Humanismo e Didática da História

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ORGANIZAÇÃO E TRADUÇÃO Maria Auxiliadora Schmidt Isabel Barca Marcelo Fronza Lucas Pydd Nechi

HUMANISMO E DIDÁTICA DA HISTÓRIA JÖRN RÜSEN

1ª Edição - 2015

W. A. EDITORES Curitiba



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Organizadores

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt Izabel Barca Marcelo Fronza Lucas Pydd Nechi

Revisão

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Capa e Projeto Gráfico Luiz Gustavo Schmoekel

Direção editorial

Walter Werner Schmidt

Coordenação editorial

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt Walter Werner Schmidt João Luis da Silva Bertolini

LAPEDUH/UFPR Rua General Carneiro, 460 Telefone: 41 – 3360

Tradução

Endereço eletronico

Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt Izabel Barca Marcelo Fronza Lucas Pydd Nechi

W.A. Editores Rua Rodrigues Alves, 189 Fone: (41) 3343-5139 www.waeditores.com.br

Sumário Marcelo Fronza/Maria Auxiliadora Schmidt

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo, 5 EstevãoMartins

Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade, 13

Capítulo 1

Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história, 19

Capítulo 2

Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e diferença de culturas nos encontros de nosso tempo, 43

Capítulo 3

Humanismo clássico — um levantamento histórico, 57

Capítulo 4

Historicizando a humanidade – algumas considerações teóricas na contextualização e compreensão sobre a ideia de humanidade, 85

Capítulo 5

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos, 99

Capítulo 6

Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos, 123

Capítulo 7

Humanismo intercultural: ideia e realidade, 133

Capítulo 8

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural, 153

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Marcelo Fronza1 Maria Auxiliadora Schmidt2

Um dos princípios básicos que fazem da Didática da História a função pública do conhecimento histórico é o humanismo. Considerando que as concepções ligadas ao realismo crítico estão, em geral, pautadas na epistemologia do sujeito e a História fundamentada na narrativa produzida pelos seres humanos, esta obra de Jörn Rüsen, Humanismo e Didática da História, organizada e traduzida pelos professores historiadores Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schmidt, Isabel Barca, Lucas Pydd Nechi e Marcelo Fronza, tem como finalidade apresentar questões estruturais para o ensino de história no mundo contemporâneo, para fazer face à perspectiva instrumental da aprendizagem por competências e fornecer fundamentos para uma aprendizagem voltada para a formação humana. Levando em conta que no Brasil e no Ocidente as políticas públicas voltadas à Educação estão impregnadas por perspectivas teóricas mais instrumentais, como a pedagogia dos objetivos, a pedagogia das competências e as expectativas de aprendizagem, onde as metas educacionais são entendidas como moedas de troca que fazem seres humanos, portanto, crianças, jovens estudantes e professores serem desumanizados por práticas governamentais e sistemas de avaliação antidemocráticas, em seus princípios, torna-se vital uma obra que defenda um posicionamento político e intelectual coerente em prol da humanização dos processos racionais de didatização do conhecimento 1 Marcelo Fronza é Professor doutor do Programa de Pós-graduação em História – UFMT. 2 Maria Auxiliadora Moreira dos Santos Schimdt é Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação – UFPR.

Contribuições de Jörn Rüsen para a didática da história na perspectiva do humanismo

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histórico. Combatendo os processos de internalização do conhecimento desumanizadores e instrumentalizadores, Jörn Rüsen propõe uma Didática da História Humanista que permita aos sujeitos terem acesso aos princípios de uma aprendizagem histórica emancipadora e que os levem ao autoconhecimento a partir do reconhecimento do outro, no processo de formação da consciência histórica. A formação da consciência histórica diz respeito, portanto às formas de saber compreendidos como “princípios cognitivos que determinam a aplicação dos saberes aos problemas de orientação”. Essas formas de saber se organizam em operações mentais que os sujeitos articulam na orientação temporal da vida prática na relação consigo mesmo e no processo comunicativo com os outros, por meio do ato de narrar as experiências históricas da alegria e do sofrimento humanos (RÜSEN, 2001, p. 101). No Brasil, Rüsen é muito conhecido pela trilogia sobre Teoria da História (Razão Histórica, 2001; Reconstrução do Passado, 2007; História Viva, 2007, obras traduzidas para a língua portuguesa, publicadas pela Editora da Universidade de Brasília e traduzidas por Estevão Chaves de Rezende Martins, o primeiro e o terceiro volumes e Asta-Rose Alcaide, o segundo. Com estas obras, possibilitou-se o acesso à teoria da consciência histórica desenvolvida por Jörn Rüsen, abrindo possibilidades para o diálogo com pesquisas empíricas sobre aprendizagem histórica, que desenvolvidas na Inglaterra, em Portugal e no Brasil. Estas pesquisas difundiram-se pelo grupo de professores historiadores que investigam o campo de pesquisa da Educação Histórica a partir da cognição histórica situada (SCHMIDT, 2009), a qual estuda as ideias históricas de crianças, jovens e professores em contexto de escolarização, por meio da epistemologia da história. No Brasil, para desenvolver suas pesquisas, os professores do Laboratório de Pesquisa em Educação Histórica da Universidade Federal do Paraná (LAPEDUH/UFPR) sentiram a necessidade de traduzir para a língua portuguesa obras de Rüsen que são fundamentais tanto para o campo do ensino de história, em geral e para o campo específico da Educação Histórica. Publicado em 2011, pela editora da Universidade Federal do Paraná, Jörn Rüsen e o Ensino de História é um livro organizado por Maria Auxiliadora Schmidt, Isabel Barca e Estevão C. de Rezende Martins, que teve grande impacto nos debates e investigações em Educação Histórica, pois permitiu o acesso dos professores de história brasileiros aos textos

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do autor relativos à aprendizagem histórica, que originalmente e em sua maioria, existiam em inglês ou alemão. Após esta tradução, estes textos tornaram-se referências nas pesquisas brasileiras sobre o ensino de história. Eles têm em comum a preocupação de trazer os diálogos entre o pensamento rüseniano e o processo de formação da consciência histórica por meio do aprendizado, valorizar as problemáticas e dilemas da experiência alemã no desenvolvimento da Didática da História, a apresentação de alguns princípios que orientam o que é aprendizagem histórica, o desenvolvimento das operações mentais da narrativa histórica a partir da consciência moral, além da explicitação das três dimenções da aprendizagem histórica — a experiência, a interpretação e a orientação — e de como verificar os critérios do que seria um livro didático ideal, ou mesmos as relações entre a narratividade e a intersubjetividade no conhecimento histórico. Outra obra de Rüsen fundamental para o Ensino de História foi publicada em 2012, com apoio dos professores historiadores do LAPEDUH na W.A. Editores - Aprendizagem Histórica: fundamentos e paradigmas. Este livro apresenta os fundamentos e os paradigmas que estruturam os critérios para a constituição de uma Didática da História humanista, que tem como objetivo a aprendizagem histórica ao levar os estudantes e professores historiadores a desenvolverem narrativas históricas complexas que expressem sua consciência histórica. A atualidade e a importância da Didática da História são enfatizadas por Rüsen, ao indicar a necessidade de se colocar as discussões relativas ao ensino e à aprendizagem da História no âmbito dos critérios racionais e objetivos da produção do conhecimento histórico, ligadas à formação da consciência histórica dos sujeitos. Isso, tendo como base a cultura histórica que é o locus da articulação entre as dimensões cognitiva, política e estética, nas quais a memória histórica se apresenta na escola e na sociedade que a institui. Uma das contribuições que esta obra trouxe para as investigações em Educação Histórica foi à explicitação da categoria da intersubjetividade que, aliada à experiência e à subjetividade, é compreendida como critério fundamental para a construção de uma aprendizagem comunicativa e argumentativa, balizada epistemologicamente nas narrativas históricas em diálogo. Outra contribuição fundamental foi a preocupação de Rüsen em explanar sobre a operação mental da motivação histórica, que diz respeito às condições racionais e estruturais para a ação que os sujeitos realizam a partir da orientação temporal, constituída por experiências do passado historicamente interpretadas.

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É importante mencionar brevemente aqui o livro editado pela Editora Vozes e publicado em 2014, Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Nele, Jörn Rüsen propõe um debate, à luz da teoria da consciência histórica, sobre como a História e sua função pública, a Didática da História alicerçada na aprendizagem histórica, podem desenvolver uma racionalidade que supere a tolerância por meio do princípio do reconhecimento do outro como critério para a formação de identidades históricas pautadas na interculturalidade. Segundo o autor, esta perspectiva busca combater as perspectivas relativistas do multiculturalismo isolacionista e a hegemonia das cosmovisões etnocêntricas a partir de uma reordenação da orientação de sentido no tempo que entende a humanidade como uma contínua e multiperspectivada reconstrução temporal policêntrica (RÜSEN, 2014, p. 297). Seguindo esse caminho, os recentes textos de Jörn Rüsen, dos quais a maioria deles está traduzida na presente obra, são vinculados ao projeto de constituição de um novo humanismo. Esse projeto fundamenta-se no conceito de humanismo que, para Jörn Rüsen, é pensado como ‘novo’ pois busca superar os valores de outros humanismos ocidentais. Rüsen almeja não apenas valorizar as conquistas humanitárias dos períodos que marcam a modernidade como também pretende suplantá-las para construir um mundo igualitário (NECHI, 2014, p. 26). O novo humanismo, conforme expresso no primeiro capítulo da presente obra, está pautado nos princípios da interculturalidade e da intersubjetividade que passam a ser expressos nas problemáticas identitárias contemporâneas relativas à consciência histórica dos sujeitos e à cultura histórica das comunidades. Ele diz respeito à unidade da humanidade, bem como sua manifestação de várias formas de vida e as mudanças culturais. Fornece uma dimensão temporal à humanidade articulando uma visão abrangente da história universal, na qual as formas de vida na sua individualidade são interpretativamente reconhecidas. Politicamente, fundamenta a legitimidade da dominação e poder sob os escrutínios dos direitos humanos e civis fundamentais. Entende a subjetividade e a intersubjetividade humanas como processos de autoconhecimento, em prol da dignidade inerente a todos os humanos no tempo e no espaço. Portanto, o humanismo expressa sempre um forte impacto didático. A dimensão didática da História no âmbito do novo humanismo se refere valorização da dignidade humana nos processos de didatização

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do conhecimento histórico por meio de uma busca por sistematização do conhecimento em aceleração da diversidade cultural no tempo e no espaço, em uma ideia coerente da humanidade compreendida como um todo temporal, isto porque cada tradição de categorização da humanidade possibilita ser investigada como uma contribuição para a comunicação intercultural entre os sujeitos. Segundo Rüsen (2015), “a ideia da humanidade, transculturalmente válida, pode assim ser realizada na internalização, pelos reflexos mútuos desses diferentes conceitos, do espelho da alteridade”. É na aprendizagem histórica que esse princípio se aplica quando as experiências do passado passam a ser internalizadas a partir da dimensão do sofrimento humano e que os conflitos e dores que os jovens sofrem contemporaneamente têm suas contrapartes em ouras épocas e ouras sociedades. Isso diz respeito à responsabilidade histórica com os compromissos que podem levar o homem a se tornar humano, no processo de luta pelo reconhecimento da dignidade do outro. Compromisso que não se refere somente em manter as conquistas humanistas já realizadas, mas democratizá-las para aqueles que, desde séculos, ainda sofrem como vítimas de processos desumanizadores e etnocêntricos. A necessidade de aprender experiência históricas de sofrimento que apresentem o outro como o constituidor do “nós”, possibilita força para lutar pelos direitos à igualdade e dignidade humanas. É fundamental que se encontre, na relação intersubjetiva entre o eu e o outro na Didática da História, o “rosto da humanidade”. No texto Formando a consciência histórica – para uma didática humanista da história, Jörn Rüsen aborda o significado do trabalho da didática da história, a partir de quatro desafios que movem a cultura histórica de nossa época: a) a insegurança crescente da identidade histórica, (b) uma experiência irritante relacionada à diversidade cultural, (c) um ataque contra as tradições ocidentais e d) uma nova ameaça sobre a natureza. Para indicar novos caminhos para o conceito de humanismo, Rüsen propõe reflexões no seu texto Em direção a uma nova ideia de humanidade: unidade e diferença de culturas nos encontros de nosso tempo. Essas reflexões abordam temáticas como o desafio da globalização para a identidade cultural, o renascimento da origem dos tempos axiais e o papel da ideia de humanidade. Na continuidade, o autor apresenta uma reflexão histórica em torno do conceito de humanismo – Humanismo clássico – um levantamento histórico -, iniciando com uma pergunta: O que é “Humanismo Clássico?” Sua resposta passa pela fundamentação das premissas antropológicas, pelos momentos da mudança histórica, das

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sociedades arcaicas, das mudanças culturais nas eras axiais, dos passos em direção à modernidade, da humanização da humanidade na história da Europa moderna, indicando os passos em direção ao futuro. As reflexões de Jörn Rüsen em torno dos conceitos de humanismo e humanidade seguem nos vários textos desta obra, desde o instigante capítulo Historicizando a humanidade – algumas considerações teóricas na contextualização e compreensão sobre a ideia de humanidade – e ampliando-se para debates específicos que envolvem esta temática, abordados no capítulo O enraizamento da ordem política nos valores dos seus cidadãos. Algumas ideias sobre o humanismo político e a religião como uma base necessária para uma democracia sustentável, bem como no capítulo Humanismo e cultura muçulmana: patrimônio histórico e desafios contemporâneos. Finalmente, nos dois últimos capítulos, o autor toma duas grandes questões da contemporaneidade, a interculturalidade e a globalização e aceita o desafio de apresentá-las em consonância com a temática do humanismo. Primeiro, abordando a relação entre humanismo e interculturalidade no texto Humanismo intercultural: ideia e realidade e, em seguida, com a relação humanismo e globalização, no texto Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural. Essa obra visa, enfim, estimular o interesse dos professores historiadores de língua portuguesa em realizar investigações voltadas às dimensões da dignidade humana no âmbito da Didática da História, bem como articulá-las ao projeto do novo humanismo de Jörn Rüsen. Para isso, há o sentimento da urgência com o compromisso de dar continuidade à tradução de outros textos referentes ao humanismo rüseniano e suas relações com a aprendizagem histórica. Isso porque mesmo que esse projeto de lutas e investigações já tenha uma bela história no Brasil, a razão história humanista ainda está em seu alvorecer.

NECHI, Lucas Pydd. O novo humanismo como princípio da função didática da história escolar: possibilidades a partir da consciência histórica de jovens estudantes ingleses e brasileiros. 2014, 60p. (Relatório de qualificação para Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014. RÜSEN, Jörn. A razão histórica: Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001. ______. Reconstrução do passado: Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: UnB, 2007. ______. História viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UnB, 2007. SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010. ______. Aprendizagem histórica: Fundamentos e paradigmas. Curitiba: W. A. Editores, 2012. ______. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis: Vozes, 2014. SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem histórica é essa? In: SCHMIDT, M. A.; BARCA, I. (Orgs.). Aprender história: perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2009, p. 21-51.

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Bibliografia

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Humanismo: a utopia necessária e sua historicidade Estevão C. de Rezende Martins

Professor titular de Teoria da História e História contemporânea da Universidade de Brasília – Pesquisador 1B do CNPq.

O homem é a medida de todas as coisas. Protágoras

Desde os anos 1970, o historiador alemão Jörn Rüsen tornou-se gradualmente uma referência indispensável no campo da teoria do conhecimento histórico, da História como ciência e da didática da História no espaço sociocultural. Amplamente conhecido por sua trilogia sobre Teoria da História, publicada no Brasil e difundida em outros países de língua portuguesa e espanhola desde 20002, Rüsen publicou em 2013 nova versão, revista e consolidada, de sua Teoria da História, também disponível em português desde setembro de 2015.3 Os oito textos reunidos na presente coletânea partem do pressuposto de que a obtenção da consciência histórica, pelo sistema de aprendizagem histórica, , instrui e instrumenta toda pessoa a lidar consigo, com o mundo em que vive, com o tempo de que vem esse mundo e com o futuro que o espera. Na contemporaneidade, a didática da História tem um papel preponderante na apreensão, compreensão, análise e explicação da 1 Confessiones, I, 1. 2 Razão histórica. Os fundamentos da ciência histórica. (trad. Estevão de Rezende Martins). Brasília: Ed. UnB, 2001; Reconstrução do Passado: Os princípios da pesquisa histórica. (Trad. Asta-Rose Alcaide). Brasília: Ed. UnB, 2007; História Viva: Formas e funções do conhecimento histórico. (Trad. Estevão de Rezende Martins). Brasília: Ed. UnB, 2007. 3 Teoria da História. Curitiba: Ed. UFPR, 2015.

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... inquietum est cor nostrum donec requiescat in te... S. Agostinho1

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sociedade e da cultura. Sobre esse papel da didática o primeiro texto é programático e sistemático: didática articula pensamento, aprendizagem e consciência histórica em meio à cultura histórica de uma dada comunidade (independentemente de prevalecer ou não algum sistema estatal de regulação de conteúdos e práticas educativas). Todo ser humano buscar assenhorear-se reflexivamente de sua experiência. Pelo pensamento racional, ele transforma em história ativa o que, estruturalmente, foi uma história passiva. Jörn Rüsen enuncia seu otimismo metafísico quanto ao pensamento e à cultura histórica com uma concepção renovada do humanismo, cuja efetivação depende do grau de autonomia crítica da consciência histórica dos indivíduos. Não basta nascer como integrante da humanidade enquanto coletivo de seres pensantes. A realidade do mundo dos homens não necessariamente é uma realidade humana. Humanidade e desumanidade concorrem entre si, contrastam, oscilam, entram em conflito, opõem esperança e desespero, utopia e desencanto, alegria e dor, ação e paixão, avanço e recuo, conhecimento e ignorância, equanimidade e desequilíbrio, justiça e descalabro, amor e ódio, igualdade e desigualdade, fraternidade e inimizade, liberdade e prisão, bem e mal e assim indefinidamente. A experiência do bom e do agradável tem de ser articulada com a experiência equivalente do mau e do desagradável.4 O processo de aprendizagem de um sentido denso e consistente para a realidade feita e sofrida pela humanidade necessita de um horizonte humanista. O 'ser humano' é mais e melhor do que o 'ser atualmente tal ou qual pessoa'.5 Desde a Antiguidade clássica, para a tradição histórica ocidental, o eixo orientador da apreensão e da atribuição de sentido ao viver e agir dos homens requer uma concepção otimista de um ser humano ideal, que considera a si no espelho do outro. O humanismo é uma concepção universal, de um ser humano cujas constantes antropológicas podem ser encontradas em qualquer tempo, em qualquer lugar, em qualquer cultura. Mundo, natureza, sociedade e cultura 4 Ver Jörn Rüsen. "Ideen einer neuen Philosophie der Geschichte", em Gerd Jüttemann (org.). Entwicklungen der Menschheit. Humanwissenschaften in der Perspektive der Integration. Lengerich: Pabst Publishers, 2014, pp. 41-48, esp. p. 43. Ver também Estevão de Rezende Martins. "Utopia: uma história sem fim", em Marcos Antônio Lopes; Renato Moscatelli (orgs.). Histórias de países imaginários. Variedades dos lugares utópicos. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2011, p. 11-19. 5 Ver Estevão de Rezende Martins. "Educar para a humanidade. História e Iluminismo", em Valério Rohden (org.). Ideias de Universidade. Canoas: ULBRA, 2002, p. 63-92.

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são pensados antropológica, antropocêntrica, antropotropicamente. A historicidade instituidora de sentido para os processos temporais submetidos à reflexão racional crítica haure sua lógica na individualidade (por certo inserida em seu contexto social) do agente humano, em torno do qual se pensa e enuncia a história, cujo decorrer destina-se a criar, consolidar, manter e expandir a ideia do 'ser humano'. A ideia de 'ser humano' não é unívoca, mas no mundo da modernidade atual, está marcada pela dimensão transcendental da dignidade da pessoa humana, da vocação a fazer o bem e a entender o respeito da alteridade como essenciais. Na política, ontem e hoje, na academia, nas diversas culturas, no mais distantes quadrantes do mundo, a enunciação de um 'ser humano' para além e para acima das tensões e dos conflitos concretos da história empírica, é um motor intelectual e prático que Rüsen considera indispensável à 'boa forma de viver' entre seres humanos no século 21. A ideia de humanismo funciona, para Rüsen, como um ideia regulativa transcendental e universal: "Em minha argumentação, entendo por humanismo um recurso fundamental e uma referência para a natureza cultural dos humanos na orientação da vida humana e um alinhamento desta com o princípio da dignidade humana". Formar a consciência histórica no quadro de referência do humanismo como norma e expectativa torna-se um programa tanto da reflexão histórica em geral como da didática da História - uma responsabilidade compartilhada por todos, sem diferença de ser aluno, docente, pessoa comum no quotidiano mais banal. A ideia de humanismo não aparece pela primeira vez apenas agora. Longas tradições lidam com ela e atribuem-lhe teores diversos, por vezes complementares, por vezes divergentes. Os textos sobre o humanismo clássico, sobre o humanismo político, sobre o humanismo muçulmano, sobre o humanismo intercultural e sobre os desafios postos aos agentes humanos pela promiscuidade da globalização, exemplificam com riqueza de pormenores o alcance da proposta de Rüsen. O legado histórico da memória e das identidades, não raro contaminado pelos conflitos e as hegemonias, carece continuamente de análise crítica e de autonomia reflexiva quanto ao choque entre a história empírica, repleta de carências e de incoerências, e a expectativa de uma história cheia de significado compartilhado e de respeito e consideração mútuos. "No humanismo clássico", escreve Rüsen, "a ‘humanidade’ é considerada como o critério último de qualquer operação de criação de

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sentido e, como tal, é concebida em duas aplicações universais, tanto em um sentido empírico (que engloba toda a humanidade existente no espaço e no tempo), quanto em um sentido normativo (atribuindo a cada sujeito a dignidade de ser seu próprio fim)" – a formação de uma consciência histórica antropológica e socialmente afinada com essa ideia é uma tarefa da História e de sua didática. A modernidade dessa abordagem está na disseminação crescente da exigência de uma atitude de reconhecimento da alteridade e de corresponsabilidade pelos feitos (res gestae) e pelo que deles se diz (narratio rerum gestarum). O desafio está em pensar a humanidade para além de suas próprias limitações concretas, apostando na ilimitação do horizonte de esperança para além da contingência empírica. Sem dúvida a esfera pública representa uma realidade histórica empírica de que não se pode abstrair sem correr o risco de cair em pseudomundo. Assim, no espaço comunicativo da política do dia a dia cabe igualmente praticar a reflexão historicizante que se assenhoreia do passar do tempo para o inserir na consciência crítica da História.6 A valorização da dignidade da pessoa humana, enquanto elemento qualificador do humanismo, é a bússola que norteia a agregação da humanidade. A política como vida social ganha assim, em tal concepção humanista, um norte plausível – mesmo se a descrição do conteúdo dessa concepção dependa de onde, de quando e de quem. Rüsen tem disso plena consciência. Nem o relativismo, que instaura zonas medíocres de conforto, eludindo a tarefa crítica da reflexão histórica, nem o etnocentrismo corriqueiro oferecem opções consistentes para o humanismo transcendental. "O principal problema e ponto de partida é a questão de como conjugar diversidade e diferença na vida humana, uma vez que tal está obviamente a tornar-se mais forte devido à migração, aos efeitos da comunicação por internet e às mudanças gerais na política e aos graves conflitos religiosos", diz Rüsen no capítulo sobre humanismo intercultural. Para o humanismo transcendental, o padrão de pensamento histórico, com pensado pelo autor, está "numa argumentação antropológica centrada no princípio da dignidade humana. As duas problemáticas antropologia e dignidade – foram claramente articuladas por Immanuel Kant, ao afirmar que em cada orientação cultural da vida humana há três questões básicas que têm de ser respondidas: O que posso eu saber? O que 6 Ver, por exemplo, Luiz Sérgio Duarte da Silva. "Ação comunicativa e teoria da História aproximação de Habermas e Rüsen", em L. S. Duarte da Silva. Comunicação Intercultural. Interdisciplinaridade, comparação e compreensão I. Curitiba: Editora CRV, 2014, p. 41-53.

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devo eu fazer? O que posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão típica do pensamento moderno – que todas estas três questões podem ser resumidas numa única e decisiva questão: O que é o ser humano?" O humanismo transcendental proposto por Rüsen é uma resposta possível e consistente a essa pergunta. Para o autor, é "necessário desenvolver uma compreensão da humanidade na era da globalização que, enquanto inclusiva de todas as civilizações, dê ênfase à sua particularidade e diversidade. ... Todas a tradições culturais incluem elementos humanísticos. ‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo fato de se ser uma pessoa, se valorize em cada um a relação quer com os outros quer conosco próprios". Para que esse excelso propósito se efetive, importa haver sido formada, constituída em cada um, a consciência histórica. Na perspectiva iluminista de Wilhelm von Humboldt, o que vem ao caso não é instruir ou cultivar – embora essas virtudes devam vir junto – mas formar o ser humano em sua plenitude e, por acréscimo, o bom cidadão, crítico e atento: eis a substância do humanismo renovado. Rüsen, desde sua perspectiva filosófica mais e mais elaborada nas pesquisas e escritos desde a década de 2000, entende que a consciência histórica e a formação humanista nos permitem lidar, com boa chance de êxito, com a insegurança crescente da identidade histórica, com uma experiência provocativa relacionada à diversidade cultural e com uma forte aversão às tradições ocidentais – circunstâncias decorrentes do conflito de interpretações do mundo causado pela diversidade (inter)cultural contemporânea. Em suma, o humanismo "temporaliza a humanidade em um conceito abrangente da história universal, dentro do qual toda forma de vida é hermeneuticamente reconhecida em sua individualidade". Nele, "a subjetividade humana é vista como um processo de autocultivo, de acordo com a dignidade inerente a todos os seres humanos no espaço e no tempo". O humanismo, como representação idealizada (utópica em sentido positivo) do ser humano e de sua ação no tempo e no espaço, constitui, pois, um horizonte que funciona sempre como referência didática. O fio crítico da reflexão de Rüsen nos capítulos deste livro acompanha o leitor, com grande proveito, ao longo da trajetória do pensamento histórico em sua função didática, sustentada na concepção-mestra do ser humano como eixo e objetivo. Um projeto instigante, desafiador, promissor.

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“Humanität ist der Charakter unseres Geschlechts; er ist uns aber nur in Anlagen angeboren und muβ uns eigentlich angebildet warden.” Johann Gottfried Herder2

Desafios para a cultura histórica de hoje O trabalho da didática da história não pode ser entendido ou desenvolvido sem uma consciência de seu papel na cultura histórica de seu tempo. Ele tem de perceber e de responder aos desafios da orientação histórica, especialmente no que diz respeito ao aprendizado histórico e sua realização em diferentes instituições, principalmente nas escolas. Portanto, gostaria de começar meu artigo com algumas experiências provocativas, que movem a cultura histórica de nossos países e que têm de ser agarradas e trabalhadas não somente por didatas da história, mas, em princípio, por todos os historiadores profissionais. Eu gostaria de abordar quatro desses desafios, a maioria deles 1 RÜSEN, Jörn. “Forming Historical Consciousness – Towards a Humanistic History Didactics”. In: NORDGREN, Kenneth; ELIASSON, Per; RÖNNQVIST, Carina (eds.). The Processes of History Teaching – An international symposioum held at Malmö University, Sweden, March 5th-7th 2009.Karlstadt: Karlstadt University Press, 2011, p. 13-33. Tradução por Marcelo Fronza. Existe uma versão quase idêntica com título e resumo é em português, ver: RÜSEN, Jörn. “Forming Historical Consciousness – Towards a Humanistic History Didactics” [“Formando a Consciência Histórica – Por uma Didática Humanista da História”]. Antíteses, vol. 05, n. 10, p. 519-536, jul./dez. 2012. As obras citadas pelo autor editadas em português foram referenciadas nesta língua. 2 “A humanidade é o caráter da nossa espécie; só é em nós inata como um potencial, e como tal deve ser em nós cultivada.” Johann Gottfried Herder, Briefe zur Beförderung der Humanität. 2 vols. (Berlin, Weimar: 1971), vol. 1, 140.

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decorrente da densidade crescente do encontro intercultural e da comunicação em todas as dimensões da vida humana, incluindo o cotidiano das chamadas pessoas normais e, é claro, das crianças e estudantes na escola: (a) a insegurança crescente da identidade histórica, (b) uma experiência irritante relacionada à diversidade cultural, (c) um ataque contra as tradições ocidentais e d) uma nova ameaça sobre a natureza. Outro desafio muito importante para a cultura histórica será omitido por razões de tempo, ou seja, a enorme importância das novas mídias para a cultura histórica em todas as suas diferentes áreas.

a) A insegurança da identidade histórica

A identidade é uma resposta para a questão sobre quem é alguém — uma pessoa ou uma comunidade. Essa resposta nunca foi simples, mas sempre foi um dos grandes temas das práticas culturais. No entanto, existem momentos em que as formas estabelecidas de identidade são submetidas a uma forte dúvida e devem sofrer uma revisão crítica. Nós vivemos em tal época. A identidade nacional — nos tempos modernos, um dos conceitos mais bem sucedidos sobre o pertencimento e o ser diferente, está perdendo sua forma e força tradicionais — principalmente, na nossa parte do mundo, devido ao processo de unificação da Europa e à crescente multiplicidade das origens étnicas estimuladas pela imigração voltada para os Estados nacionais europeus. Pertencimentos trans-esub-nacionais estão ganhando mais importância, e o caráter exclusivo da nacionalidade está mudando para relações mais inclusivas. Dimensões culturais e políticas da identidade se afastam, e esta é uma das razões pelas quais a identidade está perdendo sua não ambiguidade. No nível intelectual, mesmo a ideia de identidade como uma nítida distinção entre o eu e a alteridade é posta radicalmente em dúvida em favor da ideia opaca, vaga e esmaecida do hibridismo. Ainda mais, a nossa identidade como seres humanos tornou-se um tema controverso. Nossas dificuldades em relação às condições naturais da nossa vida têm levado a uma nova e radical questão do que significa ser um ser humano. Ainda somos criaturas moldadas por nossa cultura que alcançou o além da natureza, ou vamos ter que voltar para a natureza como a decisiva ordem da nossa vida? Todas as narrativas que nos contam sobre quem somos devem ser recontadas, ampliadas por uma dimensão global da espécie humana na natureza, bem como intensificadas por uma nova consciência das

sobrecarregadas complexidades e ambiguidades da nossa relação conosco e com a alteridade dos outros. A vida cotidiana da maioria, se não de todos os estudantes, está profundamente condicionada pela experiência da diversidade cultural e pelas tensões entre diferentes tradições e culturas. Essa experiência não é nova, mas sua intensidade é. Deixou a dimensão da alteridade localizada, até agora, fora do próprio mundo e se tornou um elemento no interior do mesmo, incluindo, é claro, as salas de aula. A diferença não é mais uma questão de distância, mas de proximidade. Isso levanta uma necessidade urgente de encontrar o próprio lugar de si mesmo na diversidade das visões de mundo e das formas de vida, para encontrar a estabilidade de sua própria perspectiva de vida vis-à-vis com uma irritante multiplicidade de possibilidades. As perguntas “quem sou eu, quem é o meu povo, e quem são as pessoas com quem eu tenho que viver junto?” adquiriram uma nova qualidade de urgência.

c) Os ataques contra as tradições ocidentais

Esta urgência recebe apoio de movimentos intelectuais, que colocam radicalmente em dúvida as até então poderosas orientações culturais da vida moderna ocidental. O pós-modernismo abalou cada ponto de estabilidade dos conceitos básicos de história e de identidade. A experiência histórica é substituída por uma geração de sentido imaginária, que tem um elevado grau de arbitrariedade; e o relativismo cultural mina o poder de persuasão dos meios conceituais de orientação cultural estabelecidos, tais como a racionalidade metódica, a universalidade dos princípios morais e as premissas básicas da sociedade civil secular. As pontes para a orientação de vida intelectual entre as gerações tornaram-se quebradiças e frágeis. Esta decomposição das diretrizes intelectuais é reforçada por uma aguda crítica da dominação ocidental sobre as civilizações não ocidentais. O pós-colonialismo e a virada para o conhecimento autóctone nas ciências humanas e sociais acusam os modos da modernidade cultural, advindos em sua maioria do Ocidente, como sendo apenas meios ideológicos de suprimir os outros. Esta atitude — seu mais influente precursor foi

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b) As pressões da diversidade cultural

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Friedrich Nietzsche — foi internalizada na autoconsciência ocidental, no âmbito da vanguarda intelectual.

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d) A nova ameaça sobre a natureza

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A crise ambiental também adquiriu uma nova urgência para reorientar a autocompreensão humana. É essencialmente tão destrutiva a natureza cultural da humanidade em sua diferença em relação à natureza, que uma mudança geral na orientação cultural ligada ao “retorno à natureza” se faz necessária? A natureza não tem desempenhado um papel importante no ensino de história tradicional, pois segue uma linha geral das humanidades ao ignorá-la nos assuntos humanos. Por outro lado, uma compreensão predominantemente naturalista da humanidade, que tem experimentado um enorme impacto na orientação cultural pelo recente sucesso da genética e da pesquisa sobre o cérebro falha, ao não revelar a dimensão histórica específica da relação entre o homem e a natureza. Em todo caso, o fato de que compartilhamos uma natureza humana comum além de todas as diferenças culturais ganhou nova importância, uma vez que a destruição das condições naturais de sobrevivência humana interessa a todos. Portanto, temos que estabelecer regras transculturalmente válidas, com o objetivo de ancorá-las na profundidade de nossa identidade humana. Por isso, uma questão deve ser levantada: qual a atuação da natureza humana comum no desenvolvimento da identidade histórica, enquanto ela está sendo formada na consciência plena da importância das diferenças culturais? Todos esses desafios devem encontrar uma resposta em todos os campos da cultura histórica. A Didática da História deve trabalhar a sua resposta específica, e é a intenção deste artigo desenhar um esboço para isso ou, pelo menos, dar algumas sugestões para uma resposta convincente.

Alguns esclarecimentos conceituais Deixe-me começar com algumas definições esclarecedoras das categorias de base que devem ser usadas ​​em uma argumentação didática específica.3

3 Para uma argumentação mais detalhada ver Rüsen, Jörn: Historisches Lernen. Grundlagen und Paradigmen. 2nd edition, Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008 (RÜSEN, Jörn. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012).

Primeiro de tudo: o que é Didática da História? É uma disciplina acadêmica especial, cuja tarefa é realizar a competência para o ensino de história. Seu pressuposto constitutivo é o fato de que os Estados modernos têm internalizado a história como uma disciplina nos currículos escolares, com o objetivo principal de permitir à geração mais jovem entrar na cultura histórica estabelecida dessas nações. Para cumprir esta tarefa, a Didática da História deve acumular conhecimentos sobre o que é a aprendizagem histórica, e como ela pode ser organizada e influenciada por procedimentos e instituições de ensinos específicos.

A consciência histórica

A categoria básica para a compreensão da aprendizagem histórica é a consciência histórica. A sua definição mais ampla ressoa como se segue: a atividade mental da interpretação do passado para compreender o presente e esperar o futuro. Assim, combina o passado, presente e futuro de acordo com a ideia sobre o que trata a mudança temporal. Sintetiza as experiências do passado com os critérios de sentido que são eficazes na vida prática contemporânea e nas perspectivas de orientação de ação em direção ao futuro. Na Didática da História este orientação para o futuro deve desempenhar um papel importante uma vez que os estudantes devem aprender a dominar sua vida futura enquanto cidadãos adultos, de acordo com as exigências da cultura histórica de seu país.4

4 ANGVICK, Magne; BORRIES, Bodo von. Youth and History: a comparative European survey on historical and political attitudes among adolescents. V. A and B, Hamburg: Koerber Fundation, 1997. KÖLBL, Carlos; STRAUB, Jürgen. “Historical consciousness in Youth. Theoretical and exemplary empirical analyses”, in, Forum qualitative social research. Theories, methods, applications. Vol. 2, nº 3, set. 2001, disponível em: http://qualitative-research.net.fas. MACDONALD, Sharon (ed.). Approches to European Historical Consciousness: Reflections and Provocations. Hamburg: Edition Körber Stiftung, 2000. RÜSEN, Jörn. Geschichtsbewuβtsein. Psychologische Grundlagen, Entwicklungskonzepte, empirische Befunde. Beiträge zur Geschichtskultu, vol. 21. Köln: Böhlau, 2001. TEMPELHOFF, Johann W. N. (ed.). Historical consciousness and the future of our past. Vanderbijlpark: Clio, 2003. SEIXAS, Peter (ed.). Theorizing historical consciousness. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press, 2006. STRAUB, Jürgen (ed.). Narration, Identity and Historical Consciousness. Making Sense of History, vol. 3, New York: Berghahn Books, 2005. RÜSEN, Jörn. “O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral”. In SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 51-77.

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A Didática da História

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A cultura histórica

Cultura histórica5 é a manifestação da consciência histórica na sociedade em diversas formas e procedimentos. Inclui o trabalho cognitivo dos estudos históricos, bem como as atitudes da vida cotidiana voltadas para a compreensão do passado e a conceitualização histórica de nossa própria identidade; e não podemos nos esquecer dos museus e da educação histórica nas escolas, nem as apresentações do passado nas diversas mídias ou na literatura. É sempre útil refletir sobre a complexidade da cultura histórica. Então, deixe-me distinguir as diversas dimensões fundamentais da cultura histórica: a estética, a política e a cognitiva. São definidos por diferentes princípios de geração de sentido, que não podem ser reduzidos entre si, mas são sistematicamente inter-relacionados. Sua unidade é definida pelo princípio integrador fundamental do sentido histórico.

A aprendizagem histórica

Aprendizagem histórica6 é um processo mental em que as competências ganhas são necessárias para orientar a própria vida por meio da consciência histórica presente na cultura histórica já existente na própria sociedade. É composta de quatro diferentes habilidades que são sistematicamente inter-relacionadas e interdependentes: a capacidade de construir a experiência histórica, a capacidade de interpretar esta mesma experiência, a capacidade de usar a experiência histórica interpretada (conhecimento histórico) para orientar a própria vida, no quadro de uma ideia empiricamente articulada ao decorrer do tempo nas vidas humanas — esta orientação inclui um conceito de identidade histórica —, e, finalmente, a capacidade de motivar as nossas próprias atividades de acordo com a ideia de nosso lugar nas mudanças temporais.

24 5 Uma detalhada apresentação de meu conceito de ‘cultura histórica’ pode ser encontrada em: RÜSEN, Jörn: Historische Orientierung. Über die Arbeit des Geschichtsbewußtseins, sich in der Zeit zurechtzufinden. 2. Aufl. Schwalbach/Taunus: Wochenschau, 2008, pp. 233-284; RÜSEN, Jörn: Berättande och förnunft. Historieteoretiska texter. Göteborg: Daidalos, 2004, pp. 149-194; uma versão modificada foi desenvolvida por Klas-Göran Karlsson: KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf (Eds.): Echoes of the Holocaust. Historical cultures in contemporary Europe. Lund: Nordic Academic Press, 2003; KARLSSON, Klas-Göran; ZANDER, Ulf (Eds): Holocaust Heritage. Inquiries into European Historical Culture. Malmö: Sekel, 2004. 6 Ver RÜSEN, Jörn: Aprendizagem histórica: esboço de uma teoria. RÜSEN, Jörn. Aprendizagem histórica: fundamentos e paradigmas. Curitiba: W.A Editores, 2012, p. 69-112.

O humanismo não é um conceito bem definido nas humanidades.7 Tem uma multiplicidade de significados que variam numa escala que tem como marco, para as humanidades, o começo da história da Europa moderna, em especial na relação com a antiguidade clássica, de um lado, e todo um discurso liberal e de grande abertura a respeito dos assuntos humanos. Em minha argumentação, entendo por humanismo um recurso fundamental e uma referência para a natureza cultural dos humanos na orientação da vida humana, bem como um alinhamento desta com o princípio da dignidade humana.8 Suas dimensões empíricas e suas normativas são universais. Ele inclui a unidade da humanidade, bem como sua manifestação de várias formas de vida e as mudanças culturais. Ele temporaliza a humanidade num conceito abrangente da história universal, dentro do qual toda forma de vida na sua individualidade é hermeneuticamente reconhecida. Politicamente, fundamenta a legitimidade da dominação e poder sob a égide dos direitos humanos e civis fundamentais. Compreende a subjetividade humana como um processo de auto cultivo, de acordo com a dignidade inerente de todos os seres humanos no espaço e no tempo. Portanto, o humanismo tem sempre um forte impacto didático. O humanismo foi uma das principais correntes da vida intelectual e cultural no Ocidente. No início da história moderna configurou um discurso intelectual, que foi além das duras regras de argumentação escolástica abrindo, assim, o espaço cultural para a liberdade e os elementos do secularismo. Numa relação constitutiva com a antiguidade clássica vitalizou seu caráter paradigmático a respeito da compreensão do mundo humano (além ou mesmo no interior de uma ininterrupta validade do cristianismo). No humanismo do final do século XVIII e início do século XIX apresentou uma particularidade nova e especificamente moderna no período formativo das humanidades a partir das novas formações 7 Ver: GIUSTINIANI, Vito R.: “Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”, in: Journal of the History of Ideas 46, nº 2, 1985, p. 167-195; BURKE, Peter: “The Spread of Italian Humanism”, in: GOODMAN, Anthony; MACKAY, Angus (Eds): The impact of humanism on Western Europe. London: Longman, 1990, pp- 1-20, esp. p. 1sq; CANCIK, Hubert: “Humanismus”, in: CANCIK, Hubert; GLADIGOW, Burkhard; KOHL, Karl-Heinz (Eds): Handbuch religionswissenschaftlicher Grundbegriffe. Bd. III. Stuttgart: Kohlhammer, 1993, pp. 173-185. 8 Ver RÜSEN, Jörn: “Traditionsprobleme eines zukunftsfähigen Humanismus” in: CANCIK, Hubert; VÖHLER, Martin (Eds): Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert, Bd. 1: Genese und Profil des europäischen Humanismus, Heidelberg: Winter 2009, pp. 201-216; “Intercultural Humanism: How to Do the Humanities in the Age of Globalization”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies, Vol. 6, No. 2 (Issue 12), Dec. 2009, pp. 1-24.

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O humanismo

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de ensino superior e no estabelecimento dos direitos humanos como as regras fundamentais para a política e a vida social.9

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Respondendo aos desafios: a ideia de um novo humanismo

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Devemos começar a partir desta combinação de um universalismo empírico e normativo da humanidade, sua forma política dos direitos fundamentais, sua historicização geral e individualização da cultura humana, e a ideia de uma humanidade auto cultivada em todos os processos educacionais. A tradição deste humanismo deve estar habilitada para responder aos desafios da vida cultural, o qual já mencionei no início do meu artigo. Eu não argumento em favor da simples reprodução do humanismo ocidental do limiar da modernidade, mas sim para seu desenvolvimento futuro vis-à-vis com às experiências históricas do século XIX e XX e às exigências específicas por comunicação intercultural e por princípios fundamentais da orientação cultural contemporânea.10

Superando as lacunas do humanismo tradicional

Para transformar o humanismo moderno clássico em um modo futuro que seja promissor da orientação cultural contemporânea deve-se, antes de tudo, indicar aqueles de seus elementos que ainda são válidos. Em contraste com a crítica generalizada da modernidade enquanto uma forma unilateral de compreender o mundo humano, sobretudo o ocidental, eu vejo uma promessa para o futuro em suas particularidades modernas, principalmente em seus elementos universalistas. Com sua síntese de um universalismo empírico e normativo, seu historicismo individualizante e sua ênfase na auto cultivo, o humanismo inaugurou um quadro apropriado para discutir os temas referentes à formação da identidade, à valorização da diversidade cultural, à defesa das conquistas da sociedade civil moderna, e à abordagem do papel da natureza na cultura humana. No entanto, este quadro deve ser reformulado, com a finalidade de superar as lacunas do humanismo moderno: a incapacidade para 9 Ver: CANCIK, Hubert; VÖHLER, Martin (Eds): “Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert” (Fn. 6); essa forma francesa é descrita por TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of humanism. Princeton: Princeton University Press, 2002 (TODOROV, Tzvetan. O Jardim Imperfeito: o Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005). 10 RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds): Humanism in Intercultural Perspective. – Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript, 2009. Ver neste livro: RÜSEN, Jörn; LAASS, Henner (Eds): Humanismo na Perspectiva Intercultural – Experiências e Expectativas.

11 Experimentei uma primeira tentativa de análise em relação ao Holocausto: “Humanism in response to the Holocaust – destruction or innovation?”, in: Postcolonial Studies, vol. 11, no. 2, June 2008, p. 191-200.

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enfrentar a desumanidade; a ideia ilusória sobre o conceito paradigmático da humanidade na antiguidade clássica; os elementos eurocêntricos na ideia de história universal; e os limites em integrar a natureza no interior da ideia de humanidade. Um humanismo atualizado deve integrar a sombra da desumanidade na ideia de humanidade com base no princípio da dignidade humana.11 Enquanto um princípio de dignidade antropológica, tem elementos utópicos e deve ser entendido como uma reação à capacidade de cada ser humano de cometer os crimes mais cruéis e terríveis contra a humanidade. Esta fundamental ambivalência da humanidade é um estímulo permanente para a mudança histórica — tanto no plano da motivação da ação humana e quanto no da compreensão histórica e da orientação cultural. Além disso, o humanismo pode abrir a perspectiva da experiência histórica para a dimensão, até então fundamentalmente ignorada, do sofrimento humano. A antiguidade clássica está sempre apresentando paradigmas históricos de uma visão humanista sobre a vida humana no Ocidente. A imagem histórica das suas particularidades humanas na realidade da vida humana é uma ilusão. Deve ser substituída por uma imagem realista das origens culturais do Ocidente na antiguidade clássica. Continuará a ser uma raiz da inspiração para o espírito de liberdade política, da argumentação racional, e de algumas ideias básicas sobre a natureza humana tal como a igualdade, o direito natural e a dignidade. As características ilusórias da humanidade tem que ser criticadas, mas sua essência não deve ser abandonada em favor de um realismo desiludido e cético. Em vez disso, deve ser usada como um elemento normativo de uma exuberância utópica. Também pode servir como um elemento de crítica em relação a todas as tentativas de compreender o que os seres humanos podem fazer para os outros seres humanos. Embora o humanismo clássico moderno enfatize a diversidade cultural, não é, no entanto, livre de elementos eurocêntricos. Uma vez que cada apresentação histórica tem uma perspectiva, sua dependência em relação aos pontos de vista e às visões de mundo é inevitável. O etnocentrismo é apenas uma forma específica dessa dependência. Caracteriza-se por uma avaliação desequilibrada da inter-relação entre o eu e a alteridade. Devem ter lugar aqui as generalizações de particularidades específicas da

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cultura ocidental voltadas para os universais antropológicos. Ambos os elementos podem ser encontrados em um humanismo moderno e devem ser eliminados. Por outro lado, encontramos também um remédio na própria tradição, ou seja, as abordagens hermenêuticas do historicismo humanista com o seu interesse na diferença e na variedade da cultura humana. Eles não devem ser negligenciados, mas trazidos para o jogo da comunicação intercultural. No que se refere à integração da natureza em uma ideia humanista da humanidade não se deve esquecer que o humanismo moderno clássico não excluiu a natureza de sua antropologia histórica e educacional.12 Contudo, infelizmente, a atitude geral moderna de dominar e de explorar a natureza não foi identificada como um perigo para a autodestruição humana. Vis-à-vis aos esmagadores problemas ambientais contemporâneos, as condições naturais da vida humana devem ser integradas em toda ideia plausível de humanidade. A conquista humanista dos direitos humanos e civis, enquanto elementos de humanização na política e na sociedade deve ser reconstituída ao aplicá-los na inter-relação da humanidade e da natureza. O humanismo deve fornecer princípios de legitimidade para dominar a natureza e usá-la em prol da sobrevivência humana.

Novos conceitos: múltiplas modernidades enquanto uma segunda era axial

Todos estes limites podem ser superados. Mas isso não pode ser alcançado seguindo o pensamento dominante anti-humanista da vida intelectual no Ocidente durante o século XX. 13 Em vez disso, poderá ser atingido através da capacitação e da melhoria do humanismo moderno tradicional, integrando as experiências históricas do passado recente a partir de suas ideias de humanidade. Ser um ser humano e fornecer todos os conceitos de humanidade com a ideia de dignidade individual poderia ser um ponto de partida plausível para mobilizar uma orientação cultural no processo de globalização. Tudo isso poderia realizar a unidade da humanidade enquanto um tornar-se realidade em todas as dimensões da vida humana. Mas, ao mesmo tempo, esta unidade não é exclusiva, visto que a diversidade de tradições e formas 12 Ver RÜSEN, Jörn: “Humanism and Nature – Some Reflections on a Complex Relationship”, in: The Journal for Transdisciplinary Research in Southern Africa vol. 2, no. 2, December 2006, pp. 265-276. 13 Ver FERRY, Luc; RENAULT, Alain: Antihumanistisches Denken. Gegen die französischen Meisterphilosophen [orig.: La pensée 68. Essai sur l’anti-humanisme contemporain, Paris: Gallimard, 1985], München: Hanser, 1987.

14 HERDER, Johann Gottfried: Werke, ed. Wolfgang Pross, vol. III in 2 vols: Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002; HERDER, Johann Gottfried. Reflexions on the Philosophy of the History of Mankind, transl. F.E. Manuel, London: 1986. 15 JASPERS, Karl: Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. (primeiramente em Zürich 1949). München: Piper 1963; JASPERS, Karl: The Origin and Goal of History. Westport, Conn.: Greenwood Press, 1976. 16 EISENSTADT, Shmuel Noah (Ed.): The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State University of New York Press, 1986; ARNASON, Johann P.; EISENSTADT, S.N.; WITTROCK, Björn (Eds.): Axial Civilisations and World History. Leiden: Brill, 2005. 17 EISENSTADT, S.N.: “Multiple Modernities”, in: Daedalus, Winter 2000, vol. 129, no 1, pp. 1-30 (EISENSTADT, S.N. “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139163, abr. 2001.).

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de vida são muito poderosas. Como atender à necessidade de sintetizar a unidade e a diferença das tendências universalizantes relativas à carregada ideia dos valores da humanidade em todas as tradições? Penso que é necessário reformular a ideia humanista da história universal, mas aqui também nos equipamos com uma tradição útil: é paradigmaticamente representada pela filosofia da história de Johann Gottfried Herder.14 A filosofia da história nos limiares da modernidade foi uma tentativa de organizar o conhecimento acelerado da diversidade cultural no espaço e no tempo, no interior de uma ideia coerente da humanidade entendida como um todo temporal. Esta abordagem filosófica da história universal deve ser entendida em conjunto com todas as tentativas de pluralizar a história universal. É claro que a ideia abrangente da unidade da humanidade está agindo, aqui, na e pela diversidade de culturas e de civilizações na mudança histórica permanente. O intento mais promissor desse tipo é a filosofia da história de Karl Jaspers e sua ideia de eras axiais.15 Esta ideia pode ser compreendida e reconceitualizada enquanto uma ferramenta metódica do pensamento histórico contemporâneo.16 Além disso, a compreensão do processo mundial de múltiplas modernidades17 e da globalização deve ser alargada e entendida como uma segunda era axial. Não posso entrar em detalhes em relação à ideia das eras axiais, mas cito um de seus elementos decisivos: todos nós vivemos dentro da segunda era axial. Ela tem como tarefa se referir às ideias da humanidade, que foram concebidas no primeiro tempo axial em diferentes formas, mas que, no entanto, excluíram-se umas das outras. Deve-se buscá-las para transformar a lógica da exclusão em uma inter-relação de diferentes ideias sobre a humanidade dentro da lógica da inclusão. No âmbito de tal lógica, cada tradição de conceitualização da humanidade pode ser entendida como uma contribuição para a comunicação intercultural. A ideia da humanidade, transculturalmente válida, pode assim ser realizada

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na internalização, pelos reflexos mútuos desses diferentes conceitos, do espelho da alteridade. O que isso significa para a aprendizagem histórica e para a tarefa da Didática da História? No plano dos princípios, a resposta a esta pergunta é bastante simples: o que eu disse sobre conceitualizar a humanidade através de uma síntese de unidade e diversidade, deve ser aplicado ou, melhor ainda, tem que ser traduzido, é claro, na ideia de aprendizagem histórica. A resposta não é nada simples no plano de uma organização detalhada do aprendizado histórico e de uma estratégia para o ensino de história. Elas devem cuidadosamente trabalhadas. Não posso esboçar uma teoria completa da aprendizagem e do ensino de história neste presente quadro de um novo humanismo. Mas posso indicar fundamentos para tal teoria e dar algumas sugestões para a realização das suas questões práticas.

Pressuposições e implicações para a aprendizagem histórica Todo processo de aprendizagem histórica deve começar com a situação das crianças e dos estudantes. Que experiências de suas vidas cotidianas devem ser abordadas e apreendidas a fim de trazer as competências do pensamento histórico das quais precisam para sua vida futura?

Diversidade e unidade na sala de aula

A experiência mais estimulante, e que pode dar início a instrumentos e elementos básicos para a ideia humanista da história, é a experiência da diversidade cultural no mundo vivo dos estudantes, uma vez que já está presente na variedade de suas bases culturais e — mais concretamente para o ensino da história — em sala de aula. Os estudantes vivem suas vidas em contextos sociais onde a diferença cultural desempenha um papel enorme e, ainda não encontrou, de modo geral, sua forma de aceitação apropriada. Eles devem entrar em acordo com esta forma nas várias dimensões de suas vidas. Sua consciência histórica deve integrar esta variedade numa perspectiva temporal coerente, dentro da qual suas identidades históricas adquirem particularidades pessoais e sociais. Ao mesmo tempo, a alteridade pode encontrar um espaço para a aceitação. A Didática da História, que tematiza esta perspectiva de tempo como

18 HUMBOLDT, Wilhelm von: “Über den Geist der Menschheit”, in: Werke, ed. Andreas Flitner und Klaus Giel, Bd. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1960, S. 506-518 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] II, pp. 324-334). 19 Ver MAZLICH, Bruce, The idea of Humanity in a Global Era. New York: Palgrave, 2009; OESTERDICKHOFF, Georg W. “Die Humanisierung des Menschen. Anthropologische Grundlagen der Kulturgeschichte der Menschheit.” In RÜSEN, Jörn (ed.), Perspektiven der Humanität. Menschsein im Diskurs der Disziplinen. Der Mensch im Netz der Kulturen — Humanismus in der Epoche der Globalisierung, vol. 8, Bielefeld: Transcript, 2010; RÜSEN, Jörn. “Klassischer Humanismus — Eine historische Ortsbestimmung, in ibid. p. 273-316 (ver neste livro: RÜSEN, Jörn. “Humanismo Clássico – um levantamento histórico”); LONGXI, Zhang (ed.): The Concept of Humanity in Age of Globalization. Göttingen: Unipress, 2011 (no prelo).

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o principal objetivo do ensino e da aprendizagem histórica, deve começar com a percepção em relação ao fato de que cada estudante é uma história internalizada. Numa visão humanista, esta história pré-estabelecida na presença dos estudantes, deve ser concebida e tratada como uma história individualizada da humanidade. Essa percepção se deve novamente à tradição humanista: é a principal tese de um dos grandes pensadores humanistas, Wilhelm von Humboldt, o qual declarou que cada ser humano é uma manifestação da humanidade e deve viver sua vida pessoal na consciência total desta representação.18 No entanto, tudo isso soa muito retórico e não significativo para a vida real dos jovens. Mas, sem uma referência a um princípio básico da individualidade e da inter-relação social, as tarefas educacionais do ensino de história não poderiam ser suficientemente realizadas. A aprendizagem histórica deve ser organizada como uma tentativa de intervir no processo de individualização e socialização. Esta tentativa deve estar comprometida com o propósito de ajudar os estudantes a encontrar sua identidade pessoal dentro do contexto social pré-estabelecido. Esta descoberta deve ter lugar de tal forma que ele ou ela possam encontrar o reconhecimento de sua individualidade e, ao mesmo tempo, serem capazes de reconhecer a alteridade. Formular esse objetivo da educação não é apenas uma tarefa específica da história. Ao estruturar a identidade desejada por meio de uma história, apresenta suas chances e dificuldades, torna-a especificamente histórica. Deixe-me repetir o fato: os estudantes já vivem no contexto social de uma sociedade civil. Ela organiza a vida de seus membros de acordo com algumas regras universais e valores básicos, os quais permitem e garantem o individualismo como uma questão relativa ao ser diferente. A educação histórica na escola deve apresentar esta forma de vida como resultado de um processo histórico de longa duração. Este pode ser caracterizado como um processo de humanização do homem.19 Este processo tem sua

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finalidade e abre a sua perspectiva de futuro no interior da subjetividade dos cidadãos e, aqui pensamos, é claro, dos estudantes. Uma vez que os valores básicos desta forma de vida são universais e, potencialmente, incluem todos os seres humanos na sua validade e seus compromissos, essa história só pode ser a história da humanidade. (A propósito, eu acho que essa história deve ser compreendida e narrada como a melhor resposta ao ataque à tradição ocidental, conforme já mencionei no início deste artigo.)

Diversidade e unidade na aprendizagem histórica

O que significa a história da humanidade? À primeira vista, isso soa muito abstrato e incapaz de preencher qualquer currículo viável para os ensino e aprendizado históricos. Mas essa impressão é enganosa. Não defendo uma história completamente nova; ao invés disso, meu apelo é apenas voltado para uma nova forma e uma nova dimensão da velha e familiar história.20 Todos estes acontecimentos históricos que são relevantes para a compreensão da forma de vida de uma sociedade civil moderna devem ser considerados. No entanto, a apresentação dessa história nos processos de aprendizagem deve encarar o “rosto da humanidade”. Os marcos, que delimitam o caminho para o mundo da vida dos estudantes, devem ser apresentados enquanto um impacto da compreensão sobre o que significa ser humano a partir dos processos da vida, os quais estão impregnados por esse entendimento. Essa significância histórica inclui, é claro, os limites, as lacunas e as prevenções da humanidade imaginada e seus perigos: — considerando, com isso, as percepções das práticas desumanas que podem resultar no tratamento de pessoas que não foram antes incluídas na ideia de humanidade. Para dar um exemplo de um tema bastante convencional: a Revolução Francesa. Aqui, a organização democrática da dominação política deveria estar no centro de apresentação e da discussão dos acontecimentos essenciais. As regras dos direitos humanos e civis e a ideia correspondente de humanidade (com seus elementos de exclusão referentes às mulheres, escravos, etc.) devem ser focalizadas. Mas a sombra da revolução assim deveria ser tratada: o assassinato genocida de pessoas, tais como 20 A este respeito, eu me diferencio substancialmente em relação à proposta de um novo currículo de história dedicado a uma história universal válida para todos, como tem sido feito por CAJANI, Luigi: “A World History Curriculum for the Italian School”, in: World History Bulletin, Fall 2002, vol. XVIII, No.2, pp.26-32. Cajani não leva em conta, sistematicamente, a necessidade da diferença cultural como uma questão relativa à identidade histórica.

os camponeses da Vendéia, que eram vistos como os “inimigos da humanidade”, deve ser abordado como um perigo geral em potencial para todos os humanos.

Tematizar a humanidade como a questão central do ensino e da aprendizagem histórica coloca toda a discussão do passado e do seu impacto no presente e no futuro na estrutura da história universal. “Universal” não significa trazer tantos fatos quanto possível para o estoque de conhecimento que os estudantes deveriam adquirir. Em vez disso, é uma forma de interpretar e compreender os acontecimentos e desenvolvimentos históricos primorosamente selecionados, com a qual os alunos devem se familiarizar. A humanidade deve ser internalizada nos processos de aprendizagem como uma dimensão da vida humana, que está sempre presente em suas múltiplas manifestações e mudanças. Este dimensionamento humanista deve começar, desde o início, pela educação histórica, e continuar acompanhando-a em direção a sua própria finalidade — a necessidade da criação de um novo humanismo político e cultural contemporâneo. As primeiras formas de vida das sociedades arcaicas, as formas de vida das chamadas civilizações avançadas e, finalmente, as formas de vida das sociedades modernas devem ser abordadas com uma abordagem especial voltada para a compreensão do que significa ser um ser humano como pessoa em seu contexto social. Quando é abordada a mudança estrutural das formas de vida humana referentes ao status dos humanos em relação às dimensões da realidade não humanas ou além-das-humanas, os estudantes descobrirão elementos ainda eficazes dessas diferentes estruturas em sua própria experiência de vida. Isso faz com que a inclusão da antropologia cultural se torne necessária por enfatizar as formas básicas da vida humana para o ensino e a aprendizagem da história. As diferenças estruturais das formas de vida humana deveriam ser postas na dimensão temporal do desenvolvimento. Essa perspectiva histórica universal da humanidade aparece como um processo fundamental de humanização, isto é, como um processo de alargamento e aprofundamento do âmbito desses valores que definem a humanidade em relação aos seres humanos. Tal perspectiva histórica universal deve ser realizada de modo plausível para os estudantes. Deve formar a estrutura temporal da sua

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Como aprender a História Universal

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consciência histórica. A estrutura temporal dominante da consciência histórica emergente dos estudantes deveria estar relacionada a uma humanidade temporalizada, caracterizada pela luta permanente no sistema de valores inscritos na natureza cultural do homem. Cada tema histórico específico, bem como a forma como são compreendidos os processos concretos de mudança temporal devem ser regularmente pensados em relação a sua relevância para a perspectiva geral da humanização da humanidade (e seus respectivos valores e normas). Um dos meios mais eficazes para desenvolver essa ideia é a apresentação e a reflexão sobre os cortes longitudinais (perfis) (Längsschnitte) como as unidades de ensino de História. Aqui, a referência principal são as estruturas de importância antropológica fundamental e sua mudança de longa duração em direção à ideia da humanidade contemporânea. Seu impacto sobre os direitos básicos para todos os seres humanos e sobre o reconhecimento mútuo das diferentes tradições, crenças e formas de vida (com a meta final de uma sociedade civil secular) deveria se tornar evidente. Um exemplo simples de tal seção longitudinal é uma história universal da mudança e do desenvolvimento das mídias da comunicação humana. Mesmo os jovens estudantes podem aprender que nesta retrospectiva história existe um processo de globalização totalizante do desenvolvimento, que parte da oralidade, passa pela escrita e chega à nova mídia eletrônica moderna.21 As crianças podem aprender acerca do enorme impacto dessas diferentes mídias para a organização da vida humana em geral; podem aprender o que poderia ser entendido por “progresso”; e podem aprender que os elementos básicos das formas de vida mais antigas, e essencialmente diferentes, não foram dissolvidas, mas permaneceram nas épocas posteriores. Apenas seu status mudou. Processos estruturais similares podem ser incorporados nos currículos como, por exemplo, a mudança estrutural das formas de legitimação da dominação política (para fornecer-lhe uma palavra de ordem: da natureza divina do Faraó para uma constituição democrática moderna). Desenvolvimentos universais semelhantes podem ser identificados na economia, no meio ambiente, na vida social e em todas as outras dimensões da vida humana. Esses processos estruturais podem ser transferidos para a educação histórica na escola, mas apenas sob a condição de que 21 D'HAENENS, Albert: Oralité, Scribalité, Electronalité. La scribalité occidental depuis le moyen age. Louvain-la-Neuve, 1987.

os fenômenos complexos fossem didatizados devidamente pela reflexão teórica, de modo que os paradigmas tipológicos ideais sejam trabalhados, o que poderia ser ilustrado com fatos concretos.

Qual a contribuição da variedade de experiências históricas para a unidade de um processo histórico abrangente? Esta questão é primordialmente teórica e um tema da filosofia da história. Mas, ao mesmo tempo, tem uma enorme relevância prática para o ensino e a aprendizagem da história. Aqui nós temos que lidar com a seguinte questão: o que — ou melhor, que agente — dota a consciência histórica com uma estrutura mental coerente, aberta para as experiências e capaz para a interpretação, a orientação e a motivação? Mais uma vez a resposta a esta pergunta exige uma filosofia da história que conduz à unidade temporal da história universal para a subjetividade dos estudantes. O lugar desse conceito temporal é a sua identidade. Por identidade entendo uma coerência estrutural de várias identificações centradas na auto-referência de um indivíduo e sua comunidade social.22 A identidade integra as objetivações múltiplas do ser humano com suas projeções para o mundo exterior, de modo que a pessoa envolvida tenha conhecimento de si própria ou próprio como sendo a mesma, a primeira e única, em todas as mudanças de tempo e espaço. A aprendizagem histórica, numa compreensão humanista, é um processo de individualização da humanidade na cena da experiência histórica. Este processo deve ser apresentado de tal forma que ele conheça e influencie a auto referência ou a autoconsciência dos aprendizes na relação com os outros, de modo que eles passarão a ser capazes de historiar sua qualidade enquanto seres humanos. Isto deve ser feito espelhando sua auto-experiência, seus desejos, esperanças, expectativas e medos na experiência histórica da variedade das formas de vida e das várias ideias inerentes sobre a humanidade no transcurso do tempo.

A universalidade como critério fundamental do pensamento histórico

A subjetividade dos aprendizes e a variedade e diversidade das experiências históricas são sistematicamente inter-relacionadas pelos 22 Ver STRAUB, Jürgen (Ed.): Narration, Identity, and Historical Consciousness. (Making Sense of History, vol. 3). New York: Berghahn Books, 2005.

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A unidade do tempo histórico na diversidade das experiências históricas

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critérios de sentido do pensamento histórico. Estes critérios de sentido são universais na sua lógica (cobrindo todo o campo da experiência da mudança temporal ao torná-la “histórica”). Os estudantes devem aprender quais são os critérios fundamentais de sentido, como funcionam de maneira geral e na própria orientação para a vida. Ao aprender isso — podemos chamá-lo de um aprendizado teórico ou filosófico pela história — os estudantes internalizam a competência de lidar com a dimensão universal da história enquanto um domínio da experiência e como uma esfera da interpretação e da compreensão. Tal aprendizagem é tanto mais necessária para que haja mais de um critério de sentido eficaz no trabalho da consciência histórica. Eles são, logicamente, diferentes e trabalham numa inter-relação muito complexa. (Não posso tratar deles aqui, no entanto, posso resumi-los a sua respectiva forma de universalidade histórica.)23 O critério de sentido do pensamento histórico tradicional constitui a unidade da história por apresentar as tradições eficazes no contexto social do indivíduo. A aprendizagem histórica tradicional significa tornarse competente em conhecer estas tradições e seu caráter obrigatório e em aplicá-las nas situações de mudança de vida. A identidade é préestabelecida como um esquema para a vida pessoal e social, a qual deve ser internalizada. O modo dominante de aprendizagem é a imitação (mimesis). A alteridade é definida pela exclusão. O critério de sentido do pensamento histórico exemplar constitui a unidade da história ao referir-se às regras de conduta humana supra temporalmente válidas. Uma aprendizagem histórica exemplar significa construir regras gerais a partir de acontecimentos (históricos) singulares e aplicar essas regras a outros eventos. A identidade é um resultado de ganho de competência para estas regras. A alteridade é definida como um desvio dessas regras. O critério de sentido do pensamento histórico genético constitui a unidade da história a partir de uma ideia de mudança temporal na direção da abertura de uma perspectiva sólida para atividades orientadas para o futuro. A aprendizagem histórica significa ganho de competência 23 Uma explicação mais detalhada pode ser encontrada em: RÜSEN, Jörn: “Die vier Typen des historischen Erzählens”, in: id.: Zeit und Sinn. Strategien historischen Denkens. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuchverlag, 1990, pp. 153-230; RÜSEN, Jörn: History: Narration – Interpretation – Orientation. New York: Berghahn Books, 2005, pp. 9-40; RÜSEN, Jörn: “Aprendizado histórico”, in: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 41-49; RÜSEN, Jörn: “Experiência, interpretação, orientação: as três dimensões da aprendizagem histórica”, in ibid. 2010, p: 79-91; RÜSEN, Jörn: “Narrativa histórica: fundamentos, tipos, razão”, in ibid. 2010, p: 93-108.

Aprender a ser humano A experiência histórica

O aprendizado histórico começa com uma entrada da experiência histórica na consciência histórica pré-condicionada dos estudantes. A experiência histórica é a consciência de que as formas de vida do passado são diferentes das de hoje. Esta diferença deve ser reconhecida, e, ao mesmo tempo, ligada com a ideia de uma mudança temporal. É a mudança do estranho em direção às formas de vida conhecidas. Os estudantes devem perceber, ao mesmo tempo, que as pessoas no passado tinham conceitos diferentes sobre o que significava ser um ser humano. Isto deve se tornar evidente quando indicamos as formas impressionantemente diferentes de tratar as pessoas, de acordo com os atributos que lhes são atribuídos pelos outros. Se você acredita que compartilha uma qualidade comum da humanidade com eles, você vai tratá-los de uma maneira diferente daquela

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em organizar sua própria orientação cultural ao longo do fio condutor desta direção temporal nas mudanças do mundo humano. A alteridade é definida por seu lugar em uma variedade de diferentes manifestações na mesma direção temporal devido a diferentes circunstâncias em que ela ocorre. O critério de sentido do pensamento histórico crítico constitui a unidade da história de uma forma negativa, ou seja, pela tentativa de dissolver as orientações históricas pré-estabelecidas, enfatizando as experiências do passado divergentes e suas respectivas perspectivas futuras. Todos esses critérios estão entrelaçados uns aos outros. Além do mais, é necessário isolar sua lógica específica de tal modo que o estudante possa saber como eles funcionam em uma interpretação e compreensão histórica. O âmbito desta aprendizagem de reflexão teórica pode ser explicado como um conceito básico do pensamento histórico. Esse conceito focaliza a compreensão da diferença no tempo e no espaço do mundo humano. A compreensão, agora, concede ao passado a dignidade de ser diferente a partir do passado (como Ranke formulou: “cada época é imediata a Deus”). Ao mesmo tempo, dá ao passado um lugar na imagem temporal da humanidade. O humanismo, enquanto hermenêutica, dá a história um rosto humano.

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da qual se eles estivessem lhe negando esta qualidade. Existem inúmeros exemplos dessa experiência de contribuir ou negar as qualidades humanas a diferentes grupos de pessoas (como cidadãos livres ou escravos). Neste contexto, a temática do gênero deve receber grande atenção. Aqui temos um exemplo da ambivalência da humanidade na história, a partir do fato de que, nos tempos pré-modernos, os intelectuais ocidentais discutiam seriamente a questão de se saber se as mulheres eram humanas ou não.24 A experiência histórica da desumanidade é uma provocação muito importante para os estudantes perceberem a historicidade da mais profunda convicção sobre o valor inerente da condição humana. O que eles pensam sobre o ser evidente acaba por ser resultado de um longo desenvolvimento histórico sem nenhuma garantia fixa para o futuro. É muito importante ensinar aos alunos que a atual-convicção-do-presente de que cada membro da raça humana é “humano” não é auto evidente no sentido específico de que ele ou ela tem um certo valor a ser reconhecido pelos outros. A aprendizagem histórica deve sublinhar esta diferença de apropriar-se do tempo, a fim de tornar-se consciente do fato de que a ideia de humanidade só pode ser entendida numa perspectiva temporal. Aprender esta historicidade da humanidade pode levar a uma motivação para o desenvolvimento ou, pelo menos, para uma defesa das conquistas do humanismo moderno na vida política e social. (Esta poderia ser a nossa resposta aos ataques contra a tradição ocidental na cultura política contemporânea.)

A interpretação histórica

A interpretação humanista da experiência histórica deve conduzir para a ideia empiricamente fundada da história enquanto um processo integral da humanização do homem. Neste contexto, deve ser abordada a questão dos direitos humanos. Os estudantes devem saber que são o resultado de um processo histórico. (A fim de entender a ideia moderna de direitos humanos básicos deve se voltar para a antiguidade clássica, o cristianismo, e a formação da dominação política em diferentes formas de uso do poder institucionalizado.) É essencial para esse aprendizado a compreensão de que a história inerente dos direitos humanos e civis não chegou ao fim. O “fim” dessa história é a motivação das atividades práticas voltadas para a defesa e para o desenvolvimento desses direitos sempre 24 Ver GÖSSMANN, Elisabeth (Ed.): Ob die Weiber Menschen seyn, oder nicht? München: Iudicium, 1988.

25 Ver ARMSTRONG, Karen. A grande transformação: o mundo na época de Buda, Sócrates, Confúcio e Jeremias. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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para mais além. É muito importante que esta perspectiva histórica de alcance altamente profundo receba elementos da diversidade multicultural. A fim de trazer este fundamental pluralismo na história universal, deve ser incorporada no currículo a discussão sobre o desenvolvimento das eras axiais enquanto ideias universalistas sobre o homem [principalmente na forma religiosa]25 e sobre o conceito de múltiplas modernidades. O tratamento da religião como potência cultural na história pertence a este contexto. Os estudantes devem aprender que, por um longo tempo na história do mundo, a ideia do que significava ser um ser humano foi desenvolvida em termos religiosos ou (em respeito ao confucionismo), ao menos num relacionamento com a ideia de uma ordem metafísica ou divina do mundo. Apenas contra esse pano de fundo, é possível compreender a importância do secularismo na modernidade. Os estudantes devem aprender que o surgimento de uma sociedade civil secular moderna é da mais alta importância para a aceitação de forma pacífica das diferenças religiosas. O caráter da cultura secular da sociedade civil é uma condição para coordenar os pluralismos das visões de mundo e das crenças religiosas. Isto pode ser facilmente demonstrado pelo papel das guerras religiosas no subconsciente europeu. Assim, a história do surgimento da sociedade civil moderna e da legitimidade secular da dominação e do poder político longe de uma guerra civil religiosa sangrenta na Europa, tem um lugar importante na consciência histórica dos jovens de hoje. Aqui está o lugar histórico privilegiado para as várias convicções religiosas ou seculares desses jovens, em relação ao que faz sentido para as suas vidas; aqui eles encontram uma resposta histórica à questão de como eles podem e devem se referir às diferentes convicções dos outros, com quem têm que viver juntos. A história deixa claro que a ordem secular da sociedade civil moderna não é uma mera possibilidade dentro de uma pluralidade de diferentes ordens, mas uma condição necessária para uma vida pacífica num pluralismo aberto para as orientações culturais. Além disso, uma visão comparativa em relação a outras tradições diferentes da ocidental, pode motivar os alunos a transgredir uma unilateralidade potencial na história do humanismo político. (O impulso altamente motivador para esta transgressão pode ser a crítica ao individualismo ocidental realizada por intelectuais não ocidentais, que o

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entendem como uma falta de compromisso social. Essa crítica tornou-se um argumento padrão na comunicação intercultural, e vale muito a pena levá-la a sério.)

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A orientação e a motivação históricas

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Entendo que já foi enfrentada a etapa da interpretação para orientação e motivação com a aplicação da compreensão histórica em relação à variedade de ideias sobre a humanidade e sobre a mudança no tempo, voltada para a experiência de mundo dos estudantes. A forma de vida pré-estabelecida de uma sociedade civil, com um sistema de valor secular básico da dignidade humana e da civilidade política (incluindo as atitudes democráticas), só pode vir a se tornar alinhada com a mentalidade dos estudantes se eles já a colocarem nas dinâmicas mentais de sua formação identitária. Partindo de um contexto pré-estabelecido externo, temos que transformá-lo em um fator interno da mentalidade, a partir da aprendizagem histórica compreendida como as realizações culturais da humanidade em uma relação pacífica institucionalizada entre diferentes tradições e convicções da orientação para a vida. Por meio da história da ideia de humanidade podemos alcançar uma plausibilidade concreta e, ao mesmo tempo, uma dinâmica na vida humana enquanto força motriz da história universal.

Perspectivas futuras: Para um novo conceito intercultural da Didática da História

Minhas considerações buscaram ampliar o âmbito da Didática da História como um discurso sobre a aprendizagem histórica. Existe uma clara relação entre o aprendizado histórico com os problemas de orientação cultural específicos, com especial ênfase sobre o importante papel da forma de vida da sociedade civil moderna, com seu sistema de valores seculares básicos. Em muitos aspectos, o conceito de uma Didática da História humanista não é novo. Ele integra os resultados das análises sobre a consciência histórica nos últimos 30 anos. Esse conceito tenta reformular as particularidades desta análise em favor de um claro princípio de uma formação do sentido histórico, ou seja, do humanismo. Desde o seu início, o humanismo era um conceito relacionado à educação. Acredito que sua forma moderna de educação, desde o fim do século XVII e do início do século XIX, ainda tem um potencial ainda não realizado voltado para o desenvolvimento futuro. Foquei minha

26 ANTWEILER, Christoph: Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die Einheit der Menschheit. Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript, 2010.

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argumentação em um campo da educação, ou seja, a do ensino e da aprendizagem da história. É tempo de construir uma abertura para as dimensões interculturais a partir dos principais objetivos e estratégias da Didática da História. Como podem tradições não ocidentais e visões de mundo obterem seu lugar no ensino de história nas escolas para que as crianças e os estudantes com origens culturais não-ocidentais sejam reconhecidos na sua diferença e, ao mesmo tempo, conquistem um solo histórico sólido sob seus pés (na sua consciência histórica), no qual eles possam compartilhar com seus companheiros de sala de aula e com todos os cidadãos do seu novo país? A fim de resolver essa tarefa faz-se necessário referir-se a elementos comuns de orientação cultural que atravessam as diferenças. Não vejo qualquer alternativa voltada para uma uniformização, mas uma base comum para ser um ser humano26 inclui a reivindicação fundamental de ser reconhecido em sua individualidade pessoal e social. Um pensamento histórico que historiciza esta humanidade e, desta forma, traz a variedade de sua manifestação no espaço e no tempo e na dinâmica da mudança temporal para esta comunhão da humanidade. Aqui reside a possibilidade de uma Didática da História que possa dar uma resposta aos desafios do nosso tempo, trazida pela crescente densidade da comunicação intercultural no processo de globalização. Mas isso só é verdade enquanto a Didática da História estiver comprometida em conceder uma chance para a ideia humanista baseada na dignidade da pessoa humana. Mas ainda existe uma lacuna nesta argumentação humanista. A tradição humanista do Ocidente tem um flanco aberto e um ponto fraco, ou seja, sua relação com a natureza. Até agora, o humanismo ainda não desenvolveu um critério eficaz para regular a relação humana com a natureza. A natureza inerente na cultura humana ainda não tem sido suficientemente pensada no que diz respeito aos valores fundamentais do humanismo. O que significa dignidade do homem em relação à instrumentalização humana da natureza que tem como finalidade a sobrevivência física? Existem apenas duas possibilidades na conceitualização de uma ideia que busque enfrentar os novos desafios da natureza na vida humana: uma alternativa é a ideia de uma natureza que pode servir como uma fonte para todos as regulamentações da relação humana com as necessidades

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naturais, a fim de chegar em um acordo com elas. A outra alternativa, é a ideia da humanidade que alarga o sistema de valor fundamental combinado com a natureza cultural da humanidade em geral, de modo que sustenta também o aspecto natural da vida humana. A primeira alternativa seria dissolver a tradição do humanismo em um novo naturalismo a partir de uma particularidade que é totalmente obscura (exceto no que diz respeito um conjunto de retornos de cosmologias românticas pré-modernas). A outra alternativa, significa que temos que continuar com a tradição do humanismo. Neste caso, é necessário aprofundar e ampliar nossa compreensão do que significa ser um ser humano. Contra a sedução de naturalizar a cultura humana a partir de uma forte referência às inovações da biologia e da pesquisa sobre o cérebro, os elementos normativos da cultura humana, centrados em torno do princípio da dignidade, devem ser aplicados no relacionamento humano com seu ambiente natural. A Didática da História não é o lugar para resolver este problema. Mas deve manter um lugar aberto no ensino e na aprendizagem histórica, em que a natureza passa a ser um elemento essencial para a compreensão da história.

O desafio da globalização para a identidade cultural Identidade cultural é determinada por critérios básicos de noções de sentido compartilhados por um grupo de pessoas. Elas se sentem comprometidas e compreendem a si mesmas através deste comprometimento. Elas pensam e sentem que suas vidas são condicionadas e dedicadas por um conjunto de valores e experiências moldadas por valores. Elas se compreendem como uma incorporação deste conjunto de valores, baseados em critérios universais de interpretação do mundo e de si mesmas. Com esta convicção eles delineiam sua idiossincrasia a si mesmo e desenham uma linha clara de distinção em relação a outros. Tal auto compreensão e distinção dos outros tem se sucedido em todos os tempos em todo o mundo. Podemos chamá-la de SELFNESS (noção de si). A noção de si é um elemento básico da vida humana. Ela é definida por uma unidade indivisível de duas atividades mentais: o relacionamento com si mesmo e a distinção em relação aos outros. Ambas possuem fortes elementos normativos com um comprometimento geral e, ao mesmo tempo, as duas se referem a experiências partilhadas comumente. As duas juntas são preservadas e apresentadas no reino da memória cultural.2 1 Tradução do inglês KOZLAREK, RUSEN, WOLFF (eds).Anthropology axial ages modernities. In: Shaping a Humane World. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi. 2 Nota do Autor: (Assmann, Jan: Collective Memory and Cultural Identity, in: New German Critique, No 65 (1995), pp. 125-133.).

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Em um significado específico, identidade cultural se refere ao mais amplo horizonte desta auto-referência, distinção e experiência comum. Falamos em 'civilizações do mundo' e pensamos em formas únicas de vida humana, o que caracteriza o sentimento de pertencer juntos e ser diferente dos outros, algo partilhado por um número grandioso de pessoas. O vasto horizonte da identidade humana é definido pela espécie humana e sua diferença dos animais. A primeira distinção neste horizonte se refere a 'culturas' ou 'civilizações' como a segunda maior unidade de pessoas em respeito à sua identidade. Não irei me aprofundar na duradoura, ainda vívida e controversa discussão sobre a conceitualização destas culturas ou civilizações do mundo. Ao invés disto, desejo elencar algumas distinções usuais destas grandes unidades de identidade e desenvolver alguns pontos básicos de seus interrelacionamentos em uma perspectiva histórica e sistemática. A perspectiva histórica é relacionada ao processo de globalização. Globalização é aqui compreendida como um desenvolvimento histórico no qual alguns elementos básicos de prossecução da vida humana se sobrepõem à maioria, senão todas, das diferenças entre as já estabelecidas formas de vida humanas, características de um grande número de pessoas e vastos espaços no mundo. É um processo que confronta diferentes formas de vida com condições gerais de vida humana, forçando-as a se adaptarem a elas. Sobre a globalização dos dias atuais todos nós sabemos tais condições: racionalidade científica, economia de mercado, comunicação globalização pelas novas mídias etc. Esta adaptação é um problema fundamental de identidade cultural. Por quê? Por que as pessoas não desconsideram as novas formas de vida e continuam com o que sempre foram? O problema não é primeiramente a habilidade das civilizações de integrar novos elementos em sua forma específica de vida (apesar de que não devemos subestimar o choque que tal confrontação com novas formas de vida tem significado por pessoas substancialmente diferentes, então chamadas formas de vida 'tradicional'). O problema que gostaria de analisar é encontrado basicamente no nível cultural fundamental da formação da identidade humana: considerando que cada identidade é específica, peculiar e até mesmo única, como podemos atingir elementos gerais e universais e conceitos de orientação de vida? Os elementos universais inerentes ao processo de globalização são um desafio radical para a identidade cultural apesar da habilidade ou inabilidade de adaptação. Globalizar a identidade de alguém em um sentido estrito significa dissolvê-la em suas características únicas e individuais.

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Isto soa incrível, pois estamos acostumados a olhar o processo de globalização como um embate entre culturas. Existem culturas representando o poder globalizado de mudança das formas tradicionais de vida humana. Existem outras as quais são forçadas a mudarem. Nos tempos modernos as primeiras citadas eram conhecidas como 'ocidente' e as demais como 'sul' ou 'oriente'. Estes são termos geográficos, mas a distinção deles inclui elementos qualitativos de dominação e subjugação, agressão e defesa, superioridade e inferioridade. Em poucas palavras: esta distinção inclui confronto e embate. Na opinião pública de hoje em dia podemos encontrar muitos exemplos destes confrontos. Deixe-me apresentar um recente caso alemão: a cobertura do popular noticiário semanal 'Der Spiegel'."Der Spiegel", issue 32, 8 de Agosto de 2005. Nesta cobertura, a águia de cabeça branca representando os Estados Unidos da América e o dragão simbolizando a república popular da China estão disputando a superioridade do mundo de amanhã. A imagem da capa usa símbolos tradicionais de identidade coletiva para ilustrar essa disputa. As imagens iniciais do artigo mostram que os dois países compartilham a característica de economia capitalista de mercado ilimitado e sociedade de consumo, ambos itens globais. Não estou olhando primeiramente para política, economia e vida social no processo de globalização. Ao invés, desejo considerar as orientações culturais, os conceitos específicos de sentido e significado, os quais estão relacionados a ela e possuem fortes efeitos na formação da identidade coletiva. No reino da identidade a universalidade dos princípios não é um problema em si. Se as características culturais de um indivíduo e a diferença dos outros - isso sempre significa uma peculiaridade da identidade de um indivíduo - é formada por elementos universais, por que esta universalidade deveria ser ameaçadora? De fato, a maioria dos conceitos tradicionais de identidade cultural são baseados em elementos universalistas. O critério de sentido básico que desempenha um papel decisivo ao gerar e apresentar identidade, é sempre universal. Isso pode ser facilmente demonstrado pelo fato de que pessoas arcaicas prescrevem a qualidade de serem seres humanos apenas para seu próprio grupo. Os outros não são humanos. A ideia vastamente espalhada, de que o próprio povo de um sujeito representa a civilização e os outros são o oposto, nomeadamente barbarismo, inclui um conceito geral de normatividade cultural e avaliação. Pode-se afirmar: quanto mais características universalizantes um povo prescreve sobre sua autoimagem,

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mais forte a identidade cultural é estabelecida em uma clara discriminação dos demais. Se um diferente conceito universalista de vida humana desafia o conceito de outrem, e não possui poder suficiente para mudá-lo ou até mesmo negá-lo, um 'confronto de civilizações' no nível da orientação cultural é inevitável. Isso caracteriza exatamente o encontro de culturas no processo de globalização. Pode ser descrito como uma batalha entre diferentes universalismos, por exemplo, a disputa entre o poder globalizante da razão científica contra os diferentes modos de interpretação da natureza e do mundo humano, como os mitológicos. Por séculos, globalização tem significado a dominação da visão de mundo ocidental sobre os não ocidentais. Este domínio tem sido, muito frequentemente, uma forma de supressão e negação de outras culturas, mas ele ainda tem tido um potencial maior de validade: a validade de ser efetivo em convencer os outros de sua superioridade mental. A guerra do ópio e o movimento de quatro de maio demonstram conjuntamente duas formas de superioridade no caso da civilização chinesa e seu relacionamento com o ocidente. A situação nos dias atuais, desta disputa entre diferentes universalismos culturais formadores de identidade no processo de globalização, é caracterizada por uma mudança no (até agora) desequilibrado, desigual e não equiparável relacionamento entre as diferentes culturas. Por fim, no nível de discursos intelectuais sofisticados na identidade cultural, o domínio do ocidente está se esvaindo e as culturas e civilizações não ocidentais estão ansiosas para recuperarem uma nova consciência de suas identidades culturais que, ao menos, compense as perdas de auto- estima no período de dominação ocidental. Este enfraquecimento do conceito ocidental de universalismo cultural é baseado em uma critica dupla: uma interna e outra externa. A crítica interna foi originada no próprio ocidente, ela é dirigida contra sua aproximação universalizante tradicional às outras culturas. Na vida intelectual do ocidente, a consequência devastadora do espalhamento de formas de vida ocidentais para sociedades e países não ocidentais tem sido percebido, e levado a um processo de denúncia dos elementos universais da cultura ocidental. O pós-modernismo é o exemplo mais eloquente desta denúncia. O universalismo é substituído pela autocrítica e, no fim, o resultado é uma relativização universalística, em respeito à validade de valores culturais em todas suas diferentes formas e desenvolvimentos. Esta autocrítica é acompanhada por um criticismo radical de intelectuais

3 Chakrabarty, Dipesh: Europa provinzialisieren. Postkolonialität und die Kritik der Geschichte, in: Conrad, Sebastian; Randeria, Shalini (Eds.): Jenseits des Eurozentrismus. Postkoloniale Perspektiven in den Geschichts- und Kulturwissenschaften. Frankfurt am Main (Campus) 2000, p. 283-312 [Chakrabarti, Dipesh: Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton, N.J.: Princeton University Press 2000; Lal, Vinay: Provincialising the West: World history from the perspective of Indian history, in: Stuchtey, Benedikt; Fuchs, Eckhardt (Eds.): Writing world history 1800 – 2000. Oxford: University Press 2003, pp. 271-289.

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não ocidentais, relacionado a elementos culturais globalizantes sendo originados no ocidente. Exemplos típicos deste criticismo são os discursos pós- coloniais e subalternos nas humanidades. Estas críticas duplas encerram o conflito de civilizações no processo globalizatório? Eu acredito que o contrário é verdadeiro. Como o relativismo no pensamento pós-moderno que é a única forma nobre de legitimar este enfrentamento, pois ele não reivindica nenhum princípio ou ideia válidos inter-culturalmente, o que pode limitar ou até mesmo opor as tensões entre diferentes identidades coletivas. Em relação às críticas não ocidentais da dominância ocidental, não devemos deixar despercebido o fato de que isto é, em si, um meio de luta por poder e não intenciona encerrá-la. Tensões entre identidades são geralmente causadas pelo poder do etnocentrismo. Este criticismo não ocidental da tradição universalista de aproximação ocidental a outras culturas não se situa fora deste poder etnocêntrico, mas é um meio dele. Uma análise mais aproximada das críticas anti ocidentais mostram que ela é guiada por um etnocentrismo negativo. Isto significa que, ao criticar o ocidente as culturas orientais não ocidentais ganham mais valor e uma superioridade em relação ao ocidente. Em minha opinião, o jogo antigo de dominação é simplesmente continuado. Apenas as atitudes das partes se modificam. Isto pode ser demonstrado pela metáfora amplamente espalhada que é típica da cultura crítica anti ocidental3. Todos concordam que há um significado convincente neste slogan, nomeadamente que o tradicional 'império' ocidental que costumava dominar e subjugar as 'províncias' não ocidentais deveriam ser levados ao fim. Mas, se o ocidente se tornar uma província, as consequências lógicas desta metáfora simples é que o 'império' mudou-se para outra parte do mundo. Aonde mais poderia ter ido senão para um dos partidos não ocidentais? Isto não é explicitado articuladamente, mas é um significado implícito deste slogan. Assim, o antigo jogo de poder continua, apenas o papel dos partidos conflitantes foi redistribuído. Como podemos notar, o conflito entre civilizações ainda continua e é evidente que ele possui uma nova natureza ameaçadora e radical. Este é o

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caso dos movimentos fundamentalistas da atualidade. Aqui, um conceito universalista específico de interpretação do mundo, majoritariamente em uma forma religiosa, contradiz fortemente diferentes formas de vida com seus elementos universalistas inerentes em novas formas de conflito. Mas este não é o único espaço onde o conflito de civilizações acontece. Ele é culturalmente enraizado no simples fato de que universalismos, os quais constituem diferenças culturais no nível da identidade coletiva, excluemse uns aos outros. Se a diferença cultural é baseada em sistemas de valores universalistas, as pessoas são comprometidas a um destes sistemas e negam os demais. Isto parece ser evidente em relação às crenças religiosas, mas podemos observar esta exclusão mútua até mesmo em respeito a sistemas de valores mais seculares. Um exemplo é a negação das ideias ocidentais de direitos universais humanos e civis ao se referir a uma ética confucionista fundamentalmente diferente, como foi o caso (e talvez ainda seja) da filosofia política oficial de Singapura. É exatamente este poderoso elemento, dotado de validade universal nas características peculiares de identidade cultural as quais demandam interação intercultural com o poder da tensão e do conflito. Ele potencialmente nega elementos constitutivos da identidade cultural dos outros pela natureza distinta e peculiar da própria identidade. Portanto, a identidade cultural tem que ser vista como um campo de batalha de universalismos em enfrentamento. Esta luta pode se dar de forma mais civil e, assim, nós a chamamos de comunicação intercultural, ou de uma forma mais violenta, e então chamamos isso de "choque de civilizações" ou até mesmo uma guerra de mentalidades. Existe alguma chance de acabar com essa tensão, conflito, luta e até mesmo a guerra no nível mental de formação da identidade cultural e comunicar as diferenças culturais? Minha primeira resposta a esta pergunta é não; não há chance de acabar com ela enquanto nós conceitualizarmos cultura na forma tradicional de mobiliá-la com fortes universalismos como elementos de distinção. Uma vez que esta distinção é o caso nos processos culturais de geração de identidade onde os outros se referem a nós como seus outros, temos de lidar com dois universalismos diferentes, ambos reivindicando validade geral. Mas, à segunda vista, devemos perguntar se nós podemos definir a cultura como algo que vai além desta exclusão mútua? A fim de responder a esta pergunta, devemos refletir criticamente os pressupostos, sob os quais as atuais comunicações internacionais e interculturais nas humanidades, bem como em outras formas de comunicação, são conceitualizadas.

4 E.g. Galtung, Johan: Six Cosmologies: an Impressionistic Presentation, in: idem: Peace by Peaceful Means. London: Sage Publications 1996, pp. 211-222. 5 (An example is Huang, Chun-chieh: Salient Features of Chinese Historical Thinking, in: The Medieval Historical Journal vol. 7, no. 2 (July-December 2004), pp. 243-254; cf. Rüsen, Jörn: A Comment on Professor Huang's 'Salient Features of Chinese Historical Thinking', in: The Medieval History Journal, vol. 8, no. 2, July-December 2005, p. 267-272.)

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Os conceitos mais difundidos e poderosos de culturas interrelacio­ nadas são aqueles de universos semânticos separados, cada um seguindo o seu próprio código específico, sendo essencialmente diferente do código de outras culturas. Código significando o sistema constitutivo de critérios de sentido e modos de interpretar o mundo e compreender a si mesmo. Os representantes mais proeminentes deste conceito de cultura e de diferenças culturais são Oswald Spengler e Arnold Toynbee. Infelizmente, o Spenglerianismo não é um conceito ultrapassado nas humanidades. Podemos encontrá-lo nos níveis de uma teoria explícita da cultura e da metodologia de comparação intercultural4, mas é ainda mais eficaz nos trabalhos práticos de historiadores e humanistas fazendo comparação intercultural e tematizando aspectos de comunicação intercultural. Para se comparar culturas costuma-se tratá-las como unidades completamente separadas. Mas qual é o parâmetro de comparação? De uma forma irrefletida, muitos historiadores simplesmente usam um paradigma estabelecido de interpretação como parâmetro, muitas vezes o ocidental. Hoje podemos observar uma mudança para os não ocidentais5. Não é possível simplesmente sair de qualquer contexto semântico e código cultural para que se faça esta comparação. Aqueles que criticam o domínio do pensamento histórico ocidental seguem a mesma lógica, com a única diferença de que eles usam outro paradigma sem refletir, sistematicamente, os pressupostos em que tematizam culturas como unidades de comparação. Estes pressupostos spenglerianos no trabalho dos humanistas não são convincentes de forma alguma. A cultura não pode ser reduzida a um conjunto fixo de critérios de sentido, sendo substancialmente diferente de outros conjuntos que constituem outras culturas. As culturas são dinâmicas, mutáveis, discursivas e abertas em seus modos de interpretar o mundo, permitindo que as pessoas compreendam a si mesmas e suas diferenças para com os outros. Culturas interferem, elas compartilham elementos universalistas da vida humana e do pensamento humano. Assim, devemos desistir de qualquer conceito de culturas que afirmam universos distintos de significado, apenas coexistindo em um relacionamento externo. É necessário investir uma boa dose de reflexão teórica, a fim de

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encontrar uma alternativa plausível. No contexto desta argumentação, não posso entrar em detalhes de tal conceituação teórica. Só posso indicar uma possível maneira de abordar esta nova tarefa nas humanidades: Teorizar sobre a cultura significa olhar para os universais antropológicos e conceituar as diferenças culturais. A minha proposta - metodologicamente se refere a Max Weber - é a criação de tipos ideais de diferentes possibilidades para realizar esses universais, sob diferentes condições, pois eles mudam no espaço e no tempo. O resultado vai ser um conceito complexo de cultura, numa mistura de características universais e uma tipologia de possíveis diferenciações. Com esta mistura podemos abordar a variedade e a mudança na vida cultural humana. Em tal perspectiva, diferença cultural aparece como uma constelação peculiar e específica de elementos que eram (potencialmente) partilhados por todas as culturas6. Tal reflexão e conceitualização podem permitir aos acadêmicos se comunicar sobre a diferença cultural das suas tradições e contextos, sem cair na armadilha de pressupostos etnocêntricos ou spenglerianos. A diferença cultural não vai desaparecer, mas torna-se um assunto do discurso. As regras deste discurso transcendem a lógica etnocêntrica de formação da identidade cultural. Tal discurso pode quebrar o poder de lutar uns com os outros no uso de critérios universais de sentido e significado (carregado com validade normativa). Pode quebrar esse poder no processo de individualização da própria cultura, de fazê-la única, ao distinguí-la e separá-la de outras de forma desequilibrada. Pode parar a provocação ou, pelo menos, a irritação dos outros que perseguem as mesmas estratégias na formação de suas identidades culturais ao custo de seus outros. Como pode esta nova forma de pensar sobre a diferença cultural (com todas as suas implicações políticas) ser trazida para a terra nos processos práticos de formação de identidade, bem como na sua reflexão acadêmica? Existe alguma chance realista de tornar plausível esta nova forma de tematizar diferença cultural por meio de um novo conceito de critério de sentido universalista? É bastante fácil de postular uma alternativa para o poder de separar as culturas pelo pensamento 6 Nota do Autor: Eu tenho esta estratégia de comparação intercultural em respeito ao pensamento histórico concretizada no seguinte artigo: “Rüsen, Jörn: Some Theoretical Approaches to Intercultural Comparison of Historiography, in: History and Theory, Theme Issue 35: Chinese Historiography in Comparative Perspective (1996), pp. 5-22” [Em chinês: Kua wenhua bijiaoshixue de yixie lilum zonxiang, in: Weigelin-Schwiedrzik, Susanne; Schneider, Axel (Eds): Zhonggua shixueshi yantaohui cong bijiao guandian chufa lunwenji. Bangiao, Kreis Taipei (Taoxiang chubanshe) 1999, pp. 151-176)

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etnocêntrico. Mas, e sobre o poder deste modo de pensar enraizados em uma necessidade quase natural de auto-estima do ser humano, que acumula elementos positivos na imagem de si mesmo e menos positivos - se não elementos negativos - para a imagem dos outros? Tal postulado é não irrealista ou utópico? Este parece ainda mais ser o caso se levarmos em consideração sistemáticamente, que, nos processos de formação de identidade não apenas os indivíduos, mas em geral as pessoas tendem a projetar as sombras escuras em sua autoconsciência para a alteridade dos outros. Eles amarram essa alteridade em sua auto-estima e a tornam inconscientemente dependente dela. Como devemos proceder para formar a identidade cultural de uma forma não etnocêntrica? Vamos começar com elementos de carácter abrangente, explanando a diferença entre consciência de si (noção de si, selfness) e alteridade. Elas consistem em princípios universalistas de geração de sentido, inerentes na particularidade e individualidade da identidade cultural de cada um. Logicamente, princípios universais integram os outros. No entanto, a maneira muito peculiar de trabalhar com os universais em formação de identidade é um problema, pois nos separa radicalmente dos outros e cria tensão. Como identidade, necessariamente, é peculiar e individual, os elementos do universalismo até mesmo aguçam essa divisão e oposição da noção de si e da alteridade. Mas este é o único procedimento para sintetizar peculiaridade e universalismo na formação da identidade? Minha resposta é: Isto definitivamente não é o caso. Esta resposta parece ser surpreendente, já que eu ainda não argumentei o quanto destes universais têm um carácter exclusivo em relação aos universais dos outros? Eu não disse que na identidade cultural os elementos universais na orientação cultural da vida humana tornaram-se particularizados? Mas ser diferente significa necessariamente exclusão? Quando reconhecida como constituído por universais, esta particularidade pode ser entendida como apenas uma única manifestação da sua inerente universalidade, além de outras. Agora, alteridade aparece em um horizonte de igualdade. Assim, o modo de se relacionar à própria identidade para com a dos outros muda drasticamente: agora, alteridade é uma manifestação diferente dos próprios universais. Por isso, pode ser reconhecida e valorizada. É este reconhecimento que é ao menos intencionada nos universais de uma própria cultura, contanto que eles sejam realmente universais. Eu acho que ela pode ser usada para mudar a nossa visão das nossas próprias tradições e na sua inter-relação com diferentes culturas. Não

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devemos trocar os elementos universalistas de nossa própria cultura para um novo relativismo, a fim de dar um lugar a alteridade. Pelo contrário, devemos levar o nosso próprio universalismo mais a sério, uma vez que, potencialmente, já possui um lugar para os outros. No entanto, eles foram mantidos fora pela particularização de nossos próprios elementos universais na identidade. Mas, sublinhando o seu carácter universalista nós principalmente transgredimos todas particularidades e abrimos uma entrada para essa opção do universalismo. Os universais culturais que são realmente universais são apresentados em sua característica individual, universal e não como particular e tenso. Esta tensão é o resultado de uma incapacidade de reconhecer a particularidade e os limites do seu próprio universalismo. Esta incapacidade segue a lógica de formação de identidade em que tudo está centrado em torno da própria peculiaridade e autoestima. Portanto, no desenvolvimento histórico mundial de universais culturais podemos observar uma forte tendência de exclusão. Todas essas formas de vida que não são semelhantes ou as mesmas, como aquelas que usam abordagens universalistas para entender o mundo, são excluídas, discriminadas ou desprezados. Assim, pode-se dizer que, em uma perspectiva universalista, a história cultural do desenvolvimento dos universais começou com um universalismo tenso. Fundamentalismo hoje é um legado e uma radicalização dessa tensão. Ele é carregado com elementos etnocêntricos e poder. Mas, ao mesmo tempo, universalismo cultural vai além do etnocentrismo, uma vez que os outros estão integrados nos universais da própria interpretação de criação de sentido do mundo e da vida humana.

O Renascimento da Origem dos Tempos Axiais Para entender a mudança radical dos universais culturais da exclusão à inclusão, temos que voltar para as origens de todas as formas de identidade cultural que receberam as suas características específicas ao se introduzirem os universais. Há um termo específico para caracterizar estas origens: o tempo axial. Devemos o termo à filosofia da história de Karl Jaspers. De acordo com Jaspers, as chamadas civilizações do mundo

O papel da ideia de humanidade Um dos universais mais importantes na identidade cultural é a ideia de humanidade. Com esta ideia, a dimensão social da identidade é generalizada para que ela inclua todas as outras, desde que todas partilhem as características básicas da humanidade. Em um longo processo histórico, ser um ser humano tornou-se um elemento essencial da autoconsciência e auto-estima. A humanidade alargou o escopo da identidade empiricamente e aprofundou sua qualidade normativa. Ser um ser humano agora é carregado com experiências históricas generalizadas 7 Jaspers, Karl: The Origin and Goal of History. Westport, Conn.: Greenwood Press 1976; Eisenstadt, Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre Vielfalt. Part I, II, III. Frankfurt am Main: Suhrkamp 1987, 1987, 1992

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adquiriram as suas características tradicionais em um tempo axial7. Diferentes culturas têm diferentes tempos axiais mas, em uma perspectiva histórica universal, estes tempos axiais juntos formam um limiar na evolução cultural da humanidade. Nas raízes destes primórdios, podemos encontrar um potencial para a solução dos problemas do nosso tempo. A solução é o universalismo profundamente enraizado na identidade cultural. Em uma forma inalterada é, é claro, não a solução, mas o problema. A solução não pode ser encontrada contra ela, mas no seu interior e de acordo com ela, ou seja, dentro de seu desenvolvimento histórico. Tempos axiais não são origens atemporais de um status metafísico em todas as mudanças temporais. O que se originou neste passado tornou-se uma questão de temporalidade, de historicidade. Ele, essencialmente, está aberto para mudanças e desenvolvimento. De acordo com essa historicidade, não é uma questão utópica pedir por uma nova abordagem e tratamento prático de universalismos culturais, tradicionalmente profundamente enraizados, que ainda são poderosos elementos da identidade cultural de hoje. Este universalismo tem de ser remodelado, reformado a partir de excludente para includente. O que nós precisamos para o discurso intercultural de hoje é um renascimento de tempos axiais, pelos quais o universalismo original seja mantido e alterado ao mesmo tempo. Isso não deve ser uma ruptura, mas uma transformação das tradições próprias. É uma transformação que pode ser caracterizada como um novo tempo axial, que acompanha o processo de globalização tópica e responde seus desafios de identidade cultural.

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e com elementos normativos compartilhado por todos os outros seres humanos. Culturas podem ser chamadas humanistas, se elas atribuem uma qualidade altamente normativa para ser um ser humano. Humanismo tem desempenhado um papel importante na tradição ocidental, e todo mundo que já olhou uma vez para o Lun Yü sabe, que 'humanidade'8 desempenha um papel decisivo na tentativa de Confúcio para desenvolver um sistema de regulações normativas para vida social e política. Na tradição judaica, encontramos um provérbio que significa humanismo: Quem resgata um ser humano, resgata a humanidade. Um provérbio semelhante pode ser encontrado na tradição muçulmana. O Alcorão diz: "Se alguém mata um homem, ele deve ser considerado como se tivesse matado a humanidade em geral, e se alguém preserva a vida de um ser humano ele deve ser considerado como se tivesse salvado a vida da humanidade”9. Na África, encontramos um provérbio de significado semelhante: “Umuntu ngumuntu ngabantu” (um ser humano é um ser humano pela alteridade de outros seres humanos10). Estes elementos universalistas, como a espécie humana (humankind) e a humanidade (humanity) se manifestam de diferentes formas e expressões, em diferentes culturas: Elas expressam a mesma ideia de uma maneira diferente, significando assim a peculiaridade da identidade cultural. Se alguém sublinha este elemento universal dentro da particularidade cultural da própria pertença a pessoas que usam os mesmos critérios básicos de sentido na compreensão do mundo e de si mesmos, pode-se indicar a chance de olhar para a alteridade dos outros, em uma forma não-etnocêntrica, mas sim equitativa e equilibrada. Uma vez que os outros compartilham a mesma qualidade normativa de ser um ser humano, possuem algo em comum com eles, que ao mesmo tempo é importante para a própria autoestima. Aqui reside uma importante oportunidade para o respeito e reconhecimento na inter-relação entre si e os outros. Mas é apenas uma possibilidade. Esta chance será perdida se a pessoa simplesmente sintetizar a sua própria peculiaridade com o valor de ser um ser humano. Neste caso, os outros não são tão humanos como ele mesmo. E, portanto, podese tratá-los de uma forma diferente e, claro, mais negativamente do que as 8 Nota do tradutor: ‘humanness’ no original inglês, se referindo a ‘ren’ em chinês 9 Nota do Autor: Alcorão: Surata 5, Verso 33. 10 Nota do Autor: Shutte, A.: Philosophy for Africa. Cape Town: University of Cape Town Press 1993, p. 19.

11 Nota do Autor: Makgoba, Malegapuru: Wrath of dethroned white males, in: Mail & Guardian March 24 to 31 2005, p. 23. 12 Nota do Autor: Mail & Guardian April 8 to 14, 2005, p. 23. Dan Roodt é um ardente defensor da Identidade Afrikaaner tradicional. Ele é criticado pela imprensa liberal na África do Sul, sendo considerado racista.

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pessoas a quem se pertence. Esta dupla moralidade é um fenômeno cultural em todo o mundo e em todos os momentos. Mas, se alguém se refere à própria peculiaridade e ao elemento geral e universalista da humanidade como um critério de sentido fundamental da própria cultura de uma maneira mais refletida, então a diferença dos outros pode ser percebida como uma manifestação diferente da mesma humanidade, que está inscrita nas características de sua própria identidade. Este é o ponto de minha argumentação. Quando eu caracterizo a atual situação em um processo de globalização como um novo tempo axial, quero dizer que nós temos que usar esta oportunidade das diferentes tradições culturais de conceitualização da humanidade como uma oportunidade de respeito e reconhecimento. Tradicionalmente, o poder normativo da humanidade, muitas vezes serviu como um elemento de discriminar os outros, atribuindo os padrões mais elevados da humanidade às pessoas do próprio grupo e apenas uma inferior à alteridade dos outros. Em casos extremos alteridade poderia mesmo ser definida como sendo não humano. Um exemplo impressionante é a ideologia nazista que roubou dos judeus a qualidade de seres humanos. Essa desvalorização dos outros, ao negar sua humanidade, ainda é eficaz em controvertidos tópicos sobre identidade. Um intelectual negro Sul Africano, por exemplo, fez isso através da comparação dos homens brancos de seu país que falam Afrikaans com babuínos e bonobos11. Uma charge brilhante feita por Zapiro ironiza esta afirmação, apresentando as duas espécies - um homem branco e um babuíno reclamando sobre o uso um do outro ao caracterizar a sua identidade12. Um uso etnocêntrico do conceito geral da humanidade na formação da identidade pode ser chamado de um humanismo limitado ou - mais criticamente -, um humanismo desumano ou invertido. Em relação a esta limitação, a perspectiva histórica universal, dentro da qual esses conceitos universalistas da humanidade obtiveram sua dimensão temporal, pode ser chamada de um desenvolvimento não completo. Está sob nossa responsabilidade hoje, tomar um passo decisivo: conceitualizar a ideia de humanidade, de tal forma que o ser humano possa ser historicamente

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percebido como manifesto em diferentes formas de vida humana. Esta diferença não é uma variedade ilimitada. Os limites desta variedade e os limites de reconhecimento e respeito estão exatamente lá, onde os outros não compartilham esse elemento universalista e não percebem isso de uma forma diferente, mas comparável, ou seja, através do desenvolvimento de suas estratégias mentais específicas de respeito e reconhecimento. À luz de tal perspectiva histórica, a comunicação intercultural adquire a dinâmica de um novo tempo axial. Essas dinâmicas podem conceder uma troca de possibilidades e potencialidades de se conceituar a qualidade normativa geral de um ser humano. Isso se aplicaria a todos os membros da espécie humana de formas diferentes, sob diferentes circunstâncias e pressupostos históricos. É minha a responsabilidade apresentar as possibilidades ocidentais de tal comunicação e estou esperando as respostas não-ocidentais, propostas, críticas, comentários, e talvez, até mesmo algum consentimento.

Humanismo clássico — um levantamento histórico1 Why? Who? Where am I? For happiness. A human being. On earth. G.E. Lessing2

Em nenhum lugar existe uma cultura na qual alguma ideia do que significa ser humano não desempenhou um papel importante na forma como os humanos constituem sentido e regulam suas vidas cotidianas. A ‘humanidade’ é um conceito que (entre outros) vêm a designar uma das manifestações de tal ideia. O humanismo, por sua vez, fornece um significado específico a esta ideia no que diz respeito à forma como os indivíduos, bem como a vida social, se torna significativa. Estes termos não são nada claros. Eles preferem cobrir um amplo espectro de significados, nos quais a maneira pela qual os seres humanos vivem suas vidas passou a assumir a finalidade prática de proporcionar alguma orientação cultural.3 Este espectro é demarcado por dois extremos: de um lado, a humanidade compreende a noção de tudo o que os homens têm em comum, como membros da espécie Homo sapiens. Esta base comum está menos preocupada com o equipamento natural do gênero, do que com as particularidades culturais humanas compartilhadas em seus diversos estilos de vida. O que está implícito é que os seres humanos, invariavelmente, desenvolvem as operações significativas para reordenar suas vidas. A ‘Humanidade’ num sentido geral define a essência do ser 1 RÜSEN, Jörn. “Classical Humanism – a Historical Survey”. In: ANTOHI, Sorin; HUANG, Chun-Chieh; RÜSEN, Jörn (ed.). Approaching Humankind – Towards an Intercultural Humanism. Essen-Germany/ Taiwan-China: National Taiwan University Press, 2013, p. 161-184. Tradução por Marcelo Fronza. As obras citadas pelo autor editadas em português foram referenciadas também nesta língua. 2 “Por quê? Quem? Onde eu estou? Pela felicidade. Um ser humano. Sobre a terra.” LESSING, Gotthold Ephraim: “Die Religion”, in: Werke, v. 1: Gedischte, Fabeln, Lustspiele, Darmstadt, 1996, p. 171. 3 Cf. e.g. GIUSTINIANI, Vito R.: "Homo, Humanus, and the Message of ‘Humanism’”', in: Journal of the History of Ideas 46.2 (1985): p. 167 -195.

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O que é o “Humanismo Clássico”

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humano enquanto um ente culturalmente determinado. Por outro lado, essa definição se limita a uma forma específica dessa essência culturalmente definida, que, por sua vez, diz respeito a um elemento central do seu arranjo de normas. O termo ‘humanidade’, assim, adquire uma conotação decididamente normativa, para além da sua condição empírica. Ele sustenta a existência humana em alguns fundamentos, isto é, em referência à sua relação específica com a natureza e com o cosmos, a qual regula a forma como os seres humanos estão lidando um com o outro. A natureza cultural do ser humano, em sua forma mais extrema, fornece significados para a escolha constante da ação e do sofrimento humanos entre a desumanidade e a humanidade. A forma mais pronunciada desta interpretação da humanidade é chamada de ‘humanismo’. Minha preocupação é a seguinte: tornar visível e compreensível esta variedade específica em relação ao seu contexto histórico. Em fazendo isso, estarei fundindo os seres humanos com a forma mais específica, ou seja, a do humanismo tal como tem se manifestado na cultura ocidental. Eu considero o ‘humanismo clássico’ do final do século XVIII e XIX como a manifestação mais central desse fenômeno. Lidamos aqui com uma tendência universal que apareceu em toda a Europa, a qual, contudo, assumiu formas diferentes em seus diversos contextos regionais. Tzvetan Todorov expôs a variedade francesa do modo mais impressionante.4 Estou, portanto, focalizando a variedade alemã, que está inseparavelmente ligada aos nomes de Herder e Humboldt.5 A pré-condição intelectual para construir essa constelação está na antropologia do começo da história moderna. Aqui, pela primeira vez, a interpretação do homem e do mundo já não era baseada numa autoridade não humana de construção de significados (Deus ou a Natureza), mas 4 TODOROV, Tzvetan: Imperfect garden. The legacy of humanism, Princeton, 2002 (TODOROV, Tzvetan. O Jardim Imperfeito: o Pensamento Humanista na França. São Paulo: EDUSP, 2005). 5 Esta definição historicamente específica do termo ‘humanismo’, não é a dominante na literatura internacional sobre este objeto. Neste contexto, o termo é entendido no sentido de um lar filosófico do discurso que é típico do humanismo moderno inicial, ou seja, o modo como naqueles dias dos ‘humanistas’ (pessoas educadas na antiguidade clássica) cultivavam a ‘humaniora’ (as disciplinas intelectuais que investigavam e debatiam a antiguidade clássica) demarcando sua distância crítica em relação à lógica discursiva da escolástica e aos laços com o dogmatismo eclesiástico. A partir disso, pode ser concebida uma atitude intelectual mais geral perante a vida. Um exemplo disso é a definição de Edward Said do humanismo enquanto uma atitude liberal, abrangente e crítica das ciências humanas (“seja como abertura a todas as classes e origens, quanto um processo interminável de discursos, descobertas, autocríticas, e da libertação”, Humanism and Democratic Criticism, New York 2004, p. 28 e seg.). Nessa definição, o humanismo perde a sua especificidade histórica e se torna uma fórmula estilizada do liberalismo intelectual — além ficar privado de todas as manifestações concretas que existem por causa das circunstâncias históricas particulares.

...O homem considerado como uma pessoa, ou seja, um sujeito com uma razão moral e prática, é exaltado acima de qualquer coisa, pois nessa qualidade (homo noumenon), ele não apenas é valorizado devido à realização para outras pessoas ou seus próprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto é, é possuidor de uma dignidade (um valor interno absoluto) pelo que merece ser respeitado por todos os outros seres racionais, portanto, pode medir-se em relação a todos os outros deste tipo e estar em pé de igualdade com os mesmos.7

No humanismo clássico, a ‘humanidade’ é considerada como o critério último de qualquer operação de criação de sentido e, como tal, é concebida em duas aplicações universais, tanto em um sentido empírico (que engloba toda a humanidade existente no espaço e no tempo), quanto em um sentido normativo (atribuindo a cada sujeito a dignidade de ser seu próprio fim). Este critério de significado também é posto em jogo enquanto um critério de legitimação das regras políticas. O humanismo, entendido como uma variedade política da fundação legal do Estado, é formado por direitos humanos e civis. Esta universalidade é, ao mesmo tempo, um 6 KANT, Immanuel: Kritik der reinen Vernunft 1781, 2nd ed. 1787, A 805, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL, vol, 4, Darmstadt 1968, p. 677 (KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.); KANT: Logik A. 26, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm WEISCHEDEL, vol. 5, Darmstadt 1968, p. 448) (KANT, Immanuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. 7 KANT: Metaphysik der Sitten A 93, (Werke in 10 vols, ed. Wilhelm Weisehedel, voI. 7, Darmstadt 1968, p. 569). (KANT. A Metafísica dos Costumes. Bauru: EDIPRO, 2003).

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era referida apenas à humanidade em si, enquanto um objetivo final. Isso foi adequadamente expresso por Kant em sua famosa fórmula, segundo a qual as três questões fundamentais da filosofia, as quais também formam a diretriz geral para a orientação cultural dos seres humanos — o que posso saber? O que devo fazer? O que posso esperar? —, convergem para a pergunta: o que é o homem?6 Este recurso da humanidade em si mesma, como a única fonte para a definição cultural do que é ser humano, só se torna humanista, no sentido mais verdadeiro, se e quando os sujeitos passam a ser objetos do valor específico como uma espécie enquanto princípio antropológico e se, sendo assim humanos, adquirem o status de uma norma absoluta, quando procuram regular toda prática humana. O humanismo, na sua forma moderna, fusiona a dimensão empírica da experiência humana com um elemento normativo. Immanuel Kant formulou esta ideia em sua forma mais definitiva:

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historicismo universal; assim como por princípio, o homem e o mundo são interpretados e compreendidos a partir de critérios históricos. Para cada ser humano e para cada modo particular de conceber a sua vida, esse tipo de humanismo assume uma forma específica: a da individualidade. A qualidade universal, bem como a individualizada, de cada ser humano só é conceitualizada enquanto um potencial antropológico; sua realização está condicionada à implementação de um processo individual, o qual, ao mesmo tempo, tem uma dimensão social. Este processo pode ser categorizado sob o nome de ‘educação’, (em alemão “Bildung”). Todas estas particularidades são os elementos essenciais que caracterizam o humanismo moderno como uma construção intelectual. Mas, isso é mais do que apenas uma simples ideia. Já está institucionalizado na forma de vida da sociedade civil burguesa. A convicção de que toda crença religiosa, em suas diversas manifestações históricas e em suas divergências com outras crenças, pode ser integrada numa ordem social secular que obriga todas as religiões conviverem pacificamente (“tolerância”), é um aspecto indispensável desta forma de vida. As humanidades são concebidas pelo humanismo como um sistema organizado de interpretações, que podem reivindicar certo grau de validade universal. Os direitos humanos e civis, tal como estão consagrados nas constituições modernas, podem ser considerados como a instituição mais poderosa do humanismo moderno, e o que não é menos importante, por causa da reivindicação de sua validade universal. No que se segue, proponho uma interpretação do conceito de humanismo dentro de uma perspectiva histórica, ou seja, gostaria de posicioná-lo dentro do quadro temporal no qual deve ser avaliado o processo de globalização contemporâneo.

As Premissas Antropológicas Qualquer conceito do que significa ser humano8 é determinado pela diferença fundamental existente entre as criaturas humanas e não humanas. Na maioria das formas de vida humanas as qualidades não 8 For the following cf.: ANTWEILER, Christoph: Was ist den Menschen gemeinsam? Über Kultur und Kulturen, Darmstadt, 2nd ed., 2009; ANTWEILER, Christoph: Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung (= Der Mensch im Netz der Kulturen Humanismus in der Epoche der Globalisierung, vol. 10), Bielefeld 2011. (English translation: Inclusive Humanism. Anthropological Basics for a Realistic Cosmopolitanism, Göttingen, 2012).

9 Isso corresponde a certas normas de comportamento moral cujo status é igualmente universal: a equidade entre a competitividade e uma organização cooperativa do mundo do trabalho. 10 As seguintes reflexões ocupam as ideias propostas por Reinhart Kosellek: KOSELLECK, Reinhart: “Historik und Hermeneutik”, in: KOSELLECK, Reinhart: Zeitschichten. Studien zur Historik, Frankfurt/ Main 2000, p. 97 -118.

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humanas são distribuídas entre duas dimensões: a natural e a divina. O homem está localizado em algum lugar entre as duas — seu lugar está onde as duas dimensões (a humana, entre a natural e a divina) estão hierarquicamente ordenadas: o maior valor é atribuído ao mundo divino, o menor à natureza, e o homem que ocupa o caminho do meio, é marcado pela qualidade ‘intermediária’ de ser capaz de distinguir entre o bem e o mal, e seja, mesmo, compelido a fazê-lo. À qualidade de diferenciar entre o bem e o mal — algo que é único ao homem — soma-se à necessidade resultante de ter que fazer escolhas práticas sob o mandato de seus atributos divinos e naturais. As regras morais que determinam o comportamento humano são definidas por uma clara distinção entre o bem e o mal. A capacidade de fazer tal distinção pressupõe certa ideia do que significa ser humano: os seres humanos são definidos como pessoas, eles são indivíduos dotados de certa consistência física e psicológica, e, como tal, são responsáveis por suas ações, pelo menos na medida em que a esfera da sua vida quotidiana está em causa. Esta responsabilidade dota cada ser humano (para usar uma expressão atual) com a qualidade da dignidade que, por sua vez, exige que ele deva se relacionar com respeito e reconhecimento nos contextos sociais. A noção da dignidade humana também está conectada a outra faculdade humana que constitui um universal antropológico, isto é, a de mudar a própria perspectiva cognitiva e interpretativa, ao adotar a perspectiva de outra pessoa. A dignidade do homem está antropologicamente enraizada na sua discriminação entre o bem e o mal para além da capacidade de empatia.9 No que diz respeito à dimensão social da vida humana, a qual é antropologicamente determinada por um sistema de distinções binárias,10listo-as sumariamente da seguinte forma: – A distinção entre encima e embaixo nas hierarquias sociais. – A distinção entre o poder e a falta deste. – A distinção entre os lugares centrais e os marginais na relevância cultural. – A distinção entre o senhor e o escravo ao definir a desigualdade social. – A distinção entre o homem e a mulher que faz do gênero uma

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categoria social fundamental. – A distinção entre o velho e o jovem que vai além da diferença meramente biológica, ao definir assim o status social e geracional de processos educativos. – A distinção entre o ter que morrer e a capacidade de matar. – A distinção entre o amigo e o inimigo que, em conjunto com o acima mencionado, regula o uso do poder e da força na vida social, tanto em termos de suas relações internas quanto externas. – A distinção entre o interior e o exterior, ou seja, entre um grupo de pessoas com um sentimento de pertença com quem forma uma comunidade — o que significa uma identidade coletiva com fortes laços emocionais e cognitivos —, de um lado, e àquelas pessoas, por outro, com quem se considera e se trata como os ‘outros’ ou os ‘estranhos’. Essa última distinção desempenha um papel importante no desenvolvimento histórico da humanidade, porque trata de uma camada profunda da subjetividade humana e da formação da identidade, o que é de importância fundamental para a ideia de humanismo. A relação entre o eu social e a alteridade do outro é determinada por uma lógica de diferenciação elementar e universal: a lógica da discriminação etnocêntrica e, ao mesmo tempo, de hospitalidade para com o estrangeiro. O esforço cultural necessário, a fim de desenvolver o sentimento de hospitalidade em face à aversão quase natural ao que é diferente ou estranho a nós, demonstra com ímpeto a força do etnocentrismo que age na determinação da identidade cultural. No etnocentrismo, a imagem de si mesmo é representada exclusivamente na forma e na cor de valores positivos, que permitem que os seres humanos a desenvolvam no sentido da coesão social, bem como na atitude afirmativa, tanto para si quanto para todos os outros, de que pertencem à mesma forma de vida — algo que é de importância vital. A alteridade ou a alteridade dos que existem fora desta forma de vida é, pela mesma lógica, definida em termos de falta, ou, pelo menos, pela redução de todos os valores positivos na forma de vida externa. O exemplo mais marcante de tal mentalidade discriminatória é a distinção entre civilização e barbárie.11

11 A lógica do etnocentrismo é tratada mais extensivamente em: RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): p. 59-74; and in: History and Theory 43 (2004), Theme Issue “Historians and Ethics”: p. 118 -129.

Seria tentador definir esses universais antropológicos, enquanto características essenciais de todas as formas de vida, como contrários à mudança histórica. Tal oposição impediria qualquer compreensão mais profunda da mutabilidade da cultura humana; as quais não contrariam os universais antropológicos, mas ocorrem no interior deles. Eles ainda nos permitem determinar o direcionamento das mudanças nas formas de vida humana que comumente são, em nome da ‘história’, inimigas. A história é muito mais do que uma mudança arbitrária ou acidental. Ela é estruturada no que diz respeito a sua qualidade enquanto um processo de desenvolvimento. Este processo deriva sua força das contínuas tentativas dos seres humanos para alcançar um equilíbrio aceitável entre as distinções listadas acima — distinções que são também oposições, e, como tal, constantemente geram tensões. A vida humana é impulsionada para frente por meio da luta constante para superar as forças destrutivas, “a sociabilidade antissocial” (Kant), inerentes a qualquer organização social, que são causadas pelas tensões geradas entre as alternativas que foram antes mencionadas. Em todos os conflitos e lutas sociais, o ideal de uma forma de vida aceitável para todas as ações é a força motriz fundamental do comportamento social humano. Qual tendência evolutiva pode ser suposta como o resultado mais provável de tal dinâmica interna? Ou, também, como é possível formulála a partir da historicidade da vida humana? A única possibilidade de encontrar uma resposta para essas perguntas, de modo logicamente convincente, consiste em combinar a experiência do presente e com as expectativas futuras, olhar para trás por meio da experiência das mudanças temporais humanas e de como seu mundo tem sofrido e, em seguida, explorar as condições da possibilidade do desejo de sua realização no futuro.12 Dois aspectos essenciais do pensamento histórico devem ser levados em conta. Quando se procede desta forma, em primeiro lugar, a dimensão global da interação humana no presente, faz com que o conceito coletivo e abstrato da ‘humanidade’ apareça como um fato empírico, e, em segundo lugar, o imperativo de estabelecer uma coexistência viável entre diversas tradições e ideias sobre o ser humano. De acordo com isto, pode-se 12 A lógica subjacente ao pensamento histórico aqui descrito brevemente é o de uma reconstrução voltada para uma orientação para o futuro. É uma alternativa à lógica duradoura e prevalecente, mas não tão plausível, de uma teleologia que é baseada em sua própria origem.

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A Mudança Histórica

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esperar que o futuro desenvolvimento histórico compreenda os processos essenciais da universalização, tanto como uma tendência ao enfatizar a diferença, quanto como a interligação entre o eu próprio e o ele dos outros. Podemos diferenciar três etapas essenciais no desenvolvimento humano ou na evolução cultural: 1) As formas arcaicas de vida, onde a maioria, se não todas, as qualidades do ser humano se baseiam em relações de parentesco, na medida em que todos os outros com quem o sujeito não está ligado por laços sanguíneos não são considerados como humanos. 2) As formas de vida com uma complexidade social mais elevada, onde as fronteiras étnicas do ser humano são inevitavelmente transgredidas (como foi o caso dos grandes impérios). É possível — como também acontece aqui — designar um passo a frente com esse tipo de universalidade pelo nome de “era axial” (“Achsenzeit”), ao seguir as sugestões de Jaspers, Eisenstadt e outros.13 As tendências universalizantes que resultaram das eras axiais foram manifestadas em diversas culturas, independentemente umas das outras, literalmente, quase ‘lado a lado’. 3) A forma de vida humana dentro do sistema das “múltiplas modernidades”14; onde as formas mentais da diferença cultural evoluíram são, ou melhor, devem ser reconciliadas como uma nova forma integradora do universalismo.

As Sociedades Arcaicas Em sociedades arcaicas, apenas os membros da própria comunidade são qualificados como seres humanos. Todas as outras pessoas que vivem fora da sua própria esfera de vida não são consideradas como humanas; estas são vistas como não possuidoras das características essenciais que definem a própria humanidade.15 Isso é evidenciado pelo simples fato 13 JASPERS, Karl: Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, Munich, 1963 (primeiramente Zürich, 1949); EISENSTADT, Shmuel N. (Ed.): Kulturen der Achsenzeit. Ihre Ursprünge und ihre vielfalt, vol. I, II, III, Frankfurt/Main 1987, 1987, 1992; ARNASON, Johann P./EISENSTADT, S.N./WITTROCK, Björn (Eds.): Axial Civilisations and World History, Leiden, 2005. 14 EISENSTADT, S.N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): 1- 30; ibid.: Die groβien Revolutionen und die Kulturen der Moderne, Wiesbaden, 2006. (EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139-163, abr. 2001.) 15 A fim de designar essa universalidade exclusiva, bem como particular, do ser humano nas sociedades arcaicas Klaus Müller cunhou o termo apropriado “o absoluto de seu próprio mundo”. (MÜLLER, Klaus E. (Ed.): Menschenbilder früher Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von Mensch und Natur, Frankfurt/Main 1983, p. 15).

de que muitos dos nomes que as pessoas que vivem em tais condições, dão a testemunhar tal particularidade: chamam-se de ‘homem’. Têm este significado nomes como “Bantu”, “Khoikhoi” e “Apache”, e muitos outros. As regras culturais dessas formas de vida são baseadas no imperativo fundamental de manter a tradição e perpetuá-la em todas as circunstâncias, a fim de inculcá-la nas mentes e nos corações das pessoas. As relações sociais são dominadas pelo princípio da reciprocidade. Existe um padrão duplo: por um lado, os princípios prescrevem o tratamento mútuo entre as próprias pessoas e, por outro lado, a exploração e a sujeição dos outros, os estranhos. Nada prova isso de maneira mais surpreendente do que o fato do canibalismo ser uma estratégia generalizada para adquirir a força do poder vital e mental dos outros. Seguindo Karl Jaspers, o termo “era axial” designa uma mudança acentuada de formas de vida humanas. Ele coincide com o surgimento das chamadas “altas culturas”. Ao contrário de Jaspers, não estou usando esse conceito no sentido de uma indicação cronológica rígida de uma inversão de rumos que é válida para todas as culturas, mas sim na consideração adequada das diferenças culturais (especialmente com relação à cronologia), mais propriamente num sentido do impulso evolutivo da cultura. Tais impulsos não ocorreram em diferentes culturas, todos ao mesmo tempo, mas seu efeito de provocar uma reestruturação da organização cultural da vida humana tem sido semelhante (no sentido de comparável) por toda parte. A “era axial” é um momento em que uma nova compreensão do homem e seu mundo surgem e conseguem prevalecer (com consequências a longo prazo como na forma das chamadas “culturas do mundo” ou “civilização”).16 Podem ser categorizadas três áreas fundamentais onde este impulso se manifesta: o “eu” (humano), o “mundo” (extra-humano) e o “Deus” suprahumano (ou O Divino). Considera-se que esta humanidade transcendente dual constitui-se historicamente como uma categoria cultural não natural. O novo entendimento da “humani-dade” dos seres humanos é incorporado por um “avanço transcendental” (Eisenstadt), que provoca mudanças profundas nas categorias fundamentais que compõem o mundo humano e a concepção que a humanidade tem de si. Esta mudança 16 Cf.: EISENSTADT, Shmuel N.: “Die Achsenzeit in der Weltgeschichte”, in: ibid.: Theorie und Moderne. Soziologische Essays, Wiesbaden 2006, pp. 253 - 275, and in: JOAS, Hans/WIEGANDT, Klaus (Eds.): Die kulturellen Werte Europas, 4th ed., Frankfurt/Main, 2006, pp. 40-68.

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As Mudanças Culturais nas Eras Axiais

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consiste principalmente no mundo divino que adquire uma nova (ou seja,“transcendental”) qualidade, que foi removida da realidade do mundo, quando os seres humanos agem fora de suas vidas. Para ser mais preciso em termos filosóficos, deve-se, na verdade, dizer “transcendente” ao invés de “transcendental”. O Divino assume uma forma de existência que o diferencia da vida cotidiana que, assim, torna-se absolutamente mundana. Aquelas áreas que, numa forma arcaica de vida, ainda estavam estreitamente inter-relacionadas, agora podem tornar-se unidades separadas, e isto ocorre através do seu novo caráter enquanto uma espécie, por assim dizer, intermediária. A nova qualidade do ser humano pode ser definida por um senso de subjetividade. Isso significa que o valor que acrescenta o além, implícito na ideia de transcendência, é agora pensado como inerente à própria humanidade, marcando assim o ser humano como uma subjetividade cujo significado é derivado somente a partir de si mesmo. Neste sentido, a profecia judaica pode ser considerada como um exemplo paradigmático de como o mundo está localizado no uno e no indivíduo, e por outro lado, separados um do outro e relacionados de forma completamente nova. O humano é agora pensado como contido dentro do “coração” de cada pessoa. Estabelece, assim, uma relação pessoal, ou mesmo individual, visà-vis com o mundo divino.17 Em uma perspectiva invertida (em que o ser humano aparece à luz do divino) o homem pode, então — como é o caso no judaísmo e cristianismo —, ser definido como sido criado à imagem de Deus. O confucionismo conceituou esta nova subjetividade como “ren”, que em inglês é mais comum ser traduzido como “benevolence” (“benevolência”). Em alemão, o termo “Menschlichkeit” parece ser um equivalente.18 Os princípios éticos de validade universal podem ser sintetizados sob o conceito do humanismo chinês,19 porque estão 17 A vocação de Isaías é um exemplo impressionante disso: Isaías. 6, 1-13. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Disponível em: http://www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014. 18 Ver CHEN, Yunquzan: “The Spirit of Renwen (‘Humanism’) in the Traditional Culture of China", in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations, Bielefeld, 2009, p. 56. Chen fala da “ideia de considerar as pessoas como o centro de tudo, prestando atenção à sua dignidade e valor...” (p. 49). Ver também MITTAG, Achim: “Reconsidering Ren as a Basic Concept of Chinese Humanism”, in: MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China - Tradition and Modernity, Bielefeld, 2010, pp. 49-62. 19 Cf. numerosas referências em CHAN, Wing-Tsit (Ed.): A Source Book in Chinese Philosophy, Princeton, 1963, pp. 3-48; MEINERT, Carmen (Ed.): Traces of Humanism in China – Tradition and Modernity, Bielefeld, 2010.

20 Cf. ROETZ, Heiner: Die chinesische Ethik der Achsenzeit. Eine Rekonstruktion unter dem Aspekt des Durchbruchs zu postkonventionelIem Denken, Frankfurt/Main; ibid.: Confucian ethics of the axial age, Albany, 1993. 21 Carta aos Gálatas 3, 28. Bíblia Sagrada. Tradução João Ferreira de Almeida. Disponível em: http:// www.culturabrasil.org/biblia.htm. Acesso em: 05 dez. 2014. 22 Assim está no Alcorão 5, 32 em referência a um ditado judaico.

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integrados à ordem mundial tradicional e suas práticas rituais. Este tipo de humanismo motivou a maneira como o mundo foi condenado a tornar-se mais ligado do que nunca aos argumentos racionais.20 A partir de agora, os limites étnicos do ser humano tornam-se a ser capazes de serem transgredidos na direção da nova universalidade do gênero humano. O estado transcendental da fonte de todo o sentido divino conduz a um novo conceito de humanidade. Isto não implica que os antigos limites étnicos tenham desaparecido por completo (se é que é possível de alguma forma), mas que a eles foram concedidos um novo status em relação à área da identidade coletiva. Os outros agora também se tornaram humanos. Este processo universalizante encontra sua expressão na dimensão abrangente do mundo divino (Brahma, Javé, Allah, Deus, etc.). Independente de todas as delimitações sociais, políticas ou de gênero, o indivíduo ganhou um acesso imediato a, ou um encontro imediato com, esta divindade universal e extramundana. Isso está bem expresso nas palavras de Paulo: “Aqui não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”21 Esta universalidade da humanidade é estendida para todo ser humano único e poderia ser reivindicada por ele. E, assim, tornou possível (o que é explícito no judaísmo e no islamismo) a ideia de que matar um ser humano equivale a matar toda a humanidade.22 O poder do etnocentrismo, no sentido da velha e estreita definição étnica do ser humano, foi estilhaçado; isso, no entanto, não faz com que ele desapareça por completo, mas reapareça em uma nova roupagem a partir de um conceito generalizado da humanidade: a identidade cultural que não deriva dessa universalidade foi capaz de reivindicar e essencializar o privilégio de representar um conceito “civilizado” da humanidade, enquanto que a alteridade para os outros foi concebida nos termos de uma forma única e reduzida da humanidade, ou seja, uma deficiência em relação à “verdadeira humanidade”. E uma vez que os outros seguem a mesma lógica na formulação de sua autoimagem, um “choque de civilizações” é a consequência amarga da competição entre as ideias sobre a humanidade.

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Os Passos em direção à Modernidade

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O novo conceito de homem que evoluiu durante a era axial lançou as bases para o surgimento de dois novos fatores que se revelaram decisivos para a última época no desenvolvimento da humanidade: a racionalidade científica e a secular (ou seja, não definida e legitimada em termos religiosos) de ordenação da vida social. As ciências naturais e, mais tarde também, as ciências humanas e sociais foram fundamentais para desmistificar o natural, assim como o mundo humano. Isto foi aplicado em igual medida às regras fundamentais da vida social e à ascensão concomitante da democracia como a regra de princípio organizador. Essa nova cultura de uma sociedade civil secular e do conceito de humanidade vai ao encontro de sua expressão mais adequada na formulação de Kant, de que cada ser humano é um fim em si mesmo e nunca apenas um meio para os fins de outras pessoas, isto porque ele é dotado de uma dignidade inalienável. Esta dignidade se institucionalizou nos direitos humanos e civis, os quais formaram a base sobre a qual foi sustentada a constituição política das sociedades modernas recém-formadas. Foi nesta sociedade civil secularizada que o humanismo moderno emergiu como o fundamento de toda a orientação cultural. Em sua manifestação específica (sumarizados acima), é o resultado de um desenvolvimento, a longo prazo, na história da civilização ocidental durante a época moderna. Nos parágrafos seguintes, gostaria de delinear este desenvolvimento sob a forma de uma tipologia complexa de várias das principais tendências da história.23

A Humanização da Humanidade na História da Europa Moderna O alvorecer da Era Moderna foi marcado pelo surgimento de vários tratados novos em filosofia e em teologia a respeito da “a humanidade como tal”, sua dignidade, seus riscos, bem como o seu potencial. O Oratio de hominis dignitate (Discurso sobre a Dignidade do Homem) de Giovanni Pico della Mirandola, de 1486-1487, tornou-se famoso neste 23 Esta descrição é baseada em observações pertinentes à Enciclopédia da Era Moderna: RÜSEN, Jörn/ JORDAN, Stefan: “Mensch, Menschheit”, in: JAEGER, Friedrich (Ed.): Enzyklopãdie der Neuzeit, vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte, Stuttgart, 2008, pp. 327 - 340.

24 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni: Oratio de hominis dignitate. Rede über die Würde des Menschen, Latin-German, ed. and transl. by Gert von der Gönna, Stuttgart, 1997. MIRANDOLA, Giovanni Pico della. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa: Edições 70, 2006. 25 VAN DÜLMEN, Richard (Ed.): Entdeckung des Ich. Die Geschichte der Individualisierung vom Mittelalter bis zur Gegenwart, Cologne, 2001.

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contexto.24 No início do século XVII, o termo “antropologia” foi criado. A Era Moderna, no entanto, é também marcada pela ideia de que o conceito de humanidade tornou-se um assunto de muita controvérsia, o que resultou em diversas reflexões sobre a sua natureza cada vez mais plural e divergente. No século XVII, a disciplina da teologia, que inicialmente manteve o monopólio da definição de como é o homem, foi substituída pela filosofia, com a qual, por sua vez, passou a competir com o discurso antropológico da jurisprudência, da medicina e das novas ciências. Mas, deixando o nível de reflexão teórica de lado, foi também no campo da própria prática cultural que as mudanças no conceito de homem ocorreram: as áreas religiosas, políticas e sociais da atividade humana; desde o século XVII, na literatura e nas artes visuais, que se tornaram cada vez mais autônomas; E, finalmente, na tecnologia, que, com base em conhecimentos científicos, tornou-se cada vez mais dominante na vida cotidiana e deu origem ao tipo humano chamado homo faber, ou seja, o homem pensado apenas em termos do que é tecnicamente viável. Além disso, o conceito de humanidade foi muito influenciado pelas mudanças na vida material das pessoas que eram, devido aos avanços na tecnologia, e, posteriormente, na produção industrial, marcados pelo êxito da luta contra a fome, a doença, a mortalidade infantil etc., bem como pelo crescimento da população resultante disso, além das consequências da migração e da expansão colonial da Europa. A compreensão moderna da humanidade repousa sobre o embasamento tradicional da humanidade em alguma autoridade transcendental, por meio de uma nova qualidade humana, ao transferir a qualidade espiritual implícita nesta autoridade para a ideia do homem em si.25 Este processo é de uma relevância histórica universal e só pode ser comparado com as mudanças revolucionárias no conceito de humanidade nas eras axiais: pode-se definir este processo moderno, como a humanização da humanidade, no entanto, sem, ao mesmo tempo, assumir que esta equivale — no sentido do progresso moral — ao desaparecimento da desumanidade. A “humanização” refere-se, em vez de uma mudança na compreensão que a humanidade tem de si mesma, ao processo que pode ser concretizado e diferenciado como: 1) secularização,

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2) universalização, 3) naturalização, 4) idealização, 5) historicização, 6) individualização.

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a) A Secularização

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Na Era Moderna, a autonomia de um homem agindo como sua própria autoridade estava em conflito com os preceitos religiosos de orientação cultural. A doutrina cristã tradicional da salvação, e sua interpretação religiosa do mundo, foi incapaz de manter seu ritmo com o crescente estoque de conhecimento fornecido pelas ciências e pelas humanidades. No século XVII, a interpretação tradicional do mundo se diferenciou em diversas áreas do conhecimento em que as explicações empíricas, sem qualquer referência a uma autoridade transcendental, tornaram-se cada vez mais relevantes para a percepção da própria humanidade. O exemplo mais flagrante disso é a virada copernicana nas ciências, o que pode ser considerado como uma revolução filosófico-científica dirigida contra a antiga visão de mundo geocêntrica do que era “natural” e sancionado pela Igreja cristã. O retorno à antiguidade clássica era de importância decisiva para este processo de secularização. Desde o Renascimento e os movimentos humanistas a ele associados, o humanismo tem desempenhado um papel vital na formação do conceito intelectual que as classes educadas têm de si mesmas por toda a Europa.26 Sem cair completamente no esquecimento como uma fonte de significado, a religião cristã, no entanto, apresentava alguma autoridade interpretativa no que diz respeito ao fornecimento de alguma orientação em relação ao aqui e agora. Moral e intelectualmente desacreditada por várias guerras civis devido a motivos religiosos, as igrejas cristãs no século XVII foram submetidas a uma crítica da religião, tendo como consequência a subjetividade do homem moderno que, anteriormente, tinha sido fundamentada na religião cristã, enquanto agora passa a ser definida em termos exclusivamente seculares. Reivindicações a partir de verdades religiosas, que tinham encontrado a sua expressão em várias denominações (articulações “positivas” da fé), foram substituídas por uma moral universalmente humana cujas bases foram formadas pela lei da razão (por exemplo, no drama filosófico de G. E. Lessing “Nathan der 26 Cf. CANCIK, Hubert: “Die Rezeption der Antike - Kleine Geschichte des europaischen Humanismus”, in: RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009, pp. 24- 52.

Weise” (“Nathan, o Sábio”), de 1779, com sua “Parábola do anel”). Como essa orientação cultural secular da moralidade da vida humana veio à existência, derivou-se daí sua autoridade na sociedade civil. Neste contexto, a fé religiosa foi concebida como uma questão meramente privada por causa da lei fundamental da tolerância. Devido à influência do Iluminismo, a compreensão secular do homem como um ser que pode dispor livremente do seu mundo, de acordo com os preceitos da razão, tornou-se o alicerce cultural da sociedade civil moderna.

Com o aumento do conhecimento fornecido pelas ciências humanas e naturais, a ideia da unidade da raça humana teve de ser revista. Na teoria racial, foi possível abandonar, por um tempo, o conceito unitário por completo, por exemplo, em La-Peyrêre, Voltaire, E. Long ou Ch. Meiners.27 No final, no entanto, o reconhecimento da unidade monogenética da humanidade prevaleceu contra a ideia de sua poligenia.28 Este quadro geral sobre o que os seres humanos têm em comum foi preenchido com o crescente conhecimento da multiplicidade das formas culturais da vida humana, como nos referiremos adiante. Os relatos de viagem desempenharam, especialmente, um papel importante nesse processo, porque com a descrição das formas de existência humana em áreas do mundo até então desconhecidas, conseguiu-se questionar a afirmação global da universalidade do homo europaeicus. Por um lado, o conceito de humanidade teve de ser adaptado ao crescente conhecimento do mundo que havia sido acumulado desde o início da era moderna e, por outro, o conhecimento recém-adquirido teve de ser integrado na tarefa de desenhar uma imagem atualizada e generalizante da humanidade. A interpretação da diferença cultural continuou a ser regida pelo pressuposto típico de que todos os homens foram naturalmente dotados com a capacidade de escolher livremente, bem como racionalmente, a sua identidade cultural. Essa hipótese se tornou parte da cultura política na forma dos direitos humanos codificados que se voltaram para um debate 27 LA PEYRERE, I.: Prae-Adamitae, 1655 (Reprint: Kessinger Publishing, 2009); VOLTAIRE: Essai sur les moeurs et l’esprit des nations et sur les principaus faits de l'histoire depuis Charlemagne jusqu'a Louis XIII, 1756 (repr.: Paris, 1963, 2 voIs.); LONG, E.: History of Jamaica, 1774 (new print New York, 2009); MEINERS, Ch.: Grundriβ der Geschichte der Menschheit, Lemgo, 1785. 28 A antropologia de Johann Friedrich Blumenbach era típica em relação a isso, bem como altamente influente em termos discursivos. (De generis humani varietate nativa liber, Göttingen, 1775). Sobre o contexto histórico e cultural Cf. REILL, Peter Hanns: Vitalizing nature in the Enlightenment, Berkeley, 2005.

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b) A Universalização

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duradouro sobre os direitos naturais. A história desta cultura se estende desde as modernas constituições democráticas, que ainda estavam confinadas às nações individuais, a todo o caminho até a “Declaração Geral dos Direitos Humanos” proposta pela Organização das Nações Unidas em 1948, a qual incluiu toda a humanidade. Este valor correspondeu a uma quebra em relação à assimetria etnocêntrica da maneira em que a identidade cultural foi constituída, e que a inclusão ou exclusão foram acusadas de defender diferentes valores positivos ou negativos. Mesmo que as culturas ocidentais afirmassem processar padrões civilizatórios mais elevados do que outras culturas, a legitimação da exploração e repressão que vieram junto com ela eram claramente limitadas — pelo menos no que se referia à reflexão teológica, filosófica, jurídica e moral. Ao atribuir aos “outros” certas qualidades humanas, incluindo-os também na raça humana, o seu tratamento bárbaro era (em nome de uma civilização superior) colocado abertamente à crítica à luz dos padrões humanos mínimos, e em nome de um tipo de civilização mais elevado, que por sua vez significava que poderia ser limitado por meios legais. As regras políticas dos homens sobre os outros homens assim ficaram restritas em termos teóricos, e sua legitimidade se pôs como uma premissa para a liberdade fundamental de cada indivíduo submetido a tal regra. Isso implicou numa reivindicação fundamental na participação no poder político. A humanização moderna do homem teve seu apogeu político, especialmente na Europa e nos EUA, na evolução dos direitos humanos e civis, constitucionalmente consagrados e sancionados, os quais continuam vigentes até o presente. Como os direitos humanos, por definição, foram derivados e pertencem a toda a raça humana, eles também poderiam ser reivindicados pelas pessoas que, seja por conta da falta de liberdade real (por exemplo, no caso de repressão) ou a falta real para alguns da definição básica do elemento da humanidade (por exemplo, da razão, no caso de crianças pequenas, ou deficientes mentais ou morais, no caso, de desvios sociais), não foi alcançada uma definição padrão de um ser humano livre, razoável e ético. Ao mesmo tempo, o processo moderno de regulamentação das regras políticas e vida social por meios constitucionais, que começou na Europa Ocidental e nos EUA, tornou-se, em algum grau, globalizado.

Desde o início da Era Moderna, o homem descobriu a si mesmo em termos do contraste acentuado e da mediação dialética entre o seu estatuto como um ser natural e intelectual, tudo ao mesmo tempo: por um lado, tornou-se, assim, uma coisa, isto é, um objeto corpóreo da análise racional e, com base nisso, de dominação tecnológica e manipuladora. Por outro lado, tornou-se o senhor da dominação e da manipulação. Esta distinção deve-se ao fato de que o homem, ao estudar a si mesmo, nunca pode descrever-se como tal, mas sempre apenas em termos relacionais: por causa de suas qualidades naturais como um animal e por causa de suas particularidades espirituais enquanto um ser relacionado com Deus. O homem, assim, foi dividido em um objeto de observação científica, por um lado, e em um ser espiritual, por outro. René Descartes expressou esta dicotomia na relação do homem consigo mesmo e com o mundo numa fórmula altamente relevante através da diferenciação entre “res cognitas” — uma substância exclusivamente intelectual ou um espírito não corpóreo — e “res externa” — um mero pedaço de matéria. Como res extensia, o homem foi considerado em pé de igualdade com os objetos materiais do mundo, especialmente os do não pensamento, e, portanto, poderia ser objeto de investigação científica.29 A dimensão científica que a reflexão sobre a humanidade adquiriu através disso pode ser vista como um aspecto especial do processo de naturalização e de racionalização. A ciência passou a cuspir uma variedade de disciplinas especializadas. Até o final do século XVIII, isso resultou numa distinção relativamente rígida entre a observação puramente científica da humanidade (por exemplo, na biologia e na anatomia) e a interpretação das ciências humanas (especialmente em filosofia e em teologia). Pelo final do século XVIII, ambas as abordagens foram unidas sob a forma de uma filosofia de vida global. O espírito que pertencia exclusivamente ao homem foi agora concebido como uma unidade ou força singular que transforma e completa-se com o objetivo de moldar o mundo humano (por exemplo, J. E. Blumenbach e J. G. Herder). O Humanismo clássico, — como, por exemplo, o proposto por Herder ou pelos irmãos Humboldt, mas especialmente por Goethe — foi a tentativa de se reconectar a cultura humana, que havia sido criada pelo espírito não-material, à natureza material, dando assim a esta última uma dimensão “humanitária” repleta 29 DESCARTES, R.: Meditationes de prima philosophia. Meditationen über die erste Philosophie. (Latin/ German, ed. v. Gerhart Schmidt), Stuttgart, 1985 (DESCARTES, R. Meditações sobre Filosofia Primeira. Campinas: UNICAMP, 2004).

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c) A Naturalização

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de significados normativos. Desde a metade do século XIX, novas áreas da ciência vieram à existência na interface com os conceitos naturais e culturais da humanidade, a partir de novas abordagens metodológicas, especialmente de natureza analítica, tais como a etnologia, a psicologia, a psiquiatria e a sociologia. Devido ao foco específico dessas disciplinas, a compreensão das formas de vida humana foi ampliada ao ponto de se tornar um estudo mais interpretativo, embora os estudos especializados e metodologicamente heterogêneos das ciências humanas tenham superado as antigas ciências humanas com o paradigma hermenêutico da interpretação textual.

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d) A Idealização

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Concomitante e num intercâmbio complexo com a visão naturalizadora da humanidade, a tendência histórica da idealização evoluiu, por meio do conceito de natureza humana, que assumiu um caráter nitidamente espiritual. Nesse processo, a tradição religiosa do homem enquanto feito à imagem de Deus foi transformada, para se tornar uma forma de divindade secular e mundana do homem; isso foi caracterizado por termos como “espiritualidade”, “bom senso” (em oposição à razão) e “pessoa”. Quanto mais cedo os pensadores neoplatônicos do século XV, como Nicolau de Cusa e Marsílio Ficino viram o ser humano como um artista, um “alter deus” era capaz de espalhar a luz divina na natureza e, assim também, na natureza humana. Os primeiros artistas do século XVI, como Leonardo da Vinci e Albrecht Dürer, criaram suas obras de acordo com essa ideia. O homem agora não só foi considerado como o objeto reificado de análise e explicação racional (e, consequentemente, dominado pela tecnologia), mas ao mesmo tempo figurou como tema no papel de “maitre et possesseur de la nature” (Descartes).30 Mesmo o ser humano estando reificado como um cadáver vivissecado e como uma fonte de percepção científica, acabou tornando-se um objeto de fascínio estético, especialmente no que diz respeito ao próprio ato da vivissecção, por exemplo, em Rembrandt em “A anatomia do Dr. Tulp” (1632). Leonardo, que realizou a vivissecção de cadáveres, representou a figura humana como um objeto espiritual da mais alta ordem. A explicação mais abrangente desta espiritualização do 30 DESCARTES, René: Discours de Ia méthode, 1637 VI, S. 2 (Discours de Ia Méthode, 6e partie. Paris, 1966, p. 168; German translation: Abhandlung über die Methode, transl. Arthur Bu- chenau, Leipzig, 1919, p. 51). DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

31 Ver nota 24. 32 REILL, Peter H.: The German Enlightenment and the Rise of Historicism, Berkeley, 1975; REILL, Peter H.: Vitalizing Nature in the Enlightenment, Berkeley, 2005. 33 DROYSEN, Johann Gustav: Historik. Historisch-kritische Ausgabe, ed. Peter Leyh, vol. 1, Stuttgart-Bad Cannstatt, 1977, p. 22 and others (DROYSEN, Johann Gustav. Manual de teoria da história. Petrópolis: Vozes, 2009).

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homem como um ser natural foi concebida pelo idealismo alemão. A pré-condição histórica mais importante para este conceito antropológico ligado à personalidade moral era a ideia do homem que foi feito à imagem de Deus, além da prática religiosa — sobretudo no protestantismo — da relação pessoal e direta com Deus. “Estar diante de Deus” tornou-se agora parte do conceito da própria humanidade. Assim, por exemplo, Dürer deu traços semelhantes aos de Cristo no seu autorretrato de 1500. Esta interiorização da relação com Deus, da parte do sujeito individual, levou à ideia da subjetividade humana, que é marcada pela liberdade de consciência e de ação autoresponsável. O homem agora se torna consciente de sua capacidade de se afundar no status de um animal ou de ascender às esferas de Deus por meio de suas próprias ações. A autonomia cultural da humanidade resultante deste ato de emancipação religiosa com relação à determinação de si e de seu mundo foi sucintamente expressa por G. Pico della Mirandola (1486), quando, por ocasião da criação do mundo, ele faz Deus dizer para humanidade: “A natureza limitada dos outros está circunscrita pelas leis que eu lhes passei. Não afetado por quaisquer restrições você deveria determinar sua própria natureza de acordo com sua própria vontade, cujo poder eu lhe emprestei”.31 O conceito de natureza espiritual do homem também se manifestou na fundação sistemática de auto- interpretação humana. Isto é evidente na virada hermenêutica das ciências humanas, no final do século XVIII para o início do século XIX. Tomaram os impulsos a partir da filosofia da vida e racionalmente evoluíram em um método específico para investigar o mundo humano na variedade de suas manifestações históricas.32 As culturas humanas, então, passaram a ser objeto de pesquisas interpretativas, teoricamente fundamentadas em um “método de compreensão sistemática” (Johann Gustav Droysen)33 e na autocompreensão da humanidade, os quais estava inextrincavelmente vinculados à capacidade de perceber e reconhecer a diversidade cultural de ambos em termos da cultura humana, produzida por causa da “orientação educacional” (Blumenbach) de todos os seres naturais — embora muito além dos limites da natureza.

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Para Herder, que designou o homem como o primeiro “ser emancipado da criação”,34 a realização cultural humana se tornou mensurável pelo padrão de como ele percebeu o potencial de estar em choque com a sua “humanidade”. Na base desta concepção humanista do homem enquanto um fim em si mesmo, as ciências humanas evoluíram no final do século XVIII, ao mesmo tempo, com uma dupla abordagem: a antropológica e a histórica. A estetização da percepção humana de si e do mundo constitui um processo separado nesse desenvolvimento. Nos meios da arte, as qualidades naturais e espirituais da existência humana se reconciliaram e esta síntese humanista da natureza e do mundo humano está harmonizada, de tal forma, que pode ser levada em linha de conta com a autodefinição autônoma da humanidade.

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e) A Historicidade

A temporização do conceito de humanidade é uma especificidade da Era Moderna. Sua natureza foi concebida como o resultado de um processo evolutivo e, consequentemente, sua cultura se tornou alterável e passou a ser interpretada em termos temporais: o modo exemplar de construção de significado histórico que tinha encontrado a sua expressão tradicional na compreensão da história enquanto magistra vitae foi substituído por um modo genético que enfatizou o futuro aberto, causado pelas alterações das condições históricas a que foram submetidos e que fizeram progressos nos aspectos essenciais da evolução histórica. Esta revolução nos conceitos sobre a humanidade e sua relação com a natureza ocorreu durante o “tempo selado” em torno de 1750 a 1850 e levou ao abandono da ideia de imutabilidade da natureza humana. Em vez disso, cada pessoa acompanhada do seu próprio interesse histórico específico, é entendida como sendo o produto intelectual próprio ou de outras pessoas em outras culturas e tempos. Esta historicidade apareceu em diferentes contextos. Em conexão com uma teoria da sociedade civil, o Iluminismo escocês do século XVIII (por exemplo, David Hume, Adam Smith, Adam Ferguson, John Millar) transformou a fundação e legitimação de formas particulares de vida, previstas na lei natural, em formas genuinamente históricas. No âmbito da “história teórica” a natureza social do homem foi visto como sendo 34 HERDER, Johann Gottfried: Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (Werke, ed. Wolfgang Pross, vol. III/1), Munich, 2002, p. 135 .

35 FERGUSON, Adam: Versuch über die Geschichte der bürgerlichen Gesellschaft, Frankfurt/Main, 1986; MILLAR, John: Vom Ursprung des Unterschieds in den Rangordnungen und Ständen der Gesellschaft, Frankfurt/Main, 1985. 36 KOSELLECK, Reinhart: “’Erfahrungsraum' und 'Erwartungshorizont’ - zwei historische Kategorien”, in: ibid., Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten, Frankfurt/Main, 1979, pp. 349375. KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categoria históricas. In: ibid. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2006, p. 305-327. 37 DROYSEN: Historik. (nota de rodapé 34), p. 41.

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completamente determinada pelo histórico. O homem como um animal sociale passa por vários estágios de uma evolução histórica universalizante que, finalmente, culmina com a forma de vida da sociedade civil moderna.35 Como consequência do crescente conhecimento sobre a diversidade de formas humanas de vida, dispersou-se a ideia de uma generalização e de uma lei física aplicada à forma como todos os seres humanos regulam suas vidas carnais. Em vez disso, o conceito de “humanidade” como uma categoria fundamental para definir a natureza humana adquiriu uma dimensão temporal. Teorizar sobre essa condição se tornou primeiramente a tarefa da filosofia da história no Iluminismo (precoce). Forneceu a temporalidade inerente das formas de vida humana enquanto um senso geral de direção. O ser humano foi assim dilatado pela diferença qualitativa entre o passado e o futuro. O processamento intelectual da experiência passada foi considerado o princípio que capacitou o homem a ultrapassar este “espaço experiencial” fechado e transformá-lo em um “horizonte de expectativa” aberto onde — devido sua capacidade de autodeterminação — foi capaz, tanto no pensar como no agir, de abrir e perceber novas potencialidades humanas.36 O movimento do historicismo, nas ciências humanas do século XIX, instrumentalizou o fazer da historicidade da humanidade como a base estratégica da pesquisa histórica. Esta estratégia foi orientada pela visão de que a história atingiu a “gnoti se auton” (“compreensão de si mesma”) da humanidade (Johann Gustav Droysen).37 Embora inicialmente se refira à humanidade em sua totalidade, o foco de interesse passou a ser cada vez mais reduzido, a fim de, eventualmente, estender-se apenas ao âmbito europeu e nacional. O etnocentrismo potencial implícito nisso foi relativizado, se não suspenso, pelo princípio hermenêutico de que cada época era em si mesma valiosa em termos de fornecer insights sobre a natureza cultural da humanidade e, também, que qualquer interpretação das formas de vida humana passadas tinha que ser sistematicamente consciente da percepção cultural sobre si mesmas. Assim, a unidade

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da humanidade foi realizada ao se manifestar na variedade das suas culturas.38 Ranke expressou essa ideia da seguinte forma: “O princípio de que a diversidade das nações e dos indivíduos contribuem para a ideia da humanidade como um todo é um progresso absoluto”.39

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f) A Individualização

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Já nos finais da Idade Média um processo de motivação religiosa ligada à individualização definiu qual singularidade de cada indivíduo (diante de Deus e de todos os outros seres humanos) tornou-se perceptível. A Reforma, a reforma do catolicismo e o surgimento de formas místicas de religiosidade em todas as denominações e em todos os caminhos até o Pietismo ou o Iluminismo religioso, promoveram esse processo que teria consequências de longo alcance para as práticas culturais. A individualidade assim formada foi absorvida, por vezes, sem problemas e, às vezes, no meio de um conjunto de lutas, a partir do conceito de autonomia individual. Nos séculos XVII e XVIII isso deu origem a novas ideias sobre a maneira como o homem e a humanidade foram relacionados entre si. Por um lado, essa relação foi interpretada de forma biológica-antropológica, reconhecendo cada indivíduo como parte de uma mesma espécie humana. Baseado nisso era, então, possível em termos teóricos, deduzir a coesão social da humanidade a partir de um contrato social fictício celebrado por indivíduos autônomos em prol da garantia da sua sobrevivência comum. Essa ideia — inicialmente desenvolvida de forma exemplar por Thomas Hobbes em seu “Leviathan” [“Leviatã”] (1651) — encontrou sua expressão clássica em John Locke nos “Two Treatises on Government” [“Dois Tratados sobre o Governo”] (1690) e, sobretudo, em Jean-Jacques Rousseau “Du contrat social” [“Do contrato social”] (1762). Neste contexto, o indivíduo foi percebido no papel de um patriarca, mas o fator decisivo foi sua vontade pessoal e a sociabilidade como o fundamento próprio da sociedade humana.40 O conceito da individualidade humana foi derivado da ideia de que, através da introdução da mão de obra, surgiu a capacidade de adquirir a propriedade da natureza. O conceito de humanidade, dominante na 38 JAEGER, Friedrich, RÜSEN, Jörn: Geschichte des Historismus. Eine Einführung, Munich, 1992. 39 RANKE, Leopold von: Über die Epochen der neueren Geschichte, ed. Th. Schieder and H. Berding (Aus Werk und Nachlaβ, vol. 2), Munich, 1971, p. 80. 40 VAN DÜLMEN, Richard: Die Entdeckung des lndividuums 1500-1800, Frankfurt/Main, 1997.

41 MACPHERSON, C.B.: Die politische Theorie des Besitzindividualismus. Von Hobbes bis Locke, Frankfurt/Main, 1973. (MACPHERSON, C.B. A teoria política do individualismo possessivo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979). 42 LEIBNIZ, G.W.: Monadologie (French/German, transl. by Heinrich Kôhler), Frankfurt/Main, 1996 (LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. “A monadologia”. Os pensadores - história das grandes idéias do mundo ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1974.); Fichte, J.G.: Die Bestimmung des Menschen, 5th ed., Hamburg 1979; Fichte, J.G.: Die Anweisung zum seligen Leben, oder auch die Religionslehre, 4th ed., Hamburg 1994; HERDER, J.G.: Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit, Frankfurt/Main 1967 (HERDER, Johaan Gottfried. Também uma filosofia da história para a formação da humanidade. Uma contribuição a muitas contribuições do século. Lisboa: Antígona, 1994.); HUMBOLDT, Wilhelm von: “Über die Aufgabe des Geschichtsschreibers”, in: Werke, ed. Andreas Flitner and Klaus Giel, vol. 1: Schriften zur Anthropologie und Geschichte, Darmstadt, 1960, pp. 585 606 (Gesammelte Schriften [Akademie-Ausgabe] IV, pp. 35 - 56) (HUMBOLDT. W. “Sobre a Tarefa do Historiador”. In: Anima. Ano 1, número 2, 2001, p. 88.). 43 SCHLÖZER, August Ludwig: Vorstellung seiner Universalhistorie, Göttingen/Gotha 1772. Newprint Hagen, 1990; GATTERER, J.Ch.: Abrifl der Universalhistorie in ihrem ganzen Umfange. Bey dieser zwoten Ausgabe völlig umgearbeitet und bis auf unsere Zeiten fortgesetzt, Göttingen, 1773. 44 Cf. nota de rodapé 43.

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forma de vida pós-corporativa da sociedade burguesa, tinha como base a igualdade do homem em relação a todos os outros homens e à liberdade para acumular propriedades. A associação entre o proprietário de imóveis com outros donos de propriedades passou a formar sociedade burguesa. Ao tornar-se parte dessa sociedade, a ele foi concedido o estatuto de um cidadão que contava com a proteção de seus direitos humanos garantidos pela Constituição e que, em companhia de todos os outros cidadãos, passou a ser o próprio fundamento da soberania e da dominação política.41 Paralelamente a este individualismo social da sociedade burguesa surgiram as teorias sobre a existência de um vínculo espiritual entre os seres humanos, por exemplo, em G.W. Leibniz a partir da ideia de uma harmonia pré-estabelecida, em G. F. Fichte, da derivação do indivíduo com autoconsciência absoluta e, ainda, outro representante do idealismo alemão, tal como em J. G. Herder e da noção de W. von Humboldt da comunhão de todos os seres humanos através da sua participação individual em determinadas ideias transcendentais.42 A experiência de profunda crença religiosa era a expressão da relação pessoal do homem com Deus no sentido de que seu individualismo enquanto um ser humano estava garantido por uma autoridade além do aqui e agora. A natureza culturalmente determinada da humanidade — definida em termos da razão e da liberdade — já se manifestou numa plenitude ilimitada no espaço e no tempo como, por exemplo, nas histórias universais dos historiadores do Iluminismo alemão A. L. Schlozer, J.Ch. Gatterer43 ou na filosofia da história de J. G. Herder.44 O desejo espiritual para a criação da cultura concebida como atribuída à humanidade na sua totalidade se tornou

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perceptível na multiplicidade das formas de vida e, ao mesmo tempo, tornou-se um preceito para cada ser humano se governar individualmente e dar forma à sua vida. A realização específica de tal individualização da humanidade foi denominada “formação geral” (“Bildung”), e tornou-se o conceito orientador da socialização humana, bem como da individualização ao informar programas educacionais e práticas artísticas. Na Alemanha, por exemplo, esse processo foi implementado através da reforma da educação e dos sistemas universitários no final do século XIX, os quais foram influenciados, principalmente, por Wilhelm von Humboldt e Friedrich Schleiermacher, e se manifestaram no gênero literário do “Bildungsroman” que encontrou o seu exemplar mais expressivo na obra “Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister”, de Goethe (“Wilhelm Meisters Lehrjahre”) (1795-1796). Este conceito educacional, que ainda é válido contemporaneamente, pode ser considerado, tanto estrutural quanto geneticamente, a projeção da categoria de historicismo em direção ao processo de individualização.

Passos em direção ao Futuro A historicidade mais a pluralidade da ideia da humanidade — especialmente a pluralidade que deu origem à categoria de individualidade — tiveram repercussões consideráveis para o uso dessa ideia no processo de construção da identidade pessoal. Em primeiro lugar e acima de tudo, o poder de individualização aumentou enormemente devido ao processo de globalização causado pela economia mundial e o avanço da tecnologia. A noção ocidental de humanidade se espalhou por todo o mundo devido à colonização e ao imperialismo, ameaçando assim a validade dos outros conceitos do que é constitutivo da humanidade e de outras interpretações do mundo conectadas com eles. Havia duas maneiras de combater essa ameaça em se tratando de um desafio. Podia-se adotar o modo ocidental de pensar combinado a sua convicção do homem como um ser capaz de dominar o mundo. O Movimento 04 de maio na China e as ideias propostas por

45 HU SHI: Autobiographie mit Vierzig (transl, from Chinese by Marianne Liebermann and Alfred Hoffrnann), Dortrnund, 1998. See a1so GRIEDER, Jerome B.: Hu Shih and the Chinese Renaissance, Cambridge, Mass., 1999; EGLAUER, Martina: Wissenschaft aIs Chance. Das Wissenschaftsverstiindnis des chinesischen Philosophen Hu Shi (1891-1962) unter dem Einfluβ von John Deweys (1859-1952) Pragmatismus, Stuttgart, 2001. 46 GANDHI, Mahatma: “Hindu Swaraj”, in: MUKHERJEE, Rudrangshu (Ed.): The Penguin Gandhi Reader, New York, 1993, pp. 3-66.

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Hu Shi podem servir como um exemplo disso.45 Alternativamente era possível rejeitar radicalmente a cultura ocidental na forma proposta por Ghandi com sua noção de Hindu Swaraj.46 As tendências intelectuais atualmente mais difundidas e influentes dos Estudos Subalternos e do Pós-colonialismo pertencem a essa segunda alternativa. Da mesma forma como a crítica da dominação intelectual ocidental assim formulada, tornase compreensível, a oposição direta a ela não é muito convincente, pois é considerada como a contrapartida exata do etnocentrismo ocidental ao qual se opõe. O realismo cultural pós-moderno e o relativismo são mais algumas das tentativas de evitar a armadilha do etnocentrismo. Eles certamente aguçaram nossa visão sobre a diversidade da cultura da vida humana e, ao mesmo tempo, ofuscaram o universalismo oscilante sustentado na comunicação intercultural. O etnocentrismo se torna um elemento incontornável na formação de uma identidade cultural tão longa quanto a dos seres humanos — seja como indivíduos, seja como formações sociais (“comunidades”) — ao conceber-se como diferente dos outros por tratálos de acordo com essa autopercepção. Nesse processo, os valores positivos são exclusivamente atribuídos ao conceito do “eu”; enquanto a alteridade dos outros é determinada por uma aberração negativa dessa norma. Mas isso não quer dizer que a maneira pela qual as definições universalizantes da humanidade, empregadas no processo de formação da identidade, são determinadas por essa lógica binária. Pelo contrário, essa lógica é flexível, é “aberta”. Ela ainda oferece a oportunidade de humanizar, se não de superar, o “choque de civilizações”. Essa chance repousa na alteração do conceito universalizante do que é ou deve ser o homem, a partir de uma perspectiva exclusiva no interior de uma inclusiva. Através da inclusão da alteridade do outro, a qual é deslocada da esfera de tudo o que está fora do “eu” para a área da nossa humanidade comum; de uma “humanidade” diversa (numa síntese de elementos empíricos e normativos). Através dessa virada, essa mudança fundamental de perspectiva, a alteridade se torna a manifestação específica das qualidades humanas do homem que transcendem todas as diferenças. Desse modo,

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ela adquire a singularidade que tem em comum com a singularidade do eu, e tudo isso dentro de um quadro conceitual no qual a diferença cultural enquanto elemento determinante da própria identidade não desaparece, mas desempenha um papel importante. Neste sentido, a diferença em relação ao outro se torna uma maneira de fazer-se a si mesmo ao ser refletido pelo outro; e os outros representam para o eu o desafio de serem reconhecidos.47 Uma compreensão abrangente da humanidade é, portanto, capaz de mitigar a amargura do etnocentrismo transformando-o em uma oportunidade de humanizar ambos os lados.48 Esta mudança fundamental é mais do que um postulado teórico distante da realidade. Há algumas conquistas históricas em que esta mudança já é prenunciada: primeiro de tudo, no enriquecimento da ideia da humanidade através da dimensão estética. Dentro dessa esfera — mas só nela — a dureza da diferenciação política e social é atenuada por meio da resolução imaginária. As “Briefe über die ästhetische Erziehung des Menschen”, de Schiller, equivalem a uma formulação clássica desta humanização do homem através da influência da arte.49 Outra manifestação do universalismo inclusivo é constituída pelas humanidades e seu método hermenêutico, onde um rico arsenal de entendimento da alteridade e da diferença foi desenvolvido. Os princípios de conciliação da universalização e com a individualização, ali aplicados, fornecem um conjunto de chances realistas para o reconhecimento da diferença cultural. Um bom exemplo disso é o conceito de “múltiplas modernidades” de Shmuel Eisenstadt.50 Enquanto isso, as humanidades também conseguiram apontar elementos da alteridade ocultos em seu próprio ser.51 Insights como estes tendem a alternar as restrições que causam ao eu o projetar de todos os elementos que são considerados inconciliáveis em relação à formação de sua 47 Emmanuel Levinas radicalizou esse argumento no sentido de conceber o eu nos termos do outro. (LEVINAS, Emmanuel: Humanismus des anderen Menschen, Hamburg, 1989 [LEVINAS, Emmanuel. Humanisrno do Outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993]). 48 Cf. RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1.1 (June 2004): 59- 74; also in: History and Theory 43 (2004) Theme Issue "Historians and Ethics": 118-129. 49 SCHILLER, Friedrich: “Über die ästhetische Erziehung des Menschen in einer Reihe von Briefen (1795)”, in: Sämtliche Werke in 5Bänden,ed. Peter-André Alt, Albert Meier and Wolfgang Riedel, vol. 5, Munich, 2004, pp. 570-669 (SCHILLER, Friedrich. A educação estética da humanidade: numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1995.). 50 EISENSTADT, Shmuel N.: "Multiple Modernities", in: Daedalus 129.1 (Winter 2000): pp. 1-30 (EISENSTADT, S.N.: “Múltiplas Modernidades”. Sociologia, Problemas e Práticas, n.35, Oeiras, p. 139163, abr. 2001.). 51 WALDENFELS, Bernhard: Vielstimmigkeit der Rede. Studien zur Phänomenologie des Fremden 4, Frankfurt/Main, 1999.

52 No entanto, as formas de vida sociedade civil secular são pluralisticamente entendidas apenas como algumas entre outras, por isso, a chance de fazer da alteridade um espaço habitável é perdida. A sociedade civil é, em primeiro lugar, uma meta-chave que permite o pluralismo da orientação cultural. 53 Cf. KÜENZLEN, Gottfried: Der neue Mensch, Frankfurt/Main, 1997.

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própria subjetividade, naqueles traços que constituem a alteridade do outro. Percebemos que estes traços não são nada mais que a sombra da extraterritorialidade de nós mesmos. Finalmente, a forma de vida secular da sociedade civil tem de ser mencionada. Em termos culturais, e com base na ideia da dignidade humana abre-se a oportunidade de viver com a diferença. O princípio da tolerância foi um primeiro passo nesse sentido. Mais do que isso, o passo importante que vai da tolerância para o reconhecimento é buscado em vários contextos.52 No entanto, a ideia de uma humanidade fundada no princípio da dignidade humana está ameaçada. Considerada a força avassaladora da economia de mercado e da lógica instrumental da tecnologia, a noção da autonomia moral e autodeterminação da humanidade parece ser apenas uma ilusão. Movimentos políticos poderosos, como o fascismo ou o comunismo foram inspirados pela ideia de superar o status quo do homem em favor de um “novo homem” ou “além-do-homem”, os quais eram considerados capazes de abandonar todas as imperfeições da vida humana, tais como existiam em sua forma contemporânea implícita, em troca de um admirável mundo novo.53 A atratividade dessa ideia foi reforçada pelas enormes oportunidades que existiam de manipular não só a cultura humana, mas também — devido aos avanços na biologia, na inteligência artificial e na pesquisa sobre o cérebro — até mesmo a própria natureza humana. Até agora, todas essas tentativas fracassaram catastroficamente. O mesmo se aplica aos atuais movimentos intelectuais do transumanismo, que ocupa todos os sonhos de felicidade e salvação por meio da promessa de realizá-los através de uma alteração no equipamento biológico do homem e do reforço da sua capacidade intelectual por meio da inteligência artificial de computadores nele acopladas. O que é o homem? Esta questão não perdeu nada de sua tropicalidade, abertura e tentativas controversas em respondê-la. Ao serem vistos, os últimos esforços intelectuais em dar uma resposta ao desafio lançado pela globalização em direção a uma orientação cultural sustentável à luz do desenvolvimento do impulso concomitante com a teoria universal das eras axiais, existem uma série de indícios de que o humanismo moderno é um sintoma de que nós estamos bem no meio de uma segunda era

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axial. O que está em jogo aqui são as visões (no sentido de uma melhoria qualitativa) de todas as realizações dos conceitos universalistas da humanidade que foram desenvolvidas na primeira era axial. Tal revisão exige uma “Renaissance”, uma recepção produtiva e um desenvolvimento do conceito de humanidade que, do humanismo moderno e até hoje, determina uma variedade de tradições culturais, as quais, numa comunicação intercultural decididamente ainda estão competindo umas com as outras em busca de uma compreensão não subsumida à cultura unitária da modernidade.54 De qualquer forma, a ideia de que a humanidade pode ser desenvolvida para além dela mesma, é um fator tão elementar quanto universal da vida humana, o que trouxe em jogo um novo pensamento humano, uma vez que até agora tinha sido totalmente sub exposto, se não mesmo antes desconsiderado: o sofrimento humano. Em vista dos vários crimes contra a humanidade que, como sempre, são experiências deprimentes dos nossos tempos e que as ciências humanas e sociais ainda estão lutando para compreender, o sofrimento humano deve ser muito mais focado, predominantemente em termos da questão de onde as oportunidades, mas, também, os limites de nossa humanização podem ser observados. Sem levar sistematicamente em consideração as propriedades antropológicas fundamentais e universais do homem, sua fragilidade fundamental e sua inevitável falibilidade e vulnerabilidade, qualquer reflexão realista sobre a humanidade se tornaria impossível.

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54 Cf. RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Humanism in Intercultural Perspektive. Experiences and Expectations, Bielefeld 2009; RÜSEN, Jörn/LAASS, Henner (Eds.): Interkultureller Humanismus. Menschlichkeit in der Vielfalt der Kulturen, Schwalbach/Taunus, 2009.

Contextualização e compreensão não são questões novas nas humanidades. Pelo contrário: elas pertencem aos pressupostos básicos das formas específicas, recentes e modernas de lidar com o mundo humano em discursos acadêmicos. Elas se originaram na mudança fundamental na geração de sentido histórico exemplar para o modo genético2, na virada do século XIX3. Elas tornaram-se essenciais para as disciplinas acadêmicas das ciências humanas com a sua abordagem racional para o mundo humano. Tais disciplinas foram estabelecidas na Europa durante o século XIX e, desde então, se espalharam por todo o mundo. (Na minha argumentação a seguir irei me referir principalmente à disciplina de história como um paradigma para as humanidades.) Esta mudança pode facilmente ser compreendida ao referirem-se 1 Publicado em Taiwan Journal of East Asian Studies. Vol.7, N.1 (Issue 13) June 2010, p.21-39. Traduzido por Lucas Pydd Nechi. 2 Nota do Autor: A palavra “genética” pode ser mal compreendida. Seu significado aqui não tem relação com os genes do corpo humano, mas se refere à palavra grega ‘genesis’, que significa ‘produção’, ‘geração’, ‘vir a ser’. Eu compreendo por ‘genética’ um modo temporal do mundo humano enfatizando a mudança. 3 Nota do Autor: O texto clássico descrevendo esta mudança está em Reinhart Koselleck, Historia magistra vitae. Über die Auflösung des Topos im Horizont neuzeitlich bewegter Geschichte, in idem: Vergangene Zukunft. Zur Semantik geschichtlicher Zeiten (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1979), pp. 38-66. English version in: Reinhart Koselleck, Futures Past: On the Semantics of Historical Time (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985). Eu analisei estes dois tipos de quadros de tipologia geral de produção de sentido histórico em Jörn Rüsen, History: Narration, Interpretation, Orientation (New York: Berghahn Books, 2005), pp. 9-39.

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Historicizando a humanidade – algumas considerações teóricas na contextualização e compreensão sobre a ideia de humanidade1

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à forma pré-concebida dominante de se fazer história em tempos prémodernos. Então, era a maneira exemplar de dar sentido ao passado que moldou o pensamento histórico na maioria, se não todas, as culturas por um longo tempo. Foi exatamente essa lógica do pensamento histórico contra o qual o especificamente moderno, a lógica de geração de sentido genético, se opôs. O pensamento exemplar estava interessado em derivar regras gerais de conduta humana, a partir de casos concretos de eventos históricos. A experiência histórica fornecia um grande estoque de personagens e eventos para o discernimento moral e político. Cicero expressa essa lógica do pensamento histórico com o famoso slogan “historia magistra vitae”. Estas regras foram encaradas como sendo trans-temporalmente válidas, para além do contexto específico de tempo e espaço em que a vida humana ocorre. No âmbito desta lógica da história, a compreensão do passado como repleto de sentido para o presente significava que ambas as dimensões temporais incorporavam-se como um dado natural de regras válidas trans-temporalmente. A compreensão seguiu a lógica de julgamento (Urteilskraft): regras gerais foram geradas a partir de casos concretos do passado e aplicadas a casos semelhantes, porém diferentes, no presente. Assim, a história habilitaria a pessoa historicamente educada para lidar com os acontecimentos do presente de acordo com a rica experiência do passado. Esta compreensão histórica é guiada pela lógica da regra de competência. A compreensão do que aconteceu no passado referia-se apenas a um contexto único, a unidade da humanidade, ou melhor, a natureza da humanidade. Compreensão significava encontrar as regras gerais de conduta humana em cada evento histórico. O pensamento histórico moderno começou com uma crítica fundamental deste modo exemplar de dar sentido ao passado. Um slogan famoso de Ranke no qual ele só queria demonstrar "como as coisas realmente eram" (wie es eigenlich gewesen) foi explicitamente dirigido contra esta lógica de geração de regras gerais a partir de eventos específicos.4 Em vez disso, ele afirmou que temos de olhar para os acontecimentos do passado 4 Nota do autor: À história tem sido atribuída a tarefa de julgar o passado, para ensinar ao mundo contemporâneo em benefício do futuro. Nosso esforço presente não reivindica uma tarefa tão prestigiosa: Ele só tem como objetivo mostrar, como as coisas eram realmente [o que eram as coisas realmente; como as coisas realmente aconteceram; como ele realmente foi]. In Leopold von Ranke, Geschichten der romanischen und germanischen Völkervon 1494-1514, Sämtliche Werke, Bd. 33 (Leipzig, 1855), p. VIII. Also in Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History, ed. with an Introduction by Georg G. Iggers and Konrad von Moltke (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973), p. 137.

5 Em inglês: Leopold von Ranke, The Theory and Practice of History (Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1973), fn. 2, p. 53. 6 (n.r. Jonathan Sacks, The Dignity of Difference: How to Avoid the Clash of Civilizations (London: Continuum, 2003).

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através de um quadro de interpretação no qual a auto-compreensão das pessoas do passado tenha sido sistematicamente integrada. Este é o significado de outro slogan famoso de Ranke, "Cada época é imediata a Deus."5 Isto significa que cada época tem o seu significado histórico em si. Ele não é de forma alguma conquistado por sua assumida relação direta com os padrões atuais de significância (o conceito mais relevante dessa relação direta é o conceito de progresso); pelo contrário, o seu significado é definido pela sua diferença em relação ao presente. Assim, o passado e o presente obtem uma nova relação temporal caracterizada pela diferença e não mais pela semelhança trans-temporal da vida humana em relação a alguns supostos princípios básicos da vida prática, válidos apesar de todos os contextos diferentes. Esta mudança na formação das categorias temporais de pensamento histórico pode ser caracterizada pelos termos de temporalização ou historicização. De acordo com esta nova lógica da história, a compreensão adquiriu um novo significado: ela concretiza esta temporalidade ou historicidade da vida humana nos processos mentais de representação do passado como repleto de significado para o presente (e de sua perspectiva de futuro). A compreensão inclui a consciência dos diferentes padrões de sentido e significado, dando assim ao evento ou ao texto em questão a "dignidade da diferença"6. A categoria básica deste tratamento hermenêutico do mundo humano é a categoria de individualização. Fenômenos contextualizados do mundo humano só podem ser compreendidos se a sua individualidade, de fato, a sua singularidade em relação a outros fenômenos da mesma natureza, é sistematicamente levada em consideração. Se contextualização e compreensão são princípios já constitutivos do trabalho profissional nas disciplinas estabelecidas das ciências humanas, podemos perguntar: por que é necessário levantar esta questão novamente? Há duas respostas para esta pergunta: uma simples e uma provocante. A simples refere-se à tradição da meta-história dentro da disciplina estabelecida, a reflexão puramente acadêmica sobre conceitos e métodos. A provocadora coloca o discurso acadêmico em seu contexto de orientação cultural na vida social e política. A resposta simples refere-se ao fato de que as concepções e métodos das

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ciências humanas nunca foram estabelecidos definitivamente. Eles foram concebidos no início do pensamento moderno sobre o mundo humano, e tornaram-se eficazes no desenvolvimento do pensamento histórico como modos flexíveis e dinâmicos – correspondendo a temporalização e historicização do assunto em questão, a própria história. Contextualização e compreensão, ou historicidade e hermenêutica, tendem a mudar no processo de discursos disciplinares. Esta mudança pode até ser explicitamente trazida por uma reflexão dentro desses discursos. (Esta entrada reflexiva nos conceitos e métodos básicos do pensamento histórico especialmente acontecem em tempos chamados de "crises de princípios fundamentais" (Grundlagenkrise.) - como o Lamprecht-Streit na Alemanha. Mas, também podem ocorrer como uma tendência em instituições bem estabelecidas de pesquisa, interpretação e representação.) Exemplos bem conhecidos desta mudança ocorrida na longa discussão sobre generalização e individualização, sobre explanações e compreensões, e hoje em dia sobre a racionalidade e poética nas humanidades (principalmente em estudos históricos). Portanto, é útil continuar esta reflexão de tempos em tempos a fim de provar, para confirmar, e (re) estabelecer a solidez conceitual e metodológica e a estabilidade das ciências humanas (a respeito da sua correspondência com experiências tópicas de mudança temporal e quanto às necessidades de orientação histórica em face a essas experiências). Há duas questões nesta mais ou menos permanente auto-reflexão em estudos históricos que demandam atenção: A primeira é indicada pela questão de como aplicar o conceito de contextualização para a cognição em si provocada pelas humanidades e seu trabalho de pesquisa. Será que tal aplicação não destrói qualquer reivindicação por validade intersubjetiva? O outro problema é abordado com a pergunta: como pode a historicidade pode ser entendida, ou qual modo de compreensão é adequado para a historicidade do mundo humano? Por que isso é considerado um problema tão fundamental da hermenêutica? A hermenêutica moderna segue a regra de entender diferentes formas de vida, utilizando a sua autocompreensão, seu próprio potencial semântico. Mas, como entender as mudanças históricas das formas de vida? Elas acontecem com pessoas além e até mesmo contra o que eles desejavam que acontecesse. Só depois, ao olhar para trás para a mudança, seu significado pode ser apreendido (não ignorando o entendimento das pessoas que tiveram de viver ou passar por ela, é claro). A fim de realizá-lo, uma referência à posterior, o potencial semântico desenvolvido é inevitável. Esta referência vai de uma época a

7 Nota do Autor: Essa expansão é descrita no caso da história por Georg G. Iggers e Q. Edward Wang, A Global History of Modern Historiography (Harlow: Pearson Education, 2008).

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outra, até que finalmente traz o horizonte semântico da forma de vida dos próprios estudiosos para o jogo da compreensão. Como pode esta relação básica "intertemporal" de entendimento, que faz a ponte entre o passado e o presente, ser mediada com a diferença temporal constitutiva, que a hermenêutica moderna tem sistematicamente levado em consideração? Se alguém toma esses problemas que se deslocam a sério, ou seja, se os relacionam com questões básicas de orientação cultural hoje, a pergunta por que contextualização e compreensão devem ser tematizadas novamente irá assumir um caráter mais provocante. A contextualização e a compreensão devem ser refletidas em uma nova forma radical e crítica em face ao desafio da globalização dentro e fora das humanidades. Globalização dentro das humanidades refere-se ao desafio de seu esforço hermenêutico e a alegação de que os seus resultados têm validade universal (e isso significa: transcultural). Como tal afirmação é possível? Se cada manifestação cultural no passado só pode ser entendida se for contextualizada, - o que acontece com o trabalho interpretativo das humanidades? É possível compreendê-lo para além do seu contexto cultural específico? A variedade e diferença de contextos não contradizem qualquer validade universal? Por outro lado, podemos pensar sobre o trabalho cognitivo das humanidades provocado por suas pesquisas metodicamente regrados sem tal pedido de validade inter-subjetiva? Esta questão epistemológica e metodológica adquire sua forma nítida e radical se for levada para fora da vida acadêmica e colocada no contexto cultural das ciências humanas e for confrontada com os problemas de comunicação intercultural de hoje. Aqui ela reflete e repete o desafio da globalização fora das humanidades. Este desafio surge a partir de uma experiência cultural muito específica: A dominação ocidental no processo mundial de modernização. Este processo inclui a expansão das humanidades modernas em todo o mundo e seu estabelecimento na vida acadêmica em todas as civilizações não-ocidentais.7 Eles podem ignorar as mudanças e diferenças em seus contextos culturais? A validade de suas consequências cognitivas é independente de contexto, ou seja, realmente global e universal, apesar dos poderes mentais de diferentes tradições culturais dos países onde eles sustentam a sua vida acadêmica? A ideia de objetividade, que subjaz a esta reivindicação de validade universal, tem sido bastante poderosa na auto-consciência dos estudos

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históricos. No entanto, desde o início das humanidades modernas e em diante ela foi epistemologicamente inválida. A dependência da interpretação hermenêutica sobre o contexto cultural ou mediante o então chamado "ponto de vista" dos profissionais no contexto cultural de suas sociedades foi notado e refletido já no final do século 18. Ela tornou-se um elemento importante na lógica da auto compreensão e autorreflexão das novas disciplinas acadêmicas das ciências humanas. Isso aconteceu exatamente ao mesmo tempo e na inter-relação sistemática com o surgimento e o desenvolvimento da nova racionalidade metódica, que definiu as humanidades como disciplinas acadêmicas. Em plena consciência dessa racionalidade, eles se chamavam no mundo não falante de inglês (Alemanha, França, Itália, etc.) de "ciências". Seu caráter erudito ou acadêmico foi definido pelo profissionalismo dos estudiosos. E, este profissionalismo foi manifestado na capacidade dos estudiosos de trazer o progresso do conhecimento pela pesquisa. Foi esse profissionalismo e a eficiência dos novos métodos de pesquisa que fizeram a forma moderna de pensar nas humanidades irresistíveis e viáveis para que pudessem ser transferidas para a vida acadêmica em todo o mundo. A situação atual das ciências humanas no processo de globalização é, como já disse antes, caracterizada por um desafio radical desse universalismo8. Cada vez mais, ela tem sido criticada como uma pura ideologia de dominação cultural ocidental e como uma supressão de diferentes formas de pensamento e cognição sobre o mundo humano e sua história9. Isto é evidente na chamada virada pós-colonial nas ciências humanas e sociais. Movimentos semelhantes são o discurso subalterno e muitas manifestações do pós-modernismo. A dureza e forma radical deste crítica se sustentam no fato simples, mas muito poderoso de que todas as abordagens cognitivas para o mundo humano também funcionam como elementos e fatores na prática da 8 Nota do Autor: A este desafio foi dada uma forma histórica por Peter Novick, em That Noble Dream: The "Objectivity-Question" and the American Historical Profession (New York, Cambridge: Cambridge University Press, 1988). 9 (Um bom exemplo é Finn Fuglestad, The Ambiguities of History: The Problem of Ethnocentrism in Historical Writing (Oslo: Academic Press, 2005); ver Jörn Rüsen, "The Horror of Ethnocentrism: Westernization, Cultural Difference, and Strife in Understanding non-Western pasts in Historical Studies," in History and Theory, 47 (May, 2008), pp. 261-269. Vinay Lal foi tão longe a ponto de declarar a abordagem ocidental para o pensamento histórico sobre a Índia como um "genocídio cultural", já que a Índia nunca teve uma tradição de pensamento histórico como a Ocidental. Veja Vinay Lal, "Provincializing the West: World History in the Perspective of Indian History," in Benedikt Stuchtey and Eckhardt Fuchs (eds.), Writing World History 1800-2000 (Oxford: University Press, 2003), pp. 271-289, quotation p. 288 sq.)

10 Nota do Autor: Só para dar um exemplo: "A filosofia indiana começou por volta de 2000 a.C. e durou até os dias de hoje, enquanto os escritos sobre filosofia grega começam geralmente com Thales do século VII a.C. e termina com os alexandrinos do terceiro século d.C. ... Enquanto o pensamento indiano tem tido uma continuidade de cerca de 4.000 anos ... o pensamento grego teve uma continuidade de apenas cerca de mil anos." Veja P.T. Raju, " The Concept of Man in Indian Thought ", em S. Radhakrishnan e P.T. Raju (eds.), The Concept of Man: A Study in Comparative Philosophy (London: George Allen & Unwin, 1960), pp. 206-305, esp. p. 206.)

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orientação cultural. O trabalho das ciências humanas é parte do processo cultural pelo qual a questão da identidade cultural é tratada; ela funciona direta ou indiretamente proporcionando as pessoas uma identidade habitável. Por identidade, eu entendo o fato cultural básico de que cada pessoa e cada unidade social precisa de uma ideia de quem são e do que os outros são, de quem eles se diferenciam em variadas esferas da vida humana. Quer se goste ou não, quer ela se realize de forma deliberada ou inconscientemente, as humanidades são sempre uma parte da política de identidade. A questão da identidade pertence ao contexto, que concerne aos discursos sobre e dentro das reflexões sobre a contextualização e compreensão. Ela motiva o trabalho das humanidades de enfatizar a diferença, já que a identidade é basicamente uma questão de distinção, de diferença, e de discriminação. Há duas possibilidades de perceber e levar a cabo esta imersão das ciências humanas nos processos culturais de formação da identidade e da sua política relacionada. As humanidades podem ser utilizadas como um meio para os fins de formação da identidade. Elas podem ajudar a provocar uma auto-imagem positiva ao custo da imagem dos outros. Ao fazer isso, eles seguem a lógica do etnocentrismo10. Ou, as ciências humanas podem ser usadas como uma estratégia cognitiva da inter-subjetividade. Essa estratégia faz a mediação entre o eu (self) e o outro e transfere diferença em uma forma de vida comum onde não se desaparece, mas se torna habitável de uma forma humana. Assim, no jogo da formação da identidade cultural, as humanidades podem ser uma arma ou uma ponte. Neste artigo eu gostaria de mostrar que a única maneira das humanidades poderem realizar seu trabalho é através de uma plena consciência de sua dependência de contexto. Ao mesmo tempo, elas devem permanecer comprometidas com o princípio da intersubjetividade. Na ausência deste princípio, eles não podem transpor a diferença cultural pela compreensão. É claro, o entendimento também pode ser uma arma muito poderosa em uma luta, ou embate, entre as diferentes formas de vida e civilizações. Nesta função, o entendimento é usado dentro de uma

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estratégia de conflitos e jogos de poder. Mas, gostaria de enfatizar a outra forma de compreensão: ela não segue a lógica de uma estratégia de autopreservação ou mesmo auto-aprimoramento, com a consequência de subjugação e dominação na relação com os outros, e isso não é inspirada por as forças mentais de etnocentrismo. Em vez disso, a compreensão pode seguir a lógica de comunicação com o objetivo de dar e receber o reconhecimento. Aqui a peculiaridade se não singularidade da forma da própria vida e da diferença dos outros é uma preocupação primordial11. Esta alternativa não é uma questão de livre escolha ou de inclinação moral arbitrária; ao contrário, é uma questão de argumentação racional. Em tais casos, a compreensão não é possível sem que haja pelo menos alguns elementos de reconhecimento de diferenças. Ela não pode ser provocada sem uma mudança de perspectiva, de modo que a própria forma de vida de alguém não é percebida como unilateral, mas em uma forma relacional pela consciência da alteridade. Além disso, ninguém pode ignorar o simples fato de que o grau e o nível de compreensão aumentam com o grau e nível de empatia e reconhecimento. A fim de responder ao desafio da crítica anti-ocidental e da demanda de reconhecer a diferença dos tópicos de comunicação intercultural, o trabalho e os procedimentos das ciências humanas tem que confirmar a diferença de uma forma mais alargada e mais profunda. Ao mesmo tempo, uma forma prolongada e intensa de tratar a ideia de conceitos e métodos transculturais tem de ser invocada como um meio necessário para a cognição. Estes conceitos permitem que as ciências humanas evitem o perigo de pensar de modo etnocêntrico e para mediar as diferenças para que reivindicações de verdade universais permaneçam sólidos princípios de comunicação intercultural. Como é possível uma dimensão transcultural da cognição? Será que ela não contradiz a visão hermenêutica sobre a dependência do contexto da compreensão de significado e significância na orientação cultural da vida prática humana? Cada passo em direção à cognição hermenêutica transculturalmente válida não retrocede para as conquistas da temporalização e historicização das humanidades modernas? De fato, trazer a validade transcultural nas humanidades com o custo da contextualização não é totalmente convincente. Somente através de um fortalecimento metódico da contextualização é que a ideia de validade intercultural poderá ser plausível à primeira vista. 11 Nota do Autor: Conferir Jörn Rüsen, "How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century," in Taiwan Journal of East Asian Studies, 1, 1 (June, 2004), pp. 59-74; also in History and Theory, 43 (2004), Theme Issue "Historians and Ethics", pp. 118-129)

12 Nota do Autor: Conferir http://www.kwi-humanismus.de 13 Nota do Autor: Os primeiros passos para afinar esta questão e preparar respostas foram apresentadas em Jörn Rüsen and Henner Laass (eds.), Humanism in Intercultural Perspective — Experiences and Expectations (Being Human: Caught in the Web of Cultures-Humanism in the Age of Globalization, vol. 1) (Bielfeld: Transcript, 2009).

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Por fortalecimento, eu entendo as vantagens metódicas de uma contextualização sistematicamente reflexiva. Meu argumento é bastante simples. Ao refletir contextos, as mentes humanas podem romper suas fronteiras. Qual é a dimensão semântica deste rompimento? Uma vez que a capacidade de refletir sua orientação cultural (ou, como Richard Rorty, uma vez colocou, "para falar sobre a linguagem") constitui a peculiaridade, se não a singularidade do ser humano, esta dimensão é a humanidade. Com este argumento, eu utilizo a ideia pré-moderna de compreensão, referindo-se a mesma natureza cultural do homem. Mas, é uma natureza cultural completamente historizada e individualizada. A ideia dessa natureza cultural temporalizada da humanidade tem sido sistematicamente levada em conta como conceitual, ou melhor, como a pré-condição categórica para intersubjetividade no trabalho hermenêutico das humanidades. Esta é uma tarefa filosófica inserida nas humanidades e em nome de seu status acadêmico. Em vez de desistirmos de uma mudança topológica recente de visões de mundo modernas e sua lógica constitutiva de universalismo, devemos continuar a desenvolver a nossa compreensão do que significa ser um ser humano. Eu gostaria de dar um exemplo de tal elaboração a partir do projeto, "Humanismo na Era da Globalização - Um Diálogo Intercultural sobre a Humanidade, Cultura e Valores12.” Neste projeto, perseguimos o problema: Como é possível congregar diferentes tradições humanistas em um conceito abrangente, sem ignorar as diferenças e sua importância para a formação da identidade cultural?13 Cada humanismo refere-se a uma ideia do que significa ser um ser humano, cada um possui uma ideia de humanidade. Para desenvolver essa ideia, nós temos que pegar um conceito de humanidade que já é reconhecido no contexto cultural dado do próprio trabalho de cada um. Temos que refletir sobre tal conceito mais ou menos criticamente e desenvolvê-lo e aprofundá-lo. Em meu próprio trabalho de humanismo, eu comecei com essa ideia e conceito referindose à declaração de Immanuel Kant que todo ser humano é sempre mais do que apenas um meio para os fins dos outros, mas um fim em si próprio. Kant chama essa qualidade de cada ser humano para ser um fim em si

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próprio de dignidade. Seria um erro tomar esta afirmação como uma base fixa para a comunicação intercultural, embora eu não vejo argumentos convincentes para negá-la. No contexto de um discurso intercultural acadêmico, essa ideia fundamental da dignidade humana tem de ser deslocada para um movimento argumentativo. Ela tem que ser contextualizada e usada como um princípio de compreensão. Com esse princípio, diferentes tradições e formas de vida recebem a dignidade de ser compreendidos no horizonte de sua própria visão do mundo como um resultado de sua história. Podemos chamar isto de a dignidade da autonomia cultural. Há um perigo em atribuir essa autonomia a todas as várias culturas ou civilizações no tempo e no espaço. Gostaria de chamar esse perigo de "Spenglerization”. Isso significa que cada cultura é encarada como sendo basicamente independente de todos os outros e só segue seus potenciais internos específicos de dar sentido ao mundo. Nessa perspectiva, a comunicação intercultural interpretativa aparece apenas como uma interrelação externa e ignora elementos de várias culturas, bem como a dinâmica da mudança histórica provocada pela troca de ideias e bens materiais. Além disso, a questão epistemológica não poderia ser respondida: como é possível entender as culturas que seguem padrões diferentes de visão de mundo e não a semântica que determina a abordagem da compreensão? A compreensão é impossível sem elementos interculturais ou mesmo universais, que combinam ambos os lados, o lado da compreensão e do lado quem está sendo compreendido. Mais do que isso, em cada ato de compreensão, o contexto daqueles que a perseguem não será deixado para trás, mas irá se fundir com ele. Aqui temos de ter cuidado com o perigo à espreita de alienar os outros quando subjugá-los no âmbito de uma maneira própria de pensar. Este é o perigo de fundamentalmente ignorar a diferença que provoca a sutileza dos procedimentos hermenêuticos. Assim, a alteridade dos outros, pela qual eles pensam como a essência de sua identidade, pode ser perdida. Este perigo pode ser evitado por uma abertura básica aos outros no método hermenêutico, que é acionado por um orientador de interesse pela diferença. Essa abertura exige uma ideia da humanidade que saliente a diferença e a mudança sob o pressuposto de universais antropológicos, como a ideia de dignidade. Tais universais existem, é claro.14 Eles 14 Nota do autor. Conferir: Christoph Antweiler, Menschliche Universalien. Kultur, Kulturen und die Einheit der Menschheit (Darmstadt: Wiss. Buchgesellschaft, 2007)

15 Nota do Autor: Um exemplo típico é Kant em “Ideia para História Universal com Propósito Cosmopolita” de1784. Conferir “Kant’s Political Writing”, H. Reiss (ed.) (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), pp. 41-53.

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pertencem essencialmente à estrutura interpretativa de conceituar a diferença no pensamento hermenêutico. A fim de avançar a partir de universais antropológicos para peculiaridades culturais, devem-se construir tipos ideais. Eles revelam em que condições os universais obtém suas manifestações peculiares. Aqui o processo de contextualização obtém rigor metódico no trabalho cognitivo das ciências humanas. Cada cultura tem uma ideia do que significa ser um ser humano. Esta ideia se manifesta em uma grande variedade de ideias da humanidade. Hoje, é a tarefa das ciências humanas para entender tais variações, trazendo-as em perspectiva intercultural. Este processo, no entanto, é contestado pelos problemas atuais de comunicação intercultural. O que precisamos é de uma teoria da humanidade que fundamentalmente historicize o significado de ser humano e, ao fazê-lo, torne a variedade deste significado compreensível. Eu comecei a desenvolver uma teoria, mas seria necessário outro artigo para apresenta-la apropriadamente. Talvez eu possa tentar esboça-la em poucas palavras. Gostaria de chamar esta teoria da humanidade de uma nova filosofia da história, que se apropria e desenvolve a clássica dos finais do século XVIII e início do século XIX15. Esta filosofia categoricamente lança a história em geral como a humanidade temporalizada. Seguindo esta ideia, os historiadores têm de assistir a essas experiências em que a própria humanidade articula a si mesmo, onde pronuncia o que significa ser humano. O marco de referência universal, assim, iria encontrar sua afirmação empírica. Articulando a humanidade – o que pode servir como fio condutor de dar-se sentido ao passado. Como vincular todas as diferentes manifestações culturais da humanidade juntas em uma história, que se afirmaria para a humanidade como uma totalidade? A fim de trazer essa conquista do pensamento histórico, tal fio condutor da história precisa de uma ideia abrangente de mudança temporal. Esta tendência básica ou direção do tempo deve expressar a totalidade da humanidade que está em pauta. Portanto, ela pode ser conceitualizada apenas como uma tendência ou processo de universalização. Essa universalização - transgredindo todos os limites da convivência humana e, principalmente, atribuindo à qualidade de ser humano para todos os membros da raça humana - tem ocorrido em diferentes lugares do mundo e em diferentes épocas. Karl

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Jaspers nos introduziu tal conceito de história com a sua ideia de Tempo Axial16. Dentro desta perspectiva histórica universal, a humanidade aparece como uma variedade de universalismos articulando a natureza cultural dos seres humanos de diferentes formas. A diferença ou, para utilizar um conceito tradicional, a individualidade tornou-se uma característica essencial da humanidade. Durante muito tempo, e mesmo hoje em dia (no poder da tradição), estes universalismos foram excluindo-se uns aos outros. Essas exclusões são eficazes como limites da compreensão. Mas, esses limites podem ser transgredidos apenas para o nível em que os universais da humanidade já não se excluem mutuamente, isto é, somente mudando a lógica da exclusão para uma lógica da inclusão. Esta mudança vai abrir novas possibilidades de compreensão. Ao usá-las, as humanidades podem responder com êxito os desafios da comunicação intercultural na era da globalização.

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16 Nota do autor: Karl Jaspers, Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (inicialmente em Zürich, 1949; rpt. München: Piper, 1963) . Em inglês: The Origin and Goal of History.

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Algumas ideias sobre o humanismo político e a religião como uma base necessária para uma democracia sustentável1 Este trabalho2 não aborda a dicotomia elite-massa nas democracias modernas, também não contribui para uma comparação internacional e intercultural das democracias. Em vez disso, em uma virada mais fundamental para a cultura política da democracia, ele se refere à conceituação da abordagem de valores e atitudes mentais e sua importância para a democracia. (Ao tematizar este nível fundamental de constituir a democracia pela cultura, os argumentos apresentados podem ser úteis para qualquer reflexão e para parâmetros de comparação). Como tal, a minha argumentação é elitista por seu caráter acadêmico e intelectual. Com isto, tem como objeto uma comparação das democracias; combina, por assim dizer, a investigação das elites com as elites investigadas. O quadro de interpretação dos elementos culturais essenciais da democracia é composto de dois elementos, nomeadamente, teoria política e filosofia da história. Ambos são sintetizados por seu respeito especial e comum a um elemento básico da cultura humana: o da identidade coletiva. A democracia assenta em dois pilares: as instituições e a mentalidade das pessoas. Se as instituições não são aceitas e reconhecidas pelo povo

1 Eu gostaria de agradecer a Ursula van Beck pelas inúmeras questões críticas e argumentos que produziram melhorias substanciais em minhas próprias argumentações. Continuo responsável, é claro, pelo que permaneceu ainda não convincente e problemático. 2 Traduzido do inglês Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy, por Maria Auxiliadora Schmidt (Texto cedido pelo autor).

O enraizamento da ordem política nos valores dos cidadãos.

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é fácil alterá-las para formas menores ou não-democráticas.3 Portanto, a mentalidade das pessoas que vivem nas instituições desempenha um papel importante para a comparação entre diferentes países, na perspectiva da sustentabilidade da sua ordem política democrática. Neste capítulo, não discutirei as peculiaridades das diferentes democracias e os problemas de comparar suas diferentes culturas políticas e sua manifestação na mentalidade da elite. Em vez disso, eu gostaria de focar o sistema de valores fundamentais pelos quais a democracia em geral e em seus princípios é definida, e continuar a olhar para a questão da diferença cultural que decorre de diferentes tradições da cultura política. A fim de deixar claro sobre o que democracia é essencialmente, é útil olhar para o seu contrário. O contrário é a teocracia, o autoritarismo e o totalitarismo. Tendo como exemplo o Islã e o papel que ele desempenha no desafio político da ordem democrática hoje, eu gostaria de explicar a peculiaridade da democracia em contraste com a teocracia. A democracia baseia suas decisões políticas na vontade do povo, na teocracia elas são entendidas como a vontade de Deus. A democracia é uma questão de discussão e negociação, a teocracia é uma questão de aplicar uma ordem divina para assuntos terrestres e de exigir obediência. A teocracia obtém sua legitimidade e a ordem, referindo-se às forças sobrenaturais, transcendendo o campo da existência humana, ao passo que a democracia se refere à responsabilidade dos homens para com sua forma de vida política. Sua legitimidade decorre de meras capacidades humanas e principalmente da razão como uma capacidade comunicativa para discutir e regulamentar assuntos mutuamente interessantes à comunidade. Esta referência 'terrestre' ou 'deste mundo' dá a democracia a característica cultural do humanismo (pelo menos nos tempos modernos).4 A melhor indicação para esse humanismo é o papel que o conceito de ' 'dignidade humana' possui no quadro constitucional das democracias. A constituição alemã, por exemplo, começa com o artigo 1: " A dignidade humana é inviolavel. Respeitar e protegê-la será o dever de toda autoridade do estado. 2. o povo alemão, portanto, reconhece os 3 Um exemplo paradigmático é o fim da República de Weimar e a tomada de poder pelos nazistas na Alemanha.Muitos membro do parlamento federal, embora não pertencessem aos partidos que negavam a democracia, como os comunistas e os nacional-socialistas, tinham perdido a confiança na ordem democrática e votaram a favor do “Ermâchtigungsgesetz” (ato de habilitação) o que,na verdade acabou com a validade da constituição democrática 4 Na democracia grega falta o princípio fundamental da igualdade e, portanto, sua base cultural não pode ser chamada de humanística. Mas, o pensamento político grego é uma das condições históricas para o que chamamos hoje de humanismo político.

5 Apreciação de si e reconhecimento pelos outros – e ambos ao mesmo tempo – são uma condição necessária para a identidade estável e dignidade. 6 Isto é claramente expresso por Chipkin (2007): 2. "... a nação é uma comunidade política cuja forma é dada em relação ao exercício da democracia e da liberdade."

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direitos humanos como invioláveis e inalienáveis e como a base de todas as comunidades, da paz e da justiça no mundo." Isto não é um caso isolado, mas representativo da maioria das Constituições das democracias modernas, começando com a declaração das Nações Unidas de 1948. Aqui o preâmbulo diz que: "o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e paz no mundo." Cerca de 145 das 193 Constituições dos Estados do mundo, em abril de 2004, se referem explicitamente ao conceito de 'dignidade humana' ou 'dignidade pessoal' como uma base cultural para legitimar a forma democrática de dominação política (Baets, 2005). Dignidade é uma qualificação normativa da humanidade. Como uma norma fundamental, domina a vida humana na sua dimensão política e social sob a forma de leis básicas. Podemos dizer que é o fôlego cultural da vida política e social na sua forma moderna, secular e civil. Mas a dignidade humana é mais do que uma regra e princípio ético. É um fator constitutivo da identidade humana também.5 Como tal, ancora a legitimidade da dominação política e da forma de vida social no núcleo e profundidade da subjetividade humana. A questão de como a democracia é sólida e bem estabelecida em diferentes países do mundo não pode ser respondida sem referência a esta dimensão da subjetividade humana, onde a humanidade é eficaz como um princípio moral básico e um elemento de formação da identidade pessoal e coletiva. Identidade política como parte da cultura da democracia moderna é geralmente definida por nacionalidade. Isto é - no meu entendimento – o significado da terceira parte do slogan bem conhecido da Revolução francesa, a "fraternidade". Ele indica a nova e especialmente democrática forma de união, o quadro de pertença, de identidade política das pessoas que se definem como cidadãos.6 Eu omitiria a pergunta se esta forma nacional de identidade política nas democracias modernas aplicar-se para onde quer que a democracia esteje instalada. Em qualquer caso, é típico e representa um problema de identidade, que é inerente não só na sua forma nacional. Identidade sempre implica uma distinção entre o eu próprio e os

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outros, quer se trate de autoreferência de uma pessoa ou de um grupo. Esta distinção é uma fonte de tensões, uma vez que é normalmente baseada na lógica do etnocentrismo (Rüsen, 2004 a, b, c). Essa lógica é composta por três elementos, (a) uma avaliação desequilibrada: a auto-imagem é caracterizada por um conjunto de valores positivos. Considerando que a imagem dos outros é caracterizada por um conjunto menos positivo, ou mesmo valores não negativos. O exemplo generalizado desta avaliação desigual é a justaposição da civilização contra a barbárie. (b) o etnocentrismo consiste em uma teleologia orientada a origem como a forma dominante da narrativa mestra, que informa as pessoas quem está lhes apresentando a história, como eles se tornaram o que são e o que eles querem ser no futuro. (c) finalmente, etnocentrismo fornece às pessoas uma posição central entre a variedade de povos e países ao redor deles, enquanto que os outros são marginalizados no espaço e no tempo. O caráter tenso desta lógica da identidade formada é aparente: a avaliação desequilibrada provoca um "choque de civilizações" na identidade política. Especialmente, as relações internacionais sofrem com estas assimetrias que opõem um ao outro. Na identidade retratada nas narrativas mestras muito deste confronto constitui-se como uma luta de – centrismos uns contra os outros (eurocentrismo, sinocentrismo, afrocentrismo etc ou país do Deus próprio contra outros países na sombra da divina luz da civilização etc.). Desde que o conceito de formação de identidade da cultura política nas democracias modernas refere-se à idéia de uma "inviolável" dignidade do ser humano, o humanismo político da democracia moderna é confrontado por esta lógica de conflito do etnocentrismo. Um conceito de cultura política paradigmaticamente diferente é representado como uma comunidade política com base em e centrado em torno de valores teocráticos. (Aqui, o Islã tornou extremamente importante hoje na política de identidade, não só na Europa). Nem a diferença entre uma democracia e outra não é livre de elementos etnocêntricos. Outras democracias são tradicionalmente encaradas como sendo caracterizada por uma falta de humanismo em comparação com a sua própria autoestima.7 7 Isto é sempre o caso se democracias com uma tradição histórica longa comparam-se com as recém estabelecidas. Atitudes ocidentais para as democracias não-ocidentais não são livres desta auto-estima etnocêntrica. Mas, mesmo no Ocidente pode ser observada uma inter-relação tão desiquilibrada. Intelectuais alemães no pós-guerra, por exemplo, olharam com alguns sentimentos de inferioridade (ou, pelo menos, das deficiências históricas) para as democracias mais estabelecidas no oeste da Europa e EUA.

8 É incrível que na África do Sul não foi feita nenhuma tentativa publicamente eficaz para criar uma nova identidade Sul-Africano, referindo-se ao evento histórico fundador de, conjuntamente, promover a superação do apartheid e criar uma ordem política baseada na idéia de liberdade. Em minha opinião, seria possível desenvolver uma nova narrativa mestra da África do Sul, referindo-se a esta grande mudança histórica de um sistema de supressão em um sistema de liberdade política. Uma das razões por que isso nunca foi tentado com êxito é o fato de que a identidade nacional já teria sido criada no período pré-democrático da história sul-africana, como uma identidade única de grupos da população como os Afrikaners ou os Zulus. É simplesmente impossível dar uma identidade já estabelecida a favor de um novo e diferente. Só é possível dar essa identidade já estabelecida no quadro de uma identidade política se a identidade original que está preservada e mudou. Um paradigma para tal preservação e mudança é a relação entre identidade nacional e Europeia no processo de unificação da Europa. Ver Rüsen, 2007

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Essa dimensão histórica da identidade política democrática é um lugar para a mesma luta. Toda a gente apela para a origem decisiva (com provas mais ou menos histórica) de que o fundamento da democracia é a liberdade. 8 Um aspecto especial desta luta é o fato de que a democracia é um resultado da história ocidental. Isto levou a um problema de identidade política nas democracias não ocidentais. Sua cultura política historicamente refere-se não ao seu próprio passado (em uma perspectiva de tempo histórico), mas a uma origem fora de suas próprias histórias. Isto freqüentemente conduziu a um sentimento de alienação ou a uma identidade fragmentada, enquanto a lógica do etnocentrismo é efetiva. Para superar este fato, o humanismo político da democracia moderna deve ser reconsiderado. Ser um ser humano é a fonte para as regras básicas para a dominação política nas democracias modernas, as regras que têm sido expressas na lei constitucional por um conjunto de direitos humanos. Ao mesmo tempo, a humanidade é um princípio constitutivo da identidade nas sociedades modernas de construção: ser um ser humano é essencial para a autoestima das pessoas em relação aos outros. Na cultura política moderna cada uso de poder e dominação encontra seus limites na qualidade humana dos dominados. A desumanidade é a base fundamental para legitimar qualquer uso de poder e dominação e, ao mesmo tempo, a humanidade tem um elevado, se não o maior valor, para cada pessoa, cada comunidade em relação à sua identidade. A qualidade das democracias depende da validade desta síntese de legitimidade e identidade ambos mesclados com a idéia de humanidade. O poder desta ideia da humanidade depende de tradições culturais. No ocidente, onde as tradições culturais vêm desde a antiguidade, a idéia de humanidade é profundamente influenciada pela idéia do direito natural, pela crença cristã da unidade de Deus e a humanidade em Cristo

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e pelas críticas contra as formas de poder político religioso, inauguradas pelo Iluminismo(Cancik, 1983, 1993). A questão debatida muitas vezes culmina com o problema, se este fundamento cultural da democracia no princípio da humanidade é uma peculiaridade ocidental para a organização de dominação política, ou se esse princípio também pode ser encontrado em outras culturas e tradições. É plausível que a alegação para tais valores na cultura política das democracias modernas e para sua validade universal, seja compatível com diferentes contextos históricos em que a democracia emergiu ou está em construção. A validade universal da qualidade normativa da humanidade tem sido, por um longo tempo, um problema da teoria política, filosofia moral e história intelectual. Mas um problema neste contexto parece ser sem solução, ou seja, o problema da diferença cultural como um fato fundamental da vida humana - principalmente nos processos culturais de formação da identidade - pode estar relacionado com o princípio universal da humanidade. Desde que a diferença seja um fator constitutivo da identidade humana, esta questão é da maior importância para a cultura política e seu papel em apoiar, estabilizar, ou limitar, desafiar e desestabilizar a ordem democrática da dominação política. A diferença cultural é um desafio para as relações nacionais e internacionais na vida política moderna. No contexto nacional, duas grandes questões requerem uma resposta. Em primeiro lugar, como podem diferentes identidades culturais dos cidadãos serem mediadas por uma identificação legitimada com a ordem política existente e com a cidadania comum? Em segundo lugar, desde que a cultura política precisa de homogeneidade cultural, ao nível das convicções sobre a legitimidade do poder e dominação, como tal homogeneidade é possível em sociedades com uma população heterogênea? No contexto das relações internacionais a diferença cultural tem sido associada com o perigo de um 'choque de civilizações'. Em uma perspectiva histórica este confronto é caracterizado por uma predominância ocidental em conceituar as principais questões da vida económica, social e política. As culturas não ocidentais entendem isso como um desafio e uma ameaça para a autenticidade e dignidade das suas identidades culturalmente diferentes. Esta tensão pode levar à radicalização se as diferentes visões de mundo são estruturadas ao longo de conceitos universalistas peculiares. Mais, se não todos, diferentes culturas humanas compartilham uma

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tendência universalista ao expressar o seu valor mais alto: autoestima. Diferença cultural é, portanto, um choque inevitável de universalismos. Para evitar a luta de universalismos diferentes, não é suficiente se referir a alguns conceitos abstratos ou ideias além da diferença cultural. Em vez disso, é necessário procurar os antropológicos universais. Só então, será encontrado um ponto de partida e uma plataforma criada para fins de validade universal em comunicação intercultural. O relativismo cultural presente no nível do discurso intelectual é meramente uma saída do campo das relações gerais entre diferentes visões de mundo e conceitos fundamentais da cultura política. Isso não significa paz no relacionamento intercultural; pelo contrário, o relativismo tem apenas um significado político: uma luta permanente entre diferentes interpretações culturais dos assuntos humanos. Assim, ele confirma o choque de civilizações e não o pacifica. Este problema político significativo é reproduzido no nível acadêmico de comunicação intercultural. A maioria das discussões sobre diferenças culturais e comunicação intercultural é realizada sob a pressuposição mais ou menos tácita de um conceito Spengleriano da cultura. As culturas são vistas como unidades semânticas que têm apenas um inter-relacionamento externo. O mainstream de comparação intercultural segue esta linha epistemológica da diversidade das culturas independentes uma da outra e seguindo suas profundas estruturas semânticas (ou 'códigos') de compreender o mundo. Com estes pressupostos relativísticos, a academia é uma parte do choque de civilizações - sem sabê-lo. Em vez de contribuir para uma solução, é parte do problema. Os problemas não resolvidos da diferença cultural são um desafio para os valores básicos de uma cultura política democrática com sua pretensão de validade universal. Como um elemento constitutivo da formação da identidade humana, a diferença cultural tem que ser mediada com esta abordagem universalista. A questão é: como? Para responder à pergunta primeiro deve-se olhar para trás na história e estudar as origens e a evolução de universalismos culturais em todo o mundo. Aqui podem ser observadas duas principais tendências na evolução histórica a longo prazo. Primeiro, a tendência de ir além dos limites étnicos para os elementos básicos da humanidade e, em segundo lugar, a realização de trans-étnicos conceitos universais da humanidade de forma exclusiva, ou seja, ser incompatível com outras interpretações universalistas e de entendimento da humanidade. Em uma perspectiva histórica universal pode-se observar um

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desenvolvimento geral das culturas para ideias universalistas de humanidade, que vão além dos limites das comunidades concretas (Giesen, 1991a, 1991b). Originalmente, (nas sociedades arcaicas) os membros de uma comunidade se chamavam 'humanos', portanto, compreender os outros membros da raça humana como não pertencentes ao seu próprio grupo, seria ser não humano. Eles poderiam ser tratados de acordo, seguindo os padrões de uma dupla moral. O resultado de tal conceituação da diferença cultural pelo uso dos critérios da humanidade é uma idéia profundamente enraizada da desigualdade e da moralidade relacionada da duplicidade. No longo prazo do desenvolvimento civilizacional esta desigualdade tem sido modificada, se não superada, pela ideia de que, em princípio, todos os seres humanos são iguais e que há somente uma moral universalista. O resultado deste desenvolvimento histórico universal é a visão de mundo moderna da igualdade humana. Uma reconstrução do desenvolvimento histórico em direção a um conceito de igualação da humanidade é plausível, mesmo se não segue a tradicional ideia de modernização como um processo de ocidentalização. Esta universalização conceitual da humanidade como um valor cultural básico tem um impacto político específico e uma consequência sobre a legitimidade do uso de poder e de dominação da institucionalização. É um fato, mesmo em um conceito de 'modernidades múltiplas' (Eisenstadt, 2000) a partir do qual diferentes culturas têm seus próprios caminhos de modernização. Este processo de universalizar a humanidade como um valor cultural básico tem ocorrido em lugares diferentes e em épocas diferentes, o que levou a uma variedade de ideias ou humanidades e aos conceitos do humanismo. A diferença é o resultado a partir dos diferentes contextos em que eles surgiram. Enquanto ainda carregam os traços de seu surgimento excluem-se uns aos outros. O melhor exemplo para esta exclusão mútua é a reivindicação exclusiva de verdade universal da crença religiosa no judaísmo, Cristianismo e Islã. Você só pode seguir uma das crenças religiosas, que necessariamente exclui as outras. Uma vez que todas elas reivindicam verdades universais, sua inter-relação é guiada pela profunda convicção de que as outras não são verdadeiras, por parte de todas as religiões do mundo. O resultado desta inter-relação exclusiva é evidente: um choque de sistemas de crenças religiosos que, persistentemente, leva à supressão, à discriminação e ao derramamento de sangue. É uma das realizações da sociedade civil moderna ter superado esta inter-relação exclusiva das religiões, afirmando o caráter laico da ordem política. O secularismo ultrapassa os limites das crenças religiosas. O

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conceito de humanidade, que é a base da cultura política da democracia moderna é caracterizado por uma neutralidade no que se refere às diferenças culturais básicas em conceituar as questões universalistas do autoconhecimento humano. Esta neutralidade é uma conquista e um problema ao mesmo tempo. É um ganho quando culturalmente estabelece uma organização política da vida humana, em que diferentes crenças podem ser vividas de forma pacífica. Tolerância é o princípio político desta paz. Mas é esta paz, uma paz verdadeira ou um armistício? Aqui está o problema. É exatamente aí, onde os diferentes elementos de crenças humanas, autoconhecimento e pedidos de autenticidade, com seu enorme poder de construir identidade e mover a mente humana, que a idéia da humanidade sob a forma de cultura política tem seus limites. Quanto mais forte o poder mental de reconhecer as diferenças, é onde a validade da ideia de humanidade, como um dos mais importantes valores políticos da democracia moderna aparece como mais fraca. A resposta tradicional da cultura política moderna a esta pergunta é o pluralismo. Mas o pluralismo significa a eliminação das reivindicações de verdade de todos os conceitos que constituem as diferenças culturais, afirmando conceitos universais de pensamento e crença. Alguém pode pensar um pluralismo que escape a esta ausência de universalismos e reivindicações de verdade? O pluralismo não procura uma ordem nãopluralista abrangente em um nível mais alto para torná-lo habitável? Deve ser uma ordem que permita as diversidades e diferenças de opiniões e crenças. Tal ordem não pode ser entendida como apenas um elemento ou momento dentro desta diversidade e diferença, já que ele as torna possíveis. É uma meta-ordem não-pluralista do pluralismo. Esta é a decisiva pergunta para o conceito de humanidade vis-à-vis às suas diferentes manifestações culturais e sua densidade crescente na comunicação intercultural. Não há espaço para uma vida separada de universalismos diferentes. Eles têm que vir a termo, uns com os outros, no processo de globalização. O desafio nesta prospecção da humanidade na diferença cultural só pode encontrar uma resposta: uma mudança do universalismo exclusivo para universalismos inclusivos. No nível lógico uma mudança é bastante fácil de conceituar. Um item universalista como desumanização ou humano ou humanidade só pode se tornar manifesto de forma peculiar, já que ele só pode ser realizado sob condições específicas. Sob condições específicas diferentes,o mesmo item universalista obtém uma manifestação diferente. Se as pessoas que

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vivem dentro de uma dessas manifestações diferentes são capazes de ver o mesmo item universal em outra manifestação, eles serão capazes de reconhecer esta outra manifestação; e este reconhecimento pode tornarse mútuo.9 No contexto da presente argumentação, pode ser resolvido o problema de uma origem alienante da democracia no mundo não-ocidental. Quando esta origem pode ser aceita como uma manifestação específica de uma qualidade geral da humanidade, potencialmente dada em todas as culturas, porque ela não pode ser aceita e eficaz em outros conceitos da humanidade? Claro, isto sob a condição de que estas diferentes humanidades compartilham uma qualidade antropologicamente cultural do ser humano e, enquanto esta qualidade é entendida como uma potência dinâmica de mudança e desenvolvimento e não como uma essência atribuída exclusivamente a uma tradição própria. Além disso, deve-se argumentar que, somente no contexto de uma teleologia etnocêntrica orientada à origem, a estrutura de uma origem fora da própria história tem um efeito alienante. Se esta teleologia orientada à origem é substituída pela reconstrução orientada ao futuro - e esta é a lógica do pensamento histórico realmente moderno - é facilmente possível assumir elementos de origem diferente em uma cultura própria. O contexto da descoberta e o contexto da justificação logicamente distinguem-se, e o desenvolvimento da própria cultura política é um processo aberto de aprendizagem de diferentes fontes e de experiências dentro e fora da própria tradição.10 Vida prática é diferente da lógica. Mas se alguém realmente quiser uma ideia convincente de paz vis-à-vis o choque de civilizações, é preciso procurar as chances e possibilidades de realizar um reconhecimento mútuo das diferenças culturais em todas as dimensões e domínios da vida humana. Há um campo onde esse reconhecimento já se estabeleceu de forma convincente: o domínio da arte (entendida na perspectiva da autonomia estética). Aqui a diferença é lucro. Não há nenhum problema para apreciar as obras de arte de outra cultura. Pelo contrário, a experiência da diferença amplia o próprio campo da humanidade e de sua compreensão como um valor cultural. Mas esta realização de reconhecer as diferenças culturais na arte só foi possível por uma divisão estrita entre 9 Friedrich Schleirermacher apresentou tal universalismo inclusivo em relação à vida religiosa nas sociedades modernas. (Schleiermacher, 1913). 10 Um exemplo revelador para tal aprendizagem é o conceito de zero em matemática. Foi inventado na Índia e todas as outras culturas utilizaram sem problemas com a auto estima.

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a dimensão cultural de arte e a dimensão cultural de outras formas de vida, tais como política, religião, vida social etc. Aqui é um vasto campo de atividades culturais, no que respeita a base da cultura democrática que está relacionado a um conceito de humanidade. Debater democracia e procurar por suas condições culturais não pode ser feito sem a pergunta de como é possível alterar formas tradicionalmente pré-determinadas da ordem política e identidade cultural na vida política presente, para que os conceitos universalistas de humanidade integrem a diferença cultural, mesmo onde esta diferença é baseada em universalismos diferentes. Deveríamos pedir universalismos inclusivos na cultura política de hoje, para tornar a democracia segura para o futuro, nas perspectivas nacional e internacional. A cultura política da democracia pede fortes elementos para reconhecer essas diferenças no autoconhecimento humano e na visão de mundo, que são relevantes para o processo de formação da identidade. Um elemento comum de união é necessário para ligar as diferentes crenças religiosas em um credo comum nos valores básicos da democracia. Esta vulgarização e união do domínio da cidadania e da democracia têm de se tornar eficaz no domínio mental onde a fé religiosa, em suas diferentes manifestações constitui a identidade. Cidadania comum na diferença religiosa - como isto é possível ? A resposta mais fácil para esta questão coloca a cidadania além da crença religiosa. Na verdade, pertence às condições históricas da democracia moderna que política e religião foram estritamente separadas. Esta separação entre religião e política impossibilita a teocracia. Esta é a razão para o Islão a rejeitar as formas de vida democráticas desde que, em sua origem, política e fé estão estreitamente inter-relacionadas, se não idênticas. Democracia é culturalmente fundada sobre a forma de vida secular de uma sociedade civil. No entanto, a vida humana nesta forma secular precisa de apoio desses poderes mentais, que desempenham um papel decisivo nos processos de formação de uma identidade comum como cidadania. Baseada em difrentes e profundas convicções de como viver nossa própria vida, a religião – mesmo além da política – põe em perigo uma cidadania em comum. Isso é verdade desde as religiões monoteístas, se não todas as religiões do mundo como o hinduísmo, confucionismo ou budismo, os quais afirmam que suas crenças diferentes têm uma verdade universal e absoluta. Com estas afirmações de verdade eles se excluem mutuamente e referem-se uns aos outros de uma forma tensa. Existem inúmeros exemplos de como todas essas inter-relações

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tensas, levaram a guerras religiosas, derramamento de sangue, morte e sofrimento indescritível. A forma de vida secular da sociedade civil como uma condição social e cultural necessária para a democracia terminou definitivamente esta guerra e criou um reino de uma coexistência mútua e pacífica, excluindo as crenças religiosas. Tolerância é a palavra chave para o fim destas tensões religiosas. Mas é a tolerância já paz? A resposta a esta pergunta é um não definitivo. Tolerância significa suportar a diferença de outras crenças, embora possa contradizer a própria crença. O passo para a paz seria o passo de tolerância para o reconhecimento. Mas, como uma crença contraditória pode ser reconhecida por um forte crente? Como cidadão, ele ou ela pode aceitar concidadãos com crenças diferentes. Mas este reconhecimento eclipsa de forma muito importante, se não decisiva, parte da sua identidade, ou seja a identidade religiosa. E uma cultura democrática sem esse poder em identidade é fraca. Seria uma enorme vantagem para a cultura política da democracia, se esse poder tornar-se um dos seus elementos eficazes. O Iluminismo ocidental tentou este empoderamento, sublinhando a moralidade embutida na crença religiosa. Ele estava convencido de que a diferença religiosa podia ser dissolvida em uma moralidade abrangente e universalista. Na literatura germânica, há um grande documento com esta abordagem admirável do Iluminismo para superar a inter-relação tensional de diferentes religiões fazendo-o transcender em moralidade. É a famosa parábola do anel contada no drama de Lessing Nathan o sábio (1799). Quando perguntado sobre as três religiões da linhagem de Abrahão, o sábio judeu Nathan contou a seguinte história: um pai tinha três filhos que amava muito. Ele possuía um anel de muito preciosa sorte e ele teve que resolver o problema, qual dos seus filhos deveria herdá-lo? Pouco antes de sua morte, ele chamou seus filhos e disse: vocês sabem do meu anel. Pedi a um joalheiro para copiá-lo duas vezes e ele fez um trabalho tão bom que ninguém pode dizer qual é o original. Ele deu a cada filho um anel e morreu. Os filhos discutiram sobre a autenticidade de seus anéis e finalmente foram ao tribunal. O sábio juiz disse que a autenticidade seria apenas revelada pela conduta de vida de seu proprietário, pelo grau de sua moralidade. Aceitar o caso, precisamente, tal como está; Se cada um de vocês na verdade recebeu seu anel Direto da mão do seu pai, deixe que cada acredite

Lessing pensou que a peculiaridade histórica da crença religiosa fosse menos importante do que a sua moralidade inerente. Mas sua peculiaridade permaneceu e manteve seu poder sobre as mentes dos crentes. Nós (deveríamos) sabemos que é impossível dissolver a religião a uma moral universalista. Enquanto esta peculiaridade, esta fé religiosa específica permanece na sua forma tradicional e, ao mesmo tempo, afirma sua validade universalista contra crenças diferentes, continua a ser um perigo para a sociedade civil. Continua a ser um perigo porque sua lógica é exclusiva em relação às outras religiões, criando assim a hostilidade mental na vida social e política. Esta é a razão para o caráter laico da sociedade civil no ocidente. Exige tolerância e a tolerância transgride o domínio da crença e requer um ponto de vista neutro contra o compromisso religioso. Às vezes, quando refletindo sobre a diferença, as pessoas falam em vez de tolerância, de respeito. Isto não parece ser uma atitude religiosa generalizada, mas é só uma atitude intelectual. Há uma argumentação histórica que se coloca ontra a minha tese. É um argumento a favor do cristianismo como apoio cultural para a sociedade civil. O cristianismo é um dos pressupostos históricos para a sociedade secular e sua cultura. Sem a idéia cristã de seres humanos como imagens de Deus e sem a crença cristã de que o próprio Deus tornouse um ser humano em Jesus não haveria qualquer desenvolvimento dos direitos humanos e civis. E desde que uma sociedade secular é demasiado fraca para capacitar o seu próprio sistema de valores básicos, ela necessita do apoio da fé cristã. Sem esta religião específica, a moderna 11 Lessing, Gotthold Ephraim: Nathan the Wise, V. 516 sqq. (primeira publicação 1799; Traduzido para o inglês por William Taylor 1893 obtido em http://www.fullbooks.com/Nathan-the-Wise1.html).

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O anel dele próprio ser o verdadeiro e genuíno. Talvez seu pai pretendesse encerrar a tirania do anel especial. Em meio à sua posteridade. Isso não se esqueçe ele amava a todos e amou todos iguais, desde que ele estava relutante em ferir dois que ele poderia favorecer um sozinho. Bem, então, deixou a cada um agora rival seu amor imparcial, seu amor tão livre de todos os preconceitos; Rivalizem uns com os outros na contenda generosa para provar as virtudes dos anéis que usa; E para este fim, deixa suave humildade, paciência saudável, verdadeira benevolência, e resignação à vontade de Deus, vir em seu auxílio... Assim falou o sábio juiz. 11

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sociedade civil e ainda mais o estado democrático moderno perderiam uma condição necessária para si mesmo, que não pode ser substituída apenas por elementos seculares. Esta é uma versão ampliada do famoso argumento-Böckenförd: O estado vive em condições que ele não pode definir-se (Böckenförde, 1991). Minha tese é - é errado que a religião de maneira tradicional, incluindo o cristianismo permanece um desafio e um problema para uma sociedade civil? Acho que no nível lógico meu argumento é sólido ainda. Enquanto há reivindicações de validade universal e, enquanto excluem as outras religiões de sua verdade universal, pelo menos, um potencial de uma intolerância profundamente enraizada permanece. Exclusividade é o caso. Deixe-me acrescentar um argumento para a argumentação-Böckenförde, que é muito popular na Alemanha, principalmente na jurisprudência. Na Alemanha, há um conflito agudo sobre a questão de se professoras muçulmanas devem usar um lenço de cabeça nas escolas estatais. A primeira decisão do Tribunal Constitucional aconteceu contra um veredicto sobre a proibição de lenços de cabeça em escolas públicas, argumentando que não havia leis em que se pudesse referir para chegar a uma solução jurídica. Agora a maioria dos governos dos Estados responsáveis pelas escolas públicas na Alemanha aprovou leis que proíbem usar os cachecóis, mas, ao mesmo tempo, permite símbolos cristãos. Eu acho que eles se referem ao argumento de que símbolos cristãos representam uma condição cultural necessária para a cultura política da democracia moderna, enquanto símbolos muçulmanos a coloca em dúvida. Meu argumento pode ser defendido não apenas em nível lógico. Não devemos esquecer que o estabelecimento de valores culturais básicos da moderna sociedade civil só foi possível por uma virada crítica do Iluminismo contra o cristianismo estabelecido, tal como ele se apresentou sob a forma das igrejas nos séculos 17 e 18. Sem uma virada crítica contra a fé religiosa em suas formas tradicionalmente estabelecidas, o secular sistema de valores culturais nunca surgiriam. Isso não deve ser esquecido na perspectiva histórica, onde a importância da religião para a sociedade civil moderna está em questão. Devemos manter em mente que no debate público sobre a dominação do estado civil baseado nos direitos humanos fundamentais e a questão da religião foi a mais debatida. O primeiro processo de estabelecer uma constituição escrita moderna baseada nos direitos fundamentais, pela primeira vez na história mundial da religião causou uma agitação mental na cultura secular das sociedades modernas. Hoje sabemos que a esperança dos intelectuais e das pessoas educadas

12 Formulações expressivas podem ser encontradas em Weber, 1988.Em uma perspectiva comparativa, esta tese é apresentada em Weber, 1963.

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na idade do Iluminismo falhou. O problema da diferença religiosa não encontrou sua solução em um desencanto contínuo a favor de valores seculares. A tese do desencanto – um dos seus mais proeminentes representantes é de Max Weber12- não é apenas empiricamente mas também filosoficamente problemático. Por que? Simplesmente porque a religião é uma fonte de significados e sentidos que não pode ser substituída por qualquer outra fonte de geração de sentido, nem mesmo pela moralidade - pelo menos em sua forma secular, dentro do qual ele transgride todas as fronteiras entre as crenças religiosas. Esta é uma das razões por que o marxismo ideologicamente nunca trabalhou. Religião é algo sui generis, mudar as mentes das pessoas, enquanto seres humanos são seres humanos (Marquard, 1981). Se desaparecesse, as pessoas perderiam uma fonte mental muito importante para o significado e o sentido de suas vidas. Essa é uma tese forte, mas acho que tenho um monte de experiência histórica e provas antropológicas do meu lado, apoiando a necessidade antropológica fundamental da religião para a geração de sentido humano em chegar a um acordo com a vida e a morte. A religião manteve seu poder ao lado de moralidade. Seria completamente enganoso entender sua necessidade antropológica como uma fonte de geração de sentido humano somente em relação ao seu papel na e para a moralidade. Até hoje, todos aqueles que se sentem comprometidos com a tradição do Iluminismo entendem religião nesta relação à moralidade. Isso leva, facilmente, a uma perspectiva estreita, dentro da qual a religião aparece como um elemento importante da cultura política. Em vez disso, devemos perceber seu papel mais amplo como geradora de sentido em geral, não muito comprometida com as regras da vida prática, mas para superar o sofrimento e trazer redenções do mal no mundo. Ninguém pode negar que a cultura política da democracia é essencialmente formada por valores e orientações culturais seculares. Isto é verdadeiro para a democracia grega clássica, bem como para as democracias ocidentais modernas. Em respeito a este secularismo a religião é um problema. Isso é neutro, ou ainda pode funcionar como seu apoio? Por um longo tempo a religião tem sido principalmente tratada como um problema para a secularização. O foco foi colocado sobre a alternativa ou religiosidade ou secularismo. No ocidente, entretanto, esta alternativa tornou-se obsoleta, desde que por um complicado processo

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histórico muitas organizações religiosas estabelecidas apresentaram seus sistemas de crença em como legitimar a forma de vida secular da sociedade civil, especialmente os princípios da tolerância e os valores básicos da sociedade civil, nomeadamente os direitos humanos e civis. Vis-à-vis o fato de que em outras partes as palavras dos sistemas de crença luta contra a forma de vida secular da sociedade civil, bem como nas organizações religiosas, de uma cultura política democrática, a questão decisiva não é mais a alternativa entre o secularismo e religião, mas uma inter-relação muito mais complexa. O caráter laico da sociedade civil está além da dúvida. É um prosaico em cada cultura política democrática. Mas a pergunta permanece: que tipo de religião desempenha o papel e em que o contexto cultural da sociedade civil? A guerra amarga e cruel do fundamentalismo religioso contra a moderna sociedade civil levou a atenção do público da cultura política ao poder mental da crença religiosa. Mas a alternativa de outro relacionamento não encontrou ainda interesse suficiente. É o potencial por que a religião pode contribuir para a validade da cultura política democrática. Novamente temos que abordar experiências históricas como evidências empíricas de uma possível contribuição (e observar cuidadosamente nossos passos). No decorrer da história, a religião mudou seu caráter, e é esta mudança como um processo contínuo que gostaria de abordar na minha busca para o papel da religião em uma futura cultura de reconhecimento. De que maneira temos de reconhecer o papel da religião na cultura humana? Estou a pedir uma versão em que a religião torna-se compatível com a sociedade civil moderna e sua cultura. Uma proposta para sua compatibilidade é o politeísmo. Há um argumento filosófico bem a favor de politeísmo contra as restrições de uma fé monoteísta, com suas conseqüências exclusivas. Acho que essa idéia do politeísmo é uma construção artificial de intelectuais, uma “ Kopfgeburt” (uma proposta irrealista), como se diz em alemão. É uma invenção intelectual e mesmo aqueles que aderirem a ele não acreditam em todos esses deuses diferentes. Não é nada convincente. Outra noção, mas com um poder mental mais forte para isso, tem sido recentemente proposto por Jan Assmann e outros. Eles criticam as religiões monoteístas por seu universalismo exclusivo e sua rigidez moral que trouxe muito mal para a humanidade. Em vez disso, eles propõem um revival do Spinozismo e panteísmo. Estes se apresentaram como um conceito muito poderoso no século XVIII para o povo educado, a elite cultural dominante, como Goethe e outros (Assmann. 2003). Na

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discussão em curso sobre esta ideia, as deficiências problemáticas têm sido descobertas e sublinhou-se a consequência final da denuncia do monoteísmo (Essen, 2002). Nós daríamos um específica e moderna subjetividade e individualidade, que moldaram a nossa identidade (pelo menos no ocidente). Eles ainda constituem a condição histórica necessária da sociedade civil moderna. Então o que ele deixou como um poderoso elemento religioso na moderna sociedade civil? É apenas seu inimigo, o fundamentalismo? Então, a religião continuaria a ser uma ameaça para a cultura da sociedade civil e continuaria a minar a democracia. Se o fundamentalismo era a única maneira de continuar a crença religiosa em sua forma exclusiva, então, de fato, a religião continuará a ser uma fonte de irritação, desafio e ameaça para as sociedades modernas. O poder das instituições democráticas teria de ser usado para manter os movimentos fundamentalistas sob controle, empurrá-los para trás, tanto quanto possível. Meu último exemplo para uma tentativa de resolver o problema é a proposta de Hans Küng (Küng/Kuschel, 1993; Küng 1995). Ele sugeriu para criar um ethos mundo fora das grandes religiões do mundo, o que naturalmente inclui o poder das crenças religiosas mais profundas. Todas as religiões do mundo compartilham alguns valores morais e elementos básicos e eles são a essência de todas as religiões. Na verdade, esta é a posição clássica do Iluminismo. Grandes religiões do mundo podem concordar em uma regra moral básica como o imperativo categórico kantiano ou a regra de ouro confucionista como uma verdade substancial. Mas agora sabemos que a força da crença religiosa depende de sua particularidade concreta. E não deve ser negligenciado que há uma diferença fundamental entre religião e moralidade. Por que não abordar esta peculiaridade? Podemos pensar uma fé religiosa que afirma a validade universal e é diferente de outras crenças religiosas como um poderoso elemento de uma cultura de reconhecimento, incluindo diferenças religiosas? Minha resposta é: Sim, nós podemos e devemos. Para tornar esta resposta plausível, antes de mais nada, gostaria de salientar o argumento lógico. Deixe-me repensar a questão do universalismo. A minha argumentação sobre universalismo caracterizou-o como um universalismo exclusivo nas suas realizações empíricas. Mas, logicamente, há uma alternativa, a do universalismo inclusivo. Logicamente, é óbvio o que universalismo inclusivo significaria. Acho que, dentre as melhores argumenttações favoraveis a este universalismo inclusivo em relação à religião está um pequeno livro de Friedrich Schleiermacher (1958): Über die religião um die Gebildeten unter ihren

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Verächtern (a partir de 1799). É um panfleto sobre religião, dirigido a pessoas educadas, que seguem o fluxo principal do sentimento antireligioso na era do Iluminismo. O argumento de Schleiermacher funciona da seguinte maneira: os crentes de uma religião com reivindicações de verdade universalista acreditam em algo universalista que eles chamam de Deus. Eles acreditam em um Deus universal sob condições específicas no espaço e no tempo. Fazendo assim, eles percebem que sua relação com o Deus universal se dá de uma maneira individualista. Esta individualização constitui a diferença, mas esta diferença é, na verdade, uma confirmação do universal mesmo. Portanto, a relação entre as diferentes manifestações de uma crença universalista só pode ser de reconhecimento mútuo. Isto, no entanto, significa que logicamente relacionadas a crença humana ilimitada no Deus universal, sob circunstâncias limitadas, termina em individualização deste Deus universal. Acreditar no mesmo Deus universal sob diferentes condições, significa perceber Deus como sendo diferente em sua unidade e universalidade. Experimentar essas crenças diferentes só pode afirmar a so próprio, se o crente está ciente do caráter individualista da sua crença. A diferença confirma a universalidade de Deus. Se tal uma argumentação é aceita pelos crentes, então o poder da crença religiosa se tornará um suporte para uma cultura de respeito mútuo na inter-relação das diferenças culturais, ao nível profundo das convicções religiosas fundamentais. É possível tornar plausível este universalismo individualizado da fé, referindo-se às raízes cristãs do individualismo ocidental. Com efeito, sem a idéia cristã de um inter-relacionamento imediato entre cada ser humano e Deus, o individualismo ocidental teria sido impossível historicamente. Mas, este argumento tem de ser ampliado: primeiro, tem que se reconhecer o poder da secularização no processo histórico de trazer a ideia moderna do individualismo humano, e, em segundo lugar, tem que se incluir as religiosidades não-cristãs que podem suportar a ideia de individualização da universalidade do divino. Isto é fácil em relação ao islamismo e o judaísmo e não é impossível em relação às outras religiões do mundo. O Hinduísmo, por exemplo, tem trazido uma idéia especificamente religiosa de respeito e reconhecimento em sua impressionante trajetória na modernidade, indo além da ideia ocidental secular de tolerância, como podemos ver em Vivekananda.13 Como nós podemos perceber esses argumentos lógicos (theo-) 13 Vivekananda 2007.

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na vida real? O primeiro passo para a realidade, seria a consciência da historicidade de cada religião e a pluralidade de sua manifestação. Por exemplo, o cristianismo não é uma única crença, como sabemos, mas uma vasta variedade de igrejas, denominações e confissões. O mesmo é verdadeiro para o Islã e todas as outras religiões. No entanto, este pluralismo não é ilimitado. Portanto, podemos ainda distinguir as religiões. Mas a partir da experiência histórica de nossa própria religião podemos deduzir um pluralismo religioso em geral e alargá-lo. A historicização irá dotálo com a força de um horizonte aberto e dinâmico. Historicizar significa olhar para os universalismos tradicionalmente exclusivos das religiões do mundo e como eles mudam e desenvolvem. Crenças religiosas tradicionalmente são conceitualizadas como imutáveis e fixas de uma vez por todas. Mas tal conceito nunca enfrentou o desenvolvimento cultural que chamamos historicismo. Historicização é um inevitável processo cultural nas sociedades civis modernas. É a grande chance de superar universalismos exclusivos das crenças religiosas, enriquecendo-os com uma temporalidade dinâmica, que pode reformular sua relação com outras religiões. Acho que assistimos um tempo em que a transformação de universalismos exclusivos para os universalismos inclusivas está ocorrendo. Como esta transformação da crença religiosa pode ser relacionada com a forma de vida secular de uma sociedade civil? Há um tipo de passagem que uma religião inclusiva pode tomar para finalmente entrar da sociedade civil e enriquecê-la com o seu poder de reconhecimento religioso? Sociedade civil de fato tem tal uma passagem ou pelo menos uma porta chamada religião civil. Religião civil é um conjunto de convicções fundamentais compartilhadas pela maioria dos membros da sociedade civil. Este conjunto de valores implanta a forma de vida da sociedade civil nas mentes dos cidadãos como o mais fundamental dos valores e normas, por exemplo, a ideia da dignidade do homem e do direito à vida. Religião civil não é uma ideologia política, apoiada e doutrinada pelo Estado, mas, pelo contrário, é uma mentalidade cultural meta-política, que subordina o estado e outras formas de dominação ao senso comum dos dominados. (Pelo senso comum eu entendo a orientação social mais fundamental ou a forma da intersubjetividade na prática ao vivo, que constitui a sociedade pela cultura). Religião civil é, na verdade, o humanismo político e sua crença na dignidade humana, que descrevi no início deste artigo. Não defendo que as religiões estabelecidas, como o cristianismo, têm que desbastar até

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atingirem o nível bastante baixo deste senso comum secular. É justamente o contrário: as religiões estabelecidas têm que apoiar o senso comum secular, reforçando-o com o poder de uma crença religiosa genuína. Não devemos descurar que o poder mental da crença religiosa é muito mais forte do que o poder da religião civil. Por outro lado não devemos subestimar o poder quase religioso na religião civil do humanismo político. Caso contrário, nós nunca vamos entender as pessoas que dedicam suas vidas para assuntos de direitos humanos ou movimentos similares da sociedade civil. Mas, quanto à própria vida religiosa? Eu gostaria de terminar minha linha de argumentação, dando três exemplos que demonstram a possibilidade de um universalismo inclusivo em perseguir a própria crença religiosa. Eles mostram que há um poder na religião em si para estabelecer este universalismo inclusivo que acabaria definitivamente com a luta pela verdade em diferentes crenças religiosas. O primeiro exemplo é um monge católico, vivendo nos arredores de Essen, que ensina meditação Zen budista (Kopp, 1994). Eu o conheci há alguns anos e tive uma longa entrevista com ele. Ele me disse que ele tinha passado anos em mosteiros budistas no Japão e praticava meditação Zen. No final, a dignidade de um Mestre Zen nomeado o influenciou. Quando eu pedi sua opinião sobre a diferença entre o budismo e o cristianismo e como ele podia viver com os dois, eu esperava ouvir da boca dele, que na sua essência, todas as religiões eram a mesma coisa, e que faria com que essa identidade plausível, referindo-se ao misticismo. Mas ele disse uma coisa muito diferente: "Por minha inspiração Zen budista eu me tornei um cristão melhor". Ele manteve a diferença em uma interrelação positiva. Ele viveu o que eu tinha intelectualmente conceituado: em sua vida, o encontro de diferentes religiões, neste caso o budismo e o cristianismo, levou a uma forma de capacitar e enriquecer mutuamente. Este enriquecimento era de fato um mútuo. Ele me disse que depois que ele viveu no mosteiro budista no Japão por um tempo o abade pediu-lhe para realizar uma missa católica no mosteiro budista, o que ele fez. Encontrei meu segundo exemplo por acaso, quando visitei Mainz há alguns anos, uma cidade alemã antiga sobre o Rio Reno. Mainz é famosa pela sua catedral medieval e. como era domingo, fui visitá-la. Estava sendo realizada uma missa católica e um padre estava pregando, quando entrei calmamente do edifício. O tema de seu sermão era a relação entre os cristãos e os muçulmanos. Você pode imaginar quão atencioso de repente tornei-me. Ele usou a metáfora de uma orquestra com melodias

14 Quando eu discuti este incidente com teólogos, foi levantada a questão: quem é o maestro? A única resposta teologicamente diz respeito à cultura política da democracia moderna esta resposta é de grande importância, desde que ela não se refere a uma instituição mundana ou terrena reivindicando a regra da diferença religiosa para o poder. 15 http://www.chiefrabbi.org/sp-index.html. Para mais detalhes ver : Sacks, 2003.

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e instrumentos muito diferentes. Apenas sua diversidade, ele disse, cria músicas maravilhosas. Ele não era um intelectual, mas um padre numa catedral dando um sermão ao seu povo14 e ele fez um ponto. Eu encontrei o meu terceiro exemplo na internet quando eu li um discurso feito por Jonathan Sacks, o Rabino-Chefe da Congregação Hebraico Unida da Commonwealth. Neste discurso, por ocasião do dia do memorial do Holocausto em 2005, ele disse: "os rabinos há dois mil anos, disseram algo que acho incrivelmente bonito. Eles disseram que se você precisa de moedas, muitas moedas na casa da mesma moeda, todos saem exatamente a mesma – Deus faz cada ser humano na mesma imagem, sua imagem – e cada um deles é diferente. E isso nos diz que em alguém que não é a minha imagem, que não está como eu – que tem uma cor diferente da pele ou língua ou fé – alguém que não é a minha imagem ainda se encontra a imagem de Deus e temos que lutar por ele ou por ela e pelo seu direito a ser.”15 Qual é a consequência desta nova forma de inter-relacionar as crenças religiosas no seu próprio domínio? Nós deveriamos reescrever a parábola do anel de Lessing da seguinte forma: originalmente, havia um anel, a sua luz era tão forte que todos os que olheram para ele ficaram cego. Portanto, o pai foi para um joalheiro e pediu-lhe para cortar esta pedra preciosa em três partes, para que o condensado branco de luz capaz de cegar as pessoas caisse em três cores básicas que, quando olhadas, causassem prazer aos olhos. Quando ele chegou perto da morte ele ligou para seus filhos e disse, escute aqui, eu darei um anel a cada um de vocês. Os três anéis são feitos de um e mesmo meu. Escutem bem minhas palavras: se vocês se envolverem em um bom relacionamento as cores da pedra se misturarão de forma maravilhosa. Mas se vocês irem além e discutirem sobre as cores e o valor de suas pedras preciosas sua luz desaparecerá, e os anéis perderão seu valor. É a forma de proceder. Se esses cidadãos que querem apoiar o poder da cultura política da democracia, pelo poder de sua crença religiosa avançam desta forma, então poderíamos esperar um substancial avanço no sentido de uma democracia sustentável culturalmente.

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A noção consagrada pelo tempo de Humanismo hoje evoca sentimentos mistos. Ela apela para valores e convicções cujos objetivos são individualistas e universais, e que ao mesmo tempo, têm sido fortemente colorido pela história europeia e norte-americana. A realização humanista de definir a dignidade humana como um valor universal, que transcende as fronteiras étnicas e religiosas, tem sido instrumental para mais de dois séculos na formação internacional, bem como as leis e declarações nacionais. Mas, durante todo o curso das lutas políticas, ideológicas e econômicas em todo o mundo, o princípio da dignidade da pessoa humana tem sido tantas vezes contestado, manipulado e diluído, a ponto de deixar o humanismo em si altamente desacreditado e quase desprovido de conteúdo em disputas atuais. E, ainda, a tarefa de encontrar algum terreno ético comum para o futuro da humanidade continua a ser tão urgente como sempre, e o humanismo ainda carrega alguma promessa nesse sentido. Esta tarefa tem se tornado um desafio ainda maior, pelo processo de globalização, que continua a afetar as perspectivas sócio-culturais de todas as partes envolvidas. Muitas pessoas têm de reorganizar as suas vidas de acordo com as relações de poder e de mudança, a qual eles têm começado a partilhar com muitos outros no mundo. Esta densidade crescente de incorporação em uma sociedade humana globalizada também envolve uma reformulação dos padrões de pertencimento e de diferença. As questões de identidade individuais e coletivas que derivam 1 Traduzido do ingles: Rooting political order in the values of the citizens. Some ideas on political humanism and religion as a necessary base for a sustainable democracy.In: Stefan Reichmuth. Jorn Rusen, Aladdin Sarhan Humanism and Muslin Culture: Historical heritage and contemporary challenges. 2012. Traduzido por Lucas Pydd Nechi

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dessa situação tornaram-se, nos últimos anos, uma ferramenta útil de mobilização política e manipulação por parte de uma vasta gama de atores, quer pertencentes a círculos dominantes ou a movimentos de oposição. Apesar de uma imprudência política crescente, que pode ser observada em conflitos comuns em todo o mundo durante a última década, a consciência da necessidade de ir além das limitações da política de identidade comunitária e religiosa e para organizar o apoio global para os direitos políticos, também pode ser observada, especialmente no Oriente Médio, se levarmos em conta a recente onda de protestos e manifestações de massa, e as circunstâncias sob as quais se desenvolveram. É neste contexto que a promessa de humanismo, que foi quase esquecida por algum tempo, merece receber uma atenção mais detalhada. É verdade que um dos críticos mais fervorosos da política do Oriente Médio, o falecido Edward Said, já teve em seus últimos escritos ressaltado seu compromisso duradouro para um humanismo secular, a que ele permaneceu ligado apesar de sua herança europeia ambígua, e que abrangeu para ele, tanto um compromisso literário transcultural, como uma luta política "contra as práticas desumanas e as injustiças que desfiguram a história humana desumanas"2. Mas esta explicação tardia de posição humanista, que parecia voar na face de grande parte da teoria pós-colonial que tinha sido estabelecida e desenvolvida a partir de seus escritos anteriores, foi recebida com surpresa por um bom número de seus seguidores e também encontrou apenas uma resposta limitada entre o público egípcio de Said3. Mas, mesmo que seu humanismo crítico possa, apenas, ser fracamente relacionado com o surgimento dos protestos e resistência popular contra os regimes autocráticos árabes, que foram lentamente desenvolvidos ao longo dos últimos anos e que agora vêm de repente para a ribalta com sucesso notável, ele no entanto, parece ter sido 2 Nota do Autor: Said, Edward: “Orientalism 25 Years Later : Worldly Humanism v. the Empire-builders”, in: Counterpunch, 4 August 2003 (http://www.counterpunch.org/said08052003.html [8 April 2011]), citado também Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum. Edward W. Said und die Kontrapunkte kritischer Dekolonisation, Bielefeld 2008, p. 274; veja além em Said, Edward: Humanism and Democratic Criticism, New York 2004, a posthumous publication of four lectures delivered between 2000 and 2003 3 Nota do Autor: Veja, entretanto Siddiqi, Yumna: “Edward Said, Humanism, and Secular Criticism”, in: Ghazoul, Feryal Jabouri (Ed.): Edward Said and Critical Decolonization, Cairo 2007, pp. 65–88. Para mais discussões da posição humanista de Edward Said ver Abraham, Matthew (Ed.): Edward Said and After : Toward a New Humanism, special issue of Cultural Critique, 2007, p. 67; e, mais recentemente, Radhakrishnan, R: “Edward Said and the Possibilities of Humanism”, in Iskandar, A./ Rustom, H.: (Eds.): Edward Said. A Legacy of Emancipation and Representation, Berkeley 2010, pp. 431– 447.

4 Nota do Autor: Ver, sobre isso: e. g. Schmitz, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum, ch. 5, “Eine andere Leserschaft – Das Andere als Leserschaft”, Bielefeld 2008, pp. 305– 359. 5 Nota do Autor: Kant, Immanuel: Grundlegung zur Metaphysik der Sitten BA 65 (Fundamental Principles of the Metaphysic of Morals), 1st edition (Johann Friedrich Hartknoch) Riga 1785, p. 65 6 Nota do Autor: Straub,Jürgen: “Personal and Collective Identity. AConceptual Analysis”, in: Friese, Heidrun (Ed.): Identities, Difference, and Boundaries, New York/Oxford 2002, pp. 56– 76.

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profundamente envolvido na unidade globalizante da cultura árabe ao longo das duas últimas décadas4. Parece, portanto, útil colocar a herança humanista de volta em consideração e explorar as possibilidades de um humanismo intercultural sob as condições de um mundo globalizado. Isso impede qualquer forma elitista do humanismo, que tende a atribuir altas virtudes da humanidade à imagem normativa da vida e da cultura própria de um indivíduo ou etnia, e colocar aqueles que não compartilham essas virtudes para a sombra. Ele só é concebível como um conceito universal da humanidade, em sua relação com o mundo, o que implica um conjunto de valores reconhecidos mutuamente, no qual o velho conceito de dignidade humana ainda é o mais importante. A definição dada por Immanuel Kant ainda se mantém aqui, ou seja, que cada ser humano é sempre mais do que um meio para os fins dos outros, e de fato um fim em si mesmo5. Isto envolve respeito e reconhecimento de todo ser humano, de levar uma vida de acordo com a sua própria determinação. Ao mesmo tempo, as formas de vida prática e reflexão sobre a condição humana são diferentes e mudam no espaço e no tempo, criando, assim, a variedade sócio- cultural do mundo humano. Esta variedade pode ser vista como crucial para o processo de formação da identidade social e individual6. Qualquer humanismo deve levar esses dois lados da vida humana em conta. Refere-se à natureza humana e sua qualidade cultural por necessidade universalista, e como ela permanece firmemente ligada à variedade de culturas humanas e identidades, o humanismo enfrenta constantemente o desafio de desenvolver regras e normas convincentes para a comunicação intercultural. O conceito de humanismo, no entanto, levanta um problema grave: historicamente, ele surgiu na Europa e na América do Norte, e desempenhou um papel importante na formação da identidade cultural ocidental. Como foi durante um longo período de tempo tão intimamente ligado ao sentimento dos europeus de firme superioridade sobre o resto do mundo, e foi, por vezes, também utilizado para justificar a sua hegemonia, tal sorte de humanismo em grande parte manteve-se pouco convidativo aos não ocidentais. E quando os intelectuais ocidentais se referem à sua

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herança humanista universal, a fim de lidar com as tensões e lutas entre as normas e os padrões de vida em diferentes partes do mundo em conflito, eles enfrentam as suspeitas e reações críticas de seus colegas. Para um humanismo intercultural emergente, que deva ser capaz de superar essa herança difícil e, para lidar com o desafio da globalização, pelo menos sete elementos que possam fornecer uma base sólida para a compreensão e comunicação intercultural podem ser identificados. Todos estes pontos são uma questão de discussão intensa e contínua, que pode apenas ser sugerida no contexto desta breve introdução. Eles também podem servir como um quadro para a compreensão e interpretação das múltiplas e em parte divergentes contribuições no que se segue. A interrelação sistemática desses pontos que é sugerida aqui, pode servir como uma tentativa de estruturar um discurso sobre o humanismo, que em grande parte prossegue como um trabalho inacabado7.

Conceito Universal de Humanidade O conceito universal de humanidade tem uma dimensão empírica e uma dimensão normativa: empiricamente aborda todas as formas de vida humana, em qualquer momento e em cada espaço; normativamente atribui um valor essencial para todo ser humano. Isto envolve um movimento consciente, ainda que nem sempre bem sucedido, além das normas profundamente enraizadas de etnocentrismo, que dão primazia aos próprios grupos étnicos ou culturais8. Humanismo é baseado em uma extensão destes valores e demandas de cada membro da raça humana. Esta extensão, um passo que foi atestado repetidas vezes em diferentes fases e contextos da história humana, tem uma base empírica clara na natureza humana e, ao mesmo tempo, evolui a partir de elementos normativos básicos da sociedade humana, como a empatia pelos outros, a reciprocidade nas relações sociais e a responsabilidade por suas próprias atividades. O humanismo é, portanto, uma interpretação específica e uma formação destes elementos comuns da cultura humana, que podem ser identificados através de uma grande variedade de manifestações regionais 7 Nota do Autor: Conferir Rüsen, Jörn/Laass, Henner (Eds):Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations, Bielefeld 2009. 8 Nota do Autor: Para a noção de Etnocentricidade/Etnocentrismo e seu uso corrente em estudos interculturais, ver Gudykunst, W./Mody, B.: Handbook of International and Intercultural Communication, 2nd edition, Thousand Oaks/London/New Delhi 2002, pp. 3– 9, 82 f., 130– 140, 211, 214, 218. Para um tratamento mais geral de suas dimensões políticas e filosóficas ver Brocker M./Neu, H. H. (Eds.): Ethnozentrismus. Möglichkeiten und Grenzen des interkulturellen Dialogs, Darmstadt 1997

e históricas.

Uma visão de mundo antropocêntrica assume que o Homem tem uma posição focal no cosmos. Traços desta posição já podem ser encontrados nas tradições científicas anteriores de muitas culturas históricas, onde ‘Homem’ (às vezes o ‘Primeiro Homem’) é descrito e até mesmo descrito como um espelho microcósmico do macrocosmo. O cosmos inteiro, por sua vez, foi muitas vezes considerado divino. Estes conceitos cosmológicos, que também foram elaborados pela filosofia grega (principalmente Estóicos e Neo-platônicos), já faziam parte da herança filosófica da antiguidade, que foi retomada na Idade Média e desenvolvido pelo humanismo ocidental e pela ciência europeia no início do período Renascentista, desde o século XV. Esta tradição antropocêntrica evoluiu juntamente com a doutrina cristã da criação do homem à imagem de Deus e em sua redenção por Cristo, o Redentor divino que tomou sobre si mesmo a natureza humana. O antropocentrismo cosmológico, no entanto, mais tarde forneceu a base para um humanismo secular buscando emancipação da dominação eclesiástica em favor de uma orientação ‘deste mundo’. O humanismo secular baseou-se no conceito de um potencial inerente de valores humanitários e na crença na auto cultivo, ou auto formação (em alemão: "Bildung") do homem, o qual levaria para um caráter e uma personalidade humana. Pode-se notar, entretanto, que mesmo este humanismo muitas vezes não deixava de ter suas conotações religiosas, e para alguns humanistas, como Herder, (ele próprio um clérigo protestante de alto escalão), a pessoa de Cristo continua a ser o modelo para a humanidade.

A dignidade humana como um valor básico de orientação cultural Articulações de uma qualidade especial e dignidade geral do Homem podem ser encontradas no patrimônio mitológico, religioso e legal de muitas sociedades humanas. Esta dignidade pode ser derivada a partir de conceitos cosmológicos e de reivindicações de uma qualidade

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divina particular da natureza humana. Ela também pode ser construída sobre a ideia de uma vida em harmonia com a natureza e o cosmos. Mas, em geral, essas noções permaneceram em tensão com o etnocentrismo e com uma tendência igualmente forte para justificar a superioridade e as prerrogativas de certos grupos aristocráticos ou governantes monárquicos e dinastias. A ampla extensão do conceito de dignidade humana foi introduzida por várias religiões universais, mas também por aqueles impérios, cujas leis concediam direitos e liberdades a todos os cidadãos, que muitas vezes incluía acesso regular a jurisdição e até mesmo o direito de recorrer ao governante por justiça. Um espírito de otimismo educacional (como na China) não foi raro também conectado com esta convicção da dignidade e capacidade de aperfeiçoamento do Homem. A elaboração do conceito de dignidade humana por humanistas europeus e pelos filósofos, juristas e cientistas políticos do Iluminismo ampliou ainda mais a noção além das fronteiras religiosas, sociais e políticas, mesmo que esta extensão tenha sido claramente construída sobre alicerces mais antigos. O conceito moderno de dignidade humana pode ser apropriadamente definido pela fórmula de Kant (veja acima). Isso também leva a indefinição da natureza humana (longamente discutido já por Plessner9) e da vulnerabilidade do indivíduo humano mais profundamente em conta, as quais moldaram a experiência humana em todo o mundo, especialmente no século XX.

A igualdade de todos os seres humanos em relação à sua dignidade essencial O Humanismo afirma a igualdade de todos os seres humanos no que diz respeito à sua dignidade. Isso também tem uma validade intercultural óbvia. Mas como essa igualdade pode levar a equidade e justiça em um mundo humano cheio de desigualdades que se manifestam em termos políticos, sociais, econômicos e também culturais é uma questão em aberto e, basicamente, sem solução. No Ocidente, por um longo tempo, igualdade humana foi definida principalmente em relação à dimensão religiosa e étnica da vida humana10 e, mais tarde, com referência a princípios 9 Nota do Autor: Plessner, Helmuth: Die Stufen des Organischen und derMensch, Berlin 1928 (The Levels of the Organic and Man. Introduction to Philosophical Anthropology). 10 Nota do Autor: Uma das mais impressionantes formulações Cristãs de igualdade social e étnica no âmbito da religião pode ser encontrada na carta de São Paulo aos Gálatas, 3,28: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus." Seria fácil encontrar declarações semelhantes na tradição islâmica.

Referência fundamental para a responsabilidade e alteridade na existência humana A fim de esclarecer o sentido da dignidade humana e liberdade é necessário olhar para a relação das pessoas umas com as outras, uma vez que esta relação não pode ser ignorada ao se prosseguir a vida de acordo com a sua própria vontade. Alteridade é uma questão ainda em aberto na tradição do humanismo ocidental. Foi o filósofo judeu Emmanuel Levinas que tentou dar ao humanismo um novo fundamento: a relação fundamental de todo ser humano à alteridade dos outros, a qual estabelece uma responsabilidade primordial11. Isto implica uma ideia de humanidade constituída por diálogo, que pode ser encontrada também em outros pensadores judeus do século XX como Franz Rosenzweig e Martin Buber, e que se move para além da fundamentação individualista comum na ética ocidental, localizando o indivíduo em uma existência dialógica.

Individualidade e responsabilidade social O humanismo ocidental tem sido muitas vezes criticado por seu 11 Nota do Autor: Conferir um sumário conciso da filosogia de Levinas Bergo, B.: “Emmanuel Levinas”, in: Stanford Encyclopedia of Philosophy (http://plato.stanford.edu/entries/levinas/ [15 April 2011]); para sua Filosofia do Outro e implicações éticas, Bergo, B.: Levinas between Ethics and Politics. For the Beauty that Adorns the Earth, The Hague 1999; Fryer, D. R.: The Intervention of the Other: Ethical Subjectivity in Levinas and Lacan, New York 2004; Wolff, Ernst: Political responsibility for a globalised world. After Levinas’ humanism, Bielefeld 2011.

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abstratos de direito natural. As desigualdades sociais e políticas, como os dos cargos de propriedades sociais ou escravos, mantiveram-se em grande parte intocadas. O Marxismo marca o humanismo da sociedade burguesa emergente como uma mera formalidade, sem substância social e afirma trazer um "humanismo real" por meio de uma revolução proletária. A herança de incontáveis atos desumanos cometidos em nome desse humanismo ou em nome do progresso humano continua a ser uma ‘sobra’ pesada do século 20. Até hoje a doutrina prevalecente de direitos humanos e civis universais não resolveu a questão de como garantir as condições sociais para uma vida livre de todos os cidadãos.

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aparente descaso com as dimensões sociais da vida humana, enquanto as críticas ocidentais dos princípios e práticas sociais não-ocidentais referem-se, em resposta, ao tratamento desumano dos indivíduos em nome de normas sociais gerais e valores coletivos. Essa crítica mútua toca no problema básico de um equilíbrio viável entre a proteção do indivíduo e a criação e preservação da justiça social como condição para um novo humanismo em todo o mundo. A tensão entre esses dois lados da existência humana pode ser visto no centro da luta social ao longo da história moderna. Uma solução não-reducionista para este problema persistente, que não confunda os dois lados com a despesa para um deles. e que seja praticável tanto localmente como em contextos globais, ainda deve ser encontrada.

Humanidade e Transcendência Transcendência é aqui entendida como incluindo todos os tipos de formas culturais de referência para além das circunstâncias e condições da vida cotidiana, quer sejam expressas na religião, arte ou filosofia. Esta pode também ser vista em ligação com a indefinição em larga escala da natureza humana, que já foi discutido acima. O humanismo europeu no decorrer do tempo, certamente desenvolveu relações muito mais estreitas com a arte e a filosofia do que com a religião. Mas, como já vimos, o entendimento comum do humanismo ocidental como essencialmente secular é enganosamente incompleto. Um novo reflexo das múltiplas relações entre a ordem política secular e uma compreensão religiosa do mundo é necessário. O crescimento atual da militância religiosa é um desafio para cada ideia da humanidade, seja com base secular ou em princípios religiosos. Temos de reconhecer também a experiência histórica do século XX, durante o qual, em nome de um humanismo radicalmente secular e maciço, terríveis atos de desumanidade foram cometidos em uma escala ainda muito mais ampla. Ambas as ideologias políticas e religiosas seculares não são, portanto, imunes contra esses crimes contra a humanidade, mesmo em nome do progresso e aperfeiçoamento humano. Aqui a noção de vulnerabilidade humana vem novamente como um prérequisito para qualquer moderno conceito de dignidade humana. Com vistas a estabelecer a abertura discursiva destes elementos básicos de um humanismo intercultural, é fácil de identificar pontos de partida da crítica que pode ser dirigida contra todas as tradições do

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12 Nota do Autor: Ver Rüsen, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1 (2004), pp. 59– 74; also in: History and Theory 43 (2004) Theme Issue “Historians and Ethics”, pp. 118– 129.

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pensamento antropológico, incluindo a tradição ocidental. A interrelação discursiva das diferentes tradições humanistas expõem-nas para um ponto de crítica abrangente e fundamental: seja explícita ou implicitamente, o tratamento da diferença cultural permanece fortemente influenciada pelo etnocentrismo até hoje. Todas as culturas compartilham padrões de auto afirmação etnocêntrica à custa de outros, como a distinção entre civilização e barbárie, e outras concepções semelhantes. É uma das tarefas mais importantes da comunicação intercultural identificar e superar esse etnocentrismo em todos os níveis possíveis12.

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PLESSNER, Helmuth: Die Stufen des Organischen und derMensch, Berlin 1928 (The Levels of the Organic and Man. Introduction to Philosophical Anthropology). RADHAKRISHNAN, R: “Edward Said and the Possibilities of Humanism”, in Iskandar, A. /Rustom, H.: (Eds.): Edward Said. A Legacy of Emancipation and Representation, Berkeley 2010, pp. 431– 447. RÜSEN, Jörn/Laass,Henner (Eds): Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations, Bielefeld 2009. RÜSEN, Jörn: “How to Overcome Ethnocentrism: Approaches to a Culture of Recognition by History in the 21st Century”, in: Taiwan Journal of East Asian Studies 1 (2004), pp. 59– 74; also in: History and Theory 43 (2004) Theme Issue “Historians and Ethics”, pp. 118 –129. SAID, Edward: “Orientalism 25 Years Later:Worldly Humanism v. the Empirebuilders”, in: Counterpunch, 4 August 2003 (http://www.counterpunch. org/said08052003.html [8 April 2011]). SAID, Edward: Humanism and Democratic Criticism, New York 2004. SCHMITZ, Markus: Kulturkritik ohne Zentrum. Edward W. Said und die Kontrapunkte kritischer Dekolonisation, Bielefeld 2008. SIDDIGI, Yumna: “Edward Said, Humanism, and Secular Criticism”, in: Ghazoul, Feryal Jabouri (Ed.): Edward Said and Critical Decolonization, Cairo 2007, pp. 65–88. STRAUB, Jürgen: “Personal and Collective Identity. AConceptual Analysis”, in: Friese,Heidrun (Ed.): Identities, Difference, and Boundaries, New York /Oxford 2002, pp. 56–76. Wolff, Ernst: Political responsibility for a globalised world. After Levinas’ humanism, Bielefeld 2011.

Por que Humanismo? Um dos desafios mais urgentes para a orientação cultural de hoje consiste em lidar com diferentes tradições e visões do mundo no processo de globalização. Há necessidade de encontrar princípios globais para organizar a vida humana de acordo com as tendências globais em todas as suas dimensões. Quase toda a gente se vê confrontada na sua vida com problemas económicos, políticos, sociais e ambientais que exigem soluções globais. Simultaneamente, permanece o poder de se compreender e interpretar tais problemas de diferentes formas. E essa necessidade está até a aumentar dado que os padrões culturais universais de compreensão do ser humano e do mundo, que perduram desde há muito, estão a perder a sua plausibilidade. As principais tendências do pensamento ocidental, que moldaram as características do mundo moderno, têm sido alvo de um criticismo radical. Tradições alternativas têm ganho visibilidade e exigem reconhecimento. O bem conhecido slogan “Provincializar a Europa" (Dipesh, 2000) indicia o novo problema: onde se situa agora o império se já não existe o Ocidente? Ora se uma província é uma parte de um império, de outra forma o slogan não tem sentido. Existem alguns candidatos a este império escondendo-se por detrás da esquina, mas ninguém sabe o que eles trarão e se são capazes de carregar a responsabilidade de lidar com as dimensões globais da vida humana na atualidade. A dominação ocidental na vida intelectual, incluindo na vida académica das Humanidades e Ciências Sociais, tem sido desafiada radicalmente - mas que alternativas têm aparecido? O criticismo da tradição ocidental de modernização e modernidade é universal e totalmente aceite, senão até criado, no Ocidente (pelo menos os seus bastiões são as universidades ocidentais). Mas quando tal criticismo ‘faz o seu trabalho’, que modos de pensamento são capazes de substituir as velhas ideias e ideologias da modernidade e o seu legado Iluminismo? 1 Traduzido de Inter Cultural Humanism – Idea and reality In: An Insatiable Dialetic. Cambridge Scholars:2013. Tradução: Isabel Barca

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Humanismo intercultural: ideia e realidade1

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O que nós precisamos para compreender o nosso tempo é de uma mediação entre universalidade e peculiaridade no pensamento: uma síntese de comunalidade e diferença na organização das nossas vidas. Como poderemos nós manter as nossas peculiaridades de formação identitária e, simultaneamente, contribuir pela nossa parte para a solução de problemas que partilhamos com todo os seres humanos, não obstante a sua alteridade quanto a tradições, atitudes mentais e modos de pensar, e em muitas outras dimensões da vida humana? Para encontrar resposta a tal questão, não podemos simplesmente deixar as nossas raízes e saltar das circunstâncias históricas preexistentes nas nossas vidas e simplesmente abraçar uma nova postura intelectual que nos possa colocar mais próximos dos outros. Temos de perceber que algumas diferenças culturais têm causado uma força divisória na comunicação intercultural: por tendências etnocêntricas no processo cultural de formação da identidade, elas desempenham um papel destrutivo, impedindo a compreensão transcultural e o trabalho conjunto para encontrar uma resposta aos problemas urgentes do mundo globalizado. Isto leva-me ao tema do Humanismo. Durante muito tempo o Humanismo foi intelectualmente considerado completamente desatualizado: a sua destruição radical enunciada por Nietzsche, em teoria, e o combate do Darwinismo social contra os efeitos do imperialismo e das ideologias totalitárias, na prática, tiveram um efeito profundo. Os comentários relevantes de Heidegger (1976)2 e Foucault (1974) podem servir de exemplos esmagadores até aos nossos dias. Contudo, tal como diz um provérbio alemão, “Totgesagte leben länger” (as pessoas declaradas mortas vivem mais tempo), o Humanismo está a ganhar recentemente uma importância crescente nos discursos intelectuais sobre orientação cultural.3 O principal problema e ponto de partida é a questão de como conjugar diversidade e diferença na vida humana, uma vez que tal está obviamente a tornar-se mais forte devido à migração, aos efeitos da comunicação por internet e às mudanças gerais na política e aos graves conflitos religiosos? Como ultrapassar a força das tensões etnocêntricas na compreensão intercultural? O Humanismo oferece uma resposta a esta questão, e há uma razão simples para isso. A condição de ser humano é 2 Tradução para Português da versão inglesa em: “Letter on ‘Humanism”. In: M. Heidegger, 1998. Pathmarks. Cambridge & New York: Cambridge University Press. 3 Um exemplo alemão: Nida-Rümelin, J., 2006. Humanismus als Leitkultur. Ein Perspektivenwechsel. Munich: C.H. Beck.

O que é Humanismo? a.Três Fases de Desenvolvimento Histórico

O conceito de Humanismo não está claramente definido. Tendo emergido no Ocidente e influenciado as discussões não ocidentais desde finais do século XIX,5 o seu significado diverge largamente. Por conseguinte, torna-se útil apresentar um breve historial dos seus desenvolvimentos. Três fases devem ser distinguidas: (i) as suas raízes na Antiguidade clássica, (ii) o seu primeiro estabelecimento no início da História Moderna, (iii) e a sua forma moderna desde finais do século XVIII e início do século XIX, estreitamente relacionada com o movimento intelectual do Iluminismo. A sua articulação moderna não se limita à vida intelectual pois pode encontrar-se também nas Belas Artes. (i) Na Antiguidade Clássica, sobretudo na Filosofia estoica, a maior parte dos termos básicos do pensamento humanístico, como por exemplo a noção de dignidade humana (dignitas hominis) e de lei natural (lex naturae), estavam aplicados a cada ser humano. Não existia uma teoria sistemática que combinasse esses conceitos numa ideia de natureza humana e que pudesse ser utilizada em tempos posteriores. Apesar de tudo, surgiram ideias altamente eficazes que mais tarde tiveram um papel decisivo no pensamento humanístico (Cancik, 2011). Tais ideias tinham um estatuto antirrealista ao colocar o valor da humanidade contra o valor 4 A minha argumentação baseia-se em várias publicações que são os resultados preliminares do projeto de investigação “Humanism in the Era of Globalization – An Intercultural Dialogue on Humanity, Culture, and Values”, desenvolvido no Institute for Advanced Study in the Humanities at Essen, Germany, de 2006 a 2009, e financiado por Stiftung Mercator. Ver Rüsen, J and Henner, L. eds., 2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript. 5 Um exemplo: Zhang, K., 2010. Inventing Humanism in Modern China. In: C. Meinert, ed., 2010. Traces of Humanism in China. Tradition and Modernity. Bielefeld: Transcript, pp. 131-149.

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comum a toda a gente; ela define a sua comunalidade e, ao mesmo tempo, é realizada numa multiplicidade de formas de vida e das suas mudanças históricas. É isto precisamente o que o Humanismo tem feito na sua forma moderna: analisa o elemento comum da vida humana, os seus valores e normas, e ao mesmo tempo reconhece a diferença e a variedade como uma manifestação da natureza cultural da humanidade. Será que a tradição do Humanismo pode ser revitalizada enquanto abordagem para a orientação cultural, que possa ser capaz de sintetizar princípios universais de conduta humana e formas peculiares de vida? Neste artigo, tentarei dar uma resposta positiva a esta questão.4

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da desumanidade na política e vida social. Na sua forma idealista, podia ser usada para criticar formas de dominação política e de desigualdade social. Não é de admirar que os revolucionários do final do século XVIII tivessem desenvolvido no seu imaginário visões de uma vida nova e humana e fizessem uso intensivo dos símbolos da República romana. (ii) O humanismo moderno inicial, que surgiu nos séculos XIV e XV em Itália e se espalhou por toda a Europa, tinha como referência a Antiguidade Clássica e assim entrou na consciência intelectual das elites instruídas. Tais referências abriram um novo espaço para os discursos intelectuais, que tomaram a forma de disciplinas especializadas, as humaniora (antepassadas das disciplinas académicas das Humanidades) centradas em torno da filologia. Eram cultivadas por um novo tipo de intelectuais, os humanistas – pessoas com competências de interpretação do legado literário da Antiguidade. A sua figura representativa foi Erasmo de Roterdão (1465-1536). O discurso dos humanistas permaneceu no contexto da Cristandade, mas dentro desse contexto cresceu um modo liberal de argumentação, contra o dogmatismo escolástico. O melhor exemplo deste novo espaço para os discursos liberais foi a luta dos humanistas iniciada por Johannes Reuchlin (1455-1522) contra a tentativa da Igreja de estabelecer uma corrente anti-judaica na sua doutrina oficial e de criar, de acordo com isto, tribunais da Inquisição na Alemanha (Reuchlin, 1511). (iii) Por último, o Humanismo moderno emergiu no final do século XVIII e início do século XIX. Era formado essencialmente por uma revisão geral dos conceitos básicos da compreensão do mundo humano.6 Situavase no movimento do Iluminismo tardio e apresentava a ideia da natureza cultural da humanidade, o que originou novos tipos de pensamento histórico, político e educacional (pelo menos em parte), e que ainda permanece enquanto tradição nas humanidades, quer o ensino superior quer a cultura política. Foi aqui que pela primeira vez na Alemanha encontrámos o termo “Humanismus" (Cancik e Vöhler, 2009). Referirei sobretudo o caso alemão, mas as suas ideias principais encontram-se por toda a Europa.7 6 A melhor documentação sobre esta mudança encontra-se na enciclopédia Geschichtsliche Grundbegriffe. Brunner, O. Conze, W. and Koselleck, R. eds., 1971-1997. Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. 8 vols. Stuttgart: Klett-Cotta Stuttgart. 7 O caso francês é apresentado de forma brilhante por Todorov, T., 2002. Imperfect garden. The legacy of humanism. Princeton: Princeton University Press.

Irei analisar este humanismo moderno como ponto de partida do contributo ocidental para a discussão intercultural sobre as oportunidades e os limites do Humanismo na crise de orientação atual. Mas primeiro apresentarei uma descrição de tipologia ideal deste humanismo. Gostaria de apresentá-lo como resultado de um desenvolvimento histórico complexo no Ocidente. À luz deste desenvolvimento, uma explicação mais sistemática tomará a forma de experiência histórica, indicando assim os problemas da sua perspectiva futura. Para apresentar o humanismo ocidental desta forma, gostaria de distinguir nove tendências diferentes, cada uma das quais se encontra relacionada com todas as outras de forma muito complexa.8 A primeira tendência consiste na antropologização dos procedimentos de orientação cultural. É o Homem – ele e ela – que faz sentido do mundo. Isto vai a par com a segunda tendência, nomeadamente a secula­ rização. Os princípios culturais da vida prática têm um estatuto de foro íntimo (como resultado de guerras muito duras e sangrentas entre diferentes correntes cristãs, que culminaram na Guerra dos Trinta Anos na Europa central [1618-1648] e que causaram a perda de cerca de 30% da população alemã). Uma terceira tendência consiste na universalização da humanidade em todas as culturas e tempos diversos. Esta universalização tem-se realizado graças a um conhecimento crescente da variedade e mutabilidade das formas de vida humana. Ela contém uma dimensão empírica e normativa: empiricamente ela cobre toda a experiência histórica e antropológica, e normativamente atribui valores básicos a todos seres humanos (em princípio). Numa interrelação muito dialética, a Humanidade tornou-se ao mesmo tempo naturalizada e idealizada. O corpo humano podia ser tratado como parte da natureza, enquanto que a mente humana era diferenciada estritamente da natureza ao atribuir-lhe uma qualidade não natural ou, até, sobrenatural. Na língua alemã, esta qualidade foi conceptualizada com os termos “Geist". “Geist" significava síntese da mentalidade e espiritualidade, com a força criativa de fazer emergir o mundo humano como essencialmente diferente da natureza. Ela é a força essencial de toda a atividade cultural e dos seus resultados na variedade da 8 Para mais detalhes, ver Rüsen, J. and Jordan, S., 2008. Mensch, Menschheit. In: F. Jaeger, ed., 2008. Enzyklopädie der Neuzeit. Vol. 8: Manufaktur-Naturgeschichte. Stuttgart: Metzler 2008, col. 327-340.

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b) Principais Tendências durante a História Moderna

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vida humana no espaço e no tempo. Esta variedade recebeu a sua forma cognitiva específica por meio da historização, que foi fundamental. A Humanidade foi colocada no quadro do desenvolvimento universal dentro do qual a unidade dos humanos se realiza através da diversidade de culturas. Assim, a Humanidade tornou-se individualizada. Cada pessoa singular e cada comunidade social eram entendidas como manifestação única da Humanidade. O procedimento cognitivo de compreender as diferenças, que dominou as regras metodológicas de investigação nas Humanidades emergentes, baseia-se nesse princípio de individualização. Uma tendência específica moldou a articulação e recepção das Belas Artes. Através da estetização ela alcançou um lugar e função especial na dimensão cultural da vida humana, libertando o poder da imaginação de todos os constrangimentos e limites. A compreensão da vida humana veio finalmente dar ênfase às suas potencialidades. A natureza cultural dos humanos não é fixa, mas sim uma questão de desenvolvimento e mudança. Por isso, educar os seres humanos como processo de cultiválos para a sua própria humanidade faz parte dos elementos essenciais do humanismo moderno. É sintomático que na língua alemã o termo “humanismo” tenha emergido na esfera pública como título de um livro sobre educação (Niethammer, 1808). Como resultado destas diferentes tendências e da sua inter-relação complexa e até mesmo conflituosa, desenvolveu-se a ideia de humanidade humanizada, representada por cada pessoa singular e também por cada comunidade social. O Humanismo nada mais é do que uma forma elaborada desta ideia.

O Conceito Moderno de Humanismo Numa perspectiva mais sistemática de Humanismo, este pode ser descrito como um padrão de pensamento acerca das diferentes dimensões da vida humana e da sua regulação cultural. Este padrão baseia-se numa argumentação antropológica centrada no princípio da dignidade humana. As duas problemáticas - antropologia e dignidade – foram claramente articuladas por Immanuel Kant, ao afirmar que em cada orientação cultural da vida humana há três questões básicas que têm de ser respondidas: O que posso eu saber? O que devo eu fazer? O que posso esperar? E ele acrescentou – numa expressão típica do pensamento

9 “O homem como pessoa, isto é, como sujeito da razão moralmente prática, é exaltado acima de qualquer preço. Com esta individualidade (homo noumenon), ele não é valorizado simplesmente como um meio para os fins de outras pessoas ou até para os seus próprios fins, mas existe para ser apreciado como um fim em si próprio. Isto significa que ele possui dignidade (um valor intrínseco absoluto) pelo qual ele merece o respeito de todos os outros seres racionais do mundo, pode avaliarse em relação a cada membro da sua espécie e pode considerar-se a si próprio em pé de igualdade com todos eles." Kant, I. 1797. Metaphysik der Sitten, A 93 (tradução inglesa: http://praxeology.net/ kant7.htm; 9.5.2011]) 10 No caso alemão, isto encontra-se documentado de forma paradigmática no manifesto político de Wilhelm von Humboldt: zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen de 1792 (tradução inglesa: Humboldt, W. v., 1854. The Sphere and Duties of Government [The Limits of State Action]. London: John Chapman.) [http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_ staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=589&Itemid=99999999; 9.5.2011])

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moderno – que todas estas três questões podem ser resumidas numa única e decisiva questão: O que é o ser humano (Kant,1800, p. 29)? De acordo com Kant, a resposta a esta questão tem de reconhecer a qualidade cultural fundamental de cada ser humano: ele ou ela é sempre mais do que apenas um meio para os propósitos dos outros, é sim um propósito para si mesmo. Kant denominou como dignidade humana este “ser um propósito para si mesmo” (em alemão: Selbstzweckhaftigkeit).9 Com base neste humanismo antropológico, existe um necessário fermento espiritual e mental da sociedade civil baseado culturalmente em valores universais seculares, como liberdade de expressão, estado de direito, igualdade perante a lei, pluralismo religioso num quadro de moralidade universal, representação dos dominados nas instituições dominantes, etc. Assim, o humanismo tem uma dimensão política. Ele critica formas feudais de dominação política e de vida social e coloca a dominação política submetida a leis sobre direitos humanos e civis. O Humanismo é claramente oposto e dirigido contra qualquer forma autoritária de dominação política.10 Na sua dimensão social o Humanismo exige igualdade civil, contra a superioridade da nobreza e, mais tarde (na sua particularidade socialista), contra qualquer tentativa de opressão social. Na sua dimensão intelectual, o Humanismo sustenta a ideia de humanidade que vai de encontro à sua própria universalidade empírica e normativa, dentro e através da diversidade e mutabilidade cultural. Portanto, ele promove as categorias de historicidade e de individualidade na compreensão do mundo humano. Com estas categorias, ele molda o trabalho académico das Humanidades e as suas estratégias hermenêuticas para compreender a diversidade cultural e a mudança histórica sob a forma de processos cognitivos de investigação metodologicamente regulados. Nesta dimensão, o Humanismo opõe-se fundamentalmente a

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qualquer forma de dogmatismo e favorece a livre e ilimitada expressão de pensamento como meio de discutir quaisquer assuntos de interesse comum.11 Pela sua antropologia, o Humanismo tem um forte impacto na Educação, num sentido lato de auto-cultivação humana ("Bildung"). Qualquer pessoa deve ter oportunidade de desenvolver as suas capacidades de forma holística e, portanto, ele ou ela representa a criatividade cultural da mente humana, numa manifestação individual sob condições específicas da sua vida. A Educação humanística opõe-se a qualquer utilitarismo que instrumentalize o desenvolvimento humano, ao valorizar a utilidade social como sendo essencial para criar uma personalidade independente. Por fim, não se deve esquecer que o Humanismo teve uma relação especial com as Belas Artes: ela existe no seio de uma autonomia ilimitada de liberdade de expressão contra regras de formação previamente estabelecidas, dependentes de interesses políticos e socais. As Belas Artes ganham assim um lugar cultural na vida humana como condição necessária para realizar a liberdade humana e a auto-realização.12 Este humanismo é um campo de ideias multifacetado. Mas o que dizer da realidade? Ninguém pode negar que, em muitos países - sobretudo no Ocidente, mas não só - se estabeleceu uma forma da sociedade civil com elementos humanistas, como por exemplo, o princípio da dignidade humana. Esta forma de vida tem os seus limites e encontrase permanentemente ameaçada por falta de bom senso. Mas em geral, é evidente que existe uma atração por ela em todo mundo e, na prática, vê-se que o seu impacto está a alargar-se. O humanismo político tem sido plasmado em muitas constituições modernas, nas suas referências aos direitos humanos e civis. A humanização da dominação política tem sofrido muitos recuos e perversões mas, apesar de tudo, podese observar uma tendência histórica geral quanto ao seu alargamento e aprofundamento. Logo desde o início, o humanismo social teve de confrontar a sua ideia de igualdade civil com as novas formações de classe e as fortes tendências de limitarem o usufruto das classes inferiores aos benefícios da sociedade civil como, por exemplo, a novas instituições de 11 Apesar de criticar radicalmente a forma ocidental de compreender as diferenças culturais, Edward Said saudou o Humanismo (que, na verdade, é um pressuposto para a sua crítica): Said, E., 2004. Humanism and Democratic Criticism. New York: Columbia University Press. 12 Na tradição humanista alemã, isto está documentado de forma paradigmática nas cartas sobre a cultura estética da humanidade, de Friedrich Schiller (Ueber die aesthetische Erziehung des Menschen in einer Reyhe von Briefen 1795, Stuttgart: Cotta (tradução inglesa: On the Aesthetic Education of Man in a Series of Letter [http://www.bartleby.com/32/501.html; 9.5.2011])

Limites do Auto-Criticismo Gostaria de trazer a tradição humanista ocidental à atual discussão intercultural acerca de como lidar com o desafio da globalização, ao nível dos princípios de orientação cultural que sejam válidos ao nível transcultural. Para tal, é necessário aguçar a nossa visão sobre os seus limites e realizar o seu auto-criticismo. Embora tenha já indicado anteriormente alguns deles, eles devem ser listados de um modo mais sistemático: Política e socialmente, o humanismo moderno tem o seu limite no problema insolúvel de assegurar um estatuto social para se ser membro da sociedade civil de pleno direito. Sem um estatuto social da pessoa que ganha a sua vida, todas as vantagens de dignidade humana não podem evoluir completamente. Adicionalmente, o Humanismo moderno tem de enfrentar o perigo da desigualdade social crescente, e, como consequência,

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Educação. Um problema específico da igualdade social foi excluírem as mulheres de direitos políticos e de independência social; mas, a longo prazo, a sociedade civil está a ultrapassar a relação desequilibrada entre sexos. Um outro problema específico emergiu do princípio humanista de individualismo: muito facilmente isto poderá levar a um enfraquecimento da responsabilidade e solidariedade social e, portanto, esse princípio tem de ser complementado essencialmente com o reconhecimento da dimensão intersubjetiva da personalidade humana. O humanismo intelectual tem-se estabelecido no seio da constituição teórica e metódica das Humanidades e Ciências Sociais – contanto que elas trabalhem com a hermenêutica enquanto estratégia cognitiva para lidar com a diversidade e a diferença cultural. Os seus princípios de reconhecimento das diferenças têm de lutar contra o viés nacionalista. E numa perspectiva intercultural tem de ser aplicado e reforçado ainda, contra tendências etnocêntricas na formação da identidade cultural. O Humanismo educacional entrou finalmente na educação superior mas, ao mesmo tempo, estabeleceu limites no acesso social. Isto é evidente no caso do ensino secundário humanístico na Alemanha. Mas não foi só neste país que as atitudes elitistas foram confrontadas com abordagens universalistas de Educação para todos. A ideia de centrar a Educação em torno do princípio de personalidade livre continua ainda sob pressão, em nome da utilidade social.

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uma dissolução do bom senso. Intelectualmente, o Humanismo moderno encontra os seus limites (a) por não estar suficientemente consciente da desumanidade humana, (b) pela sua relação ilusória com a Antiguidade clássica, (c) por manter elementos etnocêntricos na sua ideia de Humanidade e História universal, (d) por um conceito limitado de razão, e (e) pela relação altamente problemática entre humanos e natureza. Estes cinco pontos necessitam de uma breve explicação:13 a) O Humanismo clássico está consciente das potencialidades de cada ser humano se tornar desumano, suprimir, subjugar, instrumentalizar e desumanizar outros seres humanos. No quadro da antropologia e teoria da história idealista, este potencial de desumanidade foi negligenciado não tendo sido, portanto, tomado em conta de forma sistemática. Os seus seguidores acreditavam no progresso como um processo de longa duração humanização das condições de vida humana. Herder (1784-91, pp. 588f.), por exemplo, afirmou na sua Filosofia da história: “O curso da história demonstra que, pelo crescimento de uma humanidade autêntica, os demónios destrutivos da raça humana foram realmente diminuídos. Após os crimes contra a humanidade que culminaram no Holocausto, que deu ao século XX a sua assinatura histórica, tal otimismo tornouse impossível. Só um humanismo que possa enfrentar o desafio destes crimes e encarar a face do Holocausto pode ser viável para uma orientação da vida humana dirigida para o futuro (Rüsen, 2008).

b) O Humanismo clássico teve de demonstrar que a sua ideia de humanidade era realista. Tal foi feito por uma referência básica à Antiguidade clássica. Os humanistas do final do século XVIII e início do século XX acreditavam que nesse tempo específico – sobretudo na Grécia clássica – tinha sido alcançado o pleno desenvolvimento das ideias sobre a forma de vida humana.14 Sabemos que tal não aconteceu, e que a razão histórica para a 13 Na apresentação seguinte, recorro a uma parte de um texto para publicação (Temporalizing Humanity – Towards a Universal History of Humanism. In: Rüsen, J., Spariosu, M. and Zhang, L. eds., 2011. Exploring Humanity – Intercultural Perspectives on Humanism. Bielefeld: Transcript [forthcoming]). 14 Encontra-se um exemplo em Humboldt, W. v., 1807. Über den Charakter der Griechen, die idealische und historische Ansicht derselben. In: A. Flitner and K. Giel, eds., 1961. Werke in fünf Bänden. Vol. 2: Schriften zur Altertumskunde und Ästhetik. Die Vasken. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, pp. 65-72.

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concretização do humanismo era uma grande ilusão. c) O conceito humanista clássico de uma História universal pretendia dar espaço às diferenças culturais no curso da história sem o preconceito da superioridade ocidental. Contudo, este humanismo tinha de se colocar a si próprio no curso da história, e ao faze-lo não conseguiu evitar privilegiar a civilização ocidental, embora o seu criticismo do imperialismo ocidental seja evidente, principalmente no pensamento de Herder. E se lançarmos um breve olhar à caracterização dos Africanos na antropologia desse tempo (por exemplo, na antropologia de Kant), podemos ver uma parte de etnocentrismo que, com efeito, ainda existe. (d) O pós-colonialismo trouxe um criticismo radical do conceito ocidental de razão. Essa corrente interpretou tal conceito como um meio de dominação, subjugando todas as outras formas de vida intelectual, que seguiram diferentes ideias de mente e espírito humano. O Humanismo clássico usou o conceito de razão mas não reproduziu simplesmente a atitude de governar o mundo inerente ao conceito moderno de razão. Em vez disso, o Humanismo atribuiu-lhe um potencial hermenêutico abrindo-se assim a uma nova consciência da variedade e diferença das formas de vida humana. Contudo, está ainda aberta a questão sobre se este potencial de compreensão é realmente livre em relação a qualquer vontade de dominação, e se ele abre suficientemente um espaço para o reconhecimento dessas formas de vida humana que não estejam comprometidas com este tipo de razão. (e) Um aspecto do carácter problemático do conceito ocidental de razão encontra-se no seu modo de moldar a relação humana com a natureza, que é uma forma de dominação incondicional. Atualmente, tornaram-se evidentes as consequências catastróficas desta relação. O Humanismo ocidental não confirmou ou legitimou completamente esta atitude de dominação. Além disso, a sua ideia da relação humana com a natureza tem-se mostrado bastante vaga. Na penumbra desta ambiguidade, o Humanismo ocidental tradicional tem provado ser incapaz de desenvolver uma ideia acerca de como é a relação entre o ser humano e a natureza (Rüsen, 2006). O desenvolvimento intelectual no ocidente após o processo da modernização mostrou uma renúncia progressiva à tradição do Humanismo embora haja várias tentativas para a sua renovação. O

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representante mais proeminente desse anti-humanismo é Friedrich Nietzsche. Essa renúncia culminou na ideia de que o homem se torna subjugado sob o efeito quer de não instâncias – ou de super instâncias como o super-homem – quer do “ser”, ou de estruturas anónimas da vida social ou mental. Isto foi o fim do movimento antropológico; o homem ‘descentrou-se’ do interesse filosófico de compreender o mundo. Na política podemos observar correntes similares de enfraquecimento e descrédito da tradição de Humanismo: Houve, talvez, apenas um fraco protesto contra o poder de movimentos políticos desumanos como o fascismo e o comunismo. Pelo contrário: o comunismo até podia invocar a tradição do humanismo e subscrever o “humanismo real” para a supressão e aniquilação de formações e movimentos sociais que não se enquadravam na sua ideia de progresso histórico (Scherrer, 2011). Nos tempos mais recentes, dois movimentos intelectuais contribuíram substancialmente para a marginalização e dissolução do Humanismo: a) o pós-modernismo negou qualquer abordagem aos valores universais, e b) o pós-colonialismo acusou a ideia ocidental moderna de legitimar a destruição de países não ocidentais. O Humanismo tem sido criticado como um meio para dominação política e de roubo da dignidade e autodeterminação aos outros povos e culturas. (será outra questão ainda ver se este criticismo fez ou não uso de princípios humanistas, confirmando assim o Humanismo no seu movimento contra ele próprio). Por fim, o sucesso fascinante da investigação biogenética e do cérebro apoiaram uma nova tentativa de substituir os modos de pensamento centrados na cultura (que incluem, evidentemente, o humanismo) por modos de pensamento centrados na natureza.

Uma nova abordagem com um propósito intercultural Qualquer abordagem para revitalizar o Humanismo ligado a um novo tipo de compreensão intercultural, tem de começar com uma atitude claramente distanciada: Não se pode usar o paradigma humanista ocidental sobre a humanidade na sua peculiaridade histórica como parâmetro de comparação intercultural, e tão pouco se pode olhá-lo como um objetivo de perspectiva futura de comunicação intercultural. Isto seria um erro quer epistemológico quer político. Tal iria apenas apoiar as suspeições não ocidentais de continuação do domínio intelectual pelo Ocidente e,

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portanto, não poderia levar a um consenso transcultural sobre valores essenciais e princípios quanto à compreensão da natureza cultural do ser humano, que é comum mas que tem também o poder de ser diferente. Contudo, por outro lado, a ética do Humanismo ao nível dos princípios – e não tanto sobre o nível da experiência histórica no plano do uso prático – pode ser compreendida como uma solução de síntese da comunalidade e diversidade da humanidade, e que poderá ir de encontro ao problema de orientação cultural desafiado pela globalização. Em muitos países ocidentais e, também, não ocidentais, estabeleceram-se elementos básicos desta ética nas formas de vida da sociedade civil, e onde diferentes tradições podem ser vividas pacificamente pelos seus seguidores. A universalidade da dignidade e ideias correspondentes sobre a vida humana e a humanidade pode ser adaptada a contextos historicamente diferenciados. Nisto essas ideias podem provocar uma atração mental e espiritual por contribuírem para tendências de humanização dos humanos em todas as dimensões das suas vidas práticas. Os princípios humanistas não são, evidentemente, um privilégio da história ocidental. Eles podem encontrar-se e reforçar-se também em muitas outras tradições (Meinert e Zoellner, 2009; Huang, 2010; Meinert, 2010; Longxi, 2010; Reichmuth, Rüsen e Sarhan, 2010). Perante este facto histórico tem de se levantar a seguinte questão: O que faz manter estas diferentes tradições em conjunto sem dissolver a sua diversidade? A resposta a esta questão é atualmente um dos assuntos mais urgentes para as Humanidades e Ciências Sociais. Gostaria de propor uma dupla estratégia: (a) pela decomposição do paradigma ocidental em elementos particulares – que nós podemos encontrar em qualquer lado – em diferentes constelações de culturas específicas; (b) por um quadro conceptual de integração desta variedade de abordagens humanistas em relação à vida prática. Tal conceptualização não dissolveria a variedade de manifestações culturais dessas abordagens em favor de uma única ideia universal, antes pelo contrário, manteria todas elas pela sua integração. Para este propósito, necessitamos de uma nova Filosofia da história que, ao mesmo tempo, abra espaço ao pluralismo histórico e vá de encontro à unidade da humanidade: (a) Os elementos básicos duma visão humanista, listados a seguir, devem ser considerados como contributos necessários para uma ideia válida no plano intercultural, em termos de dar resposta à exigência de criar uma síntese da unidade da humanidade e da variedade das suas manifestações culturais no campo da experiência histórica:

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– Uma posição excecional do ser humano como fonte de orientação cultural, que inclui a ideia de dignidade essencial a qualquer ser humano; – Igualdade de cada ser humano quanto ao respeito pela sua dignidade essencial; – Uma referência fundamental à noção de alteridade no quadro da compreensão da existência humana e da conceptualização da própria condição humana; – Uma distinção clara entre o individual e o social na comunidade em que cada um ou uma vive a sua vida; – Uma relação do ser humano com uma dimensão exultante da vida, entendida como ponto de referência para lá das circunstâncias e condições prévias da vida prática; – Um reconhecimento da mutabilidade das formas de vida humana como oportunidade para se estabelecerem as condições da vida humana; – Uma ênfase na educação centrada na ideia de responsabilidade moral e na capacidade de viver a sua própria vida de acordo com valores universais; (b) A variedade de formas de vida no tempo e no espaço pode ser historicamente incorporada numa ordem que dê ênfase a esta unidade e diferença, em simultâneo. A base para esta ordem são os universais antropológicos. Estes são as raízes para o Humanismo na natureza cultural da humanidade, e formam um quadro para a mudança temporal e a diferença regional. Gostaria de resumir esta antropologia cultural do Humanismo do seguinte modo: 15 Em todas as culturas, e em todos os tempos e lugares do mundo, a vida humana tem sido regulada moralmente por uma distinção clara entre o bem e o mal, com os seus respetivos princípios de conduta humana. A capacidade de tal distinção e aplicação à ação do ser humano16 pressupõe uma certa ideia acerca do que significa ser um ser humano: os humanos definem-se como pessoas; são indivíduos com uma continuidade física 15 Refiro-me principalmente a Antweiler, C., 2011. Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript (tradução inglesa em preparação). 16 ‘Human agency’, na expressão utilizada na versão inglesa, Esta expressão é usada no quadro dos debates sobre epistemologia da História para acentuar a capacidade interventiva do ser humano (agente) na sociedade [nota de Tradução].

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e psíquica. Como tal, são responsáveis pelo que fazem ou falham – pelo menos ao nível do quotidiano. Esta responsabilidade equipa cada ser humano com a qualidade da dignidade (numa expressão própria da nossa linguagem moderna). A ‘dignidade’ exige respeito e reconhecimento em todos os contextos sociais da vida. Essa ideia de uma qualidade moral substantiva de cada ser humano baseia-se numa outra qualidade dos humanos antropologicamente universal, nomeadamente a capacidade de mudar a sua própria perspectiva de percepção e interpretação, ao considerar as perspectivas dos outros. A ideia humanista da 'dignidade' do ser humano está antropologicamente enraizada na capacidade humana de tomar decisões perante a tensão entre o bem e o mal e na capacidade de empatia. Esta qualidade antropológica exige formas de cooperação humana, que são importantes para a organização social da vida humana em todas as diferentes culturas. Fora destas raízes cresce a árvore da cultura humana com todos os seus inúmeros ramos e folhas. Por conseguinte, a antropologia cultural do Humanismo precisa de uma adição e complemento históricos para que seja possível identificá-lo nas principais tendências da história universal. A humanidade poderá então tornar-se finalmente na face da história. O sumário filosófico de tal história universal é muito abstrato, mas penso que é necessário para nos tornarmos abertos à riqueza da experiência histórica e ao mesmo tempo para o propósito de dar a essa riqueza um significado abrangente. A história universal pode ser conceptualizada filosoficamente como um processo de humanização da humanidade. Este processo é evidente e pode ser facilmente tornado plausível a respeito da experiência histórica por três períodos. O primeiro período é o das sociedades arcaicas, que são as mais antigas. No quadro de uma Filosofia da história humanista, elas podem caracterizar-se genericamente pela sua definição cultural do que é ser humano, nomeadamente: só as pessoas da sua própria comunidade têm essa qualidade. Os povos que vivem para lá da sua própria esfera de vida não são percebidos como humanos, falta-lhes elementos essenciais da

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humanidade que é própria de si mesmo.17 O segundo período é o das sociedades de tempo axial. A expressão ‘tempo axial’ implica uma mudança fundamental na visão humana do mundo.18 Essa mudança de visão acontece a par com mudanças também nas outras dimensões da vida humana, evidentemente. Considerando todos estes desenvolvimentos em conjunto, pode-se falar da nova forma de vida designada como ‘civilizações avançadas’. Elas floresceram em diferentes tempos e em diferentes lugares (mas aproximadamente entre 600 A.C e 600 D.C.). Enquanto formas de vida partilham elementos, qualidades e fatores essenciais que definem a novidade histórica que marca a sua época. Com o propósito de apresentar a minha argumentação, a qualidade mais importante nesta mudança é a universalização da ideia de humanidade. Então, não só o próprio povo de cada um é considerado humano com as suas capacidades específicas, mas (principalmente) todos os outros membros da raça humana são vistos como imbuídos também dessa qualidade. O processo evolutivo dos tempos axiais trouxe um aumento de transcendência e subjetividade. Ambas conferem à humanidade um novo molde. Na perspectiva do Humanismo este molde indica um aumento de humanidade. A qualidade moral de ser humano torna-se humanizada. Um exemplo característico é o Confucionismo e o seu princípio moral ‘ren’ (benevolência) (Huang, 2010; Meinert, 2010). A moralidade traz consigo o seu próprio universalismo, expresso pela ‘regra de ouro’. Em ambos os casos a humanidade quebrou os constrangimentos da etnicidade.19 Isto é expresso em afirmações centrais de religiões de tempos axiais diferentes (chamamos-lhe ‘religiões do mundo’ para caracterizar a sua nova abordagem universalista). Na relação cristã entre o indivíduo singular e

17 Klaus E. Mueller caracterizou esta universalidade particular de exclusão sobre o ser humano nas sociedades arcaicas com o termo “Eigenweltverabsolutierung" (estabelecer o seu próprio mundo como absoluto). Müller, K. E., 1983. Einleitung. In: K. E. Mueller ed., 1983. Menschenbilder früher Gesellschaften. Ethnologische Studien zum Verhältnis von Mensch und Natur. Frankfurt am Main: Campus 1983, pp. 13-69, cit. p. 15. 18 A parte seguinte é baseada sobretudo no trabalho de Shmuel N. Eisenstadt. Eisenstadt, S. N., ed., 1986. The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State University of New York Press; ver Arnason, J. P. Eisenstadt, S. N. e Wittrock, B., eds., 2005. Axial Civilisations and World History. Leiden: Brill 2005; Kozlarek, O. Rüsen, J. e Wolff, E., eds., 2011. Shaping a Human World – Civilizations, Axial Times, Modernities, Humanisms. Bielefeld: Transcript (no prelo). 19 É importante notar que ‘evolução’ não significa que formas mais antigas de orientação cultural se dissolvam e desapareçam. Elas permanecem com diferentes manifestações, incluindo em vastas regiões do subconsciente, mas o seu lugar no quadro cultural muda. A etnicidade nos tempos modernos, por exemplo, é diferente da etnicidade nas sociedades arcaicas.

20 O mais característico são as palavras de S. Paulo: “Não há nem Judeu nem Grego, nem escravo ou livre, nem homem ou mulher, pois todos somos um em Jesus Cristo" (Gal. 3,28). 21 Ver o Corão, 5,32: “Nós decretamos para os Filhos de Israel que quem matar um ser humano por algo que não seja homicídio ou corrupção na terra, seja como se ele tenha matado toda a humanidade, e o que salvar a vida de um seja como se ele tenha salvado a vida de toda a humanidade.”

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Deus todas as diferenças entre os homens se esvaem;20 e é possível dizer que matar um único ser humano desafia a humanidade em geral.21 O terceiro período é o da modernização e globalização. A passagem para a modernidade, que aconteceu por todo o mundo, desenvolveu-se sob a forte influência da cultura ocidental mas, acima de tudo, ela foi praticada de forma diferenciada e, portanto, foi mais do que um simples processo de ocidentalização. Para descrever este processo, deve-se seguir a proposta de Shmuel Eisenstadt (2000) – um dos representantes mais proeminentes da teoria do tempo axial – e falar de “modernidades múltiplas" em vez de uma única modernidade unificadora (Sachsenmaier and Riedel, 2002). Isto pode ser pensado ao nível da Filosofia da história uma vez que a mudança para esta época é uma mudança na lógica do universalismo(múltiplo) já alcançado na compreensão da humanidade. Penso que podemos identificar muita evidência factual e teórica em relação ao caráter específico da humanidade como uma mudança radical de universalismos exclusivos para inclusivos em termos de compreensão da humanidade. Ainda não está claro um paradigma consolidado e abrangente deste humanismo inclusivo, mas alguns dos seus elementos já podem ser identificados. Uma dimensão universalista na compreensão da humanidade já foi estabelecida na época anterior de tempos axiais, e não vejo quaisquer razões para desistir dela em favor de qualquer tipo de relativismo (o Relativismo pode ser útil só para criticar universalismos dogmáticos perante o processo de globalização; mas seria uma rendição intelectual no choque de civilizações. Apoiando-o iria entregar ao jogo do poder da política todos os esforços para resolver tensões interculturais). Mas o que dizer acerca do problemático caráter inclusivo deste univer­ salismo? Como pode a lógica de exclusão historicamente preexistente mudar para uma outra totalmente oposta? Podemos encontrar sinais e exemplos de um processo histórico de estabelecimento de universalismos inclusivos na conceptualização e compreensão da humanidade. No meu ponto de vista, uma das indicações mais fortes desta situação é o Humanismo moderno ocidental e o interesse crescente sobre os seus resultados positivos. Embora este Humanismo tenha lacunas atrás listadas, os seus grandes méritos não podem ser desprezados: ele trouxe

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ideias de inclusão que poderão ser aceites no plano intercultural.22 Mas isto apenas marca um início de um modo comum de estar com todos os limites e insucessos que todos agora conhecemos. É uma questão de comunicação intercultural na atualidade ver se estes insucessos e lacunas podem ser ultrapassados e como a ideia inclusiva de humanidade pode aproveitar tradições não ocidentais e suas aplicações a problemas de orientação cultural atualmente efetivamente partilhados por toda a gente.

Bibliografia Antweiler, C., 2011. Mensch und Weltkultur. Für einen realistischen Kosmopolitismus im Zeitalter der Globalisierung. Bielefeld: Transcript (Tradução inglesa em curso). Arnason, J. P. Eisenstadt, S. N. And Wittrock, B., eds., 2005. Axial Civilisations and World History. Leiden: Brill 2005. Brunner, O. Conze, W. and Koselleck, R., eds., 1971-1997. Geschichtliche Grundbegriffe. Historisches Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland. 8 vols. Stuttgart: Klett-Cotta Stuttgart. Cancik, H. and Vöhler, M., eds., 2009. Humanismus und Antikerezeption im 18. Jahrhundert. Vol. 1: Genese und Profil des europäischen Humanismus. Heidelberg: Winter 2009. Cancik, H., 2011. Europa – Antike – Humanismus. Humanistische Versuche und Vorarbeiten. Edited by Hildegard Cancik-Lindemaier. Bielefeld: Transcript (distributed in North America by Transaction Publishers, New Brunswick and London). Chakrabarti, D., 2000. Provincializing Europe: postcolonial thought and historical difference. Princeton, N. J.: Princeton University Press. Eisenstadt, S. N., 2000. Multiple Modernities. Daedalus 129/1 (2000), pp. 1-30. Eisenstadt, S. N., ed., 1986. The Origins and diversity of axial age civilizations. Albany: State University of New York Press. 22 Ver os contributos de Dipesh Chakrabarty, Muhammd Arkoun and Longxi Zhang in Rüsen, J and Henner, L. eds., 2009: Humanism in Intercultural Perspective. Experiences and Expectations. Bielefeld: Transcript.

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O objetivo do estudo não é mais do que humanidade. Humanidade é a virtude pela qual o Céu participa em nós próprios. Cui Shu2

É necessário um novo tipo de Humanismo Uma das tarefas intelectuais mais importantes atualmente consiste no desenvolvimento de um novo tipo de Humanismo. Os atuais conflitos globais na política, economia, cultura e religião exigem fortemente a definição e reforço de uma cultura global de valores e humanidade. O fundamentalismo e o terrorismo, assim como a fome, a pobreza e a miséria em muitas partes do mundo fornecem bastante evidência quanto a essa necessidade. A ausência de equilíbrio nas estruturas económicas, a vontade insuficiente para implementar princípios de boa governança por parte de muitos regimes, além de poderosas tensões sociais, requerem novas e melhores respostas ao apelo para uma nova ordem; e precisam igualmente que se estabeleça, em diálogo construtivo e intercultural, um sistema de valores para que tal ordem possa ser aceite não só como nova mas, também para este caso, construtiva. Torna-se igualmente necessário desenvolver uma compreensão da humanidade na era da globalização que, enquanto inclusiva de todas as civilizações, dê ênfase à sua particularidade e diversidade. Esta compreensão deverá levar elementos normativos de orientação cultural a todas as arenas de encontro e comunicação intercultural. Uma vez que nós, enquanto seres humanos, partilhamos 1 Humanism in the Era of Globalization: Ideas on a New Cultural Orientation. Publicado originalmente em: Humanism in Intercultural Perspective: Experiences and Expectations. Bielefeld: Trascript. 2009. (Introdução ao livro). Tradução: Isabel Barca 2 Cui Shu: Lun Yu Yu Shuo. Citado em alemão por Quirin 1994: 389.

Humanismo na era da globalização: ideias sobre uma nova orientação cultural1

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uma natureza comum e como esta natureza inclui as formações mentais da cultura – que dão sentido e significado à vida humana – e porque esta autoconsciência (‘humanness’) inclui os elementos normativos tal como são praticados na vida, existe a possibilidade de se chegar a um acordo sobre tal visão abrangente de orientação cultural, sem sacrificar quer as identidades quer as alteridades. Todas a tradições culturais incluem elementos humanísticos. ‘Humanístico’ significa simplesmente que, pelo facto de se ser uma pessoa, se valorize em cada um a relação quer com os outros quer conosco próprios. Contudo, estes elementos não são suficientes para enfrentar os desafios envolvidos no traçar de normas universais válidas no processo de globalização; porque, mesmo que eles tenham uma dimensão universal, a sua validade está sobretudo limitada à da cultura dentro da qual essas normas particulares se desenvolvem. As pessoas de outras culturas com tradições diferentes poderiam hesitar em aceitá-las sem uma reflexão crítica dentro de um sistema de valores universal. Após os acontecimentos traumáticos de século XX, o Humanismo europeu tradicional, com os seus elementos etnocêntricos óbvios, sofreu um forte criticismo pelo pós modernismo e pós colonialismo. No Ocidente, foi principalmente substituído por uma forma de relativismo cultural que não consegue resolver os problemas urgentes da comunicação intercultural, e que se tornaram evidentes desde o incidente de 11 de setembro. Perante o desafio colocado pela globalização, a orientação cultural no presente debate-se entre duas opções distintas: uma seria (e está a chegar rapidamente) um choque de civilizações; a outra poderá ser o desenvolvimento de um novo ethos transcultural, de reconhecimento mútuo baseado em normas partilhadas de diálogo com o objetivo de compreensão mútua. Na civilização ocidental, o Humanismo foi sempre um assunto central dentro das Humanidades; mas, tendo perdido a credibilidade com o surgir de um intenso auto-criticismo levado a cabo pelos teóricos pós-modernos e pós-coloniais, ele representará agora apenas um papel insignificante se se mantiver a ideia de regresso a um estilo tradicionalista, não viável para o futuro. Esta situação é altamente problemática uma vez que existem requisitos a exigir o aparecimento de novos conceitos, viáveis, acerca do que significa ser humano. E só por meio das Humanidades e Ciências Sociais, e uma consequente esperança de que os seus argumentos racionais levem a um acordo geral, será possível desenvolver tais conceitos.

Atualmente, o debate intercultural é marcado pelo conceito de civilização, que se relaciona estreitamente com diferentes tradições culturais e coloca as civilizações mundiais em relações superficiais entre si; são consideradas pelos seguidores de Spengler e Toynbee como construções autónomas e independentes de conceitos do mundo humano e de orientação da ação humana. Os seus conceitos sobre o Homem são caracterizados por diferenças que não podem ser sintetizados numa unidade. Todas as civilizações mundiais desenvolvem conceitos universalistas sobre a humanidade, isto é, conceitos que se afirmam como válidos para todas as pessoas. Estes, contudo, revelam traços culturais específicos e, por isso, são diferentes entre si. Ao nível do discurso conceptual, a relação entre as diversas civilizações mundiais podem ser definidas como uma competição de conceitos universalistas sobre a humanidade – sendo frequentemente colocados uns contra os outros: o modo como nações não europeias em particular (China, Índia, Japão, África, partes da América Latina) estão a ganhar uma nova autoconfiança, para entrar nas tendências intelectuais que a globalização representa, é um claro movimento contra o Ocidente que dominou historicamente. Existe também, por parte destas sociedades, uma tendência para se definirem e afirmarem contra o Ocidente em termos culturais, e que é encorajada pelas correntes dominantes no discurso intelectual ocidental; o Ocidente encontra-se envolvido numa penosa autocrítica em que se afasta do seu humanismo universalista tradicional para cultivar uma forma de relativismo cultural; está a cultivar uma forma de relativismo cultural que abandonou esses padrões de humanidade datados. Esta rendição do Ocidente caminha a par da relativização dos insights no seio das Humanidades, que afirmam a sua validade universal; e caminham também a par da perda da função de fornecer orientação à sociedade. Juntamente com a atitude antiocidental de muitos países não-europeus no seu processo de construção de identidade, essas tendências criam uma atmosfera tensa. Ainda não existe um conceito geral de comunicação a que diferentes tradições culturais e afirmações de reconhecimento de cada identidade cultural possam recorrer. Será que as diferenças de inter-relações podem ser reconhecidas no base de um novo conceito de humanidade? A situação global do discurso

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O Papel de um novo Humanismo no Choque de Civilizações

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intercultural pede uma cultura onde tais diferenças sejam reconhecidas. A tendência para o fundamentalismo nas religiões mundiais são a prova mais do que suficiente desta necessidade. Algumas formas de identidade cultural, no seu desenvolvimento basicamente por oposição entre si, têm construído conceitos de humanidade que vão para lá dos limites étnicos, nacionais ou mesmo culturais. Ora em vez de usarem este universalismo uns contra os outros, seria mais sensato integrá-lo num conceito geral de humanidade em que as diferenças culturais fossem conceituadas como diferenciações internas de uma ideia universal sobre a humanidade. Em teoria, o choque de civilizações, no sentido de choque de diferentes identidades culturais, seria então ultrapassado, tornando-se assim possível novas formas de compreensão discursiva. Tal projeto não pode ser realizado por meio de debates académicos menores, pois precisa de ser delineado, tentado e desenvolvido num longo processo de diálogo crítico entre representantes de diversas civilizações.

O Novo Humanismo e a Economia Global3 Considera-se frequentemente que a convergência cultural constitui um fator relevante da globalização. Quem acredita nesta linha de raciocínio sustenta uma conclusão, à partida, de que certas instituições tais como os mercados de capital estão organizados segundo as melhores práticas e, por isso, prevalecem na competição global devido à sua eficiência avançada e crescimento. Um exemplo bem conhecido são os direitos de propriedade intelectual. Sob a orientação da Organização Mundial do Comércio (WTO) existe um processo de homogeneização, formalizada por todo o mundo, que tem resultado em conflitos. Países como a China são forçados a tomar medidas, a nível interno, contra atitudes culturais divergentes em relação aos direitos de propriedade intelectual. Todavia, está ainda em aberto a questão de tal convergência ser de facto uma necessidade. Como se tem visto recentemente com os desenvolvimentos da indústria de software, os direitos de propriedade intelectual podem tornar-se irrelevantes à luz dos avanços tecnológicos dessa indústria. O paradigma da livre fonte de informação torna-se então um fator cultural per se, o que muda os critérios quanto à divergência e convergência 3 Os meus agradecimentos ao Prof. Carsten Herrmann-Pillath pelo seu apoio ao aplicar à Economia a ideia de um novo Humanismo.

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cultural. A tecnologia, como produto da cultura humana, passa a ser um fator de divergência cultural no campo das economias nacionais. Este não é mais do que um simples exemplo que mostra que a evolução do mercado força a necessidade e, constantemente, cria a diversidade. Ao nível das economias nacionais, também não se vislumbra uma convergência com um dado padrão institucional: embora os países escandinavos mantenham posições de topo no Índice de Competitividade Mundial, tal não se aplica em países com mercados altamente liberalizados; a China, um estado socialista, tem um sistema económico que se apoia no Capitalismo de Manchester. Simultaneamente, a fundação cultural que sustenta qualquer sistema económico torna-se cada vez mais transparente. Os USA, como uma “referência institucional”, experimentam conflitos culturais para os quais o revivalismo cristão tem constituído uma força motora. E, ao nível do negócio, encontra-se um processo em curso de complexidade semelhante: empresas ativas a nível global percebem cada vez mais e mais que as inconstantes bases culturais em que as suas unidades regionais estão fundadas geram problemas mas podem também constituir-se como fonte de criatividade. Novas disciplinas, tais como “gestão da diversidade”, estão a trazer esta multiplicidade ao nível do individual. Tais mudanças históricas resumem o problema explorado por aqueles que consideram a integração do humanismo na política económica. É óbvio que o mercado não é um meio para alcançar os seus próprios fins mas, pelo contrário, recebe os seus objetivos de forças que agem fora dele. Contudo, outros fatores que não os económicos colocam frequentemente restrições à liberdade dos povos para escolher os seus próprios fins. É por isso que um debate sobre o Humanismo enquanto ligado às economias nacionais se torna inevitável neste aspeto. Além disso, o papel do Humanismo quanto ao lugar do mercado global transcende os velhos conflitos ideológicos, nomeadamente entre capitalismo e socialismo. É um facto que o capitalismo dinâmico (“mercado livre”) contribuiu para a prosperidade de pessoas cada vez em maior número. Contudo, há que levantar as questões acerca de “porquê” e “para quê” essa prosperidade. Até muitos economistas acreditam hoje que as raízes mais profundas da dinâmica económica se encontram fora do próprio mercado. Conceitoschave tais como capital social apontam para o fundamento cultural dos sistemas económicos – embora a cultura em si mesma não seja uma mercadoria. Em vez disso, a cultura ganha força ao ser disseminada, por se tornar um “bem de consumo público” que transcende os interesses

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privados. O Humanismo, com o seu papel de ‘fermento’ nas economias mundiais, chama a atenção para a exploração contínua das características e do risco do capitalismo de mercado. A força motora por detrás da política económica moderna advém de uma mudança histórica: a de uma “economia moral” para a economia de mercado; a das regras de mercado se terem tornado superiores aos princípios de responsabilidade social. No texto do Manifesto Comunista esta tendência foi colocada da seguinte forma: A burguesia, onde quer que tenha conseguido dominar, destruiu todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Rasgou sem piedade todos os laços feudais que prendiam o homem aos seus “superiores naturais” e não deixou qualquer outro laço entre as pessoas além do seu interesse pessoal, o do insensível “pagamento a dinheiro”. Ela afogou os êxtases sagrados do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo filistino, na água gelada do cálculo egoísta. Ela converteu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades pré-estabelecidas, colocou a liberdade, única e inconcebível, do Comércio Livre.4

O capitalismo moderno pode ser entendido como um sistema económico amoral. Atualmente, pode-se observar uma re-moralização: ao nível da macroeconomia veem se por todo o mundo esforços para enquadrar a economia de mercado num conjunto de regras políticas e sociais que poderão domar a sua dinâmica em prol do bem da maioria da população mundial. As políticas económicas foram sempre contextualizadas política e socialmente; contudo, no processo da globalização, transgrediram todas as fronteiras nacionais e parece que que não há qualquer influência transnacional alternativa de conciliação com as necessidades meta-económicas das pessoas cujas vidas são radicalmente condicionadas pelas forças do mercado. Todavia, há uma consciência crescente de que um sistema económico que siga exclusivamente as suas próprias regras pode tornar se autodestrutivo; e, de acordo com este criticismo, emergiu por todo mundo um esforço para ultrapassar este “fundamentalismo de mercado” (George Soros) a favor de um “capitalismo com face humana”5. Ao nível da administração empresarial, a importância crescente da “responsabilidade social coletiva” como um fator de atividade 4 http://www.anu.edu.au/polsci/marx/classics/manifesto.html [24.08.2007]; texto alemão em: Marx/ Engels 1972: 464 ff . 5 A “Iniciativa do Plano Global de Marshall” é um exemplo paradigmático. Cf. Radermacher, 2004.

prática corresponde a esta tendência. No seguimento disto, o humanismo pode tornar-se um fator cultural que abra novas perspectivas de prática económica dentro do processo de globalização.

A religião sempre representou um papel importante no processo de construção das identidades culturais humanas. Hoje em dia, a religião parece ser um obstáculo suficientemente preocupante ao desenvolvimento de um sistema de valores universal de modo a alcançar alguma relevância transcultural. O fundamentalismo religioso opõe-se de forma agressiva a qualquer tentativa de estabelecer um Humanismo universalista como princípio condutor da compreensão da diversidade cultural, dado que a visão humanista caminha frequentemente a par de um modo de vida secular. Mas mesmo para lá desta oposição entre religião e secularização, a religião permanece um problema de comunicação intercultural. No momento exato em que a crença religiosa se liga a afirmações de verdade universal, ela está a negar todas os outros sistemas de crença considerados não verdadeiros, invalidando assim quaisquer outras visões religiosas em termos de natureza da verdade. A única solução parece consistir em ultrapassar formas peculiares e específicas de fanatismo religioso, a favor de uma moralidade universalista ou sistema ético (Küng, 1995). Contudo, a religião não pode ser reduzida ou dissolvida na moralidade. Ela permanece, juntamente com a sua própria lógica, dentro do domínio da orientação cultural. Será que esta lógica leva inevitavelmente à exclusão e negação: não poderá ela, perante a força das exigências humanistas, reconsiderar a sua posição? Se este tipo de universalismo alcança uma qualidade humanista, ela poderá mudar a sua relação com outros universalismos; partir, portanto, da exclusividade para uma inclusão universal.

Os Desafios Colocados pela Desumanização A traumática experiência histórica dos crimes contra a humanidade constitui o desafio mais radical ao novo Humanismo. Esses crimes desfiguraram as características da história humana com enormes e terríveis manchas, pondo radicalmente em causa quaisquer noções humanísticas da história compatível com o pensamento histórico moderno

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O Novo Humanismo e a Religião

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desde o Iluminismo e o seu subsequente historicismo e, também, com muitas formas de ‘História nova’ nos séculos XX e XXI. Existem muitos argumentos morais a favor da criação de um novo Humanismo que resolva o problema da comunicação intercultural no quadro da atual agenda de globalização. Mas quão válida será a moralidade se isso não corresponder à história? Se a impressão da desumanidade persistir, será o Humanismo apenas uma visão utópica, incapaz de atacar os reais problemas da existência humana? O Holocausto é um paradigma para esta desta desumanidade desafiante, representativa na sua formulação mais radical. A resposta deverá surgir na forma de um “novo” Humanismo que entreteça insights antropológicos na fragilidade e falibilidade da vida humana com o desenvolvimento de novas categorias de interpretação histórica - enquanto, em simultâneo, dê ênfase ao impacto que o sofrimento humano tem no desenvolvimento e potencial humano e na mudança de critérios de interpretação tradicional para outros muito mais abertos (ver Rüsen, 2008b:191-200). Finalmente, há que realçar outro desafio ao Humanismo: o poder crescente de conceitos de naturalismo na atual vida intelectual. Ao falarse de “humanidade” como um princípio de auto compreensão humana e como m guião para a vida prática, o Humanismo realça qualidades culturais dos povos civilizados como sendo essencialmente diferentes de um estado da natureza, diferente, portanto, de todas as outras espécies no mundo visível. Herder expressou esta “natureza” trans-natural da humanidade ao dirigir-se aos seus colegas como sendo Freigelassene der Schöpfung (escravos libertados da criação) (Herder, 2002, vol. III/1: 135). Isto tem de ser entendido como o homem que se libertou das limitações da natureza, da submissão dos constrangimentos de viver sob as suas leis. O Homem criou uma outra ordem de existência com novas leis, nomeadamente as leis da razão e da moralidade, o compromisso com o que define humanidade dos humanos. Os seres humanos, diferentes de todos os outros seres naturais que se encontram numa ordem pré-determinada da existência, criaram eles próprios esta ordem, facilitada pela sua competência de gerar critérios interpretativos do sentido a dar às suas próprias vidas. Ao concretizar esta competência na multiplicidade cultural, a vida humana tem de ser entendida como um processo de cultivar o seu próprio caráter único. A humanidade é ela própria um processo pelo qual o auto “empoderamento” vai além de todos os limites naturais, o que nos conduz ao mundo da cultura – uma vez que cultura é o oposto de natureza. Ela é

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constituída por um conjunto de valores e normas que devem ser aplicadas a cada membro da raça humana. Embora este conjunto de valores tenha mudado ao longo do tempo, alguns dos seus elementos comuns podem, todavia, ser enunciados: a ideia de igualdade, a posse de direitos básicos e a coesão social como consequência da fragilidade da vida humana; e, no geral, a regra moral de que estes valores e normas que uma dada pessoa ou grupo social sente como direitos ou compromissos seus, deveria ser também válida para as outras pessoas e grupos sociais. É esta ênfase no conceito normativo de “natureza cultural do Homem” que coloca o Humanismo em forte contraste e oposição face a todos os movimentos que aspiram a “naturalizar” a natureza humana – pois nesta ideia de os humanos darem sentido ao mundo, o termo “naturalismo” é definido exclusivamente por referência aos atributos da raça humana. Atualmente, o Humanismo está a ser desafiado por teorias biológicas com poderosos argumentos que aspiram a compreender o comportamento humano por meio de referências a condições genéticas da vida humana e da estrutura física do cérebro humano. Neste aspeto o Humanismo, tal como realmente se apresenta, pode ser saudado como uma crítica a tais teorias da natureza humana (cf. Sturma, 2006). O Humanismo afirma a natureza não determinista da pessoa humana na medida em que ela pertence ao plano da vida prática e das relações sociais, em que todos os participantes se tornam referentes das suas orientações culturais. Graças a esta referência, as pessoas podem compreender-se umas as outros e fornecer razões para o que fazem, sofrem e, também, para as suas falhas. O Humanismo torna a vida humana compreensível ao referir-se às razões (subjetivas) para o que as pessoas fazem, e não a causas (objetivas) do que elas fazem. O Humanismo dá ênfase à subjetividade humana como um elemento constitutivo de tornar inteligível o mundo da experiência humana, enquanto que o naturalismo realça apenas os aspetos biologicamente determinados da vida humana, que têm uma relação mais externa com a subjetividade humana. O Humanismo sempre argumentou a favor dos valores, normas e constrangimentos da cultura humana, que nunca poderá ser substituída pela simples aplicação do conhecimento científico. O Humanismo insiste na diferença principal entre conhecimento cultural que, por um lado, os humanos usam sempre ao dar significado e relevância às suas vidas e, por outro, à lógica do conhecimento científico e da sua explicação racional assente em leis de causalidade.

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