Iara: reportagem biográfica [2 ed.]
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Iara: reportagem biográfica Judith Lieblich Patarra Editora Rosa dos Tempos 1992

Não conseguiu firmar o nobre pacto Entre o cosmo sangrento e a alma pura

(Tanta violência, mas tanta ternura)

MÁRIO FAUSTINO

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AGRADECIMENTOS Alberto Dines, a inspiração e o conto sobre Iara “Um caso único de saudade à primeira vista”, no livro Posso? (Editora Sabiá, 1972); Família Iavelberg, a confiança; Graziela Karman e Eva Lieblich-Fernandes, irmã, as observações críticas; Departamento de Documentação da Editora Abril, anos de apoio com informações, textos, livros, artigos, fotos; Central de Processamento de Dados da Editora Azul, impressões sem fim.

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SUMÁRIO PREFÁCIO .................................................................................................................. 6 PRÓLOGO .................................................................................................................. 8 Passado ................................................................................................................... 8 I IPIRANGA ............................................................................................................... 20 Loja, irmãos, avô Bernardo .................................................................................... 20 Escola Israelita do Cambuci. Dona Angelina ......................................................... 32 Casa nova. Cecília, Felícia, Ely ............................................................................. 39 Sá. O Científico, Honório. Cursinho ....................................................................... 49 II MARIA ANTÔNIA .................................................................................................. 67 Faculdade. Bagunça organizada ........................................................................... 67 O Golpe de 1964. Decio Bar .................................................................................. 78 POLOP. O papel do revolucionário ........................................................................ 90 Antonio Eduardo. O corpo vazio. TUSP .............................................................. 107 Setembrada, sit-in, o livrinho vermelho ................................................................ 124 José Dirceu. Paixão de primeira-dama ................................................................ 133 III VPR ..................................................................................................................... 156 Quixotes e heróis ................................................................................................. 156 Chispas e suco de Iaranja ................................................................................... 171 Vergonha de si, uma dramatização ..................................................................... 182 Quartim, fusão, tiros ............................................................................................ 190 Comício, maio e mãe Carrar ................................................................................ 200 Mocinhos, bandidos ............................................................................................. 212 Na Iguatemi, com Lucia Sarapu........................................................................... 226 Batalha na Maria Antônia. Justiçamento ............................................................. 239 IV LAMARCA .......................................................................................................... 250 Os militares. Zequinha. Areia............................................................................... 250 Deserção. A rua das Acácias............................................................................... 262 Breno, Dilma, Herbert Daniel ............................................................................... 283 4

Mitologia. O cofre, as mortes ............................................................................... 318 O Colar de Dentes de Cavalo. Maria do Carmo .................................................. 331 Marighella. Chael. O anel de escrava .................................................................. 350 V NO ESTRANGEIRO ............................................................................................ 369 Treinamento na mata. Mário Japa estava cansado ............................................. 369 O periquito laborioso. Alfaces no ponto da feira .................................................. 383 O aparelho de Seixas. Deusa. Um galho decepado ............................................ 397 Dina Sfat. Com os pais na pizzaria ...................................................................... 421 Câmara Ferreira. O larguinho em Rio D'Ouro ..................................................... 428 Em debate a estratégia da VPR .......................................................................... 442 VI BAHIA................................................................................................................. 454 Complô. O comandante abandona seu exército .................................................. 454 No abrigo de aliados. Cai Inês ............................................................................. 462 Em casa de José Gomes e Zeni .......................................................................... 473 Travessia. Despedida no Hotel Palace ................................................................ 479 Hamilton Safira. Refúgio em Serrinha ................................................................. 487 Cerco. A doce mentira do mar ............................................................................. 506 EPÍLOGO ................................................................................................................ 527 Regresso ............................................................................................................. 527

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PREFÁCIO

Estação do percurso de existir, lembrar está a meio caminho entre viver e reviver. A nobre arte da biografia faz parte deste exercício regenerador, cultivada em paragens onde inexiste o medo da verdade. Rememorar é mais do que um esforço mecânico de restaurar, genuína vocação para evitar desperdícios. Sistema contínuo de soma e convocações, sem o qual a convivência humana torna-se formalidade. A busca do passado, entre nós, quando não se inclina para o panegírico comprometido ou a nostalgia capciosa, costuma tomar a forma de tribunal retrospectivo, revanche, ânsia de excluir versões adversas, necessidade de colocar um ponto final em questões que não admitem finalizações. Evocar com fúria é forma de parcialidade, tão comprometida quanto a notícia provinda de fonte única. A História volta à pauta agora, justamente quando aproxima-se um marco cronológico, indício das angústias e premonições que antecede o milênio. Um dos temas recorrentes é o seu fim, acabado o grande confronto ideológico dos últimos 45 anos. A História só acaba para os impacientes e a historiografia, sua crônica, é infindável, agente e motor do processo. A nossa mal começa. Ao exumar a tragédia de Iara Iavelberg, Judith Patarra aciona a imperiosa necessidade de sofrer o passado. Até agora jogamos com ele, pronunciamos emocionados discursos, montamos teorias e teses mas faltou o essencial – não nos horrorizamos suficientemente com o que fomos, fizemos e, sobretudo, deixamos de fazer há tão pouco tempo. Como a poesia, a dor é necessária. Fomos agraciados com a habilidade de passar incólumes por ela através da prodigiosa capacidade de inventar saídas, desvios, combinações. Não o confessamos mas nosso comportamento faz crer que pretendemos um teatro sem catarses, inofensivo, indolor. Impossível. Por isso, destreinados de olhar para trás, caindo e levantando sem saber por que, confiando em passes e poções, despencamos agora em queda livre. O pessimismo que hoje grassa – generalizado e vago -é, infelizmente, passageiro, incapaz de produzir a grande reflexão da beira do abismo. As histórias que começam nas páginas seguintes têm pouco mais de 20 anos, estendem-se em linha reta até hoje e serão percorridas por muito tempo ainda. Tem 6

que ser assim, não há atalhos alternativos para a continuidade. A não ser que, mais uma vez, trataremos as feridas pelo esquecimento.

Alberto Dines Lisboa, fevereiro, 1992.

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PRÓLOGO

Passado

BERNARDO E ROSA ROTH proibiram a filha Eva de casar-se antes da graduação na Escola de Comércio Tiradentes, no Bom Retiro, onde ela cursava em 1942 o terceiro e último ano. De qualquer forma, o casamento destruiria o sonho de vê-la estudar numa das faculdades a que seu curso técnico dava acesso – Economia, Direito e Administração. O anseio diferenciava-os. As moças da época, judias ou não, pouco freqüentavam o ensino superior. Os noivos conheceram-se num baile organizado pela Escola de Comércio Álvares Penteado no antigo salão do Trianon, avenida Paulista, onde é hoje o Museu de Arte de São Paulo. Os jovens dançavam em matinês programadas por escolas, aos domingos. David Iavelberg tinha fama de farrista. Gostava de bailes, namoradas, passear pela noite. Sequer chegara ao ginásio. Sua família de origem rural, romena da Bessarábia, agora proprietária, em São Paulo, de duas lojas, algumas casas e um cortiço no bairro do Ipiranga, provavelmente seria supersticiosa como, em geral, os imigrantes das aldeias habitadas quase só por judeus, na Europa Oriental. Nada a ver com Bernardo, o pai orgulhoso centro cultural e uma das capitais do Império AustroHúngaro. O ideal social de Eva era um marido de origem húngara, austríaca ou, melhor que todos, alemão. A simples expressão iídiche bessaraber, para os Roth, soava pejorativa. Perturbadora, a escolha de Eva. A família do noivo fazia análogas restrições. Húngaros são gente ruim, acreditavam. E os pais da noiva vinham de uma cidade que desdenhava os velhos costumes comunitários do interior europeu. A filha, certamente luxuosa e exigente, iria rebelar-se contra os novos deveres-entre eles, a loja de roupas para operários que os Iavelberg tocavam com o filho nos baixos da Silva Bueno, principal rua do Ipiranga. E o que aconteceria se Eva imitasse o marido, cuja preguiça agastava Abrão, o pai, até a intolerância? – Meu pai era enérgico e repressor – sábados, por exemplo, eu chegava do baile pelas cinco da manhã. As sete ele me tirava da cama para vender na feira. Dizia: 8

“Você dorme à tarde." Eu me dava melhor com minha mãe, paciente, que nos defendia, a mim e a meu irmão. Apesar das desconfianças mútuas, os chefes de família Roth e Iavelberg tiveram em comum boa situação na Europa, seguida de pobreza. O pai de Eva, alfaiate, no seu grande estabelecimento de moda bairro comercial de Pest, em Budapeste. O pai de David, barbeiro, por que exerceu lucrativo ofício paralelo: mutilava rapazes judeus para livrá-los do serviço militar e da guerra de 1914-18. – A especialidade dele: fazer falhar uma vista descreve David. – Coisa comum na época. Também se cortava o dedo indicador. de apertar o gatilho. Ele mesmo tinha defeito, não ouvia de um lado fizeram o ouvido dele.

Vale voltar à Bessarábia de 1826, há 13 anos sob domínio dos russos, que a ocuparam cinco vezes desde 1711 e mantinham com a Turquia um clima de tensão pelo controle dos Bálcãs. Abrão, avô paterno de Iara, apelidado goischekopf (pouca inteligência; literalmente, cabeça de gói) por vizinhos do Ipiranga que pouco o estimavam, só nasceria 70 anos mais tarde. O governo do czar Nicolau I (1826-1856), que transformou a velha Rússia em gigantesco quartel da polícia secreta, instituiu uma aberrante convocação militar de rapazes judeus. Estendia-se por 25 anos, aos quais se somavam os seis do serviço regular. Objetivo: subtrair-lhes a singularidade, forçar a russificação e a entrada na Igreja Ortodoxa Russa. "Os judeus (...) sugam o povo na condição de comerciantes, artesãos, arrendatários de restaurantes, adegas, moinhos e balsas", acusara o futuro czar, ainda grão-duque, em 1816. As cotas de recrutas não se preenchiam voluntariamente. Rotineira a caça aos jovens em suas casas, no meio da noite, incluindo pequenos de oito anos. Em geral seguiam para a Sibéria e imediatamente os familiares os choravam por mortos. Em 1835, o jornalista e filósofo russo Alexandr Ivanovitch Herzen descreveu o que viu numa estação de aldeia: "Meninos de oito, dez anos: um terço morreu no caminho nem metade chegaria à Sibéria. Puseram-nos em fila; os de 12, 13 anos ainda se mantinham nas pernas; mas os menores... medo nos 1oss pálidos, magros, abrigados em pesados capotões militares que não serviam, lábios brancos, olheiras profundas,

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febre e tremores de frio. Marchavam, roubados do cuidado e amor dos pais, para a morte." Atrás dos muros da caserna, os sobreviventes sofriam torturas até aceitar o batismo: exercícios militares no gelo da noite, chicote, comer a carne de porco abominada pela religião, peixe salgado sem direito a água. Quase todos cediam. Mas alguns, entre 15 e 18 anos, resistiam até morrer. "O martírio infantil através do serviço militar é uma situação única, mesmo num martirológio tão multifacetado quanto o dos judeus russos", escreveu o escritor e historiador russo Simon Dubnow1 antes dos campos de extermínio nazistas, onde o mataram aos 83 anos. O recrutamento pesou mais nas camadas pobres, de trabalhadores manuais e pequenos comerciantes, às quais pertenceriam os Iavelberg. Faltava-lhes dinheiro para entrar nas corporações de comerciantes e artesãos, cujos filhos eram dispensados do serviço militar em troca de milhares de rublos – o imposto de recrutas, também aberto aos rabinos, professores de escolas russas e mecânicos de fábricas. Em 1850, governadores provinciais relatavam que os jovens se escondem durante o alistamento, a ponto de só restarem idosos e incapazes em numerosas comunidades. Entre estes, os mutilados: sem um dedo da mão, pé, um olho, ouvido, dentes. "Até a mais carinhosa das mães colocaria o dedo do filho predileto sob o facão de um curandeiro"2. No reinado de Alexandre II, o "czar benévolo" (1855-1881), caiu o serviço militar de 25 anos. Manteve-se, contudo, a preferência por recrutas judeus pobres ou sem trabalho, sujeitos à expulsão das aldeias pelas autoridades – só a algumas classes profissionais concedia-se o direito a domicílio fixo. Compreende-se que o pavor à convocação atravessasse gerações, emergindo na Primeira Guerra Mundial. Na memória, os parentes e amigos desaparecidos no "serviço militar" de 31 anos, na Guerra da Criméia (1854-1856) ou no conflito RussoTurco (1828-1829). A resistência cresceu quando o governo russo evacuou judeus das áreas de invasão germânica, porque falavam iídiche, aparentado com o alemão. Muitos judeus alemães, aliás, participaram da guerra com objetivo de libertar seus patrícios russos.

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Simon Dubnow, História do Povo Judeu, Judischer Verlag, Berlim 1929. Idem.

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Abrão Iavelberg, 21 anos, barbeiro na cidadezinha de Britshen e filho de pintor de paredes, auxiliado pelo intermediário, o shapche, casou-se com Sonia, 22, desconhecida e proveniente de Reckon, minúscula aldeia vizinha. O pai da noiva, segundo estabelecera Nicolau I, pertencia à categoria de sanguessuga do povo russo. Além de cultivar num lote pepinos e melancias, era proprietário de um pequeno local onde se bebia vinho, o shenk. Na salinha à frente da casa, o cenário quase imutável desde a Idade Média: compridos bancos e mesas de madeira – Fui uma perfeita idiota. Só aceitei o marido porque sonhava viajar. Aí parti... rumo à aldeia vizinha! – debochava Sonia, já no acomodavam as pessoas, botas invariavelmente sujas de barro. O casal ocupou dois aposentos nos fundos da casa de pessoas igualmente modestas. Praticava um judaísmo de respeito ao shabat e presença, nos grandes feriados religiosos, à sinagoga construída na única rua precariamente calçada, que se distinguia das outras pelas habitações meio assobradadas: porão e alguns degraus externos. Sonia desenvolveu certa simpatia pelos bolcheviques. Abrão trabalhava numa pequena barbearia. O ofício permitira, até meados do século XVIII, a prática legal de pequenas operações – sangrias, lancetagens e tratamentos de feridas – o que lhe favoreceu a função assumida em 1914 de mutilador. O dinheiro facilitava a vida dos Iavelberg. Mas descoberta a atividade ilegal antes de terminar a guerra, Abrão quase foi fuzilado. Outro azar: a Bessarábia acabava de ser reincorporada à Romênia, os rublos acumulados em malas perderam o valor no país e na Rússia pós-outubro de 1917. Jaime nasceu em fevereiro de 1917; 20 meses depois veio David. Entre ambos o menino e a menina, gêmeos prematuros, que não sobreviveram às más condições de vida e ao inverno glacial. Durante anos Abrão desdobrou-se na barbearia. Também fabricava sabão de lavar roupa e vendia lenha no inverno, ajudado pelos meninos. Não bastava. Aos poucos o homem amadureceu o plano de emigrar, a exemplo de conterrâneos que descreviam sucessos nas cartas despachadas de um bairro chamado Ipiranga, em São Paulo, no Brasil. Toda a cidadezinha de Britshen sabia ser possível, ali, juntar dinheiro como vendedor ambulante e pretender cidadania. Fatos inéditos: o racismo 11

não era aberto; desconheciam-se ameaças de pogroms na Semana Santa, sob pretexto de assassinatos rituais e hóstias envenenadas. Abrão partiu em 1927, com a promessa de enviar rapidamente dinheiro para as passagens da mulher e dos filhos. Os pais, uma irmã e dois irmãos não queriam emigrar. Faltava-lhes ambição. Sonia e os meninos ocupavam agora um só quarto. Ela aprendeu o ofício de barbeira e extenuava-se no sustento das crianças. Difícil. A pobreza, na cidadezinha, era geral. – Até fome passamos – lembra David. Durou quatro anos a luta da mulher lembrada no Ipiranga como senhora bonita, mais alta que o marido, altiva, cabelos branco-azulados de anil, sempre bem compostos. Se obteve o minguado dinheiro também de outras formas – "Consta que na Bessarábia não tinha fama lá muito airosa", sugere uma conhecida que pouco a apreciava – seria maledicência desprezível, não fosse o ciúme exacerbado de David pela esposa Eva, no futuro. David nega que os clientes de sua mãe, na barbearia, o deixassem enciumado. O problema, segundo ele, foi a preferência de Sonia pelo primogênito. Moisés Iavelberg, filho de Jaime, o contradiz, refletindo a animosidade que desunia a família: – A avó pendia ostensivamente aos "de baixo" – afirma, indicando a família de David que morava no início da Silva Bueno. – Só se dedicava a eles. Dizia: "Coitado do David, é doente." Minha mãe rebatia: "Então, como fez quatro filhos?" O avô, sim, preferia meu pai. Abrão mandou o dinheiro da viagem duas vezes. Na primeira Sonia o emprestou ao cunhado, empresário de companhias teatrais judaicas, que faliu e não o devolveu. Partiram em 1931. Nunca mais veriam a família materna – ninguém sobreviveu aos nazistas. Dos Iavelberg, três escaparam. A irmã na Argentina, o primo refugiado em território soviético e o tio em Paris. Único bem que Sonia levaria ao Brasil: uma pele de raposa, hoje pertencente a Rosa, a neta caçula. David recorda a viagem de trem através da Polônia e os oito dias em Paris, na casa da tia, irmã de Sonia. Do seu pequeno salão de beleza ela sairia para morrer em Auschwitz – o governo colaboracionista francês, pressuroso em ajudar os nazis no extermínio de seus cidadãos judeus, dirigiu a fúria inicial contra os imigrados. Também 12

se lembra do tio, dono de uma lojinha de roupas, que sobreviveu e agrediu em 1973 seu terceiro filho Raul, exilado: "Os filhos do David são todos vermelhos." Iara, a primogênita, já estava morta. A maior impressão do menino em Paris, além dos numerosos judeus romenos – sem direito a ingresso nos cursos superiores de seu país, os mais abastados procuravam as universidades francesas; seguiam-nos outros, de recursos limitados – foi a Exposição Mundial de 1931. Toda a família visitou-a. A tia amarrou no bolso dos sobrinhos o endereço, para o caso de se perderem. Outra memória, a roupa nova que ganharam do tio. Calça, camisa de meia, boné e um par de sapatos. Muito pobres, os irmãos vestiam o uniforme escolar sovado, sem mudas. Em Bordeaux os três subiram no Elbe, cargueiro que afundou após alguns anos na costa brasileira. – Acostumados à comida iídiche, não conseguíamos engolir a carne de cavalo que nos davam. Minha mãe, enjôos, mal saia da cabine. David, entretanto, teve sorte. Charmoso desde pequeno, atraiu a simpatia do chefe de cozinha – Eu ajudava no serviço do desjejum, misturando o leite em pó. Como prêmio ganhava cebola e pão ou sopa de verdura, coisas que a gente conhecia. A viagem demorou, o navio parava em todos os portos. – Não esqueço Dakar. Foi a primeira vez que vi gente de cor. Perplexo, o garoto observava a cena. Árabes vendiam colchas no cais e atiravam moedas ao mar. Atrás delas, os negros se jogavam.

A chegada a Santos não causou impressão maior, percorridas tanto paisagens além-Britshen. A mãe, do convés, apontou o pai. Soh a névoa pegajosa de umidade, rodeado de gente, imerso na confusão dos carregadores, ferros estridentes dos guindastes, gritos, um estranho acenava do cais cinzento e sujo, cheiro a maresia. A família tomou o trem para São Paulo e desceu à noite na Estação da Luz, próxima ao prédio da Polícia Política onde na década de 60, estudante, Iara seria presa durante uma semana. Seguiu a pé carregando a bagagem mínima, David e Jaime desprovidos de brinquedo ou objeto pessoal. Na praça da Sé subiu no bonde aberto, estribos ao longo do comprimento e bancos de madeira cortando a cabine de 13

lado a lado. O último trecho da viagem iniciada no outro lado do mundo. parte de um destino marcado pela dispersão, terminava com o rangido de rodas metálicas nos trilhos, estalos da madeira, o som de campainha registrando passagens, o visor em que se lia, do lado de fora, "Fábrica". O bairro do museu, indústrias, operários. Abrão apertou-se com a mulher e os filhos no quarto que alugava de uma família judia, mas depressa encontrou casa de sala e dois cômodos. Logo arrendaria um leito a outro recém-chegado. Os filhos preferiram o trabalho à escola e faziam a clientela, como denominavam as vendas de porta em porta. Ofereciam tecidos e cobertores a prestações. O pai estipulou que cada um entregaria cinco mil réis diários à mãe, cobrindo as despesas domésticas. Nem sempre o caçula preenchia a quota. Usava o dinheiro no cinema ou escondia-o na fita do chapéu, garantindo a matinê dançante. – Oh, ele ficava bravo quando percebia! Vieram depois tempos de feiras-livres. E a barraca do rapaz madrugava no Ipiranga, Belém Cambuci, Liberdade. O esforço conjunto rapidamente melhorou a situação dos Iavelberg. Primeiro, Abrão comprou uma casa por 12 contos. Em 1957 loja de roupas feitas, para homens e mulheres, nos baixos da Silva Bueno. InstaIaram-se na morada anexa, atrás. Na loja ao lado, geminada e idêntica residência, morava um alfaiate que fornecia os ternos. Sonia, sobrecarregada, fazia o trabalho doméstico e cozinhava, além de atender os fregueses. David ajudava aleatoriamente, a contragosto. Em troca era alegre, afetuoso e ótima companhia. Abrão, que continuava a vender na rua, comprou o imóvel vizinho e abriu com Jaime a mobiliária alguns quarteirões morro acima da Silva Bueno, bem mais lucrativa. David descobriu a vocação quando o pai mandou-o examinar uma casa à venda, na rua Agostinho Gomes, a caminho do Museu do Ipiranga. – Eu é que resolveria o negócio – expõe, orgulhoso até hoje. Finalmente, merecera confiança. – Voltei e respondi que valia os 250 contos: terreno grande, três casas. Ele comprou. Se eu tivesse estudado, seria engenheiro. Meu pai errou em não me impor a escola. No final da década de 50, David edificou ali um pequeno prédio de três andares. Até hoje inspeciona-o regularmente. Preocupa-se em polir como um espelho as 14

paredes revestidas de madeira do longo corredor de entrada, manter o chão brilhante de limpeza e suas raízes bem alimentadas. Com doçura os olhos acarinham a porta do apartamento onde, no chão do banheiro que invariavelmente esquecia molhado, sua marca registrada, Iara deixou o aviso, 35 anos depois de adquirido o terreno, que abandonava a vida legal para entrar na clandestinidade. Bernardo Roth faliu em 1929 devido à grande crise econômica mundial; em 1930 chegou ao bairro judeu e italiano do Bom Retiro, São Paulo. Semelhante a numerosos húngaros que deixaram o país nessa época – dificuldades econômicas ou negócios mal parados – imaginou fazer fortuna no Brasil e voltar nos próximos anos. Rosa, a esposa, e a irmã de Rosa, Elisabeth, cujo marido acompanhou Bernardo, dois filhos cada uma, aboletaram-se num minúsculo apartamento de quarto e cozinha em Budapeste, a grande cama de casal em ferro dourado e o cobertor salvos da penhora. O dinheiro do aluguel, batatas e cebolas vinha de roupas que lavavam na cozinha, em duas tinas, para um hotel. Das famílias, nada a esperar. A de Rosa, muito pobre. Quanto ao sogro, casado em segundas núpcias, considerava a presença de Elisabeth um abuso. – Lembro que lavavam peças grandes sem parar. E os meses frios em que não podíamos sair por falta de agasalhos – registra Eva. Outra recordação: o passeio até a loja que distribuía balas a crianças. Rosa não permitia que as chupassem, pois completavam o desjejum composto de três, quatro copos de chá, a guloseima na boca. Nenhum dinheiro para comprar açúcar. – No Brasil, meus pais morreram de muito gordos. Não conseguiam saciar a fome. Eva, o irmãozinho Estevam e a mãe partiram de Bordeaux em 1931, no cargueiro francês Josephine. Único bem que Rosa trouxe ao Brasil: a estola de raposa, hoje uma pelerine também pertencente à neta em sua homenagem chamada Rosa. Exceto Elisabeth, as crianças e o meio-irmão de Bernardo, que emigraram para o Brasil, toda a família desapareceu nos campos de extermínio. Eva tinha sete anos quando reencontrou o pai. Bernardo já se estabelecerá como alfaiate, deixando a assombrosa ocupação de vendedor de santinhos. Sabia um pouco de português graças ao professor o moré, que agora ensinaria Rosa. Aulas de

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iídiche adaptaram o alemão que falavam3, para se entenderem com os judeus do bairro. A pobreza continuava grande na pequena casa alugada. – À noite a gente lavava as roupas de baixo para vestir no seguinte. A grande virada veio um ano depois, em 1932. Bernardo venceu – outro assombro – uma concorrência promovida pelo Exército. Faria os capotes de frio dos soldados paulistas da Revolução Constitucionalista. Meses sofridos, apesar dos frutos. Dormiam sobre colchões, no chão. Serviam de cobertor os panos que o pai cortaria no dia seguinte. Rosa ajudava a costurá-los. O casal deitava-se à meia-noite e às 4h30 prosseguia o trabalho, ficou a cargo da filha, tão pequena que precisava de uma banqueta junto à pia, a tarefa de acender as brasas do fogão de lata e cozinhar Meus pais estocam comida ao receber o primeiro pagamento. Medo da fome e da guerra civil. Farinha, óleo e açúcar para três quatro anos – calcula Eva. Elisabeth costumava levar as crianças ao Jardim da Luz. Andavam na bicicleta de Estevam, subiam nas árvores em busca de coquinhos. Tudo parecia manso na tarde em que a bomba destinada ao quartel da avenida Tiradentes caiu no grupo escolar próximo – felizmente fechado, como as demais escolas. A tia agarrou os pequenos e correram, no caminho encontrando a aterrorizada Rosa. Esquecido, sensação de perda que perdura, o lanche: leite, sanduíches. Terminado o conflito, Bernardo iniciou sua confecção de ternos e casacos numa casa de quatro cômodos e cozinha. Na frente ficava o estoque, ele na valiosa função de cortar os panos, pois das sobras vinha v lucro puro. No quarto ao lado, as máquinas de costura. No terceiro os ferros de passar, trabalho do marido de Elisabeth, ainda sem dinheiro para comércio próprio. No último, o dormitório: dormiam todos juntos. O porão, alugavam. O inquilino, felicidade de Eva, vendia amendoim. Bernardo era freqüentador regular da livraria que alugava livros húngaros4 na avenida São João. Com os volumes escolhidos para si e a mulher, quase sempre policiais, entrava no bar Ponto Chic, antegozando o jogo de bilhar com os amigos e os petiscos de balcão, alegres transgressões aos preceitos religiosos que herdara dos avós ortodoxos, na Hungria.

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Devido à dominação dos Habsburgos, o alemão tornou-se obrigatório em 1787 na Administração e Justiça húngaras; ensinavam-no em todos os níveis escolares. Só em 180 o húngaro voltou a ser língua oficial. O alemão continuou segundo idioma. 4 Nas décadas de 30 e 40, pequenas bibliotecas circulantes de bairro, improvisadas em residências, também alugavam livros nos idiomas dos imigrantes.

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Eva, que assimilou dos pais o hábito da leitura, preferia a biblioteca particular "O Amigo dos Animais" na rua Direita, com livros em português para crianças. Leu Monteiro Lobato, Tarzan de E. R. Burroughs, e Júlio Verne. Conheceu a enciclopédia O Tesouro da Juventude, considerada depositária da boa formação, que ambicionou; de certa forma, possuí-la preenchia o anseio de cultura especialmente agudo entre os imigrantes. No bairro, depois da escola, a menina vivia na rua. Dos amiguinhos góis, filhos de italianos que chamavam os judeus de "russos da prestação", adquiriu a pronúncia que caracterizaria a dicção de Iara. À noite vinha o acendedor dos lampiões a gás e dormia-se disciplinadamente, cedo. Mas aos domingos, que festa! Eva e Estevam iam ao cinema em frente de casa, aspirando o perfume dos cones de papel cheios de amendoim, gulosamente consumidos. E melavam-se com os papos-de-anjo apregoados pelo italiano: la tchitchina, la palitchina. O irmãozinho saía logo do cinema – a escuridão o aterrava. Eva desenvolveu outra fobia, a cães. Iara seguiu a trilha: tinha pavor de cachorros Já mocinha, o programa dominical de Eva era o cine Paratodos, no vizinho bairro de Santa Ifigênia. Ia a pé com as amiguinhas; o dinheiro da condução pagava o sorvete. Saíam cedo de casa, antes que lotasse o balcão, de ingressos baratos. Lá em cima a gente se divertia, era a farra. Rosa cozinhava bem, sem poupar talento. À mesa, farta, multiplicava os doces: papoula, nozes, maçã e dóbosh, um pãode-ló fino com camadas de creme, coberto de açúcar queimado. Aos sábados, o tsholent5: feijão branco, batata, cevadinha e carnes, cozidos em gordura de galinha durante toda a noite de sexta-feira, no forno da padaria. De judaísmo, Eva lembra-se do jejum dos pais no Yom Kipur, o Dia do Perdão; de feriados na sinagoga, o shil da rua dos Gusmões, Santa Ifigênia, que Bernardo presidiu por algum tempo; das brincadeiras com outras crianças no porão do templo, enquanto esperavam terminar as cerimônias; do pai caminhando no shabat, em obediência à lei religiosa. Mas problemas houve. Em 1939, 15 pessoas discutiam questões da Congregação numa sala da sinagoga.

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"Feijoada" de origem polonesa, tradição do almoço de shabat, quando aos judeus religiosos é proibido cozinhar ou exercer qualquer atividade que envolva trabalho.

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– Mandamos alguém buscar café no bar. Veio a polícia que nos levou, acusados de comunistas. É que o Estado Novo proibia reuniões – recorda Leopoldo Gruenwald, que foi amigo de Bernardo. – Logo nos soltaram. De outra vez, um detetive armado de revólver interrompeu o encontro da diretoria e achacou-os. – Chamei o Roth, conseguimos juntar 20 mil réis. Perguntei: "Chega?" Ele pegou o dinheiro e respiramos. O terceiro esbarrão aconteceu no Ponto Chic. Nada a ver com judaísmo. Os amigos conversavam em húngaro no bilhar. Foram presos por algumas horas – proibira-se o uso público de línguas estrangeiras durante a guerra. Domingos à tarde, Bernardo e Rosa jogavam baralho num clube da rua Três Rios, no Bom Retiro. À noite, nas esporádicas turnês de companhias judaicas, assistiam aos espetáculos no Teatro Santanna ou no Parque Antárctica. Outro programa de domingo era passar o dia no clube Donau (Danúbio), futuro clube Macabi. Ficava na área que um grupo de judeus alemães e húngaros alugou da Companhia Telefônica de São Paulo à beira do rio Tietê, no Canindé. Os inquilinos associados chegavam ao local carregando as sacolas para o piquenique. Atravessavam o rio na pinguela ou na Ponte Grande, margeando quase dois quilômetros a pé. Às vezes cruzavam grupos de pintores, maletas de madeira cheias de tintas, um que outro de cavalete no ombro. O Canindé – bosques naturais, campos, caminhos de terra, casas simples e esparsas, olarias, cheiro de mato úmido – atraía os artistas plásticos do grupo Santa Helena, apaixonados, a exemplo dos impressionistas, pela pintura ao ar livre das paisagens suburbanas. No grande e arborizado terreno, dois campos de futebol e cocho de madeira para nadar nas águas limpas do Tietê, construíram cômodos de madeira. Faziam ginástica, jogavam handebol e patshpask – tamborim e bola de tênis. As crianças ganharam balanços e gangorra. E passava o fim de semana inteiro quem não trabalhava aos sábados. Fascinada pela água, mas pequena para entrar no cocho, Eva ganhou dos pais o ingresso no Clube Espéria, à beira do Tietê. O amor à natação vinha, antes de tudo, da rara boa lembrança de Budapeste: a piscina pública da ilha Margarida no rio Danúbio, centro da cda cujo equipamento ainda hoje produz marolas imitando o mar. Também a influenciou o gosto dos húngaros por esportes, em particular aqueles 18

ligados à água – um convite geográfico da Capital. Eva dedicou-se apaixonadamente aos exercícios, chegando a integrar a equipe do Espéria na "Travessia de São Paulo a Nado"6. Depois do derrame que paralisou Rosa do lado esquerdo, aos 46 anos, em 1942, o jogo de baralho dominical foi transferido para a casa dos Roth, já na Barra Funda. Eva servia café e bolo, devotada à mãe. Queria compensar o desgosto que lhe dava o filho, perdedor de dinheiro no jogo. O pai, permissivo, pouco intervinha.

Competição de seis quilômetros no Tietê – início na Vila Maria e final à altura do Espéria, na Ponte Grande. O último evento foi em 1945, na represa Billings. O rio já estava poluído. 6

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I IPIRANGA

Loja, irmãos, avô Bernardo

IARA FOI A PRIMEIRA e mais desejada dos quatro filhos de David e Eva Iavelberg. Nasceu no dia 7 de maio de 1944, quase um ano depois do casamento dos pais, celebrado na manhã azul e quase fria, luminosidade transparente, de 23 de maio de 1943. A cerimônia realizara-se sob a tenda cerimonial judaica, hupá, armada no quintal dos Roth, perto do teatro São Pedro, num quarteirão de casas geminadas da rua Albuquerque Lins, Barra Funda. Seguiu-se o grande almoço de comida preparada segundo os rituais, kashér, para o rabino e os judeus húngaros, muito religiosos. No ar, o odor picante dos peixes recheados e galinha assada. Na esquina, pouco adiante, a atração: um prédio novo, dotado de abrigo antiaéreo. O fotógrafo do casamento registrou Eva aos 19 anos, rosto cheio, grandes olhos escuros, cabelos castanhos e ondulados à altura dos ombros. Lábios carnudos, belo corpo de formas redondas. Baixinha como os pais, contrastava com o marido alto, 25 anos, magro, moreno, olhos verdes, o bigode dos galãs da época. – David foi meu primeiro e único namorado. Eu era completamente romântica, tonta. Sonhava acordada. O casal hospedou-se numa pensão da avenida à beira-mar, entre as praias de José Menino e Gonzaga, o centro de veraneio judaico em Santos. A lua-de-mel foi curta. Jaime, irmão de David, interrompeu-a no quarto dia a mando de Abrão, o pai. O trabalho na loja ressentia-se. Obedeceram, contrafeitos com a indelicadeza. E subiram a Serra do Mar no ônibus lerdo, motor ruidoso, cheiro de combustível, absortos na beleza da estrada sinuosa e estreita, mata, manacás brancos e roxos, fontes, o oceano de repente ao longe. Logo tomariam posse da residência e loja em sociedade informal com a família Iavelberg. Os sogros já moravam ao lado, nos fundos da alfaiataria. Na casa estreita e comprida que assistiria à infância dos quatro filhos, entravase pela loja. Em horários não comerciais, só esforço e estardalhaço levantavam as portas de ferro. Vinha primeiro a sala de jantar, o maior dos aposentos. Lá estava a mesa elástica; nela as crianças jogariam pingue-pongue. Doze cadeiras, quatro de braços. E a cristaleira, encimada por um relógio que batia os 15 minutos-tudo presente 20

de Sonia e Abrão. Em posição de destaque, o piano que Eva ganhou dos pais no 15 aniversário. No chão, o oleado de motivos florais; nas paredes, os gobelinos de enxoval que bordara durante a adolescência: Moisés e as tábuas, Abrahão apascentando carneiros. O terceiro mostrava um casal, o último crianças. Na parede posterior, duas portas. A esquerda a cozinha, forro de treliça para evadir-se a fumaça da lenha, e móveis que Jaime presenteou: guarda-louças, paneleiro sobre a pia, mesa de madeira que Iara, vaidosa, desde pequena usava ao pintar as unhas como a mãe. Não faltava o fogareiro Primus a querosene de fazer café e, logo, mamadeiras. – Usávamos a geladeira de minha sogra, a gelo. Nem precisava. O leiteiro vinha duas vezes ao dia e a carne todas as manhãs, do açougueiro. Cedinho, o verdureiro e a portuguesa das bananas, empurrando o carrinho de mão. A porta à direita dava ao puxado coberto de zinco, escadinha e espaço entre as casas, até naquele ponto geminadas. Eva preferia cozinhar ali, a carvão. Do terracinho alcançava-se a dupla de dormitórios interligados No segundo, os degraus que conduziam ao banheiro, ao quintal e seus atrativos: o forno de barro em que Sonia, recém-emigrada, assara pão: as galinhas, uma destinada semanalmente ao shochet, judeu religioso que mata aves segundo o ritual; e a goiabeira pródiga de frutos bichados. Eva não foi bem aceita no bairro de romenos e poloneses. Confirmava o preconceito contra húngaros: parecia orgulhosa, fria, um tipo castrador. Mas conseguiu cultivar algumas amizades, especialmente com a vizinha Blima Reicher, três casas abaixo, cujo filho Gelson seria assassinado pela repressão aos 23 anos, em 1972. Se Sonia receava uma nora preguiçosa, teve boas surpresas. Eva colocou-se a postos, iniciando 20 anos de esforço. Levantava-se às seis horas e concluía o trabalho às dez da noite, ordenada a loja e a lista de compras da manhã seguinte. A cada mês renovava as duas vitrinas da frente, madrugada adentro. Não bastasse, cozinhava. De início corria do balcão ao terracinho. preparando as refeições da família. Quando vieram as crianças, antecipou as atividades, de pé às cinco e meia. A ajudá-la, sempre empregada admitida aos dez, 11 anos, filha de operários, que dormia em cama de armar na sala. A mãe buscava domingo cedo, devolvia à noite. 21

David não se modificou. Enfastiava-o trabalhar. Gostava de conversas na rua ou de tomar conta dos filhos e crianças que corriam na calçada. Também jogava sinuca no bar da esquina com góis aparentemente desocupados, malgrado a velada reprovação dos patrícios. Fazia, entretanto, as compras diárias que recompunham o estoque. E à tarde cuidava do patrimônio que o dote de Eva, 50 contos, iniciou: uma casa térrea e um terreno; pretendia comprar propriedades, alugá-las e viver de renda. – Alegre, sem preocupações ou problemas – define-se. Deixara de ser namorador, isso sim. O amor pela mulher era total. Eva queria filhos imediatamente. – Eu chorava porque levei três meses até engravidar. Bem-sucedida, preparou enxoval tão grande que serviu aos quatro filhos. Sonia participava. Seus bordados enfeitavam blusinhas, fraldas de cambraia, jogos de cama. Da loja de móveis no alto da Silva Bueno, de Abrão e Jaime, veio o berço. Um mosquiteiro de filó branco protegeria o bebê – próximo corria o Tietê, criadouro de mosquitos. Tudo pronto, ansiosa, a mãe bateu antes da hora na Pro-Matre, então a melhor maternidade de São Paulo. Esperou três dias intermináveis. – Iara nasceu num domingo às cinco da tarde; pesava três quilos e cem gramas, cinqüenta centímetros de comprimento – precisa. Do nome, sempre gostara. Não por causa da brasileira mãe-dágua ou do significado "senhora", em tupi. Nem a inspiraram as palavras hebraicas iá-ar, arvoredo; ou iaará, a aromática, branco-amarelada madressilva; ou iaratvosh, favo de mel. Apenas, gostava. E como a mãe de Sonia se chamara Chaia, sendo costume entre judeus nomear os fiIhos por parentes próximos já falecidos, Iara perpetuou três letras da bisavó. – Cuidei sozinha da menina. Segui a orientação do pediatra, que nos alertou contra os tabus do bairro. Minha sogra deu o primeiro banho e saiu horrorizada de casa, dizendo que eu deixaria uma órfã. É que eu me lavava e as crendices impunham 40 dias de resguardo. Apesar do modernismo, Eva achou confortável dar ouvidos à convicção popular que garantia infertilidade durante o aleitamento. Iara, cinco meses, ainda mamava quando acabou o leite da mãe, grávida. Sobrecarregada de tarefas, o sono interrompido para alimentar a filha, socorreu-a Shirley Weiser, linda menina de apenas 22

seis anos e meio. David, que amiúde a pajeara enquanto solteiro, apelidara-a Pupi, bonequinha1. Os pais da pequena, bessarábios conterrâneos, vendiam roupas tal qual os Iavelberg. Mas Sender Weiser, orgulhoso artesão na Romênia – produzia selas e bolas de couro -, autoritário, dominava mulher e filhos. – Eu sentia fascínio pela dona Eva, mulher dinâmica, fechada, forte, totalmente oposta à minha mãe chorona, boazinha, submissa ao marido machão que amedrontava – relata Pupi. – O senhor David, bondoso, contava piadinhas e sempre tinha uma palavra alegre ao encontrar a gente na rua. Os pais idealizados podiam dispor dela. – Sempre que precisassem de mim, nos picos de movimento. Dei muita mamadeira à Iara, empurrava o carrinho na calçada. Depois que cresceu um pouco ela se divertia em me acordar, cedinho. Vinha em casa, deitava sobre mim. Eu lhe dava a roupa que não me servia mais. No dia em que Pupi fez sete anos, nasceu Samuel. – Eu ajudava, apesar da escola. Vezes sem conta, quando as operárias saíam da fábrica, dona Eva sem poder afastar-se do balcão, sentei Iara e Samuel na mesa da cozinha para alimentá-los. A ligação continuou depois do nascimento de Raul e Rosa. – Era chegar da aula e acudir no almoço dos quatro. Só então ia para casa. Voltava, vendia bijuteria. As seis da tarde o jantar as crianças na cama. Despedia-me ao ver dona Eva de camisola S ela pintasse as unhas, eu esperava o esmalte secar. Foi a menina, de acordo com Eva, quem ensinou Iara a ler. – As duas sentavam no terracinho, minha filha a olhar o livro de histórias enquanto Pupi lia. A dedicação despertou zombarias. Demasiado obsequiosa, o irmão de Pupi alcunhou-a pajem. E quando os Iavelberg se afastaram do bairro, de certa forma descartaram-na. Mas permaneceu o afeto de Sonia, que a adotara desde pequena. – Ela me queria como filha, neta. Anos depois desesperou-se, demorei a achar marido. Tenho ainda o açucareiro de prata que me deu de casamento. E a toalha adamascada, de noivado, antes mesmo de conhecer o noivo. Doente, minhas visitas é que a alegravam. Ficou felicíssima quando me esposei, aflita porque não engravidava. 1

Era costume judaico local oferecer o auxílio de crianças e jovens a vizinhos em dificuldades.

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Temerosos de que o choro induzisse à hérnia de umbigo, Eva e David criaram os quatro filhos no colo. A incumbência coube ao pai, inclusive às madrugadas, enquanto ela preparava o leite. – Iara, comilona, obrigava-me a esconder a mamadeira. Se a visse daria gritos, sem deixar que a trocasse. Maiorzinha, terminado o almoço, Iara repetia a dose na casa de uma vizinha. Saia-se bem na empreitada que angustiava as mães, comer bastante. – Essa conhecida ficava até com inveja; a filha se alimentava mal. A criança inapetente, quatro anos mais velha, era Shirley Schreier, prima de Chael Schreier, assassinado sob tortura no Rio, em 1970, aos 23 anos. No fim da Segunda Guerra Mundial, 7 de maio de 1945, Iara completou um ano. – Só assinaram o armistício dia 8, mas o fim foi 7 – argumenta Eva. – Todas as lojas do Ipiranga fecharam para comemorar. A festinha reuniu os pequenos vizinhos da aniversariante, que já andava. Lá estavam Felícia, dois anos mais velha, filha de Blima Reicher (Gelson ainda não nascera); Pupi, Shirley Schreier e Bernardo Winer, que faria um ano em seguida. Nessa época manifestou-se a predisposição de Iara à bronquite asmática. Talvez o inseticida, bombeado à tarde nos quartos, contribuísse. Acrescente-se que David fumava, e fazia um frio úmido no outono. Nas crises, Eva providenciava banhos de luz, remédios. Mais tarde, a natação ajudou. O segundo filho veio no dia 2 de julho de 1945. A avó Rosa, semi-paralítica, implorava à filha que fosse ao hospital. Eva resistia, traumatizada pela demora no parto anterior. Bernardo finalmente enfiou o casal no carro, meia hora antes do parto. O menino recebeu o nome de Samuel, em homenagem ao avô Schmuel, marido de Chaia. Renascia o casal morto no campo de concentração. Melo, apelido inventado por Iara, tão mais fácil de proferir que Samuel, tem poucas lembranças da irmã pequena. De ruim recorda-se dos sábados, quando Eva tinha tempo à tarde e, semelhante à faxina caseira, esfregava os filhos – a semana inteira lavando-se mal. A limpeza de corpo inteiro exigia cuidados inconciliáveis com a rotina diária: cuidar do fogo no aquecedor a carvão acoplado à banheira, obter o braseiro que lentamente esquentava a água. Retrata ainda o hábito europeu de

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economizar no aquecimento dispendioso, problemático durante as guerras; e a fuga ao frio dos invernos rigorosos. – Um dia terrível. Cedo minha mãe encharcava nosso cabelo de óleo Johnson, que escorria no rosto e pescoço. Iara detestava. Às 13 horas, quando a loja fechava, o banho. Cabelos limpos, Eva passava o pente fino. Que não escapasse alguma sujeira, caspa. De gostoso, no calor, a antiga banheira de folha no quintal, que alguém enchia. Os dois divertiam-se usufruindo a água, sem brinquedos. Inventaram também um jogo brusco, esconder-se e assustar o outro. Perdia quem se deixasse surpreender. Iara gritava, invariavelmente derrotada e Melo ria, exultante – como era ingênua! Bons momentos passavam no quintal de terra que Eva plantara de milho, e na goiabeira, a comer frutas. No triciclo, um brinquedo de Melo usado a ponto de se desgastarem as rodas. No porão baixo, perfeito vara rastejar cheio de objetos velhos: latas, sapatos, utensílios quebrados. Ou no muro do quintal, que furavam na argamassa a fim de espreitar os meninos Winer igualmente alertas. – Eles vinham aproveitar o balanço em nossa casa, armado na Iaranjeira. Anos depois, no primário, vestíamos roupas e encenávamos peças improvisadas, sob liderança de Iara. 0 quintal prestava-se. A escada que descia da cozinha formava o anfiteatro e a parreira, embaixo, uma cobertura de palco – conta Bernardo. Bernardo, desde 1966 no kibutz Bror Chail, fundado por brasileiros em Israel, é pai de duas meninas. A menor chama-se Iara em homenagem à amiga de infância, cujo comportamento imprevisível o intimidava. O mal-estar procedia da hostilidade às vezes aberta entre os Iavelberg e os Winer. David e Eva, rompida a sociedade com Abrão em 1950, quando nasceu Rosa, reorganizaram o comércio. Inspirados no sucesso do vizinho puseram-se a vender, como ele, bijuterias, enxovais Estabelecida a concorrência, Iara e Melo acostumaram-se aos seios noturnos da mãe, que anotava os preços rivais e diminuía os Eventualmente mudava de tática, mandando os filhos em missão de para noivas e batizados. espionagem. – Um escondia a loja do outro. Penduravam as roupas deslocando vitrinas móveis, de jeito a camuflar o interior – descreve Melo.

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O conflito, somado à má vontade do bairro em relação a Eva, perturbava as crianças. Reforçou, em Iara, certo desprezo pela vizinhança, culpa e suspeição quanto à lealdade dos outros. Melo, mais livre por ser menino e graças à irmã, que incorporou as expectativas dos pais, preferiu desvencilhar-se da pressão. Só queria jogar futebol no meio dos filhos de operários que moravam nos cortiços. Transgredia, como o pai na sinuca. A rivalidade não se restringiu aos Iavelberg e Winer. Um emaranhado contraditório de contínuo desgaste emocional envolvia as famílias. Inveja e suporte, presença e traição, maledicências e solidariedade, o generoso a revezar o mesquinho, busca obsessiva de crescimento individual, temor ao desconhecido, luta por status. A contrabalançar, o precioso e vital conforto de pertencer a um grupo. Entre crianças a competição manifestava-se no exibicionismo de objetos, notas escolares e subserviência aos desígnios pequeno burgueses: meninas deveriam ser ótimas donas de casa e casar-se bem garotos formavam-se em medicina, profissão paradigma. Resgatariam um passado de pobreza, não raro semi-analfabeto. – Não sei se alguma vez perguntaram a Iara se ela precisava disto ou daquilo. Tenho a impressão de que lhe conferiram um papel e cabia-lhe desempenhá-lo-supõe Fabio Landa, psiquiatra e psicoterapeuta, que morou no Ipiranga dos quatro aos 25 anos, conheceu todos os Iavelberg e esteve na Escola Israelita do Cambuci ao tempo de Iara e Melo. A animosidade dos pais não impedia as crianças Winer e Iavelberg de brincar ou voltarem juntas da escola. Mas despertou em Bernardo o imperioso desejo de construir sua vida num ambiente psicológico menos conturbado. Depois de participar de uma organização juvenil sionista e socialista, o Dror (em hebraico, liberdade), emigrou para Israel. Seguiram-no os três irmãos. – A solidariedade entre rapazes e moças do Dror agarrou-me como um furacão – salienta Fabio Landa. – A fantástica abertura trazia companheirismo, judaísmo, socialismo. Foi um vento na minha cabeça. Um congraçamento que Iara só deve ter conhecido nos grupos políticos na década de 60. – Sem o Dror, não sei o que seria – mede Bernardo. – Tive a chance de sair de casa adolescente e conquistar independência. Havia com quem conversar, discutir livros. As coisas adquiriram sentido.

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Desde sempre as crianças esperavam a noite de quinta-feira. O avô Bernardo, já viúvo, atento em poupar Eva, descia de um táxi com o filho Estevam, trazendo o jantar do dia e da sexta-feira. Não descuidava da sobremesa, uma tentadora bandeja de doces húngaros. Nem de presentes, incluindo Pupi. Além da festa, os irmãos viamse livres da sopa noturna que, exceto o tutano do osso. abominavam. David repartiao para evitar brigas. A paixão do avô, ostensiva e sem sutilezas, era Iara. Segurava-a no colo num mútuo aquecer de corpos e odores, cativado pela meiguice, inteligência, os grandes olhos castanho-claros, cabelos quase louros, rosto bonito e humor, espécie de marca familiar. A distinção abria privilégios. Só ela, maiorzinha, permitia-se telefonar da farmácia algumas lojas acima, pedindo brinquedos. Ele obedecia, sem hesitar. – Uma vez fiquei brava porque escolheu um piano de criança, muito caro – lembra a mãe. Bernardo sentia-se feliz em exercer amor e prodigalidade. Cultivava pedintes efetivos que o visitavam regularmente, na loja que abrira no Bom Retiro. Se alguém precisasse de terno, dava-o. Quando presumia que Eva ocultava alguma necessidade, adiantava-se. Iara tinha nove anos quando perdeu o colo que ninguém ousou disputar. Os pais esqueceram a reação da filha à notícia. Permaneceram na menina a incompreensível ausência, a convicção de ser especial, as lembranças de Budapeste: estações termais, um fiacre, o sucesso econômico. Da família húngara no Brasil e de Estevam, herdeiro da loja paterna, os Iavelberg afastaram-se. Restavam os pais e o irmão de Da vid. As crianças e os primos do alto da Silva Bueno brincavam, apesar das disputas entre os adultos. Freqüentavam os avós, que mudaram para junto da mobiliária de Jaime e Abrão. Sonia vinha ver as crianças regularmente trazendo beiguels, vareniques (pãezinhos e bolinhos de batata) e, toda semana, uma sacola de hortaliças da feira. Juntos celebravam os feriados judaicos. O mundo exterior começava nos paralelepípedos da rua Silva Bueno, casas trépidas pela passagem dos bondes e ônibus. O tráfego ecoa nos muros cinzentos da fábrica de tecidos Jaffé, diante da casa de Iara e seus vizinhos, e da siderurgia, no quarteirão seguinte. Em 1984, mais feia ainda, era ostensiva a deterioração da parte 27

baixa. Lojas em abandono, portas de ferro quebradas, comércio pobre. Alguns estabelecimentos permaneciam, ladeando o terreno das casas demolidas David e Eva, as divisões impressas nas paredes externas de moradia geminadas ainda de pé. E lá estava Chico jornaleiro, banca na esquina e memória da manhã em que foi noticiada a morte de Iara. Naquele dia de setembro de 1971 não expôs os jornais a exibir manchetes, inconformado com o destino da menina que viu crescer. Também o açougueiro continuava do outro lado da rua. E o barbeiro, alegre ao rever Melo, desde 1969 longe do bairro, num exílio que, a partir de 1970, incluiu Chile, França e Portugal. – Todos sabiam de todos, o que o outro comia, os acontecimentos nas casas alheias. Era uma fofocagem – diz o primo Moisés Iavelberg. A própria construção das residências abria-se, desguarnecida, através das lojas escancaradas. – Lembro de meu pai espantando um bêbado, lata de lixo na mão, a primeira coisa que encontrou. Senti falta de ar, grande angústia ao ver o homem no chão tentando chutá-lo – registra Rosa. – Sem provador, quando alguém queria experimentar roupa, entrava na salaacrescenta Melo. Eva contribuía para devassar a casa. Às freguesas que vinham de São Caetano e São Bernardo carregando bebês pequenos, oferecia os aposentos: trocavam fraldas, aqueciam a mamadeira. Melo e Iara viveram uma invasão pior, como que inspirada nas histórias de fadas e bruxas que ela ouvia, atenta e dominada pelos temores da primeira infância – abandono, separação, morte. – Foi tenebroso, eu nem tinha cinco anos. Acordei com a Iara gritando, gritando. Uma estranha mulher, parada em frente ao berço dela, cheia de santinhos na mão, olhava em silêncio. Os berros atraíram os pais. – Ainda estávamos na loja. A louca pulou o muro dos fundos, chegando à areazinha do banheiro. Viu aberta a porta do dormitório e entrou – relata David. – Vizinhos de trás tentavam um trabalho que acalmasse sua natureza histérica e ela escolheu nossa casa para fugir. As crianças ficaram aterrorizadas. Melo recorda-se da mãe a esbofetear a muda infeliz, o pai a arrastá-la. 28

– Tivemos que trancar a porta e durante muito tempo não quiseram dormir sozinhos – assinala Eva. Os menores, no quarto dos pais, nada perceberam. O nascimento de Raul e Rosa traumatizou os irmãos. Desalojados ao segundo quarto, tornaram a molhar os berços. – Deliberadamente fazíamos xixi antes de adormecer – concede Melo. – Gostoso, quentinho. Demoramos a nos regular. A mãe corrige: – Cedo aprenderam a usar o penico. Eu não entendia que regrediram por ciúme. Solucionou o transtorno com simplicidade. Comunicou-lhes que, em amanhecendo secos três dias seguidos, ganhariam cama de gente grande e colchão novo. Maiores problemas trouxe Raul, que adoeceria continuamente até os oito anos. Nasceu em dezembro de 1948 e não digeria leite em pó. Aos seis meses a mãe parou de amamentá-lo, grávida de Rosa. Blima, que pouco antes dera à luz Gelson, ofereceu os seios fartos. Sua ajuda nutriu a amizade dos meninos, agora irmãos de leite. Rosa deu mais trabalho ainda. Chegou um pouco antes do tempo, em fevereiro de 1950, e praticamente cresceu no colo de David. Pequena, doente, enfraquecida pela coqueluche, não se deitava sem chorar, angústia insuportável aos pais. Esgotada, pavor de outra gravidez, Eva resolveu esterilizar-se e durante um ano visitou mensalmente uma parteira especializada em "curativos". O processo, que introduzia gaze com creosoto no útero e atrofiava a mucosa, teve sucesso. Quando a doença infantil atacava um, todos adoeciam. Os pais, ocupados, deixavam as crianças parte do dia trancadas no quarto. Melo sofreu convulsões no sarampo, causando grande susto nos irmãos. Eva mantinha horários rígidos para dormir – um costume húngaro – os quatro à casa de Felícia. A certa altura, Iara e Melo corriam de volta com os pequenos, fingindo que se deitavam. E retornavam ao prolongando um pouco o prazo dos maiores. Sem televisão, iam os quatro à casa de Felícia. A certa altura, Iara e Melo corriam de volta com os pequenos, fingindo que se deitavam. E retornavam ao programa, silenciosos.

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Estorvo maior, o confinamento noturno de sábado. O cinema dos pais era sagrado. Portas de ferro cerradas, Iara e Melo tomavam conta dos irmãozinhos. A loja parecia um latifúndio sem luz. Fora, os vizinhos brincavam no passeio. – Eu morria de medo da escuridão-lembra Raul – Iara dirigia os horários. Às vezes meus pais ainda nos pegavam de pé e lá vinha bronca. Ainda ouço o barulho da porta de ferro a abrir, fechar. A ausência de Eva e David detonava um processo explosivo de batalhas entre os meninos e Rosa. Melo ajuizava a "luta livre". Houve episódios perigosos: o "juiz" treinando lançar facas em volta da irmã; o palito que a menina enfiou na banana que Raul ia comer. Os irmãos atribuem a Rosa a origem das rixas: competia com Raul enfermiço, predileto do pai e sem cessar louvado pela inteligência. Lutava por espaço. – Ela provocava – admite a mãe. – Melo caía em cima aos murros, ao contrário de Iara, apaziguante. – Lembro-me de Iara ajeitar as coisas, em busca de um convívio mais saudável – anota Rosa. Meio soltos durante a tarde, já maiores, os três expandiam a exacerbação. Aconteceu de Eva fechar a loja e na sala descobrir, arrancados, os puxadores dos móveis. Uma vez Melo descascou as paredes de terracinho. Desmontaram a cristaleira com chave de fenda, esburacaram a mesa da sala de jantar. Eva, a quem ficou reservada a disciplina, impunha os limites violenta, impaciente. Agravou-lhe o endurecimento o ciúme de David – inesperado, obsessivo. Apanhavam Melo, Raul e Rosa. Iara não, sempre querida e valorizada. – Recordo meu pai aconchegante, a pegar os feridos. Iara dizia que ele foi ótimo, o lado feminino, mãe, até a adolescência. Punha a gente no coto. A mim levava à vizinha loja de discos, ouvir música. Gostava de cantar. Minha mãe, tomada pelo trabalho, intolerante, dava beliscões. Às vezes eu corria ao banheiro, salvar-me. Melo, o pior, falsificava cadernetas e fugia a nadar no Tietê, um perigo. Talvez meu pai fosse mais firme com ele. Comigo, não. Se me castigasse eu chorava horas, horas. – Quando eu batia em um, os quatro choravam – refere Eva. – Todos teimosos, menos Iara. David deixava fazer. Se o casal não divide, alguém precisa pegar as rédeas, ser o mau. É ruim, a criança grava que só um corrige. Talvez eu tenha errado na rigidez, em especial nos estudos. Queria que aprendessem mais, e mais, e mais. 30

Línguas. Música. Insistia, matriculava. Fiz questão de que praticasse esportes. Menos empenho lhes facilitaria a vida? Passado o tempo e comum condenar-se, a idade nos torna complacentes, há o arrependimento. Não adianta, já passou. Consola-me que apesar da dureza de brutalidade, só pretendi o bem. Iara tinha três anos quando o avô Abrão comprou uma casa em Santos, na rua Pernambuco, escolhida porque lá havia quatro famílias judias de classe média – quase todos os judeus santistas moravam no centro da cidade. A rua larga, agradavelmente perfumada pelos frutos adocicados dos chapéus-de-sol, permitia folguedos de bola, pegador, taco. Crianças judias e góis brincavam à vontade, livres da desconfiança mútua. Domingos, as famílias dirigiam-se à próxima Pensão Brickman, na avenida à beira-mar, convergência dos judeus turistas de São Paulo. Os adultos conversavam nos bancos de madeira dispostos à frente do casarão, na grande área aberta à calçada, rua e mar. As crianças brincavam no pátio dos fundos. Um dos casais judeus da rua Pernambuco, os Wasserman, conhecia os Iavelberg desde Britshen – emigrara de uma cidadezinha próxima. A terceira dos seus quatro filhos, Diva Sanovicz, fonoaudióloga, lembra-se vagamente de Iara. – Muito pequena para mim, já com 12 anos. Mas eu gostava da avó, dona Sonia. Ensinou-me a fazer geléia de rosas aproveitando as roseiras do jardim. Durante a semana ela e o marido visitavam meus pais. Aos sábados chegavam os filhos, a penca de netos, parentes e amigos; a casa era um ponto dos judeus do Ipiranga. Sonia e Abrão apresentaram-lhe Samuel Haberkorn, um ano mais velho, futuro médico e marido de Iara. Devido à pouca idade, o namoro limitou-se a conversas de portão e encontros na praia. Certa vez, no Banho de Dona Dorotéia2, Samuel quis tirar uma foto de Diva, menina linda, pele perfeita, nariz arrebitado, grandes olhos verdes, cabelos dourados. – Por descuido, só saiu o carro da família dele. Foi uma caçoada geral em minha casa: que namorado é esse que foca o automóvel e não você? Vinte anos mais tarde, em 1968, Diva encontrou Samuel Haberkorn por acaso, no Hospital do Servidor de São Paulo e pediu-lhe que operasse dois de seus filhos precisavam de uma pequena cirurgia. Durante a convalescença dos meninos conversaram algumas vezes.

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Blocos fantasiados de papel crepom, um mês antes do Carnaval, sambam em direção ao mar e se atiram na água.

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– Ele culpou a juventude de ambos e as mudanças de Iara durante a Faculdade, pelo fracasso do casamento. Talvez não a compreendesse. Falou dela com grande respeito, jamais de forma pejorativa ou crítica. Das férias em casa dos avós, quatro lembranças marcaram Melo. Primeiro, a espantosa existência de famílias judias fora do Ipiranga. Segundo, o Banho de Dona Dorotéia. Terceiro, as excitantes excursões noturnas com Iara e a avó– os pais em São Paulo – à pizzaria do Gonzaga que projetava um bangue-bangue, sempre o mesmo, no atrair pequenos fregueses. Comiam pizzas brotinho e deitavam-se de. Quarta: a exasperação de Eva ante os convidados que apinhava a casa. – Minha mãe emburrava. Moisés lembra-se de Eva enfileirando os filhos depois da praia no chuveiro do banheirinho de quintal. – Todos nus, um atrás do outro. E de Iara a devanear ao caminharem na rua, desligada dos outros.

Escola Israelita do Cambuci. Dona Angelina

ANTES DO PRIMÁRIO, para alívio da mãe, Iara e Melo freqüentaram o Jardim de Infância Municipal do bairro, um parque de enormes árvores antigas, areia, balanços, piscina, campo de futebol. Ocupa ainda hoje um dos grandes quarteirões que caracterizam o Ipiranga do início do século – largas ruas, ostentosos palacetes. A empregada levava-os às oito da manhã e vinha buscar ao meio-dia, calção vermelho nos meses quentes, marrom no inverno. O almoço corrido, com ajuda de Pupi, permitia estarem de volta em uma hora; o parquinho terminava às cinco. – Não havia judeus, só filhos de operários – repara Melo. – A gente se divertia. Adorávamos o leite gelado, em casa era sempre quente. Em 1951 os irmãos entraram no primário da Escola Israelita do Cambuci, bairro contíguo (o avô Abrão Iavelberg foi seu vice-presidente num período posterior). Representava uma afirmativa de identidade num momento político de dúvidas: o exditador Getúlio Vargas, fama de simpatizante do nazi-fascismo na década de 30 e nos primeiros anos da guerra, acabara de ser empossado presidente da República, obtidos 49% dos votos válidos.

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De início pobre, adaptada à casa onde continua a funcionar a modesta sinagoga do bairro, a escola absorveu crianças judias de áreas próximas, principalmente Vila Mariana, Ipiranga e Moóca. Os pais desprovidos de recursos recebiam reduções nas mensalidades. Transposto o portão de ferro e o pequeno espaço cimentado que, junto ao pátio, serviu de recreio, duas escadas convergentes conduzem a sinagoga. Debaixo delas, à esquerda e direita, os banheiros. No centro, a porta do porão que abrigava o curso primário: pequenas classes de cinco, seis alunos, separadas por tabiques. Em cima, no salão da sinagoga, as aulas de hebraico, na parte externa das muretas do balcão, reservado às mulheres, afrescos de cores fortes. As cenas e personagens bíblicos eram matéria de ensino e perduram como Iara os via, hipnotizada pela sina heróica: a sarça ar. dente, o cordeiro do sacrifício, o muro das lamentações. Alguns anos depois, época áurea, a escola construiu no terreno vizinho um prédio envidraçado de vários andares. Mas os judeus mudaram para bairros afluentes, o grande edifício foi vendido e o Primário incorporado ao Colégio L.L. Peretz, em Vila Clementino, entre Cambuci e Ibirapuera. David levava os filhos às aulas, de bonde. Nas lancheiras que Eva preparava de madrugada, pão com manteiga, uma fruta, às vezes ovo cozido ou bolinho de carne. Para beber, a emoção borbulhante do guaraná. De volta a casa, após o almoço, estudavam sob a vigilância da mãe, na loja ou mesa da sala. Mal o ano começou Iara converteu-se em pólo de atração, consciente do próprio aporte. De imediato escolheu por melhor amiga Jane Zaguer, filha do fundador da escola, o que lhe conferia notório poder. O pai, bessarábio, enriquecera e devotavase ao sionismo e assuntos culturais. – Ao redor de Jane postavam-se as crianças de prestígio – recorda Fabio Landa. – Elas é que ditavam as modas, introduziam a época de certos jogos. Todos almejavam pertencer a esse grupinho central. – De fato, detínhamos uma situação de saliência e domínio – concorda Jane. – A gente podava, readmitia. Do meu lado, porque meu pai me buscava de carro, além de ser o presidente da escola. Do lado de Iara, pela inteligência e beleza. Nutríamos grande admiração por ela. Aplicada, aqueles grandes olhos castanhos, faces rosadas. Nós duas nos completávamos e os outros percebiam. Quando resolvíamos atacar 33

alguém, era para destruir. As outras meninas sujeitavam-se. Uma vez ofendi tanto uma colega magrinha, que a mãe veio tirar satisfação comigo. Ameaçou: "Você não mexa com ela!" Obedeci. Outra afeição de Iara na escola foi Anette Wejnsztejn, o oposto de Jane. Ingênua, modesta, sete meses mais jovem, ótima aluna, preenchia o papel de interlocutora nos assuntos escolares: problemas de aritmética, atualização de cadernos. Dotada de ótima dicção, sabia hebraico e pronunciava os discursos oficiais em momentos solenes, sua beleza chamava a atenção – rosto perfeito, olhos azuis, cabelos escuros e cacheados. – Iara não esquecia nada, jamais errava. E nunca se julgou melhor que os outros. Repartia o lanche, emprestava caderno, lápis – enumera Anette. – Séria, atenta, educada, pouco emotiva. Nem agressiva, nem dócil. Nunca a vi chorar. Jane, ao contrário, evitava misturar-se e não dividia as coisas. Mas era alegre e emotiva. – Mesmo que dona Eva controlasse, creio que o esmero partia da Iara. Impecável nos cadernos, no piano – aponta Jane. – Os professores não disfarçavam a preferência. Criativa, perspicaz, devolvia-lhes os esforços. Socorria-me, passando cola. Eu achava dispensável estudar. Melo também conquistou a admiração dos colegas. Projetava-se nas traquinagens e castigos, desafiante. – Saí perdendo. Desenvolvi ojeriza à leitura por causa da professora, que me humilhava em público. Dizia-me que tomasse banho todos os dias. Nossos hábitos eram diferentes. Iara teve sorte. Amava a professora, Angelina Pereira Ribeiro, com aquela paixão que transforma o alvo em modelo idealizado e lhe imita os gestos, vê o belo em seus traços, sabedoria nas menores observações. Não estava só. Todas as crianças, inclusive de outras classes, a idolatravam e queriam ser como Angelina ao crescer. Sábia, maternal, caprichosa. Feminina, brasileira. Só uma incerteza: a professora era católica. – Mas não punha crucifixo nem falava de Cristo ou religião – ressalva Anette. Baixinha, rechonchuda, castanha, óculos, Angelina acumulava o cargo de diretora da escola pois a lei exigia, na função, brasileiro nato e formado em curso Normal. Também dava aulas de ginástica, música. E quando a escola contratou uma perua, acompanhava as crianças. 34

– Dona Angelina dava lições de vida. Ensinou-nos a recitar, de pé, antes do início da aula: "Ser bom é ser feliz, sendo bom serei feliz" – comove-se Anette. – Estimulava a análise do meio, o que os programas letivos fizeram muito depois. Aprendemos a localizar a escola na rua, no bairro, cidade, estado, país, mundo. A gente imitava a letra redondinha dela, enfeitava as pastas com laços. Bibliotecária municipal aposentada, viúva, filhos adultos, Angelina, hoje Donatelli, não se esqueceu dos alunos. – Iara, inteligente e esperta, parecia-me algo triste. Ao contrário do risonho Melo, eu intuía nela problemas de afetividade. Qualquer problema com os colegas, vinha me contar. Sempre aceitou minhas opiniões, exceto em alguns incidentes. No segundo ano, Iara um dia recebeu o caderno de cópia com nota menor que seus competidores diretos – Anette e um garoto. Julgando-se injustiçada, reclamou. Cometera um pequeno engano, reconhecia; porém impecáveis a ordem e limpeza. Angelina concordou, sem ceder. Havia um erro. Fora de si, Iara rasgou o caderno em pedaços. – O que faremos agora? – perguntou a professora, assustada, – Seus pais vão se zangar. – Não sei. – Eu preciso do caderno e você terá que trazer outro amanhã. Angelina tem a vaga lembrança de que Iara apanhou. Eva não se lembra do episódio. Outra vez, professora e crianças brincavam de roda. Os alunos revezavam-se dentro do círculo, a declamar. A atividade visava aprimorar a dicção, raramente sem sotaque. Iara entediou-se. – Não quero mais brincar. Ninguém mais brinca! Ato contínuo sentou-se no chão. Os coleguinhas a imitaram. – Esses rompantes encantavam o irmãozinho Raul. Sobre Melo também exercia grande ascendência. E ele a acobertava – nota Angelina. A última querela foi por ciúme. Madrinha de crisma de uma aluna católica, Angelina trouxe de casa um grande bolo para festejar. – Não vou comer. Ninguém vai comer – comandou Iara à sala. – Iara, não pode ser – queixou-se a professora. A menina insistiu. 35

Magoada, mirou-a longamente e saiu. Já as outras classes sentavam-se à mesa armada no recreio, quando Iara e os colegas se aproximaram: – Desculpe. Nós vamos comer. Paralelo ao judaísmo, a escola desejava despertar um sentido de liderança e brasilidade. Angelina cumpriu a orientação com entusiasmo. Vestia-os de heróis, como Tiradentes, ao dramatizar seus feitos. Nas comemorações judaicas ou datas nacionais hasteava no pátio, solene, a bandeira brasileira. Nas aulas de música que instituiu, ensinou o hinário brasileiro, acompanhando as crianças ao piano. A valorização de ambas as culturas enriqueceu os alunos e harmonizou a dualidade às vezes sofrida. Papel importante cabia ao teatro. É verdade que havia um só papel de rainha Ester na festa de Purim1 e Iara, com inveja, julgava favorecidas as filhas dos mantenedores da escola. Porém todos subiam ao estrado, em especial na comemoração de final do ano. Iara participou intensamente dos preparativos. Amava o teatro. Sabia de cor as falas de cada ator e a inteira seqüência da festa. Melo recorda-se dela num papel de espanhola. – Dançava de roupa preta, aquela coisa alta na cabeça. Queria ser atriz, estudar balé. Representar resultou em briga com Cecília Finger. A amiguinha do Ipiranga, filha de lojistas vizinhos dos Iavelberg "de cima" e prima de Samuel Haberkorn, freqüentava só as aulas de hebraico. – Puseram-me na classe da Iara porque, apesar de principiante, seria ruim estudar com os pequenos. Nossa amizade estreitou-se. Ela brilhava na matéria. Lia, enquanto os outros mal balbuciavam o idioma. Aí concorri para obter um papel na peça e Iara, que nem estava no elenco, foi contra. Fiquei muito chateada. Convicta de que Cecília não interpretaria bem, Iara estimulou sem rodeios outra menina: – Vai lá, boba. Vai lá fazer o teste. Você é melhor. – Grande o senso de justiça dela – sublinha Angelina, beneficiada por ele. Um dia, no recreio, brincavam de roda cantando Terezinha de Jesus. O professor de

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"Carnaval" judaico; crianças fantasiadas representam o feito da rainha Ester da Pérsia, que salva o povo judeu de um ministro inimigo.

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hebraico ouviu e, dogmático, advertiu que aquela música, não. A repreensão pública revoltou Iara que, no mesmo tom, proferiu: – Eu, se fosse a senhora, continuava. Mas a professora obedeceu e a menina engoliu a raiva. Houve, na classe, uma conversa sobre a discriminação contra alunos pobres, em particular os recém-chegados judeus egípcios e um menino de origem polonesa, que vinha desarrumado e sujo. Iara, pensativa, admitiu que estabelecer diferenças era reprovável. Continuaria, no entanto, a rejeitar o garoto. – Ele é bruto, machuca a gente. Pequena que fosse, conhecia a crueldade da segregação. Anualmente, na Semana Santa, aflorava o medo a pogroms. – Os operários malhavam Judas com nomes de comerciantes. Um dos organizadores, policial, morava na esquina e o filho foi meu amigo – recapitula Melo. – Nossos pais não nos deixavam sair de casa, assustados. Às vezes eu espiava. Lembro do cartaz num boneco: "Moisés, da casa de sapatos". Os trabalhadores nos consideravam exploradores, ricos. – Numa Sexta-Feira Santa fomos ver a procissão do terraço de casa – expõe Fabio Landa. – Nas outras moradias brilhavam velas acesas. Lembro-me de que meu pai e um vizinho judeu cochicharam alguma coisa. Cada um se dirigiu ao filho. Disseram-nos que olhar, sim. Abrir a boca, não. A advertência velada continha a idéia de que assim os cristãos não bateriam na gente. Perguntei por que o fariam e meu pai explicou que na Europa, nesse dia de lamento pela morte de Cristo, batia-se nos judeus, acusados de crucificá-lo. – Por que somos diferentes, nós judeus? Iara abordou Angelina no final do curso primário, período em que conversavam bastante na classe ou no recreio, a menina a comer o lanche preferido, pão com carne. – Todas as religiões têm particularidades que as diferenciam e todas são dignas de respeito. Você sabe, Iara, existem muitas religiões. Os garotos desavinham-se muito na escola. Iara reagia quando sob ameaça. Não havia por que temer confrontos. Primogênita, cercada de irmãos, sentia-se imbuída de autoridade, E, em várias ocasiões, medira forças com primos briguentos.

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– A gente vivia às turras – confirma Moisés Iavelberg. – Por causa de um empurrão ou porque lhe puxei o cabelo. Ela dava unhadas. Nada grave, logo fazíamos as pazes. Jane, a exemplo da amiga, não se furtaria a entreveros. Mas as discórdias com Iara a machucavam. – Nós duas queríamos liderança e ela me dominava – reconhece. – Quando ficávamos de mal eu sofria demais. Uma vez caí em tamanha depressão que minha mãe telefonou a dona Eva, pedindo interferência para Iara ficar de bem comigo. Discutimos por status econômico e atributos sexuais. Por exemplo, ela caçoou de mim no banheiro, ao exibir os seios. Em mim ainda não se viam. Ah, que eu me feria! – O assunto sexual corria na escola o tempo todo – destaca Landa. – Durante os ensaios das peças, os que não participavam escondiam-se nas cadeiras amontoadas. Claro que a fantasia imperava. – Anos depois um rapaz comentou que fui namorada dele na escola. Ora, nossa amizade não passava da carona de meu pai. Desse jeito, devo ter "namorado" uma porção de garotos. É bem verdade que, naquele tempo, segurar a mão ou um beijinho assumiam enorme importância – troça Jane. A Melo falta memória de qualquer espécie de folguedo sexual. E Jane acredita que não diferiam de outras escolas. – Meninos, disfarçadamente, ficavam sob as escadas para ver as garotas subindo. E a gente gostava de paquerar. A sensualidade exasperada que o psiquiatra captou teria duas explicações. – Apesar da camaradagem, a competição por status criava um clima tenso. Coisas do gênero "Nós já temos televisão, vocês não". Some-se a intensa pressão dos pais para que os filhos fossem os melhores – apropriaram-se do mérito escolar. As situações geravam um ambiente de constante espicaçar que os jogos sexuais e a agressividade traduziam. Outra brincadeira aproveitava o tradicional momento de liberdade durante as rezas na sinagoga. Diferente do tempo de Eva menina, agora as crianças contavamse piadas a entrar e sair dos carros, fetiches estacionados diante do templo. Jane tem lembranças agradáveis desses dias.

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– Tão gostosos, que continuamos aparecendo depois do primário. Queríamos nos sentir atraentes, aparecer. Samuel Haberkorn, que comparecia a algumas cerimônias religiosas com os pais de Cecília Finger, afastava-se. – Meu primo detestava a folia nos automóveis. E Iara indignava-o porque tinha uma ginga especial, arrogante – Cecília ri. – Saidinha, parecia fazer de propósito para afrontá-lo. Acho que Samuel genuinamente não gostava dela. Perto da formatura, Iara despediu-se de Angelina. – Eu queria pedir à senhora que não me esqueça. Eu nunca, nunca vou esquecer a senhora.

Casa nova. Cecília, Felícia, Ely

A INFÂNCIA FOI POBRE em brinquedos, exceto no período em que Bernardo viveu. O giz amarelo de alfaiate do pai de Felícia servia para riscar amarelinhas nas calçadas. Disparavam pelos quintais, competiam em esperteza no esconde-esconde e habilidade em jogos da bola. Repetidamente Iara e Shirley, refugiadas no quarto de Felícia, brincaram com bonecas. – A falta de brinquedos me fez mal – observa Rosa que, ao contrário da acomodada Iara, reivindicava. – Lembro de querer uma boneca de qualquer jeito. Só pude pegar a da loja, sem grande proveito; deveria devolvê-la intacta à prateleira. Também usavam roupas das vitrinas, mas nada de gestos bruscos ou manchas que as prejudicassem. E Iara esmerou-se em movimentos lentos e sedutores, cultivando o ritmo e a leveza das bailarinas que admirava. Eva empenhou-se em estimular os filhos a ler. Melo, irrequieto, frustrou-a. Iara devorou a coleção de Monteiro Lobato e a Condessa de Ségur. Na puberdade Júlio Verne, na adolescência a literatura menina-moça e os livros que Eva escolhia para si – tudo retirado da biblioteca do bairro que visitavam juntas. Gostava ainda de folhear O Tesouro da Juventude, comprado assim que sobrou algum dinheiro. Mãe e filha liam revistas: Grande Hotel, fotonovelas; Querida, contos de amor; Cinelândia, artigos e mexericos sobre atores, cinema. Depois de bem desfrutadas, Iara e Melo vendiam-nas a operárias em frente à loja, hábito do bairro; os meninos Winer o faziam com Manchete. Destino semelhante aguardava os indispensáveis 39

gibis: permuta na feira de domingo ao acompanharem David, encarregado das compras e transmissor das primeiras noções de política. Só Raul, aliás, se interessava pelos comentários, inspirados no jornal conservador O Estado de S. Paulo que vinha da banca de Chico. Nem Eva prestava atenção. – Meu marido, atualizado, preocupava-se em manter as crianças alertas. Eu não ligava, absorvida em ganhar dinheiro e construir um futuro. Quando sobrava tempo queria ler romance ou ir ao cinema. – Inconscientemente meu pai deu-nos uma formação anti-religiosa – analisa Raul. – "Em Britshen", dizia, "reservavam aos sábios os melhores lugares na sinagoga. O shil não é campo de futebol, cadeiras a quem paga mais". Fomos impregnados desse aspecto "socialista" de justiça. Iara sem dúvida absorveu-o, estimulada pelas atitudes antidiscriminatórias de Angelina. Um dia, por exemplo, Cecília Finger confidenciou-lhe: – Minha mãe disse que japoneses sorriem na frente e nas costas enfiam uma faca. Em casa ouvia coisas semelhantes, herança da Segunda Guerra. Verdade? No parquinho, ela e o irmão brincavam com crianças negras, brancas e orientais. Só guardava boas lembranças. A observação racista da amiguinha entravou-se porque pertencia a japoneses a oficina de automóveis pegada às lojas dos Finger e Iavelberg "de cima". E quando, por uma razão qualquer, Cecília atravessou o local cheio de trabalhadores japoneses, Iara não resistiu ao impulso de humilhá-la: – Corre aqui, venha! Corre aqui, ninguém vai te enfiar faca nenhuma! – Fiquei embaraçadíssima. Foi uma confidência e ela me entregou. Terrível, uma peste aquela menina. Meu Deus, falo de Iara como se estivesse aqui – ensombrase. Os donos da oficina tinham uma filha da mesma idade, entre seis e sete anos. Uma tarde Cecília viu Iara e a garota brincando de balança no quintal dos primos. Quis participar, mas a amiga entortava o brinquedo para machucá-la. – Opa, desculpe – exclamava. Outra pancada e agredia: – Cecília, você não vê o que está fazendo? A nissei começou a imitá-la. 40

– Saí de lá em prantos. Ela me surrou com a balança. Decidiu ficar de mal. A subserviência de Cecília provocava em Iara um misto de afeto e desdém. Irritava-a tanto mais quanto compelida a dominá-la. A antipatia entre as famílias acirrava as birras. Os amigos de Melo também se ressentiam da soberba de Iara, que incorporava as críticas da mãe: moleques malcriados. Conta Jaime Schreier, amigo de Melo, uma semana mais velho que Iara. – Orgulhosa, preocupada em distanciar-se. Eu também tinha problemas com dona Eva, rígida e seca perto das mães polonesas. Brigava sem medir palavras. É verdade que a gente aprontava, às vezes sumia. Em 1953, ano em que as discussões políticas estiveram muito presentes em casa dos judeus – Julius e Ethel Rosenberg foram eletrocutados nos Estados Unidos sob acusação de espionagem, e morreu Stalin – David decidiu que chegara o momento de realizar seu sonho: viver de renda. Vendeu os imóveis comprados com o dote de Eva, adquiriu um terreno na rua Mariano Procópio, pequena travessa da avenida D. Pedro I, sem judeus, e levantou um sobrado enorme em comparação a casa da Silva Bueno. Três dormitórios e terraço no andar superior: jardim de inverno embaixo. Garagem, lavanderia. Terminado, alugou as duas lojas e casas anexas, convicto de que o dinheiro seria suficiente para iniciar o prédio da Agostinho Gomes e manter a família. Pouco antes da mudança, assustada, Iara disse à mãe que não percebia cheiro e gosto de comida. Eva levou-a ao médico, que atribuiu a alteração ao excessivo uso da bombinha contra asma, ou ao descongestionante nasal para a rinite crônica. Ambos lesavam as células responsáveis pela captação do odor. Não perderia totalmente o paladar porque os condutores estavam sãos. Consolou-as; em geral, quando se perde um, vão-se os dois. Eva aborreceu-se muito. Iara acostumou-se. Conseguia perceber texturas, distinguir o doce do salgado, o amargo, o azedo. A falha estimulou-lhe o apetite. Buscava sabor. No seu quinto aniversário, em fevereiro de 1955, Rosa caiu e cortou o queixo. – Foi na casa nova. Uma situação ruim, de criança a estranhar o ambiente. Ainda hoje, se não moro em apartamento, sinto-me ameaçada. Iara me tranqüilizava. Em qualquer desassossego, medo, havia essa complementaridade. 41

A nova residência afastou os antigos vizinhos. Pupi entre eles. – Que casa linda! – recorda-se Cecília. Tudo tão certo na grande sala, Iara a estudar piano. Ela me disse: "Durante anos tive inveja de você." Eu nunca imaginei alguém invejoso de nossa moradia simples de sobreloja, pequena entrada independente. – Não fiquei à vontade. O chão do banheiro, creio que de mármore preto, impressionou-me – detalha Felícia. – Iara parecia empenhada em integrar-se à vizinhança e acentuou-se minha vergonha da casa onde morava. Perdemos um pouco o contato. – Parece que mudaram para o Morumbi, deixando-nos junto à favela – aborrecia-se Jaime Schreier. Pela primeira vez, Iara convidou as amiguinhas da escola. Primeiro, Anette. – Fui dormir lá e fiquei pasma com o corrimão dourado, os livros. Tudo harmônico, ninguém discutia. Jane esteve num fim de semana e tem ótimas recordações. – Passeamos, ela achava um garoto bonitinho. Lembro que não deixou Melo entrar no quarto. Queríamos conversar. Comemos camarões empanados, eu não conhecia. Adorei. O sobrado serviu às rixas. – Você mora em vila, sua bruxa da vila1. Minha casa é muito maior que a sua – disparou Iara durante um desentendimento. Mas você mora no Ipiranga – vingou-se Jane. – Eu, no Paraíso. Terminado o Primário, a amizade esfriou. – Acho que nos telefonávamos, porque ela veio ao meu 14° aniversário. Chiquezinha, vestido azul-marinho, cabelo para o lado. Gostou de meu primo carioca, a cara do James Dean. Vi-a outra vez na Hebraica, mãos dadas com um rapaz. Depois só soube dela por outros: casou cedo, não está bem. Encontramo-nos pela última vez na balsa do Guarujá. “Eu me separei", disse, e jocosa aconselhou-me a paquerar. A morte de Iara é estranha à menina que conheci. Fiquei abalada, o destino dela deveria ter sido outro. O sobrado novo não afetou Melo, sempre a jogar futebol com os meninos da favela à beira da barroca, no fim da rua. Já cumpria missões de irmão mais velho. Iara 1

No bairro, vila era sinônimo de cortiço.

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segurando a mão de Rosa, ele a de Raul, freqüentavam matinês. Aproximadamente depois de seis meses a miragem de viver sem trabalho desmoronou. A inflação corroía o dinheiro. – Chegamos a passar fome – sintetiza Melo. Como David menino, em Britshen. Os pais brigavam, as crianças saíam de perto. Os confrontos periódicos alcançavam o bairro, coloridos de fantasia e erotismo. O comportamento de Eva contribuía. Praticava exercícios, natação. Parecia mais jovem que as outras mães. David pediu de volta a casa vizinha à original, na Silva Bueno, alugada ao lojista de discos. Construiu outro dormitório para separar filhos de filhas e mudaram-se. Rosa estranhou. – Superesquisito o espaço vazio da loja, portas de ferro baixadas. Ocupávamos o fundo. Vergonha que outros fossem lá. Da Mariano Procópio pouco sobrou. David vendeu-a junto com o carro e os móveis que valiam alguma coisa. Iara viu o piano desaparecer. Meses depois, obrigados pela inflação, os Iavelberg reabriram o comércio e Eva novamente se atirou ao trabalho. David deu início à construção do prédio na Agostinho Gomes. Iara enfrentou a humilhação sem se mostrar abatida. Propositalmente aumentava o volume do rádio ao ouvir o jazz que o bairro não compreendia. Cantava música romântica italiana, ignorando provocações dos amigos de Melo, Sua ambição alimentou-se da derrota e o humor manteve alto o espírito dos irmãos. A despeito do revés, os Iavelberg eram especiais.

Próximo à Silva Bueno, na rua Costa Aguiar, ficava o ginásio do Centro Independência, mantido pelo Rotary Club de São Paulo. Iara entrou em 1955 e fez amizade com uma nissei, Ely Gonçalves lura. Juntas exploraram o grande salão do andar térreo, longínquo cheiro de mofo, imaginando ouvir o som das orquestras que animavam os bailes beneficentes. O contraste da modesta porta de entrada a escola aguçava nas duas a fantasia: música, vestidos longos, dança. Noites encantadas, romance. No clima de menor expectativa, Iara desabrochou. Professores e colegas admiravam a excelente aluna, de idéias originais. Comunicativa, sensual, distinguiase também por ler muito, excepcionalmente informada para o nível da classe. Nada

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lhe parecia novo. E seu lado de mocinha aproximava-a dos outros: queria ouvir música, manter a pele de bebê do rosto, as mãos impecáveis. Ely tem presente duas tarefas difíceis, desafio da professora de Português. Na primeira, deveriam escrever sobre o tema "A Fumaça". O trabalho de Iara deixou os colegas atônitos: evoluções de espirais cinzentas dispersam-se em desenhos melancólicos, enquanto a fumante recorda o amado que partiu. No segundo texto, irônico, explicava eventuais acertos da quiromancia como frutos da auto-sugestão. Os trabalhos mereceram leitura em voz alta. Cecília Finger, na mesma classe, gravou mais uma passagem. – Essa professora escolheu um poema, prometendo nota dez a quem o decorasse. Quase morri de estudar e na hora gaguejei. Iara, em dez minutos, recitou na maior fluência. Ely foi a melhor amiga na escola, mas sem intimidades. Não lhe fazia confidências nem se visitavam. Só no fim do ginásio, pronto o edifício da Agostinho Gomes e a família instalada num dos quatro apartamentos térreos, Iara convidou a colega. De tempos em tempos, então, estudavam no quarto que dividia com Rosa. Ely não esquece a deliciosa comida de Eva e o afeto da avó Sonia, que lhe ofereceu a geléia de rosas. – Iara não passou em branco na vida de ninguém. Nunca a vi triste. Marcante, sempre a sorrir. Sob sua influência entrei na biblioteca do bairro, conheci a Bienal. A relação entre Iara e Cecília, testemunha indesejável, arrastava-se ambígua, uma piorando a outra. Iara acusava-a de fingida, um defeito grave. Discutidora na ânsia de afirmar-se, deficiente de senso crítico. Cecília não deixava por menos. Sem renunciar ao fascínio da ligação qualificava Iara de interesseira, outro defeito grave, e manipuladora. Porém submetia-se, algo rancorosa, à inferioridade que a outra engendrava.

Brigavam

em

público,

falando

iídiche

para

evitar

que

as

compreendessem. Eva aliava-se à filha no conflito. Uma tarde, cumprindo o combinado, Cecília desceu a Silva Bueno até a loja, para estudar. Foi barrada. – Minha filha pediu que a mandasse embora – é a memória de Eva. – A colega, mais atrasada, atrapalharia seu rendimento. Cecilia chegou à sua casa arrasada. – Nessas horas minha mãe reagia: "Quem te destratou? Uma húngara!" 44

Sentiu-se novamente traída numa chamada oral de História, a classe dividida em duas turmas que competiam por pontos. Entrou um pouco atrasada. Perguntavam o nome da obra publicada pelas autoridades eclesiásticas, que listava livros proibidos aos fiéis da Igreja Católica Romana. Faltava endereçá-la a alguém. Sentou-se, colocada no grupo rival de Iara e ouviu-a cochichar: – A Cecília, a Cecília. Obediente, a colega que pedia a resposta dirigiu-lhe a questão. Apesar de perturbada, lembrou-se. – Index. A professora aceitou a resposta. Iara, conhecendo as falhas da amiga, protestou: – Tem um nome completo. Realmente, não se lembrava. Index Librorum Prohibitorum, declinou a turma vencedora, vibrando. Nunca esqueceria o nome. Quando precisava, Iara seduzia-a. Por exemplo, na brincadeira de "tirar linha" com os metalúrgicos no final do turno, à tarde; não se aventurava sozinha. Postavamse as duas à frente da loja e, entretidas, não perdiam um só jovem sem passá-lo discretamente em revista. O desejo de flertar vinha periodicamente, forte. De repente não bastava fantasiar o amor de algum rapaz, idealizado graças a um sorriso, gesto, palavra. A essa altura Iara e Felícia tornaram-se intimas. – Eu tinha 14, estava no último ano. Ela, 12. Ignoro se fiquei impressionada ou me incomodou pela força. Minha primeira lembrança, no ginásio, é um misto de admiração e ressentimento. Tão competitiva! E certa pena porque se expunha demais, entrega que desdenhava conseqüências, desprendimento chocante, erotismo fora dos padrões da época, sobretudo no Ipiranga. Seria capaz de namorar rapaz gói, algo impensável. Lembro de meninos dizendo: "A Iara é uma putinha." Eu pensava: por que se desguarnecer assim? Claro, eu invejava a audácia que se contrapunha à minha timidez. David ainda não percebera a inquietação da filha adolescente, vistosa, corpo de mulher, a ponto de freguesas a confundirem com a mãe na loja. E a formação liberal de Eva tornava menos coibida a casa dos Iavelberg. Faltavam a Iara e Melo, de outro lado, um pouco dos parâmetros e inibição que afligiam os jovens. 45

Principalmente agora, ajudantes da mãe na venda de peças íntimas femininas. Melo recorda-se da tarde em que Jaime Schreier topou, aparvalhado, com uma caixa de seios postiços – estavam na moda formas avantajadas. Iara, maliciosa e cada vez mais direta, divertiu-se à grande. Como sempre gostou de imitar as pessoas, não parava de representar a cena. – Lembro da família inteira muito zombadora, talvez até para resguardar-se da diferença frente aos outros – aventa Felícia. Quanto aos meninos maledicentes, que bobinhos! Rapazes, objeto de entretenimento, condimentavam a vida. Ely recorda-se do verdadeiro discurso em que a amiga vituperou a mediocridade. Não demorou, Iara e Felícia romperam os limites do Ipiranga, Muitas vezes acompanhadas de Cecília, programaram cinema na cidade e lanche na Salada Paulista da avenida Ipiranga, onde se comia de pé junto ao balcão. As três também gostavam de festinhas. Melo não se esquece dos preparativos. – Minha irmã adorava bailinhos. Ajeitava-se, supervaidosa – roupas, penteado. Horas. Pedia as bijuterias da loja; usava uma, duas vezes e repunha. – Ela estimulava minha vaidade, queria que eu imitasse as unhas dela, cintilantes, rosinhas. E calçasse os sapatos da moda – complementa Cecília. Os pais revezavam-se no leva-e-traz. Para não acordar Eva e David, repetidas vezes Iara dormiu no hall de entrada em casa de Cecília. no topo da escada que vinha da rua; servia de sala durante o dia e quarto da amiga à noite. Despertas e incansáveis comentavam os acontecimentos da festa. Eva decidiu entrar no clube Hebraica. Almejava amigos de classe social mais alta para os filhos; no futuro, bons casamentos. E a natação os beneficiaria, em especial Iara, sempre molestada pela rinite e asma. Os Reicher seguiram o exemplo. Iara e Felícia tomavam duas conduções, longas caminhadas de permeio até o clube à margem do rio Pinheiros, na zona Sul da cidade. Domingos, compareciam aos bailes hi-fi. Mas não conseguiram ingresso no grupo de jovens que as interessavam, filhos de intelectuais burgueses. – Queríamos chegar a eles, que elegemos grupo top. Atraía-nos o lado intelectual e, acima de tudo, a busca por ascensão – avalia Felícia.

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Experiência penosa. Iara queixava-se de dançar pouco – os rapazes percebiam que as jovens provinham de outro meio. O clube só fazia sublinhar seu elitismo. – Sentíamos a diferença social na pele – diz Melo. As amigas acabaram enturmando graças a uma sócia que já residira no Ipiranga. Mas não bastou. A busca de emoções levou-as à rua Augusta, nos Jardins, ao longo da qual de moda e cultura. Para espanto do bairro, abandonaram os cinemas do Centro a fim de flertar com boys motorizados que ridicularizavam, chamando-os de bobões. Procuravam modismos. Em 1957, quando o cine Paulistano exibiu o filme Ao Balanço das Horas, de Bill Haley, e os jovens saíram eletrizados do cinema dançando rock na Augusta, Iara e Felícia estavam no meio. O ritmo alucinante, o apelo erótico, as contorções do corpo simbolizavam rebeldia. Havia outras opções que escapavam às limitações do Ipiranga. No Bom Retiro, a Casa do Povo oferecia o "Teatro da Juventude" e Felícia freqüentou-o. Devido à influência paterna, militante esquerdista no passado polonês, identificava-se com as posições progressistas do grupo. As várias organizações sionistas também procuravam arregimentar jovens. Os chaverim, companheiros, reuniam-se no porão da pequena sinagoga do Ipiranga, construída graças à dedicação do pai de Shirley Schreier. Tanto ela como Bernardo Winer e Fabio Landa entraram num grupo. Ouviam histórias de Israel e da vida nos kibutzim, para os quais o movimento os preparava. Discutiam a História de outros povos, temas da atualidade, literatura. Absorviam noções de socialismo, rejeitavam a vaidade e o mundanismo burguês, desprezíveis superficialidades. Aprendiam danças coletivas de roda e preparavam-se para a machané, acampamento. Organizada numa fazenda, reproduzia a vida no kibutz e horrorizava as famílias menos liberais em razão da convivência entre rapazes e moças longe dos professores ou pais. – Eu adorava a nossa madrichá, guia – evoca Shirley. – Chamava-se Sulamita e eu bebia as palavras dela. Mas minha mãe vetou a machané. Talvez representasse um comprometimento maior, risco de emigrar para Israel. Foi um trauma enorme. Saí do Dror. Iara participou de um grupo que se reunia aos sábados à tarde na casa de Cecília. As duas disputaram o cargo de tesoureira. – Eu quis me envolver, ir à machané. Minha mãe proibiu. Meus irmãos sim, podiam ir. Aquele bairro era maldito – afirma Cecília. 47

Iara entediou-se. Eva não a impediria de viajar. – Meus filhos preferiam ir à Hebraica para nadar, divertir-se nos bailes. E Melo, jogar futebol de salão.

Os Iavelberg não usufruíam férias prolongadas desde que o avô Abrão vendera a casa de Santos. No máximo passavam o domingo na praia, tanche sob os chapéusde-sol do Gonzaga. Mas na temporada de 1958, janeiro e fevereiro, hospedaram-se numa pensão. – Na praia Iara se modificava, ainda mais bonita – estima Felícia, – Fazia o maior sucesso. Mocinhas meio gorduchas como eu não podiam usar biquíni. Ela, sim. Formas excepcionais, sem barriga, busto bonito. Queimada, a pele dourada destacava o cabelo castanho-claro, quase loiro. Ficava linda em contraste conosco, tão clarinhas. Flertava com os rapazes sempre a rodeá-la. Ficou-me que às vezes a seguiam nos passeios pela orla, a subir e descer as pequenas pontes que cruzam os canais. Na minha cabeça, queria todos os homens do mundo. Não pretendia namorar. Postura gozadora, testava seu poder de sedução. – Ríamos, ríamos. Nesses tempos pertencia à turma um irmão da Cecília. Saiam diálogos engraçadíssimos. Tenho saudade do jeito especial de colocarmos as idéias, desse lado de Iara, da gente. Uma noite, durante as férias, vagamente enciumado, Melo teve a primeira e estranha suspeita de que a irmã e Samuel Haberkorn se relacionavam de maneira especial. Durante o footing noturno na calçada em frente à antiga pensão, promovida a Hotel Brickman. rapazes a andar de um lado e garotas de outro em sentidos opostos. reparou que os dois conversavam a sós. Jeito amoroso, voltados para o mar. – Em São Paulo disseram-me que estavam namorando. Cecília tem outra versão. – Começou no dia do meu aniversário, dezembro, antes das férias. Eu fazia 14 anos. Minha mãe deu uma festinha, convidei as amigas do Dror. Lembro de Iara bem vestida, muito bonita, cabelos pajem, brincos fantasia em contraste conosco – todas usávamos bolinhas douradas -, unhas recém-pintadas. Meu primo olhou-a e notei. Vi. Senti. Desaparecera a menina chatinha, surgia uma nova pessoa. Logo depois ela me contou que saíram juntos. Foi o primeiro namorado.

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Há anos Iara observava Samuel. Adorava provocá-lo, ria-se ante o olhar severo. Acompanhou a estranha cumplicidade entre ele e a namorada Ida, vivência à qual ninguém tinha acesso, uma desnorteante exclusão. Atingir o jardim exclusivo pareceu-lhe o sentido da vida. O cotidiano limitava-se a um grande prólogo; dias intermináveis de obrigações, vez que outra a emoção de um jogo, prova, cinema, festa, insuficientes para apaziguá-la. insuportável esperar a iniciação, mistérios acobertados, o próprio corpo semi-real. A música norte-americana na rádio Eldorado, à noite, prometia. Some day he'll come along, corpo e alma confirmados. Pele, mucosas. Quem sabe Samuel, o melhor partido do Ipiranga.

Sá. O Científico, Honório. Cursinho SAMUEL HABERKORN1 NASCEU de imigrantes poloneses pobres, que fizeram a clientela como tantos outros até montarem a loja de móveis, morada nos fundos, algumas portas abaixo dos Iavelberg. Louro, não muito alto, tendendo ao gordo, a testa quadrada e fundos olhos azuis atribuíam-lhe um ar de severidade e arrogância. Gostava de literatura teatro, música. Escrevia poemas. Junto aos irmãos de Cecília, seus primos, tocou violino numa orquestra amadora. Paixão da mãe, orgulho do pai, centralizava as ambições familiares: cirurgião famoso no futuro, idolatrado por uma jovem herdeira A solicitude maternal cercava-o. Schmiling will, Schmilling zogt, costumava ela dizer em iídiche ("se Samuel quer, é lei"). E propalava que o médico a proibira de contrariar o filho. Natural, assim, que o jovem às vezes se assemelhasse a um pequeno tirano. No bairro dizia-se que, embora dedicada, a difícil relação familiar tornou-o introvertido, sem amigos, figura estranha. Manifestaria uma quase obsessão por higiene, como se o rodeasse uma sujidade ancestral. Meticuloso, à menor dobrinha seria capaz de atirar longe a camisa. Mesmo que chegasse em casa de madrugada, escovaria o terno antes de pendurá-lo. Se necessário, polia à sua altura os sapatos e o automóvel, um reluzente Buick importado. As pessoas próximas explicavam que, a agravar as pendências, havia o compreensível ciúme da irmã Gisele, apelido Gin 2, pouco mais moça.

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Recusou-se a dar seu depoimento. Idem.

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Samuel despertou numerosas paixões nas meninas do bairro. – Foi a primeira vez que gostei de alguém – distingue Shirley. – Eu tinha 13 anos e, amiga de Gin, freqüentava a casa. Procurei aproximar-me pedindo ajuda no trabalho de Latim. Iara talvez fizesse o mesmo. Como a mim, a fama da capacidade intelectual dele certamente a atraiu. No difícil vestibular da Faculdade de Medicina, contudo, o rapaz não passou. Só teve sucesso no ano seguinte, 1954, aos 19 anos. Incentivou-o nos estudos a bela Ida Klein, grande paixão de sua vida Filha única de um dentista de origem austríaca, 16 anos, alta, loura, olhos azuis, família que possivelmente ele desejasse para si, culta e informada. Embora sem grande interesse por política, entre os Klein acontecimentos como o suicídio de Vargas em agosto desse ano e em 1955 a eleição de Juscelino Kubitschek, o vice João Goulart, Jânio Quadros governador, valiam comentários e especulações. Não perdiam concertos e teatros. A mãe saía com amigas à tarde; esporadicamente, o casal apostava no Jóquei Clube. Os costumes, segundo Ida, horrorizavam os Haberkorn, em especial a mãe. Agressivamente desaprovava a ligação. A menina atrapalharia o vestibular de Samuel e não prestava como nora, arrumada demais. Cismava com seu jeito de rir, falar. Ademais, os Klein corromperiam o filho: indulgentes, renunciavam à preocupação com o futuro. Privilegiavam conforto, lazer e pior – aqui mostraria desespero – eram jogadores! Samuel não cedeu. Chegava de manhã ao apartamento no Bom Retiro, partia à noite. A casa bem organizada e as cores dançantes dos tapetes persas serenavamno. Fruindo o piano que Ida tocava, a encorajá-lo, estudou o ano inteiro. Adorava a namorada, escrevia-lhe poemas. E passou no exame. Durante o namoro, o rapaz praticamente desapareceu do Ipiranga. Passava o dia na Faculdade, em fins de semana saia com Ida e seus amigos. Às vezes viajavam a Santos, camisetas iguais, exibindo amor e identidade. De tempos em tempos, Samuel levava-a ao bairro. Ida lembra-se de algumas pessoas; não de Iara, ainda pequena. O programa a desgostava, principalmente a futura sogra, sempre na liça. – Não era pessoa ruim – releva. – Apenas ciumenta. E a vida difícil endureceua. Dois anos de namoro, inquietos, os pais de Ida pediram uma definição. O casalzinho decidiu noivar e as famílias, apesar da mútua antipatia, festejaram o 50

compromisso no restaurante judeu Europa, do Bom Retiro. O noivado marcou o início do rompimento. Desejavam casar-se no final de 1957, mas as aulas particulares que Samuel dava eram insuficientes. Dependiam de sustento. Para discutir a questão, reuniram-se todos em casa dos Haberkorn uma noite. – Sentamos na sala e o pai de Samuel nos ofereceu o apartamento já comprado no gigantesco prédio da avenida Paulista, esquina Brigadeiro Luís Antônio. E meu pai? Os móveis, ele respondeu. Nova pergunta: do que vão viver? Discutiam nossas vidas sem nos consultar. Quase explodi, mas fiquei calada porque Samuel não contradizia ninguém. Deixava passar as coisas, submisso, quando deveria reagir. Estourava nas horas erradas. Nesse instante a Gin, que ainda não namorava, gritou: "Você dá o apartamento por quê?". E perdeu os sentidos. Encerramos a noite numa espécie de dito por não dito. Acalmei-os, assegurando que aguardaríamos a formatura. O relacionamento dos noivos alterou-se. Abalado com a repercussão do evento, Samuel pediu a Shirley que apoiasse Ida e as duas ficaram amigas. A atitude coercitiva dos Haberkorn, no entanto, levou a ruptura. Ida, muito abalada, viajou à casa de uma tia em Porto Alegre. Na volta reataram, marcando o casamento. Não deu certo. – Foi uma coisa tristíssima, só porque Ida não era rica – lamenta Shirley. – Pais são capazes de destruir os filhos para sempre, afetivamente. Samuel não suportava ficar sozinho. Com 22 anos descobriu Iara, 13 e meio. Corpo de adulta, aguda percepção dos outros. Admirava o sem críticas. Conhecia de sobra as neuroses do bairro, nenhuma cena a surpreenderia. Adolescente, manipulável, menos ameaçadora. Uma nova etapa começou na vida de Iara, deslumbrada. Apelidou o Sá, invadindo-lhe charmosa o espaço. Namoravam à porta da loja, na sala quando os pais saíam e no bairro, passeando de mãos dadas. Pela primeira vez ela assistiu a um concerto. Não perdiam filmes, peças nos fins de semana. Volta e meia levavam Melo. A ambição de fisgar um bom partido na Hebraica desapareceu. Melhor alguém do bairro, que morava como eles. Samuel estudava muito e a relação, de início, foi inconstante. Contava histórias da Faculdade, casos de enfermaria. Divertiam-na as referências à linguagem quase incompreensível das pessoas simples, a quem ele chamava tigrões; estrombo em vez 51

de estômago, por exemplo. Maravilhou-se com os diagnósticos iluminados, as curas. Às vezes seus irmãos se aproximavam, atraídos pelo colorido da narrativa temperada de mofa. O convívio aumentou em Iara o impulso de diferenciar-se. Não abotoava a blusa até o fim, atraindo atenções. Só punha a gravata do uniforme à entrada do colégio. Ao sair, tirava-a. Não participou das reuniões dançantes que angariavam os fundos da formatura. – Com quem conversaria nessas festas? Tão bobinhos, os rapazes! – justifica Ely. – A gente se presumia melhor – interfere Cecília, que corporificava a superioridade, enfurecendo iara ao manifestá-la. – Em tudo eu concordava com ela. Perto da vendedora de doces da escola exclamei: "Imagine se vou a uma festa de escola de bairro." A mulher tentou neutralizar a grosseria. Insisti: "Não quero me misturar." Como fui ridícula! Segundo Eva, naquele ano houve uma briga séria entre Iara e Samuel, que a desejava menos saliente. Reconciliaram-se depois que ela brilhou nas Sabatinas Maizena, da TV Tupi, o programa semanal de maior audiência no bairro – os colégios, em busca de promoção, enviavam os melhores alunos para competir. Também Raul emocionou-se. – Minha irmã disputou Português com um aluno do Mackenzie. O estudante veio certo de que venceria e perdeu. No fim, os vitoriosos participavam de um exame geral. Aí ela não ganhou. O prédio da Agostinho Gomes terminado, os Iavelberg mudaram-se. Finalmente Eva parava de trabalhar. Viveriam de renda, todos os apartamentos e as lojas alugados. Iara, Cecília e Ely matricuIaram-se no Científico, à tarde, do colégio Alexandre de Gusmão, no alto da Silva Bueno. Prédio retangular de tijolos aparentes, janelões verdes, três andares, jardim. Felícia já estava no terceiro ano, mas uma discussão sobre Samuel esfriara a amizade. – Tudo o que há de neurótico nesta comunidade, levado ao extremo, se concentra na família dele – investiu, traumatizada. – Samuel é um produto típico:

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inteligente, ambicioso, visão distorcida, reacionário. Péssimo. E muito velho. Você nem percebe como é influenciada. O namoro é absurdo. Iara rebateu, sarcástica. – Não tenho mania de política. E você está com inveja. – Lembro do jeito dela, aquela competição sempre muito presente na postura, no olhar. E da pena que eu sentia, a impressão de carência. A família Haberkorn reagiu horrorizada ao namoro e possível casamento. Pior do que Ida! Belicosos, infernizavam o convívio. Quanto aos Iavelberg, o caso agradava sobretudo a David. Ansiava proteger a jovem dos próprios impulsos. – Vi o rapaz crescer. Médico... A gente quer ver os filhos encaminhados. Eva oscilava, contraditória. De um lado, torcia por ver Iara numa Faculdade – exatamente aquilo que seus pais em vão lhe pediram. De outro orgulhava-se da filha, à frente de todas na corrida matrimonial. – Tudo por causa da pressão do bairro, terrível – acusa Shirley. – Não me lembro de um só pensamento em que me sentisse ajustada. Sofri muito, revoltada. As duas famílias, quase simultaneamente, compraram apartamentos em Santos no mesmo prédio e andar, perto do Hotel Brickman. Tara e Samuel passavam juntos os fins de semana. Nos outros dias, durante as férias, ela se bronzeava deitada na esteira e fazia passeios ao Guarujá com as amigas. Admirava o mar, o voo das gaivotas, escrevia poemas. Lamentava não sentir o perfume dos chapéus-de-sol. Mergulhou em Alma Cabocla de Paulo Setúbal, descoberta a poesia graças à professora de Português e o estímulo de Samuel. Anotava frases, crônicas e poemas num caderno, às vezes desenhando ilustrações. Levava os irmãozinhos a lanchar misto quente no Hotel Atlântico. Ia ao cinema, o pacotinho de chocolate em drágeas na mão. Ao longo de 1959, sempre que possível, Samuel buscou-a no colégio. Cavalheiro, abria-lhe a porta, ajeitando antes, delicado, a almofadinha que aumentava o conforto do assento. Parecia filme, fotonovela, que os dois interpretavam conscientes do público. As colegas olhavam, embevecidas. Sempre às segundasfeiras ou após algum feriado, Iara descrevia os programas: o restaurante, passeios, a peça do momento. Longamente falou de Eles Não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, no Teatro de Arena.

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O conto de fadas prometeu concretizar-se quando noivaram, indiferentes às negociações familiares. Para morar, um apartamento no Edifício Sonia, construído pelo avô Abrão junto à loja de móveis, na Silva Bueno. Os Haberkorn entravam com o consultório quando o filho terminasse a residência, dois anos de prática no hospital. Samuel, que se formaria em um ano, arranjara emprego no Instituto Médico Legal, o IML. Os meses corriam e uma espécie de rotina intrometeu-se no roteiro de Iara. Brincos de brilhante, uma larga aliança de ouro, enxoval, lista de presentes, planos de ter filhos. Não pretendia aprender a cozinhar – parte da sua originalidade. A segurança do compromisso diminuiu a tensão. Relaxou, alguma sonolência no desejo desperto quando o rosto do noivo reassumia o mistério do conhecimento, fosse ao descrever algum episódio médico, fosse na análise de um problema de física ou a dirigir, seguro, o automóvel. Sobretudo, nos raros carinhos mais ousados. Nas férias de verão de 1960, Iara reencontrou Anette Wejnsztejn em Santos. Viam-se no Brickman, ponto jovem dos finais de tarde. A curiosidade da coleguinha do Primário sobre o namoro frustrou-se. Iara calava-se. – Nunca falou de si. Eu me expandia e ela ponderava, amadurecida. Intuí ansiedade com o casamento, sem paixão. Antes, um programa a cumprir. Como que preparando a noiva, Samuel deu-lhe o livro Poemas do Amor Ardente, de J.G. de Araújo Jorge – um louvor ao encontro amoroso. O impacto foi grande. Alguém, romântico e sem moralismo, ousava descrever a beleza da emoção sexual que a esperava: "As minhas mãos 'virtuosas'... /acordarão... indizíveis delícias/... E eu improvisar... /nos mais delirantes movimentos/ os mais delirantes motivos/ de amor/ e ficará ressoando nos infinitos mundos /obscuros/ ...a melodia imortal do meu sêmen criador!"3 Entusiasmada, aconselhou Melo a ler o livro. No início do segundo Científico, Iara comunicou à classe que interromperia os estudos. Casava-se em maio, mês das noivas. Chocaram-se. A professora de História tentou dissuadi-la. Só 16 anos, como descurava da formação? Ao menos continuasse a estudar. Cecília, futura prima, ensinou: – Vocês são jovens demais para um compromisso até a morte. – A gente sabe quando ama – cortou.

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O poema intitula-se "Pureza".

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Antegozava o mundo adulto, vida sexual, independência. Acabariam os horários, noites a cuidar dos irmãozinhos. Graças ao sucesso de Sá mudariam do Ipiranga. Empregados, filhos, viagens – sonhava, a ajeitar o pequeno apartamento. O casamento foi celebrado longe do bairro, na Congregação Israelita Paulista, fundada por judeus alemães na década de 30 e que, ao longo dos anos, atraiu gente de todas as comunidades. Houve recepção no clube Homs, um palacete antigo na avenida Paulista, da colônia sírio-libanesa. O custo alto dos festejos impôs meses de privações aos Iavelberg: imprescindível uma festa condigna. Na ostentação de alegria, o nascer de um novo ciclo e a despedida de profunda tristeza. Um gosto de morte. Na grande sinagoga da rua Antonio Carlos, presente o bairro, Iara lembrava uma garota a caminho da primeira comunhão; assim se descreveria anos depois. Mangas bufantes de organza e ampla saia franzida figuravam a inocência infantilizada; impossível algo mais convencional. Já no salão de festas e um pouco fatigada, saboreou afrontar os olhares vagamente reprovadores, ao percorrer os grupos espalhados nas mesas. Pai e filha dançaram, tensos. Posou ao lado de Samuel, orgulhosa, ele algo contrafeito, para a clássica foto de casal. No pescoço, o presente de casamento do marido: corrente de platina, um diamante. Dos sogros, a aliança de brilhantes. Os noivos passaram a lua-de-mel em Campos do Jordão e a impaciência de Iara no retorno sugeriu a Melo e Felícia um desentendimento. Logo estranharam a decisão da recém-casada, passar o mês de férias no apartamento dos pais em Santos, longe do marido. Justificou-se. Samuel, absorvido em plantões, aumentava a renda e a experiência profissional. O comportamento de Iara, na praia, escandalizou a colônia migrante do Ipiranga. Circulava de mãos dadas com uma amiga mais jovem, fazendo-se de púbere. Não ocultava a alegria de ser observada pelos rapazes. Certa vez, ao sair da balsa do Guarujá, virou-se para a acompanhante e reagiu em tom de 1968 e não 1960 à oferta de carona, gozando o alvoroço que provocava: – Vamos aceitar? Sou de opinião que a gente deve experimentar de tudo na vida. Gostava de nadar no meio do bando de mocinhas, na pequena enseada de mar calmo à entrada da ilha Porchat. Ali usavam maiôs de duas peças, havia barquinhos a remo para alugar, pedras cheias de mariscos na água, a poucas dezenas 55

de metros. E pessoas interessantes. Combinavam cinema no Gonzaga, sorvete em São Vicente, lanche no Guarujá. Samuel, presente nos fins de semana, não demorou a ouvir comentários maldosos sobre o desembaraço de Iara. A ojeriza de Gin era cIara. – Não teve maiores consequências porque Sá conhecia a irmã – presume Raul. Terminado o parêntese das férias, o vazio. Ambos sentiam-se logrados, a inexperiência tolhia-os. Samuel refugiava-se nos plantões; dormia em casa duas ou três noites por semana, às vezes nem isso. Mulher presa em armadilha, Iara deu-se conta. Às vezes andava ensandecida pelo quarto e a saleta do apartamento. Solidão. Pendurada no ar. Aprumava-se ao sair à rua, não viessem zunzuns de "eu bem que falei". Cecília, agora vizinha, protegia-a do desespero. Vinha quando chamada. Falava do colégio, das festinhas. Iara treinou com ela dançar o rock'n'roll, escarneceu do mau gosto de alguns presentes de casamento. De si não falava. Sequer permitia que a amiga ajudasse a arrumar a casa, num incrível desleixo para as manias de Samuel, vingança desconcertada. Cecilia cismava: o que teriam as meias sujas no chão que Iara sem empregada, com rinite e asma, a impedia de lavar? As visitas devolveram-lhe o ânimo: voltaria ao colégio. Também decidiu abrirse aos pais. Precisaria explicar os estudos que situariam o casamento em segundo plano, e a provável separação, projeto traumático no início da década. O otimista, copiara em seu caderno de frases, pensa "ainda tenho meio copo d'água"; o pessimista, "só tenho meio copo". Esperou passarem as eleições de outubro de 1960, disputadíssimas, quando o candidato a presidente Jânio Quadros obteve 48% dos votos. Ouvia os comentários: Lott é comunista. Não, é nacionalista. Deus me livre votar em militar. Adhemar rouba mas faz, é o melhor. Chega de ladrões, Jânio vem aí, acaba com a inflação e moraliza o país. Todos são chefetes populistas, carismáticos e ladrões. Jango é bonitão, a mulher um chuchu, os filhos engraçadinhos. E inocente útil, isso sim. Juscelino, Brasília e a indústria automobilística afundaram o Brasil, é o inventor da inflação; não, ele é modernizador. Os Iavelberg acreditaram em Jânio. Iara não se envolveu, indiferente. Só tirou o título eleitoral com 18 anos embora pudesse fazê-lo antes, por ser casada.

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Novembro terminava quando tomou o ônibus e desceu a serra, os pais em Santos. De surpresa expôs a situação, às vezes assertiva, outras a chorar. Continuava virgem. – Foi uma tijolada na cabeça – confessa David. – Minha vida mudou completamente. Apesar do clima de velório, não aconselharam a separação. Com interesses profissionais e vida própria, Iara manteria a paz e o status de esposa de um cirurgião que esperavam renomado. E quem sabe amadureceriam, superando as aflições. Iara aceitou a proposta, confortável. Afinal, gostava de Samuel. E garantia a segurança econômica, evitando a humilhação de voltar à rotina dos pais, estaca zero, independência perdida. Em dezembro, animada com a próxima temporada de férias em Santos, enfeitou-se para a festa de formatura do marido. Nenhum ar de ingenuidade. Ajeitou uma tiara nos cabelos presos ao alto, o vestido de festa exibia os ombros perfeitos. Brilhava entre a cunhada, o marido, os sogros, a mesa coberta de refrigerantes.

Em 1961 retomou o segundo científico na classe de Cecília e Ely, repetentes, e Bernardo Winer. De Cecília afastou-se. Temia que a proximidade gerasse comentários mal interpretados pelos Haberkorn. Não desejava magoar o marido, com quem estabelecia um convívio fraternal. Os Iavelberg pediram que o vizinho, mau pagador, devolvesse o apartamento. Como só poderiam exigi-lo para uso próprio, convocaram Iara e Samuel. O casal obedeceu descontente. Mudaram-se. Ligou-se mais a Ely. Doce e atenta, a amiga apaziguava-a. Repetidas vezes chamou-a às noites, Samuel nos plantões. Jantavam com os pais e adormeciam de madrugada, intercalando conversa e estudo num clima de intenso afeto. Incentivada, Ely interessou-se por história judaica e leu os livros de Léon Uris. Ao desjejum, insólitos bolinhos e guaraná comprados no bar da esquina. O fogão, novo e intocado. – Nem fósforo acendia, receosa de queimar-se. Zelava das mãos como preciosidades. No colégio, Iara descobriu um refúgio estrangeiro, território seu; ninguém cobraria mesquinhezas de ontem. Os novos amigos sabiam da existência de lojistas 57

judeus na Silva Bueno; a concepção de um microcosmo fervilhante, entretanto, eralhes estranha. Já parcialmente absorvido o equívoco do casamento, Iara não considerou invasiva a pergunta de uma colega sobre a decisão de casar-se aos 16 anos. – Empolgação, imaginei maravilhas. E influência da família. Não compensou porque meu marido é velho para mim. Todos concordavam. Vinte e seis anos, quase idoso. Nos primeiros dias Iara criou caso. Recusava-se a vestir uniforme. – É ridículo, sou uma senhora. Teve que ceder e escolheu a barra da saia como símbolo de resistência. Usavaa logo abaixo dos joelhos, na linha da moda, e não na panturrilha, exigência do regimento. A provocação desencadeava discussões surrealistas com a servente, divertindo a assistência. Casada. atraente, Iara acendia grande curiosidade. Dividida em dois mundos, não estava inteira em nenhum. Os pais apoiavamna desconfiados; temiam sua conduta e o escarcéu em caso de separação. No colégio, invejosa, observava as novas amigas a flertar, sair. E fazia-lhe falta a companhia inteligente de Samuel, não obstante o ressentimento. Estudava muito. Impunha-se na classe e questionava os professores. Entretinha-se no pingue-pongue, às vezes contava piadas eróticas, rindo às reações. Não a intimidava expor-se em demandas que lhe pareciam justas. Certa vez circulou na classe o desenho de uma suástica Discorreu de pé, enfática, porque não se brincava com aquilo. Consciente da liderança, assumia o papel de humanizadora. – Eu desconhecia o significado daquele signo e fiquei arrepiada ao ouvi-lo. O autor, um menino, pediu desculpas – reconstitui uma colega. Em outro dia, a classe foi suspensa devido a uma desobediência qualquer. Cecília seria desclassificada do torneio de pingue-pongue se não lograsse entrar na escola. Iara pôs-se de sentinela na entrada lateral, para ajudá-la a burlar a vigilância. Inadmissível a dupla punição, decidiu. Algum tempo depois a prima de uma colega de classe suicidou-se, incapaz de suportar as traições do marido. – Que linda, eu queria morrer assim, sussurrou Ely no velório, admirando a beleza e a juventude da morta. – Pois eu quero morrer velha e feia – devolveu Iara. 58

Nas férias de julho, em Santos, conheceu Edite Traiman, um ano mais velha. Ficaram amigas. Seguiam juntas à prainha da ilha Porchat, passeavam. A tarde visitava-a no apartamento. Contou-lhe que ela e a família Haberkorn não se gostavam, o casamento malparado fazia-a sofrer. Desejava filhos. – Normalizariam minha vida. Edite admirava Iara. Absorveu o gosto pela poesia, ouvia-a declamar versos próprios de amor. Seduziam-na as tiradas filosóficas. que creditava ao matrimônio infeliz e medo de separação: – Se você chuta o traçado normal das coisas, a vida te chuta. Iara não deu tento à revolta dos conservadores quando Jânio Quadros condecorou Che Guevara em agosto de 1961. Manteve-se indiferente aos comentários sobre a renúncia do presidente, seis dias depois: "Foi um golpe mal conduzido; queria fechar o Congresso." "Não, estava bêbado." Ignorou a movimentação em torno da posse de Jango, a saída parlamentarista que retirava o poder do presidente e a escolha de Tancredo Neves como primeiro-ministro. Entusiasmaram-na a VI Bienal e a revista Claudia, lançada em outubro de 1961– seu tom supunha o público feminino vagamente dotado de inteligência, uma novidade. Nos últimos meses do ano, começou a pensar em carreira. O Científico já continha a idéia de Exatas. Procurou Shirley, que estudava Química. Descartou a opção. Na verdade, fizera a escolha dois anos antes, quando Felícia prestou exame no curso de Psicologia, de pouco prestígio e considerado espera-marido. Não conversou com ela, agora aluna da Escola de Sociologia e Política. Mas o assunto fascinava-a, resgate e purificação, aludia brincalhona. Tudo a impulsionava para lá: o ciúme paterno, seu papel de mediadora nas brigas entre os irmãos, a constante ausência de privacidade, Sá ansioso, as frustrações sexuais. Mais importante, contudo, era compreender-se, decifrar as vozes inaudíveis que a comandavam. Os estudos que no final dos anos 50 chegaram pioneiros à Faculdade de Filosofia, sequer reconhecidos como profissão, a acolhe riam. Seria uma grande psicóloga, cientista, professora. Em outubro, Iara e Samuel foram à festa dos 18 anos de Edite Presenteou-a com um exemplar do livro que amava, Poemas do Amor Ardente. Na dedicatória, desejou-lhe um amor tão lindo quanto o do livro. Samuel também assinou. No futuro,

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a intuir o afastamento, Iara lhe daria um poema de Paulo Setúbal, copiado em folha de caderno escolar: "Despedida". Depois das férias em Santos, magra, bronzeada, o cabelo balançante nos ombros, Iara foi à rua Maria Antônia pedir informações sobre o vestibular de Psicologia. Pela primeira vez atravessou o grande saguão e subiu a larga escadaria de mármore. No primeiro pavimento, recebeu no guichê os temas que teria de estudar. Não reparou na jovem a examiná-la de um dos assentos de madeira escura ao longo da parede, enquanto reagia com exclamações de susto à lista. – Gravei a beleza da mocinha; lembrava a atriz Melina Mercouri, um sucesso então – retrata a psicóloga Ecléa Bosi. Matriculou-se no cursinho do Grêmio da Faculdade. Ficava em um sobrado algumas quadras adiante, dobrando à direita, na rua Martinico Prado. Enchera os dias. Extensivo de manhã, almoço em casa dos pais, colégio à tarde. À noite, estudava. Não entregaria sua vaga a ninguém. Comparado à rotina das escolas do bairro, o cursinho era outro mundo. Presença facultativa, alunos a fumar na classe e tratando de você os professores, na maioria universitários. Acostumada aos livros didáticos, Iara achou difícil estudar os temas em discussão. Logo descobriu, aturdida, que havia alunos melhores do que ela. Cultos, talvez até mais inteligentes. Perplexa, enfatizava seu charme enquanto tudo lhe dizia: o mundo é diferente, você não conhece nada, a existência começa aqui. Empolgouse e convenceu o Irmão a imitá-la. Melo entrou no segundo semestre, faria Física. Escolha fortuita, sem pendor. Precisava de amigas na classe e escolheu Clarilza Prado de Souza e Evelise Souza Marra a quem, jeito disfarçado de impor-se, criticou a voz que sentiu tolhida, um aperto onde o ar deveria expandir-se. Abriam-se em confidências, um contínuo compartilhar, amparo e cumplicidade. O trio vivia em simbiose. Na falta de uma, tanto dela falavam que a tornavam presente. Só a Ely, Iara abriu a nova vida. Apresentou-a na classe, gracejando: "minha amiga milionária, grande matemática". – Iara aproximava-se das pessoas de um jeito alegre, espontâneo, sensorial – desenha Evelise.

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– Eu era introvertida e aprendi com ela a curtir o aspecto físico dos outros, rapazes e moças. Sem aquela pressão da culpa – adiciona Clarilza. – Ficou natural avaliar se me pareciam bonitos. Iara prestava muita atenção a isso. Dizia "hoje você está bonita"; ou "não gostei de você assim, magrinha". Outra amizade importante foi Rachel Rosenberg: – O fascínio de Iara por tudo o que acontecia no cursinho chamava a atenção. Não parava um minuto, parecia uma borboleta vibrante. Colorida. Um olho luminoso, cabelo grande, o movimento constante do corpo. Nos intervalos ficava na secretaria ou na entrada, falante. Gesticuladora sem ser vulgar – bonitinho nela, mas certamente não a fazia parecer uma quatrocentona. Simples, mal se pintava. Nada chamativa no sentido artificial. Aquilo vinha de dentro. Inteiramente sem self-consciousness, impaciente, convicta, voltada para fora: o que acontecia, o que a pessoa expunha, o que ela retrucava. Generosa, tipo dar a camisa em todos os sentidos. Pronta a socorrer, disponível. Uma coisa forte, determinação. Era notada onde chegasse. Percebia rivalidades e rivalizava. Apesar do sucesso e das paqueras, vivia insegura como mulher. À tarde, equilibrista, Iara retomava o Científico. O cursinho desinibiu-se ainda mais para os padrões do colégio e quando, no começo das aulas, deu com o futuro dentista Honório de Lima Filho, primeiranista em 1962, não hesitou em abordá-lo. Correspondia à visão que tinha de Larry Darrell, o personagem de Somerset Maugham em O Fio da Navalha, um de seus livros prediletos. Bonito, expressão inteligente, ligeiro ar de desdém. Magro, ombros largos, olhos quase verdes. Acabava de esbravejar contra o costume de rasparem a cabeça dos calouros, imitação bronca da violência nas faculdades. – Até que você não fica feio, careca-brincou depois de acompanhar a cena. Tímido, o rapaz de Santo André sorriu. Chocou-se ao mirá-la. – Incrível, a força com que encarava. Impossível desviar-se dos olhos dela: castanho-claros, às vezes esverdeados, envolventes. O cabelo marrom-claro liso, bem penteado, caído nos ombros. Os dois, quase 18 anos, não saberiam definir o que os ligava. Iara inventava modas que a embelezassem, punha o cabelo de lado – e assim posou para a foto do título eleitoral. A escola inteira simulava não ver a espécie de heresia cometida à frente de todos. Os próprios vigilantes duvidavam. Cecília passava por ela como se a 61

desconhecesse. Jaime Schreier fugia das rodinhas, pois não contar as futricas a Melo representava traí-lo. Incapazes de dimensionar os sentimentos, Iara e Honório às vezes mal se cumprimentavam. Inseguro, ele temia procurá-la. Súbito, a transgressão em longas conversas no banco do pátio, o rapaz sem ousar observá-la melhor. Não saberia dizêla gorda ou magra. – Limitavam-se a papos e olhares apaixonados. Nunca houve nada de afrontoso – realça uma colega. – Minha lembrança de Honório é de um excelente caráter, meio caipira. Não faziam planos, nem esperavam reciprocidade. Iara, todavia, obteve um objeto real para seus devaneios. Segura do aliado, admitiu que não cogitava romper o casamento. – Meu marido não me atrapalha – observou sem revolta. Traduzia no mutismo de Honório compreensão e maturidade. – Eu não compreendia alguém indiferente àquela mulher. No fundo, eu gostava do Samuel – admite o dentista. – Ela o descrevia bom, inteligente e prestativo. O marido chegou a recordar antigas lições de desenho a fim de ajudá-la nos estudos. Mas a rejeição magoava-a. E ele a fez sentir-se culpada por não atraí-lo. Realista, o rapaz sabia-se aquém de um compromisso. Nos fins de semana prosseguia a vida normal: nadar em equipe, namoricos, festinhas. Porém padecia. Na pequena agenda de bolso que ainda conserva, anotações sucediam-se: "Hoje Iara sorriu para mim", "Não vi Iara", "Conversamos no intervalo". No segundo semestre, a frieza dela vinha dos novos interesses no cursinho. Apelidara-o Ficlusp. Já estava quase inteira ali. Envaidecia-a seu prestígio. Todos a conheciam, inclusive de outras classes. Nos intervalos maiores ou horário do almoço era capaz de girar pela Maria Antônia ou Universidade Católica, no vizinho bairro de Perdizes, colhendo informações sobre atividades culturais que repetidamente incluíam política. Mal reparou, porém, no processo de desapropriação da Companhia Telefônica Nacional, subsidiária da ITT norte-americana, iniciativa do governador Leonel Brizola no Rio Grande do Sul. Ou na greve geral programada para julho, exigindo um ministério nacionalista e democrático, que conquistaria o 13° salário. Se os temas nacionais pouco a inspiravam, transportaram-na o clima de liberação e estímulo intelectual alimentado na Maria Antônia, os bons cursos, o eco 62

da visita de Sartre e Simone de Beauvoir em agosto de 1960: existencialismo, liberdade sexual, movimento feminista. Descobriu a filosofia, os professores Valter Lourenção, depois maestro, e o filósofo Vitor Knoll a instigar os alunos. Tentou ler um livro ininteligível sobre metafísica. Acima de tudo, Iara queria saber de amor. Vivia atenta aos namoros, quem olhava para quem, rapazes ou moças, professores e alunos. As observações, minuciosamente debatidas com Evelise e Clarilza, prosseguiam nos intermináveis telefonemas noturnos. Precisava comunicar-se a qualquer momento, expor as fantasias. As amigas mergulharam no clima, intensa troca quando varavam a noite pretensamente a estudar, tomando café. Dispersiva, Iara divagava sobre a própria relação conjugal: afeto e distância, definia. O desejo por outros homens não significa desrespeito ou desforra, cada um tem direito à sua vida, os dois desobrigados. – Conversávamos na cama de casal deles. A mútua análise integrava o interesse pela Psicologia – esclarece Clarilza. – Será que um dia nossa amizade vai acabar? – ventilou Iara certa madrugada, as três comovidas. – E a gente passar dizendo apenas olá? AbaIaram-se. Não, garantiu Clarilza. Único, o que as unia. Em 1969, Iara clandestina a passear bem vestida na rua Augusta, viram-se. Paralisada de susto e emoção, Clarilza aguardou. Iara seguiu, certamente para protegê-la. – Por que não corri, não a abracei? Por que não disse nada? Foi terrível, significativo. Fiquei muito deprimida. A curiosidade de Iara por filosofia aumentou com as aulas de Lógica e Filosofia das Ciências do terceiranista de 23 anos, Antonio José Figueiredo – Tom. Admirou o homem bonito, músico, intelectual. A jovem perguntadora, que duvidava das explicações, encantou-o. Flertaram. Tom e um estudante de Física dividiam uma casinha da rua Pamplona, perto do futuro apartamento de Iara e Samuel, na Paulista. O amigo no violão, outro na flauta ou violino e ele no contrabaixo, faziam música erudita aos sábados à tarde. Iara costumava ir. À noitinha, loquazes, abordavam os temas do momento: vida sexual, liberação feminina. De política, pouco. – A vivacidade dela, certa rebeldia, saltavam à vista. Conciliava ternura e atitudes de vanguarda, antecipando as lutas próximas – reconstrói Tom Figueiredo. – Que homem não se interessaria? 63

O rapaz gostava muito do irmão, Afonso Figueiredo4. Capitão do Exército, servia no 4° RI de Quitaúna e era amigo de um tenente, Carlos Lamarca, nessa época instrutor antiguerrilhas. – Várias vezes encontrei Lamarca em casa de Afonso. Debatiam política e eu emprestava livros: Rosa Luxemburgo, Sartre. Organizaram pequenas tertúlias sobre a situação brasileira. Meu irmão opôs-se ao golpe de 64, esteve preso. Permaneceu na tropa enquanto os processos corriam, até ser cassado. Embora não fosse radical, de certa forma julgou-se responsável pelas opções de Lamarca. Num fim de semana quente, prenúncio de primavera em agosto, Tom convidou os amigos para um banho de piscina em Quitaúna. Foram de trem à cidadezinha próxima. Afonso, à paisana, passeou-os pelo quartel e Iara riu: os soldados quase interromperam o jogo de futebol à passagem das moças. – Caímos n'água, brincamos. Depois fizemos uma rodinha de papo. O oficialde-dia, pistola 45 na cinta, extremamente formal, participou e apresentei-o à Iara. Era Lamarca. O contato foi superficial. Do encontro em Quitaúna Iara guardaria lembranças agradáveis misturadas ao desaponto pelo descompromisso de Tom e a estranheza que lhe causavam militares, armas ostensivas, preferível não olhar. O flerte não durou. – Ela procurava alguém à altura de sua personalidade. E não um boboca como eu, inseguro. A decepção reacendeu a chama por Honório. As amigas perderam noites em discussões. Evelise criticava-lhe a ingenuidade, duvidando que representasse algo para o colegial. Iara rejeitou as ponderações. Insistia na ligação. – Era capaz de procurá-lo ou a quem aspirasse. Não esperava convites. Ativa, em igualdade, longe do espírito da época que reservava ao homem a iniciativa. Isso refletia, creio, grande ansiedade. Numa forma elaborada eu diria carência, às vezes falta de crítica. O ano letivo no fim, procurava ficar mais junto de Honório. A diretora repreendeu-a. Iara comunicou ao assustado rapaz que não se afastaria dele. – E enquanto me der na telha. Não há nada de mal. 4

Segundo Tom Figueiredo, em 1969, por amizade, Afonso abrigou em sua casa Lamarca e os militares que abandonaram o quartel, carregados de armas. Desaconselhara fortemente a deserção. Pelo episódio recebeu uma pena de três anos. Escondeu-se e aguardou a prescrição para reaparecer.

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– Ainda bem que não foi comigo – pensou Honório. – Eu teria me sentido forada-lei, morto de vergonha. Tentaram encontrar-se fora da escola. O jovem acompanhou um amigo que costumava entrar na Hebraica pulando o muro de trás. Arrepiante, mas agarrou a oportunidade de vê-la. – Eu ignorava as conseqüências daquilo, se flagrado. Arrisquei tudo por ela. E não pudemos conversar, os irmãos estavam lá. Houve o dia em que dispensaram os alunos no meio da tarde e Iara pôs-se a passear na calçada com uma colega. Honório, sempre alerta, surgiu numa das janelas e atendeu ao sinal. Reuniram-se no quarteirão adiante. – Vamos ao cinema? – convidou Iara. Combinaram a sala de espera do cine Rívoli, na avenida São João. Ninguém soube, exceto a cúmplice que desapareceu. Duas horas de escuridão e vertigem. Pela primeira vez, intensamente desejada. Perderam-se nos beijos que despertavam o corpo inteiro em prazer – penetração dulcíssima, aveludada, um crescendo de entrega. Nas carícias desajeitadas do namorado reapoderava-se, livre do esquife de vidro. Honório não suspeitava o quanto lhe era reconhecida. Começou a acompanhá-lo à porta da igreja onde ele participava da Juventude Estudantil Católica. Olhos brilhantes, prolongava os momentos no pátio a discorrer sobre livros, filmes, professores, colegas. Mas não havia como ficarem a sós. Honório morava com os pais, pequeno-burgueses do interior. Dispunha de pouquíssimo dinheiro. Santo André, decidiram. Ali ninguém a conhecia. Puderam percorrer as ruas de mãos dadas, beijar-se no jardim. Durante o lanche falavam de si, das famílias. Sem conhecê-los, envolvido pelo carinho das observações, Honório sentia-se próximo dos Iavelberg. No final da tarde levava-a ao ônibus, desgostoso de vê-la chegar e partir sozinha. Queria ser cavalheiro, agradá-la, comportar-se à altura. Tão pouco, e impossível. A greve de setembro, pela antecipação do plebiscito que reinstaurou o presidencialismo e devolveu o poder a Jango, foi mais próxima a Iara. Afinal, votaria nas eleições de outubro. E no cursinho as acusações ao parlamentarismo pegavam fogo. Os conservadores temiam a conscientização iniciada com o desenvolvimentismo de Juscelino, ouviu. Alegrou-se porque vários deputados progressistas foram eleitos. 65

Mas as reformas de base, expostas no Plano Trienal de Celso Furtado, confundiramna. Os professores acusavam o autor de render-se ao FMI. A temporada de festinhas para levantar os fundos do baile de formatura começou. Honório e Iara dançavam colados. – Dizíamos: eles se amam tanto! Iara é uma coitada, o marido não quer saber dela. Só às vezes nos amedrontávamos: puxa, mas ela é casada! – relembra uma colega. Iara foi a Santo André uma última vez. Finalmente, resolver o desejo que os consumia. Honório aguardava-a no ponto de ônibus e admirou-lhe as sapatilhas enfeitadas à Brigitte Bardot. A irmã, dentista, emprestara-lhe as chaves da clínica no térreo de um sobradinho fechado nos fins de semana. Abriram o portão embaraçados, cacos de cerâmica onde fora o jardim, entrada em arco, o mundo a observá-los. Na saleta de espera, o cheiro característico de eugenol. Riso nervoso, reconheceram o terreno – consultório, quartinho de despejo. Beijaram-se de pé, longamente. Até aí, intimidade já familiar, tudo fluiu bem. Mas quando ela sentiu as mãos do namorado a percorrer suas costas sob a blusa, apavorou-se. Enrijeceu. – Tenho muito medo de engravidar – murmurou embaraçada. E afastou-o. A tarde não terminou mal. Saíram para caminhar e lancharam, ainda atarantados. Na hora do regresso, à noitinha, Iara notou que perdera o enfeite de uma das sapatilhas e aborreceu-se, tristeza despropositada. Honório decidiu acompanhála de ônibus, apesar do risco de um flagrante. – Muito obrigado – gaguejou totalmente, à despedida. Combinaram ver-se nas férias, em Santos. O baile de formatura aconteceu no moinho São Jorge. Os colegiais e seus acompanhantes, de vestidos longos e smokings, subiam uma escada no meio da fábrica para chegar ao salão e empoeiravam-se de farinha. Iara deslumbrou, vestido vermelho justo, ombros nus muito brancos. Samuel, bem-apessoado, cavalheiro, pareceu às meninas o mesmo galã que a namorou e provocava em todas suspiros fantasiosos. Os dois dançaram juntos a noite inteira e nenhuma amiga aproximou-se. Não havia como.

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II MARIA ANTÔNIA

Faculdade. Bagunça organizada

NO SAGUÃO APINHADO e nervoso da Maria Antônia, imediatamente Maria Lucia Carvalho, candidata a Psicologia, notou Iara. Foi a amiga que por mais tempo a acompanhou. – Marcante e bonita. Atraía olhares onde estivesse. Quem vinha do cursinho ajudava-se. Rachel, sentada perto de Iara, passou colas de Inglês e Francês. No exame oral de Filosofia esperaram as argüições juntas e uma torceu pela outra. O grupinho entrou, exceto Clarilza, aprovada na PUC. Iara exultou. Era sua a Faculdade que se caracterizava por defender o livre pensamento e abrigar grandes mestres, cheia de desafios, intelectualmente provocadora. Logo depois do vestibular, o pai Haberkorn ofereceu o pequeno apartamento do tempo de Ida e o casal instalou-se no gigantesco pombal, residências e escritórios. O espaço impessoal na avenida Paulista facilitava-lhes a vida – perto das Faculdades, do IML. E ao menos saíam do Ipiranga. A cunhada casara-se com o médico Isaac Abramowitz1 e recebeu do pai o apartamento vizinho, idêntico. Mal se cumprimentavam. Viam-se, hostis, nas raras comemorações familiares. Não compreendiam Iara e destratavam-na. Num aniversário, Cecília chamou-a para sentar-se na roda que incluía Gisele e outros parentes. Respondeu alto, que todos ouvissem: – Não me misturo a gentinha. – Soltava as coisas direto, de tão amolada – Cecília ri. – Era síndrome do saco cheio. As aulas começaram. Algumas, por falta de espaço, em salas fora da Maria Antônia. Os alunos corriam pela cidade. Psicologia Experimental, a preferida, funcionava num porão da Geologia, na Barra Funda. Os novos conceitos estimulavam Iara. Será possível, ao manipular variáveis, medir sentimentos? Ou registrar mudanças

emocionais

baseando-se

em

variações

metabólicas?

Pavlov,

condicionando cães, é fascinante. Mas e a motivação? É imprescindível compreender

Projeto Brasil Nunca Mais – BNM, da Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Editora Vozes, 1988: Identificado como médico-legista comprometido em laudos que acoberta mortes sob tortura. 1

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o global! Aí vinha o aprendizado, concebido como formação de novas conexões estímulo-resposta. E o que dizer de Skinner? Respostas, reforço Pergunta: não é um equívoco extrapolar para o ser humano conclusões de estudos realizados com animais? Iara admirava o jovem professor introvertido, brilhante, pronúncia difícil. – Ela intervinha bastante na classe – recorda o psicólogo Arno Engelman. – Falante, charmosa. Articulada, coerente, querendo aprofundar. Voz algo cantada. Nunca se irritava. Aluna de razoável a boa. Nada superficial embora não fosse um tipo acadêmico, de viver lendo. Viam-se bastante no Regência, restaurante em frente a um dos cinemas da moda na rua Augusta, próxima à Maria Antônia. Comida alemã boa e barata. A textura e o calor da batata ao molho branco supriam a falta de paladar. Ali Iara conheceu o crítico e ensaísta Anatol Rosenfeld. intelectual mitológico, e a psicóloga Regina Schnaiderman, que o descrevia como um contato cultural que transcende a informação que vem dos livros... com quem se aprende uma ética... que tem algo a ver como amor ao conhecimento, com responsabilidade, com respeito, com dignidade, com liberdade, com desalienação e participação no social"2. Maria Lucia, 18 anos, comportada, estudiosa, loiro rosto de boneca, mal acreditava nas críticas ferinas de Iara à família, ao casamento. Evelise, que já a conhecia bem, acompanhou sem espanto suas novas exigências acerca do homem ideal: bonito, inteligente, meio filósofo, de preferência ligado às Ciências Sociais. – Em último caso dispenso a beleza. Mas engenheiro, jamais! Diferente era Rachel, presença aconchegante de irmã mais velha, moderadora do entusiasmo, que a sobrepujava e protegia. Casa organizada, filhos bem educados, judaísmo

tranqüilo;

burguesa,

cosmopolita.

Depressa

elegeu-a

orientadora.

Filosofavam. Expunha as dúvidas, traumas, o casamento, a vontade de ter filhos. Visitava-a para curtir as crianças. Falou de Rosa, Raul e Melo, seu amor pelos irmãos. Rachel enternecia-se. – Tinha jeito de adolescente que se julga adulta. Apenas Psicologia não bastava. Iara queria gente especial, professores famosos.

2

Prefácio a O Pensamento Psicológico, de Anatol Rosenfeld. Ed. Perspectiva, 1976.

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– O saber é um pouco de tudo e depende da emoção. Funciona a estímuloresposta, certo? – caçoava, erro proposital. Se havia alguém atraente na Cinemateca recém-descoberta, não perdia as sessões. – Embaralhei a motivação – ele ou o filme? Brincava, o riso grande: – Acho que vou assistir a uma conferência na Geofísica. Evelise incomodava-se um pouco. – Por desfrutar de liberdade, fora dos padrões, ela possuía um elemento de avanço, coragem e desprendimento. Pulava de um tema a outro na profusão que correspondia a seu desassossego, carregando a caixa de lenços de papel, incessante rinite. Assistiu a aulas de pósgraduação na cadeira de Estrutura do Romance e Cinema, a cargo do escritor e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes. Repetia as tiradas irônicas, orgulhosa de aproximar-se de um dos pais da Cinemateca Brasileira. E seduziu-se pelo assistente, o pintor e poeta Sérgio Lima, 24 anos, dono de um currículo apreciável: especialização em Linguagem Cinematográfica na Cinemateca Francesa, secretário da Cinemateca Brasileira. Alguém do mundo exigente que citava os Cahiers du Cinéma. – Jovem, cativante, presença forte, ela vivia perguntando. Essa inquietude aproximou-nos. Um relacionamento relâmpago, dois, três meses. Iara esclareceu que se desquitava do marido. A mentira convencia, dado o cotidiano de solteira. Porém a dubiedade desorientou-o e Lima evitava lugares públicos. Tiveram raros encontros no apartamento do pombal. – Eu discordava da situação, difícil para mim. Víamo-nos em aulas e reuniões. O rapaz, ligado ao movimento surrealista, esbravejava contra os partidários do engajamento e Iara descobriu o debate que cindia os artistas. A arte já possui valor político em si. Quem a utiliza como pretexto faz academicismo estéril, imagens aumentadas do típico, o crivo da ideologia a selecionar o "educativo". Já o inconsciente, causa matriz do comportamento humano, fonte inesgotável da imaginação, é superior ao mundo fenomenal, ambos integrados numa superrealidade. – O verdadeiro pensamento é livre dos controles da razão, de preocupações estéticas ou morais – passou a defender. – Aprendi no manifesto surrealista do poeta André Breton, de 1924. É preciso libertar a sensibilidade adormecida. 69

Ganhou do namorado, no 19° aniversário, seu primeiro livro, Amore: uma descrição do feminino em vários cantos. Foi perto do fim. Tara, segundo amigos, contou o caso a Samuel. Não se tratava apenas de enciumá-lo, manobra de dominação ou desfeita, embora o sabor do desagravo estivesse presente. Refletia a franqueza amiúde beirando o insensível, a irritação contra meias-verdades que numerosas vezes flagrava em si. Expor-se arriscava sofrimento? Tant pis, dizia, imitando o namorado e inebriada de sinceridade. Sartre não escreveu "il fa Jaire du Scandale"? Violentado nos escrúpulos, Lima afastou-se. Acusava-a de delatora, Raul Fiker, que foi amigo de ambos, regala-se com a lembrança. – Extremado nas antipatias, ficou com grande bronca dela falava bem dele. Contou que mandava flores, romântico. Ely visitou-a e espantou-se: remexia na cozinha em companhia a Rosa, já adolescente, Carne moída boiando num panelão de água, batatas mutiladas. – Ando num esforço, dei até para cozinhar – debochou, sugerindo que tentava salvar o casamento. Não queria voltar ao Ipiranga. Mostrou à amiga o livro de Sérgio Lima e alegremente as três rumaram ao Frevinho, lanchonete da moda na rua Augusta. Foi a última vez que Ely a viu. Samuel em plantões, Rosa pernoitava bastante. Reclamava da luz acesa, Iara a ler na cama, jazz no rádio. – Só até aqui – negociava, marcando a folha na grossa biografia de Freud, de Ernest Jones, publicada em português há pouco. A entrada de Iara na Faculdade abriu horizontes à família Iavelberg. Converteu os irmãos menores à música erudita, Vivaldi primeiro. Introduziu-os aos filmes de arte no cine Bijou, praça Roosevelt, no centro. Convidava-os às lanchonetes da moda, à Confeitaria Yara da rua Augusta, então uma das melhores. Levou Raul ao teatro pela primeira vez; assistiram Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, no Teatro da Universidade Católica, o TUCA Parecia uma estrela cadente em casa dos pais, por causa do afeto a envolver inovações. Quando almoçava no Ipiranga escolhia temas polêmicos. – Por que não dormir com o namorado? Por que tem de casar virgem? Inspirava-se nos artigos de Carmen da Silva, na revista Claudia: temos de ser as protagonistas de nossos destinos. Abordava o preconceito contra nacionalidades,

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o elitismo e, agora conscientes, a competição e subserviência do bairro. Ensinou etiqueta à mesa, garfo na mão esquerda, faca na direita. – É bom aprender. Você vai à casa de um amigo, não sabe segurar os talheres. Raul reclamou, depois cedeu. Cursava o Científico num colégio de classe média, longe do bairro. Jogava tênis, lia. Afastara-se de Gelson, irmão de leite. – A cada vez que vinham, Iara e Melo faziam revelações. Foi uma ruptura cultural. As buscas amorosas de Iara alcançavam o bairro mirabolantes, deixando David inconformado. Eva defendia-a. Casou-se com 16 anos, não deu certo. Tem de viver. Esforçava-se por repensar os princípios e quase transformou a filha em orientadora. – Os papéis inverteram-se um pouco e minha mãe assumiu em alguns aspectos o lugar de aprendiz-julga Rosa. – Foi um processo talvez para acompanhar o desenvolvimento dos filhos. A meu ver. envolve certa culpa: deve-se apoiá-los em tudo? Porque o apoio redundou numa tragédia. – Creio que os pais eram mais tolerantes do que ela dizia – opina Maria Lucia. – Sem aplaudir. À medida que permitiam a cultura, as tradições. – Você é jovem demais, por isso não valoriza a família e está desenraizada – criticava-a Maria Alice Leme, dotada de status especial na classe: 35 anos, cinco filhos, irmã do compositor Paulo Vanzolini, o marido diretor do Banco Central. Percebia-a desnorteada diante das sutilezas da Faculdade, incapaz de avaliar a zoeira ao redor e sem interlocutor em casa. – A diferença na visão de mundo é intransponível – respondia. Quanto a Samuel, encrespavam-no as mudanças da mulher. Iara queixou-se a Maria Lucia e Evelise: implicante, queria tolhê-la controlando o pouco dinheiro que lhe dava. As amigas sentiam-no frio e desconfiado. Às vezes, contudo, acompanhava-as ao programa quase diário de cinema ou teatro. De tempos em tempos saía com Iara – casal bonito, um compondo o outro. Na verdade, davam-se suporte. Ele, pouco estimado pelos colegas, diziam, só tinha a mulher e o encalço da perfeição no trabalho. Ela, sem domar as emoções, apegava-se ao marido.

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O desejo de filhos e a crença de que resolveriam o impasse a conduziram ao médico. Meses de temperatura basal, medicação e o resultado desolador: não ovulava. Faziam-se experimentos com hormônios porém os resultados tardavam. Não via a hora de freqüentar as aulas de Psicologia Social a cargo da professora Anita Marcondes de Castilho Cabral3, fundadora dos cursos. O estudo permitia interferir nos fatores que infelicitavam as se ao marido. pessoas, supunha, espécie de aconselhamento aplicado à comunidade. É o que faria como psicóloga. Queria ajudar. Despolitizada, revelava uma vontade política. As aulas decepcionaram-na. A matéria estudava o comportamento social humano relacionado à Psicologia, Sociologia e Social. Havia experiências que comprovavam o óbvio: um grupo antes instruído afirma que a mais comprida de duas linhas é a curta. A pessoa alheia, que serve de cobaia, dificilmente resiste à pressão social: e concorda. O panorama modifica-se ao surgir alguém que indica a linha efetivamente curta. De repente Iara alvoroçou-se, é a luz da ciência no processo que leva um grupo a tomar decisões. De certa maneira o papel que se atribuía, de questionar comportamentos, adquiriu novo Antropologia sentido. Na Cidade Universitária em construção assistiam às aulas de Biologia, que desagradavam à maior parte dos alunos de Psicologia. O adiamento para o fim do curso era comum. Iara matriculou-se e assim conheceu a formanda Jandira Masur4. Quase invariavelmente almoçavam juntas. Iara falou do fracasso conjugal, a mágoa de ser estéril. – O comentário não tinha tom de "Oh, que pena, que duro" acabrunhamento ou peso. Vivia alegre. Era muito jovem. Agitava as mãos ao falar, brilho nos olhos, cercada de gente. Cabelo solto, algo de exuberante. Rachel presenciou a única recusa de Iara em fazer um trabalho no curso de Biologia – dissecar um sapo vivo, anestesiado. A violência e o sofrimento do animal horrorizaram-na. Abandonou a sala. José Severo, que lecionava Estatística, 40 anos então, participou de outro episódio. Iara caminhava pela calçada na Maria Antônia, em frente à Faculdade, no instante em que atropeIaram um cachorro. Descontrolada, correu para o professor que se aproximava, enquanto o cão gania em contorções: 3

Faleceu em 1991. Foi escritora de livros infantis, chefe do departamento de Psicobiologia da Escola Paulista de Medicina e uma das maiores autoridades em alcoolismo do Brasil. 4

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– Você viu? Venha socorrer o bicho! Severo carregou o acidentado até seu carro e foram ao veterinário na próxima avenida Angélica. Só uma perna luxada. Apesar da fobia, Iara quis adotá-lo. O porteiro de seu prédio impediu-a, o regulamento vetava animais. – Por causa dela criei dez cachorrinhos. Era fêmea. Iara sofria nas aulas de Estatística. Insuficiente encontrar temas que agitassem a classe, recurso plausível em outras cadeiras. Sem anotações meticulosas e muito estudo, ninguém passava. – Fazia perguntas contestadoras, a questionar a lógica do raciocínio. Mas não foi boa aluna. Nas outras matérias também não brilhava – a ansiedade impedia-a de concentrar-se nas leituras. O hábito de trabalhar com as amigas ajudou-a. Quase sempre Maria Lucia e Evelise vinham ao seu apartamento – agora em outro prédio, do outro lado da avenida Paulista e ajeitavam-se em meio à terrível desordem. Na cozinha, louça amontoadada há dias. Na mesa da sala, pratos de comida, migalhas de pão, livros e anotações. A cadeira do quarto um depósito de roupas, a cama desarrumada, lençóis sujos e a inexplicável ausência de uma diarista contraste gritante com os cuidados consigo, sempre na moda. A cólera de Samuel, armário impecável, deixavam-na indiferente. – Sou da bagunça organizada, sei o lugar das coisas. Trabalho Que não tiver um pinguinho de molho de macarrão, não é meu. As amigas comiam sanduíches e tomavam café. Nos dias de grande inspiração, Iara misturava batatas, ervilhas, atum e maionese. Pedia, entretanto, que lhe abrissem as embalagens. Reiterava: usar as mãos não é comigo. – Eu sou mesmo uma incompetente dispráxica – charmava, esperando que lhe abrissem a porta de algum carro cujo mecanismo desconhecia. – Mas você não está aprendendo a dirigir? – Ah, nasci para coisas intelectuais. Em geral Maria Lucia afastava-se das amigas, deixando-as a falar de mil coisas mais excitantes que os textos. Rachel, igualmente promotora de grupos de estudo, chamava a atenção de Iara quando, dispersiva, investia em especulações, montando teorias em cima da pouca leitura. Nos seminários, convincente ao discorrer sobre o

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tema, sagaz, persuasiva, brincalhona, introduzia como pensamento do autor inferências próprias. A implicância de Evelise divertia-a. – Em qualquer trabalho sempre existe um jeito de virar o tema e falar do que sei – provocava. A compensar as lacunas, era assídua e respeitava os mestres dedicados. Exibia mau humor aos displicentes. – Às vezes se impacientava, angustiada, ante a pouca profundidade da aula. Discutia, procurava os professores fora da classe – presenciou Rachel. Em julho, Iara convidou Clarilza para as férias em Santos. Passada a grande nova da Faculdade, combinara uma praia com Honório. Desencontraram-se. Em lugar dela viu-o Cecília, que se indignou. Desiludida, Iara namoricou garotões de praia, revoltando Clarilza. – Eles se assanham porque você é casada, não têm o menor respeito. Você se desvaloriza. – Quero estar apaixonada. – Eles caçoam de você! – É – amofinou-se. – Isso torna a ligação indigna. No outro dia a sede voltava e comparecia ao footing. No retorno à Faculdade, Iara quis amigos menos convencionais. Durante as aulas de Biologia, acintoso como convinha aos contestadores, um colega do último ano lia, ignorando o professor. – Você não é o Cláudio Willer? Poeta, 23 anos, integrava o grupo de artistas plásticos surrealistas, a boemia literária e seus satélites. Ficara famoso na aldeola dos Jovens intelectuais paulistanos ao hostilizar o poeta e cronista Paulo Bonfim e os concretistas; preparava-se para distribuir, na Bienal daquele ano, um necrológio anunciando a morte dos poetas Lindolf Bell, Hilda Hilst, Renata Pallotini e Ferreira Gullar, entre outros. Só queria doer de geração beat e anarquistas. Seu grupo redigia manifestos, tumultuava conferências A simpatia foi imediata. Willer promoveu uma festa para apresentar Iara aos amigos. Morava numa kitchenette pegada ao apartamento dos pais, na esquina do viaduto Major Quedinho e 9 de Julho – localização estratégica no centro da cidade.

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Perto, os cinemas que exibiam filmes de arte, a Biblioteca Municipal, os bares ao ar livre da avenida São Luiz, teatros e livrarias. Sucederam-se festinhas e alguns namoros. O estudante de Arquitetura do Mackenzie Decio Bar5 e Maria Lucia, o marchand Roberto Ruggero e Evelise, o poeta Antonio De Franceschi e Iara. Mas numa festa no apartamento dela, Samuel no plantão, De Franceschi saiu à francesa. Muito aborrecida, Iara expôs abertamente a depressão e pediu que todos partissem. O rapaz preferia a noiva. – Sair sozinha, transar sem namoro, hoje é normal. Naqueles tempos não – coteja Willer. – Iara, avançando o sinal, quebrava a cara. Em outra festa, saudosa, convidou Honório e desceu a esperá-lo na calçada. No apartamento já lotado de gente esconderam-se num canto, até a madrugada em abraços e beijos. Foi o último encontro. Depois desses eventos Iara enfileirou paixões quase platônicas. – Ele e muito gente – justificava-se às amigas. Só o amor fazia a vida explodir. Freqüentemente, nas noites em que estudavam juntas, discutiam sua instabilidade afetiva. Evelise garantia que Iara sabotava as relações. De fato atiravase, desafiante, no anseio anticonformista, gozo de onipotência, compulsão de afirmar a liberdade. Sem pensar a respeito, ao menor sinal de rejeição protegia-se num substituto. – Provavelmente existia um universo de idealização da vida, que as relações amorosas evidenciavam – reflete a irmã Rosa. Os rapazes temiam o ritmo incontido, a carga emocional e a própria inexperiência. Também os assustava o marido, crimes de honra. A ambivalência dos flertes ampliava em Iara a expectativa e sentimento de rejeição. Na verdade, pouco mais conhecia do que qualquer uma de suas amigas solteiras. Continuava virgem. A amizade com Willer durou anos. Combinavam cinemas, restaurantes, acontecimentos culturais. Toda noite acontecia alguma coisa, nem que fosse apenas sentar-se num bar e beber cerveja. Não paravam em casa. Willer emprestou-lhe a edição espanhola das Obras Completas de Freud e um de seus livros prediletos na época, Quadriade, de Octavio Paz. Da maior importância foi desvendar-lhe os poetas beats. Empolgou-a o protesto febril da década de 50 contra o mundo esquizofrênico dividido entre stalinismo e macartismo. Abaixo a arte intelectualizada, o que vale é 5

Suicidou-se em 1991.

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viver – não, claro, a vida de rebanhos obedientes às palavras-de-ordem do consumo e das ideologias, desatentos ao complexo militar-industrial para cuja necessidade e riscos Eisenhower alertara no discurso de despedida em janeiro de 1961. O monstro já gasta mais do que a receita líquida de todas as corporações americanas, emprega diretamente três milhões e meio de empregados, ouviu. A "civilização" ianque, de cidadãos amedrontados, transformou-se num Estado Policial, Chaplin e tantos outros buscam refúgio na Europa, trágico retorno ao continente recém-destruído. Uma alucinação coletiva controla a política e a economia Ocidental, assassina legalmente o casal Rosenberg. O instinto de morte comanda, há um mentecapto anônimo, dedo no botão, pronto a aniquilar o planeta. Restariam baratas mutantes, dinossáuricas. Qual a escolha dos beats? A solidão e a consciência, enfatizava Willer. Beat das batidas de jazz, do coração, a derrota da derrota quando se despreza o impulso de dominar pessoas, movimentos, a própria Natureza. Exceto a busca do essencial, tudo lixo. Começamos pela elite cultural, subserviente, ávida por lasquinhas de poder. Bobos da corte, pedintes de emprego público. Abaixo o academicismo, o engajamento burro. Só valem experiências sensoriais, afetivas, místicas, drogas. Encontravam-se também nos intervalos de aula a caminho do café na esquina da Maria Antônia, romaria para cruzar pessoas, professores, saber fofocas. Iara fez um trato com o balconista: cafezinho de graça em troca de gorjeta. Cultivava também a Doceira Holandesa na direção oposta. Apesar da quase permanente dieta, comia uma ou duas fatias de bolo de chocolate. Tão boa a percepção do doce! Bebia pouco, não fumava. Experimentar maconha no Quitanda, bar de batidas que atraía estudantes de faculdades próximas, nunca. Ali, reino do samba, cantava. – Lembro de um dia em que o Chico Buarque chegou e disse: "Olha, vou cantar pra vocês uma música nova". E começou: "Madalena foi pro mar..." Muita coisa compôs na hora – diz Maria Lucia. Num dos bares Iara conheceu Moacir Villela, estudante de Arquitetura, 19 anos como ela. Apaixonou-se logo. Bonito, alto, ombros largos, moreno, rosto expressivo. É tímido, de Bebedouro; meio artista, a gente canta até de manhã, explicava. Deu-lhe a entender que se desquitava – Ser recém-separada tinha certa aura. Nós, adolescentes, sentíamos encanto e certo medo – observa Moacir.

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Limitou-se a namorico de fim de tarde, Cinemateca, papos de bar. Falava-se de reformas de base, aliança operário-camponesa-estudantil. As teses de política nacional não a mobilizavam, exceto a reforma universitária. O ensino superior, afirmaram, centra-se no trabalho acadêmico. Desconfia do nacionalismo e não estuda o homem brasileiro, n operário, os famélicos da terra, Precisa mudar. Purista, afastase da cultura popular. A estrutura retrata o elitismo: cátedra vitalícia todo-poderosa, que comanda a neutralidade do pensamento científico e os ideais de integração das classes sociais. É urgente pôr fim à cátedra, organizar departamentos. Paritárias. Pesquisar os problemas brasileiros a exemplo de alguns professores, principalmente das Ciências Sociais, Filosofia e Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Súbito, Iara envergonhou-se das posições do marido. – É um reacionário – confiou espantada, lembrando-se da briga com Felícia. Pela primeira vez prestou atenção aos colegas que falavam em conscientizar de seus direitos e dignidade as massas exploradas. Dotá-las de meios, valorizar-lhes a cultura. É bela a arremetida da UNE que em 1961 criou o Centro Popular de Cultura – CPC. Teatro, literatura, música e até alfabetização nas periferias do Rio, São Paulo, Recife. A arte difunde valores éticos e traduz a realidade social e política brasileira. Cláudio Willer talvez esbravejasse, mas Iara concordava. Era válido. Não demorou, ela e Maria Lucia foram eleitas representantes de classe junto à Coordenação de Psicologia, para discutir questões letivas. Os estudantes exigiam reconhecimento legal, um período noturno, salas próprias. Criticavam a estrutura autoritária, os professores incompetentes, vagas escassas. Nas provas finais Iara passou relativamente bem. Mas em Estatística não adiantou divagar. Reprovada, estudou as férias inteiras. Conseguiu aprovação no exame de segunda época mercê dos preciosos cadernos de Maria Alice Leme, cuidadosamente anotados. Quando a colega os pediu de volta, não sabia onde estavam. – Chi, preciso procurar na minha bagunça. E ficou por isso.

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O Golpe de 1964. Decio Bar

DESDE O FINAL de 1963, Melo alardeava ares misteriosos. Vivia no Grêmio, salão contíguo ao restaurante da Faculdade, atravessado o pátio que separava a Filosofia da Economia. Faltava às aulas. Curiosa, Iara questionou-o e soube que o irmão se engajava num dos grupos radicais da Faculdade: a Organização Revolucionária Marxista Política Operária – POLOP ou P.O. Como primeiro passo, aprendia marxismo em círculos de estudo. Que tal Iara e Maria Lucia sapearem? Evelise fora de cogitação, indiferente à política. Uma ressalva: dos candidatos exigiase uma base marxista. As duas desdenharam o convite. Política era preocupação terciária e Melo um rapazola. Que petulância, insinuar que lhes faltava "base"! Seria vexatório segui-lo e reconhecer a própria ignorância. Coisa de cair a coroa. O segundo ano de Iara na Faculdade, 1964, começou exaltado. Direita e esquerda alardeavam a iminência do socialismo, capitalizando o clima de incertezas e o governo fraco desde a renúncia de Jânio Quadros. A crise econômica – inflação, alta do custo de vida, endividamento externo, corruptos em todos os níveis, inchaço urbano, migrantes – radicalizava as posições. Reformas de base, proposta do governo Goulart com vistas a desenvolver o mercado interno, acirraram a oposição conservadora, avara de seus privilégios. A pequena burguesia apavorou-se. Vinha aí o comunismo de olho no único imóvel, o automóvel comprado a prestação. É verdade que o passo inicial da reforma agrária, o Estatuto da Terra, fora rejeitado pela Câmara dos Deputados; e a reforma urbana era um delírio. Porém os movimentos populares, as greves operárias, o exemplo de Cuba, a participação estudantil, educadores a politizar camponeses e operários, sinalizavam transformações perigosas. O Exército tinha que dar um basta. Grupos universitários paramilitares, polícia política ao lado, agravavam o clima de confronto. Quando João Pinheiro Neto, responsável pela Superintendência da Reforma Agrária, veio participar das "Conferências pela Paz" na Faculdade de Direito da USP, os direitistas impediram-no de entrar; coisa de comunista, a queimadíssima palavra "paz" o denunciava. Os organizadores tentaram transformar a palestra num comício em favor da reforma agrária no largo de São Francisco, diante da escola. O 78

resultado foram tiros, pancadaria, fogo no automóvel do conferencista. A UNE reuniu a liderança universitária no Centro Acadêmico XI de Agosto e decretou greve contra a política do governador Adhemar de Barros, que impedia a toda a liberdade de expressão1. Mal recomeçavam as aulas e Iara aderiu ao protesto com Faculdade de Filosofia, convicta de integrar o grande movimento nacional que derrotaria as forças antinacionalistas da direita. Pouco depois, em Porto Alegre, João Pinheiro Neto qualificaria de "arreganhos senis" as diatribes anticomunistas do ex-interventor da ditadura Vargas em São Paulo. Expressava a ingenuidade que vestia a esquerda. Menos de um mês se passou e o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, baixado pelos militares que derrubaram o governo constitucional, suspendeu-lhe os direitos políticos por dez anos. A lista de 100 pessoas começava com Luiz Carlos Prestes, seguido de João Goulart e alguns de notória fama corrupta como o ex-governador do Paraná, Moisés Lupion. O 92° cassado era o deputado federal Rubens Beirodt Paiva2, ativo nacionalista desde a luta pela Petrobrás, e participante da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigou as verbas americanas na consecução do golpe. O cabo Jost Anselmo dos Santos, marinheiro que se bandeou para a repressão fechava o rol. Apesar do nervosismo geral, Iara continuava envolvida em cinema, festas e amor. Queria manter a cor bronzeada e nos fins de semana ensoIarados de março, já outonais, guiava seu fusquinha com cautela de recém-motorizada à Hebraica. A beira da piscina, reencontrou Decio Bar. Acabara de publicar um livro, o que contribuiu para o namoro. – Decio não é bonito mas tem o essencial, boa cabeça e humor – explicava. O casamento de Iara não o amedrontava como aos outros, embora constrangesse. Visitava-a e várias vezes subiram ao solário vazio no topo do edifício em busca de sol, conversas e cerveja. Um dia aconteceu de Samuel chegar ao apartamento e Iara apresentá-los. – Não gostou de me ver. Saiu da sala secamente. Achei que devia me mandar. Apaixonado, preferia que a namorada se desquitasse. Mas nada falou. Do contrário supunha-se obrigado a propor casamento, instituição que ambos diziam 1

Segundo testemunhos, depois do golpe preveniu alguns membros do Partido Comunista da prisão iminente, o que lhes possibilitou a fuga. 2 Rubens Paiva foi assassinado por torturadores no quartel da Polícia do Exército na rua Barão de Mesquita, no Rio, em janeiro de 1971 (testemunho do ex-segundo-tenente médico do Exército, Amilcar Lobo, à repórter Marta Baptista 90 Veja, 3.9.1986).

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repudiar. Também intuía a existência de laços fortes entre o casal, apesar das queixas. Decio foi importante porque a amou sem restrições. Seu apoio reassegurava. Era possível rir, gozar momentos calmos. Não parecia temer a desenvoltura sensual com que circulava na Faculdade. Consumado o golpe a UNE conclamou resistência e greve geral. O presidente do Grêmio da Faculdade de Filosofia, Fuad Daher Saad, convocou assembléia para ratificá-las. O salão encheu-se de estudantes ávidos por diretrizes. Não se tratava da primeira assembléia a que compareciam Iara, Maria Lucia e Evelise. Mas foi um rito de passagem. O calor das centenas de colegas, comprimidos nas cadeiras e de pé, crescia com os discursos e a indignação. Somos joguetes da guerra fria, os americanos brandem o fantasma do anticomunismo que os fez prosperar. Cubanos, não russos, derrubaram o corrupto e cruel ditador Batista, sustentado pelo descaramento do imperialismo. Os milicos golpistas brasileiros, fobia a mudanças, são paus-mandados. A Escola Superior de Guerra é o órgão brasileiro da CIA. Essa fomentadora de tiranos, com auxílio dos asseclas latifundiários e a alta burguesia, a escória sevandija, marchadeiras, o IPES e o IBAD, entidades de pesquisa devotadas ao descrédito, desestabilização, espionagem e boatos3. E provê grupos estudantis paramilitares, a FJD, MAC, MED, CCC4, espécies toscas de antropóides que desejam nos intimidar. Jango foi derrubado ao pretender a metamorfose do país de jagunços, rega-bofes e apaniguados, em mera democracia burguesa O polvo americano condenou o continente ao círculo da pobreza. Tomem nota, entretanto. As forças armadas estão divididas. Ajudaremos os militares democratas a derrotar a casta obscurantista que vive da exploração. Da Sierra Maestra, dos pântanos do Vietnã, das selvas do Congo, das montanhas da Venezuela que Douglas Bravo conquistou, os revolucionários nos iluminam. Resistir. No pasarán! Sob aplausos e lágrimas a assembléia votou pela ocupação da Faculdade, agora um foco de resistência. Jango e Brizola articulariam a luta acionando os grupos de 11, o povo pronto a reeditar o Exército da Legalidade de 1961. A balança é antigolpista, não sobrestimem a direita.

René Armand Dreifuss: 1964: A Conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Ed. Vozes, 1981. 4 "Frente da Juventude Democrática, Movimento Anticomunista, Movimento Estudantil Democrático, Comitê de Caça aos Comunistas. 3

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Dia 2 de abril, um grupo de aproximadamente 80 estudantes da Filosofia5 saiu em passeata, amedrontando a população no centro de São Paulo. Bradavam por greve geral em apoio a Jango. Ao invés de armas e militares leais à democracia, o DOPS tomou o prédio da Maria Antônia. tiroteio feriu as paredes e afugentou as sentinelas universitárias postadas nas quatro entradas. Avisados do cerco, professores solidários ministraram aulas de improviso. Vandálica, a polícia expulsou os alunos das salas, destruiu as instalações do Grêmio e deteve estudantes, entre eles Fuad. Os presos sofreram humilhações. A mais néscia, entoar o Hino Nacional. No dia seguinte o jornal O Estado de S. Paulo intitulou a sanha destruidora de "Diligência em Faculdade". Mas a 15 de maio publicou um Vigoroso protesto do antropólogo e sociólogo Paulo Duarte – ninguém ainda ousaria calá-lo. Denunciava a depredação e torpeza de alguns integrantes da própria Universidade, destaque ao reitor Gama e Silva que pressuroso no expurgo e monopólio do poder, instituiu o grupo interno de caça às bruxas, diretamente ligado aos órgãos de segurança*. Os universitários ficaram em estado de choque. Nada mais real que invadir a Faculdade ou o abjeto comitê para investigar "subversão". Lembra malhação do Judas, comparou Iara, sombria de ameaças. Aliás, a Semana Santa aproximava-se.

João Roberto Martins Filho: Movimento Estudantil e Ditadura Militar –1964-1968, Papirus Livraria Editora, Campinas (SP), 1987 – "Enquanto a intervenção militar avançava, as escolas mais ativas transformavam-se em pólos de aglutinação para aqueles que esperavam diretrizes dos partidos de esquerda e das organizações populares... É possível dizer que as vicissitudes de abril vão estar na raiz das guinadas da esquerda estudantil alguns meses depois... Habituados à idéia de que o Exército seria o garantidor das reformas exigidas pela estrutura arcaica do País, os estudantes custaram a perceber que os tanques se haviam voltado contra eles". * “... A polícia de São Paulo negou à Universidade a grande autoridade moral que a sociedade, por todos os seus órgãos, lhe deve (...) A invasão da Faculdade de Filosofia, à rua Maria Antônia, foi ‘menos para investigar do que para depredar, para destruir instalações, inclusive máquinas de escrever (...) As portas eram abertas a pontapés, embora ninguém se recusasse a abri-las, os objetos eram atirados ao chão e destruídos (...) o fato é que tais atentados quase sempre também não têm por objetivo a manutenção da ordem e a preservação do regime vencedor, mas se traduzem na execução de denúncias dadas por inimigos sem envergadura, que se aproveitam dos momentos de confusão para vingar-se de agravos pessoais. ‘Em O Livro Negro da USP, Ed. Da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo, 1978: ‘Instaura-se, assim, o processo absolutamente inédito na história da Universidade, do terrorismo cultural intenso promovido pelo próprio reitor (...) que... obedecia à logica própria de todo expurgo (...) afastar e punir portadores de idéias consideradas marxistas ou subversivas, duas qualificações notoriamente elásticas e imprecisas, o que torna o julgamento obrigatoriamente subjetivo. O próprio de todo expurgo é o vício fundante de envolver necessariamente no processo as referências pessoais, os ódios, as antipatias, a parcialidade dos acusadores. Por isso mesmo é que o expurgo possui uma finalidade estrutural fundamental com o fascismo. Dependendo da denúncia anônima e de calúnia, mobiliza a mesquinhez, o espírito vingativo e abre espaço para todo tipo de oportunismo. Por sua própria natureza... constitui instrumento político que favorece a ascensão às posições de mando, de um lado, dos espíritos mais tacanhos e intolerantes, de outro, dos oportunidades, com o que não se quer dizer, obviamente, que as duas coisas sejam mutuamente exclusivas’.” 5

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A truculência aumentou. Dia 7 de março destruíram a biblioteca do professor Mario Schenberg e o prenderam. Dia 9, homens da Forca Pública de Minas Gerais, acantonados no Teatro Nacional de Brasília, cercaram e invadiram a Universidade. Detiveram 11 professores e ignorado número de alunos. – Estão "elegendo" Castelo Branco presidente da República. Um Congresso expurgado, mais de 280 políticos cassados. Pode? – encolerizou-se Iara. Frustrava-se o sonho de arrancar o Brasil do pântano, as peruas verde-escuras C 14 a deter gente pelo país inteiro6, um estudante morto no Rio, a UNE incendiada. Não, a Maria Antônia não sucumbe sem luta, ninguém destrói a Universidade Brasileira. Lembravam Castro Alves nas assembléias, nem a patas de cavalo se faz um crime legal. E o momento da conscientização. Iara obstinou-se em definir a justiça intrínseca de cada conceito. Seria incoerente apregoar posicionamentos, maldizer colaboracionistas se não praticasse as convicções no dia-a-dia. Vieram-lhe os versos do sábio Hillel repetidos há dois mil anos, memória da escola do Cambuci: Se não eu, quem? se não hoje, quando? Distanciava-se, porém, do judaísmo dos pais, da família de Samuel, do Ipiranga. Queria sacudir a ignorância, trilhar a rota dos justos. – Por que a gente precisa fazer tudo igual aos pais e avós? – provocava. – Tá na hora de se desimprintar7. Quando Rosa se interessou por um jovem da Hebraica, não ficou em meiasmedidas. Indiferente à reação de Eva e David, que procuravam impedir sua influência sobre a irmã e viam o namoro com agrado, dedicou-se a promover o rompimento. – Ele é uma besta, um idiota! Absurdo. Você precisa dar um fim nisso – perorava, palavras que ouvira de Felícia. Lembrou o próprio casamento, jovem demais. Rosa convenceu-se. No posto de representante de classe, sem transigir, defendia modificações que aprimorassem o curso.

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Maria Helena Moreira Alves: Estado e Oposição no Brasil (1964-1984) Ed. Vozes, 1984 (Cap. II, "As bases do Estado de Segurança Nacional, 1964): Segundo a revista Time, em uma semana 10 mil pessoas detidas... Em setembro de 1964, a Comissão Internacional de Juristas, de Genebra, publicou relatório condenando o governo brasileiro "pela detenção continuada de oito mil pessoas, censura à imprensa e cassação de mandatos eleitorais". 7 Referia-se ao imprinting, uma forma de aprendizagem nos animais muito jovens, em certos períodos críticos. Por exemplo, algumas espécies de patinhos, ao saírem das cascas, seguirão o primeiro objeto em movimento em geral, a mãe.

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– Iara era combativa nas pequenas causas – conta Ecléa Bosi. – Empenhavase como se fôssemos perecer se ela não salvasse aquele pequeno pedaço de realidade: reivindicações por melhores aulas, certas injustiças. Admirava-me que gastasse tanto ardor em abrir caminhos para si e os outros. Na época eu não achava que a causa política se encontra estilhaçada em questões miúdas. Hoje sei que ela tinha razão. E que a pessoa apaixonada pela justiça não deixa passar nada. Na Semana Santa, Rachel e o marido aceitaram um convite de fim de semana prolongado em Ilhabela – 14 pessoas em uma casinha de praia. Além dos filhos, levaram Iara. Exceto as baratas, que a deixavam em pânico, adorou os feriados. Tratavam-na calorosamente, sem exigências ou agressões furtivas. Dedicou-se às crianças. Discutiu seus problemas com Rachel. Falou da mãe que estimulava os filhos, criticou o afastamento do pai. Debateu a fobia a cachorros. Analisou o casamento, consciente da vida pessoal contraditória. Cada vez mais complicado explicar por que continuava casada. – Sou muito agradecida ao Sá – confidenciou à hoje psicóloga Maria do Carmo Reginato Gama de Carvalho, na época presidente do Centro de Estudos da Psicologia, o Centrinho8. – Ajudou, deu-me força. Posso contar com ele. A instabilidade amedrontava-a. Nos seus vôos não corria o risco de soltar-se, um laço a mantinha. Resolveu fazer psicoterapia. Não quero ajustar-me, explicou. Tenho 20 anos. Defendo a liberdade e a franqueza. Busco autoconhecimento, segurança emocional. E cumpro o que se espera de uma futura psicóloga, ser analisada. Cláudio Willer avisou-a que um psiquiatra experimentava terapia de grupo na linha existencial, pouco ortodoxa. Combinaram uma conversa preliminar na Confeitaria Vienense. – Apareceram só o poeta Roberto Piva, Iara que trouxe Rosa, e eu – relaciona Raul Fiker. A casa de chá, propriedade de húngaros, no primeiro andar d um velho prédio da rua Barão de Itapetininga, central, recebia curiosa mistura de estrangeiros, intelectuais e prostitutas. O soalho de grossas ripas de madeira, as toalhas, louça, doces, tudo tinha ar de passado e lembrava o avô Bernardo, aconchego e angústia.

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Organismos de alunos dedicados à melhoria das condições específicas de cada curso.

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Gostou do psiquiatra. Inteligente, inovador, homem de esquerda e bonito. Sentiu-se bela no meio dos rapazes exóticos que fumavam maconha. – Estava animada e falamos a tarde inteira. Só que no dia de começar não apareceu – caçoa Raul. – Preferiu terapia individual Nosso grupo "desregrado" entrava, ela saía. As discordâncias políticas aprofundaram o desgaste entre Iara e Samuel. Não se perdoavam. Ela ao menos compreendeu na psicoterapia que ao marido, sintoma típico de médico, era difícil lidar com emoções. A postura de sacerdote e a autosuficiência aumentavam o temor de abordar a intolerável vulnerabilidade. Contra o desquite, entretanto, havia a história em comum e o prejuízo da imagem profissional. Do lado de Iara, representaria uma espécie de orfandade. Deveria ser tão difícil quanto colar os cacos da taça que Samuel pisara no ritual do casamento. Chorava. Debatiase prisioneira dele, de si, do fracasso, ignorante das próprias necessidades. Eva e David também se preocupavam. Atentos, sem abandoná-la, provavelmente dificultaram o sentido que ela pretendia dar à separação: reconstruir a vida em moldes diferentes. O quadro provocava grande escândalo, envergonhando os familiares Iavelberg e Haberkorn. Confusa, diversas vezes vacilou aceitando manter as aparências. Em julho, Juscelino foi cassado. Revoltava os militares o enorme apoio popular de sua candidatura às eleições de 1965. A oficialidade linha-dura, insuflada por Carlos Lacerda9, outro aspirante civil à presidência, exigira a medida. – Desbancam os líderes com força eleitoral – diagnosticaram no Grêmio. – Juscelino, safardana, assistiu de camarote Jango a se enterrar. Voltaria salvador. Lacerda tira JK do páreo mas será o próximo, Mosca azul é fogo. Levam o corvo no bico. Ficou perplexa. Não entendia de política, tampouco era culta. Precisava ler, estudar. Primos de Samuel ofereceram um churrasco à família, num loteamento. Iara chegou-se a Cecília para comentar as pessoas, impulso de voar dali. Insuportável a visão de mundo conformista. Acusava olhares inamistosos, sorrisos mecânicos, anedotas. Infelicidade e hipocrisia associavam-se, sinérgicas. O desassossego

Carlos Chagas, A Guerra das Estrelas – Ed. L&PM, 1985: Da Europa telegrafou a Rafael de Almeida Magalhães, vice-governador indicado: "Já cassaram o ladravás-mor?" 9

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intensificou-se quando começaram a comer, apetite desperto pelo cheiro excitante da carne que não sentia. E atingiu o auge com a choradeira manhosa de um sobrinho de Cecília. – Pára de chorar – ordenou a amiga. Iara ergueu no colo o pequeno já suado e aconselhou: – Não pára de gritar, não. Respirou: – Grita, pode gritar que faz bem. E mostrou, num crescendo: – Аааааааааааааа! Ааааааааааааааааа! Retomava o fôlego e recomeçava. Os familiares interromperam o almoço, atônitos – um filme a câmara lenta e nublada – para ver Iara, Cecília e a criança agora emudecida, que observava a boca escancarada, os olhos apertados, o nariz um pouco franzido da tia a urrar. Samuel, que conversava perto e também se voltara, deu as costas à mulher como se nada ocorresse. Foi o sinal, o almoço recomeçou. Os berros, vagarosamente, cessaram. – Tive a sensação de que Iara, castrada a vida inteira, se libertava. As vibrações, os gritos, o rompimento me impressionaram. Já o menino, acho que nunca mais fez manha na vida. Ainda não conseguiram separar-se. O caso com Decio prosseguia, ambos adolescentes e brincalhões. – Você a amarrava na risada. Enquanto tudo estivesse em gargalhada, ela virava a noite. Vistosa, esfuziante. Os dois gostavam de dançar e muitas vezes iam à pista em ocaso, pertinho da Faculdade, do João Sebastião Bar, desaparecidos os intelectuais e notáveis que celebrizaram a casa noturna. Também não perdiam festas. Invariavelmente, terminada a bebida, arrecadavam dinheiro para comprar mais. Porém empregavam a verba nas rās à doré do Cacciatore, restaurante da moda no Bixiga. Nunca ninguém reclamou. Decio reviu Samuel em Campinas, na casa de uma colega de Iara que ofereceu almoço e piscina ao bando completo da Faculdade. Não transpareceu animosidade.

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– Conversei bastante com Haberkorn, muito simpático, civilizado, embora visivelmente não acertassem o casamento. Falamos de Medicina Psicossomática, pois eu era reichiano – reteve Willer. Em setembro de 1964 prenderam o professor Florestan Fernandes, causando enorme comoção entre estudantes e intelectuais. O mestre previa a intimação. Seu nome constava da lista elaborada sob a chefia de Gama e Silva, de alunos e docentes a desligar. Decidido a transverter a violência em fato político oposicionista, e impedir a detenção indefinida, escreveu uma carta de protesto e deixou cópias com a secretária. Numa sexta-feira, durante um curso no Centro de Pesquisas Educacionais da Cidade Universitária, chamaram-no à Diretoria da Faculdade. Esperava-o um tenentecoronel ligado ao Inquérito Policial Militar – IPM, da Universidade. Em lugar de depor, Florestan Fernandes entregou a carta10. – É minha condição para prestar decIarações – disse-lhe. – O senhor é militar. Sua concepção suprema é a disciplina. Eu sou intelectual. Nosso valor é a liberdade crítica. O oficial leu o documento. Dado o teor, quis devolvê-lo. Do contrário, teria que prendê-lo. Diante da negativa, o diretor Mário Guimarães Ferri chamou Florestan ao gabinete. Tentou dissuadi-lo: – Sua família está exposta a riscos. – Devo dar bom exemplo aos filhos. – Pense nos seus 19 funcionários. – Esperam de mim esse comportamento. – É egoísmo. Você não pensa na Faculdade. – Tivesse a Faculdade feito o que devia, não chegaríamos a tal ponto. Ferri abriu a porta e o militar deu voz de prisão ao professor. Autorizado a avisar a família, desceu à sala onde a secretária guardava cópias da carta e pediu-lhe que as distribuísse aos alunos e jornais. Quase instantaneamente, assim, o acontecimento tornou-se público. Ao entrar no Comando da Segunda Região Militar, na rua Conselheiro Crispiniano, central, já havia jornalistas. Transferiram-no ao Quartel da 10

O texto decIarava tratar-se de "uma injúria, que afronta a um tempo o espírito de trabalho universitário e a mentalidade científica... Foi com melancólica surpresa que lembrei a indiferença da alta administração universitária diante dessa inovação, que estabelece nova tutela sobre a nossa atividade intelectual... não podendo destruir-nos, vis– os agentes da estagnação cultural optaram pela difamação gratuita e pela detratação..."

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Polícia Militar no parque D. Pedro II. Criou-se grande celeuma, repercussão internacional. A notícia da soltura, segunda-feira, lotou de alunos e professores o saguão da Faculdade, Iara no meio. Quando Florestan Fernandes surgiu no alto da escadaria, a tensão explodiu em aplausos. Choravam abertamente. Sereno, pediulhes que cantassem o Hino Nacional. Através do coro forte reapoderaram-se da identidade brasileira, insultada pela polícia que obrigava professores e outros a recitálo. A cerimônia repetiu-se no período da tarde e à noite. O cerco prosseguia. Em outubro, a ameaça de novas demissões de professores mobilizou alunos da Filosofia, Arquitetura e outras escolas contra o terrorismo cultural e violações à autonomia universitária. Os Centrinhos de cada curso, assumindo o espaço político que caberia ao Grêmio vigiado, sugeriram falta geral às aulas. Uma greve cautelosa porque as forças armadas se aparelhavam para investigações, da escuta telefônica e infiltração às "técnicas de interrogatório", eufemismo de tortura. As medidas integravam o pacote que eliminaria o "inimigo interno" – oposicionistas em geral. A coordenar os trabalhos criara-se em junho o Sistema Nacional de Informações – SNI, ligado ao Conselho de Segurança Nacional. O conjunto, durante anos chamado "sistema", era o governo de fato11. – Vamos nos engajar em algum grupo de oposição – propôs Iara a Maria Lucia. Urgia canalizar a indignação. Concordou. Abominavam a ditadura militar. Defendiam a Universidade livre, justiça social, o fim da miséria, a derrota do capital estrangeiro e do imperialismo. – Então somos comunistas – abismou-se Iara, mal liberta do ideário de Samuel. É verdade que nas festas e mesas de botequim, socializar com marxistas diluíra a estranheza. Afloravam histórias do pai de Felícia, perseguido na Polônia por atuar no Bund, a organização socialista de operários judeus. Refugiado no Brasil, manteve as convicções. Autodidata, devorador de livros, difundia imagens positivas dos comunistas. O mesmo fazia o pai de Shirley, pintor de paredes na Polônia, cativante, cuja cultura atraía os jovens. Até em casa, Iara lembrou-se, David elogiava a União Soviética. Repetia que os americanos ganharam a guerra no cinema e os soviéticos no campo de batalha. Injuriava ainda a política dos ingleses na Palestina, que devolvera navios de imigrantes judeus aos nazistas. Como fez o Getúlio com a Olga

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Maria Helena Moreira Alves, obra citada (Cap. I, A Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento).

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Benario, exemplificava. E quem teria lhe falado sobre o enfrentamento de outubro de 1934 na praça da Sé, quando comunistas, anarquistas e trotsquistas surraram fascistas da Ação Integralista Brasileira, principal partido de extrema direita na década. O objetivo, explicava, era desnudar a fraqueza dos galinhas-verdes e advertir Getúlio, ditador nazistófilo que os fortalecia. Teve tiroteio, morreram dois militantes de base do PC e provavelmente mais três – uma tarde terrível. Mas os fascistas fugiram apanhando. O Partido Comunista decepcionou Iara e Maria Lucia. Os militantes insistiam no caráter nacionalista e burguês da revolução brasileira. Preconizavam a defesa do capital "nativo" e o apoio a militares antiimperialistas. E que ar desmoralizado! Ainda na véspera do gol juravam-se próximos do poder. O estado de espírito piorou quando Prestes, na fuga, esqueceu cadernetas cheias de nomes e endereços, pela terceira vez na vida entregando à polícia papéis comprometedores12. Desistiram. Os críticos têm razão, o PC é revisionista, o oportunismo corre solto. O socialismo nunca virá pacificamente. Só ingênuos ou mal-intencionados confiam na burguesia nacional, pronta a vender se. E que mania, apostar em militares! Os que valiam alguma coisa gramam a rua da amargura – presos, aposentados, no exílio. Talvez a opção seja mesmo a POLOP. Há intelectuais atraentes, dinamismo, dá status. Iara falou com uma colega das Ciências Sociais, "polopiana". Queria informações. A outra animou-se. Qualquer organização ganharia prestígio se incorporasse Iara, atuante, moderna, liberada. Convidou-a e à Maria Lucia para um círculo de estudos. – Nada de tão complicado – sopesaram, depois de algumas aulas. – Melo queria impressionar a gente com a história de conhecer marxismo. Aprenderam13 que a força de trabalho só deixaria de ser desvantajosa quando a classe operária tomasse os meios de produção. O revolucionário deve "agudizar" as contradições conducentes à revolução através do indispensável trabalho de massa. E o proletariado, receptivo ao conceito materialista e dialético da luta de classes – ao marxismo-leninismo – sob a liderança do partido revolucionário, desalojará as classes

Jacob Gorender: Combate nas Trevas – A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada (Cap. 12, "Do Partido ao Partidão"), Ed. Atica, 1987. 13 Roberto Schwarz: "Didatismo e Literatura", em O Pai de Família e outros estudos. Ed. Paz e Terra, 1978. O título visava ocultar da repressão o caráter do artigo. 12

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dominantes do poder. A História conduz inexoravelmente ao socialismo. Em um estágio superior, desaparecem as classes sociais. E o comunismo. Agora, sempre que cruzava um trabalhador, Iara via o revolucionário potencial. Palavras e leitura o acordariam. – É incrível o sujeito ignorar a bomba que traz na mão – entonava. – Um esclarecerá o outro, todos aprenderão a música. O emocionante é que nossa geração vive o privilégio da grande mudança. A tarefa da POLOP, nascida minúscula em 1961 no Rio, grupelhos em Minas e São Paulo, severa crítica do PC, é acelerar o processo, propagando a teoria do socialismo científico, gravou. Cada campanha salarial, greve, operação-tartaruga é uma luta a serviço do movimento revolucionário. Transformamos a solidariedade de classe em consciência de classe. Ao contrário do que diz o PC, cujo nacionalismo implica "tutela burguesa sobre o movimento operário e a renúncia às reivindicações de classe do proletariado, que só podem impor-se contra a burguesia nacional"14, o caráter da revolução brasileira é socialista. Só a guerra revolucionária levará ao poder a classe operária, conduzida por seu partido. Os trabalhadores do campo são seus grandes aliados. Dependem, todavia, da vanguarda armada que lhes leva a experiência urbana. Um foco de poucas forças inicia a guerrilha no campo. Sua primeira tarefa é colocar no cenário político uma nova liderança, alternativa ao poder das classes dominantes. O caminho é longo, mas um só15. Ninguém, exceto os militantes de contato direto, deveria saber que as amigas tinham ingressado na organização clandestina. Mas Iara não resistiu e, por indícios, contou a Decio. – Chi, esse pessoal é muito sério – instigou o namorado. – Meu negócio é beber chope, rir, namorar. – Que anarquista, nem parece cria do PC. – Pois é, bastou. Porém transparecia a admiração de Decio pela febre política na Faculdade do outro lado da rua. No Mackenzie, reclamava, vitorioso o golpe, os Centros Acadêmicos correram a despejar manifestos de aplauso.

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Daniel Aarão Reis e Jair Ferreira de Sá: Imagens da Revolução Brasileira, Ed. Marco Zero, 1985; Marco Aurėlio Garcia, no jornal. Em Tempo, 10.1979: "Na História da PO um Pouco da História da Esquerda Brasileira". 15 Eder Sader: "Para um Balanço da P.O.", na revista Brasil Socialista, n. 7, 1976.

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Evelise não acompanhou as amigas à POLOP. Ao seu namorado ciumento desgostava a liberdade de Iara. Distanciaram-se. – Quando minha disponibilidade para as coisas dela diminuía ou Iara vinha menos à escola, deixávamos de nos falar por um mês, dois reconstrói. – Mas o carinho tornava cada encontro uma festa. Não se tratava de amizade superficial e sim ausência de responsabilidade. Se a amiga demandasse trabalho ou cuidado, ela sumia. Foi o que aconteceu conosco. As circunstâncias nos separaram um pouco e aquela coisa grande e significativa esvaziou-se. Clarilza também pouco a via. – Um dar afetivo, de corpo. Este o apego de Iara às pessoas. Não de compromisso. O turbilhão cotidiano absorveu-a. A intimidade quase orgânica entre as amigas reduzia-se a uma fase bonita do passado. Tesoureira na chapa de composição encabeçada por André Villalobos, das Ciências Sociais, participaria do Grêmio. O país precisa de revolucionários, a exemplo da juventude cubana. Na ilha que representava a dignidade latino-americana crescia a esperança do homem novo. Versos de un carmine encendido – cantavam Guantanamera, meio hino. Enfrentariam a ditadura militar. Redimir o povo oprimido, as portas do saber abertas a todos. No caminho, o amor. Juntos na Sierra Maestra brasileira, tal Vilma Sanchez, Haydée Santamaria. Nos palanques da revolução socialista seria um pouco Rosa Luxemburgo, contendora de Lenin. Ou a Krupskaya. Maria Lucia e ela entrariam na História. – De uma hora para outra, Iara avisou-me que participaria – relata Melo.

POLOP. O papel do revolucionário

EM 1965 formou-se uma base da POLOP só com estudantes da Psicologia e Filosofia. As exposições do dirigente, análises e debates teóricos aborreciam Iara. Mas ela acordava quando discutiam táticas para neutralizar o PC, muito atuante nas Ciências Sociais. E animava-se às tarefas, tanto a fazer. Distribuir às outras bases e sindicatos o jornal interno, de artigos políticos e palavras-de-ordem. Panfletar em portas de fábricas – e lá ia o grupo à Ford, no Ipiranga. Bater em estênceis as teses da POLOP. Organizar novos grupos de estudo. Projetar documentários sobre o Vietnã em casa de pessoas progressistas, atraindo simpatizantes e futuros companheiros – 90

o recrutamento era fácil. Vender, ao lado de Maria Lucia, rifas e publicações em busca de fundos, indiferente aos grupos rivais que, em tom caricato, imitavam sua pronúncia italianada: – Compra um livro da Polóóópi? Não ficava nisso. Intervinha nas questões curriculares, fazia cartazes de convocação às assembléias, conchavava. Em cada pendência, o esforço de colocarse à frente. – É assim que se constrói a liderança da revolução. Às vezes a base propunha-se estudar marxismo em casa de Maria Lucia, na Lapa, com leitura coletiva e discussões; normalmente, ninguém lera as apostilas. Iara era das mais participantes. Também reuniam alunos da Arquitetura e analisavam questões estudantis: o plebiscito da UNE, em maio, sobre a lei Suplicy de Lacerda1 e a estratégia para o congresso da entidade em junho2. Mostrariam que os universitários repudiavam a implantação do Diretório Nacional de Estudantes, dos Diretórios Estaduais e dos Acadêmicos, em lugar da UNE, UEES e Centros Acadêmicos das Faculdades. A UNE somos nós, repetiam. Repugnante a tese do PC, defendendo a presença da oposição onde fosse possível, inclusive nos Diretórios. – Gente, que oportunismo! – clamava Iara. – Vocês se aliam à direita! Dia a dia aumentava sua convicção acerca do papel revolucionário dos estudantes. Arrostar a ditadura, defender as associações independentes são as tarefas de cada brasileiro consciente. O medo retração de 1964 e as marcas de tiros na Faculdade perdiam contorno. Em março, no Rio, 150 estudantes vaiaram Castelo Branco à saída da Escola Nacional de Arquitetura, na ilha do Fundão. Nesse mês, preso o editor Ênio Silveira por delito de opinião, intelectuais lançaram um manifesto em defesa da democracia, integridade individual independência dos legislativos, respeito às decisões dos tribunais. À frente assinavam Alceu Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho, Oscar Niemeyer e Anísio Teixeira. Ainda em março reacenderam-se as esperanças do contragolpe, adiado sete meses antes com a prisão de 20 sargentos envolvidos. O

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Extinguiu em novembro de 1964 os órgãos de representação estudantil, substituindo-os por Diretórios sob controle do Ministério da Educação. Mais sobre o assunto: João Koberto Martins Filho, Movimento Estudantil e Ditadura Militar; citado, 1987. Artur José Poerner, O Poder Jovem; Ed. Civilização Brasileira, 1979. 2 As UEES e a UNE continuavam legais como entidades civis, pois o governo duvidava que sobrevivessem sem dinheiro oficial. Só seriam extintas em 1966.

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coronel do Exército Jefferson Cardim tentava iniciar a luta a partir de Três Passos, no Rio Grande do Sul. Caiu a nós a primeira batalha, no Paraná*. – Não se prepararam bem – analisou a POLOP. – Certamente esperavam respaldo em outros pontos do país, negligenciando a idéia do foco. Porém demonstra que muitos pensam em lutar. Do Exterior, a movimentação alentava. Chilenos fundavam o Movimento de Esquerda Revolucionária – MIR. Tupac Amaru, o líder inca responsável pela última grande revolta contra os espanhóis no Peru, ressurgiu nos tupamaros uruguaios liderados por Raúl Sendic e verteu latinidade sobre os estudantes brasileiros. O padre Camilo Torres engajou-se na guerrilha colombiana, Douglas Bravo e Fabricio Ojeda criaram um novo grupo guerrilheiro na Venezuela. Claro que alguns heróis morreriam, como o líder Luis de la Puente Uceda, no Peru. Mas Guevara, sumido de Cuba, iniciava a libertação continental3. Até nos Estados Unidos jovens recusavam o serviço militar e a escalada intervencionista no Vietnã. As contradições dividem os americanos, corroendo o imperialismo, garantiam. No Japão, a ativíssima Zengakuren, estudantes de esquerda, execrava a guerra diante da embaixada americana em Tóquio. E que protestos! A Maria Antônia e os universitários brasileiros não estavam sós. Pertencer à POLOP, longe de transformar Iara em militante integral, expandiu seus contatos. Mantinha amigos de toas as tendências e conhecia os mais diversos projetos e mexericos, o que causava mal-estar na organização. – Você sabe demais. É um risco à segurança. Em abril o ministro da Guerra, general Costa e Silva, discursou preconizando dez anos de "processo revolucionário" além do mandato de Castelo Branco. Divergia do presidente, que propunha reencontrar a "normalidade": eleições diretas para governador em outubro, nos onze Estados com mandato de cinco anos. No fim do mês, Costa e Silva condicionou a posse dos futuros eleitos à "compatibilidade revolucionária". Representava os coronéis linha-dura responsáveis pelos IPMS, inconformados com o legalismo do presidente e as decisões da Justiça, que permitiam Como se soube posteriormente através dos papéis da Agência Central de Informações dos EUA – CIA, publicados por Marcos Sá Corrêa em 1964 Visto e Comentado pela Casa Branca – L&PM Ed., 1977, autoridades brasileiras vigiavam de perto as atividades dos exilados brasileiros no Uruguai, onde nasceu o plano. Segundo Jacob Gorender (Combate nas Trevas, obra citada), embora Brizola negue compromissos com a idéia desse primeiro lance guerrilheiro, “a iniciativa se filia ao tronco do nacionalismo pequeno-burguês brizolista pelos personagens, concepção, origem etc.” (Cap. 18: “Peripécias do Nacionalismo Pequeno-burguês). 3 Marco Aurélio Borba: "Na Trilha do Che". Em Tempo, 13-19.9.79. *

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o retorno de alguns políticos punidos4. A base de Iara discutiu o que a POLOP denominou farsa eleitoral. O marechal Henrique Teixeira Lott, candidato nacionalista em 1960, exumado, questionava a proposta da oposição, candidatar-se ao governo da Guanabara: má tática, enfraquecer Castelo. Lacerda, mais do que nunca empenhado em ser o presidente civil da linha-dura, atacava o governo e dividia os militares. E havia os concorrentes ligados a Juscelino. – A POLOP nada tem com as contradições internas dos opressores. Os chineses diriam chacais do mesmo covil, comparavam os militantes da AP5. Nem valia a pena analisar a manobra do Congresso, que por um artifício local isentou do imposto de renda a parte móvel dos vencimentos de deputados e senadores – cerca de três quartos do total. A dispensa, aprovada pelo ministro da Fazenda, tornava mais precioso o cargo de parlamentar e maior a vassalagem ao governo todopoderoso. – O peculato vira rotina. Gera uma contradição: o sistema se desmoraliza diante do povo. Interessaram-se pela política econômica do governo conduzida por Octávio Bulhões, ministro da Fazenda, e Roberto Campos, do Planejamento. Monetarismo severo, reajustes salariais abaixo do custo de vida, política agrícola de exportação, crédito restrito. Renegociar a dívida, investimento estrangeiro6, revogação da lei de remessa de lucros. – O corvo atribui a Bob Fields a "americanalhação" do Brasil demais. Quer seduzir os empresários, forçados a buscar recursos no mercado de capitais a juros extorsivos, e aos quais a política fiscal e a recessão enfurecem – interpretou a POLOP. – Mas é forçoso lembrar que os entraves ao capitalismo brasileiro são herança colonial e agrária. Somadas à dominação imperialista, apressam a crise do sistema. De outro

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Maria Helena Moreira Alves, obra citada (Cap.Il, "Novos mecanismos de controle: o Ato Institucional n 2); Carlos Castelo Branco: Os Militares no Poder (maio de 1965), Ed. Nova Fronteira, 1977. 5 Ação Popular, dissenção entre a Juventude Universitária Católica – JUC, e a hierarquia religiosa. Em articulação desde 1960; seu principal organizador foi Herbert José de Souza, o Betinho, irmão de Henfil. Em 1961 e 1962 a AP conseguiu eleger Aldo Arantes e José Serra à presidência da UNE. Dirigiu-a com apoio dos comunistas, socialistas e progressistas até o incêndio do prédio no Rio, em 1964. O documento do primeiro congresso (1962) esclarecia que a Igreja, tal como se apresentava, era “incapaz de responder teórica e praticamente aos desafios de nossa sociedade” (Marco Aurélio Garcia: AP, do Cristianismo ao marxismo-leninismo. Em tempo, 9.79). E decIarava a AP decidida a engajar-se na luta revolucionária pela emancipação nacional. 6 Thomas Skidmore – Brasil: de Castelo a Tancredo, Ed. Paz e Terra, 1988: "...só reiniciados em nível significativo após 1967 e quase sempre a curto prazo"

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lado, a moderna indústria de base exigiu salário real desvalorizado através da inflação. E a lei de greve torna as reivindicações quase impossíveis.

Melo foi preso. Saíra do mimeógrafo do cursinho, sob sua responsabilidade, um manifesto contra o envio de tropas brasileiras à República Dominicana, solicitação da Organização dos Estados Americanos, a instâncias dos Estados Unidos. O texto repudiava também a visita de um representante americano, que o general adido da embaixada americana, Vernon Walters, recepcionou. Rosa lembra-se do nervosismo de Iara. – Vão machucar! – exclamava, chorando. Logo o soltaram, ouvido inflamado da pancada. Rachel Rosenberg resolveu comemorar em grande estilo o aniversário de Iara e a homenageada luziu entre a centena de convidados o transbordou para a calçada. O espírito de festa embriagava-a. Diste buía ditos espirituosos temperando ironia, meiguice e expressão corporal. Circulava ininterrupta, aroma adocicado, algo de iminência na aceleração interior. Percorria os rostos, delírio de máscaras coloridas filmagem

expressionista.

Cumplicidade

com

quase

todos

os

figurantes,

compartimentos vedados de um mosaico. Verdadeiro ego trip concederia risonha, sacudindo de si o que pudesse feri-la. É um bom histerismo, nenhuma crítica me atinge. Em maio o governo enviou tropas à República Dominicana, integrando a força de paz da OEA. – Lindon Johnson é um instrumento do complexo industrial-militar norteamericano. Teme, na guerra civil dominicana, a vitória do coronel Francisco Caamano Deno. Internacionaliza-se mais uma vez a contradição entre o capital e o trabalho. Somos carne de canhão para Castelo Branco, submisso ao sinistro Vernon Walters – interpretaram em panfletos nas Faculdades e portas de fábrica. Numa das reuniões da POLOP com outras organizações, Claudio Tozzi, estudante de Arquitetura e pintor, aproximou-se de Iara. Nos "sambões" da FAU, encantava-se ao vê-la dançar solta, sozinha. Saíram juntos algumas vezes. O namorico resultou em grande amizade.

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– Eu admirava as atitudes de vanguarda dela. Na vida pessoal e política. Tínhamos a mesma idade mas o mundo fora do colegial me deixava entre o choque e a fascinação. O clima de abertura sexual afrontava o estado repressor, que brandia a censura e clichês moralistas como instrumentos de controle. Por isso, tudo era politizado. – Defender o direito de uma criança chupar o dedo abre fendas a maciço autoritário. Não defendo só a liberdade de dispor de mim. Ou o direito de mulheres à vida integral, dentro das limitações que protegem o convívio social de todos. Através do comportamento combate ditadura e a paranóia da Segurança Nacional, que vê em cada cidadão um inimigo potencial*. Você não acredita, mas a última descoberta dos milicos é que em todo copidesque existe um subversivo infiltrado. Louquinhos de internar. A paixão pelo cinema aumentou. Nada como Jaula Amorosa, colorido, o lindo Alain Delon, Jane Fonda, direção de René Clement. Além do suspense, os aposentos secretos de onde o fugitivo espionava sem ser visto, espelho one way, o inconsciente a comandar do invisível, imagem infantil de Deus. Em matéria de simbolismo, comentou, tudo a ver com Psicologia. Talvez consigo mesma, culpas ancestrais à espera de expiação, medo de águas insondáveis, de ficar só. Sou uma pessoa gregária por excelência. Rachel bem diz, não posso viver sem gente. Arena Conta Zumbi, texto de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, foi um impacto. O sistema coringa pretendia impedir a identificação dos atores com os personagens. Vestidos de jeans e camisa-esporte, interpretavam múltiplos papéis. Eram narradores da peça, críticos, "resfriadores"7 – Brecht naturalizado. E tome História, heroísmo, reflexão. Fatos extraídos de jornais, discurso de Castelo Branco, a música de Edu Lobo, a força da atriz Dina Sfat. Em Iara ressurgiu o impulso pelo palco, adormecido desde a escola *

Em novembro de 1987 (Mar del Plata, Argentina), na 17ª Conferência dos Exércitos Americanos, representantes dos exércitos de 15 países das Américas, inclusive o Brasil, concluíram, em acordos secretos obtidos pelo jornalista Clovis Rossi e publicados na Folha de S. Paulo (25.9.88), que o marxismo, através da subversão, se utiliza de todas as fraquezas da sociedade moderna para alcanças seus objetivos: o narcotráfico, homossexualismo, a promiscuidade, os meios de comunicação sem censura. O relatório do general Paulo Neves de Aquino, um dos representantes do Brasil, incluiu um campo psicossocial, que afirmou utilizado por organizações subversivas, o movimento estudantil, dos professores, funcionários, sindical, o religioso voltado às comunidades eclesiais de base, de índios, presidiários, favelados, negros, ecológico, feminista, comunitários, defesa dos direitos humanos. Também acusaram-se organizações de solidariedade como a Anistia Internacional ou que provêm fundos para pesquisas visando a melhoria das condições de vida, como a Ford Foundation. 7 Mais: Anatol Rosenfeld, Heróis e Coringas"", revista Teoria e Prática n 2 (outubro, S); Augusto Boal e G.Guarnieri: Arena Conta Tiradentes, Ed. Sagarana, 1967; Dina Slat: Palmas para que te quero, Ed. Nórdica, 1988.

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do Cambuci. Assistiu ao show Opinião mais de uma vez. Inesquecíveis textos de Vianinha, Armando Costa e Paulo Pontes. Nara, doçura de bossa-nova, cantava contestação; a substituta Bethânia arrepiou no final, o pé a golpear o tablado: carcará pega, "matá" e come! Não perdeu o show Liberdade, Liberdade de Flávio Rangel na Guanabara e viajou meio de amigos. Textos e documentos de Brecht, Anne Frank, Churchill, Franco, hinos da Resistência, músicas de Carnaval. – O Brasil acorda – inflamaram-se. O namoro com Decio esfriava quando Chico Buarque deu uma festa em casa dos pais na rua Buri, descida que liga as avenidas Paulista e Pacaembu, fícus gigantescos. A certa altura apareceu o forte, bonito e truculento aluno de Direito do Mackenzie, que acreditavam tira e membro do CCC. Machão arrojado, obscurecia os jovens de sensualidade intelectualizada que a cercavam. Irresistível a tentação erótica. Conhecer o interdito, privar do poder abrutalhado. Proteger-se nas mãos do bandido e domá-lo dentro do mais convencional dos papéis. Fragilidade, volúpia. Alguma coisa de perversão. No dia seguinte, mordido, Decio cobrou a aventura. – Como é que você sai com esse cara? Todos dizem que é tira. – Não sei. Mas à Marina Tschipschin, bailarina que estudava Psicologia e foi sua amiga, fez confidências. – Tive grande atração sexual por ele. Depois fiquei péssima. Sempre me sinto meio mal. Com qualquer homem. Sensação de sujeira, meu lado cego preso numa enxovia. Dá vontade de me enfiar inteira no chuveiro, os cabelos, o corpo, os acontecimentos. Na POLOP censuravam-na. – Eta pessoal monástico! – exclamava. – Mais por machismo que moralismo – interpreta Regina Sader, que cursava Ciências Sociais e se casou com Eder Sader, um dos dirigentes. – Gozadora, Iara não levava nada muito a sério, menos ainda os caretões da POLOP – observa Francisco Sales, o Chicão, companheiro de militância e futuro marido de Maria Lucia. – Se alguém fizesse sermão ela ironizava, sem ofender ou criar animosidade. Numa boa. E a pessoa desistia, embaraçada. Tinha uma coleção enorme de namorados. Conhecia e se apaixonava. Insegura, esperava demais; e eles 96

queriam exclusividade. Não dava certo. Algo relapsa, nem sempre vinha às reuniões. Preferia bater papo na Faculdade.

Em meados de 1965, Iara e Samuel decidiram separar-se. David pediu a um inquilino do primeiro andar que devolvesse o apartamento e ofereceu-o à filha. Mas os dois reconciliaram-se. Esperançosa, comentou a segunda lua-de-mel. Ao voltar parecia doente, preocupando Ecléa. – Não tenho nada. Só preciso ir ao dentista. Cerro a boca à noite, rangendo os dentes. À Cecília, que encontrou na Hebraica, relacionou o bruxismo ao casamento: – Fomos à Bahia ajeitar as coisas. Não deu. Durmo tão nervosa que meu maxilar dói. – Separaram-se amigos, sem rancor. Samuel gostava muito dela – aponta Maria Lucia. Iara mencionava o ex-marido e teve uma recaída ao vê-lo junto de outra mulher. Correu à casa de Evelise. – Gosto mesmo é do Sá! – chorava. – E aquela mulata bonita, enfermeira. Que loucura! Impulsiva, procurou-o. A crise passou do jeito que veio, ambos conscientes do lapso. Por esses dias a dramaturga Consuelo de Castro, Co Ciências Sociais, amiga apesar das discordâncias políticas, precisou de apoio. Iara levou-a ao apartamento e terminou chorando com ela, deitadas na cama. – Meu marido ainda me sensibiliza. Aí perco a compostura, saio de mim, o passado puxando. Faço bobagens – lamentou-se. Intensificou a militância. A fama crescia no circuito universitário, quase um mito. Revolucionária, 21 anos, desquitada. Carinhosa, coragem de expor-se, humor. Entre os colegas mais velhos dividiam-se as opiniões mas não se dava por vencida. Puxava conversa a buscar aceitação e intimidade. Mexia na pessoa, na roupa. Willer, ostensivo desprezo por movimentos políticos, continuava amigo. – Ela ao mesmo tempo reconhecia a importância de atuar e as limitações dos militantes. Certa noite, na Cinemateca, o rapaz apresentou-lhe o futuro editor de textos Antonio Eduardo Vieira de Almeida. Traços de intelectual sofisticado, fanático por 97

cinema. Ainda cursava o terceiro ano do politizado Colégio de Aplicação, ligado à Faculdade de Filosofia. Vestia elegantíssimo blazer de tweed cinza-claro e branco. – Iara parecia mulher de filme europeu. Usava um modelo feminino do trench coat tipo Humphrey Bogart. Uma coisa carregada de conotações cinematográficas. Já nos conhecíamos de vista, ela freqüentava o cineclube até nas sessões vazias, três, quatro pessoas na sala. Olhos grandes, ar de maturidade embora visivelmente jovem – relembra Antonio Eduardo. Iara lançava-lhe olhares. Bonito, moreno, timidez comovente. Uma vez ele elogiou a cor incomum, roxa, de sua blusa. Sorriu. – Sou psicóloga e saiba que essa é a cor preferida dos esquizofrênicos Abalado, não entendeu se o comentário visava a ele ou ambos. No fim do ano, quase perdeu o fôlego quando Iara, cabelos brilhantes, echarpe, mais européia do que nunca, entrou na sala de aula do cursinho do Grêmio para lecionar. Outro homem nocauteado pela capa à Casablanca foi o deputado Jose Dirceu, então 19 anos, que veio uma noite à Faculdade conversar com José Arantes8 e outros companheiros do Comitê Universitário do PC. – Inverno de 1965, frio. Ao atravessar o pátio tive um impacto. Cruzamos uma estudante já mulher, impressionante. Vestia capa bege. Cabelos quase louros, soltos. Nunca esqueci. Cercava-a sem sucesso. Além do ligeiro sotaque caipira, faltava-lhe aparência de intelectual. Outro pecado grave, estudar Direito na PUC. Não difere de outros castanhos, comentou Iara, inspirada no conto A imitação da rosa, de Clarice Lispector. E galinha demais. Sempre atenta à rivalidade política entre a POLOP e o PC, ridicularizava-lhe a "criação maior", a palavra-de-ordem Delenda Polop. Entretanto, afogada pela insistência e ansiosa por preencher as noites, aconteceu de saírem. Tinham o mesmo tipo de vida, idéias semelhantes. Compadecia-se quando ele se queixava do curso, professores do século 19. Um, da "Tradição, Família e Propriedade", medieval,

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José Roberto Arantes de Almeida resistiu e foi morto em tiroteio no cerco ao aparelho onde se escondia, em novembro de 1970 (SP). A polícia previa ações no aniversário da morte de Marighella, cercou as vias principais da cidade e prendeu um militante. Trazia a conta de luz da casa. Arantes pertencia ao MOLIPO – Movimento de Libertação Popular, cisão da ALN – Aliança Libertadora Nacional, planejada por Carlos Marighella. Quase todos os integrantes do MOLIPO foram mortos.

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lecionava Economia; outro, monarquista, era dono da Teoria Geral do Estado. Para coroar, o inqualificável Manoel Gonçalves Ferreira Filho9. Repugnava-o também o moralismo na PUC. Clausura! Homens e mulheres separados, uma violência. E zero de atividade cultural. Tudo proibido. De política nem falar, sepultados o Centro Acadêmico e o Diretório. Por isso vinha tanto à Maria Antônia, núcleo radical e consistente do movimento estudantil que José Arantes, expulso do Instituto Tecnológico da Aeronáutica em 1964, militante de grande ca pacidade política, galvanizava. Iara, aqui, fechava-se. Apesar de gostar do calouro da Física e de sua namorada Aurora10, ele despontava como sério adversário da POLOP. A vida não corria fácil no Ipiranga. Inconcebível a David que a filha chegasse tarde em casa. Receava o diz-que-diz-que no bairro, exaltou-se a ponto de insultá-la de prostituta. Humilhada pela dependência – a pensão de Samuel era insuficiente para alugar um apartamento – sofria com a ira paterna, às vezes mutismo acusador. A agravar, latente ou explicito, o ciúme de David por Eva bonita, 40 anos, queimada de sol na Hebraica. Acusava a esposa: demasiado tolerante, co-responsável, mau exemplo. Pior, a influência de Iara sobre Rosa. Prejudicaria de fato a irmã? – perguntava-se Iara. Vontade de carregá-la de lado como na infância, perguntando: "Quem quer comprar um porquinho?" O movimento de liberação sexual desaparecia alguns quarteirões da Maria Antônia. Do Ipiranga, nem falar. Porém estava decididamente envolvida no esforço de colocar suas convicções. A decepção do pai seria transitória, defendo um ponto de vista que vale para milhões de outros. Continuamente sentia-se pedagógica. Menos repressão, o mundo é nosso, todas as fantasias possíveis. É só querer, não se intimidar. Somos jovens, fortes, o presente e o futuro.

Desde o início do ano Iara lecionava Psicologia no cursinho, agora instalado na rua Albuquerque Lins, não longe da Faculdade. Até 1964, o presidente vitorioso do Grêmio colocava lá sua gente, o que permitia barganhar os cargos de administração e magistério, além do acesso à massa de futuros eleitores. De quebra, significativo 9

Ex-vice-governador de Paulo Egydio em São Paulo. Seria chefe de gabinete do ministro da Justiça Alfredo Buzaid nos piores anos da repressão. 10 Aurora Maria Nascimento Furtado, a Lola, foi assassinada com a "Coroa de Cristo", torniquete que afunda o crânio. Sobre Aurora: Renato Tapajós, Em Câmara Lenta. 10, Ed. Alfa-Omega, 1977; Jacob Gorender, obra citada (Cap. 28: Estertores da Esquerda Armada e Embriões da Autocritica).

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dinheiro em jogo. A rotatividade dos professores, entretanto, diminuía a competência, um defeito destrutivo a curto prazo. Algumas regras foram estabelecidas sob a direção de Jocimar Archanjo11, depois que a POLOP apoiou a chapa vencedora e recebeu de prêmio o cursinho. Só lecionariam os alunos da Faculdade aprovados em concurso perante uma banca. Para oxigenar-se de gente nova sem prejuízo da experiência, os professores permaneceriam, se o desejassem, um ou dois anos após a formatura. – As aulas bem pagas atraíam candidatos de todos os partidos ou sem partido. O cursinho tornou-se eficiente – afere Jocimar. – Os professores posicionavam-se, promoviam atividades culturais, pois nunca é neutro o trabalho em educação. Nada, todavia, que levasse os alunos à decisão partidária. As novas normas não caIaram as acusações dos inimigos da POLOP – entravam só apadrinhados, a diretoria monopolizada. Iara zombava. – Ué, coisa mais óbvia. Qual a chapa eleita que deixaria de colocar na direção gente de sua confiança? Só que nós somos competentes. Maria Alice Leme emprestou-lhe os cadernos para elaborar as apostilas. Daria uma aula semanal. Comunicava-se bem a andar de um lado a outro, enfatizando o que dizia com gestos, balanço dos cabelos, blagues, exemplos cotidianos, sempre risonha. Forçou-se a fumar. No começo brônquios e asma reagiram, quase vomitava. Preferia o cigarro mentolado e não passava de dois ao dia. – Se todo mundo consegue, por que eu não? É elegante, a gente ocupa as mãos enquanto dá aula, fica mais segura. Queria fazer a cabeça dos alunos. Discutiu anticoncepção e levantou o debate sobre dupla moral e virgindade. Não poupou Melo, grado numa das rodinhas que a cercavam fora da classe. – A virgindade não importa mas você, no fundo, julga as moças livres umas putas e se aproveita delas. Passa por sua cabeça casar com garota que não seja virgem? Os alunos, cheios de admiração, propagavam: hoje tem aula da Iara. Vinham de outros cursos, tomavam café no bar da esquina ziam perguntas. Iara cumpria seu papel. Despertava-os intelectualmente e servia de referência política sem acirrar os grupos competidores.

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Fundador do Cursinho Equipe, depois colégio.

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– Assemelhava-se à cantora Wandeca, da Jovem Guarda, sucesso ao lado de Roberto Carlos. Bonita, gostosa – descreve o cientista político Emir Sader, então um dos dirigentes da POLOP e professor de Filosofia no cursinho. – Tentava corresponder à imagem que produzia, um passo à frente, resolvendo a provável timidez. O imaginário dos alunos deve ter sido uma loucura. Durante o ano inteiro Iara não parou de namorar. – Longe do famoso objeto idealizado – ironizava, quando se esvaía o frenesi da paixão. Parecia incoerente e muitos, superficialmente, acusavam-na de permissiva. Ela própria revelava dúvidas: quem totalmente seguro das coisas? Até que ponto sou má? Intervinha nas brigas enciumadas dos irmãos menores, zelosa em analisar os pontos de vista de cada um. Orientou Rosa a matricular-se em outro colégio, para diminuir a rivalidade. Conversavam sobre as angústias da adolescência, namoros. Abria horizontes. Iam à Cinemateca, Bienal, livrarias. Mais tarde, influenciada pelos amigos arquitetos, achou que a irmãzinha cursaria Arquitetura. Rosa convenceu-se, embora desejasse trabalhar em Educação; acordou na Faculdade errada12. Um dos diretores do cursinho, Roberto Cardoso Ferraz do Amaral, o Robertão, encantou-se por Iara. Vinha de Jaú e estudava Matemática. Era grande amigo de Melo. – Minha primeira imagem: sentada num banco, o cabelo claro, comprido. Sempre me aparece assim. Fiquei vidrado, meio bobão Combativa, militante, terna. Jamais foi influente na POLOP porém estava sempre a postos. Cabeça interiorana, eu não a entendia bem. Diferente, uma pessoa maravilhosa. Saíam do cursinho para tomar café, almoçar. – Um dia fomos ao cinema, quase pretexto. Jantamos. Subimos no meu apartamento, diante do Estadão. Liguei a vitrola. Emocionante. Afetivo e também político. Tudo continha o ato heróico de resistência à ditadura: amor, teatro, música, cinema. Cantávamos sambas, músicas brasileiras de protesto. "Subdesenvolvido", a presença do CPC. A socióloga Marina Heck lembra-se que aprendeu de Iara, nesse período, a desenvolver amizade por homens e lutar contra preconceitos. Aos 19 anos, admirava a rotina sem compromissos da amiga, seu quê marginal. E Iara curtia a família bem12

Rosa Iavelberg é uma das fundadoras da Escola da Vila (SP).

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posta, os almoços de domingo, o namorado Carlos Henrique Heck, já arquiteto e certamente futuro marido, de quem ficou amiga. Através de Marina ligou-se a um grupo de moças muito livres, liderança de Renata de Souza Dantas, desquitada, que morava num grande apartamento na avenida Higienópolis. Lá encontravam-se para ver pessoas e tomar café. Visitava também, num prédio da Consolação perto da Faculdade, Ulisses e Heleny Telles Guariba, alunos de Filosofia. Gostava deles e do filho, dois anos. Falou-lhes de sua esterilidade e dos tratamentos; iriam curá-la, tinha certeza. Debatiam o movimento universitário e as possibilidades políticas do teatro. Heleny, dramaturga apaixonada, planejava uma viagem de estudos à França. – Iara não era militante ferrenha. Amiga, agradável. Certa instabilidade, carência. Algo de adolescente, dependia muito dos namorados – alinha Ulisses. – Atraente, todo mundo a cobiçava. Viajava bastante nos fins de semana, quase sempre a Ubatuba e Caraguatatuba, enturmada. Aboletavam-se em alguma casa, novos e velhos amigos. As vezes iam dançar. Também esteve na casa da outra Marina, Tschipschin, em São Sebastião. Programa familiar. Ficavam na praia, Iara observando a leveza da amiga, tão clarinha. Marina, sem ligar-se à POLOP, vibrava com seus rapazes e o marxismo. Certa vez as duas foram ao Rio e hospedaram-se no apartamento de um irmão de Rachel Rosenberg. Espantou-as a opulência. Iara, como sempre, declarou-se apaixonada. – Quase chorou à despedida. Logo esqueceu-o, imersa nas tarefas. Creio que na vida pessoal era muito insegura. O forte canal de expressão do trabalho político transmitia segurança. No começo de junho, acima de sete mil alunos da USP entraram em greve. Opunham-se "a quaisquer medidas ameaçadoras à democratização do ensino, tendência da atual política educacional brasileira" 13. Antes de tudo rejeitavam os acordos MEC-USAID14, que pretendiam transformar as universidades estatais em das, pagas, modificando currículos e métodos. Combatiam também eleições aos Diretórios Acadêmicos e Centrais de estudantes, a realizar-se dia 16 de agosto,

13 14

Correio da Manhã, 8.6.65 Ministério da Educação e Cultura e Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional.

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segundo a Lei Suplicy. E apoiavam alunos e professores da Universidade de Brasília, novamente pressionados a demitir um professor15. Ainda em junho, a polícia invadiu o Conjunto Residencial da USP, o CRUSP, e arrebentou o que pôde. A ordem era intimidar os estudantes, que usavam o aumento de preços no restaurante para promover agitação, despertando colegas desatentos. Iara e Maria Lucia ajudaram a organizar uma passeata, a primeira de que participavam. Em menos de duas semanas, mil estudantes andaram ao longo da avenida Angélica interrompendo o trânsito, certos de que geravam um movimento abrangente. Ao longo de 1965 houve diversas caminhadas semelhantes. Dispersavam-se quando aparecia a polícia. Captavam espanto e apoio popular. Em julho, com 400 delegados no prédio da Escola Politécnica, UNE realizou seu 27° Congresso, o último legal. Os comunistas batiam se a favor das eleições de 16 de agosto. O argumento, conquistar espaços, acirrou os ânimos. A data foi transformada, ao contrário, em Dia Nacional de Luta e de boicote às eleições. Durante toda a reunião, Iara circulou. Dava recados, distribuía documentos políticos. Regularmente sentava-se ao lado de Marina Tschipschin e dizia: – Agora, ao que interessa. Vamos falar dos garotos. Gostou de um dirigente estudantil de outro Estado e uma noite levou-o ao apartamento. De madrugada Melo tocou a campainha. Queria falar das táticas da POLOP no congresso. Iara abriu a porta. Escandalizado, deu meia-volta e palmilhou as ruas desertas do Ipiranga até acalmar-se. Sofreu críticas no dia seguinte. – Eu sou uma mulher livre. Absurdo você, um socialista esclarecido, ter preconceitos. A partir daí, defendeu-a das investidas de David. Aproveitando a ausência dos pais, Marina concordou em oferecer a casa, espaçosa, para uma festa aos delegados da UNE, agora com novo presidente16, forte apoio da AP. Foi horrível. Rasgaram cortinas, vomitaram no tapete, roubaram objetos de prata.

Iara, Ecléa e Rachel cumpriram um estágio na Volkswagen, exigência do curso. Saíam na madrugada escura e fria do inverno, tomavam o ônibus da empresa com os 15

Professor Ernani Maria Fiori, pensador católico. Artur José Poerner: obra citada, (Cap. X, O regime contra os estudantes – A destruição da Universidade de Brasília). 16 O paulista Antonio Xavier.

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trabalhadores. Estudariam as relações de trabalho e a seleção profissional. Logo no primeiro dia chocou-as a distribuição dos funcionários por vários restaurantes, na hora do almoço. – Colegas da mesma sala separam-se para comer. Alguns têm música e cardápio no restaurante. Descem-se andares dependendo do nível – horrorizou-se Ecléa. – Vamos almoçar no restaurante dos operários – sugeriu Iara. Almoçaram na cantina, barulho infernal. Nada mais afastado do ideal igualitário, Iara e Ecléa convictas de que dedicariam as existências a edificá-lo. Testemunhavam a exploração do homem pelo homem. Viva, latejante. Precisamente desses semblantes nasceria o homem novo, a alavanca da mudança, o cerne da revolução: operários dotados de consciência de classe. Olharam-se comovidas e a revolta transformou-se em alegria. Estavam entre proletários, confiantes no futuro. – Eu, um tanto mística, pensei na ceia prometida por Cristo aos amigos – relata Ecléa. – Todos sentariam juntos um dia, na casa do Pai, a fim de partilhar o pão e o vinho. Tive uma sensação... talvez a ceia não seja mais do que isso. Comungar ideais próximos, perto de quem amamos. Foi um momento de felicidade. Senti profundo respeito por Iara, lucidez inesperada por sua missão. Alunos que não votassem para os Diretórios perderiam o ano e arriscavam atrair vigilância sobre si. O ministro da Educação acusava colônias de vírus entre os estudantes, liderados por agitadores e pequenos ladrões, a ameaçar o futuro do povo17. A POLOP, radical, decidiu boicotar a eleição. – A ditadura usa o ministro, um funcionariozinho ignaro, para intervir no movimento universitário – discursaram na primeira assembléia. A tese venceu por escassa maioria. Os estudantes, contudo, temiam perder o ano. Na segunda assembléia a POLOP recuou para a posição de insurgência da maioria das faculdades: o voto nulo. Dia 16, começo da tarde, Iara postou-se à entrada do prédio ao lado de algumas colegas. Distribuíam panfletos que pregavam a anulação da cédula. Havia uma só chapa inscrita e intenso empenho em minar seu ralo apoio, mais provável entre as "filhinhas de papai" do período diurno. Rapidamente o grupo de direitistas, que

17

Artur José Poerner: textos do Diário de Notícias de 13.8.65, em O Poder Jovem, obra citada. (Cap. XI: “A rebelião dos jovens contra a ditadura – A rejeição do diálogo").

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controlava a rua do alto dos muros do Mackenzie, avançou. Um deles agrediu Iara, que se opôs aos gritos. – Não bate na menina, seu! – vociferou Chicão no meio da balbúrdia, insinuando covardia. Os provocadores, atléticos, incluíam tiras. – Não tô batendo! – reagiu o rapaz, arrancando os panfletos de Iara. O bando entrou no saguão e destruiu os cartazes. – Vamos deixar. Não temos chance a esta hora e é melhor evitar brigas – aconselhou Chicão, observando a Rádio Patrulha. Um pouco mais tarde, o DOPS18. Nas mesas receptoras os professores, alunos e funcionários selecionados pelas diretorias, munidos de listas do corpo discente, vigiavam. – Isso é votação de estudante? – mofou Iara. No dia seguinte à noite, avaliaram o resultado. Comparecimento enorme, exceto nas poucas e desimportantes faculdades dominadas pela direita. Brancos e nulos, perto de 90 no cento. Trabalho altamente politizador. Até estudantes apáticos posicionaram-se. O feitiço virou contra o feiticeiro. Dois dias depois a chapa eleita renunciou, possivelmente cumprindo um arranjo anterior. O documento afixado na porta do Grêmio expunha que o prenúncio de fraco apoio, dado o baixo número de votos inviabilizava a gestão. Euforia geral. A ditadura que tentasse seus expedientes. Às vezes Iara via Felícia nos cinemas, atos políticos ou bares da rua Maria Antônia. Já namorava o futuro vereador Arnaldo Madeira com quem se casaria, ambos ligados ao PC. Desaprovava a radicalização estudantil. A posição ouriçava Iara, avessa a Felícia e ao passado que preferia esquecer. –

Lembrava-me

dela

completamente

alienada;

suas

posições

me

surpreenderam – conta Felícia. – Depois achei porra-louquice, excesso de disponibilidade. Talvez falta de opções num mundo que marginalizava quem não se ajustasse. Eram minhas suposições, ignoro se corretas. Ela não queria contato comigo, muito agressiva. Bernardo Winner também reencontrou Iara e Melo. Os irmãos, conhecendo as convicções socialistas do vizinho de infância, convidaram-no à POLOP. O rapaz respondeu com um convite: por que não passavam algum tempo no kibutz, em Israel? A proposta irritou-os. O Estado de Israel não tem validade, desfecharam. O espírito 18

O Estado de S.Paulo. Dias 17, 18, 19 e 20.8.1965.

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socialista que o originou foi deturpado. O mundo está dividido e Israel aliou-se ao imperialismo. Quanto a eles, defendiam os fedayim da Al Fatah. O terrorismo é a arma dos povos dominados ou expulsos de suas pátrias. Justíssimo. Bernardo não respondeu, estupefato. Até o final do colégio eram judeus convictos. Rejeitar abruptamente a formação pareceu-lhe imaturo, afirmativa da identidade pelo rever – a repelir o que poderia incriminá-los. Feito os judeus anti-semitas descritos por Sartre. Como defesa, a ironia típica que os desprendia de si19. A discussão foi periférica. O assunto que os mobilizava no momento eram as eleições para governador dia 3 de outubro. A POLOP discordava delas. Cínicas, injuriosas à inteligência. Legitimação da ditadura, Céticos, acompanharam a interpretação que garantia ser proposital a vitória de oposicionistas na Guanabara e Minas Gerais20; dariam ensejo ao enterro das eleições dos governos restantes, em. 196621. As urnas sobressaltaram os coronéis, revoltados com a resistência do Congresso à emenda constitucional destinada a enfraquecer o Judiciário em favor da "justiça revolucionária". Os votos revelavam descontentamento e a humilhante influência dos inimigos civis, Juscelino à frente. Castelo Branco, que enfrentava a tormenta engrossada pela pressão americana, partidária de votações indiretas22, recuou. O povo eleitor e seus representantes mereciam a lição. De uma só feita esvaziava Juscelino, Lacerda e, ponto sensível, protegia-se de um golpe. O Ato Institucional n° 2, baixado dia 27 de outubro (vigência a 15 de março de 1967), extinguiu os partidos políticos. No futuro apenas a ARENA, situacionista, e o MDB, oposição consentida. A eleição presidencial passava a ser indireta. Acima de tudo, tribunais militares assumiam o julgamento de civis nos crimes contra a segurança nacional e o governo se encarregava de nomear os secretários de Segurança e comandantes das Forças Públicas. O presidente atribuía-se poder indiscriminado sobre direitos políticos e estado de sítio. – Melhor, a ditadura mostra a cara – repetia Iara. Batalhões armados invadiram novamente a Universidade de Brasília – 210 professores haviam se demitido em solidariedade a 15 colegas presos. Enquanto isso

Jean-Paul Sartre: Reflexões sobre o Racismo – Ed. Difel, 1960. Negrão de Lima e Israel Pinheiro 21 Carlos Lacerda: Depoimento, Ed. Nova Fronteira, 1977. 22 Carlos Castelo Branco, obra citada (abril, maio e outubro de 1965). 19 20

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o novo governador eleito do Maranhão, deputado federal José Sarney, assumia o novo posto levando da Capital suas 1.500 imagens de santos dos séculos 18 e 1923.

Antonio Eduardo. O corpo vazio. TUSP

JÁ UMA FORÇA PONDERÁVEL na Filosofia, a POLOP decidiu aumentar sua influência controlando os Centrinhos dos vários cursos. Iara sem dúvida, era a concorrente ideal para o organismo da Psicologia nas mãos do PC desde a fundação, cinco anos atrás. Querida pelos colegas, tinha amigos em todos os agrupamentos inclusive entre os comunistas da outra chapa. E podia contar com os alunos, se aprovados no vestibular de 66. Dada a inconveniência de fazer propaganda de si no cursinho, Emir Sader passou-lhe o nome de ex-alunos do colegial, crias em política matriculados nas classes intensivas de novembro de 1965 a fevereiro de 1966: Maria Alice Machado e Antonio de Pádua Machado Prado Jr., o Paeco, pretendentes à Filosofia; Christine Laznik, cúmplice direta e Maryse Fahré, três anos mais jovem, candidatas à Psicologia. Para conhecer os novos companheiros e as fisionomias da turma, Iara pediu a todos, gestos suaves, que viessem à frente assinar a lista de presença. Cedeu a caneta a Paeco, sorriu ao emocionado Antonio Eduardo e cobiçou o rapaz bonito, louro-queimado, ombros largos e estranho nome, Agripino Alberto. Terminada a aula, dirigiu-se a Christine e impôs-se com um de seus rompantes, voz melodiosa: – Eu já te vi e detestei. Na Aliança Francesa. Você um espetáculo de poesia em francês. Chato, metido. – É mesmo, estava horroroso aquele troço anuiu descoroçoada a jovem muito bonita, morena-cIara. – Adotei um tom equivoca do ao introduzir os blocos. Dramático pra danar. Não demorou a conquistar os novos alunos. – Atraente, forte. As pernas meio grossas, ela inteira um tanto gordinha. Naquele tempo as moças eram mais cheinhas. Não exibia a sensualidade. Nas aulas deixava transparecer o esforço em deslindar nosso universo – a complexidade

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Carlos Castelo Branco, obra citada (30.10.65).

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cultural, política, econômica. Fazia de tudo para ser racional, correspondendo à ansiedade e busca dos alunos. Todo mundo gostava dela – esboça Paeco. Ficaram amigos, ele e Antonio Eduardo, ambos apaixonados por Iara sem tocar no assunto. Certa vez convidaram-na ao cine Bijou, numa das semanas de cinema francês. À saída sentaram-se ao ar livre, num bar da rua São Luiz – movimento nas outras mesas, passantes, ao longe batucadas ensaiando carnaval. Antonio Eduardo brilhou sobre a nouvelle vague. Discorreu sobre a espécie de mal-de-século francês, o desencanto que produziam as estruturas rígidas a empobrecer sociedade, a repugnância pela direita e ao stalinismo, a má consciência coletiva devido à Argélia, o sonho dos jovens diretores em torno dos Cahiers du Cinéma. Queriam fazer cinema autêntico, anti-superespetáculo, câmeras de 16 milímetros na mão. Atores desconhecidos, sem vícios. Iara impressionou-se. Analisaram o erotismo que Louis Malle obteve de Jeanne Moreau em Os Amantes, o contrastante Alain Resnais de Hiroshima, meu amor e O ano passado em Marien-bad – ambos tinham um passado, presente e futuro, concordavam – a ambigüidade de François Truffaut em Jules et Jim. Iara retribuiu o convite levando-os a uma festa. Vestia tubinho preto, decote quadrado, alças. Antonio Eduardo não dançava. Paeco não desperdiçou a ocasião de enlaçá-la. Os olhos desejosos do rapaz alvoroçaram-na e no transporte da música, o copo de vinho, encontrou os lábios quentes, macios. Paeco imaginava ter um caso com ela mas não ousou procurá-la nos dias seguintes. Agripino Alberto, que Iara apelidou Portuga, foi outra tentativa. Mais jovem que ela, filho do proprietário de um restaurante popular, o Papai, acostumado a meninas ingênuas, aparvalhou-o a cultura, a sedução e seriedade da professora que procurava arregimentá-lo para a POLOP. – Não tínhamos aonde ir. Certa vez a polícia nos surpreendeu no fusquinha dela à margem da represa do Guarapiranga. Um susto terrível. Numa festa em casa de Rachel Rosenberg nos abraçamos ao dançar. Os rapazes ambíguos confundiam Iara. – O que parece é, ou quer ser. Será? Não quero descobrir no espelho as rugas no canto da testa, expondo a paranóia – mangava, inspirada no psicanalista Wilhelm Reich, cujos livros Cláudio Willer a fazia ler e com quem se punha a analisar os conceitos corporais.

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O grupo do cursinho entrou na Faculdade. Paeco, de férias em Caraguatatuba, recebeu a visita de Iara e Maria Lucia, vindas de Ubatuba. – Fiquei perturbado. O plano dela, contudo, era promover meu namoro com a amiga, pois preferiu Antonio Eduardo. Quando percebi ainda tentei alguma coisa. Pediu-lhe que fosse no domingo à tarde ao parque Trianon e finalmente falou dos seus sentimentos. O momento passara, reconheceu ela. Porém devotava-lhe grande carinho, consolou, enquanto percorriam as aléias sombreadas, o sol filtrado pela mata original que outrora cobriu São Paulo. Subitamente melancólica, lembrouse dos expostos no Museu do Ipiranga, vistos na infância. Pau-brasil, jacarandámimoso. Passaram por palmeiras, quaresmeiras, jatobás, velhos sentados nos bancos, crianças no playground, a ponte sobre a al meda Santos. Entardecia, a brisa fresca anunciando a noite. Aqui tem sabiás-Iaranjeira, maritacas, bem-te-vis, até tucanos enumerava alguém. Saíram defronte ao futuro Masp, imaginou os pais jovens conhecendo-se 24 anos antes, no Trianon. Foi numa festa em casa de André Gouveia1, sentada no sofá, que Iara, halo protetor da psicologia, acolheu Antonio Eduardo e a versão dos seus grandes olhos escuros. É aquela fascinação que as enfermeiras exercem sobre os homens imaturos – pilheriava, pensando em Samuel. – Édipo renitente. Abordaram assuntos íntimos, descartando os habituais filmes aulas, Iara ia dançar, voltava. A saída encheu o carro de caronas e deixou-o para o fim. Forte, nadador, ar intelectual. Destoava da algazarra na Maria Antônia. – Nos abrimos, nos consentimos – recorda Antonio Eduardo. Hóspede, no Bixiga, da tia que trabalhava fora, viam-se ali regularmente. Desenvolveram proximidade. Contudo, a indisposição de Iara ao contato físico persistia. Além da profanação, perdia-se num inexplicável pavor do desconhecido, sem referências. Antonio Eduardo, inteligente e sensível, intuiu no inesperado recato de Iara – contraste com sua exuberância – o trauma que a aniquilava. Dependência da individualidade inatingível do outro, encontro perverso marcado pela solidão antes de dissolver-se o abraço. Corpo vazio, dores, rejeição para além do tempo. Mas não sabia o que fazer. E ela se atirava no turbilhão intranqüilo da Maria Antônia,

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Exilado em 1969, faleceu em acidente de motocicleta na França, dois anos depois.

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impedindo-o de evoluir até estabelecerem uma espécie de jogo erótico psicológico em busca de confiança, ternura e resposta sexual. – Dada a ascendência sobre mim, o acanhamento era desconcertante. Iara sofria por não engravidar. Precisava de um filho, de Antonio Eduardo ou qualquer paixão. Imperioso descobrir o sentido da eternidade, ordenar o caos, reverter a corrosiva dispersão. A esterilidade é castigo somatizado, na linha da asma ou do olfato perdido que me roubou o sabor de tanta coisa, praga divina, descambava. Lembra casulo seco de borboleta. Faltava-lhe a psicoterapia, abandonada, dizia, por causa da militância.

O ano letivo de 1966 começara tenso. Em janeiro, lançamento oficial da candidatura de Costa e Silva, que ambicionava o poder desde quando ventara liderar o país através de um Comando Revolucionário, consumado o golpe. Castelo Branco camuflou a relutância no AI 3, em fevereiro, exibição de força que estabeleceu eleições indiretas para governador e vice-governador. Seriam escolhidos nos Estados ausentes do pleito de 1965; entre eles, São Paulo. "Atos institucionais são vigorosos instrumentos de democracia", apressou-se a decIarar2. – Grupos em luta pelo poder – difundiu a POLOP. – Nenhum está interessado no retorno à normalidade democrática. O espaço político diminui. Tudo previsível, acirram-se as contradições. Debateram a morte de Camilo Torres em combate. Os dirigentes repisaram: luta armada, só no bojo de meticulosos preparativos e movimentos de massa. Ainda em fevereiro, os alunos da Universidade de Minas Gerais boicotaram a cobrança de anuidades, baseada nos acordos MEC-USAID. A polícia reprimiu brutalmente a passeata de calouros, invadindo a igreja que abrigou alguns fugitivos. Em solidariedade realizaram-se passeatas em São Paulo, Curitiba, Vitória e na Guanabara, alvo de violenta repressão.

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Carlos Castelo Branco: Jornal do Brasil, 31.3.74. Citado por Lúcia Klein e Marcus Figueiredo em Legitimidade e Coação no Brasil pós-64, Ed. Forense-Universitária, 1978. Nosso Século: "Os Militares no Poder", Enciclopédia da Abril Cultural.

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Dia 18 de março, Iara saiu à rua com os estudantes da Filosofia 3, segura do papel das passeatas na conscientização do povo. Marcava pontos na campanha pelo Centrinho. – São festas políticas – alegrava-se. – A gente precisa se vestir a caráter, calças compridas e sapato baixo para correr. Os colegas de grupos rivais ironizavam. – Diz a verdade, você e suas amigas têm guarda-roupa especial de rua. – A gente é chique mesmo – replicava. A caminhada largaria da Faculdade de Direito. Despistavam reunindo-se em diversos locais, um deles a pastelaria vizinha à Livraria Forense, na rua Senador Feijó. A comer pastéis – queijo, palmito, os mais corajosos carne moída – acreditavam enganar os infiltrados. Enquanto esperava o sinal no ambiente de fumaça engordurada, caixa de lenços na mão, Iara reencontrou uma colega do colégio, agora estudante de Direito. Abraçaram-se, felizes. Companheiras de manifestação. A partida e presumível provocação vieram juntas. Do alto do prédio da Faculdade, direitistas jogaram bombas juninas em manifestantes agrupados no largo de São Francisco. Um grupo quis subir e enfrentá-los. A maioria decidiu iniciar a caminhada. – Briga é o que a reação quer – acalmava a liderança pelo alto-falante. Evite demonstrar medo, aconselhavam na base. Ensine à massa que somos capazes de nos opor aos fascistas. Juntem os mínimos gestos individuais de bravura e edificaremos a força da resistência. Enfrentar a repressão tempera o revolucionário. O orgulho invadiu Iara. Postura ereta, brilho de ousadia nos olhos. A militância feminina enfrenta a covardia do CCC, a direita policielesca. Como admirava a coragem! Lembrou-se dos versos de Mavakovski que circuIaram na Faculdade: "Na primeira noite eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim/e não dizemos nada / Na segunda noite já não se escondem. Pisam as flores, matam nosso cão./E não dizemos nada./Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa/rouba-nos a lua e, conhecendo nosso medo. arranca-nos a voz da garganta./E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada".

Parte do ciclo de repressão e solidariedade – João Roberto Martins Filho, obra citada, (Cap. III, "O Movimento Estudantil em Compasso de Ditadura – Tropas na rua: os protestos de 1966"), Ed. Papirus, 1987. 3

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Nunca pensou que o Hino Nacional a comovesse tanto. O povo nas ruas, susto e curiosidade, abria caminho. Dos prédios jogavam papel picado, os estudantes a gritar "Abaixo a Ditadura", "O Voto é do Povo". No cartaz que Iara ajudou a fazer liase "Operários e Camponeses no Poder", a marca da reivindicação específica da POLOP. O DOPS e a Força Pública apenas observavam. A violência ficou a cargo do CCC, que repetiu as bombas no largo, ponto de concentração final. Discursos e brigas localizadas só terminaram quando o professor Gofredo da Silva Telles, respeitado por todos, pediu moderação4. O DCE da Universidade do Brasil sugeriu aos universitários que não pagassem as anuidades recém-estabelecidas na Guanabara, pois representavam o passo inicial do estudo superior privatizado. A oposição dos estudantes de esquerda contra os Diretórios Centrais, vários já a favor das reivindicações políticas, atenuou-se. O SNI alertou o governo: os universitários planejavam enfraquecer o regime, aproveitando a divisão militar. E acusou Lacerda, abandonado pelos duros agora próximos do poder, de usar os jovens enquanto costurava a grande novidade política, a Frente Ampla de oposições. Passados 30 dias passeatas, Castelo Branco afirmou que os líderes estudantis pertenciam organizações ilegais e comandavam a agitação5. – Fico louca da vida quando acusam o movimento universitário de enfraquecer o Castelo e reforçar a linha dura – abordou Iara durante uma reunião. – Claro. A ação estudantil é produto das circunstâncias políticas e não o inverso. E nossa tarefa criticar sem tréguas as condições geradas pela ditadura. Mas cuidado. Não perca de vista o risco do aventureirismo – esclareceu o dirigente que dava assistência ao grupo. A impaciência dos militantes, certos de que a revolução estava a um passo, preocupava-o. Antonio Eduardo ressentia-se das múltiplas atividades de Iara. Algum tempo sobrava para o cinema, festas ou apenas visitarem Paeco, numa ruazinha perto da Faculdade de Medicina. Ouviam discos quanto folheavam livros de arte e os outros jogavam pôquer. Também foram ao jantar de Pessach na casa dos Iavelberg, em abril. – Comi patê de maçã, matzá e cenoura à moda húngara. Dona Eva e eu nos dávamos bem. O pai e Melo, pouco efusivos.

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O Estado de S.Paulo, 19.3.1966. Carlos Castelo Branco: Os Militares no Poder, obra citada (20.4.1966).

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Sentia-se aquém das expectativas de Iara, aquecida para o sucesso, valorizar elegância, participação política, desenvolvimento acadêmico, trânsito social. Frustrava-a por resistir à militância, e participou POLOP a fim de encontrá-la mais. Agoniava-o a idéia ter-se falseado. Lento, não conseguia deslanchar no curso. Ao contrário do que insinuara em conversas "culturais", não produzia ensaios. A rematar, desempregado, ela é que lhe obtinha traduções. Diminuído, cheio de ciúme, exibia indiferença agressiva. Diversas vezes choraram juntos, desamparados. – Ele é difícil – confidenciou Iara a Paeco, em lágrimas. – Não sei se vai dar. Lentamente deixou de contar com ele e distanciou-se. Não houve rompimento formal.

Desde o início de 1966, os grupos políticos voltavam-se para o teatro. O sucesso de Morte e Vida Severina estimulou-os. É um auto de Natal, criticavam. O triunfo da vida repousa num salvador, a criança-símbolo. Renascimento na miséria e violência, caminhos pontuados de crianças mortas. Cristianismo puro. Nós faremos um teatro de agitação. Seu papel é despertar a sociedade civil. Será um dos lados legais da luta, como disse Lenin. Fator de mobilização, quase comício. Nada de limitarse às perspectivas do PC, que caracterizaram o Teatro de Arena: resistir ao arbítrio, reafirmação de valores culturais. Grande coisa Shakespeare, o Sindicato dos Atores. Bem fizeram Vianinha e Chico de Assis, que já antes do golpe trocaram o Arena pelo CPC – um teatro de emergência, peças escritas aqui e agora, fatos na praça instantaneamente6. Deliberaram reviver o Teatro Universitário da USP, o TUSP, criação do ator Ruy Affonso em 1955 e retomado na pequena experiência de Plinio Marcos com a UEE, antes de 1964. O grande articulador foi André Gouveia, que conhecia tudo de teatro graças aos pais Tatiana Belinky e Julio Gouveia, personalidades do mundo da arte. O objetivo, além da montagem de peças, abrangia cursos, palestras e uma revista. InstaIaram-se numa sala emprestada das Faculdades Armando Alvares Penteado, reuniam-se em casa de André e do cineasta Thomas Farkas. Paulo José aceitou dirigir 6

O Arena, sem contato com as camadas revolucionárias de nossa sociedade, não chegou a armar um teatro de ação, armou um teatro inconformado... o teatro tem de servir à luta do povo, como instrumento de sua conscientização e meio de organização" – Oduvaldo Vianna Filho, citado em "Um Projeto para a Cultura Brasileira nos anos 60: Análise Sociológica do Centro Popular de Cultura – CPC, da UNE". Pesquisa sem crédito ou data, no Departamento de Documentação da Editora Abril.

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as leituras dramáticas iniciais e os espetáculos. Obtida uma verba da Secretaria da Cultura, alugaram na rua Haddock Lobo, perto da avenida Paulista, o sobradão amarelo onde Sérgio Ferro, Flávio Império e Antonio Lefèvre tocavam o escritório de arquitetura. A maior amizade de Iara nesse período foi Betty Chachamovitz7. Desquitada, inteligente, bonita, era excelente física. Colega de Melo no primeiro ano, logo a chamaram para dar aula aos calouros. No jogo da complementaridade, fornecia o brilho intelectual e a coragem de exteriorizar agressividade que faltavam à Iara. Menos falante, não se expunha como ela num romantismo considerado pitoresco, mas aquém do bom-tom. O TUSP iniciou 1966 com o curso de Anatol Rosenfeld sobre a obra de Brecht, para escárnio de Cláudio Willer. – Brecht, não obstante fundamental, é o teatro dos alinhamentos – demolia. – Vou montar um espetáculo sobre a geração beat a maldita. Que execra, abomina, nega, questiona. Iara aprovava sorridente, no antegozo do escarcéu. Uma de suas numerosas vidas prosseguia ao lado de Willer. Toda contestação é válida, argumentava. Apesar dos impropérios do amigo assistiu às aulas de Rosenfeld, muitas vezes entediada, sensação de perder tempo. Mas anotou que a chave do drama épico é compreender. Nada de compartilhar, catarse. O ator evita identificar-se com o papel, e adota um estilo objetivo. Faixas, cartazes, projeção de títulos, ilustrações. Luz a invadir o palco, canções independentes da ação. O choque mobilizará o público embotado. Tensão permanente. E sempre a crítica social, a corrupção humana à procura de uma ordem social mais justa, "O mundo real existe e é nosso tema; mas esta peça e este palco não se encontram no mundo real", marcou. Quis ser atriz. Heleny, da França, animava seu interesse pelo teatro. Escreveu-lhe que aplicaria no Brasil o aprendizado na rede das Casas de Cultura francesas e no Berliner Ensemble da Alemanha Oriental. Aprofundava-se nas encenações do diretor francês do momento, Roger Planchon; aborda as questões do século reinterpretando textos sob protestos de crítica e público – explicou. Faz encenações politizantes de textos clássicos. Numa fase posterior à aceitação irrestrita das teses épico-didáticas de

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Recusou-se a dar seu depoimento.

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Brecht, ambiciona analisar as ações dos personagens além de suas palavras, freqüentemente mentirosas. Além disso, cria as próprias peças. As primeiras leituras dramáticas do TUSP foram de Oswald de Andrade, A Morta e O Homem e o Cavalo, esta a peça mais política do autor; continha a revolução proletária e discurso de Stalin. Leram Aquele que diz sim, aquele que diz não, e Os Horácios e os Curiácios, de Brecht. Paulo José percebia que Iara julgava as peças pouco arrojadas. Não se concentrava, a cabeça em outro lugar e perdeu a chance de subir ao palco. Apesar de constantes discussões, o grupo do TUSP era amoroso. Não raro a amizade envolvia sexo. – Ajuda a reanimar uma pessoa em depressão. Faço porque são as pessoas de quem gosto – explicou Iara a uma amiga. De vez em quando sentava-se ao lado de Maria Alice Machado, que secretariou o TUSP algum tempo. Tão menina sua ex-aluna, nem 20 anos, e esse amor por André, conquistador. Sofrida, comportadinha, competindo com mulheres liberadas, mais velhas, de 22, 23 anos! É imaturidade afetiva dele, interpretava. Tais dificuldades permanecerão até que os rapazes dêem o grande salto qualitativo, gerando o homem novo. Discorria como se a rivalidade não a ferisse, um vale-tudo voraz para conquistar aqueles de maior brilho, uma amiga ferindo a outra, implacáveis nas áreas mais sensíveis. Pequenos assassinatos. Tentava aplacar o ciúme de ambas, a ambigüidade de Maria Alice em relação a Betty – quem resiste ao André, mestre da sedução? – e minorar-lhe a dor. Tivemos uma educação moralista, repetia. Você precisa fazer amor escondido, bancar a virgem, construir uma vida profissional e acha que mulher não é amiga de mulher. Um quadro difícil. Mas somos pioneiras. Quando eu me casei, parecia menina em primeira comunhão. É nossa obrigação de revolucionárias estabelecer novos comportamentos. Impressionava-se com a transfiguração de Maria Alice ao sorrir. Iluminada. Todo nascimento é doloroso, pensou, certa de que contribuíam, ela, Iara, também, para endurecer o rosto da colega. Necas, não vale dizer "olha o que você fez comigo". O negócio é esse mesmo. Cada um precisa aprender a transformar os acontecimentos. Ser agente, não paciente.

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Outro local de encontro continuava o apartamento de Renata Souza Dantas, quase uma extensão da rua Maria Antônia. A atriz Rose Lacreta, do TUSP e namorando André, absorvia ali as observações de Iara sobre liberação feminina. – Ela sempre chutava a bola à frente, punha a questão adiante. Através de Renata conheceu Dulce Maia, seis anos mais velha uma geração – que cuidava de tudo no Teatro Oficina, desde administração até cenografia com Império. Admirou o entusiasmo e envolvimento da militante que vinha da Guanabara, fugida após o golpe de 1964. No apartamento de Higienópolis aparecia gente ligada a cinema. Rogério Sganzerla ali filmaria várias cenas de O Bandido da Luz Vermelha, as amigas em pontas. Iara não participou do elenco de sustentação. Em novembro de 1966 o TUSP montou A Exceção e a Regra, de Brecht, no teatro da Faculdade de Medicina. Paulo José dirigiu. Declamaram também poemas do autor e Iara emocionou-se a ponto de comprar o livro Bertold Brecht, Poemas e Canções8. Havia a Canção dos Três Soldados: "George foi derrubado, Freddy morto,/ Johnny perdido e desaparecido./ Mas o sangue é, como sempre, vermelho/e já o exército convoca outros." Divertia-se com a Lenda do Soldado Morto: "Ainda na frente ia um senhor de fraque/e de peito engomado/que era/como todo bom alemão,/muito cioso de sua função". E sentia funda angústia com "1940": "Encontro-me na ilhazinha de Lidingo./Mais uma vez à noite/eu tive um pesadelo: sonhei que estava/numa cidade e descobria que os nomes das ruas/estavam em alemão. Banhado em suor/despertei e aliviado/vi defronte à janela os abetos no escuro da noite;/então me convenci de que estava no estrangeiro". Nesse período, Iara conheceu a atriz Dina Sfat. – Acho que eu trabalhava em Arena Conta Tiradentes. Acompanhei o TUSP de longe por causa de Paulo José, meu marido. Vem daí as primeiras imagens de Iara, que circulava no grupo. A grande boca, olhos castanhos, cabelo alourado, queixo meio proeminente. Um tipo claro, judaico. Estivemos poucas vezes juntas, quando a turma inteira vinha ao nosso apartamento. Lembro de seu bom humor. Iara ajudou a levar A Exceção e a Regra aos sindicatos e à posse da diretoria da Associação dos Universitários de Santo André, em novembro. Porém tinha restrições. 8

Tradução de Geir Campos. Ed. Civilização Brasileira, 1966.

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– Não basta o operário entender, numa peça didática dessas, a espoliação e a própria responsabilidade no relacionamento entre submissos e opressores. Concordo que o texto é claro como um jogo de futebol. O explorador e dois explorados viajam e têm comportamentos que são a regra, embora aberrantes. Precisamos ir além, propor ações que soterrem a injustiça. Vamos lembrar aos espectadores que Brecht escreveu a peça para escolas em 1929-30, antes do nazismo. O mundo mudou! – Você é muito sectária e impaciente com os processos políticos – ponderava Paulo José. – Não sou sectária mas radical, de raiz. No cursinho cruzava um grupo de alunos da Geologia. Alguns, do interior, ocupavam o porão da casa, apelido "Paróquia", e repartiam as despesas. A aura dos geólogos vinha das campanhas dos anos 50. Cientistas do subsolo brasileiro, petróleo, riquezas minerais, nacionalismo e emancipação econômica. Iara interessouse por um estudante ligado ao PC. Saíram mas ele se esquivava. A amiga Christine Laznik substituiu-a. – Namora e dá o fora – atiçou Iara. – É para me vingar. – Por quê? – Dei em cima. Preferiu a noiva de bairro – modulou, tom pejorativo. Christine reproduziu o diálogo ao rapaz, que se justificou: Iara seduzia-o e amedrontava. Sem namorado, sentia saudade de Samuel. Recidiva, todas as perdas. – Queria encontrá-lo mas está difícil – resmungou para Christine. Não trocavam só de amores. Pouco dinheiro e ofuscada por roupas, Iara vivia emprestando peças das amigas. Verdadeira mascarada, um jogo narcísico, pressentia Christine. O faz-de-conta da transformação e descoberta de si. Mensagens enganosas, o cotidiano um baile à fantasia, erotismo. Virtudes físicas, sociais, uma lasca da personalidade e história da outra. – Adorei sua blusa – dizia. – Empresta pra eu dar uma voltinha? Quanto mais vestida, mais nua. Pediu um traje de seda, a sandália italiana de tirinhas complementou-o. – Assim não fica paramentado. Agora finjo que venho da Faculdade, livros debaixo do braço. Displicente, pareço aquelas meninas que põem seda todos os dias. No inverno aproveitava a chance de usar o casaco de vison de Rachel. 117

– Fascinava-me a encenação de vestir personagens para enfeitiçar. Tudo a ver com teatro. Muito melhor do que entrar em depressão – analisa Christine. Certa vez, Iara admirou na amiga um vistoso crucifixo de madeira e pediu-o. Apareceu com ele em casa dos pais e David cobrou-lhe o uso do símbolo responsável por tanto sangue judeu ao longo dos séculos. Iara repetiu o reparo a Christine, filha de pai judeu. A amiga que achou graça. – Só pretendíamos, materialistas e revolucionárias, chocar. A campanha pelo Centrinho esquentou em torno da antiga questão dos excedentes – candidatos aprovados, notas suficientes, sem vaga. Ligava-se ao tema central do momento, democratização do ensino e reforma universitária. Os professores favoráveis à mudança acertaram uma pequena conspiração com os alunos: terminado o vestibular publicariam listas incluindo os excedentes – uma novidade. E os estudantes que pressionassem. Vitoriosos, seriam necessárias novas classes e professores. Bem escolhidos, romperiam o equilíbrio de forças em favor da reforma. Na Psicologia, lideravam o movimento dos 32 excedentes Iara e a presidente do Centrinho, Maria do Carmo Reginato, mentora da chapa que pretendia derrotar a POLOP nas eleições. – As duas ativíssimas, só que Iara mais mitológica – depõe o psicólogo Norberto Abreu e Silva Neto, um dos excedentes. Maria Lucia e Iara, dia e noite atentas, sugeriam atividades aos jovens. Encaminhar papéis à Congregação da Faculdade, aparecer nas reuniões da cadeira, ir às classes, rádio, tevê, jornais. Também Maryse Fahré ajudava. Muitas vezes as duas politicaram a caminho do bar na Maria Antônia, atraindo os olhares pela agitação e o contraste. Iara, delicada no andar, cIara; Maryse, passos firmes, cabelos e olhos negros. A luta exigia superar Maria do Carmo em competição civilizada mas implacável de alfinetadas. Não faziam concessões. Além de tornar vitorioso o movimento dos excedentes, tinham de eleger-se. – Iara sabia brigar, uma leoa – iguala Ecléa. – Forte e dura, porém uma personalidade amorosa. Os grupos digladiavam-se em assembléias difíceis. – Você é irresponsável – xingavam Iara.

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Apesar da inimizade na política, suas revelações pessoais cativavam Maria do Carmo. – Quantas vezes sentamos nas cadeiras do corredor, junto ao saguão, para trocar confidências. Minha postura menos briguenta confrontava a vibração dela, cheia de vida. Uma força que extrapolava. Dinâmica, atualizada. Iara antecipava a recepção dos excedentes matriculados, as eleições ganhas, o júbilo da tarefa cumprida. Os geniozinhos da POLOP reconheceriam o desempenho. Os excedentes entraram e Iara foi eleita; a nova diretoria incluía candidatos da chapa rival. Muito inteligente, certa fraqueza teórica, Iara não se destacava nos encontros da POLOP devido ao caráter doutrinário das discussões. O sectarismo dominava. Defendíamos a militância estrita, rigorosa, disciplinada – disse Eder Sader9. – Insubmissa, ela faltava às reuniões por motivos que, anos depois, eu julgaria os mais saudáveis. Sua existência rica não se continha dentro de um grupo restrito, centralizador. Iara advogava suas atitudes em conversas pessoais. Ainda não enfrentava sem amarras os companheiros reunidos. – Absurdo esquecer o emocional, oculto sob o racionalismo paupééérrimo dos pensadores. Como é que não enxergam? As críticas a mim só desmascaram a repressão interna. Freud explica – acalmava-se a sorrir. – Você tem que ser revolucionário também no amor, na vida familiar. Devemos construir o homem novo, disse o Che. Permitir à revolução penetrar no comportamento e consciência de todos. Paeco não se cansava de observá-la. – Expunha-se, arriscava. Inquieta, parecia sua amiga Heleny. Não se ajustava a situações que envolviam algum tipo de injustiça. Ia lá, puxava o assunto. Levava ao dia-a-dia nossa visão de mundo em formação. Vanguardista. Cobrava coerência nas relações pessoais dos que pretendiam mudar a sociedade. Não se tratava do prato quente das discussões na época. Diversas reuniões realizaram-se na casa de Christine, em Alto de Pinheiros. Antes que o dirigente conseguisse expor uma ordem-do-dia, reinava o caos. As amigas queriam atualizar os mexericos, saber dos namorados, as brigas, numa tagarelice que gerava críticas: festivas, irresponsáveis. 9

Faleceu em 1990.

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– Essa é boa – cochichava Iara. – A militância abriga nossos valores éticos, mas somos mulheres em busca de amor. O príncipe justiceiro poderia estar no botequim da esquina ou na cinemateca. Ah, os olhos negros do geólogo comendo sanduíche antes da assembléia. – Existia nela e em mim uma sensitividade imediata, o impulso de dizer sempre o verdadeiro como se fosse bom fazê-lo continuamente, a compulsão de teatralizar situações e imensa demanda de amor. Iara deu o tom porque se encontrava mais à frente e respondi com uma bela ressonância. Vivíamos um momento de grande instabilidade. Maria Lucia era mais pacata. Por causa da gente, falavam mal da célula inteira. Assim que assumiu o Centrinho, Iara vinculou-o ao movimento estudantil e à luta contra a ditadura, politizando as atividades. Ampliou a tendência da gestão anterior, discutir psicologia no contexto da realidade nacional a exemplo das Ciências Sociais. Os alunos queixavam-se do vazio científico, estudos teóricos e restritivos. Desejavam ligá-los a São Paulo, ao Brasil, aplicar o conhecimento em atuações consistentes. A idéia arrepiava diversos professores. Nada mais distante deles que uma psicologia voltada aos problemas dos trabalhadores, a expressão periferia ainda fora de uso. As censuras de Iara ao conteúdo das aulas geraram desavenças com Anita Marcondes Castilho de Cabral. Determinante na escolha dos professores, estes submetiam-se a ela amiúde contrariados. Responsável pela cadeira de Psicologia Social, as turmas pressionavam-na para que relacionasse a teoria à vida concreta: industrialização em processo e ditadura. Não era receptiva. Quando Maria do Carmo se referiu, numa prova, à "interferência na realidade", riscou várias vezes a expressão e castigou-a com prova oral. – Sente-se atacada, vê como crítica. Não percebe nossa ânsia por ajuda – resignou-se. Revoltada, Iara desabafava: – A Gestalt é a única teoria que aborda o campo psicossocial. Poooxa, temos aí a Psicologia determinada socialmente, embora a representação seja vida mental. Sem atuar como produto das coisas sociais, porém intermediada por uma percepção da realidade. Engolimos Skinner e sua abominável cruza de behaviorismo e marxismo, Gente coisa mecanicista, não dá! Sobra Gestalt e Cognitivismo de um lado 120

e a desligada psicanálise do outro. Adoro o professor Durval Marcondes, mas deveríamos juntar tudo. A dona Anita não é de nada! Queixava-se na classe, ardorosa no papel político. – Como entender a pessoa se não partimos do global, da realidade em que ela vive? Temos os mecanismos da consciência que constroem o conhecimento. E temos o inconsciente. Falta a gestalt, para a gente apreender o indivíduo. Preocupada, Rachel Rosenberg acompanhava a agitação. – Brilhante porém complicada, dona Anita julgava Iara uma vigarista em termos acadêmicos. E ficou com ódio do que simbolizava: pouco estudo, chutes, arvorar-se em interessada por Psicologia Social E, de certo modo, menosprezar seu esforço. Numa prova em que Iara reclamou da nota a professora foi agressiva e deu início à discriminação aberta, ignorando-lhe a presença. Mas Iara, segundo Rachel, nunca deixou as aulas de dona Anita ou dos outros professores, inclusive daqueles que o curso inteiro considerava incompetentes. Devotava-se ao Centrinho. Planejou conferências. Atraiu gente de instabilidade de outras áreas. Numa delas conversou bastante com Albertina de Oliveira Costa, 23 anos, que tinha uma filha do primeiro marido, Augusto Boal. Logo ancorou no pólo maternal da nova amiga, em pós-graduação e famosa por já lecionar Política nas Ciências Sociais. Aparecia em sua casa nos mais diferentes horários, a pedir ajuda em dilemas amorosos. Albertina, introvertida, impulso de proteção, ligou-se à afetividade que recebia. Espantava-se com a falta de autoconfiança de Iara, oposta ao desempenho público desinibido. Procurava reassegurá-la quando, envergonhada, admitia-se intelectualmente inferior aos amigos. Confortava-a das paixões romanescas, um pouco indistintas, que não correspondiam aos devaneios. Admirava o viver intenso e a alegria, ativa mesmo que deprimida. Junho ofereceu um gosto raro de diversão política. O Jornal da Tarde mostrava de costas, em foto de página inteira, o recém-cassado governador Adhemar de Barros. A manchete tripudiava: "Enfim vemos este senhor pelas costas". – Apostou na divisão dos militares. Quis valorizar-se junto aos linha-dura representando empresários em suposto sufoco econômico-financeiro. Malvisto, um histórico de corrupto ostensivo, catapultaram-no da vida política. Maior boi de piranha – analisou a POLOP, depois de uma das costumeiras discussões sobre finanças. O

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compromisso de contribuírem com uma porcentagem do salário falhava. Naquele dia, sem calcular o impacto, Iara descreveu as novas roupas. – Torrei meu pagamento. – Como é que você compra o superficial se precisamos tanto de dinheiro? – atacaram, a acrescentar reprimendas. – Roupa é acessório burguês. Aborrecida, ironizou os discursos e defendeu-se; num trabalho ilegal, dar na vista seria cana certa. Burrice as militantes andarem molambentas, os companheiros que ouvissem a voz do povo – o hábito faz o monge. Porém o rebuliço tocou-a. De alguma forma cedia à compulsão do vestuário, novo ou emprestado, nem sempre bem-vestida. Antiga idéia fixa, cada blusa ou bijuteria da loja a contar histórias. – As mínimas coisinhas marcavam, nós tão jovens – diz Maria Lucia. – Não recuou para a autocritica que a toda hora se fazia.

Robertão era namorado intermitente. Interessada em grafologia, Iara examinava seus papéis. – É um instrumento auxiliar na Psicologia. Gostava de esoterismos. Foge das chatices do racionalismo materialista, alegava. Existe uma dimensão de mistério além da dialética. Pegue os elementos que constituem o indivíduo ou certo acontecimento. Você acha que está por dentro, mas eis senão quando surge o fruto inesperado. É um lado inexplicável, que psicologia e arte partilham. Transcendência não se explica, perdoem-me. A grafologia dá insights sobre a personalidade, dribla defesas; é uma vereda sorrateira para o inconsciente. Detecta inibições, manias, ambição oculta, se bobear até esquizofrenia. Claro, global é imprescindível. Do contexto à expressão corporal. No final de julho realizou-se em Belo Horizonte o 28° Congresso da UNE. Centenas de estudantes misturaram-se aos fiéis durante a missa na igreja de São Francisco, para reunir-se no porão do convento. Alguns estudantes norte-americanos, observadores, ecoariam o evento no Exterior; a importância da opinião pública mundial estava na mente de todos. A polícia descobriu o local e cercou-o, sem proceder à invasão. Uma chapa que incluía as facções, espécie de Frente Ampla

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estudantil, elegeu o presidente do Diretório Central de Estudantes da Universidade de Minas Gerais10. Iara não foi, mas presenciou a avaliação da POLOP. – O grande aparato policial-militar que dominou o centro da cidade revela a intenção de reprimir violentamente as iniciativas estudantis. O governo usará os universitários para exercer a política de segurança nacional com ótima repercussão – previu o enviado ao congresso. – Daí o insubstituível trabalho de massa fora do círculo universitário11. O Congresso da UNE vinculou terror e obscurantismo ao subdesenvolvimento, o que explicava o teor das resoluções: revogação da lei de greve e dos atos constitucionais, anistia geral aos presos políticos, liberdade, Constituinte Popular. Retirada das forças interventoras na República Dominicana, no Vietnã e autodeterminação dos povos. "A luta entre exploradores e explorados se trava hoje no plano internacional", concluía. A questão do apoio à Constituinte Popular rendeu intermináveis discussões na POLOP. – Combate os sintomas, não a causa. Legitima os golpistas. Como diz a própria UNE, enfrentamos os interesses dos imperialistas, latifundiários e grandes monopólios nacionais, unidos sob o comando da casta militar. São as forças que metralham o povo na Indonésia, fomentam e financiam golpes na África, Ásia e América Latina. Apoiar a Constituinte confundiria o povo, desviando sua atenção dos verdadeiros inimigos. A argumentação convenceu a maioria. A POLOP sublinhava a necessidade de ir à raiz. – Ótimo. Então, que hacer? – reclamavam alguns, aludindo ao título de Lenin, objeto constante de citações. – Somos soldados da luta revolucionária patinando no mesmo lugar. Só manifestos e passeatas. De repente, estavam insatisfeitos. Urgia eletrizar o povo, conduzir as massas à sublevação. Ao mesmo tempo, proteger os líderes e planejar táticas de defesa. – Vamos devolver à palavra revolução, enxovalhada pelos golpistas, o sentido verdadeiro de mudança na estrutura econômica, política, social.

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José Luis Moreira Guedes. Poerner faz uma descrição detalhada da aventura que foi esse congresso, baseado na Folha da Semana de Belo Horizonte (4-10.8.1966). 11 Maria Helena Moreira Alves, obra citada (Cap. I, citado): A mobilização nas faculdades encaixava-se nos "índices de inconformismo" do Manual Básico da Escola Superior de Guerra.

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Há condições favoráveis, expunham. Costa e Silva promete concluir a “vassoura revolucionária”. Os políticos tentam manipular o gorila, decIarando-o promotor de pacificação nacional – eufemismo de anistia às lideranças depostas. Mas ele é contra rever cassações e ameaça o Congresso, se este rejeitar a Constituição de Castelo12.

Setembrada, sit-in, o livrinho vermelho

PANFLETAGENS NAS PORTAS de fábrica não despertavam o proletariado, gigante adormecido. Agora genuínas ações de treino, abrangia cuidadoso levantamento: horários, rotas de fuga, linhas de ônibus, companheiros motorizados em saídas estratégicas. Suspense e crescente ceticismo. Atentados, como aquele do aeroporto de Guararapes1, que no Recife matou duas pessoas e feriu várias – Costa e Silva, o alvo, viajara de carro – só prosperariam na crista de movimentos de massa, competência à parte. Os militantes exaltavam-se: o foco guerrilheiro, empuxo para o salto qualitativo de operários e camponeses é o caminho. Os líderes da POLOP, pressentindo o descontrole, argumentavam: – Antes de tudo, o povo precisa convencer-se de que as lutas cívicas por salário e melhorias sociais são inócuas. A advertência é do Che. Ainda não houve uma única greve contra o arrocho. – Nem sempre convém esperar todas as condições revolucionárias. O foco insurrecional pode criá-las – revidavam, citando o mesmo e obrigatório livro2. Iara vacilava. De um lado apoiava os contestadores, de outro o foco era inviável, voluntarista. Insatisfeita como a maioria dos companheiros, prestava atenção aos sinais que vinham do mundo. Um ano depois da gigantesca rebelião racial dos negros no gueto de Watts, em Los Angeles-seis dias de desespero pelo desemprego e miséria, batalhas, incêndios, saques, 34 mortos, dezenas de feridos graves, quatro

Maria Helena Moreira Alves, obra citada (Cap. V: “Reforma constitucional e institucionalização do novo Estado): O Congresso irritava-se contra a imposição da nova carta, que encampava o AI 2. Queria revogar os artigos 14 e 15. Um despojava do caráter vitalício dos cargos de juiz, abrindo caminho para expurgos no Judiciário, ainda apto a enfrentar atos discricionais. O outro legitimava o poder de cassar que o governo se atribuiu. 1 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 16: "O maoísmo cristão"): Iniciativa isolada de um dos membros da Comissão Militar da AP, desde o final de 1965 convertida à luta armada. O fato só foi revelado em 1979, depois da anistia. 2 Che Guevara: A Guerra de Guerrilhas, Edições Populares, 1987. 12

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mil presos – finalmente surgia uma liderança, o Partido dos Panteras Negras. Dois homens e dois revólveres. Que lição! Repeliam o pacifismo sonhador de Martin Luther King, denunciavam a opressão branca efetuada através dos "porcos", policiais. Aos irmãos negros cabia derrubar o governo fascista dos Estados Unidos, prescindindo de violência até o amadurecimento das condições revolucionárias. Citavam Mao. – Parece o dilema da gente. Acompanhava nos jornais as manifestações contra a guerra do Vietnã. Empolgaram-na os sit-in universitários, tática de desobediência civil usada por Gandhi na luta contra o colonialismo inglês e que seguidores de King adotavam. Sentavamse em lugar público e só saiam carregados. – Funcionou na Faculdade Nacional de Medicina este ano, quando os excedentes acamparam lá dentro. Espantou-se quando soube que eram brancos de classe média a maioria dos jovens contrários à guerra no Vietnã. Os negros viam nela e chance de ascender. Acreditavam que os abonaria o heroísmo, trazendo aceitação social e oportunidades. Não compreendia bem os hippies. – Inconsistentes, eficácia limitada. Mas advogava tolerância; a recusa irreverente do establishment concorre para enfraquecê-lo. Organizou no Centrinho um curso de Linguagem e Teoria da Informação, a cargo do poeta e lingüista Décio Pignatari. Sentou-se com ele à frente, no final abria os debates. – Venha, é interessante e ponto para o currículo – convidava. Assistiu à palestra de Umberto Eco sobre comunicação de massa no Mackenzie e elogiou a pertinência do tema para o trabalho revolucionário. Em agosto, no início das aulas, vieram da China as notícias sobre a revolução cultural. O livrinho vermelho circulava. – O comunismo chinês recupera a pureza. Houve erros econômicos graves, a ilusão de forjar aço no quintal. Porém é erro acusar o rigor ideológico de Mao. A POLOP dedicou-se ao assunto e reagiu cautelosa. – Parece uma luta pelo poder. A burocracia e os tecnocratas afastaram Mao Tsé-tung. Queriam evitar a prevalência da ideologia e política sobre critérios econômicos. Mao, num golpe de mestre, apoiou-se no chefe das Forças Armadas, Lin 125

Piao, e mobilizou os estudantes contra o revisionismo. Só que execrou gente como Liu Chao-chi, modelo revolucionário num momento anterior, inegável passado de lutas. Cheira a stalinismo. – Vocês são antimaoístas – defendiam os mais insofridos. – A China é a revolução viva. Seus símbolos: guardas vermelhos na praça Tien-An-men e da-dzibaos. – Somos antiMao, não antimaoístas. A tese dele é destruir já a três grandes diferenças, cidade e campo, indústria e agricultura, trabalho mental e manual. O marxismo prevê isso na etapa final, o comunismo. – O fato é que as massas na rua fazem revolução – interveio Iara. – Ou são manipuladas. Além de política, ansiava por praticar a futura profissão. No cursinho, diversos alunos se dispunham ao aconselhamento psicológico. Que tal atendê-los, sob a supervisão de professores? Ao lado de Rachel Rosenberg e dois colegas, começou a desenvolver o Serviço de Psicologia do Grêmio. O projeto para o ano seguinte, já quintanistas, consistiria de palestras, aplicação de testes e o grande atrativo, a assistência aos alunos3. Dividida entre as múltiplas atividades, esporadicamente Iara relaxava junto a colegas distantes do burburinho. Uma delas era Mary Jane Paris, da classe de Marina Tschipschin, filha de ingleses e originária de outro mundo. Iam a barezinhos e falavam de homens, filmes, teatro e artes plásticas, sem a preocupação de análises inteligentes ou conhecimento profundo. Nem política nem a pesada cobrança intelectual com que as pessoas se aferiam na Faculdade. Iara gostava de visitar Mary Jane no Alto da Boa Vista, a casa antiga rodeada de jardins, o surpreendente barquinho e pequeno lago entre as árvores. Numa das costumeiras festas em casa da amiga, conheceu o músico Baldur Liesenberg. Tocava viola na orquestra de câmara da Universidade de Brasília e era monitor do departamento de Música, quando houve a invasão. Demitiu-se com os demais

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Rachel Lea Rosenberg (organizadora): Aconselhamento Psicológico Centrado na Pessoa, Editora Pedagógica e Universitária, 1987 ("Introdução: biografia de um serviço"): "Deste serviço inicial ficaram algumas das contribuições ao movimento psicológico no Brasil: a constatação de que o psicólogo podia atuar na comunidade, e não apenas num consultório; a afirmação de uma área especifica da atuação psicológica, independente tanto da Educação como da Medicina; o questionamento da postura de 'autoridade' do profissional ante seu cliente, e da necessidade estrita de certas condições como pagamento, estudo de caso, atendimento prolongado etc. para a validade do trabalho. Todas estas noções eram, na época, inovadoras e controvertidas."

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professores e veio a São Paulo tocar na Orquestra Sinfônica Estadual, sem chance de prosseguir no planejado mestrado – não havia curso superior de Música. Remaram no laguinho. O programa inusitado e a noite fria de agosto enterneceram Baldur. – Fiquei caído por ela. Lindos cabelos aloirados, voz meiga, sempre uma certa ironia. Reencontraram-se numa festa em Pinheiros, pouca gente. O "jogo da verdade'", inspirado no filme da nouvelle vague Os Trapaceiros, Marcel Carné, estava na moda. Os participantes comprometiam-se a não mentir, fosse a pergunta qual fosse. Semelhante aos desencontros amorosos do filme, muitos trapaceavam; os mais argutos e hábeis no esquivar-se intervinham: você está trichando! – palavra derivada do título francês, Les Tricheurs. Os temas, difíceis, refletiam as angústias: amor, sexo, afetividade, razão, emoções. Coube a Baldur, mais ingênuo, confessar a solidão e expor sua vivência sexual, sem namorada. As perguntas choveram. – O que você faz, procura putas? – Iara formulava as questões cIaramente. – Negativo, acho sacanagem – e introduziu o tema político dos papéis sexuais e exploração. – E como é que você se satisfaz? A sinceridade do rapaz contagiou o grupo. – Descobrimo-nos grandes masturbadores, sem exceção – diverte-se Baldur. O grupo pôs-se a dançar. Iara enlaçou-o e durante muito tempo movimentaramse colados, suaves, sem falar, um abraço de corpo inteiro. Depois da festa levou-o para casa, perto da Faculdade. Ao perceber que ele se aproximava, cortou. – Não posso me envolver – segredou evasiva e doce, afastando-o. Despediram-se amigos. Baldur era inteligente, bonito, mas distanciava-se do que pretendia de um homem; aprendera com Antonio Eduardo. Dirigiu feliz até o Ipiranga, senhora das ruas desertas, e adormeceu apaziguada. De 7 a 13 de setembro, a UEE programou seu congresso em São Bernardo do Campo, São Paulo. Lançaria o Movimento contra a Ditadura. A POLOP discordou. – Falta a presença do proletariado. O povo atribuirá a iniciativa ao MDB. Volantes plantados permitiram qualificar o congresso de subversivo. Policiais infiltrados descobriram o local e prenderam 178 estudantes. Roberto de Abreu Sodré4

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Governador de São Paulo escolhido pela Assembléia Legislativa dia 3 de setembro, nas eleições indiretas.

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criticou as prisões: "A polícia deu importância a uma ação que não merecia destaque na imprensa." Ao mesmo tempo atacava Lacerda, que se dizia favorável à substituição do governo federal pelas armas: "O país não pode viver de golpes em golpes." Acreditava, assim, tranqüilizar os militares sobre suas posições em relação à Frente Ampla. O MDB aproveitou para marcar pontos: "Somos contra as armas por 32 razões: a primeira é que não temos armas", disse Franco Montoro, que seria eleito deputado feder com o maior número de votos, em novembro. Os estudantes foram soltos, exceto 36 fichados e vários amigos de Iara: André Gouveia, o futuro deputado Aloysio Nunes Ferre Filho. Para libertá-los o professor Dalmo de Abreu Dallari impetrou mandado de segurança e os diretores de Centros Acadêmicos decretaram greve geral. No terceiro dia, de madrugada a fim de evitar demonstrações, estavam livres. Mas o Conselho de Justiça Militar determine liberdade vigiada: apresentação uma vez por semana na Polícia Federal, nenhum encontro com mais de três dos indiciados e volta à casa após as aulas. Demais! Os alunos da Filosofia convocaram uma assembléia contra a liberdade vigiada e outras ameaças antidemocráticas. Iara chegou sorridente, de casaco, a alça da bolsa pendurada no ombro. Fazia frio. Nas paredes do Grêmio, cartazes: "Abaixo a Ditadura", "À força revidaremos com força", "Compareçam todos à passeata de amanhã" A Maria Antônia sublinhava a correspondência entre luta estudantil e situação política nacional: "Não esmoreceremos diante das demonstrações de força que visam manter a miséria crescente e a fome na Nação". Do restaurante anexo, enfumarado de bifes fritos, o ruído de talheres dos colegas e professores que acabavam de jantar. – Uma droga, meu cabelo cheira a gordura. Já ouvi queixas... Resistia na assembléia até o fim, para aprovar medidas mais radicais. O grosso dos alunos, que as rejeitaria, não agüentava a madrugada. Os discursos alternavamse. O vice-presidente da UNE5 falou dos universitários argentinos empenhados em idêntica luta contra a ditadura. Anteviam os estudantes da América do Sul em luta pela libertação nacional. Juntos construiriam o socialismo latino-americano. – Os festins de ontem, talvez as balas de amanhã. Não temam, venceremos a ditadura! – bradou o orador que chamava à manifestação na tarde seguinte, a greve já decretada. 5

José Renato Rabelo.

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A passeata seria uma espécie de teste de enfrentamento. Inaugurava o que se denominou "setembrada", homenagem às revoltas nordestinas do século anterior 6. Preparavam-se. Depois dessa manifestação viria outra, "Enterro da Ditadura". O ciclo encerrava-se dia 22, decretado pela UNE o Dia Nacional de Luta Contra a Ditadura. Para enganar a polícia, grupos de estudantes marcaram diferentes pontos na cidade. De lá, contatos – Iara, um deles – conduziam-nos ao local de partida. Chegou pontualmente ao Longchamps, bar da rua Augusta famoso pela decoração e o café expresso. Vestia blusa de gola rolê, saia, sapato baixo e a famosa capa de chuva. – Todo mundo tem saco plástico contra gás lacrimogêneo? – perguntou e sorriu a Maria do Carmo, que liderava outro grupo. Diante da negativa, distribuiu os que trazia. – E lenços molhados? Ajudam a respirar. – Ao lado da amiga tomou café. Ah, calorzinho gostoso e forte! Numa das passeatas ficou próxima de Robertão. Marchavam na avenida São João a repetir slogans quando a polícia apareceu batendo. Um dos policiais avançou de cassetete sobre Iara, e o amigo atirou-se contra o homem. Angustiada assistiu à luta, incapaz de fugir. Ofegante, ele se desvencilhou e correram pelo centro da cidade. Na pracinha da Biblioteca diminuíram o ritmo e entraram no jardim. Lentamente, acalmaram-se. Mãos dadas, caminharam a passo igual, desviando da hera que acolchoava os canteiros e por vezes invadia as aléias. Céu cinzento, o verde-escuro das árvores, o chilrar das centenas de pássaros que se acomodavam ao anoitecer. Iara procurou os olhos do companheiro. Chocaram-se ambos com a intensidade da emoção. Abraçaram-se em silêncio e seguiram sem palavras rumo ao apartamento, impulso de sobrevivência, a vida contrapondo-se ao terror. Eros versus Tanatos.

Sem descanso ajudou a organizar a passeata do dia 20. Reuniões de contatos, roteiros, projetos de faixas e cartazes. Comprar amoníaco, bolinhas de gude, estilingues, sacos plásticos. Quase todas as faculdades participavam. Até a Engenharia do Mackenzie decretou greve simbólica de um dia, a bandeira da universidade a meio-pau.

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Recordava sobretudo a sabinada na Bahia, de caráter republicano, contra a estagnação econômica, o centralismo do poder regencial e ilegitimidade dos deputados; e também alguns movimentos de sentido restaurador como a abrilada e a cabanada cm Pernambuco, que ludibriou os camponeses mas cuja luta, de emboscadas e ataques surpresa, prenunciava guerrilha.

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Ignoraram o apelo do reitor da USP e as ameaças do ministro da Educação. Ridicularizaram o secretário da Segurança, que acusou o 4° Congresso LatinoAmericano de Estudantes, patrocinado em Havana pelos "comunistas da União Internacional de Estudantes", de orientar a agitação. – Fico louca da vida quando suspeitam de "coincidência" entre o movimento de rua e a formação da Frente Ampla. No dia marcado saiu cedo de casa. Como se a rapidez aplacasse a excitação, pisava no acelerador. Revolucionária. Manifestações integravam a arrancada socialista. Mal conseguiu aproximar-se da Faculdade, o quarteirão cercado. Na calçada encontrou Moacir Villela. – É o batalhão Tobias de Aguiar na rua – avisou-a. Riu, orgulhosa. Lá iriam os cavalos escorregar nas bolinhas. O jogo de esconde-esconde começou à tarde. A polícia procurava as pequenas passeatas: cerca de dez estudantes, depois de um mini-comício. Na praça da República a cantora Vanja Orico e dois deputados discursaram rapidamente; a presença policial impediu que a manifestação fosse além. O encontro seguinte, em frente ao teatro Municipal limitou-se a discursos inflamados. Ao avistar a polícia dispersaram-se gritando "Um, dois três, Castelo no xadrez", “Abaixo a Ditadura", "Mais pão, menos canhão". E dirigiram-se a outro ponto. Durante a tarde os protestos se multiplicaram, da Sé à Lapa; dos prédios, aplausos. A certa altura a passeata da praça Buenos Aires chegou à Maria Antônia e os estudantes, deparando a polícia, refugiaram-se nos prédios a tempo de ver um menino parado à porta de sua casa ser esbofeteado e cair. A mãe, que acorreu e quis arranhar o guarda, apanhou de cassetete e foi presa. Das janelas assistiram ao espancamento de uma garota, uns 14 anos, que teve uma crise de nervos, óculos que. brados e terminou jogada no camburão7. O grupo de Iara encontrou-se no cemitério da Consolação. Antes que a polícia descobrisse o ponto seguiram ao local onde todos deveriam reunir-se, o largo

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Jornal da Tarde, 21.9.66: havia nas ruas 200 investigadores do DOPS, 200 do DI, 90 soldados da Tropa de Choque incluindo um esquadrão da Cavalaria; a PM de prontidão, 164 viaturas da Rádio Patrulha. Estudantes presos seriam enquadrados na Lei de Segurança Nacional, cuja pena alcançava dois anos.

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Paiçandu. No caminho cruzaram colegas que deixavam um bar da galeria Metrópole, na rua São Luiz, em outra direção. O número de estudantes aglomerados surpreendia o povo a atravessar a pracinha do Paiçandu e os fiéis da igreja do Rosário, possível esconderijo. Urgente começar a passeata antes de aparecer a polícia. Mas nada acontecia, súbita indecisão. Iara viu Melo diante do cine Paiçandu e adivinhou-lhe a ansiedade. Um lapso de segundo e, emocionada, reconheceu o brado, o irmão a tomar a iniciativa da passeata: – Abaixo a ditadura! A polícia cercou-os. Correu com a colega da Psicologia Lucia Rodrigues e seu namorado Valdir Sarapu, ambos da POLOP. Atingiram a próxima escala, a estação ferroviária no largo da Concórdia, Brás, grande afluxo de trabalhadores àquela hora. Atrasados, pegaram os derradeiros gritos – "Abaixo a ditadura", "Operário, operário, operário". A polícia apareceu e os cerca de 150 estudantes sentaram-se no chão, em círculo, aos slogans acrescentando "Soldado também é povo", "Soldado também tem fome". À voz de prisão, o Hino Nacional. O desplante dos jovens em desobediência civil, que esperavam ser carregados, enfureceu os policiais. Perante o povo desceram os cassetetes e jogaram bombas de gás. Meio afastados do grupo e logo presos, Iara, Lucia e Valdir não perceberam a súbita selvageria. A perua que os conduziria ao DOPS arrancou. Quiseram trocar impressões, mas n dos policiais comandou silêncio. Observou os amigos tensos. Valdir, preso e fichado anteriormente, arriscava a Lei de Segurança Nacional. Paciência, é do jogo. Gravou a paisagem já noturna de lojas fechadas, o tráfego livre na contracorrente, luzes nas cantinas que conhecera como noivo, massas italianas ou pizza, vinho, guaraná. Outra encarnação. É um momento de passagem. Marco simbólico. Daqui a pouco as impressões digitais, foto, nome, endereço, profissão. Atestado de tarefa cumprida, destemor. Milhares de trabalhadores testemunharam a denúncia do imperialismo e seus cúmplices, os verdadeiros culpados da ditadura. Em praça pública, a solução. Luta revolucionária e governo do povo. Experimentou um misto de inquietação e orgulho, a certeza do poder soberano das convicções. Nem todos os homens do rei, juntos, alcançariam o território de sua liberdade interior. Correu o olhar vitorioso sobre os policiais armados na perua, o casal de amigos. Impossível encarcerar o pensamento. Sentiu-se dona de um poder secreto, gigantesco quanto a golfada de ar no momento da asfixia. Bastava enxergá131

los, pobres fantoches fardados, que se fortalecia. Engraçado, a resistência é o alimento da alma. E pode ser um ato secreto qualquer8. Olhar o ombro de um deles, por exemplo. Teve ímpeto de compartilhar o achado com Lucia. Não faltará ocasião, pensou. Os amigos reconfortavam. Que química misteriosa extrai segurança da frágil presença de um companheiro? A euforia dissipou-se diante do velho prédio construído pelos ingleses no começo do século para alojar a sede da Estrada de Ferro Sorocabana, transformado em polícia política por Getúlio durante o Estado Novo. Sinistro DOPS, imundos tijolos vermelhos, janelões. Desceram. Elevadores antiquados, rostos de marginais, a ameaça de porões infectos na consciência de todos. O mundo fora-da-lei no interior da Terra. O Bem e o Mal. O Inferno existe, é aqui, ar empestado de esgoto do rio Tietê. Havia muitos presos, o que os aliviou. Entravam em levas ininterruptas. Aplaudiam-se, a festa da primeira condecoração. – Você também! Somavam perto de 300. Soltas de madrugada, deprimidas por causa de Valdir que ficou, Iara e Lucia não temeram maus-tratos. Os policiais limitaram-se a ameaças. Uma perua da polícia levou-as para casa, moças direitas não andavam sozinhas àquela hora. – Anos dourados – define Lucia. No dia seguinte realizaram-se assembléias em várias faculdades. No Mackenzie, Decio Bar e os estudantes progressistas conseguiram que o Diretório Central dos Estudantes decretasse vigília noturna, dia 21, contra a prisão e espancamento de colegas. Venceram a oposição direitista com o argumento que os sensibilizava: vioIaram a dignidade dos mackenzistas. A UNE decretou greve geral. Protestavam contra o Massacre Praia Vermelha: invasão e ferimentos nos estudantes da Faculdade Nacional de Medicina. – O governo usa a luta estudantil para articular golpes – acusaram. Outra greve e passeata em São Paulo, no dia 3 de outubro, vituperou a eleição indireta de Costa e Silva. Na POLOP, os radicais pressionavam. E hora do passo à frente. implantar a luta armada sem repetir o "foco de Copacabana", de 1964 – remanescentes da revolta

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Sobre o tema: Flávio Koutzii, Pedaços de Morte no Coração, L&PM Editores, 1984.

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dos marinheiros e membros da POLOP acreditaram nas armas porque o poder militar ainda não se consolidara. Foram presos, havia infiltração. – O Brasil vive um avanço industrial inegável e obriga a outra estratégia – insistia o dirigente, preocupado. – A guerrilha cubana só foi vitoriosa quando ocorreu a insurreição na cidade e parte das forças armadas aderiram. As ponderações não reduziam o descontentamento. – A gente parece o PC – agrediam.

José Dirceu. Paixão de primeira-dama

CRESCIA NO MEIO ESTUDANTIL a influência de José Dirceu, eleito presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da PUC. Pálido, discursos ardentes, incansável no armar de compromissos e projetos que aproveitavam a maré oposicionista. Iara não soube dizer quando visualizou nele as qualidades do seu homem ideal: liderança, arrojo político. Talvez a argumentação articulada, o domínio das assembléias. Ou a ambição, hábil no convencer José Travassos, presidente da UEE, de que simpatizava com a AP, a fim de merecer-lhe o apoio nas eleições da PUC. Na mais perfeita moral leninista defendeu Iara, risonha. Vale o que é bom para a Revolução. A reação faz o mesmo, só que valem os interesses próprios. Faltam a José Dirceu alguns dotes intelectuais, é verdade. Mas não terá medo de dizer eu te amo. A coisa tomou conta de mim, ocupou meus espaços. Os Iavelberg alugaram um apartamento na rua Martinico Prado, perto da Faculdade; queriam facilitar a rotina das filhas – Rosa fazia o colegial no Mackenzie. Iara mudou-se com eles. Várias vezes o namorado levou-a para casa, enfrentando olhares glaciais de David e Melo. Eva acolhia-o, a gentileza que dispensara a Antônio Eduardo. Difícil aceitar um homem íntimo da filha sem compromisso formal. Mas tudo abstraía para proteger Iara e compensar a frieza do marido. – É uma loucura você namorar o José Dirceu – investia Melo, vocalizando a ira da POLOP. – Ele é PC. – E daí? O amor não tem fronteiras! – arrematava, melodrama no tom.

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Ainda tinha os olhos dele dentro dos seus, a conversa no bar, o amor ao alcance dos braços, desejo urgente. Que mudança na relação, que milagre! Ontem e hoje. Demorava a dormir no quarto que dividia com Rosa, tomada por devaneios. Tudo acontecia em torno da Maria Antônia. Não longe, na Angélica, o restaurante de panquecas que comiam tarde da noite. Chegavam no carro de Iara, sempre a choferá-lo pelos quatro cantos da cidade, ou a pé, no caminho as enormes árvores da praça Buenos Aires, escuras, convite ambíguo, o amor cheio de pressentimentos apertando o peito, ali, onde o ar estancava. Dias seguidos dormia no pequeno apartamento dele, sala-kitchenette na próxima alameda Barros, dando a impressão de morarem juntos. Programavam cinema com casais amigos nos fins de semana e no mezanino do Regência pediam borscht, vinho. Saudavam amigos e rivais, debatiam os filmes do ano. Alphaville impressionara Iara. O futuro desumanizado, a vigilância do computador gigantesco. Godard segue a trilha de Orwell, no fim todos esses filmes são anti-stalinistas. Mais de uma vez assistiu a Um dia, um voto, a luta das crianças em defesa do amor, a denúncia da cinzenta hipocrisia. – Você veja esse filme tcheco. Acusa a burocracia corrupta que se apossa da direção do partido e enterra o socialismo. Ventos purificadores sopram na Tchecoslováquia. – A União Soviética um dia terá de aceitar o princípio da unidade na diversidade – reforçaram os companheiros da POLOP, provocando os comunistas. Os PCs não podem mais subordinar-se aos interesses e estratégia russa. – No fundo, vocês são trotsquistas envergonhados – recebiam de volta. – De jeito nenhum. É só lembrar a tragédia na Hungria. – Cada país é de um jeito – apaziguou Iara. – No Brasil o camponês não sabe se é gado ou gente. Aludia à canção de Geraldo Vandré, Disparada, no Festival de Música Popular. Torcera contra A Banda, de Chico Buarque, ambas disputando o primeiro lugar. Não perdia filmes que abordavam comportamento. Em O Colecionador, o lindo Terence Stamp, bancário premiado na loteria, psicótico, obsessivamente coleciona borboletas e aprisiona a menina-borboleta. – O filme é bom mas faltam elementos psicológicos para convencer – ensinou, a ocultar o terror ante o destino da jovem. – Juro que a garota estava se apaixonando, 134

por isso não conseguiu matá-lo. Só pode ser. Gente, na hora de matar, nenhuma vacilação. Ou ele ou eu. Difícil namorar José Dirceu, sempre aberto a flertes, fossem até amigas dela. – Deixa pra lá, eu convivo com isso. – minimizava. – Sou a primeira-dama. Interpretavam liberação sexual socializando os afetos, num jogo que incluía a intimidade alheia, ranking de experiências, informações e piadas, a amenizar os relacionamentos muitas vezes cruéis. Tudo se permite no planeta de gerontocracias variadas, fascistas estuprando o país, um Filinto Mueller homem de confiança dos gorilas. O último chutado é o cachorro – desenho tcheco no cine Majestic, esclarecia. José Dirceu justificava as escapadas. – Rastejei um ano, você me tratando feito criança chata. Tentou evadir o passado, submissão expiando a culpa. Quase que o ouvia confidenciar a José Arantes: – Dou a volta por cima. A madame quer sair comigo, tá paquerando, telefona. É a vez de me esperar, passar o que passei. – Ele é egocêntrico, narcisista, machão – estabeleceu Iara. – Vai pisar. Convencia-se de que a picuinha infantilizada resultava da vida de office-boy em São Paulo, para trás os irmãos em Passa Quatro, Minas Gerais, oito mil habitantes então. Ouvia atenta os relatos sobre as irmãs, o pai proprietário de pequena gráfica, estripulias, a cidade grande, estudos, vagabundagem. As passagens mais cruas a acumpliciavam, alimentando-lhe a submissão: cabeludo e desempregado, 17 anos, apenas dois jogos de roupa, quase roubara. Mas arranjava quem cuidasse de si e das contas, chamego de mulheres. – Beirei o lumpesinato – perscrutou-a. Até onde poderia ir? Os amigos acompanhavam o namoro, descrentes. Totalmente indisciplinado, José Dirceu ignorava o que faria nas próximas horas, à noite, no dia seguinte. Iara, machucada, às vezes a sabê-lo com outra, procurava companhia masculina. O que fosse, menos sozinha. Aos rapazes, famosa, dava prestígio. Porém na intimidade, o vestido preto que exaltava as formas, minissaia em oposição às calças jeans ou conjuntos safári, uniformes da Faculdade, nenhum transporte sexual. Banalidade surrealista, pensava, lembrando-se dos primeiros desapontos. O que faço aqui, quem é ele, apossou-se de mim? Quanto? Alheios à angústia da parceira, inexperientes como ela, aliviados reiniciariam a conversa política ou polêmica. 135

– Fui para a cama e o mancebo me disse que revoluciono até pão e manteiga – comentou, riso solto. – Ele também. José Dirceu, apesar do egoísmo, captou a impenetrável solidão da companheira, a ponto de suspeitar que Iara fora violentada. E compreendeu-lhe as dificuldades, o medo sob a imagem sensual. Amava-a. – Eu era chato, criança, envolvido demais na política. Mas gostava tanto dela, que Iara superou a insegurança. Essa, a força de nossa relação. Meu carinho, meu afeto a trouxeram para mim. Junto do namorado, o temor ao prazer desconhecido cedia, embora lhe temesse a impaciência. Terno e vaidoso, queria ajudá-la a tornar-se mulher. A rigor, foi o seu primeiro homem. Os flertes de Iara, entretanto, enfureciam-no. As brigas terminavam em rompimento áspero, feridas reabertas. Os amigos irritavam-se com ela, sempre disposta à reconciliação, servil. Houve de tudo. José Dirceu a sair do carro no meio do trajeto, batendo a porta. Os dois num dos bares repletos de gente na Maria Antônia, Iara sedutora, malha preta, lenço cor-de-maravilha; agressões em tom crescente, constrangimento geral, a mão que ele meteu no prato dela para atirar batatas fritas no rosto antes de sair. Sem pagar a conta. – Juro que não volto mais – debulhou-se. No íntimo agonizava pelo abraço que dissolvia a mágoa, a saudade, o desejo avolumado. – Meio masoque, né? – negociava, entre pergunta e resposta – Brigas de apaixonados, por causa das loucuras de cada um – desculpa José Dirceu. – Voltávamos às boas. Discutiam por política também. – O movimento estudantil tem condição de ir à raiz dos problemas, inclusive dos sociais. O instrumento é a luta reivindicatória externava a visão do PC. – Reformismo – retorquia Iara. – O caminho é inverso. – Vocês são é malucos. Lutar por mercado de trabalho, reforma universitária, o debate em torno de ensino público ou privado, ligam-se tanto à economia e desemprego quanto a questão política da liberdade. É fundamental eleger uma grande bancada oposicionista em novembro.

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– Não negamos a importância de lutar em todas as frentes. Mas ficar nisso é dar a volta em torno de si. Abismante, o PC não aprende. Ainda acredita em eleição. Tantas medidas complementares amarrando ostensivamente o legislativo! Cadê o governo estadual? Temos interventores à moda getulista. Garantem o controle da ditadura. E as inelegibilidades, o voto de cabresto nos currais, as cassações?1 O negócio é mandar brasa nas células. Voto nulo. Concordavam quanto às comissões paritárias. Alunos, professores e funcionários, em igualdade, introduziriam na Universidade um estado de espírito, currículo e administração revolucionários. José Dirceu admirava a garra de Iara. Comovia-o de um lado a força, de outro a fragilidade emotiva. Mas as desavenças avolumavam-se. Combinaram parar de discutir política. – Você é a mulher que amo, não uma relação política – pediu. – Você é meu ponto de referência afetivo. Em novembro, Iara fez panfletagem em portas de fábrica. As eleições seriam uma farsa deslavada, as mais corrompidas de todos os tempos. Vote nulo! Os estudantes comunistas combatiam furiosamente a tese. O PC desejava fortalecer o MDB. – Bem que você dizia, socialismo e cristianismo são capazes de se unir. Estamos lutando lado a lado – disse Iara a Ecléa, na Faculdade. A AP aliara-se à POLOP na campanha. Precisavam de gente para ajudar e no saguão da Faculdade abordou Renata Ferraz Guerra de Andrade, cabelos castanhos, olhos escuros, aluna do cursinho. Sabia de seus passos iniciais em política. Vinha do interior, filha de um professor da Escola de Agricultura de Piracicaba. – Você é militante da POLOP, não é? Renata, no meio de alguns colegas, assustou-se. Ninguém se apresentava assim, o trabalho era clandestino. Afastou-se um pouco para combinar a participação. A campanha do voto nulo bateu em tecla receptiva e prejudicou o MDB. A ARENA foi amplamente favorecida*. O governo ganhou espaço mas os grandes Mencionava a perda de mandatos do MDB em outubro – o deputado Doutel de Andrade chegou a ser preso pelo DOPS. A resistência dos futuros partidos, inclusive ARENA, culminou na recusa das cassações. O governo reagiu, decretando o recesso Câmara. * Maria Helena M. Alves, obra citada: 11,6% dos votos para o Senado foram brancos, 9,3 anulados. Na Câmara, 14,2 brancos, 6,8 nulos; nas assembleias estaduais 12,1 brancos, 6,5% nulos (Cap. IV, “A 1

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centros elegeram oposicionistas de peso, a despeito de numerosos candidatos sequer obterem registro. Em dezembro Castelo Branco baixou o Ato Institucional n° 4. Reconvocava o Congresso para discutir e ratificar a toque de caixa a nova Constituição, cujo mau português horrorizou os líderes parlamentares 2. Não faltariam ao governo meios de aniquilar qualquer iniciativa oposicionista – em particular, no momento, o "pacto de Lisboa", aliança de dois nomes fortíssimos, Juscelino e Lacerda3. Na POLOP, a insatisfação aumentava. Ditadura escarrada, coturnos enterrados na cabeça dos cidadãos. E o mesmo chove-não-molha, férias próximas que diluiriam a força do movimento estudantil. As aulas no cursinho, agora em período intensivo, davam a Iara a sensação de eterno recomeço. – Meio Sísifo, sei lá. Deprime. De bom, só chocalhar os pequeno-burgueses. Reencontrou Raul Fiker, inscrito para Filosofia. Animava-se ao perceber no rosto dele e outros o impacto de suas formulações. – Vocês vão a uma festa, contam que fazem Psicologia e imediatamente alguém diz: "ah, tive um sonho". Gente, não é tenda de milagres, vidência que destrincha a personalidade, prevê o futuro ou indica saídas. Para mim é pesquisa, experimentação. Traçava quadros arrasadores, segundo Renata: – A psicoterapia é classista, de elite. Fazer análise, então, é caríssimo. Quem diz que vocês serão admitidos no círculo de eleitos que chega ao mestrado e se especializa? E a profissão nem regulamentada é. Em resumo, a carreira é fogo. De bom, só os fins de semana no litoral. E, claro, nada poderia ser melhor do que José Dirceu concedendo sua presença.

Constituição de 1966: Análise Política); Carlos Castelo Branco, obra citada, no estilo rico de imagens e eufemismos: “o voto nulo, grande adversário do MDB, ... se caracterizou por manifestação irritadiça da arte gráfica ou pendor escatológico do eleitorado...” (21.11.66). 2 Principais pontos: caberia ao Executivo legislar sobre segurança nacional e públicas, O governo reservava-se áreas de investimento, instaurando um verdadeiro capitalismo de Estado. Todos os crimes contra a segurança passavam à alçada dos tribunais militares. Incorporavam-se restrições do Al 2 ao Judiciário. 3 Carlos Castelo Branco, obra citada (23.11.66): "...que obviamente não se propõem a colaborar com o processo de normalização institucional, desde que as proposições que constituem o pacto são de divergência e de combate. Não havendo eleições programadas para o futuro próximo, o que se há de presumir é que os signatários do pacto se proponham a destruir a situação que denunciam. Essa constatação... poderá efetivamente alterar as perspectivas do futuro próximo."

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O governo continuava a pressionar o Congresso e determinou que a nova Constituição fosse aprovada na íntegra. Só depois receberia emendas, inexeqüíveis por obra do decurso de prazo4. Ao mesmo tempo elaborou a Lei de Segurança Nacional e o projeto da Lei de Imprensa5. Entre os delitos, uma categoria de "abusos no exercício da liberdade e manifestação do pensamento e informação". Temas proibidos: propaganda de guerra, subversão da ordem política e social, preconceitos de raça ou classe. Aos infratores, cadeia de um a quatro anos. Não havia ainda censores nas redações nem censura oficial, mas os jornalistas aprimoraram-se em eufemismos e metáforas. – Acabou o preconceito racial – anunciou Iara ao amigo repórter no saguão do Teatro Paramount, durante o protesto de artistas e intelectuais contra o projeto, dia 8 de janeiro de 1967. – Impera harmonia entre as classes sociais. Os presidentes da República, do Legislativo e do Supremo foram legalmente promovidos a cidadãos acima de qualquer suspeita. Gente! Para culminar, ai de quem escrever sobre sexo antes do casamento. A Carmen da Silva que se cuide. O Congresso promulgou a Constituição dia 24 de janeiro. Outorgava ao presidente poder para baixar decretos-leis e estados de sítio sem referendo parlamentar. – Ridículo o MDB comentou Iara. – Protesta, não comparecendo. E escreve um manifesto exigindo revisão. Alguém reparou? Pura esquizofrenia. Feito os fascistas, obcecados em legitimar o ilegal. Aí o sujo fica limpo, integra a cultura. O pior é que realmente acaba condicionando reações autoritárias em todo mundo. – No outro extremo, a esquizofrenia de vocês – revidou o amigo. – Vivem a luta de classes, quase indiferentes ao mundo real. No meio, o povão alienado. – Nós somos a vanguarda. Quando o povo despertar, ninguém segura. A Lei de Segurança Nacional foi exaustivamente analisada na POLOP. Em função do "inimigo interno" demarcava fronteiras ideológicas, entregando sua defesa a "toda pessoa natural ou jurídica" da sociedade civil6, além das Forças Armadas.

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Projetos aprovados automaticamente depois de 45 ou 60 dias. O artifício, estabelecido na Constituição, permitia derrubar qualquer emenda; bastava obstruí-la durante esse tempo. 5 Dela se ocuparam a Lei de Segurança Nacional e eventualmente o Código Penal Militar. Na prática serviu tanto para legislar sobre relações de inquilinato, por exemplo, como proibir a divulgação de informes sobre um surto de meningite, o que facilitou a propagação da moléstia. 6 Maria Helena Moreira Alves, obra citada (Cap. IV parte 3: "Sobre a segurança nacional").

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A delação torna-se obrigatória – espantou-se Iara. – Qualquer funcionário é punível, público ou privado. A ditadura só avançou demais no artigo que cassava o direito de trabalhar. Mas foi truque. Negociou para retirá-lo e todos ficaram tão felizes que até o MDB vai votar. Dia 15 de março tomaram posse Costa e Silva e Pedro Aleixo, neutralizado na vice-presidência. Os jornais propagavam o suposto projeto de restauração civil do novo presidente, cuja foto na capa da revista Fatos e Fotos, chamada "posse da esperança"7, inflamou Iara. Considerava ingênua a crença de assim comprometer o político ou evidenciar futuros atos de exceção: – Mentiras não promovem a consciência em favor do Direito. Os milicos pensam que estão levando a sociedade no bico. Hélio Beltrão no Planejamento e Delfim Netto na Fazenda pretendiam promover o desenvolvimento investir, instaurar frentes de trabalho – invertendo a prioridade de Castelo, combate à inflação*. Vivia-se um clima de efervescência. Nos jornais ainda era possível escrever contra medidas discricionárias. Grupos políticos se rearticulavam. Exilados, confiantes na abertura, planejavam regressar. Oposicionistas sugeriram englobar no MDB, que resistia, a fortalecida Frente Ampla. – Alguns setores da burguesia querem voltar ao poder e o governo deixa a oposição consentida pôr as manguinhas de fora. Facilita o trabalho do SNI – avaliou a POLOP. – Precisamos redobrar os cuidados. Algumas de nossas lideranças são públicas, notórias – Iara sentiu-se cIaramente atingida. – De outro lado, claro que o movimento da oposição é um teste positivo de espaço. Sempre é bom exigir eleições diretas. Ou repudiar a revisão das cassações, o que daria legitimidade aos atos golpistas. Ou defender a ampliação do mercado interno e política externa independente. O vestibular de 1967 reacendeu a questão dos excedentes. Alguns cursos os rejeitavam – Medicina, Psicologia e Biologia – devido à insuficiência de laboratórios. A contradição acirrava a animosidade entre os grupos. Assim, nos primeiros dias, os jovens sem vagas perambuIaram desnorteados pela Maria Antônia e uma liderança informal se estabeleceu em torno de Sonia Lafoz, candidata à Psicologia, e seu pai. 7

Março de 1967. Thomas Skidmore, obra citada (Cap. IV, “Costa e Silva: os militares endurecem. A nova estratégia econômica): A política monetarista anterior reduzira tanto o déficit público quanto o salário mínimo. Havia poucos investimentos. A inflação baixara mas a perda do poder aquisitivo era dramática. O país exportava capital, amortizando dívidas junto ao Banco Mundial e Eximbank. *

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Velho militante do PC espanhol sem atuação partidária no Brasil, Luiz Lafoz assumiu a tarefa voluntária de ajudá-los. No dia 10 de março o grupo de excedentes instalou-se em barracas no puxado estreito e coberto do prédio, ao longo da fachada. Durante o dia circulava em busca de apoio, à noite vinham violões, sanduíches, pinga, fogueira. – E o Centrinho, quando é que vai sair do muro? – provocava Sonia. – Isso tem de passar por uma decisão do Grêmio – Iara manobrava entre as posições da POLOP e UNE, favoráveis aos excedentes, e a recusa da Psicologia. Colegas jornalistas trouxeram a imprensa e depressa as posições evoluíram. José Arantes, presidente do Grêmio, abandonou a cautela As lideranças rivalizaram no afã de capitalizar o movimento. Alguns professores irritaram-se. A questão esvaziaria a luta pela reforma universitária. – Vocês estão sendo inocentes úteis. A POLOP designou Iara para ganhar espaço entre os excedentes e diminuir a ameaça,

nas

futuras

eleições

do

Centrinho,

do

Movimento

Comunista

Internacionalista – MCI, nome que traduzia as inúmeras certezas e escassas dúvidas da Maria Antônia, no dizer do futuro psicanalista Elias Rocha Barros, um dos cabeças do grupúsculo. Iara enfrentou um difícil convívio com Sonia em razão do interesse de José Dirceu: irresistível morena-cIara, olhos castanhos prateados de luz e forte personalidade. Invejava-lhe também o pai, que às noites descrevia lances vividos na Guerra Civil Espanhola, a fuga para a Argélia, a resistência contra os ocupantes nazistas, o campo de concentração. Sonia, de seu lado, intimidava-se defronte à mulher famosa, revolucionária e "namorada principal" de José Dirceu – a classificação em voga decorria das teses sobre relacionamentos múltiplos, com objetivo de apor alguma ordem no caos afetivo. – É preciso ser purista, assimilar a violência do proletariado – argumentava Iara, quando a abordava em missão de proselitismo. A POLOP ambicionava recrutá-la. – Concordo. Mas acho importante participar da luta interna do PC e mudar as coisas lá dentro – rebatia Sonia. Influenciavam-na as escolhas do pai e os colegas que já constituíam uma dissidência no PC: Arantes e sua namorada Aurora, José Dirceu e o colega Fernando Borges de Paula Ferreira, o Fernando Ruivo, da Física. 141

Certa manhã, incrédula, Iara leu nos jornais que o Exército cercava um foco guerrilheiro em Caparaó. Então, sempre se fazia alguma coisa! Nos dias seguintes comprou o Correio da Manhã e Jornal do Brasil8, ambos da Guanabara, menos tendenciosos e melhor noticiário. Comovida, imaginava o frio intenso na serra, escaladas perigosas, a paisagem vista do Pico da Bandeira. Vento, nuvens, águas claríssimas do rio no vale. Matas. O vaqueiro dedo-duro denuncia os estranhos. Seria capaz, tão urbana, de enfrentar a vida numa região agreste? Acompanhou a prisão dos 14 guerrilheiros, soube do adestramento de alguns em Cuba, discutiu os eventos em reuniões. – Preparação insuficiente. Deveríamos aprender a dar tiros, nos habilitar. Só discutimos linha ideológica – concluíram na base a POLOP, decepcionados de tanto torcer. Ignoravam o papel da organização no episódio, apesar de aventada no Jornal do Brasil. Só alguns dirigentes sabiam do adestramento de guerrilha, em atividade há cinco meses no Caparaó, escolha inspirada na Polícia Militar de Minas Gerais, que selecionara a serra para os preparativos ao golpe de 1964. – E que burrice! – irritou-se Iara. – A PM não tinha a repressão atrás, podia treinar em qualquer montanha. O plano, em gestação desde 1966, vinha dos contatos com o ex-sargento Onofre Pinto9, ligado ao grupo de militares que formou o MNR, de chefia política no Uruguai e comando nacional no Rio10. Rumores acompanhavam as quedas. Um deputado federal do MDB11 acusava os barbudos de Caparaó de supostos revolucionários, pretexto para intervenção branca na América Latina através de uma Força Internacional de Paz. No meio estaria cabo Anselmo, agente da CIA misteriosamente desaparecido da prisão.

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Jornal do Brasil, março e abril de 1967; Movimento, 13.4.81; O Estado de S. Paulo, 6.2.80. Segundo o relato de quem o conheceu, pequeno caudilho, impressionante capacidade de aglutinação. Rodeavam-no ex-sargentos e ex-marinheiros que saiam das prisões sem dinheiro ou emprego, desejosos de lutar. Desaparecido em 1974 na fronteira Brasil-Argentina, levando à suspeita de ação conjunta do DOI-CODI e polícia argentina. Jacob Gorender, obra citada (Cap. 18, citado); Jornal do Brasil março-abril de 1967; Movimento, 13.4.81; O Estado de S.Paulo, 6.2.80. 10 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 18): A ajuda financeira cubana, possivelmente Obtida através de Brizola, envolvia três focos, primeiro passo brasileiro na revolução continental: serra do Caparaó, divisa entre Minas Gerais e Espirito Santo; norte de Mato Grosso, fronteira com Bolívia, país escolhido por Che Guevara; e sul do Maranhão, área do rio Araguaia. 11 Simão da Cunha, Jornal do Brasil, 5.4.67. 9

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– Pretendem desmoralizar a guerrilha. A suspeita é antimarxista. O momento pré-revolucionário independe da participação de fulano ou beltrano. E é ridículo. Escreveu não leu, é da CIA. Foi nessa época que a POLOP traduziu e mimeografou o livro Revolução na Revolução? de Régis Debray, uma defesa cega do foco guerrilheiro*. Tencionava debater criticamente as afirmativas do autor, insistente na prioridade militar sobre a política. As discussões teóricas, segundo ele, seriam tão supérfluas quanto manter um partido, paquiderme burocrático diante do inimigo armado e ágil a exigir r postas urgentes. O efeito do livro foi de um turbilhão. Exatamente o que os insatisfeitos queriam ouvir. Os dirigentes assustaram-se. – Como vocês imaginam traçar táticas se não temos exército? Somos um grupo sem retaguarda. Vejam o exemplo de Caparaó – ponderavam. – Releiam nosso documento "Formar a vanguarda, a linha estratégica da revolução". No momento, o trabalho é atuar diretamente no meio operário. Formar alianças e, quando força política efetiva, influir na conjuntura. Usar o debate ideológico para abrir caminho nas esquerdas. – PC falando – injuriavam. Leram detidamente o diário da guerrilha de Caparaó do ex-sargento Amadeu Felipe da Cruz, publicado com estardalhaço12. Entre si debatiam as perspectivas da POLOP. Alguns já se organizavam em dissidência. Iara e Melo discordavam da conspiração. Loucura. Não daria certo. Aliás, os militares propalavam estudos antiguerrilhas. Mal empossado no cargo de presidente da República, o marechal Costa e Silva acreditou resolver a questão dos excedentes com um decreto-lei: todos matriculados. Verbas, depois. Alunos e docentes revoltaram-se. Sem dinheiro, instalações, prazo para selecionar novos professores, impossível. Dia 18 de março a assembléia no Grêmio marcou greve geral a favor dos excedentes e contra a determinação do governo13. Num ato público diante do Teatro Municipal os líderes estudantis discursaram: a crise universitária e os acordos MEC-

*

A decisão paradoxal de publicar o livro está explicada por Raul Villa (Eder Sader) na revista Brasil Socialista n° 7, de 1976: “Mesmo não compartindo as simplificações e algumas investidas abertas de Debray ao leninismo, nós julgamos que exerceria influência positiva no ambiente – interno e externo antiguerrilheirista, que procurávamos vencer”. 12 O Cruzeiro, 22.4.1967. 13 Jornal da Tarde, 19.4.1967.

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USAID eram sintomas da dominação imperialista. Urgia libertar o Brasil. Soubessemno todas as camadas da população, convocadas agora à "Semana do Vietnã". O comício correu tranqüilo, sem interferência do DOPS – a tática do governador diminuía a repercussão. Iara viu queimarem a pequena bandeira americana, ofereceu panfletos, bradou slogans. Em passeata seguiu os outros, ziguezagueando entre carros, o ar poluído irritando-lhe os brônquios. Detiveram-se no prédio dos jornais O Estado de S.Paulo e Jornal da Tarde. Gritaram insultos e Iara divertiu-se ao imaginar os amigos jornalistas lá dentro; alguns, companheiros de POLOP. Sensação de poder. Na empresa que combatiam, o apoio de militantes clandestinos. A agitação contagiava estudantes ao redor do país. O embaixador norteamericano John Tuthill doou livros à Universidade de Brasília; repudiaram sua presença com faixas e cartazes denunciando a intervenção americana no Brasil, os bombardeios no Vietnã. Houve espancamentos brutais, dezenas de prisões. O incidente, somado às decIarações ameaçadoras do ministro do Exército, aumentou o clima de revolta universitária. A violência em Brasília e o papo de Lyra Tavares provam que isso de restaurar a democracia é xarope – explicou Iara durante a visita noturna aos excedentes que os cursos ainda repeliam. – O general quis aplacar a linha dura. Temos de pegar o touro pelos chifres. O protesto de Brasília não seria provocação para justificar a ela do ministro? Portanto, mandato da linha dura? – sugeriu Luiz Lafoz, sempre didático. – O barulho dos estudantes talvez fortaleça a repressão. – Não – garantiu Iara. – Eles querem endurecer. Inventariam outra coisa. Cansados de esperar, os excedentes decidiram invadir o saguão da Faculdade. A assembléia do Grêmio aprovou a iniciativa, contanto que conduzida pelos presidentes de Centrinhos e à noite. Votou-se ainda um abaixo-assinado decIarando Tuthill, já em São Paulo, persona non grata e responsável pelos acontecimentos de Brasília. A POLOP e os mais radicais consideraram o documento insuficiente. À revelia do Grêmio resolveram manifestar-se, na esteira da Guanabara e Belo Horizonte. Aproveitavam as greves em algumas capitais e cidades do interior, ligadas ao mesmo tempo à melhoria de condições específicas do ensino, e que formavam uma onda insurgente. 144

Na larga calçada defronte ao consulado americano, numa das alas do grande prédio do Conjunto Nacional, Iara distraiu-se a olhar o cartaz do filme Quem tem medo de Virginia Woolf?, que assistira ali mesmo, no cine Astor. Cenas de casamento, pensou. As lembranças desapareceram quando Melo e outro estudante sentaram-se junto a uma das mesinhas ao ar livre do restaurante Fasano. Um rapaz loiro, livros sob o braço, jeans e sapatos fivelados, rondava. – Olhaí um tira – apontou e a colega próxima sorriu. – Ainda bem que os caras são boçais. Cerca de 80 estudantes distribuíam-se agora pela calçada entre dezenas de guardas-civis e investigadores engravatados. Precavido, o embaixador saíra para uma entrevista. Melo subiu na cadeira e gritou: Abaixo a ditadura! Abaixo os acordos MECUSAID! Abaixo os ianques!" Os policiais não se moveram. Foi então que alguns estudantes consulado, atiraram bolinhas de gude nos andares superiores, sede do e o ruído de vidraças quebradas superou a estridência das buzinas no tráfego moroso – os motoristas procuravam ver o que sucedia. Num segundo, os manifestantes dispararam rumo à Consolação, – E agora, o que fazer? – Pra faculdade – determinaram as lideranças, sem plano. Exaltados, entraram na escola e alguém exclamou: – A ordem é invadir o saguão já! Quem tem medo de dois, três guardinhas? A iniciativa contestava a assembléia, Arantes e a política de panos quentes do PC, além de retaliar a desaprovação do Grêmio ao ato no consulado. Entusiasmados, os excedentes carregaram para dentro seus cobertores, a vitrola a pilha. Luís Travassos discursou do primeiro lance da escadaria, fortalecido: – Antecipamos a tomada da Filosofia! Só sairemos com o fim dos excedentes, dos acordos MEC-USAID. O imperialismo americano quer invadir a Universidade. Não permitiremos! O diretor-substituto da escola, Erwin Rosenthal, apareceu: – Vocês sabem que admitimos 209 excedentes. Em Psicologia e Biologia é impossível, não temos verbas. Nem os professores querem, vai cair o nível. Os estudantes cerraram o portal. Só entrava quem tivesse carteirinha. Arantes, apesar do desacato, defendeu os colegas na reunião que a diretoria da Faculdade convocou. 145

– Não somos responsáveis mas o Grêmio não desautorizará a tomada simbólica. Na assembléia à noite, o clima entre os grupos para ganhar os excedentes foi tão emocional que Luiz Lafoz interveio: – Olhem, acho que tomar a Faculdade foi pura empolgação. Pena que não podemos voltar atrás. Já que estamos aqui, é melhor se unir. Vocês conhecem a história do cachorrinho muito querido? Cada um puxou de seu lado e acabaram com ele. Só recuaram perante o aviso falso de invasão policial. – Os excedentes dormem no Grêmio e de dia ficam no saguão. Decretaram a Faculdade território livre até a matrícula de todos – cerca de 80. Dia 27 de abril a Congregação admitiu-os. Em troca obteve bolsas de mestrado e doutoramento, o que possibilitaria chamar novos instrutores de ensino. O professor Florestan Fernandes criticou os revoltosos14: – Vocês gastaram canhão em passarinho. O excedente é alguém surpreendido num momento de transformação social. O corpo docente não merecia a ocupação, estamos na mesma trincheira. Nosso problema não é criar vagas, mas uma nova Faculdade. – Chi, lá vem o papo conciliador – sussurrou Iara. – Tô louca pra tomar banho – respondeu Christine enquanto o Grêmio decretava outra greve geral, motivada pelo ataque de forças policiais a uma passeata contra a política educacional, em Belo Horizonte. – Vamos lá em casa. Banharam-se juntas no chuveiro. Ao observar a amiga, Iara escandalizou-se: – Christine! Como é que você anda com uma perna peluda dessas? – Uma revolucionária pensa em depilação? – envergonhou-se. – Ah, que desleixo! A gente tem de estar sempre lisinha, roupa de baixo combinando. E não é pra homem, só. É pra gente. Os alunos da Faculdade de Direito do Mackenzie entraram em greve por redução de anuidades, acusando a reitora15 de tê-los obrigado a assinar um papel em branco no momento da matrícula.

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O Estado de S. Paulo, 28.4.1967 Maria Esther de Figueiredo Ferraz.

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– Vamos aproveitar que a direita foi à praia – ironizava Decio Bar. Pequenos grupos tomaram a Economia, Direito, Engenharia e Arquitetura. A reitora chamou a polícia e os alunos discutiram se desocupavam os prédios. Decidiram ficar. De tardezinha, em meio aos preparativos que incluíam uma fogueira, Decio assustou-se. Iara atravessava o grande portão da rua Itambé, à frente de alguns estudantes. Foi ao encontro do grupo, furioso. – Que é que vocês estão fazendo aqui? – Somos uma delegação da Filosofia. Viemos trazer nossa solidariedade e cobertores. – Endoidaram? – atacou, voz baixa e ganas assassinas. – Justo você, queimadíssima? Esqueceu o quanto é difícil fazer alguma coisa aqui? E mackenzista vaselina lá precisa de cobertor? Desapontada, Iara deu sinal de meia-volta. No caminho elaborou a explicação. Decio negava-se a participar de qualquer organização; por isso, aliás, integrava a segurança das passeatas. Desconhecia a importância de colocar-se na vanguarda. No inconsciente, ciúme e defesa de território. A POLOP perdia a chance de abrir uma cunha no Mackenzie, fortalecer a esquerda e armar um novo pedaço da teia que impulsionava o processo político. No fim do semestre Christine contou que viajaria à França. A mãe, francesa, cansara-se de acompanhá-la nas pichações noturnas, tentativa ilusória de proteção. A militância precoce da adolescente, o telefone grampeado, a queima de livros no jardim matara de infarte o marido, em 1964. Ele revivia o pesadelo de judeu fugido da Lituânia, combatente na Resistência francesa, família aniquilada. Temia que o sentido de reparação vitimasse a filha. – Quem ignora o que aconteceu na aldeia dos pais age às cegas – expõe Christine. – Temos um lugar certo na cadeia das gerações, somos discursados antes de nascer. Quanto menos os pais falam, mais os filhos e netos repetem. E o determinismo da cadeia significante. Duro sobreviver. Duvido que Iara soubesse o que aconteceu na aldeia dos pais. Despediram-se, tristes. Maryse ocupou o espaço da amiga. Agitadas, estimulavam-se nas intervenções. Quando o economista e historiador Caio Prado Júnior se referiu a temas

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do livro A Revolução Brasileira16, numa conferência no Grêmio, identificando as origens do subdesenvolvimento brasileiro no caráter mercantil do período colonial, remexeram-se inquietas: – Você viu que absurdo ele falou? Ao prosseguir, o pensador criticou a discussão central dos grupos de esquerda sobre o caráter da revolução brasileira. Só é nos reconhecê-lo depois de fixadas as reformas cabíveis que se verificam no próprio curso da revolução, teorizou. Do contrário, a posição é doutrinária e apriorística. – A revolução brasileira é socialista! – protestaram. – Sem definição, impossível saber que caminho tomar: luta armada, trabalho político no campo. – É a ótica política de vocês – concedeu Caio Prado Júnior, amável – Existem outras óticas. – Iara não era agressiva. Mas naquele dia, a carga de eletricidade... nós, que não entendíamos nada, de dedo em riste para a figura do Caio Prado!

O afeto motivava a maioria das opções políticas e Sonia Lafoz ingressou no PC. Irrecusável a oportunidade de ver José Dirceu nas reuniões. Desejava-o para si, sentimento mesquinho, pequeno-burguês. Não tenho chances, dizia-se. Iara é liderança, tem o corpo lindo, a face doce e a coragem de falar em assembléia. Lida com aquele bando de homens, desenvolta. E tão bem-vestida, de família rica. Eu sou uma reles excedente, pobre, sem roupa, ainda mais lamentável quando embrulhada no guarda-pó das aulas de biologia. Inventava tarefas políticas na PUC e algumas vezes logrou dormir no apartamento de José Dirceu. No dia seguinte despediam-se como estranhos. Debatiase. Era assim, então? Não dispunha de outras referências. Bem. No ninho do gavião ela se ajeitava ao lado de outras. Mulheres liberadas vão para a cama com quem lhes dá na telha. Ponto. Todos notavam a aspereza das rivais, farpas em assembléias. Mas tampouco Iara usufruía o namorado. Compensava a falta desenhando-o na memória, langorosa. Queixava-se às amigas. Sofreu quando sentiu manifesto em Betty o interesse por ele e tentou a desforra chamando Moacir Villela, seu companheiro. Inabalável, cultivava 16

Ed. Brasiliense, 1966.

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a proximidade e o controle possíveis. No auge da tristeza ridicularizava-se repetindo a frase da peça de Molière, Tu l'as voulu, Georges Dandin, conforme lhe escrevera Heleny, que pretendia dirigir no Brasil a encenação de Planchon, Georges Dandin: um camponês rico, outsider completo, planeja subir de escala social casando com a filha de aristocratas só interessados em seu dinheiro. Todos o fazem de bobo. Felizmente havia muito a fazer. Implantado o Serviço de Atendimento Psicológico gratuito no cursinho, os 17 colegas recebiam alunos em horários malucos, das oito da manhã às 11h da noite, às vezes nas cadeiras do corredor, o fascínio das primeiras peregrinações a dois em busca de sentido na obscuridade dos sentimentos. Inédito em São Paulo, o cursinho remunerava o trabalho, que incluíam no currículo. – Nunca houve estagiários mais entusiasmados que nós – notou Rachel. A constância necessária ao atendimento ia de encontro à inquietude de Iara. Talvez a angustiassem também os problemas de superação duvidosa e de qualquer forma demorada que deveria discutir com os supervisores, revolvendo os próprios dilemas. Afastou-se, atenção em questões que ganhavam momentum: o congresso da UNE em agosto, apoio aos excedentes da FAU ainda sem matrícula. E vinham aí as eleições de 1967 no Centrinho. Elias Rocha Barros concorria pelo MCI, a Psicologia dividida. – Vocês são quatro gatos pingados. Quando juntos no bar, está reunido o comitê central do MCI – debochava Iara. A POLOP apoiava a chapa encabeçada por Aurora. O sofrimento por Jose Dirceu aumentava a relutância em recolher-se, estudar. – Falta-me concentração – queixou-se a uma amiga. – Por que você não procura algum professor? – É mesmo – concordou. – Vai ver, falta a técnica. Marcou uma conversa com Roberto Schwarz. Assistira ao curso dele, Sérgio Ferro, Flávio Império, Flávio Motta e Jean-Claude Bernardet no TUSP, "Introdução à Linguagem Visual". E o conhecia de saguão. Professor de literatura, 28 anos, um livro publicado. Irreverente, bonito, atraía os olhares das estudantes e certo ciúme dos rapazes. Recebeu-a em casa, na rua Oscar Freire, Pinheiros.

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– Ando embananada. Não consigo estudar. A política universitária é dispersiva, desassossega – resumiu, num relance compreendendo que a conversa era vã. Pedia sursis. Ouviu-a, serviu café. – Olhe, só posso sugerir o óbvio. É sentar e ler. Pesquise, escreva. Não há outro jeito. Insatisfeita, saiu do prédio e tocou o carro em direção à rua Augusta. O que devaneara? Estacionou perto da confeitaria Yara. Fui excelente aluna no colégio, primário. Cenas com Cecília, Ely. Concentrava-me, prazer nos resultados. O que aconteceu? Dona Angelina, o paradigma. Eva a exigir perfeição. Competia para ganhar. Depois veio Sá, sequidão. O científico, Honório. Onde perdi o pé? Hoje estou sentindo um pouquinho de gosto, constatou prazerosa ao coe o doce de chocolate. Saiu a caminhar pela rua, olhando vitrines. Habitamos uma aldeia provinciana, angustiou-se. Quantos quilômetros quadrados? Três? Escolheu um par de sapatos. O terrível elitismo de Faculdade feria. Não davam muito por ela, os refletidos contumazes. Teóricos. Mas bato de dez a zero no sentimento de justiça, na atuação. Comprou várias pulseiras de acrílico; o retinido no pulso alegrava. Voltou ao carro, dirigiu-se para o centro. Na livraria Sagarana da POLOP, gerenciada por Robertão, Emir e o ator David José, acompanhou a conversa sobre o livro que publicariam, Arena conta Tiro dentes, peça de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri em que Dina Sfat brilhava. Viu a pauta do próximo número de Revisão, revista do Grêmio. Apesar de excluída dos colaboradores – faltava-lhe cultura marxista, postura de intelectual – sabia das coisas. Naquela tarde, fofocas sobre o controle da Teoria e Prática. A publicação, ligada ao TUSP, inspirara-se no Monthly Review, revista de esquerda norte-americana independente do PC. Nasceu em casa de Lourdes Sola e Ruy Fausto, jovens professores de Filosofia que abrigavam um seminário de marxismo famoso na Maria Antônia. Emir queria que a POLOP monopolizasse os textos políticos. "Aqui todos escrevem sobre política, resenham livros. Nós somos abertos e independentes" – clamava Lourdes. Iara divertiu-se com a manobra de colocar na secretaria da revista uma jovem da POLOP, chegada a Roberto Schwarz. – Tenho que produzir alguma coisa – resolveu.

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Cláudio Willer e Decio Bar estrearam América, poemas de Allen Ginsburg. Animou os colegas da Psicologia e os alunos da PUC, através de José Dirceu, a furarem o boicote da "linha justa". Marina Tschipschin, diretora do departamento cultural do Centrinho, anunciou no Psi-Jornal: dia 3 de abril de 1967, segunda-feira, apresentação especial para os alunos da Psicologia; é no Teatro de Rua, na Augusta, ex-boate Saloon. A mesma edição trouxe o único texto que Iara publicou, um resumo do artigo de Wilbur Schramm, "Como se dá a comunicação".

Conservar a direção do Centrinho complicara-se e os grupos negociavam. Elias, do MCI, reconhecia em outros maior habilitação mas escolheu Iara como interlocutora. – Havia nela algo de profundamente sedutor. A ligação pessoal que se desenvolveu, acima das divergências políticas, irritava os dois grupos. O MCI, apoiado pelo PC, convicto de que Iara, qual Mata Hari, se apossava dos segredos internacionalistas. A POLOP, receosa de leviandade e indiscrições. – As desconfianças são injustas – defendia-se Elias. – Iara é corretíssima. Nunca tentou saber coisas ou me influenciar. As pressões estreitaram o vínculo, embora a imprevisibilidade da miga o desconcertasse. Ela ridicularizava a estreiteza da POLOP – por exemplo, o estardalhaço dos "congregados" contra o militante que bebia Coca-Cola. E era capaz de irredutível radicalismo nas assembléias, atacando-o impiedosamente. Nada a ver com o repetido desamparo nas conversas. Iara tinha em Elias um caso lateral, importante porque contava com aceitação dia e noite. Que diferença de José Dirceu, absorvido em si! Juntos analisaram a ansiedade que a consumia, a compulsão de aplacá-la em contínuo excitar de amor, militância, festas ou busca intelectual, artístico, político. Permanentemente de brilho nas pessoas – a caminho. Em trânsito, exclamava. O inferno é ficar só, a intolerável decisão de voltar para casa. Magoada, lamentava o ambiente desencorajador da família. De um lado queriam livrar-se dela, influência maléfica sobre os irmãos menores. De outro, a mãe permitia reuniões da POLOP, disposta a entender. 151

– Acuados, propensos a deixar-se humilhar. É a sombra dos campos de concentração. As pessoas não conseguem relaxar, no máximo tiram os filhos disso. Desfiou também o carinho por Rosa, desaponto de julgarem que lhe faria algum mal. Logo ela, Iara, que largava tudo para socorrer amigos deprimidos, reanimá-los, chorar junto. E quando narrou o episódio do cachorro atropelado, Elias teve certeza: atingiu a agonia de cujo contato fugiam, ele também, amparados na atitude de assistência. Talvez viesse daí o messianismo, refletiu, a escolha profissional, a compaixão pelos que sofrem, humilhados e explorados. – Tanto faz o que nos leva à justiça – afirmou certa vez, fortuita. – É tudo nebuloso, múltiplo. Essencial é acordar. Nosso mundo terá comida, médico, escola, cultura, amigos, carinho. Homens novos. José Dirceu pavimentava seu caminho à presidência da UEE. Viam-se cada vez menos. O pior eram as mentiras, como se a tese da liberação sexual validasse comportamentos indesculpáveis. – O macete é não encucar. Romperam afinal por causa de uma prostituta espanhola, caso de José Dirceu e motivo de brigas. Uma noite, indisposta com os pais, Iara procurou-o. Conspirativo, entreabriu a porta: – Tem gente dormindo. Em código, clandestinos políticos. Ciente das malandragens, bateu em retirada. Chega. – O ruim foi minha vida louca, a desestruturação. Acabamos nos separando por eu ser tão desatrelado. Enganei-a. Vil. Resistiu à depressão. Conservava-se alegre, ocupada, periodicamente falhando nos compromissos encavalados. Em fins de semana festas vitais, viagens ou longos papos no bar da moda, o Riviera frente ao cine Belas Artes, de inauguração marcada. Saía bastante com Albertina e o marido Claudio Vouga, Carlos Henrique e Marina Heck que moravam ali perto, na rua Maceió. A tomar suco de Iaranja, fazendo graça, segurava a mesa dos amigos embriagados depois que as mulheres se despediam, sonolentas. E persistia na oposição à ala dos espartanos, na POLOP. – Olhem o que comprei. Não são lindas? – atiçou, gentil, a chocalhar as pulseiras de acrílico antes da reunião. Enfrentou a descompostura amparada por Maria Lucia, satisfeito o intuito pedagógico. a compulsão de transgredir. Imperturbável, absorvia maledicências a respeito da pintura nos olhos, o salto dos 152

sapatos, a vida amorosa. Apaixonava-se, sim, por líderes revolucionários. Quanto mais famosos e bonitos, melhor. Preenchiam os contornos de homem ideal, qual o problema? – A gente precisa se preservar como pessoa – ensinava. Aborreciam-na as intermináveis discussões na POLOP sobre as mudanças que o ministro da Fazenda planejava. E daí? Nossa preocupação é a luta revolucionária. Que tédio, a inflação da política monetarista anterior, de demanda, e a atual de custos. Incentivar investimentos, exportações, aquecer o mercado? Tanto faz, tudo capitalismo. A alienada aqui garante, você mexe numa das centenas, milhares de variáveis e desarruma o que planejou, duvido que alguém compreenda e preveja, aprendizes de feiticeiro. Os ricos enfurnam bolos que incham, distribuição de renda nem pensar. Vastas regiões abandonadas, gerações de nanicos no Nordeste, os famélicos da terra. Anos-luz da revolução cultural da China que os inflamava na Faculdade, a força viva das massas ataca o mandarinato revisionista. Em silêncio, o núcleo clandestino da POLOP montava um comando políticomilitar "debrayista". Por ironia da História, afirmava o autor, a situação social própria dos países latino-americanos delegou o papel de vanguarda a estudantes e intelectuais revolucionários; era a fase inicial da invencível revolução cubana, um contra 500. Inexistência de um partido de massa e substituição da disciplina partidária ris as condições para o êxito. Cabia à guerrilha a direção da luta. Mandamentos: focos, luta armada e primazia ao combate pela militar antiimperialista. – O foco é apenas um meio tático, catalisador do movimento insurrecional – contestava a POLOP. – Participa do processo revolucionário. O partido de massa é imprescindível. – Sem experimentar, como garantir que não dá certo? – É uma proposta imediata, simplista – afligia-se Eder, reconhecendo contudo o teoricismo da POLOP. Erich Sachs, o fundador, escrevia longos documentos de crítica ao foquismo. Inútil. Vencia a proposta concreta: roubar armas, atingir o inimigo. Indecisa ainda, Iara evitou os choques. Morria de saudade, precisava de José Dirceu. Numa tentativa de reaproximação, telefonou-lhe. – Vamos sair? Meu presente de aniversário, 23 anos. Absorvido em seus assuntos, não registrou o convite que alguns amigos de Iara qualificaram de corajoso; outros, falta de amor-próprio. 153

– Não lembro se saímos. Vou sofrer por isso. Eva preparou um almoço especial. Mas Iara, triste e em pânico porque a família voltaria ao Ipiranga – David novamente requisitara para uso próprio o apartamento de um iniquilino que pagava mal – não conseguiu reprimir as lágrimas. Pais e irmãos entreolharam-se. – Que aconteceu, Iara? Ninguém chora à mesa do aniversário, todos juntos – interveio a mãe, abalada. – Não quero voltar ao Ipiranga – soluçava já abertamente. Retrocedia ao passado, sem José Dirceu. – Preciso de um canto meu. Eva foi receptiva. Sempre defendera o direito de Iara à vida própria. E talvez desaparecessem as tensões. As semanas seguintes, de procura, terminaram na aquisição de um pequeno quarto-sala e kitchenette em forma de trapézio, sétimo andar na Maria Antônia, a 20 metros da Faculdade e diante do Mackenzie. Vizinhos o supermercado na esquina, as tortas da Holandesa e a Livraria Pioneira, importadora de livros acadêmicos. Nenhum prédio representaria melhor os interesses de Iara. Na parede a serigrafia do Guevara, presente de Claudio Tozzi; de Melo, os móveis da Mobília Contemporânea, cujo desenho limpo e moderno fazia sucesso entre intelectuais. A cama de solteiro transformava-se em sofá. Armário moda, mesa, cadeiras, estante. O relacionamento com David melhorou. Relaxada e assídua aparecia na Martinico Prado e depois no Ipiranga – para comer, pedir favores, sediar reuniões. Não desistiu de reconquistar o namorado. Consuelo de Castro, das primeiras convidadas ao apartamento, companheira de saídas noturnas em que brincavam de metamorfosear-se sob o disfarce da maquilagem, ajudou-a no plano, dividida. Escondia que o flerte do rapaz e Betty, também sua amiga, continuava. Emprestoulhe um chamativo vestido turquesa para a festa em casa do professor de Filosofia – pretendiam ofuscar José Dirceu. Todos beberam demais, ele apareceu. – Você parece uma heroína de romance, não quer nada pela metade – admirava-se Consuelo. – Quantas vidas tem? A cada ano parece diferente. Infeliz, procurava os amigos que se nutriam um pouco do seu carinho derramado. Certa vez desencadeou verdadeira catarse no apartamento de Marina e Carlos Henrique. Ouviam músicas norte-americanas de protesto: Pete Seeger, Joan Baez, o novato Bob Dylan: How does it feel, how does it feel/To be without a home/Like 154

a complete unknown/Like a rolling stone?17 Saudosa de José Dirceu pôs na vitrola um disco de Roberto Carlos, que rotulavam de xarope destinado a mocinhas piegas e semi-analfabetas. O alarido, exclamações maliciosas, "tira", "põe", não cessavam. – Ué, não é um disco da casa? – teimou, o humor algo autoderrisório: "...Esta é a nossa canção/Você partiu e me deixou/Nunca mais você voltou/Pra me tirar da solidão/E até você voltar/Meu bem eu vou cantar/Esta nossa canção"18. O melhor amigo continuava Elias. Foi dele o apoio quando se apaixonou por Sérgio Ferro, uma das várias opções que o TUSP oferecia: boas posições políticas, intelectual, bonito. Seis anos mais velho, artista plástico, sentido de missão e militância. Ainda no PC, a caminho do rompimento. Bem melhor que os sociólogos e economistas à volta. – Ela era uma figurinha linda, do tipo que engole a agressão e a transforma em asma, ranger de dentes ao dormir. Contava piadas a rir muito, risada gostosa, grande, que volta e meia se extinguia em respiração difícil. De perto, intuía-se amargor no rosto aparentemente alegre. Sempre uma espécie de carência, um lugar dolorido, difícil. No jeito de falar, suave e delicado, a presença da ironia. Nada de cinismo, ambigüidade, hipocrisia. Sensível, emotiva. Enorme ternura. Não era intelecta daquelas da Maria Antônia, porém muito inteligente. Adorava meus filhos. Se tivesse uma filha daria o nome da minha, Camila. O namoro terminou abruptamente. – Eu, cafajeste, arranjei outra. Ela reagiu bem, continuamos amigos. No apartamento, que guarnecera esperançosa de encontrar estabilidade, sofria solidão. Olhava as brochuras amareladas da adolescência na prateleira alta da estante, o destino descartável de cada quinhão. Tudo insuficiente. Queria mais. Maria Lucia e Chicão amavam-se, Evelise casada. Só ela sem amor. Desceu para telefonar. – Vem me ver, que não me agüento – pediu à Albertina. A amiga jamais se furtou aos chamados. Vinha com Claudio, jantavam. Nem sempre Iara conseguia falar, porque topavam com gente na calçada a sair dos bares, da livraria aberta à noite. Burburinho, mexericos políticos e risadas sonoras.

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Como é sentir-se sem lar, desconhecido, errante?" Escrito por Bob Dylan, 1903. Nossa Canção, de Luiz Ayrão, 1966.

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III VPR

Quixotes e heróis

O TUSP COMEÇOU os ensaios da peça de Brecht Os Fuzis da Senhora Carrar. Iara admirou o cenário e figurinos de Flávio Império. Conhecia-o há tempos, porém uma noite, no casarão da Haddock Lobo, tocou-a o talento do homem longo e claro, alguns anos mais velho, figura pública no círculo universitário e intelectual de São Paulo. Namoro curto. Extrovertido e alegre, o rapaz alterava-se na intimidade em bruscas mudanças de humor. Nesses momentos descompunha-a e emudecia. Ferida, saía à desforra. – Não consigo ajeitar a vida. Durante a lua-de-mel, jantava quase todas as noites com o grupo. Rapidamente percebeu que Império e Lucia Campello, das Ciências Sociais, flertavam. Os abraços que ele usava distribuir envolviam ali outras intenções. Fatigada de competir, zombou de Lucia: – Olha, você já é uma senhora casada! O que é que há? – Iara tinha um jeito malandro de falar dessas coisas. Ficou divertido, numa ótima. Sem baixaria. Tipo "saquei" – estima Lucia. – Ela foi das pessoas mais sensuais que conheci. Minissaias, decotes e calças justas, afronta antiintelectual aos chemisiês, tailleurs Chanel, suéteres de corte inglês das formandas e professoras. A postura parecia dizer: "Olhe, posso ao mesmo tempo ser inteligente e uma tremenda gostosa." Verdade. Flávio não suportou a dependência nem os namoros paralelos de Iara. – É menininha fascinada – decretou. Socorreu-se em Elias. – Estava mal, chorosa. Havia um substrato de grande depressão, sob forma de desespero. Maio terminou com o livro Torturas e Torturados apreendido na Guanabara, enquanto o imprimiam: depoimentos de presos políticos que sofreram tortura nos meses seguintes ao golpe de 19641, documentados pelo deputado federal Márcio

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O Tribunal Federal de Recursos, dia 22 de junho de 1967, considerou a apreensão ilegal. O livro, apresentação do escritor Antônio Callado, chegou às livrarias.

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Moreira Alves. O ministro da Justiça considerou-o ofensivo às Forças Armadas e "eivado de inverdades". Manifestações promovidas pela UEE e UNE foram igualmente proibidas. Terminava o artificio da "fase dona Iolanda", esposa de Costa e Silva alardeada simpatizante dos universitários. Em junho Iara viu na televisão as tropas de Israel retaliarem, na "Guerra dos Seis Dias", os incidentes nas fronteiras do Egito, Síria e Jordânia, que culminaram no bloqueio à navegação israelense de treito de Tirana. As lutas sangrentas dilaceraram muitos militantes judeus da POLOP – vários tinham passado períodos em kibutz. Alguns partiram, voluntários. Havia forte consciência de que se jogava a sobrevivência do país. – O que você me diz dessa guerra? – perguntou Iara a Emir no cursinho. A POLOP defendia a fusão de palestinos e israelenses num só Estado, socialista. – A guerra do Vietnã alinha drasticamente as posições mundiais imperialistas e antiimperialistas. Israel aliou-se aos Estados Unidos Em discussões exaltadas com colegas judeus, excetuada Rachel Iara acusava os israelenses. – Se eu fosse palestina estaria de fuzil na mão para expulsar os invasores de minha terra. – A briga toda é uma criação artificial dos ingleses. – Tudo ali é artificial, só que Israel virou cabeça-de-ponte do imperialismo no Oriente Médio. – Nasser persegue e tortura comunistas. – Mas é obrigado a assumir posições progressistas. Na História é isso que conta. Você não é marxista? O congresso ilegal da UNE em agosto, organizado peia AP, seria no mosteiro dos beneditinos em Valinhos, perto de Campinas. Poucos sabiam. O CRUSP, ponto de reunião, depósito de documentos e armas do comitê de segurança, abrigou seguidas assembléias prévias. Iara, Melo e Maria Lucia participavam. Paralelamente, a POLOPE outros grupos instigaram uma centena de alunos, sem vaga nos prédios repletos, a invadir o edifício destinado a bolsistas e alunos de pós-graduação. A direção da USP ameaçava retirá-los à força. No primeiro dia de férias em julho, um batalhão de 500 homens da Força Pública, 14 caminhões e três “brucutus" invadiram o CRUSE. Dos seis prédios os estudantes defenderam-se atirando objetos e água Enfurecidos, os policiais 157

arrebentaram as instalações, prendendo indiscriminadamente2. Iara foi encarregada de salvar duas malas repletas de material da POLOP, fingindo-se desalojada, à meianoite. Os grandes olhos e o rosto sereno abriram caminho. Chegou ao carro orgulhosa da simulação e, encorajada, dirigiu-se à casa de Flávio, perto, na praça da casa bandeirista. Unia a prudência à vontade de encontrá-lo. Recebeu-a Amélia Hamburguer, a irmã, física recém-chegada de doutoramento nos Estados Unidos. – Fui expulsa do CRUSP – mentiu. Recolheu a jovem bonita, vivaz, malas descansando no terracinho. Dormiu no quarto de Flávio tomada pela presença da pousada no jardim defronte, século 17 imerso na escuridão. Joões-de-barro nas árvores enormes, o passado rude pertencente a ela, filha de imigrantes judeus mudar a história do Brasil. Somos os novos bandeirantes. Em vez de caçar índios libertamos o camponês e as fronteiras invisíveis da miséria. Ouvidos atentos devaneou a surpresa no rosto do amado, o diálogo que teriam. Adormeceu atordoada pelos grilos. Flávio não dormiu em casa. À noite houve assembléia na Maria Antônia. As conclusões condenavam a repressão, os acordos MEC-USAID e exigiam a soltura dos colegas presos. Em particular, Iara recebeu da POLOP a incumbência de fazer contatos políticos na Guanabara, ligados ao congresso da UNE. A quem perguntasse, iria à 19ª reunião da SBPC, de 9 a 15 de julho. A avó Sonia morreu. A família reuniu-se no Ipiranga, manhã tria, para acompanhar o enterro. Iara, encasacada, não se emocionou. Enervava-a estar ali, o pai rompido com o tio, discussões antigas, a avó dividida entre os filhos. Evitou os primos e a proximidade da morte. Cecília viu-a da janela e desceu. Conversaram um pouco, distantes. No cemitério, ao perceber a tristeza da irmã, Iara tentou um consolo: – Não foi uma grande perda. Ainda mais acabrunhada, Rosa silenciou. As informações vinham pelo filtro dos irmãos. Reprimiu o desejo de falar do vínculo afetivo, os mimos, as canções que a avó lhe cantava, neta preferida – puxara a David, o caçula sentimental.

Iara afeiçoara-se a uma amiga de Elias, Clotilde Magaldi, a Tutinha; ex-aluna do cursinho, bonita, bem vestida, filha de um nefrologista famoso. 2

O Estado de S. Paulo, 4.7.67.

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– Conversávamos de tudo, de depilação a política, passando por moda, amores, ensino. Ela dizia que lecionar era melhor, mais socializante do que clínica. Sempre me dava um alô. "Um dia você me dá seu casaco de antílope", brincava. Eu respondia: "E você, sua aliança largona". "Ah, é meu anel de escrava". E passamos a Faculdade assim. Também gostava de Raul Fiker, que fazia uma fina troça de tudo. – Taí por que não pertenço ao MCI. Admite pessoas como você, meio marginal – cutucava ela. – Moralismo chegou aí e parou – retorquia. Certa madrugada, ao saírem do bar Xic-Xá na Angélica, falare de maconha, em grande moda. – A gente vira cúmplice de traficantes e policiais bandidos – argumentou Iara e seguiu por outra linha: – É coisa de esporro, desregramento. Um universo sem seriedade. Veículo de alienação: o mundo, é inabitável e o verdadeiro prazer está em pirar. Parece-me também que a gente abre as comportas de si e tudo se transforma em projeção. É ruim e perigoso, mexe com a cabeça. Tenho medo. A estima pacificava as diferenças e os amigos combinaram viajar à Guanabara no fusca de Iara. Cada um resolveria seus compromissos. Raul, montar uma exposição de Sérgio Lima. Elias, apresentar um trabalho na SBPC e ver a família. Laerte Coaracy, namorado de Tutinha, passear e dirigir o carro, o que só fazia de pijama. Iara, apesar da rinite virulenta, fanhosa, não parou de trautear. – Ai, Iara, a cantoria. – Não consigo parar a musiquinha. Interromperam o percurso numa lanchonete da via Dutra. Escolados em improvisos que Iara se limitava a assistir, Laerte fingiu-se doente. Gemia abanando a gola do pijama, enquanto Raul lhe dava cerveja na boca. Motoristas e passageiros de ônibus em parada olhavam a farsa, incrédulos. Os amigos o escoraram até o carro. Arrancou sonoramente e riram durante quilômetros. – Se houvesse intervenção popular virava teatro de verdade. – Ao anoitecer, já em plena avenida Rio Branco, um baque afundou o capô. Horrorizados, correram a acudir a mulher atropelada. O sangue empoçava no chão. Laerte disparou para o hospital Miguel Couto, depois de a custo recostarem no 159

pequeno carro a mulher obesa e inconsciente. Os outros seguiram numa perua do Jornal do Brasil que ofereceu ajuda. Apesar de preocupados, a cena no prontosocorro provocou risos. Laerte, pijama ensangüentado, saudou-os: – Manda outra. O ferimento não é grave. Intimados a comparecer à delegacia, porta-malas cheio de papes políticos de Iara e Elias – um sem contar o segredo ao outro – estacionaram no pátio. O delegado, interessado em extorquir dinheirol fechou-os numa salinha. Periodicamente abria a porta e ameaçar – Dura lex sed lex! Para encorajar-se, Raul e Laerte caçoavam. – É o que aprendeu de latim no curso de Direito por correspondência. – Vamos dizer pra ele que Rui Barbosa inventou o antônimo que rege as elites brasileiras: "Lei, ora lei.'" Iara decidiu ridicularizar a insolência do homem. Bichos intuem o medo, expunha. Firmeza e iniciativa nas situações perigosas atingem as zonas inseguras do inimigo. Assim, toda vez que o delegado abria a porta, perguntava-lhe mansa, sorriso aberto: – E o cirquinho, vai durar muito? – Não é melhor a gente ficar bonzinho? – recriminou Raul. – É que eu trouxe a mala cheia de material da POLOP – vingou-se da reprimenda. – Estaremos perdidos se revistarem o carro. – Eu também – apressou-se Elias, a defendê-la da fúria dos amigos. Raul empalideceu. A tática de Iara funcionou. O delegado dispensou-os mediante um compromisso que safava a todos: tinham que lavar o carro sujo de sangue e atender às necessidades da vítima. Para unir o útil ao agradável Iara combinou o primeiro encontro político no Castelinho, à beira-mar e em plena voga. Sentaram-se os quatro a beber chope numa das dezenas de mesinhas brancas na calçada, repletas de gente. Quando o contato da POLOP apontou, pareceu-lhes absurdo despedirem-se. – Pensará que vocês são da polícia. Finjam-se companheiros, não abram a boca. Depois esqueçam o que falamos.

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O imprevisto instigou o humor de Raul. Conspiradores sob o sol luminoso de inverno, multidões deliciadas com o fim de semana e as férias escolares, indiferentes ao regime militar. De início abordaram generalidades políticas. – Quando Costa e Silva declarou em junho que ninguém mexe a nesta Constituição e muito menos ele revê a Lei de Segurança Nacional, cresceram as áreas oposicionistas. A ponto de o MDB alertar a Câmara sobre os créditos confidenciais pedidos pelo Executivo3. – A grana vai produzir bombinha atômica? Distribuir cartórios? Aí é que está – e Iara conduziu a conversa para as próprias dúvidas. – Os milicos cada vez mais fascistas. A oposição consentida, além de legitimar a ditadura, diz que só débeis mentais imaginam aventuras insurrecionais vitoriosas4. O dr. Silvana manipula o MDB, bando de ratinhos engaiolados. Contra a força, só a força. – A esmo, companheira? Sem condições objetivas? Em lugar do Debray leia os clássicos. Disciplina militar sim, mas num partido de revolucionários profissionais, sob as ordens do comitê central. Essencial. Lenin disse em O que fazer? que só um partido será a vanguarda das forças revolucionárias. Aquele que organizar as denúncias e revelações políticas, visando o povo inteiro. Claro, numa etapa futura, mas a leitura de Lenin é fundamental. – Esse sujeito só fala jargão, é um autômato – cochichou Elias. – Cara chato! – Companheiro! – meteu-se Raul, mal controlando a excitação da desforra, para grande distúrbio de Iara. – O sol perdeu sua função histórica. Esta é uma das razões de nosso encontro no Castelinho – o gesto amplo indicou o dia esplendoroso. O outro emudeceu, olhos postos no interlocutor. Seria um código? Aguardava, estupefacto. Alguma coisa estranha ocorria. Raul, em transe, discorreu sobre o uso do sol. – Companheiro, por favor, analise a praia, os biquínis, a indolência dos exploradores. Não dá. Chegou o momento da campanha contra o prazer, original contribuição da luta revolucionária tupiniquim. Pensamos em distribuir folhetos, talvez uma faixa no ar, veja ali aquele aviãozinho puxando um comercial – mostrou, enfático.

3 4

Castelo Branco, obra citada (5,5.67). Alerta do deputado federal Mario Covas, então líder do MDB. Castelo Branco, obra citada (10.6.67). Observação do deputado federal Tancredo Neves.

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– Que contraste, no céu azul! A alienação do povo nos fins de semana, a imitar a burguesia, prejudica a epopéia revolucionária. Pão e circo. – O proletariado tem prazeres – arriscou o outro. – A qualidade é diferente, companheiro. O sol do operário e o astro-rei classista nada têm em comum. Lembre-se de Marx: está na hora do salto qualitativo solar. Indignado com as asneiras, o outro desistiu. Iara também, a bicar chope gelado. Desligava-se quando não havia o que fazer. Contemplou o bar, as pessoas, automóveis desfilando cheios de gente em trajes de banho, guarda-sóis, a beleza inexcedível do mar azul. Temperatura agradável longe do frio paulistano. Brisa, cores. Quem sabe há perfume de chapéu-de-sol no ar? A rinite passou. Raul fez um melê, paciência. Depois dou um jeito. Digo que é meio pancada. Esquizo, de tanto fumo. Vem crítica furiosa pra cima de moi, irresponsável e tal. Acompanhou a lancha passando ao largo, vontade de andar no raso da água, bom para as pernas. Voltou à torrente de Raul. O companheiro está brincando – cortou afinal, sorriso calmante – Tivemos problemas ontem e ficamos tensos, nervosos. Planejando exprobar a conduta de Iara na primeira ocasião, o rapaz levantouse e desapareceu no mundéu. Os quatro, aliviados, riram em ondas crescentes como crianças maldormidas. Em São Paulo, presos alguns universitários suspeitos, os órgãos de segurança chegaram a fazer gestões junto ao governador e prefeito. Que dissuadissem os estudantes5 de organizar o congresso da UNE. Temiam feridos graves ou algum morto transformado em mártir. Fora de circulação, escaladas para o transporte de congressistas, Iara e Maryse hospedaram-se na casa de Rachel. Em reuniões secretas, verdadeiro ensaio de clandestinidade, discutiam os esquemas de locomoção, comida, comportamento no local, temas e material político a distribuir. A UNE realizou o 29° congresso em Valinhos, no mosteiro dos beneditinos. Iara compareceu ao ponto em Campinas. Repetidamente foi e voltou, conduzindo colegas. Ninguém chegava direto. Duas vezes notou que um rapaz a observava. Rosto agradável, reflexos ruivos no cabelo castanho. Ninguém lhe dava carona. É comuna, disseram. Teve dó e lamentou não poder levá-lo. 5

Carlos Castelo Branco, obra citada (29.7.67).

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Os 400 participantes dormiam no chão sobre jornais, frio de inverno. Iara e Maryse, previdentes, armaram-se de travesseiros e chocolates, pois comia-se pouco: macarrão, pãezinhos com Iaranja. Reencontraram o futuro cineasta Marcos Medeiros, da Dissidência da Guanabara6, estudante de Filosofia. Combinaram descansar na fazenda de um amigo, terminado o encontro. Faltariam à segunda fase do congresso – minicomícios em São Paulo e grupos de trabalho em residências particulares. Reviu também o jovem do ponto em Campinas. Era Marcelo Cordeiro, presidente da UEE baiana, futuro deputado. Orador articulado, eloqüente defensor das teses do PC. Inimigo feroz. Valinhos evidenciou a irreconciliável divisão universitária, embora fossem unânimes quanto aos traços pré-revolucionários no Brasil: potencial de resistência das massas e crise econômica insolúvel. De um lado o minoritário PC a reafirmar as teses pré-64, reagrupamento da oposição, luta política e apoio ao MDB. De outro, a luta armada que pregavam os grupos dominantes da POLOP e dissidências, norteados por Guevara na Bolívia; e a AP maoísta7. – Nunca se discutiu tanto se é melhor ser peixe no meio do cardume ou destacamento armado – espantou-se Maryse. – Acho que depende das circunstâncias – respondeu Iara. – De qualquer forma a guerrilha fará a mudança. Marcelo Cordeiro ao microfone vibra quase que por amor ao debate, pensou; esse pessoal de Direito faz até concurso de oratória. Prestou atenção às profecias: a Universidade é o foco do incêndio social a reconquistar espaços legais. Ao repetir o dogma das Forças Armadas divididas, apartearam-no. – O encanto do PC pelos oficiais nacionalistas alijados do poder é repulsivo. Os revisionistas da revolução burguesa fecham os olhos ao poder paralelo dessa linha dura8, pronta a derrubar inclusive militares do governo que desenvolvem jogo de cintura em política. Ou 64 foi piada? Ergueu-se no fim do embate violento entre Marcelo e Vladimir Palmeira, ostensiva a caminhar os dois ou três metros para oferecer ao baiano uma barra de chocolate. Todos os olhares convergiram para a cena. Transgredir, que afrodisíaco! 6

Universitários do PC, insatisfeitos com a linha política do partido, saiam e organizavam-se em grupos chamados Dissidência. 7 João Roberto Martins Filho, obra citada (Cap. V: "A Trajetória da Esquerda"). Jacob Gorender, obra citada (Cap. 20: "Turbulências de 68 e Fechamento Ditatorial"). 8 Carlos Castelo Branco, obra citada (13.7.67).

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– Foi providencial em todos os sentidos. Peguei um pedaço grande, talvez metade. Senti-me poderoso. Ela me chamava a atenção por mover-se muito, magra, a tossir. Mas forte e bela. Naquela noite, alguns reunidos em comissões, outros perambulando no frio dos corredores, conversaram na varanda e fizeram amor de pé, no meio do jardim abandonado. – Uma paixão, coisa especial. Iara colheu-me uma flor. No dia seguinte achamos graça, que ousadia! Eu, do PC execrado. Ela, polopiana famosa e, mexerico desatualizado, namorada de José Dirceu. Senti-me como César – vim e venci. Deume força, seiva. Conversaram dos estudos. Declamaram-se poemas. Marcelo escolheu Mário Faustino: "Não conseguiu firmar o nobre pacto/entre o cosmo sangrento e a alma pura./...(Tanta violência, mas tanta ternura)..."9. Esperou-a uns tempos depois, no Conselho da UNE em Belo Horizonte. Iara não foi e nunca mais se viram. Nas eleições, por pouco as Dissidências venceram Luís Travassos, expresidente da UEE e AP. Houve um momento em que ambos os grupos tentaram ganhar os votos do PC. Marcelo Cordeiro lembra-se de Aloysio Nunes Ferreira Filho, presidente do Centro Acadêmico II de Agosto e ainda PC, a impostar uma gargalhada ao longo do corredor. Tripudiaram. Votariam em branco, não eram oportunistas. O congresso reafirmou o voto nulo de protesto nas eleições próximas. E definiu o movimento estudantil como força auxiliar das classes operaria e camponesa, "com condições históricas de levar adiante transformações revolucionárias da sociedade". Cada batalha por reivindicação estudantil ajudava a conscientizar as massas. Inviável, no sistema capitalista, encontrar soluções para os problemas do ensino10. O programa denunciou o imperialismo, a repressão, os acordos MEC – USAID e decretos antigreve. Exigia ainda ingresso na Universidade a quem terminasse o secundário.

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"Balada (Em memória de um poeta suicida)", em Mário Faustino, Os Melhores Poemas, Global Ed. 1985. 10 Vladimir Pereira: "Os Estudantes", em Los Subversivos ("A Esquerda Armada no, Brasil"), Ed. Casa de las Americas, Havana, 1973.

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A polícia não descobriu o local e compensou o fracasso assaltando em Campinas o convento da Ordem dos Beneditinos e o Colégio do em Notre-Dame, que depredou. Atribuiu os danos aos padres e estudantes presos11. Em vão a base da POLOP aguardou Iara e Maryse para ouvi-las sobre o congresso. Descansavam na fazenda. – A gente dormiu, tomou sol, encheu a cara. Quando bebia Iara falava muito, eufórica, rindo seu incrível riso contagiante. Passados três dias voltaram à casa de Rachel, programadas para uma festa. Divertiram-se com as belas roupas da amiga e só reapareceram na semana seguinte, indiferentes às críticas. A Faculdade votaria as teses da UNE. Lideranças da Psicologia reuniram-se em discussão prévia na casa de Chico Buarque – uma de suas irmãs era colega de curso. Iara pediu a Maryse, mais agressiva, que viesse ajudá-la na argumentação. Defenderam acirradamente as teses da luta armada, evolução natural no contexto de crescente militarismo12. Rubens Glasberg, futuro jornalista, enfureceu-se. Pertencia ao MCI, obcecado em isolar Eder e Emir, rachar a POLOP e converter as duas. Atacou. – As conclusões do congresso da UNE são delirantes. O regime aproveita para endurecer. – Eu manjo essa manobra – escarneceu Maryse. – Seja objetiva. – No fundo vocês são comunas envergonhados. Criticam o PC, mas têm fixação por lutas de massa. O rapaz enrubesceu de cólera. – Onde já se viu massa lutando em plena ditadura? – enveredou Iara. – É uma fantasia pequeno-burguesa. – Bem que o camarada Mao disse pra procurar a burguesia no Partido Comunista – citou Maryse, gozando a vitória. – Eu acrescento: no MCI. Farinha do mesmo saco.

Memorex – Elementos para uma história da UNE, Publicação do DCE-Livre Alexandre Vanucchi Leme, 1979. Mais: Artur José Poerner, obra citada; editorial "Sanar Equívocos”; na Folha de S. Paulo de 6.8.67, que criticou a violência sobre religiosos e o capricho pessoal nas leis destinadas à educação. 12 Mais sobre o assunto: Antonio Ozai da Silva, História das Tendências no Brasil (origens, cisões e propostas), edição privada, sem data. 11

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– A frase, neste quadro, é enorme besteira – rosnou Rubens, apressando-se em atenuar a heresia. – Com todo respeito ao presidente Mao como líder, aqui é nonsense. – Ah, você é um picareta intelectual. – E vocês umas vacas! – destemperou-se, batendo com força num violão. Mal acreditou no resultado. Quebrara-o. Iara usou o incidente à noite, na assembléia. Sentada junto ao estado-maior da POLOP, pediu para falar no auge da briga em torno da proposta do MCI: rejeitava o foquismo e propunha uma frente ampla com a palavra-de-ordem "Pela convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte"13. À frente, microfone na mão, voz embargada, quase gerou tumulto: – Quero pedir moção de censura ao companheiro Rubens. Ele não tem respeito pelas companheiras. Há pouco, numa reunião da Psicologia, chamou-nos de vacas. E levar as coisas a um nível muito baixo, um machismo revoltante e ultrapassado. – Sacana! – gritou alguém do MCI. – Pura apelação. Rubens novamente perdeu o controle; ao menos metade do plenário ouviu o palavrão. Xingar em assembléia feria a ética. Iara, satisfeita com a oportunidade política do incidente que urdira, expressa ofendida, chorou. – Teatrinho! – berrava o MCI. Voltaram às discussões depois da meia-noite. Boa parte dos presentes debandara. Alguém ainda atacou a tendência foquista. – É cutucar onça com vara curta. Aventureirismo voluntarista. Os acontecimentos não se encadeiam segundo nossos desejos ou obedecendo à justiça. – Olha quem fala! O colega é policialesco! – investiu Chicão, usando injúria permitida. A assembléia derrotou a proposta do MCI. CongratuIaram-se. – A Filosofia praticamente ratificou a luta armada. Elias ergueu-se, incerto. Rubens, companheiro de militância e amigo, desprestigiado. A lealdade exigia que desmarcasse o compromisso com Iara – tinham combinado sair juntos. Não obstante esperou-a e ela foi ter com ele, numa escolha pelo afetivo de parte a parte. Críticas acerbas, sabiam, aguardavam-nos.

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Vários participantes da reunião, na década de 80, lideraram a campanha da Constituinte.

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– Ela usa as pessoas, Elias. Você é que não quer ver – explodiu Raul no dia seguinte. Logo mofou: – Além disso é moralista. Menos que você, é verdade. – As opções políticas não podem, em caso algum, transformar pessoas em inimigas quando há afeto. Ter afeto é respeitar o indivíduo – defendeu. – Muitos caíam de pau em Iara: "O que ela aprontou desta vez?" – perguntavam. "Não se corrige, precisa aprender a calar a boca, se hoje acertou, amanhã faz bobagem." Também critiquei sua impulsividade – reconhece Tutinha. No começo de agosto um agente infiltrado causou a queda de um grupo de civis e militares do MNR* em Uberlândia. Entre eles, o jornalista Flávio Tavares. Demais eventos que acirraram o ânimo de militares, governo e oposicionistas: a primeira Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade – OLAS, criada em 1966 para centralizar os grupos guerrilheiros pró-cubanos que surgiam em toda a América Latina14. Presente, Carlos Marighella. A morte do ex-presidente Castelo Branco quando seu avião colidiu com outro, durante uma visita ao Ceará. Boatos, que o clima conspirativo da luta pelo poder estimulavam, atribuíram o acidente à linha dura. Repugnava-lhe a influência que o marechal, talvez vulnerável à campanha da redemocratização, ainda exercia sobre a tropa. E o confinamento em Fernando de Noronha do jornalista Hélio Fernandes, que publicou no seu jornal um artigo vituperando o falecido presidente, no estilo de seu mentor Carlos Lacerda e contra a tradição dos necrológios brasileiros15. – Catilinária inspirada em Ataulfo Alves – Iara regalou-se a entoar: – "Gostei de uma criatura, sem moral sem compostura/ sem coração sem pudor..."16

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 18). Em Havana, 31 de julho a 10 de agosto de 1967. Afirmava basicamente três pontos. 1-Os movimentos revolucionários da América Latina seriam orientados pelos princípios do marxismo-leninismo; 2 Em vista do caráter continental da luta surgia a nacionalidade latino-americana, Che Guevara o primeiro cidadão honorário; 3-A ação guerrilheira convertia-se em centro da atividade política, ideológica e revolucionária, gestando os futuros exércitos de libertação. Discussões dilacerantes separaram os comunistas pró-União Soviética, convencidos da inviabilidade do projeto, dos adeptos da guerrilha. Marighella, presente por conta própria, entusiasmou-se e escreveu a um ex-militar brasileiro: "É chegado o momento de fazer a coleta de fundos, comprar e capturar armas e munições, fabricá-las clandestinamente, selecionar e adestrar combatentes (...) estabelecer apoio logístico para a guerrilha." Sobre e assunto: Jacob Gorender, obra citada; Miguel Urbano Rodrigues: Opções da Revolução na América Latina, ed. Paz e Terra, 1968; Frei Betto: Batismo de Sangue, ed. Civilização Brasileira, 1982. "Nosso Século", Abril Cultural: "Desapareceu um homem frio, impiedoso, vingativo... sem grandeza, nobreza" (Tribuna da Imprensa, 19.7.67). Hélio Fernandes foi preso no dia 20 por ordem de Gama e Silva. O ministro do Interior, gal. Afonso A. de Albuquerque Lima, era dado como porta-voz da jovem oficialidade e expoente da linha dura. 16 Infidelidade, de Ataulfo Alves e Américo Seixas, gravado em 1955. 15

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– É hora de pensar no foco – repisou a dissidência da POLOP. – A economia naufraga, o arrocho salarial é insuportável. Até a oposição teve coragem de afirmar que a prisão daquela pústula lacerdista é arbitrária e chamou a Constituição de "carta liberticida". – As quedas em Uberlândia alertaram a repressão, que suspeita de atividades ligadas à OLAS. Sejamos racionais. O momento exige, ao contrário, aumento da organização e trabalho de massa, essenciais no preparo da futura luta armada. Sem precipitar a POLOP numa aventura. Vencia, no entanto, a tese do foco. Dois grupos, um sem saber do outro, procuraram articular-se com o MNR. Robertão falou dos planos a Iara. – Estive no Uruguai. Brizola recuou depois de Caparaó, mas contatamos exmilitares interessados. – Tanta coisa acontecendo. Viver agora é um privilégio! Trocaram idéias sobre a OLAS, os guerrilheiros rurais na Colômbia, a luta dos negros norte-americanos que os militares brasileiros temiam contagiante. – É agora ou nunca. Somos jovens, bem preparados inclusive para morrer. Pessoas mais velhas não agüentam as condições da selva. Robertão via-a contra a entrada do prédio, pupilas refletindo as luzes noturnas. Nunca se esqueceu da cena, a comunhão do heroísmo porque faIaram de morte. Iara subiu ao apartamento, as verdes irie molhadas do amigo se fundindo às suas. Terrivelmente belo morrer pela revolução socialista. Dá sentido à vida, pensou, e veiolhe a "Mensagem aos Povos do Mundo", lida naqueles dias em Havana: "Onde quer que nos surpreenda a morte, bem-vinda seja, desde que nosso grito de guerra tenha chegado a um ouvido receptivo e outra mão se estenda para empunhar as nossas armas e outros homens se ergam para entoar os cânticos fúnebres ao crepitar das metralhadoras e sob novos gritos de guerra e de vitória." Hino de guerra. Deitou-se e pegou o exemplar da recém-lançada Teoria e Prática. Atraiu-a a coincidência de um título: "Quixotes e Heróis", de Augusto Boal17. O autor demolia o "deseroicismo" no teatro. Galileu foi herói, sim, e porque mentiu. Dizer a verdade seria burrice. Tiradentes é o mártir a beijar o crucifixo? Vendem-no assim. Mas não, é herói revolucionário, transformador da realidade. "Brecht cantou:

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Teoria e Prática n° 1, agosto de 1967.

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feliz o povo que não tem heróis... porém nós não somos um povo feliz. Por isso precisamos de heróis." Apagou a luz. O trabalho político, um ramerrão. Os amigos mais queridos optavam por outra via. Quem sabe viravam o congresso POLOP em setembro? Enriquecer o cotidiano, abrir fronteiras. Insistiria na palavra de ordem mais repetida da OLAS: criar um, dois, três Vietnã na América Latina. Um continente armado. O prestígio de Marighella crescia. De volta ao Brasil e expulso do PC, tornou comum a expressão "Quem samba fica, quem não samba vai embora", título de um documento em que defendia a luta armada. Textos de análise e discussão circulavam. – Se a gente não se armar, morre no cerco da própria casa – insistiam os dissidentes da POLOP. – Fidel disse: quem não faz tudo e pode e mais do que pode o tempo todo, na verdade não está fazendo nada. – Loucura! O movimento guerrilheiro na América Latina vive dificuldades seriíssimas. – Os combatentes não agiram de acordo com as condições locais. O vietcong dá o exemplo. Sem a intervenção dos EUA em 1964, Saigon teria caído. – O Vietnã luta há 30 anos. Primeiro independência, agora reunificação. Hanói apoia o vietcong, os bombardeios não intimidam. As forças guerrilheiras eram 25 mil em 1963, no ano passado 282 mil. Você não observa nada que se aproxime disso na América Latina. Alguns dirigentes vacilavam. Afinal, a POLOP era foquista. – O foco, hoje, é erro estratégico – alertava Eder. Comentavam a engenhosidade dos espinhos de bambu envenenados, a técnica de ocultar fumaça. No Brasil, assaltos a caminhões de leite e mantimentos reforçariam as provisões. Iara apaixonou-se por outro arquiteto ligado ao TUSP, Antonio Benetazzo18, dissidente ainda no PC. Inteligência brilhante, sensível, mais maduro. Finalmente entregar-se a um amor sem ameaças. – Como você está bonita! – elogiava ele, amoroso e empenhado em fazê-la sentir-se bem. – Diga, você é infeliz? Vamos conversar do que você gosta de verdade.

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Assassinado pelos organismos de repressão no dia 30.10.1972, de acordo com o Comitê Brasileiro pela Anistia: Prisões, Sequestros e Assassinatos – Desaparecidos Políticos, Livro organizado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Capo.

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Nunca um namorado se preocupara tanto em ampará-la. Talvez Antonio Eduardo, não fosse a imaturidade. Mas Benetazzo mantinha o namoro secreto em respeito à rigidez do PC, cioso dos quadros de importância. Iara seria um escândalo. No bar do Zé, ignoravam-se. O caso não durou porque Benetazzo se assemelhava a Império nas mudanças de humor. Súbitos momentos de dureza, arrogância e irritação. – Eu me sinto um lixo quando Benê me impõe esse distanciamento. E procuro ligações bilaterais. Bem sei, não tolero depressão. Não consigo ajeitar a vida – lamentava-se a Elias no esforço de compreender sua tendência por homens problemáticos. Os outros, sem graça. Despejada a perturbação do dia pegava a agendinha rabiscada de compromissos, incapaz de gerir a irrequietude. Telefonava e partia. – Indiferente, ela cultiva os sentimentos de Elias e o machuca. Além da vaidade é uma tática política. Sacana! A paixão, coisa pesada, atrapalha a vida dele – desabafava Raul Fiker entre a revolta e a compreensão. Mas nada dizia ao amigo para não feri-lo. A amizade, contudo, enriquecida de erotismo subjacente, era real. E Iara amava o pai do amigo, Alberto Moniz da Rocha Barros, catedrático da Faculdade de Direito. Falavam bastante de Psicologia, Iara a criticar a psicanálise: – É elitista, alienada. Falta-lhe existência. O cara matou a mãe, no divã só sai cabelo em casca de ovo. O que você quer dizer com esse bocejo na hora de falar do guarda-chuva? – ilustrava, encenando um rosto carrancudo. A evidente preocupação certificou Elias de que ela procurava uma terapia. Significativamente a disciplina Observação e Diagnóstico, do último ano gerou uma pendência na Faculdade. O período de prática na clínica psicológica do curso, instalada num sobrado próximo à Maria Antônia, envolvia dois estágios. O mínimo, em que o aluno se limitava a aplicar testes; e o máximo, psicodiagnóstico de clientes, só aberto a quem provasse adequação emocional. Profissionais avaliavam os alunos. O analista Armando Ferrari entrevistou Iara e excluiu-a. Os reprovados, a maioria, revoltaram-se contra os critérios e, decretada a greve, invadiram o sobrado. – Parte dos professores apoiou os alunos, parte acusou-os de antiéticos. A mentalidade diferia muito de hoje – recorda Maria Alice Leme, uma das aprovadas ao lado de Rachel Rosenberg. 170

A médio prazo o malogro significava não dispor de aval para clinicar, principal chamariz do curso, embora nem sempre admitido. De qualquer forma, futuras psicólogas precisavam submeter-se à psicoterapia. Custava caro e Maria Lucia pediu ajuda ao pai, diretor da Psiquiatria do Hospital das Clínicas. Não demorou entraram, as duas e Evelise, no grupo do dr. Jorge Ferreira Amaro. Desta vez a técnica não afugentou Iara. Depois da experiência em sessões individuais, que ria familiarizar-se com problemas de outros. Doze clientes, mínima disparidade etária e social, a maioria encaminhados pelo hospital, formavam o grupo. Opondo-se a Maria Lucia, que não abriu a boca nem tirou os óculos escuros durante várias sessões, Iara foi comunicativa desde o princípio. Dinâmica, fornecia temas para discussão. Graças à vivência política, desfiava percepções e análises. Apenas uma situação atingiu-a, no dia em que chegou atrasada e percebeu na sala alguém desconhecido. – Puxa! Que moça bonita! – ingeriu-se, mal ocupou o lugar. O assunto em pauta continuou. No final o médico referiu-se à interrupção e interpretou-a. Iara chocou-se. Não admitia ser invejosa. – Ponto para a autoconsciência – aceitou tempos depois. – Na hora doeu. Preocupada em melhorar o currículo, assistiu no Centrinho a palestras sobre Metodologia Científica. Nos estágios específicos de formação psicológica, aplicou testes nos irmãos menores. Depois dos cálculos que conferiram a Raul um Q.I. de gênio, muito prestigiado na família, tonteou com a lembrança da massacrante competição intelectual na infância. Esforçou-se por reanimar Rosa, abatida com a comparação que a inferiorizava. A experiência fora tão absurda quanto atribuir significado a mensurações sem contexto. – Como fui fazer isso? – chorava.

Chispas e suco de Iaranja

A POLOP ENFRENTOU a polêmica sobreo caráter da revolução brasileira no congresso da Praia Grande, litoral de São Paulo. A partir de Cubatão os participantes, conduzidos em automóveis. Viajavam de óculos escuros opacos para não reconhecer o lugar. Às moças cabia a infraestrutura – compras, cozinha e "fachada" de estudantes

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em fim de semana prolongado. O sobrado de venezianas cerradas ocultava cerca de vinte pessoas. – Absurdo o machismo desse pessoal – reclamou Iara na cozinha. – Os graduados discutem, e a gente no serviço doméstico. Fico louca da vida. De vez em quando nos concedem a honra de um palpite. Bem que eu digo, a gente só fica sabendo das coisas na cama. – Somos maravilhosas, revolucionárias, companheiras, e de repente o que sobra é arroz, feijão, linguiça – acrescentou Lucia Rodrigues. – Só Renata participa. Tem topete. Houve dois projetos contra o programa da direção, socialista. Um, de libertação nacional, pregava estratégia prolongada no campo. Veio da minoria carioca. Minas defendeu a revolução democrática e nacional. As altercações, sussurradas, evidenciavam posturas irredutíveis. As moças compravam em várias mercearias para não chamar a atenção, alertas ao movimento na localidade. Irrealismo sair pelo mundo e criar um foco, concebia Iara em idas e vindas. Mas amigos e a Melo reconsideravam posições. – Não sei direito o que pensar – reconheceu à Maryse. – Vai ver, as discussões internas têm mesmo que acabar em racha. – Acho que o papo é esse. Assumir a luta armada. Convenceu-se ao caminhar na praia uma tarde, talvez movida por Carlos Alberto, o Breno1, tão bonito rapaz de Belo Horizonte, um metro e oitenta de corpo queimado de sol, olhos verdes, atleta, nadador. Breno, dissidente, abraçou-a contra o sol. Apertava o rosto contra o peito macio, tarde da noite a sós num canto da casa. Beijava-a dizendo coisas lindas, percorria os seios a despir o biquíni, o calor do sol, do desejo, um mar no corpo. O devaneio dissipou-se na água. Nadou e estendeu-se de bruços na areia, a pele adquirindo o radiante dourado enquanto vigiava a redondeza. Vozes amigas repercutiam. Valdir, Robertão, Chicão. Impaciência raivosa, hora de sambar. No céu azul as gaivotas e o rosto desalentado de Eder ao registrar o inapelável movimento de ruptura. Pensava nos amigos arquitetos, sambam Ferro, Benê, Carlos Henrique, Lefevre, também José Dirceu. A corrente marinha aproxima-

1

Preso em 15.2.71. A descrição da via dolorosa empreendida pelos pais para localizá-lo está em Reinaldo Cabral e Ronaldo Capo, obra citada; Brasil Nunca Mais, obra citada. Ambos relatos graças ao testemunho de Inês Etienne Romeu. Carlos Alberto Soares de Freitas é um dos desaparecidos políticos.

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se de Marighella. Até Emir embananado. O fruto maduro, cutuca que cai. Ocorreu-lhe o artigo de Mao Tsé-tung que todos liam, “Uma só chispa pode incendiar toda a pradaria". Ajeitou-se para bronzear o colo, olhos no horizonte, de novo Breno, promessas de Sá em outro planeta: “Agora/dê-me o teu corpo de mar/ para eu navegar...”2. Sacudiu a toalha, feliz com a cor das pernas. Devagar enfiou-se na saída curtinha. As brigas na obscuridade da casa chegavam ao final. O núcleo foquista de São Paulo – Valdire Wilson Fava entre outros – aglutinou as tendências da oposição na tese que transcrevia as conclusões da OLAS. – Basta de marxismo de saguão – sorriu, ao chegar o intervalo. Sou pelo racha também. Acelerar o processo social, mexer com o mundo. Entrar na luta é questão moral. Sentiu os olhos de Carlos Alberto e dirigiu-lhe os sentidos. Másculo, idealista. Condutor. A beleza do justiceiro. O projeto socialista venceu por dois votos mas a ala derrotada abandonou a POLOP. Os remanescentes afirmaram não criticar o foco e sim "suas aberrações"3 – a teoria debrayista. É da classe operária que brotará a organização de combate, sublinharam. – Os companheiros queriam algo imediato e significativo do ponto de vista do enfrentamento do regime – elucidou Eder Sader. – A POLOP não tinha alternativa que competisse com a opção tentadora. Iara, sem autonomia política para polemizar, seguiu os amigos. Lembro dela ao aderir. Onde estivesse, dominava um pouco o ambiente. Pelo brilho, a dimensão humana4. Iara não tentou convencer Maria Alice Machado a sair da POLOP, quando voltaram juntas a São Paulo. O bate-boca de Maryse com ela ressoava: – Você está dando para trás. – Não me vejo resistindo à tortura. E teremos que usar violência

2

J.G. de Araújo Jorge, obra citada. DecIaração Política do IV Congresso, em Eder Sader: “Para um balanço da PO”, artigo citado. 4 Depois do racha fortaleceu-se na POLOP a visão obreirista – formar quadros, bases operárias – objetivando um partido revolucionário. Estagnada, no congresso de fundiu-se à Dissidência Leninista, divisão do PC no Sul, e formou o Partido Operário Comunista – POC. Incapaz de construir a base operária, o novo grupo cindiu-se. Emir optou pela tendência que escolheu a lula armada. Eder, anos depois um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, permaneceu. De qualquer forma, a questão de acumular forças através da guerrilha continuava. Sobre o assunto: "Uma tentativa chamada POC” artigo de Marco Aurélio Garcia – jornal Em Tempo de 11 a 17.11.1979. 3

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– Na sua casa você tem postura de violência. É só papo? Verdade. "Tudo pro paredão!", provocava. A mãe a chorar, o pai aos gritos. Papo furado. Inconcebível armar-se. Depois, era menos disponível. O pai tolhia, à espera na casa burguesa. E s laços familiares, fortes, neutralizavam a pressão. – Posso tomar banho na sua casa? – Iara examinava-a, terna. – Claro. – Me empresta uma roupinha linda? Só Maryse soube que Iara se ligou ao grupo de Valdir. Dou aquela chocalhada na vida. Caio fora do cursinho, me viro com a pensão de Sá, dou facadas no meu pai. Apago as miudagens que fixam e impedem o vôo. Cláudio Willer ofereceu trabalho para 1968, instrutora de ensino graças aos excedentes. Dona Anita não objetaria. Tradicionalmente cargos amansavam os mais fervorosos contestadores. A perspectiva de integrar a Cadeira, status de professora, agradou-lhe. – Ao menos vareia. Preocupou-se em achar quem a substituísse no cursinho. Ao entrar no saguão cruzou com Yara, namorada de Paeco, ex-aluna. Gostava da xará, vinda de Araraquara. Lia admiração em seus olhos: mulher-maravilha, pioneira, morava sozinha sem ser prostituta. Durante a conversa, remetendo sorrisos e gestos ás pessoas, apareceu no portal a colega de curso Antônia Maria Brandão. -Toninha! – correu. – Preciso falar com você Em direção ao bar fez a proposta. – Vou deixar o cursinho, é minha saúde – de fato, tentava corrigir a disfunção de supra-renal que o último ginecologista responsabilizara pela infertilidade. – Você topa me substituir? Toninha seria perfeita. Simpatizante da POLOP e em início de gravidez, precisava de dinheiro. Experiente, dava aula em outro cursinho. Para coroar, elogiava a dedicação de Iara à política e faziam-se confidências sobre questões amorosas. Combinou passar o material em casa dos pais, ainda na Martinico Prado. Recebeu-a com uma grande travessa de morangos na mesa da sala. – Come, Toninha, senão acabam – ameaçava, devorando as frutas. Alegres, examinaram as apostilas e Iara comentou seus truques de impacto. Riram a tarde inteira. 174

A substituição veio em boa hora. A POLOP perdeu as eleições do Grêmio e a nova diretoria quis expulsar o grupo do cursinho. – Não saímos de jeito nenhum! – vociferava Melo. O grupo vencedor, Sonia Lafoz à frente, invadiu o prédio. Os 110 professores demitiram-se. Desesperada, Sonia assumiu a secretaria e Benetazzo deu quase todas as aulas de Humanas. Mas o cursinho afundou e o Grêmio perdeu a fonte de renda. Livre das aulas, Iara desligou-se do tratamento psicológico. Não podia exporse. – Droga, deixar a cuca em segundo plano – reclamou, sem convicção. A animosidade que restou contra ela chocou Rachel, nova na terapia. A esterilidade condoía-os mas acusavam-na de não se misturar.

Logo Iara entediou-se com as tarefas, meros contatos. Os companheiros do chamado grupo de fogo não a convocavam. – Querem revolucionários ascéticos, ignoram que o combatente verdadeiro é humanizado, integral, capaz de amar, reconhecer os próprios grilos. Ignoram a Psicologia. Tem muito a aprender. Os amigos da dissidência do PC ingressaram no Agrupamento Comunista de São Paulo5, organização de Marighella que já assaltava bancos, fingindo-se marginal. Destinavam o dinheiro a aparelhos – casas ou apartamentos para clandestinos – armas, viagens, sustento de militantes. Apenas Império não se envolveu. Nervosamente ofendia-se: falta-me estrutura pessoal, coragem. Exceto os grupos armados, a esquerda continuava a magnetizar nas festas, lançamentos de publicações, música, vernissages, encontros no Belas Artes recéminaugurado, esticadas noturnas, beber, rir. Comentavam Terra em Transe de Glauber Rocha: ditadura e populismo latino-americano, alienação, engajamento. E O Rei da Vela de Oswald de Andrade, direção de José Celso Martinez Corrêa no Teatro Oficina. – Guerrilha teatral, magnifica anarquia.

“Moldado para as tarefas da luta armada e oposto à estrutura tradicional do partido comunista.” Jacob Gorender, obra citada (Cap. 13: “Marighella e a Ação Libertadora Nacional”) 5

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– A encenação é o reinado da grossura, merda no ventilador. Estúpido como a apatia. Se continuar assim, vamos desaprender a pensar. Essa, a denúncia da própria peça. Comovidos e enfáticos cantavam Ensaio Geral6, louvor às passeatas na voz de Elis Regina. Ou músicas recém-premiadas no II Festival de Música Popular na TV Record: Roda Viva de Maranhão, interpretada por Chico Buarque. Ponteio de Edu Lobo e Capinam, que Marília Medalha defendeu. Maria, Carnaval e Cinzas de Luís Carlos Paraná, vaiada e no final dividindo a platéia. – Maior preconceito – declarou Iara. – Só porque Roberto Carlos cantou. Ele foi corajoso pacas, nem desafinou no meio da gritaria. O problema é que a música, belíssima, só denuncia. Não convida à luta. Debatiam o tropicalismo, proposto meses antes por Hélio Oiticica e popularizado quando Caetano Veloso cantou seu Alegria, Alegria. – Alienação, descompromisso. Discordava. – Na linha guerrilheira do Zé Celso. Afirmação anti-rigidez contra os milicos. O prazer versus o impulso de morte do sistema. Quem vaiou Caetano não entendeu nada. – Você acredita que parábolas herméticas conquistam o povo? – Que povo! – intrometeu-se alguém. – Pura classe média. Se não gosta de porrada, por que vai ao teatro? – Caetano não agride – opinou o primeiro. – Cê acha? – gozou Iara, embebedando-se de suco de Iaranja. – É doce mas agride. Recusa tudo o que foi programado. Eu gosto. – Egocêntrico. Só olha o umbigo. – Que umbigo? Ele esculhamba! – Defende saídas pessoais. Compare aos zengakuren, vietcong, black-power. Até na Tchecoslováquia criaram um parlamento estudantil ilegal. E a gente misturando Cardinalis com guerrilha. Daqui a pouco fica todo mundo místico, tomando droga. Aliás, já começou.

De Gilberto Gil, no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record em 1966: “O rancho do novo dia/O cordão da liberdade/ E o bloco da mocidade/Vão sair no Carnaval.../É preciso ter coragem/E aplaudir o pessoal.../Ensaiado com carinho/Pelo Zé Redemoinho, pelo Chico Vendaval.../Carnaval é pra valer!.../E a liberdade vai vencer. 6

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Prestou atenção no discurso. O tropicalismo devolvia para consumo, em calculada irreverência, o país colonizado, miséria, repressão. – Nesse sentido é tão fruto do Brasil quanto a ditadura. Sob forma de indulgência bem embrulhada ganhamos um álibi sem-vergonha. A montanha pariu o cara-de-pau. O trânsito rareava na Consolação. O Riviera ainda cheio luzia em cores. Concerto de vozes, risos, cadeiras arrastadas, copos, talheres. O tema saltou para a política. – O manifesto da Frente Ampla comprova que Lacerda ensandeceu. Essa ida a Montevidéu encontrar Jango é desespero de causa. Nem o JK gostou7. – Eu qualifico o manifesto de correto – atalhou o economista que Iara paquerava, tão bacaninha, descrevia, fala bonito, olho verde. Pena que desorientado, no PC. Propugna a volta do país à democracia, reforma da Carta de 67. Retorno ao nacionalismo, independência em relação ao FMI e à política externa. Desenvolvimento do mercado interno. A plataforma permite unir e mobilizar o povo. Parte da oficialidade, nos quartéis, anseia por uma saída. – Você é um sonhador. Os milicos enlouqueceram de ambição. Querem manter o poder, construir bomba atômica sugando verbas astronômicas, garantia de porcentagens – 10 por cento? Gozar privilégios, empregos de alto nível para si, as famílias, parentes, periquitos e papagaios. Finalmente chegou a vez de se locupletarem. Lacerda vai perder seu restinho de apoio militar. Delfim oferecerá brioches, amansando a classe média. A solução é a força. A mesa violava o apartheid que impunha cumprimentos frios entre organizações inimigas. Um comunista, meio degrau abaixo da direita fascista, bebia cerveja com simpatizantes da luta armada. Calmo, ele próprio um contestador em defesa de diálogo e democracia interna, lembrava que a mera obediência às leis conduz não digo ao socialismo, esclarecia, porém a um Estado de justiça social. – Você virou social-democrata! – enojaram-se. – Abaixo do Equador – persistiu inalterado – pululante de tacões obscurantistas, qualquer medida de respeito aos direitos do cidadão é subversiva. Imaginem, por exemplo, que um usineiro pague o mínimo ao empregado, sem roubá7

Maria Helena Moreira Alves, obra citada: "A Frente era especialmente perigosa para o Estado de Segurança Nacional, por atrair representantes conservadores das classes médias e altas, que haviam apoiado o governo o governo militar”.

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lo. E – enfatizava eloquente, olho em Iara – remunere a família que com ele moureja sol-a-sol. Quer dizer, se cada um que trabalha recebe a miséria do salário mínimo, é a revolução no Nordeste. Vou além. Reconhecer o direito de mulheres jurisdicionarem o próprio corpo – buscou aprovação em Iara – civiliza a sociedade através da moral, dos costumes. É um avanço. Isto aqui – concluiu inesperadamente – é o cu do mundo. Virou a cerveja. – Quem pagaria ao camponês do Nordeste esfarrapado, desnutrido, baixo Q.I.? – contra-argumentaram. – Os latifundiários são ladrões e assassinos históricos. E a situação dos colonos no Sul? A sina do operário em São Paulo? O caminho pacífico não leva ao socialismo. Tímidas reformas de base trouxeram o golpe e decênios de retrocesso. Este é o país da injustiça social, ganância selvagem, fraudes, assassinos contratados, corrupção, impunidade. Vale a lei da selva, é só aspirar o fedor do rio. Fazer esgotos solapa a Segurança Nacional. Pertence à multinacional a merda paulistana, vendida em forma de energia elétrica. Devemos desmascarar as instituições e a falsa representação política – basta alguém distribuir lanches na periferia e dizer-se amigo dos pobres. Não posso acreditar honesto quem defende eleições. E sempre foi assim. As cassações de políticos, agora? Apenas um casuísmo agravante. Quanto ao aparelho judiciário no qual você quer basear a tal justiça social, quem são os seus homenzinhos? Claro, um ou dois se salvam. Mas o destino dos juízes brasileiros, selado nesta Constituição sórdida, é corromper-se. – Se não defendemos a Justiça, o que será de nós? – esquivou-se. Era tarde. Galante, ele pediu a Iara que lhe desse carona.

Che Guevara, ferido dia 8 de outubro no cerco as montanhas bolivianas dos Andes orientais, foi fuzilado no dia seguinte. Os discursos candentes repetiam-se. – Heróis vivos deveriam ser imortais. Mas ele morreu, muitos morreram e morrerão. Cai um, mil braços se estendem para empunhar seu fuzil. A luta é continental. Ecléa chegou à Faculdade pálida, luto fechado. – Puseram outro – duvidavam alguns. – Olhei a foto com lupa. Não é a sobrancelha dele. Nem a linha dos cabelos.

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– Sebastianismo. Primeiro, foto de jornal é imprecisa. Segundo, ele pode ter perdido alguns fios nesses meses. A imprensa refletia a incerteza. El Mundo, argentino, suspeitava de barba implantada. O Jornal do Brasil relacionou sete itens que confirmariam a morte e onze a contestá-la. Questionou-se a incineração: “a cultura católica boliviana abomina o procedimento". A agência UPI adivinhou a resposta: com gasolina. Municiado de informações diretas, o Departamento de Estado norte-americano declarou: “Não temos motivos para descrer." A atividade política universitária ferveu durante o 20° congresso da UEE ilegal, numa granja da via Raposo Tavares. A polícia, infiltrada, permitiu o encontro e armazenou informações. A POLOP, sem os radicais, aliou-se ao PC nas críticas à majoritária AP. Condenava “o mito pequeno-burguês” da tutela estudantil sobre o movimento operário, que esquecia as tarefas revolucionárias específicas*. Houve acirrada luta pelo poder e o conclave terminou em cisão. Os dissidentes retiraram-se. Planejavam derrotar a situação, presidida por Catarina Melone. José Dirceu era o candidato oposicionista. No mundo inteiro começavam as manifestações da Semana de Solidariedade o ao Vietnã8. Teoria e Prática n° 2 publicou o poema Por você, por mim, de Ferreira Gullar: “...Que se passa em Hué?...As águas explodem... os arrozais/ se queimam em fósforo e sangue''. Na Guanabara e São Paulo, eventos. As fotos da grande marcha sobre Washington, dia 21, maravilharam Iara. – Olhe os hippies trepando nos gramados do Pentágono! Façam amor, não façam guerra. E Norman Mailer, bêbado e gritando obscenidades – é o máximo! Entre as 100 mil pessoas que caminharam do Lincoln Memorial ao Departamento de Estado, admirou a presença severa de Benjamin Spock paletó, colete, gravata, relógio de bolso: “Não quero ver os bebês que eu trouxe ao mundo mortos na guerra."

*

O Estado de S. Paulo, 10.10.67. Discutiram-se assuntos estudantis (luta política e reivindicatória, organização do movimento universitário); nacionais (política nacional de energia nuclear, carta política da UNE, objetivos estratégicos do movimento universitário e acordos MEC-USAID); internacionais (política do FMI, criação da Força Interamericana de Paz e Semana de Solidariedade ao Vietnã). 8 Time, 21.10.67: De Londres a Tóquio, de Tel Aviv a Berlim Ocidental, os pró-comunistas e um espectro mais amplo de antiamericanos emocionais tomou as ruas.”

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– Foi a maior e mais violenta demonstração pela paz da história contemporânea. Dezenas de feridos, centenas de presos. Gente, o povo vai ganhar. Nunca imaginei tanto cartaz do Che na barriga do monstro. Conflitos entre esquerda e direita, em especial no Mackenzie e Filosofia, agitaram as eleições diretas da UEE, dia 26. Sempre na hora do almoço, quando só havia moças e pouca gente votando no Grêmio, direitistas aproveitavam para atravessar a rua. Desta vez vinham especialmente sanguíneos, finda a pancadaria no Mackenzie que resultou em várias prisões, inclusive do futuro vereador Lauro Pacheco de Toledo Ferraz, um dos organizadores da votação proibida pela reitora. Decio Bar estava no bar do Zé quando viu o grupo. Uns cinqüenta. – Vai ter mais bochincho! – alertou e imediatamente correu a rua Vila Nova abaixo, alguns amigos escoltando-o, em tempo de chegarem antes ao Grêmio pela entrada na Economia. – Não tem ninguém da segurança? – gritou revoltado. – O CCC tai! O bando chegou. – Essa eleição é proibida! Sou polícia – ameaçou um deles, avançando para a urna. – Polícia porra nenhuma! – urrou Decio, batendo às cegas a fim de proteger-se dos invasores, que atacavam com corpos de prova. Na batalha, da qual escapou pulando o vizinho muro do SESC, quase perdeu um olho. A luta prosseguiu na rua quando os estudantes retornaram do almoço. Chamadas pela diretoria, a Força Pública e uma guarnição da Guarda Civil cercaram a frente da Faculdade e a área do Mackenzie. Usaram bombas de gás, fuzis, metralhadoras e cassete. No final da tarde, garoa, já liberada a Maria Antônia, dois delegados vieram buscar urnas e listas9. Iara não presenciou a invasão. Acompanhava as eleições na Faculdade de Direito do largo São Francisco, agasalhada no trench coat, perto de Aloysio. O DOPS confiscara uma urna, outra substituiu-a. Os policiais voltaram à noitinha e o rapaz reagiu à nova apreensão. Iara, de flerte com ele, foi presa também. – Chi, somos manjadíssimos – Aloysio previa mais que um simples depoimento. Trancados numa sala, entreolhavam-se cada vez que alguém abria a porta: – Vocês vão pro Cenimar!

9

Jornal da Tarde, 27.10.67.

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O sadismo do Centro de Informações da Marinha era famoso. Escolada pela delegacia na Guanabara, Iara resolveu desligar. – Quer saber de uma coisa? Estou com sono. Chega de cirquinho, vamos dormir. Ato contínuo enfiou-se sob a escrivaninha do delegado, a proteger-se da luz forte. Aloysio seguiu-a. Dormiram até a manhã. – Ela transmitia força, tranqüilidade, confiança. Foi uma experiência preciosa ser contra, nos anos de formação. Assumir riscos ao lado de outros. Em benefício de um projeto público, desdenhar planos pessoais. A fé em transformar o mundo. Lembro do aroma especial dessa fase, tudo envolto em luz. E de Iara. Rosto iluminado, personagem da época, tesouro perdido. Solta, dirigiu-se ao Grêmio. Portas e vitrôs arrebentados, cadeiras e mesas em pedaços. O rosto de Decio. Irreconhecível. – Gente! O que aconteceu no seu olho? – horrorizou-se. Disfarçou a emoção com ironia. – Vocês falam em tomar o poder na marra, vêem um tico de sangue e se apavoram. Dois presidentes da UEE emergiram das eleições pontilhadas u apreensões e roubos de urnas. José Dirceu, que ganhou liderança c reconhecimento da UNE; e Catarina Melone. O final do ano estava alegre. Heleny, Ulisses e os meninos, agora dois, voltaram da Europa. Iara reencontrou Lucia Rodrigues, já Sarapu, mulher de Valdir. Casaram-se para compor uma boa fachada, a organização, ainda sem nome, precisava de aparelhos. Só Rachel, por conta própria, foi ao casamento sem convidados, em Santo André. – Então, cê casou! Tudo agora é diferente, né? – festejou-a Iara. – Pois a lua-de-mel foi uma reunião. Tive de cozinhar, que raiva! Valdir deu uma força, nem arroz sei fazer. Costa e Silva nomeou o general Meira Mattos para presidir uma comissão de estudos sobre o sistema universitário. Queria adiantar-se às discussões sobre reformas. Na Maria Antônia o tema era a Universidade Crítica, mas Iara não se envolveu de fato. A Faculdade aborrecia.

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A economia em crescimento selou 196710. A Frente Ampla perdia força. Lacerda, que procurava atrair os empresários insatisfeitos com a norma do controle de preços, em dezembro definiu o governo como ditadura corrupta. Os militares acusaram os políticos da ARENA de marxistas corruptos, responsáveis pela desorganização do país. A linha dura dos coronéis sonhava dispensar os presidentes, invariavelmente contaminados no trato com os políticos11. – Democratas, no fundo, são totalitários. Aponte um desses líderes civis sobreviventes das cassações que não apoiou os golpistas de 64. Abertamente ou por baixo do pano. O negócio é obrigá-los a revelar sua face ditatorial e violenta – concebeu Iara, excitada com a novidade: alguns companheiros já recebiam treinamento em Cuba.

Vergonha de si, uma dramatização

O ANO COMEÇOU com a Força Pública desalojando estudantes e um prédio vazio do CRUSP. Na Guanabara, tiros dispersaram um protesto contra as condições do restaurante universitário Calabouço. O governo cumpria o plano de endurecimento. Mas o interesse de Iara centrou-se na primeira "expropriação” do grupo numa agência Banco Brasileiro de Descontos. Também lhe chamaram a atenção o roubo de dinamite da Companhia de Cimento Perus e no escárnio do secretário da Segurança da Guanabara, um general, ao comentar a tortura de um estudante: teve o braço fraturado quando caiu de um tamborete na polícia; e um general não mente nunca1. Acompanhava a movimentação dos trabalhadores graças a Antônio Roberto Espinosa, estudante de Filosofia, seu aluno em 1966. O rapaz, de um grupo independente, militava ao lado da igreja no movimento popular sindicatos, grêmios colegiais, sociedades de bairros de Osasco, município operário vizinho a São Paulo. Thomas Skidmore, obra citada (Cap. IV: "Costa e silva: Os militares endurecem – A nova estratégia econômica”) A inflação baixara dos 38% de 1966 para 24% graças ao monetarismo severo do governo anterior e salários rebaixados. 11 Carlos Castelo Branco, obra citada (l6.12.67): "Um presidente, mesmo militar, que governa aliado a um congresso, mesmo submisso, é um meio-termo que não desaltera a sede da linha-dura.” 10

1

Folha da Tarde 23.1.68 e 1.2.68.

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O núcleo, surgido em 1965, não tolerava o "conservadorismo do PC" e o "centralismo aparelhista" das organizações clandestinas. Mas o projeto de converter os proletários à luta armada transformou Osasco em Meca da esquerda. Todos ambicionavam ganhar os rebeldes2. Iara familiarizou-se com a política operária e as dificuldades da luta contra o arrocho salarial. Por exemplo, greves só eram legais fracassadas as negociações e mediante processo na Justiça do Trabalho. Nesse ínterim, o patrão demitia os líderes. Em 1966 as lideranças de São Bernardo propuseram operações-tartaruga e um instrumento semi-legal associado a comitês de fábrica, que no apogeu mobilizou dezessete 17 sindicatos do ABC3: o Movimento Intersindical Antiarrocho – MIA. Propugnava aumentos trimestrais seguindo a elevação do custo de vida e contrato coletivo de trabalho para combater o desemprego. A essa altura a Federação dos Sindicatos Metalúrgicos encampou o movimento, fez acordo com o Ministério do Trabalho e seguiu usando a sigla. Satisfazia o intuito governamental de conservar os sindicatos

abertos,

escapes

que

minavam

a

organização

clandestina

de

trabalhadores4. Dal o empenho em desmascarar a festa quando o MIA, em fevereiro de 1968, anunciou que o secretário da Segurança autorizara a comemoração do 1° de maio na praça da Sé. Mais: o governador falaria, inclusive admitindo discordâncias. – É movimento de cúpula – denunciou José Ibrahim, presidente da primeira comissão de fábrica na Cobrasma, indústria de autopeças em Osasco, cerca de 10 mil operários. – Os sindicalistas e o PC são aliados do governo. Inadmissível aos líderes radicais, alguns na luta armada como José Ibrahim, a presença de Sodré. Enrustido homem da ditadura, sua presença na festa dos trabalhadores era descarada provocação. Iriam expulsá-lo do palanque. No final de janeiro Iara assistiu No final de janeiro Iara assistiu A Guerra Acabou, de Alain Resnais.

2

Maria Helena M. Alves, obra citada: "Uma das peculiaridades de Osasco era o grande número de trabalhadores que estudavam à noite na escola secundária local...Um deles era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos (José lbrahim). Com isso o movimento estudantil exercia profunda influência no pensamento político dos líderes da classe trabalhadora da cidade, vinculando-se diretamente, em termos organizacionais, ao Sindicato dos Metalúrgicos" 3 Apoiaram o MIA sindicatos de Osasco, São Paulo (vacilante), Guarulhos, Campinas, São José dos Campos e onde houvesse metalúrgico organizado. 4 Depoimento de José Ibrahim, em Memórias do Exílio. Obra coletiva, coordenação de Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos. Ed. Livramento, 1978.

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– Sina de revolucionário que vive no passado, obediente às diretrizes inúteis. Franco deixa a Espanha soturna. Melancholia, gente. Mas Yves Montand, que homem! Eu sou a Ingrid Thulin. Ajeitou ser enviada à Bahia para contatar grupos clandestinos, um trabalho da Organização e a Dissidência da Guanabara. Marcos Medeiros seria o companheiro de viagem. Desde o congresso em Valinhos escreviam-se: – Tarde da noite, quando recorrer a alguém dá confusão, a gente desabafa em carta. "Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda/Quero fazer uma poesia"5. – As posições políticas, jeito libertário de existir, o radicalismo de Iara causaram-me grande impacto. Juntos éramos alegres, irreverentes. Eu me identifiquei muito com ela, dos quadros mais brilhantes da revolução brasileira. Hospedaram-se no centro de Salvador. Nas brechas à noite iam aos bares, admiravam a lua no mar. Falavam de cinema, política. teatro, gente, comportamento. Marcos foi preso em meados de 1968. Solto mas logo sentenciado, passou ano e meio clandestino e saiu do Brasil. Nunca mais viu Iara. O teatro fomentava consciências, novos militantes. O TUSP, auxiliar da revolução, recolhia dinheiro destinado a luta. Preparavam para encenar Os Fuzis da Senhora Currar, adaptando ao texto de Brecht o momento político. Empolgado, o grupo convivia ininterruptamente. – A peça fala de nós, mulheres e guerrilheiras Império cortava sacos de estopa, tingiam roupas em caldeirões. Anseios, calor. Todos se namoravam. O estímulo sedimentava formulações artísticas. – Como dramatizar a consciência política? Avançar poeticamente? Faziam-se confidências. Homens, feminismo, dependência. – André escreveu uma decIaração de amor linda no piso do banheiro – confidenciou Rose Lacreta. – É tudo intenso, belo, impossível separar uns dos outros. Somos mulheres divididas entre a iluminação da cena, a tarefa política, o amor, o talento. Aplaudia as observações de Iara: – O importante é libertar-se das regras. Não se castrar.

5

Vinicius de Moraes, Antologia Poética: "O falso mendigo”.

184

– E o dilema de ser íntima, amante? André vive interessado em outras. Nossas confusões amorosas enlouquecem e ninguém quer abrir mão delas. O que diz a Psicologia? Passar instruções cujos objetivos deveria ignorar mas acabava por descobrir, era função de Iara. Muitas madrugadas bateu a casa de André Gouveia. Tinham de arrumar casa para alguém, dinheiro, condução, passagem. Obedeciam cegamente. Continuava a jantar com os amigos do TUSP. Inesquecível noite no Gigetto em que Anatol Rosenfeld falou sobre a origem fraudulenta dos Protocolos dos Sábios de Sião, forjados entre 1900 e 1905, na Rússia. – Frases, parágrafos e até páginas inteiras copiadas de uma sátira de 1864 contra a política interna e externa de Napoleão III. O livro serviu a Nicolau II, que acusou os planos de reformas na Rússia de projeto maçônico-judaico, dedicado a demolir o absolutismo. O czar sancionou o pogrom como recurso governamental. Desviava o povo das terríveis condições econômicas em que se debatia6. Lembrou-se do pai de Bernardo Winer a descrever o assassinato do avô, tesoureiro de uma fábrica de bebidas em Kishinev, Moldávia. “No pogrom de 1905 bateram a cabeça dele na parede até morrer. Eu era bem pequenino. Eu vi”. Doeulhe a impiedade infantil, a ridicularizá-lo quando atraia freguesas na calçada, voz enfática, idêntica à que usava para elogiá-la nas festas de aniversário: – Claro que você é a primeira da classe, Iara. Tão inteligente! Fala de tudo, ultrapassa a gente em certos assuntos. Vergonha de si. Por isso contrariava-a esbarrar em gente do bairro. Reagia tolamente, desagradável. Ainda outro dia encontrara Shirley vestindo um anoraque e comprazeu-se em transmitir a imagem superficial, afronta com que se preservava. – Que lindo! Onde você comprou? – É suíço. – Bem vi que não podia ser tupiniquim. – Acho que as pessoas, dependendo do que recebem na infância, conseguem carregar as baterias e viver um tanto. Penso que a morte precoce é uma tragédia de origem. Não dá para chegar ao desespero, muito além do acessível. Iara me parecia um elemento destacado da esquerda festiva. Preservava-se pouquíssimo. Não

6

Anatol Rosenfeld: Mistificações literárias: Os Protocolos dos Sábios de Sião, Ed. Perspectiva, 1982.

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consigo enxergá-la mudada, pois só a recordo na vivência da Maria Antônia, roupas e mesas de bar. Mary Jane levou Iara à casa de Rodolfo Nani, em Pinheiros. As pessoas apareciam domingos à tarde para conversar, beber vinho. O cineasta interessou-a. Vinte anos mais velho, uma eternidade. Alguém a procurar quando sozinha, ouvir música no casarão antigo, móveis de avós. Nani falava do roteiro já escrito de Mar Morto, o livro de Jorge Amado; dos documentários que fazia, Nordeste e São Paulo como tema. Iara pouco se manifestava, inibida. Não chegaram a namoro. Nani gostava de tirar fotos de amigos e fotografou-a. Queria tê-la consigo. Recorda-a bela, delicada. Timidez, certa tristeza. Nenhuma extroversão. Num dia quente de fevereiro, ao terminar de ler a pesquisa que indicava o Che um dos cinco maiores homens da atualidade entre alunos da USP, Iara atendeu à campainha. Certamente alguém que queria fazer hora. Era Jandira Masur, mala descansando no chão. – Não tenho onde ir – havia embaraço e interrogação nos olhos escuros. – Deixei meu marido. Sabia que você mora perto do supermercado, vim perguntando. Jandira fixou o gesto de abrir a porta largamente, apesar dos anos sem contato. O rosto lavado, sorriso grande feito gargalhada. – Fica aí – Iara indicou a sala-quarto. – A gente dorme ali, uma de cabeça pra cima, a outra pra baixo. Dá perfeitamente. Não mudou a rotina, confiante. As pessoas entravam, saiam. Jamais tentou envolver Jandira nas atividades nem quis saber quando partiria. – Tolerante como ninguém. Acho que é o maior elogio que posso fazer. A política não a cegou aos valores humanos. Generosa e cheia de aceitação, nenhum ar de salvadora. Atuava a sério sem levar-se muito a sério. Com alegria. Forte e sensível. Molejo. Longe da pessoa dura, decidida, que histórias posteriores construíram. Não se engajaria numa luta que negasse a afetividade. Embora importante, a política não estava acima de tudo e todos. Jandira lecionava Farmacologia na Santa Casa, ali perto, e Iara ajudaria Willer no curso de Psicologia Social. Falavam das perspectivas profissionais, mas sobretudo de namorados e moda. – A gente mostrava o lado abobrinha à vontade. Lembro o cuidado dela com a pele, as lições de cosmética. 186

Iara logo pôs os olhos nas roupas de Jandira. – Empresta seu vestido branco, Jan? Tenho um encontro e tanto hoje. Quero ficar bem bonita. A Organização recrutou um número significativo de adeptos em 1968. A injustiça social e o governo militar indignavam. – Eu tinha preocupações humanistas desde pequena. Ingressei. Sem discernimento, formação – admite Shirley Schreier, que já lecionava na Química. Encarregaram-na de desenvolver uma tinta invisível e seu revelador; debalde pesquisou reações. Viajava à Guanabara de ônibus noturno para levar documentos. Retornava em seguida. Raul Iavelberg opunha-se às posições políticas dos irmãos. Investia contra as propostas socialistas, fama assumida de reacionário, afirmação de independência. Quando chegou à Faculdade de Medicina os colegas imaginaram que se ligaria à POLOP. Manteve-se avesso. Porém depois de ouvir Melo bradar diante do consulado americano, programou intensa leitura de textos políticos e aderiu. Cultivou a imagem de alienado e circulava de fusca, semelhante ao amigo de infância cujo contato não retomaria, Gelson, colega na Faculdade e do grupo de Marighella. Miriam Abramovay, a terceira aquisição próxima a Iara, mal pensava em política. No cursinho apaixonou-se por Melo e a rebelião estudantil, socialismo, o destemor dos que planejavam a luta armada. O que o namorado pregasse, cheio de experiência, era verdadeiro. A segurança rotineira da conservadora casa paterna pertencia ao passado. – Oi, Cuca – apelidou-a Iara. Cuca Maria. – Ela me dava bola, à pirralha. Tinha adoração por roupa, eu emprestava. "Não estou maravilhosa?", agradecia. Afetiva, carinhosa. Boa. Cada gesto me impressionava. Só anos depois vim a pensar a nas coisas hoje comuns pelas quais batalhava e, além de dizer, fazia. Eu achava engraçadíssimos seus comentários sobre a relação homem-mulher. Naquele tempo as moças cumpriam etapas – namoro, noivado, casamento. Iara, ao. Pagava um preço. Quantas vezes chorou, triste. Sedutora, envolvente, gerava insegurança nos namorados. Defensivos, afastavamse. Dia 8 de março, antes da exibição do filme Bela da Tarde, o TUSP lançou a revista A Parte no Belas Artes. De madrugada, na conversa de bar, admiraram a 187

maestria de Buñuel ao apresentar o tédio da burguesia, o moralismo que atrela ao sexo afrodisíacos sujos e violentos. – Vocês vêem drama. Para mim, o homem esbanja humor. A autopunição da imaculada Severine, os lindos cabelos louros um pouco virados nas pontas como os meus, olhem – provocou Iara a balançar a cabeça -, e as fantasias sadomasoquistas contam a nossa história. Somos todos meio tarados, ué. Transar com aquele brutamontes não é tão maluco. Poooxa, e desafio, poder que a gente ganha. E quem diz que o marido dela não era broxa? E o que quer dizer sujeira? – Iara e Império pareciam-se no jeito de dizer as coisas sem fantasiar, impertinentes e ousados. Eu a julgava mais malandra do que eu, sempre um passo adiante – figura Lucia Campello. As aulas começaram. Iara e Ecléa lecionavam, ambas instrutoras voluntárias de ensino. O posto constituía a fachada ideal para a Organização: amadureceu, dedica-se à carreira. – Isenta de ânimo, dona Anita recebia quem prometesse aptidão. Iara, criativa e inteligente, capacidade de aprendizagem ainda que menos dedicada aos estudos, no futuro poderia ser um nome de valor – aprecia Maria Helena Steiner, então professora de Dinâmica de Grupo. Ao diretor Erwin Rosenthal dirigia-se o requerimento7 que Anita Cabral solicitou dia 23 de maio de 1968. Iara anexou o currículo, desmazelo na datilografia. Relacionou cursos e a participação nos congressos de estudantes de Psicologia – o último em 1967, como chefe de bancada. – Naquele tempo dar aulas equivalia a emprego Vitalício. Nomeada a pessoa, em geral, perdia a revolução – registra a psicanalista Anna Veronica Mautner, ignorando ambas que na infância chamara de Rotbatchi – tio Roth – o avô Bernardo, amigo de seus pais, também húngaros.

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A candidata "realizou seus cursos nesta Cadeira com grande aproveitamento, revelando qualidades que a recomendam para uma cadeira docente e de pesquisa no campo genérico de Psicologia Social. Sua experiência docente já é apreciável, obtida nos cursos preparatórios ao exame vestibular. Suas atividades estudantis de liderança e organização, por outro lado, lhe asseguram vivência preciosa para o estudo científico da Dinâmica de Grupo e problemas correlatos. O exercício das funções de instrutor voluntário permitirá ensaiar realizações em nível universitário e, conforme os resultados que alcançar, candidatar-se a uma carreira de docente ou pesquisadora. Acreditando que a existência de uma categoria de instrutores voluntários visa precisamente estes ensaios que são, a meu ver, de alto interesse da própria faculdade, antecipo agradecimentos.”

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Formandos dotados de liderança, tempero valioso para prestígio da Cadeira, renovavam o corpo docente. Ao mesmo tempo, esvaziava-se a força contestatória dos grupos políticos. Não ser skinneriana como os jovens do MCI, que negavam o inconsciente e agrediam a professora cognitivista – "só ensina fIoreios – influiu na escolha de Iara e enfraqueceu os rivais. – Absorvida pelo sistema! – alardeou. – Decifra-me ou te devoro. To devorada. E o negócio é a bajulice. – A gente era meio puxa-saco, pois só assim nos convidavam – reconhece Anna Veronica. – Recebemos Iara muito bem, era da nossa patota de esquerda: Lúcia Prado, Ecléa e eu, instrutoras; Arno, professor. Uma alegria, alguém diferenciado no meio de tanta teia de aranha. Nas aulas que deu, poucas, Iara divertia-se em contestar a psicologia behaviorista e a ciência oficial. – Cabelos e unhas compridos ligam-se à emoção. Por isso mulheres e cabeludos são mais intuitivos – assegurava. Reportava-se a Umberto Eco. – Dos mais importantes teóricos da semiologia. Ele diz que um escritor não deve inventar seu assunto mas captá-lo na trajetória dos astros e signos do tempo. Ecoar. Vale para o psicólogo. Sabem quais foram as impressões fortes de Eco no Brasil? A casa do professor Mario Schenberg e os ex-votos que viu na Bahia. Continuava sem estar inteira em parte alguma – Organização, Faculdade, TUSP, amigos. Mosaico. Um filho juntaria os pedaços, imaginava. – Ia à casa de todos, bem-vinda, sem pertencer. Passava, perdida – gravou Anna Veronica. – Dificuldade em identificar-se. Algo de voyeurismo, talvez, a espiar vidas de pessoas com eixo. Havia muitos assim na Universidade, nesses tempos de efervescência política. Encontrou apoio em Walnice Galvão, professora de Teoria Literária. Podia falar à vontade – família, namoros, o desejo de filhos, perspectivas da luta armada. Segurava o menino da amiga no colo. Saiam para tomar chope, ir a festas. – Creio que a militância era o essencial, embora Iara fizesse de tudo. Arranjava os namorados convenientes ao momento político que vivia. Interessantes, bonitos, num crescendo de radicalismo até acabar no Lamarca. Impossível não gostar dela. Ninguém tinha tanta graça quanto Iara. Fragilidade e safadeza. Olhos sorridentes, 189

dengue. Calorosa. Mulher de verdade, encarava o que fosse até o fim. Queria um mundo novo, sem injustiças. Lamento que tenha morrido porém não sou contra. Foi à altura dos talentos dela. Acho bonito. Rediviva Joana D'Arc, que se matou pelo destino do seu povo. Não creio que seja o pior destino. Mulher direita, fez tudo o que devia.

Quartim, fusão, tiros

OS MILITANTES AGUARDAVAM a chegada de um companheiro expressivo. Formado em 1965 e instrutor de Filosofia Antiga antes de viajar à França, João Quartim de Moraes voltou ao Brasil em março de 1968. O contato com brasileiros exilados, em particular o ex-militante do PC José Maria Crispim, em Paris, trouxe-o à Organização. – Vai chegar o homem de minha vida – alvoroçou-se Iara. – Bonito, revolucionário, cabeça brilhante. E mais velho, 27 anos. Estudantes do período noturno formigavam entre a Faculdade e o bar. Balbúrdia de novos excedentes acampados, pessoas em conversas na calçada, motoristas à caça de vagas. Quartim caminhava com Leôncio Martins Rodrigues, professor de Sociologia e amigo. Em sentido oposto Iara, luzindo para o recém-chegado. Cruzaram-se apenas. Ele se lembrou dela na escadaria da Faculdade a rir, anos atrás. Leôncio propôs apresentá-la. Seria uma companheira ótima, desquitada como Quartim, emancipada, agradável. – Veja então se você colabora e encurta os “aspectos protocolares”, que levam tempo. Leôncio o fez no saguão. Os dois foram jantar e ao apartamento de Quartim, longe do centro, no Itaim. – Iara e a amiga Maria Lucia, bonitas, chamavam a atenção – repara Leôncio. – Sinceras, engajadas, ingênuas como tantos da luta armada. A meu ver, muito disponíveis.

Recrutaram-se

numerosos

estudantes

das

universidades

mais

importantes, em parte porque pertenciam às classes médias. Jovens de família pobre, ocupados em trabalhar e ascender, teriam maior prudência. Durante o primeiro semestre Iara participou dos pequenos seminários de Quartim sobre fundamentos teóricos do marxismo. – Para “associados" e prospects – zombava ele. 190

Nos encontros referiam-se às novidades. Em Barbacena, presos pela polícia militar, excursionistas acusados de guerrilha. Um trote, provavelmente. – Estão de olho. Os garotos devem ter apanhado. Alegrou-os a visita do cardeal-presidente da Comissão Mundial de Paz e Justiça, que admitia o uso de violência contra tiranias. Comentavam as sangrentas lutas no Vietnã em torno de Hué, antiga capital imperial; não muito longe da batalha o jornalista José Hamilton Ribeiro, da revista Realidade, perdeu uma perna. Longamente debatiam a situação do Leste Europeu: estudantes poloneses a jogar pedras na polícia, gritos de "Gestapo", “Proletariado conosco”. O fechamento da Universidade de Varsóvia. O projeto de Alexander Dubcek, há dois meses secretáriogeral do PC tcheco – libertar o país das estruturas stalinistas. Uma semana e meia de manifestações estudantis pela forma universitária e caía o parlamento italiano. Em São Paulo, a bomba que destruiu a biblioteca do consulado americano dia 18 de março. – Foi o Agrupamento. – Não tem cabimento machucar gente à toa. Um desses estudantes que passavam vai perder a perna – lastimou Iara. – A repercussão é negativa. – Revolução envolve violência. Haverá feridos, mutilados, mortos. Inclusive entre nós. Do contrário não se prossegue. Na USP, anômala em relação ao país, professores elaboravam com alunos uma nova estrutura universitária. Excedentes desenharam no cartaz-símbolo um gorila, dentes de vampiro, no porrete a palavra "diálogo" e saíram em demonstrações no CRUSP; na Maria Antônia, invadiram a sala onde a Congregação se reunia. Florestan Fernandes chamou-os vândalos e demitiu-se da cátedra. Dia 28 de março, o secundarista Edson Luís de Lima Souto, 18 anos, foi assassinado na Guanabara quando a polícia despejou balas sobre os estudantes no Calabouço. Pretexto: preparavam uma passeata em direção à embaixada americana. A repressão avolumou-se durante a missa de sétimo dia na Candelária. Ocupação militar da cidade, tanques, 380 prisões, mortos, feridos. – Paranóia típica, manipulada – diagnosticou Iara. – Os caras usam a loucura e ao mesmo tempo são piradões. A polícia fantasia agressor e põe tanques contra garotos desarmados.

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No Congresso, parlamentares do MDB manifestaram-se contra o governo. Carlos Lacerda, já sem sustentação, acusou o chefe da Casa Militar, general Jayme Portella de usurpador do poder e verdadeiro chefe de Estado. No começo de abril, o Diário Oficial publicou a portaria de Gama e Silva proibindo as atividades da Frente Ampla. Novamente falou-se em estado de sítio. – Tolice – analisaram na reunião. – Já reprimem à vontade. Até o filme A Chinesa do Godard, proibido. Atos institucionais novos virão para amordaçar o Congresso. Será positivo, pois deixa a luta cada vez mais cIara1. Em São Paulo, o governador lamentou a morte do estudante e assegurou o direito de manifestação "dentro da lei e da ordem”2. – Sodré não reprime porque é o “lado civil” da ditadura. Quer ser presidente. Ingênuo, pensam que aceitam um político. Martin Luther King foi assassinado em Memphis, Tennessee, ao apoiar a greve dos lixeiros. – Perseguiu seu destino – aventurou-se Iara aos alunos – Ele mesmo previu o assassinato depois do tiro em Kennedy. Os extremos se atraem. O cara acredita forçar uma crise e negociá-la no confronto pacifista, direto. De fato, a brutalidade policial e dos racistas parece tanto mais cruel, quanto determinada é a não-violência. Uma dramatização, já pensaram? Desperta simpatias, forma opinião pública. Daí a complementaridade. Ah, e o pacifismo dá ganas, mexe num ponto selvagem do repressor. Agora, o resultado: assassinato, revolta, incêndios, quebra-quebras em uma centena de cidades, pencas de mortos. À noite, antes de constituírem o planejado núcleo de imprensa da Organização, admiraram os Panteras Negras. – É hora de tomarem nas mãos a potencialidade revolucionária do movimento negro. O explorado não deve se guiar pela conduta moral do explorador. E que moral, um país que assassina seus jovens! Só este ano, 16 mil no Vietnã. Uma tarde Jandira chegou em casa e espantou-se: Iara batia um bolo, receita na mão. – Ele vem jantar aqui, Jan. Isso é que se chama paixão, me botar de avental.

1

Carlos Castelo Branco, obra citada (10.4.68): A linha-dura, à espera de novos incidentes para liquidar a dissensão, espalhava que as manifestações estudantis eram o início de uma escalada, culminância no 1° de maio, para depor o governo. 2 O Estado de S. Paulo, 2.4.68.

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Na kitchenette, aberta a pequena mesa embutida, talheres para dois. Vinho, jeito de festa. – Então vou sair.

Em março fundiram-se a Organização e o MNR. Alguns militares da ativa, do 4° RI em Quitaúna, talvez aderissem. Tratava-se do mais importante quartel do II Exército. Qualquer mobilização começaria ali. – Imagine que eu conheço o quartel. Fui passear lá, de flerte com o Tom Figueiredo – disse Iara quando, sempre contra as regras, soube das negociações. Onofre

Pinto

mediava.

Renata

Guerra

de

Andrade,

envolvida

nos

entendimentos, trouxe a notícia de que Lamarca, militante do PC a quem a inoperância do partido amargurava, em conflito por viver da estrutura do exército, propunha deixar o quartel levando um caminhão de armas. Autoridade máxima no seu turno, faria o que bem entendesse. A idéia, anteriormente rejeitada por Marighella3, despertou entusiasmos e restrições. Concordavam que o foco guerrilheiro, origem da cisão na POLOP, era objetivo central. Mas exigia fortunas para aparelhos, áreas de treinamento, armas, sustento de clandestinos. Aqui, dividiam-se. Havia os defensores de "expropriações" bancárias e os partidários de finanças próprias – participação em empresas, venda de quadros, o TUSP. – Alguns militantes, em especial ex-sargentos e marinheiros, há anos na dura semiclandestinidade, estavam loucos para atuar. Nós também. As ações davam a impressão de influir na realidade. Disputávamos o privilégio de integrá-las – revela Renata. A divergência reforçou a tese debrayista de subordinar a política às armas. Intelectuais só emperram, queixavam-se. O grupo de Quartim, entretanto, defendia como inquestionável a visão leninista: armas submetem-se à política. Renata deixara os estudos. Matrícula trancada em 1967, trabalhava em pesquisa de mercado na fábrica de sorvetes Kibon. Desde o começo da organização

Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19, "Da POLOP à VPR – Purificação Química do Militarismo Revolucionário) 3

193

militava com Dulce Maia no setor logístico. Reuniam-se na galeria Prestes Maia, Anhangabaú. – O treinamento era precário. Alguns aprendiam em Cuba e ensinavam. Meu primeiro professor foi o ex-sargento João Lucas Alves, Jonas, da Aeronáutica. Já marcado. Nossa primeira morte. Preso e torturado até morrer em Belo Horizonte, 19694. As práticas, em áreas de caça e mal organizadas, pretendiam também acalmar os militantes ociosos no período que antecedeu as ações. Os companheiros de Renata preferiam a estrada Rio-Santos, lodaçal intransitável. Certo dia ela, o namorado Wilson Fava e Dulce atiravam no mato, fingindo-se caçadores, quando surgiram dois soldados. Um deles flagrou números raspados nos revólveres, adquiridos de policiais. – Vocês vêm conosco para o DOPS. Enquanto Wilson parlamentava as duas afastararam-se, muito assustadas. Matá-los? – Vamos oferecer grana pra eles. A gente fala de multa. Dulce iniciou o jogo. – Não, não tem multa – reagiu o soldado. – Mas facilita a vida de todos. – Não. – Qual a diferença entre pagar lá ou aqui? E Devagar os homens amoleceram. Tremendo, encerraram o treinamento. Iara, restrita ao setor intelectual, quis aprender a atirar. Exceto quanto à coragem, não preenchia os requisitos: habilidade manual, dureza, agressividade. Iniciavam os treinos em pequenas ações, roubando placa de automóveis para uso futuro. Miriam saía com Raul. Atuava no bairro de Pinheiros, vizinho à sua casa. Dulce recebeu aulas de Lamarca no famoso curso de tiro a bancárias, que o quartel ofereceu ao Banco Brasileiro de Descontos, depois da "expropriação". – Fui várias vezes ao 4° RI e à casa dele, na Vila Militar em Quitaúna. Sinto grande amor por Lamarca. Certa vez nos reunimos praça atrás do Trianon. Cinco

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19): "João Lucas Alves foi um dos presos mais cruelmente torturados da época da ditadura militar. Sua altivez e bravura acirraram o ódio dos carrascos, que lhe quebraram os braços, vazaram os olhos, arrancaram as unhas e o esfoIaram a fogo.”

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amigos a conversar. Um policial à paisana, atrás de desocupados, veio ter conosco. Lamarca, seguro de si, mostrou os documentos de capitão. O setor logístico discutia e planejava os assaltos. – Havia um lado lúdico, de diversão – percebia Renata. – Lembro do companheiro a rir: "Quero ver amanhã nos Jornais: mulher no assalto! Isso é que é propaganda armada." A repercussão na imprensa irritava Quartim. – Não sou contra ações meramente táticas5. O golpe de 64 é que impôs a violência. Mas para vocês vale o tamanho da manchete na manhã seguinte. Essa inversão é insuportável. Nossa moral é uma, a deles outra. Como é que o termômetro do editor aquilata o valor político do que fazemos? Eu sou portador de ideologia, do ideal de uma nova sociedade. Segundo os meus critérios e valores. Circulavam documentos técnicos. Um deles o primeiro texto de Lamarca, escrito em 1967. Tratava do manejo e utilização tática de armamentos para o pessoal de contato direto (que enfrenta o inimigo) e de abertura (que protege a ação). Desenvolvia, segundo seu amigo Darcy Rodrigues, ex-sargento, uma teoria própria, ainda simplista, sobre a atuação revolucionária nas guerrilhas rurais, urbanas e suburbanas.

Iara via Quartim apenas aos sábados. As vezes aparecia na casa da família dele, xodó pela sobrinha a quem levava presentes. Ocasionalmente arrastava-o ao cinema ou teatro. Comprazia-se no papel de frágil: – Machão, culto, mordaz, dominador. Não se compara a esses meninos. Quero ter um filho dele. Ainda consigo engravidar. Christine veio a São Paulo de visita. Iara recebeu-a exultante. – Adivinhe quem estou namorando. Teu ex! Que é que você me diz? – Competência para assumir a diferença sexual, Iara fazia-se objeto do desejo, um jogo maravilhoso de sedução. Ductore. Seductore. Tirar a pessoa do caminho. Feiticeira. Nenhuma reivindicação fálica, conflito de poder. Adorava que lhe abrissem a porta do carro, queria o decote charmoso. 5

João Quartim: "Regis Debray e a Revolução Brasileira", artigo publicado em 1968 na revista América Latina, órgão teórico do COLINA – Comando de Libertação Nacional, organização ativa principalmente em Belo Horizonte. Les Temps Modernes, maio de 1969, reproduziu.

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Iara fez confidências aos amigos. – Ontem foi tão gostoso, romântico. Ficamos na casa dele ouvindo música. A gente se contando coisas, se agradando. Encontrei o meu homem, tenho certeza, certeza. Christine valorizava nela o contraste entre lucidez e emotividade. – Buscava um amor idealizado, pouca noção da realidade dos seres – reflete. Já acompanhara a luta da amiga contra o sofrimento: “merda, não tenho sorte, vamos arranjar outro namorado, né?" – Fugiu da dimensão depressiva até bater no destino, corrida atrás da própria sombra e não um acaso da revolução. Num sábado de manhã, debruçada na janela, Iara observava a Maria Antónia deserta. Não veria Quartim. Vivência idiota de ficção científica, perdida num bairro desabitado. Só à tardezinha um compromisso, definir o material designado aos secundaristas. Rodavam os textos no cursinho que Melo abriu para servir de fachada ao mimeógrafo, na casa da Silva Bueno. David emprestara-a em 1967, sem conhecer o uso clandestino. Precisava ver gente. Não queria preocupar Jandira, abalada com a falta dos filhos que deixara com o marido. – Quer saber? Vou dar um pulo na rua Augusta. Estou louca por aquela meia que combina com minha blusa, do jeito que se usa agora. Em dois minutos arrumou-se e saiu, revigorada. Quando Jandira mudou, dois meses depois, esqueceu algumas peças de roupa. Esporadicamente viam-se na rua ou supermercado. Uma tarde, antes de cumprimentá-la, Iara adiantou-se: – Nossa, Jan, você me pegou no seu vestido. Que vergonha, que flagrante! Mas ficou tão bonito em mim, cê não vai querer ele de volta, né? – Claro que não! – alegrou-se Jandira. No início da Semana Santa, Quartim viajou a Ubatuba com amigos. Hospedaram-se em casa de Lourdes Sola e Ruy Fausto, um projeto meio futurista de Flavio Império. Iara, ocupada em São Paulo, acompanhou o noticiário6 sobre a bomba no elevador do quartel da Força Pública. 6

Os terroristas, em carta enviada aos jornais, diziam-se da "resistência democrática e assinavam União Operário-Estudantil, alusão ao movimento dos trabalhadores em Osasco. O chefe do bando de direita acabou preso. "Torturado pelo DEIC – Departamento Estadual de Investigações Criminais, desavisado

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– É a segunda. A direita bota suas bombinhas, engrossa. Desceu a serra no dia seguinte, saudosa do namorado. A casa cheia, nenhum espaço para namoro. Quartim gostava da presença dela. Divertiam-no a ironia. desconcerto: "Ah, vocês intelectuais..." – Durou pouco, de março a junho, sem a intimidade que se cria devagar ao longo dos anos. Porém não foi simples aventura. Boa parceira, livre, nada melosa, Iara topava uma parada. Espirituosa, sem tabus ao conversar, grande charme. Pessoa de caráter, compromisso, lealdade, mais emocional que convicta. Mesmo na militância esses aspectos primavam. Sempre agradável, disposta. Voltavam da praia quando o rádio anunciou que quatro homens armados assaltaram uma perua pagadora do Banco Francês e Italiano, na avenida Santo Amaro, atingindo os pneus com metralhadoras das Forças Armadas. Violentado, Quartim xingou. – “Visitas" bancárias nossas, de Marighella ou o grupo que for, além da bomba no consulado e outras que na certa virão, atraem muita gente. Mas impedem o implante no terreno social que permite enfrentar as tempestades e fazer a travessia da pior repressão. Sem solidez, a Organização é incapaz de lutar em circunstâncias adversas e manter a espinha dorsal, num quadro já composto de tortura despudorada7. O momento exige cautela, análises. Não queimar, consumir o pouco que temos. – Você quer é trazer imprensa, revista marxista. Letrado é fogo – caçoava Iara. Todos, no entanto, experimentavam inquietação e susto. Tinham atravessado uma passagem qualquer, sem volta honrosa.

A gravidez inesperada de Rosa recebeu-a em São Paulo. Absurdo, desabafou. discursos. Logo na primeira experiência. Sentia-se responsável, despejara longos discursos. Analisava-lhe os medos, desde pequena impunha comportamentos – não

do que estava por trás, Aladino Félix, vulgo Sábado Dinotos, misto de guru e marginal, líder de um bando de soldados e sargentos da Força Pública, denunciou à Justiça Criminal que agiu por orientação do general Jayme Portella, chefe da Casa Militar da Presidência da República”. Jacob Gorender, obra citada, cap. 20 (“Turbulências de 68 e Fechamento Ditatorial”). 7 "Os cineastas Rogério e Ronaldo Duarte, desaparecidos desde a missa na Candelária por Edson Luís, reapareceram cheios de marcas de tortura e com o recado: a partir de agora, a esquerda que soubesse – seria sempre assim. Tomaram choques e pancadas, dormiam amarrados e nus no chão frio. Rogério reconheceu o local, pertencente à Vila Militar. Folha da Tarde, 15.4.68.

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olhe para trás na rua, desabotoe a última casa da blusa. Críticas de quem sabia das coisas, um fio de inveja, recomeçar melhor na outra. Rosa sentia amor e admiração por Iara, seu carinho fácil, independência, sucesso na Faculdade. A vitória nas sabatinas Maizena, redação no jornal do ginásio, vestido de fada na sinagoga. A bela capa de livro que Sá, onisciente, deu à noiva – couro branco e marcador, símbolo do mistério capaz de roubar de si a irmã idealizada. A gravidez tocou Iara. Filho e compromisso, colocação no mundo. Eternidade. A fisiologia me passou uma rasteira. Por que não tenho ovulação? Qual é a do meu hipotálamo que não manda sei lá que mensagem à hipófise e condena os ovários à avareza? Obstinados, promessa não cumprida. Erro genético? Psicológico, tipo descarrego? Maldição. Ó filhas de Jerusalém. Histórias da carochinha, e lá se foi o pai matar o filho tão esperado. Freud explica. – Ludibriada pelo destino. Dá samba – terminava. – Se você tivesse filho não podia andar solta por aí – anotou uma amiga. – Pois pois – desanuviou-se, pensando em Agripino Alberto – Viva as raízes adventícias, balanço ao vento à procura de chão. Não permitiria que a irmãzinha truncasse a vida. – Que diferença, filho próprio ou adotivo? Ah, sangue do meu sangue! Rosa fez o aborto e convalesceu em casa de uma colega de Iara. Modernidade, antimoralismo, contestação. Donas de si. Mas a vários amigos Iara mostrou preocupação. Queria a irmãzinha bem-formada. Orgulhava-se de seu ouvido musical, habilidades manuais. Outra bomba de direita explodiu em São Paulo, no quartel-general da rua Conselheiro Crispiniano, reflexo da luta pelo poder. De um lado os militares radicais, partidários da censura à imprensa, proibição drástica de greves e reuniões políticas; tortura, morte. De outro os representantes do "castelismo'', se calhar mais letrados e menos cruentos, porém receosos das ameaças que iam de perseguições econômicas à perda de mandatos e direitos políticos. Graças ao ministro da Fazenda, manipulador e talentoso no exercício do poder, avis rara na malhada de estreita programação do governo e caudatários, os vencedores foram os primeiros. Delfim Netto voltou a economia brasileira para o endividamento externo, atraiu investimentos e estabeleceu uma política de subvenções. Ao mesmo tempo o governo deslanchou a construção da usina nuclear 198

de Angra dos Reis e deu os primeiros passos no programa nuclear “paralelo", de segredo indevassável. – Militares gostam de brincar de guerrinha – dizia Iara. O passageiro sucesso do "milagre brasileiro'" enriqueceu os integrantes da facção no poder, grandes e pequenos. A impunidade dos poderosos fez virulenta a corrupção e infectou a sociedade brasileira de alto a baixo, da direita à esquerda, em todos os estratos e profissões. Dentro da Organização, a rigidez aumentava. Alguns envergonhavam-se de continuar os trabalhos acadêmicos – precioso tempo dedicado à carreira pequenoburguesa, menosprezo pelas carências do processo revolucionário brasileiro. Na própria Faculdade, alunos de cursos mais politizados recusavam textos desprovidos de engajamento direto ou indireto. Todos deveriam proletarizar-se. Certa vez Wilson, filho de família bem-posta, indignou-se ao ver Iara jogar no lixo a tampa de um tomate. Acusou-a de perdulária em ostentação, medo de parecer pobre. Tripudiava sobre as agruras dos trabalhadores. As companheiras também continuavam a criticar sua insistência no estilo antiproletário, imersa na Maria Antônia, banhada de solicitações. A postura, antiga, já inspirara um documento irado, que acusava Iara e Maria Lucia de líderes rebolantes da Maria Antônia. Contra-atacava sardônica, ao apresentar o nome de guerra: – Wanda... pausa, ligeiro ar de suspense: Com dáblio. – Amolavam Iara – diverte-se Quartim. – Ingênuos, queriam adotar até o aspecto exterior daquela força social cujos interesses históricos pretendíamos representar. Impassível, treinou pintar os olhos com traços verticais nos cílios superiores como ensinava o modelo da época, Twiggy. Caprichava na minissaia xadrez, blusa e correntes à Chanel, ou nos conjuntos safári, homenagem à companheira do Che. Apareceu de boina, sugestão de Bonnie e Clyde, a dupla glamourosa de assaltantes do filme premiado que aguardavam. – Iara só truncou o projeto profissional porque obrigada – supõe Renata, uma das que a atacavam. – Normalmente conciliaria os interesses. Militante, pois lançarase no compromisso político. E psicóloga, vida afetiva borbulhante, roupas bonitas. Era um mulherão. Amável mas nada de manteiga derretida. Enfática nas reuniões e assembléias, podia virar fera. 199

Houve ataques também por causa de dinheiro. – Pô, que briga homérica – defendeu-se Maryse. – Que é isso, de guerrilheira a mil por cento? Chatice! Eu dou quase 75 por cento do que recebo. Moro com meus pais. O que sobra, quero gastar. Não abdicaram. A imagem frívola de grã-fina a brincar de política, especialmente de Iara, corria. As alunas, entre excitação e medo, diziam-se “está gordinha”, à espera da resposta "é que toma pílula". Fazer revolução, sim. Vida sexual livre, complicado. No banheiro das moças perto do saguão afixaram um papel. Quem desse o passo heroico inscrevia o nome, como troféu. Iara ajudava a quem pedia orientação. – Tenho uma ginecologista legal, sem preconceitos, que receita pílula. – Os rapazes provocavam as meninas mais jovens nas reuniões: você acha que virgindade é importante? Então, o que está esperando? Foi ruim para todas nós, pois tomamos decisões cerebrais. Depois viramos feministas recorda a educadora Yara Areias Prado.

Comício, maio e mãe Carrar

SÁBADO DE MADRUGADA, 20 de abril, uma bomba explodiu no jornal O Estado de S. Paulo. Potente, abalou a vizinhança. Estilhaços feriram o porteiro. Imprensa e autoridades, vacilantes, não excluíram a autoria de elementos direitistas, inclusive civis interessados em aumentar o clima de insegurança1. A Organização preparava-se para confrontar o regime no comício de 1° de maio, na praça da Sé, e uniu-se ao Agrupamento de Marighella, aos líderes de Osasco e à AP. Inseriam-se nos protestos mundiais de operários e estudantes na França, Alemanha, Estados Unidos, Japão. – O planeta quer socialismo. Os guerrilheiros das Forças Armadas de Libertação Nacional chegaram a 300 quilômetros de Caracas. Os países mais

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O Estado de S. Paulo, 21.4.68 e 23.4.68: "Grupos mais exacerbados teriam ficado desgostosos com os episódios da crise político-estudantil(...) setores responsáveis das Forças Armadas ressaltam também que os atos terroristas não podem ser imputados aos grupos de extrema esquerda, embora reconheçam a existência dos grupos exaltados entre os dissidentes do Partido Comunista, especialmente os filiados à linha chinesa...” Nesses dias, o Exército comunicou o afastamento do coronel-comandante responsável pelas torturas nos irmãos Duarte. Divulgar as investigações fora vitória de uma facção dos oficiais. Queriam provar que as sevícias não ocorreram na Vila Militar e sim num quartel sobre sua jurisdição.

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disparatados condenam a guerra no Vietnã, a ditadura grega, os grandes capitais financeiros, o baixo nível de vida. A manifestação, peça das articulações operárias que projetavam greve geral em outubro e novembro, meses do dissídio de categorias importantes metalúrgicos, bancários pretendia ainda solapar a força dos pelegos encastelados no MIA. Nutriuse o plano na greve de Contagem2, vizinha de Belo Horizonte, que chegou a somar 16 mil grevistas contra demissões, salários rebaixados, falências de pequenas empresas, atraso nos pagamentos. Costa e Silva, temeroso de que se alastrasse, concedeu 10% de abono. Inédito: o ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho, foi a Belo Horizonte negociar. A presença do governador3 na praça da Sé garantia divulgação nacional aos protestos. Mal aconselhado e sob grande pressão de Brasília, não podia recuar; reconhecer o desacerto arranhava seu prestígio. Ótimo, os companheiros de ficha limpa despejariam da tribuna. Microfones capturados, dariam o “verdadeiro conteúdo proletário do 1° de maio"4. A protegê-los, cerca de 30 operários da equipe de choque. Falhasse a tomada do palanque, falaria José Ibrahim, 28 anos, com a diretriz de sumir na clandestinidade. Demonstrariam à massa trabalhadora a disposição combativa dos companheiros dirigentes. Iara e Maryse integravam um dos vários núcleos dispersos entre cerca de 20 mil pessoas, a segurar faixas: "Abaixo a ditadura", "Morra o imperialismo”, “Abaixo o arrocho salarial", "Sindicatos livres, direito de greve'". – Lembro dela no comício – rememora Maryse. – Calçamos sapato baixo para correr, na cabeça o esquema da fuga. Vestíamos a fardinha Che Guevara: saia de lonita bege ou esverdeada, blusão cáqui. Assim que o governador surgiu no palanque diante da catedral, a multidão desabou em vaia e gritos: "Operário sim, pelego não", "Fora com os assassinos”. Sodré usou o microfone: "Esta é uma prova evidente de que em nosso Estado a democracia respira." Nesse momento, o grupo de choque cortou o som5. Das "alas

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Jacob Gorender, obra citada (cap. 20). Carlos Castelo Branco, obra citada (1.5.68): Considerado "político demasiado pressuroso, que, na urgência de abrir o seu caminho, chega a comprometer o que não pode ser comprometido". 4 José Ibrahim, em Los Subversivos (obra citada). 5 Jacob Gorender, obra citada (cap. 20): “Na primeira fila, frente ao palanque, o próprio Marquito, junto a companheiros da ALN.” Valioso militante de Marighella, foi morto em 28 de janeiro de 1969 na queda do seu aparelho, ao enfrentar os policiais. 3

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armadas" choveram pedaços de pau, ferro e pedras. Um objeto feriu-o na testa e causou sangramento. "Vocês estão querendo é uma ditadura totalitária... este sangue garante a liberdade... os agitadores não ficarão impunes advertiu, quase chorando. Só as pessoas próximas ouviram. Às pressas, conduziram-no à igreja. Estudantes e operários gritavam nos megatones. Um coro de vozes repetia: "O povo organizado derruba a ditadura." Incendiado o palanque, grupos saíram em passeata. No trajeto ergueram cartazes: “Mais pão, menos canhão", '"Morrer lutando, sim, e não de fome". Nem as pedras no edifício da polícia marítima induziram a repressão a reagir6. Obedecia às ordens do governador a quem o general Carvalho Lisboa, comandante do II Exército, apoiava. “Sodré foi envolvido pelos agitadores e pensa que é herói. Que a lição lhe sirva de exemplo” feriu Ibrahim Sued, cronista da ditadura7. No Congresso, o compromisso do governador com as “franquias democráticas e a redemocratização" recebeu elogios8. – Sorte a polícia não ter feito zebragem – celebrou Iara, aludindo à técnica de colocar fileiras compactas de policiais à paisana entre os manifestantes, na frente e atrás. – Está na cara, foi para estrepar o Sodré. Ainda por cima deixaram o homem falar primeiro. Alguns temiam ser reconhecidos. – As teleobjetivas funcionaram sem parar dos prédios9. A gente atrapalhar os fotógrafos de jornais foi uma gota d’água. – Vocês querem furar a canoa, fodem o melhorzinho – acometeram os comunistas na Faculdade. – Papo de frentista. O homem é interventor da ditadura, identificado com o regime, inimigo do povo e portanto inimigo nosso. Aliás, quando concorreu nas eleições de 1961, perdeu. Não representa lhufas.

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Folha da Tarde, 2.5.68: 22 prisões no final, incluindo jornalistas em serviço. A um deles o governador, destemperado, acusou: “É um canalha, um porco, um cínico”. 7 Folha da Tarde, 2.5.68. 8 Carlos Castelo Branco, obra citada (7.5.68). 9 O Estado de S. Paulo, 3.5.68. “O governador enfrentou um risco calculado(...) O primeiro tento(...) foi o de se haver preparado para documentar(...) (Alguns) já viram o filme tirado do alto da catedral... (pretendiam) lançar a polícia(...) contra os trabalhadores... e arranjar(...) um cadáver paulista(...) hoje os órgãos de segurança conhecem (de) filmes e fotografias, todos os componentes do grupo radical(...)”

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Estavam satisfeitos. De prêmio, Espinosa entrou na Organização. Os outros militantes de Osasco ainda viviam o dilema que cindiu a POLOP. Frustrava-os o trabalho vagaroso de conscientizar operários. – Não é a multiplicação de ações que cria a dinâmica social. Ao contrário. Perdemos a visão materialista da História – sustentava Quartim. A extrema direita aproveitou o 1° de maio para demolir o "diálogo" de Costa e Silva. Só a tutela militar, de "interrogatórios", funcionava10. Em Belo Horizonte, um estudante de Engenharia tentara suicidar-se no quartel para escapar a eles. Dia 30 de abril houve protestos de universitários contra essa prisão e as torturas. Detenções sucederam-se. Um deputado da ARENA, Dnar Mendes, teve problemas em obter a transferência do filho Raimundo, presidente da UEE mineira e com pneumonia. Estava numa cela onde corria água. O coronel objetava: "Mas o rapaz não colabora.”11

Fácil igualar o CRUSP à luta nos alojamentos universitários de Nanterre. Os estudantes franceses aboliam a segregação sexual, rejeitavam o autoritarismo, a sociedade formalista em decadência, o ingresso seletivo a favorecer os burgueses. Pugnavam por liberdade e democracia. Universidade Crítica – meio de reflexão antes de tudo, objetivos profissionalizantes em segundo plano. O movimento generalizou-se em maio e a ocupação do sacro edifício da Sorbonne atingiu a alma da Maria Antônia, filha da cultura francesa. Milhares de estudantes nas ruas de Paris, barricadas, a guerra dos paralelepípedos. Ruas rebatizadas de Vietnã Heróico. Bandeiras vermelhas e anarquistas em monumentos históricos. Hinos contestatórios, Le bon Dieu dans la merde, todo poder é maldito. Grafitis, indignação. Gozar sem limites. Abaixo a hipocrisia, massificação – violências mascaradas. Para sempre abominados o stalinismo, regimes autoritários, velhos heróis. Nenhuma alienação. Essência. É proibido proibir. Jogos de amor, novos heróis. Ho Chi Minh. A ofensiva do Tet prossegue desde janeiro, Saigon é um inferno há quatro dias, fotos horrendas, a mulher grávida de ventre furado a bala, mortos 10

Há como que um entendimento tácito entre o extremismo da esquerda e o da direita. A agitação promovida por um desses pólos é aproveitada pelo seu contrário, de vez que ambos têm o mesmo desejo de fazer ruir a legalidade, embora para alcançar objetivos finais diferentes”. Carlos Castelo Branco, obra citada (3.5.68, citando uma observação de Pedro Aleixo. 11 Carlos Castelo Branco, obra citada (7.5.68).

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empilhados nas ruas, crianças atiradas nos caminhões em fuga. O vietcong avança, americanos bombardeiam. Contestação permanente, Cohn-Bendit expulso da França. Indesejável judeu alemão, somos todos judeus alemães. – A organização revolucionária é fruto da Revolução: Rosa Luxemburgo – referiam. – A questão é aproveitar o momento. O Paquistão, a Espanha de Franco, os Estados Unidos arejam. Sobre Bonn marcham 25 mil, há greves operárias, luta armada. Usar inteligência, o ensinamento dos mestres, intuir. Imaginação e o potencial do poder jovem, justo e limpo. Intelectuais e rebeldes franceses incumbemse de despertar o proletariado e a classe média, sutilmente tiranizada em papéis rígidos pela aliança tecnologia-produção. O maio francês pretende varrer a submissão da cultura aos interesses do capitalismo. Algo de anjo mensageiro na moça de lábios cerrados, carregada no ombro de um dos 500 mil a cantar a Internacional nos boulevards parisienses, ereta, dona do futuro, a bandeira erguida. Marianne rediviva. O símbolo da Revolução Francesa a desfilar o rosto laureado nos selos e moedas. – A França socialista destroça o Velho Mundo. Anarquiza o marxismo fossilizado como diz Sartre – extasiava-se Maryse. A peça do TUSP estreou na segunda semana de maio. Trágica a cabeça envolta em estopa, capote negro, a mãe dolorosa se arrastava com o filho morto na alucinação de ressuscitá-lo. Mas esconder-se não protege. Um caminho apenas: desenterrar os fuzis e combater. Mães dolorosas erguiam-se no meio da platéia batendo as matracas. Nous sommes tous concernés. A peça talava diretamente da luta armada. Iara substituía mães-Carrar ausentes e elogiava a atriz Rose Lacreta no papeltítulo. – Você está linda, grande conteúdo. No jantar depois do espetáculo comentavam os fatos do dia. – Onda de ameaças. Tropas de choque. Brucutus no centro de São Paulo. – São inúteis em ruas movimentadas. – Nada pode com o povo decidido a derrubar um opressor. O Arco do Triunfo cheio de bandeiras vermelhas parece uma revolução mundial. – O PC francês tem horror a socialismo. Não engole o Comitê Revolucionário Estudantil, muito menos a idéia de ocupar fábricas e compor conselhos operários. Essa de pedir aos estudantes que se afastem da Renault, senão os patrões chamam 204

a polícia, extrapola. O PC é linha auxiliar do capitalismo. Só participou da passeata para não ficar de fora. – O povo na rua é bonito mas o que vale são os fuzis. As Forças Armadas Rebeldes, lutando na Guatemala. – Gostei foi do Meira Mattos. Nada como definir-se. Deixou o ministério da Educação, é o novo inspetor geral das PM – pinçou Iara. Todos riram. Aproveitou as aulas de maquilagem do TUSP. Cobria vagas na diretoria, se necessário. Ajudava nas finanças. – Teatro alcança um número maior de pessoas, mas pintura é importante também – concedeu no ateliê de Tozzi, sentada na mesa, mais confortável que os banquinhos e almofadas por causa do vestido justo, cintilante. Programara uma festa, de passagem levava o quadro à exposição que levantaria dinheiro. Valioso o trabalho do amigo, espalhado no porão de dura salas, pé direito baixo. Desenhos para publicações clandestinas, Guevaras, passeatas onde colocava silhuetas de pessoas queridas; ela mesma, José Dirceu. – Cê tá virando tropicalista? – ironizou ao ver Caetano Veloso e o papagaio. A discussão estava no auge. Boal redigia seu Manifesto Antitropicalista, a divulgar na Feira Paulista de Opinião, em junho, no Teatro de Arena. É neo-romântico, injuriava. Agride o predicado, não o sujeito. Quer destruir a cafonice endossando-a. Alimenta-se dos repolhos que Chacrinha atira no seu programa de tevê sobre o auditório. Copia os óculos de Lennon, o Living Theater. É importado, gentil e encanta os burgueses. Heleny morava agora num sobrado no Brooklyn Novo, rua das Acácias12. Iara descansava no sofá da sala, olhos nas plantas visíveis através da janela basculante. A amiga dirigia os ensaios de Jorges Dandin, o Marido Enganado, no teatro de Santo André, cenário e figurinos de Flávio Império. Iara foi à estréia. – É uma farsa que faz a gente sentir um tremendo mal-estar enquanto ri das desgraças do sujeito. Estrepam-se os insatisfeitos sem consciência de classe. Jorges Dandin, atualizado no século, é quase uma tragédia. Entrou no Belas Artes vestindo o abrigo da moda, um poncho, para ver A Chinesa, finalmente liberado.

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Chamou-se depois rua Pássaros e Flores.

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– Confesso que achei chatérrimo – ousou, na hora do chope, enquanto admirava a recém-inaugurada segunda pista na rua da Consolação. – Verborréia. As caras de cinema-verdade, que tédio! O drama da juventude idealista, a célula que pretende atingir a nação, o revisionista expulso, até o suicida. Quase dormi. – O Marcuse acha que a França está vivendo o espírito da Comuna de Paris outra vez. O marxismo nunca esteve tão forte. – Sei não. Aumentaram o salário mínimo, negociam. De Gaulle ameaça intervenção do Exército. – Aí é a guerra civil. Tanques e tropas em Paris, 300 mil na rua apoiando o marechal, retorno paulatino ao trabalho. Maio terminava. Em Rudge Ramos, Grande São Paulo, um assalto a banco rendeu aos cinco jovens assaltantes, bem treinados, 80 milhões de cruzeiros velhos. No grupo de Iara torciam pelo sucesso e duvidavam do caminho. Roubar, comportamento alheio demais, chocava. O namoro com Quartim começou a ratear. Os problemas se agravaram no dia em que ele viu Maryse no apartamento de Iara. Nada que chamasse a atenção. Magra, cabelos até a cintura, jeito infantil. Encontraram-se outra vez numa defesa de tese. Convidou-a para o chope. Menos sentimental e exigente que Iara, parecia mais adaptável, "muçulmana" – família de judeus egípcios emigrada em 1958 depois da crise de Suez. Sentia-se dividido. Desejava borboletear mas tinha o sentido do compromisso. Iara pressagiou mudança. Certa noite, quando Quartim veio buscá-la no seminário de marxismo para os economistas ligados à Organização alguns ganhariam notoriedade no futuro – cobrou-lhe a pouca assiduidade. Caminhavam na Angélica. – Uma briga de namorados. Fui meio calhordoso, irônico. Queria evitar a tal explicação famosa, inclusive porque um dos participantes do seminário vinha junto. Nossa conversa aludia a circunstâncias e sentimentos que o rapaz não entendeu, embora percebesse algo de errado. Discussão conjugal no mau sentido, venenos cruzados, agressões baseadas em referências comuns. – Assim não dá – encurralou-a. A mensagem, inequívoca, feriu-a fundo.

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-Tentei ridicularizá-la, esvaziar seu desejo. Fácil vencê-la nos conflitos. Iara brincava com palavras mas não sabia utilizá-las para golpear como eu, malicioso, meio sacana. A grande probabilidade de encontrar os dois ocorreu no bar em frente à Faculdade. Aproximou-se da mesa dosando a voz melíflua, o propósito de marcar território. – Quero conversar. Pode ser? Tergiversou. Melodiosa, agrediu: – Ando louca pra dormir com você. Maryse fingiu-se ausente. Quartim, sem graça, emudeceu. Apegado às duas, tentava manobrar. – Eu não conseguia, entretanto, ser totalmente imune à culpa. Os companheiros, todos mais jovens, passaram a fiscalizá-lo. – Digam quantas é permitido ter – rebateu durante a reunião de crítica. Debochava da crispação revolucionária, portadores intolerantes de um ideal distinto. Observou que evitavam apresentar-lhe companheiras. Transformara-se em barbaazul. Ainda assim procurou namorar as duas. Iara manifestou cIaramente o desgosto. – Magoada, me deu o xeque-mate. Nesse sentido, o vínculo não terminou. Pouco depois de assassinado o senador Robert Kennedy em Los Angeles, candidato à presidência – vítima da violência que inunda os Estados Unidos, fruto do Vietnã, expôs a Organização – Quartim tornou-se coordenador geral e Iara decidiu esquecê-lo. Droga, continuo apaixonada, e quer saber? – desabafou. Chega desse modelo que proíbe o ciúme e minimiza sentimentos. Artificial e mentiroso. Maryse pensa que é a coisa de posse, perder um troço que foi meu, líder com doutoramento na França. Algum crime? Gosto de boas cabeças, igualzinho a ela. Claro que tem auto-estima, uma big rejeição. Mas em primeiro plano é o João, a gente perde pedaço, vai ficando aleijada – chorava, desarmada. Vazio, uma impotência de base. Bom, leite derramado. Vamos pra outra. – O hábito de todos se namorarem, aquela mania de vida comunitária prejudicou a cabeça de muitos. Machucava, Iara sofreu uma enormidade – percebeu Elias. O clima entre as duas azedou-se. 207

– Cê acha que tá certo? – Pô, Iara, você não acabou com o cara? – Aconteceu de almoçarem na minha casa – relembra Walnice Galvão – Iara, educada, cuidadosas maneiras à mesa, serviu-se e deixou o melhor pedaço para Maryse. Mas quase se digladiaram. Um dia, ao sair da Faculdade, Iara agregou-se a algumas pessoas que conversavam com o casal na calçada. A um comentário de Quartim, opôs-se. – Uma heresia às leis hierárquicas – salienta Lourdes Sola. – Dependendo do interlocutor todos se encolhiam. Ela não dava a menor pelota, metia-se na conversa, jeitosa. Certa vez me disse: "Deu vontade de comer seu marido depois de assistir à aula dele." Iara entrava pelos poros. Engraçada, simpática, vital. Fizeram pouco da opinião. – Senti como se batessem num animalzinho frágil, para massacrar. Iara, que não ativava truculência, virou as costas e partiu. Eu dizia que as moças misturavam os homens fingindo passividade, um faz-de-conta pouco saudável, típico de ambiente pequeno. Como sou ítalo-espanhola, brincava: "Prefiro a facada, de outro jeito faz mal às pessoas." O apartamento de Carlos Henrique e Marina era uma espécie de ponto de encontro. As pessoas saíam do cine Belas Artes ou bar Riviera e bastava virar a esquina. Um grito, assobio e atiravam a chave. Volta e meia alguns visitantes retraíamse em conversa sigilosa. Havia certa encenação – excitante possuir segredos, insinuar poderes. Não raro, Iara inventava programas. – Vamos ouvir harpa paraguaia hoje? Adoro. Ando louca por alguma cafonice. A sós, vinham assuntos pessoais. Queixou-se a Marina da solidão, o desejo de ter filhos, um companheiro. Viajavam nos fins de semana. Em turmas grandes foram a Parati, Caraguatatuba. – Precisamos sair um dia, não tem jeito – sorria, ante as pirraças de Carlos Henrique. – Tô vendo, é o destino. Ao observá-lo pela primeira vez na praia, provocou risos no grupo. – Olha, não quero mais nada com você. De calção você é muito feio.

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A porta do banheiro na casa de Caraguatatuba não fechava. Uma tarde, Marina ausente e Iara no chuveiro, Carlos Henrique divertiu-se em abrir a porta. – Socorro, Albertina, olha o que ele está fazendo! – chamava pela amiga, sempre junto nas viagens. Só ela, para uma brincadeira dessas. Também a abraçavam mais do que às outras, no que eram retribuídos. Marina absorvia os gracejos. Iara, estilo desprendido, não se encaixava nos estereótipos. – Singela, honesta, espontânea – atribui Carlos Henrique. – Nenhum lado grosseiro, cafajeste, de mulher que usa o amor. – Sexo é uma forma de linguagem – definia Iara. – Dá um calço momentâneo, sentido no desenho casual do caleidoscópio. Atravessa o grande precipício. Confuso, um dia Carlos Henrique abordou-a. – Vamos jantar e resolver. – Claro – acedeu. E nunca foi.

A censura exigiu 84 cortes para a estréia de O que pensa você do Brasil de hoje?, tema da Feira Paulista de Opinião. O elenco declarou-se em desobediência civil e "guerrilha teatral". Um grupo saiu do teatro interditado rumo ao Arena, a polícia atrás, enquanto encenavam a peça no Maria Della Costa. Ameaçados de cadeia, os artistas convocaram os estudantes à porta do Teatro Ruth Escobar, novamente enganando a polícia – faziam a montagem em Santo André. O povaréu enchia a pracinha quando prenderam um jovem loiro, barbudo; colocava coquetéis molotov na perua da Polícia Federal. – Vocês viram uma bomba? – berrou o deputado Fernando Perrone, do MDB. – Não! – devolveram. Inútil. Eduardo Abramovay, 18 anos, irmão de Miriam, foi preso com o pacote que, na verdade, alguém lhe passou ao deparar a polícia. Naquele mesmo dia fora assaltada outra agência bancária. Notou-se a metralhadora INA, uso exclusivo das Forças Armadas. Os jornais não aventaram a responsabilidade; sabia-se, entretanto, que o grupo de Marighella era o mais ativo.

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O incidente acirrou a oposição dos Abramovay ao namoro da filha. Não queriam saber de política, e os irmãos Iavelberg a desencaminhar os filhos. Miriam defendia Melo. Pressionada, culpava Iara. Recomeçava também, pleno mês de provas, a mobilização nacional contra a metamorfose das universidades em fundações pagas. Na Guanabara, manifestantes dispersos entre os carros viraram uma caminhonete da polícia e procederam à invariável quebra de vidros do City Bank. Houve repressão violenta. Na Maria Antônia os estudantes exigiam paritárias e picharam as paredes da reitoria. O diretor ameaçou demitir-se; o crescente radicalismo revoltava-o. No dia seguinte saiu a passeata permitida por Sodré. Ao mesmo tempo os artistas combinaram com os estudantes da Filosofia encontrar-se em frente a O Estado de S. Paulo para devolver as estatuetas do prêmio Saci – um editorial defendera a censura, atacando dramaturgos da Feira Paulista de Opinião. – Tem hora que tudo explode – agitou-se Iara, em visita ao Centrinho para debater planos que minassem a posição de Anita Cabral. – Reivindicações operárioestudantis e estado de sítio no Uruguai, risco de golpe. Na Argentina, cento e tantos feridos e 50 presos na passeata do cinqüentenário da autonomia universitária. Ao menos a reforma universitária avança no Chile. Os alunos de Psicologia decIararam greve e invadiram as salas de aula. Lacrada a diretoria do curso, penduraram uma faixa à entrada: “Psicologia em reestruturação". Exigiam melhores instalações, vagas, o afastamento da diretora, o fim da cátedra e em seu lugar o departamento, de cuja direção participariam. – Dona Anita não está capacitada – explicou aos jornalistas13 Elias, agora presidente do Centrinho. – Uma cátedra só pode ser ocupada por professor-doutor que defenda tese de livre-docência. Dona Anita é contratada. Fica lá porque a Congregação é composta de antigos mestres que se protegem. Os professores da Psicologia resolveram cumprir sua parte nas pendências com a diretora. Acusavam-na de amedrontar, impelir interesses de um contra outro, ser hostil às paritárias. Bastaria impedir a renovação do contrato, efetuada a cada dois anos. Recontavam-se histórias dela: acusava um "trio judaico" – Regina Schneidermann, Isaias Melson e Arno Engelman – de conspirar contra ela. Ameaçara atirar num deles. "Maluca", resumiam. Maria Helena Steiner e uns poucos a apoiavam. 13

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Consumada a invasão os professores deram o próximo passo, marcando uma conversa em casa da diretora. Desejavam convidá-la à assembléia em que discutiriam a greve e as projetadas alterações. Parecia viável democratizar, abrir a Congregaçāo, estabelecer um clima europeu no nicho da Maria Antônia. Iara, que mal começava a lecionar, compareceu. Lá estavam quase todos. Anita Cabral, roupas sóbrias de sempre, tinha a postura rígida – um coronel de saias, xingavam. Acomodando-se nas cadeiras insuficientes, acanhados, alguns insinuaram a questão; o mal-estar convertia-os em crianças de calças curtas. Iara, incapaz de suportar passivamente a tensão, papel de vanguarda na cabeça, interveio. Subjacente, o impulso de mostrar-se incorruptível – no começo do mês a professora indicara-a como substituta de Orientação Profissional14. – Viemos convidá-la à reunião de amanhã – atirou. – Pretendemos mudar a estrutura do curso, no quadro das paritárias. O desplante petrificou os demais. – Iara, a última pessoa autorizada a falar, antecipou-se e veio com tudo – testemunha Anna Veronica. – Nem devia estar lá. Não representava o Centrinho ou lá o que fosse. Procuração, só da cabecita dela. Não conseguia ficar de fora. Eu me escandalizei. Seja como for, deixou dona Anita meio avisada. Para dizer a verdade, arrependo-me até hoje do nosso golpe baixo. Refeito da ingerência, o grupo mexeu-se. – Queremos mais democracia – explicitou alguém. – Depois de mim o dilúvio. Vocês se arrependerão. No dia seguinte, registrada a desaprovação da véspera, Iara permaneceu quieta. Sabia-se despreparada para o debate que travariam. Anita Cabral, corajosa, deixou-se derrotar na eleição que escolheu a chefe de departamento15. Maria Helena Steiner, sonora, votou a favor da diretora. Vaiaram. – Um ano de triste memória. Não havia idealismo, só luta pelo poder – interpreta ela. – Mas quando os professores começaram a ser detidos, tudo mudou. Não me esqueço e lamento ser dura com colegas e alunos. A maioria se arrependeu, voltou, fez pós-graduação. Foi um momento de exaltação.

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Recusada porque a legislação vedava substituição de extranumerários (contratados pertencentes ao quadro efetivo de funcionários). 15 Carolina Kartuscelli Bori.

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Anita Cabral transferiu-se para o curso de Pedagogia a convite de amigos. Os professores de linha conservadora retraíam-se. Os progressistas deram legitimidade à experiência da reestruturação e debates sobre a idéia da Universidade Crítica. – Capazes de compreender a realidade brasileira, nossos profissionais serão críticos da própria Universidade, hoje instrumento de dominação da classe dominante. – Mas esse é um aspecto a destruir. Então invalidamos a Universidade? – Descobriremos. O caminho se hace... – O Zezinho e a Mariazinha precisam ganhar a vida ensinando no segundo grau. O que fazer com eles? Escola Normal melhorada – Você está querendo que eles se profissionalizem em nível baixo. Para uns, Universidade Crítica. Os outros, aulinhas. É injusto – questionou Iara. – Certo. Mas o Zezinho acha um suplício aprender muita teoria, coisas complicadas. Você mesma disse "Ai, precisa ler tudo isso?” quando participou do seminário sobre O Capital. Só se a gente dividisse o curso em duas turmas: pesquisa, crítica, doutoramento; e os profissionalizantes. – Voltamos aos dois níveis. O MEC-USAID quer isso: formar técnicos acoplados às empresas. Os debates enraizaram a abordagem da problemática nacional. Mas distanciaram-se da maioria. Quem buscava diploma e lugar no mercado de trabalho recebia o rótulo de alienado. A peça Roda Viva, cenários e figurinos de Império, 200 apresentações no Rio, chegou a São Paulo. Bandeiras vermelhas, a Internacional, faixas a defender o amor livre.

Mocinhos, bandidos

EM OSASCO, os operários mobilizavam-se. Queriam precipitar a greve contra o arrocho. Nas ruas, estudantes e professores secundaristas afluíam aos protestos contra a política educacional do governo e a repressão. Iara admirou a fotografia, no jornal, da professora de História do Colégio de Aplicação que seus ex-alunos do cursinho elogiavam, a bela Susana Sampaio: braço erguido, discursando sob a chuva1. 1

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– Legitima a luta. – Deduragem do fotógrafo. No Rio, a violência culminou no protesto de 21 de junho, a sexta-feira sangrenta, quando até o reitor da Universidade Federal sofreu cacetada. Quatro mortos, dezenas de feridos, centenas de presos, A repressão visava afrontar o governador Negrão de Lima que, a exemplo de São Paulo, permitira a passeata e a assembléia no campus2. Aprofundavam-se a divisão militar e as pressões sobre o marechal, presidente. A linha dura classificou de "ignominiosa, uma vergonha para a Justiça Militar" a anulação da sentença condenatória de um professor mineiro acusado de subversivo. A Organização declarou o momento oportuno para iniciar as ações: havia base popular. E planejou tomar do Corpo da Guarda do Hospital Militar do Cambuci, num sábado tranqüilo, fuzis-metralhadoras FAL3, grande ritmo de tiro, padrão da NATO. Apesar das discordâncias, as bases cooperavam nas práticas. Uma questão de sobrevivência – ressalta o ex-sargento Darcy Rodrigues4. Espécie de rito de iniciação, convocaram Quartim. Obedeceu, sem abstrair o risível. – Brincadeiras tardias de mocinho e bandido. Praticante de pugilismo, recebeu a incumbência de derrubar com um soco a sentinela, se reagisse. Evitariam mortes. – Aprender a usar a mão era ponto doutrinário de um ex-sargento. Até que estava certo. Felizmente não foi preciso. O menino, 18 anos, chorou: "Não me mata." Vinha do quartel o ensinamento, reforçado pelo recente sucesso coronel Cesar Montagna, cujo tapa desarmou a sentinela do quartel-general da Artilharia da Costa, no Rio, dia 19 de abril de 1964. O comando, dez ou 12 militantes divididos em três grupos que trajavam fardas de oficial e soldados, dominou a pequena guarnição e fugiu com nove fuzis nos carros "desapropriados". Todas as saídas rodoviárias da cidade foram fechadas para tentar a captura5. O general Lisboa ameaçou responder no "estilo caboclo" e o secretário da

“Não vou cumprir nenhuma ordem de Negrão de Lima", afirmou o secretário da Segurança da Guanabara, gal. Luís de França Oliveira. Folha da Tarde, 21.6.68. 3 Fuzil automático leve, fabricação belga. 4 Depois do exilio, assessor da prefeitura Bauru (SP). 5 O Estado de S. Paulo, 23.6.68; "Armas para la revolución", em "Los subversivos", obra citada – relatos de José Ronaldo Tavares de Lira e Silva e Pedro Lobo de Oliveira. 2

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Segurança, Hely Lopes Meirelles, esclareceu tratar-se de um grupo mínimo de terroristas, aproveitadores do movimento universitário. Em Brasília, alterado pelo progresso da união das oposições, o governo cedia à tendência de radicalizar pela força. – O general Lisboa chamou-nos de covardes porque assaltamos o hospital, lugar de doentes. Mentira, armaram aquilo como uma fortaleza. Desafiou-nos a assaltar quartéis. Não precisou de mais nada para planejarmos a ação no 2º QG – nota Renata, uma das participantes6. Na Organização, crescia a luta interna que apelidavam marxistas versus milicos. – Um grupo de guerrilheiros gera o foco que catalisará a insurreição. Correm por despenhadeiros, matas e cordilheiras. Essa forma de atuar está ao alcance do proletariado? – argumentavam marxistas. – Operários e o povo em geral nos apoiarão nas cidades, com novos recrutamentos e expropriações bancárias. Quartim, convicto de que os assaltos voltariam a população contra os revolucionários, mas inseguro quanto aos caminhos, provocava: – É uma existência meio mafiosa. Insistia em levantar fundos através de iniciativas legais, o que integrava a cultura original da Organização. Associaram-se a uma escola para crianças de classe média. O TUSP promoveu dois ou três shows de artistas no teatro Maria Della Costa. Pintores continuavam a doar quadros. Lucia Sarapu ajudou a implantar um cursinho em Santo André, onde estudaria o futuro militante Shizuo Ozava, o Mário Japa, que conheceu Iara de vista no movimento estudantil em 1967, ainda na POLOP e estigmatizada pelos grupos rivais como "mulher fácil". Impressionava-o sua personalidade à frente de assembléias e passeatas. Iara e Melo concordavam com Quartim. Igualmente rebatiam, interpretação literal de Debray, que qualificava de oportunismo a quer trabalho político antes do estabelecimento da guerrilha. – Só valem a preparação militar e logística – asseveravam militaristas.

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Thomas Skidmore, obra citada (Cap. 4: "Surge a Guerrilha'"), comenta o episódio: "Mordendo a isca(...) deram um exemplo de como podiam afastar-se de seu objetivo longo prazo, correndo o risco de identificação, captura ou morte."

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– Abandonar o processo concreto da luta de classes levou ao desastre de Guevara na Bolívia7 – retorquiam. No dia em que os artistas devolveram o prêmio Saci, uma bombe explodiu em casa do presidente da fábrica de sorvetes Kibon, sem machucar ninguém. "Fora americanos", gritava o panfleto. Era uma sexta feira. Os estudantes da Filosofia assumiram o prédio e montaram barricadas na Maria Antônia, revoltados. Uma nova lei feria a autonomia universitária, permitindo ao governo decretar recesso nas escolas. Alguns professores pernoitavam com os alunos, frágil proteção, abo. no do movimento perante a polícia e os mackenzistas agressores, em especial o CCC. Quando a imprensa esqueceu o protesto, os estudantes decidiram sair em passeata. A Organização escolheu-a para realizar a segunda investida, segura de que os universitários, além das reivindicações específicas, haviam assumido o papel de vanguarda oposicionista. Substituíam os políticos ameaçados de cassação. Sodré, que permitiu a passeata – "As manifestações são mais profundas que simples manobras de subversivos" – novamente encolerizou setores militares radicais. Os militantes, armados de paus e pedras ocultas, desta vez enfrentariam a polícia. Um treino precioso. Chegara o momento de acirrar as contradições, exacerbando as agruras populares. Em cada luta reivindicatória caracterizariam o governo como ditadura, provando impossível a solução dentro do capitalismo8. Junto, a intenção de habituar o povo a turbulências: apesar do medo a luta era viável.

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João Quartim, artigo citado. Miguel Urbano Rodrigues publicou nessa época (junho de 1968) seu livro Opções da Revolução na América Latina (Ed. Paz e Terra), angustiado com o rumo foquista que tomavam as esquerdas. Nele advertiu contra o exemplo da revolução cubana, lembrando a origem burguesa de Fidel Castro e o apoio a ele conferido pela burguesia urbana: "É importante recordar que, decorrido ano e meio sobre a tomada do poder pelos homens do 26 de julho(...) tudo ainda eram interrogações. Quatro conclusões estão implícitas nesse fato: 1– O imperialismo participava da perplexidade geral sobre a guerrilha de Sierra Maestra e sobre a praxis revolucionária que se lhe seguiu; 2– A desagregação da ditadura de Baptista foi poderosamente acelerada pela adesão, primeiro sentimental e, depois, efetiva da classe média às forças que, no campo e na cidade, a combatiam; 3O processo revolucionário cubano foi extraordinariamente facilitado pela circunstância de, na fase subseqüente à conquista do poder, a burguesia, na sua quase totalidade, se ter revelado incapaz de compreender que ela representava uma ameaça mortal não apenas aos seus privilégios mas ao seu domínio como classe, 4– A indefinição ideológica (real e não simulada) de Fidel e de seus companheiros foi um trunfo decisivo para a marcha vitoriosa da revolução". 8 João Roberto Martins Filho, obra citada (Cap. V: "A trajetória da esquerda – Luta reivindicatória e luta armada"): A influência dos companheiros de origem militar se fazia evidente, como demonstra o documento da UEE de São Paulo de meados de 1968: "É preciso aproveitar a massa avançada, que participa de todas as manifestações do movimento estudantil, para fazer propaganda de uma organização clandestina no nível do movimento estudantil"; ou: "A ocupação de uma faculdade deve ser entendida segundo seu aspecto político-militar. Militarmente é incorreto ocuparmos uma faculdade. Isto porque o nosso inimigo conhece nossa posição, nossas forças, e é ele quem define as regras do jogo. Entretanto, pode-se desencadear uma ofensiva política que não nos deixe à mercê do adversário."

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Cerca de 700 universitários de faculdades diversas realizaram a passeata, divididos em turmas de dez estudantes no máximo, cinco no mínimo, um deles ligado à coordenação geral. Traçariam rumos inesperados, prejudicando a ação policial. Sob chefia do setor logístico os militantes da Organização compunham comandos de segurança e ataque. A caminhada começou na praça da República. O brado "Abaixo a ditadura!", de José Dirceu, as bandeiras do vietcong – vermelhas, a estrela dourada no centro – e as pretas anarquistas, à francesa, emocionaram Iara, agente de coesão. Durante toda a tarde pombos-correios iam e voltavam, dando instruções e locais de encontro. Nos panfletos lia-se que a luta de operários, professores e estudantes era uma só: vencer a ditadura e o imperialismo norteamericano. Foguetes juninos e litros de gasolina ocultos transformaram-se em coquetéis molotov sobre a secretaria da Educação no largo do Arouche, o estardalhaço impedindo que se ouvissem as denúncias de José Dirceu, trepado num carro, contra os acordos MEC-USAID, monótonas mas de referência indispensável. Na esquina da São João com Paiçandu, atacaram a farmácia do Exército. Ao anoitecer, luminosos a colorir as ruas, dois manifestantes transformaram um poste de ônibus em aríete para arrebentar a porta de vidro do City Bank. – A gente tomava impulso e ia. Fomos bastante fotografados – relata o economista Silvério Soares Ferreira. A façanha tornou-o e a seu parceiro Espinosa heróis do momento. José Dirceu quis concluir a passeata no Anhangabaú, porém o grito "Abaixo o Estadão"9 conquistou a maioria, dispostos a depredar o jornal na fase mais identificada à ditadura. No curso dos tiros, pedradas, tijolos contra vidraças e a entrada principal, seguidos de coquetéis molotov, um tira observaria, segundo declarou, metralhadoras ocultas sob os casacos escuros de dois manifestantes. São preparativos militares clandestinos, afiançou. O fogo incendiou os andaimes da ala danificada em abril e a polícia investiu. A tendência foi correr.

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– Vamos resistir – soou a voz de Iara. – Vamos usar nossa força. Vamos mostrar que não temos medo dos cassetetes da ditadura. Vamos responder à sextafeira sangrenta. Vamos ensinar ao povo como se enfrenta a repressão. – Muito corajosa. Acho que conseguiu manter o ajuntamento por certo tempo – comprova a psicanalista Betty Milan, na época aluna de Medicina ligada ao TUSP. A noite terminou na Maria Antônia. Empolgados, marcaram comíciosrelâmpago para o dia 27, confundindo a ambigüidade da repressão com a própria força. Obrigariam o governador a desvendar o rosto verdadeiro, neutralizando o prestígio que somava à custa dos estudantes. – Os militaristas têm alguma razão confiou Iara, orgulhosa | do próprio destemor, a calma extraordinária na hora do perigo. Observo-me de fora, um split; a opção se desprende, racional, e comanda alguém despojado de vontade. Feitiço sem vela, fecho o corpo. Adormeceu, Silvério na cabeça. Heróico, bonito, entusiasta da luta armada. Conhecia-o há um ano. Filho de pequeno empreiteiro português simpatizante do PC, estudava Economia na USP e pertencia ao grupo de Quartim. – Forte e cativante, ela mexeu comigo. Vestia minissaias. As pernas chamavam a atenção. Semelhante ao Hospital Militar, o ataque ao QG do II Exército não tencionava deixar dúvidas. Respondiam, competentes, ao desafio do general-comandante. Usaram os mesmos carros, chapas trocadas. Na perua, a dinamite roubada de Cajamar. Wilson guiou e lembraram-se de Yves Montand no caminhão explosivo do filme O salário do medo. – À entrada do QG ele arremeteu, saltou, feriu o pé. Nós o recolhemos e caímos fora. Não deu tempo nem de ouvir a explosão – descreve Renata. No dia seguinte, divertiu-se em escutar os colegas de trabalho comentando a explosão. – Era muito louco ter uma vida legal e outra clandestina. Um perito em explosivos garantiu que estudantes não possuíam precisão militar ou noções de tempo/queima-pavio, tempo/velocidade-carro, ondas explosivas e ondas de choque. Conclusão do general Lisboa: "São elementos teleguiados, os

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decaídos da revolução (o golpe de 64) que têm instrução nos campos de Cuba e China."10 A brutalidade que matou a sentinela Mário Kozel Filho moveu a opinião pública contra o atentado. Passeatas e comícios-relâmpago perderam apoio popular. A violência, além de assustar, chocava. Sem morte, talvez o saldo fosse positivo: quatro gatos-pingados escarneciam dos trabuqueiros arrogados em tutores da Nação. O Exército, em enterro de grande cerimonial, ocupou os jornais dias seguidos. "Meu caro soldado, vi na madrugada de ontem teu corpo estilhaçado pela armadilha vil...". A morte abalou um lado e outro, produzindo o mesmo estranhamento. As discussões na Organização foram ásperas. – Típica ação de propaganda armada – postuIaram militaristas, sentimento de poder. – Vitória lateral, todavia promissora. – Mereceram o atentado, não questiono. Mas morreu um coitado, inocente – entristeceu-se Iara. Acidente sem retorno, talude no precipício que às vezes se desenhava nas pálpebras escuras, antes de adormecer. – Que tinha o idiota de examinar o caminhão? Estava escrito "explosivo". – Não me consta que sentinelas tenham Ph.D. Sentiu que a brincadeira destoava de si, abatida, o companheiro furioso, um morto a empanar o brilho do feito. Costa e Silva permitira a passeata dos 100 mil na Guanabara; o Mackenzie ameaçava invadir a Filosofia, irritado com as barricadas. Iara e Silvério buscavam pretextos. Entrega de documentos, distribuição do jornal. Porém três anos mais jovem, inseguro, o rapaz não se arriscava a um contato maior. – Oh, portuga! – ria ela. – Pára com isso – implicava, associando o dito à fama turrona do português e receoso de que Iara só se interessasse por ele fisicamente. – Ah, mas você é portuga mesmo. A Filosofia continuava ocupada. – A USP é uma gota de liberdade no país amordaçado. Vocês deliram em esquizofrenia epidêmica – aguilhoavam alguns, deixando Iara fora de si. – O foquismo

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vai isolar e destruir os grupos armados. Idêntico ao vietcong acertando helicóptero americano. – O companheiro tem alergia aos fatos históricos. – Quem acha Cuba um exemplo? Ilhota da monocultura. O Brasil é enorme, tem classe operária. Vocês são é birutas. Afastou-se em silêncio. Sentia falta do TUSP, que apresentava a peça na Guanabara. Ainda por cima Sonia Haberkorn e o marido esperavam-na para uma aula particular; queriam entrar na Psicologia Enervava-a o jeito submisso de reivindicar espaço, as repetidas separações conjugais que remetiam ao seu casamento. Ainda por cima da grã-finalha e se chama Haberkorn, incrível. – Absurdo você se fixar em Psicologia, que estuda a subjetividade burguesa – estocava. – Só a revolução nos liberta. A gente deve se vincular à realidade e você já está nas Ciências Sociais. Sonia traduzia textos para a POLOP e dava cursos a secundaristas. Também marchava nas passeatas e escondia gente. Contudo, quando Iara pediu que instalasse uma pequena gráfica em sua casa, recusou-se. – Tenho medo – confessou. – Você é uma burguesinha assustadiça. Não pode ser quadro. Assentiu, mortificada. – Eu não queria ser assim mas Iara e seus amigos, a elite revolucionária, me categorizavam. Ela me parecia segura, destemida. E severa comigo. Dura. Sem complacência. Poucas aulas Iara deu ao casal, embora precisasse do dinheiro. Falhava. Uma tarde Sonia teve coragem de deixar um bilhete no apartamento, reclamando que pela undécima vez batia com o nariz na porta. – Você sofre de delírio persecutório – ouviu.

Dias depois da passeata, Silvério marcou encontro com Iara. Ela foi, contente com as notícias: 450 quilos de dinamite roubadas de outra pedreira. Um coquetel molotov no muro do Mackenzie – provocação? No curso de Ciências Sociais, debate sobre a prática da paridade. Bastaria um professor ao lado dos alunos para ganhar votações. 219

Silvério estava preocupado. – Desconfiamos de um novato no grupo dos economistas – disse, enumerando detalhes. – Parece tira mesmo. Vamos tomar cuidado. Caminharam para o prédio onde se reuniam e moravam alguns, na Consolação, abaixo do cemitério São Paulo. Ali Quartim dera os seminários que originaram o núcleo. Não havia ninguém. Recolhiam documentos, nervosos, quando a campainha soou. Pelo olho mágico Silvério viu o porteiro com três homens. – Polícia – cochichou. – Viemos namorar, hein? – E estudamos marxismo. Abriu a porta. Certamente acampanavam e os viram entrar. Chefiava a equipe Paulo Bonchristiano, delegado arrogante e de famosa brutalidade. – Cadê as armas? – Que é isso? Não estou entendendo nada – revidou Silvério. A tranqüilidade de Iara parecia total. Psicóloga a observá-los revolver o apartamento. – Vocês vêm com a gente. Apertaram-se no elevador. Na rua, verdadeiro cerco. Quatro policiais os acompanharam no camburão ao DOPS, que Iara abarcou como veterana. Separados, conduziram-na a uma solitária. Jornais para deitar-se m buraco, a latrina. Lembra o congresso da UNE, amainou-se. Primeira providência, um espaço interior meu. Ninguém entra, é minha da força. A senha: o que vem dos baixos não me atinge. Segunda providência: romper o isolamento, seduzir o carcereiro. De tocaia, a polícia trouxe os demais economistas, muito assustados. Nos dias seguintes, sem contato, Iara e Silvério responderam a interrogatórios. Estudavam marxismo, reconheciam. E namoravam. De fato havia um infiltrado, e na pista certa. Felizmente desconhecia as dimensões da Organização, vedado o acesso ao setor militar. Logo Iara ficou amiga do carcereiro, que levava a Silvério bilhetinhos carinhosos: "Saudade. Você, está bem?". – É ruim ficar fechada porque tenho asma – choramingou ao homem. – Você arranja jornal pra eu me abanar?

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Atraído, diariamente levava-lhe um exemplar novo; substitui o anterior já amassado, justificou ela ao pedi-lo, insinuante. Obteve que deixasse aberta a portinhola por onde entregava a comida. Derrubara a solitária. Lia com enorme prazer as notícias guerrilheiras. Considerou uma homenagem ao grupo o assalto a banco na avenida Angélica, metralhadora oculta na caixa de instrumento musical. – Bom dinheiro, 23 milhões velhos. Excitou-se quando afinal a polícia informou a imprensa: o apartamento da Consolação servia para discussões marxistas e depósito dos cacetes usados nas passeatas. Percorreu a lista dos livros apreendidos: O Capital, A Verdade sobre Cuba, China 2001, História da Revolução Russa, Vida de um Revolucionário. Acusavam Luciano Coutinho, um dos moradores presos, seu amigo e por quem já batera pestanas, de escrever o opúsculo "Proposição e Plano de Trabalho", sobre a revolução no Brasil. O contraste – as atividades políticas secretas e a súbita publicidade – trouxeram um insólito arrepio de nudez. Viu diante de si a letra de Luciano e o manuscrito. Index Librorum Prohibitorum – ternura inesperada, pensou em Cecília. O pai de Christine a queimar livros no jardim. E que justiçamento esse, do oficial alemão na Guanabara? A repressão cogitava do serviço secreto israelense mas logo esclareceu o mistério. Gary Prado, oficial boliviano que prendeu Che Guevara, era o alvo11. Ambos cursavam a Escola do Estado Maior do Exército e pareciam-se. Instigou-a, uma ponta de ciúme, o espaço dado a Heloísa Helena Magalhães, detida pelos estudantes. Caso de José Dirceu. Falsa estudante. Tira do DOPS. Colecionava listas de nomes no apartamento, cartas para o secretário da Segurança. Carteira de investigadora, a alcunha "Maçã Dourada"12. A gente bem desconfiava. Gozado, namorar e prender. Relia o jornal forçando a vista, mínima claridade. Dormir, devanear. Não fico deprimida, logo saímos daqui. O carcereiro traz a gororoba e a Humanidade. Será preciso redobrar os cuidados, combinar pareciam-se. depoimentos em caso de prisão. Somos muito amadores.

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Jacob Gorender, obra citada (cap. 19). O Estado de S. Paulo, 6.7.68.

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Não saberia dizer se dia ou noite, pois adormecera, sobressaltou-a um ruído na parede, como um oco empacotado. E alguém batendo a cabeça. Urros, pancadas na porta. Gelou. A voz de Luciano. Desesperado, na solitária ao lado. O que fizeram com ele? – Luciano, Luciano – chamou baixo, não fossem flagrá-los. Tremia. – Luciano, sou eu, Iara – insistia nos intervalos em que o amigo buscava ar. Alcançou-o depois de algumas tentativas. – Luciano, acalme-se. Sou eu, Iara. Vizinha a você. Estamos juntos. Estou aqui. Você não está sozinho. Calma. Você precisa se controlar, assim fica muito vulnerável. Eles pensarão que fraquejou interrogar. Respire fundo. Vamos sair logo, você vai ver. Só demora é a melhor hora de mais um pouco. Classificado como um dos mentores do grupo devido ao opúsculo apreendido, Luciano Coutinho negava o que outros já haviam confessado. Escolheram-no para torturas exemplares com choque elétrico Ainda não era comum supliciarem intelectuais. – Inesquecível a emoção de ouvir Iara. Ela me serenou. Transmitiu força, carinho, solidariedade. Se não estivesse ali, viriam me buscar outra vez. Iara quebrou meu isolamento, o grande mal da solitária. Graças a ela juntei meus pedaços. Quando os policiais perceberam que conversavam, mudaram Iara de cela. O nome da "professora assistente de Psicologia", apareceu nos jornais no meio dos economistas. As detenções "na rua ou em casa", dia 27 de junho13, foram atribuídas à participação nos comícios-relâmpago. A polícia ocultou a suspeita de luta armada para impedir o sobreaviso de outros núcleos. A notícia afligiu Rodolfo Nani, que telefonou ao secretário da Segurança. Conhecera-o numa viagem ao Japão. É engano, assegurou. E Iara tem asma. O delegado, surpreso, prometeu averiguar. Psicologia circulou um abaixo-assinado. Solicitava que as circunstâncias e motivos da prisão fossem esclarecidos. A maioria assinou. – E se de repente ela roubou um supermercado? – instilou alguém durante uma reunião do departamento. Houve grande celeuma. – Foi surrealista – impressiona-se ainda hoje Cesar Ades, professor de Psicologia Experimental. 13

Folha da Tarde, 1.7.68.

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Os líderes estudantis exigiram a liberdade dos colegas. Não faltou segurança própria munida de porretes e amoníaco na nova passeata. Formavam barreiras para evitar a dispersão, recolhiam filmes de fotógrafos. Diante do Teatro Municipal discursaram a escritora Helena Silveira, o artista plástico Fábio Magalhães, o professor Florestan Fernandes. O povo, distante. Esquisita, a liberdade dos jovens. Medo de quebra-quebras. Transtorno, confusão no trânsito, eventos repetitivos. – Nós é que estávamos de bobeira, sem idéia do que a repressão preparava – aponta José Dirceu. Habeas-corpus obtidos pelo advogado de Quartim resolveram o impasse. Na véspera, Iara e Silvério assinaram decIarações. – Uma semana engaiolados! Já passou da hora, que é que temos com essa embrulhada toda? – cumprimentou-o Iara. Além dos guardas a sala certamente ocultava microfones, câmeras, espelhos one way. – Tô louca pelo chuveiro de casa, roupas decentes. Cinema, jantar, doce de chocolate. Um balde de suco de Iaranja. Vamos? Soltos de madrugada na vizinha zona do baixo meretrício, um por vez, interessava à polícia que circulassem abrindo novas pistas. Silvério foi para a Filosofia de táxi. Identificou-se na barricada e pediu a um amigo de outra organização, armado, que o levasse à casa dos pais, a fim de trocar-se e acalmá-los; e a Quartim. Queria recontatar os companheiros. Receosos de voltar às casas, Iara e alguns refugiaram-se na Faculdade, aninhando-se nos colchões espalhados pelas salas do segundo andar. Ignoravam se a Organização, naquela semana, sofrera conseqüências do ataque ao quartel. Suspirou, meio perdida. Por quê? Não abri nada, estou na minha segunda casa. Ah, mas a coisa chegou perto. Fechava os olhos e imaginava Luciano14, ainda ontem brincalhão no Xic-Xá, torturado. Envelheci, admitiu. Vulnerável, raptada. Melhor não pensar. Queria um banho, ver Silvério. Esgotamento. Afinal, foi um baque. Quartim dirigiu-se imediatamente à Maria Antônia, armado. Entrou sem problemas, continuava a lecionar. Subiu os lances da escadaria e no caminho enfrentou o olhar mortífero de José Dirceu. Indispunha-os a antipatia pessoal, as

14

Luciano Coutinho ficou clandestino até o fim de 1969, quando saiu do Brasil, descrente da luta armada.

223

recentes ações contra objetivos isso. militares, a violência do grupo nas passeatas. E Iara. Localizou os rapazes no chão, rostos deprimidos. – Eu disse façam a guerra, não o amor – insinuou para Iara, sarcástico e enciumado, certo de que o apartamento caíra durante uma tarde de namoro. – Peguei os meninos e parti. Quis deixar claro que não fui lá ela. Grande filhada-putice minha. Eu ainda estava ligado, pois nada justifica a crueldade seca, vontade de ferir. Não aceito o que fiz. Sacana demais. Na primeira reunião, Iara cobrou. – Não é jeito de tratar uma companheira. Silvério e ela comentaram os interrogatórios. – Bonchristiano me dava pancadas. Queria saber se era minha a foto do jornal, arrebentando o City. Perguntaram muito quem é a moca loira do assalto ao quartel, o esconderijo das armas, como expropriamos o fusca. – A mim também. Às vezes me ameaçava. Outras, fazia char. me. Acabou entrando no meu jogo. Ou fingiu entrar. – Comigo, que pinimba! Dizia "oh, galã". – Tive uma crise de asma, fraca. O jornal deu para saber o que acontecia. Até a atmosfera clarear, imperioso esconder-se. Mandou recado aos pais aquietando-os. – A gente queria ficar no mesmo aparelho – pediu Silvério. – Não, é leviano – cortou Quartim. Sem ele sentiu angústia na kitchenette quase vazia. Vou sair daqui, acalmouse. Esceveu a segunda carta de amor ao rapaz que não chegou a namorar. Silvério pediu um encontro. Sábado frio à noite, abraçaram-se num bar da avenida 9 de Julho perto do centro. Iara intuiu mal-estar. Hoje é dia 13, mas a sextafeira foi ontem. Deixou-se entristecer pelos homens solitários em torno do balcão, tampos de fórmica nas mesas. "Porque hoje é sábado", murmurou para si "e há uma tensão inusitada"15. – Como é que você está se dando no aparelho? – principiou ele, após servir-se de cerveja.

15

O Dia da Criação, poema de Vinicius de Moraes.

224

Comentaram a situação legal, obrigados a apresentar-se toda quinzena na 1ª Auditoria Militar. – Tenho que dizer uma coisa – trêmulo, Silvério não encarou os grandes olhos castanho-claros. – Minha namorada arrependeu-se, quis voltar. Eu topei. Mas disse que antes conversaria com você. Pela primeira vez falou do quanto Iara o impressionava. Sentia-a homem e militante envolvido com o mundo, valorizado graças apenas ao interesse dela, doce fermento, generoso afirmativo da masculinidade. – A reação dela foi chorar – deplora Silvério. – Percebi que gostava de mim e nos acarinhamos. Desencontro, eu era um menino. Para o cúmulo minha mãe leu as cartas e teve um chilique: psicóloga, desquitada! Como se fosse puta. Claro que discordei. Porém de formação provinciana, preconceituosa, eu me assustava. A namorada, mais jovem que eu, disciplinada e religiosa, dava-me segurança. Uma ligação forte. Casamos. Silvério despediu-se, aparvalhado. Iara parecia carente de proteção. Em política, o mesmo paradoxo. Coragem, fraqueza. Todos sentimos medo, do contrário seríamos psicopatas sentenciava ela; o negócio é dar a volta por cima, cantarolava a música de Paulo Vanzolini. Encontraram-se algumas vezes na auditoria militar. – Como está? Tudo bem? – perguntava, afetuosa. O processo foi instaurado em setembro de 1969. Silvério, que ao contrário de Iara continuou se apresentando, decidiu não aguardar a condenação prevista pelo advogado. A luta armada vai malograr, e eu arriscando a vida à toa; é quase suicida – deliberou, depois que mataram um companheiro no hospital. Terrível sensação de gente a cair, tortura, morte. – Expus meu desejo de partir, casar. Todos, silenciosos, sabiam que a luta andava malparada. Sair significava "não acredito mais". Antes da reunião de desligamento – alguns armados, no ar o conceito de justiçamento revolucionário – um coordenador pressionou Silvério. – Se você não quer o front, integre-se na produção. Trabalhe em fábricas, conscientize operários. – Eu seria identificado de longe. Cara de pequeno-burguês, nenhum calo na mão. 225

Terminaram

aceitando.

Viajou

para

o

Chile

e

França

oficialmente

desmobilizado. Sentia-se traidor.

Na Iguatemi, com Lucia Sarapu NUM INSTANTE MÁGICO, fragmento de pausa – atacavam-se numa reunião os defensores das teses de Travassos e Palmeira, organizar-se no decorrer da luta ou antes dela – secretamente recomeçou o namoro de Iara e José Dirceu. Sempre uma segurança de aptidão profissional a escudá-lo, nem amigos próximos poderiam saber que ele. sem clandestino, semanalmente pousava em casa de Iara. – Você está mais bonita, mais mulher – exaltava-se. – Somos um homem e uma mulher que se amam com desespero. Em fase nova de paixão madura. Gostava de provocá-la. – Da primeira vez, você veio para mim cheia de problemas. Eu ensinei tudo. E volta do mesmo jeito. Não ganhei nada... – Que troço de tremendo mau gosto. Cara convencido! José Dirceu vinha arrebentado. Comiam o que houvesse, conversavam. Tão pouco tempo. Ele admirava a tática de Iara, estabelecer uma espécie de confronto e discutir as duas posições sem colocar-se. – Você é uma psicóloga bem treinada – festejava. – Eu queria estar sempre do seu lado. Não dá, de manhã já tenho a cabeça na rua. – Nunca estive tão de bem com a vida, mal faz uma semana e parece um ano. Só nos vimos duas vezes! Acompanhava o empenho do namorado, candidato à presidência da UNE, em realizar o 30° congresso. Os universitários dividiam-se, segundo José Arantes, em 43 grupos. Acusavam a palavra-de-ordem "volta às aulas", Palmeira o autor, de refrear o movimento de massa e atender ao apelo da ditadura. Travassos, o presidente desautorizado1, defendia a violência como único meio justo de manifestar desagrado à opressão e ao imperialismo. "O diálogo entre as classes é impossível", reiteravam. Dia 16 de julho os trabalhadores de Osasco, liderados por José Ibrahim, deflagraram a greve sob evidente influência dos agrupamentos esquerda. A UEE e a UNE comprometeram-se a angariar fundos e distribuir volantes em portas de fábricas. 1

João Roberto Martins, obra citada (Cap. V: "A trajetória da esquerda – Novos rumos").

226

A Força Pública cercou a Cobrasma ocupada pelos operários e o ministro do Trabalho interveio no Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, justificando: "Um grupo radical procura exacerbar o ânimo do extremo oposto. O grupo do quanto pior melhor visa implantar uma ditadura de direita, a fim de mais tarde reunir descontentes e atingir a país"2. O governo deixou vazar que no eixo Rio-São Paulo previa agitações fomentadas por Marighella3. – Cínico. Queremos é que a ditadura mostre a cara. Durante o dia inteiro os trabalhadores resistiram ao cerco, armados de barras de ferro e ferramentas. Quando a tropa avançou, o operário José de Campos Barreto, o Zequinha, quis incendiar o depósito de gasolina da empresa. Foi preso. José Ibrahim conseguiu fugir. – Não há futuro no movimento de massa – resignaram-se os líderes de Osasco. A proposta de luta armada levou-os como terceira força à Organização. Seguiam os passos de Espinosa. – O golpe e a arrogância do regime precisam de troco. Uma questão moral. Revolução na raça – propuseram. Dia 17 de julho o DOPS retirou à força os estudantes que ocupavam a Faculdade de Direito. À noite do dia 18, armado, o CCC invadiu o palco de Roda Viva, em São Paulo a censura ameaçara a peça, alguns radialistas imprecavam, convite à violência: as famílias deveriam proibir às filhas o espetáculo cheio de palavrões, obsceno e desagregador. Os jornais descreveram a selvageria: O CCC destruiu o aparelhamento elétrico, surrou atores, torceu os seios da atriz Margot Bayard; o contra-regra teve a bacia fraturada, despiram a atriz Marília Pera, brutalizada por mordidas. "Covardes, esperaram o público sair", resumiu com desprezo o ator Jairo Arco e Flexa. Menos de uma semana depois, atentado no Teatro da Maison de France, na Guanabara; representavam de Molière O Burguês Fidalgo, título que pareceu suspeito ao MAC. "Morte aos Comunistas", picharam. Avançando no terreno, porém intranqüila quanto à Frente Ampla, a ditadura vazou um recado a Jânio Quadros: confinamento e, persistisse a contatar oposicionistas, a punição para corruptos4. A hipoteca de uma casa em Vila Clementino, bairro de pequena burguesia,

2

Folha da Tarde, 10.7.68. Folha da Tarde, crônica de Ibrahim Sued, 11.7.68. 4 Ibrahim Sued na Folha da Tarde, 23.7.68. 3

227

não pagava sua vida de milionário. No fim de julho o ex-presidente, confinado em Corumbá, desvinculou-se dos frentistas. – Eu tenho é vontade de ir ao cinema – participou Iara. Bem agasalhada, minissaia, grossas meias de la e os mocassins da moda, viu com amigos Bonnie and Clyde5, filme do momento. Torceram pelo casal bonito, glamour nos assaltos, o desfile de carros roubados anos 30. Impotência, inaptidão social. Humor e inteligência. Os jornais chamavam de "nossa Bonnie subversiva" a loira dos dezenove assaltos em São Paulo. Metralhadora e minissaia, imbatível afrodisíaco, o símbolo fálico submisso na cama. Todas as loiras da cidade, suspeitas. Assistiu no cine Iguatemi Quando os peixes saíram da água de Michael Cacoyannis, trilha sonora do compositor proibido pela ditadura grega, Theodorakis: um carregamento de bombas atômicas é descoberto ante a alienação do povo em perigo. E voltou a O Caso dos Irmãos Naves num cinema da avenida Ipiranga. – O filme do Luiz Sérgio é coisa de gênio – relaxavam no bar do Brahma, pianista ao fundo. – Que direção! Tremendo erro judiciário baseado em confissão através de tortura. Crueldade e onipotência reunidos num oficialete ignorante, dono de vida e morte no interior de Minas Gerais. A cara do poder no Brasil. Proibida de meter-se em encrencas, evitava ir à Faculdade ocupada. A prisão de Vladimir Palmeira e outros líderes gerava greves e atos públicos em todo país. Corriam boatos de que José de Campos Barreto, incomunicável, morrera de espancamentos. Do Exterior, exceto o Vietnã, só notícia ruim. A greve geral operária e as manifestações estudantis no Uruguai, reprimidas com ajuda do estado de sítio. Chacina de estudantes que festejavam o 26 de julho, data de Cuba, no México. Reservistas soviéticos convocados à fronteira tcheca – a URSS atribuía as reformas liberais a um complô anti-socialista. Anistia na França a quatro mil presos que pertenceram ou apoiaram a Organização do Exército Secreto, inclusive o torturador e assassino Raoul Salan, em prisão perpétua por atrocidades na Argélia. – Gostei do Barreto, que respondeu 21 em inglês quando a polícia perguntou a idade dele. Ótima gozação e controle de si. Temos inimigos de verdade – abismou-se

5

No desfile da Fenit, em agosto, uma das modelos vestia-se de Bonnie: boina, minissaia no alto da coxa, metralhadora.

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de repente. – Sou do tipo incapaz de matar uma formiga e arranjei inimigos de morte. É efetivo, concreto, interiorizado. Um insight. Não saíra dia 26, quando em dez comícios-relâmpago 200 estudantes ignoraram a proibição ordenada peio CSN e o marechal-presidente. Escolhiam pontos de grande movimento e dispersavam-se rápidos, táticas semiguerrilheiras6, restando frases pichadas: "Osasco é o exemplo'", "Abaixo a Ditadura"7. Os mil e 300 homens da Força Pública, montados em cavalos e brucutus, transformaram o centro de o Paulo numa praça de guerra. – Sei não. Assim, os milicos botam o povão contra a gente – cogitou Iara. E uma hora qualquer repetem esse horror do México, chacinando estudantes. A Organização preocupava-se com o apartamento da Maria Antônia. A presença quase constante da polícia na redondeza, a recente prisão de Iara e o plano de novas ações exigiam maior segurança. Parecia assentada, lecionava, mas o endereço era público. Teria que mudar-se. Concordou, dividida. O tugúrio logo-logo acaba, na esquina o casarão da Veridiana, gentaréu de vanguarda. Maior abdicação, mas ao encontro da inquietude interior. Tem dia em que não caibo na própria pele. – Meu apartamento é manjado – explicou aos pais estupefatos, apesar de cônscios da militância. Alugaria um aparelho com Lucia Sarapu. Enquanto o procuravam, instalou-se no Ipiranga. Não deveria voltar à Maria Antônia e David apanhou as roupas. O cargo na Psicologia, abandonou. Repetiu-se a frase registrada pela irmã ao morrer a avó: não é uma grande perda. Queimar pontes, sem regresso. – Meio incompreensível – turva-se Rosa. – Por que sempre romper com tantas coisas? Tudo parecia irrisório. Como se impulsionada a transformar: "isto não é assim". Ansiedade, intolerância. Incapaz de seguir passos de maneira madura, em que se espera, se volta atrás. Por exemplo, oportunamente sair do Brasil. "Estão se matando" diziam alguns. E estavam. Talvez a esterilidade fosse determinante. Não na escolha de soluções radicais, mas na negação de si. Os colegas preconceituosos reforçavam o impulso – "pra baixo, santos e viventes ajudam", repetia risonha – ao vê-la borboletear entre amor e política, a “A propaganda da violência revolucionária, com a participação de poucos estudantes, fustiga a repressão e faz denúncias políticas. São parte do longo processo da luta armada, que acumula forças até a tomada do poder político." Trecho de um documento da UEE, transcrito no livro Movimento Estudantil e Ditadura Militar, obra citada. 7 O Estado de S.Paulo, 27.7.68. 6

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investir tempo indiscriminadamente, quase anti-revolucionária. Nenhum traço de heroína. Vingava-se controlando precariamente a situação graças ao charme que lhes enfraquecia os critérios. De Lourdes Sola, cuja pose na classe aplaudia – lecionava sentada na mesa, de minissaia e pernas à vista, fumando cachimbo – já ouvira análises sobre a "cabeça" da Filosofia. Até 1965 orgulhava-se do luxo de aprovar, digamos, apenas 17 alunos para 30 vagas. Eventuais restrições à extração social ou diferenças políticas atenuavam-se num "nós" global. – Somos especiais – ironizava. Os excedentes trouxeram alunos de pedigree menos nobre e vários francamente "inadequados" – cultura livresca limitada, português ruim, ausência de bons colégios na formação. Iara, aprovada ainda no tempo da seleção rígida, só na luta pelos excedentes impôs-se além do círculo da Psicologia – curso "menor" das Humanas, estreladas por Ciências Sociais e Filosofia. Sequer alçou-se ao patamar de intelectual. Intranqüila, desleixava o rol de livros indispensáveis, sem falar dos que não lera na adolescência, perdendo o bonde. E recusava-se a absorver o código do grupo. Fui infratora até na decisão de casar e castigada com um estelionato amoroso, defendia-se, riso grande, levando à suspeita de inconsciência ou falta de tirocínio para competir. – Éramos estratificados, hierarquizados, cientes de "quem é quem". Coisa muito perturbadora – lastima Lourdes.

A Organização efetuou em agosto o primeiro assalto de grande porte no Banco Mercantil, agência Joaquim Floriano, principal rua do Itaim. Participaram duas mulheres. Apesar do lenço na cabeça e a franja preta, descreveram Renata, desta vez inequivocamente vista, como a loira da metralhadora8. No TUSP correu o boato de que uma assaltante era Dulce Maia. Preocupada, Iara mandou-lhe um aviso: procurasse André Gouveia para o desmentido. "Aconselho que você tome cautela porque essas coisas se espalham", acrescentou no bilhete. Dulce desfez a informação. Dois anos depois, ambos no exílio, ele troçou: "Você foi tão persuasiva que me convenceu." 8

Doze anos depois, Hermes Camargo Batista, o Xavier, militante ex-pára-quedista, descreveu os preparativos com bazófia e grosseria, memorável o denegrir a si e aos outros. Revelou que as reuniões se faziam nos fundos do teatro Maria Della Costa. Estado de S. Paulo, 9.4.80.

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Na Folha da Tarde, que liam regularmente, trabalhavam amigos. Cobriam o movimento estudantil, nas entrelinhas a fornecer indícios de fatos censurados. Iara acompanhou o noticiário sobre Zequinha, finalmente aportado na Casa de Detenção9. Qualificava-a de céu, comparada ao porão do departamento de Polícia Federal, rua Piauí. "Se eu não tivesse desmaiado, morria", declarou. Mancava, o corpo cheio de equimoses. Choques elétricos nos genitais, telefone, sabão em pó nos olhos, cassetete, socos, chutes, noites gélidas seminu, deitado numa tábua, para confessar que pertencia ao grupo de Marighella. – Queimei o apartamento de um amigo. Eu ficava lá, em São Paulo. Barreto, o verdadeiro revolucionário. Camponês, operário, estudante, o caráter e a coragem da ideologia. Não abri a boca mas os gorilas sabem muito, advertia. Culpados o "liberalismo", a infiltração, medo à tortura. Onde erramos? Torturar estudantes, inconcebível um ano atrás. O presidente do DCE da Universidade do Ceará, José Genoíno, preso ao embarcar num ônibus de São Paulo para a Guanabara – deduragem, na certa – denunciou: – Choques elétricos e me espancaram como a um animal10. Distanciada, lia os acontecimentos da Faculdade. As paritárias, aprovadas pela Congregação, planejavam reestruturar a USP ignorando os acordos MEC-USAID. Legislação própria, sem legalidade oficial. – Vamos impor as paritárias ao governo em plena ditadura – iludiam-se. O diretor Rosenthal vistoriou o prédio desocupado, a chutar latas de colorjet no chão, enraivecido11. Os alunos desculpavam-se: limparam tudo, os vidros quebrados obra do CCC mackenzista que vinha periodicamente destruir e intimidar. O governo, entretanto, adotou as propostas do seu grupo de trabalho: cátedra abolida, institutos divididos em departamentos. Os excedentes desapareciam no vestibular único que possibilitava o ingresso de candidatos dependendo apenas de classificação, notas antes inadmissíveis. E o Conselho Universitário extinguiu as paritárias no final de novembro. Por determinação legal só valia a Lei Suplicy.

9

Folha da Tarde, 6.7.68, 7.7.68, 1.8.68. Folha da Tarde, 5.8.68. Sobrevivente da guerrilha do Araguaia, futuro deputado federal. 11 Jornal da Tarde, 13.8.68. 10

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– Cumprimos nosso papel – presumiu Iara. – Mobilizamos a massa. Está plantada a idéia de uma Universidade que articula a atividade intelectual aos problemas nacionais e de classe. Rapidamente alugou com Lucia um apartamento quase defronte ao shopping, na Iguatemi em breve alargada para formar a avenida Faria Lima. – Lembro dela na imobiliária, segurando a escritura da Maria Antônia feito canudo. Serviu de garantia. Dois quartos, camas de solteiro, pequena sala retangular, mesa e cadeiras. Na velha máquina de escrever batiam os estênceis do jornal. No toca-discos de Iara, único objeto afetivo, Elis cantava: "teu corpo moreno, cheiroso...". Alguns quarteirões abaixo, a Hebraica. – Vai dar pra nadar de vez em quando. Perto ficava a casa da cunhadinha, mas Miriam não o saberia. Só Waldir e Quartim conheciam o endereço. Mudaram no último domingo de julho. Valdir, vestindo o casaco de camurça marrom-café que Iara várias vezes pediu emprestado, carregou os móveis para a kombi de um amigo. – Uma transportadora conheceria o endereço. – Vê se não estraga meu casaco – mangou Iara. Bateu a porta atrás de si, incrédula. Mal se passou um ano e o pedaço meu que faz pluft, bolha de sabão. Tem a Offner no shopping, chocolates da pontinha. Outra vida, quanto duram os cartuchos? Presenteou o apartamento aos irmãos caçulas. David alugou-o e mais tarde Raul, do exílio, deu a Rosa sua parte. Quanto menos possuíssem, melhor exceto as malas de roupa. Nunca equiparam a cozinha. Pratos, talheres, tudo no piso. E a transitoriedade, necas de pouso fixo, o sabor do temporário na revolução, discorria. O contrário, atoleiro pequeno-burguês, é que seria esdrúxulo. Agora a gente acorda examinando-se de fora, marinheiras em rota, o instável no curso. Depois, desordem é minha tradição, Lucia bem se lembrava do apartamento de Iara na Paulista. Compravam comida pronta em pensão, bar, o que fosse para evadir o trabalho doméstico aqueles tempos de estudo e Sá, minha era neolítica. – E deixa que eu cuido de meu sobrinho – arrematava, agradando o abdômen da amiga, início de gravidez. – Vai ser menino e Camilo. 232

Nome de guerra de José Dirceu mas citou Camila apenas, filha de Sérgio Ferro. Dar nome e apelido é comigo, vem aquela história maluca de Jacó, a noite inteira combatendo o desconhecido e no final, assombrosa resistência do homem? a própria? – decidiu que enfrentou o anjo incumbido de atribuir-lhe nome, destino. Obteve-o e perdeu de si um pedaço, cicatriz da passagem. – Alegorias bíblicas. Edificantes. Alguns andares abaixo uma senhora fornecia refeições aos bancários da agência do Banespa, no térreo do edifício. Duas, três vezes por semana lá almoçavam, bem aceitas: professoras universitárias que dividiam a morada. Não demorou, abominaram o cheiro de gordura que subia. – Ai, Iara, não agüento – Lucia sofria enjôos. Solícita, fechava venezianas e vidraças. Preferível sufocar. Apesar da discrição, quis informar José Dirceu da mudança e acertar um esquema. Inconcebível desistir dele. Foi à Maria Antônia e localizou-o perto do bar, a segurança em volta. – Vamos tomar um café? – Caminhou para ela – percebera que o convite visava tirá-lo do grupo – mas chamaram-no de um carro. – Depois a gente fala – afastou-se. – Não fui sensível, pensei que ela me contaria quando nos víssemos. Alguém se interpôs. Iara teve apenas tempo de insinuar que as coisas apertaram. Nunca mais nos vimos. Desobedecia à instrução de afastar-se dos amigos. Afinal, sopesava, ser low profile é uma coisa, clandestina outra. Quando soube do amorico de José Dirceu e Betty Chachamovitz, observou que a dor a transportava de volta para si. Há uma endogamia grupal, autofágica. Nutre-se do melhor naco do outro. – Ciúme seria vulnerabilidade imperdoável no militante. Era um sentimento "mau", racionalizado – explica Míriam, que a consolava. Ele é fascinante mesmo, todas as meninas querem namorá-lo. Pensou em Sonia Lafoz agora companheira de Fernando Ruivo, ambos na Organização – o mundo gira, a Lusitana roda. Iam morar juntos, mais um aparelho. Teve saudade de Albertina e telefonou sem identificar-se: – Aqui é a Marília. 233

Percebeu que a amiga, silenciosa, não a associava ao poeta. – Tô precisando de uma roupa, me empresta? Separou as peças feliz, alguma coisa a fazer por Iara que chorava no seu colo, agora chega. Saio da arena. Comícios, política, perseguição policial, mulheres. Quem suporta? Quis despedir-se dos amigos próximos, pois não a encontrariam facilmente. Numa noite fria apareceu em casa de Elias, afetiva e triste. Contra seus hábitos, ficou bastante. AS onze, depois de jantar, levantou-se. – Eu levo você. – Não, hoje não dá. Nossa, que frio! – Leve uma suéter – ofereceu a madrasta. – Não, obrigada, vai ser difícil devolver. – É para você. Agasalhou-se e deixou Elias temeroso. – Achei que era pessoal. Decidi conversar num outro dia. Ninguém respondeu no apartamento já vazio. Sérgio Ferro recebeu a visita quando lá almoçava Betty Milan, a namorada. Iara não gostava muito dela, nem engolia suas críticas à luta armada. – Debray é inconseqüente.

Pouco depois da mudança Iara cumpriu uma tarefa em casa de Encarnación Crispim, 53 anos em 1968. Esposa de José Maria Crispim, amiga dos ex-militares do MNR, escondia pessoas na pequena residência da Lapa onde morava com duas filhas, Denise e Leonor. Consideravam na aliada ou "área próxima". Ladislau Dowbor, tanto Christine faIara dele, aguardava-a. Professor num curso de inglês, jovem, louro, olhos azuis, despertou em vários alunos a consciência social. Indicava livros e interrompia tudo ao soar dos sinos na igreja da Consolação, próxima, pedindo atenção à beleza do momento. Enfeitiçava as meninas. Uma logrou conquistá-lo, Pauline Reichstul, íntima de Christine. Os pais queriam que esquecesse o romântico professor. Não confiavam nele e enviaram-na a Israel. Ladislau seguiu-a.

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Retornava agora para cumprir sua missão de revolucionário. Logo Pauline, estudante em Paris, regressaria também12. Ao voltarem no jipe, promessas no rosto, Iara tomou a iniciativa da corte. Chega de homem do mundo exterior. – Tivemos um namoro bonito, ingênuo. Grande amizade no clima de enorme tensão. Deixei claro que aguardava Pauline. Viam-se em casa de Encarnación, onde se ocultava Espinosa. Ladislau contou a infância nas pensões com o irmão, a mãe na Polônia e o pai no Nordeste. Estudava no Liceu Pasteur, o tradicional colégio da colônia francesa; depois mergulhou no inglês, italiano e russo. Iara falou do casamento na trilha pré-estabelecida, a rir a gargalhada que Encarnación incensava, é alguém abrindo uma janela, e ele descrevia como tensão hilariante. Eu me impus tarefas de fuga impossível, despir a vida anterior, superar-me. Carrego só alguns objetos que me dão segurança, roupas, um espantoso saco de sapatos. – Gosto desse lado meu, a frescura – abaixava-se e o decote da blusa nova, dois botõezinhos sugestivamente abertos, surtia efeito. Às vezes, demoravam a encontrar-se. Ladislau militava no setor logístico ao lado de Melo e Eduardo Leite, o Bacuri, namorado de Denise Crispim. – Somos os bandidos da história – gracejava. Marcaram ver-se no ponto de ônibus diante das obras do Museu de Arte, sempre que possível, às oito da noite. Queriam serenar a necessidade de convívio afetivo em meio aos riscos. Driblavam assuntos graves. Mexericos sobre companheiros que consideravam maníacos ou fanáticos eram os temas de recreio. No auge da ligação Iara sugeriu que viajassem à Guanabara no Vera Cruz, novo trem da Central do Brasil, som e balanço dos vagões modulando a noite. Separaram-se em Copacabana para as tarefas da Organização que justificavam o passeio. Reencontraram-se no pequeno hotel, arborizada travessa da avenida à beiramar, Leblon. Passearam na praia, bonito o vento, a lua, o amor, o trabalho da revolução, voz de Ladislau. Já meu bisavô polonês atuava na resistência à

12

Separaram-se posteriormente, no exílio. Pauline abandonou o trabalho que fazia como educadora em Genebra, num grupo ligado a Jean Piaget, e seguiu instruções do cabo Anselmo: voltar ao Brasil para uma delirante investida a partir de fortalezas abandonadas pelos invasores holandeses, em 1654. Em janeiro de 1973, aos 25 anos, ela e os companheiros, cinco, morreram trucidados no Recife. Jacob Gorender, obra citada (Cap. 28: "Estertores da Esquerda Armada e Embriões da Autocritica"); Marco Aurélio Borba: Cabo Anselmo – Global Ed., 1984.

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russificação iniciada em 1869, vencida a revolta que envolveu dois anos de guerrilha. Incontáveis patriotas poloneses executados. A outros expropriaram os bens. Deportações, torturados, meu bisavô entre eles. Veio meu avô – prisão, tortura e Sibéria. Os revolucionários, liderados por Jozef Pilsudski, organizaram a resistência armada anticzar a partir da Galícia, província que no século 19 pertencia à Áustria. Judeus e ucranianos a habitavam. Iara orgulhou-se dos galizianers da infância, filhos de militantes. Ladislau não era judeu nem galiciano mas vinha da mesma cepa. Até o pai, que almejava paz e tranqüilidade, acabou envolvido. Semelhante a tantos poloneses refugiou-se na França e, criador de gansos na área do maciço central, abrigou rebeldes antinazistas. Não demorou, franceses colaboracionistas prenderamno. – Morro de medo da tortura – confessou Iara. – De levantamentos, tiro. Mas aí é que faço mesmo. – Todo mundo tem medo, não existe imunidade. E tortura funciona. Sem essa de pequeno-burguês cantar e operário resistir. As atitudes variam, independem da origem de classe. Na Organização evitavam o assunto. Apreensiva, Iara estimulava a franqueza. – Como vai? Você está bem? – saudava, ênfase na segunda indagação, olhar intenso a fim de encorajar o companheiro. Preservava-os no entanto de perguntas específicas, uma violação. Aventar o assunto era mau gosto, derrotismo. Cada um de nós, despreparado para a violência demente, se convence de que nada acontecerá consigo. Imitar o vietcong, submeter-se a aplicações progressivas de choque até altas descargas, seria o ideal. Mas não fez a proposta. A Organização determinou que o militante ganharia tempo, se preso, indicando pontos falsos. Poderia abrir o aparelho em 24 horas se o suplício fosse insuportável. Antes disso, no teto acertado, os moradores abandonavam a morada. Ao contrário de outros grupos que permitiam nomear simpatizantes e fatos secundários, a ordem era silêncio. Os líderes carregavam uma cápsula de veneno. Não tem erro. – O médico que forneceu meu cianureto decidiu ser humanitário – escarnece Ladislau. – Eu digo hoje, vivo, que a morte seria preferível a viver o que vivi. – Preso, o cabo Mariane engoliu sua drágea. A suposta dose mortal causoulhe enorme dor de barriga, desmoralizando-o porque não controlava os intestinos –

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destaca Espinosa. – Guardávamos o veneno numa tampa de caneta. Quando fui preso não tive tempo de tomar. Durante o segundo semestre de 1968 Iara cobriu pontos e levou mensagens, tarefa vital à dinâmica da Organização. Datilografou e distribuiu o jornal. Fez levantamentos e transbordos – passagem dos malotes bancários de um carro a outro. Aprendeu a atirar. Espinosa e ela embrenhavam-se na fazenda junto à rodovia Castelo Branco onde é hoje Alphaville. Às vezes Míriam participava. – Ai, esse troço faz barulho! – mirava atenta, as mãos pequenas para o 38. – Jamais serei boa atiradora. Treinavam na represa Billings com simulações de metralhadora e a Mugger, automática. – Ninguém me chama para ação armada. Quero participar. Que tem a Cecília (Renata) a mais? Não a consideravam talhada, nem boa motorista. Ninguém se preocupou em formá-la militarmente. Ficava na retaguarda, limitada às chapas de automóvel. Numa esquina, motor ligado, aguardava Espinosa cumprir a missão, munido de alicate e chave de fenda. Quando a rua escura invadia seus olhos tal entidade forasteira, acionava a calma extraordinária. Reina outro tempo. Grilos, sapos, chiados, carros ao longe, madrugada num ignoto planeta que leva quinhentos dias na rotação, um dia tem 120 mil horas, calculava, sete milhões e 200 mil minutos, cada minuto os 432 milhões de segundos do dia inteiro, contagem inédita, prensados em estrela anã, o peso de toneladas na ponta da agulha, revólver à mão para atirar e proteger o companheiro. Espinosa reaparecia da eternidade, placas na mão. Anos-luz, o segredo da nova dimensão do tempo. Lucia Sarapu, professora nas Faculdades Metropolitanas Unidas, na Liberdade, arranjou aulas de Psicologia para Iara. Precisava, urgente, ganhar algum dinheiro. Sistematicamente perdia a hora de manhã e tomava táxi. – Eu sei que não posso gastar dinheiro. E um atentado contra a revolução brasileira – lamuriava, gesto zombeteiro de braços. Depositavam os salários numa caixinha. Não raro surripiava algum e adquiria acessórios: meias, echarpe. – Pronto, taí você de roupa nova. Quem te emprestou?

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– Hoje esbanjei feito louca. Comprei duas fatias de presunto! É alimento para a cuca. Se ficamos muito carentes dessas coisas, diminui a qualidade da militância. Pode escrever. – Tá escrito – Lucia achava ótimo. Esporadicamente vinham ao aparelho Valdir, Quartim ou alguém com permissão de freqüentá-lo. Mas a clausura atormentava Iara. – Lucinha, eu preciso, preciso, preciso sair – lacrimejava. – Não agüento mais esse negócio. E saía. Amigos íntimos não fariam perguntas – quanto menos soubessem, melhor. Procurava, pois, gente de confiança: Albertina, Marina, Carlos Henrique. Várias vezes encontrou Robertão, agora Joaquim, em contatos pessoais. Saudosa da família visitava-os, algo reprovável. Óbvia uma vistoria no Ipiranga, se a polícia a procurasse. Numa tarde azul sem compromissos, inesperado verão, resolveu espairecer na Hebraica. Ainda na Iguatemi, um automóvel encostou na calçada. Maryse acenou. Bonita, o nariz um pouco empinadinho. Não se viam há tempos e falaram rapidamente. Maryse desejou-lhe uma piscina agradável e nunca esqueceu a coincidência. Foi a última vez que se viram. Iara passou algum tempo ao sol. Lembrou-se de Decio Bar, ali se aproximaram. Ninguém, plena semana de inverno. Nadava dez minutos na água e, aquecida, saía para absorver a luz. Imagens, o refúgio do devaneio. Fantasiava um encontro com Quartim. De tardezinha deixou que o desejo e a desfeita a impulsionassem, ou não se chamava Iara. Vestiu-se, coisa de guerrilheira, pensou, adrenalina a desprendê-la de si. Sem titubear tocou no apartamento que deveria ignorar. Surpreso, Quartim não resistiu ao calor que irradiava da pele dourada, cheiro e gosto de vida a exaltar-lhe os sentidos. A tarde mitigou a sede de Iara. Embora consciente de que ele não prestava muita atenção nela, sentiu que o nó se dissolvia.

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Batalha na Maria Antônia. Justiçamento

A PEÇA QUE HELENY DIRIGIA em Santo André veio a São Paulo por algumas semanas. Iara aplaudiu-a novamente no Teatro Anchieta e compareceu à Aliança Francesa, onde a amiga encenava Os brinquedos, do francês Georges Michel. – Cê tá ficando famosa, Heleny. É o máximo, ser diretora assim moça. Da Consuelo, vão ensaiar Prova de Fogo. Nós somos uma geração e tanto. Heleny perguntava da Organização. – A polícia anda com ódio de estudante – desconversava. – No protesto contra o aumento dos ônibus em Salvador, endoidou. Feriram à bala, espancaram na igreja. E prenderam meu Marcelo. O assalto ao trem pagador da Santos-Jundiaí, planejado com precisão militar1 pelo Agrupamento, obteve destaque nos jornais dia 12 de agosto e ornamentou o mito de Bonnie: a loura, vestida de homem, dirigia um dos carros. – Vocês vêem, a massa é dispensável – raciocinavam os militaristas, eufóricos. – Ações bem planejadas transmitem confiança e mensagens políticas inequívocas. Confundem a polícia. A imprensa dá boa cobertura. Bela resposta ao Jayme Portella, tutor do Costa e Silva. Em Salvador há movimento popular. A brutalidade da repressão revoltou alunos, professores, intelectuais e artistas. Ganhamos aliados. O risco das ações armadas é a cegueira do sucesso-lembravam os "marxistas." – E a violência policial na Guanabara onde a repercussão é grande? O espaço para oposição pacífica desapareceu. A repressão em Osasco deixou isso claro. O caminho correto é prover fundos para o foco através da guerrilha urbana. – A mortandade não afugentou 30 mil estudantes no México. – Mais uns tiros certeiros e a praça se esvaziava. O povo tem medo, meu velho. Você vê na Tchecoslováquia. – Um horror – interveio Iara. – Que socialismo soviético é esse que abre fogo sobre a muralha humana na Rádio de Praga, põe tanques na rua, fuzila estudante? Que apoia a Nigéria na guerra maldita, crianças esqueléticas em Biafra morrendo ao alcance das mãos. Comandado por Marco Antonio Brás de Carvalho, o Marquito, do Grupo Tático Armado – GTA, da futura ALN. "Los Subversivos", obra citada. O Estado de S. Paulo, nos dias seguintes, noticiou a confissão de supostos envolvidos. Os verdadeiros não foram incomodados. 1

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– Social-imperialistas, bem dizem os chineses. – Sem tanques os americanos tomam conta. – O povo não deixa, é socialista. – Ainda bem que existe o vietcong. O mundo assistiu à maior derrota dos Estados Unidos desde a ofensiva do Tet. Por um triz José Dirceu escapou da polícia num ato que exigia a libertação do jornalista Humberto Kinjô, em cuja casa encontraram mimeógrafo e "publicações subversivas"2. – Meu gavião ainda me dá uma pontada. E essa nova invasão do CRUSP? O Renato Tapajós deveria fazer outro documentário sobre a crise na Universidade. Mal as vidraças, portas, móveis são consertados, a polícia vem e arrebenta. Gênero Carlitos. No dia da condenação do grupo de terroristas de direita, 29 de agosto, o campus de Brasília foi invadido sob pretexto de prender o líder Honestino Monteiro Guimarães3 e quatro estudantes. – Parece que baixou a 7ª esquadra. Um estudante leva bala na cabeça e a Polícia Federal se diz agredida4. A pústula do Gama e Silva arrasou Brasília. O homem é a matriz do ódio e da mentira. Quer ser o interventor em São Paulo. Melhor aluno civil da escolinha nazifascista do Jayme Portella5. – O filho do Aniz Badra disse ao pai que ele serve a um governo fascista6. – Eles vão fechar, golpe dentro do golpe. Têm medo das articulações da oposição: políticos, igrejas, estudantes, intelectuais, artistas operários.

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Cessada a incomunicabilidade Kinjô declarou ter-se infiltrado na AP com objetivo de fazer uma reportagem sobre movimentos guerrilheiros, o pedido da revista Realidade. Tinha seis meses para escrever. O diretor da revista, Paulo Patarra, confirmou. 3 Desaparecido em 1973. 4 Castelo Branco, obra citada (30.8.68): Nada... "desalteraria melhor a sede de violência do dispositivo policial do que essa de assaltar de metralhadoras na mão o campus universitário, numa hora impressentida em que estudantes e professores se entregavam a atividades escolares... a Polícia aí está a serviço da prepotência e do ódio dos que não querem que o país encontre clima de ordem... o deputado Santilli Sobrinho foi com filho buscar a filha (...) um cassetete desceu sobre a cabeça do filho (...) e se alternavam, ora sobre sua cabeça ora sobre a do rapaz. Eu sou deputado, gritava. E por isso mesmo, gritavam". 5 O ministro Gama e Silva ameaçou processar o jornalista Carlos Castelo Branco, que provou ser ele o responsável pela ordem de invadir a Universidade. Paulo Duarte que o acusou de desviar verbas quando reitor da USP, lembrou: "Tendo nas mãos oportunidade de, logo depois de 64, defender a Universidade contra os energúmenos que queriam tomá-la de assalto (...) abandonou seus colegas, professores perseguidos, como também os alunos... perseguindo-os, encarcerando-os, requisitando tropa militar para esbordoá-los e humilhá-los. Folha da Tarde, 5.9.68. 6 Deputado federal da ARENA SP. Carlos Castelo Branco, obra citada (31.8.68).

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– Os campos definem-se7. O discurso de Márcio Moreira Alves8 é ótima desculpa, funciona como o plano Cohen9. A Organização pediu a Melo e Miriam que se casassem. Precisava de aparelhos. Aceitaram sem hesitar. Amavam-se. O pedido justificava a formalidade e o ritual. E retirava um pouco a responsabilidade do compromisso. Era uma união importante para o Brasil. Os Abramovay, ao contrário dos Iavelberg, mortificaram-se. A filha, só 19 anos. Melo, 23, sem dinheiro ou profissão, defendia idéias políticas que abominavam. Inaceitável uma herdeira dos hotéis Horsa escolher um subversivo, provável responsável pelo exílio de Eduardo. – Ah, que coisa boa, vai dar certo. Você tem boa cabeça, Cuca Maria. E é bonita. Antes do casamento, o susto. Na madrugada de 31 de agosto, sábado, uma batida policial seguida de perseguição e tiroteio prendeu Ladislau, Wilson e um jornalista. Carregavam armas. O dono do automóvel de chapa fria, Eduardo Leite, a partir daquele momento tornava-se suspeito. A polícia desconfiou dos jovens adultos de classe média, que confessaram o roubo do carro. Reencontrou Ladislau tempos depois, sofrido. Convalescia das pancadas que lhe quebraram algumas costelas. Não tinham aberto nada. O DOPS transferira-os ao Presídio Tiradentes para escondê-los da Polícia Federal, que ambicionava o controle 7

O governo... ou decidirá pelo prevalecimento da sua autoridade civil ou se renderá à pressão articulada dos radicais que controlam de alto a baixo o dispositivo de segurança policial." Carlos Castelo Branco, obra citada (3.9.68). 8 Dia 30 de agosto, o deputado federal pelo MDB-GB aproveitou o pinga-fogo para protestar contra a invasão da Universidade: "Quando pararão as tropas de metralhar o povo? Quando uma bota, arrebentando uma porta de laboratório, deixará de ser a proposta de reforma universitária do governo? Quando teremos, como pais, ao ver nossos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não voltarão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados? Quando poderemos ter confiança naqueles que devem executar e cumprir as leis? Quando não será a polícia um bando de facínoras? Quando não será o exército um valhacouto de torturadores? Quando se dará o governo federal a um mínimo de cumprimento do dever, como é para o bem da República e para a tranqüilidade do povo?" O jornalista Carlos Castelo Branco conseguiu insinuar o fato (obra citada, 31.8.68) apontando que a mesa da Câmara censurou um aparte do deputado: chamava os policiais invasores de bandidos e gangsters. "A mesa cortou apenas a expressão vernácula", escreveu com ironia. 9 Forjado em 1937 pelo ainda capitão Olímpio Mourão Filho, chefe do serviço secreto dos integralistas, a fim de justificar o golpe do Estado Novo. Alertava para uma armação comunista que pretendia preparar "as massas a um terrorismo sem peias". Mourão substituiu por "Cohen" o nome de Béla Kun, que teria constado de início (referência ao político húngaro que chefiou a República Comunista Húngara, de curta duração – março a julho de 1919). Béla Kun foi morto na União Soviética em 1939, aos 53 anos, nos expurgos de Stalin. Em 1964, como general, Mourão Filho eclodiu o golpe em preparação.

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da repressão e as verbas contra os subversivos. Eduardo Leite apresentou-se apesar do risco, eliminando os motivos legais para as detenções: emprestara o automóvel. Quanto às armas, sumiram. – Os tiras puseram todas no chão e repartiram em minutos impressionou-se Ladislau. – Simplesmente não as decIararam. – É a impunidade. Nem se preocupam que os vejam. Parece o delegado que batia no estudante dizendo: não são tapas oficiais, não mando bater em ninguém. A fim de apressar a soltura e impedir novos maus-tratos, Onofre acertou um suborno de 250 mil cruzeiros através do advogado. – Dinheirão. Se fosse capital de giro, ganharia a benesse do Delfim às empresas, correção monetária. Durante algumas semanas os três esconderam-se; talvez os seguissem. Nunca mais Ladislau foi à casa de Encarnación. – Ainda bem que acontecem coisas engraçadinhas – Iara e Lucia comiam sanduíches de queijo à noite. – Pablo Neruda de boné e autobiografia no Brasil. Pena que babaca, se contorcendo para justificar os tanques soviéticos. Mas adorei o documento da CELAM10 e os aplausos na conferência sobre o colonialismo português11. Meu portuga ia gostar.

No salão do jardim armou-se a hupá do casamento. Iara, madrinha, estava feliz. O vestido azul-marinho de gola e fita branca realçava a pele do rosto e os cabelos. Os olhos, cuidadosamente maquilados pareciam ainda maiores. Os convidados descontraíram-se após a cerimônia – a expressão fechada do pai de Miriam era penosa. Iara acomodou-se na escada com Robertão, Maria Lucia, Chicão, Raul, e lá conheceu Flávio Koutzii12. Pertencia à Dissidência Leninista do Rio Grande do Sul13. Primo da noiva, 25 anos, morava em Porto Alegre. 10

Il Conferência Episcopal Latino-americana. O texto Paz na América Latina abordava, entre outras questões, a insurreição revolucionária, justificando a violência contra tiranias de pessoas e instituições. E negou direitos incondicionais e absolutos à propriedade privada. O bem-comum limitava-a. Dos 130 bispos com direito a voto, cinco foram contra. 11 Promovida no TUCA pela oposição portuguesa em São Paulo, durante a mostra "42 anos de Fascismo em Portugal", O conferencista foi o jornalista e escritor Miguel Urbano Rodrigues. 12 Preso de 1975 a 1979 na Argentina, escreveu Pedaços de Morte no Coração, obra citada, sobre os cárceres políticos naquele país. 13 Egressos constituíram o Partido Comunista que no início de 1968 entraram na POLOP e depois Partido Operário Comunista POC*.

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Mal abordaram política, pois resguardavam as atividades. Um pouco de psicologia, economia que ele estudava, família, filmes. Combinaram ver Odisséia no Espaço. Na noite chuvosa do encontro, em frente ao cine Majestic da Augusta, Flávio viu-a surgir de cabelos presos atrás capa à Casablanca. – Inúmeras vezes recordei a cena, a figura bonita. Terminada a sessão foram jantar, perplexos. O monolito enigmático, a hegemonia eletrônica, feto, computador, solidão, ecos, a ironia das salas de espera, o banal em existências à deriva, vivos na alma os mortos de um tempo que se perdeu. Alguma coisa que escapa à percepção, Kubrick lembra o pesadelo de Alphaville. Elucubrações de Primeiro Mundo, nosso compromisso é o ser de carne e osso aqui e agora. O famélico. Tornaram a ver-se, porém o relacionamento não se estreitou. Flávio tinha companheira no Sul. – A morte dela me dá grande pena. Trajetória de guria da Faculdade se radicalizando. Morreu com muita honra. Preferia que estivesse viva, mas não acho que se deve conservar a vida a qualquer preço. Julgo sábia a escolha, duro demais o sofrimento que a aguardava. Conheci dezenas de pessoas que decidiram assim. Miriam e Melo moravam na rua Consolação, quase esquina da Oscar Freire. O avô mobiliara o apartamento, presente dos Abramovay. Iara amiúde os visitava, satisfeita de surpreender a cunhada com suas opiniões. – E o que você me diz do energúmeno da Marinha? Ele garante que o culpado pela perdição da juventude é o Eros e a Civilização. A gente não tem escapatória – exagerava no tom. – Olhaí, Marcuse implanta uma libidinosa moralidade, que amplia as zonas erógenas do corpo e obtém erotização geral da personalidade. Gente, o cara tem ferro de engomar na cabeça, como diz meu economista do PC. Subsídios para meu doutoramento: análise da cabeça de um milico. Tudo castrado. Amedrontada, Melo em missão secreta, Miriam certa vez pediu-lhe que viesse dormir. Deitaram-se na cama de casal. Adormecida, agarrou a mão de Iara, que *Marco Aurélio Garcia, Jornal Em Tempo – "Uma Tentativa chamada Partido Operário Comunista" – 11 a 17.10.79: O grupo pretendia constituir uma frente única proletária em torno da luta por comitês de empresa, greves contra o arrocho, liberdade sindical. Após a retração de 1969 surgiram dúvidas quanto ao caminho. No fim do ano formaram-se duas tendências, que adotaram o programa da 4ª Internacional, trotsquista: revolução permanente e estratégia de reivindicações transitórias. A direção nacional autorizou-as, num dos raros gestos de democracia que a esquerda revolucionária brasileira se permitiu no período. Uma persistiu na luta armada e teve no jornalista Luís Eduardo da Rocha Merlino um dos principais inspiradores.

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pressupôs o sonho da cunhada. Melo é o loiro descrito pela bancária da Silva Bueno, assalto na rua da infância. Ou organiza na Guanabara as manifestações contra o general Westmoreland, astro da Conferência dos Exércitos Americanos. A América Latina vira outro Vietnã, vocifera. O exército do povo, planetário, derruba generais opressores. Só a vitória dos oprimidos fará livre e justa a sociedade, o desenho do continente é criação cubana, um punho segurando o fuzil. Ou Melo enfrenta uma cobra na cela, como Edson Soares, da UNE. Se mais fraco fosse, confessaria até o assassinato de Kennedy14. Talvez a cena seja Chael, Fernando Ruivo e outros dois, presos com armas no carro. E nossa gente. O que acontece? Maluco, quedas à toa em barreiras policiais. Chael e Fernando não piam, nenhum deles. A polícia engole, são seguranças da UNE, afinal já tem uns 500 delegados por aí. Os companheiros precisam cuidar-se. Eu também, nenhuma bobeira. Ainda estão desnorteados, os atentados de direita embaralham. Prenderam aquela empregadinha loira, coitada, uma Bonnie, imagine o que os putos aprontaram. Minha cunhadinha segura o medo e sofre, vedado revelar-se até às pessoas próximas, os pais dela em pleno Rosh Hashaná15, ano 5729. Alguns sinais invisíveis distinguem os militantes, teorizou sonolenta. Anonimato, raras confidências. Somos máscaras. – Que aconteceu? – quis induzi-la a desabafar no dia seguinte. A outra silenciou, envergonhada. Não era comportamento para revolucionária que prestasse. Da próxima vez que visitou Heleny e Ulisses, Iara fez reparos sobre a intolerância. – Tem cabimento vaiar Caetano Veloso porque se remexeu demais ao cantar? Ele mesmo diz que a coisa dele é desclassificar. E a música se chama É proibido proibir! O pessoal anda radical demais, um exagero os cartazes "folclore é reação". Bem, de fato o fascista estimula e se alimenta do regionalismo, feroz com estranhos e antiinternacionalista. CantaroIaram juntas o sucesso de Vandré, Caminhada, os meninos de Heleny a correr sem parar, elétricos. – Essa música bate as outras de dez a zero.

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Folha da Tarde, 19.9.68: "Me deu um medo que nunca imaginei sentir.” Ano Novo judaico.

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Na Maria Antônia o clima subia paralelamente à temperatura política, rotineiros choques entre a Filosofia e o Mackenzie. Dia 26 de setembro Lauro Ferraz ajudou a suspender a conferência sobre o Vietnã de um capitão norte-americano, Charles Chandler. O homem defendera em Campinas o uso da tortura; diziam que ensinara técnicas de repressão na Bolívia, orientando atividades antiguerrilheiras. E faria o mesmo Uruguai. "Chandler vem justificar o genocídio. Fiquem sabendo que nosso caminho também é o Vietnã", discursou Travassos no pátio do Mackenzie. Panfletos sobre a guerra no Vietnã afirmavam: "Crescem as greves nas fábricas, as lutas dos camponeses, as manifestações de rua. A guerra popular derrota o imperialismo, o povo vencerá sua luta." Uma passeata até a Filosofia, do outro lado da rua, liderada por José Dirceu e José Bernardino, presidente do Grêmio, encerrou o ato. A conferência do capitão foi suspensa. Vários militantes intelectuais, a essa altura, apregoavam um interregno. Urgia refletir. Na Guanabara, examinava-se a proposta de uma federação de oposições. Menos emotiva que a proibida Frente Ampla, somaria forças em prol da redemocratização e retorno do governo aos civis. Ambicionava ligar-se às lideranças estudantis e católicas. Vladimir Palmeira, solto graças a um habeas-corpus, escondido, admitiu a idéia. Até Travassos prometeu conversar. Os setores de direita ouriçaram-se: a proposta fortalecia subversivos e comunistas. Frentes ameaçavam seu poder e postos na administração pública, onde substituíam o velho PSD16. Já encolerizados pelo vexame dos terroristas de direita nos "subúrbios do governo"17, consideravam inadmissível o Supremo Tribunal Federal sentenciar não ser crime reconstituir a UNE. Inquietavam-se ainda com os eventos na Argentina: a divisão entre o exército e a CGT, o acampamento de guerrilheiros encontrado em Tucumán e Perón, do exílio, a estimular violência. Dia 2 de outubro o marechal Costa e Silva desembarcou em São Paulo. Demonstraria ao governador "dissidente" e à oposição quem mandava no Brasil.

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Carlos Castelo Branco, obra citada: "A ação e pressão direitista (...) tem (...) duas motivações principais... uma de natureza ideológica e outra (...) que os políticos classificaram de fisiológica" (21.9.68). 17 Expressão usada pelo governador Abreu Sodré ao denunciar o movimento conspiratório. Jarbas Passarinho, na ocasião, declarou que radicais de direita pretendiam derrubar Costa e Silva, fechar o congresso e impor censura à imprensa. Chegou a insinuar manobra do governo. Folha da Tarde, 17.9.68.

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Inaugurou a praça Mário Kozel Filho no quartel do II Exército. Aniversariava e ofereceu um almoço aos chefes das três forças militares, cercados de políticos linha-dura, vereadores e prefeitos do Interior a bajular, sequiosos de prestígio junto a assustadiços pares e votos nas eleições municipais de novembro. Discursou18. Sodré teve de elogiá-lo: "A altura de um estadista, de um democrata e sobretudo de um líder na defesa da democracia". Mas reafirmou denúncias: grupos radicais procuravam endurecer o regime19. Um sapo o marechal engoliu: o conservador cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Agnelo Rossi, recusou a Ordem Nacional do Mérito20. – Boa resposta à expulsão do padre Pierre – alegrou-se Iara21. No dia da chegada, jornais publicaram uma denúncia apavorante do deputado Maurilio Ferreira, MDB de Pernambuco. O brigadeiro João Paulo Penido Burnier, chefe de gabinete do ministério da Aeronáutica e, constava, à testa do serviço secreto22, ordenou ao PARA-SAR, equipe de salvamento da Arma, que eliminasse as lideranças estudantis e políticas irrecuperáveis "segundo a filosofia da ESG". De um avião, seriam lançados ao mar23. – Sanguinário, assassino – enraiveceu-se Chicão. O assunto foi pouco aventado. – Pretendem intimidar lideranças de massa que não resolvem nada mesmo. Ho Chi Minh diz que o inimigo nos deve encontrar preparados para o pior possível. Assim, nada surpreenderá. Costa e Silva mal ficou 24 horas em São Paulo, território inamistoso. Sem acasos, no dia da chegada, intenso policiamento a protegê-lo, o CCC destruiu de vez o minúsculo núcleo de resistência da Filosofia, à conta de alguns secundaristas do

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Conduzia um governo democrático, ele próprio radical "porque radicalmente contrário a tudo e todos aqueles que pretendem destruir o já valioso patrimônio moral, cívico, social e político construído pela Revolução de março de 1964 (...) a tudo o que se apresenta aí com os laivos de um passado torpe e vilipendioso, que os revolucionários apagaram naquele memorável 31 de março(...) Aos saudosistas das bacanais e da desordem e da corrupção; aos apátridas e quinta-colunas do comunismo...". 19 Folha da Tarde, 3.10.68. 20 Nota oficial da igreja, divulgada dia 2 mas datada 3 nos jornais para diminuir o tamanho da ofensa, explicava razões pastorais: "setores católicos" davam à distinção um sentido mais político e partidário do que cívico e patriótico. 21 Pierre Vauthier, padre operário francês, preso e expulso do Brasil em agosto de 1968, participou da greve em Osasco. 22 Folha da Tarde, 08.10.68. 23 Outras tarefas, segundo relatos posteriores: explodir a hidrelétrica de Ribeirão das Lajes e o gasômetro no Rio, atribuindo-as a comunistas. O capitão Sergio Ribeiro Miranda de Carvalho, que protestou, foi preso, passado à reserva, teve os direitos políticos cassados e em 1979 rejeitou a anistia – não queria "perdão mas a reparação da injustiça". A Auditoria da Aeronáutica e o Superior Tribunal Militar absolveram-no do crime de falsa ideologia. Em março de 1986 foi promovido a coronel.

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interior. Participantes do congresso da União Brasileira de Estudantes Secundários, faziam pedágio na Maria Antônia para a viagem de volta. O que sobrasse dariam ao congresso da UNE. De posições no alto dos muros, mackenzistas atacaram com ovos. Pedras voaram da rua. Vieram tijolos. Alunos da Filosofia entraram na luta, José Dirceu e Luís Travassos à frente, enquanto professores embalde telefonavam aos colegas do Mackenzie pedindo-lhes para que intercedessem. Do laboratório da Engenharia, franqueado pela reitora ao que se disse, os atacantes obtiveram ácido sulfúrico. Coquetéis molotov retaliavam. A Guarda Civil interrompeu a batalha. Uma ambulância levou oito queimados de ácido. A polícia ficou no Mackenzie protegendo os agressores e logo invadiu a Filosofia, onde prendeu alunos e professores. A noite desceu e os dois lados se prepararam para novos que ataques. A guerra continuada parou no dia seguinte à tarde, quando morreu o secundárista José Guimarães24, 20 anos, que ajudava os alunos da Filosofia a carregar pedras. Uma bala o acertou na cabeça. Além dele foram feridos uma criança e dois estudantes, internados em este do grave na Santa Casa. Erguendo a camisa ensanguentada, José Dirceu conclamou a passeata. Urrava – "assassinos! ditadura assassina! covardes!". Se o matassem naquele momento, não teria importância. Era só desespero. Jovens transtornados saíram do prédio destruído rumo ao Centro, defenderam-se da polícia com buscapés, incendiaram cinco automóveis, um da comitiva de Costa e Silva, desgarrado. O pelotão espancou, deu tiros. Estava aí o morto previsto. Foram presas 86 pessoas. – Que dia terrível! – gemeu Iara. – E no México o massacre na Praça das Três Culturas, ratoeira de uma só saída. Varreram estudantes a metralhadora. Nunca dirão quantas centenas morreram. O

setor

logístico

da

Organização

respondeu

com

o

"justiçamento

revolucionário" – fuzilar Charles Chandler – planejado para o dia 8, aniversário da

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Não se esclareceu a morte de José Guimarães. Uma foto na Folha da Tarde, dia 7 de outubro, mostrava alunos do Mackenzie atirando com armas de fogo; a polícia disse que poderia ser forjada. Em dezembro o presidente do Instituto Mackenzie. Oswaldo Mueller da Silva, declarou à Comissão Especial de Inquérito da Assembléia de São Paulo: "O tiro que matou o estudante pode ter partido dos alunos do Mackenzie, dos alunos da Filosofia, de agitadores ou da própria polícia. Vossas Excelências sabem quanto vale um cadáver em momentos de agitação." E acrescentou que o mackenzistas estavam irritados porque em setembro alunos da Filosofia impediram Chandler de falar.

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morte de Che e passeata em memória de José Guimarães. Várias vezes Renata vigiou a casa. O capitão não apareceu no horário ou viajara. Voltaram dia 12, entusiasmados com o sucesso do assalto ao carro pagador da Massey-Ferguson na antevéspera, que rendeu 80 mil cruzeiros novos. E fuziIaram-no. Panfletos distribuídos pelo ex-sargento Pedro Lobo de Oliveira, militante de esquerda expulso das Forças Armadas depois de 64 e desde então chofer de táxi, davam explicações25 aos horrorizados moradores da rua, no bairro do Sumaré. Segundo o posterior relato26 de Pedro Lobo, alguém da casa fronteira, pertencente à apresentadora de televisão Hebe Camargo, anotou a chapa de um dos Volkswagens utilizados, recolhida nos rejeitos do Detran. A polícia localizou o dentista proprietário e sua mulher em Jales, Santa Catarina. – Coitado do casal, devem estar sofrendo. A repressão vinga-se do justiçamento em vítimas inocentes – sopesou Iara, chocada com o novo golpe no movimento universitário: centenas de estudantes presos no 30: Congresso da UNE. O fim das lideranças, de José Dirceu. Frio, umidade, três horas de caminhada do sítio ao lugarejo de Ibiúna, próximo a São Paulo. Tantos rostos amigos nos jornais. – Um dos jornalistas que cobriu o fiasco foi Merlino27. Ajudou, certamente. Trouxe recados. Gente, isso é jeito de se deixar prender? Numa cidadezinha de nada, 200 cruzeiros novos na padaria dão na vista. Será verdade? É primário! Foi infiltração. E os milicos podres de cabeça, inventando anticoncepcionais nas bolsas para horrorizar o povo. Ah, o atraso deste país! – Se o Sodré não mandasse prender os estudantes, seriam derrubados ele e Costa e Silva. Condoída e saudosa tornava a esquadrinhar a foto. Olhos fundos, barba por fazer, sapatos estragados que chovia, chovia. Reencontrar-se no palanque, milhões de redimidos na rua a aplaudir a revolução vitoriosa.

“Justiça revolucionária contra o criminoso de guerra no Vietnã e agente do imperialismo norteamericano (...) técnico destacado no Brasil, pelo Pentágono, para preparar criminosos locais nas práticas da contra-revolução através de torturas e crueldades que atentam contra toda humanidade." 26 Los Subversivos, obra citada. 27 Luís Merlino, 23 anos, morreu de gangrena nas pernas, consequência de torturas no DOI-CODI do II Exército em julho de 1971. A imprensa trotsquista do mundo inteiro evocou-o. No X Congresso da 4: Internacional seu nome figurou entre os mártires da revolução mundial. 25

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Aprontou-se para sair com Lucia. Não deveriam estar em casa durante o assalto à agência Banespa do prédio, absurdo, bem onde a gente mora, ao menos vou almoçar a comida boa de minha mãe: bife à milanesa, empadão, pudim de leite macio, enchendo a boca. O sucesso do roubo, descrito quase como roteiro de filme nos jornais, alarmoua28. – Eu quero ir embora, não fico mais aqui. Irado, Quartim desfiava argumentos em favor do recuo. – Nem a morte de José Guimarães, ao contrário do Edson Luís em março, pôs a classe média na passeata dia 8. E agora a polícia também espanca em São Paulo. Brucutus, cassetetes, dezenas de prisões. A morte do Chandler choca a opinião pública e desnorteia a oposição. É contraproducente. – Hay que llevar la guerra hasta donde el enemigo la lleve; a su casa, a sus lugares de diversión; hacerla total – os militares citaram Guevara. – Bastam armas, disciplina e treinamento para fazer a revolução. O momento passou, não existe respaldo, insistia a ala leninista. Não somos o Japão, a Zengakuren organiza três milhões de peso contra as bases dos EUA e a guerra do Vietnã. Aqui os radicais de direita escapam ao controle, quem não estranha o acidente de carro do brigadeiro Eduardo Gomes, que apoiou os insurgentes do PARA-SAR? Norma Benguel atacou a censura, foi seqüestrada para a Guanabara depôs no 19 Batalhão da PM. Querem coisa mais cIara? Caetano, ameaçado de justiçamento porque cantou o Hino Nacional em ritmo tropicalista, Sobra algum humor, ainda bem: a colunista Tereza Cesário Alvim, ao relatar a idéia fixa dos órgãos de segurança com o trabalho do copidesque – lá se decidiria o destino do noticiário – aplaudiu na sua coluna a identificação do deturpador: "iugoslavo e se chama copidreck"29.

28

Jornal da Tarde, 16.10.68: calma e inteligente, a quadrilha da metralha levou 100 mil cruzeiros novos, quantia recorde. 29 Folha da Tarde, 9.10.68 (dreck, em alemão: sujeira, lixo, excremento)

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IV LAMARCA

Os militares. Zequinha. Areia

EMBORA SEM VÍNCULO ORGÂNICO até o assalto ao Hospital Militar, quando aderiram entusiasmados à Organização, os homens-chave do 10 RI – capitão Carlos Lamarca, cabo José Mariane, soldado Carlos Roberto Zanirato, sargento José Araújo Nóbrega e sargento Darcy Rodrigues, este o elo entre a base e o dirigente Onofre Pinto – recebiam documentos internos de estudos políticos. Entre si discutiam táticas e estratégia de luta. Nos primeiros meses de 1968 Onofre encarregou Renata Guerra de Andrade da assistência teórica ao círculo de estudos que funcionava à noite em Quitaúna, prosseguindo a rotina estabelecida desde o contato inicial com a POLOP. Em outubro Iara substituiu-a, conduzida de óculos opacos. As duas primeiras reuniões nas casas de Onofre e Nóbrega não compareceu Lamarca, líder da base e seu maior estrategista. Mas ao abordarem a questão militar sua presença tornou-se necessária. Iara demorou a reconhecer no homem alto e magro, expressão fechada, o militar que evitava olhá-la quando esteve no quartel em 1962. Lamarca de imediato viu nela a estudante, biquíni e corpo molhado à beira da piscina, grandes olhos e lábios carnudos. Julgou ainda mais atraentes o dengue nos gestos, rosto amadurecido, gentileza no rebater um, estimular outro. Acima de tudo, abalou-o a profissão da companheira. Coisa de homem, sempre a reivindicar atenção especial, cuidados maternais, diria. Pois Iara era uma enfermeira de almas. Suave, feminina, estranha dissonância com a firmeza dos argumentos. O grupo ouvia-a respeitoso e aventurou-se no texto de Lenin O Estado e a Revolução. A ditadura do partido em nome do proletariado dirigirá a revolução, aceitaram; porém só depois de vencedora. O tema desgastava. Os antimilitaristas esboroavam o achado de Debray – a guerrilha absorve as bases, abolidos na América Latina os partidos operários. Aos militares agradava a tese debrayista de que a formação política no decurso da guerrilha é melhor, sendo o exército popular o núcleo do partido; cabia ao comando da guerrilha dirigir a luta revolucionária.

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Iara interessou-se pelas observações de Lamarca sobre o teórico Carl von Clausewitz, autor da célebre frase "a guerra é a continuação da política por outros meios", e do enunciado que defendia incorporar o povo como seu elemento central. – Afina com o aperto crescente às atividades civis. Gostava das lições centradas na qualidade dos armamentos, usos corretos, a função do ataque e da defesa. Eram conceitos do Exército da Justiça, homens verdadeiros, destemidos. Havia algo de messiânico nos olhos escuros do capitão, um deles a enxergar além, nervosismo controlado. Tape a vista direita na foto, garantira aos alunos, analise a esquerda. Revela as dores e desígnios, bom ponto de partida na terapia. E se o cliente for canhoto? Inverta. O rosto de Lamarca recusava-se, dinâmico. Não se preocupou em decifrá-lo afora o alcance da intuição. Usufruía o status de intelectual, reencontro com a segurança dos tempos de escola, no Ipiranga. O grupo é meio simplista, troçava, mas são inteligentes. – Ela sempre nos impressionou pela sensibilidade e nível cultural. O pessoal de origem militar normalmente carecia de formação marxista e admirava muito quem vinha da POLOP – resume Darcy Rodrigues. Iara trazia o argumento dos companheiros "da pena", já céticos sobre o futuro em comum: – Imprescindível que a política comande a guerra revolucionária. Uma organização armada é vanguarda à medida que mobiliza as massas, liderando-as. Um bando de gente soltando bombinhas não muda a sociedade. Certo acúmulo de meios, todavia – armas e dinheiro – não prejudica ninguém. Desde o ingresso na Organização, Lamarca acreditava cegamente na viabilidade da coluna guerrilheira. E insistia em desertar com as armas. Quartim tentou de todas as formas sustar a execução do plano, mas o grupo não queria falar de recuo. – Segundo o setor rural, contávamos com dois mil camponeses no Pará, em área já levantada – justifica Darcy. – As informações erradas vinham principalmente de Onofre, que elevou as promessas à enésima potência, pois abusava do direito de sonhar. Não incorria em desonestidade proposital. Os dados chegavam parciais, às vezes superpostos. Impossível checá-los. Tivemos uma reunião derradeira. Quando disseram "o comando acha que vocês devem ficar no quartel, questiona as informações do setor rural – é grossa mentira a base no Pará e os camponeses – vocês vão abrir a temporada de caça à gente e foder com todo mundo", encostei na 251

cadeira e dormi, ostensivo. No final me perguntaram: "O que você acha?" Respondi: "Acabou? Eu quero saber quando será a ação." Irreversível. Há meses, como auxiliar do supervisor administrativo do regimento, incumbido de requerer material bélico e destruir explosivos vencidos, Darcy desviava-os. Para tanto, fraudava registros nos exercícios de tiro e atas de destruição. Também surripiou granadas que serviriam de modelos a copiar1. – Já desconfiavam e logo eu teria de dizer que fim levou o armamento. Onofre queria montar uma noite inesquecível. Bombas no Palácio dos Bandeirantes, no quartel do II Exército, na Academia de Polícia simbolicamente erguida à entrada da Cidade Universitária. Espinosa e Iara discutiram. – Sair agora é loucura. Não temos estrutura. Onde vamos guardar um caminhão de armamentos? E, diga-se de passagem, é pouco para começar o foco. Nem temos dinheiro suficiente – desfiava Iara. – Mas nos comprometemos com o grupo. Vamos cumprir o encaminhamento. – Metade da Organização acha porra-louquice. Isso vai dar em racha. – Pois eu sou a favor. – Eu, não. Bem, o desvio a descoberto é uma razão forte. Agora, explodir não sei quantos prédios... e daí? Só cutuca a onça. Na Guanabara a repressão atacou estudantes que pretendiam inaugurar a estátua da liberdade brasileira: um militar de cassetete na mão direita e metralhadora na esquerda. Refugiaram-se no hospital-escola Pedro Ernesto. Um jovem morreu a bala, o gás lacrimogêneo matou de asfixia um bebê e um velho doente. De joelhos na rua a atriz Vanja Orico implorava "não atirem". Foi pisoteada e presa. Durante uma semana, sete mortos. Em São Paulo a polícia não interferiu nos protestos. José Arantes, que escapou da triagem de Ibiúna e apareceu num carro acompanhado de quatro pessoas, fez discurso e sumiu2.

1

Maria Lamarca, viúva de Carlos Lamarca, disse ao cineasta Sérgio Rezende que aconteceu de abrir a lavadora de roupas e topar com o tambor cheio de granadas. 2 Folha da Tarde, 23.10.68: "Não temos medo de cassetetes ou cães. O governo, a cada dia que passa, está mais fraco. A prova é que usa violência contra a massa... companheiros, a luta não é só nossa, é dos brasileiros que estão saturados desta ditadura."

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– E a ditadura instala o Conselho da Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Filinto Mueller, Gama e Silva. Sinistro, o pessoal melhorzinho* participar. Não aprendem. Reformismo é doença. No largo São Francisco, 22 de outubro, o CCC derrubou a socos o pai de Elias. "Comunista!", acusavam. – Que ódio! – Iara chorou, desconsolada. – Ah, eu queria matar um desses covardes3. Dia 23 de outubro, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas-corpus a José Carlos Barreto. Saiu no dia seguinte, viajou para a terra natal na Bahia, Buriti Cristalino. Voltou ligado à Organização, clandestino. Conduziram-no tarde da noite, óculos opacos, ao aparelho da Iguatemi. A inesperada visão radiosa no apartamento fechado, paredes sombrias, fascinou Zequinha. Iara era o paraíso no inferno. – Você ia mesmo explodir aquele depósito de gasolina? – Claro. O gérmen do homem novo. No começo de novembro a polícia prendeu no Rio suspeitos do assalto de 126 mil cruzeiros ao carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara. O jovem Paulo Cesar Monteiro de Bezerra confessou sob tortura que Marighella chefiava a "quadrilha da metralha". As quedas levaram à casa, em São Cristóvão, do ex-sargento João Lucas Alves, agarrado como ex-sargento José de Sá Roriz e um agrônomo4. Havia armas, dinheiro, impressora, uniformes da Aeronáutica e Polícia Militar, barbas e bigodes postiços, plantas de bancos. Os três só foram apresentados após dias de tortura. João Lucas Alves estava sujo, barbado, pálido. Monossilábicos, negaram a participação em assaltos. – Pegaram o fio da meada. Pediu a Barreto que descrevesse os suplícios – queria ajudá-lo, como psicóloga. Relutou. Garantiu-lhe que se fortaleceria ao superar o pudor machista. Homens fortes e mulheres submissas, explicou, são papéis complementares que interiorizamos. Reproduzimos o sistema econômico que divide o ser humano em exploradores e explorados. Además, aliviou-o jocosa, é importante saber o que

*

Os outros: senador Aurélio Viana, deputados Ernani Sátiro, Mário Covas, professores Samuel Duarte, Danton Jobim, Pedro Calmon e Benjamin Albagli. 3 O dr. Alberto Moniz da Rocha Barros faleceu um mês e meio depois, de infarto. 4 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19).

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acontece nas quedas. Permite uma preparação, ao menos psicológica. Barreto cedeu, enumerando o que era público5. – Inexistem limites para o abjeto – murmurou ela. Muito além de nove os círculos do inferno são infinitos. Barreto discordava, objetivo. Nada é infinito porque somos materialistas e a sente morre antes. Teimou, círculos estreitando-se até o derradeiro, asma fatal. – Você se contradiz, não percebe? O pessimismo evaporou quando, ao acolher as denúncias do PARA-SAR, o brigadeiro Itamar Rocha, também punido, difundiu a carta em que o ministro da Aeronáutica, Márcio de Souza e Melo, abonava a morte de "maus brasileiros" em defesa da Pátria. Aí, filho da puta, as três faces hediondas a nu, triturador de patriotas, espere o paredón. Falavam da guerrilha próxima, porque o golpe dentro do golpe, iminente, liquidaria as medidas civis, desacreditadas aliás: greves, a federação oposicionista, eleições, reforma constitucional, anistia, o que fosse. Daí a importância dos assaltos, roubo de armas, munições, compra de áreas de cerco difícil. Tarefa de Ladislau, pensou Iara, ele o responsável pelo setor de campo, quatro companheiros em jipes a procurar terras no Mato Grosso e Maranhão. Para lá o setor logístico deslocaria profissionais diversos, de marceneiros a médicos, espécie nova de migrantes na década hippie, futuro núcleo da coluna guerrilheira. Valdir visitava Lucia regularmente. – Pensa que só você pode ter homem? Também posso! Agora tá ótimo, você e o teu num quarto, eu e Zequinha no outro – exagerava a modulação da voz. Gostava do companheiro. Inteligente, estudioso. E líder sindical. Presenteavaa com gerações baianas, brasilidade, o sotaque melodioso que a amolecia, espírito sertanejo distante do Ipiranga, pode? Zequinha, de percepção enriquecedora. Alguém

5

Folha da Tarde, 19.9.68: corcovado, horas de costas para o abismo, sentado num muro alto; à frente, baionetas ou metralhadoras. Ginástica, ininterruptas flexões de perna segurando dois catálogos telefônicos, sob pancadas. Horas, dias algemado à mesa. Pau-de-arara, velho conhecido, acoplado aos choques em áreas sensíveis do corpo, em especial nos genitais, o que além da dor desmoralizava as vítimas – atentado à virilidade dos homens, intimidade das mulheres. Banho chinês, cabeça num tonel de água imunda ou óleo, até quase afogar-se. Telefone, golpes de mão em ambos os ouvidos, arrebentando os tímpanos. Tenazes, que arrancam unhas ou esmigalham partes, pouco empregadas por deixarem marcas. Churrasquinho, acender álcool sob o corpo ou aplicar papel retorcido no ânus da vítima presa no pau-de-arara e incendiá-lo. Sabão em pó nos olhos acompanhado de feixes de luz, predileção do Cenimar na Guanabara. Geladeira, deixar a vítima só de cuecas no frigorífico de carnes a 20 ou 30 graus negativos.

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que observava o acontecimento chão, invariavelmente ignorado nas grandes análises de contexto da Faculdade, alienadas na essência, isso sim. Ganhava dele ainda coragem e consciência proletária, limpeza de caráter, nenhum sarcasmo e até quatro anos de seminário, em Pernambuco. Mas admitia ressalvas a Lucia. – Não somos bem do mesmo gênero. Os colegas da Filosofia João Antonio Abi-Eçab e Catarina Helena Xavier Ferreira morreram num desastre na via Dutra. Ergueu os grandes olhos para a janela cerrada, Zequinha a ler jornal. Conhecia-os, casados há cinco meses. Militantes de Marighella. Mortos? O carro bateu na traseira de um caminhão, a polícia encontrou metralhadora, sacola de banco sem dinheiro, endereço de uma tia. – A pobre, cairão em cima dela. A história é esquisita, será que forçaram o acidente? Conversou com Ulisses e Heleny, a amiga de partida para encenar Jorges Dandin em Presidente Prudente. O abominável do terrorismo Estado é que toca nos arquétipos, o grande pai devorador de filhos, de comunal aparato afunilado na vingança. Gigante de micropênis. Abaixo do rio Grande campeia a barbárie, protegerse é pactuar, bando encagaçado de vermes a fugir da luz. Qual o sentido de dedicar a vida a interesses mesquinhos, casa própria, automóvel, televisão a cores chegando? Ah, Deus me livre! Por João e Catarina. Os mortos que virão. A Organização armava o primeiro congresso, iniciativa de Quartim. As teses, irreconciliáveis: recuo e consolidação; guerrilha urbana e preparativos para o campo. Iara não iria. Mantinha a rotina, alunos em provas finais. Deu um jeito e viu Os Fuzis da Senhora Carrar os temporada curta no Teatro São Pedro reformado. Imaginou paulista nos ataviados nos camarotes, aplausos à companhia lírica da noite inaugural em 1917. Na Albuquerque Lins adormecida, falou da mãe mocinha que morava e casouse ali. No botequim da Barra Funda comeram pedaços de pizza e discutiram o filme do momento: A Mulher de Areia, dirigido por Hiroshi Teshigahara, baseado no livro de Kobo Abe. Que imensa armadilha arenosa engole um homem e torna vã sua luta por libertação? Parece uma história conformista, concluiu. Arrepiou-a o destino de areia, desespero em dar-lhe forma. Escorregar. Lembra a história do rabino, que aconselha não pular a própria sombra. Descreveu Os Fuzis da Senhora Carrar a Barreto. 255

– A infelicidade catalisa, acorda consciências conformadas, impele à ação. Omitir-se é violência. Não fomos nós que começamos. Brecht escreveu uma fábula sobre o compromisso do indivíduo para com a sociedade, o conflito entre participação e a ilusória neutralidade. O namoro pouco durou. Barreto era um menino, apesar de só dois anos mais moço. Pela primeira vez condoeu-se. Até aqui ferira com os ferimentos recebidos, a gente vomita a loucura na tentativa de curar-se, teorizou, é uma catarse. Aí vive em paz enquanto os esporos se reproduzem, devidamente recolhidos em prol da sobrevivência pessoal/conforto federal. A despeito da brincadeira sentiu-se culpada. Zequinha sofreu. Não entendia o fim súbito de um contato íntimo de marido e mulher. Queixou-se a Valdir, amigo disponível, encarregado de conduzi-lo aos pontos. Prestou atenção às longas explicações acerca do que ocorria na Maria Antônia, a recém-assumida liberdade sexual. Compreendeu e, companheiro de Lamarca até a morte, jamais mencionou palavra a respeito.

Várias vezes Iara e Espinosa, chefe do setor militar-urbano destinado a realizar ações armadas na cidade, reuniram-se. Discutiam o movimento estudantil, pois ele dava assistência a alguns grupos. A amizade aprofundou-se. Encontravam-se no restaurante Pelicano da rua Augusta, ela deleitada no strogonoff; ou nos bares alemães do Brooklyn, salsichas, cerveja e suco de Iaranja. Conversavam sobre leituras, política, gente. – Comecei a ler o livro do Trotski. Ai, os sonhos revolucionários e a realidade que viveram. A questão dos camponeses, por exemplo. Será que vamos converter os nossos ao socialismo? A bandeira burguesa é a reforma agrária, o sitiozinho para cada um. Perfeita mentalidade privatista. Preocupavam-na as relações pessoais. – Tenho grande medo de passar sobre os companheiros, permitir que o processo revolucionário massacre os mecanismos subjetivos, as individualidades. Iam passear nas ruas tranqüilas perto da Hebraica, ao terreno ocasionalmente ocupado por circos que evocava Ecléa. Vinham as duas da Cidade Universitária uma tarde, quando viram o enorme e belo elefante amarrado à corrente. Aquilo deprimiu-

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as, símbolo de escravidão. Chovia. Adivinhando os pensamentos da amiga, Iara abraçou-a: – Olhe, na sociedade pela qual lutamos, os animais também serão respeitados. Dia 29 de novembro intelectuais, empresários, líderes da Igreja e outras figuras de projeção nacional enviaram uma carta-manifesto a Costa e Silva, pedindo o fim do terror. Acusavam as bombas contra a Escola Nacional de Belas Artes, Faculdade Nacional de Direito, Colégio Brasil e Livraria Civilização Brasileira na Guanabara, e contra a Faculdade de Filosofia em São Paulo, além dos vários teatros, de avanço sistemático do totalitarismo neofascista no Brasil. Das forças armadas esperavam que não fossem cúmplices, por ação ou inércia. Como que provocando sua ala de intelectuais, dia 6 de dezembro o Banespa da Iguatemi sofreu nova "expropriação" à mesma hora, 11:20. Desta vez, sem aviso prévio às moradoras do aparelho. Ao voltar para casa, Iara viu um jornalista conhecido. – Acho que ele sacou, teremos de mudar. – Parece brincadeirinha, bem no prédio da gente – indignou-se Lucia. – É pra chatear o João. Segundo Darcy Rodrigues6, o banco a expropriar era outro. Mas surgiu um imprevisto do qual não se recorda e um dos companheiros propôs voltarem à Iguatemi; todos se lembravam do esquema. Aprovada a proposta, o militante Yoshitame Fujimori dirigiu-se à gerência. Muito educado, chamou a atenção do homem: – Lembra-se de mim, senhor gerente? A polícia não teve dúvidas. Eram revolucionários, como na Guanabara. Tirante habilidade e arrojo, o volume em dinheiro já teria satisfeito ladrões comuns7. Empacotaram as coisas para esvaziar o apartamento. Penalizada, Iara rasgou os recortes com as poesias de Marighella8. Um perigo. – Só ele, fase russófila-realista, estas "Engenharíadas": o ácido clorídrico "produz a luz azul(...) e na harmonia química, o seu som semelha um longo ronco/De um urso velho dorminhoco e branco”. E "Liberdade": "...que eu por ti, se torturado for/possa feliz, indiferente à dor/morrer sorrindo e murmurar teu nome". Parece

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Los Subversivos, obra citada. Jornal da Tarde, 7.12.68. 8 Folha da Tarde, 21.11.68. 7

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homenagem a Panagoulis9. Não temos tempo de temer a morte – cantarolou a música Divino, Maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, que Gal Costa acabava de interpretar. Despediu-se de Lucia: – O Camilo vai bem? Tá mexendo muito? Olhe lá, necas de Fábio. Ele é Camilo10. Antes da mudança os pais vieram vê-la no shopping. Sentaram-se na lanchonete do piso superior, perto do cinema. – Ai, que saudade de vocês, de todos. Sem noção das atividades de Raul, David falou do futuro filho médico. – Vou mudar – informou Iara. – Nosso aparelho perdeu a segurança. – Para onde? – Por enquanto, uma pensão. – Se quiser voltar a casa, venha a hora que quiser. O apartamento caiu depois das prisões de janeiro de 1969. Não havia ninguém. Lucia teve tempo de rescindir o contrato e despachar os móveis a outro local, antes do retorno a seu quarto de solteira nos fundos da casa dos pais, em Santo André. Inocente do risco, oferecera-o para contatos. Estiveram lá o cabo Anselmo e Onofre, que organizou uma base em Ubatuba. Lucia foi incumbida de fazer fachada em outro apartamento, no Ipiranga, destinado a reuniões de cúpula. Compareciam regularmente, ela e Valdir, para dar a impressão de que moravam ali. Uma companheira, com filho pequeno, fazia-se de empregada.

Dia 7 de dezembro Iara assistiu a Galileu Galilei no Teatro Oficina, direção de José Celso. Cely Campelo cantava Banho de Lua sob bombardeios, percepção de pessoas torturadas, sacerdotes vestiam batinas verdes-olivas.

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Revolucionário grego condenado à morte pelos militares*. * Marighella talvez tenha se inspirado na famosa poesia de Paul Eluard, Liberté, que a Rádio Livre Francesa transmitia durante a ocupação da França na Segunda Guerra Mundial. 10 Fábio Camilo nasceu em 1969; só o chamam Camilo. Quando fez 18 anos sua mãe, que mora em Belo Horizonte, trouxe-o à Maria Antônia para que visse a rua, a antiga Faculdade, o Mackenzie e o prédio onde morou Iara.

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– Galileu protege a carcaça, individualista – inflamou-se um estudante no grupinho, à saída. – Você precisa ler o artigo do Boal sobre os heróis – aconselhou Iara, feliz porque acabara de abraçar Jandira. – A peça tem mensagens interessantes: campeia o elitismo, vedam o acesso do povo à arte. E a inteligência da repressão é maior do que a esquerda acredita. Bem, não bombardearam o teatro, já é alguma coisa11. Reviu os amigos na tela, em O Bandido da Luz Vermelha. – É a cara do Brasil, submundo avacalhado. O caos do filme deixa a gente meio zonza. Alugava um quarto em Santo Amaro, de alemães idosos. Visitava as pessoas próximas, contra as determinações da Organização. Foi madrinha de casamento de Maria Lucia e Chicão. Os amigos marcaram um jantar de despedida no enorme Zillertal, restaurante alemão na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Albertina e Claudio viajavam à França, bolsistas. Iara, Marina, Betty, Carlos Henrique e Ferro, os últimos ligados à recémbatizada Ação Libertadora Nacional ALN, de Marighella. Multidão ruidosa e colorida, o conjunto de música alemã, valsa a fluir da harmônica. Felícia tocava, Iara teve vontade de rir. O rosto de Cecília emergiu, o da sogra, mãos na cabeça ao começar a barulheira na casa vizinha. O chope e os rodopios na pequena pista de dança aguçavam em Iara a sensação da clandestinidade. Outra e no entanto a mesma, jogo de esconde-esconde no fio da navalha, a mãe e sua paixão por Maugham, e Honório? Bom ser agente de mudança, nem que obscura. Jamais abandonaria o barco, banana a quem não me leva a sério, o lance é atirar-se e depois ver, forças naturais conduzem à tona. Só às vezes a intuição do enredo terrível, desvario, um punhado de gente mete-se a virar tudo de pernas para o ar. Albertina e Claudio, tristes e amedrontados, conheciam as disposições da mesa exultante, coberta de canecas. Ninguém apontaria a mor te rondando. Não se desvia o herói do caminho mediante argumentos pequeno-burgueses. O reverso da moeda, igualmente indizível: o casal partia, covarde.

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Uma bomba explodiu no Teatro de Arena da Guanabara; Vandré apresentava a peça musical Continuando. Outra, no jornal Correio da Manhã. O Oficina recebera ameaças. Em entrevista ao jornalista Ayrton Baffa (O Estado de S. Paulo, 24.2.88), o coronel Luiz Helvécio da Silveira Leite, exprimeiro subchefe da agência central do SNI, revelou ter realizado "operações contra teatros que, fugindo da ética artística, ingressavam com espetáculos contra o regime". E deu detalhes dos atentados contra o Maison de France e o Teatro Opinião, ambos na Guanabara.

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Já madrugada, bêbados, abraçaram-se cambaleantes na calçada. Agarrados, roda infantil a girar, chorando, não se desprenderam até Claudio explodir. – Cuspo no túmulo de vocês!12 – Piada agressiva, verdadeira cristalização da angústia. Depois ficamos horrorizados – assinala Albertina. – Pela primeira vez mencionamos a hipótese da morte. De certa maneira Claudio preveniu-os: "Vocês vão fazer besteira e se estrepar." Sóbrios, nunca nos permitiríamos dizer aquilo. Havia um clima de heroicidade. E nós, bolsistas de partida. Iara sentiu falta da amiga e escreveu-lhe cartas, letrinha redonda, sempre os traços de dona Angelina. Falou dos amigos comuns, da saudade e do novo amor, sem nomeá-lo. E terminava: até a vitória final, nos veremos no palanque. Albertina respondeu sem tocar em política. Não cabia. Eles é que tomavam a si as conseqüências, cheios de coragem. O congresso da Organização realizou-se no começo de dezembro em Ubatuba. Chamaram-no Praianada, inspirados na Praieira* e a setembrada estudantil, constante o objetivo de retomar tradições revolucionárias brasileiras. Aprovaram o nome Vanguarda Popular Revolucionária – VPR. Nas discussões teóricas venceu e foi eleito à direção o grupo de Quartim13. Os protestos em Minas14 reforçavam o argumento "recuo para consolidar". – A revolução brasileira tem caráter socialista e evolui através da diversificação das lutas. Lidera-a o partido revolucionário, composto de uma elite profissional disciplinada. E a direção suprema, que exerce a ditadura em nome do proletariado. Por que os círculos de estudo invariavelmente ignoram essa tese de Lenin? A

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Referia-se ao filme de Michel Gast Vou cuspir no seu túmulo, baseado no livro do francês Boris Vian. Todos tinham visto o policial anti-racista de 1950. Além da violência e das mortes no filme, sabiam que Vian morrera de infarto aos 39 anos, numa pequena sala de cinema em Paris, ao assistir a uma sessão da fita. * De 1842 a 1849 em Pernambuco, influenciada pelas revoluções liberais na França, o socialismo utópico de Fourier e Louis Blanc. Defendia os interesses das camadas médias urbanas, essencialmente antiportuguesas. Foi derrotada como os outros movimentos que acompanharam a independência, em busca do liberalismo então sinônimo de democracia. Caio Prado Jr., Evolução Política do Brasil e outros Estudos, Ed. Brasiliense, 1957. 13 Marco Aurélio Borba: "Essa vitória política pouca significação tinha numa organização em que a política saía da boca do fuzil", no artigo "A VPR e a Crítica das Armas", Jornal Em Tempo, 7-21.2.80; Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19). 14 Devido à prisão de um padre belga e um seminarista ativos na Juventude Operária Católica, todo o clero reagiu e "a opinião católica mobilizou-se de forma nunca vista (nem mesmo em 1964) em Belo Horizonte"– Carlos Castelo Branco, obra citada (12.12.68, véspera do Al 5). Centenas de fiéis, sacerdotes, freiras e seminaristas protestaram nas ruas. O toque oposto foi de D. Sigaud, arcebispo de Diamantina, que abençoou as espadas e pregou o ódio aos comunistas.

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proposta debrayista de abolir os partidos é inepta. Quanto às ações, restritas, começam e acabam nelas. Se muito, na fugaz manchete do jornal. O movimento social não as assimila. Não produzem consciência nem mobilizam. Não consolidam. Se a VPR prosseguir na linha militarista ficará a descoberto. Uma só queda pode destruíla. A linha dura avança independente da querela sobre processar deputados. O esvaziamento do Congresso está preparado. E o momento do passo atrás. Sedimentar. Temos 200 militantes. E o suficiente para iniciar um trabalho político. Na volta a São Paulo os militantes ouviram pelo rádio a notícia do Al 515. Gama e Silva, seu defensor desde meados do ano, fez a comunicação depois que os congressistas se negaram a suspender a imunidade parlamentar, o que permitiria processar Márcio Moreira Alves. Durante o fim de semana Carlos Lacerda16 e dezenas de pessoas foram detidas – o advogado Sobral Pinto, Juscelino Kubitschek, o marechal Cordeiro de Farias, deputados, políticos, intelectuais, jornalistas como Carlos Castelo Branco e Alberto Dines, os cantores Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. A situação econômica, entretanto, melhorava para a classe média. Os economistas simpatizantes apontaram: o produto interno bruto cresce, a inflação de 25% ao ano é igual à de 1967. As exportações aumentam graças aos incentivos, crédito especial e redução de impostos sobre os lucros*. Aumenta a concentração da renda, que traz crescimento agrícola e industrial. O consumidor brasileiro compra restos maus e caros, mas é acomodado. Roberto Schwarz ensaiou expor a análise dos economistas numa reunião da VPR. Não queriam saber. Negavam a realidade, habitantes de um Brasil próprio.

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Em vários pontos reiterava disposições dos primeiros atos institucionais, sem estipular prazo de vigência*. * O executivo podia fechar o Congresso, assembleias estaduais e municipais; cessar mandatos e direitos políticos; remover, demitir, aposentar ou pôr em disponibilidade funcionários e juízes; decretar estado de sítio; confiscar bens como castigo por corrupção. Suspendia o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional. Estabelecia que crimes políticos seriam julgados por tribunais militares sem direito a recurso, e o direito de legislar por decreto e atos institucionais. Proibia o judiciário de apreciar recursos de acusados sob o AI5. Maria Helena M. Alves, Estado e Oposição no Brasil (19641984), Ed. Vozes, 1984 (Cap. V). 16 Ainda dia 29 de outubro publicou na Tribuna da Imprensa artigo classificando os militares de "minoria radical neofascista". A Folha da Tarde de 18.12.68 publica decIaração de Costa e Silva: O Al 5 deveuse à conspiração de Juscelino e Lacerda; poderosos grupos econômicos internacionais os apoiavam. Os quartéis fermentavam devido à ausência de apoio político ao governo; sem o Al 5, seria a Junta Militar." * Thomas Skidmore, obra citada (Cap. IV: “A economia: o pragmatismo dá resultado”): O único sinal de perigo potencial era o aumento de importações em 285%. Mas fortes ingressos de capital líquido cobriam o déficit comercial.

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– Quase me mataram. Desdenhavam também os indicadores publicados pelos jornais: aumento da produção de aço, automóveis, eletrodomésticos, nível de emprego; cresciam as indústrias de construção e mobiliário, papel, química, farmacêutica. A vida melhorava até para os operários. Depois do AI 5, Quartim acreditou que os companheiros militaristas, entre os quais Espinosa e Ladislau, assumiriam a consolidação. Iara, às vezes vacilante, julgou que a luta interna traria consenso. – Acabou o movimento estudantil. Estamos sozinhos. Se a gente der o famoso passo atrás, o golpe cai no vazio. E questão de bom senso. Vamos ajeitar as coisas no quartel e impedir a ação. Mas o antagonismo acentuou-se. Os militaristas empolgaram-se com o sucesso do roubo de armas dia 11 na loja Diana em São Paulo, e a publicação do manifesto "Armas para a Revolução"17. Até o grupo dos arquitetos dispôs-se à prova de fogo e explodiu uma bomba no avião de combate dos expedicionários brasileiros na Itália, considerado monumento e exposto na praça 14 Bis, avenida 9 de Julho. No local, panfletos assinados por Marighella18. – É uma resposta ao AI 5 e os terroristas da Aeronáutica, impunes. Estamos em cima da hora. – Com que gente? Com que meios? Com que apoios? Endoidaram. Roubar uma lojinha. Atacar esse avião, coisa absolutamente impopular, infantil!

Deserção. A rua das Acácias

IARA DESISTIU DO QUARTO em Santo Amaro. Longe, fora de mão. E a prudência requeria certo nomadismo para evitar que lhes gravassem as fisionomias. Rosa veio ajudá-la na pequena mudança.

“(...) Na preparação da luta armada contra a ditadura militarista, apoiada no imperialismo norteamericano, a vanguarda político-militar da revolução brasileira expropria armas para distribuir às camadas revolucionárias da população. Os operários, camponeses e demais trabalhadores do Brasil, já cansados pela opressão e humilhação que lhes são impostas pelas forças repressivas a serviço da burguesia, não mais se contentam com pequenas concessões feitas ou prometidas pelos patrões e seus lacaios da politicagem sórdida e se armam para o combate decisivo." 18 Comunicava "guerra prolongada para tirar o Brasil da condição de satélite dos norte-americanos, que dominam a Amazônia e instalam bases estratégicas no país". 17

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– Fiquei boba com o teatro que ela fez, ao dizer que ia viajar. Deixei-a num ponto e parti sem indícios sobre o novo endereço. Provisoriamente ajeitou-se no apartamento de Ladislau e Eduardo Leite na rua Frei Caneca. Pertinho do Regência agora proibido, nova dimensão sem mover-se. Cada pousada um acampamento de guerra. Antes de dormir, o pavor de ações; meu cérebro formiga, já viu que esquisito? Ficou amiga de Eduardo, extensão do afeto por Denise e Encarnación que continuava a visitar, cheia de carinho. Não tenho morada, é o sangue cigano da terra de minha mãe, coloria. Um resto de adolescência e seus espaços abertos: examinava a geladeira, fazia café. Aceitação e intimidade. Olga Crispim, que não morava com a mãe e desconhecia o envolvimento dos irmãos, conheceu-a. – Chamava-se Claudia, e tão linda! Olho dulcíssimo, riso de rosto inteiro. Lembro de passar um dia e vê-la reclinada em minha cama, no quarto que meu irmão e eu dividíramos. Mãos sob a nuca, disse-me: "Puxa, teu namorado é bonitinho!" Uma pessoa inofensiva. No apartamento da Frei Caneca, em pausas os três fantasiavam o que aconteceria se ninguém mais aceitasse os valores ensinados como sacrossantos, a violência institucionalizada, as crianças a morrer de fome. Falavam do Che de família burguesa, seus tormentos pelo socialismo. – Reavaliávamos as referências em busca de reconstrução – reflete Ladislau. Espinosa deixou a casa de Encarnación, por segurança. No interesse da VPR, Iara e ele pensaram em alugar uma casa. Simulariam um casal. Examinaram várias em Santana e na Lapa até pinçarem um sobradão adequado. Hesitante e decidida a definir seu papel de psicóloga, ela quis discutir a relação. – Isso não vai gerar um envolvimento artificial? Dias consecutivos debateram o assunto, namoro disfarçado. Ou os laços se aprofundam, inferiram, ou a ligação apenas abranda o anseio por afeto, a dificuldade de amar a céu aberto. Na demora, outros alugaram a casa. Iara procurou Chicão e Maria Lucia, que concordaram em receber os dois. Sem a responsabilidade do aparelho, o namoro durou uma semana. – Eu me envolvi muito. Convívio bom, solidariedade. Iara, acho provocava insegurança em todos nós, os companheiros. Requisitada. mais livre que as outras. 263

Compreensiva, imagem de mão na cabeça. Vivíamos um crescendo de rigidez. Diante dos presos e mortos, esquecíamos o lado humano. Ela se preocupava: "Você está bem? Mesmo?" Queria resposta real. As tarefas de Espinosa tornavam a coabitação imprudente. Heleny e Ulisses aceitaram acolhê-lo. Hospedou-se no Brooklyn cerca de um mês e meio, quase a eternidade. Iara, ainda legal, voltou ao apartamento da Frei Caneca e conheceu o verdadeiro inquilino, Fernando Kolleritz. Amigo de Ladislau desde o colégio, há pouco chegara da França, formado em Filosofia. A militância contra a guerra do Vietnã na esquerda francesa, o entusiasmo pela revolução cubana, o contato com Crispim em Paris estimuIaram-no a retornar ao Brasil, já ligado à VPR. Atuava no setor campo e vinha pouco a São Paulo. – Paixão insegura, desconfortável e incerta. A gente ignorava se haveria reencontro. Todos tão sós, à procura de alguém. Mas tentamos nos amar. Indiscreta, ela falou de Lamarca: – Cara legal. Intelectualmente precisa crescer bastante. Assessoro um pouco. Carlos Henrique viajou por um mês e Iara foi morar com Marina. Mais seguro. Usufruiu o cotidiano organizado, reverso da desordem em sua vida. Empregada, faxina, refeições na hora certa, porcelana. A atração de Marina pelos contatos clandestinos, entradas misteriosas, cresceu. Eventualmente encontrava o próprio dormitório trancado e dormia no quartinho dos fundos. Sem acanhar-se de expulsála, Iara namorava Fernando. – Não o conheci, saía de madrugada. Certa noite conversamos através da porta. Extraordinário, excitante. Entretanto, inibições reacesas, não se entregou ao rapaz. Admitia a revolta. Fernando tinha namorada no mundo exterior, chega de suprimir minhas exigências e ser posta de lado. Sou primeira e única, igualzinho à rainha da Inglaterra. Quero estabilidade, proteção. – Meio clandestina, fico em desvantagem – explicou. – A militância deixa as coisas fugazes, tarefas impedem que a gente se autodetermine. Mas a vida afetiva é espaço nosso e eu preservo, além da maioria dos militantes, a perspectiva de uma vida amorosa feliz. E preocupação intencional. Quero valorizar o indivíduo e impedir que os eventos o conduzam. Fernando olhava o rosto que o marcou. 264

– Atraente e bom, a fala e o jeito gostosos. Não quis esperar que eu tentasse me decidir. Procurava alguém afetivamente vinculado só a ela, mesmo vendo-o pouco. Senti ciúme. Ela encontraria outro sem dificuldade. O apartamento da Frei Caneca servia para reuniões e recebeu Lamarca uma vez. Iara já se mudara. O relato de Fernando sobre o campo, entre negativo e esperançoso, irritou-o. Outros percorrem o país e ouço quadros diferentes, contestou ríspido. Fernando persistiu na ambigüidade. Receava desestimular os companheiros ou indispô-los contra si; certamente o tachariam de pessimista, um xingamento. Fantasiavam o campo faminto, explosivo, em desespero. Ao contrário. Era medroso e desconfiado. – Os camponeses não compreendem o que pretendemos – tateou. – E complicado comparar a situação brasileira à cubana. Na cidade há insegurança. E queremos preparar o campo. Um descompasso. Aconselho preparativos de um ano antes do envio de militantes ao local do foco. Depois do Natal Iara ligou a televisão para ver a companheira de militância, Bete Mendes, atuar na novela Beto Rockefeller. – Não ia perder essa, né? Dezembro terminou com as cassações*, esperadas a cada dia no mundo exterior. – Chacota de Ano Novo, o listão no dia 31. A resposta revolucionária é o roubo de dinamite em Moji das Cruzes1. De qualquer jeito eles são gregos, que se entendam. Nada a ver, essa dança de políticos. Quanta coisa aconteceu no mês, longos 31 dias, o negativo do astronauta de 2001. Gente, só tenho 24 anos, vamos diminuir o gás. O TUSP viajou para a Guanabara com a peça. Alegres, Marina e Iara emboIaram-se. Curtir praia, amigos, festas.

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Maurílio Ferreira Lima (PE); Renato Archer (MA); Márcio Moreira Alves, Hermano Alves (GB); Davi Lerer, Hélio Navarro, Gastone Righi, José Lurtz Sabiá (SP); Mateus Schmidt, Henrique Henkin (RS), todos do MDB; José Carlos Guerra (PE), da ARENA. O desembargador Joaquim de Souza Neto e Carlos Lacerda. 1 Trinta homens fortemente armados, em sete carros, invadiram a pedreira e roubaram 520 quilos de dinamite. Não deixaram pistas. Correio da Manhã, 6.4.69: "Cinco anos de terror."

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Bombas não paravam de explodir nos teatros e o claro chamado de Mãe Carrar à luta armada recebeu ameaças. Terminado o espetáculo o grupo algumas vezes se reuniu em Ipanema, no apartamento de Samuel Wainer, de volta do exílio europeu. Ocupava-se em vender o que sobrara de seus jornais – a Última Hora carioca2. Discutiam os atentados, o cerco ao prédio do Correio da Manhã, prisão da proprietária e jornalistas3. A censura à imprensa4. – Foi nosso primeiro aliado nas investidas do terror – homenageia Rose Lacreta. Iara assistiu aos happenings de Rose e André Gouveia, apaixonados, nas ruas do centro. Aplaudiu-lhes a coragem e o achado: – Não matarás é um mandamento de enorme violência política! A omissão é comparsa do terror fascista! Não há solução individual! – discursavam de mãos dadas, camisetas com desenhos e dizeres da peça, suados no calor de rachar. De manhã dormiam. Por volta do meio-dia espichavam-se na praia, olhos no azul do mar e verde montanhas. Examinavam o céu sem nuvens a imaginar o encontro das naves Soyuz no espaço. Bem na hora de Nixon iniciar o governo – que feito da tecnologia socialista! Os soviéticos bem poderiam libertar-se dos stalinistas. Iara bronzeava-se alegre. Queria é morar no Rio, desabrocho ao sol. Apontava caminhos a Marina, em crise existencial – as descobertas na psicoterapia desconcertavam-na. – Tenho duas psicanalistas. Uma boa, você. A outra é a má. Topou com Walnice num ônibus. Abraçaram-se felizes. – Você está de férias? – Não, troquei de ares depois que meus alunos começaram a cair. – E o que anda fazendo? – Escrevo tese, crio filho. De manhã vou à praia – e deu a localização.

Samuel Wainer: Minha Razão de Viver – Memórias de um repórter (Coordenação editorial: Augusto Nunes), Ed. Record, 1987. 3 Carlos Castelo Branco, obra citada (4.1.69): "O que os militares apontam como causa da subversão provavelmente será efeito e não causa(...) de uma formulação política defeituosa e estreita(...) a doutrina oficial do regime(...) é a da guerra revolucionária(...) sei quanto é arriscado opor públicas restrições(...) mas a doutrina põe em estado de guerra a força do Estado(...) identifica e classifica o adversário com ânimo suspeitoso(...) na faixa dos perseguidos o pânico produz solidariedade(...) Quem não estava na guerra termina(...) no campo de luta, nem sempre o campo que escolheria...". 4 A Folha da Tarde de 13.1.69, por exemplo, descreveu assim a prisão de Caetano e Gil: "internados na casa de saúde, de onde sairão de barba e cabelos raspados". 2

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Dia 17, uma lista de quarenta cassações5 e aposentadorias de magistrados do tempo de Jango. – Olha os espertinhos, sempre misturando "subversivos" e corruptos. Estava longe da reunião que decidiu manter os planos do 49 RI. Mas soube do clima de grande animosidade-não faltara a pior ofensa, covardia. Mal-e-mal o eufemismo "recuo ideológico" resolvia o dilema. – Se houver luta interna o desfecho pode ser sangrento – intimidaram os exaltados. Os olhos de Lamarca faiscavam. – De fato, sem praticar ações desapareceremos – aquietou-se afinal o grupo contrário. O argumento salvava-lhes a face. Quanto mais intensas as emoções, maior a convicção de que os guiava a cultuada racionalidade. Quartim discordou. – A revolução brasileira é inédita, depende de meia dúzia de barulhentos. Vocês vão desencadear uma caçada nacional ao Lamarca, sem infra-estrutura para guardá-lo direito. O congresso aprovou meus pontos: caráter socialista da revolução brasileira, formas de luta diversificadas. As teses de libertação nacional, inviáveis, foram derrotadas. – O governo se declarou em guerra contra todos que contestam o regime. Ou vocês participam ou saio sozinho com meu .38 prometeu Lamarca, duro. – Acreditávamos que era suficiente ter fé no povo, uma coisa mística. O bem triunfa, o inimigo é um tigre de papel – confirma Shizuo Osawa, o Mário Japa, participante da ação de Quitaúna porque descobriram sua boa pontaria. Aprendera a atirar naqueles dias. Aproveitaram a ausência de Quartim numa reunião para expulsá-lo da VPR. Difícil enfrentar a arrogância proveniente da classe social, formação acadêmica e personalidade. – Prestaram-me grande serviço, não se podia sair ao primeiro susto. Temos alguma coisa de espanhol, árabe. Evita que a gente se acanalhe. Questão moral. Marcado o dia 26 de janeiro para a deserção, Lamarca avisou, na Guanabara, seu grande amigo desde os tempos de Academia, o primeiro-tenente Altair Luchesi Campos, a quem chamava Maninho. Provavelmente o Serviço Secreto do Exército o intimaria, a ligação de ambos era conhecida. 5

Entre eles Mario Covas, Ivete Vargas, Cunha Bueno.

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– Meses antes, certo do apoio de Marighella, Lamarca já me prevenira – recorda Altair. – Daquela vez viajei a São Paulo e falamos a noite inteira. Voltei de madrugada. Disse-me que desertaria, pintou um quadro grandioso das forças envolvidas, quase a tomar São Paulo. Eu disse "que loucura, difícil de entender'". Pormenorizou: "Vamos nos juntar a unidades da Força Pública. Queria deixar-te avisado." Fiquei tenso, na ponta dos cascos. Nada aconteceu. Falhou, pensei. Aí, em janeiro, vem Mariane. Realmente deu-se a ação e o SSE veio para cima de mim. É um enorme amigo, respondi. Da última vez tentei trazê-lo à minha unidade, o Batalhão de Guardas. Levei-o ao coronel-comandante e o assunto morreu. "Pois ele desertou", disseram. Lamarca saiu apenas com três companheiros e a kombi de armas. Um sonho, altíssimo. Vimo-nos na clandestinidade. Uma vez em São Paulo, três no Rio. Dia 23 de janeiro, num sítio em Itapecerica da Serra, perto de São Paulo, quatro militantes pintavam as cores e insígnias do Exército no caminhão Ford que carregaria o armamento. Um menino curioso apareceu, afastaram-no a bofetão. A estultice trouxe o aparato de tortura sobre o grupo – os pais do garoto, indignados, chamaram a Forca Pública. Confessaram-se contrabandistas, mas o Exército requisitou os prisioneiros e ninguém resistiu às sevícias6. O ex-sargento José Araújo da Nóbrega, convocado ao sítio no dia seguinte, percebeu a campana e avisou os companheiros, precipitando a saída de Darcy Rodrigues, José Mariane, Carlos Roberto Zanirato e Lamarca, que na véspera encerrara o treinamento das bancárias (em troca o 4° RI obteve um agrônomo para combater saúvas). As quedas de Itapecerica abriram o aparelho de Quartim e Maryse, evacuado a tempo. Renata, certa de que apontariam seu nome, resolveu exilar-se. Tentou informar a família mas não conseguiu. Vigiavam, alguém a alertou. – Escapei por milímetros. Insegurança total, porém ainda acreditávamos em luta armada. Perdida a legalidade, Renata procurou esconderijo. Ao longo da militância todos passavam pela experiência de vagar pelas ruas, desconectados. – Sem eira nem beira – ilustra Maryse. – Por exemplo, às seis da manhã desalojada, e um ponto só à meia-noite. Andava-se. Viaduto do Chá, praça da República. Horas no Mappin. Cabeleireiro, cortar o cabelo. Experimentar bairros

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19): o ex-pára-quedista Hermes Camargo Batista também preso, ajudou a orientar os interrogatórios.

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desconhecidos, sempre o risco de ser vista por alguém da Faculdade ou proveniente das enormes turmas do cursinho, pois que também lecionei. Dormir no cinema. E à noite, de repente, o companheiro não vem. Preso? Abriu o ponto? Estou cercada? Dormi em construções, ratos andando. Negócio terrível não ter onde ir. Aos poucos o grupo de Quartim – cerca de oito, Renata inclusive instalou-se numa casa em Ubatuba. Paeco, ainda favorável aos militaristas, conseguiu-a. Entre março e maio todos cruzaram a fronteira do Uruguai, depois fechada. A censura informal tolheu a imprensa de noticiar o evento do quartel. Houve destaque ao enterro de Jan Palach, estudante que se imolou em Praga, protesto contra a invasão da Thecoslováquia. Em Brasília, uma barganha: fidelidade partidária em troca da reabertura do Congresso; o parlamentar que não votasse com a liderança perderia o mandato. Aliás, falava-se de quase 100 cassações. Dia 28 o jornal carioca O Globo informou, sucinto, que o capitão da Infantaria Carlos Lamarca "desapareceu da unidade onde servia, levando considerável quantidade de armas leves e munição". O II Exército publicou um edital de convocação enquanto prosseguiam as buscas. Passados oito dias de ausência do quartel, consumava-se a deserção. De volta a São Paulo, Iara e seus irmãos não seguiram o grupo expulso. – Recuar para quê? É o momento de fazer História ou virar reformista, conivente, marxismo livresco. – Atentados a bomba têm má repercussão – entendia Melo, a reprovar o painel do Exército destruído na avenida Tiradentes, e os panfletos contra a ditadura. – Melhor pichar com tinta vermelha. Envolve o mesmo risco e não assustamos a massa. Uma semana depois O Globo noticiou que os presos de Itapecerica e quedas subseqüentes admitiram participação no assassinato de Chandler. Dia 31 todos os jornais publicaram comunicado do II Exército sobre os detidos, Lamarca, assaltos a bancos, roubos de dinamite, armas de sentinelas e a morte, num aparelho da rua Fortunato, bairro de Santa Cecília, de Marco Antônio Braz de Carvalho, o Marquito da ALN, que metralhou Chandler. O texto arrolava as ações esclarecidas nos interrogatórios, desde as bombas no consulado americano e O Estado de S. Paulo até o trem pagador. A saída intempestiva de Lamarca desnudou falhas que a VPR já deveria ter sanado. Onde enfiar o grande volume de armas – 63 fuzis FAL, cinco metralhadoras 269

INA, revólveres e munição? Melo, encarregado de conduzir a Kombi explosiva, atravessou a cidade e escondeu-a durante uma semana na garagem do prédio onde morava. Marighella concordou em guardar o arsenal e não o devolveu. Imperdoável a entrega do apartamento de Marquito, que redundou em sua morte. Só a ALN tinha competência para fazer a revolução7. Livre das armas, Melo abandonou o carro na rua Sete de Abril, Centro. Sem abrigo, Lamarca desconfiou do militante desconhecido no ponto. Preferiu o hotelzinho da praça Oswaldo Cruz, Paraíso, aliviado porque a família e Rosa, mulher de Darcy, grávida e carregando no colo a menina de cinco meses, voavam à Itália. Dali seguiriam para Cuba, educandário de filhos socialistas. Num gesto irracional, destemido, aparecera no aeroporto. Abraçou a esposa Maria, apelido Marina, os filhos Cesar e Claudia. A saudade das crianças machucava. sintoma do receio que repelia, corruptor – não mais vê-las. Pensava agradecido em Dulce Maia, batizada Judith pelo ex-sargento da Marinha José Raimundo da Costa, o Moisés8. Responsável por atender as famílias e politizar as mulheres, em geral de pouca instrução, até roupas quentes de inverno europeu Dulce providenciara. Pouco dormiu no insólito quarto, distante do quartel. Logo a ALN o abrigou numa fazenda e Lamarca admitiu, relutante, que a VPR distava de suas fantasias. Prisões ininterruptas. Inclusive Dulce, a esconder gente dia e noite. Exausta, certa madrugada fora dormir em casa dos pais. Imaginava-a segura. De tocaia, a polícia levou-a. Ficou 17 meses na cadeia9. A queda de José Ibrahim, grave, resultou erro tão primário que lhes pareceu inconformismo, cansaço ou até, segundo alguns, desejo inconsciente de pôr termo à tensão cujo final pressentiam. Preocupado com a ausência de Roque Aparecido da Silva, também de Osasco e companheiro de aparelho, Ibrahim pediu a Valdir que o levasse ao prédio. Luz no apartamento sinalizava prisão. Valdir, para ignorar o local,

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Emiliano José e Oldack Miranda: Lamarca, Capitão da Guerrilha, Global Ed., 1986; Jacob Gorender, obra citada (cap. 19); Marco Aurélio Borba: "VPR e a Crítica das Armas", artigo citado; Los Subversivos, obra citada. 279 8 Tortura Nunca Mais, obra citada: Morto sob tortura no Rio em 5.8.71. Chamou a filha de Judith em homenagem a Dulce. 9 Banida no grupo dos 40, libertados em troca do embaixador alemão Ehrefried von Holleben, em 1970. Esteve em Angola e Cuba, onde conviveu com Maria Lamarca. Depois a rota incluiu Chile, México, Bélgica, Portugal e Guiné Bissau. Foi a primeira a voltar, no dia do anúncio da anistia, em 28 de agosto de 1979.

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encostou-se no botequim a quase um quarteirão. Esperou quase uma hora, viu a polícia chegar. Ibrahim entrara no prédio, indiferente à luz. Furados vários pontos, Espinosa decidiu saber em Osasco o que sucedia. Era arriscado, mas um enorme rombo esvaía a organização. Iara conduziu-o no carro de Raul. Bateram palmas na casa da irmã de Roque. A moça apareceu, assustada: – Vocês ficaram malucos de vir aqui, o Roque preso? Chocadíssimos, resolveram avisar outros. Subiram a escadaria do pequeno prédio onde morava um clandestino. Ninguém atendeu. – Por sorte não há tiras, aparelho aberto é uma ratoeira. Transtornado, Espinosa perguntava-se como acontecera o desastre. Vamos segurar, agir racionalmente – Iara tentava acalmá-lo. – Quero passar em casa, ver minha mãe. – É perigoso. – Não sei, preciso. – Então telefone antes. Acompanhou-o ao orelhão. Loucura. A mãe atendeu: – Levaram seu pai como refém. Só o soltam se você se entregar. A polícia cercou a casa ontem. No trajeto de volta, a guiar, Iara afagava com uma das mãos o amigo em lágrimas, sufocado de ódio e culpa. Compadecida, estimulou-o a esbravejar de impotência. O pai de quase 60 anos, inteiramente alheio à política, talvez torturado. Pusilânimes! Ímpeto de sair do carro dando tiros. – Vejamos o que fazer. Dinheiro para sua mãe. Um bom advogado. Chamamos seus irmãos. – Eles não medem nada – soluçava, já mais calmo. – Não posso deixar meu pai preso. – Nada disso. Não faz sentido ficarem muito tempo com ele – um flash sugeriulhe o esgar dos cocainômanos torturadores de Ladislau. Homens do esquadrão da morte torturando, nunca duas funções combinaram tão bem. Chame o ladrão, cantaria Chico. Os irmãos, todos mais moços, entenderam a mensagem. No restaurante do encontro, depois de esclarecê-los por que seria pior Espinosa entregar-se,

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estenderam o dinheiro de bolso – bastante, para cobrir mudanças ou viagens súbitas. O pai ficou preso cinco dias. Maria Lucia e Chicão caíram. Iara perdeu pé. Quem não falava, morria. Embora deplorasse as demais prisões, a amiga era um pedaço de si. Torturada. Inominável invasão, face ignóbil da cordialidade brasileira. A certeza da luta aprofundou-se. Na solidão brasileira sem lei, em que retalhos Maria Lucia se apegaria para resistir e retomar a dignidade? Diziam que enlouquecera, desfecho valoroso, fragilidade lambuzada de sangue e dejetos. Lembrou-se da prisão de Melo, da própria. O que brutaliza o ser humano que se faz torturador, qual a sevícia projetada no outro? Ele se motiva? Arreganha os dentes, besta-fera? Salta? Baba? Cheiro afrodisíaco de carnes rasgadas, clímax hipnótico feito candomblé? Há tecnocratas frios, apenas a resistência do inimigo a quebrar? Maria Lucia e Chicão. Sarar suas feridas. Nada será igual, nem a própria liberdade. Precisamos construir massa crítica. Do contrário a tortura nos liquida. A queda de José Ibrahim obrigou Robertão a substituí-lo – coordenava setores urbanos – e passar à clandestinidade. Mantinha contato com Barreto, representante do pessoal de Osasco; Miriam, que atuava no movimento estudantil; Iara, para o esquema de visitas aos familiares vigiados de Maria Lucia e Chicão, saber o que falaram nos interrogatórios e tomar medidas de segurança. O nome de guerra foi mudado, de Joaquim a Pedro. – Cê bem que sempre gostou do Joaquim Pedro – buliu Iara. Repassaram as conversas de bar sobre o Cinema Novo brasileiro, o curtametragem Couro de Gato, depois o documentário cinema-verdade Garrincha, Alegria do Povo. E a incrível inspiração no poema de Carlos Drummond de Andrade O Padre e a Moça, história de amor marginalizado. Ah, como gostavam de cinema! Agora, a filmagem de Macunaíma lá em Sacarrão, 50 quilômetros do Rio, Dina Sfat a amazona Ci atualizada. Guerrilheira urbana, Paulo José, o branqueado brasileiro sem caráter. Espinosa, ainda em casa de Heleny, ajudava-a na datilografia das peças de teatro. Ficaram muito próximos. Festejaram, Iara presente, quando ela recebeu o prêmio "Diretor Revelação", dos Críticos Teatrais de São Paulo. Seu trabalho, inclusive a Ópera dos Três Vinténs ensaiada em Santo André, repercutia. – Você vai ser nossa comissária do povo para assuntos teatrais – nomeou Iara, risonha. 272

Um dia Heleny pediu a Espinosa admissão na VPR. – Impossível. Você tem seus filhos. Escreve peças, é elemento de apoio. Não deve atuar além disso. Insistiu. Discutiam o assunto fora de casa, misto de medida de segurança e intimidade. – Você me acha sem nível, sem condições? – Exato – determinou, seco. Vetava candidatos com filhos e potencial para atividades menos arriscadas. Chicão pegou dois anos, Maria Lucia foi libertada. Iara marcou um contato com ela em casa de Rachel, cedo, e chegou de carro, cabelos mais curtos, óculos escuros, calça e camisa jeans. Abraçaram-se longamente no jardim, em pranto. Rachel ofereceu café e deixou-as na biblioteca. Maria Lucia descreveu a cadeia. Não foi intolerável, exageraram. Conseguira segurar. Alguns sofrem crueldades indizíveis, para mim acabou, morro de medo e quero me afastar. Já sabem o nome de Robertão, inclusive com foto três por quatro. Enumerou os presos, previram quem deveria passar à clandestinidade, o dinheiro necessário ao seu sustento. – Pessoalmente, aceito que se fale sob tortura – segredou Iara – Até que ponto vai a resistência? É imponderável. Não acho que o companheiro deve morrer. Mas abrir tudo, não. – Ela estava muito solidária, decidida e firme. Foi embora antes de mim. Despedimo-nos com grande carinho, chorando. Viajei para o Chile.

Caíram os nomes falsos de Melo e Miriam, que deixou de trabalhar – lecionava dança – e devolveu ao pai o apartamento. Seria leviano habitarem um endereço público. Iara pediu a Lucia Campello que guardasse a cunhada. – Só uns dias, até chegar o dinheiro do avô. Eles vão sair do Brasil – mentiu. Lucia concordou, sem perguntas. Iara, agora discreta e pouco falante, visitava Miriam e convenceu-a a mudar de aparência. – Vamos cortar os cachos no L'Officiel. – É perigoso, junto da Augusta.

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– Abrir mão daquilo, niet. A gente não pode ter cara de run away. Peruca lembrando touca, Iara encontrou Lucia Sarapu pela última vez nas escadarias da Gazeta, avenida Paulista. Passou-lhe instruções e os créditos atrasadíssimos da FMU. Não daria mais aula, por segurança. A Organização passava a sustentá-la. Melo alugou um sobrado de esquina em Moema, perto do Aeroporto. O casal viveria ali de três a quatro meses, dedicado exclusivamente à VPR. Iara voltou ao apartamento dos pais no Ipiranga. Continuava intima de Heleny e Espinosa. Muitas vezes, crianças na cama, analisaram a questão do foco até de madrugada. – Ai, o calorão de hoje. Não resisti, comprei uma graça de miniblusa. Convicta, explanava que a guerrilha na América Latina não pretendia crescer e transformar-se em exército. Sua função de núcleo era catalisar a luta geral. Exerceria influência sobre o conjunto da sociedade, produzindo fontes revoltosas no campo, cidades, fábricas, escolas. Uma situação insurrecional no país. Como em Cuba. E um instrumento militar. Ulisses, pouco em casa devido às aulas no interior, duvidava. Caparaó já mostrou que é um esquema aleatório, não funciona. Eu vivo a realidade fora dos grupos clandestinos. Longe de ser insurrecional. E os legislativos fechados? Aqui, no Rio, Sergipe, Pernambuco, Estado do Rio. Também não param de cassar. Irritavam-se. – Caparaó era treino. Não fez aliciamento camponês prévio nem ataques a latifundiários ou jagunços, ações militares bem-vindas à área e de projeção nacional. Aprendemos a lição. O trabalho de massa paralelo, organizar camponeses em reivindicações específicas, é essencial. Numa circunferência de centenas de quilômetros do foco projetado. – Implantação a longo prazo? – Talvez um ano. São os "tapetes" da luta armada. Aí começamos guerrilhas irregulares: camponeses que trabalham na lavoura de dia e combatem à noite. A expansão corre sobre os tapetes até atingir os centros de decisão. – Não adianta ganhar em Imperatriz – enfatizava Espinosa. – É bom para exercitar os músculos mas a gente precisa ir adiante. Militantes meramente foquistas só pensam na área. A VPR planeja desdobramentos. – Precisamos nos fortalecer por aqui também. Nunca pensei que os companheiros militares fossem tão descuidados. E o maldito machismo.

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Aludia ao último susto, dia 11 de fevereiro. Cairá o aparelho de Lamarca na Benjamim de Oliveira, rua do Glicério. Com ele, no apartamento de terceiro andar, estavam Darcy, Yoshitame Fujimori, os ex-militares José Ronaldo Lira e Silva, o Gordo, Hamilton Fernando Cunha, o Escoteiro, e um ex-marítimo. Haviam descido para almoçar mas Escoteiro, amigo de Lamarca desde 1961, teve a pachorra de buscar o salário na gráfica Urupês. A polícia já sabia que trabalhara ali e tocaiava. Gordo, que acompanhava o amigo, tentou resgatá-lo. Baleou um policial e foi atingido na perna. Escoteiro morreu. Revólver engatilhado, Gordo parou um táxi e subiu com o motorista ao apartamento. Os quatro desceram imediatamente, abandonando armas e equipamentos10. Apeado o motorista num bairro distante, debalde procuraram o médico da VPR. Socorreu-os a ALN por uns dias, na fazenda. Lamarca soçobrou em terrível depressão. Darcy refugiou-se no aparelho de Eduardo Leite. – Terrível perder Escoteiro – concordava Heleny. – Era ligado a teatro e ao movimento negro. – O inimigo se torna mais eficiente. Comandos militares e policiais se entrosam. Esse seminário de Segurança Interna em Brasília, a proposta de uma "Comissão Geral de Inquérito Político-Militar". indicam postura integrada. Desistem da glória e dos butins individuais, para reparti-los. – A PM abrir o carnaval no Rio, montada, é simbólico. Os novos arautos lecionam moral e cívica. E tome cassações. – Lamarca errou em sair do quartel. Mas é um herói – relevou Iara. – A ordem é otimismo, ver o lado positivo. Só a esquerda armada é capaz de combater regimes militares. As horrendas execuções em massa na Indonésia provam que outros caminhos não funcionam. Chegaremos a ser numerosos e fortes como os tupamaros. Orgulharam-se da exoneração do general Lisboa. – Nós é que derrubamos. Dia 2 de março, domingo perturbado pelo acidente no jogo do São Paulo e Coríntians a mureta de uma arquibancada cedeu – ainda em conseqüência de Itapecerica, Robertão caiu. Dia 4 a polícia chegou à oficina de automóveis, fachada de aparelho, e prendeu Diógenes de Oliveira, companheiro de Dulce. Diversos pontos

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O estouro do aparelho foi noticiado duas semanas depois, sem menção a Lamarca. Trazia a descrição dos achados: armas, munição, 18 metralhadoras FAL identificadas como pertencentes a Quitaúna. Equipamento de telecomunicação, fardas do Exército e da Força Pública. Folha da Tarde, 25.2.69.

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anotados numa caderneta. Não perderam um morto e acima de 100 feridos quando tempo. À tarde dessa terça-feira Valdir participava de uma reunião em casa do advogado simpatizante que acolhia Lamarca11, novamente em São Paulo desde meados de fevereiro. Antes de anoitecer Onofre, um dos presentes, avisou que tinha um ponto às 18 horas e partiu. Ladislau seguiu-o, comprometido para o mesmo encontro. O choque foi geral quando voltou. Vira a polícia levando Onofre. Se falasse, a repressão chegaria ao apartamento. De fato, mal retirado Lamarca, esmurraram a porta. Em comoção, Valdir e Ladislau entraram no Gordini preto. Inquiriam-se como ocorrera o baque, tão próximo do capitão. De repente, Ladislau deu-se conta: não vira Diógenes, também esperado no ponto. Naquela noite Valdir encontraria Diógenes e Robertão na esquina da Angélica e Paulista. Faltava pouco tempo e pediu a Ladislau que lhe desse cobertura. Se correta a hipótese, o ponto caíra e Robertão corria perigo. Cautelosos, às 19:45 passaram no local. Um automóvel de pneu furado, a porta de trás aberta. – Olha a coisa – indicou Valdir. Queriam avisar o amigo. Deram outra volta e detectaram dois carros do DOPS cercando a área, na descida para o Pacaembu. Arriscaram uma terceira volta; o grande fluxo de tráfego àquela hora protegia-os. Desta vez, oito horas passadas, a polícia certificou-se de que o Gordini a circular era suspeito. Houve correria. Ladislau, excelente motorista, escapou pelo Pacaembu. Lucia Sarapu, prestes a dar à luz, foi convocada ao aparelho do Ipiranga. Não havia outro lugar disponível para Lamarca. Beijou Valdir esbaforido ao volante, o capitão deitado no banco de trás do carro. Mal os três entraram na casa, a vizinha chamou-a. Cheia de boa vontade, recomendou que abandonasse o local. A polícia rondava. Voltou para dentro, assustada. – Incrível, abriram até aqui. Saiu amparada no braço de Lamarca. Valdir vinha atrás carregando as armas. A "empregada" não estava. Depois de rodarem algum tempo Lucia desceu. Naquela

11

Quase todos que o abrigaram foram presos.

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noite, enquanto os homens circulavam de carro, sem teto, e tudo parecia esfarelar-se, nasceu Camilo. Lamarca estava fora de si. – Deduragem virou "abrir" para dourar a pílula. Homens ou pintinhos? Exmilitares! Nenhum é estudante cheirando à fralda ou pequeno-burguês sem têmpera. – Talvez a tortura não tenha esse efeito devastador em grandes massas de militantes, como no Vietnã. Somos grãozinhos no meio do povo. No dia seguinte contataram um simpatizante que concordou em esconder o capitão. Mas a segurança continuava inepta e a ALN reconduziu-o ao interior. Martirizado pelos fatos, Lamarca mergulhou na leitura. Queria aprimorar-se, entender de política, de gente. Nos livros, todas as chaves. Desertara para combater num grupo forte, atuante, em adiantada fase de acumulação de meios, prestes a deslanchar a luta revolucionária. Só quimeras, exceto o sucesso de algumas ações. Bem, aquietava se. Diante do quadro é imperioso estabelecer condutas. Primeira etapa:

praticismo

intenso,

questão

de

sobrevivência.

Assaltos

planejados

militarmente. Treinar o setor armado, dividir as bases. Uma entra em contato como objetivo, outra faz a cobertura e a última o transbordo. Na segunda etapa, o foco. – É o que eu tinha em mente ao sair, é o que farei. A revolução depende do foco. Os companheiros abandonaram a vida segura do quartel para me acompanhar – garantiu a Darcy quando se reencontraram. – Lutaremos. O difícil não será a morte mas sobreviver, nos ombros a lembrança dos que tombaram.

Sem aparelho seguro, desfalcados de gente, Valdir acompanhou Ladislau ao ponto de Iara, à noite, num cinema em bairro afastado. – Ai, que chato! Antes o Robertão tivesse largado com Quartim – toldou-se ela. – Demais, parece que uma cortina invisível cerca a gente. Vigiam e não percebemos. Bem, vamos à garçonnière de um amigo no Bixiga. Eu tenho entrada franca – sorriu. Queria aliviar o nervosismo geral e a própria tristeza. – Pegamos um turbilhão, mas vai passar. No dia seguinte pediu a Heleny e Ulisses que recebessem um companheiro. Consentiram, preocupados. Tinham "esfriado" a casa. Mal Espinosa partira, a repressão cercou o sobrado. Estavam Heleny, os meninos e a empregada. 277

Metralhadoras apontadas, convocaram o casal ao quartel do Ibirapuera para a manhã seguinte. Foram interrogados o dia inteiro, acusação de contatos com a guerrilha. Negaram e o delegado soltou-os. Era amigo do pai de Ulisses, general reformado e vereador. – Como é que aconteceu? – assombrou-se Iara. Revolucionários deveriam resistir à tortura, inquietava-se. Emudecia, mau agouro. Só os outros caem. – O artifício era fingir que não existe medo – traduz Miriam. Se falássemos muito não sobrava ninguém. Vivíamos um livro de aventuras. No dia em que parei de racionalizar o medo eu disse bye-bye, vou embora, não quero morrer. Uma das organizações acabara de distribuir, é verdade, documento sobre técnicas de resistência. Mas a ALN ordenava dizer o nome verdadeiro e de guerra. Só. O conselho do POC era gritar intensamente, como se fosse possível não fazê-lo. – Medo de ter medo – divisa Espinosa. Circulavam histórias horripilantes. No cimo, a tortura alcunhada vietnamita: cano enfiado no ânus, dentro um rato vivo, na ponta externa a chama da vela. – Gostam de empalar. O homem e o cu. As entranhas. Fogo purificador, fantasias punitivas. Inconsciente encarnado – maldisse Iara. Entre longas confidências, Heleny manifestou à amiga o desejo de entrar na VPR. Heroísmo, atuação, novas emoções. Coerência. Precaveu-a. O tempo vira um ente sem controle, goteja em alertas nos pontos múltiplos, desabalado correr interno durante transbordos, acidentes à espreita no prédio, ônibus, trânsito. Máscaras imperturbáveis, falsas identidades. Sede de afeto. Solidão, temor. A ação envelhece em milionésimos de segundo, amigos subitamente tragados. Marginais voluntários, universo paralelo em rotação própria. Recrutou-a todavia, tarefas semelhantes às suas. – Heleny decidiu, eu me recusei – relata Ulisses. Não tinha condições psicológicas. "Nos matam, os filhos como é que ficam? Não me envolvo a esse ponto" – censurou-a. Um trombadinha, na Augusta, levou o dinheiro que Iara pedira a Rosa carregar na bolsa. Descompôs a irmã. Acaso ignorava os riscos ou tortura e morte por trás daquele volume? Rosa ressentiu-se, erro é cumprir tarefas flanando. Iara apertou o passo, mal-humorada. Estava sem roupa. Tantas peças lindas a chamar nas vitrinas. 278

Inviável pedir dinheiro ao pai, amargurado e temeroso pela filha que definitivamente não dera certo. A mãe administrava a renda com economia e compraram oito apartamentos em construção na rua dona Veridiana, duas esquinas da Maria Antônia. E um no Guarujá, sonho realizado. Decidiu apelar à prestativa Lourdes Sola, capaz de sair da classe em pleno vestibular para esconder um operário doente. Também topara levar recado a alguém que, em sobressalto, descobriu ser Ladislau, "da pesada". Fora presa no final de dezembro ao transportar militantes do ABC. Policiais vistoriaram os passageiros, um trazia documentos considerados subversivos. – Soltaram-me antes das festas, não sofri torturas. Sacola de roupas que o marido trouxe da casa vigiada, Lourdes compareceu ao ponto no Museu do Ipiranga. – Só tenho esta saia – queixou-se Iara depois do abraço agradecido. Acomodadas num banco do jardim, acenderam cigarros. – Você pode cobrir um ponto para a gente? – Não, andam de olho. Até vir aqui é arriscado, poderiam me seguir – e empalideceu: dois PMs aproximavam-se. – Não se mexa nem olhe, Iara, que vem vindo uns caras fardados. – Ai! – Segure. Se a gente correr, atiram. Os homens pediram fósforos, interessados nas mulheres jovens e bonitas a fumar escandalosamente em público. – Iara sacou a cantada na hora. Conversamos um pouco e eles se despediram. Nunca mais vi Iara. Não apenas Lourdes se afastava. O próprio Valdir, abalado, sem furtar-se às ações quase diárias nos bancos, repetia raciocínios de Quartim, de quem discordara. Dentro da VPR circulavam documentos críticos ao mecanicismo das "expropriações'". Nem o povo lhes captava o significado, nem conduziriam ao foco revolucionário. Premente desenvolver formas que introduzissem a luta na arena política, freando a manobra do governo: assaltos não passariam de fenômeno policial, menor. Ladislau, agora Jamil, a quem o círculo vicioso das quedas confundia, procurava soluções teóricas. O camponês armado embasaria politicamente a guerrilha. "Cada recruta significa tios, primos e compadres", assegurava, refletindo no Vietnã. Guerrilha tática, 279

de camponeses guerrilheiros à noite, só em zonas de grande apoio popular. Quanto aos pequenos grupos permanentes no campo, suas ações de sabotagem econômica e militar paralisariam as forças inimigas. A questão central, sublinhava, é vincular a vanguarda socialista às massas exploradas. A barreira que segregou as esquerdas parece intransponível? Um dos objetivos imediatos é recobrar o crédito. O meio, que ao mesmo tempo isolará o governo, é auxiliar as reivindicações populares. Para tanto, nas cidades, simpatizantes infiltrados em fábricas e favelas – "olheiros" – transmitirão à VPR o estado de espírito dos trabalhadores. Até justiçamentos cabem, orientados pela massa. Junto, propaganda armada: ocupação de rádios, comícios-relâmpago em fábricas, quartéis, favelas, escolas, panfletagens. Ataques a representações diplomáticas e empresas americanas, acompanhados de proclamas políticos12. – Dar um cacete no dono da fábrica, diante dos operários, não leva a lugar algum – observou Espinosa a Iara, numa das discussões. – Muito bem, mataram o Chandler. Mas porque calhou. Não é linha política. Seria um beco sem saída. E o "olheiro" é apenas uma técnica. – É tudo muito bonito nas teses de Ladislau. Mas os ex-militares, imediatistas, querem atuar. Politizar áreas rurais levaria um ano ou dois, em intensa atividade local. Lamarca, no seu grupo, rejeitava a idéia, irritado com as pretensões estrategistas de Ladislau. Petulância. Depois, quem garante que os parentes do recruta formarão ao lado dele? A atividade dos "olheiros" também demandaria tempo. Quanto às panfletagens, os intelectuais ignoravam o pavor da população. Aliás, o operário que efetivamente aceita e esconde o panfleto, tem coragem e convicção inexistentes na massa. Em resumo, pensar em trabalho político é insano. Numa das idas ao Brooklyn, a sós com Valdir, Iara abordou o dilema da VPR. – A lógica de Ladislau, mecanicista, pouco tem a ver com a realidade. O caminho armado é correto, essa forma inexeqüível. – O certo agora é sobreviver. Sequer temos condições de dar segurança a um companheiro como Lamarca. E qualquer transferência ao campo soa irrealista, só conhecemos o meio urbano.

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Daniel Aarão Reis, obra citada. Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19).

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– Eu me sinto no deserto, correndo atrás da miragem. Fata Morgana em Messina – cismava Iara. – Ao menos Ladislau tenta teorizar. Pensa. Será que tudo começou mesmo com o bofete no menino? Ou há mais? Valdir trouxe a mulher e o filho da maternidade. Os três passaram uma noite no Brooklyn e Lucia comunicou que deixaria a VPR. Mais forte que qualquer compromisso, proteger a criança. Tudo ruía. Companheiros em pânico, deprimidos. Numerosos quadros, clandestinos e custando caro, viviam sem tarefas. Abalado, Valdir encontrou afeto e apoio em Heleny. Iara preocupou-se com a ligação. Problemas afetivos aguçam-se na solidão dos esconderijos. Falta à VPR assistência psicológica. Meu papel é ajudar descompensados, guiá-los na compreensão de si, resolver impasses. Sobretudo, aceitar a própria afetividade. Apesar dos problemas, não dispensava o cinema nos horários da tarde e salas do Centro. Reviu Hiroshima meu Amor no Bretagne, fora de mão. Lindo mas pacifista demais. Alienante. A tragédia poética, um exercício. Tempo, esquecimento e memória. Vale o hospital, tu n'a rien vu a Hiroshima, e os 200 mil estudantes japoneses hoje, em manifestações contra o tratado de defesa Japão-Estados Unidos. De que serve a paisagem única do astronauta a caminhar no espaço? Nosso mundo é aqui. Numa dessas escapadas, óculos e cabelos curtos, o porteiro barrou-a: só maiores de 18 anos. – Ah, mas você é uma gracinha, que elogio! Prudência esquecida, gargalhou e deu com Michel Lahud, futuro professor de Filosofia da Linguagem, ex-aluno do cursinho, da turminha dos preferidos. Lembrança de uma escapada ao Guarujá, o bando no conversível que chamava a atenção. – Como é que você me reconheceu? – Sua voz, a gargalhada. Inconfundíveis. – Você não me viu, tá? – piscou, marota como no dia em que deu a entender ao grupinho, provavelmente brincando: no saco de supermercado sobre a mesa, na classe, escondera uma bomba. Nova lista de cassações, 96, e a notícia oficial da morte de João Lucas Alves em Belo Horizonte. A calça enrolada no pescoço levava a crer em suicídio, transcreveu a imprensa obediente. Porém houve jornalistas corajosos: "...suspeita-se que sua morte também possa ter sido provocada por outro fator"13. 13

Folha da Tarde, 14.3.69.

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Durante o Festival Internacional do Filme o cineasta Joaquim Pedro foi preso, acusado de pertencer ao PC. Soltaram-no em dois dias – a delegação francesa retirara-se em clamorosos protestos. Irritados, oficiais do I Exército se reuniram para decidir a detenção de intelectuais, artistas e jornalistas. – Os brucutus linha-dura prejudicam a imagem que os letrados – Iara lamentou a impossibilidade – Não é mais da minha alçada. Alguns eventos parecem de outro planeta. A inauguração do prédio da Psicologia na Cidade Universitária, por exemplo. O aumento de vagas na Faculdade. Ou escrever mensagens subliminares nos jornais, que não levam a nada. Essa gente toda deveria aderir à luta armada em lugar de conviver com filhos da puta. Você viu essa de banalizar a tortura?14 Sou contra justiçamentos, mas se um trem passasse por cima da ditadura gostariam de projetar de solidarizar-se com o cineasta. dele, festejaria. O casamento de John Lennon e a pregação pacifista na cama de um hotel vienense lembrou-a de que estava sem namorado. Queria um homem de verdade, chega de meninos. Jocosa, o largo sorriso no rosto emagrecido, abordou Valdir, alçado à cabeça da VPR ao lado de Barreto e Espinosa. – Você não vai me apresentar o Lamarca? Pode escrever, estou interessada. Balançou a cabeça, jovial – como é que seus contatos secretos com o capitão chegaram a Iara? Quanto a ele, ignorava que os dois se conheciam. As prisões incessantes enfureciam Espinosa, que se insurgiu e tomou o comando urbano nas mãos. Suspendeu as ações e dedicou-se a tirar os militantes da mira policial. Iara, auxiliar, apelou para Tutinha, pronta a esconder pessoas. Rosto limpo, olhos afetivos. Lembraram do casaco, de Iara a alisar a gola do antílope claro, olho comprido também na bolsa a tiracolo, formato meia-lua. – E eu ainda com meu anel de escrava assumida. – Iara mostrou o anular. – Ela não tinha dúvidas. Ou melhor, as dúvidas eram convictas. Vibrava, olhos sempre a brilhar. Uma doce agressividade, assertiva. Parecia-me bem mais velha, cinco anos a diferença. Eu gostava muito da Iara. André Gouveia também guardava gente. Ajudou a abrigar ao menos 30 pessoas até que a polícia obteve seu nome. Fugiu aproveitando a ida do TUSP ao

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Folha da Tarde, 1.4.69: O cronista Ibrahim Sued qualifica de "torturada" uma mulher que sofre de amor não correspondido. Outros usos sob o título "Torturas" (30.4.69): a jovem "torturada" por um galã, o rapaz "torturando" os invejosos de sua camisa de renda.

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Festival Mundial de Teatro em Nancy, onde apresentaram a Senhora Carrar. Albertina, que estava na França, fez parte do coro. Espinosa convocou um congresso para abril. Só romperiam o cerco somandose a outras organizações, argumentou. Visava em especial o COLINA15, cuja linha política moderaria o imediatismo militarista da VPR. As negociações com seus militantes salvos das quedas de janeiro, a maioria de Minas Gerais e refugiados na Guanabara, ameaçavam o poder dos ex-militares, que exigiram a presença de Lamarca. Acionada, Iara perguntou a Heleny e Ulisses se o acolheriam. Concordaram, sabendo que se tratava do homem mais procurado no Brasil depois de Carlos Marighella.

Breno, Dilma, Herbert Daniel

VALDIR TROUXE-O. Iara, em casa dos amigos, recepcionou-os. – Lembro que correu, assanhada. Lá estava o mesmo homem magro de rosto longo, faces um pouco encovadas, surpreso ante a presença inesperada. Pomo-de-adão saliente, olhos intensos. Enxergava além dos outros, teve certeza. Deixara de ser o militar anônimo, desconhecido a ponto de Espinosa propor justiçá-lo no final de 68, ao descobrir que treinava bancárias. Herói. Entrega total à revolução. O mundo inteiro não valia o sobrado cor-de-rosa escuro, pequeno jardim cheio de plantas, aquele entardecer, uma rua chamada Acácias. Rosto cintilante, arrepiou-se. Eros ou o Destino procurado, sem Tanatos não há, flutuar tal Ofélia, pavor de Iara a renascer das águas, o grande medo na terapia é o desconhecido, pontificava, a vida nova que se entrevê. Preferimos as misérias habituais. Sou companheira, grandes mãos aquecidas a embalariam, paixão fortalece o guerreiro, meu homem tem lábios nutrizes e sabe fazer amor como ninguém, exímio em armas de fogo, pontaria, jogo másculo da guerra. A primeira relação?, edipiana, prosseguia, a gente só se casa de verdade quando mata o pai, interpretações de Freud com Lucia Sarapu, agora estou aqui. Lamarca recebeu a avalanche de emoções atônito, irremediavelmente enredado.

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Marco Aurélio Garcia, Em Tempo 6-19.3.80: "COLINA, uma alternativa socialista ao reformismo?" Nasceu na cisão de 1967 da POLOP. O núcleo principal ficava em Belo Horizonte. Distinguia-se da VPR por aliar foquismo e movimentos de massa. Jacob Gorender, obra citada, cap. 19.

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Valdir apresentou os donos da casa a Cesar, nome-de-guerra que homenageava o filho em Cuba. E partiu. Ficaria em outro aparelho. O hóspede foi conduzido ao andar superior e ajeitou-se no dormitório da frente: cama de casal, camiseira, armário embutido. Uma porta dava ao terracinho estreito e à vista das colinas arborizadas do Morumbi. À direita, fundos lúgubres do laboratório Lily. À frente e esquerda o bairro de sobrados geminados e casas térreas, pequenos jardins fervilhantes – crianças, mães, cachorros, gatos. Lamarca, "fechado". Não poderia ser visto nem sair. Logo Iara falaria do morador oculto no filme de Alain Delon, e da incrível casa do psicanalista Durval Marcondes, sublinhava com gestos, dois sobradinhos geminados, você entra na saleta, tem cozinha e dependências, sobe a escada, tudo banal, aí atravessa a soleira mágica e dá na ala secreta. Cômodos, degraus, incontáveis estantes de livros, a casa simboliza a pessoa, esclarecia, o sei inconsciente. Lamarca ouvia-a fascinado. Sentia-se desdobrar. Mas nessa primeira noite as conversas limitaram-se ao jantar saboroso da empregada, anos na família, que dormia na edícula e observava em silêncio. Para divertimento geral, Lamarca declarou-se capaz de descascar os grãos de feijão cru amolecidos na água. Quantos fossem. – Fica mais digestivo. FaIaram do trabalho de Heleny em Santo André, de teatro político. Nos dias seguintes comentariam os caminhos da guerrilha venezuelana. – Douglas Bravo topou dialogar com o governo. – Não vai levar a nada – previu Lamarca. Discutiram a onda de seqüestros e agitos estudantis na Colômbia, a luta da FRELIMO em Moçambique, ações bancárias na Guanabara e Belo Horizonte, o sucesso de um livro sobre os tupamaros esgotado no dia do lançamento em São Paulo. O rol de generais promovidos, publicado nos jornais, mereceu comentário de Lamarca. – Tudo linha-dura1. A prisão do colunista Zózimo Barroso do Amaral divertiu-os: castigo por noticiar que o general Lyra Tavares e o governador do Paraná, Paulo Pimentel, levaram

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Entre eles Emílio Garrastazu Médici, à frente do SNI e Ednardo d'Avila Mello, comandante do II Exército quando Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho foram assassinados no DOI-CODI em 1975.

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empurrões e cotoveladas dos seguranças de Stroessner, em Foz do Iguaçu, na inauguração da BR 277. – Está dentro das alterações na Lei de Segurança Nacional2. Um general não leva tranco – pela primeira vez Lamarca riu, desaforado. – Desmoraliza o regime. Alegrava-se quando Iara aparecia. O isolamento amargurava-o. – Não saí do quartel para ficar numa redoma. – Quando você sair encontrará uma cidade diferente. Inauguraram o Museu de Arte na Paulista, aquele vão de 74 metros gênero livro de recordes. E dá para ir da avenida dr. Arnaldo até a Antártica na avenidona, a Sumaré. O decreto do Exército expulsando Lamarca foi publicado dia 11. – A definição dos campos inimigos é necessária – emocionou-se. Faziam História. A cautela de Lamarca em relação a Heleny e Ulisses desfez-se. Dormia até tarde, almoçava e lia, a biblioteca à disposição. Ansiava preencher o que definia como "lacunas teóricas". Começou a esperar as vindas de Iara, agora nos fins de semana. Enternecia-o a companheira livre, afetividade transbordante e mais determinada do que nos círculos de estudo em Quitaúna. É a militância, a responsabilidade de articular os grupos armados. Admirava-lhe a presença de espírito nos momentos de aflição. A risada cheia de vida. Compadecia-o a esterilidade. Numa dessas tardes compridas, só os dois em casa, desabafou. Saudade dos filhos, o tormento de talvez não revê-los. Iara consolou-o: vivência preciosa de socialismo em Cuba, pores-do-sol no mar turquesa. Que formação, que cabeça! Lamarca pediu-lhe que falasse de psicologia e ela discorreu sobre Freud, o impacto cultural. Violando a segurança – quanto menos soubessem do outro, melhor – confioulhe a agonia do casamento e repetiu a imagem intencionalmente estranha ao judaísmo, eu parecia uma criança em primeira comunhão. Descreveu os pais, o trajeto dos irmãos. Houve um momento em que ele quis tomar café e Iara foi à cozinha pressentindo, e de fato sentiu-o atrás de si, braços a segurá-la perdidos ambos em desejo, expressão de susto quando a virou para si com delicadeza, submerso em ternura, e se beijaram enlaçados, sede crescente, aquele homem cheio de energia a

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Crimes de segurança envolviam também difusão de notícia considerada falsa e tendenciosa, que indispusesse o povo contra as autoridades constituídas.

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sorver o ar da rua, a liberdade, o gozo do sexo, finalmente onde segurar-se no vazio sem raízes. – Desculpe – Lamarca desprendeu-se, procurando respostas que o tranqüilizassem. – Desculpe, companheira. Não sei o que aconteceu comigo. Uma fraqueza. Na sala, a tomar café, instou-o a compreender a expansão e o recuo. Vergonha ao pensar na mulher, nas crianças, confessou. Só se apaixonara duas vezes na vida e Iara, maternal e curativa como anelava sua fantasia masculina, achegou-se no sofá, rostos em fusão.

Iara foi encarregada dos contatos e circulação de documentos preparatórios ao encontro em Mongaguá, litoral Sul de São Paulo, quando VPR e COLINA dariam origem a um novo agrupamento, a Vanguarda Armada Revolucionária – VARPalmares. Os militantes do COLINA concordavam sobre o caráter da revolução brasileira. Mas vários repeliam os métodos da VPR, ações sem fim. Desconfiavam também de seus nomes famosos, a começar por Lamarca. Facilmente imporiam à futura organização o militarismo imediatista. O COLINA acreditava no trabalho de massa e defendia seu lugar na liderança do futuro Brasil socialista. Quanto às "desapropriações" propunham uma só, que garantisse de vez a sobrevivência. Em seguida, todas as forças se concentrariam nas Uniões Politico-Militares, Operárias e Ligas Camponesas, associando o povo à luta armada3. – Lamarca até ali concordava, grande sua sedução por Osasco – testemunha Espinosa. O grupo favorável à fusão manobrou para que apenas dirigentes a aprovassem, em Mongaguá. Arriscado consultar as bases devido à repressão, justificaram. Mas os opositores discordaram. As lideranças promovem uma "anexação", xingavam. Defendiam um congresso e tentavam desacelerar os acordos. Incumbida de atuar na Guanabara como elo entre a VPR e o COLINA, curiosamente aliviada, Iara partiu. A distância dimensionaria aquele amor.

Herbert Daniel, Passagem para o Próximo Sonho – Ed. Codecri, 1982: "...a teoria que elaborávamos ou que pedíamos emprestado aqui e ali, era uma justificativa, não uma análise". 3

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No ônibus reconheceu que desta vez não poderia desapaixonar-se como ao desligar um comutador, no dizer de Valdir. Seria desrespeitar um dos líderes da revolução brasileira. Via-o contra as luzes de São José dos Campos, olhos a percorrêla, mãos de cavaleiro enamorado, vingador de fracos e inocentes. Desligo um mês, no Rio verde-azul. Abril é bonito. Não desceu nas paradas, prudente. Adivinhava a paisagem no escuro, idas e voltas pela Dutra. Dormiu, a cabeça longe de São Paulo e das bolinhas perfeitas que Lamarca incansavelmente esculpia a canivete em rolhas usadas, para o filho, o autocontrole. No ponto esperava-a Breno, o belo, devaneios no congresso da POLOP em 1967. Olhou-o intensamente enquanto a conduzia ao aparelho do COLINA, em Copacabana. Comentaram as manobras militares antiguerrilha em Itapira, São Paulo, acompanhadas de médico, dentista e orientação sanitária4. – Inspirado no projeto da gente. – A repressão está babando no Rio – advertiu-a. – Torturam inocentes para mostrar serviço. E pegaram uma organização em Cavalcanti.

O aparelho era minúsculo – quarto, duas camas, corredorzinho, kitchenette, banheiro. A mineira Dilma Vana Rousseff Linhares, conhecida no congresso de 1967, recebeu-a. Dirigente do COLINA e pessoa-chave nas reuniões preparatórias do futuro encontro de lideranças, dedicava-se a boicotar a fusão. Ficaram amigas, todavia. Quando livres iam juntas à praia, almoçavam. Às vezes o namorado de Dilma, Carlos Franklin Paixão de Araújo, o Max, COLINA de Porto Alegre, agregava-se. Com Iara o casal comia regiamente em comparação ao prato feito ou espetinho dividido entre dois, no alcance da quota, mal saciada fome dos 21 anos. Iara estendia um cartão de crédito que examinavam, olho arregalado. Que atrevimento! Dilma passava o dia a cobrir pontos. Atribuía tarefas, controlava eventuais quedas e ajudou a montar o grande feito da COLINA-VPR em casa de Ana Capriglione: o roubo do cofre de Adhemar de Barros. recentemente falecido5. Também atendia a pontos em outras cidades e contatava as demais organizações.

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Ação Civil e Militar – ACISO.

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Referências: Herbert Daniel. obra citada; Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19); Alex Polari, "Em Busca do Tesouro"– Ed. Codecri. 1982.

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Nas noites desocupadas caminhavam por Copacabana. Vitrinas, velhas portas de madeira trabalhada, o fausto da antiga Capital. Cinemas, trânsito ininterrupto, presença escura do mar próximo e a maresia que Iara não captava. Passos em cadência, combatentes anônimas na tangência do dia-a-dia, trocavam idéias silenciando durante o fragor dos ônibus. O revoltante laudo cadavérico de Lucas Alves – esmagamento e várias unhas arrancadas, além de "outras escoriações". A guerrilha urbana que desconcertava os militares argentinos. A ausência de acordo na Venezuela entre revolucionários e governo, Lamarca tinha razão. Orgulhou-se do retrato de Heleny no jornal que alguém trouxe de São Paulo: óculos, cabelos curtos, colar de várias correntes, sorria ao receber o prêmio "Revelação de Autor". – Do jeito que andam censurando teatro, o prêmio é uma resposta política. Essa de proibir o balé da Moldávia no Teatro Municipal é demais. – Gostei do conselho do Sindicato dos Bancários: não reagir aos assaltos. Feridos ou inutilizados, os funcionários só têm a Previdência. Também é uma resposta política. – De quem será o aparelho que caiu em São Paulo, na Domingos de Morais? Cheio de armas, três presos, um fugiu saltando telhados. Uma noite, Iara confidenciou que amolecia por Breno. – Não é coisa súbita. Já me interessei, no passado. Discorreu sobre José Dirceu, a grande paixão: brigas, sofrimento. Listou namorados. – É perversão, comum na militância, reprimir a afetividade. Ela se mistura a tudo, impregna o lado político. Acreditar que basta combater é o cúmulo do voluntarismo. Eu me sinto meio marciana ao insistir no valor da vida intima, das confidências. Inviável dar conta, sozinha, da própria subjetividade. Dilma concordava, grandes olhos castanhos umedecidos. Que ousadia a de Iara, enfrentar a coerção e assumir a importância dos sentimentos. – Você é uma feminista. A primeira que conheço. Falavam de cinema. – Iara tinha prazer de contar filmes enquanto caminhávamos, peripatéticas. Preferia os de suspense, quando se ignora quem é o criminoso. E os de amor. Sempre a riqueza de detalhes e interpretação. Também gostava de cantar. Adorava Pra dizer Adeus, de Edu Lobo e Torquato Neto. Pensava em Breno. Cantou trocentas vezes no meu ouvido: "Adeus, vou pra não voltar/e aonde quer que eu vá/sei que vou sozinho/... 288

/Ai, pena eu não saber/como te contar/que o amor foi tanto/e no entanto eu queria dizer/... vem/nem que seja só/pra dizer adeus." Ao dormir, luzes apagadas, a conversa prosseguia e Iara acabou falando de Lamarca. – Preciso me dar tempo, eu sei. Atravesso uma fase de definição. Lamarca faz propostas, mexe comigo. Extremamente terno, cavalheiro, educado. Mas é o Breno que me mobiliza. Gente, cada olho verde! O corpo atlético, perfeito, você reparou que lindo fica depois de tomar sol? Pena que é arisco. Difícil. – Ele diz que não se liga a ninguém porque vai pra guerrilha rural. Não sei se é verdade, nunca se prendeu. Acho que tem dificuldade de encarar uma relação. Imaginava-o ainda líder universitário em Belo Horizonte, jogador de basquete, prêmios de natação. Caçula de oito, estudante de Economia, sempre despertou paixões. Militante do Partido Socialista Brasileiro e da POLOP, participou dos festejos da revolução cubana; de volta a Minas, envolveu-se com as Ligas Camponesas. Quatro meses ficou preso por pichar muros em 1964 contra a ditadura militar e a OEA, que impôs embargo comercial a Cuba. Escrevia artigos num jornal operário clandestino. Secretário regional da POLOP, direção do COLINA, condenado em Juiz de Fora a dois anos, veio clandestino ao Rio6. Iara decidiu lançar-se na conquista. – Vệ se você me dá uma mãozinha. – Conte comigo – comprometeu-se Dilma. E assim foi. O desconforto ao pensar em Lamarca lentamente desvaneceu-se e Iara caprichou na sedução. A amiga saía nas horas aprazadas deixando-os a sós. – Eu torcia por eles, um casal bonito. Iara passava horas se aprontando. Um dia, a cara lambuzada de iogurte-garantia ser tiro e queda para o rosto – tocaram a campainha. Apavorou-se, ele não a veria daquele jeito. Era o porteiro. Breno apaixonou-se. Confidenciou a Dilma que pleiteara à organização morar com a namorada, a mulher mais bonita e perfeita do mundo. Grande companheira, amiga, amante. Lamarca, porém, não a tirava da cabeça e mandou-lhe uma carta de muitas páginas, letra minúscula semelhante à dela, caligrafia de professora. Toda opção

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Inês Etienne Romeu: Depoimento em "Desaparecidos Políticos", obra citada.

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implica perda teorizou Iara, depois de a reler. Não queria perdê-lo mas fixara-se em Breno, a praia, o vento. Amo o Rio, horizontes. – Lamarca é homem fora de série, épico. Mas tem que ser coisa responsável, não posso fazer o gênero de entrar e sair. E o líder fechado em aparelho, um dos homens mais perseguidos do Brasil. E estou a fim de Breno – hesitava. Não sabia o quanto contar com o namorado, uma cabeça mais à Maria Antônia. – Quer saber? Não vou responder a carta. Era um domingo à tarde. Abriu a geladeira. Limões da batida dominical, tarefa de outro mineiro aculturado, Herbert, o Daniel. Vistoriou as garrafinhas de leite desnatado, o soro fisiológico demaquilador das pálpebras. Tudo em ordem, passou o ferro quente na blusa estendida sobre a cama – preocupação que espantava Dilma. – A gente precisa se cuidar – já automatizara o discurso. – Olha, vou levar você ao Jambert para cortar sua juba fora de moda. Não está certo esconder o rosto desse jeito. Ele corta bem, acaba sendo mais barato. Quem se divertiu com a argumentação foi outra companheira de Belo Horizonte, Maria do Carmo Brito, a Lia. Conheciam-se desde os tempos da POLOP, quando trabalhavam no setor de imprensa e propaganda. – Seu cabelo é muito grande, crespo e você ainda usa essa gaforinha! – insistiu Iara, já usando expressões inusitadas em São Paulo. – Um corte realça seus olhos bonitos. Juro! Dilma obedeceu. Beberam o champanha que ofereciam no cabelereiro e saiu de cabelos curtos. Penteava-os com os dedos. Mas as críticas de Iara persistiam. – Agora, as roupas. Não caem bem. Defendemos o direito à beleza, apesar de revolucionárias. Faz bem à auto-estima. Quem se acha interessante trabalha melhor, é mais segura, dá menos bandeira. Vou te dar o meu vestido, ando em maré de calças. Dilma deixou o apartamento. As visitas de Breno definiram a situação praticamente viviam juntos. Iara só queria estar ao lado daquele homem forte, apaixonado, corajoso nas ações armadas. Quando Lamarca vinha à lembrança, expulsava-o. – Pular pensamentos é uma técnica. – Vai ser tudo enquanto durar – disse-lhe Breno certa vez, inspirado em Vinicius. Iara acusou o golpe. 290

– A defesa clássica de limitar uma relação. Velha de guerra. A vida, por si, já é contingente. Você minimizou. Não gostei. – Coisa de psicóloga, catar cabelo em casca de ovo. Parece análise léxica de poesia. Cabeça feminina. Já vi esse filme, agastou-se, o medo à entrega, a volubilidade do aqui e agora. Chega de viver insegura, daqui a pouco pinta outra garota. Eu, sim, posso ter essa liberdade – disparou. Conheço meus processos. Ele, não. E a rotina rouba os dourados, desgasta. Espinosa, confidente de Lamarca, hospedou-se duas vezes no aparelho de Copacabana e trouxe outra carta. Iara não conseguiu ocultar a ligação com Breno. – Que fazemos? – socorreu-se em Dilma. – Lamarca pede resposta, diz que é pior não saber. Folhas e folhas de papel de bloco, regularidade matemática. Debateram. – Ele puxa para o piegas. Fico até envergonhada de alguns melados que escreve – confessou. – Diga que você está gostando de outro. – Não sei. À Maria do Carmo, também sua confidente e com empatia pela impaciência de Lamarca, reconheceu-se comovida. – Mexeu comigo ele escrever que me via mãe de filho dele. É prova de certo tipo de amor. Quero muito um filho, apesar dos riscos em que vivemos. Se eu decidir que sim, não posso mais ceder a nenhuma atração. Ele não aceitaria. Passaram-se anos no tempo exclusivo das organizações. A ausência de familiares e amigos do passado legal e a cidade estrangeira geravam aguda necessidade de contato. Mas a excessiva intimidade nos pequenos aparelhos exacerbava a intolerância. Noite e dia pessoas de hábitos e educação diferentes partilhavam camas e banheiro. A companheira sentada de pernas abertas, por exemplo, melindrava a militante educada em colégio de freiras. O detalhe, insignificante, desrespeitava sua sensibilidade. Só no interior de si desenvolviam mecanismos que resguardavam alguma privacidade. – Tem coisa que a gente faz escondido – pleiteava Iara. – Se o Breno me flagrasse lambuzada de iogurte, eu estaria impingindo meu lado menos belo. Mostrar 291

o lado feio é constrangedor como botar o dedo no nariz; violenta o companheiro. Viver junto exige cuidados e delicadeza. Etiqueta. Até para não banalizar. Breno, espontâneo e caudaloso, dominava o espaço exíguo inconsciente do desconforto, o conflito oculto. Miudagem na epopéia, o assunto vexava. – Não se aborrece com mediocridades o companheiro concentrado em elaborar um documento – elucida Herbert Daniel. – O companheiro sai para uma ação armada. Claro que ele pode esquecer o banheiro sujo, o assento molhado, a bucha de banho cheia de pêlos usar a escova de dentes do outro. A gente brigava, mas sem tornar a vida doméstica tensa demais. – O Breno está enchendo – desabafou Iara a Dilma. – Uma coisa é namorar uma noite, três dias. Outra é conviver na rotina de corda bamba. A gente descobre que se desconhece. Então, que escrevo ao Lamarca? Ainda não quero me definir. – Vamos escrever uma carta em cima do muro. O negócio é achar o tom. Juntas, elaboraram o texto em que Iara pedia tempo. O grupo dos arquitetos assistiu a algumas reuniões da fusão na Guanabara. Fariam a ponte com a ALN. Vieram Sérgio Ferro e Julio Barone, que Iara conheceu no fim de 1967, formado há seis anos e estudante de Filosofia. Os dois seguiam de olhos fechados ao aparelho e abraçavam Iara, alegre de reencontrar os amigos. Falavam bastante, cantaroIaram Estrela D'Alva quando morreu Ataulfo Alves. – Um músico do getulismo que renegava suas origens populares. Mas eu gostava dele. Dividiam os turnos de vigilância, dia e noite. Certa manhã, descansada e risonha, Iara aproximou-se deles na hora do café. – Vocês não me acordaram. – Aceite como um presente. Queriam preservá-la um pouco. O coletivo zangou-se. – Não repitam, companheiros. Vocês abrem precedentes. Os quadros são iguais. Uma tarde Iara e Herbert Daniel faziam hora na calçada do prédio quando Breno chegou. Beijou-a e ao despedir-se deu-lhe um tapinha no traseiro. Como o senhor Puntila no criado Matti, na peça de Brecht.

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– Iara, extremamente constrangida, fitou-o. Raiva. Percebi que terminava. Tentei justificá-lo, apesar de não se comentarem intimidades: "É um tipo de carinho, um jeito de se expressar." – Quem faz carinho desse jeito... acabou. Eu me enganei. Claro que Breno é muito bacana. Mas num apartamento mínimo não cabe o amor de duas pessoas que mal se conhecem. É pior que casamento. Concluíra a tarefa de um mês na Guanabara, que incluiu algumas viagens a São Paulo. Num ponto, entregava documentos do COLINA; trazia outros da VPR. Falou do dilema amoroso a Espinosa e pediu-lhe que levasse a carta de delongas a Lamarca. No fim do mês, o listão de aposentadorias compulsórias decepou professores da USP, diplomatas, ministros e puniu militares7.

De volta a São Paulo, acomodou-se em casa dos pais e foi com eles ao Guarujá no fim de semana. – Você está queimadinha – alegrou-se Lamarca quando a reencontrou na rua das Acácias. Devagar, ela deslizava em sua direção. – Receio o sentimento de culpa dele – antecipou a Heleny que abriu o namoro ao marido. Quando Iara pernoitava a conversa estendia-se à madrugada. Pouco tocavam na remota política brasileira, os civis a bajular Costa e Silva novamente em São Paulo. O assunto era a fusão que concretizaria la guerrilha. – Imediatamente distribuiremos terras – afirmou Lamarca. – Fogo nos cartórios. Nada semelhante ao que fez o Prestes na Coluna: contribuições de guerra dos abastados em algumas cidades, queima dos livros de impostos. No máximo ele abriu cadeias. Considerava os presos vítimas de perseguições; e os criminosos das altas esferas políticas e sociais, soltos.

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Florestan Fernandes, João Villanova Artigas, o físico Jaime Tiomno. Em seguida Caio Prado Jr., Isaías Raw, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, Sebastião e Olga Baeta Henriques entre numerosos outros 107 no total. Alfredo Buzaid foi nomeado reitor da USP. O MDB restou com metade da bancada.

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– Prestes não era comunista ainda – atenuou Iara. – A marcha do tenentismo enfrentava as oligarquias, o presidente Bernardes. Almejava regenerar os costumes políticos, escreveu Caio Prado Júnior. – Está certo. E ele foi genial ao conceituar a guerra no Brasil, qualquer que fosse o terreno, como guerra de movimento. Numa carta ao general Isidoro Dias Lopes, o chefe militar, escreveu: "Para nós, revolucionários, o movimento é a vitória."8 – Vamos participar de uma revolução intercontinental. A crise será incontrolável nos Estados Unidos ao término da guerra do Vietnã. Desemprego, inflação. O capitalismo agonizante travará a última batalha na América Latina. O Supremo Tribunal Federal condenou o Estado de Minas Gerais a pagar com juros a indenização aos descendentes dos irmãos Naves, vítimas de tortura e erro judiciário. Iara contou o filme O caso dos irmãos Naves a Lamarca. – No fim é o dinheiro do povo. Assim é fácil indenizar. O curso de Heleny no Teatro de Arena, sobre o método de Brecht, interessouo. – É uma pesquisa – esclareceu ela. – Através de dois autores básicos, Brecht e Stanislavsky, tentaremos elaborar uma interpretação contemporânea. Os alunos farão laboratório e treinamento das noções que aprenderem. – Você parece uma índia kalapala – mexia Iara; a amiga usava franja, – Eu gosto desses seus lencinhos no pescoço. No dia do aniversário de Iara – um quarto de século, protestou – sozinhos, novamente Lamarca se queixou, ininterruptos cigarros. Insuportável a vida clandestina em aparelhos, sonhara iniciar a guerrilha, promessa de Onofre agora preso. Onofre quebradiço, não se conformava. – A gente só abre o bico na hora de engolir cianureto. Tarde da noite, o quarto escuro, contempIaram as casas adormecidas na rua, contornos montanhosos ao longe. De Iara recebia calor, apoio. Beijou-a, comovido. Atenuava a ansiedade, imenso controle de guerreiro enjaulado. – Ao menos leio bastante. Sofreguidão na leitura dos livros da casa. Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré, manuais militares americanos do agora cassado pai de Ulisses. Iara trouxe-lhe

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Lourenço Moreira Lima: A Coluna Prestes, Marchas e Combates, Ed. Alfa-Ômega (fac-similada), 1979; João Quartim de Moraes: A Esquerda Militar no Brasil, Ed. Siciliano, 1991.

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de presente um livro militar, Informações Estratégicas. Mas estimulava-o a distrair-se e sugeriu novelas e biografias históricas. Também para relaxar, Lamarca ensinou Ulisses a mexer com armas. Adormeciam aconchegados, alguma coisa de adolescente nos tateios cuidadosos. Princesa, porcelana translúcida. Na soleira, visíveis, as armas do guerreiro, armadura e ferocidade. Durante os fins de semana refugiavam-se no quarto. Iara descia para buscar café e assim ficavam até o jantar. A eletricidade dos meninos espantava Lamarca. – Cuidado com o seu veneninho – Iara aludia à cápsula que ele carregava no bolso. Falou-lhe de Rosa Luxemburgo, que se opunha ao sacrifício do amor e da vida pessoal. As cartas a Leo Jogiches, o amado. A integridade na prisão, seu assassinato e de Liebknecht. Malditos social-democratas. Desavenças com Trotski e Lenin: sem democracia, que implica vida política ativa das massas, livre de amarras, vigorosa, secaria a única fonte capaz de corrigir as insuficiências inatas das instituições sociais. O remédio seria pior que a doença. – Não que eu concorde integralmente. É bonito na teoria e um objetivo que a gente deve ter na cabeça. Falou-lhe da carta de Luxemburgo à amiga e social-democrata Mathilda Wurm, em 1917, sobre o desespero das comunidades judaicas do Leste Europeu, vítimas do anti-semitismo e da ameaça de pogroms: “Por que você vem a mim com seu sofrimento especial, judaico? Tenho a mesma pena dos índios miseráveis, vítimas em Putamayo, dos negros africanos... não consigo encontrar um canto especial no meu coração pelo gueto. Sinto-me em casa no mundo inteiro, onde quer que existam nuvens e pássaros e lágrimas humanas." Nenhum judeu escaparia vivo de Zamosc, a cidade natal de Rosa Luxemburgo na Polônia. Nem de Britshen ou Reckon, onde viviam as famílias do meu pai, Mas então, morreram 17, 20 ou 25 milhões de soviéticos na guerra. Por que um canto especial para os judeus? Números inconcebíveis, além da compreensão. Qualquer morte é uma tragédia, interveio ele. Discordo, optar pela morte na luta revolucionária não é uma tragédia. E o fim de Escoteiro? A opção muda tudo, e aqui estou eu, Iara, brasileira, judia, a redimir o povo latino-americano, a Humanidade, um dos dez fuzis que se erguem a cada um que cai. Lamarca, atento, deslumbrava-se com a inteligência da companheira. 295

– É brilhante – qualificava. Falou-lhe do cursinho, a descoberta de outro mundo. Acerca de Breno, silenciou. Não compreenderia. – Paixão é doença, coisa de cuca – ensaiou. – O outro resolve carências, é um objeto que, narcisistas, queremos modelar. Ou se descobre que o objeto não é nada disso, ou ele se descobre objeto. E um dos dois pula fora. Por Lamarca sentia amor, admitiu. Um casamento celebrado no Céu, como se acreditava no Ipiranga. Vou engravidar, assegurou. O paradoxo da estabilidade na mais instável das travessias, barganha com o destino. Examinaram longamente a culpa dele em relação à mulher. Nas primeiras vezes que dormiram juntos, atormentava-se. Não merecia a confiança dos seus. Traidor. E Cesar, se soubesse? Agia como o pior dos canalhas. Indigno. Expediu a família e apaixonou-se. Iara intercedia. A clandestinidade é outra vida. As referências mudam, um homem precisa de amor, carinho, força, sob pena de enfraquecer. A amada nutre, reequilibra. Lamarca anuía, raciocínio perfeito. Acordava no meio da noite, entretanto, incrédulo. Durante a semana, Iara distante em tarefas – providenciar transbordos, aparelhos, fazer contatos, distribuir documentos atormentava-se. Encarcerado, sem atuação, sentia-se vegetar. Inválido. Nas reuniões de fusão quedava-se inibido diante de tanto Marx, Lenin, Mao Tsé-tung. Quando presente, Iara reassegurava-o em embalos de madrugada. Porém o antigo temor de abandono mortificava-a. – Você está pensando em mudar de idéia? Jurava amá-la, só queria ser honesto. Nem no quartel acompanhava a rapaziada solteira ao centro de São Paulo. Riram-se os dois lembrando a visita dela, pá, que visão, você de biquini, molhadinha. Só se permitia a cerveja no cassino dos oficiais, no máximo um passeio em Quitaúna. Ninguém chamava de tola sua fidelidade, ao contrário, crescia o respeito pelo tenente, grande competência, responsável, nunca o viram perder a cabeça nem gritar com soldado, cabo ou sargento, exceto de brincadeira. Polido desde a Academia Militar, colega de cadetes em turmas acima e abaixo, conduta inusitada na rígida estratificação. O soldado é o último da escala, explicava como que viajando pelo quartel. Poucas pessoas se preocupam em ouvi-lo, na carreira militar a tendência é mirar-se no alto. Descartava o carreirismo servil inerente à profissão, exceto o zelo, sempre bem uniformizado, 296

perfeito no porte e responsabilidade. Preparava as instruções sem horário para terminar, sábados e domingos no quartel, a tarefa de instruir soldado é um sacerdócio, verdadeira missão. Viajava para ver as crianças, Marina, dei o apelido à Maria por causa da música de Caymmi – e Iara fez um muxoxo, é inveja. Casei secretamente em outubro de 1959, só Altair, o Maninho, amigo querido, ciente da quebra de regulamento, nem aspirante pode casar, quanto mais cadete. Imaginava Lamarca, 22 anos, belo aspirante, impecável e crédulo, idealismo nas decisões. Infantaria, levantar às 5:45, não se deter até o toque de silêncio, 22:00. Aulas a pôr em dia, estudos, a cabeça no filho chegando, maio de 1960. Nunca fui dos primeiros da turma, porém tinha inquebrantável a deferência à instituição do Exército e à Pátria, supremo bem. A quadratura abismava Iara, a síntese resultou no socialismo, absolveu. Lamarca sacrificaria qualquer coisa pelo Brasil e encorajava os amigos queridos a imitá-lo, desde a parcimônia nos gastos e consumo de material bélico, à convicção de serem seus guardiões. Tudo, ali, era a Pátria. Ao abandonar o Exército, resgatava o que da Nação haviam usurpado, inclusive a própria fé. Os sargentos veneravam o homem íntegro, puro, comportamento ético inviolável. Todos, especialmente os oficiais íntimos, conheciam as dificuldades financeiras que o sugavam, os remédios para a misteriosa doença da esposa, algo nos rins, talvez. Duas vezes enfiaram um pouco do soldo em seu envelope de pagamento. Da primeira vez, surpreendeu-se. "Que é isso?" Logo a seguir, para disfarçar a intensa emoção, repetia "ah, seus filhos da mãe, seus filhos da mãe, quem for? parem com isso" e chorou, comovido. "Não está certo", reclamou ainda, e responderam "Porra, cara, dinheiro que a gente vai desperdiçar em cerveja, não custa nada". Seus trajes eram tão surrados que lhe emprestavam calça e camisa à noite, quando queriam mudar a casca. A situação mudou ao aceitarem seu nome para integrar a Força de Paz da ONU no Canal de Suez. Dedicou o melhor dos esforços à missão, agradecido aos amigos que o ajudaram. Tratava-se de privilégio: dinheiro e oportunidade única em início de carreira. Normalmente, explicou a Iara, o militar só tem chances depois de tenentecoronel ou coronel, como adido militar no Exterior. Os amigos festejaram a despedida no quartel, churrasquinho, cerveja e bola, gostava de futebol, sem fanatismo; ninguém o batia no gol, uniforme preto, até o apelidaram Aranha Negra, famoso goleiro russo.

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Mas gostava mesmo era de correr, sempre voluntário na Educação Física dos soldados. Em 1962/1963 deixou o quartel, servira desde agosto de 1960. Mediante ocupação de pontos estratégicos na península do Sinai e faixa de Gaza, conservariam distantes as forças do Egito e Israel; este retirara-se já para trás da linha do armistício de 1949. Cuidavam também de Sharm-el-Sheik, no sul do Sinai, por dominar o estreito de Tirana – único acesso de Israel ao Oceano Índico através do Mar Vermelho e o porto de Ácaba. Foi um ano duro. Língua e costumes estranhos, saudade da família, Natal e Ano Novo longe. Escrevia cartas e cartões postais, pensamento positivo. O poder baseia-se na força das armas, cismou, correndo o dedo pelo garrafão de cinco litros cheio de bolinhas de cortiça, os companheiros sempre a lhe trazer rolhas nos bolsos. Claro que a política é válida, conquanto não leve a nada por si. Atuar na massa apenas manda a revolução para as calendas. Bem, na volta servi na Polícia Militar de Porto Alegre. Tempos quentes. Discussões nos quartéis entre a incipiente esquerda – dois, três oficiais – e a direita forte, organizada, ainda amiga. Comprávamos a Última Hora, nacionalista. Rotulamos a direita de gorilas, brincadeira sem hostilidade. Nas conversas falavam mais os capitães, depois os tenentes, sargentos e alguns soldados. Teve o momento em que me convidaram a entrar no PC, um capitão e dois tenentes. Lia teses nacionalistas, O que sabe você sobre petróleo? do Gondim da Fonseca, Olympio Guilherme em O Brasil e a Era Atômica. O Manifesto, do Editorial Vitória. Andei com Leôncio Basbaum debaixo do braço, História Sincera da República. Caio Prado Jr., Josué de Castro e, claro, Nelson Werneck Sodré. Infelizmente não tinha tempo, trabalheira dura, o baralho obrigatório dos oficiais. Discutíamos. Nunca fiz a cabeça de ninguém, seria pretensão. Contra a minha natureza. Veio o golpe, dei fuga ao capitão da Força Aérea Alfredo Ribeiro Daudt, preso no quartel. Torturavam os subversivos. Marina mal acreditava, uma vez fui buscá-la em casa para forçá-la a ver9. Em 1966, ainda primeiro-tenente, voltei ao 4° RI. Inquieto, angústia crescente, obrigado a reprimir operário em Osasco, Barreto no meio, cercar estudantes no Centro, você no meio. Não me formei para isso. O que faço aqui dentro? Deixei o Partido, discuti com os amigos, Darcy. Concebemos o grupo de estudos. Onofre, Marighella, Sarapu. Quem se preocupava era Afonso, irmão do Tom. Grande amigo. 9

Relatado pelo cineasta Sérgio Rezende.

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Mas não, aprendi tanto e agora virei capitão-do-mato? A tropa ensinei morrer pelo Brasil e comando porrada em estudante? Baioneta castigando operário? Não defendemos a Pátria mas o patrão, daqui a pouco o soldado prende o pai, irmãos, vizinhos, parentes, muitos incorporados dali de perto, maluco, endoido, de manhã faço a barba, espelho, olho no olho, colaboro com um sistema contrário a todos meus princípios, qual a alternativa? O grupo medita, quero me demitir. Maninho joga água fria. Preferível avançar um passo aqui dentro, lá fora não influenciaremos nada, tu és um tremendo profissional, gostam de ti, em um ano ou dois tu és major, teremos ascendência. Não se precipite. Divorciei-me, entretanto, desse posicionamento. Cuba nos ajuda, o Vietnã é um facho. Vamos resolver isso. Um punhado de gente armada, pronta a dar a vida, muda o curso da História. Larguei o quartel e me amarraram. Devagar Iara identificou-se com a lógica militar que Melo, Raul e os companheiros simpatizantes do COLINA desdenhavam. A emoção de Lamarca ao ouvir música enternecia-a, solo e coro da 9ª sinfonia girando no toca-discos da sala, ou meramente sons de trompete, lembrou-se do distante moré, a aula sobre o shofar, chifre de carneiro capaz de produzir algumas notas e que chamava à batalha os antigos hebreus, o pai de Shirley a soprá-lo no Yom Kipur. Milhões de brasileiros alienados do processo social, o arrocho escalpelando o povo amadureceram as condições brasileiras, concordava. A revolução independe do infindável trabalho de massa, a ordem é iniciar o treinamento já. Sem o primeiro passo não há o segundo. O pessoal político e intelectual atrapalha um pouco, sofre desvios, diagnosticou ele. Mentalmente intoxicados estavam os companheiros expulsos em janeiro, refluir justo agora! No combate o único pensamento correto é o militar. Sem fanatismo: só armas derrubam armas. E pura razão. E tome nota, não agüento mais ser um bibelô na prateleira enquanto outros se expõem. Chega! Participo das ações. Perdemos em operacionalidade, apresento-me para substituir os quadros caídos. – Então você fica na cobertura, sem contato com o objetivo – cederam os integrantes do comando. Num dos assaltos, a 20 metros da agência bancária na rua Piratininga, Brás, Lamarca entrou no bar da esquina. Pediu café e fingiu interessar-se por uma jovem, que sorriu10. Xícara na mão voltou-se à rua como a espairecer e deu com o guardacivil na calçada oposta, quase correndo, revólver empunhado-um faxineiro do banco 10

Folha da Tarde, 10.5.69.

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puIara a janela dos fundos e preveniu-o. O companheiro que surgisse, provavelmente carregando a sacola do dinheiro, seria morto. Mirou, viu-o cair. Correu pela rua, dispersando passantes. O grupo apontou, entre rajadas de metralhadora para o alto desapareceu em quatro automóveis. Devido à semelhança com Iara, Lamarca identificou o motorista de seu carro. O mesmo que levara as armas de Quitaúna. Manteve-se impassível quando Melo, nervoso, quase bateu num automóvel, acidente que teria graves conseqüências. O noticiário explorou a morte do guarda-civil. – Não tive jeito, ele ia mandar bala. Atirei no ombro, mexeu-se, não sei, caiu. Foi tragédia – desabafou. – Minha primeira morte neguinha, uma tragédia porque sem querer, certo? O dom maior é a vida. Por isso é crime explorar o homem, trabalhar feito animal para que outro viva feito rei. Intranqüilo, registrou os discursos ideológicos que justificavam o acidente. – Tem uma coisa sem volta, que é a morte. Estou atrelado a ela. Aceitar o fim é a condição da vitória. – Você definiu o substrato. Um poema de Brecht diz: o homem deve "saber dizer a verdade e mentir, esconder-se e expor-se, matar ou morrer". E Mao ensina que atacar o inimigo de frente, só quando se é dez vezes mais forte. De tempos em tempos Lamarca pedia contato com Darcy, amigo desde 1960, para conversas pessoais. Ainda em maio falou de Iara. – Fui contra, uma reação temperamental. Argumentei que causaria mal-estar nos militantes. Quebra de autoridade, a família em Cuba. E tornava-se vulnerável externamente, vidraça dos repressores. Por sorte ignorou minha repreensão. Ela foi uma companheira extraordinária, militante e humana. Desempenhou papel predominante no equilíbrio emocional e formação de Lamarca. Dia 15, na casa dos pais, Iara tomou um choque. Inconfundível, bigode acrescentado à foto, retoque grosseiro a repartir de lado o cabelo, o jornal exibia Lamarca. "Polícia já sabe quem assalta", dizia o título11. Da cozinha, o chiar do bife à milanesa que Eva fritava. Tudo parecia calmo e no entanto fora brutalmente invadida. As quedas levaram à pista de Lamarca, o João, primeiro na lista de procurados, assassino do guarda-civil. Seguiam-se fotografias, nomes e cognomes de Renata, provável loura dos assaltos; Wilson e Eduardo Leite, o Bacuri; Valdir, Ladislau, 11

O Estado de S. Paulo, 15.5.69.

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Yoshitame Fujimori – o japonês do assalto à agência do Banespa na Iguatemi, "predileto de Lamarca". E outros: Darcy de rosto duro; a determinação entre infantil e dolorida de Zanirato. Antonio Raimundo de Lucena, feirante, acusado de roubar a dinamite da companhia Perus. Diógenes José Carvalho de Oliveira, com incriminações que iam da bomba no consulado americano à morte de Chandler. Onofre Pinto, Espinosa, Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo da ALN, ex-deputado do PC. Yoshinaga Massafumi, José Araújo da Nóbrega, Claudio de Souza Ribeiro, José Roberto, o Gordo, José Raimundo da Costa. No dia seguinte12 nova lista incluindo Escoteiro, Maryse de cabelos compridos, linda, descrita como egípcia e amante do professor de Filosofia Quartim de Moraes, procurado por dois assaltos a banco, furto de fuzis do Hospital Militar e participante da reunião que condenou Chandler. – Primeiro o esquema da ALN, agora a VPR. O lado positivo é mostrar às massas que o povo não está abandonado no país onde o vice-presidente revê o lixo da Constituição de 1967, para redigir uma porcaria ainda maior, autenticando o AI 5. Gente, mania de legalizar, cara-de-pau dizer que será um estado de direito13. Bem, aumenta a conscientização do quanto merecem bala. Por segurança, Lamarca despediu-se de Iara e deixou o Brooklyn. Arriscado ficar tanto tempo no mesmo lugar, dois meses intermináveis. – Não sei onde está. Dói mas ele vive dentro de mim, eu dentro dele. Uma certeza irracional de que voltaremos a nos ver, cada momento de saudade constrói a revolução. Estamos ligados por um fio invisível, fusão à distância. Heleny, emocionada, contou-lhe que também se apaixonara. Um dos sociólogos que Iara namoricou nos tempos da Faculdade, opositor moderado da luta armada e presente quando o grupo de apoio se reunia em casa de Ulisses – incansáveis, analisavam a natureza do processo político brasileiro – surpreendeu-se ao vêla circulando calma, certa noite, perto do bar Xic-Xá, ainda ponto de professores e alunos da USP. – Como é que você anda assim por aí? – Não tem problema – sorriu, segura. Estava animada. Os tupamaros progrediam, um comando que incorporava mulheres ocupou uma rádio durante a partida da Copa Libertadores da América,

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Folha da Tarde, 16.5.69. Carlos Castelo Branco, obra citada (17.5.69).

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enorme auditório, e difundiu notícias revolucionárias. Até no interior do Paraná, expropriações. Peruca estilo Chanel, Iara foi ver O Bebê de Rosemary. Divertiu-se à grande: projeções sadomasoquistas de uma mulher banalizada pelo sistema, a suave Mia Farrow a devorar fígado cru, mãos escorrendo sangue. Demonologia de milênio, típica de sociedade que agoniza. Meio incoerente. Se ela acreditava no diabo, a solução era procurar exorcismo. Gostava de um capeta, isso sim. Onipotência na estrutura que tolhe a criatividade. Um gigantesco cerco no ABC prendeu quase 20 militantes da Ala Vermelha 14, entre eles o dirigente Derly de Carvalho e Renato Tapajós, cunhado de Aurora da Faculdade, agora Lola. Felizmente Devanir de Carvalho escapara. Vinha aí Nelson Rockefeller15. Sentiu-se culpada pelo cinema, não assisto mais bobagens. As mudanças de aparelho dificultavam os encontros de Iara e Lamarca. Quando afinal passavam um ou dois dias juntos ele desabafava. Gastos crescentes absorviam o dinheiro das ações, o projeto da guerrilha à míngua. Peleamos na defensiva, do ponto de vista militar um absurdo. Aprovava a idéia do COLINA, uma ação que sanaria de vez as finanças, permitindo o início da luta. Não falharemos. Cada um em seu posto, a consciência do povo despertará. Mas havia que treinar, e muito. Inclusive para as ações menores. As sentinelas mortas nas desaproprições de metralhadoras horrorizam tanto o povo quanto o assassinato do padre Henrique no Recife, um religioso quase menino que a repressão amarrou, arrastou, enforcou. Iara, cheia de amor, observava Lamarca a limpar a arma, mão deslizando suave e sábia a domesticar o enigma. Já distinguia bazuca de obus, revólver de pistola. Entendeu a importância da disciplina. E avolumava, radical, a irritação contra o grupo de apoio dos economistas mencheviques. O crescimento brasileiro não é real, rebatia. Apenas um bolsão espúrio liderado pela indústria automobilística, deletéria num país pobre. Prejudica o transporte público, desaparecem bondes, ônibus elétricos, trens, desperta

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Dissidência do PC do B partidária de seguidos assaltos a bancos, impaciente por instalar o foco no campo. Jacob Gorender, obra citada (Cap. XV, "PC do Be Ala Vermelha – Divergências de cronograma"); Antonio Özai da Silva, obra citada (Cap. VI, 4: "Os rachas no PC do B – a Ala Vermelha"), Folha da Tarde 27 e 29.5.69. 15 Thomas Skidmore, obra citada (Cap. IV, citado): presidente de uma comissão nomeada pelo presidente Richard Nixon para estudar o autoritarismo na América Latina e diminuir a intensidade do debate político nos EUA, em torno da já emagrecida ajuda econômica ao Brasil, "país fora do estado de direito e governado por generais".

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ambições individualistas. Aumenta a dependência às importações de petróleo, em benefício dos privilegiados. Comida cada vez mais cara porque a política é exportar. Saúde, educação, tudo perder. E o Brasil se endividando. O governo é esperto, alegavam os "consultores'". Não se faz revolução enquanto a pequena burguesia, feliz, pilota seu fusca suado a prestações, e as multinacionais geram uma camada operária ambiciosa de eletrodomésticos. A inflação está sob controle, o déficit financiado. Que crescimento é esse, milhões de crianças a morrer de fome e diarréia? bufava. Não demorou, o grupo de apoio dos economistas foi desativado.

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Mitologia. O cofre, as mortes

NO RECIFE A POPULAÇÃO abriu caminho entre a Polícia Militar que tentava impedir o acompanhamento do padre Henrique. A fuga de ex-militares do MAR1 também alentava, embora foragidos de cadeias fossem suspeitos até prova em contrário. Censores cortavam peças, o filme Teorema proibido por atentar contra a moral brasileira, mas a notícia vinha junto aos anúncios de pornôs cheios de curradores, violentadas, "rituais pagãos". Denúncia sutil. À margem do planeta distante em que políticos polemizavam em torno de sublegenda, construía-se resistência. Costa e Silva reuniu-se com Jayme Portella, os três ministros militares e o chefe do SNI, para discutir segurança interna. – É parte do trabalho de racionalizar a repressão – anteviu Lamarca. – É o lógico. Córdoba Vermelha e Rosário derrubarão o general Ongania, ações guerrilheiras na Venezuela, protestos estudantis na Colômbia contra a visita de Rockefeller, recusa ao alistamento nos Estados Unidos. O dólar sobe, greve na PUC e Universidade Federal do Rio, ocupação militar. A coisa vai. Grande aparato policial procurou o médico Boanerges De Souza Mossa. Levara ao hospital onde trabalhava, na estrada de Itapecerica, um militante ferido em assalto a banco. Quando o diretor se negou a operá-lo, trancaram-no com outros médicos e fugiram na ambulância, mais tarde encontrada no Brooklyn2. – Prenderam a mulher de Boanerges. E que um soldado morreu. Nunca se deixe chantagear se me prenderem. – Nem você – Lamarca apontou o veneno. Dias depois, uma ação em hospital levou diversos aparelhos cirúrgicos, inclusive um raios X portátil. – As organizações precisam de clínica bem equipada, conjunta, e médicos. Os tupamaros têm hospital subterrâneo. Cacilda Becker morreu depois de 38 dias em coma; desenganada, recebeu toda a assistência do mundo. Não sou contra, mas deveríamos cuidar melhor da nossa gente. Os esquemas são muito precários.

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Folha da Tarde, 30.5.90. Jacob Gorender, obra citada (Cap. 18). Folha da Tarde, 7 e 10.6.69.

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Dia 11 de junho, o secretário-assistente e deputado do PC italiano, Enrico Berlinguer, discursou na Conferência dos Partidos Comunistas em Moscou, denunciando a invasão da Tchecoslováquia e a linha política soviética. – Mudanças destruiriam o socialismo tcheco, neguinha. É só o que o imperialismo quer. Berlinguer não tem nada a ver com a gente, nem acredito que sirva para a Itália. A via pacífica é antileninista, revisionista. – Eu acho que foi uma vitória do stalinismo e da burocracia. Cada povo escolhe seu caminho. O nosso é o da guerra revolucionária, uma guerra justa como define Lenin, porque resulta da luta de classes. O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, acabava de entrar no circuito. Iara e Espinosa combinaram uma primeira sessão de segundafeira, no enorme cine República, central. Um homem sentou-se na fileira da frente e excitava-se, fungando, ao ver pancadas, sangue, mortos. – Parece em orgasmo. – É um esquizofrênico. Vamos embora. – A gente muda de lugar, não precisamos sair. – Não, vamos embora. – E você é psicóloga – espicaçou, quando chegaram à rua. – Venha, vamos conversar. O que você sentiu? A louca fixava-a no berço, bruxa mal delineada na penumbra. Abandonada, exposta ao insondável. Separação, tortura, morte. A voz demorou a sair. Os assaltos na Guanabara e São Paulo se multiplicavam. Zonza com o barulho infernal da reforma na praça Roosevelt, Iara reviu Lamarca, arrasado. O ex-soldado Carlos Roberto Zanirato, muito ligado a Darcy, suicidara-se. Clandestino, saudoso, telefonou para o cabeleireiro onde a noiva trabalhava, certamente sob vigilância. Combinaram um cinema na avenida São João. Depois de entrar, acenderam-se as luzes. Rompeu o cerco atirando, tomou um carro particular e saiu em disparada. Motorista principiante, acidentou-se. Preso, ferozmente supliciado, inventou um ponto com Darcy na avenida Celso Garcia, de grande movimento. Teria de ficar sozinho, preveniu os torturadores; o companheiro era desconfiado. MaquiIaram-no para ocultar os ferimentos, um casaco ocultava as algemas. A postos, atirou-se debaixo do primeiro ônibus que passou em alta velocidade.

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– Eu me sinto responsável por todos que saíram de Quitaúna – admitiu a Iara, derreado. – Sei que muitos cairão. Nós inclusive, talvez. Mas é difícil. Sem meia-volta, volver, incorporou de súbito. Epicentro da traição, abandonar cadáveres de companheiros aos urubus. A ponte cósmica que a ligava ao planeta, deliberadamente transposta ao passear pela Augusta ou no Xic-Xá, desaparecia ao lado de Lamarca. Navios, atalhos – nenhum. Só o épico à frente. Temeroso por Darcy, Lamarca determinou que "migrasse" à Guanabara. A viagem coincidiu com a peroração do general Lyra Tavares aos alunos da Escola Superior de Guerra: "as Forças Armadas constituem uma classe produtora, pois produzem segurança" – afirmativa que implicava dominar todas as atividades da sociedade civil. Um prólogo à OBAN, logo instalada3. Para coroar, novo listão da "gang do terror"4, desta vez incluindo Maria Lucia, Chicão, Paeco, Robertão. Durante junho, as cúpulas da VPR, COLINA e pequenos grupos independentes de vários estados realizaram as últimas reuniões prévias da fusão. Iara não participava mas envolveu-se no transporte e alojamento. Um dos aparelhos utilizados foi o de Moema, de Melo e Miriam. A reunião decisiva ocorreu no começo de julho, em Mongaguá. Preocupavamse porque havia barreiras na estrada. Carlos Franklin, que só então conheceu Lamarca, integrou sua escolta. A linda Jovelina, Jô, Cida – cabeleira louroavermelhada, olhos verdes – faria fachada de esposa. Auxiliar de enfermagem em Osasco, "velha'", 31 anos, era casada com Manoel Nascimento Dias, o Neto, pernambucano de origem camponesa cujo nome já caíra. Às cinco da manhã, noite ainda, uma companheira ao lado, Espinosa apanhou Jô. Guiava o carro de maior segurança, um Volkswagen – muito comum, pouca visibilidade do exterior. Lamarca, Jovelina e seu bebê de 14 meses no colo, sentaram-se atrás. Entraram na Anchieta. Na úmida baixada santista, antes da bifurcação para as cidadezinhas de veraneio até Itanhaem, a barreira vagamente iluminada pelo sol nascente.

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No final de junho o comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira e o secretário da Segurança de São Paulo, Hely Lopes Meirelles, presente o governador Abreu Sodré, instaIaram a Operação Bandeirante, extralegal, financiada pela transferência de recursos de outros órgãos e contribuições de empresas, muitas a sofrer chantagens. Centralizaria a luta contra os revolucionários. "Na coleta das contribuições se mostrou especialmente interessado e ativo o industrial Henning Boilesen, presidente da Ultragás" justiçado dia 15.4.1971 pelo Movimento Revolucionário Tiradentes e a ALN. Jacob Gorender, obra citada (Caps. 21, "Imersão Geral na Luta Armada"; 28, "Estertores da Esquerda Armada e Embriões da Autocritica"; e 32, "A Violência do Oprimido"). 4 Folha da Tarde, 27.6.69.

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– Cida, teu filho está morto – murmurou Lamarca pausadamente, metralhadora preparada. Os policiais cercaram o carro enquanto Jovelina apertava a criança. – Para onde vão? – Santos – respondeu Espinosa. – Fazer o que? – Passar o fim de semana. Evitavam carros e documentos em nome do motorista, mas Espinosa não trouxera a autorização do proprietário. Invariavelmente incorriam em falhas amadoras. O policial implicou. Queria saber por que viajavam sem o papel, obrigatório. – Não deu tempo. Resolvemos em cima da hora. – Quem está no banco de trás? – Meus tios. Clarearam o interior do automóvel, o casal, a criança. Vistoriados capô e bagageiro, mandaram-nos seguir. – Cida, Cida, esse menino me salvou a vida – Lamarca pôs o bebê no colo. – Cuide bem dele, não o deixe sofrer. Cuidar, no entanto, envolvia a morte pela revolução. O grupo discutiu quatro dias. Ambicionavam construir uma identidade, solidificando o futuro agrupamento. A VPR acusava o COLINA de resistir à guerrilha rural imediata. E recebia incriminações: não se faz política sem fuzil, mas fuzil sem política é fanatismo inconseqüente. O trabalho de massa é indispensável. Desfalcados pelas quedas, a maioria quis a união que mascarou um pouco as divergências. Sem perigo imediato apesar da intensa busca policial, permitiam-se banhos de sol e mar. As noites, Lamarca fazia confidências a Espinosa enquanto caminhavam na praia, magnifico céu estrelado de inverno. – Eu me apaixonei. Tenho grandes problemas de consciência, a esposa e os filhos em Cuba. Confortava-o com o que queria ouvir. – Você está aqui, lutando. Continuaremos vivos amanhã? Não deixe de viver essa paixão. Quase no final, Espinosa buscou Iara num ponto. Ela vinha de São Paulo guiando o carro de Raul. Entraram na casa. Lamarca fumava de pé, junto à veneziana 321

cerrada, a conversar com Juarez Guimarães de Brito, o Juvenal, marido de Maria do Carmo. Iara cumprimentou-os comedida. Reencontrou Breno, abraçaram-se. Espinosa teve de sair para uma compra e ela quis guiar, sem a bolsa com os documentos. – Não deu outra, surgiu um guarda. Tentamos convencê-lo. Nada. Oferecemos dinheiro. Recusou. – Ah, seu guarda, o senhor vai me prejudicar – choramingou Iara. – O carro é do meu irmão, ele vai brigar comigo. Eu só estou aprendendo um pouco. – Numa estrada? Por fim afrouxou. Espinosa já calcuIara a fuga e o tiro, última saída. O confronto evaporou-se, jogo de cabra-cega no espaço cada vez mais exíguo. A reunião terminou, eleito o comando da nova VAR-Palmares: Lamarca, Espinosa, Juarez, Maria do Carmo, Breno, Carlos Franklin e o ex-marinheiro Claudio Ribeiro. Decidiram intensificar as ações e Lamarca insistiu: participaria. Marighella expunha-se, ele também. A sós com Iara um momento, repetiu a queixa, enésima vez. Assumia o papel de líder mas assombrava-o a inexplicável fragilidade dos militantes. A menor pauleira, "cantavam". Como? recusava. Tanto os idealizou, sempre a interpelar planejamento, leituras, ávido por conhecer. Transferira à VPR valores abstratos da hierarquia militar, eficientes no Exército – esse o erro? Ou prejudicava-o a falta de cultura política obtida pelos companheiros no meio universitário, semelhante ao trabalho sindical que não vivera? – Injusto condenar quem fala na tortura – opôs Iara. – É uma dimensão desconhecida, de absoluta subversão no relacionamento humano. Quase pior que a dor, suponho. De repente, você é retirado do planeta Terra por seres que, sob máscara humana, são aberrações genéticas. Difícil. Estabelecida a data de setembro para o congresso que ratificaria as diretrizes da VAR-Palmares, várias ações foram efetuadas em comum, Lamarca na cobertura. – Extraordinário equilíbrio, raciocinava no meio da polvorosa. Controle total. Palpável a formação militar – descreve Mário Japa. Acertaram buscar o cofre de Adhemar na mansão de Santa Teresa, Guanabara. Durante meses o sobrinho da proprietária, ligado aos secundaristas

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cariocas, insistiu na sua existência5. Os companheiros, que duvidavam do butim mirabolante, convenceram-se afinal. Esperavam arrebanhar o suficiente para esquecer os assaltos a bancos. Viriam militantes de São Paulo, inclusive Fernando Ruivo e Sonia Lafoz. Ela era uma das mulheres da linha de frente apesar de Darcy, que comandava. Só as admitia em fases preparatórias, de levantamento e organização. – Você não passa de um sargentão do MNR – insultou-o Sonia de uma feita. – Tem o maior preconceito contra o contingente de origem universitária. Estudaram no jornal a foto do novo embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, com a mulher e o cachorrinho Tony, um cocker spaniel – esse a gente respeita. E resolveram, no meio de áspero debate, que Lamarca seria "estanquizado" em aparelho. Perigoso de mais expô-lo, o governo alerta às ações em São Paulo e publicando nos jornais, oportunamente, listas de guerrilheiros e cassados, gente com os direitos políticos suspensos6. A tática justificava postergar a reabertura do Congresso e conferia poder ao arcabouço repressivo. Decidiram também que Lamarca deveria submeter-se a uma operação plástica na Guanabara, para dificultar seu reconhecimento. Sujeita a esquema especial para vê-lo, ambos em São Paulo, Iara alimentava o amor à distância. Queria comentar com ele a guerra do futebol entre Honduras e El Salvador, tudo briga por território e excesso de população? Aquilatar as diligências, no Rio e em São Paulo, do Grupo de Operações Especiais contra a subversão, treinado pelas Forças Armadas. Justo quando Delfim promete sete por cento de crescimento do PIB. Fazia frio. Da janela do hotel onde pernoitou na São João, observava o movimento do tráfego. Avenida condenada a deteriorar-se pelo monstrengo da via elevada, o prefeito Paulo Maluf facilita o percurso de sua casa à empresa da família. Os moradores que se lixem. Logo o homem pisará na Lua, inacreditável gastarem tanto, e aqui há fome. Estratégia de guerra fria. Construiremos um socialismo único, humanista, o povo libertado da escravatura. Imaginou a avenida coalhada de gente até a praça do Correio, o Anhangabaú, a Sé, mar de bandeiras vermelhas. Sentiu-se

Alfredo Sirkis, Os Carbonários – Memórias da Guerrilha Perdida (Cap. 3, "Sinal Fechado O cofre de Adhemar"), Global Ed., 1984. 6 Carlos Castelo Branco, obra citada (2.7.69); Folha da Tarde, 2.7.69. Entre 81 médicos, jornalistas, políticos, militares, sindicalistas, advogados, Herbert José de Sousa, o Betinho, e Flávio Tavares. 5

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viva, mudança social nas mãos. Respirou fundo, veria Lamarca, juntos a escrever o capítulo decisivo da História, aquele que vai remir, dona Angelina, dos mais torpes labéus.

Nada a divertiu tanto como o roubo do cofre, dia 18 de julho. Ação limpa, sem mortes. Darcy, o Leo, que assumiu o setor militar da Guanabara, fazia cobertura quando surgiu uma jovem do outro lado da rua, 18 ou 19 anos. Resolveu abordá-la, fingindo uma cantada. A permanência na porta do casarão tornou-se natural. – Agora sei quem é Lamarca – declarou a garota à polícia. – O que é o imaginário! Você já faz parte da mitologia popular entusiasmou-se Iara depois que ouviram o relato. Depositaram na pick-up o cofre, baixado com dificuldade do andar superior. Um tapete cobria-o. A saída de Santa Teresa, sinaleiro fechado, um guarda de trânsito aproximou-se: – O defunto está pesado? – mofou. – Não é defunto. E um cofre cheio de dólares. O homem riu. – Vão com Deus. – Ó Leo, como é que você diz um negócio desses? – esbravejou Juarez na direção, sacudindo o veículo pelas ruas. Darcy, para abrandar o nervosismo, discorreu: – A realidade absurda, às vezes, é mais verossímil. Não sou destemeroso. Apenas me controlo, treino profissional. A aptidão do combatente está em superar medo. O pânico de um, sabiam, solapava qualquer operação. No assalto muito noticiado de São Cristóvão, quase 608 mil cruzeiros novos, um dos companheiros começou a mancar durante o tiroteio. – Me acertaram – gemeu. – Vai pro carro que você se sujou, isso sim comandou Darcy. Teve sorte. O rapaz, de fato sem ferimento, meteu-se no carro e não criou problemas.

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Sonia Lafoz, na cobertura da operação-cofre, ajudou a abri-lo num aparelho do Realengo. Baldes dágua impediam o aquecimento causado pelo maçarico antigo e que talvez incendiasse as cédulas de existência incerta. No final, molhados, incontáveis dólares nadavam. – Alegríssimos, antes da agradável tarefa da contagem, penduramos as notinhas num varal improvisado – conta Sonia. Os dois milhões e meio reacenderam expectativas em Lamarca. – Deslancharemos a guerrilha. Admirou com Iara as imagens dos astronautas na Lua, passadas no pó cinzaardósia, sol a 90 graus, quase a enxergar no televisor branco e preto a terra azul abraçada por nuvens. – Um senhor espetáculo. Contudo, a lição do humanismo socialista é cIara. Os russos mandaram a Lunik até 16 quilômetros da Lua. Mostram-se capazes da mesma façanha sem arriscar vidas. Notícias ininterruptas de quedas. Nova publicação de nomes e fotos de procurados, interrogatório de 34 pessoas detidas em Brasília7, presa a Dissidência do Niterói8 e Jorge Medeiros Vale, o 'Bom Burguês", bancário que desviava dinheiro para a luta armada. Desastres vizinhos não os atingiam, uma supernova está explodindo comparava Iara a caminho do jornaleiro, rosto culpado de Ted Kennedy, perdão ostensivo da esposa, a amante no leito do rio. Sobre o cofre, silêncio. A proprietária da mansão falou do conteúdo na semana seguinte: continha documentos e no máximo 15 mil cruzeiros novos. Estava em casa, no Ipiranga. O jornal trouxe a notícia. Em tiroteio com a polícia, morreu Fernando Ruivo. – Não pode, não pode! – Chorou muito, sem parar. Eram amigos na Faculdade. Foi bem perto de Iara entrar na clandestinidade – relembra Rosa.

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Entre eles o ex-operário Manoel Jover Telles, Folha da Tarde, 21.7.69. Anos depois, em 1976, conduziu o DOI-CODI ao Comitê Central do PC do B em reunião, dizimado a tiros. Pedro Estêvão da Rocha Pomar: Massacre na Lapa, Ed. Busca Vida, 1987. 8 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 23 – "Golpe de Mestre: Seqüestro do Embaixador dos Estados Unidos"): "Talvez com o propósito de inflar o êxito repressivo, os órgãos policiais apelidaram os foquistas fluminenses (cuja liquidação proclamaram) de MR-8 (editavam o jornal Movimento Revolucionário 8 de Outubro, data da queda de Guevara). A Dissidência da Guanabara aproveitou a dica e adotou a sigla a fim de demonstrar que a organização continuava bem viva."

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As mortes são desiguais, Fernando entreabria o compartimento selado. E Sonia? Tantos presos, outros em desbunde. Governo terrorista, desesperava-se, Rosa e Eva atormentadas, incapazes de consolar. Só Lamarca, paradeiro ignorado. Chorava, o pavor solitário da última passagem, Fernando de olhos abertos, derradeira visão petrificada. Logo a OBAN chega a meu nome, descarrega a sanha contra Lamarca. O mundo não comporta Caim e Abel. Somos revolucionários, acalmou-se, o Brasil renasce de alguma Sierra Maestra, sucessos e derrotas. Tudo fugaz exceto o socialismo. Daqui a 100 anos, quem vai se importar? Fernando não voltara no horário estipulado. Saíra com João Domingues da Silva, companheiro de Osasco, em busca de automóvel para um assalto a banco. Sonia, mãos geladas, obedeceu às diretrizes de segurança. Retirou os papéis e objetos incriminantes que pôde carregar e saiu cedinho do aparelho. Tinha um ponto de recontato às seis e meia da manhã com Chael Schreier, grande amigo desde o movimento universitário. Já exposta na banca, primeira página, a morte de Fernando. Policiais da ronda estranharam o Aerowillys vagaroso às onze da noite, pneu furado na avenida Pacaembu9. Pediram documentos, checaram o endereço do proprietário. Inexistente. A voz de prisão, segundo o soldado que o abateu, Fernando reagiu. Entre seus pertences, além de armas e munição, uma foto de Sonia. João Domingues, ferido, não sobreviveu à tortura10. A polícia ligou os fatos. Um ano antes libertara Fernando, Chael e mais dois, aceitando a explicação "segurança da UNE". Transtornados, Sonia e Chael foram transferidos para o Rio. A morte do companheiro de Osasco abalou Espinosa. – À noite, cabeça no travesseiro, sentia-me num bonde a descer o morro, disparado. Embaixo, a pedra enorme. Eu me precipitava preso aos trilhos, inútil o enorme esforço de corrigir a rota. Companheiros na cadeia, mortos. Eu sou responsável. De manhã, acalmava: momento difícil, vamos segurar. Cobria os pontos, dava orientação, experiência, otimismo. Meu papel na engrenagem, ator efetivo. À

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Folha da Tarde, 30.7.69 (ainda sem o nome verdadeiro de Fernando) e 31.7.69. Panfleto anexo ao documento BNM 2035 (processos Brasil Nunca Mais): "Companheiros Operários, Estudantes de Osasco e ao Povo em geral: O companheiro João Domingues da Silva foi barbaramente assassinado pela polícia e pelo exército, pelos cães de guarda dos patrões exploradores. Mesmo ferido como estava foi violentamente torturado, seu rosto cortado a gilete. O companheiro João não resistiu às torturas de que foi vítima, morreu, mas morreu sem dizer uma palavra, sem dar sequer uma informação a seus carrascos. João é um herói revolucionário. Ofereceu honrosamente sua vida pela Revolução. Continuaremos sua obra. Oferecemos também a nossa vida se preciso for!..." 10

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noite tornava a suar: velocidade crescente de encontro à pedra. Acredito que os outros sentissem o mesmo. – Vou ter que ir embora – avisou Iara em casa. Logo mais, uma companheira de organização comportou-se de modo estranho. Apareceu um dia e deixou o táxi esperando em frente ao prédio. A orientação, severa, determinava descer do carro em outra rua e caminhar, longe do motorista. Assim que a moça partiu, Iara meteu-se rapidamente no chuveiro. Os pais, no Guarujá, chegariam a qualquer momento. Para onde vou? Rachel. No ponto regular do dia seguinte, pediria orientação. Entrouxou algumas roupas. – Iara acaba de sair – notou David, quando chegaram. – O banheiro está molhado. – Foi bom, porque em menos de meia hora eles chegaram. Um capitão e um sargento – lembra Eva. Os Iavelberg disseram não saber da filha, indicando as malas ainda fechadas. Os militares revistaram o apartamento. Terminada a função, David desceu para telefonar. Queria buscar o toca-discos de Rosa, que levara a um técnico no Bom Retiro. – Atrás de mim um policial ouviu a conversa e quis o número. Quando busquei o aparelho, a oficina inteira ainda estava apavorada. Investigaram lá. Em casa de Rachel, o refúgio. – Ela vinha encontrar-se com a família que éramos nós. Com amigos, que éramos nós. Podia descansar a cabeça. Veio muitas vezes por uns dias, disfarçada, já clandestina. Só visitar. Afirmava a revolução, o socialismo. A vida adquiriu sentido, nunca fora tão feliz. Encontrara o homem da vida, pela primeira vez aceitava a esterilidade. Realizava-se – cabeça, emoção, corpo, tudo funcionando. Descrevia-o: carinhoso, sincero, atenção voltada para ela. Eu não sabia de quem se tratava. O fotógrafo Jorge Rosenberg, filho de Rachel, lembra-se de Iara descendo as escadas meio camuflada na capa de gabardine. E das longas conversas da mãe e a amiga, a debater sentimentos, visão de mundo. O Oficina promovia o Festival de Teatro de Ouro Preto. Betty Chachamovitz, assistente de direção em Galileu Galilei, acidentou-se na viagem de automóvel. Apesar do risco Iara visitou-a no hospital. Lá estava Moacir, que via de vez em quando. FaIaram da crise do TUSP, pessoas presas ou no Exterior, a montagem interrompida 327

de outra peça de Brecht. Comentaram a recusa de Flávio Império em engajar-se. Amavam-no apesar de condoê-los a fraqueza. Mudar o homem valia qualquer sacrifício. Viver ou morrer, contingências. Pesquisou moradas e escolheu uma na Oscar Freire, dentro da aldeia em que operavam. Estreita, a construção prolongava-se em acolhedores múltiplos de sala, quarto, cozinha e banheiro espécie de vila, semelhante às habitações populares no Ipiranga. Simpatia irradiante, apresentou-se à dona do imóvel que ocupava a primeira das casinhas. Elogiou as plantas no corredor de entrada. – Sou professora. Leciono em São Paulo e no interior. Ninguém conhecia o endereço exceto Miriam, com quem trabalhava no setor de imprensa – escrever e preparar o jornalzinho. O sigilo rompeu-se logo. Melo teve de ir ao aparelho e reconheceu a rua quando tirou os óculos opacos, ao descer do carro. Marina Heck foi outra. Queria entrar na VPR. – Precisamos de gente como você no apoio – recusava Iara. Diante da insistência, passou-lhe o nome de guerra do companheiro que decidiria. No indefectível bairro de Pinheiros puseram-se os dois a caminhar enquanto falavam e viram Iara sair da casa. No jogo de faz-de-conta, não se cumprimentaram. – Que merda, agora sei quem é o cara – reclamou Iara. As reuniões de ajuste entre originários da VPR e do COLINA exigiam a presença de Lamarca na Guanabara. Melo recebeu a incumbência de levá-lo. – Minha irmã trouxe-o. Até aí, nada de inusitado. Transporte era uma de suas tarefas. Eu o guardaria uma semana. Estava adoentado, juntas inflamadas. Para minha surpresa, ela ficou. Leviandade, não precisávamos saber. Bastaria acompanhálo ao Rio, fachada de casal. A ligação irritava-o. Sem pé nem cabeça, pensou. Lamarca é ignorante de política, a visão supermilitarista de milico burro. Nem deveria integrar a direção. – Depois evoluiu. A Miriam, o casal encantava. – Riam de felicidade. Tanto carinho, um grande amor. De se encostar, beijos, sempre juntinhos. Lamarca também gostava da jovem que levara Maria e as crianças ao aeroporto. Mas preocupado com a tática dos militantes contrários à fusão, suspeitava das posições antimilitaristas de Melo. 328

– Só trabalho de massa na cabeça. Uns massistas. Lamarca pediu a Maninho que viesse a São Paulo. É um irmão, que belas amizades no Exército, enalteceu. Veio escondido, nem a mulher soube. Ziguezagueamos pela cidade, um companheiro no volante. Coloquei a falta de quadros, armas, a necessidade de um impacto que humilhasse a repressão. Pedi que desertasse trazendo um arsenal. A desconfiança dele era total. Eu disse: "Pode falar, morre aqui." Quase não abriu a boca. "Estás mal cercado", repetia, "não é por aí, pô, não é por aí". E pronto, foi-se. Nenhuma ajuda exceto a lealdade. O nome de Lucia Sarapu caiu. Iara soube, aliviada, que a amiga e o pequeno Camilo escaparam ao cerco. Lecionava na USP e sentia-se seguida há dois dias quando uma noite, ao chegar em casa, observou na rua a perua estranha, farol baixo. Apavorada que usassem o filho para obter o paradeiro do pai, decidiu fugir. Entrou mas não dormiu. De manhã cedo, como se fosse passear com o bebê, tirou o carro. Vendeu-o, subiu num ônibus, trocou algumas vezes de transporte. Parou no interior e viveu dois anos trabalhando na roça, consciente da devastação na esquerda armada. Reencontrou Valdir em março de 1970. Chegaram ao Chile em maio de 1971.

A viagem ao Rio foi risonha graças a Iara, que brincou de imitar companheiros ausentes. Quando Melo parou num restaurante à beira da estrada Lamarca desceu também, louco para tomar café. – Quem sabe penduraram um cartaz aí? – bravateou. O rosto de Iara, perfeito domínio de si, não manifestou preocupação. Admiravalhe a coragem e frieza ao agir, confiança nas decisões, a maturidade dos 33 anos. Nada aconteceu, foi a ilação. Ilógico seria ficar no carro. Quando atingiram a interminável reta da Baixada Fluminense, Lamarca inquietou-se. – Entre no Estácio, companheiro. Quero passar em frente à casa dos meus pais. Os olhos umedeceram-se ao ver o pai sentado à porta da sapataria. Rodaram horas pela Guanabara, Miriam silenciosa, Melo a exprobrar a irresponsabilidade dos companheiros:

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– Só à noite consegui contato e aparelho. Cada vez mais inseguro alugar apartamentos. Foi a última vez que vi Lamarca. Iara voltou com o casal e pediu emprestado a Lucia Campello seu apartamento na Guanabara. Destinava-se à convalescença de Lamarca. Naquele mês, agosto, a cirurgia plástica o tornaria irreconhecível. Até internar-se, ele participou das discussões sobre os caminhos da VARPalmares. – Iniciada a guerrilha, a cidade lentamente nos apoiará. Prender-se a ela, burguesa por definição, é desvio. Suicídio, a política de massa no atual contexto – objetavam incansáveis os militaristas. – Negar trabalho de massa é porra-louquice. – Guardo dessas reuniões a imagem determinada e afetuosa de Lamarca. Todos voluntaristas. Ele ainda mais, pela formação. Sedento de cultura política, reclamava não dispor de tranqüilidade para estudar e refletir. Era lúcido quanto às limitações, dele e nossas – recorda Carlos Franklyn. – Ninguém dialogava sem utilizar a cultura marxista-leninista como parâmetro; medo de se perder aponta Herbert Daniel. – Jamais conheci alguém com a capacidade de apreensão de Lamarca – observa Darcy. – Lia um livro à noite e no dia seguinte expunha o conteúdo aos companheiros. – Vi-o explodir e perder o controle depois de uma dessas reuniões – relata Mário Japa. – Estávamos sozinhos. Impressionou-me ver chorar um homem como ele, extraordinariamente calmo e contido. Desesperava-se, impotente. Dizia que as pessoas eram puro palavreado, a inventar argumentos para evitar a guerrilha. "Não agüento mais!", debatia-se. "Saio à rua, quero saber o que o povo pensa." Fora de si, queria uma enquete popular. A vida reclusa atrapalhou-o muito. Sem inserção na sociedade, persistiam na crença de que a burguesia brasileira falira e a crise econômica se aprofundava. Na guerra cega, particular quase, amadureciam projetos de seqüestro a fim de libertar os companheiros presos. Quando alguém caía aumentava o compromisso de não trair e o rancor pelos desbundados – os desistentes, covardes. Alguém abriu o aparelho de Moema, em São Paulo, Iara já na Guanabara, Melo e Miriam abrigaram-se na Oscar Freire. Entre setembro e novembro de 1969, 330

escondeu-se na casa o militante Rui Falcão. Certa vez teve uma tarefa na vizinha rua Teodoro Sampaio. Para que continuasse a ignorar o local, óculos opacos, rodou muito com Melo antes de ser depositado na calçada próxima. Cumpriu o compromisso e caminhou à espera do companheiro que viria buscá-lo. Não só reconheceu o portão da casa como viu Miriam saindo. Nesse período Iara veio a São Paulo e pousou na Oscar Freire. O rapaz reconheceu a voz e não saiu do quarto. Ao menos ela não o veria.

O Colar de Dentes de Cavalo. Maria do Carmo

O PRIMEIRO PASSO da plástica de Lamarca foi mudar-lhe o sorriso. – Vou arrancar os dentes – participou a Iara, nenhuma emoção. Ocultou o abalo. Acho que prefiro morrer. Não é só estética, balançava a cabeça, ou aceitação social. É força, agressividade, sobrevivência. Sansão e os cabelos. Admirou-o ainda mais, a beleza despojada empalidecia os figurinos. Uma dentadura é substituta perfeita, consolou-a, o povo tem outra percepção, acostumado a perder dentes desde a infância; eu mesmo sem alguns molares. – Tanto os dentes quanto a plástica são secundários – abreviou. – Em nada me preocupa a diretiva do comando médico. Detalhe ínfimo da revolução brasileira. Não é coisa para encucar. Sempre o .38 à mão sob o cardigã, alerta a cercos por onde andasse, Lamarca e o médico gaúcho Almir Dutton Ferreira, outro dos "veIhos", 31 anos, entraram no consultório perto do Centro, na Guanabara. Prevenido de que viria um quadro de importância, o jovem dentista reconheceu-o de imediato. – Veio duas vezes. Submeteu-se à cirurgia total das duas arcadas, com objetivo de colocar uma prótese que lhe modificasse a aparência. Creio que foram oito dentes na superior e oito na inferior. Quando tirei o molde pediu-me que colocasse uma câmara dentro da prótese, para a cápsula de cianureto. Discordei. Exigiria grande capacidade de adaptação, além do risco de o protético desconfiar. E seria antiético. Eu não era revolucionário. Apenas aliado e amigo de Almir. O dentista arrancou os dentes e disse, ele próprio desafogado: – Nas extrações os homens costumam ser menos corajosos do que as mulheres. Você nem se contraiu! Almir e Lamarca, sem sinal de fraqueza, seguiram a 331

pé ao Centro – vários quarteirões. Na segunda sessão o dentista colocou-lhe a dentadura provisória, dentes quadrados em lugar dos originais triangulares. – O que você acha da situação? – perguntou-lhe Lamarca. – Estou desligado do povo, não sei o que pensa. – Duvido que o brasileiro seja de lutar, reagir – escolhia as palavras. – Vocês são poucos contra uma força grande, organizada e poderosa. Lamarca silenciou. – Frustrei-o, tive a impressão. Marcaram nova consulta para fixar a dentadura, no final do prazo de acomodação. Nunca se fez. Permaneceu a provisória, frouxa, que certamente prejudicou a mastigação. A etapa seguinte efetuou-se na pequena Clínica Cirúrgica São João de Deus, em Santa Teresa. Almir internou-o como cabeleireiro, o que justificaria a vaidade. A protegê-lo, armados, o amigo pessoal e segurança Wellington Moreira Diniz, que se escondia no armário quando entrava alguém; e Sonia Lafoz. – Pois é, acabei cabeleireiro. Caçoava de Almir, memória da PM em Porto Alegre. O médico, receptivo ao jogo, trejeitava: – Meu nome é Machado mas pode me chamar de Odete. Lamarca ria com gosto. O médico Afrânio Marciliano Freitas, 29 anos, operou-o1. Não houve pósoperatório nem curativos especializados. Dez dias depois Almir levou-o ao consultório do cirurgião, no Botafogo, para retirar o gesso do nariz, também modificado. O apartamento de Lucia Campello ficava no Jardim Botânico. Iara preparava a alimentação líquida que Lamarca ingeria com ajuda de um canudinho e falou da amiga. Emprestara o local sem perguntas. Solidariedade, discordâncias e medo à parte. Enterneceu-se ao saber que Sonia integrara a segurança no hospital. Soninha arrisca-se a tomar um tiro nas ações que garantem a organização, a você, a mim. Nossa excedente agitada e metida vinha com o pai, e Lamarca, olhos úmidos, avistou o militante espanhol, Sonia pequena e a maleta do pai arrumada, pois a polícia 1

Ricardo Rodrigues, reportagem na Manchete, 5.11.88: "Eu mudei o rosto de Lamarca": "Considerava a luta armada quixotesca mas queria colaborar no que havia de melhor (...) se confrontando com o regime de exceção". A polícia chegou a ele em 6.4.70. Ficou preso 73 dias. O psiquiatra Amílcar Lobo, no livro A Hora do Lobo, a Hora do Cordeiro, Ed. Vozes, 1989, descreve as coronhadas que o médico levou ao chegar à prisão (Cap. 4: *E tempo de guerra").

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francesa o prendia rotineiramente para averiguações. Iara descreveu a livraria em São Paulo, Lafoz a assinar, resmungando, carteiras profissionais frias a pedido da filha, uma no bolso de Fernando morto, veio a repressão, só sobraram destroços. Imaginava Sonia no Rio, nem os companheiros sabiam quem era, menos ainda o sofrimento por Fernando, identidade esfumada, o temor contínuo de a seguirem, olhar sonso, é um tira? Cenas de invasão à noite, morrer atirando. Dor aguda? de corte? esmagamento? derradeira, impiedosa, insolúvel. Adrenalina, Clark Kent e o poder de explodir a supra-renal com a palavra mágica. Sorriu a Lamarca, na ação o corpo é só adrenalina, Sonia esquecida de si. Medo de cair, não de morrer. Agüento a tortura? Cárceres à espreita, convicção de engolir o cianureto, é uma boa morte? Fraqueza, perguntar. Morria em sonhos, imobilizada assistia à movimentação, curare no sangue e me enterram viva, sufoco. – Você está com asma? – rascunhou Lamarca. Não podia falar. – São os meus gatinhos. Enfraquecido, ele se entristecia a pensar na família. Loucura, amar Iara. Ela o encorajava a abrir-se, aos poucos monossilábico, quase senhas. Opunha ângulos, o ser humano vive muitas vidas, cada circunstância tem necessidades específicas, correspondem ao momento histórico, nada vem do acaso. Somos materialistas. Reprimia o medo de perdê-lo, não fosse a culpa maior que o amor. Lia jornais em voz alta para distraí-lo, adorei o golpe da Dissidência da Guanabara no apartamento do deputado, fingiram-se repórteres da Realidade, jóias e 30 mil dólares. E que desaforo, atribuir à esquerda armada a demora na abertura política. A movimentação militar interessava Lamarca. O retorno ao Brasil do adido militar general Ednardo d'Ávila Mello2. A remoção de altos oficiais na Argentina – um possível esquema contra Ongania, interpretou. Os palestrantes no ciclo de conferências da Escola Superior de Guerra. Os punidos de agosto com base no Al 5. A iniciativa tipo Projeto Rondon que o coronel Cerqueira Lima3, um gorilão, comandava em Mongaguá. – Dificulta nossa penetração junto à massa. Ou, quem sabe, a introduz?

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Veja anotação no rodapé das págs. 284-285. Matador de Lamarca, na Bahia, em setembro de 1971.

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Buscavam notícias sobre os grupos clandestinos. O I Exército fazia alarde em torno da procura de Maria do Carmo e Juarez, vistos pela última vez num aparelho estourado. – Ainda bem que saíram a tempo. Listas de militantes do COLINA, prisões quase diárias. Assaltos na Guanabara, São Paulo e outros estados, a ordem de matar se o soldado se julgasse ameaçado. Marginais que imitavam os revolucionários, religiosos detidos na investida policial contra a AP, operação de guerra em Angra dos Reis – os fugitivos da Lemos de Brito pretendiam fazer guerrilha4. Com o MAR atrás é treinamento, corrigiu Lamarca, são os companheiros de Caparaó. Animou-se, de todas as organizações os militantes escolhem a luta. Bonita a ação paulistana que levou equipamento gráfico, até uma impressora off-set. Compensa as quedas no Rio, todo o MAR 26. Mas logo deprimiuse: foram dois presos em Brás de Pina que entregaram Angra. É o que diz a repressão. Uns bananas. Iara consolava. Não podemos julgar sem conhecer as circunstâncias, repetia, são as pessoas que temos. Vê o rendeiro que denunciou militantes nos canaviais de Pernambuco. Não era dos nossos, verdade. Mas um camponês. Teu nome ainda não consta dos cartazes, neguinha, 100 mil distribuídos pelo Brasil. Boa propaganda armada as bombas no Mappin e Light em São Paulo, deveriam ter posto bomba aqui, nossa presença no almoço dos empresários norteamericanos a Elbrick, elogios ao sucesso econômico no Hotel Glória, a vitória dos tecnocratas, risadas obscenas ao se bacanearem: operário brasileiro não faz greve. Páginas de jornais dedicadas a posses militares, transferências, discursos, até aniversários. Sabujos. Em cima da hora Macunaíma representa o Brasil em Veneza, vejo o filme depois te conto. Discorreu sobre Joaquim Pedro, Paulo José, Dina Sfat, ambiências desconhecidas, Lamarca deixava-se conduzir. Narrou o filme que vira em São Paulo, humor macabro de Polansky e agora a morte horrível de Sharon Tate. A sociedade americana se afunila num beco sem saída e vão dizer que Deus castigou, a culpa é da vítima. José Dirceu foi condenado a 14 meses de cadeia, mas o que a transtornou pertencia a esta existência: prenderam as irmãs e Angelina, mãe de Maria do Carmo,

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 18, citado). Os guerrilheiros conseguiriam fugir. Em agosto o MAR acabou, com a queda de outro núcleo na Guanabara.

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que abrigara o casal. Ficou presa um mês na guarita da Casa Militar, até que doze quilos perdidos e problemas de pressão exigiram tratamento. – Vermes, covardes. Lembrou da professora, nunca mais a vira. Ela ensinava hinos, contou a Lamarca. E bom português. A organização alugou a última casa perto da praia na Barra da Tijuca, bairro quase deserto. Depois, só pastagens e a restinga. Ocupavam-na Lamarca, Wellington, o cabo Mariane e Mário Japa. Ali, durante uma das reuniões para o congresso da VAR-Palmares, souberam do derrame de Costa e Silva. Mudava a guarda. Junta de ministros militares no governo, o ministro da Economia ficava, o vice Pedro Aleixo descartado. A celebrar, novo rol de punidos. Fruíam momentaneamente os dólares de Adhemar, mas perseveravam nos assaltos sob influência dos egressos da VPR. – Qual o sentido político da ação? Substituímos a guerra revolucionária por assaltos a banco. Dizer que somos compelidos a buscar fundos é quase subjetivo. Essencial seria trazer o povo. O sentido político da ação, companheiro, chama-se estreitamento da margem de luta e confronto – argumentava Dilma, impronunciável código derrotista. – Estamos desdenhando tanto a força hegemônica do Estado como os trabalhos de massa. – Por isso defendo o início imediato da guerrilha. Os companheiros coibem a via – articulava com dificuldade Lamarca. Reuniões na casa fechada desgastavam. Muitas vezes preferiam a praia, em Copacabana, quatro ou cinco pessoas, algumas de outros Estados. Numa delas, abraçada a um companheiro, Iara procurou Walnice no lugar em que tomava sol. Queria que desse um recado a alguém. Localizou-a e a ponte desenhou-se no ar, fugaz ingresso no mundo legal. Sem saudade mas reconfortada, saudou a passagem. – Quando vi a moça e o rapaz branquelos, ela barrigudinha, pensei: paulistanos. Aí reconheci Iara. Lamarca pediu a visita de Maninho. Queria falar de Iara e reiterar argumentos para trazê-lo à luta. Calças arregaçadas, chinelos, devagar em razão da convalescença, andaram na praia da Barra depois do almoço. Ao longe dois militantes armados, a vigiar.

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– Passei dois meses fechado num aparelho em São Paulo, próximo de uma companheira inteligente, politizada. Ajudou a abrir minha cabeça. Estudamos juntos. Acabei me envolvendo. Analisamos à luz da lógica. Como falar de outra mulher a quem se promete tudo, que eu mesmo mandei para longe? – Que é que a gente diz? Sorte a tua, companheiro. Não quero magoar Marina nem deixá-la na ignorância. Se Maninho superasse o ceticismo, disse Lamarca a Iara em visita, no quarto espaçoso quase sem móveis onde se recolhera, daria um quadro de valor inestimável. Mas os jornais, a tevê o influenciam. A imprensa qualifica ações revolucionárias de crimes. Eles é que são bandidos, terroristas. Um supermercado é assaltado, distribuímos o alimento. O jornal publica o que a polícia manda, só o roubo. Maninho chama de quimera a propaganda armada. E contra, mas amigo até o fim; faz umas coisas para a gente. Falei-lhe do companheiro que subiu o morro, a polícia atrás. Esconderam-no. Porra, exclamou, cara perseguido ninguém quer saber o porquê, teriam escondido um assassino de mãe, é nós contra eles. E se recrutamos dois marginais é por causa de arma e grana, diz. Maninho se perde na propaganda contrarevolucionária. Pessimismo pequeno-burguês. Criticou Darcy por arruinar a saúde, magro, chupado, dois sanduiches de mortadela e dois copos de leite ao dia. Economiza dinheiro da revolução. Tanto sacrifício e imagem de bandido. Motores e vozes de comando, certa manhã, fizeram a casa estremecer: Japa caiu, entregou o aparelho Acabara de sair após trazer Lamarca de uma reunião. Posicionaram-se. – É treinamento – identificou Lamarca. Mário assustou-se ao regressar. Tropas coalhavam a área. Ao redor da casa e na estrada paralela à praia, militares armados e viaturas. – Pensei: o que faço? Caio fora? Resolvi entrar. – Estamos protegidos – acalmou-o Lamarca, olhos sorridentes. O rapaz demorou a serenar. – Guardar você justo em área de treinamento!

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No fim de agosto a VAR-Palmares realizou seu congresso em Teresópolis numa casa rodeada de jardins, junto à floresta, para facilitar a dispersão em caso de cerco. Revezavam-se dia e noite na guarda, mutuamente suspeitosos. Iara não foi. Os militaristas defendiam a coluna móvel guerrilheira em lugar do foco guevarista5. Militantes no Rio e São Paulo manteriam a estrutura de apoio – finanças e propaganda armada – sem partido político burocratizado. Finalmente aceitavam as teses de Ladislau6, sequer presente ao congresso. Até Lamarca, que caçoava dos focos de enfrentamento esboçados pelo companheiro – dizia "flocos" – converteu-se: precisamos de um teórico da guerrilha rural e as concepções de Jamil rompem a tradição de subserviência teórica7. A oposição de alguns, tanto originários do COLINA quanto da VPR, vituperava as teses: sem trabalho de massa as vanguardas tendem ao terror; a coluna guerrilheira no momento é imediatismo voluntarista. O convívio estreito aguçava os rancores. – De repente eu passo a ser para ti um esquerdista, porra-louca, e tu um bunda mole – exemplifica Carlos Franklin. Decididos a rachar, herança da política estudantil, logo no primeiro dia os dissidentes contestaram a representação paulista. – Os delegados não foram eleitos – arremetia Dilma. – E nós, armados até os dentes, suspendemos o congresso para uma eleição – salienta Carlos Franklin. Iara entrou no circuito. Deveria facilitar a viagem temerária. No ônibus pela Dutra decidiu rever os pais, Rosa, Raul. Hospedada no aparelho da Oscar Freire, as tarefas só permitiram telefonemas a Tutinha e Heleny, que iniciava outro curso de teatro no Arena. Péssimo, o clima na cidade. Militantes mortos, organizações em queda. – Mataram dois quando compravam um gravador com cheque desapropriado. Morreu um guarda também. – Liberalismo. Só se usa dinheiro vivo. Peruca de cabelos curtos, escuros, vestido de algodão estampadinho, irreconhecível, aproveitou um intervalo para pesquisar vitrinas na Augusta, talvez um 5

Jacob Gorender, obra citada (Cap. 11: "Receitas para a luta armada"). Daniel Aarão Reis, obra citada (Cap. "A Vanguarda Armada e as Massas na Primeira Fase da Revolução"); Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19). 7 Doc. BNM 692: "Nossas Perspectivas Revolucionárias I – O que foi o racha?" 6

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doce na Yara, os primeiros morangos. Seguiu a alameda Santos, contemplou sem saudade a casa onde funcionava o TUSP. Deteve-se diante da loja de brinquedos, ali escolhia presentes para a sobrinha de Quartim. Se ainda namorasse com ele, estaria em Paris. Desbunde impensável, orgulhou-se, e viu descerem do automóvel estacionado Eder e Regina Sader, susto e alegria nos rostos. Patinou pela ponte invisível, Iara Iavelberg, presente. A passear na Augusta, ninguém me segura, de outra vez no cabeleireiro uma conhecida quase caiu da cadeira. Reencontro lúdico, malabarista em dois cavalos, lindas pernas no picadeiro. Regina impressionou-se. – Não a reconheci de imediato pois o cabelo comprido era parte importante de seu rosto. Meio que sorriu, fez sinal de positivo. – Tocou-me. Os rachas produziam ressentimentos, às vezes reações hostis. Ao mesmo tempo havia grande solidariedade por quem partilhava os riscos, iguais para todos. Foi o que sentimos – enunciou Eder. – Sem falar, nos saudamos. Sorriu discretamente e cada um seguiu seu caminho. Quem olhasse mal se daria conta do cumprimento. Depois comentei com amigos, poucos, que ela estava em São Paulo. Poderia ter problemas de segurança. Nunca mais cruzamos, só notícias. Mas sempre me lembrei de Iara como a vi desta vez. Assim me ficou. Em Teresópolis, Dilma e Breno vingavam-se do militarismo de Lamarca. Cantavam a música de Iara apaixonada, Pra dizer adeus. – Só de sacanagem. Fazíamos Lamarca de peixe. Ele nunca soube o porquê. Dia 4 de setembro, a notícia do seqüestro de Elbrick eletrizou o congresso. A primeira reação foi explodir em festa contida – apesar do isolamento, a ordem era silêncio. Que Semana da Pátria! Compensava a morte de Ho Chi Minh. Depois, o orgulho ferido. A ALN e o MR-8 libertavam seus militantes. – A VAR-Palmares mais preparada e nós aqui em reuniãozinha – exaltou-se Espinosa, um dos "massistas". Disputavam ponto a ponto controvérsias incansáveis, para obstruir o caminho da guerrilha imediata. – Todos acreditam na luta armada, mas alguma coisa emperra. Boicotam – atinou Lamarca, encolerizado. Faltavam-lhe as interpretações moderadoras de Iara. Classificar a coluna guerrilheira de modo fundamental de luta, defendida pelos militaristas; ou principal, tese dos adversários, não constituía fosso intransponível nas ações rotineiras. Porém na tática e estratégia, enormes diferenças. Não agüentava

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mais. Ingenuamente acreditara na fusão, no consenso em torno da batalha. Bastava mirar-se no Sudeste Asiático: acima de cem ataques vietcongs nas últimas 24 horas. – A VAR que faça movimento de massa. Duvido que consiga, é só papo. Nós faremos guerrilha. O congresso de uma semana levou 26 dias de desconfianças. Não raro atiravam em vultos inexistentes, durante a vigia noturna no jardim. Muito dinheiro e armas a dividir em caso de racha. Não faltou a ameaça implícita do justiçamento8. A menor dissensão acusava um inimigo. O companheiro descrê da estratégia? Prepara a saída, isso sim. Põe em cheque a organização, vai trair. A dúvida é a pista que desmascara um tira fortuito, a cilada mortal. Desconcerto e fraqueza aumentam a fúria no ataque ao adversário visível, sem pejo de matar policiais nas viaturas em troca de armas. – Certa vez tomei o ônibus para averiguar se um ponto caíra. Na calçada, um companheiro novo. Viu-me. Infiltrado, deduzi. Nervoso, quase o matei a tiros. Depois eu soube que esperava condução, na maior inocência – recorda Melo. Durante o congresso, de volta à Guanabara, Iara morou com Maria Auxiliadora Iara Barcellos, a Chica, Dodora. Festejaram os companheiros trocados pelo embaixador. Livres no México, apesar dos militares hidrófobos que os obrigaram a viajar 22 horas algemados e pretendiam entregá-los à embaixada brasileira. Imaginava José Dirceu e outros amigos do movimento universitário a passear ao lado de Gregório Bezerra, arrastado na rua em 1964 por um coronel bestial. Ridícula a desforra do governo ao seqüestro – banimento, prisão perpétua, pena de morte. Matam de qualquer jeito, os legalistas. Só lembrar que penduraram a mãe dos irmãos Naves de ponta-cabeça, coberta de mel. Repasto de abelhas e formigas, Negrinho do Pastoreio. Solto o embaixador, agarrados quatro envolvidos e gente presa de arrastão, locadores temiam alugar imóveis. Os inquilinos podiam ser terroristas. Sem pouso na Guanabara, onde se refugiaram depois que seus nomes verdadeiros caíram em São Paulo, Miriam e Melo hospedaram-se no Hotel Excelsior do avô Abramovay, em Copacabana, um grande risco. Reencontraram Paeco e Yara, que sabiam de Iara por Maria Auxiliadora.

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Herbert Daniel, obra citada: "Quase 40 delegados(...) um festival de barras pesadas(...) num debate tormentoso, com um clima de fim de festa."

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– Encontrei Chica na rua. Ela também misturava relações afetivas e política, o público e o privado – compara Yara. – Contou que resolveram comprar roupa e ir ao Jambert. Respondi: "Que absurdo!" E ela: “Não, nossa cabeça estava péssima. Fizemos um trato. Um dia Iara usa a roupa, no outro eu. E cortamos o cabelo como se a gente fosse da alta burguesia, faz parte das regras de segurança. Cabelo da Visconde de Pirajá." Em Teresópolis, a Comissão do Movimento Operário, integrada por Espinosa, apresentou longo documento sobre a União Operária, tática que aspirava organizar o proletariado. Mário Japa e um grupo foram estudá-lo à noite. – O projeto não deixa militante sobrando para a coluna guerrilheira. – Não há mais dúvida. Eles priorizam a luta urbana. A manipulação relega o campo para o dia de São Nunca – reclamou a Comissão de Estudos do Campo, coordenada por Lamarca. – Com nossa imaturidade política, simplesmente nos insubordinamos. Foi o racha dos sete – consigna Darcy. Chamaram Espinosa de madrugada, sentados ao redor da mesa. No tampo, sete revólveres apontados para a cadeira vazia. Um bonde, despenhadeiro abaixo. Morto Inti Peredo que substituiu Guevara na liderança da guerrilha boliviana. Sentouse. – A VPR está saindo da VAR-Palmares. Vamos fazer a guerrilha. Posição fechada. – A VPR deixou de existir. Ademais, onde? – União Operária é para engolir os militantes e a luta armada. – Na atual conjuntura, só a União organiza o povo. Espinosa era um quadro muito valioso. Alguém investiu: – No fundo você é um covarde. Domingues da Silva morreu porque você o deixou na mão. Furioso, Espinosa pegou a xícara de café e atirou-a. A resposta foi um tiro, provável intento de assustar, porque a bala acertou a parede. O conflito não prosseguiu – a casa despertou, os outros acorreram. Durante o resto do dia negociaram a divisão das armas e dólares. A VAR revoltava-se porque trouxera a informação sobre o cofre de Adhemar, o mapa do palacete e os estudos iniciais do assalto. 340

– Teve baixaria – reconhece Espinosa. – Um queria dar tiro no outro. Mas ficou nisso. Não cometemos nunca o absurdo de justiçar pessoas. Herbert Daniel e futuramente Inês Etienne Romeu, do COLINA, optaram pela nova VPR. Na VAR permaneceram Espinosa. Breno, Dilma e Carlos Franklin. As bases também se dividiram. Os irmãos de Iara ficaram na VAR. – Os rachas eram sintoma da crescente intolerância – avalia Dilma – Aumentava a tendência de transformar diferenças em exclusão. Corria-se o risco de cada um ou dois se estruturarem em direção. E rapidamente. Do ponto de vista político, refletia um tratamento precário de divergências. No final da tarde saíram os sete. Abraçaram-se chorando. – Um dia a gente se encontra. Cada grupo rumou para lugar diferente. Terminariam seus congressos. Continuamos num apartamento em péssimas condições, no Rio, medo que a VPR viesse atrás de mais armas e dinheiro. Iara encontrou-se com Lamarca numa chácara em Jacarepaguá. Trouxe-lhe um colar de dentes de cavalo9 – força, ternura e humor no cotidiano em que viver era o lucro inestimável de cada dia. Para si, no mesmo comércio de artesanato, comprou um imenso terço de madeira. Pertencença. Rachel compreenderia. – Você é o mais belo dos Frankensteins – agradava o rosto deformado, costuras nas cicatrizes, o que de início a deixou indignada: isso lá é plástica? – Pareço um estropiado de guerra. Não me reconheço, nem quero olhar meu rosto. – Vai melhorar. Nem pós-operatório houve. Acabou assimilando os ensinamentos de Iara. A cada passagem, marcas visíveis e ocultas. – Essa cuca da gente! – conformou-se. Iara apresentou a nova VPR em São Paulo. Encontrou Raul. – Eu era contra, achava loucura – confiou ela. – Mas me convenci. Se a gente não partir para o campo já, nunca iremos. E viramos outra POLOP, só falação. Pior, o dinheiro evapora.

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Anos depois um folião desfilou com ele na Banda de Ipanema, bloco "O assassinato da construção civil".

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Comia gulosa o antepasto com pão italiano, casca crocante, da cantina Dona Grazia. Coração do Bixiga, eu vinha aqui com Antonio Eduardo. Loucura, meus primórdios. O irmão discordou. – Com que gente? Poucos militantes, mortes diárias, quedas. A proposta da VAR é a correta, organizar o povo desmobilizado. Despediram-se afetivamente. Não se veriam mais. A VPR comprara uma pequena área de treinamento no Mato Grosso, inviável devido à distância, o desconhecimento do terreno e dúvidas quanto a segurança. Decidiram-se por uma fazendola no Vale do Ribeira. Militantes fariam fachada de sitiantes. Ao mesmo tempo tentaram montar uma estrutura no Maranhão, que não vingou. – Os companheiros precisam adaptar-se ao campo em etapas – discorria Ladislau. – Inicialmente preparar a infra-estrutura em trabalho clandestino. Identificarse com os camponeses. Sem eles, impossível. Nunca passar ao trabalho político antes de seis meses, um ano de preparação. Em Jacarepaguá, Wellington e Maria do Carmo, Juarez e Iara constavam como casais afluentes. Carro importado e "motorista", Joaquim dos Santos, o Monteiro. Lamarca não saía – papel de cunhado doente. Uma família de caseiros vivia nos fundos, sem jamais entrar na residência. Cada casal tinha seu quarto, precioso território. O carinho de Lamarca estava no ar. Adoçava a voz ao vê-la. Cercava-a de pequenas atenções. Às vezes ela tomava a iniciativa de agradá-lo, sem rompantes. Nenhum abraço ou beijo em público. Seria inadequado na presença de Wellington e Monteiro, sem companheiras. A amizade com Maria do Carmo, traumatizada pela detenção da mãe, estreitouse. Procurava diverti-la, caçoando de sua aversão à vaidade. – Não adianta a gente se fingir de milionária. Sem comportamento adequado caímos em meia hora. Você precisa comprar roupas modernas, escuras, que realcem olhos claros. Nunca marque a cintura com outra cor; divide o corpo e você é baixinha. Passava cremes no rosto, cotovelos. Experimentava as várias perucas, curtas, compridas, louras, castanhas, compradas no Jambert, onde introduzia papos vivazes sobre o casamento de Jacqueline Kennedy e Onassis, os preparativos para a

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convenção hippie no Abaeté – acho que tenho uma amiga lá – ou o suporte ao cantor Simonal, boicotado por deduragem. – Você não consegue parar de roer unhas – prosseguiu no cerco a Maria do Carmo. – Então, quer saber? Amanhã vamos botar unhas postiças. – De jeito nenhum. – Vem sim, estou no teu pé. – Obedeci e foi bom, realmente parei de roer. Aprendi que não precisava me enfear. Quis levá-la à academia onde praticava ginástica em aparelhos. Não a deixava em paz. – Esses óculos de fundo de garrafa escondem olhos verdes, lindos. Você ainda vai comprar lentes de contato. – Não gasto dinheiro da organização com futilidades. – Você ficará mais inteira, o que aumenta a eficiência. Não é fútil. Você está feliz de óculos? – Não, acho um horror. Escravidão. – Então! De lentes ficará melhor. Não a persuadiu. Conformou-se em ensiná-la a maquilar os olhos para embelezá-los sob os óculos. – Só quando voltei ao Brasil, depois do exílio, resolvi usar lentes. Mudei minha maneira de ser e confirmou-se tudo o que Iara dizia. Arrependi-me de não ter seguido os conselhos antes. O maior prazer de Lamarca, enclausurado, era cozinhar. Revezava-se com Maria do Carmo. Especializara-se em camarões com chuchu e sopa de feijão, depois de pelar os grãos um a um, horas. O autocontrole exige treinamento ininterrupto, ensinava. Lia bastante e sintonizava noticiários no rádio, ondas curtas e longas. Sofreu, como se fosse da VPR, a apreensão do armamento nos aparelhos e no sítio do MAR 26 em Angra dos Reis, apresentado pelo Exército orgulhoso. Comentou que só deveriam reunir-se em casas, pois era notório o registro de moradores e empregados nos prédios, porteiros incumbidos de espionar. Novamente entristeceuo a versão mentirosa da polícia sobre a morte de Zanirato, fuga e suicídio. Urgia transmitir a verdade ao povo. De que forma?

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A Ala Vermelha desmantelada em São Paulo, o retorno da gráfica "expropriada" à firma Kelmak, relatório sobre presos, assaltos e atentados contra quartéis, estouro de doze aparelhos repletos de ar mas e dinheiro – apesar de tanta notícia ruim, reanimaram-no a curiosa metralhadora caseira encontrada no apartamento do jornalista Antonio Carlos Fon e as carcaças de granadas que revolucionários fundiam num quintal. – Nada destrói a revolução. As quedas apenas provam que as condições objetivas nas cidades são adversas. A realidade confirma que nossa posição é a correta.

No começo de outubro, Iara manifestou desejo de incorporar-se ao treinamento no vale do Ribeira. Os militares opuseram-se, em especial Darcy: frágil e desajeitada, maneirismos pedantes, sem hábito de caminhar, asma, alergias. Inepta ao mato cheio de mosquitos. Aliás, reprovava a ida de casais. A situação especial frustraria os outros. E, curto e grosso, convinha excluir mulheres em geral. Lamarca apoiou Iara. O Diário de Guevara sublinha o valor da assistência psicológica aos combatentes. Enfrentam hostilidade, solidão e inevitáveis problemas de relacionamento. Iara vem a calhar. Quanto a ser sua companheira, rejeitava a ressalva. Claro que não a protegeria. O amor de revolucionários vive de sublimações. Se somassem o tempo que passaram juntos, chegaria a um mês? E quanto à fragilidade, mulheres devidamente adaptadas nivelam-se a homens. Certo, as pequenas mãos de Iara e Maria do Carmo faltavam empunhadura e força para armar equipamentos pesados. Compensariam, treinando em dobro. – A habilidade substitui o que a natureza negou. E já descobrimos que o fuzil MI é o adequado. Maria do Carmo, incumbida de procurar áreas da futura coluna guerrilheira no Sul, não iria de imediato. Ajudava a montar em Três Passos a Companhia Pesqueira do Alto Uruguai, fachada de uma base de apoio. Várias vezes foi até lá. Num táxi aéreo fotografou a região de Sete Quedas. Com um companheiro percorreu de barco o rio Uruguai – Brasil de um lado, Argentina do outro.

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– Dormimos numa ilha que apelidei Suíça. Comi um peixe tão fresco que ainda pulsava depois de escamado. Parecíamos turistas, eu ruiva, cabelos curtos. Mas não sei se convencemos o barqueiro. Acredito que se calou porque a gente pagava bem. Às vezes os moradores de Jacarepaguá reuniam-se com militantes na cidade, durante o jantar. Da primeira vez a questão do restaurante gerou um bate-boca, pois alguns companheiros queriam ir à Lapa. – Você quer que a Delegacia de Costumes me prenda? – insurgiu-se Iara. – Os locais que freqüentamos precisam combinar com a fachada. E água no restaurante é mineral, não torneirol. Está na hora de aprender. Em Jacarepaguá ouviram o pronunciamento do general Emilio Garrastazu Médici, substituto de Costa e Silva, dia 7 de outubro. O Congresso seria reaberto para referendá-lo. Presidente, retomava o diálogo. Tolerante com movimentos sociais, implacável contra o terrorismo10. Ridicularizaram o discurso, a subserviência dos parlamentares e o humilhado otimismo da mulher de Costa e Silva. O marido movera-se, gesto de aprovação ao novo chefe de Estado. – Escapou-nos a decIaração de guerra. Não entendemos que sancionava a tortura até a morte. Rimos, apesar da tensão e paranoia – testemunha Maria do Carmo. O Exército articulava exercícios antiguerrilha no vale do Paraíba, incluindo agentes disfarçados de trabalhadores. – Traem o próprio povo. Nojento – externou-se Lamarca. Esculpia suas bolinhas de cortiça, raio de sol na clausura. Continham a presença dos filhos. Um portador as entregaria. Sob influência de Maria do Carmo e Iara, ambas iniciadas por Breno, lia ficção científica: Isaac Asimov, Ray Bradbury, Arthur Clarke. Iara descreveu-lhe a biblioteca pública do Ipiranga. – Eu adorava Julio Verne.

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Brasil Nunca Mais, obra citada: "Sob o lema 'Segurança e Desenvolvimento' Médici dá início, em 30 de outubro de 1969, ao governo que representará o período mais absoluto de repressão, violência e supressão das liberdades civis de nossa história republicana. Desenvolve-se um aparato de 'órgãos de segurança', com características de poder autônomo, que levará aos cárceres políticos milhares de cidadãos, transformando a tortura e o assassinato numa rotina."

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Apoiava os documentos que ele escrevia, a letrinha disciplinada, indiferente ao estado de espírito. Datilografou-lhe a autocrítica11 – ingresso na VPR sem conhecê-la direito, precipitação diante dos subterfúgios da VAR em assumir o rumo do campo. Dada a própria incompetência teórica e política, terminava, pedia demissão do comando e seu deslocamento imediato ao treinamento. Assinava Cid, o pseudônimo dado por Darcy: você é o herói cavaleiro, legendário reconquistador da Espanha contra os árabes, Cid Campeador. Incessantes, Maria do Carmo e Iara viajavam; fácil mulheres se disfarçarem. Levavam dinheiro, documentos internos, papéis falsos, armas. Escondiam numa sacola munição pesada, recusavam ajuda a fingir que era leve. De ônibus rodaram o país, incerta referência dos pontos no vazio. Nas emergências, avião. Despediam-se como se fossem trabalhar num escritório, estipulando datas alternativas para abandono da chácara. Ninguém da casa lhes conhecia o paradeiro. – Iara e eu sentíamos medo, sem refletir. Do contrário, impossível continuar – pondera Maria do Carmo. – "Deus acompanhe, os anjos", eu dizia a Juarez quando ele partia. Exibíamos firmeza por que supunham as mulheres frágeis, amedrontadas. Sofreram com a queda, em Vila Cosmos, de um aparelho da VPR. Violento tiroteio, morte de Eremias Delizoikov, afilhado político de Darcy. Sozinho, o rapaz enfrentou o cerco para garantir a fuga de José Araújo da Nóbrega, que saíra. A batalha o alertaria. Eremias feriu três militares e lutou até a destruição da casa. Quando tomaram as ruínas, estava morto. Em busca de Nóbrega, pensaram ser dele o cadáver12. As investigações, iniciadas em julho, haviam conduzido a um militante que abrira diversos aparelhos, inclusive o esconderijo do cofre-rastro de dor, sangue e morte pasteurizados nos autos de um processo. A "Emenda Constitucional n 1" dispensou de apreciação judiciária os atos praticados pelo Comando Supremo. Concomitante, nova lista de políticos cassados, que misturava Conceição da Costa Neves, extrema direita e acusada de corrupta, a Adalgisa Nery, escritora oposicionista. Médici apresentou seus ministros: "Confiem nos homens em quem confio."

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Documento BNM 796 de 14.10.69 Uma Auto-Crítica". Folha da Tarde, 16, 18, 20, 22.10.69.

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– Buzaid, o carniceiro, no Ministério da Justiça. E o milico da Casa Militar13 vive de óculos escuros, moda entre eles. Afinal, olhos são o espelho da alma – sentenciou Iara. O fechamento inflamava os ânimos. Durante uma reunião em Jacarepaguá, alguém propôs justiçar os "homens de ouro" – esquadrão da morte na Guanabara. A racionalidade da sugestão sequer chegou à análise e já um militante pedia escala. – Quero acabar com eles. – O escolhido deveria lamentar a ação ao invés de alegrar-se – desaprovou Iara. – É lamentável matar um pai de família, mesmo que seja um monstro – secundou Lamarca. – Quando o justiçamento seletivo exige, você vai e liquida. Mas com clareza: não é para comemorar. A Tchecoslováquia continuava em debate. Iara incriminava a prisão de manifestantes em Praga, no aniversário dos tanques soviéticos, dois meses antes. – Você é ingênua. Um país se sacrifica, constrói o socialismo e depois permite que a infiltração imperialista use estudantes e intelectuais em busca de liberdade pequeno-burguesa? A obsessão americana é destruir as democracias populares. Lembre-se da Hungria em 1956. A defesa da revolução é obrigatória a todo país socialista – Lamarca repetia a doutrina Breznev. – Meu stalinista – restituiu Iara. – Invadir um país ou impor regras é enterrar o socialismo. Instigava-o, sem esmorecer, a interessar-se pelo aspecto político das discussões, inclusive quando estritamente militares. Graças a esse diálogo, sentia-se amparada quando ele se acabrunhava de culpa. Não intervinha. Tumultuasse-o com ciúme, deixaria de amá-la. Você é um combatente corajoso, atento aos outros, disposto a corrigir suas posições. Você é o homem de minha vida, repetia. Os amigos de Lamarca acusavam Iara de influenciá-lo com tolices políticas. – Um exemplo de aversão à teoria aconteceu quando levei documentos e dinheiro a um ex-sargento, dos últimos a morrer – narra Maria do Carmo. – Foi próximo ao DOPS e a rodoviária velha de São Paulo, num bar tipo manjedoura pública, porque fica todo mundo de pé ao redor do balcão. Entreguei o pacote. Acabamos de tomar o

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General João Baptista Figueiredo, escolhido presidente de 1979 a 1985. Concluiu o processo de abertura iniciado por Ernesto Geisel, general e presidente anterior.

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café, saímos e dali a pouco pergunto, assustada: "Cadê o dinheiro?" Respondeu: "Os folhetos? Deixei lá." Voltamos correndo, apavorados. Recuperamos. Na cabeça dele, textos políticos abandonavam-se propositalmente. Depois tomou um sabão de Lamarca. Aliás, eram escritos dele. Nessa época, observei um maço de papéis apoiando o pé de uma cama. Engraçado, vi isso no exílio em Angola. O governo acreditava que as pessoas liam mais, devido à demanda. Acendiam fogueiras. Lamarca, no entanto, dedicava espaço crescente à reflexão. Por Iara, vinha à tona o mundo interior e abrangência que a formação militar reprimira. E estava esperançoso. Dia 6 de novembro assentaria em São Paulo, com Marighella e outros, a Frente Armada14 que já funcionava nos assaltos, esconderijos, discussões. Somariam os estilhaços das organizações, projeto gorado no racha da VAR-Palmares. No início do mês, Iara o encontraria. – Quando chegar vou assistir à peça da Consuelo, "À Flor da Pele" 15. É uma história à Maria Antônia, quase autobiográfica. A aluna moderninha vai contar seu affair à mulher e ao filho do professor quarentão; acredita em rebu terminal, coitadinha. – Vingança de joana-sem-braço. Nos dias de hoje, grande futilidade – Lamarca não queria saber dos tempos de Faculdade. Há quase um mês em Jacarepaguá, a tensão subia. Monteiro, 22 anos, gritava durante os pesadelos e o acordavam com cabo de vassoura, receosos de agressão. Preso pela primeira vez em Belo Horizonte, causara tamanho dissabor que o pai morreu de infarto. Substituiu-o por Juarez, dos "velhos". Iara quis despedir-se de Dilma. Perderiam contato e algumas separações machucavam. Na praça movimentada de Ipanema, alegres, abraçaram-se num banco. – Eu trouxe uma lembrança para você – Iara estendeu um pacotinho. – Também queria dizer que fico na VPR porque acredito nas propostas. Não altercaram. Reinava entre elas o acordo tácito de preservar a relação afetiva. Dilma desembrulhou o presente e comoveu-se: quatro lencinhos de cambraia

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 27; "A Frente clandestina"): "Operante no decorrer de 1970, a Frente não evoluiu no sentido da fusão orgânica. Câmara Ferreira pensava num comando político unificado, mas Lamarca resistiu à idéia, pois enxergava incompatibilidades sobretudo com a concepção organizativa grupista da ALN. Preferiu uma coligação limitada à execução de ações conjuntas e ao esclarecimento mútuo das posições doutrinárias." 15 Miriam Mehler e Perry Salles interpretaram, direção de Flávio Rangel.

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da loja Slopper, naipes bordados. Perscrutou o rosto da amiga. Traços delineados, sofridos. – Atravessei uma fase problemática – acompanhavam, sem ver, crianças brincando no pequeno jardim, babás a empurrar carrinhos, o vendedor de bugigangas na esquina. – Lamarca andou arrasado por achar que traia a mulher. Pensei: vai cair fora. Mas aprendemos, é um grande amor. Tenho um companheiro incomparável. Homem, cavalheiro, combatente. Apesar do medo, sou feliz. Despediram-se. Dilma deduziu que Iara não acreditava no sucesso da guerrilha imediata. Convencera-se de que, independente dos resultados, a iniciativa se impunha. Cabia à sua geração sacudir a ditadura militar, uma página que fosse na História do Brasil. Honrar a dignidade ante o arbítrio, o sacrifício pela justiça social e o socialismo. O revés, dizia Lamarca, é passageiro. A História esbanja derrotas que deixam marcas profundas no povo e o levam a retomar a luta onde foi interrompida. – Iara não tinha a credulidade dos outros – reteve Maria do Carmo. – Fazia diminutas observações e cruzávamos olhares a cada disparate maior. Pequenas cumplicidades. Quanto a mim, passei meu último ano de luta armada, meados de 1969 a abril de 1970, absolutamente convicta de nossa derrota. Mas não deixaríamos implantar-se a ditadura sem dor, sangue, um mínimo de protesto. Mesmo que a denúncia não viesse a público. Mesmo que nos transformássemos em Tiradentes. Algo de martírio e solidariedade, não se abandona o barco nem se traem os mais íntimos, o marido, o companheiro de Iara, o padrinho de casamento, a amiga, um destino comum. Não enunciávamos o assunto – seria como se católicos questionassem o Cristo na hóstia. Tabu. E havia os justiçamentos. A VPR não fez nenhum, mas eu os temia. Os ex-sargentos eram outro universo. Debruçaram-se sobre a notícia de prisões na região de Ribeirão Preto, Sertãozinho e do Triângulo Mineiro16. A freira Maurina Borges da Silveira, souberam, violentada na prisão. Por linhas tortas chegaremos ao socialismo, é só observar o mundo. Manifestações contra a guerra do Vietnã contagiam os Estados Unidos, na Irlanda táticas terroristas provocam a Inglaterra, guerrilheiros palestinos inquietam o Oriente Médio. Na Bolívia, expropriação da Gulf Oil. No Peru, o regime militar de esquerda que anima Lamarca, promessa de reforma agrária bem sucedida.

Forças Armadas de Libertação Nacional – FALN, maioria de secundaristas: Jacob Gorender, obra citada (Cap. 30: "Vivências do DEOPS e do Presidio Tiradentes"). 16

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Iara, doutorada em assembléias, preparou sua participação no congresso da nova VPR em novembro – semelhante a Juarez, pertencia ao staff do comando. Representaria Lamarca, de partida para São Paulo. Alérgico a congressos, suas polêmicas intermináveis e cartas ocultas, dedicava-se agora a montar o treinamento no Vale do Ribeira. – Nomeio Iara minha representante – declarou quando convocado. – Sou militar, da guerrilha. Num dos encontros preparatórios, Iara recebeu Inês Etienne Romeu. Conhecera-a, cabelos lisos, castanhos, olhar profundo atrás dos óculos, na escadaria da Faculdade em novembro de 1966. Vinha de Belo Horizonte buscar material da POLOP e discutir a tática política relacionada aos excedentes. Cruzaram-se na Praianada. Grande amiga de Breno, integrava a direção regional da POLOP. E agora deixava o COLINA pela VPR. – A gente sempre se encontra nos rachas – saudou-a Iara, sorrindo irônica17.

Marighella. Chael. O anel de escrava

ALMIR DUTTON FERREIRA, convocado para acompanhar Lamarca a São Paulo, apanhou-o num ponto. Se algo acontecesse, tentariam romper o cerco à bala. Em último caso, suicídio. Lamarca quis despedir-se do pai; não o viram defronte à sapataria. – Olha, aí é que mora minha família. Entraram na Dutra escoltados, carro à frente e atrás. – Fomos num Gordini de duas cores que dava na vista – e ele tão perseguido! Tudo assim, meio improvisado, amiúde estúpido. Por exemplo, tive de levar armas à fazenda que compramos para treinamento, no interior do Rio. Alguém providenciou o jipe. Escolheu velharia para economizar. Tivemos de empurrar o carro, acabamos a pé, metralhadora e fuzil embrulhados em jornais. Jovens e inexperientes. Com o tempo aprenderíamos. Durante a viagem, Lamarca e Almir faIaram do sonhado hospital subterrâneo sob a fachada de uma casa. E do alimento na guerrilha, baseado em cultivos da região. 17

Inês Etienne Romeu: "Depoimento sobre Iara Iavelberg." Fortaleza, 6.4.1980.

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– Se tiver palmito, basta uma faca. Nem precisa cozinhar. – Proteína é fundamental e carne estraga depressa. – Então, bacalhau. Conserva-se e basta pôr de molho na água. Figuravam a guerrilha triunfante, vívido o exemplo do vietcong, Cuba logo ali, os vizinhos tupamaros, os argelinos expulsaram os franceses, os portugueses desgastados na África. O mundo se transforma. – A abstração substituía o concreto no intuito de salvar a Humanidade – retrocede Almir Dutton. – A certa altura, as idéias eram sucedâneo da sensibilidade. Qual o prazer de matar um informante da CIA? Talvez júbilo. Porque o prazer estava em entregar-se aos outros, no chope, nas celebrações. Se vencêssemos tão despreparados, acabaríamos fuzilando o amigo. Tensa, mas antegozando o reencontro familiar, Iara seguiu-os de ônibus. Ajudaria nos contatos. Do racha sobravam cerca de 100 militantes tempo integral, além dos apoios1. Jovelina cuidava de Lamarca num aparelho em Vila Formosa, então limite de São Paulo. – Abraçaram-se muito, chorando, quando ela chegou. Neto observara a pequena casa operária antes de alugá-la. Instalados, descobriu que do outro lado da rua morava um conhecido investigador do DEIC. Sem solução imediata, trouxe o hóspede. Iara dormia com Lamarca no sofá-cama da saleta à frente, veneziana cerrada. Vinha depois a cozinha, o banheiro e o único dormitório. Neto saía cedo. Jô, antes de comprar leite e pãezinhos na padaria, enchia a garrafa térmica do café que Lamarca não dispensava. – Não toma tanto – inquietava-se Iara. O relacionamento respeitoso, o interesse em ler e trocar idéias, a persuasão calmante de Iara quando a clausura o agoniava, impressionaram Jô. – Não agüento mais, neguinha. Todos em ação e eu aqui. – Você é um mito, procuradíssimo. Insensato expor-se à toa. Refletia antes de responder. – Você tem razão. Mas de que adianta me encarcerar? Pirado, sou inútil. Concorda? 1

Jacob Gorender, obra citada (Cap. 19).

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– Claro. Logo você estará na Serra, ocupado até demais. As duas mulheres não conversavam muito. Iara reputava-a simplória e à outra surpreendiam seus gestos delicados. "Olhe que pessoa finíssima, a maneira quase etérea de pegar as frutas" – mostrava ao marido, confusa. Lamarca não escolheria uma companheira burguesa, sinônimo de invalidez. Satisfeita, ouvia os elogios dele à comida que lhes cozinhava, capricho nas verduras, preferência de Iara. Comoviamna a emotividade do casal, dividindo alegria ou tristeza. E os olhos lacrimejantes dela ao acarinhar a cabeça do filho enquanto o amamentava. – É tão bonito! Mas esse leite deixou de servir como alimento. Você deveria parar, a separação pode ser pior no desmame tardio. Jô assustou-se e obedeceu de um momento a outro. À noite, febril, queixou-se dos seios inchados, início de mastite. – Continue dando o peito – atemorizou-se Iara. – Você vai se prejudicar. O vínculo extraconjugal embaraçava Jô. Sensível e dedicado a valorizá-la, Lamarca justificou-se mediante referências comuns. – No casamento ela não se realizava politicamente. Separou-se e adquiriu boa visão teórica. Está de bem consigo, uma pessoa nova. Quando as pendengas de um militante, Massafumi, irritaram os outros, Jô assimilou as avaliações de Iara. – É só um garoto, apesar do jeito. Indefeso. Menino carente. Iara marcou com os pais na confeitaria Yara. Não via o momento de abraçálos. Rever o pequeno salão de chá fora do tempo, bancos estreitos de encosto alto, gerações de nomes rabiscados, o dela ainda? Queijo derretido, doces. O sorvete no café vienense. Orgulharia a mãe, estou linda como sempre, o guerrilheiro é o herói que toma nas mãos a defesa do povo. Em Vila Formosa, assistiam ao jogo noturno do Coríntians e Santos. De repente, interrompida a transmissão, informou-se que o chefe geral do terror, Carlos Marighella, fora metralhado e morto2. O estupor emudeceu-os. – Se eu fosse um sanguinário – disse Lamarca – saía para abater meia dúzia de policiais. Sem dificuldade. Mas nossa luta é contra o Estado que sufoca os trabalhadores. Importante manter isso em vista: o inimigo principal não é a repressão.

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 24: "Assim Mataram Marighella"); Frei Betto: Batismo de Sangue, Ed. Civilização Brasileira, 1986.

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Seria um desvio – reiterou, a convencer-se. – Dirão que a luta armada terminou. Mostraremos aos operários e camponeses que o combate continua, determinado. Jamais os abandonaremos porque somos a sua vanguarda. Esse período vergonhoso da História não será uma página em branco. O povo brasileiro não passará por covarde. Houve um punhado de homens e mulheres na trincheira. Trabalhadores como Neto, camponeses como a mãe dele, funcionários da saúde como Jô. Intelectuais como Iara, militares como eu. Choraram juntos. Não se conformavam, fácil demais atraí-lo à armadilha. Certamente assumiria o valente Joaquim Câmara Ferreira, Toledo, o Velho. Vontade de chegar à janela. Espaço. Quem abriu o ponto? Faltou a alguém coragem de morrer, disse Lamarca. Você se engana, corrigiu-o, a tortura é o porão dos latrinários. O suicídio do militante, extremo idealismo. Exige espaço limpo, nem que seja um segundo dentro de si. Reviu-se no último encontro com Ecléa, um acaso na Augusta. A amiga recriminara-a. – Não suma assim, Iara. O tempo se perde, uma de nós pode morrer de repente. Não devemos deixar os amigos para algum dia. – Morrer coisa nenhuma, Ecléa. Conversa. A gente vai se ver muito. Longínquo, o prenúncio da asma. Imaginou Marighella morto, ninguém reclama o corpo no dia quente, domingo foi Finados. Milhares a visitar túmulos de artistas famosos. Vento enlouquecedor de deserto, poeira nos olhos. Alguém deposita um ramo, chove. Gosto tanto de flores molhadas na chuva. De madrugada, escuro porque no bairro a luz chamaria a atenção, olhos abertos sem enxergar-logo amanhece, quantas vezes ainda? – Lamarca sussurrou o que sabiam. Não acreditava em tomar o poder no momento. O imperialismo propaga a miragem do milagre econômico, reprime trabalhadores. A esquerda armada é força contra força. Cedo ou tarde chegará minha opção de vida, a morte. Pensa bem se continuas comigo, teus irmãos escolheram a VAR, oportunismo escudado em trabalho político – agrediu. Eu sou vanguarda. Morreram Marighella, o Che e tantos soldados, letras de sangue no livro do internacionalismo proletário. Não me vejo no Exterior à espera de cair a camarilha ou de uma anistia revoltante. Perdão é pra mãe deles. Cada um assume seu papel de homem na História. Abro o caminho da guerrilha no país onde a perfídia assassina patriotas, hoje a pequeno-burguesia refestela-se em compras de Natal, adoram o bode-preto, não o Menino. Amanhã esporra-se no 353

dinheiro fácil da Bolsa, engodo magistral, arrepanham a poupança de incautos. Tecnocratas desenvolvem um nacionalismo de direita, fascista, e os desbundados ultrajam a população de Itapuã. O imperialismo realiza manobras conjuntas no Atlântico Sul? Não nos assusta. Marighella vive. Escoteiro, Jonas, Zanirato, Eremias. Nenhum companheiro morreu em vão. Venceremos, não importa quando. Outros virão. A luz da manhã permitia ver os contornos de Iara, a cabeça deitada no seu peito. Ela esperou um pouco, exausta. – Minha opção é a luta revolucionária, a tua luta. Mesmo que seja para morrer. – Vamos tirar uma síntese dos acontecimentos e escolher os próximos passos – sugeriu Manoel antes de sair com mensagens de Lamarca. A repressão em festa explorava o cadáver da investigadora morta no fogo cruzado entre policiais, sem poupar recriminações ao protético alemão; fuziIaram-no porque de susto pisou no acelerador. Todos os tiras e delegados que participaram da diligência foram promovidos. Iara decidiu evitar a confeitaria onde a família aguardava, a alguns quarteirões da cilada. Descabido resolver o probleminha pessoal da saudade. Daria um jeito de avisar a mãe. – Ficamos sentados, ela não apareceu. Bebericavam o chá, ansiosos, examinando pessoas a entrar e sair. Mulheres cheias de compras, de repente uma jovem que parecia a filha. Estudantes depois do cinema. – Vamos embora – ordenou Raul. – Alguma coisa aconteceu. Os jornais publicaram um documento de Lamarca, apresentado na reunião de Mongaguá: crítica às ações incompletas, desmazelo na prestação de contas, bagunça generalizada. A VPR, acéfala, necessitava de comando ao qual "faremos convergir todas as nossas forças e os nossos conhecimentos e a ele nós confiaremos nossas vidas"3. – Disseram que Zanirato o trazia – aborreceu-se. – Não acredito. De qualquer maneira, documento precisa ser inutilizado. Depois de ler, até banheiro público serve. Diariamente os jornais publicavam páginas sobre Marighella, que das que levaram a ele, a prisão de Frei Betto no Rio Grande do Sul o status das outras 3

Folha da Tarde, 7.11.69.

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organizações. A VPR teria fugido de São Paulo e se fundido ao COLINA em Minas, originando a VAR-Palmares. Lamarca escapou ao cerco de Vila Cosmos. – Maquinações. Pretendem estar desinformados. Leia ao contrário. – Frei Betto foi chefe de redação no jornal que o acusa, em manchete 4, de ser um dos chefes do terror. Deve ser penitência dos diretores. Têm medo de achaques maiores. Assalto ao carro-pagador do supermercado onde Iara eventualmente fazia compras, em Jacarepaguá. Na despedida, o cartaz: "Olho por olho, dente por dente, viva Marighella!" Um guarda morreu. – Esses coitados morrem de bobeira. Distraiu-os a foto do gordíssimo "futurólogo" americano Herman Kahn, de calção à beira da piscina, os repórteres engravatados. Fellini. Garantia, vedete, um Brasil subdesenvolvido no século 21. – Adorei a fúria dos milicos. Sabem que a recuperação econômica é fogo de artifício. Não tem lastro. A exploração da briga de Lamarca e Marighella em torno das armas de Quitaúna, inquérito suplementar sobre a VPR, revoltou-o. Águas passadas. – O pessoal abre o que pode e não pode. Êxodo para o Exterior. Quase todos os companheiros que sequestraram o embaixador caíram. O pessoal precisa de formação, mandaremos os melhores a Cuba. Treinamento policial e militar em centros americanos, de seu lado, defendia o relatório Rockefeller*. – O castigo vem a cavalo. A denúncia do massacre de camponeses em My Lai arranca a máscara dos "salvadores". Manoel avisou ao locador que mudavam de casa. Sobressaltava-os o tira, sua mulher que vinha prosear no portão, os filhos a entreterem-se na calçada com o menino. De Presidente Prudente como Jô, o homem puxava conversa sobre conterrâneos e aguardou-a cedo uma vez, na volta da padaria, O olhar turbou-a. Inquieta, entrou em casa e logo tocaram a campainha. Espiou pelo olho mágico e pareceu-lhe ver alguém com o terno do investigador. Trêmula, sequer olhou o rosto e preveniu Lamarca, que se escondeu no fundo. Iara continuou deitada. Abriu a 4

Folha da Tarde, 11.11.69. Thomas Skidmore, obra citada (Cap. IV): Alertou o governo americano sobre a “subversão comunista” e sugeriu aumentar as subvenções para treinamento das forças de segurança nos países hemisféricos. *

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janelinha da porta – um desconhecido queria examinar o imóvel já anunciado. A irmã dormia, desculpou-se. Viesse outra hora. Iara sorriu agradecida. A relação mudou. Manoel e Jô saíram em busca de um aparelho que ao mesmo tempo servisse de base para os militantes a caminho da Serra. Encantaram-se com uma chácara em Parada Taipas, na estrada velha de Campinas. O casal idoso pedia 90 dias. Procurava outra morada em determinado bairro. – Coincidência, disponho de uma ali – mentiu Manoel, que correu a comprarlhes uma residência e fez as mudanças. Descobriram-se, Lamarca e Iara, quase livres na casa simples rodeada de flores, horta, árvores frutíferas, plantação de mandioca no morro. À noite grilos, latidos de cães se multiplicando nos quintais. Acordava-os o coral de pássaros, o bate-papo de Jô, o filho e o sobrinho de dois anos, louças do café, som abafado de combatentes a chegar. Ofereciam-se para ajudar nas tarefas da casa, lamentavam não substituí-la no transporte dos baldes d'água. Temiam a suspeita de vizinhos, o poço ficava ao pé da colina. Lamarca e Manoel treinavam pontaria matando passarinhos, sob protesto de Iara a carpir mato sem entusiasmo. Aguardavam a comida, sempre elogiada: feijão cheio de carnes e lingüiças, arroz, gigantescas saladas mistas. Algumas vezes tomavam pito de Jô no destempero das polêmicas, falem mais baixo, assim não dá. Ocorreu de subirem a escada de pedreiro para se esconder no sótão, enquanto Jô entretinha vizinhos obsequiosos. Temporais, aliviando o calor e a seca extemporânea, alagaram bairros. Correu o boato de que a represa de Guarapiranga cobriria parte da cidade, causando mortes e destruição. – É o dilúvio, paranóia coletiva. Ponto contra os milicos. – Incrível entregarem ao coronel Antonio Lepiane, comandante de Quitaúna, uma ACISO bem no Vale do Ribeira. O rio e seus afluentes haviam transbordado. – A Serra vai se encher de mosquitos. As discussões sobre a ida de Iara inflamaram-se. Temiam que a ligação fosse mal interpretada – Lamarca tinha esposa e filhos, aguilhoavam. Ele se valia do código comum. Creditava seu avanço teórico a companheira. Até a solidariedade entre ambos era exemplar. Seria um recuo político separarem-se. 356

O esforço de Iara por ser aceita pasmava Jô. – Meu empenho é ideológico e não emotivo – frisava ela. – Trarei o benefício das contribuições teóricas. E vencerei as dificuldades naturais de adaptação, claro. O coletivo terminou concordando. Cedia principalmente à formidável ascendência de Lamarca. Manoel continuava a sair muito. Absorviam-no as tarefas logísticas do setor urbano. Várias vezes instruiu a mulher: retire o pessoal se eu não voltar. Alguém poderia abrir a chácara na tortura – jamais ele, realçava. Jô pôs-se a mexer na Rural Willys sempre à disposição. Avançava um pouco e detinha o carro. Dava a ré. Quando sentiu desenvoltura tomou o caminho cheio de árvores que, passado um pequeno açude, atingia a estrada. – Lamarca ficou feliz e todos me apoiaram, conscientes da intenção. Sinto saudade daquele tempo, apesar do perigo. As pessoas acreditavam umas nas outras. Havia brigas, porém respeitosas. Sofremos depois. Um sofrimento bonito. Deploro quem morreu e acho que os sobreviventes devem viver. Cobramo-nos muito, parece que temos uma dívida. A dívida não é nossa, é de todo o mundo, é do povo brasileiro. Pouco demoraram os dias de espaço, céu e cores, o verde e pontiagudo morro do Jaraguá. Lamarca seguiu para a base de treinamento. Iara voltou ao Rio.

Na Guanabara, não foi à chácara de Jacarepaguá, misteriosamente caída. Talvez algum militante preso que a conhecesse5. Ou moradores da redondeza estranharam os casais. Ou alusões do caseiro, que acreditavam desatento. O homem, contudo, saiu à rua esperando Maria do Carmo e avisou-a: a pretexto de corretagem, a polícia bateu à porta. Escondera as armas sob a própria cama. – Escapamos. Voltei com Wellington para agradecer e retirar o armamento. Nós éramos meio doidos. InstaIaram o congresso da nova VPR numa rua apagada, três ou quatro sobrados, perto do atual túnel da Barra da Tijuca. Outro seqüestro de avião para Cuba, da rota Manaus-Belém, alegrou-os. Durante os debates, Iara insistiu no atendimento

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Interpretação de Inês Etienne Romeu em "Depoimento" citado.

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psicológico aos militantes6, seu nicho na luta armada. Esmerava-se por abrandar os preconceitos. Dois dias depois, eleita a nova direção – Lamarca, Maria do Carmo e Ladislau – o locador telefonou. Em linguagem cifrada, advertiu-os: cercavam o bairro. Manobras? Febris, desocuparam a casa. Nessa noite, quem não retornou à cidade de origem, dormiu a dois em motel. Iara e Lizt Vieira, futuro advogado, foram a um velho hotel em Ipanema. – Ficamos conversando. Pareceu-me gentil, serena. Eu sabia que era companheira de Lamarca. Confidenciou que ia para o campo, apreensiva devido à formação urbana. Wellington acompanhou Maria do Carmo, que nunca pisara em motel. Na ausência de lençóis, temerosos de pedi-los, cobriram-se com toalhas de banho. Tive de sair duas vezes assim, correndo. Depois Juarez e eu alugamos um quarto de pensão. Confundo os aparelhos porque repetidamente os abandonávamos. A memória funciona por estímulos e a maioria das pessoas morreu. Iara viajava regularmente a São Paulo. Encontrou Ulisses algumas vezes, deulhe o documento de Lamarca "Aos Militares"7. Pareciam namorados na Leiteria Americana perto do Teatro Municipal; ou na praça Buenos Aires, o banco de pedra afastado, atrás das folhagens. Ulisses desafogou-se, inconformado com a paixão de Heleny por um companheiro a quem esconderam. Não achou o que dizer, já visitara a amiga e os filhos no apartamento onde moravam, em Perdizes. Silenciou sobre o heroísmo da militância integral, o desejo nas situações de perigo. Não queria magoá-

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Idem: "...Sua preocupação com o militante enquanto ser humano mais uma vez ficou evidente...Para ela, tão importante quanto as discussões sobre estratégia e tática de luta, era a situação psicológica dos militantes, que desejava fosse a melhor dentro do possível. Sugeriu que a organização criasse condições para que os companheiros tivessem um local onde pudessem descansar das tensões a que eram submetidos... Pessoa bonita, sensível, tranqüila, solidária, Iara conseguia traduzir na prática o conselho do Guevara de 'endurecer-se sem perder a ternura', já que as condições adversas em que vivíamos podiam nos tornar indiferentes à dor alheia. Vivíamos os primórdios daquilo que considerávamos seria uma longa e violenta guerra revolucionária. As dificuldades materiais e a permanente preocupação com a segurança pessoal e dos companheiros eram uma constante do cotidiano. Muitas vezes não tínhamos meios de nos alimentar ou lugar para dormir. Havia, também, o sofrimento com a notícia das torturas em companheiros presos, e o sentimento de perda com a morte de amigos. 7 BNM 5907 (Anexos): Denunciava a "lavagem cerebral que sofre o militar, muito jovem... a submissão imposta à Pátria" pelos EUA... "o ideal contra-revolucionário de 1964". Exortava-os a pensar na miséria do povo, descrevia as atrocidades das torturas praticadas pelas Forças Armadas. E terminava: "Historicamente vitoriosos, avançamos até que a morte nos alcance. O processo revolucionário continuará sempre, e todos os povos serão livres. Ousar lutar-Ousar vencer. VPR, novembro 1969. Carlos Lamarca."

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lo. Preocupante o futuro dos grupos de ação, desconversou. Aparelhos precários, bancos aprimoram a segurança e nem assim as desapropriações cobrem os gastos da clandestinidade. – Virou a prática política do momento. Péssimo. – Vou me afastar – Ulisses convencera-se de que Iara se solidarizava com Heleny, indiferente à sua dor. Essas coisas acontecem, escolhia as frases, você é bom companheiro, sangue frio – lembrava-se do comando que o parou, Eduardo Leite já de revólver, "não posso ser preso", "agüente aí", desceu, "que foi, terrorismo?", "nada, pode ir" decidiu o militar, decorreram horas até acalmar-se. Sentiu carinho, salvara a vida de Bacuri. Visito Heleny e as crianças, prosseguiu ele como a pedir ajuda, mas não nos entendemos. Fazer o quê? coisas da vida, interrompeu impaciente. Não se viram mais. Na última semana de novembro, o assassinato de Chael na tortura. Pancadas na barriga, intestino arrebentado, hemorragia interna8, pontapés, quem sabe o torturador pulou em cima dele com as patas? Sentiu o direto no peito. Via Chael menino, primo de Shirley e Jaime, a brincar com Melo. Depois na Faculdade de Medicina, ligando-se à VPR. – Como foi? – chorava. Compôs a própria morte e sentiu orgulho, somos o pedaço do bairro que afronta os bandidos. Junto caíram Espinosa e sua companheira agora, Maria Auxiliadora. Alugavam um sobrado em Lins de Vasconcelos, na Guanabara. Só os dois conheciam o endereço, Chael viera "fechado" – estirara-se no banco de trás, óculos opacos, desde a praça 7 de Setembro. – Demos três meses de aluguel adiantado – precisa Espinosa. – Trocávamos de carro a cada 15 dias, no máximo 20, porque alguém poderia nos reconhecer e anotar a chapa. O dono da casa, proprietário do sobrado vizinho, denunciou-nos à polícia criminal como possíveis ladrões de automóveis. Durante 15 dias vigiaram a casa. Até na balsa os tiras fotografaram Chica, que andava de ônibus e fazia autoescola em Niterói. Eu usava o carro, não conseguiam me seguir. Desde os tempos da fusão, Espinosa assistia um grupo de cobradores de ônibus, na Baixada Fluminense, que pleiteava engajamento. Manteve-os em 8

Revista Veja, 10.12.69: "Tortura/As Histórias e as suas Provas."

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suspenso no curso do conflito interno, mas decidiu procurá-los quando ameaçaram entrar na VPR. Nessa noite, ultrapassou o prazo do teto. O atraso obrigava Maria Auxiliadora e Chael a desocuparem o aparelho em 24 horas. Não o fizeram. – Como é que estão aqui? – repreendeu ao voltar depois das 9 da manhã, 20 de novembro. – Bem, podemos ficar. Correu a um ponto no Leblon. – Único dia em que não usei técnicas de despistamento. Sorte o companheiro faltar, porque me seguiam. Entrou no cine Miramar. – Sala esquisita, pressenti policiais. No aparelho eu já notara estranhos do Serviço de Águas. Mas poderia ser neurose, mania de perseguição. Como chegariam à casa, ao cinema? Saí. Deu diversas voltas, conferindo se vinham atrás ao próximo compromisso, o comando. O companheiro faltoso, torturado, abriu o ponto, conjeturou. Terminada a reunião, no fim da tarde, pensou em ficar no aparelho e escrever os últimos documentos referentes à luta interna. – Sacanagem com Chica e Chael, resolvi. Voltei só para avisar. Reivindicaram, insistentes, que eu não fosse. Queriam um relato sobre a situação da VAR. Quando me desvencilhei, chamaram do lado de fora. Auxiliadora atendeu e me disse: "Um homem quer ver a casa vizinha." Abri o enorme portão de ferro, o sujeito me olhou de cima abaixo e convenci-me: são os caras da tarde. Daqui a pouco vão embora e voltam. Dá para a gente pegar o dinheiro, armas, talvez documentos. Em dez minutos caímos fora. Mas ele avançou: "Polícia!". Dei um berro: Polícia!'" Lutei, Chael atirava do alto. Nenhuma saída, barrancos à frente e esquerda. Chegamos às 21:15 no DOPS. Tortura direto. Vila Militar. Tortura. Eu ouvia os gritos de Chael, salas contíguas. Às 2:15 da madrugada de 21 de novembro, silêncio. O soldadinho que dava guarda me chamou: "Mataram seu amigo." Os jornalistas souberam porque fomos entregues primeiro à polícia civil. Noticiaram na mesma noite. A morte de Chael, publicada na Luta Democrática, protegeu-me. O fato abalou a comunidade judaica9.

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Graças ao empenho dos jornalistas Carlos Brickman, primo de Chael, e Evaldo Dantas, que o acompanhou à Guanabara, esclareceu-se a causa da morte, atestada cinco dias depois por Rubens Pedro Macuco Janini, médico legista. Foi "a primeira prova real de morte violenta durante um interrogatório policial" – Veja, 10.12.69, artigo citado.

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Caíam aparelhos. A repressão divulgou uma lista de ações da Ala Vermelha e de presos do PCBR em Pernambuco, Goiânia e Brasília; algumas armas eram do 4 RI, provavelmente das confiscadas por Marighella. O DOPS levou à Justiça, em São Paulo, o processo dos implicados na morte de Chandler. Todos conhecidos da polícia, inclusive quem deixara o país. O Exército propalou uma operação antiguerrilha "Peruíbe", em dezembro, junto à vizinha "invasão" da boa vontade no vale do Ribeira. – Mal sabem o que vai acontecer ali pensou Iara depois de ler o nome de Fernando Kolleritz entre os condenados à revelia. Pouca importância deu às eleições de vereadores e prefeitos em dez Estados, inclusive São Paulo. Irritou-a o relatório do cerco e tomada policial do CRUSP, quase um ano antes, considerado "antro da devassidão: alunos subversivos e promíscuos, moças prostituídas". Nomes familiares. No Exterior a imprensa hostilizava a tortura, sensibilizando a opinião pública. Mandar informações era tarefa política de primeira grandeza; até o embaixador suíço no Brasil, Giovanni Bucher, envolveu-se numa denúncia de genocídio indígena. Bom. A Ordem dos Advogados do Brasil, corajosa, pressionava e Médici, pro forma, determinou uma investigação sobre as denúncias de tortura, que Buzaid prometeu rigorosa. – Mentiroso. Nem habeas-corpus10! A oposição finge que acredita, protegendo o estreitíssimo espaço de manobra. É uma dança de pulgas amestradas. De tanto bater a cabeça na tampa do vidro, pulam apenas certa altura. Pode abrir, não saem. O Médici, então, é um pulgaço. Boneco de ventríloquo. Nesse período final de Guanabara, morando em pensão e apresentando-se como professora, Iara participou principalmente de transbordos. Os jornais estampavam, ininterruptos, quedas, mortes e banimentos. Na denúncia contra Lamarca, Darcy e demais de Quitaúna, informações sobre a viagem das famílias a Cuba. Junto, o roteiro da pista e queda de Marighella. – E festejam o Dia dos Direitos do Homem. O sombrio Manoel Gonçalves, chefe de gabinete do Buzaid, diz que a sobrevivência exige meios pouco ou nada democráticos. Foi professor de José Dirceu. Faculdade de Direito! Alimento de alma eram as cartas de Lamarca, já no Ribeira. Regulares, extensas. Falava das bases na mata, dos companheiros. De amor, culpa, leituras. Feliz, apesar da saudade. 10

Carlos Castelo Branco, obra citada 4 e 5.12.69.

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Natal próximo, enterro de Costa e Silva, Iara teve sua única tarefa de contato direto. No Quartel Geral da Aeronáutica, souberam, havia a carabina que ambicionavam: arma curta, grande potência de fogo, excelente para instrução e ações. Darcy fez o primeiro levantamento, auxiliado por alguém que se brevetava. Observaram que uma mulher teria trânsito mais fácil no prédio. – Pedi que fosse designada uma companheira. Iara mandou-me o relatório. Luxo de detalhes, a ponto de nos assustar. Indicava o arquivo da Auditoria Militar – destruí-lo era um de nossos objetivos. Descrevia o funcionamento do QG, quem transitava pelos andares. O moral, atitude em relação ao trabalho, o dormitório da guarda, a escala nas festas de fim de ano, boa ocasião para assaltar devido à segurança relaxada. Iara teve coragem e aguda capacidade de observação. Provavelmente acercou-se como psicóloga ou jornalista, alegando pesquisar hábitos natalinos, emoções da nova década. Não obstante o êxito, o setor militar encolerizou-se. Conhecida demais. Se caísse, além do extremo desgaste da VPR, arriscava a todos. – Não aceitamos, mas estava feito. Iara ambicionava maior comprometimento. E convencer-nos de que não lhe faltava estrutura para adaptar-se ao Ribeira. A ação, todavia, gorou. Um companheiro insurgiu-se. Desproporcionais o objetivo e o perigo.

Melo e Miriam encontraram um aparelho. Sorte, pois mal deixaram o quarto de hotel a polícia procurou-os. Íntimos de Yara e Paeco, quase viviam juntos. Nessa época Miriam fez um aborto – impossível, filho naquelas circunstâncias – e pensou em Iara, sua vontade de engravidar, a alegria de um sobrinho. A zona Sul, outra aldeia, providenciou a coincidência. Os três viravam uma esquina quando toparam com Iara mais gorda, cabelos curtinhos, prontos para o treinamento. – Ela tinha um cabelo tão lindo – lastimou Paeco. O casal manteve-se afastado. Abraçaram-se, muito comovidas. Como sempre, Iara falou o que não devia. – Vou treinar guerrilha. Ando superpreocupada, Cuca Maria – acrescentou, a fazer o charme e efetivamente no dilema: – Como é que a gente se depila no mato? – Ai, Iara, você não está atrapalhada por isso! 362

– Estou. Combinaram um ponto para que visse o irmão. Num restaurante de Copacabana, à noite, conversaram a beber chope, submersos na multidão de turistas, a visão das luzes na baía à beira-mar. Iara de peruca, os cabelos compridos de sempre. – Não falamos de política. Queríamos evitar brigas. Só saber um do outro, o emocional. Estava calma. Marcamos um segundo ponto mas ela mandou avisar que viajaria. Foi a última vez que vi Iara. Miriam, tarefas separadas de Melo, morou algumas semanas em Paquetá com Yara e Paeco. A procura dela a polícia prendeu o pai durante uma semana e, por um dia, o irmão de 14 anos. Receptiva aos argumentos da mãe, esgotada pela tensão, em março de 1970 partiu sozinha, rumo a Paris. Iara justificou-a e a Melo, que a seguiu, com palavras de Quartim: somos portadores da vontade subjetiva de outras relações sociais, livres da miséria; isso vale para sempre.

Iara conheceu Almir Dutton num ponto, cedinho. Aprenderia uma de suas funções na Serra, enfermagem. De óculos opacos entregou-se a embalo do automóvel. Durante a viagem a Ibicuí, pequena vila a 100 quilômetros do Centro trocaram idéias sobre amor, violência, justiça, ética, o sentido da vida, a condição humana. Omitiram guerrilha. A delicadeza, fala macia, gestos um pouco vagarosos da moça impressionaram Almir. Ignorava tratar-se da companheira de Lamarca. Cumpria a ordem de ministrar o curso de um dia a alguém de ligação – contato limitado com a luta. Normalmente, três formavam uma turma. Na praia do Junqueira, quase particular, acesso difícil, Iara tirou os óculos. Deslumbrou-a a Serra do Mar atrás, mar à frente. Os olhos descansaram nas águas azuis, reflexos turquesa. Desejo incontido de nadar. – Que lugar lindo! Quantos verdes! Anotou como prover uma farmácia básica de campanha. Ensaiou tratar ferimentos, fraturas. Respiração artificial, injeções. Almir desenhava – aqui a veia certa, aplique a seringa. – Não importa que doa. O importante é enfiar a agulha na região correta. 363

No horário do almoço, Iara nadou. A casa dava quase na praia. – Lembro dela na água. Esguia, bonita, livre, despreocupada. O que mais gosta de fazer, presumi. Reparei nessa contradição, pois a fantasia desenha da guerrilheira uma figura desgrenhada, metralhadora em punho. Iara e Pauline Reichstul, que também não perdeu a sensibilidade, eram a antiguerrilha. Predominava, todavia, o espírito de heroísmo. Devo tê-la, eu mesmo, mitificado. Voltou a São Paulo misturada aos milhares de passageiros que lotavam a rodoviária. Festejos de Natal. Resolveu hospedar-se em casa de Rachel Rosenberg. E, além do telefonema costumeiro a Tutinha, ver Elias. Queria arejar depois da última blitz. A repressão vangloriava-se, mais de 100 presos pertencentes a diversas organizações11. Rachel e David, o marido, tentaram convencê-la a partir. – A situação econômica e política mudou, o perigo encurrala a solução armada. Atuar lá fora é o racional. Já. E voltar quando possível. – Eu não me vejo na França, Chile, México. Meu lugar é ao lado dele. Qualquer que seja o destino, a vida só faz sentido assim. Eu sei que o provável é morrer. Deixaremos o exemplo. David Rosenberg, que tomara providências para tirar Iara do Brasil, desmontou o esquema. – Tenho a impressão de que três fatores se somavam na decisão de Iara – sintetizou Rachel. – Primeiro, um forte pacto com Lamarca, o amor e o companheirismo acirrados pelas circunstâncias. Aquela coisa de que na guerra as pessoas se ligam mais. Nesse sentido era uma união extraordinariamente bem sucedida. Depois, creio que em termos de auto-estima e identidade Iara se fez, para si, inseparável da resistência brasileira. Tratava-se de abominar a traição, e ignoro até que ponto por amor à causa ou auto-imagem, de ser heroína até o fim. Não trair o destino. Principalmente depois que se tornou tão famosa. Se pensarmos um pouco na infância e adolescência, a falta de "pertencença", a casa de certa forma lugar de passagem, não havia muita razão de auto-estima. Veio então o casamento e a esperança de significado. Fracasso. Nem a idéia de realizar-se na maternidade é materializada. As coisas meio que vão se fechando. Ao descobrir um sentido de vida,

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Folha da Tarde, 18 a 24.12.69. Jacob Gorender, obra citada (Cap. 21: "Imersão geral na luta armada").

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algo transcendente, o viver perdeu em importância. Não a motivava o status de heroína, a fama. Mas a significação do herói. O mesmo impulso de cobrar dos professores a análise mais profunda, o melhor. Desde o primeiro ano. Esta a minha percepção. Rachel quis deixar claro que não compreendia seu envolvimento numa guerra, forma delicada de induzir reflexão. – Parece-me incompatível com o que conheço de você: cuidadosa, suave. Medo de barata, cachorro, doença. Você nunca foi do tipo que anda em precipícios. Nunca fez esporte a sério. Nunca foi motoqueira. – Não gosto de violência mas em alguns momentos é matar ou morrer. E o guerrilheiro nesse momento tem a convicção de que merece viver, em prejuízo do outro. Há um projeto a defender, o que torna a guerra impessoal. Tentou explicar o arrebatamento que alimentava o cotidiano, a dramaticidade no risco dos menores gestos, amálgama enigmático, messiânico, a premência inadiável de agir, visceral a recusa de aguardar, passiva, os golpes malsãos da tirania. Feliz, reencontrou Tutinha e Elias no restaurante Pandoro. Abraçaram-se, discretos. À mesa, quis saber de Elias. O amigo falou da namorada, casariam assim que terminassem o curso. – Você gosta? – perguntou. Diante da resposta afirmativa, sorriu. – Então, perfeito. Também me apaixonei, mas não posso contar. Discutiram política e luta armada. – Saia do Brasil, a gente ajuda – martelavam os amigos. – Vocês serão massacrados! – Estou muito envolvida – obstinava-se às vezes a sorrir, outras em lágrimas. – Bem, talvez. Antes eu diria ser impossível. Existe uma hipótese. Se conseguisse engravidar. Bastavam as dificuldades com a própria saúde. – Será que seu pai me examina? Como de hábito, ando com problemas ginecológicos – indagou à Tutinha. – Claro. Vou falar com ele. Magaldi atendeu-a duas vezes em casa, no Sumaré. Aproveitaram para conversar, Iara no sofá, Tutinha numa cadeira. Falou de Lamarca. – Estou namorando um cara importante, a relação é fantástica, lindíssima. As tarefas nos separam por longos períodos. E tudo difícil, arriscado. Cada vez que nos 365

despedimos, o medo. Mas é um amor de qualidade incrível, nunca tive nada igual. Orienta o que faço, completa-me. Sinto proteção no meio do perigo, um paradoxo. E alguém que toma conta de mim. Posso ser eu mesma, frágil, pedir colo. Ah, se você nos visse juntos. Um dia. Questão de tempo. Falei de seus pais, que não negam abrigo. De você, solidária apesar de não pertencer a nenhuma organização. Ele quer conhecer todos. Tutinha, ignoro o que está acontecendo com ele agora, neste momento. Mas é o que vale a pena. Nem sei dizer quanto. – Parecia haver uma aura ao redor dela, o rosto iluminado de paixão. Ela merece, pensei. Jamais a vi tão feliz. Não me disse quem era porém deu as pistas. Desejava partir bonita e bem equipada. – Você compra um enxoval de guerrilheira para mim, no armazém do Exército? Acedeu. O táxi já parado, Iara tirou do anular a grossa aliança de ouro que ainda usava e ofereceu-a. – Olha, é meu anel de escrava. Estou distribuindo minhas coisas às pessoas queridas. – Mas esse anel é você, muito você. – Por isso quero dar. A gente se encontra no palanque da Educação para comemorar a vitória. Viram-se pela última vez quando Tutinha trouxe as camisas, coturnos, mochila, cantil. Iara aproveitou a passagem por São Paulo e assistiu Macunaíma. Abandonouse ao delírio colorido de Joaquim Pedro, à gênese do caráter brasileiro que Mário de Andrade descreveu utilizando uma compilação de lendas indígenas. Lamentou que Robertão perdesse o retrato sarcástico, sempre atual, o clubinho antropófago se refestelando na piscina de feijoada, nacos humanos. Saudade do amigo. Gargalhou por ele, camiseta de saco de farinha do Ponto IV, comer a cunhada é da cultura universal, não apenas da nossa hipocrisia. Mas a glória é Dina Sfat, guerrilheira urbana, a Ci somos nós – sede quase primeva de amor, destinada à insatisfação. Macunaíma não dá no couro, ninguém daria. Ternura por Paulo José e as discussões no TUSP, Ci e a esculhambação da esquerda, sai com a bomba-relógio defeituosa e se explode, desígnio inconsciente. Pensou em ver O Homem de Kiev, dirigido por John Frankenheimer. Não foi, a despeito de a interessarem as locações em Budapeste, Eva menina, raízes numa cidade agora socialista. Pesaram os 366

comentários malévolos na Guanabara sobre os simpatizantes judeus, que recuavam da luta e punham-se a chorar, redescoberto o judaísmo na platitude baseada em novela de Bernard Malamud, um judeu é acusado de morte ritual. Ameaças de pogrom na Rússia de 1900. Chegou o dia em que tornaram a levá-la à chácara de Pirituba. Deveria subir repetidamente o morro, arrancar raízes de mandioca, acostumando-se ao que a esperava na Serra. A preparação, que lhe valia ataques agressivos, limitava-se à ginástica numa esteira e bronzear-se. Maria do Carmo, algumas vezes no aparelho, rigorosa consigo e os outros, ajudou a apanhar mandioca e simulava recriminá-la. – Ginastiquinha! E esse monte de árvores aí? Você precisa subir nelas. – Enquanto não chegar no acampamento, fico limpinha e sossegada nas minhas flexões. – Eu, quadrada e chata, sabia que era contra-senso. No entanto calava-me. Assumir-se feminina em meio à nossa rigidez demandava grande coragem. Eu sentia amizade, respeito e carinho por ela. Então, embora discordasse, defendia-a. – Além do desajeito, mulher menstruada não entra na água – agrediam os sargentos. – A coluna atravessa um rio, ela fica. – Devagar, companheiro. A medicina já provou que mênstruo não sobe à cabeça. Até lavamos o cabelo! – Mulher, vá lá. Mas mulher de alguém, é transtorno. – Descarregavam o medo e o stress em bodes expiatórios. Difícil sobreviver sadio, respeitoso – repara Maria do Carmo. – Chegaram a dizer que Iara provocava outros homens, devido à fama de namoradeira no passado. O falatório deixava-me péssima, cheguei à indisposição física. Ela, porém, manejava bem a ciumeira. Rainha da tolerância, segura de si. Teria sido uma excelente psicóloga. Brigasse, provavelmente lhe vetariam a ida. Esgueirou-se do fogo cerrado sem passar recibo – ao menos, aparentemente. E aquelas expressões meiguíssimas, a beleza da pele, olho de Bambi até no castanho claro. Tão mais bonita que nas fotos! Também não gostavam de mim, mas havia certo receio. Iara parecia-lhes frágil. Completamente enganados. As duas conversaram a respeito.

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– Quando compreendemos, a aceitação é maior – explicou Iara. – O homem resolveu dar três gritos? Deixa pra lá, passa. Você se perturba demais com a agressividade. Boquiaberta, Maria do Carmo ouviu-a desenvolver sua teoria sobre os homens baixos – pequena vingança das perseguições. – Afirmam a masculinidade, compulsivos, porque não se aceitam. E adotam preconceitos, como esse antiIara. Ou fazem exibição de virilidade. Alertou-a sobre o homossexualismo enrustido nos heróis, referiu-se à ligação de Onofre e Anselmo, defendeu escolhas sexuais diferentes. – Amar não arranca pedaço de ninguém, qual o problema? Quem sente desconforto ou agressão, rejeita o próprio lado homossexual. Os grupos de esquerda reproduziam as características da sociedade – formula Maria do Carmo. – Inclusive as neuroses. Pessoas maravilhosas eram aquelas que aderiram à contestação pelo melhor de si. Como Juarez e Iara. Não que ela fosse perfeita. Mas irradiava um calor humano extraordinário. Jamais autoritária, dona da verdade. Sempre doce. O ano de 1969 terminou com o assalto cinematográfico a dois bancos na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Ação da ALN fruto do desespero, acusou a polícia. Falta de dinheiro, quedas. No aparelho de um dos presos, três fuzis de Quitaúna. Deprimente, queixou-se Iara, armas custosas da ação do quartel, uma a uma perdidas. Fuga de subversivos do DOPS da Guanabara, escapar da cadeia é sempre estranho, repetiam-se. E lista de procurados, militantes do PCBR que assaltaram o Banco Sotto Maior. Outro avião seqüestrado para Cuba marcou o início de janeiro. Entre os autores, o primeiro marido de Dilma e James Allen Luz12, de volta à Guanabara, depois do asilo no Uruguai. A VAR também foi – um aparelho estourado, várias quedas. Para Iara, com o nome Célia, o ano começaria no Ribeira.

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Jacob Gorender, obra citada (Cap. 28: "Estertores da esquerda armada e embrides da autocrítica"): encontrado morto em Porto Alegre em 1973 numa caminhoneta, aparentemente de colapso cardíaco.

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V NO ESTRANGEIRO

Treinamento na mata. Mário Japa estava cansado

BAGAGEM DE ESTUDANTE em férias, jeito de mochileira, Iara entrou no ponto da viagem. Início de janeiro de 1970. Acabara de distribuir o documento “Ano Novo" de Lamarca; já menos emocional, tratava das divergências na VAR e dos planos de guerrilha1. No carro, ajeitou os óculos opacos e Monteiro sugeriu que dormisse. Obedeceu fingindo ignorar o destino. Acordou em Capelinha, na casinhola de Tercina, a Tia. Mãe de Neto. A partir dali, vale do rio Ribeira, começavam as ondulações e a cadeia de montanhas. Dentro,

Lamarca

aguardava.

Estreitaram-se

rápidos,

a

saudade

na

contemplação demorada. Admirou o largo uniforme amarelo-esverdeado, dele o desenho. Adaptado à região, evocava os astronautas. A Tia estendeu-lhe um igual. Confeccionava-os ali. Não usaria a roupa de Tutinha mas era bom tê-la, um pé no mundo legal. Examinou o equipamento de rádio que funcionava duas vezes ao dia entre as bases no alto da serra e o casebre, transístores potentes, frases singelas codificadas na linguagem dos radioamadores. Embora a captação no vale fosse limitada, várias vezes entraram operadores, especialmente uma argentina. Respondiam para evitar desconfianças e deixavam o ar. Almoçaram, Monteiro partiu. Iara guardou o equipamento obrigatório nos grandes bolsos – esparadrapo, gaze, água oxigenada, pomadas, comprimidos contra febre, conservas. Ajeitou o boné bico-de-pato que todos usavam nas cores de camuflagem, preto, verde-musgo ou o amarelo-claro que escolheu. Um tecido impermeável, costurado na barra, atrás, protegia a nuca do frio e da chuva.

1

BNM, doc. 829 (Anexos): A VPR discordava da VAR, que pretendia mobilizar as massas com trabalho de formação política auxiliada pelo braço armado no campo ou cidade. Acreditava, ao contrário, que "na atual fase o exemplo de luta as mobiliza". Daí a estruturação com outras organizações "em trabalho articulado sempre que possível", pois aprendera "que a união é importante mas não a qualquer preço". Lutava também para constituir o Exército Popular. "Que o ano de 1970 seja o ano da guerrilha urbana, o ano da guerrilha rural, o ano do rompimento do isolamento político entre a vanguarda e as massas no Brasil. O ano em que honramos a morte de nossos companheiros que lombaram no campo de batalha: Carlos Marighella, João Lucas Alves... Zanirato, João Domingues, Zequinha (Eremias), Escoteiro, Fernando, Chael e o sacrifício de todos os nossos companheiros que cumprem seu papel de revolucionários nas prisões da repressão. Ousar lutar, ousar vencer. Pelo comando, Carlos Lamarca. Janeiro de 1970."

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– Estou prontíssima, cabeça de soldado no deserto. O despreparo físico e psicológico dos recrutas obrigava a subir em duas etapas. De início alegrou-se com as amoras silvestres que beliscava durante a escalada de morros pela trilha dos caçadores na mata fechada, marias-sem-vergonha em colorações infinitas, do branco ao fúcsia e Iaranja, musgos e samambaias, lírios-dobrejo, pássaros, zumbidos. Logo a arma pesada diminuiu-lhe o ritmo e Lamarca aliviou-a da mochila. Na pausa, deitada no chão, admirou a limpeza do bosque de bambus, aqui repousam tranqüilamente 500 companheiros, disse ele enquanto lhe aplicava, próximo e a beijá-la, o antialérgico no rosto inchado de picadas, cantis já secos. Doce a água no rio de cruzamento a vau, mãos dadas, escarpas, outro rio, 100 metros de encosta e volta em ré para eludir eventuais perseguidores, 200 metros a vadear corredeiras fortes, subiam contra a corrente, água no pescoço, o braço firme de Lamarca. Entraram na mata sem trilha acompanhando a curva de nível. No cume, o "hotel". Depois da refeição quente, fogo aceso entre pedras, desdobraram as redes de uso militar. Náilon, leves, quase um dormitório suspenso. "Gaveta" na parte inferior, fechavam-se e permitiam troca de roupa. Darcy, falsa credencial de uma loja de caça e pesca, comprara-as na fábrica do PARASAR em Niterói depois de subornar o funcionário. No dia seguinte o trecho mais difícil, quase todo a subir dentro do rio, água no peito, chuva ininterrupta. Veio o espraiado de flores aquáticas, é o "patropi", apresentou Lamarca. Abraçaram-se para deslizar sobre o tronco "abraça-pau", que cruzava o leito. Saíram da água e mal a roupa deixou de pingar, o retorno à corredeira. Essa desmoraliza qualquer um, gemeu Iara, molha os fundilhos, é o "lava-cu". O apelido pegou. Ao escurecer ingressaram na base Carlos Roberto Zanirato, sob comando de Darcy a chegar em dois dias, concluído o último assalto no Rio: roubo de armas de sentinelas no rádio-farol do Galeão. A outra base, Eremias Delicoisod – o companheiro morto em Vila Cosmos – responsabilidade de Fujimori, distava 300 metros, estanques ambas e em condições de segurança. Lamarca era o comandante do conjunto chamado Carlos Marighella. As redes, por enquanto seis, dispunham-se em semicírculo debaixo das árvores. Nenhuma cobertura no "dormitório", exceto as copagens. Estendeu a sua vizinha a Lamarca. Bastava sabê-lo próximo. Ajeitou os trens e abriu o isopor de 370

enfermagem. Bandagens, complexos vitamínicos, aspirinas. Soro antiofídico só em casa da Tia, provida de geladeira a querosene. Não havia chuveiro. Fujimori desistira de quebrar nódulos de bambu para construir uma mina. Se quisesse banhar-se poderia fazê-lo cedinho, descendo ao rio 60 metros abaixo, na pequena barragem que represava a água. As necessidades, em "buraco de gato", aprenderam dos vietnamitas. – No mato e enterradas dispensam a fossa, meio tradicional de avaliar o número de inimigos. Um batalhão do vietcong passa despercebido. Ao lusco-fusco, quando melhor se dissimulava a fumaça, os cozinheiros do dia dirigiam-se ao "galpão" atrás do acampamento, cinco metros quadrados na meiaencosta a caminho do rio. Única área coberta, o toldo protegia das chuvas o fogão de pedras e as toras da arquibancada, dispostas em "U". Ali jantavam nas marmitas de campanha e entretinham-se até o sono chegar. Quase todas as noites discutiam questões políticas e de convívio. Brincavam de mímica – Iara ria, participação limitada. Também cantavam. Lamarca, a voz muito bonita, apresentou sua versão do Pequeno Burguês de Martinho da Vila, pirraçando egressos do COLINA, presentes ou não: "Mineiro, pra que mineiro/ na nossa revolução./Tem um carioca e um paulista/ mineiro faz falta não." Dedicava-se a manter o moral elevado, inventou brincadeiras. Uma delas, inspirada no programa da TV Record Esta noite eu improviso: criar músicas com motes. Cansadíssima, inchada, desgostosa do corpo sem banho, Iara refugiou-se na rede. Logo todos se deitaram, exceto as sentinelas. Não conseguiu adormecer por causa do assombroso barulho da noite. Insetos, pássaros, ruflos, coaxadas, animais de maior porte, silvo, galhos que se quebravam, pedras a despencar, o estrépito das águas do rio, a chuva. Ecos na escuridão quase absoluta, árvores enormes a encobrir estrelas nos intervalos de céu limpo, raros. Um mundo primitivo, nenhuma referência que não os companheiros em repouso, punhado de pessoas à mercê da Natureza. Desafio irrecorrível, nada mais simbólico. O primeiro passo da epopéia, Lamarca e o contato impossível, grasnos e vôos cortantes. Viu-se morta, nua, bicos pontiagudos a dilacerar carnes brancas, terra aquecida de sangue. O jantar fazia-lhe mal. Não se ergueu de manhã, apavorada com os bichos. De longe soaram as vozes de comando, a partida. Horas depois, preocupado, o companheiro que vigiava a base 371

veio perguntar se desejava comer. Recusou. Dormiu sob a chuva intermitente, protegida na rede fechada. À noite, espaço livre, Lamarca veio aquietá-la. Exceto o rosto, o uniforme protegia de picadas, questão de habituar-se. Precisavam dela no treinamento, a mochila de remédios. – Os outros marcham? Então, você também consegue. No dia seguinte desceu a barrenta, escorregadia, aqui e ali pedregosa picada, e banhou-se na gelada água do rio. O almoço – arroz, feijão ou o que tivessem – era servido ao amanhecer; a fumaça confundia-se à neblina e também preservavam as horas mais produtivas ao reconhecimento dos 80 alqueires da área, descomunal sacrifício para Iara. O calçado machucava, nos pés doíam feridas. Tropeçava muito, facilmente caía. Incapaz de manter-se no meio da coluna, os comandos colocavamna à frente ou atrás. Só a presença de Lamarca motivava. Pisadas firmes, fáceis, ele se metia no corpo a observar e corrigir o deslocamento, sem que a extensão da caminhada o afetasse. Nunca marchava perto de Iara, mas ela ouvia suas observações pausadas, isentas de arrogância. Nenhuma intimidação. A liderança fluía, palpável, aceita por todos. No intervalo, um lanche-pāo e café ou achocolatado, mandioca, uma fruta, palmito. Lamarca aproveitava para rascunhar papeizinhos que utilizaria em textos sempre que tivesse tempo, no "galpão". Iara não perdia os gestos lentos, maneirismos, um tique sensual de acomodar sob o boné os cabelos a crescer. Enorme dificuldade em encher o balde dágua, cortar a palmeira. – Eu sou mesmo muito bicha – abreviou para Herbert Daniel recém-chegado, seu maior amigo, confidente e apoio. Avisou-o logo do choque noturno: – Imaginamos o mato silencioso à noite. Mas a intensidade dos ruídos é indescritível, aterrorizante. No começo não dormi. O rapaz teve a mesma sensação. – Impressionei-me. Antes de adormecer lia um mundo fantástico, apavorante. O alarde simbolizava a luta, refletia a ruptura completa com a vida anterior. Os mosquitos quase a enlouqueceram, mas a hostilidade dos companheiros militares foi pior. Nas reuniões noturnas de crítica e autocrítica as agressões convergiam. Acusavam-na de atrapalhar o coletivo, cometer intermináveis erros, pouca solidariedade. Lamarca falava, mas precavinha-se do papel de defensor.

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– Os companheiros, implicantes e preconceituosos, a rejeitam porque sou casado. Foram intoxicados pelas mentiras dos jornais – condescendeu a Daniel, credenciado a defendê-la. – Eu podia levantar a voz por Iara – explica ele. – Embora intelectual marchava bem, pontaria competente, rapidez ao cortar palmitos. E amigo de todos. Aparei arestas, preveni conflitos individuais quando me fizeram confidências. Compreendia melhor o conjunto. Durante as críticas, Iara e Daniel cochichavam interpretações. O conflito é quase edipiano, concluíram. Os filhos deparam uma rival que domina áreas inacessíveis da intimidade paterna. – Ladra da essência. Afetividade, poder. Esposa vários tinham. Limitavam-se a uma espécie de compartimento reservado à estrutura

doméstica, descendência, alívio de tensão sexual.

Circunstanciais. Na vida profissional, dominante, militares referiam-se a outro homem, superior, a quem prestavam continência

e submissão. Os companheiros

abandonaram o quartel fiéis ao guia. De repente, no lugar deles, introduzia-se uma inaceitável mulher. – Iara e Carmen, apenas duas no treinamento, provocavam cIara perturbação sexual – demarca Daniel. – Um gaúcho, que investia muito contra o andar lento de Iara na marcha, confidenciou-me: não a tolerava. "Chata, possessiva, mole. E cheira mal." Fiquei chocado. Foi curioso, porque todos fedíamos terrivelmente, sem tomar banho. E ela cuidava de levantar-se meia hora antes, quatro e meia da manhã. Descia o barranco para o banho no rio, escovava os dentes. Lavava a roupa de baixo. Nenhum de nós o fazia. O "mau cheiro" dela, óbvio, era de carne. O tema do banho originou brincadeiras. Lamarca ajuizara que o frio e a umidade os isentava da higiene. – Cada companheiro lava-se de acordo com sua definição de limpeza. Surgiram defensores da sujeira. Darcy, um deles. – Tomar banho tem contra-indicações. Abre os poros e aumenta o suor. – Isso é a teorização da sujeira – contestou Iara. – Já vi morrer gente afogada, nunca de sujeira – entrou Lamarca, piadista, encerrando o assunto. Só percebia a imundície quem vinha da cidade e não suportava aproximar-se. 373

A revezar-se para fazer comida, um cozinheiro e o ajudante que acendia a lenha no oco esfuracado da árvore – assim, espalhava-se a fumaça. Daniel, que detestava cozinhar, tratou com Iara ser o foguista, quando juntos. Se outro o companheiro, ela dificilmente escapava. Não era boa de cozinha e queriam puni-la. A fim de ter os galhos mais secos, enxergando mal ao anoitecer, medo de bichos, colhiaos na véspera enquanto os outros relaxavam da marcha. Do contrário, seus entraves manuais tornariam a tarefa inexeqüível. Outra discórdia ligava-se ao poder. O treino conjunto das bases favorecia vínculos paralelos e minava até as imperiosas ordens de Lamarca. Os militares não atinavam com as forças rebeldes à obediência cega. O próprio Darcy, longe de exercer o papel de sargento numa unidade, funcionava mais como coordenador. – Digamos que o poder não passava exatamente pela hierarquia militar – assinala Daniel. – As cabeças políticas interferiam, criando ondas diferentes nos debates e decisões. E onde se evidenciava a influência de Iara sobre Lamarca, já "aberto" porque ninguém "faz'" a cabeça de ninguém. Os outros, no entanto, suspeitavam que ela corrompia a pureza do líder. Impressionava-me a intolerância, inclusive de companheiros gentilíssimos. Vozes encrespavam-se ao refutá-la, violentas, quase ódio. De certa forma, Iara transformara-se em bode expiatório de frustrações, inclusive sexuais. Depois do lanche na mata usavam revólver 22, pouco barulhento. no tiro ao alvo. Aprendiam limpeza, montagem e desmontagem de armas. Lamarca encarregava-se do planejamento geral das instruções: teoria e técnicas de combate. A protegê-los, continuamente, observadores em pontos estratégicos. Sentidos alertas, Iara abalava-se com o silêncio da mata depois do tiro. – Penso em morte. Momento dramático de paralisia. A partir do eco, lapso de segundo, a floresta pára de respirar. É o fim do mundo. O som imobiliza pássaros, insetos, até água. O próprio ouvido se embota? De repente o barulho retorna, a selva renasce. Certa vez Lamarca não participou da marcha, adoentado. Darcy deu a Iara o comando para forçá-la a superar deficiências. Teve que escolher itinerários, atenta à bússola. Ao lado, Fujimori ou Darcy com os mapas. Normalmente orientavam-se pelos cursos d'água, sentido sul. Atravessá-los distanciava da base.

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– Note a correnteza – reparava Darcy discretamente. – Você não acha melhor outra direção? Já atravessamos um rio. – Venceu as dificuldades, adaptou-se e participava em igualdade – aprecia Darcy, que apesar da ambigüidade armara a rede perto dela a proteger de um lado, Lamarca de outro. Iara assumiu o papel de psicóloga. Aproximou-se do rapaz que temia a perseguição das árvores. Supunham-no homossexual, mas era a ginecomastia que o perturbava. – Árvore não fala – começava a discorrer. – A loquacidade é para "segurá-lo", evitar que afunde no surto – traduzia, e escreveu uma espécie de relatório: "Podemos constatar delírio de referência, delírio persecutório, sentimento de culpa aliado à necessidade de auto-punição. Não temos dados para um diagnóstico; podemos levantar hipótese de esquizo-paranóide. O componente esquizo-paranóide, pela presença (a ser averiguada em profundidade) de problemas relacionados a esquema corporal, além de postura e expressões faciais. Observações pessoais: o companheiro deve receber tratamento especializado. É um companheiro e como tal deve ser tratado e respeitado. O caso pode ter tido início pela queda de um aparelho (averiguar que relação isto teria com George). Célia."2 – Não tem condições de ficar. Absurdo recrutar alguém assim e ainda trazê-lo para cá – proferiu. Ouvia Celso Lungaretti, também muito jovem, ricto ao defender e Ôzilamento de militantes que falassem sob tortura. – Não está bem. Aconselho que o enviem ao Exterior. – Transferiram-no à Guanabara; continuaria na militância.

Havia quatro caçadores no acampamento: Darcy e José Lavecchia, Edmauro e Nóbrega da outra base. Saíam de tardezinha para melhorar o almoço da manhã seguinte: urus, macucos, inhambus, todos galináceos. Uma vez Darcy trouxe dois urus, pouco para oito companheiros. Saiu novamente e caçou oito serelepes. – Ai, rato! – reclamou Iara. – Lembram esquilos. Roedores muito saborosos, só comem nozes. 2

Folha da Tarde, 10.7.70.

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– De jeito nenhum. – Então você come uru. Dia seguinte, turno de Darcy e Lavecchia na cozinha, infalível a pirraça. Prepararam apenas serelepes, urus destinados ao jantar. Iara pediu coxa, outros a imitaram. – Iara, você reparou que uru diferente comeu? – apoquentou Darcy. Matamos dois, quatro pessoas repetiram coxas. – Você abusou de minha credulidade! – sentiu-se violentada. Um edema só, os rostos na Serra. Mosquitos enxameavam, contínuos. Olhos semicerrados de inchaço, orelhas disformes caídas à frente, vermelhas. As picadas na pele de Iara degeneraram em erupção3. De nada serviam os cremes que Maria do Carmo, zelosa, enviava. Nos raros descansos das marchas em que não chovia, examinava-se numa espantosa relíquia, o espelhinho redondo de um estojo de pó compacto. – Deus, como estou feia! Os melhores momentos eram quando Lamarca, disponível, se permitia a discretamente passar o braço nos ombros dela, terminado o jantar, o "fogão" já em brasas. Ou as conversas com Herbert Daniel. muito mais íntimo. Falou de sua experiência de judia no Brasil – supôs, de início, que ele também fosse judeu. Detalhou o círculo estreito de amigos na escola israelita, as aulas de religião, as mães em geral dominadoras. O peso da Segunda Guerra, as famílias desaparecidas. Destacou uma certa abertura intelectual em sua casa, mentiu que eram muito ricos. Referiu-se carinhosa a Eva, preocupada em compreender os filhos a ponto de estudar textos políticos. A David, que almejava os filhos formados, netos. Aos irmãos e à irmãzinha graciosa, gente finíssima, distinguiu, que levava recados clandestinos aos pais. – Ao menos você teve família rica. Sempre há vantagem. – Nem sempre, nem sempre – riu, enigmática. Silenciou sobre o duro trabalho da mãe na loja, a obsessão de economizar dinheiro para emergências, o fantasma do anti-semitismo. Ou o empenho dela, Iara, 3

Herbert Daniel, obra cilada (Cap. Só, parte 3): "... fazia gestos lentos com a mão para afastar a nuvem de mosquitos que a envolviam constantemente, ninguém escapava da fome deles (...) Para mim, a sua nuvem de mosquitos me fascinava, porque não conseguia entender como ela continuava fazendo gestos lentos, educados, que não espantavam, que faziam suas mãos participarem na coreografia dos insetos."

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em casar-se bem. Disse que o fez virgem aos 16 anos e assim permaneceu, boneca decorativa da grande casa, falseou, perdida em aposentos vazios a suceder-se, um filme, espelhos de A Bela e a Fera, belle, ma belle, braços humanos tal luzeiros, e a belle-de-jour? pétalas cerradas à noite, ignorante dos trâmites, omitiu as dores, imenso mal-estar e culpa, rigidez no aguardo ansioso de algo a comedir a gula que incomodava as amigas, o pai nem se fala, destino de esperas, o marido em plantões, esposa do melhor cirurgião da cidade, sonhara, bonito, rico, um casal vistoso, filhos lindos, viagens, ele transfere o bico do IML ao cunhado (imenso vácuo do quarto, saleta, o tanque), minha amiga intrigada, Cecília não deslinda a imensa vergonha do logro, desfeita proposital, desaponto mútuo sucumbidos de preconceitos, estelionato amoroso repetia a imagem, aliança de brilhantes banal como o trio de sofá e poltronas, o anel de escrava, esse sim. Ainda viveria com Lamarca a intimidade única. Maryse assegurava, todos têm um jardim secreto. Descobri a Psicologia e a relação sexual (timidez, dor, desagrado profundo). Fase promíscua, tudo experimentar, ou melhor todos, sorriu irônica. Lideranças estudantis um a um. Minha amiga e eu conversávamos a respeito, líamos. Em 1963, isso, governo de Jango, perguntamonos o que é o comunismo. Querem dar uma vida melhor aos pobres, desenvolver o Brasil, reforma agrária. Saímos pela Faculdade em busca do PC e alguém advertiu, não falem assim, é ilegal. Assistimos a algumas reuniões da base. Decepção. O resto você sabe, cursinho da POLOP e militância. FaIaram dos livros marcantes. Sartre e Simone de Beauvoir há milênios, o protesto contra a tese de que os indivíduos se limitam a joguetes de forças históricas ou determinados por cursos naturais, o ser humano é livre e escolhe, o porvir imprevisível depende de suas opções, daí a angústia e o sofrimento. Uma condenação. A vida é paixão vã, nos outros o inferno. Impossível fechar as pálpebras. Ver, ver, ver. Sísifo e a coragem da luta sem esperança. Mas aí, que liberdade a do operário? Está no ideal marxista de controle da sociedade. Individualista e burguês o existencialismo, concordaram. Reflete o tédio capitalista, o homem nauseado até o fundo, o espelho um poço infinito. Desanuviavam-se a analisar os companheiros enquanto discutiam temas variados à noite – o destino do treinamento, organização da luta armada, elos entre guerrilhas rural e urbana, o futuro da coluna móvel estratégica. Logo os tópicos se tornavam pessoais. Iara, grande pudor de interpretar, ao lado de Herbert comentava 377

o verdadeiro laboratório de comportamento. Raro arriscar perguntas que, a seu ver, induziam à compreensão dos sentimentos. Mas o efeito de suas avaliações sobre Lamarca era evidente. – Tudo conflituoso para ela. Em minha opinião, não teve nenhuma satisfação no Ribeira. – Existia um choque cultural entre os companheiros de origem militar e estudantil – volve Darcy. – Difícil, o relacionamento. Nós os julgávamos irresponsáveis, existencialistas. Eu via a moral revolucionária sob ótica extremada, o combatente um sacerdote. "Se quero mudar a sociedade preciso dar exemplo, uma fortaleza de comportamento", predicava. "Do contrário, não nos respeitam." Não fosse Herbert Daniel, Iara teria desistido. Chorava no esforço de adaptarse, esquecer a vida anterior. Queria ser a companheira leal do comandante. As bases possuíam potentes rádios Transglobe que captavam o mundo em ondas curtas. Ouviam a BBC, Moscou, Pequim e a predileta, distante e stalinista Tirana, um farol a assegurar-lhes que não estavam sós nas matas do Ribeira. Quem ficava de serviço na base encarregava-se da escuta. Graças ao rádio, souberam de fatos sob censura ou desconhecidos na imprensa brasileira. As notícias de quedas chegaram mal começou o ano. Algumas afetavam o grupo; outras atingiam militantes. A prisão de Dilma, 16 de janeiro, abalou Iara. Entreolharam-se com o estouro de um aparelho da ALN em Campinas e prisão de militantes comandados por Virgílio Gomes da Silva, o Jonas. Sabiam-no morto4. Ridicularizaram os informes econômicos. – Anotem as borbulhas: em 1969 o emprego aumentou 6,5% em São Paulo. As vendas industriais, 8,1%. Prometem surpreender este ano. Quero ver a inflação que vai dar. – O Buzaid mandou o chefe de gabinete dizer que democracia impede o desenvolvimento. Em meados do mês caíram dirigentes do PCBR, inclusive Jacob Gorender. Mário Alves foi supliciado até morrer. Sobranceiros, ouviram que os desarticulados grupos subversivos reduziam-se a um punhado, os principais líderes presos ou foragidos Mas assaltos, roubos de automóveis e placas prosseguiam. E o mundo a ferver. Irã e Iraque à beira da guerra, 4

Assumiu o comando militar do sequestro do embaixador americano. Preso três semanas depois, foi assassinado a pontapés dia 29 de setembro de 1969. Jacob Gorender, obra citada (cap.23). É desaparecido político: Brasil Nunca Mais, "Anexo III".

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briga por hegemonia e petróleo montada em rivalidades étnicas e religiosas. Estudantes filipinos em protesto contra Marcos e Imelda. E o "intercâmbio cultural" com oficiais da polícia argentina? Sintoma do desespero. O vietcong avança no Cambodja, hoje derrubou cinco helicópteros americanos, feito passarinhos. – Mais atrocidades dos boinas verdes. Não foi só My Lai. – Um grupo na Nicarágua adotou o nome de Cesar Augusto Sandino, revolucionário assassinado em 1933. Retoma-se a História onde a interromperam. – Inventaram suspeitos da morte de padre Henrique. Os milicos voltam a falar de guerra revolucionária. Querem justificar os CODI5, a tortura. E calar os políticos decentes. Iara soube, aliviada, que Raul não se encontrava entre os 320 presos de diversas organizações nos últimos meses. O noticiário voltou a atribuir a Lamarca o comando no roubo do cofre de Adhemar e o locutor leu a carta que uma jovem6, morta em aparelho de Copacabana, trazia consigo: ... "Quando li aquela tua primeira carta, eu chorei... aquelas poucas frases estavam carregadas do amor que você sente por mim. E isso me faz um bem incrível. Amar e saber-se amado é muito bom e belo. Meu amor, tome todas as precauções possíveis com sua segurança. Rasgue." O noticiário terminou e muitos choravam. – DDD para o Rio. Será mais fácil comunicar-se. – Ô, Lamarca, teu "amigo", o Lepiane, não é mais comandante do 4° RI. Mas recebeu um título de Cidadão de Osasco. Aos sábados e domingos vinham caçadores. As bases, recolhidas, agregavamse em aulas teóricas. Fora do acampamento, só os encarregados da segurança. Darcy ou Lamarca lecionavam temas técnicos, Iara e Herbert Daniel discutiam os livros disponíveis: O Capital, Ludwig Feuerbach, Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Paul Sweezy, Filosofia da Praxis de Adolfo Sanches Vasques, trechos de Trotski em O Profeta Desarmado, Guerra de Guerrilhas de Guevara, Vietnam, A Guerrilha Vista por Dentro de Wilfred Burchett. Em meados de janeiro, Lamarca soube que Maninho estava preso. Revoltouse.

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Centro de Operações de Defesa Interna. Responsáveis pela segurança de áreas geográficas não coincidentes com os territórios dos quatro Exércitos. Subordinavam-se ao comando do Estado Maior. Coordenavam os Departamentos de Operações Internas – DOI, braços executivos. 6 Angela Camargo Seixas.

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– Vou mandar avisá-lo de que o libertaremos confiou a Iara. Chuva, ininterrupta. O rádio descreveu inundações em São Paulo, o fracasso da direita argentina no intento de seqüestrar o embaixador soviético, a morte de Bertrand Russell. Acompanhavam as músicas do carnaval, muitos ouviram pela primeira vez, incrédulos, o canto atormentado de Janis Joplin em visita à Guanabara. Um promotor denunciou 68 companheiros da VPR omitindo Iara e Lamarca, sabiam do casal há tempos, ela já considerada figura relevante de mulher na VAR ao lado de Miriam e Dilma. Dia 20 de fevereiro uma derrota deprimiu Lamarca e, em particular, o militante Ariston. Seu pai, Antônio Raimundo de Lucena, enfrentara à metralhadora o cerco de sua casa, em Atibaia, e entreteve a tropa enquanto quatro companheiros fugiam. Abateram-no. Um sargento morto, outro ferido gravemente. Detidos a mulher, Damáris Oliveira Lucena, e três filhos. Procuravam Ariston, acusado da ação no Hospital Militar, em 1968. Na casa encontraram dinheiro de assaltos, instrumental cirúrgico, armas de Quitaúna, um torno para peças de granadas, bombas e detonadores. Iara julgou oportuno o momento para contar a Lamarca e Herbert Daniel que enjôos e seios fartos a afligiam. Tinha sangramentos irregulares, dores. O rapaz, que abandonara o curso de Medicina quase formado, detectou manchas gravídicas. – Pelo que conheço, você está grávida. – Pode ser – calculou. Dormira com Lamarca pela última vez na chácara de Parada Taipas. – Você e o Mini precisam sair daqui – determinou Lamarca. O coletivo aprovou a decisão. Daniel gravou a alegria de Iara. A mão do destino. Tudo se encaixava. – Talvez eu vá a Cuba. Aqui seria difícil. Na volta seria médica descalça numa casinha camponesa próxima a área da guerrilha. O campo de treinamento teria se multiplicado, várias colunas guerrilheiras no país, a guerra revolucionária em expansão. Lamarca fala tanto dos filhos, uma criança é a representação do amor, explicou a Daniel. O fruto de ambos quase acima de tudo, a trindade. Tremendo conflito a vida clandestina, pavor constante de perder o amado, a companheira, os amigos. Nas despedidas, o negrume de inimigos ocultos. Um filho diz que não existiu passado, posso reescrever minha história.

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– Talvez quisesse apenas ser mulher de Lamarca. Protegida. À margem da luta. A importantíssima companheira intelectual. Pela primeira vez Iara não tinha que se fazer de mais burra, comportamento feminino comum, pois ao companheiro competia brilhar. Lamarca admirava-a, "'é mais inteligente do que eu". Gravidez e o apagar do passado eram a dedicação que exigia e ela lhe dava. Apossara-se de uma virgindade abstrata, importante para ele. Na madrugada de 28 de fevereiro, Mário Japa, 24 anos, dois meses após voltar da Argélia e Cuba, recolheu munição, documentos, rotas militares e mapas num aparelho do ABC. Não dormia desde a antevéspera. – Não sei o que aconteceu na Estrada das Lágrimas. Acordei no hospital. Disseram-me que capotei e caí sobre uma casa. Pouco antes houve tiroteio na Via Anchieta, ali perto, com ladrões de automóvel. Confundiram os episódios suspeitando que alguém, comigo no carro, fugiu. Levaram-me à delegacia. Apanhei de graça. Assim que a polícia descobriu os documentos e armas no carro acidentado, transferiram-no ao DOPS. O próprio Fleury incumbiu-se do prisioneiro. Em vão. Lamarca recebeu a notícia da queda e desativou imediatamente a casinha no sopé das montanhas. Aprovou-se que Tercina instalaria um aparelho em Peruíbe, acesso por caminho secundário na serra a partir da estrada BR 116. Monteiro levoua de início a uma pensão. Lamarca decidiu ajudar pessoalmente, em São Paulo, a libertar Mário, peça básica do novo arcabouço de guerrilha urbana. Integrava a Coordenação Regional, conhecia quase todos os militantes, os planos e a área de treinamento. Se abrisse, a VPR desapareceria. Mas falar não se colocava a Shizuo Osawa. Kamikaze, sintetiza Maria do Carmo, que se casou com ele anos depois: – Reiteradamente conversamos, no exílio, sobre as razões que levam a calar. Meu cunhado não falou porque se perguntava como a mãe, militante, reagiria. Meu segundo marido, Angelo Pezzutti, segurava-se: "O que dirá minha mulher?" Eu pensava: "Meu Deus, alguém ficará nesta situação." Mas o Japa... "Falar? O que é isso?" Mário cumpriu o esperado, quanto a avisar os companheiros. Convenceu os torturadores a levá-lo ao "ponto de polícia", sempre em rua movimentada, o que tornava difícil o cerco e permitia a um companheiro, de ônibus, conferir a prisão.

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– Eu estava num carro policial, na esquina, incapaz de ficar em pé. Ignoro se funcionou. Havia três propostas para libertá-lo antes que o matassem. Seqüestrar um coronel ativo na repressão, um empresário norte-americano ou o cônsul japonês. Os levantamentos demonstraram que o americano não servia. Perdeu-se a oportunidade do oficial porque um militante atrasou7. Restava o cônsul, Nobuo Okuchi. Frustradas duas tentativas, levaram-no à tarde do dia 11, uma quarta-feira, coincidindo com o pedido de prisão preventiva de vários indiciados pelo DOPS8. Ladislau no comando, participaram Lizt Vieira, Devanir José de Carvalho do MRT9, Eduardo Leite, o Bacuri, da REDE (desligara-se da VPR). Do aparelho-esconderijo, vizinho a Eduardo e Denise Crispim – ambos a fazer os contatos e cozinhar – acompanhavam o suspense pela imprensa e admiraram a bela Hiro Lia Okayama, assessora de imprensa e relações públicas do consulado. O diplomata relacionou-se bem com os moradores, Lizt e Ladislau, não os comprometendo ao sair. Cinco pessoas foram libertadas10. – É moral retê-lo para salvar nossos companheiros – desculpara-se Ladislau ao cônsul. – Seqüestros são um instrumento na ausência do Direito. Os controles normais deixaram de existir no Brasil11. Houve discordância na VPR acerca do pequeno número de soltos, mas resignaram-se. Fora uma emergência e salvaria a vida de um dirigente, a ponto de ser posterior ao seqüestro a decisão de exigir outros prisioneiros. Diferia da propaganda armada ou política, quando se planejava criteriosamente os militantes a trocar. Os próximos alvos, o cônsul norte-americano em Porto Alegre e o embaixador alemão na Guanabara, teriam esse caráter. Enfrentaram problemas, também, na identificação de Mário. Desconheciam seu nome real. Além disso, acreditavam que um simpatizante, Toledo – o mesmo 7

Em Los Subversivos, obra citada, Lizt Vieira faz um relato colorido do seqüestro. Os médicos Artur Ribeiro e Erkki Larsson, o jornalista Sergio Sister, entre outros. 9 Cisão militarista da Ala Vermelha, por sua vez cisão do PC do B. A sigla MRT – Movimento Revolucionário Tiradentes – do ex-deputado socialista Francisco Julião, cassado, estava sem dono desde o golpe de 1964. Jacob Gorender, obra citada (Caps. 15: "PC do Be Ala Vermelha – divergências de cronograma" e 26: "Movimento em declive"; Antônio Ozai da Silva, obra citada. 10 Além de Mário, Diógenes Carvalho da VPR; Otávio Angelo da ALN, assinalando a identidade entre organizações revolucionárias; a freira Maurina Borges da Silveira, tributo aos religiosos perseguidos e que tocaria a população católica; Damáris Lucena, bestialmente torturada e seus três filhos pequenos. Representava, segundo Lizt Vieira, a mulher brasileira revolucionária. No total, oito pessoas. O comando trazia o nome de seu marido. 11 The New York Times Magazine, 15.11.70: entrevista de Ladislau Dowbor a Sanche de Gramont. 8

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codinome de Câmara Ferreira – caíra junto. Escolheram libertá-lo para prestigiar os aliados, que forneciam a infra-estrutura vital às organizações. Demoraram a aceitar a versão de que Mário estava sozinho. O preso desconfiou quando, internado no Hospital Militar do Cambuci, o médico aludiu disfarçadamente à soltura próxima. Nesse dia, impediram-no de ler o jornal. – Tiraram-me da cama e fui para uma cela. Pensei que fosse precaução, pois recuperava as pernas. Colocaram um sujeito de maca na cela, que tentou obter informações. Dizia-me que o prenderam ao explodir uma ponte em Pirassununga e o torturaram no pau-de-arara. Até marquei um ponto, se saísse – Mário troça. Domingo de manhã, 15 de março, os prisioneiros chegaram ao México. Mário não conseguia caminhar. As pernas pioraram depois de 20 horas preso à poltrona, um policial ao lado. Ampararam no Diógenes Carvalho e um jornalista que veio de Kyoto cobrir o resgate. Madre Maurina recolheu-se a um convento, os outros voaram a Cuba aguardando oportunidade para voltar. – Era dever, obrigação. Nem passava outra coisa pela cabeça – certifica Mário. – Embora as notícias viessem cada vez piores, o clima de realimentação mútua em Cuba impedia avaliações objetivas. Só me convenci de que tudo acabou depois da catástrofe no Recife, em 1973, quando mataram Pauline Reichstul e seus companheiros. Jubilosa, a VPR festejou o sucesso do seqüestro. O governo e a imprensa constataram a "fraqueza atual do terror"12: o manifesto não fora publicado na íntegra, a resposta oficial só veio no final do prazo.

O periquito laborioso. Alfaces no ponto da feira – VOU EMBORA, Darcy, agora que aprendi a conviver com suas deficiênciasmangou Iara ao despedir-se. – Você quer alguma coisa da cidade? – Também já sei conviver com as suas – sorriu desarmado. – Bem, enjoei dos doces de banana do Edmauro. Queria uma sobremesa gostosa. Não tardou a receber uma lata de pêssegos em calda, comprada em Peruíbe.

12

Veja, 18.3.70. Carlos Castelo Branco, obra citada (15.3.70): "...o importante (..) e que dos episódios não irrompa uma emulação de violências (...) manter a cabeça fria..."

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– Foi um presente extraordinário. Nosso último contato. A presença das companheiras na mata serviu de fiel da balança, fator de unidade. Certos gestos de delicadeza, só os tivemos por causa delas. Trazer uma orquídea do mato, enfeitar a base. Transmitiram-nos civilidade. Experiência única, o treinamento. Quem não viveu, não pode imaginar. Monteiro conduziu o casal. Lamarca chegou em São Paulo um dia depois do seqüestro do cônsul japonês. Abrigou-se em casa de Lavecchia, na Penha, e compareceu a alguns pontos recebendo críticas por circular. Iara ficou na casinha de Tercina em Peruíbe para recuperar-se dos quase dois meses de Serra. A perspectiva de leitura e calma reconfortavam, o filho a caminho. Havia livros de sobra na pequena sala: Sartre, Malraux, O Capital, A Batalha da América Latina de Otto Maria Carpeaux, O Colapso do Populismo no Brasil de Octávio lanni, Valores Permanentes do Judaísmo de Israel Abrahams – presença de Ladislau, Fernando Kolleritz. Debray, a Monthly Review, Fatos e Fotos com a morte de Marighella. Até Seleções. Animou-se. Além do seqüestro bem-sucedido, Carlos Minc Baumfeld, da VPR, semelhante a numerosos presos, declarou ter confessado o roubo do cofre porque o coagiram – e os jornais publicaram o eufemismo de tortura. Na França, o Le Monde acusou as autoridades brasileiras de assassínios, nomeando particularmente o delegado Fleury. Gente corajosa continuava a dirigir denúncias em busca de pressão externa; o I Exército prendeu na Guanabara diplomatas acusados de difamar o Brasil com "pretensos casos de tortura". Uma bomba que pretendia celebrar o decreto da censura prévia a livros e periódicos foi desativada no prédio do Pasquim. A Anistia Internacional protestava pela condenação de Caio Prado Jr. a quatro anos por causa de um artigo publicado em revista universitária. Mas continuavam a descobrir aparelhos, prender. Um jornal deu a radiografia da VAR-Palmares, de Mongaguá a Teresópolis, os nomes de Inês Etienne Romeu e Maria do Carmo associados ao destino dos dólares. Na Guanabara, três possíveis seqüestradores do secretário da Segurança escaparam da perseguição graças a um menino de nove anos, usado como refém. – Droga, o menino ficou ferido. Ouviram a mensagem de Médici, e Iara encostou-se em Lamarca ao imaginálo a fazer o mesmo. De novo mofou do general. Acusava o terror de induzir o governo à repressão que, embora “violenta apenas contra o crime", atingiria todos os 384

brasileiros. Trombeteava-se vencedor da imoralidade, da hiperinflação, dono do "jogo da verdade, o jogo claro e limpo da Revolução". Um comandante de Curitiba aplaudiu: "É o fato do século." Acompanhou, atenta, o seqüestro do embaixador alemão pelas Forças Armadas Revolucionárias guatemaltecas, que exigiam todos os prisioneiros políticos. Era o terceiro no país, que contava com um embaixador americano morto, em 1968. Dia 6 de abril, a notícia do seqüestro fracassado em Porto Alegre, presos já três dos quatro companheiros. O cônsul norte-americano dirigiu a caminhonete sobre o carro que o fechava e escapou, um tiro no ombro1. No dia seguinte, o assassinato do embaixador na Guatemala – o governo recusava ceder. O chanceler social-democrata Willy Brandt, da Alemanha Ocidental, condenou duramente o governo guatemalteco. O pessoal diplomático foi retirado. – É ruim porque o povo condena os guerrilheiros e não se libertam os presos. É bom porque nos levam a sério – mediu. Doente, sem sinais de melhora, sangramentos, infecções nas pernas, recebeu Lamarca na segunda semana de abril. A cada reencontro a mescla de felicidade e tristeza, calor fugaz. Acarinhavam-se, magia protetora. Quatro dias de presente. – Preciso de médico. Monteiro a levaria a São Paulo, terminada a reunião do comando, dia 15. Comentavam as notícias dos jornais. Tudo igual. – É a censura. – Há mudanças. Os tupamaros, as FALN na Venezuela, o ELN na Colômbia. A Lamarca aborreciam as difamações da imprensa: aventureiro, apossara-se de dólares e fundos provenientes dos assaltos. – Intoxicam o povo. Ladislau, Maria do Carmo e Juarez, entre outros, chegaram. Alegrou-se desmedidamente ao rever os amigos. Não participou das reuniões, mas Lamarca debatia com ela os eventos. Contou-lhe que estudaram as fotos aéreas de Maria do Carmo, para instalação de focos no Sul. Souberam da queda de cinco aparelhos da VAR em Porto Alegre, a organização desmantelada. Carlos Franklin estaria preso? Lamarca pressionou Juarez a deslanchar o seqüestro do alemão, atrasado. Precisavam dos combatentes 1

Índio Vargas: Guerra é Guerra, Dizia o Torturador, Ed. Codecri, 1981.

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presos e seria uma resposta política de primeira grandeza. Mas Wellington, responsável pelo esconderijo do diplomata, faltara ao ponto. Péssima notícia. O rapaz refugiara-se no sítio da infiltrada Frente de Libertação Nacional, do major Joaquim Pires Cerveira, onde cavavam um buraco para ocultar o seqüestrado. Vinha à cidade uma vez por semana, ao ponto de Juarez numa feira. Local ótimo, cheio de gente, movimento desordenado. – A ação é urgente. Vamos checar Wellington – disse Lamarca. Ninguém ousou contestar o absurdo de comparecer à feira, sequer um local alternativo "de polícia". Resistiam em aceitar as quedas. Preso Wellington, embora desconhecesse detalhes da ação, esfumava-se o plano. Antes da viagem a Peruíbe, Maria do Carmo e Juarez tinham percorrido mais uma vez o trajeto do embaixador. Constataram a presença inequívoca da polícia em todos os pontos de transbordo. Quanto ao alemão, contrariando os hábitos, andava com escolta. – Lamarca não nos deu ordem, nem poderia fazê-lo. Apenas insistiu na checagem e o comando acedeu – frisa Maria do Carmo. Pouco depois do seqüestro de Okuchi, haviam caído na Guanabara dois militantes da FLN. Nos pontos abertos a polícia prendeu Wellington, Celso Lungaretti e iniciou a nova devastação na VPR. Lungaretti revelou a área de treinamento; em julho iria à tevê renegar a militância. – Tudo dependia do contexto – formula Maria do Carmo. – Primeiro, o doido que você enfrenta como torturador. Segundo, as quedas. Quando sucessivas, dificultavam a situação. O preso desconhecia o que os outros faIaram e o velho truque, "fulano já disse", em geral era verdade. Presa, fui conduzida a uma grande sala na Barão de Mesquita2. Havia um organograma correto da VPR, com retratinhos de carteira. As chances do preso aumentavam se ignorassem seu envolvimento. Creio que sabiam muito de Lungaretti. Depois, a questão da tortura é única. Ainda hoje há gente torturada por Hitler, em trata. mento. A complicação, talvez, esteja no heroísmo. Quem, como Lungaretti, condenava a capitulação paulatina, destruía-se. Os fracos faIaram, mas pouco. Não fui heroína nem tive essa soberba. Cometi faltas que não me orgulham. Porém aprendi a viver com minhas fraquezas. Mulheres, aliás, compreendiam melhor a fragilidade do ser humano. Divido os comportamentos na 2

Quartel da Polícia Especial e sede do CODI Guanabara.

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tortura em três. O "turco" jura: não falo; depois de abrir desestrutura-se e pode passar ao outro lado. O "francês", capaz de reerguer-se dos frangalhos, negocia: vejamos o que dá para segurar. E há aqueles a quem a questão não se coloca. Morrem na tortura, enfrentam o tiroteio ou suicídio. Em Serra Negra, São Paulo, Heleny escondeu-se no sítio da família do companheiro, José Olavo, depois que o rapaz caiu num ponto. O pai, pressionado pela polícia, indicou o lugar e pediu ajuda a Ulisses. – Chegou em casa chorando e disse que Heleny foi presa. Torturaram-na a noite inteira na OBAN. Ulisses recorreu a um dos algozes, capitão Maurício, ex-namorado da irmã em tempos de paz. O militar já o auxiliara quando prenderam o inocente proprietário da garçonnière do Bixiga. Transferida ao presídio, Heleny mandava bilhetes à VPR através de Ulisses, que os escondia na boca. Descoberto com um recado a Sérgio Ferro, foi preso também. Os dois saíram em abril de 1971. – Acabou, desmobilizo-me – consentiu Heleny. O advogado José Carlos Dias conseguira-lhe liberdade vigiada para cuidar dos filhos. Mas o periquito laborioso, como a chamavam na cadeia devido ao poncho verde e os sapatos que matraqueavam passos ligeiros, não dizia a verdade. Em Peruíbe, Maria do Carmo condoeu-se da aparência de Iara. – Pés inchados, cheios de feridas. Gordinha. Porém feliz, e Lamarca também, convictos de que engravidara. Já havia um esquema para adquirir a casinha perto da área. De Cuba, nem palavra. Maria do Carmo, Ladislau e outra militante partiram na sexta-feira de manhã. À noite, Monteiro levou Roberto Gordo e Juarez. Voltou para buscar Lamarca e reconduzi-lo ao Ribeira. Iara viajou domingo cedo com a Tia. Na madrugada de segunda-feira uma equipe da OBAN invadiu a casa. Lamarca chegou à base certo de que Wellington caíra, devido ao movimento de tropas. Urgia, depois de quase cinco meses de treinamento, desativar a área. Ordenou a divisão do contingente em dois grupos. O primeiro, oito companheiros incluindo Herbert Daniel, viajaria de imediato. O outro, sete com ele, Darcy, Lucena e Fujimori, romperia o cerco provando a mobilidade e aptidão da guerrilha3.

3

Emiliano José e Oldack Miranda, Jacob Gorender, e Los Subversivos, obras citadas: Osmar Trindade/Elmar Bones: "Os Relatórios do Exército sobre a Guerrilha", Coo-jornal, fevereiro de 1980.

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Carlos Henrique Heck lecionava no Instituto de Arte e Decoração, na avenida Angélica, junto à esquina onde Ladislau e Valdir escaparam do ponto caído. Provavelmente dia 20 de abril, cedo, alguém bateu à porta da sala de aulas. Assustouse ao abrir. Não via Iara há dez meses. Pálida, maltratada, uma perna muito inchada. Só o sorriso igual. – Estou doente, em casa de conhecidos. Impossível me esconder lá. Preciso de tratamento urgente. Passara de carro na casa de Rachel; na vizinhança, um carro de polícia. Carlos Henrique sentiu-se solicitado numa dimensão incomum. Todos na classe a observavam. Admirou-lhe a coragem, poderiam reconhecê-la. A caça aos seqüestradores do cônsul continuava, Lamarca apregoado o líder. Vasta difusão dos subversivos presos, seus históricos. Se Iara for presa, imaginou enquanto a levava à sala dos professores, não corro perigo: é amiga dos tempos de Faculdade. Deixou um assistente com os alunos e conduziu-a, atento se não os seguiam, ao escritório na travessa próxima. Ela caminhava mal, pés e pernas ainda feridas. Passaram ao lado da casa de Chico Buarque, Iara sorriu. Decio Bar e o CCC, Rubens, o violão, as vacas. – Não se mexa até eu voltar. Trancarei a porta. Mal examinou o escritório de pranchetas, luminárias, janelas cerradas. Recostou-se numa poltrona e adormeceu. Os cinco arquitetos, convocados, não encontraram quem se atrevesse a guardá-la. Resolveram que ficaria poucos dias em casa de cada um, até localizarem um médico de confiança. Todos os aliados tinham caído. Principiaram no apartamento de Carlos Henrique e Marina. – Não rejeitou nenhuma proposta nossa. Nem sombra da postura heróica. Mergulhou

na

leitura

e

colava-se

aos

noticiários.

Aguardava

dois

acontecimentos que dividiriam as forças repressivas. O início das operações no Ribeira e o seqüestro do embaixador alemão, cientificamente planejado por Juarez. – Aplicava sempre seus pert*: para tal dia precisa disso, no outro daquilo – nota Maria do Carmo. – No primeiro assalto a banco em Belo Horizonte, durante o curto *

Desenvolvido inicialmente pelo Escritório de Projetos Especiais da Marinha Americana para o sistema de armas “Polaris”. Permite ao planejador controlar diferentes tarefas que interagem e intervir em áreas críticas. A idéia básica, do americano Henry Gantt, invertia o processo tradicional de planejar e

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intervalo de trabalho numa editora, disse "chegou Papai Noel" ao entrar em casa carregado de sacos de dinheiro. Iara revia o apartamento dos amigos com perplexa ternura. Telefonou a Tutinha, sempre que possível dava notícias em linguagem cifrada. A amiga ia à Faculdade de Arquitetura avisar Rosa, à família. De volta ao planeta. A queda de Maria do Carmo e a morte de Juarez derrubaram Iara. Mal nos despedimos, cada minuto uma interrogação. Juarez. Queria-o muito, muito. Esteio de todos. E o que não sofreria a amiga, na mão dos canibais? Chorava, encurralada. Maria do Carmo e Juarez foram ao ponto de Wellington dia 18 de abril. Surpreso com a infração às normas de segurança loucura estarem ali, há mais de uma semana "furara" o ponto – fez-lhes sinal de perigo. O casal, incapaz de refletir, pôs-se a dar voltas e alertou a polícia militar, a postos com o único propósito de prender Juarez, conhecido por descrição e fotos. – Decidimos resgatá-lo, duas armas de pequeno calibre quase inúteis. Comprei algumas alfaces, meu revólver no meio, e pedi a um menino que entregasse a sacola a Wellington. Ao passar outra vez vimos um homem tomando-a do garoto. Nada a fazer. Voltamos ao carro. Junto ao veículo, grande tiroteio e cerco. O corpo retalhado de balas, Juarez teve força para dar-se um tiro na cabeça. Maria do Carmo só levou uma bala no mindinho e sobreviveu sem absorver a perda de Juarez, o assombro de entrarem no ponto caído, de não se matar também. Nessas condições a arrastaram ao quartel da Barão de Mesquita. – Considero os erros cometidos sob tortura – no limite da força física o indivíduo deixa de ser inteiramente responsável – irrelevantes em relação às faltas enquanto livres. Gravíssima, a escolha política errada. Faltara-me coragem de afirmar, contra o coletivo, que fracassamos. Continuei a compactuar com decisões que arriscavam vidas. Os companheiros crentes, eu não. Por que persisti no comando? Fraqueza de personalidade, um buraco qualquer, medo de parecer covarde. Anos repetidos sonhei que metralhava as pessoas, meio está– tuas, num hospital de cancerosos. Galgava ao segundo andar, ala infantil, e arremetia. Entre os fuzilados, minha irmã. Era o horror

começava pelo final: qual a última providência a tomar, para a entrega do produto? quando começála? qual a anterior? e a anterior a essa? e assim regredia ao início.

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da violência, das armas. Terrível, contra a natureza. Herbert Daniel sofria dúvidas semelhantes. Só com ele me abri. Transferida à OBAN, em São Paulo, encontrou Monteiro aniquilado. Suportara as maiores abominações. Quando usaram a palmatória, quebrou-se. Menino, vivera na FEBEM e encolhia-se em posição fetal, destruído, depois de o surrarem com o instrumento. Os psicólogos do mal sabiam esmagar egressos da instituição. Ao ver Maria do Carmo urrou, a dor de Juarez, o ódio de fraquejar: – Lamarca é um assassino! – Ninguém falaria assim de Lamarca, o rapaz menos ainda. E eu era copartícipe. No grito, a própria dizimação. Não o incluíram lista de presos a libertar em troca do alemão. Acharam que falou demais. Maria do Carmo trazia o pert do seqüestro. A repressão investiu na segurança do embaixador durante semanas e afrouxou. Os envolvidos sabiam que o plano caíra. Ainda em casa de Marina, 21 de abril, outro choque: Ladislau. Semelhante a Maria do Carmo, ele se recusava a admitir a degringolada e não queria que o tomassem por covarde. Acima de tudo, o extenuavam as 14, 15 horas diárias de trabalho a topar agentes de segurança pelos quatro cantos da cidade, a VPR limitada a reagir, sem iniciativa. Único disponível do comando, acumulava as funções da direção regional e nacional. Tinha ainda a seu cargo os roubos desgastantes de carros, que acreditavam necessários para retirar os companheiros do Ribeira. E coordenava as ações da VPRE outros grupos com os quais operavam em Frente, especialmente a REDE de Eduardo Leite, a ALN e o MRT de Devanir de Carvalho. Naquele dia decidira faltar ao ponto suspeito de um companheiro que viria da Guanabara, e ao seguinte, dois quarteirões abaixo, de Câmara Ferreira. – Irrefletidamente compareci. A pé. Esquina da rua Paraíso, fundos da Brahma. Esgotamento. Diante da movimentação tentei prosseguir alheio, já o fizera repetidas vezes, escapando por pouco. Porém agora vieram policiais que me conheciam de 1968. Tentei me matar. O primeiro tiro da arma, antiga, ficou travado, lapso de segundo que faz a diferença. Rolei no chão. A barulheira salvou Toledo, adiante. Tive mau comportamento na cadeia. Protegi gente central e entreguei outros. Não morriam – cálculos que se faz, um absurdo, difícil. Que diferença, a queda de 1968. O clima político, meu estado físico. A repressão tinha a lista de pessoas que eu contatava, nomes de guerra, posições no organograma. Nessas circunstâncias torturam com 390

choque elétrico por qualquer coisinha. Apenas confirmavam. Um por cento de informação nova. Em poder de Ladislau, o documento manuscrito de Lamarca "Sequestro e Tortura": "A América Latina é o pólo subdesenvolvido necessário ao imperialismo, daí a desumanidade nas cadeias (...) tortura é parte do curriculum de formação nas forças armadas e organismos policiais(...) A luta política é impossível... os partidos políticos são uma farsa(...) Resta-nos(...) libertar os companheiros(...) o faremos sempre, pelo único meio de que dispomos no momento, o seqüestro." Ladislau, olhos claros a ver o inferno. Quase todos presos, oscilava Iara, incrédula. Acompanhava o noticiário sobre o Ribeira, alardearam a chegada ao "galpão". Cartazes nas vilas, revista de automóveis, congestionamentos. A culpa é dos maus brasileiros, explicava o Exército. No final de abril, a prisão de um exsargento e um sapateiro. Pela descrição, Darcy e José Lavecchia. Difícil acreditar. Prendem habitantes, caçadores, o farmacêutico. Mais de 100. Mas a guerrilha romperá o cerco, é o objetivo. Não pegam Lamarca, orgulhava-se, leitura ansiosa de jornais censurados, busca de indicações nas entrelinhas, colunas sociais, notas curtas. Revolta com os bombardeios, a FAB força a saída dos guerrilheiros, alegavam, mas é terror o objetivo, impedir que a população camponesa os alimente 4. Difícil silenciar sobre Lamarca. Qualquer referência a ele conturbava-a tanto, que Marina desconfiou. Abriu-se, falou do que lhe era permitido sem comprometer ninguém: queria engravidar. O homem da minha vida. – Se tudo der certo, vou morar no interior. Marina aprovava, pasma. Semi-heroína, liberada. E o que mais desejava? O filho, a casinha. – Coisa maluca. Sabia-se estéril, tratava-se ininterruptamente, a criança quase o leitmotiv da vida. Cansada, sofrida, medo constante de perder Lamarca, os amigos. Pouco a ver com a pessoa alegre, que agüentava piada de bêbado em mesa de bar. No segundo abrigo, em casa de Sérgio Ferro, arriscado porque suspeitavam que o nome dele caíra, conheceu Ediani. Pertencera ao grupo musical de sucesso na época, Novos Baianos. A nova mulher de Ferro reconheceu-a.

Posteriormente, no documento "Ao Povo Brasileiro – Do vale do Jacupiranga ao Vale do Ribeira", Lamarca denunciou o uso de napalm. Coojornal, artigo citado. 4

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– Doente, magra, angustiadíssima. Horrível a vida clandestina, de aparelho a outro. Tinha asma, a expressão daquela coisa fechada. Os dentes doíam de rangêlos ao dormir, no sofá da sala. Iara tentava explicar o bruxismo. Alivia a tensão, um sentir agradável no limite da dor. Á beira da vigília, sobrepuja zonas em stress. Introduz novas ondas cerebrais. Ediani e os filhos de Ferro, Camila e Maurício, distraíam-na. – Demo-nos bem de imediato – comove-se Ediani. – Simpatia mútua. Nada torto. Eu, que a mitificava, vi que era gente como eu. Cólicas, espinhas. Forte, carinhosa, inteligente, controlada. Ao mesmo tempo frágil, carente de proteção. Sérgio saía para trabalhar e eu a paparicava. Queixou-se de perder o cabelo. Colhi babosa do jardim, massageei. Fazia papelotes nela. Quis comer pinha, caqui. Comprei. Aos poucos Iara encantou-se com a casinha pintada de amarelo. Deitava-se ao lado de Ediani na grama, a bronzearem-se. Ajudava, queria pentear Camila. Nunca mostrou medo de polícia. O humor reapareceu quando quase caiu de um banquinho de três pés na cozinha. – Só mesmo arquiteto para comprar uma frescura dessas. Marina veio buscá-la. Finalmente um médico a examinaria. Era José Cipolla, colega de trabalho na TV Cultura e marido de Toninha; não vaciIaram em recebê-la. No carro, Iara estendeu à amiga um buquê de flores secas – presente de Ediani, amorosa e infantil. Entrou no sobrado da rua José Maria Lisboa, Jardim Paulista, vestindo um jeans desbotado cheio de rasgões. Abraçaram-se, enorme alegria de rever-se. Toninha, psicóloga num hospital, passava o dia fora. A mãe cuidava do menino de dois anos. Saudosa de Lamarca, dependente e enferma, sem casa, Iara chamou-se Bebê. Infecções localizadas à parte, Cipolla diagnosticou hipotireoidismo. Explicava as falhas menstruais, o mal-estar e inchaço. Medicou-a. À noite conversavam, Iara de pernas estiradas, pés ainda machucados. Toninha não escondeu a descrença na luta armada. – As pessoas caem tal frutos maduros. E visível o apuro repressivo e a intenção de dizimar. – A luta contra um regime de opressão é legítima, natural, direito básico de cada um – Iara repetia frases de Ladislau. – Insurgir-se, recusar a humilhação é puro 392

bom-senso, saúde política. Devemos excluir a idéia de que o sucesso depende de chegar ao poder. É um equívoco falsamente leninista. A luta vale, independente do resultado. Certas coisas não se engolem, ponto. Veja o Bacuri, um dos melhores quadros, ótimo comandante militar. Entrou na militância por indignação pessoal. Somos um grupinho cheio de ilusões, concordo; voluntaristas, a enfrentar um poder corrupto, gigantesco, inescrupuloso. Mas não há revolução sem fantasia. Na Argélia, eram 54 pessoas de início. Se matassem Fidel em Sierra Maestra o movimento desapareceria, rotulado de insano. Temos que criar as condições, a crise é permanente. – Sua argumentação antes me parece um empenho apaixonado. Observe o mundo real! Eu deixei de acreditar na solução armada. É loucura! Você e os outros têm obrigação de viver. Ninguém fala em crise, exceto as organizações. – O regime camufla, cedo ou tarde a economia explodirá. – Então não é o momento certo da guerrilha. – "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer" – cantarolou. Mas não discutiam sempre. Conversavam sobre amigos, a experiência da Faculdade, sentimentos, amor. Iara expandiu-se e deixou em Toninha uma imagem predominante, de mulher apaixonada. – Ele é incrível, Toninha, que ternura! Humano, generoso, forte. Coerente. Bonito, a beleza do homem, não de menino da Faculdade. Quero um filho dele, ainda engravido. Certa feita, depois de ler uma referência a Lamarca, falou dele como líder. – Notei o impacto. Descreveu-o, não o companheiro que na véspera declarou amar, mas o comandante firme e delicado, justo. Alguém que acreditava na luta. Será que desconfiei? Talvez. Convívio agradável, apesar da tensão – Iara corria para o quarto e trancava-se a cada toque de campainha. – Senti o amadurecimento político dela, somado ao amor pelo homem que compartilhava a determinação revolucionária. "Vivo um grande amor", repetia-me. Para mim a vivência foi importante. Sem a passagem por nossa casa, guardaria uma imagem menos rica de Iara. Corajosa, alegre, calorosa, simples. Fácil conversar com ela. Pergunto-me se efetivamente teve percepção de que poderiam morrer. Vivíamos o "milagre" econômico, a alienação popular, o "ame-o ou deixe-o", a Copa de 70. 393

À despedida, Toninha insistiu: – Saia do país. Pense no que falamos. Você tem de salvar-se, sua atividade política é importante. Não quero, não posso. Vou até o fim. Marina passou-a a Rodrigo Lefèvre num ponto. Durante quase um mês ficou no pequeno apartamento de André Guerra, do MRT, travessa da Lins de Vasconcelos. Tanto leu no sofá da sala que marcou o lugar. Soube que Raul se refugiara no Chile. Ao perceber que o cerco se fechava em torno da VAR, estimou de três a cinco meses o prazo de sua queda. Só continuava livre porque dispunha de dinheiro para trocar quase diariamente de pensão. Escapou da primeira leva de prisões em janeiro – os companheiros o resguardaram – e viu-se isolado. Já se rebeIara contra a diretriz do superior: assumir o comando regional da VAR-Palmares e pôr na linha de frente os secundaristas que sobravam, 17, 18 anos, ele um veterano de 21. Seria como condenar-se, e a eles, à morte. – Um dia perguntei-me se deveria sair do Brasil e descobri que a mera colocação significava sim. Organizei a desmobilização, de forma a deixar contatado quem dependia de mim. Houve gente que largou os companheiros sem pousada ou dinheiro, a perigo. Parti em abril enfrentando a pressão, chamaram-me traidor. A brutalidade e intolerância são componentes stalinistas de nossa esquerda. Em julho e agosto caíram todos. Uma linda menina de 16 anos, barbaramente torturada e violentada, não falou o pouco que sabia. Destruída, a família casou-a com o antigo namoradinho. E o menino que leva tapa no rosto e abre tudo? Precisávamos poupar esses garotos, mandá-los para fora. Foi um absurdo. Na Guanabara e São Paulo, assaltos de marginais a bancos se multiplicavam. Iara divertiu-se: aprenderam conosco a técnica. Também om os dez mandamentos da Secretaria de Segurança do Paraná: captar intenções ocultas nos noticiários, fingir que aceita convite para “assuntos estranhos" e fornecer dados à polícia. Escolinha de delatores. Nixon mandava tropas ao Cambodja, na Universidade de Kent, em Ohio, quatro universitários fuzilados, vários feridos graves no protesto contra a guerra. Admirou as fotos do estudante de jornalismo John Filo que denunciavam ao mundo o desespero da jovem diante do colega estirado na rua, a Guarda Nacional mirando o próprio Filo, câmera em punho. A repercussão de Kent nos Estados Unidos foi dramática: o que está acontecendo ao país? Que denúncia, comentou encostada à 394

porta da cozinha, outro posto de estimação enquanto a companheira de André preparava o jantar. É um trabalho político que fica. Mudou de aparelho mas desconfiou do local ao retornar de uma tarefa. Pouco dinheiro na bolsa, lembrou-se de Evelise. Dirigiu-se de ônibus à casa dos pais da amiga, na Lapa – tempos de estudo no cursinho, começo de Faculdade. Teve sorte. A amiga almoçaria em casa dos sogros, ali perto. Caminhou pelo bairro de Maria Lucia, viu-se a dançarem, que festa aquela? Aniversário de Severo. Estatística. Ruas curvas, pracinhas. Evelise sobressaltou-se. Abraçaram-se, emocionadas. – Posso morar uns dias com você? – Claro. Iara reconheceu o quê de ansiedade na voz familiar. – Deixe-me esclarecer – avisou. – Quanto menos você souber de mim, melhor para sua proteção. Anuiu, escapando-lhe o sentido da advertência. Certamente, para não perder o hábito, Iara fantasiava um pouco. Almoçaram. Em dia tão pacífico não aconteceria nada no Ribeira. O casal morava num prédio da rua Itapicuru, Perdizes, próximo a delegacia do bairro. Conversaram como em dias antigos. – Falou-me que se apaixonara: "Nunca pensei amar uma pessoa como ele, nada a ver com o que eu valorizava antes. Homem feito, 33 anos. Maduro, sensível. Endurecido sem perder a ternura." Queria um filho dele, inviável pela vida que levavam. A convivência não foi harmônica. Evelise, minguados interesses políticos, qualificava de paranóide o comportamento de Iara. – O zelador acreditou que você veio passar uns tempos comigo, minha amiga de outra cidade. Essas voltas misteriosas no quarteirão antes de subir o intrigam. Você vira a pessoa mais suspeitável do mundo. – São regras de segurança. Por exemplo, deixei tudo na casa que caiu – roupas, perucas, quase 800 mil cruzeiros5. Evelise horrorizou-se.

5

Cerca de 160 mil dólares na época.

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– O abandono de objetos é mal menor diante da tortura – susteve Iara. – Há companheiros que carregam uma cápsula de veneno. Se presos, engolem. Eu não tenho coragem. Julgou que estivesse muito atemorizada. Daí sua inadequação. A empregada estranhava-a por usar minhas roupas. Pior, tomava o rádio dela. Iara me preveniu que algo aconteceria, mas não especificava. O mundo girava em torno do cerco. Sonhava com o Ribeira, Lamarca morto. Percorria os caminhos na mata para reconstituí-lo. Emboscadas, animais, buracos negros até sucumbir num charco. Fuzilaria, a bela face em massa disforme. Protegêla. O rosto, não. Dia 21 de maio, cinco presos denegriram a militância em vídeo gravado e posto no ar pela tevê. À revolta seguiu-se comiseração6. O que haviam sofrido, qual a fraqueza a provocar simbiose com o algoz? Procurava o deletério nos semblantes, há graus de sucumbência, dizia, onde a diferença entre eles e Olavo Hansen, do grupo trotsquista, preso dia 19 de maio e torturado sem nada abrir até a morte?7 – Um dia estudo o lado emocional da militância. No fim de semana prolongado de Corpus Christi foram os três à casa de praia da sogra de Evelise, em Santos, no Boqueirão. A cada barreira, Iara deitava-se no banco de trás. Se vistoriados, passaria por adormecida. Na praia deserta, a observar as ondas, Evelise sugeriu-lhe que deixasse o Brasil. – Ignoro como você se envolveu tanto, mas vá embora. Não é um caminho sem volta. – Impossível. Você pensa que é simples, depois volto, procuro emprego, dou aulas no cursinho? Calou-se. Outrora instável, Iara demonstrava surpreendente firmeza. Que fosse Maria Lucia, sim, quase religiosa no cumprimento do dever. – Além da convicção política, pensei, o amor a prendia. Sem ele, talvez concordasse. Tinha muito apego à vida. Salvar a pele sempre esteve presente. Reconheço, porém, que não conheci o lado político dela. Afastamo-nos quando entrou na POLOP; eu não compreendia como se ocupava tanto daquilo. Maria Lucia possuía

6

Marcos Vinicio Fernandes dos Santos, Rômulo Augusto Romero Fontes, Marcos Alberto Martini, Gilson Teodoro de Oliveira e Osmar de Oliveira Rodello Filho. 7 Jacob Gorender, obra citada (Cap.17: "Trotsquismo e atração pelo nacionalismo autoritário").

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o sentido do trabalho e Iara da dispersão. Mas não me falou de política. Ao menos nisso, foi disciplinada... Voltaram sem incidentes. – As esquisitices dela nos irritavam. Só depois descobri que faziam sentido. Uma vez brincou comigo, espirituosa: "Quando vier a tomada do poder, quero estar com o poder." Mas não sei o quanto acreditava. Alienavam-se no mundo ilusório da clandestinidade. Ficou-me a impressão de beco sem volta. No fim de semana comprou a Veja8, reportagem sobre Lamarca, as quedas de 21 de abril omitindo a morte de Juarez, as torturas. Páginas assépticas. Censura. A capa reproduzia um texto manuscrito, letrinha amada junto ao rosto recortado, sem traços. Forma de máscara mortuária. Apressada, mãos frias a virar páginas, chegou ao texto "A Nova Face do Terror". Começava com a plástica de Lamarca, que a repressão mantivera em segredo. Irritou-se quando o deram por desfigurado, sem dentes. Emocionou-se: afirmavam que junto dele, no Ribeira, estava sua companheira. Releu o documento escrito há um ano: vacilava "ideologicamente" a moça que defendia a participação da VPR em manifestações de massa e culturais. Hoje ele é mais tolerante, gracejou. Cuidemo-nos, entretanto, da indulgência que tende ao descompromisso almejado pela ditadura, geléia geral, o charme é ter dúvidas. Alguém da VAR ajudou a reportagem, concluiu. Apelam, mas nós é que somos conseqüentes. Tentou reconhecer o local, a foto mostrava o caminhão do Exército à beira da mata. Minimizam nossa vitória iminente: furar o cerco do Exército equipado, prova indelével de competência e coragem. O povo analfabeto registra a bravura. Lamarca lidera as tropas. Arrojo, criatividade. Assombro talento militar. O tigre soltou-se da jaula. Só se constrói sem indecisões, prosseguiu a sorrir. A companheira Odete quer ir ao teatro, ao Belas Artes de outra encarnação. Mas agora carregamos bandeiras vermelhas, o operário de Käthe Kolwitz alça vôo sobre elas, nu, iremos à vitória final, alguns passos para trás, outros à frente. A História é progressiva.

O aparelho de Seixas. Deusa. Um galho decepado

8

3.6.70.

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DEPOIS DE 40 DIAS DE CAMINHADA, alimentando-se nos bananais, a cruzar rios, pântanos, montanhas, vitoriosos no embate com uma patrulha, Lamarca, Diógenes, Fujimori e Lucena prenderam um sargento e quatro soldados, vestiram suas fardas e, barreiras transpostas no caminhão do Exército, foram socorridos na marginal do Tietê, São Paulo, pelo grupo de arquitetos1. Na carroceria, os militares amarrados. Em vários automóveis rodaram a noite inteira, idas e voltas na avenida Paulista até encontrarem guarida. – Cuidamos deles, uma semana sem comer, em terrível estado – recapitula Julio Barone. Sem outro local, Lamarca ficou uns dias na casa insegura de Sérgio Ferro. Chegou o dia que Iara afastava da mente, só permitido em devaneios para induzir o sono nervoso. Evelise deu-lhe algumas roupas e levou-a a um estacionamento de banco no Itaim. Sempre que saía, Iara avisava: talvez não retornasse. – Agora vou de vez. Em bairro afastado, no aparelho de Devanir de Carvalho, magros, pálidos misturaram-se os rostos, funda tristeza. Jamais desprender-se. Reabrir as pálpebras, olhar. Em cada toque, a paixão. Apesar dos mortos, quedas, fraqueza física, a decisão irredutível. Dormiam no chão, mal alimentados, janelas dia e noite fechadas. No Brasil inteiro caçavam-nos. Boa parte dos dólares perdera-se ou estava inacessível, no Exterior. "Desapropriações" rendiam pouco de vido à vigilância dos bancos. Ninavamse, incrédulos, a reconhecer-se. Vencemos a batalha, agora é conceber os próximos passos. Recarga, definiu Lamarca. Paisagem de paredes nuas, longo desejo. Descreveu a Iara a covardia dos oficiais da repressão, a tortura e morte de um jovem casal de camponeses, os bombardeios. A bordo de um caminhão seqüestrado o choque com a Polícia Militar em Eldorado, 14 soldados feridos, um sargento quis aceder ao chamado de rendição, o tenente, 23 anos, a proibi-lo. Entreguei o FAL a Edmauro, revólver na cintura. Fui parlamentar. Viu-o, postura típica de tranqüilidade, repreender no inimigo ainda em posição de combate, a irresponsabilidade que custaria a vida de muitos soldados. Havia feridos graves, necessitavam de hospital urgente. Quase que ouvia a voz exortando os soldados, carismático: "Onde está, no 1

Coojornal, artigo citado; Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada.

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momento, quem manda vocês à morte por uma causa injusta?". Propôs soltar os prisioneiros – o que fazer com eles? – sob condição de suspender-se o bloqueio. O tenente, conduzido à tropa, voltou decIarando-o suspenso. Libertaram todos exceto o oficial, agora refém. Mas em direção a Sete Barras constataram a emboscada. Desbordo na escuridão e nela caiu uma tropa inimiga. Ali se perderam Edmauro e Nóbrega, presos e selvagemente torturados. Caminharam dois dias e duas noites sem dormir, a energia única de Lamarca a guiá-los. O tenente não agüentava mais, um problema. Você falhou na palavra empenhada, acusaram. Justificou-se, os superiores o traíram. Condenaram-no. Solto, ele os denunciaria. Inviável o fuzilamento devido ao estampido2, foi morto a coronhadas. Não sofreu, neguinha, não sofreu. Ao primeiro golpe desmaiou. Estimulou-o a escrever. Corrigiu-lhe os textos, o primeiro relatando experiência do Ribeira3. Está objetivo e profissional, elogiou. – É minha obrigação de bom militar. Concordou com a intenção de divulgar o interrogatório do tenente. "Não vejo os presos do Presídio Tiradentes como gente", teria dito, acrescentando "grevistas são vagabundos". Justificava-se a sentença de morte4. Brincou de repórter para Lamarca montar uma entrevista que divulgaria a VPR no Exterior5. A guerrilha não é tarefa de super homens, ensinava, seguro de si e da importância de seus documente O treinamento demonstrou que combatentes de melhor nível ideológico rendem mais, a capacidade física desenvolve-se e a coletivização solve limitações individuais. Uma onda de calor invadiu-o, descrevia Iara, o extremo da limitação individual. Inspirou-se em Brecht, de quem tanto falavam Iara e Heleny na casa do Brooklyn: "triste a guerrilha que precisa de heróis". E concluiu, resposta a "massistas": "o exemplo de luta fará a incorporação das massas, levará toda a esquerda a dar um passo à frente." 2

Coojornal, artigo citado; Jacob Gorender, obra citada (Cap. 32). Exagerou, avaliando o número de homens que o cercavam em 20 mil. O efetivo foi de 1.732. Coojornal, artigo citado. 4 Coojornal, artigo citado. 5 Idem (trechos): "Nas regiões onde a exploração capitalista é mais desumana, encontram-se os elos fracos do sistema e há condições de guerrilha rural; existe um passado de luta e organização do nosso trabalhador rural, que a classe dominante omite na História. Os camponeses delatores são apenas medrosos, falta-lhes consciência política. As poucas ações de guerrilha no Ribeira, que romperam os cercos tático e estratégico, foram bem sucedidas: dez baixas inimigas e dezoito prisioneiros em três combates. Havia dezesseis nas bases, saíram oito, quatro presos, quatro romperam o cerco. Deixamos de executar outras ações, que não comprometeriam o objetivo, por faltarem morteiros, minas ou granadas de mão". 3

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Também escreveu sobre os seqüestros: enquanto o regime utilizasse a tortura, libertariam os supliciados: "Se os senhores diplomatas convivem com um governo que tortura, podem conviver conosco por alguns dias." Prioridade máxima, realizar o seqüestro. Em abril, depois de es capar do Ribeira, Herbert Daniel reorganizou os poucos que sobravam na Guanabara. Discutiram qual o embaixador indicado e a primeira escolha foi o do Japão6. Descobriram, às vésperas, que policiavam a área – alguém delatou o projeto. Voltaram ao embaixador alemão. Certamente a repressão o descartava, caído o pert. Enquanto planejavam, Eduardo Leite no comando, Herbert Daniel encontrouse algumas vezes com Lamarca no aparelho em São Paulo. – Iara pareceu-me triste e abatida. Abalada mesmo. Mal falávamos. Três, quatro palavras. Também Julio Barone cruzava-a. Substituía Sérgio Ferro, que pedira pausa na coordenação e contatos. – Iara, Devanir e eu conversávamos um pouco na sala. Depois eu me trancava com Lamarca no quarto. Provavelmente ela ainda convalescia. Depois de alguns dias Lamarca passou ao aparelho de outro chefe do MRT, Joaquim Alencar de Seixas, em Vila Mariana. Ficou cerca de cinco meses. O sobrado, no meio do quarteirão, prestava-se. Parede-meia de um lado, de outro o beco. O carro entrava na garagem interna e os ocupantes saíam dentro da casa. No térreo a sala comprida, vitrô de vidros opacos, sofá, mesa grande, cadeiras. Cozinha, um pequeno quintal, lavanderia e despejo. Em cima, banheiro e quatro quartos. Lamarca ocupou o último, nove metros quadrados, cama de solteiro e caixote, veneziana sempre fechada impedindo a visão aos vizinhos acima – a rua, Baltazar Lisboa, é uma encosta. De tempos em tempos, o sol a bater de jeito, Fanny, mulher de Joaquim, abria a janela e ele se deitava no chão. – É vitamina D para os ossos. No aparelho viviam também dois filhos de Joaquim, escolares. Ivan, 16, já acompanhava o pai em ações. O outro, dez anos, silenciava o medo. Dia 11 de junho a VPR e ALN, que incorporou a REDE, seqüestraram o embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, aplicando o pert de Juarez. Lamentaram a morte do guarda de segurança. 6

Alfredo Sirkis, obra citada (Cap. 5: "O seqüestro do alemão"); Alex Polari, obra citada.

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– As ações têm de ser "limpas"! Eles põem os coitados para morrer, mandam resistir e o homem ignora que não tem chances. Canalhas! xingou Lamarca. As 40 pessoas queridas voaram à Argélia. Tão simbólico Argel, disse Iara ao acalmar-se, e narrou o filme de Pontecorvo. A guerrilha da FLN na cidade, a tortura que dizimou os grupos; quando aparentemente só restavam guerrilhas rurais, a avalancha arrebenta a calma urbana e, junto com o campo, varre os franceses e o colonialismo. Argélia livre! Na lista de libertados Maria do Carmo, Darcy Rodrigues, Almir Dutton, Cerveira7, Tercina, as crianças, o ex-tenente Altair Luchesi Campos. Fui preso dia 3 de janeiro acusado de pertencer à VPR – relata Altair. – Mas não. Apenas fiz algumas coisinhas, como amigo de Lamarca. Fiquei 21 dias em São Paulo, depois me levaram ao 8: Grupo de Artilharia da Costa, no Leblon. Só quebrei a incomunicabilidade com greve de fome. Aí veio um recado de Lamarca: faria o possível para me tirar. No seqüestro frustrado do cônsul em Porto Alegre caiu uma lista que, por engano, tinha o nome de meu pai. Voltei à tortura – como a VPR sabia de minha prisão se a mantinham secreta? Até que levam o alemão. Tiram-me do buraco para interrogatório. No caminho, ao subir a escada meio escura, de um rádio ouço vários nomes, o meu também. Penso que vão me matar, lêem listas de falecidos. Em cima, animei-me. Havia muitos oficiais fardados. Não se mata com tantos, e alguns me conhecem, há certo vínculo de camaradagem. Dizem que estou entre os prisioneiros a trocar. Depois eu soube que Lamarca, pessoalmente, me incluiu. Maria do Carmo, atrás dos meninos na foto de grupo, magra, óculos escuros, fez o V da vitória8: – Antes da partida, ameaçaram: "Agora vamos pegar sua mãe". Chegaram a cercar o local onde se escondeu, no interior, o braço paralisado pelo trauma da morte de Juarez e meu desaparecimento. Sem parar procurara-me. Negavam-lhe respostas. DecIararam junho um mês de vitórias, desdenhando as simpatias que a morte do segurança granjeou para o governo – o ditador com pareceria ao enterro. A imprensa publicou o manifesto* dos seqüestradores, assinado "Ou Ficar a Pátria Livre

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Brasil Nunca Mais, obra citada: em 1973 tentou entrar no Brasil por Foz do Iguaçu, em companhia de outros exilados. Consta até hoje dos desaparecidos políticos. 8 A outra moça a fazer o "V" da vitória, na primeira fila, é Ieda dos Reis Chaves. * Denunciava a ausência de hospitais, escolas, livros para o povo. O aumento de desempregados, nordestinas vendidas como escravas a plantações do Sul. E acusava o governo de “torturar até a morte Manoel Raimundo Soares, João Lucas Alves, José Domingues da Silva, Severino Viana Collon, Chael

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ou Morrer pelo Brasil, Comando Juarez Guimarães de Brito, VPR, ALN". O governo respondeu: bandidos frios e calculistas, covardes e fanáticos. A repressão apertou as buscas. Guanabara ilhada, incessantes prisões. Queriam Lamarca, nos cartazes de procurados a foto maior. Ulysses Guimarães presidente em exercício do MDB, recusou pronunciar-se contra a luta armada – prestava contas só da oposição legal. A outra era problema do governo. Em meio à barulheira em torno da vitória do Brasil contra a Thecoslováquia, na Copa do Mundo, Lamarca foi condenado a 24 anos pelo furto de armas em Quitaúna. Darcy a 16, Mariane a 12. Pela primeira vez Iara viu seu nome num listão – o inquérito que pedia a prisão preventiva de terroristas da VAR-Palmares. Lamentaram a vitória do Brasil, 4 X 1 contra a Itália, explorada pelo governo com ponto facultativo, Médici em pose risonha, mangas de camisa a segurar a bandeira. Ao lado, Pelé e a taça. No front internacional aplaudiram Bernadette Devlin, atuante nas lutas da Irlanda. Dividiram-se quanto ao PC tcheco, que derrubou Dubcek. Injuriaram o rei jordaniano – em Amã, na quase guerra civil, mais de 500 palestinos mortos. Admitiram que Alejandro Lanusse, tenente-general que assumiu o governo argentino a prometer democracia representativa, depois do homicídio de Aramburu e deposto Ongania, figurava ser mais decente. E ironizaram a divisão da OEA em torno do conceito de terror9. Mário Gibson, chanceler brasileiro, empenhava-se: tem caráter ultranacional e lesa a Humanidade. Não cabe asilo. Havia conciliadores. Embora bestial, o direito de asilo é consenso entre povos civilizados. – Ao menos tomamos o poder na OEA – mofaram. – A definição é um embuste. Não somos terroristas, que matam indiscriminadamente – demarcou Iara. – Guevara já disse que o terrorismo é arma negativa e pode induzir o povo a reprovar a luta. Favorece golpistas, o fascismo. Somos guerrilheiros. Nossas ações, militares, preparam seletivamente a revolução. Em julho, estabeleceu-se o novo comando da VPR: Lamarca, Inês Etienne Romeu e Herbert Daniel. Lamarca propôs a Julio Barone integrá-lo à direção da Frente. Recusou-se, deixando-o magoado.

Charles Schreirer, Virgílio Gomes da Silva, Mário Alves, Carlos Zanirato, Olavo Hansen, entre tantos outros”. 9 Carlos Castelo Branco, obra citada, 28 e 30.6.70.

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– Expus o que pensava nosso grupo. Suspender tudo, transferir Lamarca e Iara ao Exterior, reestruturar a atuação política. Além disso, alvo da repressão, os arquitetos dispersavam-se. Passado o impacto do seqüestro, interesse popular voltado à novela Irmãos Coragem, Iara seguiu à Guanabara com missão de estabelecer base própria. Seria mensageira nas ações que a Frente planejava. Decidiu-se por um quarto de família. No Jornal do Brasil que comprou na Rodoviária, ofereciam-se vários. Escolheu dois. Não gostou o primeiro, no Catete. Telefonou ao segundo e deram-lhe um endereço no Flamengo. Deusa Quintiliano recebeu-a estranhando a capa de Uva à Casablanca em plena seca de inverno, lenço estilo camponês na cabeça – resfriada, certamente. Mas gostou de Isa. Simpática, falante, vinha ao Rio estudar balé. Conduziu-a pelo apartamento de quinto andar. – Não tenho telefone. Você pode usar o de minha enteada, Tânia, no sétimo. Iara encantou-se com a alegre e gorda mulata de 39 anos. Tirou da bolsa as notas, 400 cruzeiros por mês incluindo refeições. Caro. O apartamento inteiro custava 600 de aluguel. – Depois você paga. – Já deixo acertado. Vou pegar minhas coisas em São Paulo. Não voltou, preocupando Deusa. Viúva de um jornalista escritor, Aylton Quintiliano, filhos de 13 e 15 anos, precisava do dinheiro. Seus empregos, funcionária no Ministério da Agricultura e revisora no Jornal do Comércio, eram insuficientes. Em São Paulo, ao buscar um local semelhante para si e Inês, Iara pensou no seu ponto com Julio Barone, amigo de conversas pessoais. Na Aclimação, classe média fora do circuito da moda. Nada encontrou de imediato. Nas reuniões da Frente, o MR-810 discordou do planejado tríplice seqüestro. O ex-líder estudantil Carlos Alberto Muniz, da Guanabara, propunha rever os métodos e abandonar o enfrentamento direto. Defendia prioridade ao movimento de massa e propaganda armada – por exemplo, assaltar supermercados e distribuir os alimentos em favelas. – A classe média e pequeno-burguesia extasiam-se com a prosperidade econômica, os elogios do Departamento de Comércio dos Estados Unidos ao

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Segundo seus dirigentes de então, o grupo que se chamou MR-8 a partir da volta do Brasil ao Estado de Direito, na década de 80, nada tem a ver com o da época (veja Nota 6 do rodapé na página 308).

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crescimento brasileiro, o achado da correção no terreno fiscal e monetário. Mas a ditadura isola-se da classe operária e do povo. Aproveitaremos a brecha. Lamarca não se convenceu. Que papel lhe restaria? Depois, bastava à repressão aumentar o policiamento nas favelas. – Penso em termos históricos. A crise do capitalismo é inevitável apesar dos fogos de artificio. Quanto aos seqüestros, são um instrumento de luta importante em toda a América Latina. – Ao contrário, confrontam diretamente e tornam explícita nossa fragilidade. As infra-estruturas limitadas expõem toda a esquerda. Note, companheiro, que ajudaremos se a decisão for o seqüestro. Nossa solidariedade é inquebrantável. – O alemão foi um sucesso, exceto na morte do guarda-costas. – De acordo. Somos, contudo, um grupo de sobreviventes. Cadeias repletas, exilados. Para preservar o que resta, melhor conquista as massas. O seqüestro dá a falsa crença de que atuamos sobre a realidade. Ora, a atividade revolucionária limitase a ele e às desapropriações que o custeiam. Lamarca ouvia-o. Uma noite, Iara ausente, dormiram no mesmo quarto e a conversa prolongou-se. Muniz enganava-se, argumentou. Enquanto torturassem patriotas, tinham de usar o instrumento. – O descontentamento popular cresce e a ditadura, limpa-botas do grande capital estrangeiro e dos latifundiários, mediante brutal repressão, impede protestos – reforçou Lamarca. – Como conquistar as massas? Liquidaram sindicatos, organizações populares, liberdade de imprensa, pleitos passáveis. O rompimento do cerco no Ribeira comprova as enormes chances da guerrilha no Brasil. A tarefa é intensificá-la nos grandes centros urbanos e chegar ao campo. Daí a importância de unirmos os grupos revolucionários. Cumpriremos o dever perante a História. Resistir. Nossa luta mal começou. Imprescindíveis à VPR e ALN quadros de comando. Lamarca encarregou Iara de convencer o grupo de arquitetos a entrar na clandestinidade, não obstante a negativa de Barone. O convite prestigiava. Porém contestavam a prática política e as condições emocionais eram precárias. – A frase usual, "falta dinheiro, vamos pegar um banco", exprimia desespero de causa e desleixo. Duvidávamos a sério de tudo reconstitui Carlos Henrique.

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Iara compreendeu, feliz entre os amigos. Memória de tempos idos, festas, ruas, luzes na cidade que hoje a procurava febril, companheira de Lamarca, orgulhou-se. – Cês querem saber? Morro de vontade de comer uma pizza. Alegraram-se de poder satisfazê-la. Deliciou-se com a maciez rolando na boca, longínquo sabor. Ou fantasiava? Tomaram vinho e o grupo pressentiu que o futuro a preocupava. As ações matavam civis, caíam militantes insubstituíveis, poucos vinham do Exterior. Como que ensaiados, propuseram-lhe partir. Ouviu as propostas. Passaporte falso, esquema garantido. – A preocupação é pertinente. Entendo vocês. Mas sou uma revolucionária. Não posso abandonar a luta. – A proposta permanece em aberto. Queremos que reflita mais calmamente. Assim de chofre não vale. – A relação com Lamarca pesou – infere Carlos Henrique. – Quase dissemos: "Se ficar sem saída, volte." Nunca mais a vi.

Iara, que se chamava Norma em casa de Seixas, periodicamente vinha às reuniões do comando. Num dos quartos, fechado – gráfica e arsenal – ininterruptos, bebiam café das garrafas térmicas e fumavam, agravando-lhe a asma e a alergia. Respirava, aliviada, ao descerem para almoçar – arroz, feijão, bife, salada, Iaranja. À mesa generalizavam os assuntos, pois o aparelho pertencia a outra organização. Ivan admirava-se da influência moderadora de Iara sobre Lamarca. Certa vez lembraram Gilson Teodoro da ALN, um dos cinco que foram à tevê, irmão de Gerson Teodoro da VPR. – Esses caras merecem tiro – abespinhou-se Lamarca. – Devemos primeiro pensar no que viveram lá dentro – não se cansava de repetir, gentil. – Acaso são máquinas? Emudeceu. Quando, no primeiro de julho, as quedas da VPR somavam 43, André Yoshinaga Massafumi, 20 anos, entregou-se. Participante do Ribeira e do último seqüestro, rosto em todos os cartazes, lembrava um menino ao dizer-se comovido com as dinâmicas diretrizes do presidente Médici. Conclamava os jovens a participar dos projetos sociais do governo. "Lamarca é um doido, temperamental, inculto, a 405

serviço de terceiros. Só sabe dar tiros, empolgou-se com a causa(...) no Ribeira(...) corríamos riscos enquanto os líderes veraneavam no Exterior." O governo exultou: o progresso representado pela Transamazônica, discursos sobre o Nordeste e as 200 milhas de mar territorial anulariam o terrorismo. E o rigor desencorajaria ações como o seqüestro frustrado de um avião, no Rio. Três presos e um morto, Eiraldo Palha Freire. Todos do MR-8. Dia 8 de julho, Lungaretti na tevê. Acusou minorias alucinadas de promoverem uma luta inútil. O objetivo era matar, destruir, envolver o país numa sangrenta guerra civil. Lamarca desejava duelar pessoalmente com Fleury para exibir rapidez no gatilho, citaram os jornais. – Pô, que baboseira – entristeceu-se Lamarca. – Sacanagem, sempre nos demos bem. A imprensa publicou documentos apreendidos da VPR, o informe de Iara sobre o militante perturbado. E novos trechos da longa denúncia de Lungaretti: esbanjamento de dinheiro, alguns pareciam nababos; Darcy Rodrigues tentara violentar uma companheira; Maria do Carmo tinha ambições desmedidas; Lamarca quis assassinar Marighella e Câmara Ferreira. – As imposturas integram o imoralismo dos ditadores. Houve um movimento na VPR a favor de justiçar Massafumi e Lungaretti. A época da denúncia de 81 militantes da AP, entre eles Honestino Monteiro Guimarães e Paulo Stuart Wright, futuros desaparecidos, Lamarca manifestou-se11. Descreveu Massafumi um militante omisso e Lungaretti ativo, sem "vacilação ideológica a não ser desvios de individualismo(...) e falta de cuidado como patrimônio da Revolução". Concordava com eles, "a esquerda é um pântano... O processo revolucionário modificará essa realidade". Em vão procurou o colaboracionismo nas origens

de

ambos,

operários-estudantes.

Talvez

na

solidão

da

rigorosa

clandestinidade, "difícil a pseudo-revolucionários... O desafio de fazer a Revolução é para Revolucionários e o processo vai selecioná-los". Terminava afirmando que à repressão interessava o justiçamento pois "ganha a massa pelo sentimentalismo... O Comando firma posição contrária à eliminação dos dois traidores(...) e assim bloquearemos a jogada. Analisemos os fatos com espírito crítico, sem emotividade. A discussão está aberta".

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BNM, doc. 8462, Anexos "Comunicado Interno n 4".

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– Nunca justiçaremos alguém cegamente; facínoras sádicos são capazes de reduzir uma pessoa a farrapos – afiançou, persuadido. Também na questão dos seqüestros, Iara alertou os companheiros. – E se não der certo? Mataremos o refém? Quem dá o tiro? A advertência, contestada, gravou-se em Lamarca. Numa brochura magra impressa em mimeógrafo, Caminhos da Guerrilha, atacara em 1969 o "humanismo burguês" ao qual importam os interesses, aspirações, bem-estar do homem. Só o exerceriam quando interesses políticos o exigissem. Acreditava no caráter educativo da violência – morte do explorador ou de quem lhe concedia carta branca. Só era válido o humanismo marxista, fundado na luta de classes. Agora acusavam a esquerda de 39 mortos e 183 feridos em três anos. Gente nossa no meio, gente deles em fogos cruzados, tanto faz. Politicamente é mau. Iara voltou ao Rio. Prosseguia na coordenação da Frente e cuidava de Angelina, mãe de Maria do Carmo, preventiva decretada. Não se recompunha da dor, Juarez morto, a filha longe e carente. Inês apresentou-as num ponto da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Voltou ao apartamento de Deusa, que se surpreendeu. – Isa, você sumiu? Pensei que não vinha mais. – Tive uns contratempos, agora está tudo em ordem. Não contou que passara algumas vezes diante do prédio enorme, diferentes horários, de carro e a pé, checando a segurança. Todos os caminhos e pessoas, ciladas potenciais. Deusa vivia preocupações semelhantes. Túlio Roberto Quintiliano, enteado preso nas passeatas estudantis de 1968, antes de ser solto fora obrigado a engolir ofensas ao pai, ex-militante do Partido Comunista. Dois meses antes de Iara chegar, agentes procuraram Deusa em casa. Queriam o paradeiro de um homem citado no livro de memórias de Aylton Quintiliano12. Nenhuma das duas suspeitava que aquele apartamento era especialmente perigoso para Iara. – Nunca imaginei que fosse me aparecer algum clandestino – Deusa ri muito. – Incrível. Eu mesma, mocinha, fui Miss da Imprensa Popular, o jornal do PC. Ficaram amigas. Às noites conversavam, pois nunca saíam. Iara ensaiava o que aprendera nas aulas de Márika Gidali na época da Faculdade. Faziam ginástica 12

A Grande Muralha – Sem menção de editora, 1960.

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para emagrecer. Tânia, a enteada, vinha bastante – um sobe e desce contínuo entre os apartamentos – e dançavam soltas, o samba no toca-discos ou rádio. – Isa era dócil, afetiva e risonha. Às vezes parecia distante mas logo mudava. Faceira, vestia roupa de qualidade. Lavava os cabelos, punha rolos. Apesar da brancura, irradiava saúde. "É São Paulo", desculpava-se. O corpo, menos bonito. Tânia até comentou, faltam formas para quem faz balé e ginástica. Duas ou três manhãs, nas férias, Iara levou os meninos à praia. – Minha lembrança é de alguém branco-leite na areia. Chamava a atenção. Uma vez tomou sol demais e ficou vermelha. Era bonita – lembra Alcêdo, um dos filhos de Deusa. – Na falta da empregada, cozinhava um almoço ligeiro para nós: macarrão, bife, salada. Um dia perguntou se tinha iogurte. Eu desconhecia. "Nossa! Você não sabe o que é iogurte?" Fiquei envergonhado. Mania de tocar violão no corredor devido à ressonância, aconteceu de Alcêdo acordá-la, Deusa no trabalho. – Nunca me passou pito, muito delicada. Eu pedia desculpas. Também a mãe de Maria do Carmo impressionou-se com Iara. – Transmitia serenidade, atenção filial. Que carinho me passava! Fiquei comovidíssima há poucos anos, em Nossa Senhora da Conceição da Lapa, Minas Gerais. Minha irmã tirou o rosário de 150 contas pretas, bonito. E orou. Era de Iara, que pedira "dê a alguém que o respeite", à Maria do Carmo. Fica na cabeceira. Sempre que faz a oração do rosário, reza pelos dois. Iara gostava de cuidar das mulheres mais velhas, saudade de Eva, Encarnación, mães de súbito dependentes, os filhos tomaram o mundo a peito. Levava flores a Angelina, rosas e violetas. Frutas. Dinheiro. Preocupava-se com o braço dormente. Descrevia cenas alegres, Maria do Carmo personagem central. Elogiava a colcha de barbantes interminável – contenção e sentido ao tempo, tal as bolinhas de Lamarca. Encorajava-a a falar. Prometia: – Fique tranqüila, a VPR está providenciando a sua saída. É questão de honra levá-la a Argel. Um amigo de Deusa tocava violão, especialista em serestas. Iara aplaudia. – Olhe, podem dizer que sou cafona, adoro música dor-de-cotovelo. O rapaz simpatizava com ela. – Você gosta do Rio, Isa? 408

– Do Rio mesmo, não. Eu gosto é da Deusa – e abriu os braços, cabeça para o alto, riso grande. Um dia, Deusa e Iara tomavam café sentadas à mesa da cozinha espaçosa. A conversa focou os cartazes de procurados. – Eu disse que achava Lamarca um homem feíssimo. Isa reagiu de forma tão espontânea, que desconfiei. Exclamou: "Puxa! Eu acho o Lamarca lindo!" Foi apenas um lampejo, a moça estudava balé, saía de sacolinha todas as tardes. De qualquer forma, começou a observar a inquilina. Pouca roupa e nenhum objeto pessoal no quarto, tornando mais parco o aposento de cama, armário, cômoda. Tanto seria bailarina, como tira ou militante. – Combinei dizer à Tânia: "Você sabe que fulano caiu?" O termo "cair", da esquerda, provocaria alguma reação. Pois encenamos o pequeno esquete e Isa negou-nos a mínima atenção. Disfarçou bem – deleita-se Deusa. Alerta, falou de sua desconfiança a um dos numerosos amigos que a visitava. E se a inquilina fosse ligada a Lamarca? Um risco à segurança de ambas. – Imagine! Você está maluca. – E o jeito dela ao falar da beleza do homem? Ninguém se expressa assim, sem um sentimento forte. – Chi, não, você pirou. Ela acha bonito, pronto. Outro pormenor chamou a atenção de Deusa: o comentário de Iara ao livro de Aylton, um roteiro de desavenças com o Partido Comunista. – Seu marido defendia o nacionalismo. Evitava dizer comunista. Também estranhou a peruca. – Quando quiser é só pegar – e Iara exibiu a cabeleira. – Isa! Você não tem jeito de mulher que usa isso. E para que um cabelão desses? Não combina! Gargalhou. As suspeitas cresceram quando ganhou dela uma tiara vermelha. Só a via de cabelo meio curto. Iara começou a preparar outra morada ao primeiro sinal intrigado de Deusa. Mas certa noite assustou a amiga. Chegou chorando e correu ao quarto. Preocupada,

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Deusa bateu à porta e entrou. Viu-a sentada na cama, aos soluços, sem conseguir falar. Ajeitou-se ao lado e disse, a segurar-lhe a mão: – Isa, eu sei que certas coisas a gente não pode falar. Mas diga o óbvio, pelo amor de Deus. – Você tem um tranqüilizante? – Não, mas eu conheço um calmante maravilhoso, água e açúcar. Trouxe-lhe o copo. – Agora tome devagar, em doses homeopáticas. Devagar, aquietou-se. – Ela me disse que recebeu carta do homem a quem amava, acusando-a de outros namoros. Iara também se abaIara porque nesses dias de julho caíra Denise Crispim, grávida de cinco meses. Ao voltar à casa, o cerco. Esperavam Bacuri. Propositalmente deixou-se agarrar, para com os gritos alertá-lo. Certamente Denise sofria torturas, terror que prejudicassem o bebê. E a morte do irmão Joelson, 22 anos, que infortúnio! Num tiroteio? Na tortura?13 Pensava em Encarnación, presa, quase 60 anos, cardíaca, asma. O combatente resiste de pé, o otimismo é nossa profissão. O sangue aduba o solo da Pátria, a vingança que germina. Cai orvalho de sangue do escravo14. Recostou-se em Deusa. Iria a São Paulo ter com Lamarca. Nos intervalos de reuniões, ainda abatidos pela morte de Juarez, Lamarca fez confidências a Herbert Daniel. Sofria a falta de Iara. Tivera só três mulheres na vida. A esposa, uma outra – silenciava a respeito – e Iara. Não procurou nela o que lhe faltasse no casamento. Todavia descobriu-se diante do que jamais imaginara existir, mal

lograva

expressar-se.

Ternura,

sensibilidade,

inteligência,

humanismo.

Considerava execrável que muitos homens, inclusive companheiros, tratassem mulheres como ganhos de jogo. Mereciam dedicação, algo quase idílico. Orgulhavase desse tipo de amor que enobrecia, agora inteiramente devotado a Iara, a criatura mais linda e conseqüente que conhecera. Davam-se à perfeição.

13

Segundo Denise Crispim, na entrevista de Iza Freaza "Crime de Sangue do Estado: "O Assassinato", Pasquim 3.8.79, Joelson morreu num ponto na Penha. Encarnación Crispim, em 1986, disse que o filho foi torturado até morrer em abril de 1970, pelo coronel Francisco Antonio Coutinho e Silva, que foi chefe militar do Gabinete da Prefeitura na administração de Jânio Quadros (1986-1989). O militar consta da lista de 444 torturadores do projeto Brasil Nunca Mais, obra citada. 14 Castro Alves, Bandido Negro.

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Certo dia Herbert Daniel encontrou Lamarca desorientado grande angústia. Alguém lhe disse que Iara namorou Breno. Recusam se a acreditar, a voz enrouquecida: – Mentira, pichação! – Acho que Lamarca, ascético quase, não percebia os conflitos dela. Ignoro qual a dificuldade de Iara em abordar o assunto. Conflituoso. Viam-se pouco. Fica-me a impressão de que Lamarca acreditava ser o homem definitivo, antes ela teve um casamento fracassado e pronto. Até esse instante não fazia idéia da vida anterior de Iara, dos namorados. Lamarca decidiu mandar uma carta, como fazia com todos – sua comunicação, sentir-se vivo. Indignado, afluíram-lhe de uma só vez Iara casada e de biquíni em Quitaúna. As observações dos companheiros militares sobre as universitárias a propor amor livre. A ironia agora claríssima de Dilma e Breno cantando, olhares gaiatos. A demora e descompromisso quando ela lhe escreveu do Rio – não queria largar um nem perder o outro, pensou dolorido. O sentimento de culpa relativo à família em Cuba avolumou-se. Inconsistência revolucionária. Recebera críticas de sobra devido a Iara. Um líder tem conduta ilibada reprovavam-no, você abre flancos ao inimigo sedento de fatos que escandalizam as massas. Inadmissível a história de Breno. E quantos mais? A infidelidade enfraquece o militante. E questão política, ideológica. Mercadejar transforma o amor em consumo sexual. Interrompeu-se, o som de Pra Frente Brasil exasperava-o, rescaldo da vitória na Copa. Delírio popular, pobres brasileiros de pão e circo, a euforia do seboso e hipócrita ditador pencudo. O povo ainda se mobilizaria em torno de valores verdadeiros graças à coerência dos revolucionários na luta, férrea decisão e indiscutível solidariedade. Com esse espírito encerrou a carta, dura de acusações. Aparentando absoluta calma, Iara foi recebida por Lamarca. A sós, no pequenino quarto, teve a mais difícil conversa com o homem cuja perda a apavorava. Coloque-se no lugar dele, dizia-se, relativize a ansiedade, puxe o fio que o toca, trate a ferida, não se exponha além do necessário, afaste-se, observe os dois, vim lutar por nosso relacionamento, começou, consciente de comovê-lo, respeitava quem assumisse combate. Conheço Breno desde o movimento estudantil, reencontrei-o nas difíceis circunstâncias de carência afetiva no aparelho. Realmente namoramos, depressa percebi o engano, demorei na sua resposta, sim, decidir exigia reflexão, 411

muita, além da militância, vida ou morte, e aqui estou, para o bem e o mal, qualquer circunstância, ao paraíso, à fogueira. Choravam os dois, abraçados. Os companheiros carregam o machismo da sociedade, prosseguiu aliviada, o homem novo nasce ao transformar-se, nos aparelhos há desesperada precisão de amor, abraços reasseguram, quem diz que usa as mulheres aquém da inteligência, busca-se alimento vital na metrópole estrangeira, irreconhecíveis rostos novos, onde começa e acaba o indivíduo. o meu fantasma circula nos passeios, duas imagens desajustadas, ninguém deve me reconhecer, minha amiga Walnice no corredor de um prédio no Rio, vago sinal de sorriso e a pipa em descontrole cai aos corcoveios, nessas circunstâncias dois militantes amparam-se, um é espelho do outro, e quem se pode amar além do instinto de sobrevivência mais profundo? Os reacionários e a imprensa burguesa envenenam, o governo espalha a idéia de esquerda orgíaca, exijo que você compreenda, o amor de hoje é impostergável, à véspera da morte. Reconciliaram-se.

Lamarca passava os dias em reuniões, leituras e a escrever. Mudava de humor na véspera da chegada de Iara. – Vem a Norma, vai ter banho hoje? – maliciavam os moradores. Do Ribeira mantinha o hábito de parca higiene, que a depressão do isolamento reforçava. Alegre punha-se debaixo do chuveiro, vestia a roupa limpa que Fanny preparava. E sempre a recebia na sala, amoroso. Pareciam namorados adolescentes. Sentavam-se no sofá a conversar e ler, colados. Às vezes interrompiam-se com abraços e beijos. Ivan lembra-se que não chocavam, puro sentimento. Ela gostava de acariciar-lhe as mãos, que entrelaçavam. Mexia na barba que crescera na Serra. – Encobre as cicatrizes. Ainda tenho ódio desse rosto, não é meu. Falou de Cláudio Willer e das conversas sobre Reich. Fascinou-o a idéia de que aguardava de si a imagem interior, por isso o choque da marca, ferida, rugas. O espelho contradiz a fantasia, explicava-lhe Iara. Queremos ver o lado belo, a firmeza de caráter, serenidade. De que serve ajeitar-se, olhe, forçava a própria testa, o medo espreita nas linhas acima do olho direito, ou assim, a testa inteira em rugas, são as perguntas, a incerteza. Ou entre as sobrancelhas, a procura, queremos compreender o mundo, os outros, o eu imponderável. O rosto é a fronte do cérebro, sua expressão 412

maior. Por isso é tão vulnerável ao aparelho do oculista, o dentista. Invasivos. Você arrancou os dentes, já pensou? Todo o poder da Rainha Má não vale um espelho, quem sou eu? Lamarca mutilou-se pelo povo, iniciação à guerra, o seu rosto é lindo, amo-o, acariciava-lhe as faces. Você está inativo e angustia-se, esconde o rosto sob o lençol, não há os mosquitos da Serra, minha irmãzinha protegia-se mais ou menos assim, anote, um novo ciclo começa. A plástica foi um ritual de sacrifício. Oferenda arquetípica, coisa sua que morre no altar, renasce, o ego liberta-se dos tentáculos protetores. É o rosto da coragem, do herói popular. A esposa de Seixas, ao contrário do filho, incomodava-se com o dois. Paixão ilegal, inadmissível um homem bígamo. Usurpadora, despudorada. – Não aceito, não admito – protestava ao marido. Iara tentou aproximar-se. – Você anda meio estranha comigo. É porque namoro o Cid? – Não é nada disso. Insistiu. Cumprimentava-a, amável. Oferecia os préstimos na cozinha, deixando claro que não a consideravam uma criada. Irredutível. Lamarca aborreceuse. É um nó, meu bem, interpretou Iara. Tem ciúme, você filho e eu nora. Projeta os medos, passou dos 50, o marido tantas vezes fora, as militantes jovens. E o pavor diário? O filho sai para ações mortais. Sou o escape ideal. Jovem, bonita, ativa na luta, companheira do líder. É necessário compreender as motivações. O azedume levou Lamarca a justificar-se para Ivan. Sua esposa, agora em Cuba, não estimulava a atividade política. Iara fortalecia seu desempenho revolucionário. – Acho que a grande afetividade de Iara o seduzia – distingue Ivan Seixas. – Ela oferecia o oposto da rigidez. Amava a humildade bonita de Lamarca, tida erradamente como despreparo. Os militantes eram meio insensíveis. Perderam os nomes, enfrentavam ações armadas e enorme violência dentro de si. Iara preocupavase em permanecer sensível. Nunca exaltada. Dava-me atenção, proseando brincalhona, embora eu fosse um garoto. De meu irmãozinho queria conhecer o cotidiano escolar. Notícias ruins.

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– A necrofilia está no ar – lá vai Evita embalsamada para a Europa encontrar Perón, lá vai o Esquadrão da Morte beber sangue depois que assaltantes mataram um tira. Exterminaram nove até acertar o assassino. – Que pena, estão desbaratando os Weathermen nos Estados Unidos. O nome vem de uma canção de Bob Dylan15. Dia 22 de julho, a condenação de Túlio Quintiliano a um ano. Iara sairia imediatamente do apartamento de Deusa, mas quis despedir-se. Também caíra em Pernambuco o esquema do PCBR que seqüestraria o cônsul do Japão. Na lista dos presos a trocar, Jacob Gorender. Vagas para a VPR e VAR. Quarenta ao todo. – Ao menos morreu Salazar. E temos D. Hélder na Europa, a denunciar que o Brasil é uma só masmorra de torturadores.

Julio Barone costumava trazer carta de Marina Heck a Iara. Saudosa, queria reencontrá-la. Idealizava-lhe a vida, o romance, os riscos. Assinava Modigliani, porque no TUSP diziam que seu perfil lembrava o pintor. Iara respondeu uma vez. Mas não dispunha de espaço. Quando e aparelho de Lamarca, só por determinação dele o deixaria. Meses depois, os torturadores cismariam em arrancar dos arquitetos a identidade de Modigliani. Extensos relatórios dos companheiros, inclusive do Exterior, aborreciam Lamarca. Por que a demora no regresso? Não concebia o estrago físico e mental dos torturados, a culpa. À insistência de que um debate sobre a guerra revolucionária era urgente, mas no Exterior, respondia com letra ainda mais diminuta na folha de seda dobrada sete, oito vezes, que não acreditassem tanto nas derrotas. Reformulavamse. A eles é que cabia voltar, o portador ensinaria o caminho das pedras. Emoções ligadas ao Brasil, alguns banidos concordaram. A maioria, entretanto, fantasiava tirar os companheiros do país. Iara, de novo na Guanabara, participou a Deusa que viajaria. Deixou os pertences e ofereceu-lhe um lenço de seda preto. – Ué, Isa – ressabiou-se. Você disse que volta. – A gente nunca sabe das coisas, certo? – modulou em voz afetada, braços a balançar enquanto cruzava a porta. 15

You need a weatherman to tell wich way the wind blows.

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No sábado seguinte, uma jovem apresentou-se como amiga de Isa. Baixinho, comunicou à dona da casa que a inquilina muito a estimava, e a homenagearia. Ao despedir-se dos amigos que enchiam a sala, objetos de Iara numa sacola, balançou o jornal: – Leiam, são boas novidades. Tratava-se de um assalto bem-sucedido. Perplexos, viram-na sair. Não demorou, uma prima dos Quintiliano apareceu em casa de Deusa. – Vi a Isa outro dia num bar em Copacabana. Quase fui falar com ela. Os temores afloraram. – Não faça isso, nunca! Entendeu? Em canto algum, se topar com ela! Por quê? – Obedeça – a rispidez era inusitada. – Não me pergunte nada, nem fale. Entendeu? Caio Túlio refugiou-se na Embaixada do Chile, quase em face ao prédio. Obteve asilo. FuziIaram-no em Santiago16, setembro de 1973, no dia de Allende. Tinha 29 anos. Deusa usou o lenço após a morte de Iara, negro sinal de luto. Tem certeza de que num de seus nomes, "Neusa", estava a homenagem prometida. Em 1987, a Prefeitura do Rio concedeu ao grupo "Tortura Nunca Mais" que as ruas e praças de um novo loteamento tivessem o nome de mortos e desaparecidos do regime militar. Deusa foi ao batismo da rua Caio Túlio Quintiliano. – Pedi para passar na praça dela, ainda cheia de mato. E disse: Iara Iavelberg. Presente. Em São Paulo, na Aclimação, em casa de uma senhora que lhe pareceu nórdica, Iara alugou a suíte ideal. Devido às múltiplas ausências, Inês e ela apresentaram-se como guias de turismo. Nessa época. além dos contatos, alugavam aparelhos e montaram uma oficina de automóveis, fachada para troca de carros. Provavelmente veio da primeira vez que pernoitaram juntas ali, a recordação que marcou Inês, fresta no cotidiano tolhido. – Fomos dormir, tiro uma camisola. Iara deitou-se nua e explicou: "não quero nada me prendendo". Achei um exagero mas compreendi que era um gesto de

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Alfredo Sirkis: Roleta Chilena; Ed. Record, 1981 (Caps. 3 e 4, "Roleta chilena" e "Bairro Alto").

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liberdade do corpo. Foi a pessoa mais liberada que conheci, a mais liberada das militantes17. Nem sempre Iara conseguia avistar Lamarca. Juntos, sonhavam com o impulso que daria à luta a libertação dos 200 prisioneiros no tríplice seqüestro: um embaixador, o ministro (provavelmente Delfim Netto) e um "capitalista". Seria um estardalhaço comparável à ação dos tupamaros: acabavam de levar o cônsul brasileiro em Montevidéu, Aloísio Dias Gomide, e o funcionário americano Dan Mitrione, chefe de segurança da Embaixada dos Estados Unidos. Professor de tortura no Brasil e Uruguai18, portava no relógio a dedicatória dos "amigos da Polícia Militar do Rio". Os tupamaros exigiam a soltura de quase todos os presos políticos. – Bom trabalho. Usaram 16 carros roubados. Médici agradeceu a Jorge Pacheco Areco, presidente uruguaio enfraquecido e sem poder decisório19, o intento de libertar o diplomata. Coube ao ministro do Interior uruguaio opôr-se à negociação. A polícia varreu Montevidéu. Atirou a esmo fuzilando populares, envolveu-se em tiroteio no terceiro seqüestro, do assessor americano Claude Fly, e conseguiu prender 38 tupamaros, inclusive o líder Raúl Sendic. Mitrione foi justiçado dia 9 de agosto. A ameaça de matar Gomide gerou solidariedade ao governo Médici e à conduta brasileira nos seqüestros.

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Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "Para reforçar a fachada, muitas vezes entramos na casa com Iara falando inglês e eu fingindo entender. Em São Paulo não saíamos à noite, por motivo de segurança. Comprávamos pizzas para o jantar e ficávamos lendo ou jogando cartas. Mas conversávamos muito também. Iara era muito espontânea e falava de si mesma com a maior naturalidade. Ela transava muito bem com seus problemas, talvez pelo fato de ser psicóloga, e não sentia necessidade de esconder coisa alguma sobre si mesma ou sua vida. Falou-me do seu casamento com um médico e como eram ambos totalmente despreparados para um relacionamento mais profundo, principalmente ela, aos 16 anos (...) Sentia grande necessidade de buscar seu desenvolvimento intelectual e resolveu estudar Psicologia (...) Teve seus namorados mas disse que apaixonar-se, mesmo, só pelo Lamarca. Queria demais ter um filho dele e tinha esperanças de que isso viesse a acontecer (...) Uma ocasião, disse-lhe que gostaria de me conhecer melhor e pedi-lhe que fizesse um teste psicológico comigo. Recusou-se, dizendo que ... os testes, em Psicologia, eram apenas um elemento de ajuda e que seria necessário um processo mais longo para o autoconhecimento. Como eu insistisse, ela fechou a questão, dizendo que seria contra a ética profissional. Mas eu estava com vontade de discutir: (...) ética profissional era um conceito burguês. Iara retrucou: 'Pois esse conceito vai continuar existindo no sistema socialista, por ser uma necessidade do próprio ser humano.' Ainda insisti: 'E se fosse uma ordem do Comando?' Ela, encerrando o papo: 'Não se cumprem ordens absurdas'." 18 A.J. Langguth: Hidden Terrors (reconstrução da vida de Dan Mitrione), Pantheon Books, NY; 1978. 19 Carlos Castelo Branco, obra citada 7 a 13.8.70.

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Eduardo Leite ansiava pela ação e montava sua estrutura. Queria arrancar Denise e a criança em gestação dos torturadores. Iara, Inês e Herbert Daniel, envolvidos no plano, moravam na avenida Nossa Senhora de Copacabana, à altura do Posto 6. O apartamento pertencia a Nazaré Rocha, Helena, amiga de Inês que militava na FLN, quase extinta pela infiltração20. A polícia procurava-a. Se caísse teriam de abandonar o aparelho e Inês telefonava-lhe diariamente da rua. Dia 10 de agosto, a repressão vazou informações à imprensa. Denise Crispim, ligada a Iara Iavelberg, daria à luz, livre, num hospital. Pretendiam atrair Eduardo Leite. Também mencionaram a morte de Joelson num tiroteio. Logo Nazaré deu uma notícia ruim a Inês. – A companhia telefônica quer vistoriar o telefone do apartamento. – Vamos nos ver. O ponto, à noite, era na calçada cheia de gente antes de começar a peça do Teatro de Bolso, no Leblon, que pertencia a Nazaré e ao irmão – local temerário, se já conhecessem a identidade de Helena. Esgueiraram-se entre dois ou três carros parados à frente, em direção ao botequim. – Não existe telefone vistoriado – Inês careteou por causa da qualidade do café. – Horrível. Bem... Melhor largar o apartamento, preciso mesmo ir a São Paulo. – Você tem dinheiro? – Um pouco. – Quer mais? – Você tem? – Recebi uma grana. Sempre generosa, abriu a pequena bolsa branca, bojuda. Distanciavam-se prudentemente de um metro mas Inês viu o grande bolo de notas. No instante em que Nazaré pôs a mão dentro, um mulato alto agarrou-lhe o braço. – Maria Nazaré! – comandou.

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Alex Polari cita que os dois infiltrados, "Pai e Artur", que conheceu (obra citada), conseguiram entrar na ALN, impedir o novo seqüestro e "derrubar quatro militantes... entre eles Bacuri. Reapareceram em 1971 no PCBR e foram responsáveis pela queda de militantes e dirigentes (...) Identificamos os dois (...) mas Geraldo, direção do PCBR, os avisou da suspeição (...) Não permitiu que (..) fossem justiçados pela Frente... foi preso em seguida ao seu aviso". Os dois teriam ocasionado a queda do sítio onde estava Wellington.

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Inês, imóvel, concentrou-se no cafezinho e saiu devagar, simulando nada perceber. Nazaré renunciou ao escândalo que garantia testemunhas. Quis proteger a amiga. – Ainda a vejo, uns 40 anos, magra, frágil, conduzida a um carro. Os veículos, aqueles defronte ao teatro, seguiram-no. Fiquei entre as pessoas que iam ver a peça, até um sujeito parado na esquina partir. Ai, peguei um táxi. Mal entrou no apartamento, avisou os companheiros: – Caiu o aparelho. – Sério? – Herbert Daniel suspeitou de humor negro. – Para já. Não sei quanto tempo a dona agüenta. Rapidamente juntaram objetos. O rapaz separou-se das duas, que foram a um hotel, identidades falsas21. No apartamento, protegidas, pediram um lanche. Depois do banho Iara bebeu devagar o chocolate quente, lembra o Toddy que tomavam, ela e Raul adolescente. Alguns alimentos nos recolocam, teorizou. Aleitam, apaziguam a dor. Socorro ancestral. Agora, relaxadas, sentimos a tensão. – Só aí contei o que aconteceu a Nazaré. Gostava demais dela, senti grande pena. Mas era a vida. Ligaram o ar-condicionado frio apesar da agradável temperatura do inverno carioca. Queriam a proteção de cobertores. Nazaré foi libertada no seqüestro do embaixador suíço. Em janeiro de 1971 chegou ao Chile. Sem a amiga que as financiava, dispunham de pouco dinheiro. Pagaram a conta depois do desjejum, ainda sem esconderijo. – Vamos à sauna. É formidável para acIarar pensamentos. Obedeceu, surpresa. – Iara conhecia lugares incríveis. Também me escoltou ao Jambert, onde pintei o cabelo. Tomaram sauna, ducha, caíram na piscina, aqueceram-se no banho a vapor. – Tenho um abrigo fora de série – os olhos de Iara umedeceram – Prometa que você nunca o utilizará, pois pode cair e arrebentar as pessoas.

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Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "O ponto principal era não causar suspeitas ao gerente do hotel, seja pela aparência ou justificativa aceitável para estarmos ali. Iara ficou incumbida de resolver o problema, pois sabia se impor aos empregados da burguesia, fazendo-se passar por uma pessoa dessa classe social. Fiquei impressionada com seu desempenho".

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– Claro. A Inês, pareceu convento. Amplo, bem cuidado. Orava-se antes das refeições. Ensinou a Iara o sinal da cruz, o Padre-Nosso e a Ave-Maria. – Basta mexer os lábios. Acatavam rigorosamente o horário de regresso, oito da noite, e entretinham-se no salão de leitura. No quarto riam dos gestos maljeitosos e ar compungido de Iara à reza. Também se divertiam com suas histórias do passado. – Descrevia tudo de jeito tão engraçado, que gargalhávamos. Contou do marido, da total ignorância dela na noite de núpcias – "o que ele fazia, eu achava certo". Dia 12 de agosto, em São Paulo, Carlos Franklin caiu. Ao perceber que não resistiria à tortura durante quase uma semana de pontos marcados, decidiu matar-se. Iara soube dele já internado no Hospital das Clínicas, sobrevivente. – Na tortura inventei um encontro com Lamarca e disse-me: olha, cuida que tu és tão filho da puta que chegará o momento amanhã e não te matas, e tu sabes que tens de te matar, porque depois de ponto frio o pau aumenta, já te advertiram, e tu não agüentas. Escolhi uma esquina movimentada, carros em velocidade, era só me lançar. Eu poderia esperar no máximo dez minutos, a região cercada. E não me matava. Barbada, só atirar-se e morrer. Não me matava. E sabia que vinha pau, que não agüentaria. Passam séculos, é uma corrida em que quanto maior a disparada mais distante o final, a natureza da eternidade, até que atingi o lapso de segundo da conciliação. Aqui passa jamanta, ônibus, tudo flechado, se eu me atiro de cabeça para baixo há chance de sobreviver, que me arrebente de forma a não me torturarem por cinco dias e saio dessa, procurei o carro certo, corcel é altinho, pesado, me mata, fusca, baixinho, me mata, e eis que na angústia surgiu a Kombi. Antes do desmaio, a cena confusa. Gente aglomerada, o motorista lamentando-se "por que comigo?". Inês e Iara continuavam a procurar morada. Interessaram-se por uma edícula e descobriram em tempo que se tratava de cilada22.

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Depoimento de Inês Etienne Romeu: "Ficava em cima da garagem de uma casa em rua próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas. Conversamos com um casal de velhos e fomos olhar as instalações. Voltamos à casa e, poucos minutos depois, apareceu um tipo suspeito, que nos foi apresentado como sobrinho dos velhos. Houve certa tensão, os velhos apresentavam sinais de apreensão e nos disseram que o sobrinho lhes devia dinheiro. Era uma conversa estranha. O tal sujeito nos olhava intensamente e se retirou em instantes – sem pagar os velhos. Uma troca de olhar foi suficiente. Saímos dali imediatamente, pois o tal indivíduo poderia ter ido buscar reforço. A repressão já estava utilizando o método de anunciar, em jornais, lugares para alugar mais ou menos dentro das características de

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Um dos infiltrados da FLN entregou Eduardo Leite dia 21, desarmado. Emprestara a arma. Fleury e agentes do CENIMAR cuidaram para que chegasse a São Paulo com as pernas paralisadas23. A queda traumatizou a todos. Dificilmente sobreviveria. Nem ele abre a boca, nem deixam de vingar-se de cada uma de suas ações. Iara deprimiu-se, queria ver Lamarca. Eduardo, Denise, Joelson, Encarnación, deceparam um galho inteiro. A revolução é uma árvore de inverno mutilada, sem folhas. Atravessamos um campo minado. Fazia-lhe falta a cumplicidade de Maria do Carmo, inadmissível certeza da batalha perdida, horror do recuo, e vem o ato falho, expiamos na tortura o imperdoável pessimismo, os mortos, a culpa, que outra armadilha conduziu Maria do Carmo e Juarez ao ponto caído, Ladislau à polícia? Minimizamos a desconfiança geral contra a FLN, resistência em admitir os furos, sobra tão pouco. Preservemo-nos do instinto de sobrevivência, a um passo do desbunde. Viajaram separadas a São Paulo. Iara reencontrou-se com Lamarca por algumas horas, desvio pensar em nosso amor cismava ele, cabisbaixo. Conveio e o exíguo espaço evaporou-se. Viajava no vagão da frente por túneis escuros, periódicas plataformas de luz, vida. Chegar. Rara e preciosa parecia-lhe a estação do metrô, filme ou sonho. Segundos de parada e novamente negrume estreito, curvas cegas, estranho reflexo nos trilhos. Lamarca e eu desconhecidos, saudade de Christine, o jeito nervoso, premente, qual será o tempo do amor, aqui e ali minhas casas, a Silva Bueno, Ely serena, tudo provisório, desacertos. Lamarca é sólido, minha difusa realidade, eu sou a fantasia dele que me preenche, ar, meu primeiro homem um manso guerreiro, dentro dele encontro outra, eu, o trem não pára, a massa crítica faz água, presa em ferragens velozes, carne em frangalhos, restam vibrações. – Havia um vazio enorme de dentro, um desencontro de base – observa Herbert Daniel. – Às vezes penso: é mentira ou não? Ela queria um homem que tivesse ciúme, certas exigências machistas. O jeito de Iara, feminino, belo e quase desmaiado, correspondia à concepção ideal dele. Isso gera o equívoco. Lamarca foi um grande homem, pessoa admirável, raro carisma, a figura mais próxima de herói que eu conheci. Nunca vi ninguém parecido. E o encontro dos dois é uma tragédia de amor

"aparelhos" que tinham caído anteriormente. Era uma armadilha. Algumas prisões de militantes, aparentemente inexplicáveis, podem ter acontecido assim. Os órgãos de segurança se interessavam até mesmo em conhecer locais já abandonados". 23 Veja, 15.8.79.

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igual às grandes tragédias de amor. Duas pessoas amam-se e tudo em volta afastaas. Lutam pelo amor na permanente presença da morte, o seu destino. A própria determinação os conduz ao fim – inclusive na simbologia mais profunda. O que parecia uma gravidez no Ribeira foi um distúrbio. Um amor que nos deixou uma sensação de desconforto pois vivemos a tragédia juntos, impotentes, fora do alcance os reunir ou separar. Prejudicávamos o contato por causa das tarefas, a segurança, o risco de estarem juntos. Formamos elementos de um quadro trágico, o deles, dos outros, o nosso, forças do destino que sequer existiam. Minha sensação é de Iara marcada, a vida inteira marcada.

Dina Sfat. Com os pais na pizzaria

NO FINAL DE AGOSTO Iara passou de carro na praia de Ipanema, bem cedo, e viu Dina Sfat sentada num banco, carrinho de bebê ao lado Impulsiva, desceu. Dina, agora famosa atriz de novela, não a reconheceu de chofre. Observou a moça de cabelos castanhos, uma peruca, lencinho no pescoço e excessivamente maquilada. Só ao alcance da mão, inconfundível voz cantada, soube quem era. – Meu Deus, que emoção! – Não resisti e vim dar um abraço, esperam-me lá – e Iara riu para a nenê de poucos meses, deitada. – Decore meu telefone – enumerou-o. – Se puder, ligue. Dina macunaímica, diria, expressiva, mãos nervosas, guerreira que descobre a liberação sexual. Ci é mulher de malandro, existe mais brasileira? A guerra e o amor clandestino, o fim começa aqui. Dina voltou angustiada ao apartamento na rua Maria Quitéria e descreveu o encontro a Paulo José. Iara e Lamarca, romance público, os dois mais perseguidos do Brasil. Na tarde do mesmo dia Iara telefonou e Paulo José foi buscá-la. Esperava-o sentada no banco de praia, o rolar contínuo das ondas hipnotiza, não penso em nada. Paulo José acomodou-se ao lado. Impressionaram-no as feições cansadas enquanto ela olhava o mar, horizonte cinza. Sem se voltarem para o outro, cautelosos, temor contínuo de um fotógrafo às costas, na rua, trabalho, cinema, Dina costumava resumir "o espião janta conosco", algo do isolamento de um velório, pensou Paulo José, 421

qualquer frase carece de sentido. Dirigiram-se ao apartamento na Maria Quitéria, aos poucos ele redescobriu o rosto de outrora. Vivo, certa ironia. Lembrou-se do TUSP, Iara impaciente, mordaz, eu vivo um processo de urgência, vocês e intermináveis filigranas em torno da poética de Aristóteles, a nova poética de Brecht, talvez o Pequeno Organon para o Teatro seja um instrumento, mas sem muita teoria estética, por favor. Vamos à prática. Não terá Iara, na pressa, incompetência ante a própria vida? Pinóia, agredia, frase de efeito, você é reativo à repressão. Ensaiávamos As Mãos Sujas e Sartre proibiu a peça em todo o mundo, no momento não convém debater a doença infantil do jovem que deseja explodir o mundo, qual a resposta política eficaz no Brasil? Paulo José e Iara caminharam sob as árvores da calçada a recordar o TUSP, recém-dissolvido em Nancy porque vários já não voltariam, saudade de Albertina, André, amenidades. Sentou-se na rede sorvendo a tarde a fluir lenta, suave como o arranjo harmônico da sala, a claridade, plantas, livros, a beleza de Dina, perigo nenhum, visita inopinada ao planeta. Paulo José compreendeu que ela os poupava, como se fosse uma bomba. Ci. Donde a sensação de rapidez, quando vi foi embora. E Dina dizia-se meu Deus, essa pessoa tão calma, tranqüila, tão nossa conhecida, amiga, que a gente ficou tanto tempo sem ver, de repente sob enorme ameaça, de repente essa conversa absurda, três pessoas juntas, que não poderiam nunca estar juntas a conversar. Ao contrário de Paulo José, gravou uma pessoa madura, planos traçados. – Não nos pediu nada. Nem dinheiro, nem roupa, nem abrigo. Só a ouvimos. Contou-nos que lia tudo sobre tortura, provavelmente inevitável. Prepara-se para viver, pensei. Existe o texto e o subtexto. Passou-nos um texto coordenado e coerente. Transgredira as regras da organização por afeto. Nós também, ao convidá-la, conscientes do risco. Nunca mais nos procurou, e ninguém o fez em nome dela. Foi generosa. Pergunto-me se tinha expectativas, já que falou de tortura. Talvez, macunaimicamente, imaginasse que a protegeríamos via TV Globo. Iara precisava de dinheiro e pensou em vender suas jóias. Certa vez avistou um casal conhecido, de São Paulo1, e pediu-lhes que dessem o recado à família. Perdera a noção do pavor que as pessoas tinham do terrorismo de Estado. O casal evaporou-se. – Vou providenciar a venda, eu mesma. 1

Inês Etienne Romeu, depoimento.

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Aquietaria a saudade. Veria de novo os olhos escuros da mãe, cheios de amor e orgulho, a filha agente da História. Viajou e expôs o projeto a Lamarca. Simples. Entro no prédio, agora na Dona Veridiana. Peruca e óculos. Subo as escadas, quarto andar, toco a campainha. De tão improvável, nada acontecerá. Lamarca ponderou que Iara precisava de cobertura. Ele a faria. Irresponsável arriscar sua vida numa visita sentimental, tentou dissuadi-lo. Irredutível, quis protegê-la. E assim foi. No início de setembro, Lamarca postou-se armado num carro, a 20 metros da entrada do prédio. Iara passou pelo tira porteiro que vigiava os passos de Eva, David, Rosa2. Subiu as escadas e tocou a campainha – que os pais tivessem recebido o recado! Quando Eva abriu, televisão ligada, mal compreendeu que a filha fo chara a porta atrás de si e a abraçava. Lágrimas escorriam de David estupefacto. Ninguém falou até se controlarem. – Preciso ir embora depressa. Vocês saem daqui a pouco. Tomam um táxi, descem na Paulista, caminham um quarteirão. Pegam outro e chegam à pizzaria. Explicou a rua na Aclimação. – Mãe, leve as jóias que preciso vender. Tremendo, aquiesceu. Observou que Iara empalidecera, nervosa, e examinava os móveis da pequena sala, sobre o aparador o castiçal de três braços, do casamento com Sá. Logo abraçou-os esquiva e desapareceu no corredor ladrilhado para o qual se abriam os vários apartamentos, mureta a proteger do espaço vazio, a área do edifício lá embaixo. Poderia atirar-se em caso de perseguição, pensou. Acudam o corpo caindo em câmara lenta, quase um esvoaçar, rosto sem vida no colo da mãe. Desceu as escadas devagar e ereta saiu do prédio. Lá estava o amado, vigilante. Nunca o amou tanto, nem o rosto lhe pareceu mais familiar. Silenciosos, sem tempo de voltar a si, os Iavelberg prepararam-se Eva pegou as poucas jóias: a aliança de diamantes, presente dos sogros de Iara; brincos e anel. Na pressa esqueceu o colar de platina com o pingente, oferta de Sá. Iara esperava-os sozinha na barulhenta pizzaria de bairro, odor a lingüiça calabresa. Comeu, gulosa, e repetiu suco de Iaranja. Olhava os pais alegre, êxito na

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Várias vezes pretendeu tê-la visto. Ato continuo a polícia molestava a família. Armários e apartamento revirados mantinham o clima de retaliação e vexame. Numa das vezes em que a perua C-14 veio buscar os três para depor no DOPS – também os carregava ao DEIC e à OBAN – Rosa viu o porteiro entre policiais.

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empreitada. Tudo daria certo. Eva e David, sufocados, não admitiam perder de novo a filha, submersa numa selva de horrores. – Iara – principiou Eva -, por favor, saia do Brasil. Examinou-a, surpresa. – Não dá, mãe. – Melo e Raul foram. Deu. Por que para você não dá? – Impossível, mãe. – Iara, pelo amor de Deus, saia do Brasil. – Pense um pouco – interferiu o pai. – Vocês não têm chances. É loucura, insano. Você quer morrer? – Não é isso, pai. Alguém tem de ficar. – Mas Iara – Eva suplicava -, Iara, pense no futuro. Na gente. Nos seus irmãos, na Rosa. Iara, vá embora. Não fique mais. Nós ajudamos você a sair, a viver lá fora. Onde quiser, Iara. Pelo amor de Deus. – Não dá, mãe. – Explique-me por quê – quase desmaiava de dor. – Não podemos compreender, não consigo. Choravam os três, discretamente. Inquieta, receio de chamar atenção, Iara calou-se. – Fala alguma coisa, filha. Seus irmãos se salvaram. Fala alguma coisa. – É opção de vida, mãe. A opção que eu fiz. Eles foram, eu fico. Opção de vida. O pavor de Eva manifestou-se em anos de sonho recorrente. Fugia do prédio e as paredes da escadaria fechavam-se sobre ela. Passado o choque da visita, voltaram à infindável discussão sobre os caminhos de Iara. David culpava o casamento. Apesar dos estudos, intimamente revoltada, não superou a frustração. Eva discordava. A filha convencera-se da imperiosa necessidade de lutar pelo socialismo e rejeitava a idéia de passar mais uma geração em reuniões. Ansiosa por atuar e, acrescentava David, ela e os rapazes eram manipuláveis. Já Rosinha, desde pequena ciosa do seu espaço, empenhada em defendê-lo, não quis saber de política. Iara voltou à Guanabara, ocupada em orientar companheiros a exibir comportamentos adequados às fachadas. Vestia-os, o prazer das roupas, a

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mascarada3. Tratavam de montar a infra-estrutura para o próximo seqüestro. Os envolvidos já moravam na casa alugada, subúrbio de Madureira4. Às vezes ia ao cinema com Inês, temerário porque repouso de clandestinos a vagar, recurso há tempos descoberto. Mas não resistia5. Continuava a participar de reuniões da Frente, ida e volta pela Dutra. Festejaram a possível vitória de Allende no Chile. Facilitaria a atividade dos exilados e da esquerda revolucionária chilena. Consideraram positivo para a consciência nacional a Igreja mobilizar-se6 e defender dois padres presos no Maranhão, acusados de subversivos. Animaram-se ao ler a entrevista de Mitrione aos tupamaros, enviada em fita cassete à imprensa. Seguro da troca, à véspera do justiçamento. Estudaram a lista de prisões preventivas decretadas, quase toda a VPR e VAR; os nomes de Juarez, de Iara. Enojaram-se com o arquivamento do caso Hansen – envenenou-se, mentiam manchetes7 "Bando de Lamarca, o louco, tortura e mata", "Facínora, torturador faz o povo chorar". Ariston, filho de Lucena, 15 dias de tormentos, conduzira a Polícia Militar à cova do tenente Mendes. A mãe abraçada ao caixão, o oficial que salvou a vida de seus homens. Enterro condizente, honras militares. Sentimentalismo, qualificou Lamarca, seco. O Exército envergonha-se dos mortos no combate em Eldorado Paulista; por que deixa de chorá-los, não valem nada? – Escreverei um documento restabelecendo a verdade. Denominou-o "Ao Povo Brasileiro-do Vale do Jacupiranga ao Vale do Ribeira"8. Descreveu o episódio: "o inimigo foi cercado em combate de encontro, só um soldado fugiu, só um sargento avançou; caiu ferido, três tiros (..) Os revolucionários, depois de cuidar dos machucados, explicaram a luta (...) o tenente (...) foi julgado e condenado por ser um repressor consciente (...)". Relatou a experiência do cerco e concluiu: "em nossa Pátria os parasitas é que têm valor (...) Iniciamos o processo de união das

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Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "Iara conhecia todos os macetes....Era capaz de vasculhar todo um bairro da cidade para encontrar um tipo adequado de roupa. 4 Alfredo Sirkis, obra citada (Cap. "Na Infra do Tio"); Herbert Daniel, obra citada (Cap. S.O.S., parte 12). 5 Inês Etienne, depoimento: "Uma vez passamos um grande susto. Fomos ao São Luiz, no Largo do Machado, na Guanabara, e quando entramos percebemos que tínhamos sido seguidas, até uma das galerias, por um indivíduo. Até o momento em que nos sentamos ficamos na dúvida se era paquera ou não. Quando o indivíduo viu o lugar que escolhemos, deu meia volta e saiu. Esperamos alguns minutos e saímos atrás dele, que se retirou do cinema por um lado e nós de outro. Pegamos um táxi imediatamente, não ficamos para conferir." 6 Carlos Castelo Branco, obra citada 12 e 15.9.70. 7 Folha da Tarde, 10, 11, 12.9.70. 8 Coojornal, artigo citado.

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organizações revolucionárias (...) Com o povo faremos a revolução que criará um Brasil justo. Ousar lutar, ousar vencer. VPR, setembro, 1970." Chegou ao Brasil o novo embaixador americano, Elbrick não voltaria. Na Jordânia o rei bombardeou posições palestinas, matando milhares na batalha do "Setembro Negro". No Egito morreu Nasser, governou 17 anos, disse Lamarca, falei a você do marco que os brasileiros assinaram em Suez? Lá está meu jamegão. No Chile nenhum candidato obteve maioria, coube a escolha ao Congresso. Allende e o PDC negociam, vê o que é o reformismo. Começavam manifestações, Chile si, Cuba no. Allende prometeu não conduzir o país ao comunismo, porém nacionalizar setores chave: salitre, cobre, ferro. Reataria com Cuba, Vietnã do Norte, Coréia do Norte, China, Alemanha Oriental. Marcelo Caetano, primeiro-ministro português, garantiu manter as províncias ultramarinas; bravata, veja a força da guerrilha anticolonialista. Buzaid vai a um encontro dos ministros da Justiça ibéricos provar a inexistência de tortura no Brasil9. O Banco Central ao Uruguai faz coleta entre empresários para a luta contra subversão, aprenderam com a OBAN, ai dos negócios de quem se negar. Mas o jurista uruguaio defende na OEA que os "terroristas" são produto da injustiça social, longe de delinqüentes como os deseja o Brasil. A diferença entre o jurista e o verdugo. Claudio Tozzi fazia uma exposição, Iara teve saudade. Pensou que gostaria de assistir à peça de Oduvaldo Viana Filho no Teatro São Pedro, A Longa Noite de Cristal. Ensaiavam O Interrogatório10 e falou a Lamarca do autor alemão, Peter Weiss. – Em 1964 e 1965 assistiu a um processo de 18 criminosos, responsáveis por genocídio em Auschwitz. Escreveu um oratório em 11 cantos. Aproveitou decIarações quase literais das atas. – Também manteremos viva a memória de nossos mortos e dos cúmplices da repressão. O debate sobre o nazismo neste momento político é oportuno11.

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Carlos Castelo Branco, obra citada, 30.9 e 8.10.70. Eitora Grijalbo, 1970. 11 Houve um debate do qual participaram, entre outros, os juristas Dalmo Dallari e Miguel Pedro Pimentel. 10

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– Bete Mendes caiu* – Iara pensou nos irmãos a salvo. – Conseguiram contrabandear a notícia12. Não sobra ninguém da VAR. Foi à Guanabara, na volta a São Paulo encontrou Inês. Estavam estressadas e resolveram assistir Mash, de Robert Altman, no cine Bristol – plena avenida Paulista, ali morei com meu marido, estranhíssimo. Grandes óculos e saia midi na moda, peruca, esqueceu-se da vida. Que falta me faz o cinema, o mistério da sala escura onde habita a fantasia, tela sedutora de promessas, expectativa e alquimia da própria transmutação. Viver em outras dimensões. Ligeiro odor de mofo. O escuro assustava meu tio quando menino, ele tem duas filhas. Mal conheço. O filme divertiu-a à solta, imersão na loucura sangrenta e antibelicista, o total absurdo da guerra da Coréia, hipocrisia, irreverência, caos criativo, sanidade na quebra dos regulamentos, bebida, maconha, mulheres. Nada poderia ser mais contundente em plena guerra do Vietnã. Lamarca escreveu outro documento para manter os militantes a par das discussões da Frente13: formalizada entre a VPR e ALN no setor urbano dia 6 de novembro de 1969, apesar da morte de Marighella, em dezembro estendeu-se à REDE; em janeiro formou-se uma comissão para ações políticas. A iniciativa da VPR de passar numerário às outras organizações foi interpretada como pressão econômica. Até junho de 1970 as relações ficaram entrevadas. Nesse mês reuniram se VPR, ALN, MRT e REDE. Discutiram problemas gerais da esquerda, a REDE integrou-se à ALN. A VPR refutou a proposta de um comando político – defendemos autonomia na linha política, a Frente é tática, as divergências permanecem. Prioridade às ações conjuntas. A VAR recusou-se, alegando que na presença da ALN e VPR não havia Frente "mas porra-louquice"; revelou "imaturidade, sectarismo raivoso", O MR8 e PCBR foram convidados em agosto para discutir a campanha do voto nulo nas eleições parlamentares de novembro. A entrada de ambos estendeu a Frente à Guanabara. *

Quase 15 anos depois, apontou a presença de Carlos Alberto Brilhante Ustra, seu torturador, no cargo de adido do Exército junto à embaixada do Brasil no Uruguai. O governo José Sarney afastou-o. O exmilitar escreveu o livro Rompendo o Silêncio para negar as acusações sem admitir a prática de tortura no DOI-CODI. Ao contrário, lista procedimentos que seriam de “Organizações Terroristas”, sob a rubrica “A conduta durante o interrogatório” (Cap. 3) que aconselham, entre algumas efetivamente preconizadas pelos grupos da esquerda armada, “não se intimidar com as ameaças e nem se dobrar à guerra de nervos”. Sugeriu assim que os interrogatórios se limitavam a ameaças e guerras de nervos. 12 Folha da Tarde, 17.9.70: "Bete Mendes desapareceu da novela Simplesmente Maria. No seu lugar, Ana Maria Dias. É o surrealismo nas novelas...” 13 BNM, doc. 34 (Anexos): "Frente – A Grande Tarefa."

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Câmara Ferreira. O larguinho em Rio D'Ouro

INTENSIFICAVA-SE A PRESSÃO INTERNACIONAL Cruz Vermelha e OEA queriam averiguar denúncias de tortura1. – Soltam os nomes quando já arrancaram o que podiam. Lamarca terminou de rever o "Manifesto contra a Farsa Eleitoral"2, distribuído pela Frente em outubro. Não suportava mais o aparelho de Seixas. Ansiava por caminhadas, ações, ficar com Iara sem censura. Mas ainda viveria ali momentos terríveis. Um, a morte anunciada de Bacuri. Outro, a tortura e morte de Câmara Ferreira, cuja saúde o preocupava. – Sofre de pressão alta. Deveriam mandá-lo ao Exterior, tratar-se. – Você também – aproveitou Seixas. – Preso o dia inteiro, sua contribuição aqui é insuficiente. Importa mais preservá-lo, multiplicam-se as mortes. – Não entra em cogitação. Iara apoiou a proposta, intermitente desde o Ribeira. – Você é importante demais para a gente perder. Pense melhor. Lamarca fechou-se. – Creio que desejava afirmar-se como militar entre os companheiros de origem civil – justifica Ivan. – Teria que resolver a questão da mulher e filhos no Exterior. Não era simples viver. E havia a idéia de que temos um lugar na luta é aqui, nesta nova vida. O impulso é seguir à frente, não para trás. Seria uma separação – cogita Herbert Daniel. – Foi um dos casos de amor mais tristes de nossa História. Joaquim Câmara Ferreira caiu num ponto por obra de José da Silva Tavares, que se passou à polícia depois de preso3. A tortura parou o coração enfraquecido e o 1

O colunista Carlos Castelo Branco não cessava de denunciar a tortura em circunlóquios e condicionais. Observação de 30.10.70: "Está aí a oportunidade... para o cabal esclarecimento de assunto tão incômodo para o governo..." 2 BNM, doc. 5520 (Anexos): A ARENA é o partido da ditadura, o MDB "aparador de arestas" que participa de negociatas, exceto alguns iludidos; quem vota no MDB dá voto de confiança à ditadura. À violência criminosa da ditadura opõe-se a violência justa do povo. A verdadeira arma do povo é o fuzil. Ditadura é fome, falta de liberdade, sindicatos silenciados, impostos extorsivos, vítimas da seca, trabalhadores do campo escravizados, filas no INPS, doentes a morrer sem atendimento, perseguição a intelectuais e estudantes, cientistas refugiados no Exterior, empresas brasileiras e um quinto da área rural entregues aos trustes americanos, assassinato de presos políticos, ausência de Direito, o Estado do Terror." Assinavam a ALN, MR-8, VPR e MRT. 3 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 27: "A Frente Clandestina").

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Velho morreu na mesma noite, 24 de outubro, segundo o laudo médico por congestão e edema pulmonar Ivan ouviu a notícia no rádio a caminho de casa e contou a Lamarca. A repressão creditou a denúncia a Bacuri, que teria aproveitado para fugir. Traspassado, mudo, Lamarca fechou-se dois dias no quarto. Além de transtornar a todos, muito querido, a morte reiterava a urgência de líderes como Lamarca partirem. Dia 27 de outubro carregaram Eduardo Leite da cela para assassiná-lo. O corpo foi abandonado no cemitério de Areia Branca, em Santos4. A traição de Tavares e a descoberta dos planos no aparelho de Câmara Ferreira inviabilizaram a "Quinzena Marighella", de caos antes das eleições: triplo seqüestro, assaltos, traslado de Marighella para enterro junto a Che, em Cuba. Foram presos militantes, aliados e quem aborrecesse o governo – artistas, políticos, candidatos da oposição, jornalistas. A redação inteira do Pasquim. Advogados como Heleno Fragoso e Augusto Sussekind. No total, 2625. Tanto a ALN quanto o MRT e o MR-8 opuseram-se a um novo seqüestro. A VPR insistiu. Não haveria a "Quinzena Marighella"6, porém o grupo minguava. Urgente reaver quadros e salvar da tortura. Mantinham o aparelho em Madureira. Depois do enterro de Câmara Ferreira, leram o relato oficial. O Velho caminhava pela avenida Lavandisca rumo ao ponto com Bacuri, que o indicou aos agentes e fugiu durante a luta. No carro sofreu um ataque cardíaco e expirou antes de chegar ao hospital. Sobrava Lamarca, um principiante segundo Massafumi, incapaz de montar a frente guerrilheira e ladrão de dinheiro. – Um pai de secundarista propôs à repressão localizar a filha em aparelho. Esse é fogo7. – O companheiro sem condições de suportar a tortura deve reter menos duas informações – aconselhou Lamarca. – Assim, preserva um núcleo de dignidade que lhe permitirá sobreviver consigo mesmo. Dia 27, em Salvador, dois militantes do PCBR caíram num ponto. Um deles, Theodomiro Romeiro dos Santos, matou o sargento Walder Xavier de Lima, da FAB. Na base aérea de Salvador, ao chegarem os detidos, o corpulento coronel Luiz Arthur de Carvalho, que em 1971 cercaria o apartamento de Iara na cidade, recebeu-o com Veja, 15.8.79; entrevista de Denise Crispim, citada; Brasil Nunca Mais, Tomo II – Perfil dos Atingidos. Folha da Tarde, 17.10.70. 6 Carlos Castelo Branco, obra citada, 5.11.70: “...o aniversário de Marighella foi assim, de qualquer forma, comemorado..." 7 Folha da Tarde, 26.10.70. 4 5

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um soco no rosto e, segundo relata, passou a noite, revólver sobre a mesa, a vigiar sargentos que desejavam justiçá-lo. A meta era o julgamento e a primeira pena capital. De acordo com Theodomiro, o coronel comandou pessoalmente 15 dias de tortura; várias vezes esteve à morte. A VPR conseguiu tirar Angelina do Brasil. Ao despedir-se, Iara entregou-lhe três cartas. Uma para Maria do Carmo: "peço-lhe, amiga, que sinta a minha mão segurando a sua". – Não haveria melhor retrato dela. Indescritível, o quanto me comoveu. A outra, de Lamarca a Angelina. Não se conheciam mas elogiava-lhe o comportamento na cadeia. – Discordo, pois eu sequer tinha elementos. Terno, dizia-se confortado pela assistência que eu prestaria a Maria do Carmo, consolando-a da morte de Juarez. Uma carta bonita, que revelou seu incrível lado humano. A última distribuía tarefas no Exterior. Angelina, ao saber em Argel dos planos de retorno, alarmou-se: – Eu queria que vocês levassem ao Brasil um grande navio, para tirar quem sobrou. Vão morrer todos! – A sensibilidade aos problemas sociais conduzia-nos a construções teóricas dissociadas da realidade, criando novos conceitos e, sem demora, falávamos grego é o retrospecto de Shizuo Ozava, o Mário Japa. – Quando, anistiados, saímos do exílio de Angola, eu tinha um slogan na cabeça: o marxismo é o ópio do povo. Lá nem existia classe operária, camponeses, mas o povo gritava "abaixo a metafisica, viva a dialética!". Em novembro Iara viajou a São Paulo em companhia de Inês e Walter Ribeiro Novais8, de uma base da VPR de salva-vidas. Atlético, carteira da Polícia Militar, até junho trabalhava na praia de Copacabana. Preso dois meses, preferiu passar à clandestinidade. Fariam o transporte de Lamarca, finalmente livre da reclusão. Ultimavam os preparativos do seqüestro.

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Desaparecido político. Preso dia 12 de julho de 1971, ao dirigir-se a um ponto na Penha (Rio).

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Deixaram o sobrado de Seixas compenetrados. Iara, lenço na cabeça. sentouse no banco de trás do Volkswagen com Lamarca – perfil inconfundível apesar da plástica e barba. Inês guiava. A menor falha significaria a morte, a Dutra uma incógnita. Tão contidos estavam, que os demais brincaram: – Larguem-se, vocês parecem um casal de velhos encorujados Tudo sob controle. Joaquim Seixas e Ivan, numa Kombi legal, saíram um quarto de hora antes. Se houvesse barreira daria tempo de se livrarem e voltar. sinalizando. Atrás de Inês, cinco minutos de distância, outro Volkswagen com André Guerra – proteção e combate se necessário. A viagem correu bem, sem paradas. No final da Dutra entraram à esquerda em direção a Petrópolis. Os Seixas aguardavam, Ivan e o pai vieram despedir-se. Nunca mais se viram. Inês dobrou para o longo percurso em torno da baía da Guanabara. Walter providenciara um pequeno sítio em Rio D'Ouro, periferia de Niterói. A precariedade do barraco de madeira, quarto, cozinha e puxado, preocupava-a9. Mas Iara e Lamarca mal acreditaram na dá– diva. Mato, céu, vento, espaço. O casebre e o terreno em volta eram o paraíso. Numerosas reuniões fizeram para discutir a situação internacional e a política brasileira, os passos da VPR, o futuro da guerrilha. Porém a permanência representou sobretudo relaxamento e aproximação. Embora quase nunca a sós, a certas horas rituais Iara e Lamarca escapuliam e sentavam-se sobre o mato ralo da nesga afastada que denominaram "larguinho". Nas conversas, cautelosa, Iara introduziu-o ao seu emaranhado e enfrentou serena o sofrimento de ambos, ao esboçar a própria história, defendê-la e refletir sobre ela. Luto por nosso relacionamento, repetia, quando enfurecido ele duvidava do amor. Abordou também a questão das mulheres, que confundia os militantes. Desculpe repetir o óbvio, reiterava, além de companheiras militantes temos iguais direitos e deveres. Ou o revolucionário se impregna desse

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Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "Não havia banheiro e sim uma fossa a alguns metros da casa. No fundo do terreno passava um pequeno riacho onde se tomava banho e eram lavados a roupa e vasilhame. Antes de chegarmos, Walter e eu avisamos que o local era acanhado, que as condições materiais eram incômodas – não havia água encanada, nem luz elétrica, e precisaríamos usar lampiões. Mas eles adoraram. Estavam juntos e Lamarca finalmente não precisaria mais ficar trancado num apartamento, poderia andar pelo mato de que tanto gostava."

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conhecimento, ou não se cria homem novo. O condicionamento, até as buscas desordenadas são fruto de classe, camada social e poder. Só o socialismo permite ao amor a dispensa de considerações financeiras, preconceitos religiosos, familiares ou legais como sugeriu Lenin que, na discussão epistolar com Inessa Armand, figura proeminente no movimento comunista e de mulheres, detectou necessidades burguesas no amor livre e descompromisso. Faziam pausas, abraçavam-se, intervalo no terreno neutro da teoria. Repressão, o humilhante servilismo doméstico, Lamarca mofava, a emancipação feminina se resume a creches e cozinhas coletivas. O negócio é decIarar-se zero à esquerda no fogão, devolvia. Beijou-a, vamos lutar juntos pela liberdade de todos, homem, mulher, criança. Começo já, vou fazer o almoço. Substituíram o fogão a lenha por gás, grande melhoria. Lamarca especializouse num guisado de feijão-branco e carne de porco que todos os hóspedes, de curta ou longa estada, elogiavam: Inês, Herbert Daniel, Teresa Angelo, Gerson Teodoro. Iara ajudava-o a preparar peixadas e caranguejos. Comiam horas, a beber cerveja. Depois, os outros lavavam a louça. Interrompiam as reuniões para ouvir noticiário no rádio a pilha. No final do dia jogavam cartas, concentrados, grande empenho em ganhar10. Também brincavam de adivinhar filmes, Iara e Inês as mais rápidas. Acima de tudo, arrebentavam-se de riso. Certa vez Gerson teve de interpretar Carlito e a cena do rapaz negro, de origem operária, sem o menor talento, foi hilariante. Dobrando-se de rir, Lamarca gritou: – Já sei, o veado! A indignação de Gerson, que nunca participara de um jogo daqueles, alimentou o riso. – Pô, não brinco mais.

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Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "(Iara) Cometia clamorosos erros de distração, como, por exemplo, jogar fora uma carta da canastra. No entanto, era a que tinha mais sorte, sempre lhe vinham muitos curingas, o que provocava a maior indignação nos adversários. Mas, às vezes, não havia jogos; quando chamávamos pelo Lamarca e Iara, eles diziam: 'Agora não. Agora nós vamos namorar.' Conhecendo-os na intimidade da convivência nos aparelhos, a impressão que me ficou é a de que eles se amavam de verdade. Havia admiração e respeito mútuos e uma preocupação constante com o crescimento político e humano do parceiro. Iara dizia-me que desejava que o amor deles se aprofundasse cada vez mais."

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O engenho de Iara para imitações atingiu o momento alto quando interpretou Celso Lungaretti na televisão11. Gerson Teodoro, contra-feito por causa do irmão, um dos "terroristas arrependidos" em rede nacional, sorria. A atmosfera amena, presença de Iara e perspectiva da ação próxima, tornou Rio D'Ouro o período mais relaxado de Lamarca desde a saída de Quitaúna. Um alívio para todos. Gargalhava perdidamente nas menores situações. Inês lembra-o a rebentar-se às lágrimas ao ou vir a frase de Nazaré – que não conhecia – sobre a fragilidade da FLN: "antes soldado da VPR que comando da FLN". Tocava na ansiedade de todos a rechaçada consciência das infiltrações. Uma noite conversaram sobre tortura. Nada estranha à condição humana e parte integrante da História. Opróbrio cotidiano da igreja inquisitorial, vem de Portugal, Espanha, vem de sempre. Simplesmente funciona, lembrou-se Iara das frases de Ladislau e citou Sartre: os franceses, ao observar os soldados alemães de ocupação. pensavam: "Estes homens são semelhantes a nós. Como podem fazer o que fazem?". Em 15 anos, antes de vir à luz o colaboracionismo francês com os alemães invasores, eram verdugos na Argélia. "Levantamos a cabeça, vimos no espelho um rosto odioso: o nosso"12. Debateram a resistência de cada um, não temiam a morte mas ceder à infâmia. A maioria tem um limite, daí a cápsula de cianureto, a morte de Juarez, as tentativas de suicídio, os enfrentamentos a bala. Tortura é a manifestação torpe, covarde e sádica do poder de uns sobre outros, a essência do domínio de uma classe. Quando chegassem ao poder não usariam tortura, prometeu Lamarca. Sob nenhuma circunstância. Nada a justifica. Ultraja a humanidade. Se transigimos, a luta está errada. Temos clareza, o combate é a favor do homem e não contra 13. E serão pessoas normais os torturadores?, perguntaram-se. Tratam bem e mal, como qualquer outro, as esposas, filhos, vizinhos? Duvido, ponderou Iara, o ato de torturar é uma perversão. Provavelmente manifesta-se em família, há formas de violência – por exemplo, impor aos filhos a ceia de Natal no DOI-CODI. O inconsciente gravará o silêncio transitório do maquinário cheirando a vômito, urina, fezes e sangue. A Inês Etienne Romeu, depoimento citado: "Muitos companheiros – que não o conheceram pessoalmente – acharam que seu modo defeituoso de falar era consequência de tortura; Iara disse que não, que ele falava assim mesmo, e fez uma ótima imitação, o que provocou risadas." 12 “Uma Vitória", prefácio ao livro de Henri Alleg, A Tortura, Edições Zumbi, 1959. 13 Entrevista de Inês Etienne Romeu. Pasquim, 27.7.79. 11

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deformação do torturador vem de abusos interiorizados, exerce em poder a brutalidade e o desdém que sofreu, flagela o recruta para extrair-lhe a decência. Mas nem todos são torturadores, interveio Lamarca, e cotejou-os à felonia de alguns companheiros, nossos "jesuítas", estranha metamorfose, a voz de Iara sobrepôs-se, espezinhados a ponto de não se reconhecer, a sobrevivência depende de identificarse com o abjeto. Passam a agente. retomam-se14. Normalmente, crianças da redondeza apareciam no sítio. Bem-vindas, ajudavam na fachada. Por causa delas, Inês decidiu fazer uma festa de aniversário, atrasada, para Lamarca. – Não – preveniu Iara. – Ele não comemora desde os nove anos, porque um irmão morreu no dia. A tragédia marcou-o tanto, que nunca mais quis festa. Inês arriscou depois de ver Lamarca rodeado de pequenos, junto à mesa do puxado, dando-lhes na boca pedacinhos de caranguejo que cozinhara15. Não os desapontaria pois representavam os filhos e também a ele, menino do morro de São Carlos, no Estácio16, flamengo roxo, apelido Careca porque levou uma pedrada e teve de raspar a cabeça. E andava calmo, sem nervosismo de manga-larga inconformado no potreiro, como dizia Dilma. Até brincava: – Vou assistir a um jogo do Flamengo. Também cantava, um desafogo geral. Iara, progressivamente menos expansiva, limitava-se a acompanhar os demais. Uma das canções prediletas do Carnaval, Foi um rio que passou em minha vida, de Paulinho da Viola, oferecia-lhes a única oportunidade de nomear Lamarca – chamavam-se pelos codinomes. Em lugar de "a marca dos meus desenganos", pronunciavam "Lamarca". Certa vez ele escolheu a canção de Caymmi Marina, apelido da esposa. Iara retirou-se. Explicou aos outros que a companheira era ciumenta e foi atrás17. Ela se deixava consolar, primeiro ofendida e depois a recompensa da reconciliação, jogo de amuos, espécie de afrodisíaco na alcova de madeiras gastas. Divertida, lembrava-se das discussões na 14

Alfredo Naffah Neto: Poder, Vida e Morte na Situação de Tortura, Hucitec, 1985. Inês Etienne Romeu, entrevista citada, "...com uma paciência incrível... Iriam participar apenas cinco pessoas e as tais crianças. Enfeitei o barraco de bandeirolas, transei velas, guaranás, umas cervejas e pedi a Iara que saísse com ele enquanto Walter e eu arrumávamos tudo. Enfeitamos a casa com bandeirolas verdes e amarelas, só para chateá-lo. Ai, quando ele entrou e viu aquilo lá, a criançada toda cantando "parabéns a você", ele aceitou bem a jogada, riu, soprou vela, cortou o bolo, tomou cerveja, enfim, comemorou o aniversário de 33 anos, exatamente a idade com que ele morreu, um mês antes de completar 34." 16 Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada. 17 Inês Etienne Romeu, depoimento. 15

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Faculdade, mudei tanto, antes perdia-me ao pressentir sofrimento, até um bilhete escrevi a Darcy reconhecendo meus ídolos sobre pés de barro. Aprendi a ver o cidadão concreto e as coisas miúdas, além da reforma agrária e a Humanidade abstrata. E tenho ciúme, que maravilha! Sou da facada, igual a Lourdes Sola. Quanto aos filhos, Lamarca encorajava-a. Certamente engravidaria, o amor remove montanhas. Saudoso falava dos seus, da mulher. Iara mitigava-lhe a culpa, Jô bem discorria "a questão é enxergar o lado de cá, muito doido saber que o marido tem outra, porém se Maria refletir, a vida confinada alucina, vital uma companheira, o estímulo intelectual". O amor vencia o ciúme, ambos ainda titubeantes ultrapassado o reino da palavra, que só Rio D'Ouro demorasse. Quem no mundo como Lamarca? Inabalável firmeza política, capaz de exigir dos outros respeitando-os. O maior líder da revolução brasileira.

Provavelmente para tratar de tarefas no Exterior e possíveis retornos, veio ao sítio o cabo Anselmo. Lamarca queria vencer a relutância dos companheiros em voltar, mas do Exterior só o aconselhavam a sair. Verás o bosque, no círculo estreito tu só enxergas algumas árvores, escreveu Maninho. Advertiam que as organizações estavam infiltradas. tudo perdido, há um militar graduado na VPR que passa relatórios completos à repressão, fonte seguríssima. Indignou-se, intoxicaram vocês, quem é o militar, eu? Apuramos nossa gente, três sargentos do Exército, dois da Aeronáutica e dois da Marinha. Não incluiu Anselmo, cabo, e na cabeça de todos ficou que graduado era sargento. O visitante permaneceu três dias e Iara provocou Inês. – Sabe quem é? – Nenhuma idéia. – Faça uma forcinha. Cara importante, famoso. Esforçou-se. Iara despertara-lhe a curiosidade. – Não sei. – Que pena. Não posso contar, certo? – Bem, eu autorizo. – É Anselmo.

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A informação, quase um ano depois, salvou-lhe a vida. Presa na casa da morte em Petrópolis, a sofrer abominações dos celerados, de Anselmo ouviu a voz18. Mortal, reconhecê-lo – o cabo ignorava que ela o identificara em Rio D'Ouro, sabendo portanto, nos pontos subseqüentes, quem era19. Assim que possível, Inês preveniu os companheiros. Não aceitaram o aviso. Ao deixá-los, Anselmo admitiu ter reconhecido a região. Apesar da confiança no militante, as normas exigiam que abandonassem o sítio. Em meados de novembro mudaram-se para uma casa em Friburgo que lhes pareceu faraônica – água encanada, luz elétrica, dois dormitórios, sala, banheiro. Estamos de férias, anunciava Iara, o hiato que defendera em benefício dos guerreiros. Espaireciam. Inês recordase das gargalhadas de Lamarca durante os programas humorísticos de tevê, o acesso de riso ao assistir à conhecida historieta de mau gosto, cegos a xingar-se e alguém troçar: de faca não vale. Não faltaram pilhérias quando leram que Ladislau e o histórico militante Apolônio de Carvalho, acusados de defender a violência durante uma reunião sobre Direitos Humanos em Genebra, teriam sido expulsos da Suíça. Porém às vezes acabrunhavam-se. Um promotor pedia a pena de morte para quatro militantes, inclusive Eduardo Leite, assassinado. – O burocrata solta um papel que adquire vida própria. E o servilismo mentiroso da imprensa engana o povo. A repressão pedia que todos ajudassem a identificar terroristas. Explorava decIarações de Monteiro, misturando falácias à verdade: motorista da VPR, levou a Jacupiranga vários companheiros, inclusive Iara Iavelberg. Adotou o terrorismo porque gastava tudo nos bares e não tinha de prestar contas. Os ladrões de Lamarca viviam como nababos. Uma vez, por exemplo, dera oito mil dólares para Encarnación visitar o marido na Itália. Examinaram com pena o rol de militantes condenados e os assaltos esclarecidos – até o acidente em que Bacuri feriu Ari Rocha Miranda, o Barros20. A chegada à Guanabara de Dilma e Carlos Franklin, provavelmente para novos "interrogatórios"21. E o sabujismo do presidente dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo, Antônio Pereira Magaldi: o livro que reúne discursos de Médici,

Inês Etienne Romeu relata sua vivência em "Relatório Inês – Dossiê da Tortura". Pasquim, 12.11.81. Marco Aurélio Borba: Cabo Anselmo, a luta armada ferida por dentro, obra citada. 20 Jacob Gorender, obra citada (Cap. 27). Morreu porque não conseguiram assistência médica. 21 Folha da Tarde, 18.11.70. 18 19

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O Jogo da Verdade, "parece poesia pela forma e sentimento que desperta em nós"; quanto aos ensaios e ordens-do-dia "são verdadeira obra-prima"22. Tudo isso é esperado, analisaram, mesuras cediças, detrações, sanhas cruentas. Vale-tudo para tolher as forças que movem o mundo. Os tupamaros no Uruguai, vitoriosos num gigantesco assalto. A greve geral na Argentina. As FAR da Guatemala, os aviões seqüestrados para Cuba, o supersônico de reconhecimento derrubado no Vietnã do Norte. É nossas vitórias, os militantes enfrentaram tiroteios e cadeia com panfletos contra as eleições, alcançamos cerca de 30% de votos nulos ou em branco. Acima dos 21% do MDB. – A ditadura se isola, a vanguarda retoma contato com as massas. Podem os coronéis difamar, dizer que somos drogados, pedir pena de morte. Rompemos o isolamento. Detalharam o próximo seqüestro, do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Lamarca desenhou o croqui, faria cobertura. Livre, guerreiro em ação. A Frente reuniuse, escolheu a data no início de dezembro. Outras organizações deram nomes de presos a soltar. A VPR pediu ajuda financeira à VAR, que ainda possuía dólares, Recusaram-se. Discordavam de novos seqüestros: ações táticas que a prática revelou desprovidas de função na luta revolucionária, assustam o povo, solidarizam-no com possíveis vítimas inocentes. Durante os últimos preparativos, imperceptivelmente Iara entristeceu. Silêncio antes da tempestade. Combinaram um esquema de cartas. Via-o escrever aos filhos sofrido de saudade, mágicos momentos em que se abraçava às crianças. No começo de dezembro, partiu. Iara ficou com Walter. a mulher e os dois filhos. Ali soube que os amigos arquitetos caíram dia 1 e 2 de dezembro. Marina Heck, perdida, não conseguiu contatos e exilou-se. No seqüestro bem-sucedido a mácula do agente morto, bala na nuca. Escreveu a Iara seguro de si mas indignado. Tornou a expor o sentido de escalar um guardacostas apenas. Boi de piranha, desde jovem condicionado a morrer levando quantos pudesse. Menosprezou o grito de rendição, neguinha, presumiu que a dez metros eu erraria se ele balançasse o corpo enquanto mirava Daniel. Foquei o ombro, mexeuse. Você salvou Daniel, respondeu.

22

Folha da Tarde, 23.11.70.

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No dia seguinte, 8 de dezembro, extenso noticiário. Destaque proposital à morte, três dias antes, de Yoshitane Fujimori. Imaginou o abalo de Lamarca. Extraordinário companheiro. Responsável, puro, valente. Não entrou no ponto caído, excessivos

vendedores de

sorvete, pipoca,

transportadores em mudança,

funcionários da Telesp. Um dos agentes, contudo, desconfiou do japonês no fusca vermeIho que passava a observar a praça. O número da chapa foi distribuído ao policiamento de rua23. Fujimori não a trocou24. Dia 5 de dezembro uma patrulha do DOI-CODI viu o carro em Vila Mariana. Perseguição, tiroteio. No vizinho bairro da Saúde, Fujimori e um companheiro morreram. Perdemos um irmão, escreveu Iara a Lamarca, o que torna mais inabalável nosso compromisso. Choro junto a você, sua dor é minha. A repressão elaborou um release sobre outro terrorista "morto em tiroteio", Eduardo Leite, Bacuri, 43 dias depois de assassinado. Cinismo em vingança ao seqüestro. Denegriam-no e a Denise: ela o acusava de fuzilar Ari, que ameaçara desistir da luta armada; e de oferecer Câmara Ferreira à polícia. A nota oficial descrevia a "diligência e fuga" de Eduardo Leite em São Sebastião. Sequer faltava a chapa da Kombi utilizada para a evasão25. Deprimida, só as crianças a distraí-la, Iara acompanhava o noticiário. À noite pescava notícias em ondas curtas, de dia a rádio Jornal do Brasil. Altos e baixos do interminável seqüestro de 40 dias26, o governo a mentir que as mensagens da VPR eram falsas, e quando afinal as aceitou, introduziu a demora nas negociações em torno dos nomes27. Mudaram de tática, não soltam os prisioneiros selecionados, constataram. Dissimularemos a fraqueza – iniciaram a discussão crucial. A repressão nos manipula, experimenta. Se recuarmos ainda mais, sepultaremos o seqüestro como instrumento de luta. Será a falência. A saída é justiçar o suíço. Lamarca, no entanto, ouvia a voz de Iara em casa de Seixas: quem mata o seqüestrado? – Naquele momento eu era favorável ao justiçamento – anui Herbert Daniel. – Porém a decisão significava entrar na lógica e dinâmica do terrorismo literal, aquele Carlos Alberto Brilhante Ustra, obra citada (Cap. "A contra-ofensiva – batismo de sangue"). Alex Polari, obra citada: "Bacuri...costumava dizer: companheiro, uma chapa de carro pode acabar com uma organização." 25 Folha da Tarde, 9.12.70. 26 Alfredo Sirkis (Cap. 7); Herbert Daniel (Caps. I e 2: "Só"me "S.O.S"); Jacob Gorender (Cap. 27), obras citadas. 27 Carlos Castelo Branco, obra citada, 13.12.70: há esforço em "devolver aos terroristas a guerra de nervos em que tentaram envolver o governo". 23 24

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que ignora o momento político, a realidade do povo. Vale o ato, lutar de qualquer forma. A política do terror medra no terreno da abstração, indiferente é a morte de um homem, sobram só representações. É o universo descarnado de uma revolução cultivada na cabeça, propostas simplíssimas na mais terrível dramaticidade, confortável porque um descompromisso dos conflitos reais. Baseia-se na emoção bruta, profunda, bárbara, isenta de freios ou filtros. Tudo o que é pessoal se descarta. Geram-se monstros, dotados de discurso gramaticalmente perfeito, intelectualizado e racional. Nenhuma explosão incoerente. Frieza organizada diante de atos que matam crianças, gente alheia à luta. Todo revolucionário, em certos momentos, sofre a tentação terrorista, o grande perigo das lutas violentas. Aconteceu de Iara, jeito de turista, passear na cidade florida de rosas, o esplendor da praça-catedral de folhas, troncos e verdes28, altas colunas de eucaliptos em arcos pontiagudos conduzindo a abóbadas entrelaçadas, luminosidade e leveza aspirando alturas, vento, o imperceptível para si perfume de matas vizinhas, presença montanhosa maciça, no alto a morada dos deuses, quase uma instância mística. Sentava-se num banco a comer doces típicos e refletir. Esfumara-se o ponto de Sérgio Ferro em São Paulo, uma vez resolvida a troca dos presos. Intuía que chegavam à crise final da VPR. Patente, aqui de longe, a absoluta incapacidade de conhecer o Brasil real. Viviam ao redor de ações, Daniel passara metade do ano em assaltos provendo os enormes gastos com a estrutura da única militância, o seqüestro. E agora, a questão do justiçamento. Lamarca angustiado, vinha à tona o policial da rua Piratininga, o jovem tenente no Ribeira. Terrível, ele ou nós. Tem um momento em que você decide, sua vida é mais importante. Saudade de Rachel. Foi um golpe só, Lamarca repetia, nem percebeu. E o agente que ia matar Daniel? Meu amado se debate, a ramagem dança nos topos, fuzilar o embaixador, coitado, gostavam dele, até divulgara na Suíça o massacre dos índios, certo é matar, mas certo, que certo? Nada interessava que não o seqüestro. Indiferentes eram Debray livre, a revolta sufocada em Gdansk na Polônia, as ações tupamaras. os bancos chilenos estatizados, prováveis achaques contra empresas brasileiras para que financiassem a repressão29 ou o procurador Hélio Bicudo a acusar os primeiros sete policiais de pertencerem ao Esquadrão da Morte, reservando-se o direito de ainda incluir Fleury.

28 29

Marina Colasanti: Friburgo dos Verdes Vales, artigo na revista VivaVida n° 3, 1983. Folha da Tarde, 12 a 17 12.1970.

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Patéticos esforços da mulher de Gomide a coletar dinheiro para um eventual resgate, a soltura dos cinco ex-militantes que renunciaram publicamente à luta armada, as afirmativas do presidente nacional do MDB, Ulysses Guimarães: além da volta à democracia, o partido batalhará pelo humanismo no Estado Brasileiro e melhor distribuição de renda. O vento frio que até o fim de dezembro varreu a Guanabara, amainou. O calor cobriu as praias de gente alegre em férias, pouca atenção ao seqüestro. E a negociação não terminava. Da exigência de dois dias de viagem gratuita nos trens de subúrbio, nenhuma palavra. Solene desdém. Nomes recusados, presos que rejeitavam a libertação, desgaste sem tamanho. E a própria tese, quantos voltavam do Exterior? E qual o objetivo estratégico? E as perdas, mortes? O país muda, antigos simpatizantes socializando em festas, bem-sucedidos, de sexta-feira à noite à madrugada de domingo contínuo vaivém de jantares, almoços, piscinas, danças, a classe média está no Paraíso, semana de cinema, teatro, concerto e restaurante, compram casas de campo ou praia, conversa excitante é sobre caseiros. Somos a consciência da Nação, viva, sem repouso. Talvez rediscutir lá fora, terminado o sequestro – um projeto de Câmara Ferreira. Retorno em novas bases, trabalho de massa, pensava Iara a caminho do aparelho. Vales, morros, cachoeiras de Friburgo. O velho projeto da POLOP. Um lugar no campo, construir permanência. Engravidar, raiz no momento em que a História atropela. Encontrei a estabilidade no convívio com a morte. Contra a maioria da VPR, Lamarca decidiu não matar o refém, avocando o posto de comandante. A questão é humanista e política, escreveu a Iara, pegou muito mal a morte do embaixador na Guatemala. Sou também mais tolerante, não me importam a ira ou fraqueza dos companheiros, tomo-as a mim fortalecido de amor, quase um duplo, xifópago de alma. Trago você comigo, meu poder oculto. À Inês, Lamarca mandou um bilhete: diga-me o que pensa de minha decisão; quero ser julgado por ela, inclusive submetendo-me a punições. – Foi duro para ele – guardou Daniel. – Implicava reconhecer início da derrota. Algo como cair na real. Recolheu-se dois dias, a pensar. E não julgou apenas argumentos racionais. Considerou valores de certa forma conflitantes com sua visão da VPR. Uma virada. A crise, dramática para todos, recaiu maior sobre ele, a quem cabia deliberar. Prescindir do justiçamento trouxe-me enorme alívio, o suíço era ótima 440

pessoa. Ponto central da crise de minha história, permitiu-me interromper a militância. Logo Lamarca adotou teorias de trabaIho junto ao povo, à massa. E por causa disso, morre. Não acataram a decisão facilmente. A VPR estruturara-se em torno de ações e seqüestros, todos sentiam-se guerrilheiros. E, súbito, o impacto. A fórmula deixara de servir ao traçado político. De tirar o chão. Imobilizaram-se. – Não foi simples convencê-los; alguns, de raiva, puxavam-se os cabelos na rua – vivenciou Daniel, encarregado de transmitir e defender o veredicto. – Mexia com uma complicação, pois no fundo desejavam ser convencidos. Foram 40 dias terríveis. Cedo eu encontrava companheiros nos pontos, distribuía mensagens, documentos, contra-informações. Voltava ao aparelho tarde da noite, morto de cansaço e ainda discutia o próximo comunicado. Medo de errar, fornecer alguma pista – a cidade inteira vigiada, milhares de policiais, barreiras. Calor intenso no aparelho. Desistimos de pôr capuzes. Eu estava presente quando Lamarca se mostrou ao suíço. "O senhor não tira o capuz perto de mim porque eu o reconheci", atrapalhou-se. "O senhor fala que eu nunca tirei o capuz, eu confio." Quarenta dias, a travessia do deserto, o tempo da purgação. No aparelho, só Sirkis contra o justiçamento30. Criticavam seus argumentos liberais. O guerrilheiro tem coragem de morrer e, mais difícil, matar. Mas a imprensa burguesa faz um esparrame, nos distancia do povo; soltamos os presos que permitirem, é gol na avaliação popular. O pesadelo terminou depois que o governo assentiu com a terceira lista, no dia em que os tupamaros seqüestraram o embaixador britânico. A repressão bloqueou a Guanabara em três minutos, paralisando milhares de automóveis à entrada de túneis, viadutos, nas avenidas, acessos a rodovias interestaduais e até barcas Rio-Niterói. Finalidade: adestramento. Houve 500 prisões e 70 mil veículos revistados. Lamarca já estava há dois dias em outro aparelho. Entre os 70 libertados Maria Auxiliadora31 da VAR, interferência direta de Iara, que também conseguiu incluir Robertão – recusado nos prévios seqüestros porque criticava a política da VPR. Iara mandou-lhe um bilhete: "Acho que chegou a sua vez.

30

Alfredo Sirkis, obra citada. Suicidou-se em Berlim. Reinaldo Guarany Simões escreve sobre Maria Auxiliadora e o exílio em Os Fornos Quentes, Ed. Alfa-Omega, 1980. Há um texto de Maria Auxiliadora, "Continuo Sonhando", em Memórias do Exilio – Brasil 1964-19?, obra coletiva coordenada por Pedro Celso Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos, Editora e Livraria Livramento, 1978. 31

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Apesar das divergências, admiro-o muito." Pesou o afeto, a origem comum de POLOP.

Em debate a estratégia da VPR

IARA FOI CONDUZIDA, "fechada", ao aparelho de Alex Polari de Alverga, 20 anos, cujo nome de guerra, Bartô, já caíra. Lucia, sua mulher de 19 anos, soube que a companheira sequer a conhecia de nome – vinha em busca de repouso e tratamento. Sofre de problemas hormonais, explicaram. A casinha no subúrbio de Engenho Novo, alto de encosta, ficava um lance abaixo da travessa de paralelepípedos, árvores nas calçadas. Iara tirou os óculos opacos ao sair do carro e desceu os degraus até o puxado para o qual se abriam os cômodos. Casinholas enfileiravam-se atrás. Os moradores usavam a mesma escada, passando ao lado. Havia dois pequenos quartos, pintados de verde estridente em grossas formações de massa. Um deles destinava-se às armas e papéis. Aqui, em cama de armar, dormia Iara. Caixote por criado-mudo, cadeira como guarda-roupa. Na saleta reinava a enorme televisão americana trazida em 1954 pelo pai de Lucia, almirantemédico reformado e contrário às opções da filha, a começar pelo casamento 1. Sofácama em péssimo estado, vitrolinha sobre a estante de livros e discos. Mesa, quatro cadeiras, aparador. – Tudo feio, de segunda-mão – caracteriza Lucia. Conversaram sobre a seca no Rio e as decIarações do embaixador, comovidas: nunca vira os rostos dos seqüestradores, ocultos sob capuzes; ouvia Bach e Beethoven. Compartilharam a repugnância por Chagas Freitas, que governaria a cidade, e o horrendo projeto da ponte Rio-Niterói – cicatriz na paisagem e peões concretados, empreiteiras e políticos mafiosos a saquear o bolso do povo. O governo jactava-se, excelentes resultados econômico-financeiros. A inflação baixou, aumento salarial médio de 25%. – A medida não reflete os extremos – lembrou-se de Severo, alguma coisa aprendi. – Enquanto isso flagelados invadem cidades no Nordeste, mortos de fome. Falavam de pessoas queridas, livres no Chile. O médico Almir Dutton, Jovelina, Dodora, Robertão; 59 homens, 11 mulheres, três crianças. Vibraram quando os 1

Alex Polari de Alverga, obra citada.

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tupamaros, uniformes do Exército, explodiram a residência de um industrial; é a Justiça contra financiadores de tortura, pena a repressão enlouquecida prender alguns combatentes. E essa do secretário de Estado americano? Diz que pobreza e ignorância são freqüente causa de terrorismo. O imperialismo quer atenuar as contradições, procura sobrevida. – Acordo regional antiterror entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. É a aliança da repressão. Arrostam a OEA. – Nossa resposta foi Mitrione. Iara saía regularmente, alegando o médico no centro. Conduziam-na de óculos opacos. Lucia, cIara como ela, explicou aos vizinhos que a irmã viera de Minas curtir uma enorme fossa. Namorava um repórter, profissão malvista pelo pai, fazendeiro conservador. Proibido o romance, infeliz, fechou-se em casa. As duas logo ficaram amigas. Lucia questionava tudo. A vida na organização, a afetiva. – No movimento estudantil eu tinha grande militância. Agora estou encerrada aqui. Detesto ser fachada de aparelho, manteúda. Quero sair, trabalhar, ter casa. Não sou clandestina. Proibida de contatos sociais, entediavam-na cobrir pontos e datilografar documentos. Inventou de montar uma biblioteca. Controlaria os livros disponíveis em cada aparelho, distribuindo um rol. Acervo coletivo é importante, circulou no comunicado. Quem quiser uma obra, pede a mim. O único a responder, Lamarca, enviou a relação de livros em seu poder e teceu-lhe incontidos elogios. – Soube de quem se tratava por causa da letrinha. O apreço enciumou Alex. Apoiara um texto de Herbert Daniel que defendia a "retirada estratégica": parar, discutir. Recebeu de Lamarca um ataque violento. – A mensagem era cresça e apareça, você não sabe o que diz – recorda Lucia., – Alex ficou arrasado e inseguro. Mas para mim, só Deus no céu e Lamarca na terra. Iara incentivou-a. Construísse uma vida produtiva, máquina batuca-se em qualquer lugar. A opinião fortaleceu Lucia, e Alex concordou em deixar a clandestinidade. Trabalharia como chofer de táxi, já guiava o dia todo a serviço da VPR. De imediato, não participaria de assaltos. Só cobertura legal. Os acontecimentos tolheram o projeto.

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Iara contou a Lucia que, se engravidasse, cumpriria apenas compromissos assumidos. Referiu-se ao útero infantil, levando a amiga a julgá-lo responsável pela esterilidade. Bem-humorada, estimulou-a a emagrecer. – Não perca a vaidade, ser feminina e bonita leva adiante. Anima. Contava casos divertidos para tirá-la da depressão. – Eu, por exemplo, fui motorista do José Dirceu. Levava o líder de um canto a outro porque tinha carro. Que função! Falou do casamento. – Acreditava no sonho dourado. Meu marido me decepcionou mas não reprimia. Encorajou a volta ao colégio, a Faculdade. À noite viam televisão, gostavam de ler e jogar buraco. Iara ficou cerca de três semanas em casa de Lucia e Alex, quase sem função, deslocada, reflexo da perplexidade geral na VPR. Limitavam-se a quadros de linha – praticantes de ações e ao comando. Inês, convencida do acerto de soltar o suíço, respondera pessoalmente à carta de Lamarca: – Sua análise foi correta. Você é o verdadeiro líder desta revolução. – Jamais. Tenho distorções de formação. O verdadeiro líder ainda surgirá. Não pode ter origem militar. Inês e Daniel repensavam a estratégia da VPR. Em debates ásperos porque envolviam erros políticos, mortos e sofrimento, retomaram as discussões sobre os rumos da luta armada. Lamarca negava-se a admitir um recuo. Lucia e Iara ventiIaram o dilema. De um lado José Raimundo da Costa, o Moisés, com apoio de Lamarca, defendia o retorno dos melhores militantes em logística e teoria. Mário Japa e Ladislau, por exemplo. E a recomposição das bases materiais armas e dinheiro. Grupos assimilados aos camponeses, paralelamente, preparam a eclosão da guerrilha em diversos Estados, projeto inspirado nas teses de Ladislau. A outra posição, de Daniel e Inês, recomendava um congresso no Exterior, de todos os militantes. Queriam a todo custo proteger Lamarca. Impossível ficar no Brasil, até o deputado Rubens Paiva preso na presença da esposa e filha, nenhuma notícia dele. Consciente da pouca valia de sua opinião, Lucia argumentava em favor do recuo. – Iara também. Tinha clareza. Ficar significava morrer. 444

Lamarca e Iara mal se viram nessas semanas. Encarregava-se de promover o encontro principalmente Inês, sempre uma armação perigosa: pegar Iara num ponto, horário rigoroso, levá-la "fechada", volta à noitinha. O rosto dela, apesar dos disfarces, a um observador atento lembrava bastante as fotos publicadas. Contudo, Inês não julgava a tarefa um transtorno. Todos corriam riscos, muito procurados. E quando garimpavam aparelho para Lamarca, tinham em conta o espaço de Iara. No início de fevereiro, Iara despediu-se de Lucia para reencontrar Lamarca no aparelho de Walter, em outro subúrbio da Baixada, as crianças um talismã. Inês apareceu algumas vezes, discutir a linha da VPR. As amigas, que durante o seqüestro se correspondiam por cartas e bilhetes, reviram-se com alegria. Certa noite Lamarca participou de uma reunião da Frente, no aparelho do PCBR em São João de Meriti. O MR-8 sustentava a conscientização dos camponeses através do trabalho de massa. A VPR e ALN insistiam em prosseguir a luta através de ações, ameaçando os vacilantes. O PCBR dividia-se entre "massistas e militaristas"2. No meio da noite, o sempre esperado revés. O companheiro responsável pelo "mundo exterior" não chegou no teto das 23 horas, preso em batida policial ao cruzar uma ponte. Tiveram que limpar o aparelho e abandoná-lo imediatamente. Lamarca, sem refúgio, foi obrigado a localizar a casa de Walter onde morava "fechado". Tinha duas referências: o bairro e a vizinhança de uma funerária. Confiante no preparo militar que lhe desenvolvera o senso de orientação, e nas lembranças de juventude no subúrbio, .38 e manuscritos dentro da bolsa capanga, subiu no ônibus. Procurou cerca de três horas e bateu à janela de Iara, orgulhoso da competência. Armados, quase quatro da manhã, Walter e ela tomaram posição até identificarem a voz sussurrada. Os companheiros debateram a enorme fragilidade. Tudo absurdo. Abandonálo na rua, o entra-e-sai de aparelhos, a dramática relação amorosa. A VPR exigia um congresso de redefinição no Exterior. Lamarca afinal cedeu, aparentemente convencido do papel que teria na solução das divergências entre os exilados. Iara e ele poderiam, também, cuidar da saúde. Em reuniões posteriores da Frente, formalmente decretaram o fim dos seqüestros. A ditadura deixara de negociar. Aliviados, faziam brincadeiras. Inês provocava os militares: obtusos, difícil que entendam as coisas. Lamarca foi dos que mais riu. Iara fantasiou episódios. 2

Jacob Gorender, obra citada (cap. 28).

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Meu pai, da última vez que nos vimos, disse-me: "Esse homem não serve para você, é muito feio."3 A perspectiva de viajar ao Exterior alegrou Iara no cotidiano quase imobilizante. – Eu me sinto uma rainha no formigueiro. Não gosto. Espantada, avaliou a lista dos 57 publicada em jornais. Iara Iavelberg "foragida". De Silvério a Maria do Carmo Campello, a Carmucci, irmã de Lucia Campello. Que é isso? Acusada de depósito subversivo. – Ai, sou culpada! Provavelmente as balas que pedi para guardar, num saquinho de papel. E as pecinhas de fuzil do Moisés. Daniel notou irritação pessoal em Lamarca. Estava incrédulo quanto ao retorno, uma vez fora do Brasil. Desagradava-lhe a mediocridade da vida no exílio. Revoltante oferecer o campo de batalha à ditadura homicida, que acabara de matar num aparelho da rua Cosme Velho, de forma inexplicável, Aderval Alves Coqueiro. Solto no seqüestro do alemão, dos poucos que voltaram. Retomou a discussão. – Não menosprezo o valor de minha vida. Mas falta conteúdo político para que eu me ausente. Daniel fez um balanço e nominou a "dinâmica da sobrevivência", fieira quase automática de ações. – Rodas dentadas de engrenagem. Precisamos arrebentar o me canismo. O congresso é importantíssimo. Fora do Brasil. Você é barra muito pesada. Claríssima, a intenção de protegê-lo. Rejeitou a proposta, agora sem subterfúgios. – Não sou um parlamentar que deixa o país para discutir. Sugiro o debate através de documentos. Daniel argumentou com as contas, apresentadas por Inês. – Olha quanto custa sustentar você no Brasil. Teremos que assaltar banco até o fim da vida. Riu, mordaz: – Pô, eu sou caro! Pô, eu sou caro! Terminou fingindo ceder.

3

Inês Etienne Romeu, depoimento: "Todos que ouviram caíram na gargalhada, menos o Lamarca que não achou a menor graça e disse que não entendia por que estávamos rindo." David nega o comentário.

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O plano cresceu – saíam do beco. Montariam o esquema de tirar o casal através dos tupamaros. Lamarca reapareceria em Cuba mais vivo do que nunca, alento aos brasileiros e exilados. Desmoralizariam os militares. Despediram-se. Este o meu grande segredo, prometeu-se Daniel. Se cair, jamais o mencionarei. Mesmo que todos morram, lá estará D. Sebastião. Queiram ou não, ele volta. – A História teria sido diferente. Menos dramática. E não se faria o silêncio de dez anos, até 1980. Encarregaram Zenaide Machado de Oliveira, a Rachel, de providenciar passaportes. Lamarca pediu a Iara que fosse conhecê-la. Desejava suas impressões, cauteloso como nunca, tantas quedas e rapidez na repressão. Sondasse-lhe a posição na luta interna. Zenaide alimentava-o de textos sobre desenvolvimento e relações econômicas da América Latina, do economista argentino Raúl Prebisch4. Manifestara interesse em conhecê-los, na correspondência interna. Sempre que saía do aparelho, renovava-se o otimismo de Iara. Ruas, gente colorida. Promessas, disfarces. Morno abraço do calor. As duas reconheceram-se imediatamente no ponto em Pilares. Zenaide admirou a graça do estampadinho no vestido suburbano, sandálias de dedo, unhas cuidadas, cabelos Chanel. Entraram na padaria e Tara comprou um sonho, que comeu enquanto caminhavam, gulosa. O bolinho ensejou uma conversa de preferências culinárias e faIaram primeiro de comida, depois de cabeleireiros e cortes de cabelo. Trocaram idéias sobre alguns companheiros – Daniel, Maria do Carmo, Lucia, Alex, José Raimundo. – Minha impressão foi de alguém inteiro, em paz. Vivia uma opção dura, pois Lamarca polarizava a truculência do regime policial. Na cadeia senti o ódio intolerável, que transtornava as expressões quando vinham com o nome dele. Certamente sobraria para ela. Não obstante pareceu-me feliz, prazer pelas coisas simples. Mulher apaixonada, em viagem. Zenaide expôs o que pensava, prudente, sem aderir às posições de Daniel. Divergia de Sirkis, cuja proposta interpretava como "salve-se quem puder". – Devemos chegar ao consenso. E traçar uma linha que leve à reestruturação. 4

Foi secretário-geral da Comissão Econômica para a América Latina – CEPAL, da ONU.

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Iara discordava ao retorno dos companheiros. – Será um massacre. Do encontro, relatou a Lamarca que a companheira não atacava Daniel, indicando um possível apoio à saída organizada para o Exterior. Mas sem comprometer-se. Consciente das derrotas, longa e difícil a luta, endossava o documento de Lamarca sobre o suíço. A correlação de forças desaconselhava o justiçamento. Esquerda isolada, sociedade sem aderir. Inês e Daniel contataram militantes do Sul. Inicialmente levariam Lamarca ao Chile. Mas ele retomou a questão, assimiladas velhas táticas de congresso – obstruir, protelar. A relutância em viajar minava as forças de Daniel, sem repouso desde o seqüestro. Sentiu-se doente. Os vermes contraídos no Ribeira, somados à tensão dos últimos três meses, derrubaram-no. Foi ao médico e ouviu, estarrecido, que mal viveria seis meses. Leucemia, diagnóstico errado. Decidiu cumprir as tarefas sob sua responsabilidade, que envolviam as bases, mas solicitou desligamento do comando. Iara espantou-se ao encontrá-lo na rua. – Você está muito ruim. A cara... verde. Deprimido, examinou-a enquanto andavam pela calçada, no subúrbio. Teve a impressão de que a amiga falava igualmente de si, verde e adoentada, rosto flácido, aspecto geral de tristeza e terrível fadiga. Tudo melancolia e separação, que o frenesi preparatório do carnaval acirrava. De cada companheiro despedia-se, os dias contados. A própria seca, 27 dias sem chover em pleno verão, calor insuportável, oprimia-o. Dia 15 de fevereiro, reunidos Lamarca, Iara e outros, souberam que Breno e um companheiro da VAR caíram. O choque atingiu Inês com violência. Íntimos desde a Faculdade, não o via desde outubro, quando num ponto discutiram as respectivas opções. Sofria, imagens de Breno preso em 1964. Recusara-se até aos serviços burocráticos que o DOPS lhe determinou. – Ele não abre, vão matá-lo5. Afastou-se desamparada, infeliz. Tal um ferimento, percebeu que o fosso da desavença política não apagava o afeto vivo. Na boca, o gosto amargo do cafezinho

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Brasil Nunca Mais (Cap. 21: "Desaparecidos Políticos"). Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, obra citada. De acordo com o fichário da Anistia lnternacional, Breno foi torturado até abril de 1971 e desapareceu. Inês, presa na casa da morte em Petrópolis, soube que o assassinaram a tiros depois de o torturarem ali.

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que tomaram no bar, nem cinco meses. Iara aproximou-se e consolou-a6, sob o olhar de Lamarca. Nesse ínterim o companheiro do Sul, que preparava a saída, furou um ponto. Inês não quis checar o local alternativo, perto de uma feira, porque estaria cercado. Lamarca insistiu, olhassem de longe, difícil aceitar outro desfalque. Obedeceu. Daniel acompanhou-a. O policiamento era perceptível. Quase aliviado, Lamarca elaborou uma proposta de recuo da luta armada, junto ao que chamou "trabalho de bases". Durante o carnaval, que coincidiu com a soltura de Gomide no Uruguai, voltaram a Rio D'Ouro para uma reunião plena7. Inês e Daniel concordavam – inadequados, naquelas circunstâncias, os métodos de luta. A irritação crescia. – Não há o que discutir. É urgente estabelecer uma linha política nova, os companheiros juntos, no Exterior. – Debateremos aqui – Lamarca fixou-se. – A repressão terá os documentos antes de chegarem às bases – previu Inês. – A VPR está exposta, ninguém sabe por onde*. Voltaram antes das inundações. As chuvas vieram intensas, dezenas de mortos, queda de barreiras, pontes, desabrigados no Estado inteiro. Dia 1° de março, os jornais noticiaram a prisão, em Natal, de militantes do PCBR que articulavam seqüestros e atentados a prédios públicos. Inês achou melhor mudar Lamarca de aparelho. Disponível para o casal, só a moradia de Alex e Lucia. Lamarca ainda se abespinhava ao lembrar o documento do rapaz. – Sem definição, pretensioso. Nas águas de um pequeno-burguês, Daniel. Topete, o do menino! Foi, "fechado", Iara, já "aberta", de tardezinha conversava no portão e explicou à vizinhança que cerrar venezianas impedia a entrada de calor, pó e mosquitos. Lamarca e Lucia, juntos a maior parte do tempo, conversavam.

Inês Etienne Romeu, depoimento: "Você está sofrendo muito por ele, não é? – Sem falar dos seus próprios sentimentos, Iara passou a me dar força, a falar daquilo que já sabíamos, mas que era tão difícil de enfrentar na prática: que o destino do revolucionário é dar a vida pela Revolução. 7 Inês Etienne Romeu, depoimento. * Jornal do Brasil 19.9.88: Maria Lamarca declarou que o cabo Anselmo tentou saber em Cuba, de Cesar, nove anos, o paradeiro de Lamarca. (Teria sido no início de 1970, mas 1971 parece mais provável, porque Anselmo reconheceu Rio D’Ouro no fim de 1970 e o local não caiu, a ponto de lá realizarem o pleno). Maria Lamarca expulsou-o de casa. A respeito: Marco Aurélio Borba: Cabo Anselmo, obra citada. 6

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– Por que você foi tão violento com Alex naquele documento? – perguntou-lhe um dia. – É que ele tem muito futuro. Precisa de bronca para crescer. – A mim, não poupava carinho. Descrevia o Ribeira, esmiuçando a diferença entre as armas. Expunha a estratégia. Era professor paciente ao extremo, apesar do alto nível de tensão. Acordava de noite para fumar, cinco maços diários. Iara prevenia-se da asma tomando banho frio de manhã, no pequeno banheiro construído dentro da cozinha. É cuidava-se. Certa vez, com Lucia na cidade, cumprida a tarefa, dispunham de horas antes do retorno. Feliz em passear na Zona Sul, o mar próximo, admirou a moda: saias longas na praia, boleros na rua, miniblusas, barriga de fora. Apesar do calor, propôs a sauna; o atrevimento, na terma do Leblon, maravilhou Lucia. – O lugar estava cheio de dondocas. Ela, procuradíssima. Porém queria relaxar, o conforto de ser tratada. Iara e Lamarca dormiam no desconfortável sofá-cama, agora no quarto. Durante a estada, cerca de um mês, muitas vezes ele cozinhou e houve dias em que os quatro almoçaram a tomar cerveja, discos na vitrola. Morte e Vida Severina empolgou Lamarca, desconhecia a peça. – Ah! Isso sim! Nunca ouvi nada igual. Assistiam à tevê, comentavam política. Fly libertado pelos tupamaros, a recusa do Congresso uruguaio em suspender os Direitos Civis, derrota de Areco e dos militares. Nixon a fazer mesuras à China, protestos de Formosa. – Abandonam o aliado, na maior. Exemplo do mau-caratismo imperialista. Um passo cIaramente anti-soviético. Allende participará da OEA, pensa garantir um espaço amistoso; disparate Fidel visitá-lo, a direita vai babar. Brava a luta pela trilha Ho Chi Minh. O aviso do secretário da Segurança de São Paulo provocou gargaIhadas: terroristas são simpáticos, bem educados, sabem conversar; difícil distingui-los quando alugam casas. Ridicularizaram Passarinho, que qualificou o Mobral de sucesso. Políticos da ARENA elogiavam o Al 5– arma antiditadura, garantia do estado de Direito. E silêncio sobre o assassinato do professor Anísio Teixeira, 72 anos, exreitor da Universidade de Brasília, jogado no poço do elevador. Nenhuma porta defeituosa. 450

Dia 4 de março, na presença de Médici, o estouro de uma lâmpada de mercúrio gerou pânico durante o jogo de futebol que reinaugurava em Salvador o Estádio Otávio Mangabeira – 1.500 feridos, 200 graves, ignorado número de mortos. Sabotagem, acusaram as autoridades. Os subversivos viviam falando da má qualidade das obras. A tragédia envolveria o destino de Iara e Lamarca8. Jogavam buraco, divertia-os a paixão de Lamarca por caqui, plena safra. O pai de Lucia, sem suspeitar de comensais, presenteara-a com crédito numa quitanda do Méier e ela comprava grande quantidade de frutas. Naquela penúria, um luxo. – Theodomiro foi condenado à morte, vão apelar. – Feia a situação em Córdoba, tanques contra grevistas. O clima pacífico desvanecia-se logo. Lamarca não perdoava a afronta do seu custo e, implícito, o de Iara. A insistência em vê-lo fora do país pareceu-lhe um golpe maquiavélico para afastá-lo dela e das decisões. Transformava-se em objeto de uso, um quadro "estratégico". A relação com Inês, em particular, deteriorou-se. E havia diz-que-diz-ques, crescente desconfiança interna a refletir o aperto policial. Que organização é essa, Alex deixa o carro atravessado na rua, dá na vista! Os companheiros querem salvar a própria pele no Exterior, a companheira do comando me sabota! Pior que tudo, a sensação de inutilidade. Começou a sopesar os projetos do MR-8. Oferecia trabalho de massa no campo, camponês entre camponeses. Depois de implantado, guerrilha. Iara estimulou a reflexão. Talvez fosse o caminho, escolhido há alguns meses por um grupo da VPR altamente treinado em ações armadas, que incluía Sonia Lafoz, aos quais Stuart Angel Jones9 prometera guerrilha na área estratégica. Até aqui, no entanto, sem militantes capacitados, o MR-8 escaIara-os para assaltos. Sonia atuou no grupo de fogo até um camburão cercar o ponto diante da igrejinha no Méier, convocado pelo padre suspeitoso de boca-de-fumo. Fugiram do cerco, uma bala acertou-a superficialmente na cabeça. Horas depois localizaram um médico que extraiu o projétil sem anestesia, diagnosticou a gravidez e teve a coragem

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Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada. (Parte IV, capítulo l): "a esquizofrênica (...)entrega-se(...) (revela) nomes(...) aparelhos, pontos...” 9 Assassinado sob tortura no quartel da Barão de Mesquita. Alex Polari, obra citada; Veja, 3.9.86; Amílcar Lobo: A Hora do Lobo, a Hora do Carneiro (Cap. 4: "Janeiro de 1971"), Ed. Vozes, 1989; Brasil Nunca Mais, cap. 21 ("Desaparecidos Políticos").

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de vê-la em casa durante 20 dias. Iara soube que Sonia queria sair do Brasil. Sugeriu ao comando da VPR que lhe prestasse ajuda10. – Recebi os papéis depois de aguardar dois meses, prazo insuportável. Inês, acho, disse-me então que Iara queria falar comigo – conta Sonia. Encontraram-se no restaurante Jangadeiro à noite, ambas de peruca. Iara, os grandes óculos sem grau. Pediram casquinha de siri, homenagem a Maria do Carmo que adorava o petisco. – O rosto dela, muito inchado, assustou-me. Expliquei que o instinto materno faIara mais alto, eu não abortaria. Desejava que meu filho nascesse em segurança, fora do Brasil. Iara entendeu a necessidade, o cansaço, descrédito na vitória. Não contra-argumentou. Imaginei que tivesse a mesma sensação, mas havia Lamarca. Tacitamente concordamos. Algo está errado, meia dúzia de pessoas solidárias à última gota sem incitar o país à luta, a repressão revigorada. Sem refletir, adivinhei que ela veio dizer-me adeus antes de atirar-se no espaço em nome da revolução, do amor, algo a protegê-la. Percebi seu enorme respeito por Lamarca, a pessoa que ajudou a criar e cujas crises, fortes, segurava. Nem me disse para ficar, nem que eu era covarde – a reação de Stuart. Só sugeriu que um front camponês ainda não fora vivido, valia experimentar. Sem ênfase. No fim do mês, Moacir Villela e Iara cruzaram-se ao acaso na rua. Surpresa boa. Não se viam desde São Paulo, em pontos rápidos, meia hora na rua para matar as saudades. – Tenho na memória que propôs um trabalho mais político, semelhante à POLOP. Sem combate imediato. Concordávamos: que fosse episódica a luta armada, importava era lutar. Persistimos apesar da derrota. Estava abatida. Alex fugia do clima alterado no aparelho, em sessões corridas de cinema. Evitava encontrar Lamarca acordado. Iara interveio na medida do possível. Tentou argumentar pelo congresso no Exterior mas desistiu, amedrontada – Lamarca perderia a confiança nela. Varar a irracionalidade que o cegava e atingir o nó seria perdê-lo. Aceitou a afirmativa: estou no centro das decisões, não vivo uma aventura nem abandono a luta. – Optou pelo homem. Amor e dedicação. Quis ficar com ele o tempo disponível de vida. Claro que não o admitiu; foi a minha percepção – remonta Lucia. – Mantinha 10

Inês Etienne Romeu, depoimento.

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a calma, por dentro certamente borbulhava. Escolha da morte. Inútil que argumentasse olhe, vamos morrer, melhor preservar-se, tenho medo. Quando alguém não quer ouvir, fica surdo. Ela compreendeu a barreira. E Lamarca, profundo stress, dois anos em aparelhos – só saía para assaltos, tiros – ao desconfiar de manobra, desconectou-se do real. Pendurado num galho frágil sobre a correnteza, acreditavase num transatlântico. Se Iara insistisse, pensaria: mudou de lado. Comigo ele abordava o tema calmo, a repetir "vou pro campo fazer um trabalho, minha luta é aqui, não saio daqui".

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VI BAHIA

Complô. O comandante abandona seu exército

APESAR DO MAU HUMOR, Lamarca era gentil. Iara beijava-o de manhã e saía feliz para comprar leite e pão. Papel de mulher comum, instantes de liberdade. Depois do café repetidamente tomou a iniciativa de sentar-se no colo dele enquanto liam o jornal. Refreado deixava-se afagar. Escrevia muito e elaborou um documento "Aos companheiros da VPR no Chile", advertindo-os contra o "liberalismo e ideologia burguesa... longe do palco de luta". Listava diretrizes1. Diminuta a possibilidade de viajarem, Iara retornou sem subterfúgios ao projeto do MR-8. Homenagem a Eder, denunciado num listão POLOP/POC, que incluía Emir e numerosos amigos da Faculdade. Abordavam questões econômicas, as teses da CEPAL. O centro é ativo e a periferia reflexa, sujeita-se aos termos do intercâmbio e sempre leva a pior, expunha durante o repouso no sofá-cama, chuvas dispersando o calor da tarde. Já as importações do centro, que o desenvolvimento interno condicionam, independem da relação com os passivos – entende, neguinha? inquiria, o tom especial ao destacar uma idéia. A consequência é a sujeição da economia periférica. Gozado. Prebisch defende reforma agrária e fiscal, maior intervenção do Estado na política econômica. Pretende conter o consumo das classes privilegiadas. Preconiza livre comércio na América Latina, aumento de intercâmbio com os países socialistas, talvez freios nos capitais estrangeiros. O objetivo está na cara, é reformista. Não propõe transformações profundas. Falha na avaliação do imperialismo que, você vê, campeia sobrevivência nos atalhos. Iara examinava o rosto magro, vontade de serenar a sofreguidão por conhecimento, luz ansiosa nos olhos, todo mundo chuta, meu bem, esse tique de citações. – Quem são revolucionários verdadeiros? Os sábios no Exterior estudiosos de catataus? Aqueles que têm paixão – balbuciou, presença de Elias. Paixões, desespero, morte. Tutinha me carrega no dedo Rachel, que acalenta sem ferir. No MR-8, a esperança. Nem abriam mão da guerrilha – é o tempo de conscientizar os camponeses – nem abandonavam o país. Urge superar os 1

Jornal do Brasil, 29.5.71.

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encaminhamentos imediatistas, dizia no jargão. A perspectiva está no campo. A médio ou longo prazo a coluna guerrilheira fomenta a insurreição nas cidades. – Será um esforço que incorpora a dinâmica das lutas sociais contradições entre o grupo local e os exploradores, o lado emocional dos camponeses. Vai além da visão puramente militar. E quando desencadearmos a guerrilha, ela crescerá. Nesse estágio voltarão ações de propaganda armada urbana. Limitadas, devido à ausência de espaço significativo. Complementares. Lamarca assentiu em reconciliar-se com o MR-8. Seus integrantes haviam se aborrecido porque a VPR, autoritária, lhes alterou a lista de presos a soltar. Além disso, resistiam ao militarismo. Ainda em fevereiro, Carlos Alberto Muniz, da coordenação nacional do grupo, recebeu o recado. Queriam conversar e marcaram um ponto que o espantou pela inadequação: o barzinho de mesas no Maracanã, a poucas quadras do DOI-CODI e Polícia do Exército. Um companheiro apresentou-o a Iara. Observou-a, curioso: elegante num tailleur marrom. Sentaram-se a tomar refrigerantes. Pareceu-lhe apreensiva, porém não acuada. – A VPR enfrenta um cerco apertado, sem aparelhos seguros para alguém como Lamarca. Vocês vêm argumentando a favor do trabalho no campo. Tentamos introduzir alguns desses pontos na discussão interna da VPR. Há grande resistência, insistem num congresso fora do Brasil. Lamarca nega-se a sair e pensa numa linha semelhante à do MR-8. As condições mudaram. Ele gostaria de discutir com vocês. Muniz delineou as idéias que tentavam sistematizar e aludiu à implantação em curso, no campo. – É um esforço político sério, sem menção de guerrilha. O interesse em absorver o casal idealizado era claro. Traria alento e novos militantes. Combinaram outro encontro numa transversal da Dias da Cruz, perto do Méier, direção Engenho de Dentro. Stuart Angel Jones, da coordenação regional, ajudou no transporte de Lamarca e Iara à casa de aliados, em dois carros. Não se tratava ainda de trazê-los ao MR-8, mas de facilitar o debate político em local seguro e apoiá-los num momento difícil da VPR. O apartamento ficava na rua Barão do Flamengo. Iara aspirou a brisa. Que bom, Zona Sul. Intenso tráfego na avenida à beira-mar. 455

Especialmente convocado falaria do trabalho no campo e o projeto de guerrilha – veio da Bahia seu responsável, João Lopes Salgado. o Fio. Sentia-se premiado. Direção nacional, 28 anos, conheceria a principal liderança revolucionária. – De quebra, a famosa companheira. Impressionou-me a cultura política dela, o embasamento teórico das colocações, tom de brincadeira que dava a algumas passagens, suavidade. Abordaram a proposta da VPR, congresso no Exterior; e o possível "voluntarismo" na resistência de Lamarca. – Não – rebateu. – O retorno é problemático e abomino depender dos outros. Seria capaz de voltar só. Cara, coragem e meu. 38. Nosso papel é criar condições para a guerrilha. – Cortava rente, nem admitia discutir. Quanto a nós, de fato julgaríamos outra posição um desbunde. Abandonar o projeto de luta armada gerou o neologismo "recuísta", pecha grave. Não chegava à traição e Alfredo Sirkis servia de exemplo. – Mantemos a amizade, é fraqueza de pessoa íntegra. Salgado discorreu sobre a área no campo, escolhida por causa do esforço pessoal de um companheiro. – O objetivo é apenas recrutar, celeiro de combatentes. A pobreza radicalizou a massa e existem condições para movimentos violentos. São pequenos proprietários, economia de subsistência. Banana, mandioca, cana-de-açúcar, rapadura. Havia um garimpo de cristal de rocha. Oportunamente iniciaremos a guerrilha, centenas de quilômetros além. Temos a planta, falta a rede de militantes. Em silêncio Lamarca e Iara identificaram a vila natal de Barreto, dedicado a desenvolver consciência comunitária nos poucos habitantes desde que voltara à Bahia em 1969. Salgado prosseguiu, referindo-se a características gerais da região. – Guardam na memória a passagem de cangaceiros. – Pára, não continue que já sei onde é – atalhou Lamarca. – Impossível. Não muito longe, em Mocugê, um destacamento da Coluna Prestes sustentara sangrenta batalha. Também deveria ser memória. Lembrava-se do nome e das tertúlias em casa de Afonso Figueiredo, tempos de Quitaúna. 456

– Vou escrever num papelzinho. Certo ou não, você fica na moita e rasga. Salgado leu-o. Oeste da Bahia, provavelmente perto da Serra a Mangabeira. Puxa, pensou enquanto o inutilizava. Acertara. Lamarca desfiou anedotas sobre o treinamento na área do Ribeira, descreveu a topografia. – Depois de nossa vitória, políticos e militares não param de fazer demagogia em torno da mortalidade infantil, enchentes, estradas abandonadas. Levantavam-se de tempos em tempos, bebiam café na cozinha. Prosearam. Iara historiou, risonha, as dificuldades que viveu na VPR sobretudo após a ligação com Lamarca. Salgado admirava o casal que imaginara severo, sem descontrações. Mal acreditou quando Iara teceu apologias a Roberto Carlos. – Adoramos. Romantismo simples, a fantasia do bem absoluto. Masculino e feminino assumidos. Musicalidade acessível, identificação, clímax evidente. Sem emoções envergonhadas. Despediram-se. Lamarca ainda tentaria a VPR. Quem sabe mudavam de posição? Entretanto, se formalizassem o ingresso no MR-8, iriam os dois para o campo. Era a condição. Tinham as mesmas posições e queriam ficar juntos. – Cansamos de viver em aparelhos separados. Só há um problema, a saúde de Iara. – Sofro de menopausa precoce, ignoro se associada à infecção que tive no treinamento. Um médico da VPR diagnosticou. Preciso me tratar. Lamarca não reagiu à mentira. Julgariam insano o desejo de um filho naquelas circunstâncias. Salgado, que abandonara o curso de Medicina no quarto ano para dedicar-se à

militância,

preocupou-se.

Fosse

o

problema

grave,

não

disporiam

de

endocrinologista confiável. Quem sabe entre os companheiros médicos na Bahia. Lamarca elaborou o documento que, a seu ver, substituiria o congresso da VPR. Descreveu aos militantes as propostas conflitantes do comando, deixando cIaras a origem e profundidade da discordância. Alex reproduziu o texto. Dia 22 de março, no ponto em Cascadura, passou-o a Gerson e Maurício Guilherme da Silveira. Saiu por uma rua lateral, um carro aproximou-se. O ponto caíra. Os dois morreram metralhados ao sacar as armas.

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A morte de Gerson traumatizou Lamarca. Arrasado, vinha-lhe a imagem do amigo a interpretar Carlito em Rio D'Ouro. A partir daí tudo concorreu para que pinçasse um culpado. A licença de Daniel, o recuísmo de Inês, o impasse da VPR. Solidão, o MR-8, revolta de morrer sem luta. – Há um complô contra nosso amor – certificou-se. Será Inês, sempre às voltas com a dificuldade de aparelhos. Quer separá-los. Insiste num congresso no Chile – revolucionários lutam na pátria! O vietcong bate os americanos, Panteras Negras crescem nos Estados Unidos, tupamaros no Uruguai, angolanos em Angola. Surgem guerrilheiros na Argentina em meio à crise econômica. Confortavam-no as cartas aos filhos, que Lucia e Iara liam. Seu testamento. – Inês, você tem de se definir – comandou afinal. Tratava-a com crescente frieza e rigidez. Encurralada, ela escreveu a Herbert Daniel e Lamarca. Não disponho de condições para continuar no comando, comunicou. Desligava-se da VPR, saía do país. Decisão sofrida. Receava abandonar os companheiros à sorte. Loucura persistirem, insistia. Vão todos morrer. Não defendo recuo da luta, mas da guerrilha à qual Lamarca se apega, inflexível. Entregou o dinheiro que guardava, deu início à transmissão dos contatos e pediu um ponto com Iara. Queria combinar a devolução do aparelho paulistano e despedir-se a sós. Uma carta seria insatisfatória depois de tanta convivência. Cumprimentaram-se ressabiadas numa padaria perto do Méier. Inês comprou cigarros. Iara não se conformava com a partida da amiga. – Você não pode ir assim. O problema é do conjunto, não apenas seu. Perdia a companheira corajosa, disponível como poucos. Um abandono. E alguém do comando larga o posto assim? Enjeita os companheiros? Inês deve submeter-se às decisões da maioria, adotá-las e lutar por elas. Do contrário, que é da revolução? Inteligência, liderança, capacidade de trabalho pertencem ao coletivo. Inês é um símbolo. Sua partida, uma acusação. – Impossível romper a barreira que Lamarca impôs, Iara. Ele acredita que podemos criar condições do nada. Puro idealismo. Não me suicido, pensou. Iara apreendeu o raciocínio e Inês, como nos jogos de mímica, prosseguiu. – Se ele não quer, saia sozinha – ensaiou. 458

– Você também entrou nessa! – agrediu amarga, face endurecida. Inês assombrou-se. Custara-lhe desatar, confusa e cheia de culpa. Iara não entende, passiva ante as obstinações de Lamarca. Acompanha-o à morte. Não faz a cabeça dele coisa nenhuma e se enfurece comigo. Novamente soube que a amiga refutava, diálogo mudo, sintonia na bolha invisível a envolvê-las numa calçada pobre, quente e feia de subúrbio carioca, gente humilde sem perspectivas, por eles lutamos. Sensível e nervoso cordão umbilical. Cortá-lo, tanta dor. – Não há nenhuma segurança para vocês no Brasil – traduziu, consciente de irritá-la mais. – Meu destino está ligado ao dele – submeteu-se. Conforme combinaram, Iara foi a São Paulo desativar o aparelho da rua Espírito Santo. Desceu na rodoviária de peruca, maquilada, óculos e frasqueira. Turista de regresso. Apressou-se, semi-sorriso altivo, a sair do enorme galpão, vitrais coloridos filtrando a luz na desordem, sujeira, ruído ensurdecedor de ônibus fumarentos. Tomou um táxi rumo ao Pacaembu, passageira do futuro. Passou perto da esquina onde o avô Bernardo furtivamente comia bolinhos não-kashér e diante dos cinemas da avenida Ipiranga. Pediu ao motorista que pegasse a Consolação, Maria Antônia. Viu pessoas estranhas nos bares, a Faculdade arrebentada, o puxado que abrigava excedentes– Sonia e o marido já no Chile. Meu tugúrio, a doceira. Mackenzie. A direita, na Veridiana, o prédio dos pais. Logo o enorme edifício kitsch de Renata na Higienópolis, doidas filmagens de Rogério. Passou diante da casa de Elias na rua Tupi, hoje é meu dia de fazer visitas. Desceu na avenida Pacaembu, caminhou. Adiante subiu em outro táxi e percorreu os bairros, trocando sempre. Visitou Ely, amiga do ginásio, Mary Jane. Telefonou para Tutinha e Rachel, é Mirela ou que nome ocorresse, só um beijo, tudo bem, viajo. Tutinha prolonga minha ponte à FAU, Rosa avisa David, Eva. Nos conformes. Não acredito na morte. Meu filho nasce em Cuba, introduzo-me a Maria, às crianças. Meu filho cresce numa fazenda coletiva em Minas Gerais, lá é tão bonito. Ou aldeia nordestina de artesãos e pescadores. Lamarca não sai do Brasil, interiorizou finalmente. Não há evidência que permita desdizer o dito, desfazer o feito. O líder não abandona os seguidores. Um oficial morre com a tropa. Compete ao homem apressar o curso da História. Começou e vai ao fim, corpos fertilizam o solo da revolução. Dialético. Só resta a Lamarca morrer, fiel ao pregou. O caminho faz sentido. Enquanto estivermos vivos conferimos peso internacional aos 459

minguados combatentes brasileiros, o sertão um dia vira mar. O mito interessa à ditadura, realizou. Fácil matar um só, acaba a esquerda armada. Quanto tempo sobra?2 Dedico-me integralmente a Lamarca, nem cinema nas raras oportunidades. Apeou do oitavo táxi em frente à casa da Espírito Santo e devolveu o quarto. A derradeira reunião do comando à qual Inês compareceu realizou-se dia 30 de março. Viera ao aparelho de Alex resolve questões práticas. Nem ela nem Daniel, também presente, deveriam participar das deliberações orgânicas da VPR. Mas os cabeças da organização agônica engalfinharam-se, Iara, Lucia e Alex fechados nos quartos. As frustrações conturbavam Lamarca. Há uma revolução mundial em marcha, sair do espaço é desertar no momento difícil. Em consideração à suposta leucemia, foi moderado nas críticas a Daniel. Visava Inês. Ríspido, acusou-a de recuísmo no interesse da própria pele, heresia contra o código moral da luta armada. – Essa história de congresso no Exterior não será uma artimanha para você se safar? – apostrofou. Não houve argumento racional que ouvisse: o que podem meia dúzia de gatos pingados, Daniel doente? Sair preserva o debate, a experiência. E as vidas, pensavam todos. – Covardia! Desrespeito aos que tombaram, condenação de quem fica. Bem sabia das fofocas correndo às suas costas, inadmissíveis em militante digno. Inês afirmara "desisto dessa loucura toda, Lamarca desligou-se da realidade". Pode? Mantinha-se alerta, lia, pensava dialeticamente, cônscio de sua função política. E a companheira solerte, em cochichos nos pontos. Ele, Lamarca, perdera a confiança. Como ficar nas mãos de tal desertora ou abrigado em casa de um moleque irresponsável? Ainda por cima Inês quer afastá-lo de Iara com o risível argumento de que no mesmo aparelho o perigo duplica. O intuito lembra-lhe o militante que, meses atrás, tentou envenenar a relação referindo-se a Breno. E o meu custo? acrescentou sarcástico. Excessivo para a VPR. Vinte e cinco meses fora do quartel e nada concretizado, exceto o Ribeira. Pequeno-burgueses frouxos e amedrontados. Em lugar de aço temperado, gelatina. Que José Raimundo contatasse rapidamente o MR8. Abandonava a VPR seus golpistas.

2

Jacob Gorender, obra citada: (Cap. 28): "O guerrilheiro urbano tinha vida ativa mediana em torno de um ano, antes do término pela prisão com sobrevivência ou pela morte. Uma minoria conseguia prolongar a vida ativa até dois anos. Contam-se pelos dedos pouquíssimos que estiveram em ações armadas durante quatro ou cinco anos e escaparam da prisão pela fuga ao exterior".

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– Sou revolucionário coerente, dedicado ao socialismo. Não um joguete. – Sem o menor sentido você me comunicar que ingressa no 8. Estou desligada – repreendeu-o Inês, sem forças. A explosão refletia a angústia da derrota que acreditava tática. Daniel delira, agora me quer D. Sebastião. Ninguém mais me usa. Nossa linha política era correta, o fracasso vem do militante que fala no pau-de-arara, acusava cheio de desdém e lembrando a dignidade de Juarez, tantos mortos sem piar. Asco de quem abre, tudo farinha do mesmo saco, revolucionários de merda. Finda a reunião, o clima plúmbeo espalhou-se. Inês, que aguardaria a noite para sair, passou o dia entregue, deitada no chão a chorar. O forte ex-marinheiro Raimundo teve problemas cardíacos – Daniel saiu desesperado de carro, atrás de um remédio que aplacasse a crise. Lamarca e Iara fecharam-se no quarto. Ansiosa por desanuviar o ambiente e em homenagem à Páscoa que se aproximava, Lucia assou um pudim de pão. Queria que comungassem. Vorazes, Lamarca e Raimundo quase o liquidaram. – Lamarca pareceu-me o único mais ou menos inteiro. Inês e ele deixaram de falar-se. No pouco a dizer, servi de intermediária. A desmontagem do comando destroçou relações, das raras que restavam. Foi terrível. O baque deixou a impressão de que Inês, viagem ao Exterior já engatilhada, cobriu um ponto caído sem energia para recusar-se à ordem de Raimundo, revolucionária acima do medo, mais um local aberto do qual se evadir. Purificava-se da profanação, semelhante a Lamarca, esta a linha que tracei. Daqui, nem um milímetro. A ele devolvia a agressão do próprio sacrifício. Lamarca sequer pôs em discussão sua saída, o que impediu um "racha" entre o punhado de militantes. Assumiram o comando nacional José Raimundo da Costa, Zenaide Machado de Oliveira na Guanabara, Aluísio Palhano e o cabo Anselmo em São Paulo. – Não conseguimos acreditar nas alegações de Lamarca. Se realmente políticas, teria que promover luta interna. E ele era nosso líder, para mim profundamente carismático. Sentimo-nos sem pai – sintetiza Lucia. – Lamarca saiu de uma organização já inexistente – observa Daniel. – Lembro da indignação de Alex: "Por que foi embora? Ele que determinasse mudanças."

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Abandonara-nos, acusações vagas, o maldito complô desprovido de corpo, origem. Patético, o comandante fugir de seu exército.

No abrigo de aliados. Cai Inês

DIA 1° DE ABRIL, quando Lamarca e Iara passaram ao aparelho do MR-8, o Jornal do Brasil publicou trechos liberados do texto apreendido com Gerson1. Uma nota pequena relatava a morte de Márcio Leite Toledo, "atingido por 12 disparos de revólver na semana passada... (possivelmente por) desentendimento entre terroristas”*. A ameaça de justiçamento rondava as organizações. O documento em que Herbert Daniel criticou a dinâmica da sobrevivência, definiu a derrota como estratégica e propôs o congresso no Exterior, valeu-lhe a condenação à morte pelo "tribunal" composto de Onofre e Anselmo, no Chile. – De volta ao Rio, os dois tentaram algumas vezes marcar o ponto em que me justiçariam. O encontro não se realizou. Despedir-se de Iara e Lamarca provocou em Lucia um grande vazio. – Pai e mãe partindo. A separação mais triste e terna. Depois que Alex caiu, Lamarca mandou notícias por Raimundo. Recomendou que me apoiassem. Podemos estar cegos quanto à própria opção pela morte. Mas enxerga-se a dos outros. Nunca mais nos vimos. Muniz e Stuart recolheram os dois no ponto de Alex. Um casal aliado abrigouos. – Puxa, que bom, isto é um lar! – exclamou Iara à entrada, feliz ao ver as duas filhas, três e cinco anos. Na residência de três quartos, sala de almoço, uma porta de

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Lia-se: "Os documentos que caem são explorados pela burguesia. Isto não nega a possibilidade de se travar luta política através (deles) (...) as necessidades politicas se sobrepõem às técnicas (facilmente superáveis) (...) Sou militante revolucionário embora (o comando) queira me reduzir a um nome (...) A dignidade do chefe que tem de ser preservada, custe o que custar, só existe na sociedade capitalista (...) já passamos por momentos muito mais sérios (...) (adia-se) a luta política para (superar) os problemas imediatos (...) (chega de remendar) uma prática deformada (...) Continuam (prioridade absoluta) as ações de numerário e condições para discussão." Terminava "Ousar lutar, ousar vencer", Claudio na assinatura. Numerosas propostas, conclusões e a "síntese" não foram liberadas para publicação. * No Jornal do Brasil de 7.6.87, Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, único sobrevivente do tribunal de cinco militantes da ALN que condenou o rapaz à morte, diz que o sentimento, hoje, é dor. Mas defende a decisão no contexto da época. Uma semana depois, sob título “Os Tempos de Cólera”, o jornal entrevista ex-militantes da esquerda armada a respeito de justiçamento: Moacir Villela, Daniel Aarão Reis, Herbert Daniel, César Benjamin, Renato Tapajós, Nelson Rodrigues Filho, Paulo Henrique Lins e Paulo de Tarso Venceslau.

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vidro em arco fechava o estar, independente. Ali pousariam, no sofá-cama. Imediatamente Iara dirigiu-se ao banheiro com a frasqueira de cremes e maquilagem da qual não se afastava. Queria arrumar-se. Pela janela, inadvertidamente, identificou uma subestação. Apreensiva, avisou o hospedeiro. Essencial proteger quem protegia. A franqueza comoveu-o. Alguém menos cuidadoso deixaria o fato passar. – Eles me marcaram de forma muito pessoal. A rotina, que lembrava Marina Heck, deliciou Iara. Horário nas refeições. Escola, trabalho. A empregada discreta. As meninas. – Que linda voz tem a pequena! – repetia. – Sou ligada em vozes. – Alegre, a mala cheia de roupas. Eu discordava das mulheres masculinizadas, malvisto arrumarem-se. Lamarca e Iara, nomes Gláucia e Pedro, relaxaram. Animava-os a perspectiva do trabalho no campo. A médio prazo atuariam juntos. Analisaram a luta esvaziada na VPR – por circunstâncias várias, discorreu Lamarca, não atingimos totalmente os objetivos. "Liberalismo", o maior culpado. Tantas vezes os companheiros descuidaram das regras de segurança. Outra falha: negligência no recrutamento de aliados, apoio básico dos militantes. Por fim, modificações na situação política e econômica do país. – Mas o trabalho realizado é imorredouro. Provamos a força da oposição. É preciso percorrer os caminhos, ninguém pode acusá-los sem antes tentar. Críticas posteriores são fáceis. Passavam o dia na sala de almoço, mãos dadas, a ler e ventilar conceitos. Lamarca, obsessão crescente em instruir-se. – Sou uma figura revolucionária nacional, devo corresponder. Num dos livros que leu, Transamazônica: Prós e Contras, de Osny Duarte Pereira, havia grifos e anotações por toda parte. Não o interrompessem e estudava 20 horas seguidas; só erguia a cabeça para abraçar Iara. Ela se esforçava em colocar as questões num contexto de prática. Ouviam o noticiário. Espantou-a o grupo de denunciados em São Paulo, até o marido de Albertina. Descreveu Albertina e Aurora, a Lola, nossa atriz no curta-metragem de Renato Tapajós sobre o movimento universitário. Meus amigos, grande tribo a nossa. – Os milicos negam que Rubens Paiva esteja preso. Claro, se o mataram. O relator do habeas-corpus vai aguardar informações até o Dia de São Nunca.

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Caiu a AP em Salvador2. À noite conversavam com o casal. Lamarca defendeu o aliado quando a mulher o admoestou por não pajear as filhas. – Ele sabe que você é melhor nisso. – Que machista! – acariciou-o Iara. – Eu? Mas evoluí do militarismo a ponto de defender a importância da luta política na VPR. Rejeitaram, sectários entre militarismo e recuísmo. Fantasiavam. O trabalho do MR-8 permitirá interferir na realidade. Formada a consciência política do camponês, desencabrestamos o país. Retomaram o tema da tortura. – O verdugo procura reduzir a vítima à individualidade, de forma a torná-la o centro do mundo – postulava Lamarca enquanto fazia flexão nos dedos para deixálos firmes, exercício que mantinha perfeito o tiro. – O companheiro só quer escapar à dor. É imprescindível pensar na luta dos outros, na revolução. Esquecer o próprio umbigo. Onde estivesse, inquiriam-no sobre o Ribeira. Reconfortava-o falar do seu desempenho. – Certa noite, o assunto deu em jogo de amor entre eles. Fazia bonito, a guiar os homens através do cerco. Mocinho brigando com os bandidos diante da amada. Tão humano – recorda o aliado. Ficaram uma semana ou dez dias, amorosos. Iara escreveu a primeira das cartas, duas, aos irmãos – Melo já estava no Chile. Criticou o "triunfalismo" de alguns exilados, clima de intrepidez viril, epopéias sob prisma anedótico e protegidos da introspecção. Insertou a dialética na análise do amor a Lamarca e ao demolir aqueles que considerava falsos marxistas por incapazes de prever, à luz da ciência, a História e as intervenções que tornassem exeqüível o socialismo*. Silenciou sobre as mágoas, 2

Entre os presos Emiliano José da Silva Filho, um dos autores de Lamarca, o Capitão da Guerrilha, obra citada. * Revista Punto Final n° 140: “…Além da conjuntura orgânica, existe uma conjuntura da esquerda no seu conjunto. Depois que vocês saíram a guerra revolucionária evoluiu e as derrotas que a esquerda vem sofrendo têm que ser analisadas e compreendidas em profundidade. As decIarações de companheiros no exterior em entrevistas de imprensa são triunfalistas e não traduzem o quadro interno, real... Todas as deformações continuam repercutindo na esquerda brasileira e só serão superadas com uma mudança qualitativa da luta e em consequência da vinculação efetiva das massas no processo. O pior é ler entrevistas dadas pelos companheiros onde o triunfalismo predomina. Eu fico impressionada de como se deforma a História. Da maneira como falo, estaríamos a um passado da tomada do poder: ‘apoio popular’, ‘nível de vinculação das massas’: tudo mentira. A esquerda, que se especializa em fazer balanços autocríticos, não faz análise com previsão de acontecimentos para capitalizar e orientar

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desde o seqüestro do suíço transformada na VPR em apêndice de Lamarca. Transparecia convicção no seu papel de revolucionária: aconselhamento psicológico, análises oportunas, humor; criar condições subjetivas, fortalecer. Claro, a feroz repressão tolhia. O menor deslize seria fatal, baque terrível no moral das esquerdas. Num dos serões tranqüilos discordou de Lamarca, favorável à limitada soberania das democracias populares. – Estou com o PC italiano e Ceausescu – defendeu, balançando os cabelos. – Brejnev é um retrocesso. – Explica-se, meu sogro é romeno. Brigaram depois, a sós, quando Iara o agrediu em destempero inesperado. – Eu entendo de teoria melhor que você. Berlinguer indignava-o particularmente. – Revisionista, ajuda o fascismo. Igual à social-democracia alemã que estendeu o tapete vermelho para Hitler. Mas concordavam. Só desencadeariam a guerrilha num processo de luta global, campo e cidade. Iniciavam o processo de politização. nada mais coerente. O longo e doloroso percurso até aqui assegura a confiança na vitória final, corrigida a trilha “vanguardista" da VPR. Erramos ao crer que as ações mobilizariam os brasileiros sensíveis à violência, inclusive os desempregados, moradores de favelas, estratos marginais que se multiplicam. Nada substitui o trabalho organizacional. – E como a VPR encarava a repressão? – perguntou o hospedeiro. – Reprimir expunha à população a aliança entre polícia, burguesia, militares e imprensa. O inimigo é social, deduziriam, atingindo uma forma de consciência de classe3. A análise talvez coubesse num outro contexto, admitiu. Quando a massa, politizada, apóia o ataque final. Ou quase final. Fomos vanguardistas, faço autocrítica do idealismo. Quanto ao exemplo, o povo tem simpatia por ações justiceiras. Libertar presos, por exemplo. Mas só tem sentido na presença de trabalho político e militar.

a prática: seria exigir demais de nossos ‘marxistas’”. Referindo-se a Lamarca, escreveu: “Nossa vida juntos, na luta, crescendo politicamente, vivendo uma revolução, tem sido linda. Ele, realmente, é fora de série. É a única pessoa que conheço que traz em si o embrião do homem novo. Tenho certeza, hoje, de que enquanto a esquerda não der um salto qualitativo referente à concretização da moral revolucionária, dificilmente conseguirá tomar o poder. E se o fizer, não terá as mínimas condições para empreender a construção do socialismo.” 3 The New York Times Magazine, entrevista citada de Ladislau Dowbor

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Do contrário, assusta. Foi o que ocorreu nos assaltos com mortes. A massa não compreendeu que o objetivo era libertá-la da política econômica traçada pelo imperialismo. – A própria VAR-Palmares – acrescentou Iara – enfatizava a necessidade do trabalho político. – Porém limitaram-se à propaganda armada. Pretendiam intervir na dinâmica social através do movimento estudantil e operário. Papo. Sempre cedo, ao ler o jornal. A morte de Devanir, 5 de abril. Só noticiam agora. – Panfletos espalhados pela praça da Sé insinuam que o mataram na tortura4. No dia seguinte um promotor pediu pena capital para Lamarca, denunciado mandante da morte do tenente Mendes. Depois, pensava Iara, é melhor esquecer o depois. Um passo, outro passo. Representamos as massas populares em ação. Somos a vanguarda. Antes da luta armada, as classes dominantes e o imperialismo em consideração apenas categorias. Compravam pelegos, a repressão a tripudiar. Agora há uma guerra conduzida por revolucionários devotados à luta, Pátria ou Morte, o Exército de Libertação Nacional da Bolívia justiça em Hamburgo o assassino de Inti Peredo A luta de classes fica flagrante, o fuzil é uma alternativa apesar dos imensos recursos da ditadura que impede a agudização dos conflitos, amortece as contradições dos explorados, gera ampla margem de manobras5. Chegou o dia da partida. Sem aparelho seguro para os dois novamente ficariam separados. Stuart levou Lamarca. Iara foi à casa de Muniz. A mulher, Angela, ignorava sua identidade. – Eu sabia que era muito procurada. Contou-me que mesmo estressada cuidava de si. Conversávamos sobre o cotidiano. A questão do filho aparecia muito, incansáveis tentativas. Pareceu-me aceitar viver hoje aqui, amanhã ali. Simpática, nenhuma preocupação em aparentar a dureza estereotipada de militante. Nada agressiva. O MRT vingou Devanir justiçando o industrial Henning Boilesen. Acusava-o de torturador voluntário e de financiar o DOI-CODI. Prisões seguidas conduziram a um

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Folha da Tarde, 13.4.71: "Dia 5 de abril caiu prisioneiro da ditadura nosso companheiro 'Henrique' juntamente com Márcio'." 5 Revista chilena Punto Final, do MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária), entrevista de Carlos Alberto Muniz no segundo semestre de 1971.

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militante que abriu o ponto de Seixas e Ivan, 17 de abril, ambos supliciados, o pai até morrer. As filhas que estavam no Sul e a mãe ficaram presas cerca de um ano e meio. Só o caçula escapou. Os jornais publicaram o release mentiroso da polícia: Seixas morreu na estrada do Cursino, perto de Diadema, cercado. Iara sentiu a dor de Lamarca. Os mais valorosos dão a vida. O contato de Ângela caiu. Muniz soube-o num ponto. Apreensivo porque poderiam prendê-la, terminou rapidamente as tarefas. Em casa, Iara estava nervosa. – Ângela não voltou no prazo. – Pegue suas coisas. O teto ainda não estourou mas sairemos já. – Será que vai dar? Estendeu-lhe a arma, embrulhou bombas. Na pressa, esqueceu uma. No ponto diário, Muniz e Stuart resolveram esconder Iara num local de emergência enquanto avisavam os companheiros da queda de Ângela. Tudo sob controle, Stuart obteve abrigo para Iara e Lamarca em casa de aliados, Renato e Geísa Laforet6, futura funcionária do ministério da Economia. Muniz dirigiu-se a um aparelho em Ramos perturbado. A prisão de Ângela pesava-lhe muito. Não era clandestina, mas enfrentaria o inominável por causa dele. O casal Laforet morava num pequeno apartamento de frente, 5° andar, na rua Conde de Baependi perto do Largo do Machado. As duas da manhã, receberam os clandestinos. Dormiam no colchão de solteiro da sala. Havia almofadas, mesa e quatro cadeiras, geladeira, toca-discos, rádio. Na cozinha sem área de serviço cabia uma pessoa. Renato oferecera-lhes o quarto. – Não mudamos hábitos da casa – recusou Lamarca. Venezianas e cortinas cerradas impediam que ele se localizasse, e também olhares de vizinhos. Iara ia de vez em quando ao médico, segundo informava. Acordavam tarde, exceto Geísa que saía cedo para trabalhar no ministério da Indústria e Comércio. Renato diagramava um boletim cambial, esporádico. O primeiro a levantar-se no apartamento escuro, iluminação artificial, no meio da tarde, era Lamarca. Não queria bater à máquina de madrugada. Capaz de escrever até às 22 horas, fumava incessantes cigarros a tomar bules de café, quase um quilo de açúcar por dia. Também liam, sentados nas almofadas. Geísa admirava o carinho 6

A jornalista Conceição Lemes entrevistou Geísa Holanda Marinho, em Brasília.

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entre os dois, as longas discussões notícias, o ciúme amoroso de Iara, atenta em deixá-lo seguro de si. – Ela amarrava a cara, diminuía a companheira suspeita de paquerá-lo: é uma sirigaita. Gostava que ele fosse "macho". Envaidecido, Lamarca pirraceava: chi, você não imagina a olhada. O desmazelo de Iara surpreendia Geísa. – Largava as coisas esparramadas. Só quando não tinha jeito, arrumava. Ele, metódico, trazia tudo no lugar. Livros, roupas, papéis. As desconfianças de Lamarca reacenderam-se ao ler um documento sobre o trabalho no campo, elaborado pelas "bases" do MR-8 – três ou quatro pessoas, um operário. Propunham o recuo da proposta de guerrilha e acusavam a direção de vanguardista: empenha-se numa fantasia, vivemos a contra-revolção. – Se o 8 rachou, enganaram-me. Usam meu nome semelhante à VPR, pois onde estivermos nós dois, atrairemos combatentes pela força do mito. Venderam-nos a idéia do trabalho no campo seguido de guerrilha. E nada existe além de intenção e opositores. Propostas de recuo são vozes do Além! Duvido que nossos argumentos cheguem às bases. Por isso não quero mais ser comando. Escreverei um documento em defesa da guerrilha estratégica. Para cúmulo, alguns resistiam ao ingresso do casal na organização. Impossível absorver os dois. E já conheciam a direção, um risco. – Amigos, é minha a última bala do meu revólver – garantia. – Ninguém me pega vivo. Se a repressão descobrir este aparelho, abro s bicos de gás e acendo o isqueiro. – Ei! Não quero morrer explodida, você nunca me falou desse plano. Meu negócio é tiro – insurgiu-se Iara, brincalhona, tom de Decio Bar. – Primeiro você me deixa sair, depois explode – estabeleceu Geísa. O papel dos exilados ocupava-os. Prosseguiam militantes? O 8 achava que sim. – Exílio é o cemitério da ideologia – duvidou Lamarca. – A pessoa precisa de dinheiro para viver e perde a capacidade de atuar. Corrompe-se ideologicamente. Os banidos devem voltar à medida que criarmos condições, já em guerrilha. Na cidade é impossível.

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– O ideal seria escolher melhor os combatentes. Há muita impontualidade, fazem o que lhes dá na telha, ignoram o comando. Se tomássemos o poder agora, estaríamos perdidos. – Acho que devemos crescer primeiro, depois selecionar. Iara cuidava das roupas, Lamarca preferia cozinhar. – Venho de família pobre e faço bolinho de tudo, até "bolinho de nada". Farinha e ovo. Geísa não se esqueceu do bolinho de arroz. – Ótimo. Cebola e cheiro verde exatos. Ao acordar, Iara fechava-se no minúsculo banheiro durante tanto tempo, que chamou a atenção de Renato. – Vinha como se fosse a um baile. Para sentar ali. Bem vestida, pintada, cabelo bonito. – Primeiro, eu gosto. Segundo, quero que meu companheiro me ache bonita – esclareceu. Renato descia, comprava jornais e revistas. Liam primeiro a política, depois economia. Lamarca irritava-se com as distorções sobre eles. E aplaudia a cultura de Iara quando expunha algum assunto, como no dia em que discorreu sobre Eros e a Civilização, finalmente lera Marcuse. Lamarca elogiara a China: – Estou cada vez mais maoísta. E acho bonito usar a palavra libertação para indicar a vitória. – Sugere o fim da repressão, reconciliam-se prazer e liberdade. Freud apontou o caminho. Reprimir o princípio do prazer, que é sexual, foi o modo de preservar o grupo. Senão, matavam-se todos. Induziu a mente à obediência e a depender de dominação. Um vício. Progredimos em cima do sentimento de culpa. O monoteísmo foi o domínio cósmico do pai, tornou o princípio do prazer terrível, assassino, necessário defender-se da mãe, da mulher que fornece a gratificação suprema. Aqui entra a fantasia, liga o inconsciente ao consciente, preserva a memória coletiva e individual. Supera a realidade como demonstra a arte, incompatível com a razão. Vincula-se ao Eros primário, contra a sexualidade controlada. "Só a imaginação me diz o que pode ser", escreveu André Breton lembrou-se de Sérgio Lima. – Daí a imaginação no poder, em maio de 1968.

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– É uma utopia. O progresso, aqui, chama-se luz elétrica. Sem fantasia – cogitou Lamarca, sempre ressabiado ao detectar o passado de Iara. – O capitalismo e o social-imperialismo querem produtividade e a moral exige que o sexo, à base de tudo como você diz com Freud, esteja sob comando. – O amadurecimento conduzirá à libido não reprimida. A libertação é a primeira etapa da liberdade. – Ô, você está vendo como ela sabe? Dá uma aula! – desviou, perturbado. À noite conversavam, ouviam música. Lamarca apaixonou-se por Joan Baez. Jantavam tarde, Iara pedia-lhe que preparasse bisteca de porco ou cozido de lingüiça e bacon. – Demorei a descobrir carne de porco, o judaísmo proíbe. Quero descontar. Contava piadas e casos engraçados da Faculdade, ele punha o relógio de ponta-cabeça quando comiam, às três da manhã. – Não senhor, quero as horas nesta cápsula espacial. Quero saber se esta feijoada é almoço ou jantar. – Pareciam adolescentes – impressionou-se Renato. Iara retomou o livro que folheara em casa de Deusa, As Táticas de Guerra dos Cangaceiros7. – Não travavam combates frontais – resumiu. – Algazarra, dando ao inimigo impressão de cerco; distanciar-se rapidamente do local de luta. Aos delatores, inclemência. Dividir-se em muitos grupos. Retiradas estratégicas em caso de inferioridade. Preferência por terrenos desfavoráveis – o que facilitassem aos inimigos, prejudicaria o cangaço. A frase de uma das mulheres me arrepiou: "Fico valente, de medo." Mangaram de Lamarca: a nova condenação a 30 anos soma dois séculos, fora a pena de morte. Comentaram a denúncia contra militantes do MR-8, entre eles Salgado. Lamentaram a sorte do Haiti, o filho do ditador morto assume, é rei. Festejaram a vitória da Baía dos Porcos, em Cuba. Dez anos. – Todo mundo foi cortar cana. – Que beleza, o trabalho coletivo! – emocionou-se Lamarca. Bombinha contra asma ao alcance, xaropes, Iara não teve crise. De óculos escuros acompanhava Geísa às compras, jeans azul-claro, blusas estampadas. 7

Christina Matta Machado – Ed. Laemmert, 1969.

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Estudava vitrinas, preços. Num boteco de Ipanema bebiam chope. Confiou-lhe o quanto lutava pela gravidez. – Não é a melhor hora – espantou-se Geisa. Dia 5 de maio, às vésperas de sair do Brasil, caiu Inês. – Vão matá-la! – gemeu Iara, sem coragem de exteriorizar a dor, Lamarca ainda rancoroso. A estocada nasce no fundo da garganta e paralisa o estômago. Geral, a convicção ilógica de que Inês nunca seria presa. Talvez porque mínima sua chance de sobreviver. A militância longa, condução inteligente das tarefas e intimidade com Lamarca no comando da VPR, afrontavam. Imaginou o sofrimento de Daniel, o mais atingido pela queda. – Hoje parece que a gente caminhava para o cadafalso, consciente. Mas não era assim – denota Muniz. – As prisões, contingentes, nunca nos atingiriam. Negócio complicado. Agentes sob comando de Fleury prenderam Inês na avenida Santo Amaro, em São Paulo, no ponto de um camponês de Imperatriz a quem chamavam Primo8. Barbaramente torturada no DOPS, conseguiu ocultar o aparelho. Protegia Daniel, moravam juntos. A fim de ganhar tempo e suspender a tortura – temia não resistir – inventou um ponto em Cascadura, Rio. Planejava atirar-se sob um ônibus9. Herbert Daniel, atuante mas fora do comando – organizou um coletivo na Guanabara e manteve contato com os companheiros no Exterior até caírem, no Brasil, os últimos da VPR – resistiu à evidência da queda, embora Inês falhasse no teto. Dizia-se "não caiu" 48 horas depois, incapaz de tolerar a idéia. Enfrentaria atrocidades mortais. Convencido, escondeu-se em casa de Lucia Alverga. Preso Alex, por sete meses fechou-se no aparelho de outra organização. Novamente fugiu e conheceu o companheiro em casa da família que o hospedou. – Não é possível que Lamarca e Iara fiquem no Brasil – pensava Daniel, protegendo-se. Dia 18 de setembro de 1971, as fotos no jornal, ambos mortos. – Levantei-me da mesa para chorar no banheiro. As pessoas da casa não sabiam de nada.

“Relatório Inês – Dossiê da Tortura", citado. Atirou-se, não morreu. Três dias depois foi sequestrada do hospital. Passou quase cem dias na "Casa da Morte" em Petrópolis, do CIEX. Sobreviveu às torturas e a mais três tentativas de suicídio. A prisão foi oficializada no final de 1971. Saiu dia 29 de agosto de 1979. (Relatório Inês, Pasquim, citado) 8

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Dia 12 de maio, quando os jornais publicaram um listão da VPR, de Cipolla a Lamarca entre os 192 indiciados, Alex pediu a Walter que o acompanhasse à garagem onde trocavam motores e placas de veículos. Só a conheciam o companheiro preso há menos de uma semana e ele. Tratava-se de um grande investimento e quis verificar, transgredindo as normas de segurança. Logo notaram o cerco Walter escapou a pé; Alex, de carro, caiu. Lucia e Daniel abandonaram o aparelho, ultrapassado o horário-limite. Não concebiam o fato. Confusa – metralhadora, bomba, roupas – ela esqueceu num enorme pacote papéis e bilhetes picados de Lamarca, Inês, Daniel e Raimundo, que já deveria ter queimado. A repressão remontou o gigantesco quebra-cabeças. – Se eu pudesse me penitenciar o resto da vida! Só Inês e Alex saberiam explicar os papéis. Foram ainda mais torturados por causa deles. E que objetos loucos a gente leva na hora da fuga. Ou rejeita. Deixei uma roupa, estava suja. Daniel carregou o baralho. A queda de Alex engendrou a prisão de Stuart10. No apartamento da Conde de Baependi embalde o aguardaram. No dia seguinte, Renato recebeu a notícia. – Iara ficou nervosíssima e triste. Lamarca reagiu com maior preparo. Sofri muito. Eu era amiga dele e encarregaram-me de informar a família – registra Geísa. Embora convicto de que Stuart não abriria o paradeiro de Lamarca, Muniz levou o casal ao seu refúgio, em Ramos. Iara despediu-se de Geísa, abraço longo. Queriamse, ficaram amigas. – Chegamos a lugar nenhum mas a luta não foi vã – analisa Geísa. – Mataram a Universidade, lideranças. É preciso haver resistência. Se necessário, retomá-la. Eu faria tudo de novo. Em agosto caiu Zenaide. Seguiam-na sem prender porque ambicionavam ligações maiores.

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Alex Polari de Alverga, obra citada; Brasil Nunca Mais. Em "Desaparecidos Políticos", citado, Alex Polari complementa com seu depoimento. "Entrara inadvertidamente no cerco montado na avenida 28 de Setembro, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. Foi detectado pelo esquema militar que abrangia vários quarteirões à sua volta. Se passasse pelo local dez minutos depois, escaparia de mais uma – o esquema estava sendo desmobilizado naquele momento. Stuart dirigia um fusca verde, usava calça verde-garrafa, camisa cIara e um casaco bege. Preso, foi colocado no porta-malas de um Opa– la amarelo, com teto de vinil preto e levado para a Base Aérea do Galeão, ficando no CISA. Ao cair da noite, depois de inúmeras sessões de tortura, já com a pele semi-esfolada, foi amarrado na traseira de um jipe oficial da Aeronáutica, a boca colada no cano de descarga do automóvel e arrastado de um lado para outro. A morte viria logo a seguir asfixia e intoxicação pelo monóxido de carbono, expelido pela descarga do jipe."

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– Cada vez que voltávamos de São Paulo, sentíamos a esquisitice. Raimundo, sem explicar, disse que abandonaria o contato paulistano. Era Anselmo, ignorávamos. Em julho fez a última viagem. A esperá-lo, vimos na tevê: morto em tiroteio. Aquilo de sempre. Perdido o fio, os policiais me prenderam dia 3 de agosto. Nos interrogatórios compreendi que me seguiam. Lembro de um banco na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. O cara sentou ao meu lado. E riu! Fez comentários! E um riso tão sem igual, tão sacana, que nunca mais você esquece. Aluísio Palhano foi morto em seguida11. Sobravam Herbert Daniel, Teresa Ângelo que morreu na Argentina, e um companheiro no Chile encarregado de articular a saída de todos-única alternativa, agora consenso. Nada a fazer no país dos torcionários12, saqueadores e deputados como o que propunha retirar o "deitado eternamente em berço esplêndido", do Hino Nacional. No seu lugar, algo parecido com "altivo em gesto".

Em casa de José Gomes e Zeni

A CASA HUMILDE EM RAMOS, à beira de uma favela, pertencia a José Gomes Teixeira, ex-marítimo aposentado. Integrava um pequeno grupo de dispersos do Partido Comunista. O MR-8 recrutou alguns, quase todos na Baixada Fluminense. Zeni, a esposa sem militância, dedicava-se aos filhos – quatro meninas, dois meninos – e à casa. Os hóspedes ajudavam, Iara na arrumação e lições das crianças. Lamarca e Muniz gostavam de cozinhar. Havia bulício até noite alta e a reconfortante sensação de estarem à luz da vizinhança. A vida simples parecia-lhes incomparavelmente melhor. Detestavam lembrar-se da imobilidade nos aparelhos. Apenas Gomes e Muniz saíam. Lamarca e Iara ingressaram no MR-8, que afinal aprovou a designação do casal ao interior baiano. A derrota da esquerda armada era tática, não estratégica 1. Lamarca entusiasmou-se. Finalmente o campo, sonho desde Quitaúna. Iara externou ceticismo. – Aprovo a reformulação política do 8. Mas a repressão nos dizima apesar do anonimato nas cidades grandes. E no campo, nem todos merecem confiança. Depois, 11

Jacob Gorender, obra citada (cap. 28). Expressão de Jacob Gorender, em "Combate nas Trevas", obra citada (no francês: tortionnaire). 1 Propostas do MR-8: Daniel Aarão Reis, obra citada. 12

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qualquer novidade é imediatamente detectada. Vão me achar uma raridade a léguas de distância. – Mas eu sou o próprio campona – animou-a Lamarca. O plano era mantê-lo no sítio do pai de Barreto, afastado da comunidade. Dois ou três companheiros locais lhe levariam alimentos e outras precisões. Juntos discutiriam a evolução do trabalho político. Quando o vilarejo estivesse apto a fornecer combatentes seguiriam adiante, à área da guerrilha, em Barreiras. Remanescentes continuavam a politização, inclusive de vilas próximas. A rede se multiplicaria. – Bem, talvez esteja próximo do que deve ser. Sonharam com peças de teatro didáticas, em torno de problemas locais, Iara falou de A Exceção e a Regra. – Um tubarão, na travessia de um deserto, temeroso do empregado, mata-o. A Justiça o absolve, aceita a legitima defesa. A viúva fica na miséria. – Vamos aproveitar a religiosidade, os ditos populares, medos, anseios. Montagens estimulam mutirões, a sensibilidade coletiva – discorreu Lamarca. – Promoveremos uma verdadeira revolução cultural, atentos à necessidade de transformar as relações sociais através do indivíduo. Cada intervenção precisa ter esse conteúdo. Nem que seja ao trocar idéias sobre o tempo, no terminal de ônibus. Somos fermento. Iara participava das reuniões com prazer. Ao contrário da VPR, não a excluíam. Valorizavam suas análises. A imensa revolução brasileira germinava num ponto microscópico do interior baiano. O Universo começa com a infinitésima parte de um segundo. E quem desconfia de camponeses que sugerem trabalho em mutirão, debatem necessidades comuns, jogam futebol? Não vem aí o tênis de mesa na China, pretexto surrealista para a abertura? Gente, teatro camponês é subversão, está na cara. Heleny é que gostaria de trabalhar nisso, minha amiga linda livrou-se da cadeia, notícia boa. Lamarca não será descoberto se os companheiros no campo tiverem bom senso. No máximo um ermitão tresloucado. Tio lelé, largou a família na roça, quer expiar os pecados. Candidato a Conselheiro. Alegre e desajeitada, aparou-lhe o cabelo. – Comprido demais, neguinha, para quem usava corte de reco. Altos e baixos. Muita insônia, aconchegados. Medo. A Dutra, asfalto disparando para dentro dos olhos como os trilhos do metrô. Lamarca não assistiu Fantasia, 474

baldinhos de água, os aprendizes quase afogados. Chamem o feiticeiro. Muniz advertiu: se der errado, partimos. Lamarca acedeu. Bem o conheço, não há hipótese. – Iara, dúvidas pertinentes, bem humorada, redargüia às nossas certezas – aponta Muniz. – Porém não manifestou qualquer desejo de recuo. Preocupava-se com a tristeza do amigo. Queria conhecer seus sentimentos sobre a prisão de Ângela2, namorados desde o ginásio, vocês cresceram juntos. – Droga, que situação terrível! – condoía-se. Periodicamente perguntava: – Como é que você está? Muniz sangrava também pelo fim de Stuart. Viam-se diariamente, companheiro de luta desde 1967. Juntos reorganizaram o MR-8. Apoiavam-se. Deixara-o perto do ponto fatídico. Às 18 horas do mesmo dia, falhou. Levianamente compareceu ao ponto da manhã, recusava-se a crer. Ele se comportou como revolucionário, consolava Lamarca. O militante verdadeiro sublima a tal ponto os interesses pessoais, que enfrenta a tortura e morre sem entregar o ideal. Interrompe a cadeia de quedas e a organização se reestrutura. Reconhecemos, entretanto, que os mortos são fruto de erros políticos. E se os companheiros presos falam, é porque a tática deixou de ser adequada para o tipo de militante. Não se trata mais de prestar tributo ao revolucionário que tomba em comandos que ostentam seu nome, porém de corrigir rumos. A rotina apaziguava Lamarca e Iara. Horários certos são como entrar em casa na hora do almoço e ouvir chiado de bife, Eva na cozinha. Pura segurança. Acordavam cedo. Lamarca exercitava-se no pequeno quintal, queria manter a forma. Ouviam noticiário. Um grupo de 50 intelectuais entre eles Sartre e Simone de Beauvoir, rompeu com Fidel criticando-o por "ressuscitar (...) os momentos mais sórdidos do stalinismo", Iara defendeu-os, Lamarca limitou-se a classificá-los de pequeno-burgueses. Liam, absorvidos na revisão política de suas posições. Imaginavam a vida no campo, imprescindíveis mudanças de comportamento. Muniz participava. Decidiram que Lamarca iria primeiro. Iara, viva a memória dos mosquitos e infecção no Ribeira, alojar-se-ia numa cidade intermediária até que houvesse segurança quanto ao desenrolar do plano. FaIaram da separação, maldita, a sós e na presença de Muniz. Durante a luta revolucionária inexiste satisfação individual, repetia Lamarca, es dois às vezes com lágrimas nos olhos. Dor, dor. Mas os companheiros 2

Ficou presa um ano e encontrou-se com o marido no Chile.

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criariam condições para se encontrarem de tempos em tempos. Fundamental, a repressão arrefecida ignorá-los em outro Estado. Os jornais publicavam mentiras sobre Lamarca, atribuindo-as a Alex. Como reage o povo às acusações de que é louco e perneta, larápio de milhares de dólares, mandou mulher e filhos a Cuba e sustenta a família da amante Iara Iavelberg, fujão do Ribeira, delator de Alex, é da CIA?3 Num novo listão, Marina Heck foragida. Modigliani, sorriu Iara. – Ao menos saímos bonitos nas fotos.

Conheciam de sobra as separações. Sede do rosto, o diluir-se no abraço, a música da voz. Certeza de que naqueles momentos, ali, estavam a salvo. Na Bahia, outra a situação. Lamarca a grande distância, isolado. Imaginava-o a céu aberto, como pode ser? Uma barraca? Tranqüilizava-a, ansioso pelas nuvens, pássaros, espaço. Livre das paredes. Se eu ao menos engravidar, sussurrava no silêncio da noite, a cidade inimiga estendendo-se para além da Serra da Misericórdia, avenida Brasil, a poluída praia de Ramos, a ilha do Governador, sinistros sanguinários da Aeronáutica no Galeão, jatos de turistas coloridos. Não tenho medo além do normal, acariciava-o, só quero o amor para a eternidade, e um filho. Aí o que vier eu traço, desanuviou-o. Adivinhava-lhe o semi-sorriso, cigarro aceso a imaginar o menino, Mini. Os companheiros localizarão um bom médico, tanto amor não se perde. A intensidade do sentimento soma-se e transforma, um salto qualitativo, assegurou. Viu-se numa cidade de porte médio, mãe anônima. Vou me bronzear, não posso parecer sulista. Certamente me engajo em atividade política própria, sou militante agora e sempre, consignou. Escrevo o artigo sobre as condições subjetivas do revolucionário, evitava o termo psicologia, burguês. E preciso atingir a afetividade que lida com a solidão, perda ininterrupta de raízes, pessoas queridas. Mal se acerta um aparelho larga-se tudo. Portas que não se abrem, o temor nos pontos. Quedas, tortura. Ações. Stress destrutivo, morte. Preconceito, sectarismo, incompreensões. Rótulos. Escorregar de si o tempo todo. Princípios, ideologia. O comportamento em situação de cerco. E nos escreveremos muito, prometeu Lamarca, vamos compartilhar os acontecimentos, o noticiário. Você dentro do meu mundo. É o lado positivo de nos 3

Folha da Tarde, 29.5.71.

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separarmos, sinto que me enrijece. Isso é uma complicação, diagnosticou ela. Seria para um burguês, reclamou tocado. Podemos ligar o rádio à mesma hora, propôs ela, será o abraço matinal, o reencontro da noite. E cuide-se, evite ser turrão, ouça o que dizem os outros. Sempre que alguém fica muito isolado tem impulsos verborrágicos. Já que estamos dando uns toques, aparteou enciumado, você não me faça fachada de casal, homem nordestino viu mulher sozinha, é dele; a carência piora o machismo. Estabeleço a conduta. E eu receio, volveu ela, não engravidar e você preferir, descompromissado e sem mulher, uma companheira adaptada ao campo. Precisamos nos abrir, aprofundar, mal vivemos juntos. Mais nos tateamos, pouca privacidade. Conflitos eclodiam devido ao alcoolismo de Gomes que, consciente do distúrbio, qualificava-o "doença da miséria" e preferiu o apoio de Lamarca e Muniz quando Iara propôs o aconselhamento psicológico do casal. Ela dedicou-se, então, a Zeni. Enveredar por sentimentos desordenados, resignação. Também procurava assistir as crianças. Aproximou-se da mais velha, dez ou 11 anos, que ajudava a mãe na gerência da casa. Compadecia-se: chegava da escola, o tanque e o ferro. Quando a caçula de nome Mileide fez um ano, Iara organizou festa com bolo, mesa de doces, velinha e todos cantando "parabéns". Assim homenageamos Inês, pensou. A essa altura Muniz foi encarregado de levar a questão do recuo ou prosseguimento dos planos de guerrilha estratégica aos companheiros no Exterior. Vacilou. Terrível afastar-se de Ângela presa. Expôs o dilema a Lamarca na presença de Iara e recebeu estímulo. Importante comunicar a mudança do casal para o MR-8, convencer os militantes, distribuir tarefas. Lamarca deu-lhe cartas à família. Mais uma vez falou dos filhos. Esclareceu que nem Maria ou Rosa, mulher de Darcy, eram militantes e pediu sua opinião por terem-nas posto a salvo em Cuba. Bem a Muniz, que sofria por Ângela. Houve constrangimento. Iara aborreceu-se. Interpretou que merecia menos cuidados, dispensava proteção. Maria aqui, queixou-se, teria ele se apaixonado? E o que aconteceria se fossem a Cuba? Lamarca, envaidecido, afirmou que a cada minuto amava-a mais, assombroso. Próximo à data de partida, José Gomes Teixeira caiu. Um dos vários presos do PCBR, que o conhecia de contatos anteriores, abriu o nome e a condição de aposentado. Localizaram-no pelas listas do INPS. Preso no banco ao receber o pagamento, dia 24 de junho, não lhe arrancaram o endereço. Por isso o assassinaram. 477

Quando José falhou no teto, a casa viveu momentos de grande apreensão. Deveriam sair imediatamente, sem abrigo. Foram-se à noite, nenhuma bagagem, tristes abraços em Zeni, nas crianças. Amigos de Muniz concordaram em recebê-los, separados. Entregou Iara, depois Lamarca. – Lembro-me de levá-lo de um lado a outro. No percurso do aterro admirou o Pão de Açúcar, as luzes. Ficou-me a cena. Era bom poder ajudá-lo, eu tinha grande respeito por ele, nosso Guevara: intenso sentimento humanitário, solidariedade. Marcou-me também o lado amoroso. Quando se reencontraram dois dias depois, que carinho, mútua preocupação! Estavam tensos e foi muito bonito. Em casa do aliado, Lamarca ventilou os erros do militarismo. – A autocrítica é difícil porque amigos morreram em ações que você defendia – disse o hospedeiro. Concordou. Erro maior, desencobrir a vulnerabilidade da VPR no caso do suíço. Negociamos em vez de matar o embaixador. Mas foi correto poupá-lo do ponto de vista da opinião pública. O seqüestro, admito, foi um desacerto político. Afinal, visa certos objetivos e deve terminar em vitória ou morte. Do contrário perde eficácia, tal os aviões desviados para Cuba, já piada. Diante do corriqueiro, a indiferença absorveria a morte do diplomata. Talvez a massa até gostasse, embrutecida pelo imperialismo e a ditadura. Outra razão: o objetivo de reintegrar os presos a luta. Muitos banidos julgam impossível persistir. Outros não obtêm canais de retorno. E alguns tornou a chocar-se – morrem misteriosamente, como Aderval Alves Coqueiro, em fevereiro. O operário nordestino do MRT, companheiro de Seixas e Devanir morava em Diadema na Grande São Paulo. Saíra no seqüestro do alemão. Saudoso das filhas pequenas, ligou-se a Altair Luchesi Campos e suas meninas. Quando os argelinos distribuíram calções aos homens, Coqueiro sugeriu a Altair: – Ô, capitão, vamos trocar. O meu é grande, o seu pequeno. Cada um teve o cuidado de lavá-lo e passar a ferro. Coqueiro morto, na Guanabara, vestia a roupa do amigo. Transtornado, Altair escreveu a Lamarca: venha ao menos por 30 dias, vamos conversar. Três ou quatro companheiros que entraram pelo caminho que tu me sugeres, morreram. Está claro que tens um problema de segurança. Correm suspeitas sobre Anselmo. O caráter das graduações mais baixas do Exército deixa-me inquieto. Pretendi resistir ao golpe em 1964; denunciaram-me 478

os sargentos. Exceto dois ou três como Darcy, vendem a própria mãe. Cabos, então, nem se fala. Em geral de fileira, origem humilde, deixam-se pisar para subir. Em troca, pisoteiam. Mariane, um sargento, entregou-me no final de 1969. A carta nunca chegou a Lamarca, que provavelmente lamentaria a "intoxicação" do amigo e a injustiça, Mariane decidido a suicidar-se mas em desastre fisiológico que fez o gáudio dos carrascos, devido ao cianureto amenizado. Imperioso escaparem ao cerco invisível que se fecharia sobre eles, não escolhessem Stuart e José Gomes a morte. Nada lhes restava na cidade e sob esse prisma corriam contra o tempo.

Travessia. Despedida no Hotel Palace

OITO MESES DEPOIS de Barreto oferecer ao MR-8 a base que desenvolveu em Buriti Cristalino e Brotas do Macaúba, Salgado procurou-o e estabeleceram o esquema que absorveria Lamarca. Reencontraria o capitão, alegrou-se. Conhecera-o em São Paulo. E, ao cuidar de sua segurança, zelava também por Iara – sentimento de ternura. Mas nada comentou. Combinaram que o motorista, simpatizante, apanharia Lamarca na Guanabara com o caminhão de uma microempresa de transporte, registrada sob nome falso. Junto, José Carlos de Souza, o Kid, 21 anos, desde os 16 na organização. Não houve revés até sofrerem um acidente perto de Jequié. Os freios do veículo de má qualidade falharam. Persistiam na leviandade de adquiri-los baratos. José Carlos regressou a Feira de Santana sem aguardar o conserto e seguiu de ônibus. Evitava perder os pontos na Guanabara. Afinal, acompanharia a viagem de dois quadros da maior importância. A segurança preocupava-o, pretendia planejá-la bem. Muniz, no entanto, comunicou a Salgado que Iara e Lamarca não tinham condições de dormir outra noite no Rio. Viajariam imediatamente. O atraso do caminhão reacendeu as desconfianças de Lamarca. – Deve ser "acidente" para boicotar a atuação no campo. Vale qualquer coisa na defesa da linha política, os companheiros são capazes de arriscar vidas. Vimos isso na VAR. – Você está no trabalho da conscientização camponesa – conciliou Salgado.

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– O trabalho de massa é fundamental mas a minha perspectiva é guerrilha a médio prazo. Pretendo ensinar os camponeses a atirar. Em 1967 já sabíamos que o caminho político sozinho não derruba ditadura militar. A luta armada é imprescindível. As bases do 8 são incongruentes. Nessa luta interna, proíbo que me usem. Serei duro, pois a organização que conta conosco se projeta, no país e no Exterior. – De fato. Mas não nos passa pela cabeça enrolar você – assentiu Salgado. E voltou a explanar. A proposta de recuo, das bases, repelia ações exemplares – seqüestros, assaltos a supermercados para distribuição de alimentos. Previa trabalho de proselitismo entre operários, camponeses, estudantes, sindicatos. Ações armadas só pequenas, de sustento. – E a guerrilha onde entra? José Carlos chegou ao ponto de Bom Sucesso no Volkswagen legal de um simpatizante. Anoitecia. Iara, cabelo solto à altura dos ombros, pouca bagagem de mão, acomodou-se com Lamarca no banco traseiro. A frente numa Kombi, Sérgio Furtado1, o Roberto. Partiram em silêncio. Até Petrópolis, pouco além de 60 quilômetros, havia o perigo das barreiras. De fato, a polícia deteve a Kombi ao chegarem à cidade e a tensão enfeixou-os enquanto José Carlos a ultrapassava, estacionando adiante. Nada aconteceu. Iara sentou-se no banco da frente com o simpatizante. Lamarca permaneceu atrás. José Carlos assumiu a Kombi. Deixaram o Rio provavelmente no dia 25 de junho, uma sexta-feira. Só ao clarear do dia pararam, num posto de gasolina antes de Governador Valadares, Minas Gerais. – Um café vai bem. Percorridos 600 quilômetros, conversaram banalidades sobre o tempo, a estrada. – O café parece remédio de dentista – suspirou Iara. Riram. Pensou em Inês, exigente no café. Eu a respirar paisagem, mucho doido, dizia Jô. Cada um tem seu momento. Longe de todos, ponte esfumada. No rádio do bar o recente compacto de Roberto Carlos, Amada Amante. Entreolharamse. Nossa canção, angústia e desejo. Entrou o locutor com projetos impacto de Médici: remédios populares, reforma do ensino primário, repressão contra tóxicos. – Querem porcentagem dos traficantes. 1

BNM, Anexo III: Sérgio Landulfo Furtado, desaparecido em 1972.

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Talvez mais tarde conseguissem um jornal. Saudade, já. Arrancados um do outro. Consolou-se, haverá repouso nos confins, trabalho de formiguinha, quietos como Lucia Sarapu esquecida no interior. Ler, pôr no papel as idéias sobre a psicologia do guerrilheiro. Livrar-se do sotaque italianado. Minha existência baiana. Voltaram aos carros. Namoravam pelo espelho, mãos dadas entre os encostos. À altura de Pedra Azul, cerca de 50 quilômetros da divisa com a Bahia, entraram num restaurante. Esfaimados, comeram carne-de-sol regada a refrigerantes. Alegres, compararam modos de secá-la, nomes, receitas, a diferença entre o caráter mineiro e o baiano. Pancada no estômago, José Carlos percebeu que conduzia Lamarca e Iara. – Meu inconsciente somou sinais. Nada transpareceu. Só em caso de se identificarem eu diria algo. A 150 quilômetros de Vitória da Conquista, Iara dirigiu. Queria escapar de si, atenção na estrada. Invariavelmente sem documento, perigoso reconhecerem-na em fotografias, estremeceu quando o guarda rodoviário os deteve. Sem desconcerto – a ausência de opções gerava certo fatalismo; em último caso, abria-se caminho a tiros – o simpatizante explicou que, fatigado, a esposa o substituiu. O homem aceitou a propina; compunha uma espécie de pedágio. Cerca de quatro horas da tarde alcançaram Vitória da Conquista dois terços da viagem vencidos. O simpatizante, que desconheceria o rumo do casal, despediu-se e voltou no fusca. Os quatro seguiram na Kombi para Jequié, a meio caminho de Feira de Santana. José Carlos e Sérgio no banco da frente, Iara e Lamarca atrás. Chegaram cansadíssimos e hospedaram-se no Palace, o melhor hotel da cidade2, cenário da despedida. Tudo gravar. Casarão térreo, de esquina, cinco janelas em cada face, entrada na avenida principal da cidade. No pequeno refeitório, forro de treliça como a cozinha da casa no Ipiranga, mesas toscas, toalhas quadriculadas, pimenteira de plástico rosado que Iara usava em profusão à procura de algum paladar, jantaram o trivial. Lamarca, acima de tudo, fumou. Ali encerravam uma etapa, estirão quase vencido. Daquilo que no futuro diremos "antes de ir para a Bahia, depois". Olham-se, pouco falam, querem refugiarse na pobre intimidade do quarto de paredes a meia altura. Será a última vez, ignoram por quanto tempo. Semanas, meses, inaudível lamento, som de relógio em filme de Bergman. Ponteiros da morte. Lamarca cegou-se de materialismo dialético, científico, 2

Emilano José e Oldack Miranda, obra citada.

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histórico, o tempo mera equação, a graça é um presente imerecido definiu o pastor em debate com a AP no Grêmio, remoto passado, refúgio na longa treva da noite. Em Jequié, a separação. Diminuirei o cigarro cientificamente, promete Lamarca, jargão a sério. Iara ri, duvida, sente o chiado no peito, mil gatinhos nos brônquios costuma ele brincar. Despedem-se dos companheiros, afundam na quadratura das acomodações, perdi meu pavor a baratas. Vaga o tempo no espaço humilde, privilégio sem par. Banheiro comum a todos, o fio d'água a refrescá-los, um é a visão do outro. Braços que agasalham, vagarosos. Lágrimas. Lábios alimentam, umidade impregnada nos corpos. Sobre a colcha áspera de tecido branco Iara pressente a gravidez, arcano das profundezas. Lamarca beija a barriga, sente-o chorar, é um círculo arquetípico, murmura, música orgânica, insuperável sinfonia de vitalidade, finalmente o filho. A vida recomeça. Compromisso. Vá logo a um médico, recompõe-se ele, nenhum cigarro ou bebida, cuide da alimentação para o bebê ter saúde. Abra mão da pimenta. Nada de contar ao 8, filhos atrapalham a segurança. Rosinha pode registrá-lo e criar, pensa sem dizer. Primeiro confirmamos a gravidez, determina; aí veremos, talvez a casinha perto da área. Melhor Cuba, ela pensa e não diz. O 8 estabeleceu que devemos sair se a estratégia falhar, murmurou. Vai que a gente se encontra na Venezuela, enlaçou-a. confie. De repente a gigantesca armadilha, encurralados na caatinga Lampião e seus jagunços, florestas impenetráveis de arbustos ressequidos, aguilhoeiro, carcará. Agrada os cabelos de Lamarca que já reflete no dia seguinte. Tome sol, ouve-o exigir, branca desse jeito nunca serás camponesa. E deixe claro aos companheiros, nenhuma aproximação nos aparelhos. Só quem vive fechado conhece o desespero, você é carente demais; temos um ao outro mas coloque de forma inequívoca, bastam as calúnias da direita, nossa moral é a rija do camponês. Assim que eu me integrar na produção preparamos infra-estrutura para ti. Não demora. Saberemos trabalhar. O pior é a saudade, neguinha, e a preocupação por tua segurança. Terei você na cabeça, no corpo3.

3

Carlos Lamarca: Diário, de 29.6 a 16.8.71. Publicado na integra no Folhetim, suplemento da Folha de S. Paulo, 10.7.1987.

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O hotelzinho acordava. Abraçaram-se longamente, limpo o amor de impurezas. No refeitório, o desjejum caipira: ovo estrelado, cuscuz de tapioca e queijo frito, mamão, café, leite. Na Kombi subiram os quatro, feito moradores de Vitória da Conquista em trânsito. Na rodoviária desceram Iara e Sérgio Furtado. Pegariam o ônibus para Salvador, via Feira de Santana. Lamarca e José Carlos partiram no carro. Você fica nas mãos de Barreto, boas mãos. A separação, rápida e indiferente a fim de evitar reparos, deixou-a anestesiada. Corria os olhos pela paisagem sem ver. Não se fixava em pensamento e mal conversou. Olha eu lá, cantou Elis4. Viagem irritante. O ônibus de horário incerto parava continuadamente a recolher passageiros alvoroçados, pertences envoltos em jornal. Logo se espremiam em pé. Nas paradas, uma a uma, tensão. Calma. Não há alma que me saiba aqui. Visualizou um cerco, impossível abrir caminho sem matar inocentes. Agarrar uma criatura que me cubra, bala na agulha. Tiros. Morta na estrada, céu azul da Bahia. Rodoviária de Sete Portas, próxima à Baixa do Sapateiro. Conheciam pouco a cidade e foram de táxi ao Hotel São Bento, indicado por José Carlos. Hospedava a classe média interiorana, concentrações de jogadores de futebol. Registraram-se como casal, a segurança inviabilizava obedecer a Lamarca. Alguém precisa começar o embate revolucionário, repetiu-se enquanto tentava reconhecer a cidade alta pela janela. E um privilégio que sejamos nós. Distraiu-se com a movimentação na avenida Sete de Setembro em frente, agora centro comercial. Num impulso, decidiu rever parte da Salvador que conhecera no passado. Amanhã. Turistas descemos a ladeira de São Bento de onde já se vê o mar. E flanamos no Mercado Modelo. Por hoje, só jantar e dormir. Acordou repousada. Inverossímil viagem do Rio à Bahia, na cara da repressão. O pior passou. Lamarca evapora-se na massa do campesinato, reencontra Barreto. Vai dar certo, conscientização invisível no campo e trabalho urbano de baixo perfil. Em surdina, multiplicam-se os combatentes. Ansiava por um médico que a tornasse fecunda; a fantasia da gravidez dissipou-se. Quem sabe aquele hormônio ainda em testes que força a ovulação? Lembrou-se dos sêxtuplos italianos em meados de 1970. Temos seis tesouros dissera o marido à esposa no hospital, já avisado de que morreriam todos. Apanhou um jornal na portaria, tomaram café. 4

Copacabana Velha de Guerra, de Joyce e Sérgio Flaksman, 1970.

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Na Praça Municipal, o apinhado Elevador Lacerda. Feliz, abrangeu a paisagem única de casario, mar, barcos, o céu no horizonte. Percorreram as lojinhas do mercado novo, branco reluzente, asséptico em relação ao prédio velho que o governador Toninho Malvadeza, diziam, mandara queimar quando prefeito. Admirou a gula das pessoas no pequeno bar a comer lambretas, copos de cerveja ou aguardente ao lado. Namorou os objetos de artesanato, meu rosário de madeira pra cima e pra baixo no Rio. Os dentes de cavalo. Maria do Carmo. Caminharam de volta ao Largo 2 de Julho. Diante do Cine Capri misturaram-se às pessoas que aguardavam o início da sessão. A cidade desconhecia o corre-corre do trabalho e eram comuns estudantes e profissionais liberais nas matinês de bons filmes. José Carlos aterrissou pontualmente, às 14 horas, do mundo que absorvera Lamarca. Deixariam Salvador depois de almoçar. Dirigiram-se ao Apolo, restaurante freqüentado por comerciários de melhor renda. Vagamente Iara pressentiu tipos desagradáveis mas comeu o filé e as fritas com apetite. Assustou-se quando José Carlos percebeu que a repressão comia ali; tinham passado diante da Polícia Federal. Echpertinhos, nós, criticou-se imitando o sotaque carioca. Notei os tiras. Bem, os militantes circulam mais descontraídos na Bahia. Subiram na Kombi, os três no banco da frente rumo a Feira de Santana. Outra vez a estrada os tragou, é um rio. Violeiros correm mundo. Festival de 1967, Nara Leão e Edu Lobo. Tantos viriam, a vanguarda é o prenúncio. Em suspense passaram diante do posto policial. Dia de São Pedro, um santo importante. Sinais de festejos ao longo da rota. Em Feira de Santana José Carlos entrou numa contramão ao procurar a rodoviária. Um guarda mandou-o parar. Explicou-se: turista, confundiu-o a sinalização diferente. O guarda aceitou a desculpa e Iara dissolveu o semi-sorriso cristalizado. Furtado indignou-se. O comportamento de José Carlos no trânsito era irresponsável. A questão, abordada junto ao comando, resultou em crítica. "Kid" deveria evitar "liberalismos". Sérgio Furtado voltou ao Rio com a Kombi. José Carlos e Iara pousariam na cidade, fachada de casal. A viagem objetivava despistar companheiro sobre o destino de Iara. Entorpecida pelo cansaço, anistia de novamente desobedecer à exigência de Lamarca, antes de entrar no hotel simples de pernoite exigiu camas separadas. À 484

dona do hotel, o rapaz justificou-se: a esposa, doente, viera internar-se no hospital. Abrupta, Iara ainda o preveniu: – Não me toque. Você fica no seu cantinho, eu no meu. Chocado, atribuiu a advertência aos traumas que ela teria sofrido na VPR, conforme Lamarca dramatizara quando empreenderam a viagem a partir de Jequié até a ponte sobre o rio Paramirim. Ali, na BR 242, depois do acesso a Brotas de Macaúba, uns 60 quilômetros de Ibotirama, encontrariam José Campos Barreto5. – Disse-me que Iara enfrentou problemas, companheiros quiseram comê-la à força. Acho que ela teve medo de cantada no hotel. Era fria, fechada. Couraça protetora de porco-espinho. Formal, pragmática. Lamarca, muito mais emotivo, no carro falou com singeleza sobre a vida, o treinamento, a admiração por Fujimori. Após o desjejum, distendidos, o ônibus para Salvador. José Carlos lembra-se de Iara revelar sentimento quando no rádio tocou Amada Amante. – É a nossa música. No ponto encontraram Salgado, sempre pontual. Vinha do Buriti Cristalino. Foram ao aparelho de José Carlos, na Caixa D'Agua, e aos três agregou-se César Queirós Benjamin, de costas para não identificar Iara. Chamavam-no Menino; 16 anos, clandestino desde os 14, responsável pelo trabalho no Recôncavo Baiano depois da morte de Stuart. Avaliaram a conjuntura, enaltecendo o acerto da linha política: trabalho de formiga entre camponeses e guerrilha em preparativos. O outro item da pauta relacionava-se a Iara. Onde guardá-la? José Carlos defendeu Feira de Santana. Menor policiamento e a casa de Felix Escobar, viúvo de 51 anos. Operário, camponês, servente de obras e instalador de persianas, veterano do Partido Comunista, já em 1962 mobilizava camponeses contra despejos, no Sindicato dos Trabalha. dores Rurais de Caxias, Rio. Depois da morte de Raimunda, a primeira mulher, com quem teve seis filhos, ligou-se a Irani. Duas crianças nasceram6. Os outros concordaram. Salgado acompanhou-a a Feira de Santana naquele ou no dia seguinte, e disse-lhe que Lamarca e ele julgavam inexeqüível, por ora, sua absorção no campo.

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Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada. Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, obra citada. Felix Escobar é desaparecido político. Foi visto pela última vez por César Queirós Benjamin, também preso, quando o DOI-CODI o levou da PE da Vila Militar na Guanabara, para um camburão. Em setembro ou outubro de 1971. 6

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A prudência exigia tempo e observação. Controlada e irônica, Iara deixou claro o desagrado. – É assim, no 8, que se decide? O interessado não participa? Em Feira de Santana, depois de entregá-la num ponto ao companheiro que a levaria à casa de Felix, Salgado viajou para relatar os acontecimentos à direção, na Guanabara. Luís Antônio Santa Bárbara7, que Iara não conhecia, conduziu-a à casinha de sala e quarto na rua operária sem calçamento. Seria uma parenta sulista a passeio. Estabelecera-se que Salgado providenciaria um ginecologista em Salvador. Sem conhecê-los, dispunha de bons contatos médicos – um simpatizante fazia a ligação. Tem que ser alguém de grande confiança, informou, porque se a polícia se inteirar do distúrbio, localizará a paciente; poucas clínicas no Brasil estão aptas a curála. O intermediário não se impressionou. Mais sensato indicar um colega no interior, resolveu. Iara enfrentou problemas em casa de Felix. Ao operário irritavam seus gestos lentos, a brancura. Fina demais. Ofendia-o vê-la organizar as crianças da rua em brincadeiras pedagógicas, ou apenas ler, quieta. Instava-lhe que ajudasse no tanque, no fogão. – Eu me esforço, quando vocês se levantam já varri a sala, o terreiro. Faço de tudo. E não adianta? – protegeu-se. Nunca estive triste assim, na verdade não me lembro de realmente sentir tristeza, admirou– se. Sujeita a um homem que me odeia. Pior que os companheiros militares. Impossível fugir, buscar ajuda, compensação. Perdeu as referências, sustou os cuidados com a aparência. Quanto menos bonita, melhor. Prisioneira. Chorava ao escrever a longa missiva que o irmão de Barreto, Olderico, talvez levasse a Lamarca, desabafo retomado diariamente, corrigir trechos, único elo afetivo no mundo brumoso. A solução é o trabalho aqui, onde estivermos haverá uma realidade a transformar, como você diz. Basta uma roda de crianças ao entardear, mulatas, negras; já me queimei de sol, fico mais igual. Tudo é político, não fôssemos nós e o movimento revolucionário sucumbiria, amanhã a indigência da esquerda. Refletiu e inutilizou as queixas contra Felix. Renasceu na gravidez. Será

7

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada; Coojornal, fevereiro de 1980. Luís Antonio Santa Bárbara suicidou-se no cerco a Lamarca, quando a repressão ocupou Buriti Cristalino, sob o comando operacional do major Nilton de Albuquerque Cerqueira e comando geral do general Argus Lima.

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menino, profetizou, e quero que se chame Carlos. Minha saúde melhorou, já tenho médico. Sinto boa disposição e amo você acima de tudo, muito, muito. Em outro momento escreveu que o jornal publicara a condenação do grupo de arquitetos a dois anos, com sursis. E reclamou do conchavo de Lamarca e Salgado, postergando sua ida à área. Julgavam-na sem condições? Deveriam expor-lhe o porquê. Inadmissível tomarem uma decisão sem que dela participasse. Rejeito. Um desrespeito, voltou-me a sensação de apêndice. Resisto ao campo, de acordo, mas não pode ser pior do que Jacupiranga. Critiquei Salgado. Manterem-nos como casal foi a condição de nossa transferência ao 8. Ele compreendeu. Por fim, o problema a martelar: impossível fugir a fachadas de casal. Esclareci José Carlos quanto à rigidez de conduta, porém o companheiro estava à flor da pele e interpretou o diálogo a Salgado – longe dele a intenção de cantá-la, aquilo era subjetivismo. Saudade insuportável, cuide-se e esteja inteiro para mim, não olhe as "cabritas". Você vai se surpreender, já tenho uma barriguinha. Por Salgado mandei notícias à família em São Paulo. Sorriu e acrescentou: com lembranças suas a meu pai, o querido sogro. Acrescentou à carta um documento sobre as preocupações dos militantes na clandestinidade8 e fechou o envelope. Animara-se outra vez.

Hamilton Safira. Refúgio em Serrinha

NO COMEÇO DE JULHO, Salgado encontrou Iara e deu-lhe metade de uma cédula de dinheiro, comunicando-lhe que iriam imediatamente a Serrinha, cidade a cerca de 60 quilômetros de Feira de Santana. Aguardava-a um ótimo ginecologista, a quem o simpatizante de Salvador passara a outra metade da nota. Sentaram-se no banco de trás da Kombi-lotação cheia de passageiros, Salgado à janela. Durante o percurso pela estrada de uma só pista, poucos aclives, conversaram banalidades. Feliz com o passeio. Iara deixou-se navegar pela paisagem verde, malfinda a temporada de águas esparsas, março a junho. Plantações de mandioca, bananeiras, jegues trotando, manchas de terra arenosa. Mulheres a lavar roupa em alguma aguada. Casebres, sítios, um povoado ao longe, a igreja em relevo. Roças de milho, arbustos na vegetação semi-árida de cerrado. Árvores frutíferas em alguns pomares, licurizeiros, o coquinho que adorava. 8

Carlos Lamarca, "Diário", 28.7.71.

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O veículo parou na arborizada praça central da cidadezinha que teria no máximo 10 mil habitantes, incluída a zona rural. Verdes oitizeiros. Tempo agradável, sem grande calor. Desceram a rua e na segunda travessa à esquerda, Liovigildo Ribeiro, no meio do quarteirão, a clínica. Aqui começa uma de minhas vidas, intuiu Iara, meu nome será homenagem à Maria Lucia, trago minha amiga da Faculdade à rota para Aracaju, Serrinha da qual nunca ouvimos falar, e no entanto há quem me cuide, me salve, a generosa revolução brasileira planta refúgios por todo o território, coloca na vanguarda política a cidade parada no tempo, colinas verdes ao redor, céu azul, tarde pachorrenta. Entrou na casa térrea, estreita e pintada de azul, porta de entrada pela varanda. Jardinzinho à frente, árvore na calçada. Salgado voltou à praça. Da sala de espera à esquerda passou à seguinte, o consultório. O médico Hamilton Safira de Andrade1, 36 anos, moreno, bonito, que dividia o tempo entre Serrinha e Salvador, onde moravam a mulher e os filhos, recebeu a cédula e cumprimentou

a

jovem

cuja

beleza

e

modos

gentis

o

surpreenderam

instantaneamente. Dizia chamar-se Maria Lucia Ribeiro, o que o comoveu, pois era o nome de sua irmã. A queixa de Iara foi infertilidade. – Meu marido e eu desejamos muitíssimo um filho. O médico estranhou que uma pessoa envolvida na luta armada pretendesse tal tratamento. – Desconfiei que ela planejava me recrutar e por isso nem fiz um exame rigoroso. Foi um primeiro contato, cheio de formalidade. Aconselhou-a a tirar a temperatura basal, velha conhecida, monitorando a ovulação. Em um mês, nova consulta. Na volta, mobilizada pela indefectível Amada Amante no rádio, Iara confidenciou a Salgado que várias vezes acreditara estar grávida. Os falsos alarmes é que conduziram ao diagnóstico de menopausa precoce. Acrescentou que o médico a impressionara. – Há tempos não encontro, no meio de tanto perigo, alguém que receba sem reticências uma pessoa como eu. Mas a hipótese de cura no Brasil é mínima. Hamilton fez um plano de tratamento que envolve exames sofisticados. Não há condições no interior. E um centro de pesquisas ou hospital universitário é perigoso em condições

1

Médico da Santa Casa de Misericórdia – Hospital Santana, em Serrinha. Também é político.

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de clandestinidade. Nitidamente, um problema sério. O ideal seria o Exterior. Falarei com Lamarca. Salgado, só estupor, nada respondeu. Por que pensaria estar grávida tantas vezes? Não evitava filhos? Então queriam uma criança naquelas circunstâncias? E Iara insinuava deixar o país? – Eu tentava programar o encontro deles em Barreiras e ela de repente me propôs, creio, mandá-la ao Exterior. Minha autoridade permitiria aprovar a partida, mas nosso respeito exagerado pelos dois inibiu-me. Não ousei puxar o papo. São momentos que passam. Quando voltou à área em agosto, genérico e cauteloso, Salgado aludiu aos problemas criados pela gravidez de militantes. Lamarca apoquentou-se e advertiu Iara na penúltima carta2. Poderiam utilizar assuntos particulares contra eles. Diante do silêncio de Salgado, Iara preveniu-o de que não suportaria ficar em casa de Felix. Embora devotado à organização o companheiro oprimia-a, era agressivo e considerava Lamarca um agente da CIA. Coisa antiga, provavelmente do PC. Salgado questionou Felix. O operário reagiu, implacável. Branquinha, olhos claros, equivocou-se. Delicada demais para a revolução. Intelectuais e classe média são intrusos, exceto homens como Salgado convertido, asceta, que impõe respeito. Iara não se transveste. Fixada em leitura, música. E escreve, prerrogativa de quadros especiais. Preocupou-se. Lacuna, deixarem de esclarecer aos companheiros proletários que a condição de trabalhador é insuficiente para configurar o homem novo; operários semelham-se aos burgueses em vícios e preconceitos, às vezes piores. Não discutiu, contudo, por causa da roda viva e falta de paz. Antes, resolveu instruir César quanto à necessidade de mudar o abrigo de Iara. Inquieto, marcou o ponto com ela. Entrementes voltava ao Rio. Lá travavam a discussão que punha Lamarca em polvorosa: as bases insistiam no recuo da proposta de guerrilha.

Iara ainda temia perder Lamarca se não engravidasse. Ele já a serenara no passado: nossos filhos nascem da revolução, seremos milhões. Inconformada, 2

“Diário”, citado: "Ainda intrigado sobre o que Fio levantou sobre filho – não abri nada" (15.8.71).

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resistia. Absurdo a medicina falhar, o ser humano desenvolve tecnologias avançadas, sonda Vênus e não me cura. De volta à casa de Felix, entretanto, relegou as instruções do médico. Além do clima pesado, desnorteavam-na as dúvidas quanto à luta armada. Ouvia o noticiário em ondas próprias, abraçada a Lamarca no chão da caatinga, a girar com a Terra. A repressão rastreia o Brasil à nossa procura. Mas a História se alinha aos combatentes na marcha para o socialismo, largada perfeitamente plausível numa peça de teatro camponês que dramatiza a coleta de impostos em lugarejos paupérrimos do Nordeste, a construção coletiva do cemitério, da farmácia, a escola parada há anos. Trabalho voluntário em mutirão, o sonho de Lamarca. Pescava notícias. Dia oito um aparelho da ALN estourado em Vila Romana, São Paulo. Por lá morava Encarnación, conheci Ladislau. Um novo embaixador de Angola, vai-se o amigo de Maria do Carmo que ajudou a salvar os dólares. Theodomiro fará exames de laboratório e radiológicos, quanto o estraçalharam na tortura? Mil vezes a morte. Medo de morrer. E só respirar fundo e dou no gatilho, fecho os O olhos e pronto, feito uma injeção. Terremoto no Chile, Melo e Miriam em Santiago, pânico; imaginou, sorrindo, Raul de pijama na rua. Uma estranha doença mata na Bahia, talvez encefalite. Bombas na Argentina contra empresas americanas, levanta-se a América Latina. A descompressão aniquila os três astronautas soviéticos na chegada à Terra, coitadinhos! Médici negocia Sete Quedas. Queria ver Queimada; Pontecorvo e a luta anticolonialista valem uma fugida. A AI Fatah dispara foguetes contra Israel, palestinos presos; árabes deveriam unir-se. Morre Louis Armstrong, jazz na rádio Eldorado. Pedroso Horta quer as reuniões do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana públicas e evidenciar o caso de Rubens Paiva, ARENA veta. Quem será o militante que ajudou no seqüestro do alemão e acusa as organizações de chafurdar na lama do banditismo? Fez o possível para tornar o convívio suportável, recusando-se todavia a abrir mão de seu espaço. Tentou argumentar. Ler e refletir são tarefas comparáveis, em importância, às ações em portas de fábrica; O segregar companheiras na cozinha configura um resquício patriarcal. Felix, ultrajado, não engoliu a petulância da jovem classe-média a dar– es e gritou, muito rude. Iara tentou afastar-se na pequena casa, acomodações abertas e sem refúgio. Sair à noite, insano. Debulhou-se, pena de si naquele ermo, saudade de Lamarca, da família, dos amigos e mortos, o futuro em retração, falta de interlocutor. Insuportável permanecer ali. Volto a Salvador. Vento, 490

mar, a inacreditável lua cheia obre a massa escura à noite, ondas brancas. Parou de chorar, encontrara a solução. Serrinha. Hamilton é da tribo, certamente me acolhe. Manhãzinha avisou a família que se ausentaria por uma semana. Compareceu ao ponto de Santa Bárbara, inteirou-o de que deixava a casa de Felix. Que pressa interior, o tempo agora dispara. Vestido de chita comprado na feira e sandálias tipo tamanco, sem calcanhar, muda de roupa e revólver na bolsa, desceu da lotação em Serrinha. Teve ímpeto de entrar na panificadora; resistiu, daria na vista. Observou os meninos bicicletando, crianças sentadas em degraus à porta de lojas, dá para ouvir vozes e passos no silêncio sem tráfego. Hamilton recebeu-a bem. Dispensou perguntas e abriu-lhe a clínica: espera e consultório já conhecidos, cirurgia em seguida; do outro lado do corredor três quartos enfileirados. No final o banheiro, a cozinha. Fora, um pequeno puxado e o apartamento do médico – amplo dormitório e banheiro. Iara logo ficou à vontade no anexo, a nova morada. Estante de livros, vitrola, discos. O sofá dos hóspedes, a mesa de escrever, jogar baralho, reunir amigos e os jovens do grupo de teatro. – Teatro? – entusiasmou-se, olhos brilhando. O médico nascido em Jequié contou-lhe que estava na cidade desde 1964, depois de formar-se em Salvador. Ligado ao Partido Comunista, organizou o Grupo de Debates de Serrinha e um teatro. No palco do cinema encenavam peças. O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, foi proibido por pressão do padre, que alertou a cidade: "Cuidado com o estranho que chega, parece alguém maravilhoso mas é a mosca vermelha que pica nossos filhos." Não obstante apresentaram-na, graças ao esclarecido juiz. Trouxeram filmes de Michael Cacoyannis – Electra, a Vingadora; Zorba, o Grego. Começaram a incentivar esportes. Hamilton convidava bons mestres, criou um Teatro de Fantoches e defendeu cabelos compridos em meninos, assunto que dividia a cidade. Fez também questão de levar adiante seus aplausos à minissaia organizando um desfile de moda, no melhor estilo Mary Quant. Em 1970, roubaram seu carro. Acusado de emprestá-lo a terroristas na Guanabara, compareceu várias vezes à delegacia para responder ao inquérito policial-militar. Não demorou, encontraram o Dodge num açude. – E o que faz o grupo agora? – Ensaia textos de Brecht e Peter Weiss. 491

Achado melhor no interiorzão, impossível. A linguagem comum. Hamilton apresentou-a aos jovens e Iara, feliz, discorreu primeiro sobre Max Reinhardt. – Rompeu com a fidelidade às tradições e transformou o teatro "educacional" em entretenimento. Levou peças a praças, jardins, até à catedral. Adorava cores, alegria, a teatralidade liberta da impostação. Falou de Erwin Piscator, o discípulo estridente e agressivo, nada de criar um mundo ilusório. E de seu colaborador Bertold Brecht, os dois exilados do nazismo – como ela em Serrinha, dando o curso de Anatol Rosenfeld, exilado no Brasil. Empolgou-se ao discorrer sobre o teatro épico. – Brecht queria que o espectador compreendesse, muito mais do que compartilhar a experiência. Precisamos da arte que ajuda a transformar o mundo. A emoção de Iara a reviver o TUSP hipnotizou o grupo e predispôs os jovens a investidas políticas. – A saída pacífica chove no molhado. Hamilton está errado. A única solução é a luta armada. Um dos rapazes, Arilauro Carneiro, disse a Hamilton que reaprendia tudo. Só não foi recrutado porque o médico se esmerou em provar-lhe que a esquerda armada fracassaria. – Muito inteligente e estruturada, Iara abalava. Quem não tivesse convicções seguras, entraria no MR-8 de corpo e alma – admite Hamilton. Durante a estada, a amizade aprofundou-se. – Insinuou-me sua verdadeira identidade. Perguntei e confirmou ser a companheira de Lamarca. Iara comoveu-se quando o médico descreveu a mãe, aliada valorosa. Nome lindo, Amantina. Mas ficou sem saber que Marcelo Cordeiro, namorado no congresso da UNE em Valinhos, era seu cunhado. EntabuIaram grandes discussões políticas. Encarniçada, sustentava o acerto da guerrilha atrelada ao trabalho de massa entre os camponeses. – Leva-se 20 anos para preparar uma geração – rebatia ele. – Você está equivocado. Ganharemos a luta e meu filho terá um mundo melhor. Hamilton convencera-se de que Iara desejava engravidar, embora incapaz de seguir o tratamento. Decidiu prescrever-lhe injeções de estrogênio e ameaçou-a, intuindo que no conflito poderia estar o caminho da salvação. 492

– Eu mesmo compro se você não obedecer. – Que homem imprudente! Incrível dar a receita com seu cabeçário. Na frente dele arremessou no cesto a tira rasgada. Recuperava-se do trauma de Feira de Santana. Dormia longamente, desfrutava os discos. Não deveria sair, advertiu-a Hamilton, ou expor-se demais aos jovens, abusando da discrição do grupo. Lia. Reencontrou o livro de Wilfred Burchett3. Eletrizava-a. Uma espingarda várias cópias de madeira, explosões ininterruptas de bambus recheados de carbureto dos faróis de bicicletas, megafone, ultimato e a rendição do posto de Phu-My-Hung, a 15 quilômetros de Saigon. Armadilhas, inimigos caídos sobre bambus afiados. Ou bacamartes atirando flechas envenenadas. Vale tudo para expulsar o invasor que tortura, assassina, bombardeia, usa napalm. Abatem-se tiranos locais – é a conquista de camponeses amedrontados, afixos explicam o porquê. E sempre o bambu, a cara de Ho Chi Minh, do vietcong. "Trabalhar em conjunto, viver em conjunto, comer em conjunto" são os preceitos. A releitura daria prazer a Lamarca, observou, mas agora ele só se interessa por Mao Tsé-tung. Esperava Hamilton terminar as consultas e jantavam falando de política. Ao redor de 20 de julho, quase um mês de Bahia, Iara cobriu seu ponto em Feira de Santana. Entregou a prestação de contas, sem cor– respondência a Lamarca. Ruim contar a falsa gravidez. Também faltara-lhe disciplina para escrever sobre a psicologia do clandestino, aprofundando o documento enviado na primeira carta. Dormiu em casa de Felix e tornou sem demora à clínica. Hamilton em Salvador, a enfermeira Irani Lemos cuidava de tudo. Por segurança – havia uma convalescente que registraria sua presença – Iara internou-se. É ordem do médico, elucidou. Envolveu-se na rotina, circulava, lia na sala de espera. – Quando voltei, era a dona da casa – sorri Hamilton. Maria Nazaré Campos Araújo, a paciente, impressionou-se com a Jovem mulher que surgira no quarto. Bonita, delicada. Estranhou que viesse tratar-se em Serrinha, morava em Feira de Santana, cidade mais desenvolvida. – Porque minha confiança em Hamilton é infinita. Ginecologista precisa ser meio pajé.

3

A Guerrilha Vista por Dentro, Gráfica Record Ed., 1968.

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Maria Nazaré e o marido Antônio José eram amigos pessoais do médico; reuniam-se no anexo a conversar e ouvir música. Procuraram aproximar-se de Iara, curiosos. – Sorria, atenciosa. Interessou-se pela saúde do meu filho, febril e garganta inflamada. Mas preferia ler. Hamilton terminava as consultas e visitas à noitinha e os dois se punham a falar. Às vezes me parecia que ela andava pela clínica ansiosa, aguardando algo, a calca boca-de-sino largona – fixou Nazaré. Hamilton explicou a permanência de Iara. – É a namorada de Arilauro. Novamente pediu discrição. Os jornais tinham reproduzido decIarações de Solange, que se entregara durante os tumultos na inauguração do estádio em Salvador a militância desde o PCBR, ações conjuntas, o MR-8. – A repressão sabe muito mais do que você imagina. Dia 30 de julho, Iara ouviu no rádio que Cláudio de Sousa Ribeiro se entregara à polícia depois de assassinar a companheira Cleide Doloyo, no Recife. Pensou no choque de Lamarca, gostavam-se tanto4. Atribuíam-lhe decIarações absurdas: aliciavam jovens no secundário, as moças obrigadas a manter relações sexuais indiscriminadas. Imprensa sórdida. Contudo, a morte ocorrera. Cláudio e o tiro em Teresópolis depois que Espinosa jogou café. Seria verdade? Ou acabaram com Cleide no invadir do apartamento, iniciando em Cláudio o ritual macabro da tortura até que, ao negociar a própria vida, mistura de verdades, mentiras, rampa abaixo, ele introduziu a linguagem inimiga, da abominação? Quis escrever a Lamarca, trocar impressões. Em Montevidéu, 28 tupamaros fugiram da cadeia por um túnel. Ou os mataram? Dia 6 de agosto Iara regressou a Feira de Santana. Tinha ponto com Salgado. Encontraram-se e combinou entregar correspondência a Lamarca bem cedo na manhã

seguinte;

por

segurança

nenhum

companheiro

carregava

papéis

4

"Diário de Carlos Lamarca", citado: "Disso só posso achar que Matos enlouqueceu a ponto mesmo de desejar se autoflagelar, e com o sofrimento justificar ter abandonado a Revolução – são muitos os escapismos, e cada cuca vai procurar a que se adequa às suas condições. É doloroso isto, senti-me abalado pelo grande respeito que tinha ao companheiro – é aquela situação da contradição entre a existência e a consciência (compreendo o estágio do processo), é preciso adequar a existência a ele, é impossível se adiantar ou atrasar, e entrar em contradição é suicídio mental – outros, para não negar a sua consciência, e conciliar com a contradição, procuram negar a Rev em todos os aspectos, ao mais mesquinho até. Quando se compreende isto, pode-se submeter às maiores dificuldades, até mesmo trocando a sua existência para ganhar uma só pessoa para a Rev – ou dedicá-la a apenas juntar uma só pedra à grande muralha ao imperialismo. Sei! Vivo!" (30.7.71).

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desnecessariamente. Na carta descreveu como se safara da casa de Felix e conveio que não desentranhava de si a calma para escrever o documento. Difícil, atolada na angústia. Vítima da síndrome que pretendo analisar, caçoou. Imponho silêncio à volta e esquivo-me em devaneios. Mencionou o grupo de jovens, sou útil à revolução. Também sigo o tratamento hormonal, outra vez me enganei. Só peço que você evite friagens, lembre-se da sua dificuldade de assimilar cálcio, as juntas vulneráveis. Salgado disse que existe um apoio camponês no caminho de Barreiras onde me absorverão temporariamente. Lá nos reencontraremos. Circulo sem problemas, é mais fácil do que trazer você. Lutaremos juntos no recrutamento de camponeses. Ho Chi Minh ajudou-os na superação do medo imposto pelos senhores de currais, os fradins da Igreja retrógrada, sabujos, macacos. anho com você, puro desejo, acordo feliz da visita noturna. Por falar nisso, que tal o índice de banhos? Insuportável saudade. Orgulho de ser sua companheira. Dia 7, sábado, Iara avisou a Felix que viajaria e despediu-se. Voltaria a Serrinha depois de encontrar Salgado. O ônibus Salvador-Barreiras, parada em Ibotirama, saía muito cedo. Esperou-o em vão. De longe vigiava o local, sentada num banco, ares de quem toma sol. Passados 15 minutos, mãos e pés frios, ergueu-se e lentamente caminhou à padaria. Pediu café, sanduíche. De longe, checava. Subiu num ônibus qualquer, apeou paradas adiante. Escolheu frutas numa feira, retornou a pé. Nada lhe pareceu anormal na rodoviária e tomou a Kombi. Só na metade do trajeto sentiu a tensão. Assim que chegasse, queimaria a carta. Frustravam-se o encontro em Barreiras, a discussão sobre seu futuro no campo. Que trajetória, vir esconder-se em Serrinha! No rádio, a notícia da morte de José Raimundo da Costa no subúrbio de Pilares, Guanabara. Pensou em Lamarca, sofrimento ao relembrar o histórico do companheiro que lutava pela volta e reintegração dos banidos. Raimundo foi mesmo baleado num cerco? Maior jeito de mentira. O Supremo Tribunal ignorava o habeascorpus em favor de Rubens Paiva – não está preso, subversivos o seqüestraram. Um encarregado de IPM indiciara o bispo de Volta Redonda e 16 padres da diocese por– que acusavam um batalhão de praticar torturas. O promotor recomendou arquivamento. Ficava o dito por não dito.

495

Salgado não apareceu no ponto de Iara devido à queda de José Carlos. Ao entregar Lamarca a Barreto, José Carlos concordou em transportá-los à entrada de Buriti Cristalino, contra as determinações. Militante que conhecesse a área deveria integrar-se a ela, decidira o MR-8. Perigoso arriscar-se à prisão na cidade e abrir tudo sob tortura. Salgado, que o encontraria para levá-lo, registrou-se na pensão onde costumavam pernoitar, misto de leviandade e esperança. De madrugada, milagrosamente escapou da repressão5 ao perceber o cerco. Imperioso alertar os companheiros. O aspecto positivo de furar o ponto de Iara era preveni-la. Lastimou a desolação de Lamarca sem carta. Não havia alternativa. Dia 9 chegou à área, vencidos a pé os oito quilômetros inóspitos. Reuniram-se6 ao ar livre, sentados no chão, objetos pessoais amontoados junto à barraca desmontada: cobertor, garrafa térmica de café, rádio a pilha. Timidamente esboçou, como item banal de discussão, o que seria uma ordem óbvia de comando: José Carlos preso, impunha-se a transferência imediata para a área de recuo. – Ao menos o capitão e Barreto – propus. – Nem incluí Santa Bárbara. Expliquei que a polícia perguntou por mim na pensão. Acrescentei que teríamos folga se saíssemos imediatamente. E concluí, o que for decidido, submeto à direção no Rio. Todos intervieram contra a retirada. Confiavam na firmeza do companheiro – eufemismo de condenação à morte sob tortura. Depositavam a responsabilidade pelo descumprimento da regra em José Carlos, que suportou os suplícios até passar o limite do teto. Primeiro falou Barreto. Autoconfiante, garantiu que em Brotas de Macaúbas seu esquema detectaria qualquer anormalidade, dando-lhes tempo de sobra. O último foi Lamarca, e definitivo. Além do prestígio pessoal e hábito de comando, geralmente externava a tendência do grupo. – O campo não é a cidade, que permite mudanças quando cai um companheiro conhecedor do aparelho. E a retirada nos desmoralizaria junto ao camponês. Se ele nos vê partir a qualquer prisão, aviltamos a luta. Minha proposta à direção é ficar. Alguém precisa sacrificar-se a fim de que o povo compreeenda a luta revolucionária. Por ela dá-se a vida, escrevemos nosso destino. Fique claro. se houver cerco morreremos, inexistem possibilidades de recuo terminou, expressão entre

5 6

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada; Jacob Gorender, obra citada. “Diário", citado (10-8-71).

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interrogativa e autoritária para Salgado: – Exceto se a direção nacional aqui presente decidir em contrário. – Lamarca era meu subordinado mas faltou-me coragem de impor o racional. Votamos unânimes que permaneceriam, tomadas algumas precauções. Pensei que os irmãos de Barreto não assimiIaram o realismo de Lamarca. Porém atiraram da casa, na vila, como se estivessem em guerra7, quando Fleury chegou com os homens. Poderiam ter saído de braços erguidos, pessoas comuns. Ninguém lhes conhecia o envolvimento. Café rodando, cheiro de cigarro de palha no ar, arbustos verdes de inverno. Barreto, Santa Bárbara e Lamarca ficariam no mato. Santa Bárbara voltou ao Buriti, por motivos que Salgado ignora. Suicidou-se durante o cerco8. – Cheguei ao Rio com as cartas de Lamarca para Iara, desejoso de que a direção ordenasse o recuo. Seria o lógico, o tradicional, o indicado. Mas defendi a posição deles. Tinha que ser fiel. O comando9 deliberou respeitar a decisão. Quem estava no campo conhecia melhor as circunstâncias. Advertiram, contudo, que lavavam as mãos. Lamarca não levou muito a sério a ameaça de abertura da área, provavelmente abalado pelos relatos de Salgado sobre Iara e os maus-tratos de Felix10. Raiva e impotência sugavam-lhe as forças. Já imaginara que ela não resistiria a confidências, intimidade propícia a envolvimentos afetivos. Chegara a escrever, enciumado, que a liberava da relação. Arrependeu-se imediatamente reconhecendo o mecanismo de defesa, o "individualismo", a exasperante paralisia. Também deprimiu-o a gravidez gorada11. E havia o desgosto de abandonar o trabalho entre o punhado de habitantes que denominava massa. A peça de teatro e os comentários de dois agricultores assumiam dimensões de acontecimento histórico marcante. Piorando seu estado de espírito, a desconfiança acerca de Salgado. Primeiro, o pito a respeito de filhos.

7

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada: Olderico relata que os tiros serviram para alertar Lamarca e Zequinha. 8 Idem. 9 Salgado, Sérgio Furtado e Sérgio Rubens. Muniz estava em missão no Chile. 10 "Diário de Lamarca": "Fio chegou e me relatou as dificuldades que você está vivendo, fiquei triste, estou muito triste" (10.8.71). 11 “Diário de Lamarca" (12.8.71): "...Quando Fio me falou que você não engordou eu me desliguei da conversa automaticamente, não sei se ele notou – e depois pedi que repetisse. Embora tenhamos combinado não criar esperança, desta vez achava que veria o Mini, sim, mas estou bem, enquanto existirmos ele existirá em nossas cucas."

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Depois, o intento de conduzi-lo a um encontro da direção, para debates – um recuo? – recusando-se a levá-lo a Iara. Aventara até não levar as cartas12. Descarregou a agressividade. Não o teriam enfiado no campo visando fortalecer a ala da guerrilha, numa luta interna ainda indefinida? Salgado compreendeu-o. Os militantes sem controle sobre a dinâmica nas bases sentiam-se tanto isolados, quanto peças de um jogo político. Tranqüilizou-o. Poucos defendiam a posição "antiguerrilha". A direção, coesa, circulava os argumentos de Lamarca. Por respeito a ele e pudor, nunca lhe falou do lampejo de Iara, deixar o Brasil.

Pela primeira vez Hamilton Safira observou insegurança no rosto de Iara. – Meus contatos em Feira caíram. Ajude-me, quero voltar a Salvador – pediu, muito assustada. – Você está esfrangalhada – preocupou-se. Durante o resto da manhã, mediram a situação. – Tenho uma proposta melhor – afirmou, enquanto almoçavam. – Vou levá-la à fazenda de amigos meus. Ninguém a encontrará. – Não. Precisa ser Salvador. Hamilton teve certeza de que a levariam a Lamarca. – Por que Salvador, se Feira caiu? – obstinou-se. – É insensato. – O aparelho é da maior segurança. – Não existe isso. Em lugar nenhum. A querela estendeu-se até ceder, irritado. Foi visitar clientes e retornou. – As coisas vão mal. Acabam de distribuir cartazes com a sua foto. E uma pessoa amiga de minha mulher avisou que a repressão tem a pista de um peixe graúdo. Raciocine. – Não tem perigo. Sempre circulei. – Você é bonita demais, chama a atenção. Dê um jeito no cabelo, mude o rosto! E olhe, se não quer a fazenda, vá a São Paulo, ao Rio. Nas grandes cidades é fácil perder-se. Idem (16.8.71, a derradeira carta) “...Ora, para reunião com a DG vão criar condições; por que então não criam para o nosso encontro?... Por aqui também há dois pesos e duas medidas...No dia 13 o Fio na reunião até levantou a hipótese de não levar minha correspondência – radicalizei... peço a você que não se abra diante de conversa mole de ninguém – o relacionamento com todos os companheiros deve ser político e não sentimental, humano e outros bichos – tome cuidado!...". 12

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– Vou a Salvador. Ou a Milagres escapou-lhe. Ao ponto alternativo de Lamarca, todos têm pontos alternativos, entroncamento pouco vigiado a meio caminho de Jequié. Fugir rumo a algum país de fronteira menos vigiada. Ou pegar uma condução a Botirama e morrer junto. Quem sabe? – É insano! Desconfiam ou sabem que Lamarca está na Bahia. E seus contatos caíram. Qualquer coisa é imprudente. Inclusive Milagres, se você tem ponto lá. À medida que o nervosismo de Hamilton crescia, Iara sossegava. – No fim dá tudo certo – sorriu, apaziguadora. – É que você não acredita na guerrilha. José Carlos, conhecesse ou não o paradeiro de Lamarca, silenciaria. Hamilton novamente desistiu. Receava que ela tomasse a pressão como desrespeito às suas convicções. – Bem, estou disponível para cumprir meu papel de linha auxiliar. Em desacordo. Iara voltou à inquietação e o médico sugeriu que relaxassem, caminhando. Anoitecera, das casas vinha o burburinho do lanche noturno. – Vamos ganhar – anunciou ela. Desaparecera o cansaço. Hamilton admirou-lhe a força e liderança. Porém líder oculta num quarto? Ou guerrilheira com tanta meiguice – pensou, calado. – É miragem, essa ida a Salvador – repetiu tolamente. – Vá a São Paulo obter informações. Você precisa saber como aconteceram as quedas. É absurdo viajar a Salvador. Demais. Escandaloso. Qualquer um vê. O que você tem contra alguns dias na fazenda? – Se eu for a São Paulo, desço em Milagres. – Bom. Assunto encerrado. Vou levá-la a Feira de Santana, você dá muito na vista por aqui. Naquela mesma noite ofereceu-lhe algum dinheiro e conduziu-a. Adormeceu acabrunhado. – Ainda hoje penso que se fosse enérgico, ela aceitaria a fazenda. No dia seguinte, Hamilton recebeu a visita amedrontada de Maria Nazaré. Vira no jornal fotos de várias pessoas procuradas, entre elas Maria Lucia. – É ela, Hamilton! Procuram a moça.

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– Imagine – fingiu divertir-se. – A Maria Lucia é namorada do Arilauro e viajou para o Rio. Você está enganada. A notícia entretanto correu, gerando terrível celeuma em Serrinha. Os rapazes do grupo apavoraram-se. – Vocês não têm nada com isso – acalmou-os. – Continuaremos a dizer que era namorada do Arilauro. Saímos numa boa. Mas a fantasia local circulou que Lamarca passara algumas horas em Serrinha, centro épico e amoroso da luta. A hoteleira que vendia almoço em marmita a Antônio José de Araújo garantiu-lhe ter negado hospedagem a Lamarca. – Lembro da última vez que vi Iara, saindo da clínica do Hamilton – descreve ele. – Foi andando pela calçada e deu-me vontade de acompanhá-la à distância. Seguiu lentamente, um ou dois volumes sob o braço, calça cinza, a blusa não lembro. Dobrou a esquina e desapareceu. Sem alternativa, Iara abrigou-se em casa de Felix, que tinha seu ponto regular com César Benjamin. O rapaz já vinha buscar Iara, a pedido de Salgado. A providência era urgente. José Carlos ignorava o endereço, mas se abrisse que Iara se escondia em Feira, fácil à polícia localizar uma sulista branca, pronúncia e modos característicos. Pela primeira vez César foi à casa de Felix e viu Iara. – Que bom, eu queria voltar a Salvador – recebeu-o aliviada. – Poderei me tratar melhor. Num instante juntou as coisas e despediu-se. Bom sinal, não deixar Feira a esmo. No caminho, César descreveu-lhe a fuga na queda de José Carlos13. Estavam juntos na rua, a polícia caiu em cima. Iara não se julgou a perigo. Hamilton é alarmista, nem de longe imagina de quantas já escapamos. As pessoas não se detêm nos cartazes. E se acaso fazem algum reconhecimento, em geral recusam-se a ver. José Carlos resiste uma semana, prazo limite. Lamarca, alertado, sai da área. Tudo funciona. Quanto ao local que a acolhia em Salvador, até César ignorava sua localização. Uma reserva de segurança. Ele também iria para lá em breve, pois abandonara a casa de sapé no cerrado de Alagoinhas onde trabalhava com camponeses ao lado de Felix – alfabetização, saúde, política. 13

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada.

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– José Carlos fez os primeiros contatos ali, a área ficou insegura – explicou. Distendida, no ônibus, mergulhou no céu azul, nuvens avaras de chuva. Desacelero. Colinas, mangueiras, vendedores de garapa, frutas: pinha, Iaranja, jenipapo, abacaxi. O coletivo parava, gente sobe gente sai, o vizinho idoso toma o bonde no Ipiranga e vai à casa do amigo preveni-lo contra a namorada do filho, queria o rapaz, estudante de Medicina, para a própria filha. Sorriu incrivelmente divertida, o rosto de César tão menino, 11 anos mais moço, novo amigo. Vamos mudar este mundo. Fora, a paisagem lembrou-lhe a serra do Mar. Depois bambuais e cana. Pastos, potros. – A gente vem do mesmo mundo. Temos caras parecidas – discerniu César. Logo abria-se, confiante. Olhos atentos de Iara, irmã madura, psicóloga, semelhante a ele atravessando uma separação amorosa. Um convite à confidência. Vivia uma grande tristeza, a companheira saíra do Brasil, contou. Solitário, quedavam-lhe apenas os contatos no Rio. Consolou-o. A luta enorme exige sacrifício pessoal; a dor transforma-se em sementes que frutificam. Separar-se é uma espécie de mutilação, perda de identidade do Eu, vivência que lembra a morte. A gente se defende ao tomar no sofrimento a virtude estóica, auto consciência, inclusive devoção religiosa – pensei muito nisso, li14. Máscaras ideológicas que legitimam a morte. Mas a morte é inaceitável, atinge só o outro insistia Sartre. Somos incapazes de elaborar ameaça. Vale para a separação. A consciência é criatividade, socialismo. Belíssimas sublimações, a dor encerrada em algum compartimento. Evite-o. Dilacera, ferida aberta, parece impossível sobreviver. Precisamos estar atentos e fortes, cantarolou, às vezes acordo com a música, dá força, nosso feitio de oração – riu alegre, animando o menino calejado que a protegia, guardava sua vida, amigo de Stuart morto. FaIaram das prisões, o componente extra se por infortúnio caísse a companheira de Lamarca. Concedeu que se interrogava sobre os caminhos, não me considero heroína nem creio em mitos. Ao contrário, a reflexão crítica desencadeada pelas bases no Rio deveria alcançar a todos. César escutava-a fascinado, nunca imaginara tanta coragem de expor fragilidade. Em Salvador, foram direto ao ponto. Iara apertava contra si a bolsa – dentro, o pequeno .22. Na sacola, o .38.

14

Igor Caruso. La Separación de los Amantes, Siglo XXI Ed., 1969.

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– Eu vim buscá-la – cumprimentou Nilda, sorriso delicado nas faces rechonchudas, quase de bebê. Brilho no olhar, voz musical. Nilda Alves Cunha15, 17 anos, acertara com César, que encontrava regularmente em Salvador, abrigar Iara, chamada Liana. Marcaram datas. O rapaz não apareceu na primeira e Nilda voltou sozinha ao apartamento no bairro da Pituba, moradia da irmã, Lúcia Bernardete. – Houve algum contratempo. Veremos amanhã. Desta vez trouxe-a, repetidos táxis, ao pequeno prédio de quatro andares na rua Minas Gerais. De relance Iara leu "Edifício Santa Terezinha", o baldaquino sustentado por colunas de um lado, mureta de outro. Subiram a escada estreita, paredes amarelas, portas azuis. Dos tijolos vazados entrava a luz. Na saleta do apartamento de primeiro andar, 12 metros quadrados talvez, a porta aberta do balcão convidava a debruçar-se no para– peito, ver a redondeza. – O mar é perto? – Logo atrás. Duas poltronas, mesa, assentos. Mentalmente elegeu a "poltrona de-papai" junto à janela, visão total da casa. Nilda mostrou-lhe o dormitório maior à esquerda, que Iara e a empregada, Benedita, compartilhariam; em frente, o pequeno corredor de circulação. Não demorou e surgiu Lúcia Bernardete. Bonita, morena, cabelos soltos. Fique à vontade e não estranhe se eu aparecer pouco. Tenho filho novo, de um mês. Nilda conduziu-a. A porta à esquerda do corredor dava ao pequeno quarto da irmã. As duas dormiam juntas quando não vinha o companheiro de Lúcia, o advogado Cantídio de Freitas Júnior, e Jaileno Sampaio, o namorado de Nilda, estava fora. Desse quarto e do banheiro na ponta do corredor via-se embaixo o pátio usado como estacionamento, a minúscula habitação da zeladora, o muro, o terreno baldio, um casarão vizinho, a avenida à beira da praia, o mar. A cozinha ficava à direita. Anexo a ela o metro quadrado de área, também aberto à paisagem, o quartinho e o banheiro de empregada. – Aqui fica Jaileno. É mais seguro.

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Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada: depois de presa, doente, morreu no hospital em circunstâncias nunca esclarecidas.

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Iara compreendeu imediatamente. Fácil pular ao térreo e fugir pelos fundos. Observou os lados e o alto. Um só bloco. Dois apartamentos idênticos por andar, a pequena mureta de tijolos vazados da área repetia-se no vizinho, parede-meia. O ambiente da casa era agradável, exceto a ostensiva antipatia de Benedita. Não durmo com a moça, cochichou. Indiscreta, mexera na sacola de Iara, depositada num canto do quarto; o .38 apavorou-a. Lúcia Bernardete, depois de acalmá-la, permitiu-lhe pousar na poltrona da sala. Mais tarde, depois do lanche noturno, deparou com Iara estirada no soalho do quarto. Sequer mexera no colchão dobrado, previsto para emergências. Evitava qualquer gesto que interferisse na rotina da casa. – Durma na cama, por favor – convidou-a. – Muito obrigada. Benedita não gostou de mim, nem penso tomar a cama dela. – Deixe-me então abrir o colchão e forrar. Iara pressentiu demora em adormecer, a inóspida e conhecida sensação de imobilizada, estranhos decidirem seu destino. Sentidos alertas, imaginava os coqueiros de Itapuã, longe, vento a girar folhas contra o céu escuro. Balé, Marina Tschipschin diáfana varrendo a noite. O oceano respira em ondas, sintonizo a expiração e adormeço, preciso comprar o remédio da asma. Veio-lhe a tepidez de Serrinha, Hamilton, a discussão. Horrível a idéia de São Paulo ou Rio, ratoeiras escancaradas. A luz do sol acordou-a. Entrava forte pela vidraça da janela de sacada, clareando o quarto estranho. Certificou-se, impressão fugaz, de que o mundo girava, as pessoas iam trabalhar, crianças em aula, cães, vozes no cantante baiano, um quê debochado, coisa da cultura negra, explicaram, o tom adolescente de Nilda, minha protetora. Rui– do de pratos, talheres, vaga memória do perfume de café. Desejo de uma xícara na cozinha, chora o bebê, certamente vai mamar. Atravessei o espelho. Arrancou-se do torpor e a urgência reinstalou-se. O coração batia depressa, dedos gelados, difícil lograr o suspiro de corpo inteiro que irriga a alma de oxigênio. Fome, imperioso café, calor específico inundando o peito. Sufoco. Deito ao sol, a praia logo aí. Bóio azul-esverdeado, um passo atrás de outro e chega-se ao destino, o mais belo e corajoso dos homens é o meu. Vale percorrer histórias tão diversas, coincidências, cada episódio desde que nascemos previa um ao outro. Lamarca e o suporte camponês. Desaparece aqui, reaparece ali.

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Abriu a porta, examinou a sala vazia. Na cozinha, simpatia quase maternal, Nilda ofereceu-lhe o desjejum: café, biscoitos água e sal, manteiga de lata, cuscuz de tapioca feito na hora, o calor da frigideira no ar. Espiou a paisagem – a zeladora não deveria vê-la – e embebedou-se de brisa, cor, luz, olhos compridos na praia. – Preciso tomar uma injeção de vez em quando – disse a Nilda. – É contra bronquite asmática. – Eu levo. Tem uma farmácia pertinho, na avenida. – Não queria ficar muito fechada; prejudica minha respiração. – Sem problema. Você pode vir comigo cobrir alguns pontos. Sorriram, perfeito entendimento. Iara voltou ao quarto que Benedita já arrumara. Pegou um livro, Sete Ensaios sobre Economia Brasileira16. Sentou-se na poltrona. O dia transcorreria manso, não fosse o mal-estar causado pela empregada. Lúcia Bernardete, ocupada com a criança que amamentava cada três horas, gostou de Iara. – Pessoa simples, educada. Culta, prestativa, sorriso lindo. Segura de si. Lia sem parar. Abrigava-a de boa vontade. Nilda pedira concordância a Cantídio, explicitando desconhecer qualquer envolvimento maior da clandestina. – Se é gente sua, as portas estão abertas. Ninguém, exceto Jaileno e ela, sabia quem era Liana. Numa conversa mais prolongada, Iara disse a Lúcia Bernardete o quanto gostava de crianças e ofereceu-se para banhar o menino. Naquela mesma tarde o fez, debruçada sobre a banheirinha, inebriada. Olhos nos olhos, mal deve enxergar ainda, o peso no braço esquerdo, dobras incipientes nas coxas. Mão cheia de espuma, acariciava o corpinho. Rosa, sangue do meu sangue. Embora ignorasse a presença de Iara, a Polícia Militar de Salvador já vigiara o prédio; monitorava moradias recém-alugadas, com auxílio dos zeladores. Antes da queda do apartamento uma perua passou dias estacionada perto, de um lado e outro da rua, segundo relata Cristina Camargo, por incrível coincidência cunhada de Elias Rocha Barros, que morava adiante. De que órgão provinha, todos a competir pela atividade repressiva, ela ignorava; chegou a suspeitar que fosse o DOPS paulista.

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De Antonio Bastos de Castro. Livraria e Editora Forense, S.d.

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Em maio procuraram a zeladora, Evandir Rocha Costa, apelide Vanda. Quem mora no 302, recém-ocupado? Três rapazes solteiros. respondeu. Conhecia o prédio inteiro, trabalhava ali desde a entrega 1962. A polícia quis saber há quanto tempo alugavam o apartamento. nomes, profissões. – Há mais de um ano. Alberto, o Portuga, trabalha na Arco e Pesca. Vitor, gerente dos relógios Tec. E Américo, da Phillips. – Mostre o apartamento. – Recusei, ameaçaram: "aqui tem uns subversivos, bagunceiros: a senhora mostra ou vai presa". Aí fui. Vasculhado o apartamento, proibiram-na de falar a respeito. Os bandidos fugiriam. Preocupada, à noite Vanda contou o sucedido ao marido, Everaldo Mendes Costa. Resolveram que ela falaria com Vitor; parecia-lhes o mais indicado. O rapaz decidiu procurar a Polícia Federal e levou Everaldo, que permaneceu na ante-sala. – Quando Vítor saiu, disse para não abrir o bico que estivemos lá. Aparentemente, ninguém soube. Terminada a pintura Lúcia Bernardete mudouse para o 201 com a criança recém-nascida e Benedita. Tinha poucos móveis e aceitou os que Jaileno ofereceu, de um amigo que viajara – José Carlos. Muito apegada a Nilda, irmã caçula que ajudara a criar, combinou morarem juntas, inclusive Jaileno a quem conhecia por Carlos, apelido Cal; os dois coabitavam num aparelho. A Pituba seria mais conveniente, porque a polícia o procurava. A presença do bebê, visitas periódicas de Cantídio, compunham a imagem perfeita de uma família pequeno-burguesa. Lúcia Bernardete conhecia as "idéias esquerdistas" de Nilda, a maior atuação do namorado. Mas era bom rapaz, educado, calmo, respeitador. Amavam-se, a família queria que se casassem. Adolescentes têm idéias fixas, dizia a Cantídio. E perda de tempo a gente meter-se. Isso passa, por bem ou porque tomam na cabeça. E quem sabe têm razão e dá certo? A outra irmã, Leônia, irritava-a. Enfia idéias esquerdistas na cabeça de Nilda, prejudica seus estudos. Leônia também preocupava Cantídio. Muito antes da mudança, suspeitoso de atividades ilegais, contou à cunhada que a polícia encontrara um bilhete numa cabana de praia. Ordenava a alguém que levantasse três milhões de cruzeiros para a compra de armas. – Aconselho que você se afaste, porque Norte e Nordeste estão alertas. E não conte a ninguém que você sabe disso. 505

– E você, como é que sabe? – Um amigo, agente federal, me contou. Na época era de consenso que os malsucessos da repressão na Bahia vinham do vazamento de informações – classe média pequena, parentescos entrecruzados. Leônia avisou Nilda e Jaileno, que acharam graça e preveniram Lúcia Bernardete. Nas pessoas sob ameaça subsistiu uma pequena desconfiança das ligações de Cantídio, robustecida nela soltura de Lúcia Bernardete no dia do cerco ao apartamento, providência que a polícia justificou: criança lactente, o pai conhecido. Quanto a Cantídio, saíra cedo na noite fatídica e não foi molestado. De acordo com o coronel Luiz Arthur de Carvalho, então Superintendente da Polícia Federal em Salvador e que o chama de Bacharel, nada se fez contra o advogado para evitar uma briga de família. – O aluguel estava em nome dele, que era casado. É possível que a visita dos federais antes da mudança visasse Salgado, Jaileno e César. A repressão procurava-os, desde que Solange se entregara no estádio. E a vigilância posterior – José Carlos desconhecia o novo aparelho de Jaileno – abre a possibilidade de Cantídio ter confidenciado a alguém que albergava esquerdistas. De outro lado, nada impede que no início de 1971, na Guanabara, confessassem a existência da área rural do MR-8. O assunto era circulado em documentos – Lamarca e Iara leram um deles na primeira casa de aliados. Acresce que a própria Solange abriu o contato da área rural, Salgado, a quem conhecia por Dino17. E que José Carlos o situara no ponto em Feira de Santana. Obvia a vigilância sobre toda a Bahia, em especial Salvador, apoio urbano. Para acabar, o prédio da Pituba escondia ao menos um outro clandestino, no apartamento 401. Líder da UEE na Guanabara, trabalhava na Ultragás.

Cerco. A doce mentira do mar

NILDA CHEGOU UMA TARDE com notícia de quedas já antigas na VPR. A mais dolorosa, 12 de julho, foi Heleny. Junto desapareceu Paulo de Tarso Celestino, da ALN. Livre da cadeia, Heleny prometera a Ulisses desvincular-se. Não o fez. Defensora ardente da volta dos banidos, ela e Raimundo fechavam a questão contra 17

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada.

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Zenaide. Heleny, seus cremes Payot. Também confirmada a tortura e morte de Aluízio Palhano, recém-chegado de Cuba ao lado de cabo Anselmo. Preso um dia depois de Inês, no ponto do mesmo "Primo", na avenida Santo Amaro, em São Paulo. Ele era filho de fazendeiro, contou Iara. Empobreceram quando morreu o pai. O irmão foi-se no Tutóia, navio torpedeado pelos alemães em 1943 na costa brasileira. Aluízio tinha horror ao nazifascismo. Bancário e sindicalista, grande sentido de responsabilidade1. Achou melhor não acompanhar Nilda aos pontos. Tentador, porém arriscado demais. E desistiu de manter o leve bronzeado que a tornaria menos destacada quando saísse – a praia, que espiava da janela do banheiro, quase vazia durante a semana. Isolada, um paraíso. Matinho rasteiro. Mar aberto, céu azul de inverno, faltam coqueiros à Pituba. Sorria para a mãe com as crianças a correr na areia, cinco, seis, oito anos. Sobrinhos de Elias, filhos de Cristina. O que faria, se soubesse? – Reparei nela um dia, retraída, a cara normal dos anos 70. Provavelmente da única vez que Iara, segundo Lúcia Bernardete, saiu para tomar a injeção na farmácia, dia 19 de agosto, véspera final. Cristina, perturbada ao ter notícia da morte, comunicou-se com Ellas que supôs a história inverossímil. Insistiu, o rosto era inconfundível. Elias fantasiou que a teria convencido a partir, sabendo-a em Salvador e viajado até ela, sem aviso prévio, assim como tocava a campainha na Maria Antônia. Perscrutava no jornal o rosto que amara, tristeza funda. Iara ficou no país por lealdade, concluiu. Foi ao máximo na luta que lhe resgatava a destruição emocional, sua marca antes de encontrar Lamarca. Devido à posição geográfica e a praia próxima, o MR-8 criticou a escolha da Pituba para esconder militantes: grande o risco de turistas identificarem os clandestinos. A escolha de bairros distantes, populares, permitiria diluir os militantes e sustentá-los melhor, pois a falta de dinheiro gerava problemas. Um dos membros do MR-8 em Salvador, Milton Mendes, muitas vezes pediu a universitários que lhe comprassem refeições no restaurante estudantil, destinadas a clandestinos fechados em aparelhos. Quando o apartamento da Pituba caiu, a polícia pinçou entre as coisas de Iara uma carta do Rio a ser entregue por Nilda, mandando Milton integrar-se na

1

Depoimento de Leda Pedreira: "Quero Justiça'", em Desaparecidos Políticos, obra citada. Sobre Heleny, o depoimento de Inês Etienne Romeu ao Pasquim de 27.7.79: "...Ouvi vozes de outras pessoas torturadas(...) uma de mulher... posteriormente vim a saber(...) era Heleny Telles Guariba, que esteve nesta casa em julho e é tida, hoje, como desaparecida. Outro(...) que esteve lá, torturado durante dois ou três dias foi Paulo de Tarso Celestino da Silva(...) também desaparecido".

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área rural, cuja localização ignorava. Por causa da ordem que nunca viu, foi torturado três dias. Achavam que sabia onde estava Lamarca. Pegou quatro anos de cadeia. Antes da madrugada fatal Iara tomou quatro sustos. Uma vez Vanda bateu no apartamento à procura de Lúcia Bernardete – uma dúvida doméstica qualquer. Benedita atendeu-a. Vanda estranhou a moça, que se ergueu da poltrona e sumiu no quarto. Lúcia depois explicou que se tratava de uma parenta com problemas de saúde – viera respirar ares marinhos. O incidente ao menos facilitou a rotina de Iara. Poderia ser vista pela zeladora, desatenta a cartazes. Houve o dia em que um homem tocou a campainha; procurava alguém. Jaileno, que o atendeu, informou não haver pessoa com aquele nome. O estranho insistiu: qual a sua graça? A expressão desconhecida atarantou-o e o homem corrigiu: como você se chama? Desconfiado, retorquiu: Carlos. Ficou nisso. Segundo Lúcia Bernardete, também a Benedita perguntaram por alguém. Aqui só tem o dr. Cantídio e Carlos, disse. Jaileno não soube do caso. E certa manhã, algo implicada com o alheamento de Iara a ler, gana de seus sobressaltos, Lúcia Bernardete encaminhou-se na ponta dos pés à poltrona. Infantil, sem ser pressentida, puxou o engate que inclinava o encosto e Iara caiu para trás. Lívida, não reagiu. – Por que um susto desses? – provocou divertida. Benedita extravasou o ressentimento, cochichando: – Por causa do revólver que carrega. Essa mulher não presta. Segundo Leônia, aconteceu ainda de Benedita, no meio de uma noite, despertar aos gritos: – Socorro, tira essa mulher daqui! Iara acorreu, quis acalmá-la. Não conseguiram que a empregada contasse o pesadelo. A casa seguia o ritmo normal. Lúcia Bernardete saía cedo às compras no supermercado próximo. Benedita ficava na faxina ou cozinha, a olhar de través. Iara perdia-se no jornal trazido por Nilda a despeito das magras finanças. O governo paulista, demagogia aparatosa, transferiu-se por um ou dois dias ao Ribeira; certamente o intento de apagar da memória coletiva os guerrilheiros, a insubmissão, vitória do cerco rompido. Presa no Recife a mulher de Raimundo; há quanto tempo? O sabujo da ARENA quer arquivar o caso Rubens Paiva e insulta Pedroso Horta de 508

sensacionalista. É no que dá o legalismo, obedecer a leis espúrias, observou para Nilda. Prenderam, em Salvador, o dele gado que esfolou vivo um hippie carioca, no xadrez. Amanhã soltam o monstro. Os tupamaros atacam um carro-forte e fogem depois de matar o policial. Sábado e domingo espiou nostálgica as pessoas na praia, povo e turistas a passear. Na terça-feira, Nilda trouxe César. Ternos, abraçaram-se. Na primeira conversa, a sala vazia, abordaram o risco de José Carlos abrir a área. Nem uma só linha sobre a prisão dele nos jornais. – Sinal que segura os tetos e a repressão manobra em segredo. – E se Lamarca não soube de nada? – angustiou-se Iara. – Se Salgado caiu sem avisá-lo? – Eu tomaria conhecimento, na fieira de pontos encadeados – assegurou César. Depois de muito debater, resolveram acionar os dirigentes no Rio. Imperioso prevenir a área sobre José Carlos. E aprovar que Iara se juntasse a Lamarca. Avaliaram o perigo de César deslocar-se, já que a polícia o detectara em Salvador. As cidades são aldeias. – Quem será que abriu o ponto de vocês? – Provavelmente foi infiltração2. Só nós conhecíamos o ponto, em Nazaré. Eu tinha comunicado a ele que se integraria à área. Dei o teto e caminhamos na direção de outro ponto. Aí, incrível, nos atacaram3. Havia locais melhores para um cerco4. José Carlos a comer carne-seca na estrada, discreto, o olhar chocado quando o advertiu em Feira. Todos caíam, mas ignoravam o rol completo. Bestialidade burocratizada. A segurança esfumara-se. Inês, Aex, Stuart. Raimundo. Breno. E Heleny? Associava mortos, vivos. Se pusessem as garras em César, perigava a Pituba. Ele reconhecera mais ou menos o local. – O único problema de segurança deste aparelho sou eu – adivinhou o que Iara pensava. Jaileno e Nilda confirmaram.

2

José Carlos soube na cadeia que o ex-militante "Pacote", depois quase justiçado, o reconheceu na rua e avisou a polícia. 3 Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada. 4 César descobriu na cadeia que diversas organizações faziam ponto em Nazaré, na grande praça arborizada.

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Os acertos em torno da viagem levaram dois dias. As propostas terminavam sempre na necessidade de rever a estratégia, programar a reinserção na sociedade, a luta armada num impasse. Iara afirmou que Lamarca era pessoa de vanguarda nessa reflexão. – A imagem de milico que só sabe dar tiro prima pela falsidade. – Eu concordo. O pensamento político dele é riquíssimo. Um dia explicou a nova situação no campo brasileiro, e pela primeira vez ouvi falar em bóia-fria, agroindústria, o desaparecimento dos colonos. Mão-de-obra ambulante nas épocas de plantio e safra. Depois, o trabalhador que se vire. – O 8 é estimulante. Provoca o diálogo em torno de ovos contextos, avança no processo autocrítico. Acho perfeita a estratégia de fortalecer sindicatos, conscientizar o trabalhador. O próprio empenho de Lamarca ultrapassa o foco no sentido militar. Pretende coletivizar o cotidiano, agir sobre corações e mentes camponesas. Preparálas para o deslocamento e trabalho político em outras regiões. Um homem do campo esclarece outro, até que formem um tecido resistente. FaIaram do amor de revolucionários. – Tem conteúdo e sentido únicos. O casamento burguês é o resultado histórico de um longo processo de domesticação do instinto – enunciou Iara. – Sublima o amor num contexto de relações possessivas, descreveu-o Freud. O oposto do prazer. Lamarca preocupa-se muitíssimo com o assunto, pois a moral do revolucionário tem de ser a camponesa. Só que a classe é composta de peões esmagados. Repressão absorvida, controlando o mais poderoso instinto, Lamarca está convencido de que devemos chegar ao fundo do poço e crescer com a massa. O assunto lembrou-lhes a homenagem ao centenário de Castro Alves no mês anterior, cortejo popular seguindo os restos mortais do cemitério de Campo Santo à cripta junto ao monumento, na praça Castro Alves. Eros morto, prosseguiu. Tuberculose na flor da idade E teve a história da tia que se apaixonou por um fazendeiro casado. Fugiram, nasceu um filho – Jorge Amado conta no ABC de Castro Alves. O pai dela mata o bebê, crueldade bíblica na moral sertaneja, a tia louca encarcerada no sótão, uivos até morrer. Todas as culturas têm seu louco escondido no quartinho, em prisão perpétua. Faz uns tempos vi um zelador surrar a filha de três anos porque pulava, alegre e rindo. Obscenidade. A decisão de assumir a moral camponesa tem duas vertentes. Transformar-se em peixe entre peixes e a irritação 510

com o vanguardismo sexual da esquerda, superficial, desrespeitador, que afasta as massas. Tanta saudade! Séculos a separá-la do seu homem. Sigo você, o magnetismo do rosto ascético, a tenacidade da fé. Aplicado em superar– se e entender a realidade do campo. Filial, aceitava as exigências que há três anos julgaria inadmissíveis. Há certo gozo na submissão, todo amor é um pouco edipiano, sorriu; meus homens d'antanho, se bonzinhos, que tediosos! Queria mesmo um herói. Bem, na intimidade é como qualquer outro. Espera paparicos, que eu lhe corte o cabelo, indulgência nas fraquezas e consolo nos fracassos. Aplausos e desejo, sempre. César e ela dormiriam no mesmo quarto. Somos compulsivos quando se trata de afastar o horror ancestral, abandono em floresta escura. Preencher o buraco. Ao rapaz causou certo espanto quando Iara fez um corte abrupto ao dizer que temia envolvimento emocional. Sós, a sofrer separações e juntos à noite. – É quase um instinto de vida, sei. Mas quero deixar claro que está fora de cogitação. – Abordou o tema de forma amigável e cIara. Temor infundado. Seria uma noite fraterna, sem constrangimento. Irmãos a compartilhar o perigo. Voltaram a conversar. Iara descreveu o movimento estudantil em São Paulo, a Maria Antônia e a irmã caçula, que Nilda lhe lembrava. Contou da VPR, o grupo quase destroçado, Lamarca inimigo do congresso no exterior. No dia seguinte, tornou a pedir que César argumentasse em favor de sua ida à área, como professora ou enfermeira. Ele concordou. Esclareceria que em Salvador ela era inútil. A conversa mais emocionante foi a última. Cidade cercada, controle nas estradas, procura por César e quem restasse da organização. Principalmente Lamarca. Acabar abraçada a ele, doente de amor, versão branca de Maria Bonita. Tênue fio entre vida e morte. Felicidade é a fusão derradeira. Insuportável a idéia de viver sem ele, retomar o cotidiano antigo. Somos dois pólos irresistivelmente ligados, cada gesto, expressão, pedaço. O mundo não vale o minuto do encontro. Dissolvemonos em luz, a energia que conformou o Universo. Tenho de ir, César, para o bem ou para o mal. Chego de surpresa ao destino, um só. E lembre-se, Lamarca é um grande militar, artilheiro insuperável. Se necessário saímos na Bolívia, como Prestes. César viajou dia 11 ou 12. Estradas secundárias, trocas de ônibus. 511

– Abala-me até hoje – ela morreu pensando que abri a Pituba. Dentro da tragédia que foi a morte, essa idéia me persegue. Ficou explícito que o único perigo era eu. A mãe de Lúcia Bernardete às vezes trazia os netos, três anos e nove meses. Eram os filhos de Leônia, que não podia vir ao apartamento. Iara brincava com eles. – Sou doida por crianças. Depois que partiam, sentava-se a ler. Também escrevia a Lamarca: só agora, dia 17, os jornais relatam o crime de Cláudio. Às vezes fitava, imersa na cena, o bebê a mamar. Em que momento da vida de um menino ele deixa de ser objeto de carinho e se transforma em inimigo, macho rival, a mera existência um acinte – 15 anos? 12? Sorria-lhe, minha prenda é um mundo melhor. Pensou em César, logo de retorno com notícias de Lamarca. Salgado não caiu. claro, e tem cartas para mim. Na manhã do dia 19 acordou pressentindo asma. O café forte suprimiu a opressão. Leu o jornal e alegrou-se: os tupas seqüestram mais um, vice-presidente de frigorífico. Dão um banho, é o sexto. Na Argentina atentados de esquerda e direita, Perón volta. Confuso. Novos rumores de golpe na Bolívia, Torres não dura. O Brasil quer ampliar o comércio exterior, menos dependência dos Estados Unidos; contradições do imperialismo e melhores porcentagens aos negociadores corruptos. Um juiz militar dá parecer contra a pena de morte num processo. Terminada a tortura entram os togados, a diferença entre as trevas e o porão; luz esmaecida do tribunal, os dois rostos do poder. Barulho de afazeres na cozinha, o bebê chorava. A mãe de Lúcia Bernardete apareceu, Iara distraiu-se a brincar com os meninos de Leônia e a filha mocinha de Benedita, recém-chegada, babá da criança. – Acho que a moça é comunista, tão fina mas sentada no chão perto da empregada – comentou a mãe para Leônia, ao devolver-lhe os filhos naquele dia. Sentiu fome e imaginou sentir cheiro de comida. Adivinhava o refogado, arroz, feijão, peixe frito, macaxeira. Almoçaram. Nilda e as visitas saíram, Jaileno fora. A casa esvaziou-se. Tinir de campainha, melhor mudar de bairro, o apartamento é uma cidade. Vim ao quarto visitar você, sorriu para Lúcia Bernardete. A voz masculina sobressaltou-as. Há um vazamento, vim examinar, troava. Histórias de encanador, companhia 512

telefônica, gás ou água. Mau augúrio. Pegar a trouxa imediatamente, de preferência deitada no banco de trás de um carro. Ouviram a arenga de Benedita: a patroa amamentava o filho, impossível atender. Lúcia cochichou-lhe que reconhecera a voz do locador; explicava-se, é uma vistoria normal. Será? Mentalmente acompanharam o homem à cozinha, afastava-se, deve estar no quartinho. Sob a cama, na sacola, as armas de Jaileno. Batata que viu. Agradeceu, foi-se. A opressão voltou. Uma sesta me fará bem, supôs. Piorou. Ao acordar descobriu-se amedrontada, ligeira tontura. Tomou café, releu as cartas de Lamarca. Não consigo escrever. Anoiteceu, postou-se na área. Respirar, praia vazia. César não vinha, perdia os pontos alternativos com Jaileno – jamais se encaminhavam direto a um aparelho. Enquanto não aparecer, há perigo. Calma. Esperto demais, o Menino. E se cair agüentará até o prazo do último ponto, compromisso irremissível. Sentiu frio, vento da noitinha. Você é friorenta, nem parece paulistana, brincava Nilda. Faróis de automóveis, alguns lentos, turistas admirando a paisagem. Só beleza e tranqüilidade, as cores da água a mudar no poente. Azulão, marinho, negro. Basta atravessar o terreno baldio cheio de palmas, os grandes cactos que baianos moem por causa dos espinhos e transformam em ração de gado. Lamarca a seu lado beijaa, raro intervalo de lazer na terra do pai de Zequinha. Tentou ler. À noite veio Cantídio e Iara pediu-lhe que a acompanhasse – preciso tomar a injeção contra asma, piorou. Nilda, já em casa, agregou-se. Caminharam os dois quarteirões até a única farmácia do bairro, meus hormônios, Hamilton, direitinho. Cantídio reparou que o táxi parado em frente ao prédio, cujo motorista trabalhava num interminável conserto, lá permanecia5. Recorda-se de Iara e seu livro sob o braço, como se não quisesse ir de mãos vazias. – Modesta no vestir, boa, culta. Sempre querendo ajudar. Era uma pessoa maravilhosa. Eu sabia que a procuravam mas não me preocupei em averiguar – Nilda pediu-me segredo. Nem a reconheci, nem me lembro de tê-la visto em foto de jornal ou cartaz. Se vi, não guardei. Retornaram, três pessoas amigas tomando a fresca, três parentes, três destinos com ponto marcado na Pituba. Só um olhar atento captaria a tensão. César 5

O morador do 301 Paulo Rezende, que também observou o conserto, lembra-se de ser uma Kombi.

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chega, tudo correu bem, a visita do locador foi corriqueira; de fato há um vazamento. Lúcia Bernardete deveria perguntar à zeladora se a alegação procede. Não, é inconveniente. Alertaria. Estamos tão cansados. Como Lamarca, no isolamento. Chega de fugir. Desencanto, as quedas desvendaram o MR-8 tal um papel transparente. Já em casa Iara, Jaileno e Nilda consultam-se. Tantos indícios, que cegueira é essa? Pode ser, pode não ser, concorda. A rigor, deveriam largar correndo. Nem um segundo. Mas para onde, esgotados? Deprime fugir a troco de nada, olha a paranóia, dinheiro curto. E as coincidências? Pode ser, pode não ser. Jaileno, Nilda e Iara relutam. O apartamento de Lúcia Bernardete é tão família. Só César conhece.

César encontrou Salgado na Guanabara dia 14 de agosto. Recebeu as cartas de Lamarca, vetada a ida de Iara ao campo. A direção considerava a área em perigo. Ajeitou o envelope na mala e foi apanhado à noite por simpatizantes que o guardariam. No Jardim de Alá, a batida policial. Tiveram que apear do carro. Identificaram-se, César mostrou os documentos falsos. Nenhum problema. Falta a revista geral no veículo, avisaram. Condicionado a reflexos rápidos, mapeou o local que conhecia bem, determinando uma rota de fuga. Os policiais iniciaram a busca, relaxados. Foi a sorte. Ao toparem com a arma no bagageiro, teve tempo de correr e rolar grama abaixo às margens do canal mal iluminado, escapando da linha de tiro. Os três simpatizantes e as cartas caíram. O jornal carioca O Globo resumiu o que se denominou "Diário de Lamarca" na edição de 20 de setembro, três dias depois da morte de Lamarca e anexou parvoíces: reduzido de líder a simples peão, inseguro porque as organizações o abandonaram, dependente de Iara, inconformista, temperamento explosivo, inadaptável à disciplina. Sem documentos ou dinheiro, César dormiu em casa de amigos pessoais. Na manhã seguinte relatou o desastre a Salgado, que voltaria ao Buriti Cristalino 6. Lamarca ficará aborrecidíssimo e suspeitoso, lastimou Salgado, pois já hesitara em trazer as cartas.

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Em Milagres, o camponês que Salgado contatava avisou-o do cerco à área: "Morreram dois, estão torturando muito o Velho (pai de Barreto) e procuram um tal de tenente." Salgado voltou à Guanabara sem seguir para o Buriti Cristalino, escapando à prisão. Saiu do Brasil em 1972.

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Providenciados novos documentos, César viajou a Salvador. Compareceu a um dos pontos alternativos de Jaileno, já preso. Esperava-o a polícia. Três anos e meio numa solitária escura danificariam sua visão; ficou ainda um ano entre prisioneiros comuns e mais de meio ano na Frei Caneca. Saiu vivo porque vários chefes de torcionários foram colegas de turma de seu pai, militar nacionalista, na reserva desde o golpe de 1964. – Iara está morta – pavonearam-se os policiais na sala onde o supliciavam com choques. Duvidou. Num canto ergueram-lhe o capuz para mostrar a foto. Deitada, nua, orifício de tiro entre os seios. Diante disso, responsabilizou-a por diversas atividades. Logo o recambiaram aos pontos falsos na Guanabara. Marcava-os na agenda, atualizando-os mensalmente. – No Rio tive de confessar que eram frios. Torturaram-me três meses. E disseram que não me matavam em respeito a meu pai. Só então recebi a visita dele, na Vila Militar. Fui prisioneiro durante cinco anos sem pena. O CENIMAR recusou-se a obedecer quando o Supremo Tribunal Militar decidiu que eu seria solto, em 1976. Colocaram-me num avião para a Suécia, validade de cinco dias no passaporte. Voltei em 1979. Aprendi sueco e fiz um curso de Língua e Literatura Nórdica.

Vem a hora do jantar, sempre um lanche com pão fresquinho, queijo. Trocam amenidades na cozinha, presença escura do oceano. Acomodou-se no colchão. Benedita e a filha na sala, Jaileno e Nilda nos fundos. Ao lado, Lúcia Bernardete e Cantídio, que some de madrugada dividido em dois. Fechou os olhos, a segurança manda cair fora. Pode não ser. Se for, não me pegam viva. Meu último prazer. Você corre, corre e tromba no destino. Quem dizia isso? Daniel, no Ribeira. Grandes e pequenos eventos convergem para o roteiro escavado, conduzidos e condutores, resignação e afronta, medo e coragem, disciplina e fé, perturbadora força de núcleo frágil, rijos, manhosos, o impenetrável de cada um. Reencontro, saudade perene. Mãe, eu fiz uma opção de vida. Imolar-se ensina a viver, monges budistas em chamas contra a guerra do Vietnã. Filha, eles acreditam que reencarnam melhores. Mãe, e nós não? Filha, ensina-se a viver? Pai, tragédias nascem no passado, atingem mortos, vivos, descendentes a perder de vista, décadas, duas, três, dez, o generoso e o pusilânime, mistério e contingência, ethos, pathos, pausas, passos. Fiar, dobrar, 515

cortar. Épico aleatório de uns e outros, traições, bravura, solicitude, entranhas no painel que indaga, revela o ambíguo, o grotesco – como iria Lamarca, alvo da metralhadora em semivigília, letargo de fome, doente, atestado de óbito acusando hematoma no olho, dialogar com seu matador Cerqueira7? Como se avalia hoje o púbere delator, vivo porque Iara não aperta o gatilho contra o ser humano que busca libertar? Allende no Cone Sul manietado, alegres generais em usinas nucleares, fábricas de armas, estatais, corrupção impune a inchar. Nada a ver com os poemas que o irmão de Felícia, o garoto Gelson, burilava, a morte ainda hoje obscura. Fascinara-o a vizinha Iavelberg e a trilha do irmão de leite perdido, o corpo desacompanhado clama, exige compartir o roteiro do horror talvez sob guarda de Isaac Abramovitz, excunhado de Iara, escárnio é a comédia dos demônios. Que tiroteio na avenida República do Líbano? Felícia grávida bate de porta em porta, em vão busca acompanhá-lo. Tiroteio algum houve naquela e noutras noites, mas nem reconstituindo todos os passos do irmão, e as palavras, gestos, expressões de Gelson, Iara, Heleny, Jana do Araguaia e tantos mortos devolve-lhes a vida. Qual o papel do homem na História do Brasil, perguntou Lamarca, derrubaram o governo constitucional de Goulart apenas 11 anos depois que a Companhia Anglo-Iraniana de Petróleo destituiu Mohammed Mossadegh no Irã, inconformada com a nacionalização do petróleo, o mundo afiando as garras em conflitos localizados. O papel do homem é agudizar contradições, ouviu, nos Estados Unidos Daniel Ellsberg xeroca furtivamente8 os papéis do Pentágono sobre a guerra do Vietnã, para vazá-los à imprensa. Há o grande enredo da 7: Frota Americana e o pequeno homem-rã que afunda o cargueiro norte-americano. Afunilamento progressivo até a pequena Pituba, grandiosa paisagem colorida de guarda-sóis e sangue oculto. Vem aí o 7 de setembro, feriadão de segunda-feira, começa a temporada de praia no Nordeste. Hora de comprar biquinis, cerveja, água de coco. O governador desfilará em carro aberto a passar tropas em revista, também

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Coojornal, artigo citado: o então major Nilton de Albuquerque Cerqueira, comandante do DOI, em seu relatório descreveu o diálogo que teria travado "como terrorista abatido: – Você é Lamarca? – Sim, sou Lamarca. – Como é o nome de sua amante? – Iara, respondeu. – Sabe o que aconteceu com ela? – Suicidou-se, não é? – Morreu. Onde está sua família? – Em Cuba. – O que você acha disso? – Sei quando perco. – Você é um traidor do Exército Brasileiro. Não foi obtida resposta. Carlos Lamarca estava morto". 8 Procedimento semelhante possibilitou o Projeto Brasil Nunca Mais.

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examinou Iara morta, mórbido ultraje devassando o corpo indefeso, sobriedade fingida, "que mulher linda era". Caymmi prega a doce mentira do mar, aconchegou-se a Lamarca, adormecer assim, belas mãos de homem. Ou repousar na areia morna, água fervilhante de vida. Lamarca chega à noite sem aviso, tanto se amam. Vem, é a estrada do futuro. Toda a cautela do MR-8 não impediu o pequeno desacerto a gerar outros, progressivos, que culminaram em avalancha. O engano foi contratar um motorista para o transporte dos móveis de José Carlos. Se a consultassem, Iara lembraria que Valdir Sarapu, em São Paulo, fez sozinho a mudança da Maria Antônia à Faria Lima, na Kombi emprestada. José Carlos falou dos móveis9 após indizíveis tormentos. Tinha certeza de que Jaileno desativara o apartamento onde vivia com Nilda; ignorava que Lúcia Bernardete era a destinatária. E César presenciou minha queda, acalmava-se. Todos puderam proteger-se. Também imaginava Iara segura em Feira de Santana, algo que nunca abriu na tortura – nenhuma palavra sobre ela. A Polícia Militar, entretanto. obteve o meio para descobrir o apartamento onde esperava prender Jaileno e Nilda, com sorte Salgado e César. Localizou o motorista que fez a mudança.

Ivan Pugliesi chegou ao casarão na praia da Pituba cerca de 21 horas do dia 19 e recolheu-se no quarto, entrada independente. Membro do Partido Comunista desde os 15 anos, estudava Engenharia em Brasília. Perseguido, voltou a Salvador e submergiu como operário e sindj– calista na Tibrás, em Arembepe, ao lado de Anatole Sudlovsky, marido de Leônia. Sem morada – mãe e irmã na Europa – acolheu-o a drinha, irmã de Joalbo Figueiredo, secretário da Segurança Pública do Estado e esposa de Alfredo Bureau, médico influente. Alfredo chamou Ivan. A casa sediava operações contra terroristas, disse. Escondiam-se no prédio da rua Minas Gerais, logo atrás do terreno baldio. O rapaz não poderia mais sair naquela noite. Cercam o líder estudantil que ajudei a esconder no edifício Santa Terezinha, pensou Ivan. O aparato na sala surpreendeu-o. Armas, aparelhagem de rádio, policiais a circular, o próprio Joalbo. Percebeu ser impossível telefonar dali à pessoa que contatava o estudante. Ouviu, então, os policiais mencionarem Nilda e Jaileno. Fantasiou gritar do seu quarto, tentando alertá-los – 9

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada.

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visível, só a face posterior da edificação. Heroísmo inútil. Exporia seu trabalho, companheiros até agora insuspeitos. E não o ouviriam. Adormeceu de madrugada, atormentado. Sensação de impotência e absoluto desamparo. O tiroteio violento acordou-o. Automáticas, rajadas de metralhadora, bombas. A vizinhança acordou, paralisada de terror. Ouvia os berros: "Entra agora! Invade!" Levantou-se, foi à sala. Em torno das seis horas soube que evacuaram o prédio. Viu passar a perua que o levava diariamente ao trabalho, às sete horas. Continuavam proibidos de sair. Um silêncio inóspito envolveu o quarteirão. Começavam a desativar o quartelgeneral da casa quando alguém comunicou, excitado: ainda tem terrorista. A movimentação recomeçou. Tropas retornaram ao prédio. Ivan escutou tiros de armas curtas e bombas de gás. Há uma subversiva baleada, avisaram. Joalbo ordenou a imediata limpeza do local e transferência da mulher, desconhecida. Em torno das 9 horas levantaram o cerco e Ivan correu ao ponto de ônibus. Em Itapuã pegou o coletivo de Arembepe. Na fábrica descreveu os eventos a Anatole, que saiu para apoiar a família de Leônia e não retornou naquele dia. Ivan preveniu também o líder estudantil; por coincidência dormira fora, mas não voltaria ao apartamento nem para buscar suas coisas. Quatro dias depois, a notícia da morte de Iara A rádio Havana10. É possível que Lamarca a tenha captado nessa ocasião, ou quando retransmitida no Chile. Na Guanabara, um primo de Renato Laforet, editor de O Globo, falou-lhe de quedas em Salvador, com morte. Temeu que fosse Iara e passou a notícia a um companheiro do MR-8. Na imprensa, nenhuma linha.

O estrondo acordou Lúcia Bernardete e ela o atribuiu ao bujão de gás, defeituoso. Eram bombas na varanda e área da cozinha. Apavorada pegou o bebê, envolveu-o no encerado que forrava o colchão e saiu. Seguiram-na Benedita, a filha e Nilda. Na escadaria, exclamações e chamados, estrondos. Berros de policiais: – Tem mais alguém lá? E Nilda: – Não, tem não.

Ayrton Baffa: "Assim morreu Lamarca – 3: Começa o grande cerco ao guerrilheiro." Reportagem em O Estado de S. Paulo, edição de 17.9.81. 10

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E Lúcia Bernardete, ainda pensando no gás: – Tem Cal, Nilda, tem Carlos! E Nilda tremente, pois identificara de imediato o cerco: – Não, Lúcia, tem não. Alertados, policiais que subiam de metralhadora e revólveres perguntaram: – Quem é Carlos? Munidos de megafones, subitamente pensando em Lamarca, ordenaram: – Carlos, entregue-se! – Não atira, Cal, não atira! – gritava Nilda. – Como é, Lúcia, que você foi pensar em gás com aqueles federais armados? – recriminou-a depois. Só lá fora, ao divisar o aparato de guerra, carros, ambulância, tropas no quarteirão, a rua isolada, a irmã atinou. – Parecia um campo de batalha. Para prender dois adolescentes. No apartamento ficaram Iara e Jaileno. O vento marinho devolvia o gás lacrimogênio e os policiais desceram as escadas. Jaileno esgueirou-se do quartinho, transpôs a cozinha e foi ao banheiro. Abriu o basculante. Apesar da escuridão, lobrigou homens e metralhadoras. Inviabilizavam o impulso de saltar os poucos metros entre primeiro andar e pátio, a fuga pelo terreno baldio. Mal abaixou-se, metralharam a sombra na janela e o atingiram de raspão na coluna. Tranqüilizou– se, nem sangrou. Resolveu escapar subindo a escadaria. No percurso cauteloso, não viu Iara. Tateando, chegou ao último andar – os moradores ainda não haviam descido. Bateu à porta, explicou que o botijão de gás explodira. O casal convidou-o a entrar. Não os conhecia, como de resto a ninguém. Chegava tarde para não dar na vista, saia cedo. A pausa foi curta. Pelo megafone chamavam-no a proferir ameaças. Assustados, pediram-lhe que se fosse. Jaileno desceu vagarosamente as escadas. Perguntava-se onde estaria Iara quando à altura do segundo andar a polícia agarrouo, iniciando a pancadaria. Atiraram– no algemado num dos camburões. Lúcia Bernardete já seguira em ambulância com o filho. Nilda lhe sussurrara, brilho no olhar: – Liana furou o cerco. O terreno.

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Paulo Rezende, 22 anos, funcionário de supermercado11, morava no apartamento 301 com os pais, cinco irmãos e irmãs. A noite cursava Estatística. Mal conhecia os moradores porém já cruzara Lúcia Bernardete e Cantídio, que lhe pareceu o inquilino titular. Nunca vira Iara. Cerca das cinco horas do dia 20, acordouo o megafone a ordenar que saíssem do prédio os ocupantes do 201. Precipitou-se para o balcão em meio ao estardalhaço, mas comandaram aos moradores que se recolhessem. Poderia haver tiroteio. E portas fechadas, evitando que terroristas os tomassem como reféns. Paulo deitou-se no chão da sala, a fim de entrever a rua pelos tijolos vazados. Observou numerosos policiais, armas, o lançamento de bombas de gás no 201, o embarque de Lúcia Bernardete com o bebê na ambulância. Obedeceu à determinação: desocupar os apartamentos devido ao gás, deixando janelas abertas e portas trancadas. – Descemos todos e ficamos trocando impressões na rua. Vizinho ao 201 morava um casal, o filho entre 12 e 14 anos, a filha mocinha. O garoto, passado um tempo, quis buscar alguma coisa no quarto dele. Isso foi claríssimo. Logo desceu e comunicou a um policial: "Tem alguém armado no meu quarto." "O que você fez?" "Bati a porta, só abre por fora." O menino alardeou o fato, chocado, e quem estava ali soube que ele dormia no quartinho ocupado pela desconhecida armada – dois revólveres. Enviaram a mensagem por rádio e o aparato retornou, inclusive o coronel Luiz Arthur. Jogaram tantas bombas de gás que a fumaceira aparentava um incêndio. Na rua, usávamos lenço para respirar. Lembro de alguns federais a dizer "a moça cometeu suicídio". Na época eu tinha dois colegas metidos em política. A noite contei o sucedido e eles pediram que eu verificasse marca de balas. Fui olhar no outro dia. Nenhum tiro. Exceto ela, ninguém atirou ali dentro. Policiais ocuparam o apartamento 201 por mais de um mês, malajambrados de hippies. Prendiam quem aparecesse. O sapateiro que trouxe um conserto de Lúcia Bernardete, o vendedor de vassouras. A repressão queria, além dos peixinhos, grandes clandestinos César, ainda solto, de estatura média; Salgado, alto e moreno, bigode ou não. E Lamarca. Acreditavam ainda secreta a morte de Iara. Apaixonado, talvez viesse à Pituba. Não o concebiam submisso à disciplina da organização, sem locomover-se. E terminara o "Diário" com a promessa de se encontrarem12. O 11

Emiliano José e Oldack Miranda, obra citada. “Diário de Lamarca" (16.8.71):... "Te amo, te adoro – segue esta carta, impregnada de amor – vou te ver, nem que seja a última coisa na minha vida – mil beijos do teu Cirilo”. 12

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imaginário local, expresso pelo diz-que-diz-que das domésticas e da zeladora, supunha que a visitava regularmente. Alto, moreno, aparecia a horas mortas em carros diferentes, chapas de vários Estados. Jamais pousava. A irmã casada de Paulo Rezende amiúde visitava os pais, e a família tinha grande afeto por seu marido, Antonio José Caetano da Silva Cabral. No sábado, uma semana depois da invasão do prédio, o casal estava na praia como filho pequeno. César seria preso em três dias. Paulo ensaboava seu Volkswagen na rua, quando escutou Vitor denunciar ao policial de plantão: – O Baixinho está na praia. Intrigado, foi ver do que se tratava. – Chegou no momento em que o policial destravava a arma, bala na agulha. – É meu cunhado! – aterrorizou-se. – Eu subo com ele. O risco era enorme. Se Antonio José corresse atrás da bola ou do filho, atirariam. Aproximou-se devagar. Inclinado, abraçou-o. – O que foi? – Tenha calma, difícil explicar aqui. Não reaja, denunciaram você como o Baixinho do prédio. Vítor reconheceu o cunhado de Paulo e tentou desfazer o erro. Mesmo assim levaram-no à Polícia Federal, de short, inconformado, suspeito de ser César. Paulo acompanhou-o, tentando intervir. Vetaram-lhe a entrada. – Meu cunhado saiu logo. Mudo, sem escutar ninguém. Só chorava. Sofreu um trauma enorme.

Na madrugada do dia 20, passos no telhado acordaram a zeladora. – Paizinho, isso é ladrão – sussurrou ao marido. – Não, é gato. Desconfiada, Vanda pegou o facão e saiu. Deu com o federal sentado no muro que cerca o pátio. Outro enfiou a carabina para dentro da habitação que se resume num corredor dividido em saleta, banheirinho embutido e quarto. – Tem cinco crianças aqui – advertiu, assustada. Mandaram-na aquietar os filhos, proibidos de sair. O irmão de Vanda, no serviço militar, também morava ali. Chamou-o: 521

– O prédio está cheio de federais. O rapaz saiu e ao voltar disse que o cerco era total. Ruas, muro, telhado. Caçavam subversivos. As crianças ficariam trancadas no minúsculo banheiro. Vanda ouviu os brados de Lúcia Bernardete quando iniciaram as explosões. Gritou também: – Meus filhos vão morrer com o gás! Permitiram-lhes sair. Na rua, distribuíram leite. – Ai é que o rapazinho foi buscar livros escolares no quarto. E viu Iara – testemunha Ana Maria, filha de Vanda. Presos Jaileno e Nilda, o coronel Luiz Arthur de Carvalho julgou cumprida a missão. Infelizmente faltavam César e Salgado. Bem, cedo cairiam. Cansado pela vigília retornou à casa. Banho tomado, sentou-se para o desjejum. Mal serviu-se de café e já o chamavam ao telefone. Havia mais alguém. Voltou imediatamente. Segundo o coronel, o menino não subiu atrás de livros. – Obedeceu à ordem policial de abrir as janelas13. Levou um susto enorme ao ver alguém ameaçando-o com revólver, o dedo em sinal de silêncio. Pensou que fosse homem por causa da calça preta e blusa escura. Demorou a ter coragem de contar à mãe, que transmitiu a informação ao policial. Avisaram-me cerca de 8:30.

Iara acordou de madrugada, escuro ainda. Dois anos de constante prontidão deram-lhe a certeza de que alguma coisa sucedia. Sons vagos, quase que um ligeiro deslocamento de ar na rua deserta. Devagar, rastejou para junto da janela. Através dos elementos vazados da varanda distinguiu as sombras, brilho metálico de carros. Gelou. O coração descarrila quando chega o momento, disse à outra que não ela. Viuse como num filme, ou sonho. Eu dormia e bati no fim. Como foi? César caiu, falou. Simples. Arrastou-se para junto da bolsa. Abriu-a, imperturbada. Não é comigo. Uma porta de aço desceu. Insensível, formigamento no alto da cabeça, examinou a identidade, o .22, preciosas cartas de Lamarca. Dinheiro. Da sacola tirou o.38, meteuo na bolsa à força. Ia molhar o lenço com amoníaco quando a explosão quase a fez perder os sentidos. Colada no chão dirigiu-se ao outro lado da cama. Desvantajosa linha da porta, mas afastava-se da chuva de bombas. Lúcia Bernardete grita, Nilda 13

A ordem fora dada aos moradores antes de esvaziarem o prédio.

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responde, abrem a porta da frente, homens urram: afastem-se das janelas, entreguese o pessoal do 201. Imprecações, gemidos, crianças a chorar, perguntas de todos os lados no prédio desperto. Boca seca, lívida e lenta, Iara chegou à porta. Nenhum som no apartamento, exceto o coração enlouquecido. Ardem os olhos. Ergueu-se. Lenço no rosto, pendurou as alças da bolsa safári no pescoço e abriu a porta em gestos milimétricos. A balburdia sobe do térreo, vozeirão de policiais, o grito de Lúcia Bernardete, tem Cal, tem Cal, a resposta de Nilda, tem não. Jaileno fugiu. Sobra uma fresta. Atrás. No apartamento escuro, brisa que arrasta o gás na direção da rua, mar amigo, avança rente à parede do corredor. Parece flutuar. Impressão de reconhecer no banheiro a sombra de Jaileno. Entra à direita na cozinha. A rajada de metralhadora imobilizou-a, um coice no pescoço. Ainda não, certificou-se, duvidosa de estar inteira. Só susto. Acertaram Jaileno? Alcançou a área e, encostada à parede, ordenou uma pausa à outra que não ela. Inspire, solte o ar. Fundo. Acompanhou a corrida policial atrás do fugitivo, o megafone a chamar por Carlos. Estremeceu, pensam que é Lamarca. Dela, nenhuma palavra. César não entregou a Pituba, deduziu de súbito. Do contrário, derrubariam o prédio de tanto gritar meu nome. Arrastar de passos, confusão na escadaria. Os moradores evacuam o prédio. Sempre agarrada à parede descalçou as sandálias. Estendeu o braço e depositou-as à direita, no parapeito da área vizinha. Examinou o pátio. Livre. Rapidamente subiu na pequena mureta, passou as pernas para fora, um dos pés já nos tijolos vazados do vizinho. Amparando-se no parapeito firmou o outro pé. Num instante moveu-se no apartamento vazio. O gás escorraçou os moradores. Mar amigo. E você sarou dos problemas de motricidade, caçoou da outra, que não ela. Pôs as sandálias, entrou no quarto de empregada. De relance viu a cama, os livros, o armário quase tampando a janela basculante. Sentou-se nos lençóis ainda aquecidos. Disciplinar a respiração. O perigo maior passou, graças a Jaileno. Todos os homens do rei. Havia duas possibilidades. A primeira, escapar. De que maneira, depende das circunstâncias. Os donos da casa, por exemplo, podem ajudá-la a sair à noite, no solo do carro. Tantos já escaparam assim, nas barbas da polícia. A outra, o dono do quarto esconde-a. Deixaria o prédio de madrugada, descendo por trás, lençóis amarrados. Dois bastam. Aí, é atravessar o terreno e seguir pela orla. Três quarteirões e afundo na rua. Campear um táxi, ônibus, carona; sou enfermeira, estou atrasada. Rodoviária. 523

Baldeações. Milagres. Lamarca. Vai dar, não cheguei aqui à toa. Descobrir o que aconteceu, armar o quedograma. Foi a última tentativa. Ressurgir em Cuba. A segunda alternativa é morrer, melhor não pensar. O revolucionário é um otimista. Cadeia, nunca. E nada de tomar resoluções lógicas, irrefutáveis, e na hora fazer o contrário. A morte ilumina a vida, coroa o sacrifício. Lega às gerações a dignidade da escolha. Morrer, morre-se de duas formas. Levo alguém junto, o clássico abrir caminho à bala; as metralhadoras inimigas reduzem o sofrimento. Ou a bala certa no coração, aulas de tiro, Espinosa a ensinar. A morte foca também a mente, a beleza. Nunca um tiro na cabeça. Voltou a tremer, enregelada. Alguém se aproxima. Ergueu-se, .22 apontado para a porta e quase instantaneamente depararam-se, o menino muito amedrontado. O certo seria fazê-lo refém, único jeito de fugir. Extrema covardia contra o inocente aterrado. Há posturas que repugnam à ética. Milionésima fração de segundo antes do estrondo que dá início ao tempo, Iara leva o dedo indicador aos lábios, unha bemcuidada, olhos sedutores. Pede silêncio e cumplicidade, a arma inútil. O menino retrocede e bate a porta. Desapareceu. Iara corre à porta, a suspeita confirma-se. Prosaica fechadura quebrada que só abre por fora, é o veredicto. Olha ao redor, a cabeça formiga outra vez. Algum instrumento, resposta, chave. Mas Iara nunca soube mexer com maçanetas, parafusos, alicates. Se tivesse tempo, em meses aprenderia a limar chaves – prometo. Quatro pés de cama à disposição, a barra do basculante. Um menino, Rachel, tem hora que você decide, sua vida é a mais importante. Porventura não terá ele batido a porta para escondê-la, volta depois, que filme aquele, tcheco? o rapaz abriga a menina judia, sem final feliz. Trará comida, água, que sede! O menino protetor dos perseguidos a conduz pela caverna, Tom Sawyer na biblioteca do Ipiranga. Visualiza a praça de guerra. Não está ao alcance do garoto escolher entre justiça e repressão, nunca entrou em caverna, pobre filho pequeno-burguês do prédio Santa Terezinha na Pituba, condicionado, conivente, medíocre. Não leu Winnetou, só mentiras ufanistas em Moral e Cívica. Basbaque ante uniformes, propaganda. Gélidos assassinos instalam no apartamento dos pais o comunismo ateu, o menino é um herói, prende e delata a terrorista no quarto. Tanto Iara se desvia de armadilhas até chegar a uma porta quebrada, o menino arrosta a mulher armada, por pouco virava refém. Foi a mão de Deus. Justo na casa da gente.

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Gritaria, carros chegando. Dia claro há muito tempo. Alguns cortes são definitivos, antes do menino, depois. Imaginou o mar, bote minúsculo visto quase do espaço, ponta de agulha na imensidão em Mash. Vão matar Lamarca. A hora de Inês, Heleny, a minha. Só minha, o Universo em mim. Recuou para o banheirinho, mal viu o piso de cerâmica, meia parede de azulejos. Receosos de que saísse atirando se arrombassem a porta, os policiais tentaram jogar bombas de gás pelo basculante do quarto. O armário impedia a entrada dos artefatos; insistiram, para infiltrar o gás. Brônquios fechados, troar de batalha, o vozeirão do coronel Luiz Arthur comandava que se rendesse: ponha as mãos no basculante! Ao vê-las, entrariam sem molestá-la. Cada um tem seu momento, aproximou-se do rosto de Lamarca. Seu homem. Ajeitou o revólver no peito, varar o coração. Terror sem nome, o medo último. Se pudesse rezar. Dor sem cura, passagem para o vazio. Ninguém atravessa com Iara o vale das sombras, só e frágil, encurralada, tenaz, nobreza no rosto vítreo, sábia na soberba da morte. Os homens urram, você não tem saída, ponha as mãos no basculante, queremos ver! O ponto definitivo de Iara é com o algoz. Não comparece. Fiar, tecer, cortar. Ainda ouviu o estalido, discreto e elegante.

Aberta a porta, viram-na escorregar suavemente sobre a pia. – Era muito alva, bonita, uma beleza judaica – recorda o coronel – Não sabíamos quem era. Mandamos telex ao Rio e responderam: provavelmente Iara. Escondemos da imprensa porque talvez nos ajudasse a localizar Lamarca14. Carregaram-na escada abaixo pelos braços e pernas15. Os policiais pediram ajuda para levá-la ao pronto-socorro; Paulo Rezende, cujo carro estava à entrada do prédio e que apoiara o dorso de Iara, ofereceu-se imediatamente. Alguém levantou a blusa de linha listrada, Paulo não se lembra da cor, a mostrar o tiro.

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Quinze dias depois a Folha da Tarde (4.9.71) publicou um típico release policial. A manchete: "Amante de Lamarca no Assalto ao Hospital". A Clínica Doutor Eiras, no Botafogo, efetivamente foi assaltada, relatou o dr. Manoel Álvaro Velloso, médico do hospital desde 1950, à jornalista Beatriz Horta. A moça, segundo se recorda, era Ana Maria Nacinovic Correa, morta em 1972. Houve três mortos e vários feridos. 15 Emiliano José de Oldack Miranda, obra citada.

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– Vi a mancha escura de pólvora, quase nenhum sangue. Apenas salpicos. Orifício pequeno, nem sujou a blusa. Ficou um pequeno sinal de sangue no banco do meu carro. Ainda viva, sem um gemido, acomodaram-na no banco de trás, cabeça apoiada no colo do policial, que a protegia de bater no encosto da porta16. Ao lado de Paulo, outro federal. – Corri feito louco, silêncio no carro. Fui pela orla. Na curva da Amaralina o homem atrás disse "não adianta mais correr, a moça morreu". Era linda, um corpo muito bonito. No Pronto-Socorro Getúlio Vargas o médico que os atendeu confirmou a morte. Providenciaram a maca. Alguém pediu a Paulo que preenchesse uma ficha, o policial interveio: nenhuma ficha, ala separada para a moça. E Paulo estava liberado. – Ficou uma sandália dela no carro. Daquelas tipo tamanco, que só têm a parte da frente, atrás é aberta.

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Emiliano José de Oldack Miranda, obra citada.

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EPÍLOGO

Regresso

SUA FILHA MORREU, disse a voz ordinária. Seria mais um telefonema anônimo, covarde e agourento, que mantinha a família atormentada. David em vão tentou obter informações. Eva telefonou aos filhos no Chile, que divulgaram a notícia. No dia seguinte, sábado, a confirmação. Junto, a notícia da morte de Lamarca. À noite a tevê exibiu o rosto de Iara. Suicidou-se há quase um mês, 20 de agosto, na Pituba. Tiro no peito. Ninguém se interessou pelo corpo. Não houve quem os atendesse no fim de semana. Enfrentaram indiferença e grosserias na segunda-feira até que alguém os encaminhou ao quartel na avenida do Estado. Tão perto do Ipiranga. Ali souberam que deveriam embarcar para Salvador e dirigir-se ao quartel da Polícia Federal. Obedeceram. Fariam o reconhecimento de Iara no dia seguinte. Um guarda postou-se à porta do quarto do hotel, humilhando-os como se fossem prisioneiros. O veículo policial veio buscá-los cedo. No gélido necrotério, através de um visor que violentava os ritos da religião judaica, viram o rosto de Iara. Trouxeram o corpo no avião. Rosa aguardava o momento de buscar os pais quando recebeu um telefonema debochado: "queridinha", afrontou a voz anônima, "qual quer acompanhamento está proibido. Só a família". Permitiram-lhe atravessar o aparato policial que interditava a avenida Rubem Berta, acesso ao aeroporto de Congonhas; parecia uma operação de guerra. Foram conduzidos num carro que disparou perigosamente para o Cemitério Israelita do Butantã. Proibiram o ritual religioso da lavagem. Ninguém viu o corpo. A toque de caixa, cercados de policiais que prenderam um rapaz desavisado, segundo Eva amigo do ginásio, a filha desapareceu na tumba, ala dos suicidas.

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