História das Idéias Jurídicas no Brasil [1 ed.]

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(da Universidade da Bahia)

HISTÓRIA DAS IDÉIAS JURÍDICAS NO BRASIL Prefácio de MIGUEL REALE

Editorial GRIJALBO Ltdà. Editôra da Universidade de São Paulo S. Paulo 1969

Obra publicada com a colaboração da UNIVERSIDADE

REITOR:

Prof. DR. Luís ANTÔNIO

DA

DE SÃO PAULO

GAMA

E

SILVA

em exercício: Prof. Dr. Alfredo Buzaid VICE-REITOR

EDITÕRA DA UNIVERSIDADE DE· SÃO PAULO COMISSÃO EDITORIAL:

Presidente Prof. Dr. Mário Guimarães Ferri (Facul­ dade de Filosofia, Ciêndas e Letras) . Membros: Prof. Dr. A. Brito da Cunha (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras ) , Prof. Dr. Carlos da Silva Lacaz (Faculdade de Medicina ) , Prof. Dr. Miguel Reale (Faculdade de Direito) , e Prof. Dr. Pérsio de Souza Santos (Escola Politécnica) . -

Capa de

CÂNDIDO

DA CoSTA PINTo

Copyright by Editorial Grijalbo Ltda. Rua Herculano de Freitas, )06, São Paulo, 4-SP., que se reserva a propriedade literária desta edição.

Aos meus antigos colegas coordenadores da Universidade de Brasília

DO MESMO AUTOR:

Dois Aspectos da Sociologia do Conhecimento - ed. Caderno da Bahia Salvador - 1952. Marx e Mannheim - 2.ª ed. - Livraria Progresso Editôra Bahia - 1956. Sociedade e Direito na Perspectiva da Razão Vital - Progresso Bahia - 1957. Para uma Sociologia do Direito Natural - Progresso - Bahia -1 958. Filosofia da Filosofia (Introdução Problemática à Filosofia) Progresso - Bahia - 1958. ·ºOs Valores Políticos de uma Elite Provinciana (Pesquisa de Socio­ logia Política) - U.B.E. - Progresso - Bahia - 1958. O Problema da Ciência do Direito (Ensaio de Epistemologia Jurí­ dica) - Progresso - Bahia 1958 ( ed. argentina Abeledo-Perrot em preparação) . Atualidade de Durkheim - (em colaboração com Thales de Azeve­ do e Nelson de Souza Sampaio) - Progresso - U.F. B.A. Bahia - 1959. Introdução à Sociologia Teórica (O Problema Epistemológico em Sociologia) - Progresso - Bahia - 195 9. Introdução à Ciência do Direito (Preliminar Epistemológico) Saraiva - S. Paulo - 1 960. O Estado da Bahia como Região Subdesenvolvida - Imprensa Ofi­ cial - Bahia - 1 962. Sociologia do Desenvolvimento - ed. Tempo Brasileiro - Rio 1 963 . Introdução à Ciência do Direito (2.0 vo l. - Sociologia Jurídica) Saraiva - S. Paulo - 1963. Teoria do Direito e Sociologia do Conhecimento - ed. Tempo Br a­ sileiro - Rio...:... 1965. Problemas Filosóficos das Ci2ncias Humanas - Editôra da Uni­ versidade de Brasília - D. F. -'- 1966. Teoria Geral do Direito - ed. Tempo Brasileiro - Rio - 1966. O Direito e a Vida Social (Leituras Básicas de Sociologia 11,trídica) - Companhia Editôra Nacional e Editôra da Universidade de São Paulo - S. Paulo 1966 (em colal;)oração com Zahidé Machada Neto ). Da Vigência Intelectual (Um Estudo d e Sociologia das Idéias) Grijalbo e Editôra da Universidade de São Paulo - 1 968. ··

ÍNDICE Pág.

9

Prefácio Nota do autor Capítulo

1

11

-

A Tradição Jusnaturalista

13

Capítulo I I

-

A Renovação das Idéias n o Século XIX

43

Capítulo III

-

A Sociologia Jurídica da Escola do Recife

71

-

A Teoria Jurídica d o Século XX

Capítul � I V

177

P RE F Á C I O

Machado Neto preferia dar a êste livro o título de História das teorias jurídicas do Brasil, por entender que há ainda todo um trabalho a ser feito quanto às idéias que condicionaram, as contribui­ ções de Teixeira de Freitas, de Paula Baptista, de Pimenta Bueno, de Carvalho de Mendonça e tantos outros mestres insígnes, nos domínios de nosso Direito positivo. Por mais que considere plausí­ veis tais argumentos, penso que a presente obra já se situa no plano da "história das idéias'', muito embora ainda permaneçam em aberto outros p):'oblemas só suscetíveis de tratamento adequado quando fo­ rem publicadas as necessárias monografias sôbre a infraestrutura dou­ trinária -de alguns de nossos maiores jurisconsultos e a sua-reper­ cussão nos tribunais do País. Os legisladores e juristas luso-brasileiros não foram, no mais das vêzes, homens dados a idéias gerais, mas é indiscutível que, desde os praxistas, que operavam sob a direta influência da Escolástica, até aos nossos dias, existe todo um complexo de princípios ontológi­ cos, deontológicos e metodológicos governando a atividade legíslativ·a e jurisprudencial. Ainda nos resta examinar, com o devido apuro, a posição de Teixeira de Freitas no qqadro da Escola Histórica, e a influência que sôbre a sua estupenda produção científica exerceu o alto espírito de Savigny, que êle denominava, pura e simplesmente, "o jurisconsulto". O mesmo se diga, a mero título de exemplo, quanto à situação de Paula Baptista, ou de Pimenta Bueno, cuja for­ mação tradicional recebe o enxêrto fecundo das novas correntes do pensamento europeu, como também é o caso do Conselheiro Ribas, talvez o primeiro de nossos juristas a sofrer o influxo dos pan­ dectistas alemães. Podemos dizer, em suma, que, ora de maneira surpreendentemente atual, ora com certo atraso, o que havia de essencial no pensamento europeu ou norte-americano acabou reper­ cutindo na cultura nacional, condicionando tanto a formulação dos "modelos jurídicos" quanto o desenvolvimento dos "modelos dogmá­ ticos". Parece-me que a obra que o jovem mestre da Universidade da Bahia ora nos oferece, além de focalizar os pressupostos "ideais" de alguns dos principais artífices ou mentores de nosso Direito_ -

de Lafayette Rodrigues Pereira e Clóvis Beviláqua a Francisco Cam­ pos e Pontes de Miranda, - fornece um largo e objetivo panorama de nosso evolver no campo da Ciência Jurídica, não só favorecendo, mas, também, estimulando o advento de análises particulares. As ponderações feitas por Machado Neto têm, porém, o mérito de confirmar a seriedade e a responsabilidade que marcam bem a sua presença em nossa ainda reduzida família de cultores "profis­ sionais" da Filosofia e da Teoria Geral do Direito. A urna real vo­ cação de estudioso das idéias gerais alia êle qualidades invulgares de pesquisador, fundado em rigoroso preparo metódico e no per­ manente propósito de ajustar as soluções jurídicas às exigências his­ tórico-sociais de nossa gente. Nesse sentido, a sua posição no que genericamente se costuma denominar "culturalismo jurídico", reveste-se de inegável cunho pessoal, oferecendo-nos uma versão brasileira da teoria egológica, a meu ver mais aderente à concretitude da experiência jurídica, tal­ vez como resultado de suas conhecidas meditações. sôbre as "razões vitais" do Direito, bem como das condicionantes sociológicas e polí­ ticas que desde muito cedo atraíram a sua inteligência. São êsses propósitos de o_bjetividade científica que caracterizam o presente trabalho de Machado Neto, que jamais descamba para o plano polêmico, nem mesmo quando aponta aspectos, a seu ver, negativos de certas figuras de prol de nosso mundo jurídico, salien­ tando a defasagem ou o contraste entre os pressupostos doutriná· rios enunciados. e a sua aplicação prática. Trata-se, em suma, de um livro que procura penetrar na in­ fraestrutura teórica da experiência jurídica nacional, campo no qual o Brasil se org1,1lha de ter realizado algo de válido em si e por si mesmo, o que nunca será demais proclamar numa época em que tôlamente se pretende diminuir o valor de -nossa· vocação para o Direito. São Paulo, julho de 1969. MIGUEL REALE

NOTA DO AUTOR

:Bste livro nasceu de um convite de Luís Washington Vita. assim, mais um empreendimento daquele incansável e entu­ siástico batalhador pela causa da história das idéias no Brasil, cujo prematuro desaparecimento não nos c ansamos de prantear e lastimar.

É,

Entretanto, foi pensado originàriamente e, finalmente pla­ nejado e redigido como apenas uma História da Teoria Jurídica r,o Brasil, entendendo sob tal rubrica apenas os aspectos mais teóricos - filosóficos e sociológicos - do pensamento jurídico, � não envolvendo, pois, a evolução da doutrina d ominante em cada época em matéria de direito positivo, o que o título de História das Idéias Jurídicas poderia sugerir ao leitor. Resistimos à mu4ança do título para êste que realmente melhor enquadra o livro na coleção dirigida pelo nosso saudoso companheiro do Instituto Brasileiro de Filosofia, até que o pro­ fessor Reale nos pôde convencer, em carta, que o objetivo da coleção era exatamente o de "oferecer o panorama das idéias como teorias", e que "o trabalho atende plenamente a tal deside­ ratum". C om êste valioso aval de quem podia, melhor que todos, escrever a verdadeira História das Idéias Jurídicas no ·Brasil, de que sua obra é, afinal, o mais alto coroamento, inte­ gro-me, muito honrado e lisonjeado, na coleção que irá perpe­ tuar a memória de Luis Washington Vita como a de um bene­ mérito da História das Idéias no Brasil.

A. L. M. N.

Salvador, 18 de março de 1969.

CAPÍTULO 1 A TRADIÇÃO JUSNATURALISTA

1.

O Jusnaturalismo Ilustrado

Mesmo antes da independência política já é possível en­ contrar em nosso prec ário ambiente cultural uma expressão filosófico-jurídica na obra de T omás Antônio Gonzaga. Antes disso, seria prematuro esperar que a situação colonial pudesse albergar em seu seio uma tão refinada expre8são d e vida intelec­ tual. Se, como dizia Hegel referindo-se ao momento originário da filosofia, - em particular a filosofia social, política e jurídica - "a coruja de Minerva só levant a seu vôo ao crepúsculo", não seria de esperar que essa refinada fl or de cultura que é a teoria jurídica pudesse vir à luz na fase amanhecente de nossa vida nacional, melh-ºLQlêmico de Tobias derramou êmulos e discípulos por todo o Nordeste, do Ceará à Bahia. Não se trata, pois, apenas de uma razão de método e que nos faz dividir a exposição das idéias justeoréticas daquela fase de nossa evolução intelectual em positivistas -e monistas evolucionistas. É que, realmente, essas foram as tendências do­ minantes nos dois focos de criação cultural do país, ao menos no que nos diz mais de perto respeito, ou seja - a teoria · jurídica. Se começamos pelo positivismo que tanto na Europa como entre nós antecede o evolucionismo, teremos de iniciar com Luís Pereira Barreto, médico fluminense, nascido em 1 840, em Resende, e formado na Bélgica, onde se doutorou em ciências naturais e em medicina tendo exercido a profissão em Jacareí, S. Paulo, onde foi senador estadual e presidente da constituinte estadual republicana, e onde exerceu o jornalismo polêmico e uma vocação de pedagogo social empenhado em campanhas me­ moráveis em prol da imigração européia, da abolição, da re­ pública, da viticultura, da melhoria genética do rebanho bovino nacional, da grande naturalização e do combate à febre ama-

46

rela, entre outras. Pereira Barreto foi o autor da primeira obra de divulgação do positivismo entre nós. Positivista convicto, embora não ortodoxo e capaz de certa abertura para a� novas idéias científicas e filosóficas de seu tempo, que sabia conciliar com sua inabalável profissão de fé positivista, até à medicina levou êle a sua doutrina, sustentando, na tese que escreveu para obter o direito ao exercício da medicina no Brasil, convalidando seu diploma belga, que "em medicina como em qualquer outra esfera de especulações , o espírito humano tem passado por três estados sucessivos : o teológico ou fictício, o metafísico ou abs­ trato e o wsitivo ou real " 1_ Sua obra capital é aquela que representa de fato não ape­ nas a primeira divulgação do comtismo entre nós como tam­ bém sua primeira aplicação ao mundo histórico-social é, porém, As Três Filosofias. Consta ela de dois volumes, um dedicado à Filosofia Teológica, outro à Filosofia Metafísica e ainda in­ cluiria um terceiro e conclusivo sôbre a Ftlosofiá Positiva que o autor deixou de empreender devido ao fato de que, em Por­ tugal, Teófilo Braga publicasse obra análoga e sob o mesmo título, razão que considerou bastante para eximir-se da tarefa a que se propusera, deixando, assim, incompleta a trilogia. Sôbre o valor dessa obra como criação cultural pessoal ou Miguel Lemos se pronunciara negativamente, quali­ ficando-a de uma simples "manta de retalhos escandalosamente plagiados", opinião que o Prof. Cruz Costa rebate não sem certa veemência, concluintlo que "Miguel Lemos cometeu uma injustiça pai:a com _o iniciador do positivismo no Brasil" e atri­ buindo tal êrro de apreciação àquela conduta peculiar a quantos "se fanatizam por uma teoria ou por uma idéia". 2 O prof. Macial de Barros, inegàvelmente o intelectual brasileiro que mais se tem dedicado ao estudo da obra e da rica personalidade do médico-.filósofo de Jacareí, fêz a demonstração cabal do acêrto da crítica de Miguel Lemos, mostrando exemplarmente o plágio, pela comparação dos textos de Barreto e dos autores cujas idéias utilizava por vêzes até com a mesma expressão

original já

1 Luis Pereira Barreto : "Teoria das Gastralgias e das Nevroses em Geral" in Obras Filosóficas, Ed. Grijalbo, S. Pauto, 1 967, p. 121. 2 João Cruz Costa: Contribuição à História das Idéias no Brasil. (O desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica na· cional) , ed. José otympio, Rio, 1956, p. 1 59, 1960. -

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como quem se serve de· um patrimôn-io universal (e da cultura 3•

anônimo )

Embora Pereira Barreto não tenha sido um teórico do di­ mas um filósofo da sociedade, do poder político e . . . da medicina, sua visão geral da sociedade e do Estado incorpora uma peculiar atitude positivista em face do direito e dos seus cultores que bem merece a inclusão de seu nome e de sua obra numa história da teoria j urídic a no Brasil. Se Augusto Comte já ap odara os juristas de "classe emi­ nement méthaphysique des jurisconsultes" 4 , s eu discípulo bra­ sileiro não fazia p or menos. Sua oj eriza aos homens de direito tornou-s e notória acoimando-os também de me tafísico s e acusan­ do-os de "fazer leis, quando a ciência não as faz, mas sim as desc obre " 5• Co stum ava· opor o médico e o engenheiro como expressões do ideal científico-tecnicista do período Psitivo ao bacharelismo literário e metafísico dos legist as . 6 À faculdade de Direito de Sã o Paulo, a famosa "Academia", reservou as palavras mais ásperas e a crítica mais contundente. Dirigmdo;�e aos senadores Jobim e Godoy, aos quais endereça o prefácio do primeiro tom o de As Três Filosofias, afirma que "com as ba8es atuais do n osso siste� a . de ensino a Academia é um pom­ poso clise de jato contínuo derramando anualmente sôbre o país uma onde calcula4a - de saber falso, de virtudes falsas e de anarquia certa" 7; Embora assentindo que em nossas faculdades jurídicas "existiram em todo tempo intelectos eminentes, que de bom grado fariam tábua rasa dessa filosofia vers átil, incoerente e gárrula, que envenena o e spírit o da mocid ade , com grande de­ trimento da tranquilidade social", considera que "êsses eman­ cip ados" constituem apenas um pequeno grupo minoritário, pre­ valecendo, pois, em nossas academias, "êsse pauperismo da in­ teligênci a, êsse ecletismo oficial que, segundo os interêsses do -momento, conduz a tôdas as causas e a tôdas as crenças . . . " 8 reito,

3 Cfr. Roque Spéncer Maciel de Barros: A Evolução do Pensa­ mento de Pereira Barreto, Grijalbo, S. Paulo, 1967, p. 79-127. 4 Augusto Comte: Cours de Philosophie Positive (6 vols.) Li­

braire J. B. Bailliere et Fils, Paris, 4e. édition, 1 877, 4.0 vol., p . 2.Ó7. 5 Apud Miguel Reale: A Filosofia em São Paulo Conselho Es­ tadual de Cultura, Comissão de Literatura, São Paulo, p. 92. 6 Roque Spencer Maciel de Barros, op. cit., p. 196. 7 Pereira Barreto: As Três Filosofias, in Obras Filosóficas, Gri­ Jalbo, S. Paulo, 1 957, p. 135. 8 id., ibd. •

48

Atribuindo à Igreja e à Academia, como duas "grandes cúmplices", como resultado de sua tarefa o nosso embruteci­ mento, taxando o ensino delas emanado de "fonte de corrupção dos nossos costumes sociais", Barreto vê no "ofício social das Academias" não mais que "vender só, àquêles que os podem comprar, êsses diplomas bastardos, que servem de carta de entrada aos lucrativos empregos e às funções de ost�tação" 9• Tudo isso não se resumia, porém, a um palavreado vazio, a um bacharelismo anti-bacharelesco, a uma pura diatribe ema­ nada de um médico contra a profissão socialmente dominante no país até afJ_uela época e ainda muito depois . Não resultava do despeito do médico contra o poder e prestígio sociais do ba­ charel. Era obra de um positivista nesse ponto radical, em que pese sua heterodoxia comteana - fundada em tôda uma visão filosófica do evolver histórico que ia buscar seu funda­ mento doutrinal na d�nâmica social da lei dos três estados, quiçá o aspecto da visão comteana do mundo de que Barreto mais afincadamente se sentia tributário, em todos os momentos de sua acidentada evolução intelectual . �

É be m a dinâmica social da lei dos três estados que cau­ ciona sua interpretação sociológica da ciência . jurídica e do papel social da jurisprudência que emergem dessas linhas desta­ cadas por Alberto Salles do segundo volume de As Três Filosofias :

"Na Grécia surgem os legisladores do momento que o progresso da observação começa a minar os alicerces do edifí­ cio Theocrático; em Roma, onde a unidade moral foi sempre precária, a jurisprudência toma uma extensão realmente colos­ sal; enfim, na idade média, no momento que se declara a ruina do systhema catholico, que por tantos séculos manteve uma grande unidade moral, vemos ainda uma vez installar-se por toda a Europa o predomínio irresistível da legislação civil . "Qualquer que seja a opinião, que possam fazer a respeito os legistas de profissão, esses factos exprimem para o observa­ dor, que se colloca sob o ponto de vista da historia natural, simplesmente a confirmação, em um caso particular, da grande lei da evolução humana. Em sciencia, quando um facto se re­ produz no tempo e no espaço, guardando uma relação constante de semelhança e successão, dadas certas e deteminadas condi­ ções, dizemos que esse facto constitue uma lei. 9

id., p. 1 33, 1 34.

49

·

"Ora, a juris,prudência, como phenomeno mental, se repro­ duz na história, isto é, no tempo e no espaço, com uma cons­ tancia e semelhança fataes, todas as vezes que .as condições de sua reproducção são preenchidas . Por outro lado, como contra­ prova, vemos que, todas as vezes que se retiram as condições favoráveis de sua producção desapparece igualmente a sua exis­ tencia. Unidade moral e anarchia moral, taes são os dous ter­ mos que exprimem as suas condições des.favoraveis ou favoraveis de producção , em todos os tempos e em todos os lugares". 10 Dessa filosofia da história ou sociologia da ciência jurídi- · ca, emana tôda sua visão depreciativa dos juristas e sua Acade­ mia, mas é essa mesma filosofia da história que, aprofundan­ do-se passa do direito ciência ao direito objeto dessa mesma ciência, para indagar de sua permanência ou transitoriedade na história humana, e sua conclusão é ainda comteanamente adver­ sa ao jurídico : "A jurisprudência cederá o lugar à moral - a física do espírito; e a medicina cederá o seu à higiene - a moral do corpo" 11• No . período positivo de evolução da huma­ nidade essa maneira metafísica de regular a .conduta por leis jurídicas será substituída pela moral científica decorrente da sociologia como física social. Dessa crença deriva o exagêro de­ terminístico de Barreto em matéria criminológica, onde sustenta que "é tal a invariabilidade das leis naturais e tão completa a dependência dos nossos atos morais para com elas, que, dado um povo e o seu grau de civilização, poderemos predizer com segurança qual será o seu número de crimes para um ano qualquer"

12•

Malgrado êsses exagêro determinístico aplicado a temas tão delicados e sua já comprovada indisposição contra os juristas, a ciência jurídica e o próprio direito, Barreto era capaz de alguma sociologia jurídi.JCa. i!le já sabia que " as constituições políticas não se impõem, as leis não se impõem, os costumes, não se impõem a um povo que para êles não esteja preparàdo" 13, ver­ dade para a qual nossos legisladores nem sempre estiveram aten­ tos. Também sua visão sociológica do direito lhe franqueou a 10 Pereira Barreto, citado por Alberto Salles Ensaio sôbre a Moderna Concepção do D ireito, Typografia da Província, S. Paulo, 1 885, p. 252-253 . 11 Apud Roque Spencer Maciel d e Barros, op. cit., p . 1 1 3. 1 2 Apud Reale, op. cit., p. 98, nota 15. 1 3 Pereira Barreto, Obras Filosóficas, ed. cit., p. 139. -

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crítica à igualdade meramente formal do liberalismo de seu tempo, libertando seu espírito de um mito social de sua época. A respeito, observa que "é inútil sofismar-se que a lei de&ce a todos ; no meio de um p ovo analfabeto as vantagens só recaem sôbre poucos. Os proletários, os verdadeiros operários do progresso, os que do berço à morte não têm outro prospecto senão a miséria a mais inclemente, êsses não são contemplados na graça polítiJCa, nem admitidos a fazer parte do povo . A liberdade não é assim senão a aristocracia e o privilégio do pequeno número." 14 Um ,dos primeiros a perceber a questão social entre nós, como o comprova o texto acima, não é de estranhar que tam­ bém tivesse tido visão da decadência da posição social do ba­ charel, malgrado o evidente predomínio dêsses profissionais no Brasil de sua época. O bacharelismo brasileiro de sua época não o enganou, porém, como o comprova o quadro histórico que essas linhas encerram : "Há apenas poucos séculos, era a classe dos legistas que formava as opiniões e concentrava em si a alta direção dos espíritos. A partir do século XVII , uma imensa modificação operou-se e o centro de direção cada vez m ais deslocou-se pas­ sando para outra esfera. Outrora, era a classe dos legistas que mantinha com firmeza a vanguarda da civilização ; hoje, é nesta classe que se encontram os mais veementes defensores -do ultra­ montanismo. Na atualidade, os legistas conservam ainda as ré­ ,. deas do govêmo material da sociedade; mas o govêrno moral jâ de todo escapou-lhes das mãos. Hoje, é só das regiões superi es da ciência que descem as corrente s de opiniões, que põem m movimento todo o vasto maquinismo social. A classe dos é­ gistas parece atualmente fatigada de caminhar; dir-se-ia que a ciência a assusta; é um sintoma grave! Na marcha da evoluç , parar é suicidar-se", 15 conclui o seu vaticínio algo trágico sô a "classe eminenteménte metafísica dos juristas".

j

2.

Paulo Egydio

14 15

id. p. 1 6 1 . Pereira Barreto, citado por Miguel Reale, op. cit., p. 99.

51



mação spenceriana, mas com a vocação da síntese dos cientifi­ cismos de Spencer, Comte e Darwin, 16 sem poder ser adver­ sário do direito, nem da ciência que cultivava, nem da profissão que exercia, mas tão encharcado quanto o outro do cientificismo positivista e evolucionista de seu tempo, vai buscar na sociolo­ gia, a filha dileta do positivismo e de Augusto Com.te, movido pela notória má consciência do . jurista dos fins do século pas­ sado quanto aos títulos de cientificidade do seu saber 17, funda­ mentação científica para a ciência do direito. Mas , tal é a c onfiança ingênua que deposita na novel ciência da sociedade que acaba por submergir a velha jurisprudência nas águas en­ volventes da sociologia. Tal é o que se passa quando escreve : " o direito, esta parte importante da sociologia, aquella justa­ mente que, no pensar de um sociologista distincto (De Rober­ ty ) , fornece a essa grainde sciencia os mais ricos subsídios . . . " 18 Como spenceriano convicto, propunha a aplicação da dou­ trina da evolução a todos os fatos sociais, a tôdas as instituições, a todos os produtos da atividade humana. A religião, a moral, 16 " . a escola philosophica da qual somos discípulo genuíno a escola spenceriana", escreve Paulo Egydio nos Ensaios sóbre alguma.s questões de Direito e de Economia Politica, J. G. d'Arruda Leite, Edi­ tor, S. Paulo, 1 896, p. 1 0. Um ponto da mesma obra (p. 26) onde fica patente sua intenção sintetizante das doutrinas de Comte, Spencer e Darwin a propósito do direito é o seguinte: "Graças a um núcleo notável de jurisconsultos, a doctrina comtiana, a doctrina spenceriana, a doctrina darwiniana, que, feita . abstracção de suas differenças, formam três ramos de uma mesma arvore - a grande doctrina positiva - inspiram alli as melhores locubra­ ções quridicas e animam as melhores obras sobre aquella importante divisão da sciencia juridica" _(Direito Civil) . 17 Cfr. a respeito dêsse processo nossos ensaios O Problema da Ciência do Direito, Ed. Progresso, Bahia, 1 958; e Introdução à Ciência do Direito, (Preliminar Epistemológico )' , 1 .0 vol., Saraiva, S. Paulo, - 1 960, cap. IV. 18 Ensaios sobre algumas questões de Direito e de Economia Po­ lítica, ed. cit'., p. 24 a pág. 30, afirma que o estudo do direito é parte do estudo da sociologia; a pág. 38, que o método do direito privado é o mesmo método d_escritivo da biologia e da sociologia; a pág. 39, que não é outro o método do direito público. A pág. 6, na Introdução ao volume, já havia afirmado que "é impossível" . . . "o estudo da disciplina jurídica sem o estudo da sociologia". Em Do Estudo da Sociologia como base do Direito, (S. Paulo, 1 898) escreveria que da sociologia "as regras jurídicas devem deduzir a sua legitimidade e o Direito às suas bases racionaes" (p. 4 ) , estabelecendo, assim, uma "subordinação das ver­ dades e proposições jurídicas às verdades e proposições da Sociologia" ( p. 27 ) . • •

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o direito, a literatura, as artes, a indústria, o comércio, a ciência eram para êle, especiais dimensões onde a fórmula geral da lei da evolução teria sua conveniente aplicação. A integração · e a diferenciação, os dois pólos onde começariam e concluiriam a sua evolução. Em cada um dêsses setores da cultura, o ho­ mogêneo desorg3111ÍZado dos primórdios iria sendo substituído, com o perpassar do tempo, pelo heterogêneo desorganizado, se­ gundo a fórmula notória em que Spencer reduzia a evolução, transferindo a noção do plano cientllico em que a descobrira Darwin - o saber parcialmente unificado - para o plano universal da filosofia - o saber totalmente unificado 19 • Destacando de modo particular o âmbito jurídico da cultu­ ra, faz o elogio da teoria jurídica evolucionista : "Circunscrevendo as nossas observações ao ramo da scien­ cia sqcial, do qual nos ocupamos - a sciencia jurídica podemos affirmar, em· face dos melhores doclimentos da cultura jurídica contemporanea, esta facto decisivo : que os mais so­ lidos productos culturaes daquella disciplina hão sido elaborados à sombra e sob o influxo da doctrina evolucionista". 20 São ainda o positivismo comteano e o evolucionismo spen­ ceriano as orientações que prevalecem em seu espírito quando, na introdução aos Ensaios sôbre algumas questões de Direito e de Econorrúa Política, esboça o plano de uma volumosa obra futura, desdobrada em quatro partes, e onde pretendia realizar uma exaustiva análise da inteira fenomenologia do mundo jurí­ dico, de seus aspectos mais simples e mais gerais aos mais par­ ticulares e mais complexos, concluindo pela elaboração de uma ciência empírica geral do direito, que muito se vincula ideolô... gicamente às tese� da corrente alemã da mesma época conhecida como A llgemeine Rechtslehre, que constitua a súmula do posi­ tivismo e - o cientificismo da segunda metade do século passado em matéria de teoria da ciência jurídica ou epistemologia ju­ rídica 21, embora essas doutrinas fôssem então ignoradas do se­ nador paulista. Embora o livro cujo projeto e esquema ali se Ensaios . . ed. cit., p. 83 . id., p. 84. No ensaio ·em questão, "Críticas à doctrina da evo­ lução applicada à sciencia jurídica", rebate as criticas do Pe. Hermann Gruber e do Dr. Aguillera. 21 Sôbre a corrente alemã da Allgemeine Rechtslehre, cfr. nossa Teoria Geral do Direito, ed. Tempo Brasileiro, Rio, 1 966, . cap. 1. 19 20

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revela não tenha sido nunca escrito ou publicado, a síntese pro­ jetiva que ali se imagina dá bem o tonus da visão sintética po­ sitivista-evolucionista que inspirava a teoria jurídica de Paulo Egydio 22• 22 Pelo que tem de revelador da orientação teórica do seu autor vale a pena reproduzir aqui, em que pese e alongado da citação, a íntegra do aludido pl ano que aparece entre as páginas 5 e 9 dos Ensaios . . citados. "Não será inopportuno pensamos nós, d ar desde já ao leitor uma idéia rapida desse plano. "Em nosso modo de vêr ; a doctrina scientifica do direito não pode ser estudada e compreendida sem o estudo de outra doctrina mais vasta e mais geral, em que aquella immeiatamente se apoia : - a doctrina social. "� impossível , com effeito, no estado actual de desenvolvimento da razão humana, o estudo da disciplina juridica sem o estudo da so­ ciologia. "Fixar, portanto, as verdades geraes, os principios e as leis que explicam e fundamentam a coexistência e a sucessão dos phenomenos juridicos : eis o primeiro trabalho do escriptor actual que quizer em­ preender o estudo systemático do direito. "Só depois de fixados os fundamentos da sciencia por meio dos variados processos do methodo objectivo, unico que pode guiar o espi­ rito humano na descoberta do conhecimento exactos e positivos, é que se deverá encetar o estudo particular da materia jurídica e a sua exposição , scientifica. :6ste será, portanto, o nosso primeiro estudo e o objecto do primeiro volume de nossa obra, o qual terá naturalmente o título seguinte: Bases do direito fornecidas pela sociologia. "Encetado o estudo particular dos phenomenos juridicos, seguire­ mos a divisão usada, de origem romana, do direito em privado e publico; e, fieis sempre às regras cardeais do nosso methodo, começare­ mos pela descripção e analyse da srelações juridicas e dos instituições as mais simples e mais geraes para remontar depois às mais complCxas e particulares. "Deste modo e em virtbde deste princípio, nos occuparemos no segundo volume dos phenomenos juridicos de ordem privada, em seu aspecto substancial ou materi al "Immediatamente depois, (os consideraremos ainda sob outro as­ p ecto, isto é, sob a forma pela qual se tomam praticamente effectivas as relações originadas desses phenomenos. "Assim, após o mundo do direito privado material ou substantivo virá logo o do direito formal ou adjectivo, segundo o technica recebida entre os juristas. "Feita a exposição desta parte, incontestàvelmente a menos com­ plexa da sciencia, comprehendendo nella o direito civil stricto sensu e o direito commercial, nos occuparemos então dos phenoménos juridicos mais complicados, isto é, dos phenomenos do direito publico interno, em duas ramificações importantes, o direito constitucional e o direito administrativo. .

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Suas contribuições à teoria jurídica não concluem, entre­ tanto no puro nível teórico e programático dos textos de sua autoria até aqui analisados. Num ensaio titulado Estudos de Sociologia Criminal, datado de 1900, que é hoje obra conside­ da como uma das iniciadoras dos estudos sociológicos em nosso país, e , pois, citação obrigatória em tôda resenha histórica da sociologia no Brasil, o que serviu de ingresso do s.eu autor no Instituto Internacional de Sociologia por proposta de Gabriel Tarde e René Worms, Paulo Egydio se propõe como tema de sociologia criminal, a conceituação geral do crime, destacando, em especial.,• á indagação acêrca de se o crime é um fenômeno de fisiologia social como pretendia Durkheim, ou, se, ao con­ trário, é algo que se há de situar no plano da patologia social, como \um fenômeno mórbido, anormal ou teratológico que é como habitualmente se admite. Nesse estudo, Paulo Egydio tem em mira especialmente a tese de Emile Durkheim , segundo a qual o crime, como um fe­ nômeno universal, encontrável em todo tipo de sociedade, há que ser considerado· oomo um fenômeno normal, desde que para o autor das Regras do Método Sociológico "um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado em uma fase determinada de seu desenvolvimento, quando êle se produz na média das sociedades desta espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução". "Sua descripção e analyse serão o objecto do quarto e do quinto volumes. "Virá depois o estudo do phenomeno do crime e do phenomeqo" da pena, considerados em sua materia e conteúdo, e considerados iia forma e nos meios que devem ser empregados para a descoberta e vi­ rificação daquelle, como a imposição e cumprimento desta. "Finalmente, após a descripção analytica da vasta phenomenolo juridica, feita sempre à luz do methodo objectivo, investigando-se 1 leis · dos factos e suas causas . immediatas e determinantes , mas nun as remotas e primarias, que o espírito positivo não tenta perscrut . virá um outro genero de pesquisas, de caracter geral, abstracto .e synth tico, tendo por objecto não o estudo de phenomenos, mas sim o estud das leis dos phenomenos, dos princípios fundamentais em que repous o conhecimento scientifico dos factos jurídicos, das verdades cilrdiae!i1 adquiridas pela inducção e pela generalização, sem as qtiaes é impog\ s\vel � c�strucç� ?e uma doctrina juridica e, portanto, a construcção1 ' dá sc1enc1a do direito. "Em uma palavra, virá, depois de tudo, a philosophia particular da sciencia jurídica". · Paulo Egydio : "Introducção" aos Ensaios sobre algumas questões

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de Direito e de Economia Política, pág. 5-9.

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"Mas, dir-se-ia, talvez, não é tão visível, tão evidente, o caráter paradoxal desta doutrina? Para que pois, discutil-a? Há quem se possa convencer seriamente de que o crime não seja um mal e de que elle possa ser um bem? Como é possível sustentar que o crime não seja um phenomeno correspondente ao estado de doença, mas sim ao estado de saúde social?" 23 Estas são questões que se propõe Paulo Egydio apenas para efeito retó­ rico, já que dedica mais de duzentas e cinquenta páginas nesse ensaio exatamente para refutar essa doutrina e sustentar o ca­ ráter patológico do crime. Enfrentando criticamente seja a caracterização durkheimia­ na de método objetivo, seja sua conceitituação do normal e pa­ tológico e acrescentando à metodologia durkheimiana os mé­ todos histórico e estatístico, imprescindíveis à análise científica do delito, Paulo Egydio chega à conclusão antitética daquela que celebrisou a criminologia da escola objetiva francêsa - o crime é fenômeno patológico, anormal, pois até, mesmo, anormal "não pode significar, litteralmente, sinão aquillo que se afasta das normas" 24• Se o crime não é tema de patologia social, quais seriam os temas dessa importante parte dos estudos sociológicos? As guerras? As crises econômicas? Ag revoluções políticas? _ Mas estas estão intimamente ligadas ao incremento da criminalidade. "Si, pois, a guerra pode ser considerada como objecto da pa­ thologia social, por ser um phenomeno social de natureza anor­ mal, como não o será também a criminalidade geral que se manüesta no seio de uma mesma sociedade, para, a todo o instante, · perturbal-a e destruil-a?" 25 indaga Paulo Egydio, re­ petindo indaga�ões análogas a propósito das relações entre crime e crises econômicas e entre crime e revolução. Rejeitando também a vinculação durkheimiana entre crime e progresso social, Paulo Egydio conclui otimista o seu ensaio, vaticinando um constante decréscimo da criminalidade à medida que progride a humanidade. 23 Paulo Egydio : Estudos de Sociologia Criminal - Do Conceito Geral do Crime Segundo o Methodo Contemporllneo (A Propósito da Theoria de E. Durkheim) ; Empreza Graphica Revista dos Tribunaes, 2.ª ed., São Paulo, 1 94 1 , p. 3 3. Sôbre a significação dêsse livro na história da sociologia nacional , cfr. Antônio Cândido, "A Sociologia no Brasil", na Enciclopedia Delta-Larousse, vol. V, p. 221 8-22 1 9. 24 id., p. 148. 25 id., p. 1 96.

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"O crime e a criminalidade serão, à proporção que os homens progredirem e se aperfeiçoarem, cada vez mais abomi­ nados e contidos em suas origens e em suas causas, pela crysta­ lização do s sentimentos e das idéas, pela purificação dos costu­ mes e da moral collectiva. Tal é o· verdadeiro estado normal das sociedades humanas, o grandioso ideal do seu progresso . E nesta obra de crystalização dos sentimentos e das idéias, de purifi­ cação do� costumes e da moral, cabe à sociologia criminal uma influência considerável, um grande e nobre papel" 26.

3.

A lberto ·salles

Se o médico-positivista Pereira Barreto denegria a profissão jurídica e negava a sua ciência, e o advogado Paulo Egydio, tentando dar foros de cientificidade à jurisprudência, vai entre­ gá-Ia à voracidade do imperialismo sociológico em termos do mais radical sociologismo, Alberto Salles ( 1 857-1904 ) , bacha­ rel que esciípou de formar-se em engenharia nos Estados Unidos, também positivista como os demais, embora sem fugir, no essen­ cial, ao sociologismo, tenta recuperar para o espírito científico a ciência jurídica, embora as faculdades de direito continuem, no seu entender, "verdadeiras nullidades scientificas", que "mais têm funcionado como officina de sophistas, que enchem o paiz todos os annos de rabulas e chicanistas, do que como ór­ gãos destinados ao ensino e à interpretação scientifica do Direito" 27• Positivista que considerava Comte o mais original e o mais robusto pensador do século, Alberto Salles não se pode consi­ derar um ortodoxo, mesmo se deixarmos de parte o aspecto re­ ligioso do positivismo, mas alguém que participando da concep­ ção cientificista de base positivista dominante em sua época, fun­ dia positivismo, evolucionismo e materialismo, como observava o seu biógrafo mais autorizado. 2 8 ·

26 id., p. 262. 27 Alberto Salles - Ensaio sôbre a Moderna Concepção do Di­

reito, Typographia da Provincia, S. Paulo, 1 885. p. 266. "Livro lacumo­ so, confuso, onde idéias contradictorias, tomadas de um lado ao posi­ tivi.';mo e de outro lado ao evolucionismo spencerista, jogam as cristas numa desordem de causar espanto", assim se referiu S. Romero a êste livro de A. Salles no prefácio de seus Ensaios ·de Philosophia do D ireito, Cunha e Irmão, Rio, 1 89 5 ( p. XIII. 28 Luiz Washington Vita: A lberto Sallea - Ideólogo da RepÚ· blica, Companhia Editora Nacional, S. Paulo, 1 965, p. 60.

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A irreligiosidade, outra característica da classe intelectual de seu tempo, é outra nota que lhe permeia a obra, por vêzes em manifestações desabridas como quando afirma "que assim como o passado pertenceu e tem pertencido à religião, assim também o futuro bade inevitavelmente pertencer à sciencia. Isto quer dizer simplesmente que o espírito humano - liberta-se cada vez mais da religião, ao mesmo tempo que penetra cada vez mais nos domínios da sciencia. O futuro é a irreligiosidade." 29 Mais conhecido como o publicista que combateu em muitas frentes em prol do govêrno republicano, em termos a justificar plenamente o epíteJo de ideólogo da república que lhe atribuiu o Prof . Luis Washington Vita, e de cuja atuação ficou-nos o alentado volume da Política Republicana 30, além de numerosos opúsculos como o Catecismo Republicano 31, é no Ensaio sôbre a Moderna Concepção do Direito que se encontra a sua contri­ buição mais pessoal em matéria de teoria jurídica. O propósito da obra, revelado logo no prefácio (p. V) é "tirar o estudo do Direito da lamentável esterilidade em que até hoje tem estaÕd mergulhado". Com tal propósito, sua indagação parte de uma questão prévia de nítido teor epistemológico e reveladora do ambiente sociologista em que se movia o seu pen­ samento. Trata-se de fix.ar o lugar do direito no quadro geral da ciência social, dando-se por suposto que tal lugar há de ser no seio da ciência concebida pelo "gênio assombroso, de Augusto Comte" (p. 7 ) . Firmado na divisão comteana da sociologia, Alberto Salles. coloca o direito "na parte dynamica da sciencia social" (p. 1 6 ) , concordando, pois, com Roberty e concluindo que o direito "é uma função do Estado e, como tal, pertenlCe immediatamente à parte dynamica da sciencia social" . {p. 1 8 ) No estudo d o Estado, a política se encarrega do aspecto estático, cabendo ao direito a face dinâmica do mesmo fenô­ meno 32.

29 Alberto Salles, Sciencia Política, Teixeira e Irmão, S. Paulo, 1 891 , p. 65. 30. Cfr. Alberto Salles : Política Republicana, Typ. de Leuzinger e Filhos, Rio de Janeiro, 1882 (573 páginas de teoria e propaganda da política republicãna) . 31 Alberto Salles: Catecismo Republicano, Leroy King Book-Wal­ ther, S. Paulo, MDCCCLXXXV , reproduzido in Luis Washington Vita, op. cit., pP 17 1-201. 32 "A política, como um ramo da sciencia social , é sempre abstrac­ ta e tem como objecto de estUdo unicamente a face estatica de uma certa cathegorfa de phenomenos, cuja feição dinamica é deixada às in­ vestigações dó direito", A. Salles: Sciencia Política, ed. cit., p. 70-71. • .

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Analisando os precedentes da teoria jurídica, comporta-se como um autêntico positivista comteano, quer em suas diatribes contra a filosofia jurídica - "essa construção puramente sub­ jectiva e phantasiosa a que pomposamente denominaram Philo­ sophia do Direito" (p. 20) - quer na metodologia inspirada na lei dos três estados, com base na qual repassa concepções teológicas, metafísicas e as tentativas recentes de uma concepção científica eu positiva do direito, entre as quais destaca a escola histórica, . Lastarria, Rossi, Prospero Pichard e conclui com o discurso de Tobias perante a c on gregaçã o da Faculdade de Di­ reito do Rocife , a respeito do qual tem a atitude mais enco­ miástica e receptiva.

É nessa seqüência de tentativas de construção de uma concepção científica do direito que Alberto Salles inclui a sua própria, que em breve resumo poderíamos qualificar como uma visão organicista - "analogia que se observa entre o organis­ mo social e o organismo animal, em geral" ( p. 8 6 ) - em fero combate contra o jusnaturalismo, considerado por êle como uma extravagância (p. 94) e assinalando como n otas características do direito a sua positividade e o fato de constituir uma função particular do Estado (p. 1 0 1 ) assim como a sua relatividade (p. 1 03 ) , e marcando a · evolução histórica do direito por uma fase teocrática, seguida de uma aristocrática e de outra de­ moerática ( p. 1 05 } e concluindo por uma concepção de con­ teúdo fortemente biologista e evolucionista, ao admitir que o direito "deve deixar que se opere livremente o processo natu­ ral e constante da eliminação, em v ez de constituir-sé elemento perturbador da economia social" ( p. 1 1 9-120) e propugnando que se dê ao direito como objeto "o equilibrio das fôrças indi­ viduais; de acôrdo com a fôrça geral da cooperação social. F�endo-se corifeu da sociologia jurídica em nosso meio, Alberto Salles, dedica o capítulo V d e sua obra capital à aná­ lise dos fatôres sociais conformadores do direito positivo, onde analisa empiricamente a influência que exercem sôbre o direito o interêsse, o costume, a religião, a moral e a opinião pública. Estudando a evolução do direito, nosso autor divide a his­ tória jurídica em três fases , em consonância também com a l�i dos três estados : "na primeira prase é o regimen theocrático que prevalece e que se manifesta pelo predomínio exclusivo das classes sacerdotaes; na s egunda, é o regimen aristocráticq, em que prepondera, primeiro a classe militar,

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