História da Igreja na América Latina e no Caribe
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hoornaert, Eduardo, 1930História do cristianismo na América Latina e no Caribe / Eduardo Hoornaert. — São Paulo : Paulus, 1994. Contém figuras, mapas, gráficos, bibliografias, índice de assuntos (temas), índice de nomes históricos, índice de autores, índice de vocábulos de línguas não-ocidentais. Bibliografia. ISBN 85-349-0035-3 1. Cristianismo - América Latina e Caribe - História I. Título. 93-0110

CDD-270.098

índices para catálogo sistemático: 1. América Latina e Caribe : Cristianismo : História 270.098

EDUARDO HOORNAERT

HISTORIA DO CRISTIANISMO NA AMÉRICA LATINA E NO CARIBE Seminário Coneóriia N? Clcií

ntão, a capital do império, Cuzco, drama que . mo político que se estende pelas em 1531. Ele está diante até Santiago, no cordilheiras dos Andes di nico através do rio sul (mapa 27), e se abre, do lago Titicaca (o Maranon e, pelo io Paraguai. E um mais elevado do Potosi, Charc; nte de um Dlebeu mundo de uma imana imensi íezas espanhol, a de se espei para humanas r as complexidades cultu compensar ços que envidou para chegar até lá. O noi ipério é Tawantisuju ou Tahuantisi s um século anti ado por milhões de pessoas. Vareas 1 Ihões de habitantes, Valcarcel estima que foram 14 ega a avaliar em 20 milhões o número de habitan o munao peruano, Comumente se aceita a cifra de 9 milhões.' T; ão do Tawantisuju é impressionante: 7.000.000 km qu iB do Peru, Bolívia, Chile, Equador, partes da Colômbia .„ . J r a s i l . A variedade climática e geográfica (serras altas < :s) é outra dificuldade que os conquistadores encontr i é tão violento que, segundo i anos depois da entrada do primeiro o padre jesuíta José d( a. A unificação colonial espanhola do europeu só rest u i < i i i n c i i . c ^craves de dois instrum " na império inca se quíchua e a relij Certas línguas locais (por exemplo, c im toleradas até ho mos, a sociedade incaica estava org< lãs chamados ayllu onheciam laço de parentesco, o tre seus membros.' ionavam >s, com .O núcleo familiar « o,, sament re pessoas com vínculo de sangue ^ i u i u u m com as irmãs, para guardar a pureza da íois mar i l u e construíram em cima dele seu domínio. O té hoje r imponesas do Peru. A estratificação soei ica conhecia vários níveis: abaixo viviam os camponeses pobres, os quais pagavam tributos. Aliás, como sempre, havia 17

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1. O massacre de

Cajamarca

Fundamental para a abertura de um ciclo de cristianização no Peru foi a passagem do Atlântico para o Pacífico, realizada por Nunez de Balboa em 1515 (mapa 25). Após muitas voltas, sempre à procura de ouro, os espanhóis finalmente chegam ao golfo do P a n a m á e ao golfo de São Miguel, no dia 29 de setembro de 1515. Doravante, o P a n a m á seria a base operacional a partir da qual homens como Pizarro organizariam suas explorações pelas costas do Pacífico. Entre 1526 e 1527, Pizarro desce por mar até Tümbez e Porto de Santa (mapa 26), o que lhe dá as condições de finalmente empreender a viagem da conquista do império inca, que a partir de São Mateus se faz por terra, passando por Cajamarca, onde se dá o drama que comentaremos adiante, para atingir, então, a capital do império, Cuzco, em 1531. Ele está diante de imponente organismo político que se estende pelas cordilheiras dos Andes desde a atual cidade de Quito, no norte, até Santiago, no sul (mapa 27), e se abre, pelo norte, para o imenso vale amazônico através do rio Maranon e, pelo sul, para o rio da Prata através da passagem do lago Titicaca (o mais elevado do mundo), de Potosi, Charcas e, finalmente, o rio Paraguai. E um mundo de u m a grandeza h u m a n a imensurável, que está diante de u m plebeu espanhol. Pizarro, como era de se esperar, não tem olhos para as riquezas humanas nem para as complexidades culturais. Simplesmente pensa no ouro para compensar os esforços que envidou para chegar até lá. O nome do império é Tawantisuju ou Tahuantisuyo, formado apenas um século antes e povoado por milhões de pessoas. Vargas Ugarte fala em 3 milhões de habitantes, Valcarcel estima que foram 14 milhões, enquanto Baudot chega a avaliar em 20 milhões o número de habitantes desse imenso mundo peruano. Comumente se aceita a cifra de 9 milhões. Também a extensão do Tawantisuju é impressionante: 7.000.000 km que abarcam os atuais países do Peru, Bolívia, Chile, Equador, partes da Colômbia, Argentina, Paraguai e Brasil. A variedade climática e geográfica (serras altas e vastas planícies) é outra dificuldade que os conquistadores encontraram. O choque da conquista é tão violento que, segundo o padre jesuíta José de Acosta, cinqüenta anos depois da entrada do primeiro europeu só restou um homem sobre trinta. A unificação colonial espanhola do império inca se realizou culturalmente através de dois instrumentos: a língua quíchua e a religião católica. Certas línguas locais (por exemplo, o aimará) foram toleradas até hoje. Como j á vimos, a sociedade incaica estava organizada em clãs chamados ayllu, os quais reconheciam laço de parentesco, real ou fictício, entre seus membros. Todos se relacionavam como parentes, com muita proximidade. O núcleo familiar era monogâmico e evitavam-se casamentos entre pessoas com vínculo de sangue primário entre si. Só o Inca e seus nobres casavam com as irmãs, para guardar a pureza da raça. Os espanhóis mantiveram o ayllu e construíram em cima dele seu domínio. O ayllu persiste até hoje nas regiões camponesas do Peru. 37

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A estratificação social no império inca conhecia vários níveis: abaixo viviam os camponeses pobres, os quais pagavam tributos. Aliás, como sempre, havia

muita injustiça e prepotência na cobrança desses impostos, segundo mostra Guamán Poma de forma muito expressiva (fig. 69). O cobrador grita: "Velha, traga a taça [com dinheiro]. Não me faz enjoar, velha!" A velha responde: "Que taça eu poderia dar-lhe, eu, que sou velha e pobre? Por Deus, não venha atacar-me!" Acena se refere aos tempos após a conquista espanhola, pois a velha está rezando o rosário, mas todo o ambiente lembra os antigos modos de ser dos tempos do império Tawantisuju. Logo acima dos camponeses vinham os curacas ou nobres intermediários, os quais detinham o controle sobre o povo. Também tinham de

Mapa 27. O Império Inca.

ÍNDIO

QUE PIDE TRIBUTO A U POBRE

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Fig. 69. Cobrança de impostos.

pagar impostos. No sistema espanhol, esses curacas se tornavam freqüentemente alcaide, os quais tinham de mitar (pagar imposto na forma de trabalhos na comunidade) para os corregedores. No desenho, vemos um corregedor mandando flagelar um alcaide (curaca), depois de lhe tirar a roupa, pois este "não lhe dá mitayo", ou seja, não manda os camponeses sob seus cuidados trabalharem em serviços públicos (fig. 70). Mais uma vez, percebemos como os espanhóis deram continuidade às e s t r u t u r a s externas e internas do império que acabaram por dominar. Na cúpula do sistema, havia os "incas", os quais constituíam a hierarquia superior. O Estado inca estava organizado teocraticamente e a religião pervadia todas as esferas da vida. Os incas possuíam alto grau de desenvolvimento técnico e social: ninguém passava fome em toda a extensão do império. Os espanhóis só conseguiram aproveitar em parte das técnicas agrícolas e de criação de gado. Um "enigma" envolve a conquista do Peru, como os conquistadores espanhóis encontraram t a n t a facilidade em derrubar esse importante império em tão pouco tempo e com tão poucos homens? A conquista de Tenochtitlán foi realizada após mil e uma artimanhas por parte de Cortez e seus homens e durou anos e anos. Mas em Cajamarca a vitória foi instantânea. Guamán Poma mostra com ironia como o frade dominicano Vicente Valverde, primo de Pizarro (que mais tarde receberá a mitra episcopal de Cuzco como recompensa), lê o famoso requerimiento ou petição oficial das terras andinas em nome de Deus, do papa, dos reis catolicíssimos e t c , diante de Atahualpa sentado com todos seus adornos (fig. 71). Diz o texto: "Con guerra y fuego y sangre... y te constiniremos con la espada a que — dejando tu falsa religión —, que quieras que no quieras, recibas nuestra fe católica y pagues tributos a nuestro imperador." "Que quieras que no quieras": isso diz tudo. Atahualpa, como era de esperar, não se "reconhece" nessa leitura, nem a entende (não se percebem intérpretes n a cena). Então, é capturado e iniciam-se os estranhos acontecimentos relatados e analisados pelo escritor peruano Mário Vargas Llosa da seguinte maneira: "A conquista do Tawantisuju Iimpério incal por um punhado de espanhóis é um feito que ainda hoje nos custa compreender. Os conquistadores da primeira leva, Pizarro e companheiros, não chegavam a duzentos. Quando começam a vir os reforços, aqueles primeiros já haviam acertado um golpe mortífero e se apoderado de um império que dominava nove milhões de pessoas. Não era sociedade primitiva, mas uma civilização que havia alcançado elevado nível de desenvolvimento que, em muitos sentidos, a própria Espanha não tinha. O mais notável nela, com certeza, não eram fortalezas e sistemas de irrigação, mas o fato de haver sido capaz de produzir de tal modo que todos os súditos tivessem o que comer. De poucos impérios na história se pode dizer o mesmo. Bastam para explicar o instantâneo colapso as armas de fogo, os cavalos e as armaduras dos espanhóis? E verdade que a pólvora, as balas e as investidas de animais paralisavam os índios com um terror religioso e lhes davam a sensação de estarem lutando não contra homens, mas contra deuses. Mas, ainda assim, a diferença numérica era tal que aquele oceano quíchua teria podido submergir o invasor. Qual é a explicação profunda dessa derrota? Talvez a resposta esteja escondida no patético relato do ocorrido na praça de Cajamarca no dia em que Pizarro capturou Atahualpa, o imperador inca.

CORREGIDOR

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provincias Fig. 70. Castigo por falta de pagamento de imposto.

LECTURA

DEL REQUERIMIENTO

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No instante mesmo em que o imperador é capturado, suas hostes deixam de lutar, como se estivessem manietadas por força mágica. A carnificina é indescritível, mas só de um lado: os espanhóis descarregam os arcabuzes, cravam suas lanças e espadas e avançam com os cavalos contra massa sonâmbula que não consegue se defender nem fugir. Em poucos minutos, o poderoso exército que dominava todas as províncias do norte do império se desintegra como pedaço de gelo em água morna. Aestrutura vertical e totalitária doTawantisuju foi certamente mais nociva para sua sobrevivência do que as armas dos conquistadores. Capturado o Inca, eixo em torno do qual se organizava a sociedade e do qual dependia a vida e a morte de todos, ninguém soube agir. Fizeram, então, a única coisa que podiam; com heroísmo, sim, mas sem violar os mil e um tabus e preceitos que lhes regulavam a existência: deixar-se matar."' 18

Difícil para nós, hoje, imaginar como essa catástrofe repercutiu na alma das pessoas daquele tempo. Não conheço nenhum texto andino que exprima esse sentimento com t a n t a veracidade como o Texto anônimo de Tlatelolco, um relato anônimo da conquista, redigido no México em náuatle: Fig. 71. Leitura do "requerimiento'

"En los caminos yacen dardos rotos los cabellos están esparcidos. Destechadas están las casas, enrojecidos tienen sus muros. Gusanos pululan por calles y plazas, y están las paredes manchadas de sesos. Rojas están las aguas, cual si las hubieran teñido, y si las bebíamos, eran aguas de salitre. Golpeábamos los muros de adobe en nuestra ansiedad y nos quedaba por herencia una red de agujeros. Hemos comido panes de colorín, hemos masticado grama salitrosa, pedazos de adobe, lagartijas, ratones, y tierra hecha polvo y aún los gusanos." 39

Caso análogo nos é relatado por Américo Vespúcio quando, na sua Carta, conta como os europeus gostavam de passar por seres sobrenaturais para impressionar os habitantes destas terras: "Vieram nos ver muitos povos, e se maravilharam de nossa estatura e brancura. E nos perguntaram donde vínhamos. E dávamos a eles a entender que vínhamos do céu e que andávamos a ver o mundo, e o acreditavam.

EL \m

TUPAC AMARU

preso- i3oLo

c£>\aCA$co&o

Nesta terra pusemos pia de batismo. E infinita gente se batizou, e nos chamavam, na sua língua, Carabi, que quer dizer Homens-degrande-sabedoria." 40

Depois da derrota de Cajamarca e da penetração das tropas de Pizarro na cidade de Cuzco, o império todo caiu nas mãos dos espanhóis. Guamán Poma retrata o inca Tupac Amaru, cabisbaixo e humilhado, sendo preso por soldados espanhóis (fig. 72). Em pouco tempo vêm os religiosos para ajudar a fixar o domínio espanhol: dominicanos, franciscanos e mercedários já chegam no ano da conquista de Cuzco, em 1532. Em questão de meses, o templo do sol dos incas, o Curicancha, se transforma em convento dominicano (fig. 73), estranho edifício cujo claustro até hoje conserva o local das famosas placas de ouro que na manhã do solstício do inverno (21 de junho) recebiam os primeiros raios do sol, simbolizando a nova vida em meio Fig. 72. Prisão de Tupac Amaru ao frio das m o n t a n h a s andinas. Em 1551 chegam os agostinianos e, em 1569, os jesuítas. Insistentemente Guamán Poma representa esses religiosos como "coléricos, braços, justiceiros" (fig. 74), os quais, nasdoctrinas (aldeamentos, missões), distribuíam pontapés e pauladas, gritavam ordens exigindo serviço, flagelavam, afinal, comportavam-se como pequenos ditadores. Será que Guamán Poma escreveu "mercenário" por erro ou por ironia? Ou será que nesse tempo se escrevia "mercenário" mesmo?

2. A extirpação da

idolatria

Há importante pormenor na gravura que aqui reproduzimos do inca Tupac Amaru sendo levado preso (fig. 72): um soldado leva o inca amarrado e o outro, com circunspeção, leva um "ídolo confiscado". A conquista espanhola se fez acompanhar irremediavelmente por um processo de extirpação das chamadas idolatrias. Em toda a América, a política dos conquistadores teve por objetivo a destruição sistemática da cultura pré-colombiana. Diversos documentos oficiais são explícitos a esse respeito, como a lei de Carlos V, de 26 de junho de 1523: 41

"Que en todas aquellas Provincias hagan derribar y quiten los ídolos. Aras y Adoratorios de la Gentilidad, y sus Sacrificios, y proiban expresamente con graves penas a los Indios idolatrar y comer carne humana, aunque sea de los prisioneros muertos en la guerra, y hacer otras abominaciones contra nuestra Santa Fe Católica, y toda razón natural, y haciendo lo contrario, los castiguen con mucho vigor." 42

Até nos mínimos e mesquinhos pormenores, os conquistadores europeus perseguiam as expressões culturais dos povos submetidos. Assim, no caso dos "cordõezinhos" usados pelas pessoas no planalto andino: esses pequenos cordões tinham nós que eram usados para ajudar nos cálculos e, talvez, também na memorização dos fatos ocorridos. O terceiro concílio de Lima, em 1583, mandou queimar todos os cordõezinhos, sob a alegação de que continham receitas do diabo. 43

Funcionou na América Latina a mesma ideologia que serviu para expulsar mouros e judeus da península ibérica. Os reis católicos estendem as "bulas das cruzadas" à América. Esta era entendiam como "terra de infiéis", enquanto seus h a b i t a n t e s eram definidos como "infiéis", no sentido de "inimigos da santa fé". A destruição das religiões andinas representa apenas um episódio — embora dos mais impressionantes — de política constante da Europa ante as religiões do continente (Pierre Duviols). Três e r a m os motivos alegados para combater as culturas ameríndias: a idolatria, o canibalismo e a imoralidade, ou seja, o comportamento sexual. J á tratamos no capítulo anterior dos sacrifícios humanos no império asteca. Aqui, algumas considerações sobre o canibalismo em geral e a postura dos missionários diante dele. 44

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Considera-se o canibalismo um dos mais inquietantes fatos do comportamento humano. Existe a crença generalizada de que a dissolução do corpo de um homem n a s e n t r a n h a s de outro — geralmente seu inimigo — destrói a possibilidade de regeneração futura do corpo e da alma, prometida pela maioria das religiões. Outra idéia generalizada é que a força vital desse homem consumido passa para quem dele se alimentou. Desde tempos remotos, o imaginário humano é tanto atraído quanto horrorizado pelo ato canibal. Desde os inícios, a América aparece nas crônicas dos conquistadores e descobridores como a terra por excelência do canibalismo. Alvarez Chanca, que acompanha Colombo na segunda viagem, em 1493, escreve sobre os caraíbas da ilha de Guadalupe (atualmente território francês) que eles possuem crânios que usam como enfeite e fervem em panelas. Assim, o vocábulo karib vira aos poucos, na boca do colonizador: caribi, caribe, cariva, caraíba, caribale, canibal. De fato, a origem do vocábulo se liga ao grupo ameríndio que se espalhara por várias regiões da América do Sul e nas Ilhas Caribenhas. Diante do registro da antropofagia elaborado por Alvarez Chanca e outros, a coroa espanhola decreta, em 1503, a escravização de todos os caribes pelos espanhóis. Desta forma, o canibalismo deu pretexto para escravizar os habitantes da América e do Caribe. No litoral brasileiro, onde existia entre os tupinambás um tipo de canibalismo ritual, decretou-se a "guerra justa" contra todos os povos indígenas suspeitos de usarem dessa prática. A publicação, n a Europa, do livro do marinheiro alemão Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás no Rio de Janeiro, em 1557, alimentou o imaginárioeuropeu sobre histórias fascinantes e horripilantes do canibalismo brasileiro. O litoral brasileiro era representado como sendo palco de canibalismo. Daí o medo dos marinheiros portugueses em desembarcar nas praias desertas do Brasil.

8. História do

Cristianismo.

FRAILE MERZENARIO brabo

y itAstícero

•fraile Fig. 74. Frades "coléricos, bravos, justiceiros".

Mas também a vida sexual dos antigos americanos intrigava os europeus. Em 1550, a cidade de Rouen, na França, organizou à beira do Sena grandioso espetáculo para acolher Henrique IV e Catarina de Medici (fig. 75). índios brasileiros e marinheiros franceses tinham de representar u m a batalha imaginária no Brasil: "Une fête brésilienne à Rouen." A gravura que comemora o evento e está conservada no Museu Britânico revela claramente a impressão que os comportamentos sexuais dos "brasileiros" deixaram na mente dos franceses: a evocação das redes para namorar, a nudez, o ambiente de floresta, os trópicos em si convidam ao encontro entre os sexos. Nesse contexto ideológico, podemos compreender que a mais ferrenha repressão cultural por parte dos europeus se dirigia aos usos e costumes americanos em termos de sexualidade. O primeiro impacto da obra missionária sobre as culturas tribais consistia, muitas vezes, em tentar vestir as pessoas e em separar o grupo de casais, unido na "maloca" ou "casa-grande", deslocando-os para casas separadas e monogâmicas. O uso de casas separadas foi uma das primeiras conseqüências da presença missionária e se difundiu por toda a América Latina, alterando fundamentalmente a paisagem h u m a n a do continente. Não mais "casas-grandes" segundo o padrão tradicional do continente, mas, sim, casas individuais ou de casais separados dos outros ao longo de rios e estradas. Essa simples alteração d a geografia humana mudou a face do continente, bem como a prática da sexualidade, que ficou relegada basicamente ao quarto e à cama, como é o costume europeu. Ao mesmo tempo, instalou-se um "horário do sexo", restrito e noturno. Era de esperar que a resistência a tais intromissões bruscas e violentas fosse persistente. Ela ainda hoje é tão forte como quatrocentos anos atrás. A maior dificuldade para a realização do projeto europeu de evangelização tem sido, sem dúvida, essa resistência surda mas perseverante por parte dos povos latinoamericanos e caribenhas.

3. Migrações, descontinuidades

e

desequilíbrios

E o momento de lembrar o que já afirmamos alhures sobre a sorte dos povos deste continente como um todo, após a conquista. A queda demográfica na América Latina e do Caribe em geral, depois da invasão européia, hoje não é contestada por ninguém. A tese minimalista de Rosenblat (1954), segundo a qual havia antes de 1492 apenas 13.400.000 pessoas em todo o continente já foi abandonada e hoje se calcula número entre 30 e 70 milhões. Mas ainda não temos cifras precisas, pois a demografia histórica é ciência nova na América Latina e no Caribe. Há muitos dados de registros paroquiais que não foram ainda devidamente examinados. Normalmente, nesses estudos entra muita imprecisão. 46

Não se pode negar que a morte rondou o continente por mais de dois séculos, entre 1492 e 1750. Os registros paroquiais são eloqüentes. Há bons estudos sobre esses registros em Lima. As primeiras vítimas foram as crianças, que "morriam antes do tempo", segundo a expressão de Las Casas. Outras vítimas foram as 47

Fig. 75. "Une Fête brésilienne à Rouen."

mulheres, "velhas antes do tempo", pois, tradicionalmente, a mulher deve se casar a n t e s dos 20, porque, com 25 anos, j á está "velha" demais. Os partos seguidos a esgotam rapidamente. Se é verdade que a invasão no mundo andino significou a morte de milhões, o estabelecimento dos projetos europeus provocou outro desastre em grande escala: o da migração de outros tantos milhões. Nesse ponto também o drama andino se repete em praticamente toda a América Latina, até nossos dias. A colonização provocou migrações, descontinuidades e desequilíbrios. Hoje, um terço da população de um país como o Brasil pode ser qualificada de migrante ou "errante", pois não t e m nem estabilidade local, nem matrimonial, nem financeira, nem ideológica. A errância é total. A razão histórica disso se explicaria pelo fato de que a economia aqui implantada pelos europeus nunca visou responder às necessidades dos povos daqui, mas, ao contrário, às demandas de uma "economiamundo", como diria Fernand Braudel, e que, por conseguinte, sempre seguiu a s flutuações do mercado internacional do açúcar, óleo, café, borracha, cacau, carne, soja, minérios, ouro, prata etc. Essa economia possui seu ponto de estabilidade na Europa ou nos Estados Unidos, mas nunca aqui. O caso de Potosí, é típico: emerge de repente e da mesma forma submerge. Podemos evocar o de Manaus no ciclo da borracha. Cada ciclo econômico se caracteriza pela insegurança e, sobretudo, pela descontinuidade. Estamos numa parte do mundo onde tudo é descontínuo, improvisado, pois é passível de mudar a cada momento, segundo os impulsos que vêm de fora. Joaquim Nabuco já dizia: "As revoluções brasileiras são ondulações originadas em Paris." Esse condicionamento entrou no modo de ser do povo e o habilitou para oj"jeito", a agilidade em resolver as coisas rápida e provisoriamente. O resultado disso, visto à distância, é o caráter migratório da economia, que afeta diretamente a vida das populações. Num estudo realizado em 1754, em la Paz, constatou-se que 57%dos indígenas que ali moravam provinham de outros lugares, eram portanto migrantes internos. O mesmo se diga de Fortaleza em 1992. Esse caráter migratório vai se acentuando com o tempo e com a permanência do mesmo modelo de uma economia de exportação. Em 1940, a população migrante do Brasil representava 8,5%da população total, hoje totaliza nada menos que 33,6%. Para cada três brasileiros, um não tem onde morar, onde plantar, onde constituir família. Não é de admirar que, nessas condições, a estabilidade das famílias seja tão deficiente. Muitas pessoas passam a vida sendo "tocadas" de u m canto a outro do país, do Nordeste para São Paulo e de São Paulo para o P a r a n á e do Paraná para Rondônia. No final, ficam esgotados e morrem em lugar qualquer. Eis alguns números que ajudam a visualizar como se deram as imigrações da Europa, da Africa e da Ásia, respectivamente, p a r a a América nesses quinhentos anos:

Europa: A imigração européia antes do século XTX foi bastante fraca. — no século XVI: 2.600 por ano. É pouco. Total de 250.000. — no século XVII: 3.900 por ano, por causa de problemas na Europa. — no século XVIII: 500 por ano, menos em certas regiões. Nesse século, o governo procura incentivar a imigração européia, para contrabalançar a africana, muito mais numerosa. — no século XIX: aumenta consideravelmente a imigração européia; há forte europeização, com ideologia de "branqueamento" da população a partir da independência. Na imigração européia, havia, sobretudo no início, imenso descompasso entre homens (90%) e mulheres. Embora diminuísse esse descompasso, restou desequilíbrio entre imigração de homens e de mulheres. A América Latina permanece basicamente um continente de "machos europeus". Africa: A imigração africana segue linha crescente desde o século XVI e chega ao auge no século XIX. — no século XVI: (primeira metade) 500 por ano e (segunda metade) 810. — no século XVII: 3.000 por ano. — a partir de 1750: 6.000 por ano. O Caribe recebeu muitos africanos no século XVIII. Em 1774, 44% dos cubanos são negros; em 1817, 57%. A tendência é crescer. — na segunda metade do século XIX, a imigração africana estanca de repente, depois do auge na primeira metade do século. Portos especializados na importação de escravos: os portos do Caribe, Veracruz no México, Nombre de Dios, Cartagena das índias. As nações africanas mais conhecidas na América: mandinga, mina, congo. A fertilidade entre mulheres negras sempre foi baixa e o governo fez tudo para a u m e n t a r a população negra por procriação na escravidão, mas a resistência foi muito forte. A América conheceu o zambo (pai negro, mulher índia) e o mulato (pai branco, mãe negra) como formas mais freqüentes. Ásia: Bem no início houve no México a experiência de importar escravos das Filipinas, da China, do Japão e das índias orientais. Esse fluxo parou em 1597 e desta forma não ultrapassou o México. No século XIX, iniciou-se forte imigração de asiáticos no Caribe.

O elemento pré-colombiano que mostrou maior estabilidade foi a e s t r u t u r a urbana. Em diversos casos, os europeus simplesmente ocuparam cidades já existentes, como Bogotá, Cuzco, Quito, Guatemala. O caso mais famoso é o de Tenochtitlán, que virou México. Por vezes, construíram-se novas cidades, como

Santiago do Chile e Buenos Aires. É o caso das cidades brasileiras, pois aqui não havia cultura urbana preexistente. Mas até em cidades preexistentes houve separação clara entre bairros europeus e bairros indígenas. Essa separação e as tensões daí decorrentes é que estão na origem da mais famosa devoção mariana da América Latina: Guadalupe versus Tlatelolco. Tlatelolco foi o bairro "europeu" onde o primeiro bispo, João de Zumárraga, se estabeleceu. Mas Maria apareceu em Tepeyácac-Guadalupe, bairro dos indígenas pobres. Essa bela história é básica para se entender as diversas "virgens morenas" da América Latina: Copacabana no Peru, Aparecida no Brasil, Guadalupe no México. No capítulo seis voltaremos ao assunto. 48

Estima-se que no ano 2000, 77% dos latino-americanos viverão em cidades grandes. A partir da experiência do passado, pode-se presumir que nova forma de apartheid está-se formando; desta vez, entre bairros burgueses e bairros populares das grandes cidades do continente. As fronteiras j á existem, firmemente ancoradas em preconceitos provenientes do passado colonial. Ultrapassá-las significa quebrar um "tabu", com todas as conseqüências. 4. A segunda teoria do cristianismo

na América Latina e no Caribe

Foi no Peru que se elaborou, por ocasião do terceiro concílio límense, a segunda teoria missionária para a América Latina, de autoria do padre jesuíta José de Acosta. Lembramos que a primeira teoria foi elaborada na América Central pelo frei dominicano Las Casas, na época bispo em Chiapas, no sul do México. Essa segunda teoria sempre pretendeu ser "realista" e relegou os propósitos de Las Casas e companheiros ao mundo da "utopia", ou seja, das esperanças e dos pios desejos. Vejamos. A política cultural confiada à Igreja na América Latina possuía dois objetivos "realistas". Em primeiro lugar, a Igreja tentaria erradicar as "idolatrias" que aqui encontrara, considerando-as demoníacas.'"' Mas não bastava: a estreita relação entre Igreja e Estado na obra da colonização fez com que ela, na realidade recebesse, outro encargo, o de preparar as populações para entrarem no projeto colonial como mão-de-obra. Era preciso, pois, dialogar com as culturas e transformálas em "instrumentos do reino"! Tarefa delicada essa, bem mais difícil de realizar que a primeira. Ela provocou muitas discussões entre os missionários, seja no México ou no Peru, como também na América Central e no Caribe. Alguns, como Las Casas, negaram-se a entrar nos termos da discussão, mas a opinião que acabou obtendo consenso da maioria foi a do padre jesuíta José de Acosta, ideólogo do terceiro concílio limense (1581-1582). Ele adotou posição intermediária entre Las Casas, o qual contestava a própria legitimidade dos "títulos" espanhóis de evangelização, e os partidários de uma evangelização pela força. Contra Las Casas, argumentava que, depois de cinqüenta anos ou mais (1580), já não era viável restituir aos legítimos donos o que lhes fora tomado pela conquista violenta; ademais, o apoio da coroa espanhola poderia ser benéfico ao desenvolvimentista da América. Acosta era um desenvolvimentista avant la lettre. Contra os que defen-

diam a violência, dizia, e com razão, que nunca se considerou a guerra e a escravidão como formas de catequese na história do cristianismo; propunha, então, u m a "terceira via", a qual consistia em criar método que possibilitasse submissão voluntária das culturas à fé cristã e, portanto, ao domínio colonial. Mas aí Acosta argumentou que a experiência comprovara que os antigos métodos usados na Igreja primitiva para converter os pagãos, ou mesmo na China (o método da accomodatio de Mateus Ricci), não eram praticáveis n a América, pela "barbárie" e "selvageria" de seus habitantes. Era, pois, preciso criar método evangelizatório específico para a América. Qual? Em primeiro lugar, convinha que os missionários fossem acompanhados de força bélica suficiente para resistir a qualquer ataque armado. Em segundo lugar, era imprescindível algum tipo de coação, sempre dentro de certos limites. Assim, permitiram-se certas formas de tortura dentro das chamadas "doutrinas" (aldeamentos). Eis, em suma, a opinião de José de Acosta apresentada no concílio de Lima e que representava uma prática j á vigente nas diversas missões. Acosta defendia, na prática, a violência cultural e até certas formas de violência física. Seu argumento contra Las Casas é ex absurdo: se na América Latina não agirmos com alguma violência, teremos de suspender a missão e voltar à Espanha, "quod est absurdum" (o que é absurdo). Claro que esse tipo de discurso se baseava numa percepção aguda, por parte dos missionários, da enorme resistência que os povos desta terra demonstravam contra os que pretendiam levar-lhes a "boa nova". O fato de a coroa haver exigido de seus funcionários na América relatos precisos acerca da geografia, história e cultura dos povos, mostra como ela tinha know-how n a arte de subjugar através do conhecimento. Aliás, sua experiência na própria península ibérica provara que era preciso conhecer a cultura dos mouros e dos judeus para melhor conseguir erradicá-las. Aqui também a experiência da "reconquista" ajudou na eficácia da "conquista"! J á apresentamos alhures os diversos modelos de cristianização usados na época da expansão colonial européia. Queremos aqui apenas chamar a atenção para o resultado inevitável da teoria propugnada por Acosta: a superficialidade e até ambigüidade do processo de cristianização. As autoridades eclesiásticas, ao longo desses quinhentos anos, nunca acreditaram, no fundo, na seriedade da conversão ao cristianismo por parte dos povos latino-americanos. Há inúmeros testemunhos nesse sentido: Só damos aqui o relato do arcebispo de Lima, J. de Loaysa, ao presidente da Real Audiência da m e s m a cidade, em 1567: "Os índios batizados apostatariam da fé e retornariam a suas idolatrias e ritos como coisa em que nasceram e que herdaram de seus antepassados e pelos maus meios e exemplos com que têm sido ensinados e atraídos à nossa santa fé, e dureza e servidão e desordenada cobiça com que têm sido tratados e por indústria e persuasão do demônio, que ainda os engana com vã esperança que os espanhóis hão de sair desta terra e que eles podem tornar a serem senhores como antes." 50

Mas com a mesma freqüência com que essas autoridades se pronunciam sobre a superficialidade dos métodos forçados e violentos de evangelização, insistem em

continuar no caminho escolhido desde o terceiro concílio de Lima, o qual tratou da questão de maneira inequívoca: sem dominação e destruição da cultura dos povos do continente, não haveria possibilidade de evangelização. Claro que esses pressupostos nem sempre são explicitados; permanecem, contudo, largamente assimilados na pastoral católica, não só entre os tradicionalistas, mas até entre os teólogos da libertação, como finamente observa Clóvis Moura acerca de uma análise feita por Leonardo Boff da religião ioruba como sendo um "cristianismo anônimo". ' Voltaremos ao assunto no capítulo seis. Tivemos de omitir numerosos aspectos da história do cristianismo no planalto andino neste nosso breve relato, o qual privilegiou os temas ligados à extirpação da idolatria, à errância dos povos andinos e à elaboração da teoria "de consenso" acerca do cristianismo neste continente pelo padre José de Acosta. Remetemos (a) o leitor (a) interessado em se aprofundar mais ao trabalho de equipe realizado pela CEHILA sobre a história da Igreja no mundo andino, sob a orientação de Jeffrey Klaiber. 5

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§ 8. Nova Granada

A região que mais tarde receberia o nome de "Nova Granada" — uma Granada que, na idéia de seus idealizadores, deveria ser castiça e exclusivamente católica, em contraste com a Granada mouresca da península ibérica, cuja história terminou em 1492, ano da viagem de Colombo — foi atingida a partir do ciclo peruano passando por Quito, Santa Fé de Bogotá e Antioquia para chegar, finalmente, ao litoral norte com lugares já anteriormente alcançados pelos espanhóis, como Cartagena das índias e S a n t a Marta (mapa 28). O porto de Cartagena foi fundado em 1533 e só cinco anos mais tarde se conseguiu estabelecer a cidade de Santa Fé de Bogotá nas montanhas, numa região de cultura chibcha. Da história desse ciclo apenas destacaremos o que nos parece ser a maior novidade, em comparação com os demais ciclos de cristianização: as primeiras experiências no trato com os negros africanos. Isso se deu em Cartagena das índias, que, junto com Vera Cruz e Nombre de Dios, figurava como um dos principais portos de desembarque de negros na América espanhola. Foi aí que surgiu a escola de Cartagena. 1. Alonso de Sandoval, uma teoria do negro na América Cartagena das índias foi, para o mundo colonial hispânico, o que Salvador da Bahia foi para o mundo colonial português: o principal porto de entrada de negros africanos para trabalhar sobretudo nos engenhos de açúcar, mas também em outras tarefas, sempre num clima tropical úmido. Nos engenhos (fig. 76) e nos canaviais da agroindústria de cana-de-açúcar, nas minas e nas tarefas domésticas, o trabalho negro foi, desde o início, escandalosamente explorado pelos seus "amos",

Mapa 28. Nova Granada.

os quais via de regra se comportavam como tiranos sádicos, segundo demonstra a obra do pintor mexicano Diego Rivera (fig. 77). O ciclo missionário de Nova Granada é marcada pela postura que um grupo de jesuítas tomou ante a entrada dos escravos africanos. Em 1606, começou a a t u a r o padre Alonso de Sandoval, o qual, entre 1617/18, elaborou a primeira teoria cristã latino-americana acerca dos escravos. Sandoval pode ser considerado um "Padre" da Igreja latino-americana, ao lado de Las Casas, com a diferença de que o primeiro é mais diretamente prático do que o segundo. Ambos partem da emoção profunda que lhes causam a observação das "vítimas do progresso" e dos absurdos que se

Fig. 76. Do pintor holandês Frans Post (1640).

cometem com pessoas indefesas: os índios (Las Casas) e os africanos (Sandoval) Para se defender contra seus detratores e fundamentar seu método missionário — que decerto era inovador e causava forte impacto —, o padre Sandoval publicou em Sevilha, no ano 1627, um estudo volumoso intitulado: Naturaleza, Policia sagrada y profana, Costumbres e Ritos, Disciplina y Catecismo evangélico de todos los Etíopes. A segunda edição, bastante modificada, saiu em Madri, no ano 1646, em

Fig. 77. Do pintor mexicano Diego Rivera.

latim, sob o título: De instaurando, Aethiopum Salute. Nesse tempo, usava-se o termo "Etíope" para designar o africano cristão ou batizado, já que na Etiópia existia antiquíssima cultura cristã que, aliás, não aceitou o concílio de Calcedônia (451), por rejeitar uma helenização que lhe parecia opressiva em relação à sua cultura. O fascínio que esse cristianismo exerceu sobre os ocidentais se refletiu na história do "Prestes João", uma espécie de sacerdote mítico que os portugueses procuravam na Africa. O padre Alonso revisou sua obra diversas vezes, e com razão: trata-se de um dos textos básicos de uma patrologia latinoamericana. A parte documental do livro de Sandoval é muito preciosa. O sacerdote jesuíta estudou as diversidades dos povos da Africa ocidental, seus ritos e costumes, e sobretudo o meio social em que se devia situar a evangelização dos negros na América. Mas a obra não possui apenas valor documental. Trata-se do primeiro tratado antropológico acerca dos africanos na América, a primeira defesa dos direitos humanos dos negros e a primeira crítica séria do sistema sacramental praticado no projeto colonizador. Por exemplo: no decorrer de duzentas páginas, Sandoval trata da questão dos batismos de negros vindos para cá. Escandaliza-se pela forma como esses negros são batizados e propõe as bases de um "ministério" eclesial específico: "Del modo de ayudar a la salvación de esos Negros en las partes a donde salen y a donde llegan las armazones" (terceiro livro). Sandoval pode ser considerado o criador de metodologia missionária especificamente voltada para os negros. Desta maneira, ele significa a primeira tomada de consciência cristã na América acerca dos escravos africanos. Sua obra não teve a repercussão dos trabalhos de Las Casas e, na realidade, ele é bem menos preciso em termos de posicionamento teórico, mas acreditamos que numa biblioteca do cristianismo latino-americano seu trabalho merece figurar ao lado das obras do grande dominicano. De qualquer forma, sua colaboração não pode ficar esquecida, na elaboração de uma teoria do cristianismo neste continente, pois ele trouxe ao debate a realidade de uma América africana. Eis seu grande mérito. Como já se disse, o trabalho intelectual de Sandoval emerge de profunda emoção. Vejamos como descreve o desembarque de negros no porto de Cartagena (transcrevemos o espanhol original): 53

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"Cautivos estos negros, con la justicia que Dios sabe, los echan en prisiones asperísimas, de donde no salen hasta llegar a este puerto de Cartagena o a otras partes. Llámanlos, si son cantidad de 300, 400, 500 y aun 600 y más con que pueden llenar un navio, armazón, y armazones si hay cantidade que puedan cargar muchos navios. Y suelen ser lo ordinário los que entran en solo esta ciudad doce o catorze cada ano, con este número o más de negros en cada uno. Y se es cargazón de poços negros se les llama lote. Juntos pues y cautivos, si es en Angola, los suelen llevar, porque no se huyan, a la isla que dijimos de Loanda, donde están seguros hasta que se embarquen. Y si son de los rios de Guinea, en lugar de la isla, aseguran suspiezas o armazones con aprisionarlos a todos con unas cadenas muy largas, que llaman corrientes, y con otras crueles invenciones de prisiones, de las cuales no salen en tierra ni en mar, hasta que desembarcan en alguna parte adonde los llevan. Y como en la isla de Loanda pasan tanto trabajo, y en las cadenas aherrojados tanta miséria y desventura, y el mal

tratamiento de comida, bebida y pasadía es tan malo, dales tanta tristeza y melancolía, juntándoseles la viva y cierta persuasión que traen de que en llegando han de sacar aceite de ellos o comérselos, que vienen a morir el tercio en la navegación que dura más de dos meses. Tan apretados, tan asquerosos y tan maltratados, que me certifican los mismos que los traen, que vienen de seis en seis, con argollas por los cuellos en las corrientes, y estos mismos de dos en dos con grillos en los pies, de modo que de pies a cabeza vienen aprisionados, debajo de cubierta, cerrados por de fuera, donde no vem sol ni luna, que no hay español que se atreva a poner la cabeza al escotillón sin almadiarse ["almadia": embarcação africana estreita e comprida), ni a perseverar dentro de una hora sin riesgo de grave enfermedad. Tanta es la hediondez, apretura y miseria de aquel lugar. Y el refugio y consuelo que en él tienen es comer de 24 en 24 horas, no más que una mediana escudilla de harina de maíz o de mijo o millo crudo, que es como arroz entre nosostros, y con él un pequeño jarro de agua, y no otra cosa sino mucho palo, mucho azote y malas palabras. Esto es lo que comunmente pasa con los varones, y bien pienso que algunos de los armadores tratan con más benignidad y blandura, principalmente ya en estos tiempos. Con este regalo pues y buen tratamiento, llegan hechos unos esqueletos. Sacanlos luego en tierra en carnes vivas, pénenlos en un gran patio o corral. Acuden luego a él innumerables gentes, unos llevados de su codicia, otros de curiosidad y otros de compasión, y entre ellos los de la Compañía de Jesus para catequizar, doctrinar, bautizar y confesar. A los que se vienen actualmente muriendo, dispónenlos para la extremaunción, negocian se les traiga y dé." M

U m a gravura proveniente do México mostra o escravo de um cónego, com as famosas corrientes (fig. 78) que prendem os pés com os braços e penetram na carne viva para aí deixar marcas indeléveis. Impressionante o contraste, na mesma figura, entre os traços marcados pelo sofrimento e a aparência extravagante da roupa. Lendo Sandoval, estamos, sem dúvida, diante de texto patrístico, na melhor tradição da "teologia do coração" dos antigos Padres capadócios ou ainda de João Crisóstomo ou Efrém, o Sírio. Nele flui uma emoção que lhe confere força. Tudo isso provocou perseguição contra Alonso, no meio da própria comunidade jesuítica de Cartagena. Efetivamente, a s Cartas ânuas (correspondência anual entre os jesuítas em missão e seus superiores n a Europa), dos anos 1608 a 1611, mencionam a controvérsia que o método missionário de Sandoval suscitava entre os colegas: ele vivia demais no porto e na rua, não participava bastante dos atos da comunidade etc. Sandoval ia de casa em casa, por toda a cidade (que era bem pequena na época), para averiguar se os escravos negros estavam batizados ou se se cuidava de sua catequese. Com o tempo, já conhecia o número de negros existentes em Cartagena e passou a reivindicar seus direitos à catequese e inclusive a um tratamento melhor, o que, com o tempo, acabou enjoando os moradores brancos. Um contemporâneo escreve: "Levantóse una gran persecución para descomponerle el ministerio al Padre Sandoval." Diante d a pressão, resolveu então publicar suas pesquisas sobre o mundo negro de Cartagena e sobretudo a defesa do seu "método", o qual consistia basicamente na tentativa de valorização dos sacramentos do batismo, da confissão e do matrimonio, escandalosamente pervertidos pela sua funcionalidade na implantação do sistema escravista. 55

A obra impressiona pela seriedade. Eis sua arquitetura interna:

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Pig. 78. Escravo de um cónego espanhol no México (1600).

Livro Livro Livro Livro

1: "De las principales naciones de Etiopía", 32 caps. 2: "De los males que padecen estos negros", 23 caps. 3: "Del modo de ayudar a la salvación", 22 caps. 4: "De la estima del bien espiritual", 15 caps.

Ao analisar o conteúdo dessa obra de 410 páginas, percebe-se claramente que o autor quis sensibilizar as autoridades da Companhia de J e s u s com a idéia de que a missão entre negros era "própria" dos jesuítas. Todo o livro 4 é dedicado à defesa dessa tese. Sandoval invoca "autoridades" para mostrar "cuan próprio es de los hijos de la Compañía el ministerio de los negros" (cap. 1): Isaías (cap. 2), santo Inácio (cap. 3), são Francisco Xavier (caps. 5 a 8), os missionários da Asia (cap. 9) e da África (cap. 10), e, finalmente, os superiores da Companhia de Jesus (caps. 11 e 12). Tudo, na linha traçada pelo arcebispo de Sevilha "acerca del valor del bautismo de los negros para a s e g u r a r e n cuanto fuese posible su salvación" (livro 3, cap. 22). Como logo se percebe tudo gira em torno da sacramentalização, não se toca na questão da tradução da mensagem propriamente dita. No livro 3, o padre Sandoval analisa em profundidade a desmoralização que afeta a administração do batismo aos escravos. Deixemos a palavra com ele: "Un dia antes que los embarquen, habiéndolos tenido hasta entonces encerrados y aprisionados porque no se vayan, y sin haber precedido catecismo ninguno, ni haberles enseñado siquiera quién es Dios, lo primero que les hacen es irles diciendo a todos sus nombres, dándoseles escritos porque no se olviden; hecho esto vuelven a dar la vuelta echándoles sal en la boca a todos, y a la tercera vuelta les echan agua, muchas veces con hisopos por la prisa, y asi se acaba el bautismo y luego por medio del intérprete les hacen la plática siguiente: 'Mirad que ya vosotros sois hijos de Dios, vais a la tierra de los espa ñoles donde aprenderéis las cosas de la santa fe, no vos acordéis más de vuestras tierras, ni comáis perros, ratones, ni caballos, id de buena gana, etc.' ° 57

Essa descrição extremamente realista mostra como o batismo dos negros deve ser estudado a partir dos fatos, e não a partir das belas teorias. De certa forma, Guarnan Poma ainda representa a tradicional imagem do batismo, ao mostrar como se batizava nas "doutrinas" do Peru (fig. 79): o padrinho segura o recém-nascido entre as mãos, enquanto o sacerdote d e r r a m a água na cabeça da criança, tudo em cima de uma "pia batismal". A imagem de um "lote" de negros sendo aspergidos por meio de uma folha de hissopo e recebendo no peito, depois, a marca de ferro em brasa como "certidão de batismo", é bem diferente. Outra imagem — desta vez, ridícula ao extremo — é a do índio tupinambá que foi levado pelos franceses do Maranhão à corte parisiense para ser batizado, vestido, à moda de um cortesão, de cetim branco e chapéu e um lírio na mão direita (fig. 80). O próprio rei Luís XIII fez questão de ser padrinho do batismo. A ilustração é do livro do capuchinho Claude d'Abbeville. Assim, os franceses começaram a fazer seu carnaval com as pessoas que encontraram nas suas colônias americanas. Claro que Sandoval se revoltou com o nível de desmoralização a que o sacramento do batismo ligado ao tráfico negreiro chegou e procurou remediar de alguma forma.

Fig. 79. Batismo nas "doutrinas" do Peru.

O cap. 5 do livro 3 está dedicado ao valor desses batismos, e o autor chega à conclusão de que, na maioria dos casos, é preciso rebatizar o escravo. Esses batismos são simplesmente inválidos, diz Sandoval, pois os negros não entendem do que se trata. Para uns, a água derram a d a "era así como ponerles una marca, con q u e los s e n a l a b a m p a r a el conocimiento de sus amos, así como los marcaban con fuego". Para outros, era para "lavarles solamente la cabeza, que la teníam muy sucia". Outros ainda entendiam que era "para refrescarlos porei gran calor que hacia". E assim por diante. Alguns achavam que a água "era preservativa de enfermedades, principalmente de los dolores de cabeza". "Uno me dijo que le habían echado agua para quedar con ella encantado... otro había entendido era para que viviese muchos anos y pudiese sacar a sus amos mucho oro." 58

Eis a realidade, resgatada pelo espírito pesquisador de Alonso de Sandoval. Nessas condições, é justificado batizar? Não se deve proceder a um novo batismo? A impressão que temos é que os missionários de Cartagena simplesmente rebatizaram os negros mais por escrúpulos de consciência, diante da doutrina sobre a salvação que lhes era própria, do que com preocupação propriamente "tradutória" da mensagem, ou seja, na perspectiva de dialogar sobre as coisas da fé com os negros. Esse diálogo inexistia. O máximo que se podia esperar de um religioso era que tivesse compaixão pela dor do negro, não que procurasse dialogar em profundidade com os africanos que aqui chegaram. Fig. 80. índio tupinambá preparado para ser batizado em Paris.

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Sandoval elabora um vade-mécum de nada menos de 200 páginas para seus colegas que pretendam levar adiante esse tipo de trabalho junto aos africanos. A orientação obedece ao seguinte esquema: o que se deve fazer ao chegarem os "armazones de negros"; uso de fichas e de intérpretes; os problemas ligados aos rebatismos; confissão por intérprete. Tudo isso, mesclado com conselhos concretos que testemunham de uma longa prática. A maior lacuna de Sandoval está na ausência de dinamismo tradutório no seu trabalho. Sandoval, decerto, pensava em intérpretes que entendessem a língua dos africanos que aportavam em Cartagena, mas isso se inseria numa lógica de doutrinação ou, pelo menos, enquadramento dos negros no sistema dos brancos. Em outras palavras, Sandoval se preocupou com articular mecanismo simples de

perguntas e respostas, e não com uma dinâmica de diálogo de verdade com o negro. No fundo, não estava tão interessado no que se passava na cabeça, no coração e nos nervos do negro, ele se preocupou em realizar o sacramento dignamente. Sua atenção se voltou para o sacramento, não para a pessoa do negro em si. Mais: ele partiu do postulado de que o sacramento era bom para o negro, acontecesse com ele o que fosse. O negro devia ser batizado "quiera que no quiera", como dizia Valverde, o dominicano que acompanhava Pizarro. Sandoval não se situou num plano bicultural, mas permaneceu europeu e religioso, ansioso em enquadrar o negro na "Santa Madre Igreja". Não lhe faltou a generosidade, faltou-lhe, sim, a disposição "tradutória", de maneira flagrante. A escola de Cartagena encontrou aí seus limites. Foi uma escola de agentes da difusão do catolicismo aliada à compaixão pelo sofrimento do negro. Repetidamente Sandoval escreve: "Testigo soy yo que lo he visto", ou "El corazón m a r de lágrimas", ou ainda "A quién no se quebraria el corazón?". São provas de grande sensibilidade, mas Sandoval não foi além e, por exemplo, não consta que tivesse provocado em Cartagena u m a "greve dos confessionários", recusando a absolvição aos que mantinham escravos em seu poder, como fizeram dominicanos primeiros no Caribe. A dimensão propriamente política está ausente da obra de Sandoval. Sua ação não conseguiu desmentir o ditado que corre até hoje entre negros norteamericanos: "O branco nunca fará nada pelo negro senão para submetê-lo." 2. A Escola de Cartagena Apresentamos aqui alguns nomes que de uma ou outra forma podem ser considerados representantes da escola de Cartagena. Do seguidor mais fiel de Alonso de Sandoval, o padre Pedro Cláver, canonizado em 1888, trataremos em seção separada. Discípulos de Sandoval e da escola de Cartagena foram dois capuchinhos de Cuba: frei Francisco José de J a c a e frei Epifânio de Borgonha, os quais tiveram a coragem de dirigir, da cidade de Havana, um documento ao rei da Espanha, Carlos II, quando foram desterrados de lá por terem sido considerados indesejáveis pelas autoridades coloniais. O Memorial dos dois religiosos apresenta argumentos bíblicos, filósofos e práticos contra o comércio de escravos, que estava no auge em Cuba nesse tempo. O texto é praticamente irrefutável. O rei ficou perturbado ao ler o documento e consultou o Conselho das índias, que lhe respondeu com argumentos pragmáticos: "Sem os escravos a América estaria exposta à total ruína", ou seja, o escravismo era a pedra fundamental do projeto europeu na América. Diante dessa "razão de Estado", o rei teve de se calar. Em outra ilha do Caribe, Curaçao, perto da Venezuela, houve diversos sacerdotes que se insurgiram contra a escravidão dos negros. Em 1707 o padre jesuíta Schabel usava a imagem de Cristo torturado para descrever o sofrimento dos escravos. Outro padre europeu em Curaçao chegou a chamar os colonos de ateus na prática e cristãos só em teoria (Cayxdo, 1715-1738). Um terceiro, Cavazzo, foi expulso de Curaçao em 1745 como subversivo. Esse sacerdote voltou à ilha em

1747 e organizou os próprios negros para se manifestarem e até se rebelarem. Foram os primeiros levantes no Caribe, que mais tarde culminariam na vitória dos negros no Haiti. Os argumentos usados por Schabel, Cayxdo e Cavazzo eram retirados do texto de Sandoval. Podemos também ver a influência de Sandoval na mais sensacional tomada de poder dos negros em toda a história do Caribe: a independência do Haiti, em 1 de janeiro de 1804. No art. 12 da constituição haitiana de 1805, lê-se: "Nenhum branco, de qualquer nação, colocará os pés neste território com o título de dono ou proprietário." Claro que as idéias da Revolução Francesa influenciaram os revoltosos no Haiti. Assim, os jacobinos aboliram a escravidão na ilha em 1794 (94 anos antes do Brasil!), mas Napoleão a restabeleceu em 1802, o que não fez senão aguçar o espírito dos negros. O negro Dessalines tomou o poder em 1804, nacionalizou os engenhos e fazendas e iniciou a reforma agrária. Mas foi assassinado, e o mulato Pétion assumiu o poder, apoiado pelos pequenos proprietários. Em 1821 Boyer tomou por sua vez o poder, retrocedendo ainda mais em questões de reforma agrária. O padre redentorista holandês Pedro Donders pode, de certa forma, ser considerado discípulo da escola de Cartagena, pelo trabalho junto a leprosos negros no Suriname (ex-colônia holandesa), entre 1842 e 1887. Foi declarado santo em 1982. 60

3. São Pedro Cláver

(1580-1654)

A figura mais famosa da escola de Cartagena foi o jesuíta espanhol Pedro Cláver, canonizado pelo papa Leão XIII em 1888, num gesto simbólico por ocasião do fim do processo da abolição da escravidão na América Latina. Efetivamente, o Brasil foi o último país a abolir a escravidão (1888). Do ponto de vista teórico, Pedro Cláver foi discípulo fiel de Alonso de Sandoval, no sentido de que sempre seguiu ao pé da letra o vade-mécum, ou seja, o terceiro livro do De instaurando Aethiopum Salute. O que impressiona em Pedro Cláver é, certamente, a heroicidade. Dedicou 44 anos de sua vida ao apostolado entre os negros. Famosa é a expressão com que se autodenominou: "Escravo dos escravos da África". Essas palavras causaram impacto. O papa Leão XIII disse que este santo "foi o que mais o impressionou depois de Cristo", e o papa João Paulo I, em sua curta passagem pelo pontificado romano, declarou na última mensagem que dirigiu aos católicos: "Os dois santos que podem ser modelos e figuras exemplares de hoje são: Vicente de Paulo e Pedro Cláver." ' 6

Pedro era dos arredores de Barcelona, onde nasceu em 1580. Aportou em Cartagena no ano 1610; ordenou-se sacerdote em 1616; fez profissão solene em 1622, quando pronunciou as seguintes palavras: "Aethiopum semper servus" (Serei sempre servo dos etíopes). Passou a vida imitando o "mestre Sandoval", visitando os navios que descarregavam negros e procurando aliviar-lhes, de qualquer forma, os sofrimentos. A questão que dominou toda a atividade de Pedro Cláver em Cartagena foi a da sacramentalização (1.3, caps. 5 a 17 da obra de Sandoval). Conta a tradição que

Pedro Cláver batizou não menos de 300 mil negros. Não sem razão foi ele proclamado, em 1898, "patrono universal das missões entre os negros" e considerado o maior missionário do século XVII. Se por missão se entende expansão do catolicismo, então o título vale, pois Pedro Cláver foi, sem dúvida, grande administrador de sacramentos entre negros recém-vindos da Africa. Se proclamou a si próprio "escravo dos escravos da África", essa afirmação talvez deva traduzir-se por "escravo da sacramentalização dos escravos da África". Como frisei anteriormente, é bastante provável que os jesuítas no porto de Cartagena simplesmente rebatizavam os negros, na ânsia de pelo menos "asegurar en cuanto fuese posible su salvación", conforme a orientação do arcebispo de Sevilha (livro 3, cap. 22 da obra de Sandoval). Mas não houve a dimensão do diálogo com as culturas africanas que hoje tanto se reclama. O missionário, decerto, usou alguma forma de catequese, empreendida por um intérprete, mas então na linha mecânica e automática de algumas perguntas e respostas decoradas e codificadas. Pouca diferença fazia, afinal, se o batismo era realizado do lado de lá ou do lado de cá do Atlântico: o negro continuava ignorando o sentido cristão de um rito que de forma inconfundível apontava para outra realidade, como o próprio padre Sandoval explicita no cap. 21 do livro 3 de sua obra: "De la obrigación que les corre a los morenos de cumplir los mandamientos de Nuestra Santa Madre Iglesia." Incorporação, eis o sentido real do batismo administrado nessas condições. O trabalho de Pedro Cláver gira, pois, em torno da administração sumária dos sacramentos aos escravos e constitui, por assim dizer, um modus vivendi entre certas afirmações peremptórias de Sandoval e a resistência de uma instituição que não quer mudar sua prática sacramental. Por isso pensamos que a causa de beatificação de Pedro Cláver não encontrou maiores obstáculos em Roma, o que não ocorreu com Las Casas, cuja causa de beatificação até hoje não conseguiu avançar. Situada em uma perspectiva histórica mais ampla, a ação de Pedro Cláver manifesta pontos negativos e positivos. Negativa foi, sem dúvida, sua postura diante dos chamados palenques ou agrupamentos de negros livres. Não sabemos se estava a par do que ocorria na Angola simultaneamente à sua ação em Cartagena. Em 1630, criou-se dentro da Angola o Estado de Matamba, com negros livres que combatiam os portugueses e os comerciantes negreiros. Esse Estado perdurou até 1656, por conseguinte foi contemporâneo de Cláver. Nessa data, a rainha de Matamba, Nzinga, viu-se obrigada a readmitir o tráfico negreiro. Essa foi objetivamente uma oportunidade perdida por Cláver, se é que estava realmente interessado na vida dos negros. Mais tarde, esse tipo de Estado independente renasceu em Guiné e Daomé, entre 1720 e 1730, mas foi esmagado pela violência européia. A América também conheceu Estados livres de negros, dos quais os mais famosos são o de Yanga no México, de Buyano no Panamá, de Miguel na Venezuela, de Domingos Bioho na Colômbia e, sobretudo, o de Ganga Zumba em Palmares no Brasil. Esses "Estados livres" se chamavam cumbes na Venezuela, palenques em Cuba e na Colômbia, quilombos ou mocambos no Brasil; laderias ou mambises, agrupamentos de cimarrones ou marrons (em francês), ou ainda de bushnegroes (em inglês), bosnegers (em holandês). Tratava-se de realidade espalhada por toda parte onde havia negros na América. Inclusive na época de Cláver, se formou 62

importante palenque n a Colômbia, chamado São Basílio, cujos descendentes a t é hoje existem. Ora, Cláver ignorava o sentido libertador desse movimento de "negros fujões"; parecia estar mais do lado dos capitães-do-mato, chasseurs (francês), black shots (inglês), os quais comumente usavam cachorros ou cavalos para reconduzir os "fujões" às fazendas donde haviam escapado. Negativa, também, a reação de Cláver para com os famosos "lamentos dos negros" (lurnbalu), na hora da morte de um companheiro, com danças, tambores e cantos. Fez tudo que podia para substituir esse costume africano pela "encomendaçào da alma" segundo o rito católico. O missionário não entendeu o sentido do candomblé (Brasil), da santería (Cuba), do vodu (Haiti), ou seja, da "religião noturna" praticada pelos negros. Não manifestou abertura ao diálogo cultural. Um terceiro senão que se nota no trabalho de Cláver é a falta de u m a teoria do cristianismo em relação ao negro, ou simplesmente de uma teoria do negro. Ele definiu o negro como escravo, e isso n u m a época em que um filósofo como Hobbes, n a Inglaterra, j á havia afirmado que "todos os homens são iguais" (Leviatã), e que Spinoza, na Holanda, já estava questionando em profundidade a ideologia colonialista. Mais perto de Cláver existia o teólogo Molina, o qual em 1614 afirmou (De Iustitia et lure, propositio 34) que a venda e negociação de escravos se constituía pecado mortal {lethaliterpeccare). Falta inteiramente no trabalho de Cláver a dimensão política. Nisso os capuchinhos de Cuba, também seguidores de Sandoval, iam mais longe, como já comentamos aqui: recusavam a absolvição aos que mantinham escravos em seu poder. Por outro lado, o trabalho de Pedro Cláver manifesta alguns importantes avanços diante da mentalidade reinante. Em primeiro lugar e principalmente, ele põe a pastoral do negro no centro das atenções e, na trilha aberta por Sandoval, luta p a r a que a Companhia de J e s u s assuma esse trabalho como prioridade. Essa conscientização efetivamente surtiu efeito dentro da Companhia, que inicialmente recusava ocupar-se com os negros. Não podemos avaliar até que ponto houve influência n a s demais ordens religiosas ou no clero em geral. Em segundo lugar, Pedro Cláver usa o método da "pesquisa participante", se assim podemos dizer. Procura conhecer a vida dos africanos vindos para a América. Isso se mostrou inovador para uma época em que a ciência era pouco empírica. Podemos afirmar que foi precursor do que hoje se chama a "história oral", que extrai suas informações da oralidade e não única nem principalmente dos documentos escritos. Assim, tanto Sandoval como Cláver têm plena consciência da necessidade de entender a língua dos africanos (livro 3, cap. 2 da obra de Sandoval); mas não ultrapassam o limiar dessa intuição e não chegam ao ponto de — eles próprios — "traduzir" a mensagem cristã para entrar num diálogo em profundidade e comparar as culturas, trocar opiniões e alcançar mútuo enriquecimento. 63

4. O catolicismo

contagiado

A influência da escola de Cartagena não conseguiu m u d a r a atitude em bloco da Igreja diante dos escravos. Não havia nem convento, nem paróquia, nem instituição católica que não possuísse seus escravos. Sobre o trabalho escravo se

ergueram as obras católicas, tanto as construções grandiosas dos conventos quanto os cuidados diários da cozinha, da casa, do transporte, enfim, todos os afazeres braçais. Nesse ponto, a Igreja em nada se distinguia das demais instituições coloniais, a não ser, talvez, em alguma palavra de compaixão que perdeu grande parte de sua força, ao ser comparada com a evidência dos fatos e dos comportamentos concretos. Ademais, também vigorava na Igreja o que Manoel Ribeiro Rocha denominou "teologia dos engenhos", fundamentada em dois pontos. Em primeiro lugar, o escravo tinha de seguir a religião de seu senhor. Aplicava-se, desta forma, o famoso princípio: "Cuius regio, illius et religio", ou seja, o dono das terras é também dono da religião nelas praticada, e — no caso d a América — dono das próprias pessoas que praticam tal religião. Esse princípio foi criado na Europa, quando da divisão entre "terras católicas" e "terras protestantes". P a r a mostrar que essa regra era "pra valer", os senhores de engenho cuidavam em dar boa surra no escravo recémadquirido no mercado de escravos, chamado "castigo exemplar" e "teológico", segundo a expressão do mesmo Manoel Ribeiro Rocha. Em segundo lugar, o senhor tinha de "evangelizar" o escravo. Essa evangelização consistia em batizá-lo sumariamente — caso o escravo ainda não fosse batizado — e cuidar para que ele assistisse à missa todo domingo. A assistência comum à missa de senhores e escravos existia no início, mas foi logo abandonada, e instaurou-se a missa dos escravos nas madrugadas de domingo. A missa das empregadas domésticas é seqüência do uso colonial. O escravo também participava dos atos de devoção na casa-grande, geralmente animados pela senhora dona do engenho ou da fazenda. Havia também o "beija-mão", rito muito apreciado pelos senhores, os quais, ademais, davam a "bênção" e reservavam um tempo cada manhã para o rito. Os senhores eram mestres na arte da "conversa mole", conversa com escravos, que criava ambiente de cordialidade. Gilberto Freyre descreve muito bem esse mundo escravocrata do Nordeste do Brasil. A verdade histórica é que a Igreja católica pouco ou nada fez para apressar a abolição da escravidão. Esse é, talvez, o estigma histórico maior que o catolicismo latino-americano traz consigo. As Igrejas protestantes, pelo menos os metodistas e, em geral, as Igrejas protestantes da América do Norte, empenharam-se bravamente na luta pela abolição e produziram figuras como Martin Luther King. Foi no .Caribe que os pastores metodistas lutaram mais: em Trinidad (ilha perto da Venezuela), o governador mandou fechar a missão metodista por causa dessa questão; em Barbados, os plantadores destruíram, em 1823, a igreja metodista da ilha; os pastores da Jamaica desenvolveram campanha de esclarecimento na metrópole americana sobre as reais condições dois escravos na ilha; a insurreição dos escravos da Jamaica em 1831 foi apoiada pelos missionários protestantes; na ilha de Antigua, um pastor iniciou a revolta dos negros em 1834, dizendo: "E Moisés que rompe as correntes. Aleluia!" E assim por diante. Na Igreja católica não houve nada disso. Os abolicionistas se viram na obrigação de apoiar-se na infra-estrutura das lojas maçónicas, para propagarem suas idéias, já que os púlpitos lhes eram vedados. O principal abolicionista do

Brasil, Joaquim Nabuco, escreveu a esse respeito as palavras talvez mais severas já escritas acerca do catolicismo brasileiro: "O contato ou, antes, contágio da escravidão deu à religião entre nós o caráter materialista que ela tem, destruiu-lhe a face ideal e tirou-lhe toda a possibilidade de desempenhar na vida social do país o papel de uma força consciente."* 4

O historiador português Alexandre Herculano percebeu como a desmoralização de Portugal, por assim dizer, antecedeu e de certa forma provocou a sua queda no cenário político internacional. Eis como ele se exprime: "A Asia e a América nos arruinaram... Tudo sacrificamos pelas terras da índia, pelas minas de ouro de Santa Cruz, teatros de nosso desenfreado comércio. Hipócritas, ocultamos a ganância do mercador e a pirataria na sagrada sombra da Cruz. Acreditamos que ali a História não nos veria. Mas nós nos enganamos." 61

Exatamente por isso, pensamos que a origem histórica da nova sensibilidade diante dos negros e da cultura negra deva ser atribuída, antes, a movimentos como o iluminismo, o enciclopedismo, a modernidade, do que à influência da Igreja. A evangelização deve muito a movimentos não-eclesiais. Isso é uma regra geral da história do cristianismo que se aplica também entre nós. Admira-se a força intelectual de h o m e n s como Spinoza, Montaigne, Ronsard e, mais tarde, Montesquieu, Voltaire e Rousseau, os quais remaram contra a corrente dos preconceitos, dos lugares-comuns, das mentiras oficiais. Montaigne alcança acentos dignos de um profeta ou de um Las Casas, quando critica a atuação dos europeus na América Latina . 66

O Novo Mundo já anunciava a derrota moral do Velho Mundo, pelos incríveis crimes nele cometidos contra a humanidade por parte dos europeus e seus "descendentes"—os norte-americanos —; crimes que se perpetuam há quinhentos anos e ainda não foram devidamente qualificados como tais pela imensa maioria. A América Latina e o Caribe como forma nova de se viver o corpo, a cultura, a vida: eis a grande intuição de iluministas e enciclopedistas. Essas idéias, e não as da Igreja, tiveram influência na América Latina, tanto na época da independência quanto na da abolição da escravidão, dois momentos dos mais importantes na vida do continente. Como o leitor/leitora facilmente nota, privilegiamos neste parágrafo a questão do confronto entre catolicismo e realidade africana no continente, deixando de parte outros aspectos igualmente importantes da história do cristianismo na área da Nova Granada. Remetemos à obra que a equipe da CEHILA escreveu sobre o ciclo da Colômbia e da Venezuela, sob a coordenação de Rodolfo de Roux."

§ 9. Chile

/. A conquista A partir de 1536 a região do Chile é atingida por diversos movimentos, todos oriundos de Cuzco. Almagro (1535-1536) parte de Cuzco por terra, atinge Potosi (veja ciclo platense, §), atravessa o deserto de Atacama e chega a Santiago. Ruy Diaz (1535-1536), por sua vez, alcança o mesmo local por terra e por mar, seja partindo de Cuzco ou de Lima. Finalmente, Valdivia (1536-1543) opera a "conquista" definitiva e passa sucessivamente por Tacna, La Serena, Santiago, Concepción e Valdivia (mapa 29). Por causa de sua configuração geográfica entre o Pacífico e os Andes, a história do Chile é bastante autônoma e só recentemente entrou em contato com outras histórias da América Latina. Os franciscanos chegam a Santiago em 1553 e aí começa a lenta e progressiva penetração na terra dos araucanos. Esse aspecto progressivo e "fronteiriço" de sua história, o Chile o tem em comum com o Brasil, à diferença de que os araucanos só encontraram um caminho para fugir: o caminho do sul frio, da Patagônia. Paulatinamente as cidades de Concepción, Valdivia, Osorno, Serena caíram nas mãos dos europeus, até a região das mil ilhas no sul de Puerto Montt. Do outro lado dos Andes se encontrava Mendoza, fundada em 1562, que pertencia a uma história diferente, ao ciclo platense. Como o Chile não produziu mercadorias altamente cobiçadas pelo mercado internacional, sua história é modesta. Ao longo dos séculos, formou-se povo mestiço, um "povo novo", como diria Darcy Ribeiro, qual o povo brasileiro. Há bastante equivalência entre a história do Chile e a do Brasil, apenas que o Chile até hoje conserva povos indígenas bastante fortes e unidos, notadamente no sul do rio Bio-Bio. Em 1530 havia um milhão e meio de araucanos no Chile. Hoje restam 322 mil, majormente do grupo mapuche. Essa importante concentração populacional antes da invasão européia se deve ao fato de que os araucanos estavam evoluindo para formar um Estado rural-artesanal, semelhante ao Estado chibcha na Colômbia. Eram, portanto, mais evoluídos que os tupis-guaranis da costa atlântica. Esse Estado, como o Estado inca no planalto andino, estaria fundamentado em subsistência farta, com largos espaços de tempo para o lazer e sem divisão social marcante. Os araucanos ofereceram aos europeus uma resistência de séculos, que perdura até nossos dias. Pode-se dizer que a conquista do Chile foi a mais demorada de toda a América, pois os povos da terra cederam metro por metro, palmo por palmo. A famosa resistência mapuche inspirou artistas chilenos como Pablo Neruda (1904-1973), os quais nela viram as aspirações do povo chileno por uma sociedade sem classes ("Canto general"). O indígena destribalizado se tornou huaso de fazenda, assim como o dos pampas argentinos se tornou "gaúcho". Os latifúndios, os quais inicialmente se concentravam em torno de Santiago, Valparaíso e Concepción, foram expandindose para o sul e o norte, por causa da demanda de salitre e cobre. Nesse período,

Mapa 29. De Cuzco a Santiago.

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entram grupos estrangeiros que se dedicam à mineração. O Chile é um dos países da América Latina com o maior número de descendentes de estrangeiros vindos no século XIX e XX. A aliança entre os antigos latifundiários, os novos mineradores estrangeiros e a classe militar forma a base do poderio político no país. Mas, com o tempo, criou-se vasta classe média, que sempre mais pretendeu participar da política. A luta entre Frei e Allende nos anos 60 de certa forma continua sendo paradigmática para toda a América Latina. Trata-se de escolher entre a via socialista, mais rápida mas também mais insegura (os acontecimentos de 1973 o provaram, assim como a ascensão de Pinochet), e a via da democracia, necessariamente mais lenta, contudo salvaguardando as estruturas religiosas e políticas. 2. O massacre de Santa Maria de Iquique (1907) Não podemos terminar essa descrição do ciclo chileno, sem lembrar o massacre de Santa Maria de Iquique, um dos mais brutais de toda a história da América Latina e do Caribe. A história é a seguinte: em 1907, os trabalhadores de uma salina no norte do Chile passavam tanta necessidade dentro do campo de trabalho controlado por u m a empresa inglesa, que resolveram se organizar. Decretaram greve e os patrões, em resposta, fecharam a fábrica, esperando que o povo, com fome, voltasse a trabalhar. Mas o povo resolveu descer em grande caminhada para o porto de Santa Maria de Iquique e protestar contra as autoridades. No dia 15 de dezembro de 1907, cerca de 25 mil pessoas iniciaram a grande caminhada. O governo acolheu essa massa de gente numa escola velha e abandonada, pedindo que aguardasse uma semana pela resposta. Na madrugada do dia 21 de dezembro, os operários e suas famílias foram acordados ao som dos tambores. O general responsável pela negociação havia colocado seus soldados com metralhadoras ao redor da escola. Deu ordem de voltar ao trabalho. Diante do protesto de um dos líderes, começou a matança. Foram assassinadas 3.600 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Eis uma das tragédias que não pode cair no esquecimento e por isso a registramos aqui. As empresas estrangeiras inseridas no contexto latinoamericano têm a vida do povo camponês ou operário em pouca conta. No dia 27 de dezembro de 1987, ocorreu algo semelhante em Marabá, no Pará, quando a polícia militar simplesmente fechou as duas saídas da ponte sobre o rio Tocantins, onde estavam grevistas de Serra Pelada, e começou a a t i r a r contra o povo. Entre os que foram metralhados e os que se jogaram no rio, de uma altura de 80 metros, presume-se uma centena de mortos. Igualmente na chacina de Canudos, na Bahia, no final do século passado, a saída diplomática foi rejeitada, pois uma autoridade dizia que "não se dialoga com ignorantes". Eis um dado que demonstra que a violência na América Latina não é unicamente de origem econômica, social ou política, mas tem ingrediente cultural: as autoridades costumam estar imbuídas de poderoso complexo de superioridade, e o povo de um complexo, não menos forte, de inferioridade. Há muito que dizer sobre o cristianismo no Chile que não consta neste brevíssimo relato. Remetemos o leitor e/ou a leitora para os diversos trabalhos de Maximiliano Salinas, especialmente sua Historia dei pueblo de Dios en Chile. 68

§ 10. O ciclo platense

1. Geografia da

conquista

O ciclo platense pode ser encarado, seja do lado atlântico, seja a partir do mundo andino. Desde o ano 1516, Solis procurou penetrar através da embocadura do rio da P r a t a na vasta bacia fluvial formada pelos rios Paraguai, Uruguai e Paraná (mapa 30). Mas porque os povos aí existentes eram nômades, o maior problema era conseguir alimentos e, assim, a empresa ficou parada por vinte anos. Em 1536 Mendoza consegue chegar até Corpus Cristi, com enormes dificuldades. O alemão Ulrich Schmidel acompanha a expedição e escreve entre 1536 e 1556 seu Viaje al Rio de la Plata, com gravuras sobre seres estranhos, cobras d'água perigosas e animais nunca vistos na Europa (fig. 81). Finalmente, Irala segue pelo rio Paraguai, chega à terra dos guaranis, os quais são agricultores e, assim, consegue a base material para prosseguir até o lago Titicaca através de Charcas. Outra geografia do ciclo platense segue o traçado que a prata percorria entre Potosi, nas altitudes dos Andes, até Buenos Aires a caminho da exportação. A prata "oficial" ia de Potosi por Arica a Lima, mas a prata "clandestina" fazia longa

caminhada em dorso de jumentos e burros até a bacia fluvial dos rios Putomaio e Paraguai, passando por Córdoba até chegar a Buenos Aires (mapa 31). Toda essa região seria doravante conhecia como "bacia da Prata", assim como o próprio nome do país Argentina (argentinum: prata), tão intenso era o contrabando. Na foz do rio se estabeleceram duas colônias de contrabando, Buenos Aires, do lado espanhol, e Colônia do Sacramento (1680-1762), do lado português — pois também os portugueses estavam interessados em interceptar a prata e desviá-la para Lisboa. Só com muita diplomacia, através do tratado de Madri, em 1750, a situação se esclareceu: o rio da P r a t a ficou para o império espanhol e o rio Amazonas para o império português. A origem de Buenos Aires e de todo o complexo da Argentina se deve, pois, ao ciclo de prata de Potosi.

Mapa 31. O caminho clandestino da prata.

2. Potosi O ciclo platense tem uma palavra que é seu símbolo: Potosi. Numa trilha incaica no planalto andino, no sul de La Paz, descobriu-se em 1545, a 3.976 metros acima do nível do mar, uma mina de prata. Verdadeira loucura se apoderou das pessoas, que criaram em poucos anos uma cidade em torno desse "cerro de Potosi" ou "sierra de Plata". Em trinta anos já abrigava 120 mil pessoas, ou seja, a população de Londres, maior que Madri ou Roma. Para comparar: só em 1800, o Rio de Janeiro alcançou o número de 100 mil habitantes. Essa mina de prata deu o nome ao "rio da Prata" por onde escoavam suas riquezas, e foi chamada a "oitava maravilha do mundo". Em 1650, Potosi tinha 160 mil habitantes, 36 igrejas, 36 cassinos, 14 academias de dança; importava quase todo o alimento, pois uma montanha de 3.900 m de altura não produz nada. Hoje Potosi tem por volta de 50 mil habitantes, é um lugar sem a importância de antes, o que demonstra uma das leis estruturais do capitalismo selvagem e periférico: a descontinuidade de seu desenvolvimento. Luxo e lixo. Compare-se com o famoso ciclo da borracha em Manaus, no início deste século, onde também o grande luxo convivia com a maior miséria. O Teatro do Amazonas, onde cantores como Caruso se exibiram, hoje vive de magros recursos públicos. Com Potosi a Europa conhece sua época de ouro e prata, pois até então fora pobre em metais preciosos. Quando abordamos o ciclo mexicano, citamos a febre de ouro que consumia os conquistadores. Ouvindo falar de um "cerro milagroso", num lugar chamado em quíchua potosi, ou seja "morro donde jorra a prata", Pizarro imediatamente informa o rei (1537), o qual exulta de alegria: finalmente, o "Eldorado" se descobriu, a América começava a render. 69

Potosi foi, desde o começo, um resumo da América Latina colonizada. "E a cidade que mais deu ao mundo e menos tem", "Ouro e prata nascem na América, morrem na Espanha e são enterrados em Gênova": esses provérbios demonstram como já os contemporâneos perceberam a contradição inerente a Potosi, que enriquecia os outros e deixava seus habitantes afundarem-se na pobreza e na miséria. Uma gravura de Guamán Poma ilustra como "los índios sin plata" sustentavam todos e tudo, não só pelos seus trabalhos forçados, mas também na forma de limosna em gêneros alimentícios com que estavam obrigados a ajudar inclusive aos frades nos conventos (fig. 82). J á em 1560 Potosi apresentava traços de verdadeiro campo de concentração de índios controlados por poucas famílias espanholas. Eram cerca de 4.000 espanhóis controlando o trabalho de 40.000 índios! Esses espanhóis, por sua vez, eram controlados por apenas três famílias: os Patino, os Aramayo e os Rothschild. Estes últimos são uma das famílias mais ricas do mundo. Rothschild e capitalismo: os termos casam bem. Até hoje essas famílias ou aliados controlam o governo da Bolívia. Isso revela outra dimensão da história da América Latina: o familismo, o clã familial. Tema analisado — e exaltado — no Brasil por Oliveira Viana, o defensor do Brasil-família, ou seja, da família patriarcal, com seus escravos e dependentes, na qual impera o autoritarismo do pai de família. 70

LA LIMOSNA QUE HAKI DE HACER los fadíos sin piafo en este reyuo .

Fig. 82. 'Os índios sem prata' sustentam os religiosos.

.

Mas eis que entra outro poder em cena: os Fugger, a longínqua casa alemã que detém o know-how do "metal branco" e faz com que, j á em 1550, apenas cinco anos após os inícios, se use em Potosi a técnica ultramoderna da amálgama para produzir a prata a partir do metal original. A técnica mais apurada e avançada convive com as situações mais rudimentares: a prata é carregada em dorso de jumento ou lhama, por tilhas incrivelmente difíceis e penosas nas montanhas. Praticamente não há "caminhos", usam-se simplesmente as trilhas j á abertas pelos incas, não se gasta nada com essas "obras públicas", pois o índio e o jumento quebram o galho. A situação lembra uma palavra do padre Antônio Vieira no século XVII: "O Brasil não é uma república, sendo que cada casa de família o é." No plano da alimentação, os contrastes são enormes em Potosi. Enquanto os poucos ricos importam vinhos, queijos e manteiga do reino, a população em geral só tem o milho carregado em dorso de jumento ou lhama, ou então a coca. Faz-se a famosa cerveja de milho, a chicha, até hoje muito apreciada na região. A folha da coca ajuda a andar nas montanhas, onde o oxigênio é rarefeito. Potosi não tem milho, as papas (batatas) vêm secas, de fora, de baixo. Quadro idêntico se verifica em relação à habitação. Potosi possui maravilhas arquitetônicas em arte barroca, como todas as cidades coloniais da América Latino e do Caribe, ao lado de habitações populares absolutamente insuficientes, sobretudo numa altura onde o frio é rigoroso e impiedoso. Desta forma, Potosi figura como a primeira cidade da América Latina com características típicas de capitalismo selvagem e periférico. Sobretudo quando se penetra no centro gerador de toda a riqueza de Potosi, na mina propriamente dita, percebe-se a fundamental desumanidade do sistema. Calcula-se que ao lado dos séculos essa mina consumiu nada menos que 8 milhões de vidas humanas, número astronômico. A mina propriamente é um inferno, com seus labirintos de galerias entrelaçados sem segurança nenhuma. Daí se tirou em grande parte o fabuloso crescimento em riqueza na Europa. Estima-se que entre 1520 e 1620 a riqueza européia quintuplicou. Enquanto no século X V a reserva em ouro e prata na Europa era de 1.000 libras, no século XVI cresceu rapidamente para 10.000 libras e muito além. Só no século XVI a América produziu para a Europa 330 toneladas de ouro. Sabe-se que parte importante da produção de prata desviava-se pelos caminhos clandestinos do contrabando. Canta-se até hoje na Holanda: Piet Hein, Piet Hein, Piet Hein zijn naam is klein zijn daden bennen groot zijn daden bennen groot hij heeft gewonnen de zilveren vloot. Ou seja: Pedro Hein, etc., seu nome é pequeno mas seus feitos são grandes mas seus feitos são grandes ele conquistou a frota de prata (da Espanha).

F o r a m o i t o m i l h õ e s d e v í t i m a s d i r e t a s d o " p r o g r e s s o " e u r o p e u na é p o c a . O s i s t e m a d e t r a b a l h o se c h a m a v a mita, o q u e e m q u í c h u a significa t r a b a l h o f o r ç a d o e p e r i ó d i c o , e s p é c i e d e r e p a r t i ç ã o . O s í n d i o s a r r o l a d o s e r a m c h a m a d o s d e mitayos. C a d a g r u p o d e mitayos c o m p r e e n d i a 15 m i l í n d i o s , o s q u a i s e r a m s u b s t i t u í d o s à m e d i d a q u e m o r r i a m no fundo d a s m i n a s , o n d e era impossível distinguir entre dia e noite. S ó n o s s á b a d o s o s t r a b a l h a d o r e s s u b i a m p a r a a luz d o dia, com velas n a m ã o , p a r a assistirem à m i s s a n o s d o m i n g o s . G e r a l m e n t e , a pessoa d e s i g n a d a p a r a a mita n u n c a m a i s v o l t a v a p a r a s u a aldeia. E s p a n h ó i s e crioulos (filhos d e e s p a n h ó i s n a s c i d o s na A m é r i c a ) p e r c o r r i a m a s a l d e i a s d o planalto p a r a requisitar índios mitayos. M u i t o s d e s t e s se e s c o n d i a m n a s m o n t a n h a s e aí e r a m caçados que n e m feras. A n t e s d e sair p a r a a mita, os índios r e c e b i a m a b ê n ç ã o do vigário local na porta d a igreja: e r a c o m o s e f o s s e m c a m i n h a n d o p a r a a m o r t e certa. De tal m o d o a mita dizimou a p o p u l a ç ã o , q u e s e t e m e u a c o m p l e t a e x t i n ç ã o d a p o p u l a ç ã o . P o r falta d e mão-de-obra, p r o p r i e t á r i o s d e f a z e n d a s e n t r a r a m e m conflito c o m proprietários d e minas. C o m o s í m b o l o d a r e v o l t a por p a r t e d o s í n d i o s , d i a n t e d a s c o n d i ç õ e s de v i d a e m q u e a mita c o l o n i a l o s c o l o c o u , t e m o s a figura d e J o s é G a b r i e l T u p a c A m a r u , d e s c e n d e n t e d o ú l t i m o i n c a e x e c u t a d o p e l o s e s p a n h ó i s n o P e r u e m 1572. V e n d o a s i t u a ç ã o d e s e u p o v o , A m a r u iniciou, e m 4 d e n o v e m b r o d e 1 7 8 0 , u m m o v i m e n t o r e v o l u c i o n á r i o , f o r m a n d o exército d e índios e m e s t i ç o s q u e percorreu a região. O erro dele foi s ó a t a c a r a c i d a d e de C u z c o , d e p o i s d e h a v e r percorrido outros lugares para c o n s e g u i r m a i s aliados, d a n d o t e m p o às t r o p a s d o vice-rei e s p a n h o l d e se organizarem e r e a g i r e m no dia 4 d e m a r ç o de 1781. T u p a c A m a r u foi t r a í d o , preso e torturado. N o dia 18 d e m a i o d e 1781, foi e x e c u t a d o . Q u e b r a r a m - l h e o b r a ç o , c o r t a r a m - l h e a língua, a m a r r a r a m a s m ã o s e os p é s a q u a t r o c a v a l o s p a r a q u e estes o e s q u a r t e j a s s e m . T u p a c A m a r u p e r m a n e c e u u m s í m b o l o f o r t e . N o s d i a s q u e c o r r e m , a t u a no interior d o Peru o S e n d e r o L u m i n o s o , g r u p o de guerrilheiros que m a n t ê m viva a m e m ó r i a d e T u p a c A m a r u . M a s esse n o m e é t a m b é m o do primo dele, Juan B a p t i s t a T u p a c A m a r u , c o n d e n a d o n o m e s m o a n o e p e l o s m e s m o s fatos a d e s t e r r o p e r p é t u o n a E s p a n h a , e m 1 7 8 1 . D e p o i s d e q u a r e n t a a n o s d e e s c r a v i d ã o na E s p a n h a , pôde voltar para sua terra e escreveu, na hora de sua volta, u m texto impressionante, espécie de resumo da história do continente, que reproduzimos aqui por seu valor documental (1822): " A E s p a n h a fica encharcada em lagos de sangue americano para cobrir a Europa com torrentes de ouro e prata e ficar ela m e s m a ignorante, pobre e corrompida. Esta E s p a n h a

finalmente,

com a injusta posse do Peru, trocou a sabedoria e a

felicidade dos seus h a b i t a n t e s — q u e e s t a v a m sob seus antigos incas — por ignorância, roubo e servidão, e privou a humanidade de importantes conhecimentos na ciência social e natural. Cortez e Pizarro submeteram nações virtuosas, felizes e ricas, assassinando seus reis, acabando com os nativos através de horrores espantosos; e a Europa toda reconheceu essa aquisição como legítima, recebeu riquezas ensangüentadas como u m bem agradável à sua cobiça, e toda a obra foi abençoada pelo Santo Padre e seus sucessores. A Europa tem leis contra os roubos, m a s dá aplausos, glória e imortalidade aos invasores da América. No código de seus reis, há um artigo que diz assim: Você não roubará, a menos que seja rei ou obtenha u m privilégio dele, ou que seja na América; Você nào assassinará, a menos que faça perecer milhares de a m e r i c a n o s . "

71

257 9. História do

Cristianismo...

Mas eis que entra outro poder e m cena: os Fugger, a longínqua casa alemã q u e d e t é m o know-how d o " m e t a l b r a n c o " e f a z c o m q u e , j á e m 1 5 5 0 , a p e n a s c i n c o a n o s após os inícios, se use e m Potosi a técnica u l t r a m o d e r n a d a a m á l g a m a p a r a produzir a prata a partir d o metal original. A técnica mais a p u r a d a e a v a n ç a d a convive com as situações mais rudimentares: a prata é carregada e m dorso de j u m e n t o o u l h a m a , por t i l h a s i n c r i v e l m e n t e d i f í c e i s e p e n o s a s n a s m o n t a n h a s . Praticamente não há "caminhos", u s a m - s e simplesmente as trilhas j á abertas pelos i n c a s , n ã o s e g a s t a n a d a c o m e s s a s " o b r a s p ú b l i c a s " , p o i s o í n d i o e o j u m e n t o quebram o galho. A situação lembra u m a palavra do padre Antônio Vieira no século XVII: " O Brasil n ã o é u m a república, sendo q u e c a d a casa de família o é." No plano da alimentação, os contrastes são e n o r m e s e m Potosi. Enquanto os poucos ricos importam v i n h o s , queijos e m a n t e i g a d o reino, a população e m geral só t e m o m i l h o c a r r e g a d o e m d o r s o d e j u m e n t o o u l h a m a , o u e n t ã o a c o c a . F a z - s e a f a m o s a c e r v e j a d e m i l h o , a c h i c h a , a t é h o j e m u i t o a p r e c i a d a n a r e g i ã o . A folha d a coca a j u d a a a n d a r n a s m o n t a n h a s , o n d e o o x i g ê n i o é r a r e f e i t o . P o t o s i n ã o t e m m i l h o , a s papas ( b a t a t a s ) v ê m s e c a s , d e f o r a , d e b a i x o . Q u a d r o i d ê n t i c o se verifica e m r e l a ç ã o à h a b i t a ç ã o . Potosi p o s s u i m a r a v i l h a s arquitetônicas e m arte barroca, c o m o todas as cidades coloniais da A m é r i c a Latino e do C a r i b e , a o l a d o d e h a b i t a ç õ e s p o p u l a r e s a b s o l u t a m e n t e i n s u f i c i e n t e s , s o b r e t u d o n u m a a l t u r a o n d e o frio é r i g o r o s o e i m p i e d o s o . D e s t a f o r m a , P o t o s i figura c o m o a p r i m e i r a c i d a d e d a A m é r i c a L a t i n a c o m características típicas d e capitalismo selvagem e periférico. S o b r e t u d o q u a n d o s e p e n e t r a n o c e n t r o g e r a d o r d e toda a r i q u e z a d e P o t o s i , na mina propriamente dita, percebe-se a fundamental desumanidade do sistema. C a l c u l a - s e q u e ao l a d o d o s s é c u l o s e s s a m i n a c o n s u m i u n a d a m e n o s q u e 8 m i l h õ e s de vidas h u m a n a s , número astronômico. A m i n a propriamente é u m inferno, com seus labirintos de galerias entrelaçados s e m s e g u r a n ç a n e n h u m a . D a í se tirou e m grande parte o fabuloso crescimento em riqueza na Europa. Estima-se que entre 1520 e 1620 a r i q u e z a e u r o p é i a q u i n t u p l i c o u . E n q u a n t o no s é c u l o X V a r e s e r v a e m o u r o e p r a t a n a E u r o p a e r a d e 1.000 l i b r a s , no s é c u l o X V I c r e s c e u r a p i d a m e n t e p a r a 10.000 l i b r a s e m u i t o a l é m . S ó no s é c u l o X V I a A m é r i c a p r o d u z i u p a r a a E u r o p a 330 t o n e l a d a s d e o u r o . S a b e - s e q u e p a r t e i m p o r t a n t e d a p r o d u ç ã o d e p r a t a desviava-se pelos c a m i n h o s clandestinos do contrabando. Canta-se até hoje na Holanda: Piet Hein, Piet Hein, Piet Hein zijn naam is klein zijn daden bennen groot zijn daden bennen groot hij heeft gewonnen de zilveren vloot. Ou seja: Pedro Hein, e t c , seu nome é pequeno mas seus feitos são grandes mas seus feitos são grandes ele conquistou a frota de prata (da Espanha).

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Há o u t r o i n c a ou d e s c e n d e n t e d e inca q u e a c e r t o m o m e n t o d i s s e a o s e u r o p e u s s u a s v e r d a d e s . T r a t a - s e d o i n c a Y u p a n q u i , d e s c e n d e n t e d e i n c a s e q u e p o r isso t e v e a possibilidade d e e s t u d a r n a E u r o p a e foi e s c o l h i d o c o m o d e l e g a d o d a A m é r i c a n a corte d e C a d i z , n a E s p a n h a , o n d e se d i s c u t i a o g o v e r n o d a s A m é r i c a s . I s s o e m 1 8 1 0 . N a s e s s ã o d o d i a 16 d e d e z e m b r o Y u p a n q u i d i s s e o s e g u i n t e : " O s governos anteriores têm considerado pouco a América, e só têm se preocupado em assegurar a remessa do precioso metal, origem de tanta inimizade. Napoleão fez da Europa sua escrava, e marcou com um carimbo a Espanha. E esta não percebe o dedo do Altíssimo nem conhece que é punida com o mesmo castigo com o qual, por espaço de três séculos, fez sofrer o irmão [a América ]. U m povo que oprime outro não pode ser l i v r e ! "

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3. A transformação

da Argentina

após a

independência

A t é a é p o c a d a i n d e p e n d ê n c i a , a i m e n s a r e g i ã o d o rio d a P r a t a e r a h a b i t a d a por " p o v o s n o v o s " , n o d i z e r d e D a r c y R i b e i r o , o u s e j a , m e s t i ç o s l a d i n o s o u g a ú c h o s . Os ladinos eram os peões nas imensas estâncias, camponeses presos ao vilarejo e à l a v o u r a e, por c o n s e g u i n t e , m a i s l i g a d o s a o s i s t e m a d e e x p o r t a ç ã o . E l e s j á falavam melhor o espanhol do que o guarani. Os g a ú c h o s , pelo contrário, e r a m vaqueiros livres q u e viviam lidando com gado e falavam predominantemente o g u a r a n i . G u a r d a v a m a s t r a d i ç õ e s d o m a t e , d o c h u r r a s c o , d o leite. M a s a o s p o u c o s a c a r n e s e t o r n o u a p a r t e m a i s a p r e c i a d a n a c r i a ç ã o d o g a d o e c o m isso c h e g a r a m , a partir d a i n d e p e n d ê n c i a , o s " p o v o s t r a n s p l a n t a d o s " e m o n d a s i n t e n s a s q u e d e r a m origem a u m a nova etnia nacional argentina e uruguaia, de traços m a r c a d a m e n t e e u r o p e u s . E s s a s e t n i a s d e s c o n h e c e m l a r g a m e n t e a proto-etnia ladina e g a ú c h a . C o m a implantação a c e l e r a d a d a s e s t â n c i a s , o s g a ú c h o s são c o n s i d e r a d o s v a d i o s , v a g a b u n d o s inúteis e livres d e m a i s . S ã o forçados a sujeitar-se a u m p a t r ã o ou s i m p l e s m e n t e e s m a g a d o s sob o peso d a história. Deles resta a p e n a s a s a u d a d e ( o t e m a d o g a ú c h o ) , u m a saudade d a v í t i m a , c o m o existe, por e x e m p l o , no C h i l e pelos a r a u c a n o s . P a r a d e m o n s t r a r c o m o a A r g e n t i v a foi t r a n s f o r m a d a no s é c u l o X I X , d a m o s aqui a l g u n s n ú m e r o s : Ano

População

1810 1850 1900 1950 1975

350.000 1.000.000 4.800.000 17.000.000 26.000.000

E n t r e 1850 e 1 9 5 0 , e n t r a m

da

Argentina

(gaúchos e ladinos: povo novo) (gaúchos, ladinos e imigrantes) (predominantemente imigrantes) (imigrantes e descendentes) (descendentes: povo transplantado)

1.800.000 i t a l i a n o s , 1.300.000 e s p a n h ó i s , 500.000 outros povos europeus. S o b essa " a v a l a n c h a " , o s l a d i n o s e g a ú c h o s f i c a m s o t e r r a d o s .

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O s p o v o s t r a n s p l a n t a d o s t r a z e m c o n s i g o o mito do b r a n q u e a m e n t o , a s imagens e u r o p é i a s de liberalismo e progresso e c o n ô m i c o , e m contraste c o m a " m o r e n i d a d e " , a e c o n o m i a d e s u b s i s t ê n c i a , o a r t e s a n a t o , o pastoreio etc. E u m c h o q u e t r e m e n d o . E m t u d o o s i m i g r a n t e s e s e u s d e s c e n d e n t e s s ã o favorecidos. M a s a o s p o u c o s o p o v o a r g e n t i n o se m a n i f e s t a e d e m o n s t r a o c a r á t e r ilusório do modelo trazido da Europa. O peronismo da primeira metade do século X X é m a n i f e s t a ç ã o c l a r a d o s a n s e i o s p o p u l a r e s , e m b o r a n ã o c o n s i g a a r t i c u l a r política eficiente. E l e é h o s t i l i z a d o p e l a o l i g a r q u i a , pelo p a t r i a r c a d o u r b a n o , p e l o e x é r c i t o , p e l a Igreja e p e l a b u r g u e s i a e m g e r a l . P e r ó n , p r i v a d o d a i n t e l e c t u a l i d a d e , opta por c a m i n h o s p o p u l i s t a s e p a t e r n a l i s t a s e fica, afinal, i s o l a d o . A s e s q u e r d a s , m u i t o teóricas e t a m b é m europeizadas, não conseguem entender o m o m e n t o e continuam tratando o povo como "atrasado", "fanático", "messiânico"... Assim, a Argentina caminha a largos passos para o d r a m a dos anos 1976-1982. A p a r t i r d o g o l p e m i l i t a r d e 24 d e m a r ç o d e 1976, a s i t u a ç ã o d a A r g e n t i v a s e t o r n a t r á g i c a . D o s 3 0 mil " d e s a p a r e c i d o s " d e t o d a a A m é r i c a L a t i n a e d o C a r i b e na é p o c a , 2 0 m i l e r a m a r g e n t i n o s . O s fatos m a i s h o r r í v e i s s ã o r e l a t a d o s , p o r e x e m p l o , de crianças que nascem nas prisões e nunca v ê m a conhecer a própria mãe. Na E s p a n h a e x i s t i a m 3 8 0 mil a r g e n t i n o s e x i l a d o s , n o M é x i c o 4 m i l . A l é m d o s 2 0 mil d e s a p a r e c i d o s , h a v i a 10 m i l p r e s o s p o l í t i c o s . A v a l i a n d o e s s e s a n o s d r a m á t i c o s , p e n s a m o s , d e n o s s a p a r t e , q u e a t r a n s f o r m a ç ã o o p e r a d a na A r g e n t i n a a p ó s a independência e a não aceitação da proto-etnia argentina pelos "povos transplantados" têm muito a ver com esse desfecho trágico. Diante da dramaticidade da situação, as autoridades eclesiásticas permanec e m s i l e n c i o s a s . O s i s t e m a t u d o faz p a r a c o m p r a r e s s e s i l ê n c i o . A o r e g r e s s o d o s b i s p o s d a c o n f e r ê n c i a l a t i n o - a m e r i c a n a d e P u e b l a e m 1 9 7 9 , p o r e x e m p l o , edita-se u m a lei ( n 2 1 . 9 5 0 ) na qual s e d i s p õ e q u e o s b i s p o s r e c e b e r ã o u m a m e n s a l i d a d e paga pelo g o v e r n o equivalente aos 8 0 % do que recebem os juízes de primeira i n s t â n c i a ( m a i s o u m e n o s 2.500 d ó l a r e s ) . A l g u n s i n t e r p r e t a r a m e s s a lei c o m o " g e s t o d e g r a t i d ã o " d o s i s t e m a d i a n t e d a " d i s c r i ç ã o " m a n t i d a p e l o s bispos nos momentos mais escandalosos da vida nacional. Q

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A t u a l m e n t e c r e s c e a Igreja c o m p r o m e t i d a c o m o s p o b r e s . A A r g e n t i n a cristã c o n t a c o m s e u s m á r t i r e s , c o m o d o m E n r i q u e A n g e l A n g e l e l l i , bispo d e La R i o j a , a s s a s s i n a d o n o d i a 4 d e a g o s t o d e 1976. C o m 2 2 m á r t i r e s , s ó e n t r e religiosos, nos anos 1972-1977, a Argentina é u m dos países do continente que tiveram o maior n ú m e r o d e t e s t e m u n h a s d a fé p e l a m o r t e . 7 4

F a l t a m u i t o p a r a q u e n o s s o relato s e j a c o m p l e t o . A p e n a s t r a ç a m o s a l g u m a s linhas. Recentemente a equipe argentina da C E H I L A concluiu u m estudo a b r a n g e n t e s o b r e a h i s t ó r i a d a I g r e j a no s e u p a í s . 7 5

8 11. Ciclos ingleses, holandeses e franceses D e s d e o s i n í c i o s d a c o l o n i z a ç ã o d a A m é r i c a , e s p a n h ó i s e p o r t u g u e s e s sentiram a concorrência de três potências marítimas e u r o p é i a s : Inglaterra, Holanda e o n o r t e d a F r a n ç a . O c a p i t a l i s m o é b a s e a d o na c o n c o r r ê n c i a e a e s t i m u l a . O c e n t r o

d o s i s t e m a n u n c a v i v e e m p a z , nele s e m p r e e x i s t e c o n c o r r ê n c i a p e l o c o n t r o l e d o s i s t e m a m u n d i a l . A s s i m é, c o m r a z ã o , q u e F e r n a n d o N o v a i s d i s t i n g u e e n t r e u m "sistema c o l o n i a l a n t i g o " , o n d e v i g o r a a i n d a a lei d o " e x c l u s i v o c o m e r c i a l " , ou s e j a , o n d e as d i v e r s a s n a ç õ e s c o l o n i a l i s t a s r e p a r t e m e n t r e si a s c o l o n i a s e l u t a m p a r a que e s s a r e p a r t i ç ã o s e j a r e s p e i t a d a ; e, d o o u t r o l a d o , u m " s i s t e m a c o l o n i a l n o v o " , multinacional ou ainda transnacional — sob cujo império v i v e m o s — , o qual passa por c i m a d a s f r o n t e i r a s n a c i o n a i s ) . O s h o l a n d e s e s f o r a m o s p r i m e i r o s a d e s a f i a r o s dois i m p é r i o s p r i n c i p a i s , E s p a n h a e P o r t u g a l , a i n d a n a é p o c a d o " e x c l u s i v o comercial". N o m a p a apresentamos os pontos por eles ocupados na parte atlântica da América ( m a p a 32). Verifica-se c o m o conseguem instalar-se desde a Bahia ( o n d e s ó ficaram u m a n o , e m 1 6 2 4 ) , p a s s a n d o pelo n o r d e s t e b r a s i l e i r o ( 1 6 3 0 - 1 6 5 4 ) e M a r a n h ã o ( 1 6 4 1 - 1 6 4 4 ) a t é o s p o n t o s o n d e c o n s e g u i r a m fixar-se d e f i n i t i v a m e n t e : S u r i n a m e e d i v e r s a s ilhas d o C a r i b e . U m d o s f e n ô m e n o s m a i s m a r c a n t e s d o c a p i t a l i s m o m u l t i n a c i o n a l n a s c e n t e foi a s u p r e m a c i a h o l a n d e s a s o b r e o c o m é r c i o m u n d i a l , no q u e s e c o n v e n c i o n o u c h a m a r de " s é c u l o d e o u r o " h o l a n d ê s (Gouden Eeuw), p e r í o d o q u e v a i d e 1 5 8 5 a 1 7 4 0 . N e s s a época, a primazia holandesa se manifestou ao m e s m o tempo em três frentes: na região d o m a r B á l t i c o , n a í n d i a o r i e n t a l e n a s A m é r i c a s . A o r i g i n a l i d a d e h o l a n d e s a consistia e m n ã o c o m e r c i a l i z a r e m g r o s s o ( v o l u m e s g r a n d e s ) , m a s e m e s p e c i a l i z a r se e m m e r c a d o r i a s d e a l t o v a l o r , t a n t o d e n t r o d a E u r o p a c o m o n o s m u n d o s n o v o s fora d e l a . A d e m a i s , o s h o l a n d e s e s e s t a v a m à frente d a s i n o v a ç õ e s t e c n o l ó g i c a s e d a c a p a c i d a d e d e a d m i n i s t r a ç ã o (management), mais d o que da pura navegação a

Mapa 32. O cicio holandês. 260

distância. N e s s e sentido, foram os primeiros a anunciar o capitalismo altamente tecnológico e informativo que v i v e m o s hoje. Os comerciantes holandeses contavam a c i m a d e t u d o c o m o a p o i o n u n c a f a l t o s o d o s Staten Generaal ( g o v e r n o ) , e nesse p o n t o t a m b é m i n o v a r a m e m c o n t r a s t e c o m a d a r e s i s t ê n c i a oficial q u e s e m p r e caracterizou a colonização ibérica. Esse f e n ô m e n o intrigante da supremacia d e p e q u e n a república do norte da Europa sobre o comércio mundial, por mais de u m século e meio, ainda necessita estudos m a i s abrangentes e sobretudo c o m p a r a t i v o s . Mas a inovação holandesa n ã o se l i m i t o u à e s f e r a c o m e r c i a l . T a m b é m n a e t n o g r a f i a , n a c a r t o g r a f i a e n o s e s t u d o s c u l t u r a i s e m g e r a l , os h o l a n d e s e s p r i m a r a m . O c o n d e M a u r í c i o de N a s s a u , por e x e m p l o , a o s e e s t a b e l e c e r n o n o r d e s t e b r a s i l e i r o e m 1 6 3 7 , d e i x o u - s e a c o m p a n h a r p o r e x c e l e n t e s p i n t o r e s e a r t i s t a s . U m d e l e s , A l b e r t o E e c k h o u t , foi o p r i m e i r o a r t i s t a e u r o p e u n a s A m é r i c a s a d e s e n h a r figuras d e i n d í g e n a s q u e c o r r e s p o n d i a m m a i s o u m e n o s à r e a l i d a d e e n ã o e r a m p u r a s p r o j e ç õ e s i m a g i n á r i a s , c o m o foi o c a s o d a s g r a v u r a s d e o u t r o h o l a n d ê s , a n t e r i o r d e u m s é c u l o , T e o d o r o de Bry. 7 6

Fig. 83. Senhor holandés em Suriname ( 1830)

P o r v e z e s se o u v e d i z e r q u e a c o l o n i z a ç ã o h o l a n d e s a foi " m e l h o r " q u e a ibérica. A "lenda n e g r a " que se criou e m torno dos c o m p o r t a m e n t o s dos conquistadores e s p a n h ó i s c o r r o b o r a e s s a idéia. N a r e a l i d a d e , o e s c r a v i s m o foi igual e m t o d a s as partes, só m u d o u d e aparência, não de sentido. C o m o observou Joaquim Nabuco, a respeito do nordeste brasileiro, a "brandura dos senhores" correspondia à "resignação dos escravos". O n d e os escravos eram resignados, o senhor branco podia se d a r o luxo de se mostrar brando e inclusive m a g n â n i m o . Há muito jogo de 261

cintura em tudo isso: a "conversa m o l e " d o senhor tentava ignorar a tática do "corpo m o l e " usada p e l o e s c r a v o . U m a g r a v u r a h o l a n d e s a m o s t r a s e n h o r b r a n c o r o d e a d o d e m u l h e r e s n e g r a s e c o m a n u m e r o s a p r o l e q u e ele t e v e c o m e l a s , m e n i n o s b r a n c o s m i s t u r a d o s c o m n e g r o s , e m S u r i n a m e p o r v o l t a d e 183 (fig. 8 3 ) . O u t r a g r a v u r a apresenta d e f o r m a b e m r e a l i s t a u m leilão d e e s c r a v o s , t a m b é m e m S u r i n a m e (fig. 8 4 ) . S ã o s i t u a ç õ e s i d ê n t i c a s à s q u e e n c o n t r a m o s p o r t o d a p a r t e o n d e v i g o r o u o escravismo colonial, seja na América d o Norte, no Caribe, ou no Brasil. As três potências concorrentes não lograram formar nações importantes por aqui, m a s , e m c o n t r a p a r t i d a , d o m i n a r a m t o d a s a s n a ç õ e s l a t i n o - a m e r i c a n a s n o século XIX. Só c o n s e g u i r a m t o m a r pé em d u a s regiões: no Caribe e nas G u i a n a s , o n d e a i n d a t e m o s u m a c o l ô n i a f r a n c e s a q u e faz f r o n t e i r a c o m o B r a s i l : " L a G u y a n e Française", elegantemente d e n o m i n a d a "territoire d'outre-mer" (território de a l é m - m a r ) q u e f u n c i o n o u c o m o c o l ô n i a p e n a l d a F r a n ç a p o r m u i t o t e m p o e, a t u a l mente, é território de experiências c o m mísseis. Eis a evolução colonial dessas três potências no século X V I I :

Fig. 84. Leilão de escravos em Suriname < 1830) 262

Inglaterra J á no século X V I , possui terras no Caribe. 1 6 2 0 : o s pilgrims ( p r o t e s t a n t e s ) v i a j a m p a r a a A m é r i c a . M a y f l o w e r . 1655: Jamaica. 1639: M a d r a s . 1 6 6 1 : B o m b a i m (início d a c o l o n i z a ç ã o d a í n d i a ) . 1691: Calcutá. O s i n g l e s e s t r a n s p l a n t a m p a r a a A m é r i c a a e x p e r i ê n c i a d a Igreja a n g l i c a n a .

Holanda 1602: C o m p a n h i a Holandesa d a s índias Orientais (primeira grande experiência c a p i t a l i s t a ) . 1 6 0 2 : C o m p a n h i a H o l a n d e s a d a s í n d i a s O c i d e n t a i s : De Heren Negentien senhores dezenove, acima do governo). 1605: Austrália. 1603: Indochina (Indonésia). 1614: Nova Amsterdã (atual Nova York). 1620: A n g o l a .

(os

1 6 2 4 - 1 6 5 4 : Brasil ( a s c h a m a d a s " i n v a s õ e s h o l a n d e s a s " ) . 1641: Malaca. França 1608: 1612: 1612: 1612: 1643: 1664:

Q u e b e c n o C a n a d á (o " Q u é b e c f r a n ç a i s " d e D e G a u l l e ) . São Luís do M a r a n h ã o (França Antártica). Rio de Janeiro (de Villegaignon. Protestantes). Haiti, Guadalupe, Martinica, Guiana Francesa. R e u n i ã o (ilha n a c o s t a o c i d e n t a l d a A f r i c a ; a t é h o j e ) . Companhia Francesa das índias Orientais.

Diante dessa invasão multiforme, q u e dividiu o Caribe em m u n d o s diferentes n a l í n g u a ( f r a n c ê s , i n g l ê s , h o l a n d ê s , m a s t a m b é m e s p a n h o l ) , na r e l i g i ã o (catolicism o , p r o t e s t a n t i s m o , h i n d u í s m o etc.) e, s o b r e t u d o , s u b s t i t u i n d o a p r e s e n ç a i n d í g e n a c a r i b e — q u e foi e l i m i n a d a — pela i m i g r a ç ã o m a c i ç a d e e s c r a v o s a f r i c a n o s (e mais tarde de indianos e chineses), é de se compreender que a história cultural do Caribe seja mais complexa que a dos países do continente. Nesse contexto, é de admirar a coragem de diversos desses países. Vejamos alguns exemplos. O Haiti foi o p r i m e i r o p a í s d a A m é r i c a L a t i n a a c o n q u i s t a r s u a i n d e p e n d ê n c i a ( e m 1 8 0 4 ) , a c o m p a n h a d a d a l i b e r t a ç ã o d o s e s c r a v o s . N o s p r i m e i r o s a n o s , o país c h e g o u a a j u d a r a V e n e z u e l a , a C o l ô m b i a e o M é x i c o a s e p r e p a r a r e m , por s u a v e z , para a independência. E m toda a América Latina e no Caribe, os senhores de 263

e s c r a v o s t i n h a m na é p o c a m e d o t e r r í v e l d o c o n t á g i o q u e p o d e r i a p r o v i r d o H a i t i . Contudo a euforia d o povo durou pouco, pois as estruturas coloniais voltaram c o m o s anos. O H a i t i caiu finalmente n a s m ã o s d o i m p e r i a l i s m o n o r t e - a m e r i c a n o . Durante t o d o o s é c u l o X I X , o p a í s s o f r e u e n é r g i c o b l o q u e i o c o m e r c i a l e d i p l o m á t i c o por p a r t e d a s c h a m a d a s c o n f e r ê n c i a s " p a n - a m e r i c a n a s " p r o m o v i d a s p e l o s E s t a d o s Unidos, que s i m p l e s m e n t e ignoravam o Haiti. O s representantes do país n e m c h e g a r a m a s e r c o n v i d a d o s p a r a a c o n f e r ê n c i a . A f i n a l , e m 1 9 1 5 , o Haiti foi o c u p a d o militarmente pelos Estados Unidos, que conseguiram condenar de novo o país ao atraso e à p o b r e z a . M a s a c h a m a n ã o m o r r e u , e r e c e n t e m e n t e o p a í s s e l e v a n t a , como j á tivemos oportunidade de assinalar. O vodu tem importância muito grande na política. O u t r o p a í s c o r a j o s o é C u b a . N o s é c u l o X V I I I , o p a í s cai s o b o d o m í n i o d o s ingleses, o s q u a i s o c u p a m L a H a v a n a e m 1762. C a l c u l a - s e q u e d u r a n t e o s d e z m e s e s de o c u p a ç ã o i n g l e s a m a i s d e 10 m i l e s c r a v o s a f r i c a n o s s ã o i n t r o d u z i d o s e m C u b a , a tal p o n t o q u e a ilha h o j e t e m u m a p o p u l a ç ã o q u a s e e x c l u s i v a m e n t e n e g r a . N o final d o s é c u l o ( 1 7 9 1 ) , o s f r a n c e s e s s e i n t e r e s s a m p e l a ilha e o c u p a m a s u a p a r t e oriental. E a p a r t i r d i s s o c o m e ç a t a m b é m o e x p a n s i o n i s m o a m e r i c a n o , q u e j á s e inicia e m 1 7 8 7 , q u a n d o o p r e s i d e n t e J e f f e r s o n i n t e n t a a p o d e r a r - s e e f e t i v a m e n t e d a ilha. E m 1 8 2 3 , o s e c r e t á r i o d a q u e l e p a í s d o n o r t e f o r m u l a u m a tese s e g u n d o a q u a l Cuba deve passar aos Estados U n i d o s , que são "protetores" d a América. Isso é o prenúncio da doutrina M o n r o e : "América aos americanos" (leia-se: " O s americanos do sul a o s a m e r i c a n o s d o n o r t e " ) . A ilha é i n u n d a d a p o r p a s t o r e s p r o t e s t a n t e s p r o v e n i e n t e s d o s E s t a d o s U n i d o s . E n e s s e c o n t e x t o q u e se s i t u a o p a d r e F é l i x Varela, cubano e d o m i n i c a n o , o primeiro intelectual revolucionário de C u b a q u e tenta c o r a j o s a e vital s í n t e s e e n t r e o c r i s t i a n i s m o e a c u l t u r a m e s t i ç a d a ilha. C o m o excelente educador, o padre Varela introduz em Cuba o método indutivo no ensino: estudar a partir da realidade. Leva para C u b a os primeiros laboratórios d e química e física. T e r m i n a s e n d o e x i l a d o . J o s é M a r t i d i z i a d e l e : " V a r e l a foi o p r i m e i r o a ensinar os cubanos a pensar." A figura d e J o s é M a r t i , q u e t a n t o influenciou a revolução d e Fidel C a s t r o e m 1958, fica a m e i o c a m i n h o e n t r e V a r e l a e Castro. Marti e r a j o r n a l i s t a e defendeu n o s jornais a idéia d a i n d e p e n d ê n c i a d e C u b a , n ã o s ó diante d a E s p a n h a , m a s t a m b é m diante d o s E s t a d o s U n i d o s . P o r isso é exilado e m 1880. N o exílio, torna-se a a l m a d o Partido R e v o l u c i o n á r i o C u b a n o , f u n d a d o e m N o v a Y o r k e m 1882. A l g u m a s de s u a s frases: " C u b a livre", " M i n h a funda é a d e Davi". E m 1895, participa d e u m a i n v a s ã o à ilha, para iniciar a g u e r r a d e libertação q u e sai vitoriosa ( 1 8 9 8 ) . M a s M a r t i n ã o v ê a vitória, pois m o r r e e m c o m b a t e no dia 19 d e m a i o de 1895, d i a até h o j e c o m e m o r a d o e m Cuba. F i n a l m e n t e , C u b a m o s t r a s u a garra t o r n a n d o - s e o p r i m e i r o país socialista da América Latina, b e m p e r t o da boca d o "leão". A t é h o j e e s s a e x p e r i ê n c i a s o b r e v i v e , silenciada pelos m e i o s d e c o m u n i c a ç ã o . C o m o j á c o m e n t a m o s , r e c e n t e m e n t e C u b a procura sair d o d o g m a t i s m o m a r x i s t a . O povo de Porto Rico t a m b é m j á deu mostras de coragem. E m 1868, houve o "grito d e L a r e s " , p e q u e n o p o v o a d o o n d e c o m e ç o u a i n s u r r e i ç ã o c o n t r a a E s p a n h a e a p r o c l a m a ç ã o d a r e p ú b l i c a . C o m o e s s a i n s u r r e i ç ã o foi e s m a g a d a , a luta c o n t i n u o u no e x í l i o , na R e p ú b l i c a D o m i n i c a n a , Haiti e C u r a ç a o . E m 1 8 9 0 , a 77

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E s p a n h a s e v i u f o r ç a d a a c o n c e d e r a i n d e p e n d ê n c i a , m a s o i t o a n o s d e p o i s a ilha caiu n a s g a r r a s d o s E s t a d o s U n i d o s , até h o j e . O s p o r t o r r i q u e n h o s s ã o a t u a l m e n t e e m p r e g a d o s , t r a b a l h a d o r e s m a l p a g o s e p o b r e s no p a í s d o n o r t e , c o n t i n u a n d o u m a história de dominação e sofrimento. A p e q u e n a ilha d e C u r a ç a o , j á m e n c i o n a d a , foi p a l c o d e g r a n d e revolta d e escravos e m 1750, seguida por outra e m 1795. A l g u n s sacerdotes, já mencionados a q u i , s e s e n s i b i l i z a r a m p e l a luta d o s e s c r a v o s e a o r g a n i z a r a m . U m a t á t i c a b e m interessante criada pelos escravos de Curaçao, com a ajuda de sacerdotes, c o n s i s t i a na c h a m a d a " r e u n i ã o d o o i t a v o d i a " , q u e s e e n c a i x a v a n u m a t r a d i ç ã o a f r i c a n a : oito d i a s d e p o i s d a m o r t e d e u m a m i g o o u p a r e n t e , a c o m u n i d a d e s e reunia simplesmente para "contar histórias". Os g r a n d e s j u l g a v a m inocentes essas "histórias", m a s acontece que o t e m a recorrente era o da vitória dos pequenos c o n t r a os g r a n d e s , d o s p o b r e s c o n t r a o s p r e p o t e n t e s , d e D a v i c o n t r a G o l i a s . C o m o o c o r r e u t a m b é m e n t r e o s e s c r a v o s d a A m é r i c a d o N o r t e , a B í b l i a foi lida a partir d e u m a s i t u a ç ã o c o n c r e t a d e o p r e s s ã o e s o f r i m e n t o ( v e j a a o r i g e m d o s negro-spirituals). E s s a t r a d i ç ã o d e c o n t a r h i s t ó r i a s " s a g r a d a s " p r e p a r a v a u m a sociedade o n d e h a v e r i a j u s t i ç a e i g u a l d a d e e n t r e t o d o s . E r a m t á t i c a s c r i a d a s pelo próprio povo. T e r m i n a n d o e s t e c a p í t u l o , c h a m a m o s u m a v e z m a i s a a t e n ç ã o p a r a o fato de q u e n e l e n ã o a n a l i s a m o s s i s t e m a t i c a m e n t e n e m o p r o t e s t a n t i s m o , n e m os diversos c i c l o s d e r e s i s t ê n c i a i n d í g e n a n e s s e s q u i n h e n t o s a n o s . R e m e t e m o s o leitor e/ou leitora p a r a o b r a s c o m o a s d e P r i e n , B a s t i a n , S i n c l a i r , e m r e l a ç ã o a o p r o t e s t a n t i s mo; e ao ensaio redigido por de Coll, em relação aos ciclos indígenas. 78

1. Cieza de León, Descubrimiento y Conquista del Peru, Madri-Buenos Aires, 1984, p. 119. 2. J. HoefTner, La Etica colonial española del Siglo de Oro, Madri, 1957, pp. 175s. 3. M. Fernández Alvarez, El siglo XVI, Madri, 1989, p. 289. 4. J. HoefTner, op. cit., pp. 175-178. 6. Erasmo, Elogio da Loucura (col. "Os Pensadores"), Abril, São Paulo, 1972, pp. 110-112. 6. Para todo esse parágrafo, veja J. Meier, Die Anfànge der Kirche auf den Karibischen Inseln, Ed. Neue Zeitschrift für Missionswissenschaft, Immensee, 1991. 7. E. Hoornaert, "Las Casas entre o direito internacional e o direito corporativo", em REB 196 (1989) 899-912. 8. Frei Betto, Fidel e a Religião, Brasiliense, São Paulo (diversas edições). 9. CEP, Haiti, Opresión y Resistencia. Testimonios de cristianos, Lima, 1983. Apresentaremos freqüentemente, neste capítulo, as publicações do CEP (Centro de Estudios y Publicaciones, apartado 11-0107, Lima 11, Peru), centro que acompanha as mudanças ocorridas no cristianismo latinoamericano nas últimas décadas, com testemunhos, documentos e ensaios. 10. Recomendamos a leitura de três trabalhos de Laénnec Hurbon: Dieu dans le vaudou hditien, Payot, Paris, 1972 (trad. bras.: O Deus da Resistencia negra: o Vodu haitiano, Ed. Paulinas, São Paulo, 1988); Cultures et pouvoir dans la Caraibe, L'Harmattan, Paris, 1975; Culture et Dictature en Haiti, L'Harmattan, París, 1979.

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11. Samuel Silva Gotay, El Pensamienlo Cristiano revolucionário en América Latina y el Caribe, Huracán, Porto Rico, 1989. 12. P. Tonucci, O Povo do Sol: os Mexicas, Ed. Paulinas, São Paulo, 1991. 13. Em quatroseculos.de 1492 a 1890, se produz mais ouro que nos 6 mil anos anteriores. A média anual aumenta vinte vezes em relação ao período anterior. Isso se deve substancialmente à América colonial, que produz quase 4 7 % da produção mundial nesse período. Nos tempos anteriores a Cristo, era a África quem produzia mais ouro. Sinal claro do mundo em que vivemos é que as reservas de ouro hoje se encontram quase exclusivamente nos seguintes países (em ordem crescente): Inglaterra, Japão, Bélgica, Holanda, Itália, Suíça, França, Alemanha, Estados Unidos. Hoje, os principais produtores de ouro na América não são mais o Peru, a Colômbia e o México, mas, sim, Canadá (42%), EUA (24%), República Dominicana (8,4%), Colômbia (7,2%), México(5%)e outros(13%). No plano mundial, a Africa do Sul produz praticamente 5 0 % do ouro total. 14. S. Buarque de Holanda, Visão do Paraíso: os Motivos edênicos no Descobrimento e a Colonização ' do Brasil, José Olympio, Rio de Janeiro, 1959. 15. Veja o livro de Samuel Silva Gotay, citado na nota 11. 16. CEHILA, História general de la Iglesia en América Latina, vol. 5, Sígueme/Salamanca, México, 1984. 17. Folha de São Paulo, 12/10/91 (suplemento). 18. Ch. Polzer, "As missões do norte da Nova Espanha (1580-1761)", em E. Hoornaert (org.), Das Reduções latino-americanas às Lutas indígenas atuais. Ed. Paulinas, São Paulo, 1982, pp. 64-75. 19. Idem, Rules and Precepts ofthe Jesuit missions ofNorthwestern New Spain, The Univ. of Arizona Press, Tucson, 1976. 20. Idem, art. cit., p. 71. 21. Ch. Polzer, Eusébio Kino S.J., Padre de la PimeriaAlta, Southwestern Mission Research Center, Tucson, 1972. 22. E. A. H. John, Storms brewed in other Men's Worlds, Texas Univ. Press, 1975. 23. M. Sandoval (coord.), Fronteras: a History of Latin American Church in de USA since 1513, Mexican American Cultural Center (MACC), Santo Antonio, 1983, pp. 459-464 (livro elaborado sob os auspícios da CEHILA). 24. V. Elizondo, La Morenita, evangelizer of the Americas, MACC Distribution Centre, 1980. 25. P. Tonucci, O Povo mais brilhante do Planeta: os Maias, Ed. Paulinas, São Paulo, 1991. 26. Ibidem, p. 9. 27. Ibidem, p, 68. 28. S. Martinez Pelaez, La Patria dei Criollo, Ensayo de Interpretación de la Realidad colonial guatemalteca, Educa, Centroamerica, 1985. 29. E. Hoornaert, O Cristianismo moreno do Brasil, Vozes, Petrópolis, 1991, p. 160. 30. Bartolomeu de Las Casas, Del único Modo de atraer a todos los Pueblos a la verdadera Religion. A data provável de redação é 1537, mas alguns especialistas, entre os quais Lewis Hanke, acreditam que Las Casas trabalhou nesse texto extremamente elaborado nos dez anos que passou na Hispaniola depois de seu ingresso na ordem dos dominicanos, em 1522. Trata-se de um dos três escritos principais de Las Casas, texto que "dará gloria a su nombre mientras se estudie la conquista espanola en América", no dizer de Lewis Hanke (Bartolome de Las Casas 1474-1566. Bibliografia critica, Santiago do Chile, 1954, n° 125). A partir do início do século XVIII, o resumo do trabalho era conhecido, mas se julgava o original perdido. Só se resgatou um fragmento do original no decorrer do século XIX e, em 1942, o Fondo deCultura Económica do México editou esse fragmento (caps. 5-7do livro 1), sobotítuloDcuníco Vocationis Modo. Sabemos que o teólogo Vitória tomou conhecimento da obra e redigiu suas Relactiones depois de ter lido o texto (ibidem, n" 826). 31. G. Melendez, Seeds of Promise. The prophetic Church in Central America, Friendship Press, Nova York. 1990, esp. pp. 12, 16. 2 0 . 2 4 , 2 8 . Veja também as publicações do DEI. Já faz treze anos que o Editorial DEI (Departamento Ecuménicode Investigaciones. apartado 390-2070. Sabanilla. San José. Costa Rica) acompanha a história recente do cristianismo na América Central. Com 180 publicações em espanhol, o Editorial DEI é hoje um dos principais editoriais da região centro-americana. Veja também: J. Meier, Bem-Aventurados os que tem Fome de Justiça: a Vida da Igreja na América Central, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985. 32. CEP, Moriry despertar en Guatemala, Lima. 1981. Veja também: J. Marins, Martírio: Memória perigosa na América Latina, Ed. Paulinas, São Paulo. 1984, pp. 177s. 266

33. J. Marins, op. cit., pp. 195s. 34. CEP, Testigos de la Verdad: el Asesinato de los Jesuítas en El Salvador, Lima, 1990. 35. CEP, El Salvador, Testemoniosdecristianos,2vo\s., Lima, 1980; Oscar Romero, Tiene que vencer elAmor, CEP, Lima, 1988 (diversos textos). 36. P. Casaldáliga, Nicarágua, Combate e Profecia, Vozes, Petrópolis, 1986. CEP, Nicarágua: Presencia de cristianos. Lima, 1978. CEP, Nicarágua: a un ano de la Victoria, Lima, 1980. 37. F. L. Lisi, El tercer Concilio limenseyla Aculturación de los Indígenas sudamericanos. Servido de Publicaciones, Salamanca, 1990, p. 13. 38. Folha de S. Paulo, 12/10/91, "Caderno Especial", p. 2. 39. M. L. Portilla, El Reverso de la Conquista, Ed. Joaquin Mortiz, México. 1964, p. 53. , 40. ^117. 41. 1977. 42. ~A3.

A. Vespúcio, Novo Mundo: Cartas de Viagens e Descobrimentos, L&PM, Porto Alegre. 1984, p. P. Duviols, La Destrucción de las Religiones andinas, Univ. Nacional Autónoma de México, F. L. Lisi, op. cit., p. 25. P. Tonucci. Os Povos andinos, Edições Paulinas, Sào Paulo, 1992.

44. Desenvolvi esse tema da "cruzada" na colonização do Brasil no meu Formação do Catolicismo brasileiro, 3 ' ed., Vozes, Petrópolis, 1991. 45. P. Duviols, Cultura andina y Repressión: Procesos y Visitas de Idolatria y Hechicerias. Cajatambo siglo 17, Centro de Estúdios Rurales Andinos Bartolome de Las Casas, Cuzco. 1986. 46. Maria Luiza Marcílio. Demografia histórica. Livraria Pioneira Editora. Sào Paulo. 1977, pp. 199s. 47. Veja a obra organizada por Leslie Bethell, citada no cap. 1, § 3.2. 48. E. Hoornaert, "A evangelização segundo a tradião guadalupana", em REB (1974) 524s. 49. Veja as obras citadas acima, nn. 41 e 45. 50. Cit. por F. L. Lisi, op. cit., p. 26. 61. C. Moura, Sociologia do Negro brasileiro, Ática, Sào Paulo, 1988, p. 41. Moura reage diante da postura de L. Boff, afirmando que este se recusa a tratar o candomblé em pé de igualdade com o catolicismo. Nas pp. 58-59, o autor analisa também as reações de certas autoridades eclesiásticas por ocasiào da famosa "Missa dos Quilombos" (Recife, 1982) e de outras manifestações que nào combinam com a hegemonia católica na sociedade brasileira. 52. J. Klaiber(coord.l, Historia general de la Iglesia en América Latina, VIII, Sígueme/Salamanca, Peru / Bolívia / Equador, 1987. Veja também J. KLaiber, La Iglesia en el Peru. Su Historia social desde la Independência, Un. Cat. dei Peru, Lima, 1988. 53. A. Valtierra, Pedro Claver, el Santo redentor de los Negros, 2 vols.. Banco de la Republica, Bogotá. 1980 (a informação se encontra no vol. 2. p. 532). A respeito de Pedro Cláver, consulte também P. M. Lamet, Escravo dos escravos. Editorial A.O., Braga, 1988. 54. Alonso de Sandoval, Naturaleza, Policia sagrada y profana, Costumbres y Ritos, Disciplina y Catecismo evangélico de todos los Etíopes, Francisco de Lira, Sevilha, 1627, liv. l.cap. 18, pp. 107-108, cit. por Valtierra, op. cit., I, pp. 446-448. O padre Angel Valtierra, SJ, para estudar o texto de Alonso de Sandoval, precisou recorrer a cópias microfilmadas da edição de 1627 existentes na Biblioteca do Congresso em Washi ngton e na Biblioteca Nacional de Paris. E que desde 1647 a obra nào foi reeditada, pelo que me consta. 55. A. Valtierra, op. cit., I, p. 472. 56. Ibidem, pp. 476-483. No cap. 32 do livro 1, Sandoval fornece uma lista dos "etíopes santos que ha tenido la Iglesia Católica: Candaces, reina de Etiópia; Santa Efigênia, virgen princesa de Etiópia; Séfora, mujer de Moisés; Gaspar, santo rey. mago etíope; Eunuco que bautizó San Felipe; San Elesboal. emperador de Etiópia; Moisés, abad, etíope; los dos bienaventurados Antonio y Benedicto, etíopes, religiosos de la sagrada ordem". 57. Ibidem, p. 496. 58. Ibidem, p. 499. 59. Veja E. Hoornaert, "Podemos deixar as crianças sem batismo?", em REB 24/1 (1964) 86-94. 60. Acerca de Pedro Donders: J. Vernooij, Indianen en Kerken in Suriname, Stichting Wetenschappelijke Informatie, Paramaribo, 1989, passim. 61. A. Valtierra, I, pp. 7 e 17.

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62. R. Price, Maroon Societies: rebel slave Communilies in the Américas, Anchor Books, Nova York, 1973. 63. M. Olivella, "Zapata. O sincretismo afro-cristão nas lutas libertadoras da América", em CEDI, Identidade negra e religião. Rio de Janeiro, 1986, p. 126. 64. Joaquim Nabuco, Ed. Paulinas, São Paulo, 1990, p. 24. 65. Cit. por G. Friederici, Caráter da Descoberta e Conquista da América pelos europeus, Instituto do Livro, Rio de Janeiro, 1967, p. 232. 66. Ensaios (col. "Os Pensadores"), Abril Cultural, São Paulo, 1972, p. 417. 61.R.deRoux{coorà.),Historiageneralde la Iglesiaen America Latina, VII: Colômbia y Venezuela, Sígueme, Salamanca, 1981. 68. Ediciones Rehue, Santiago, 1987. 69. E. Galeano, As Veias abertas da America Latina, Paz e Terra, Rio de Janeiro (diversas edições). ^IQ. Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, Editora Alfa-Ómega, São Paulo, 1975. 71. Calendário do Povo latino-americano, Cehila Popular, ano 1986, agosto, Ed. Paulinas, 1986. 72. Ibidem. 73. R. Picchia, "Argentina: el sueldo de los bispos explica su silencio", em El Dia, México, edição de 19/10/1979, p. 11. 74. J. Marins (coord), Martírio, Memória perigosa da América Latina de hoje. Edições Paulinas, São Paulo, 1984, pp. 127-141. 75. Historia de la Iglesiaen Argentina, Buenos Aires, 1992. Quanto ao Paraguai, consulte sobretudo M. Durán Estragó./Veserccia franciscana en el Paraguay (1538-1824), Biblioteca de Estúdios Paraguayos. Univ. Cat. de Asunción, 1987. A respeito da antiga audiência de Charcas: J. M. Barnadas, Charcas 15351565: origenes históricos de una sociedad colonial, CIPCA, La Paz, 1973. 76. J. I. Israel, Dutch Primacy in the world Trade: 1585-1740, Clarendon Press, Oxford, 1989. 77. Frei Betto, Fidel e a Religião, Brasiliense, São Paulo (diversas edições). 78. H.-J. Prien, Die Geschichte des Christentums in Lateinamerika, Vanderhoeck & Ruprecht, Gotinga, 1978(existe tradução espanhola). J. P. Bastian, Historia dei Protestantismo en América latina, Ediciones Cupsa, México, 1990 (coleção "História Minima"' da CEHILA, n» 25-26). J. Sinclair, Protestantism in Latin America: a bibliographical guide, Austin, Hispanic American Institute, Texas, 1967. J. Oliva de Coll, La resistência indígena ante la conquista, 7 ed., Siglo Veintiuno Editores, México, 1988. a

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5 A instituição S 1. O O c i d e n t e c r i s t ã o r e v e l a d o a t o d o s O a n o d e 1 4 9 2 t e v e efeito p a r a d o x a l s o b r e a i n s t i t u i ç ã o cristã o c i d e n t a l , e só h o j e , c o m a d i s t â n c i a d e q u i n h e n t o s a n o s , isso c o m e ç a a se revelar: e x p o r t a n d o o m o d e l o d e s u a i n s t i t u i ç ã o ( t a n t o i m a g i n á r i a q u a n t o s o c i a l ) , d u r a n t e séculos testado n a realidade do limitado triângulo de países no qual cabem Alemanha, F r a n ç a , I t á l i a , E s p a n h a , I n g l a t e r r a e m a i s a l g u n s o u t r o s — afinal, u m p e q u e n o m u n d o f e c h a d o e m si — , o m o v i m e n t o c o l o n i a l a c a b o u e x p o n d o - o a o s o l h o s d o m u n d o i n t e i r o . N a p e r s p e c t i v a d o s q u i n h e n t o s a n o s , 1 4 9 2 significou aexposição do q u e e s t a v a e n c o b e r t o na e x p e r i ê n c i a c i v i l i z a t ó r i a e r e l i g i o s a d a E u r o p a o c i d e n t a l . O q u e s e r e a l i z o u e m r e l a ç ã o a c a m p o n e s e s d a F r a n ç a e d a A l e m a n h a a g o r a ficou e x p o s t o d i a n t e d e t o d o s . S e m d ú v i d a , 1492 foi a c o n t e c i m e n t o m u n d i a l . E x p o r t o u se o m o d e l o e u r o p e u a o s q u a t r o c a n t o s , r e v e l a n d o - s e , a s s i m , s e u s v a l o r e s , m a s t a m b é m s u a s d e f i c i ê n c i a s , às d e m a i s c u l t u r a s . Q u e m contemplasse, n u m mapa-múndi, a situação das culturas humanas e x i s t e n t e s n a T e r r a , à é p o c a a n t e r i o r à v i a g e m d e C o l o m b o ( p o r e x e m p l o , por volta d e 1 4 5 0 ) , d i s t i n g u i r i a n i t i d a m e n t e sete g r a n d e s e x p e r i ê n c i a s c i v i l i z a t ó r i a s , q u a i s s e j a m , o m u n d o l a t i n o , e m t o r n o d e R o m a ; o m u n d o i s l â m i c o , e m t o r n o de B a g d á ; o m u n d o bizantino, durante séculos reunido em torno de Constantinopla, q u e em 1453 c a i u n a s m ã o s d o s t u r c o s ; o h i n d u í s m o , e m t o r n o d e D é l i ; o m u n d o c h i n ê s , e m t o r n o d e P e q u i m ; o m u n d o a s t e c a , e m t o r n o d e T e n o c h t i t l á n ; e, finalmente, o m u n d o inca, e m torno de Cuzco. O m u n d o e m torno de R o m a não constituía nem a maior, n e m a mais poderosa, n e m a mais a v a n ç a d a civilização. Era, ao contrário, um m u n d o relativamente pobre, bastante atrasado or e x e m p l o , e m c o m p a r a ç ã o com o islã, e inclusive com a C h i n a e a índia. E n t ã o , d e r e p e n t e , r e v e l a - s e e s s e m u n d o l a t i n o a t o d o s via E s p a n h a e P o r t u g a l . N o p l a n o religioso, o s m o v i m e n t o s c o l o n a i s a r t i c u l a d o s por e s s e s dois p a í s e s p r o j e t a m o m u n d o e c l e s i á s t i c o r o m a n o no p a l c o d o t e a t r o m u n d i a l . N u m primeiro m o m e n t o , é verdade, R o m a c o n s e g u e impor seu modelo organizatório, c o m b a t e n d o s i s t e m a t i c a m e n t e e c o m d e t e r m i n a ç ã o a s o r g a n i z a ç õ e s locais por o n d e as encontra. M a s depois de quinhentos anos, os povos submetidos começam a e n x e r g a r m e l h o r , a e x p r e s s a r s u a o p i n i ã o e a c r i t i c a r o m o d e l o r e l i g i o s o q u e lhes foi i m p o s t o e, s o b r e t u d o , o m o d o c o m o isso s e d e u . D e n t r o d e s s e c l i m a d e r e v i s ã o situa-se o presente capítulo. A a n á l i s e q u e aqui e m p r e e n d e m o s n u n c a p o d e r á ser e n t e n d i d a c o m o crítica à f u n d a m e n t a ç ã o cristã e m si; n o s s o p r o p ó s i t o é e x a m i n a r u m m o d e l o o r g a n i z a t ó r i o concreto. Neste capítulo, nada mais fazemos que nos colocar a seguinte pergunta: donde nos v e m o evangelho, concretamente? Quais os c a m i n h o s históricos que o evangelho trilhou para chegar até nós? 269

Os europeus que aqui vieram viviam dentro de determinado m u n d o imaginário. A análise d e s s e m u n d o s e r á o t e m a d o s e g u n d o p a r a g r a f o d e s t e c a p í t u l o . A p r e s e n t a m o s d u a s v e r t e n t e s d o i m a g i n á r i o c a t ó l i c o i b é r i c o , c o n t r a d i t ó r i a s e n t r e si. E m relação às f o r m a s s o c i a i s d o c r i s t i a n i s m o q u e os c o l o n i z a d o r e s t r o u x e r a m p a r a c á , d e v e m o s c a v a r m a i s f u n d o , a t é a I d a d e M é d i a . D e t e c t a m o s , n o p e r í o d o e n t r e 1054 e 1215, u m a s é r i e d e r e m o d e l a ç õ e s i m p o r t a n t e s d a t e o r i a e d a prática d o cristianismo, a s q u a i s a c a b a r a m m a r c a n d o e m p r o f u n d i d a d e a i n s t i t u i ç ã o c r i s t ã n a A m é r i c a . N o s s a t e s e é q u e a t r a d i ç ã o cristã q u e n o s c h e g o u e m 1 4 9 2 n ã o foi a m a i s antiga d a h i s t ó r i a d o c r i s t i a n i s m o . N a t r a d i ç ã o a n t i g a — d o p r i m e i r o m i l ê n i o , digamos assim — , existia preocupação primordial, no sentido d e traduzir e d i a l o g a r c o m a s e x p e c t a t i v a s d o s p o v o s . I s s o n ã o se verificou e n t r e n ó s . N o s p a r á g r a f o 4 e 5, f o c a l i z a r e m o s s u c e s s i v a m e n t e o s p r o c e s s o s d e u s u r p a ç ã o d o e s p a ç o e d o t e m p o n e s t e c o n t i n e n t e e n o C a r i b e e m n o m e d o c r i s t i a n i s m o , e, f i n a l m e n t e , a n a l i s a r e m o s a r o m a n i z a ç ã o ( p a r á g r a f o 6 ) . N o final d o c a p í t u l o , i n s e r i m o s u m a c o n v e r s a à p a r t e c o m o l e i t o r e/ou a l e i t o r a s o b r e a d i a l é t i c a e n t r e v o c a ç ã o e instituição, t e m a ao m e s m o t e m p o muito antigo e m u i t o atual. 1

2

Seguimos neste capítulo a tese defendida por plêiade respeitável de histor i a d o r e s , t a n t o m e d i e v a l i s t a s e m geral c o m o e s p e c i a l i s t a s e m h i s t ó r i a d a I g r e j a , o s q u a i s a t r i b u e m a o q u e o c o r r e u e n t r e 1054 e 1 2 1 5 , n o e i x o R o m a - C l u n y ( v e j a p a r á g r a f o 3 ) , o c a r á t e r d e m u d a n ç a r á p i d a e até d e c e r t a r u p t u r a c o m o m o d e l o institucional a n t e r i o r . E s t e p o d e s e r q u a l i f i c a d o d e " m o n á s t i c o " , n o s e n t i d o d e q u e atuava junto às populações através da irradicação que e m a n a v a dos mosteiros. M a s , por c a u s a p r i n c i p a l m e n t e d a " s í n d r o m e " d a s c r u z a d a s e d a s lutas por e s p a ç o s a m e a ç a d o s p e l o i s l a m i s m o , a Igreja o c i d e n t a l p a s s o u a d e s e n v o l v e r i n t e r n a m e n t e a a t i t u d e i s l â m i c a d e g u e r r a s a n t a (jihab) c o n t r a a v e r n a c u l a r i z a ç ã o d a m e n s a g e m . E dentro dessa mentalidade "guerreira" que se situa o que o autor alemão Rosenstok-Huessi qualificou, n u m ensaio publicado e m 1931, de "revolução papal": m u d a n ç a n ã o s ó n a I g r e j a , m a s n a s o c i e d a d e o c i d e n t a l e m geral. E m 1961 o medievalista Mare Bloch trabalhou o m e s m o t e m a , assim c o m o diversos especialistas e m h i s t ó r i a e c l e s i á s t i c a f o r a m a o s p o u c o s s e g u i n d o a m e s m a a n á l i s e , c o m o , por e x e m p l o , G e r d T e l l e n b a c h j á e m 1936, D a v i d K n o w l e s e m 1968, W a l t e r U l l m a n n e m 1 9 5 5 , R. W . S o u t h e r n e m 1970 e Y v e s C o n g a r e m 1 9 6 2 . Foi s o b r e t u d o por o c a s i ã o d o c o n c í l i o V a t i c a n o II e d o p o n t i f i c a d o e m J o ã o X X I I I q u e a tese d e p r o f u n d a m u d a n ç a n a h i s t ó r i a d o c r i s t i a n i s m o o c i d e n t a l a p a r t i r d e 1054 t o m o u corpo. A u t o r e s c o m o H a n s K u e n g ( 1 9 6 7 ) , J . R. S t r a y e r ( 1 9 7 0 ) e P. B r o w n ( 1 9 7 5 ) t r a b a l h a r a m n e s s e s e n t i d o . H o j e há c o n s e n s o e n t r e b o m g r u p o d e e s p e c i a l i s t a s d e q u e o m o v i m e n t o r o m a n o - c l u n i a c e n s e foi m u i t o m a i s a b r a n g e n t e d o q u e s i m p l e s mente uma "revolução papal" ou u m a "questão das investiduras". Alguns indícios de m u d a n ç a g l o b a l d a s o c i e d a d e o c i d e n t a l f o r a m : o p o d e r s e c u l a r p e r d e u s e u esplendor quase-sacerdotal, a regra beneditina não conseguiu m a n t e r sua hegemonia sobre a vida espiritual, vigoroso impulso se deu à teologia e ao estudo d o direito, a s s i m c o m o , n o p l a n o d o s e s t u d o s físicos e e m p í r i c o s , g r a n d e s f o r a m o s progressos. D e qualquer forma, o novo poder de intervenção, j á nas m ã o s do papa — tanto em assuntos temporais quanto eclesiásticos — , comprovou-se benéfico à s o c i e d a d e o c i d e n t a l d u r a n t e o m e i o m i l ê n i o q u e se s e g u i u a t é a é p o c a d o c o n c í l i o d e

T r e n t o . R e m e t e m o s o leitor e/ou a l e i t o r a à b o a e x p o s i ç ã o d e B e r m a n s o b r e a q u e s t ã o . O s r e s u l t a d o s d e s s e s e s t u d o s e s p e c i a l i z a d o s a i n d a n ã o a t i n g i r a m os c r i s t ã o s e m g e r a l . N a A m é r i c a L a t i n a e n o C a r i b e , p o r e x e m p l o , a i n d a n ã o se a p r o f u n d o u a q u e s t ã o s u f i c i e n t e m e n t e . E s s e é o p o n t o q u e aqui n o s i n t e r e s s a . A opinião corrente entre cristãos latino-americanos e caribenhos ainda segue, em g r a n d e s l i n h a s , a l e i t u r a feita p e l o s c a n o n i s t a s e t e ó l o g o s m e d i e v a i s — e x a t a m e n t e 1

o s q u e fizeram u m a l e i t u r a d a h i s t ó r i a d o c r i s t i a n i s m o a p a r t i r d a " r e v o l u ç ã o p a p a l " — , q u e a p r e s e n t a a história d o papado ocidental c o m o evolução progressiva desde são Pedro até nossos dias. Dentro dessa lógica, os povos americanos têm de entrar no bojo d a instituição. Parte-se das g r a n d e s p r e m i s s a s da "revolução papal": a s a l v a ç ã o p r i m e i r a c o n s i s t e e m l i b e r t a r - s e d o p e c a d o , o q u e s e o p e r a p e l o s sacram e n t o s . A f o r m a ç ã o d e q u a d r o s e c l e s i á s t i c o s s e t o r n a , p o r c o n s e g u i n t e , prioritária, e n q u a n t o se entende a Igreja c o m o interlocutora c o m governos e poderes. Precisase, antes de tudo, assegurar a unidade do corpo eclesial e m torno dos sacerdotes e bispos. D e n t r o dessa lógica, a sorte d o s indígenas americanos depende da convers ã o d o s c o l o n i z a d o r e s , o s q u a i s d e v e m a b a n d o n a r u m a p o s t u r a d e l u c r o para s e n s i b i l i z a r - s e p e l o s f r a c o s e p o b r e s . A s s i m , a a ç ã o d a Igreja d e v e c o n c e n t r a r - s e antes de t u d o nas elites. Eis alguns dos "postulados" da instituição.

§ 2. O imaginário A m é r i c o Vespúcio tem uma observação muito interessante acerca dos indígen a s q u e e n c o n t r o u a o l o n g o d o litoral a t l â n t i c o s u l , n o a n o d e 1 5 0 1 . D i z q u e o s índios p a r e c e m m a i s " e p i c u r i s t a s " q u e " e s t ó i c o s " . C o m isso o n a v e g a d o r g e n o v ê s d á p r o v a d e fino s e n s o d e o b s e r v a ç ã o . D o c o n t r a s t e n a s c e a c a p a c i d a d e d e refletir e a n a l i s a r . Os indígenas viviam de u m a forma que evocava, no imaginário europeu, o e p i c u r i s m o , a filosofia d o p r a z e r m o m e n t â n e o . C o m o e n t e n d e r isso? P e n s o q u e , a n t e s d e t u d o , p r e c i s a m o s t e r u m a idéia d o i m a g i n á r i o q u e e s p a n h ó i s e p o r t u g u e s e s t r o u x e r a m à A m é r i c a , p a r a r e s p o n d e r m o s à p e r g u n t a . R e c o r r a m o s à literatura para nos dar a resposta.

1. A vida é

sonho

N i n g u é m m e l h o r q u e o d r a m a t u r g o e s p a n h o l P e d r o C a l d e r o n d e la B a r c a ( 1 6 0 0 - 1 6 8 0 ) , n o s e u c o n h e c i d o d r a m a La vida es sueno ( A v i d a é s o n h o ) , p a r a e x primir o m u n d o imaginário católico que espanhóis e portugueses — pelo menos os "hilagos" (hijos de algo: filhos d e " a l g u é m " , o s d e " s a n g u e p u r o " , o s d a elite, o s " c a s t i ç o s " ) — t r o u x e r a m p a r a c á n a é p o c a c o l o n i a l . P o i s o i m a g i n á r i o d o s villanos ( v i l õ e s ) o u " m e s t i ç o s " é o u t r a coisa b e m d i f e r e n t e . M a s o s g o v e r n a d o r e s e c a p i t ã e s , frades e m o n g e s , funcionários e dignitários da coroa acreditavam todos, com C a l d e r o n , q u e " l a v i d a e s s u e n o " . L e i a - s e b e m : " é s o n h o " e n ã o " é um s o n h o " . Afirm a r q u e a v i d a é s o n h o significa e n u n c i a r u m a t e s e , l a p i d a r e forte: é e n g a n o , mentira, pura ilusão que passa. Não adianta viver a vida como "um sonho", como 3

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os índios — por e x e m p l o — , na pureza d e sua nudez, d a n ç a n d o e imitando a n a t u r e z a qual c r i a n ç a s , n a m o r a n d o e b r i n c a n d o s e m s e n s o d o t e m p o q u e flui e d a eternidade que se aproxima. Isso não! Se a vida é sonho e ilusão, não p o d e m o s desperdiçar o t e m p o c o m brincadeiras o u , pior, c o m a procura das "vaidades", pois "vaidade das vaidades e tudo é vaidade", c o m o diz a Escritura. T e m o s de c o n s u m i r nossa v i d a , s e m t r é g u a , c o m o h o l o c a u s t o , à f o r m a ç ã o i n t e g r a l d e n o s s a s p e s s o a s , para q u e s e j a m o s b e m a c o l h i d o s n a e t e r n i d a d e q u e n o s e s p e r a . A tese c e n t r a l d o d r a m a d e C a l d e r o n reflete o c a t o l i c i s m o e s p a n h o l d o " s é c u l o de o u r o " ( 1 5 3 0 - 1 6 6 0 ) , u m c a t o l i c i s m o " f r a d e s c o " , o q u a l n o s v e i o n a é p o c a c o l o n i a l . Impressionante o n ú m e r o d e frades e freiras q u e essa época gerou, tanto nas letras quanto em outros setores da cultura: João da Cruz, Teresa de Jesus, Luís de Granada, Luís de León, Francisco de Vitória, Francisco Suarez, João de Mariana, Lope de V e g a , Calderon, Tirso de Molina, Gracián, Feijó. Dois dos maiores, L o p e de V e g a e C a l d e r o n , t o r n a r a m - s e s a c e r d o t e s a o s 5 1 a n o s , r e a l i z a n d o n a s s u a s v i d a s o que escreviam em versos, ou seja, o desencanto c o m as coisas deste m u n d o e a aspiração às coisas eternas. Eis o conteúdo germinal do catolicismo que veio para a A m é r i c a Latina e o C a r i b e e c o n s e g u i u e s p a l h a r - s e e x t r a o r d i n a r i a m e n t e , g r a ç a s ao f a s c í n i o d a a r t e barroca. Esta tinha t u d o para atrair as m a s s a s , pois transformava praças e ruas em "grande teatro", através da arquitetura, da oratória (que nesse t e m p o captava o imaginário popular), das procissões, da sedução da música, da pintura (Murillo, El G r e c o , V e l a s q u e z , Z u r b u r á n ) , e, f i n a l m e n t e , d a p r ó p r i a d i v i s ã o d o e s p a ç o u r b a n o em praças, conventos, igrejas, e do espaço doméstico (oratórios). N a s suas formas exteriores, o barroco é rebuscado, contorcido, "alexandrino", extravagante e dissimétrico. O oposto do "clássico". C o m o conteúdo, p o r é m , possuía maiores condições de seduzir o povo que a m e n s a g e m renascentista, de origem italiana, que colocava o acento na pessoa e sua realização humanística, m a s na realidade só g a n h o u a d e p t o s e n t r e a b u r g u e s i a . A p a s s a g e m , na E s p a n h a , e n t r e o p e r í o d o e m q u e E r a s m o — a u t o r m a r c a d a m e n t e r e n a s c e n t i s t a — foi a c e i t o e a v i r a d a p a r a o b a r r o c o se d e v e p r i n c i p a l m e n t e a m o t i v o s r e l i g i o s o s . U m a figura c o m o I n á c i o d e Loiola, por e x e m p l o , s e c o l o c a d e c i d i d a m e n t e c o n t r a a s i d é i a s d a R e n a s c e n ç a e e l a b o r a o s Exercitia spiritualia para reafirmar c o m força o dualismo católicom e d i e v a l d e luta s e m t r é g u a e n t r e D e u s e o D i a b o , n o c a m p o d e b a t a l h a q u e é a pessoa h u m a n a . " E u n ã o v i v o : D e u s ( o u o D i a b o ) v i v e e m m i m . " O s t e ó l o g o s d o s séculos X V I e X V I I , c o m o M e l q u i o r C a n o , S u a r e z , M o l i n a , B a ñ e z , r e p e t e m o s mesmos posicionamentos, b e m c o m o os místicos c o m o J o ã o da Cruz e Teresa de Ávila. A " v e r d a d e d i v i n a " p r e c i s a v e n c e r " l o s f u e r o s d e la r a z ó n " ( o s foros d a r a z ã o ) . A razão s e m a fé n a d a v a l e , é p u r a " i l u s ã o " . N a d a m e n o s d e 1600 n o m e s s ã o vinculados — só na E s p a n h a — à vasta produção de tratados teológicos, teológicopráticos, p o l ê m i c o - a s c é t i c o s , m í s t i c o s e m o r a i s , c o m a f i n a l i d a d e d e firmar a cosmovisão barroca e católica diante das novidades renascentistas, criptoluteran a s , h e r é t i c a s , j u d a i z a n t e s e, m a i s t a r d e , i l u m i n i s t a s , p o s i t i v i s t a s , r a c i o n a l i s t a s . A E s p a n h a c a t ó l i c a , p e l o m e n o s n a s u a e l i t e , rejeita o l i v r e - p e n s a r d e f o r m a absoluta, embora u m tanto neurótica.

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E s t a m o s d i a n t e d e i m p r e s s i o n a n t e edifício i d e o l ó g i c o d e f u n d o integralista. Foi e s s e edifício q u e o s e s p a n h ó i s c a s t i ç o s ("puros") t e n t a r a m i m p o r à A m é r i c a Latina e o Caribe, com resultados duvidosos. Trata-se, sem dúvida, de grande c u l t u r a . I s s o faz c o m q u e a i n d a h o j e se p o s s a s a b o r e a r o d r a m a d e C a l d e r o n , e m b o r a seja concebido dentro de parâmetros os quais estamos sempre mais questionando e rejeitando. No essencial, o catolicismo espanhol exprime excepcio n a l s e n s i b i l i d a d e r e l i g i o s a e, c o n c o m i t a n t e m e n t e , g r a n d e z a e m i s é r i a , e a t é a paralisia cultural provocada por elas. Paralisia, sim: se pensarmos que Calderon ( 1 6 0 0 - 1 6 8 0 ) foi c o n t e m p o r â n e o d e S p i n o z a ( t 1 6 7 7 ) , M i l t o n ( f 1670) e H o b b e s ( t 1679), e na França dos cartesianos e primeiros livres-pensadores, podemos avaliar a s e p a r a ç ã o c r e s c e n t e d e i m a g i n á r i o s e m e n t a l i d a d e s e n t r e o m u n d o ibérico e a p a r t e d a E u r o p a ( H o l a n d a , I n g l a t e r r a , F r a n ç a ) q u e a o s p o u c o s vai a s s u m i n d o a l i d e r a n ç a d o m o v i m e n t o c o l o n i a l i s t a . Foi e s s e s e n t i m e n t o d e i n s u l a m e n t o que c o n f e r i u à E s p a n h a a â n s i a d e p r o j e t a r firmemente s e u i m a g i n á r i o religioso n a s á r e a s p o r ela c o n t r o l a d a s : a Á u s t r i a , p o r a l g u m t e m p o a c o r t e d e L u í s X I V na França e sobretudo a América Latina eo Caribe, afirmando — contra Descartes e o u t r o s — q u e a r e a l i d a d e n ã o é o q u e s e v ê , m a s o q u e a fé n o s d i t a . O s e s p a n h ó i s d a é p o c a e r a m " m a i s c a t ó l i c o s q u e o p a p a " . O p l u r a l d a s e x p e r i ê n c i a s e r a logo s u s p e i t o d e h e r e s i a : a t é p e s s o a s d o p o r t e de u m I n á c i o d e L o i o l a o u u m J o ã o d a C r u z t i v e r a m d e s e d e f e n d e r r e p e t i d a m e n t e c o n t r a a s u s p e i t a d e " a l u m b r a d o s " , ou criptoluteranos, e foram, aliás, investigados pela Inquisição, o g r a n d e instrumento desse catolicismo de c u n h o fanático. A g r a n d e p r e o c u p a ç ã o d a elite e s p a n h o l a o u p o r t u g u e s a q u e v e i o p a r a a s c o l ô n i a s l a t i n o - a m e r i c a n a s e c a r i b e n h a s , p o r e x e m p l o , n ã o ia n o s e n t i d o d e lavrar a t e r r a , n e m d e o r g a n i z a r a e c o n o m i a , m a s , s i m , n o afã d e a q u i c o n s t r u i r cenário de vida tanto interior (confissão, batismo, missa, procissão, novena, devoção) q u a n t o e x t e r i o r í á t r i o s , e n o r m e s c o n v e n t o s , i g r e j a s de d e v o ç ã o ) , o qual e x p r e s s a s s e a l u t a e n t r e D e u s e o D e m ô n i o n o c o r a ç ã o d o h o m e m . N i s s o é q u e a elite das primeiras gerações de colonizadores se e m p e n h o u . O h i s t o r i a d o r e s p a n h o l S a l v a d o r d e M a d a r i a g a p r e t e n d e q u e mal se possa falar de "colonização" da América Latina, no sentido m o d e r n o da palavra. Enquanto i n g l e s e s , f r a n c e s e s e h o l a n d e s e s s e p r e o c u p a v a m e m l a v r a r a estreita faixa d e terra da costa atlântica da A m é r i c a do Norte durante duzentos anos, para poder sustentar-se penosamente na nova terra, os soldados, monges e missionários dos dois impérios ibéricos, esses "nobles caballeros de Cristo", percorriam u m universo d e t e r r a s n a A m é r i c a , n a í n d i a e no J a p ã o , t r a n s p u n h a m rios e m o n t a n h a s p a r a fixar s u a p r e s e n ç a p o r a l g u m a i g r e j a o u c a p e l a , o n d e o i m a g i n á r i o p e r m a n e c e s s e p r e s o a o s d i t a m e s e x p r e s s o s l a p i d a r m e n t e p o r C a l d e r o n : "la v i d a e s s u e h o " , o v e r d a d e i r o m u n d o n ã o é a q u i m a s a l h u r e s , n o c é u ! A p r i m e i r a finalidade, p o i s , e r a c o n s t r u i r u m c e n á r i o , m a n i f e s t a r o s e n t i d o d a s c o i s a s e t e r n a s e, p o r c o n s e g u i n t e , i n c u l c a r o e s p í r i t o d e l u t a c o n t r a o s i n i m i g o s d e D e u s . A f i n a l , a c o l o n i z a ç ã o efetiva ou "racional" da A m é r i c a Latina principiou no século passado, q u a n d o os nortea m e r i c a n o s c o n v e r t e r a m H o n d u r a s , p o r e x e m p l o , e m " r e p ú b l i c a d e b a n a n a s " , El S a l v a d o r e m p a í s p r o d u t o r d e c a f é , e a s s i m por d i a n t e . I g u a l m e n t e , p o d e - s e a f i r m a r

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que a colonização da A m a z ô n i a está c o m e ç a n d o agora, sob forças de maneira nenhuma ligadas ao legado ibérico e aos grandes sonhos místicos e católicos. A E s p a n h a a n t e r i o r a o s é c u l o X I X n e m se p r e o c u p o u e m e x p l o r a r r a c i o n a l m e n t e s u a s próprias t e r r a s , c o m o iria l a v r a r a s t e r r a s d a A m é r i c a ? O p a í s v i v i a n u m c e n á r i o místico, o n d e c é u e t e r r a s e c o n f r o n t a v a m n u m c o m b a t e e s p i r i t u a l . S ó m u i t o r e c e n t e m e n t e a s c o i s a s v ã o m u d a n d o na E s p a n h a , q u e h o j e e m e r g e c o m o p a í s quase tão racionalista q u a n t o a França, por exemplo. Voltando a Calderon: ser católico, no pensamento dele, é ser dualista, é ser maniqueu. A E s p a n h a o f e r e c e a o m u n d o , s o b r e t u d o na s u a e x p a n s ã o n a A m é r i c a e na A s i a , o e s p e t á c u l o r e a t u a l i z a d o d o m a n i q u e í s m o d o s s é c u l o s III e IV d a e r a cristã. N e s s e m u n d o i m a g i n á r i o , o q u e se p a s s a n a e x t e r i o r i d a d e é a p e n a s s o n h o ou c e n á r i o . I m p o r t a e n f r e n t a r o s e l e m e n t o s c o n t r á r i o s a o s v a l o r e s e t e r n o s , q u a i s

Fig. 85. Imperador Carlos V (Quito, Equador).

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s e j a m , o g o z o p e l a s c o i s a s q u e p a s s a m , o o r g u l h o . a l u x ú r i a , a c o b i ç a (o g r a n d e tema d e L a s C a s a s ) , a falsa glória. T u d o isso s e v e n c e por disciplina m i l i t a r (jesuítas). U m a a v e n t u r a espiritual f a s c i n a n t e c o n s i s t e e m fazer u m a leitura d e C a l d e r o n e m n o s s o s c e n á r i o s b a r r o c o s d e M i n a s G e r a i s , O l i n d a , S a l v a d o r da B a h i a , S à o Luís. O teatro da "época de ouro" (1530-1660) não se exprime apenas nos dramas construídos por palavras e gestos, ou nas pinturas e esculturas, m a s também e s o b r e t u d o n o s c e n á r i o s q u e s ã o as c i d a d e s b a r r o c a s c o l o n i a i s . A f i n a l , e s s e c e n á r i o vívido de praças e conventos, de ruas cheias de frades e beatos, de santuários domésticos, os quais repetiam e m casa o que se via n a rua, é que constituía o modo pelo qual o s "castiços" ou "fidalgos" espanhóis e portugueses ensinavam aos " m e s t i ç o s d a t e r r a " q u e a v i d a é i l u s ã o , q u e v i v e m o s aqui p a r a d e s p r e z a r as " v a i d a d e s d o s é c u l o " e p r a t i c a r a s v i r t u d e s q u e n o s l e v a m ao c é u ; e n s i n a v a m a c u l t i v a r e m c a d a m o m e n t o o t e m o r d a m o r t e e d o j u í z o final, a n e c e s s i d a d e d a p e n i t ê n c i a ( J e s u s M o r t o , J e s u s C r u c i f i c a d o ) , a e s p e r a n ç a na vida e t e r n a . A i m a g e m d e C a r l o s V c o m e s p a d a e g l o b o t e r r e s t r e n a s m ã o s e v o c a o d r a m a i n t e r i o r que o i m p e r a d o r v i v i a , d e f a z e r c o m q u e o u n i v e r s o fosse e n c a b e ç a d o p e l a c r u z d e Cristo, a t é à c u s t a d e g u e r r a s c o n t r a o s i n i m i g o s d e D e u s (fig. 8 5 ) . O s a c e r d o t e c a r r e g a d o

Fig. 86. "O mundo espiritual (sacerdote) é mais importante que o material (carregadores)." 275

nos ombros de negros escravos demonstrava a todos que o m u n d o espiritual, do livro e da p r e g a ç ã o , d a p e n i t ê n c i a e d o s a c r a m e n t o , e r a i n f i n i t a m e n t e m a i s i m portante q u e o m u n d o m a t e r i a l d o s c a r r e g a d o r e s q u e l a b u t a v a m e s o f r i a m (fig. 8 6 ) . O nome m a i s f a m o s o de u m a m u l h e r culta que viveu intensamente o d r a m a do c a t o l i c i s m o e s p a n h o l n o M é x i c o , foi o d e s o r o r J o a n a I n ê s d a C r u z ( 1 6 4 8 - 1 6 9 5 ) (fig. 8 7 ) . E l a é a m u l h e r i n t e l e c t u a l m a i s c o n h e c i d a d a A m é r i c a L a t i n a c o l o n i a l . S u a obra é b a s t a n t e d i v e r s i f i c a d a , e n t r e d r a m a s , p o e m a s d e a m o r , c a n t o s r e l i g i o s o s e m e d i t a ç õ e s . P a r e c e q u e e r a f e m i n i s t a avant la lettre, p o i s s e r e v o l t o u c o n t r a o q u e c h a m a v a " a filosofia d a c o z i n h a " , q u e m a n d a a m u l h e r ficar e m c a s a e na c o z i n h a . S o r o r J o a n a I n ê s r e p e t i a : " M u i t o s s e s e n t e m s u p e r i o r e s s ó p o r s e r e m h o m e n s . " Foi grande defensora de u m a educação feminina melhor. Sua vocação para o c o n v e n t o teria n a s c i d o d a a v e r s ã o à s u b m i s s ã o a u m m a r i d o m a c h i s t a . A c r e d i t a m o s q u e s u a história não constitui c a s o isolado e q u e muitas mulheres de espírito mais aberto e de personalidade m a i s firme simplesmente recusaram o casamento por motivos d e l i b e r d a d e . C l a r o q u e , n e s s e s c a s o s , o c o n v e n t o se c o n v e r t i a e m e s p a ç o a b e r t o , d e diálogo c o m o m u n d o e possibilidade de desenvolvimento artístico e intelectual. D i z - s e q u e o m e l h o r g r u p o m u s i c a l d e S a l v a d o r d a B a h i a n o s é c u l o X V I I I foi o d a s freiras d o C o n v e n t o d o D e s t e r r o , q u e p o s s u í a i n c l u s i v e u m m i r a n t e d e o n d e s e podia v e r p r a t i c a m e n t e t o d a a c i d a d e . E s s e g r a n d e m u n d o c o n v e n t u a l a b r i g a v a inevitavelmente os famosos a m a n t e s freiráticos, os quais suspiravam por suas amadas reclusas atrás das grades do convento. O parlatório era o único espaço amoroso e erótico permitido, n u m a sociedade que encarava com suspeitas as expressões de afetividade. Alguns dos m a i s belos p o e m a s da literatura hispânica nasceram desses ambientes freiráticos. Apresentamos aqui um p o e m a de Joana Inês da Cruz que evoca a tese de C a l d e r o n d e la B a r c a , s e g u n d o o q u a l a " v i d a é s o n h o " . A p o e t i s a c o n t e m p l a o próprio r e t r a t o , o q u a l l h e r e v e l a q u e e l a e s t á e n v e l h e c e n d o : 4

'A su retrato Este que ves, engaño colorido, que dei arte ostendando los primores con falsos silogismos de colores es cauteloso engaño del sentido; este, en quien la lisonja ha pretendido excusar de los años los horrores y venciendo del tiempo los rigores triunfar de la vejez y del olvido; es un vano artificio del cuidado, es una flor al vento delicada, es un resguardo inútil para el Hado es una necia diligencia errada es un afán caduco y bien mirado es cadáver, es polvo, es sombra, es nada. 276

2. A vida é gozo M a s n ã o foi s ó a i n f l u ê n c i a d e C a l d e r o n d e la B a r c a q u e e n t r o u n a A m é r i c a Latina. P e n e t r a r a m t a m b é m S a n c h o P a n ç a e L a z a r i l l o d e T o r m e s , d o m J u a n e d o m Quixote. Penetrou sub-repticiamente Celestina, sacerdotisa d o a m o r erótico no meio d e u m m u n d o fradesco. Penetrou o m u n d o mestiço da Espanha, criado à sombra dos bem-nascidos "de puro sangue", os de descendência misturada entre católicos, mouros e j u d e u s . A Espanha d o século d e ouro não criou unicamente o grande teatro católico e os escritos místicos d e João da C r u z e T e r e z a d e Ávila, o s livros d e cavalaria andante ou ainda a C o m p a n h i a d e J e s u s . A m e s m a E s p a n h a criou três personagens que fogem f u n d a m e n t a l m e n t e d o padrão rigorosa e castiçamente católico: d o m Quixote, d o m J u a n e Celestina. E s s a s criações literárias correspondem a u m sentimento de vida b e m típico dos povos d a península ibérica, m a r a v i l h o s a m e n t e e x p r e s s o na figura d e L a z a r i l l o d e T o r m e s . V e j a m o s . O romance picaresco surgiu em oposição aos livros de cavalaria c o m o o Amadis de Gaula e o u t r o s . A o b r a - p r i m a d o r o m a n c e p i c a r e s c o é t r a b a l h o a n ô n i m o , i n t i t u l a d o La vida de Lazarillo de Tormes ( 1 5 4 5 ) , o q u a l d e s c r e v e a v i d a n a E s p a n h a " d e s d e el r e v e r s o d e la h i s t o r i a " d o m u n d o c a s t i ç o , n o b r e . L a z a r i l l o d e v e , d e s d e o s oito a n o s d e i d a d e , c o n d u z i r u m c e g o . M a i s t a r d e , e l e s e r v e a u m r e l i g i o s o , u m hidalgo, u m v e n d e d o r d e i n d u l g ê n c i a s , a t é q u e c o n s e g u e " e m p r e g o f i x o " , c o m o p r o c l a m a d o r j u n t o a o rei. E n t ã o p o d e p e n s a r e m s e c a s a r , e c a s a c o m a e m p r e g a d a do arcipreste. Lazarillo é personagem que analisa toda a sociedade e s p a n h o l a " d e s d e los d e a b a j o " . A c a d a p á g i n a s e p e r c e b e a m i s é r i a h u m a n a , a f r o n t e i r a e n t r e vida e morte na qual vive Lazarillo, as situações sociais escandalosas encobertas pelas glórias da grande E s p a n h a . E injustiçado, pisado, c h u t a d o , ridicularizado, m a s n a d a d i s s o o faz p e r d e r a f e l i c i d a d e , q u e p r o v é m d o fino s e n s o d o r e l a t i v o d a v i d a e d o v a l o r d e u m s o r r i s o . L a z a r i l l o n u n c a p e r d e o b o m h u m o r . O livro a l c a n ç o u sucesso imenso. A s autoridades não deixaram de perceber o caráter subversivo d e s s e t i p o d e l i t e r a t u r a e, e m 1 5 7 3 , a p a r e c e u u m El Lazarillo castigado, edição censurada pela Inquisição. Compreende-se facilmente a acolhida que o "espírito de Lazarillo" encontrou na A m é r i c a L a t i n a e n o C a r i b e , e n t r e d e s c e n d e n t e s d e indígenas h u m i l h a d o s e perseguidos, ou d e e s c r a v o s africanos trazidos para c á , b e m c o m o entre o s " m a c u n a í m a s " de todos os tipos. A m e n s a g e m d e Lazarillo n ã o c o n t é m n a d a d e ortodoxo, m a s foi e continua sendo " b o a n o v a " p a r a o s p o b r e s d o continente. Aqui e n c o n t r a m o s u m p o n t o de c o n t a t o c u l t u r a l m u i t o i m p o r t a n t e e n t r e a c u l t u r a i b é r i c a e a s c u l t u r a s d o c o n t i n e n t e . A s s i m c o m o a m i s s ã o c r i s t ã p e n e t r o u na A m é r i c a p o r d o i s c a m i n h o s , o oficial-clerical e o d e v o c i o n a l - l e i g o , a s s i m t a m b é m s e d e u c o m o i m a g i n á r i o : v e i o C a l d e r o n de la B a r c a , m a s v e i o t a m b é m L a z a r i l l o d e T o r m e s . Lope de V e g a exprimiu b e m esse sentimento terrestre e nada espiritual da vida, nos seguintes versos: Holá! que me lleva la olla Holá! que me lleva la mar 278

Holá! que llevarme dejo sin orden y sin consejo y que dei cielo me alejo donde no puedo llegar. Holá! que me lleva la olla Holá! que me lleva la mar. O p o e t a se d e i x a c o n d u z i r p e l a o n d a d a v i d a , s e m p e n s a r n a s coisas c e l e s t e s , " d o n d e n o p u e d o l l e g a r " , u n i c a m e n t e l e v a d o p e l o s a b o r d a v i d a , "sin o r d e n y sin c o n s e j o " . C o m e s s e s p o u c o s v e r s o s , L o p e d e V e g a e x p r i m e o s e n s o p o p u l a r de s e m p r e : concreto, imediato, terrestre, palpável. A o b r a q u e m e l h o r d e s c r e v e o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e a c u l t u r a castiça e a m e s t i ç a é o Dom Quixote d e C e r v a n t e s , e s c r i t o e n t r e 1599 e 1 6 0 5 . A o iniciar s u a s m a t u l a g e n s pela E s p a n h a , d o m Quixote escolhe c o m o escudeiro o camponês S a n c h o P a n ç a . C a d a u m d e s s e s d o i s h e r ó i s r e p r e s e n t a u m m o d o d i f e r e n t e d e viver a vida, e inclusive d e se encarar a religião católica. Eis comparação esquemática entre a m b a s as figuras: Dom

Quixote:

Sancho

Pança:

montado e m cavalo

montado e m burrico

alto e magro

baixinho e gorducho

pensa no seu ideal

pensa na comida

amores espirituais

amores físicos

grandeza moral

realismo

atividade incessante

preguiça

vontade e razão

sentimentos

subjetivismo

objetividade

generosidade

egoísmo prático

P o d e r í a m o s a l o n g a r a l i s t a , m a s b a s t a s u b l i n h a r q u e t a n t o a figura d e dom Quixote quanto a de S a n c h o Pança migraram para a América com os conquistadores e o s c o l o n i z a d o r e s . O e s c r i t o r F e r n a n d o d e R o j a s ( 1 4 7 5 - 1 5 4 0 ) c r i o u o u t r a figura literária m a r g i nalizada pelos "bem-pensantes": a de Celestina, a mulher que une amantes e c o n s i d e r a s u a m i s s ã o a l i b e r t a ç ã o d a s e x u a l i d a d e . Foi c h a m a d a d e "santa d o h e d o n i s m o " , na l i t e r a t u r a e s p a n h o l a . S u a t e s e : " A n a t u r e z a foge da tristeza e p r o c u r a o p r a z e r . " O a m o r d e C e l e s t i n a n ã o c o n t é m n a d a d e "celeste", é a m o r físico e t e r r e s t r e m e s m o . P a r a ela s ó há u m d e u s , o d e u s d o p r a z e r . D e l e C e l e s t i n a s e s e n t e a o m e s m o t e m p o s a c e r d o t i s a e e v a n g e l i z a d o r a . C l a r o q u e e s s a l i t e r a t u r a se e n c o n t r a v a no pólo o p o s t o ao d a l i t e r a t u r a h e r ó i c a d o s c a v a l e i r o s e d o s f r a d e s . E m Celestina o a m o r é e t e r n o " e n q u a n t o d u r a " . E s t a m o s d e n o v o d i a n t e d e t e m a o p o s t o à d o u t r i n a oficial d a I g r e j a s o b r e o a m o r e o p r a z e r . N a m e s m a l i n h a d e Celestina, circulavam na Espanha histórias diversas e picantes sobre as "trotaconventos", m u l h e r e s a l c o v i t e i r a s q u e a c e r t a v a m a m o r e s e n t r e f r a d e s e freiras. O t e m a era vastíssimo e suscitou tanto na Espanha quanto e m Portugal algumas obras279

primas de sensibilidade e profundidade psicológica. A popularidade de Celestina e d a s histórias d a s " t r o t a c o n v e n t o s " e m g e r a l d e m o n s t r a q u e e s s a l i t e r a t u r a n ã o foi p r o d u z i d a n u m v a z i o c u l t u r a l , m a s c o r r e s p o n d e u a u m a a s p i r a ç ã o m u i t o profunda d a p e s s o a h u m a n a . Concluindo, a cultura ibérica que nos veio à é p o c a colonial é m a r c a d a por polarização b e m acentuada entre a oficialidade e a vida do povo c o m u m . N ã o é cultura h o m o g ê n e a e harmoniosa. D e u m lado, é habitada pelo espírito de r e p r e s s ã o p e r s o n i f i c a d o na figura d o f a m o s o T o m á s d e T o r q u e m a d a ( 1 4 2 0 - 1 4 9 8 ) , m a s , d o o u t r o l a d o , a b r i g a t a m b é m figuras l i t e r á r i a s , c o m o L a z a r i l l o d e T o r m e s , S a n c h o P a n ç a e C e l e s t i n a . Foi T o r q u e m a d a , u m d o m i n i n c a n o , i n q u i s i d o r g e r a l d a Igreja c a t ó l i c a , q u e m a c o n s e l h o u o s reis c a t ó l i c o s a p e r s e g u i r e m j u d e u s e m a r r a n o s (judeus convertidos ao catolicismo). Ele representa na cultura hispânica essa terrível d u a l i d a d e e n t r e o c a t ó l i c o c a s t i ç o e o c a t ó l i c o m e s t i ç o . Na América Latina e no Caribe, a grande vítima desse dualismo existente no i m a g i n á r i o e s p a n h o l foi a f e l i c i d a d e h u m a n a d o s p o v o s c o m p u l s o r i a m e n t e r e d u zidos ao c r i s t i a n i s m o . O g o z o foi b a n i d o d o c e n á r i o oficial e t e v e d e a c o m o d a r - s e n o s recônditos, o n d e os olhares da Inquisição e d a censura social n ã o c o n s e g u i a m penetrar. A m e n s a g e m d a f e l i c i d a d e p e s s o a l e r a i d é i a n o v a n a E s p a n h a , a i n d a n o final d o s é c u l o X V I I I , e n a s c o l ô n i a s m a i s t a r d e a i n d a . E s s a m e n s a g e m v e i o a t r a v é s da Revolução Francesa. Pode ser que os dois g r a n d e s ideais dessa revolução, o da igualdade e o d a fraternidade, até hoje não foram alcançados, m a s pelo m e n o s a libertação d o s m e d o s i n q u i s i t o r i a i s foi c o n q u i s t a d a p e l a b u r g u e s i a t a n t o e s p a n h o l a q u a n t o l a t i n o - a m e r i c a n a . A p a r t i r d o final d o s é c u l o X V I I I , n a s c e n a E s p a n h a e n a A m é r i c a L a t i n a o h o m e m libertino, i s t o é, o h o m e m d a s l u z e s , o i l u m i n i s t a , o q u a l t e n t a l i b e r t a r - s e a si p r ó p r i o e a o s c o m p a n h e i r o s d o m e d o d a r e p r e s s ã o , d o obscurantismo e do domínio sobre as consciências, por tantos séculos exercido em nome de D e u s e do cristianismo. Quanto às c a m a d a s populares, estas estão conquistando nos dias que correm um novo mundo imaginário, menos traumático e mais livre.

§ 3. A instituição social e política

" A fé não precisa de territórios, mas de almas." Michel de Montaigne (1560), Ensaios, 1. 3, cap. 6. Chegamos ao ponto mais delicado de nossa exposição. N u m trabalho como e s t e , n ã o s e p o d e e v i t a r u m a a n á l i s e r i g o r o s a d a i n s t i t u i ç ã o cristã. E difícil m a n t e r o m e s m o nível d e c r i t i c i d a d e q u e c o n s e g u i m o s a r e s p e i t o d a s e s t r u t u r a s e c o n ô m i c a s , sociais e p o l í t i c a s d a s o c i e d a d e e m g e r a l . A f i n a l , a i n s t i t u i ç ã o v i v e d e c e r t a f o r m a d e n t r o d e n ó s , e s u p o n h o q u e isso d e c e r t a f o r m a s e a p l i q u e t a n t o a o a u t o r 280

q u a n t o a o leitor e à leitora. T o d o s s a b e m o s q u e h á t r ê s g r a n d e s b l o c o s institucionais p r o v e n i e n t e s d o m o v i m e n t o d e J e s u s : a s I g r e j a s o r t o d o x a s , a Igreja católica e as Igrejas p r o t e s t a n t e s . O s textos práticos, comooDireitocanônico por exemplo, sempre p a r t i r a m d e s s a c o n c r e t u d e v i v i d a . N â o é p o r a c a s o q u e o Direito canónico afirma, no seu primeiro c â n o n e : "Cânones huius codicis ad solam ecclesiam latinam r e s p i c i u n t " ( O s c â n o n e s d e s t e c ó d i g o s ó d i z e m r e s p e i t o à Igreja l a t i n a ) . N ã o podia ser d i f e r e n t e , p o i s n e m a s I g r e j a s o r t o d o x a s n e m a s p r o t e s t a n t e s s e s e n t e m c o m p r o m e t i d a s c o m l e g i s l a ç ã o q u e s e r e s t r i n g e a o s i s t e m a católico. A s c o n s i d e r a ç õ e s q u e f a z e m o s n e s t e c a p í t u l o s e r e f e r e m , p o i s , à s f o r m a s i n s t i t u c i o n a i s católicas concretas e n ã o ao cristianismo entendido de forma genérica. Criticamos a i n s t i t u i ç ã o por s u a i n a d e q u a ç ã o à t a r e f a específica d e e v a n g e l i z a ç ã o d o c o n t i n e n t e l a t i n o - a m e r i c a n o e d o C a r i b e . A a t u a ç ã o d a i n s t i t u i ç ã o c a t ó l i c a a q u i , nestes q u i n h e n t o s a n o s , n o s l e m b r a a l e n d a d o beija-flor e d o m a n g u a r i , u m a t r a d i ç ã o oral d o a l t o rio N e g r o : Certa vez, o beija-flor desafiou o manguari (ave pesada) para verem quem mais veloz atravessaria o oceano. Quando chegou o momento combinado, começaram a voar juntos. O beija-flor partiu a toda velocidade, e voou veloz como o vento. O manguari, coitado, foi indo devagar. Chegando ao meio foi indo o manguari e viu que o beija-flor não mais agüentava sobrevoar o mar. Aí, então, o manguari apanhou a ele, colocou-o nas costas até chegarem ao outro lado. Então o manguari disse para o beija-flor: — Veja de não ser pretensioso uma segunda vez! Se fosse outro a vê-lo, teria deixado você morrer. Agora você deve pensar, para não acreditar demais em você neste mundo! 5

Q u a l b e i j a - f l o r t e i m o s o e p r e t e n s i o s o , a Igreja q u i s logo a b r a n g e r t o d o este continente c o m suas imensas complexidades culturais, m a s se esqueceu de u m a c o i s a : ela p r ó p r i a n ã o e s t a v a p r e p a r a d a p a r a a t a r e f a , n e m p s i c o l ó g i c a n e m t e o l o g i c a m e n t e ; s u a e x p e r i ê n c i a m u i t o l i m i t a d a e a t é a c a n h a d a d e m a i s , para e n f r e n t a r a s a b e d o r i a m u l t i m i l e n a r d o s n u m e r o s o s p o v o s d o c o n t i n e n t e latinoamericano. Será preciso q u e os cuidados do "manguari", ou seja, a sabedoria dos p o v o s d e s t a s t e r r a s a m e r i c a n a s e c a r i b e n h a s , s a l v e m - n a d e s u a p r ó p r i a ruína.

1. Bases:

a experiência

cluniacense

e o direito

romano

P a r a e n c o n t r a r o fio d a m e a d a , c o m e ç a m o s d i z e n d o q u e o rosto n o qual r e c o n h e c e m o s a Igreja c a t ó l i c a h o j e c o m e ç o u a se d e l i n e a r d u r a n t e o s é c u l o e m e i o e n t r e 1054 — q u a n d o R o m a se s e p a r o u d e C o n s t a n t i n o p l a — e 1 2 1 5 — q u a n d o as r e f o r m a s o p e r a d a s f o r a m l e g a l i z a d a s a t r a v é s d o s c â n o n e s d o q u a r t o concílio de Latrão. D e v e m o s voltar a esses tempos já longínquos, para entender melhor a instituição católica que penetrou na A m é r i c a desde 1492. 6

Costuma-se apresentar a grande tradição jurídica e eclesiástica do Ocidente, c o d i f i c a d a n o d i r e i t o c a n ó n i c o , c o m o d e c o r r ê n c i a e v o l u t i v a d e c e r t o s princípios do 281

direito r o m a n o . E n t r e o d i r e i t o r o m a n o e o c a n ó n i c o , o c a m i n h o h i s t ó r i c o teria s i d o o de uma evolução e concordância fundamental de alguns propósitos básicos. Os grandes valores daquele estariam conservados neste, c o m o , p o r e x e m p l o , o princípio d o " b e m c o m u m " o u d a " j u s t i ç a d i s t r i b u t i v a " , o u a i n d a e p r i n c i p a l m e n t e o d a autoridade. E sobretudo esse último ponto que nos interessa. O autor americano Harold B e r m a n , o qual estudou exaustivamente a questão, d i s c o r d a d e s s a " l e i t u r a " d o d i r e i t o c a n ó n i c o e a f i r m a : "As idéias cristãs estavam diametralmente opostas às idéias implícitas no tratamento das igrejas como corporações sob o direito romano." 7

D u r a n t e t o d o o p r i m e i r o m i l ê n i o d e s u a h i s t ó r i a , o c r i s t i a n i s m o foi b a s i c a m e n te v i v i d o e m c o m u n i d a d e s a u t ô n o m a s , d e c e r t o u n i d a s e n t r e si p o r l a ç o s d e fraternidade, m a s largamente independentes u m a s das outras. O s líderes se e n c o n t r a v a m e n t r e si b a s i c a m e n t e c o m o " p a r e s " , e m b o r a j á o c o r r e s s e d e s d e o s é c u l o III a luta p e l a h e g e m o n i a , n a c o n h e c i d a c o n t e n d a e n t r e A l e x a n d r i a , Antioquia, Constantinopla e Roma. C o m o demonstra Júlio de Santa A n a , é verd a d e q u e os m o s t e i r o s e d e m a i s c o m u n i d a d e s c r i s t ã s d o p r i m e i r o m i l ê n i o r e m e t i a m c o n s t a n t e m e n t e a u m " t r a n s m u n d o " idealista e u n i v e r s a l q u e e l e s i n t e r p r e t a v a m com a a j u d a d o n e o p l a t o n i s m o . M a s a i n d a n ã o v i v i a m d e n t r o d a l ó g i c a d e e n q u a d r a m e n t o e f e t i v o e a d m i n i s t r a t i v o d e t o d a s as c o m u n i d a d e s n u m s ó s i s t e m a que dominasse o tempo e o espaço, o que é específico da inovação jurídica ocorrida entre 1054 e 1215. N ã o s e p o d e c o m p r e e n d e r , p o r c o n s e g u i n t e , a t r a d i ç ã o institucional do Ocidente como simples evolução. Houve, c o m o Rosenstock-Huessi j á escreveu e m 1931, u m a " r e v o l u ç ã o " , ou s e j a , r á p i d a t r a n s f o r m a ç ã o ; a t é c e r t o p o n t o , u m a r u p t u r a e u m a i n o v a ç ã o . N e s s a n o v a m a n e i r a d e e n t e n d e r o e p i s ó d i o , e s s e a u t o r foi seguido por historiadores c o m o A. Toynbee e muitos outros. A p a r t i r d e 1054, R o m a e n v e r e d a p o r c a m i n h o s s e p a r a d o s d e B i z â n c i o e aí c o m e ç a u m a h i s t ó r i a q u e s e d e v e a n a l i s a r e m si, s e m r e c o r r e r à e x p l i c a ç ã o d e s i m p l e s c o n t i n u i d a d e c o m o p a s s a d o . I n t e n t a n d o firmar s u a h e g e m o n i a n a p a r t e ocidental da cristandade, R o m a recorre ao m e s m o t e m p o à experiência prática da "congregação" dos m o n g e s de Cluny e à experiência teórica c o n s i g n a d a no direito romano. Toda e qualquer projeção além das datas de 1054-1215 requer cuidados, pois — r e p i t o — o m o d e l o a n t e r i o r e r a b a s i c a m e n t e c o m u n i t á r i o e a u t ô n o m o , n ã o era corporativo senão e m alguns setores, c o m o as hierarquias em torno dos m e t r o p o l i t a s , p o r e x e m p l o , ou a i n d a n o i n t e r i o r d o s m o s t e i r o s , m a s , a i n d a a s s i m , de f o r m a b a s t a n t e l i m i t a d a . O u t r o c u i d a d o q u e s e d e v e t o m a r , ao i n t e r p r e t a r a instituição c r i s t ã , é n ã o c o n f u n d i r o s c a m i n h o s d a a r i s t o c r a c i a e d o c l e r o c o m o s d a 8

9

b u r g u e s i a . E s t a n a s c e f o r a d a i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o q u e d e s c r e v e m o s a q u i , possui outro modo de entender o m u n d o , diferente daquele dos aristocratas e monges. A b u r g u e s i a não u s a m a i s a a l e g o r i a p l a t ô n i c a p a r a e n t e n d e r a s c o i s a s , m a s , s i m , a razão i n s t r u m e n t a l . A p a r t i r d e 1215 s u a h i s t ó r i a é o u t r a , d e c e r t a f o r m a s e p a r a d a da h i s t ó r i a d a i n s t i t u i ç ã o c r i s t ã . D o p e r í o d o e n t r e 1 0 5 4 - 1 2 1 5 , o e p i s ó d i o q u e fica m a i s b e m g r a v a d o n a m e m ó r i a é o d a h e r ó i c a luta d o p a p a G r e g ó r i o V I I c o m o i m p e r a d o r H e n r i q u e IV, e p i s ó d i o 282

t r a d i c i o n a l m e n t e c h a m a d o d e " l u t a d a s i n v e s t i d u r a s " , m a s q u e foi v e r d a d e i r a " r e v o l u ç ã o p a p a l " , c o m o j á s e a f i r m o u . R e a l m e n t e , o s Dictatus papae d e 1075 s ã o declaração revolucionária: neles o p a p a simplesmente se declara, s e m m a i s nem m e n o s , "dono da Igreja universal", expressão realmente inaudita, que se distanc i a v a d a t r a d i ç ã o a n t e r i o r , no s e n t i d o d e p e r s o n i f i c a r , p o r a s s i m d i z e r , t o d a a Igreja na figura d o p a p a . N o c a l o r d a h o r a d a l u t a p e l a " l i b e r d a d e d a I g r e j a " (libertas ecclesiae) contra as usurpações feudais e os avanços do islamismo, podem-se c o m p r e e n d e r esses excessos de linguagem, m a s os canonistas e teólogos d o Vaticano souberam aproveitar do impacto positivo que a postura de Gregório VII teve na sociedade européia toda, para cristalizar as declarações papais como duradouras e indeléveis. R e a l m e n t e , o r e s u l t a d o d a a ç ã o e n é r g i c a d o p a p a foi r á p i d o e benéfico. L i b e r a r a m - s e n o v a s f o r ç a s n a s o c i e d a d e : o c o m é r c i o r e s s u r g i u e libertou-se d o s a t a q u e s d o s bellatores ( g u e r r e i r o s ) , i n i c i o u - s e e f e t i v a m e n t e u m a r e f o r m a agrária, d i m i n u i u a v i o l ê n c i a n o c a m p o , c o n s t r u í r a m - s e c i d a d e s livres d o s i m p o s t o s feudais, d e s a b r o c h a r a m e f l o r e s c e r a m a s u n i v e r s i d a d e s e o p e n s a m e n t o e s c o l á s t i c o . Foi c o m entusiasmo que o s intelectuais da época acolheram a idéia d e u m papado u n i v e r s a l , o q u e , n a r e a l i d a d e , s i g n i f i c a v a p a r a e l e s a l i b e r t a ç ã o d a I g r e j a d o s laços feudais, b e m c o m o o desenvolvimento das comunidades após o s duros "séculos de ferro" (séculos IX a X I ) , q u a n d o a violência brutal imperava. Nesse sentido, a colaboração do papado no desenvolvimento europeu é fato incontestável. Ocorre q u e v i v e m o s na A m é r i c a L a t i n a e i n t e r p r e t a m o s a h i s t ó r i a a p a r t i r d a nossa realidade. O r a , u m e x a m e cuidadoso d o impacto da instituição católica sobre a e v o l u ç ã o d e s t a s t e r r a s e d e s u a g e n t e n ã o leva a c o n c l u s õ e s t ã o e u f ó r i c a s c o m o a s que tiramos e m relação à Europa. O s c a n o n i s t a s e n t ã o l o g o s e r e u n i r a m p a r a fixar d e f i n i t i v a m e n t e e m leis e s t á v e i s a s c o n q u i s t a s d o p a p a d i a n t e d o i m p e r a d o r . N a l ó g i c a d e s s a s leis, i n s p i r a d a s — c o m o j á s e d i s s e — n o d i r e i t o r o m a n o , a I g r e j a t i n h a d e ser e n t e n d i d a c o m o universitas, ou seja, corporação abrangente e universal. Usavam-se também n a é p o c a t e r m i n o l o g i a s c o m o collegium, societas, corpus ( c o l é g i o , u n i v e r s i d a d e , c o r p o r a ç ã o ) , t o d a s p r o v e n i e n t e s d o Corpus iuris d o i m p e r a d o r J u s t i n i a n o ( 4 8 3 565), o codificador do direito romano. O e s p e c í f i c o d a lei c o r p o r a t i v a é a p r e e m i n ê n c i a d a d a à c o r p o r a ç ã o a c i m a do i n d i v í d u o . O c o r p o s o c i a l v a l e m a i s q u e a p e s s o a . Eis o p o n t o , a l i á s , e m q u e o cristianismo dos primeiros séculos n ã o podia aceitar o direito r o m a n o , pois o e v a n g e l h o e r a t a x a t i v o e m d e f e n d e r o v a l o r d a p e s s o a h u m a n a a c i m a d a s instituições. No direito canónico, o importante não é o bispo, nem o abade, n e m o pároco, n e m o s u p e r i o r r e l i g i o s o e n q u a n t o p e s s o a , n e m m u i t o m e n o s o s i m p l e s fiel, m a s , s i m , a d i o c e s e , a a b a d i a , a p a r ó q u i a o u a o r d e m religiosa. A r i g o r , o s "direitos h u m a n o s " n ã o c a b e m d e n t r o d o d i r e i t o c a n ó n i c o . A lógica é a d a c o r p o r a ç ã o e de seu desenvolvimento. A tradição de comunhão e participação segundo a famosa i m a g e m d o c o r p o m í s t i c o d e C r i s t o ( I C o r 12,27) é a b a n d o n a d a e m f a v o r d e u m a i d e o l o g i a s e g u n d o a q u a l a " c a b e ç a " se situa b e m a c i m a d o " c o r p o " , e s e torna até i n d e p e n d e n t e dele. I s s o , e m flagrante oposição c o m o p e n s a m e n t o d o apóstolo Paulo, p o r e x e m p l o . O direito c a n ó n i c o apresenta a " c a b e ç a " c o m o tutora d a c o m u n i d a d e , e 283

o " c o r p o " c o m o sendo d e m e n o r , incapaz d e s e g o v e r n a r por si próprio. O q u e fica claro e m tudo isso é q u e foi u m a c o n j u n t u r a histórica (a luta e n t r e G r e g o r i o V I I e H e n r i q u e IV) que uniu a instituição cristã d o O c i d e n t e c o m a tradição do direito r o m a n o , n ã o uma decorrência direta dos princípios d o cristianismo na sua identidade evangélica. H o u v e p o i s , no final d o s é c u l o X I , m u d a n ç a radical no m o d o c o m o a I g r e j a o c i d e n t a l s e e n t e n d i a a si p r ó p r i a . N ó s n o s r e c o n h e c e m o s b e m n e s s a autocompreensão, enquanto experimentamos dificuldades e m imaginar as Igrejas cristãs do primeiro milênio. A p a s s a g e m do princípio representativo das igrejas locais ( d o s m o s t e i r o s l o c a i s , d o s l u g a r e s d e p e r e g r i n a ç ã o e t c . ) p a r a o p r i n c í p i o corporativo ulterior é o fruto específico d a elaboração d o direito canónico q u e d e u à Igreja c a t ó l i c a fisionomia n o v a , p e l o m e n o s o f i c i a l m e n t e . C o m o c o r r e r d o s tempos, a "revolução papal" deixou de atuar positivamente sobre a sociedade, e a i n s t i t u i ç ã o c o m e ç o u a s e e n t r i n c h e i r a r . I s s o s e t o r n o u b e m visível p o r o c a s i ã o d a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a , q u e e m e r g i u d a l o n g a h i s t ó r i a d a b u r g u e s i a , i s t o é, d e u m a h i s t ó r i a d i f e r e n t e . N a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a , a Igreja a p a r e c i a c o m o e x p r e s s ã o t í p i c a d o a n t i g o r e g i m e . N a v e r d a d e , j á f a z i a t e m p o q u e a I g r e j a oficial n ã o c o n s e g u i a m a i s escapar dos enleios do poder e da prepotência. Lorde Acton, historiador inglês do século passado, s e m p r e repetia: " T o d o poder corrompe, e o poder absoluto c o r r o m p e de f o r m a a b s o l u t a . " O r a , a p ó s a r e v o l u ç ã o p a p a l , a Igreja o c i d e n t a l g a n h o u u m poder praticamente absoluto sobre as populações da Europa ocidental. U s a n d o o u t r a i m a g e m , o h i s t o r i a d o r i n g l ê s A r n o l d T o y n b e e fala d a "intoxication ofvictory" ("intoxicação d a v i t ó r i a " ) q u e a t i n g i u o p a p a d o n o p e r í o d o e n t r e 1054 e 1 2 1 5 , e e l e faz u m a l i g a ç ã o e n t r e e s s a s d a t a s g l o r i o s a s e a d a t a f a t í d i c a d e 1 8 7 0 , q u a n d o R o m a foi i n v a d i d a p e l a s t r o p a s d o rei V i c t o r E m a n u e l a s q u a i s a c a b a r a m c o m o s E s t a d o s pontifícios n a I t á l i a . 10

M a s voltemos ao assunto. A o s poucos os postulados que sustentaram a r e v o l u ç ã o p a p a l d o final d o s é c u l o X I f o r a m s e n d o a c e i t o s p o r t o d o s e fizeram com q u e a instituição eclesiástica do Ocidente tivesse vida tão longa. Efetivamente, Roma conseguiu "exportar" essa revolução, originária d o sul d a F r a n ç a , para a Inglaterra, a A l e m a n h a e por toda a E u r o p a ocidental. Por toda parte, a libertação dos laços do feudalismo se realizou na b a s e dos princípios corporativos do direito canónico. M a s tudo na história t e m seu preço. N o m o m e n t o em q u e a cultura européia deixou de aceitar os postulados fundantes do direito canónico, t o d o o a r c a b o u ç o d a t r a d i ç ã o legal d e s é c u l o s c o m e ç o u a c a m b a l e a r e a r u i r p o r si próprio.

2. A história

do período

1054-1215

Focalizemos melhor essa história. T u d o começou por Cluny, o supermosteiro n o sul d a F r a n ç a q u e d e s d e o s é c u l o X e m e r g i a c o m o a p r i m e i r a c o n g r e g a ç ã o religiosa p r o p r i a m e n t e dita. E s p a l h a n d o - s e p e l a r e g i ã o d a B u r g ú n d i a , e m f o r m a de priorados ligados ao mosteiro central, a experiência ganhou rapidamente importância e resultou n u m a das maiores potências feudais da França. Iniciada n o s v a l e s d o rio S a o n a , e x p a n d i u - s e e m d i r e ç ã o a o s v a l e s d o L o i r e , D o u b s , G a r o n a , 284

C h a r a n t e , V i e n a , R ó d a n o , s e m p r e n a F r a n ç a . E n t r e 1058 e 1109, a t i n g i u o rio Pó no n o r t e d a Itália; d e p o i s d e 1109, o s rios R e n o e D a n ú b i o , c o b r i n d o , a s s i m , g r a n d e parte do universo cristão de então. H á o u t r o p o n t o , d e c i s i v o p a r a a h i s t ó r i a d o c r i s t i a n i s m o o c i d e n t a l e, por c o n s e g u i n t e , d o c r i s t i a n i s m o l a t i n o - a m e r i c a n o : a p a r t i r d o final d o s é c u l o 10, o m o n a q u i s m o d e Cluny concebe grandioso plano político, em aliança com o s papas de R o m a : o estabelecimento de cristandade unida em torno de R o m a e do papado, segundo o modelo corporativo, que cobrisse toda a parte ocidental do antigo império r o m a n o . C o m a s e p a r a ç ã o e n t r e R o m a e as I g r e j a s o r t o d o x a s , o p e r a d a e m 1 0 5 4 , o plano entra decididamente na fase de execução. Já durante os cem anos que p r e c e d e m o p o n t i f i c a d o d e G r e g ó r i o V I I ( 1 0 7 3 - 1 0 8 5 ) , a v i n c u l a ç ã o e n t r e a inspiraç ã o c l u n i a c e n s e e o p a p a d o d e R o m a é c o n s t a n t e . S u c e d e m - s e , n e s s e p e r í o d o , sete p a p a s c l u n i a c e n s e s , o s q u a i s m a n t ê m e s t r e i t a l i g a ç ã o c o m o f a m o s o m o s t e i r o . Para c o n s o l i d a r a s r e f o r m a s d e G r e g ó r i o V I I , c i n c o p a p a s c l u n i a c e n s e s o s u c e d e r a m na sé r o m a n a a t é 1153. N o t o t a l , s ã o q u a s e d u z e n t o s a n o s d e h e g e m o n i a c l u n i a c e n s e sobre a Santa Sé.

3. A revolução

gregoriana

T r a t a - s e , por c o n s e g u i n t e , d e v e r d a d e i r a r e v o l u ç ã o d e n t r o d a instituição cristã, e não de simples "reforma", como pretende a maioria dos historiadores e c l e s i á s t i c o s . " C o m o m u i t o b e m intui R o s e n s t o c k - H u e s s i , e l a foi m ã e d a s r e v o l u ç õ e s e u r o p é i a s . I s s o s e e v i d e n c i a q u a n d o e s t u d a m o s a figura d e H i l d e b r a n d o , m a i s t a r d e p a p a G r e g ó r i o V I I ( 1 0 7 3 - 1 0 8 5 ) , p o i s e l e p o s s u í a por e x c e l ê n c i a o espírito d e C l u n y , a l i a d o à v o n t a d e d e m u d a n ç a v i g e n t e e m R o m a . H i l d e b r a n d o n u n c a foi m o n g e no mosteiro de C l u n y , p o r é m constituiu a expressão mais significativa do e s p í r i t o p o l í t i c o q u e i n s p i r a v a o s h o m e n s d o m o s t e i r o n a q u e l e p e r í o d o crucial p a r a o s d e s t i n o s d o c a t o l i c i s m o . E r a i m b u í d o d e e s p í r i t o p r a g m á t i c o e c o m e ç o u , a n t e s de t u d o , a s a n e a r a s finanças d o s m o s t e i r o s e p r i o r a d o s l i g a d o s a C l u n y . O camerarius ( c a m a r e i r o ) s e t o r n o u a figura p r i n c i p a l d o m o s t e i r o , v e r d a d e i r o " m i n i s t r o da f a z e n d a " . A o s p o u c o s e s s e c a m a r e i r o p a s s o u a u s u r p a r a s t e r r a s e m redor d o s m o s t e i r o s e c o n s t r u i r u m i m p é r i o f u n d i á r i o . A s b e l a s igrejas e m e s t i l o r o m â n i c o q u e o s t u r i s t a s a d m i r a m e m t o d a região a o r e d o r d e C l u n y e pela B u r g ú n d i a são as m a r c a s q u e n o s ficaram d e s s a c o n c e n t r a ç ã o d e t e r r a s n a s m ã o s d o s m o n g e s c a m a r e i r o s . A t é h o j e o p o v o d a r e g i ã o d o rio S a o n a s e l e m b r a , q u a n d o fala d a s g l ó r i a s p a s s a d a s d o a b a d e d e C l u n y : "Il é t a i t p l u s r i c h e q u e le r o i " ( E r a m a i s rico q u e o r e i ) . U m p r o v é r b i o p o p u l a r q u e c i r c u l o u d u r a n t e séculos dizia: 1 2

Partout où le vent vente L'abbaye de Cluny a rente.

P o r onde sopra o vento Cluny tem renda.

A s v é s p e r a s d a R e v o l u ç ã o F r a n c e s a , c e r c a d e u m t e r ç o d o t e r r i t ó r i o f r a n c ê s se e n c o n t r a v a , d e s t a f o r m a , n a s m ã o s d e m o s t e i r o s , c o n v e n t o s e i n s t i t u i ç õ e s católicas e m g e r a l , o q u e e x p l i c a a raiva c o m q u e o p o v o d a F r a n ç a d e s t r u i u t a n t o s 285

m o n u m e n t o s l i g a d o s à t r a d i ç ã o c l u n i a c e n s e , e n t r e 1789 e 1823. N a fúria d e s s a r e v o l u ç ã o , a igreja a b a c i a l d e C l u n y foi t o t a l m e n t e d e s t r u í d a . A g r a n d e o b r a r e a l i z a d a p e l a a l i a n ç a e n t r e C l u n y e R o m a foi t r a n s f o r m a r u m império m o n a c a l e m i m p é r i o clerical. N e s s e c o n t e x t o , C l u n y n ã o h e s i t o u e m organizar verdadeira guerra de violência cultural contra os camponeses da F r a n ç a e m a i s t a r d e d e o u t r o s p a í s e s c a t ó l i c o s , n o i n t u i t o d e firmar s e u i m p é r i o e s p i r i t u a l nas regiões p o r o n d e a e x p e r i ê n c i a se e x p a n d i a . E m c o n t r a s t e c o m s e u s a n t e c e s s o r e s da t r a d i ç ã o m o n a c a l — o s b e n e d i t i n o s d a a n t i g a o b s e r v â n c i a , o s q u a i s p r i m a v a m pela p a c i f i c i d a d e — , o s m o n g e s d e C l u n y u s a v a m a s m a i s d i v e r s a s f o r m a s d e violência cultural, q u e a c a b a r a m suscitando reações. N o a u g e d o m o v i m e n t o , j á se p r o c e s s a v a a p r i m e i r a g r a n d e c o n t e s t a ç ã o , a r t i c u l a d a por s ã o B e r n a r d o ( f 1 1 5 3 ) , o qual d e s l o c o u o e i x o d a c r i s t a n d a d e d e C l u n y p a r a C i s t e r e l i g o u 160 m o s t e i r o s à r e f o r m a c i s t e r c i e n s e , b a s e a d a n a p o b r e z a , n o t r a b a l h o n o c a m p o , no a b a n d o n o d e u m estilo d e v i d a a r i s t o c r á t i c o e l u x u o s o . A a b a d i a d e C i s t e r n ã o c o n t a v a c o m a s imensas cavalarias que tanto caracterizavam o espírito de Cluny (o m o n g e a cavalo e r a , por a s s i m d i z e r , o s í m b o l o d e C l u n y ) . S ã o B e r n a r d o c o n s t i t u i u a p r i m e i r a grande crítica à reforma romano-cluniacense, não a única n e m a definitiva, pois até hoje o " e s p í r i t o d e C l u n y " s o b r e v i v e p o d e r o s a m e n t e n o i n t e r i o r d a i n s t i t u i ç ã o católica. O p o n t i f i c a d o d o p a p a I n o c ê n c i o I I I ( 1 1 9 8 - 1 2 1 6 ) foi a m a i s c l a r a d e m o n s t r a ç ã o do alcance real da revolução cluniacense-gregoriana por toda a cristandade. I n o c ê n c i o III i n t e r v e i o e m 1198 na I t á l i a , e m 1199 na Sicília e n a A l e m a n h a , e m 1202 e m L i ã o , e m 1204 e m C o n s t a n t i n o p l a , e m 1206 e m N i c o s i a . E m 1205 o p a p a era á r b i t r o d o i m p é r i o ; c o n d e n o u e m 1 2 1 0 a s t e s e s d e A r i s t ó t e l e s no c o n c í l i o d e P a r i s ; e x c o m u n g o u o rei d a I n g l a t e r r a e m 1 2 1 2 . F i n a l m e n t e , c o n v o c o u o q u a r t o concílio d e L a t r ã o e m 1215 (o d é c i m o s e g u n d o e c u m ê n i c o ) , n o q u a l firmou d e f i n i t i v a m e n t e o p o d e r clerical s o b r e a c r i s t a n d a d e , a t r a v é s d a o b r i g a ç ã o d a c o n f i s s ã o auricular anual e outros dispositivos. N o m e s m o ano fundou a universidade de P a r i s , a t e r c e i r a c o l u n a d o p o d e r na E u r o p a c r i s t ã , a universitas, a o l a d o d o sacerdotium e d o imperium. A r e v o l u ç ã o c l u n i a c e n s e - g r e g o r i a n a c r i o u p a r a o s s é c u l o s v i n d o u r o s a figura d o p á r o c o ou v i g á r i o , o r e p r e s e n t a n t e e f e t i v o d o s i s t e m a j u n t o à s p o p u l a ç õ e s r u r a i s , além de dar à paróquia u m sentido novo e até então inusitado. E s t a m o s diante d e uma vinculação antes nunca experimentada entre a tradição monástica e a violência cultural. A religião passou a ser m a n i p u l a d a c o m grande maestria, no sentido d e c o n s o l i d a r a a s c e n d ê n c i a d o s c l é r i g o s - m o n g e s s o b r e o p o v o . A v i o l ê n c i a d o s m é t o d o s p e l o s q u a i s o p o v o c a m p o n ê s e r a e n q u a d r a d o no s i s t e m a e c l e s i á s t i c o se t o r n o u p r á t i c a c o r r i q u e i r a e s e e x p r i m i a n o s p o d e r o s o s i n s t r u m e n t o s d e captação do imaginário popular, quais s e j a m , a arquitetura, a iconografia, a liturgia, a c a t e q u e s e , o s s a c r a m e n t o s , a p a r ó q u i a , a l é m d a f o r m a ç ã o d e u m imaginário do céu, da terra e d o inferno de c u n h o fundamentalmente político. Doravante o céu indicaria o imaginário celestial d a dominação, enquanto o povo c a m p o n ê s ficaria c o n d e n a d o a n u n c a s e r s u f i c i e n t e m e n t e c o n v e r t i d o e c a t e q u i z a d o , sempre entregue aos vícios que exigiam a presença renovada de pregadores e c o n f e s s o r e s : v i v e no " p u r g a t ó r i o " ; a t e r r a , p o r s u a v e z , é d o s m o n g e s , t a n t o m a t e r i a l

286

q u a n t o e s p i r i t u a l m e n t e . S ã o e l e s q u e s e b e n e f i c i a m d e l a e d e l a t i r a m seu p o d e r através d o trabalho dos camponeses, que são os primeiros destinatários dessa " p a s t o r a l d o m e d o " , na e x p r e s s ã o d e J e a n D e l u m e a u .

4. Elementos

teóricos

da

revolução

P o d e m o s , a esta altura, nos perguntar c o m o se processou essa transformação tão importante de toda a Igreja e m suas diversas estruturas. Para encontrar a resposta, tentamos estabelecer certa o r d e m na verdadeira avalancha de document o s q u e e s s a r e v o l u ç ã o d e i x o u n o s a r q u i v o s e c l e s i á s t i c o s , u m p o u c o p o r toda a p a r t e da Europa, e p r o p o m o s o seguinte q u a d r o :

Clericalização da instituição cristã com a revolução cluniacense-gregoriana ( 1 0 5 4 - 1 2 1 5 )

Elementos

teóricos

Elementos

oráticos

ad intra 1. Teologia submissa ao

1. 0 sistema dos "oblatos"

direito canónico

2. 0 sistema do internato

2. A Bíblia transformada

3. O princípio da obediência

em catecismo universal

ad extra 3. Método silogístico

1. Meios de comunicação

4. A corporação dos teólogos

(juízo-final)

submissa ao magistério

2. Devoção aos defuntos

5. 0 magistério desligado

do sensus

(missa de sétimo dia)

fidelium

3. Demonização da mulher

6. Saber erudito sem

(quatro imagens de Maria)

ligação com a praxis pastoral 7. Liturgia universal 8. 0 bispo fiscal do clero

Destacamos oito pontos teóricos. E m primeiro lugar, e principalmente, o saber teológico começa a apoiar-se n u m direito canónico universalizado. A primeira providência q u e os cluniacenses t o m a m , ao apoderar-se dos instrumentos de p o d e r , é c e r c a r - s e d e c a n o n i s t a s p a r a l e g i t i m a r s u a política e s u b j u g a r o livre e x e r c í c i o d a t e o l o g i a . O filósofo S p i n o z a v i u n e s s a p a s s a g e m d o s a b e r p a r a o obedecer o mais g r a v e erro da teologia. 13

287

"O mais grave erro de teologia foi ter ocultado a diferença entre conhecer e obedecer, fazer-nos tomar os princípios da obediência por modelos de conhecimento." 14

A Bíblia p a s s a a s e r " t r a d u z i d a " e m c a t e c i s m o u n i v e r s a l s o b a f o r m a d i d á t i c a de diálogo f o r m a l e n t r e o p a d r e ( q u e s a b e ) e o "fiel" ( q u e n ã o s a b e ) . E s s e c a t e c i s m o d e s c o n h e c e a s p a r t i c u l a r i d a d e s d e c u l t u r a s e s i t u a ç õ e s e s p e c í f i c a s in tempore e in loco; d e s t a f o r m a , e n f u n i l a o c o m p o r t a m e n t o r e l i g i o s o e m c a n a i s a p r o p r i a d o s , o n d e a experiência é a b a n d o n a d a a favor da pura tradição. N a teologia i m p e r a o m é t o d o silogístico e escolástico, o qual instaura n o v a relação c o m a v e r d a d e revelada q u e se e x p r i m e no d o g m a e n a doutrina. T u d o s e d o g m a t i z a e se t r a d u z e m d o u t r i n a , d e i x a n d o p o u c o espaço à livre p e s q u i s a e e x p e rimentação. O t e ó l o g o d e i x a d e ser s i m p l e s fiel i l u m i n a d o pela inteligência d a fé, cuja experiência religiosa nutre a c o m u n i d a d e , p a r a e n t r a r n u m a c o r p o r a ç ã o "profissional" de intelectuais s u b o r d i n a d o s à a u t o r i d a d e d o magistério eclesiástico. E s s e magistério d e i x a d e ser porta-voz d o s fiéis e de s u a m a n e i r a d e e n t e n d e r a fé e a vida cristã (sensus fidelium) e se t r a n s f o r m a e m a p a r a t o a d m i n i s t r a t i v o e burocrático de g o v e r n o (potestas iurisdictionis), sob o controle de u m pontífice s e m p r e mais parecido c o m u m m o n a r c a . N a Igreja antiga, o sensus fidelium inspirava o s d o c u m e n t o s d o m a g i s t é r i o , s e g u n d o se p e r c e b e e m n u m e r o s o s textos, c o m o nas c a r t a s de s ã o P a u l o , por e x e m p l o , o u a i n d a nos escritos d o bispo C i p r i a n o do s é c u l o III n a Africa d o Norte. U m a d a s m a i o r e s p e r d a s d a reforma c l u n i a c e n s e - g r e g o r i a n a , e m relação à Igreja a n t e r i o r , consiste no d e s a p a r e c i m e n t o q u a s e total d a sensibilidade pelo sensus fidelium. O s d o u t o r e s d a Igreja se reservam a inter-pretação e explicação dos mistérios d a fé, e x c l u i n d o o saber d o b a i x o clero e d o povo e m geral. A d o u t r i n a oficial da fé j á não p a r t e da experiência v i v i d a n a b a s e d o edifício c r i s t ã o , m a s , s i m , da elaboração teórica na c ú p u l a d o sistema. E x a t a m e n t e por isso, o s doutores p o u c o s e i m p o r t a m c o m q u e s t õ e s d e inculturação d o e v a n g e l h o , m a s r e p e t e m a s m e s m a s v e r d a d e s para todos os t e m p o s e m todos o s lugares. E a theologia perennis (teologia perene), que n u n c a m u d a n e m necessita adaptar-se, pois v a l e s e m p r e para t o d o s . A liturgia s e h o m o g e n e i z a e p e r d e a d i v e r s i d a d e d e a n t e s , q u a n d o a i n d a e r a e x p r e s s ã o ritual d e d i v e r s o s p o v o s e d i v e r s a s c u l t u r a s — p r i n c i p a l m e n t e m e d i t e r râneas — diante da m e n s a g e m evangélica. U m a única língua litúrgica se impõe, o l a t i m , a s s i m c o m o u m ú n i c o m o d o d e c e l e b r a r a e u c a r i s t i a e, a o m e s m o t e m p o , uma única pessoa para administrar os sacramentos, o pároco. O bispo se converte e m h i e r a r c a e a b a n d o n a , e m larga m e d i d a , o p a s t o r e i o d i r e t o d a s c o m u n i d a d e s , para t o r n a r - s e fiscal d o c l e r o . A l g u n s b i s p o s a i n d a se r e l a c i o n a m d i r e t a m e n t e c o m o povo, m a s o c u i d a d o p r i n c i p a l a g o r a é c o m a p r o v i s ã o d a s p a r ó q u i a s , a f o r m a ç ã o d o clero ( o b r a a c i m a d e t o d a s a s o u t r a s ) e a c o r r e t a e r e g u l a r " a d m i n i s t r a ç ã o " d o s sacramentos em c a d a paróquia.

5. Elementos

práticos

da

revolução

N o plano prático, a revolução gregoriana formou q u a d r o s no interior da i n s t i t u i ç ã o , ao m e s m o t e m p o e m q u e p r o c u r o u dirigir o s d e s t i n o s d a s o c i e d a d e . H á pois u m t r a b a l h o ad intra e ad extra. N o l i m i t e d e s t a s p á g i n a s , s ó p o d e m o s a s s i 2HH

n a l a r c e r t o s e l e m e n t o s q u e c o n s i d e r a m o s i m p o r t a n t e s p a r a a a n á l i s e d a história d a i n s t i t u i ç ã o na A m é r i c a L a t i n a . Havia, em primeiro lugar, o sistema dos "oblatos". O costume de oferecer c r i a n ç a s a D e u s a t r a v é s d o s m o s t e i r o s era d e i m p o r t â n c i a vital p a r a o s u c e s s o d o projeto. Essas crianças e r a m , p o r assim dizer, predestinadas desde a mais tenra idade à vida monacal. N o r m a l m e n t e e r a m crianças de pais pobres, m a s havia t a m b é m c a s o s e m q u e o s n o b r e s o f e r e c i a m s e u s filhos a D e u s . A i d a d e de s e t e a n o s e r a o f i c i a l m e n t e c o n s i d e r a d a o l i m i t e m í n i m o p a r a q u e u m " o b l a t o " e n t r a s s e no c o n v e n t o , m a s , na p r á t i c a , h o u v e o b l a t o s d e t r ê s o u q u a t r o a n o s , s e n d o q u e a l g u n s já eram predestinados desde o ventre da m ã e à vida "consagrada" a Deus através d e u m a " p r o m e s s a " p o r p a r t e d o s p a i s . N o c â n o n e 59 d a r e g r a d e s ã o B e n t o , verificas e c o m o e s s a o b l a ç ã o , feita p o r o u t r e m , e r a j u l g a d a ligar m o r a l m e n t e a c r i a n ç a , p o i s n ã o o b e d e c e r a u m a " p r o m e s s a " feita a D e u s , m e s m o p o r o u t r e m , s i g n i f i c a v a c a i r na a p o s t a s i a , c o m t o d a s a s c o n s e q ü ê n c i a s j u r í d i c a s e t e o l ó g i c a s . A r e g r a d e s ã o Bento estipula minuciosamente tudo, no sentido de interditar à criança oblata — s o b r e t u d o a p r o v e n i e n t e d e f a m í l i a rica — o c a m i n h o a o m a t r i m ô n i o e à v i d a financeira independente: " E assim todos os caminhos se fechem para que não permaneça nenhum meio por onde a criança possa perder-se [leia-se: deixar o mosteiro], o que não a c o n t e ç a ! "

15

A i n s t i t u i ç ã o d a o b l a ç ã o d e c r i a n ç a s e j o v e n s a o s m o s t e i r o s , q u e ficou i n c o n t e s t e , p e l o m e n o s o f i c i a l m e n t e , e n t r e o s s é c u l o s V I e X I I , q u a n d o foi criticada por h o m e n s c o m o s ã o B e r n a r d o , foi a b o l i d a p e l o p a p a M a r t i n h o V e m 1 4 3 0 . M a s e s s a f o r m a d e r e c r u t a r p e s s o a s p a r a a i n s t i t u i ç ã o d e c e r t a f o r m a se m a n t é m até hoje, de maneira mais ou m e n o s camuflada sobretudo através das promessas f e i t a s p e l a m ã e o u a i n d a d o c o n f i c i o n a m e n t o d o a m b i e n t e , s o b o b e n e p l á c i t o da instituição. Esses métodos c o n t i n u a m alimentando-se em cima da pobreza do povo, pois para muitos pais pobres a carreira religiosa oferece excelentes perspectivas de s o b r e v i v ê n c i a a p e l o m e n o s u m d e s e u s filhos, a l é m d e l h e s c o n f e r i r status d e s e jável na sociedade. P o d e m o s afirmar e m geral que o sistema dos oblatos, de forma explícita ou camuflada, sempre teve g r a n d e peso no funcionamento tanto do s i s t e m a m o n a c a l q u a n t o clerical ad intra. H á nele p r o f u n d o d e s r e s p e i t o p e l a cria n ç a e s e u m o d o d e ser. O s a d u l t o s e e s p e c i f i c a m e n t e o s m o n g e s i n c u l c a m na a l m a s e n s í v e l d a c r i a n ç a u m i m a g i n á r i o m o n á s t i c o l i g a d o a o f a s c í n i o d a religião e d e u m a vida s a n t a , h e r ó i c a , a l é m d e a c e n a r p a r a e x c e l e n t e a c e i t a ç ã o p o r p a r t e da s o c i e d a d e . O q u e p e s o u d e fato na h i s t ó r i a d a i n s t i t u i ç ã o f o r a m a s " v o c a ç õ e s p r i s t i n a s " , d o s q u e n ã o t i v e r a m na v i d a u m m o m e n t o d e e n c o n t r o n o r m a l c o m o m u n d o tal q u a l é. E m s e g u n d o l u g a r , d e v e s e r a n a l i s a d o o s i s t e m a d e internato. O p r e s s u p o s t o d o m o d e l o m o n a c a l e clerical é q u e a e d u c a ç ã o d e v e r e a l i z a r - s e fora d o a m b i e n t e normal da vida, longe da " m u n d a n i d a d e " . A base da educação no internato d o m o s t e i r o e s t á n a r e l a ç ã o e n t r e o m o n g e e a c r i a n ç a , r e l a ç ã o b a s e a d a n a disciplina e n o afeto a o m e s m o t e m p o . E s s e t i p o d e e d u c a ç ã o d e i x o u m a r c a i n d e l é v e l n o sistema educacional europeu e m geral e contrasta fundamentalmente com a e d u c a ç ã o tal q u a l s e p r a t i c o u n a s c o m u n i d a d e s i n d í g e n a s d a A m é r i c a L a t i n a e d o 289 Í0. História do

Cristianismo...

Caribe. Mais do q u e c o m e n t á r i o s , apresentamos aqui u m texto d o a n o 1000, proveniente de um mosteiro n a A l e m a n h a : "Todos esses meninos, se quiserem poupar suas costas (e não apanhar), tenham cuidado... Que ninguém se atreva a fazer u m sinal ou sequer mover o olho a outro jovem, ou sorrir para ele, ou mostrar qualquer familiaridade, ou até sentar-se, de sorte que sua face vire e m direção ao outro..." 16

Outro texto é do bispo de B a m b e r g a , de 1109: " O mundo inteiro é um exílio e enquanto vivemos nesta vida somos peregrinos para o Senhor. Por isso precisamos de estalagens, hospedarias espirituais, e lugares de descanso como os mosteiros oferecem aos peregrinos. O fim de tudo se aproxima e o mundo todo está mergulhado na perdição. Para isso é bom multiplicar os mosteiros para os que querem fugir deste mundo e salvar suas almas." 17

O s i s t e m a d e i n t e r n a t o t e n d e a f o r m a r u m t i p o d e s a c e r d o t e q u e se a p r o x i m a do monge. Vive sem m u l h e r n e m família, sem misturar-se aos d e m a i s , c o m m o d o s b e m e s p e c i a i s d e v i d a . É u m monacus ( d e monos: s o l t e i r o , s o l i t á r i o ) p o r e x c e l ê n c i a . M a s a q u i c o n v é m n ã o m i s t u r a r o s p l a n o s . O monacus clerical d e h o j e n ã o p r o v é m diretamente da experiência d o s famosos monges d o deserto da antiguidade cristã no E g i t o , na S í r i a e a l h u r e s , m a s e s p e c i f i c a m e n t e d a e x p e r i ê n c i a d o s u p e r m o s t e i r o de Cluny na França a partir do século X e das dinâmicas da revolução gregorianoc l u n i a c e n s e . E aí q u e d e v e m o s p r o c u r a r o m o d e l o d o m i n i s t r o c a t ó l i c o a s s i m c o m o se a p r e s e n t a a i n d a h o j e n a s o c i e d a d e . U m t e r c e i r o e l e m e n t o q u e c o m p õ e a força d o s i s t e m a m o n o c a l e clerical ad intra é o p r i n c í p i o d a obediência. M u i t o significativamente a s igrejas d e p e n d e n t e s d o s u p e r m o s t e i r o d e C l u n y e r a m c h a m a d a s de oboedientiae (obediências). A o b e d i ê n c i a se aplica, e m primeiro lugar, a o prior ou superior d e s s a igreja s u b a l t e r n a . E s t e t e m de ouvir o a b a d e s e m o c o n t e s t a r e m n a d a , e x a t a m e n t e c o m o o v a s s a l o d i a n t e d o rei. O prior é v a s s a l o eclesial. O u v e seu s e n h o r eclesial q u e é o a b a d e d e C l u n y , t o d o poderoso, e fica calado. N ã o p e n s a e m "dialogar". O c o r r e q u e o s próprios eclesiásticos hoje j á n ã o a c e i t a m esse tipo d e o b e d i ê n c i a s e m diálogo. E u m d o s p o n t o s n e v r á l g i c o s da atual crise d a instituição, p o i s o m u n d o m o d e r n o c o n v i d a a não ficar c a l a d o , a falar e d i a l o g a r , a n ã o a c e i t a r c e g a m e n t e u m a o r d e m . E s s a n o v a a t i t u d e se c h o c a f r o n t a l m e n t e c o m a o b e d i ê n c i a m o n a c a l tal qual se p r a t i c o u d u r a n t e s é c u l o s . P a s s a m o s a o s e l e m e n t o s ad extra. A s s i m c o m o o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e m o n g e e j o v e m scolasticus, s e j a e l e o b l a t o o u n ã o , e r a vital p a r a o p r o c e s s o d o m o n a q u i s m o c l u n i a c e n s e ad intra, a s s i m o c o r r e u c o m o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e m o n g e e c o m u n i c a d o r s o c i a l , no nível d a r e l a ç ã o e n t r e o p r o j e t o c l u n i a c e n s e e a s o c i e d a d e . E m g e r a l , e s s a r e l a ç ã o foi s a t i s f a t ó r i a . O s m o n g e s c o n s e g u i r a m i m p u l s i o n a r d i v e r s a s f o r m a s d e c o m u n i c a ç ã o social e, a s s i m , f a z e r c h e g a r o p r o j e t o a o p o v o . E m p r i m e i r o l u g a r , o s m o n g e s c o n t r o l a v a m c o m eficácia o s m e i o s d e c o m u n i c a ç ã o . Foi s o b r e t u d o n o u s o d a p i n t u r a e m g r a n d e s e s p a ç o s d e p a r e d e e t a m b é m da escultura que Cluny inovou. Esses recursos e r a m na época equivalentes ao que significa h o j e a T V , tal s e u i m p a c t o s o b r e o i m a g i n á r i o p o p u l a r . A t é e n t ã o , a a r t e 290

c r i s t ã fora b e m m o d e s t a e s e e x p r i m i r a n a s m i n i a t u r a s , n o s m o s a i c o s , n o s t e c i d o s , nas peças de ourivesaria. M a s o supermosteiro de C l u n y ofereceu na ábside de sua i g r e j a d e 177 m e t r o s d e c o m p r i m e n t o — d u r a n t e s é c u l o s , a m a i o r igreja do O c i d e n t e — o e s p e t á c u l o d e u m a p i n t u r a m u r a l d e C r i s t o g l o r i o s o q u e foi c o m e n t a d a d u r a n t e s é c u l o s p o r v i s i t a n t e s . N o refeitório d o m o s t e i r o , e s t a v a p i n t a d o u m q u a d r o d o j u í z o final, i g u a l m e n t e i m p r e s s i o n a n t e . N e l e e s t a v a m representados os dois "fins últimos" d o h o m e m : céu ou inferno. N o centro do afresco figurava o a r c a n j o M i g u e l , c o m a b a l a n ç a d a s a l m a s n a s m ã o s : u m a s i a m p a r a o c é u , o u t r a s p a r a o i n f e r n o . A c i m a d o a n j o , a figura i m p a s s í v e l d e C r i s t o j u i z , c u j a s m ã o s faziam o gesto de elevar u n s para o céu e condenar outras para as eternas penas d o inferno. A imobilidade d o s rostos d e Jesus e de são Miguel contrastavam com a a g i t a ç ã o na e s f e r a h u m a n a , p e r t u r b a d a p e l o m e d o d o i n f e r n o . E s s e i m a g i n á r i o m o v e u s é c u l o s d e h i s t ó r i a c r i s t ã . A i m a g e m d e C r i s t o j u i z c o n s t i t u i u , por a s s i m dizer, o ponto básico d o imaginário cristão nos séculos em que se implantou a hegemonia do poder central romano sobre as diversas Igrejas do Ocidente. O m u n d o era j u l g a d o pela Igreja, q u e se identificava com o anjo d e Cluny: impassível e duro, m a s ao m e s m o t e m p o resplandescente n u m a beleza soberana. A s obras de arte cluniacense nas igrejas d e A u t u n , Vézélay, M â c o n , B e a u n e operam na alma do povo u m a violência religiosa que reduz o h o m e m à condição de pecador, e n q u a n t o exalta as estruturas estabelecidas do poder político e religioso. Cluny t o r n o u - s e , a o s p o u c o s , v e r d a d e i r a fábrica d e a r t e r e l i g i o s a a p e n e t r a r p o r toda a c r i s t a n d a d e . A t r a v é s d a i c o n o g r a f i a d o j u í z o final, é fácil e x e m p l i f i c a r a s a t i t u d e s q u e l e v a m a o céu e a s q u e c o n d e n a m o i n d i v í d u o a o i n f e r n o , s e g u n d o v e r i f i c a m o s ainda hoje através das pinturas d e artistas c o m o Rogier van d e r W e y d e n (Beaune), J e r ô n i m o B o s c h ( H e r t o g e n b o s c h ) , e m a i s t a r d e M i c h e l a n g e l o ( R o m a ) . O último Juízo foi u m a d a s i c o n o g r a f i a s a o m e s m o t e m p o m a i s p o p u l a r e s e m a i s t e r r í v e i s d e toda a história da iconografia cristã. Outro importante ponto d e contato entre o povo e os m o n g e s era a devoção aos defuntos. Inovou-se a missa diária pelos defuntos, com as "intenções de missa"; a noite entre a sexta-feira e o sábado era especialmente dedicada à c o m e m o r a ç ã o dos d e f u n t o s , i n a u g u r o u - s e u m a c o m e m o r a ç ã o e s p e c i a l n o d i a 2 d e n o v e m b r o (o dia de F i n a d o s , c o m três missas seguidas), b e m c o m o o uso d a missa de terceiro dia, sétimo dia, trigésimo dia, aniversário de morte. A devoção aos mortos penetrou de tal f o r m a n a t r a d i ç ã o c r i s t ã , q u e a t é h o j e c o n s t i t u i u m a d a s p r á t i c a s m a r c a n t e s d o c a t o l i c i s m o . C l u n y c h e g o u a e l a b o r a r u m a liturgia e s p e c í f i c a e m m e m ó r i a d o s defuntos, com a conhecida seqüência "Dies irae", texto terrível que impressionou vivamente artistas c o m o M o z a r t , B r a h m s , Verdi e outros. A t r a v é s dela os monges, e m a i s t a r d e o s p a d r e s , figuravam c o m o l u t a d o r e s c o n t r a o d e m ô n i o na h o r a decisiva da morte, arrancando a alma do poder do mal e levando-a ao céu, através dos sacramentos e especialmente da confissão auricular. Deste m o d o , os sacerdotes tinham u m a missão por assim dizer cósmica, pareciam empreender uma cruzada meta-histórica. Outra inovação d e Cluny, ligada à liturgia da m o r t e , era o costume d e e n t e r r a r o s d e f u n t o s d e n t r o d a i g r e j a . C o m t u d o isso, u m a m u d a n ç a m u i t o i m p o r t a n t e s e o p e r o u n o r e l a c i o n a m e n t o d a Igreja c o m a s o c i e d a d e , p o i s ela a p o n t a v a m e n o s p a r a o r e i n o d e D e u s , " a s s i m na t e r r a c o m o n o c é u " , d o q u e p a r a

291

a passagem d a terra para o céu, nos ritos d e transição d a vida h u m a n a . É desta forma que ela ainda hoje é vista pelo g r a n d e público. P r o p a g a n d o a missa dos defuntos, os m o n g e s de Cluny, e m a i s tarde os clérigos, l a n ç a m b a s e firme d e poder espiritual s o b r e a s c o n s c i ê n c i a s . Através sobretudo do tratamento d a d o à imagem de Maria pelos m o n g e s de Cluny, percebemos como esse m o v i m e n t o encarava a mulher. Maria aparece e m quatro situações que indicam o papel da m u l h e r na sociedade. E m primeiro lugar, e l a é c o n f r o n t a d a c o m E v a , q u e s i m b o l i z a a m u l h e r " e r r a d a " , a "filha d e E v a " , q u e seduz o homem. N o confronto entre Maria e Eva, exemplifica-se como Cluny entendia o d r a m a da salvação e d o pecado. A situação "normal" da m u l h e r , a de ser filha d e E v a , é u m a s i t u a ç ã o p e c a m i n o s a q u e l e v a a o i n f e r n o . A n t e s d a s a l v a ç ã o , a mulher vive no pecado. N u m segundo momento, Maria aparece como quem salva o pecador pela intercessão j u n t o a Cristo. M a r i a se situa a o lado de Cristo, c o m o q u e m intercede e a s s u m e a oração dos pecadores: "Orai por nós pecadores!" A o n i p o t ê n c i a s u p l i c a n t e d e M a r i a — t ã o p a t e n t e n a s p i n t u r a s m e d i e v a i s — n ã o faz senão reforçar a situação p e c a m i n o s a e m q u e vive toda a h u m a n i d a d e . N u m terceiro contexto, M a r i a é representada c o m o "Notre D a m e " (Nossa S e n h o r a ) , cheia de majestade, sentada n o trono q u e n e m rainha. Ela é a rainha do c é u , m a s de certa forma t a m b é m da terra. S u a postura reinante c o m o que convence os camponeses sem terra da estabilidade e grandiosidade do sistema. O imaginário aqui é f e u d a l a o m á x i m o . N u m a q u a r t a s i t u a ç ã o , M a r i a r e p r e s e n t a a v i r g i n d a d e original d o p a r a í s o a n t e s d o p e c a d o , e q u e e s m a g a a c a b e ç a d o d r a g ã o . A pecaminosidade original d a m u l h e r só encontra duas vias de salvação: a virgindade (a c o n s a g r a ç ã o d e t o d o o s e u s e r a D e u s , a t r a v é s d a v i d a m o n a c a l ) o u , e n t ã o , a penitência (o s e g u i m e n t o d e o u t r a M a r i a : a M a d a l e n a ) . E n t r a r aqui n o t e m a d a imagem de Maria M a d a l e n a na história da iconografia cristã nos levaria longe d e m a i s . D e q u a l q u e r m o d o , a m u l h e r se a p r e s e n t a c o m o p e r i g o à v o c a ç ã o d o monge. Esse condicionamento tipicamente monacal que passou para a formação clerical fez c o m q u e o c r i s t i a n i s m o o c i d e n t a l n e g l i g e n c i a s s e p o r s é c u l o s o s c u i d a d o s e m d a r ao p o v o u m a f o r m a ç ã o p o s i t i v a m e n t e s e x u a l . I s s o c o n t r a s t a u m a v e z m a i s com a sabedoria das culturas pré-colombianas, no trato com nossa condição sexual. P o d e m o s concluir. Seria i n g ê n u o d e nossa parte querer negar o p a s s a d o e fazer c o m o se nada disso tivesse acontecido, nem a ruptura entre R o m a e Constantinopla, n e m o feudalismo, n e m a ameaça islâmica, n e m a experiência de C l u n y , n e m o s e p i s ó d i o s e n t r e G r e g ó r i o V I I e H e n r i q u e IV. C o n s c i e n t e ou i n c o n s cientemente, carregamos conosco essa história e não podemos nos livrar de seus aspectos negativos, senão através d e u m processo de superação que pressupõe, entre o u t r a s c o n d i ç õ e s , o c o n h e c i m e n t o c r í t i c o . Foi p o r isso q u e q u i s e m o s f a z e r e s s a evocação d e u m m o m e n t o da história d o cristianismo ocidental, q u a n d o a s autoridades tiveram de criar algo d e novo, para se m a n t e r n u m a E u r o p a ainda pouco definida. Os h o m e n s desse t e m p o criaram modelo eclesial que era viável à época do feudalismo e q u e — r e p i t o — e x e r c e u durante pelo menos quinhentos anos u m a c e r t a influência b e n é f i c a s o b r e a s o c i e d a d e e u r o p é i a . O p a t e r n a l i s m o e o autoritarismo da experiência cluniacense-gregoriana foram vividos dentro de u m espírito cristão de "dar proteção" aos pobres. Eis a radiografia da instituição social 1 8

292

d o c r i s t i a n i s m o q u e a p o r t o u n o C a r i b e e m 1 4 9 2 . P r e c i s a m o s a v e r i g u a r , a g o r a , de q u e m o d o e l a f u n c i o n o u a q u i ; p a r a t a n t o , é b o m l e m b r a r q u e o m o d e l o se b a s e i a f u n d a m e n t a l m e n t e no d o m í n i o d o t e m p o , a t r a v é s d a sacramentalização, m í n i o d o e s p a ç o , a t r a v é s da paróquia.

e no do-

A s s i m t e m o s os títulos dos dois próximos

parágrafos: usurpação do espaço e do t e m p o latino-americanos e caribenhos.

AMÉRICA DO NORTE CneqliaenciaA» ,. « .

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3°°° TERRITORIO FORTVfiUÊS

TERRITORIO ESPANHOL*-

Mapa 33. Usurpação do espaço.

§ 4. A u s u r p a ç ã o d o e s p a ç o l a t i n o - a m e r i c a n o e c a r i b e n h o

1. O

padroado

A o c h e g a r e m à A m é r i c a e a o C a r i b e , o s e u r o p e u s a g i r a m d e s d e o início c o m o se f o s s e m d o n o s d a s t e r r a s d a q u i . N u m m a p a d a a d m i n i s t r a ç ã o colonial da América espanhola no século XVIII, nota-se c o m o os quatro vice-reinados organ i z a d o s p e l a c o r o a e s p a n h o l a c o r r e s p o n d e m a o s q u a t r o p r i n c i p a i s c i c l o s d e coloniz a ç ã o q u e e s t u d a m o s n o c a p í t u l o a n t e r i o r : o ciclo m e x i c a n o , o p e r u a n o , o g r a n a d e n s e , 293

o platense (mapa 33). T a m b é m a localização das audiências ( m a p a 34), atualmente capitais dos países q u e e m e r g i r a m dessa estrutura colonial, e q u e mais u m a vez combina c o m a d i n â m i c a dos ciclos d a conquista, demonstra c o m o a colonização d o c o n t i n e n t e o p e r o u - s e s e g u n d o a lógica d o d o m í n i o s o b r e o e s p a ç o a m e r i c a n o .

Mapa 34. As audiências do sislema colonial ibero-americano.

A l e g i t i m a ç ã o i n v o c a d a p e l o s i n v a s o r e s e u r o p e u s está no c o n c e i t o j u r í d i c o d e " p a d r o a d o d a s í n d i a s " (patronato de índias), conceito de fundo religioso. R o m a cedia à coroa e s p a n h o l a os direitos que ela pretendia ter sobre estas terras por o r d e m divina. O p a d r o a d o t o m o u j u r i d i c a m e n t e c o r p o a o l o n g o d o s q u a r e n t a a n o s após 1 4 9 2 . 1S

P o r c a u s a d e a n t i g a d i s p u t a territorial c o m P o r t u g a l , o s reis c a s t e l h a n o s , o s q u a i s se a u t o d e n o m i n a r a m " c a t ó l i c o s " p o r s e r e m os p r i m e i r o s a r e i n a r s o b r e a península depois da saída dos m o u r o s d e G r a n a d a e m 1492, F e r n a n d o e Isabel, pedem a R o m a a concessão do domínio sobre os territórios descobertos por 294

C r i s t ó v ã o C o l o m b o e d e m a i s n a v e g a d o r e s . P e l a c a r t a a p o s t ó l i c a Inter (1493), Alexandre VI concede esse domínio com a recomendação de

caetera

"destinar à terra firme e às ilhas preditas homens probos e temerosos de Deus, doutos peritos e expertos, para instruir aos mencionados habitantes na fé católica e imbuí-los de bons costumes". A s s i m , o p a p a t r a n s f e r e a o p o d e r civil u m a s é r i e d e a t r i b u i ç õ e s a n t e s reservadas à Igreja, por causa dos princípios d e domínio do espaço e do tempo inerentes à reforma romano-cluniacense q u e a c a b a m o s de analisar. Outra carta: Eximiae devotionis, d e m e s m a d a t a , c o n c e d e m a i s u m a v e z a o s reis c a s t e l h a n o s a s m e s m a s p r e r r o g a t i v a s q u e o s p o r t u g u e s e s j á h a v i a m c o n q u i s t a d o . S e g u e - s e ainda no m e s m o a n o de 1493 u m a t e r c e i r a c a r t a , Dudum siquidem, c o n f i r m a n d o as d u a s anteriores. A c o r o a e s p a n h o l a , a r r a n c a n d o f a v o r e s a R o m a , vai a o s p o u c o s u s a n d o a Igreja c a t ó l i c a c o m o i n s t r u m e n t o a p r o p r i a d o p a r a firmar s u a s c o n q u i s t a s n a A m é r i c a . S e t e a n o s m a i s t a r d e , e m 1 5 0 1 , F e r n a n d o e I s a b e l o b t ê m d o p a p a o direito d o s d í z i m o s d a s t e r r a s d e s c o b e r t a s , c o m a c o n d i ç ã o d e p o s t e r i o r m e n t e d o t a r a s Igrejas d o q u e for n e c e s s á r i o p a r a o c u l t o . A s s i m , a I g r e j a fica e m s i t u a ç ã o d e d e p e n d ê n c i a financeira d i r e t a d o g o v e r n o . E m 1508 o rei F e r n a n d o o b t é m d e R o m a o direito de a p r e s e n t a r b i s p o s e d e m a i s e c l e s i á s t i c o s (Uniuersalis Ecclesiae). A s s i m , através d o s b i s p o s , a c o r o a c o n t r o l a o c l e r o na s u a t o t a l i d a d e . E s s a s c a r t a s a p o s t ó l i c a s q u e a c a b a m o s d e m e n c i o n a r s ã o o f u n d a m e n t o do padroado régio espanhol sobre a Igreja. E m 1522 Carlos V avança d e novo e ganha d o p a p a A d r i a n o V I o d i r e i t o d e fixar o n ú m e r o d e r e l i g i o s o s q u e p o d e m p a s s a r para a A m é r i c a , a s s i m c o m o a i n d e p e n d ê n c i a p r a t i c a m e n t e total d o s s u p e r i o r e s provinc i a i s n a A m é r i c a d i a n t e d e s e u s r e s p e c t i v o s s u p e r i o r e s n a E u r o p a iOmnimoda). Isso significa q u e as ordens religiosas na A m é r i c a c o n s e g u e m em pouco tempo muito p o d e r e s o b r e t u d o m u i t a i n d e p e n d ê n c i a e r i q u e z a , p o i s s ã o e m t u d o privilegiadas p e l o g o v e r n o c o l o n i a l , j á q u e é s o b r e t u d o a t r a v é s d e l a s q u e e s t e a t u a . C l e m e n t e VIII a m p l i a a i n d a m a i s a s a t r i b u i ç õ e s d o rei e c o n c e d e a f a c u l d a d e d e e n v i a r à A m é r i c a s e m a u t o r i z a ç ã o d o s s u p e r i o r e s a t é 120 f r a n c i s c a n o s , 70 d o m i n i c a n o s e 10 Jerónimos. O p e r í o d o d e a l a r g a m e n t o d o s p o d e r e s d o p a d r o a d o se e n c e r r a c o m o r e i n a d o d e Filipe I I , o q u a l t e n t a c o n f i r m a r o s p r i v i l é g i o s , m a s o p a p a J ú l i o III s e n e g a , porque a coroa marginalizara quase completamente a jurisdição de Roma, enviand o à A m é r i c a " p r e l a d o s d ó c e i s à s u a p o l í t i c a " . A partir d e s s e m o m e n t o , inicia-se t e n s ã o e n t r e R o m a e o p a d r o a d o q u e s e m a n i f e s t a à luz d o d i a c o m a c r i a ç ã o d a congregação r o m a n a "De Propaganda Fide", e m 1622. 20

Contemplado à distância de quinhentos anos, percebemos o padroado como u m a "santa aliança", o resultado de situação de dependência recíproca entre os dois s u p e r p o d e r e s d a é p o c a , R o m a e C a s t i l h a , q u e t r o c a m e n t r e si d e b i l i d a d e s e forças p a r a a m b o s s e firmarem no p o d e r , s o b r e t u d o d i a n t e d a n o v a s i t u a ç ã o c r i a d a pela c o n q u i s t a d a A m é r i c a . R o m a n ã o d i s p õ e d a s finanças n e c e s s á r i a s p a r a e n v i a r m i s s i o n á r i o s e p r o v e r à i n f r a - e s t r u t u r a d a m i s s ã o , e n q u a n t o C a s t i l h a c a r e c e de f u n d a m e n t o s i d e o l ó g i c o s p a r a firmar-se n a s t e r r a s a m e r i c a n a s . A s s i m , a m b a s a s 295

partes trocam favores por interesse m ú t u o , mas em detrimento dos povos americanos. E sabido q u e R o m a e M a d r i e n t e n d i a m o padroado c a d a qual a seu m o d o . Por padroado, Castilha entendia o domínio econômico e político, e n q u a n t o R o m a pensava em d o m í n i o ideológico. M a s a b a s e não dita d a "santa aliança" entre R o m a e Madri, acerca da qual não se discutia, era o pressuposto d e um direito sobre o espaço a l h e i o e m n o m e d e D e u s e d a n e c e s s i d a d e d e p r e g a r o e v a n g e l h o , p r e s s u posto, afinal, c o d i f i c a d o n o d i r e i t o c a n ó n i c o e p o s t o e m prática d e s d e a I d a d e M é d i a pela r e f o r m a g r e g o r i a n a .

2. Os interesses

coloniais

M a s n e m todas as regiões d a A m é r i c a d e r a m efetivamente lucros aos cofres d a E s p a n h a . O h i s t o r i a d o r h o l a n d ê s B. H. S l i c h e r v a n B a t h e s t u d o u c o m o s e processou concretamente a transferência de riqueza da A m é r i c a Latina e do Caribe para a E s p a n h a , através de u m a análise dos dados quantificados das c h a m a d a s cartas cuentas o u a i n d a d a s cajás ( c a i x a s , l i v r o s d e c o n t a s ) d e v a s s a d a s e m d i v e r s a s cidades do Peru, da Bolívia, do Chile e do Rio da Prata, Seu estudo não é exaustivo, m a s é o melhor q u e temos até o m o m e n t o . De seu estudo, a p r e s e n t a m o s u m m a p a que mostra quatro complexos territoriais donde a Espanha tirava efetivamente lucro: M é x i c o , A m é r i c a C e n t r a l , N o v a G r a n a d a e P e r u ( m a p a 3 5 ) . A e s t r e l a i n d i c a n ú c l e o s de d i v e r s a s g r a n d e z a s , s e g u n d o a i m p o r t â n c i a d o s l u c r o s o b t i d o s . A e s t r e l a e m círculo p r e t o indica n ú c l e o s f o r a d o s q u a t r o g r a n d e s c o m p l e x o s — é o c a s o d o C a r i b e , Brasil e A r g e n t i n a . 2 1

O e s t u d o d e S l i c h e r van B a t h d e m o n s t r a q u e há sete p o n t o s a c o n s i d e r a r na p e s q u i s a a c e r c a d a t r a n s f e r ê n c i a d o s l u c r o s , e q u e a Igreja e n t r a n e s s a e n g r e n a g e m , e m b o r a d e m a n e i r a s e c u n d á r i a . A lógica s u b j a c e n t e é a d o l u c r o . O s p r o j e t o s q u e n ã o d ã o l u c r o s ã o p r o n t a m e n t e a b a n d o n a d o s . E c l a r o q u e tal l ó g i c a p r e s s u p õ e o domínio do espaço americano, e nessa perspectiva funciona a Igreja c o m sua capacidade de remover populações indígenas (aldeamentos) e liberar, sucessivam e n t e , a s t e r r a s i n d í g e n a s p a r a o p r o j e t o c o l o n i a l . A Igreja e s t a v a , p o i s , p r e s a a o s i n t e r e s s e s c o l o n i a i s , n ã o e r a l i v r e . V e j a m o s o s sete p o n t o s a s s i n a l a d o s p o r S l i c h e r van B a t h . A s taxas cobradas pelo governo espanhol na América provinham d e quatro categorias: o comércio, os bens de c o n s u m o , o tributo e a mineração. P o d e m o s d i s t i n g u i r t r ê s p e r í o d o s n a h i s t ó r i a d a s c o b r a n ç a s oficiais s o b r e riquezas g e r a d a s n a A m é r i c a . N o p r i m e i r o p e r í o d o , q u e vai d e 1540 a 1 6 6 0 , a s rendas provêm sobretudo da m i n e r a ç ã o (77%), enquanto os impostos p r o p r i a m e n te ditos c o n t r i b u e m a p e n a s c o m 5 % d a a r r e c a d a ç ã o . N o s e g u n d o p e r í o d o , e n t r e 1680 e 1 7 2 0 , h á u m r e c e s s o . A A m é r i c a t r a n s f e r e p o u c o s c a p i t a i s p a r a a E u r o p a nesse p e r í o d o . E m 1 7 2 0 , c o n t u d o , h á u m r e a q u e c i m e n t o d a s f i n a n ç a s p r o v e n i e n t e s da A m é r i c a , p r i n c i p a l m e n t e a t r a v é s d o m a i o r c o n t r o l e q u e o E s t a d o c o l o n i z a d o r e x e r c e s o b r e as s o c i e d a d e s l a t i n o - a m e r i c a n a s . E n t r e 1780 e 1 8 0 0 , a m i n e r a ç ã o —• que funciona a todo vapor — colabora apenas com 1 7 % do dinheiro revertido à E s p a n h a , e n q u a n t o o s i m p o s t o s d i r e t o s p a s s a m a r e p r e s e n t a r 1 5 % d a r e n d a total.

Mapa 35. Os quatro complexos que deram efetivamente lucro à Espanha.

I s s o s i g n i f i c a q u e o p e s o d o E s t a d o c o l o n i z a d o r s e fez s e n t i r d e f o r m a crescente no decorrer do século X V I I I . H á durante esse século a u m e n t o considerável da i n t e r f e r ê n c i a d o E s t a d o n a v i d a d a s c o m u n i d a d e s , q u e se v ã o e m p o b r e c e n d o a o s p o u c o s . A A m é r i c a L a t i n a é m a i s p o b r e n o s é c u l o X V I I I q u e n o s séculos a n t e r i o r e s . O e m p o b r e c i m e n t o d o c o n t i n e n t e s e g u e d e m ã o s d a d a s c o m o m a i o r c o n t r o l e por parte da metrópole. O tributo, q u e tanto enriqueceu o Estado espanhol, provém sobretudo das c o m u n i d a d e s indígenas, que aos poucos vivem curvadas sob peso quase insuport á v e l . E s s e p e s o t r i b u t á r i o vai a u m e n t a n d o n o s é c u l o X V I I I , a o m e s m o t e m p o e m q u e são construídas as belas igrejas barrocas. Há nexo causal entre a pobreza das c o m u n i d a d e s indígenas ou mestiças e a riqueza dos conventos barrocos. Durante o século XVIII sobretudo, a Igreja vive dos impostos arrancados às comunidades i n d í g e n a s e m e s t i ç a s (os d í z i m o s ) . O E s t a d o c o l o n i z a d o r g a s t a o d i n h e i r o g e r a d o na A m é r i c a s o b r e t u d o e q u a s e exclusivamente com despesas de segurança, diante de poderosos concorrentes, c o m o o s i n g l e s e s , o s h o l a n d e s e s , os f r a n c e s e s . A lei d o " e x c l u s i v o c o m e r c i a l " — q u e 297

caracteriza as p r i m e i r a s f o r m a ç õ e s c a p i t a l i s t a s — e x i g i a m u i t a d e s p e s a m i l i t a r para g a r a n t i r o f l u x o n o r m a l d e r i q u e z a s e n t r e a A m é r i c a (e o C a r i b e ) e a E s p a n h a (ou Portugal). D e s p e s a s c o m c u l t o , s a ú d e p ú b l i c a e e n s i n o s e m p r e f o r a m e x t r e m a mente parcas, se c o m p a r a d a s c o m as militares. A s despesas c o m as missões religiosas s e m p r e f o r a m m í n i m a s , o q u e e x p l i c a a m o r o s i d a d e d e n t r o d a i n s t i t u i ç ã o católica d o s é c u l o X V I I I . A s despesas c o m a defesa dos estabelecimentos coloniais correm exclusivam e n t e por c o n t a d o s s e n h o r e s l o c a i s , p e l o m e n o s a n t e s d o s é c u l o X V I I I . N ã o h á exército o u p o l í c i a n o s e n t i d o f o r m a l . O s s e n h o r e s a r m a m m a t a d o r e s p r o f i s s i o n a i s , o q u e o c a s i o n a a u s ê n c i a q u a s e a b s o l u t a d e lei, s o b r e t u d o e m r e l a ç ã o a o s c a m p o n e ses, e cria u m a t r a d i ç ã o d e v i o l ê n c i a n o c a m p o . N a s c i d a d e s , c o m o é d e e s p e r a r , h á maior controle por parte da oficialidade. Parte relativamente p e q u e n a da entrada de dinheiro nos cofres públicos da E s p a n h a p r o v é m d a v e n d a d e i n d u l g ê n c i a s , o u seja, d a s " b u l a s d a s a n t a c r u z a d a " , como se dizia então. O governo detém o monopólio de v e n d a dessas indulgências, por p r i v i l é g i o c o n c e d i d o a o p a d r o a d o régio n a E s p a n h a e e m P o r t u g a l . A pesquisa do historiador holandês esclarece indiretamente diversos aspectos d a h i s t ó r i a d a i n s t i t u i ç ã o c a t ó l i c a n a A m é r i c a L a t i n a . N o s é c u l o X V I , a c o n s t r u ç ã o d o s g r a n d e s c o n v e n t o s n o M é x i c o , p o r e x e m p l o , é d i r e t a m e n t e financ i a d a pelo t r a b a l h o d o s i n d í g e n a s n a s m i n a s , e n q u a n t o n o s é c u l o X V I I I ela p r o v é m dos impostos junto às c o m u n i d a d e s indígenas ou mestiças. O recesso de 1680-1720 repercute bastante na instituição, no sentido de q u e a vida religiosa se ressente da crise financeira, a s s i m c o m o o n o v o s u r t o t r i b u t á r i o d u r a n t e o s é c u l o X V I I I facilita a construção de grandiosas igrejas barrocas, as famosas "igrejas douradas". Mas é s o b r e t u d o na f o r m a ç ã o d o s b i s p a d o s l a t i n o - a m e r i c a n o s q u e s e p e r c e b e c o m o a instituição andou presa aos interesses coloniais.

3. Os bispados

e os

bispos

J á a c o n c o r d a t a d e B u r g o s , firmada e m 1 5 1 2 e n t r e o rei F e r n a n d o , o C a t ó l i c o , e os b i s p o s d a H i s p a n i o l a ( S ã o D o m i n g o s ) e S ã o J o ã o ( d a C o s t a R i c a ) , m o s t r a claramente qual o papel que a monarquia espanhola atribuía ao episcopado no C a r i b e e, p o r c o n s e g u i n t e , c o m o d e v i a m f u n c i o n a r os b i s p a d o s . O t e x t o é i n d i c a t i v o e imperativo: " Y que por esta causa ni por otra alguna no apartaran os indios directo ni indirecte de aquello que ahora hacen para el sacar del oro, antes los animaran y aconsejaran que sirvan mejor que hasta aquí en el sacar del oro diciendoles que es para hacer la guerra a los infieles y las otras cosas que ellos vieren trabajen b i e n . "

que podrán... aprovechar para que

22

A historia d o s p r i m e i r o s b i s p o s n o c o n t i n e n t e n ã o é m u i t o e d i f i c a n t e . E n t r e e l e s , h a v i a os q u e p r o v i n h a m d a s f o r ç a s e x p e d i c i o n á r i a s q u e a c o m p a n h a v a m os conquistadores. Típica é a historia do sacerdote d o m i n i c a n o Vicente V a l v e r d e ,

p r i m o d e P i z a r r o , c u j a c o l a b o r a ç ã o n o a s s a s s i n a t o d o i n c a A t a h u a l p a foi indispens á v e l . A g i u d e f o r m a a b s o l u t a m e n t e a-ética, c o m a ú n i c a f i n a l i d a d e d e c o n v a l i d a r a c o n q u i s t a u s a n d o a r g u m e n t o s d e o r d e m religiosa. A r e c o m p e n s a n ã o t a r d o u : P i z a r r o fez d e V i c e n t e V a l v e r d e o p r i m e i r o b i s p o d e C u z c o , e m 1537. A instalação de sedes episcopais no Peru serviu para consolidar o domínio dos brancos. A criação d o bispado de L i m a (1541), cidade fundada pelos espan h ó i s e m 1534, facilitou a consolidação d o projeto espanhol face ao império inca e obedeceu, por conseguinte, a motivos antes geopolíticos que propriamente pastorais. A p r e s e n t a m o s n a s p. 3 0 2 - 3 0 3 u m q u a d r o g e r a l d a e v o l u ç ã o histórica d o s b i s p a d o s n a A m é r i c a l a t i n a , e n t r e 1 5 1 2 ( S ã o D o m i n g o s ) e 1883 ( C a l a b o z o ) . S ã o no total 99 bispados, cujas sedes constituem até hoje os pontos mais "históricos" da A m é r i c a L a t i n a , c o m s u a s f a m o s a s p r a ç a s b a r r o c a s . D a m o s a localização d o s 4 1

Mapa 36. Os 41 bispados 'históricos'. 299

b i s p a d o s p r i n c i p a i s ( m a p a 3 6 ) . 0 leitor u m t a n t o f a m i l i a r i z a d o c o m a g e o g r a f i a d o continente com facilidade encontrará o s n o m e s dessas localidades. O s quadros indicam arcebispados, os triângulos bispados. N o quadro, verifica-se que após a e t a p a d e f u n d a ç ã o d o s b i s p a d o s n o s é c u l o X V I e início d o X V I I , h á u m a e t a p a d e e s t a n c a m e n t o q u e c o b r e grosso modo o s s é c u l o s X V I I e X V I I I . E f e t i v a m e n t e , o padroado manifestava pouco interesse e m fundar novos bispados, os quais acarretariam d e s p e s a s s u p l e m e n t a r e s a o s c o f r e s p ú b l i c o s . A r e o r g a n i z a ç ã o d a s d i o c e s e s c o m e ç a n o s é c u l o XLX, c o m o n o v o i n t e r e s s e r o m a n o p e l o s d e s t i n o s d o c a t o l i c i s m o latino-americano. O pouco dinamismo da estrutura episcopal na América Latina e no Caribe se comprova t a m b é m pelo estudo dos tempos de vacância dos bispados, depois da morte ou do afastamento de u m bispo: BISPADOS

VAOpS (ENTRE 150^ c 1 6 2 0 ) TEMPO J *

TEMPO DE

PRESENÇA EPISCORM. A U S Ê N C I A EPlKOIM.

ÁPEA

[EH

MESES)

( E M MEEIS)

%

i>E TEMPO

bE

AUSÊNCIA

SANTO DOMINICO

3.341

t 765

34,5

AMERICA CENTRAL

3. 5 8 6

1 80?

33,5

MEXICO

3 733

1. 4 8 5

28.4

SANTA Ft'

2-656

lhA

UMA

3*27

LA PtATA

4 Z50

i 451

53,8

EM TOTAL

18. 2 0 «

-10.353

36,Z

^h 45.2

Bispados vagos (segundo Dussel, 1/1, 410)

A m é d i a d e t e m p o q u e o s b i s p a d o s ficavam v a g o s , e n t r e a m o r t e o u p a r t i d a a t é a e l e i ç ã o d o n o v o b i s p o e, e m s e g u i d a , d e s d e a e l e i ç ã o d e s t e à s u a e v e n t u a l c h e g a d a à A m é r i c a , soma u m a média de quatro anos e oito m e s e s para a América espanhola, período realmente muito longo. Digo "eventual", pois diversos prelados n o m e a d o s p a r a a A m é r i c a n u n c a p i s a v a m a q u i , f i c a v a m na c o r t e e s p a n h o l a e g o v e r n a v a m p o r intermédio d o vigário geral. C o m p r e e n d e - s e através d o quadro e do gráficos que o s bispados foram estruturas pouco o p e r a n t e s d u r a n t e todo o período colonial. E m geral, reinava a morosidade, o a b s e n t e í s m o e a s u b m i s s ã o à política colonial. E m c o n s e q ü ê n c i a d e t u d o isso, n ã o é d e e s t r a n h a r q u e n o s t e m p o s d o p a d r o a d o o c o r p o e p i s c o p a l l a t i n o - a m e r i c a n o fosse d e p o u c a e x p r e s s ã o , p e l o m e n o s d e p o i s d o p e r í o d o inicial n o s é c u l o X V I . • O b i s p o f a z i a p a r t e d o f u n c i o n a l i s m o p ú b l i c o e c o m o tal era — c o m g l o r i o s a s e x c e ç õ e s — s u b s e r v i e n t e . M u i t o s b i s p o s , e s p a n h ó i s o u portugueses, nunca gostaram daqui e apenas e s p e r a v a m ser p r o m o v i d o s para u m b i s p a d o na E s p a n h a ou e m P o r t u g a l . O s q u e v i e r a m , r a r a m e n t e p e n e t r a r a m n o interior para fazerem as visitas pastorais, as quais n o r m a l m e n t e exigiam boa d i s p o s i ç ã o , i n c l u s i v e física, p a r a v e n c e r o s i n c ô m o d o s d e v i a g e n s l o n g a s , c a n s a t i v a s e perigosas. Afinal, o episcopado era considerado peso morto para a administração c o l o n i a l . I d ê n t i c a falta d e i n t e r e s s e se v e r i f i c a e m R o m a . P o r u m p e r í o d o d e 300

a p r o x i m a d a m e n t e 2 5 0 a n o s , d o s fins d o s é c u l o X V I a t é o s a n o s 1 8 3 0 , o s p a p a s não se i n t e r e s s a r a m p e l a A m é r i c a L a t i n a o u p e l o C a r i b e . P a r e c i a q u e a r e g i ã o não e x i s t i a p a r a a s a u t o r i d a d e s r o m a n a s . T u d o isso m u d o u c o m a r o m a n i z a ç ã o , q u e d e s p e r t o u na A m é r i c a L a t i n a e n o C a r i b e n o v o d i n a m i s m o n o m e i o d o c o r p o episcopal. O s "bispos reformadores" da segunda m e t a d e do século X I X fizeram tudo q u e e s t a v a a o s e u a l c a n c e p a r a r e s s u s c i t a r a i n s t i t u i ç ã o oficial e a l i n h a r s u a s dioceses ao modelo r o m a n o . 2 4

Q u a n t o ao primeiro clero latino-americano, cabe ressaltar que t a m b é m proveio e m parte das forças expedicionárias que conquistaram a América e o Caribe. O s sacerdotes não só t o m a v a m parte das tropas invasoras, m a s por vezes participavam ativamente das violências que tanto m a r c a r a m os primeiros tempos. F r e q ü e n t e s e r a m , i g u a l m e n t e , o s " p a d r e s d e o u r o " , o s q u a i s , c o n f o r m e nos relata E g a n a , " s a l t a n d o p o r e n c i m a d e t o d o s los r e q u i s i t o s c a n ó n i c o s s e l a n z a r a n a la a v e n t u r a d e i o r o l i b r e m e n t e " . O j e s u í t a J o s é d e A c o s t a f a z , e m 1 5 8 8 , violenta c r í t i c a a o s s a c e r d o t e s d a c o n q u i s t a , v i c i a d o s p e l o q u e na é p o c a se c h a m a v a de codicia. N o B r a s i l t a m b é m , o s j e s u í t a s c r i t i c a r a m o s " c l é r i g o s d o h á b i t o d e são Pedro" por seu espírito de cobiça. 25

26

C o m a o r g a n i z a ç ã o d a c o l ô n i a , a r e l a ç ã o d i r e t a e n t r e m e m b r o s d o clero e a v e n t u r e i r o s à p r o c u r a d e o u r o , e s m e r a l d a s e m ã o - d e - o b r a i n d í g e n a c o m e ç o u a ser s e v e r a m e n t e reprimida. O terceiro concílio limense proibiu aos clérigos participar e m d e e x p e d i ç õ e s "ad e x p u g n a n d o s i n d i o s " (à c o n q u i s t a d e í n d i o s ) , s e m a e x p r e s s a l i c e n ç a d o b i s p o . N ã o s e p e n s e q u e s e c o n s e g u i u f a c i l m e n t e e s s a p r o i b i ç ã o : as próprias autoridades coloniais percebiam a utilidade de clérigos a acompanhar t r o p a s " d e r e s g a t e " — e r a b e m m a i s fácil a t r a i r o s i n d í g e n a s , a l é m d e p r o v e r a tropa de assistência religiosa altamente apreciada na época. A s s i m , pode-se pressupor q u e e s s e c â n o n e d o c o n c í l i o d e L i m a foi p o u c o o b s e r v a d o n a p r á t i c a , c o m o c o n f i r m a m , a d e m a i s , o s d o c u m e n t o s q u e a o l o n g o d o s t e m p o s c o l o n i a i s nos i n f o r m a m s o b r e s a c e r d o t e s c o m o c a p e l ã e s d e e x p e d i ç õ e s m i l i t a r e s . O t e x t o do c â n o n e d e i x a t r a n s p a r e c e r q u e s e t r a t a d e a b u s o m u i t o g e n e r a l i z a d o : o s clérigos a g e m m a i s c o m o soldados d o que c o m o sacerdotes. A aliança entre soldados e c l é r i g o s foi u m d o s a l i c e r c e s d a f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a d a A m é r i c a L a t i n a e d o C a r i b e . 2 7

O s c o n c í l i o s r e a l i z a d o s n o m u n d o h i s p a n o - a m e r i c a n o , no d e c o r r e r s o b r e t u d o da segunda m e t a d e do século X V I , devem ser entendidos como fenômenos de transição entre o período da conquista — violento e desarticulado — e o da consolidação da hegemonia européia. A coroa estava interessada em assegurar p a r a si v a s t o t e r r i t ó r i o q u e j á se l h e t o r n a r a i m p o r t a n t e fonte de l u c r o ; p a r a t a n t o , e r a n e c e s s á r i o g a r a n t i r o a p o i o t a n t o d a I g r e j a , e n q u a n t o i n s t i t u i ç ã o , c o m o do catolicismo, enquanto ideologia. É dentro desse quadro que se e n t e n d e a realização dos concílios. E s s a é t a m b é m a razão principal pela qual j á não se realizaram tais c o n c í l i o s n o s s é c u l o s X V I I e X V I I I , u m a v e z c o n s o l i d a d o o s i s t e m a colonial. N a p. 3 0 4 , e l e n c a m o s o s c o n c í l i o s m a i s f a m o s o s d a h i s t ó r i a r e l i g i o s a h i s p a n o americana.

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