História Militar do Mundo Antigo 2 - Guerras e Representações

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Pedro Paulo A. Funari Margarida Maria de Carvalho Claudio Umpierre Carlan Érica Cristhyane Morais da Silva

II História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Representações

São Paulo 2010

SUMÁRIO VOLUME SEGUNDO

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Representações HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO Os Editores ...................................................................................................................

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Guerras e Representações 1. GUERRA E ARTE NO MUNDO ANTIGO: REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA ASSÍRIA

Katia Maria Paim Pozzer ................................................................................................

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2. MARCHANDO AO SOM DE AULOÍ E TROMPETES: A MÚSICA E O LÓGOS HOPLÍTICO NA GRÉCIA ANTIGA Fábio Vergara Cerqueira .................................................................................................

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3. ATENAS ENTRE A GUERRA E A PAZ NA REGIÃO DE ANFÍPOLIS Alair Figueiredo Duarte e Maria Regina Candido ...........................................................

52

4. AS MANDÍBULAS DE ANÍBAL: OS BARCA E AS TÁTICAS HELENÍSTICAS NA BATALHA DE CANAS (216 A.C.) Ana Teresa Marques Gonçalves e Henrique Modanez de Sant’Anna .............................

70

5. AQUISIÇÃO DE INTELIGÊNCIA MILITAR ENTRE ALEXANDRE E CÉSAR: DOIS ESTUDOS DE CASO Vicente Dobroruka ...........................................................................................................

84

6. GUERRA, DIREITO E RELIGIÃO NA ROMA TARDO-REPUBLICANA: O IUS FETIALE Claudia Beltrão da Rosa ..................................................................................................

98

7. GUERRA E ESCRAVIDÃO NO MUNDO ROMANO Fábio Duarte Joly ............................................................................................................

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8. MASCULINIDADE DO SOLDADO ROMANO: UMA REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA Lourdes Conde Feitosa e Maximiliano Martin Vicente ..................................................

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9. O PODER ROMANO POR FLÁVIO JOSEFO: UMA COMPREENSÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DA SUBMISSÃO

Ivan Esperança Rocha .....................................................................................................

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10. BELLUM IUSTUM E A REVOLTA DE TACFARINAS Regina Maria da Cunha Bustamante ...............................................................................

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11. AS GUERRAS DÁCICAS: UMA LEITURA DAS FONTES TEXTUAIS E DA COLUNA DE TRAJANO (101 D.C. – 113 D.C.) Andrea L. D. O. C. Rossi ................................................................................................

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12. EXÉRCITO, IGREJA E MIGRAÇÕES BÁRBARAS NO IMPÉRIO ROMANO: JOÃO CRISÓSTOMO E A REVOLTA DE GAINAS Gilvan Ventura da Silva ..................................................................................................

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HISTÓRIA MILITAR DO MUNDO ANTIGO: UMA INTRODUÇÃO

Pedro Paulo A Funari1 Margarida Maria de Carvalho2 Cláudio Umpierre Carlan3 Érica Cristhyane Morais da Silva4

O estudo da guerra possui larga tradição e continua mais atual do que nunca. Nos últimos anos, as abordagens sobre a guerra multiplicaram-se. A própria humanidade foi ligada, por diversos estudiosos, ao surgimento e diversificação dos conflitos bélicos, há milhares de anos, no Pleistoceno5. O economista Mark Bowles liga o altruísmo humano ao combate entre grupos humanos e relaciona, portanto, o surgimento da cultura, daquilo que caracteriza os agrupamentos humanos, com a guerra. Não precisamos estar de acordo com tais argumentos para percebermos a relevância, no século XXI, da famosa frase de Heráclito: polemos pater paton (a guerra é o pai de todas as coisas6). Como lembra Heidegger, ao comentar este passo, polemos, a guerra, não é uma luta individual, agon, mas coletiva, a luta (Kampf), a guerra (Krieg)7. O tema da guerra e da vida militar permanece central para a reflexão sobre a vida em sociedade. Não é nosso objetivo realizar uma apologia a guerra, mas ampliar a noção de documento ao analisar a cultura material de uma sociedade, através do ponto de vista militar. No mundo onde os momentos de guerra eram mais longo que os de paz, que possuíam valores e costumes diferentes dos atuais, a militarização de uma sociedade não era apenas um dever cívico, mas um fator importante para sua sobrevivência.

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Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 2 Professora da Universidade Estadual Paulista, UNESP/Franca e pesquisadora-colaboradora do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 3 Professor da Universidade Federal de Alfenas e pesquisador-colaborador do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp). 4 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da UNESP/Franca sob a orientação da Profª Drª Margarida Maria de Carvalho. 5 Cf. Jung-Kyoo Choi & Samuel Bowles, The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640; Samuel Bowles, Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. 6 Fr. 53. 7 Martin Heidegger, Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit, p. 90.

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Em seus diálogos, Platão descreve a discussão entre Sócrates e Ião: “...na guerra precisa de um estratego ou um poeta ?”8. No mundo antigo nem todos os cidadãos eram poetas, mas todos eram soldados. Muito semelhante à música do compositor Geraldo Vandré, para não dizer que não falei das flores, “...ou morrer pela pátria ou viver sem razão...”. Na Antiga Grécia, temos vários exemplos desses fatos. Um deles retrata a impaciência de uma mãe espartana que perde seus cinco filhos na guerra. Quando o mensageiro do exército apresenta a triste notícia, ela pergunta pelo resultado do confronto. Vitória dos espartanos. Então, ela responde, “meus filhos não morreram em vão”. Temática similar que Steven Spielberg utiliza em seu filme “Resgate do Soldado Ryan” de 1998. Antes de mais nada, o cidadão greco-romano era um soldado, pronto para entrar em combate, quando sua cidade precisasse. Desde a mais remota infância, tinha todo o treinamento militar disponível. Era preparado para arte da guerra, sabia usar a lança, a espada e o escudo. Usava também a intelegência como estrategista. Arcava com os custos do equipamento básico para o combate. Porém, como prêmio, tinha direito ao butim e os demais despojos de guerra (escravos, ouro e prata, entre outros). Cada arma tinha a sua função específica e simbólica. O escudo, por exemplo, era uma arma defensiva, passiva e protetora. Ele representava o cosmo, o universo que o guerreiro apresentava ao inimigo. As forças figuradas estavam presentes, o couro, o metal, como no escudo de Aquiles: o céu, mar e a terra (lema dos Fuzileiros Navais Brasileiros). Tudo que se perde ao morrer se ganha ao triunfar (arma psicológica que ajudou a Perseu derrotar Medusa). Posteriormente, na Irlanda Medieval, por influência celta, foram associados aos escudos animais fabulosos (mais tarde aos brasões familiares e a heráldica), considerados como elemento decorativo mais importante nos salões da nobreza. No renascimento italiano, o escudo é representado como a força, vitória e a castidade, justamente pelo seu papel de defensivo9. A espada foi símbolo da bravura, da virtude e do poder. Associada à balança, ela separava o bem do mal e golpeava o culpado10. Além do guerreiro, simbolizava a guerra santa e, hoje em dia nas Forças Armadas, é símbolo dos oficiais subalternos, superiores e generais. Ao termínio do curso nas Academias Militares, o jovem Aspirante ou Guarda Marinha, recebe a espada do seu padrinho e ou madrinha. No caso dos oficiais generais, a espada é dourada, para diferenciar dos demais. 8

Platão, Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007, p. 233. 9 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997, pp. 387,388. 10 Idem ibidem – op.cit. p. 392

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Dentro desse contexto simbólico, as ideias de poder e potência eram fundamentais. Em um mundo onde a oposição e rivalidade eram constantes, forças lutavam entre si. Durante dado momento, o soberano mais poderoso do que outro vai impor a sua lei11. É o caso de Hamurábi, governador e legislador do Império Babilônico no século XVIII a.C. Depois de conquistar os reinos rivais, Hamurábi estabeleceu um sistema de leis, conhecido como Código que leva seu nome, comum a todo seu Império. Na realidade, não se tratava de um código de leis propriamente dito, e sim tradições locais que o governante babilônico transformou em leis. Anteriormente, em Lagash, Urukagina, século XXIV a.C., já havia realizado uma reforma na legislação. O próprio Vernant descreve um processo de mudança não apenas no pensamento grego, mas nos combates e rivalidades entre as cidades. Durante o Período Micênico, tendo como modelo o duelo entre Aquiles e Heitor, os confrontos são individuais. Dois herois decidem a sorte da batalha. Acreditando ou não nos textos homéricos, a partir dessa formação, os guerreiros aristocratas aqueus dominaram todo o Mediterrâneo Oriental. Com as invasões dóricas e jônicas, definida por alguns historiadores como Idade das Trevas Grega, ocorre uma alteração no eixo do poder, localizado no Mediterrâneo Ocidental. As cidades localizadas entre Troia e Gaza são completamente destruídas. O soldado deixa de ser um combatente solitário em busca da honra e glória, e aos poucos, vai se tornando um soldado-cidadão. Luta em um exército organizado, com armas de ferro, precursor da famosa falange macedônica. Porém, as mudanças mais significaticas ficaram por conta das primeiras reformas militares romanas, segundo a tradição, durante o reinado de Sérvio Túlio (578 – 534), sexto rei de Roma. Sérvio Túlio organizou a sociedade dividindo em cinco classes, por rendas, cada classe com um número de soldados, que se reuniriam no campo de marte, hoje onde está localizada o Partenon de Adriano, próximo a Escola Espanhola de Roma. Essa divisão serviu de modelo para as reformas militares de Napoleão Bonaparte no início do século XIX. Em teoria, 8 legionários formariam um contubérnios; 10 contubérnios uma centúria; 6 centúrias uma coorte; 10 coortes uma legião. O número de legionários de uma centúria poderia variar entre 80 e 120, dependendo do período histórico. Napoleão realizou uma mudança semelhante no exército francês. Uma companhia (infantaria) ou bateria (artilharia) seria composta por 100 homens, comandadas por um capitão. Hoje, não muito diferente, as companhias e baterias seguem esse modelo. 11

Jean-Pierre Vernant. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002, p.211.

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Dentro desse contexto, segundo Miranda, o Estado justo será aquele que buscar o bem de todos e de cada um. Nesse Estado ideal, princípio e fim se harmonizam perfeitamente.

“...O princípio: a liberdade de cada um assegurada na medida em que também é assegurada a liberdade de todos. O fim: a virtude do mais alto significado político, a justiça entendida como bem comum...12”

Para manter essa liberdade, sua e de seus familiares, o cidadão no mundo antigo, precisa ser um soldado. Seu peito é a última muralha entre viver livre ou morrer escravo. O estudo da História militar, de forma particular, está na origem da própria disciplina histórica, tanto como gênero literário antigo, como no período moderno. Heródoto e Tucídides13 criavam a narrativa histórica como parte de uma descrição da guerra, dos seus antecedentes e conseqüências14. Durante toda a Antiguidade, História e Guerra estivem sempre interligadas, tanto na literatura em língua grega como latina15. No século XIX, quando o positivismo viria a fundar a moderna historiografia, a guerra viria a assumir novas funções, mas sempre no centro da pesquisa histórica. A História política não podia prescindir de uma atenção particular aos conflitos militares. Nas últimas décadas, o interesse pela História militar encontrou novos temas, ênfases e interesses, da vida sexual às identidades sociais, do colonialismo às relações de gênero, do simbolismo às subjetividades16. No que se refere ao mundo antigo, essa renovação chegou com grande força, questionando discursos normativos e monolíticos, os modelos que enfatizam a coesão social, o respeito às normas e a criticam os desvios de comportamento17. Sobretudo, as narrativas passaram a valorizar a diversidade de pontos de vista, a História do Outro, para usar uma bela expressão de Pierre Vidal-Naquet18. A História Militar do mundo antigo passou a incorporar temas como a masculinidade19 ou abastecimento como práticas culturais. 12

Mário Miranda Filho, Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico, Clássicos do Pensamento Político, org. por Célia Galvão Quirino, Claudio Vouga e Gildo Marçal Brandão. São Paulo: Editora da Usp, 1998, p. 36. 13 Pedro Paulo A Funari, A Guerra do Peloponeso, História das Guerras, org. Demétrio Magnoli, São Paulo, Contexto, 2007, PP. 19-45; Pedro Paulo A Funari, 14 Cf. Pedro Paulo A Funari & Glaydson José da Silva, Teoria da História, São Paulo, Brasiliense, 2008. 15 Cf. Pedro Paulo Funari & Renata Senna Garraffoni, Salústio e a historiografia romana In: História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga ed.São Paulo : Alameda, 2007, p. 65-76. 16 Cf. Robin Osborne, Greek History, Londres, Routledge, 2004, pp. 70-84. 17 Cf. Bryan Hanks, The past in later prehistory, Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284, p. 278: “the study of warfare during the Bronze and Iron Ages has had a long tradition of scholarship in Europe, however it is only in recent years that more attention is being placed on the relationship of warfare to cultural responses to this category of practice”. 18 Pierre Vidal-Naquet, Préface, Histoire de l’autre, Paris, Liana Levi, 2008, pp. 13-16. 19 Cf. D. Ogden, Homosexuality and warfare in ancient Greece, Battle in Antiquity, ed. A. B. Lloyd, Londres, 1996, pp. 107-168.

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No Brasil, os últimos anos testemunharam o surgimento de uma massa crítica de estudiosos, muitos deles bem inseridos na ciência internacional como interlocutores autônomos, com domínio, de primeira mão, da documentação antiga20. Estes dois aspectos estão na raiz desta História Militar do Mundo Antigo, que congrega, a partir de eixos temáticos, o que há de mais consolidado e inovador na ciência brasileira e uma mostra da interação internacional, com capítulos de grandes referências dos estudos da História Militar do Mundo Antigo. Desse modo, a História Militar do Mundo Antigo que se apresenta nesta coleção, constituída de três volumes, se fundamenta em debates atuais considerando objetos a partir de novas perspectivas. Restituindo à dimensão militar a relação estreita e íntima desta última com as outras esferas consideradas social, política, religiosa e econômica.21 Além disso, introduz e/ou revisita temáticas que, por vezes, foram negligenciadas ou desconsiderados como pertencentes à uma história dita militar. Só muito recentemente, poderíamos imaginar uma História Militar construída a partir de estudos sobre gênero, identidade, considerando tanto as documentações textuais quanto a arqueológica, nesta última incluindo-se a Numismática, a Iconografia e a Epigrafia redundando na inserção de uma rica cultura material. Todos os textos que aqui se apresentam propõem e abrem debates, instigam à investigação de novas e infinitas possibilidades discursivas.

AGRADECIMENTOS Agradecemos a Demétrio Magnoli, Glaydson José da Silva, Fábio de Barros Silva, Olavo Pereira Soares e a todos os autores do volume. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca, Universidade Federal de Alfenas, CEIPAC da Universidade de Barcelona, FAPESP, CNPq. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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Cf. Margarida Maria de Carvalho e Pedro Paulo A Funari, Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. 21 Como nos ensina Balandier (1997:156-7) foram as teorias de mundo modernas acerca do homem e da sociedade que “operaram rupturas, geraram fissuras e cisão” caracterizando-se como um “pensamento dissociativo”, numa “setorização de conhecimentos”.

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Bibliografia

Documentação Impressa

HERÁCLITO. Fragmento 53. PLATÃO. Diálogos. Critão – Menão Híspias Maior e outros. Tradução Direta do grego por Carlos Alberto Nunes. 2ª ed. Belém: EDUFPA, 2007.

Obras Gerais

BALANDIER, Georges. A desordem: elogio ao movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOWLES, Samuel. Did warfare among ancestral hunter-gatherer groups affect the evolution of human social behaviors, Science, 324, 5th June 2009, 1293-1298. CARVALHO, Margarida Maria de & FUNARI, Pedro Paulo A. Os avanços da História Antiga no Brasil: algumas ponderações, História, 26, 1, 2007, pp. 14-19. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 11ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora S.A., 1997. CHOI, Jung-Kyoo & BOWLES, Samuel. The coevolution of parochial altruism and war, Science, 318, 5850, 26th October 2007, 636-640. FILHO, Mário Miranda. Politeia e Virtude: as origens do pesnamento republicano clássico. In: QUIRINO, Célia Galvão, VOUGA, Claudio & BRANDÃO, Gildo Marçal (org.). Clássicos do Pensamento Político. São Paulo: Editora da Usp, 1998. FUNARI, Pedro Paulo A. A Guerra do Peloponeso. In: MAGNOLI, Demétrio. (org.). História das Guerras. São Paulo: Contexto, 2007. ______. Antigüidade Clássica: a história e a cultura a partir dos documentos. Campinas: UNICAMP, 2003. FUNARI, Pedro Paulo A & SILVA, Glaydson José da. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2008. FUNARI, Pedro Paulo A. & GARRAFFONI, Renata Senna. Salústio e a historiografia romana In: JOLY, Fabio Duarte (Org.). História e Retórica, Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 65-76.

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HANKS, Bryan. The past in later prehistory. Prehistoric Europe, Theory and Practice, Chichester, Wiley-Blackwell, 2008, pp. 255-284. HEIDEGGER, Martin. Gesamteausgabe, 36/37, Sein und Wahrheit. OGDEN, D. Homosexuality and warfare in ancient Greece. In: LLOYD, A. B. (ed.). Battle in Antiquity. London: Duckworth, Classical Press of Wales, 1996, pp. 107-168 OSBORNE, Robin. Greek History. Londres: Routledge, 2004. VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Cristina Muracho. 2ª . ed. São Paulo: Editora da USP, 2002. VIDAL-NAQUET, Pierre. Préface. In: Histoire de l’autre. Paris : Liana Levi, 2008, pp. 13-16.

História Militar do Mundo Antigo: Guerras e Representações

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GUERRA E ARTE NO MUNDO ANTIGO: REPRESENTAÇÃO IMAGÉTICA ASSÍRIA

Katia Maria Paim Pozzer1 ULBRA

1. Introdução O presente capítulo tem por objetivo discutir a possibilidade de análise de fontes iconográficas para o estudo da história militar na antiga Mesopotâmia. A partir das imagens de baixos-relevos dos palácios assírios queremos identificar o papel da ideologia do poder real e de como ela foi interpretada pelos artistas na representação imagética da guerra e dos conflitos militares, que marcaram a constituição do grande império neo-assírio na Antigüidade. Os resultados apresentados neste capítulo referem-se à conclusões preliminares de um projeto de pesquisa em curso, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq - Brasil e da Fundação da Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul - FAPERGS. Os assírios eram semitas que habitavam a Alta Mesopotâmia e cujos vestígios arqueológicos mais antigos datam de 2500 a.C. aproximadamente. Mas a formação do primeiro império assírio foi tardia e remonta ao século XVI a.C. O império neo-assírio iniciou com o reinado de Adad-Nirari II (912-891 a.C.) e foi seguido na sucessão por inúmeros soberanos, cuja memória das atrocidades cometidas foram guardadas pelos textos e baixosrelevos nos palácios assírios: Tukulti-Ninurta II (891-884 a.C.), Assurna%irpal II (883-859 a.C.); Salmanassar III (853-824 a.C.); Teglatphalassar III (745-727 a.C.) Sargão II (722-705 a.C.); Senaqueribe (705-681 a.C.); Assurbanipal (669-627 a.C.), entre outros. A destruição de Nínive, capital assíria, em 612 a.C., pela coalizão dos exércitos meda e babilônico, levou ao fim um dos maiores impérios do antigo Oriente Próximo. As imagens são representações de ideais, sonhos, medos e crenças de uma época. Logo, são, elas próprias, fontes históricas e, sendo assim, material para a análise e a interpretação histórica. Entendemos que o conceito de representação, forjado pela Nova História Cultural, que diz que as representações significam a apresentação de algo em substituição daquilo que 1

Professora de História Antiga do Curso de História da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Doutora em História pela Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne.

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se encontra ausente, torna a representação visual uma ferramenta de expressão e comunicação, pois ela transmite uma mensagem (Burke, 2005).

2. Fundamentação teórica

A cultura material é portadora de determinadas mensagens que a linguagem escrita não permite. A habilidade da arte em representar mensagens torna-a uma poderosa ferramenta de persuasão da qual um grupo pode dispor. Refere-se a forma que os signos irão tomar, quais os sentidos e valores para reproduzir o poder social dominante (Moura, 2002, p.229). A iconografia revelada pelos objetos, demanda um estudo específico, pois é raro, na Antigüidade, que textos acompanhem as imagens (Amiet, 1979, p.8). Os artistas antigos criaram um repertório que compreende diversos tipos de cenas e de personagens, cuja identificação é rica de significados (Bustamante, 2003, p.316). A escolha desta temática justifica-se por ser a guerra uma prática que acompanha toda a história da humanidade. Os objetivos, as estratégias e os armamentos mudaram muito, mas todos os conflitos ocasionaram importantes transformações e novos rumos na história (Magnoli, 2006). Assim, é de fundamental importância compreender suas causas e conseqüências, considerando diversos aspectos: a morte e o sofrimento, o poder político e a constituição de impérios, os avanços tecnológicos por ela estimulados e as práticas religiosas a ela relacionadas. Essas são questões extremamente atuais que continuam a interpelar a humanidade. Ivan Gaskell (1992, p.268), em um importante aporte para a discussão sobre os problemas e perspectivas da atuação do historiador no campo das imagens, propõe que "a contribuição para o estudo do material visual que o historiador está provavelmente mais bem equipado para realizar é a discussão de sua produção e de seu consumo como atividades sociais, econômicas e políticas". Entendemos, ainda, que a imagem traz uma significativa renovação para o ensino de História por três razões principais: o apelo que a imagem exerce sobre o ser humano, mais profundo e mais antigo que o texto escrito; a revalorização de culturas e sociedades distantes no tempo e no espaço; e a forte influência que as mídias tem sobre as crianças e adolescentes, permitindo ao professor traduzir, com as imagens, o conteúdo histórico (Silva e Silva, 2005, p.198-199).

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Ulpiano Bezerra de Meneses (2003, p.20), em um artigo onde discute os problemas e as vantagens da utilização, pelos historiadores, de uma dimensão mais ampla das fontes visuais para a da cultura visual, diz que "a História continua a privilegiar ainda hoje (...) a função da imagem com a qual ela penetrou suas fronteiras no final do século atrasado. É o uso como ilustração". Nossa proposta é romper com esta prática e analisar séries iconográficas de relevos neo-assírios, enquanto portadores de significações sobre importantes aspectos da organização da sociedade antiga e, em particular, da guerra. A discussão sobre os usos e funções do potencial cognitivo das imagens realizada por Meneses (2003, p.12) nos ensina que:

Na Antigüidade e na Idade Média não há traços de usos cognitivos da imagem, sistemáticos e consistentes. Ao contrário, dominava o valor afetivo, envolvendo não só relações de subjetividade, mas sobretudo a autoridade intrínseca da imagem. Autoridade independente do conhecimento, mas derivada do poder que atribuía efeito demiúrgico ao próprio objeto visual. Daí ser relevante em contextos religiosos ou de poder político e com funções pedagógicas e edificantes. Daí também a importância dos múltiplos episódios de iconoclasmo ou dos usos ideológicos, propagandísticos e identitários da imagem (nos impérios, seja no Egito, Mesopotâmia ou Roma, seja na Cristandade). (grifo nosso)

Neste sentido, pretendemos contribuir para a existência de estudos neste campo do conhecimento. Entendemos que o estudo de fontes imagéticas da representação da guerra na Assíria do I milênio a.C. irá aprofundar e ampliar os conhecimentos deste período, já desenvolvidos a partir das fontes epigráficas publicadas. Dentre estas, destaca-se a monumental obra "Chroniques Mésopotamiennes", onde Jean-Jacques Glassner (1993, 2004) apresenta e traduz documentos da historiografia mesopotâmica que datam do século XXI a.C, considerados os mais antigos existentes, até os textos mais recentes do século II a.C. Estes textos compõem uma narrativa oficial sobre a história da Mesopotâmia e, por isso, tornam-se fontes históricas de primeira grandeza. Dentre estas, destacamos a série de crônicas assírias que narram a história política e militar do período neo-assírio que, segundo Glassner (1993, p.111):

Nesta época, o imperialismo assírio, convencido de sua ideologia universal, assimila a guerra a uma luta contra as forças do mal. Concebida como uma experiência ordálica, a guerra tornou-se um elemento constitutivo da ordem cósmica. Ela salva a população, sendo o rei o instrumento da justiça divina, e o deus Assur vestindo-se como uma figura guerreira. (...) O estatuto de inimizade e de negatividade do inimigo faz com que as destruições e as devastações adquiram um caráter positivo. O rei assírio é sempre bom e justo, o inimigo mentiroso, mau e impuro. Os historiadores assírios, servidores zelosos do príncipe, repercutem esta ideologia oficial (tradução nossa).

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Vemos que esta concepção de imperialismo é de grande atualidade no mundo contemporâneo, se analisarmos o exemplo da atual guerra do Iraque (apenas para permanecer no mesmo espaço geográfico). As ideologias podem fazer uso de símbolos culturais para encobrir as relações de desigualdade e dominação, servindo para legitimar os interesses do grupo hegemônico no poder. Um importante mecanismo de hegemonia é o de transformar valores e interesses específicos de um determinado grupo, em valores e interesses universais e atemporais.

3. Contexto histórico da Alta Mesopotâmia no I milênio a.C.

O I milênio a.C. no Oriente Próximo pode ser qualificado como a idade dos impérios: do século IX ao século I a.C. foram criados cinco grandes impérios: neo-assírio, neobabilônico, persa, helenístico e parta (Joannès, 2000). A região de planície entre o norte do Tigre e o Eufrates forma a Alta Mesopotâmia ou Djezireh. À leste desta zona,entre as margens do Tigre e as colinas dos Montes Zagros, está a Assíria, separando a Mesopotâmia do planalto iraniano (Fig. 1). Esta região possuía algumas grandes cidades, ao longo do Tigre, que foram reunidas no II milênio a.C. para formar o estado assírio: Nínive, Arbéles e Aššur. Segundo a concepção babilônica do mundo, o espaço geográfico estava dividido em "quatro regiões do mundo", ordenadas segundo os pontos cardiais (Joannès, 2000, p.8): - no norte: o país do Subartu, Assíria e zonas montanhosas; - no oeste: o país de Amurru, próximo ao Mediterrâneo; - no leste: o país do Elam e planalto iraniano; - no sul: o deserto do Nefud e do Nedjed. A lista real assíria está fundada no princípio da dinastia única, iniciando com os "reis que viviam em tendas" prolongando-se, linearmente, até os reis neo-assírios, desconsiderando elementos acidentais, como usurpações ou vazios de poder real. Esta visão centralizadora permitia o reordenamento dos acontecimentos contemporâneos dentro de uma seqüência que remontava à um passado mítico que permanecia coerente (Joannès, 2000, p.11). A Assíria de 934 à 827 a.C. parte em conquista dos territórios que haviam sido ocupados pelos arameus no II milênio a.C. e o resultado é impressionante: sob o reinado de Assurna%irpal II (883-859 a.C.) e de seu filho Salmanasar III (853-824 a.C.) formou-se um vasto território que se estendia até o Mediterrâneo. Uma crise de 83 anos marcou uma

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interrupção neste processo de expansão, com perturbações sociais no interior da Assíria. O reinado de Teglatphalassar III (745-727 a.C.) iniciou com uma política de conquistas em todo o Oriente Próximo ocidental. O antigo reino tradicional dá lugar à um império centralizado em torno da figura do rei legitimado pelo clero. Uma nova dinastia toma o poder e consolida o império assírio com Sargão II, Senaqueribe, Esarhaddon e Assurbanipal. Mas problemas estruturais provocaram uma enorme crise que desembocou na catástrofe de 614 a.C.: em quatro anos o império desmoronou pela ação dos medas e babilônicos.

Fig. 1 - Mapa da Assíria. Fonte: Joannès, 2000, p.8.

Após uma primeira restauração do estado por Aššur-dan II (934-912 a.C.) em um país que ainda sofria com a fome, uma grande conquista é empreendida por Adad-Nêrâri II (911891 a.C.) e seu sucessor Tukulti-Ninurta II (890-884 a.C.). Ao longo de um quarto de século, Assurna%irpal II (883-859 a.C.) desenvolve, de maneira espetacular, o poderio assírio. Ele

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pratica uma política de terror e de terra arrasada contra àqueles que resistem ao seu jugo. Com isso ele se apropria dos recursos naturais e humanos para o esforço de guerra e chega ao Mar Mediterrâneo por volta de 876 a.C. Os anais assírios relatam que parte das riquezas advindas destas conquistas serão destinadas ao embelezamento do palácio que ele está construindo na sua nova capital Kalhu, onde foram encontrados alguns dos baixos-relevos que constituem nossas fontes de estudo. Seu filho Salmanasar III (853-824 a.C.) dá continuidade à política expansionista, mas encontra dificuldades numa guerra contra uma coalizão formada pelos reinos do Oeste na batalha de Qarqar, em 853 a.C., no vale do Orontes. O exército assírio enfrentou esta coalizão que possuía "3.940 carros, 1.900 cavaleiros, 1.000 camelos e mais de 60.000 soldados enviados pelos reinos de Damasco, Israel, cidades-estado fenícias e de aliados distantes como o Egito e árabes do deserto" (Joannès, 2000, p.25). Šamši-Adad V (823-811 a.C.), que enfrentou uma guerra civil com perdas de territórios, interveio e conquistou Babilônia em 813 a.C., e foi sucedido por Adad-Nêrâri II (810-783 a.C.), que perdeu poder e cuja mãe Sammuramat exerceu forte influência política. A Assíria viveu um longo período de crises e sucessões até a tomada de poder de Teglatphalassar III (745-727 a.C.), que refundou o império assírio. Em 743 a.C. ele venceu uma coalizão de Urartu e dos estados arameus da Síria e deportou 72.950 prisioneiros. Em 738 a.C. submeteu a costa mediterrânea, Israel e Judá e deportou 30.300 pessoas e em 728 a.C. conquistou Babilônia. Seu filho Salmanasar V exerceu o poder por um curto período de tempo, de 726 à 722 a.C., e foi sucedido por Sargão II (721-705 a.C.) que realizou um feito excepcional: a criação de uma nova capital chamada de Dûr-Šarrukin. Senaqueribe (704-681 a.C.) enfrentou uma grave crise com a Babilônia e, em 681 a.C., morreu assassinado no templo do deus Ninurta, em Kalhu, a antiga capital. O país entrou na guerra civil e em 680 a.C. Esarhaddon, seu filho, tomou o poder e atacou o Egito. Muito doente ele foi sucedido por Assurbanipal II (672-627 a.C.), que fez várias guerras e venceu o Elam em 653 a.C. (Joannès, 2000, p. 32). Assurbanipal II realizou várias tentativas de intervenção na política interna do Elam e a primeira guerra ocorreu, provavelmente em 658-7 a.C., contra o rei elamita Tepti-HumanInsušnak, cujo nome foi abreviado pelos assírios, que o chamavam de Teumman. Quando Tepti-Human-Insušnak subiu ao poder em 664 a.C., os filhos do rei destronado pediram asilo político na Assíria que os acolheu prontamente. O novo rei elamita requisitou suas extradições, mas as trocas diplomáticas acabaram em insultos. O exército de Assurbanipal decide, então, invadir o Elam e esta campanha está ilustrada nas salas do palácio de Senaqueribe, com dois tipos de registros: a campanha da guerra e a celebração da vitória na

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Assíria. A conquista decisiva foi a batalha na cidade de Til-Tuba, cuja maior parte do relevo está conservado no Museu Britânico, em Londres.

4. Análise iconográfica e interpretação iconológica como método

Este estudo está legitimado pelas mudanças no campo da escrita da história no decorrer das últimas décadas do século XX, com a ampliação do conceito de documento histórico e a adoção da perspectiva multidisciplinar, que é cada vez mais necessária pela própria natureza diversa da documentação. Cardoso (1997, p.377) afirma que "o pressuposto essencial das metodologias propostas para a análise de textos em pesquisa histórica é o de que um documento é sempre portador de um discurso que, assim considerado, não pode ser visto como algo transparente", entendemos pois que, assim como os textos epigráficos, as fontes imagéticas também carregam um discurso que precisa ser evidenciado pelo historiador. Ao construirmos nossas interpretações acerca da representação da guerra, a partir das evidências imagéticas neo-assírias, pretendemos romper com a prática de alguns historiadores que não analisam profundamente a significação das imagens visuais como evidência histórica. Como afirma Pesavento (2005, p.65) o trabalho do historiador é o de "montar, combinar, compor, cruzar, revelar o detalhe, dar relevância ao secundário, eis o segredo de um método do qual a História se vale, para atingir os sentidos partilhados pelos homens de um outro tempo". Entendemos que a iconografia apresenta-se, pois, como um excelente instrumento para inventariar e evidenciar os sentidos (Kossoy, 2005, p.39). Características tipológicas e elementos significativos das vestimentas, penteados, paisagem ou bens associados, acentuam o realismo da cena nos relevos assírios. Através de uma versão visual, comunica-se uma realidade social que é real, reconhecível e que a ideologia dos impérios torna-a efetivamente verdadeira. Ao mesmo tempo, o uso de certas imagens padronizadas têm uma longa história de representação na arte do Antigo Oriente Próximo, pois serve para eternizar e naturalizar a legitimidade do rei e do Estado, pela via da sugestão de unidade com o passado (Marcus, 2000, p. 2487). Pela análise da iconografia identificaremos cada símbolo existente nas imagens dos relevos. Esta análise prevê a identificação das características tipológicas dos personagens e dos elementos significativos das vestimentas, penteados, paisagem, armas e objetos associados. Realiza-se a descrição destas características segundo categorias distintas: as

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figuras humanas, a paisagem, os objetos e armamentos e os símbolos religiosos a fim de obter uma tipologização destes elementos, respeitando a ordem de leitura que se impõe nos relevos mesopotâmicos da época assíria, cuja sobreposição de planos buscava reproduzir a perspectiva. As convenções, as estilizações e os símbolos caracterizam o conjunto da obra pictórica e a tornam reconhecível como representação mesopotâmica. Como por exemplo, a representação da figura do rei é maior que as demais figuras humanas, assim como na escrita das palavras homem e rei. Homem na língua suméria é LÚ e rei é o substantivo LÚ adicionado do adjetivo GAL, que significa grande, portanto, rei, em sumério é, literalmente, o homem grande, o mais importante que os outros (Marcus, 2000, p.2492). A metodologia de estudo de documentos iconográficos da Assíria, do I milênio a.C., foi efetuada por meio de análise interdisciplinar entre a história e a arte, tendo como referencial teórico os estudos de Panofsky (2007). Em uma primeira etapa realiza-se a análise iconográfica, método que descreve e classifica as imagens, conforme o tema representado. Na segunda etapa elabora-se a interpretação iconológica, identificando os diversos símbolos desta representação visual e considerando os relevos como obra produzida em um determinado contexto histórico-cultural. Para Panofsky (2007, p.47-8), a iconografia é utilizada na arte para o estudo do tema da obra e do significado, em contraposição a forma da obra de arte. O tema é uma identificação formal que fazemos no primeiro instante que visualizamos a obra. Chamamos essa primeira identificação de significado fatual. Já a forma é composta pelos elementos que são utilizados para identificarmos o significado fatual, como cores, linhas, volumes, texturas, etc. Ou seja, quando visualizamos uma imagem, primeiramente percebemos alterações de forma, nas cores, linhas e volumes. Após essa primeira percepção identificamos os detalhes dos acontecimentos com o objeto, ou seja, a ação do objeto, ou identificamos através das formas que já conhecemos, o que é o objeto, ou quem é o objeto. É este o significado expressional. Os dois juntos, significado fatual e expressional, constituem a classe dos significados primários ou naturais, ou seja, o primeiro entendimento da obra se dá através de experiências e conhecimentos que temos sobre determinados significados e da familiaridade que temos com determinadas culturas. O significado do tema primário é identificado quando percebemos as formas puras, ou seja, configurações de linha e cor, formas peculiares, representações de objetos naturais tais como seres humanos, animais, plantas, casas, ferramentas e assim por diante; pela identificação de relações da obra com acontecimentos e pela percepção de expressões, como

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gestos, olhares, poses, ou atmosferas de ambientes interiores, reconhecemos o que pode ser chamado de motivos artísticos. A enumeração dos motivos artísticos constitui uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte. O tema secundário é a percepção da ligação de motivos artísticos e suas composições com assuntos e conceitos. Os motivos reconhecidos como portadores de significado secundário podem ser chamados de imagens. A identificação de imagens, estórias e alegorias é do domínio da iconografia (Panofsky, 2007, p.51). Já o significado intrínseco pode ser apreendido pela determinação dos princípios subjacentes que revelam a atitude básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou filosófica - qualificados por uma personalidade e condensados numa obra. Estes princípios se manifestam através dos métodos de composição e da significação iconográfica. Isto é, quando concebemos que formas puras, motivos, imagens, estórias e alegorias são manifestações de princípios básicos e gerais, interpretamos todos esses elementos como valores simbólicos. A descoberta desses valores simbólicos é objeto da iconologia. No quadro abaixo, Panofsky (2007, p.64-5) expõe, de forma resumida, sua metodologia:

OBJETOS DA INTERPRETAÇÃO

ATO DA INTERPRETAÇÃO

Tema primário ou natural:

Descrição pré-iconográfica

constituindo o mundo dos motivos artísticos Tema secundário ou convencional:

Análise iconográfica

constituindo o mundo das imagens, estórias e alegorias Significado intrínseco ou conteúdo:

Interpretação iconológica

constituindo o mundo dos valores simbólicos

5. As fontes iconográficas assírias da Guerra

No mundo mesopotâmico, o relevo sobre pedra teve um desenvolvimento muito vasto. Ele concretizava as funções narrativas que faltavam nas estátuas de corpo inteiro, permitindo a combinação das figuras em cenas e, desse modo, a evocação dos grandes acontecimentos da sociedade, desde os políticos até os religiosos. Havia diversos tipos de relevo, aos quais

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correspondiam diversas fórmulas iconográficas. O relevo mesopotâmico podia assumir, essencialmente, quatro tipos distintos: a estela, a placa, o relevo rupestre e parietal e o sêlocilindro. A categoria mais importante é constituída pelos baixos-relevos sobre lajes de alabastro, repartidas em duas ou mais partes, recobrindo as paredes dos palácios, que poderiam ultrapassar 2 m de altura. As lajes triplas eram usadas sobretudo nos templos. Seis reis assírios deixaram este tipo de relevo: Assurna%irpal II (883-859 a.C.) no palácio noroeste da cidade de Nimrûd; Salmanassar III (853-824 a.C.) no palácio central da cidade de Nimrûd; Teglatphalassar III (745-727 a.C.) nos palácios do centro e do sudoeste da cidade de Nimrûd; Sargão II (722-705 a.C.) no palácio de Korshabad; Senaqueribe (705-681 a.C.) no palácio sudoeste da cidade de Nínive; Assurbanipal (669-627 a.C.) nos palácios do sudoeste e norte da cidade de Nínive. O primeiro palácio descoberto foi o de Sargão II em Dûr-Šarrukin, sobre o sítio arqueológico de Koršabad, explorado pelo francês Pierre-Émile Botta em 1843 e 1844. Em seguida foram descobertas as ruínas dos palácios de Kalhu, pelo inglês Henri Layard em 1845 e depois a cidade de Nínive em 1849, por Vítor Place e H. Rawlinson. Em 1872, em Nínive, H. Rassam descobre a Biblioteca de Assurbanipal e, a partir de 1903 até o início da Primeira Guerra Mundial, Walter Andrae realiza uma escavação arqueológica em Aššur que serve de modelo até os dias de hoje (Joannès, 2000, p.14). A prática cultural de criação de relevos monumentais está associada ao momento político de construção de grande impérios. A imponente quantidade de cenas e a sua própria continuidade, indicam uma função amplamente documental. Os relevos parietais, no plano artístico, correspondem perfeitamente aos anais assírios no plano literário (Moscati, 1985, p.38). A maioria das cenas representadas evocam a guerra, mais exatamente as campanhas militares empreendidas pelos assírios contra seus inimigos. As fontes documentais utilizadas neste estudo foram obtidas através de publicações da área (Hrouda, 1992; Parrot, 2007; Reade, 2006; Roaf, 1991). Além disso, utilizamos imagens disponibilizadas no sítio do Museu do Louvre e do Museu Britânico, entre outros.

6. Um estudo de caso: o relevo da batalha de Til-Tuba

Este relevo estava localizado na sala XXXIII do palácio de Senaqueribe, na cidade de Nínive e é datado do reinado de Assurbanipal (669-627 a.C.)

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Fig. 2 - WA 124802 – British Museum. Fonte: Bachelot, 1991, p.128.

A descrição iconográfica desse relevo (Fig. 2) permite efetuarmos um estudo iconológico parcial dos acontecimentos da cena. Em um primeiro plano nos deparamos com a paisagem, com o poder de destruição e a carnificina de uma batalha ocorrida às margens do rio Ulai, atual Karun, no Irã. Vê-se animais e corpos de soldados mutilados boiando no rio, em meio aos peixes, representados semi-encobertos pela águas, numa tentiva de retratar o depoimento de uma testemunha ocular. Os soldados inimigos, os elamitas, são identificados por uma fita que portam amarrada na cabeça com um laço atrás. Os vestígios de carros de guerra destroçados evocam com força a violência da batalha. Os planos superiores referem-se ao triunfo assírio e a anunciação de sua vitória: um batalhão de soldados elamitas louva o general assírio e o novo rei elamita Ummanigash. Vê-se um soldado elamita tocando os pés do militar assírio como forma de reverência, obediência e submissão à autoridade assíria. Soldados elamitas se prostram durante a cerimônia de posse

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do novo rei elamita Ummanigash. Identifica-se, ainda, cinco músicos que marcham, tocando harpas, liras e flautas, comemorando a vitória militar e política. A cena evoca, ainda, inúmeros soldados se prostrando e reverenciando seu novo soberano com a utilização de gestos de adoração, honrando simbolicamente o poder real assírio. No detalhe do plano (Fig. 3) vê-se no canto superior, à esquerda, a inscrição real como se o próprio Assurbanipal estivesse presente na cena dizendo: "Ummanigash, o refugiado, o servidor que havia segurado meus pés, segundo o cumprimento da minha palavra, meu oficial, que eu havia enviado, o fiz entrar no país de Madaktu e na cidade de Susa, e o fiz sentar no trono de Teumman, que minha mão dominou" (Bachelot, 1991, p.191). (tradução nossa).

Fig. 3 - Detalhe do relevo da posse do rei Ummanigash. Fonte: Reade, 2006, p.83.

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7. Conclusões

A decoração no interior dos palácios era realizada para mostrar que o rei era um homem de ação. Ele possuía o papel do arquétipo real da Mesopotâmia, responsável pelo país e pelas pessoas legitimado pelas divindades. Tais representações serviam como propaganda política, social, econômica, religiosa, com uma forte carga ideológica, que tinha como objetivo legitimar o poder dos governantes perante seus súditos Este estudo possibilita detectar a função política do relevo, pois o mesmo exalta a pessoa do rei, impõe seu poder e registra suas ações para outros povos. Os relevos, que em sua maioria situavam-se no interior dos palácios, eram de visualização restrita, em locais freqüentados somente por convidados e pela corte. A prática cultural de esculpir relevos monumentais, característica da arte neo-assíria, está associada ao momento político da construção dos grandes impérios assírios. Os assírios faziam esculturas em basalto, uma pedra vulcânica bastante dura, que era importada da Anatólia. Outra variedade de pedra era o alabastro, com abundantes pedreiras na Assíria, também era chamado de mármore de Mossul, mais macia, se dissolvia com água e, portanto, foi usada preferencialmente no interior dos palácios e templos. Os relevos no palácio de Senaqueribe de 700 a.C. mostram a extração dos blocos de pedra que serviram para os baixos-relevos. Estas pedras eram coladas às paredes com betume e, após, é que o trabalho de escultura poderia começar. Como a criação de uma escultura no palácio era algo excepcional, ocorria uma vez em cada reino. Provavelmente não havia um procedimento fixo na execução dos trabalhos, mas vê-se que era obra de muitos especialistas e sob a supervisão do rei que, segundo fontes escritas, tinha especial interesse em acompanhar as obras (Reade, 2006, p.2627). Há raros casos de intervenção do rei nos relevos. O design do palácio e a decoração eram, provavelmente, decididos por uma comissão de altos oficiais, sob a supervisão do rei. Alguns deveriam ter conhecimentos religiosos e sobre como determinadas figuras mágicas deveriam ser esculpidas, para ter o maior efeito de proteção. Da mesma maneira, para esculturas de grandes dimensões e narrativas em pequena escala. Diversas equipes trabalhavam concomitantemente, como atesta a decoração do palácio de Assurna%irpal II, em Nimrud, onde vários salas foram decoradas com cenas idênticas, mas executadas de maneiras diferentes.

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As esculturas assírias podem ser compreendidas em níveis distintos: como um trabalho de arte com influências estéticas estrangeiras; com artistas que conheciam seu métier e foram responsáveis por inovações técnicas e estilísticas; onde a ausência de cor causava uma distorção significativa da realidade; como objetos feitos para a glorificação dos monarcas assírios, onde os escultores delineavam os acontecimentos do mundo como que impostos pela justiça do deus Assur. A política do Estado assírio estava ilustrada nas esculturas, que apresentavam, com naturalidade, o tema da conquista de territórios sob a proteção de Assur; retratavam somente os benefícios do poder assírio. Finalmente, podemos supor que não há razões que indicam que os assírios foram mais violentos que os seus contemporâneos ou que as nações imperiais de outros tempos. Estes relevos monumentais foram executados nas paredes interiores dos palácios e, portanto, sua circulação era restrita à corte, aos convidados do rei e às delegações diplomáticas estrangeiras. Os reis assírios construíram palácios para servir de núcleo administrativo, mas, também, como instrumento de propaganda, decorado de modo a impor ao visitante a impressão da esmagadora potência assíria. Esta decoração fazia, essencialmente, a exaltação da pessoa do rei e da evocação de seus altos feitos (Roaf, 2000, p.437). A ideologia pode fazer uso de símbolos culturais para encobrir as relações de desigualdade e dominação, servindo para legitimar os interesses do grupo hegemônico no poder.

8. Bibliografia consultada

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MARCHANDO AO SOM DE AULOÍ E TROMPETES. A MÚSICA E O LÓGOS HOPLÍTICO NA GRÉCIA ANTIGA

Fábio Vergara Cerqueira Universidade Federal de Pelotas

Heráclito censura o autor do verso «Quem dera que a discórdia desaparecesse de entre os deuses e os homens»: pois não haveria escala musical se não existissem o som agudo e o grave, nem seres vivos sem fêmea e macho, que são opostos. (Heráclito, Apud Aristóteles, Ética a Eudemo, H 1, 1235 a 25)

Introdução: o acompanhamento musical, um costume militar grego

Philodemos (110-40 b.C.), filósofo e poeta epicurista, nos ensinava que a coragem (andreia), virtude indispensável ao guerreiro, resultava da relação entre o espírito e a prática musical (Philodemos, 55.77). Remete-nos a um aspecto do imaginário grego da guerra: o papel da música no contexto militar. A importância da música para a vida militar pode ser atestada tanto na pedagogia para a formação do cidadão-soldado, quanto na rotina militar, nos exercícios ou propriamente na guerra. No ambiente escolar, a música estava presente, entre outras razões, para o disciplinamento do corpo e do espírito. Ao acompanhar os treinamentos físicos e provas atléticas, realizados nas palestras e ginásios, o ritmo dos instrumentos musicais, sobretudo do aulós (“flauta-dupla”), contribuía para condicionar os movimentos do corpo do jovem à execução de ritmos seqüenciados e ordenados, tais como a marcha militar e o ordenamento das falanges hoplíticas. Na aula de música, o professor, chamado kitharistés, selecionava o repertório que seria cantado e

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tocado pelo jovem. Um dos critérios de escolha era o éthos musical, privilegiando-se canções compostas no modo dórico, que expressavam o caráter guerreiro, viril. Na vida militar, a presença e uso de instrumentos musicais ocorria em diversos momentos. O treinamento dos guerreiros era feito, predominantemente, ao som do aulós. Jovens, ao treinarem a disciplina da formação hoplítica, entoavam canções que os exortavam à bravura militar e a uma conduta disciplinada, respeitante da norma coletiva. Quando as tropas marchavam para as batalhas, ou mesmo durante os embates militares, se faziam ouvir o som do aulós e de outros instrumentos de sopro, como a salpínx (trompete) e o kéras (berrante de chifre). Neste contexto, compreendemos o grande valor dado à sólida formação musical de alguns generais, como Epaminondas, Nícias ou Alcibíades, como nos revela o testemunho de Plutarco. O general e político tebano Epaminondas, falecido 362 a.C., famoso por tocar cítara com perfeição, fato elogiável em caráter como homem público, recebeu também ensinamento de dança e de aulós. As fontes nos relatam inclusive quem foram seus mestres, tal o interesse pela educação musical de generais: sua educação ocorreu junto aos aulētaí Orthagoras e Olympiodoros, e ao kitharistes Dionysios (ROESCH, 1995: 129. Platão, Protágoras 318c). Os generais atenienses Nícias e Alcibíades foram do mesmo modo consagrados, pela tradição, como homens com formação na arte das Musas. (Plutarco, Nícias 5; Alcibíades 2). Os vestígios desta instituição cultural – o acompanhamento musical das atividades militares – podem ser verificados tanto na tradição literária, quanto na tradição gráfica. No que se refere à tradição literária, as fontes escritas de vários períodos e representativas de diversos gêneros são ricas em registros, notadamente autores que relatam e historiam os feitos militares, como Heródoto, Tucídides e Xenofonte. No universo das tradições gráficas, a iconografia dos vasos áticos proporciona exemplos sobre o uso da salpínx no contexto militar ateniense, contrastando com o predomínio do aulós em outras regiões, como sugerem a cerâmica coríntia arcaica e os sarcófagos de Clazomene. Deste modo, para interpretar as séries iconográficas da cerâmica ática de figuras negras e figuras vermelhas, do século sexto e quinto, estabeleceremos um diálogo com textos antigos provenientes de regiões e épocas variadas. Para a utilização de fontes escritas extemporâneas às fontes iconográficas, seguimos o pressuposto validador deste procedimento de que o costume do acompanhamento musical das práticas de guerra se trata de um fenômeno histórico de longa

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duração e extensa amplitude no mundo grego antigo: seu espectro cronológico estende-se do período arcaico ao mundo helenístico-romano. Mesmo que o Mundo grego tenha construído uma significação peculiar do uso da música no universo da guerra, este costume deixou alguns vestígios nas sociedades posteriores, deixando como legado cultural para o mundo moderno a instituição das bandas militares e dos gêneros musicais marciais. Hoje, em nosso país, as bandas militares possuem um importante papel em termos de formação musical, sobretudo na categoria dos instrumentos de sopro. Muitas orquestras brasileiras contam, em seus naipes de sopro, com instrumentistas cuja formação musical inicial deve-se às bandas militares. Um dos mais conhecidos maestros de nosso país, o falecido regente Eleazar de Carvalho, iniciou sua longa carreira musical na Banda do Batalhão Naval, no Rio de Janeiro.

Algumas reflexões sobre o estudo das práticas musicais na guerra e no pensamento militar grego

Ora, de uma perspectiva ocidental contemporânea, racionalista, materialista, é presumível que se pense que as expectativas de sucesso na guerra estejam depositadas, de um lado, na estratégia, na inteligência militar, e, de outro, nos equipamentos bélicos, nos armamentos, na tecnologia. Proponho ao leitor, porém, tentar imergir na visão de mundo dos antigos gregos, e compreender que o sucesso ou fracasso de um empreendimento militar incluía aspectos que, numa perspectiva racional e laica moderna, possam parecer submetidos ao domínio do “irracional”, das superstições. Com isso, o leitor se aproximará de uma compreensão antropológica da guerra, ao ver aspectos da percepção que os próprios gregos tinham de suas guerras. Assim, os gregos, antes, durante e depois das batalhas, não dispensavam procedimentos que poderíamos definir como sagrados. Falamos aqui de oráculos e outras formas de previsões; falamos igualmente de sacrifícios oferecidos às divindades, pedindo proteção, sorte, coragem ou mesmo agradecendo pelas conquistas. Inúmeros exemplos podem ser encontrados na obra de Heródoto (ap.480-ap.425), historiador grego, que não nos permite esquecer que, entre os gregos, sacrifícios, adivinhações e interpretações místicas compunham a rotina bélica. É necessário dizer que, entre os procedimentos que integravam o ritual guerreiro, além da estratégia e do arsenal

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bélico, incluíam-se não somente as práticas divinatórias e os sacrifícios, mas igualmente o acompanhamento musical das atividades militares. Este acompanhamento ocorria tanto ao longo dos treinamentos e movimentações militares, quanto nos campos de batalha. Assim, um aspecto da cultura militar grega que nos chama muito a atenção é a valorização da música em seu cotidiano, tanto no campo de batalha quanto no mar. (Figura 1)

Figura 1 (Cratera de Aristónothos)

Do ponto de vista historiográfico, esta problemática insere-se no campo da Nova História Cultural, buscando entender as práticas sociais mergulhadas em seus contextos simbólicos. Do ponto de vista arqueológico, a interpretação proposta de registros iconográficos da guerra remetenos a uma perspectiva pós-processual, igualmente interessada nos contextos simbólicos em que se efetivam as relações sociais. Ou seja, para entender a guerra entre os gregos não basta pensarmos nos condicionantes sociais, políticos e militares. É preciso ir além e perceber a presença do fator religioso e de outros aspectos do imaginário, como a percepção que os gregos tinham da influência da música sobre a vida no mundo da pólis, contribuindo para o disciplinamento físico e espiritual dos cidadãos. Do ponto de vista epistemológico, este estudo problematiza a relação entre os registros escritos e iconográficos, inscrevendo-se no campo da interdisciplinaridade entre a História e a Arqueologia. A relação entre os testemunhos escritos e iconográficos é um dos traços de uma disciplina atual no campo da ciência arqueológica, a chamada Arqueologia histórica, da qual a Arqueologia do Mundo antigo, também conhecida como Arqueologia clássica, constitui um

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domínio de abrangência. Ao relacionar testemunhos de diferentes naturezas – no caso, literários e iconográficos – o historiador precisa encarar alguns desafios: um deles é a existência ou ausência de vestígios nas diferentes fontes. É preciso tentar interpretar os silêncios e as formas como os indícios se manifestam. O exercício de contraposição e justaposição dos testemunhos escritos e imagéticos impõe muita cautela na escolha e aplicação dos métodos de análise das fontes. Numa perspectiva do imaginário, caberá perguntar a que serviria, na visão dos antigos gregos – que o antropólogo definiria como “visão do nativo” ou visão endógena – o uso da música, instrumental e vocal, no acompanhamento de práticas militares. Responder a esta questão impõe um modelo de análise hermenêutico, que busque, na interpretação dos textos antigos, os sentidos atribuídos a este costume, sentidos verificados em diferentes expressões de pensamento antigo que chegaram até nós por meio da tradição textual clássica.

Origem, antigüidade e desenvolvimento do costume, conforme testemunhos literários e iconográficos:

Faltam elementos para que se possa datar com precisão quando os gregos adotam o costume de acompanhar com música a movimentação de suas tropas. É improvável que a origem deste uso seja indo-européia, apesar da forte influência do elemento indo-europeu sobre a formação das tradições militares gregas. Segundo relato homérico, “os aqueus avançavam em silêncio, respirando a cólera, os corações ardendo para se defender uns dos outros” (Homero, Ilíada III.8). (Figura 2) É presumível que esta característica estivesse presente ainda na época de Homero, entre fins do século nono e meados do oitavo. Esta ausência da música nos versos homéricos referentes à guerra causava estranheza a observadores posteriores, habituados ao uso de instrumentos musicais nos exercícios militares e nas batalhas. Aulus-Gellius (Noites áticas I.11.1-4), autor da época imperial (séc. II d.C.), é um dos autores que ressalta a diferença dos costumes registrados nos poemas de Homero, que nos mostram os aqueus combatendo sem o acompanhamento de lýrai e auloí.

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Figura 2 (Cratera Micênica)

No entanto, os relevos mesopotâmicos nos mostram guerreiros acompanhados por músicos, em épocas mais antigas, demonstrando a existência deste costume entre culturas com as quais os gregos por vezes estabelecem contatos, mesmo que de forma indireta, mediada por outros povos. É provável que o contato próximo que os gregos da Ásia Menor tiveram desde cedo com os persas tenha trazido, para o contexto cultural helênico, antigos hábitos mesopotâmicos, entre os quais a cultura musical desfrutava de alto apreço, notadamente entre os babilônicos, que costumavam trazer músicos junto com seus poderosos exércitos. A Lídia, que exercia sobre a Grécia arcaica certa influência cultural, devido ao seu luxo e riqueza, pode ter sido o contato direto dos gregos com este costume cuja origem estava em terras mais distantes, às margens do Tigre e Eufrates. O relato de Heródoto (História I.1) nos informa que a marcha militar dos lídios era acompanhada por uma altissonante orquestra de syringes, harpas (pektidōn), flautas agudas e graves (aulou gynaikeíou e aulou andreíou). Segundo Aulus-Gellius (Noites áticas I.11.7), além de tocadores de syrinx e aulós, levavam aulētridaí para distrair os guerreiros durante seus libidinosos banquetes. O olhar antropológico de Heródoto, no entanto, é perspicaz para constatar a diferença cultural: enquanto as tropas gregas têm acompanhamentos musicais sóbrios, normalmente com um único instrumento, os relatos referentes aos costumes próximo-orientais apresentam-nos um cenário de múltiplos instrumentos e timbres, sugerindo uma diversidade de coloridos sonoros. A banda militar dos exércitos lídios não nos evoca o que imaginamos da música grega antiga, e sobretudo do período clássico. As tropas lídias avançavam na atmosfera de

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um verdadeiro espetáculo próprio às cortes orientais, visando a intimidar o inimigo com imagem de poderio. As fontes antigas relatam alguns costumes particulares, entre alguns povos, na vinculação entre a música e a guerra. Os requintes na musicalização do universo bélico estavam presentes inclusive no adestramento musical dos cavalos praticado entre os sibáritas e os cárdios (Ateneu, Deipnosophistai XII.520d-f. Julius Africanus, Cest. p. 293. Aeliano, Historia Animalia XVI.23), sugerindo-nos algo parecido com a Cavalaria Espanhola dos Habsburgo, que até hoje exibe-se aos turistas em Viena e faz turnês internacionais. Na Antigüidade, estas práticas deram inclusive margem a anedotas. No caso dos sibáritas, esta prática teria lhes acarretado uma séria perda militar: um de seus inimigos, o povo de Cróton, num enfrentamento, tendo acesso a segredos, trouxera aulētaí em uniforme militar, os quais fizeram os cavalos literalmente bailarem; e como a força militar desses povos estava na cavalaria, a derrota mostrou-se inevitável, uma vez que seus cavalos puseram-se a dançar. É bastante improvável, porém, que os gregos tenham pura e simplesmente copiado um costume oriental, inclusive por que o acompanhamento musical do exército assume uma forma bem mais austera entre os gregos. A documentação indica um desenvolvimento próprio, ocorrido em território grego, sobretudo em Creta e na Lacedemônia, sem excluir, porém, as Cíclades. Assim, os cretenses utilizavam nas suas expedições militares a lýra (Plutarco, De Musica XIV.258), ou o aulós (Políbio, História IV.20.6-7), ou ambos combinados (Estrabão, Geografia X.4.20), ou mesmo uma cithara (Aulus Gellius, I.11.6). Três dos quatro testemunhos referem-se ao uso de instrumentos de corda (lýra ou cithara) em Creta, o que difere bastante das informações que temos para a Grécia continental e cicládica. A iconografia dos vasos coríntios apresenta, entre as centenas de aríbaloi com guerreiros, uma obra-prima, de estilo proto-coríntio, uma olpé retratando um jovem aulētés entre duas falanges hoplíticas que avançam sobre o inimigo (Aulus Gellius, I.11.3) (Figura 3). O vaso coríntio data de meados do séc. VII, aproximadamente 640 a.C., portanto, pouco posterior à atuação de Arquíloco em Tasos e contemporâneo da atividade de Tirteu em Esparta.

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Figura 3 (Vaso Chigi. Proto-coríntio)

Arquíloco registra num trímetro que as tropas tasianas avançavam entoando um peã em homenagem a Apolo, ao som do aulós de Lesbos (pros aulon Lesbion) (Ateneu, V.180d-e)1, devendo ser o mesmo peã dos lesbianos referido num tetrâmetro (Arquíloco, fr. 110, vs. 10-15 [Lasserre & Bonnard], Inscr. Sósthenes IV.54.5). Esses versos sugerem que já em meados do séc. VII costumava-se cantar um hino a Apolo, ou no momento do ataque (como é o caso no tetrâmetro) ou após a vitória, como nos informa Ésquilo (Persas 393) acerca de um costume militar ateniense do séc. V. Tirteu teve um importante papel na segunda katástasis espartana, atuando juntamente a outros músicos, tais como Thaletas e Xenodamos. Enquanto as composições desses últimos, somadas às de Xenócrito, Polymnestos e Sacadas, integravam o repertório musical das Gymnopédias, as canções de Tirteu, os embatéria mélē (chamados de enóplia), por sua vez, repletas de um éthos dórico que exortava os guerreiros à valentia, eram entoadas no avançar ordenado das tropas (Ateneu, XIV.630; CORREA, 1987:68). Floresceu durante a 35ª Olimpíada (640-37 a.C.), à época da segunda Guerra Messênia, contribuindo para a vitória dos espartanos no vigésimo ano do conflito (Suda, Tirteu 1). Ele se estabeleceu em Esparta para contribuir, com suas músicas, a 1

Arquíloco, fr. 88 (Lasserre & Bonnard), ap. Ateneu V.180d-e. Terpandro é o primeiro dos notáveis músicos de Lesbos referidos pelos textos antigos. Terpandro e Arquíloco, não tendo a mesma idade, devem ter sido contemporâneos em algum momento de suas vidas; os autores antigos, porém, não chegam a um acordo sobre qual deles é mais antigo. Normalmente, a fama de Lesbos está mais nos instrumentos de corda (Terpandro e Arion, Safo e Alceu, e, por que não, a lýra e a cabeça de Orfeu). No entanto, a crônica do Mármore de Paros refere-se a Terpandro de Lesbos como auletés, ajudando-nos a compreender o pròs aulòn Lésbion.

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apaziguar as animosidades decorrentes da crise social. Compôs cantos marciais em ritmo anapesto e escreveu elegias, as quais induziam o povo, ao mesmo tempo, à paz e ordem políticas, à excelência e bravura. As narrativas mitológicas fornecem outra explicação para a origem deste costume entre os espartanos, atribuindo sua introdução na Lacedemônia aos irmãos de Helena, Castor e Pólux. Castor teria ensinado aos espartanos uma fina canção marcial, o Kastoreion. Esta origem longínqua, remetendo aos tempos micênicos, depositava neste hábito peculiar um valor mais profundo na memória social, confundindo-se com as origens míticas de Esparta. Este mito enraizava mais fortemente o costume musical militar nas tradições espartanas, como comportamento autóctone, o que é compreensível pelo lugar de destaque que o exército ocupava na identidade cultural espartana. A partir desse repertório marcial, eles teriam desenvolvido as danças em armas, que posteriormente tornaram-se muito apreciadas, inclusive em Atenas. Consoante Ateneu, a dança de guerra (pyrrhikhé), dançada por meninos armados, sendo componente tradicional da educação e festividades espartanas, treinava o corpo à velocidade e destreza que a guerra exigia, tanto para o ataque como para a fuga (Ateneu, XIV, 630). A pyrrhikhé era ritmada pelo aulós, pois esse acompanhava as danças caracterizadas pela velocidade. A enorme série de vasos áticos retratando cenas de pyrrhikhé, evidenciando inclusive a existência de concursos de dança em armas para moças (Xenofonte, Anábase V, 9, 5-13), testemunha a popularidade que esse gênero coreográfico obteve e o quão emblemático tornou-se desta fusão cultural entre música e guerra. (Figura 4)

Figura 4 (Hydría ática)

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Segundo a versão de Luciano (Saltatio 10), Castor e Pólux teriam ensinado aos espartanos a Carvática, uma forma de dança em armas. Conforme Plutarco (Instituta laconica c.16), Licurgo, contemporâneo ou pouco anterior a Tirteu, associou a música à agogé, a educação militar espartana. Platão testemunha o quanto a educação musical se ligava estreitamente à formação militar em Esparta, ao nos relatar que as crianças espartanas, no período clássico, “eram saturadas com a música de Tirteu” na escola (Platão, Leis 629b). Um dos gêneros musicais usado no acompanhamento das marchas militares era o nómos. Um dos exemplos é o Nómos de Ares (Plutarco, De Musica 1141b), composto em ritmo enóplio, que deveria ser executado durante um momento do combate. Antes das batalhas, os gregos cantavam um peã a Ares; depois delas, um a Apolo (Escólio a Tucídides I.50. Dion Chrisóstomos, II.57-8: referência a Eniálio, cantado antes da batalha, e ao peã epinício de agradecimento à vitória. CORREA, 1987:67). Trata-se, no entanto, de hinos religiosos propiciatórios dos favores divinos, não constituindo o aspecto central de nossa análise, qual seja, a música de acompanhamento das atividades propriamente militares.

Instrumentos musicais usados no acompanhamento musical das atividades militares

Com qual instrumento musical se executavam no contexto militar as enóplias de Tirteu, o Kastoreion e o Nómos de Ares? Predominavam dois instrumentos, o aulós e a salpínx, no acompanhamento das atividades militares.

Acompanhamento com aulós Bem, talvez pelo fato das instituições militares espartanas terem desfrutado de grande interesse entre os autores antigos, é no que se refere a Esparta que dispomos de maior número de testemunhos da prática do acompanhamento musical das atividades guerreiras. E esses registros relatam, quase em uníssono, que o aulós era por excelência o instrumento musical militar, acompanhando tanto os treinamentos militares como os combates (Tucídides, V.70. Políbio, IV.20.6-7. Plutarco, De Musica XIV.255-7; Instituta laconica c.16. Luciano, Saltatio 10. Aulus Gellius, Noites Áticas I.11.1-4 e 10). O próprio Tirteu era lembrado pela tradição como um aulētés (Suda, Tirteu). Assim, é com o aulós que executam a ária chamada Kastoreion todas as vezes que avançam contra o inimigo.

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O testemunho de Pausânias (Descrição da Hélade III.17.5), no entanto, constitui uma voz dissonante, acompanhada todavia por outros autores. Relata que os espartanos marcham sob a música do aulós acompanhada da lýra e da kithara. Sextus Empiricus (Adversus Musicos 18) menciona o aulós e lýra. Alcman (fr. 41 Campbel, ap. Plutarco, Vida de Licurgo 21.6) fala de guerra acompanhada por kaloos kitharísden, traduzido por Campbel como “(...) fine lyre-playing tips the scales”. Note-se que estas versões alternativas ao aulós solo remontam todas ao período imperial, pois o fragmento atribuído a Alcman nos é narrado por Plutarco. Devemos questionar a aplicabilidade destes testemunhos ao período arcaico e clássico, pois uma orquestra militar com a melodia do aulós acompanhada por naipes de cordas, com lýra e kithara, sugere-nos muito mais a exuberância lídia do que a austeridade dórica dos espartanos, tão reticentes a qualquer forma de renovação musical e militar. Existe a possibilidade de que seu relato registre uma posterior mudança de costumes, somando outros instrumentos ao aulós, próprio ao gosto por espetáculos exuberantes, comum ao período imperial romano; isto, porém, alteraria o sentido do acompanhamento musical, que, para os espartanos, no período arcaico e clássico, não era um espetáculo, como para os lídios, mas uma absoluta necessidade de disciplina hoplítica. Entre gregos da Ásia Menor, ocorreu igualmente a associação entre a música do aulós e o universo da guerra. Entre o conjunto de aproximadamente 120 sarcófagos clazomenianos, datados da primeira metade do séc. V. a.C., há vários exemplos que representam um aulētés acompanhado de figuras em uniformes de hoplita. Num sarcófago do Pintor Albertinum, conservado no Museu Britânico, datado de aproximadamente 500 a 490 a.C., vemos um aulētés nu entre dois hoplitas. A. S. Murray defende a hipótese de que o pintor retrata um aulētés acompanhando uma pyrrhikhé, que se realiza no contexto de jogos fúnebres, possibilidade contestada por Cook (CVA Museu Britânico 8, texto p. 50). Acho muito provável que a cena representada registre hábitos de jogos fúnebres, nos quais os elementos guerreiros são uma constante. No período helenístico, quando muitas regiões da Grécia continental e insular já haviam abandonado a ortodoxia de hábitos musicais tradicionais, cedendo à profissionalização e espetacularização da música, que perdia em parte seu caráter pedagógico, a Arcádia, região materialmente pobre, mas rica na preservação das tradições culturais, mantinha, ainda no séc. II a.C., conforme testemunho de Políbio (IV.20.12), uma rigorosa educação musical, que se

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estendia da mais tenra infância até os 30 anos de idade. Informa-nos, pois, que os jovens se exercitavam nas marchas militares ao som do aulós, que lhes garantia manter a boa ordem.

Acompanhamento com salpínx São abundantes os testemunhos do emprego da salpínx no ambiente militar. A metáfora do reinado da paz, em uma cidade, para Baquílides (Peãs III.75) é a ausência da salpínx de bronze, dada sua semântica intrinsecamente guerreira. Tanto Pausânias como Políbio chamam a atenção para o fato de que espartanos e cretenses dispensam o uso da salpínx: segundo testemunho de Políbio (IV.20.6-7), preferiam o aulós e o ritmo. O fato de ressaltarem que espartanos e cretenses se distinguem por não usar a salpínx constitui uma evidência a contrapelo de que ela constituía um instrumento usual no contexto bélico. A mitologia homérica já estabelecia a ligação da salpínx com o espírito da guerra. Não é à toa que o músico que acompanha os guerreiros aqueus Ulisses e Diomedes, quando esses resgatam Aquiles na ilha de Skyros, é um trompetista: chama-se Agyrtes, mencionado como o personagem que, soprando a salpínx, dá o sinal que revela a presença de Aquiles entre as filhas de Nicomedes (Figura 5). Aquiles, ouvindo esse som característico da vida guerreira, prefere juntar-se a Ulisses e Diomedes, abandonando o convívio das mulheres de Nicomedes, entre as quais havia assumido inclusive um nome feminino, Pyrrha. Nessa narrativa mítica, a salpínx comporta uma significação de virilidade, de caráter guerreiro, em oposição ao ambiente doméstico feminino no qual o jovem herói se escondia, estando inclusive vestido em trajes femininos.

Figura 5 (Prato de Prata Romano, início do Império)

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Conforme Philostratos (De arte gymanstica VII.18-19), era a salpínx que incitava os jovens às armas, nesse sentido agindo como um elemento encorajador. Plutarco evidencia a diversidade de costumes da cultura musical militar. Enquanto os lacedemônios preferiam marchar nos combates ao som do aulós, muitos povos tinham o costume de fazê-lo acompanhados pela salpínx (Plutarco, De Musica XIV.255-59). Malgrado o incontestável caráter militar do aulós, é curioso que os autores de epigramas tenham feito um único registro à conexão militar desse instrumento, ao passo que nos legaram 5 epigramas votivos ilustrativos da função guerreira da salpínx. As referências à salpínx como instrumento militar são bastante evidentes, nos epigramas de Antípater de Sídon (séc. II a.C.), Tymnês de Eleuterne (séc. II a.C.) e Archias de Antióquia (séc. I a.C.), informando inclusive a identidade de alguns músicos que exerceram a profissão de trompetistas militares, como Pherenice e Miccos de Pallene, que ofertaram suas salpinges de bronze à deusa Atena, após se aposentarem de suas atividades como músicos. (Antologia grega. Epigramas votivos (IV), 46 e 159; 151; 195; 194). Os epigramas nos indicam que os mesmos músicos que se engajavam nas campanhas militares durante a guerra, nos períodos de paz atuavam ou bem nos treinamentos militares, ou bem nos palcos. Assim, no caso da salpínx, que apresentava um mercado de trabalho mais reduzido do que o aulós, a especialização era mais no instrumento do que no tipo de engajamento profissional. Afora acompanhar as tropas nas campanhas, os trompetistas atuavam nos grandes festivais, anunciando os vencedores ou mesmo rivalizando entre si na força de seus pulmões e diafragma, bem como acompanhando corridas de quadrigas ou corridas em armas; subiam também aos palcos, repartindo espaço com os aulētaí – lá não tinham porém uma função militar, mas sim a mesma incumbência que nos jogos atléticos, anunciar, qual uma sirene, um alarme. (CERQUEIRA, 2007: 29-51) Textos do período clássico, de autores atenienses, como Ésquilo, Tucídides e Xenofonte, informam sobre diferentes funções da salpínx nas atividades guerreiras, sugerindo ser esse, no período em questão, o instrumento musical militar tanto em Atenas, como em diferentes regiões do Mediterrâneo antigo, estando presente nos diversos frontes de batalha, nos conflitos com os persas ou na expedição à Sicília de 415. Os testemunhos iconográficos atenienses do período tardo-arcaico e clássico, em vasos de figuras negras e vermelhas, não trazem testemunho sobre o uso militar do aulós: os pintores de vaso colocam a salpínx como o instrumento militar em

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Atenas, quer por meio de representações mitológicas de Amazonas (Figura 6) ou de Etíopes, quer por intermédio de representações de hoplitas (Figura 7).

Figura 6 (Epínētron ático)

Figura 7 (Prato ático)

Os atenienses empregavam-no para dar o sinal de ataque (Ésquilo, Persas 392-5. Tucídides, VI.69.2), do mesmo modo que para dar o toque de fuga (Tucídides, V.10.3.), sendo essas utilizações recorrentes entre outros povos gregos e bárbaros (no ataque: Xenofonte,

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Helênicas V.1.9; na fuga do sátrapa: Anábase IV.4.22). Aristides Quintiliano fornece a descrição mais detalhada das diferentes ordens dadas pela salpínx, explicando que os comandos dados pela salpínx são mais seguros do que as ordens dadas verbalmente: as ordens verbais correm o risco de ser mal compreendidas por aqueles a quem elas se destinam, ao mesmo tempo em que podem ser entendidas pelo inimigo (Aristides Quintiliano, De Musica p. 62.11-20 e 72.12 WinningtonIngram. BÉLIS, 1984:99-100). A técnica grega de adestramento musical dos cavalos, já mencionada anteriormente num trecho de Ateneu sobre os sibáritas e os cárdios, que ensinavam seus cavalos a dançar ao som do aulós, era empregada também nos comandos e manobras sincronizadas da cavalaria, regida pelos diferentes sinais da salpínx, conforme a descrição pormenorizada de Xenofonte (Arte da Cavalaria III.11-12), que nos retrata um espetáculo de exibição da disciplina militar da cavalaria graças ao adestramento dos animais e ao entendimento por parte dos cavaleiros das ordens do trompetista. De forma semelhante, no contexto agonístico, a salpínx anunciava a última volta na corrida de cavalos em Olímpia, como também, provavelmente, em outras provas eqüestres (Pausânias, VI.13.9).

Simbolismo associado ao uso do aulós e da salpínx no contexto militar

Ambos instrumentos, o aulós e a salpínx, possuíam uma função bélica, que era acompanhada de um inerente simbolismo guerreiro. A atribuição da invenção do aulós a Atena, a virgem guerreira, bem como a situação que a inspirou a inventá-lo, contadas numa ode de Píndaro, insinuam uma conotação guerreira desse instrumento. Acompanhando seu protegido, Perseu, Atena garantiu sua vitória sobre a Medusa, segurando seu escudo sobre o monstro, de modo que, funcionando como espelho, permitiu que o jovem herói a decapitasse. Derrotada e moribunda, ela emitia desesperados gritos de dor face ao golpe fatal. Querendo registrar o feito para a posteridade, Atena produziu um instrumento musical capaz de sonorizar os dolorosos gritos agonizantes da Medusa (Píndaro, Píticas XII.17 sq.), que eram descritos através do Polyképhalos nómos, forma de interpretação musical para aulós solo, bastante valorizada nas apresentações competitivas, como nos Jogos Píticos, em Delfos, e provavelmente nos Jogos Panatenaicos, em Atenas. Registrava também, simbolicamente, a capacidade humana de superar obstáculos “anti-humanos” do mundo. A deusa

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criou assim um instrumento, o aulós, que simbolizava a coragem de Perseu e que, desse modo, possuía em seu caráter uma ligação com a valentia guerreira. A glória de Perseu, em derrotar o sobre-humano, estava em ligação com a força militar para derrotar o inimigo humano: “(Atena) tendo inventado (o aulós), fez dele um presente aos mortais, dando o seu nome (da Medusa) ao nómos, o nómos de várias cabeças (Polyképhalos nómos), essa ária gloriosa que evoca as lutas pelas quais se movem os povos”. (Píndaro, Píticas XII.3) Assim, o Polyképhalos nómos, uma forma de composição clássica do repertório aulético, tal qual o Pythikòs nómos, carregava consigo uma significação de bravura e valentia guerreiras.2 Vê-se como parte do repertório aulético de concerto e de virtuosismo, que estava inserido no contexto pacífico dos festivais, possuía todavia uma conotação que lembrava a condição do aulós como instrumento do contexto beligerante das guerras. O primeiro lembrava a vitória de Perseu sobre a Medusa de várias cabeças; o segundo, o triunfo de Apolo sobre o monstro Python. A salpínx, por sua vez, era tida como um instrumento guerreiro; isso fica claro no fato de que todas as que se tornavam objetos votivos, conforme o testemunho dos epigramas votivos, eram ofertadas pelos trompetistas em um templo da deusa Atena3. Além disso, esse instrumento carregava o epíteto de ser o instrumento de Ares, o aulós de Enyalios (Philostratos, De arte gymnastica VII.18-19.

Antologia grega. Epigramas votivos IV.151 e 195). “Enyalios”

significava “belicoso”, sendo esse o nome dado a Ares na Ilíada. O aulós de Enyalios era, propriamente, o instrumento guerreiro. Na Antigüidade, outros epítetos foram vinculados à salpínx, como “tirreniana” (atribuía-se sua invenção com freqüência aos etruscos), “paphlagoniana”, médica (persa), egípcia e até céltica, o que sugere que esses povos de várias regiões circunvizinhas do Mediterrâneo antigo usavam na guerra a salpínx conhecida dos gregos, ou algum instrumento muito semelhante.

A função dos instrumentos musicais no acompanhamento das atividades militares

Cabe-nos, porém, tentar entender a lógica cultural subjacente à utilização da música no contexto militar, bem como a diferença entre optar pelo aulós ou pela salpínx. Do contato direto

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O Polykphalos nómos seria invenção de Olimpos; o Pythikòs nómos, de Sakadas. Cf. Plutarco De Musica 1143b. Pollux IV.79. Pausânias II.22. Escólio a Orestes v. 1369. CORREA, 1987:61. 3 Antologia grega. Epigramas votivos (IV), 151 (templo de Atena Ilíaca), 159 (à Virgem Tritonida), 194 (à deusa Trito) e 195 (templo de Atena Troiana).

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com os povos orientais, através dos lídios, os gregos tinham conhecimento da presença de músicos acompanhando as tropas como forma de espetacularizar a guerra, procurando impressionar o adversário com uma imagem de grandeza, ordem e riqueza. Os gregos, porém, deram outro sentido à música no campo da guerra, apesar de estarem suscetíveis a influências orientais no campo das linguagens e instrumentos musicais. Bem, há um problema nesse ponto, pois devemos duvidar se podemos falar de uma concepção grega geral sobre a finalidade da música no âmbito militar, pois essa difere conforme o instrumento utilizado, a salpínx ou o aulós, e de acordo com tradições locais. Função do aulós As fontes escritas são muito claras em atribuir aos espartanos um sentido mais aprimorado do uso da música, explicando como ela contribui para o sucesso de suas tropas. Eles acreditavam “que a música os comandasse sempre na batalha” (Sextus Empiricus, Adversus Musicos 8). Luciano (De saltatio 10) afirmava que eles conseguiam ser quase imbatíveis militarmente, porque eram liderados pelo aulós e pelo ritmo. Tucídides (V.70), observador atento das realidades militares, comenta como o acompanhamento musical aulético influenciava sobre os resultados do exército espartano:

“(...) Depois disso, colocaram-se em marcha: os argivos e seus aliados avançavam com ardor e impetuosamente. Os lacedemônios, por sua vez, com lentidão, ao ritmo de numerosos aulētaí – cuja presença entre eles era exigida pela norma, não por razões religiosas, mas para que, marchando com medida, avancem em conjunto, sem romper sua ordem como ocorre quando os grandes exércitos se lançam ao combate”.

O argumento de Tucídides, sintetizado, é de que o diferencial dos espartanos no uso do aulós é que se garante com isso a unidade do conjunto das falanges hoplíticas. Diferentemente dos demais grandes exércitos, os quais não conseguem manter a ordem estabelecida nos treinamentos, no momento em que essa se faz mais necessária no combate. Meio milênio mais tarde, Aulus Gellius (I.11.1-4) retoma a mesma passagem de Tucídides, procurando analisá-la, fazendo uso provavelmente de autores hoje perdidos a que teve acesso; fornece-nos, assim, uma explicação ainda mais completa:

“O historiador grego de maior autoridade, Tucídides, relata que os lacedemônios, guerreiros por excelência, serviam-se nas batalhas não de sinais de kerai e de salpinges, mas das melodias do

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aulós, e isso não era o efeito de qualquer prescrição religiosa, nem o desejo de cumprir um rito, nem para excitar e inflamar os corações como fazem os kerai e as salpinges, mas, ao contrário, para torná-los mais moderados e mais mesurados, moderação proporcionada pelos ritmos do aulós. Eles acreditavam piamente que, no encontro com o inimigo e no começo do combate, nada convinha melhor, para alcançar obediência e coragem, que evitar de se soltarem sem medida, apaziguados por uma música assaz doce. Quando as unidades estavam prontas e a linha de batalha estabelecida, e se iniciava a marchar contra o inimigo, os aulētaí, dispostos entre as falanges, punham-se a tocar. Esse prelúdio calmo e augusto continha, de alguma forma, conforme a disciplina de ritmos militares, a violência e o entusiasmo dos soldados, impedindo-os de se dispersar na desordem no momento do ataque.”

A função da música do aulós, num primeiro momento, é rítmica, pois o ritmo lhes assegura moderação e medida, garantia de que se mantenha a ordem racional da falange hoplítica, composta por soldados que são unidades intermutáveis, parte de um todo lógico. O ritmo tem, assim, um papel ordenador. A função da música do aulós não acaba, porém, em sua ritmicidade, sendo fundamental sua dimensão melódica. A linha melódica, portadora da doçura musical tão decantada entre os poetas antigos (Pausânias, IX, 23), contribui para a disciplina militar, pois evita o excessivo entusiasmo individualista dos guerreiros, ao mesmo tempo em que amaina o ímpeto de violência desses, aspecto inerente ao espírito bélico. Desse modo, o significado da música aulética está em que, diferentemente da guerra aristocrática homérica, a “revolução hoplítica” trouxe uma racionalidade e um sentido de coletividade à guerra, de forma que o sucesso do exército não está no furor belicoso (lýssa) e entusiasmo individuais, que levam à violência desmedida e ao desmantelamento do sistema estratégico das falanges hoplíticas, mas no sentido de medida4, que faz com que cada hoplita individualmente, disciplinado e apaziguado pela ordem do ritmo e pela doçura da melodia do aulós, mantenha-se engajado na ordem pré-estabelecida, enquanto os povos que não disciplinam seus exércitos pela música vêem suas tropas desordenarem-se diante da iminência do combate. Função da salpínx Quando a salpínx é o instrumento eleito para executar o acompanhamento musical militar, como é o caso de Atenas, a finalidade não é a mesma, pois os resultados sonoros e musicais desse instrumento são bastante distintos.

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Sobre a relação da revolução hoplítica com o sentido de coletividade, que se impõe sobre o individualismo aristocrático militar homérico: VERNANT, 1989:43-7.

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Em princípio, a salpínx tem como objetivo produzir um som que possa ser ouvido à distância. A qualidade requisitada dos trompetistas era a potência sonora, como nos recorda Pollux na história sobre um certo Epítades, capaz de fazer ouvir o som de sua salpínx a uma distância de 50 estádios, ou na história de Heródoros de Mégara, que soprava tão forte que não se podia suportar ficar perto dele (Póllux, Onomástikon IV.88-90). Deve-se compreender que, na maior parte das vezes, tocavam em campos abertos, sob o barulho intenso de um campo de batalha. Desse modo, mesmo que fosse capaz de emitir “os doces acentos da paz”, sobre os palcos e nos certames atléticos, seu som lembrava “sangrenta(s) fanfarra(s) de guerra” (Antologia grega. Epigramas votivos IV.159); talvez por isso seus sons, que se opunham assim à melodia e ritmo do aulós – evocativos da civilização – fossem qualificados como “bárbaros” (Antologia grega. Epigramas votivos IV.46). A finalidade militar da salpínx, musicalmente, era produzir “cantos retumbantes” (Antologia grega. Epigramas votivos IV.159 e 195). Precisava ser altissonante, para que pudesse cumprir sua missão nos amplos e ruidosos campos de batalha. Ela possuía uma função psicológica e uma função comunicativa. Psicologicamente, a salpínx servia para “incitar e inflamar os corações” (Aulus Gellius, I.11.1.), “provocando os jovens às armas” (Philostratos, VII.18-19). Era o estímulo encorajador para enfrentar o inimigo, e é nessa medida que ela é chamada aulós de Ares (Enyalios). Nisso difere do emprego que os espartanos davam ao aulós no exército, no qual tinha a função de tornar os hoplitas “mais moderados e mesurados” (Aulus Gellius, I.11.1.). Os autores antigos frisam com clareza que, quando se usa o aulós, a prioridade é o ritmo, pelo qual se disciplina a marcha dos soldados (Políbio, IV.20.7). Contrapõem o lutar ao som da salpínx (metá salpiggōn) ao lutar com a música do aulós (aulōn mélē) (Pausânias, III.17.5); opõem os sinais da salpínx, às melodias do aulós (Aulus Gellius, I.11.1.). Se a música do aulós contribui para que a marcha avance com passos bem ritmados (Luciano, De saltatio 10), para que serve musicalmente a salpínx, se a ela não são associadas nem as qualidades do ritmo nem da melodia? A salpínx cumpre uma função comunicativa, substituindo a mensagem verbal, que é menos eficiente, pois nem sempre pode ser escutada nos campos de batalha e muitas vezes pode ser compreendida pelo inimigo (Aristides Quintiliano, De Musica, p. 62.11-20 e 72.12 Winnington-Ingram; BÉLIS, 1984:99-100). É através dos sinais que essa comunicação se efetiva (Ésquilo, Persas 392-5. Tucídides, VI.69.2. Xenofonte, Helênicas V.1.9. Antologia grega.

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Epigramas votivos IV.151 e 195), e esses sinais podem ser estabelecidos por convenções conhecidas somente pelos soldados de um determinado exército. Os sinais podiam ser empregados igualmente para os comandos da cavalaria (Xenofonte, Arte da Cavalaria III.11-12). O kéras5 também poderia ser usado para emissão de sinais militares, apesar das referências a ele serem mais raras (Figura 8; Tucídides, V.10.3. Aulus Gellius, I.11.1).

Figura 8 (Ânfora ática)

Considerações finais: A música e seu potencial pacificador – uma racionalidade hoplítica?

Pode parecer contraditório, mas a intensa presença da música no universo militar implica numa vontade de a guerra, culturalmente, trazer para dentro de si mesma o elemento pacificador, o que deve estar ancorado na “lógica interna” da própria guerra grega antiga. É pertinente pensarmos que a música seja um elemento constitutivo da racionalidade presente nos padrões de guerra estabelecidos a partir da chamada revolução hoplítica, ocorrida em meados do século VII a.C. Perguntemo-nos, assim, se a música não seria um ingrediente do próprio lógos hoplítico. As antípodas guerra e paz, mesmo que antepostas, são compreendidas pelos gregos como partes integrantes de um todo, o seu mundo. Suas metáforas míticas, as divinizações de Éris 5

Kéras era a denominação geral para o chifre, corno, bem como para os objetos fabricados a partir dele ou com a forma dele. Identificava tanto o recipiente para consumo de vinho, como o instrumento musical: no primeiro caso, havia uma única abertura, na extremidade mais larga, de onde se bebia o vinho colocado no seu interior; no segundo caso, havia um pequeno orifício pelo qual o músico soprava, saindo o som pela extremidade mais larga. O kéras corresponde ao nosso berrante de boiadeiro.

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(Rivalidade) e Philía (Amizade), carregam consigo as representações culturais dos princípios opostos: de um lado, da beligerância, e, de outro, da concórdia, da união, da pacificação dos espíritos. O pensamento grego considerava a música como um mecanismo que possibilitava instaurar a philía e superar a éris (VERNANT, 1989, 31). Heráclito de Êfeso, o mesmo que afirmava ser a guerra a origem de todas as coisas, via na música da lýra uma metáfora da concordância na discórdia, na desavença, correlacionando a guerra e a música, pois ambas participariam da discórdia, que, para este pensador pré-socrático, era o que movia o mundo:

“Não compreendes como concorda o que se difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lýra”. (Heráclito, fr. 51)

Assim, o desenvolvimento paralelo entre a acústica e a astronomia entre os pitagóricos estabeleceu que, pela música, pode ser apreendido um princípio divino de ordem (Pitágoras, fr. 1 e 2. Filolau, fr. 6. Arquitas de Tarento, fr. 1 e 2.). A missão da música, na sociedade grega, estava contida na sua relação com a harmonia celeste, de modo que, de fato, criam que trouxesse a calma necessária à vida na pólis. Certa vez, conta-nos Philodemos, o poeta e citaredo Stesichoros reaproximou as partes litigantes numa guerra civil que se havia instalado: “reconciliando-os, por meio de sua música, restaurou a paz”6. Os gregos consideram esse uso da música como uma prática geral, conhecida inclusive entre os bárbaros. Consoante Teomphilus, a “música amadurece o caráter, domestica o temperamento quente e aqueles cujas opiniões se rivalizam.” (Teomphilus, apud Ateneu, XIV, 624) Ateneu cita o exemplo do pitagórico Cleinias, “cuja conduta e caráter eram exemplares”, o qual “sempre pegaria sua lýra, e a tocaria, quando acontecesse de ficar exasperado ao ponto de enfurecer-se. E quando alguém o perguntasse por que motivo o fazia, diria, ‘Estou me acalmando.” (Chamaleon, apud Ateneu, XIV, 624) O poder da música era o de acalmar os ânimos arrefecidos. Os próprios deuses olímpicos faziam uso dela com esse fim: “Após a querela sobre Aquiles, eles (os deuses olímpicos) 6

Philodemos Música 1.30. 31 sq. Em outra passagem, porém, comenta que a história é um pouco imprecisa (Música 4.20.7sq). O conflito civil ocorreu provavelmente entre os locrianos.

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passavam seu tempo continuamente ouvindo ‘a bela lýra tocada por Apolo, e as Musas que cantavam, respondendo com belas vozes’.” (Homero, Ilíada, apud Ateneu, XIV, 628) Uma série de noções correlatas, acerca da música, se manifestava no pensamento antigo: intelectualiza heróis violentos e bravios, tornando-os mais comedidos, temperantes; arrefece o moral e apazigua as quizilas. Ora, o fundo cultural sobre o qual se assentavam essas proposições era o conceito, constitutivo da visão de mundo grega, de que a música civiliza. Domestica a natureza e acultura a selvageria. Foi pensando assim que pintores de vasos áticos, do estilo de figuras vermelhas, representaram a imagem de Orfeu, com sua terna lýra e por meio de sua melíflua voz, encantando soldados trácios, contendo a violência de sua barbárie: os guerreiros são retratados embevecidos, interrompendo suas atividades guerreiras, para ouvir a música de Orfeu. Na mesma direção, a tradição narra o papel da arte do aulós de Taletas de Creta e, sucessivamente, de Tirteu, na segunda katástasis de Esparta, na qual a música desempenhou a função apaziguadora, de harmonizadora dos contrários7. Os poderes arquitetônicos das lýrai de Ânfion, Alcatoo e Apolo, responsáveis respectivamente por erguer magicamente os muros de Tebas, Mégara e Lyrnessos (RESTANI, 1995, p. 7-35), encontram seu contraponto humano na construção de Messene por Epaminondas, em 396 a.C., general tebano reconhecido pela sua dedicação à música: colocou os operários a trabalharam acompanhados pelos auloí beócios e argivos, numa época em que havia uma profunda rivalidade entre as melodias de Sacadas e aquelas de Pronómos (Pausânias, 4.27.7). É interessante lembrar que Filipe da Macedônia, quando de sua invasão a Tebas, ordena que esta seja destruída ao som da música dos aulētaí, remetendo à tradição de que seus muros haviam sido erguidos sob os acordes da lýra de Ânfion. Como vemos, esta presença da música na guerra carrega para dentro do conflito militar o princípio de pacificação, trazendo consigo a idéia de que a guerra não deve ser feita com base no furor, na hýbris aristocrática, mas levando em consideração um princípio ordenador, o que nos 7

GOSTOLI, Antonietta. “Terpandro e la funzione etico-politica della musica nella cultura spartana del VII sec. a.C.”, in: GENTILI & PRETAGOSTINI. La musica in Grecia. Roma-Bari: Laterza, 1988. Na verdade, as fontes deixam uma margem de incerteza quanto ao verdadeiro nome, Taletas ou Tales, e quanto a seu instrumento, a lýra ou o aulós; quanto à sua proveniência, porém, todos concordam: Gortyna, em Creta. Segundo o Plutarco do De Música (10.1134d), seu nome seria Taletas e seu instrumento o aulós; segundo o Plutardo da Vida de Licurgo (4), seu nome seria Tales e seu instrumento a lýra; em Pausânias (1.14.4), seu nome é Tales e seu instrumento não é lembrado. Conforme Plutarco, Taletas desenvolveu seus ritmos a partir de música para aulós de Olimpos. Posteriormente, porém, músicos que identificamos indubitavelmente com aulētaí, como Polymnestos de Cólofon e Sacadas de Argos, desempenharam também papel semelhante, contribuindo com sua música ao restabelecimento da ordem em Esparta. (Plutarco De Música 9.113b-c).

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remete à passagem supracitada de Aulus Gellius (I.11.1-4), de que a execução musical do aulētés controlava a violência e o entusiasmo dos soldados, impedindo-os de se dispersar, na medida em que os torna mais moderados e mesurados, por meio da música assaz doce. Com base em nossa argumentação, entendemos que, para se escrever uma página completa sobre a “revolução hoplítica”, é indispensável destacar o papel da música nas falanges militares, o qual integra o lógos hoplítico, pois cumpre um papel dentro da lógica interna da reorganização das práticas militares gregas. O fato de que a mais antiga representação da formação hoplítica, o Vaso Chigi, apresenta o acompanhamento do aulētés, corrobora de forma contundente esta interpretação. (Figura 3) É importante relacionar o uso dos instrumentos musicais no contexto militar e nas atividades atléticas, que compartilhavam de vários aspectos em comum, para entendermos o sentido e funcionalidade do acompanhamento musical. Ao acompanhar as atividades físicas (atléticas e guerreiras), a música age civilizadoramente no sentido de conter o ímpeto de violência (lýssa) inerente às atividades que lidam com a força e a energia físicas, as quais podem induzir facilmente à desmedida, à barbárie. Ademais, encoraja, por meio do ritmo e da melodia, para enfrentar os desafios, dando suporte psicológico para suportar o cansaço em movimentos repetitivos. Nessas atividades, o uso da música respeita um critério de necessidade, por intermédio de sua ritmicidade, para uma maior eficiência dos movimentos envolvidos (principalmente no caso do péntathlon) e para uma sincronia, regularidade e preservação do ordenamento das falanges hoplitas. Deste modo compreendemos por que o aulós era considerado o instrumento ideal para acompanhar as atividades físicas, por seu estímulo no enfrentamento dos esforços. No repertório grego, endossando esta percepção, havia uma tradição de peças musicais e coreográficas, executadas com o aulós, associadas a atividades manuais e laboriosas (vindima, monda, panificação e navegação), assim como ao atletismo e à guerra. Sextus Empiricus (Adversus Musicos 9), para expor seus argumentos céticos, de discordância ao valor atribuído tradicionalmente pelos gregos à música, sintetiza o sentido subjacente à sua finalidade militar: “A mousiké permite atingir a moderação para o espírito frenético, transformando alguém pacífico e simples, num homem corajoso. Também acalma aquele que está encolerizado.” (PEREIRA, 1996: 123, NOTA 9)

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Concluímos com Philodemos (55.77), de quem aprendemos que a coragem (andreía) é uma virtude que resulta da relação do espírito com a prática musical.

Corpus Documental

Documentação literária Aeliano. Historia Animalia XVI.23. Antologia grega. Epigramas votivos (IV), 46, 120, 151, 159, 194 e 195. Aristides Quintiliano. De Musica p. 62.11-20 e 72.12 Winnington-Ingram. Arquíloco. fr. 88 (Lasserre & Bonnard), ap. Ateneu V.180d-e; fr. 110, vs. 10-15 (Lasserre & Bonnard), ap. Inscr. Sosthenes IV 54-5. Ateneu. Deipnosophistai. XII.517a, 520d-f; XIV.630. Aulus Gellius. Noites Áticas I.11.1-10. Baquílides. Peãs III.75. Dion Chrisóstomos. Sobre a realeza II.57-8. Escólio a Orestes v. 1369. Escólio a Tucídides. I.50. Ésquilo. Suplicantes 61; Persas 388-91, 392-5; 393; 1038-77; Agamenon 1140. Estrabão. Geografia X.4.20. Heródoto. História I.1. Homero. Ilíada. III.8, IX.10-20. Julius Africanus. Cest. p. 293. Luciano. De saltatio 10. Pausânias. Descrição da Grécia. II.22; III.17.5; VI.13.9. Philodemos Sobre a música 55.77; 87.20. Philostratos. De arte gymanstica VII.18-19. Píndaro. Píticas XII.3 e 17. Platão. Leis 629b. Plutarco. Instituta laconica c.16; De Musica XIV.255-59. Políbio. História IV.20.6-7. Póllux. Onomástikon IV.79, 88-90.

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Safo fr. 44 L-P. Sextus Empiricus. Adversus Musicos 8-9. Suda Tirteu 1. Tucídides Guerra do Peloponeso V.10.3; V.70; VI.69.2. Xenofonte Arte da Cavalaria III.11-12; Helênicas V.1.9; Anábase IV.4.22. Documentação iconográfica Figura 1. Cratera de Aristonothos. Ático. Figuras Negras. Roma, Museu do Capitólio, n. 172. Em torno de 650. Descrição: Combate naval, no qual se vê um trompetista, em trajes militares, soprando uma salpínx de grande comprimento, entre outros guerreiros e remadores. Bibliografia: CVA Roma Capitólio, 2, pr. 9. PAQUETTE, 1984: p. 78-9, T8.

Figura 2. Cratera. Micênico. Atenas, Museu Arqueológico Nacional, n. 1426. Proveniência: Acrópode de Micenas, “Casa do Guerreiro da Cratera” 1200-1100 a.C. Descrição: Guerreiros com armamentos completos (elmo, couraça, escudo, lança, perneiras), partindo para a batalha, com saco de suprimentos pendurado na lança. Ausente qualquer elemento musical.

Figura 3. Olpe. Proto-coríntio. Roma, Villa Giulia, 22.679. Em torno de 640. Descrição: Um aulētés entre hoplitas combatentes. Bibliografia: CVA Villa Giulia 1 (Itália 1) pr. 1.2. Kunst der Schale, Kultur des Trinkens nº 14.4, p. 113.

Figura 4. Hydría. Ático. Figuras vermelhas. Grupo de Polygnotos: pintor indeterminado. (ARV2 1060/144)

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Florença, Museo Archeologico, 4014. 440-30. Descrição: Uma aulētrís, soprando o aulós, acompanha a pyrrhikhé, realizada por uma menina em armas, sobre um discreto pódio, observada pela sua concorrente, enquanto uma mulher toca a phorminx, beliscando as cordas com os dedos (psallein), e outra parece fazer o mesmo com uma lýra. Um Eros, voando, traz outra phorminx. Um efebo observa a cena. A dança é realizada no contexto de um simbólico agōn doméstico. Bibliografia: CVA Florença 2 (Itália 13) III I c, pr. 57.4; 59.1-6. POURSAT, Jean-Claude. “Les representations de danse armée dans la céramique attique”, in: BCH 92, 1968, nº 47. CERQUEIRA, 2001: cat. 338.

Figura 5. Prato de Prata. Império romano. Augst, Römermuseum, 62. Início do império. Descrição: Aquiles, na Ilha de Skyros, disfaçado em trajes femininos, sendo descoberto por Diomedes e Ulisses, acompanhados do trompetista Agyrtes. Ao ouvir o som da salpínx, empunha seu escudo, para juntar-se aos guerreiros; sua amante, Deideméia tenta detê-lo. Bibliografia: LIMC, Achilleus, 172.. Figura 6. Epinetron (fragmentos). Ático. Figuras negras. Pintor de Safo. (ABL p. 104, 106, 228, pr. 34.1 a-b-c) Eleusis, Museu Arqueológico, 907. Final do séc. VI Descrição: Amazonas durante preparativos para o combate, ritmadas pelo som da salpínx, tocada por uma delas. Sobre os fragmentos, encontram-se inscrições, as quais foram, por muito tempo, descritas como “desprovidas de significação”. BÉLIS, no entanto, identificou uma inscrição musical. Bibliografia:

BOTHMER, 1957:92, 103. BÉLIS, 1984:99-109, figs. 1-3; 1996: faixa 1.

CERQUEIRA, 2001: cat. 106, pr. XXXVII.

Figura 7. Prato. Ático. Figuras negras. Psiax. (ABV 294/19)

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Londres, Museu Britânico, B 590. 520-15. Descrição: Guerreiro soprando salpínx, usando phorbeía. Bibliografia: BÉLIS, 1986:215-7, fig. 15. CERQUEIRA, 2001: cat. 105, pr. XXXVII.

Figura 8. Ânfora. Ático. Figuras negras. Pintor de Amasis. (ABV 152.25) Paris, Bibliothèque Nationale, 222. Em torno de 530. Descrião: Guerreiro soprando kéras. Bibliografia: PAQUETTE, 1984: p. 73, K2. CERQUEIRA, 2001: cat. 104, pr. XXXVII.

Lista de abreviaturas ABL = HASPELS, C. H. E. Attic black-figured lekythoi, 1936. ABV = BEAZLEY, J. D. Attic Black-figure Vase-Painters. Oxford: Clarendon Press, 1956. Agora XXX = The Athenian Agora. Results of Excavations Conducted by the American School of Classical Studies at Athens. (Mary B. Moore). Vol. XXX. Attic Red-figured and White-ground Pottery. Princeton/New Jersey: The American School of Classical Studies at Athens, 1997. ARV2 = BEAZLEY, J. D. Attic Red-figured Vase-Painters. (2ª ed.) Vol 1-2. Oxford: Clarendon Press, 1963. BCH = Bulletin de Correspondance Héllénique. École Française d’Athènes. CVA = Corpus Vasorum Antiquorum. Union Académique Internationale. JdI = Jahrbuch des deutschen Instituts. Deutsches Archäologische Institut zu Athen. Kunst der Schale, Kultur des Trinkens = VIERNEISEL, Klaus & KAESER, Bert. Kunst der Schale, Kultur des Trinkens. Munique: Antikensammlung, 1990. LIMC = Lexicon Iconographicum Mithologiae Classicae. Union Académique Internationale, Bruxelas; Conseil Internationale de la Philosophie et des Sciences Humaines, Paris; Association Internationale d’Études du Sud-est Européen, Bucarest; UNESCO, Paris. Genebra: Artemis Verlag, 8 volumes, 1981-1995.

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Referências bibliográficas

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ATENAS ENTRE A GUERRA E A PAZ NA REGIÃO DE ANFÍPOLIS Alair Figueiredo Duarte NEA/UERJ

Maria Regina Candido NEA/UERJ

Sobre a arte da guerra A teoria militar tem despertado o interesse de cientistas sociais em diferentes áreas de atuação, o fato ratifica que o tema sobre guerra ainda permanece atual. Os pesquisadores têm por fim estabelecer sínteses e análises dos mais eficazes modelos de combate conhecido e herdado da matriz ocidental ao qual identificamos serem os gregos e os romanos. Tucídides e Xenofontes nos apontam que a teoria da guerra define a sua eficácia a partir das inovações de combate efetuada pela falange de hoplitas. Políbio, na coleção Vidas Paralelas, complementa que o modelo ideal de combate foi representado pela eficácia e organização da legião romana. Maquiavel efetua a síntese de toda a experiência militar da antiguidade ao trazer

a

concepção clássica das lições de combates e estratégias em seus escritos publicados na obra The Art of war, 1521. Para ele, o mundo tem seguido os mesmos caminhos e o homem permanece com o mesmo ímpeto guerreiro que o leva ao combate movido por diversos interesses. A idéia tem seu complemento na concepção de Norberto Bobbio ao ratificar a violência do homem ao construir aspectos de uma antropologia negativa, segundo ao qual o homem é um animal violento, é passional e define-se como um animal enganador. Nessa perspectiva torna-se impossível eliminar do mundo a violência, pois desde sempre explodem entre os homens conflitos que não se solucionam sem que se recorra ao uso da força ao qual tende a justificar-se ou obter consenso para o próprio comportamento apresentando razões diferentes das reais motivações (N.BOBBIO, 2000:55). Quando em tais contextos se fala de força, entende-se o uso de meios capazes de infligir sofrimento físico. No combate bélico só há violência física, fato que diferencia a guerra de outras formas de exercício de poder do homem sobre o homem (N.BOBBIO,2000:514).

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Na atualidade, nos deparamos com as milícias, entendida como força armada de cidadãos chamados para lutar em defesa dos interesses de sua região. Essa ação tem por base o principio de defesa do solo dos ancestrais, considerada por Machiavel como a única forma de engajamento militar eficaz de organização social e política cujo modelo vem dos gregos sendo aperfeiçoado pelos romanos. O lado negativo herdado da antiguidade, diferente dos tempos atuais, está na presença do mercenário junto à organização militar, considerado como um desvio ao modelo ideal de cidadão-soldado, fato que fomentou a desestruturação dos gregos e dos romanos (A.GAT,2001:4). Victor Davis Hanson no livro The Western Way of War afirma que a tática de guerra da falange hoplítica, emergente no sec. VIII, foi adotado como modelo pelos ocidentais, sendo empregado em alguns países na atualidade (V.D.HANSON,1989:passim) devido ao seu acentuado grau de excelência expressas pelas configurações eficazes de táticas e estratégicas no ataque e na defesa. O confronto da guerra, entendida como evento trágico, tem sido tema de interesse, ao longo do tempo, de cientistas políticos, filósofos e historiadores ao qual concluem que a guerra configura-se como um fenômeno que faz parte da história da humanidade. Entretanto, o tema fomenta várias inquietações na tentativa de dar respostas às perguntas, tais como as motivações que levam determinados grupos políticos a decidirem pelo combate armado e sobre a legitimidade do estado de guerra. Os questionamentos demarcados norteiam a nossa proposta de analise que parte do envolvimento dos atenienses na região de Anfipolis. A analise dos interesses em torno da região torna-se relevante para nós, pesquisadores, pelo fato da historiografia priorizar um acentuado número de publicações referentes aos embates bélicos protagonizados pelos gregos, após a publicação de Yvon Garlan sob o titulo Guerre et economie em Grece ancienne, 1989. Entretanto, as publicações deixam transparecer uma escassez de abordagem sobre os interesses expansionista dos atenienses em direção à região de Anfipolis ao norte da Grécia. Em relação à documentação recorremos a economia de informações de Tucidides na obra Guerra do Peloponeso ao citar que vivi a guerra inteira, tendo uma idade que me permitia formar meu próprio juízo, e segui-a atentamente, de modo a obter informações precisas. Atingiu-me também uma condenação ao exílio que me manteve longe de minha terra por vinte anos após o meu período de comando em Anfipolis. (TUCIDIDES.V.26:5). As informações do historiador têm o seu complemento em Xenofontes que nos apresenta os últimos anos do estado de guerra entre os lacedemônios e atenienses narrados na obra Helênica.

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A guerra em Anfipolis

Segundo Norberto Bobbio, podemos dizer que existe um estado de guerra quando dois ou mais grupos políticos encontram-se entre si em uma relação de conflito cuja solução esta confiada ao uso da força (N.BOBBIO, 2000:513). Tem-se uma situação de conflito toda vez que as necessidades e os interesses de grupos de cidadãos tornam-se incompatíveis com aqueles de um ou de outro grupo ao qual não pode ser satisfeitos senão com prejuízo de um ou de outro. O caso mais típico está na concorrência ao qual um ou demais grupos detém o interesse pela posse de um bem escasso que se encontre no território do outro, tal fenômeno foi identificado como territorialismo (N.BOBBIO, 2000: idem). No caso, o bem escasso aos atenienses estava na ausência de madeira para a construção naval, necessidade de áreas de assentamento e cultivo e recursos de tributação proveniente de áreas subordinadas. A região de Anfipolis situada na região da Trácia tornou-se área de interesse territorial dos atenienses de acentuado valor estratégico e econômico devido as suas riquezas naturais: terras férteis e minérios. A área permitia o controle da navegação no Porto de Eion e através do rio Srymon cujo curso permitia o melhor caminho de acesso ao interior da região da Trácia e Macedônia. Xenofontes nos informa que Atenas importava madeira de áreas próximas a Macedônia (VI,1:11). O valor do comércio de madeira neste período foi citado também por Diodoro da Sicilia ao mencionar que o objetivo visava à construção de uma frota de duzentas trirremes, cuja questão já havia sido votada na assembléia de 377/76 (XV:29). Tal fato nos permite supor que os atenienses gastavam uma alta soma de recursos pecuniários para a aquisição de bens fundamentais visando manutenção da guerra com os lacedemônios. Entretanto, nos chama a atenção o fato do historiador Tucídides, sem tecer maiores comentários a respeito das condições internas da região, apenas menciona a sua fundação em 437 aC e a sua perda em 424/23, motivo pelo qual foi exilado. Por outro lado, não podemos esquecer que uma das ações eficazes de Péricles foi o estabelecimento de colônias fora do Peloponeso visando estender a área de influencia dos atenienses. O que nos chama a atenção é a omissão de Plutarco que ao narrar a vida de Péricles (11:5), não menciona a busca de novas terras em Anfipolis. O assentamento grego era realizado de duas maneiras, a saber: cleuruquias, expedição com famílias sob a liderança de um oikites e o emporiom que seria uma guarnição militar do tipo entreposto comercial. O assentamento, na prática, consistia em lotear as terras conquistadas e submetê-las aos corpos de cidadãos que embora distantes de Atenas, permaneciam com todas as prerrogativas e direitos legais.

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Durante a administração de Péricles, as ilhas de Lemnos, Scyros e o norte da Eubeias foram escolhidas para assentar famílias de atenienses do tipo cleuruquias; porém, as mais importante foram Turim na Península Itálica e Anfipolis no norte da Grécia, essa sob a responsabilidade do oikites Hadnon, filho de Nicias que como chefe da expedição expulsou os edonios da região (TUCIDIDES,IV:102:3). Tucidides nos relata que o milésio Aristágoras havia feito uma primeira tentativa que foi rechaçada pelos nativos edonios. Os atenienses fizeram outra tentativa trinta e dois anos depois, mandando dez mil colonos escolhidos entre seus cidadãos e outros interessados, porém, o grupo foi morto pelos trácios (TUCIDIDES, IV,102:6). A população local de Anfipolis era heterogênea, composta por diferentes etnias formando um núcleo multicultural (TUCIDIDES, IV:106:1) e a região era denominada de Ennea Hodoi- Nove Caminhos sendo renomeada como Anfipolis pelo oikites Hagnon pelo fato do rio Stymon correr ao redor da região por ambos os lados, ele isolou a cidade por meio de uma longa muralha na abertura do semicírculo descrito pelo rio que permitia ver a cidade tanto do lado do mar quanto do continente. Mais adiante, próximo ao Mar Egeu, situava-se o porto de Eion, conhecido como emporion de embarque de ouro e prata proveniente do Monte Pangeu sob o controle efetivo dos edônios e trácios.

Anfipolis – Ennea Hoddoi, Trácia – por Esprit-M.Cousinery, 1831

Os episódios ao qual envolve a região de Anfipolis tem nos surpreendido, diante da escassez de informação proveniente da historiografia que se limita a citar a passagem dos atenienses pela região, a restrição de análise se deve, talvez,

pela própria narrativa de

Tucídides que se detém na narrativa das ações de Brásidas. O pesquisador George Grote ratifica a questão ao afirmar que no episodio de Anfipolis está em meio a uma digressão a

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partir da narrativa de Tucidides. Durante o intervalo entre a primeira deserção dos aliados em 477 aC. até a revolta de Naxos em 466 aC, Tucidides narra apenas três únicos incidentes que nos inquieta diante da longa temporalidade de dez a onze anos com total restrição de informação dos fatos (G.GROTE,2002:356). O estabelecimento de cleurúquias na região, principalmente em Anfipolis foi um fato marcante junto à administração de Péricles e a narrativa de Tucídides nos deixa totalmente ignorante dos procedimentos efetuados pelos atenienses e o uso da força física junto à região. A região era de predomino persa, seguida dos calcídios e trácios, entre outros, fato que nos permite afirmar que o embate pelo domínio e o territorialismo deve ter sido objeto de intenso conflito bélico contra os interesses da armada ateniense que buscava ratificar a sua hegemonia na região. A economia de informação de Tucidides nos remete a testemunhos alternativos, a saber: Heródoto que relata a incursão de Xerxes sobre a região do Monte Pangeu, em 480 aC, área de elevada montanha onde há minas de ouro e prata exploradas pelos grupos de pieros, odomantos e satras (VII:112). Heródoto menciona também que a armada persa marchou pelo rio Strymon, no Porto de Eion, e pela região denominada de Ennea Hodoi, local ao qual efetuou sacrifícios de sangue aos deuses através de ritual em que enterrar com vida, nove rapazes e nove virgens filhos dos habitantes do lugar (HERODOTO, VII:114). As escavações arqueológicas efetuadas na região de Anfipolis pela Dutch Archaeological and Historical Society trouxeram ao conhecimento dos pesquisadores as fundações da muralha, sistema defensivo da polis e a ponte sobre o rio Strymon descobertas realizadas pelos arqueólogos Lazaridis e por Lehmannn-Haupt (B.H.ISAAC,1986:55). A questão nos remete a relação da História com a Arqueologia na qual formam dois tipos específicos de documentação, porém, tornam-se complementares para apreender informações sobre a região. As escavações arqueológicas próximas ao muro de Anfipolis trouxeram vestígios de santuários com artefatos em terracota do período arcaico e um conjunto de vasilhas de cerâmica datados de 450 aC. Tais evidências apontam para a existência de algum tipo de assentamento grego na região, em período anterior a fundação da cleuruquia ateniense de 437 aC. Benjamin H. Isaac junto com Lazaridis ratificam que a presença dos gregos na região ocorreu a partir do Vale do Strymon local aonde se percebe tentativa do estabelecimento de cleuruquia por volta de 525 – 490 aC, caracterizando ser um assentamento multicultural de gregos, persas e trácios, fato ausentes na documentação textual (B.H.ISAAC,1986:6).

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moeda de Anfipolis

Os vestígios arqueológicos de 513 aC, leva o autor a estabelecer uma conexão com a narrativa de Heródoto, no livro V, sobre a demarcação do território efetuado por Histiaios de Mileto as margem do rio Strymon, explicitado através do dialogo do general Megabazos com Dario, ao qual adverte ao rei que um heleno hábil e inteligente querendo fundar uma cidade na Trácia, em um lugar onde é abundante a madeira para a construção de naus e para fazer muito remos, onde há minas de prata, onde habitam numerosos helenos e numerosos bárbaros que conseguindo um chefe, segui-lo-ão tanto de dia quanto de noite configurava-se em ação ousada e perigosa para o domínio persa na região. O general prossegue aconselhando ao rei Dario a impedir esse homem, Histiaios de Mileto, de continuar sua obra, mandando chamá-lo e mantendo-o sob as vista do rei de forma que ele nunca mais volte para junto dos helenos (HERODOTO,V:23). Como podemos observar a arqueologia tem revelado para os pesquisadores evidencias de ação dos gregos em expansão na área de interesse do Vale de Strymon e Ennea Hodoi/Anfipolis em períodos remotos cujas referências encontram-se ausente

junto a

documentação textual. As motivações pela expansão podem ter sido diversas como adversidades políticas, possibilidade de sucesso com a apoikia em processo de expansão, por razões de dificuldades e pobreza, ações que fomentam a necessidade de buscar terras férteis visando a agricultura de subsistência (B.H. ISAAC.1986:282) e o interesse expansionista dos lideres atenienses, ou seja, demarcação de áreas de influencia do tipo territorialismo definido por Norberto Bobbio.

Atenas e a hegemonia sobre Anfipolis

Atenas na busca da hegemonia no Mar Egeu e no norte da Grécia mantém Anfipolis na sua área de influencia através dos atenienses estabelecidos na área em 437 aC., cujas terras férteis, a presença de madeira e as riquezas minerais tornam-se fundamentais a manutenção de

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cleuruquias na região como suporte a continuidade da guerra contra os lacedemônios. Entretanto havia uma insatisfação de parte da população local em relação aos atenienses, fato que leva a investida de facções no interior de Anfipolis a apoiar os lacedemônios contra a subordinação da região aos interesses dos atenienses. O fato justifica a aplicação do termo bélico identificado como a quinta coluna. O termo, embora moderno e criado em 1936, se aplica a qualquer temporalidade, pois se constitui quando um grupo ou facção interna empreende atos e ações que se configuram como traição pelo fato de cooperar com o inimigo externo. O fato nos remete as considerações de Norberto Bobbio ao afirmar que outro motivo que faz emergir o conflito armado esta na busca da hegemonia que consiste na defesa da posição, da primazia, da hierarquia que permite o uso efetivo da força visando adquiri ou manter certos privilégios. Norberto Bobbio ratifica ainda que entre os homens torna-se impossível de ser eliminada a violência: desde sempre explodem conflitos que não se solucionam sem que se recorra ao uso da força, sendo tolice contrapor a essa realidade o abstrato sonho de uma convivência espontânea e harmoniosa (N.BOBBIO,2000:55) e de eterna paz. A partir dessa consideração, podemos compreender o embate bélico e a ação da quinta coluna, pois, a população da região havia se revoltado contra os atenienses que buscava manter a supremacia sobre a região do norte da Grécia. Entretanto, seus aliados da região da Trácia, auxiliam o exercito de mil e setecentos hoplitas lacedemônios a atravessar o inóspito território desde o Peloponeso, pelo fato de estarem alarmados diante da eficácia do exercito ateniense (TUCIDIDES, IV:78). Não podemos esquecer que a construção do simbolismo e eficacia militar dos atenienses a dominar o imaginário social dos adversários se devem a vitória de Maratona e Salamina. A vitória significou a supremacia dos gregos sobre os bárbaros e permitiu aos atenienses construírem um sistema de oposição entre duas estratégias de ação bélica, a saber: uma terrestre e a outra naval. No imaginário social a armada terrestre se deve a coragem e força da falage dos hoplitas, na figura do camponês-soldado e a techné naval se deve a inserção do tethas, identificado como o povo dos remos como nos aponta Aristófanes na comédia Acarnenses (v.162-163). Durante a guerra do Peloponeso, os lacedemônios liderados pelo estrátego Brasidas tentaram se apossar da região de Anfipolis e contou com o apoio da população local heterogênea e multicultural (TUCIDIDES, IV:106). Segundo, Tucidides durante o inverno, Brasidas junto com seus aliados da Trácia, executou um ataque a Anfipolis (IV,102). Havia no local alguns colonos e outros cúmplices na trama instigados pelos calcídios que também

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tinham interesses na região do Eion, porém os principais conspiradores estavam no interior de Anfipolis, os argílios que atuavam como inimigos secretos da cidade ( TUCIDIDES, IV,103:6). Brasidas que havia negociado com parte dos habitantes bárbaros a entrega da cidade contou com o auxilio dos conspiradores que guiaram os lacedemônios até a ponte ao qual venceu a pequena guarnição de atenienses estacionados na travessia do rio Strymon (TUCIDIDES, IV,103). O sucesso da investida se deu devido à traição, mas também devido a estratégia da surpresa e o uso da tropa ligeira dos lacedemônios. Da investida contra Anfipolis, restou a Tucidides, detentor dos direitos de exploração das minas de ouro proveniente do Pangeu, movimentar tropas na região tomando medidas para a defesa do porto de Eion ao qual não resistiu, fato que resultou no exílio do autor da obra História da Guerra do Peloponeso. A defecção da região, demarcou o relato do autor em torno da figura de Brasidas, descrito como herói detentor do mérito e inteligência/arete kai xunesis e também pleno de experiência e de audácia/ empeirian kai tolman (J. B.TREVET,1997:150). Tucidides expõe que após a expiração do armistício de um ano o oligarca Cleon persuadiu os atenienses a concordarem com o seu embarque em direção a Trácia visando a retomada de Anfipolis com um exercito de mil e duzentos hoplitas, trezentos cavalarianos, além de um contingente de tropas aliadas e trinta naus instalando a sua base na região de Eion (TUCIDIDES, V:2:1).

Táticas e Estratégias de combate em Anfipolis

Nos questionamos sobre a possibilidade de analisar as táticas das investidas bélicas e estratégias aplicadas junto a região de Anfipolis. A Guerra entendida como embate violento e organizado entre dois grupos antagônicos, como nos afirma N.Bobbio, possibilita analisar os recurso e mecanismos táticos utilizados pelos gregos visando a conquista do território de Anfipolis. Dentre os recursos empregados pelos atenienses e lacedemônios na disputa pela região citaremos três principais, a saber: as fortificações; a guarnição aportada em Eion como força dissuasória, e, por último os meios utilizados pelos lacedemônios como a contribuição conspiratória de grupos contrários a ocupação ateniense identificado com o conceito da quinta coluna. Ao abordarmos as particularidades do uso das fortalezas, não podemos deixar de mencionar o quanto torna-se fundamental a posição geográfica. Analisando a descrição territorial de Tucidides quanto à localização de Anfipolis, percebemos a sua proximidade com

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as margens do rio Strymon na Trácia e aproximadamente a quatro quilometros e meio do porto de Êion – empórion que servia como base de comando das operações militares na região. A localização do porto isolava a cidade através de uma muralha em forma de semicirculo no qual se poderia observar tanto o mar quanto o continente (TUCIDIDES,IV,v. 102). Diante desse quadro geográfico, podemos afirmar que a natureza propiciou a região de Êion como um local topograficamente adequado para a construção eficaz de uma fortificação. Essa construção permite observar e dificultar a ação progressiva das tropas invasoras no terreno, privilegiando a visão e arremesso de projéteis das forças defensivas, as fortificações têm por características ter altas muralhas construídas de frente para o mar, em planaltos, margens de rios ou canais.

Plano Geográfico de Anfipolis

Aquelas construídas sobre a planície estão dotadas de um fosso ao seu redor de forma a impedir o acesso aos seus alicerces, além das torres que proporcionam abrigo e proteção as suas sentinelas.

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Podemos estabelecer que entre as prerrogativas necessárias para definir uma fortaleza eficaz exige três dispositivos, a saber: a muralha, a torre e o fosso. As fortalezas servem para as defesas estratégicas e, sobretudo, simbolizam fronteiras do poder político e militar além de proteção estratégica. Por todos estes atributos não podemos interpretá-las ou confundi-las com meros refúgios (KEEGAN, 1995:155-157). Isto porque, enquanto a fortaleza se defini como um local de defesa e segurança, projetado para possuir logística, resistir ao inimigo por um período considerável, abrigando e protegendo uma guarnição que esteja sob ataque, o refúgio, trata-se de um lugar que fornece segurança as tropas, por um período de prazo limitado (KEEGAN, 1995:156). Aplicadas as fortificações helênicas como a

fortaleza de Êion,

podemos apreender que elas se destinavam a proteger locais de comércio por uma longa duração. Embora Yvon Garlan declare que as cidades fortificadas sejam símbolos de poder econômico, político e social. Vemos que elas também existem como dispositivo de controle de a turbulência política e de reforço a soberania ameaçada, sendo, elas preferencialmente estabelecidas em locais de fronteiras. (VERNANT, 1995: 157). Entretanto, quando se construí uma fortaleza visando a sua eficácia, deve-se necessariamente, levar em conta a sua localização geográfica. Aquelas que se erguem a beira de portos, golfos, margem de um grande rio ou montanha, as dificuldades sob a perspectiva estratégico-militar desaparecem (CLAUSEWITZ, 2003: XI, 541). Algumas fortalezas adquirirem determinado valor estratégico que muitas vezes torna-se mais eficaz conquistá-las a desgastar tempo e esforços da tropa militar tentando destruir as forças do exercito inimigo no confronto campal direto (CLAUSEWITZ, 2003: X, 529). Esta proposição nos remete a compreender a razão pelas quais a tomada da fortaleza de Êion tornara-se tão valiosa aos lacedemônios. Quem controlasse aquela posição, teria condições de controlar toda a região de Anfipolis e conseqüentemente usufruir dos acessos aos seus recursos naturais. Todas estas prerrogativas levaram os atenienses a dotarem a fortaleza de Êion, de uma guarnição belico-naval. Com esta medida além de reforçar seu poder político, os atenienses, permitiriam a fortaleza exercer seus objetivos militares com eficácia. O porto de Eion servia as embarcações como as trirremes, os atenienses detinham a maior frota do mundo helênico e desde as guerra contra os povos persas ao início do século V, souberam usufruir do comércio e das vantagens que o domínio bélico-político do mar podia oferecer. John Keegan nos afirma que os barcos a remo equipados com aríetes na proa, como as trirremes, determinaram os termos da guerra naval até a chegada do canhão. Este tipo de

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embarcação possuía supremacia sobre os barcos a vela porque não dependiam exclusivamente do vento como fonte de energia propulsora. (KEEGAN:1995: 81) As embarcações de guerra como as trirremes possuia 35 a 37m de comprimento por 3,5m de largura com calado baixo. Tinha lotação aproximada para trezentos (300) homens, sendo: 170 remadores alocados em duas colunas de três bancos sobrepostos, vinte e sete de cada lado nas duas colunas mais baixas;

mais vinte e sete de cada lado nas colunas

intermediárias e trinta e um de cada lado das colunas superiores. Com o calado baixo, a trirreme proporcionava velocidade e agilidade de manobras, porém, não permitia a navegação em águas profundas e mar agitado. Por essa limitação, durante os meses de inverno, período em que as condições marítimas mostravam-se inadequadas para a navegação, a guerra no mar tinha atuação suspensa ou limitada. A tripulação das trirremes contava com um trierarca responsável pelo comando da nau, um piloto responsável pelas manobras da embarcação, um oficial de remadores, um oficial de proa e responsável pela manutenção da vigilância, uma equipe de artífices, dentre eles carpinteiros responsáveis pelos reparos na embarcação. O ritmo das remadas era proporcionado pelo tocador de aulos responsável pelo compasso cadenciado dos remadores e quatro arqueiros. Dentre as finalidades da trirreme constava o transporte de tropas, geralmente soldados hoplitas que deveriam tomar de assalto outras embarcações ou o territórios inimigos (JONES, 1997: 272 - 273). Na Guerra do Peloponeso, a polis dos atenienses sustentou a sua estrutura de guerra sobre o seu poder naval, uma das estratégias utilizadas por Péricles ao inicio da guerra. Apesar das críticas da população como nos mostra a comédia Paz de Aristófanes e Tucidides (II, 64 - 67), a decisão de alocar a grande maioria da população de cidadãos da zona rural no interior da grande muralha que circundava de Atenas até ao Pireu rendeu a Péricles uma inovação estratégica. Com isso pode proteger seus concidadãos camponeses e citadinos das investidas de tropas inimigas dos lacedemônios assim como abastecer a cidade com provisões, através de seus portos do Pireu e de Faleros. A perspectiva era obter vantagens sobre seu inimigo, pois poderiam suportar com menor prejuízo de perdas de vidas diante de um cerco prolongado. O embate naval apresenta custos acentuadamente mais altos quando comparado ao confronto terrestre. Isto se deve ao fato de envolver diversos fatores especializados tais como: material bélico, pessoal qualificado para produzir e tripular estas embarcações exercendo domínio sobre um ambiente que não se qualifica como sendo seu habitat natural.

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A historiografia nos aponta que havia dificuldades neste sentido, Paul Corbain, afirma que os gregos somente começaram a tomar uma ação bélica ofensiva no mar em meados do século VII a.C. Anteriormente, as embarcações utilizadas em meio às operações bélicas destinavam-se basicamente ao transporte de tropas militares. (CORBAIN, 1999: 117). O que deve observar na questão do embate naval, é o fato de que as operações ofensivas no mar exercida pelos gregos somente desenvolverem-se após o século VII a.C coincidindo com a chegada da nova modalidade de combate em solo, o modelo hoplita. Tal ocorrência nos remete as observações de J. Keegan, o qual declara que as guerras navais na antiguidade eram extensão complementar dos exércitos em terra, como nos mostra as batalhas de SalAmina em 480 e Egos-Potamos em 405 a.C. (KEEGAN, 2005: p. 81). Esses dados além de nos permitirem apreender que a guerra naval helênica, também nos permite afirmar que Anfipolis representava para os atenienses as seguintes prerrogativas: ser um centro de abastecimento de recursos naturais como madeira e metais preciosos; um ponto vital para atividade mercantil, base de apoio as tropas terrestres responsáveis por estabelecer os limites as investidas adversárias e avanço do predomínio hegemônico dos atenienses no norte da Grécia. Através do conceito de terrítorialismo, segundo as perspectivas de Norbertoo Bobbio, justifica-se a preocupação dos atenienses em manter domínio sobre aquela região. Assim como seus esforços para reavê-la após as investidas dos lacedemônios, imediatamente seguintes a perda daquela região para Brásidas. Inclusive, atribuímos a perda de Anfipolis em 424 aC. como um dos fatores que contribuíram para que o tratado Paz de Nícias fosse assinado em 421 a.C. Como podemos observar, a guerra tem como finalidade, forçar o inimigo a se submeter a determinados interesses. Na busca desse objetivo nem sempre o confronto direto é o melhor caminho, o uso de táticas e estratégia torna-se recursos fundamentais. A ação pode abarcar o método do confronto aberto direto e violento entre tropas inimigas, assim ações sigilosas e de surpresa capazes de minar as forças inimigas nas suas estruturas, ou seja, a estratégia fixa uma finalidade para o conjunto do ato de guerra que corresponde aos objetivos da guerra. (CLAUSEWITZ, 2003: 171).

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Brásidas e o recurso da quinta coluna

Diante da finalidade de conquistar Anfipolis e de obstáculos como: domínio ateniense sobre o terreno com fortificações e supremacia marítima, o estrátegos Brásidas evitou o confronto direto e buscou dispositivos alternativos ação e ataque como os recursos a quinta coluna e o fator surpresa. A aplicação do fator surpresa num teatro de operações bélicas pode conter variações, por esta razão deve-se levar em consideração as seguintes prerrogativas: natureza da operação; as circunstâncias em que ela ocorre; a qualidade de ação do exército e o poder de liderança do comando. Isto ocorre porque o segredo e a rapidez da ação das investidas tornam-se uma das principais características do fator surpresa. O sucesso da sua execução depende da autoridade da liderança e da disciplina da tropa. (CLAUSEWITZ: 2003, 209). Túcidides nos permite apreender que Brásidas tratava-se de um comandante militar por excelência, reunia dentre as suas qualidades: coragem, liderança, inspirava confiança junto aos seus comandados, além de agir com ousadia nos momentos necessários (TUCIDIDES, IV:102). Brásidas partiu de Arnes e Calcidice, chegou a Áulon e Brômicos ao entardecer, aproveitando-se do mau tempo, passou despercebido pelos habitantes de Anfipolis, exceto do grupo envolvido na conspiração para entregá-la sob traição. Os aliados de Brásidas, guiaram-no com o seu exército até a ponte sobre o rio que ficava a certa distância da cidade. Como destaca Tucidides, Brásidas obteve sucesso por duas razões fundamentais: em parte por causa do mau tempo e em parte porque atacou de surpresa (TUCIDIDES, IV: 103). Mostrando que as operações táticas de infiltração diante de um combate campal quando planejadas de maneira eficaz e executadas por indivíduos qualificados detém a prerrogativa do sucesso. A habilidade de Brásidas em dosar força e o poder persuasivo no uso da retórica também deve ser levado em consideração. Brásidas percebendo que seu contingente militar e provisões não eram suficientemente para manter a posição recentemente conquista por longo tempo, dirigiu-se a população anfipolitana como, o redentor dos oprimidos, e ofereceu aos citadinos de Anfipolis - mesmos os de origem ateniense - a garantia da posse de seus bens. Inclusive declarou que aqueles que não estivessem de acordo com a nova ordem, poderiam deixar a cidade num prazo de cinco dias sem que fossem espoliados. Quando Tucídides que estava aportado em Tasos, logo que soube da investida lacedemônia sobre a região, se apressou para defender aquela posição chegou com suas naus para reforçar Êio, Brásidas já havia tomado Anfipolis e no dia seguinte conseguiu ocupar Êion

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(TUCIDIDES,IV:105). Esses incidentes marcaram a atuação dos lacedemônios na conquista da posição em torno de Anfipolis e Êion, na qual se destacou a habilidade de Brásidas como estrategos. Ocasião em que com menor contingente militar conquistou uma posição inimiga bem fortificada de vital importância para a supremacia política e militar num estado de guerra. A pesquisadora Jeannine Boeldieu-Trevet nos adverte que Brasidas representa toda a transformação da arte da guerra, pois, o eminente líder militar Brasidas passa do bom combate cuja conduta se inscreve no comportamento definido pela tradição guerreira de um pentécontère para aquela do bom comando, o stratègein kalôs na qual exige um chefe militar com experiência/ empeiria, um conhecimento adquirido/episteme, energia/alkè, um saberfazer

sistematizado/techné,

um

homem

de

acentuada

coragem/andréia

(J.B.TREVET,1997:148) pelo fato de contar com uma armada inferior em números de contingente e de não ter experiência naval cujo domínio cabia aos atenienses. Esta transformação de mentalidade tem maior evidência quando observamos as afirmações de Geovanni Brizzi ao citar Plutarco (G. BRIZZI, 2003: 10) mostrando o contraponto com o que acontece no triunfo romano; vejamos Em Esparta, o general que atingiu o seu objetivo mediante a astúcia ou a persuasão sacrifica um boi, ao passo que aquele que venceu com o uso das armas sacrifica um galo. Os espartanos, de fato, embora sejam bastantes belicosos, acham melhor e mais conveniente vencer através da eloqüência e da sagacidade que por meio da força. (PLUTARCO. Vida de Marcello).

O jovem comandante representa o novo conhecimento adquirido e colocado em prática ao se lançar com cento e cinqüenta soldados contra as tropas de Cleon ao qual aplica táticas novas de combate acrescida da audácia/tolme ao atacar o inimigo de surpresa usando a tropa ligeira. Mais leve que o tradicional hoplita ateniense. A mistura de inteligência, audácia e surpresa no ataque e defesa mostraram-se de acentuada eficácia diante da investida contra Anfipolis. Quando em tais contextos se fala no uso da força, entende-se o uso de meios capazes de infligir sofrimentos físicos, porém, não basta fazer referencia ao uso da força entendida como violência lícita e autorizada, é necessário ter o discernimento na escolha da ação de forma a provocar o erro e a desarticulação do inimigo. A composição da armada liderada pelo lacedemônio apresenta a especificidade não ter cidadão e sim hilotas, acrescida de mercenários peloponésios e de trácios, fato que inova e difere da composição da armada formada de soldados-cidadãos atenienses. Tucidides nos relata que mesmo em menor numero a vitória na região de Anfipolis coube a estratégia de Brasidass que tomba em combate, enquanto Cleon foi morto por um peltasta (TUCIDIDES,

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IV:10, 7). A narrativa de Tucidides reforça a figura de Brasidas como o herói ao receber dos aliados exéquias oficiais desfilando com suas armas e o sepultando na entrada da ágora de Anfipolis, local de oferendas e de honras fúnebre com jogos atléticos e sacrifícios anuais (TUCIDIDES, V:11). A população local de Anfipolis busca minimizar a presença dos atenienses com a destruição dos monumentos do oikites Hagnon e mantém-se protegida pela guarnição lacedemonia estacionada no Porto de Eion. Os atenienses rechaçados pela realeza lacedemônia, seguida da macedônica, não conseguem manter a hegemonia e o controle no norte da Grécia.

Atenas em busca da paz

Por mais que a guerra, em todas as suas formas, suscite horror e indignação, não podemos riscá-la das relações dos homens porque ela faz parte da história da humanidade (BOBBIO, 2000: 511). A partir dessa consideração, a documentaão nos aponta que a disputa territorial por Anfipolis permaneceu latente no final do V sec e emerge em meados do IV sec.. O interesse pela região permaneceu ativo, mudando apenas o adversário dos atenienses que passou a ser protagonizado pelos integrantes da realeza dos macedônios versus democracia dos atenienses que necessitam reordenar seus interesse e forças internas no período helenístico. Demóstenes e Isócrates configuram-se como documentação matriz para a análise do período helenístico junto à historiografia. Os oradores presenciam a aproximação hegemônica de Felipe da Macedonia e foram testemunhos do acentuado processo de desestruturação econômica dos atenienses em decorrência da perda de Anfipolis e a relação de philía com as demais aliadas. Isocrates defendia como solução a mudança de direção, ou seja, conquistar novas terras na Ásia Menor sob o comando dos macedônios (ISÓCRATES, Para Filipe: 9). De acordo com Norbertoo Bobbio, a guerra, em determinadas circunstâncias torna-se um dos elementos constantes da teoria da guerra justa, submetida ao juízo de valor positivo, pelo fato de restabelecer direitos violados, ou seja, a reparação de uma injustiça (BOBBIO, 2000: 521). A premissa se aplica a proposta do orador Isócrates ao considerar que os atenienses deveriam aceitar a hegemonia dos macedônios contra os persas como justificativa a reparação de danos causados pelas Guerras Médicas. Entretanto, a proposta não detinha o consenso, pois Demóstenes empreendeu uma vigorosa oposição, expressas em seus discursos nas assembléias. O orador tenta dissuadir os cidadãos atenienses de iniciar uma guerra contra os persas. Usa como argumento: se os

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atenienses atacarem primeiro, perderiam a justificativa de estarem efetuando uma guerra justa (BÓBBIO, 2003: 76-83). ou seja uma guerra de defesa, portanto, não poderiam contar com o apoio dos aliados, pelo fato desses tornarem-se alvo da ira do grande rei persa. No entanto, se os atenienses aguardassem a manifestação de desagravo dos persas, estariam na condição de vítima de agressão e diante de tal fato as demais poleis viriam em apoio e restabeleceriam as alianças com os atenienses. De fato, Demóstenes reprova a proposta de política expansionista de grupos interessados em estabelecer cleuruquias e emporiom em terras bárbaras. Orador defendia a seguridade e a prosperidade dos atenienses com recursp. os internos, salvaguardando a paz como alternativa. O pesquisador Pierre Carlier (CARLIER,1996: 111) considera a busca da paz

uma proposta alternativa, inovadora,

audaciosa e coerente pelo fato de atender as reivindicações dos cidadãos de posses que solicitavam um alivio em relação as eisphorai – imposto pago em ocasião excepcional como a guerra- e defendia o uso dos recursos de forma mais eficiente. No caso, aplicando nas liturgias do teatro, nos jogos e competições e atividades religiosas seria uma forma de atender as necessidades dos cidadãos de pouco recursos assim como recompensá-los pela a renuncia a política expansionista em direção ao Oriente. Uma vez definida o estado de guerra, dele deriva a definição do estado de paz, entendido como um estado de não guerra. Demóstenes busca estabelecer a paz junto aos adversários visando encontrar em estado de convivência pacifica, e, incentiva na busca de soluções internas e alternativas. Terminamos esse artigo dialogando com Norberto Bobbio ao mencionar que por mais que a guerra, em todas as suas formas, suscite terror e apelos a paz, não podemos apagar os seus indícios de memória pelo fato de fazer parte da história da humanidade diante de sua busca pela hegemonia. Gostemos ou não, estando ou não conscientes, a nossa civilidade ou aquilo ao qual consideramos ser a nossa civilidade, nos leva a afirmar que talvez não seríamos aquilo que somos sem todas as guerras que contribuíram para a nossa formação. O binômio guerra-paz permanece como parte do imaginário social de toda a humanidade.

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AS MANDÍBULAS DE ANÍBAL: OS BARCA E AS TÁTICAS HELENÍSTICAS NA BATALHA DE CANAS (216 A.C.) Ana Teresa Marques Gonçalves∗ UFG Henrique Modanez de Sant’Anna∗ Doutorando/UnB/ Bolsista CNPq

“Então, quando não tínheis experiência do que era uma batalha contra os romanos, esta [uma exortação] era necessária e eu vos freqüentemente a dirigi, dando exemplos, mas agora que tendes vencido os romanos em três grandes batalhas consecutivas, quais palavras vindas de mim poderiam confirmar vossa coragem mais do que vossos próprios feitos?” Palavras de Aníbal às tropas, momentos antes da batalha de Canas, segundo Políbio (Histórias, III.111.6-8).

Introdução

Aníbal Barca, principal comandante cartaginês na Segunda Guerra Púnica, sempre foi para historiadores militares uma figura intrigante, tanto pelos padrões estratégicos que adotou na campanha (ao atravessar os Alpes e atacar os romanos pelo norte da Península Itálica) como pelo quase inexplicável fracasso da expedição na esteira de uma das maiores realizações táticas do mundo antigo: a batalha de Canas (216 a.C.). Dois pontos que ainda geram debates historiográficos destoantes com relação à batalha e, por conseqüência, ao desfecho geral da guerra são, respectivamente, a quantidade de mortos relatada por Políbio (70.000) e Tito Lívio (48.000), assim como o fato de Aníbal não ter sitiado Roma e encerrado de uma vez por todas a resistência romana. Entretanto, a despeito dessas discussões, que serão tomadas em segundo plano, o que propomos aqui é uma análise cultural dos planos de batalha empregados por Aníbal Barca até a batalha de Canas, percebidos na linha tática que integra a tradição militar ∗

Doutora em História pela Universidade de São Paulo e Professora Adjunta de História Antiga e Medieval no departamento de História da Universidade Federal de Goiás. ∗ Doutorando em História na Universidade de Brasília e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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helenística mais relevante para a compreensão do mundo mediterrânico ocidental de fins do século III a.C. A escolha das Histórias de Políbio como fonte, tanto pela tipologia quanto pelas informações que fornece ao nosso escopo, foi orientada pelo padrão das evidências do período helenístico, da forma como apresentado por François Chamoux (2002). Em outras palavras, não existe para o período em questão obra equivalente a de Heródoto, Tucídides ou Xenofonte, já que as obras que nos chegaram constituem-se como fragmentos, o que dificulta uma organização cronologicamente estruturada. Nesse contexto delicado para o uso de evidências literárias, as quais figuram muitas vezes somente como citação ou epitomas em autores secundários, como nos casos do ateniense Pilarco e do gaulês Pompeio Trogo, respectivamente, Políbio ainda é uma das melhores opções ao historiador, se levada em consideração a completude da obra (embora tenham restado apenas cinco livros dos quarenta iniciais). Outros tipos de evidências acerca do período helenístico são as papirológicas, arqueológicas e epigráficas. Os papiros existem em abundância, mas dizem respeito ao Egito ptolomaico e quase sempre tratam de questões cotidianas, administrativas ou religiosas. As evidências arqueológicas, por sua vez, também em grande número, revelam um tipo de análise própria, que não pode mais ser vista como confirmação do que é afirmado com base nas evidências literárias. No entanto, exigem, assim como para as evidências epigráficas, treinamento específico. As inscrições, por fim, exigem conhecimento da linguagem, vocabulário ou estilo utilizados, sem contar as questões levantadas pela associação de imagens a fontes incompletas ou mutiladas. Essas são, portanto, as razões pelas quais os demais tipos de evidências não serão levados em consideração neste texto, embora seu valor seja deveras reconhecido. O período helenístico, além da especificidade da tipologia das fontes, levanta questões referentes ao seu alcance geográfico. Embora os limites territoriais não sejam propriamente uma “questão de historiadores”, a inserção de Cartago no conjunto geral da problemática, especialmente com relação ao imperialismo romano ou à percepção do helenismo como objeto cada vez mais distante da idéia de transição (constituindo-se, portanto, como período rico em sua particularidade), torna-se central para a compreensão das Guerras Púnicas nos termos da introdução (durante a Primeira Guerra Púnica) e difusão (ao longo da Segunda Guerra Púnica) da guerra helenística no cenário mediterrânico ocidental.

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História Militar como História Social

Em conformidade com o argumento acima apresentado, particularmente no que respeita à difusão da guerra helenística na família Barca (e que tem como maior expoente a figura de Aníbal), a história militar das Guerras Púnicas é vista por nós como história social. Isso significa dizer que as táticas dependem diretamente da forma como a sociedade se organiza, assim como dos valores envolvidos na guerra. Esta é, aliás, a tendência atual seguida pelas críticas aos modelos normativos. De um lado, a história militar, especialmente aquela produzida pela historiografia de tradição inglesa, enfatiza a indispensabilidade das fontes (por vezes esquecida) em resposta às questões surgidas no âmbito do que se convencionou chamar de pós-moderno. Por outro, torna-se cada vez mais comum e preocupante, embora ainda não de modo tão difuso na história militar, o aparecimento do historiador interessado mais com as condições da narração histórica (e, portanto, de produção do conhecimento histórico) do que propriamente com o produto ao qual a história se dedica. Todavia, antes que o leitor espere o levantamento de bandeiras frente ao delicado debate introduzido acima, tal apresentação serve basicamente a um objetivo: ilustrar o fato de que a história militar, como campo de atuação da história profissional, deixou de ser feita por militares e se transformou em assunto de professores (HANSON, 1999: 379). O distanciamento da historiografia atual com relação aos grandes manuais militares, comuns no cenário alemão do séc.XIX (a exemplo de Delbrück, Kromayer e Veith, Bauer, Köchly e Rüstow), permitiu a abordagem da guerra, vista como objeto de investigação histórica, a partir de vieses econômicos e, ao menos desde a década de 70, sócio-culturais. Outro fato marcante no que respeita ao estudo da guerra antiga é a investigação apoiada em evidências epigráficas e arqueológicas, da forma como feita magistralmente por Donald Kagan (The Outbreak of the Peloponnesian War, 1969), W. Pritchett (The Greek State of War, 1971-1991), Yann Le Bohec (L' armée romaine sous le haut empire,1989) ou Victor Davis Hanson (The Western Way of War, 1989). Assim, na transição do perfil dos historiadores dedicados ao estudo da guerra antiga, da legitimação dos Estados modernos por intermédio da exemplaridade retirada do mundo clássico à investigação historiográfica atual, apoiada em novos instrumentos conceituais e em evidências variadas (literárias, epigráficas, arqueológicas e, especialmente no caso do Egito ptolomaico, papirológicas), as táticas foram por vezes deixadas em segundo plano ou tratadas como elemento para resolução de questões mais amplas.

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Ao menos desde Victor D. Hanson, ou mais cedo ainda, com John Keegan, na obra The Face of Battle (1976), podemos notar a inserção dos planos de batalha na construção de modelos explicativos pautados na organização e coerência de valores marciais comuns, no caso de Hanson, ao ocidente. Noutras palavras, o modelo ocidental de guerra, apesar das críticas encaminhadas principalmente por Harry Sidebottom (2004) e John Lynn (2003), permitiu o tratamento das táticas no que seria a unidade da cultura militar ocidental. Essas parecem ser as duas grandes contribuições de Hanson à historiografia voltada para os estudos militares do mundo clássico: (a) a construção do modelo ocidental de guerra e (b) como desdobramento do modelo, o entendimento das táticas no plano cultural e sua reunião numa grande tradição militar. Em concordância com o trabalho de Hanson, especificamente no que se refere ao segundo item acima apresentado, tanto a figura de Aníbal Barca quanto o papel desempenhado por seu gênio militar ao longo da Segunda Guerra Púnica são aqui investigados a partir da inserção das táticas empregadas no confronto em uma das linhas da tradição militar helenística, a saber, aquela formada nos centros políticos helenísticos ocidentais, disputados inicialmente por Pérdicas e, após sua morte, por Antígono (derrotado em 301 a.C.), seu filho Demétrio, Lisímaco e Pirro do Epiro.

Prelúdio da Segunda Guerra Púnica

Após a vitória de Roma sobre Pirro, que invadiu a Península Itálica pautado na justificativa de libertação da cidade de Taras (a Tarentum romana), os gregos do sul da Península perceberam que não poderiam fazer frente aos romanos e, em 272 a.C., os tarentinos decidiram aceitar a aliança proposta por eles. O resultado da campanha de Pirro provocou no cenário político do Mediterrâneo ocidental abalo suficiente para fazer com que o reino ptolomaico entrasse em relações diplomáticas com Roma, provando o reconhecimento dos romanos diante dos reinos subseqüentes ao Império alexandrino. Além disso, encurtou a distância com o maior poder do Mediterrâneo ocidental, isto é, a cidade fundada pelos fenícios no séc. VIII a.C. e que agora se mostrava interessada em assumir o controle da Sicília: Cartago. No contexto de fixação do conflito armado contra os cartagineses, o recrutamento do mercenário espartano Xantipo como comandante das forças armadas terrestres cartaginesas obedece a uma lógica estranha ao exército cívico romano. Nesses termos, deve ser percebido

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que o grande problema do exército cartaginês era o mesmo dos persas no séc. V a.C., ou seja, a carência de uma tradição de infantaria pesadamente armada. A inexistência de infantes que cumprissem função tática semelhante a dos hoplitas ou legionários era ainda agravada pelo fato dos comandantes cartagineses (antes da reforma elaborada por Xantipo) desconhecerem as formas básicas de integração tática, difundidas em toda a Hélade e nos reinos sucessores do Império de Alexandre. No momento em que Xantipo, então contratado pelos cartagineses, observou a quantidade de cavalos e elefantes dos quais dispunham Cartago, deduziu, de acordo com Políbio (Histórias, I.33), que perdiam as batalhas para os romanos devido à “imperícia” de seus comandantes. Ao dispor as tropas contra o cônsul romano e suas legiões, o mercenário fez marchar à frente do exército os elefantes, na tentativa de suprir a deficiência de “tropas de choque” com o ataque intimidador dos animais. Atrás da investida inicial seguia a infantaria cartaginesa, a uma distância segura e ladeada pela cavalaria. Os romanos, em contrapartida, temendo o ataque dos elefantes, densificaram as linhas centrais no intuito de barrar a investida, mas “falharam totalmente em seus cálculos contra a cavalaria cartaginesa, muito superior à romana” (POLÍBIO. Histórias, I.33). A partir da vitória nas alas, os cavaleiros cercaram os legionários que começavam a repelir o ataque dos elefantes, mas se viram obrigados a combater tanto os cavaleiros que os flanqueavam quanto a infantaria cartaginesa que lhes chegava intacta e ordenada. A partir de Xantipo (que assegurou apenas essa vitória como comandante, segundo Políbio), as forças cartaginesas combateram de modo taticamente integrado, ora executando manobras que supriam o problema da infantaria de choque, ora empregando mercenários ou elefantes como substitutos para a carência de exército que marchava sob o princípio da eutaxia. Por meio da Campanha Pírrica, os romanos entraram em contato direto com a tradição militar helenística, que se desenvolvia paralelamente à fixação de uma cultura militar pautada na defesa do militarismo cívico. No entanto, a reforma tática que permitiu o avanço das tropas romanas em campo de batalha, sem sofrer os efeitos do envolvimento de manobra de tipo macedônico, ocorreu apenas alguns anos depois, durante a Segunda Guerra Púnica. A vitória sobre Pirro não eliminou, portanto, os problemas aos quais foram submetidas às legiões quando enfrentavam um exército helenístico bem preparado. Isto se deveu especialmente ao fato de que, diante do interesse crescente pela Sicília por parte das maiores cidades do Mediterrâneo ocidental, os exércitos mercenários se impuseram como necessários, uma vez que os cartagineses não possuíam qualquer tradição na utilização de tropas cívicas. Desse modo, a integração tática típica dos exércitos mercenários, aliada à falta de familiaridade dos

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cartagineses no que se refere ao comando de soldados em terra firme, fez com que fosse legado o controle e treinamento de suas tropas (compostas tanto por mercenários quanto por povos aliados africanos) a um misthophoros de nome Xantipo. Com apenas uma referência em Políbio (Histórias, I.32), Xantipo se encarregou de apresentar aos cartagineses a tradição militar helenística, especialmente no que se refere aos dispositivos táticos. Com isso, pôde vencer o cônsul romano na África e organizar o exército cartaginês em sintonia com a complementaridade tática necessária no contexto de consolidação dos exércitos profissionais. Os próprios romanos, quando passaram à fase do imperialismo ofensivo (GUARINELLO, 1987), perceberam a incompatibilidade do exército cívico com guerras encaminhadas longe da cidade natal. Com o fim da guerra em 241 a.C., quando Amílcar foi afastado do comando do exército, Cartago enfrentou o maior problema no pós-guerra (talvez até mais grave que as exigências romanas). Os mercenários que haviam retornado sem pagamento do conflito na Sicília requereram seu misthos e, diante da recusa por parte dos cartagineses, pegaram em armas e avançaram contra Tunis e logo contra Cartago. No entanto, a vitória dos cartagineses sob o comando de Amílcar Barca, especificamente na batalha de Bagradas (239 a.C.), encerrou a guerra mercenária. Este conflito pode ser analisado, juntamente com as Guerras Púnicas, a partir de dois elementos interligados que, em nosso entender, não devem ser dissociados: (a) a introdução da guerra helenística em Cartago e (b) a constituição de uma escola tática difusora desta tradição, que une os planos de batalha empregados tanto por comandantes cartagineses quanto por romanos (especialmente no que se refere à manobra de envolvimento de tipo macedônico).

Os três momentos da Segunda Guerra Púnica

Após os anos transcorridos entre o fim da guerra mercenária e a expansão do território cartaginês, observamos que, diante do assassinato de Asdrúbal (em 221 a.C.), o comando do exército cartaginês ficou sob responsabilidade de Aníbal Barca, filho de Amílcar Barca, criado por quase toda sua vida na região mais nova do Império Cartaginês: a chamada Hispânia, cuja capital era Cartagena, a nova Cartago. Com Aníbal, o período de paz se transformou em guerra aberta, especialmente a partir do ataque a Sagunto, cidade aliada dos romanos.

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O questionamento do porquê o conflito foi retomado por parte dos cartagineses referese, em nível inicial, ao juramento relatado por Políbio, no qual Aníbal, ainda jovem, prometeu a seu pai que não se tornaria aliado de Roma e que, além disso, encaminharia a guerra contra eles. Nas palavras de Políbio, ao apresentar a explicação de Aníbal para a guerra:

“(...) quando seu pai estava por cruzar a Hispânia com suas tropas, Aníbal tinha nove anos e estava próximo a um altar onde Amílcar oferecia um sacrifício a Zeus. Uma vez que obteve agouros favoráveis, libou em honra aos deuses, cumpriu os ritos prescritos e, ordenando que todos os demais que assistiam o sacrifício se afastassem um pouco, chamou Aníbal e perguntou se ele queria acompanhar-lhe na expedição (...). Amílcar o conduziu pela mão direita até o altar e o fez jurar, tocando as oferendas, que jamais seria aliado dos romanos”. (POLÍBIO. Histórias, III. 5-8)

A investigação elaborada por parte do historiador deve ser dirigida, evidentemente, com base na documentação, mas sempre em relação ao contexto onde as informações foram produzidas. Em outras palavras, cabe interrogar, para além da procedência da lenda referente ao juramento de Aníbal, sobre as relações políticas existentes entre as duas potências do Mediterrâneo ocidental no séc. III a.C. De um lado, com o controle político da Península Itálica, encontrava-se a cidade de Roma, tendo seu domínio estendido de partes da Gália Cisalpina (considerada pacificada pelos romanos sob Júlio César, no séc. I a.C.) à Magna Grécia, região que limitava um lado da fronteira imaginada para o fortalecimento da posição no Mediterrâneo ocidental. Do outro lado, estava a cidade de Cartago, possibilitando o entendimento de uma “fronteira imaginada” a partir da idéia de que o controle de um limite (Magna Grécia ou norte da África) e da região de fronteira (as ilhas que intermediavam as duas regiões citadas) implicaria em fortalecimento político. De acordo com H. H. Scullard,

“A história externa de Cartago, que é principalmente a história de sua tentativa de construir e manter seu comércio, recai sobre três períodos óbvios: 1) o esforço inicial para dominar os outros estabelecimentos fenícios e a população nativa do norte da África; 2) a tentativa de controle exclusivo do Mediterrâneo ocidental, da qual resultaram séculos de guerra com os gregos; 3) e finalmente sua três guerras contra Roma”. (SCULLARD, 1955: 102)

Diante da existência de “três períodos óbvios” na história de Cartago, devemos enfatizar o fato da escrita sobre os eventos que caracterizaram a derrota dos cartagineses para os

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romanos ser especialmente “externa”, ou seja, elaborada em um universo referencial que primava pela noção de dever cívico, o que era estranho à cultura cartaginesa. A partir desta ênfase, adentramos a questão do porquê a historiografia referente a Segunda Guerra Púnica permanece, especificamente em se tratando do modelo ocidental de guerra, submetida ao que chamamos de “armadilha cívica”. Uma hipótese plausível pode ser o tipo de evidências que chegaram até nós sobre os cartagineses, quase sempre a partir das construções feitas por gregos vistos como romanizados (Políbio) e por romanos propriamente ditos (Tito Lívio). Assim, consideramos interessante desdobrar o argumento que diz respeito à questão do militarismo cívico na obra de Políbio ao longo da análise da Segunda Guerra Púnica, percebendo seu quadro estratégico geral e suas fases de aplicação tática. Isso significa dizer que o cerco de Sagunto, quando o conflito oficialmente reiniciou, não pode ser pensado de modo isolado, pois está estreitamente ligado ao conjunto de eventos que permitem a organização da Segunda Guerra Púnica em três momentos. Em primeiro lugar, no período situado entre 218 e 216 a.C., entendemos que se encontra a fase inicial da guerra, na medida em que após a vitória obtida em Canas (216 a.C.), Aníbal poderia ter invadido Roma, não fosse pela deficiência de maquinários de cerco ou pelo erro estratégico que lhe custou a guerra. Em seguida, de 216 a 205 a.C., configura-se o segundo momento do confronto, quando Cipião foi eleito Cônsul e, de acordo com solicitação aprovada pelo Senado, inverteu o princípio estratégico geral, passando a utilizar o mesmo plano de Aníbal, isto é, atacar diretamente o centro político inimigo. Por último, entre os anos de 205 e 202 a.C., quando Aníbal foi derrotado em batalha decisiva, emergiu a adaptação bem sucedida do Cônsul Cipião, conhecido por Africano. A manobra envolvente empregada pelos romanos, aliada aos problemas políticos existentes entre o Conselho cartaginês e os membros da família Barca e à traição do reino da Numídia, fizeram com que a situação em Zama fosse completamente desfavorável ao comandante cartaginês, servindo de marco para o fim do conflito e de base para a reforma tática encaminhada na infantaria legionária.

Do cerco de Sagunto (218 a.c.) à Batalha de Canas (216 a.c.)

O cerco de Sagunto, conforme dito anteriormente, significou o início do segundo conflito entre romanos e cartagineses. Segundo Políbio (Histórias, III.15), os cartagineses

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romperam com o acordo de não atravessar o Ebro em armas. Entretanto, existia uma segunda razão pela qual Roma não queria que os cartagineses cruzassem o rio. Segundo Michael Grant (1978:115), o medo que os romanos tinham dos cartagineses marcharem pelos Pirineus, atravessando a Gália Cisalpina, onde celtas poderiam juntar-se a eles, fazia com que a tensão entre as duas potências aumentasse. Após a primeira vitória anibálica sobre os romanos no rio Ticino, quando Roma pensava contar com o cansaço das tropas cartaginesas, Cipião se retirou para Placentia e montou seu acampamento na frente da cidade. De acordo com Tenney Frank (1919: 203), “desde que Cipião cortou as pontes atrás dele, Aníbal marchou pelo Pó para encontrar uma passagem”. Em seguida, no que viria a ser conhecido como a batalha de Trébia (218 a.C.), diante de todos os preparativos para a execução de um plano direcionado à realização do confronto decisivo, Aníbal levava em conta, de acordo com Políbio (Histórias, III.70), três fatores. Em primeiro lugar, pretendia tirar proveito do ardor combativo dos celtas, enquanto o desejo de lutar contra os romanos estava ainda intacto. Em segundo lugar, quanto mais cedo o combate fosse travado, mais proveito Aníbal tiraria da inexperiência das tropas romanas. Por último, o comandante cartaginês considerava interessante lutar enquanto Cipião era assolado por uma enfermidade, o que garantiria o máximo de aproveitamento em relação à inexperiência das legiões recrutadas. Aníbal dispôs seu irmão Mago, então no comando de excelente cavalaria, em terreno propício a emboscada, na medida em que limitava a visão dos romanos pela proximidade com a vegetação ao redor do rio. Enquanto isso, tendo os romanos respondido à provocação cartaginesa, iniciada com um ataque furtivo dos númidas, as tropas sob o comando de Barca se alimentavam e realizavam os últimos preparativos para o combate, aguardando que os romanos em marcha cruzassem despreparados e apressados o frio rio Trébia. Após a travessia do rio, no momento em que o choque frontal ocorreu, os romanos se viram pressionados pelos elefantes cartagineses, dispostos à frente da cavalaria, enquanto as últimas linhas legionárias sofriam constantes ataques das forças montadas de Mago, que emergiu da emboscada no momento adequado. Em 217 a.C., fruto do aumento da participação dos plebeus nas magistraturas romanas, foi eleito para o segundo consulado Flamínio, que tentou conter o avanço dos cartagineses para o sul, acampando próximo à Etrúria. Aníbal, no entanto, optou por utilizar uma rota alternativa (deve-se dizer, pantanosa), que asseguraria a surpresa quando do confronto com o inimigo e impossibilitaria a união dos dois cônsules, aproveitando-se da ansiedade de Flamínio, o qual optou por avançar abertamente contra o inimigo.

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Marchando em direção a Roma pela Etrúria, Aníbal tinha à sua esquerda a cidade de Crotona e os montes que a cercavam e à direita o lago Trasimeno. Ciente da trajetória do comandante romano, tirou proveito do espaço entre as colinas e o lago, dispondo as tropas ligeiras em posição favorável à emboscada, na medida em que acreditava no avanço precipitado dos romanos. Acampou com os africanos e os iberos no local que se opunha frontalmente ao caminho, facing the line of march (CASPARI, 1910: 421), induzindo a marcha de Flamínio e, desse modo, conseguiu atingir o objetivo de atacar os adversários em diversos pontos, confundindo até mesmo as operações de auxílio (POLÍBIO. Histórias, III.84). A vitória no lago Trasimeno instaura a discussão sobre o porquê, antes mesmo de Canas, Aníbal não ter avançado em direção à cidade de Roma e a sitiado. A explicação mais plausível sobre a impossibilidade do transporte de máquinas de assédio pelos Alpes continua fazendo sentido, mas talvez este seja o caso onde a forma romana de fixar alianças (e, portanto, de recrutar tropas) possa se mostrar superior ao emprego do soldado mercenário. Sem batalhas decisivas e com problemas de abastecimento, as tropas de Aníbal mostrar-seiam insatisfeitas e o novo ditador, Fábio Máximo, sabia disso. Utilizando-se de uma estratégia de ataque às linhas de abastecimento inimigas, evitou o choque frontal e a decisão em campo aberto, provocando instabilidade no corpo do exército cartaginês, seja pelo questionamento da autoridade de Barca ou por meio dos problemas gerados devido ao abastecimento reduzido. No entanto, apesar da estratégia de Máximo ter se mostrado eficiente, a cultura militar pautada no combate direto em campo aberto (onde a disciplina era exercitada pelo corpo formado por soldados-cidadãos) traduziu-se em insatisfação pública dos romanos. Em outras palavras, o desejo de combater frontalmente o inimigo (o que deve ser entendido como algo culturalmente estabelecido) fez com que Roma, graças ao recrutamento de tropas novas, desafiasse Cartago com o maior exército já disposto em campo de batalha.

A Batalha de Canas (216 A.c.)

Na narrativa de Políbio, os registros numéricos agem como reforço retórico, sem pretensões modernas de exatidão matemática. O historiador grego está preocupado com o significado que os números podem atribuir a uma batalha e pretende, portanto, acentuar a drasticidade da quantidade de mortos, na tentativa de convencer o quão relevante foi Canas, na medida em que a própria existência de Roma foi ameaçada.

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A atuação romana na Gália Cisalpina, quando da marcha do exército cartaginês dirigido por Aníbal, produz uma questão referente à instabilidade gaulesa. De um lado, os romanos teriam se dirigido à Gália com o intuito de prevenir a expansão do domínio cartaginês para além dos Pirineus, que poderia se dar por meio da fixação de uma aliança com os celtas. Assim, os romanos estavam antecipando o evidente ataque cartaginês. Por outro lado, Aníbal teria se aproveitado da atuação romana na Gália, clara entre a Primeira e a Segunda Guerra Púnica, para tornar os ânimos inflamados dos celtas uma poderosa arma a ser utilizada na invasão da Península Itálica. Teoricamente, Aníbal estava diante de duas estratégias para levar os romanos à destruição. Poderia tomar a própria cidade de Roma ou cortar suas linhas de abastecimento, provocando o esgotamento de toda a resistência armada, o que conduziria ao fim do conflito. A opção de assediar e capturar diretamente Roma implicaria na possibilidade de desembarcar nas proximidades da cidade com o conjunto de maquinários necessários para o cerco. Tal situação era apenas ideal, já que os cartagineses haviam perdido o controle marítimo com a derrota na Primeira Guerra Púnica. Restava apenas a marcha rumo aos Alpes, com o objetivo de atravessá-lo e dali prosseguir à invasão do território romano. Tendo assumido o trajeto possível às suas forças, Aníbal estava confiante em seu sucesso tático, ou seja, “certo de que poderia derrotar qualquer exército romano que viesse confrontá-lo” (SALMON, 1960: 136). Evidentemente, uma sucessão de vitórias campais não garantiria a vitória cartaginesa e a esperança no corte das linhas de abastecimento não poderia dar certo se Aníbal não recebesse apoio de Cartago e se permanecesse isolado nos arredores de Roma, incapaz de sustentar os ânimos de suas tropas com uma demora de mais de dez anos. De qualquer maneira, a capacidade tática de Aníbal, advinda das possibilidades de movimentação de seu exército reformado nos padrões helenísticos de guerra, permitiu que ele encaminhasse sua estratégia ofensiva, deslocando suas tropas vitoriosas de Sagunto até as portas de Roma. Montar acampamento próximo a Canas parecia interessante aos cartagineses porque consolidava o desejo de Aníbal, que parecia ser enfrentar os romanos em uma batalha decisiva, onde pudesse colocar seu plano de envolvimento em prática, concebido em adaptações das batalhas promovidas pelo exército macedônio aproximadamente um século antes. Os romanos haviam disposto seu numeroso exército de forma tradicional: velites à frente da infantaria de choque, cavaleiros romanos na ala direita e cavalaria composta de aliados na

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ala esquerda. Políbio constrói um ad locutio de Lúcio Emílio Paulo, Cônsul encarregado em Canas do comando da ala direita do exército, enfatizando a superioridade numérica dos romanos:

Como todas as condições agora são o contrário das predominantes nas batalhas a que me referi, podemos antever que o resultado da batalha prestes a travar-se será igualmente o oposto. De fato, seria na realidade estranho, ou melhor, impossível, que após haverdes enfrentado os vossos inimigos em igualdade de condições em tantas escaramuças isoladas, e em muitos casos terdes sido vitoriosos, agora, quando ireis combatê-los com vossas forças reunidas e lhes sois numericamente superiores numa proporção excedente a dois para um, viésseis a ser vencidos (POLÍBIO. Histórias, III.109)

Aníbal, por outro lado, tendo disposto os celtas e iberos em uma formação que Políbio (Histórias, III.113) chama de convexa (kurtoma), provocou a sensação de inchaço nas linhas centrais, atraindo os romanos para uma constante investida contra o centro cartaginês, tal qual estavam habituados a fazer.

Batalha de Canas (216 a.C.). In: KEPPIE, 1998: 27.

A situação estava posta em grande risco, uma vez que o recuo dos celtas e iberos poderia causar o rompimento da linha de envolvimento e, consequentemente, levar as forças cartaginesas à desordem. O plano de Aníbal era arriscado, porém funcional, uma vez que sabia da superioridade da cavalaria celta diante da romana e da força da cavalaria númida, assim como confiava que seus infantes africanos dispostos nas laterais, como tropas de

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reserva, pudessem entrar em ação quando a ameaça de rompimento da linha de frente cartaginesa se formasse. Conforme o combate de cavalaria se desenrolava e os celtas montados rodeavam a retaguarda romana, indo auxiliar os númidas da outra ala, a cunha formada de infantes celtas e iberos cedia (indo de convexo para côncavo) até o momento em que o maciço corpo de legionários encheu uma espécie de “bolsa”. Os legionários, então cercados pelos africanos dispostos nas alas, não foram capazes de oferecer resistência, mesmo estando em maior número. Por fim, as forças montadas comandadas por Asdrúbal efetuaram cargas sucessivas em vários pontos na retaguarda romana, concluindo a manobra de envolvimento (POLÍBIO. Histórias, III.116). De acordo com Victor D. Hanson, o massacre a que foram submetidos os romanos em Canas ilustra, como já esboçado anteriormente, o valor do militarismo cívico em sua ocorrência mais improvável, ou seja, “quando um exército mercenário demoliu a milícia de Roma” (HANSON, 2001: 11). Neste sentido, durante o séc.III a.C., a legitimidade na luta pela cidade-estado repousava na constante retomada de valores marciais advindos do civismo dos tempos antigos.

Conclusão

Após a batalha de Canas, os romanos tiveram que organizar suas forças, ao menos pelos próximos anos, em pontos vitais, no intuito de evitar um enfrentamento tão direto como em 216 a.C. Exatamente nesse momento, a prática do recrutamento de soldados-cidadãos foi essencial para o reerguimento de um exército executado. A redução das tropas romanas e as frágeis condições de comando (seja pela incapacidade do magistrado a frente das tropas ou pelo desentendimento entre esse e o Senado) marcaram, pelo menos até a inversão da estratégia militar (da defensiva ao ataque do norte da África), a conduta de guerra dos romanos. Situados ao longo da Península “como uma matilha de cães disposta ao redor de um leão” (GRANT, 1978: 119), os romanos vivenciaram a força das “mandíbulas” de um dos maiores gênios táticos do mundo antigo, produzido por uma sociedade sem grande tradição cívica no exercício da função militar e que havia reformado seu exército no direcionamento tático helenístico (acompanhando a particularidade da tradição macedônica, de Antígono a Pirro) há menos de trinta anos.

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Bibliografia

A)

Documento textual

POLYBIUS. The Histories. Trad. W. R. Paton. London, Cambridge: Harvard University Press, 1980.

B)

Obras gerais

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AQUISIÇÃO DE INTELIGÊNCIA MILITAR ENTRE ALEXANDRE E CÉSAR: DOIS ESTUDOS DE CASO1

Vicente Dobroruka Universidade de Brasília

Introdução

Nos dias que correm, a mídia vende a imagem de que uma guerra - qualquer guerra - é vencida pelo lado que dispuser de maior “inteligência”2; o espetáculo tecnológico (simbioticamente vinculado à cultura adolescente dos videogames) nos faz crer, ou tenta fazêlo, que a aquisição de inteligência vence guerras ou, ao menos, batalhas. A mística em torno da espionagem moderna, os escândalos em torno das defecções de espiões ingleses prósoviéticos durante a Guerra Fria e toda a publicidade pós-1973 em torno das façanhas dos matemáticos poloneses que quebraram as chaves de código da Enigma, máquina criptográfica alemã contribuíram em muito para a deificação da inteligência militar.

Questões teóricas

Este artigo dedica-se ao estudo do uso da inteligência militar por dois dos maiores generais do mundo antigo - por isso, não é o local mais indicado para se recordar as inúmeras oportunidades em que, mesmo nos tempos mais recentes, um dos lados em conflito dispunha de inteligência à vontade e isso não lhe assegurou a vitória. Lembremos apenas que até hoje a chave de código da Enigma usada pela Gestapo jamais foi quebrada; que o general Freyberg sabia tanto quanto os alemães acerca da invasão de Creta, e mesmo assim perdeu a batalha; e finalmente, quantas vezes o acaso fez pender para um lado melhor informado - ainda que mais fraco, como os EUA em Midway - a vitória? 1

Para autores clássicos, utilizei as edições da Loeb Classical Library, a não ser quando indicado. Utilizo o termo sempre no sentido propriamente militar, i.e. de conjunto de informações adquiridas, coligidas, aceitas, interpretadas e implementadas com o fim da derrota do inimigo (cf. John Keegan. Inteligência na guerra. Conhecimento do inimigo, de Napoleão à Al-Qaeda. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pp.19-21), e não no sentido corriqueiro de “capacidade intelectual”. 2

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Feitas essas observações preliminares, é conveniente atentar para o fato que, dos tipos de “inteligência” básicos (“humana” ou humint, convenção para human intelligence, i.e. aquela adquirida por meio de espiões, observação direta ou demais formas clandestinas incluindo a interceptação e interpretação de mensagens - e sigint, a detecção visual de imagens, atualmente feita cada vez mais por meio de aparelhos não-pilotados), a estrela da mídia é a sigint; por motivos óbvios, no mundo antigo essa forma de aquisição de conhecimento do inimigo era virtualmente inexistente - dir-se-ia que até a transmissão em tempo real das informações, primeiramente pelo telégrafo, depois pelo rádio - humint foi a forma por excelência da aquisição de informações. É dela portanto que tratarei neste capítulo; paradoxalmente, à medida em que os recursos “incruentos” que a tecnologia proporciona mostram-se cada vez menos eficazes, o recurso à humint parece promissor num futuro próximo3.

Os estudos de caso apresentados

Em todo caso, o mundo antigo não dispunha de meios técnicos para a aquisição de sigint; humint era a única ferramenta disponível aos generais e também aos políticos. Como funcionou, no caso de campanhas longas como as de Alexandre e de Júlio César, o processo de 5 fases da humint (aquisição, entrega, aceitação, interpretação e implementação4)? Uma distinção inicial deve ser feita: Alexandre, ainda da esteira da reviravolta tática e de treinamento implementada por seu pai, defrontou-se com potências letradas, i.e. com organismos políticos (notadamente o persa) que faziam uso rotineiro da escrita (o que não 3

Exemplo notável é o fracasso da tecnologia na recente guerra (2001) no Afeganistão; por um lado a mídia busca vender a imagem de que cada vez menos baixas ocorrem, quer entre civis, quer entre combatentes, em função do desenvolvimento tecnológico. Certamente há um fundo de verdade nisso - a tecnologia faz com que seja necessário um número cada vez menor de homens para conquistar e manter terreno -, mas por outro há certas tarefas que, por sua própria natureza, parecem destinada a serem eternamente “privilégio” e risco dos soldados de carne e osso, como as operações de limpeza de cavernas no Afeganistão. E esse tipo de operação sempre custará mais baixas do que a opinião pública está, atualmente, preparada para enfrentar. Cf. Mir Bahmanyar. Afghanistan Cave Complexes 1979-2004. Mountain Strongholds of the Mujahideen, Taliban & Al Qaeda. Oxford: Osprey, 2004. P.16 ss.. A isso acrescente-se que, num mundo que vê cada vez com menos simpatia as soluções militares (quando adotadas pelas grandes potências: quando recurso de tiranetes ou fundamentalistas do Terceiro Mundo são aceitáveis e amiúde louvadas pela mídia), o establishment militar vê-se diante de um impasse. As baixas domésticas são inaceitáveis; a substituição de profissionais ou conscritos natos por mercenários (caso da Legião Estrangeira Francesa e da Espanhola) é tida como imoral e as baixas do inimigo erradas por princípio. Para o bem ou para o mal, em muitas operações especiais de aquisição de inteligência e mesmo da execução de missões os veículos não-pilotados simplesmente não resolvem a questão; é necessário o uso de mais homens e conseqüentemente, ocorrem mais baixas - algo que a opinião pública não mais aceita. Este parece, de momento, o limite prático para a aquisição de sigint. 4 Keegan, op.cit. pp.21-22.

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implica no letramento maciço de suas populações como um todo), inclusive - e em muitos casos, principalmente - para o registro dos assuntos de Estado5. O primeiro registro digno de nota de humint parece-me o citado por Tucídides em em sua História da Guerra do Peloponeso 4.50: um enviado (ou seja, um espião persa) à caminho de Esparta foi detido pelos atenienses, que confiscaram-lhe um documento escrito em aramaico:

Durante o inverno subseqüente Aristides filho de Arquipo [...] deteve [...] às margens do rio Strímion o persa Artafernes, que ia para Esparta mandado pelo rei. Ele foi levado para Atenas e os atenienses fizeram traduzir do assírio [i.e. do aramaico] as cartas encontradas em seu poder e as leram [...].

Como de hábito, Tucídides nos deixa sem saber qual o conteúdo preciso do documento em questão; mas é digno de nota que mesmo em Atenas houvesse gente capaz de entender o aramaico (o que, inversamente, atesta a universalidade do mesmo antes da difusão do koiné). Dificilmente esse caso terá sido o primeiro de uso deliberado de humint por qualquer dos lados em conflito, mas é de especial importância por exibir com relativa clareza algumas das etapas do processamento da inteligência no mundo antigo: ao menos as quatro primeiras fases mostram-se de modo inequívoco (aquisição, entrega, aceitação, interpretação da informação adquirida das mãos do enviado persa; não sabemos o que os atenienses fizeram depois, mas é razoável supor que a última etapa, a “implementação”, consistiu, nesse caso, em simplesmente frustrar os planos de persas e espartanos e obrigá-los a mudanças). Aqui convém estabelecer outra distinção importante, quer no mundo antigo quer no moderno, quanto à aquisição de humint: onde termina o “batedor” ou “explorador” e começa o “espião”? Ambos estão aptos a fornecer ao inimigo a informação tão necessária; ao mesmo tempo, no mundo antigo como no moderno, o indivíduo capaz de acessar e entregar tais informações é, compreensivelmente, mal-visto. Em Alexandre, o destino especialmente cruel de Bessus, o sátrapa que traiu Dario III, é exemplo dessa repulsa:

Duas árvores retas foram dobradas e uma parte de seu corpo amarrada a cada uma; quando cada parte foi solta, a metade de seu corpo que lhe estava agarrada partiu junto com a árvore6.

5

Arnaldo Momigliano. “Eastern Elements in Post-Exilic Jewish, and Greek, Historiography” in: Essays in Ancient and Modern Historiography. Middletown: Wesleyan University Press, 1987. Pp.28 ss.. 6 Plutarco. Vida de Alexandre 63.3. A atitude de Alexandre parece ter origem centro-asiática e não ser uma invenção própria; encontramos o mesmo requinte de crueldade na punição aos adúlteros no relato de Ibn Fadlan, em 921, refereindo-se aos guzos. Cf. Arthur Koestler.Os khazares. A 13a. tribo e as origens do judaísmo moderno.Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005. Pp.40-41.

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Bessus roubou de Alexandre a glória da captura de Dario vivo e, ao mesmo tempo, mostrou-se indigno da confiança de Alexandre ao tentar ganhá-la (como todo traidor, se Bessus fez tamanho mal ao seu antigo mestre, porque não o faria ao novo?). Mas em sentido estritamente militar, a tarefa da aquisição de inteligência nas campanhas de Alexandre era, via de regra, moralmente anódina e tecnicamente indiferenciada quanto aos informantes (pelo menos é esse o quadro que emerge das fontes de que dispomos para falar de Alexandre, para devemos lembrar de que tudo de que dispomos de testemunhos contemporâneos são fragmentos, o que não ocorre com César). É conveniente lembrar ao leitor que, por praticidade, farei uso de exemplos romanos ou gregos posteriores ou, mais raramente, anteriores a César. Tal procedimento parece-me razoável uma vez que, do séc. I a.C. ao IV d.C. a natureza essencial das atividades de inteligência militar pouco mudaram7.

Os estudos de caso à luz da teoria

Humint em Alexandre significava, o mais das vezes, a autópsia impetuosa, nem sempre bem-vista entre analistas mais tardios (e que conduz em sua forma moderna ao dilema bem exposto por Keegan quanto à natureza da exposição do comandante diante de suas tropas quando estar à frente, e portanto, visível e arriscando-se? “Sempre”, “nunca” ou “por vezes”?8 No caso de Alexandre, os exemplos de sua crescente necessidade de exposição aos riscos da batalha com seu envelhecimento são inúmeros e unanimidade em todos os autores; o mesmo se pode dizer do aumento de sua credulidade quanto a augúrios e presságios:

Alexandre, por essa época, havia se tornado sensível às indicações da vontade divina e ficado com a mente apreensiva e perturbada, e transformava cada evento, por estranho que fosse, em algo significativo, num prodígio e augúrio: e sacrificadores, purificadores e adivinhos enchiam seu palácio. Assim, vejam, do mesmo que é perigoso ser incrédulo com relação às indicações do que é divino e desprezá-las, a superstição é igualmente perigosa [...]9. 7

Keegan, op.cit. p.28. Em todo caso, é necessário tomar cuidado com as mudanças no uso de certos termos específicos que não são bem atestadas pelas fontes literárias, mas de modo claro pelas epigráficas e papirológicas - tal como do termo speculator, cuja natureza alterou-se visivelmente entre Cpesar e Amiano Marcelino. Do séc.I d.C. em diante, speculatores são também dois tipos distintos de oficiais do exército romano, que, a julgar pela evidência disponível, nada tinham em comum com os speculatores tão úteis a César (indivíduos altamente treinados para operações clandestinas atrás do que hoje denominaríamos “linhas inimigas”, ou chamaríamos, ao tempo dos romanos, de limes. Cf. Norman Austin e Boris Rankov. Exploratio. Military and Political Intelligence in the Roman World from the Second Punic War to the Batlle of Adrianople. New York / Abingdon: Routledge, 1995. P.54 ss. 8 É a pergunta que anima o estudo de John Keegan sobre a natureza do comando militar em seu magistral A máscara do comando. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1999. 9 Plutarco. Vida de Alexandre 74.5.

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Mas todo tipo de inteligência militar necessita de um contexto para interpretação; e nesse sentido, os augúrios só merecem espaço neste capítulo por estarem tão intimamente ligados às atividades militares de Alexandre10. Os exemplos para César são mais austeros, notadamente no que diz respeito ao seu uso da autópsia como forma de aquisição de humint em primeira mão. Em Alexandre, encontramos principalmente em Plutarco exemplos notáveis da crença nos oráculos como meios eficazes de determinar processos decisórios. Desse modo, antes da expedição indiana, o aparato religioso-logístico-oracular é notável - ou antes, o descaso de Alexandre com o mesmo:

Ele mesmo [Alexandre] se fazia acompanhar por oito cavalos, enquanto banqueteava-se noite e dia com seus companheiros [meta ton hetairon] [...] e incontáveis carroças os seguiam, algumas com coberturas em púrpura e bordadas, outras protegidas do Sol por ramos de árvores que eram mantidos sempre verdes, levando o restante de seus companheiros e comandantes, todos usando guirlandas e bebendo. Não se via um capacete, nem um escudo, nem uma lança [...]11

Antes da expedição tomar feições de baderna, entre os preparativos nota-se que Alexandre, [...] prestes a cruzar as montanhas rumo à Índia [...] [Alexandre viu] uma ovelha com o que parecia, pela forma e cor, com uma tiara sobre sua cabeça, com testículos dos dois lados. Alexandre desprezou o augúrio e fez-se purificar pelos babilônios, que sempre trazia consigo para tais finalidades; em conversa com seus amigos, alegou não estar preocupado consigo mesmo, mas com a sorte deles12.

Deve-se notar que seus adversários também serviam-se dos mesmos recursos como forma de aquisição de sigint, como Dario o faz:

Dario, vindo para a costa a partir de Susa encontrava-se exaltado pela extensão de suas forças (pois liderava um exército de 600 mil homens), mas também encorajado por um certo sonho, que os Magi interpretaram mais com o intuito de agradá-lo do que como as probabilidades exigiam13.

Eis aqui um exemplo interessante - no original grego Plutarco não fala, evidentemente, em “probabilidades”, mas em mallon he kata to eikos.

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Tácito observa, ao falar de Vitélio, que sua ignorância quanto à inteligência reforça sua ineptitude noutros aspectos (Histórias 3.56). Cf. Austin e Rankov, op.cit. p.6. 11 Plutarco. Vida de Alexandre 67.1. 12 Idem, 57.1-3. 13 Idem, 18.4.

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Mas seria um erro imaginar que Alexandre confiava apenas nos oráculos para suas decisões: em mais de uma ocasião ele serve-se de “medidas contra-inteligência” (i.e. destinadas a confundir o inimigo), como por exemplo na expedição contra Porus, na Índia:

Em sua campanha contra Porus [...] diariamente ele fazia grande barulho em seu campo, de modo a acostumar os bárbaros ao mesmo e fazer com que não se alarmassem14.

O mesmo depoimento é encontrado em Arriano, fonte bem mais comprometida com o relato isento e político de Alexandre do que Plutarco que, como ele mesmo nos diz, não está fazendo historiografia mas biografias:

Vendo isso [a guarda que Porus havia montado], Alexandre houve por bem manter seu exército movendo-se em diferentes direções, para manter Porus na incerteza de suas intenções15.

E o exemplo mais eloqüente de todos: quando criança, Alexandre mostra-se extremamente curioso quando seu pai recebe enviados persas, e faz aos mesmos perguntas de todo tipo com relação ao seu país - perguntas lógicas e que relacionam-se não com práticas mágicas ou oraculares, mas que soariam razoáveis aos ouvidos modernos, e que certamente divertiram os atônitos diplomatas persas:

[Alexandre] conquistou-os por seu encanto, e por não fazer perguntas triviais ou infantis, mas argüindo acerca das estradas e sobre a natureza de uma viagem para o interior, sobre o próprio rei, que espécie de guerreiro ele era e qual o poder e habilidade dos persas16.

O padrão a ser observado aqui é novamente o de que Alexandre, com a idade, passou de um lado a expor-se cada vez mais e de modo mais insensato e ao mesmo tempo, a dar menos atenção (a julgar pelos testemunhos de que dispomos, insisto - tardios e/ou fragmentários) ao uso de humint no sentido convencional que o termo pode ter modernamente (ainda que entendido em termos da Antigüidade, guardando-nos tanto quanto possível do anacronismo).

14

Idem, 60.1. Modernamente, o exército fictício montado sob o “comando” de Patton na Inglaterra e que destinava-se a confundir os alemães á vésperas da invasão da Europa realizaria sua tarefa de modo semelhante apenas o “ruído” aqui é de natureza radiofônica, e obteve resultados semelhantes. 15 Arriano. Anábasis de Alexandre 5.9. 16 Plutarco, Vida de Alexandre 5.1. É interessante notar que embora notáveis como perguntas feitas por uma criança, as informações obtidas devem ter contribuído mais para a lenda da sagacidade precoce de Alexandre (como os emissários persas observam na passagem que segue-se às perguntas) do que para a expedição propiamente dita, na qual não se faz menção desse tipo de humint obtido durante a infância.

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Ao mesmo tempo, sua crescente exposição aos riscos da batalha tornava-o involuntariamente um praticante cada vez mais assíduo da autópsia em campo de batalha. É de se notar que numa fonte especialmente confusa, mas tornada útil pela escassez de outras em primeira mão ou mais próximas da vida de Alexandre, encontramos o gosto pela autópsia detalhado ao ponto de se ficar sabendo que Alexandre tinha atração pelos disfarces, como um Canaris antigo; mesmo levando-se em conta que se trata de obra nada confiável historiograficamente, a passagem pode ter sido inspirada em Onesicrito, um dos que escreveram à época de Alexandre17. Por fim, humint e sigint no sentido oracular parecem unir-se de modo especialmente interessante num oráculo relacionado às primeiras perseguições de Alexandre a Dario:

[...] Alexandre encontrou um guia para conduzi-lo pela Pérsia [CF> ARRIANO]. O homem falava duas línguas, pois seu pai era lício e sua mãe persa; e era ele, dizia-se, de quem a pitonisa falava ao dizer que Alexandre teria um lício [i.e. um “lobo”, lykos] como guia em sua marcha contra os persas18.

Aqui vemos a simbiose dos dois elementos: o oráculo que prevê o “lobo” como guia e a função que este, ao menos no relato de Plutarco, exerce efetivamente, e não apenas no plano religioso ou oracular, já que o rapaz efetivamente conduz Alexandre e seu exército. No entanto, semioticamente, há uma diferença essencial no que dispomos para falar da signint nos dois casos estudados neste capítulo. Seja pela natureza de seu estilo de comandar19, seja pelo seu temperamento como um todo ou seja apenas pelo capricho das fontes, o peso dos oráculos era muito maior entre os exércitos de Alexandre (ou dos gregos antes dele; é eloqüente como exemplo de planejamento tático associado ao uso de oráculos a defesa de Atenas por via naval na guerra contra os persas)20. Por outro lado Josefo enfatiza a inutilidade de tais práticas - sem dúvida como apologia ao rigor do monoteísmo judaico - no

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Romance de Alexandre, versão grega. Cf. Richard Stoneman (ed.). The Greek Alexander Romance. London: Penguin, 1991 e Donald W. Engels. Alexander the Great and the Logistics of the Macedonian Army. Berkeley / London: University of California Press, 1978. 18 Plutarco. Vida de Alexandre 37.1. Compare-se o episódio todo em Plutarco com o uso criterioso que Amianus faz de um “informante não-combatente” nas páginas seguintes; na obtenção de inteligência militar - humint ou sigint a variedade de fontes atestando o mesmo fato é, como na historiografia, penhor de verdade - mas na atividade militar a variedade de fontes é crucial, o que não ocorre com a historiografia. Idealmente, o “ciclo de inteligência” deve compor-se de fontes tão variadas quanto possível, desde que todas ou a maioria atestem a verdade almejada. Evidentemente, fontes diferenciadas como não-combatentes, desertores, civis e comerciantes não responderão de modo uniforme ao que lhes é indagado, e nisso reside o risco de imprecisão que suas informações acarretam. Cf. Austin e Rankov, op.cit. p.67. 19 Como outros comandantes modernos - mas por razões inteiramente diversas, já que a monarquia macedônica exigia de seu líder a façanha militar -, Alexandre expunha-se não só por temperamento como também por necessidade aos riscos da batalha face-à-face; cf. Keegan, Máscara, pp73; 78 e 97. 20 Heródoto. Histórias 7.141..

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episódio em que Mossolamo, mercenário judeu do perído de Alexandre e dos Diádocos, afronta acintosamente os oráculos condutores de uma coluna militar da qual fazia parte21. Portanto, ainda que isso soe menos compreensível aos olhos modernos, o exame de oráculos religiosos desempenhava um papel muito maior (juntamente com a autópsia) no tempo de Alexandre, dos Diádocos e dos reinos helenísticos do que entre César, Pompeu, Agrícola e mesmo militares bem posteriores, como Juliano ou Procópio. O chamado “ciclo de informação” descrito anteriormente encontra um de seus melhores exemplos na Antigüidade em Amiano Marcelino, 18.522:

[Após falar da ineptitude de Sabianus, envolvido n campanha contra os persas ao tempo de Juliano (361-363)] [...] nossos batedores informaram que o inimigo estava em estado febril de preparação, e isso era repetidamente confirmado por desertores, deixamos o homenzinho [Sabianus] espreguiçando-se e marchamos à toda força para a defesa de Nisibis [...] e vimos fogueiras vindas do lado do Tigre [...] em tamanho volume que estava claro que o inimigo havia cruzado o rio. [...] Encontramos um garotinho bem-vestido no caminho, de uns oito anos de idade, que nos disse ser filho de um homem de boa família mas que havia sido deixado para trás por sua mãe, que o considerou um estorvo na fuga. [Trouxe o garoto em segurança para uma de nossas torres] .

Depois do episódio do abrigo do garoto, Amianus continua com dois novos detalhes interessantes acerca de como obter informações em meio à batalha: numa área florestal denominada Meiacarire, abandonada por seus habitantes, foi encontrado apenas uma pessoa um soldado persa, de quem sabemos muito para as circunstâncias:

Ele era um nativo da Gália nascido na Lutécia e tinha servido num regimento de cavalaria, mas para escapar da punição por alguma infração havia desertado para a Pérsia. Lá ele casou-se e constituiu família, e era tido em tão alta conta que era empregado como espião, e com freqüência trazia informações confiáveis de nossas linhas. Naquela oportunidade ele tinha sido enviado por Tampsapor e Nohodares, os mais graduados no setor dos ataques, e já estava voltando para informá-los. Após nos contar o que sabia das operações inimigas foi morto. Esse incidente aumentou nossa anxiedade [...] [Em Amida, cidade em pé-de-guerra], nossos batedores juntaram-se a nós, e trouxeram um pedaço de pergaminho escrito em código e escondida numa bainha. [Segue-se o conteúdo]. Quando a mensagem foi decifrada, com grande dificuldade, pudemos traçar um plano inteligente.

Aqui, o quadro da aquisição de humint apresenta-se quase que de modo completo: aquisição (misto de autópsia por Amianus e batedores, mais o garoto e o desertor), entrega (a mensagem capturada na bainha), aceitação (dificultada pela “cifragem”), interpretação (termos obscuros ou anacrônicos usados para proteger seus portadores de represálias) e 21

Josefo. Contra Apião 1.201. Ammianus Marcelinus. The Later Roman Empire (A.D. 354-378). London: Penguin, 1986. Seleção, tradução e notas por Walter Hamilton e Andrew Wallace-Hadrill). 22

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implementação (o plano que envolvia a simpatia e os serviços de Corduenus, um estadotampão entre a Pérsia e o Império Romano). A sofisticação dos métodos empregados por César em pouco diferia dos de Amianus tecnicamente, embora distante quatro séculos no tempo. Todavia, enquanto o testemunho de Amianus é fragmentário - algo de que nos esquecemos com freqüência, dado o tamanho considerável dos fragmentos, algo que também ocorre com Tácito e Políbio, para citar apenas dois exemplos -, o de César encontra-se virtualmente completo para nossos fins. Talvez não encontremos nos textos de César - ou nos que lhe são atribuídos - um exemplo tão completo do “ciclo de inteligência” tal como o de Amianus descrito acima, mas a variedade de estratagemas usados por César contra inimigos de todos os tipos (de Pompeu às tribos gaulesas e ibéricas) é desconcertante. Na Gália Júlio César não podia contar, obviamente, com a boa-vontade de reis-clientes (outra fonte essencial para a humint na Antigüidade), mas dentro dos limites que a civilização essencialmente rural da Gália lhe impunha, ele fez bom uso de aliados como informantes. Assim, vemos que no começo de 57 a.C. os senones, preocupados com os movimentos dos belgas, são deliberadamente utilizados por César para mantê-lo à par dos movimentos destes últimos: Ele encarregou os senones e os gauleses restantes vizinhos dos belgas para descobrir o que os últimos pretendiam fazer e mantê-lo informado sobre isso23.

Os meios pelos quais César obtinha essas informações não fica de todo claro, mas envolvia a variedade de fontes de humint que é sempre desejável teoricamente - e esse é um ponto que César deixa claro, já que mantendo-se a uma distância de 15 dias de marcha dos belgas, os aliados entre ambos permitem-lhe, coisa rara em se tratando de aquisição de inteligência militar na Antigüidade, planejamento não apenas tático como estratégico. O leitor deve ter percebido que a maior parte dos exemplos fornecidos até agora neste capítulo trata de humint ou mesmo de signint aplicadas à situações táticas, e não estratégicas24. Por vezes o uso de exploratores combina-se com o de habitantes locais, dotando César de um quadro bem completo do que o aguarda (caso dos remi, hostis aos belgas, juntamente com os exploratores; também aqui a variedade é fator-chave para o sucesso no uso da humint). Deve-se notar, contudo, que mesmo no caso de um comandante hábil na seleção de uso de humint como

23 24

César. Guerra das Gálias 2.2. Austin e Rankov, op.cit. p.22.

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César, seu uso estratégico é esporádico; podem ser reflexo das fontes, ou ainda da cartografia da época e suas limitações25. O mesmo procedimento é observado na expedição de César às Ilhas Britânicas em 54 a.C., quando cinco tribos forneceram, como parte do “pacote diplomático”, informações detalhadas sobre um forte mantido pelo líder Cassivellaunus:

Quando os trinobantes foram postos à salvo dos ultrajes das tropas, os cenimagni, os segontiaci, os ancalites, os bibroci e os cassi enviaram delegações e renderam-se a César. Deles ele [César] soube que o reduto de Cassivellaunus não ficava longe dali, protegido por florestas e pântanos; e que ele havia reunido quantidade considerável de homens e gado26.

As patrulhas de exploratores, por sua própria natureza “romântica” (mais do que os procursatores, que desempenhavam um papel de reconhecimento imediato), tendem muitas vezes a ter seu papel exagerado na época de César; todavia, após o séc.II d.C., com o crescente interesse nos movimentos dos marcomanni passam a ser estacionadas de modo mais sistemático no limes danubiano, como atestam inscrições [IMAGEM?]. Ao tempo de César até o séc.II, os mercadores, intermediários naturais entre o mundo bárbaro e o romano, são fator fundamental na aquisição de humint - os prejuízos que o deslocamento de mercados podia causar aos comerciantes locais em detrimento da segurança romana é atestado por várias fontes27. O tipo de informação obtido por meio de comerciantes é exemplarmente atestado por Tácito ao referir-se à Irlanda e o que dela pôde Agrícola saber por intermédio dos negociantes:

[A Irlanda] é pequena em comparação com a Britânia, mas maior do que as ilhas do Mediterrâneo. Em solo e clima, e na natureza de seus habitantes, parece-se muito com a Britânia; e seus acessos e portos tornaram-se agora melhor conhecidos pelos mercadores que fazem negócios lá28.

Retornando a César, é em seus escritos que encontramos o uso mais consistente do elemento adversário como forma de humint. Noutra passagem da Guerra das Gálias, vemos que sua campanha contra Ambiorix em 52 a.C. foi precedida de razoável trabalho de inteligência: 25

É o caso do exemplo fornecido por Plíno em sua História natural 6.141, ao referir-se a um certo Isidoro ou Dionísio de Charax enviado à Armênia por Augusto no ano 1d.C., como parte de uma força de reconhecimento que teria implicações de longo alcance. 26 César. Guerra das Gálias 5.21. 27 Tácito. Germânia 41.1; Histórias 4.64; Cássio Dio 71.11 ss.; Amianus 27.5; Procópio. Guerras 2.28 ss. mesmo os dois últimos lidando com períodos bem tardios. 28 Tácito. Agrícola 24.2.

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Assim, tendo resolvido esses assuntos, por estar convencido de que Ambiorix não lutaria uma batalha decisiva, ele [César] começou a examinar que outros cursos de ação lhe estavam abertos29.

Conclusão

Como conclusão da natureza do trabalho de procursatores, exploratores e kataskopoi deve-se dizer que, sem o acesso direto ao alto-comando o “ciclo de inteligência” demoraria mais tempo para fechar-se do que o necessário para a obtenção de uma vitória. Também aqui César mostrou-se extremamente prático ao permitir o acesso desses soldados especializados à sua pessoa a qualquer momento e sem mediações. Em suma, toda a discussão travada neste capítulo baseia-se, em última análise, em algo que persiste em todos os esforços sistemáticos de aquisição de inteligência militar, da Antigüidade aos dias de hoje - no fato do inimigo, como um animal de caça, tem hábitos relativamente previsíveis30. Entre a impetuosidade de Alexandre, que nos chegou com séculos de atraso dos testemunhos contemporâneos ou em fragmentos dos mesmos, e a meticulosidade de César - e de seus sucessores na arte militar até o séc.IV d.C. - observamos duas mudanças decisivas. A primeira, o fato do comandante supremo não necessitar mais estar “sempre” à frente de suas tropas (César podia fazê-lo quando lhe conviesse, ou mais raramente, quando não tinha escolha; Amianus viu-se em situações perigosas também, mas não se pode comparar os dois líderes em envergadura de comando, nem no escopo de suas ações). O risco de sua exposição conduzia cada vez menos a sucessos espectaculares como os de Galério, no tempo de Diocleciano (na Armênia, 297-298): por meio de sua autópsia, ele obteve a aquisição de humint tão perfeita que resultou numa vitória completa, que incluiu a captura da família de Narses e numa quantidade imensa de saque31. Todavia, pode-se dizer que tais episódios, além de raros - ao que parece, começava-se a perceber que a reposição de um oficial capaz era custosa demais para arriscá-lo num episódio gladiatorial - passavam a ser mal-vistos. Plutarco, em sua Vida de Marcelo, falando de um período bem anterior ao de César (208 a.C.) afirma, com certo desdém, que ele morrera a 29

César. Guerra das Gálias 6.5 ss. Disso já estavam bem conscientes Procópio (Guerras 2.18) e antes dele, Vegécio (Epítome da ciência militar 3.6; 4.27). 31 Eutrópio 9.25; Festus. Breviário 25; Amianus 16.10; Sinésio. Sobre a realeza 17). 30

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morte de um tocaieiro (prodromos) ou de um batedor (kataskopos)32. Raros são, por comparação, episódios como o que Tácito narra nos seus Anais 12.35, em que a autópsia levada à cabo pelo comandante romano Ostorius Scapula levou à vitória contra os bretões em 50 d.C.. É sintomático que somente após o séc.IV passemos a ter notícia do aumento de oficiais seniores nas operações de reconhecimento - possivelmente relacionado à desqualificação do soldado comum a ser treinado para semelhantes tarefas33. Em segundo lugar, e como função da profissionalização do ofício militar, nota-se o declínio geral dos oráculos como forma de sigint. Por estranhos que possam parecer à sensibilidade moderna, na ausência de tropas especializadas em reconhecimento, os oráculos preenchiam uma lacuna importante (o que não significa dizer que o fizessem de forma eficaz) no conhecimento do que estava “do outro lado da colina”, na definição concisa de Wellington sobre a natureza da atividade humana - em última análise, ver o que não pode ser visto em condições normais, ou, para utilizar um termo popularizado por Ginzburg, servir-se de um “saber indiciário” que permitisse identificar o animal pela sua pegada. Nesse sentido, a realização romana é notável - mas é ainda mais surpreendente que, entre a origem venatória de tal saber e sua aplicação ao “inimigo” tenham se passado tantos milênios.

Da coluna de Trajano: dois exploratores cumprimentam o imperador durante uma campanha da Primeira Guerra Dácia, contra os roxolani (cf. Austin e Rankov, lâmina 6)

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Plutarco. Vida de Marcelo 29; cf. também Apiano. Guerra anibálica 50. Políbio também censura a imprudência com que Marcelo e Cispinus partiram para um reconhecimento com o apoio de apenas 220 cavalarianos. 33 Amianus 24.4.

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Bibliografia Documentação

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Obras Gerais

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GUERRA, DIREITO E RELIGIÃO NA ROMA TARDO-REPUBLICANA: O IUS FETIALE

Claudia Beltrão da Rosa Departamento de História – PPGH - UNIRIO

Fetiales, quod fidei publicae inter populos praeerant (Varrão, De lingua latina, XV)

Num ermo, onde a terra romana encontrava-se com a terra de outro povo latino, legados do povo romano, sacerdotes de cabeça velada, exigiram reparação pela violação de um tratado. O líder da comitiva, o pater patratus, exclamou: Ouça, Júpiter! Ouçam, confins! Ouça, Justiça! Eu sou o núncio do povo romano e estou devidamente investido para tal; que a fé esteja em minhas palavras! Declarando-se núncio legítimo do povo romano, apelava à Fides, garantia da sua palavra, recitando os termos da demanda e chamando a Júpiter como testemunha: Se peço a rendição desses homens ou desses deuses de modo contrário à justiça e à religião, que eu jamais reveja minha terra nativa. A seguir, nomeou também a Jano Quirino, invocando os deuses dos céus, da terra e do submundo para que o ouvissem: Ouça, Júpiter, e também Jano Quirino, e todos os deuses celestes, e os deuses terrestres, e os deuses infernais, ouçam-me! Eu vos chamo por testemunhas de que este povo é injusto e não cumpriu suas obrigações sagradas! O grupo retornou, então, ao Forum romanum, repetindo as mesmas frases a todos que encontravam. No prazo de trinta dias, em não havendo resposta, o Rei consultou o Senado, e uma guerra foi declarada. O pater patratus retornou à fronteira, levando três cidadãos romanos como testemunhas, e declarou a fórmula, lançando um dardo na terra do povo declarado inimigo e pronunciando uma fórmula ritual. É assim que Tito Lívio narra, em seu Ab urbe condita, I, 32, o ritual que iniciava a guerra na Roma dos Reis. Seu relato nos permite entrever alguns elementos do principal ritual deste grupo de sacerdotes, os fetiales, um colégio sacerdotal composto por vinte membros, encarregado dos ritos de declaração de guerra e paz: uma delegação de fetiales, conduzida pelo pater patratus e acompanhada por um condutor da erva sagrada (a verbena) colhida na Arx, demanda ao

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inimigo a reparação de um dano. Ao fim de trinta ou trinta e três dias, em não havendo a satisfação, o pater patratus retornava à fronteira, acompanhado pelo verbenarius, e lançava um longo dardo no território inimigo, pronunciando a fórmula da declaração de guerra. Percebemos, com clareza, que este ritual de guerra, composto por ritos e fórmulas jurídico-religiosas arcaicas, mobilizava as potências divinas a serviço da urbs. Muitas das fórmulas empregadas nessas ocasiões, plenas de lacunas, chegaram até nós em relatos como os de Tito Lívio (I, 24; I, 32), de Varrão (De Ling. Lat. V, 86), de Aulus Gellius (XVI, 4), dentre outros. Tais fórmulas compunham, ao menos em parte, o ius fetiale, pelo qual o colégio sacerdotal era regido. Segundo T. Lívio (IX, 5), a presença e as ações dos fetiales eram necessárias no momento da conclusão de um tratado (foedus), e nos conta, por exemplo, que fetiales foram enviados a Cartago após o término da II Guerra Púnica, carregando a verbena e seus lapide silice (longos punhais de sílex) para o sacrifício (XXX, 43). Segundo Beard, North & Price:

A estrutura básica dos colégios sacerdotais romanos é atribuída a Numa e assumida para o período republicano arcaico, quando já existiam os três maiores colégios sacerdotais: os pontífices, os áugures e os dois homens para o sacrifício (duoviri, depois decemviri sacris faciundis); um quarto colégio, os fetiales, talvez tivesse uma importância comparável aos três primeiros. Estes quatro colégios, cujos membros eram geralmente vitalícios, eram consultados pelo senado em sua área de responsabilidade. (1998: 18) Os reis que se seguiram a Numa também contribuíram – apesar de em um modo menos dramático – para as tradições religiosas romanas. Os rituais dos sacerdotes fetiales, por exemplo, que acompanhavam o estabelecimento de tratados e as declarações de guerra, (parte destes envolviam um sacerdote indo às fronteiras do território inimigo e cravando uma lança sagrada nele) já são citados no período dos reis (1998: 3).

Este colégio sacerdotal, segundo Dionísio (II, 71), foi instituído por Numa, mas, de acordo com T. Lívio (I, 32), sua introdução em Roma se deveu a Anco Márcio (I, 32), apesar de, em capítulo anterior (I, 24), supor que o colégio já existia no tempo de Túlio Hostílio. Tanto T. Lívio quanto Dionísio garantem que o colégio era proveniente dos aequicolae, um ramo dos équos, um povo que vivia no Nordeste do Lácio, e havia instituições semelhantes entre outros povos latinos. A maioria dos colégios sacerdotais romanos tinha responsabilidades que se ligavam diretamente à vida política da cidade. Os fetiales, como vimos, controlavam e realizavam os ritos pelos quais uma guerra era iniciada e encerrada apropriadamente, a fim de se garantir que a guerra seria justa (bellum iustum). Mas, não somente. T. Lívio relata que, na República Tardia, os

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fetiales atuavam junto ao Senado, aconselhando os senadores no que tangia aos procedimentos corretos para as declarações de hostilidade e outros temas que, em nossos termos, diríamos relativos às relações internacionais (XXXI, 8, 3). Decerto, a maior parte das informações textuais antigas sobre os fetiales são provenientes do final da República e posteriores, quando certamente muito do ritual do colégio tinha sido alterado com o passar do tempo. Cremos que podemos, contudo, ter como ponto de partida as informações de que os fetiales eram responsáveis, no período monárquico romano e no período republicano, por uma parte fundamental do ritual de guerra romano, assim como pelo que atualmente chamamos de ação diplomática entre Roma e outros povos. Nosso objetivo é abordar o fenômeno da guerra em Roma por um viés particular: a observação e a análise do ritual e da atividade do colégio dos fetiales, simultaneamente pertencentes ao domínio da religio e do direito (fas) em sua ligação com a deusa Fides. Teremos como guia a premissa de que o direito de guerra romano, por excelência, é o ius fetiale, que submetia a guerra a uma fides rigorosa, definindo as condições de garantia divina da ação belicosa.

Abordagens atuais do fenômeno da guerra em Roma

Pesquisadores distintos trataram a questão da guerra em Roma por diferentes ângulos de abordagem, no mais das vezes relacionando-a ao tema do imperialismo romano. Moses I. Finley, por exemplo, tratou da guerra no contexto da expansão territorial romana, e propôs uma periodização em três fases, caracterizadas pelo sistema de organização das conquistas: 1ª) uma primeira fase, marcada pela conquista da Itália Central e Meridional, que produziu presas de guerra e grandes extensões de terras, além de tropas auxiliares para o exército; 2ª) uma segunda fase, das Guerras Púnicas ao final da República, quando se deu a formação inicial do sistema provincial, aumentando as presas de guerra e os lucros obtidos dos provinciais, e 3ª) uma terceira fase, quando a pax augusta sob o principado reduziu as presas de guerra, mas aumentou a taxação e as requisições dos provinciais (FINLEY, 2002).

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Norberto Guarinello, também considerando a guerra no contexto do imperialismo romano, diz que o modelo apresentado por Finley não permite observar os elementos estruturais internos para a compreensão das motivações da expansão e as formas de sua organização. Este autor distingue dois períodos principais do imperialismo romano: um primeiro, das origens ao século III a.C., e um segundo, após o século III a.C., designadamente a partir da II Guerra Púnica. Guarinello segue, de modo interessante, a linha das alterações econômicas trazidas pelo acúmulo de bens, terras e escravos, que alterou a dinâmica e a própria natureza do imperialismo romano, tanto na utilização e distribuição dos recursos, quanto na forma de organizar e administrar os territórios conquistados (GUARINELLO, 1987). Consideramos, contudo, que o fenômeno da guerra constitui um campo de investigação por direito próprio, ou seja, que a guerra é um objeto de estudo passível de ser explorado per se. Em linhas gerais, optamos por trabalhar com três grandes linhas divisórias na história das guerras romanas, ou seja, três períodos essenciais, caracterizados cada qual por um tipo guerra nitidamente diferenciada em seus fins e suas concepções. É certo que se trata somente de um quadro-modelo, e seguimos a proposta de pesquisadores do antigo Centre de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes, fundado por Jean-Pierre Vernant, em 1964, atualmente denominado Centre Louis Gernet, em publicação dirigida por Jean-Paul Brisson (1969), que nos parece viável para tratar nosso tema num espaço tão curto. Como todo modelo, não se trata da pura realidade. Como sói acontecer com qualquer modelo, nos limitaremos a indicar as grandes articulações desta evolução, sem considerar no detalhe as variações de seu ritmo ou as irregularidades de sua progressão: 1º) na época real e etrusca, até a primeira metade do século IV a.C., podemos perceber que Roma praticou um tipo de guerra muito comum no mundo mediterrânico: a guerra como um modo particular de relação e de competição entre cidades vizinhas. Este tipo de guerra não punha em causa nem a existência das cidades beligerantes, nem a extensão de seu território, nem sua soberania política. A vitória trazia o prestígio, e, grosso modo, funcionava como um meio de trocas entre vizinhos. Este tipo de guerra explica os rencontros repetitivos de Roma contra os équos, os volscos, contra os etruscos de Fidena ou de Veios, assim como a anualidade das magistraturas militares e os rituais de guerra, que se mantiveram ao longo dos séculos, com algumas alterações. Este modo arcaico de guerra sofreu grandes alterações cerca do século IV a.C.;

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2º) a partir de meados do século IV a.C., a guerra muda de significado, tornando-se o meio principal de uma política de expansão, levada às últimas conseqüências nos últimos anos da República, com as campanhas de Pompeu, no Oriente, e de César, na Gália. É certo que a transição foi lenta e, por muito tempo, aspectos arcaicos da guerra subsistiram. As guerras do século III a.C., mesmo a I Guerra Púnica, que nem de longe lembra uma guerra de tipo republicano tardio, guardavam ainda a aura das épocas arcaicas, e estamos longe de discernir todos os passos destas transformações. Mas, ao longo dos três séculos que se estendem da dissolução da Liga Latina às Guerras Civis de fins da República, mudanças radicais não pararam de ocorrer, em função de objetivos novos e cada vez mais conscientemente afirmados. É a época, por exemplo, das grandes transformações técnicas, do aperfeiçoamento da tática manipular e a criação da frota romana, que rapidamente assegurou a urbs o domínio do mar. Guerras cada vez mais longínquas e fronts muitas vezes simultâneos levaram os romanos a pôr em ação forças superiores às quatro legiões tradicionais e anuais do exército consular, prorrogando tanto o tempo de serviço de seus legionários quanto os comandos de seus generais, a fim de assegurar a unidade estratégica (e temporal) de uma mesma guerra e admitindo nas fileiras os cidadãos capite censi, que não tinham terras a defender. A partir de então, a guerra trouxe conseqüências políticas que o século V a.C. não conheceu. A partir de cerca de 338 a.C., uma guerra levada por Roma, quer ela tomasse a iniciativa ou se defendesse de uma agressão, só terminava por uma modificação radical das relações políticas com o adversário. Da administração do direito de cidade à administração direta dos territórios conquistados por um promagistrado, passando por todas as variedades de estatutos que ligavam Roma aos outros povos, as formas concretas da conquista foram múltiplas no espaço e no tempo, mas o princípio era o mesmo: a vitória das armas romanas levava a sujeição política dos vencidos. A guerra se tornou o meio privilegiado de conferir a Roma o estatuto de caput rerum. 3º) Um novo período se inicia com o principado e a pax augusta. A guerra muda de sentido mais uma vez, para se tornar uma atividade periférica, apropriada para manter a integridade territorial e o funcionamento do imperium. Aos poucos, a expansão conquistadora deu lugar a uma concepção defensiva de guerra: tratava-se de assegurar a estabilidade das fronteiras e garantir a segurança interna. O papel da guerra nesta terceira fase – que apenas pontuamos, posto que ultrapassa os marcos cronológicos e temáticos deste capítulo – deixou de ser o de um instrumento de uma política imperialista para se tornar o instrumento de

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diferenciação entre o mundo romano e o mundo exterior. Esta mutação foi tão importante quanto as duas primeiras para a história de Roma e de seu Império. Assim, cremos que a guerra é um objeto de estudo per se, e este capítulo tem, então, o objetivo de trazer alguns elementos para o estudo da guerra em Roma, a partir do ius fetiale. Buscaremos relacionar o direito, a religião e o fenômeno da guerra em Roma, temas muito vastos, e sabemos que algumas questões importantes não serão tratadas, mas somente entrevistas, dados os limites desta publicação. Esperamos, contudo, estimular novas pesquisas, mais do que oferecer uma análise exaustiva e cabal sobre o tema do ius fetiale.

O “ritmo sacral” da guerra em Roma

Comecemos pela observação do “ritmo sacral da guerra”, uma fórmula de Jean Bayet (1984: 82) que designa a sucessão dos ritos religiosos de abertura e encerramento do ciclo anual da guerra, por meio da qual defendeu a tese de que os rituais de guerra indicavam a vontade de fazer do fenômeno da guerra algo exterior à urbs. H. Le Bonniec (1969), por sua vez, estudou o tema de modo sintético, tratando do ciclo da guerra no interior do calendário romano. Examinou, também, aspectos religiosos de uma campanha militar romana, desde o início das hostilidades até às cerimônias de ação de graças pela conclusão da paz. Por fim, analisou deuses e deusas de “vocação guerreira”. Os ritos de abertura da guerra eram iniciados com as danças dos sálios (salii), em março (então, o primeiro mês do ano), com os ancilia (escudos sagrados caídos do céu). Os cantos arcaicos dos sálios invocavam Marte, Júpiter e Jano. Usavam a vestimenta militar arcaica, com um escudo de tipo “micênico” e lanças itálicas. Os sálios foram identificados em outras cidades (Alba, Lavinium e Tusculum) da Itália central; trata-se, portanto, de uma instituição itálica. Sua dança principal ocorria em 19 de março, no festival do Quinquatrus, originalmente, um festival em honra de Marte e, à época de Cícero, de Minerva (LE BONNIEC, 1969:102).

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Figura 1 – Moeda (as) de Antonino Pio (Roma, ca. 143-44) . Cabeça laureada com legenda anverso: ANTONINVSAVGPIVSPPTRPCOSIII. No reverso, dois escudos, ladeados com S e C e legenda: IMPERATORII ANCILIA. Vemos, portanto, a presença de elementos religiosos arcaicos em ação em pleno século II d.C. Fonte: www.dirtyoldcoins.com.

Le Bonniec nos apresentou um quadro instrutivo das principais cerimônias de sacralização da guerra, como a Equirria, uma corrida de cavalos no Campo de Marte, em 27 de fevereiro e 14 de março (o significado das duas datas é ainda desconhecido). Sua finalidade parece ter sido a de purificar e sacralizar os cavalos. Outros rituais analisados por Le Bonniec foram o Tubilustrium, a purificação e sacralização dos trombetas de guerra, e ocorria em 23 de março e 23 de maio (também não se sabe o motivo da duplicidade da cerimônia), o Equos October, no qual o cavalo da direita do carro vencedor da Equirria era sacrificado no altar de Marte, em 15 de outubro. Sua cauda era guardada na Regia e a cabeça era disputada pelos habitantes da Via Sacra e da Suburra. Se os primeiros fossem os vencedores, fixavam a cabeça no muro da Regia; se o êxito fosse dos segundos, a fixavam na Torre Mamilia, e o Armilustrium, a purificação das armas, em 19 de outubro. Os sálios dançavam novamente, fora do pomerium, para purificar as armas do sangue derramado antes de serem admitidas no recinto sagrado da urbs. A guerra em Roma era, então, sacralizada por rituais do antigo calendário de festivais. Como vimos, em março havia uma série de rituais inter-relacionados, a maioria em honra do deus Marte – a partir do qual o mês foi nomeado – que correspondiam, em outubro, a outros rituais. Em ambos os momentos, o papel principal era reservado ao colégio dos sálios (Dionísio, II, 70, 1-5). Segundo J. Bayet (1984), os célebres festivais guerreiros do mês de março e do mês de outubro não tinham somente o fito de delimitar, pelos ritos de abertura e encerramento, a estação das guerras, mas também a intenção de separar do conjunto do corpo social e de suas atividades o guerreiro e a sua função particular. Para dar e enfrentar a morte sem escrúpulos nem hesitação, o

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combatente tinha a necessidade de se encontrar num tipo de estado de delírio que a língua latina qualificava com os termos furor e ferox; mas, é evidente que este tipo de transe necessário ao combate podia trazer efeitos desastrosos se subsistisse no interior da cidade. Em março, os cantos e as danças dos sálios, e a procissão dos ancilia, procuravam fazer nascer no coração dos soldados, que partiam ao encontro dos inimigos, o furor necessário ao bom sucesso de sua empresa. Em outubro, quando a estação de guerra era fechada e os combatentes voltavam para casa, era necessário livrar-lhes das forças sobre-humanas que lhes haviam religiosamente inspirado seis meses antes; era necessário reintegrá-los à vida normal da cidade, devolver-lhes o estado de quirites, de cidadãos da massa pacífica da urbs. J. Bayet chamou a atenção para o laço que havia entre o antigo “ritmo sacral da guerra” e a passagem anual, para um certo número de cidadãos, do estado de quirites ao de miles, e vice-versa. Desse modo, convém observar que, por mais arcaicos que fossem, os rituais guerreiros de março e de outubro continuavam a manter sua significação em fins da República, e mesmo sob o Principado. Tornados progressivamente desatualizados em seu papel de definição de uma estação de guerra conservavam, todavia, seu valor essencial de separar religiosamente as atividades guerreiras do resto das atividades sociais. As hostilidades tinham, então, início com a intervenção dos fetiales e a abertura das portas do templo de Jano. Bonniec (1969: 103 ss) delineia a cerimônia do templo de Jano, segundo a descrição de Virgílio (En. VII, 601 ss) e T. Lívio (I, 19), e ritos correspondentes, tais como o ritual do sacramentum, o juramento, do lustratio exercitus e do castramentatio (do acampamento militar), pelos quais o campo de guerra se tornava um templum, ou seja, um espaço consagrado, e que seguiam o rito de fundação de cidades e colônias, um ramo da arte augural exaustivamente estudado por Bouché-Leclercq (1931: 281ss) A condução das operações também era plena de ritos e fórmulas como a evocatio (fórmula pela qual o deus do inimigo era convidado a passar às fileiras romanas, em troca de honras e templos em Roma), o votum (promessas solenes) e outras fórmulas e ritos de consagração após o encerramento das hostilidades, como as supplicationes (sacrifícios solenes nos quais se agradecia aos deuses), e o triumpho, a honra máxima reservada aos imperatores. Em todos esses casos, estamos diante de rituais que garantiam o caráter sagrado das ações dos generais e seus exércitos.

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Que a religião e a guerra estavam em íntima relação em Roma é algo de que temos várias comprovações nas práticas sociais e políticas romanas: por exemplo, o costume de reunir os comitia centuriata, ou seja, a assembléia do povo em armas, fora do pomerium, no Campo de Marte. Aliás, o espaço sagrado de Roma, o pomerium, marcou sempre uma rigorosa fronteira que mantinha as atividades guerreiras fora da urbs. Nenhum cidadão podia se tornar miles no interior da urbs. Os exércitos conduzidos pelos cônsules se reuniam, ao partir em campanha, no exterior do muro sagrado e um general só era autorizado a entrar na urbs à frente de suas tropas na cerimônia do triunfo. Esta prática era tão arraigada na mentalidade romana que, com o desenvolvimento e a organização das conquistas, o interdito foi estendido, para os promagistrados, às fronteiras dos territórios provinciais. Conhecemos o famoso episódio da travessia do Rubicão por César, e os desenvolvimentos políticos e literários do caso. A decisão do procônsul da Gália de sair de sua província e passar à Itália à frente de um exército constituía um ato de insubordinação, radicalmente contrário às leis sagradas da cidade, e César teve de imaginar um dramático debate de consciência que só pôde ser resolvido por uma intervenção divina. Sem esta justificativa, César não contaria sequer com o apoio de seus soldados (César. BG, I). Em meados do século I a.C., portanto, Roma continuava a crer que a guerra era um fenômeno exterior à cidade e que devia ser regida pelo direito sagrado. Um fenômeno exterior, certamente, mas não independente. Mantendo a guerra numa distância respeitosa por um conjunto de práticas religiosas e sociais, Roma se preocupava em integrá-la em sua vida. O rito de abertura do templo de Jano em caso de guerra é, mesmo que ainda obscuro para nós, um bom exemplo disso: era necessário manter religiosamente aberto o caminho de retorno para os cidadãos em armas. Do mesmo modo, a tomada dos auspícios pelos generais em campanha e os votos que pronunciavam no campo de batalha não interessam somente às divindades ligadas explicitamente à guerra, mas ao conjunto dos deuses da cidade. Desse modo, a mesma religião que separava o combatente do resto do corpo social criava, assim, um laço entre ele e a cidade, ao lhe garantir um espaço próprio à sua atividade e um retorno seguro, além de lhe garantir o apoio de toda a coletividade. Roma, portanto, engajava a totalidade de suas forças sociais e religiosas na guerra.

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O ius fetiale e a Fides romana

Em 1993, perguntando pelos princípios legais que fundamentavam o campo de atuação dos fetiales, Alan Watson trouxe novamente à ordem do dia o debate sobre este colégio sacerdotal (WATSON, 1993). Este estudioso esclareceu muitos pontos obscuros no que tange ao ius fetiale e as relações entre Roma e outros povos latinos. A finalidade do colégio, segundo Watson, era a manutenção da paz e das boas relações com outros povos, ou seja, prevenindo a guerra e sancionando tratados de paz. Destacando a sua natureza legal, Watson, porém, minimiza sua natureza religiosa, ao considerar o colégio “notadamente não-religioso”. Alegando que os fetiales atuavam como “embaixadores seculares” e que não tinham nenhuma outra função religiosa, supôs que este colégio sacerdotal teve sua origem entre povos latinos que não tinham outros pontos em comum entre si além de algumas tradições religiosas. Os fetiales seriam, portanto, seriam sacerdotes pro forma, agindo como embaixadores e garantindo, assim, um denominador comum nas relações entre os povos latinos (1993: 42-3). Cremos, contudo, que a interpretação de Watson é anacrônica e modernizante, pois separa a religião da política, do direito e das atividades militares das sociedades. As discussões modernas costumam resvalar pelo anacronismo, aplicando crenças modernas como verdades universais e atemporais (BELTRÃO, 2003; 2006). Apesar de a análise do ius fetiale feita por A. Watson ressaltar aspectos importantes no que tange ao direito – denotadamente o direito internacional – deixa a desejar no que se refere à situação e atuação dos fetiales no sistema de organização dos colégios sacerdotais romanos, especialmente por defender que este colégio não estava envolvido nos casos de deditiones (ou seja, capitulações) coletivas. A interpretação de Watson é, então, interessante, pois tenta ultrapassar as lacunas da documentação histórica, assim como a simples descrição dos ritos pela reprodução das referências antigas aos fetiales, buscando uma análise mais acurada das estruturas sociais e legais da guerra, apesar de ter descuidado do aspecto religioso do ius fetiale, assim como não tratou da idéia da guerra justa, especialmente no que tange à República tardia, da qual Cícero (ainda) tem muito a nos dizer. No De Haruspicium responso, Cícero declarou que o escrúpulo religioso era a principal causa do sucesso militar romano (Cícero. Har. 19; BELTRÃO, 2003) e no discurso De Domo sua, vemos a seguinte declaração:

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Entre as muitas instituições, membros do colégio dos pontífices, criadas e estabelecidas por nossos antepassados sob a inspiração dos deuses, nada é mais sábio do que sua decisão de atribuir aos mesmos homens o culto dos deuses e o cuidado dos interesses da República; o resultado é que os mais ilustres cidadãos podem assegurar a manutenção da religião pela administração apropriada da República e a manutenção da República pela cuidadosa interpretação da religião (Cícero, De domo sua, 1).

Na fala de Cícero vemos, pois, uma declaração explícita de que religião, política e a guerra estavam em estreita associação na República romana. Mas, até pouco tempo atrás, as instituições religiosas romanas eram pouco estudadas pelos historiadores, especialmente por serem consideradas carentes de unidade ou de coerência de doutrina, o que acabava por limitar a análise historiográfica. Na Roma antiga, a idéia de religião era muito distinta da visão ocidental moderna da experiência religiosa. As interpretações mais recentes do papel e da natureza dos rituais apóiam a tese de que ocupavam um papel central na cultura e no funcionamento da sociedade (SCHEID, 1993). Como pode ser facilmente demonstrado que os romanos levavam seus rituais com extrema seriedade, e que tinham uma relativa tradição de refletir sobre eles, é verossímil pensar que podemos fundamentar nosso conhecimento sobre sua religião com base na documentação disponível. Por outro lado, os rituais são, ou pelo menos os romanos eram, por sua própria natureza, invenções não individuais, mas sim eram concebidos como repetições infinitas do ciclo dos tempos ou de eventos que se repetiam; é por isso que, quando mudavam, a mudança devia ser suavemente conduzida e, mesmo, velada (BEARD & NORTH, 1990). Certamente, a expansão do imperium de Roma trouxe a necessidade de adaptações das tradições e rituais religiosos durante a República. Vários rituais de guerra, por exemplo, não eram mais apropriados, ou eram mesmo impossíveis de serem realizados, pois a guerra não mais se restringia à vizinhança de Roma. Um dos exemplos mais significativos da necessidade de adaptações é o próprio ritual da declaração de guerra dos fetiales. O costume dos sacerdotes procederem a um ritual na fronteira entre o território romano e o inimigo, cravando-lhe a lança na terra como um marco simbólico do início das hostilidades, tornou-se, na prática, impossível de ser realizado. Não era viável transportar sacerdotes ao local das hostilidades, pois isso demandaria, por vezes, meses. Mas, as inovações sempre estiveram presentes na religião romana e o ritual ganhou uma nova forma. Um pedaço de terra na urbs,

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perto do templo de Bellona, foi designado, por lei, “terra inimiga”, e era ali que os fetiales passaram a realizar seu ritual. Desse modo, quando a extensão do território romano tornou impossível a realização dos rituais, recorreu-se a uma “ficção legal”: o pater patratus lançava seu dardo num terreno destinado juridicamente a representar o território inimigo. Do mesmo modo, os ritos de conclusão de um tratado de paz eram da responsabilidade deste colégio. Neste local, tornado terra estrangeira, o pater patratus imolava um porco com seu lapide silice, invocando Júpiter e Fides como garantia do tratado (BONNIEC, 1969: 110) Desse modo, por um expediente legal, o ritual pôde continuar a ser realizado (RÜPKE, 2007: 105-7). Citemos um exemplo dado por Cícero: durante as guerras romanas na Hispânia, houve dificuldades para as legiões romanas. Hostílio Mancino, cônsul de 137 a.C., fez um tratado privado com os numantinos, após sofrer uma grave derrota. O Senado, contudo, não endossou seu tratado. De acordo com antigos precedentes, a recusa do tratado era acompanhada pela entrega do comandante ao inimigo. Mancino foi, então, enviado aos numantinos, nu e amarrado, pelos fetiales (Cícero, De Off. III, 109). Os numantinos teriam se recusado a recebê-lo, mas o tratado continuou a ser considerado inválido pelo Senado (CRAWFORD, 1973; ROSENSTEIN, 1990: 136-7, 148-50). Este incidente per se pode não provar muito coisa. Contudo, é um indício de que havia a manutenção dos ritos fetiales na República tardia.

Figura 2 – Aureus de C. Antistium Reginus (ca. 13 a.C.) Reverso: Dois fetiales realizam um sacrifício sobre um altar na conclusão de um foedus. Outro indício, portanto, da manutenção dos ritos fetiales (RIC 411): Monograma : C Antist Regin Foedus P R Qum Gabinis. [Naville – Ginevra, 3 (16. 6. 1922) = Evans, n. 21]

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Percebemos que o ius fetiale é fundado basicamente sobre o juramento, um ato regido pela deusa Fides. A deusa e a idéia de Fides são centrais na urbs, e foram objeto de vários e importantes estudos no século XX. Historiadores da antiguidade e estudiosos do fenômeno religioso, como M. Piganiol (1950), M. Dumézil (1970) e P. Boyancé (1962), analisaram esta noção. Jacques Heurgon (1969) nos chama a atenção, por exemplo, para a presença, na conclusão do foedus, dos sagmina (o distintivo trançado com verbena) do pater patratus e, em 1999, L. Cappelletti, tendo como base a ligação etimológica entre fides-foedus-fetiales, estudou minuciosamente cerimônias de foedera, a partir da análise de moedas itálicas dos anos 90 a.C (CAPPELLETTI, 1999: 85-92). Sua análise das moedas referenda a intervenção central dos fetiales na conclusão dos tratados e a importância do juramento nessas ocasiões. Os textos (tardios) que nos apresentam a centralidade da fides para os romanos são o De Officiis, de Cícero, e o Ab urbe condita, de T. Lívio. Dea Fides era a personificação divina da boa-fé que devia presidir aos foedera entre povos e às transações privadas entre os cidadãos romanos. A observância da fé jurada era uma virtude à qual os romanos eram particularmente sensíveis, e que simbolizavam em heróis que foram imolados em nome da fides, como Régulo, que retornou a Cartago, sabendo que seria torturado e morto, a fim de manter seu juramento (De Off. III, 197). Trata-se, então, de uma antiga divindade que engajava pelo juramento. A introdução de seu culto em Roma é atribuída a Numa e, de fato, seus ritos são visivelmente arcaicos. A deusa garantia, então, pelo juramento, os foedera concluídos entre Roma e outras cidades e povos, e não parece ter se restringido ao domínio jurídico, mas a todo o domínio moral, vinculada a outros valores igualmente morais como Concordia, Virtus, Pietas, Iustitia, também divinizados. Segundo J. Hellegouarc’h (1972, s.v. fides), o foedus era um substantivo derivado de fides, designando um pacto concluído entre duas pessoas ou dois grupos humanos, que se ligavam pela fides, referindo-se a acordos obtidos por Roma após uma deditio (T. Lívio, 34, 57), ou acordos voluntários, independentemente da natureza do acordo (pax, amicitia, societas). Tratava-se de um pacto ritual, de natureza religiosa, entre duas partes, e os fetiales eram os seus executores.

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Figura 3 - Tetradracma de Bruttium/Locri (ca. 275-270 a.C.) Anverso: cabeça laureada de Zeus; reverso: Roma sentada, sendo coroada pela Pistis. Monograma à esquerda ΡΩΜΑ (Roma); à direita ΠΙΣΤΙΣ (Fides), e ΛΟΚΡΩΝ no exergo. SNG ANS 531; SNG Lloyd 645. Vemos a importância da Fides. A cidade grega, após a Batalha de Benevento, capitulara e celebrara um tratado com Roma in fidem uenerat. A imagem tinha, certamente, a intenção de garantir a paz e a benevolência do vencedor, reafirmando a força moral dos foedera. Fonte: http://www.roth37.it/COINS/Pirro/monetazione.html

A antigüidade da Fides é atestada pelo arcaísmo do ius fetiale. Os estudiosos concordam que, desde a época monárquica, Roma elaborara um código diplomático preciso, fundamentado na religio, em seu sentido de constrangimento, e nas garantias dos foedera, criando a noção de bellum iustum (guerra justa). A guerra justa era aquela que reparava uma violação do direito, caso não fossem atendidos os pedidos de reparação. Era, então, declarada segundo as formulae dos fetiales. A. Magdelain (1990: 196ss), mostrou que o ius fetiale se baseava no direito civil arcaico, no qual se concedia 30 dias para que o infrator repasse os danos cometidos à vítima, ou seja, uma conditio que, segundo T. Lívio (I, 32, 11) foi criada em torno do século V a.C., entre as diversas cidades da Liga Latina, e que Roma estendera às suas relações com outros povos. No caso da Liga Latina, seriam trinta dias de conditio no caso da existência de um tratado prévio, e 33 dias, na falta de um tratado. Como Cícero nos diz: Em relação à guerra, leis humanas foram elaboradas no ius fetiale do povo romano sob todas as garantias da religião; e pode-se concluir que nenhuma guerra é justa, a menos que conduzida após a realização de uma demanda oficial de reparação, uma advertência e uma declaração formal (De Off. I, 36).

Cícero afirmou reiteradas vezes que a guerra, quando necessária, deveria ser justa, como no De Re Publica, III, 34, ligando a guerra romana à idéia de defesa das agressões, de legítima

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defesa ou, mesmo, à proteção de seus aliados, quando ameaçados. E, no De Legibus, III, indica que a guerra justa devia ser eminentemente defensiva, declarando que um general não podia iniciar uma guerra sem estar devidamente autorizado e investido pelo povo romano, e que devia ser declarada e conduzida segundo o ius fetiale. Tal declaração se liga ao exemplo do cônsul Hostílio Mancino, relatado no De Officiis, III. Por mais que se verifique que esta “defesa” era, ou tornou-se, demasiadamente ofensiva, havia, contudo, um direito de guerra. A guerra era, então, regida e codificada pelo ius fetiale (De Off. I, 36). Certamente, as ações guerreiras romanas, ultrapassaram e violaram, em muitas ocasiões, as regras estritas do ius fetiale, como exposto por Cícero no De Officiis e alhures. Ainda assim, senadores continuaram a compor os quatro maiores colégios sacerdotais no chamado “período imperial”, agora por indicação do princeps, mesmo no caso dos fetiales, cujo ritual é atestado sob Marco Aurélio, por exemplo, ao declarar guerra em 179 d.C. (BEARD, NORTH & PRICE, 1998: 229). Podemos concluir que este colégio sacerdotal arcaico, os fetiales, situava-se na interseção entre o direito, a religião e a guerra mesmo após o principado, pois a atividade religiosa da elite romana

manteve-se

conectada

com

os

rituais

tradicionais

ao

longo

de

séculos.

Conseqüentemente, o estudo dos rituais romanos é tema de grande interesse para o historiador da antiguidade. Os rituais devem ser vistos sempre em relação com as idéias e crenças sobre o passado da urbs, formando um elo entre o passado e o futuro. Dessa forma, os rituais não somente representavam e definiam a identidade romana; em certo sentido, a constituíam.

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GUERRA E ESCRAVIDÃO NO MUNDO ROMANO

Fábio Duarte Joly1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Introdução

Em uma conhecida passagem do Digesto (I, 5, 4), lemos que “os escravos (servi) são assim chamados porque os generais costumavam conservar (servare) os cativos para venda, e não matá-los”. Esse esclarecimento etimológico encontrou uma duradoura recepção na história intelectual da escravidão, desde, pelo menos, Santo Agostinho (Cidade de Deus, XIX, 15). Embora o texto indique que uma guerra não torne necessariamente o cativo em escravo – a venda posterior realiza essa transformação –, é comum, nas histórias sociais de Roma, uma equação imediata entre guerra e escravidão, transmitindo a impressão de que a guerra era a principal fonte de escravos. A formação de uma sociedade escravista, na Itália clássica, é analisada como decorrência, direta e indireta, desse fenômeno, por sua vez, resultado da expansão militar romana pela bacia do Mediterrâneo entre os séculos III e I a.C.. Mas, se, por um lado, há uma facilidade em se enxergar o escravo como produto da guerra, por outro, a visão se turva quando se depara com o escravo na guerra. Este artigo propõe uma breve discussão das interpretações acerca das revoltas escravas no mundo romano, que ocorreram na Sicília e Península Itálica, nos séculos II e I a.C. Meu foco recairá nos pressupostos envolvidos na própria definição de “guerra” pelas fontes antigas e pela historiografia moderna.

Guerra e escravidão

A associação entre guerra e escravidão, e sua correspondente noção do escravo como cativo, encontra seus antecedentes nas fontes gregas e latinas, que apresentam a atividade bélica como uma das origens da escravidão (Modrzejewski, 1993). Essa associação foi reatualizada, posteriormente, naquela que foi denominada teoria da hostilidade natural, comum ao 1

Professor adjunto de História Antiga e Medieval na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

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pensamento político-jurídico do século XIX, que entendia que, na ausência de um acordo, não se podia conceber outras relações internacionais além da guerra (Dumont, 1987: 89). Uma aplicação dessa teoria pode ser vislumbrada no ensaio de Henry Lévy-Bruhl, publicado em 1931, no qual apresenta a tese de que o escravo era essencialmente um estrangeiro. De acordo com esse autor, a documentação romana permitia deduzir a idéia de que a escravidão era, acima de tudo, uma instituição de ordem essencialmente internacional, no sentido de que as duas noções de escravo e de estrangeiro se confundiam: o escravo nada mais é do que um estrangeiro sem direitos (Lévy-Bruhl, 1960). A guerra, ou a pirataria, era “a única fonte original de escravidão”, o que equivale a dizer que os escravos só podiam ser “não-romanos”. Uma forte relação entre imperialismo e escravidão também está na base de análises históricas e sociológicas acerca das conseqüências econômicas e sociais das guerras de conquista levadas a cabo por Roma nos três séculos finais da República. Keith Hopkins (1981), por exemplo, afirma que a entrada de escravos na Itália, como butim de guerra, e seu emprego em larga escala na agricultura, deslocaram, do campo para a cidade, camponeses livres, desvinculando-os da associação com a terra, base da cidadania, e levando, conseqüentemente, a uma diminuição do número de soldados. Moses Finley, por seu turno, enfatizou que a formação de uma sociedade escravista não se deve pura e simplesmente à oferta de escravos pelas guerras, e sim à demanda interna por trabalhadores. Em Atenas, e outras comunidades gregas no século VI a.C., e em Roma, desde o século III a.C., devido ao reforço da cidadania – dentre outros fatores, pela abolição da escravidão por dívidas –, a escravidão colocou-se como uma necessidade para suprir uma mão-de-obra que antes era provida internamente por um campesinato dependente. A escravidão oferecia a vantagem de uma exploração maior do trabalho, pois o escravo era uma propriedade, totalmente submetido ao poder senhorial e, além disso, um estrangeiro, isto é, sem laços de parentesco (Finley, 1991: 79). Na formulação de Finley, a escravidão caminhou lado a lado com a liberdade: a posição social do escravo reforçava aquela do cidadão. Um cidadão que tinha como poder de barganha, frente ao Estado, o fato de ser soldado, de lutar pela manutenção e expansão da cidade. Ambas as interpretações, diferenças à parte na acentuação do papel da guerra, comungam a ideologia do cidadão-camponês-soldado-proprietário. Trata-se de uma tradição que deita suas raízes já na própria Antigüidade greco-romana, que advoga o exercício das lides marciais como privilégio do cidadão. Haveria espaço nessa ideologia para o escravo que não seja como produto da guerra? Este ponto foi levantado por Peter Hunt, em estudo que detalha a participação de escravos nas campanhas militares gregas:

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O imperativo de se excluir não-cidadãos e basicamente escravos das atividades militares deriva de uma certa visão do exército, da cidade e da relação entre ambos. Nessa ideologia, o exército é concebido como consistindo de agricultores-hoplitas, intercambiáveis e iguais, e o corpo cidadão é visto como essencialmente uma unidade em contraste com o grupo dos escravos. Logo, um exército igualitário espelharia um corpo cidadão onde cada cidadão do sexo masculino tem direitos iguais perante a lei. Mas essas imagens do exército e do corpo cidadão, como entidades homogêneas, são idealizações que objetivam antes produzir unidade do que refletir a realidade social. (Hunt, 1998: 219)2.

Embora se careçam de estudos mais específicos para o caso de Roma, há elementos que indicam que a presença de escravos nos exércitos romanos se fazia notar. A reforma promovida por Mário nos anos de 104-103 a.C., na organização do exército, teve como um de seus alvos a quantidade de não-combatentes que acompanhavam os legionários, incluindo-se aí os escravos que carregavam o equipamento de soldados. Cada soldado ficou doravante encarregado de levar seu equipamento, enquanto escravos (denominados calones) ficaram responsáveis pelos animais de tração e carroças (Cagniart, 2007: 86-7). As reformas de Augusto incluíram a criação de um exército profissional que constava de legiões, forças auxiliares, frotas e unidades dentro da própria cidade de Roma. Embora apenas cidadãos pudessem servir nas legiões e frotas – conferindo-se a designação formal de miles ao soldadocidadão –, e na guarda pretoriana, as outras forças podiam incluir todos aqueles de nascimento livre. A admissão de libertos chegou a ser permitida, mas o ingresso de escravos era legalmente proibida, a não ser em casos de extrema necessidade quando então eram libertados antes do alistamento (Suetônio, Aug. 25, 2; Cod. Theod. 7, 13, 16, constituição imperial de 406 d.C.) (Wesch-Klein, 2007: 435). A realidade, contudo, nem sempre, coadunava com essa ideologia cívica. Embora os juristas romanos afirmassem que escravos, condenados e aqueles cujo status livre/escravo era duvidoso não podiam se alistar, o processo de recrutamento de tropas não estava isento da intromissão de escravos, como revelam cartas de Plínio a Trajano. Em uma delas informa ao imperador que muitos escravos constavam entre os recrutas e pergunta como deve proceder para puni-los, pois já fizeram o juramento, mas ainda não entraram nas listas (Ep., 10, 29). Trajano responde que aqueles que não foram designados para as unidades deveriam ser punidos, caso tenham ingressado voluntariamente; caso contrário, aqueles que tinham permitido tal inclusão deveriam ser punidos (Ep., 10, 30) (Phang, 2007: 288). 2

No caso brasileiro o episódio da Guerra do Paraguai ilustra semelhante processo de supressão na memória histórica da participação de escravos e libertos como combatentes. O termo “voluntários da pátria”, empregado pela historiografia do pós-guerra preocupada em fazer a apologia do Exército, encobria a procedência social dos alistados. As cartas de alforria registradas em cartórios são as únicas fontes que permitem mensurar a presença do negro liberto nos batalhões durante a guerra (Sousa, 1996).

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É, portanto, possível vislumbrar uma participação servil nos exércitos romanos para além do quadro transmitido pela tradição do soldado-cidadão. O pouco relevo conferido a essa questão, revelado pelas informações dispersas nas fontes antigas e na bibliografia moderna sobre história militar de Roma, demonstra uma dificuldade de se romper com essa tradição que pressupõe uma oposição essencialista entre cidadão e escravo, como se as fronteiras entre essas identidades não fossem permeáveis. Ou seja, não se concebe que um escravo possa atuar como “cidadão”, embora, curiosamente, é comum na literatura grecoromana – basta ver o pensamento estóico sobre a natureza humana – a caracterização de cidadãos que agem como “escravos”. Essa visão revela-se de forma ainda mais marcante na caracterização das revoltas servis sicilianas, de 136 a 132, e de 104 a 101 a.C., e a revolta de Espártaco, no Sul da Itália, de 73 a 71 a.C..

A difícil idéia de um bellum servile

Na primeira revolta siciliana, os escravos rebelados, dentre eles muitos pastores, tomaram a cidade de Ena e proclamaram como seu rei um sírio de nome Euno. A este grupo juntou-se depois outro liderado pelo escravo Cleon, da Cilícia. Após uma longa série de combates, as tropas romanas conseguiram debelar o movimento. O segundo levante servil na Sicília decorreu da recusa dos proprietários de escravos de obedecerem a uma resolução do Senado, que ordenava que os indivíduos de cidades aliadas de Roma que tivessem sido reduzidos à escravidão fossem libertados. Assim como na primeira revolta, formaram-se dois grupos de rebeldes, liderados pelo sírio Sálvio e pelo cilício Atenião, ambos derrotados por Roma. A última revolta de escravos ocorreu em solo italiano e, portanto, teve maior repercussão em Roma. Em 73 a.C., gladiadores instalados em Cápua sublevaram-se e, comandados pelo trácio Espártaco, infligiram graves derrotas às tropas romanas, sendo, ao final, suprimidos por Crasso. Como castigo exemplar, cerca de seis mil corpos foram crucificados ao longo da Via Ápia. As fontes disponíveis para o estudo dessas revoltas foram compostas num arco de tempo entre o século I a.C. e o século V d.C., incluindo autores de língua grega e latina, a saber, Diodoro da Sicília, Tito Lívio, Salústio, Cícero, Estrabão, Valério Máximo, Floro, Plutarco, Ateneu, Apiano, Santo Agostinho, Paulo Orósio e Júlio Obsequens. Alguns relatos sobre as revoltas servis, na obra desses autores, chegaram-nos na forma de resumos efetuados em épocas muito posteriores. É o caso da narrativa de Diodoro da Sicília, da qual perdemos os

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livros sobre as revoltas sicilianas, restando resumos bizantinos de autoria de Fócio e Constantino Porfirogeneta, dos séculos IX e X, respectivamente. Ambos os relatos apresentam variações significativas, embora contenham um núcleo comum (Shaw, 2001: 7980). Igualmente perdemos os escritos de Posidônio sobre os eventos na Sicília, mas cujos relatos foram incorporados por Diodoro e Ateneu (Urbainczyk, 2008: 83; sobre Posidônio em geral, ver Strasburger, 1965). Como se vê, a questão com que se defronta o historiador da escravidão é como compatibilizar as narrativas desses diferentes autores, transformando em unidade um mosaico de versões compostas em diferentes períodos e com um longo caminho de transmissão textual. Um dado que se destaca, nesse sentido, é justamente a preocupação em se manter em circulação uma memória das revoltas servis. A despeito de não se registrarem grandes levantes servis após o encerramento da revolta de Espártaco, a memória da mesma atravessou séculos, indicando que o tema da sublevação de escravos continuou atual. A produção antiquária e historiográfica, na Europa, Estados Unidos e União Soviética, entre os séculos XVI e XX, que cita essas sublevações testemunham a persistência desse fenômeno (Rubinsohn, 1993), para não falar da produção literária e cinematográfica. Espártaco, por exemplo, antes de o interesse marxista e socialista tê-lo tornado símbolo de uma revolução proletária, foi tomado como um ícone para, a partir do século XVIII, personalizar a luta por liberdade política na Europa do Antigo Regime e para caracterizar movimentos de unificação nacional novecentistas, como no caso italiano (Shaw, 2005). Na recepção e interpretação das revoltas servis do mundo romano, destaco um ponto comum ainda não estudado em todas suas implicações. Refiro-me às divergências – ou mais propriamente precauções – em se rotular esses movimentos como “guerras”. Tratou-se de revoltas ou guerras? Quais as diferenças entre ambos os conceitos? Esse problema já fora constatado na crítica humanista dos textos antigos. Carlo Sigonio, em seus Fasti consulares ac triumphi acti a Romulo rege usque ad Tiberium Caesarem, publicado em Mântua, em 1550, perguntava-se, mediante a comparação das fontes, se o levante de Espártaco teria sido um tumultus ou um bellum: Hoc bellum servile vocat Cicero pro lege Manilia; itemque Plutarchus, servilem tumultum Caesar libro primo de bello Gallico (Cícero, em seu Pro Lege Manilia, chama-o de guerra servil, e o mesmo faz Plutarco; César, no primeiro livro do De Bello Gallico, chama-o de tumulto servil) (cf. Rubinsohn, 1993: 13). É significativo que parta de César, um general cidadão romano, a qualificação da revolta de Espártaco como um tumulto e não uma guerra. Em passagem da narrativa sobre a guerra gálica, tal noção está associada à ausência de ordem e comando, reinante entre tropas gálicas (II, 11: strepitu ac

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tumultu castris egressi nullo certo ordine neque imperio). Interessava, portanto, estabelecer uma correlação entre status e a correta prática da guerra. Esta é prerrogativa dos “romanos”, sendo como que vetada, ou assumida indevidamente, por não-romanos, ou por grupos subalternos, como os escravos. Essa abordagem valorativa encontra expressão, de forma mais explícita, nos comentários de Floro sobre Espártaco: “Não sei como apelar a guerra promovida sob a liderança de Espártaco. Pois quando escravos servem como soldados e gladiadores são seus comandantes – os primeiros a mais baixa sorte de homens, os segundos os piores – eles apenas acrescentam irrisão ao seu desastre” (II, 8, 1; apud Shaw, 2001: 154). Antes, ao comentar a seqüência de guerras servis, desde aquela liderada pelo sabino Herdônio, em 460 a.C., Floro salientara: “Mesmo quando lutávamos contra nossos aliados – uma impiedade – ao menos lutávamos contra homens livres e nascidos livres; mas como suportar, sem incômodo, guerras travadas contra escravos (bella servorum) pelo povo que regia todos as gentes?” (II, 7, 1; apud Shaw, 2001: 102). Travar guerra com escravos é assaz indigno, de modo que Floro acrescenta que Perperna, o general que debelou os escravos no primeiro levante siciliano, contentou-se com uma ovação (ovatio), sequer exigindo um triunfo (II, 7, 8). Essa visão de autores de língua latina contrasta, em alguns pontos, com aquela de autores de língua grega, como Diodoro da Sicília e Plutarco, que mostram os líderes das revoltas sob um olhar inclusive positivo. Diodoro relaciona rebelião e maus-tratos senhoriais, isentando os escravos de uma animosidade natural, decorrentes da condição servil, enquanto Plutarco exalta Espártaco por ser, pela inteligência, “mais grego” (ellenikóteros) do que trácio, ao mesmo tempo em que possuía vigor físico (rhómen; mesma grafia de Roma, em grego) (Urbainczyk, 2008: 70; 86). Pode-se então aventar como hipótese que os discursos sobre as guerras servis revelam construções de uma identidade, grega ou romana, mediante um jogo de identificações e contra-identificações com os revoltosos, suas motivações e formas de organização. Trata-se de um tema de pesquisa em que se poderia investir, sobretudo tendo em vista o crescente interesse que tem assumido a questão das múltiplas identidades coexistentes no Império Romano e suas formulações por diversos setores das elites de Roma e das províncias. Porém, vejo que a dificuldade de classificação dos levantes servis vai além do campo identitário, envolvendo a própria concepção da possibilidade de ação concertada entre os setores subalternos. Isso fica claro na historiografia moderna sobre as revoltas de escravos, em especial naquela desenvolvida a partir de uma crítica dos estudos históricos marxistas que colocavam a luta entre senhores e escravos no centro do palco da transformação social.

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Escravidão e ação coletiva

Escrevendo em 1957, Joseph Vogt observou que “se examinarmos a grande variedade de fatores subjacentes às guerras servis, de Euno a Espártaco, e seus objetivos divergentes e mesmo mutuamente contraditórios, é surpreendente o quão facilmente uma escola da moderna pesquisa acadêmica aceitou a redução desses movimentos ao denominador comum do comunismo ou socialismo antigos” (Vogt, 1975: 83). Cito esse trecho não para desconsiderar o esforço de pesquisa que o marxismo imprimiu ao estudo das sociedades antigas, mas para realçar a mudança de enfoque que se produziu a partir da década de 1960 e que tendeu a reduzir o nível de ação coletiva dos escravos. Priorizam-se agora nos estudos sobre escravidão antiga mais os elementos que separam os escravos entre si do que aqueles que os aproximam. Isso se explica por uma ênfase na apresentação de uma identidade fixa do escravo– como propriedade –, que pressupõe, como seu oposto, apenas o senhor. A essa identidade é relacionada uma determinada forma de atuar que seria, essencialmente, individualista, com poucas chances de compor uma ação coletiva. É o que se pretende afirmar quando se enfatiza a heterogeneidade do mundo dos escravos, do ponto de vista étnico, lingüístico, geracional e econômico. O denominado “escravo-mercadoria” seria aquele com menor capacidade de articulação com seus pares, pois estaria totalmente subordinado a seu senhor e deslocado no contexto da diversidade servil. Suas estratégias de resistência seriam assim estritamente individuais, tanto no sentido de confrontar o poder senhorial (furtos, diminuição de ritmo de trabalho, fuga, assassinato do senhor etc.), quanto naquele de se acomodar a ele. Pelo contrário, quando se trata de formas de trabalho compulsório que abarcariam populações mais homogêneas, com um passado de vida em comunidades autônomas (como os hilotas, em Esparta), o potencial de revolta seria mais expressivo (e.g. Finley, 1978). A literatura moderna sobre as revoltas servis oferece uma ilustração de como é concebida a ação coletiva desses setores na Antiguidade. Em que medida os escravos revoltosos tinham objetivos claros de reforma social? Ao contrário da documentação levantada para revoltas servis no Novo Mundo, em que se pode contar com testemunhos e relatos de vários grupos envolvidos nos processos – escravos, senhores, missionários, governantes etc.; veja-se o caso da revolta de escravos de Demerara, Guiana britânica, em 1823 (Costa, 1998) –, no tocante às revoltas na Antiguidade, contamos apenas com a visão da classe senhorial, a qual é utilizada sobretudo sob a perspectiva de salientar a ausência completa de projetos sociais mais amplos pelos escravos, como faz, por exemplo, Keith

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Bradley em Escravidão e Rebelião no Mundo Romano (1989), obra que se tornou referência no tema. Para esse autor, as revoltas servis romanas guardariam relações com formas mais comuns de resistência à escravidão, sendo apenas expressões mais aberrantes dessas últimas, de modo que seria inútil imputar-lhes objetivos grandiosos. Os escravos desejavam tãosomente diminuir o peso da opressão e amenizar a sujeição a que estavam submetidos. Para reforçar esse argumento, o autor lança mão de comparações com o escravismo moderno, indicando que os padrões das guerras servis do mundo romano seguiriam aqueles do quilombolismo ou marroonage nas Américas, em que a resistência escrava não tinha como meta abolir a escravidão, mas garantir um nível de autonomia dentro do sistema escravista. Não haveria assim qualquer conteúdo revolucionário no movimento de massas de escravos na Sicília e Península Itálica nos séculos II e I a.C. Ao longo do livro, sua ênfase para explicar esse fenômeno recai na falta de coesão inerente ao grupo de escravos, dada a sua grande heterogeneidade. Em suas palavras: Em suas várias formas, a resistência à escravidão romana teve um caráter pontual em que influências teóricas ou ideológicas parecem ter tido papel algum além do fato óbvio de que a busca de liberdade fosse um ideal motivador para aqueles que diretamente se opunham ao sistema recorrendo à fuga ou revolta. Mas o ideal era somente de aplicação imediata: liberdade para aqueles que se dispusessem a agir por seu próprio benefício e não pela amorfa população escrava em sua totalidade. (Bradley, 1989: 44)

A resposta senhorial a esses eventos, que tiveram lugar no início da imposição da hegemonia romana no Mediterrâneo, refletiu posteriormente, de acordo com Bradley, no direito escravista. Mas, a despeito dessa alternativa de controle, o autor volta a insistir que, no fundo, foi a falta de consciência de classe dos escravos que tornou impossível lutas por uma causa comum. Esse ponto inclusive impactou nas táticas de combate, distanciando-as daquelas que conviriam a uma verdadeira “guerra”:

[A] falta de qualquer planejamento sistemático para a rebelião numa escala maior pelos dissidentes originais na Sicília e Itália é indicada pela maneira fortuita com que se equiparam, pois todos, desde o início, contaram apenas com armas improvisadas. [...] Sitiar cidades era um empreendimento complexo, até mesmo científico, no final da época helenística, exigindo um planejamento cuidadoso da parte da liderança em ofensiva, acesso a suprimento de alimento para a duração da operação, recursos, como madeira, para se construir máquinas cada vez mais sofisticadas, e a garantia de disciplina dentre as fileiras de soldados. [...] portanto, não é de se admirar que as iniciativas dos escravos foram mal-sucedidas. (Bradley, 1989: 104; 108-9)

Assim como César, Bradley identifica a ausência de coordenação e disciplina como características que não cabem a um exército. Daí sua alternativa a classificar as estratégias servis de combate como guerrilha à maneira dos quilombolas no Novo Mundo. Em suma,

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parte-se do princípio de que revoltas escravas estão fadadas ao fracasso tão logo despontem pela incapacidade inerente aos escravos de se organizarem. Como lembrou recentemente Theresa Urbainczyk (2008: 8), essa visão sobre o fracasso geral dessas revoltas reflete um consenso dentre os historiadores da Antiguidade, necessitando de uma reavaliação a partir do exame da literatura greco-romana disponível.

Conclusão

Toussaint L’Ouverture, o líder da insurreição escrava de 1791 na colônia francesa de Saint Domingue, foi, à época, chamado de “Espártaco negro”. Curiosamente, esta rebelião é considerada a única revolta servil que obteve sucesso – o que não se imputa àquela liderada pelo próprio Espártaco –, talvez, como afirmou Finley (1991: 119), por ter sido “chefiada por negros e mulatos livres”. Mas, como medir o grau de sucesso de uma revolta: pelo status de seus líderes ou pelos objetivos que alcança? O fato de as antigas guerras de escravos não chegarem a propor a abolição da escravidão – como ocorreu no caso de Saint Domingue – minimiza seus feitos? São questões de difícil resposta imediata, pois, no fundo, partem do que Niall McKeown (2007) denominou de “caixas mentais” (mental boxes), que constroem determinadas versões do escravismo antigo que embasam as narrativas historiográficas. Neste artigo pretendeu-se apontar uma delas, a que toma como pressuposto a desarticulação da massa escrava, rejeitando qualquer possibilidade de transformação desse fato. Contudo, a dificuldade das perguntas acima não nos deve intimidar na busca de outras caixas que gerem o exercício do contraditório nas pesquisas sobre um tema, a escravidão, cuja ubiqüidade nas sociedades antigas ainda estimula debates e controvérsias. Ainda mais quando os escravos ousam invadir um domínio ideologicamente circunscrito a cidadãos: a guerra.

Bibliografia Documentação: CAIO GIULIO CESARE. La Guerra Gallica. Milano: Rizzoli, 1992.

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MASCULINIDADE DO SOLDADO ROMANO: UMA REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA

Lourdes Conde Feitosa* Universidade do Sagrado Coração Maximiliano Martin Vicente * UNESP/Bauru

Introdução

Nas últimas décadas, as inúmeras reflexões e debates a respeito dos métodos e da escrita da História propiciaram o desenvolvimento de novas propostas para se interpretar a Antigüidade. A ampliação dos temas e o modo de abordá-los passaram a refletir o anseio de pesquisadores preocupados em questionar enraizados pressupostos e buscar outros suportes teóricos que permitam inserir, em sua área de conhecimento, a história daqueles até então dela excluídos e a rever antigos conceitos. Também abriu-se a possibilidade de se questionar os motivos que levaram à construção de diversas acepções do passado e a propor outras leituras, mais abrangentes e preocupadas com a diversidade do mundo antigo. Dentre esses estudos, a investigação sobre as concepções de feminino e de masculino têm se destacado, concebidas como categorias socialmente constituídos em grupos, tempos e espaços históricos definidos. A partir da prática de questionar as idéias e as certezas, marca de nosso tempo, da análise de construções historiográficas e da influência das discussões contemporâneas sobre as questões de gênero no conhecimento da Antigüidade Romana, a proposta deste texto é estender essas reflexões para outras narrativas históricas, em específico, projeções cinematográficas que retratem o universo romano. Isso porque a atenção para a relação entre presente-passado, tal como abordado acima, também tem sido prática corrente entre os pesquisadores interessados na análise de filmes *

Doutora em História Cultural pela Unicamp. Pós-Doutoranda em Comunicação pela Unesp/Bauru. Professora da Universidade do Sagrado Coração, pesquisadora associada ao NEE (Núcleo de Estudos Estratégicos) e ao CPA (Centro de Pensamento Antigo), ambos da Unicamp. * Professor Livre Docente do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp/Bauru.

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sobre outros momentos históricos. Desde os anos de 1990, por exemplo, são fortes as investigações cinematográficas inspiradas nos ‘estudos culturais’, que se preocupam em refletir sobre as imagens projetadas do ‘feminino’, do “masculino”, das representações de diferentes formas de sexualidade, das minorias étnicas ou da projeção de diversos grupos nas imagens fílmicas (Felici, Tarín, 2007, p. 33; Freire Filho, 2005). Seguindo essa perspectiva, neste texto apresentaremos uma reflexão a respeito da relação estabelecida entre História e Cinema e uma análise do perfil de masculinidade do soldado romano apresentado na série “Roma”, produzida pelas redes de televisão BBC, do Reino Unido e a HBO, dos Estados Unidos.

História e Cinema

É notório que vivemos, cada vez mais, em um ambiente midiático. Hoje, o modo de ser e de pensar é perpassado pela imagem, pelo imaginário, pelo simbólico, pelo virtual. A imagem coloca-se como elemento fundamental do vínculo social (Gomes, 2007, p. 165). Momentos e situações históricas são temas que inspiram as produções cinematográficas e televisivas e estas se colocam como importantes veículos de divulgação das concepções construídas sobre o passado histórico. Esses veículos colocam-se como instrumentos cruciais para a formação e a divulgação de uma ampla percepção sobre diferentes momentos históricos, como a Antigüidade Romana, e é por meio deles que um grande público de leigos interage com monumentos, textos literários, personagens e temas antigos (Wyke, 1997). Há diversas questões próximas e estreitamente relacionadas com o que se pode considerar o centro de um debate envolvendo História e Cinema. É possível estabelecer semelhanças entre o passado e o presente por meio das imagens em movimento? Responder a tal indagação nos leva a estabelecer parâmetros destinados a equalizar a simbiose pela qual se entrecruzam esses dois ramos do saber. Ambos elaboram narrativas e apresentam interpretações sobre o ocorrido. Entretanto, tais explanações, além de usar métodos e procedimentos diferentes, elaboram diálogos com outros componentes presentes nas culturas e contribuem, dessa maneira, para reforçar versões, interpretações ou mesmo estereótipos codificados na memória social de uma determinada sociedade. Tanto o Cinema como a História, nos seus procedimentos, apresentam uma seqüência de fatos que acabam reforçando determinadas cosmovisões, presentes no imaginário social e

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passíveis de desmistificação por reforçar interpretações nem sempre desejáveis e na maioria das ocasiões distantes de qualquer reconstituição crítica do evento abordado. Por outro lado, não se pode negar que o Cinema e a História caminham próximos, motivo pelo qual não se pode ignorar seu papel na constituição do conhecimento de uma determinada sociedade. Essa relação, assim entendida, torna-se complexa por adentrar no mundo da ideologia e das representações, o que demanda algumas considerações para avaliar como se materializa tal afinidade. Marc Ferro (1992), uma das referências mais lembradas no estudo do Cinema e sua vinculação com a História, sugere aceitar o Cinema como fonte para o entendimento das ideologias e mentalidades dos sujeitos da história. Considera a necessidade de se operar sobre o filme o mesmo procedimento que o historiador realiza com suas fontes de referência. Assim, em todo material gráfico accessível à população deve-se buscar evidências que permitam perceber e compreender como determinados eventos e períodos históricos adquirem sentido. O filme, dentro dessa perspectiva, carrega tanto o que seu produtor busca anunciar como outros componentes que vão além dessa aparente visibilidade encontrada no material visual. Como menciona Ferro (1992, p. 87), o filme:

não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sóciohistórica que autoriza. A análise não incide necessariamente sobre a obra em sua totalidade: ela pode se apoiar sobre estratos, pesquisar “séries”, compor conjuntos. E a crítica também não se limita ao filme, ela se integra ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica, necessariamente. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa.

Isso significa compatibilizar a análise interna da obra com as condições de sua produção, ou seja, com os aspectos históricos, estéticos, tecnológicos, sociológicos, econômicos e políticos do ambiente de composição dos discursos cinematográficos. Duas frentes se abrem nessa ótica. Na primeira, incluem-se as manifestações do diretor que podem ser encontradas na narrativa, nas idéias sobre determinados personagens, nos fatos selecionados e nas práticas ou ideologias dos personagens. Já a segunda, mais complexa, envolve os modos de narrar as histórias, a maneira empregada para marcar as passagens do tempo, os planos da câmara, ou seja, uma série de componentes que constroem uma parte denominada por Ferro de zonas ideológicas não visíveis, mas que também atuam sobre as pessoas expostas aos produtos visuais. Dessa maneira, suas observações nos levam a ver o filme como um produto que fala de uma realidade política e social que pode ser desconstruída pelo conteúdo e forma de apresentação dessa obra de arte para a sociedade.

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Ao aceitar que a imagem cinematográfica apresenta uma nova forma de informação, distinta do documento escrito, faz-se necessário uma análise crítica dos documentos utilizados para a sua realização e da compreensão do modo como ocorreu a sua inserção no momento de ser divulgado. Vale lembrar que, na atualidade, o lançamento de grandes produções envolve um espetáculo midiático destinado a criar expectativas e preparar o espectador para receber o produto a partir de determinados parâmetros nos quais se sobressaem os recursos tecnológicos empregados em sua elaboração, apresentação dos atores, custos de produção, entre outros, nos quais a divulgação do conteúdo acaba por ficar em segundo plano (Ferro, 1992, Thompson, 1998, p. 33). Um outro elemento importante consiste em examinar como as produções culturais da mídia, dentre as quais pode ser incluído o filme, incorporam em suas obras as lutas sociais existentes numa determinada sociedade. Nesse processo, ocorre uma releitura das preocupações sociais, pois as lutas concretas de cada sociedade são postas em cena nos espetáculos da mídia, especialmente os da indústria cultural. Para Douglas Kellner (2001), autor também preocupado com as questões da comunicação e da mídia e suas relações com a sociedade, o êxito de um filme, falando do lucro e da popularidade, depende do grau de inclusão das preocupações e interesses sociais contidas no produto midiático. Embora Kellner faça referência aos produtos massificados e industrializados, num momento em que os interesses comerciais se sobrepõem a quaisquer outros, vê neles um papel decisivo na hora de integrar uma sociedade em torno da ideologia capitalista. Nesse sentido, a cultura, de uma maneira geral, legitima e agrega as pessoas em torno de um projeto sabidamente consumista e suficientemente forte ao ponto de ditar os valores culturais de uma determinada sociedade. Por esses motivos preocupa-se com os mecanismos de indução que levam as pessoas a se identificarem com determinadas atitudes e valores. Por conseguinte, sua metodologia de estudo combina a análise da produção e da economia política dos textos; análise e interpretação textual e análise da recepção por parte do público e de seu uso na cultura da mídia. Ao incluir a recepção, rejeita um posicionamento determinista no qual as pessoas seriam totalmente dominadas pela cultura da mídia. Aceita que o público pode acatar ou rejeitar estes discursos na formação de sua identidade em oposição aos modelos dominantes, ou seja, aceita a existência de um espaço de negociação e de diálogo entre o consumidor e o produto cultural,

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no qual a relação estabelecida não é totalmente imposta ou totalmente rejeitada1. Essas reflexões nos permitem afirmar que o filme não ilustra nem reproduz a realidade, ele a reconstrói a partir de uma linguagem própria produzida num determinado momento histórico. Os filmes devem ser entendidos como produtos culturais de qualquer sociedade, portanto, que contribuem na formação dos valores da sociedade. Tal afirmação nos leva a aceitar que o uso do filme pelo historiador pressupõe uma série de indagações que ultrapassam as simples histórias contidas nos documentos visuais. Se nas décadas anteriores a este início de século eles repercutiam mais num determinado país, atualmente não se pode esquecer sua penetração mundial, motivo pelo qual dialogam não mais no âmbito local e sim global. Por essa razão, ler politicamente a cultura da mídia num mundo globalizado significa situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como seus códigos genéricos, a posição dos observadores, suas imagens dominantes, seus discursos e seus elementos estético-formais incorporam certas posições políticas e ideológicas capazes de produzirem efeitos políticos globais. Para decodificar a ideologia contida num filme é importante uma análise um pouco mais complexa na qual devem ser consideradas as imagens e outros conteúdos que compõe o filme, tal como som, roteiro, cenário, traçando um paralelo com o contexto histórico em que é produzido. Atenção para a relação estabelecida entre o modo como vários componentes sociais se organizam na construção de um produto visual, demonstrando a importância da análise das relações e das instituições sociais, nas quais os textos são compostos e consumidos (Ferro, 1992; Kellner, 2001). Nesse sentido, Kellner oferece um método bastante sugestivo para abordar o filme de maneira crítica. Num primeiro momento seria interessante observar o que denomina de horizonte social, ou seja, a identificação do local, época, cenário em que se dá a produção da película. Outro elemento ao qual se deve atentar diz respeito ao horizonte social no qual o público faz a releitura dessa peça cultural. Obviamente os espectadores carregam componentes culturais com os quais a mídia dialoga construindo uma nova reescrita do filme e de sua cultura. Finalmente se encontra um efeito cumulativo. De acordo com interesses particulares, determinadas estruturas podem ser denegridas ou favorecidas pela mídia, quando esta promove cumulativamente imagens e discursos com o objetivo de afetar a concepção das pessoas. Essas i-

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Também para John Thompson “mesmo que os indivíduos tenham pequeno ou quase nenhum controle sobre os conteúdos das matérias simbólicas que lhes são oferecidas, eles os podem usar, trabalhar e reelaborar de maneiras totalmente alheias às intenções ou aos objetivos dos produtores” (1998, p. 42; 153).

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magens nos preparam para, num momento posterior, aceitemos ou rejeitemos elementos para os quais essa obra visual teoricamente nos preparou. Isso faz necessário chegar-se à zona do não visível, ou seja, àquela que vê nos filmes construções, que foram idealizadas por um ou mais indivíduos e, portanto, não como espelho da sociedade e muito menos reprodução da História do modo como aconteceu. É, sim, uma interpretação dela. Nem mesmo os historiadores são capazes de contar os fatos da história tal como aconteceram (Foucault, 1984; Shack, 1994; Chartier, 1994; Joyce, 1995; Funari et al, 1999; Feitosa, 2000 e Fowler, 2000). Assim sendo, não podemos nem devemos achar que ao vermos um filme estamos assistindo o que se passou, mas sim entender que aquelas imagens e o processo através do qual foram feitas e montadas definem uma atitude social carregada de idéias e valores oriundos dos embates que diferentes grupos políticos mobilizam, põem em ação e tentam espelhar em seus produtos culturais (Ferro, 1992; Kellner, 2001). Isso abre caminho para explorar o modo como imagens, figuras, narrativas e formas simbólicas fazem parte das representações ideológicas de sexo, sexualidade, raça, classe e gênero, no cinema e na cultura popular. Ao conjugarmos as contribuições de Ferro e de Kellner, fica claro a superação de um dos inúmeros impasses levantados na tentativa de estudar conjuntamente História e Cinema. Tal impasse sustenta que as narrativas da História e do Cinema obedecem a finalidades completamente diferentes, pois no Cinema a narrativa já encerra a sua finalidade – contar uma boa história, esse é seu objetivo principal; na História, a narrativa é o meio pelo qual os historiadores compartilham com a sociedade os conhecimentos que construíram a respeito de uma memória que fez/faz parte de uma dada sociedade numa época determinada. Ora, se os filmes podem e devem ser entendidos como elementos que afetam o público além de refletir um contexto sócio-histórico no qual são produzidos, o resultado final tem uma estreita ligação com o comportamento social, seja pela aceitação ou rejeição de tal produto midiático. Há, portanto, uma dinâmica que opera no campo da cultura entendida como lócus de disputas e espaços privilegiados na hora de elaborar valores, significados e interpretações. Mas, a questão carrega outros significados. A cultura da mídia, por meio dos filmes, pode estimular a dominação social lançando mão, por vezes, de técnicas que visam a banalização de certos setores da sociedade, enfraquecendo-os, ao mesmo tempo em que pode incentivar a resistência e a luta contra as classes dominantes ao lançar mão de uma linguagem isenta e menos comprometida com o poder, mesmo em produções que teoricamente são classificados e apresentados como “de entretenimento”.

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Assim, tanto Kellner como Ferro desenvolvem um diagnóstico crítico com o objetivo de detectar as tendências da política cultural da mídia, investigando “o que está por trás” dela através de uma análise de suas mensagens contidas nas falas, valores e ideologias, formas como foi produzido, figurino, trilha sonora, cenário... Em suma, as informações que um filme nos apresenta precisam ser problematizadas e nunca devem ser aceitas como portadores de uma verdade pronta e acabada.

Soldado romano: uma representação de masculinidade na série “Roma”

A partir das reflexões apresentadas acima, partimos para uma análise de como a masculinidade do soldado romano foi caracteriza na série “Roma”. “Roma” é uma série de televisão produzida pelas redes HBO, dos Estados Unidos, e a BBC, do Reino Unido, e filmada nos estúdios da Cinecittà, nos arredores da cidade de Roma. Dividida em duas temporadas, é considerada a produção mais cara da histórica da televisão, com um custo de US$ 100 milhões por série. Canal de televisão a cabo, a HBO tem sido considerada uma especialista em produzir séries de TV com qualidade pouco vista na história de Hollywood. Com a tecnologia e concorrência de outros canais, passa a fazer parcerias compondo redes com outros grandes canais televisivos, como no casa da produção da série Roma com a BBC. Nos Estados Unidos possui cerca de quarenta milhões de assinantes, mais vinte milhões espalhados em 150 países nos quais opera. A série foi criada por John Milius, William Macdonald e Bruno Heller, este último participou como produtor executivo e roteirista. Na segunda temporada contribuíram com o roteiro Scott Buck, Todd Ellis Kessler, Mere Smith e Eoghan Mahony. Na direção estiveram Tim Van Patten, Allen Coulter, Alan Poul, Adam Davidson, Alik Sakharov, Robert Young, John Maybury, Carl Franklin e Steve Shill (diversos deles já haviam trabalhado na direção de outras séries da HBO). Jonathan Stamp foi o consultor de História. O grande enredo da série televisiva britânico-americana Roma desenvolveu-se em 12 episódios. Inicia em 51 a.C., com o retorno de Júlio César a Roma depois de oito anos de luta e conquista da Gália (primeira série), e termina em 44 a.C., com a encenação das disputas políticas suscitadas pela ocupação do poder após o assassinato de César. Na trama principal estão César e Pompeu e, em segundo plano, as histórias de Marco Antônio, Brutus, Otávio, sua mãe Atia, Cícero, Catão (o Jovem), Cleópatra e a do centurião Lucius Vorenus e do legionário Titus Pullo, os dois únicos soldados comuns mencionados nos relatos de César sobre a guerra na Gália.

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Nas informações especiais contidas no DVD de “Roma”, no site da HBO e em inúmeros outros que apresentam a sinopse da série2, o destaque é para o anúncio de uma produção “com fidelidade impressionante”, sobre a reconstrução do cenário histórico do fim da República e começo do Império Romano. A preocupação em enriquecer o drama conduziu os produtores à busca pela autenticidade com a investigação e a incorporação de muitos detalhes da vida cotidiana como os objetos utilizados, a riqueza e diversidade dos figurinos de acordo com a posição social ocupada, os detalhes nas roupas dos soldados, os adereços, as comidas, o ambiente e até mesmo a reprodução de gestos. Também figuras históricas reais como o centurião Vorenus e o legionário Pullo, integrantes da legião de César na guerra gálica, mencionados por ele em seu relato Commentarii de bello gallico (Comentários sobre a Guerra Gálica) ganharam vida com o intuito de intensificar a idéia de real desejada para o filme. Esse período de conflito e guerra civil que caracteriza o fim da República Romana e o início do Império é apresentado na série como um momento em que o predomínio da corrupção, da cobiça, dos excessos e das lutas entre os grupos acabam por destruir os antigos valores de disciplina e de unidade social republicana. Essa concepção é próxima a uma tradição historiográfica firmada nas décadas de 1960/70 que analisa a expansão do império, o aumento do fluxo de dinheiro e do luxo, a influência da cultura helenística e a liberação feminina como elementos responsáveis pela desmoralização dos costumes romanos do final da República e início do Império (Quignard, 1994: 21; Galán, 1996: 74; Robert, 1994: 39; Tannahill, 1994: 102). Roma transformara-se na capital do vício, do desenfreio, da festa e do prazer, ocasionando o aumento da corrupção, dos divórcios e dos adultérios. Nesse processo, a mulher aristocrática tornara-se mais liberada e desejosa de sua satisfação sexual o que, em conjunto com os demais acontecimentos, provocara reflexos “negativos” sobre o matrimônio. Argumenta Robert que nessa união “é distinta a falta de amor… o que estava em jogo era o dinheiro e o poder. A riqueza liberou a mulher nas classes altas da sociedade e lhe proporcionou uma independência até então desconhecida” (Robert, 1999: 100-1)3. Tal característica pode ser vista na representação de Átia, sobrinha de César. Segundo uma reportagem da Veja4, a proposta do seriado é seduzir o espectador para o universo romano e envolvê-lo com seus personagens sem, no entanto, desfigurá-los. Em 44 2

A indicação sobre alguns deles pode ser conferida na bibliografia. Contudo, as justificativas de “devassidão” dos costumes romanos e de corrupção como elementos causadores do fim da República são totalmente repudiadas por outros pesquisadores. Cf, dentre outros, Foucault, 1990, p. 79; Veyne, 1990, p. 49; Cantarella, 1999, p. 157, Walters, 1997, p. 29 e Mendes, 2006, 21-24) 4 http://veja.abril.com.br/180407/p22.shtml. Acesso em 20/10/2008. 3

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a.C., ano do assassinato de Júlio César, estava-se ainda um pouco distante dos primeiros sinais do surgimento de uma nova ética, com a qual o cristianismo começaria a transformar a Antiguidade Clássica. “Está-se numa Roma que desconhecia a caridade e a misericórdia, assim como o pudor sexual (a série, aliás, é completamente desavergonhada), e que por muito tempo ainda se divertiria lançando gente aos leões na arena do Coliseu5. O que Roma pede, enfim, é que a platéia simpatize com um soldado como o feroz Titus Pullo”. Nas informações especiais contidas no DVD da série, o produtor executivo Heller e o consultor histórico e co-produtor Stamp destacam a preocupação em dar autenticidade à produção, mais pela busca do espírito daquela época do que pela exatidão dos eventos. Consideram que uma das maneiras de atingir isso é incorporar a moralidade romana. Atentos em não impor o ponto de vista judaico-cristão contemporâneo, afirmam que os romanos eram muito mais brutos e sem escrúpulos que nós e que eram bastante diretos em suas atitudes sobre a sexualidade e a conquista. Isso justificaria as insistentes cenas de violência e de sexo apresentadas nos capítulos. No ‘submundo’ dos cidadãos romanos aparece o centurião Lucius Vorenus, um soldado profissional romano caracterizado como um indivíduo honrado e severo, mas implacável e cruel quando provocado. Seu companheiro de arma Titus Pullo, um legionário, é mostrado como corajoso, leal, impulsivo e brutal. Segundo o ator que o representa, Ray Stevenson, Titus Pullo é um lutador tosco, beberrão, mulherengo. Ele é totalmente romano. Gosta de matar os inimigos, pegar o seu ouro e suas mulheres (Cf. em Informações especiais). Apresentado como grande matador, Pullo reage com violência quando lhe perguntam se haveria alguma diferença entre um soldado e um assassino. Destemido, forte e violento são os atributos de masculinidade mais freqüentes relacionados ao soldado romano. Em “Roma”, essas qualidades conferem aos soldados Pullo e, principalmente, a Vorenus um reconhecimento e liderança entre os populares, mas cujo poder é restrito a esse meio. Ambos caracterizam o tipo de soldado de origem popular, sem propriedades, que passa a integrar as fileiras do exército no final do segundo século a. C.. Segundo Alston (1998), no decorrer do primeiro século ocorre a profissionalização do soldado, sua gradativa separação da comunidade e a criação de uma agenda política específica para eles. De origem humilde e com pouco ou nenhum recurso adicional ao soldo recebido, a representação da masculinidade desses homens de armas passa pelo crivo do valor aristocráti5

Também presente no campo historiográfico, a ênfase é que o fim dessa “decadência moral”, “permissividade”, “imoralidade” e “degradação” e a correção e moralização dos costumes romanos teria ocorrido com a influência do estoicismo e, posteriormente, com o cristianismo (Galán, 1996: 261, Robert, 1994: 288, Quignard, 1994, p. 21)

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co, que vê na “falta de cultura” (a da elite), na sua subordinação ao comandante e na possibilidade de receber castigos corporais, elementos decisivos para distanciá-los da condição de exercer o controle e o poder, próprio do uir romano (homem por excelência, o aristocrático). Com tal percepção, a elite romana representa o soldado como um indivíduo moral e culturalmente inferior, mais próximo ao bárbaro do que ao cidadão romano. Essa caracterização pode ser totalmente questionada quando contrastada com outras representações de masculinidade. O estudo de inscrições das lápides funerárias de soldados romanos, embora ainda em seu início, constitui indícios dos sentimentos e das imagens que os seus familiares e amigos queriam deles eternizar. Valores e concepções de vida muito distantes daqueles registrados pelo viés aristocrático (Alston, 1998)6. Na série, os escritores acolhem e reproduzem essa ótica aristocrática sobre os legionários romanos populares e destacam-na como “real”. Assim, ganham vida soldados brutalhões, grandes matadores, incultos, subordinados e manipuláveis, que se sujeitam a essa situação em troca de um soldo. Os escritores fazem-no porque reproduzem uma concepção weberiana da sociedade romana, na qual os comportamentos são definidos a partir de uma norma considerada válida para todos os indivíduos, baseados na aceitação de um modelo homogêneo de cultura apresentado em textos aristocráticos romanos e/ou em conceitos morais atuais. Isso é evidente tanto na reprodução das concepções aristocráticas a respeito de outros grupos, quanto no olhar do co-criador Bruno Heller sobre o gênero humano. Para ele, “as relações humanas, as emoções e os sentimentos não mudam" (Ver Configurações especiais), portanto, caracteriza uma essência humana que nos identifica com os romanos, que nos aproxima e que legitima a reprodução de uma realidade que é intrínseca a todos nós, homens. Em “Roma”, se mostra a mesma base da política moderna: as intrigas, corrupção, divisão entre partidos e a luta para definir valores coletivos; e os mesmo problemas diários: os crimes, o desemprego, a doença e a luta pela mobilidade social e para preservar um lugar na sociedade7. Apesar de essência em comum, a sociedade romana seria muito mais violenta que a nossa, por isso a segunda temporada é ainda mais enfática no que os produtores consideram como o “lado negro de Roma”. Esbanja requintadas cenas de morte e de sexo; opção que não foi fortuita. Com um gasto milionário e sem alcançar o público desejado, optou-se por “rechear” os episódios dessa temporada com mais cenas de sexo e de violência na tentativa de aumentar a audiência, intuito que deu resultado, mas não o suficiente para evitar que a HBO

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Sobre o uso de epitáfios para a percepção da sensibilidade e valores populares na sociedade romana conferir, também, Garraffoni, 2005. 7 http://www.hbo.com/rome/about/. Acesso em 17/10/2008.

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perdesse trinta milhões de dólares no negócio e desistisse de uma terceira etapa. Como mencionam os realizadores da segunda série, um dos maiores desafios enfrentados foi a necessidade de dar um nova perspectiva a personagens muito conhecidos e recriados da nossa história. Este desafio foi assumido e levado a cabo com sucesso, buscando um equilíbrio entre “as expectativas do público”, baseadas em personificações anteriores, e uma abordagem mais natural dos personagens8. Essa situação torna evidente que a intensificação de tais cenas correspondeu a uma expectativa fundamentalmente contemporânea, porque aceita e valorizada pelo público – o sexo e a violência - , embora atribuída ao outro (no caso, os romanos), e a partir de interesses econômicos que buscavam aumentar a venda desse produto cultural. Desta maneira, será a série “de fidelidade impressionante?”

Finalizando...

Os estudos de gênero têm sido profícuos para uma reflexão crítica e acurada das representações realizadas sobre o masculino e o feminino, com especial atenção para os significados e os papéis a eles atribuídos em tempos, espaços e culturas diversos. Essas discussões também propiciam uma reflexão sobre nossas próprias relações, conceitos e valores e de como os olhamos em outros momentos históricos. Considerar a relação entre presente-passado significa refletirmos a respeito de como os temas investigados e os seus resultados são frutos de formulações e interpretações históricas, que indicam escolhas políticas que buscam questionar ou ratificar determinadas situações e conceitos, sejam elas na produção do conhecimento acadêmico ou ficcional. Os dados que um filme nos oferece precisam ser problematizados, pois, de modo geral, o público tende a interpretar como verdadeiras as descrições de lugares, atitudes, modos de vida e até mesmo acontecimentos históricos de que não tem conhecimento prévio. Afinal, a fantasia da verdade é uma das características mais atrativas do cinema.

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http://www.hbo.com/rome/behind/rome_revealed/rome.html Acesso em 17/10/2008

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Agradecimentos:

Agradecemos aos colegas Renata Senna Garraffoni, Norma Musco Mendes e Pedro Paulo A. Funari. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do departamento de Ciências Humanas da FAAC, Unesp, campus de Bauru, e do Núcleo de Estudos Estratégicos, da Unicamp. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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O PODER ROMANO POR FLÁVIO JOSEFO: UMA COMPREENSÃO POLÍTICA E RELIGIOSA DA SUBMISSÃO.

Ivan Esperança Rocha UNESP/Assis

Eles serão levados para Babilônia, mas eu os farei subir e voltar para este lugar (Jeremias 27,22)

A tradicional obra sobre o exército romano é a de Flavius Vegetius Renatus, Epitoma rei militaris, também denominada De re militari (As instituições militares dos romanos) (ca 384-389 d.C.), em que o autor reúne muitos detalhes sobre a vida militar romana a partir de várias fontes anteriores sobre o assunto. A obra é escrita com a intenção de retomar o antigo vigor do exército romano num momento de decadência dessa instituição no século IV1. Ela faz parte de um amplo acervo de documentos que possuímos sobre o exército romano2. Nesta apresentação analisaremos uma obra sobre o exército romano, produzido três séculos antes: A Guerra Judaica (Peri tou ioudaikou polemou), de Flávio Josefo, publicada entre 75 e 79 d.C. Nela são relatados detalhes sobre os combates entre judeus e romanos, ocorridos entre 66 e 73 d.C. e sobre os exércitos envolvidos3. O autor participa do conflito, e chega a exercer o comando de tropas judaicas, na Galiléia e em Gamala4. Após o abandono de sua posição de comando, começa a tecer uma controversa avaliação desse conflito, pretensamente filorromânica, mas que deve ser entendida à luz da tradição helenístico-judaica. O antagonismo dos judeus, ou pelo menos de grupos judaicos, aos romanos inicia-se com a conquista da Palestina por Roma, em 63 a.C., após o violento cerco de Jerusalém, co-

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GORDON, D. Vegetius and his Proposed Reform of the Army. In: EVANS, J. A. S. (ed.). Polis and Imperium: Studies in Honor of Edward Togo Salmon. Toronto: Edgar Kent Inc Publisher, p. 35-58, 19754. 2 V.g. ADAMS, John Paul. The Roman Army: a Bibliography. California State University, Northridge. Disponível em: . Acesso em 25 outubro 2008. Para uma compreensão mais detalhada da formação e papel desempenhado pelo soldado no âmbito da estrutura social romana, ver CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado. In: GIARDINA, Andréa. O homem romano. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1992. 3 JOSEPHUS. The jewish war. Trad. H.St. J. Thackeray;. Cambridge: Harvard University Press, 1990. 2 v. 4 SHUTT, R.J.H. Studies in Josephus. Londres: S.P.C.K., 1961, p. 38.

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mandado por Pompeu (GJ 1,142-148)5. Este designa Antípatro como regente da Judéia, sendo sucedido por seu filho Herodes, o Grande, que governou de 40 a.C. a 4 d.C. Josefo faz, inicialmente, uma apresentação positiva do governo de Herodes – contrapondo-se à avaliação negativa de grupos de judeus6 --, destacando sua habilidade administrativa e econômica no governo da Palestina (1,195-421). No entanto, o relato sobre a vida de Herodes sofre uma reviravolta no final; Josefo enumera inúmeras intrigas familiares que levam o rei a promover ações violentas contra membros de sua família; manda matar sua última esposa, Mariana, e vários membros de suas família e acabou odiado por seus parentes mais próximos e pelos próprios filhos (1,441-43). Após sua morte, Augusto divide o território da Palestina entre três filhos de Herodes: Arquelau (1,661) fica com a Judéia, a Iduméia e a Samaria (4 e 6 d.C.), Herodes Antipas com a Galiléia e a Peréia (região transjordânica) (4-34 d.C.) e Felipe com a região ao leste do Mar da Galiléia (4-34 d.C.). Arquelau é deposto, em 6 d.C., devido à crueldade com que tratara a população da Judéia7 e seu território passa para o controle romano. Em 41, o imperador Cláudio entrega a Herodes Agripa I (41-44 d.C.) não apenas o território original de seu avô, Herodes, o Grande, mas também a região da Traconítida e da Auranita (2,214). Ao seu filho, Herodes Agripa II (50-ca. 92/3 d.C.)8, cabe o governo das regiões ao leste do Mar da Galiléia9 (2,223). Agripa envida esforços para evitar o grande confronto dos judeus com os romanos que culminaria com a destruição de Jerusalém e do Templo. Defende que os judeus tinham razão de estar furiosos devido à violência que caracterizou o governo dos procuradores romanos, mas alerta para o fato de o exército judeu não ter mínimas condições para enfrentar o poderoso exército romano. Segundo ele, em caso de derrota, a servidão poderia ser maior ainda (2,345). Josefo assume esta mesma postura na avaliação do confronto entre romanos e judeus, no século I, e procura demover os judeus, ou melhor, os grupos de judeus revoltosos, de seu intento. Esta postura se embasa, essencialmente, em dois elementos: de um lado a avaliação da grande disparidade de forças entre o exército romano e o dos judeus em litígio, considerando uma falta de bom senso lutar contra um inimigo tão bem aparelhado militarmente 5

As citações de a Guerra Judaica (GJ) de Flávio Josefo serão indicadas doravante sem a indicação da obra. Um grupo de judeus vai a Roma e se declara a Augusto contra a memória de Herodes e contra a política de seu sucessor, Arquelau, que dentre outros desmandos, promoveu a exterminação de milhares de judeus (2,84). 7 No início de seu governo, reprimiu rebeliões provocando muitas mortes no recinto de Templo de Jerusalém (1,2). O fato será relatato a Augusto, em Roma, por Antipas, irmão de Arquelau e pretendente à coroa (2,20). 8 SCHÜRER, Emil. The history of the Jewish people in the age of Jesus Christ (175 b.C.-A.D. 100). Edinburgh: T & T Clark, 1979, v.1, p. 481. 9 CHANCEY, Mark A., PORTER, Adam L. The Archaeology of Roman Palestine. Near Eastern Archaeology, v. 64, n.4, p.178, 2001. 6

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(5,362), de outro, a sensibilidade religiosa e o apego à tradição judaica por parte de Josefo. Em outros embates com forças externas, a estratégia que tinha sido adotada pelos judeus era de que o confronto deveria ser evitado se houvesse riscos excessivos de derrota e de destruição. É esta postura que Josefo passa a assumir, como dizíamos acima, após o abandono de sua posição de comando do exército judeu. Adotando uma idéia profético-messiânica, defende que o Deus que tinha dado o domínio do mundo a várias nações, agora o tinha entregado nas mãos dos romanos (5,367). Aqui temos, certamente, uma relação com o texto de Jeremias, onde o profeta avalia a ação de Nabucodonor (27,5-17):

“Assim disse Iahweh dos exércitos, Deus de Israel...: Eu fiz a terra, o homem e os animais que estão sobre a terra, por minha grande força e com meu braço estendido e os dei a quem me aprouve. Mas agora eu entreguei todos esses países nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia... Servi o rei da Babilônia pra que possais viver... Por que quereis morrer, tu (rei Sedecias) e teu povo, pela espada, pela fome e pela peste... Por que deveria esta cidade (Jerusalém) tornar-se uma ruína?”10.

O raciocínio de Josefo é o mesmo de Jeremias: opor-se aos romanos em 66 d.C. era o mesmo que opor-se a Nabucodonosor, em 586 a.C. A força dos inimigos era muito superior à dos judeus e, nos dois casos, Jerusalém é a cidade a ser poupada. Para Jeremias, era preciso ceder agora para vencer depois: Deus faria seu povo voltar da Babilônia e retomar a sua liberdade (27,22). É assim que o Segundo Isaías (Is 41,1ss; 44,28) interpreta a decisão de Ciro de permitir a volta dos judeus de Babilônia para a Palestina, em 538 d.C., Deus recompensa a sabedoria de seu povo de ter evitado sua destruição ao confrontar um inimigo imbatível, com a reconquista da liberdade11. Josefo considera a atitude dos revoltosos como um desrespeito à tradição atestada pelo profeta Jeremias que prega a paciência não como resignação, mas como estratégia para aguardar o momento oportuno para retomar as rédeas da história nas mãos12. Quer seja por bom senso ou por apego à referida tradição judaica, Josefo apresenta as razões que deviam levar os judeus a respeitarem, naquele momento, os romanos. Naquela circunstância, o poder dos romanos se manifesta, particularmente, no vigor de seu exército. 10

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1980. COHEN, Shaye J.D. Josephus, Jeremiah, and Polybius. History and Theory, v. 21, n. 3 , p. 380-81, 1982. Sobre Ciro: ROSSI, Luiz A. S. Cultura militar e de violência no mundo antigo. Israel, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2008, p. 63-77. 12 Uma outra crítica aos revoltosos era de que eles não lutavam apenas contra um grupo dominante externo -- os romanos, mas também contra grupos dominantes internos – a aristocracia judaica (STEGEMANN, Ekkenhard W., STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo. Trad. Nélio Schneider, São Paulo: Paulus; S. Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 208-12. 11

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Josefo o apresenta como uma organização de qualidade, com um bom comando, objetivos claros, disciplina rígida, homens treinados, armas de primeira linha, estratégias adequadas, com bons resultados no campo de batalha. Trata-se de um exército que tinha se profissionalizado a partir de Augusto13. Segundo ele, uma organização com características inferiores, como o exército judaico, não deveria exaurir inutilmente recursos humanos e materiais em enfrentamento inócuos. Em outras palavras, segundo ele, Roma, naquele momento, é invencível e é vã qualquer oposição a ela14. A superioridade do exército romano já tinha sido apontada por Políbio (202-120 a.C.), em sua obra História, em que relata a vitória romana sobre os gregos na batalha de Pidna (168 a.C.). A sua avaliação da guerra entre gregos e romanos - particularmente, levando em consideração a desvantagem grega frente aos romanos - é de que ela é um mal, mas não a ponto de justificar que se deva submeter-se a qualquer ignomínia a fim de evitá-lo15. Esta é uma posição muito semelhante à de Josefo em sua avaliação da guerra entre judeus e romanos. Assim, mesmo que não haja uma ligação textual explicita entre Políbio e Josefo, a Guerra Judaica de Josefo (3,70-109) descreve o exército romano de forma muito semelhante à de Políbio em sua História (6,19-42)16. Podemos dizer, então, que Políbio e Jeremias são as principais referências de Josefo em sua obra. Josefo considera o exército romano muito mais preparado e organizado que o dos judeus e existem muitas evidências dessa superioridade: uma delas se manifesta já nas estratégias assumidas com relação ao acampamento. Os acampamentos romanos são cercados com uma espécie de muralha onde são instaladas torres de vigia, e ao redor dos quais são cavados fossos de proteção profundos (3,83-84)17. Quando deixa o acampamento, tudo o que resta dele é incendiado para que não possa ser utilizado pelos inimigos. O som da trombeta marca cada etapa do movimento das tropas (3,89). Os soldados têm suas armas sempre junto de si e nunca 13

CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado, op. cit., p.91. STERN, Menahem. Josephus and the roman Empire as reflected in the Jewish War. In: FELDMAN, Louis H., HATA, Gohei (ed.). Josephus ,Judaism and Christianity. Detroit: Wayne State University Press, 1987, p. 76. 15 HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Trad. Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p.409. 16 Mesmo que não se verifique uma dependência textual de Josefo com relação a Políbio, o delineamento dos líderes romanos é constituído de forma muito semelhante: neles se destacam a virtude e generosidade -- como é o caso de Tito e Vespasiano para Josefo e Cipião Africano e Cipião Emiliano para Políbio (COHEN, Shaye J.D. Josephus, Jeremiah, and Polybius, op. cit. p. 368.379. 17 No filme Spartacus de Stanley Kubrick (1960), se destaca que uma derrota do exército romano foi devida à falta desse tipo de proteção no acampamento. Membros do senado questionam Marcus Glabrus (John Dall) sobre a segurança do acampamento invadido pelo grupo de Spartacus (Kirk Douglas) (cf script do filme): Did you surround your camp with moat (fosso) and stockade (paliçada)? Marcus Glabrus responde: No. Nessa representação fílmica de eventos ocorridos um século antes (documentados especialmente por Plutarco, Crassus 8-10 e Pompeu 21.1-2 e por Apiano, Guerras civis 1.14.111 e 116-121.1) se ressalta a importância deste item de segurança do exército romano. Sobre revoltas de escravos: ALFÖLDY, Géza. A história social de Roma. Trad. Maria do Carmo Cary. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p.83-89. 14

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se isolam do grupo, nem para comer. Todas as suas ações estão muito bem reguladas, inclusive a forma de saudação: os soldados cumprimentam, pela manhã, os centuriões, os centuriões saúdam os tribunos e os tribunos e os oficiais cumprimentam, juntos, o comandante supremo. Cada detalhe dos combates é minuciosamente discutido (3,85-87). O levantamento do acampamento é iniciado com um primeiro toque de trombeta; após um segundo toque se carregam as bagagens e a partida é anunciada com um terceiro toque. Em seguida, um arauto pergunta três vezes aos soldados se eles estão prontos para o combate; em algumas situações os soldados manifestam seu desejo de luta antes mesmo dessa interpelação do arauto (3,89-92). O comando do exército se serve de intérpretes para se comunicar com os inimigos. Josefo é um desses intérpretes que traduzia, provavelmente para o hebraico, as mensagens romanas (6,129). Para ações especiais são escolhidos os melhores soldados, e uma chefia específica, como no caso do assalto ao Templo de Jerusalém onde se encontra entrincheirado um grande grupo de revoltosos (6,129)18. Esse mesmo tipo de seleção é feito para definir o grupo que acompanha o general (strategós) (3,95). Tropas auxiliares com armas mais leves são utilizadas para fazer explorações e evitar emboscadas. Exploradores desobstruem as estradas, inclusive, cortando árvores que se encontram no caminho (3,116-119). Segundo Josefo, a águia19 colocada à frente do exército serve para mostrar que assim como a águia reina no ar sobre todas as aves, os romanos reinam na terra sobre todos os homens e que em qualquer lugar ao qual levarem a guerra, este símbolo lhes serve de presságio de que, serão sempre vencedores (3,122-123). Ao lado da águia seguem outras insígnias, consideradas sagradas (3,123-124). Há servos que acompanham os soldados e levam suas bagagens utilizando mulas e cavalos, seguidos dos que trazem os víveres (3,124-125). Algumas legiões se distinguem das demais, como a quinta (Legio V Alaudae), a décima (Legio X Fretensis) e a décima quinta (Legio XV Apollinaris), compostas pelos melhores soldados do império. Cada legião é seguida por coortes e estas são fortalecidas com companhias de cavalaria, compostas por 120 soldados, sendo que algumas delas incluem contingentes estrangeiros (3,66-67)20 . Os soldados romanos utilizam senhas para se reconhecerem e se reagruparem durante as batalhas, o que os distinguem dos soldados judeus que agem sem organização, colocando

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Josefo denomina os judeus revoltosos de lestai, um termo que poder ser traduzido por bandidos, malfeitores. HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega e latina, op. cit., p. 222. 20 CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado, op. cit., p.94. 19

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em risco a vida dos próprios companheiros, muitos deles mortos por engano (6,139-140). Há uma estratégia – ou um ritual - para motivar os soldados romanos para a batalha: cada um é incentivado por seu superior, desde os níveis mais baixos até o comando central. O general Tito supervisiona tudo muito de perto (5,502). A garantia de abastecimento das tropas é um outro elemento favorável aos romanos. Trigo e outras provisões são trazidos da Síria e de outras províncias vizinhas (5,519-20). Por outro lado, o desabastecimento das tropas judaicas é uma das causas de sua derrota (5,521). Josefo defende que os romanos dominam o mundo não pela sorte, mas pelo valor de sua organização. Os soldados romanos treinam continuamente para se prepararem para lutar pelos interesses do Império (3,71-72). Com tais descrições, Josefo quer chamar a atenção dos judeus sobre a inutilidade de sua revolta (3,109). Destaca que uma das desvantagens do exército judeu é possuir apenas infantaria e que sem a cavalaria perde agilidade e efetividade nos ataques (3,15-16). Considera os soldados judeus ousados, mas sem preparação para a guerra (1,347-8, 2,422-423, 5,266). No curto período que lidera os judeus na luta contra os romanos, procura formar um exército espelhando-se no modelo romano (2,577). Ao lado da organização do exército romano, Josefo destaca o impacto dos castigos e repressões na formação militar romana. Uma regra inviolável entre os soldados romanos é a proibição de abandonar o companheiro, por qualquer motivo, sob pena de morte (5,71.85.473). Os soldados romanos são proibidos de combater sem ordem superior. Tais infrações podem ser coibidas com a pena de morte (5,120). A pena de morte pode atingir os soldados em algumas situações inusitadas, como quando um deles simplesmente perde o seu cavalo (6,155). Josefo elenca os tipos de armas leves usadas pelos soldados: espadas curtas e longas, lanças, punhais, dardos; escudos e capacetes eram obrigatórios (3,93-96). Dentre as armas pesadas estão máquinas que atiram dardos, flechas e pedras, assim como aríetes (krioi) cobertos de treliças e de peles, para proteger as máquinas e os soldados (3,220-21). O aríete é feito com um tronco muito grosso, e em uma de suas extremidades é instalada uma peça de ferro com o formato de cabeça de carneiro, o que lhe valeu o nome (3,213-215). Nessas descrições, o interesse é sempre mostrar a desvantagem técnica do exército judeu diante do romano. Os judeus fazem de tudo para conter o poder das máquinas romanas. Para evitar que os aríetes derrubem os muros de suas fortificações, enchem sacos com palha e os amarram do lado de fora (3,222-224). Utilizam também uma mistura de betume, pixe, enxofre para produzir um material combustível para incendiar as máquinas romanas (3,228).

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Quando não conseguem derrubar as muralhas com os aríetes, os soldados romanos se protegem com seus escudos para se aproximar e retirar pedras da base das muralhas para enfraquecê-las e facilitar sua derrubada (6,27-28). Para proteger e organizar os soldados na preparação do ataque a Jerusalém, Vespasiano manda construir fortes nas proximidades, em Jericó e Abida (4,486). Os soldados da infantaria são defendidos por capacetes e couraças e usam duas espadas, sendo a do lado esquerdo mais comprida que a outra (43,94-95). Soldados escolhidos para proteger o general levam uma lança e um escudo redondo; o resto dos legionários traz consigo um dardo e escudo longo e ainda uma serra, um cesto, um picão, um machado, e, além disso, uma correia, um trinchete, uma corrente, e alimento para três dias. Os soldados da cavalaria trazem uma grande espada do lado direito, uma longa lança, um escudo e uma aljava com três dardos. Seus capacetes e couraças são semelhantes aos dos soldados da infantaria (3,94-97). Para combater os barcos de revoltos no lago de Genesaré, Vespasiano manda construir barcos reforçados que lhes permite uma fácil vitória sobre o inimigo (3,522-531). O assalto romano a fortificações judaicas é feito com o apoio de máquinas que atiram dardos e catapultas que lançam grandes pedras; arqueiros lançam flechas incendiárias (3,243244). Esta vantagem técnica usufruída pelo exército romano se depara com a solidez dos muros das fortificações judaicas e com a intrepidez dos soldados judeus que chegam a esmorecer os soldados romanos. Por vezes, estes julgam impossível vencer homens tão ousados (6,9). Uma das estratégias dos judeus é armar emboscadas ao exército romano para se apossar de suas armas, mas não conseguem tirar grande vantagem delas porque não sabem usá-las adequadamente. (5,266-268). O uso maciço de máquinas de guerra e a habilidade dos soldados romanos superam com facilidade as barreiras interpostas pelos judeus (5,268-274). Em alguns momentos, aproveitando-se de um grande número de soldados e de seu ardor, o exército judeu consegue confundir e desestabilizar o exército romano (2,519). Numa oportunidade, os soldados judeus – aqui comandados ainda por Josefo -- conseguem queimar todas as máquinas de guerra da quinta e da décima legiões romanas (3,234-5). Durante o cerco de Jerusalém, a proteção das muralhas permite que aos judeus rechaçar os romanos diversas vezes, fazendo-os recuar, mas, segundo Josefo, estes não reúnem condições de se contraporem à capacidade técnica dos romanos (2,533-537). A cidade de Jerusalém é tomada pelos romanos com o apoio de seis legiões: a décima segunda (Legio XII Fulminata); a quinta (Legio V Alaudae) – comandada por Sexto Cerealis, a décima (Legio X Gemina) comandada por Largio Lépido, a décima quinta (Legio XV Apolli-

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naris), comandada por Tito Frígio e duas legiões – não denominadas -, comandadas por Eternio Quinto (6,236-238).

Francesco Hayes. Destruição do Templo de Jerusalém (1867). Galeria de Arte Moderna, Veneza.

O exército romano incorpora desertores judeus. Em alguns casos, os romanos reúnem guarnições apenas de judeus para defender áreas de seu interesse, como Abila, Julíada e Bezemote (4,437-439). Tito procura utilizar a intermediação de Josefo para por fim no conflito, mas isto não surte efeito (5,361), mesmo depois de um seu acalorado discurso antes da destruição de Jerusalém (5,362-374). Em nome de Tito, Josefo promete que os romanos esqueceriam tudo o que tinha ocorrido até então se cessasse a resistência judaica (5,372). A proposta é rechaçada e os revoltosos lançam mão de uma derradeira estratégia de defesa: se encastelam em Massada, uma fortaleza considerada inexpugnável, mas que acaba caindo diante de um pesado ataque romano21. A vitória dos romanos é frustrada, no entanto, pelo suicídio coletivo da grande maioria dos judeus que ali se encontram (7,304-319)22. Josefo destaca a moderação como uma das virtudes do exército romano, mas não se furta à descrição de vários excessos cometidos23. Sob o comando de Vespasiano cidades e aldeias são incendiadas e a maioria de seus habitantes é escravizada (3,132). Josefo apresenta 21

Para detalhes sobre a arquitetura de Massada: CHANCEY, Mark A., PORTER, Adam L. The Archaeology of Roman Palestine, op. cit. p. 173-174. 22 FJ indica que o suicídio envolve 960 judeus e que apenas 2 pessoas adultas e 5 crianças escapam com vida (7,389). Para informações arqueológicas sobre Massada e um questionamento do número de judeus envolvidos no suicídio: VIDAL-NAQUET, P. Flavius Josèphe et Masada. Revue Historique, ano 1, v. 260, p.3-21, 1978. 23 Tácito (ca. 56 – ca. 117 d.C.) destaca que “a paixão dominante dos militares é o furor, que inspira os seus atos mais insensatos” (CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado, op. cit. p.103).

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duas faces distintas e intermitentes de Tito. Em certos momentos defende que Tito e seus soldados têm respeito pela religião judaica e pelo seu templo (6,118) e que se posiciona contra a violência de seus soldados, como sucede quando soldados romanos e de tropas auxiliares24, como a dos árabes e sírios, praticam ações de extrema violência contra os revoltosos e que merecem severas críticas de Tito. Uma delas se dá quando soldados abrem o ventre de prisioneiros judeus sob o pretexto de que tinham engolido uma grande quantidade de ouro (5,548). Nessa descrição Josefo faz uma crítica contundente à motivação de muitos soldados romanos que lutam contra os judeus em destacando que buscam apenas um enriquecimento pessoal (5,553). Em outros momentos Josefo destaca a violência de Tito quando este manda destruir totalmente não apenas o Templo, mas toda a cidade de Jerusalém (7,1). Contradizendo-se, no entanto, Josefo apresenta uma segunda versão da destruição do templo: o incêndio do templo é uma iniciativa de um soldado romano (6,252), e Tito teria feito de tudo para debelar as chamas (6,256)25. Outra descrição de um Tito violento é quando este manda crucificar publicamente muitos judeus para que pudessem servir de exemplo para os revoltosos (5,449-50). Há ocasiões em que os soldados, à revelia do comando, atuam livremente contra os judeus (1,367). Contrariando as ordens de Tito, soldados romanos matam pessoas velhas e debilitadas (6,414). Um soldado romano que fazia guarda diante do Templo ofende o pudor de alguns judeus ao mostrar em público seu órgão sexual (2,224). Um dos moventes do exército romano é o sistema de recompensas estabelecido26. Os soldados romanos recebem permissão não só para destruir as casas dos inimigos, mas também para saquear seus bens (2,494; 4,642), o mesmo acontece com os tesouros do templo de Jerusalém (2,49; 4,645)27. Outro movente é a expectativa da celebração da vitória. É o que acontece no final do conflito: Tito elogia e louva o exército pelo desempenho na guerra e recompensa os que se haviam distinguido nas batalhas (7,5). Chama cada um pelo nome (7,13)28, coloca-lhes coroas de ouro sobre a cabeça, os presenteia com ouro, dardos com pontas de ouro, medalhas de prata, distribui-lhes também ricas vestes e outras coisas preciosas que fazem par24

HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega e latina, op. cit., p. 223. Há uma terceira versão do incêndio do templo que Josefo atribui aos próprios judeus (6,177-185). 26 HARVEY, Paul. Dicionário Oxford de Literatura Clássica grega e latina, op. cit., p. 222. O soldado era também estimulado pelos prêmios recebidos por ocasião de seu licenciamento, quer em dinheiro ou em terras (CARRIÉ, Jean-Michel. O soldado, op. cit. p.96). 27 O saque pode ser considerado uma complementação do salário que o soldado recebe e que ele podia utilizar apenas parcialmente, antes de ser licenciado, após, aproximadamente, 16 anos de serviço. Nesse período, o salário de um soldado romano era de 900 sestércios anuais (SPEIDEL, Alexander. Roman Army Pay Scales. The Journal of Roman Studies, v.. 82, 1992, p. 92). Speidel apresenta uma relação detalhada dos salários militares em Roma. 28 O conhecimento do nome dos soldados e de muitos outros detalhes sobre cada um deles ainda se reflete na biografia do imperador Alexandre Severo (208-235 d.C.) relatada na História Augusta (Alexandre Severo, 21.68). 25

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te dos despojos (7,14). Após recompensar cada um segundo seu mérito, ele oferece sacrifícios, em ação de graças, pela vitória. Manda imolar um grande número de bois, cuja carne é distribuída aos soldados e dá banquetes, que duram três dias (7,16-17). Finda a guerra, o cortejo triunfal em Roma pode ser considerado a recompensa por excelência pela vitória sobre os judeus, envolvendo todo o exército romano e seus líderes: nessa cerimônia, o imperador Vespasiano e o general Tito, seu filho, são aclamados em Roma pela vitória sobre os judeus, antes de se dirigirem em cortejo para a porta triunfal (7,126.130). Josefo diz que é impossível descrever a grandeza desse festejo (7,132). Há uma profusão de pessoas ricamente vestidas, portando jóias (7,134), desfilando com animais raros (7,137). Até os escravos se apresentam em vestes especiais. Carros alegóricos trazem representações de cenas da guerra contra os judeus; segundo Josefo, são tão bem feitas que parecem reais (7,142). É apresentada uma grande quantidade de despojos, que inclui objetos do templo em ouro e, inclusive, uma menorá (7,148). Segue uma procissão de várias estátuas da Vitória em marfim e ouro. Ao final se apresentam o imperador Vespasiano e seus filhos Tito e Domiciano (7,151-2). Após a morte do imperador Tito, seu irmão, Domiciano, manda construir, em 81, um arco comemorativo à vitória sobre os judeus, conhecido como Arco de Tito, medindo 15,4 mt de altura, 13,5 mt de largura e 4,75 mt de profundidade. Em suas paredes são reproduzidas cenas de batalhas dos romanos contra os judeus.

Arco de Tito: detalhes da entrada triunfal de Tito e Vespasiano em Roma.

São cunhadas, também, moedas que trazem a inscrição: Judaea capta (Judéia capturada) ou Judaea devicta (Judéia vencida). No anverso de muitas dessas moedas, além da inscri-

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ção, aparecem as figuras de um soldado romano, de uma mulher de luto e de uma palmeira simbolizando os judeus. A Judéia termina separada da província da Síria e torna-se uma província romana autônoma29.

Conclusão

A Guerra Judaica de Flávio Josefo traz uma multiforme contribuição para o conhecimento da história romana e judaica do século I. Descreve em detalhes as características das relações de dependência no âmbito do império romano. Destaca a dificuldade que os romanos tiveram para se impor às suas províncias, mas, de forma realista, defende a impossibilidade de se contrapor ao seu poder, manifestado, particularmente, na pujança de seu exército. Apresentando-se, duplamente, como um arauto do povo judeu e do comando romano, procura dissuadir grupos de judeus decididos a enfrentar o “invasor” a qualquer custo. A sua argumentação se baseia, de um lado, na total incapacidade militar dos judeus para enfrentar o exército romano e, de outro, na tradição profético-messiânica judaica que propõe a estratégia da “paciência histórica” no confronto com inimigos poderosos. Tinha sido assim, durante a dominação de Nabucodonosor, retratada pelo profeta Jeremias. Essa “paciência histórica” não era entendida como capitulação, mas apenas como um tempo que se dava para a intervenção oportuna de Deus em favor dos judeus. É assim que foi entendida a libertação do cativeiro da Babilônia pelas mãos de Ciro. No entanto, avalia que a falta de bom senso e o desrepeito da tradição judaica por parte dos revoltosos foram responsáveis pela destruição do Templo e da cidade de Jerusalém e pelo massacre do povo judeu. Diversamente di Jeremias, seu texto não apresenta qualquer perspectiva de reconstrução nacional. De fato, o final do conflito marca o início da diáspora judaica que só se concluiria, após dois milênios, com a criação do estado de Israel pela Organização da Nações Unidas, em 1947. No afã de descrever a disparidade de forças entre o exército romano e o dos judeus, Josefo traz contribuições valiosas para a história militar ao apresentar detalhes sobre o exército romano e suas estratégias de atuação.

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ARMSTRONG, Karen. Jerusalem. One city, three faiths. N. York: Ballantin Books, 1997, p. 153-154. SPILSBURY, Paul. Flavius Josephus on the rise and fall of the Roman Empire. Journal of Theological Studies, v. 54, p.3, 2003. SILVA, Airton José da. História de Israel. Disponível em: . Acesso em 19 outubro 2007.

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Em certos momentos, Josefo tem dificuldades de aderir aos seus próprios princípios. Não consegue fazer uma defesa irrestrita dos romanos quando se depara com desmandos de seus soldados, nem uma crítica cabal à ação dos revoltosos, ficando estarrecido frente a atos heróicos de muitos deles no afã de defender interesses pessoais e nacionais durante o conflito.

Bibliografia

Documentação:

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Obras Gerais

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BELLUM IUSTUM E A REVOLTA DE TACFARINAS Regina Maria da Cunha Bustamante∗ UFRJ Introdução

Na atualidade, vivenciamos uma série de conflitos em que os beligerantes justificam seus motivos calcados na concepção de “guerra justa”. Assim, por exemplo, George W. Bush, atual presidente dos Estados Unidos, defendeu a invasão do Iraque como “uma guerra do Bem contra o Mal”, pretextando que estava conduzindo uma cruzada da democracia ocidental contra a ditadura de Saddam Hussein, de Deus contra Satã. Arrazoados de teor semelhante também são apresentados pelo outro lado. Desde a Antigüidade, encontramos a mesma preocupação em explicar os motivos, qualificados como “justos”, que levam ao conflito bélico. O presente capítulo se fundamentará neste conceito e procurará discuti-lo historiograficamente e aplicá-lo ao caso específico de um movimento tribal norte-africano contra a implantação do poderio romano na região, exatamente num período conhecido como Pax Romana (PETIT, 1989).

1. Bellum Iustum: Historiografia Antiga Romana

De acordo com a tradição romana, para se evitar a cólera dos deuses, um esforço militar para ser bem sucedido devia estar inserido no bellum iustum, ou seja, pautado por motivos considerados justos: expulsão do inimigo, vingança por uma injustiça sofrida ou reivindicação de um direito legítimo. O aspecto religioso fazia parte de todas as instâncias da vida na Roma Antiga e não poderia deixar de estar presente na guerra. Assim, a guerra envolvia um ritual muito complexo. O primeiro ato era a clarigatio (de clarigo, “alto” e ago, “exigir”): o pater patratus (orador e membro mais categorizado da confraria religiosa dos feciais1) conduzia uma delegação ∗

Professora e pesquisadora do Laboratório de História Antiga (LHIA) e do Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Bolsista de produtividade do CNPq. 1 Feciais: membros de uma confraria religiosa, talvez em número de vinte, que tinham a função de comunicar por anúncios solenes as decisões diplomáticas do Senado, como guerras, tratados e advertências (SCHEID, 1998, p. 114115). Segundo a tradição, a confraria foi instituída por Numa Pompílio (segundo rei lendário de Roma) (SPALDING, 1993, p. 60).

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de feciais, geralmente quatro, trazendo um montículo de relva retirada do Capitólio (templo no monte Capitólio consagrado à Tríade Capitolina: Júpiter, Juno e Minerva, que protegia Roma) e uma pedra simbolizando Júpiter, e reclamava reparação aos inimigos num prazo de trinta dias. Uma vez findo este prazo, declarava-se a guerra (indictio belli) através do voto dos Comitia Centuriata (uma das assembléias de cidadãos da República Romana). O pater patratus jogava uma lança ensangüentada (hasta ferrata ou sanguinea ou praeusta) no território inimigo, simbolizado por um marco construído diante do templo da deusa Belona2 em Roma. Ele proferia então: Bellum iustum indicio facioque, ou seja, “Declaro e faço uma guerra justa”. Antes de partir para a campanha, os soldados deviam prestar um juramento no Campo de Marte, o que fazia deles iniciados capazes de assegurar um serviço sagrado (sacra militia). Toda a operação militar era precedida do tomada dos auspícios (consulta aos deuses por ritos divinatórios). Durante a duração da guerra, as portas do templo do deus Jano3 em Roma permaneciam abertas. 2

Belona: Irmã, esposa, filha ou ama do deus Marte. Era esta divindade que preparava o carro de combate e os cavalos de Marte, quando este partia para a guerra. Mostrava-se nas batalhas com o semblante formidável, cabelos esparsos, uma tocha uma das mãos e um látego [açoite] na outra, com o qual fazia retumbar o éter [espaço celeste]. A Belona romana parece ser uma divindade de origem sabina, e corresponde a Enyo dos gregos. Possuía muitos e célebres templos em Roma. Não raro os poetas a confundem com Palas. Representavam-na, em geral, dos pés a cabeça, de lança em punho. Possuía seu principal templo em Roma, junto da Porta Carmenta, no qual o Senado dava audiências aos embaixadores estrangeiros e aos generais. Seus sacerdotes chamavam-se Bellonarii. Estes celebravam a festa da deusa fazendo incisões nas coxas e nos braços, a fim de oferecerem seu sangue em sacrifício. Levados por feroz entusiasmo, prediziam a tomada das cidades e a fuga dos inimigos. Eram tidos em grande consideração (SPALDING, 1993, p. 33). 3 Jano: rei da Itália, filho de Apolo e de Creusa ou Evadne. A origem dessa divindade romana é obscura; alguns a fazem cita, outros, originária do país dos perrébios, povo da Tessália, e outros, finalmente, acreditam que tivesse nascido em Atenas, já que sua mãe era filha de Erecteu, rei de Atenas. Logo que atingiu a maturidade, Jano equipou uma flotilha e dirigiu-se para a Itália, onde, após algumas conquistas, construiu uma cidadela à qual deu o nome de Janículo. A seguir, estendeu seu poder sobre todo o Lácio. Logo que Saturno, expulso do céu, veio buscar refúgio na Itália, Jano acolheu-o hospitaleiramente e associou-o ao governo do país. O deus, em reconhecimento, dotou Jano de rara prudência, de tal modo que o passado e o futuro estavam sempre ante seus olhos. Depois da sua morte, foi posto no rol dos deuses pelos povos que governara e que civilizara. Seu reinado foi tão pacífico que dele fizeram o deus da paz. Representavam-no com uma cabeça com duas faces, tendo na mão uma vara e, na outra, uma chave. Seu templo, construído por Numa, ficava aberto durante a guerra, a fim de que o deus pudesse seguir a ajudar o exército romano, e fechado em tempo de paz, para impedir que ele abandonasse a cidade. Era sempre o primeiro a ser invocado nas cerimônias religiosas, porque presidia às portas e aos caminhos e porque era por sua mediação que as preces dos homens chegavam até os deuses. Jano tinha dois rostos porque exercia seu poder sobre o céu e sobre a terra. Era a divindade mais antiga do mundo. Tudo se abria e fechava à sua vontade. Suas estátuas, em geral, o representavam tendo na mão direita o número trezentos, e, na esquerda, o número sessenta e cinco, para exprimir a duração do ano. Presidia o ano e o começo de tudo: era o deus dos princípios. O Janus bifrons, “Jano de dois rostos”, exprimia a faculdade que ele tinha de olhar para a frente, o porvir, e ver atrás, o passado; Janus quadrifons, “Jano de quatro cabeças”, exprimia as quatro estações do ano que ele presidia. Visto Jano abrir o ano, o primeiro mês lhe era consagrado, janeiro, januarius. Havia em Roma vários templos de Jano, uns em honra do Jano bifronte, outros em honra ao Jano quadrifonte. Além da Porta Janícula, fora dos muros de Roma, havia doze altares em honra do Jano, os quais lembravam os doze meses do ano. Sobre o reverso das suas moedas via-se um navio ou simplesmente uma proa, em memória da chegada de Saturno à Itália sobre um barco (SPALDING, 1993, p. 76-77).

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Mesmo durante o conflito, havia limites para o que era permitido entre os beligerantes: os iura belli ou o ius in bello. Assim, nas campanhas de Filipe V (rei da Macedônia, entre 221 e 179 a.C.) contra Atenas, tanto o historiador latino Tito Lívio quanto o historiador grego Políbio denunciaram o desrespeito a estes limites. Tito Lívio (História de Roma XXXI, 30) expressou esta situação através do discurso ateniense contra os macedônios visando convencer os etólios a se aliarem a eles e aos romanos: “Não se queixavam, disseram, por sofrer de um inimigo ataques de inimigo, porquanto a guerra tem suas leis: sendo justo aplicá-las, justo é também padecêlas.” O condenável e classificado como “bárbaro” foi a violação dos túmulos e monumentos funerários e a destruição de templos por parte dos macedônios, o que ia contra “as leis divinas e humanas”. O mesmo tipo de argumentação já fora exposto por Políbio (História V, 9, 11): “Até aí todos estes atos tinham sido praticados acertada e justamente segundo as leis da guerra [termo grego: oi tou polemou nomoi], mas não o que foi feito em seguida.” E o historiador então relata as atrocidades contra oferendas votivas e templos. A concepção de limites aos atos de guerra está presente no direito internacional público contemporâneo, exemplificado nas Convenções de Genebra4. A vitória comportava também todo um ritual: súplicas em honra aos deuses, elevação de um troféu (suporte de madeira vestido com as armas dos vencidos), triunfo do general e introdução em Roma dos deuses dos inimigos. O ritual fecial intervinha ainda no momento do tratado da paz: o pater patratus sacrificava com uma faca de pedra (foedus icere ou ferire ou percutere) o porco escolhido como vítima e, em seguida, lançava fora a faca acompanhada das seguintes palavras: Si sciens fallo, tum me Diespiter, salva urbe arceque, bonis ejiciat ut ego hunc lapidem (“Se eu engano de propósito, que Júpiter, salvando a cidade e a cidadela, me lance fora os meus bens assim como eu atiro esta faca de pedra”). No calendário religioso, previam-se várias festas com ritos de purificação ou iniciáticos: Quinquatrus5, Tubilustrium6, Equirria7, October Equus8 e Armilustrium9. Estas festas aconteciam

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Convenções de Genebra: são uma série de tratados formulados em Genebra, na Suíça, definindo as normas para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitário Internacional. (...) Esses tratados definem os direitos e os deveres de pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra. (...) Os tratados foram elaborados durante quatro Convenções de Genebra que aconteceram de 1864 a 1949. (Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%B5es_de_Genebra . Acesso em: 29/10/2008.) 5 Quinquatrus: Os sálios (confraria religiosa relacionada a Marte) executavam suas danças sagradas, batendo com a lança seus escudos (ancilia) sagrados ovais com laterais em forma de oito, que se acreditava terem caído do céu. Seu canto invocava Marte, deus da guerra, mas também Júpiter e Jano (ver nota 2). Vestiam a trabea (vestimenta militar de cor púrpura), uma couraça de metal e capacete (LE BONNIEC, 1969, p. 102). Acontecia em 19 de março.

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no início e no fim do ano militar, que ia de março a outubro, ou seja, da primavera ao outono; o inverno era, sob o ponto de vista militar, um tempo de inação. Bellum iustum implicava na noção de “guerra defensiva”, pois os exércitos romanos apenas reagiriam a um ato agressivo do inimigo não sendo o agente provocador do conflito. Assim, cada vez que Roma podia ser acusada de agressividade expansionista, alegava-se que fora a resposta a uma intenção ou a um ataque injusto e bárbaro de outros povos contra Roma e seus aliados, buscando legitimar a agressão romana. Construía-se a imagem dos romanos como heróis justiceiros na medida em que a sua causa fora vencedora (victrix causa) e os vencidos tiveram sua voz silenciada ou traduzida pelos vencedores em seu próprio favor.

2. Bellum Iustum: Historiografia Colonial

A concepção bellum iustum, elaborada pela antiga historiografia romana, foi reproduzida por alguns historiadores modernos e contemporâneos. O pensamento humanista clássico e o pósclássico, como o de Montesquieu, por exemplo, peças chaves da ideologia burguesa, reconheceram alguns excessos da República Romana, mas os diluíram em favor do resultado final: a pax romana era preferível à liberdade na anarquia. Prevalecia a idéia de que uma civilização tinha o direito de conquistar e de organizar o mundo, legitimando assim a constituição 6

Tubilustrium: Festa de purificação e sacralização das trombetas de guerra. Ocorriam em 23 de março e 23 de maio. Le Bonniec (1969, p. 102) aventa que a duplicidade de datas talvez multiplicasse as garantias de eficácia. 7 Equirria: Festas instituídas por Rômulo em honra de Marte, deus da guerra. Os cavalos eram purificados e sacralizados antes da abertura da campanha militar. As Equirrias realizavam-se no Campus Martis, “Campo de Marte” (SPALDING, 1993, p. 54), em 27 de fevereiro e 14 de março. Apresentavam-se desultores montando dois cavalos a galope ao mesmo tempo e saltando de um para o outro executando acrobacias e se fazia transuectio equitum (revista de cavaleiros) (BRANDÃO, 1993, p. 138). 8 October Equus: Festa muito antiga respondendo aos ritos agrários e guerreiros, que ocorria em 15 de outubro no Campo de Marte, durante a cerimônia de encerramento das atividades militares. Após uma corrida de bigas, sacrificava-se um cavalo (LAMBOLEY, 1995, p. 266). O cavalo (bode expiatório, vítima substituta), que estava à direita da biga do vencedor, era sacrificado imediatamente pelo flâmine de Marte, como uma forma de purificar o exército e a cidade com efusão do sangue do animal e o fetiche de seu esqueleto. Uma parte do sangue da vítima era derramada na Regia (residência do Pontifex Maximus) e outra enviada às Vestais, que a guardavam cuidadosamente para as lustrações dos meses restantes do ano. Pela cabeça do animal, competiam acirradamente os residentes da Via Sacra e os habitantes da Suburra (bairro povoado e de má fama), na medida em que a cabeça era considerada sede da força vital, onde se concentravam todas as energias (BRANDÃO, 1993, p. 140-141). 9 Armilustrum: Cerimônia da purificação das armas, quando do retorno das expedições guerreira em outubro, pois as armas estavam impuras por verterem sangue. Os sálios carregavam em procissão seus escudos sagrados e executavam suas danças. Ocorria no monte Aventino, num recinto sagrado chamado também de Armilustrium, externo então ao limite sagrado do pomerium, o que se compreende, pois se tratava de purificar armas antes de introduzi-las no território sagrado da cidade (LE BONNIEC, 1969, p. 102-103).

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ou a extensão de um império pela força contanto que os conquistadores respeitassem certas formas do direito dos povos. Havia admiração por Roma Antiga e se considerava a sociedade européia ocidental a sua herdeira. A função justificadora da história romana, pelo viés de uma filiação associando a Europa ao um império pacificador e civilizador, foi utilizada nos discursos das potências coloniais durante a expansão imperialista européia do final do século XIX e início do XX na África e na Ásia. A historiografia européia deste período desenvolveu um número significativo de estudos sobre a conquista romana e a romanização. O expansionismo imperialista das metrópoles européias (em especial, o da França e o da Itália) procurou no passado um paralelo histórico e encontrou no Império Romano um campo propício para legitimar o seu domínio, em especial na região norte-africana onde os antigos romanos já estiveram presentes, ressaltando os benefícios da civilização romana e posicionando-se como seus herdeiros naturais. Os historiadores franceses Boissier (1893) e Cagnat (1912) são exemplos deste tipo de historiografia ao abordarem a história da África do Norte durante o domínio romano. Entretanto, sendo o imperialismo europeu alvo de críticas, como a dos marxistas (por exemplo, Lênine e Rosa Luxemburgo) que denunciavam a exploração econômica como móvel do expansionismo, a política da Roma Antiga também passou a ser vista não mais numa perspectiva tão positiva. A posição de um imperialismo romano benigno teve em Mommsen (1854-1856) um de seus pilares e em Frank (1914) e Holleaux (1921), dois de seus arautos. Estes, ao se interrogarem sobre o caráter voluntário ou não, consciente ou não, da construção imperial romana, viam com restrições a intervenção significativa dos interesses “mercantilistas” para qualquer época, defendendo que o início da expansão romana não foi direcionado por estes interesses e sim por preocupações defensivas. Assim, a perspectiva marxista sobre o imperialismo romano foi considerada por eles como uma extrapolação abusiva. Distintamente, colocavam-se Schumpeter (1919) e Rostovtzeff (1926). O primeiro defendia que os romanos eram levados à guerra e a um intervencionismo sistemático, sempre alegando assegurar a paz e que seus interesses eram ameaçados ou efetivamente atacados. Rostovtzeff, mesmo classificando como “guerras preventivas” a 1a. fase da campanha romana no Oriente, acabou por reconhecer que, sob um pretexto vão de defesa contra perigos hipotéticos (evitar a formação de um Estado político forte no Oriente), havia o caráter destruidor do imperialismo. A crítica e a polêmica marxistas abordaram não apenas as estruturas internas das sociedades e dos Estados, mas também as relações entre os Estados (guerra, dependência de uma

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nação para com outra e a relação entre guerra e dependência). Desenvolveram um novo tipo de análise e argumentação, que foi reforçada pela eclosão, através da Europa, de consciências nacionais oponentes às idéias de império e de construções transnacionais que evocavam principalmente lembranças de opressão cultural.

3. Bellum Iustum: Historiografia Pós-colonial

A partir de meados do século XX, com a fragilidade européia pós Segunda Guerra Mundial e principalmente com a descolonização afro-asiática, parte da historiografia fez uma denúncia imoderada e tendenciosa da ação romana. A produção historiográfica desenvolveu um viés “descolonizador” que ressaltou a resistência ao domínio romano e resgatou os elementos nativos em contraposição à romanização. Tal como a tendência historiográfica colonial do final do século passado e início deste, a nova procurava encontrar no passado uma antecipação e/ou continuidade da realidade histórica vivenciada no momento de sua produção. Os dois modelos, ao estudarem o domínio romano sobre outras sociedades, transpuseram a visão polarizada da história recente para as suas respectivas produções historiográficas. As revoltas indígenas detectadas na documentação antiga para o período romano não são debitadas, como na historiografia tradicional, à beligerância nativa, mas inseridas numa resistência contínua e organizada tanto em nível militar como cultural, semelhante aos movimentos nacionalistas de independência deste século. O processo de descolonização significou uma descolonização da produção historiográfica, com ex-colonos reescrevendo a história e resgatando a memória de suas origens e, assim, tomando em suas mãos a rica e complexa herança cultural (Sahli em 1965 e Lamirande em 1976). Neste contexto, procurou-se demonstrar a singularidade e a individualidade de diferentes povos ocasionando a crítica de termos genéricos como “indígenas” que, apesar de expressarem ao menos parcialmente a unidade de uma população frente ao elemento externo, mascaram a complexidade étnica da região. Também se verificou o esforço em romper com a tradição historiográfica de fazer a história da região a partir da chegada do elemento externo; o estudo de Camps (1960) sobre os berberes, por exemplo, se insere neste quadro. Mattingly (1996), ao analisar a historiografia pós-colonial do Magreb, ressaltou a obra de Laroui (1970) como o marco desta nova tendência, ao denunciar como a história do antigo Magreb tem sido seqüestrada pelos

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interesses europeus e assim desconstruir a história colonial da região que privilegiou os aspectos militar, urbano e cultural (este apenas relacionado à elite). Para contrapor-se a esta visão, Laroui enfatizou a importância da resistência a Roma não como uma tendência anárquica ou uma rejeição dos benefícios da civilização, mas como uma contínua oposição às conquista e cultura estrangeiras. Buscou detectar as lacunas, os erros e as tomadas de posição da historiografia colonial. Bénabou (1976) foi um outro expoente desta corrente historiográfica. Este autor busca ressaltar uma identidade histórico-cultural norte-africana através de um “fundo de cultura” presente na religião, nas línguas locais e na onomástica. Um outro tipo de olhar historiográfico se construiu afastando-se de uma perspectiva européia. O surgimento em primeiro plano de atores (União Soviética, Estados Unidos e Japão), que pertenciam somente marginalmente ao oikoumêné dos antigos (tradição clássica), provocou uma dissociação na consciência dos historiadores e, no seu subconsciente, entre o objeto de suas pesquisas e a aplicação possível a uma dominação imperial presente; nascia então outros pólos de interesse histórico. Este distanciamento permitiu abordar Roma sem ter o sentimento de lhe dar razão ou não e afastou de uma possível identificação com Roma. O desenvolvimento da arqueologia, da etnologia e da história das religiões e o aprofundamento do conhecimento da Antigüidade propiciaram a descoberta de mundos estranhos ao universo clássico e uma visão distinta do homem a partir de comparações resultando em explicações diferentes. Analisam-se, sob diferentes óticas (mentalidades, religião, lingüística, sociológica...), as relações entre o discurso dos antigos romanos e os seus atos expansionistas, evitando uma perspectiva isomórfica de considerar o discurso como realidade. Buscam-se compreender e explicar os atos e discursos de um outro tempo, mas evitando, através de um rigor filológico e crítico, tanto o anacronismo do detalhe como o anacronismo de julgar com as categorias e sentimentos atuais. Nesta linha, encontram-se, por exemplo, os estudos sobre o imperialismo romano realizados por Badian (1968), Brisson (1969), Gabra (1973), Veyne (1975), Brunt (1978), Garnsey e Whittaker (1978), Harris (1979 e 1984), Derow (1979), North (1981), Lintott (1981), Sherwin-White (1980 e 1984), Linderski (1984) e Frézouls (1983). A análise deste fenômeno histórico é obstacularizada pelas motivações variadas da política externa romana, pela visão monolítica de bellum iustum passada pelos antigos romanos e pela insuficiência de fontes originada do “outro”. A revolta de Tacfarinas insere-se neste quadro, porém não é impossível desvelar aspectos que permitem outras leituras.

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4. Revolta de Tacfarinas: sedentarismo x nomadismo

No início do século I (de 14 a 27), ocorreu uma revolta de tribos norte-africanas liderada por Tacfarinas contra o poder romano imperial, que se implementava na região após a derrota cartaginesa na 3a. Guerra Púnica (146 a.C.). A principal fonte de informação sobre esta revolta é de origem romana: Tácito em três breves passagens dos Anais, II, 52; III, 74 e IV, 23-26. Esta obra, escrita entre 116 e 118, abordava a história de Roma do período de 14 a 68 e foi organizada em 16 livros, porém nem todos sobreviveram. O autor era membro da ordem senatorial romana. Republicano nostálgico, Tácito criticava o poder centralizador do imperador, acabando por adotar uma visão pessimista sobre o Império Romano. O seu interesse centrava-se na história romana e as referências a outros povos interessavam na medida em que se relacionavam a Roma. No caso específico, Tácito (Anais IV, 23) utilizou-se do movimento de Tacfarinas para criticar a vaidade dos generais mais preocupados em receber as honrarias militares do que em sufocar realmente o movimento assim como acusar a política imperial de desguarnecer prematuramente a região com a retirada da IX Legião e denunciar o terror das autoridades em desobedecer as ordens do imperador, ainda que errôneas, e a inépcia e a falta de visão do imperador na escolha do encarregado de debelar a revolta. A revolta de Tacfarinas foi apresentada por Tácito (Anais II, 52; III, 74 e IV, 23 e 25) numa perspectiva de alteridade em que os revoltosos foram desqualificados como “vagabundos e ladrões”, “bárbaros” e “gente pobre e de maus costumes”. Sua ação foi “espalhar o terror com assaltos e incêndios” sendo caracterizada como de saque e rapinagem, típicas de um “bando desordenado”, vizinho às “solidões da África” que desconhecia “viver em cidade”. A revolta só se tornou uma ameaça a Roma quando o musulâmio Tacfarinas, desqualificado por Tácito (Anais III, 73) como “salteador”, assumiu a liderança e usando sua experiência militar, pois já servira nas tropas auxiliares de Roma e desertara das suas hostes, organizou os revoltosos “em corpos, à maneira militar”. Lassère (1991), ao abordar o recrutamento romano e os musulâmios, destaca que esta experiência permitiu a Tacfarinas usar os conhecimentos da arte militar (disciplina, organização em destacamentos e pelotões, uexilla et turmae, e manobras de campo) contra os romanos. Mesmo assim, segundo Tácito, a cavalaria númida não chegava à altura da infantaria romana, o que reforçava ainda mais “o temor do nome romano” (Anais IV, 24).

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Tácito (Anais IV, 23-24) nos informa que a “incúria juvenil de Ptolomeu, filho de Juba [II]” (monarca do reino cliente da Mauritânia entre 25 a.C. e 23) em impor ordens, através de libertos e escravos do rei, levou os mauros à guerra, logo, não teria sido uma falta romana. Entretanto, o autor explica como Tacfarinas incitou os povos locais: alegou o enfraquecimento romano na África do Norte, devido a enfrentamentos em outras regiões, o que facilitava a expulsão dos romanos com a união de todos, e o desejo de liberdade frente à escravidão. Esta liberdade estava presente no modo de vida das comunidades locais interioranas: “sem costume de viver em cidades” (Anais II, 52). Reafirmava-se assim a oposição entre o mundo da civilização, personificado pelos romanos, e o da barbárie, personificado, neste caso, pelos musulâmios, um dentre os vários povos tribais existentes na África do Norte desde antes do domínio romano, conforme apresentado por Raven (1998, p. XXIX) no mapa abaixo:

MAPA 1: PRINCIPAIS ÁREAS TRIBAIS DA ÁFRICA DO NORTE

Nota de Raven: As tribos mostradas não são necessariamente contemporâneas entre si.

O estilo de vida nômade, que tinha no pastoreio transumante o seu fundamento, contrastava como o romano, que procurava sedentarizar as populações e estimular as atividades agrícolas cuja produção era exportada para Roma. Desde os primeiros tempos da administração romana, revelou-se difícil conter os movimentos das tribos norte-africanas do interior

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(marmáridas, nasamones, garamantes e getulos) em limites estreitos, pois estavam acostumadas aos deslocamentos em direção às planícies costeiras férteis, entrando em choque com as populações sedentárias que ali habitavam. Conhecem-se as revoltas das tribos locais pelas ofensivas oficiais empreendidas contra elas. As informações sobre a resistência destas tribos são fornecidas pela documentação literária e epigráfica deixada pelos romanos, manifestando assim o seu ponto de vista. Os romanos procuraram fixar as tribos nômades em fazendas para cultivar a terra próxima às cidades litorâneas e também para facilitar a tarefa dos coletores de impostos. Objetivando fechar o acesso às tribos do interior e intimidar as razias nômades em território romano, muitos procônsules no período de Augusto empreenderam campanhas militares de êxito, como por exemplo, a de Cornélio Balbo contra os garamantes em 19 a.C. e a de Cosso Lentúlio contra os getulos, que invadiram a fronteira sul da província, entre 3 e 6. Como resultado da campanha militar de Cornélio Balbo contra os garamantes, intermediários no comércio transaariano durante os períodos fenício e cartaginês e povo guerreiro que se opôs à intenção romana de impor suas leis sobre territórios que habitualmente atravessava livremente para alcançar a costa, Augusto tomou uma série de medidas: a construção de uma estrada de 160 milhas pela III Legião Augusta entre sua base em Ammaedara e Tacapae no Golfo de Gabes, a extensão das fronteiras provinciais e a restrição ao nomadismo tribal através de guarnições de tropas romanas. Não havia a intenção de aumentar o território romano, mas sim, de policiar a região. Apesar da derrota, os garamantes não se submeteram de todo, pois auxiliaram a rebelião de Tacfarinas e, em 69, afrontaram o poder de Roma ao intervir numa querela entre Oea e Lepcis Magna, sendo então derrotados rapidamente por Valério Floro (Tácito. Histórias IV, 50). Os getulos, que habitavam a nordeste dos garamantes e se estendiam até a Numídia, também foram afetados pela política de restrição de passagem imposta pelos romanos. O interesse romano pelas terras norte-africanas, inicialmente, pelo antigo território cartaginês e, posteriormente, pelo território númida, afetou as populações locais. Demarcações e cadastros territoriais foram realizados pelos romanos para inventariar os recursos disponíveis. As delimitações de terras podiam ser acompanhadas de deslocamentos populacionais, pois o cadastro não concernia somente às zonas selecionadas para a colonização, mas também aos territórios nômades, como as estepes do sul tunisiano sob Tibério. Estas operações de grande envergadura

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objetivavam traduzir no espaço territorial o domínio de Roma na África do Norte e originaram rebeliões, como as mapeadas abaixo por Wattel (1998, p. 69).

MAPA 2: NÔMADES E SEDENTÁRIOS NA ÁFRICA NO INÍCIO DO SÉCULO I

A propriedade tribal na África do Norte foi sendo constantemente limitada em favor da ampliação crescente das terras de colonização afetando desta forma o direito de passagem, exceto na Mauritânia, na qual este permanecia irrestrito, pois não despertava o interesse econômico dos romanos. Este processo de confinamento das tribos para o interior e de expropriação de terras verificou-se no Alto Império e acentuou-se na época dos Severos, quando houve a expansão do

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limes na Tripolitânia, Numídia e Mauritânia. A progressão dos cultivos reduziu a pastagem dos pastores semi-nômades, cujos rebanhos arriscavam-se incessantemente a invadir terras cultivadas. A transformação das terras de nomadismo em áreas agrícolas, confiscando as terras férteis para a agricultura, e o fechamento dos caminhos de migração sazonal para a construção e para o melhoramento de estradas romperam o estilo de vida semi-nômade das populações locais (Dyson, 1975). Os campos mais ricos foram apropriados por veteranos, colonos romanos ou italianos, companhias coletoras de impostos e membros da aristocracia romana (senadores e eqüestres), expulsando desta forma a população local para as estepes e para o deserto. Esta população almejava a recuperação de suas terras. Este quadro resultou no movimento nativo liderado por Tacfarinas, que foi debelado com muito esforço pelos romanos. A longa duração desta rebelião explica-se pela abrangência do movimento, que se estendeu a todas as fronteiras meridionais da África do Norte (da Pequena Sirta na Tripolitânia a Mauritânia), pois a situação afetava um grande número de nativos. O movimento englobou musulâmios, mauros, ciníticos e garamantes, sendo os primeiros os líderes e considerados como “uma nação poderosa” (Tácito. Anais II, 53)”, que conseguiram a aliança com o chefe da tribo dos mauros, Mazipa, e este, por sua vez, compeliu os ciníticos a fazerem causa com eles. O procônsul Fúrio Camilo e a III Legião Augusta colocaram fim à guerra em 17. Mas, desde 21, Tacfarinas retomou a luta e impôs uma mudança de tática aos romanos ao praticar a tática de guerrilha: “como suas forças eram desiguais às nossas, somente boas para exercer o salto, acometiam divididas em vários esquadrões, para melhor escapar e armar ciladas” (Tácito. Anais III, 73). O procônsul Bleso foi chamado da Panônia e repartiu suas tropas pelos campos fortificados, de Lepcis Magna (Tripolitânia) a Cirta (Constantina), entretanto, não alcançou nenhuma vitória decisiva, apesar das baixas e prisioneiros das hostes inimigas. Em 24, após a morte de Juba II e a ascensão de Ptolomeu, seu filho, os mauros se aliaram a Tacfarinas contra os romanos; a revolta se estendeu então da Mauritânia a Grande Sirta. O procônsul Dolabela pôs fim à rebelião e à existência de seu chefe, que se suicidou para não cair em cativeiro. A fúria romana atendia ao desejo “de vingança e de sangue nessa luta contra os que tantas vezes se haviam a ela esquivado” (Tácito. Anais IV, 25). Dolabela só não recebeu as honras triunfais para não empanar a glória de Bleso, tio de Sejano, prefeito pretoriano do imperador Tibério e seu homem de confiança até 31, quando caiu em desgraça ao ser denunciado por conspiração.

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O movimento liderado por Tacfarinas foi o mais proeminente de uma série de rebeliões locais ocorridas na região norte-africana durante o século I, após o qual os romanos passaram a exercer mais ações policiais do que operações militares. Não eliminando totalmente a resistência, Roma gradativamente buscou assentar as tribos, confinou as populações hostis a zonas marginais distantes das terras férteis, estabeleceu colônias ou municípios (Sufetula, Cillium, Ammaedara e Thelepte) em regiões importantes, como a África Proconsular, e expandiu a concessão de cidadania aos municípios, guarneceu suas fronteiras, já que a ameaça permanecia bem real, manteve a III Legião Augusta no interior e, dentro do possível, buscou conservar as estruturas indígenas na administração municipal (sufetes).

Conclusão

A abordagem historiográfica pós-colonial da revolta de Tacfarinas afasta-se da reprodução da noção de bellum iustum dos antigos romanos, que silenciava a voz dos vencidos ou a apresentava em favor dos próprios romanos, como o fez Tácito (Anais IV, 26) em relação aos rebeldes norte-africanos: “aquele povo [garamantes], abalado pela morte de Tacfarinas e cônscio de suas culpas [negrito nosso], mandava dar satisfações ao povo romano.” Atualmente, busca-se compreender este movimento numa perspectiva de choque entre dois sistemas de vida: o nômade, característico das tribos norte-africanas, e o sedentário, imposto pelo poder romano na região. Talvez, a aplicação de tal postura historiográfica, em que se procura entender as diferenças sem hierarquizá-las ou valorá-las, possa nos fornecer um instrumental teórico para compreendermos melhor os próprios conflitos bélicos da nossa época visando dirimi-los.

Bibliografia Documentação: TACITE. Annales. Trad. H. Goelzer. 5. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1962. 3 v. (Collection des Universités de France) TACITE. Histoires. Trad. H. Goelzer. 3. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1963. 2 v. (Collection des Universités de France)

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AS GUERRAS DÁCICAS: UMA LEITURA DAS FONTES TEXTUAIS E DA COLUNA DE TRAJANO (101 D.C. – 113 D.C.) Andrea L. D. O. C. Rossi UNESP/Assis

Para uma abordagem historiográfica das Guerras Dácicas no governo de Trajano, entre os anos de 101 a 106 d. C., é necessário problematizar as fontes literárias e historiográficas produzidas no final do I século e início do II século de nossa era. A análise da Coluna de Trajano, erigida no ano 113 d. C., que retrata as Guerras Dácicas, o triunfo de Trajano sobre Decébalo e a inserção da Dácia nos limites do Império Romano tem sido a fonte arqueológica mais estudada para este fim. Através de uma leitura das duas tipologias de fontes, materiais e textuais, as Guerras Dácicas tem sido constantemente abordadas para uma revisão da historiografia sobre o processo de expansão político e militar de Roma. Para entender melhor as Guerras Dácicas, é necessário o contexto do governo de Trajano (98-117 d. C.). Neste sentido, deve-se remeter ao período do final da época republicana e todo o contexto de crise política e militar, etapa imediatamente anterior ao início do Império. Neste período, assistiu-se à crescente importância dada à instituição do imperium e à discussão em torno do poder pessoal, o que se pode ver nas articulações feitas na busca da hegemonia no interior dos dois triunviratos historicamente conhecidos. A literatura do período, representada principalmente pelas obras de Cícero, Salústio (De Bella Jugurta) e Júlio César (De Bello Ciuilis e De Bello Gallico), deu significado ao embate sobre os níveis de representação da realidade política e das ações militares de Roma, assim como da incapacidade que as instituições republicanas revelaram para administrar a pesada herança provincial. A sociedade romana do I século d.C. assistiu à consolidação do Império Romano, que se formara durante os três últimos séculos da República (OLIVEIRA, 1997). A construção de um vasto mundo provincial propiciou a Roma ampliar seu raio de ação para além da península itálica, abrangendo do Mare Adriaticum ao Mare Thyrrenum, todo o Mare Interinum e avançando para as regiões do Pontus Euxinus, Sinus Arabicus, Mare Germanicum e Oceanus Atlanticus (OLIVEIRA, 2001).

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Os resultados dessa expansão geraram a crise da República e a instalação do Império. Eles são demasiado conhecidos: vasto mundo provincial administrado sob a auctoritas do princeps e sob o modelo da figura conciliadora do procurator; ampliação das funções militares, domínio e exploração das grandes rotas comerciais marítimas e continentais, extensão da cidadania romana às províncias incorporadas; crescimento urbano principalmente da cidade de Roma e, após Adriano, intensificação da política de urbanização em várias regiões do império romano (GRIMAL: 1999; VEYNE: 1990; GREEN: 1997). Muitos outros tópicos podem ser apontados, mas o que importa no momento é refletir um pouco sobre o significado da construção desse vasto império em todos os seus aspectos, principalmente em relação ao advento do pensamento político romano articulado com os resultados dessa construção por meio das ações militares implantadas a partir de César e intensificadas com Augusto diante da Pax Romana. Em síntese, a crise da República culminou com a instalação do poder pessoal por meio da figura do princeps, que encerraria em si mesmo, e em torno de si, a liderança política e militar das elites romanas (WOOLF: 1993, 171-172; WILLIANS: 1998, 7-9).

A representação social das Guerras Dácicas

Desde o século XIX, principalmente com os grandes avanços das descobertas arqueológicas, tem sido possível compreender a extensão do domínio romano no mundo antigo. Recursos os mais variados têm sido apresentados ao historiador, consubstanciando sobremaneira as informações necessárias à compreensão dos mecanismos fundamentais do império. No entanto, a grande fonte para o estudo do pensamento político e as práticas militares romanas no final do século I d. C., principalmente no período a ser analisado, continua sendo o significativo elenco das obras literárias produzidas pelos romanos e provinciais como é o caso de Tácito, Suetônio, Plínio, o Jovem, Dion Crisóstomo, Plutarco, Dion Cássio, Flávio Josefo, entre outros. Estas obras literárias têm sido peremptoriamente analisadas à luz das descobertas arqueológicas. A representação literária do pensamento romano remete para a tese de que a literatura romana encarregada de criar e estimular o gosto pela imagem do princeps tratava-se “de uma representação que ganha existência própria devido ao acto da escrita que a instaura e devido ao texto que a suporta” (BACZKO: 1985, 344). Os autores literários não fazem premonição, muito menos adivinhação. São “filósofos que inventam, que constroem, através do seu

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trabalho intelectual, representações que são como tantos outros artefactos.” (Ibidem). Nesta mesma perspectiva, a Coluna de Trajano será analisada com o intuito de perceber o caráter propagandístico incutido nas cenas que retratam as Guerras Dácicas promovidas por Trajano no intuito de incorporar o território acima do Danúbio. É fundamental analisar estes episódios retratados como exemplares das ações militares do Império Romano em suas fronteiras ao final do I século d. C., principalmente no que tange aos conflitos vividos desde o governo de Domiciano (Primeira Guerra Dácica, em 84-85 d. C., e Segunda Guerra Dácica, em 86 d. C.) em relação ao monarca dos dácicos, Decébalo (JONES: 1992, 138-143). As observações sobre a construção de uma utopia não significam inventar simplesmente uma sociedade irreal, mas imaginar uma sociedade melhor e mais bem articulada, fundamentos necessários para relações de poder estáveis. Esta documentação sobre as ações militares de Trajano tende a promover a imagem de um governante ideal construído a partir dos novos anseios político-sociais do Império Romano. Neste caso, o tipo de sociedade representada tem a aparência de utopia. Por outras palavras, as condições de possibilidade de invenção do paradigma utópico são definidas pela emergência de um lugar específico onde o intelectual se instala para reivindicar o seu direito próprio a pensar, imaginar e criticar o social e, designadamente, o político. Este direito e este poder apenas são legitimados, precisamente, pelo seu estatuto de intelectual, ou seja, alguém cuja imaginação é alimentada e guiada pelo racional e pelo saber de que é detentor (Ibidem)

As ações militares e a ordo equester: os novi homines e a propaganda imperial

No final do período republicano em Roma um dos temas mais discutidos foi a chegada e a ascensão do homo novus, originário dos municípios e das províncias romanizadas, personagens sociais fundamentais no processo de expansão do Império Romano e das práticas políticas e militares do I século d.C. . O homo novus chegou a Roma para ocupar cargos na administração pública, principalmente aqueles reservados aos membros da Ordem Eqüestre, que detinha funções militares preponderantes nas lideranças das legiões. Sua presença acabou por acirrar mais ainda os ânimos nos círculos políticos, fazendo exaltarem-se as discussões sobre o novo e o velho (OLIVEIRA: 1997). Os temas sobre ancestralidade esbarravam, todavia, na formação histórica da nobilitas e sua aversão ao orgulho de nobreza que ainda recheava os discursos do segmento aristocrático mais tradicional de Roma. A aproximação nobilitas-novi homines acabou por ter um lugar destacado nas relações políticas do período de

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maior crise da República romana, mesmo porque a aceitação dos novi homines arranhava a velha prática social baseada na ancestralidade e nos méritos familiares (CORNELL: 1993, 165-166). Uma fonte textual que deixa clara essa dicotomia entre novo e velho é o Panegírico de TrajanoI, escrito por Plínio, o Jovem como discurso de agradecimento ao imperador pela sua nomeação como cônsul na província de Ponto-Bitínia. Não que essas práticas tivessem desaparecido, como não desapareceram de fato, mas enquanto critério de ascensão o que se viu foi a valorização dos méritos pessoais do homem político, encerrados também nas funções militares que estes novos agentes sociais passam a assumir. Em contrapartida, e esta é uma das heranças recebidas pelo regime do Principado, instalou-se definitivamente em Roma a estratégia da propaganda política, capaz de promover a combinação dos interesses que estavam em jogo na crise que culminou com a ascensão de Augusto no final do século I a. C. (OLIVEIRA, 1997). Criou-se um imaginário baseado nos valores da tradição romana, que pode ser visto sob três aspectos, segundo Paul M. Martin:

1. a restauração dos valores morais e religiosos; 2. a ação militar e civilizatória; 3. a reconciliação nacional e a unificação do Império. É através das figuras míticas de Evandro, de Héracles, de Enéas e de Rômulo, apresentados como os precursores do princeps, que se desenha irremediavelmente a imagem da marca que o Imperador queria dar de si mesmo. (1971, p. 162 – grifo nosso)

A propaganda política, dinamizada em Roma a partir do reinado de Augusto, tem suas bases no imaginário social e na imaginação política. Há, por assim dizer, na essência da propaganda, a difusão de idéias que se confundem entre o bem e o mal, principalmente uma forte especulação sobre o mal. As imagens da bondade e do terror, do bom governante e do tirano, são aquelas que devem ser reconhecidas coletivamente no sistema, permitindo, portanto, discernir o bem do mal. No caso das construções feitas para a retratação das Guerras Dácicas, sob Trajano, pode-se perceber esta dicotomia construída claramente tanto na literatura como na fonte arqueológica analisada: Trajano-Bom Governante/Decébalo-Tirano. Mas é preciso ressaltar que a construção do carisma, todavia, não retira do ser concreto, real, a sua eficácia. Os intelectuais do I século d.C. já citados anteriormente, assim como outros do período de transição entre a República e o Império, produzem, sob determinadas condições, uns fazendo a apologia aberta do princeps, como é o caso de Patérculo em relação a Tibério, de Sêneca - De clementia - em relação a Nero; outros fazem a crítica aberta ao princeps, como é o caso de Plínio, o Jovem e Suetônio e Tácito em relação a Nero e a Domiciano (OLIVEIRA: 1996, 14). Em qualquer situação, as obras constituem veículos difusores das

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idéias acerca do Principado e da figura do princeps, fazendo-lhe as representações do bem e do mal, contrapondo, como medida estratégica, o choque do terror e do medo com as imagens tranqüilizadoras e unificadoras. (BACZKO: 1985, 329). Os dácicos passam a ser retratados pelos romanos como os ameaçadores das fronteiras estabelecidas, o que implicaria a desconstrução da Pax Romana que deve ser evocada pelas ações militares romanas estabelecidas após Augusto e amplamente defendida e constantemente evocada por Trajano. A propaganda via obra literária tinha endereço certo: a elite política romana, formadora da opinião pública numa sociedade patrimonialista, marcada por relações de clientelismo e escravistas. É certo que a população mais humilde raramente tinha acesso às obras, mas recebia informações delas pela via das relações sociais desniveladas. A representação literária dos atos heróicos praticados no passado remoto, muitas vezes sob orientação dos deuses, acabava por ser reproduzida no presente em relação à figura do princeps. No caso da divulgação das ações militares, principalmente as obras arquitetônicas erigidas nos fori, também as construídas por Trajano tiveram como objetivo a difusão dos elementos principais da dominação romana sobre a Dácia, a Coluna de Trajano datada de 113 d. C. Esse modo de veicular a informação acabava por condicionar a sociedade “atomizada”, como quer Baczko, uma vez que a propaganda difundia imagens com um zelo crescente, permanentemente e em quantidades superabundantes. Elas condicionavam a sociedade atomizada, levando-a a aceitar uma identidade colectiva comandada pela representação de um poder infalível,..., a confiar no salvador carismático e protector, a conformar-se com o modelo do homem [romano] ... dedicado ao poder e ao seu grande chefe (Ibidem)

O arcabouço ideológico fundava-se na estrutura de propaganda que buscava construir a imagem do princeps infalível, semi-deus, futuro divus e justiceiro (OLIVEIRA: 1996; OLIVEIRA: 1997). Além do mundo das idéias e das palavras, representado pela literatura, os romanos tinham ainda como suporte da construção dessa imagem, no plano da realidade concreta, o Senado, os generais e as forças militares e, principalmente, um aparato cerimonial complexo e utilitário, capaz de manter as categorias de valores morais nos patamares desejados pelo poder constituído.

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Domiciano e os primeiros conflitos na Dácia

Domiciano nasceu em Roma aos 24 de outubro de 51 d.C. Era o filho mais jovem do imperador Vespasiano e Domitilla I. Apesar da tradição literária ter associado Domiciano com a pobreza dos Flávios, a situação da família permaneceu em alta ao longo dos seus primeiros anos de vida: Vespasiano foi designado para o prestigiado proconsulado da África do Norte em 59 e, sete anos depois, lhe foi concedido um comando especial no Leste pelo imperador Nero (54-69) para debelar uma revolta na Judéia; Tito, o irmão dez anos mais velho que Domiciano e sucessor eventual de Vespasiano como imperador, casou-se nos anos 60 e fora escolhido por Vespasiano para ser legado legionário no Leste. Diferente de Tito, Domiciano não foi educado para ser imperador, contudo recebeu educação musical em Roma da mesma maneira como qualquer membro da elite senatorial de sua época. O biógrafo imperial Suetônio registra que Domiciano dava recitais públicos, conversava elegantemente e produziu comentários memoráveis; como imperador, ele escreveu e publicou um livro sobre a calvície (Suet. Dom. 18, 20; Tac. Hist. 4.86; Suet. Dom. 2.2.). O papel de Domiciano nos anos 70 era em grande parte determinado pela escolha de Tito como o sucessor de Vespasiano. A ele foi concedida uma série de consulados ordinários, o poder tribunício, o censura e a Prefeitura Pretoriana. Por outro lado, Domiciano foi nomeado seis vezes para o consulado sufecto menos prestigioso, reteve o título de César e assegurou vários sacerdócios. A ele foi determinada responsabilidade, mas nenhum real poder. Nada mudou quando Tito ascendeu ao trono, Domiciano não recebeu o poder tribunício nem imperium de qualquer tipo. Os irmãos nunca foram íntimos, e como Tito morreu em setembro de 81, Domiciano dirigiu-se rapidamente para o acampamento pretoriano onde foi aclamado imperador. Com as notícias sobre a morte de Tito, o senado preferiu honrar o imperador morto primeiro, antes de elevar o seu irmão, o que se pode considerar uma indicação precoce do futuro de Domiciano quanto às dificuldades com a aristocracia. De qualquer modo, depois de esperar um dia a mais, Domiciano recebeu o imperium, o título de Augusto e o poder tribunício, junto com o cargo de pontifex maximus e a condição de pater patriae (Suet. Tit. 11). Como imperador, Domiciano tornou-se um dos principais administradores de Roma, especialmente quanto à economia. Logo após assumir o cargo público, ele elevou conteúdo da prata do denarius aproximadamente em 12% (taxa que Augusto estabeleceu no início do seu governo), para desvalorizá-lo somente em 85, quando a renda imperial demonstrou ser insuficiente para remunerar o exército e para fazer face às despesas públicas.

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Confiscos e a coleta rigorosa de impostos foram necessários. Por outro lado, ele buscou incrementar a produção de grão promovendo limitações com medidas imperiais amplas sobre a viticultura, mas o edito encontrou imediata oposição e nunca foi implementado (Suet. Dom. 7.2; 14.2.). Por outro lado, houve notáveis sucessos. O grande incêndio de 64, as guerras civis de 68-69 e outro incêndio devastador em 80 tinham deixado Roma mal por falta de reconstrução. Domiciano respondeu erguendo, restabelecendo ou completando umas 50 construções, incluindo o Templo de Júpiter no Capitólio e um palácio magnífico no Palatino. O programa de edificação, ambicioso e espetacular, não foi igualado por qualquer outro imperador (JONES: 1992, 79-98). Domiciano estendeu seu governo além da economia. Em 85, ele se autonomeou censor perpetuus, assumindo a supervisão geral da conduta e da moral. Essa medida não tinha precedente e, embora amplamente simbólica, revelava o interesse obsessivo de Domiciano por todos os aspectos da vida romana. Partidário ardente da religião romana tradicional, ele se identificou também de perto com Minerva e Júpiter, unindo publicamente a divindade aos Ludi Capitolini, os Jogos Capitolinos, iniciados 86. Além de Roma, Domiciano taxou rigorosamente as províncias e não teve nenhum receio de impor as suas leis a funcionários de qualquer nível. A preocupação de Domiciano com os detalhes administrativos provocou mudanças essenciais na organização de várias províncias e estabeleceu o cargo de curador para investigar a administração financeira das cidades. Enquanto as habilidades militares de Vespasiano e de Tito eram autênticas, as de Domiciano não eram. Em parte, como a tentativa para sanar esta deficiência, Domiciano freqüentemente se fazia envolver nas suas próprias façanhas militares fora de Roma. Ele reivindicou um triunfo em 83 por subjugar os Chatti, na Gália, mas a conquista foi ilusória. A vitória final não se fez realmente senão em 89. Na Bretanha, propaganda semelhante mascarou a retirada de forças romanas do litoral norte para posições mais longe ao sul, um sinal claro da rejeição de Domiciano à guerra expansionista na província (Suet. Dom. 6.2). A maior ameaça, porém, permanecia no Danúbio. O imperador visitou a Moesia em 85, depois da morte de Oppio Sabino, o governador daquela província, durante a invasão da Dácia. Na Primeira Guerra Dácica, o sucesso inicial contra os agressores pelo prefeito pretoriano de Domiciano, Cornélio Fusco, permitiu ao imperador celebrar o seu segundo triunfo em Roma no ano 86. Fusco, que tentou vingar a morte de Sabino, subseqüentemente foi morto e Domiciano voltou logo ao Danúbio onde forças romanas, sob o comando do governador recentemente designado da Moesia Superior, Tettio Juliano, derrotaram os

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Dácicos em Tapae, na Segunda Guerra Dácica, provavelmente no ano 88. Em janeiro de 89, o governador da Germânia Superior, L. Antônio Saturnino, rebelou-se em Mainz. A revolta foi suprimida prontamente e os líderes rebeldes brutalmente castigados. Depois, naquele mesmo ano, Domiciano atacou os suevos marcomanos e os quadi, na Primeira Guerra da Pannonia, enquanto mandava para o rei da Dácia, Decébalo, uma determinação para evitar conflitos nas duas frentes. Compelido a voltar ao Danúbio depois de três anos, Domiciano lutou contra as forças combinadas dos suevos e dos sarmatas na Segunda Guerra da Pannonia. Em janeiro de 93, Domiciano regressou a Roma, não aceitou o pleno triunfo, mas ao menos a ovatio, um sinal, talvez, de assunto inacabado ao longo do Danúbio (HOBLEY: 1989). As tendências autocráticas de Domiciano significaram que a base sólida do poder durante o seu reinado residia no seu tribunal. As características tipicamente associadas com os mais recentes tribunais -uma pequena faixa de cortesãos favorecidos, um interesse agudo pelo estranho e pelo incomum (por exemplo, lutadores, bufões e anões), e a atmosfera um pouco artificial que caracterizava o palácio de Domiciano em Roma ou na sua villa Albana, situada a uns 20 quilômetros da capital (Plínio o Jovem. Cartas, 4.11.6; Suetônio, Dom 4.4; Dion Cássio, 67.1.2). Cortesãos incluíam os membros da família e os libertos, como também os amigos (amici), um grupo de políticos, generais, e pretorianos aperfeiçoa que ofereciam sugestões em assuntos importantes (JONES: 1993, 50-71). A confiança nos amici não era nova, contudo Domiciano desconfiava da aristocracia, mais notadamente do senado, cujo papel sofreu consideravelmente quando Domiciano concentrou poder nas mãos de alguns senadores enquanto ampliava os deveres da ordem eqüestre. As queixas senatoriais não eram sem base: foram executados pelo menos 11 senadores de nível consular e muitos outros exilados, total atestado do desprezo do imperador para com o corpo senatorial e para com a sua sociedade (Suet. Dom.10). O apoio entusiasmado do senado para condenar a memória de Domiciano depois de sua morte -a damnatio memoriae- aconteceu sem nenhuma surpresa. O erro de Domiciano foi ele não ter feito nenhuma tentativa para mascarar os seus sentimentos em relação ao senado. Inclinado a não incluir o corpo senatorial no seu principado, ele tratou o grupo nada diferentemente do que qualquer outro. A vingança viria na forma aristocrática baseada na tradição literária que não perderia a oportunidade para vilipendiar completamente o imperador e as suas leis (JONES, 1993). Aos 18 de setembro de 96, Domiciano foi assassinado e seu sucessor foi escolhido no mesmo dia: M. Cocceius Nerva, senador e um dos amici de Domiciano. As fontes são unânimes ao acentuar que tinha sido uma trama do palácio, contudo é difícil determinar o

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nível de culpabilidade entre os vários conspiradores potenciais (Suet. Dom.14) que levaram ao assassinato de Domiciano. Os conspiradores tinham sido astutos o bastante para designar um sucessor, Marcus Cocceius Nerva, senador ancião de linhagem impecável, de carreira modesta, cuja jovialidade e mansidão, no entanto, jamais fizeram-no entrar em atritos pessoais e ter ofendido alguém. Sentia-se em Roma que a ele poderia ser confiado lidar bem com o senado e promover um período de calma depois do terror dos últimos anos de Domiciano. Ele teve sucesso. Era conciliatório e moderado e tentou, no seu curto governo, estabilizar as finanças do império e restabelecer boas relações de funcionamento entre o imperador, senado e as diversas regiões da Itália, em função dos pesados impostos. Se ele teria sobrevivido mais tempo é muito questionável e a sua decisão mais sábia foi já ter um sucessor fortemente aceito na hora da sua morte, em janeiro de 98.

A ascensão de Trajano e a manutenção das fronteiras

O novo imperador era Marcus Ulpius Traianus, conhecido na história dos imperadores romanos como Trajano. A família de Trajano não era desconhecida entre as famílias governantes de Roma. Seu pai tinha sido cônsul e governador da Síria, mas suas origens remontavam ao tempo da instalação de colonos na Espanha. A sua ascensão marcou um alargamento do círculo do qual poderiam ser tirados os imperadores e uma vez mais a escolha provou ser justificada. Trajano seria exaltado posteriormente como o imperador ideal, o monarca que os governantes posteriores tomaram como exemplo. Ele adotou Hércules, com a sua imagem de trabalho perpétuo para o bem da comunidade, como seu modelo, mas também se permitiu ser retratado nas moedas ao lado de Júpiter. Ele entrelaçou o respeito pelo imperador com o respeito pelos deuses tradicionais de Roma e construiu templos para Júpiter em seu governo como exibição da dedicação ao imperador. Quando foi designado imperador, Trajano era governador da Germânia Superior e permaneceu por lá durante um ano antes de voltar a Roma. Ostensivamente, ele assegurava as fronteiras, mas provavelmente queria promover a sua reputação como chefe militar, uma vez que essa condição parecia, naquele momento, ser atributo essencial do imperador próspero. Com isso, Trajano obteve prestígio junto aos senadores e o apoio de tropas, as quais poderiam prevenir qualquer desafio contra sua indicação. Era um sinal, também, de que a administração

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realizada pelo imperador não devia ser necessariamente centrada em Roma (MATTERN: 2002, 27-33). Trajano acentuou sua marca de imperador quando, sendo recebido em Roma com a acclamatio popular, mostrou-se preocupado em enfrentar pessoalmente os inimigos de Roma. Ele regressou ao norte durante o inverno de 98-9 e novamente no ano 101 para iniciar a invasão da Dácia. O senador Plínio, o Jovem, que compartilhara do ódio comum da sua ordem por Domiciano, regozijou-se com o novo imperador e o louvou de modo eficiente:

Vemos como ele conhece os desejos das províncias e até mesmo os pedidos individuais das cidades. Ele não cria nenhuma dificuldade para dar-lhes uma audiência ou demorar nas respostas. Todos entram prontamente na sua presença e também são despedidos prontamente, e afinal as portas do imperador já não estão cercadas por sentinelas que as mantivessem fechadas (Panegírico de Trajano)

Um grupo de correspondências entre Trajano e Plínio, o Jovem, quando este último era governador do Ponto-Bitínia, ilustra a atenção de Trajano para os menores detalhes da administração imperial romana (Livro X). Trajano não mostra nenhuma irritação ao lidar com um elenco de questões variadas: intervinha assiduamente nos negócios das cidades, resolvia disputas e orientava-as como organizar os seus negócios. De fato assume uma política mais intensiva em relação ao papel do imperador como pater patriae e o exemplo mais famoso da sua atuação neste sentido é o sistema de alimenta instituído na Itália. O Mercado, construído por ele no Fórum de Trajano, também reflete sua política frumentária. O último andar do edifício foi construído com o objetivo de armazenar e distribuir o trigo arrecadado por esta política social. Trajano foi um dos últimos grandes conquistadores do império romano (CORNELL: 1993, 165). As suas razões para estender a presença romana sobre a Dácia, no norte do reino do Danúbio, e na Pártia, onde ele somou duas novas províncias para o império, podem ser unidas ao desejo de aumentar a sua reputação militar. Porém, as campanhas também eram justificadas pela razão de que ambos os reinos constituíam ameaça a Roma. Decébalo ainda estava fixo no desejo de vingança pela sua derrota a Domiciano e provavelmente o Império Romano era considerado um desafio para ele. Trajano liderou duas guerras na Dácia, em 1012 e 105-6. A primeira guerra terminou numa trégua armada, a segunda na derrota completa dos dácicos. O palácio real de Decébalo foi saqueado, o monarca foi morto e a sua cabeça mandada em triunfo para Roma. Deu-se a pilhagem de prata e ouro numa balança que

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lembrou as grandes conquistas republicanas. Cenas da campanha - a travessia do Danúbio, o ataque à capital dos Dácicos – são retratadas e estão no topo da coluna de Trajano erigida no Forum Traiani, em Roma. A Dácia foi incorporada como província em 106 e a planície da Transilvânia atraiu vários colonos romanos (SOUTHERN: 2007, 315-317). Trajano fortaleceu a fronteira oriental incorporando Nabatéia ao império como a nova província da Arábia. Quando uma nova disputa com a Pártia e com a Armênia surgiu em 110, promoveu a invasão da Pártia com facilidade. A Armênia foi invadida e incorporada como província e Trajano estendeu o controle romano até a Mesopotâmia, estabelecida como outra província e, mais adiante, ao sul, na direção do Golfo Pérsico. Os últimos territórios incorporados estavam inquietos e havia também descontentamentos em outros lugares do império, insurreições tribais na Bretanha, uma rebelião judaica e desassossego no Danúbio Inferior. Não haveria tempo para cuidar de todos os problemas do império. Trajano morre em 117. Este é o cenário assumido por Adriano, imperador sucessor de Trajano.

As Guerras Dácicas nas fontes textuais: o Discurso XII de Dion Crisóstomo

Antes de Trajano retornar a Roma em 99 d.C. para ser aclamado imperador, tempo despendido para verificar a disposição do inimigo, investigando as fortificações, assegurandose e inspirando-se no preparo para a ofensiva contra a Dácia. As campanhas anteriores contra os Dácicos, assim como contra os Germânicos por meio do Danúbio por Domiciano, foram parcialmente sucedidas, mas a situação tinha ficado instável nesta fronteira nordeste do Império Romano. O rei dácico Decébalo, que havia permanecido no poder como um espinho na visão dos romanos, havia despendido a maior parte da última década preparando seu exército de acordo com os modelos romanos. Graças às campanhas promovidas por Domiciano, Decébalo fortificou as fronteiras de seu território e criou obstáculos para o domínio romano na região. Decébalo é representado por Dion Cássio (LXVIII:8-14) como o mais capaz dos inimigos de Roma. Plínio, o Jovem, em seu Panegírico de Trajano, retrata Trajano como um soldado que também igualmente compreendeu a necessidade de fazer arranjos políticos em Roma antes inteiramente de focalizar sua energia em outra parte. Dion Crisóstomo, em seu Discurso XII – O Discurso Olímpico-, fala sobre a sua passagem sobre o Danúbio e o encontro com o exército de Trajano. Pode-se ver nesse

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discurso as posições assumidas por Dion Crisóstomo em relação às posturas assumidas por Trajano no conflito com os Getas, chamados de Dácicos pelos romanos. A Mísia, como se refere Homero, era também um povo que migrou da Europa para a Ásia em uma período longínquo. Dion Crisóstomo identifica a Mísia com os Moesios, que viveram ao sul do Danúbio, e estes Moesios com os Getas, ou Dácicos, que viveram ao norte do Danúbio. Segundo referências, Dion Crisóstomo teria escrito um trabalho sobre os Getas, hoje perdido. ... De fato, como tem acontecido, eu terminei uma longa, longa jornada, por todo o caminho do Ister [Danúbio] e a terra dos Getas, ou Misianos como chamava Homero. E eu fui para lá, não como um mercador com suas mercadorias, nem mesmo como alguém para fornecer suprimentos ao exército na capacidade de portador de bagagens ou de incitador, nem era eu encarregado de uma missão como um embaixador a nossos aliados ou em uma embaixada para oferecer congratulações, cujos membros se unem nas preces com os lábios somente. Eu fui “desarmado, sem nenhum elmo nem escudo ou lança”, nem certamente com alguma outra arma qualquer de modo que eu pudesse me maravilhar com as que se cercavam de mim. Para mim, que não poderia montar um cavalo nem seria um hábil arqueiro ou um soldado com glades, nem ainda um lançador pertencente às tropas armadas que não carregam armas pesadas, nem, além disso, era hábil para cortar madeira ou escavar uma trincheira, nem para segar a forragem de um prado inimigo com muitos rastros, nem ainda montar uma barraca ou uma barreira defensiva, assim como certos não combatentes fazem ao seguir as legiões como ajudantes. (XII.16-18)

Dion Crisóstomo faz, em seu relato, uma analogia de seu papel junto ao exército romano com a função de conselheiro, assim como Ulisses o fez na Guerra de Tróia. Em sua última referência “desarmado, sem nenhum elmo nem escudo ou lança” faz uma referência clara a esta função quando cita a Ilíada, de Homero (21,50). Ao continuar a descrever a reunião do exército romano na Dácia, valoriza a sua organização e seu armamento indicando a força bélica sob a liderança de Trajano. Ao exibir as suas incapacidades, de forma retórica, Dion Crisóstomo descreve as funções exercidas na composição das legiões romanas, especificamente a organização do exército sob o comando de Trajano no período das Guerras Dácicas. Estas mesmas descrições podem ser vistas nas representações esculpidas na Coluna de Trajano. As várias ações do exército romano na aproximação dos Dácicos e o cerco estabelecido desde o ano de 101 d. C. podem ser analisados à luz das duas fontes. Por ser uma fonte essencialmente simbólica, retórica e de representações alegóricas, Dion Crisóstomo é muito pouco explorado com esta abordagem. Ao analisar as Guerras Dácicas à luz das fontes textuais, Dion Cássio tem sido a maior referência. Cohoon, ao elaborar o prefácio do Discurso XII, propõe a datação provável deste discurso para o ano 97. No entanto, ao ser analisado frente às descobertas arqueológicas e as novas análises da Coluna de Trajano, pode-se inferir que esta datação seja dos anos 101-102 d. C. devido às referências da organização do exército

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romano liderado por Trajano na região do Danúbio. Em notas do próprio Cohoon, em descrições posteriores, atribui as descrições do exército romano referentes à Segunda Guerra Dácica. Esta datação torna ainda mais polêmica a datação do discurso no ano de 97, somandose a este elemento a acclamatio de Trajano datada no ano 100 em Roma, antes de sua empreitada ao Danúbio para o cerco a Decébalo. Não há possibilidade de Dion Crisóstomo descrever as ações militares de Domiciano junto à Dácia, pois durante o governo deste imperador o filósofo esteve em exílio condenado pelo próprio imperador, sendo aceito novamente em Roma e na Bitínia, sua terra natal, apenas no governo de Nerva. Embora tenha ido a Roma apenas após o ano de 98 (JONES, 1978). Dion Crisóstomo continua a descrever o seu encontro com o exército romano engrandecendo as formas de organização das legiões junto ao Danúbio. Eu, que era inútil para tais coisas, vim entre os homens que não eram estúpidos mas não sentiam nenhum prazer em ouvir discursos, mas estavam tensos assim como cavalos de corrida em sua linha de partida desgastados pelo atraso e em seus excitamentos e na ânsia de galgar a terra com suas patas. Lá se poderia ver em toda parte espadas, em toda parte corpetes, em toda parte lanças, e o lugar inteiro estava aglomerado com cavalos, com armas, e com homens armados. Completamente sozinho eu apareci no meio deste anfitrião poderoso, perfeitamente imperturbado e o mais calmo observador da guerra, fraco no corpo e avançado nos anos, sem carregar 'um cetro' dourado ou as faixas sagradas de algum deus e chegando ao acampamento em uma viagem reforçada para ganhar liberdade, mas desejando ver homens fortes afirmando-se pelo império e pelo poder, e seus oponentes por liberdade e pelas terras. Então, não porque eu me acovardei do perigo – que ninguém pense isso – mas porque eu me ocupei em relembrar um antigo voto, eu retomei meu caminho em direção a vocês, sempre considerando que as coisas divinas têm a maior importância e são mais rentáveis do que as coisas humanas, contudo estas também podem ser importantes. (XII.19-21)

Outra obra contemporânea a Trajano que acabou se perdendo e que, de acordo com C. P. Jones e J. W. Cohoon (1977), retrata as Guerras Dácicas e o povo dácico é Os Getas, escrita por Dion Crisóstomo. Segundo Cohoon, Dion Cássio seria um descendente de Dion Crisóstomo. Estes elementos nos levam à tese de que Dion Cássio teria conhecimento das duas obras que retratam as Guerras Dácicas e que proporcionaram um conhecimento literário sobre as práticas políticas e militares dos romanos além do Danúbio entre os anos 101 e 106 d.C. ao escrever sobre o Imperador Trajano (68.4-16). No entanto, deve-se ressaltar o anacronismo existente entre Dion Cássio e o período de Trajano, somadas às construções idealizadas no final do século II d. C. comparando as ações militares de Trajano com as de Augusto na construção dos governantes ideais. Desta forma, propõe-se problematizar outras

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fontes textuais, além da obra de Dion Cássio, para buscar as referências sobre as Guerras Dácicas no período de Trajano.

As Guerras Dácicas e a Coluna de Trajano

A principal documentação arqueológica que retrata as Guerras Dácicas é a Coluna de Trajano, monumento erigido em honra a Trajano e construída pelo arquiteto Apolodoro de Damasco sob a ordem do Senado. A coluna está localizada no Forum de Trajano, construída próximo ao Monte Quirinal, ao norte do Forum Romano (BOARDMAN, GRIFFIN, MURRAY: 2001, p. 434-437).

A Coluna era parte do complexo e monumental fórum construído por Trajano (106-113 D. C.). Ela está localizada ao norte da Basílica Ulpia entre as salas leste e oeste da Biblioteca Ulpia e está cercada por um pátio em três lados por pórticos. Como é notável no Fasti Ostiensese confirmado na inscrição de seu pedestal, a Coluna foi in the inscription on its pedestal, a Coluna foi dedicada em maio de 113 a.D. (LANCASTER: 1999, 419).

A coluna mede por volta de trinta metros em altura, sendo mais oito metros somados pelo pedestal que a sustenta. O eixo da coluna é composto de vinte cilindros de mármore de Carrara, cada um pesando por volta de quarenta toneladas com o diâmetro de quatro metros. Cento e noventa metros de frisos contornam o eixo vinte e três vezes. Dentro do eixo, uma escadaria espiral de cento e oitenta e cinco degraus proporciona acesso para uma plataforma que permite uma visualização do topo com a intenção de uma “visibilidade monumental, ostensiva e triunfal” (MARIN & PORTER: 2001, p.219-235). De acordo com as moedas que descrevem a coluna, esta era originariamente ornamentada por um pássaro, possivelmente uma águia (PLATNER: 1929). Os relevos retratam as duas campanhas militares vitoriosas contra os Dácicos. Os frisos mais baixos retratam a Primeira Guerra Dácica (101-102), e os mais próximos ao topo ilustram a Segunda Guerra Dácica (105-106) (LANCASTER: 1999, 419).

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Foto da Coluna de Trajano no Forum Romano em Roma (Andréa L. D. O. C. Rossi)

A maior parte dos numerosos estudos que existem a respeito da Coluna de Trajano é orientada sobre uma das quatro abordagens tradicionais: histórica, arqueológica, topográfica e histórico-artística. Santo Mazzarino (apud SETTIS: 1985, 1152) insiste sobre a necessidade de misturar o testemunho da Coluna com aqueles que nos oferecem as fontes textuais como as inscrições e os papiros. O estado particularmente insuficiente da documentação que nos restou sobre o governo de Trajano é um grande estímulo para se trabalhar neste sentido, principalmente no que diz respeito à contemporaneidade do governo deste imperador com a constituição das fontes. Compreende-se o pesquisador que cede à tentação de incluir a descrição de Dion Cássio, em História Romana, sobre a coluna (68.16.3) entendida por alguns como a ilustração fiel de um livro, Os comentários sobre a Guerra Dácica, escrito por Trajano e que não se conhece mais do que cinco palavras. É importante ter em mente que a Coluna é uma das poucas fontes arqueológicas que documentam as guerras romanas. Inevitavelmente, a Coluna também tem sido usada como uma fonte para as informações militares e topográficas assim sobre as especulações sobre os acontecimentos históricos do período do governo de Trajano. Também pode-se somar a estes relatos as inscrições do pedestal de sustentação da Coluna de Trajano que relata as Guerras Dácicas e as ações do imperador. Parte da inscrição no pedestal da Coluna senatus populusque Romanus imp. Caesari divi Nervae f. Nervae Traiano . . . ad declarandum quantae altitudinis mons et locus tanibus sit egestus) em conexão com a passagem de Dion Cássio "E ele erigiu no Forum uma enorme coluna, para servir como monumento a si mesmo e como um trabalho

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memorável do Forum. Este segmento havia sido montanhoso e ele cavou em uma altura igual à da coluna, então estabeleceu o nível do Forum” (LXVIII.16.3) foram tomada anteriormente para determinar a altura da coluna que corresponderia a 100 pés romanos que seria a altura de um cume intermediário entre o Capitolino e o Quirinal, cuja pesquisa geológica confirmou a sua inexistência. Esta foi confirmada pela descoberta de uma antiga rua e casas do início do Império abaixo da fundação da Coluna. (PLATNER: 1929, p. 239) Algumas fontes literárias, como Dion Cássio, atestam que as cinzas de Trajano estariam sob a Coluna, no entanto é incerto sobre quando houve a decisão de colocá-las lá. Não há nada inerente na Coluna que atribua como função primária ou secundária a função funerária. (DAVIES: 1997, 45) Quanto à finalidade da construção da Coluna de Trajano, Davies levanta 3 hipóteses: 1) que a Coluna tenha sido construída como um monumento honorário, exaltando Trajano por sua exemplar campanha e conseqüente vitória contra os Dácios e posteriormente usada como túmulo; 2) que ela tenha sido inicialmente concebida como um monumento honorário e redesenhada como em uma fase separada de sua construção, designando a ela uma função funerária posterior; 3) que teria sido projetada para o enterro de Trajano (ibidem). As duas primeiras hipóteses levantadas por Davies sugerem uma funcionalidade mais plausível que é

mais um monumento em honra a Trajano que retrate o seu triunfo sobre os inimigos das fronteiras reforçando a política adotada por este imperador em relação à propaganda de sua imagem como governante ideal em todo o império (OLIVEIRA, 1996) Alguns estudiosos acreditam que o formato da narrativa dos frisos esculpidos na Coluna são baseados no modelo de identificado como rotulus que constitui uma ilustração contínua, embora este não tenha comprovação documental no período. A maioria concorda que a Coluna contenha uma visão do próprio Trajano como uma forma de retratar as Guerras Dácicas, para retratar o próprio triunfo sobre os Dácicos. Apenas quatro palavras sobreviveram de sua obra que pode ter se assemelhado às anotações de Júlio César sobre as suas campanhas bélicas. A Coluna é uma das poucas fontes que documentam estas guerras. Inevitavelmente isto conduziu ao seu extensivo uso para o estudo das forças militares romanas e para o estudo topográfico da região do Danúbio, além da especulação sobre os acontecimentos históricos do período. (DAVIES: 1997, p. 43) Ao se propor as problematizações levantadas, vale ressaltar que não é apenas uma História da Guerra ou uma História Militar que nos é oferecida pelas fontes arroladas e os vestígios arqueológicos sobre a Coluna não nos levam apenas a possibilidades antropológicas. Os estudos arqueológicos sobre a Coluna trazem constantemente novos resultados como, por

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exemplo, o fato de novas escavações na Romênia (território da antiga Dácia) levarem a conhecer a tipologia das armas ou a organização do exército romano. Embora este não tenha sido o propósito desta análise. É importante salientar que estes vestígios são imagens que convidam a pensar sobre dois aspectos fundamentais: o do testemunho da cultura material e das técnicas que estas são privilegiadas depositárias assim como o testemunho da conquista romana nas fronteiras e o exército romano imperial em suas formas de pensar de seu tempo. Ao se adotar esta segunda hipótese, propõe-se o estudo das fontes abordadas como testemunhos das práticas políticas relacionadas diretamente às práticas militares, elemento indissociável na sociedade romana. Isto significa que os pretorianos e os legionários são pouco mais presentes que os auxiliares na Coluna de Trajano assim como é significativo que os Dácicos não aparecem como as vítimas que se submetem ao poder do Optimus Princeps (RICHMOND, 1985). A construção da imagem de Trajano, através da Coluna e das fontes textuais elencadas, possibilita a percepção das imagens simbólicas como proposição de uma construção social do governante ideal personificado na figura do Imperador Trajano.

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EXÉRCITO, IGREJA E MIGRAÇÕES BÁRBARAS NO IMPÉRIO ROMANO: JOÃO CRISÓSTOMO E A REVOLTA DE GAINAS

Gilvan Ventura da Silva Universidade Federal do Espírito Santo

Espaços, Fronteiras e Deslocamentos

Na avaliação de Marc Augé (2002, p. 40), a assim denominada “sobremodernidade” seria caracterizada, dentre outros fatores, pela superabundância de espaço, ou seja, pelo extraordinário avanço nas tecnologias de transporte e informação que conduz a alterações espaciais de ampla envergadura, tais como o surgimento das megalópoles, o traslado contínuo de populações de uma região para a outra e a proliferação dos “não-lugares”, dos territórios de passagem, de trânsito, dos quais a infra-estrutura necessária para uma rápida circulação de pessoas (aeroportos, auto-estradas, vias expressas), os grandes centros comerciais – os modernos shopping centres que se multiplicam pela paisagem urbana – ou mesmo os campos de refugiados ao redor do planeta seriam exemplos recorrentes.

Essas transformações,

responsáveis por introduzir pouco a pouco, no nosso prosaico cotidiano, as mais remotas culturas do globo, por vencer distâncias aparentemente intransponíveis e assim favorecer o contato com povos e tradições que, de outro modo, poderiam passar despercebidos, ocultos sob o véu do etnocentrismo, que só conhece ou reconhece aquilo que efetivamente o interessa, rompem com a totalidade, a completude e, sempre é bom lembrar, a quietude do lugar antropológico, o lugar do “em casa”, da identidade partilhada entre “pares” que se autodefinem não apenas como falantes de uma língua, adeptos de uma crença e partícipes de uma mesma filiação ancestral, mas também como ocupantes de um espaço que emerge como um lócus, no sentido literal da palavra, produtor de identidade. Ainda como nos sugere Augé (1999, p. 137), “se a tradição antropológica ligou a questão da alteridade (ou da identidade) à do espaço, é porque o processo de simbolização levado a efeito pelos grupos sociais devia compreender e dominar o espaço a fim de eles mesmos se compreenderem e se organizarem”. Por esse motivo é que, na atualidade, acompanhamos, com certa inquietação, os

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desdobramentos da sobredeterminação espacial, que subverte de maneira veloz e crescente fronteiras e territórios, colocando amplos contingentes de população periférica em deslocamento rumo ao centro, aos países mais desenvolvidos, via de regra situados no Hemisfério Norte, e conduzindo à fixação de novos limiares e confins que, ao mesmo tempo, redefinem as identidades, as de nós mesmos e as de nosso outro ou outros, de modo que a complexidade da relação do homem contemporâneo com o espaço tem estimulado as reflexões tanto sobre o binômio interior/exterior quanto sobre o igual/diverso. As raízes do cruzamento de fronteiras que Augé interpreta como um dos traços distintivos da sobremodernidade repousam, em larga medida, na herança imperialista, que redefiniu a geopolítica do globo na passagem do século XIX para o XX, favorecendo o enriquecimento das metrópoles européias às expensas das colônias, bem como a constituição de formas híbridas que paulatinamente cuidaram de alterar não apenas a lógica de dominação mais explícita, mas também as próprias divisões geo-culturais anteriormente estabelecidas. Como interroga Said (1995, p. 46-47), “quem, na Índia ou nas Argélia de hoje, é capaz de joeirar com segurança o elemento britânico ou francês do passado entre as realidades presentes, e quem na Inglaterra ou na França é capaz de traçar um círculo nítido em torno da Londres britânica e da Paris francesa, excluindo o impacto da Índia e da Argélia sobre essas duas cidades imperiais?” Sob uma perspectiva histórico-geográfica, um dos desafios mais espetaculares impostos aos intelectuais de nosso tempo é justamente compreender a dinâmica da redefinição espacial do mundo gerada, por um lado, pela experiência do imperialismo e, por outro, pela proliferação das tecnologias de informação e de transporte e o seu impacto sobre as representações coletivas, vale dizer, a sua repercussão sobre a auto-imagem dos países, sociedades e grupos em confronto com tudo aquilo que os desafia: as figuras de alteridade encarnadas o mais das vezes nos estrangeiros, forasteiros, imigrantes ilegais ou até mesmo nos turistas ocasionais que, dependendo da sua procedência, são muito pouco tolerados por aqueles que, em tese, deveriam recepcioná-los com gentileza e cordialidade, como recomendam as regras da hospitalidade, uma instituição cara aos gregos que, nos dias de hoje, tende lamentavelmente a se tornar obsoleta. Como salienta com propriedade Derek Williams (1999, p. 211), com o término da Segunda Guerra Mundial e a intensificação do processo de descolonização afro-asiático, o planeta ingressou numa fase de redefinição das linhas demarcatórias entre culturas, territórios e populações, observando-se igualmente o surgimento de todo um vocabulário específico para dar conta da novidade contida nos fluxos migratórios mundiais. Hoje, como nunca ocorreu em outro período da História, ouvimos falar a todo o momento em refugiados, expatriados, deportados, trabalhadores estrangeiros,

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aventureiros em busca do American (ou European, numa possível variante) dream, autoridades alfandegárias e departamentos de imigração.

Nesse sentido, o fenômeno

imigratório – assim como o migratório, a outra face da moeda que muitas vezes permanece virada sobre a mesa – é um dos principais dilemas da atualidade, tanto para os governos, obrigados a lidar com uma população absolutamente plural que muda de composição dia após dia devido à absorção incessante de contingentes recém-chegados, mas também à evasão da terra natal daqueles que partem em busca de uma vida melhor, quanto para os intelectuais, convocados a explicar uma realidade altamente complexa por envolver, de modo efetivo e muito pouco retórico, aspectos econômicos, políticos e culturais, razão pela qual, de acordo com Sayad (1998), a imigração pode ser qualificada como um “fato social completo”. Certamente, a imigração é um deslocamento de pessoas no espaço, mas esse espaço, a princípio físico, é atravessado por determinações de múltiplas naturezas (econômica, social, política e cultural) que devem ser captadas tanto no seu movimento sincrônico quanto no seu movimento diacrônico. Do ponto de vista da sociedade que o recebe, o imigrante só adquire existência no momento em que cruza as fronteiras e se estabelece no território da diáspora, o que equivale para ele a um novo nascimento. Num primeiro momento, no entanto, sua presença é reputada como estrangeira e, por isso mesmo, envolta em três ilusões destinadas a tornar mais palatável a assimilação do imigrante: a de que sua estadia é provisória, muito embora o retorno à pátria de origem seja continuamente postergado; a de que sua colaboração é indispensável em virtude da carência de mão-de-obra autóctone e a de que o imigrante deve conservar a neutralidade política derivada da sua condição de xenos, de estranho ao ordenamento do corpo cívico, evitando assim opinar acerca dos rumos da nação. Ocorre, no entanto, que toda e qualquer imigração, mesmo aquela gerada pela busca de trabalho ou pela instabilidade política, tende mais cedo ou mais tarde a se converter em imigração de povoamento, colocando-se o imigrante à mercê de uma dupla ficção: a de uma volta que, no fundo, reconhece como impossível e a de uma naturalização ambígua no interior da sua nova sociedade. Para os países convocados a enfrentar os desafios impostos pelo reforço das correntes migratórias internacionais, a exemplo dos Estados Unidos, da França, da Espanha, da Grã-Bretanha e da Itália, só para citar alguns, os paradoxos políticos e culturais da imigração se fazem sentir de modo cada vez mais intenso no momento em que os limites entre o grupo dos “nacionais” e o dos “não-nacionais” se tornam fluidos, porosos, confusos, mas sem que isso implique, em absoluto, o estabelecimento de um modus vivendi harmônico. Muito pelo contrário, na medida em que a imigração representa uma notável provação para a

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ordem nacional, a tendência que se observa em setores da sociedade que, na ausência de um vocabulário mais preciso, ainda continuamos a qualificar como “direita”, “extrema direita” ou “conservadores” é um reforço permanente dos códigos de produção da igualdade e da diferença, de recusa do estrangeiro e de valorização do compatriota, num movimento que advoga, mediante a expulsão dos imigrantes, o retorno urgente à “unidade” nacional e à “pureza” cultural que jazem perdidas (Sayad, 1998). No mundo contemporâneo, os inúmeros condicionantes que se articulam para produzir a dinâmica dos fluxos migratórios aliados ao impacto político, econômico e cultural experimentado pelas sociedades que têm de equacionar as contradições oriundas da fixação de levas e levas de imigrantes em seus países têm incentivado os historiadores a se debruçar sobre experiências análogas do passado que possam, de algum modo, iluminar a compreensão do presente e vice-versa.

Nesse caso, um dos principais termos de comparação logo

invocados é, sem dúvida, o Império Romano, particularmente o da fase tardia, convertido por assim dizer numa espécie de far west para as tribos bárbaras assentadas nas franjas do orbis romanorum, um território promissor no qual os recém-chegados vislumbram a oportunidade de se estabelecer e dar início a uma nova vida, em condições mais favoráveis. Como nos alerta Williams (1999, p. 211), não obstante seja recomendável evitar paralelos apressados entre, por exemplo, os imigrantes latinos nos Estados Unidos e os godos em Roma, não constitui um equívoco ou anacronismo afirmar que entre ambas as populações parece haver, pelo menos, duas variáveis em comum: a busca de melhores oportunidades econômicas ou, em outras palavras, de um trabalho regular que garanta o seu sustento e a busca de asilo, de proteção diante de uma situação que ameaça a sua integridade física. Nessa dinâmica de aproximações e comparações entre o passado e o presente, observamos aos poucos a alteração das concepções historiográficas acerca do papel dos bárbaros no Império, especialmente no que diz respeito às escolas francesa e alemã, as que mais investiram no estudo do papel desempenhado pelos bárbaros no processo de transição da Antigüidade para a Idade Média, uma vez que esse tema se encontra na própria “origem” da história nacional da França e da Alemanha. Se, num passado não tão distante, os franceses tendiam a enfatizar a violência embutida nas “invasões bárbaras”, como vemos na célebre citação de Piganiol (1972, p. 466), para quem “a civilização romana não morreu de morte natural, ela foi assassinada”, os alemães preferiam explicar o fenômeno nos termos de um “rearranjo” nas interações entre romanos e bárbaros que haviam sido obstruídas pela fixação do limes reno-danubiano. Hoje, os historiadores vêm estabelecendo novos padrões de interpretação acerca do assunto a partir de três referenciais primários: 1) o abandono progressivo da concepção de “invasões”

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bárbaras como um acontecimento súbito, repentino e catastrófico em prol de uma ótica processual expressa por intermédio da noção de migrações bárbaras, isto é, da existência, ao longo de todo o período imperial, de contatos rotineiros e freqüentes entre bárbaros e romanos nas zonas de fronteira, inclusive com assentamentos esporádicos, o que teria propiciado a formação de um modus vivendi híbrido antes mesmo da avalanche migratória dos séculos IV e V. Quanto a isso, um dos mais antigos e importantes vetores da assimilação romano-bárbara foi, sem dúvida, o exército; 2) a valorização da positividade da desordem, ou seja, a ênfase menos nos transtornos eventuais proporcionados pelos bárbaros a um Império que apresentava nítidos sinais de colapso e mais no potencial criativo da cultura bárbara, que passa então a ser considerada um dos pilares constitutivos de uma Idade Média igualmente reabilitada; 3) o incentivo às investigações que buscam captar os impactos do “choque” de civilizações, do encontro de tradições culturais distintas para a construção/reconstrução das identidades bárbara e romana, perspectiva afinada com o paradigma culturalista que tende a dominar a escrita da História na atualidade. À luz dessas reflexões, apresentadas à guisa de introdução, pretendemos discutir a problemática cultural que cercou o ingresso dos bárbaros na sociedade romana por intermédio do exército tendo como estudo de caso a revolta de Gainas, um general gótico da corte de Arcádio que entre 399 e 400 se torna o virtual governante do Império Romano do Oriente. Nosso enfoque recairá sobre a importância dos elementos de natureza religiosa tanto para o estabelecimento de uma clivagem romano/bárbaro quanto para a emergência de uma determinada representação que não somente equipara os bárbaros a adversários da ordem romana posta sob a proteção do imperador, mas também os rotula como desviantes religiosos, hereges e infiéis cuja existência reclama a pronta intervenção da Providência. Para tanto, exploraremos como aporte documental as Histórias Eclesiásticas de Sócrates, Sozomeno e Teodoreto de Ciro, autores filiados à ortodoxia nicena que, escrevendo na primeira metade do século V, nos legaram uma memória francamente depreciativa das ações de Gainas e de seus correligionários arianos.

Os herdeiros de Eusébio de Cesaréia

O gênero da história eclesiástica, ou seja, de uma narrativa que pretende dar conta, sob uma perspectiva cristã, dos assuntos referentes ao surgimento e desenvolvimento, no

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tempo, da crença em Jesus representa um autêntico marco na história da historiografia antiga, um marco cujo responsável conhecemos bastante bem, a despeito de todo o esforço para identificar seus possíveis precursores: Eusébio, o erudito que ocupou o episcopado de Cesaréia entre os anos de 313 e 340 e que publicou, por volta de 312, a primeira edição da sua História Eclesiástica. O modelo de escrita da história inaugurada por Eusébio se distancia dos cânones tradicionais da historiografia antiga por três características fundamentais: a) o comprometimento religioso do autor, a sua fé inabalável na ecclesia como o corpo místico de Cristo, como uma instituição destinada a preparar o retorno do Senhor e, por isso mesmo, indestrutível, não obstante todo o esforço despendido pelos perseguidores no sentido de suprimi-la, o que resultou num sem-número de mártires, de cristãos supliciados que acabaram por se converter em sementes da própria Igreja; b) o interesse na coleta sistemática e na inclusão, no corpo da narrativa, dos principais documentos consultados com a finalidade de conferir autenticidade àquilo que se afirmava, um procedimento adotado pelos gramáticos de Alexandria, mas que era estranho aos historiadores clássicos.

Nesse sentido, mesmo

encontrando-se impregnadas de uma parcialidade evidente, as histórias eclesiásticas são, em muitos aspectos, fontes indispensáveis para a reconstituição da história do Império Romano em sua última fase; c) a ênfase na idéia de que há uma Providência divina que rege o devir histórico (Momigiliano, 2004, p. 193). Desse modo, a história narrada pelos cristãos se reveste de um acentuado tom apologético e triunfalista, pois é antes e acima de tudo uma história de salvação, de redenção do gênero humano, que se consubstancia exatamente no triunfo da Igreja contra os seus opositores, quer pagãos, hereges ou judeus (Berardino, 2002, p. 689). Quanto a isso, é importante salientar que a história eclesiástica é um produto direto da nova situação gerada com o término da Grande Perseguição, em 311, quando os cristãos passam rapidamente a ocupar posições de destaque dentro da máquina pública, produzindo-se assim um paralelismo entre a história do cristianismo e a do Império bastante útil às pretensões universalistas da Igreja. Mantendo como principais balizamentos cronológicos os governos dos imperadores, a história eclesiástica fundia temas de natureza religiosa com as vicissitudes da política imperial, o que a tornava particularmente atraente para uma audiência em franca expansão (Momigliano, 2004, p. 199). Com a tradução da História Eclesiástica de Eusébio para o latim efetuada por Rufino de Aquiléia, no início do século V, o gênero se difunde pelo Ocidente. No Oriente, os sucessores imediatos de Eusébio, à parte Gelásio de Cesaréia, cuja obra infelizmente se perdeu, foram Sócrates, Sozomeno e Teodoreto de Ciro, sem sombra de dúvida os maiores expoentes da historiografia cristã no século V. Todos os três escreveram sob o governo de

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Teodósio II (408-450), consultaram fontes comuns e se consideravam epígonos de Eusébio, razão pela qual os especialistas costumam se referir a eles como os “historiadores sinópticos da Igreja”, não obstante as diferenças perceptíveis na maneira como cada um constrói a sua narrativa (Leppin, 2003, p. 219). Dentre as histórias eclesiásticas produzidas na primeira metade do século V, a de Sócrates é a mais antiga, cobrindo o período de 306 a 439. Composta entre os anos de 439 e 450, foi consultada tanto por Sozomeno quanto por Teodoreto de Ciro. Sobre o autor, infelizmente sabemos muito pouco e tão-somente por intermédio da sua própria obra. Nascido entre 380 e 390, era um nativo de Constantinopla, onde viveu até sua morte, em data incerta. Sócrates foi educado na escola dos gramáticos pagãos Heládio e Amônio, tendo certamente recebido uma formação superior em retórica, ainda que seu estilo literário não seja muito sofisticado para os padrões da Antigüidade. Sua condição social exata é uma incógnita. Alguns autores, baseando-se no epíteto “Escolástico” a ele atribuído em época posterior, sugerem que Sócrates tenha recebido um treinamento jurídico (Chesnut, 1977, p. 168), o que, todavia, não é corroborado pelo conteúdo da sua obra, na qual não encontramos quaisquer referências a funções políticas ou administrativas desempenhadas pelo autor. Sócrates, de fato, parece ser uma personagem que não mantém nenhum vínculo com a corte de Constantinopla. Por outro lado, seus julgamentos teológicos e a familiaridade com diversos bispos contemporâneos nos permitem supor que ele tenha ocupado alguma posição na hierarquia da Igreja (Leppin, 2003, p. 221). Na composição da sua obra, Sócrates consultou basicamente a História Eclesiástica de Rufino – uma tradução aumentada da obra-prima de Eusébio –, os escritos de Atanásio, a coletânea de atas conciliares elaborada por Sabino de Heracléia e depoimentos orais. O comprometimento com a veracidade da narrativa histórica o levou a reescrever os capítulos I e II após o acesso aos textos de Atanásio, que em muitas passagens contrariavam o que dizia Rufino, seu autor de referência (Moreschini & Norelli, 2000, p. 399-400). Sozomeno, por sua vez, foi um autor de família cristã nascido em Betélia, cidade próxima a Gaza, em torno de 380, tendo mantido desde cedo uma conexão estreita com o ambiente monástico. Ao contrário de Sócrates, Sozomeno, com toda certeza, recebeu uma formação jurídica, tendo exercido o ofício de scholasticos (advogado, jurista). Entre 425 e 426, após uma viagem à Itália, radicou-se definitivamente em Constantinopla, onde passou a exercer a advocacia (Berardino, 2002, p. 1311). No momento em que elabora sua obra, por volta de 448, o autor já havia sido batizado. Concebida a princípio para ter uma dimensão maior do que os nove livros que a compõem, a História Eclesiástica de Sozomeno permaneceu incompleta, abrangendo o período entre o terceiro consulado de Crispo e

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Constantino (324) e a morte de Honório (421). A História Eclesiástica não foi sua única obra, pois temos notícia de um Epítome, hoje perdido, que tratava dos acontecimentos compreendidos entre a encarnação de Cristo e a queda de Licínio, em 324. Sozomeno, com toda a probabilidade, mantinha relações estreitas com os círculos de poder da Capital, uma vez que sua narrativa é pródiga em ressaltar as virtudes de Pulquéria, a irmã de Teodósio II. Embora tenha utilizado bastante a História Eclesiástica de Sócrates, Sozomeno não a cita uma vez sequer.

A despeito das semelhanças evidentes entre ambas as Histórias, é

importante mencionar que Sozomeno recolhe numa quantidade muito menor documentos de época, o que de certa maneira aproxima o seu estilo literário da historiografia pagã tradicional. Supõe-se que a adoção de uma prosa mais fluente e o abandono de temas de teologia devem ter ocorrido por exigência de seu público, composto por integrantes da elite de Constantinopla, para quem as histórias eclesiásticas constituiriam uma modalidade de entretenimento, argumento corroborado pelo emprego de um estilo mais refinado que o de Sócrates (Leppin, 2003, p. 223-224). É possível que a expectativa do público, ávido em conhecer pormenores da vida dos santos e mártires e as maravilhas por eles operadas, tenha também influído na inclusão de inúmeros feitos miraculosos no texto, uma característica bastante acentuada da obra (Moreschini & Norelli, 2000, p. 407). Sozomeno, é verdade, explorou muitas das fontes manipuladas por Sócrates, mas buscou completar as informações das quais necessitava com outros documentos, especialmente as histórias de monges – dentre as quais inclui-se a História Lausíaca, de Paládio – e, o que é mais significativo, os atos legislativos imperiais, cujo acesso lhe foi certamente facilitado em virtude da profissão (Leppin, 2003, p. 228).

Assim como Sócrates, não temos como precisar sua data de

falecimento, que ocorreu certamente após 448. O terceiro e último autor dentre os “historiadores sinópticos da Igreja” é Teodoreto, uma personagem proeminente durante o governo de Teodósio II. Oriundo de uma família abastada de Antioquia, Teodoreto nasceu por volta de 393, recebendo desde cedo uma educação cristã, o que o fez abraçar, ainda na juventude, a carreira monástica, mas não por muito tempo, pois em 423, com cerca de trinta anos, foi consagrado bispo da modesta diocese de Ciro, na província da Síria (Leppin, 2003, p. 225). No entanto, isso não o impediu de interferir amiúde nos assuntos eclesiásticos de Antioquia, envolvendo-se visceralmente nos debates teológicos que opunham antioquenos e alexandrinos e que culminaram na convocação do Concílio de Éfeso, em 431. Deposto de sua sé e exilado em 449, no concílio cognominado “Latrocínio de Éfeso”, Teodoreto foi mais tarde reinstalado pelo Concílio de Calcedônia, em 451. De volta a Ciro, faleceu entre 460 e 466 (Berardino, 2002, p. 1332). Teodoreto foi um

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autor prolífico, tendo nos legado uma produção literária diversificada e abundante na qual se destacam os escritos teológicos e políticos.

Assim como a de Sozomeno, sua História

Eclesiástica deve ter sido finalizada por volta de 448, um pouco antes do exílio, embora alguns autores, fundamentados nas inexatidões de conteúdo e nos erros de cronologia, o que atestaria uma redação pouco metódica, defendam que a composição da obra ocorreu exatamente nos anos de exílio, ocasião em que Teodoreto se refugiou muito provavelmente num mosteiro de Apaméia (Moreschini & Norelli, 2000, p. 408). Para compor a obra, que abarca o período de 323 a 428, Teodoreto certamente recorreu a Sócrates e, com alguma probabilidade, a Sozomeno, embora nenhum dos dois seja por ele citado. Excetuando as fontes compartilhadas com os seus antecessores, como a História Eclesiástica de Gelásio de Cesaréia e a Vida de Constantino, de Eusébio, Teodoreto lançou mão também de testemunhos independentes, como os escritos de Teodoro de Mopsuéstia sobre as heresias, além de cartas e depoimentos orais. Cumpre notar que, dentre os três “historiadores sinópticos”, Teodoreto é o que demonstra maior conhecimento de assuntos relacionados à teologia e à dogmática, resultado sem dúvida da sua formação episcopal. As histórias eclesiásticas de Sócrates, Sozomeno e Teodoreto de Ciro não devem ser consideradas, naturalmente, obras de teologia, mas revelam uma nítida dimensão teológica na medida em que seus autores, adeptos convictos do credo de Nicéia, se propõem a relatar o triunfo da “verdadeira” fé sobre os pagãos, judeus e hereges, o que é levado a cabo por intermédio dos theioi andrés, dos homens divinos cristãos, personificados nos imperadores, bispos, monges e santos. Deixando de lado algumas diferenças de pormenor, a concepção de história que ressalta das páginas dos “historiadores sinópticos” é eminentemente providencialista: Deus é o senhor absoluto dos acontecimentos humanos, sustentando um combate incessante a fim de impedir que as forças demoníacas prevaleçam sobre a Igreja. Nesse embate, os theioi andrés, dentre os quais se inclui João Crisóstomo, são os “soldados” chamados a confrontar os inimigos da ortodoxia nicena, especialmente os cristãos de denominação ariana (Leppin, 235-236). Ocorre, no entanto, que esse propósito aparentemente religioso termina por adquirir um matiz político, uma vez que, no século V, a trajetória do cristianismo niceno se encontra irremediavelmente associada à trajetória do próprio Império. Sócrates, Sozomeno e Teodoreto são súditos leais que se comprazem em celebrar não apenas a vitória da divindade cristã, mas igualmente o domínio do basileus romano sobre as externae gentes, os bárbaros e persas, produzindo assim um discurso que visa a exaltar a grandeza e a eternidade do Império tanto quanto da Igreja. Nesse sentido, suas obras são mutatis mutandis monumentos destinados a reforçar a missão civilizadora de Roma, que agora se reveste de um

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inequívoco conteúdo cristianizante.

Na ótica desses autores, “romanizar” os bárbaros

equivale, conforme a situação, a resgatá-los da “estultice” pagã ou a afastá-los da “ameaça” ariana, reconduzindo-os assim ao caminho “bom” e “correto”. Interpretadas sob esse prisma, as histórias eclesiásticas do século V nos permitem compreender os mecanismos pelos quais a elite oriental afirmava uma identidade romano-cristã no confronto com os bárbaros infiéis, uma oposição que emergirá com clareza na descrição da revolta de Gainas. Antes, porém, de tratarmos desse assunto, convém nos determos, ainda que brevemente, nas modalidades de contato entre romanos e bárbaros no Império Romano, com ênfase na assim denominada “barbarização do exército”.

Roma e o Barbaricum

O gerenciamento do Império na época do Principado implicava, dentre outros objetivos, a adoção de mecanismos regulares de captação de recursos flutuantes (mão-deobra, metal, mercadorias) necessários à manutenção do aparato administrativo e militar romano que, aos poucos, se tornava cada vez mais complexo.

Apesar da diminuição

progressiva do nível de riqueza proveniente do exterior em virtude do fim do processo expansionista a partir de Augusto, os investimentos na complexidade político-administrativa ao longo do Alto Império foram viabilizados pelo crescimento interno da economia, com a integração progressiva das províncias num único sistema. Todavia, os territórios à margem do orbis romanorum, ou seja, aqueles situados para além do limes reno-danubiano, do deserto do Saara ou da região do Tigre e Eufrates, nunca foram inteiramente desprezados pelos imperadores, mas desempenharam, desde o início, um papel importante dentro da lógica de domínio imperial. As regiões do outro lado do limes integravam o barbaricum, a periferia externa ao Império habitada por populações nômades com as quais Roma mantinha intercâmbio comercial, mas que não aspirava a controlar diretamente. Essas áreas eram mantidas sob controle por meio de acordos diplomáticos que tornavam viável a exploração econômica, constituindo uma fonte não desprezível de escravos e matérias-primas.

Em

decorrência disso, não podemos nos deixar iludir pelo “mito” das fronteiras naturais romanas. No Império, as fronteiras não significavam, em absoluto, territórios inóspitos nos quais Roma travaria uma guerra sem trégua com os bárbaros. Embora existisse uma linha divisória entre os portadores de humanitas, ou seja, os romanos, e os bárbaros, assimilados à condição de animais, toda terra que não fosse “romanizada” era um espaço que, em algum momento,

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poderia ser ocupado e “civilizado”, o que rompe frontalmente com a concepção segundo a qual as fronteiras do Império eram impermeáveis (Mendes, 2002, p. 122). No limiar do barbaricum, encontramos inclusive comunidades que atuavam como intermediárias entre Roma e os territórios mais longínquos.

Nesse caso, o governo imperial exerceu uma

ingerência maior na região do Reno e do Danúbio com base numa política de alianças com os frísios, queruscos, quados e marcomanos, povos que, compondo uma semi-periferia, mediavam os contatos com tribos germânicas independentes, fora da órbita romana, num raio de cerca de quinhentos quilômetros além do limes. A região do barbaricum era vital para o funcionamento do sistema imperial, principalmente em virtude das necessidades de manutenção dos destacamentos militares assentados nas imediações do limes. Mesmo na fase de maior desenvolvimento do Império, o exército não tinha condições de ser abastecido apenas pelos mercados locais. Estacionadas nas fronteiras, as tropas dependiam, em larga medida, do fluxo de bens provenientes da Germânia. Desse modo, mediante a exportação de produtos para o exército – grãos, artigos de couro, pele, carnes –, as tribos bárbaras auxiliaram na sustentação do esforço defensivo romano no norte. O intercâmbio com Roma conduziu à formação progressiva de uma elite bárbara na Germânia, processo atestado por meio de tumbas régias contendo artefatos de luxo e moedas de ouro e prata (Mendes, 2002, p. 126). Acordos foram então estabelecidos entre as elites e reforçou-se a autoridade do rei. Os germanos assimilaram diversas técnicas do exército romano, como o comando hierárquico, as modalidades de remuneração dos recrutas e o emprego de novos armamentos e táticas de guerra. Aos poucos foram surgindo unidades etnopolíticas mais consistentes sob a forma de confederações que agrupavam tribos menores (Heather, 1999, p. 238).

Alamanos, lombardos, francos, saxões, godos surgem desse

amálgama. No decorrer do século III, com o quase colapso do Estado imperial devido à Anarquia Militar, os bárbaros começam a realizar incursões cada vez mais freqüentes no Império em busca de território para assentamento (Williams, 1996, p. 206). Com os avanços na centralização política das tribos outrora dispersas, o barbaricum, de periferia de captação de recursos, se torna aos poucos um concorrente importante ao dominium mundi romano, fato que se consubstancia claramente na recepção dos godos como foederati após a fragorosa destruição do exército do Oriente, em 378, na batalha de Adrianópolis, na qual sucumbiu o imperador Valente. Mediante acordos subseqüentes celebrados por Graciano e Teodósio com as lideranças bárbaras, os godos começaram a ser assentados em solo romano na condição de agrupamentos étnicos distintos postos sob o comando de seus próprios chefes, regulados por suas próprias leis, isentos de tributação e percebendo uma remuneração anual por seus

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serviços, o que, na prática, significava a criação de micro-Estados bárbaros dentro do Império (Demougeot, 1984, p. 138). O reconhecimento oficial dos bárbaros como foederati, o que implicava assumi-los como forças auxiliares, mas independentes de Roma, constituiu apenas uma etapa, embora importante, de um longo processo de captação, por parte do Estado romano, de mão-de-obra militar entre as tribos acantonadas no limes, processo este que a historiografia costuma denominar como barbarização do exército. Para explicar o ingresso cada vez maior de bárbaros nas fileiras do exército imperial, evoca-se em geral a tese do declínio demográfico da população romana, o que teria acarretado um déficit na força de trabalho autóctone, interpretação contestada por Liebeschuetz (1992), para quem, na ausência de estatísticas seguras que nos permitam mensurar o problema, devemos prestar uma atenção maior a outros fatores intervenientes, tais como os padrões de controle da propriedade fundiária e os direitos de cidadania. Nesse caso, não é que houvesse, no Baixo Império, uma carência absoluta de braços para o exército, mas o recrutamento interno esbarrava, por um lado, na recusa dos grandes proprietários em prescindir dos serviços de trabalhadores agrícolas em idade produtiva e, por outro, na resistência dos próprios cidadãos romanos, que não vislumbravam mais a oportunidade de uma carreira militar promissora. Esses fatores, conjugados, nos ajudariam a compreender a razão pela qual o Estado romano se viu compelido, em escala crescente, a recorrer aos bárbaros, ainda que essa prática fosse condenada pelos contemporâneos, a exemplo de Amiano Marcelino e Vegécio, para quem o exército deveria ser composto e liderado por romanos, com uma disciplina tática fundamentada na infantaria, a grande responsável pelas glórias militares do passado (Carvalho & Funari, 2007; Silva, 2007). O emprego de destacamentos estrangeiros como auxiliares do exército imperial é uma prática bastante antiga, remontando ao Principado. Contudo, fortes indícios nos levam a crer que o período no qual a incorporação de efetivos bárbaros à força militar romana cresceu rapidamente foi inaugurado entre os governos de Diocleciano e Constantino.

O passo

decisivo parece ter sido a criação de um exército móvel por este último na sua campanha contra Maxêncio, em 312, quando então amplos contingentes bárbaros foram comissionados pelo imperador. Uma parte desse exército teria sido constituída por prisioneiros de guerra estabelecidos nas Gálias sob a Tetrarquia, outra por cativos de Constantino e outra por voluntários provenientes do limes. Esses auxilia (tropas auxiliares), recrutados entre nãocidadãos, logo se tornaram a principal tropa de choque do exército, dando origem assim aos comitatenses, ou seja, às unidades móveis por oposição aos limitanei e ripenses, acantonados nas fronteiras. Constantino também parece ter sido o criador de alguns destacamentos de elite

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denominados scholae em substituição à antiga guarda pretoriana, que é então dissolvida (Piganiol, 1972, p. 73). Compostas em sua maioria por germanos, as scholae adquiriram notoriedade como a guarda pessoal do imperador, o que não tardou a realçar a influência bárbara. Mediante testemunhos da época, dentre os quais o de Amiano Marcelino é, sem dúvida, o mais valioso, sabemos que por volta de 350 os oficiais germanos eram numerosos, assim como os francos e os alamanos, o que os habilitava a interferir cada vez mais nos rumos da política imperial, patrocinando inclusive golpes militares contra o imperador “legítimo”, como vemos no caso de Magnêncio e Silvano, generais francos que usurparam a púrpura em 350 e 355, respectivamente. Na eleição de Joviano, após a morte prematura de Juliano, ferido mortalmente no combate contra os persas em 363, os generais que intervieram eram bárbaros: Nevita e Dagalaifo, comandantes das forças militares do Ocidente e Arinteu e Victor, comandantes do Oriente. Um pouco mais tarde, em 375, o franco Merobaudo, na qualidade de magister peditum praesentalis (chefe de infantaria unido à casa imperial), foi o principal responsável pela aclamação de Valentiniano II, ao passo que outro franco, Arbogasto, esteve envolvido diretamente na ruína deste mesmo imperador e no episódio da usurpação de Eugênio, em 392.

Em seguida, vemos o vândalo Estilicão se tornar, após a morte de

Teodósio, em janeiro de 395, o tutor de seu filho, Honório, na condição de magister utriusque militiae (líder de todos os efetivos militares), passando então a ser a eminência parda do Ocidente até seu assassinato, em 408, num complô (Liebeschuetz, 1992, p. 8-10). No que diz respeito ao Oriente, por sua vez, o esvaziamento da autoridade imperial em virtude da ascensão dos bárbaros ao cume da hierarquia militar foi bloqueado pelo controle que os funcionários civis, notadamente o prefeito do pretório, mantinham sobre o exército (Southern & Dixon, 1996, p. 58). Esse fato, no entanto, não foi capaz de evitar por completo a irrupção de sérios atritos entre a corte de Constantinopla e os generais bárbaros ávidos por fortalecer a sua posição, como vemos no caso da revolta de Gainas, ocorrida sob o governo de Arcádio.

Os passos da Revolta

Gainas era o mais antigo comandante godo da corte de Teodósio, tendo participado da ofensiva contra Eugênio na condição de comandante senior dos bárbaros federados. Após 395, com a divisão do Império entre os filhos de Teodósio, Gainas passou a prestar serviços a Arcádio, então herdeiro do Oriente (Liebeschuetz, 1992, p. 30). A revolta foi deflagrada em 400 e se encontra conectada a uma aguda conjuntura de crise nas relações entre o Império do

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Oriente e os comandantes bárbaros. Os problemas tiveram início quando Tribigildo, um chefe militar gótico que havia sido assentado com seus homens em territórios da Frígia por Teodósio, decidiu, no início de 399, se rebelar, insatisfeito com a recompensa recebida por sua colaboração numa recente campanha contra os hunos (Soz. VIII,4). Para lidar com a revolta, Eutrópio, o todo-poderoso praepositus sacri cubiculi (camareiro-mor) de Arcádio que havia, por alguns anos, dominado a cena política no Oriente, tendo sido o arquiteto da indicação de João Crisóstomo para a sé de Constantinopla em 398, nomeou dois generais, Gainas e Leo, com o título de magistri militum praesentales. Após a inesperada derrota de Leo, Gainas se tornou o único líder das forças romanas contra Tribigildo, com quem se apressou em firmar um acordo. Apresentando Tribigildo à corte como um inimigo poderoso, Gainas informou a Arcádio a principal exigência dos amotinados que, na realidade, era sua: a deposição de Eutrópio. A animosidade entre ambos remontava à campanha contra os hunos, a mesma na qual Tribigildo havia combatido. Na oportunidade, Eutrópio frustrou as pretensões de Gainas em se tornar generalíssimo, mantendo-o na condição de comes rei militares, um posto sem dúvida influente, mas ainda de segundo escalão. Para o êxito dos planos de Gainas foi fundamental a sua associação com Aureliano, o recém-nomeado prefeito do pretório do Oriente, igualmente interessado em minar o prestígio de Eutrópio. Aureliano, inclusive, foi o presidente do Tribunal de Calcedônia que, no final de 399, condenou o eunuco à morte (Kelly, 1995, p. 150). No entanto, a despeito da aliança circunstancial com Aureliano, era evidente para Gainas que o prefeito do pretório também representava, ao fim e ao cabo, um sério entrave às suas pretensões políticas, uma vez que, nos círculos de poder da Capital, havia uma forte resistência à participação dos bárbaros nos postos mais graduados do exército. Por esse motivo, a posição por ele alcançada era ainda bastante instável. Gainas, que se encontrava, no início de 400, em Constantinopla, empenhado em negociar um acordo entre o Império e Tribigildo, decide se antecipar aos seus inimigos, dentre os quais se incluía Aureliano. Deixando a Capital, ruma para a Frígia, onde une forças com seu compatriota rebelado. Em abril, ambos começam a se deslocar com os seus exércitos, devastando tudo o que encontram pela frente. Tribigildo segue para Lampsacos, ao passo que Gainas se dirige para Calcedônia, na Bitínia, um sítio estratégico numa invasão futura a Constantinopla. Aproveitando-se da superioridade militar, Gainas solicita uma conferência com o imperador, que tem lugar na igreja de Santa Eufêmia, nos arredores de Calcedônia (Soc. VI,6). No encontro, marcado por um tom cordial entre as partes, Gainas exige, em primeiro lugar, que os seus principais opositores, o prefeito do pretório do Oriente Aureliano e o general Saturnino, lhe sejam entregues como reféns. Além disso, exige ainda a sua

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confirmação no cargo de generalíssimo com o título de magister utriusque militae; a nomeação de Cesário, inimigo político de Aureliano, como prefeito do pretório do Oriente e, por último, a autorização para ocupar Constantinopla. Sem alternativa, Arcádio é obrigado a ceder às reivindicações do godo, colocando-se ele próprio, sua corte e toda a população da Capital como reféns nas mãos dos bárbaros.

Nesse ínterim, João Crisóstomo, que se

preparava para uma visita às dioceses da Ásia Menor, é convocado às pressas por Arcádio para negociar a libertação dos reféns, em razão tanto da sua inegável autoridade episcopal quanto do interesse que há algum tempo vinha manifestando na cristianização dos godos, conforme nos informa Teodoreto de Ciro (V,30 e 31) ao relatar as atividades missionárias do bispo entre os bárbaros da Cítia. João atende prontamente ao chamado do imperador e se dirige à Calcedônia a fim de interceder pelos reféns, o que se revela uma tarefa delicada, ao contrário do que nos sugere Teodoreto (V,33), para quem Gainas, diante da santidade de João, teria cedido prontamente aos seus apelos. No fim, contrariando a orientação de Cesário, que advogava a execução sumária de Aureliano e Saturnino, Gainas decide poupar a vida dos reféns, sentenciando-os ao exílio, mas abstendo-se de confiscar as suas propriedades, um ato de generosidade que certamente deve ser atribuído à intervenção de João Crisóstomo. Muito provavelmente nos últimos dias de abril, logo após o exílio de Aureliano e Saturnino, Gainas cruzou o Bósforo com suas forças e se instalou em Constantinopla. Calcula-se que faziam parte do seu séqüito trinta e cinco mil pessoas, a maioria composta por godos, incluindo as famílias dos soldados.

Constantinopla à época, com exceção dos

destacamentos das scholae palatinae, a guarda pessoal do imperador, se encontrava praticamente desguarnecida de tropas.

A instalação dos bárbaros foi traumática, dando

margem a saques e depredações. Os homens de Gainas acamparam em diversos pontos da cidade, para o completo desconforto da população, que em muitas circunstâncias foi desalojada. A tensão atinge níveis extremos com a polarização, no recinto urbano, entre os destacamentos bárbaros e os citadinos. João Crisóstomo, no seu retorno da Calcedônia, pronuncia uma homilia intitulada Cum Saturninus et Aurelianus na qual descreve a situação em Constantinopla nos termos de uma guerra civil (polemos emphulios, cf. Kelly, 1995, p. 156). De fato, Gainas detinha ao mesmo tempo o controle da corte e da Capital, sem que, contudo, isso nos obrigue a aceitar a versão de Sócrates (VI,6) e Teodoreto de Ciro (V,32) segundo a qual seu propósito seria o de usurpar a púrpura, como haviam feito no passado Magnêncio e Silvano. Na opinião de Kelly (1995, p. 157), o desejo de Gainas era consolidar a sua posição política na qualidade de comandante-em-chefe dos efetivos militares de

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Arcádio, garantindo para si próprio um domínio sobre o Oriente análogo àquele exercido por Estilicão no Ocidente. No episódio da revolta de Gainas observamos, por um lado, a tentativa de ingerência sobre o Império do Oriente por um indivíduo de linhagem bárbara que, ascendendo na hierarquia militar, se torna, num determinado momento, uma das personagens mais influentes dentro do jogo político da corte, uma personagem que não representa um dócil instrumento nas mãos dos cortesãos civis de Arcádio, mas que nutre ambições particulares originadas da reconfiguração do exército no período tardio, quando a ascendência militar bárbara se torna irreversível.

À parte esses condicionantes de ordem estritamente político-militar que

concorrem para a eclosão da revolta, é necessário considerar igualmente as implicações religiosas, que se revelam por intermédio de uma quinta exigência, feita diretamente ao imperador por Gainas quando da ocupação da Capital, em abril de 400. De acordo com Sozomeno (VIII,4), cuja reconstituição do episódio é mais detalhada, Gainas teria solicitado a Arcádio uma das igrejas da cidade na qual os godos a seu serviço, adeptos do credo ariano, pudessem celebrar os ofícios religiosos. Gainas, ele mesmo, se sentia ultrajado em sua dignidade ao ser forçado a sair do perímetro urbano para prestar culto, uma vez que Teodósio havia proibido que os arianos se reunissem dentro das muralhas de Constantinopla. Consultado sobre o assunto, João Crisóstomo, no decorrer de uma longa arenga tendo como palco o palácio imperial, teria se oposto com veemência às pretensões de Gainas, declarando que seria melhor o imperador “ser privado do Império do que condenado por impiedade ao se tornar um traidor da casa de Deus.” Ao término, Arcádio decide em favor do bispo. Rumores sobre o confronto entre Gainas e João Crisóstomo logo tomaram as ruas da cidade, inflamando os brios dos cristãos ortodoxos, que tanto admiravam o seu bispo. Pelo que os relatos de Sozomeno (VIII,4) e Teodoreto (V,32) nos permitem entrever, a recusa do imperador em atender à reivindicação do seu generalíssimo foi acompanhada por uma profunda insatisfação manifesta pelos correligionários de Gainas acampados em Constantinopla. Em pouco tempo, a situação começava a sair de controle, sendo a população acometida de um pânico universal diante de um conflito que se mostrava iminente (Theod. lV,32). Os godos tentaram a princípio pilhar os objetos de prata expostos à venda no mercado e, em seguida, incendiar o palácio imperial, embora ambas as investidas tenham resultado em malogro. A primeira devido à estratégia dos comerciantes em ocultar os seus produtos e a segunda pela ação da Providência, que teria enviado seus anjos para defender o edifício (Soz. VIII,4). Diante da turbulência provocada pela presença ostensiva dos soldados

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nas ruas da Capital, é possível que Gainas tenha planejado deixar Constantinopla e reagrupar seus efetivos em outra localidade. O pretexto urdido para permitir uma retirada pacífica dos contingentes mais próximos ao magister bem como dos seus armamentos foi que Gainas, encontrando-se possuído por um demônio, necessitava orar na igreja de São João Batista, em Hebdomon, a dez quilômetros na direção oeste. A estratégia, no entanto, foi descoberta pelos soldados leais ao imperador que guardavam as portas da cidade. Na confusão que se seguiu, a população, exasperada, se levantou contra os godos num massacre que resultou em milhares de mortos. Arcádio declarou Gainas inimigo público. Acuados, os bárbaros se refugiaram na igreja que João Crisóstomo lhes havia outrora designado. O imperador ordenou então, em 12 de julho de 400, que os soldados ateassem fogo ao edifício, resultando no massacre de todos os ocupantes. Os que sobreviveram foram mortos a pedradas. Em fuga, Gainas foi alcançado por Fravita, enviado em seu encalço por Arcádio, quando se preparava para atravessar o Helesponto com suas forças. Na batalha que se seguiu, Gainas perdeu a maior parte dos seus combatentes, afogados por intervenção divina tal como os exércitos do faraó (Soc. VI,6; Soz. VIII,4). Com um contingente reduzido, o general rebelde foi surpreendido e morto, em 23 de dezembro de 400, por um bando de hunos chefiados por Uldino. Como tributo ao Império, Uldino enviou a cabeça de Gainas a Arcádio, que a exibiu pelas ruas de Constantinopla no início de 401 (Kelly, 1995, p. 162).

Conclusão

Quando analisamos a revolta de Gainas à luz dos conflitos político-culturais advindos da barbarização do exército, especialmente daqueles gerados a partir de 382, com o assentamento dos foederati, é impossível não levar em consideração os fatores de natureza religiosa que interferiram no desenrolar dos acontecimentos. Em 376, quando da recepção dos godos dentro do Império por Valente, o credo por eles adotado foi o mesmo do imperador, ou seja, o ariano, opção favorecida pelo trabalho pioneiro de Úlfilas, que em 341, após ser consagrado bispo por Eusébio de Nicomédia, um dos baluartes do arianismo no Oriente, dedica-se ativamente à evangelização dos godos, traduzindo para o gótico as Escrituras (Berardino, 2002, p. 1393).

Alguns anos mais tarde, sob Teodósio, quando

observa-se o triunfo do cristianismo niceno, os godos, surpreendentemente, não aderem à orientação religiosa da casa imperial. Na avaliação de Liebeschuetz (1992, p. 49), o apego dos godos ao arianismo exprime um movimento de construção da própria identidade gótica

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num momento em que a população bárbara federada, constituída por um conjunto heterogêneo de tribos, necessitava de um catalisador que possibilitasse sua integração. Pensado nestes termos, o apego dos foederati ao credo ariano num contexto em que o credo niceno já havia sido convertido em ortodoxia por força do Edito de Tessalônica (380) nos sugere que os bárbaros, antes de reivindicar uma assimilação a qualquer preço ao modus vivendi romano, buscavam reforçar os signos de uma distinção que, por sua vez, era alimentada pelo próprio Estado imperial, na medida em que, conforme uma prescrição de Teodósio, os foederati estavam proibidos de contrair matrimônio legítimo (connubium) com os romanos (Cameron, 1993, p. 138). No entanto, na medida em que os godos se mantêm fiéis ao arianismo, exigindo inclusive o reconhecimento oficial da sua opção religiosa, como vemos no caso de Gainas, a problemática das relações culturais entre romanos e bárbaros adquire uma outra dimensão, passando a envolver um terceiro protagonista, que é o episcopado. Por meio das histórias eclesiásticas de Sócrates, Sozomeno e Teodoreto de Ciro, torna-se evidente que a antiga oposição romano versus bárbaro adquire, na passagem do IV para o V século, um inequívoco matiz religioso, uma vez que dentre o conjunto de traços distintivos que identificam um súdito do Império como romano, ou seja, como portador da romanitas, figura, numa posição de destaque, a ortodoxia nicena. Conforme assinala Miles (1999, 4), a concepção segundo a qual o bárbaro era um elemento estrangeiro e nocivo ao Império já existia como uma imagem poderosa dentro do repertório de representações romanas desde o começo do Principado, não constituindo assim uma “invenção” da época tardia. No entanto, sob o impacto do cristianismo, as imagens do bárbaro elaboradas no fim do Mundo Antigo exibem uma notável capacidade de reapropriação e de ressignificação de símbolos tradicionais. Desse modo, o bárbaro rebelde continua a ser, é certo, um hostes, um inimigo do Estado, mas ele se torna ao mesmo tempo um inimigo da “verdadeira” fé. As narrativas dos “historiadores sinópticos” da época de Teodósio II, ao se revestirem de um tom absolutamente triunfalista e ao advogarem a ação da Providência na história, reforçarão com uma singular intensidade a idéia de que os bárbaros são inimigos do Império e da Igreja, sendo assim atingidos por um duplo estigma: o do criminoso político e o do herege. Privado da condição de súdito do Império e de membro fiel da Ecclesia, o bárbaro recalcitarante verá assim reforçado o seu estatuto atópico de indivíduo deslocado, incongruente e inoportuno, marca que compartilha com todos os párias, desterrados e imigrantes, tanto os de ontem quanto os de hoje.

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