Heranças de Derrida (Vol. 3): Da Filosofia ao Direito
 9788581280370

Citation preview

Vol. 3 HERANÇAS DE DERRIDA DA FILOSOFIA AO DIREITO © NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br Projeto gráfico, capa e editoração: Mariana Lobo Revisão de texto: Miro Figueiredo, Andrea Leal Jardim e Renata Siqueira Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ H459 v.3 Heranças de Derrida : da filosofia ao direito [recurso eletrônico] / organização Rafael Haddock Lobo ... [et al.]. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2014 recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia

ISBN 978-85-8128-037-0 (recurso eletrônico) 1. Derrida, Jacques, 1930-2004 2. Filosofia moderna 3. Livros eletrônicos. I. I Colóquio Internacional Desconstrução, Linguagem e Alteridade (2011: Rio de Janeiro, RJ). II. Lobo, Rafael Haddock, 1975-. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da editora. Rio de Janeiro - 1ª edição: 2014 Vol. 3 HERANÇAS DE DERRIDA DA FILOSOFIA AO DIREITO RAFAEL HADDOCK-LOBO ∙ CARLA RODRIGUES ∙ ALICE SERRA GEORGIA AMITRANO ∙ FERNANDO RODRIGUES (ORGS.) ESCREVEM NESTE VOLUME: ALICE SERRA FERNANDO FRAGOZO CHARLES FEITOSA BIA MACHADO GEORGIA AMITRANO KATYA KOZICKI ROBERTO VILCHEZ YAMATO

SUMÁRIO

O OUTRO ATRAVÉS DO ESPELHO E O QUE NÃO SE ENCONTRA LÁ: A PARTIR DE NOTAS DE DERRIDA SOBRE O LUGAR MARGINAL NA FENOMENOLOGIA ALICE SERRA (UFMG) DERRIDA, HEIDEGGER E A QUESTÃO DA CIÊNCIA FERNANDO FRAGOZO (UFRJ) HEIDEGGER E O DESTINO: EXCURSO ACERCA DO EX-CURSUS EM 1933 CHARLES FEITOSA (DFCS – PPGAC / UNIRIO) ENTRE A RAZÃO E A LEI SIMBÓLICA: RASTROS DE IBN ‘ARABÎ BIA MACHADO (USP) FORÇA DE LEI: A FORÇA DAS PALAVRAS DE DERRIDA NA POLÍTICA DE AGAMBEN – ENCONTROS ENTRE A ARTE E A POLÍTICA GEORGIA AMITRANO (UFU) DIREITO, JUSTIÇA E DESCONSTRUÇÃO: JACQUES DERRIDA E A FORÇA DE LEI KATYA KOZICKI (UFPR) RASTREANDO O FORA DA LEI DA HUMANIDADE ROBERTO VILCHEZ YAMATO (PUC-RIO) O OUTRO ATRAVÉS DO ESPELHO E O QUE NÃO SE ENCONTRA LÁ: A PARTIR DE NOTAS DE DERRIDA SOBRE O LUGAR MARGINAL NA FENOMENOLOGIA ALICE SERRA (UFMG) I. O OUTRO ATRÁS DO ESPELHO Reste l’expression. Qu’est-ce que l’expression? C’est un signe chargé de Bedeutung . Jacques Derrida , La voix et le phénomène. Em muitas de suas considerações sobre a fenomenologia de Husserl, destaca Derrida um motivo que não apenas perpassa as obras deste filósofo, mas atua mesmo como o centro irradiador a partir do qual podem ser situadas a noção de idealidade, a relevância da percepção e do significado. Este ‘centro irradiador’ ou “signo último” (DERRIDA, 1972a, p. 188) designa Derrida como o “presente vivo” ( présent vivant, lebendige Gegenwart ), enquanto “a forma última, universal, absoluta da experiência transcendental em geral” (DERRIDA, 1972a, p. 188). Este signo último somente é inteligível em sua vinculação originária com o olhar, com o pôr diante do olhar, no

sentido de uma presença que se mostra ao olhar fenomenológico, uma presença que é presença de um significado ou de um objeto (ideal, perceptivo, imaginativo) para a consciência e que é dada em uma temporalidade fundada na primazia do agora. Conforme Derrida: O valor de presença , instância jurídica última de todo este discurso [de Husserl a partir das Investigações Lógicas ], se modifica a si mesmo sem se perder, a cada vez que se trata [...] da presença de um objeto qualquer para a consciência na evidência clara de uma intuição preenchida ou da presença a si na consciência; “consciência” não querendo dizer outra coisa senão a possibilidade da presença a si do presente no presente vivo. A cada vez que este valor de presença for ameaçado, Husserl o despertará, o lembrará, lhe fará retornar a si na forma do telos [...] (DERRIDA, 1967, p. 8). Em La voix et le phénomène: introduction au problème du signe dans la phénoménologie de Husserl, Derrida ressalta que esta centralidade do presente vivo e da presença (enquanto algo que se dá à consciência e da consciência para si mesma) seria central nas Investigações Lógicas ( Logische Untersuchungen, 1901) e não se romperia com o desenvolvimento das análises de Husserl sobre a consciência temporal, análises que se seguiram às Investigações : o agora da impressão originária em que a consciência apreende algo é condição de possibilidade para que esse algo apreendido seja conservado e possa repetir-se como o mesmo, possa representificar-se ( sich vergegenwärtigen ) em atos subsequentes. Para Derrida, Husserl teria pensado todas as formas de representificação em atos de lembrança e fantasia, bem como na apercepção do outro, tão somente como derivadas e secundárias em relação à intuição originária, dada no presente vivo (DERRIDA, 1967, p. 4 ss). Que Husserl tenha se esforçado, pois, para descrever tão minuciosamente a cadeia de retenções e o horizonte de protensões indissociáveis da apreensão de um objeto atual em um momento atual (HUSSERL, 1985; 2001; 2006) não implica, para Derrida, que o primado da presença e do presente vivo tenha sido superado ou se enfraquecido. ¹

Todavia, ao passo que o objeto uma vez percebido nem sempre é passível de repetir-se como o mesmo em atos subsequentes, já que ele retorna modificado em atos de fantasia e lembrança, é na consciência do significado que a identidade do mesmo é mais plenamente preservada. De fato, é neste âmbito de estudo sobre o sentido ou significado ( Sinn ) que primeiramente se apresenta no pensamento de Husserl a dupla primazia referida (da presença para uma consciência e do presente vivo). Como destaca Derrida, a formulação desta dupla primazia, nas Investigações Lógicas , fez-se acompanhar por uma dupla exclusão ou dupla redução: no capítulo “Expressão e Significado” ( Ausdruck und Bedeutung ) das Investigações (HUSSERL, 1984a, cap. I, §§ 1-35), Husserl exclui a “ face sensível da linguagem”, o “ser-outro” do índice (DERRIDA, 1972a, p. 202). Nisto entende-se a primeira redução: Derrida acentua que o ato de expressar ou de trazer algo à expressão se restringe, para Husserl, neste contexto teórico, à função de expressar significado por meio da linguagem verbal. Esta seria uma contradição apresentada por Husserl, a saber, o privilégio conferido à expressão em sua proximidade ao sentido ideal e, ao mesmo tempo, a redução da linguagem expressiva, existencial, já que o discurso é significativo em nível pré-expressivo, no monólogo silencioso: [...] Husserl crê na existência de uma camada pré-expressiva e prélinguística do sentido, que a redução deverá por vezes desvelar, excluindo a camada da linguagem. Por outro lado, se não há expressão nem “quererdizer” sem discurso, todo discurso não é expressivo (DERRIDA, 1967, p. 33). Para que o sentido ideal se manifeste enquanto linguagem comunicativa, ele precisa acompanhar-se da expressão; a expressão que porta em si o significado transporta-o a outro, ela é transporte de (Träger von) . Ela só é expressão enquanto se vincula assim a um significado; nesta função de “transportadora de significado” ( Bedeutungsträger ) (HUSSERL, 1984b, cap. VI, p. 546 s), a expressão reduz uma parte de si ou se desvincula disso que lhe seria o mais próprio: a face sensível, ou seja, o teor sonoro ou a palavra escrita. Isso é o que quer dizer Derrida com a dupla redução: Husserl reduz o caráter expressivo da expressão, ao torná-la expressão de significado; e reduz com um golpe um tanto mais brusco o signo sensível, o índice ( das Anzeichen, l’indice ), ao torná-lo um momento inessencial, um aspecto descartável, por assim dizer, em relação àquilo mesmo que ele tornaria possível, ou seja, a linguagem, a relação ao outro, o ser de linguagem nesta relação. Ao remeter a tudo o que é mundano e contingente, o índice, enquanto signo sensível, ameaçaria, em última instância, a unidade ideal da palavra, passível de repetir-se como a mesma, conforme a intenção que a anima: Enquanto que “aquilo que deve nos servir de índice (signo distintivo) deve ser percebido por nós como existente”, a unidade de uma palavra nada deve à sua existência ( Dasein, Existenz ). Sua expressividade, que não tem necessidade do corpo empírico, mas somente da forma ideal e idêntica deste corpo, na medida em que é animada por um “querer-dizer”, não deve nada a nenhuma existência mundana, empírica etc. Na “vida solitária da alma”, a unidade pura da expressão enquanto tal me deveria, pois, ser enfim restituída (DERRIDA, 1967, p. 45).

Se, para Derrida, Husserl se mantém no interior da tradição fonologocentrista ao ressaltar a primazia do logos , é, pois, a primazia do logos em si significativo o que ele afirmaria: logos que subsiste em si e que já é linguagem independentemente de sua dimensão comunicativa, o que equivale a dizer, em separado, à parte de seu horizonte existencial. Como afirma Derrida, “é somente quando a comunicação é suspensa que a pura expressividade pode aparecer” (DERRIDA, 1967, p. 41). Caso esse logos significativo venha a se expressar, a linguagem falada terá prerrogativa em relação à linguagem escrita: se o signo sonoro se encontra em um nível inferior à camada da significação ideal, tanto mais à margem é situada a palavra escrita, cujo caráter disseminativo e cujo distanciamento em relação à instância da qual provém a intenção de significar ( das Bedeuten, le vouloir dire ) são mais nítidos. Consequentemente, tanto maior será o perigo, na linguagem escrita, de que o sentido ideal se contamine pela contingência e diferenciação do sensível ou ainda que ele se perca nessas alterações. Poder-se-ia pensar, a partir disso, que, assim como o signo sensível, também a linguagem silenciosa, na alma, seria colocada à parte por Husserl. De fato, esta é igualmente uma leitura possível quando se trata do ato de excluir: aquilo que exclui, que coloca algo à parte, coloca a si mesmo à parte. Mas esta espécie de cisão, na qual permaneceriam duas partes separadas e contíguas – duas substâncias contíguas, uma pensante e significativa, outra sensível e existencial – não se conforma à partição husserliana entre a dimensão sensível e marginal do signo enquanto índice e a esfera (ideal) dos significados em si subsistentes e que podem ou não se coadunar ao teor expressivo. Esta cisão e este ato de colocar à margem, sem que permaneçam em um mesmo nível duas instâncias em si subsistentes, deixam-se melhor compreender a partir da distinção husserliana entre partes disjuntas e partes que se compenetram. ² Partes disjuntas ( disjunkte Teile ) ou simples são aquelas que podem permanecer separadas no interior de uma totalidade (objetiva ou ideal). Tais partes são também denominadas “pedaços” ( Stücke ), por serem independentes ( selbständige ) entre si. Seguindo o exemplo de Husserl, em uma superfície pintada, podem se separar as partes constitutivas ‘extensão’ e ‘coloração’. Já as partes compostas ( zusammengesetzte Teile ) são também denominadas momentos ( Momente ) porque não se trata de partes que possam subsistir em separado, mas, sim, de momentos dependentes ( unselbständige ) entre si, que se interpenetram ( sich durchdringen ) (HUSSERL, 1984a, III, §§ 1-2). Neste caso, o momento ‘cor’ e o momento ‘cor vermelha’ seriam partes ou momentos que se interpenetram, já que, tratando-se da respectiva superfície pintada, estes momentos não são passíveis de separação. Não há disjunção entre o momento ‘cor’ e o momento ‘cor vermelha’, como há entre ‘extensão’ e ‘coloração’ (em relação à respectiva superfície pintada). Isso nos ajuda a compreender os dois níveis de exclusão, ou melhor, os dois movimentos de pôr à margem, apresentados por Husserl no capítulo “Expressão e Significado” e salientados por Derrida em La voix et le phénomène . A expressão ( Ausdruck ) e o índice ( Anzeichen ) são duas espécies do gênero signo ( Zeichen ). Logo, Husserl precisa considerar a

totalidade genérica ‘signo’ como composta de partes disjuntas, já que a expressão pode atrelar-se ao índice (ao signo sensível) enquanto linguagem existencial (como palavra sonora e escrita), mas ela não necessita desta ligação para ser o que é: ela pode apresentar-se independentemente disso, por se vincular originariamente ao significado ou sentido. A relação entre expressão e índice, no interior da totalidade genérica ‘signo’, pode, pois, ser entendida como relação entre partes disjuntas, que não se interpenetram. Já a relação entre a totalidade genérica ‘significado’ ou ‘sentido’ ( Sinn ) e a totalidade genérica ‘signo’ ( Zeichen ) é mais sutil: no contexto das Investigações , o gênero ‘sentido’ apresenta-se como uma totalidade à parte em relação ao gênero ‘signo’, pois o significado pode permanecer disjunto em relação a este outro gênero que lhe seria contíguo. Todavia, a espécie de signo ‘expressão’ não é em separado, não é disjunta em relação ao gênero ‘sentido’: a parte ‘expressão’ deixa-se determinar pela totalidade em si subsistente do sentido, sem que inversamente o sentido se contamine pela expressão. É como se o sentido investisse a expressão de seu teor característico, embora o sentido e a expressão não se interpenetrem ( durchdringen ) mutuamente. A expressão (parte do gênero ‘signo’) encontrase assim, em relação à totalidade genérica ‘sentido’, em uma relação de parte composta ou momento. A expressão tem esse caráter anfíbio de ser parte disjunta em relação à sua totalidade genérica ‘signo’, e de ser parte não separável em relação à outra totalidade genérica ‘sentido’. Ao mesmo tempo, a expressão (parte do gênero ‘signo’) está em relação ao índice (que também é parte da totalidade genérica ‘signo’) em uma relação de disjunção. Haveria assim dois momentos que permanecem em si subsistentes: o índice, que é independente e separável tanto da expressão quanto do sentido; o sentido, que é separável e independente da totalidade genérica ‘signo’ (ou seja, o é tanto da expressão quanto do índice). É como se a totalidade genérica ‘signo’ ( Zeichen ) fosse composta de partes disjuntas, e como se a totalidade genérica ‘sentido’ ( Sinn ) não se compusesse de partes, mas atuasse como uma universalidade capaz de abranger momentos de outras totalidades. Somente se localiza no espaço, somente possui caráter mundano ou existencial aquilo que é contíguo. Logo, o que se tem na relação entre os gêneros ‘signo’ e ‘sentido’ não é uma relação de contiguidade, entre totalidades disjuntas: a totalidade genérica ‘signo’ deve atuar como uma espécie mista em relação ao gênero ‘sentido’, ao conter partes disjuntas e momentos. A parte disjunta corresponde ao índice, aquele que é colocado à margem. A parte não disjunta corresponde à expressão, que não se deixa compreender senão enquanto animada por significado. Isso se observa claramente na relação apresentada por Husserl entre intenção de significar, expressão e preenchimento da significação. O ato de significar doa à expressão e, a fortiori , ‘pode doar’ ao corpo sensível da palavra aquilo mesmo que os anima, sem cindi-los daquilo que os anima. Quer dizer, o teor sensível pode cindir-se do sentido quando ele se reduz a índice meramente, a índice separado da camada expressiva da linguagem. Pense-se, por exemplo, em palavras recortadas de uma frase e depois novamente talhadas de modo contingente, desrespeitando mesmo a divisão silábica: aí se tem palavras ou pedaços de palavras que perdem sua relação com a expressão e, consequentemente, com o sentido. Literalmente, elas seriam para Husserl (no contexto das Investigações ) sem sentido, sem significado. Por sua vez, a parte expressiva, em princípio, não pode cindir-se

do significado, já que, como se disse, é essa relação mesma com o significado que a constitui enquanto expressão. Como aponta Derrida, é como se a expressão se distanciasse de seu caráter de signo, na medida em que Husserl torna tão nítida sua proximidade ao significado. Radicalizando esta concepção, Derrida afirma que “somente o índice é verdadeiramente um signo para Husserl. A expressão plena – ou seja [...], a intenção plena do “querer-dizer” – escapa de certa maneira ao conceito de signo” (DERRIDA, 1967, p. 46). Contudo, se a expressão se apresenta tão intrinsecamente vinculada ao significado, ela é circundada pela ameaça de cisão deste vínculo: como mostra o exemplo de Husserl, na expressão Grün ist oder (“verde é ou”), tem-se não uma expressão significativa, mas uma expressão com aparência de mero índice, logo, com a contingência e possibilidade de disjunção do sentido próprias ao índice. Para Husserl, em Grün ist oder , à diferença da expressão goldener Berg (“montanha de ouro”), não há significado, pois não visualizamos nada que possa lhe corresponder nem podemos vir a visualizar. Por sua vez, mesmo que não tenhamos visto uma montanha de ouro, podemos imaginar uma (HUSSERL, 1984a, I, § 15, p. 59 s). E é isso que salva esta expressão de cair na pura contingência do índice: por ela pode-se apresentar algo ao olhar, ao olhar perceptivo, imaginativo ou idealizante, olhar capaz de dar-se a ver algo como uma montanha de ouro. ‘Cair na contingência do índice’ diz respeito, pois, à ameaça que ronda toda expressão: palavras que se sucedem sem sentido, palavras cortadas ao meio tornam-se disjuntas do significado. Ou seja, a expressão não é disjunta do significado, mas esta ameaça lhe ronda; se ceder a esta ameaça, a expressão torna-se índice. Se isso ocorrer, a presença do significado não é mais presente para a consciência intencional. Como formula Derrida: “há indicação toda vez que o ato conferindo sentido, a intenção animadora, a espiritualidade vivente do querer dizer não é plenamente presente” (DERRIDA, 1967, p. 41). É como se, após excluir o índice da relação harmônica e desejável – intencionada – entre a expressão e o sentido, o circuito almejado se defrontasse com uma possibilidade não eliminável: o índice excluído é iminência de irromper toda vez que a relação ‘simples’ e ‘presente’ entre sentido e expressão não é mais direta nem inteligível. Aquilo que o circuito colocou à margem o espreita e pode atuar ali, pois, como interferência vinda de outro lugar. Que Husserl tenha percebido isso e rearticulado suas formulações iniciais, e que Derrida tenha notado esse passo de Husserl: isso é o que se trata agora de tematizar, apontando um deslocamento do lugar do marginal, do alter nas análises de Husserl. Caberá pensar se, nos respectivos âmbitos teóricos alterados, terá espaço um lugar do outro, ou se, mais uma vez, se tratará apenas de sua ameaça de irrupção. II. ATRAVESSANDO O ESPELHO Husserl lui-même nous donne les moyens de penser contre lui même. Jacques Derrida , La voix et le phénomène.

Em La voix et le phénomène, Derrida aponta que a exclusão da dimensão sensível e contingente da linguagem – a exclusão do índice e daquilo que o vincula à expressão – está relacionada à exclusão do outro e de tudo que permeia a relação a um outro: A relação ao outro ( à l’autre ) como “não presença” é, pois, a impureza da expressão. Para reduzir a indicação na linguagem e reconquistar, enfim, a pura expressividade, é preciso, portanto, suprimir a relação a um outro ( autrui ) (DERRIDA, 1967, p. 44). Conforme Derrida, enquanto na comunicação real os signos existentes “indicam” ( indiquent, anzeigen ) outros existentes que são apenas prováveis e mediatamente evocados, no monólogo interior os signos “mostram” ( montrent, zeigen ) significados ( signifiés, Bedeutungen ) ideais, presentes imediatamente à intuição. Desta forma, as palavras atuam antes como palavras representadas ( représentées, vorgestellte ) do que como palavras reais ( réels , wirkliche ) (DERRIDA, 1967, p. 47 s). Se, como afirma Husserl, o significado da palavra é, e permanece, o mesmo independentemente de endereçar-se a alguém (HUSSERL, 1984a, I, § 8, p. 41 s), a relação a uma alteridade se apresenta, pois, prescindível para a constituição do sentido, para a linguagem mesma, como a entende Husserl no contexto das Investigações . Com o passar do tempo, todavia, Husserl reformula esta concepção – por assim dizer, logicista e idealizante das Investigações – ao voltar-se a camadas de constituição do sentido que escapam à fundamentação lógica e à intencionalidade strictu sensu (entendida como o “voltar-se para” da consciência intencional). Tais camadas ou níveis da constituição são estudados por Husserl, em especial, em suas análises sobre as sínteses passivas, âmbito que passa a abranger problemas como a constituição de objetos temporais não individualizados, a experiência sensível e pré-predicativa na qual algo tende à objetividade e, por fim, a experiência do outro. Estes níveis de constituição passiva têm em comum o não se originarem das sínteses ativas e o não se perfazerem simplesmente enquanto evidência originária para uma consciência de si. Enquanto, nas Investigações Lógicas, a significação é unidade ideal que permanece idêntica face à multiplicidade de atos em que se manifesta, Husserl apresenta, a partir de Ideias I (1913) (HUSSERL, 1950), a noção de unidade compreensiva, reforçando que a expressão, assim como a imagem, encarna em si o sentido. Tal sentido encarnado passará Husserl a designar como “corporeidade espiritual” ( geistige Leiblichkeit ). O signo, enquanto expressão e índice – como também a obra de arte e as imagens de fantasia –, ganha, com isso, uma autonomia relativa. Passa-se da transfiguração ou idealização do sensível a uma sensibilidade em si mesma portadora de sentido e aberta à significação. Por sua vez, a partir de Análises sobre a síntese passiva ( Analysen zur passiven Synthesis , 1918-1926) (HUSSERL, 1966), torna-se essencial às teorias de Husserl o problema da afecção ( Affektion ). Enquanto a perspectiva meramente descritiva dos primeiros escritos mantinha a dualidade entre o que aparece e o que não aparece à consciência, como se esse aparecer fosse algo instantâneo, a perspectiva genética desenvolvida neste contexto mais tardio realça os níveis de intensidade e a constituição

temporalizante dos atos que tendem a alguma forma de consciência. O horizonte protensional, direcionado ao futuro, juntamente com a cadeia de retenções na qual toda impressão deságua fazem com que aquilo que tende a alguma forma de visibilidade não coincida com a instantaneidade de seu despontar na consciência: cada afecção deságua em outras e a cada uma pertence um horizonte possível e indeterminado de preenchimento. Com o conceito de afecção Husserl alude a estímulos sensíveis – provenientes do mundo exterior e, sobretudo, da esfera pulsional – que atuam sobre o eu como tendência a adquirir alguma objetividade, podendo ou não se vincular a posteriori à intencionalidade egoica. ³ Mesmo se interior, a afecção se apresenta como alteridade em relação às sínteses ativas (atos de julgamento, atos de atenção, atos de motivação racional etc.): ela possui um traço de exterioridade, de irrupção a partir de outro lugar. Como assinala Anne Montavont, pelas afecções advêm sentidos como “uma experiência do pré-pessoal” (MONTAVONT, 1993, p. 134 s), sem que os mesmos sejam produzidos a partir das instâncias egoicas: Algo chega a mim, pelo qual não sou inteiramente responsável, cruzando uma distância entre mim e mim: a ideia vem ao dia na periferia de meu ser e não me vejo como o sujeito dessa ideia; esta não é uma experiência minha, ela somente se torna tal a posteriori (MONTAVONT, 1993, p. 134). Esse outro vindo de outro lugar, como matéria ou tendência a alguma forma de visibilidade, não ainda transformado em vivência da consciência, como algo que não é – ainda não é – expressão vinculada a um significado nem matéria animada pela consciência: esse outro, na verdade, já apresenta indícios desde o incipiente pensamento de Husserl, mesmo que tenda a apagar-se em suas primeiras análises. Teria sido em algumas formulações mais tardias de Husserl que essa iminência de apagar-se passaria a perdurar um pouco mais, ou seja, à medida que Husserl se volta mais atentamente ao problema da constituição passiva. Derrida percebeu esse movimento na obra de Husserl, e sublinhe-se que ele o percebeu tanto mais expressamente em sua obra inicial sobre Husserl, Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl (1953/54), do que em sua obra mais conhecida sobre este autor e na qual se celebrizou sua crítica à filosofia da presença na fenomenologia ( La voix et le phénomène , 1967). Em Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl, Derrida afirma com pertinência que “tanto mais o pensamento de Husserl progride, mais ele tende a apresentar a gênese ativa como superficial e secundária” (DERRIDA, 1990, p. 230). Mais que um novo direcionamento abrupto, Derrida indica que o problema da gênese passiva seria intrínseco ao pensamento de Husserl, intensificando-se nos manuscritos a partir dos anos 1920 e atuando, por assim dizer, como uma espécie de aguilhão não subsumido pelos anseios metodológicos e sistemáticos da fenomenologia: Tematizado sob três formas, a hylé , a intersubjetividade transcendental e a temporalização originária, o problema da gênese passiva não cessou de inquietar Husserl. Todos os manuscritos datando deste período dão testemunho disso. Nas análises de uma imensa riqueza e desprovidas de toda preocupação sistemática, o pensamento de Husserl oscila constantemente entre um idealismo e um “existencialismo” (no sentido

profundo deste termo) que derrubaria ou tornaria superficial e puramente metodológica toda fenomenologia (DERRIDA, 1990, p. 238). A fim de considerar mais detidamente esta leitura de Derrida, voltemo-nos a estes três âmbitos de gênese passiva por ele destacados no pensamento de Husserl: a hylé , a temporização originária, a intersubjetividade transcendental. Tratar-se-á de tematizar se e em que medida tais âmbitos se preservariam enquanto lugar de alteridade na fenomenologia, no sentido de um resto existencial não subsumível pelo transcendental. III. O “OUTRO”: ATRAVÉS DO ESPELHO? In mir erfahre, erkenne ich den Anderen, in mir konstituiert er sich – appräsentativ gespiegelt, und nicht als Original. ⁴ Edmund Husserl , Cartesianische Meditationen. Começando pela hylé : já nas Investigações Lógicas , Husserl distingue entre hylé ou matéria dos atos e formas intencionais, ou entre os conteúdos primários e as vivências que possuem uma intencionalidade específica. No primeiro nível tem-se, por exemplo, dados de cores, dados sonoros, ou seja, dados de sensações que apareceriam à consciência enquanto tais, a saber, enquanto materialidade ainda não apreendida intencionalmente (HUSSERL, 1984b, p. 708 s; 1950, p. 192 s). Mas este nível é apenas passível de ser distinguido analiticamente, pois, no momento mesmo em que a consciência se volta ao que lhe aparece perceptivamente, já não se trata de dados sensíveis puros, mas de vivências intencionais, na modalidade perceptiva. Na medida em que tais momentos de sensações são animados ( beseelt ) pela consciência, eles passam a ter relação a objeto; antes disso, na situação em que não são apreendidos, tem-se uma miscelânea de dados não organizados: nem ainda identificados a um ou outro objeto específico, nem também coligados nos respectivos grupos sensitivos (por exemplo, como sensações visuais, táteis etc.) (HUSSERL, 1966, p. 149 s). Este tema desemboca, primeiramente, naquele da relação entre hylé e consciência do tempo e, em seguida, na temporização originária das sínteses passivas. No contexto da análise sobre a consciência do tempo, ⁵ Husserl concede aos teores hiléticos um lugar importante: ressalta, por exemplo, que um som sensível é matéria temporal para a objetivação de um objeto temporal, é impressão originária ( Urimpression ) que – como acentuado posteriormente – nem sempre é animada ( beseelt ) pela consciência no momento em que está no campo perceptivo. Apontando para a dimensão passiva intrínseca a cada percepção, os teores hiléticos passam a adquirir certa autonomia em relação à ideia de objetivação como proveniente da intencionalidade sintetizadora: por exemplo, não precisamos estar atentos à música que está tocando, enquanto nos ocupamos com outra coisa; isso não impedirá, contudo, que a música seja percebida conjunta ou implicitamente ( mitwahrgenommen ) (HUSSERL, 1966, p. 155 s). Neste caso, a duração sonora não é sintetizada pela intencionalidade noética como objeto temporal individualizado, mas os respectivos teores hiléticos são retidos (na respectiva fase retencional) como momentos de um dado contexto perceptivo. Quando este contexto for representificado e mesmo como condição para sua representificação, tais teores hiléticos poderão afluir de

modo fragmentário à consciência, associando-se passivamente – ou seja, a partir de si mesmos – a momentos hiléticos provenientes de outros contextos perceptivos. Este processo de constituição passiva é não só desvinculado da consciência intencional como condutora de atos, mas é ainda constituição originária de objetividades. Em outras palavras, há uma atividade própria da temporização passiva, a qual pode se apresentar em direcionamentos divergentes face à intencionalidade ativa; esta poderá, a posteriori , dirigir ou modificar o curso daquela, mas não poderá subsumi-la em si, já que a temporização das sínteses passivas tem uma origem não abarcável pelo polo egoico-sintético. A alteridade da constituição passiva face à intencionalidade noética que se lhe dirige a posteriori pode ainda se apresentar como irrupção originária, interrompendo sínteses ativas em curso, como cadeias de pensamento, atos de percepção acompanhados pela atenção, atos de julgamento etc. Nas análises tardias de Husserl, este tema se reelabora na problemática da temporalidade da afecção. Esta se define, em princípio, como mencionado, enquanto estímulos sensíveis – dados sensitivos não circunscritos a um objeto, afetos, motivações pulsionais – que afetam o eu como que provenientes de uma exterioridade e que podem ou não se incorporar às sínteses ativas. Husserl distingue entre “afecções efetivas” e “tendência à afecção”, referindo-se esta última a estímulos sensíveis que podem estar praticamente imperceptíveis para o polo egoico: Dados sensíveis (e assim dados em geral) enviam, por assim dizer, raios de força ( Kraftstrahlen ) sobre o polo egoico, mas em seu enfraquecimento eles não o alcançam, não se tornam para ele efetivamente um estímulo despertante (HUSSERL, 1966, p. 149). Mas imperceptibilidade não é o mesmo que inexistência ou ausência de intensidade: estímulos não efetivamente objetivados em uma dada fase consciente podem vir a intensificar-se, a associar-se com outros (perceptíveis ou não) e a despontar como que por si mesmos, temporizandose em uma outra fase consciente. Neste processo, há um espaçamento originário entre duas fases de consciência e um processo de temporizaçãoespaçamento não diretamente visível à consciência (em sentido estrito) e o qual possibilita a emergência de uma nova temporização consciente. Tal temporização-espaçamento que se constitui como síntese passiva – mediante associações, fragmentações, diastemas em níveis adjacentes à consciência (em sentido estrito) – emerge nesta enquanto interferência vinda de outro lugar, cuja origem é inassimilável para o espectador. Neste sentido, a temporização que emerge à consciência como que por si mesma, propiciada pelos espaçamentos-temporizações subjacentes, traduz-se no próprio movimento da différance , no duplo sentido sublinhado por Derrida: enquanto intervalo, distância espaço-temporal entre fases ou instâncias; e enquanto adiamento temporal ou desvio, através do que o preenchimento da intenção ou do desejo é deslocado (DERRIDA, 1972b, p. 8 s). Aquilo que, nas Investigações Lógicas , poderia ser visto apenas como ameaça de retorno do que fora apagado (o teor sensível-indicativo do signo) torna-se, na hylé secundária ou sensibilidade secundária hetero-afectiva – reelaborada como temporização-espaçamento originário –, uma

possibilidade irredutível e, mais ainda, uma condição de possibilidade dos próprios atos conscientes. Como afirma Husserl: [...] afecção já exerce seu papel essencial na constituição de todas as objetividades, de modo que sem ela não haveria em geral nenhum objeto e nenhum presente objetivamente encadeado. Objetos hiléticos constituem-se, nós dissemos e mostramos; eles estão em um devir constituinte [...] (HUSSERL, 1966, p. 164). As análises de Husserl sobre a hylé , as quais se aprofundam no problema da temporização e espaçamento da afecção (incluindo a dimensão pulsional e o problema do inconsciente), mantêm, todavia, uma dubiedade essencial quanto ao lugar de alteridade. Por um lado, Husserl se volta com mais vigor a esse outro lugar que não é o polo egoico e que funda toda possibilidade de constituição objetiva (para uma consciência). Por outro, há, junto a este movimento, um direcionamento de restituir a constituição passiva a um sentido que, se ainda não se individualizou na consciência, tem como telos a efetivação da possibilidade de ser reativado e assumido numa síntese atual (HUSSERL, 1966, p. 179). Passemos, com isso, ao terceiro âmbito da constituição passiva ressaltado por Derrida: a intersubjetividade transcendental. Husserl apresenta o fenômeno do emparelhamento ( Paarung ) ou apreensão analógica do “outro” como forma originária ( Urform ) da síntese passiva (HUSSERL, 1995, p. 115). Se, para Husserl, por princípio, o “outro” se dá como correlato de meu cogito , e somente assim ele é um outro cogito para mim, o acesso a esta outra consciência não ocorre nunca de forma direta ou originária. É por analogia, a partir da percepção de um corpo que se encontra diante, ao lado, emparelhado junto ao meu, ou de um gesto ou movimento semelhante ao meu, que primeiro se torna possível a experiência de um alter ego . Como formula Husserl, o “outro” se constitui “em mim” ( in mir ) não em original, mas espelhado de modo ap-presentativo ( appräsentativ gespiegelt ) (HUSSERL, 1991, p. 175). Por ap-presentação ( Appresentation ) entende Husserl uma apresentação mediata de algo, um espelhamento particular que não somente reflete um mesmo, mas traz, junto a isso, algo que não é da ordem do mesmo. À diferença de uma percepção evidente, na qual os respectivos teores percebidos correspondem ao ato de visada intencional que os apreende de um modo determinado, na appresentação tem-se algo a mais, dado implicitamente junto ao percebido. Este ‘algo a mais’ já está presente na percepção externa de uma coisa que não seja um outro sujeito: Husserl mostra que a percepção exterior é sempre perspectiva e sombreada ( abgeschattet ); o lado de um objeto apreendido em uma dada fase perceptiva pode me remeter ao objeto enquanto totalidade, mas somente na medida em que as outras partes estiverem implicitamente intencionadas (HUSSERL, 1966, p. 4 ss). Mas, na percepção de um alter ego , não se trata somente de constituir uma totalidade psicofísica ou intencional, de remontar a uma unidade corpórea a partir das partes percebidas de modo fragmentário. Trata-se, antes, de remontar dos dados hiléticos do “outro” a uma consciência que não é a minha: o emparelhamento associativo, fundado na semelhança entre um corpo próprio e um corpo alheio, é a mediação necessária para esta passagem (HUSSERL, 1991, p. 147).

Aqui se tem a dimensão mais própria do espelhamento ap-presentativo: o “outro” me espelha em sua presença em parte imediata, em parte mediada por uma gama de remissões – incluindo a mim mesmo que o percebo e diversas vivências minhas. O “outro”, todavia, não me fere em seu aparecimento, não é um negativo que está diante de mim exigindo reconhecimento, como formulariam Hegel e Levinas. Nem também é um “outro” que estivesse apenas lá para a constatação de um “ser-com” ( mitsein ), com ou sem suas implicações culturais. A experiência do “outro” é, antes, em Husserl, um modo de retorno ao eu, como se ele estivesse lá, para que esse ‘lá’ se reconvertesse a um lugar assimilável, reconfortante. Neste caso, o “outro” não é colocado à margem, como ocorria com a materialidade do signo enquanto índice nas Investigações , mas ele está como que à margem de mim: o problema se torna agora o ideal de conversão do ‘estar à margem’ a uma assimilação por espelhamento. Este ideal, em última instância, apaga aquilo mesmo que poderia servir de palco para outra cena. Como inscreve Derrida, a ap-presentação e a (re) presentificação ( Vergegenwärtigung ) deveriam servir não à apresentação ou à restituição desta, mas atuar como aquilo mesmo que “a condiciona, fissurando-a ( la fissurant ) a priori ” (DERRIDA, 1967, p. 5). Pensemos, por exemplo, em um jogo de xadrez em que se está sempre em situação, a cada situação enquanto posicionante: neste caso, não se pode simplesmente substituir o ‘meu aqui’, pelo ‘ali do outro’; peças diferenciadas e mesmo peças equivalentes não podem trocar de lugar. Cada uma possui um movimento próprio e, mesmo a rainha, que pode se movimentar em todas as direções, não engloba em sua gama de movimentos aquele do cavalo. Nenhuma peça deste jogo é, pois, intercambiável com outra, a menos que saia do jogo. Se, para uma peça no jogo de xadrez, ‘sair do jogo’ quer dizer que ela seja colocada à margem ou posta fora de circuito, o estar no jogo implica não estar nunca à margem propriamente, mas estar sempre na iminência disso. As peças colocadas à margem não retornam ao jogo, não agem no jogo como uma interferência vinda do exterior. Ou seja, o exemplo do jogo de xadrez, embora permita pensar a impossibilidade do simples intercâmbio de lugares e o estar em situação, enquanto posicionante e atuante, não deixa ainda pensar a interferência, a iminência de ser atingido por um exterior. Derrida nos permite pensar isso, por exemplo, através do fantasma do pai de Hamlet que começa por reaparecer (DERRIDA, 1993, p. 32 s) – vindo não se sabe de onde, ele é uma idealidade encarnada que interfere na cena –, ou através do “outro” que hospedo, mas não incluo nunca propriamente no espaço próprio, um “outro” que me acolhe neste espaço que, com isso, deixa de ser meu simplesmente (DERRIDA, 2001, p. 96 s). Tem-se aí jogos de interferências mútuas: sem poder precisar o que está propriamente fora ou dentro do circuito, o circuito se nutre da impossibilidade de deixar subsistir um ‘à margem’ enquanto tal e da impossibilidade de se fechar enquanto circuito. O circuito é a impossibilidade de si mesmo que possibilita esse evento, essa vinda de um outro ainda não assimilável, não necessariamente espelhável. Nesse emergir em um espaço, cair em um espaço vindo de outro lugar, como diria Blanchot, o “outro”, mesmo quando assimilável, me “obriga a reviver, como se ainda não tivesse ocorrido, como se fosse necessário passar mais uma vez pela atualidade” (BLANCHOT, 2002, p. 27)

Mas, para deixar vir o evento –o evento da vinda do “outro” e todo o desmoronamento, erosão, dessedimentação e empilhamentos de lugares que isso pode acarretar – importa, dirá Derrida, evitar o cálculo e as previsões. A história começa no ponto onde, deste ponto, já em si mesmo erodindo-se, dilatando-se, remetendo a uma gama de antes e de depois, espreitando-se, sabe-se apenas que teve lugar uma modificação. Podendo vir como não espelhamento, podendo vir nem ao lado nem através do espelho, talvez essa vinda inesperada do “outro” e o que dela advém teriam, como diz Derrida em relação à justiça (DERRIDA, 2010, p. 54 s), por isso mesmo um por vir , em sua ausência de expectativas e em seu remexer de terrenos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLANCHOT, Maurice. Uma voz vinda de outro lugar . Trad. Adriana Lisboa. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. DERRIDA, Jacques. Le problème de la genèse dans la philosophie de Husserl (1953-54). Paris: PUF, 1990. _. Introduction. In: HUSSERL, E. L’origine de la géométrie (1962). Paris: PUF, 1974, pp. 3-171. _. La voix et le phénomène: introduction au problème du signe dans la phénoménologie de Husserl . Paris: PUF, 1967. . La forme et le vouloir-dire: note sur la phénoménologie du langage. In: . Marges de la philosophie . Paris: De Minuit, 1972a, pp. 185-207. . La différance. In: . Marges de la philosophie. Paris: De Minuit, 1972b, pp. 3-29. _ . Spectres de Marx. L’État de la dette, le travail du deuil et la nouvelle Internationale. Paris: Galilée, 1993. _. Dire l’événement, est-ce possible? . Paris: L’Harmattan, 2001. _. Força de lei: o “fundamento místico da autoridade” (1994). Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HUSSERL, Edmund. Cartesianische Meditationen: Eine Einleitung in die Phänomenologie. Hrsg. von E. Ströker. Hamburg: Felix Meiner, 1995. _. Hua I: Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge . Hrsg. von S. Strasser. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1991. _ . Hua III: Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Erstes Buch: Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. Hrsg. von W. Biemel. Haag: Martinus Nijhoff, 1950. _. Texte zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (1893 – 1917). Text nach Hua Bd. X. Hrsg. von R. Bernet. Hamburg: Felix Meiner, 1985.

_ . Hua XI: Analysen zur passiven Synthesis. Aus Vorlesungs – und Forschungsmanuskripten 1918–1926 . Hrsg. von M. Fleischer . Den Haag: Martinus Nijhoff, 1966. _ . Hua XIX/1 : Logische Untersuchungen: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis . Hrsg. von U. Panzer. The Hague: Martinus Nijhoff, 1984a. _ . Hua XIX/2: Logische Untersuchungen: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis . Hrsg. von U. Panzer. The Hague: Martinus Nijhoff, 1984b. _. Hua XXXIII: Die Bernauer Manuskripte über die Zeitbewusstsein (1917-1918). Hrsg. von R. Bernet und D. Lohmar. Dordrecht / Boston / London: Kluwer Academic Publishers, 2001. _ . Materialien VIII: Späte Texte über Zeitkonstitution (1929 – 1934): Die CManuskripte . Hrsg. von D. Lohmar. Dordrecht: Springer, 2006. MONTAVONT, Anne. Passivité et non-donation. Alter : Revue de Phénoménologie 1 : Naître et mourir, p. 131-147, 1993. _. De la passivité dans la phénoménologie de Husserl . Paris: Presses Universitaires de France, 1999. 1 Cabe lembrar que Derrida constata esta primazia igualmente em outras filosofias da presença, por exemplo, na de Aristóteles e na dialética de Hegel, consistindo a fenomenologia de Husserl em um acabamento mais minucioso da ideia de presença que perpassa a metafísica clássica. Ver: Derrida (1967 , p. 26 s). 2 Tal análise encontra-se no mesmo contexto teórico do capítulo “Expressão e Significado”, no capítulo III (“Zur Lehre von den Ganzen und Teilen”) das Investigações Lógicas . 3 Ver a análise mais minuciosa de Husserl sobre a afecção em: Husserl (1966 , p. 148 ss). 4 “Em mim experimento, conheço o outro, em mim ele se constitui – espelhado, de modo ap-presentativo, e não como original”. 5 Refiro-me aqui de modo genérico àquelas análises apresentadas inicialmente por Husserl e reunidas na Hua X ( Texte zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (1893 – 1917) , bem como às suas reelaborações posteriores (nos já mencionados Hua XXXIII, XI e Materialien VIII ). DERRIDA, HEIDEGGER E A QUESTÃO DA CIÊNCIA FERNANDO FRAGOZO (UFRJ) INTRODUÇÃO

Mais de vinte séculos teriam sido necessários para que o lento movimento constitutivo do que então se denominou filosofia e ciência, história e Ocidente pudessem vir a se revelar “enquanto tal”, em um desabrochar que, de seu próprio desdobramento, viria a colocar em questão o próprio “enquanto tal” como sua questão “própria”, como sua própria “questão”. Nessa nossa “época”, que a rigor não poderia mais ser chamada de “época”, a necessidade de determinar como linguagem a totalidade de seu “horizonte problemático” (DERRIDA, 1967, p. 15) apontaria para, na problematização mesma do sinal, da referência, do signo enfim, “um modo ou um disfarce de uma escrita primeira”, mais fundamental do que a “linguagem” entendida como simples “suplemento da palavra”. “Tudo se passa como se o conceito ocidental de linguagem se revelasse hoje como o modo [ la guise ] ou o disfarce [ le déguisement ] de uma escrita primeira” (DERRIDA, 1967, p. 16). Tudo se passa como se, diríamos nós, todo um pensamento se apresentasse justamente nessa frase, que, no início de um percurso que se desdobrará por mais de quatro decênios, vai justamente colocar em questão esse “tudo”, esse “passar”, esse “hoje”, o conceito, o Ocidente, a linguagem, a escrita, o disfarce, o primeiro, e o “como se”... “Tudo se passa como se o conceito ocidental de linguagem se revelasse hoje como o modo ou o disfarce de uma escrita primeira.” Um disfarce que, nas palavras de Derrida, não é uma “contingência histórica” que se poderia “admirar ou lamentar”. Tratar-se-ia de um movimento “absolutamente necessário”, que reuniria, sob a denominação de “logocentrismo”, em uma mesma “ordem”, o conceito de escrita, a história da metafísica e o conceito da ciência, ou da cientificidade da ciência (1967, p. 11). Movimento que, ao atingir a sua clausura, que não é o seu fim, revela, desvela, põe a nu, em um processo autoimunitário, seus alicerces, seus fundamentos – e daí a importância do pensamento sobre a gramatologia, “ciência da escrita”, que vem revelar, no desdobramento e radicalização de seu processo, na impossibilidade de distinguir entre essência e origem, os próprios pressupostos que teriam permitido que algo como “ciência” e algo como “escrita” pudessem ser pensados: o conceito de signo e um “certo conceito das relações entre fala e escrita” (DERRIDA, 1967, p. 14).

Porque o ponto central é justamente esse: por mais que se possa desdobrar explicitamente, diríamos talvez “epistemologicamente”, o problema que se encontra por detrás da possibilidade da constituição de uma “ciência da escrita” (que a própria ideia de ciência nasceu a uma certa época da escrita; que ela pressupõe uma certa relação entre fala e escrita; que ela se liga à “aventura da escrita fonética”; que ela nasce em determinado momento histórico; que a escrita não é apenas um meio auxiliar da ciência, mas, como mostrou Husserl, a condição de possibilidade da objetividade científica; que, enfim, a própria historicidade está ligada à possibilidade da escrita (DERRIDA, 1967, p. 42); ou seja, por mais que possamos desdobrar o que Derrida chama de “fáceis questões de direito” que as ciências positivas têm de reprimir para se constituir em suas positividades, o ponto central é que é no próprio desdobramento dessa positividade que sua aporia constitutiva vem à frente, como sua (im)possibilidade. Assim, a gramatologia e a linguística denunciam a constitutividade mesma que as possibilita. Mas será preciso pensar, e é o que propõe Derrida, se não é o caso de toda e qualquer ciência realizarem , em seu desabrochar, a aporia que a constitui (1967, p. 35). Senão, vejamos no caso da gramatologia e da linguística: Gramatologia: As técnicas de deciframento (...) não pararam de progredir a um ritmo acelerado. Mas as histórias gerais da escrita, nas quais a preocupação de classificação sistemática sempre orientou a simples descrição, permanecerão por muito tempo comandadas por conceitos teóricos que sentimos não estarem à altura de imensas descobertas. Descobertas essas que justamente deveriam ter feito tremer os fundamentos mais seguros de nossa conceitualidade filosófica (DERRIDA, 1967, p. 121). Linguística: Na medida em que a questão do ser se une indissoluvelmente, sem a ela se reduzir, à pré-compreensão da palavra ser , a linguística que trabalha na desconstrução da unidade constituída desta palavra não tem mais a esperar, de fato ou de direito, que a questão do ser seja posta para definir seu campo e a ordem de sua dependência. Não apenas seu campo não é mais simplesmente ôntico, mas os limites da ontologia que lhe corresponderia não têm mais nada de regional (DERRIDA, 1967, p. 35). Neste sentido, os caminhos assim abertos (ou assim fechados...) pelo desdobrar dessas positividades vêm justamente assinalar o transbordamento da positividade na direção do questionamento, mesmo de suas condições de possibilidade (ou de impossibilidade), na conjunção dessa tripla ordem do logocentrismo: o conceito de escrita, a história da metafísica e o conceito de ciência. Vêm assim encontrar, segundo Derrida (1967, p. 35), as questões abertas por Husserl e Heidegger nesse questionamento radical da metafísica e da ciência que não se desdobram a partir (como autoimunidade) da(s) própria(s) ciência(s) positiva(s), mas que visam pensar essa positividade mesma a partir de outro solo. I. HEIDEGGER E A CIÊNCIA

Que questões são essas? Fundamentalmente, no caso de Heidegger (e é ele que nos interessará aqui), tratar-se-á da ampliação da reflexão sobre a ciência para além da dimensão epistemológica, incorporando, em sua necessária vincularidade, a problemática existencial, o questionamento histórico ( geschichtlich ), a reflexão crítica sobre o conceito de “realismo” e a elaboração da diferenciação entre “teoria” e “prática”, na qual a questão da técnica se apresentará posteriormente. O que significa, sob o horizonte da questão do ser, uma radical tentativa de compreensão do fenômeno da ciência e do conhecimento, que, a rigor e em um primeiro momento, não se apresenta apenas como um questionamento sobre a cientificidade da ciência, mas se apresenta como um questionamento que, na esteira da “ciência rigorosa” de Husserl, também se quis pensar como ciência: ciência do ser, ontologia. Em termos gerais, a reflexão de Heidegger sobre a ciência acompanha o percurso mais geral de seu questionamento, sendo certamente sintoma central de suas transformações – se não for uma de suas causas. Uma rápida e esquemática caracterização do pensamento de Heidegger em relação à ciência apontaria evidentemente para o momento da “viragem” ( Kehre ), momento de afastamento da elaboração da ontologia fundamental em direção ao pensamento da “história do ser”, como ponto de inflexão central. De fato, até o início dos anos 1930, o conceito de ciência é central para Heidegger caracterizar sua própria reflexão. Nesse período, que Kisiel denomina de “década fenomenológica”, a questão central é, sem dúvida, “é a Filosofia uma Ciência?” – e a preocupação de Heidegger é justamente caracterizar esse pretenso e eventual caráter “científico” da filosofia. Três momentos caracterizam, grosso modo , segundo Dastur (2006) e também Kisiel (1993), o pensamento de Heidegger, entre 1919 e 1929:

Até o início dos anos 1920, quando o conceito de “vida” é central para Heidegger, a filosofia é pensada como autocompreensão do movimento da vida, em contraposição às ciências positivas, que objetivam domínio de entes específicos. A “vida” constitui, assim, o “domínio fundamental da fenomenologia”, a própria fenomenologia sendo por ele definida como “ciência da origem da vida” (Ursprungswissenschaft vom Leben ) (HEIDEGGER, 1993, p. 36).

Em meados dos anos 1920, a filosofia é pensada como ciência crítica ou transcendental. O conceito central aqui já é o “ser” e não mais a “vida”. É o momento da elaboração da ontologia fundamental. Para Heidegger, as ciências positivas não questionam o ser dos entes, permanecem no nível dos entes já dados. Os temas (domínios) são pontos de partida para o questionamento científico, mas não são questionados no interior de cada ciência (não existe uma física da física, uma matemática da matemática etc.). A filosofia questiona esses domínios e o ser “enquanto tal”. É ciência crítica, no sentido de krinein , de discernimento , diferenciação , que realiza a diferença ontológica. É ciência transcendental, no sentido de que busca as condições de possibilidade da existência e do ser. Busca o que se encontra

oculto, apesar de desde sempre compreendido em toda experiência de um ente particular. Nos Problemas Fundamentais da Fenomenologia , curso de 1927 (HEIDEGGER, 1975), a filosofia é “ciência do ser”. Falar em filosofia científica é uma redundância: a filosofia é científica ou não é. Trata-se de trazer o ser ao conceito, tematizar o ser.

No final dos anos 1920, o papel da filosofia em relação à ciência se torna problemático: a essência da filosofia é insuperável ambiguidade. A filosofia não é ciência, mas também não é Weltanschauung (visão de mundo). Ela está “entre” a ciência e a Weltanschauung . Algo como um espírito de cooperação deve reinar entre a filosofia e a ciência. Nos Conceitos Fundamentais da Metafísica: Mundo, Finitude, Solidão , curso de 1929, Heidegger propõe que “não se deve cindir [...] investigação positiva e metafísica, jogando-as uma contra a outra” (2006, p. 219). Nesse curso, o questionamento se dá – em conjunto e a partir da biologia – em torno da caracterização da “animalidade” como “pobreza de mundo”. No início dos anos 1930, essa posição vai paulatinamente começar a mudar. A filosofia não é mais pensada como ciência e, aos poucos, é a própria caracterização de sua reflexão como “filosofia” que vai desaparecer. Entrarão no foco de sua atenção a questão do “pensamento”, da análise da metafísica como ontoteologia, da história do ser, do fim da filosofia, do “outro começo”, do Ereignis . Essa paulatina transformação do pensamento de Heidegger em relação à ciência encontra seu “acabamento”, por exemplo, na análise que faz Heidegger na Carta sobre o Humanismo , de 1946, quando Heidegger afirma que o projeto da ontologia fundamental “não teve sucesso em reter a essencial ajuda do ver fenomenológico e não descartou “porque sem sentido e inadequada”, a preocupação em ser “Ciência” e “Pesquisa” (1979, p. 171). Marcante em toda essa trajetória é o fato de Heidegger diferenciar, em um primeiro momento, o projeto de uma “ciência do ser” do projeto das ciências positivas , entendidas como aquelas que “põem” ( setzen ) entes, tendo como tema “algum ente ou entes, e de tal modo que eles são, em cada caso, dados antecipadamente como entes a estas ciências” (1975, p. 17). Lidando sempre com domínios específicos de entes predeterminados (natureza, história ou geometria, por exemplo), as ciências lidam com o que é e, neste sentido, “suas proposições; mesmo as da matemática são proposições positivas” (HEIDEGGER, idem). Também marcante é o fato de Heidegger empreender, a cada vez, uma análise da ciência moderna , e notadamente da moderna ciência da natureza , como contraponto à sua posição – seja essa posição entendida, como nos anos 1920, como “científico-filosófica”, ou, posteriormente, como “superação” da própria filosofia (e da ciência); a mudança se dando fundamentalmente na direção de uma crescente importância da ciência moderna para a caracterização e destinação do “nosso” mundo. Seja como for, trata-se para Heidegger de desconstruir o conceito usual de ciência, segundo o qual, “à essência da ciência pertence (...) a unidade da conexão de fundamentação de proposições verdadeiras” (2009, p. 50), tal

qual o expõe também Husserl. Essa conceituação, presente “na doutrina da ciência e na teoria do conhecimento” do início do século XX, aponta, segundo Heidegger, para dois pontos centrais:

uma determinada concepção da verdade como verdade proposicional; e

a concepção da ciência a partir do que, em certa medida, se sedimenta como seu resultado (2009, p. 50). Ora, o que Heidegger visa é compreender “o imediato” da própria atuação científica e, desta feita, como o resultado se coaduna com esta atuação (2009, p. 51). Pensar a ciência como essa sedimentação de proposições verdadeiras é justamente não levar em conta o que importa para Heidegger na ciência: o fato de ela ser justamente um processo, uma atuação, uma práxis , enfim. Em Ser e Tempo e no curso denominado Introdução à Filosofia , de 1928/1929, Heidegger elabora o que ele denomina de conceito existencial de ciência . O conceito existencial de ciência consiste no desdobramento, no âmbito da analítica existencial, de um modo de ser possível de “ser-nomundo” (HEIDEGGER, 1967, p. 357), qual seja, o do comportamento explicitamente descobridor. Na análise que realiza, Heidegger apresenta duas condições necessárias para o comportamento científico que correspondem a duas projeções, ou dois projetos: o “projeto científico dos entes já de algum modo encontrados no mundo”, que Heidegger chama de tematização ( Thematisierung ), e a projeção para o “poder-ser” na “verdade” (1967, p. 363), projeção esta decorrente de uma decisão do “seraí” que funda existenciariamente ( existentiell ) a possibilidade do comportamento descobridor. A fim de apresentar “uma primeira caracterização” da gênese do comportamento teórico, Heidegger se baseia no que ele denomina “um modo de apreensão teórica dos entes intramundanos”, qual seja, a “física matemática” (1967, p. 362). É a partir dessa “base”, entendida aqui como “exemplo”, exemplo “clássico” (idem), que Heidegger procederá a esta “caracterização”. Heidegger destacará o fato de que, na compreensão dos entes intramundanos como “natureza física”, há uma modificação da compreensão . “A compreensão do ser , que orienta o modo de lidar na ocupação com o ente intramundano, se transformou ” (1967, p. 361). A esta modificação/transformação da compreensão pertence uma “abolição de limites” ( Entschränkung ) (HEIDEGGER, 1967, p. 362) do ente em relação a seu confinamento, como manual, no mundo circundante e, simultaneamente, segundo o fio condutor da compreensão agora predominante no sentido da subsistência ( Vorhandenheit ), essa liberação se transforma em “delimitação” ( Umgrenzung ) da “região” do ente subsistente. A atitude científica, segundo Heidegger – e esse ponto é fundamental –, se dirige assim para a “pura descoberta do ente subsistente” (1967, p. 363). O termo “puro” ( pur ou rein – ambos são usados) aqui se refere à

unidirecionalidade da atitude científica na direção da descoberta da entidade investigada. Trata-se de uma atitude de “pura” busca de conhecimento a partir da projeção realizada. Em outras palavras, não há, para a análise realizada no âmbito da ontologia fundamental, postura “pragmatista” ou “utilitarista” – em uma palavra, “técnica” – em relação à ciência, mas a busca do que o ente é “em si”, como especifica o seguinte trecho da Interpretação Fenomenológica da Crítica da Razão Pura, curso de 1927/28: ... a luta é apenas dirigida para a própria entidade e apenas a fim de liberála de seu retraimento e de restituir-lhe assim o que lhe é próprio, ou seja, deixá-la ser o que é em si ( das es an sich ist ) (HEIDEGGER, 1995, p. 26). Mas esse “em si” não é pensado em termos “absolutos”, mas sempre a partir de uma dada projeção temática . É nesse sentido que Heidegger dirá que “o caráter exemplar da ciência matemática da natureza [reside] no fato de que, nela, o ente temático é descoberto da única maneira em que pode ser descoberto, a saber, no projeto prévio de sua constituição ontológica” (1967, p. 362) e que é “somente ‘à luz’ de uma natureza assim projetada que se pode encontrar um ‘fato’” e a fundamentação das “ciências dos fatos” só foi, portanto, possível na medida em que o pesquisador compreendeu que, em princípio, não existem “meros fatos” (idem). Assim, no caso da ciência moderna da natureza, da física matemática moderna, o elemento decisivo não é nem a observação dos fatos nem a experimentação nem o cálculo (características que são muitas vezes apontadas como aquelas que diferenciariam a física moderna do conhecimento medieval ou o da Antiguidade), mas “a orientação dada por Galileu” no sentido de delimitar o que deve ser entendido por “natureza” de modo que ela “se torne interrogável e determinável como um sistema fechado de mudanças de lugar de corpos materiais no tempo”. Para Heidegger, a “intelecção epocal” de Galileu teria sido a de ter entendido que é “preciso ter antes de tudo um conceito do que [se compreende] por ‘natureza’ para interrogar a natureza quanto ao que ela é” (2009, p. 200). Todo experimento é assim “estabelecido e interpretado sob a luz de uma determinação prévia do ente” (HEIDEGGER, idem). No caso, a determinação em questão é dada pelo “elemento matemático”, que determina essencialmente o corpo como “um ente extenso que se movimenta” e a natureza como “determinada e determinável por meio de quantidades” (HEIDEGGER, 2009, pp. 200-201). Neste sentido, “o decisivo no projeto matemático da natureza não é, pois, o matemático como tal, mas o fato de que ele abre um a priori ”, que é um “projeto prévio da constituição ontológica” do ente (HEIDEGGER, 1967, p. 362). Essa transformação da compreensão é também pensada, em outro trecho de Ser e Tempo , como uma “determinada desmundanização” ( bestimmten Entweltlichung ) (HEIDEGGER, 1967, p. 65) ou como uma “desmundanização específica” ( spezifischen Entweltlichung ) (HEIDEGGER, 1967, p. 112). Ressalto aqui o termo porque me parece que está aí o ponto central da mudança de enfoque de Heidegger em relação à ciência a partir da dita “viragem” de seu pensamento. Se em Ser e Tempo e escritos sincrônicos a atitude científica é pensada como um modo comportamental

possível do “ser-aí” que realiza uma “determinada desmundanização” a partir de projeções prévias que visam à “pura descoberta do ente subsistente”, a partir de meados dos anos 1930, a interpretação segundo a qual o que ocorre com o processo científico é uma desmundanização no sentido pleno do termo, uma mudança de mundo e, desta feita, uma “ re mundanização”, vai ficar patente. Assim, em A Pergunta pela Coisa , curso de 1935/36, a atitude científica passa a ser pensada como fruto direto do desdobramento do “matemático”, agora entendido no sentido da mathesis platônica, como “o pressuposto fundamental do saber acerca das coisas” (HEIDEGGER, 2002a, p. 82), que constitui a raiz tanto da moderna ciência da natureza, da matemática em sentido estrito e da metafísica. Se em Ser e Tempo o projeto matemático da natureza abre um a priori , em A Pergunta pela Coisa , o projeto matemático da natureza abre o a priori enquanto tal: aquilo que sabemos acerca das coisas em geral . Em A Pergunta pela Coisa, o “projeto matemático da natureza” não diz mais respeito a um domínio de entes específico, aberto à tematização e objetivação: diz respeito ao entendimento da totalidade do ente como o que é posto pela subjetividade fundadora do cogito , que passa doravante a ser o “axioma fundamental de todo saber”. Estamos aí, segundo Heidegger, diante do próprio movimento de desdobramento da Metafísica, a partir de seus princípios fundamentais (princípio de contradição, princípio do eu e princípio de razão suficiente) em seu momento moderno. O ponto a ser enfatizado aqui é o que aponta Glazebrook: Em A Pergunta pela Coisa , a história da metafísica moderna está tão atada, para Heidegger, com a física que ele se debruça sobre a história da ciência precisamente com a intenção de compreender a metafísica moderna (2000, p. 60). Isto quer dizer que se o “conceito existencial de ciência” faz sentido como uma dupla projeção necessária, projeção para o “poder-ser” na verdade e projeção temática e objetificante, esta última não pode ser pensada como mera mudança no modo de compreensão dos entes intramundanos. O que se pode deduzir do pensamento posterior de Heidegger é que a projeção temática e objetificante da ciência moderna tem como fundamento uma projeção ontológica (ou metafísica), uma “compreensão do ser”. Ao longo dos escritos posteriores, o advento da ciência moderna passará paulatinamente a ser visto como fazendo parte do movimento mais largo e mais profundo que é a história do ser, a história da metafísica ou a ontoteologia. A ciência agora não é mais pensada como atitude possível do “ser-aí” no mundo, mas o mundo mesmo é pensado como marcado pela atitude científica que, por sua vez, é um desdobramento da técnica moderna, ela mesma marcada pela sua essência, a essência da técnica, o Gestell . Neste sentido, Heidegger dirá, em Ciência e Pensamento do Sentido , texto de 1953, que “o que se chama de ciência ocidental europeia determina também, em seus traços fundamentais e em proporção crescente, a realidade na qual o homem de hoje se move e tenta sustentar-se”. Explicita também ali que “algo mais do que um simples querer conhecer da parte do homem rege a ciência” e critica o fato de permanecermos “presos às

representações habituais da ciência” (HEIDEGGER, 2002, p. 39-40). Em sua essência, a ciência é vista como um “cálculo”, entendido em sentido lato como o “procedimento assegurador e processador de toda teoria do real” (HEIDEGGER, 2002, p. 49): Não se deve (...) entender cálculo em sentido restrito de se operar com números. Em sentido essencial e amplo, calcular significa contar com alguma coisa, ou seja, levá-la em consideração e observá-la. Neste sentido, toda objetivação do real é um cálculo, quer corra atrás dos efeitos e suas causas, em uma explicação causal, quer, enfim, assegure em seus fundamentos um sistema de relações e ordenamentos (HEIDEGGER, 2002, pp. 49-50). O fato é que, para Heidegger, diferentemente da abordagem realizada na ontologia fundamental, o que está em jogo agora com a objetidade não é uma “busca de conhecimento”, mas sim um processo de exploração e disposição do real: “A ciência corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua atividade de teoria, explora e dispõe do real na objetidade” (HEIDEGGER, 2002, p. 48). A ciência responde ao “destino do ser na modernidade”, ou seja, ao Gestell , essência da técnica, entendida como processo de disponibilização de tudo o que há. II. HEIDEGGER, DERRIDA, CALCULABILIDADE E RAZOABILIDADE Dois grandes modos de analisar a ciência destacam-se assim desta rápida e esquemática apresentação da reflexão de Heidegger: o conceito existencial de ciência, no momento da elaboração da ontologia fundamental, e o caráter “técnicodestinal” da ciência, no momento da elaboração da “história do ser”. Da “pura descoberta do ente subsistente” realizada a partir do “projeto prévio de sua constituição ontológica”, para a reflexão da ciência como “disponibilização do ente” regida pela “essência da técnica”, a mudança é certamente considerável – mas, em ambos os enfoques, estamos diante de radicais questionamentos que visam distanciar-se do entendimento da ciência como uma sedimentação paulatina de proposições verdadeiras, posição que Heidegger, desde logo cedo, propunha contestar. Ao entender a ciência como uma práxis que remete a uma posição existencial fundamental que visa “à pura descoberta do ente subsistente”, o que Heidegger propõe é que, com a ciência, há algo da ordem de um “engajamento” com a “verdade”, engajamento este que, no curso de 1928/29, será marcante para a determinação do que viria posteriormente a ser chamado “Ocidente”. Mas não apenas: o modo como essa práxis se realiza na efetividade das ciências positivas aponta, segundo Heidegger, para um caráter circular essencial dessa busca da “verdade” do ente. Assim, é sempre a partir de um projeto prévio da constituição ontológica do ente que o ente pode ser “descoberto” em seu “em si”. Paradoxalidade explícita do processo de constituição das ciências ônticas que coloca evidentemente em questão o “em si” supostamente visado: que “em si” é este que apenas se revelaria a partir de uma determinação ontológica prévia? Ora, é justamente essa discussão que Derrida leva adiante em Da Gramatologia, e que, a rigor, parece-me, permeará seu questionamento de modo permanente, implícita e explicitamente – o conceito de

“autoimunidade” refletindo, de modo ampliado, essa questão. O que Da Gramatologia põe assim à frente seria o revelar-se paulatino dessa paradoxalidade estrutural das ciências – no caso, pelas próprias ciências em seu desenrolar; o caso da “ciência da escrita” sendo não apenas paradigmático, mas estrutural. A nossa “época” seria justamente aquela em que viriam à tona essas paradoxalidades, que revelariam o movimento mais geral do próprio “Ocidente” em sua busca de “verdade”, seu projeto teleológico e sistemático. Sem dúvida, a análise heideggeriana da ontoteologia também visa descortinar este horizonte estrutural do “Ocidente” – e o faz na figura do desdobramento do “princípio de razão” na filosofia como busca de um fundamento ôntico para o ser, “esquecendo-se” assim da diferença ontológica, ou seja, de que o ser não “é”. As ciências, neste relato ontoteológico, são desdobramentos desse processo estrutural mais profundo, processo esse que teria encontrado seu ponto de chegada no Gestell , “destino do ser na modernidade”, que impele o homem a colocar-se no modo da disponibilização infinita de tudo o que há e do qual não se sai por um “ato de vontade” ou por força de alguma decisão, mas no qual a serenidade do pensamento ou o acontecer da arte poderiam, talvez, no distanciamento possível de todo “cálculo”, encaminhar outro “começo”. Pois é aqui, parece-me, que se apresenta um dos pontos mais fortes da diferença de Derrida em relação a Heidegger. De fato, o pensamento de Heidegger, em sua análise da ontoteologia, realiza de algum modo esse “teleologismo” da razão na forma de uma história, ou seja, de uma narrativa destinal, que tem como seu ponto de chegada, seu “fim”, na efetivação de uma razão exclusivamente calculadora, da qual apenas uma espera serena e meditativa poderia, eventualmente, “salvar”. Quando para Heidegger (o Heidegger da “história do ser”, importante enfatizar) trata-se de pensar e preparar um “outro começo” – já que o movimento ontoteológico em seu desdobramento terminal na essência da técnica é justamente o “perigo supremo” que leva o “esquecimento do ser” a seu paroxismo –, para Derrida trata-se de pensar em que medida essa narrativa destinal, que “reduz” a razão à realização de um projeto totalizante, pode ser considerada. Ora, o que Derrida vai propor é que, se a filosofia é justamente caracterizada pelo seu projeto, pelo fato de ser uma projeção na direção de uma totalização racional, não se deve deduzir disso que a razão se reduza a esse projeto. Por outro lado, se o cálculo faz parte da razão, ele não abrange toda a razoabilidade da razão. Em outras palavras, o diagnóstico heideggeriano como colocação de todo o movimento da razão ocidental sob a égide da ontoteologia que desemboca no Gestell , o processo de disponibilização infinita do ente como cálculo, parece um reducionismo. O que Derrida busca justamente assinalar em “O ‘mundo’ das Luzes por vir (exceção, cálculo e soberania)”, conferência pronunciada em 2002 e publicada em Voyous (2003), é que, se a calculabilidade faz também parte da razão (e da ciência), esta não se reduz àquela. É possível, propõe Derrida, pensar, na esteira da “ciência rigorosa” de Husserl, em uma razão “indubitável”, mas nem por isso “exata” ou “calculadora” (2003, p. 185) – e, como exemplo paradoxal, Derrida aponta o fato de que uma tal “incalculabilidade racional e rigorosa se apresentou,

como tal, justamente, na mais alta tradição do idealismo racionalista” (2003, p. 186) sob a discussão kantiana da “dignidade” ( Würde ) nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes . Exemplo instigante porque essa tradição, a reflexão de Husserl aí incluída, pensa a razão fundamentalmente como tendo uma “vocação” arquitetônica, sistemática e unificadora. Essa seria a sua “natureza” (o termo é de Kant apud DERRIDA, 2003, p. 169) e, nesse sentido, assinala Derrida, o que “comanda tão potentemente os idealismos e os racionalismos transcendentais de Kant e Husserl” (2003, p. 179) é seu teleologismo . Mas também, diríamos nós, e também Derrida em outros textos, aquele teleologismo que comanda a reflexão da história do ser ou da ontoteologia, que encontra seu acabamento, seu fim, seu ponto de chegada destinal no Gestell como arrazoamento da razão, da razão entendida exclusivamente como cálculo – a posição de Heidegger, do Heidegger da “história do ser”, também se incluindo, certamente com sinal trocado, no entendimento de que se trata, quando se trata de razão, desse projeto sistemático, unificante e totalizador. Ou seja, trata-se fundamentalmente, para Derrida, de desvincular a razão desse pretenso projeto sistemático, unificante e totalizador que está na base mesma da filosofia – projeto vivido e encampado, segundo Derrida, por Kant e Husserl e criticado/desconstruído por Heidegger. Tratar-se-á, para Derrida, de desvincular a razoabilidade da razão do pretenso projeto inexorável de sua unificação sistemática (seja essa unificação inexorável vista com bons olhos por Kant e Husserl, seja ela vista com distanciamento por Heidegger); ou seja, proceder à distinção radical entre os conceitos de razão e totalização, razão e cálculo. Em “O ‘mundo’ das Luzes por vir...”, Derrida centrará sua análise notadamente sobre a conferência pronunciada por Husserl em 1935, em Viena, denominada “A crise da humanidade europeia e a filosofia” (2008) visando “questionar a autoridade senhorial e controladora da arquitetônica” (DERRIDA, 2003, p. 171) e o que se apresenta, aos olhos de Husserl, como “crise”, “crise da razão”, crise do “mundo”, do “nosso” mundo que poderia “perder a razão” e “se perder como mundo” (DERRIDA, idem). O que significa, nesse questionamento, também e fundamentalmente, questionar os conceitos de “mundo”, de “nosso” mundo, de “crise do mundo”: Talvez devêssemos, ao contrário, tentar pensar outra coisa que uma crise. Talvez estejamos enfrentando algum abalo sísmico mais e menos grave, outra coisa que não uma crise da razão, além de uma crise da ciência e da consciência, além de uma crise da Europa (DERRIDA, 2003, p. 174). Outra coisa mais e menos grave. Mais e menos grave, o que quer dizer, entendo eu, algo diferente – e aí é que está toda a dificuldade e o desafio para o pensamento. No caso específico da ciência “positiva”, seria em primeiro lugar necessário enfatizar não apenas o singular, mas o plural: “as” ciências positivas. Ora, são elas que também e em grande medida provocam algum abalo sísmico no próprio conceito de uma razão arquitetônica e sistemática:

Se esta vocação arquitetônica da razão é sistemática e unificadora, o que corre o risco de ameaçá-la hoje (...), é também a necessidade tão racional quanto, do ponto de vista de uma história e de um devir das ciências, de levar em consideração as racionalidades plurais. Cada uma delas tem sua “região” ontológica, sua necessidade, seu estilo, sua axiomática, suas instituições, sua comunidade e sua historicidade próprias (DERRIDA, 2003, p. 170). É ainda possível, hoje, pensar em uma unificação do saber científico, em uma unificação da universidade, projeto tão grandemente sonhado e projetado por nossa tradição filosófica e científica? Invertendo o modo como a questão fora posta por Husserl e propondo ver o perigo em outro lugar, Derrida escreve: Não é então em nome destas racionalidades heterogêneas, de sua especificidade e de seu futuro, de sua história, de suas ‘luzes’, que é preciso pôr em questão a autoridade magistral e dominadora da arquitetônica e, assim, de um certo ‘mundo’, de uma unidade da Ideia reguladora de mundo que antecipadamente a autoriza? (2003, p. 171). A crítica de Derrida dirige-se, portanto, a esse pretenso papel de “arconte de toda a humanidade”, tal como apresenta Husserl (2008, p. 338), por parte da filosofia e da Europa, no sentido de pensar o perigo que representa tal idealização justamente para a possibilidade da existência e desdobramento da razão, na pluralidade desconcertante de suas instituições (no sentido lato do termo) científicas, fruto certamente de um projeto compreensivo e totalizante que, hoje, teria de ser revisto. A crítica de Derrida se faz assim justamente em nome da razão – mais especificamente da pluralidade da razão. Por outro lado, seria preciso identificar os teleologismos, as “ideocracias”, os condicionantes e os controles mais específicos presentes nos processos de pesquisa que “tendem a anular ou a neutralizar, para imunizar-se, o caráter de acontecimento do acontecimento [ l´événementialité de l ´événement ]” (DERRIDA, 2003, p. 199). Do teleologismo mais geral da razão, aquele pensado por Kant e Husserl (e também Heidegger), às teleologias, no plural, que podem “orientar uma configuração determinada: paradigma no sentido de Kuhn, épistemé no sentido de Foucault, mas também tantas outras infraestruturas da descoberta tecnocientífica” (DERRIDA, 2003, p. 180). O que também quer dizer o controle ou o condicionamento da pesquisa por todo tipo de poderes ou instituições políticas, militares, tecnológicas, econômicas e capitalísticas.

Porque a teleologia, ou o teleologismo, fortemente marcante e presente no idealismo transcendental, tanto de Kant quanto de Husserl, é justamente o que, para Derrida “limita ou neutraliza o acontecimento/evento” (2003, p. 180). Em outras palavras, na medida em que há teleologia, na medida em que o que pode se apresentar como “irrupção imprevisível e incalculável” é ordenado sob uma historicidade predeterminada, sua “alteridade singular e excepcional” é neutralizada, subsumida aos possíveis previsíveis do próprio processo teleológico. Neste sentido, diz Derrida, “o teleologismo parece sempre inibir ou suspender, até mesmo contradizer, a acontecialidade do que vem” (2003, p. 180). Ora, se faz parte do modo de procedimento da ciência a adoção de hipóteses , entendidas, tal qual propõe Heidegger, como projeções temáticas e objetificantes, como esse conjunto de conceitos e procedimentos que, no sentido do paradigma de Kuhn, guiam a pesquisa positiva, o fato é que, como ressalta Derrida, só há “acontecimento” científico, só há “invenção” e “descoberta” (e seria preciso pensar minuciosamente a diferença entre esses conceitos), ali onde surge justamente, a partir das projeções esperadas, o inesperado: a invenção técnico-científica (...) apenas “encontra” [e Derrida coloca justamente o “encontra” entre aspas, em um gesto que faz imediatamente pensar no Ménon e na aporia da busca de conhecimento] o que ela busca (...) ali, onde a invenção é impossível, ou seja, onde ela não é programada por uma estrutura de espera e antecipação que a anula ao torná-la possível e logo previsível (DERRIDA, 2003, p. 180). Sem dúvida, o próprio movimento interno das ciências pode vir a fazer com que o “acontecimento” se dê, o imprevisível surja – a história ou as histórias das ciências nos contam certamente diversos casos dessas irrupções, dessas perplexidades. Penso por exemplo na problematização epistemológica na física na passagem do século XIX para o século XX em torno de seus conceitos fundamentais (tempo, espaço, matéria, energia), feita pelos próprios cientistas (Herz, Helmholtz, Ostwald, Mach, Planck, Poincaré, Boltzmann, dentre tantos outros), e que gerou tantas discussões apaixonadas; assim como na perplexidade de Darwin diante do problema em torno dos conceitos de “origem” e de “espécie” – e vejam que aqui chamo a atenção para as ditas ciências “naturais”. O próprio movimento das ciências pode fazer com que o “acontecimento” se dê, e, neste sentido, o que me parece é que o que Derrida propõe é um trabalho conjunto da desconstrução com esses processos, no sentido de assinalar e denunciar os condicionantes que impeçam a possibilidade da perplexidade e do acontecimento, da perplexidade do acontecimento, do acontecimento da perplexidade. Assim, em trecho de Da Gramatologia , Derrida escreve: É, sem dúvida, preciso empreender hoje uma reflexão na qual a descoberta ‘positiva’ e a ‘desconstrução’ da história da metafísica, em todos seus conceitos, se controlem reciprocamente, minuciosamente, laboriosamente. Sem isso, toda liberação epistemológica corre o risco de ser ilusória ou limitada, propondo apenas comodidades práticas ou simplificações conceituais ( notionnelles ) sobre os fundamentos não atingidos pela crítica (1967, p. 124).

De onde decorre, em “O ‘mundo’ das Luzes por vir...”, a definição (ou a ‘quase-definição’) da desconstrução: ... a desconstrução, se algo assim existisse, seria a meu ver, antes de mais nada, um racionalismo incondicional que não renuncia nunca, precisamente em nome das Luzes por vir, no espaço a abrir de uma democracia por vir, a suspender de modo argumentado, discutido, racional, todas as condições, as hipóteses, as convenções e as pressuposições, a criticar incondicionalmente todas as condicionalidades, inclusive aquelas que fundam ainda a ideia crítica, a saber, a do krinein , da krisis , da decisão e do juízo binário ou dialético (DERRIDA, 2003, p. 197). A desconstrução não seria apenas um racionalismo hipercrítico, o polo por assim dizer “negativo” da razão, o permanente questionamento das condicionalidades. Ela seria também um metarracionalismo (mas não é redundante propor que a razão pense a si mesma?), na medida em que pensa a razoabilidade da razão, não apenas como situada em seu polo “crítico”, mas como uma “aposta razoada ( pari raisonné ) e argumentada dessa transação entre as duas exigências aparentemente inconciliáveis da razão, entre o cálculo e o incalculável” (DERRIDA, 2003, p. 208). O que significa propor a dissociação do que Derrida enxerga como duas exigências da razão: a exigência de “soberania em geral” e a exigência de “incondicionalidade”, para ele, “estruturalmente” associadas desde Platão: Tratar-se-á para mim de perguntar se, ao pensar o acontecimento/evento ( événement ), o vir, o advir/futuro ( avenir ) e o devir ( devenir ) do acontecimento, não é possível e em verdade necessário subtrair a experiência do incondicional, o desejo e o pensamento, a exigência da incondicionalidade, a própria razão e a justiça da incondicionalidade, a tudo o que se ordena em sistema a esse idealismo transcendental e à sua teleologia. Em outras palavras, se há uma chance de acordar o pensamento do acontecimento incondicional a uma razão outra que não aquela da qual acabamos de falar, a saber, a razão clássica do que se apresenta ou anuncia sua apresentação segundo o eidos , a idea , o ideal, a Ideia reguladora ou, o que aqui corresponde ao mesmo, o telos (2003, p. 189). O que há de significar, desta feita, a estanqueidade radical entre saber e poder, entre o âmbito da pesquisa e do questionamento, e o âmbito da responsabilidade e da decisão, na medida em que, para Derrida, uma decisão enquanto tal, digna desse nome, apenas engaja a responsabilidade quando não pode ser programada ou prevista – ela tem sempre algo de “louco”. O que, aponta Derrida, “comporta um risco muito grave” (2003, p. 199). E se, para Derrida, o “verdadeiro local de um problema da razão hoje” é a técnica e tudo o que ela implica como advento impossível, imprevisível e radicalmente outro, é porque é preciso pensá-la também, tanto quanto a razão e a ciência, a partir de um “decentramento” radical que não pode ser, ou não pode mais ser – tal qual já propusera Da Gramatologia –, “um ato filosófico ou científico enquanto tal” (DERRIDA, 1967, p. 139). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DASTUR, F. Le concept de science chez Heidegger avant le “tournant” des années trente. Noesis , 9, p. 7-28, 2006. DERRIDA, J. De la grammatologie . Paris: Les Éditions de Minuit, 1967. _. Le ‘monde’ des Lumières à venir (exception, calcul et souveraineté). In: Voyous – deux essais sur la raison . Paris: Galilée, 2003. FRAGOZO, F. Ciência, desmundanização e a “viragem” ontológica. In: VEIGA, I. S.; SCHIO, S. M. (Orgs.). Heidegger e sua época 1920-1930 . Porto Alegre: Clarinete, pp. 27-48, 2012. _. Razão e desconstrução: Derrida entre a soberania incondicional e a incondicionalidade soberana. Ensaios Filosóficos – Revista de Filosofia, volume 6, outubro de 2012. Disponível em: www.ensaiosfilosoficos.com.br. Acessado em: 21/02/2014. GLAZEBROOK, T. Heidegger’s philosophy of science . New York: Fordham University Press, 2000. HEIDEGGER, M. Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências . Petrópolis: Vozes, 2002. _. Os conceitos fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão . Trad. de Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. _. Die Grundprobleme der Phänomenologie , GA24 (Sommersemester 1927). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1975. _. Grundprobleme der Phänomenologie , GA58 (1919/20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1993. _. Introdução à filosofia . Trad. de Marco Antonio Casanova. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. _. Phänomenologische Interpretation von Kants Kritik der Reinen Vernunft GA25 (1927/28). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995. _. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios trancendentais . Trad. de Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 2002a. _. Sein und Zeit (11. Auf.). Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967. _. Ser e tempo . Trad. de Maria Sá Cavalcanti Schuback. Petrópolis: Ed. Vozes, 2005. _. Ser e tempo . Trad. de Fausto Castilho. Campinas: Editora da Unicamp; Petrópolis: Ed. Vozes, 2012. _. Sobre o “humanismo”. In: Conferências e escritos filosóficos . Trad. de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Col. Os Pensadores).

HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a filosofia. In: A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental – uma introdução à filosofia fenomenológica . Trad. de Pedro M. S. Alves. Lisboa: Phainomenon/ Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2008. Disponível em: http:// www.lusosofia.net/textos/ husserledmundcrisedahumanidadeeuropeiafilosofia.pdf KISIEL, T. The genesis of Heidegger’s Being and Time. Berkeley: University of California Press, 1993. PHILIPSE, H. Heidegger and the “scandal of philosophy”: The problem of the Ding an sich in Being and Time . In CROWELL, S. G & MALPAS, Jeff. Transcendental Heidegger . Stanford: Stanford University Press, 2007. REIS, R. R. A constituição ontológica dos fatos científicos na fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger. In GUTIERREZ, Carlos B. No hay hechos, sólo interpretaciones . Bogotá: Universidad de los Andes, 2004. VIDEIRA, A. A. P. Metafísica, físicos, valores: um ensaio sobre a crise dos fundamentos das ciências naturais na passagem do século XIX para o século XX. Ensaios Filosóficos – Revista de Filosofia , volume 4, outubro de 2011. Disponível em: www.ensaiosfilosoficos.com. br. Acessado em: 07/03/2013. HEIDEGGER E O DESTINO EXCURSO ACERCA DO EX-CURSUS EM 1933 ¹ CHARLES FEITOSA (DFCS – PPGAC / UNIRIO) Só não há determinismo onde há mistério... Mas que temos nós com isso? Oswald de Andrade ( Manifesto Antropofágico ) I. O MISTÉRIO HEIDEGGER A questão que pretendo abordar ficou famosa como o caso Heidegger, mas passo a chamá-la de o mistério Heidegger. Por que mistério? Porque é uma tarefa intrigante explicar como um dos mais importantes pensadores desse século tenha se envolvido com o nazismo. Todos aqueles que se ocupam com seu pensamento, mais cedo ou mais tarde, têm que enfrentar esse mistério. Trata-se aqui de um excurso, no sentido de uma digressão provisória da direção que tenho realizado em meu trabalho, das questões estéticas e ontológicas, para uma questão de ordem política e biográfica. Tais desvios são necessários às vezes, já que essas dimensões não podem ser pensadas separadamente. Acredito que haja sempre um entrecruzamento entre estética e ética, assim como entre filosofia e a autobiografia na obra de um pensador. Minha hipótese é a de que os enredamentos políticos de Heidegger devem ser vistos como um ex-cursus , quer dizer uma “saída para fora” de seu próprio projeto, a saber, da ideia de um pensamento da finitude tal como estabelecido em Ser e Tempo (1927). Sobre o mistério político que envolve o pensamento de Heidegger já foram publicados mais de mil títulos desde 1936 até os dias de hoje, inclusive vários títulos no Brasil. ² O mais famoso deles talvez seja o livro do autor chileno Victor Farias, publicado em 1987 com o título Heidegger e o Nazismo , que, por conta de diversas

imprecisões históricas e filosóficas, causou variadas polêmicas e controvérsias. Para mim o texto mais importante sobre o tema continua sendo a conferência de Jacques Derrida realizada em 14 de março 1987 em um colóquio organizado pelo Collège International de Philosophie , em Paris, que depois veio a ser publicada sob o título: De l’espirit – Heidegger et la question . Assim como Derrida nessa conferência procura mostrar o uso problemático do termo “espírito” nos textos filosóficos e políticos de Heidegger, pretendo aqui também realizar um gesto de desconstrução da noção de “destino” em Ser e Tempo e no Discurso do Reitorado , de 1933, sugerindo que se trata aí também de um nó fundamental no emaranhado das possíveis relações entre filosofia e política. Heidegger foi apresentado frequentemente na imprensa alemã como um filósofo que acreditava em destino. ³ Já em 1939 , o filósofo judeu-alemão, ex-aluno de Heidegger, Karl Löwith (1897-1973) relata um diálogo com seu ex-mestre realizado em Roma, por volta de setembro de 1936 (LÖWITH, 1986, pp. 56-59). Nessa conversa Heidegger teria afirmado que seu conceito de historicidade [ Geschichtlichkeit ], baseado nas noções de destino [ Schicksal ] e de codestinação [ Geschick ], seria o fundamento filosófico de seu engajamento político. Ainda em relação a essa questão, Löwith afirma em outro livro: “Segundo Heidegger, o que acontece historicamente deve ser visto não como um erro de juízo, pelo qual um singular deveria ser responsável, mas ‘necessariamente’ como consequência de uma destinação do ser” (LÖWITH, 1960, p. 51). Bem mais tarde, outros intérpretes verão também no uso frequente dos termos Schicksal e Geschick uma tentativa frágil de escapar da responsabilidade por suas atividades políticas. É o caso, por exemplo, de Habermas, que descreve o pensamento de Heidegger como um tipo de fatalismo do ser e defende a seguinte opinião no prefácio para a edição alemã do mal-afamado livro de Victor Farias: “Heidegger está suspenso de toda responsabilidade pessoal, pois para ele o erro mesmo o atinge de forma objetiva” (HABERMAS, 1989, p. 29). Destino e codestinação, nessas palavras-guias parece se esconder o assim chamado “mistério Heidegger”. II. DETERMINISMO? DESTINO O famoso Discurso de Reitorado – A Autoafirmação da Universidade Alemã é um texto em que o político e o filosófico se contaminam de uma forma estranha e perigosa. ⁴ Estranha e perigosa porque Heidegger anuncia uma argumentação filosófica, mas acaba por construir uma posição panfletária. Tudo se passa como se a autoafirmação da universidade alemã dependesse da capacidade de reitor, professores e estudantes corresponderem adequadamente a um destino. Que destino é esse? Heidegger fala diversas vezes do destino e da codestinação do povo alemão. A universidade, enquanto lugar da ciência, é a guia e a guardiã do destino do povo alemão, na educação e na disciplina: “Ciência e destino alemão devem confluir para a vontade essencial de poder” (HEIDEGGER, 1983 [ DR ]). Em que medida ciência e universidade podem ser associadas à nação alemã e a sua destinação? Em primeiro lugar, um retorno a Ser e Tempo pode ser elucidativo. Heidegger fala de destino [ Schicksal ] e de codestinação [ Geschick ] nos

parágrafos 74 e 75 ( A Constituição Fundamental da Historicidade ). É importante observar que Heidegger não está interessado primordialmente em explicar qual é o destino do “ser-aí”, mas sim explicitar a historicidade fundamental desse ente. Existem, portanto, duas acepções de “destino” em Ser e Tempo: uma é usada entre aspas e outra, sem aspas. As aspas funcionam no texto heideggeriano como uma forma de conceder espaço para termos problemáticos, uma excepcionalidade que só deve acontecer de forma controlada, evitando assim os problemas que elas trazem. Aqui, podemos lembrar o que Derrida chama, ao falar do uso heideggeriano do termo “espírito”, de “lei das aspas” [ loi des guillemets ], ou seja, “um assumir sem o assumir, um evitar sem o evitar” (DERRIDA, 1987, p. 43-44 [ HQ ]). O problema do termo “espírito” é a sua herança demasiadamente comprometida com uma metafísica da subjetividade (dentro da série “alma”, “eu”, “consciência”, “pessoa” etc.), uma associação que Heidegger justamente pretende escapar através da analítica do Dasein . Embora Heidegger afirme diversas vezes que se deve evitar falar de “espírito” e, principalmente, em nome do “espírito”, o gesto desconstrutivo de Derrida revela não apenas a inscrição do termo, sob a fronteira das aspas, em diversos textos heideggerianos, operando importantes funções nos encadeamentos conceituais, como também um uso explícito do termo, sem aspas de proteção, em diversos outros textos, especialmente nos textos políticos, notadamente no discurso do reitorado. Constitui um dos aspectos mais intrigantes do mistério Heidegger essa estranha transição de uma economia severa no uso das aspas para um fervor eloquente, inflamado e imprudente. Algo similar acontece em relação aos termos destino e codestinação. “Destino”, entre aspas ou em itálico, corresponde em Ser e Tempo à noção vulgar de uma suposta necessidade inexorável ou fatalidade. Somente a partir de uma compreensão imprópria e inapropriada da sua própria historicidade é que o “ser-aí” pode dizer que tem destino ou que sofreu golpes do destino. Nesse caso, o “ser-aí” passa a considerar o porvir como algo que deriva da objetividade exterior, do mundo que tem diante de si. Futuro aí tem o caráter de algo dado, disponível, vorhanden , quer dizer, independente do acontecer próprio do “ser-aí”. O acontecer histórico, desde a perspectiva imprópria da historicidade imprópria, é sempre somente história do mundo, quer dizer um acontecer da objetividade. Destino encorpa o poder do mundo sobre o “ser-aí”, ou dito de outra maneira, reflete a tendência imediata do “ser-aí” de deixar-se interpretar primordialmente a partir de mundo: “O “ser-aí” cotidiano se dispersa na multiplicidade do que se passa diariamente. As oportunidades e circunstâncias, que a ocupação atende, ‘de forma tática’, resultam no ‘destino’” (HEIDEGGER, 1986, §75, p. 389-390 [ ST ]). Existe ainda outra possibilidade de compreensão imprópria da historicidade: ao invés de compreender o acontecer a partir de mundo, o “ser-aí” pode vêlo como algo que deriva da ação de sujeitos absolutamente livres (o “ser-aí” se interpreta a si próprio então como um livre fazedor de história). Trata-se também de uma má compreensão do futuro, só que agora a partir de certa supervalorização da subjetividade no acontecer histórico. Nesse caso, a história se dá a partir do encontro de agentes independentes agindo supostamente apenas segundo sua própria vontade. Não se fala mais de

destino, mas da suposta falta de conexão e de causalidade nas vivências e nos incidentes históricos. A partir dessa aparente desconexão, começa a se buscar a instauração de um nexo racional que dê conta de recolher a dispersão dos acontecimentos. ⁵ A análise ontológica do “ser-aí” quer escapar das duas alternativas, quer dizer, do modelo sujeito-objeto que costuma determinar nossa compreensão da historicidade. A partir da estrutura “ser-no-mundo” do “ser-aí”: “a história não pode ser vista nem como movimento conectado das alterações do objeto nem como a sequência livre de vivências do ‘sujeito’” ( ST , §75, p. 388). Repito então que Heidegger não está interessado na interpretação ôntica de destino (em dizer se há e qual é o destino do “ser-aí”), mas sim na questão ontológica, como é possível que o “ser-aí” possa interpretar seu acontecer histórico sob a égide de “destino”. Sua resposta diz o seguinte: “porque o “ser-aí” é ele mesmo destino” ( ST , §74, p. 384), agora sem aspas ou itálico. Heidegger utiliza agora o termo “destino” no sentido de um acontecer originário do “ser-aí”; quer dizer, destino refere-se à sua possibilidade de se autoprojetar. Somente porque o “ser-aí” é em seu ser historicamente, quer dizer, enraizado no futuro, é que ele pode se sentir às vezes como que tocado por golpes do destino. O sentido autêntico de destino permanece oculto na historicidade imprópria. Em Ser e Tempo, lemos a seguinte definição, ainda que um tanto quanto obscura: “Chamamos de destino a transmissão antecipadora do aí do instante, que reside na decisão” ( ST , §74, p. 386). Percebe-se nessa definição que passado, presente e futuro estão articulados de uma maneira modificada. Sabe-se que em Ser e Tempo o modo autêntico da existência realiza-se na fidelidade do “ser-aí” ao seu si mais próprio, ou seja, quando a finitude própria do seu ser se desvela. Ora, na historicidade própria do destino o ser-aí compreende que tem uma forma de liberdade que lhe é sob medida, quer dizer, uma liberdade finita. A “liberdade finita” do “ser-aí” consiste no fato de que ele sempre tem que escolher dentro do horizonte de possibilidades oferecidas no aí, quer dizer, na situação, que tanto pode ser herdada pela tradição, como também pode se dar por acaso. Em Ser e Tempo, lê-se que sob a força da liberdade finita, “que só é no ‘ter-escolhido’ da escolha, que o ‘ser-aí’ assume a impotência de estar entregue a si mesmo, tornando-se capaz de ver, com clareza, os acasos da situação que se abre” ( ST , §74, p. 384). A liberdade finita quer dizer que o “ser-aí” não é completamente independente, nem completamente dependente do passado ou do futuro. Sua escolha se dá sempre a partir do horizonte de possibilidades do seu aí, mas o “ter-queescolher” não pode ser evitado. O impessoal, ao contrário, compreende mal suas possibilidades e toma, frequentemente, ou como sua atividade própria o que pertence só ao acaso, ou então como resultado de uma necessidade exterior, isso que na verdade é determinado por possibilidades herdadas da tradição à que ele pertence desde o momento em que está lançado no mundo. Destino, no sentido autêntico, designa, portanto, o acontecer originário do “ser-aí”, na decisão livre e situada, do próprio para o mais próprio.

III. DETERMINISMO? CODESTINAÇÃO Já o termo “codestinação” [ Geschick ] é usado por Heidegger no sentido ampliado de um acontecer da comunidade, do povo, da geração: “quando o ‘ser-aí’, enquanto destino, existe essencialmente como ‘ser-no-mundo’ no ‘ser-com’ com outros, seu acontecer é um ‘acontecer-com’, um acontecer em conjunto, determinando-se como codestinação “ ( ST , §74, p. 384). Aqui podemos fazer uma pausa e concluir, que pelo menos até esse ponto, do ponto de vista da analítica do “ser-aí”, a noção vulgar de destino é fundada em uma compreensão imprópria da historicidade. Voltando então ao Discurso de Reitorado , eu disse que Heidegger procura articular a essência da universidade com o destino do povo alemão. Note-se que os termos destino e codestinação aparecem agora não apenas de modo indiferenciado como também sempre sem aspas. Em uma leitura mais detalhada podemos constatar que, ao contrário do que possa parecer, o discurso é menos um chamamento à aceitação fatalista de um destino, mas sim para uma espécie de revolta combativa. Corresponder adequadamente ao destino não quer dizer aceitá-lo, mas lutar. Heidegger argumenta que a ciência do modo como está sendo desenvolvida é incapaz de dar conta da sua missão histórica: “O saber acerca das coisas permanece antes de tudo entregue ao poder superior do destino e falha diante dele” ( DR , p. 119). O destino ao qual Heidegger se refere aqui é “o poder do velamento do ser” (ibidem). O falhar refere-se aqui à insistência da ciência em tentar apreender o ente como um todo absoluto, uma tarefa cuja impossibilidade e riscos Heidegger já tinha examinado em 1929 (1986, pp. 27-33). A intenção de Heidegger no seu discurso era, portanto, convencer a universidade da importância de uma “decisão afinada e sapiente para a essência do ser” ( DR , p. 14). Nesse sentido, Heidegger compreende sua posse do reitorado como o assumir voluntário da tarefa de guiar o corpo universitário para tomar a resolução mais própria. Ao contrário do que Löwith, Farias e Habermas procuram demonstrar, a aventura política heideggeriana não deve ser vista como uma armação fatalista, mas antes como uma hybris , ao assumir com uma fúria salvacionista excessiva: resgatar o mundo ocidental da sua decadência, da ameaça do niilismo, da crescente hegemonia da técnica. Em Ser e Tempo, havia uma luta contra a ideia vulgar de destino (contra a crença de que há uma necessidade oculta na história). Já em 1933, há uma luta contra um destino específico (contra a predominância do pensamento que insiste no ente ao invés do ser). Tal atitude indica da parte de Heidegger, ao menos nesse momento, certa supervalorização da capacidade do “ser-aí” de fazer história livre e ilimitadamente. Trata-se, portanto, de um decisionismo arrebatado, isso que Derrida chama de “le volontarisme massif de ce Discours ” ( HQ , p. 61). Por isso, Heidegger cita o famoso teórico alemão da guerra Carl von Clausewitz (1870-1831): “Eu quero me afastar da esperança leviana de uma salvação através da mão do acaso” ( DR , p. 18). Essa frase expressa uma intenção heroica do discurso de Heidegger. Trata-se de uma grande meta; entretanto a verdade da intenção de um herói está no ato mesmo que consegue realizar, como Hegel costumava dizer

(HEGEL, 1795-1798, vol. 1, p. 448). A principal estranheza do Discurso do Reitorado no contexto da obra de Heidegger é que o pensamento da “liberdade finita“ descrito em Ser e Tempo contém uma indeterminação fundamental, uma vez que não é possível apontar, de antemão, para quê o “ser-aí” decide: “’Para-quê’ [Wozu] o ‘ser-aí’ decide a cada vez, facticamente, a análise existencial é fundamentalmente incapaz de dizer” ( ST , §74, p. 383). O Wozu pertence estruturalmente à dimensão do mistério. Já no Discurso do Reitorado, a questão pelo Wozu da decisão não está mais em aberto, mas rigidamente apresentada como “vontade de servir”. Ao invés da liberdade finita, fala-se agora de liberdade acadêmica. O que seria isso? Segundo Heidegger, haveria um copertencimento constitutivo entre a essência da universidade alemã com “comunidade popular”, para a honra e a codestinação do povo alemão e ainda para a tarefa espiritual desse mesmo povo. Daí seguem na argumentação heideggeriana necessariamente três formas de “para-quê” que deveriam ser assumidas pelo corpo universitário: servir para o trabalho, para as forças armadas e para o conhecimento [ Arbeits-, Wehr- und Wissensdienst ]. Todos eles exigiriam uma “disposição para o engajamento até as últimas consequências” ( DR , p. 15). Heidegger sai aqui literalmente do caminho do pensamento da finitude ao tentar convencer seu público de uma suposta originariedade ontológica desses serviços na essência do povo e da universidade alemães: “As três conexões – através do povo na codestinação do estado na tarefa espiritual – são igualmente originárias à essência alemã. Os três serviços que daí decorrem – trabalho, combate e saber – são igualmente necessários e estão no mesmo patamar” ( DR , p. 16). Aqui fica evidente que o discurso de reitorado busca legitimar ontologicamente isto que pertence muito mais ao ideológico. ⁶ Nessa passagem Heidegger dita como o “ser-aí” deve existir historicamente, seu “para-quê”, quer dizer, as regras seguras segundo as quais se deve viver convenientemente ao destino. Um dos erros do discurso do reitorado pareceme então o atropelamento do modo como se pensa filosoficamente. Naquele instante, Heidegger parece deliberadamente esquecer a medida da liberdade do “ser-aí”, que é dada pela sua finitude constituinte. Ao invés disso, passa a acreditar durante um instante na força infinita do sujeito em se autodeterminar e administrar: “Cabe a nós, se e quão longe vamos ocupar da autorreflexão e autoafirmação a partir do fundamento ou se vamos – na melhor das intenções – apenas modificar velhas instituições e começar novas. Ninguém vai nos impedir de fazer isso” ( DR , p. 19). IV. O QUE TEMOS COM ISSO? O pathos da Rektoratsrede não confirma o fatalismo ontológico, mas indica algo igualmente perigoso, uma atmosfera decisionista, que serve de pretexto para uma luta heroica contra um destino específico. Segundo Derrida, “esse discurso sobre o espírito é também um discurso sobre a liberdade do espírito” ( HQ, p. 70). Fica nítido que a liberdade do espírito, ao contrário da liberdade do “ser-aí”, é infinita e ilimitada. Tal posição vai aos poucos sendo revista pelo próprio Heidegger nas reflexões posteriores. Por exemplo, no texto Fatos e Pensamentos , uma autocrítica de 1945 acerca do período do reitorado entre 1933 e 1934, Heidegger procura, de forma não muito convincente, explicar a utilização da palavra “luta” no discurso de reitorado.

Ele afirma que o uso do termo “combate” [ Kampf ] corresponde à expressão de Heráclito, pólemos , que não deveria ser traduzido como guerra, mas sim como “conflito” [ Streit ], ou melhor, como “dissenso” [ Auseinandersetzung ]. O fragmento 53 de Heráclito é citado: “a guerra é a mãe de todas as coisas.” Através desse comentário, Heidegger procura mostrar que não tinha intenções militaristas ou beligerantes, mas teria pensado em combate em sentido filosófico, para além de toda dimensão política. É difícil argumentar contra isso, pois se trata aqui de uma autodefesa. Parece-me, entretanto, que em 1945 Heidegger ainda não tinha retornado completamente de seu ex-cursus . De fato, a autocrítica de Heidegger em 1945 é decepcionante porque não faz referência à relação ontologia/política/ética. Somente um ano depois, Heidegger escreve uma carta na qual ele fala abertamente sobre esse problema ⁷ – como uma resposta a uma carta de Jean Beaufret, na qual este pede para “ préciser le rapport de l’ontologie avec une éthique possible ” ( GA. 9, p. 353). Para responder à pergunta Heidegger utiliza de novo Heráclito. O fragmento citado agora é o 119, que diz: Ethos antropoi daimon . Como sempre a tradução mais frequente diz: “O caráter de um homem é o seu destino.” Heidegger coloca essa tradução em dúvida, pois não corresponderia ao sentido mais originário da afirmação: Essa tradução pensa modernamente, mas não de maneira grega. Ethos significa morada, lugar de habitação. A palavra nomeia o âmbito aberto, em que o homem habita. O aberto de sua estadia deixa aparecer isso, que vem à essência do homem e que chegando permanece na sua proximidade. A estadia do homem contém e garante a chegada disso, que pertence ao homem em sua essência. Isso é na palavra de Heráclito, daimon , o deus. O fragmento diz: o homem habita, na medida em que é homem, na proximidade de deus ( GA. 9, p. 354). Evidentemente que Heidegger compreende o termo “deus” não no sentido religioso, mas sim como a palavra fundamental de Heráclito para ser. Através da interpretação de ethos como estadia, moradia, habitação, tenta pensar a ética ontologicamente. Se o ser se apresenta também no habitar mais cotidiano do homem, então o pensamento que pensa a essência do homem como o habitar na verdade do ser é, desde sempre, ético. Esse pensamento é ético não por produzir efeitos práticos nem por orientar o modo como o homem deve agir. Aqui, Heidegger parece retornar de seu excursus ao caminho que ele mesmo tinha iniciado em Ser e Tempo , na medida em que aperfeiçoa a ideia de liberdade finita enquanto “serenidade” ( Gelassenheit ): “Este pensamento não é nem teórico nem prático. Ele acontece anterior a essa diferenciação. (...) Esse pensamento não tem resultado nem efeito. É suficiente para a sua essência que ele seja. Esse pensamento deixa o ser ser ( GA .9, p. 358). Deixar o ser ser. Gelassenheit é definida por Heidegger como sendo uma atitude ambígua, como um dizer sim e ao mesmo tempo um não, uma espécie de disponibilidade para a aceitação de mistérios. Parafraseando Oswald de Andrade, só não há determinismo (ou decisionismo) lá onde o pensamento recusa a função de orientação da ação e é capaz de suportar o “mistério” enquanto “mistério”. Mas o que temos a ver com isso? Na

presente época de decadência dos valores superiores, espera-se do filósofo (e não mais do padre, do mestre ou do cientista) que ele diga o que devemos fazer. A tarefa da filosofia não é a de aconselhamento ou orientação, mas de chamar a atenção para o horizonte nos quais os dilemas surgem e para as possíveis decisões que daí podem decorrer. Heidegger parece no fim da vida ter compreendido isso e assumido sua errância. Em 1966, na entrevista para a revista alemã Der Spiegel, Heidegger parece estar mais consciente dos limites e potencialidades do próprio pensamento: Spiegel : (...) Nós, políticos, semipolíticos, cidadãos, jornalistas etc., precisamos tomar necessariamente alguma decisão. Com o sistema sob o qual vivemos temos que nos adaptar ou tentar mudá-lo, temos que espreitar uma porta estreita para uma reforma ou ainda uma porta mais estreita para uma revolução. Esperamos ajuda dos filósofos, mesmo que seja uma ajuda indireta. E então ouvimos apenas: eu não posso ajudar. Heidegger : Eu também não posso. Spiegel : Isso vai desencorajar o não filósofo. Heidegger : Não posso porque as questões são tão difíceis que seria contra o sentido da tarefa do pensamento, seria equivalente a aparecer em público, pregando e distribuindo censuras morais. Talvez eu possa arriscar a frase: O mistério do poderio planetário da essência impensada da técnica solicita um caráter provisório e suave do pensamento que intenta refletir sobre esse impensado. ⁸ O filósofo não pode nos ajudar a retirar nossa responsabilidade de decidir, sempre cada um, sempre a cada vez. O pensamento tem, entretanto, uma tarefa, urgente sim, mas para ser desempenhada com suavidade, até mesmo com voz hesitante, a saber: tornar visível em nossos dilemas e decisões tudo o que assumimos sem o assumir, tudo o que evitamos sem o evitar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DERRIDA, J. De l´esprit – Heidegger et la question [ HQ ]. Paris, 1987. ENTREVISTA COM MARTIN HEIDEGGER, 23.9.1966. Der Spiegel , nº 23, p. 212, 1976. HABERMAS, J. Heidegger – Werk und Weltanschauung, In: FARIAS, V. Heidegger und der Nationalsozialismus . Frankfurt, 1989. HEGEL, G.W.F. Fragmento nº 20. In: Fragmente historischer und politischer Studien aus der Berner und Frankfurter Zeit (1795-1798). Werke, vol. 1. HEIDEGGER, H (Edit.). Die Selbstbehauptung der deutschen Universität [ DR ] (1933). In: Tatsachen und Gedanken (1945). Frankfurt, 1983. _. Sein und Zeit [ ST ] (1927), §75. Tuebingen, 1986. _. Was ist Metaphysik? [O que é Metafísica?] (1929). Frankfurt, 1986.

LOPARIĆ, Z. Heidegger réu. Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia . Campinas: Papirus, 1990. LÖWITH, K. Heidegger, Denker in dürftiger Zeit (1953). Frankfurt, 1960. _. Mein Leben in Deutschland vor und nach 1933 (1940). Stuttgart, 1986. 1 O presente texto é uma versão ampliada e modificada de um anexo à minha tese de doutorado publicada na Alemanha sob o título: Das Denken der Endlichkeit und die Endlichkeit des Denkens – Untersuchungen zu Hegel und Heidegger , Berlin: 1999. 2 Entre os títulos a serem destacados, está o livro de Z. Loparić: Heidegger réu. Um ensaio sobre a periculosidade da filosofia . Campinas: Papirus, 1990. 3 “O filósofo que acreditava em destino” era o subtítulo de um artigo sobre a correspondência entre Heidegger e Elisabeth Blochmann, publicado na revista Der Spiegel 14/1990, pp. 272-279. 4 Heidegger foi eleito reitor da Universidade de Freiburg i. B. em 21.4.1933 e se associou ao partido nazista em 1.5 do mesmo ano. No seu discurso de posse no reitorado, realizado no dia 27.5.1933, ele expressa seu apoio ao projeto nazista, ainda que de forma singular. Em abril de 1934, Heidegger renuncia ao reitorado, mas permanece oficialmente ligado ao partido até 1945. 5 Heidegger pensa aqui provavelmente em Kant, que estabeleceu como uma das tarefas da filosofia no futuro encontrar algum fio condutor racional no jogo livre de subjetividades que produzem a história, no seu famoso ensaio Ideia de uma História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita (1784). 6 Por ideologia entendo um pensamento que quer assumir a função de orientar a ação e de legitimar uma certa ordem social. 7 A famosa Carta sobre o Humanismo [Brief über den Humanismus] (in : GA. 9, pp. 303-364) foi escrita no outono de 1946 para Jean Beaufret e publicada em 1947 em edição revisada e melhorada. 8 Entrevista com Martin Heidegger , em 23.9.1966. Der Spiegel , nº 23, p. 212, 1976. ENTRE A RAZÃO E A LEI SIMBÓLICA: RASTROS DE IBN ‘ARABÎ BIA MACHADO (USP) Exatamente como em um caleidoscópio, em que uma harmonia rigorosamente geométrica é sempre e inexoravelmente mantida enquanto as imagens são sempre e inexoravelmente outras a cada movimento, o Corão é ao mesmo tempo fixo e mutável. Lâ tabdîla fî kalimâti Llâh , “As Palavras de Allah não mudam”, nos diz um verso do Livro (Corão, 10:64); por outro lado, suas possibilidades de significação são inesgotáveis, pois um outro verso nos diz: “Se todas as

árvores da Terra se tornassem cálamos, se o mar se tornasse tinta e fosse aumentado de sete outros mares, ainda assim a Palavra de Deus não se esgotaria” (Corão, 31:27). Este é um dos grandes temas do Sufismo: ¹ a Revelação é sempre outra. Mu h yiddîn Ibn ‘Arabî, considerado um dos maiores mestres sufis, viveu entre os séculos XII e XIII, na Espanha moura. Sua vasta obra passou a ser estudada recentemente em ambiente acadêmico não apenas pelo interesse histórico, menos ainda pela busca de conhecimento específico do Islam, mas, sobretudo, pela radicalidade de suas posições. Claro está que o conhecimento místico opera por meio de faculdades diferentes da que habitualmente chamamos “razão”, portanto, um “estudo comparativo” entre Derrida e Ibn ‘Arabî, por exemplo, parece praticamente inconcebível. Não obstante, é possível utilizar o pensamento filosófico, basicamente racional, para fazer ver algumas, por assim dizer, vias de ressonância entre ambos, tarefa a que se propôs Ian Almond (2004). Aqui, o que proponho é seguir a via aberta por Almond e expor alguns dos principais temas de Ibn ‘Arabî, fazendo ver, pela evidência mesma dos enunciados, uma espécie de “Derrida avant la lettre ”, ainda que essa expressão seja, a rigor, pouco derridiana; de resto, pressupor uma linearidade histórica que torne surpreendente o fato de um autor, no século XIII, dizer coisas que “só seriam pensadas séculos mais tarde” é uma tentação a ser evitada. Sem falar no fato de que a estatura da obra de Ibn ‘Arabî – conhecido como al-Shay h al-akbar (o maior de todos os mestres) – torna insensato tomá-lo por qualquer outro, mesmo que esse outro seja Derrida. A Revelação é sempre outra. Eis algumas metáforas sufis para isso: a Revelação tem a estrutura de um tapete, a urdidura – os fios que ficam presos verticalmente no tear – é fixa e invisível enquanto as tramas, isto é, o desenho, o que se vê do tapete, variam conforme a decisão de cada tecelão a cada momento. Do mesmo modo, pensemos em um navegante que utiliza o céu para navegar. As estrelas são fixas, isto é, estão acima do mar e são independentes dele, mas elas não podem, a priori , indicar ao navegante aonde ele quer ir, elas só podem dizer-lhe – a partir do momento em que ele deseja um certo lugar aonde ir – por onde ir para chegar lá. Quanto mais obediente às estrelas ele for, mais seguramente chegará ao destino desejado. Sem o desejo, no entanto, as estrelas são mudas. Elas só se tornam linguagem perante este algo anterior decidido no íntimo do sujeito e cujo nome é destino. O destino, portanto, está escrito nas estrelas e, porque está escrito, não está definido nelas. Dito de outro modo, o que está escrito nas estrelas é a urdidura, a trama sendo o avesso do desejo, isto é, sua realização fictícia, sua descobridura, a flor como a mostração da semente. ² E se é verdade que a flor que surge da semente estava prevista já em seu DNA, esta flor, esta aparição singular e atual, diferente de todas as outras, devemos admiti-lo, é precisamente o que não seria possível prever em momento algum desde a semente até o fim. (...) As pessoas de nossa Via – que Allâh esteja satisfeito com elas! – jamais pretenderam trazer o que quer que seja de novo no que se refere à

espiritualidade, mas apenas descobrir novos significados na Tradição imemorial. A legitimidade dessa atitude é confirmada por meio da palavra do Profeta, segundo a qual a inteligência de um homem só é perfeita quando ele descobre no Corão múltiplas significações (...) Ou ainda por meio da assertiva de Ibn ‘Abbâs: “Nenhum pássaro agita suas asas no céu sem que isto esteja inscrito no Livro de Allâh (...).” É por isso que, cada vez que surge alguém a quem Allâh abriu o olhar interior ( basîra ) e iluminou o coração, nós o vemos tirar de um versículo ou de um hadith um sentido que ninguém antes dele havia sido levado a descobrir. E assim será até o levantar da Hora! Ora, tudo isso se deve ao caráter infinito da Ciência de Allâh, que deles é o Mestre e o Guia (ABD EL-KADER, 1982, pp. 158, 159). “Nenhum pássaro agita suas asas no céu sem que isto esteja inscrito no Livro de Allâh”: não há nada no universo que não esteja escrito, que não seja escrita. E porque é escrita há relações de tradutibilidade entre as coisas, o universo é uma “língua”, o Corão é outra, tudo o que é dito no universo é traduzível no Corão e vice-versa. A palavra árabe que podemos traduzir por “sinal” ou “signo”, âyât , é a mesma palavra utilizada para dizer “verso”, o verso corânico é idêntico ao acontecimento no mundo; ambos são sinais de Deus – âyât Allâh. Questão crucial é que toda tradução exige o tradutor, aquele que conhece ambas as línguas. Pensado com um sujeito agente, o homem surge como definido não por uma essência, mas por uma posição: sendo ele mesmo uma “língua” a ser traduzida, é ele quem traduz. O termo “ tarjumân ”, traduzido adiante como “intérprete”, também possui a acepção de “tradutor”. O universo é um livro, um “grande Corão” (...). Reciprocamente, o Livro é um universo. Falar de um é falar do outro. Entre estes dois universos – ou dois Livros – há um intermediário: o homem – trata-se, evidentemente, do insân kâmil ³ – que participa da natureza de um e de outro (ele é “irmão do Corão” e é também ‘alâm sagîr , “pequeno mundo”, microcosmo). É a ele que se dirige o discurso divino sob essa dupla forma, é a ele que cabe decifrar este discurso, de ser ao mesmo tempo tarjumân al-qur’an e tarjumân al-’alâm , o intérprete do Corão e o intérprete do mundo criado, aquele que lhes dá sentido. A manifestação universal é o desdobramento dos âyât Allâh , dos “sinais de Deus” (mas igualmente dos “versículos”, tendo a palavra “ âyât ” um e outro significado). Esses âyât são constituídos de “palavras”, kalimât , que por sua vez são constituídas por letras, h urûf , que, em um certo sentido, são as partículas elementares do Livro revelado (IBN ‘ARABÎ, 1997, pp. 51-2). Mas a ideia de uma escrita “fixa”, como são fixos os fios do tear ou as estrelas, não deve nos despistar. Não há uma dualidade hierarquizante entre urdidura e trama, escrita e significação, não há nada realmente “fixo”. A existência tem sua origem no movimento. Não pode, portanto, haver imobilidade nela, pois, se ela permanecesse imóvel, ela voltaria à sua origem, que é o nada. (...) Os movimentos dos quatro elementos, dos seres gerados a cada minuto, a mudança e as transformações geradas por cada sopro, a viagem dos pensamentos nas categorias do louvável e do reprovável, a viagem dos sopros emitidos por aquele que respira, a viagem

dos olhares, despertos ou no sono, através das coisas vistas e sua passagem de um mundo a outro pela transposição de sua significação; tudo isso é, sem nenhuma dúvida, viagem para qualquer homem dotado de inteligência. (...) Na realidade, não cessamos nunca de estar em viagem desde o instante de nossa concepção original e da constituição de nossos princípios físicos, ⁴ até o infinito. Quando aparece uma morada, tu te dizes: eis o termo; mas, a partir dela, abre-se outra via da qual tomas um viático para uma nova partida. Assim que percebes uma morada, te dizes: eis o meu termo. Mas, nem bem chegado, não tardas a sair para retomar a estrada (IBN ‘ARABÎ, 1994). O homem-tradutor é, portanto, o viajante, e sua viagem é entre mundos, do microcosmo para o macrocosmo, do Livro para si, do mundo para o Livro etc. Porque seu destino está escrito nas estrelas, na urdidura, nos versos do Corão, o viajante- tradutor é aquele que utiliza a Revelação para viajar, para tecer suas tramas entre os universos, para torná-los visíveis ou legíveis. A escrita é o que nele permite a disposição da viagem, o sair de casa, o abandonar do porto; cito a frase que não é nem de Caetano, nem de Fernando Pessoa, é rastro do Encantamento: ⁵ navegar é preciso, viver não é preciso. I. LUGARES DA IDEIA DE TRADUÇÃO A escrita não é, portanto, nem exatamente uma estrutura nem exatamente uma linguagem, embora possa ser vista como uma, como outra ou como diferente de ambas. A escrita é inteiramente plástica e inapreensível, não obstante real, concreta e atual: o verso corânico não é um significante portador de um significado, o verso é sempre outro: Aquele cuja compreensão é idêntica, por ocasião de duas recitações sucessivas (do Corão), é perdedor. Aquele cuja compreensão é nova a cada recitação é ganhador. Quanto àquele que recita sem nada compreender, que Deus lhe tenha misericórdia! (CHODKIEWCZ, 1992, p. 47). A compreensão em questão não é uma compreensão do significado no sentido moderno do termo; trata-se, na prática, de uma realização, de uma operação simbólica. As implicações desta pequena distinção são vastíssimas, evidentemente. Faço observar apenas en passant que Ibn ‘Arabî não se furta às implicações políticas deste olhar: Deus fez da divergência nas questões legais uma misericórdia para Seus servidores e um alargamento daquilo que Ele lhes prescreveu fazer para testemunhar sua adoração. Mas os fuqahâ (doutores da lei) de nossa época proibiram e restringiram, para aqueles que os seguem, aquilo que a Lei sagrada havia ampliado em seu favor. (...) A Lei afirmou a validade do estatuto daquele que faz um esforço pessoal de interpretação para si mesmo ou para aqueles que o seguem. Mas, hoje, os fuqahâ condenaram esse esforço, pretendendo que isso conduz a uma zombaria da religião. Isto, de sua parte, é o cúmulo da ignorância (ADDAS, 1989, p. 67).

Igualmente, é preciso atenção para a ideia de um “esforço pessoal de interpretação”. Não se trata do esforço racional da ética protestante, nem da interpretação subjetiva do romantismo, experiências modernas. O termo tarjumân , que, como vimos, traduz-se por “tradutor-intérprete”, conserva duas acepções que, no senso comum, dissociaram-se historicamente: de um lado, o rigor da tradução acurada; de outro, a liberdade da livre interpretação. Para não entrar, por motivos óbvios, no vasto campo dessa discussão, retomo a metáfora das estrelas fixas: o viajante obedece rigorosamente ao mapa celeste, seguindo o imprevisível desejo sem o qual o céu é silêncio. A liberdade não se opõe ao rigor; aquela é para este como a equação de Guimarães Rosa: “se não fosse a borboleta, a lagarta teria razão?” A tradução, nesse caso, sendo um processo pelo qual uma língua se transforma em outra, trata-se de uma tradução entre urdiduras – a urdidura do Livro e a urdidura do tradutor-intérprete, o “pequeno mundo” ( ‘alâm sagîr ) – e a relação, portanto, só pode ser singular. Entre as significações possíveis de uma palavra, de um verso, não há que escolher por meio de um processo mental: o “verdadeiro” sentido – o que é verdade neste instante preciso, para este ser preciso – é o que surge, na nudeza do espírito, da letra mesma do discurso divino. É a esta letra, e a ela somente, que prestará atenção aquele cujo coração está pronto a acolher esta “chuva de estrelas” que cessará apenas no dia em que o Corão não for mais recitado “em voz alta ou em segredo” (CHODKIEWICZ, 1992, p. 54). A ideia de singularidade está aqui expressa por meio do termo “coração”. Trata-se de um termo simbólico – portanto operativo, técnico – e não de um conceito. Para fazer ver aspectos deste simbolismo, podemos estabelecer um contexto, o que faremos por meio de uma travessia pela estrutura da língua semítica. No árabe, diferentemente das línguas indo-europeias, a combinação das letras produz não apenas sentidos, mas, sobretudo, paradigmas. As palavras são formadas por raízes, em geral, de três consoantes (encontram-se também, embora raramente, raízes de duas ou quatro consoantes). Seus diversos sentidos surgem a partir das modificações sobre a raiz, pelo acréscimo de vogais, de prefixos, sufixos etc. Por exemplo, tome-se a palavra mâlik (= rei). O paradigma, isto é, a raiz é formada pelas três consoantes MLK. Se acrescentarmos a estas consoantes as vogais “a” e “i”, temos o significado “rei”. Conforme alteramos as vogais, alteram-se as palavras e obtemos novos significados: malaka (anjo), mulk (reino terrestre) ou malakut (reino celeste). Vejamos a respeito algumas considerações de Maurice Gloton. Depois de citar uma passagem do capítulo 178 do Futuhat Makkiyya , ⁶ em que o mestre andaluz afirma que a “Estação do Amor” possui quatro nomes e explica os significados de cada um, Gloton passa a analisar as raízes destes nomes.

De acordo com esta citação, pode-se obter facilmente uma profunda compreensão do significado quanto à etimologia, seja considerando uma relação de significado entre duas palavras que derivam da mesma raiz: 1) Hubb = amor; Habba = grão ou semente (semente de amor). Há uma total interligação entre os dois significados: o amor produz a semente e esta germina devido ao efeito do amor contido nela. 2) ‘Ashaqa = convólvulo (o que cresce em uma espiral em torno de sua origem); ‘ishq = amor crescente, espiral como uma trepadeira. Os dois sentidos também são interligados: ‘ishq representa o Amor em uma forma ascendente, de forma espiral como um dos aspectos de movimento que pertence ao Espírito ( rûh ) e como um convólvulo. Seja considerando-se a polissemia da raiz de uma única palavra: 3) Wadd = estaca, prego, prendedor; Wadd = amor. O Amor designado pelo termo Wadd é sólido, enraizado e fiel. 4) Hawa = paixão; Hawa = amor. O Amor designado pela palavra Hawa é o surto do amor, a paixão de amar. Temos aqui quatro nomes e, portanto, quatro diferentes conotações de Amor, embora, nas traduções, encontremos somente esta mesma palavra “amor” para todos os quatro aspectos. Além disso, podemos destacar que o terceiro aspecto do Amor que Ibn ‘Arabî qualifica de ‘ishq implica um movimento ascendente, enquanto o quarto, Hawa , também significa, no dicionário, “cair de cima para baixo” e dá origem à expressão: ar, atmosfera. Assim, a Emissão do Sopro Divino em seu duplo movimento espiral de expansão e contração circula ou expande-se na Economia divina ou na criatura, de acordo com um movimento de ascensão e de descida, como o ar aquecido pelo sol ou resfriado pela noite (GLOTON, 2000, p. 42). Esta polissemia das raízes é um dos motivos pelos quais cada tradução do Corão costuma aparecer com um subtítulo “tradução de alguns dos sentidos de seus versos”, já que uma tradução integral seria impossível. Além da polissemia estrutural da língua árabe, devemos também considerar o sistema ABJAD, que consiste no estabelecimento de valores numéricos para cada letra do alfabeto. Desse modo, temos uma espécie de Cabala árabe. Segundo o valor numérico de cada palavra, obtido pela soma das letras, é possível obter outras palavras e, assim, “revelar” outros significados implícitos:

tomemos a palavra que designa o primeiro nome do Profeta, Muhammad:

as consoantes são m, h, m, m, d, e a soma equivale a:

(m=40) + (h=8) + (m=40) + (m=40) + (d=4) = 132

132 é igual a 100 + 30 + 2, ou seja, três outras letras, a saber, q=100, l=30 e b=2, formando a raiz qlb , que é a raiz da palavra qalb , coração. Nesta meditação, isto é, nesta operação simbólica, todo homem que possui um coração – ou seja, todo homem – é Muhammad e, assim como o Profeta, é o receptáculo do Corão sempre novo. Ou, dito de outro modo, o coração é o órgão profético por excelência, capaz de receber o conhecimento do singular ou do atual, ou, se preferem, o conhecimento singular e atual. O que permite a existência e a operatividade de um sistema como o ABJAD é a compreensão da realidade como escrita. Se, com Saussure, estabelecemos uma dualidade estrutural para a linguagem, na qual o significante veicula um significado, e essa dualidade foi desconstruída, entre outros, por Derrida, aqui, com Ibn ‘Arabî, a ideia ganha uma perspectiva além, pois, a letra ( harf ) de uma coisa é sua dimensão manifesta, o “significado” ( ma’nâ ) é sua dimensão não manifesta. Em síntese, o mundo é integralmente uma letra que veio a expressar um significado. Seu significado é Deus... Portanto, o significado nunca cessa de estar conectado à letra: Deus diz, “Ele está convosco onde quer que estejais” (Corão, 57:4) (IBN ‘ARABÎ, 2002, p. 241). Assim, a significação não é um processo paralelo à realidade. Ela não se refere à experiência segundo a qual alguém diz: “eu amo esta rosa” como se estas palavras em nada afetassem a realidade da rosa. Ao contrário, os processos de significação são os de realização. Dizer (e escrever) é ser, pois a vida é a Escrita. Perguntaram a Mâlik b. Anas: ⁷ “Qual é tua opinião sobre a licitude da carne do porco d’água [ hinzîr al-mâ : expressão que designa os cetáceos em geral ou, mais precisamente, os golfinhos]?” Ele respondeu [ fa-aftâ : trata-se de uma responsa jurídica e não de uma simples troca de réplicas] que era ilícita. Objetaram-lhe: “Este animal não faz parte dos animais marinhos [literalmente “peixes”, cuja carne é lícita]?” – “Certamente”, disse. “Mas, vós o chamastes de porco [ hinzîr ]” (CHODKIEWICZ, 1992, p. 39). Esta anedota nos é contada por Ibn ‘Arabî para explicar o tema da ciência da nomeação ( tasmyyia ). Se tivessem dito “golfinho”, a resposta seria que a sua carne seria lícita. Em uma perspectiva, por assim dizer, racional, o animal é o mesmo, seja ele chamado de golfinho ou de porco d’água. No entanto, nesta perspectiva, o animal não pode ser o mesmo já que o seu nome não o é, é a palavra que inaugura a realidade e não o contrário. Ou seja, não há uma linguagem, com leis próprias, e um conjunto de referentes

que formam a realidade. Não há referentes, não há coisas. A realidade é a linguagem. Tudo isso é estranho. E, para um leitor de Derrida, de certo modo, familiar. Evoco, propositalmente, a ideia de unheimlich não no sentido freudiano do termo, mas no de Schelling, tal como analisado por Bernardo Carvalho, em interessante artigo da revista Percurso . ⁸ Em primeiro lugar, o conceito de símbolo defendido nos textos estéticos de Schelling como modelo de produção artística ilustra exatamente esse caso de que fala Freud, quando se refere a “um símbolo (que) toma a importância e a força daquilo que era simbolizado”, caso em que ocorre uma total indiferença entre a representação e aquilo que ela representa, onde “nem o universal significa o particular, nem o particular, o universal, mas fazem apenas um absolutamente”. Se para a psicanálise essa situação denota, como mostra o ensaio de Freud, uma dissolução de limites, uma ausência de delimitação do sujeito em relação ao outro, que produz necessariamente angústia e terror, para Schelling será somente com essa identificação, com essa dissolução de limites, que poderá vir à luz a realização mais alta da cultura humana: a mitologia. Esta é nada mais nada menos que a identificação transparente do mundo da natureza com o mundo do espírito e da arte, do real com o imaginário, do natural com o sobrenatural, experimentados como um mundo único e indivisível. Ou seja, para um grego helênico, a narrativa homérica não é uma representação ou uma explicação do mundo, mas o próprio mundo. A mitologia não é a explicação fornecida pelo espírito humano para dar conta de fenômenos incompreensíveis, de um mundo natural incompreensível, mas a própria criação desse mundo. O mundo nasce com a mitologia. Da mesma forma, uma escultura helênica de um deus não é, para os helênicos, apenas a representação desse deus, mas o próprio deus. “O que uma mitologia requer não é que seus símbolos signifiquem somente ideias, mas que sejam significantes por si mesmos, que sejam seres independentes”. Nesse sentido, a definição schellinguiana de símbolo é esclarecedora: algo que é ao mesmo tempo aquilo que significa. Claro está que o romântico Schelling encontra-se, no tempo e nas implicações, distante da perspectiva aqui estudada. Não obstante, a dissolução da separação moderna entre mito e realidade é uma aproximação mais precisa que a habitual – e imprópria – ideia de que o campo simbólico seria “a explicação fornecida pelo espírito humano para dar conta de fenômenos incompreensíveis”. II. EGO E CORAÇÃO O Corão é perpetuamente novo para cada um daqueles que o recitam (...). Mas nem todo recitador está consciente de sua descida ( nuzûl ) porque seu espírito está ocupado por sua condição natural. O Corão desce então sobre ele oculto atrás do véu da natureza e não resulta em gozo. É a este caso que alude o Profeta quando fala de recitadores que leem o Corão sem que este vá além de suas gargantas. Este é o Corão que desce sobre as línguas e não

sobre os corações. Deus disse, ao contrário, a respeito daquele que saboreia [esta descida]: “ O Espírito fiel desceu com ele [= o Corão] em teu coração ” (Corão 26:193). Este é aquele a quem esta descida faz provar uma doçura incomensurável, que excede qualquer gozo. Quando ele a experimenta, ele é [verdadeiramente] aquele sobre quem desceu o Corão sempre novo. A diferença entre esses dois tipos de descida é que, se o Corão desce ao coração, traz com ele a compreensão: o ser em questão tem o conhecimento daquilo que recita ainda que ele ignore a língua da Revelação, ele conhece o significado daquilo que recita ainda que o sentido que têm essas palavras fora do Corão lhe seja desconhecido porque elas não existem em sua própria linguagem: ele sabe o que essas palavras significam em sua recitação e no momento mesmo em que as recita. A estação do Corão e sua morada, sendo aquilo que dizemos, resulta em que cada um encontra nele aquilo a que aspira. É por esta razão que o Sayh Abû Madyan dizia: o aspirante ( al-murîd ) só o é verdadeiramente quando encontra no Corão tudo aquilo a que aspira. Qualquer palavra que não possua esta plenitude não é realmente Corão (CHODKIEWICZ, 1992, p. 46). Façamos uma “tradução” possível desse texto. Ibn ‘Arabî, como vimos, afirma expressamente que “o universo é irmão do Corão”. Assim, a escrita é a revelação, isto é, a realidade. Tudo o que é real é escrita e, nesse plano, a escrita não se distingue do escrito nem do “escritor”. Deus é escrita, pois o Corão “...é um atributo divino – e o atributo é inseparável daquilo que ele qualifica” (CHODKIEWICZ, 1992, p. 46). Ou, a existência é “uma escrita inscrita, testemunhada por aqueles que foram tornados próximos (Corão, 83:20-1), mas ignorada por aqueles que não são próximos” (IBN ‘ARABÎ, 2002, p. 43). Isto é, o discurso divino não é sobre a realidade, ele é a realidade. A frase inicial do texto pode, então, ser lida como: “A realidade é perpetuamente nova para cada um daqueles que a recitam/ experimentam/ conhecem / com ela entram em contato (...).” A realidade está sempre mudando porque os tempos, os lugares e as pessoas mudam, porque, nesse sentido, há algo de único, concreto e atual a cada momento. Mas o ego não é capaz de perceber essa atualidade porque “seu espírito está ocupado por sua condição natural”, isto é, o ego tende à fixidez, à repetição, aos processos identitários: “isso é uma mesa”, “eu sou assim”, “defina negritude”, “amor é angústia”, “Derrida é filósofo”, “Lacan é psicanalista”. O que é traduzir-interpretar então? É tramar, é tecer as tramas por meio da aspiração encontrada no Livro, o que se traduz sendo, portanto, as tramas do desejo. Como tradutor-intérprete, o homem é quem dá sentido aos âyât , porém, e isso é crucial, o sentido dado pelo ego é diferente do sentido que “desce” ao coração. A interpretação egoica é racional, essencializadora e asseguradora. O ego não é capaz de perplexidade, mas o coração é. O coração é o órgão da percepção sutil. ⁹ O “sutil” é, sinteticamente falando, o aspecto “não denso”, “não cristalizado” da percepção e que possui “plasticidade” e “capacidade” para assumir “todas” as formas. E, antes que o leitor suponha que Ibn ‘Arabî está estabelecendo uma dualidade hierarquizante entre o coração e o ego, deixe-me dizer que aqui não se trata de duas coisas. Ao contrário, o processo alquímico a que se

referem os sufis consiste na transformação do ego em coração; trata-se, na realidade, de aspectos do mesmo campo possível. A radicalidade desta concepção não reside na distinção entre o ego e o coração – distinção essa que é mais uma operação propiciatória que uma conceituação –, mas no modo técnico como ela se vincula a uma prática: o Livro é um lugar concreto de revelação atual. A Escrita – a realidade – é um guia de viagem real, não metafórico, não imaginário. Tudo se passa como se fosse de fato possível operar sobre o ego de modo que ele responda com suas aspirações, de modo que ele “co-rresponda” ao chamado da Palavra que lhe diz de si, de modo que ele se desvista em coração. “Nem o céu nem a terra Me contêm, mas o coração do meu servidor fiel Me contém”, diz um hadith transmitido por Muhammad. O coração é este órgão “capaz de Deus” e uma das maneiras de descrever a operação (ou as múltiplas operações ao longo de uma vida) pela qual esse órgão se desenvolve reside na identificação com o Livro. O homem deve tornar-se Corão, este Outro cuja totalidade lhe permite transitar pelas totalidades de todas as coisas, que lhe faculta a percepção da realidade como tradutibilidade, imprevisto, movimento e rigor. Perdido para aquele que parece não ligar, sinto dor, ainda que mesmo isso seja bem-vindo do Outro que exige tudo o que sou. ¹⁰ A radicalidade dessa autonomia ¹¹ – no sentido de que a Lei se torna própria pela identificação integral com a Lei simbólica, que, ao ser alteridade, não pode ser exterioridade – reside em que se tornar o Outro não é apenas uma proposta filosófica de Ibn ‘Arabî; é, na perspectiva, por exemplo, do sufismo, o destino próprio de todos os homens. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abd el-Kader, Emir. Écrits spirituels (trechos Kitâb al-Mawâqif ). Trad. Michel Chodkiewicz. Paris: Éditions du Seuil, 1982. Addas, Claude. La quête du soufre rouge . Paris: Gallimard, 1989. Almond, Ian. Sufism and Deconstruction – a comparative study between Ibn ‘Arabî and Derrida. Londres: Routledge, 2004. ChauÍ, Marilena. Laços do Desejo . In: Desejo . São Paulo: Cia das Letras, 1990. Chodkiewicz, Michel. Le Sceau des Saints . Paris: Gallimard, 1986. _. Un Océan sans rivage. Paris: Éditions du Seuil, 1992. Derrida, Jacques. A Escritura e a diferença . São Paulo: Perspectiva, 1967. Duque-Estrada, Paulo Cesar. Às Margens . Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002 _. Espectros de Derrida . Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2002.

Haddock-Lobo, Rafael. Derrida e o Labirinto de Inscrições . Porto Alegre: Zouk, 2008. GLOTON, M. The Quranic Inspiration of Ibn ‘Arabî’s Vocabulary of Love. Journal of the Muhyiddin Ibn ‘Arabî Society , vol. XXVII, 2000, p. 42. Ibn ‘Arabî, Muhyiddîn. L’Interprète des Désirs (Turjumân al-Ashwâq). Trad. M. Gloton. Paris: Albin Michel. 1996. _. La Parure des Abdal (Hilyatu- l-Abdâl) . Trad. Michel Vâlsan. Paris: Les Éditions de l’Oeuvre, 1992. _. La Sagesse des Prophètes (trechos Fusus al-Hikam ).Trad. Titus Burckhardt. Paris: Albin Michel, 1974. _. Le Dévoilement des Effets du Voyage (Kitâb al-isfâr ‘na natâ’ij al-asfâr). Trad. Denis Gril. France: Éditions de l’Éclat, 1994. _. Le Livre des Chatons des Sagesses ( Kitâb Fusûs al-Hikam ). Trad. Charles-André Gilis, 2 vols. Beirute, Líbano: Les Éditions Al-Bouraq, 1998. _. Les Illuminations de la Mecque (trechos do Futûhât al-Makkiyya ). Trad. Chodkiewicz e outros. Paris: Albin Michel, 1997. _. Meccan Revelations. Nova York: Pir Press, 2002. Lacan, Jacques. Écrits . Paris: Ed. du Seuil, 1966. Machado, Beatriz. Sentidos do Caleidoscópio . São Paulo: Humanitas, 2004. Rumi, Unseen Rain, quatrains of Rumi , by John Moyne and Coleman Barks, 1986. 1 Via mística islâmica. 2 O termo “desejo” não aparece na Mística com a sua acepção moderna e sua relação com uma ideia particular de destino, como mostra Marilena Chauí, em Desejo . O Sufismo possui variados termos, para dar conta de variadas nuances daquilo que, em uma visão genérica, chamamos hoje, sobretudo na psicanálise, de desejo. Alguns termos da Mística podem ser traduzidos por “aspiração”, “chamado”, “vocação”, “intenção”, “energia espiritual” etc. 3 O “Homem Perfeito”. 4 Usûl : deve-se compreender com este termo: os princípios de nossa constituição física, o calor, o frio, o seco, o úmido ou os da “manifestação informal”, o intelecto, a alma, a matéria-prima e a natureza. 5 Mundo Encantado ou Encantamento são termos que passei a utilizar a partir da conhecida expressão de Max Weber, “desencantamento do mundo”. 6 Uma das obras fundamentais de Ibn 'Arabî. 7 Grande jurista do século VIII, fundador da escola jurídica Malikita.

8 O Unheimlich em Freud e Schelling. Revista Percurso , n. 3, ano II, 2 o semestre, 1989. 9 Cabe observar que não há propriamente uma percepção sutil, nem um órgão de percepção sutil. Cada autor sufi, em diversas passagens diferentes, refere-se a conjuntos variáveis de “órgãos” e “percepções das sutilezas” (os lataif ). 10 Rumi, um dos mais importantes mestres sufis, m. século XIII. “Lost to one who seems not care,/ I feel pain, though even that is welcome/from the Other who demands everything I am” (RUMI, 1986, p. 23). 11 Etimologicamente, se pensarmos nómos junto com Sófocles – em Antígona , por exemplo – e certa parte da tradição grega que o pensou como norma celeste. FORÇA DE LEI: A FORÇA DAS PALAVRAS DE DERRIDA NA POLÍTICA DE AGAMBEN ENCONTROS ENTRE A ARTE E A POLÍTICA GEORGIA AMITRANO (UFU) Il pensiero contemporaneo ha preso risolutamente coscienza del fatto che un metalinguaggio ultimo e assoluto non esiste e che ogni costruzione di un metalinguaggio resta presa in un regresso all’infinito. Il paradosso della pura intenzione filosofica è, tuttavia, proprio quello di un discorso che deve parlare del linguaggio ed esporne i limiti senza disporre di un metalinguaggio. In questo modo essa si urta proprio a ciò che costituiva il contenuto essenziale della rivelazione: logos en arché, la parola è assolutamente nel principio, è il presupposto assoluto (o, come Mallarmé scrisse una volta, il verbo è un principio che si sviluppa attraverso la negazione di ogni principio). Ed è con questa dimora della parola nel principio che una logica e una filosofia coscienti dei loro compiti devono sempre di nuovo misurarsi ( Giorgio Agamben , La potenza del pensiero) INTRODUÇÃO Este artigo é fruto da tentativa de elaborar um diálogo entre Jacques Derrida e Giorgio Agamben. De fato, ao me propor falar da força das palavras de Derrida no pensamento de Giorgio Agamben, de início apenas pensei na força política referente à Força de Lei no texto agambeniano. Contudo, ao submergir nas leituras dos textos de Derrida e Agamben, deparei-me com algo maior, com algo que, na força das palavras da Lei ou na força daquilo a que denominamos política, transcende o direito e o politikos . Para ser mais exata, deparei-me com a politike teknè, com a arte em um sentido amplo e profundo no interior dos discursos políticos desses dois pensadores de nossa contemporaneidade. E é esse discurso, essa dupla relação entre arte e política, que este texto se propõe a estudar. Portanto, é da arte – na voz da estética e da linguagem, como possibilidade de um dizer em cujas palavras há um interdito – que se dá a força do encontro entre Derrida e Agamben, sendo deste encontro que este artigo emerge.

Ora, como afirma Agamben em La potenza de pensiero , o pensamento contemporâneo já é ciente do fato de que uma metalinguagem final e absoluta inexiste, e que o paradoxo da filosofia pura é justamente um discurso capaz de falar a língua e delinear os limites sem uma metalinguagem. A palavra, desse modo, aparece como o pré-requisito absoluto, o verbo que principia e que é desenvolvido através da negação de todo princípio. De fato, nos últimos dois séculos, é a linguagem o que tem feito girar a roda da filosofia. Esta não é mais um complemento a ser usado, um “espelho da realidade”; mas, antes, é algo decisivo que se põe entre nós e a realidade, como diria Richard Rorty. De fato, em uma relação que vai de Heidegger a Derrida, passando por Habermas, Wittgenstein e Lyotard, a linguagem vai da morada do Ser à morada ética. A escritura , nesse caso, não se dissocia da noção de linguagem. Afinal, consoante Derrida, a linguagem pode ser traduzida na ideia de escritura , uma escritura que aparece como ‘origem riscada’. Disso deriva uma contestação, por que não dizer “inversão-alteração”, que retira a primazia da voz ( phoné ) sobre a escrita; colocando em xeque o fonocentrismo característico da metafísica ocidental. Em exames que partem de um exercício das reflexões da linguagem, Agamben e Derrida, mesmo podendo ser pensados em diferentes estruturas e em oposições circunscritas, articulam teorias que se encaixam no jogo do logos como lego , como a expressão que reúne tanto a crítica à história, a dimensão “aesthetica” da existência e sua imersão política e ética. Isso realizado através de textos que latinizam o logos-lego grego para o legalem de lealdade ou o legere e o legis da leitura que legisla. Ambos entenderam que “para efetuar a destruição da experiência não é necessário a todos um desastre”, como dissera Agamben. Tomando prumo nesta análise, passo agora aos paralelos, se paralelos assim o forem. De início tomemos a relação intrínseca à Lei e ao Político para que, no decorrer da análise, possamos nos deparar com o modo como esta relação pode ser vista e respaldada em um aparato estético, uma Teknè que se abre como possibilidade ética para com o outro. I. A FORÇA DE LEI E O POLÍTICO A origem da autoridade, a fundação ou o fundamento, a posição da lei não podem, por definição, se apoiar senão finalmente sobre si mesmas, elas são uma violência sem fundamento (DERRIDA, 2007a, p. 26) .

Nas trilhas de uma tradição que remonta a Nietzsche, alguns pensadores reacenderam a necessidade de nos preocuparmos com a existência de um lócus de anomia, uma zona de indeterminação político-jurídica que cria hiatos muito claros entre a dimensão ‘legal’ dos direitos do homem e sua real dignidade. Ora, Hannah Arendt, no capítulo quinto do livro sobre o Imperialismo , denominado “O declínio do Estadonação e o fim dos direitos do homem”, afirma que, uma vez desnacionalizada e desnuda de qualquer condição extrínseca, a figura do refugiado – desprovida de qualquer tutela dos direitos universais –, marca uma crise radical diante da noção e do conceito de direitos do homem e do cidadão. Ainda hoje é quase impossível descrever o que realmente aconteceu na Europa a 4 de agosto de 1914. Os dias que antecedem e os que se seguem à Primeira Guerra Mundial não são como o fim de um velho período e o começo de um novo, mas como a véspera de uma explosão e o dia seguinte. Contudo, esta figura de retórica é tão inexata como todas as outras, porque a calma dolorosa que sobrevém à catástrofe perdura até hoje. [...] As guerras civis que sobrevieram e se alastraram durante os vinte anos de paz agitada não foram apenas mais cruéis e mais sangrentas do que as anteriores: foram seguidas pela migração de compactos grupos humanos que, ao contrário dos seus predecessores mais felizes, não eram bem-vindos e não podiam ser assimilados em parte alguma. Uma vez fora do país de origem, permaneciam sem lar; quando deixavam o seu Estado, tornavam-se apátridas; quando perdiam os seus direitos humanos, perdiam todos os direitos: eram o refugo da terra (ARENDT, 2004, p. 300). É justamente neste ponto, em que o princípio da Nação soberana é operado por meio da tácita inscrição da natividade da vida nua dentro da comunidade jurídico-política, que Agamben aponta para o fato de os direitos do homem se acharem implícita e ambiguamente imantados ao conceito de cidadania. Disso decorre que os direitos do homem constituem a figura originária da inscrição na vida nua, sendo esta sua última função. Afinal, “um simples exame do texto da declaração de 1789 mostra, de fato, que é justamente a vida natural, ou seja, o puro fato do nascimento, a apresentarse aqui como fonte e portador de direito”. Ora, há uma relação explícita entre a dimensão antropológica do indivíduo humano e sua função biopolítica, a qual já se encontra desenhada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Tal relação nos permite traçar aproximações entre Agamben e certos autores, dentre eles, Derrida. A análise de Agamben, longe de estabelecer uma pura ontologia negativa, nos obriga a voltar os olhos para novos extremos, de modo a abarcar, a um só tempo, a ontologia, a estética, a ética e a política. Donde os discursos acerca do Homo sacer , do estado de exceção e das relações de exclusão e “Força de Lei” se solidificam. É aqui que Agamben e Derrida emergem como aqueles pensadores que abrem caminho para uma problematização efetiva sobre o lócus do homem e o conceito de homem na pólis contemporânea. Afinal, uma vulnerabilidade que se abre como apport para vulnerados concretos nos coloca diante do fato da existência de certos indivíduos cuja vida é destituída de valor: nas palavras de Agamben, o Homo sacer .

O Homo sacer proposto por Agamben, assim, aparece como um conceito que diz respeito a um ser cuja vida nada vale, é uma vida matável. O Homo sacer , portanto, aparece, de forma enigmática e obscura, como aquele ser que contém em si sentidos contraditórios: o de sagrado, o de impuro e o de não sacrificável. A vida do Homo sacer , desse modo, se situa na interseção entre a “matabilidade” e a “insacrificabilidade”; dito de outro modo, fora tanto do direito humano quanto do direito divino. ¹ Lembrando as palavras de Rosa Luxemburgo, vivenciamos um tempo extraordinário, o qual, justamente por propor “problemas enormes e espoliar o pensamento”, suscita sua crítica. Neste tempo, parece que nos fechamos na armadilha foucaultiana. Ou seja, na inversão da proposição de Clausewitz, deparamo-nos com a política sendo a guerra continuada por outros meios. Diante deste quadro, a ação política, como a guerra desencadeada nesta e por meio desta ação, emerge da modalidade normativa das tensões existentes. Em outros termos, é da inimizade, como “negação ontológica de outro ser”, que ela existe. Desta feita, podemos afirmar que, enquanto permanecer a ideia de inimigo, a guerra não deve ser rejeitada. Contudo, a guerra aqui pontuada não possui o caráter único de uma ação militar ou bélica, imperialista ou pacificista; antes, como alude Schimitt, “deve ser vista como pressuposto sempre presente, como possibilidade real a determinar o agir e o pensar do sujeito social para a emergência do comportamento político”. À vista disso, é justamente em face dessa possibilidade real que a vida adquire uma tensão especificamente política. Sendo a vida um fato político, então, também político é o conceito de homem. Afinal, seguindo o rastro de Schmitt, a unidade política prevê a existência de um inimigo e, por esta razão mesma, também prevê a existência de um amigo. Em outros termos, o que está em jogo ainda é a presença do homem, porém esse é um outro. Mais legitimamente, é o homem que emerge do fato político, haja vista a humanidade, ² como alguns advogam, não ser um conceito político e a ela não corresponder nenhuma unidade política. É neste sentido que o conceito de humanidade aparece não como caráter universal, mas, isto sim, como um “instrumento ideológico”, especialmente útil para discursos de ordem imperialista e/ou totalitária. Permanecem, assim, os dizeres de Proudhon, que afirma: “quem diz humanidade pretende enganar”. Mais uma vez volto-me a Rosa Luxemburgo, cujas palavras ecoam e nos despertam para o extraordinário do tempo, tempo este nosso que apregoa a exclusão, a exceção em nome da ideologia humanitária. Ora, no seio desta evidência incômoda, voltemo-nos para Derrida, para quem: A Lei da hospitalidade, a Lei formal que governa o conceito geral de hospitalidade, aparece como uma lei paradoxal, perversível ou pervertora. Ela parece ditar que a hospitalidade absoluta rompe com a Lei da hospitalidade como direito ou dever, com o “pacto” da hospitalidade (DERRIDA, 2003, p. 23).

É a Lei, podemos afirmar, quem hospeda e hostiliza. Acolhe e mata. Afinal, existe uma autoridade, uma força legítima que permite, ‘no ápice hegeliano do progresso da humanidade’, a exclusão de outrem. Há sempre um inimigo, há sempre a “negação ontológica de outro”. E, apesar de, primariamente, o reconhecimento do outro como inimigo trazer consigo a ideia de que este representa a encarnação de um mal, devendo, por essa razão mesma, ser eliminado, também, e principalmente, o que se verifica nesta negação contemporânea do Outro é o fato de este inimigo não aparecer como um inimigo privado, inimicus , mas, isto sim, ele representar um inimigo público ( hostis ) e, por isso mesmo, passível de eliminação. Este inimigo, como frisa Carl Schmitt, é o “estrangeiro”. O que se verifica na negação Legal do outro, desse entendimento formal deste como “estrangeiro”, é a existência de certo privilégio. Afinal, o reconhecimento do outro na sua qualificação de estrangeiro e de inimigo – que nos obriga a acolher a ideia da existência de uma tensão constante, bem como a possibilidade sempre latente da eliminação física desse outro – é, sem dúvida, uma espécie de status ; e isso devido ao fato de que determinado Estado, na possibilidade legal de garantia de sua identidade e soberania, pode eliminar esse outro de modo legítimo e, por que não, ‘moral’ (já que se encontra da Lei). Em outras palavras, elimina-se o outro dado este ter sua condição humana minimizada . Ora, a redução desse outro à sua mínima parte faz, como afirma Giorgio Agamben, com que possamos matar sem cometer assassinato. De fato, vivenciamos, nesses últimos anos, o auge do pensamento da exclusão. É um momento propriamente poético do pensamento, afirma Agamben, donde o termo estado de exceção parece a terminologia mais adequada, haja vista este não emergir de um direito especial, mas, isto sim, da suspensão da própria ordem jurídica (AGAMBEN, 2004, p. 15), suspensão esta que permite a supressão dos direitos individuais mais simples. Há no mundo, nos últimos vinte anos, certo tipo de homem capaz de estar ou não incluso nos diferentes conjuntos montados no espaço da Lei nos Estados. À vista disso, voltando-me ao início deste trabalho, posso afirmar que Agamben se encontra, de certo modo (há distorções, diferenças e até antagonismos, é claro), como Derrida: um autor limítrofe. Afinal, Agamben é um pensador da linguagem e da estética que se debruça na política, enquanto que Derrida é o pensador da desconstrução que tem a linguagem como o habitat natural de toda sua atividade filosófica e literária; é ela que opera a desconstrução do signo, tomando a terminologia de Saussure como ponto de partida. Ademais, Derrida é o pensador que repensa o messianismo levinasiano em termos de messianicidade e que volta seu pensamento para análises como as das relações de Lei, justiça, direito e soberania. A obra política de Agamben, se iniciada e balizada a partir de Foucault e Hannah Arendt, emerge também da discussão já iniciada por Derrida em Força de Lei ; isto é, dá-se a partir de um diálogo com o pensamento de Walter Benjamin. II. A POESIA E A ESTÉTICA: UMA ÉTICA E UMA POLÍTICA

Outrora os animais cobriam-se em carreira, As glandes a pingar de sangue e de excremento. Expunham nossos pais o membro corpulento No vinco da braguilha e no ancho da algibeira. (Arthur Rimbaud, Les stupra ) Giorgio Agamben, tal qual Jacques Derrida, se apercebe da relação intrínseca entre filosofia e arte. Tal relação, entretanto, não se dá apenas nos objetos acolhidos; antes se produz através do modo como o problema é abordado no próprio estilo agambeniano. Afinal, l’homme c’est le style même . E se o estilo é o próprio homem, este não pode ser removido, nem se mover; portanto, não se altera. Donde pode-se afirmar que, com Agamben, a relação entre filosofia e política não se separa da sua discussão estética; afinal, há sempre uma eudaimonia , uma ideia de felicidade característica do vivido, do experienciado individualmente. Em todas as vidas [diz Agamben] existe qualquer coisa de não vivido, do mesmo modo que em toda palavra há qualquer coisa que fica por exprimir. O caráter é a obscura força que se assume como guardiã desta vida intocada: vela atentamente por aquilo que nunca foi e, sem que o queiras, inscreve no teu rosto a marca disso. Por esta razão, a criança recém-nascida parece já ter semelhanças com o adulto: de fato, não há nada de igual entre esses dois rostos, a não ser, em um como no outro, aquilo que não foi vivido (AGAMBEN, 1999, p. 89). Ora, para além da língua, de um monolinguismo ³ circunscrito – quer seja na língua materna, como diz Derrida, quer seja na poesia, como afirma Agamben –, o estilo desses dois pensadores ultrapassa a concretude dos conceitos, suspendendo-os por meio da potencialidade do jogo. Há uma linha tênue que não dissocia o pensamento da linguagem e da palavra. E, nesse caso, a palavra se torna uma ação em curso. Agamben afirma que “toda obra escrita pode ser considerada como prólogo de uma obra jamais escrita” (AGAMBEN, 2005, p. 9); afinal, as palavras, desde seu gérmen, trazem conceitos já postos como também recolhem da história outra linguagem, sempre própria, que atravessa a linguagem, a escritura. Há uma vagar das palavras posicionadas que cria espaços, cavidades que contrariam “as formas sedimentadas da lógica discursiva”. À vista disso, Agamben está no mesmo compasso que Derrida: ambos não dissociam os elos que unem a filosofia à literatura. Ao contrário, esta ligação é vital. Para exemplificar, podemos nos ater aos textos agambenianos que, objetivamente, realizam uma real interseção entre literatura e filosofia: A linguagem e a morte, Infância e história , Profanações e Estâncias. Nestas obras, Agamben realiza algo bem próximo ao que Derrida fizera entre as décadas de 1960 e meados de 1970, com poetas como Mallarmé. Para o filósofo italiano, “é na linguagem e através da linguagem que o homem se constitui como sujeito” (AGAMBEN, 2005, p. 56). Ademais, em diferentes momentos de sua obra, emaranha suas teses acerca da negatividade com uma concepção poética. Antes de mais nada [diz Agamben], a poesia parece assumir desde sempre aquele caráter – simultaneamente universal e negativo – do “este”, cuja

descoberta orientara a crítica hegeliana da certeza sensível (AGAMBEN, 2006, p. 104). A obra de Giorgio Agamben é uma prosa teórica, ⁴ e ele, um escritor filosófico. A prosa aqui pontuada emerge de modo similar à escritura derridiana, como uma recusa dos tipos existentes de escrita, a qual, atrelada ao estilo, incorpora o abismo da escrita. Passando de um movimento a outro, poder-se-ia dizer que no olhar agambeniano sobre a linguagem haveria uma transmutação e um transbordamento que configuram o gesto poético, uma espécie de modulação outra aquém e além do traço crítico da transgressão, uma transgressão territorial, que suspende o espaço geográfico e subjetivo no saber artístico. Há uma impossibilidade de se apreender, portanto , o lócus de origem da palavra poética. Ora, tal transgressão pode ser entendida como uma profanação, a qual, segundo Agamben, Implica, por seu turno, uma neutralização daquilo que profana. Uma vez profanado, aquilo que estava indisponível e separado perde a sua aura e é restituído ao uso. [...] Profanar não significa, apenas, abolir e cancelar a separação, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar [jogar] com elas (AGAMBEN, 2007, p. 68-73). No jogo da profanação as coisas são deslocadas de suas aplicações comuns e lançadas em novas e distintas relações. Uma composição determinada e repleta de significados rompe-se para que outra venha à tona. Contudo, diz Agamben, o “jogo como órgão da profanação está em decadência em todo lugar” (2007, p. 67). Por esta razão, talvez, nem a poesia nem a filosofia, nem o verso nem a prosa possam jamais levar a cabo por si a própria empresa milenar. Talvez apenas uma palavra na qual a pura prosa da filosofia interviesse, a certa altura, rompendo o verso da palavra poética e na qual o verso da poesia interviesse, por sua vez, dobrando em anel a prosa da filosofia seria a verdadeira palavra humana. Agamben emerge como um pensador da tensão, de certo modo. Ele desconstrói a partir do rompimento e da transgressora profanação. Em O homem sem conteúdo , afirma que na arte existem determinados artistas que podem ser compreendidos como “criadores terroristas”, os verdadeiros opositores dos “retóricos”. les Rheteurs qui dissolvent tout le signifie dans la forme et font de cette dernière l’unique loi de la litterature, des Terroristes qui refusent de se plier a cette loi ET caressent le reve oppose d’un langage qui ne soit plus que sens, d’une pensée à la flamme de laquelle le signe se consumerait entièrement, mettant l’écrivain face à l’Absolu (AGAMBEN, 1996, p. 19). Para Agamben a arte deve ser concebida como algo que ultrapassa a si mesmo e projeta-se em um além do seu próprio campo de referências. O que significa que a arte aponta para além de si mesma? Podemos talvez responder: a arte não morre, mas, tendo-se tornado um nada

autoaniquilador, eternamente sobrevive a si mesma. Sem limite, sem conteúdo, dupla, vagueia no nada da terra estética, em um deserto de formas e conteúdos que continuamente apontam para além de sua própria imagem e que evoca e imediatamente abole na tentativa vã de fundar sua própria certeza. Seu crepúsculo pode durar mais que a totalidade de seu dia, porque sua morte é precisamente sua inabilidade de morrer. A subjetividade artística sem conteúdo é agora a pura força da negação que em toda parte e a toda hora afirma apenas a si mesma como liberdade absoluta que se reflete na pura consciência. E, como qualquer conteúdo adere a ela, também o espaço concreto da obra desaparece nela, o espaço no qual outrora a ação humana e o mundo fundaram suas realidades na imagem do divino, e do qual a vida do homem sobre a Terra costumava tirar sua medida diamétrica. Na pura autossustentação do princípio formal criativo, a esfera do divino se torna opaca e se retrai, e é na experiência da arte que o homem se torna consciente, da forma mais radical, do evento no qual Hegel já tinha visto o traço mais fundamental da consciência infeliz, o evento anunciador do louco de Nietzsche: “Deus está morto” (CAVENDISH, 2008, p. 56). É justamente a partir de imagens e da construção linguística do poema O infinito , de Leopardi ⁵ que Agamben pode dizer: A palavra poética acontece, pois, de tal modo que o seu acontecimento escapa já sempre em direção ao futuro e ao passado, e o lugar da poesia é sempre um lugar de memória e repetição (AGAMBEN, 2006, p. 105). À vista disso, delineia-se uma convergência entre o fazer filosófico e a poesia. Poder-se-ia dizer que há uma espécie de hermenêutica, na qual o filósofo considera que a experiência poética da fala, perante os deslocamentos inerentes à linguagem, coincide com a “experiência da linguagem da filosofia” (AGAMBEN, 2006, p. 105). De fato, em uma leitura atenta do pensador italiano, ouso dizer que este traceja, já a partir de seus trabalhos sobre teoria literária e filosofia, uma ética literária como posicionamento poético, o que pode ser vislumbrado em Homo sacer . Agamben, assim, perceberia que hoje a poesia, assim como a linguagem são alvos de um mesmo abandono. Estando “à mercê de...” ou “a seu talante [arbítrio, vontade] livremente”, a poesia e a linguagem se encontram ambíguas, podendo ser percebidas como “excluídas, banidas” ou se encontrando “abertas a todos, livres”. Diante dessa ambiguidade, os conceitos se aplicam mediante uma zona de indeterminação, onde (tal qual certos indivíduos que não pertencem a lugar algum, estando livres) estas se encontram abandonadas, banidas ou excluídas (AGAMBEN, 2002, p. 117).

Mas não se abandona ou se executa a linguagem. Esta é inerente ao homem. Uma linguística cada vez mais dominada por elementos afastados do poético só faz encontrar um caminho para que a literatura também se manifeste por uma ética do discurso. Donde, para Agamben, deve-se “considerar exatamente no mesmo plano disciplinas crítico-filológicas e poesia” (2005, p. 166). Contudo, é importante salientar, trata-se de “se colocarem ambos [filólogos e poetas] em um lugar em que a fratura da palavra que, na cultura ocidental, divide poesia e filosofia, torne-se uma experiência consciente e problemática, e não uma canhestra remoção” (ibidem). Tentando uma analogia entre a linguagem poética, a fala, a escritura e a pintura, volto-me a Derrida na busca de um novo encontro com Agamben através da verdade ficcional. A verdade é em seu nome maldito que nos perdemos, somente em seu nome, não pela verdade mesma, se isso houvesse, mas pelo desejo de verdade que nos arrancou as “confissões” mais aterrorizantes, após as quais fomos mais distanciados de nós mesmos do que nunca, sem nos aproximarmos um passo sequer de qualquer verdade que seja (DERRIDA, 2007b). Derrida, em seu ensaio Ulysse Gramophone (1987), apresenta-nos a relação existente entre um cartão-postal e uma garrafa arrolhada com uma mensagem lançada ao mar. Neste gesto do envio, há sempre uma promessa de encontro; contudo este encontro não é garantido. A escritura tecida pela mensagem nos remete a um lugar imaginário, sem nome, no qual não há um destinatário preciso. Mas não é pelo fato de ser imaginário que a verdade não é dita. Esta é arquivada na garrafa e no desejo do encontro. Derrida, em uma releitura de Sócrates em Platão, recoloca as questões que envolvem a representação e a verdade. Na distinção entre os dois tipos de imagem postos por Platão, voltaram-nos à noção de eikon e o phantasma ; isto é, entre cópia e simulacro.Para ele, até Husserl colocou no traço ou na escritura o perigo do simulacro, sendo visto por essa tradição como suplemento espacial da “verdadeira repetição”. Derrida retoma os pontos que se unem à noção de poesia a partir de Mallarmé. Há, de fato, uma problemática da representação que se desenha no intervalo entre a escritura, a fala, a pintura-escritura e o seu próprio fazer-se. Há um gesto ambivalente na escrita literária, que se desenha em Derrida tanto como uma afirmação da existência, a despeito da rigidez do real, quanto uma recusa de complacência para com qualquer que seja o objeto.

Ora, as reflexões de Derrida se deixam emaranhar e redimensionar através de seu contínuo diálogo com a literatura e a pintura. Derrida nos oferece, assim, uma estética serial, como afirma Rösch, na qual a obra de arte é apresentada a partir de certo arquétipo generativo capaz de atualizar uma dinâmica desconstrutora. A arte, no modelo desconstrutivista derridiano, nos põe diante de uma infinidade de discursos polimorfos, em cujo polimorfismo faz a obra escapar. Em seu pensamento, a origem da arte emerge como uma hetero-afecção atada à visibilidade. Tal observação derridiana pode ser mais bem compreendida no momento em que nos voltamos a um texto de Artaud, no qual o artista se debruça sobre a pintura dos girassóis de Van Gogh. É a natureza nua e pura, vista exatamente como ela se revela, quando se sabe chegar suficientemente perto dela. [...] estas cores sem cerimônia, que são todo um acontecimento, onde cada pincelada de Van Gogh na tela é pior que um acontecimento. [...] Ele [Van Gogh] fez, sob a representação, brotar um ar, e nele encerrou um nervo, que não estão na natureza, que são de uma natureza e de um ar mais verdadeiros que o ar e o nervo da verdadeira natureza. [...] seus girassóis de ouro brônzeo estão pintados; estão pintados como girassóis e nada mais, mas para entender um girassol ao natural, é preciso agora voltar a Van Gogh, assim como para entender uma tempestade ao natural, um céu tempestuoso, uma planície ao natural, não se poderá mais deixar de voltar a Van Gogh (ARTAUD, 1995, pp. 277; 279; 280; 281). Ora, aparecem girassóis e nada para além disso; todavia, “para entender um girassol ao natural, é preciso agora voltar a Van Gogh, assim como para entender uma tempestade ao natural, um céu tempestuoso, uma planície ao natural, não se poderá mais deixar de voltar a Van Gogh”. Para Derrida, essa dimensão do olhar de Artaud condensa toda uma teoria sobre a gênese da arte, acenando para o fato de que a pintura é capaz de transpor o pintor e o seu meio, sobrevindo ao outro lado da linha de separação, justamente, ao inscrever em si a verdade da natureza. Ademais, é possível afirmar que Artaud e seu Van Gogh não se separam na pintura e no teatro para Derrida. Afinal, para o pensador franco-argelino, no seu ensaio dedicado aos desenhos e retratos de Artaud, pecebemos que estes são tratados como escritos desenhados, que conjugam a potência imprecatória das palavras, a força visual dos signos gráficos e a experiência do fogo voluntariamente aplicado ao papel. Há um pictórico que “enlouquece o subjétil”. No processo de desconstrução derridiano, o que se pode retirar é uma verdade fictícia, de uma “verdade sem verdade da verdade”. De fato, se a obra de arte instala uma verdade no mundo, esta pode ser traduzida nas palavras de Cézanne ⁶ : “Je vous dois la vérité en peinture, et je vous la dirai”, as quais são lembradas por Derrida em A verdade em pintura. Contudo, tal verdade, para Derrida, é da ordem do traço e da escrita que grifam o paradoxo de uma verdade não verdade já articulada. Ao fim, a desconstrução derridiana também profana. Ao “enlouquecer o subjétil”, Derrida redesenha traços e rastros de uma “pictografia”, de modo a apontar, via Artaud, para uma arte transcrita, que transgride e conjuga pela pintura, pelo desenho e pela escritura. Não há paredes divisórias, “nem a das artes nem a dos gêneros, nem a dos suportes nem a das substâncias”.

A palavra não reconduz a uma “proto-escritura na qual projetamos todos os nossos mitos de origem”; antes, insinua a “trajetória daquilo que literalmente está apto a atravessar o limite entre a pintura e o desenho, o desenho e a escritura verbal, de uma maneira geral, as artes do espaço e as outras” (DERRIDA, 1998, p. 47). BENJAMIN: O CORCUNDA QUE UNE PENSAMENTOS Na dinâmica desse encontro entre Derrida e Agamben, ainda há Benjamin, seu prenome e uma linguagem violenta do mundo. Ora, se Derrida lança mão de uma desconstrução , Agamben visa a uma profanação que segue, de certo modo, a linha de Walter Benjamin, visto propor a recuperação de uma modernidade situada na saturação de certa paisagem romântica. O discurso agambeniano, assim, situa-se entre dois polos que trafegam entre a infância e o que resta dela no universo adulto. Afinal, para esse pensador italiano, a infância é o início da profanação da linguagem. Dito de outro modo, a infância é o início de sua descoberta, sobretudo, a poética. Afinal, “a linguagem é nossa voz [diz Agamben], a nossa linguagem. Como agora falas, isto é a ética” (2006, p. 147). E a infância, indubitavelmente, transporta consigo sentido de toda uma existência. Desta relação com a literatura, com a profanação e com a magia, abre-se um lócus crítico com relação à ação política. E isso visceralmente ligado aos passos de Benjamin. É, portanto, no apport estético, que dá o tom ético benjaminiano, que a política de Agamben de certo modo converge para Derrida. Ora, não é do prenome de Benjamin que Derrida tira, em sua “Força de Lei”, uma análise ético-política do direito e da soberania? É neste ponto que Derrida e Agamben, para além da relação limítrofe entre linguagem e filosofia, se dão as mãos. Para efeito deste artigo, interessa-me aqui falar de uma obra de Benjamin que entrelaça o pensamento de Giorgio Agamben com o de Jacques Derrida, Sobre a Crítica da Violência ( Zur Kritik der Gewalt ). Afinal, tanto em Agamben quanto em Derrida afloram questões que envolvem o conceito de violência e soberania a partir de uma referência à força – ou violência, ou poder – como elemento fundador do direito, e ambos o fazem voltando seu olhar para Benjamin. Ora, Derrida consagra a maior de suas conferências presentes em Force de Loi a Benjamin. O título dessa conferência, “O prenome de Benjamin (Le Prénom de Benjamin)” é um trocadilho entre o próprio prenome, Walter, e a palavra considerada por Derrida central no último período do texto de Benjamin, Sobre a Crítica da Violência , “waltende” – que, traduzido do alemão, significa soberano. Agamben, por seu turno, intenta, convergindo violência e soberania a partir de uma referência à força, situar o fato de o direito implicar, desde dentro, isto é, no seu próprio conceito, a sua negação.

Agamben identifica tal evidência com o instituto jurídico do estado de exceção , uma criação do direito que visa suspendê-lo sem extingui-lo. Polemizando com Carl Schmitt, para quem o Estado de Exceção se coloca na qualidade de mecanismo de fora para dentro do direito, como decisão fundamental e critério de identificação do soberano, Agamben propõe que se considere o estado de exceção indispensável à sustentação do direito como tal. Diz Agamben: Como entre a linguagem e mundo, também entre a norma e sua aplicação não há nenhuma relação interna que permita fazer decorrer diretamente uma da outra. O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em que uma pura Força de Lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja execução foi suspensa. Desse modo, a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, são operadas sob a forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real (2004, p. 63). Neste percurso, sua abordagem – para além da constatação e da distinção entre os termos zoé e bios , que apontam para duas formas de designar a ‘vida’, distinguindo-a pelo atributo genérico de todo ser vivo ( zoé ) e por seu caráter propriamente humano ( bios ) –, o pensador italiano, como também se aproxima da filosofia de Walter Benjamin, absorvendo da teoria benjaminiana a distinção entre a violência que põe o direito (violência fundadora) e a violência que mantém o direito (violência conservadora). É neste ponto, justamente, que Agamben se depara com Derrida. Afinal, ambos, Agamben e Derrida, vislumbram na própria noção de direito, isto é, na sua aplicação, a existência de uma zona de suspensão da norma a qual é inexpugnável e não pode ser alijada do direito; sendo uma de suas aporias fundamentais. Nas palavras do próprio Derrida: O novo frescor, a originalidade deste julgamento [de aplicação da regra] inaugural bem pode repetir algo, melhor, ele bem deve ser conforme a uma lei preexistente, mas a interpretação “re-instauradora”, “re-inventiva”, e livremente decisora [ décidante ] do juiz responsável requer que a sua ‘justiça’ não consista somente na conformidade, na atividade conservadora e reprodutora do julgamento. Em suma, para que uma decisão seja justa e responsável, é necessário que no seu momento próprio, se é que há algum, ela seja, ao mesmo tempo, regrada e sem regra, conservadora da regra e assaz desconstrutiva ou suspensiva da Lei por dever, em cada caso, reinventá-la, rejustificá-la, reinventá-la ao menos na reafirmação e na nova e livre confirmação do seu princípio (2007a, p. 51). Ora, para Agamben, o estado de exceção aparece como uma abertura possível, como um espaço em que aplicação e norma mostram seu apartamento, e em que uma pura ‘Força de Lei’ ⁷ realiza, aplica desaplicando uma norma cuja execução já se encontra ausente. Não existe, assim, entre a norma e sua aplicação, como ocorre entre a linguagem e o

mundo, qualquer relação interna que permita haver de uma para outra uma decorrência direta. Desse modo, [diz Agamben] a união impossível entre norma e realidade, e a consequente constituição do âmbito da norma, são operadas sob a forma de exceção, isto é, pelo pressuposto de sua relação. Isso significa que, para aplicar uma norma, é necessário, em última análise, suspender sua aplicação, produzir uma exceção. Em todos os casos, o estado de exceção marca um patamar em que lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real (AGAMBEN, 1999, p. 63). A parte final da citação de Agamben, em uma análise mais profícua, nos remete à mesma temática de “crítica à linguagem” que Jacques Derrida já havia identificado em seu ensaio sobre Walter Benjamin, “Prenome Benjamin”. Derrida, nesse caso, adota um posicionamento crítico com relação ao fonocentrismo , visando substituí-lo pela gramatologia . Seu intento consiste em realizar uma denúncia da visão da linguagem como local do logos ; ou seja, como gérmen e como elemento difusor da racionalidade, assim descrita por Derrida como o ‘resquício metafísico do pensamento ocidental’. Ademais, é fato que Derrida critica a diferenciação benjaminiana de violência fundadora e de violência conservadora, sendo mais radical que o frankfurtiano na inserção da violência dentro da própria ideia de direito. Afinal, Derrida assinala para o fato de os dois tipos de violência coincidirem inextricavelmente. Para ele, a violência que funda sempre conserva, sempre permanece como traço, como vestígio na conservação violenta do mesmo direito. Assim também, a violência que conserva o direito sempre o refunda, o reinventa a partir de seu traço fundador. Contudo, Agamben, ao adotar Benjamin para polemizar com Schmitt, não se fixa neste ponto de Derrida, pois para o italiano o que importa é reafirmar a violência como traço necessário do direito, a fim de concluir que não há direito libertador, não há emancipação no direito. [Nas palavras de Agamben] Ao desmascaramento da violência míticojurídica operado pela violência pura corresponde [...], como uma espécie de resíduo, a imagem enigmática de um direito que não é mais praticado, mas apenas estudado. [...] O importante aqui é que o direito – não mais praticado, mas estudado – não é a justiça, mas só a porta que leva a ela. O que abre passagem para a justiça não é a anulação, mas a desativação e a inatividade do Direito – ou seja – um outro uso dele. [...] Um dia, a humanidade brincará com o Direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico e, sim, para libertá-los definitivamente dele. O que se encontra depois do direito não é um valor de uso mais próprio e original que precederia o direito, mas um novo uso, que só nasce depois dele (AGAMBEN, 1999, pp. 97-98). Portanto, na linha de Benjamin, a violência do direito só pode ser desmascarada por outra violência, que não liga meios a fins, e que, por esta razão mesma, é pura, encontrando-se totalmente fora do direito. Concomitantemente, esta violência também é revolucionária. Ora,

linguagem e política mais uma vez se entrecruzam; afinal, como alude Derrida, na crítica benjaminiana da linguagem como semiologia – ou semiótica –, vale dizer: como veículo (simbólico) de representação (mediação) de conteúdos semânticos externos, também na crítica do direito, a violência que o permeia tem como foco a relação entre meios e fins em nome dos quais o manejo deste direito, e desta violência, se processam (DERRIDA, 2007a, p. 119). Ainda na presença de Benjamin, é importante lembrar que no final do ensaio Crítica da violência , o corcundinha afirma que valeria a pena indagar a origem do dogma da sacralidade; sugestão seguida à risca por Agamben. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES De fato, o que está na bola da vez é uma crítica severa na busca de um lugar para “ além da política e da Lei, do cosmopolitismo e da cidadania mundial. Um lugar fora do esquema formal”, onde seja possível um real acolhimento . Parece que ambos, Derrida e Agamben, apontam para o fato de que o ‘fazer justiça’, nas mãos da Lei, se reduz à simples imposição da Lei. Ambos – na desconstrução e profanação de um modelo rígido, lembrando Bergson, quase risível de pensamento, hoje – apontam para um diálogo cindido. Aludindo a Buber, o Eu que já não procura o Tu, ou ainda, levinasianamente falando: o Mesmo não constituído (porque sua existência só se torna possível constituindo-se a partir de Outrem). Desse modo, as crescentes experiências de violência e terror podem, e devem ser lidas como expressões de um direito que se ficciona, de modo violento, como política da sedimentação do paradigma de negação do Outro. Ao fim, resta-nos o acolhimento. O olhar o rosto do Outro. Fiquemos, pois, com a poesia; afinal, ela dá o mote ético da política pensada contemporaneamente. Por vezes à noite há um rosto Que nos olha do fundo de um espelho E a arte deve ser como esse espelho Que nos mostra o nosso próprio rosto. Borges  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte : um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. __. Estado de Exceção . Trad. de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. __. Homo sacer : o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. __. Ideia da Prosa . Lisboa, Cotovia, 1999.

__. Infância e história : a destruição da experiência e a origem da história. Trad. de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005. __. L’homme sans contenu . Paris: Circé, 1996. __. Profanações . São Paulo: Boitempo, 2007. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida . Trad. de Jacó Guinsburg, Sílvia Fernandes, Regina Correa Rocha e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1995. CAVENDISH, Sueli. O homem sem conteúdo. In: PUCHEU, Alberto (Org.). Nove abraços no inapreensível . Rio de Janeiro: Beco do Azouge: FAPERJ, 2008. DERRIDA, Jacques. Da Hospitalidade . São Paulo: Escuta, 2003. __. Enlouquecer o Subjétil , São Paulo: Editora Unesp, 1998. __. Força de Lei : o “fundamento místico da autoridade”. Trad. de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007a (Coleção Tópicos). __. Cartão-postal – de Sócrates a Freud e além . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007b. __. Ulysse gramophone – Deux mots pour Joyce . Paris: Ed. Galilée, 1987. 1 O termo sacer indica o enigma de uma figura do sagrado aquém ou além do religioso, uma figura obscura do Direito romano arcaico, que foi julgada por um delito, e que, a partir disso, não é considerada pura e não pode ser oferecida em sacrifício; porém, se for assassinada, seu assassino não é considerado um homicida. Agamben retoma a expressão sacer esto - impune occidi, que indica exclusão do sacrifício, e o termo Sacrum, que indica o que é destinado aos deuses. Isso nos leva à dificuldade conceitual do significado do termo Homo sacer , pois, enquanto é vetado violar coisas sacras, é lícito matar o homem sacro. Se o Homo sacer era vítima de sacrifício arcaico, poderíamos entender que sua morte fosse defendida na forma prescrita de um ritual; porém não se trata disso, embora pudessem matá-lo sem que isso fosse sacrilégio ou contaminasse (tornasse impuro) seu autor. Alguns afirmam que esse conceito é resíduo de uma época em que o Direito penal e o religioso eram indistintos, sendo essa a mais antiga forma de penalidade do Direito criminal romano. 2 O conceito humanitário de humanidade, do século XVIII, era uma negação polêmica da ordem aristocrático-feudal ou estamental então existente e de seus privilégios. 3 Agamben se refere à questão do monolinguismo em Ideia da Prosa ; do mesmo modo, Derrida trata efetivamente da questão em O monolinguismo do outro.

4 Termo usado na quarta capa do livro Profanations . Traduzido do italiano por Martin Rueff. Paris: Éditions Payot & Rivages, 2005. 5 Um dos maiores poetas da lírica italiana viveu poucos anos (1798-1837), escrevendo ainda na metade do século XIX. L'infinito : Sempre caro mi fu quest'ermo colle,/E questa siepe, che da tanta parte/De l'ultimo orizzonte il guardo esclude./ Ma sedendo e mirando, interminati/Spazi di là da quella, e sovrumani/Silenzi, e profondissima quïete/Io nel pensier mi fingo, ove per poco/Il cor non si spaura. E come il vento/Odo stormir tra queste piante, io quello/Infinito silenzio a questa voce/Vo comparando: e mi sovvien l'eterno,/ E le morte stagioni, e la presente/E viva, e 'l suon di lei. Così tra questa/ Immensità s'annega il pensier mio:E 'l naufragar m'è dolce in questo mare. Tradução: Sempre me foi cara esta erma colina/e esta sebe, que por toda a parte/do último horizonte o olhar exclui./Mas sentando e admirando, intermináveis/espaços para lá dela e sobre-humanos/silêncios, e profundíssima quietude/eu no pensamento me finjo; onde por pouco/o coração não me amedronta. E como o vento/ouço sussurrar entre estas plantas, eu aquele/infinito silêncio a essa voz/vou comparando: e me sobrevém o eterno/e as mortas estações e a presente/e viva, e o som dela. Assim entre esta/imensidão se afoga o pensamento meu;/e o naufragar é-me doce nesse mar. 6 Carta a Émile Bernard, de 23 de outubro de 1905. 7 No texto de Agamben, a palavra “Lei” está riscada ao meio de modo a fazer referência ao livro de Jacques Derrida, Força de Lei . DIREITO, JUSTIÇA E DESCONSTRUÇÃO: JACQUES DERRIDA E A FORÇA DE LEI KATYA KOZICKI (UFPR) Em primeiro lugar, eu gostaria de situar o lugar a partir do qual pretendo problematizar este tema, ou seja, situar o campo temático onde esta investigação se coloca. Meu campo de investigação é o direito e, mais precisamente, a filosofia e a teoria do direito, e são as preocupações inerentes ao campo da interpretação e aplicação do direito que orientam a leitura que faço de Derrida e, mais especificamente, da justiça e da democracia no pensamento deste autor. ¹ Justiça e direito. A justiça fora ou além do direito. ² A justiça enquanto algo por acontecer, assim como a democracia. A minha reflexão assume como pressuposto que apenas no cenário democrático podemos pensar a justiça na perspectiva derridiana. Ambas – democracia e justiça – compreendidas em seu caráter apóretico e consubstanciadas na ideia de um à venir , to come . Desta maneira, construí esta reflexão a partir de duas perguntas iniciais. A primeira indagação é se existe, verdadeiramente, o que poderia ser chamado de uma reflexão e/ou uma atitude política na desconstrução. Ou, colocado de outra forma, é possível repensar o político a partir de uma perspectiva derridiana? A resposta a esta pergunta nos obriga a ler nas entrelinhas do pensamento de Derrida e também a maneira como ele se

apropria do pensamento de Emmanuel Lévinas para desenvolver a ideia de justiça como infinita responsabilidade para com o outro. E também aqui já se entrelaçam justiça, ética, política e direito. A segunda questão é colocada pelo próprio Derrida ao iniciar a sua fala no colóquio “Desconstrução e a Possibilidade da Justiça”, realizado em Nova York, em 1989, pela Cardozo Law School . Referindo-se ao fato de que o próprio título do colóquio levanta uma dúvida ou uma suspeição, ele (Derrida) questiona: “A desconstrução garante, permite ou autoriza a possibilidade da justiça? Ela possibilita a justiça ou um discurso que tenha consequências para a justiça ou as suas condições de possibilidade?” (DERRIDA, 1990, p. 920). Aqui eu já antecipo a resposta dada por ele nesse mesmo texto: “a desconstrução é justiça” (ibidem, p. 944). Para demonstrar o significado desta afirmação eu vou percorrer o caminho empreendido por Derrida neste texto, com especial ênfase ao caráter aporético da justiça e esta como algo fora ou além do direito. Ao mesmo tempo que vou reconstruir o texto derridiano com esta finalidade, vou também tentar demonstrar de que maneira a ideia de democracia e de justiça “à venir” podem ser apropriadas no campo da interpretação e aplicação do direito, inclusive no sentido de intervenção e transformação que o discurso jurídico pode representar. I. A DESCONSTRUÇÃO E A EXPERIÊNCIA DO INDECIDÍVEL ³ O que pretendo ressaltar é que, não somente existe uma preocupação política no pensamento de Jacques Derrida, como também a própria desconstrução se afirma como atitude política, ao tomar como pressuposto a necessidade de desestabilização da política e do direito enquanto instrumentos de mediação social. ⁴ Esta ruptura da estabilidade seria a única forma (se existe alguma) de inaugurar novas formas de convivência. Nesta perspectiva, a desconstrução pode ser entendida como uma filosofia da resistência, uma “hesitação”, significada esta como a experiência do indecidível, o qual gera sempre vacilação, incerteza. Se a desconstrução é esta experiência do indecidível, como ultrapassar esta fronteira – da impossível decisão – para o campo da ação política, se concebermos a política como um momento privilegiado da decisão? Entendida a política como a criação artificial da ordem, o momento do julgamento – capaz de gerar estabilidade em meio ao caos ⁵ –, o que justifica ou legitima essa passagem? Parece-me que a desconstrução não oferece exatamente uma passagem do indecidível para a decisão, que nos permita falar propriamente em uma reflexão teórica para a política na perspectiva da desconstrução. Este caminho, ou meio, não é tematizado em Derrida de maneira direta. Na realidade, embora Derrida tenha trabalhado politicamente vários temas da atualidade, é como se existisse no pensamento deste autor uma recusa (ou esta poderia ser percebida apenas como uma ausência?) em problematizar a questão da política como questão propriamente dita, reconhecendo a esfera política que se afirma enquanto espaço de antagonismos, batalhas, conflitos, que exigem um agir no sentido da sua solução, ainda que esta reste sempre em aberto, sujeita a novas formulações. Neste sentido, Simon Critchley coloca: “A rigorosa indecidibilidade de uma leitura desconstrutivista falha no que se refere à atividade do julgamento político, da crítica política, e da decisão política” (CRITCHLEY, 1999, p. 190) É a partir do uso que Derrida

faz das noções levinasianas de ética e justiça que acredito ser possível visualizar a política em uma nova perspectiva, onde a alteridade seja efetivamente reconhecida. Entendida a justiça a partir de Derrida, penso que esta experiência do indecidível só pode ser vivenciada na democracia, mas não a democracia nos moldes em que ela é tradicionalmente concebida. A democracia tal como a experimentamos no presente seria profundamente antidemocrática para Derrida. Comentando que a ideia de justiça em Derrida está ligada à perspectiva do messianismo, do que poderia ser intitulado de messianismo democrático, John Caputo coloca: [...] a própria ideia de desconstrução, tudo na desconstrução está voltado à uma democracia por vir . Pois mesmo que as democracias existentes sejam o melhor que nós possamos fazer no momento presente, ou o modo menos pior de nos organizarmos, ainda assim as atuais estruturas democráticas são profundamente não democráticas. Elas são corrompidas, entre diversos fatores, pelo dinheiro que abertamente compra votos, por contribuições das corporações aos políticos e partidos políticos que permitem a estas corporações encherem o ar e a água de substâncias cancerígenas, a encorajar o fumo entre os mais novos e os mais pobres de nossa sociedade [...] (DERRIDA; CAPUTO, 1997b, p. 43). Somente na democracia é que podemos conceber a não totalização; somente a democracia pode proporcionar um sentido de comunidade onde a diferença e a alteridade sejam efetivamente constitutivas do social. Mas a democracia entendida como democracia à venir, to come: [...] e quando eu falo em democracia eu falo em democracia to come ( la démocracie à venir ); isto não significa que amanhã a democracia será realizada, e isto não se refere a uma democracia futura... Aqui está o futuro. Existe alguma coisa porvir. Isto pode acontecer... Isto pode acontecer, e eu prometo abrir o futuro ou deixar o futuro em aberto (DERRIDA, 1996, p. 83). Buscando explicitar esta perspectiva de to come , porvir, Jurandir Freire Costa coloca que Derrida, ao analisar o pensamento heideggeriano, diz: [...] o que chamamos ‘presente’ está sempre desarticulado em relação a si. A desarticulação vem do fato de o presente ser um lapso passageiro do tempo, que só recebe sua significação do porvir; daquilo que ainda não veio ou não existiu, e que ambos os autores evitam chamar de ‘futuro’ para não confundi-lo com a imagem reificada do tempo espacializado e valorativamente indiferente das ciências ou da metafísica. ⁶ Esta mesma noção de porvir envolve toda a concepção derridiana de justiça, como mencionarei adiante. Partindo da obra de Emmanuel Levinas, Derrida considera a ética como uma relação entre pessoas. A análise de Derrida situa a ética na perspectiva da responsabilidade, tomando a própria linguagem e sua construção como uma resposta ao outro , que reconhece a sua infinita transcendência. Anteriormente a qualquer decisão, a qualquer forma de mediação – seja a construção do discurso político, seja a construção do discurso jurídico –, a desconstrução descortina a dimensão da responsabilidade subjacente a estas construções. O momento ético dentro desta formulação pressupõe a

responsabilidade para com o outro, uma afirmação infinita e completa da alteridade; o outro que se afirma em toda sua alteridade e a impossível apreensão desta diferença. A ética, tal como Levinas ⁷ a concebe, coloca em questão minha liberdade e espontaneidade, minha subjetividade, e o outro . Para este autor (LEVINAS, 1990), a justiça define e é definida por esta relação ética com o outro, em resposta ao sofrimento do outro, para com o qual o sujeito tem uma infinita responsabilidade. Mas esta concepção ética de justiça tam bém se coaduna com uma noção política de justiça, no sentido de que toda relação ética é sempre situada em um determinado contexto sociopolítico, o qual implica diferentes concepções éticas, levando à necessidade da escolha entre estas, ou de uma decisão. Em Totalidade e Infinito, a ética é entendida como uma relação de responsabilidade, não totalizadora com o outro. A relação do eu com o outro é notadamente uma relação de assimetria, de radical desigualdade. ⁸ A passagem da ética para a política é caracterizada pela chegada de um terceiro, uma relação com todos os outros. ⁹ A relação com o outro é uma relação de proximidade – face a face ( face to face ), de responsabilidade que antecede qualquer questionamento. Já a política importa na responsabilidade por questionar, no sentido de que indagação deve remeter à busca por uma comunidade justa. A política é o devir da ética (ainda que no inter-relacionamento entre ética e política não exista uma relação de temporalidade, cronológica, no sentido de que uma antecede ou sucede a outra, uma vez que a relação ética é uma relação que ocorre em um espaço político). É com esta chegada, com a entrada em cena deste terceiro que se inaugura ou se instala a esfera política: é esta chegada (do terceiro) que, justamente, marca a transição da ética para a política em Levinas. Pois aqui é que surge a questão do julgamento, a própria questão da justiça: “Quem é, nesta pluralidade, o outro por excelência? Como eu posso julgar? Como comparar os outros – únicos e incomparáveis?” (LEVINAS, 1999, p. 102). Esta passagem é consubstanciada por uma transformação no próprio tipo de relação que se tem em mente: a relação ética caracterizada pela completa diferença/assimetria; a relação política caracterizada pela reciprocidade/igualdade entre os membros da sociedade. A relação de infinita responsabilidade entre o eu e o outro não supõe reciprocidade, uma vez que a minha responsabilidade perante o outro não pressupõe qualquer correspondência (para Levinas qualquer correspondência ou reciprocidade excluiria a generosidade implicíta na ideia de responsabilidade e a tornaria instrumental ou utilitária). E é precisamente aqui que surge a questão da justiça como problema político, e a partir dela se coloca a própria questão do direito e da política. Cito Levinas:

Minha procura por justiça pressupõe uma nova relação, na qual todo o excesso de responsabilidade que eu devo ter perante o outro é subordinado à questão da justiça. Na justiça existe comparação, e o outro não tem nenhum privilégio em relação a mim. Entre pessoas que adentram esta relação, uma outra relação deve ser estabelecida, que pressupõe a comparação entre eles, isto é, pressupõe justiça e cidadania. Limitação daquela responsabilidade inicial, a justiça ainda assim marca uma subordinação do eu em relação ao outro. Com a chegada do terceiro, o problema fundamental da justiça é colocado, o problema do direito, que é sempre do outro (idem). A apropriação, por Derrida, destas concepções também se descortina como uma percepção política da justiça, no sentido de que envolve a ideia de transformação política, a abertura para o futuro que pode trazer mudanças. A perspectiva da justiça como a experiência daquilo que não pode ser decidido ( undecidable ¹⁰ ) é o que leva o sujeito à política (e pode-se dizer que ao direito, também), dada a necessidade da decisão. Do indecidível para a decisão, este é o momento do julgamento, a passagem de uma experiência ética da justiça para a ação política. De que forma isto pode ser feito, ou quais são os conteúdos desta ação política? Esta resposta, em Derrida, jamais se encontra no presente, ou em alguma forma específica de ação política (assim também, como vai ser referido adiante, nunca uma decisão judicial específica pode ser considerada justa ); a justiça deve servir de guia, de elemento crítico, mas ela jamais poderá ser tornada presente. A justiça, enquanto elemento da ação política, é marcada pela simetria entre as partes, no momento em que, no espaço da polis, todos são sujeitos, cidadãos. Assim: Um aporte desconstrutivista da política, baseado na radical separação entre justiça e direito, e a não presença da primeira dentro do último, nos leva ao que se pode chamar de descorporificação da justiça, onde nenhum Estado, comunidade ou território pode ser tido como expressão da justiça. Alguém pode dizer que a ‘experiência da justiça é de uma absoluta alteridade ou transcendência, a qual guia a política sem estar completamente no reino público (CRITCHLEY, 1997, p. 36). Como já foi colocado, a forma política que melhor poderia conduzir a esta experiência da justiça seria a democracia. Não uma democracia realizada aqui e agora, mas a democracia entendida como possibilidade, como abertura para o futuro. Outrossim, justiça e democracia se entrelaçam como representações que escapam ao aqui e agora, escapam ao presente, representando algo que está sempre por acontecer. E aqui eu já passo ao segundo momento da minha reflexão, tematizando o caráter aporético da justiça. II. A JUSTIÇA ALÉM DO DIREITO Retornando à pergunta do início do texto (por que a desconstrução é justiça?), Derrida coloca que é na paradoxal situação de ser a justiça indesconstruível que reside a possibilidade da desconstrução propriamente dita:

O paradoxo que eu gostaria de submeter a vocês para discussão é o seguinte: é a estrutura desconstruível do direito ou, se vocês preferirem, da justiça como direito, que assegura a possibilidade da desconstrução. A justiça em si mesma, se é que isto existe, fora ou além do direito, não pode ser desconstruída (DERRIDA, 1990, pp. 942-944). Com isto se quer afirmar que a própria possibilidade da desconstrução está afirmada pela justiça, mas que esta, compreendida fora do direito, não pode ser desconstruída. É porque o direito pode ser construído que ele pode ser desconstruído, mas a justiça, separada deste, não pode sê-lo. A justiça, se considerada como algo imanente ao direito, instala um modo circular de justificação, em que algo se apresenta como justo, porque conteúdo de um ordenamento jurídico que em si mesmo é justo. Nesta situação, descrição vira prescrição. Ou seja, o direito é considerado como algo inerentemente justo e, assim, a sua descrição implica, ao mesmo tempo, a prescrição de que o seu conteúdo seja significado da justiça. Na perspectiva da desconstrução, a recusa em transformar descrição em prescrição justifica a insistência na separação entre direito e justiça, e esta transcende aos limites do ordenamento jurídico tal como ele é construído. Mas também precisa ser afirmado que em Derrida (assim como também em Lévinas), direito e justiça são indissociáveis. ¹¹ A desconstrução se apresenta sempre entre estes polos, do “direito que clama ser exercido em nome da justiça e da justiça, que, para se estabelecer, exige a sua instalação dentro de um direito que precisa ser enforced ” (DERRIDA, 1990, pp. 958-961). E é este um dos aspectos em que o caráter aporético da justiça se evidencia e também onde se apresenta a relação necessária entre direito e força, já revelando a relação entre justiça e violência. Visando explicitar a separação entre direito e justiça, Derrida, interpretando um texto de Montaigne, afirma: “A justiça do direito, a justiça como direito não é justiça. Leis não são justas por serem leis. Nós não as obedecemos porque são justas, mas porque elas têm autoridade” (ibidem, p. 938). Também neste pensamento de Montaigne revela-se a presença de uma íntima relação entre autoridade e Lei, e a questão da força ou violência implícita na prática da justiça. Partindo do termo em língua alemã Gewalt , Derrida (ibidem, p. 926) relaciona direito e força, força e autoridade. A tradução em inglês ou francês desta expressão é violência. Porém, segundo o autor, o termo violência não contém a mesma carga significativa que o termo alemão possui e, nesta língua, Gewalt daria a ideia de poder legítimo, autoridade justa, ao mesmo tempo que também compreende a violência. A questão é como diferenciar a força legítima, aquela que estabelece a autoridade, da força que é significada como violência ou abuso. De acordo com Derrida, na base de todo o direito reside um ato de força, que não é em si mesmo nem justo e nem injusto, nem legítimo e nem ilegítimo, e tal ato não pode ser avaliado de acordo com nenhum critério anterior que o possa justificar ou não. Neste sentido também, ainda que com outras fundamentações, recorrentemente a ciência jurídica tem colocado as regras jurídicas como elementos de um sistema autorregulado e autorreferente, cuja validade ou autoridade só pode ser buscada em fontes internas ao sistema ou, então, remetida a recursos hipotéticos, como é o caso da norma hipotética fundamental em Kelsen. ¹²

Conforme coloquei acima, a desconstrução enfraquece uma determinada concepção de direito, a qual pretende ver no modo deste funcionar os fundamentos da sua autoridade. O ato que funda o direito, desta forma, seria sempre um ato sem fundação, um ato instituinte, o qual carece, ele próprio, de fundação. E o direito, assim, pode ser sempre desconstruído, seja no tocante ao seu ato fundador, seja no tocante à autoridade que o originou, ou ainda na interpretação que prevalece. Mas este ato, cuja origem não pode ser chamada de justa ou injusta, não implica necessariamente a criação de uma ordem jurídica justa. Como acabei de afirmar, na base de todo ordenamento jurídico está contido um ato de violência que o institui. Desta forma, o direito sempre está relacionado à força, seja em um sentido físico ou em um sentido simbólico, seja para a instauração do ordenamento ou para a sua perpetuação. Novamente retornando à problemática da língua, Derrida frisa que na base de todo o direito está a noção de enforceability of the law or contract ou to enforce de law . Considerando este verbo fundamental ( to enforce ) para entender a relação entre direito e força, este autor remete à tradução francesa do termo enforceability - l’applicabilité , que considera insuficiente para exprimir o mesmo sentido que o termo em inglês, pois, quando se diz aplicar o direito ou o contrato, perde-se a ideia da força interna ao direito, a qual lembra que o direito é sempre uma força autorizada (DERRIDA, 1990, pp. 924-926). ¹³ Nas palavras do autor: Aplicação, “enforceability”, não é uma possibilidade exterior ou secundária que pode ser ou não agregada ao direito. Ela é a força que está essencialmente implicada no próprio conceito de justiça como direito, de justiça como transformando-se em direito... A palavra “enforceability” nos lembra que não existe uma coisa tal qual o direito que não implique em si própria, a priori , dentro da estrutura analítica do seu conceito, a possibilidade de ser aplicado (pela força) (ibidem, p. 924). A justiça, se entendida como direito, se reveste desta força autoritativa. Ou pode se confundir com esta mesma força . Ao identificar a força intrínseca relacionada ao direito, mais uma vez este autor frisa a necessidade de estes dois conceitos – direito e justiça – serem separados. A partir deste reconhecimento da força intrínseca ao direito, da possibilidade de o mesmo ser desconstruído – uma vez que, em algum momento, e por um ou mais modos, este é construído – e da separação entre direito e justiça, este autor explicita através de que formas a justiça pode ser entendida como aporia e, neste sentido, ser a mesma indesconstruível. Nas palavras de Derrida: Uma aporia é um não caminho. A justiça será, deste ponto de vista, a experiência daquilo que nós não podemos experimentar... Eu acredito que não exista justiça sem esta experiência, tão impossível quanto ela seja, de uma aporia . A justiça é a experiência do impossível. Uma vontade, um desejo, uma exigência de justiça cuja estrutura não seja a experiência de uma aporia não terá a chance de ser o que ela é, notadamente, um chamado por justiça (DERRIDA, 1990, p. 946). E novamente Derrida separa direito e justiça:

O direito não é a justiça. O direito é um elemento de cálculo e é justo que exista o direito, mas a justiça é o incalculável, ela requer que nós calculemos o incalculável; e as experiências aporéticas são experiências, tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto quer dizer, de momentos em que a decisão entre o justo e o injusto não é jamais assegurada por uma regra (ibidem, p. 946). A justiça se caracterizaria por ser infinita, incalculável, avessa à simetria, enquanto o direito existe no âmbito da legalidade, estável e estatutária, enquanto um sistema regulador e normativo. Uma das mais difíceis tarefas para a reconciliação do direito com a justiça é equacionar a generalidade daquele com a necessária singularidade desta. Esta é a questão que está por detrás de toda a aplicação do direito pelos tribunais: Como nós podemos conciliar o ato da justiça que sempre é concernente à singularidade, a indivíduos, insubstituíveis grupos e vidas, com o outro ou eu mesmo como outro, em uma situação única, com a regra, a norma, o valor ou o imperativo de justiça, o qual, necessariamente, tem uma forma genérica, ainda que esta generalidade prescreva uma aplicação singular em cada caso? (DERRIDA, 1990, p. 948) Ou seja, interpretar e aplicar o direito obrigam sempre a um balanceamento entre o geral e o singular, entre o texto passado da norma e a exigência presente da justiça. Atender ao chamado da justiça exige a recriação da norma contida no texto legal, não somente no sentido de que toda leitura/ interpretação implica a construção de um sentido novo, mas também no sentido de que a interpretação jurídica deve atender à singularidade de cada caso, através dos padrões gerais contidos na norma. Como fazer isto sem violar a generalidade da regra, sem abandonar esta regra ou, ainda, sem tornar seu conteúdo, inscrito no texto passado, tão fluido que ele já não sirva mais como um instrumento de mediação e estabilização, funções caracterizadoras do direito? Na resposta a esta questão é possível perceber a importância da desconstrução para o direito – e sua interpretação – e para a democracia. Pois a resposta a esta questão revela: a) a adequação entre o passado, o presente e o futuro – no sentido de que a construção do sentido da norma se dá na sua interpretação e a aplicação da mesma implica uma busca incessante pela justiça; b) esta busca incessante pela justiça, através de um compromisso ético dos tribunais para com a mesma pode levar à transformação do direito e à sua melhor adequação a uma sociedade democrática; c) o direito, servindo como elemento de estabilização das relações e efetivamente comprometido com a realização da justiça, pode levar à consolidação dos princípios políticos constitutivos da sociedade política (liberdade e igualdade, basicamente) fortalecendo os laços de solidariedade social e, por fim, d) um tipo de interpretação do direito que reconheça a sua indeterminação de sentido e que reconheça a contingência e fragmentação do social estaria melhor preparado para fazer frente ao crescente grau de complexidade e ao incremento do número de conflitos, típicos das sociedades contemporâneas.

O caminho teórico para buscar a resposta a esta questão implica um compromisso ético com a obtenção da justiça e a visualização desta como aporia , ou seja, algo impossível de ser experimentado, mas cuja experiência é imprescindível. Em primeiro lugar, o que se coloca é uma responsabilidade sem limites perante a memória, no sentido de se recuperarem as direções e os limites contidos nas concepções de direito e justiça historicamente construídos em cada sociedade. A desconstrução pode significar um clamor infinito pela justiça e por um incremento incalculável de responsabilidade. É no intervalo entre o direito e a justiça que a desconstrução encontra seu lugar privilegiado; desconstruindo-o, desestabilizando o tradicional do direito, a justiça pode encontrar caminhos para a sua expressão. Um aporte desconstrutivista da política, baseado na separação radical entre justiça e direito, e a não presença da primeira dentro do último nos levam ao que se pode chamar de descorporificação da justiça, onde nenhum Estado, comunidade ou território pode ser tido como expressão da justiça. Alguém pode dizer que a ‘experiência’ da justiça é a de uma absoluta alteridade ou transcendência, a qual guia a política sem estar completamente no reino público (CRITCHLEY, 1997, p. 36). Como afirmei no início, a forma política que melhor poderia conduzir a esta experiência da justiça seria a democracia. Não uma democracia realizada aqui e agora, mas a democracia entendida como possibilidade, como abertura para o futuro. Outrossim, justiça e democracia se entrelaçam como representações que escapam ao aqui e agora, escapam ao presente, representando algo que está sempre por acontecer. Algo que não se realiza no presente, mas também não no futuro: [...] ela deve ter um porvir , um ‘ to-come’ , o qual eu rigorosamente distingo do futuro que pode sempre reproduzir o presente. A justiça permanece, é ainda, um to-come , ela é algo porvir , a verdadeira dimensão de eventos irredutíveis no tempo. Ela sempre terá este porvir , por acontecer, sempre o tem. Talvez seja por esta razão que, desde que a justiça não é somente um conceito jurídico ou político, ela se abra para este porvir da transformação, a reformulação ou refundação do direito e da política (DERRIDA, 1990, p. 948). Neste sentido, se a justiça representa o encontro com o outro, a infinita responsabilidade que o outro demanda, a verdadeira experiência da alteridade, ela é algo que nunca se apresenta . Esta é a primeira aporia para Derrida. Ainda assim, ela pode significar a possibilidade da transformação do direito e da política, enquanto percebida como uma responsabilidade inafastável e inadiável. E também a ideia de algo que está por acontecer representa a possibilidade da transformação, um re criar, re pensar, re formular. Talvez seja esta a principal conclusão que se pode retirar da percepção de justiça como aporia , neste autor: a de que o fato de a justiça exceder as fronteiras do jurídico e do político, e o fato de que ela não é um elemento de cálculo, não pode servir como álibi para alguém negar a responsabilidade na busca da transformação das instituições que compõem a sociedade.

O passado, na concepção de tempo de Derrida (esta concepção não se relaciona a uma ordem cronológica, a qual pode ser traçada através do retorno linear a uma sucessão de momentos) é a própria constituição da temporalidade, uma vez que marca a origem daquilo que se apresenta, ainda que esta origem nunca possa ser captada integralmente. E o presente, nesta análise, é algo que aponta sempre para algo além de si, algo que está ainda por ser realizado. O presente seria um momento em suspenso, algo que efetivamente não pode ser concretizado, enquanto relação de continuidade entre o que é o que está para ser . E este é um dos sentidos em que a justiça se configura como aporia : a justiça enquanto algo que nunca é no presente , mas resiste sempre enquanto possibilidade de ser, no futuro. A justiça como sinal de um tempo presente sempre adiado, inalcançável. E é justamente este o seu caráter aporético: nunca se pode dizer, no presente, que uma decisão seja justa. “Deste paradoxo segue que não existe nunca um momento no qual nós possamos dizer no presente que uma decisão seja justa ...” [DERRIDA, 1990, p. 962]. Para que a justiça se realize, o ato de decisão deve, ao mesmo tempo, ser livre e responsável. E a remissão à Lei – ao direito – enquanto cenário onde se produzem estas decisões leva sempre ao momento da instituição desta mesma Lei, no qual a questão da justiça não foi levantada. No presente, pode-se dizer que uma decisão judicial é legal, ou legítima, mas não justa. Aliada a esta concepção de justiça inalcançável no presente está a ideia do fantasma do indecidível (la hantise de l’indecidable ). Toda decisão representa uma escolha, uma opção entre diferentes possibilidades de sentido. Cada decisão representa um corte, um “deixar de lado” outras possibilidades interpretativas. Quando Derrida fala naquilo que é indecidível, ele está relacionando não apenas à oscilação que existe entre sentidos conflitantes, ou entre regras que aparentemente são imperativas no caso. Porque a justiça representa sempre um momento que vai além do mero cálculo, do que pode ser apreendido; ela contém em si uma decisão impossível, uma presença que jamais poderá ser confirmada ou negada, ao mesmo tempo. Porque a concepção ética de justiça deste autor, enquanto relação com o outro, significa sempre uma infinita responsabilidade para com este outro, infinita no sentido de jamais poder ser concretizada, de ser irredutível ao cálculo ou à mera efetivação da norma concreta. E é neste sentido, da impossibilidade de que alguma vez esta responsabilidade para com o outro possa efetiva e plenamente ser realizada, que a justiça não se torna jamais presença, jamais existe no presente. O indecidível não se relaciona a um cálculo de possibilidades, mas sim a esta decisão que jamais consegue captar completamente a singularidade do outro. ¹⁴ Assim: Não existe um momento aparente em que uma decisão possa ser chamada presente e completamente justa: ou ela não foi produzida de acordo com uma regra, e nada nos autoriza a chamá-la de justa, ou ela já seguiu uma regra – seja por tê-la recebido, confirmado, conservado ou reinventado –o que por sua vez não garante absolutamente nada e, acima de tudo, se pudesse garantir, a decisão seria reduzida ao cálculo e nós não podemos chamá-la de justa (DERRIDA, 1990, pp. 962-964).

A terceira aporia referida por Derrida diz respeito à urgência que obsta o horizonte do conhecimento, ¹⁵ onde afirma que, ainda que a justiça jamais se apresente, ela não pode esperar. Cito: “Mas a justiça, embora inapresentável como ela pode ser, não espera. Ela é aquilo que não pode esperar. Para ser direto, simples e breve, deixe-me dizer isto: uma decisão justa é sempre requerida imediatamente, ‘right away’” (DERRIDA, 1990, p. 966). Retornando à separação entre direito e justiça, é necessário explicitar que, não obstante tal separação, e aqui eu volto a Lévinas; é necessário que o direito exista e que a justiça concebida dentro do direito se apresente, e que exista também o Estado, entendidos enquanto mediações simbólicas. Aqui eu cito novamente Jurandir Freire Costa: Em primeiro lugar, a justiça corre o risco de privar outros do cuidado que lhes é devido, concentrando-se em um só “outro”. A Lei, o direito não apenas comete injustiças; impede igualmente a justiça de se extraviar, caso venha a se deixar monopolizar pelas demandas infinitas de um só. Em segundo lugar, o direito pode limitar as eventuais injustiças imprevisíveis e incontroláveis perpetradas em nome da justiça (COSTA, 2010, pp. 256-257). E neste sentido, este autor cita uma afirmação de John Caputo ilustrativa da indissociabilidade entre direito e justiça: “leis devem ser justas; do contrário são monstros; justiça requer Força de Lei, do contrário é uma ‘justiça banana’” (DERRIDA; CAPUTO, 1997b, p. 136). Já me encaminhando para o final, gostaria de mencionar um outro aspecto, não menos importante, sob o qual podemos conceber a justiça em Derrida. Ao início, disse que o olhar que orienta a minha leitura de Derrida se constrói, em muito, a partir do potencial concreto da noção derridiana de justiça como instrumento de transformação e intervenção na realidade. E por isto não tematizei a questão da justiça como dom ou como dádiva (por assumir que estes se encontram sempre fora da perspectiva do direito), sobre a qual eu gostaria de fazer agora uma breve referência. Derrida, em uma breve passagem no texto Força de Lei, afirma que [...] a justiça é infinita porque é irredutível, irredutível porque devida ao outro, devida ao outro antes de qualquer contrato, porque ela é vinda, a vinda o outro como singularidade sempre outra. Esta ideia da justiça me parece irredutível em seu caráter afirmativo, em sua exigência de dom sem troca, sem circulação, sem reconhecimento ou gratidão, sem circularidade econômica, sem cálculo e sem nenhuma regra, sem razão e sem racionalidade (DERRIDA, 1990, p. 964). Esta ideia de justiça como dom ou dádiva aparece de forma mais clara no livro Espectros de Marx e, sem dúvida, sugere outras leituras que não aquela que acabo de fazer. Por fim, é necessário afirmar, com o próprio Derrida, que o caráter aporético da justiça não pode servir de álibi para não nos envolvermos na busca pela justiça. E finalizo citando, mais uma vez, Derrida: “Que a justiça exceda o direito e o cálculo, que o não apresentável exceda o determinável não pode e não deve servir de álibi para ficar fora das batalhas jurídico-políticas, dentro de uma instituição ou de um estado e outros” (ibidem, p. 970).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BERNASCONI, Robert; CRITCHLEY, Simon (Ed.). Re-reading Levinas. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1991. CORNELL, Drucilla. The philosophy of the limit . New York: Routledge, 1992. COSTA, Jurandir Freire. O ponto de vista do outro : figuras da ética na ficção de Graham Greene e Phillip K. Dick. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. CRITCHLEY, Simon. Derrida: private ironist or public liberal? In: MOUFFE, Chantal (Ed.). Deconstruction and pragmatism . London: Routledge, 1997. _. The ethics of deconstruction : Derrida and Levinas. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. DERRIDA, Jacques. Force de loi: le «fondement mystique de l’autorité». Deconstruction and the Possibility of Justice. Cardozo Law Review , v.11, n. 5-6, pp.919-1045, July/Aug. 1990. _. Remarks on deconstruction and pragmatism. In: MOUFFE, Chantal (Ed.). Deconstruction and pragmatism . London: Routledge, 1996. pp. 77-88. _. Politics of friendship . London: Verso, 1997a. DERRIDA, Jacques; CAPUTO, John D. Deconstruction in a Nutshell . New York: Fordham University Press, 1997b. FRASER, Nancy. Unruly Practices : power, discourse and gender in contemporary social theory. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1999. KEENAN, Alan Joyce. The democratic question : on the rule of the people and the paradoxes of political freedom. 1995. Tese (PhD em Filosofia) – Johns Hopkins University, Maryland. KOZICKI, Katya. Conflito e estabilização : comprometendo radicalmente a aplicação do direito com a democracia nas sociedades contemporâneas. 2000. Tese (doutorado em direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. _. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVEIRA, Manfredo; AGUIAR, Odílio; SAHD, Luiz F. N. A. S. (Org.). Filosofia política contemporânea . Petrópolis: Vozes, 2003. pp.141-160. LEFORT, Claude. L’Invention démocratique. Les limites de la domination totalitaire. Paris: Fayard, 1981. _. Political forms of modern society: bureaucracy, democracy, totalitarianism. Cambridge: MIT Press, 1986. _. Democracy and political theory . Minneapolis: University of Minneapolis Press, 1988.

LEVINAS, Emmanuel. Totalité et infini . Paris: Livre de Poche, 1990. _. Entre nous. Thinking-of-the-other. New York: Columbia University Press, 1998. _. Alterity & transcendence. New York: Columbia University Press, 1999. MOUFFE, Chantal. The return of the political . London: Verso, 1993. _ (Ed.). Dimensions of radical democracy . Pluralism, Citizenship, Community. London: Verso, 1992. (Ed.). Deconstruction and pragmatism . London: Routledge, 1997. . The democratic paradox. London: Verso, 2000. ROSENFELD, Michel. Deconstruction and legal interpretation: conflict, indeterminacy and the temptations of the new legal formalism. Deconstruction and the possibility of justice, Cardozo Law Review , v. 11, n. 5-6, p. 1.228, July/Aug. 1990. TORFING, Jacob. New theories of discourse : Laclau, Mouffe and Zizek. Oxford: Blackwell, 1999. 1 O próprio Derrida, logo no início do texto Força de Lei, menciona que se fosse necessário localizar um espaço adequado (não que ele acredite ser isto necessário) para a desconstrução, as escolas de direito seriam um espaço privilegiado de reflexão (DERRIDA 1990, p. 930). Daqui para frente este texto será referido apenas como Força de Lei. 2 Para a compreensão do pensamento de Jacques Derrida no texto Força de Lei foi fundamental a leitura de KEENAN (1995). A reflexão apresentada por Keenan neste texto embasa muitos dos argumentos aqui desenvolvidos. 3 A reflexão aqui apresentada acompanha os argumentos desenvolvidos por Simon Critchley no livro The Ethics of Deconstruction , especialmente no capítulo 5 – A Question of Politics: The Future of Deconstruction (cf. CRITCHLEY, 1999). Entretanto, embora me utilize desta análise, a conclusão a que pretendo chegar, tomando alguns de seus argumentos como premissa, está muito mais voltada ao campo fático, empírico ("la politique" em oposição à "le politique", aquela entendida como a atividade política, mediadora de relações sociais e este entendido como o conhecimento filosófico destinado a captar a essência do político). A discussão da atividade política empírica, nesta perspectiva, equivaleria à chamada "politics of dirty hands", que para o autor acompanha a intervenção em qualquer luta política (“dirty hands” aqui quer significar apenas a intervenção fática, o agir político em oposição à pura reflexão filosófica). O questionamento acerca de existir – ou não – uma reflexão política na desconstrução também pode ser encontrado em Fraser (1999 – (conferir especialmente o Cap. 4 – The French Derrideans: Politicizing Deconstruction or Deconstructing the Political?). 4 Estes argumentos já foram explorados por mim no artigo “A política na perspectiva da filosofia da diferença” (KOZICKI, 2003, pp. 141-160).

5 "[...] é porque existe o caos que existe a necessidade de estabilização" (DERRIDA, 1996, p. 84). E o direito e a política podem e/ou se constituem em instrumentos privilegiados de estabilização. 6 COSTA (2010, p. 244). O trecho citado está no ensaio “Derrida e Caputo: justiça e messianidade”. Este ensaio é extremamente instigante na relação que apresenta entre as categorias da justiça, democracia, amizade/ hospitalidade e perdão na obra de Derrida e também para apresentar a noção de messianismo na obra do autor. 7 A este respeito, conferir a posição de Simon Critchley (1992). 8 Nas palavras de Levinas: "Na relação com o outro este aparece para mim como alguém a quem eu devo algo, em relação a quem eu sou responsável. Daqui a assimetria da relação eu/você, uma relação de completa diferença entre mim e você, porque toda a relação com o outro é uma relação de responsabilidade" (LEVINAS, 1999, p. 101). 9 "Mas a aparente simplicidade desta relação entre mim e você , na sua completa assimetria, é perturbada pela chegada de uma terceira pessoa, quem aparece ao lado do outro , ao seu lado. Esta terceira parte é também o vizinho, o rosto, uma inatingível alteridade. Aqui, com este terceiro, nós temos a proximidade de todos os homens" (ibidem, p. 101, grifos nossos). 10 "Indecidível é o nome de dilemas insolúveis, os quais ocorrem sobre circunstâncias completamente determinadas. Mas indecidível refere não somente às aporias fundamentais dentro de um discurso, mas também à exigência de uma decisão constitutiva, que articule sentidos sociais em um sentido ou em outro" (TORFING, 1999, p. 307). De certa forma, pode-se dizer que undecidability refere-se a uma escolha de Sofia : a decisão é necessária, exigida por circunstâncias determinadas, mas, em verdade, aquilo que se coloca para ser decidido não poderia sê-lo, dada a impossibilidade de obtenção de qualquer critério que possa orientar a decisão e que seja completamente válido nas circunstâncias. Este conceito envolve uma abertura determinada, no sentido de não remeter a possibilidades infinitas e nem a um fluxo caótico; representa uma oscilação determinada entre possibilidades pragmaticamente determinadas. 11 Devo frisar que estes conceitos, justiça e direito, são conceitos indissociáveis, mas são também conceitos distintos e não é possível confundi-los, assemelhá-los. Este, aliás, é um dos mitos envolvidos na configuração do fenômeno jurídico: ao equiparar o direito ao justo o sistema busca uma forma autorreferente de legitimação, validando também as respostas que o próprio Poder Judiciário concede a partir da interpretação do direito. 12 Com isto se quer dizer que, notadamente na perspectiva do positivismo jurídico, a fonte de validade do direito se encontra dentro do próprio ordenamento jurídico, em uma estrutura hierárquica, que remete a validade da norma à norma superior. Para evitar o regresso ad infinitum , Kelsen se serve da norma hipotética fundamental, da qual derivaria a validade de todas as normas do sistema. Já esta norma está acima de qualquer consideração de validade ou legitimidade, sendo ela própria insuscetível de

avaliação. Neste sentido é que a norma fundamental em Kelsen, ou a regra de reconhecimento, em Hart, podem ser tomadas como exemplos de um "ato" fundador (ainda que, em Kelsen, esta seja um juízo hipotético, e, em Hart, a representação de uma prática social), o qual, segundo Derrida, não é ele próprio justo ou injusto, legítimo ou ilegítimo. 13 O mesmo se poderia dizer da tradução do termo para a língua portuguesa. Na falta de um sentido mais exato, este pode ser traduzido por aplicar a Lei, mas perde o sentido de força, de algo a ser exigido , tornado efetivo. 14 Aqui Derrida se distancia da noção de justiça presente em Levinas, uma vez que este concebe a justiça como uma relação de simetria. Derrida, ao inter-relacionar direito e justiça, vai atribuir a esta a fundamentação da singularidade, do diferente, em oposição ao direito, elemento de cálculo. Partindo do pressuposto de que o direito, juntamente com a política, é um espaço privilegiado de decisão/julgamento, pensamos também a justiça como espaço do singular, em oposição à generalidade do direito. 15 Ao iniciar a explicação sobre esta terceira aporia , Derrida, logo de início, diz querer manter-se distante de alguns horizontes: "Uma das razões pelas quais estou mantendo tal distância de todos estes horizontes – desde o ideal regulador kantiano ou do advento messiânico, pelo menos na sua interpretação convencional – é precisamente porque eles são horizontes. Como o nome grego sugere, um horizonte é, ao mesmo tempo, a abertura e o limite que define um infinito progresso ou tempo de espera" (DERRIDA, 1990, p. 966). RASTREANDO O FORA DA LEI DA HUMANIDADE ROBERTO VILCHEZ YAMATO (PUC-RIO) I. RELENDO O TEXTO INTERNACIONAL: “A JUSTIÇA FOI FEITA”? No dia 20 de setembro de 2001, às 9 horas da noite, o então presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush, deu início a seu discurso para a Sessão Conjunta do Congresso e para o povo dos EUA. Falando do Capitólio, em Washington, D.C., ele lembrou que, em tempos normais , os presidentes vão ao Congresso norte-americano para se reportarem sobre o Estado da União. Mas, naquela noite, de acordo com Bush, os tempos não eram normais. Referindo-se aos ataques “terroristas” sofridos há pouco mais de uma semana, em 11 de setembro, Bush afirmou que o Estado da União estava sendo observado e reportado, desde então e até aquele momento, pelo próprio povo norte-americano, e visto por todo o mundo. E ele estava ali para afirmar que o país estava alerta ao perigo, e ao chamado para defender a liberdade. Ele estava ali para afirmar que o luto do país havia se transformado em ira, e esta, em decisão. E a decisão tomada pelo presidente era a seguinte: Seja trazendo nossos inimigos à justiça , ou levando a justiça aos nossos inimigos, a justiça será feita (tradução livre do autor).

De acordo com Bush, nove dias antes, em 11 de setembro, “inimigos da liberdade” haviam cometido um “ato de guerra” contra os Estados Unidos da América, ato este que poderia ser considerado incomum, ou excepcional , tendo em vista a história norte-americana dos últimos 136 anos. Mas quem havia atacado o país? Quem eram os inimigos? Toda evidência reunida pelo governo norte-americano até aquele momento apontava para um conjunto de organizações terroristas conhecido como Al Qaeda , o mesmo grupo de “foras da lei” e “assassinos” (refiro-me aqui aos termos utilizados pelo próprio presidente Bush em seu discurso de 7 de outubro de 2001) que teria sido responsável pelos ataques contra as embaixadas norte-americanas na Tanzânia e no Quênia e pelo ataque ao USS Cole . E para quem não estivesse entendendo a natureza excepcional do inimigo, Bush então explicou: A Al Qaeda é para o terror o que a máfia é para o crime (tradução livre do autor). De acordo com o presidente, o objetivo da Al Qaeda era reconstruir o mundo, impondo seus valores radicais sobre todos, universalmente. Ademais, de acordo com ele, as diretivas terroristas determinavam o assassinato de cristãos e judeus, de cidadãos norte-americanos, e não faziam qualquer distinção entre militares e civis, incluindo-se nesta indistinção mulheres e crianças. Bush concluiu que: […] a única forma de derrotar o terrorismo como uma ameaça à nossa forma de vida é detê-lo, eliminá -lo, e destruí -lo onde quer que ele cresça (tradução livre do autor). Bush destacou ainda que o líder desta “organização terrorista transnacional” era Osama bin Laden; que a Al Qaeda , sob o comando de Bin Laden, tinha ramificações em mais de 60 países; e que tal organização treinava seus recrutas em países como o Afeganistão, de onde tais indivíduos eram enviados para outros países com o objetivo de planejar e executar o “mal e [a] destruição”. Bush declarou que o inimigo dos Estados Unidos era uma rede radical de “terroristas”, de “assassinos”, “foras da lei”. Ele alertou a população e o Congresso sobre como a “guerra contra o terror” começava com a Al Qaeda , mas só terminaria quando todo grupo terrorista de alcance global fosse encontrado, detido e derrotado. Isso porque tais terroristas “não matam apenas para acabar com vidas, mas para desestabilizar e acabar com uma forma de vida”. Em tal guerra global, de acordo com ele, as nações tinham que tomar uma posição; elas não podiam ser neutras. Ou elas estavam do lado dos Estados Unidos ou do lado dos terroristas. Afinal, esta era uma “luta do mundo”, uma “luta da civilização”, uma luta entre “ liberdade e medo, justiça e crueldade”; uma luta, portanto, em relação à qual “Deus não é neutro”. E direcionando-se aos militares norte-americanos, ele enfatizou: Sua missão está definida; seus objetivos são claros; seu propósito é justo .

Quase dez anos depois, na noite de 2 de maio de 2011, o atual presidente dos EUA, Barack Obama, comunicando a morte de Osama bin Laden, parece ter confirmado também a realização daquela “profecia” – ou programa de execução de “justiça” ( penal ) – de Bush. (Neste sentido, vale destacar novamente que Bush, pouco mais de uma semana após os ataques de 11 de setembro de 2001, havia declarado: “Seja trazendo nossos inimigos à justiça , ou levando a justiça aos nossos inimigos, a justiça será feita.”) No caso de Bin Laden, a “ justiça teria sido levada ao inimigo ” (em território paquistanês), e realizada, ou executada, por uma das tropas de elite das forças armadas norteamericanas. Comentando o êxito de tal “ justiça contra o terror” (“justiça” esta que legitima inomináveis violências na chamada “ guerra contra o terror”), o presidente Obama discursou: Os americanos compreendem os custos da guerra. Mas, como país, jamais toleraremos que nossa segurança seja ameaçada, nem ficaremos impassíveis quando nosso povo é assassinado. Seremos incansáveis na defesa de nossos cidadãos e nossos amigos e aliados. Seremos fiéis aos valores que fizeram de nós o que somos. E, em noites como esta, podemos dizer às famílias que perderam seus entes queridos para o terror da Al Qaeda : a justiça foi feita. Mas, a que tipo de justiça Obama estava se referindo? À justiça realizada em nome da defesa de uma – “ nossa ” – comunidade de cidadãos e amigos, tal como identificada por ele ao se referir a “ nossos cidadãos e nossos amigos ”? Ou à (mesma) justiça de Bush, aquela que seria levada “aos nossos inimigos”? “[A] justiça foi feita”? Será que “a justiça foi feita” e ponto final? Mas, será que há justiça? Será que a justiça é assim, identificável, calculável, possível , e ponto final? Será que a justiça é assim, identificável, calculável, possível, realizável em nome de cidadãos e amigos , contra não cidadãos e inimigos ? A justiça – tão certa, tão segura, tão justa, e tão nacionalista, tão nossa (norte-americana), tão cidadã, tão amiga, e tão soberana – de Bush e de Obama – parece não ser “a” (entre aspas; e fugidia ) justiça a que Derrida se refere em Força de Lei. Afinal, para Derrida, a justiça é da ordem do acontecimento , do incalculável , do impossível . Ali, em Força de Lei, Derrida escreve: Justiça, como a experiência da alteridade absoluta, é inapresentável [...]. Assim, inapresentável, impossível, incalculável, fugidia, a justiça é a chance do acontecimento e a condição da história. Parece-me, a justiça para Derrida não é, nem deve, e nem pode ser o ponto final, e soberano, da História (com “H” maiúsculo), ou da realidade (contemporânea), ou da guerra (contra o terror), tal como, de certa forma, em um certo tom, quer fazer crer o “ponto final” de Obama: “a justiça foi feita.”. Em Força de Lei, Derrida afirma que “a desconstrução é a justiça”. Poucas linhas adiante, ele acrescenta que ela, a desconstrução, ocorre no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do

direito; ele acrescenta ainda que ela, a desconstrução, “é possível como uma experiência do impossível”. E então sugere um subtítulo para a hipótese e as proposições que “tateava” ali: a justiça como possibilidade da desconstrução, a estrutura do direito ou da Lei, da fundação ou da autoautorização do direito como possibilidade do exercício da desconstrução. Assim, se a desconstrução ocorre, acontece , no intervalo que separa a indesconstrutibilidade da justiça, do incalculável, do impossível, do todo outro, e a desconstrutibilidade do direito, do calculável, do possível, da identidade, da estrutura “da fundação ou da autoautorização do direito”, então, e eu me posicionaria aqui, a desconstrução acontece entre “a” (com aspas) justiça, fugidia, inapresentável, a que Derrida se refere, e a (sem aspas) justiça feita, realizada, e executada sob o comando soberano de Obama. Dito de outro modo, a estrutura “da fundação ou da autoautorização” daquilo que Obama identificou , calculou , e apresentou como “a justiça feita” é o que torna possível o “exercício da desconstrução”. Exercício este que eu rascunho aqui, posicionando-me com as aspas e a interrogação que buscam suspender e questionar a afirmação, ou autorização, de Obama. Daí, o título desta parte: “A justiça foi feita”? II. O PIRATA EM SCHMITT, E O HOSTIS GENERIS HUMANI NO TEXTO INTERNACIONAL Em Força de Lei, Derrida escreve: É preciso levar isso [o discurso de autolegitimação da violência que funda o direito e o direito internacional] em conta para “des-limitar” um direito internacional construído sobre o conceito ocidental de soberania estatal e de não ingerência, mas também para pensar sua perfectibilidade infinita. Na margem de uma passagem rápida, entre parênteses, de Políticas da Amizade , Derrida lembra a “origem europeia” de certo direito internacional que ainda é “governado” por certas concepções de cidadania, de democracia, de demografia; por certa política da amizade. Em 2001, algumas semanas depois dos ataques de 11 de setembro, Derrida participou de um “diálogo” com Giovanna Borradori, publicado em Filosofia em Tempo de Terror . Ali, respondendo à pergunta de Borradori sobre o papel da filosofia diante do “evento” do “11 de setembro”, Derrida posicionou-se: Um “evento” tal certamente pede por uma resposta filosófica. Melhor, uma resposta que coloca em questão, no seu nível mais fundamental, as pressuposições conceituais mais enraizadas no discurso filosófico. Os conceitos com os quais este “evento” comumente tem sido descrito, nomeado, categorizado, são os produtos de um “sono dogmático” do qual apenas uma nova reflexão filosófica pode nos despertar, uma reflexão sobre filosofia, notadamente sobre filosofia política e sua herança. O discurso prevalecente, aquele da mídia e da retórica oficial, baseia-se muito

rapidamente em conceitos recebidos, como “guerra” ou “terrorismo” (nacional ou internacional). Neste sentido, então, Derrida continuou: Uma leitura crítica de Schmitt, por exemplo, provar-se-ia bastante proveitosa. De um lado, de modo a seguir Schmitt o mais longe possível na distinção de guerra clássica (um confronto direto e declarado entre dois estados inimigos, de acordo com a longa tradição do direito europeu) de “guerra civil ” e “guerra partisan ” (em suas formas modernas, apesar desta aparecer, tal como Schmitt reconhece, já no início do século XIX). Mas, de outro lado, nós também teríamos que reconhecer, contra Schmitt, que a violência que hoje tem sido desencadeada não é o resultado de “guerra”. Derrida conclui esta passagem, destacando que “se esta violência não é uma ‘guerra’ entre estados, ela também não é uma ‘guerra civil’, ou uma ‘guerra partisan ’, no sentido de Schmitt, na medida em que ela não envolve, como na maioria de tais guerras, uma insurreição nacional ou movimento de libertação que visa tomar o poder no território de um Estado- nação”. Ele destaca ainda que, mesmo que se queira insistir e falar em “terrorismo”, “este nome agora cobre um novo conceito e novas distinções”. De modo geral, Derrida parece estar sugerindo que o “evento” de 11 de setembro de 2001 abalou e colocou em questão conceitos e pressuposições conceituais existentes, demandando, assim, um novo engajamento com certas categorias político-filosóficas e político-jurídicas. E “uma leitura crítica de Schmitt, por exemplo, provar-se-ia bastante proveitosa”. Neste sentido, eu gostaria de sugerir aqui uma breve releitura de Schmitt, relendo certo jogo , certo jogo de rastros em Schmitt. Antes disso, porém, tendo em vista aqueles discursos de Bush e de Obama, bem como a “guerra contra o terror” e “a justiça” que supostamente teria sido feita com a morte de Bin Laden, deixe-me sugerir aqui o rastro de outra forma de violência, que não a guerra, que parece já estar jogada, e jogando, no texto schmittiano. E para isso, vale citar a seguinte passagem do texto de Gary Ulmen, o tradutor de Nomos da Terra e de Teoria do Partisan para o inglês: Politicamente falando, a única (medida) política lógica contra o terrorismo internacional, especialmente contra o terrorismo religioso, não é a “guerra” tal como comumente entendida, mas o que Schmitt chamou de “controle de peste” [ou “controle de peste social”]. [...] Dada a situação atual, a única construção possível para uma nova ordem mundial no presente momento é uma luta comum contra este novo foe . (O texto de Ulmen é intitulado “Guerra Partisan , terrorismo e o problema de um novo nomos da Terra”). Em sua Introdução à Teoria do Partisan , que traduziu para o inglês, Ulmen enfatiza a importância das leis da guerra para um novo nomos da Terra, destacando que a teoria do partisan tem implicações fundamentais para o conceito do político. Nesse contexto, e “atualizando” o exemplo de inimigo absoluto de Carl Schmitt, Ulmen faz a seguinte observação: A teoria do partisan de Schmitt imediatamente levanta a questão da distinção entre o partisan e o terrorista que, logicamente, culmina na teoria

do terrorista, que, de novo, vai à questão do conceito do político, à questão do inimigo absoluto , i.e., o foe , e à questão do novo nomos da Terra no século XXI. A teoria do partisan está relacionada à diferenciação conceitual entre inimigo e foe (entre inimigo público e inimigo privado; entre hostis e inimicus ; entre justus hostis e injustus hostis ), razão pela qual o partisan é identificado como uma categoria política intermediária: a categoria do partisan é intermediária em relação aos pontos diametralmente opostos do inimigo real ( hostis ) e do inimigo absoluto ( foe ). Afinal, este livro de Schmitt, tal como o seu subtítulo na tradução em inglês de Ulmen identifica, é um comentário – intermediário – sobre o conceito do político. Neste sentido, vale acrescentar as seguintes observações de Ulmen, ao comentar o exemplo atualizado de “inimigo absoluto” schmittiano: [...] Terroristas não são soldados! […] Nos termos de Schmitt, terroristas estão “fora da lei”. E ele explica: O que isso significa concretamente? Fora de que lei? Obviamente, isso significa fora do direito internacional, em geral, e das leis da guerra, em particular . Lembre-se aqui de que este é o ponto central da disputa em torno da nova categoria, a de “combatente inimigo ilegal”, articulada pelo governo Bush no contexto da guerra contra o terror, e, mais especificamente, da legitimação do campo de detenção de Guantanamo Bay – que, lembre-se também, ainda está aberto e funcionando. Aqui, vale retornar àquilo que Schmitt chamou de “controle de peste social” (e que Ulmen recentemente prescreveu contra o novo foe ). Neste sentido, vale destacar que, em Nomos da Terra , a ideia de “controle de peste social” (“ social pest control ”) é articulada por Schmitt no momento em que ele está comentando, criticamente, o caráter “punitivo” da concepção medieval de guerra justa; concepção esta que, na releitura de Schmitt, parecia estar retornando ou sendo rearticulada no contexto da primeira metade do século XX. Para ele, tal concepção era a mais radical antítese da tese de guerra não discriminatória originalmente rascunhada por Vitoria e, depois, consolidada por Gentili e Vattel – e defendida por Schmitt em Nomos da Terra . Na base desta tese de guerra não discriminatória estava a categoria do direito internacional público europeu de justus hostis , de inimigo justo. De acordo com Schmitt, a antítese desta significava a justicialização, a criminalização da guerra, e consequentemente a absolutização do inimigo. Com isso, Schmitt alerta, desaprovando: A guerra passa a ser uma “ofensa” no sentido criminal, e o agressor torna-se um “bandido” no sentido criminal mais extremo: um fora da lei, um pirata.

Aqui, então, eu volto àquele certo jogo de rastros em Schmitt, sugerindo uma breve (ou brevíssima) releitura crítica do texto schmittiano a partir do pirata. Isso porque se, de um lado, a categoria do partisan é fundamental para que Schmitt teorize e construa o seu ponto intermediário do político, relendo Nomos da Terra e, mais particularmente, Teoria do Partisan, o pirata parece ser um significante importante no jogo de significantes schmittiano. Nesse texto, Teoria do Partisan, ele recorre diversas vezes à categoria de pirata para diferenciar e identificar a categoria de partisan , e, assim, a de inimigo, de justus hostis . Por exemplo, ao comentar o primeiro elemento da definição do partisan , a irregularidade , Schmitt destaca: A irregularidade do pirata não tem nenhuma relação com a regularidade. Contrariamente, o corsário saqueia no mar, e é equipado com uma “carta” do governo de um Estado; o seu tipo de irregularidade, portanto, tem alguma relação com a regularidade, razão pela qual até a Paz de Paris de 1856 ele era uma figura juridicamente reconhecida do direito internacional europeu. Nesse sentido, ambos o corsário da guerra no mar e o partisan da guerra na terra poderiam ser comparados entre si. E no que se refere ao terceiro elemento de tal definição, maior intensidade de engajamento político, ele explica: Este critério conceitual do caráter político [do partisan] tem (em uma exata inversão) a mesma estrutura que o pirata no direito da guerra no mar. O conceito de pirata tem o caráter não político de suas más ações, que são orientadas para o roubo e o lucro privado. O pirata tem, como dizem os juristas, animus furandi [intenção má]. E em Nomos da Terra , comentando a relação entre o estabelecimento da ordem no mar e a absolutização do pirata, Schmitt escreve: Apenas quando se ergueram os grandes impérios marítimos, as nações marítimas, ou, para usar uma expressão grega, thalassocracias , a segurança e a ordem foram estabelecidas no mar. [...] O pirata foi declarado como um inimigo da raça humana ( hostis generes humani ). Isto significou que ele foi proscrito e expulso, despido de seus direitos, e feito [declarado] um fora da lei pelos governantes dos impérios marítimos. Na linguagem político-jurídica internacional, o pirata é considerado o primeiro criminoso, fora da lei, internacional. Ademais, o pirata é identificado, em latim, como o inimigo da raça humana, o inimigo da humanidade: hostis generes humani (ou hostis humani generis ). III. O FORA DA LEI DO UNIPLURIVERSO SCHMITTIANO Para Schmitt, a esfera do político é identificada, fundamentalmente, pela distinção entre amigo e inimigo, e determinada, em última análise, pela “possibilidade real do inimigo ”. Assim, como a entidade política pressupõe a existência de um inimigo, pressupõe-se também a “coexistência com outra entidade política”. Dito de outro modo, o “mundo político é um pluriverso , não um universo”.

Portanto, nos termos de Schmitt, do ponto de vista do político, um Estado mundial que “abraça o globo inteiro e toda humanidade não pode existir”. Isso significaria o fim do mundo político , e a realização da “ideia utópica de despolitização total”. Isso significaria o fim da distinção entre amigo e inimigo. E daí, sua oposição veemente ao confisco da palavra humanidade : “quem quer que invoque humanidade quer trapacear”. E nesse sentido, ele alerta: Quando um Estado luta contra seu inimigo político em nome da humanidade, esta não é uma guerra em nome da humanidade, mas uma guerra em que um Estado particular procura usurpar um conceito universal contra seus oponentes militares. Em detrimento de seus oponentes, ele procura se identificar com a humanidade da mesma forma como alguém pode abusar da paz, da justiça, do progresso e da civilização para reivindicar estes como seus próprios, e negá-los ao inimigo. Schmitt continua: Confiscar a palavra humanidade, invocar e monopolizar tal termo provavelmente têm certos efeitos incalculáveis, tais como negar ao inimigo a qualidade de ser humano e declará-lo como um fora da lei da humanidade ; e, assim, uma guerra pode ser levada à mais extrema desumanidade. Note-se: Schmitt está preocupado com o inimigo, com o político. Ele protesta contra a criminalização e absolutização do hostis , do justus hostis . Ele protesta contra a negação da “qualidade de ser humano” ao inimigo – e, não, a todo e qualquer outro, singularmente outro. Para além do dualismo amigo/inimigo, para além das exceções decididas nas fronteiras dos Estados-nações, e nas margens do texto de Schmitt, pareceme, é possível identificar uma categoria de indivíduo que – “fora” (com aspas) da linguagem político-jurídica inter/nacional, inter/estatal, de origem europeia (como lembrou Derrida), ou seja, “além da linha” do “unipluriverso” de Schmitt – está constitutivamente associada a uma forma de violência que não é a guerra clássica nem a guerra civil nem a guerra partisan. Em jogo, neste jogo de rastros, de políticas de amizade, e de inimizade, e de diferentes formas de violência, já em Schmitt, também está aquilo que Ulmen recentemente lembrou, e prescreveu, o controle de peste social ; ou, relendo o texto schmittiano a partir do pirata, do hostis generes humani , do inimigo da humanidade, o que eu identificaria aqui como controle – “inter/ nacional” – de peste social, ou seja, o controle de peste social que se dá na fronteira do unipluriverso schmittiano, da linguagem “inter/nacional”, de “origem europeia”, e, portanto, desde sempre colonial. Lembrando aquele posicionamento de Derrida logo após os ataques de 11 de setembro de 2001, eu me posicionaria então: é preciso reler criticamente o texto de Schmitt; e com ele, nele, o texto que também é o texto colonial, “inter/nacional”, de origem europeia, o texto que constitui e legitima formas de violência não apenas dentro ou na fronteira do Estado-nação, mas também nas fronteiras do “inter/nacional” soberano, daquele unipluriverso,

colonial, que parece ser a condição de possibilidade para o conceito do político de Schmitt. Invertendo e deslocando a construção política schmittiana, eu concluiria posicionando-me: é preciso continuar o exercício da desconstrução; é preciso continuar rastreando o Fora da Lei da Humanidade.