Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII [1st ed.] 9789726713005

1,619 124 6MB

Portuguese Pages 376 [186] Year 2012

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Impérios em concorrência: histórias conectadas nos séculos XVI e XVII [1st ed.]
 9789726713005

Citation preview

Sanjay Subrahmanyam Impérios em Concorrência Histórias Conectadas nos Séculos XVI e XVII

Imprensa de Ciências Sociais

Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9 1600-189 Lisboa - Portugal Telef. 2 1 780 47 00 - Fax 21 794 02 74 wvvw.i.cs.ul.pt/imprensa

[email protected]

.P

Indice Prefácio

..........................................................................................................

Capítulo 1

A janela que a Índia era

Imtituto de Ciências Sociais- Catalogas;iio na Publicação

SUBRAHMANYAM, Sanjay, 1961 Impérios em concorrência : histórias conectadas nos séculos XVI e xvn/ Sanjay Subrahmanyam . - Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2012 ISBN 978-972-671-300-5 CDU94(5)

.

....................................... ......................................

Capítulo 2

Perspectivas indianas sobre a presença portuguesa na Ásia, 1500-1700

Capítulo 3

.

Os cronistas europeus e os mogóis

.

...... ......................................... ..........

Capítulo 4 O milenarismo do século XVI do Tejo ao Ganges .

. .................................

9 15 33

65 113

Capítulo 5

O mundo comercial do oceano Índico ocidental, 1546-1565: uma interpretação política

.

.

.

.

.

............ .... ................... ......... ... .........................

Capítulo 6 Mogóis e fraucos numa era de conflito contido

.

.

.

........ .... ......... ............

153

177

Capítulo 7

Capa: João Segurado Composis;ão e paginação: Ana Cristina Carvalho Revisão: Levi. Condinho Tradução : Marta Amaral Impressão e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, Lda- Lousa Depósito legal: 350096/12 1.' edição: Novembro de 2012

O Guzerate mogol e o mundo ibérico na trausição de 1580-1581 ...... 199

Capítulo 8

Portugueses, mogóis, e a política do Decão, c. 1600 ............................... 233

Capítulo 9 Manila, Malaca e Meliapor: uma viagem dominicaua pelas Índias, c. 1600

·········································································································

271

Capítulo 1 O A

,

lenda do sultão Bulaqi e o Estado da India (1629-1640) . .

...

. .....

Bibliografia .. .. . . . . . . .

.

Índice remissivo

. ... .. .........

....

. .. . .. . . . . .

. . . . .. . . . . .

.

. .... . . . . . . . . . . . . . .. . . .

. . .. ..... ....

.. . . . .

.

.. . ......

.... ... . . . . . . . . . . . . . .......... . .. . . ..

. . .......

.

. .

. . . .... . . . . .

.

....

295

. ... . . 337 . ..

...

....... .

. ...

361

Prefácio Ao abordar diferentes processos históricos que ocorrem tanto na Península Ibérica como nos confins do oceano Índico, e ao articular as histórias dos vários impérios que, entre os séculos XVI e XVII, se encontraram e disputaram o espaço euro-asiático, o livro Impérios em Concorrência. Histórias Conectadas dos Séculos XVI e XVII conduz­ -nos pelos meandros de geografias muito amplas. A formulação de Connected histories, ou, em português, histórias conectadas, afirma-se como uma alternativa às histórias comparadas. Ao invés, e como propõe o autor, as histórias conectadas permitem olhar simultaneamente, e de uma outra maneira, para processos históricos que, convencionalmente, pertenceriam a campos de estudos distintos. Fazer histórias conectadas supõe a existência, contudo, de um conhecimento arquivístico muito vasto, um domínio das línguas nas quais muita desta documentação se encontra, e uma grande consis­ tência metodológica. Ou seja, exige um grau de emdição e sofisti­ cação que não é acessível a todos. Mais a mais sabendo que, desde o cultural tum, o historiador deixou de poder fazer história sem dominar as rotinas de constmção documental e textual, bem como as políticas de arquivo e de memória - convicção potenciada pelo archival tum que se está agora a viver. Ler as fontes produzidas em contextos particulares implica conhecer, por conseguinte, e para além de muitos outros, os contextos de produção dessas mesmas fontes, e as mutações do seu estatuto epistemológico ao longo do tempo. A singularidade do percurso historiográfico de Sanjay Subrah­ manyam caracteriza-se, em parte, pelo virtuosismo com que esgrime um conjunto invejável de arquivos e fontes, línguas e historiografias. 9

Impérios em Concorrência: Histórias Conectadas nos Séculos XVI e XVII

Prefdcio

Por exemplo, Subrahmanyam trabalha de forma igualmente fácil os arquivos e as fontes portuguesas, e os arquivos e as fontes indo­ -persas, o que lhe permite, para um mesmo tema, oferecer perspectivas, por vezes, profundamente distintas - e verdadeiramente simétricas como referiu Geoffrey Parker a propósito das virtualidades do Explorations in Connected Histories (Oxford, 2004), o livro a partir do qual Sanjay Subrahmanyam propôs a selecção de textos que aqui se apresenta, especialmente vocacionada para os públicos de língua portuguesa. De acordo com Parker, alcançar esta simetria é extre­ mamente raro entre aqueles que procuram entender os encontros entre diferentes culturas, feito alcançado na escrita historiográfica de Subrahmanyam. Ora, Subrahmanyam não domina só os arquivos persas e portugueses, mas também documentação arquivística indiana (em várias línguas), holandesa, francesa, italiana, inglesa. Por outro lado, trabalha a extensa literatura de viagens produzida por europeus e não-europeus, desde diplomatas, a comerciantes mais ou menos insignificantes, sobre as diferentes geografias deste livro. Inscritos num determinado espaço e tempo, os produtores destes textos não possuíam uma visão abrangente do todo, perspectiva que o autor deste livro procura alcançar. A par disso, Sanjay Subrahmanyam tenta sempre colocar as suas teses em relação com os desenvolvimentos mais recentes na historiografia, seja sobre o mundo ibérico e europeu, seja sobre o mundo islâmico e indiano. Essa visão simultaneamente abrangente e minuciosa dos processos políticos, sociais e culturais dos espaços euro-asiáticos durante a época moderna caracteriza, sem dúvida, este livro. Ao propor uma história verdadeiramente polifónica, Subrah­ manyam contribui para democratizar o processo de construção do saber historiográfico. De facto, na sua narrativa dá igual relevo a múltiplas etnografias (às etnografias produzidas pelos europeus sobre os asiáticos, e o seu inverso), a múltiplas vozes (vozes de reli­ giosos, dominicanos ou jesuítas, vozes de oficiais laicos, directamente envolvidos nos processos político-administrativos dos seus impérios, como as de João de Barros ou Abu'! Faz!, ou as do sultão Bulaqi e do vice-rei D. Francisco da Gama), e às múltiplas razões e racio­ nalidades dos vários agentes envolvidos na tessitura dos processos históricos sob análise. Este carácter inclusivo dos recortes metodológicos do autor facilita o estabelecimento de relações entre processos históricos que, de outra forma, não seriam tão visíveis. Assim, tornam-se evidentes

aspectos como o paralelismo dos processos de aculturação que ocor­ reram durante a época moderna, desde a persianização da Índia, à ocidentalização dos territórios atlânticos, onde hoje se situam os Estados Unidos e o Brasil. Ou a simultaneidade do milenarismo, que atravessou o espaço euro-asiático no século XVI, bem como de problemáticas em torno da construção da identidade individual (temas abordados nos capítulos 4 e 7). Permitindo, ao mesmo tempo, o questionamento de pré-compreensões (como a de que, e ao contrário do mundo ocidental, na Índia da época moderna não existiria uma consciência histórica plasmada em narrativas históricas consistentes) , e de periodizações tradicionais (nomeadamente aquelas relacionadas com a emergência da modernidade). A esse respeito, oiça-se o autor: «para além de repensarmos as nossas noções de periodização», as histórias conectadas convidam a «repensar as nossas noções de fronteiras e circuitos, a redesenhar mapas que emergem das problemáticas que pretendemos estudar, em vez de inventarmos problemáticas que encaixem nas cartografias preexistentes» (p. 19). Dessa forma, Subrahmanyam consegue conciliar perspectivas micro, oferecendo descrições densas de situações inesperadas, com abordagens macro e as suas problemáticas mais gerais, estabele­ cendo relações significativas entre estes dois ângulos de análise. É o próprio a afirmá-lo: «Um dos pontos metodológicos que procurarei demonstrar é que as tensões e as formas de percepção estruturais apenas podem ser lidas a partir da filigrana dos acontecimentOS>> (p. 193). Longe de ser um puro ginzburgiano (pelo contrário, a crítica a um enfoque excessivamente micro de muita historiografia europeia é explícita, bem como a sua inclinação para perspectivas macro), o mesmo carácter desafiante e inspirador do autor de O Queijo e os Vermes perpassa muitos dos textos que constituem este volume, obrigando, a partir das problemáticas emergentes da análise fina de casos, a repensar leituras tradicionais sobre processos históricos, tanto no mundo ocidental (e sobretudo português), como no mundo asiático. A importância destes casos analisados em detalhe emerge, porém, quando estes são entendidos nas suas diferentes escalas, i. e., enquanto participantes em processos históricos mais vastos, ou cuja duração não se esgota num só momento, num só lugar. Evitar a tentação de congelar determinados encontros «num memorável momento Kodak», dando-lhes um relevo que lhes atribui significados, os quais, quando lidos diacronicamente, mostram ser mutáveis, torna-se, então,

10

11

Impérios em Concorrência: Histórias Conectadas nos Séculos XVI e XVJI

Prefácio

o problema que o historiador deve confrontar quando estuda a presença europeia no Sul da Ásia nos séculos XVI, xvn e início do XVI!!. Focando a lente no caso português, livros como este convidam a repensar vários aspectos da história do império. Esta torna-se, doravante, simultaneamente mais local - no sentido de Geertz - e mais geral, enquanto participante em processos transnacionais que envolvem múltiplos actores, desde os portugueses do primeiro século XVI, aos Habsburgos e às suas estratégias de construção imperial, até aos otomanos e mogóis, a outros estados asiáticos (caso de Víjaya­ nagar, Bijapur, Achém, etc.) e às suas populações. Ou seja, a história do império português e das experiências dos portugueses na Ásia passa a ser lida (e deve ser lida) como fazendo plenamente parte dos processos políticos, culturais, e sociais asiá­ ticos. Como relembra o autor, no capítulo dedicado ao mundo comercial do Índico ocidental de meados do século XVI, «a dinâ­ mica do comércio marítimo foi determinada por muitos factores e não apenas pelos portugueses» (p. 1 76). Num outro lugar, e muito sugestivamente, propõe-se analisar a conjuntura da União Ibérica, os anos 1580 e 1 581, a partir do olhar que dela têm os habitantes do Guzerate, sob domínio mogol, em interacção com os portugueses (ver, a esse propósito, o capítulo 7), explicando que esta conjuntura , corresponde ao capítulo «On Indian views of the Portuguese in Asia 1500-1700,, do volume From the Tagus to the Ganges de Explorations in Connected Histories, 1 7-44. O capítulo 3, «Os cronistas europeus e os mogóis,, corresponde ao capítulo «European Chroniclers and the MughaJs,, do volume

From the Tagus to the Ganges de Explorations in Connected Histories, 138-179. O capítulo 4, «0 milenarismo do século XVI do Tejo ao Ganges,,

corresponde ao capítulo «Sixteenth-Century Millenarism from the Tagus to the Ganges,, do volume From the Tagus to the Ganges de

Explorations in Connected Histories, 102-137. , O capítulo 5, «O mundo comercial do oceano Indico ocidental, 1546-1565: Uma interpretação política,, corresponde ao capítulo «The trading world of the Western Indian Ocean, 1 546-1965. A Politicai Interpretation>>, do volume Mughals and Franks de Explo­ rations in Connected Histories, 21-41.

O capítulo 6 , «Mogóis e francos numa era de conflito contido,, é a versão em português do capítulo «Mughals and Franks in an Age of contained conflict,, publicado no volume Mughals and Franks de

Explorations in Connected Histories, 1-20. O capítulo 7 desta colectânea, «0 Gnzerate mogol e o mundo ibérico na transição de 1580-1581», corresponde ao capítulo «Mughal Gujarat and the Iberian World in the Transition of 1580-1581», do volume Mughals and Franks de Explorations in Connected Histories, 42-70. O capítulo 8, «Portugueses, mogóis, e a política do Decão, c. 1 6QQ,, corresponde ao capítulo «The Portuguese, the Mighals, and Deccan Politics, c. 1 600,, do volume Mughals and Franks on Explorations in Connected Histories, 71-103. O capítulo 9, «Manila, Malaca e Meliapor. Uma viagem domini­ cana pelas Índias c. 1 6QQ,, corresponde ao capítulo «Manila, Melaka, Mylapore . . . A Dominican Voyage through the Indies, circa 1 6QQ,, do volume From the Tagus to the Ganges de Explorations in Connected Histories, 180-199. Finalmente, o capítulo 1 O, «A Lenda do sultão Bulaqi e o Estado da Índia (1629-1640)», corresp5mde ao capítulo «The Legend of Sultan Bulaqi and the Estado da India, 1 628-40,, do volume Mughals and Franks de Explorations in Connected Histories, 1 04-142. 14

Capítulo 1 "

A janela que a lndia era1 Hai Hind bihisht ki nishânz Har chashma âb-i zindagâní A Índia é o sinal do Paraíso, E cada um dos seus rios é o Elixir da Vida. Assim escrevia, com veia fortemente patriótica, um poeta do início do século XVIII, Ahmad Sarawi, acrescentando: Cada cidade e aldeia desta terra, é como se o Paraíso se tivesse estendido para ali. Cada jardim tem flores de todas as espécies, e cada canteiro é como o firmamento. A terra da Índia (Hind) está cheia de amor, e cada pedrinha parece uma pérola. Qual é o valor de uma mera pérola? Cada tijolo aqui é mais precioso que a argila do meu corpo.' Ao reler estes versos, e pensando na relação entre o estudo da história indiana e o da história em geral, devo confessar que me veio à memória o primeiro astronauta indiano, Rakesh Sharma, que - ollaando para a Terra da janela de uma nave soviética - declamou 1 Lição Inaugural da Cátedra de História e Cultura Indianas na Universidade de Oxford, 20 de Fevereiro de 2003. ' Ahmad Sarawi, Na! Daman, ed. Sayyid Muhammad 'Abdullah (Carachi: Anjuman-e Taraqqi-e Urdu, 1987).

15

Impérios em Concorrência: Histórias Conectadas nos Séculos XVI e XVII

ao primeiro-ministro indiano em Abril de 1984: «Sâre jahân se acchâ Hindíistân hamârâ» («De todo o mundo, o Hindustão é o melhor»).

Quem diz que a distância é a mãe da objectividade? Assim, e embora este seja o texto da lição inaugural da Cátedra de História e Cultura Indianas na Universidade de Oxford, não posso resistir a notar a subtil irorúa inerente à situação a que acabei , . de aludir. Como qualquer historrador actual Sul da Asra, e talvez mais do que a maioria, durante muitos anos mantive uma relação ambígua e quase hostil com a noção de «estudos de área» que, nas últimas décadas, tem sido a ideia formadora central para tantos de nós, mesmo que no passado não tenha motivado indianistas oriundos desta universidade, como William Jones e Max Mueller. O meu trabalho já me levou do Hind amado de Ahmad Sarawi ao Sudeste Asiático' ao império otomano e à Transoxânia, a um estudo mais . aprofundado da história da Península Ibérica e d�s Países Bat�os . . e, mais recentemente, a um namoro com a htstona do Brasrl e da América espanhola. Se existe uma justificação para me ter sido atribuída a cátedra de História Indiana, ela deve residir no facto de alguns dos que me leram concorda:em co;n o aforism_o de um rusto­ . riador de Calcutá que muito admtro, o Já desaparecrd? Aslun Das Gupta: > do que a visão braudeliana da França. Porque é 10 Denys Lombard, Le carrefour javanais: Essai d'histoire globale, 3 vols. (Paris, 1988); Fernand Braudel, The identity of France, trad. Siân Reynolds, 2 vols. (Nova Iorque, 1988-1990). Ver também Sanjay Subrahmanyam, «Writing history 'backwards': Southeast Asian history (and the Annales) at the crossroads», Studies in History, (N. S.), vol. x (1) (1994): 131-145,

21

Impérios em Concorrência: Histórias Conectadas nos Séculos XVI e XVII

que é tão fácil ver Java como uma encruzilhada, e não o território da França? Ou, em abono da verdade, da Índia? Permiti-me esta digressão apenas para insistir que as tentações de um nacionalismo extravagante e de um «presentismO>> cru não são um mal exclusivo da historiografia do Sul da Ásia, e que nem sempre temos lições positivas das tradições historiográficas aparen­ temente mais fortes. No entanto, não pretendo com isto insinuar que a história da «ideia de Índia» (para usar e jocosamente distorcer a intenção da frase de Sunil Khilnani) não seja em si mesma um assunto importante. Na verdade, uma curta reflexão acerca do aparecimento do termo «Índia» poderá ajudar-nos a relembrar a complexidade e multiplicidade de processos de interacção envolvidos na génese de uma definição: A própria palavra deriva, como a maioria de nós saberá, do termo árabe medieval «ai-Hind», que por sua vez é uma deformação do muito mais antigo e muito mais limitado termo «Sind». Quando se lêem os enciclopedistas e geógrafos árabes dos tempos medievais depressa se percebe, todavia, que estes são muito ambíguos na delimitação da entidade «al-Hind». Acerca das áreas centrais restam poucas dúvidas: todos incluem a planície indo­ -gangética desde o Punjab até Bengala. Mas o estatuto das zonas mais a sul da península é já menos claro, e sabemos que nos séculos xv e XVI «Hind» e «Hindustan» por vezes não incluíam o Decão e áreas a sul do rio Narmada. Se, por um lado, existe esta visão minima­ lista, outros escritores pensavam, na época medieval, que o Sudeste Asiático insular, a Tailândia, o Camboja e (nalguns casos raros) até partes do Sul da Arábia, como o Iémen, pertenciam ao Hind. No total, temos três grandes categorias geográficas que se destacam destas fontes árabes: o «Hind», «Sind» (ou China) e «'Ajam» (infor­ malmente a área onde se falava persa). Mas as fronteiras das três eram ambíguas e por vezes até «'Ajam» desaparece, como se vê no texto do final do século XII Akhbâr as-Sín wa'l Hind, que diz que: Os povos do Hind e da China (ahl al-Hind wa'l-Sfn) concordam que os reinos do mundo são em número de quatro. O que primeiro se conta entre os quatro é o dos árabes (mulk al-'arab); é sua opinião unânime, e ninguém duvida, que é o maior de todos os reinos, o mais rico, o mais magnífico, e soberano da grande religião (al-dfn al-kabfr) que é inultrapassável. O reino da China (mulk al-Sfn) vem depois do

A janela que a Índia era dos árabes; depois o reino de Rum, depois o do Ballaha-Ra'i, o reino dos que furam as orelhas."

O texto prossegue explicando que este Ballaha-Ra'i é o maior soberano do «Hind» (ashraf al-Hind), uma declaração seguida de uma descrição do próprio «Hind», dos seus outros governantes e, mais adiante no texto, de algumas noções rudimentares de estru­ tura social, como a de que no «Hind» «OS escribas e os físicos (ahl al-kitdbat wa'l-tibb) pertencem a famílias que só elas podem exercer estas profissões». Em tom semelhante, o texto anónimo persa Hudud al-'âlam (Os Limites do Mundo) do final do século x tem uma secção que descreve o Hindustão imediatamente após a descrição do «Chinistão>>. Ficamos a saber que esta região se encontra a oeste da China e do Tibete e a norte do Grande Mar, e que «possui grandes riquezas, uma população numerosa e muitos reis». O autor ou compilador acrescenta que «em todo o Hindustão o vinho é consi­ derado contra a lei e o adultério lícito>>, além de notar que «todos os habitantes são idólatras». Os «numerosos ídolos de ouro e prata» são zelados por eremitas e brâmanes (zâhidân wa brahmanân) ; e que em pelo menos uma das cidades, «quando um dos chefes morre, todos os inferiores que vivem sob a sua sombra se matam»." Mas mais uma vez os limites do espaço permanecem vagos, e embora compreendam Labore, Multan, Caxemira e Qannauj, incluem igual­ mente Kamarup (Assam) e vão até Champa, Khmer e Fansur - ou seja, Barus, na Sumatra. (Por acaso o mesmo texto contém uma referência na sua secção sobre o Oceano Ocidental a um grupo de .

34

r�alizados [.. .]. Mas noutros a informação veiculada por viajantes ou diplomatas venezianos, mgleses ou franceses é tão importante que não a podemos, simplesmente, negligenciar. Afinal, o estado otomano dos s�cul�s XIV a XV! definia-se como um estado à conquista dos infiéis. Isto . . S1gruf1ca que eXIstiram contactos estreitos com mercadores venezianos príncipes balcânicos e, ocasionalmente, membros das casas reinante; da Europa ocidental desde os primeiros tempos da história otomana. O uso crítico das fontes europeias constitui assim um grande desafio ao historiador otomanista.6

Çurioso, e digno de nota, é que esta relação entre os portugueses e a Asia se tenha mantido fundamentalmente assimétrica. Ou seja, as fontes asiáticas sobre a história dos portugueses no continente entre 1500 e 1700 têm sido, na sua maioria, ignoradas, na premissa de que o que os asiáticos tinham a dizer acerca da presença portuguesa não seria de especial interesse ou relevância. As raízes deste precon­ ceito não são difíceis de encontrar. Há pouco mais de um quarto de século, um dos mais inovadores historiadores contemporâneos, Michel de Certeau, ainda insistia que . Sem referir historiadores da Índia mogol (que nos anos 60 e 70 não escasseavam) mas sim o antr?pólogo estruturalista Louis Dumont, Certeau concordava que na India