria da ciência, o que naturalmente acaba desembocando muitas vezes num diletantismo. Por outro lado, é justamente em "físicos filosofantes" que muitas vezes se encontram também estímulos (cf. abaixo, 2 . 2 ) que fazem falta e m muitos teóricos da ciência. Por exemplo, são poucas as vezes em que eles investigam os componentes metafísicos ideais do processo científico, aquilo que foi exposto n o parágrafo anterior. ( U m a exceção para isso é, por exemplo, Hans Poser, cuja metafísica corresponde amplamente à metafísica defendida aqui [POSER, 2 0 0 1 , p. 201 ss].) Mas, se fosse possível dar u m b o m conselho ao filósofo da natureza, então seria b o m ele não se restringir à teoria da ciência, limitando-se a acompanhar a estreiteza de seus procedimentos metafísicos, o que não significa que se deva ignorá-los. Entre os teóricos da teoria analítica da ciência, que defenderam o fisicalismo

até o final e c o m todo rigor, destaca-se Wolfgang Stegmüller.

Seu fisicalismo, cujo fracasso deve ser esboçado aqui, é muito mais conseqüente do que o dos assim chamados "naturalistas não-reducionistas", 28

Introdução ã Filosofia da Natureza

mencionados e brevemente caracterizados n o parágrafo anterior. É só um naturalismo rigorosamente reducionista c o m o o de Stegmüller que pode fracassar de maneira largamente didática. Stegmüller colocou nas mãos da física, de maneira conseqüente, tudo que existe, tanto processos históricos c o m o processos psíquicos ou processos da consciência, tanto Freud quanto Marx. Foi só na medida e m que ele levou a efeito seu programa de maneira conseqüente e e m toda sua amplidão que se tornaram visíveis seus limites. De princípio, ele partiu de uma posição carnapiana, e o centro dessa posição era ocupado só e puramente pelas análises sintáticas. Mais tarde, Carnap aceitou também a semântica, mas apenas n o sentido de uma semântica extensional tarskiana. Stegmüller seguiu imediatamente esse esquema, na medida e m que sua teoria da ciência consistia sobretudo em análises lógico-sintáticas, especialmente e m linguagens da ciência já formalizadas, c o m o por e x e m plo a linguagem da física teorética. É verdade que se reconheceu que a linguagem cotidiana é a derradeira metalinguagem de todas as linguagens formais, todavia não se fez mais qualquer uso de seu efeito fundante, do m e s m o m o d o c o m o ele, Stegmüller, chegou até a chamar a atenção para a remissão constitutiva da física teorética para c o m instrumentos de medida a serem construídos manualmente, sem n o entanto ter refletido sobre isso no sentido de um "a priori instrumental", c o m o fez a "Escola de Erlangen" (STEGMÜLLER ( W T ) (I, p. 7 0 ; I I / 1 , p. 4 6 9 ) . Para tal posição, os pressupostos pragmáticos do processo científico são contingentes, n o sentido do context of discovery de Popper, que pode ser descartado e relegado à mera psicologia investigativa. No curso de sua evolução, Stegmüller acabou adotando a postura de Hempel, o qual passou de esclarecimentos dedutivo-nomológicos (DN) para indutivo-estáticos (IE), procedimentos feitos nos últimos escritos de Hempel. A passagem dos esclarecimentos DN para IE torna-se necessária quando, por m e i o da teoria da ciência, se quer alcançar o caráter estático da teoria quântica e quando se defende a opinião de que os esclarecimentos DN são casos específicos de esclarecimentos IE, enquanto não se pode fazer o contrário. Esclarecimentos DN, pelo menos na opinião de Stegmüller, podem ser feitos sem recurso a relativizações pragmáticas. N o caso dos esclarecimentos IE, a "pragmática" empreendida n o sentido de Hempel se pauta numa referência "essencial" para c o m "situações concretas do saber" ou para a relativização a u m determinado círculo de pessoas ou a u m período de tempo. Stegmüller reconhece que nesse caso se deve enriquecer a As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

29

1

semântica formal c o m u m a semântica intencional (STEGMÚLLER [ W T ] I, p. 4ss; p. 9 5 4 ) . E importante ver que Stegmúller reelaborou a segunda edição de sua "Teoria da ciência", n o sentido de u m a tal semântica intencional, o que corresponde a uma revisão de seu princípio fundamental, sendo que ali, e m todo caso, ele minimaliza a função da pragmática. Esta corresponderia a u m "nível inferior" do conhecimento científico (STEGMÚLLER [ W T ]

I, p.

118).

O que Stegmúller não revisou, n o entanto, foi sua concepção de e m pregos proposicionais c o m o "querer", "desejar", "suspeitar", "acreditar" etc., os quais ele exige que sejam acomodados n u m "sistema teorético do nível e da precisão da teoria do eletromagnetismo". Isso poderia acontecer, segundo ele, reduzindo a teleología da ação a uma causalidade motivadora, reduzindo a causalidade motivadora a uma normatividade neurofisiológica,

a qual, por seu turno, deveria ser reconduzida a mecanismos

físico-químicos,

nos quadros das análises cibernéticas. Desse m o d o seria

possível vislumbrar a "ingenuidade" filosófica das explicações teleológicas, e junto c o m essa a ingenuidade e possibilidade de substituição de todas as expressões que se relacionam c o m o mental (STEGMÚLLER [ W T ] , vol. I, p. 4 5 2 ; p. 7 0 3 s s ) . Stegmúller acolheu, portanto, a esperança tradicionalmente ligada à cibernética de que essa disciplina prestaria ajuda a u m reducionismo fisicalista, de tal m o d o que c o m seu auxílio seria possível traduzir toda e qualquer frase que falasse a respeito de "fins", "valores" ou "objetivos", numa frase equivalente que já não conteria n e n h u m conceito teleológico (para a crítica dessa posição difundida, cf. 4 . 5 ) . Mas esse reducionismo é colocado em questão a partir de outro ponto: a partir de u m determinado ponto de seu desenvolvimento, Stegmúller adota o "estruturalismo" de J. D. Sneed, segundo o qual se pode caracterizar uma teoria, en bloc, por m e i o de u m "predicado teórico coletivo". Ele adota, ademais, o conceito de Sneed a respeito doT-teórico, o qual diz que numa teoria pode haver grandezas cujos valores não podem ser calculados, sem remontar a essa teoria T ela mesma. Essa concepção conteria outras "relativizações pragmáticas" que caminham na direção da necessidade de definir a Scientifie Community por m e i o do "objetivo c o m u m de investigação". A concepção de Sneed conduziria a u m "equilíbrio reflexivo" entre a história da ciência e a teoria da ciência (STEGMÚLLER [ W T ] , I I / 2 , p. 27ss; I I / 3 , p. 1 1 0 , 3 4 6 ) . C o m esse passo, o esquema originário d e s e m b o c a n o absurdo, pois não faz mais sentido querer reduzir todas as teleologías da ação à físi30

Introdução à Filosofia da Natureza

ca e à q u í m i c a c o m o auxílio da cibernética, u m a vez que essas disciplinas de m o d o algum p o d e m ser determinadas sem lançar m ã o de finalidades da ação. Em suma, n o exemplo de Stegmüller se mostra que o

fisicalismo

implantado t e m a tendência de derribar e converter-se e m seu contrário. Contra a própria vontade, acaba se apresentando aqui, espontaneamente, o "primado do prático", colocado c o m o ponto central pelos construtivistas de Erlangen. A partir daí pode-se compreender t a m b é m por que Stegmüller jamais t o m o u c o n h e c i m e n t o realmente dessa religação c o m a práxis reivindicada pela escola de Erlangen. É assim, por exemplo, que ele examina as reflexões alternativas principiais de Paul Lorenzen, sobre a fundação técnico-prática da física, e as examina som e n t e a partir d o aspecto do cálculo e n ã o a partir do d e s e m p e n h o fundante n o aspecto prático (STEGMÜLLER [ W T ] I , p . 5 1 8 ; I I / 2 , p . 6 1 - 6 2 ; III, p. 4 - 5 ) . Ele trata da relação experimental da física igualmente apenas de m o d o marginal. Nesse tipo de teoria da ciência, contextos de ação p e r m a n e c e m fora e afastados. Não é só o desenvolvimento imanente de Wolfgang Stegmüller que aponta para o fato de que toda teoria lança m ã o de maneira constitutiva de contextos pragmáticos. No círculo de autores c o m o Stephen Toulmin, Norwood Hanson ou Imre Lakatos, tem-se falado de m o d o direto de uma "guinada pragmática" ou "contextual" na teoria da ciência. C o m base nesses passos, já faz u m b o m tempo que o fisicalismo já não dispõe da aceitação que ele podia reivindicar para si n o tempo do "Círculo de Viena", de tal m o d o que se pode falar de u m a "auto-suspensão do

fisicalis-

m o pela teoria da ciência". Ademais, essas reflexões de fundo da teoria da ciência não representam o objeto explícito da filosofia da natureza, em todo caso não n o sentido e m que esta é compreendida aqui. Por isso, é preciso restringir-se a essas poucas observações que simplesmente apontam para o déficit de argumentos n o esquema fisicalista ou naturalista. Mas para o âmbito estrito da filosofia da natureza esse trabalho fornece alguns argumentos antinaturalísticos. Assim, n o ponto 3 . 4 , deverá ser mostrado que, do ponto de vista puramente interno do fisicalismo, não se pode justificar n e m sequer o conceito de "matéria". A fortiori, o conceito de uma teleologia da natureza, a ser legitimado n o capítulo 4 , destruirá todo e qualquer fisicalismo. Conclusão: a posição N a t ,

ot/cien

parece fracassar n o fato de precisar

outorgar ao esquema de explicitação fisicalista u m alcance difícil de ser justificado. As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

31

1.2 Natureza como totalidade de tudo o que existe e que se abre a uma pluralidade de perspectivas irredutíveis (Nat, | ) ot/p

ur

Essa posição não se expõe às mesmas objeções elementares que reivindica para si um fisicalismo referido à totalidade de tudo que existe, u m fisicalismo que considera seus modos de explicitação suficientes para esgotar todas as suas possibilidades. Isso porque aqui não se ensina um fisicalismo

reducionista; antes, a posição N a t

tot/plur

abre uma pluralidade

de perspectivas, estabelecendo-as numa unidade conceituai mais elevada, por m e i o de conceitos mais abrangentes.

1.2.1

C h . S. P e i r c e e A. N. Whitehead

Autores c o m o Ch. S. Peirce ou A. N. Whitehead defendem uma concepção liberal, segundo a qual a ciência da natureza e a ciência da história, a estética, a ética, mas também a teologia, cada uma delas e m si mesma se constitui e m discursos significativos, e cuja força de abertura de m u n d o nelas presente não pode ser sacrificada prematuramente a uma m o n o c u l tura científica. Por outro lado, o conceito de metafísica desses dois autores é relativamente fraco, no sentido de que Peirce e Whitehead desatrelam suas reflexões sobre a totalidade de tudo que existe da pretensão de fundamentação última, a qual vem ligada tradicionalmente c o m a metafísica. Desde Platão até Schelling e Hegel, mas também até Heinrich Scholz ou Karl-Otto Apel, a metafísica deveria fornecer u m saber insuperável, saber que, negado, levaria a uma auto-anulação da própria razão, a tal ponto que Hegel pretendeu decifrar os "pensamentos de Deus antes da criação do m u n d o " , e tê-los trazido a conceito e m forma de "espírito absoluto". Esse conceito triunfalista da metafísica foi consideravelmente relegado a u m grau inferior por Peirce e Whitehead. Em ambos os autores (evidentemente, de m o d o independente um do outro), a metafísica significa ainda somente a tentativa precária de manter a unidade do saber (e c o m isso a unidade do m u n d o ) , diante de uma explosão de âmbitos dividindo-se e m ilhas da racionalidade que já não podem tocar-se ou sobrepor-se, que impulsiona uma esquizofrenia post-moderna, que paralisa o sujeito na prática e na teoria o reduz a uma patchwork identity. Por conseguinte, para Peirce e Whitehead, a unidade do m u n d o e do saber representa apenas ainda uma "esperança desesperada", não é mais 1

u m resultado que se possa proclamar e m alta voz (PEIRCE, 1 9 9 1 = 1 8 8 4 s s , 32

Introdução à Filosofia da Natureza

p. 1 3 3 ; algo muito parecido e m Whitehead, 1 9 8 7 = ' 1 9 2 9 , p. 9 6 ) . Além do mais, essa unidade continua dependente do estágio das ciências empíricas e não se dá, portanto, e m virtude de uma pretensa visão apriorística na própria "essência das coisas", desvinculada da história. As concepções de Peirce e Whitead não podem ser expostas e criticadas aqui em seus detalhes, o que iria demandar u m esforço extremamente desgastante. Deve-se apenas chamar a atenção para o fato de que e m tal princípio surge uma dificuldade.típica da filosofia da natureza, que e m todo caso não foi resolvida de maneira convincente por esses dois autores. A seguir, portanto, deverá ser exposto de m o d o mais extensivo apenas u m ponto problemático, b e m determinado, desses dois princípios, isso porque aqui não parece ser possível conectar-se a uma tradição argumentativamente b e m fundamentada e já existente, c o m o é o caso da crítica ao fisicalismo. Ao contrário, dá a impressão de que a posição N a t

tot/plui

,

c o m o é defendida por Peirce e Whitehead, ou acaba encontrando adeptos menos críticos ou então críticos menos críticos contra a própria crítica, os quais têm a tendência de achar que uma metafísica nos moldes da de Peirce e Whitehead deve ser rejeitada já pelo fato de pressupor u m conceito de "espírito" que recorda filosofias substanciais mais antigas, c o m o as de Schelling ou Hegel. Tal posição pretensamente "crítica" diante de Peirce e Whitehead estaria abaixo de sua complexidade, porque esses autores, c o m o foi mencionado, conquistam seu ponto de vista, de m o d o argumentativo, a partir da análise das ciências empíricas e a partir de âmbitos experimentais do mundo da vida, os quais não podem ser reduzidos às ciências, mas que são universalmente acessíveis; e isso de tal m o d o que se estaria obrigado a demonstrar que esses argumentos não são conclusivos, ou, se fosse o caso, mostrar que o empreendimento que busca tornar transparente a experiência c o m o u m todo a partir de uns poucos modelos conceituais seria uma empresa absurda; e uma demonstração assim, relativamente difícil de ser realizada, comporta muitos argumentos favoráveis à manutenção da unidade do mundo e do saber, se não quisermos deixar que sucumba o que até o presente compreendemos sob a designação de "ser humano". Aqui se devem criticar as posições de Peirce e Whitehead apenas sob a perspectiva de sua tentativa de pensar a unidade do m u n d o c o m o unidade da natureza, u m procedimento que toma apenas u m aspecto b e m determinado de suas obras, sem tocar na dignidade de suas outras reflexões. O problema de fundo que surge quando se quer interpretar a unidade do mundo como natureza é relativamente antigo. Já se manifestara em As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

33

Schelling. O Schelling jovem quer remontar a uma instância anterior à divisão-sujeito-objeto e anterior à diferença entre ser e dever, para uma "natureza" originária, a qual, partindo de u m fundamento inteligível, deve possibilitar a compreensão da passagem da natura naturans para a natura naturata, isto é, a passagem de uma natureza apreendida de maneira apriorística para uma natureza dada de maneira empírica. Para esse fim, Schelling precisa mostrar que as leis da natureza, que os físicos extraem trabalhando empiricamente, nada mais são que a forma exotérica de uma normatividade final que ele deduz de auto-realizações elementares e espirituais do ser humano, e a partir dali ele as universaliza. C o m o mostrou o autor noutro lugar (MUTSCHLER, 1 9 9 0 ) , esse princípio leva a uma sobrecarga insustentável de modelos da ciência natural por m e i o de categorias axiológicas, normativas e metafísicas. A ciência da natureza que trabalha empiricamente acaba perdendo sua comprobabilidade intersubjetiva, sua clareza conceituai e sua explicitação experimental e sucumbe na tendência de poetizar o m u n d o romanticamente. Essas tendências são encontradas também e m Peirce e Whitehead e são uma conseqüência direta de seu princípio metafísico fundamental, dentro de uma natureza concebida c o m o totalidade de tudo que existe. A discussão moderna a respeito da relação-corpo-alma mostrou que só se pode aceitar o fisicalismo na sua integralidade, e nesse caso o mental degenera-se n u m pseudofenômeno, ou então se outorga ao mental uma certa autonomia (maior ou m e n o r ) , e nesse caso o fisicalismo deve restringir-se a esse ponto, m e s m o que seja apenas n o sentido do " m o n i s m o anômalo", menos pretensioso, c o m o é o caso e m Donald Davidson, que deduz a relação-corpo-alma e a interligação dos estados mentais de u m esquema de explicitação n o m o l ó g i c o (DAVIDSON, 1 9 9 0 , p. 2 9 1 s s ) . A maioria das posições modernas, portanto, parte do pressuposto de que o mental, e c o m ele todos os nexos da ação, não pode ser descrito pela forma lógica c o m a qual nos relacionamos c o m entidades físicas. Mas Peirce e Whitehead devem desenvolver essa forma lógica c o m u m , m e s m o que ela não tenha a forma de uma física, mas a forma de uma metafísica especulativa. O metafísico se dirige para u m espaço anterior à tensão entre sujeito e objeto, ser e dever, causalidade e finalidade, para u m âmbito originário, que ele interpreta c o m o "natureza". N o nível das causas, isso significa que ele — para expressá-lo e m linguagem m o derna — precisa forçar a entrar n o m e s m o m o d e l o o agent causality e a causalidade natural. A causalidade natural emancipou-se da causa eficiens — pertencente à teoria clássica das quatro causas — através de u m l o n g o 34

Introdução à Filosofia da Natureza

processo de desenvolvimento; o metafísico precisa religar essa causalidade natural c o m essa concepção clássica forçando a causa final a entrar n o m e s m o modelo. As ordenações teleológica e n o m o l ó g i c a do universo devem coincidir numa única, se é que a "natureza" deve representar u m conceito último. Segundo a posição defendida aqui, então, talvez haja razões para atribuir causas finais à natureza; no entanto, essas causas finais não t ê m seu lugar originário na natureza, mas n o agir e produzir humanos. A partir daqui, elas são atribuídas à natureza n u m sentido m e r a m e n t e análogo, mas nada que justificasse uma intervenção na autonomia da investigação científica. Antecipando u m exemplo que será analisado mais de perto n o ponto 2 . 2 : e m algumas publicações da teoria da auto-organização fisical, tornou-se usual contrapor o princípio da entropia à dinâmica de auto-organização da matéria c o m o sendo u m a tendência negativa, que parte da destruição e diminuição de valor, e u m a tendência positiva, que se dirige para u m crescimento da estrutura e dos valores. Essas especulações c o l o c a m u m telos na natureza, que então, c o m o descreve também Empédocles, oscila entre " a m o r " e "embate" ou, c o m o em Teilhard de Chardin, entre "energia radial" e "tangencial", isto é, entre uma tendência psíquico-interior, reunitiva, e u m a tendência centrífugo-dispersiva, exterior. Pode haver motivos para se preferir esses chanfros especulativos de nossa imagem fisicalista do mundo, para pensar o h o m e m — que e m sua busca antagônica age guiado por finalidades — c o m o u m ser enraizado na natureza. Todavia, depois é preciso assentar que essas especulações não podem ser deduzidas analiticamente da física, que trabalha c o m experiências empíricas, n e m que, c o m base nelas, se esteja e m condições de modificar o conteúdo dessas ciências, o que é o caso e m Peirce e W h i t e head. Ambos os autores afirmam que a natureza, a partir de si mesma, age buscando fins, primordialmente e antecipando-se a todo nosso agir; ela normatiza esses fins inclusive e m sentido moral. Se avançarmos nesse sentido e afirmarmos a função fundamental das leis da natureza, c o m o são ensinadas pela física moderna, então nos veremos obrigados a interpretar o sentido do ordo da metafísica clássica lançando-o imediatamente para dentro das leis da natureza, as quais na m o dernidade estão desprovidas de teleologia. Isso leva a confusões lógicas, visto que e m última instância o pensamento n o m o l ó g i c o e o teleológico acabaram separando-se na modernidade por seguirem lógicas diferentes na interligação de seus conceitos. As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

35

Causalidade

e

finalidade

O problema originário da filosofia da natureza de Peirce reside na questão de saber c o m o puderam surgir espontaneidade e liberdade n u m m u n d o dominado pelas leis da natureza, as quais se guiam pela uniformidade, visto que determinam de maneira igual todo e qualquer local espacial o u temporal, produzindo sempre de novo processos passíveis de ser repetidos. Se n u m tal m u n d o se pode pensar haver liberdade, então essas leis devem ser estágios de atrofia da liberdade, e e m Peirce, meros " c o s tumes", c o m o os costumes de alguém que sofre de m o n o m a n í a , cuja liberdade degenerou e m mera repetição. Desse m o d o é possível pensar conjuntamente causalidade e finalidade, o aspecto físico e psíquico da natureza, sendo que o aspecto final é primordial. É só assim que, segundo Peirce, se pode pensar a natureza c o m o u m fundamento q u e produz coisas novas, imprevisíveis, significativas. A conseqüência disso é que se devem apreender novamente todas as normatividades, m e s m o as da lógica e as da matemática. Visto que se bastam c o m uma "lógica criativa" (PAPE, 1 9 9 4 ) , sua determinação não pode ser rigorosa. A lógica e a matemática, portanto, jamais são realmente precisas. Pode dar-se o caso, por exemplo, que A A - i A seja verdadeiro o u que 1 + 1 = 2 , 0 0 0 0 6 . Também as leis da natureza jamais são totalmente exatas. Seus indeterminismos são nelas sinais de sua finalidade ativa. Assim, por exemplo, t a m b é m a lei da queda dos corpos, compreendida corretamente, é u m princípio finalista (PEIRCE, 1991 = ' 1 8 8 4 s s , p . H S s s ; 138ss; 2 3 3 ; 3 6 5 ; 4 3 9 ) . A mínima inexatidão das leis da natureza n o sentido da teoria quântica talvez pudesse ser interpretada c o m o relação do caso particular para c o m totalidades estatísticas, porém a suspensão da exatidão na matemática e na lógica acaba suspendendo igualmente essas disciplinas. Comumente, supõe-se que a lógica formal "não seja criativa", no sentido de que por m e i o de formas de inferência legítimas não poderá surgir n e n h u m novo conteúdo nas deduções. Ao contrário, deve-se concluir então que uma " l ó gica" que seja "criativa" não pode ser formal. Peirce, n o entanto, concebeu sua lógica desde o c o m e ç o e de imediato c o m o teoria de conteúdo (OEHLER, 1 9 9 3 , p. 1 2 ) , de tal m o d o que ele se sentiu no direito de criticar as ciências a partir desses conteúdos. O filósofo sente-se e m condições de modificar o conteúdo das leis da física, da matemática e da lógica, a partir de um ponto de vista especulativo. O m e s m o se dá em Whitehead. Também ele, a partir de seu princípio, se vê obrigado a interpretar o sentido do ordo da metafísica clássica lançando-o diretamente para dentro das leis da natureza, leis que a modernidade cunhou c o m o desprovidas de teleología. 36

Introdução à Filosofia da Natureza

A base de sua especulação é uma "finalidade universal que perpassa a natureza de fora a fora". De uma certa "constância das finalidades físicas", segue-se então "a persistência da ordem da natureza", isto é, a persistencia das leis fisicais, que, segundo seu princípio metafísico fundamental, nada mais são que u m caso específico da ordenação universal dos fins do mundo, cuja persistência porém é só relativa, c o m o se mostrará (WHITEHEAD, 1 9 8 7 = M 9 2 9 , p . 1 9 6 ; 3 6 5 - 3 6 6 ; 5 0 2 ) . Isso quer dizer que o ordo metafísico está contido nas leis empírico-fisicais c o m o u m m o m e n t o parcial, devendo por isso poder ser dali abstraído; e é a partir daí que surge então o problema de saber se uma frase metafísica formulada em linguagem normal poderá representar vía de regra a universalidade de uma frase da matemática formal. Whitehead salta por cima desse problema na medida e m que expõe os resultados da física matemática apenas na transposição para a linguagem natural, pressupondo que essa transposição não seja prejudicial em sentido

filosófico,

ou na medida e m que faz extrapolações ousadas passando da metafísica para dentro da física; assim, por exemplo, a física matemática traduziria "para sua própria linguagem" a sentença de Heráclito "Tudo flui", de m o d o que a frase se tornaria assim: "Todas as coisas são vetores"; ou então a física traduziria a teoria atomística de Demócrito dizendo que "todo fluxo de energia é sustentado por condicionamentos 'quânticos'" (WHITEHEAD, 1 9 8 7 = ' 1 9 2 9 , p. 5 5 6 - 5 5 7 ) . Essas analogias são u m tanto arriscadas. Em primeiro lugar, nem todas as entidades fisicais possuem uma natureza vetorial (pressão, temperatura, energia, entropia, por exemplo, não o são), e, ademais, uma formulação vetorial de leis propriamente nada tem a ver c o m o problema do devir ou do ser. As leis mecânicas da estática, por exemplo, são formuladas vetorialmente, mas ex defoiitione não descrevem nenhum devir. Em segundo lugar, muitos físicos, c o m o por exemplo Heisenberg, consideraram a teoria quântica precisamente c o m o instância oposta ao atomismo de Demócrito, pois não reconduz o dado à menor partícula material; antes, c o m o Platão, o reconduz às idéias, a saber, a princípios simétricos (HEISENBERG, 1973, p. 1 5 9 ) . Quando se concebe a metafísica c o m o u m estágio superior de universalidade da física, descamba-se facilmente e m antropomorfismos incontroláveis. Por exemplo, uma vez que Whitehead coloca a historicidade e o devir das "sociedades" (segundo o sentido de Whitehead, substâncias dinamizadas) c o m o a categoria metafísica fundamental, vê-se obrigado a estender esse devir também para dentro das leis fisicais: "na realidade, as sociedades viventes demonstram a tese de que as leis da natureza se desenAs diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

37

volvem junto c o m as sociedades, que acabam instaurando uma época". É por isso que e m cada "época cosmológica" comandam leis naturais cada vez diferentes; em nossa época, por exemplo, impera a "sociedade dos 1

eventos eletromagnéticos" (WHITEHEAD, 1 9 8 7 = 1 9 2 9 , p. 1 9 2 ; 2 0 6 ; 5 2 9 ) . Isso significa, portanto: a constância das leis da natureza é devida a uma finalidade metafísica estável, que varia, porém, de acordo c o m as grandes épocas da história, assim c o m o se modificam, por exemplo, as leis da produção artística segundo a época e o local. N o entanto, quais são as razões empíricas existentes para emitir tal juízo? E será que a historicização das leis fisicais não leva a suspender sua invariabilidade temporal e espacial, isto é, justo aquilo que perfaz sua possibilidade de serem testadas na experiência? C o m razão, fala Karl Popper, então, da "exigência de uma invariabilidade espacial, mas também temporal, das leis da natureza", pois as leis da natureza definem-se por essa exigência, e n o caso de mostrarem ser mutáveis devem provocar a busca por uma lei mais elevada, a qual por sua vez deve satisfazer essa exigência de invariabilidade temporal (POPPER, 1 9 7 6 , p. 2 0 0 ) . Isso significa, portanto: a exigência por uma invariabilidade temporal e espacial deve n o m í n i m o ser suposta c o m o idéia regulativa em sentido kantiano, se é que a física deve ser possível enquanto ciência. Todavia, se as leis da natureza devessem modificar-se historicamente numa outra perspectiva, modificar-se de tal m o d o , por exemplo, que suas a

mudanças só fossem perceptíveis depois da 1 5 casa após a vírgula, c o m o que se encontrariam sob os limites da mensurabilidade, então sua interpretação especulativa estaria n u m contexto histórico, e isso significa sempre n u m contexto da ação, uma interpretação da natureza como idéia, que seria constitutiva para essa interpretação metafísica. U m princípio c o m o o que se encontra e m Peirce e Whitehead tem a característica marcante de precisar suspender a diferença entre o aspecto constitutivo e o regulativo. Em tal metafísica tudo se torna constitutivo, e c o m isso tanto as propriedades a-históricas quanto as históricas não só se referem ao m e s m o objeto, mas t a m b é m à m e s m a perspectiva sob a qual se nos torna compreensível o objeto, o que gera, por conseguinte, u m a contradição. É evidente por si m e s m o que os conceitos "regulativo" e "constitutivo" e m Kant foram distribuídos precisamente de m o d o diferente, na medida e m que as categorias da compreensão constituem uma natureza determinada, definida por leis, invariável no tempo e n o espaço, enquanto aquilo que e m Kant representa a historicidade, o ponto de vista teleo38

Introdução à Filosofia da Natureza

lógico, nele, continua sendo puramente regulativo n o que diz respeito à natureza. Nessa reflexão está e m questão apenas a relação entre o aspecto regulativo e o constitutivo, uma diferença que não deveria ser reduzida, pois do contrário o histórico e o a-histórico, finalidade e causalidade deveria ser acoplada de m o d o improcedente. U m problema análogo surge t a m b é m e m relação à intencionalidade, o que na metafísica d e W h i t e h e a d representa o dado fundamental; assim, por exemplo, em relação a "sentimentos", que nessa filosofia possuem u m significado fundamental, cosmológico. (Para u m metafísico c o m o W h i t e head, a intencionalidade desempenha uma função parecida c o m a que desempenha a matéria para u m materialista.) Whitehead "traduz" então isso que ele chama de "sentimentos" numa linguagem

físico-matemática

c o m o "caráter-vetor". Por causa do significado fundante que possui o aspecto intencional, Whitehead é obrigado a concluir "que todas as qualidades fisicais fundamentais são vetoriais e não escalais". Mas, c o m o foi dito, do ponto de vista puramente interno do fisicalismo isso não é evidente, sem contar que então se deveria afirmar antes que as quantidades

fisicais

fundamentais são de natureza tensorial, isto é, não são n e m vetoriais n e m escalares (WHITEHEAD, 1 9 8 7 =

M 9 2 9 , p. 3 3 0 ; 4 2 4 ) .

Que a unidade metafísica do mundo enquanto unidade da natureza tem a tendência de sobrecarregar e falsificar a física empírica c o m categorias teleológicas é evidente desde o jovem Schelling e ainda pode ser sentido e m seu discípulo Ernst Bloch, que se outorgou o direito de criticar a teoria quântica c o m o u m artefato capitalista da burguesia tardia (BLOCH, 1985

=

' 1 9 5 9 , p.

343-344).

Que há concepções que pensam a unidade metafísica do m u n d o não c o m o unidade da natureza, a fim de diminuir os problemas, isso pode ser visto no exemplo de Hegel. Diante de u m preconceito muito difundido, Hegel jamais criticou ou corrigiu os conteúdos da ciência de sua época, em todo caso não na parte de sua Enciclopédia que trata da filosofia da natureza: "A filosofia não só deve estar em concordância c o m a experiência da natureza, c o m o até a física empírica se torna u m pressuposto e uma condição para o surgimento e a formação da ciência filosófica" (HEGEL, 1970

=

'1830

IX, p.

15).

E, c o m o a filosofia de Hegel concebe a natureza c o m o u m âmbito regional, pode ter uma relação mais livre para c o m a ciência da natureza. Hegel procura pensar até o fim seus resultados, de m o d o especulativo, a fim de criar uma mediação dialética c o m sua filosofia do espírito. Mas nisso sua autonomia permanece intocada. As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

39

I

O posicionamento de Hegel, todavia, depende de seu conceito de "espírito absoluto" e da possibilidade de uma mediação dialética entre espírito e matéria, sobre o que não se deve remontar aqui. Depois que a ciência m o derna se desenvolveu, a relação entre causalidade e finalidade, ser e dever, do ponto de vista histórico, deve ser novamente determinada. N o tomismo supunha-se uma unidade metafísica fundamental entre ser e dever e uma atuação conjunta e direta da causa efficiens e da causafinolis.Essa unidade desprovida de problemas rompeu-se c o m o surgimento da ciência moderna da natureza. Para consertar essa ruptura procurou-se sempre de novo conciliar de m o d o direto a nova ciência emergente c o m a velha ontologia. Na filosofia neo-escolástica, essas tentativas de "síntese" perduraram até a metade do último século, m o m e n t o e m que se mostraram todas frágeis. (E por fim também o físico e filósofo Wolfgang Büchel [BÜCHEL, 1 9 5 4 , 1 9 6 5 ] ) . A relação entre causalidade e finalidade é um dos maiores problemas insolúveis da filosofia, desde que a ciência moderna da natureza desvinculou o conceito de causalidade dos contextos da ação e m que ele detinha seu lugar originário (tanto o conceito de aíxía

c o m o o conceito de "cau-

sa" pertencem originalmente à esfera do direito). C o m muita freqüência essa desvinculação acarretou um dualismo ontológico. Leibniz, por e x e m plo — que, numa fase mecanicista de seu pensar, se decidiu "a restituir de certo m o d o a honra da filosofia originária e fazer c o m que as formas substanciais, já quase banidas, recobrassem seu direito o r i g i n á r i o " — , distribuiu a causalidade e a finalidade aos dois aspectos incomensuráveis do processo universal, c o m o que a "dois reinos... os quais se bastam cada u m por si, m e s m o que o outro de m o d o algum existisse" (LEIBNIZ, 1 9 6 6 = ' 1 6 6 8 , II p. 6 7 ; 1 4 7 ) . A isso correspondia o procedimento de Kant de subordinar o "mecanismo da natureza" "ao juízo determinante" e "a técnica da natureza" "ao juízo reflexivo", porque também ele viu muito bem

que uma sintetização direta geraria contradições, sintetização a que

se vêem obrigados Peirce e Whitehead, na medida e m que adotam o conceito de "natureza" c o m o última instância. N o ponto 4 . 6 deverá ser mostrado que, e m verdade, existe sempre a possibilidade de interpretar os nexos nomológicos na perspectiva de um téXoç, mas que essas interpretações deixam e m aberto espaços de j o g o e contingências que não permitem passar diretamente desses nexos n o mológicos para aquelas perspectivas de significado, n o sentido de uma "implicação material". Essa relação de contingência é, além do mais, recíproca: não só não se pode concluir a partir das leis fisicais sobre um xéXoç nelas presente, 40

Introdução à Filosofia da Natureza

c o m o tampouco se pode fazer o contrário. Na teoria da ciencia aceita-se essa última na medida e m que se admitem hipóteses teleológicas c o m o intervenções heurísticas, mas que não pertencem propriamente à "lógica da investigação". Seria prudente tomar cuidado e não saltar por cima dessa relação de contingência recíproca forçando pressurosamente a passagem para a unidade. O caráter disparatado dos discursos, do ponto de vista lógico, poderia ser precisamente u m indício de que a razão humana é sempre apenas uma "razão finita" (BAUMGARTNER, 1 9 9 1 ) , que não dispõe de soluções rasas para os mistérios do mundo, mas que continua ligada a perspectivas que não podem ser liquidadas uma na outra, c o m o por exemplo a diferença entre discurso teorético e prático.

Causalidade

e

normatividade

Essa problemática fica ainda mais aguda quando passamos de juízos valorativos para normativos, e n o processo c o s m o l ó g i c o não ancoramos apenas objetivos gerais, mas também normas e m especial. U m a

filosofia

da natureza c o m o a de Peirce e Whitehead será obrigada também a isso. A lex naturalis qua lei ética deverá ser obrigatoriamente também lei da natureza, n o sentido da física moderna. Peirce e Whitehead não desenvolveram e m detalhes e de m o d o explícito essas idéias, diante do que conservaram naturalmente u m instinto filosófico sadio, pois, se já a teleologização direta das leis fisicais levou a uma sobrecarga insustentável, sua moralização se converteria simplesmente e m heresia. Na Idade Média tardia circularam publicações

correspondentes,

c o m o por exemplo o "livro da natureza", na época muito difundido, do c ó n e g o de Regensbur Konrad Von Megenberg, do século XIV Nesse livro, todos os fenômenos naturais são tratados c o m o elementos fundantes da moral, a formiga enquanto serve de exemplo para o esforço, a lebre enquanto é desprezivelmente lasciva etc. U m a moralização das leis da natureza iria decair para além desse nível da Idade Média tardia, porque ela mesma deveria alentar ainda as funções que serviriam de fundamento moral para o inorgânico. Esse absurdo foi contornado e m Peirce e Whitehead por m e i o de uma feliz inconsequência que os impede de tirar u m a conclusão que se encontra de fato e m suas premissas. Em Peirce, a ética é concebida c o m o u m m o m e n t o

dependente

da estética, sendo que ele compreende a "estética" c o m o a unidade do "bem,

verdadeiro e b e l o " , que lembra a "grecidade", ou seja, e m sua

As diversas posições no espaço d e possibilidade da filosofia da natureza

41

dinâmica imagem de mundo, o belo é o m e s m o que a "ordem desenvolvida" (OEHLER, 1 9 9 3 , p. 1 0 8 s s ) . E visto que Peirce, e m seguida, institui o amor a Deus e ao próximo, tirados do cristianismo mas secularizados, c o m o norma ética fundamental e n o sentido de u m "sinequismo" transpõe-no para o desenvolvimento do cosmos, ou melhor, fundamenta-o a partir deste, ele deveria poder m o s trar também que essa n o r m a do amor (seu "agapismo") deveria descer, enquanto tal, e alcançar também as forças moleculares, o que ele realmente não fez e que igualmente teria sido u m tanto desagradável para ele. A apresentação de Peirce feita por Gerhard Schõnrich concorda c o m o que se disse aqui. Schörich representa o processo designativo universal c o m o tendo sido determinado pela entelequia, n o sentido de uma teleología universal. Mas ali onde ele fala, por outro lado, de "causalidade a partir da liberdade", falta totalmente a dimensão cosmológica, assim c o m o n o capítulo sobre o "querer e ações indicativas morais" (SCHÕRICH, 1 9 9 0 , p. 114ss, 3 3 0 s s , 3 7 4 s s ) , ou seja, parece realmente que Peirce sentia-se instintivamente impedido de forçar a lei moral e a lei natural a entrarem num único modelo, enquanto se sentia menos impedido de sintetizar diretamente causalidade c o m

finalidade.

N o que diz respeito a questões normativas, Whitehead procede de m o d o muito parecido. Seu conceito de ética equipara-se e m muitos aspectos ao de Peirce.Também Whitehead fundamenta sua ética numa "estética", compreendida segundo a ontologia grega (WHITEHEAD, 1 9 7 1 , p. 9 0 ) . Mas em suas obras principais, Wissenschaft und moderne Welt (Ciência e m u n d o m o d e r n o ) , Prozeß und Realität (Processo e realidade) e Abenteuer der Ideen (Aventura das idéias), não existe n e n h u m conceito de ética que apresente u m desdobramento de seu conteúdo. Michael Hauskeller reconstruiu a ética implícita de Whitehead, de tal m o d o que por assim dizer — c o m o acontece e m Peirce — essa ética repousaria e m u m telos universal constitutivo do processo evolutivo do mundo, telos que concede u m caráter de valor imanente a todos os acontecimentos, n u m sentido pré-moral. No ser humano, esse caráter de valor universal eleva-se ao nível na normatividade (HAUSKELLER, 1 9 9 9 , p. 9 3 s s ) . Todavia, contra essa concepção, pode-se aduzir u m argumento parecido ao usado contra Peirce: se Whitehead deduz o caráter valorativo e teleológico universal de todos os processos do universo do fato de que não existe nada desprovido de valor para nós, visto que todos os nossos atos espirituais e sensoriais estão perpassados por valorações, então, a fortiori, o m e s m o deveria valer para a ética, visto que não podemos nos repre42

Introdução à Filosofia da Natureza

sentar n e n h u m ato que não esteja sob normas que dirigem a ação. Então seria igualmente u m pressuposto incondicional ancorar essas normas no processo cosmológico e não introduzi-las só c o m o surgimento do ser humano. Todavia, então, ressurgiria o problema da moralização das leis fisicais, o que levaria a transtornos lógicos ainda mais aventureiros do que sua teleologização, que já c h a m a m a atenção suficientemente. Factualmente, Whitehead contorna o problema simplesmente não se mantendo fiel a seus próprios princípios. É e m Aventura das ideias ( W H I T E HEAD, 1 9 7 1 = ' 1 9 9 3 ) que ele desenvolve a única relação relevante para c o m a ética, no parágrafo intitulado "O ideal da humanidade", que faz parte de u m título maior chamado "Aspectos da história social", onde ele deduz esse ideal a partir do processo histórico do ethos vivido até o século XVIII, e m vez de ter fundamentado seu ideal de humanidade na parte que vem logo a seguir chamada "Aspectos cosmológicos". Ali, porém, nada se fala sobre "ética". Se ele tivesse fundamentado sua ética nessa parte, dificilmente se poderiam evitar extrapolações metafísicas na física empírica.

1.2.2

Hans J o n a s e Klaus Meyer-Abich

Também Hans Jonas e Klaus Meyer-Abich fazem parte dos autores a serem criticados nesse parágrafo ( N a t

lot/plur

) . Nesses autores não se encontra

nenhuma extrapolação metafísica das leis fisicais da natureza; n o entanto, de m o d o análogo a isso, encontram-se extrapolações metafísicas de dados empíricos ou u m olhar seletivo idealizante sobre a natureza. Hans Jonas coloca a unidade do m u n d o c o m o unidade da natureza, e correspondentemente, visto não ser n e n h u m reducionista, c o m o unidade de ser e dever. Para ancorar argumentativamente essa unidade pretendida, ele não recorre a reflexões apriorísticas ou a uma metafísica c o m o fazem Peirce e Whitehead, mas a uma experiência paradigmática, a saber, a e x periência do recém-nascido (JONAS, 1 9 8 4 , p. 2 3 4 s s ) . Essa experiência é de fato muito sugestiva. Ninguém que se deixe espontaneamente impressionar por u m recém-nascido poderá negar que o ser do recém-nascido nos i m p õ e imediatamente uma exigência de dever. U m ser h u m a n o que olha para um recém-nascido e não vê a exigência de calor, proteção, a necessidade de ser cuidado e amparado, não poderá ser reconhecido c o m o u m ser moralmente competente. Mas o que se deduz dali para a unidade de ser e dever? Será que uma experiência particular pode sustentar e m si uma tal tese metafísica sobre o As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

43

ser, assim tão ampla? Não dá para ligai c o m essa experiência também o fato de que o que encontramos são só e precisamente seres humanos, c o m o seres que requerem atenção e podem ser apreendidos empiricamente? Será que aqui não se está universalizando demais u m dado particular, sem razões suficientes, onde o que está e m questão não é uma perspectiva periférica, uma vez que Jonas sustenta essencialmente sua tese fundamental da unidade de ser e dever na análise dessa experiência? Outras observações confirmam que a concepção de uma unidade do m u n d o c o m o unidade da natureza corre o risco de sobrecarregar o aspecto empírico. No livro Organismo e liberdade, Jonas principia sua análise pelo vivente enquanto u m fenômeno originário. Para compreender o m u n d o seria falso principiar pelo espírito, c o m o fazem os idealistas, ou pela matéria, c o m o fazem os fisicalistas. U m intermédio, o vivente, seria mais apropriado para garantir que o lume do espectro da claridade do espírito ilumine a matéria opaca, na medida e m que a matéria possa tornar-se inteligível enquanto caso-limite da vida e do espírito, enquanto elevação do vivente. C o m o fundamento empírico de seu pensamento, Jonas escolheu o conceito de "modificação orgânica da matéria". J á na modificação da m a téria haveria uma unidade substancial entre forma e matéria, na medida e m que a matéria só pode se modificar se é sustentada pela unidade da forma orgânica. Esse princípio pode permitir que se pense a matéria crua c o m o casolimite do orgânico, no qual a forma já não dispõe da força para manter construtivamente o ente reunido, u m pensamento que já se encontrava em Aristóteles e retornou mais tarde na filosofia da natureza do romantismo. Mas a outra ponta do espectro ontológico, o espírito, não pode ser deduzida desse modo. C o m o poderão tornar-se evidentes a consciência, a vontade livre, a moralidade ou também a unidade de ser e dever n o fato da modificação da matéria na natureza? No livro Organismo e liberdade, a coisa se desenvolve de tal m o d o que, n o decorrer da própria obra, Hans Jonas vai enriquecendo ontologicamente cada vez mais o ponto de partida que toma na modificação da matéria até alcançar o objetivo, que é a unidade de ser e dever enquanto natureza. Mas isso só acontece através de uma série de extrapolações, que não se encontram realmente amparadas pelo princípio originário n o fenômeno empírico da modificação da m a téria (JONAS, 1 9 7 3 , p. 13ss). Em Meyer-Abich se dá o contrário, de tal m o d o que ele só consegue manter essa unidade através de um olhar fortemente seletivo. C o m o 44

Introdução à Filosofia da Natureza

já se percebe desde muito tempo, a natureza, a saber, do m o d o c o m o a encontramos previamente, não representa uma fonte de normatividade. Se por acaso quiséssemos julgá-la c o m o normativa, ela nos forneceria, contrariamente, apenas exemplos de "brutalidade" e "indiferença". Na natureza cada ente devora o outro, e os elementos sem vida não têm qualquer "consideração" para c o m o vivente que repousa sobre seu substrato, c o m o mostra toda e qualquer irrupção de u m vulcão. Mas, se q u i s e r m o s estabelecer u m a unidade de natura naturans e natura naturata, será preciso idealizar a natureza. Para esse intento, MeyerAbich remonta a u m vínculo fortemente especulativo das teorias de Platão e Nicolau de Cusa, eliminando ainda dessas metafísicas a scala naturae nelas presente. C o m o em tempos pré-críticos, seria preciso voltar a fundamentar n o "ser" a ética do dever, que remonta a Kant, onde se deveria determinar o ser c o m o "natureza". O princípio básico seria: " e m cada criatura se encontra o universo dessa criatura", de m o d o que, para agir corretamente, seria preciso estar postado no ponto de vista do universo c o m o esse se faz presente e m todas as coisas, m e s m o na pedra: "Na medida e m que, e m m i m , a pedra se tornou h o m e m , eu sou pedra — vivificada" (MEYERABICH, 1 9 9 7 , p. 2 9 3 ; 3 4 5 ; 5 3 5 ) .

Aqui há pelo menos duas coisas a serem questionadas: por u m lado, na filosofia contemporânea não é permitido apelar para intuições privilegiadas, se essas quiserem substituir uma argumentação passível de ser realizada universalmente; por outro lado, m e s m o pressupondo que a intuição de Meyer-Abich possa ser resgatada por argumentos, não seria fácil ver c o m o a perspectiva idealístico-mística no interior da natureza possa ser conectada c o m aquilo que nos envolve c o m o natureza passível de ser apreendida empiricamente, na qual m e s m o o pretenso "altruísmo" dos animais pode ser decifrado c o m o "egoísmo da espécie" (DAWKINS, 1 9 7 8 ) . Meyer-Abich idealiza, ao contrário, fenômenos totalmente inofensivos, falando por exemplo da "dignidade do granito" (MEYER-ABICH, 1 9 7 9 , p. 4 2 4 ) . Porém, c o m o conseguiríamos discutir e analisar u m bloco de granito c o m ou sem dignidade?

1.2.3

Ciência da natureza como ancilla

philosophiae

Quanto mais forte for uma posição metafísica, tanto mais forte tenderá a antecipar experiências e prescrever à ciência da natureza o que ela tem As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

45

i descobrir ou que tipo de teoria tem de produzir. Klaus Meyer-Abich, por exemplo, estabelece seu conceito holístico diretamente na biologia, mas logo projeta uma ciência da unidade que supera a anterior, e onde o fisical é suspenso e subsumido nos organismos e estes n o psíquico. Numa "biologia do futuro" será possível deduzir as leis da física daquelas da biologia. "A física" deveria simplesmente "transformar-se e m biologia" (MEYER-ABICH, 1 9 8 6 , p. 74ss, 1 3 3 ; 1 9 8 8 , p. 9 2 s s ) . Significa, portanto, que o filósofo está e m condições de corrigir a ciência específica c o m o tal. De m o d o correspondente, t a m b é m Hans Jonas exige uma "biologia filosófica" (Subtítulo de Jonas [ 1 9 7 3 ] ) , em lugar da que se divulga comumente, visto esta carecer do "espiritual". Nos quadros de seu "idealismo objetivo", também Vittorio Hõsle projeta de maneira parecida uma "filosofia apriorista real", a fim de antecipar "categorias a priori para as ciências singulares". Assim, seria possível uma "filosofia apriorista material da natureza". E, visto que as ciências e m curso não contêm o "espiritual", Hõsle "parte do fato de que o verdadeiro sistema das leis da natureza não só não nos é totalmente conhecido, a nós de hoje (isso é quase trivial), c o m o também deve ser diferente das representações atuais da ciência da natureza, m e s m o qualitativamente; nelas, a passagem do lado de fora para o lado de dentro deve ser normalizada por leis, deve portanto abarcar a a m b o s " (HÕSLE, 1 9 9 0 , p. 2 1 9 s s ) . Todavia, u m a correção fundamental das ciências da natureza, assim pensada n u m nível material, não compete à filosofia. A filosofia pode chamar a atenção para cegueiras metódicas das ciências da natureza, pode contribuir quando faltam alguns conteúdos, ou fortalecer o acesso ao m u n d o da vida diante do acesso científico, mas as correções materiais continuam sendo u m i m p e d i m e n t o para ela. É espantoso que m e s m o após o fracasso do Idealismo Alemão ainda haja filósofos que acreditam dever prescrever à ciência da natureza o que ela deve descobrir e c o m o deve proceder. Em suma, parece que a posição N a t

tot/plur

toma para si a dificuldade

quase insuperável de dever instituir uma tênue passagem entre ser e dever, entre física e metafísica, pensamento teleológico e n o m o l ó g i c o ; essa passagem fracassa na estrutura logicamente disparatada desses discursos, levando facilmente a extrapolar metafisicamente os modelos da ciência da natureza, a superelevar especulativamente meros dados empíricos, ou então tomar conhecimento da natureza que está ali diante de nós de u m m o d o ainda apenas seletivo e idealizador, ou m e s m o criticar os conteúdos da ciência do espírito. 46

Introdução à Filosofia da Natureza

1.3 Natureza como uma grandeza regional, mas com definição científica (Nat

reg/den

)

Essa posição tem a seu favor, de imediato, as razões mais fortes, motivo pelo qual é adotada por inúmeros filósofos. Como foi dito, ela tem de imediato a vantagem de confirmar as forças incontestáveis das ciências naturais em seu próprio campo, a natureza, sem, no entanto, submeter o h o m e m a um rígido esquema de naturalização, que vem ligado a dificuldades quase insuperáveis. Muitos filósofos, cujo interesse principal não está na filosofia da natureza, c o m o por exemplo Ernst Tugendhat, defendem essa posição. Mas contra essa posição, que à primeira vista parece altamente plausível, podem ser apresentados alguns argumentos importantes: supondo que o conceito de "natureza" pudesse ser determinado de maneira suficiente c o m o aquele que é pressuposto c o m o fundamento ontológico nas ciências da natureza (física, química, biologia), então isso significaria que a natureza não contém nenhum fenômeno que corresponda a nossos estados mentais, porque propriamente nenhuma ciência da natureza faz referência a esses estados. Então, c o m Descartes, deveríamos negar, por exemplo, que os animais tenham uma perspectiva interna, o que é falso do ponto de vista empírico. Pesquisas c o m ctiimpanzés mostraram inequivocamente que esses seres não só possuem interesses e sentimentos, mas também podem articulá-los, sim, que nesse patamar é possível haver uma comunicação correta c o m os humanos, visto que os chimpanzés podem aprender até mesm o a linguagem dos surdos-mudos (SINGER/CAVALIERI, 1 9 9 3 ) . Será então que as qualidades que foram constatadas inequivocamente nos chimpanzés podem ser negadas, de m o d o fundamentado, nos cachorros, gatos ou nos morcegos? Na verdade, aqui surge novamente a dificuldade já tradicionalmente conhecida, já presente e m Aristóteles (Física, 1 9 9 b 10), a saber, que quanto mais descemos a scala narurae, mais inseguros nos tomamos. Mesmo assim, é evidente que não estamos e m condições de estabelecer uma divisão nítida entre h o m e m e natureza, que já não pode ser confirmada empiricamente e de m o d o objetivo se atentamos para as razões da cadeia evolutiva. A isso se acrescenta que, mesmo que, per impossibile, se pudesse fundamentar empiricamente essa divisão, dali surgiria uma outra dificuldade quase insuperável, a saber, que n o processo de evolução deveríamos contar c o m o surgimento, repentino e sem precedentes, de propriedades no h o m e m , sem terem sido preparadas por nada e sem poderem ser explicadas por nenhuma teoria científica. Pois as propriedades "emergentes" As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

47

1

do h o m e m , segundo a posição N a t

ieg/den

, são de tal modo que não podem

constituir-se e m legítimo objeto de esclarecimento da ciência da natureza. Essa posição coloca, portanto, uma divisão nítida no processo de evolução, para a qual não se podem aduzir quaisquer razões empíricas, e além disso assevera um miraculoso surgimento de novas qualidades no h o m e m , as quais se subtraem a qualquer explicação das ciências da natureza. A negação do caráter contínuo do processo de evolução e o milagroso surgimento dessas qualidades emergentes, pontos que caracterizam a posição N a t

r£g/cien

, são certamente tão ricos e m pressupostos que parece ser

significativo pensar a contraposição entre os modelos de explicação científica e não-científica não de u m m o d o extensional — portanto, propor-se fazer uma partição regional, compreendida ontologicamente, dentro da natureza (onde se coloca sempre a divisão no indivíduo singular) — , mas de tal m o d o que c o m isso surgissem perspectivas que pudessem ser referidas cada vez a tudo, sem que c o m isso se pudessem mudar as pretensões de validade. É b e m possível que, quando traz resultados significativos, se possa considerar o h o m e m u m puro objeto das ciências naturais, assim c o m o é possível atribuir estados intencionais a produtos da natureza, se para isso se podem encontrar razões suficientes na experiência, o que todavia não deverá ser mais u m a estilizada experiência de laboratório. Se a natureza for considerada de forma perspectivística nesse sentido, então será possível evitar também uma certa dificuldade sempre de novo e universalmente atribuída ao conceito de natureza: o conceito de "natureza" , assim fala o construtivista, por exemplo, é u m conceito historicamente superado. Todavia, se delimitarmos o âmbito da natureza, c o m Aristóteles, por exemplo, de tal modo que os entes naturais comportem em si mesmos o "impulso para o movimento", enquanto os artefatos técnicos o têm fora de si, a saber, n o artesão (Física, 1 9 2 b 8ss), então parece que essa diferença se refere a u m estágio superado do desenvolvimento técnico. Pode ser que n o tempo de Aristóteles ainda houvesse paisagens intocadas pelo h o m e m , animais e plantas ainda não modificados por ele, portanto o que hoje se designa pelo conceito nostálgico de "selvagem"; todavia, as possibilidades de intervenção técnica na natureza, que crescem sem parar, estão tão avançadas que, mesmo nos mais recônditos atóis do Pacífico, já não há nenhuma natureza intocada, na medida e m que m e s m o ali as águas carregam nossas garrafas plásticas, nossos materiais químicos nocivos contaminam animais e plantas, ou as nuvens radioativas dos testes atômicos modificam as bases genéticas. O filósofo da técnica Günter Ropohl fala assim de u m "fim da natureza" pela tecnicização crescente (ROPOHL, 1 9 8 5 , p. 3 3 ) . 48

Introdução à Filosofia da Natureza

Adotando o ponto de vista perspectivístico e m vez da partição regional extensional, então é possível admitir sem mais que a natureza e a técnica ou a natureza e a cultura já sempre estiveram em mútua mediação e que n o futuro serão fortalecidas sempre mais, sem que c o m isso sua diferença se torne obsoleta. Torna-se tão pouco obsoleta c o m o se torna obsoleta a diferença entre juízos analíticos e sintéticos, fundamentados na crítica de Quine, pela qual não temos u m critério de divisão absolutamente preciso para poder fazer a distinção, c o m o se supõe e m Kant ou Carnap. Mesmo que aceitemos a crítica de Quine, podemos designar a frase "todos os jovens são solteiros" c o m o uma frase analítica em contraposição à frase "essa mesa é vermelha", assim c o m o podemos ver "a natureza" atuando num campo de nabos floridos e num muro de cimento, a pulsão manipuladora do hom e m , m e s m o que saibamos muito b e m que a natureza, por si mesma, não produz nenhum plano sobre os quais crescem exclusivamente nabos, ou quando sabemos que as partes constitutivas do cimento, c o m o saibro, brita ou areia, existem também na natureza. Mas não é porque o continuum dos números reais é compacto que não existem números naturais.

1.3.1

Andreas Bartels, Friedrich Kambartel/Angelika Krebs

Servindo de exemplo para mostrar c o m o são agravantes e até insolúveis as dificuldades quando se supõe que a posição N a t

reg/cU

, seja válida, van

m o s fazer referência aqui à filosofia da natureza de Andreas Bartels. D o ponto de vista científico, Bartels parte do seguinte princípio: "a filosofia moderna da natureza procura descartar a imagem da natureza que surge quando nossas teorias atuais da ciência da natureza são verdadeiras... a filosofia moderna da natureza não deduz nenhum novo saber sobre a natureza". Na medida e m que i m p õ e esse princípio de forma conseqüente, Bartels entrega t a m b é m o vivente àquela perspectiva dos modelos de explicitação puramente científicos. A teoria fisical de auto-organização, por exemplo, faz c o m que pareça provável que não se precise acrescentar n e n h u m princípio para explicitar o vivente. Também na biologia se poderia instituir esse reducionismo. Sem nenhuma sobra, pode-se então reduzir a teleología à teleonomia. Emergência pode ser definida de maneira bastante genérica no âmbito das ciências da natureza, m e s m o quando as propriedades emergentes não podem ser deduzidas analiticamente do sujeito emergente. Isso se deve ao fato de que não c o n h e c e m o s todos os condicionamentos iniciantes etc. Mas, n o h o m e m , Bartels c o m e ç a de As diversas posições no espaço d e possibilidade da filosofia da natureza

49

repente a fazer algumas exceções de seu cientismo rígido. A biologia social não consegue explicar todas as ações humanas eticamente relevantes, nela surgem ademais "influências culturais". A ética não é "uma ilusão". A subjetividade das qualidades vivenciais não pode tornar-se objeto da ciência. Mas prefere-se instituir esses juízos e não se preocupar tanto c o m sua fundamentação (BARTELS, 1 9 9 6 , p. 16s, 11 l s , 153ss, 1 9 2 ) . E c o m o se, c o m seu esquema reducionista, Bartels fizesse simplesmente crescer e avançar sempre mais a scola naturae até que esse esquema em algum lugar entrasse e m colapso. Mas por que aqui e não algures? Há bons motivos para acreditar que conceitos biológicos genuínos, c o m o por exemplo "mutação", "seleção", não podem ser reconstruídos pela física. M e s m o as possibilidades da teoria fisical ligadas à auto-organização são limitadas. Ninguém sabe, por exemplo, c o m o dessa teoria se poderia deduzir u m organismo que apresentasse uma clara demarcação exterior e uma diferenciação funcional interior. Em todo caso, alguns físicos que trabalham n o ponto de intersecção entre a biologia e a teoria da autoorganização admoestam, já faz tempo, sobre uma pretensão de validade exageradamente elevada (assim, por exemplo, EBELING/FEISTEL, 1 9 8 2 ) . Ficam totalmente obscuros também os motivos por que, segundo essa concepção, não se p o d e m atribuir qualidades vivenciais, por e x e m plo, aos animais, no sentido da frase citada por Thomas Nagel: "What it is like to be a bat?". Foi a resposta a essa pergunta que fez c o m que Nagel rompesse c o m a posição Nat

reg/Ci
lur

, defendi-

da t a m b é m aqui, e atribuindo "qualidades protopsíquicas" para dentro da natureza (NAGEL, 1 9 9 6 , p. 2 2 9 s s , 2 5 6 s s ) . É t a m b é m nesse preciso ponto que surge e m Bartels u m problema insolúvel: se a emergência pode ser esclarecida pela ciência da natureza, por que é que as propriedades emergentes do h o m e m representam uma exceção a isso? Visto que essa dificuldade dificilmente pode ser resolvida dentro da posição N a t

reg/cien

, muitos autores sempre de novo procuraram refúgio

n u m a solução (proto)pampsíquica, r o m p e n d o c o m o c o n c e i t o científico de natureza, isto porque o e m p r e g o metafísico seria sempre ainda m u i t o limitado (além de T h o m a s Nagel, p. ex., t a m b é m Paul LORENZEN, 1987,

p. 3 0 1 / 2 ) . Friedrich Kambartel e sua discípula Angelika Krebs estabelecem b e m

em outro lugar a intersecção entre o que pode ser apreendido pelo reducionismo e o emergente. Esses autores admitem processos comunicativos — isto é, segundo sua convicção, processos não apreensíveis pela 50

Introdução à Filosofia da Natureza

ciência — nos seres vivos sensíveis, os quais dispõem de comportamentos expressivos; ademais, eles classificaram todas as outras formas naturais na classe dos sistemas cibernéticos auto-organizativos. Segundo essa concepção, ervas, medusas e abelhas, portanto, não são seres vivos, mas "sistemas puramente materiais e técnicos, que podem ser descritos por uma "linguagem puramente fisical ou técnica". Abstraindo o fato de que o conceito de matéria não é u m conceito fisical, mas técnico (cf. abaixo 3 . 4 ) , e que sistemas técnicos não podem ser reduzidos a sistemas fisicais, visto conterem uma relação constitutiva c o m o fim (cf. abaixo 4 ) , será então arbitrário classificar c o m o seres vivos os animais "superiores", c o m os quais por caso estamos e m condições de estabelecer uma comunicação com

base e m seu comportamento expressivo; mas o restante pode ser

classificado c o m o máquinas, passíveis de serem deduzidas de m o d o puram e n t e materialístico (KAMBARTEL & KREBS, in: KREBS, 1 9 9 7 , p. 3 3 1 ss).

Não poderia ser devido ao acaso de nossa organização o fato de percebermos o comportamento expressivo e m alguns animais e e m outros não? A expressão de u m urso panda nos parece ser muito mais acentuada do que a de u m peixe-tinta; todavia, novas pesquisas demonstraram que os peixes-tinta possuem u m comportamento expressivo muito mais diferenciado, que nos passou despercebido por muito tempo. Q u e m sabe, para muitos seres vivos, não nos faltam critérios decisivos para julgar seu comportamento expressivo? A posição N a t

reg/clen

faz c o m que se estabeleçam cortes muito nítidos

n o continuum da evolução, cortes que, todavia, e m cada u m desses pontos, não apresentam motivação. A diferença entre o científico e o não-científico, na qual deveríamos nos manter, não pode ser distribuída, portanto, a âmbitos do ser determinados pela extensão, donde se nutre, ex definitione, todavia, a própria posição N a t

reg/cien

. Trata-se de perspectivas diferentes do

ponto de vista das categorias, e não de formulação de classes determinadas pela extensão, c o m o se dá e m Aristóteles, que de todo objeto podia dizer ser u m (búoei ov ou u m T€%vr\ õ y

A instabilidade da posição N a t

reg/cien

torna-se especialmente nítida na

obra de Jürgen Habermas, o qual defendeu decididamente essa posição por décadas (HABERMAS, 1 9 8 1 , mas sobretudo 1 9 8 4 ) . O e m p u x o premente do problema ecológico, sobretudo a ameaça de nossa identidade somática pela tecnologia genética, levou-o a construir filosofemas ad hoc, do tipo Nat

reg/plui

, que se comportam de maneira estranha dentro desse c o n t e x -

to. Assim, recentemente ele refere seu conceito do "agir comunicativo" t a m b é m aos animais (HABERMAS, in: KREBS, 1 9 9 7 , p. 9 2 s s ) , ou então e m As diversas posições no espaço de possibilidade da filosofia da natureza

51

relação à fysis humana ele aceita sua qualidade entelequial, reportando-se até a Hans Jonas (HABERMAS, 2 0 0 1 , p. 8 4 ) . E tudo isso nos quadros de um "pensar pós-metafísico"! De fato, a "teoria do agir comunicativo" já tocou desde sempre nos fundamentos metafísicos de uma exigência de incondicionalidade e m relação à verdade e à liberdade. Essa incondicionalidade estende-se t a m b é m sobre a natureza, a qual durante décadas Habermas quis tratar de m o d o "puramente" científico. Natureza não pode ser estilizada precisamente c o m o o "completamente outro".

1.3.2

Hilary Putnam e a filosofia analítica

Os filósofos analíticos costumam reivindicar os méritos de ter elevado a filosofia a um nível superior. A partir daí, tais filósofos esperam que as pessoas em geral se sirvam de seus métodos e se orientem por esse seu correspondente nível de investigação. Mas e m relação à filosofia da natureza isso e m nada iria ajudar, visto que não poucos filósofos analíticos aderiram à posição N a t maioria deles aderiu à posição Nat sição N a t

t0[/plur

ou Nat

reg/plur

/ d C T

lot/den

, mas a

. As outras alternativas, c o m o a po-

, n e m sequer são tomadas em consideração.

Quão pouco a natureza representa o objeto da filosofia analítica pode ser comprovado pelo seguinte: nos volumes da ávalúcuLiev, sobre os congressos que tratam do tema "perspectivas na filosofia analítica", publicados por Georg Meggle, e contendo uma grande riqueza de materiais, não existe sequer u m a única contribuição dedicada ao conceito de natureza. No centro de interesses da filosofia analítica encontram-se questões de semântica, realismo, da relação alma-corpo, das relações de causalidade natural e causalidade do agir e t c , mas não o conceito de natureza. Todavia, se os autores contados nessa corrente raramente falam de "natureza", muito falam no entanto de "naturalismo" e "antinaturalism o " etc. A questão do "naturalismo" pode ser vista diretamente c o m o u m dos problemas principais da filosofia analítica, e provavelmente não será exagerado se dissermos que a maioria dos autores contados entre os que pertencem à filosofia analítica supõe que, c o m isso, já se terá respondido suficientemente à questão pela "natureza". C o m essa observação concorda o fato de que Thomas Nagel, u m dos poucos que não compartilham dessa convicção, é criticado veementemente dentro da filosofia analítica, justamente por esse fato. 52

ntrodução à Filosofia da Natureza

Se aqui se contesta que a questão a respeito do "naturalismo" seja idêntica à questão pela "natureza", c o m isso não se está colocando e m questão o sentido do debate sobre o naturalismo, mas apenas esta pretensa implicação: a questão a respeito do naturalismo não é idêntica à questão da natureza porque precisamente a questão a respeito do naturalismo implica uma decisão prévia sobre a questão da natureza, que já não permite estender todo o espaço de possibilidade na qual a questão da natureza pudesse ser tratada de maneira adequada. Q u e m , pois, identifica esses dois temas já se fixou prematuramente na posição N a t ou na Nat

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